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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA DAMA HONRADA / Jo Beverley
UMA DAMA HONRADA / Jo Beverley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA DAMA HONRADA

 

— Eles roubaram a Virgem Santíssima!

Os servos de Woldingham olhavam boquiabertos enquanto os cavaleiros disparavam pela estrada e desa­pareciam na floresta enregelada, os gritos de sua refém se dissipando na brisa gélida da noite. Então, como numa revoada, os aldeões se dispersaram. A maioria correu para suas casas simples de teto de palha, evitan­do ser incriminados no desastre. Os mais cautelosos reuniram as famílias e partiram em direção à floresta.

Afinal, quem além dos de Graves cometeria tal cri­me? Quando o Lorde de Woldingham entrasse em con­flito com seu antigo inimigo, ninguém ia querer saber o destino das flechas e das espadas.

Logo só restavam o padre da vila e o chefe da aldeia na estrada que levava ao castelo, sem contar o burro abandonado que impassivelmente aguardava, de cabe­ça baixa ao luar.

Até José jogara fora seu manto emprestado e fugira. Os dois homens se entreolharam em silenciosa comise­ração e começaram a correr em direção ao castelo que despontava envolto em bruma logo adiante. Apesar das janelas envidraçadas brilharem com as luzes festivas e das fogueiras crepitarem nas muralhas externas, o lu­gar continuava sendo uma sombra sinistra contra o céu estrelado.

Alguém teria que contar a Henry de Montelan, Lor­de de Woldingharfl, que sua filha fora raptada por seu pior inimigo.

E logo na época do Natal!

Os portões estavam abertos, aguardando a tradicio­nal procissão que trazia o santo casal ao abrigo do cas­telo na véspera de Natal.

Diferentemente da crueldade mostrada na Bíblia, o Lorde de Woldingham ofereceria a proteção de sua for­taleza a Maria e José, conduzindo-os para o ambiente luxuoso de sua câmara solar. A peça era uma tradição havia muitas gerações, desde que o último de Montelan partira para as Cruzadas, um costume fortemente rela­cionado com a rixa entre Woldingham e o castelo vizi­nho de Mountgrave.

Os dois guardas encararam os homens que chega­ram, e depois olharam adiante para divisar a procissão. O padre Hubert e o chefe Cob Williamson falaram so­bre o ocorrido quando entraram correndo. Os guardas ficaram em alerta.

Problemas. E logo na época do Natal!

Os homens abriram caminho em meio ao pátio lotado de pessoas, anunciando os acontecimentos sem se deter para responder às perguntas alarmadas. Tipsy parou de regar as carcaças que assava nos espetos e o padeiro sua­do praguejou, chamando seus assistentes para limpa-las

A celebração ruidosa que acontecia no grande salão espalhava luz dourada pelas frestas e transbordava alegria pela porta aberta da fortaleza.

Os homens subiram as escadas externas e pararam para recuperar o fôlego. Dentro do salão, grandes laba­redas de fogo crepitavam para afastar a brisa gelada do inverno, espalhando as faíscas das toras de madeira e misturando a fumaça com a das tochas que flamejavam nas paredes.

Pelo salão, as damas e os cavalheiros de Wolding­ham se confraternizavam com os convidados, os cava­leiros da casa e os serviçais mais antigos. Um monte de crianças — desde bebês de colo até quase adolescentes, corriam por entre as mesas acompanhado por um ban­do de cachorros.

Pouco a pouco os presentes se aperceberam da pre­sença dos homens, e um silêncio ansioso se instalou.

O Lorde Henry de Montelan se levantou, troncudo, gracioso e corado pelo calor do ambiente.

— Finalmente apareceram! Que tal dizerem suas fa­las?

O chefe olhou para o padre Hubert e ele assentiu. Deu um passo à frente.

— Lorde Henry, algo terrível aconteceu.

— O que foi? — perguntou ele, descendo do tablado para se aproximar. Seus quatro leais filhos se levanta­ram, em alerta. Um cão rosnou.

— O que houve? Onde está o santo casal? E minha filha?

O padre caiu de joelhos.

— Os de Graves a raptaram, milorde.

Depois de um breve momento, um homem gritou Sir Gamei, o mais valente dos filhos de Lorde Henry, deu um salto e se postou à frente, os dentes trincados.

— Minha espada! Onde está minha espada? Vou destruir todos eles! Preparem os cavalos! Vingança!

E marchou em direção à porta, os irmãos logo atrás.

Lorde Henry o deteve com um simples gesto da mão. Sem dúvida era a única pessoa na Inglaterra capaz de tal façanha. A expressão de alegria desaparecera completamente.

— Alto lá, meu filho! Teremos vingança, e sangue por todo lado, mas não cairemos em nenhuma armadilha. Cavalos! — trovejou ele, e os homens do salão co­meçaram a se mexer — Armaduras! Armas! Gamei, Lambert e Reyner, vão atrás deles e tragam Nicolette de volta para casa em segurança. Lembrem-se, em segurança. Harry, você e eu ficaremos aqui. Por precau­ção — disse o pai para o filho mais velho.

O bravo Harry concordou, um tanto desapontado.

— Em plena época de Natal?! — indagou o jovem Reyner, de 16 anos, quase tão alto quanto os irmãos. — Eles roubaram a Virgem na véspera do Natal?!

— Nada! — berrou o pai. — Nada é perverso demais para os de Graves.

Em instantes os sons do castelo ganharam tom mar­cial, e o Lorde, seu filho mais velho e seu mestre-de-ar; mas se reuniram numa conferência militar. O padre Rubert e Cob, no íntimo, se alegraram por poderem sair dali, e desceram as escadas de fininho. Já que ninguém mais estava com vontade de festejar, levaram um grande porco assado e alguns pães. Uma migalha do banquete para os pobres aldeões.

— Que situação! — resmungou Cob, mastigando um suculento pedaço de carne.

— E na época do Natal. No cortejo sagrado! Ho­mens sem fé. Verdadeiros hereges!

— Tomara que nada de mal aconteça com Lady Ni­colette, padre. Para o bem de todos.

— É verdade — reforçou o padre, olhando de sos­laio para o amigo. — Mas sabe de uma coisa, Cob? Po­deria jurar que vi Lady Nicolette na galeria do salão, espionando.

O chefe parou.

— O que disse, padre? Não, padre, deve ser engano seu.

— Não sei não. E se alguma outra pessoa repre­sentasse a Virgem? Achei estranho Lady Nicolette não falar comigo e permanecer tão encolhida por baixo do manto.

— Mas esta é a tradição, padre. Uma tradição sagra­da. A virgem mais jovem em idade de se casar na famí­lia do Lorde representa a Virgem Maria. E quando...

— E quando é recebida no solar de Woldingham, ao invés de ir se abrigar no estábulo, traz as bênçãos de Deus para todos no ano que se inicia. Sim, sim. Conhe­ço a história. Mas dá para pensar, não dá?

— Dá é para arrepiar de medo, isto sim! E o que será de nós se a tradição for rompida?

— E o que acontecerá com os envolvidos quando tudo for descoberto? — arriscou o padre.

Ele não estava pensando nos camponeses, e nem mesmo nos que viviam no feudo, mas nas jovens envol­vidas na perigosa farsa.

E em suas possíveis razões.

O padre Hubert fez o sinal da cruz e começou a rezar.

 

A enorme Barriga postiça tinha uma vantagem, con­cluiu Joan de Hawes enquanto sacolejava no lombo do cavalo, a cabeça baixa, na frente de seu raptor. Ela amortecia o corpo. Desistira de espernear e berrar. Tudo que conseguira fora uma dor na garganta. Seu raptor a tratava como se fosse um saco de batatas, ignorando-a por completo — a não ser pela mão que a segurava pelo cinto, impedindo-a de cair, acidental­mente ou de propósito.

A despeito da raiva e do medo, ela se sentia grata por aquele aperto firme. Eles estavam descendo uma trilha na floresta a galope, e ela não pretendia morrer daquele jeito. Mas, afinal, quem a arrancara do burro e por quê? li logo agora, quando causaria tanto problema? De re­pente, o cavaleiro puxou as rédeas do cavalo, o fez pa­rar e á suspendeu como uma trouxa. Antes que ela gri­tasse, ele a virou, a colocou sentada de lado, em frente a ele no cavalo. Quando a cabeça de Joan parou de gi­rar, eles já estavam cavalgando novamente, e ela só conseguiu ver de relance um capuz escuro. Agora, po­rém, era possível ver outros cavaleiros por perto. Cava­leiros estranhos, que corriam como sombras ligeiras e diabólicas através da mata enregelada. Um pouco antes, eles se haviam precipitado sobre a vila em silêncio, como se fossem falcões negros vindos do céu...

— Nossa Senhora, me proteja! — suplicou ela. Será que havia sido levada pelas forças das trevas?

Ela se virou para tentar ver se o raptor tinha um rosto humano, mas só enxergou a escuridão. Um estranho tremor percorreu seu corpo, mas ela recobrou o bom senso. Ele era quente como um homem e tinha cheiro de homem: uma mistura de suor, lã e cavalo. Conse­guiu ver que seu capuz estava à frente do rosto para es­condê-lo melhor, e a pele era queimada de sol também. Ou seja, um cavaleiro como outro qualquer.

Então, percebeu algo mais. Este cavalo galopante não tinha sela, e seu dono não vestia cota de malha. As rédeas e os freios eram simples cordas. Portanto, eles não eram demônios sobrenaturais, e sim homens co­muns que não tinham colocado arreios nos cavalos nem vestido suas malhas para evitar qualquer ruído. E os cavalos eram escuros também. Não era à toa que pare­ciam surgir do nada. Eram — só podiam ser — os de Graves, os inimigos mais terríveis de seu tio, aprovei­tando a oportunidade para arruinar a mais sagrada cerimônia da família de Montelan. Mesmo assim, ela ad­mirava o plano e sua execução. Afinal, adorava um trabalho bem feito.

Mas por que, puxa, por que, tinham escolhido logo este ano para tamanha maldade, quando causaria tantos, m problemas terríveis? Sua prima Nicolette estava escalada para representar a Virgem e ninguém podia saber que ela e Joan havia trocado de lugar.

Talvez eles logo a soltassem. Tinham conseguido Interromper a cerimônia, e não havia necessidade de mantê-la presa. Se fosse assim, será que ela poderia voltar para o castelo antes que Nicolette fosse desco­berta lá? Provavelmente... se ele a deixasse descer agora.

— Senhor! Ele a ignorou.

— Senhor! — gritou ela.

Ele não prestou atenção e continuou correndo pela entrada envolta no breu. Se afastavam cada vez mais de Woldingham. Joan deu uma cotovelada para trás com toda a força. O cavalo pareceu tropeçar, e o raptor sol­tou um gemido, mas só abriu a boca pra falar:

— Pare com isto.

Continuaram a galopar, e ela sabia que só parariam quando ele achasse certo parar. Os homens eram assim. Que o diabo o carregue! Ela pensou em se jogar do ca­valo, mas seria suicídio. Ela estava apavorada e irrita­da. Que bobagem estavam fazendo! Mas a rixa sangui­nolenta entre os de Graves e os de Montelan não passa­va de bobagem. Custara vidas de várias gerações e des­pedaçara toda a região só por causa de um pedaço de pano trazido de Jerusalém na Primeira Cruzada.

Logo que chegara a Woldingham para fazer compa­nhia para a prima Nicolette, ficara sabendo tudo sobre a maldosa e desonrada família de Graves. Aparente­mente, eram culpados de tudo: desde o roubo daquele estandarte até o mau agouro sobre as ovelhas de Woldingham no último mês de agosto. As histórias po­diam ser verdadeiras, mas ela não estava convencida.

Principalmente por causa do atual chefe da família de Graves.

Não que ela tivesse conhecido o famoso Edmund de Graves, claro, mas porque toda a Inglaterra tinha ouvi— i do falar do Leão Dourado: bonito como São Miguel, corajoso como São Jorge, protetor dos fracos, defensor dos justos, vingador terrível para os malfeitores... Lendas sobre ele eram contadas e trovadores louvavam ! seus feitos. O Leão Dourado era filho do Leão de Prata, Remi de Graves, guerreiro poderoso e conselheiro do rei. Lorde Edmund fora treinado desde a adolescência pelos melhores tutores e guerreiros, incluindo o mítico Almar de Font, um herói famoso por si só. Aos 16 anos, o Leão Dourado fora premiado com louvor em um torneio. Aos 17, lutara brilhantemente contra a França. Aos 18, desbaratara sozinho um antro de foras-da-lei que aterrorizavam as áreas vizinhas aos seus domínios.

Possivelmente era verdade que, gerações antes, um de Graves enganara um de Montelan no caso do estan­darte, mas o Leão Dourado não tinha nenhum envolvi­mento com rivalidade e vingança nos dias de hoje.

Como poderia?

Então ela não estava em poder dos de Graves? As ré­deas do cavalo foram puxadas para fazê-lo parar, pressionando-a ainda mais contra o corpo do raptor. Fosse lá quem fosse, era um cavaleiro soberbo. Aquele era um fogoso cavalo de batalha, pura energia e músculos, e seu raptor o controlava só com as pernas e um pedaço de corda.

— Eia, Thor — disse o homem, se inclinando para frente para acalmar o animal e lhe dando tapinhas no pescoço. A parede de músculos de seu peito quase es­magou Joan, e ela gritou para protestar.

— Minhas desculpas, Lady — disse ele, se endireitando.

— Agora, senhor... — arriscou ela, pronta para pedir que a soltasse. Mas ele pediu que ela esperasse e se vi­rou em direção aos outros cavaleiros negros que se aproximavam, a respiração evidente no ar frio.

Joan ficou esperando, irritada. Estudou a meia-dúzia de homens encapuzados, procurando uma pista para descobrir de onde haviam surgido. Não tinham nenhu­ma característica marcante, e eram quase como sombras que se moviam pela floresta prateada ao luar. Se ouviam apenas a respiração dos cavalos e o barulho de seus cascos.

— Está tudo bem — anunciou o raptor. E, sem qual­quer comentário, os outros deram meia volta, se espa­lhando em diferentes direções, evitando as trilhas existentes e desaparecendo na floresta.

Tamanha eficiência deixava transparecer a mão do grande Lorde Edmund, mas ela não acreditava que ele se dignaria a fazer algo tão mesquinho.

Talvez fossem alguns de seus homens pregando uma peça. Ela tinha ouvido falar que os mestres-de-armas e os servos das duas famílias eram os mais interessados cm arrumar confusão.

O mais importante no momento era se libertar e vol­tar para Woldingham.

— Você vem da parte dos de Graves? — sussurrou ela quando ele se embrenhou na mata, numa direção di­ferente da dos outros.

Ele se inclinou sobre ela de novo, desta vez para pro­tegê-la de um galho de árvore.

— Claro. Você está segura, Lady. Não tenha medo.

Segura. Parecia a palavra mais inadequada para a si­tuação. Joan nunca se sentira tão insegura em toda sua vida, e não era por causa dele. Ela e Nicolette tinham planejado trocar de lugar quando a Sagrada Família estivesse no castelo, mas, quanto mais o tempo pas­sava, mais provável era que Nicolette fosse descober­ta. Tio Henry pensaria que elas haviam tramado uma travessura infantil e ficaria furioso. Se ele descobrisse o motivo, então... Joan nem queria pensar na fúria e na violência...

Ela precisava voltar.

— Deixe-me ir embora — suplicou ela. — Você já conseguiu o que queria.

— Consegui?

— Claro que...

Ele tapou sua boca com a mão enorme e calejada, e ela ouviu o mesmo que ele: os latidos dos cães de caça do tio.

— Os sons são levados pelo ar frio do inverno — co­chichou ele em seu ouvido. — Tente não falar.

Ele tirou a mão e eles continuaram, numa velocidade bem menor por causa do terreno desconhecido. Não fa­lar? Como ela poria algum bom senso na cabeça dele se não pudesse falar? Mesmo assim, Joan permaneceu em silêncio. Por que discutir? Como ela poderia não voltar para o castelo do tio se os cães já estavam fare­jando o rastro deles?

Porém, ao lembrar de Nicolette, ela tentou de novo. Talvez os cães não os farejassem.

— Ponha-me no chão — sussurrou ela. — Depois você pode fugir.

— Nós já estamos fugindo — respondeu ele, em tom divertido.

— Você é um só. Não pode lutar com eles. E os ufles...

— Existem muitos caminhos a seguir. É difícil ficar de bico calado, não é, Lady Nicolette?

Antes de decidir se diria que ela não era Nicolette, ele continuou:

— E aqui vamos passar pela água, como previsto, para despistá-los.

Era um riacho raso que gorgolejava barulhento entre as pedras. O cavalo entrou nele sem hesitação, guiado pelo cavaleiro com sutis toques de seu corpo musculoso.

Tentaria de novo.

— O que você quer comigo? Por que me mantém cativa?

— Você não sabe? Nem tem idéia?

Idéia? O plano era interromper a cerimônia. E o que mais?

Neste momento, um pensamento terrível lhe ocor­reu.

E se o plano fosse mais longe? E se fosse reavivar a antiga guerra? Algumas pessoas em Woldingham dese­javam isto, inclusive seu primo Gamei. E se existisse a mesma disposição no castelo Mountgrave? Homens desejosos de colocar mais lenha na fogueira?

Interromper o cortejo seria uma centelha. Rapto, uma chama. Mas, estupro!... Estupro da única filha de Lorde Henry seria um fogaréu. Seria um grande incên­dio capaz de ser extinto apenas pelo sangue de uma fa­mília inteira. E se só a prima Joan estava disponível, bem, um pouco de óleo produziria chamas bem violen­tas.

Joan fez uma prece silenciosa e angustiada para Ma­ria, protetora de todas as virgens, e tentou pensar numa maneira de fugir.

Que tal lutar? Ridículo.

Pular do cavalo e sair correndo? Logo seria recaptu­rada.

Empurrá-lo do cavalo e fugir em disparada?

Um cavalo de batalha treinado não aceitaria outro comando, e era mais fácil mover uma montanha do que tirar aquele homem dali!

O desamparo fez seu corpo todo começar a tremer, e o pânico tomou conta de sua mente.

— Está com frio? Logo chegaremos — tranqüilizou ele.

— Para onde você está me levando? — perguntou ela, num tom estridente, e ele tapou sua boca nova­mente.

— Para Unia gma — respondeu ele, irritado — es­pecialmente preparada para receber uma Lady. Agora fique quieta, mulher, até chegarmos lá.

Como ele manteve a mão sobre sua boca, ela não teve escolha. Porém, seu medo diminuiu um pouco.

Jogada para trás, junto ao corpo dele enquanto o ca­valo subia uma trilha íngreme que deveria ser usada por ovelhas, ela pensou na irritação dele. Será que um homem que pretendia estuprar e matar falaria daquele jeito?

Como ela poderia saber? Com um bando de irmãos, ela conhecia bem os homens, mas nada sabia sobre seu comportamento em tempos de guerra ou em um confli­to entre famílias. Quando lembrou da família, os olhos se encheram d'água.

Ela estaria em apuros se sobrevivesse para encará-los. Seus irmãos se empenhariam para matar o viola­dor, mas logo achariam que a culpa era dela. E, como sempre, estariam certos.

Quando Joan chegara em Woldingham, envolta em peles e desejosa de novas aventuras, achara a prima Nicolette frágil e chorosa. Aparentemente, era para ani­má-la que ela estava ali. A tia Ellen havia lhe contado que Nicolette sofria por causa de uma paixão e que ti­nha até que ser vigiada para não fugir com o homem. Ela não devia ser encorajada nesta loucura.

— Seus pais dizem que você é uma jovem de bom senso, Joan, com os pés no chão...

Na ocasião, Joan não se sentia assim tão sensata, mas ficou impressionada com a opulência de Wolding­ham: sua amplidão, os muitos servos e os tesouros pre­sentes por toda a parte. Ela balbuciara sua concordân­cia, pois prometera à mãe que se comportaria, mas ar­riscou indagar:

— Tia, quem é o amor da prima Nicolette?

— Não interessa. É um amor completamente impos­sível.

Joan não conseguia entender como Nicolette podia ser tão boba a ponto de se apaixonar por um cavaleiro qualquer ou por um trovador, e estava feliz por ajudá-la a esquecê-lo. Ela acreditava piamente que o amor po­dia ser direcionado para objetivos convenientes. Nico­lette fora receptiva à sua companhia, e logo se tornara uma amiga simpática e vivaz, ainda que de vez em quando suspirasse, infeliz. Joan gostava de desfrutar da riqueza e do conforto de Woldingham, e da pródiga seleção de jovens bonitos e casadoiros que cortejavam Nicolette. Ela já decidira que preferia um homem sen­sato e maduro como marido, mas não se importava de flertar com rapazes galantes. Mesmo que Nicolette não se impressionasse com eles, Joan esperava que a agita­ção do Natal banisse aqueles suspiros por um tempo.

No entanto, não foi o que aconteceu: quando mais o Natal se aproximava, mais Nicolette se mantinha alheia e melancólica. Seus pais se irritavam, mas não deixavam transparecer.

O amor devia ser realmente impossível!

Um dia, Nicolette desmaiara. Depois de ter sido le­vada para o luxuoso aposento que dividiam e deixada para descansar, Joan se manifestara:

— Nicolette, você está exagerando! Nenhum ho­mem merece que você fique sem comer e desmaie.

— Sim, ele merece — dissera a prima, agressiva, e os olhos se encheram de lágrimas. — Mas... Não é exatamente... Ah, estou com tanto medo...

— Medo? Do quê?

— Do auto.

— O auto da Sagrada Família? Na véspera de Natal? Nicolette assentira. — Qual é o problema? Você já interpretou a Virgem três anos seguidos, não é?

— Sim, desde que minhas regras começaram. A vir­gem mais jovem em idade de se casar...

— Sim, e daí?

Nicolette olhara em volta do quarto como que para certificar que estavam sozinhas.

— Eu não sou.

— Não é o quê?

— Virgem.

Joan ficara boquiaberta. Era tão escandaloso que não podia acreditar.

Mas é claro que o fato explicava muita coisa.

— E o que é pior... — acrescentara Nicolette — Estou grávida! O que é que vou fazer? Não conte para meu pai, nem para minha mãe!

— Claro que não! — tranqüilizada Joan, se sentindo, a própria, desfalecer. — Mas como foi isso? Acho que você não recebeu a visita do arcanjo Gabriel. Você foi estuprada?

Esta era a única explicação, pensara ela, abismada. Nicolette sentara na cama.

— Claro que não. Eu o amo!

Joan esbugalhara os olhos. Ficar sonhando com um . Ninguém ou um trovador sedutor qualquer é uma coisa. Entregar-se a ele...

— Quando?

— Na festa de São Martinho, em novembro. Não planejei nada, juro. Aconteceu. Desaparecemos por alguns momentos. Estávamos tão infelizes e... Ah, se papai fosse mais condescendente... Mas nunca pensei até há pouco tempo que pudesse ter concebido.

Será que o tio Henry relevaria quando soubesse da criança? Ela já sabia a resposta. Os pais de Nicolette eram loucos pela filha. Por isso, se eles não aceitavam o relacionamento era porque o homem realmente não era adequado. Um bebê não mudaria nada. E, na verda­de, mudava tudo.

Ela tremeu só de pensar na reação deles quando Ni­colette confessasse. Será que o bebê a salvaria das pal­madas? De ser jogada na mais infame masmorra? Será que o amor dos pais conseguiria superar o choque e a vergonha?

Fosse qual fosse a reação, Nicolette terminaria em um convento até dar à luz a criança, e seria estrangula­da ou terminaria sendo criada por servos. Depois, fica­ria reclusa ou seria oferecida em casamento a qualquer homem que aceitasse dinheiro para desposá-la e para ignorar seu deslize.

Joan abraçara a prima, que estava em prantos, apesar de não ter qualquer conforto a oferecer. A criança não poderia ficar escondida para sempre. Era só uma ques­tão de tempo.

Quando a prima havia se controlado um pouco, Joan a confortara como podia.

— Não se preocupe com o auto. Nada está aparecen­do. Ninguém vai saber.

Nicolette ficara aflita.

— Joan, Deus saberá! Não posso representar a Vir­gem Santíssima! Traria uma maldição sobre todos nós!

— O bebê já será blasfêmia suficiente. Que diferen­ça uma peça faz?

— Toda a diferença do mundo! — argumentara Nicolette com as mãos sobre o ventre. — Sei que carrego um desastre, mas isso significa que não posso piorar a situação. Desde de que os de Graves roubaram o estan­darte de Belém, o bem-estar de Woldingham é fruto do auto da Sagrada Família — lamentou ela, em soluços.

Joan se considerava uma boa cristã, mas achava que Deus não prestava atenção a peças. A encenação tinha muito mais a ver com rivalidade humana do que com piedade.

Os nobres de Graves e de Montelan tinham muitos domínios e se movimentavam entre eles, mas a cele­bração do Natal era na mesma região. Os de Graves ex­punham o estandarte que tinha sido levado até Belém durante as Cruzadas. Para contrabalançar, os de Mon­telan recebiam a Sagrada Família em seu lar, provando sua superioridade para a humanidade. Era muito mais uma disputa entre famílias do que um ato de devoção.

— Você vai ter que fazer no meu lugar — declarara Nicolette, interrompendo o pensamentos de Joan.

— Fazer o que?

— Interpretar a Virgem.

— Não posso fazer isto!

— Você tem que fazer. Você é virgem, não é?

— Claro que sim!

— Então, ótimo. Consultei os registros da família e acho que de qualquer maneira você é a virgem mais jo­vem em idade de se casar.

Joan pensou no que a prima dissera: sua mãe e irmã de Lorde Henry; de três irmãos, dois eram solteiros e o outro só tivera filhos homens. Ela tinha quatro irmãs casadas e cinco irmãos. Muito provavelmente prima estava certa.

— Mas não posso me passar por você.

— Claro que pode. Para preservar a ilusão da Sagra da Família, você escapará do castelo secretamente.

— Sem guardas?

— Os guardas a acompanharão até a vila e retornarão. Não perceberão nada. Você estará usando um capuz e um manto, e colocará uma almofada na barriga para imitar a gravidez. Além disso, eles não têm que falar com você. E lembre-se, quando você aparecer no salão, ninguém deve te reconhecer. Por isso, fique bem enrolada no manto.

Joan achara que o plano daria certo.

— Mas e você? Não pode ser vista. E ninguém perceber que não estou na festa?

Nicolette franzira a testa.

— Já sei! Suas regras! Você sofre tanto quando ela chegam...

— É verdade — concordara Joan. Ela tinha sempre dores terríveis, e, pelo menos um dia no mês, ela ficava de cama tomando chás e se aquecendo com pedra quentes.

— Você terá suas cólicas na véspera do Natal.

— Minhas regras só vêm uma semana depois.

— Acho que ninguém deve estar contando. E eu vou fingir que sou você.

— Isto não vai funcionar. Sua mãe ficou cuidando de mim na última vez que fiquei menstruada.

— Você vai dizer que não precisa dos cuidados dela. Além disso, ela estará ocupada com os preparativos e uno terá tempo. Vou me enfiar na cama e gemer se al­unem aparecer.

— Acho que não vai dar certo. Eu também acho, mas temos que tentar. Por favor. Joan. Não posso cometer sacrilégio. Joan acabara concordando.

— Mas o problema continua existindo, Nicolette. O que você vai fazer?

Por um instante, ela achara que a prima não respon­deria, mas ela sussurrara:

— Tenho estado em contato com ele. Contei sobre a aliança. Ele achará um jeito.

Existia uma solução, só que terrível.

— Fugir? Você deixará sua família?

— Não há outro jeito.

— Ah, Nicolette!

Joan abraçara a prima, chorando. Era fácil censurá-la pelas loucuras que cometera e que agora lhe traziam imito sofrimento, mas ela sabia que a prima tinha consciência do que fizera. Numa situação destas, o que poderia ser feito? Já seria bastante difícil afastar os guardas de Nicolette e roubá-la. Depois, Nicolette seria instada da família para sempre, e todos em Woldinglinm se sentiriam miseráveis. E por causa do quê? Por causa deste fantasma chamado amor, que em seu esta­do mais selvagem ganhava o nome de desejo.

Só restava a Joan torcer para que, diante de situação tão terrível, Lorde Henry fosse condescendente e aceitasse que era melhor um marido indigno do que perde a filha para sempre. Depois de um mês em Woldingham, ela duvidava. Apesar de justo, Lorde Henry era inapelavelmente rigoroso. Os inocentes não eram puni­dos, mas os culpados não eram poupados. Ele parecia considerar qualquer deslize ou hesitação como uma praga mortal.

E lá estava ela: nas mãos do inimigo. Culpada por trapaça, e possivelmente por sacrilégio. E pior: Nicolette, presa no castelo, provavelmente gemendo n cama. A peça e a festa, arruinadas. E os de Montei: engajados na perseguição dos de Graves, pensando apenas em morte.

 

O cavalo parou e ela encarou o homem.

— Você armou uma tremenda confusão — disse ela.

— Não fui eu quem arrumou a confusão — retrucou piei, descendo do cavalo. Levantou os braços, a pegou como se fosse uma pluma e a colocou no chão. Ela era prisioneira de um homem rude e forte, que devia ter péssimas intenções.

— Venha para um lugar mais quente — disse ele, levando-a para uma abertura sinistra na colina. — Talvez consiga melhorar seu humor.

Uma cortina havia sido pendurada na entrada da gru­iu, provavelmente para esconder a luz que vinha de dentro graças a três lamparinas de óleo. Devia haver uma abertura em cima, pois não havia fumaça no chaminé Era mais quente lá dentro, mas não muito.

Havia feno e água para o cavalo, e ele cuidou rio animal primeiro. Joan não tinha percebido como estava frio durante a cavalgada, e agora tremia. Talvez fosse de medo. Uma fogueira já estava preparada para ser acesa. Ela a acendeu com a ajuda de uma das lamparinas e se aproximou para aquecer as mãos enquanto olhava à volta. Havia dois belos baús de madeira, três jarros e algumas peles felpudas sobre uma plataforma de pedra.

Seria uma cama? Ela suspirou, tentando decidir s continuava fingindo ser Nicolette. Decidiu que não. Até vizinhos que eram antigos inimigos tinham que se confrontar. O homem sem dúvida conhecia Nicolette só de vista, pois quem as conhecesse bem não faria confusão.

Nicolette era mais magra e tinhas cabelos lisos e dourados. Joan era mais curvilínea e seus cabelos eram crespos e cor de mel. A barriga postiça escondia a diferença na silhueta., mas quando ele tivesse chance de ob­servá-la melhor notaria a diferença.

Ele veio em sua direção depois de cuidar do cavalo.

— Por favor, Lady Nicolette, acomode-se — disse ele, apontando as peles.

Joan permaneceu onde estava, de frente para o fogo, adiando o momento de se revelar.

— Quem é você e o que quer de mim?

— Desculpe-me — disse ele, parecendo sincero. — Achei que você tinha percebido, Nicolette. Embaixo deste capuz escuro e da fuligem está o Lorde Edmund de Graves. E agora, você está segura em meu poder.

Joan se virou devagar, chocada.

Uma cabeleira dourada e, debaixo da fuligem, um; rosto tão lindo quanto o do arcanjo Miguel. A habilida­de com o cavalo. A força e destreza daquele animal. A imperiosa voz de comando.

O Leão Dourado em pessoa!

E ele resgatara Nicolette. Por quê?

Porque era ele seu amante, claro!

Ela deu uns passos para trás e se sentou. O homem atraente que virara a cabeça da prima era o mesmo que nunca poderia se casar com Nicolette de Woldingham: Lorde Edmund de Mountgrave!

— Não tenha medo — disse ele, ao tirar o colete de touro, revelando uma túnica verde. — Estamos segu­ros aqui. Logo eles desistirão das primeiras buscas, e poderemos seguir para Mountgrave.

Ele molhou um pano no balde e limpou o rosto. Joan continuou sentada, perplexa e desapontada. Ele também logo estaria do mesmo jeito. Como ele podia ser Mo obtuso a ponto de não perceber que estava com a moça errada? Bom, se pensasse nos próprios irmãos, min deveria estranhar.

Pelo menos não precisava temer um estupro. Em vez de alívio, ela sentia pena. Pena de um herói maculado, um homem que jamais arruinaria a vida de uma donzela num canto escuro durante a Festa de São Martinho.

Ele se dirigiu a ela.

— Por favor, milady. Sinta-se à vontade. Estamos seguros.

Joan tirou o manto que a cobria. Não adiantava adiar mais este momento. O sorriso desapareceu do rosto dele.

— Quem é você?

— Joan de Hawes, prima de Lady Nicolette.

Ele se sentou com as pernas entrelaçadas em frente m» logo, num movimento tão elegante que parecia na­tural.

— Então temos um problema, milady.

Tentando controlar as lágrimas, Joan abriu o cinto que segurava a barriga postiça. O travesseiro caiu e ela o chutou para longe.

Seus belos lábios se crisparam num sorriso.

— Um jeito bem despojado de lidar com a prole.

— Acho que muitas mulheres gostariam que o fim da gravidez fosse simples assim.

— Concordo. Por que você estava no lugar dela, Lady Joan?

— Você sabe a razão, milorde — respondeu ela, sen­tando novamente, pegando o manto.

— Claro... A virgindade de Nossa Senhora. Não ti­nha pensado nisto.

— Mas deveria!

Suas sobrancelhas se elevaram um pouco por causa do tom dela. Que belas sobrancelhas... douradas e ligei­ramente curvas. Os cabelos também eram belos e ondu­lados, chegando até os ombros.

Que engano! Que desperdício!

E que tentação...

Sem dúvida toda aquela situação era uma lição divi­na para mostrar que uma mulher não deve escolher o marido pela aparência.

Reprimindo um suspiro mediante a conclusão infe­liz a que chegara, ela se levantou.

— Agora, você me levará de volta a Woldingham antes que a brincadeira se transforme em tragédia?

Ele não se mexeu.

— Se tivesse uma varinha mágica, Lady Joan, sem dúvida faria isto. Mas, como não tenho, teremos que ficai por aqui mais um pouco, esperando que a fúria dos primeiros caçadores passe.

Ele pegou uma jarra e dois cálices e lhe serviu vinho. Joan notou que eram feitos de prata ricamente trabalha­da. Quando experimentou a bebida, sentiu a doçura do hidromel. Mesmo Como fugitivo numa gruta, a vida de Edmund de Graves não era simplória.

Esta parte do mito era verdadeira: o esplendor de Mountgrave. E também a parte do rancor das famílias, já que os de Montelan atribuíam a fabulosa riqueza dos Graves à possessão do estandarte.

Joan queria insistir na partida, mas sabia que ele ti­nha razão. A área estaria cheia dos homens de Woldingham, homens que matariam sem pestanejar. O Leão Dourado era conhecido por ser um guerreiro de força e habilidade miraculosas, mas mesmo assim não poderia derrotar dez ou vinte, ainda mais desarmado.

Viu a armadura e a espada num canto perto do cava­lo, douradas e reluzentes. Mesmo com a armadura, não poderia levá-la para Woldingham sem ser percebido. O que eliminava qualquer esperança de retorno antes de Nicolette e a tramóia delas serem descobertas.

Com um suspiro, ela se recostou no banco improvi­sado.

— Onde está Lady Nicolette? — perguntou ele.

— Está de cama, fingindo que sou eu passando mal. » — Por quanto tempo ela conseguirá fingir?

Ele era realmente sagaz como diziam. Não era precisa lhe explicar todos os detalhes.

— Acredito que por um bom tempo, milorde. Se ninguém desconfiar...

— Lady Nicolette é o xodó da família. Será que ninguém vai até o quarto para ver como ela está?

— Você está esquecendo. Não é Nicolette quem esta lá. Sou eu, a prima.

— Mas você é da família. Seria negligência.

Ela não entraria em detalhes com o Leão Dourado.

— Sinto muitas dores em meu período, milorde. Já tive um deles em Woldingham. Lady Ellen sabe que nada adianta a não ser me deixar sozinha por algum tempo. Além disso, ela estará ocupada.

— E, por uma sorte extraordinária, suas regras chegaram? Você está suportando bem.

Ela corou.

— Elas chegarão dentro de alguns dias, milorde. Te­mos que torcer para que Lady Ellen não preste atenção nisto.

Ele deu de ombros e tomou um gole.

— Como vocês pretendiam levar a cabo toda esta farsa?

Ela lhe falou sobre o esconderijo a caminho da vila.

— Então, se tudo transcorresse como planejado, José e eu seríamos levados para o solar, e a festa teria começado. Teríamos trocado nossos mantos e apareceríamos juntas na comemoração. Na verdade, Nicolette teria aparecido, não eu. Eu estaria na cama. Não pode­ria demorar muito. Depois de uma hora mais ou menos, eu me recuperaria milagrosamente e me juntaria aos convidados. — Bastante ansiosa, ela concluiu: — Não via a hora de tudo terminar.

— Pobre moça — comentou ele, sorrindo. — Mas também não tínhamos outra alternativa a não ser atacar esta noite. Lorde Henry sempre manteve a filha bem regida, e não quero mais derramamento de sangue :entre nós. Ela pensou nos cães de caça e olhou para ele.

— Não houve nenhum derramamento de sangue ainda e não haverá se eu puder impedir — completou ele.

— Esta é outra razão pela qual você não me levará volta pra Woldingham.

— Exatamente. Se sua família conseguir me matar, não teremos a paz.

— Esta aventura toda também não ajudará em nada!

— Sei disto muito bem. Por quanto tempo você acha e Lady Nicolette conseguirá manter a farsa?

Joan desistiu de lhe mostrar que estupidez tinha sido seduzir Nicolette.

— É impossível dizer, milorde. Será que Lady Ellen ficará perturbada pelo seqüestro da filha ou pensará em ir até o quarto para me contar o que aconteceu? Especialmente o que seja a primeira opção. É possível que se lembrem de mim só amanhã. Acha que poderá me levar de volta até lá?

— Talvez. Isto nunca fez parte do plano. O que acontecerá com Lady Nicolette se for descoberta?

Joan deu de ombros.

— Ela não pode revelar a verdadeira razão, então dirá que foi uma brincadeira. Lorde Henry vai lhe castigar, com certeza.

— Será um castigo forte? Vocês arruinaram o auto sagrado de Lorde Henry. Talvez tenham cometido sa­crilégio ou até traição.

Joan não precisava que ele traduzisse em palavras toda a tragédia.

— Lorde Henry ama a filha profundamente.

— Mas aposto que ele não tem o mesmo apreço por você. Talvez seja melhor não te levar mais de volta para Woldingham.

— Não deixarei Nicolette enfrentá-lo sozinha. Um ronco no estômago interrompeu a nobre decla­ração.

Lorde Edmund se levantou, pegou uma caixa de ma­deira e a colocou aberta sobre a plataforma de pedra do lado dela.

— Carne de porco, pão e bolo de frutas secas. Não é nenhum banquete, mas dá para enganar a fome.

Ele não se serviu e voltou a sentar perto do fogo. Joan gostaria de acompanhá-lo, mas estava faminta.

— Não há nada para se comer em Woldingham na véspera do Natal — esclareceu ela — Fiquei a pão e água o dia inteiro.

— Eu comi peixe e umas outras coisas. Por favor, milady, coma. É para você. Enquanto come, decidire­mos o que fazer.

Joan tentou controlar a fome na frente dele e comeu só uns pedacinhos de porco e de pão.

— É melhor me levar de volta, milorde. Pode ser que haja uma maneira de manter a farsa.

— Mas se já foi descoberta, vai ser pior para você.

— Acho que ele não me matará, nem matará Nico­lette — acrescentou ela, subitamente surpresa por sua falta de preocupação com seus entes queridos. — É cla­ro que quando ele souber da criança...

— Estou ciente do perigo, Lady Joan. Tudo isto não passou de uma tentativa de manter Lady Nicolette em segurança.

Ela pensou em repreendê-lo por engravidar Nicolette. mas se controlou.

— Quanto tempo teremos que esperar até tentar voltar?

Ele olhou para a caixa.

— Não muito, com seu apetite.

Ela ficou sem graça. Percebeu que, mesmo aos peda­cinhos, comera quase tudo.

— Estava com fome.

— Ainda bem que eu não estava.

Ela estava zombando dela? Joan estava começando a desgostar do Leão Dourado.

De pirraça, ela pegou a última fruta que restara e a mordeu com vontade.

— Então quando poderemos voltar a Woldingham, Lorde Edmund?

— Talvez de madrugada. A busca terá diminuído. Mas seu retorno seguro ainda manterá Lady Nicolette aprisionada. Você consegue imaginar uma maneira de ajudá-la a chegar a Mountgrave?

Joan quase disse que não concordaria nem que pu­desse, mas o bom senso a impediu. Aquele era o pai do filho de Nicolette, o homem que ela amava, e tudo le­vava a crer que ele estava colocando seu bem-estar em primeiro lugar.

Nicolette desejava estar a seu lado. Estaria muito mais segura com a família dele quando a barriga come­çasse a crescer.

— Por que eu deveria ajudá-lo? — perguntou ela, fim de descobrir suas intenções. Ele se casaria com prima? Como ele poderia, sem a benção da família de: e com Lorde Henry alardeando sua raiva para o rei?

— Você não acha que ela gostaria de estar junto d< amado?

— Não sei. Isto causaria muitos problemas.

— Essa rixa maldita tem causado problemas e pesa­res há gerações. A gravidez só vai piorar a situação. Será que Lorde Henry se compadecerá quando souber que ela está grávida?

Ele sabia muito bem a resposta.

— Quanto desatino! Por que a animosidade entre você e Lorde Henry foi tão longe?

— Garanto que, da minha parte, não houve qualquer incentivo, apesar de tantas mortes.

Joan se lembrou que tinha ouvido falar que Lorde Edmund propusera uma trégua.

— Será que ele não se compadecerá?

— Ele não é totalmente inflexível. Acho que, no fundo, Lorde Henry está cansando desta loucura tanto quanto eu. Mas este episódio estragou tudo.

— Estragou mesmo! Por Deus, Lorde Edmund, como pode ser tão estúpido? — irrompeu Joan, pondo-se de pé. — Depois de conhecê-lo, compreendo porque Nicolette perdeu a cabeça, mas você é mais velho e mais experiente. Você é o Leão Dourado! Devia ter re­sistido pelos dois. — Ela começou a andar de um lado para o outro da gruta. — Vocês homens são mesmo im­possíveis! Pensam que...

Ele agarrou sua saia e a puxou para perto.

— Pare com isto!

Ela conseguiu se afastar, mas ele a puxou pela cintu­ra e a trouxe novamente para junto dele.

Depois de me conhecer? — perguntou ele, um lho estranho nos olhos zangados. — Por um acaso deseja, Lady Joan? Joan virou o rosto.

— Eu apenas reconheço seu encanto, milorde... sobre as moças jovens e suscetíveis.

— E você, apesar de jovem, não é suscetível.

— Claro que não! E por favor, não precisa provar o contrário...

Ele a puxou para mais perto e a apertou contra seu peito, forçando-a a encará-lo.

— Como você conhece bem os homens, Lady Joan, sabe que adoramos desafios, não é mesmo? Tem certe­za que você podia representar a Virgem Maria?

Uma mão escorregou para cima e parou abaixo de seu seio. Uma ameaça sutil, mas provavelmente ele po­dia sentir o disparo de seu coração. Por que ela não ou­via a mãe quando ela recomendava que ficasse calada diante dos homens?

— Milorde, você não tem nenhum interesse em mim — disse ela, num tom meigo, como se quisesse acalmar um cão rosnando. — E desonra Nicolette com esse comportamento.

— Mas nós homens somos impossíveis. — Segurando-a com o braço forte, ele pegou suas longas tranças com a outra mão. — E pensamos com nossas virilhas. Não era isto que ia dizer, sua virgem tola?

Ele começou a enrolar seu cabelo em volta do pulso, trazendo sua cabeça para mais perto. Ela esboçou um protesto, sem sucesso. Ficou a centímetros dele, sem chance de escapar do ataque de seu beijo.

Então, olhos nos olhos, ele aproximou os lábios.

Desviaram e foram parar em seu vulnerável pesco­ço. Um som abafado escapou da garganta dela enquan­to os lábios quentes percorriam toda a extensão, atiçan­do a pele, nervos, tendões.

Era aterrador.

— Não faça isto, por favor.

A súplica não passava de um sussurro. Ele a ignorou e mordeu de leve seu pescoço para mostrar como ela estava à sua mercê. Como ele podia estraçalhar sua pele como se fosse um animal feroz.

Este, porém, não era o motivo de seu pânico. O que a aterrorizava era a excitação que queimava seu íntimo. Ela nunca fora tocada por um homem daquele jeito, nunca. Sentia uma vertigem de tirar o fôlego, uma mis­tura de prazer irracional e terror cego por se sentir as­sim.

Ele levantou a cabeça e a encarou com seus olhos es­curos.

— Você ainda acha que entende de homens, Lady Joan? — Ela só conseguia olhar para ele, os olhos esbu­galhados, sentindo o coração disparado. — Você achou que estava segura comigo, mas não está. Achou que eu não reagiria à sua provocação, e eu revidei. Depois foi pior. Contestou minha honra.

Ele deu um puxão no cabelo dela e continuou:

— Esta não era a minha idéia de uma véspera de Na­tal perfeita. Foi uma empreitada difícil de planejar, chata de organizar e perigosa de realizar. Foi fruto de estupidez, fraqueza e teimosia. Tanto trabalho por nada. Estou com a mulher errada e, ainda por cima, ela quer me dar lições de sabedoria e força. Não acredite na lenda sobre o Leão Dourado, Lady Joan. Sou um ho­mem como qualquer outro. Talvez tenha estuprado Lady Nicolette. Afinal, ela é a preciosa filha de meu inimigo. — Joan sacudiu a cabeça, negando o que ou­vira. — Acha que não? Conscientemente ou não, ele relaxou um pouco sua pegada.

— Nicolette disse que não foi à força. Ela não men­tiria.

— Será que ela manterá esta versão quando a fúria da família recair sobre ela?

— Ela não mentirá.

— Mesmo sendo a virgem tola que sempre foi?

— Ela realmente foi muito tola em se entregar a você.

A raiva era visível em seu rosto, e os dentes pare­ciam presas. Mas, de repente, sua expressão se suavi­zou e ele abriu um sorriso.

— Joan, você fica linda quando está brava.

Antes que Joan reagisse diante de tamanho absurdo, lábios tomaram sua boca, o abraço forte mantendo-a firme contra seu corpo, dificultando a fuga. Ela tentou se desvencilhar mas, presa pelos cabelos, não conseguiu libertar seus lábios do assalto arrebatador.

 

Ela parou de se debater, sentindo sua mão esquerda acariciar seu corpo. Ele começou a balançar o corpo e por alguns instantes, seus lábios a libertaram para mur­murar:

— Minha querida, minha doce, ardente Joan. Dê-me sua boca, seus suspiros. Não resista. Não vou te fazer nenhum mal...

Ele a beijou de novo e ela começou a ceder, levada por seus murmúrios insensatos.

Quanta insensatez.

Difícil de acreditar. Mas...

Edmund de Graves e ela...

Ele beijou suas faces, seus olhos, e os lábios de novo.

— Abra-os para mim, querida. Deixe-me sentir o | seu sabor.

Ela também desejava sentir o sabor dele, só uma vez. Ela deixou o Leão Dourado unir as bocas, sentir seu sabor. Ela sentiu seu calor, sua mão sobre seu seio, esfregando seu mamilo eriçado.

A cabeça girava como se estivesse com febre, mas ela sabia que era loucura. Ela precisava impedi-lo. Era o mesmo que ele tinha feito com Nicolette e veja no que dera! Mas, e se deixasse só mais um pouquinho? Só mais um pouco antes de rechaçá-lo...

Subitamente, ele deitou para trás, trazendo-a para cima dele, as bocas ainda unidas. As mãos seguraram suas coxas e as abriram sobre ele. Ele libertou sua boca, mas continuou perto, sua respiração quente no rosto.

— Estou louco por você, Joan. Deixe-me sentir mais de você, só um pouquinho mais.

Ele era grande e quente, como se um poder emanas­se dele para ela. Ela também estava louca. Inebriada por ele, pelo efeito que causava nele, ela pegou seu ros­to forte nas mãos, adorando o contato tão íntimo.

— Só mais um pouquinho...

Ela não permitiria que ele fosse longe demais, mais podia aproveitar um pouco mais.

Ele levantou sua saia e a deixou nua em contato com sua túnica.

Murmurando em seu ouvido, tirou suas próprias rou­pas. Ela se empertigou. Não, não podia. Mas ele lhe re­velara só o abdome. Sua pele estava encostada em seu corpo quente e rígido, fazendo-a sentir cada respiração dele em seu lugar mais íntimo. Pronta para fugir, ela pensou: Ainda não. Só mais um pouquinho. E extraor­dinário, maravilhoso demais.

Ele deslizou as mãos fortes por suas pernas, por bai­xo da saia, para agarrar seus quadris, para mantê-la contra seu corpo.

— Tão quente e úmida. Moça formosa, se entregue para mim.

Joan titubeou, ferveu, sentindo como se respirasse por seus lugares secretos, como se ela o respirasse, seu calor, seu poder, sua essência vibrante. Os olhos dele capturaram seus pensamentos, olhando para ela, fixos, cheios de desejo.

Por ela.

Não!

Ele amava Nicolette. Nicolette!

— Não! Não podemos! Solta!

Ela agarrou as mãos dele. Ele as soltou e a segurou pelos pulsos. Que donzela tola estava sendo. E, ainda assim, naquele momento, ela queria. Talvez quisesse ser forçada, que ele a subjugasse, a fizesse esquecer a honra e a forçasse a ter prazer.

Se não fosse por Nicolette.

Pobre Nicolette, traída...

Indefesa, Joan ficou parada, com lágrimas nos olhos.

— Por favor...

Lorde Edmund a soltou. Saindo de cima dele, ela se afastou, indo para o outro lado da gruta. Quando olhou, ele estava arrumando a roupa.

Ele não desviou o olhar.

— Que sirva de lição, Lady Joan, para que não des­denhe mais das mulheres fracas e suscetíveis.

Depois de alguns instantes de estupor, ela pegou uma pedra do chão e atirou nele. Ele desviou e ela bateu na parede.

— Não faça isto de novo — advertiu ele.

— Você é um canalha! Como pôde fazer isto aman­do Nicolette?

— Não perco um minuto do meu sono por Nicolette de Woldingham.

— O que?! — Ela queria ter coragem de atirar outra pedra naquele bruto insensível. — Ela te ama!

— Não, ela ama meu irmão Gerald. Estou louco para apresentar ele a você. Ele bem que merece essa sua lín­gua afiada.

— Você devia ter me contado antes!

— Você não devia tentar impugnar minha honra com suas infames insinuações.

Joan cobriu os lábios trêmulos com as mãos enquan­to se rendia ao fato de que ele a fizera de boba. Delibe­radamente. Sem nenhum esforço. E ela se deixara le­var. E mesmo agora, chocada e envergonhada, certa de que odiaria Edmund de Graves até o fim de seus dias, uma chama tímida aquecia seu coração por saber que ele não era o amado de Nicolette.

Sua tola, pensou. Mesmo livre, ele não era para Joan de Hawes, e ela também não o queria nem que ele che­gasse numa bandeja de ouro embalado por um coro de anjos.

Ele pegou o cálice e o encheu.

— Espero que tenha aprendido a lição, Santa Joan. Seduzir é fácil, principalmente para homens de aparên­cia agradável. Vocês mulheres são tão previsíveis...

Joan chegou a pegar outra pedra, uma bem grandinha, mas sabia que a ameaça era real. Ele era um ho­mem que não levava desaforo para casa. Ela tinha que admitir que sentia medo dele, ao contrário de outros homens que conhecia. Encontrara alguém tão petulante quanto ela. Mas nunca revelaria isto, nem morta. Virou as costas.

Ele deu uma risadinha e se mexeu. A pele dela se eri­çou em alerta, mas ela percebeu que ele saíra da gruta.

Sentiu alívio, e depois medo. Será que ele a abando­naria ali?

O cavalo continuava ali, mastigando feno placidamente. Apesar da lição, ela conhecia bem os homens.

Tinha cinco irmãos. Eles não costumavam deixar o ca­valo por muito tempo, e muito menos a armadura.

Sozinha por uns instantes, ela se aconchegou e cho­rou um pouco. Sentia medo, mas também vergonha. Ela o odiava, mas se odiava mais ainda por ter sido uma presa tão fácil, por ter descoberto um lado dela ingênuo a ponto de acreditar nas mentiras dele.

Que ela ficava bonita quando estava brava.

Que ela podia provocar uma paixão instantânea em um homem como Edmund de Graves.

As lágrimas eram sinal da sua fúria frustrada. Ah, como ela queria voltar no tempo para ter chance de se comportar de outro jeito... Agora, várias idéias de como reverter a situação passavam em sua mente.

Enxugou as lágrimas. O tempo não retrocederia, e mulheres inteligentes sabiam tirar proveito de lições como esta. Ela devia agradecê-lo, pensou. Sentou-se ereta e arrumou as roupas. No futuro, nenhum homem a iludiria. A conduta dele ainda servira para despertar-lhe solidariedade pela prima: não fora à toa que Nicolette sucumbira. Afinal, estava apaixonada.

Não por ele, uma parte tola de seu íntimo ficava feliz em saber, mas por seu irmão!

Ainda bem, admitia um lado tolo dela.

Não deixava de ser um alerta contra o amor. Joan achava que o amor era uma loucura, e que os homens bonitos eram mais sinal de problemas do que qualquer outra coisa. Ela pretendia casar com um homem madu­ro, tranqüilo, que achasse interessante ter uma esposa eficiente e que não exigisse muita atenção na cama.

As lembranças do que acabara de acontecer surgi­ram, comprovando que nem tudo que acontecia na cama era tão ruim, mas ela as ignorou. Tinha sido uma bela lição. Nada mais que uma lição.

Ela apoiou o queixo sobre os joelhos dobrados é" contemplou o fogo, tentando se concentrar em assuntos sérios. Como toda esta história terminaria?

Pela graça de Santa Ana, mãe da Virgem, não seria fácil. Apesar dos perigos, ela precisava voltar a Woldingham, e logo. Se Nicolette não tivesse sido desco­berta e Joan pudesse voltar despercebida, elas podiam fingir que Nicolette tinha sido a vítima desde o princí­pio e conseguira fugir.

Isto não resolveria o verdadeiro problema de Nico­lette, mas elas conseguiriam passar pelas comemora­ções do Natal. Lorde Edmund não queria levá-la de volta a Woldingham agora. Joan compreendia seus mo­tivos, mas achava que eles deviam tentar, e rápido. Na verdade, seria mais fácil e Seguro se ela tentasse sozi­nha. O pior que poderia acontecer seria ser "resgatada" pelos homens de Woldingham.

Apesar de gostar da idéia, sabia que Lorde Edmund não concordaria. Seria uma ofensa para sua honra viril deixá-la partir sozinha. Mas... e se ela tentasse conven­cê-lo de maneira doce e gentil...

Ela suspirou. Não tinha certeza se conseguia ser as­sim tão doce e gentil, mesmo precisando tanto. Pela primeira vez, se sentia aflita. Sabia que gostava muito de dizer o que pensava e de tomar suas próprias deci­sões. Seus pais haviam aceitado com alegria o convite de Woldingham, e não era só pela honra de visitar os parentes ilustres. Eles achavam que a rigidez de Lorde! Henry e a graciosa elegância de Lady Ellen poderiam ensiná-la como arranjar um marido.

Também esperavam que a doce e meiga Nicolette fosse um exemplo para ela. Lorde Edmund estava cer­to. Apesar de gostar da prima, ela a desprezava por sua meiguice e pela ingenuidade de entregar sua virginda­de a um homem que a enganara, mesmo estando apai­xonada por ele.

Amor. Uma fraqueza, e não algo inevitável na exis­tência humana.

Desejo, admitia, fazia parte do plano de Deus. Esta­va destinado à procriação, e ela tivera uma breve de­monstração de seu poder. Teria de agradecer a ele. Ela fora advertida e prevenida outra vez.

Outra vez.

Por Lorde Edmund?

Que pensamentos eram estes afinal? Eram totalmen­te inadequados para o momento. Se ela não encontrasse um jeito de sair desta enrascada, era provável que ter­minasse indo para um convento como castigo, para um lugar em que o desejo não a perturbaria nunca mais.

A única solução era ter um plano infalível, e tinha Tudo o que precisava fazer era convencer o nobre Leão Dourado a deixá-la escapar pela floresta sozinha.

Ela se sentou ereta. Se ele tivesse se afastado, talvez ela pudesse simplesmente fugir. Antes que perdesse coragem, ficou de pé, vestiu o manto, passou pela cor­tina e saiu.

 

Ela quase deu um encontrão nele, uma silhueta escura í noite estrelada. Ele se virou quando ouviu o barulho. Não havia como escapar. Como achou que conseguiria?

Teria que persuadi-lo. Ela parou para observar o ce­nário que se descortinava à sua frente.

Da colina, a terra se estendia como se fosse um teci­do negro bordado a fogo. À direita, ao longe, brilhava Mountgrave. A esquerda, mais próximo, ficava Woldingham, com luzes na fortaleza e nas muralhas. Tal­vez estivessem fingindo que a festa continuava. As pessoas tinham que se alimentar.

Entre os dois castelos, a escuridão era salpicada de pequenas luzes provindas das casas dos camponeses os povoados, e, no meio, por uma espécie de fogueira. Acima, como se fosse um telhado alto e arqueado, céu brilhava cheio de estrelas, o manto protetor de Deus, onde a estrela de Natal brilhava mais do que antes. A estrela do Príncipe da Paz. — Uma maravilha de Deus, não acha? — disse o ho­mem ao lado dela.

— A beleza de Deus lá em cima, a loucura do ho­mem aqui em baixo. E o que me diz sobre a vida das pessoas lá embaixo, milorde, interrompidas por uma disputa?

— E mais do que uma disputa, Lady Joan, e não por culpa dos de Graves. Só desejamos a paz.

— Vocês se ofereceram para devolver o estandarte de Belém?

— Devolver?

Ele se virou para ela, enraivecido, e eles se encara­ram como se fossem os dois castelos em guerra.

— O estandarte de Belém nunca pertenceu aos de Montelan.

— Eles têm uma outra versão: dizem que foi um de Montelan que o levou para Belém. Mas que diferença faz? Lorde Edmund, alguém vai ter de ceder.

— Lady Joan, como é ingênua. Ceder significa ser derrotado.

Neste momento, o sino do mosteiro de Colthorpe co­meçou a tocar, anunciando a tércia. Meia-noite. Joan suspirou.

— Então Cristo nasceu mais uma vez para trazer paz e amor fraternal para o mundo. O que também significa que o amor de Deus é infinito.

— Não é de bom tom uma donzela ficar pregando.

— Não é de bom tom um cristão se recusar a ofere­cer a outra face. Ou não perdoar seus inimigos.

Ele apontou para Woldingham.

— Vai fazer sermão para seu tio, mulher!

— Eu bem que tentei!

— E continua viva? Você não deve ter se dedicado muito.

Joan deu um sorriso sem graça, que provavelmente não foi notado por causa da escuridão.

— Foi um pouco antes do Natal. Lorde Henry res­peita muito esta época.

— Não o suficiente para terminar com uma rixa sem motivo.

— Como, se você não ceder? Pensei que, considerando-se sua reputação, era um homem melhor...

Ela se deu conta que estava sendo de novo rabugenta como uma megera.

Ela se considerava franca e honesta, alguém que não floreava suas opiniões e que não se deixava intimidar. Agora, ali, falando sobre tolerância cristã e humildade, começou a achar que a mãe tinha razão. Talvez, sim­plesmente, não fosse muito cristão ser tão rude.

— Desculpe. A rixa não é assunto meu, exceto por explicar o motivo pelo qual os de Montelan nunca per­mitirão que Nicolette case com seu irmão. Por hora é melhor decidirmos o que vamos fazer.

— Além de te dar uma surra? Lady Joan, você é uma mulher muito indisciplinada e frívola, mas isto é pro­blema de seu tio. Ele merece esta cruz. Quanto a nós, decidi que a levarei de madrugada para a segurança de Mountgrave.

— Mountgrave! Milorde, para o bem de Nicolette, deve me levar de volta para Woldingham.

— A possibilidade de ela não ter sido descoberta e de eu não ser descoberto ao te levar é mínima. Toda a área ainda está cheia dos homens de seu tio — argumentou ele, mostrando as luzes se movendo. Certa­mente eram os partidários de Woldingham, ainda à caça.

— Há luzes também perto de Mountgrave. São seus homens?

— Não. Meus homens foram instruídos a ficar em segurança no castelo. Estou tentando resolver isto sem derramamento de sangue. Logo antes de amanhecer, minhas forças virão ao meu encontro para abrir um ca­minho para Mountgrave, e então estaremos seguros.

— Mas isto seria o mesmo que entregar Nicolette aos lobos! Seu eu voltar sozinha para Woldingham agora, posso chegar a tempo.

— Que piada!

— Piada de um assunto tão sério? Lorde Edmund, sei que... que seria difícil deixar-me voltar sem compa­nhia, mas é a melhor maneira de todos ficarem a salvo.

— Impossível. Quando lhe capturei, Lady Joan, tornei-me responsável por sua segurança. Não posso per­mitir que corra tamanho risco.

— Não vejo por que deva me proteger!

— Porque você é mulher e eu sou homem.

— Muito bem! Já que insiste em ser tão nobre, mi-lorde, acompanhe-me até Woldingham, em vez de Mountgrave.

— Não posso me transformar em mártir e criar ainda mais animosidade. Os homens de seu tio terão que re­cuar antes de Mountgrave, mas continuarão a vigiar e a procurar perto de Woldingham. Além disso, meus ho­mens virão em meu auxílio no meu território, mas não nos domínios de Lorde Henry.

Joan arregaçou as mangas com as mãos frias.

— E quanto a Nicolette?

— E quanto a você? Tentou ajudar sua prima, Lady Joan, e não deve sofrer por isto.

Ele se virou em direção à gruta e colocou as mãos as costas dela para dirigi-la nesta direção.

— Vamos para onde está quente e ver se consegui­mos pensar num milagre.

Joan entrou, esperando que ele não tivesse percebi­do sua reação ao toque dele. Esta atração que exercia sobre as mulheres chegava ser injusta.

Quando se sentaram, separados pelo fogo, ela fez uma pergunta que rondava sua mente.

—Diga-me uma coisa, Lorde Edmund: onde está seu irmão? Não era ele que deveria estar aqui com Nicolet­te?

— Decerto que sim — respondeu ele, colocando le­nha na fogueira, o ar preocupado. — Não sei onde ele está. Deveria estar aqui em meu lugar, mas desapare­ceu ontem. Saiu por algum motivo, contrariando mi­nhas ordens. Decidi levar o plano adiante. Rezo para que ele tenha voltado a Mountgrave e esteja de cabeça quente.

Ela teve uma terrível suspeita.

— Contou-lhe sobre seu plano?

— Você é bruxa, por um acaso?

— E você, é algum idiota? Por que não contou a ele?

— Não tenho que contar para meu irmão mais novo o que planejei. E ele merece pastar por sua estupidez! Como adivinhou? O que sabe?

Sua boca ficou seca, mas não de medo, mas porque tinha más notícias para ele.

— Lorde Edmund, tenho receio de que Lorde Henry tenha prendido seu irmão em suas masmorras.

— O que disse?

Ele se levantou num gesto abrupto, e, por um instante, ela temeu pelo próprio pescoço. Mas ele se contro­lou e se sentou perto do fogo.

— Fale!

Joan respirou fundo.

— Hoje de manhã, em meio aos preparativos para c banquete, alguns guardas trouxeram um prisioneiro para Woldingham. Não pude vê-lo bem. Talvez não seja seu irmão. Mas ele não parecia um camponês, ape­sar das roupas simples. Meu tio mandou prendê-lo, di­zendo que não queria ter nenhum aborrecimento na época do Natal, mas ele parecia bem satisfeito com al­guma coisa, e dobrou o número de guardas. Não pensei muito sobre o ocorrido por estar mais preocupada com meus próprios assuntos, mas agora receio que fosse seu irmão, preso na tentativa de resgatar Nicolette.

— Que os diabos do inferno o tormentem! — pra­guejou Lorde Edmund.

— Lorde Henry?

— Não! Meu irmão!

— Você devia ter lhe advertido. Certamente ele pen­sou que você não se importava...

— Já chega, Lady Joan. Não precisa continuar. Ele segurou a cabeça por um instante com as mãos tensas.

— Então... Agora são dois a serem libertados.

— E mais uma para levar de volta.

Ela aproximou as mãos frias do fogo, pensando se a determinação de Lorde Henry a manter a paz no Natal resistiria quando soubesse que sua filha era prisioneiro de seu inimigo. Gerald de Graves poderia estar sentir-se torturado.

Ela olhou para Lorde Edmund. Apesar da arrogância. ele amava o irmão, e era quem carregava os fardos _ vida nos ombros.

— Se eu voltasse secretamente, milorde, talvez pudesse libertar seu irmão. Ele poderia fugir e até levar nicolette com ele.

— Você não disse que Lorde Henry dobrou o número de guardas?

— Mas estamos na época do Natal.

— Se um dos meus guardas pudesse ser enganado ou minado por uma mulher, fosse no Natal ou não, eu cortaria seu pescoço. E a menos que eu subestime

Lorde Henry, ele deve ter colocado seus melhores ho­mens em alerta. Além de tudo, a chave deve estar com

— Ah, entendi — concluiu ela. Como não percebera . antes? — Ele oferecerá a vida de seu irmão em troca do estandarte?

— E se você conseguisse roubar esta chance de vitó­ria, sua vida não valeria nada.

— Ele poderia não saber.

— Quem mais poderia ser?

Depois de pensar uns instantes, ela disse:

— Nicolette. Se eu conseguir voltar despercebida, Lorde Henry pensará que Nicolette era a Virgem, não

  1. Se ela então desaparecer com seu irmão, ele vai pensar que ela voltou para libertá-lo. Se eles forem em­bora, tudo ficará bem.

Parecia possível para ela, mas ele sacudiu a cabeça.

— Em primeiro lugar, nem uma nem duas mulheres vão libertar um de Graves das masmorras de Lorde Henry sem ser reconhecidas. Você está planejando ma­tar os guardas? Segundo, do que sei sobre Lady Nicolette, mesmo seu devotado pai não acreditaria que ela tentasse realizar tamanha façanha. Não, tenho certeza que ele perceberá que você é a chave para a história toda.

Joan se sentiu lisonjeada com o comentário.

— Se a mantiver em meu poder, terei também algo para oferecer em troca da vida de meu irmão.

— Eu não sou a filha bem-amada de Lorde Henry.

— Você é um parente sob sua proteção. Seria difícil recusar.

Ele tinha razão.

— Isto põe a salvo seu irmão e o seu estandarte, mas expõe a Nicolette e a mim! Você tem de me deixar vol­tar a Woldingham. Neste exato momento. Prometo que tentarei libertar Nicolette e seu irmão.

— Impossível.

— Lorde Edmund, você é o homem mais inflexível que conheci na vida!

— Você também não está se curvando diante da for­ça da razão, Lady Joan.

— Porque estou certa. Ele se aproximou dela.

— Não posso arriscar o estandarte que minha famí­lia protegeu por gerações.

— Eu não arriscaria o pescoço da minha prima sem ao menos tentar!

— Você é minha refém, Lady Joan. Por isso, será do meu jeito. Você continuará comigo. Se vocês duas não tivessem tramado esta farsa tola, tudo estaria bem.

— Não, não estaria. Meu tio ainda teria o tolo do seu irmão em seu poder. E se você tivesse lhe contado...

— Pare de me espicaçar! Tenho de resolver uma tra­gédia familiar que alimenta ainda mais uma disputa que sempre quis encerrar. Nunca desejei nada disto.

— Nem eu desejei ser enfiada sobre um cavalo, ar­rastada para uma gruta e... ser atacada!

Seu rosto tenso relaxou.

— Desejou sim.

— O que disse?

— Que você desejou ser atacada. Praticamente pe­diu mais. Implorou, na verdade.

Ela pegou mais uma pedra, mas acabou desistindo.

— Muito bem. Mocinha esperta — disse ele, rindo zombeteiro.

Como Lorde Edmund ousava?

Ela pegou a pedra e a atirou. Já que ela estava tentan­do o diabo, tentaria acertá-lo. E ela era boa de pontaria. Se ele não tivesse levantado o braço para proteger a ca­beça, ela o teria derrubado. E seria melhor ter fugido, logo depois.

Quando a pedra bateu, ele gritou de dor, mas saiu m atrás dela mesmo assim.

O fogo estava entre eles, mas isto não o deteve, sou tão rápido que nem se queimou. Ela pulou trás, mas não tinha como escapar. De qualquer modo, depois que passou o impulso insano, ela se viu paralisada de medo.

Ele a pegou pela cintura e a jogou sobre seu joe imobilizando-a dolorosamente. Quando ela finalmente parou de se debater, ele a fez encará-lo, de joelhos.

— Não vai gritar?

— Por causa disto? — perguntou ela em tom de bra­vata. — Você ficará com uma contusão e não está ui­vando.

— Você não pensou que poderia machucar o braço que serve para te proteger? — perguntou ele, com cara de quem queria espancá-la.

— Mirei sua cabeça. Você provavelmente não preci­sa dela para...

O brilho da raiva em seus olhos a silenciou.

— Desculpe — apressou-se ela em dizer, e era ver­dade, apesar de não querer que ele pensasse que uma surra a amedrontaria. — Mas se você vai me bater por causa da minha língua afiada, Lorde Edmund, sua mão vai acabar caindo.

— Considerarei como um nobre sacrifício em prol da humanidade. E, Lady Joan, eu não a puni pelo que disse, mas pelo ataque físico.

— Você não devia ter zombado de mim!

— Você não pode revidar um ataque verbal na mes­ma moeda?

— Seu primeiro ataque foi físico. Ele a soltou e ficou em pé.

— Ah, claro... Acho que tem razão.

Sua expressão sugeria que ele compreendia como primeiro ataque havia sido devastador e como revera nesta situação. A única coisa que ela podia fazer encará-lo como se ele fosse alguém que não provocar nenhum desejo nela. Como se ele não fosse lindo como um anjo guerreiro.

Como se seus raros sorrisos não virassem sua cabeça.

E como se seu íntimo não tremesse toda vez que ele a tocava.

Seus olhos ardiam pelo esforço de encará-lo de maneira indiferente, mas ela se conteve.

Depois de algum tempo, ele balançou a cabeça como e ela fosse um mistério para ele. Bom. Muito bom.

— Lady Joan, por que estava em Woldingham?

Ela continuava de joelhos. Levantou-se com dificul­dade, alisando as roupas como desculpa para manter os olhos baixos.

— Para mudar meus modos e arranjar um marido — admitiu ela.

— Sua língua afiada tem afastado os homens? Ela sorriu.

— Ela é assim tão perigosa? Ele caiu na risada.

— Que Deus nos proteja! Acho que seu pai devia te colocar num convento onde fosse preciso fazer voto de silêncio.

— Eu não agüentaria. Mas, sabe, sou mais do que uma língua afiada.

— Claro, tem cérebro também. É por isso que ela é tão perigosa. Diga-me, por que você ataca se sabe que será punida?

Ela nunca tinha pensado nisto.

— Não consigo resistir. Às vezes as pessoas são tão estúpidas!

— Você tem razão — concordou ele, se virando como se quisesse esconder algo. Depois, virou nova­mente e a olhou. Ela sentiu um pequeno sobressalto. Imediatamente baixou os olhos. Meu Deus! Ah não! Isso não vai funcionar duas vezes.

— Muito bem. Trégua. Nós temos assuntos mais sé­rios do que isto. Nada mais de pedras quando ofendê-la, e nada de retaliações de minha parte por causa de suas palavras.

— Tem certeza que é isto o que você quer? Acho que nunca consegui segurar minha língua.

— Acho que consigo suportar. A pergunta é: o que você consegue suportar? Você estava certa quando dis­se que se uso você como refém em troca do meu irmão, Lorde Henry terá de saber sobre a farsa. Você sofrerá as conseqüências.

— Eu e Nicolette.

— Ela merece algum castigo. Talvez fosse melhor levá-la de volta, mas você também será punida.

Será que ele estava preocupado com a segurança dela? A idéia a fez sorrir.

— Meus pais já cansaram de me pôr de castigo há muito tempo.

— Teria sido melhor se tivessem insistido.

Ela o fulminou com o olhar e seus lábios crisparam.

— Desculpe, milady, foi sem querer.

— Eles ficarão desapontados — admitiu ela. — eles continuam esperando que, com o passar do tempo, eu me torne meiga e obediente, meus cabelos sejam lisos e sedosos e meu corpo fique esguio e gra­cioso.

Dessa vez, ela sorriu de verdade. Que Deus tivesse piedade! Ela tinha covinhas!

— Lady Joan, não há nada de errado com seu corpo.

— Lorde Edmund, estou imune a esse tipo de inves­tida agora — disse ele, com o coração disparado.

— É a mais pura verdade, Lady. Os homens têm pre­ferências diversas como as mulheres. Eu prefiro mu­lheres com substância, daquelas que não sinto medo de quebrar.

— Ah, entendi.

Ela percebeu que passava as mãos pelas curvas de seu corpo, e que os olhos dele as acompanhavam.

Seria mais fingimento?

Ela achou que sim. De qualquer maneira, afastou as mãos do corpo e as cruzou.

— Acho que devo retribuir seu elogio. Sei que você já deve saber, mas vou repetir que você é um homem muito bonito.

— Isto é mais um fardo do que uma benção. As mu­lheres ficam loucas por mim. E, se são casadas, elas acabam me arrumando inimigos.

Ficam loucas por mim. Ah, se existissem palavras para resguardar as donzelas dos encantos dos homens, mesmo de um verdadeiro garanhão como aquele, estas seriam as palavras ideais. Ditas deliberadamente não, ela agradeceu em seu íntimo.

— Agora estamos empatados novamente — disse ela, voltando a andar pela gruta, contente por interrom­per a conversa tensa. — Vamos voltar aos nossos planos? Levando-me de volta a Hawes, garantiria minha segurança, mas Nicolette e seu irmão continuariam em perigo. Nicolette não tem nenhuma desculpa plausível para a troca, e seu irmão morrerá a menos que você de­volva o estandarte para Wol...

— Devolver coisa nenhuma! — interrompeu ele — ele nunca pertenceu a eles.

— Como um homem tão ponderado pode ser tão... pouco razoável! Sir Remi de Graves e Sir Henry de Montelan, estou surpresa por você não ser chamado de Remi, milorde...

— Meu irmão mais velho, que morreu com 12 anos, tinha esse nome.

Duas famílias presas a uma briga antiga.

— Sir Remi e Sir Henry partiram para as Cruzadas juntos, como primos e irmãos de armas. Eles levaram um estandarte que esperavam carregar vitoriosamente até Jerusalém, e depois até o local do nascimento de Cristo, em Belém.

— Um estandarte feito pelas ancestrais da família de minha mãe!

— Mas levado por ambos, não é mesmo? A menos que os de Montelan estejam mentindo, Sir Remi foi fe­rido na tomada de Jerusalém e Sir Henry sozinho ca­valgou com o estandarte até Belém para cumprir a pro­messa inicial.

— Remi foi ferido tentando salvar a vida de Sir Henry. Até hoje as manchas de seu sangue podem ser vistas estandarte!

— Ninguém nega tal fato. Mas por que os de Montean reclamam de não terem o direito de ficar com o es­tandarte metade do ano?

— Lady Joan, porque eles não o devolveriam.

— Vocês não os estão julgando por vocês mesmos? Ela viu que ele fechou os punhos e depois abriu os novamente.

— Você está dizendo que se eu cedesse o estandarte a Lorde Henry agora, ele o devolveria daqui a seis meses?

— Não. Mas ele tem muitos seis meses para descon­tar. Lorde Edmund, alguém tem de ceder.

— Não serei eu. Não trairei minhas gerações pas­sadas.

— Compreendo. Você tem medo dele e do que as pessoas vão dizer.

Ele cerrou os punhos outra vez.

— Retire estas palavras, Lady Joan. Eu só temo a Deus.

Joan se arrependeu do que disse, principalmente porque viu que o havia magoado de maneira que não pretendia. Mas já era tarde.

— Não posso retirá-las, milorde, a menos que prove que não são verdadeiras.

Ele se enfureceu.

— Meu Deus, que pecados cometi para você me cas­tigar com esta mulher? Sua língua me ofende, mas mi­nha honra não me permite revidar! Meu corpo arde...

Apesar de estar tremendo, aquelas palavras alerta­ram Joan.

Meu corpo arde. Uma coisa era certa: ele falara do fundo do coração. Não era fingimento.

E claro que isto não tinha grande significado. Mas lhe dava uma inegável satisfação saber que, naquele momento, o Leão Dourado ardia por ela.

Ele a olhou, com ar desamparado.

— Luxúria — declarou ele. Ela assentiu.

— Você deve estar acostumado. É totalmente novo para mim.

— Nunca desejou ninguém?

— Não deste jeito.

Ele passou a mão pelo cabelo.

— Não deveríamos estar passando por esta situação num momento destes, quando tanto está em jogo.

— Mas não é fácil controlar, não é? Seus olhos brilharam ao encontrar os dela.

— Não, não é fácil.

O que aconteceria se ela o tocasse? Provavelmente terminaria como Nicolette. Naquele momento, não ti­nha importância.

— Será que o teu desejo dificulta seus pensamentos?

— Óbvio que sim!

Ele se virou para pegar a jarra de hidromel e encheu os dois cálices. Ele entregou um a ela e as mãos se en­costaram de leve. Eles beberam, olhos nos olhos.

Depois se afastaram.

Ela queria fazer muitas perguntas, sendo que a pri­meira seria se isto acontecia sempre com ele, ou se existia algo de especial agora. Algo diferente? Seria por causa dela?

Outra pergunta seria... Se ela realmente tentasse ser gentil e meiga, prometesse segurar a língua afiada, existiria alguma esperança... ?

Ela era mesmo uma virgem tola. Ele não estava ten­tando enganá-la novamente, ela é que estava se enga­nando!

— A primeira idéia foi a melhor — disse ele, sen­tando sobre a pedra coberta pelas peles, longe dela e do fogo. — Você será minha refém na barganha por Gerald.

Tentando ser fria como ele, ela continuou:

— Acho melhor tentar voltar a Woldingham, agora.

— A floresta está cheia de homens.

— Sou pequena.

— E cães.

Ela esquecera deles.

— Se te usar como refém, deixo claro que o seqüestro foi só para obter um prisioneiro para barganhar por meu irmão. É claro que Lorde Henry ficará bravo com você e Nicolette por terem trocado de lugar, mas se ele não castigá-las na época do Natal, talvez a ira dele di­minua. Se não, ainda teremos 12 dias para alguma ou­tra solução.

A idéia dos robustos cães de Lorde Henry em caçada minaram a coragem de Joan de partir sozinha.

— Pelo seu plano, Nicolette terá que enfrentá-los sozinha. Ela ficará apavorada.

— E você não?

— Eu estou com você e ela está com tio Henry.

— Como vê, não tenho escrúpulos sobre castigo na época do Natal.

Ela quase revelou que não tinha medo dele, mas pro­vavelmente ele a interpretaria mal. Ela gostaria de di­zer que não tinha medo de ser castigada por ele a menos que ela fizesse algo terrível. Aí sim, mereceria uma grande punição.

O que aconteceria se ele fizesse algo terrível?

— O que está pensando agora, mulher infeliz? — perguntou ele em tom de galhofa.

Ela decidiu ser sincera.

— Estava pensando se você me deixaria castigá-lo se tivesse feito algo de errado.

— Não.

— Por que não?

— Por que deveria?

— Porque você é muito mais forte. Seria injusto.

— A mulher foi posta no mundo para ser governada pelo homem e o homem ganhou a força necessária para esta tarefa.

— Mas se você tivesse enfraquecido por causa de um ferimento...

— Ficaria longe de seu alcance! Muito bem, Lady Joan, entendi seu ponto de vista e vou lhe fazer uma proposta: se durante nossa breve aventura eu vier empregar violência física contra você, deixarei que revide na mesma moeda. E você poderá compensar a diferen­ça de força e tamanho utilizando-se de qualquer instrumento: um pau, uma pedra, o que quiser.

— Pode ser a sua espada? — desafiou ela, de olho na bela bainha.

— Se você achar justo...

— Terei que ser justa? Ah, isto tira toda graça.

Ele riu. Foi uma risada leve e espontânea, apesar da situação perigosa em que se encontravam.

Algo a perturbou em seu íntimo. Ali estava o primei­ro homem que conhecia com quem podia conversar sem medir as palavras, que parecia capaz, de certo modo, de aceitar seu estilo sem cerimônia.

Que pena que seria só uma "breve aventura".

Mas era melhor parar com divagações. Ela tentou se concentrar no plano.

— Se você me trocar pelo seu irmão, nada terá mu­dado.

— Você tem razão. Seria pior. Ainda tenho de resga­tar Lady Nicolette, senão Gerald ficará em perigo no­vamente. E toda esperança de paz irá por água abaixo.

Ele suspirou e se encostou na parede.

— A ironia é que Lorde Henry estava cedendo um pouco. Estive negociando com ele por quase um ano, com relativo sucesso, mas só recentemente ele se tor­nara mais aberto a sugestões. Duas coisas aconteceram juntas, semanas atrás. Gerald confessou sua loucura e me contou que Lady Nicolette estava grávida. E Lorde Henry propôs paz, selada por um casamento. Deixaría­mos a questão do estandarte para depois. Foi quase uma completa capitulação.

— Nicolette e Gerald? Mas aí...

— Claro que não. Nicolette e eu.

— Oh!

Joan podia imaginar que desastre tinha sido, mas gostava de saber que Lorde Henry tentara ceder. Ele certamente não sabia qual de Graves Nicolette amava. Por isso pensara no mais provável e tentara obtê-lo para a filha.

— Se Gerald não tivesse me contado, eu teria aceita­do. Mas deste jeito, tudo que pude propor foi um casa­mento com meu irmão. Lorde Henry considerou a pro­posta um verdadeiro insulto. Se eu tivesse algum tem­po para planejar, teria me casado de novo e, assim, não estaria disponível.

— Você já foi casado?

Era ridículo se sentir ofendida com a informação. Ele a olhou de modo estranho.

— Tenho 25 anos e fui destinado ser Lorde de Mountgrave desde os dez. Claro que fui casado. Foi tudo arranjado quando eu tinha 13 anos. Uma excelente aliança, mas minha esposa morreu de hemorragia dois anos atrás.

— Sinto muito. Ele deu de ombros.

— Estive ocupado com batalhas e a serviço do rei desde os 16 anos. Nunca a via por mais de uma semana a cada seis meses. Eu diria "pobre Catherine", mas ela estava plenamente satisfeita com a situação.

— Posso entender o porquê — disse Joan, impres­sionada com as vantagens de um arranjo destes. Seus pais, e as famílias vizinhas que conhecia, não passa­vam muito tempo separados. Já as famílias maiores...

Ela olhou para ele, ruborizada.

— Digo isto não por sua causa, milorde!

Ela desejou nem ter pensado em casamento entre eles.

— Você acha que toleraria minha presença mais do que isto?

— Claro que sim! Quero dizer... que gostaria de ter uma marido parecido. Um que estivesse bastante en­volvido em assuntos de estado.

— Um marido que a deixasse reinar sobre seu pró­prio mundo?

— Você precisa entender, Lorde Edmund, que eu te­ria bastante dificuldade em lidar com a submissão no dia-a-dia.

— Mas você pareceu gostar bastante da atenção físi­ca que um homem pode lhe proporcionar — disse ele, se recostando para observá-la melhor. — E lembre-se, você prometeu não jogar mais pedras em mim.

Sua resposta foi o rubor nas faces.

— Mas duvido que qualquer outro homem possa prestá-las com tanto prazer como você.

Ele sorriu e desviou o olhar. Às vezes Lorde Edmund era um mistério fascinante. E eram seus erros e fragilida­des que a fascinavam mais, e não seus encantos.

Se ao menos...

Não seja tola, Joan...

Ele acariciou as peles que estavam ao seu lado.

— Vem se sentar aqui. Não gosto de conversar deste jeito, como se fossemos facções inimigas.

Ela hesitou.

— Você tem minha palavra. Não vou machucá-la.

 

— Sei disto — respondeu ela, se aproximando. —

Parece que você esqueceu que posso ter motivos para não querer me sentar.

— Acho que não fui tão rude assim.

— Não, não foi — admitiu ela, sentando. Ela olhou para o braço dele, escondido pela manga. — E quanto a você?

Ele arregaçou a manga e ela viu uma mancha roxa perto do cotovelo.

— Nada que me impeça de lutar — assegurou ele, mexendo o braço forte. Aí ele o estendeu para ela. — Talvez você devesse dar um beijinho para melhorar.

— Ah, não. Senão você vai querer beijar os meus machucados também.

— Se você quiser, milady — respondeu ele, com os olhos brilhando.

— Nada disto — disse ela, firme.

Ele não gostou do que ouviu. Baixou o braço e se en­costou na parede.

— Então, minha virgem sabida, o que vamos fazer? Ela achou que ele se referia à rixa entre as famílias.

Nicolette e o irmão.

— Admiro sua disposição pela paz.

— Mesmo que eu não faça o que é necessário para obtê-la e devolva o estandarte? — Suas sobrancelhas se levantaram. — Não vai dizer nada? Espero não tê-la intimidado.

— Estou tentando controlar esta minha língua afia­da, porque temo que tudo isto vá terminar me levando para um convento.

— Um terrível desperdício.

— Talvez me torne abadessa, capaz de fustigar o mundo cheio de impunidade dos homens.

— Outro desperdício.

— Minha esperteza e minhas habilidades adminis­trativas seriam usadas com todo vigor.

— Outro desperdício — insistiu ele.

— Desperdício por que, milorde?

— Desperdício de calor e fogo. — Ele estendeu a mão. — Vem aqui.

Apesar de desejar se jogar no colo dele, ela ignorou a mão.

— Aprendi bem a lição.

— Tenho mais a ensinar. Joan respirou fundo.

— Não nego o efeito que causa em mim, Lorde Edmund, mas duas donzelas de Woldingham esperando filhos de Graves não ajudarão em nada.

— Não vou engravidar você.

— É o que muitos homens dizem.

A raiva transpareceu de novo em seus olhos, pois ela estava colocando a honra dele em dúvida. Mas não era esta a intenção dela. Ela simplesmente não confiava em nenhum homem neste aspecto.

— Jure para mim — exigiu ela.

— Juro pela minha alma imortal, Joan de Hawes, que não te engravidarei esta noite.

— Muito bem — disse ela, suspirando.

Ele estendeu a mão novamente e o coração dela dis­parou.

— Este não é o momento para...

— Este pode ser o único momento. A rixa está pres­tes a se fortalecer. Será que mesmo os seus pais, tão be­nevolentes, permitiriam nosso casamento sabendo que seria uma grande ofensa para Lorde Henry?

— Casamento? Você acha mesmo que vou acreditar em uma...

—Joan!

Ela cobriu a boca com a mão.

— Desculpe. Não quis... — Ela não ousava traduzir em palavras o que sentia. — Você estava dizendo que gostaria de casar comigo? Por quê?

Ele pegou a mão dela e a apertou.

— Joan querida. Você tem sido assim tão despreza­da?

— N... não. Alguns homens se interessaram por mim, mas nenhum chamou minha atenção. Mas você...

Ele sorriu.

— Eu, o que? Não acredita porque sou o grande Edmund de Graves? Achei que você já tivesse percebido.

— Só percebi seu lado bom.

Ela estava bem perto de seu peito largo. Podia sentir seu calor.

— Você enxerga meus defeitos como virtudes. O que mais um homem pode desejar? Admiro você, Joan, como nunca o fiz antes com outra mulher. Admiro sua coragem e seu bom senso. Agora já me acostumei com sua língua afiada, porque ela tem o respaldo de um cé­rebro inteligente — disse ele, acariciando seu pescoço sob as tranças. — Você pode imaginar como é chato es­tar sempre rodeado de pessoas que reverenciam tudo o que você diz? É um alívio ter alguém sincero por perto. — A outra mão dele desceu até sua coxa e lhe fez um carinho sobre a roupa. — E meu corpo gosta de seu cor­po. Gosta bastante, para falar a verdade.

— O meu também. Mas isto está certo? Temos pla­nos a fazer.

— Os planos estão feitos. Manterei você aqui, ilesa, se conseguir, e quando amanhecer a levarei em segu­rança até Woldingham.

Reviravolta total.

— Mas... Ele a soltou.

— Passaremos a noite aqui. E tenho planos para isto também.

— Mas e seu irmão?

— Vou achar outro jeito.

Ele a puxou para perto e repousou a cabeça entre seus seios. Ela o empurrou.

— Será muito perigoso para você.

— Não é nada comparado ao perigo que será para você.

— Isto é loucura. Leve-me para Mountgrave e troque-me por seu irmão. Pelo menos Nicolette e eu não perderemos nossas vidas.

— Trancadas num convento? Seria a morte para você, Joan. Deixa eu te mostrar que desperdício seria.

As mãos dele desceram para as coxas, mas ela se desvencilhou, mesmo com seu íntimo em chamas.

— Muitas mulheres sentem o mesmo que você, mas muitas felizmente se tornam freiras.

— Nem todas as mulheres sentem isto. Algumas, apesar de serem excelentes esposas e mães, são frias. Minha Catarina era assim. Ela era uma parceira dedica­da na cama, mas, se pudesse ter engravidado com um abraço, teria preferido.

Joan achou impossível acreditar. As mãos dela esta­vam sobre seus ombros, próximas ao seu pescoço nu. Seus polegares fizeram um afago no queixo dele.

— Tem certeza disto?

— Claro, chegamos a conversar sobre o assunto. Apesar de não ser tão assertiva como você, Catherine não hesitava em dizer o que pensava. Ela era alguns anos mais velha do que eu e mais experiente. Tinha 20 anos quando nos casamos e já era viúva havia dois. Eu tinha 15. Ela conhecia suas necessidades e como satisfazê-las, e não se importava se eu me relacionasse cora outras mulheres. — Joan franziu a testa e ele se admi­rou. — Vai me dizer que quando casar com um homem ocupado vai esperar que ele seja fiel enquanto estiver fora?

— Espero que ele simplesmente nem se interesse por sexo.

— Isto também seria um desperdício. Mesmo que suas relações fossem poucas, Joan, você deveria exigir que elas fossem ardentes. — Ele a puxou para perto. — Você nega o fogo que existe em você? — Ardendo a ponto de quase suar, ela negou com a cabeça. — E eu estou queimando. Você acha que isto acontece comigo com todas as mulheres que encontro?

— Acho. Ele riu.

— Muito bem. Muitas vezes, sim. Mas deste jeito, Joan, juro pela minha honra, não.

Ele parecia sincero, mas seu afiado bom senso não estava morto.

— Acho que é a escuridão da noite, a gruta e o medo.

— Não tenho medo.

— Você provavelmente nunca tem medo.

— Todo homem sente medo quando existe motivo. Mas ele não se deixa levar por isto. Não sinto medo por antecipação, e você também não deve sentir. O que sur­gir amanhã, resolveremos amanhã. O que temos agora é o presente. É a escuridão da noite. É a gruta. Mas é você também. — Ele esfregou o rosto em sua pele, e sua boca afagou uma, duas vezes seus mamilos. — Nunca pensei que gostaria de uma mulher com uma lín­gua tão afiada, e muito menos de uma que me apedre­jasse. Mas para mim você é como pimenta: arde, mas é uma delícia.

Olhando para baixo, ela podia ver seus mamilos se eriçarem sob o tecido.

— Delícia — murmurou ele, mordiscando um, de­pois o outro.

Entregue, ela sucumbiu à fraqueza das pernas e se ajoelhou, amparada pelos braços sob suas coxas.

— Acho melhor você não me encorajar. Minha língua pode ser cada vez mais afiada.

— Então vou ensinar a ela umas coisinhas.

Ele pegou sua cabeça e a beijou, empenhando sua língua em outro tipo de batalha.

Quando terminou, ela se pendurou nele, hipnotiza­da. — Você podia neutralizar qualquer língua deste jeito.

Ele sorriu, acariciando seus cabelos.

— Foi o que pensei. Mas existem outras maneiras.

Ele se endireitou, tirou a túnica e a camisa, reve­lando um tórax arrebatador, musculoso e de pele bri­lhante.

— Explore-me com essa língua esperta, Joan.

Ela se aproximou, mas ele segurou as mãos dela, mantendo-as em suas coxas.

— Só a língua, Joan.

Sua boca ficou cheia de água, antecipando o calor, a textura e o sabor. Um peito largo, mamilos pequenos, uma linha de pêlos mais embaixo, em volta do umbigo e mais para baixo...

Lá estava seu umbigo, bem acima do cordão que amarrava as calças.

Devagar, ela se inclinou e circundou o umbigo com língua, de olhos fechados para sentir melhor o calor, o gosto de suor e sal, a textura da pele e as. cócegas dos pêlos. Ela pôs a língua em seu interior e sentiu os músculos da barriga se retesarem. Puxa, como aquilo era bom!

Em seu corpo, seu íntimo latejava.

Por um momento, ela sentiu medo de sua fome. Medo da conquista e de suas conseqüências. Mas se lembrou do juramento dele, e sabia que o Leão Doura­do o cumpriria.

Pondo a boca em seu umbigo, ela o beijou, sentindo as mãos dele apertarem as dela. Ela soprou a pele mo­lhada, sorrindo quando o sentiu tremer. Olhando para cima, ela viu que ele havia jogado a cabeça para trás, os olhos fechados, perdido nas sensações que ela produ­zia.

Sua língua desceu mais um pouco, ficando bem per­to do cordão das calças. Ela o sentiu se mexer e achou que tinha ido um pouco longe demais.

Os olhos dele se abriram e encontraram os dela, cheios de desejo.

— Se eu não estivesse sendo bonzinho, desafiaria você a ir mais longe.

— Você sabe que não resisto a um desafio.

— Achei que você era uma virgem sensata.

— Você fez um juramento e eu sou uma virgem mui­to curiosa. Nunca vi... Sinto que você... quero dizer...

— Você aceitou.

Ele soltou as mãos dela, desamarrou o cordão que segurava suas calças e se recostou, esperando que ela fizesse o que quisesse.

Excitadíssima e um tanto embaraçada, Joan baixou as calças dele.

Puxa!

Ela ouvira histórias suficientes para saber o que es­perar, mas achava que a maioria das mulheres encarava o membro com uma única intenção. Apresentado as­sim, ele era bonito, e ela queria sentir seu gosto.

— Diz se estou machucando — sussurrou ela, antes de tocar o mastro rígido com a ponta da língua.

Ela escutou um gemido. Duro como pedra, quente por dentro e macio como seda por fora. Um aroma almiscarado a excitava, quente, acolhedor...

Diziam que os homens eram todos iguais, mas ela não acreditava que se pudesse sentir deste jeito com outro.

Ele estava certo quando dissera que sua família nunca permitiria tal casamento, ainda mais com Edmund de Graves. Seria uma grande ofensa à lealdade da família.

O que seria dela?

Ela continuou. Quando ela tocou a ponta, ele se me­xeu. Ela percebeu e continuou a provocar.

— Será que fazer isto me desqualifica para o con­vento? — arriscou ela, olhando para a ponta vulnerá­vel.

— Não conte para eles. — Ele parecia sem fôlego. Ela continuou, segurando-o pelos quadris, e olhou para ele.

— O que acontece se eu continuar?

— Vou espirrar minhas sementes. Você não vai ficar grávida, a menos que eu as espirre dentro de você.

— Você gosta disto?

— Não. Mas gosto do jeito como você está fazendo.

— Diz o que é que você gosta mais. Deixe o poder da minha língua tomar conta de você, Edmund de Graves.

— Não me provoque!

E ele sugeriu mais coisas.

Sorrindo, ela as fez, e não deixou de se admirar quando ele atingiu o clímax, ficando impressionada com sua vulnerabilidade diante dela, naquele mo­mento.

Quando a respiração dele acalmou e ele abriu os olhos, ela disse:

— Você tem razão. Não sirvo para o convento. Não posso abrir mão deste poder.

Ele riu e a puxou para um beijo devastador. Antes de se dar conta, a mão dele estava embaixo de sua saia e a boca sobre seus seios cobertos pela roupa. Quando ela arqueou o corpo e gemeu, tomada pelas novas sensa­ções, ele parou de mexer os dedos hábeis e soltou sua boca.

— Também tenho poder, Joan. Quer que eu pare agora?

Ela balançou a cabeça.

— Sirva-me. Me dê o que eu quero.

Ele riu da provocação dela e obedeceu. E quem po­dia dizer quem era o vencedor e o vencido no final?

Eles ficaram deitados sobre a plataforma de pedra coberta de peles. Joan tentava se recuperar. Ele já tinha lhe dado uma lição sobre desejo, mas aquela tinha sido muito mais convincente. Ela aprendera que o desejo tem sua própria beleza e que não queria viver sem aqui­lo. Não podia falar que desejava viver esta beleza so­mente com aquele homem, mas tinha certeza que tama­nha harmonia de desejos era rara.

Mas ficar ao lado dele era praticamente impossível.

Uma parte dela dizia que não era mais impossível do que o casamento de Nicolette e do irmão dele, e que te­ria que se realizar, apesar da animosidade entre as fa­mílias.

Ela não podia desistir dele.

Não conseguiria!

Ela se levantou, apoiada nos cotovelos, e percorreu seus lábios com os dedos.

— Quero me casar com você.

— Sou bom mesmo, não é?

Ela deu um soco no ombro dele pela arrogância. Ele ficou sério e acariciou seu rosto.

— Gostaria de me casar com você também, mas não vejo como. O dever vem antes. Quero terminar com esta briga. Não posso piorar ainda mais a situação rap­tando você também.

— Se seu irmão e Nicolette ficarem juntos... Ele colocou um dedo sobre seus lábios.

— Gerald não é como eu. Não é o Lorde de Mountgrave. Ele pode se mudar para outras terras minhas. Ele não terá que tratar toda hora com Lorde Henry sobre assuntos de estado.

— Lorde Henry nunca esquecerá ou perdoará a per­da sua amada filha, mesmo que eles se mudem para a Espanha!

Ele fechou os olhos.

— Sei disso. Mas nosso casamento seria como jogar lenha na fogueira.

— Então só existe um jeito: temos que terminar esta rixa.

— Exatamente. Mas como?

— Sempre existe um jeito.

— Gostaria de ter sua certeza. — Ele pegou sua mão e a trouxe para perto. — Mas tudo que temos agora é este momento.

Ela não desistiria, achava que sempre existia um jei­to quando realmente se estava determinado. Mas ficar só falando sobre o assunto era desperdício de tempo.

De tempo precioso.

Ela se afastou dele e da plataforma de pedra. Tirou suas calças, desfrutando do prazer de ver aquelas per­nas musculosas. Só então percebeu que ela mesma só estava com a camisola de linho que vestia por baixo da roupa.

Puxa, como ele era bonito.

Quando estava completamente nu, ela ordenou:

— Vire-se. Quero explorar suas costas. Ele obedeceu.

— Faça o que quiser.

Tudo era novidade para Joan e era irresistível. Ela era como uma criança perto da força dele, mas ele con­seguia se controlar, e era extremamente vulnerável às cócegas. Por isso ela começou a massagear seus mús­culos. Cada vez que encostava no corpo dele seu íntimo ardia mais.

Ah, como ela o desejava!

Não agüentava mais.

Graças a Deus ele fizera um juramento.

Que pena...

Ela achou que ele havia adormecido mas, quando se afastou dele, ele se virou e a enlaçou, para acariciá-la e proporcionar-lhe um prazer selvagem de novo. Em retribuição, ela só podia fazer o mesmo por ele. Depois ficaram deitados, conversando amenidades até ador­mecerem.

Quando ela acordou, um raio de luz anunciava a ma­nhã. Se sentia mais faminta do que saciada.

Se ele pretendia lhe mostrar que ela era uma mulher cheia de desejo, conseguira. Ela percorreu seu corpo atraente com os olhos. Duas das lamparinas apagaram durante a noite mas, com a luz que restara, ela conse­guia ver os pêlos despontando no queixo quadrado. Ela acariciou a aspereza da pele.

Ele abriu os olhos, sorrindo, mas ela notou a mesma tristeza nele.

— Preciso levar você para Woldingham, Joan.

— E seu irmão?

— Lorde Henry não irá matá-lo. Negociarei alguma coisa.

— Você trocará o estandarte por ele? — perguntou ela, na esperança de que a rixa terminasse.

— Como poderia?

— Não passa de um pedaço de pano. Ele é seu irmão.

— É a honra da minha família há gerações. Muito sangue foi derramado por causa dele muitas vezes.

— E vai continuar sendo derramado...

Ela tinha decidido não brigar com ele, especialmen­te sobre assuntos que ele conhecia tão bem.

— Fiz um juramento. Todos os homens da minha fa­mília o fazem quando se tornam cavaleiros. Jurei nunca entregar o estandarte para os de Montelan.

Ela balançou a cabeça.

— E eles juram nunca parar de lutar para reconquis­tá-lo. Que loucura tudo isto! De qualquer maneira, quando estiver em Woldingham, encontrarei uma ma­neira de libertar seu irmão.

Ele agarrou seus ombros.

— Eu te proíbo.

— Se tio Henry não vai matar seu irmão, também não vai me matar.

— Pode ser. Mas, Joan, não se arrisque por mim. A idéia de você estar sofrendo me enfraqueceria.

— A mim também em relação a você, mas estou cer­ta que você não deixaria de lutar por causa disto.

Ele se sentou ereto.

— Você é mesmo uma mulher diferente!

— Achei que você gostasse disto. Ele sorriu.

— Minha natureza diz que devo te controlar e prote­ger, Joan. É a maneira que o mundo dos homens encon­trou para que as mulheres fiquem seguras.

— Então por que você está preocupado com o que tio Henry vai fazer comigo?

— Porque no mundo dos homens existe castigo. Você não vai tentar libertar meu irmão.

— Vou tomar cuidado. Ele agarrou o braço dela.

— Não quero você correndo risco nenhum.

— E se seu irmão conseguir escapar — continuou ela — será melhor levar Nicolette com ele.

— Joan!

Apesar de trêmula, ela o encarou.

— Você não pode me impedir, Edmund. Farei o que eu acho melhor.

— Colocaria seu pé numa armadilha?

— Por que você se acha mais inteligente e mais sen­sato do que eu? — Ela se afastou dele. — Pode ter cer­teza que não quero tanto quanto você ser pega pelo tio Henry. Não vou me arriscar. Mas se encontrar uma ma­neira de libertá-los em segurança, irei em frente.

Ele pressionou as mãos contra o rosto como se qui­sesse coordenar as idéias.

— Promete uma coisa.

— O que?

— Se você conseguir tirar Gerald e Nicolette de Woldingham, vá com eles. Não fique para enfrentar a ira de seu tio. Você estará segura com sua família.

— Vou tentar.

— Prometa!

— Prometo que vou tentar!

— Se for ela ou você, você vai ficar para receber o castigo.

— Não é isto o que você faria?

— Não importa o que eu faria. Edmund se levantou e vestiu as calças.

Joan começou a se vestir também. Ela tinha aprecia­do aquele embate de idéias do mesmo jeito que aprecia­ra o embate físico, mas se sentia lisonjeada pela preo­cupação com ela.

Ele tinha razão. Era uma mulher diferente.

Ela mantivera a roupa de baixo durante a noite, mas as outras peças estavam espalhadas. Enquanto as reco­lhia, ela o observou se vestir, admirando sua beleza.

Ele lhe pertencia. No fundo, ela sabia, ainda que a felicidade deles fosse impossível; tinha sido tão pouco tempo para construir um vínculo, mas ela sentia que ele existia, evidente como uma cicatriz.

Ela sabia que ele sentia o mesmo. Era por isso que ele tentaria levá-la para Woldingham. Ele estaria em perigo e, mesmo que conseguisse, aquilo o deixaria em desvantagem. ,e poderia acreditar que tio Henry não torturaria seu irmão até a morte, mas ela não tinha tanta certeza.

Joan vestiu a túnica.

— Acho que você deveria me levar para Mountgra e tentar a troca.

Ele se virou e olhou para ela.

— Este plano não era seu.

— Mudei de idéia. Seu irmão corre risco de vida.

— Se este for realmente o caso, trocarei o estandarte pela vida dele. Por sua própria segurança e por seu ca­samento com Nicolette.

Joan deveria sentir alívio por aquela solução, mas a angústia dele era evidente.

— Você quebraria seu juramento? — sussurrou ela. Ele se sentou para calçar as botas.

— Se ele começar a me enviar pedaços do meu ir­mão, que escolha terei?

Joan ficou embasbacada com a idéia, mas sabia que o tio era capaz de uma atrocidade.

— Mas, aí...

— É melhor você não falar nada — cortou ele. — Vai desperdiçar tempo e saliva.

Ele a abraçou e beijou de modo arrebatador.

Quando a soltou, ela ficou parada, observando ele caminhar até a armadura e reencarnar seu lado Leão Dourado, que não era o que ela amava. Observou o ho­mem que iria arriscar sua honra e sua palavra para lhe oferecer mais segurança.

— Isto não faz sentido!— exclamou ela.

— Joan, você é a única inocente nesta história toda.

— Inocente?!

— Gerald e Nicolette cometeram os pecados da es­tupidez e da imoralidade. Levei este plano a cabo sem medir as conseqüências e sem envolver meu irmão nele. Este desastre todo é culpa minha.

Joan abriu a boca para argumentar, mas ele conti­nuou.

— Você tentou ajudar sua prima, e o seu plano era bom. Se eu não tivesse interferido, você não estaria em perigo. Por isso, pelo menos você deve retornar em se­gurança. É uma questão de honra.

Ela foi ajudá-lo com a armadura, como fazia com os irmãos de vez em quando.

— Minha honra exige que eu tente ajudar você e mi­nha prima.

Ele a ignorou e continuou o que fazia.

Quando terminou de colocar a bela armadura de fer­ro ornada de ouro, a mudança estava completa. Seu amado da noite se transformara no Leão Dourado, um personagem de lenda e glória — alguém de outro mun­do.

Casamento? Seria isto realmente o que ela ouvira durante a noite? A prova de que não se deve acreditar nos murmúrios da noite estava ali. Mesmo que não existisse nenhuma animosidade entre suas famílias, um lorde daquele quilate não era para ela. Ele podia ser até o arcanjo Miguel, e nada mudaria.

Tudo não passara de uma noite na gruta, mas ela não i trocaria por um lugar no céu.

E ela ainda achava que seria melhor irem para Mountgrave e ela ser trocada pelo irmão dele.

 

Quando a bruma acinzentada anunciou a aurora, eles desceram a colina até a planície. Desta vez, ela seguia empoleirada atrás de Edmund sobre o cavalo, a mão em seu cinto. Ele só colocara um tecido entre ele e o ani­mal, o arreou com as cordas e eles partiram silenciosa­mente, a não ser pelo ruído da armadura. Sua espada estava na bainha, mas ele carregava o escudo, já que não podia pendurá-lo nas costas nem enganchá-lo na sela. O peso devia incomodá-lo. Ela estava preocupada porque o ferimento podia ter inchado seu braço direito.

Ela achou graça de sua tendência a tratá-lo como uma mãe trata um bebê. Aquele era o Leão Dourado, imbatível havia anos nos torneios.

Por algum tempo, eles se moveram numa atmosfera enevoada e silenciosa, mas o rosa tingiu o céu e a pri­meira ave cantou. Quando a luz perolada tomou conta do céu, Joan manteve os ouvidos atentos para qualquer sinal de perigo, como provavelmente ele também o fa­zia. Mas era como se a caçada tivesse chegado ao fim. Naquela área, pelo menos.

Ela não conhecia muito bem os arredores, mas achava que as trilhas que ele escolhera levavam a Woldingham.

Se algum inimigo estivesse à espreita, eles logo seriam encontrados.

Que homem tolo!

Como da vez em que fora capturada, ela pensou em pular do cavalo e fugir. Seria mais fácil agora, pois ela estava atrás dele, mas não adiantaria nada. Ele a recap­turaria em segundos. Ela preferiu abraçar seu peito musculoso, detestando a aspereza entre ela e a pele dele.

No fim, o perigo surgiu de repente, surpreendendo-os no pior lugar possível. Thor tinha acabado de descer a margem de um riacho quando quatro cavaleiros sur­giram galopando em uma trilha próxima.

Edmund imediatamente acalmou o cavalo e os ho­mens quase não os viram. Então, um deles olhou para o lado e empinou o cavalo, dando o alerta.

Não adiantava correr. E ficar era certeza de morte!

— Desça e vá para Woldingham. Para a esquerda, reto como o corvo voa.

Edmund largou os arreios e puxou a espada.

— Não!

— Obedeça, Joan.

Era uma ordem do Leão Dourado, e, após um mo­mento interminável, Joan pulou do cavalo. Ele não po­deria lutar com ela ali atrás, mas ela não saiu correndo.

Se escondeu embaixo de algumas plantas e avançou, mudando sempre de direção, o mais silenciosa e rapi­damente possível. Gritos e o barulho de metais se cho­cando a faziam pular, e ela resolveu espiar o que acon­tecia de trás de uma grande árvore. Mas só conseguiu ver um amontoado de homens, cavalos e espadas.

Eles o matariam!

Ela queria correr para socorrê-lo, mas seria inútil.

Thor pulou para trás e um cavalo caiu, relinchando O cavaleiro foi jogado para o alto e caiu desacordado Imediatamente, ele recuou, partindo para cima de outro cavalo para refugá-lo. Felizmente, nenhum dos cavaleiros tinha um cavalo de batalha. Um poderoso golpe da espada de Edmund fez cair outro cavaleiro.

Joan achava que o sangue jorraria e, quando isto não aconteceu, percebeu que o Leão Dourado estava ten­tando não matar ninguém.

— Que nobre mais tolo — murmurou ela, mas com­preendeu. Qualquer outra morte aumentaria a rixa entre as famílias.

Os outros dois cavaleiros estavam por ali, pouco in­clinados a se aproximar. Porém, aquele que havia sido derrubado conseguira se levantar e empunhava a espada. Edmund poderia cavalgar para longe, mas ele estava tentando resguardá-la. Será que ela deveria al­cançá-lo?

Então, um dos homens se virou para onde ela se es­condera e disse:

— Lady Nicolette! Venha! É seguro. Uma estranha definição de seguro, mas ela estava abismada de eles ainda acharem que Nicolette era a Virgem raptada. Se ela conseguisse chegar a Woldingham...

Ocorreu-lhe que se aqueles homens estivessem an­dado a noite inteira, não saberiam se Nicolette havia sido descoberta.

Ela titubeou, indecisa, o cérebro momentaneamente ocupado em decidir o que fazer. Diante dela, os ho­mens também pareciam sem ação, sem saber bem o que fazer.

Finalmente, o homem que estava no chão partiu para o ataque, a espada em riste.

— Ele a matou, matou Lady Nicolette!

Os outros dois partiram também para o ataque e Ed­mund rodopiou no meio, conseguindo combater as três lâminas, mas de repente o sangue jorrou de seu braço direito. Ele ainda empunhava a espada, mas por quanto tempo? Ela não poderia sair correndo e abandoná-lo...

Com o ar queimando a garganta, ela correu para o riacho, sem se preocupar com o barulho, pegou meia-dúzia de pedras e as colocou na túnica enrolada. Com meias batendo em suas coxas, ela correu e se aproximou o máximo que podia da luta.

Eram dois contra um agora, e só um deles estava tentado, mas Edmund estava fraquejando, e o homem que estava em pé tentava agarrá-lo. Ela pegou uma pedra, rezou e a atirou o mais forte que podia em direção do elmo dele. A pancada deve ter sido forte o suficiente para atordoá-lo. Ele balançou e se virou em direção ao novo inimigo.

Joan havia se escondido atrás de uma árvore, vendo Edmund ignorar uma oportunidade perfeita para tras­passar o homem. Ele feriu o outro cavaleiro no braço da espada e o desarmou, jogando-o para fora da sela.

Ela atirou outra pedra no homem que estava atrás dela. Não acertou sua cabeça, mas conseguiu acertar a mão que segurava a espada. Ele gemeu e largou a arma. Concentre-se. A segunda pedra o acertou bem o meio da testa e ele caiu no chão.

O homem derrubado da sela conseguiu remontar, mas manteve o cavalo afastado, parecendo não estar disposto a se arriscar, mas o primeiro a cair estava se levantando. Joan atirou uma pedra em suas pernas. Por sorte, acertou o joelho e, com um grito, ele caiu.

Quando olhou para trás de novo, o outro homem ti­nha sido derrubado novamente. Quando Thor empinou, ele bateu em retirada. Edmund segurou o cavalo que estava mais próximo.

— Monte, minha querida desordeira.

Ele estava certo. Ela estava ali em campo aberto, ati­rando pedras em seus salvadores. Havia arruinado to­das as chances de voltar despercebida. Ela montou no cavalo e, assim que se ajeitou na sela, eles partiram. Um outro cavalo solto seguia na frente deles.

— Segure na crina! — recomendou Edmund, segu­rando as rédeas do cavalo dela.

— Sei montar! — gritou ela, obedecendo.

Ele diminuiu um pouco o galope, olhou para ela e lhe entregou as rédeas. Lado a lado, eles trotaram por uma estradinha, o cavalo livre na frente. Ela esperava que estivessem na direção certa.

Ela sabia montar, mas nunca galopara tanto, e os es­tribos eram muito longos para seus pés. Tentava man­ter as pernas no lugar e agradecia pela sela ser alta na frente e atrás. Procurou também segurar firme na ma­çaneta da sela para ter mais firmeza.

Quando Edmund diminuiu a marcha, ela agradeceu no íntimo, pois precisava tomar fôlego. Não podiam se demorar, uma vez que os atacantes poderiam ter se rea­grupado ou buscado reforços.

Quando o cavalo de batalha parou, ela lançou um olhar inquisitivo para Edmund, e o viu balançar e quase cair. Havia sangue em sua perna. Thor parou sozinho, sentindo a fraqueza de seu dono.

Quanto sangue teria perdido? Por quanto tempo fi­caria consciente?

— Edmund! Olhe para mim! — chamou ela, ríspida. Ele virou a cabeça, mas ela não sabia se ele a via. Joan se benzeu.

— Nossa Senhora, nos ajude!

Ela não ouvia qualquer sinal de perseguição, mas achava que a jornada não seria fácil. Ela nem sabia se estavam na direção certa.

— Edmund, o caminho é mesmo este?

Ele balançou a cabeça de leve e olhou em volta.

— Sim, estamos perto de Mountgrave. — Um lam­pejo de raiva iluminou seus olhos. — Você devia ter feito o que eu disse e ido para Woldingham. Ouviu o que aquele homem disse, ele chamou você de Nicolette.

Ela resumiu sua opinião sobre estarem discordando.

— De qualquer maneira, isto não importa. Eles me viram. Você pode me fazer de refém, se conseguir se manter consciente até chegar em casa. Pode montar neste cavalo? A sela vai ajudar.

— É melhor ficar com Thor. Você fica atrás para ajudar.

Joan preferia o cavalo selado e não sabia se conse­guiria montar sem Edmund ajudando. Mesmo assim, desmontou. Aliviado, ele viu uma elevação no chão e levou Thor até lá. O sangue ainda saía da perna de Ed­mund, e ela improvisou uma atadura com seu lenço de cabeça. Parecia haver outros ferimentos sob a cota de malha, mas não havia tempo para procurá-los nem para tratar de seu braço direito.

Subindo no montinho com alguma ajuda do braço esquerdo de Edmund, ela conseguiu montar. Ela o ou­viu murmurar algo para o cavalo, e tinha visto Thor em batalha. Por isso sentia-se grata.

No entanto, podia sentir a tensão do cavalo, uma ân­sia de luta, talvez pelo cheiro de sangue. Ela olhou para baixo e viu que havia muito sangue na terra e no mato. Tinham que permanecer em segurança. Ela bateu nos flancos do animal. Ele era mais alto do que os cavalos que costumava montar, já que suas per­nas curtas estavam espalhadas sobre seu dorso largo. Nada aconteceu.

Ela ficou desesperada

— Edmund, faça-o andar!

Edmund deu um pulo como se estivesse inconscien­te, mas disse algo e moveu o corpo ligeiramente, e Thor começou a andar. Ela queria gritar para ele correr, mas isto os derrubaria.

Ela se virou para olhar para trás pela estrada. Tudo estava quieto. Enquanto seguiam pelo caminho em si­lêncio, ele se manteve alerta. De repente, escutou algo. Cascos de cavalo. Ainda escondidos.

— Estão chegando. Temos que ir mais depressa! Ele segurava a crina, quase desmaiado para frente.

Não conseguia se manter ereto. Se ele não conseguisse, ela não conseguiria também. Estava literalmente em­poleirada em cima do imenso animal, e não estava acostumada a montar em pêlo.

— Vou descer — disse ela.

— Não!

Ele caiu para frente, os braços em volta do pescoço de Thor.

— Monte e pegue as rédeas.

Alertada por um grito áspero, sinal de que haviam sido vistos, ela subiu e colocou as pernas em volta da cintura dele. Ele sufocou um grito, e ela quase se enco­lheu, mas olhou para trás e viu o inimigo. Cinco ho­mens com sede de sangue.

Ela se inclinou para frente, pegou as rédeas e gritou:

— Vai, Thor, vai!

Por um milagre, o cavalo entrou em ação, os cascos de ferro amassando o chão gelado, cada passo sacudin­do seus ossos e ameaçando fazê-los cair. Mas era como se o animal estivesse preocupado em mantê-los monta­dos, e ela só tinha de apertar com as pernas para manter o equilíbrio.

Ela sentiu Edmund começar a escorregar. Sua perna esquerda devia estar doendo muito, e o braço direito ja­zia inútil. Ela se mexeu, tentando evitar que ele escor­regasse. Thor tropeçou, desequilibrado. Uma flecha passou zunindo perto, apavorando-a. Se passasse alguns centímetros à esquerda, teria acertado suas costas.

Thor relinchou e corcoveou. O zunido pareceu soar depois. Joan percebeu que o cavalo havia sido atingido pela flecha quando ela e Edmund começaram a escorregar. Ela agarrou a crina e tentou se segurar, e o cora­joso cavalo parou, tremendo, tentando ajudar.

Os gritos dos homens estavam cada vez mais perto.

Tinham sido pegos.

Então, à frente, ouviu-se um verdadeiro clarim de caçada.

Quase caindo, ela viu Mountgrave sobre a colina, e sua cavalaria saindo pelos portões. Estavam muito lon­ge. Era tarde demais.

Mas quando ela arriscou um olhar para trás, viu que os cinco homens haviam parado, frustrados ao verem o exército que estava a caminho. Um deles tinha um arco, e encaixou outra flecha para acertá-la. Um outro empurrou a flecha para o lado, mas ele olhou nos olhos de Joan, como se prometesse vingança.

Os homens rodopiaram e saíram correndo pela tri­lha, de volta pra Woldingham com uma história de des­lealdade.

Joan largou o corpo inconsciente de Edmund e ir rompeu em lágrimas.

O tempo que passou depois foi como uma miragem já que a iminência do perigo quase a fez desmaiar. Ela foi colocada em outro cavalo e levada para o castelo, levemente consciente do que acontecia à sua volta.

O que aconteceria com Edmund de Graves? Nossa Senhora, ele estava morrendo! Que tipo de ferimento fizera jorrar tanto sangue? Qual dano causara sentando sobre ele?

Quando chegaram ao castelo, estavam escoltados por outro pequeno exército, desta vez composto por serviçais, alguns apressados para ajudar, outros para ver seu senhor com ar de comiseração. Joan, ainda car­regada por alguém, viu Edmund ser cuidadosamente retirado do dorso de Thor.

Ele estava quieto e envolto num mar de pessoas que­rendo ajudá-lo. Ele podia estar suportando a dor, ou es­tar ainda inconsciente. Ou morto.

Não, morto não. Eles estariam chorando.

Será que aqueles olhos tinham visto coisas demais?

— Lorde Edmund. Preciso ir até onde ele está.

— Não se preocupe, Lady. Ele está sendo bem cui­dado.

— Mas...

Joan se calou. Seu sentimento de que deveria estar ao lado dele era bobagem.

— Sou Almar de Font, Lady. E você, eu acho, não é Lady Nicolette de Montelan.

— Sou Joan de Hawes. Prima de Lady Nicolette. E o senhor é o Almar de Font?

— Se existir algum outro, milady, serei obrigado a combatê-lo por se ter apoderado de meu nome.

Ele chamou alguém, e em segundos ela estava rece­itado ajuda para ficar em pé. Ben ficou ao lado dela.

— Tudo o que um homem realmente possui, milady, é seu honorável nome.

Joan olhou em volta, para as paredes majestosas e para a fortaleza, para as hordas de serviçais prósperos, para as dúzias de bons cavalos, para o pequeno exército de homens bem treinados. Edmund tinha muito mais que um título, mas ela se perguntava quanto prazer en­contrava naquilo.

Ela se deixou guiar pela fortaleza, se sentindo numa terra mítica. Almar de Font talvez fosse mais famoso do que o Leão Dourado.

Desfrutara de inúmeras aventuras heróicas, mas, 15 anos atrás, ele decidira ser o mentor dos dois filhos de seu amigo e senhor. O nome Almar de Font personifi­cava honra, honra até a morte, e ela estava certa de que ele não permitiria que seu senhor e aluno abrisse mão da honra para entregar o estandarte aos de Montelan.

Nem mesmo para salvar a vida de Gerald.

— Lady Joan!

De repente, ela se viu envolvida em sedas e perfu­mes, abordada por uma mulher tagarela. Logo tudo co­meçou a fazer sentido.

— Tão corajosa! Tão santa! Venha. Venha. Joan não teve outra escolha senão ser levada em meio às sedas e perfumes a um aposento forrado de ta­peçarias e aquecido por dois braseiros reluzentes. Ela já sabia que quem estava cuidando dela era Lady Leti­tia, irmã de Edmund, e que o exército feminino era o bando de damas de companhia, todas mais bem vesti­das do que Joan.

Joan ainda vestia a roupa da Virgem Maria, vesti­mentas simples da esposa de um carpinteiro. Mas, mesmo que estivesse arrumada para alguma festa, Joan não estaria tão bem vestida quanto uma daquelas moças, e jamais chegaria aos pés de Lady Letitia.

Elas tiraram suas roupas e a colocaram numa ba­nheira perfumada. Apesar de seus tímidos protestos, logo cada parte de seu corpo estava sendo cuidada por alguém. Ela ficou ali deitada, olhando para Lady Leti­tia, que orquestrava tudo.

A irmã de Edmund não tinha sua beleza: não era muito alta e seus cabelos eram alourados. Eram a auto­confiança e uma fortuna em sedas e jóias que a torna­vam uma deusa.

— O que está acontecendo? — perguntou Joan. Lady Letitia sorriu, um sorriso lindo.

— Meu irmão se recuperará — disse ela, como se isto respondesse a pergunta.

— Deus permita. Mas quis dizer, por que estou sen­do tratada como... como uma convidada de honra.

— Mas você é uma convidada de honra! — excla­mou Letitia, ajoelhando-se para pegar o pente da mão de uma das serviçais e pentear o cabelo embaraçado de Joan. — Você salvou Edmund.

Joan nem percebera que as tranças haviam desman­chado. Suspeitava que apesar do status de donzela, Lady Letitia poderia não gostar de saber que seu irmão havia criado a maior parte da confusão. Ela sentia vontade rir e de chorar ao mesmo tempo.

Se o casamento entre eles não era possível por causa de suas famílias, ela via agora que seria impossível por outro motivo. Ela se sentia uma pobre em Wolding. Ali, se sentia como uma intrusa ambiciosa.

Ela se entregou e deixou que a lavassem, secassem e a massageassem com óleos perfumados. Quando rela­xou para dormir, pensou que aquilo tudo não era ma­neira de se tratar um convidado de honra. Era uma ma­neira especial de se tratar um cordeiro destinado ao banquete da Páscoa.

Como se fosse um objeto de sacrifício. E ela seria oferecida em sacrifício.

O próximo passo seria oferecê-la ao tio Henry em troca de Gerald de Graves, e a carnificina começaria.

 

Joan foi acordada por uma sacudidela gentil, e por al­guns instantes um doce perfume e uma maciez a con­fundiram. Onde ela estava? De repente, se lembrou e sentou na cama, pronta para enfrentar seu destino.

Ela balançou. Estava machucada e com hematomas em vários pontos do corpo, alguns dos quais nem sabia que existiam. Apesar da presença da serviçal, ela fe­chou os olhos e tentou lembrar um momento vivido na gruta, uma imagem dela e Edmund, mas era como um sonho que fugia de sua mente.

Ela abriu os olhos e encarou a mulher de meia-idade.

— Já está na hora? Hora de ser entregue.

— Ah, sim, Lady, está na hora. Levante-se e eu vou ajudá-la a se vestir.

Joan viu duas outras serviçais, uma mais jovem, ou­tra mais velha, e uma série de roupas finas.

— Ah, isto não é necessário.

Talvez se ela voltasse como a Virgem maltrapilha a ira do tio abrandasse.

— As roupas com que cheguei serão suficientes.

— Desculpe-me, Lady, mas tudo aquilo virou um monte de trapos. Estava cheio de lama e sangue.

Joan olhou para os tecidos brilhantes. Ela nem sabia direito que roupas eram aquelas, mas eram todas de seda, muitas delas maravilhosamente bordadas.

— Então que tal algo mais simples? As três ficaram olhando para ela.

— Para o banquete? — perguntou uma delas.

— Banquete?

Por um segundo, Joan se imaginou como o prato principal, vestida para ser devorada.

A mulher pousou a mão em seus cabelos, confortando-a. Talvez seu medo tivesse transparecido.

— É Natal, Lady Joan, e ninguém quer lhe causar nenhum dano. Woldingham concordou em devolver Lorde Gerald em segurança amanhã em troca da senho­ra. Por isso hoje poderemos celebrar. Logo todos esta­rão reunidos no hall.

Amanhã.

Que diferença fazia um dia? Muita. Ela ainda teria um dia antes de sua cabeça rolar, então por que não aproveitar? E se ela tinha a oportunidade de festejar com os de Graves, aproveitaria a chance de não parecer uma mendiga.

Ela se levantou da cama e as deixou deslizar sobre sua cabeça uma camisola de linho tão fino que parecia seda. A outra vestimenta que veio por cima era de seda. uma seda quente de inverno, que caía até os pés como uma cascata de creme. Para contrastar, a túnica que se sobrepôs era leve como uma pluma e quase transparen­te, toda bordada de flores coloridas como gemas preciosas. Joan olhou para baixo e deslizou as mãos sobre o padrão elegante que se formara sobre o bege, como flores sobre a neve, e quase chorou com tanta beleza.

Por um instante pensou em rejeitar tudo aquilo por ser fino demais para Joan de Hawes, mas desistiu. Amanhã seria outro dia. Hoje, ela se vestiria de seda e festejaria a valer, e até sonharia um pouquinho que tudo aquilo poderia ser seu.

Depois vieram as meias finas de lã e graciosos sapa­tos de couro bege. Então, a serviçal rechonchuda, Mabelle, abriu uma caixa e tirou uma cobra brilhante. O cinto de ouro e pérolas foi fechado em volta dos qua­dris, mas ainda caía extravagante pela frente, até os pés. Um fino véu foi enrolado em volta de seu cabelo solto, e fixado com um diadema tão fino quanto o cinto. Ela queria ver como estava.

Será que ela teria se transformado numa grande lady como Lady Letitia? Ou, como temia, continuava a ser Joan de Hawes acocorada como um sapo entre as flo­res, a mesma de sempre, completamente deslocada?

Ele se retesou. Esta era sua chance de sentir a gran­deza por algumas breves horas. Ela não deixaria pas­sar.

Quando ficou pronta, as serviçais a levaram através de um corredor até um hall majestoso e brilhante, cheio de gente. Bandeiras pendiam do teto entre rolos de fu­maça provenientes de braseiros e de um fogo maior. Os aromas dos perfumes, das especiarias e dos belos pra­tos enchiam o ar. Pessoas ricamente vestidas estavam sentadas por todo lado, e os serviçais estavam alinhados nas paredes.

Esperando.

Por ela?!

Embaraçada, ela procurou seu lugar. Mabelle a em­purrou de leve para a grande mesa que repousava sobre uma plataforma à sua direita.

Lady Letitia estava lá, e uma outra senhora, ainda mais majestosa. E um homem mais velho. Sir Almar.

Então, viu Edmund. Restabelecido?

Não. Não era Edmund, era o Leão Dourado, sentado na grande cadeira do centro, vestido de vermelho, com ricos braceletes e uma coroa de ouro na cabeça — bri­lhando como uma imagem, quase inumano.

Ele dirigiu seu olhar para ela também.

Viu o sapo.

Antes que entrasse em pânico e corresse, ele se le­vantou com o auxílio da mão esquerda. Dois serviçais e Sir Almar, que estava a seu lado, estenderam os bra­ços para ajudá-lo. Quando ficou de pé, Edmund a cum­primentou.

— Lady Joan, seja bem-vinda em meu salão. Venha, sente-se à minha direita.

Para seu espanto, todos no salão se levantaram, in­clusive os da mesa principal. Os cavaleiros se curva­ram e as senhoras a cumprimentaram, e os serviçais se abaixaram sobre um joelho.

Joan ficou paralisada.

Sir Almar veio rápido em seu auxílio e a conduziu, estupefata, pelos degraus até seu assento, numa cadei­ra, não um simples banco, à direita de Lorde Edmund.

Ela se sentou e Edmund também. Ela notou que Sir Almar o amparara discretamente, apoiando-o com a mão sob seu cotovelo esquerdo, e que havia um traço de suor em sua testa. Ele deveria estar na cama. O hall retomou a atmosfera anterior, mas muitos olhares se concentraram nela. — Seria melhor se você não tivesse feito isto — sus­surrou ela, de cabeça baixa, já que não sabia para onde olhar. A mão dele levantou seu queixo e a fez encará-lo. — Nós lhe rendemos homenagem, Lady Joan, só isto.

Quando encontrou seus olhos, ela afastou a mão dele e, olhando para diante, viu o rosto impassível de uma mulher mais velha. Devia ser sua mãe, a famosa Lady Blanche de Graves, uma senhora de nobre estirpe antes de casar. Ela era em parte responsável pela ascensão da família em fama e fortuna.

O tipo de mulher que seria a próxima esposa do Leão Dourado.

— Não sou digna de tamanha honra, milorde — res­pondeu Joan.

— Salvou minha vida, Lady.

— Thor o traria para casa em segurança e você não estaria em perigo sem mim.

— Você não estaria em perigo sem mim, Lady Joan, ou ainda estaria em perigo por minha causa.

— Ah, entendi, milorde. Vamos render homenagem à vítima do sacrifício.

Pajens solícitos apresentaram a comida e Edmund se serviu de alguns quitutes em seu prato de prata. Ela be­beu de um cálice ornado de pedras e começou a comer, pois estava faminta. Só não sabia se conseguiria digerir a comida.

Menestréis estavam escondidos em algum lugar, to­cando uma música suave que ela sem dúvida teria apre­ciado em outras situações.

Ela viu que ele se recostou em sua cadeira majesto­sa.

— Não tenho outra alternativa, Lady Joan, a não ser trocá-la por meu irmão.

— Eu compreendo.

— Foi idéia sua, se bem se lembra.

— Mas é uma pena ter sido forçada a mostrar minha fidelidade maculada tão claramente.

— Não a forcei a nada. Ordenei-lhe que fugisse para Woldingham.

E era claro que ele queria que ela tivesse feito isto. Talvez tivesse sido melhor. Ambos teriam sido captu­rados, mas Lorde Henry não teria matado Edmund. Para resgatar o Leão Dourado e seu irmão, Mountgrave teria que entregar o estandarte e tudo estaria terminado.

Não era tão simples assim. Se os de Graves perdes­sem o estandarte, começariam uma guerra para recupe­rá-lo. Seus juramentos estariam em jogo.

— Lady Joan, diga a seu tio que me ajudou para evi­tar meu assassinato por seus homens, porque sabia não ser este o desejo dele e também por saber que ele não aprovaria nenhum derramamento de sangue na época do Natal.

— Parece inteligente — admitiu ela, depois de al­guns segundos.

— É. Às vezes consigo ser inteligente.

Seus olhos disseram coisas que os lábios não po­diam.

Lady Blanche interrompeu a conexão silenciosa, inclinando-se para falar sobre ele.

— Você tem minha eterna gratidão, Lady Joan, por prestar assistência ao meu filho.

Seus olhos não perdiam nenhum detalhe, e seu sorri­so fino não trazia nenhum calor a eles.

— Jamais permitiria que ninguém morresse por cau­sa de um pedaço de pano, milady.

As narinas do nariz afilado se inflaram.

— Não se trata de um simples pedaço de pano, mo­cinha.

— Não, não é um simples pedaço de pano — conti­nuou Joan olhando-a nos olhos. — Foi transformado numa algema para os homens das duas famílias. Sem dúvida, no futuro, Lorde Edmund exigirá um juramen­to a seu filho, de que ele nunca se renderá, de que nunca negociará sobre este assunto.

O braço direito de Edmund deveria estar fortemente enfaixado, mas mesmo assim, ele conseguiu agarrar seu pulso.

— Joan, fique quieta.

Joan viu a expressão do rosto da mulher modificar, mas não por causa das palavras dela. Foi por Edmund ter usado seu primeiro nome e pelo tom que usou. Foi um aviso claro, mas o tom, íntimo.

Ela viu que ele percebeu. Ele largou seu pulso, e com a mão esquerda apontou para o extremo da mesa, onde um grande pedaço de tecido opaco, de um vermelho-acastanhado com alguns pontos bordados, estava pendurado num grande suporte todo enfeitado.

— Aí está.

O estandarte de Belém. Ele parecia a figura do Cris­to sobre um crucifixo dourado.

Estandartes de guerra não resistiam muito depois do uso, mas este era ainda mais desbotado e rasgado do que qualquer outro. O que, de certa maneira, emprestava-lhe mais poder. Era fácil acreditar que fora levado à Jerusalém há gerações, fora manchado de sangue e, de­pois, estendido na terra em que Jesus nascera.

Ou talvez fossem o sofrimento e o sangue derrama­do nos anos subseqüentes que lhe conferiam poder.

Ela notou como os serviçais se curvavam diante dele quando passavam por ali. Joan se virou para Edmund.

— Fica sempre ali?

Ele franziu a testa ao ouvir o tom de sua pergunta.

— Claro que não. Temos uma capela especial e se­gura na fortaleza, onde ele é guardado exceto na época do Natal.

— Fica trancado?

— Seis monges vivem perto para rezar diante dele dia e noite, Lady Joan.

Rezam por perdão ou por uma glória ainda maior para os de Graves, ela queria perguntar. Vendo a grandeza em que viviam, sentindo a reverência com que era considerado, entendeu melhor porque os de Montelan acreditavam que o estandarte tinha poderes místicos. O porquê deles a desejarem para si.

Mas tudo estava errado. Ela achava que o estandarte estava aprisionado naquela cruz como um prisioneiro de homens insensíveis, como ela seria no dia seguinte.

Ele a tocou mais uma vez.

— Joan, o que houve? Não há necessidade de con­trolar a língua, você sabe disto.

Seu olhar divertido a levou para outro tempo e lugar, mas aquilo era passado. Não voltaria mais. Os olhos vi­gilantes da mãe dele confirmaram isto. Mesmo assim, ela devia ser honesta com ele.

— Apreciaria ter uma conversa a sós antes de partir, milorde. Eu lhe darei minha opinião sobre o assunto.

Ele assentiu.

— Então assim será. Mas por agora, como uma gen­tileza para comigo, aproveite a festa.

Como não havia nada mais a fazer, Joan obedeceu, aproveitando bastante a presença de Sir Almar à sua di­reita. Apesar de circunspecto, ele conversava bem so­bre vários assuntos e a encorajava a apreciar os acroba­tas, os mágicos e os fantoches. De vez em quando, Lor­de Edmund se dirigia a ela com algum comentário ou pergunta ou para oferecer algum quitute, mas nada além disto. Ela sabia por que ele se comportava daque­la maneira. Ele era o centro das atenções, e por isso não podia parecer muito interessado nela. No entanto, se ignorassem completamente, todos estranhariam.

Ela não tinha escolha. Sabia disto. Mesmo que ele quisesse, não poderia desposá-la, e, sem a troca, seu ir­mão minguaria na prisão, ou talvez fosse torturado e morto. Ela achava que Edmund tentaria mitigar seu castigo, mas teria que entregá-la de qualquer maneira a seu tio. E, uma vez que o Natal tivesse passado, tio Henry não seria tão piedoso.

E Nicolette, claro, provavelmente deveria estar con­finada a pão e água, mesmo nesta época.

Ela tentou imaginar se algum tipo de festa estaria acontecendo em Woldingham.

E se Nicolette havia sido obrigada a confessar seu verdadeiro pecado.

Com o apetite satisfeito, Joan começou a se sentir enjoada.

Uma mão quente cobriu a sua, oculta pelas ricas toa­lhas, mas ele nada disse. Seus olhares se encontraram brevemente, cheios de anseios que ela conhecia bem. Ambos estavam presos a convenções criadas por ou­tros, mas que eles próprios haviam desrespeitado.

A música acelerou e os artistas se retiraram entre gargalhadas para liberar o meio do salão para a dança.

— Gostaria de dançar com você, Lady Joan.

Era uma desculpa polida, mas com um tom triste. Ela precisava acreditar que os sentimentos dele eram verdadeiros. Que não tinha sido apenas aquela noite na gruta.

— Não sinto vontade de dançar, milorde. Lady Blanche se inclinou mais uma vez.

— Estou certa que muitos homens aqui ficariam honrados em dançar com você, Lady Joan — disse Lady Blanche.

— É melhor não, milady — respondeu Joan, sorrindo. Lady Blanche retribuiu o sorriso, mas seus olhos emitiram uma mensagem clara: não acalente sonhos tolos, mocinha.

Joan viu os casais começarem a rodopiar e disse:

— Presumo que seus ferimentos não sejam muito graves, Lorde Edmund.

— Só doloridos e incômodos, Lady Joan. Eles se­riam piores se não fosse sua habilidade com as pedras.

— Eu e meu irmão brincávamos de jogar pedras, mi­lorde.

Ela começou a conversar sobre sua casa, seus irmãos e irmãs. Sobre os anos cheios de brigas entre eles e os pais sempre arrasados por ter que cuidar de dez crian­ças, que miraculosamente sobreviveram.

— É claro que os rapazes partiram para serem trei­nados em outros domínios, mas eram substituídos pe­los filhos de outros homens. Mas não muitos, milorde, porque Hawes não é uma grande propriedade — acres­centou ela deliberadamente.

Mountgrave transbordava de pajens e escudeiros que ganharam o privilégio de servir ao Leão Dourado.

— E nenhum destes jovens rapazes lhe fez a corte, Lady Joan?

— Alguns sim. Mas, não faziam meu tipo. Eram jo­vens demais.

— Ah. Sim. Lembrei agora que você prefere homens mais maduros e sóbrios.

Com este comentário, deliberadamente ou não, ele resumiu o que acontecera naquela noite.

Sua mão esquerda repousava sobre a bela toalha. Ela não pode deixar de notar os três anéis preciosos que ele usava, o belo bracelete de ouro e a seda pesada de sua vestimenta, bordada de vermelho sobre vermelho. Ele não precisava alardear sua riqueza com tanta ostenta­ção.

De repente, ela imaginou como era difícil ser Edmund de Graves, o Leão Dourado, aos 25 anos. Lem­brou de quando ele se queixou de ser reverenciado o tempo todo.

Num impulso, ela apertou de leve a mão que ainda repousava sobre a sua. Ele se virou para lançar-lhe um olhar e depois desviou a cabeça. Mas sob a toalha, seu polegar fazia carinhos na mão dela.

Depois de algum tempo, ele a soltou e dirigiu a pala­vra à mãe.

— Milady, temo estar muito exaurido para presidir os festejos por mais tempo. Posso pedir-lhe e a Sir Almar que me substituam?

Lady Blanche acariciou o rosto do filho.

— Claro, meu querido. Você sabe que eu queria mantê-lo na cama — respondeu a mãe, beijando-o.

— Não poderia desapontar nossos convidados. Ele se dirigiu a Joan.

— Fique à vontade, milady, para ficar ou partir. Você partilhará do aposento de minha irmã esta noite.

Joan ruborizou. Achou que nem dormiria ali.

— Não gosto de...

— Não é uma imposição, não é, Letty? Lady Letitia, ao lado de Sir Almar, concordou. Lorde Edmund levantou a mão dela com sua mão es­querda e a beijou.

— Desejo-lhe bom descanso, milady. Esteja certa que me empenharei em assegurar sua segurança como você se empenhou em relação à minha. Tanto as palavras quanto o beijo eram adequados para centenas de olhos e ouvidos, mas Joan mordeu os lábios para não chorar. Ela viu quando dois serviçais o ajudaram a levantar e a sair, certamente sentindo muita dor. A vestimenta não permitia ver o quanto ele estava ferido, mas ela percebeu que ele não se apoiava muito na perna esquerda. Mesmo assim, diante do estandarte, ele se deteve para uma reverência.

Por alguns momentos, na noite passada, aquele cor­po tinha sido dela.

Dela para se deliciar. Para cuidar.

Ela viu que os olhos preocupados de Lady Blanche a observavam.

— Seus ferimentos são muito graves, milady! — perguntou ela, sem receio de esconder sua preocupa­ção.

— Como disse o próprio Lorde Edmund, Lady Joan, são doloridos, mas não muito.

— Eu enfaixei sua panturrilha, mas parecia que ha­via sangue mais acima. Não houve tempo para cuidar.

— Uma espada furou a cota de malha — disse Sir Almar. — Ele teve sorte de não ter penetrado muito fundo. Se tivesse, ele teria posto as tripas para fora.

Joan se lembrou do homem que se levantara com a espada na mão. A morte tinha realmente chegado perto.

— Mas ele terá seqüelas?

— Se Deus quiser, não, Lady. Infecção. Um perigo sempre presente.

— Ele não deveria ter saído da cama. Amanhã deve­rá ficar de repouso.

— Ele insiste em lhe levar para seu tio, Lady, e em ver o irmão em segurança. Mas não pense que é culpa sua. Sua presença será necessária no território neutro, entre as duas propriedades. E todos querem resolver logo a questão.

— Território neutro? Achei que as propriedades eram vizinhas.

— De fato, são. Mas no início desta briga alguém teve o bom senso de delimitar quatro acres onde as duas famílias poderiam se encontrar sem derramar san­gue. Nunca foi usada para tal propósito, mas é usada pelos habitantes locais como uma área comum. É cha­mada de Campo de Belém.

Ela lembrou de uma faixa escura de terreno e uma grande fogueira.

— Eles acendem uma fogueira ali na véspera do Na­tal, Sir Almar?

— Sim, milady. Os camponeses dos dois lados. Ela olhou para o estandarte e desejou que alguém o jogasse numa fogueira neutra.

— Não, milady — disse o homem, como se pudesse ler seus pensamentos.

Ela se levantou.

— Se me der licença, milady — disse ela para a mãe de Edmund — prefiro me retirar.

— Claro, Lady Joan. Mandarei algumas damas de companhia irem com você.

— Não há necessidade.

— Não queremos deixar de lhe prestar nenhuma cor­tesia.

Joan foi acompanhada por três moças que certamen­te se ressentiram de deixar as festividades. Porém, in­sistiram em ficar e se instalar em colchões de palha no chão.

Sozinha na cama que dividiria com Lady Letitia, Joan ficou pensando. Lady Blanche estava evitando que se encontrasse com o filho. Era lisonjeador que tais medidas fossem necessárias, mas também eram uma triste confirmação de que ela não passava de um sapo.

 

Joan foi acordada na manhã seguinte pela luz do sol penetrando pelas janelas fechadas. Estava embaixo das cobertas pesadas ao lado de Letitia, que ainda dormia, mas o ar frio chegou até seu nariz.

Apesar de não estar animada para enfrentar o dia, ela se levantaria se tivesse alguma roupa. Ela não poderia usar a rica vestimenta da festa quando fosse levada.

Logo uma serviçal apareceu para acordar as três da­mas. Elas se vestiram e guardaram os colchões, do­brando as cobertas e colocando-as num grande baú. Joan pediu que encontrassem algo pra ela vestir.

Enquanto esperava, saiu da cama e se embrulhou numa das cobertas. Abriu uma fresta da janela e olhou para a extensão do castelo e para as terras que ficavam entre ele e Woldingham. Gostou da sensação do espaço aberto, pois mesmo naquele luxuoso aposento se sentia aprisionada.

Talvez uma prévia da futura prisão.

O que o tio dela faria?

Ela não só trocara de lugar com Nicolette. Ela ataca­ra, talvez até ferido, alguns dos homens dele para de­fender um de Graves e ainda ajudara Lorde Edmund fugir. E o que era pior: se ela não fosse para Mountgrave. Não haveria nada para ser trocado por Gerald de Graves a não ser o estandarte.

Ela tentaria usar a sugestão inteligente de Edmund, mas não acreditava que fosse dar certo.

Pobre, pobre Nicolette, cuja situação ficava cada vez pior a cada momento.

A porta se abriu e ela se virou. Era uma das serviçais com o braço cheio de roupas. Não eram de seda desta vez, nem de cores vivas.

— Obrigada — disse Joan, e a dispensou.

Vestiu uma roupa longa de lã marrom e uma túnica pesada de cor avermelhada. Prático. Quente.

Letitia se mexeu e abriu os olhos, certamente tentan­do se lembrar quem era Joan.

— Estou certa que podemos encontrar algo melhor para vestir, Lady Joan.

Ela fez menção de se levantar, mas Joan impediu.

— Está tudo bem. Vou sair. É melhor vestir roupas quentes.

Letitia se aconchegou embaixo das cobertas e das peles.

— Se for sair, precisa de algo mais. Vou lhe empres­tar meu manto de pele. Por favor, aceite.

Joan pensou em recusar, mas desistiu. Era só um empréstimo. E ela achou que Lady Blanche não permi­tiria.

Ela estava amarrando o cinto quando Letitia perguntou:

— O que aconteceu entre você e meu irmão? Uma pergunta que ninguém fizera.

— Você sabe o que aconteceu. Letitia balançou a cabeça.

— Ele se comporta de maneira estranha perto de você.

Joan não devia criar mais problemas neste mo­mento.

— Ele me considera sob sua proteção. Ele não quer me levar de volta para meu tio.

Letitia manifestou sua estranheza no rosto.

— Achei que ele havia se apaixonado por você. Joan deu uma risada convincente.

— Difícil.

— O amor não tem lógica. Ele olhou para você on­tem à noite uma, duas vezes como se... ora como se es­tivesse apaixonado.

Joan não queria prosseguir com aquela conversa, mas não podia sair. Resolveu perguntar:

— E você, Lady Letitia, não é casada?

— Eu estava noiva, mas ele morreu em conseqüência de uns ferimentos que nunca curaram.

Joan sentiu um dor no coração. Poderia acontecer a qualquer um, rico ou pobre.

— Sinto muito.

O que ela queria realmente saber era se Edmund es­tava bem.

— Foi uma pena. Ele era adorável. Nunca tinha co­nhecido alguém como ele.

Impressionada com a tristeza dela, Joan se sentou na cama.

— Há quanto tempo foi isto?

— Dois anos. Minha mãe me apresenta homens ri­cos e bonitos como cavalos de raça, mas Edmund não deixa ela me pressionar.

— Ela quer que você seja feliz de novo.

— Também quer que eu seja feliz no casamento. Ela se sente orgulhosa em ter sua descendência de casais bem casados. E não vai gostar de ver seu filho mais novo envolvido com Nicolette de Montelan.

— Ela não tem outra escolha.

— Lady Nicolette é forte?

Joan entendia bem a natureza da pergunta.

— Não desta maneira, mas Edmund... Lorde Ed­mund disse que eles viveriam longe daqui, numa de suas outras propriedades.

— E nunca voltariam. Seria difícil para ela. E para Gerald.

— Eles escolheram seus destinos — contemporizou Joan com um sorriso.

Letitia a encarou.

— Isto significa que você terá o mesmo destino? Joan sentiu seu rosto corar e se levantou.

— De jeito nenhum.

Letitia se aprumou na cama, arrumando as cobertas a sua volta.

— Você está dizendo que o Leão Dourado não te atraiu nem um pouco? Você é uma mulher bem diferente.

— Foi o que ele disse também. — Joan achou graça do espanto de Lady Letitia. — Você tem razão. Existem forças da natureza que ninguém pode controlar. É claro que me apaixonei pelo seu irmão. Mas não tenho esperanças.

Dito isto, ela saiu.

O castelo era estranho para ela, mas não dava para se perder. No hall central, ela se serviu de pão e queijo que estavam à disposição para o desjejum e lançou um olhar amargo para o estandarte de Belém. Dois guardas armados estavam ali em pé e um monge rezava ajoelha­do. Os serviçais faziam reverência quando passavam.

Ela se virou, tentando não ser amarga, mas sem con­seguir esquecer que um pedaço de pano era o preço de tudo. Apesar de toda a riqueza que possuía, era um pre­ço que Edmund de Graves não podia pagar.

Um jovem apareceu em sua frente e a cumprimen­tou. Parecia ser um escudeiro, imaginou ela, perto de se tornar cavaleiro, pois já incorporava a autoconfiança proveniente da riqueza e do poder.

— Milady, Lorde Edmund gostaria de lhe falar, se possível.

O coração dela deu um salto.

— Onde?

— Em seus aposentos, Lady.

Ela quase perguntou se era apropriado, mas o rapaz não era a pessoa certa para responder. De qualquer ma­neira, os aposentos de Lorde Edmund não eram um lu­gar privado. Ela se deixou guiar pelo corredor em direção aos aposentos, até uma porta de madeira ricamente entalhada. Com certa amargura, ela pensou que parecia a porta de um túmulo, exceto pela presença do guarda armado.

Quem, exatamente, eles achavam que podia atacar seu senhor em seu próprio castelo?

A porta se abriu e ela deu um passo antes de ficar pa­rada, boquiaberta. Não pôde evitar. Nunca vira um quarto tão majestoso quanto aquele.

Ricas tapeçarias e belas pinturas de animais e flores enfeitavam as paredes. Toda a estrutura de madeira era entalhada e pintada, assim como os móveis. Duas jane­las enormes iluminavam o quarto. Seus vidros eram li­sos e coloridos. Na parede entre elas havia uma lareira. Tio Henry também tinha uma lareira em seu aposento, mas ela produzia muita fumaça. Esta tinha uma coifa de gesso ricamente ornamentada que levada toda fuma­ça para a chaminé. Assim, o ambiente ficava aquecido e sem fumaça. E no chão sob seus pés havia um belo te­cido bem colorido em tons de vermelho, azul e bege. Havia muitas pessoas no quarto além de Edmund, que estava deitado na cama sobre uma plataforma. Todos a olhavam. Respirando fundo, ela prosseguiu e fez uma mesura.

— Deseja falar comigo, milorde?

A cama dele parecia o trono de uma preciosa relí­quia. Era toda entalhada e enfeitada, e sobre ela haviam belas cobertas tecidas com cores vivas. Peles estavam arrumadas aos pés da cama, decerto por exibicionismo. Ninguém precisaria de mais algum complemento num aposento já tão aquecido.

— Sente-se, por favor. Lady Joan.

Ele indicou uma cadeira ao lado da cama e o escu­deiro se adiantou para ajudá-la.

Quando conseguiu controlar seu deslumbramento, andou em volta e viu um escudeiro, dois serviçais, um de bochechas rosadas, um monge numa longa folha de pergaminho e uma pessoa vestida de preto, que devia ser o médico.

Uma cadeira, admirou-se ela, quando se sentou. E acolchoada. Ela nunca sentara antes em uma cadeira, só em bancos ou banquetas. Seria uma honra como pa­recia ou apenas mais uma demonstração do luxo de Mountgrave?

Desconfortável com a presença de tanta gente, ela disse:

— Espero que esteja bem, milorde.

— Os ferimentos doem muito, Lady Joan, mas acredi­to estar me recuperando. Não tenho do que me queixar.

— Montar hoje pode não ser recomendável.

— Dr. Hildebrand amarrou bem todos meus cortes e acha que não vão abrir.

Ela podia imaginar suas dores passadas e futuras, mas sabia que mesmo sua grande riqueza não o impe­dia de sofrê-las. E apesar do sofrimento que a aguarda­va, ela queria que tudo terminasse logo. Aquele lugar era muito rico e grandioso para ela e Edmund era uma tentação. Queria se aproximar, tocar seus cabelos, cui­dar de seus ferimentos, ser tocada, acarinhada...

Ela se sentou ereta, com as mãos no colo.

— Queria dizer algo para mim, milorde?

— Ontem à noite, você disse que você desejava me dizer algo, Lady Joan.

O coração dela deu um pulo. No fundo, ela desejava que ele a tivesse chamado porque precisava. Porque, apesar de não ter qualquer esperança, queria vê-la mais uma vez. Na verdade, porém, ele estava só sendo cortês e concedendo-lhe uma audiência.

Ela olhou em volta. Aquelas certamente eram pes­soas de sua confiança, e ele devia tratar de seus assun­tos diante deles. Mas, mesmo assim, pediu:

— Gostaria de ter alguma privacidade, milorde. Com um simples sinal, todos se retiraram e fizeram mesuras na parte de fora do aposento. Joan viu a porta se fechar e se voltou para ele.

— Deve ser muito cansativo.

— Sempre foi assim — disse ele com um risinho. Ele estava reclinado sobre os travesseiros e vestia um robe vermelho. Seus cabelos dourados desciam até os ombros e, pela primeira vez, sob a luz do dia, Joan desco­briu que seus olhos não eram azuis como imaginava, mas tinham uma nuance de cinza e até mesmo de verde. Eram suaves, sutis, e, de certa forma, acolhedores.

— No que está pensando? — perguntou ele.

— Achei que tinha escutado de novo que eu era uma bruxa, milorde. — Os lábios dele esboçaram um sorri­so. — Mas, na verdade, estava pensando que o Leão Dourado deveria ter olhos azuis penetrantes. Prefiro-os como são.

Ela se sentou à esquerda dele, e ele não sentiu dor quando lhe estendeu a mão. Mesmo sabendo não ser apropriado, ela pegou a mão dele e, ao se tocarem, ela sentiu algo derreter dentro dela.

Era melhor não seguir adiante com aquilo. Ela quase chorou.

— Não, é melhor não — disse ela, puxando a mão.

— Por que não? Não posso nem tocá-la?

— Acho que sua mãe logo aparecerá quando souber que estamos sozinhos. Não quero aborrecê-la.

Ela franziu o cenho, estranhando.

— Como quiser, minha virgem sabida. O que você queria me dizer? Acho que era sobre o estandarte.

Ela percebeu que ele não cederia, não quebraria seu juramento e quase desistiu de falar. Ele nunca en­tenderia.

— Diga, Joan. Diga o que você pensa.

Ela se sentiu um pouco embaraçada, mas resolveu continuar.

— Sei que parece loucura para você, mas quando vi aquele estandarte pendurado no hall, me deu a impres­são de ver Cristo pendurado na cruz.

— O suporte realmente sugere uma cruz. Inclusive contém fragmentos da cruz em que ele foi crucificado.

Ela balançou a cabeça.

— Não foi isto que eu quis dizer. Ele parecia... pare­cia preso ali. Crucificado ali. Torturado. — Ela se ca­lou, achando as palavras insanas naquele momento.

— Joan, estandartes são feitos para serem pendura­dos. Acho que foi a tensão que...

— E você disse que o tranca, como se fosse um pri­sioneiro numa masmorra — continuou ela, decidida a falar tudo o que sentia.

— Ele fica numa capela. Mais bonita que este apo­sento! É um pequeno mosteiro, com aposentos para os monges que zelam por ele e rezam diante dele.

— E se você ficasse trancado aqui, milorde, o que seria, aposento luxuoso ou masmorra?

Ele soltou a mão dela. Depois as passou no cabelo, impaciente.

— Como você mesmo disse, Joan, não passa de um pedaço de pano. O que você quer que eu faça? Não diga. Acha que devo queimá-lo.

Ela permaneceu calada.

— Ele precisa ser vigiado. Você tem de compreen­der. — Depois de alguns momentos, ele disse, quase gritando: — O que você quer que eu faça?

A porta se abriu e a mãe dele entrou.

— Edmund? Algum problema?

Joan se levantou e fez uma mesura, pronta para ser expulsa.

— Não, mãe, só estava conversando com Lady Joan em particular.

Era uma reprimenda explícita e ela se retesou.

— Eu escutei você gritando, querido.

— Então, eu estava gritando com Lady Joan em par­ticular.

Ele deu um meio sorriso e a mãe entendeu o ridículo da resposta do filho querido.

Ela se encaminhou para perto da cama e fez um cari­nho na cabeça dele. Certamente estava vendo se ele não estava com febre. Ele pegou a mão da mãe e a beijou.

— Mãe, estou bem. Gostaria que fizesse algo para mim.

— Claro, meu filho.

— Vá até o hall e fique parada diante do estandarte. Olhe para ele para mim.

Ela estranhou.

— Não preciso ficar olhando para o estandarte. Eu o vejo há mais de trinta anos na época do Natal.

— Mesmo assim, gostaria que fizesse isto para mim, mãe. Pare diante dele, ou ajoelhe se preferir, e olhe para ele para mim. Fique olhando o tempo de rezar vin­te Pais-Nossos.

Obviamente intrigada e irritada, Lady Blanche olhou para Joan nada simpática.

— E Lady Joan?

— Ficará comigo.

— Isto não é apropriado, Edmund.

— Não tenho nenhuma condição de atacá-la e ela é sensata demais para permitir que eu a leve à ruína.

— Será mesmo? — perguntou Lady Blanche à Joan.

— Temo que sim, Lady Blanche.

Depois de um momento de hesitação, um toque de humor apareceu nos lábios finos de Lady Blanche. Tal­vez um triz de comunicação feminina tenha ligado as duas por um instante. Ela prosseguiu:

— Farei o que me pediu, Edmund, mesmo achando que é uma bobagem — concluiu ela, e saiu.

Joan e Edmund se olharam e ela se sentou de novo. Todavia, era difícil para ela ficar ali. Era como morrer de fome num banquete.

— Se as circunstâncias fossem outras, você seria mi­nha esposa? — perguntou ele, de repente.

— Não nos conhecemos há muito tempo. Ele entendeu o que ela quis dizer

— Mesmo assim...

— Não conseguiria suportar tudo isto — disse ela, mostrando o quarto.

— Você suporta qualquer coisa.

— Você me superestima, milorde.

— Acho que não. Mas, se você quiser, mando tirar tudo e pintar de branco como se fosse um quarto de freira.

— Isto seria uma pena. Não faça isto— disse ela, olhando para as mãos no colo.

Em silêncio, ela escutou o crepitar do fogo e os ruí­dos distantes do castelo e tentou calcular quanto tempo seria necessário para rezar vinte Pais-Nossos.

— O que você acha que sua mãe vai dizer quando voltar?

— Se eu soubesse, não a teria mandado lá.

— Se você acha que pode montar, você mesmo po­deria ter ido lá.

— Mas eu sei o que quero ver.

— Eu não entendo...

Uma voz autoritária de criança interrompeu a con­versa.

— Queremos entrar!

Sem dúvida, o estrondo era o guarda. A resposta para o que quer que ele tenha dito foi:

— Mas é época de Natal! Edmund estranhou, depois sorriu.

— Por favor, Lady Joan, abra a porta e deixe-os entrar. Intrigada, ela abriu a porta e viu o guarda com duas crianças louras: uma menina de seus sete anos e um menino menor de camisolão, com o dedo na boca. Eles passaram pelo guarda e correram para a cama.

— Papai!

— Não pulem em cima dele!

Crianças. Por que ela nunca pensara que ele tinha fi­lhos do primeiro casamento?

A menina se virou com raiva e depois corou.

— Não íamos fazer isto — disse ela, mentindo.

— Vocês podem sentar na cama com cuidado — dis­se Edmund. — Meu braço direito e minha perna es­querda estão machucados. E nada de pular em cima de mim.

A menina pegou o menino no colo e o colocou sobre a cama do lado esquerdo do pai. Ele engatinhou até o travesseiro. A menina se sentou do outro lado, mas Joan percebeu que ela também queria se aconchegar.

Eram crianças sem mãe. Pelo menos tinham o pai para confiar e serem amados.

— Vou embora — disse ela.

— Não. Espere minha mãe voltar. Venha conhecer meus filhos. Anna, faça a melhor mesura que puder para Lady Joan, pois ela salvou minha vida. Remi, pode ficar onde está, mas diga obrigado a ela.

O menino tirou o dedo da boca e fez o que o pai pediu. Anna, que parecia muito com Lady Blanche, se cur­vou numa mesura caprichada.

— Estamos sinceramente gratos, Lady Joan, e tam­bém por permitir que salvemos tio Gerald dos malva­dos de Montelan.

Joan olhou para Edmund, mas sorriu para a menina.

— Estou feliz por evitar um derramamento de san­gue, Lady Anna.

A menina voltou a se sentar perto do pai, e Joan foi para a cadeira. O menino virou a cabeça para olhá-la com curiosidade.

— Os de Montelan não são malvados, Anna — disse Edmund.

— Claro que são, papai! — insistiu a menina, se empertigando.

— Mas a mãe de Lady Joan é uma de Montelan. E seu tio Gerald quer se casar com Lady Nicolette de Montelan.

Ela franziu a testa.

— Então só os homens de Montelan são malvados. — Os adultos às vezes complicam as coisas, Anna. E bom ser leal aos interesses da família, mas raramente uma família é melhor ou pior do que outra. Lady Blanche voltou com um ar intrigado. Porém, logo abriu um sorriso ao ver os netos. Anna foi abraçá-la. Os malvados de Graves. Uma família amorosa e feliz. Os malvados de Montelan. Mesmo Lorde Henry sendo mais velho e severo, a família deles era feliz e amorosa à sua maneira. Ela achava até que ele cederia pela felicidade de Nicolette.

Como era triste toda esta história. — Então, mãe? Ela se sentou em outra cadeira, perto da lareira, com Anna ao seu lado. — O que você quer que eu diga?

— O que quiser. Foi por isto que não lhe disse nada. Ela suspirou.

— É estranho. Nunca tinha observado o estandarte de perto nem por muito tempo desde que cheguei aqui para me casar, e não me lembro o que pensei na época. Mas agora... Primeiro fiquei impaciente, achando que estava perdendo tempo. Pouco a pouco, porém, comecei a realmente enxergá-lo. Hoje em dia, não passa de trapo, mas esta não é a questão. Parece deslocado naquele suporte tão alto e enfeitado. Talvez devêsse­mos fazer algo mais delicado, menor...

Ela olhou para o filho, procurando uma indicação de que estava falando o que era certo. Joan sabia que ele estava calado de propósito. Mas qual era o objetivo de tudo aquilo? Mesmo que a mãe pensasse como ela, o que ele poderia fazer além de mudar o suporte? Deixá-lo exposto por um tempo maior?

— O que está acontecendo, papai? — perguntou Anna, ficando em pé, com um tom preocupado na voz.

— Está tudo bem. Não está acontecendo nada de mal. Estamos só pensando em assuntos deixados de lado por muito tempo. Mãe, tem mais alguma coisa?

Lady Blanche pareceu exasperada.

— Pode ser uma bobagem, Edmund, mas parece que o estandarte não estava feliz. Fiquei pensando se o pró­prio Cristo gostaria que uma relíquia sagrada que este­ve no lugar de Seu nascimento fosse a causa de tanta animosidade. Aliás, não seria a primeira vez. As pró­prias Cruzadas foram combatidas em vários lugares sagrados de Cristo.

— Verdade, mas é a nossa relíquia e nossa responsa­bilidade.

— Não podemos abrir mão dela — declarou ela.

— Papai!

— Anna, isto não é assunto seu. Preciso refletir so­bre o assunto.

— Mas, pai.

— Não, Anna. Pegue Remi agora. Mais tarde fico com vocês, depois que levar Lady Joan para a família dela.

Lady Blanche se levantou e levou as crianças. Ela olhou para Joan, mas não a chamou para acompanhá-los.

Joan decidiu se levantar.

— Vou deixá-lo refletindo. Sei que não pode fazer nada, por isso me arrependo de colocar mais este peso sobre você, milorde. Mas tinha que falar.

Ele assentiu.

— Compreendo.

Ele pegou a mão dela, a trouxe para mais perto e a beijou.

— Joan de Hawes, seja lá o que aconteça hoje ou no futuro, saiba que me sinto honrado por tê-la conhecido. Nunca deixe o mundo te intimidar.

Deixando-se levar por seus sentimentos, ela se incli­nou e o beijou nos lábios.

— Não deixarei. Que Deus o guie e ilumine, Edmund.

E saiu correndo do quarto.

Estranhamente, o ritmo do castelo parecia inalterado apesar das circunstâncias. Algumas brincadeiras ao ar livre tinham sido canceladas por causa do encontro com os de Montelan no Campo de Belém. Nos estábu­los, os cavalos estavam sendo preparados e enfeitados para se exibirem de maneira singular. Vários homens já estavam paramentados com suas armaduras nas cavala­riças do Leão Dourado. Eles bebiam e comiam numa atmosfera alegre, apesar de um ou dois a olharem com compaixão.

Eles conheciam seu destino.

Era como se eles tivessem se preparando para levar a virgem do sacrifício para o dragão. No caso dela, po­rém, São Jorge não viria em seu socorro.

Ela se surpreendeu quando Lady B lanche a encon­trou e insistiu para que ela voltasse ao hall para se ali­mentar. No entanto, não fez qualquer comentário sobre o estandarte, nem sobre o filho. Também não se opôs quando Lady Letitia insistiu que Joan usasse o manto de pele.

Quando Joan deixou o hall, se virou para olhar o es­tandarte uma última vez. Ela não sentiu piedade, mas raiva. Bobagem, disse para si mesma. Era só um objeto inanimado.

Eram os homens os culpados por sua transformação, e também eram eles, e as mulheres, que sofriam.

 

Um belo cavalo escuro, de trote suave, tinha sido pre­parado para ela. Era bonito e quase tão robusto quanto Thor. Este estava ao lado, ricamente ornamentado e atraindo todos os olhares com seu garbo.

Em pé em sua montaria, ela viu Edmund emergir do hall. Quando ele deixou dois homens ajudá-lo a descer as escadas, ela percebeu que ele não estava totalmente recuperado para a aventura. Ele foi mancando entre os serviçais até chegar perto de Thor.

— Você não devia estar fazendo isto — disse ela.

— Tem de ser feito. Estarei melhor quando montar. Não foi fácil, nem indolor. Quando ele conseguiu, ficou pálido.

— Edmund...

— Não preciso de nenhuma mulher chamando mi­nha atenção!

Joan mordeu os lábios para engolir as palavras.

De qualquer maneira, a jornada poderia ser feita a pé. A sela era alta na frente e atrás e acomodava bem suas coxas. Mesmo que ele desmaiasse, não cairia.

Ele não vestia armadura, mas um belo casaco vermelho bordado de dourado. Esta não era ocasião para modéstia. Ela era a única pessoa que não estava vestida de vermelho e dourado, cor dos de Graves.

A procissão começou, os soldados a pé com o estan­darte na frente, depois ela e Edmund, lado a lado, e cer­ca de duas dúzias de escudeiros armados e cavaleiros atrás. Ela o olhava ansiosa. Talvez tivesse razão. Sua cor tinha voltado e a dor parecia ter diminuído. Mas ele segurava as rédeas de Thor com a mão esquerda.

Para quebrar o silêncio, ela perguntou:

— Seus filhos são adoráveis. São só dois?

— Minhas únicas visitas. Catherine estava grávida quando morreu.

— Que pena!

Ele deu de ombros. Na verdade, o que poderia se: dito sobre os acasos da vida?

— Será que Nicolette e seu irmão poderão se casar

— Espero que sim, mas antes preciso encontrar Lor­de Henry e ver como está seu humor. Nós só nos encon­tramos uma vez desde que meu pai morreu.

Ele olhou para ela.

— Você não parece confortável.

— Preferiria um cavalo menor.

— Achei que você não gostaria de ficar batendo no meu joelho.

— Não, claro que não. Obrigada.

— Seja lá o que aconteça hoje, Joan, quero que você saiba que tratarei o estandarte de outra maneira. E con­tinuarei a lutar pela paz entre as famílias. Estou certo que com o tempo, romperemos as algemas que nos prenderam.

— Rezarei por isto.

E prometo-lhe, Joan, que meus filhos não presta juramento sobre a questão. — Espero que este juramento não seja um peso.

— Juramentos têm seu valor. Você promete que vai aproveitar ao máximo sua vida, sua coragem e sua independência?

— Acho que minha coragem logo será posta em prova. Mas acho que manterei minha inteligência escondida.

Ele apertou os lábios e olhou para frente. Talvez ela não devesse ter falado aquilo, mas não adiantava nada ver as verdades desagradáveis.

Eles cavalgaram o restante do caminho em silêncio, único som que se ouvia era dos arreios e dos cascos.

O dia estava frio, mas bonito. O céu estava claro e o sol batia nas árvores nuas e nos riachos enregelados. Os corvos crocitavam quando deixavam seus ninhos escu­ras. Porém nenhum pássaro cantou até que um pequeno papo roxo voou para um galho de pilriteiro e gorjeou para eles.

O Campo de Belém estava cercado por uma grossa cebe com duas aberturas, uma de frente para a outra. Quando chegaram, os de Montelan já estavam do outro lado, bandeiras ao vento, prontos para entrar.

Edmund levantou a mão esquerda. Seu escudeiro se aproximou.

— Lady Joan e eu seguiremos sozinhos.

O escudeiro repassou a mensagem para os outros e Joan seguiu com ele para o grande espaço ao ar livre. Eles haviam jurado manter a paz naquela área, por isso da esperava que nada de errado fosse acontecer.

Ela notou certa consternação nos semblantes dos partidários de seu tio mas, por fim, Lord Henry aden­trou, tão ricamente vestido como Edmund, só que no azul e dourado dos de Montelan. Ele levava outro cava­lo pelas rédeas. Gerald de Graves tinha as mãos amar­radas na maçaneta da sela.

Joan nunca pensara em fugir. Será que fariam o mes­mo com ela?

Eles se encontraram no centro e o olhar do tio fez Joan tremer. Nobres sacrifícios eram louváveis, mas n verdade eram assustadores.

Quando os dois senhores se cumprimentaram, ela olhou para Gerald de Graves. Ele era mais baixo que o irmão, mas quase tão bonito quanto, mesmo sujo e ma­chucado. Seus olhos a encontraram. Foi um olhar de gratidão, mas também triste. Ele ganharia a liberdade, mas não o que realmente desejava: Nicolette.

Lorde Henry entregou as rédeas para Edmund.

— Lorde Henry. Se permitir, desejaria lhe falar. As rédeas foram puxadas de volta.

— Não manterá sua palavra?

— De jeito nenhum. Gostaria de lhe falar sobre as­suntos importantes. Como, por exemplo, o estandarte.

Um sorriso ansioso apareceu no rosto de Lorde Henry.

— Os de Graves finalmente tomaram juízo?

— O senhor sabe que juramos nunca dar o estandar­te aos de Montelan.

— E nós juramos nunca descansar enquanto ele per­manecer nas mãos dos de Graves.

Joan reprimiu um suspiro.

O silêncio se instalou e durou tanto que Joan pensou que estava tudo terminado.

— Lorde Henry, gostaria que esta rixa continuasse, geração após geração, envenenando esta terra com ani­mosidade, solapando vidas e evitando a felicidade?

— Não, claro que não. Mas não posso aceitar que o estandarte permaneça em mãos indignas.

Joan percebeu que Edmund respirou fundo.

— Que tal se ele não permanecesse em nenhuma de nossas mãos?

— Não, Edmund! — exclamou Sir Gerald.

O cavalo de Lorde Henry deu um passo para trás, em resposta a algum movimento imprudente.

— Quer destruí-lo.

— Não. Proponho, Lorde Henry, que os de Monte­lan e os de Graves construam um mosteiro no Campo de Belém para guardá-lo. Nós juraremos protegê-lo e nunca retirá-lo daqui. Ele ficaria aqui para sempre, para ser reverenciado por quem assim desejasse.

Lorde Henry olhou em volta, intrigado, e Joan mor­deu os lábios. Era uma solução brilhante, mas será que o tio aceitaria? Ele nunca fora conhecido por ser sagaz, nem flexível, mas não era burro. Além disto, ela achava que ele também estava exaurido demais por toda aque­la animosidade. E Nicolette amava Gerald de Graves...

O silêncio foi quebrado pelo ruído de cascos a galo­pe e todos se viraram para ver o cavalo que vinha em direção ao campo. Os finos cabelos dourados ao vento só podiam ser de Nicolette. O cavalo pulou a sebe e veio correndo até onde eles estavam. Joan nunca ima­ginou que a prima fosse uma amazona tão boa.

— Pai! Preciso ir com Gerald — declarou ela.

Joan viu Edmund se exasperar, mas ela sentiu vonta­de de cair na gargalhada. Será que isto tudo não fazia parte do plano?

— Deixei você trancada, filha, no lugar a que per­tence!

— Não posso ficar fora disto, pai, é a minha vida. O senhor sabe que eu amo Gerald. Se não permitir nosso casamento, devo partir com ele. — Ela empinou o quei­xo, mesmo pálida como uma vela. — Carrego o filho dele em meu ventre.

Lorde Henry ficou vermelho e fez menção de atacar o rapaz amarrado.

— Pare com isto! — impediu a voz autoritária de Edmund. — Não posso interferir sem iniciar uma bata­lha, Lorde Henry, mas não deixarei que ataque meu ir­mão. Se não fosse por esta rixa, ele e Nicolette pode­riam se casar e ser felizes. E se concordar com meu pla­no, isto será possível. Será o prenúncio de dias felizes.

Lorde Henry olhou à volta, hesitando entre a batalha e a paz. Nicolette estendeu a mão para ele.

— Pai, amo o senhor, mas amo Gerald, também. E agora, por causa de meu pecado, preciso ir com ele. Pelo amor de Deus, não preciso perdê-lo.

Os lábios de Lorde Henry tremeram no rosto enfure­cido.

— Um grande pecado, filha — disse ele, desolado. — Mas pelo menos você não manchou nossa tradição representando a Virgem Maria.

Joan não esperava tanta compreensão e aprovação tão rápido.

— E você, Joan, fez muito bem. Exceto quando aju­dou o de Graves a fugir!

Joan respirou fundo e repetiu a explicação de Ed­mund.

— Achei que seus homens o matariam, tio, e sabia que o senhor não desejava isto.

Lorde Henry parecia frustrado.

— Entendi.

Edmund tomou a palavra.

— Minha morte teria dificultado a paz, Lorde Hen­ry. No entanto, se não resolvermos tudo agora, mais mortes poderão ocorrer, lançando-nos todos em um turbilhão por mais gerações ainda.

Lorde Henry olhou para Gerald e para a filha e Joan quase podia ouvir ele dizer que aquele rapaz não era digno dela. Mas ele levou o cavalo de Gerald até Nico­lette e lhe entregou as rédeas.

— Pronto, filha, fique com ele. Mas, então, ele agarrou a túnica dele.

— Se você maltratá-la, ignorá-la, ou for infiel, ra­paz, você vai ver o que é violência. Esta briga toda vai parecer Festa da Primavera.

— Eu a amo, Sir Henry — declarou Gerald.

— Continue assim.

Lorde Henry virou o cavalo.

— E agora, Lorde Edmund?

— Concorda com meu plano? Lorde Henry assentiu.

— Então, quanto mais cedo começar a construção, mais cedo o estandarte pode ser transferido. Talvez em 1º de maio, no primeiro dia da primavera.

Joan não podia ficar quieta.

— Uma capela de madeira poderia ser levantada en­quanto o mosteiro é construído. Poderia estar pronta antes do fim do ano.

Nenhum dos dois pareceu satisfeito. O tio ficou bra­vo por ter sido interrompido e Edmund por querer adiar o passo final. Mas depois assentiram.

— Achou que sim. Lorde Henry, o senhor poderia me ceder alguns homens para a construção?

— Para tirar o estandarte de suas mãos? Por Jerusa­lém, claro que posso! Na verdade, eu mesmo e meus fi­lhos lhe ajudaremos nesta tarefa sagrada.

Para prevenir que Edmund fizesse a mesma oferta. Joan se adiantou.

— Lorde Edmund está ferido. Mas Sir Gerald sem dúvida ajudará. Talvez ele e Nicolette possam se ca­sar...

— Joan... — disse Edmund

— Joan! — advertiu o tio. — Feche esta matraca! Não sei que bicho te mordeu, sobrinha, para você se meter deste jeito nos assuntos dos homens. — Ele se inclinou e pegou as rédeas de seu cavalo, puxando-o para longe de Thor. — Venha. E você também, Nicolette. Até se casar, você vai fingir que é uma donzela recatada!

Nicolette desamarrara Gerald, e os dois tinham des­cido dos cavalos. Eles se beijavam nas faces molhadas de lágrimas. Joan sentiu um nó na garganta.

Não havia agora nenhuma barreira entre ela e Ed­mund, mas ela percebera que não era adequada para ser a noiva do Leão Dourado. Ele tinha razão. Ela se senti­ria miserável naquela situação.

No entanto, quando ela estava indo embora, ele falou.

— Lorde Henry. — O tio olhou para trás e Edmund continuou: — Pela sua brandura, rogo que não castigue Lady Joan por suas aventuras.

O tio a olhou de esguelha.

— Se ela conseguir manter a boca fechada, não será castigada.

 

A primeira reação em Woldingham foi de consterna­ção, mas logo a felicidade brotou por todo canto, acom­panhada de um calor sutil e de um alívio que mostrava como toda aquela animosidade tinha sido perversa. Apesar de ressentidos no começo, os primos de Joan aceitaram a decisão do pai e se lançaram entusiasticamente na construção da capela de madeira, encarando-a como uma vitória sobre os de Graves.

Mountgrave não abrigaria mais o estandarte!

Ela ficou imaginando como estariam encarando toda esta história lá. Tinha certeza que alguns a encaravam como rendição, uma certa fraqueza, mas o status de Leão Dourado de Edmund o levaria a superar tudo. Quanto a ela, se esforçava para não ter ilusões. Apesar da inesperada amizade, não havia nada entre ela e Lor­de Edmund de Graves.

Desejo, dizia uma voz em seu íntimo. Era desejo que sentia. Mas não era o suficiente. Ela não fora treinada para ser uma grande Lady, e era inteligente demais para pensar que isto seria possível.

Enquanto isto, se esforçou para se comportar bem, procurou se divertir no Natal e ajudou nos preparativos rara o casamento da prima. Gerald até lhe fez uma vi­sta, indo sozinho a Woldingham um dia, colocando a régua à prova.

A princípio, uma certa tensão pairou no ar, mas a acolhida calorosa de Nicolette e de tia Ellen contribuiu para o clima se dissipar. Logo o castelo retomou seu ritmo, aceitando o antigo inimigo em seu seio.

Joan, todavia, recebeu a missão de acompanhá-los durante o encontro. Ela se sentou em um canto, costu­rando e tentando ignorar os murmúrios e as risadas ocasionais. Em silêncio, ela os viu enlaçados num beijo apaixonado que ela não devia permitir. Mas que mal havia?

Só ela se sentia incomodada.

Ela e Edmund não tinham se beijado daquele jeito, um beijo que prometia uma eternidade feliz. Estava preocupada com o Dia de Reis, quando o casamento se realizaria e o estandarte seria trazido finalmente para território neutro. Como ela superaria toda aquela situa­rão? Depois da cerimônia, será que ela voltaria para casa por não haver mais motivos para continuar ali?

Escureceu, e Gerald tinha de ir embora. Ele pegou a mão de Joan e a beijou.

— Você é a melhor dama de companhia que existe, milady.

— Na opinião do pretendente, claro — disse ela, mordaz.

Louro como o irmão, ele era um homem bonito, que certamente atraía muitos olhares. Mas, comparado à Lorde Edmund, sumia.

Ele sorriu.

— Concordo. Mas, se Lady Ellen quisesse mais de­coro, ela mesma teria ficado. Ela é uma mulher inteli­gente, e sabe quando o cavalo deixou o estábulo.

Joan o olhou severa.

— Gostaria de lhe dizer, Sir Gerald, que o considero um canalha por seduzir Nicolette. Toda esta história quase terminou em tragédia. ;

Ele olhou para a amada.

— A culpa é sempre do homem?

— É sempre a mulher que paga o pato.

— Edmund me disse que você é uma virgem muito sensata. Agora entendi o porquê.

Dito isto, foi embora.

— Joan, qual o problema? — perguntou Nicolette. Joan deu uma risada, mas poderia ter chorado. Uma

virgem sensata. Parecia que este seria seu epitáfio. E era melhor morrer logo, se este era o julgamento que Edmund de Graves fazia dela.

Nevava um pouco no caminho para o casamento, mas o tempo melhorou quando os partidários dos de Montelan chegaram ao Campo de Belém onde fora construída, no canto, a capela de madeira. O centro da área fora deixado para o mosteiro que logo seria erguido.

O vermelho e dourado dos de Graves estava se apro­ximando do outro lado. Em volta estava o povo, ansio­so para presenciar o grande dia e ver o estandarte de Belém. Porém, ao menor sinal de problema, todos de­sapareceriam.

Joan não os culpava. A sua volta, sob belos casacos e mantos, armaduras e armas tiniam. Os rostos estavam tensos e os olhos atentos. No fundo, ninguém acredita­va que tudo aconteceria conforme planejado, sem vio­lência. Nem mesmo ela.

Desta vez, ambas facções passaram e entraram no campo. Os homens armados formaram fileiras laterais e as famílias se encaminharam ao centro. Joan notou Lady Ellen e Lady Blanche se cumprimentarem com a mesma cautela dos homens.

Ela não olhou para Edmund. Não poderia se arriscar. As forças dos de Graves se abriram e seis monges passaram pelo meio, entoando o Te Deum. Os dois da frente levavam o estandarte num suporte simples. Bem — frente a Joan, Lorde Henry desceu do cavalo e se ajoelhou. No momento seguinte, todos seus homens imitaram seu gesto, seguidos dos de Graves.

Joan não agüentou e olhou para Edmund, mas eleja se ajoelhara, e ela não soube se ele já estava bem. Os monges entraram na capela e os homens se levantaram. As senhoras das duas famílias seguiram atrás. O perigo pairava no ar, e Joan viu que seus primos seguravam as espadas. Mas não Edmund e Gerald. O trabalho de construção tinha sido bem executado.

— simples, mas bem firme, e cruzes haviam sido esculpidas nas vigas principais. As paredes eram pinta­das de branco, e amplas janelas deixavam a luz entrar. Deixavam o frio entrar também, mas não havia outro jeito. Por elas, aqueles que estavam fora podiam acom­panhar os eventos lá dentro, uma solução bem sensata.

Na parede atrás do altar fora feito um nicho para o estandarte, com portas que o protegeriam do mau tem­po. Os monges o colocaram ali com cuidado e se ajoe­lharam diante dele.

Alguém havia se preocupado em organizar a cerimônia, pois, naquele momento, Lorde Henry e Edmund seguiram em frente e se ajoelharam atrás dos monges. Edmund ainda mancava, mas parecia estar bem.

Um monge se virou e lhes entregou um crucifixo. Edmund e Lorde Henry juraram guardar o estandarte ali, nunca tentar removê-lo e encerrar a rixa, deixando para trás todas as mágoas. Eles comprometeram suas famílias e seus herdeiros na mesma causa.

Quando se levantaram, um silêncio se instalou, como se ninguém acreditasse que tudo transcorrera bem. Mas alguns sorrisos surgiram aqui e ali, alguém deu uma risada e logo todos comemoraram. Tia Ellen e Lady Blanche trocaram um sorriso sincero.

Em seguida veio o padre de Lorde Henry. Conduziu a cerimônia de casamento de Gerald e Nicolette, aben­çoou sua união, e sua sobrancelha se mexeu quando disse que eles deveriam seguir adiante e procriar. Nico­lette ficou vermelha como um tomate.

Quando o casal saiu da capela, de mãos dadas, nada parecia ser empecilho para sua felicidade.

Apesar de tudo, nenhuma das famílias estava dis­posta a comparecer a uma festa no castelo da outra. Por isso, a comida foi disposta em cavaletes e barris de cer­veja foram providenciados. Todos poderiam comer e beber à vontade.

Joan mordiscou um pedaço de porco enquanto ob­servava as crianças brincarem e os adultos conversa­rem. Havia ainda uma certa cautela, mas sementes de paz tinham sido lançadas. Ela era responsável por algu­mas delas, e estava certa de que a colheita valeria a pena.

Quando as damas e os cavalheiros se preparavam para partir, deixando os restos do banquete para os camponeses, ela entrou na capela para contemplar o es­tandarte uma última vez. Já havia um monge em vigília t algumas pessoas simples rezando. Ela ficou atrás para não perturbá-los. O tecido continuava manchado e corroído pelo tempo, mas ela imaginou que ele estava mais feliz naquele lugar simples, em harmonia, não mais em disputa.

Ela se virou para partir também, e Edmund surgiu à sua frente.

— Oh!

— Este será seu único comentário depois de tudo? Ela queria chorar, mas não podia.

— Você me assustou. Tudo correu bem, não é mes­mo?

— Bem até demais. Isto tudo foi obra sua, você sabe. — Ela queria fugir, mas ele ficou na frente da porta. — Foi você quem deu a solução.

— Mas foi você que abriu o caminho. Ele pegou a mão dela.

— Eu ia esperar, mas sinto que você está prestes a escapar.

— Você está na frente da porta.

— De vez em quando, consigo ser esperto. Mas o que eu quis dizer é que temo que você vá embora daqui.

— Já está na hora. Eu vim para ser a companhia de Nicolette. — Ela olhou para trás para as pessoas que re­zavam. — Meu Deus, este não é o lugar...

— Este é exatamente o lugar. Joan, preciso esperar que tudo isto dê certo.

— Esperar?

— Quero que saiba algo sobre mim.

— O que?

— Que nem sempre posso fazer o que quero. Que te­nho que colocar a cabeça antes do coração.

— Antes do coração?

— Quando deixamos o castelo para trocá-la por Gerald queria ter falado com você. Queria dizer que gos­taria de ter uma chance de tê-la como esposa. Mas não podia. Se não conseguisse a paz, não poderíamos nos casar.

Joan ficou olhando para ele, respirando forte.

— Relutei durante 12 dias para não te mandar uma mensagem. Briguei com Gerald porque ele podia se ar­riscar a visitar Woldingham e eu não. Mas agora parece que tudo deu certo. Acho que teremos paz.

Ele se ajoelhou.

— Não! Por favor! — Ela o viu hesitar. Quando olhou para trás, viu que os camponeses os observavam. Uma mulher lhe deu um largo sorriso.

— Joan, você é minha virgem sabida. Valorizo a segunda parte, mas gostaria de mudar a primeira.

Ela riu. Alguém atrás engasgou. Ele continuou:

— Case comigo. Seja minha esposa. Ela se ajoelhou à sua frente.

— E sua jogadora de pedras?

— Reserve as pedras para nossos inimigos. Aceita ser minha esposa? — suplicou ele, emoldurando seu rosto com as mãos.

Ela cobriu as mãos dele. Por ternura, mas também n defesa.

— Não saberei ser a Lady de Mountgrave.

— O castelo precisa do seu estilo irreverente, mas minha mãe vai lhe ensinar.

— Sua mãe não gosta de mim!

— Minha mãe está ansiosa que eu lhe diga que não pus tudo a perder. Ela só estava preocupada em não ter mais desavenças com os de Montelan. Diga sim, Joan. Por favor. Ai, ai, minha perna está doendo.

Ela se levantou e o ajudou a fazer o mesmo.

— Quanta bobagem! Para que se ajoelhar? Ele a beijou.

— Porque você merece. Mas se eu soubesse que você não partiria, poderia esperar uma ou duas semanas

— O que você achou que eu ia fazer? Ir direto para o convento e fazer os votos?

— Não sei. Não ponho minha mão no fogo por você. Você poderia pegar o primeiro velho que visse e casar com ele.

Ela o acariciou no peito, enlevada e se arranhou de leve no bordado dourado. Se afastou. Ele a tocou no rosto.

— Como você está vendo, nem sempre serei um ma­rido calmo. Você não disse sim. Não posso mudar mui­to por você, Joan. Sou o Leão Dourado e Lorde de Mountgrave. Muitas pessoas dependem de mim.

— Não quero que você mude. Sei que muitas vezes vou me perguntar como pude cair nesta armadilha dis­farçada, mas você me faz muito feliz, Edmund. E você parece feliz ao meu lado. Ao meu lado.

Ele a beijou na testa e depois na mão.

— Você é meu tesouro mais precioso, Joan de Hawes. Você.

— Você vai me fazer chorar — disse ele, esfregando o rosto no peito dele... e se arranhando de novo. — Tire isto.

Ele sorriu, desafivelou o cinto e tirou a longa veste bordada, ficando só de calça e camisa.

— Isto, pelo menos, posso fazer. — Ele a puxou para abraçá-la.

Quando eles se afastaram, as saudações começaram e Joan viu que todas janelas estavam lotadas, e havia uma multidão atrás de Edmund. Ela escondeu o rosto de vergonha.

Rindo, ele jogou sua rica vestimenta para o escudei­ro e saiu com ela.

A mãe dele abriu um sorriso e trouxe os dois netos rara serem os primeiros a saber da novidade.

Antes de ir cumprimentar sua nova família, Joan se virou e fez uma mesura para o estandarte silencioso.

— Abençoa-nos, Jesus, os de Montelan e os de Gra­ves, e todas as pessoas simples aqui. Abençoa-nos para sempre.

 

                                                                                Jo Beverley  

 

                      

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