Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


STONEHENGE / Bernard Cornwell
STONEHENGE / Bernard Cornwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

STONEHENGE

 

Primeira Parte

O Templo do Céu

 (Os DEUSES FALAM POR SINAIS. PODE SER UMA FOLHA CAINDO NO VERÃO, o grito de um animal moribundo ou a ondulação feita pelo vento num lago. Pode ser o fumo junto ao solo, uma abertura nas nuvens ou o voo de uma ave.

 

Mas naquele dia os deuses enviaram uma tempestade. Foi uma tempestade enorme, uma tempestade que seria recordada, embora o povo não nomeasse o ano por essa tempestade. Pelo contrário, chamaram-lhe o Ano em que chegou o Forasteiro.

 

Isto porque um forasteiro chegou a Ratharryn no dia da tempestade. Era um dia de Verão, o mesmo em que Saban quase assassinou o seu meio-irmão.

 

Naquele dia os deuses não falaram. Gritaram.

 

Saban, como todas as crianças, andava nu no Verão. Tinha menos seis anos que o seu meio-irmão, Lengar, e como ainda não passara as provas da idade adulta, não tinha cicatrizes tribais nem marcas de morte. Mas as provas estavam apenas a um ano de distância e o pai instruíra Lengar para que levasse Saban à floresta e lhe ensinasse onde se encontravam os veados, onde se escondiam os javalis, onde ficavam as tocas dos lobos. Lengar ofendera-se com a tarefa, portanto, em vez de ensinar o irmão, arrastou-o por moitas de espinhos de modo a fazer sangrar a pele do rapaz queimada pelo sol.

 

Nunca te vais tornar um homem escarneceu Lengar.

 

Sensato, Saban nada disse.

 

Havia já cinco anos que Lengar era um homem, de modo que tinha no peito as cicatrizes azuis da tribo e nos braços as marcas de caçador. Trazia consigo um arco feito de teixo, com pontas de osso e uma corda de tendão bem esticada e untada com gordura de porco. Vestia uma túnica de pele de lobo e tinha o cabelo comprido entrançado, atado com uma fita de raposa. Era alto, de rosto estreito, sendo considerado um dos grandes caçadores da tribo. O seu nome significava Olhos de Lobo, uma vez que o seu olhar tinha uma tonalidade amarelada. Tinham-lhe dado um nome ao nascer mas, como muitos na tribo, recebera outro ao tornar-se adulto.

Saban também era alto e tinha longo cabelo negro. O seu nome significava Favorito e na tribo muitos pensavam que era adequado, já que apenas com doze Verões, Saban prometia ser formoso. Era forte e esguio, trabalhava muito e sorria quase sempre. Lengar raramente sorria. ”Tem uma sombra no rosto”, diziam dele as mulheres, apenas quando não as pudesse ouvir, pois era provável que Lengar viesse a ser o próximo chefe da tribo. Lengar e Saban eram filhos de Hengall, e este o chefe do povo de Ratharryn.

 

Durante todo aquele longo dia, Lengar levou Saban através da floresta. Não encontraram veados, javalis, lobos, auroques ou ursos. Limitaram-se a caminhar, tendo chegado à tarde ao sopé da colina, para ver que toda a terra a ocidente estava sombreada por uma massa de nuvens negras. Os relâmpagos riscavam o monte de nuvens escuras em direcção à floresta longínqua, deixando o céu a arder. Lengar acocorou-se, com uma mão no arco polido, observando a tempestade que se aproximava. Devia ter já iniciado o regresso a casa, mas queria assustar Saban, de modo que fingiu não estar preocupado com a tempestade, que era uma ameaça dos deuses.

 

Foi enquanto observavam a tempestade que chegou o forasteiro.

 

Montava um pequeno cavalo castanho, branco de suor. Como sela usava um cobertor de lã dobrado e as rédeas eram fios de fibra de urtiga, embora nem necessitasse delas, já que estava ferido e parecia cansado, deixando a sua pequena montada escolher o atalho que subia a escarpa íngreme. O forasteiro tinha a cabeça baixa e os calcanhares pendiam-lhe quase até ao chão. Vestia uma capa de lã tingida de azul e trazia um arco na mão direita, enquanto do ombro esquerdo pendia-lhe uma bolsa cheia de flechas ornamentadas de penas de gaivota e corvo. Usava uma barba negra e curta, e as marcas tribais do seu rosto eram cinzentas.

 

Lengar sussurrou a Saban que ficasse em silêncio, seguindo depois o forasteiro para oriente. Lengar tinha uma flecha metida no arco, mas o forasteiro nem uma só vez se voltou para ver se estava a ser seguido, de modo que Lengar contentou-se em deixar a flecha descansar na corda. Saban gostaria de saber se o cavaleiro ainda vivia, pois parecia um morto, inerte, atirado para o lombo do cavalo.

 

O forasteiro era um Fronteiriço. Até Saban o sabia, pois apenas o Povo da Fronteira montava pequenos cavalos peludos e usava cicatrizes cinzentas no rosto. O Povo da Fronteira era inimigo, porém Lengar não soltou a flecha. Limitou-se a seguir o cavaleiro, levando Saban atrás de si, até que por fim o Fronteiriço chegou à beira das árvores onde cresciam fetos. Aí, o forasteiro parou o cavalo e ergueu a cabeça para olhar a suave elevação, enquanto Lengar e Saban se acocoravam, escondidos por trás dele.

 

O forasteiro olhou os fetos e mais ao longe o pasto, onde o solo era mais fino, depois das marcações. Havia túmulos espalhados pela crista baixa do terreno. Os porcos comiam os fetos, enquanto o gado preferia a terra de pastagem. Aqui ainda havia sol. O forasteiro manteve-se muito tempo nos limites do bosque, em busca de inimigos, mas sem os ver. Para norte do sítio onde se encontrava, havia campos de trigo limitados por espinheiros, sobre os quais as primeiras nuvens, arautos da tempestade, seguiam a sua sombra; porém à sua frente havia sol. Havia vida diante de si e escuridão por trás. O pequeno cavalo, solto, agitou-se subitamente junto aos fetos. O cavaleiro deixou-se levar.

 

O animal subiu a encosta suave até aos túmulos. Lengar e Saban esperaram até o forasteiro desaparecer no horizonte, depois seguiram e, chegando ao cimo, acocoraram-se numa vala funerária, para verem que o cavaleiro se tinha detido junto ao Velho Templo.

 

Ouviu-se o ribombar de um trovão e uma rajada de vento alisou a erva em que o gado pastava. O forasteiro escorregou de cima do cavalo, atravessou a enorme vala do Velho Templo e desapareceu no meio das frondosas aveleiras que cresciam dentro do recinto sagrado. Saban percebeu que o homem vinha em busca do santuário.

 

Mas Lengar estava atrás do Fronteiriço, e Lengar não era dado a piedade.

 

O cavalo abandonado, assustado pela trovoada e pelo gado, trotou para ocidente da floresta. Lengar esperou até que o cavalo desaparecesse por entre as árvores, levantou-se da vala e correu em direcção às aveleiras, para onde o forasteiro se dirigira.

 

Saban foi atrás, entrando onde nunca estivera nos seus doze anos de vida. No Velho Templo.

 

Uma vez, há muitos anos, há tantos que ninguém vivo se lembrava desses tempos antigos, o Velho Templo fora o maior santuário da zona central. Nesses tempos, quando os homens vinham de longe para dançar no recinto do templo, a barreira de greda que o cercava era tão branca que parecia cintilar à luz da Lua. De um lado a outro do anel cintilante iam cem passos e, nos tempos antigos esse espaço sagrado fora percorrido pelos pés dos dançarinos que rodeavam a casa dos mortos formada por três anéis de troncos cortados de carvalho. Os troncos nus e macios tinham sido oleados com gordura animal e enfeitados com ramos de azevinho e hera.

 

Agora a barreira estava coberta de relva sufocada por ervas daninhas. Pequenas aveleiras haviam crescido na vala e outras invadido o enorme espaço dentro da barreira circular, de modo que, à distância, o templo parecia um bosque de pequenos arbustos. Os pássaros faziam os ninhos onde outrora os homens dançaram. Por cima do emaranhado de aveleiras, via-se ainda o poste de carvalho da casa dos mortos, mas este estava agora inclinado e a madeira, outrora lisa, apresentava-se picada, negra e grossa devido aos fungos.
O templo fora abandonado, todavia os deuses não esquecem os seus santuários. Por vezes, em dias calmos quando a neblina se estende sobre as pastagens ou a lua cheia se mantém imóvel sobre o círculo de greda, as folhas das aveleiras estremecem como se o vento passasse por elas. Os dançarinos partiram, mas o poder ficou.

 

E agora o Fronteiriço entrara no templo.

 

Os deuses gritavam.

 

As sombras das nuvens engoliam a pastagem, enquanto Lengar e Saban corriam em direcção ao Velho Templo. Saban tinha frio e estava assustado. Lengar também estava receoso, mas o Povo da Fronteira era famoso pelas suas riquezas e a ganância de Lengar era superior ao medo de entrar no templo.

 

O forasteiro atravessara a vala e subira a barreira, mas Lengar dirigiu-se à antiga entrada sul, onde uma estreita vereda levava ao frondoso interior. Uma vez atravessada a vereda, Lengar pôs-se de gatas e rastejou por entre as aveleiras. Saban seguiu-o com relutância, sem querer ficar sozinho na pastagem quando estoirasse a ira do deus da tempestade.

 

Para surpresa de Lengar, o Velho Templo não estava completamente coberto de arbustos, pois havia um espaço limpo no local onde se situara a casa dos mortos. Alguém da tribo deveria ainda visitar o Velho Templo, porque as ervas daninhas foram arrancadas, a relva cortada com uma faca e apenas uma caveira de boi se encontrava aí, no local onde se sentava agora o forasteiro, encostado à única coluna que restava do templo. O rosto do homem estava pálido e tinha os olhos fechados, mas o seu peito subia e descia com a respiração difícil. Trazia uma fila de pedras negras na parte interior do pulso, apertadas por atilhos de couro.

 

Havia sangue nas suas calças de lã. O homem pousara o arco e a aljava das flechas junto da caveira do boi e agarrava agora um saco de couro junto ao ventre ferido. Havia três dias que fora apanhado numa emboscada, dentro da floresta. Não vira quem o atacara, apenas sentira uma dor atroz, resultante da lança que lhe atiraram, depois picara o cavalo e deixara que este o levasse para fora de perigo.

 

Vou buscar o pai murmurou Saban.

 

Não vais sussurrou Lengar, mas o ferido devia tê-los ouvido, pois abriu os olhos e fez uma careta, inclinando-se para diante, de modo a pegar no arco.

 

No entanto, o forasteiro estava mais lento devido à dor e Lengar foi muito mais rápido. Largou o arco saiu do esconderijo e correu pela casa dos mortos apanhando o arco do forasteiro com uma mão e a aljava com a outra. Com a pressa espalhou as flechas de modo que apenas restava uma na bolsa de couro.
O rolar dos trovões soou a ocidente. Saban estremeceu, temendo que o som aumentasse, enchendo o ar com a raiva do deus, mas o trovão afastou-se, deixando o céu mortalmente calmo.

 

Sannas disse o forasteiro, acrescentando depois palavras numa língua que nem Lengar, nem Saban falavam.

 

Sannas? perguntou Lengar.

 

Sannas repetiu o homem ansioso. Sannas era a grande feiticeira de Cathallo, famosa em toda a terra. Saban calculou que o forasteiro quisesse ser tratado por ela.

 

Lengar sorriu.

 

Sannas não pertence ao nosso povo afirmou. Sannas vive a norte. O forasteiro não compreendeu o que Lengar disse.

 

Erek pronunciou e Saban, ainda escondido nos arbustos, perguntou a si próprio se seria o seu nome, ou talvez o nome do seu deus. Erek disse o ferido com maior firmeza, mas a palavra nada significava para Lengar, que retirara uma flecha da aljava do forasteiro e a enfiava no arco. Este era feito de tiras de madeira e chifre, coladas e ligadas com tendões; o povo a que Lengar pertencia nunca usara uma arma assim. Preferiam um arco mais longo, feito de teixo, de modo que sentia curiosidade por aquela estranha arma. Esticou a corda, experimentando-lhe a força.

 

Erek! gritou muito alto o forasteiro.

 

És do Povo da Fronteira afirmou Lengar. Não tens nada a fazer aqui.

 

Esticou de novo o arco, surpreendido pela tensão de uma arma tão curta.

 

Traz-me um curandeiro. Traz-me Sannas disse o forasteiro na sua própria língua.

 

Se Sannas estivesse aqui afirmou Lengar, reconhecendo apenas o nome matava-a primeiro. Cuspiu. Isto é o que eu penso de Sannas. É uma vaca enrugada, uma semente do mal, estrume de sapo feito carne. Cuspiu de novo.

 

O forasteiro inclinou-se para diante e com dificuldade pegou nas flechas que tinham caído da aljava, formando com elas um pequeno feixe que segurou como uma faca, como se se quisesse defender.

 

Traz-me um curandeiro implorou na sua língua. Os trovões rugiam a ocidente e as folhas das aveleiras estremeceram quando uma rajada de vento frio anunciou a tempestade. O forasteiro olhou de novo Lengar nos olhos e não viu neles piedade. Apenas a satisfação que Lengar encontrava na morte. Não, disse. Não, por favor.

 

Lengar soltou a flecha. Estava só a cinco passos do forasteiro e a pequena seta atingiu o alvo com força doentia, empurrando o homem para o lado. A flecha enterrou-se profundamente, deixando apenas a ver-se sobre o peito do forasteiro um palmo da sua haste, enfeitada com penas pretas e brancas.

Saban pensou que o Fronteiriço estava morto porque não se mexeu durante muito tempo, mas depois o feixe de setas que fizera cuidadosamente caiu-lhe da mão, quando se esforçou por se endireitar.

 

Por favor disse em voz baixa.

 

Lengar! Saban agitava-se nas aveleiras. Deixa-me ir buscar o pai.

 

Calado! Lengar retirara uma das suas flechas de penas negras da aljava e colocara-a no arco curto. Caminhou na direcção de Saban, apontando-lhe o arco, sorrindo ao ver o terror no rosto do meio-irmão.

 

O forasteiro olhava também para Saban, vendo um rapaz alto e bonito, com cabelo negro emaranhado, olhos ansiosos.

 

Sannas implorou o forasteiro a Saban, leva-me a Sannas.

 

Sannas não vive aqui disse Saban, entendendo apenas o nome da feiticeira.

 

Nós vivemos aqui anunciou Lengar, apontando agora uma flecha sua ao forasteiro. És um Fronteiriço, dos que roubam o nosso gado, escravizam as nossas mulheres e enganam os nossos mercadores.

 

Soltou a segunda flecha que, como a primeira, bateu no peito do forasteiro, desta vez nas costelas do lado direito. Mais uma vez o homem tombou para o lado e de novo se esforçou por se endireitar como se o seu espírito recusasse deixar-lhe o corpo ferido.

 

Posso dar-te poder disse, enquanto um fio de sangue borbulhante lhe escorria da boca para a barba curta. Poder murmurou.

 

Mas Lengar não entendia a língua do homem. Disparara duas flechas e mesmo assim o homem recusava-se a morrer, de modo que pegou no seu arco, colocou uma flecha na corda e enfrentou o forasteiro. Esticou para trás a arma enorme.

 

O forasteiro abanou a cabeça, mas já conhecia o seu destino; olhou então Lengar nos olhos para lhe mostrar que não tinha medo de morrer. Amaldiçoou o seu assassino, embora duvidasse que os deuses o escutassem, pois era ladrão e fugitivo.

 

Lengar soltou a corda e a flecha de penas pretas enfiou-se no coração do forasteiro. Deve ter morrido imediatamente, porém tentara ainda erguer o corpo, como se quisesse desviar-se da seta de sílex; depois caiu, estremeceu enquanto lhe batia o coração e ficou imóvel.

 

Lengar cuspiu na mão direita, esfregando depois o cuspo no interior do pulso esquerdo, onde o arco do forasteiro lhe tinha ferido a pele; ao olhar para o meio-irmão, Saban percebeu a razão por que o forasteiro usava a fita de pedra no braço. Lengar executou uns passos, celebrando a morte, mas estava nervoso. Não tinha a certeza se o homem estava realmente morto, pois aproximou-se do corpo com todo o cuidado, tocando-lhe com a extremidade de osso do arco, preparado para saltar para trás, se o corpo voltasse à vida e se atirasse a ele, mas o forasteiro não se mexeu.

 

Lengar aproximou-se de novo para arrancar a bolsa da mão do forasteiro já morto, afastando-a do corpo. Olhou por uns momentos o rosto acinzentado do cadáver e depois, confiante de que o espírito do homem tinha de facto partido, arrancou o cordão que atava a bolsa. Espreitou para dentro dela, ficou imóvel um instante e depois gritou de alegria. Tinham-lhe dado o poder.

 

Saban, aterrorizado pelo grito do irmão, recuou, mas em seguida avançou de novo, enquanto Lengar esvaziava o conteúdo da bolsa na relva, junto à caveira esbranquiçada do boi. Para Saban, parecia que um raio de sol se tinha escapado dela.

 

Havia dezenas de pequenos ornamentos de ouro, em forma de losango, cada um deles do tamanho da unha de um polegar e quatro placas grandes, também com a forma de losangos, com as dimensões de uma mão. Os losangos, grandes e pequenos, tinham pequenos orifícios feitos nos vértices, de modo a poderem ser metidos num tendão ou cosidos numa peça de vestuário; todos eles eram feitos de folhas de ouro muito finas, com linhas rectas gravadas, embora o padrão nada significasse para Lengar que arrancou a Saban um dos mais pequenos, que este se atrevera a apanhar da relva. Lengar juntou-os todos, grandes e pequenos, num monte.

 

Sabes o que é isto? perguntou ao irmão mais novo, apontando para lá.

 

Ouro respondeu Saban.

 

Poder corrigiu Lengar. Olhou para o morto. Sabes o que se pode fazer com ouro?

 

Usá-lo na roupa? sugeriu Saban.

 

Imbecil! Podem comprar-se homens. Lengar recuou. As sombras das nuvens eram agora muito escuras e as aveleiras agitavam-se ao sabor do vento fresco. Compram-se lanceiros continuou. Compram-se archeiros e guerreiros! Compra-se poder!

 

Saban apanhou um dos pequenos losangos, depois afastou-se do caminho, quando Lengar tentou recuperá-lo. O rapaz recuou através da pequena clareira e, quando lhe pareceu que Lengar não o perseguiria, acocorou-se e espreitou o bocadinho de ouro. Parecia uma coisa estranha para comprar poder. Saban conseguia imaginar os homens a trabalhar por comida, por vasos de barro, por sílex, por escravos ou por bronze, que poderia ser transformado em facas, machados, espadas e punhos de lanças, mas por este metal brilhante? Não podia cortar, existia simplesmente, porém, mesmo naquele dia nublado, Saban podia ver que o metal cintilava, cintilava como se um bocado de sol estivesse preso dentro dele; estremeceu de súbito, não por estar nu, mas porque nunca antes havia tocado em ouro, nunca tivera na mão uma raspa do Sol todo-poderoso.

 

Temos de o levar ao pai disse em tom reverente.

Para que esse velho tolo o acrescente ao seu tesouro? perguntou Lengar em tom de desprezo. Voltou ao corpo e dobrou a capa por cima das hastes das flechas, vendo que as calças do morto estavam presas por um cinto com uma fivela de ouro maciço, enquanto tinha mais losangos pequenos ao pescoço pendurados num tendão.

 

Lengar olhou para o irmão mais novo, lambeu os beiços e pegou numa das flechas que caíra das mãos do forasteiro.

 

Segurava ainda o seu arco comprido, colocando na corda a flecha de penas pretas e brancas. Olhava para as aveleiras, evitando deliberadamente o olhar do meio-irmão, mas Saban percebeu imediatamente o que passava pela cabeça de Lengar. Se Saban sobrevivesse para contar ao pai acerca deste tesouro do Povo da Fronteira, então Lengar perdê-lo-ia, ou pelo menos teria de lutar por ele; mas se Saban fosse descoberto morto, tendo nas costelas uma flecha de penas pretas e brancas, pertencente ao Povo da Fronteira, ninguém suspeitaria que Lengar fosse o autor da morte, nem que este se tinha apropriado de um enorme tesouro em seu proveito. Os trovões ribombavam a ocidente e o vento frio achatava o cimo das aveleiras. Lengar esticava o arco, embora não olhasse para Saban.

 

Olha para isto! exclamou subitamente Saban, segurando no pequeno losango. Olha!

 

Lengar aliviou a pressão da corda enquanto espreitava e nesse mesmo instante, o rapaz partiu como se fosse uma lebre saltando das ervas. Correu através das aveleiras e pela vereda larga da entrada do Velho Templo pelo lado do Sol. Havia aí mais postes apodrecidos, tais como os, que rodeavam a casa dos mortos. Teve de se desviar para ultrapassar os tocos e, enquanto girava por entre eles, a flecha de Lengar passou-lhe junto à orelha.

 

Um trovão rasgou os céus e a chuva começou a cair. As gotas eram enormes. Um raio cintilou pela outra encosta. Saban correu, dando voltas e curvas, sem se atrever a olhar para trás, para ver se Lengar o perseguia. A chuva caía cada vez mais forte, enchendo o ar com o seu malévolo rugido, mas servindo de biombo para o esconder enquanto corria para norte e depois para oriente, em direcção à aldeia. Gritava enquanto corria, esperando que os donos dos rebanhos pudessem estar ainda nas pastagens, porém não viu ninguém até ter passado os túmulos no cimo da colina, atravessando o atalho lamacento entre os pequenos campos de trigo que eram açoitados pela chuva torrencial.

 

Galeth, tio de Saban e mais cinco homens, regressavam à aldeia quando ouviram os gritos do rapaz. Voltaram-se na direcção da colina, enquanto Saban corria à chuva agarrando-se ao gibão de pele de veado do tio.

 

Que se passa, rapaz? perguntou Galeth. Saban agarrou-se ao tio.

 

Tentou matar-me! exclamou ofegante. Tentou matar-me!

 

Quem? perguntou Galeth. Era o irmão mais novo do pai de Saban, alto, de barba cerrada e famoso pelos seus feitos de força. Dizia-se que Galeth uma vez tinha erguido sozinho um poste do templo, que não era dos mais pequenos, mas sim um enorme tronco cortado, que sobressaía por cima dos outros postes. Tal como os companheiros, Galeth transportava um enorme machado de lâmina de bronze, pois estavam a derrubar árvores quando a tempestade chegara. Quem tentou matar-te? perguntou Galeth.

 

Foi ele! gritou Saban, apontando para a colina onde Lengar acabara de aparecer com o arco na mão e uma nova flecha metida na corda.

 

Lengar parou. Nada disse, limitando-se a olhar para o grupo de homens que agora abrigava o seu meio-irmão. Retirou a flecha da corda. Galeth olhou o sobrinho mais velho.

 

Tentaste matar o teu próprio irmão? Lengar riu-se.

 

Eu não. Foi um Fronteiriço.

 

Desceu lentamente a colina. Tinha o longo cabelo negro molhado da chuva, muito liso e colado à cabeça, dando-lhe um ar assustador.

 

Um Fronteiriço? perguntou Galeth, cuspindo para afastar o azar. Havia muita gente em Ratharryn que achava que Galeth e não Lengar deveria ser o próximo chefe, mas a rivalidade entre tio e sobrinho empalidecia diante da ameaça de um ataque do Povo da Fronteira. Há Fronteiriços na pastagem? perguntou Galeth.

 

Só aquele disse Lengar em tom descuidado. Meteu a seta do Fronteiriço dentro da bolsa. Só aquele repetiu. Agora está morto.

 

Então estás a salvo, rapaz disse Galeth a Saban. Estás a salvo.

 

Ele tentou matar-me insistiu Saban. Foi por causa do ouro! Mostrou o losango como prova.

 

Ouro, eh? perguntou Galeth tirando a pequena lasca da mão de Saban. Foi isto que encontraste? Ouro? É melhor levá-lo ao teu pai.

 

Lengar lançou a Saban um olhar do mais profundo ódio, mas agora era tarde de mais. Saban vira o tesouro e estava vivo, pelo que o pai viria a saber do ouro. Lengar cuspiu, depois voltou-se e começou a subir de novo a colina. Desapareceu na chuva, arriscando-se à fúria da tempestade, de modo a poder resgatar o resto do tesouro.

 

Foi esse o dia em que o forasteiro chegou ao Velho Templo durante a tempestade; o dia em que Lengar tentou matar Saban e o dia em que tudo mudou no mundo de Ratharryn.

 

O deus da tempestade rugiu naquela noite através da campina. A chuva achatava as plantas, transformando em ribeiros os atalhos da colina. Inundou os pântanos a norte de Ratharryn e o rio Mai transbordou pelas margens, arrastando árvores caídas do vale profundo, que vieram desde as terras mais altas até ao enorme círculo onde Ratharryn fora construída. O fosso que rodeava a aldeia inundara e o vento levantava o telhado de colmo das cabanas e gemia por entre os postes de madeira dos anéis dos seus templos.

 

Ninguém sabia quando chegara a primeira pessoa à terra junto ao rio, nem como tinham descoberto que Arryn era o deus do vale. Porém, este deve ter-se revelado a essa gente, já que deram o seu nome ao novo lar e construíram templos nas colinas que rodeavam o vale. Eram templos simples, meras clareiras na floresta, em que um anel de troncos de árvores era deixado erguido e, durante muitos anos, ninguém sabia quantos, o povo seguia os atalhos do bosque até estes anéis de madeira, onde implorava aos deuses que o protegesse. A seu tempo, o povo de Arryn limpou a maior parte dos bosques, cortando carvalhos, olmos, freixos e aveleiras, para plantar cevada ou trigo nos pequenos campos. Pescavam no rio consagrado a Mai, esposa de Arryn, criavam gado nas pastagens e porcos nas zonas de floresta que ficavam entre os campos; os jovens da tribo caçavam javalis, veados, auroques, ursos e lobos nos bosques selvagens, que tinham sido afugentados para além dos templos.

 

Destes, os primeiros apodreceram e ergueram-se novos, que, por sua vez envelheceram; mesmo assim, continuavam a ser anéis de madeira, embora fossem agora postes cortados, erguidos entre uma barreira e um fosso que alargava o círculo à volta dos anéis. Sempre um círculo, pois a vida era um círculo. O céu era um círculo, o limite do mundo era um círculo, o Sol era um círculo e a Lua crescia até o ser e era por isso que os templos em Cathallo, Drewenna, Maden e Ratharryn, afinal em todos as aldeias espalhadas pela região, eram feitos de círculos.

 

Cathallo e Ratharryn eram tribos gémeas do centro. Estavam ligadas pelo sangue e eram tão ciumentas como duas esposas. Uma vantagem para uma delas era uma afronta para a outra e, naquela noite, Hengall, chefe do povo de Ratharryn, estava preocupado por causa do ouro do Fronteiriço. Esperara que Lengar lhe viesse trazer o tesouro, mas embora este tivesse de facto voltado com uma bolsa de couro, não se dirigira à cabana do pai; quando Hengall enviou um escravo exigindo que o filho lhe levasse os tesouros, Lengar respondera que estava demasiado cansado para isso. Assim, Hengall consultava agora o sumo sacerdote da tribo.

 

Vai desafiar-te avisou Hirac.

 

Os filhos devem desafiar os pais respondeu Hengall.

 

O chefe era um homem alto e pesado, com cicatrizes no rosto e uma barba enorme, hirsuta e engordurada. A sua pele, como a da maior parte do povo, era escura, pois estava entranhada de fuligem, sujidade, terra, suor e fumo. Por baixo da sujidade, os seus grossos braços exibiam inúmeras marcas azuis, que mostravam quantos inimigos tinha morto em combate. O seu nome significava simplesmente Guerreiro; porém Hengall, o Guerreiro, preferia de longe a paz à guerra.

Hirac era mais velho que Hengall. Era magro, doíam-lhe as articulações e tinha uma barba branca rala. Hengall podia conduzir a tribo, mas Hirac falava com os deuses, de modo que o seu conselho era indispensável.

 

Lengar vai combater-te avisou Hengall.

 

Não vai.

 

Pode ser. É jovem e forte disse Hirac. O sacerdote estava nu, tendo a pele coberta com uma pasta seca de greda e água, na qual uma das suas esposas traçara uns desenhos ondulantes feitos com os dedos abertos. A caveira de um esquilo pendia-lhe ao pescoço de um fio de couro e trazia à cintura um círculo de cascas de nozes e dentes de urso. Tinha o cabelo e a barba cobertos de lama vermelha, que secava e estalava devido ao imenso calor da fogueira de Hengall.

 

E eu sou velho e forte afirmou Hengall. Se ele lutar comigo, mato-o.

 

Se o matares, então apenas te restam dois filhos sussurrou Hirac.

 

Resta-me um filho resmungou Hengall, olhando furioso para o sumo sacerdote, pois detestava que lhe recordassem o reduzido número de filhos que concebera. Kital, chefe do povo de Cathallo, tinha oito filhos, Ossaya, que fora chefe de Maden, antes de Kital o ter conquistado, gerara seis, enquanto Melak, chefe do povo de Drewenna, tinha onze, de modo que Hengall sentia-se envergonhado de ter concebido apenas três filhos e ainda mais por um deles ser aleijado. Claro que também tinha filhas e algumas delas haviam sobrevivido, mas filhas não eram filhos. Nem contava com o segundo filho, o rapaz aleijado, um imbecil gago que se chamava Camaban. Reconhecia Lengar e também Saban, mas não o filho do meio.

 

Lengar não vai desafiar-me declarou Hengall. Não se atreve.

 

Não é cobarde avisou o sacerdote. Hengall sorriu.

 

Não. Não é cobarde, mas apenas combate quando sabe que pode vencer. É por isso que, se sobreviver, será um bom chefe.

 

O sacerdote estava acocorado junto ao poste central da cabana. Tinha entre os joelhos um monte de pequenos ossos: as costelas de um bebé que morrera no Inverno anterior. Mexia-lhes com um dedo longo coberto de greda, colocando-os em padrões ao acaso que estudava com a cabeça de lado.

 

Sannas vai querer o ouro disse, pouco depois, fazendo em seguida uma pausa para que aquela afirmação agoirenta produzisse efeito. Hengall, como qualquer outro ser humano, receava a feiticeira de Cathallo, mas parecia evitar tal pensamento. E Kital tem muitos lanceiros acrescentou Hirac, à laia de aviso.

 

Hengall empurrou o sacerdote, fazendo-o desequilibrar.

 

Deixa que eu logo trato das lanças, Hirac. Diz-me o que significa o ouro. Como veio aqui parar? Quem o mandou? Que faço com ele?

 

O sacerdote olhou à volta da grande cabana. De um lado, um biombo de couro escondia as escravas que serviam a nova mulher de Hengall. Hirac sabia que havia um enorme tesouro já escondido dentro da cabana, enterrado debaixo do chão ou oculto num monte de pedras. Hengall sempre amealhara, nunca fora gastador.

 

Se ficares com o ouro, os homens tentarão tirar-to disse Hirac. Este ouro não é vulgar.

 

Nem sequer sabemos se é o ouro de Sarmennyn afirmou Hengall, embora sem muita convicção.

 

É disse Hirac, apontando para o pequeno losango trazido por Saban, que cintilava no chão de terra, entre os dois. Sarmennyn era uma região fronteiriça muitas milhas a ocidente e, durante as duas últimas luas, tinham-se ouvido rumores acerca de um grande tesouro que o povo de Sarmennyn perdera. Saban viu o tesouro continuou. É o ouro dos Fronteiriços e estes adoram Slaol, embora lhe dêem outro nome... Fez uma pausa, tentando lembrar-se qual era, mas sem o conseguir. Slaol era o deus do Sol, um deus poderoso, mas o seu poder rivalizava com o de Lahanna, a deusa da Lua, e os dois, que já tinham sido amantes, estavam agora separados. Era essa a rivalidade que dominava Ratharryn e fazia de cada decisão um tormento, pois o gesto feito a um dos deuses ofendia o outro; a tarefa de Hirac era manter satisfeitos todos os deuses rivais, não apenas o Sol e a Lua, mas o vento e o solo, o ribeiro e as árvores, os animais e as ervas, os fetos e a chuva, os inúmeros deuses, espíritos e forças invisíveis. Hirac pegou no pequeno losango. Slaol enviou-nos o ouro afirmou. O ouro é o metal de Slaol, mas o losango é o símbolo de Lahanna.

 

Estás a dizer que o ouro pertence a Lahanna? sussurrou Hengall. Hirac nada disse durante algum tempo. O chefe aguardava. A tarefa do sumo sacerdote era determinar o significado dos estranhos acontecimentos, embora Hengall fizesse os possíveis para influenciar esses significados em favor da tribo.

 

Slaol poderia ter conservado o ouro em Sarmennyn disse por fim Hirac. Mas não o fez. Assim, será esse povo a sofrer a sua perda. A sua chegada aqui não é de mau agouro.

 

Ainda bem grunhiu Hengall.

 

Mas a forma do ouro diz-nos que já pertenceu a Lahanna e que esta tentou recuperá-lo continuou Hirac, cauteloso. Saban não disse que o forasteiro perguntava por Sannas?

 

Disse.

 

E Sannas reverencia Lahanna, acima de todos os deuses continuou o sacerdote. Assim, Slaol deve tê-lo enviado para nós, de modo a que ela não lhe conseguisse chegar. Mas Lahanna vai ter inveja e exigir-nos alguma coisa.

 

Um sacrifício? perguntou Hengall desconfiado.

 

O sacerdote acenou afirmativamente e Hengall fez um ar de zangado, imaginando o número de cabeças de gado que o sacerdote quereria matar no templo de Lahanna; porém, Hirac não propôs qualquer depradação na riqueza da tribo. O ouro era importante, a sua vinda era extraordinária e a resposta deveria ser igualmente generosa.

 

A deusa vai querer um espírito disse o sumo sacerdote. Hengall alegrou-se quando se apercebeu que o seu gado estava a salvo.

 

Podes levar o imbecil do Camaban ofereceu o chefe, falando do seu desonroso segundo filho. Dá-lhe alguma utilidade. Esmaga-lhe o crânio.

 

Hirac balançava-se, de joelhos, com os olhos semicerrados.

 

Está marcado por Lahanna disse em voz baixa. Camaban saíra de sua mãe com um sinal no ventre em forma de quarto crescente, o que, tal como o losango, era a forma sagrada da Lua. Lahanna pode zangar-se se o matarmos.

 

Talvez ela gostasse da sua companhia sugeriu Hengall maliciosamente. Não o terá assinalado para que lho enviassem?

 

É verdade confessou Hirac e a ideia deu-lhe coragem para tomar uma decisão. Vamos ficar com o ouro e aplacamos Lahanna com o espírito de Camaban.

 

Muito bem disse Hengall. Voltou-se para o biombo e chamou alguém. Uma escrava apareceu nervosamente à luz da fogueira. Se tenho de combater com Lengar amanhã de manhã, o melhor será fazer já outro filho disse o chefe ao sumo sacerdote. Apontou à rapariga o monte de peles que lhe servia de cama.

 

O sumo sacerdote juntou os ossos do bebé e apressou-se a partir para a sua cabana, apanhando a chuva que, cada vez mais forte, lhe retirava a greda da pele.

 

O vento continuava a soprar. Os relâmpagos desciam até à terra tornando o mundo escuro como breu e branco como greda. Os deuses gritavam e os homens apenas podiam temê-los.

SABAN RECEAVA ADORMECER, NÃO POR CAUSA DO DEUS DA TEMPESTADE que martelava a terra, mas por pensar que Lengar poderia vir durante a noite para o castigar por ter levado o losango. Porém, o irmão mais velho deixou-o descansado e, de madrugada, Saban saiu da cabana da mãe para o vento húmido e gelado. Os restos da tempestade lançavam nuvens de bruma para a enorme barreira de terra que rodeava a aldeia, enquanto o Sol escondia o rosto por trás das nuvens, aparecendo apenas de vez em quando, como um disco baço coberto de vapores acinzentados. Durante a noite, caíra um telhado de colmo, encharcado pela água da chuva e o povo estava maravilhado por a família não ter ficado esmagada. Uma fila de mulheres e escravos percorria o caminho a sul da barreira para arranjar água no rio inundado, enquanto as crianças levavam os vasos de urina da noite anterior para os poços dos curtidores, que tinham transbordado; todavia, todos se apressavam a voltar, desejosos de não perder o confronto entre Lengar e o pai. Até a gente que vivia para lá da grande barreira, nas cabanas das terras mais altas, tinham ouvido a notícia e, de repente, arranjaram um pretexto para vir naquela manhã a Ratharryn. Lengar descobrira o ouro do Povo da Fronteira. Hengall queria-o e a vontade de um deles teria de prevalecer.

 

Hengall foi o primeiro a aparecer. Saiu da cabana trajando uma enorme capa de pele de urso e passeou-se pela aldeia com aparente despreocupação. Cumprimentou Saban despenteando-lhe o cabelo, depois falou com os sacerdotes sobre os problemas de substituir um dos grandes postes do templo de Lahanna e por fim, sentou-se num banco à porta da cabana, escutando os relatos ansiosos dos danos feitos pela chuva daquela noite nos campos de trigo.

 

Podemos sempre comprar cereal anunciou Hengall em voz alta, para que o maior número possível de pessoas o pudesse ouvir. Há quem diga que a riqueza escondida na minha cabana devia ser usada para arranjar armas, mas o melhor seria servir-nos para comprar cereal. Temos ainda os porcos para comer e a chuva não mata os peixes do rio. Não morreremos de fome. Abriu a capa e bateu no enorme ventre nu. Não vai encolher este ano! O povo ria.

 

Galeth chegou com meia dúzia de homens e acocorou-se junto à cabana do irmão. Todos eles traziam lanças e Hengall compreendeu que o tinham vindo apoiar, mas não mencionou que estivesse à espera de um confronto. Pelo contrário, perguntou a Galeth se tinha encontrado um carvalho suficientemente grande para substituir o pilar podre do templo no santuário de Lahanna.

 

Encontrámos, mas não o cortámos.

 

Não o cortaram?

 

O dia ia adiantado e os machados estavam rombos. Hengall sorriu.

 

Porém, ouvi dizer que a tua mulher está grávida.

 

Galeth parecia modestamente satisfeito. A primeira mulher morrera-lhe havia um ano, deixando-o com um filho um ano mais jovem que Saban; acabara agora de tomar uma nova esposa.

 

Está admitiu.

 

Então pelo menos uma das tuas lâminas está afiada disse Hengall, provocando mais risos.

 

Mas estes calaram-se abruptamente, pois Lengar escolheu esse momento para sair da sua cabana e, naquela manhã cinzenta, brilhava como o próprio Sol. Ralla, sua mãe e a esposa mais velha de Hengall, deveria ter ficado acordada naquela noite de tempestade, enfiando os pequenos losangos em tendões, para que o filho os pudesse usar como colares, tendo também cosido as quatro peças de ouro maiores directamente no gibão de pele de veado sobre o qual usava o cinto de fivela de ouro que pertencera ao forasteiro. Seguiam Lengar dez jovens guerreiros, todos eles seus íntimos companheiros de caça, e atrás desse bando de lanceiros ia um grupo lamacento de crianças entusiasmadas que, brandindo paus, imitavam a arma de caça que Lengar empunhava.

 

A princípio, Lengar ignorou o pai. Passeou-se antes por entre as cabanas, passando pelos dois templos construídos dentro da grande barreira e dirigindo-se depois às casas dos oleiros e aos poços dos curtumes a norte da aldeia. Os seus companheiros trocavam as lanças e cada vez mais gente se juntava atrás dele, até que por fim conduziu a entusiasmada procissão por um atalho sinuoso que serpenteava por entre os colmos encharcados das cabanas baixas e redondas. Só depois de ter percorrido duas vezes a aldeia é que se dirigiu ao pai.

 

Hengall ergueu-se quando o filho se aproximou. Deixara Lengar gozar a sua hora de glória e agora, levantando-se, sacudiu dos ombros a capa de urso, lançando-a com o pêlo para baixo, sobre a lama a seus pés. Limpou o rosto da humidade da bruma, usando as pontas da enorme barba, depois esperou de peito nu, para que todo o povo de Ratharryn pudesse ver como eram grossas as marcas azuis dos inimigos mortos e dos animais chacinados que tinha entalhadas na pele. Ficou em silêncio, deixando o vento passar-lhe pelas farripas de cabelo negro.

 

Lengar parou em frente ao pai. Era da mesma altura dele, mas menos musculoso. Numa luta seria provavelmente o mais rápido, enquanto Hengall seria o mais forte, porém este último não se mostrava receoso de um tal confronto. Bocejou e depois acenou afirmativamente ao filho mais velho.

 

Trouxeste-me o ouro do forasteiro. Muito bem. Apontou para a capa de urso que se encontrava no chão, entre eles. Põe tudo aí, filho resmungou.

 

Lengar ficou imóvel. A maior parte da tribo que os observava pensava que iriam lutar, pois os seus olhos mostravam um amor pela violência que raiava a loucura; porém, o olhar do pai era firme e Lengar preferiu discutir em vez de erguer a lança.

 

Se um homem encontra um veado no bosque, tem de o entregar ao pai? perguntou em voz muito alta, para que todos o ouvissem. A gente de Ratharryn tinha-se agrupado junto às cabanas mais próximas, deixando espaço para o confronto e alguns deles gritavam agora, concordando com Lengar. Este prosseguiu, encorajado pelo apoio: Ou se encontrar mel de abelhas selvagens, terei de suportar as picadas e depois entregar o mel ao meu pai?

 

Sim disse Hengall, bocejando de novo. Na capa, meu rapaz!

 

Um guerreiro chega à nossa terra exclamou Lengar, um forasteiro do Povo da Fronteira, e traz ouro. Mato o forasteiro e fico com o ouro. Não será meu?

 

Alguns, por entre a multidão gritaram que o ouro era, de facto, dele, mas não tantos quantos os que gritaram anteriormente. A figura de Hengall e o seu ar despreocupado eram intrigantes.

 

O chefe pegou numa bolsa que tinha no cinto e retirou o pequeno losango que Saban trouxera do Velho Templo. Deixou cair a lasca de ouro na capa.

 

Agora põe aqui o resto disse para Lengar.

 

O ouro é meu! insistiu Lengar, mas desta vez apenas Ralla, sua mãe, e Jegar, um dos amigos mais íntimos, gritaram o seu apoio. Jegar era um homem pequeno e magro, da mesma idade de Lengar, mas já um dos maiores guerreiros da tribo. Em combate, matava com um abandono semelhante ao de Lengar e desejava avidamente uma luta, mas nenhum dos seus outros companheiros de caça tinha estômago para se defrontar com Hengall. Contavam com Lengar para vencer o confronto e parecia que este o iria fazer por meio da violência, pois erguera de súbito a lança, mas em vez de apunhalar com ela segurou-a bem no alto de modo a chamar a atenção para o que ia dizer.

 

Encontrei o ouro! Matei pelo ouro! O ouro veio ter comigo! E vai ficar agora escondido na cabana do meu pai? Para se encher de pó? Aquelas palavras provocaram murmúrios de simpatia, pois muita gente em Ratharryn se sentia ofendida com o modo como Hengall juntava tesouros. Em Drewenna ou Cathallo, o chefe exibia a riqueza, recompensava os guerreiros com bronze, enfeitava as mulheres com metal brilhante e fazia grandes templos, mas Hengall guardava a riqueza de Ratharryn na sua cabana.

 

O que farias com o ouro? interveio Galeth. Estava agora de pé e tinha solto o rabo-de-cavalo, de modo que o cabelo lhe caía negro e despenteado junto ao rosto. Parecia um guerreiro no início da batalha. Tinha erguido a lança. Conta-nos, sobrinho desafiou-o. Que farias com o ouro?

 

Jegar ergueu a lança de modo a responder ao desafio de Galeth, mas Lengar baixou a arma do amigo.

 

Com este ouro gritou, batendo nos losangos que trazia ao peito podíamos arranjar guerreiros, lanceiros, archeiros e acabar para sempre com Cathallo!

 

As vozes que a princípio o tinham apoiado voltaram a gritar, pois havia muitos em Ratharryn que temiam o crescimento de Cathallo. No Verão anterior os guerreiros de Cathallo tomaram a aldeia de Maden, que ficava entre Ratharryn e Cathallo e raramente passava uma semana sem que invadissem a terra de Hengall à procura de gado ou porcos; não agradava a muitos membros da tribo que Hengall parecesse nada fazer para acabar com aqueles ataques insultuosos.

 

Houve um tempo em que Cathallo nos pagava um tributo! gritou Lengar, encorajado pelo apoio da multidão. Em que as suas mulheres vinham dançar aos nossos templos! Agora acobardamo-nos sempre que se aproxima um guerreiro de Cathallo! Rebaixamo-nos a Sannas, essa cadela horrorosa! E onde estão o ouro, o bronze e o âmbar que nos podiam libertar? E para onde irá este ouro, se eu o entregar? Para ali! Ao dizer estas últimas palavras apontou com a lança para o pai. E que fará Hengall com o ouro? perguntou Lengar. Vai enterrá-lo! Ouro para as toupeiras! Metal para os vermes! Um tesouro para as larvas! Esforçamo-nos por encontrar sílex, enquanto temos ouro!

 

Hengall abanou tristemente a cabeça. A multidão que aclamara as últimas palavras de Lengar, estava agora silenciosa à espera que a luta começasse. Os homens de Lengar deviam ter pensado que o momento estava próximo pois encheram-se de coragem e agruparam-se atrás do seu chefe, com as armas erguidas. Jegar dançava de um lado para outro mostrando os dentes e apontando a lâmina da lança ao ventre de Hengall. Galeth aproximou-se de Hengall, pronto a defender o irmão, mas Hengall afastou-o com um gesto, baixou-se e retirou a sua clava de guerra do esconderijo debaixo do telhado de colmo do beiral da sua cabana. A clava era um pau de carvalho da grossura do pulso de um guerreiro, com uma enorme saliência de pedra cinzenta que poderia esmagar o crânio de um adulto como se fosse um ovo de carriça. Hengall ergueu a clava e depois acenou com a cabeça em direcção à capa de pele de urso. O tesouro todo, rapaz disse, insultando deliberadamente o filho. Todo, na capa.

 

Lengar olhou para ele. A lança tinha um alcance maior do que a clava, mas se a primeira estocada falhasse sabia que a massa de pedra lhe quebraria o crânio. Assim, Lengar hesitou e Jegar empurrou-o para lhe passar à frente. Hengall apontou a clava a Jegar.

 

Matei o teu pai, rapaz, quando desafiou a minha chefia disse em tom de desprezo. Depois esmaguei os seus ossos e dei a carne aos porcos, mas guardei a sua queixada. Hirac!

 

O sumo sacerdote, com a pele malhada de sujidade e greda, bamboleou-se diante da multidão.

 

Sabes onde está escondida a queixada? perguntou Hengall.

 

Sei respondeu Hirac.

 

Então, se este verme não recuar, lança-lhe uma maldição de sangue disse Hengall, olhando firmemente para Jegar. Gela-lhe as partes baixas. Enche-lhe o ventre de vermes pretos.

 

Jegar hesitou um segundo. Embora não temesse a clava de Hengall, temia a maldição de Hirac, por isso recuou. Hengall olhou de novo para o filho.

 

Na capa, filho disse baixinho. E despacha-te! Quero o meu pequeno-almoço!

 

O desafio de Lengar caiu por terra. Por um instante pareceu querer atirar-se ao pai, preferindo a morte à desonra, mas depois desistiu e, com um gesto desesperado, deixou cair a lança, retirou o ouro do pescoço e cortou os pontos que lhe seguravam os losangos ao gibão. Colocou-os todos sobre a pele de urso, depois desapertou o cinto e atirou-o com a sua enorme fivela de ouro para cima dos losangos.

 

Encontrei o ouro protestou fracamente quando terminou.

 

Tu e Saban encontraram-no concordou Hengall. Mas encontraram-no no Velho Templo e não nos bosques, o que significa que o ouro nos foi enviado a todos! E porquê? O chefe ergueu a voz de modo a todo o povo o poder ouvir. Os deuses não revelaram as suas intenções, de modo que temos de esperar para saber a resposta. Mas é o ouro de Slaol e se ele no-lo enviou deve ter uma razão. Prendeu a capa de urso com o pé, arrastando-a e aos tesouros para a entrada da cabana de onde se estendeu um par de mãos de mulher para puxar para dentro o monte cintilante. Um leve gemido percorreu a multidão, pois todos sabiam que passaria muito tempo antes de voltarem a ver o ouro. Hengall ignorou o gemido. Há aqui aqueles que gostariam que eu conduzisse os nossos guerreiros contra o povo de Cathallo gritou. E há pessoas em Cathallo que gostariam que os seus jovens nos atacassem! Porém, nem todos em Cathallo desejam entrar em guerra connosco. Sabem que muitos dos seus jovens morreriam e que, mesmo se vencessem a guerra, ficariam enfraquecidos pela luta. Assim, não haverá guerra terminou abruptamente.

 

Fora um longo discurso para Hengall, que raramente revelava os seus pensamentos. Confessem a alguém os vossos pensamentos e entreguem a alma, dissera uma vez, mas agora dificilmente revelaria algum segredo ao afirmar a relutância que sentia pela guerra. Hengall, o Guerreiro, detestava combater. A actividade desta vida é plantar cereal e não armas, gostava ele de dizer. Não se importava de conduzir bandos para combater os Fronteiriços, pois estes eram forasteiros e ladrões, mas detestava combater contra as tribos vizinhas, porque eram primos e partilhavam a mesma língua e os mesmos deuses de Ratharryn. Olhou para Lengar.

 

Onde está o Fronteiriço morto? perguntou.

 

No Velho Templo resmungou Lengar em tom aborrecido.

 

Leva um sacerdote ordenou Hengall a Galeth e livra-te do corpo. Meteu-se na cabana, deixando Lengar derrotado e humilhado.

 

As últimas brumas desapareceram quando o Sol atravessou as nuvens finas. O colmo coberto de musgo fumegava lentamente. O entusiasmo de Ratharryn terminou por ali, embora houvesse ainda os efeitos da tempestade para o povo se maravilhar. O rio inundou as margens, o grande fosso que ficava dentro da barreira circundante transbordara e os campos de trigo e cevada tinham ficado completamente rasos.

 

E Hengall continuava a ser o chefe.

 

A enorme barreira de barro definia Ratharryn. O povo continuava maravilhado com o facto dos seus antepassados terem feito uma tal muralha, cinco vezes a altura de um homem, circundando as cabanas onde viviam cerca de cem famílias. A barreira fora construída com terra e greda misturada com armações de veados e ossos de boi, encimada com caveiras de gado, lobos e lanceiros inimigos, para afastar os espíritos da floresta escura. Todas as aldeias, e mesmo as casas pobres nas terras altas, tinham caveiras para assustar os espíritos, porém Ratharryn colocava as caveiras no enorme muro de terra que também servia para deter e assustar as tribos inimigas.

 

As famílias viviam todas na parte sul do cercado, enquanto a norte ficavam as cabanas dos oleiros e carpinteiros, a forja do único ferreiro da tribo e os poços dos curtidores. Dentro da muralha havia ainda espaço para abrigar o gado e os porcos de uma ameaça inimiga e nessa altura a multidão aglomerava-se nos dois templos construídos dentro do círculo murado. Os dois santuários eram anéis de postes de madeira. O maior tinha cinco anéis e era um templo a Lahanna, a deusa da Lua, enquanto o mais pequeno, apenas com três, era para Arryn, deus do vale e para Mai, sua esposa, que era a deusa do rio. Os postes mais altos desses templos erguiam-se a três vezes a altura de Galeth, que era o homem mais alto da tribo, mas mesmo assim eram mais pequenos do que um terceiro templo, que ficava a sul da barreira circundante.

 

Este era formado por seis anéis de madeira, dois deles com lintéis também de madeira ligando o cimo dos postes, e pertencia a Slaol, deus do Sol. O Templo do Sol fora deliberadamente construído fora da aldeia, pois Slaol e Lahanna eram rivais e os seus templos tinham de ser separados, de modo que os sacrifícios feitos num não pudessem ser vistos no outro.

 

Slaol, Lahanna, Arryn e Mai eram as divindades principais de Ratharryn, mas muita gente sabia que havia uma centena de outros deuses no vale, outros tantos nas colinas, muitos mais para lá dos montes e uma miríade no vento. Nenhuma tribo conseguia construir templos para cada um dos deuses, nem sequer saber quem eram todos eles; para além dessa multidão de deuses desconhecidos, havia os espíritos dos mortos, dos animais, dos ribeiros, das árvores, do fogo, do ar, espíritos de tudo o que trepava, respirava, matava ou crescia. Se um homem ficasse em silêncio num monte, na calma da tarde, podia por vezes ouvir os seus murmúrios e esses murmúrios poderiam enlouquecê-lo a menos que orasse constantemente nos santuários.

 

Depois havia um quarto santuário, o Velho Templo, que se encontrava na encosta sul, coberto de aveleiras e sufocado por ervas daninhas. Esse templo fora dedicado a Slaol, mas alguns anos antes, ninguém se lembrava quando, a tribo construíra um novo templo a este deus junto à aldeia e o antigo santuário fora abandonado. Fora-se simplesmente deteriorando, contudo, deveria ainda possuir poder, pois fora aí que aparecera o ouro do Fronteiriço. Agora, na manhã após a grande tempestade, Galeth levou três homens ao antigo templo para descobrir o corpo e enterrá-lo. Os quatro homens foram acompanhados de Neel, o mais jovem dos sacerdotes de Ratharryn, que os protegia do espírito do forasteiro morto.

 

O grupo deteve-se no alto da colina, fazendo uma vénia aos túmulos que ficavam entre o Velho Templo e a aldeia. Neel uivava como um cão, para atrair a atenção dos espíritos dos antepassados, de modo a explicar-lhes a incumbência que trouxera os homens até ao cume. Enquanto Neel cantava estas notícias aos mortos, Galeth olhava para o caminho sagrado que saía para ocidente, mais recto que o voo de uma flecha. Os antepassados tinham-no construído mas, tal como o Velho Templo, estava coberto de vegetação, abandonado e nem sequer os sacerdotes conseguiam dizer por que razão os seus longos fossos e muros tinham sido improvisados na terra. Hirac pensava que fora feito para aplacar Rannos, o deus do trovão, mas não tinha a certeza e também não se importava. Nesta altura, Galeth encostava-se à lança à espera que Neel detectasse um augúrio. Parecia-lhe que o mundo estava errado e a deteriorar-se, tal como o antigo caminho sagrado do Velho Templo. Tal como Ratharryn se deteriorava sob o cerco de más colheitas e persistentes doenças. Havia um cansaço no ar, como se os deuses estivessem fartos de rodear eternamente o mundo verde e esse sentimento assustava Galeth.

 

Podemos ir declarou Neel, embora nenhum dos homens que o acompanhava visse que sinal teria o jovem sacerdote detectado na paisagem. Talvez fosse a passagem de um farrapo de bruma contra o ramo de uma árvore, o voo baixo de um falcão ou mesmo o movimento de uma lebre na erva alta, mas Neel estava confiante que os espíritos ancestrais tivessem dado a sua aprovação. Assim, o reduzido grupo encaminhou-se para um pequeno vale, subindo depois a encosta do Velho Templo.

 

Neel conduzia-os por entre os postes apodrecidos do caminho, metendo-se pelo meio das aveleiras. O jovem sacerdote, com a túnica de pele de veado encharcada pelas ervas molhadas, deteve-se, surpreendido, ao chegar à casa dos mortos. Franziu a testa e assoprou, tocando depois nas partes baixas para afastar o mal. Não era o corpo do forasteiro que o fazia tomar essa precaução, mas o facto do espaço central do santuário ter sido deliberadamente limpo de ervas daninhas e aveleiras. Parecia que alguém adorava aqui em segredo, embora a presença de uma caveira de boi sugerisse que quem quer que tivesse vindo a este local esquecido, orava a Slaol, pois o boi era o animal deste deus, tal como o texugo, o morcego e o mocho pertenciam a Lahanna.

 

Galeth tocou também nas partes baixas, mas para se guardar do espírito do forasteiro morto, que se encontrava deitado de costas com três setas saindo-lhe ainda do peito. Neel pôs-se de gatas e ladrou como um cão, para afastar o espírito do morto para longe da sua carne fria. Ladrou e uivou durante muito tempo, depois ergueu-se repentinamente, esfregou as mãos e disse que o cadáver estava a salvo.

 

Dispam-no disse Galeth aos seus homens e cavem-lhe uma sepultura na vala.

 

O forasteiro não teria cerimónia fúnebre, pois não era de Ratharryn. Era um mero Fronteiriço. Ninguém dançaria nem cantaria para ele, pois os seus antepassados não eram os desta tribo.

 

Apesar da sua enorme força, Galeth teve dificuldade em retirar as flechas, pois a carne fria do forasteiro apertara-se à volta das varas de madeira; por fim soltaram-se, mas as setas de sílex ficaram dentro do cadáver, tal como devia ser. Todas as tribos atavam a cabeça das setas com pouca força, de modo que os animais ou inimigos não pudessem puxar o sílex farpado que, assim, apodreceria na ferida. Galeth atirou fora as três varas e em seguida despiu o corpo, deixando-lhe apenas o bocado chato de pedra atado ao pulso. Neel temia que a pedra, maravilhosamente polida, fosse um amuleto mágico que pudesse contagiar Ratharryn com um espírito negro vindo dos pesadelos do Povo da Fronteira; apesar de Galeth insistir que apenas servira para proteger o pulso do homem da fricção do arco, o jovem sacerdote não se deixou convencer. Tocou nas partes baixas para afastar o mal e depois cuspiu na pedra.

 

Enterra-a!

Os homens de Galeth usaram picaretas de corno de veado e pás de osso de boi para aprofundar a vala do lado por onde o sol entrava no templo e então Galeth arrastou o corpo nu pelas aveleiras e atirou-o para a cova rasa. O resto das flechas do forasteiro foram partidas e atiradas para junto dele, lançando-lhe depois terra com os pés e pisando-a para alisar. Neel urinou na sepultura, murmurou uma maldição ao espírito do morto e voltou para o templo.

 

Ainda não acabámos? perguntou Galeth.

 

O jovem sacerdote ergueu a mão, a exigir silêncio. Rastejava por entre as aveleiras, com os joelhos dobrados, parando passo sim, passo não, para escutar, como se perseguisse um enorme animal. Galeth deixou-o ir, partindo do princípio que Neel se assegurava de que o espírito do forasteiro não se agarrava ao templo, mas depois ouviu-se o ruído de pés, um latido e um uivo aflito de dentro das aveleiras. Galeth correu para o centro do santuário e encontrou Neel segurando pelas orelhas uma criatura que se debatia. O cativo do sacerdote era um jovem sujo, com o cabelo negro e hirsuto sobre um rosto nojento, tão nojento que mais parecia um animal que um ser humano. O jovem esquelético batia nas pernas de Neel e guinchava como um porco, enquanto Neel o sacudia com toda a força, na tentativa de o calar.

 

Deixa-o ir ordenou Galeth.

 

Hirac quere-o disse Neel, conseguindo pelo menos enviar um soco ao rosto do jovem. Quero saber porque estava aqui escondido! Farejei-o! Animal nojento cuspiu no rapaz e depois bateu-lhe de novo. Sabia que alguém interferira aqui prosseguiu Neel triunfante, apontando com a mão livre para o espaço cuidadosamente limpo onde se encontrava a caveira do boi. E foi este miserável!

 

A última palavra transformou-se num grito de agonia enquanto o sacerdote soltava de repente a orelha do rapaz e se dobrava de dores. Galeth viu que o rapaz metera a mão debaixo da túnica franjada a osso de Neel para lhe apertar as partes baixas e depois, como a cria de uma raposa inesperadamente solta dos dentes de um cão, caiu de gatas e desapareceu por entre as aveleiras.

 

Apanhem-no! gritou Neel. Agarrava o baixo-ventre com as mãos e balançava-se para a frente e para trás, de modo a conter a sua agonia.

 

Deixa-o disse Galeth.

 

Hirac quere-o insistiu Neel.

 

Então Hirac que o venha buscar retorquiu Galeth zangado. Vai, vai! Empurrou o sacerdote magoado do centro limpo do templo e depois acocorou-se junto às aveleiras, debaixo das quais a estranha criatura tinha desaparecido.

 

Camaban? chamou Galeth para dentro das folhas. Camaban? Não houve resposta. Não te vou fazer mal.

 

Toda a gente me faz m-m-mal disse Camaban do interior dos arbustos.

 

Eu não, disse Galeth, sabes que não. Houve uma pausa e depois Camaban apareceu nervosamente de dentro da moita de aveleiras. O seu rosto era longo e magro, com um queixo proeminente e enormes olhos verdes desconfiados. Vem falar comigo disse Galeth, retirando-se para o centro da clareira. Não te faço mal. Nunca te fiz mal.

 

Camaban avançou com os pés e as mãos no chão. Podia pôr-se de pé, podia até caminhar, mas tinha um andar grotesco, já que nascera com o pé esquerdo torto, razão pela qual lhe chamaram Camaban. O nome significava Criança Torta, embora a maior parte das crianças da tribo lhe chamassem Porco, ou coisas piores. Era o segundo filho de Hengall, mas este rejeitara-o e banira-o de dentro dos muros de Ratharryn, condenando-o a tentar arranjar meios de subsistência entre o povo que vivia para lá da grande barreira. Camaban tinha dez anos quando fora expulso e isso passara-se quatro Verões antes, o que fazia com que muita gente se espantasse por sobreviver ainda à sua expulsão. A maior parte dos aleijados morriam muito novos ou então eram escolhidos para serem sacrificados aos deuses, mas Camaban sobrevivera. Naquele momento, se não fosse aleijado e banido, teria já passado pelas provas da idade adulta, porém a tribo não queria recebê-lo como homem, de modo que era ainda uma criança, uma criança torta.

 

Hengall teria preferido matar Camaban à nascença, porque um filho aleijado era um presságio desastroso, pior do que uma filha; no entanto o rapaz nascera com uma marca vermelha em forma de quarto crescente no ventre e Hirac declarara que estava marcado por Lahanna. A criança poderia ainda vir a andar, dissera o sumo sacerdote, de modo que lhe dessem tempo. A mãe de Camaban implorara também pela vida do filho. Era na altura a esposa mais velha de Hengall e fora estéril durante tanto tempo, que se pensara que nunca viesse a dar à luz. Tinha orado a Lahanna, como fazem todas as mulheres sem filhos, e fizera também uma peregrinação a Cathallo, onde Sannas, a feiticeira, lhe dera ervas para comer e a obrigara a deitar-se uma noite inteira na pele ensanguentada de um potro recém-morto. Camaban chegou nove luas depois, mas nasceu aleijado. A mãe implorara por ele, mas fora a marca da Lua no ventre do rapaz que convencera Hengall a poupá-lo. A mãe de Camaban não tivera outros filhos, mas amara o seu filhote lobo e, quando morreu, este uivara como uma cria órfã. Hengall silenciara o filho com pancada e depois, enojado, ordenara que o aleijado fosse mandado para fora da barreira de Ratharryn.

 

Tens fome? perguntou então Galeth ao rapaz. Sei que sabes falar disse depois de esperar pela resposta. Agora mesmo falaste! Tens fome?

 

Tenho sempre fome respondeu Camaban, espreitando desconfiado por baixo da cabeleira emaranhada.

 

Vou mandar que Lidda te dê de comer disse Galeth. Mas onde há-de ela deixar a comida?

 

Ao p-p-pé do rio respondeu Camaban onde morreu o filho de Hirac. Toda a gente conhecia aquele local inóspito, a jusante do ribeiro da aldeia. O filho do sumo sacerdote afogara-se ali e agora crescia no local um abrunheiro por entre amieiros e salgueiros, que Hirac afirmava ser o espírito do filho.

 

Não queres aqui? perguntou Galeth.

 

Isto é secreto! afirmou ferozmente Camaban, apontando depois para o céu. Olha! disse entusiasmado. Galeth olhou e não viu nada. O p-p-poste! gaguejou Camaban. O p-p-poste.

 

Galeth olhou de novo.

 

O poste? perguntou e depois lembrou-se que fora deixado um poste da casa dos mortos no Velho Templo. Tornara-se um monumento familiar, salientando-se e inclinando-se da moita de aveleiras, mas agora encontrava-se quebrado. A metade inferior estava ainda enfiada na terra, mas a superior erguia-se, chamuscada e rachada por entre os arbustos. Foi atingido por um raio disse Galeth.

 

Slaol disse Camaban.

 

Slaol não ripostou Galeth. Rannos. Rannos era o deus do relâmpago.

 

Slaol! insistiu Camaban zangado. Slaol!

 

Pois seja, Slaol disse Galeth bem-humorado. Olhou para o rapaz desgrenhado, cujo rosto se contorcia de raiva. Que sabes tu de Slaol?

 

Ele f-f-fala comigo afirmou Camaban.

 

Galeth tocou nas partes baixas para evitar o desagrado do deus.

 

Fala contigo?

 

Por vezes durante toda a noite respondeu Camaban. E ficou zangado porque L-L-Lengar voltou e l-l-levou o tesouro. O tesouro é de Slaol, sabes? afirmou-o com toda a convicção.

 

Como sabes que Lengar levou o tesouro? perguntou Galeth.

 

P-p-porque o vi! Estava aqui! Ele tentou matar Saban e não me viu. Eu estava aqui.

 

Camaban virou-se para se voltar a meter por entre as aveleiras. Galeth seguiu-o, rastejando por um caminho aberto através das ervas daninhas até ao local em que Camaban entrançara alguns ramos flexíveis, de modo a fazer uma cabana para viver.

 

É aqui que vivo disse Camaban, enfrentando o tio com ar de desafio. Sou o g-g-guardião do templo.

 

Galeth teve vontade de chorar de pena ao ouvir a patética afirmação do rapaz. A cama do sobrinho era um monte de fetos encharcados, por baixo dos quais se encontravam os seus parcos pertences: a caveira de uma raposa, um vaso quebrado e uma asa de corvo. A sua única roupa era uma pele apodrecida de ovelha que cheirava como o poço dos curtidores.

 

Ninguém sabe então que vives aqui?

 

Só tu, disse o rapaz confiante. Nem sequer d-d-disse a Saban.

 

As vezes traz-me comida, m-m-as peço-lhe que ma leve ao pé do rio.

 

Saban traz-te comida? perguntou Galeth, surpreendido e satisfeito. Dizes então que Slaol fala contigo aqui?

 

l Todos os d-d-dias gaguejou Camaban.

 

I Galeth sorriu com aquele absurdo, mas Camaban não o viu, pois voltou-se para meter a mão por entre as folhas e retirou um arco curto de um esconderijo. Era um arco do Povo da Fronteira, o arco do forasteiro, com os pendões a envolverem as ripas de madeira e chifre.

 

L-L-Lengar usou-o ontem à noite disse Camaban. De qualquer modo o homem estava a morrer. Fez uma pausa com ar preocupado.

 

Porque é que H-H-Hirac me quer? perguntou.

 

Galeth hesitou. Não queria dizer que Camaban deveria ser sacrificado,

 

Embora não pudesse haver outra razão para a exigência de Hirac.

 

Quer m-m-matar-me disse Camaban calmamente. Não é verdade?

 

Galeth acenou relutante. Queria dizer ao seu sobrinho banido que fugisse, que se metesse nos bosques em direcção a ocidente ou a norte, mas de que serviria tal conselho? A criança acabaria por morrer de qualquer maneira, appanhado por animais ou capturado por quem o escravizasse, de modo que seria melhor se fosse entregue a Lahanna.

 

Irás para a deusa, Camaban disse Galeth. Vais ser uma estrela e olhar lá de cima para todos nós.

 

Quando? perguntou Camaban, parecendo pouco afectado pela promessa do tio.

 

Amanhã, creio eu.

 

O rapaz fez a Galeth um sorriso malicioso.

 

B P-p-podes dizer a Hirac que v-v-vou estar em Ratharryn de manhã.

 

Voltou-se para guardar de novo o seu precioso arco no esconderijo. Havia lá mais coisas escondidas aí: a bolsa vazia do forasteiro, uma pele de cobra,

 

Os ossos de uma criança assassinada, mais ossos com pequenas marcas talhadas dos lados e, o mais precioso de tudo, dois dos pequenos losangos de ouro que Camaban recolhera, enquanto Lengar perseguira Saban. Agarrou neles e fechou-os com força na mão, sem os mostrar a Galeth.

 

Pensas que sou louco, não é verdade? perguntou.

 

Não respondeu Galeth.

 

M-m-mas sou disse Camaban. Era o louco de Slaol e sonhava sonhos.

 

Mas ninguém reparava, pois era aleijado. Por isso queriam matá-lo.

 

Na manhã seguinte Neel mandou dois homens escavarem uma campa no templo de Lahanna, junto ao anel de postes exterior. Os homens concordaram
que era um dia auspicioso para o sacrifício, pois as nuvens que tinham vindo atrás da tempestade desfaziam-se rapidamente e Lahanna mostrava o seu rosto pálido no céu de Slaol.

 

Apareceram mais nuvens negras quando a multidão se juntou nos cinco anéis do templo, temendo alguns, que Hirac demorasse o sacrifício, mas este não devia estar preocupado com as nuvens, pois finalmente as dançarinas apareceram, saídas da cabana do sumo sacerdote. Estas mulheres traziam ramos de freixo cheios de folhas, com os quais varriam o solo, enquanto saltavam à frente dos sete sacerdotes, cujos corpos nus tinham sido branqueados com uma pasta de greda, onde tinham sido feitos desenhos com os dedos. Hirac trazia um par de hastes de veado preso à cabeça com atilhos de couro e os chifres abanavam perigosamente, enquanto dançava atrás das mulheres. Tinha à cintura um círculo de ossos e outros pendiam-lhe do cabelo incrustado de lama, trazendo ainda um cintilante talismã de âmbar ao pescoço. Neel, o sacerdote mais jovem, tocava uma flauta feita do osso da perna de um cisne, fazendo deslizar loucamente as notas enquanto dançava. Gilan, que era o mais velho, a seguir a Hirac, levava Camaban pela mão. Tinham permitido ao rapaz voltar naquele dia a Ratharryn e enquanto estivera dentro da barreira as mulheres tinham-lhe metido flores no cabelo negro, depois de o terem desemaranhado com pentes de osso, de modo que lhe caía agora liso até à cintura fina. Também estava nu e a sua pele lavada parecia estranhamente limpa. Via-se-lhe no ventre liso a marca vermelha de Lahanna. Era alto, tal como os outros dois filhos de Hengall, embora de cada vez que o seu pé esquerdo avançava, todo o corpo se dobrava, num movimento grotesco. Hengall e os anciãos da tribo seguiam os sacerdotes.

 

À medida que a procissão se aproximava, quatro homens começaram a bater em tambores de madeira e a tribo iniciou a dança à volta do templo. A princípio balançavam-se apenas de um lado para outro mas, à medida que os tambores aumentavam o ritmo das batidas, começaram a mover-se à volta do círculo, seguindo o movimento do Sol. Detiveram-se apenas para deixar passar os sacerdotes e anciãos e, depois da procissão ter passado por eles, o anel de dançarinos fechou-se.

 

Apenas os sacerdotes e a vítima eram autorizados a passar pela estreita abertura na barreira que circundava o templo. Hirac foi o primeiro que se dirigiu para junto da sepultura recém-aberta, onde uivou à pálida Lua, de modo a chamar a atenção da deusa. Entretanto Gilan conduziu Camaban para o lado oposto do círculo, enquanto os outros sacerdotes saltavam por entre os anéis do templo. Um deles erguia bem alto o pau de caveira da tribo, para que os antepassados pudessem ver o importante acontecimento daquele dia em Ratharryn, enquanto outro levava um enorme fémur de auroque. Uma das extremidades do osso era uma massa áspera e nodosa, pintada de ocre vermelho. Era o Mata-Crianças da tribo, de modo que os pequenos que assistiam e dançavam com os pais ao ritmo dos tambores, olhavam-no cheios de cautela.

 

Hengall ficou à porta do templo. Só ele não dançava. A seus pés encontravam-se as oferendas à deusa: uma clava de pedra, uma barra de bronze e um pote do Povo da Fronteira, com desenhos de cordões salientes feitos no barro. Os sacerdotes que não trabalhavam no campo nem criavam gado ou rebanhos, guardariam essas oferendas para as trocar por alimentos.

 

A tribo dançou até sentir as pernas cansadas, até quase entrarem num transe, induzido pelos tambores e pelos seus próprios cânticos. Gritavam o nome de Lahanna, enquanto as varredoras, que afastaram os espíritos para que não tentassem intrometer-se na cerimónia, deixavam cair os ramos de freixo, começando a entoar um cântico repetitivo, que chamava a deusa da Lua. ”Vê-nos”, cantavam, ”olha para o que te trazemos, vê-nos”, e havia alegria nas suas vozes, pois sabiam que a oferenda agradaria à deusa.

 

Hirac dançava com os olhos fechados. O suor desenhava córregos no padrão de greda da sua pele e, no seu êxtase, parecia prestes a cair na cova recém-aberta; porém, de súbito, ficou imóvel, abriu os olhos e uivou de novo à Lua, que ainda brilhava entre as nuvens brancas.

 

Caiu sobre o templo um silêncio profundo. Os dançarinos abrandaram e detiveram-se, o som esbateu-se, os tocadores de tambor descansaram os dedos e Neel calou a flauta de osso de cisne.

 

Hirac uivou de novo, erguendo depois a mão direita para pegar no Mata-Crianças. O sacerdote que segurava o pau de caveira seguia logo atrás dele de modo que os antepassados pudessem ver tudo o que acontecia.

 

Gilan fez avançar Camaban. Ninguém esperava que o rapaz viesse de livre vontade, mas, para grande surpresa, o jovem nu coxeou sem hesitar em direcção à cova e um suspiro de aprovação percorreu a tribo. Era melhor, quando o sacrifício era de livre vontade, mesmo que este sentimento fosse-proveniente da estupidez.

 

Camaban deteve-se junto à sua sepultura, exactamente onde o deveria fazer, e Hirac forçou um sorriso para acalmar quaisquer receios que o rapaz tivesse. Camaban pestanejou na direcção do sacerdote, mas nada disse. Não falara em todo o dia, nem mesmo quando as mulheres o magoaram ao puxarem-lhe os nós do cabelo com os pentes de dentes longos. Sorria.

 

Quem fala em nome do rapaz? perguntou Hirac.

 

Falo eu vociferou Hengall da entrada do templo.

 

Como se chama ele?

 

Camaban disse Hengall.

 

Hirac fez uma pausa, zangado por o ritual não estar a ser cumprido.

 

Como se chama ele? perguntou de novo, desta vez mais alto.

 

Camaban disse Hengall e depois, a seguir a uma pausa, filho de Hengall, filho de Lock.

Uma nuvem cobriu o Sol, lançando o templo na sombra. Alguns membros da tribo tocaram nas partes baixas para evitar o azar, mas outros repararam! que Lahanna ainda brilhava no céu. Quem possui a vida de Camaban, filho de Hengall, filho de Lock? perguntou Hirac. Sou eu disse Hengall e abriu uma bolsa de couro que tinha pendurada no cinto, retirando dela uma pequena bola de greda. Entregou-a a Neel, que a levou a Hirac.

 

A bola, do tamanho de um olho, era o símbolo gravado na altura do] nascimento de uma criança e era destruída quando esta se tornava adulta; até aí era possuidora do espírito da criança. Se esta morresse, a bola poderia ser desfeita em pó, o pó misturado com água ou leite e depois bebido, para que o espírito passasse para outro corpo. Se a criança desaparecia, arrancada pelos espíritos ou por um grupo de caçadores do Povo da Fronteira em busca de escravos, então a bola poderia ser enterrada junto a um poste do templo, de modo a que os deuses oferecessem protecção à criança desaparecida.

 

Hirac pegou na bola, esfregou-a nas partes baixas e depois ergueu-a no ar em direcção à Lua.

 

Lahanna! exclamou. Trazemos-te uma oferenda! Oferecemos-te Camaban, filho de Hengall, filho de Lock! Lançou a bola para a relva por trás da cova. Camaban sorriu de novo, parecendo por momentos querer avançar para a apanhar, mas Gilan murmurou-lhe que estivesse quieto e o rapaz obedeceu.

 

Hirac chegou-se mais à cova.

 

Camaban gritou, filho de Hengall, filho de Lock, ofereço-te a Lahanna! A tua carne será a sua carne, o teu sangue o seu sangue e o teu espírito o seu espírito. Camaban, filho de Hengall, filho de Lock, expulso-te da tribo em companhia da deusa. Destruo-te! E dizendo estas palavras ergueu o Mata-Crianças acima da cabeça.

 

Não! gritou uma voz assustada e a tribo estupefacta olhou e viu que fora Saban quem falara. Até o próprio rapaz parecia espantado, pois colocara a mão na boca, mas a sua aflição era simples. Camaban era seu meio-irmão. Não, por favor!

 

Hengall fez má cara, mas Galeth colocou uma mão consoladora no ombro de Saban.

 

Tem de ser murmurou Galeth ao rapaz.

 

É meu irmão protestou Saban.

 

Tem de ser insistiu Galeth.

 

Silêncio! vociferou Hengall, e Lengar, que se tinha mostrado mal-humorado desde a sua humilhação na manhã anterior, sorriu ao ver que o irmão mais novo estava também a perder os favores de seu pai.

 

Camaban, gritou Hirac, filho de Hengall, filho de Lock, entrego-te a Lahanna!

Contrariado pela interrupção de Saban, baixou o enorme osso, de modo que a extremidade de ocre esmagasse a bola de greda em pequenos fragmentos. Bateu com esses fragmentos na terra e a multidão que assistia gemeu, enquanto o espírito de Camaban era assim anulado. Lengar sorriu, mas o rosto de Hengall nada revelava. Galeth encolheu-se e Saban chorava, mas não havia nada que pudessem fazer. Era um assunto para os deuses e para os sacerdotes.

 

Como se chama o rapaz? perguntou Hirac.

 

Não tem nome respondeu Gilan.

 

Quem é o seu pai? perguntou Hirac.

 

Não tem pai respondeu Gilan.

 

Qual é a sua tribo?

 

Não tem tribo entoou Gilan. Não existe.

 

Hirac olhou fixamente para os olhos verdes de Camaban. Não viu um rapaz, pois este já estava morto, o seu espírito vivo quebrado e esmagado na terra branca.

 

Ajoelha ordenou.

 

O jovem ajoelhou obediente. Para alguns membros da tribo parecia estranho que um rapaz tão alto fosse morto pelo osso de auroque, mas, excepto Saban, poucos em Ratharryn lamentavam a morte de Camaban. Os aleijados traziam má sorte, de modo que o melhor era morrerem e, para isso, Hirac ergueu o Mata-Crianças acima da cabeça, olhou primeiro para Lahanna e depois para Camaban. O sumo sacerdote esticou-se para desferir o golpe mortal, mas não o fez. Ficou imóvel e lia-se-lhe o horror no rosto, um horror combinado, pois naquele momento abrira-se uma fenda nas nuvens que cobriam Slaol e um raio de luz invadiu o templo. Um corvo poisou num dos postes mais altos e grasnou furiosamente.

 

O Mata-Crianças tremeu nas mãos de Hirac, que não o conseguiu baixar.

 

Mata-o murmurou Gilan, mata-o! Mas Gilan estava por trás de Camaban e não podia ver o mesmo que Hirac. Este olhava para Camaban que deitara a língua de fora, e na língua estavam duas lascas de ouro. Ouro do Povo da Fronteira. Ouro de Slaol.

 

O corvo grasnou novamente e Hirac ergueu os olhos para o pássaro, sem saber o que a sua presença pressagiava.

 

Camaban guardou as peças de ouro dentro da bochecha, molhou um dedo e tocou na greda em pó da sua alma.

 

Slaol vai zangar-se, se me matares disse a Hirac sem gaguejar, lambendo depois a greda do dedo. Recolheu mais, juntando o seu espírito desfeito e comendo-o.

 

Mata-o! gritou Neel.

 

Mata-o! ecoou Hengall.

 

Mata-o! exclamou Lengar.

 

Mata-o! gritou a multidão.

 

Mas Hirac não se movia. Camaban comeu mais greda, depois olhou para o sacerdote.

 

Slaol ordena-te que me poupes disse, muito calmo, ainda sem gaguejar.

 

Hirac recuou, quase até à cova e deixou cair o Mata-Crianças.

 

A deusa anunciou em voz rouca rejeitou o sacrifício. A multidão gemeu. Saban ria, com os olhos cheios de lágrimas. E a criança torta saiu em liberdade.
DEPOIS DO MALOGRADO SACRIFÍCIO, O MEDO PERCORRIA RATHARRYN, POIS NÃO havia piores augúrios do que um deus rejeitar uma oferenda. Hirac não queria dizer por que se recusara a matar a criança, apenas que recebera um sinal; depois retirou-se para a cabana, onde as suas esposas afirmavam que sofria uma febre e, duas noites depois essas mesmas esposas gemiam na escuridão, pois o sumo sacerdote tinha morrido. Culpavam Camaban, dizendo que o aleijado amaldiçoara HiraQ mas Gilan, que era agora o sacerdote mais velho de Ratharryn, afirmava que tinha sido um absurdo tentar matar uma criança marcada com o sinal de Lahanna. A culpa era exclusivamente de Hirac, dizia Gilan, pois infelizmente interpretara mal a mensagem dos deuses. O ouro fora para o Velho Templo, o que era seguramente um sinal de que Slaol queria o templo reconstruído. Hengall escutava Gilan, que era um homem alegre e eficiente, mas desconfiava da sua admiração por Cathallo.

 

Em Cathallo afirmava Gilan a Hengall têm um grande templo para todos os deuses e tem-lhes servido muito bem. Deveríamos fazer o mesmo.

 

Os templos custam tesouros disse Hengall tristemente.

 

Ignora os deuses retorquiu Gilan. E de que te servirão neste mundo todo o ouro, bronze e âmbar?

 

Gilan queria ser sumo sacerdote, mas só a idade não lhe conferiria essa honra. Era necessário um sinal dos deuses e todos os sacerdotes andavam já a procurá-los, para que, todos juntos, escolhessem um de entre eles para suceder a Hirac. Porém todos os sinais pareciam maus, pois nos dias que se seguiram ao fracassado sacrifício, os guerreiros de Cathallo tornaram-se mais atrevidos nas suas incursões ao território de Ratharryn. Dia após dia, Hengall ouvia falar de roubos de gado e de porcos, enquanto Lengar afirmava que os tambores de guerra deviam soar e um grupo de lanceiros ser enviado para norte de modo a interceptar os invasores; mesmo assim, Hengall queria afastar-se da guerra.

 

Em vez de enviar as lanças, mandou Gilan para falar com os governantes de Cathallo, embora ninguém soubesse o que seria falar com Sannas, a terrível feiticeira. Cathallo podia ter um chefe, podia mesmo ter grandes chefes guerreiros, mas era Sannas quem governava e muitos membros da tribo de Hengall temiam que ela tivesse lançado alguma maldição sobre Ratharryn. Senão, porque teria fracassado o sacrifício?

 

Os presságios eram ainda piores. Uma criança afogara-se no rio, uma lontra rasgara uma dezena de armadilhas para peixe, uma víbora fora vista nos templos de Arryn e de Mai, e a nova esposa de Hengall abortara. Do Ocidente chegavam nuvens cinzentas de chuva. Gilan voltou de Cathallo, falou com Hengall, depois regressou ao Norte; a tribo interrogava-se a respeito das notícias que o sacerdote teria trazido e da resposta que Hengall teria enviado a Cathallo, mas o chefe nada dizia e o povo de Ratharryn continuava com as suas tarefas. Tinha de se trabalhar o barro, escavar sílex, tingir as peles, alimentar os porcos, mungir o gado, ir buscar água, reparar as casas, entrançar salgueiros para as armadilhas de peixe, cortar árvores da vasta floresta para fazer barcos. Da costa sul chegou um grupo de comerciantes com os bois carregados de marisco, sal e belos machados de pedra; Hengall cobrou os seus impostos, antes de os deixar viajar para norte, em direcção a Cathallo. Enterrou um machado no templo de Slaol, outro no de Lahanna, mas as oferendas não deram qualquer resultado, pois no dia seguinte os lobos chegaram à pastagem principal e levaram um vitelo, três ovelhas e uma dúzia de porcos.

 

Apenas Lengar não parecia afectado pelos terríveis presságios. Sofrera a humilhação de entregar o ouro ao pai, mas recuperara a reputação com as suas proezas de caçador. Dia após dia, ele e os seus companheiros traziam carcaças, presas e peles. Lengar pendurava as presas dos dois lados da sua porta, como prova de que os deuses lhe sorriam. Hengall, reunindo os restos de autoridade que ainda mantinha, proibira seriamente Lengar de se deslocar para os bosques do Norte, evitando assim confrontos com os lanceiros de Cathallo. Porém, um dia Lengar encontrou-se com uns fronteiriços na região sul e trouxe consigo seis cabeças de inimigos, que espetou em estacas sobre a barreira. Os corvos fizeram um festim com as cabeças de tatuagens cinzentas e, vendo os trofeus recortados na linha do horizonte, cada vez mais a tribo se convencia de que Lengar tinha o favor dos deuses e que Hengall estava amaldiçoado.

 

Mas, por fim, chegaram os mensageiros do Povo da Fronteira.

 

Chegaram exactamente no momento em que Hengall dispensava justiça, uma coisa que era feita em cada lua nova, quando o chefe, o sumo sacerdote e os anciãos da tribo se juntavam nos templos de Arryn e de Mai e escutavam as altercações acerca de roubos, ameaças, assassinatos, infidelidade e quebra de promessas. Podiam condenar um homem à morte, embora fosse raro, pois preferiam obrigar o culpado a trabalhar para a parte queixosa. Naquela manhã, Hengall franzia a testa ao ouvir uma queixa a respeito de uma marcação de estrema que tinha sido desviada. O argumento era apaixonante, mas foi interrompido quando Jegar, amigo de Lengar, anunciou que chegavam cavaleiros fronteiriços, vindos de ocidente.

 

Os Fronteiriços sopravam um corno de carneiro para proclamar que viajavam em paz, de modo que Hengall ordenou a Lengar que levasse um grupo de guerreiros para receber os estranhos, mas para não os autorizar a passarem do templo de Slaol, quando se aproximassem de Ratharryn. Hengall precisava de tempo para consultar os sacerdotes e anciãos e os primeiros queriam vestir as suas vestes de gala. Era necessário preparar comida, pois embora o Povo de Fronteira fosse considerado inimigo, estes visitantes vinham em paz e teriam de ser alimentados.

 

Os jovens sacerdotes prepararam um local de encontro na margem do rio, mesmo à saída da aldeia. Colocaram o pau de caveira na turfa, depois salpicaram água para marcar um círculo dentro do qual os visitantes se podiam sentar e no exterior colocaram caveiras de bois, machados de greda e ramos de azevinho para evitar qualquer malevolência que pudessem ter trazido consigo. O povo de Ratharryn juntou-se entusiasmado no exterior do círculo, pois ninguém se lembrava de tal coisa ter alguma vez acontecido. Os comerciantes fronteiriços eram visitantes bastante habituais, existindo também muitos escravos na aldeia, mas nunca antes tinham chegado emissários do Povo da Fronteira e a sua vinda prometia ser uma história que poderia ser contada e recontada nas longas noites.

 

Por fim, Hengall estava pronto. Os melhores guerreiros da tribo foram enviados para escoltar os forasteiros ao local de encontro, enquanto Gilan, que acabara de voltar da sua última missão a Cathallo, teceu encantamentos para impedir que a magia deles fosse prejudicial. Os Fronteiriços tinha o seu próprio feiticeiro, um coxo com o cabelo empastado em barro vermelho; vociferou para Gilan que, por sua vez, fez o mesmo e depois o coxo colocou uma costela de veado entre as pernas nuas, apertou-a aí durante um instante e em seguida deitou-a fora, para mostrar que se descartava dos seus poderes.

 

O feiticeiro coxo deitou-se no chão do local de encontro e a seguir nada mais fez, excepto olhar fixamente para o céu, enquanto os outros oito forasteiros se acocoravam em fila, de modo a enfrentar Hengall e os seus anciãos tribais. Os Fronteiriços tinham trazido o seu intérprete, um comerciante que grande parte do povo de Ratharryn conhecia e receava. Chamava-se Haragg e era gigantesco; era um homem enorme, de rosto brutal, que viajava com o filho surdo-mudo, mais alto e ainda mais assustador que ele. O filho não viera nesta embaixada e Haragg, que habitualmente chegava a Ratharryn com belos machados de pedra e pesadas espadas de bronze, desta vez nada mais trazia que palavras, embora todos os seus companheiros trouxessem pesadas bolsas de couro, para as quais o povo de Hengall olhava intrigado. O Sol estava no zénite quando a reunião começou. Os forasteiros começaram por anunciar que vinham de Sarmennyn, um local o mais a ocidente a que um homem poderia chegar antes de encontrar o mar bravo e uma região, segundo diziam, de rochas duras, altos montes e solo fino. Continuaram
dizendo que Sarmennyn era muito, muito longe, o que significava que tinham percorrido uma longa distância para falar com o grande Hengall, chefe de Ratharryn. Esta lisonja passou por Hengall com tanto efeito como a bruma da madrugada escorrendo por um poste do templo. Apesar do calor do dia, o chefe colocara nos ombros a sua negra pele de urso e empunhava a enorme clava de pedra. O chefe dos forasteiros, um homem alto e magro, com o rosto cheio de cicatrizes e cego de um olho, explicou que um membro do seu povo, jovem e tolo, roubara uns insignificantes tesouros pertencentes à tribo. O ladrão fugira. Agora os forasteiros tinham ouvido dizer que ele chegara à terra de Hengall, onde morrera, que era exactamente aquilo que merecia. Embora os tesouros fossem pequenos, os estrangeiros procuravam-nos e estavam dispostos a pagar bem por eles.

 

Hengall escutou a longa tradução de Haragg, objectando em seguida que estava a dormir e que não percebia a razão por que os Fronteiriços o acordaram, se tudo o que pretendiam era trocar umas coisas sem importância. Porém, como os forasteiros lhe tinham perturbado o sono, mas eram muito respeitosos, estava disposto a perder algum tempo, dado as ofertas que tinham trazido. Hengall não confiava em Haragg para lhes servir de intérprete, por isso, o seu discurso foi traduzido por Valan, um escravo que havia sido capturado ao Povo da Fronteira muitos anos antes. Valan servia Hengall havia já muito tempo, sendo mais seu amigo que escravo, estando mesmo autorizado a ter a sua própria cabana, gado e esposa. O homem de um só olho pediu desculpas por ter acordado o grande Hengall, e disse que teria de bom grado conduzido a transacção com um dos servos de Hengall, mas como o chefe tivera a amabilidade de escutar o seu pedido, poderia também fazer o enorme favor de confirmar se os tesouros desaparecidos estavam realmente à sua guarda.

 

Normalmente deitamos fora as coisas sem importância disse Hengall mas talvez os tenhamos guardado.

 

Apontou para a barreira, onde o grupo de crianças pequenas, aborrecidas com a conversa, saltavam entre as plantas de ísatis que cresciam mesmo por baixo das cabeças dos Fronteiriços que Lengar trouxera da floresta. Essas cabeças não tinham vindo do Povo da Fronteira de Sarmennyn, mas sim de outras tribos que viviam mais perto de Ratharryn; mesmo assim, a sua presença perturbava os visitantes.

 

As crianças gostam de coisas reluzentes disse Hengall, acenando em direcção às cabeças empaladas. Assim, talvez tenhamos guardado os vossos tesouros para entreter os pequenos. Mas disseste que tínheis trazido outras coisas para trocar por eles?

 

Os forasteiros colocaram os presentes na turfa. Havia belas peles de lontra e de foca, um cesto de conchas do mar, três barras de bronze, uma vara de
cobre, uns curiosos dentes de tubarão, que afirmavam ter pertencido a monstros do oceano, uma porção de casca de tartaruga brilhante e, o melhor de tudo, uns bocados de âmbar que eram tão raros como ouro. Hengall devia ter notado que os sacos estavam ainda meios, pois esticou os braços, bocejou de novo, puxou os caracóis da barba e, finalmente, disse que, já que estava acordado, podia ir falar com a deusa Mai acerca da perspectiva de apanhar peixe no rio dela.

 

Vimos ontem uns lúcios enormes, não é verdade? perguntou a Galeth.

 

Uns lúcios enormes.

 

Gosto de comer lúcio acrescentou Hengall.

 

Os forasteiros juntaram apressadamente mais lingotes de bronze e o povo de Ratharryn murmurava de espanto com o valor dos presentes. E vinham mais ofertas; agulhas de osso muito bem talhadas, uma dúzia de pentes também de osso, um monte de anzóis para o peixe, três facas de bronze de grande delicadeza e, finalmente, um machado de pedra com uma cabeça maravilhosamente polida, de uma tonalidade azulada que faiscava com pequenos pontos cintilantes. Hengall desejou imediatamente o machado, mas obrigou-se a parecer pouco impressionado, enquanto se interrogava por que razão o Povo da Fronteira se dera ao trabalho de transportar ofertas tão miseráveis para tão longe da sua região.

 

O chefe dos forasteiros acrescentou um último tesouro: uma barra de ouro. A barra era do tamanho de uma ponta de lança e suficientemente pesada para precisar de ser transportada com as duas mãos; a assistência respirou ofegante. Só por si, aquele bocado cintilante continha mais ouro do que o que havia em todos os losangos. O Povo da Fronteira era bem conhecido por ser cioso do seu ouro, porém agora ofereciam uma parte dele, o que era um erro, pois contrariava a sua informação de que os tesouros desaparecidos eram meras ninharias. Hengall, ainda fingindo indiferença, pressionou os forasteiros, até que estes confessaram com relutância que os tesouros desaparecidos não eram assim tão triviais, mas sim os objectos sagrados que todos os anos enfeitavam a noiva do Sol. Haragg admitiu de má cara que os tesouros tinham sido oferendas do seu deus do mar ao próprio Erek e que o povo de Sarmennyn temia que a perda trouxesse má fortuna. Os forasteiros já imploravam. Queriam de volta os seus tesouros e pagariam por eles um bom preço, por estarem aterrorizados com o desagrado de Erek.

 

Erek é o nome que dão a Slaol disse Valan a Hengall.

 

Este, satisfeito por ter conseguido a confissão dos forasteiros, manteve o que tinha dito:

 

Vamos pensar no assunto anunciou.

 

Trouxeram comida da aldeia. Havia carne de porco fria, pão simples, peixe fumado e tigelas de morrião e azedas. Os forasteiros comeram cheios de
cautelas, com medo de serem envenenados, mas receosos de ofender, se rejeitassem a comida. Apenas o seu sacerdote não comeu, deixando-se estar deitado a olhar para o céu. Gilan e os sacerdotes de Ratharryn acocoraram-se todos juntos, murmurando ferozmente, enquanto Lengar e os amigos formavam outro pequeno grupo, na parte oposta do círculo. O povo veio inspeccionar as ofertas, embora ninguém se atrevesse a ultrapassar o círculo encantado para as tocar, pois os sacerdotes de Ratharryn não tinham ainda limpo os presentes da feitiçaria do Povo da Fronteira. Hengall consultou os anciãos e,; de vez em quando, fez perguntas aos sacerdotes, embora falasse principalmente com Gilan. O sacerdote tinha já feito duas visitas a Cathallo e falava insistentemente com Hengall, que o escutava, acenava afirmativamente e parecia convencido por aquilo que Gilan lhe dizia.

 

O Sol deslizava já para ocidente, quando Hengall retomou o seu lugar, mas a tradição exigia que todos os homens da tribo pudessem dar a sua opinião antes de Hengall pronunciar o seu veredicto. Alguns homens levantaram-se e a maior parte aconselhou que se aceitasse o pagamento do Povo da Fronteira.

 

O ouro não é nosso, opinou Galeth. Foi roubado a um deus. Como nos poderá trazer sorte? Os forasteiros que levem os seus tesouros. Ouviram-se vozes a apoiar, depois Lengar bateu no chão com o pau da lança e os murmúrios calaram-se, enquanto o filho de Hengall se levantava para se dirigir à multidão.

 

Galeth tem razão! disse Lengar, causando surpresa entre os que pensavam que os dois homens nunca poderiam entrar em acordo. O Povo da Fronteira deve receber de volta os seus tesouros. Mas teremos de exigir um preço mais alto do que estes restos das suas cabanas. Apontou para os objectos empilhados diante dos forasteiros. Se o Povo da Fronteira quer que lhes devolvamos os tesouros, então que venham do seu país longínquo com todas as suas lanças e arcos, oferecendo-se para ficar ao nosso serviço durante um ano.

 

Haragg, o intérprete do Povo da Fronteira, conversou em surdina com os companheiros, que pareciam preocupados, mas Hengall abanou a cabeça.

 

Como iremos alimentar essa horda de Fronteiriços armados? perguntou ao filho.

 

Alimentar-se-ão das culturas e do gado que capturarem com as suas armas.

 

E que culturas e que gado serão esses? perguntou Hengall.

 

As culturas que crescem e o gado que pasta a norte da nossa terra respondeu Lengar em tom de desafio, enquanto muitos na tribo davam voz à sua concordância. A tribo de Sarmennyn era famosa pelos seus guerreiros. Eram homens esguios e esfomeados, de uma terra nua, que tomavam com as lanças aquilo que o solo não lhes dava. Certamente esses temidos guerreiros
depressa subjugariam Cathallo e mais membros da tribo de Hengall erguiam as suas vozes em apoio a Lengar.

 

Hengall ergueu o enorme pau a pedir silêncio.

 

O exército de Sarmennyn disse nunca penetrou tanto na região. Porém agora vamos convidá-los? E se vierem com as suas lanças, arcos e machados, como nos veremos livres deles? O que os impedirá de se voltarem contra nós?

 

Seremos mais numerosos! declarou Lengar, confiante. Hengall tinha um ar escarninho.

 

Sabes quantas lanças possuem? perguntou, apontando para os forasteiros.

 

Sei que com a sua ajuda podemos destruir os nossos inimigos retorquiu Lengar.

 

Hengall levantou-se, sinal de que o tempo que Lengar tinha para falar se esgotara. Lengar manteve-se de pé por alguns instantes e em seguida baixou-se com relutância. Hengall falou em voz alta, de modo a chegar ao extremo mais afastado da multidão.

 

Cathallo não é nossa inimiga! Sim, Cathallo é poderosa, mas nós também o somos! Somos como cães. Podemos lutar e mutilar-nos uns aos outros, mas as feridas que infligirmos serão tão profundas, que nenhum de nós sobreviverá. Mas se caçarmos juntos, alimentar-nos-emos bem.

 

A tribo olhou para ele, surpreendida e em silêncio. Estavam à espera de uma decisão acerca dos losangos de ouro, mas em vez disso, o chefe falava dos problemas de Cathallo.

 

Juntos! gritou Hengall. Juntos, Cathallo e Ratharryn seriam mais fortes do que qualquer região desta terra. Assim, ligar-nos-emos num casamento de tribos.

 

A notícia causou um ruidoso suspiro de admiração da parte da assistência.

 

Na véspera do Solstício iremos a Cathallo para dançar com o seu povo.

 

A multidão pensou no assunto e depois um lento murmúrio de concordância espalhou-se entre eles. Havia apenas um momento, apoiavam avidamente a ideia de Lengar para conquistar Cathallo, agora mostravam-se seduzidos pela visão de paz apresentada por Hengall.

 

Gilan falou com o seu chefe e concordou que não seremos apenas uma tribo declarou. Seremos duas, unidas pelo casamento, como um homem e uma mulher.

 

E de que tribo será o homem? atreveu-se Lengar a perguntar. Hengall fingiu não o ouvir.

 

Não haverá guerra declarou, em tom decidido, olhando depois para os forasteiros. E não haverá trocas continuou. Ofereceram os tesouros ao vosso deus, mas depois perderam-nos e nós recebemo-los. Apareceram no nosso Velho Templo, o que para mim significa que é aqui que devem ficar.

 

Se devolvermos o ouro, insultamos os deuses que mandaram esses tesouros para a nossa guarda. O seu aparecimento é um sinal de que o templo deve ser retomado e assim será! Será reconstruído! Gilan, que tinha insistido nessa solução parecia satisfeito.

 

O homem de um só olho protestou, ameaçando trazer a guerra até Ratharryn.

 

Guerra? Hengall agitou a enorme massa. Guerra! gritou. Eu é que vos dou a guerra, se vierdes a Ratharryn. Urino nas vossas almas, escravizo os vossos filhos, transformo as vossas mulheres em objectos de prazer e faço os vossos ossos em pó. É essa a guerra que conhecemos! Cuspiu na direcção dos forasteiros. Pegai nos vossos pertences e ide ordenou.

 

O sacerdote dos forasteiros uivou ao céu e o chefe tentou um último apelo, mas Hengall não o escutou. Rejeitara a troca e o Povo da Fronteira não teve outro remédio senão pegar nas ofertas e voltar nos seus cavalos.

 

Mas naquela noite, quando o Sol se metia por entre as árvores a ocidente como um peixe apanhado numa armadilha de salgueiros entrançados, Lengar e uma dúzia dos seus principais apoiantes saíram de Ratharryn. Levavam os arcos, as lanças e os cães que corriam, presos por enormes cordas de couro; disseram que iam voltar para a caça. Porém, reparou-se que Lengar levara também uma escrava fronteiriça, uma mulher, o que chocou a tribo, pois as mulheres não acompanhavam as expedições de caça. Nessa noite, outra meia dúzia de jovens escapou-se de Ratharryn, de modo que, na manhã seguinte, a tribo horrorizada apercebeu-se de que afinal Lengar não fora à caça, mas que fugira e as mulheres tinham ido atrás dos seus amantes guerreiros. A ira de Hengall transbordou como a água do rio durante as cheias da tempestade. Insurgiu-se contra o maldito destino que lhe mandara um tal filho primogénito e depois enviou guerreiros atrás dele, embora ninguém esperasse que conseguissem apanhar os fugitivos, pois tinham partido havia muito tempo. Depois Hengall ouviu dizer que Jegar, considerado o melhor amigo de Lengar, estava ainda em Ratharryn e o chefe mandou-o chamar à porta da sua cabana, ordenando que se baixasse.

 

Jegar estendeu-se no chão, enquanto Hengall erguia a sua clava de guerra sobre a cabeça do jovem.

 

Para onde foi o meu filho? perguntou friamente.

 

Para Sarmennyn respondeu Jegar. Para o Povo da Fronteira.

 

Sabias que planeava fazer isto e não me disseste? perguntou Hengall, cada vez com maior raiva.

 

O teu filho lançou-me uma maldição, se eu o traísse disse Jegar. Hengall manteve a clava erguida.

 

Porque não foste com ele? Não és o seu amigo do peito?

 

Não fui respondeu Jegar humildemente porque és o meu chefe, este é o meu lar e não quero viver num país longínquo ao pé do mar.

 

Hengall hesitou. Queria apenas bater com a clava e salpicar a terra de sangue, mas era um homem justo, de modo que controlou a raiva e baixou a arma. Jegar respondera bem às suas perguntas e, embora Hengall não tivesse apreço pelo jovem, mesmo assim, ergueu-o, abraçou-o e deu-lhe uma pequena faca de bronze como recompensa pela sua lealdade.

 

Mas Lengar partira para o Povo da Fronteira. Por isso, Hengall queimou a cabana do filho e desfez em pó todos os seus vasos. Matou a mãe de Lengar, que fora a sua primeira esposa, e ordenou a Gilan que usasse o Mata-Crianças num rapaz que era popularmente conhecido como sendo filho de Lengar. A mãe do rapaz gritou implorando misericórdia, mas o osso de auroque ergueu-se e o rapaz morreu.

 

Nunca viveu decretou Hengall a respeito de Lengar. Já não existe.

 

O dia seguinte era a véspera do Solstício e a tribo iria para Cathallo. Para fazer a paz. E para enfrentar Sannas.

 

Na madrugada do dia em que a tribo se deveria dirigir para norte, o pai de Saban trouxe-lhe uma túnica de pele de veado, um colar de dentes de javali e uma faca de cabo de madeira e lâmina de sílex, para usar no cinto.

 

És meu filho disse Hengall, o meu único filho. Por isso, tens de parecer o filho do chefe. Ata o cabelo atrás. Endireita-te! Acenou com ar cortês à mãe de Saban, sua terceira esposa, que havia muito tinha deixado de solicitar para a sua cabana e foi depois examinar o vitelo branco do sacrifício que seria conduzido para Cathallo.

 

Até Camaban foi a Cathallo. Hengall não queria que ele fosse, mas Gilan insistiu que Sannas quereria vê-lo em pessoa. Assim, Galeth foi buscar o aleijado ao seu esconderijo no Velho Templo e agora Camaban coxeava uns passos atrás de Saban, Galeth e Lidda, a mulher grávida do tio. Caminhavam para norte, ao longo dos montes, sobre o vale do rio e levaram uma manhã inteira para chegar ao cimo dessas terras altas, o que significava que estavam a meio caminho de Cathallo. Para muitos dos que se encontravam ali no alto a olhar para os bosques e pauis que ficavam mais à frente, aquela era a maior distância a que jamais se tinham afastado de casa.

 

O caminho descia agora, íngreme, para um frondoso bosque interrompido por pequenos campos. Era a terra de Maden, um local de solo rico, árvores altas e pântanos enormes.

 

Os homens da tribo de Hengall aproximaram-se mais das mulheres, ao entrarem na mata, e os rapazinhos receberam feixes de palha bem atados a paus, a que foi ateado fogo com uns carvões em brasa levados em vasos de barro perfurados. Os rapazinhos corriam para trás e para diante no atalho, agitando os paus fumegantes e gritando para afastar os espíritos malévolos que, de contrário, poderiam aparecer e engravidar as mulheres. Os sacerdotes entoavam cânticos, as mulheres apertavam talismãs e os homens batiam com os paus das lanças nos troncos das árvores. Foram precisos ainda mais cânticos para agradar aos espíritos, enquanto a tribo atravessava um emaranhado de pequenos ribeiros, perto de Maden.

 

Hengall caminhava à frente da sua tribo, mas esperou na margem de um dos maiores ribeiros que Saban o apanhasse.

 

Temos de falar disse ao filho e depois olhou para Camaban, que coxeava alguns passos atrás. O rapaz encontrara outra pele podre de ovelha para substituir a antiga túnica e trazia uma bolsa de couro cru, na qual guardara os seus poucos pertences, os ossos, a pele de cobra e os talismãs. Cheirava mal e tinha o cabelo de novo emaranhado e sujo. Olhou para o pai, encolheu os ombros e depois cuspiu para o chão.

 

Hengall voltou-se desagradado e caminhou para a frente com Saban. Algum tempo depois, perguntou a Saban se tinha reparado como estavam cheias as searas de Maden. Parecia que a tempestade poupara aqueles campos, alvitrou Hengall invejoso, comentando depois ter visto uns belos porcos no bosque junto ao rio. Porcos e trigo, disse, era tudo o que o povo precisava para viver e por isso agradecia aos deuses.

 

Talvez apenas porcos reflectiu. Talvez não precisemos de mais nada para comer. Porcos e peixe. O trigo é um aborrecimento. Não se semeia sozinho, o problema é esse.

 

Hengall transportava uma bolsa de couro que tilintava à medida que andava; Saban calculava que contivesse alguns dos tesouros da tribo. Lá mais adiante, as pessoas tinham começado a cantar e o volume do cântico aumentava, à medida que o povo ia apanhando a melodia. Passou para os que caminhavam atrás, mas nem Hengall, nem Saban se lhes juntaram.

 

Daqui a uns anos disse Hengall abruptamente terás idade para te tornares chefe.

 

Se os sacerdotes e o povo estiverem de acordo afirmou Saban, cauteloso.

 

Os sacerdotes só precisam de subornos e o povo faz o que lhe mandarem. Um pombo saiu de entre as folhas, batendo as asas, e Hengall olhou para cima para ver em que direcção voava o pássaro, esperando que fosse um bom augúrio. Era, pois a ave partira na direcção do Sol.

 

Sannas vai querer ver-te disse Hengall, agoirento. Ajoelha diante dela e inclina a cabeça. Sei que é mulher, mas trata-a como um chefe. Franziu a testa. É uma mulher dura, dura e cruel, mas tem poderes. Os deuses adoram-na, ou então temem-na. Abanou a cabeça despenteada, espantado. Já era velha quando eu era rapaz!

 

Saban sentiu-se receoso com a perspectiva de conhecer Sannas.

 

Porque haverá de querer ver-me?

 

Porque vais casar com uma rapariga de Cathallo disse Hengall simplesmente. Sannas irá escolhê-la. Não se toma uma decisão em Cathallo sem Sannas. Chamam chefe a Kital, mas ele mama nas tetas da velha. Todos o fazem.

 

Saban nada disse. Sabia que não se podia casar sem passar pelas provas da idade adulta, mas agradou-lhe a ideia.

 

Assim, deves tomar uma noiva em Cathallo, como prova que as nossas tribos estão em paz. Percebes?

 

Sim, pai.

 

Mas em Cathallo não sabem que agora és o meu único filho disse Hengall. Também não vão gostar que sejas ainda um rapazinho. É por isso que tens’de impressionar Sannas.

 

Sim, pai disse de novo Saban. Apercebia-se então que Kital e Sannas esperavam que fosse Lengar a ir para Cathallo reclamar a noiva, mas Lengar partira e ele teria de ocupar o seu lugar.

 

Serás chefe disse Hengall pesadamente o que significa que tens de ser o chefe do nosso povo. Mas ser chefe não significa fazer aquilo que nos apetece. O povo não entende isso. Querem heróis, mas os heróis provocam a morte da sua gente. Os melhores chefes sabem-no. Sabem que não podem transformar a noite em dia. Apenas posso fazer o que é possível, nada mais. Posso destruir as represas dos castores para impedir que sequem as armadilhas para os peixes, mas não posso ordenar ao rio que o faça por mim.

 

Compreendo respondeu Saban.

 

E não podemos entrar em guerra disse Hengall, em tom impetuoso. Não estou preocupado com uma derrota, mas ficaremos enfraquecidos, quer vençamos, quer sejamos derrotados. Compreendes?

 

Sim.

 

Não é que tencione morrer já! continuou Hengall. Devo ter perto de trinta e cinco Verões. Pensa bem, trinta e cinco! Mas ainda tenho muitos bons anos à minha frente! O meu pai viveu mais de cinquenta.

 

E tu também, assim espero disse Saban, pouco à vontade.

 

Mas tens de te preparar prosseguiu Hengall. Passar as provas, ir à caça, arranjar cabeças do Povo da Fronteira. Mostrar à tribo que os deuses te favorecem. Acenou abruptamente e, sem mais uma palavra, voltou-se e fez sinal ao seu amigo Valan para lhes fazer companhia.

 

Saban esperou que Galeth o apanhasse.

 

O que queria ele? perguntou Galeth.

 

Dizer que tenho de me casar com uma rapariga de Cathallo disse Saban.

 

Galeth sorriu.

 

E assim deve ser. Galeth sabia que a decisão significava o favorecimento de Saban para ser o próximo chefe, mas não lhe guardava rancor por
isso. Aquele homem enorme sentia-se mais feliz quando trabalhava com madeira e não tinha grandes desejos de suceder ao irmão. Deu um toque amigável na cabeça de Saban. Só espero que a rapariga seja bonita.

 

Claro que será disse Saban, embora receasse de súbito que pudesse não o ser.

 

A tribo cruzou o último pântano, subindo depois as colinas arborizadas, embora os bosques fossem rareando, para revelar os esplendores de Cathallo. Passaram por um antigo santuário, com os seus postes de madeira a apodrecer e o círculo tão coberto de aveleiras como o Velho Templo de Ratharryn; viram depois os túmulos nas encostas mais adiante. Essas encostas tinham a mesma altura que as que havia junto de Ratharryn, mas eram mais íngremes e entre elas estava a do famoso túmulo sagrado. Em Ratharryn não havia nada comparável e, embora alguns dos viajantes da tribo trouxessem consigo histórias de outras colinas com túmulos sagrados, todos concordavam que nenhum tinha as dimensões da de Cathallo. Era enorme, uma colina feita para se destacar das outras, porém tinha sido construída pelo homem; erguia-se do vale para tocar no céu e era de um branco cintilante, pois fora conseguida empilhando greda sobre greda. Era mais alta, muito mais alta que a barreira de Ratharryn; de facto, tão alta como as colinas circundantes.

 

Porque a fizeram? perguntou Lidda a Galeth.

 

É a imagem de Lahanna respondeu este com a voz emocionada de espanto, explicando que a deusa da Lua, olhando de entre as estrelas podia ver-se reconstituída na terra e saberia que Cathallo a venerava. Ao ouvir tal explicação, Lidda tocou na testa em obediência à deusa, pois, como acontecia com todas as mulheres, adorava Lahanna acima de todos os deuses e espíritos. Porém, Camaban, que continuava a coxear mesmo atrás deles, riu-se de súbito.

 

Qual é a graça? perguntou Galeth.

 

Têm toupeiras gigantes em C-C-Cathallo respondeu.

 

Lidda tocou nas partes baixas. Sentia-se pouco à vontade, estando tão perto do aleijado, temendo pela criança que trazia no ventre; desejava que Camaban ficasse para trás, mas este mantivera-se teimosamente perto durante todo o dia e continuara a seguir-lhe os passos enquanto atravessavam um pequeno rio e subiam uma colina a oriente dos túmulos. Esta era coroada por um templo, que, por ser muito mais pequeno do que qualquer um dos de Ratharryn, fez suspirar de alívio a maioria da gente de Ratharryn, mesmo tendo marcos de pedra em lugar de postes de madeira. As pedras baixas estavam grosseiramente cortadas, parecendo meros tocos de rocha e algumas pessoas acharam-nas feias, comparadas com um poste adequadamente cortado. Um grupo de sacerdotes de Cathallo esperava no templo e foi a eles que foram feitas as primeiras ofertas de Ratharryn: o vitelo branco que fora conduzido com tanta dificuldade durante a viagem, era agora levado pela passagem que havia no fosso do templo. Os sacerdotes de Cathallo examinaram cautelosamente o animal. Talvez não fosse o vitelo mais branco de Ratharryn, mas mesmo assim era um bom animal com uma pele quase imaculada, de modo que se ouviram murmúrios ressentidos entre a gente de Hengall, quando os sacerdotes pareceram duvidar da qualidade do animal. Por fim, depois de o terem apalpado e cheirado consideraram-no de má vontade aceitável e arrastaram-no para o centro do pequeno templo, onde o esperava, com uma machada, um jovem sacerdote, nu e com um par de chifres de veado atado à cabeça. O vitelo parecendo aperceber-se do que lhe ia acontecer, tentou escapar-se aos homens que o seguravam, de modo que os sacerdotes lhe cortaram os tendões das pernas e o animal imobilizado berrou tristemente, enquanto a enorme machada subia e descia.

 

O povo de Hengall entoava o lamento de Lahanna, enquanto pisavam o sangue do vitelo e seguiam os sacerdotes por um caminho de pedras emparelhadas. O templo podia não os ter impressionado, mas a avenida de pedras conseguira-o, pois estas eram maiores do que os marcos do templo e levavam ao campo aberto. A avenida marcada por seixos mergulhava do templo até ao vale, mas descrevia uma curva, antes de chegar ao enorme monte de greda, para se dirigir a norte, em direcção ao cimo de uma larga colina. Havia tantas pedras flanqueando o caminho sagrado, que nem as conseguiam contar, e todas eram tão ou mais altas que um homem. Algumas eram pilares, simbolizando Slaol, cada uma delas tinha por par uma laje em forma de losango em honra de Lahanna. As maravilhas de Cathallo eram afinal verdadeiras e o povo de Hengall seguiu os sacerdotes em silêncio para norte. Dançavam enquanto subiam, desajeitados, pois estavam exaustos, porém arrastando respeitosamente os pés de um para outro lado da avenida enquanto se encaminhavam para o cimo, onde algumas gentes de Cathallo se tinham reunido para ver os visitantes. Um grupo de guerreiros, com os corpos oleados e o cabelo entrançado, encostava-se às lanças para ver passar as mulheres, embora a visão de Camaban levasse os jovens a cobrir os olhos e a cuspir, para o caso do seu pé torto lhes trazer má sorte.

 

Saban, que nunca antes tinha visitado Cathallo, partira do princípio que as enormes pedras emparelhadas formavam um caminho que partia da aldeia até ao pequeno templo onde o vitelo fora sacrificado, mas ao passar pelo cimo da elevação, apercebeu-se subitamente que o pequeno templo, longe de ser o fim do atalho sagrado era simplesmente o seu princípio e as verdadeiras maravilhas de Cathallo ainda estavam por ver.

 

O povoado, sem muros, ficava para ocidente e não era nessa direcção que o atalho se dirigia. Pelo contrário, dirigia-se para a enorme barreira de greda que se erguia da depressão. Passaram rumores pela coluna de viajantes dizendo que a barreira branca rodeava o santuário de Cathallo e o povo de Hengall ficou em silêncio, maravilhado com o vasto muro que parecia tão alto e extenso como a barreira que rodeava Ratharryn. O longo cimo da muralha estava coberto de caveiras humanas e de animais, enquanto de dentro do enorme cercado vinha o pesado bater dos tambores de madeira. O caminho não levava directamente ao vasto templo; porém, à saída do] santuário, fazia uma volta dupla, de modo que as maravilhas dentro do grande círculo de greda só no último momento eram reveladas a quem se aproximasse.! Saban arrastou os seus passos de dança até à curva dupla e aí, de repente! visível para lá da saliência da enorme barreira circular, estava o santuário de Cathallo. A primeira impressão de Saban foi de estar a ver pedras. Pedras e mais pedras, pois o enorme espaço no interior da enorme muralha de greda parecia cheio de blocos de pedra pesados, altos e cinzentos, alguns dos quais tinham sido recentemente molhados, de modo que os raios de luz cintilavam! na sua superfície rugosa. As pedras gigantes rodeavam um fosso que tinha] sido escavado dentro do muro de greda, tão profundo quanto a barreira era alta e a área cercada pelo fosso e pelo muro era quase tão grande como a própria Ratharryn; esta era a aldeia de uma tribo com espaço para o gado no Inverno, enquanto aquilo era apenas um templo.

 

Algumas mulheres de Ratharryn hesitavam antes de entrar no templo, pois as mulheres não eram autorizadas a penetrar nos santuários das suas tribos, excepto quando se casavam. Parecia que em Cathallo, homens e mulheres podiam entrar no círculo e, assim, o povo de Hengall atravessou o fosso a dançar, entrando no santuário de pedras.

 

Havia um enorme anel de blocos de pedra rodeando a beira do fosso, tendo cada um as dimensões dos feixes de feno feitos no Verão em Ratharryn. Havia dezenas dessas pedras enormes, demasiadas para poderem ser contadas; dentro do largo círculo estavam outros dois anéis de pedra, cada um com as dimensões do templo de Slaol em Ratharryn, ficando ainda mais pedras entre esses anéis interiores. Uma delas era em arco, um pedregulho com um enorme buraco; essa pedra fora erguida sobre outra, enquanto ali perto havia uma casa dos mortos feita de três enormes lajes. Saban olhava para tudo, estupefacto. Não percebia como poderia um homem erguer tais pedras e sabia que deveria estar num lugar onde os deuses operavam maravilhas. Apenas Camaban, encolhendo-se de cada vez que punha o pé torto no chão, não parecia impressionado.

 

As pessoas de Cathallo estavam em massa na parte interior da barreira e soltaram um grito de boas-vindas quando os visitantes entraram no círculo sagrado. O grito ecoou por todo o enorme recinto, e começaram depois a cantar.

 

Kital, chefe de Cathallo, esperava para saudar o povo de Hengall. Kital desejava impressioná-los e conseguira-o, pois vestira-se com uma túnica de pele de veado pelos tornozelos, túnica essa que fora branqueada com greda e urina, onde depois tinham sido cosidos anéis de bronze que reflectiam o sol; parecia assim cintilar quando se aproximou para cumprimentar Hengall. O chefe de Cathallo era alto, com o rosto longo, fino e bem barbeado, cabelo louro rodeado por uma fita de bronze onde espetara uma dúzia de compridas penas de cisne. Kital tinha a mesma idade de Hengall, mas havia no seu rosto uma animação que lhe roubava anos e, além do mais, caminhava com um passo flexível e rápido. Abriu os braços num gesto de boas-vindas e, ao fazê-lo, ergueu as pontas da capa, revelando uma comprida espada de bronze que lhe pendia de um cinto de couro.

 

Hengall de Ratharryn anunciou, sê bem-vindo a Cathallo!

 

Hengall parecia um maltrapilho ao lado de Kital. Era mais alto e forte do que o chefe de Cathallo, mas o seu rosto barbudo era grosseiro, comparado com as feições aquilinas de Kital, tinha as roupas sujas e rasgadas, pois Hengall nunca fora homem de se preocupar com capas ou gibões. Conservava a lança afiada, penteava a barba para afastar os piolhos e achava que era esse o limite dos deveres de um homem em relação à sua aparência. Os dois chefes abraçaram-se, enquanto as duas tribos assistiam, murmurando o seu apreço pois, ao fazerem-no em público, os dois grandes homens garantiam a paz. Os chefes estreitaram-se por um instante, depois Kital afastou-se e, conduzindo Hengall pela mão, levou-o ao local onde Sannas esperava, por baixo de uma das grandes pedras que formavam a casa dos mortos.

 

A feiticeira trajava uma capa inteiriça feita de peles de texugo, com um xaile de lã servindo-lhe de capuz sobre a longa cabeleira branca. Saban olhou para ela; durante um terrível momento ela devolveu-lhe o olhar e ele afastou o seu, pois os olhos que espreitavam por baixo da sombra do capuz eram malévolos, inteligentes e aterradores. Saban sabia que era velha, dizia-se que mais velha do que qualquer homem ou mulher alguma vez tinha sido.

 

Kital e Hengall ajoelharam para falar com Sannas. Os tocadores de tambor, que batiam em enormes troncos ocos, continuavam o mesmo ritmo, enquanto um grupo de raparigas, nuas da cintura para cima e com rosas bravas, ulmárias e papoilas entrançadas nos cabelos, dançavam, arrastando os pés para a frente e para trás, andando para o lado, avançando e recuando, oferecendo as boas-vindas aos forasteiros que tinham vindo ao grande santuário. A maior parte dos visitantes olhava para elas de boca aberta, mas Galeth observava as pedras e sentia uma enorme tristeza. Não admirava que Cathallo fosse tão poderosa! Nenhuma outra tribo podia ter um santuário igual, nenhuma outra tribo poderia, como aquela, esperar conseguir o favor dos deuses. Galeth pensou tristemente que Ratharryn nada era, comparada com-aquilo, os seus templos eram ridículos e as suas ambições insignificantes.

 

Saban observava a feiticeira, sendo evidente que Sannas não estava satisfeita com as notícias trazidas por Hengall, pois voltou-lhe as costas, rejeitando-o com um gesto. Hengall olhou para Kital, que encolheu os ombros, porém Sannas voltou atrás e disse qualquer coisa em tom de desprezo, antes de entrar numa cabana que ficava junto ao círculo de pedra mais próximo. Hengall ergueu-se e voltou para junto de Saban.

 

Tens de ir à cabana de Sannas avisou. Lembra-te do que te disse.

 

Saban, consciente de que estava a ser observado pelas duas tribos, dirigiu-se à cabana que ficava entre os dois círculos de pedra mais pequenos e era o único edifício dentro do templo. Era uma cabana redonda, um pouco maior que as de habitação, com um telhado alto e pontiagudo, mas umas paredes tão baixas, que Saban teve de se pôr de gatas para poder entrar. Lá dentro estava escuro, pois pouca luz do Sol entrava pela porta ou pela chaminé do pico do telhado, que era suportada por um enorme poste. Este era um tronco descascado, com os tocos dos seus muitos ramos de onde pendiam redes cheias de caveiras humanas. Um surto de finas gargalhadas sobressaltou Saban, que olhou à sua volta para ver uma dúzia de rostos espreitando dos cantos baixos da cabana.

 

Não lhes dês importância ordenou Sannas, numa voz rouca e baixa. Vem cá!

 

A feiticeira sentara-se sobre um monte de peles ao lado do poste e Saban, obediente, ajoelhou perto dela. Um pequeno lume ardia junto ao poste, enchendo a cabana escura de um fumo pungente que o fez lacrimejar enquanto curvava respeitosamente a cabeça.

 

Olha para mim! disse rispidamente Sannas.

 

Ele assim fez. Sabia que ela era velha, tão velha que ninguém sabia a sua idade, mais velha do que ela própria pensava ser, tão velha que já era velha quando a pessoa mais velha de Cathallo tinha nascido. Havia quem dissesse que ela nunca morreria, que os deuses tinham oferecido a Sannas a vida sem morte, o que pareceu verdadeiro ao espantado Saban, o qual nunca vira um rosto tão mirrado, tão enrugado e tão selvagem. Retirara o capuz, mostrando a cabeleira revolta, grisalha e lisa, pendendo junto a um rosto que mais parecia uma caveira, mas uma caveira com verrugas. Os olhos eram negros de azeviche, restava-lhe apenas um dente, uma presa amarelada no centro do maxilar superior. As mãos saíam-lhe dos lados da capa de texugo como garras enclavinhadas. Trazia âmbar no pescoço esquelético; a Saban pareceu uma pedra preciosa pregada num cadáver seco.

 

Enquanto ela o observava, Saban, cujos olhos se habituavam à escuridão fumarenta, olhava nervosamente para as doze raparigas que o olhavam dos cantos da cabana. Havia asas de morcego pregadas ao poste, entre as vasilhas redondas que estavam penduradas nas redes, juntamente com as caveiras. No poste central havia também um par de chifres de veado, enquanto do telhado pendiam tufos de penas e molhos de ervas, tudo coberto de teias de aranha. Num cesto de verga junto ao lume encontravam-se ossos de pequenas aves. Saban pensou que aquilo não era uma cabana onde vivessem pessoas, mas sim um local para armazenar os tesouros rituais de Cathallo, uma espécie de sítio onde guardariam o Mata-Crianças da tribo.

 

Diz-me então continuou Sannas numa voz mais áspera que um osso, diz-me Saban, filho de Hengall, filho de Lock, que nasceu de uma cadela da Terra da Fronteira apanhada num ataque, diz-me por que razão os deuses estão descontentes com Ratharryn.

 

Saban não respondeu. Estava muito assustado.

 

Detesto rapazes mudos rosnou Sannas. Fala, imbecil, ou transformo-te a língua num verme e vais chupar a sua baba todos os dias da tua miserável vida.

 

Saban fez um esforço para responder.

 

Os deuses... começou, depois, apercebeu-se de que falava em surdina, de modo que levantou a voz, decidido a defender a sua tribo. Os deuses enviaram-nos ouro, senhora, como poderão estar descontentes connosco?

 

Enviaram-vos o ouro de Slaol disse Sannas amargamente. O que aconteceu a partir daí? Lahanna recusou um sacrifício e o teu irmão mais velho passou-se para os Fronteiriços. Se os deuses enviassem um pote de ouro para Ratharryn, o que faríeis seria urinar todos dentro dele. As raparigas riram-se. Saban nada disse e Sannas olhou para ele. Já és um homem? perguntou.

 

Não, senhora.

 

Porém, usas uma túnica de homem. Estaremos no Inverno?

 

Não, senhora.

 

Então, despe-a exigiu. Despe-a!

 

Saban abriu apressadamente o cinto e retirou a túnica pela cabeça, provocando outro coro de risinhos vindo dos cantos da cabana. Sannas examinou-o dos pés à cabeça, dizendo depois, com desprezo.

 

É isto o melhor que Ratharryn tem para nos mandar? Olhem para ele, meninas! Parece uma coisa a espreitar da casca de um caracol.

 

Saban corou, agradecido por estar tão escuro na cabana. Sannas olhava-o contrafeita, a seguir meteu a mão numa bolsa e tirou de lá um embrulho de ervas. Retirou as folhas, revelando um favo de mel, do qual partiu um bocado que meteu na boca.

 

Hirac é um imbecil disse para Saban. Tentou sacrificar o teu irmão Camaban?

 

Sim, senhora.

 

Mas o teu irmão está vivo. Porquê? Saban franziu a testa.

 

Estava marcado por Lahanna, senhora.

 

Então porque tentou Hirac matá-lo?

 

Não sei, senhora.

 

Não sabes grande coisa, pois não? És um rapazinho miserável. E agora Lengar fugiu e tens de tomar o lugar dele. Olhou-o e depois cuspiu um bocado de cera para o lume. Mas Lengar nunca gostou de nós, pois não?

 

Lengar queria entrar em guerra connosco! Porque é que Lengar não gostava de nós?

 

Não gostava de ninguém respondeu Saban.

 

Ela recompensou o comentário com um sorriso torcido.

 

Temia que lhe roubássemos a chefia, não é verdade? Temia que engolíssemos a pequena Ratharryn. Apontou para uma sombra no canto da cabana. Lengar deveria casar com ela. Derrewyn, filha de Morthor, o sumo sacerdote de Cathallo.

 

Saban olhou para onde Sannas apontara e ficou quase sem respiração ao ver uma rapariga esguia de longa cabeleira negra e um rosto ansioso e belo. Não parecia mais velha que o próprio Saban, tinha olhos enormes e parecia trémula e nervosa, como se se sentisse tão pouco à vontade como ele, naquela cabana cheia de fumo. Sannas observava Saban e ria-se.

 

Gostas dela, não? Mas porque te haverias de casar com ela, em lugar do teu irmão?

 

Para podermos ter paz, senhora disse Saban.

 

Paz! vociferou a caveira. Paz! Porque haveríamos de comprar a vossa miserável paz com o corpo da minha bisneta?

 

Não estás a comprar paz, senhora atreveu-se Saban a dizer. Na minha tribo a paz não está à venda.

 

A tua tribo! Sannas inclinou-se para trás, cacarejando; de súbito, atirou-se para a frente, estendendo a mão adunca para agarrar as partes de Saban. Apertou-as obrigando-o a respirar com dificuldade. A tua tribo, rapaz vociferou, nada vale. Nada! apertou com mais força, procurando-lhe as lágrimas nos olhos. Queres ser chefe depois do teu pai?

 

Se os deuses assim o desejarem, senhora.

 

Já desejaram coisas mais estranhas afirmou Sannas, libertando-o por fim.

 

Balançava-se para a frente e para trás, com a saliva a escorrer-lhe da boca desdentada. Observava Saban, avaliando-o, concluindo que provavelmente o rapaz seria decente. Era corajoso, qualidade que apreciava, e inegavelmente bem-parecido, o que significava que fora favorecido pelos deuses; no entanto era ainda um rapaz e seria um insulto para o seu povo apresentar um rapaz para casar. Todavia, haveria vantagens num casamento entre Cathallo e Ratharryn, de modo que Sannas decidiu engolir o insulto.

 

Então casavas-te com Derrewyn para manter a paz? perguntou-lhe.

 

Sim, senhora.

 

És um imbecil afirmou Sannas. A paz e a guerra não fazem parte do teu dote e decerto não se encontram entre as pernas de Derrewyn. Estão com os deuses e acontecerá o que os deuses quiserem, de modo que, se decidirem que Cathallo governará Ratharryn, poderás levar todas as raparigas deste povoado para a tua cama fedorenta, que não fará qualquer diferença.

 

Fechou os olhos e balançou-se para a frente e para trás, com o mel e a saliva a escorrerem-lhe pelo queixo, onde pêlos brancos saíam de sinais negros. Decidiu que era altura de atemorizar aquele rapaz de Ratharryn, de o assustar tanto, que nunca mais se atrevesse a pensar cruzar os seus desejos.

 

Sou Lahanna disse em voz profunda, pouco mais alta que um murmúrio e se te opuseres ao meu desejo, engulo a tua insignificante tribo, misturo-a com o fel que há no meu ventre e urino-a para uma vala cheia de porcaria. Depois riu-se e o riso transformou-se num ataque de tosse que a fez ofegar com falta de ar. Gemeu, quando a tosse passou, e abriu os olhos negros. Vai-te, disse, expulsando-o. Manda-me o teu irmão Camaban, mas vai-te. Vai, enquanto eu decido o teu futuro.

 

Saban esgueirou-se de novo para a luz do Sol e aí enfiou apressadamente a túnica. Os dançarinos arrastavam os pés para trás e para a frente, os tocadores de tambor continuavam a marcar o ritmo e Saban estremeceu. Atrás de si, de dentro da cabana veio uma gargalhada que o envergonhou. A sua tribo era tão pequena, o seu povo tão fraco e Cathallo tão forte. Parecia a Saban que os deuses se tinham voltado contra Ratharryn. Senão, porque teria Lengar fugido? Porque teria Lahanna recusado o sacrifício? Porque seria ele forçado a arrastar-se perante a bruxa de Cathallo? Saban acreditava nas suas ameaças, acreditava que a tribo corria o perigo de ser engolida e não sabia como a haveria de salvar. O pai avisara-o contra os heróis, mas Saban pensava que Ratharryn precisava de um. Hengall fora o herói da sua infância, mas agora sentia-se receoso, Galeth não tinha ambição e Saban ainda não era um homem nem sabia se conseguiria passar as provas. Porém, se pudesse, seria um herói, pois sem um, apenas previa desgostos para o seu povo. Seria simplesmente engolido.

AQUELA NOITE A GENTE DE CATHALLO ACENDEU AS FOGUEIRAS DO SOLSTÍCIO, que cintilaram e fizeram o fumo elevar-se na paisagem. As fogueiras, ardiam para afastar dos campos os espíritos malignos e outras ardiam dentro do grande templo de Cathallo, onde doze homens cobertos com peles de boi saltavam por entre as pedras. As peles formavam disfarces grotescos, pois as cabeças e os cascos dos animais não tinham sido retiradas. As enormes formas com chifres saltitavam por entre as chamas, enquanto os homens debaixo das peles gritavam, desafiando os espíritos maus que poderiam trazer a doença à tribo e aos seus rebanhos. Os homens-bois guardavam a prosperidade de Cathallo e existia uma enorme competição entre os jovens guerreiros para poderem ter a honra de dançar sob as peles dos animais, já que, quando a escuridão da noite era total e as chamas subiam em direcção às estrelas, doze raparigas nuas eram empurradas para o círculo de fogo, onde os homens as perseguiam gritando. A multidão, que até aí estivera a dançar junto ao anel de chamas, detinha-se para ver as raparigas esquivarem-se às voltas, fingindo fugir em pânico dos seus perseguidores de chifres, que se encontravam quase cegos e desajeitados devido às peles. Porém, uma a uma, as raparigas eram apanhadas, atiradas ao chão e cobertas ali pelos monstros de cornos ovacionados pela assistência.

 

Depois de terminada a dança dos bois, ambas as tribos saltaram as fogueiras. Os guerreiros competiam, para ver quem saltava a fogueira mais alta e larga, e mais do que um caiu dentro das chamas e teve de ser arrastado do braseiro aos gritos. Os velhos e as crianças saltavam as mais pequenas e depois o gado recém-nascido da tribo era conduzido através das brasas incandescentes. Havia quem mostrasse a sua bravura caminhando descalço sobre as brasas, mas apenas depois de um sacerdote ter pronunciado um encantamento para que os pés não se queimassem. À entrada da sua cabana, Sannas via-os e zombava do ritual.

 

Nada tem a ver com o encantamento disse amargamente. Desde que tenham os pés secos, não dói, mas se estiverem molhados é vê-los a saltar como borregos. Acocorou-se junto à palha e Camaban fez o mesmo a seu lado.

 

Podes saltar as chamas, filho disse Sannas.

 

Não p-p-posso saltar respondeu Camaban, franzindo a cara num esforço para não gaguejar. Estendeu a perna esquerda de modo que a luz das chamas brilhou no alto torcido que tinha no pé. Se tentasse continuou, olhando para o pé r-r-rir-se-iam de mim.

 

Sannas segurava na mão o osso de uma anca humana. Pertencera ao seu segundo marido, um homem que pensara domá-la. Estendeu o braço e bateu ao de leve com o osso no pé grotesco.

 

Podia arranjá-lo disse, esperando pela reacção de Camaban e ficando desapontada por ele nada dizer. Mas só se quiser acrescentou com ar selvagem. Posso não querer. Apertou a capa contra si. Tive uma filha aleijada. Que estranha era. Anã e corcunda. Toda deformada suspirou ao recordar-se. O meu marido esperava que eu a curasse.

 

E curaste?

 

Sacrifiquei-a a Lahanna. Está enterrada ali, no fosso. Apontou com o osso na direcção da entrada sul do santuário.

 

Para que quereria Lahanna uma aleijada? perguntou Camaban.

 

Para se rir dela, claro respondeu Sannas abruptamente.

 

Camaban sorriu à resposta. Fora à cabana de Sannas à luz do dia; as raparigas tinham soltado exclamações horrorizadas ao ver o seu pé esquerdo, tinham estremecido ao sentir o cheiro da pele nojenta e depois troçaram da sua gaguez e do cabelo ferozmente emaranhado, mas Sannas não se juntara à risota. Examinara-lhe a marca da lua no ventre e de repente mandou as raparigas sair da cabana. Depois de terem partido, olhou para Camaban durante longo tempo.

 

Porque não te mataram? perguntou por fim.

 

P-p-porque os d-d-deuses tomam conta de mim. Ela batera-lhe com o osso na cabeça.

 

Se gaguejares quando falas comigo, rapaz, transformo-te num sapo ameaçou.

 

Camaban olhara para os olhos negros do seu rosto de caveira e em seguida, com muita calma, inclinara-se para diante e pegara no favo de mel envolvido em folhas que pertencia à feiticeira.

 

Dá cá isso! exigira Sannas.

 

Já que vou ser um s-s-sapo, é melhor que seja um sapo melado dissera Camaban. E Sannas rira-se daquilo, abrindo muito a boca para mostrar o seu único dente apodrecido. Ordenara-lhe que atirasse a túnica fedorenta para fora da cabana, arranjou-lhe depois um gibão de pele de lontra e a seguir insistira para que desembaraçasse os nós e retirasse a sujidade do cabelo.

 

És um rapaz muito bem-parecido disse com relutância, e era verdade, pois tinha um rosto esguio e bonito, o nariz comprido e direito e uns olhos verdes cheios de força. Interrogara-o. Como vivia? Como arranjava comida?

 

Onde aprendera as coisas dos deuses? E Camaban respondera-lhe calmamente, não mostrando ter medo dela, de modo que Sannas concluiu que gostava daquele rapazinho. Era selvagem, teimoso, sem receios e, sobretudo, inteligente. Sannas vivia num mundo de tolos e, embora fosse apenas um jovem, estava ali um espírito. A velha e o rapaz aleijado conversaram até o Sol se pôr, as fogueiras se acenderem e os homens da dança do boi levarem as raparigas desgrenhadas para a turfa sombria por entre as pedras.

 

Agora estavam sentados a ver os dançarinos rodopiarem e passar pelas chamas. Algures no escuro uma rapariga gemeu.

 

Fala-me de Saban ordenou Sannas. Camaban encolheu os ombros.

 

É honesto e trabalhador disse, fazendo com que nenhum dos atributos parecesse uma virtude. Não é diferente do pai.

 

Virá a tornar-se chefe?

 

Em devido tempo, talvez disse Camaban descuidadamente.

 

Manterá a paz?

 

Como hei-de saber? respondeu Camaban.

 

Então e o que achas tu?

 

Que importa o que eu acho? Todos sabem que sou um imbecil.

 

E és imbecil?

 

É o q-q-que quero que pensem disse Camaban. Assim, deixam-me em paz.

 

Sannas acenou com a cabeça em sinal de aprovação. Durante algum tempo ficaram os dois em silêncio, vendo o brilho das chamas colorir as lajes de pedra.

 

As fagulhas rodopiavam no céu, correndo entre as estrelas brancas e duras. Soou um grito por entre as sombras, onde dois jovens, um de Ratharryn, outro de Cathallo, tinham começado a lutar. Os amigos separaram-nos, mas mesmo quando aquela luta terminou, outras começaram. O povo de Cathallo fora generoso com o seu licor de mel, especialmente destilado para a festa do Solstício.

 

Quando a minha avó era nova, não havia licor disse Sannas. Os Fronteiriços ensinaram-nos a fazê-lo e ainda fabricam o melhor. Ficou a pensar naquilo uns momentos e depois encolheu os ombros. Mas não sabem fazer as minhas poções. Podia dar-te uma bebida que te faria voar e alimentos que te dariam sonhos brilhantes. Os olhos dela brilhavam dentro do xaile em forma de capuz.

 

Quero aprender contigo disse Camaban.

 

Ensino raparigas, não rapazes afirmou a velha asperamente.

 

Mas eu não tenho alma argumentou Camaban. Foi quebrada pelo M-M-Mata-Crianças. Não sou nem rapaz, nem homem, sou nada.

 

Se és nada, o que podes aprender?

 

Tudo aquilo que me p-p-possas ensinar. Camaban voltou-se para olhar para a feiticeira. E p-p-pago-te acrescentou.

 

Sannas riu-se, o ar sibilou-lhe na garganta, enquanto se balançava para diante e para trás.

 

E o que me poderá pagar um pária aleijado da pequena Ratharryn? perguntou, depois de se recuperar.

 

Isto. Camaban abriu a mão direita para revelar um losango de ouro. É parte do ouro do Povo da Fronteira continuou. O tesouro da noiva de Slaol.

 

Sannas estendeu a mão para o losango, mas Camaban fechou o punho.

 

Dá-mo, filho! disse a velha em tom sibilante.

 

Se disseres que me ensinas, entrego-to declarou Camaban. Sannas fechou os olhos.

 

Se não mo entregares, aleijado horroroso, entrego o teu corpo aos vermes e envio a tua alma para a floresta sem fim entoou numa voz que já anteriormente aterrorizara três gerações da sua tribo. Vou fazer com que o teu sangue coagule e esmagar-te os ossos numa pasta. Vou fazer com que os pássaros te piquem os olhos, que as víboras te chupem as entranhas e os cães te comam as tripas. Implorarás misericórdia e eu limitar-me-ei a rir e a usar a tua caveira como vaso para urinar. Deteve-se, de súbito, pois Camaban erguera-se e partia a coxear. Onde vais? perguntou em tom sibilante.

 

Ouvi dizer que há um feiticeiro em Drewenna. Ele p-p-pode ensinar-me. Sannas fixou nele os olhos brilhantes do seu rosto de cadáver, mas o rapaz manteve-se muito calmo e ela estremeceu de fúria.

 

Se deres outro passo, aleijado, ponho os teus ossos torcidos naquela vala, debaixo dos da anã.

 

Camaban segurou no losango de ouro.

 

Isto p-p-paga-te para me ensinares depois mostrou um segundo losango. E esta p-p-peça de ouro pagar-te-á, se me tratares do pé.

 

Vem cá ordenou Sannas. Camaban não se moveu, segurando apenas as peças de ouro que cintilavam à luz da fogueira. Sannas olhou-as, sabendo o mal que podia fazer com talismãs tão poderosos. Esperava conseguir mais algum ouro deste, mas cada peça era-lhe preciosa, de modo que controlou a fúria.

 

Eu ensino-te declarou calmamente.

 

Obrigado disse Camaban em voz baixa, ajoelhando em seguida diante dela e colocando reverentemente os dois losangos na sua mão estendida.

 

Sannas cuspiu no ouro, dirigindo-se depois, arrastando os pés, para a profunda escuridão da cabana onde o lume pouco mais era do que um monte de brasas apagadas.

 

Podes dormir do lado de dentro ou do lado de fora disse-lhe da escuridão. Não me importo.

 

Camaban não respondeu, ficando a olhar para as enormes pedras do templo. As sombras dos amantes estavam agora imóveis, mas o lume fraco cintilava e pareceu-lhe que o anel de pedras brilhava na noite fumarenta. Era como se estivessem vivas e as pessoas mortas, o que o fez pensar no Velho Templo, que era a sua casa, lá tão longe. Inclinou-se para a frente, bateu com a testa no chão e jurou a todos os deuses que o estavam a ouvir que daria vida ao Velho Templo. Fá-lo-ia dançar, fá-lo-ia cantar, fá-lo-ia viver.

 

Hengall estava satisfeito com o resultado das negociações com Kital. A paz estava assegurada e seria selada com o casamento de Saban e Derrewyn.

 

Não que seja a rapariga que escolheria para ti resmungou Hengall enquanto caminhavam para sul em direcção a Ratharryn. É muito magra.

 

Muito magra? perguntou Saban, que achara Derrewyn muito bela.

 

As mulheres não fazem grande diferença do gado disse Hengall. O melhor é que tenham um bom traseiro. Não vale a pena casares-te com uma mulher magra, morrem todas quando dão à luz. Mas Sannas resolveu que havias de casar com Derrewyn e o casamento selará a paz, portanto, está decidido.

 

Hengall não só concordara com o casamento, como comprara também oito pedras enormes com as quais Gilan podia reconstruir o Velho Templo. O preço das pedras fora um dos losangos grandes e nove dos pequenos, o que Hengall considerara barato. Pensou que estava certo trocar uma pequena parte do ouro de Sarmennyn pelas pedras, pois estava agora seguro de que a chegada dos tesouros tinha sido uma mensagem de Slaol para reconstruir o Velho Templo e Gilan convencera-o de que Ratharryn deveria possuir um templo feito de pedra.

 

Não havia pedras em Ratharryn. Havia seixos no rio e algumas pedras maiores, que se podiam transformar em martelos ou machados, mas a aldeia não tinha pedras grandes que rivalizassem com os pilares e as lajes que rodeavam o templo de Cathallo. Ratharryn era um local de gredas brancas, erva e árvores, enquanto a terra de Cathallo era rica em grandes blocos de pedra que, espalhados pelos montes, à distância, davam ideia de um rebanho de enormes carneiros cinzentos. Sannas afirmava que as pedras tinham sido lançadas ali por Slaol numa vã tentativa de impedir que o povo de Cathallo erguesse um monte sagrado a Lahanna; porém, segundo outros, as rochas tinham sido atiradas para os montes por Gewat, o deus das nuvens, que quisera ver a sua própria imagem na face verde da terra, mas as pedras que tinham chegado a Cathallo eram as que estavam mais perto de Ratharryn.

 

Saban gostara da ideia de construir uma coisa nova e impressionante em Ratharryn. Alguns membros do povo de Hengall resmungavam que os templos de madeira sempre tinham servido muito bem Ratharryn, mas os comerciantes, os homens que levavam as peles, o sílex e os vasos, para trocar por
machados, marisco e sal, afirmavam que Drewenna possuía um enorme templo de pedra e que quase todos os santuários no longínquo Ocidente eram também feitos de pedras, de modo que a perspectiva de possuírem também um desses templos serviria para alegrar os espíritos da maior parte dos membros do povo de Hengall. Um novo templo feito de pedras, poderia restaurar a sorte da tribo e essa crença era suficiente para persuadir todos de que Gilan deveria ser o novo sumo sacerdote. Os outros sacerdotes afirmaram-no a Hengall e o chefe, que subornara quatro deles com barras de bronze, escravas fronteiriças e bocados de âmbar, para que a escolha fosse exactamente essa, aceitou gravemente o veredicto como tendo vindo dos deuses.

 

Assim, Gilan tornou-se o novo sumo sacerdote e a sua primeira exigência foi que a tribo limpasse o Velho Templo de ervas daninhas e aveleiras, de modo a que o santuário estivesse preparado para a chegada das pedras de Cathallo no novo ano.

 

Os homens fizeram o trabalho, enquanto as mulheres ficavam fora da barreira e dançavam em círculo. Entoavam ao mesmo tempo o cântico nupcial de Slaol. Só as mulheres cantavam essa bela canção e apenas em ocasiões da mais profunda solenidade. Era cantada em pedaços, com longas pausas entre a música, durante as quais, sem que aparentemente ninguém lhes dissesse quando, as dançarinas se mantinham imóveis diante dos degraus e o cântico recomeçava. As vozes sobrepunham-se umas às outras, numa harmonia entrelaçada e, embora nunca o tivessem ensaiado, parecia sempre assombrosamente belo, tal como os passos de dança que se detinham e avançavam em perfeito uníssono. As mães ensinavam às filhas as partes do cântico, aprendendo umas uma parte e outras outra, de modo que quando se juntavam, tudo se harmonizava. Muitas mulheres choravam enquanto cantavam, pois o cântico era um lamento. No dia anterior ao casamento de Slaol e Lahanna, o deus do Sol zangara-se com a noiva e abandonara-a, mas as mulheres viviam na esperança de que Slaol se compadecesse e voltasse para ela.

 

Gilan supervisionava a obra, detendo-se por vezes para ouvir a canção das mulheres e outras para ajudar os homens a arrancar as ervas daninhas e os arbustos. Algumas aveleiras eram árvores de porte médio e as raízes precisavam de ser soltas com picaretas de chifre de veado antes de serem arrancadas do solo. As árvores não podiam ser apenas cortadas, pois as aveleiras voltavam a crescer dos cepos, de modo que as maiores eram arrancadas pela raiz e os buracos destas, cheios de pedra calcária retirada do fosso. A caveira de boi que Camaban colocara no centro do templo foi enterrada no fosso, o seu esconderijo aberto, as ervas arrancadas, a erva cortada com facas de sílex e os restos queimados. O fumo da fogueira incomodava as dançarinas, de modo que estas se afastaram do templo enquanto os homens retiravam as ervas do fosso e do interior da barreira, de modo que o santuário ficou de novo rodeado pelo seu brilhante círculo de greda branca.

Os velhos postes tão grossos e já podres que se tinham mantido na entrada do Sol e junto à casa dos mortos, foram lançados ao lume. Alguns deles eram enormes e os seus restos foram enterrados bem fundo; cortaram outros à superfície do solo, deixando os tocos a apodrecer. Uma vez que todas as ervas daninhas, árvores e postes foram retirados, os homens dançaram dentro do largo círculo, ao ritmo assombroso do cântico das mulheres. O templo estava de novo nu e limpo. Era constituído por uma barreira baixa, coberta de erva,! um fosso e uma barreira mais alta à volta de um círculo que nada continha. A tribo voltou a Ratharryn à luz da tarde. Galeth foi um dos últimos a sair e deteve-se no cimo do monte, sobre a aldeia, para se voltar e olhar para o templo. Desaparecera a moita de aveleiras que interrompera a sul a linha do horizonte, de modo que apenas se viam os túmulos dos antepassados, mas] diante desses montículos, branco, contrastando com a vertente escura da colina, o anel do templo parecia brilhar na luz mortiça da tarde. As sombras da barreira estendiam-se e Galeth reparou, pela primeira vez, que o anel de greda fora colocado numa encosta, de modo que estava ligeiramente inclinado na direcção em que o Sol se erguia no Solstício. É muito belo disse Lidda, a mulher de Galeth.

 

Realmente é concordou Galeth. Seria Galeth, prático, forte e eficiente, quem teria de erguer as pedras. Assim, tentava imaginar como ficariam os oito enormes blocos naquele local limpo de relva e greda. Slaol vai ficar satisfeito concluiu.

 

Naquela noite houve trovoada, mas sem chuva. Apenas trovões ao longe e na escuridão, morreram duas crianças da tribo. Tinham ambas estado doentes, embora não se pensasse que morressem. Mas, de manhã o Sol ergueu-se para fazer brilhar o círculo de greda recém-limpo e o povo pensou que os deuses sorriam de novo para Ratharryn.

 

Derrewyn ainda não era mulher, mas era hábito, quer em Ratharryn, quer em Cathallo, que as raparigas prometidas fossem viver com a família do futuro marido. Assim Derrewyn foi para Ratharryn para viver na cabana da esposa mais velha de Hengall que ainda era viva.

 

A sua chegada perturbou a tribo. Podia estar a um ano da puberdade, mas a sua beleza florescera cedo e os jovens guerreiros de Ratharryn olhavam-na com mal disfarçado desejo, pois Derrewyn de Cathallo era uma jovem que fazia os homens sonhar. O cabelo negro dava-lhe por baixo da cintura e tinha pernas longas, muito morenas do sol. À volta do pescoço e dos tornozelos usava delicados colares de brancas conchas marinhas, todas parecidas e de um só tamanho. Tinha olhos escuros, rosto magro, de ossos salientes, e espírito rápido como o voo de um guarda-rios. Os jovens guerreiros da tribo de Hengall repararam nela, observaram-na e chegaram à conclusão que era mal empregada para Saban, que não passava de uma criança. Hengall, vendo tal desejo, ordenou a Gilan que produzisse um encantamento protector para a rapariga; assim, o sumo sacerdote colocou uma caveira humana no telhado da cabana de Derrewyn e a seu lado um falo de barro cru, para que todos os homens que vissem o feitiço entendessem a sua ameaça. Toquem em Derrewyn sem permissão e morrem, diziam a caveira e o falo e, a partir daí, os homens olhavam mas nada mais faziam.

 

Saban também olhava cheio de desejo e alguns membros da tribo reparavam que também Derrewyn olhava para Saban, pois este prometia vir a ser um homem muito belo. Estava ainda a crescer, mas atingira já a altura do pai e tinha a rapidez de visão e a certeza de mão de Lengar. Certeiro com o arco de teixo, era um dos corredores mais rápidos da tribo, sendo porém modesto, de temperamento calmo e muito estimado em Ratharryn. Prometia ser um bom homem mas, se falhasse nas provas, nunca seria considerado adulto, de modo que nos meses seguintes ao seu encontro com Derrewyn esteve ocupado a aprender os segredos da floresta e os hábitos dos animais. Observou os veados a lutar e acasalar, descobriu as tocas das lontras e aprendeu a roubar mel de abelhas em fúria. Não lhe era permitido dormir no bosque, já que era ainda criança, mas matou o primeiro lobo no princípio do Inverno, derrubando-o com uma flecha certeira e usando um golpe do machado de pedra para acabar com a vida do animal ferido. Lidda, a mulher de Galeth, furou as patas do lobo, enfiou-as num tendão e ofereceu o colar a Saban.

 

Saban podia ser filho do chefe, mas tinha de trabalhar como os outros.

 

Um homem que nada faz, nada come gostava Hengall de dizer.

 

Galeth era o melhor madeireiro da tribo e havia sete anos que Saban aprendia a arte do tio. Conhecia os nomes de todos os deuses das árvores e a maneira de os aplacar antes de lançar o machado a um tronco, sabia transformar carvalhos e freixos em traves, postes e vigas. Galeth ensinara-lhe a fazer com sílex a lâmina de uma enxó e como atá-la ao punho com tiras molhadas de pele de boi, que encolhiam muito, de modo que a cabeça não se soltava durante o trabalho. Saban podia usar instrumentos de sílex, mas nem ele nem o filho de Galeth, nascido da primeira mulher deste, tinham autorização para tocar em dois preciosos machados de bronze trazidos de muito longe e que tinham custado a Galeth uma fortuna em porcos e gado.

 

Saban aprendeu a fazer malgas de madeira de faia e remos de salgueiro. Aprendeu também a afiar um ramo de teixo duro como uma pedra e a fabricar um arco para matar veados. Aprendeu a articular a madeira e a brocá-la com bicos de sílex, osso ou azevinho. Aprendeu a fabricar um barco oco com um tronco de ulmeiro e a torná-lo capaz de flutuar pelo rio até ao mar, de onde trazia sacos de sal, conchas e peixe seco. Aprendeu a martelar carvalho verde de modo a encolhê-lo para que coubesse em determinados sítios e aprendeu muito bem, pois no Inverno anterior às provas de Saban, Galeth confiou nele para que levantasse um novo telhado na cabana onde dormia Derrewyn.

 

Saban partiu o colmo podre, mas entregou primeiro a caveira a Derrewyn que, sabendo-se protegida por ela, beijou-lhe a testa, levantando a seguir os olhos para Saban.

 

O resto pediu a sorrir.

 

O resto?

 

O barro disse.

 

O falo de barro cru desfizera-se com o tempo, mas Saban recolheu o que podia do colmo podre e entregou-lho. Ela fez uma careta aos bocados sujos, mas encontrou um fragmento mais limpo que o resto e entregou-o a Saban.

 

Engole-o ordenou.

 

Engulo isto?

 

Engole! insistiu, rindo-se da expressão dele, enquanto enfiava o bocado de barro pela garganta abaixo.

 

Para quê? perguntou-lhe Saban, mas ela limitou-se a rir até que Jegar apareceu à esquina da cabana.

 

Jegar era agora o melhor caçador da tribo. Passava dias na floresta, chefiando um grupo de jovens que voltava com carcaças e chifres. Na tribo havia quem pensasse que Jegar deveria suceder a Hengall, pois era claro que os deuses o favoreciam, porém se Jegar partilhava essa opinião não dava sinais disso. Pelo contrário, era respeitador para com Hengall e tinha o cuidado de oferecer ao chefe os melhores nacos de carne da sua caçada; este, por sua vez, tratava com cautela o homem que fora antes o companheiro mais chegado de Lengar.

 

Jegar olhava agora para Derrewyn. Tal como os outros homens da tribo fora intimidado pela caveira no telhado, mas não conseguia esconder o seu desejo, nem o ciúme que sentia de Saban. No ano novo quando Saban realizasse as provas, seria perseguido no meio da floresta e toda a tribo sabia que Jegar e os seus cães estariam na sua pista. Se Saban falhasse, então não poderia casar-se.

 

Jegar sorriu para Derrewyn, que chegou a caveira aos seios e cuspiu. Jegar riu-se, lambeu a lâmina da lança e apontou-a a Saban.

 

Para o ano, pequeno, encontramo-nos entre as árvores. Tu, eu, os meus companheiros de caça e os meus cães.

 

Precisas de companheiros e cães para me derrotar? perguntou Saban. Derrewyn observava-o e o olhar dela tornava-o destemido. Diz-me lá o que vai acontecer para o ano, Jegar continuou. Sabia que era imbecil e perigoso provocar Jegar, mas receava que Derrewyn o desprezasse se fosse fraco e deixasse que Jegar o intimidasse. Que farás, se me encontrares na floresta? perguntou, saltando para o chão.

 

Desfaço-te, pequeno respondeu Jegar.

 

Não tens força para isso afirmou Saban e pegou num enorme pau de freixo que usava para medir o comprimento das vigas que substituía. Era mais alto que Jegar e também sabia que este nunca se atreveria a matá-lo ali na aldeia, onde tanta gente o podia ver, mas mesmo assim arriscava-se a uma dolorosa sova. Nem conseguias desfazer um gatinho acrescentou com ar de desprezo.

 

Volta para o trabalho, rapaz disse Jegar, mas Saban limitou-se a atirar-lhe o pau, fazendo com que o outro, mais baixo, recuasse. Saban repetiu o gesto e a arma grosseira passou ao lado do rosto de Jegar. Desta vez o caçador rugiu e ergueu a lança. Tem cuidado avisou.

 

Porque haveria de ter cuidado contigo? perguntou Saban. O medo e a excitação competiam dentro dele. Sabia que era uma estupidez, mas a presença de Derrewyn levara-o a isso e o seu amor-próprio não o deixava agora recuar. És um cobarde, Jegar e vou dar cabo de ti disse puxando atrás a lança.

 

És uma criança! respondeu Jegar e correu para Saban, mas este calculara o que Jegar iria fazer e deixou cair a ponta da lança, que ficou metida entre as pernas de Jegar; depois girou a lança, fazendo-o tropeçar e quando ele caiu, Saban atirou-se para cima dele e esmurrou a cabeça do adversário. Deu-lhe dois socos antes de Jegar poder voltar-se para ripostar. Jegar não conseguiu usar a lança, pois Saban estava em cima dele, de modo que em primeiro lugar tentou afastá-lo com murros e depois arrancar-lhe os olhos com os dedos. Saban mordeu um deles sentindo o gosto do sangue, depois umas mãos agarraram-no e separaram-no de Jegar. Outras mãos retiraram Jegar.

 

Fora Galeth que afastara Saban.

 

Grande imbecil! exclamou Galeth. Queres morrer?

 

Estava a vencê-lo!

 

Ele é um homem. Tu és um rapaz! E vais ficar com um olho negro. Galeth afastou Saban e depois voltou-se para Jegar. Deixa-o em paz ordenou. A tua oportunidade virá no ano que vem.

 

Ele atacou-me! afirmou Jegar. Tinha a mão a sangrar no sítio onde Saban o tinha mordido. Chupou o sangue e depois pegou na lança. Havia raiva nos seus olhos, pois sabia que fora humilhado. Um rapaz que ataca um homem, deve ser castigado insistiu.

 

Ninguém atacou ninguém disse Galeth. Era enorme e a sua ira assustadora. Aqui não aconteceu nada! Afastou Jegar. Não aconteceu nada! Voltou-se para Derrewyn, que assistira à luta com os olhos muito abertos. Vai tratar das tuas coisas, rapariga ordenou e depois empurrou Saban de novo para o telhado. E tu tens trabalho para fazer, portanto trabalha.

 

Hengall deu uma gargalhada quando soube da luta.

 

É verdade que ia vencer? perguntou a Galeth.

 

Não se aguentaria muito tempo disse Galeth. Mas é verdade estava a vencer. É um bom rapaz aprovou Hengall. Um bom rapaz! Mas Jegar vai tentar impedir que passe nas provas avisou Galeth. Hengall recusou os receios do irmão mais novo. Se Saban quer ser chefe, tem de ser capaz de lidar com homens como Jegar. Riu de novo, encantado por Saban ter mostrado tal coragem, Olhas por ele durante o Inverno? perguntou. Merece mais do que uma lança nas costas. Vou vigiá-lo prometeu Galeth com ar severo. O Inverno revelou-se cruelmente duro e as únicas notícias boas dessa estação fria foram que os guerreiros de Cathallo tinham abandonado os ataques à terra de Hengall. A paz, que seria selada pelo casamento de Saban,! mantinha-se, embora alguns calculassem que Cathallo apenas esperava a morte de Hengall para se apoderar de Ratharryn tal como tinha conquistado Maden. Outros achavam que era o tempo que mantinha afastados os homens de Kital pois a neve caiu espessa durante muitos dias, de modo que as mulheres! tinham de partir o gelo do rio para irem buscar água para o dia. Houve alturas em que a neve dos montes soprava como fumo dos cumes baixos, em que as fogueiras pareciam não dar calor e as cabanas rodeadas de gelo estavam presas à terra branco-acinzentada que não oferecia esperança de vida. Morreram os fracos da tribo, os velhos, os jovens, os doentes, os amaldiçoados. Havia fome, mas os guerreiros caçavam nas florestas. Ninguém rivalizava com Jegar] e o seu bando que, dia após dia, traziam carcaças que eram esquartejadas fora da aldeia deixando fumegar as entranhas no ar frio, enquanto os cães esperavam os despojos. Os caçadores entregavam as caveiras dos veados às mulheres, que as metiam nos seus fornos de lenha até que ardessem completamente, mantendo depois a raiz dos chifres nas chamas, até estes se separarem do osso. Na Primavera haveria muito trabalho a fazer no Velho Templo e a tribo precisaria de dezenas de picaretas de chifre para cavar os buracos para as novas pedras que seriam trazidas de Cathallo.

 

Aquele Inverno parecia não acabar. Foram vistos lobos junto ao rio, mas Gilan garantiu à tribo que tudo ficaria bem quando se construísse o novo templo. Este Inverno é o último dos nossos desgostos, disse o sumo sacerdote, o último de má fortuna antes do novo templo mudar o destino de Ratharryn. Haveria de novo vida, amor, calor, felicidade e todas as coisas seriam boas, afirmou Gilan à tribo.

 

Camaban tinha ido para Cathallo para aprender. Durante anos estivera só, tentando sobreviver para lá da barreira de Ratharryn e, durante esses anos, escutara vozes dentro da cabeça e pensara acerca daquilo que estas lhe tinham dito. Queria agora comparar esses conhecimentos com os do resto do mundo e ninguém era mais sábio que Sannas, a feiticeira de Cathallo. Assim, Camaban escutou-a.

 

No princípio, disse Sannas, Slaol e Lahanna tinham sido amantes. Deram a volta ao mundo numa dança infinita, muito juntos um ao outro; depois, Slaol reparara em Garlanna, a deusa da terra, filha de Lahanna, e apaixonara-se por ela, rejeitando a mãe.

 

Lahanna perdeu então o seu brilho e a noite chegou ao mundo.

 

Mas, garantiu Sannas, Garlanna manteve-se fiel à mãe, recusando-se a participar na dança de Slaol, de modo que o deus do Sol amuou e o Inverno desceu à terra. Slaol continuou amuado, sem escutar o povo da terra, pois esta recordava-lhe Garlanna. Era por isso, continuou Sannas, que Lahanna deveria ser adorada acima de todos os outros deuses, já que apenas ela tinha o poder de proteger o mundo da petulância de Slaol.

 

Camaban escutava-a, tal como escutava Morthor, pai de Derrewyn, que era sumo sacerdote em Cathallo. Morthor contou-lhe uma história semelhante, embora na sua versão fosse Lahanna quem amuara e quem escondera a face envergonhada, pois tentara em vão ofuscar o brilho do amante. Continuava a tentar diminuir Slaol e foram tempos terríveis, aqueles em que Lahanna deslizava para diante de Slaol trazendo a noite à luz do dia. Morthor afirmava que Lahanna era uma deusa arrogante e, embora fosse neto de Sannas e não estivessem de acordo, nunca discutiam.

 

Os deuses têm de estar equilibrados afirmava Morthor. Lahanna poderia tentar castigar-nos porque vivemos na terra de Garlanna, mas esta ainda é poderosa e tem de ser aplacada.

 

Os homens não condenarão Slaol disse Sannas a Camaban. Não vêem nada de errado em apaixonarem-se por uma mãe e uma filha proferiu zangada. Os homens são como porcos rolando no seu próprio esterco.

 

Se visitares uma tribo desconhecida, com quem vais ter? perguntou Morthor. Com o chefe! Assim, deves adorar Slaol acima de todos os outros deuses.

 

Os homens podem adorar aquilo que quiserem afirmou Sannas. Mas são as preces das mulheres que são ouvidas e as mulheres rezam a Lahanna.

 

Porém numa coisa Sannas e Morthor concordavam: em que a tristeza do mundo chegara com a separação de Slaol e Lahanna e que desde aí as tribos dos homens tinham tentado equilibrar a sua adoração pelos dois deuses ciumentos. Hirac afirmara a mesma crença, uma crença que tomava as tribos do centro e as obrigava a serem cautelosas em relação aos deuses.

 

Camaban ouviu tudo isto, mas manteve em silêncio as suas opiniões. Viera para aprender, não para discutir, e Sannas tinha muito para lhe ensinar. Era a mais famosa curandeira da terra e o povo de uma dúzia de tribos vinha consultá-la. Usava ervas, fungos, lume, ossos, sangue, peles e encantamentos, As mulheres estéreis caminhavam dias a fio, para lhe implorar ajuda e todas as manhãs se encontrava um grupo desesperado de doentes, aleijados, coxos e tristes à espera dela na entrada norte do santuário. Camaban apanhava ervas ! e cogumelos para Sannas e cortava fungos de árvores a apodrecer. Secava os medicamentos em redes sobre o lume, cortava-os, fazia as infusões e aprendia os nomes que Sannas lhe indicava. Escutava enquanto as gentes descreviam os seus males e observava o que Sannas lhes dava, para depois notar o seu progresso para a cura ou para a morte. Muitos vinham queixando-se de dores, apenas dores, muitas vezes esfregando o ventre; então Sannas dava-lhes tiras de fungos para mastigar ou então obrigava-os a beber uma mistura espessa de ervas, fungos e sangue fresco. Outros queixavam-se de dores nas articulações, tão terríveis que os obrigavam a dobrar-se, tornando difícil a um homem lavrar o campo e a uma mulher usar a mó; se a dor realmente os incapacitava, Sannas deitava o paciente entre duas fogueiras, pegava na faca de sílex bem afiada e arrastava-a pela articulação dorida. Cortava para trás e para a frente, profundamente de modo a que o sangue brotasse; então Camaban cortava as ervas secas nas feridas, colocando outras sobre os cortes recentes, até o sangue estancar. Depois Sannas pegava-lhes fogo, as chamas assobiavam deitando fumo e a cabana enchia-se com o cheiro da carne queimada.

 

Nesse difícil Inverno um homem enlouqueceu, batendo na mulher até esta morrer, atirando depois o filho mais novo para a cabana em chamas; Sannas disse que ele estava possuído por um espírito maligno. Trouxeram-lho, imobilizaram-no entre dois guerreiros, enquanto Sannas lhe abria o couro-cabeludo, afastava a carne e lhe abria um buraco no crânio com uma pequena marreta de pedra e uma fina lâmina de sílex. Retirou um círculo de osso, cuspiu-lhe no cérebro e exigiu que o espírito saísse. O homem sobreviveu, embora numa desgraça tal, que o melhor seria ter morrido.

 

Camaban aprendeu a arranjar os ossos, encher as feridas de musgo e teias de aranha e fazer poções que fazem os homens sonhar. Levava essas poções aos sacerdotes de Cathallo, que o tratavam com receio, pois fora escolhido por Sannas. Aprendeu a fazer o veneno glutinoso com que os guerreiros esfregavam as setas quando perseguiam os Fronteiriços nas enormes florestas a norte de Cathallo. O veneno era feito com uma mistura de urina, fezes e o suco de uma erva florida que Sannas considerava mortífera. Fazia a comida da feiticeira, moendo-a até ficar em pasta, pois tendo apenas um dente, não conseguia mastigar. Aprendeu feitiços, cânticos, o nome de mil deuses e quando não aprendia com Sannas, escutava os comerciantes que voltavam das suas longas jornadas com estranhas histórias. Escutava tudo, de nada se esquecia e mantinha as suas opiniões bem guardadas na cabeça. Essas não tinham mudado. As vozes que lhe tinham falado ainda lhe ecoavam no espírito, ainda o acordavam durante a noite e enchiam de espanto. Aprendera a curar, a assustar e a torcer o mundo aos desejos dos deuses, mas não mudara. Os conhecimentos do mundo não tinham perturbado os seus.

 

No coração do Inverno, quando Slaol estava mais fraco e Lahanna brilhava mais sobre o santuário de Cathallo, tocando as pedras com um raio de luz fria, Sannas trouxe dois guerreiros ao templo.

 

Chegou a hora disse a Camaban.

 

Os guerreiros deitaram Camaban de costas sob uma das pedras mais elevadas. Um homem segurou-lhe os ombros, o outro o pé aleijado, voltando-o para a Lua.

 

Mato-te ou curo-te afirmou Sannas. Tinha na mão um maço de pedra e uma lâmina feita da omoplata de um morto que encostou ao grotescamente disforme peito do pé de Camaban. Vai doer disse a rir, como se a dor dele lhe desse prazer.

 

O guerreiro que segurava o pé estremeceu quando o maço martelou o osso. Sannas bateu de novo, mostrando uma força notável para uma mulher tão velha. O sangue brotava do pé, negro à luz da Lua, molhando as mãos do guerreiro e correndo pela perna de Camaban. Sannas bateu de novo com o maço na lâmina, depois retirou a omoplata e rangeu os dentes, enquanto obrigava o pé de Camaban a desenrolar-se.

 

Tens dedos! Espantou-se e os dois guerreiros estremeceram, voltando a cara, ao ouvir o estalar da cartilagem, o torcer do osso e o raspar da deformidade a ser endireitada. Lahanna! exclamou Sannas, martelando de novo a lâmina para dentro do pé de Camaban, forçando o gume afiado noutra parte da carne bulbosa a que o osso estava ligado.

 

Sannas endireitou o pé, depois fez-lhe uma tala de ossos de veado, que ligou com tiras de pele de lobo.

 

Usei osso para curar o osso disse a Camaban. Ou morres ou consegues andar.

 

Camaban olhou para ela, sem nada dizer. A dor fora maior do que alguma vez pensara, fora uma dor para encher todo o mundo iluminado pela Lua, mas não soltara um único gemido. Tinha lágrimas nos olhos, mas não emitira qualquer som e sabia que não iria morrer. Viveria, porque era essa a vontade de Slaol. Porque tinha sido escolhido. Porque era a criança torcida enviada para endireitar o mundo. Era Camaban.


O INVERNO PASSOU. OS SALMÕES VOLTARAM Ao RIO E AS GRALHAS AOS ALTOS ulmeiros que cresciam a ocidente de Ratharryn. O cuco cantava e as libelinhas esvoaçavam onde o gelo do Inverno tinha fechado o rio. Os cordeiros baliam por entre os túmulos dos antepassados e as garças banqueteavam-se com os patinhos do rio Mai. O canto do melro ouvia-se nos bosques, onde, à medida que a Primavera avançava, os veados perdiam o seu pêlo acinzentado de Inverno e mudavam os chifres. O pai de Hengall afirmara ter visto uma vez os veados a comerem as velhas armações, mas na verdade era Syrax, o deus destes animais que andava pelos bosques e as recolhia para si. As armações dos veados eram apreciadas para fabricar utensílios, de modo que os homens tentavam encontrá-las antes de Syrax.

 

Os campos eram lavrados. As gentes mais abastadas atavam o arado endurecido pelo fogo atrás de um boi, enquanto que outros utilizavam as famílias para arrastar pelo solo a ponta cortante. Antes que os sacerdotes viessem espalhar os primeiros punhados de sementes, abriam a terra de oriente para ocidente e depois de norte para sul. A colheita anterior fora má, mas Hengall armazenara sementes na sua cabana e agora lançava-as nos campos. Alguns terrenos estavam abandonados e cheios de erva, pois o solo estava cansado, mas na Primavera anterior os homens tinham cortado árvores à entrada da floresta, tinham também queimado outras já mortas no Outono e o solo recém-limpo era lavrado e semeado enquanto as mulheres sacrificavam um cordeiro. Os peneireiros voavam sobre o Velho Templo, onde as orquídeas floriam e flutuavam borboletas de asas azuis.

 

No Verão, quando os tordos se calavam, os rapazes da tribo de Hengall enfrentavam as provas para passarem à idade adulta. Nem todos as ultrapassavam e alguns nem sequer lhes sobreviviam. A tribo dizia que, de facto, era melhor um rapaz morrer, do que falhar, pois com esse fracasso arriscava-se ao ridículo para o resto da vida. Durante toda uma lua depois das provas, esse rapaz seria obrigado a usar roupa de mulher, a fazer tarefas femininas e a acocorar-se para verter águas. Não poderia arranjar esposa em toda a vida, nem ter escravos, gado ou porcos. Alguns dos que falhavam, podiam evidenciar talento para interpretar augúrios e sonhos e esses poderiam tornar-se sacerdotes, recebendo então os privilégios daqueles que tinham vencido as provas; porém, a maior parte dos que falhavam eram desprezados para sempre. Era melhor morrer.

 

Estás pronto? perguntou Hengall a Saban, na manhã do primeiro dia.

 

Sim, pai respondeu Saban com nervosismo. Não tinha a certeza de falar verdade, pois como se poderia alguém preparar para ser caçado por Jegar e pelos seus cães? Na verdade, Saban estava mesmo aterrorizado, mas não se atrevia a mostrar ao pai o seu receio.

 

Hengall, cujo cabelo ficara grisalho no Inverno anterior, mandara buscar Saban para lhe oferecer uma refeição.

 

Carne de urso. Vai dar-te força.

 

Saban não tinha apetite, mas obediente comeu e Hengall observava-o cada vez que metia comida na boca.

 

Não tive sorte com os meus filhos disse pouco depois. Saban, com a boca cheia da carne acre, não respondeu e Hengall gemeu ao pensar em Lengar e Camaban. Mas em ti tenho um filho como deve ser continuou para Saban. Prova-mo nestes próximos dias.

 

Saban acenou afirmativamente.

 

Se eu morresse amanhã, creio que Galeth seria o chefe rosnou Hengall, tocando nas partes para evitar a má sorte implícita nas suas palavras. Mas não seria um bom chefe. É bom homem, mas demasiado confiante. Acreditaria em tudo o que nos dizem de Cathallo e eles mentem tantas vezes, quantas dizem a verdade. Agora afirmam ser nossos amigos, mas gostariam de nos engolir. Querem a nossa terra. Querem o nosso rio. Querem os nossos alimentos, mas temem o preço que teriam de pagar. Sabem que os espancaríamos ferozmente, portanto, quando te tornares chefe, tens de ter provado ser um guerreiro, com o qual temam confrontar-se, mas tens também de ser inteligente, para saberes quando não deves lutar.

 

Sim, pai respondeu Saban. Mal ouvira palavra, pois estava a pensar em Jegar e nos seus cães de pêlo comprido, com as línguas penduradas por entre os dentes afiados.

 

Cathallo tem de te temer, como me temem a mim disse Hengall.

 

Sim, pai respondeu Saban. O sangue do urso pingava-lhe do queixo. Sentia-se enjoado.

 

Os antepassados contemplam-te continuou Hengall. Torna-os orgulhosos de nós. E uma vez um homem, casamos-te com Derrewyn. Será a primeira cerimónia do novo templo. Que tal? Deverá trazer-te os favores de Slaol.

 

Gosto de Derrewyn confessou Saban corado.

 

Não interessa se gostas dela ou se a detestas, tens de lhe dar filhos, muitos filhos. Usa a rapariga! Procria com ela e depois com outras mulheres, mas trata de ter filhos! O sangue é tudo.

 

Com estas sentenças ainda nos ouvidos e sentindo a garganta amarga com o sabor rançoso do urso, Saban dirigiu-se ao templo de Slaol, mesmo atrás da entrada da aldeia. Estava nu, tal como os outros vinte e um rapazes que se juntavam debaixo dos altos postes do templo. Teriam todos de passar cinco noites nos bosques inóspitos e aí sobreviver, apesar de serem perseguidos pelos caçadores que eram os homens da tribo e que agora rodeavam o templo e vaiavam os candidatos. Todos eles empunhavam arcos ou lanças e chamavam mulheres aos rapazes, dizendo-lhes que haveriam de fracassar, ameaçando-os com aquilo que os espíritos maus e os animais da floresta lhes fariam. Os homens convidavam os rapazes a abandonar as provas antes de as iniciarem, dizendo que nem valia a pena tentar tornarem-se homens, pois era óbvio que eram franzinos e fracos.

 

Gilan, o sumo sacerdote, ignorava as vaias e as provocações, enquanto orava ao deus. As pequenas bolas de greda branca, símbolos da vida dos rapazes, tinham sido colocadas no centro do templo, sobre a campa da criança que fora sacrificada ao deus na consagração do templo. As bolas ficariam ali até ao fim, altura em que aqueles que se tornavam homens poderiam quebrá-las e os que fracassassem poderiam recolhê-las para devolver os símbolos de greda às famílias envergonhadas. Gilan cuspiu sobre os rapazes para os abençoar. Cada um tinha direito a uma arma. A maior parte segurava lanças ou arcos, mas Saban preferira levar uma faca que ele próprio fizera de um bocado de sílex raro na região, com tamanho suficiente para que a lâmina coubesse na sua mão. Tinha raspado a pedra escura até a transformar numa lâmina branca e perigosa. Não esperava conseguir caçar com a faca, pois mesmo que matasse o animal, não se atreveria a acender uma fogueira para assar a carne, não fosse o fumo atrair os caçadores.

 

É o mesmo que não levares arma nenhuma avisou-o Galeth, mas Saban queria a pequena faca, pois ao tocá-la sentia-se reconfortado.

 

Jegar provocava Saban da entrada do templo. O caçador enfeitara a lança com um molho de penas de águia e metera outras entre o seu longo cabelo.

 

Vou soltar-te os cães, Saban! gritou Jegar. Os cães enormes e peludos, salivavam atrás do dono. Desiste continuou. Que possibilidades tem uma criança mijona como tu? Não aguentas um dia.

 

Vamos arrastar-te derrotado gritou um dos amigos de Jegar. Depois podes vestir a túnica da minha irmã e vais buscar água para a minha mãe.

 

Hengall escutou as ameaças, mas nada fez para as evitar. Estes eram os costumes da tribo e se Saban sobrevivesse à inimizade de Jegar e dos seus amigos, então a sua reputação cresceria. Hengall também não poderia tentar proteger Saban na floresta, pois assim a tribo declararia que o rapaz não tinha realizado as provas com justiça. Saban teria de sobreviver pelos seus próprios meios e, se fracassasse, os deuses diriam que não estava capaz de ser chefe.

Deram aos rapazes meio dia de avanço. Depois, durante cinco noites de Verão tinham de sobreviver na floresta, onde os inimigos não seriam só os caçadores, mas também os ursos, os enormes auroques selvagens, os lobos e os bandos do Povo da Fronteira, que andavam à procura de escravos e sabiam que os rapazes se perdiam por entre as árvores. Os Fronteiriços rapariam a cabeça dos rapazes, cortavam-lhes um dedo e arrastavam-nos para uma vida de servidão e chicotadas.

 

Gilan terminou por fim as invocações e bateu as palmas, enxotando os rapazes assustados para fora do templo.

 

Corre para longe! gritou Jegar. Vou apanhar-te, Saban!

 

Os cães presos uivavam e Saban temia esses animais, pois os deuses tinham-lhes dado a capacidade de perseguir um homem durante muito tempo, por entre as árvores. Os cães pressentiam o espírito do homem, de modo que o conseguiam encontrar mesmo no escuro. Seguiam a pista de qualquer criatura pelo espírito, portanto os enormes cães peludos seriam os piores inimigos de Saban nos dias seguintes.

 

Saban correu para sul, atravessando a pastagem e o caminho levou-o até perto do Velho Templo, que ali aguardava as pedras de Cathallo. Quando passou pelo fosso, pensou ouvir a voz de Camaban a chamá-lo e deteve-se confundido, olhando para o santuário já limpo. Porém nada havia aí, a não ser duas vacas brancas pastando na relva. Os seus receios diziam-lhe que continuasse a correr em direcção às árvores, mas um instinto mais forte obrigou-o a atravessar a pequena barreira exterior, escalar o fosso de greda e subir pelo interior da barreira maior.

 

Sentiu o sol quente na pele nua. Manteve-se imóvel, sem saber porque tinha parado, mas logo outro impulso levou-o a ajoelhar na relva dentro do santuário, onde usou a faca de sílex para cortar uma madeixa do seu longo cabelo negro. Colocou o cabelo sobre a erva e depois curvou a testa até ao chão.

 

Slaol! exclamou. Slaol! Fora ali que Lengar tentara matá-lo e Saban escapara àquele inimigo, de modo que orava para que o deus do Sol o ajudasse a evitar outro ódio. Saban orava, já havia dias, a todos os deuses de que se lembrava, mas naquele momento, dentro do quente círculo de greda na encosta tocada pelo vento, Slaol enviou-lhe uma resposta. Chegou-lhe como se viesse de lado nenhum e Saban soube de súbito que sobreviveria às provas e até que as venceria. Apercebeu-se que, de tanta ansiedade, estava a implorar a coisa errada. Pedira aos deuses que o escondessem de Jegar, pois este era o melhor caçador da tribo; então Slaol enviara a Saban o pensamento de que deveria deixar que Jegar o encontrasse. Era essa a dádiva do deus. Deixa que Jegar encontre a sua presa e depois fá-lo fracassar. Saban ergueu a cabeça ao brilho do céu e gritou os seus agradecimentos.

 

Correu para o bosque, onde sentiu de novo erguerem-se nele os seus receios. Era um local deserto e escuro, assolado por lobos, ursos e auroques.
Havia bandos de caçadores fronteiriços em busca de escravos e, pior ainda,! proscritos. Quando um homem era banido de Ratharryn, a tribo não dizia quei partira da aldeia, mas sim que fora para a floresta. Saban sabia que tais proscritos erravam por entre as árvores, dizia-se que tão selvagens como qualquer animal. Corriam rumores de que se alimentavam de carne humana e que sabiam quando os rapazes da tribo se escondiam por entre as árvores, de modo que os buscavam. Todos esses perigos assustavam Saban, mas havia ainda coisas mais terríveis por entre as árvores: as almas mortas que não tinham passado! para os cuidados de Lahanna assolavam os bosques. Por vezes os caçadores] desapareciam sem deixar rasto e os sacerdotes calculavam que tinham sido] arrebatados pelos mortos ciumentos que tanto odiavam os vivos.

 

Toda a floresta era escura e perigosa, por isso estava sempre a ser cortada e as mulheres não podiam lá entrar. Podiam procurar ervas à entrada junto à aldeia ou atravessá-la acompanhadas por homens, mas não lhes era permitido passarem para lá dos campos mais afastados, receando-se que fossem assaltadas por almas ou espíritos, ou então capturadas pelos proscritos. Algumas mulheres, muito poucas, fugiam mesmo, para se reunirem com estes fugitivos e uma vez juntos, escondidos por entre as árvores, formavam pequenos clãs selvagens, que roubavam colheitas, crianças, manadas e rebanhos.

 

Porém, Saban não viu esses perigos enquanto atravessava a floresta em direcção ao ocidente. O sol fazia brilhar as folhas verdes e o vento quente murmurava nos ramos. Seguiu o mesmo caminho por onde ele e Lengar tinham perseguido o forasteiro que trouxera o tesouro a Ratharryn e, embora soubesse que corria riscos em passar por aquele atalho, ignorou-os, pois não queria que os cães de Jegar tivessem qualquer dificuldade em seguir-lhe o espírito através do emaranhado das árvores.

 

À tarde, quando chegou ao cimo de onde podia avistar as longínquas florestas a ocidente, Saban ouviu o leve som do soprar de um chifre de boi. Esse som agoirento informou-o que os caçadores de Ratharryn tinham partido. Trariam brasas acesas dentro de vasos, de modo que se decidissem passar a noite no bosque poderiam fazer enormes fogueiras para deter os espíritos e os animais. Saban não poderia usar tais defesas. Tinha apenas a ajuda de Slaol e uma pequena faca quebradiça feita de sílex.

 

Passou muito tempo em busca de uma árvore que servisse os desígnios de Slaol. Sabia que os cães de Jegar se deveriam precipitar pelo atalho, mas tinha um bom avanço e tempo suficiente; algum tempo depois decidiu-se por um carvalho que crescia baixo e largo, embora a meio do tronco houvesse um espaço de onde não saíam ramos. Poderia facilmente trepar a primeira parte da árvore, precisando depois de saltar, para se agarrar ao ramo conveniente que tinha a grossura do braço de um homem. Era o apoio perfeito e, se Jegar pensasse que Saban estava escondido por entre as folhas mais altas da árvore, treparia até elas. Saban saltou e agarrou-se com força, enquanto com os pés procurava apoio no tronco. Depois içou-se, escarranchou-se no ramo estreito da árvore.

 

Sentou-se de frente para o tronco, murmurando uma curta prece à árvore, para que esta lhe perdoasse a ferida que lhe ia infligir; a seguir usou a ponta da faca para cortar uma fenda estreita ao longo da superfície mais elevada do ramo. Depois, quando o corte ficou suficientemente largo e profundo, enfiou a lâmina de sílex na madeira de modo a que a superfície fibrosa, de lascas brancas, sobressaísse da casca. Executou bem o trabalho, pois, quando terminou a lâmina assentava com firmeza na fenda da árvore. Cuspiu no sílex para lhe dar sorte e depois desceu do ramo. Olhou para cima, certificando-se de que a pequena armadilha era invisível, recolheu e escondeu as pequenas lascas de madeira recém-cortada que tinham caído pelo tronco do carvalho.

 

Foi pela encosta abaixo até ao ribeiro que corria no sopé do monte e, uma vez aí, seguiu pela água pouco profunda, pois toda a gente sabia que os espíritos não a podiam atravessar. Enquanto estava metido no riacho, o espírito enfiava-se-lhe no corpo, não deixando qualquer pista para os cães de Jegar. Percorreu um longo caminho, murmurando por vezes uma prece para aplacar o espírito do ribeiro e voltou a subir o monte em busca de um local onde pudesse descansar.

 

Encontrou-o no sítio em que dois ramos saíam do tronco de um ulmeiro, tendo colocado, atravessados sobre eles, outros ramos mais pequenos, de modo a fazer um estrado onde se pudesse deitar em segurança. Estava escondido a uma altura suficiente para poder ver por entre as folhas as nuvens brancas percorrerem o céu luminoso e, esticando o pescoço, conseguia olhar para o chão, coberto de musgo, junto à árvore. Durante muito tempo, nada aconteceu. O vento agitava as folhas, um esquilo batia os dentes e duas abelhas voavam ali perto. Algures, um pica-pau bicava a casca de uma árvore, parava e recomeçava. Um restolhar de folhas mortas fez com que Saban espreitasse, receando o que pudesse vir a descobrir, mas apenas viu passar uma raposa com um mergulhão na boca.

 

Mais tarde os ruídos vivos dos bosques, os pequenos sons de garras, bicos e patas desapareceram e apenas se ouvia o suspiro do vento por entre as folhas e nas fendas das árvores. Tudo o que respirava escondia-se imóvel, pois sentia-se a presença de qualquer coisa nova e estranha. Havia perigo; a floresta sustinha a respiração e Saban escutava, até conseguir por fim ouvir o ruído que silenciara o mundo. Um cão ladrava.

 

O dia estava quente, mas de súbito a pele nua de Saban gelou.

 

Sentia os pêlos do pescoço eriçarem-se. Outro cão uivou e Saban ouviu então ao longe vozes de homem. Estavam na encosta, bem acima dele. Caçadores.

 

Conseguia imaginá-los. Deveria ser uma meia dúzia de jovens chefiados por Jegar, todos altos, fortes e bronzeados, com os longos cabelos entrançados e enfeitados com penas. Espreitariam o carvalho, encostando-se às lanças e gritando insultos para o local onde pensavam que se escondia Saban. Talvez perdessem algumas flechas na ramaria, na esperança de o fazer descer, para o levarem de volta para Ratharryn, fazendo desfilar a sua vergonha diante da cabana do pai. Porém, em pouco tempo se haviam de aborrecer e um deles que fosse Jegar, implorava Saban. Treparia o tronco do carvalho para o encontrar.

 

Saban estava deitado de olhos fechados, à escuta. Depois ouviu um grito. Não era apenas um grito, mas também um latido de protesto, dor e raiva; soube então que a pequena armadilha dera resultado. Sorriu.

 

Jegar caiu da árvore, praguejando pois tinha na palma da mão direita um profundo golpe. Guinchou e apertou a mão ensanguentada entre as pernas, enquanto se curvava para aliviar a agonia. Um dos amigos colocou-lhe musgo na ferida e ligou a mão com folhas; depois, furiosos, percorreram velozmente o cume, mas nem eles nem os cães uivantes se aproximaram de Saban. Seguiram o seu espírito até ao ribeiro mas aí os animais perderam-no e, pouco depois, abandonavam a caçada. O ruído dos cães afastou-se e pôde ouvir-se de novo a miríade de pequenos sons do bosque.

 

Saban sorriu. Reviveu o momento em que ouvira o grito e agradeceu a Slaol. Riu-se. Tinha vencido.

 

Tinha vencido, porém não se moveu. Agora tinha fome, mas não se atrevia a ir à procura de comida, no caso de legar andar pela encosta, de modo que ficou no seu pequeno estrado observando os pássaros que voltavam aos ninhos e o céu avermelhado com a ira de Slaol por o mundo ir passar para o cuidado de Lahanna. O frio subia do ribeiro. Um veado e a sua corça avançavam lenta e delicadamente, passando sob o teixo em direcção à água e indicavam com o seu aparecimento que havia caçadores escondidos lá em cima, no cume; mesmo assim, Saban não se moveu. A fome e a sede podiam esperar. Nas fendas entre a folhagem mais alta via o céu ficar enevoado e brumoso e aparecer depois a primeira estrela do rebanho de Lahanna. A tribo chamava Merra à estrela e esta recordava a Saban que todos os seus antepassados o estavam a observar, trazendo-lhe contudo o medo daqueles que tinham morrido na ignomínia e que se erguiam agora do seu sono diurno para deixar os seus espíritos famintos vaguear por entre as árvores escuras. À medida que se soltavam os terrores nocturnos da floresta, descobriam-se estranhas garras e dentes raivosos.

 

Saban mal dormiu, pelo contrário, deixou-se ficar deitado, à escuta dos ruídos da noite. Ouviu uma vez um estalar de ramos, o som de um corpo grande a passar pelos arbustos, depois de novo o silêncio, no qual imaginou uma cabeça monstruosa, garras estendidas procurando o ulmeiro. Soou um grito no cimo do monte, que fez com que Saban se enrolasse numa bola e gemesse. Um mocho piou. Os únicos consolos do rapaz eram as estrelas dos seus antepassados, a luz fria de Lahanna, cobrindo de prata as folhas e os seus pensamentos acerca de Derrewyn. Pensava muito nela. Tentou lembrar-se da imagem do seu rosto. Uma vez, pensando nela, levantou o rosto e viu um raio de luz deslizar por entre as estrelas, o que lhe deu a conhecer que um deus descia à terra; tomou-o como sinal de que ele e Derrewyn estavam destinados um ao outro.

 

Escondeu-se durante cinco dias e cinco noites, procurando comida apenas ao amanhecer e ao crepúsculo. Encontrou uma clareira na base do monte, no local em que o ribeiro fazia uma curva larga no seu curso e aí encontrou cerefólio e alho. Apanhou folhas de consolda e azedas, bem como rebentos de giesta já amargos, pois a época já tinha passado. O melhor de tudo era a erva-moira que encontrou mais acima, no monte onde tinha caído um enorme ulmeiro. Levou tudo para o seu estrado no teixo, retirando-lhe os bichinhos antes de as comer. Um dia conseguiu mesmo apanhar uma pequena truta nas ervas do ribeiro e mordeu avidamente a sua carne crua. À noite mastigava a resina que sai da casca da árvore, cuspindo-a quando já não tinha sabor.

 

Jegar desistira da caçada, embora Saban não o soubesse e um dia ao crepúsculo, quando procurava erva-moira junto ao ulmeiro apodrecido, ouviu passos e ficou imóvel. Escondeu-se na árvore caída, mas o local era precário e o coração batia-lhe célere.

 

Momentos depois passou uma fila de lanceiros do Povo da Fronteira. Eram todos homens, todos com lanças de ponta de bronze e com traços cinzentos tatuados nas faces. Não tinham cães consigo e pareciam mais dispostos a deixar o monte, do que a procurar uma presa. Saban ouviu chapinhar no ribeiro, ouviu o bater das asas das aves marinhas que fugiam na sua presença e depois fez-se de novo silêncio.

 

A última noite de Saban foi a pior. Choveu e houve muito vento, de modo que havia mais ruídos que nunca nas árvores, pois as copas agitavam-se no céu molhado. Os ramos estalavam e, ao longe, Rannos, o deus do trovão ribombava nas trevas. Estava escuro, muito escuro, sem o raio de luz de Lahanna atravessando ou espreitando por entre as nuvens. A escuridão era pior que uma cabana fria, pois era uma noite sem limite, cheia de horrores; no centro dela, Saban ouvia uma coisa grande e disforme estalar pela floresta, de modo que se enrolou no seu estrado pensando nas almas mortas e no seu desejo de carne humana, até que, molhado, frio e cheio de fome, viu a madrugada cinzenta diluir a húmida escuridão por cima do monte. A chuva diminuiu, o céu ficou mais brilhante e depois os chifres de boi soaram, para dizer que a primeira prova tinha terminado.

 

Tinham saído de Ratharryn vinte e dois rapazes, mas apenas dezassete voltavam. Um tinha desaparecido e nunca mais foi visto, dois foram encontrados pelos caçadores e levados de volta para Ratharryn, enquanto mais outros dois ficaram tão aterrorizados com a escuridão das árvores, que tinham voltado
de livre vontade para a sua humilhação. Mas os dezassete que se juntaram no templo de Slaol foram autorizados a atar o cabelo na nuca com um nó largo, seguindo depois os sacerdotes pelo caminho que levava à entrada de Ratharryn, ladeado de mulheres que lhes estendiam pratos com pão, carne de porco fria e peixe seco.

 

Comam insistiam com os rapazes. Devem ter fome, comam! Mas, embora esfomeados, nenhum tocou na comida, pois também esta era uma prova, embora fácil de ultrapassar.

 

Os homens da tribo esperavam ao lado de uma enorme fogueira que ardia dentro do grande muro e batiam com o punho das lanças no chão para aclamar e receber os dezassete. Os rapazes tinham ainda de enfrentar dois testes, e alguns podiam mesmo fracassar, mas já não eram vaiados. Saban viu Jegar com a mão ligada com folhas atadas com gavinhas e não conseguiu resistir a executar uns passos vitoriosos. Jegar cuspiu na sua direcção, mas por mera insolência. Perdera a oportunidade e Saban sobrevivera na floresta.

 

Na prova seguinte, os rapazes tinham de lutar contra homens. Não importava se venciam ou perdiam, afinal ninguém esperava que um rapaz quase morto de fome conseguisse derrotar um homem feito, mas era importante que combatessem bem e mostrassem coragem. Saban encontrou-se diante de Dioga, um escravo fronteiriço libertado, famoso pela sua força de urso. A multidão riu-se do contraste que havia entre o homem e o rapaz, mas Saban era mais rápido do que qualquer deles esperava. Escapou-se à investida de Dioga, deu-lhe pontapés, desviou-se de novo dele, bateu-lhe com a mão, troçou dele e atirou um soco que lhe atingiu o rosto; depois o outro, muito maior, apanhou por fim o rapaz, atirou-o abaixo e começou a estrangulá-lo com as mãos enormes. Saban arranhou o rosto tatuado de Dioga, tentando meter-lhe os dedos dentro dos olhos, mas este limitou-se a resmungar e apertou com os polegares a garganta de Saban, até Gilan lhe bater com uma vara e o obrigar a largá-lo.

 

Muito bem, rapaz declarou o sumo sacerdote.

 

Saban sufocou quando tentou responder mas depois sentou-se com os outros rapazes recuperando o ar para os pulmões ávidos.

 

Por fim, os dezassete rapazes suportaram o fogo. Ficaram de pé, de costas voltadas para as chamas, enquanto um sacerdote aquecia a ponta afiada de um ramo de teixo até ficar incandescente. Depois colocava-a em brasa nas omoplatas e aí a mantinha até a pele fazer bolha. Gilan olhava-lhes para o rosto, certificando-se de que não choravam. Saban entoou o cântico furioso de Rannos, enquanto o fogo lhe queimava as costas e o calor era tal, que pensou gritar bem alto; porém, a dor passou e Gilan sorriu com ar de aprovação.

 

Muito bem disse de novo o sumo sacerdote. Muito bem! O coração de Saban estava tão cheio de alegria, que teria conseguido voar como um pássaro.

Era um homem. Podia tomar noiva, possuir um escravo e gado, escolher outro nome para si e falar nos encontros tribais. Neel, o jovem sacerdote, apresentou a Saban a bola de greda onde estava abrigado o espírito da sua infância e Saban dançou sobre ela, aos saltos, partindo-a e desfazendo-a, enquanto pulava deliciado. O pai, incapaz de esconder o seu contentamento, ofereceu-lhe uma túnica de pele de lobo, uma bela lança e uma faca de bronze com cabo de madeira. A mãe deu-lhe um amuleto de âmbar, que Lengar lhe tinha ofertado, mas Saban tentou que ela o guardasse, pois estava doente; porém a mãe não quis. Galeth deu-lhe um arco de teixo, depois fê-lo sentar, para lhe tatuar no peito as marcas de homem adulto. Usou um pente de osso que mergulhava em ísatis, fazendo-o depois penetrar na pele; a dor nada significava para ele, pois já era um homem.

 

Agora podes escolher um novo nome disse-lhe Galeth.

 

Cortador de Mãos disse Saban troçando. Galeth riu-se.

 

Pensei logo que fosse obra tua. Mas fizeste um inimigo para toda a vida.

 

Um inimigo que terá dificuldade em segurar num arco ou em atirar uma lança respondeu Saban.

 

Mas um homem perigoso avisou-o Galeth.

 

Agora é um aleijado disse Saban, já que ouvira dizer que a faca de sílex atravessara os tendões da mão de Jegar.

 

Por isso é ainda um inimigo pior. Então, mudas de nome?

 

Vou mantê-lo afirmou Saban. O seu nome de nascimento significava o Favorito e ele achava-o adequado. Observou o sangue e o ísatis escorrerem-lhe da pele. Era um homem! Depois, sentou-se para festejar com os outros dezasseis que tinham passado as provas, comendo pão e mel; entretanto as mulheres da tribo entoavam o cântico de batalha de Arryn. No fim da refeição, o Sol estava a pôr-se e as raparigas, que durante todo o dia tinham permanecido sequestradas no templo de Lahanna, foram levadas para o templo de Slaol. A tribo colocou-se no caminho que ia da aldeia ao templo, dançando e batendo as palmas, enquanto os dezassete rapazes seguiam as raparigas, que nessa altura se transformariam em mulheres.

 

Derrewyn não se encontrava entre elas. Era demasiado valiosa como noiva para se entregar a uma noite de orgia, mas, na manhã seguinte, quando Saban voltava para a aldeia para encontrar um sítio onde pudesse erguer a sua cabana, Derrewyn felicitou-o. Deu-lhe um dos seus preciosos colares de conchas brancas. Saban corou com a oferta e Derrewyn riu-se da sua confusão.

 

Nesse mesmo dia Gilan começou a planear como haveria de colocar as oito pedras.

Os novos homens não precisavam de trabalhar no dia seguinte às provas, de modo que Saban caminhou pelo monte acima, para ver Gilan começar a obra no Velho Templo. Havia borboletas por todo o lado, um exército de asas azuis e brancas flutuando sobre a erva coberta de flores, onde uma dezena de pessoas escavava a greda branca com picaretas de hastes de veado, de modo a abrir os fossos e erguer as barreiras que limitariam o novo atalho sagrado, conduzindo à porta do templo virada para o Sol.

 

Saban dirigiu-se para o lado ocidental do templo e sentou-se sobre a erva. Tinha junto a si a lança nova e interrogava-se quando a usaria numa luta. Agora era um homem, mas a tribo esperava que matasse um inimigo, antes de o considerar propriamente adulto. Sacou a faca de bronze que o pai lhe oferecera e admirou-a à luz do Sol. A lâmina era curta, um pouco mais pequena do que a sua mão, mas o metal fora trabalhado num milhar de pequenos cortes formando um padrão complexo. Uma faca de homem, pensou Saban, voltando a lâmina de modo que o sol incidisse no metal.

 

Ouviu a voz de Derrewyn atrás de si.

 

O meu tio tem uma faca igual a essa. Diz que foi feita na terra que fica do outro lado do mar, a ocidente.

 

Saban voltou-se para olhar para ela.

 

O teu tio? perguntou.

 

Kital, chefe de Cathallo, claro fez uma pausa e acocorou-se a seu lado e passando o dedo delicado nas crostas vermelho-azuladas das suas novas tatuagens. Doeu muito? perguntou.

 

Não, vangloriou-se Saban.

 

Deve ter doído.

 

Um pouco admitiu.

 

É melhor ter essas cicatrizes do que ser morto por Jegar disse Derrewyn.

 

Não teria conseguido matar-me afirmou Saban. Só queria arrastar-me para Ratharryn e fazer com que andasse a carregar greda para o meu pai.

 

Creio que te teria matado insistiu Derrewyn, lançando-lhe depois um olhar enviesado. Cortaste-lhe a mão?

 

De certo modo admitiu Saban a sorrir. Ela riu-se.

 

Geil disse-me que talvez já não possa usar a mão convenientemente. Geil era a esposa mais velha de Hengall, com quem Derrewyn vivia e era famosa pelas suas habilidades de curandeira. Disse a Jegar que deveria ir a Sannas porque ela é muito mais poderosa. Derrewyn colheu uns malmequeres. Sabias que Sannas endireitou o pé do teu irmão?

 

Sim? perguntou Saban surpreendido.

 

Abriu-lhe o pé explicou a rapariga. Havia sangue por todos os lados. Fê-lo na noite de lua cheia e ele não soltou um ai; depois ligou-lho a uns ossos de veado e ele teve febre. Começou a fazer uma grinalda com os malmequeres. Está melhor.

 

Como sabes? perguntou Saban.

 

Um mercador trouxe notícias enquanto estavas na floresta. Fez uma pausa para cortar com a unha afiada o pé do malmequer. Disse também que Sannas está zangada com o teu irmão.

 

Porquê?

 

Porque Camaban se foi embora respondeu Derrewyn, franzindo a testa. Foi-se embora mesmo antes de ter o pé curado e ninguém sabe para onde. Sannas pensou que pudesse ter vindo para aqui.

 

Não o vi disse Saban, sentindo-se um pouco aborrecido por não ter ouvido antes estas notícias acerca do irmão ou talvez estivesse desapontado por Camaban não ter vindo para Ratharryn, embora não se lembrasse de uma única razão para que ele quisesse visitar a tribo do pai. Saban gostava daquele meio-irmão desajeitado e gago e sentia-se aflito por Camaban ter partido sem se despedir.

 

Quem me dera que tivesse vindo para cá disse Saban. Derrewyn estremeceu.

 

Só o vi uma vez e pareceu-me assustador.

 

É só desajeitado disse Saban quase a sorrir. Dantes levava-lhe comida e ele gostava de tentar assustar-me. Gritava e saltava, fingindo estar louco.

 

Fingindo?

 

Gosta de fingir.

 

Ela encolheu os ombros e abanou a cabeça como se o destino de Camaban não tivesse importância. A sul do templo, um grupo de homens arrancava a lã do lombo dos carneiros, fazendo-os balir aflitivamente. Derrewyn riu-se dos animais despidos, enquanto Saban a olhava, maravilhado com a delicadeza do seu rosto e a suavidade das suas pernas morenas do sol. Não era mais velha do que ele, mas Saban achava que ela tinha a confiança que lhe faltava. A própria Derrewyn fingia não reparar ser admirada, voltando-se apenas para olhar para o Velho Templo, onde Gilan era ajudado por Galeth e por Mereth, seu filho, apenas um ano mais jovem que Saban. Um ano apenas, todavia, como Saban era já um homem, a diferença entre ele e Mereth parecia muito maior.

 

Gilan e os dois ajudantes tentavam encontrar o centro do santuário e, para o fazer, tinham esticado um fio de fibra de casca de árvore sobre o círculo de relva dentro da barreira interior. Assim que tiveram a certeza de ter descoberto o máximo espaço dentro do círculo, dobraram o fio e ataram um bocado de erva à ponta dobrada. Deste modo, sabiam que tinham um fio com o comprimento igual à largura do círculo e que o nó de erva marcava o centro exacto da linha; voltavam agora a esticá-la várias vezes sobre a largura do círculo, numa tentativa para encontrar o centro do templo. Galeth pegava numa ponta do fio, Mereth na outra e Gilan encontrava-se no meio, perguntando constantemente aos dois ajudantes se estavam ao lado da barreira, sobre ela ou por trás; quando ficava satisfeito com os locais onde eles se encontravam, marcava o sítio em que o bocado de erva estava amarrado, espetando um pau no chão. Havia já uma dúzia deles, uns palmos distantes uns dos outros, não havendo mais do que um no mesmo sítio. Gilan continuava a fazer medições, na esperança de encontrar dois pontos concordantes.

 

Porque é preciso encontrar o centro do templo? perguntou Saban.

 

Porque na manhã do Solstício saberão exactamente onde Slaol se ergue e traçarão uma linha daí até ao centro do templo explicou Derrewyn, que era filha de um sacerdote e entendia dessas coisas.

 

Gilan decidira-se agora por um dos muitos paus, de modo que arrancou os outros do solo, antes de espetar desajeitadamente uma estaca no chão marcando o centro do santuário. Parecia que tinham terminado o dia de trabalho, pois Gilan enrolava o fio numa bola e, depois de murmurar uma prece, voltavam todos para Ratharryn.

 

Queres vir caçar? gritou Galeth para Saban.

 

Não respondeu este.

 

Agora que és homem estás com preguiça? perguntou Galeth, bem-disposto. Depois acenou e seguiu o sumo sacerdote.

 

Não queres caçar? perguntou Derrewyn a Saban.

 

Agora sou um homem explicou Saban. Posso ter a minha cabana, possuir gado e escravos e levar uma mulher para a floresta.

 

Uma mulher? perguntou Derrewyn.

 

Tu, afirmou. Levantou-se, pegou na lança e depois estendeu a mão. Derrewyn olhou-o por um instante.

 

O que aconteceu ontem à noite no templo?

 

Havia dezassete homens e catorze raparigas explicou Saban. Eu dormi.

 

Porquê?

 

Estava à tua espera disse sentindo o coração enorme e trémulo, parecendo-lhe que o que estava a fazer agora era mais perigoso do que dormir nas árvores escuras entre os inimigos fronteiriços e proscritos. Tocou no colar de conchas que ela lhe dera. Estava à tua espera repetiu.

 

Ela ergueu-se. Por um instante Saban pensou que Derrewyn lhe ia voltar as costas, mas a rapariga sorriu e pegou-lhe na mão.

 

Nunca estive na floresta disse.

 

Então é altura de lá ires afirmou Saban e conduziu-a para oriente. Era um homem.
SABAN E DERREWYN SEGUIRAM PARA ORIENTE, ATRAVESSANDO o RIO MAI; seguiram depois para norte, passando a aldeia até chegarem a um lugar onde o vale era alcantilado e estreito, com árvores frondosas inclinando-se lá em cima sobre a água corrente. Havia muito que o canto do codornizão se afastara nos campos de trigo e agora apenas ouviam o correr do rio, o murmúrio do vento, o raspar das patas dos esquilos e a cadência do voo de um pombo por entre a alta folhagem. À beira-rio, junto da hortelã cresciam orquídeas de cor púrpura, enquanto a bruma clara das campainhas acentuava as sombras por baixo das árvores. As libelinhas rodopiavam brilhantes sobre o rio, onde pequenas aves lacustres pintalgadas de vermelho chapinhavam por entre os juncos.

 

Saban levou Derrewyn para uma ilha no rio, um local onde os salgueiros e freixos eram frondosos, numa margem de relva alta e musgo espesso. Atravessaram a água até lá, deitaram-se depois no musgo e Derrewyn viu as bolhas de ar quebrarem-se à superfície da água sombreada pela folhagem, onde as lontras nadavam atrás dos peixes. Na margem oposta surgiu uma corça, que desapareceu aos saltos antes de ir beber, quando Derrewyn suspirou admirada, fazendo demasiado ruído. Depois quis apanhar peixes, de modo que pegou na lança nova de Saban e meteu-se nas poças, mergulhando de vez em quando a arma, quando passava uma truta ou um timalo, mas falhando sempre.

 

Aponta para baixo deles disse-lhe Saban.

 

Para baixo deles?

 

Vês como a lança se dobra dentro de água?

 

Parece que se dobra disse, fazendo de novo pontaria e voltando a falhar. A lança era pesada e cansava-a, de modo que a atirou para a margem, deixando-se ficar ali de pé com o rio a correr-lhe pelas pernas morenas.

 

Queres ser chefe da aldeia? perguntou a Saban algum tempo depois. Ele assentiu.

 

Sim, creio que sim.

 

Ela voltou-se de frente para ele.

 

Porquê?

 

Saban não tinha resposta. Habituara-se à ideia, e pronto. O pai era chefe e, embora isso não significasse necessariamente que um dos filhos de Hengall tivesse de lhe suceder, a tribo pensaria primeiro neles e Saban era agora o único que poderia herdar esse cargo.

 

Creio que quero ser como o meu pai disse cauteloso. É um bom chefe.

 

O que faz um bom chefe?

 

Mantém as pessoas vivas durante o Inverno respondeu Saban. Limpa as florestas, resolve com justiça as disputas e protege a tribo dos inimigos.

 

De Cathallo? perguntou Derrewyn.

 

Só se Cathallo nos ameaçar.

 

Não ameaçam. Encarrego-me disso.

 

 

Sim?

 

Kital gosta de mim e um dos seus filhos será chefe a seguir a ele. São todos meus primos e todos me estimam. Olhou timidamente para Saban, como se este pudesse considerar esse facto surpreendente. Insistirei para que sejamos todos amigos disse ferozmente. É estúpido sermos inimigos. Se os homens querem lutar, deveriam ir à procura de fronteiriços. De repente salpicou-o. Sabes nadar?

 

Sei.

 

Ensina-me.

 

Atira-te lá para dentro sugeriu Saban.

 

E afogo-me declarou ela. Uma vez afogaram-se dois homens em Cathallo, não os encontrámos senão muitos dias depois e estavam todos inchados. Fingiu desequilibrar-se. Vou ficar como eles, toda inchada, mordida pelos peixes e a culpa vai ser tua, por não me teres ensinado a nadar.

 

Saban riu-se, mas levantou-se e despiu a sua nova túnica de pele de lobo. Até alguns dias atrás andara sempre nu no Verão, mas agora sentia-se embaraçado ao despi-la. Correu velozmente para a água que estava maravilhosamente fresca depois do calor que havia debaixo das árvores e nadou, afastando-se de Derrewyn, metendo-se numa lagoa profunda, onde o rio rodopiava em pequenas ondas. Quando chegou ao centro, agitou a água, mantendo a cabeça à tona e voltou-se para dizer a Derrewyn que entrasse no rio, descobrindo porém que ela já lá estava, muito perto, mesmo atrás dele. Ela riu-se da sua expressão espantada.

 

Há muito tempo que aprendi a nadar disse e depois de encher o peito de ar, mergulhou, levantando no ar as pernas nuas de modo a conseguir passar por baixo de Saban. Também ela estava nua.

 

Saban nadou até à ilha, onde se deitou na relva de barriga para baixo. Observava Derrewyn mergulhar e nadar e continuava a fazê-lo quando ela chegou à beira do rio e saiu lentamente de dentro de água com o longo cabelo negro escorrido, a pingar. Saban recordou-se de Mai, a deusa do rio, saindo de dentro de água na sua enorme beleza; depois ela ajoelhou junto a ele, arrepiando-lhe a pele das costas ao tocar-lhe com o cabelo nas cicatrizes das queimaduras. Ficou imóvel, consciente da presença dela, mas mal se atrevendo a mover-se não fosse assustá-la. Disse para consigo que fora para aquilo que a trouxera à floresta, embora agora, que o momento chegara, se sentisse consumido pelo nervosismo. Derrewyn devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, pois tocou-lhe no ombro, obrigando-o a voltar-se, baixando-se depois para se abrigar nos seus braços.

 

Comeste o barro, Saban murmurou ela, passando-lhe o cabelo molhado nos ombros. O feitiço da caveira não pode atingir-te.

 

Tens a certeza?

 

Garanto-te murmurou e ele estremeceu, pois parecia-lhe que, de facto, Mai tinha saído da água em todo o seu esplendor. Apertou-a com força contra si e, como um imbecil, pensou que aquela felicidade duraria para sempre.

 

Naquela tarde, enquanto Derrewyn e Saban esperavam que o Sol se pusesse e que o crepúsculo trouxesse as sombras que secretamente os ocultassem a caminho de casa, ouviram cantar na encosta sobranceira à margem ocidental do rio. Vestiram-se, atravessaram o braço do rio e subiram em direcção ao som, mais alto a cada passo. Caminhavam os dois lenta e cautelosamente, mas nem precisavam de tanta preocupação para não serem vistos, pois os cantores estavam demasiado concentrados na sua actividade para reparar nos dois amantes por entre as árvores.

 

Eram mulheres de Cathallo que se alinhavam de ambos os lados de setenta homens cobertos de suor; estes puxavam longas cordas de couro torcido, ligadas a um enorme trenó de carvalho onde assentava a primeira das oito pedras de Ratharryn. Era uma das pedras mais pequenas, porém o seu peso era tal que os homens esforçavam-se e gemiam para continuar a fazer mover o trenó pelo rude caminho da floresta. Alguns seguiam adiante para alisar o atalho, cortando raízes e afastando com os pés tufos de erva mas, algum tempo depois, os homens que puxavam as cordas estavam simplesmente exaustos para continuar. Tinham trabalhado todo o dia, tinham mesmo puxado o enorme trenó, subindo a encosta sul de Maden, porém estavam tão cansados que o deixaram a meio da encosta e caminharam para sul, em direcção a Ratharryn, onde esperavam que lhes dessem de comer. Derrewyn pegou no braço de Saban.

 

Vou com eles murmurou.

 

Porquê?

 

Assim, posso dizer que vim ao seu encontro. Desse modo ninguém perguntará onde estive. Pôs-se em bicos dos pés, deu-lhe um beijo no rosto e de seguida correu atrás das pessoas que se afastavam.


 

Saban esperou até terem desaparecido e depois foi acariciar a pedra no seu trenó de madeira de carvalho. Estava quente ao toque e, quando o Sol penetrava a folhagem para brilhar sobre ela, pequenos raios de luz cintilavam na rocha. O toque da pedra coincidiu com um enorme sentimento de felicidade. Era um homem e tinha a mulher mais bela da terra. Abraçara Derrewyn na margem do rio e parecera a Saban que a vida era muito rica e cheia de esperança. Os deuses amavam-no.

 

Para Hengall era difícil pensar que os deuses o amavam, pois naquela noite um grande número de elementos do povo de Cathallo chegara a Ratharryn, precisando ser alimentados e alojados para dormir; ao pagar as peças de ouro pelas oito pedras, não se apercebera de que lhe custariam tanto em comida. Tinha ainda de fornecer mais homens para ajudar a içar as pedras e, como os iria procurar nas famílias mais pobres da aldeia, teria de lhes pagar em carne e cereal. Hengall via os rebanhos diminuir e começava a duvidar da sensatez do negócio, mas não tentou repudiá-lo. Enviou os homens para içar as pedras e, dia após dia estava-se no pino do Verão, as enormes pedras eram arrastadas para Ratharryn.

 

As quatro maiores mostraram-se muito difíceis. Havia um caminho a atravessar os terrenos pantanosos cortados por ribeiros, perto de Maden, mas era demasiado estreito para as pedras maiores, de modo que os homens de Kital içaram-nas primeiro para ocidente e depois voltaram-nas para sul, em direcção a Ratharryn. Porém havia uma colina no caminho, não tão íngreme como aquela por onde as quatro pedras mais pequenas já tinham subido, mas mesmo assim um obstáculo formidável, demasiado para os homens que arrastaram o primeiro dos enormes blocos de pedra. Arranjaram-se mais cordas e ataram-se mais homens ao trenó mas, mesmo assim, a pedra não subia a encosta. Tentaram puxar o trenó com bois, mas quando os animais começaram a fazer força emaranharam-se uns nos outros sem conseguir avançar. Só quando Galeth teve a ideia de prender os bois a uma grande barra de carvalho, atando depois as cordas a essa barra e ao trenó, conseguiram fazer mover a pedra, arrastando-a assim para o cimo do monte, de onde, com os patins, junto à erva, foi impelida para diante. As outras três enormes pedras foram trazidas da mesma forma. Os sacerdotes penduraram flores nos chifres dos bois, os cantores rodearam-nos e houve alegria em Ratharryn. O Verão era ameno, as pedras tinham chegado em segurança e parecia terem-se já afastado os maus presságios do passado.

 

Chegou o Solstício. Acenderam-se as fogueiras e os homens de Ratharryn vestiram as peles de boi para perseguir as mulheres no templo de Slaol. Saban não se juntou aos homens-boi, embora o pudesse ter feito; preferiu antes ficar sentado junto a Derrewyn e quando as fogueiras baixaram, saltaram as chamas de mãos dadas. Gilan distribuiu o licor destilado para a noite dos festejos; alguns gritavam, pois tinham visões, outros tornavam-se belicosos ou sentiam-se
doentes, mas por fim adormeceram. À excepção de Saban, que permaneceu desperto, já que Jegar, embriagado, o procurava com uma lança na mão esquerda e a vingança no espírito toldado pelo álcool. Saban manteve-se junto ao templo, guardando Derrewyn, que dormia, embora de madrugada tivesse, finalmente, cedido ao sono; nessa altura foi acordado por passos, erguendo rapidamente a lança. Vinha um homem a subir o caminho da aldeia e Saban acocorou-se, pronto a atacar, porém viu o reflexo da fogueira quase apagada na calva do homem e apercebeu-se que se tratava de Gilan e não de Jegar.

 

Quem está aí? perguntou o sumo sacerdote.

 

Saban.

 

Podes ajudar-me disse Gilan alegremente. Preciso de um ajudante. Ia pedir a Neel, mas está a dormir como uma pedra.

 

Saban acordou Derrewyn e os dois acompanharam Gilan ao Velho Templo. Era a noite mais curta do ano e o sacerdote olhava constantemente para o horizonte a nordeste temendo que o Sol se erguesse antes de lá chegarem.

 

Preciso de marcar o Sol nascente explicou, quando passavam pelos túmulos. Inclinou-se perante os antepassados e apressou-se a chegar ao local onde o esperavam as oito pedras nos seus trenós, mesmo à entrada do fosso do templo. O céu a nordeste já se iluminava perceptivelmente, mas o Sol tinha ainda de abrasar as florestas longínquas.

 

Precisamos de marcadores disse Gilan, e Saban desceu à vala de onde trouxe doze grandes bocados de greda branca, ficando depois no caminho da entrada, enquanto Gilan se dirigiu para a estaca que marcava o centro do templo. Derrewyn, proibida de lá entrar por ser mulher, esperou entre os fossos e as barreiras do recém-aberto caminho sagrado.

 

Saban voltou o rosto para nordeste. O horizonte apresentava-se sombrio e os montes em frente estavam cinzentos e envoltos no fumo das fogueiras do Solstício já apagadas, que se erguia no vale de Ratharryn. Nas encostas mais próximas, os bois pareciam formas brancas e fantasmagóricas.

 

Em breve, em breve afirmou Gilan, orando para que as nuvens espalhadas no horizonte não escondessem o nascer do Sol.

 

As nuvens ficaram de um tom rosado, que escureceu e se espalhou, tornando-se vermelho, e Saban, olhando para o sítio onde o céu em brasa tocava no negro azeviche da terra, viu nele uma fenda sobre as árvores; de repente os bosques distantes rebrilharam intensamente quando o Sol começou a rasgar as nuvens.

 

Para a esquerda! exclamava Gilan. Para a esquerda! Um passo. Não, para trás! Aí! Aí!

 

Saban colocou o marcador de greda a seus pés, ficando depois a ver o Sol afastar as estrelas. A princípio, Slaol apareceu como uma bola lisa escorrendo fogo pela orla da floresta, depois o vermelho tornou-se branco, demasiado
intenso para os olhos e a primeira luz do novo ano percorreu o novo atalho sagrado que conduzia à entrada do Velho Templo. Saban protegeu os olhos e viu as sombras da noite encolherem no vale.

 

À tua direita! gritou Gilan. À tua direita! Obrigou Saban a colocar outro marcador no local onde o Sol era por fim totalmente visível sobre o horizonte e esperou até que este brilhasse mesmo por cima da cabeça de Saban, fazendo-o nessa altura colocar o terceiro marcador. O som da tribo a entoar o cântico de boas-vindas ao Sol, chegou-lhes suavemente do outro lado da relva.

 

Gilan examinou os marcadores que Saban colocara com um murmúrio de satisfação, ao reparar que alguns dos antigos postes apodrecidos nos buracos assinalavam os mesmos alinhamentos.

 

Fizemos um bom trabalho disse em tom aprovador.

 

Que fazemos a seguir? perguntou Saban.

 

Gilan apontou para ambos os lados da entrada do templo.

 

Colocaremos duas das pedras maiores aqui, a servir de entrada disse, apontando a seguir para o sítio do caminho sagrado onde Derrewyn se encontrava. Colocamos outras duas ali para enquadrar o nascer do Sol no Solstício.

 

E as quatro pedras mais pequenas? perguntou Saban.

 

Marcarão os passeios de Lahanna respondeu o sacerdote, apontando para o outro lado do vale do rio. Conhecemos o ponto mais a sul em que aparece disse, voltando-se, e apontou na direcção oposta. E onde desaparece a norte. O rosto de Gilan parecia cintilar de felicidade, à luz da manhã. Será um templo simples, mas belo acrescentou em voz baixa. Muito belo. Uma linha para Slaol e duas para Lahanna, marcando o local onde se encontram no céu.

 

Mas estão separados argumentou Saban.

 

Gilan riu-se. Era um homem bom, majestoso e calvo, que nunca partilhara do temor que Hirac sentia em ofender os deuses.

 

Temos de equilibrar Slaol e Lahanna explicou. Cada um deles já tem um templo em Ratharryn, assim, como se sentiria Lahanna se oferecêssemos a Slaol um segundo santuário só para ele? Deixou a questão sem resposta. Creio que estávamos enganados em manter Slaol e Lahanna separados. Em Cathallo usam um templo para todos os deuses, então porque não haveremos nós de adorar Slaol e Lahanna num único local?

 

Mas mesmo assim, será um templo a Slaol? perguntou Saban ansioso, lembrando-se de como o deus do Sol o tinha ajudado no início da sua prova.

 

Mesmo assim, será um templo a Slaol concordou Gilan. Mas também reconhecerá Lahanna, tal como o santuário de Cathallo. Sorriu. Quando o consagrarmos, casar-te-emos com Derrewyn como antecipação da reunião de Slaol com Lahanna.

 

O Sol estava já suficientemente alto para fazer sentir o seu calor e os três voltaram para a aldeia. Gilan falava das suas esperanças, Saban dava a mão ao seu amor, o fumo das fogueiras do Solstício afastava-se e tudo estava bem em Ratharryn.

 

Galeth era o construtor do templo e Saban tornou-se seu ajudante. Colocaram primeiro as quatro pedras mais pequenas. Gilan calculara as suas posições, que tinham de ser aquelas, não por observação, já que as quatro pedras formavam dois pares e cada um deles apontava na direcção de Lahanna. Nos seus passeios pelo céu, ficava dentro da mesma larga cintura ano após ano, mas, durante a vida de um homem ia uma vez até ao norte e outra até ao sul. Os postes do templo já existente na aldeia marcavam os limites desses passeios a norte e a sul; se o homem desenhasse uma linha entre os pontos do horizonte em que a Lua nascia e se punha, nos seus extremos atravessaria a linha do nascer do Sol no Solstício, formando um ângulo recto. Assim, a tarefa de Gilan tornava-se simples.

 

Não acontece o mesmo em toda a parte explicou a Saban. Só aqui em Ratharryn é que a linha cruza perfeitamente. Não acontece em Drewenna, em Cathallo, nem em lado nenhum! Só aqui! Gilan estava espantado com o facto. Significa que somos especiais para os deuses disse em voz baixa. Significa, penso eu, que este é o centro de todo o mundo!

 

De verdade? perguntou Saban, impressionado.

 

De verdade afirmou Gilan. Claro que Cathallo diz o mesmo acerca do seu Monte Sagrado, mas receio que estejam enganados. Este é o centro do mundo disse, apontando para o Velho Templo. O local onde o primeiro homem foi feito. Estremeceu com a ideia, comovido com a alegria que lhe dava.

 

O sumo sacerdote tinha estendido um fio de urtigas ao longo da linha do nascer do Sol no Solstício, prolongando-o a partir do marcador de greda que indicava o local onde o Sol se erguia, fazendo-o passar pelo centro do templo e terminar na barreira a sudeste. Galeth unira dois bocados de madeira fina para fazer um ângulo recto, encostando-os ao fio e fazendo depois passar outro fio pela madeira transversal, podendo assim marcar uma linha que cruzava a linha do Sol num ângulo recto. Essa nova linha apontava para os extremos das viagens da Lua, mas Gilan queria duas linhas paralelas, uma que apontasse para o limite mais a norte e outra mais a sul, de modo que desenhou a segunda linha e disse a Galeth que as quatro pedras mais pequenas teriam de ser colocadas dentro da barreira, nos extremos exteriores de ambas as linhas traçadas. Uma de cada par teria de ser um pilar e a outra uma laje; junto ao pilar olhando para a laje oposta, o sacerdote poderia ver onde Lahanna nascia e se punha e calcular a sua aproximação durante os seus mais longos passeios.

Galeth tinha trinta homens a trabalhar, que a princípio se limitaram a abrir buracos para as pedras. Raspavam a turfa, depois furavam a greda dura com picaretas e partiam-na em torrões que eram apanhados com pás. Cavavam buracos fundos e Galeth fazia-os inclinar um dos lados para fazer uma rampa, de modo que as pedras pudessem deslizar para o seu lugar. Disse a Saban que não era muito diferente de erguer os grandes postes do templo. Quando os quatro buracos estavam abertos, trouxeram mais homens da aldeia! e a primeira pedra, o pilar mais pequeno, foi arrastada no seu trenó, passando pela entrada do Sol. Saban pensara que haveria uma cerimónia quando a pedra fosse trazida para o seu sagrado lar, mas não houve qualquer outro ritual a não ser a prece silenciosa oferecida por Gilan, com as mãos erguidas ao céu. Os patins do trenó deixaram cicatrizes na erva esmagada. Galeth alinhou a pedra com o buraco e mandou que os homens continuassem a puxar até que a ponta do trenó ficasse mesmo por cima da rampa que Saban alinhara com três vigas alisadas e esfregadas com gordura de porco, de modo a servirem de resvaladouro. Foram precisos doze homens, usando compridas alavancas de carvalho, para erguerem a pedra do trenó. Saban pensou que as alavancas se quebrariam, mas a pedra moveu-se aos poucos, esforço a esforço, e cada esforço a erguia um pouco mais, fazendo-a avançar. Os homens entoavam cânticos! enquanto trabalhavam e o suor escorria-lhes pelo corpo, mas por fim, o peso da pedra fê-la deixar o trenó e cair dentro da rampa. Afastaram-se, temendo que a pedra caísse sobre eles, mas não, tal como Galeth planeara, deslizou imponente pelas vigas engorduradas para se alojar ao fundo da rampa. Galeth limpou o rosto e soltou um enorme suspiro de alívio.

 

Para erguer os grandes postes do templo, Galeth endireitava-os, puxando os seus cimos em direcção ao céu, por meio de um enorme tripé, por onde passavam as cordas. Desta vez calculou que o pilar de pedra era suficientemente pequeno para ser empurrado e endireitado sem qualquer ajuda. Escolheu os doze homens mais fortes que tomaram os seus lugares ao lado da parte superior da pedra, que agora balançava sobre a beira da rampa. Os homens meteram os ombros sob a pedra e tentaram içá-la.

 

Empurrem! gritou Galeth. Empurrem! De facto assim fizeram, mas a pedra ficou parada a meio. Ergam-na! insistiu Galeth, acrescentando a sua enorme força à dos outros; mas a pedra não se movia.

 

Saban espreitou pelo buraco e viu que a pedra encalhara na parede de greda pedregosa. Galeth também o viu, praguejou e pegou no machado de pedra, com o qual partiu essa superfície para arranjar espaço para a pedra.

 

Os doze homens não tiveram dificuldade em aguentar o peso da pedra e, assim que a obstrução foi retirada, empurraram-na para cima. A pedra estava agora a uma altura pouco inferior à de um homem, com outro tanto enterrado no buraco, faltando apenas tapar a rampa e atirar terra e greda para dentro
do buraco, à volta do pedregulho. Galeth recolhera enormes pedras do rio, que foram colocadas à volta da base do pilar, lançando a seguir as pedras de greda e com elas as hastes de veado que se tinham partido enquanto o buraco era escavado. Depois tudo foi pisado repetidas vezes até que por fim, tanto o buraco como a rampa estavam tapados, deixando de pé a primeira pedra do templo. Os três homens soltaram gritos de prazer..

 

Levaram até às colheitas para colocar as outras três pedras da Lua, mas por fim conseguiram-no, então os quatro blocos de pedra cinzentos ergueram-se num rectângulo. Galeth preparara um tripé baixo, de traves de carvalho, para erguer as lajes, pois estas eram mais pesadas que os pilares, mas o que tornou a elevação das pedras ainda mais fácil, foi a ideia de Saban de forrarem as paredes do buraco com madeiras oleadas de modo que o canto da pedra, ao meter-se na terra, não ficasse encalhado na greda. A quarta pedra que ergueram, apesar de ser uma das lajes mais pesadas, levou apenas metade do tempo do primeiro pilar. Galeth elogiou o sobrinho.

 

Os deuses deram-te inteligência.

 

A ti também.

 

Não. Galeth abanou a cabeça. Os deuses deram-me força.

 

As pedras da Lua estavam prontas. Agora, se se quisesse desenhar uma linha pelos pares, estendendo-a de ambos os lados até aos extremos da terra onde os nevoeiros cobriam perpetuamente os mares cinzentos, poderia ver-se a Lua nascer e pôr-se nos limites dos seus passeios e Lahanna, viajando eternamente por entre as estrelas, poderia olhar para baixo e ver que o povo de Ratharryn tinha marcado as suas jornadas. Saberia que a tinham observado, saberia que a amavam e por isso deveria escutar as suas preces.

 

As quatro pedras maiores ficaram fora do templo, enquanto o povo de Ratharryn ceifava o trigo e a cevada daquele ano. Fora uma colheita abundante e as mulheres cantavam na eira lisa e endurecida por um dia inteiro de dança das colheitas. Saban e Derrewyn conduziram-na, fazendo com que as mulheres balançassem a sorrir, pois Derrewyn era jovem e feliz e sabiam que Saban era um jovem bom, honesto e forte, sendo por isso o seu próximo casamento tido como um bom augúrio. Apenas Jegar, que ainda não conseguia segurar o arco com a mão direita, usando apenas a lança desastradamente com a esquerda, parecia ofendido, mas pouco podia fazer. A inveja de Jegar piorou quando um bando de Fronteiriços tentou atacar a colheita de Cheol, uma aldeia perto de Ratharryn e Hengall, à frente de um bando de guerreiros, combateu-os, derrotou-os e trouxe seis cabeças de volta. Uma das cabeças fora tomada por Saban, embora na verdade tivesse sido Galeth quem segurara o aterrorizado guerreiro fronteiriço de modo a Saban poder matá-lo; mesmo assim, Saban foi autorizado a usar no peito uma marca azul de morte.

 

Depois dessa escaramuça e da colheita armazenada, os homens voltaram para terminar o trabalho que restava e Saban, que também ia com eles para
trabalhar, deteve-se para observar o Velho Templo com as quatro novas pedras. De súbito, parecera-lhe diferente. O dia estava frio, a temperatura do Outono pairava já no ar, mas o Sol brilhava por entre as nuvens, iluminando as novas barreiras brancas do caminho sagrado e o círculo de greda branca do fosso e da barreira do templo. Nesse círculo estavam as quatro pedras com as suas sombras rígidas à luz da manhã. Galeth deteve-se ao lado de Saban.

 

Ficam bem disse, parecendo surpreendido, e era verdade. Ficavam esplendidamente, belas, importantes e até calmas. O templo não era maciço e imponente como o santuário de Cathallo, mas fora erguido na encosta verde da colina de modo que as quatro pedras pareciam flutuar no céu. O templo de Cathallo com as suas enormes pedras atarracadas, diminuídas pela enorme barreira, eram mais uma coisa da terra, enquanto este santuário era leve e delicado.

 

É um templo do céu afirmou Saban. Galeth gostou.

 

Um templo do céu. Porque não? É um bom nome. Bateu no ombro de Saban. É o nome correcto. O Templo do Céu! Ergueu um bocado de madeira e espreitou com atenção o horizonte. Procurava fumo que pudesse trair o acampamento de um grupo de caçadores, mas nada viu. Ouvira rumores de que andava um enorme bando de Fronteiriços na floresta, porém Hengall, tendo levado outro bando de guerreiros para ocidente e para sul, não encontrara sinais deles.

 

Esperemos que tenham partido comentou Galeth, tocando nas partes baixas. Pode ser que encontrem outra terra e não a nossa.

 

Havia várias gerações que o Povo da Fronteira ali vivia. Já ninguém vivo se lembrava de quando tinham chegado de uma terra do outro lado do mar oriental, mas todos sabiam que falavam outra língua e tinham costumes diferentes. Alguns, como os homens de Sarmennyn, que haviam perdido os losangos de ouro, tinham descoberto enormes extensões de terra deserta para viverem, mas outros vagueavam ainda pela floresta em busca de local para se estabelecerem; eram esses bandos sem casa que provocavam problemas em Ratharryn, já que as maiores aldeias da Terra da Fronteira ficavam muito longe.

 

Não se aproximarão de nós, pelo menos enquanto tivermos na barreira as cabeças dos membros da tribo deles declarou Saban.

 

Esperemos que não proferiu Galeth tocando de novo nas partes baixas, mas continuando a olhar para sul. Hengall poderia não ter encontrado os esfomeados fronteiriços, mas um grupo de caçadores descobrira um acampamento com cinzas ainda quentes e um comerciante avistara um enorme bando de homens de tatuagens azuis escondendo-se nas árvores frondosas. Tivemos uma boa colheita continuou Galeth. Se a dos Fronteiriços foi má, estarão de olho em nós.

Dirigiram-se ao templo, onde a dificuldade de erguer as últimas pedras fez dissipar os temores de um ataque do Povo da Fronteira. Dois dos blocos de pedra deveriam ser erguidos de ambos os lados da entrada do Sol, eram duas vezes mais altos, duas vezes mais grossos e parecia que muitas vezes mais pesados que os pilares de pedra da Lua. Levaram quatro dias para erguer o primeiro, sem contar com os dias para abrir o buraco e mais três para levantar o segundo. As últimas duas pedras, as pedras do Sol que iriam servir de entrada para a avenida ao nascer do Sol no Solstício, eram ainda maiores. Guardaram a pedra maior para o fim e o buraco que abriram era tão profundo, que um homem de pé lá dentro não conseguia olhar por cima da borda. Fizeram a rampa e forraram-na de madeira, matando outro porco, para que a sua gordura a pudesse untar. Depois, quando tudo estava pronto, iniciaram a colocação da pedra.

 

Foram precisos sessenta homens para retirar do trenó a enorme pedra do Sol. Galeth atou o bloco de pedra com cordas, prendeu-as a quarenta homens, fazendo-os puxá-las para a frente, enquanto os outros usavam alavancas para facilitar a retirada da sua cama de carvalho. Levaram um dia inteiro para tirar a pedra do trenó e grande parte do seguinte para a assentar correctamente na rampa, pois entrara torcida, de modo que tiveram de a endireitar com alavancas; mas ao fim de dois dias de trabalho, conseguiram assentá-la.

 

Galeth construíra um novo tripé de carvalho para erguer as pedras maiores. O instrumento tinha quatro vezes a altura de um homem e, como receava que as cordas feitas de pele que passavam pelo cimo pudessem colar, colocou um bocado macio de ulmeiro na articulação, depois de o ter untado com gordura. Amarrou as quatro cordas à volta da parte superior da pedra, passou-as por cima da peça de ulmeiro, atou-as depois a uma trave de carvalho onde estavam presos dezasseis bois. Os homens chicoteavam e aguilhoavam os animais, de modo que, suavemente, a pedra moveu-se numa lentidão agonizante. Prenderam-se então mais cordas à trave de carvalho e os homens foram ligados a elas ao lado dos animais; de novo os chicotes estalaram, os aguilhões picaram e os homens esforçaram-se por se equilibrar sobre a erva, para lentamente, muito lentamente, erguerem a comprida pedra. Quanto mais alto a içavam, mais fácil se tornava, pois as cordas puxavam agora o cimo da pedra directamente para o bico do tripé, enquanto no princípio do trabalho, as cordas formavam um ângulo estreito com a pedra. A base do bloco esmagou e fez rachar a madeira untada que forrava o buraco, depois, subitamente, Galeth gritou para os homens que conduziam os bois não usarem o chicote.

 

Devagar agora! gritou. Devagar! A pedra estava quase na vertical. Puxem outra vez!

 

Galeth gritou, as cordas rangeram, o tripé estremeceu e Saban receou que a pedra tivesse encalhado numa qualquer obstrução que não tivessem visto no fundo do buraco; contudo a pedra avançou na direcção da parede
coberta de madeira e Galeth gritou aos homens que deixassem de puxar para cima, não fossem erguê-la sobre o buraco. As cordas alargaram, mas a grande pedra do Sol não caiu. Ficou ali, enorme e cinzenta, com mais de duas vezes a altura de um homem.

 

Escoraram a base com pedras, encheram o buraco, soltaram as cordas é assim terminou o trabalho. O Velho Templo já não existia e Ratharryn tinha o seu santuário de pedra. Tinha o Templo do Céu.

 

O dia escolhido para a consagração do Templo do Céu mostrou-se propício, pois estava quente e sem nuvens, um dia de fim de Outono, roubado ao Verão. Toda a gente de Hengall compareceu à cerimónia. Chegaram das aldeias vizinhas e de outros povoados das terras altas, as mulheres reuniam-se no santuário de Lahanna, enquanto os homens dançavam à volta dos postes do templo, onde tinham espetado as lanças e amontoado os arcos, pois naquele dia não poderiam usar armas. O dia era dedicado aos deuses. Ao fim da tarde, Gilan conduziu a tribo da aldeia. Detiveram-se junto aos túmulos, onde o pau de caveira desfilou para contar aos antepassados o que estava a acontecer e depois dançaram até ao local em que o novo caminho sagrado separava a terra coberta de relva. Os sacerdotes da tribo estavam nus, os corpos cobertos de greda branca com padrões curvos desenhados com os dedos abertos, e hastes de veado na cabeça, tendo também o cabelo e a barba enfeitados com ossos e dentes de animais. A gente que seguia os sacerdotes vestira as suas melhores peles.

 

Saban e Derrewyn iam casar depois do pôr do Sol. Derrewyn usava um vestido de peles de veado muito claras, cosidas umas às outras, de modo que a sua tez parecia ainda mais morena, e tinham-lhe entrançado o cabelo com

 

pálidas rainhas-dos-prados. Os pais tinham vindo à cerimónia e Morthor, o pai, sumo sacerdote em Cathallo, dançava com os sacerdotes de Ratharryn; estes traziam consigo uma criança, uma menina loira de três anos que nascera surda. A menina, tal como Derrewyn, tinha o cabelo enfeitado com rainhas-dos-prados.

 

O sol abrasava as faces do povo que atravessava a beira da encosta de onde se estendia o caminho sagrado, limpo e branco que conduzia às oito novas pedras do Templo do Céu. Gilan empunhava o pau de caveira da tribo, enfeitado com azevinho, enquanto Neel, o sacerdote mais jovem, tinha um machado com a cabeça maravilhosamente talhada em pedra vulcânica e afiado por Galeth nessa mesma tarde.

 

O povo dançava, batendo com os pés por entre as barreiras de greda recém-construídas, assustando ao avançar as ovelhas que por ali pastavam. Quatro homens marcavam o ritmo da dança em tambores de pele de cabra, tornando-o mais frenético quando os sacerdotes se aproximaram das quatro pedras maiores fazendo com que a tribo se balançasse de um lado para o outro. As mulheres conduziam o cântico de louvor a Slaol, e os homens repetiam o último verso de cada estrofe.

 

A tribo desviou-se para dançar à entrada do templo. Os sacerdotes entraram e, depois de terem enxotado os animais que pastavam na relva, formaram um círculo para realizar os passos complicados da sua própria dança. Os sacerdotes dançavam dentro e o povo cantava e dançava cá fora. Os homens formavam um círculo muito perto do fosso, com as mulheres do lado de fora, movendo-se todos no mesmo sentido que o Sol, enquanto Slaol se afundava no horizonte. À medida que o Sol se punha, os cânticos e a dança pareciam induzir as pessoas em transe. Algumas mulheres gritavam em êxtase, continuando a dançar, arrebatadas pela música, sem notarem o cansaço nas pernas. Só pararam quando o homem que trouxera os vasos de fogo da aldeia colocou as brasas sobre enormes montes de madeira de ambos os lados do templo. As chamas atearam-se rapidamente, os pequenos rebentos estalavam e o fumo fazia subir as fagulhas no ar. Galeth partira os enormes trenós e empilhara as enormes estacas. Lamentava um tal desperdício de boa madeira, mas os trenós tinham tido uma finalidade religiosa, portanto teriam de ser devolvidos aos deuses. As chamas subiam violentamente enquanto a tribo se reunia à volta dos dois pilares de pedra da entrada do Sol, no centro do caminho sagrado. Os tocadores de tambor estavam agora em silêncio, mas a dança continuava dentro das pessoas, de modo que alguns não conseguiam estar imóveis e balançavam-se para um lado e para outro; algumas mulheres gemiam, olhando para a enorme bola do Sol que se afastava no horizonte.

 

Slaol! gritavam. Slaol!

 

Slaol! gritou também Gilan para o Sol, erguendo os braços. Então Hengall pegou na mão da menina surda e conduziu-a ao centro do templo onde Galeth tinha aberto um buraco nem fundo, nem comprido, apenas o suficiente. A menina com flores no cabelo foi levada para a beira da cova e aí despiram-lhe a túnica pela cabeça, deixando-a nua. Gilan ajoelhou e entregou-lhe um vaso.

 

Bebe disse delicadamente e como ela era surda fez o gesto do que a menina teria de fazer. A criança pegou no vaso com ambas as mãos e riu-se para o rosto bondoso do sacerdote.

 

O vaso continha uma poção para provocar sonhos: uma poção feita com cogumelos e ervas, uma poção para levar a menina surda para os deuses e todo o povo olhava em silêncio enquanto a criança bebia. Fez uma careta, pois o líquido era amargo, mas depois riu de novo, deixando cair o vaso. Gilan ergueu-se e afastou-se para ver que augúrios trazia a poção.

 

A menina ficou ofegante como se não conseguisse respirar, depois gritou pela mãe com a voz deformada e tentou fugir em direcção à assistência, mas Neel apanhou-a e obrigou-a a entrar no buraco onde voltou a gritar. A mãe olhava chorando pela filha. Os augúrios eram maus. Deveria sorrir, rir, dançar,
mas debatia-se agitada e os seus gritos arranhavam a alma dos membros da tribo. Para terminar o ruído, Gilan sacudiu-a violentamente, de tal forma que a deixou paralisada de terror; depois segurou-a a alguma distância e recebeu de Neel o machado de pedra.

 

Gilan ergueu a lâmina para o Sol moribundo, fez uma pausa e desferiu Um golpe com tanta força que as flores ensanguentadas caíram na relva, enquanto a criança, com o crânio aberto ao meio, morria sem soltar um ai. Fora para o céu. Fora para Slaol. Não haveria sepultura nem oferenda em seu nome, pois ela própria o era. Por essa razão não fora morta com Mata-Crianças, pois não tinha realmente morrido, pelo contrário, naquele momento, enquanto a tribo olhava num receoso silêncio, a sua alma subia ao céu para falar a Slaol daquele local que fora feito para ele. A criança de cabelo doirado era a mensageira de Ratharryn e guardaria o Templo do Céu até ao fim dos tempos. Gilan deitou o corpinho na cova. Partiu o vaso que contivera a poção] deixou-o cair a seu lado, colocou a bola de greda da vida da criança sobre o seu peito ensanguentado e em seguida os sacerdotes lançaram terra para cima do corpo, usando os pés. A mãe da criança gritava ainda de desgosto e à outras mulheres rodeavam-na para a consolar, garantindo-lhe que a filha não estava morta, mas feliz, no mundo celeste onde era companheira de folguedo dos deuses.

 

O Sol afundou-se no horizonte, enquanto Lahanna, enorme e pálida, se erguia a ocidente sobre as árvores. As fogueiras rugiam agora, as brasa enormes ardiam no seu seio, de modo que o fumo formava uma mortalha avermelhada sobre o templo. Dentro de momentos começaria aí a primeira cerimónia, quando Derrewyn e Saban executassem a dança do seu casamento nos degraus do centro do santuário, mas primeiro, Hengall deteve-se junto da cova da criança do Sol, e ergueu a mão.

 

Era tarefa sua informar a tribo do que tinham feito. Contar a história do Templo do Céu, de modo a que o povo a recordasse e a contasse aos seus filhos, e aos filhos dos seus filhos; assim ficou, com o braço erguido, em busca das palavras, calando os murmúrios da multidão. O brilho ofuscante do Sol desaparecera no crepúsculo, deixando atrás de si um céu debruado a vermelho, manchado de fumo, e foi nessa lívida bruma que Saban viu um raio. A princípio pensou que fosse o espírito da criança morta e alegrou-se, pois era sinal que o sacrifício tinha sido aceite. O raio era vermelho, reflectindo o Sol moribundo, todavia Saban viu que não se tratava da alma da menina, mas de uma flecha que partira do cimo escuro da colina mais a sul, onde os ossos de muitos antepassados dormiam nos seus túmulos. O voo da seta pareceu demorar muito tempo, embora, claro assim não fosse. Realmente, Saban mal tivera tempo de abrir a boca, quanto mais gritar, porém lembrar-se-ia sempre de que o tempo fora muito longo.

Viu a flecha chegar ao céu e depois começar a cair. A seta cintilou, o sílex negro reflectindo a luz da fogueira para penetrar as costas de Hengall.

 

Hengall cambaleou para diante. A maior parte das pessoas ainda não percebera o que estava a acontecer, mas reconhecera um mau presságio e os gemidos começaram apenas quando os sacerdotes correram para junto do chefe.

 

Saban aproximou-se a correr, procurando mais flechas que pudesse haver no céu. Caíam na turfa, atingindo os sacerdotes e uma fez mesmo ricochete numa pedra da Lua produzindo um pequeno estalo. Depois Saban viu as criaturas nuas que chegavam do horizonte a sul, todo incendiado de vermelho.

 

As próprias criaturas eram vermelhas. Gritavam enquanto avançavam aos saltos e, ao vê-las, o povo de Ratharryn começou a gritar, mas depois, quando se voltaram para fugir em direcção à aldeia descobriram mais criaturas atrás de si, algumas delas atacando montadas em pequenos cavalos peludos que galopavam ao longo das pequenas barreiras de greda do caminho sagrado.

 

Eram guerreiros do Povo da Fronteira, com os corpos pintados de ocre vermelho, a mesma substância que era por vezes utilizada para colorir a pele de importantes defuntos; assim, estes mortos-vivos gritavam ao aproximarem-se da tribo desarmada.

 

Os inimigos eram às dezenas e o povo, órfão de Hengall, apenas podia acocorar-se aterrorizado. Morthor, o pai de Derrewyn ficou ferido, Gilan morrera, enquanto Neel, o jovem sacerdote, rastejava sobre a erva do templo com uma flecha na perna.

 

O chefe dos guerreiros vermelhos foi o último a aparecer. Apenas ele estava vestido e não usara ocre para tornar o rosto medonho. Caminhou em direcção ao templo, levando na mão direita o longo arco de teixo que usara para matar o pai de Saban.

 

Igualmente para matar o seu pai, pois o homem que chegara ao Templo do Sol com um sorriso no rosto era Lengar. Que voltara a casa.

 

O Templo das Sombras

O Povo DA FRONTEIRA ACABOU RAPIDAMENTE COM A MATANÇA, POIS LENGAR não voltara à aldeia para ser chefe de uma tribo dizimada. Quando os gritos terminaram, ergueu-se sobre o corpo do pai, segurando o machado manchado de sangue que enviara a criança para os céus. Tinha deixado cair a capa para revelar um gibão onde estavam cosidas tiras de bronze que cintilavam à luz das fogueiras; trazia uma espada do mesmo metal à cintura.

 

Sou Lengar! gritou. Lengar! E se algum de vós disputa o meu direito a ser chefe de Ratharryn, venha então afirmá-lo!

 

Ninguém da tribo olhou para Saban, pois era considerado muito jovem para enfrentar o irmão, mas alguns voltaram-se para Galeth.

 

Desafias-me, tio? perguntou Lengar.

 

Assassinaste o teu pai disse Galeth, olhando horrorizado o corpo do irmão, que caíra sobre a cova da criança sacrificada.

 

Que melhor maneira há para me tornar chefe? perguntou Lengar e em seguida avançou uns passos em direcção ao rival. Os companheiros, os homens que fugiram com ele de Ratharryn no dia em que os emissários de Sarmennyn foram mal acolhidos, saíram do fosso no lado oposto de templo, mas Lengar deteve-lhes o avanço com um gesto.

 

Desafias-me? perguntou de novo a Galeth, aguardando depois em silêncio. Quando foi claro que nem Galeth, nem qualquer outro homem da tribo o enfrentaria, bateu com o machado na relva e dirigiu-se à entrada do templo do lado do Sol, onde ficou, alto e terrível, com o machado ensanguentado nas mãos.

 

Galeth e Saban! chamou. Vinde cá!

 

Galeth e Saban avançaram nervosamente, ambos à espera de serem atingidos por flechas vindos dos companheiros de Lengar, que aguardavam no lado oposto do templo, mas não se ouviu soar uma corda num único arco. Lengar sacou da espada quando os dois se aproximaram.

 

Há aqui quem tivesse esperança que um de vós me desafiasse disse Lengar. Até tu, irmãozinho. Mostrou os dentes a Saban, fingindo sorrir.

 

Saban nada disse. Viu apenas que Lengar tinha tatuado um par de chifres no rosto, um ao lado de cada olho, o que o fazia parecer ainda mais sinistro. Lengar ergueu a espada de modo a que a ponta batesse no peito de Saban.

Que bom ver-te, irmão declarou.

 

Sim? perguntou Saban com a maior frieza possível.

 

Pensas que não tive saudades de Ratharryn? perguntou Lengar. Sarmennyn é um local deserto. Rude e frio.

 

Regressaste a casa para te aquecer? perguntou Saban sarcástico.

 

Não, pequeno, vim para casa para engrandecer de novo Ratharryn. Houve tempos em que Cathallo nos pagava um tributo, em que se orgulhavam quando uma mulher casava com um homem de cá, quando vinham dançar nos nossos templos e implorar aos nossos sacerdotes que os livrassem do mal, mas agora vendem-nos pedras. Bateu na que estava mais próxima. Pedras! pronunciou de novo a palavra. Porque não lhes compraram folhas de carvalho? Ou água? Ou estrume?

 

Galeth olhou para o cadáver do irmão.

 

Que queres de nós? perguntou lentamente a Lengar.

 

Tens de te ajoelhar na minha presença, tio declarou Lengar. Diante de toda a tribo, para mostrares que me aceitas como chefe. De contrário mando-te para os nossos antepassados. Se assim for, saúda-os da minha parte.

 

Galeth franziu a testa.

 

E se me ajoelhar, o que acontece?

 

Então serás o meu honroso conselheiro, meu parente e meu amigo afirmou Lengar efusivamente. Serás o que sempre foste, o construtor da nossa tribo e o conselheiro do seu chefe. Não voltei para deixar os Fronteiriços a governar aqui. Vim para tornar de novo Ratharryn grande. Apontou para os guerreiros vermelhos. Quando o seu trabalho estiver terminado, tio, voltarão para casa. Mas até lá, são nossos servos.

 

Galeth olhou novamente para o corpo do irmão.

 

Não haverá mais mortes na tribo? perguntou.

 

Não matarei ninguém que aceite a minha autoridade prometeu Lengar, olhando para Saban.

 

Galeth assentiu. Fez uma pequena pausa e depois caiu de joelhos. Quando ele se inclinou e tocou com as mãos nos pés de Lengar, ouviu-se um suspiro vindo da assistência.

 

Obrigado, tio disse Lengar. Tocou com a espada nas costas de Galeth, voltando-se depois para Saban. Agora tu, irmão.

 

Saban não se moveu.

 

Ajoelha murmurou Galeth.

 

Os olhos amarelados de Lengar, estranhamente brilhantes na escuridão, fixaram-se no rosto de Saban.

 

Não me importo, irmãozinho, se vives ou morres. Há quem diga que te deveria matar, mas precisará um lobo de recear um gato? Estendeu a espada e passou a lâmina fria pela face de Saban. Mas se não ajoelhares corto-te a cabeça e uso a tua caveira como vaso para beber.

 

Saban não queria submeter-se, mas conhecia a loucura de Lengar e sabia que, se não cedesse, seria morto como um sapo. Engoliu o orgulho e obrigou-se a ajoelhar, enquanto da tribo subia outro suspiro, quando também ele se inclinou para beijar os pés de Lengar. Por sua vez, este tocou com a lâmina da espada na nuca de Saban.

 

Gostas de mim, irmãozinho? perguntou.

 

Não respondeu Saban. Lengar riu-se e retirou a espada.

 

Ergue-te ordenou, recuando em seguida, para olhar para a multidão silenciosa que assistia à cena.

 

Ide para casa! disse. Ide também vós acrescentou para Saban e Galeth.

 

A maior parte da multidão obedeceu, mas Derrewyn e a mãe correram para o fosso do templo onde Morthor caíra ferido. Saban foi ter com elas e viu que o sacerdote tinha sido atingido no ombro por uma flecha, cuja cabeça lho atravessara devido à enorme força com que fora disparada. Saban soltou o sílex, mas deixou a vara no sítio.

 

A flecha vai sair bem garantiu a Derrewyn. A pasta de greda que Morthor esfregara no peito estava manchada de vermelho e o pânico tornara-lhe a respiração ofegante. A ferida curar-se-á disse Saban ao assustado sacerdote, voltando-se a seguir porque Derrewyn de repente começara a gritar.

 

Lengar pegara no braço da rapariga, obrigando-a a voltar-se, de modo a ver-lhe o rosto à luz das grandes fogueiras. Saban ergueu-se, mas deu por si a olhar para a ponta da espada de Lengar.

 

Desejas alguma coisa da minha parte, irmãozinho? perguntou Lengar. Saban olhou para Derrewyn, que chorava, encolhendo-se devido à mão que lhe apertava o braço.

 

Vamos casar proferiu Saban. Ela e eu.

 

E quem decidiu tal coisa? perguntou Lengar.

 

O pai afirmou Saban. E também Sannas, a bisavó dela. Lengar fez uma careta.

 

O pai está morto, Saban, e quem governa agora sou eu. O que essa megera louca de Cathallo quer não importa aqui em Ratharryn. O que importa, irmãozinho, é o que eu quero. Deu uma ordem na áspera língua fronteiriça e meia dúzia de guerreiros vermelhos correram para seu lado. Um segurou a espada de Lengar, enquanto outros dois ameaçavam Saban com as suas lanças.

 

Lengar pôs as mãos na abertura da túnica de pele de veado que Derrewyn tinha vestida. Olhou-a nos olhos, sorriu ao ver neles o medo e depois rasgou a túnica com enorme força. Derrewyn gritou. Instintivamente Saban deu um salto em frente, mas uma das lanças dos Fronteiriços travou-lhe os tornozelos, ao mesmo tempo que outra lhe bateu na cabeça, poisando no seu ventre quando caiu no chão.

Lengar rasgou os restos da túnica, deixando Derrewyn nua. Esta tentou esconder o corpo, mas Lengar impediu-a e abriu-lhe os braços.

 

Uma coisa de Cathallo disse, olhando-a de cima abaixo. Mas uma coisa bonita. Que se faz com as coisas bonitas? Fazia a pergunta a Saban, mas não esperava resposta. Esta noite temos de mostrar a Cathallo o que significa o poder de Ratharryn prosseguiu. E assim pegou no pulso de Derrewyn e arrastou-a em direcção à aldeia.

 

Não! gritou Saban, ainda pregado ao chão pela lança do Fronteiriço.

 

Calado, irmãozinho ordenou Lengar. Derrewyn tentou soltar-se, mas ele bateu-lhe com força no rosto, fazendo-lhe voar as flores do cabelo e quando teve a certeza de que ela obedeceria, puxou-a outra vez. Ela tentou soltar-se de novo, mas recebeu um segundo soco, mais forte que o primeiro; gemeu e seguiu-o então, atordoada. A mãe, ainda ajoelhada junto ao marido, protestou com um grito estridente, mas um guerreiro pintado de vermelho deu-lhe um pontapé na boca, reduzindo-a ao silêncio.

 

Saban, detido no Templo do Céu, apenas podia chorar. Guardavam-no dois guerreiros fronteiriços. Neel e Morthor, os dois sacerdotes feridos foram levados, deixando os corpos de Hengall e Gilan ao luar, junto a Saban, que soluçava como uma criança. Depois os Fronteiriços obrigaram-no a pôr-se de pé e conduziram-no para a aldeia como se fosse um animal.

 

O Templo do Céu fora consagrado, mas a desgraça descera sobre Ratharryn. O mundo de Saban escurecera. Os deuses gritavam de novo.

 

Grande parte dos guerreiros do Povo da Fronteira encontrava-se estacionada no cimo da barreira, de onde conseguia ameaçar o povo da aldeia de Ratharryn com os seus pequenos arcos e flechas afiadas, contudo alguns lanceiros fronteiriços montavam guarda à entrada da cabana de Hengall, para onde Lengar levara Derrewyn. A maior parte da tribo tinha-se reunido junto ao templo de Ãrryn e Mai; ouviram um soco e o choro de Derrewyn, depois mais nada.

 

Deveremos lutar contra eles? perguntou Mereth, filho de Galeth.

 

São muitos respondeu Galeth em voz baixa. Muitos. Parecia rendido, sentado no centro do templo, com a cabeça baixa. Além do mais, se lutarmos contra eles, quantos de nós não morreremos? Quantos restarão? Os suficientes para resistir a Cathallo? suspirou. Ajoelhei-me perante Lengar, de modo que é o meu chefe... Fez uma pausa. Por enquanto.

 

As duas últimas palavras foram ditas em voz tão baixa que nem sequer Mereth conseguiu ouvi-las. As mulheres choravam por Hengall à entrada do templo, pois ele fora um bom chefe, entretanto os homens lá dentro observavam o inimigo sobre a alta barreira de terra. Lahanna olhava-os sem se comover com a tragédia. Algum tempo depois, o povo assustado adormecia, com o sono entrecortado por gente que gritava nos seus pesadelos.

 

Lengar apareceu pouco antes da madrugada. A tribo acordava lentamente, consciente de que o novo chefe pisava corpos adormecidos para chegar ao centro do templo de Arryn e Mai. Trazia ainda o gibão com placas de bronze e a espada à cintura, mas não a lança ou o arco.

 

Não fazia tenções de que Gilan morresse disse sem qualquer arrependimento. O povo sentava-se, arrastando as capas com que se cobrira durante o sono, enquanto no exterior dos anéis do templo, as mulheres inclinavam-se para ouvir as palavras que Lengar proferia em voz baixa. Os meus companheiros mostraram mais zelo do que eu desejava continuou em tom pesaroso. Uma flecha teria sido suficiente, mas estavam assustados e pensaram que seriam necessárias mais.

 

Todos tinham já acordado. Homens, mulheres e crianças toda a tribo reuniram-se num grupo protector dentro e à volta do pequeno templo e todos escutavam Lengar.

 

O meu pai era um bom homem continuou Lengar, erguendo um pouco mais a voz. Manteve-nos vivos nos Invernos duros e cortou muitas árvores para nos dar terra: não tínhamos fome e havia justiça. Devemos honrá-lo por tudo isso, de modo que lhe vamos fazer um túmulo.

 

Pela primeira vez o povo reagiu, murmurando a sua concordância e Lengar deixou que as vozes continuassem por mais algum tempo, antes de erguer a mão.

 

Mas o meu pai estava errado a respeito de Cathallo! Falava agora mais alto, com a voz quase dura. Temia-o, de modo que deixou que Kital e Sannas vos governassem. Ia ser a união das duas tribos, contudo no casamento é o homem que deve ser o senhor e em breve Cathallo dominar-vos-ia! As vossas colheitas seriam transportadas para os seus armazéns, mas as vossas filhas dançariam a dança do boi no templo deles e as vossas lanças combateriam nas suas batalhas. Mas esta terra é nossa! exclamou Lengar e alguns membros da tribo gritaram que ele tinha razão.

 

A terra é nossa, mas está cheia de fronteiriços! gritou Mereth zangado. Lengar fez uma pausa e sorriu.

 

O meu primo tem razão, dissera algum tempo depois. Trouxe fronteiriços para cá. Mas não são muitos. Têm menos lanças do que vós! O que os impede agora de vos matarem? Ou de me matarem? Esperou uma resposta mas nenhum homem falou. Lembrais-vos de quando o Povo da Fronteira veio aqui pedir a devolução dos seus tesouros? perguntou Lengar. Ofereceram-nos um preço bastante alto. E que fizemos? Voltámos-lhes as costas e usámos parte do ouro para comprar pedras a Cathallo. Pedras! Usámos ouro de Slaol para comprar rochas! Riu-se, e muitos que o ouviam sentiram-se envergonhados com o que a tribo tinha feito.

 

Não compraremos mais nada a Cathallo garantiu Lengar. Afirmam que querem a paz, mas têm a guerra escondida nos corações. Não suportam pensar que Ratharryn voltará a ser grande e tentarão esmagar-nos. No tempo dos nossos antepassados, esta tribo era mais forte que Cathallo! Pagavam-nos tributos e pediam a nossa aprovação. Agora desprezam-nos. Querem-nos impotentes, portanto teremos de os combater. Como os derrotaremos? Apontou para a barreira onde se encontravam acocorados os guerreiros fronteiriços. Venceremos Cathallo comprando a ajuda do Povo da Fronteira,! pois eles pagarão qualquer preço para que o ouro lhes seja devolvido. Aqui, somos nós os senhores, não eles! Usaremos os guerreiros fronteiriços para nos tornarmos a tribo mais poderosa de toda a terra. Observou aqueles que o escutavam, avaliando o efeito das suas palavras. Foi por isso que voltei disse em voz baixa para terminar. Foi também por isso que o meu pai teve] de se ir juntar aos seus antepassados, de modo a Ratharryn se tornar conhecido] em toda a terra, temido em toda a terra e honrada na terra e no céu. A tribo começou a bater com as mãos no chão, em seguida os homens ergueram-se e aclamaram-no. Lengar convencera-os. Lengar vencera. Saban passara a noite na sua cabana, guardado por dois lanceiros vermelhos de Lengar. Chorava por Derrewyn e saber o que ela passara durante a noite causou-lhe tamanha dor, que se sentiu tentado a pegar na faca que o pai lhe oferecera e cortar a garganta; porém a ideia da vingança impediu-lhe a mão. Ajoelhara-se aos pés de Lengar, à entrada do Templo do Céu, mas sabia que o gesto não fora sincero. Mataria o irmão. Jurou-o na escuridão horrível, amaldiçoando-se logo a seguir por não se ter mostrado mais aguerrido no templo. Mas que poderia ter feito? Não possuía armas, portanto como haveria de ter combatido contra guerreiros com espadas, lanças e arcos? O destino esmagara-o e sentia-se à beira do desespero. Apenas ao chegar a madrugada, caiu num sono leve e povoado de sonhos.

 

Acordou-o Gundur, um dos homens que fugira de Ratharryn com Lengar.

 

O teu irmão quer ver-te disse.

 

Para quê? perguntou Saban com ar ofendido.

 

Levanta-te disse com desprezo.

 

Saban meteu a faca de bronze no cinto e pegou numa das suas lanças de caça antes de seguir Gundur e sair da cabana. Decidira matar imediatamente o irmão. Atirar-lhe-ia a lança sem qualquer aviso e, se morresse às espadas dos companheiros de Lengar, então teria vingado o pai. Os antepassados aprovariam e recebê-lo-iam na outra vida. Agarrou com força o cabo da lança e reiterou a sua decisão de atacar logo que entrasse na enorme cabana do chefe.

 

Mas um guerreiro fronteiriço retirou-lhe a lança mesmo antes de ele se ter inclinado para entrar. Saban tentou agarrar o cabo de freixo, mas o homem era muito forte e a breve luta deixou Saban humilhado, a espernear no chão.
Viu que Galeth esperava por ele e que outros três guerreiros fronteiriços se encontravam por trás de Lengar, que observava a escaramuça divertido.

 

Pensaste vingar o nosso pai? perguntou Lengar a Saban. Saban esfregou o pulso magoado pela mão do fronteiriço.

 

Os antepassados hão-de vingá-lo afirmou.

 

Como vão os antepassados saber onde ele está? perguntou Lengar. Esta manhã cortei-lhe a queixada. Sorriu e apontou para o maxilar ensanguentado e barbudo de Hengall que tinha sido espetado num dos postes da cabana. Se a queixada de um defunto lhe fosse retirada, não poderia contar histórias aos seus antepassados. Cortei também a de Gilan, de maneira que bem podem balbuciar os dois na outra vida. Senta-te ao lado de Galeth e deixa de resmungar.

 

Lengar envolvera-se na capa de pele de urso do pai e encontrava-se rodeado pelos seus tesouros, todo eles desenterrados do chão ou retirados de baixo de montes de peles, onde Hengall escondera a fortuna.

 

Estamos ricos, irmãozinho! disse Lengar satisfeito. Ricos! Estás com ar cansado. Não dormiste bem? Gundur, sentado ao lado de Lengar, sorria, enquanto os três guerreiros fronteiriços que não percebiam o que se dizia, se limitavam a olhar fixamente para Saban.

 

Este olhava para a cortina de couro que escondia o abrigo das mulheres dentro da cabana, mas não viu sinal de Derrewyn. Acocorou-se diante dos tesouros da tribo ali amontoados. Havia barras de bronze, facas de pedra e sílex maravilhosamente polidas, sacos de âmbar, bocados de azeviche, grandes machados, aros de cobre, osso entalhado, conchas e, o mais curioso de tudo, uma caixa de madeira cheia de pedras estranhamente entalhadas. Eram pequenas, macias e redondas, nenhuma delas maior que a cabeça de um polegar, mas todas gravadas com espirais ou linhas.

 

Sabes o que são? perguntou Lengar a Galeth.

 

Não respondeu este, sem nada acrescentar.

 

Magia, suponho disse Lengar, fazendo passar uma delas de uma mão para a outra. Camaban deve saber. Ultimamente parece saber tudo. É pena que cá não esteja.

 

Viste-o? perguntou Galeth.

 

Esteve em Sarmennyn na Primavera disse Lengar com ar desinteressado. Tanto quanto sei, ainda lá está. Já andava bem, ou quase. Quis que viesse comigo, mas recusou. Sempre pensei que fosse imbecil, mas afinal não é. Tornou-se muito estranho, mas imbecil não é. É muito esperto. Talvez seja de família. Que se passa, Saban? Não vais chorar, pois não? É porque o pai morreu?

 

Saban pensou em pegar num dos preciosos machados de bronze e em avançar violentamente pela cabana, mas os lanceiros fronteiriços observavam-no com as armas em riste. Não teria qualquer possibilidade.

 

Hás-de reparar, tio, que as peças de ouro de Sarmennyn não se encontram aqui.

 

Já reparei disse Galeth.

 

Tenho-as em segurança, mas não quero mostrá-las, para não tentar os nossos amigos fronteiriços explicou Lengar. Só cá vieram para levar o ouro. Lengar apontou com a cabeça os dois guerreiros que se sentavam silenciosamente atrás dele, com os rostos tatuados, parecendo máscaras na escuridão das sombras.

 

Não falam a nossa língua, tio continuou Lengar. Pode insultá-los como quiser, mas entretanto faça um sorriso. Preciso que eles pensem que somos seus amigos verdadeiros.

 

E não somos? perguntou Galeth.

 

Por enquanto respondeu Lengar. Sorriu, satisfeito consigo próprio. A princípio tinha pensado devolver-lhes o ouro se derrotassem Cathallo por mim, mas Camaban teve uma ideia melhor. É mesmo muito esperto. Entrou em transe e curou de uma terrível doença uma das esposas do chefe. Já o viste em transe? Fica com os olhos brancos, a língua sai-lhe da boca e treme como um cão molhado; quando tudo termina revela mensagens de Slaol!

 

Lengar esperava que Galeth partilhasse do seu divertimento, mas Galeth nada disse.

 

Bom, Camaban é esperto, curou a esposa do chefe e agora este pensa que ele nada pode fazer que seja mau. Imaginem! Camaban, o coxo, um herói! Assim, o nosso herói disse ao Povo da Fronteira que não só teriam de derrotar Cathallo para que o ouro lhes fosse devolvido, como precisariam também de nos dar um dos seus templos. Isto significa que têm de o transportar pela região, o que é impossível pois são todos feitos de pedra. Riu-se. Assim, derrotaremos Cathallo e ficaremos com o ouro.

 

Talvez te tragam um templo disse Galeth secamente.

 

E talvez Saban sorria ripostou Lengar. Saban! Sorri quando olhas para mim. Perdeste a língua?

 

Saban enfiava as unhas nos calcanhares, na esperança que a dor lhe evitasse as lágrimas que trairiam o seu ódio.

 

Querias ver-me, irmão? perguntou asperamente.

 

Para me despedir de ti disse Lengar agoirento, esperando que o medo aparecesse no rosto do irmão, mas a sua expressão nada traía. A morte, pensou Saban, seria melhor do que esta humilhação. A ideia fê-lo tocar nas partes baixas, gesto que fez rir Lengar.

 

Não vou matar-te, irmãozinho disse. Deveria, mas sou misericordioso. Pelo contrário, vou tomar o teu lugar. Derrewyn casará comigo como símbolo de que Ratharryn é agora superior a Cathallo e dar-me-á muitos filhos. E tu, meu irmão, serás escravo. Bateu as palmas. Haragg! gritou.

 

O comerciante fronteiriço, o gigante sisudo que viera servir de intérprete quando o povo de Sarmennyn implorara a Hengall que lhe devolvesse os seus tesouros, inclinou-se para entrar na cabana. Teve de se dobrar muito mais que os outros para atravessar a entrada baixa e quando se endireitou parecia encher o local, com a sua altura e ombros largos. Estava a ficar calvo e tinha uma barba espessa e escura num rosto que era uma máscara implacável.

 

O teu novo escravo, Haragg disse Lengar, cortês, indicando Saban.

 

Lengar! intercedeu Galeth.

 

Preferes que mate o vitelo? perguntou Lengar suavemente.

 

Não podes escravizar o teu próprio irmão! protestou Galeth.

 

Meio-irmão especificou Lengar. É claro que posso. Pensas que Saban foi honesto quando ontem à noite se ajoelhou? Em ti confio, tio, mas nele? Matava-me num abrir e fechar de olhos! Não pensa em mais nada desde que entrou nesta cabana, não é verdade, Saban? Sorriu, mas este limitou-se a fixar os olhos esmaltados do irmão. Lengar cuspiu. Leva-o, Haragg.

 

Haragg inclinou-se e obrigou Saban a levantar-se, puxando-o com a sua mão enorme. Saban, humilhado e infeliz, retirou a faca do cinto e agitou-a ao acaso em direcção ao gigante. Porém, Haragg, sem grande alarido, limitou-se a pegar-lhe no pulso e a apertá-lo para imediatamente deixar a mão de Saban inerte e sem força. A faca caiu. Haragg apanhou-a e arrastou o jovem para fora da cabana.

 

O surdo-mudo, filho de Haragg, ainda maior que o seu gigantesco pai, esperava lá fora. Pegou em Saban e atirou-o ao chão, enquanto aquele voltava à cabana de Lengar. Saban ouviu o irmão pedir garantias de que o novo escravo não seria autorizado a escapar. Naquela altura Saban pensou fugir, mas o surdo-mudo sobrepunha-se-lhe; depois um gemido fê-lo voltar-se para ver a mulher de Morthor conduzir o marido para fora da antiga cabana de Gilan. Os guerreiros fronteiriços empurravam o casal em direcção à saída norte de Ratharryn.

 

Morthor! gritou Saban, que soltou um suspiro de espanto, pois quando o sumo sacerdote de Cathallo se voltou, Saban viu que lhe tinham arrancado os olhos. Foi Lengar que fez isso? perguntou.

 

Foi Lengar respondeu amargamente Morthor. Tinha o braço caído e o ombro magoado, de onde o pau da flecha fora extraído era uma crosta de sangue; o seu rosto era uma máscara de terror. Apontou para os olhos. É a mensagem de Lengar para Cathallo balbuciou, sendo depois empurrado pelos lanceiros.

 

Saban fechou os olhos como se pudesse apagar o horror do rosto de Morthor, sendo depois assaltado pela imagem de Derrewyn completamente nua, durante a noite, que o fez erguer os ombros para impedir as lágrimas.

 

Chora, pequeno disse uma voz trocista por cima dele e, ao abrir os olhos, Saban viu Jegar. Estava acompanhado por dois dos seus amigos que lhe apontaram as lanças e, por um momento, pensou que o iam matar, mas a intenção era apenas mantê-lo imóvel. Chora repetiu Jegar.

 

Saban olhou para o chão e depois estremeceu, pois Jegar começara a urinar sobre ele. Os dois lanceiros riram e, quando Saban tentou desviar-se, usaram as pontas das lanças para o imobilizar de modo ao jacto de urina lhe chegar ao cabelo.

 

Lengar vai casar com Derrewyn disse Jegar enquanto urinava. Mas, quando se cansar dela, e vai cansar-se, já ma prometeu. Sabes porquê, Saban?

 

Saban não respondeu. O líquido escorria-lhe do cabelo, passava-lhe pelo rosto e formava-lhe uma poça entre os joelhos, enquanto o surdo-mudo o olhava com uma leve confusão no rosto enorme.

 

Porque desde que Lengar foi para Sarmennyn tenho sido os seus olhos e os seus ouvidos em Ratharryn continuou. Como soube Lengar que deveria vir ontem à noite? Porque eu lhe disse. Não foi? Fizera esta última pergunta a Lengar, que acabara de sair da cabana para assistir à humilhação do irmão.

 

És o mais leal dos amigos, Jegar afirmou Lengar.

 

Um amigo com a mão direita aleijada. Jegar baixou-se de súbito e agarrou a mão de Saban. Dá-me uma faca! exigiu a Lengar.

 

Deixa-o disse Haragg.

 

Tenho uma coisa a tratar com ele vociferou Jegar.

 

É meu escravo afirmou Haragg. Vais deixá-lo em paz.

 

O homem enorme não falara em voz alta, mas a seu tom profundo tinha uma tal força que Jegar obedeceu. Haragg inclinou-se diante de Saban, segurando a faca de bronze na mão direita. Saban pensou que o enorme fronteiriço planeava cumprir as intenções de Jegar, mas Haragg limitou-se a puxar-lhe uma madeixa do cabelo. Serrou-a, cortou-a e atirou-a fora. Trabalhava com rudeza, arrancando enormes mãos-cheias de cabelo e arranhando-lhe o escalpe para o fazer sangrar. Era assim que rapavam a cabeça a todos os escravos, para mostrar que os cativos nada eram. Saban nada era agora e encolhia-se enquanto a lâmina dura lhe passava pelo couro-cabeludo e o sangue lhe corria pelas faces, diluindo-se com a urina de Jegar. A mãe de Saban saiu da cabana enquanto Haragg cortava o cabelo do filho e começou a gritar para que o gigante parasse, lançando-lhe torrões de terra. Por fim, dois lanceiros de Lengar, rindo da sua ira, arrastaram-na dali.

 

Haragg terminou o corte de cabelo; pegou depois na mão esquerda de Saban e colocou-a no chão.

 

Eu faço isso ofereceu-se Jegar desejoso.

 

O escravo é meu respondeu Haragg e de novo a força da sua voz obrigou Jegar a recuar. Olha para mim ordenou Haragg a Saban e depois acenou ao filho que fechou a mão enorme no pulso do cativo.

 

Saban, com os olhos embaciados de lágrimas, olhou para o rosto rude de Haragg. Sentia a mão esquerda presa ao chão e não via a faca, mas depois sentiu uma dor terrível, uma dor que lhe chegou ao ombro e o fez gritar bem alto. Haragg ergueu-lhe a mão e apertou um bocado de lã sobre o couto cortado do dedo mínimo.

 

Agarra ordenou-lhe Haragg.

 

Saban fechou a mão sobre o bocado de lã. Sentia uma dor latejante que quase o fazia desmaiar, mas cerrou os dentes, balançando-se para diante e para trás, enquanto Haragg pegava no cabelo que lhe cortara e no bocado de dedo ensanguentado para os deitar numa fogueira. Jegar intrometeu-se de novo, exigindo que o comerciante lhe desse o cabelo para poder fazer um feitiço contra Saban, mas Haragg, zangado, ignorou teimosamente a ordem, atirou com o cabelo e o dedo para as chamas e ficou a vê-los arder.

 

O surdo-mudo arrastou então Saban para norte, passando pelas cabanas, até chegar àquela em que Morcar, o ferreiro da tribo, tinha a sua forja. Morcar era amigo de Galeth e o seu trabalho habitual era o fabrico de lanças a partir de barras de bronze, mas hoje aquecia o metal que Haragg lhe entregara. O ferreiro evitou os olhos do rapaz enquanto trabalhava. Haragg atirou Saban ao chão. Este fechou os olhos tentando ignorar a dor da mão, sentindo a seguir outra maior no tornozelo direito que o fez gemer; abriu os olhos e viu que lhe estavam a colocar uma grilheta de bronze à volta da perna. A grilheta estava já quase dobrada num círculo fechado e Morcar martelava agora rapidamente o bronze aquecido de modo a que se encontrassem os dois extremos da barra curva. Foi-lhe acrescentada uma corrente do mesmo metal para a ligar à que foi fechada no tornozelo esquerdo de Saban. O metal estava escaldante e cortou-lhe a respiração.

 

Morcar despejou água por cima.

 

Desculpa, Saban murmurou.

 

De pé ordenou Haragg.

 

Saban ergueu-se. Um pequeno grupo de gente de Ratharryn assistia ao longe. Tinha os pés acorrentados de modo a poder andar, mas não correr, a cabeça rapada e agora Haragg rasgava-lhe a túnica atrás com a sua faca. Arrancou-lha de modo a deixá-lo nu. Por fim, cortou-lhe o colar de conchas do pescoço e esmagou-as no chão, pisando-as com o pé enorme, tendo também metido no bolso o amuleto de âmbar que fora oferecido a Saban pela mãe. Jegar riu-se e Lengar aplaudiu.

 

Agora és meu escravo disse Haragg sem mostrar emoção. Viverás ou morrerás, conforme me apeteça. Segue-me.

 

Saban obedeceu, numa humilhação completa.

 

Lengar temia os deuses. Não os compreendia, mas compreendia-se a si e sabia que traí-los ultrapassava aquilo que os homens podiam imaginar. Assim, receava-os e tomava grandes cuidados em aplacá-los o melhor que sabia. Fazia oferendas aos sacerdotes; enterrou simbólicos machados de greda em todos os templos de Ratharryn; permitiu até que as esposas de Hengall sobrevivessem, prometendo mesmo não as deixar morrer à fome.

 

O espírito do pai estava prestes a partir para o outro mundo, onde viveria com os antepassados e deuses, mas iria sem a queixada e sem o pé direito, de modo que Hengall não poderia contar o seu próprio assassinato, nem, se o seu espírito ficasse ligado à terra, perseguir Lengar. A queixada e o pé foram dados a comer aos porcos, mas o resto do cadáver foi tratado com respeito. Hengall foi queimado numa enorme pira segundo o costume do Povo da Fronteira. A fogueira foi acesa três dias depois da sua morte e permitiu-se que ardesse mais três dias, só depois um monte de greda e terra foi despejado sobre as brasas ardentes.

 

Na noite em que foi erguido o túmulo, Lengar ajoelhou no cimo e inclinou a cabeça, olhando o cascalho branco. Estava só, pois não quisera que ninguém testemunhasse aquela conversa com o pai.

 

Tinhas de morrer disse a Hengall. Eras demasiado cauteloso. Governaste bem, mas Ratharryn precisa agora de um grande chefe. Lengar fez uma pausa. Não matei as tuas esposas continuou. Até Saban está vivo. Foi sempre o teu preferido, não é verdade? Está vivo, pai, continua vivo.

 

Lengar não tinha a certeza de que deixar Saban vivo fosse boa ideia, mas Camaban convencera-o de que matar o meio-irmão seria fatal. Camaban fora ter com Lengar em Sarmennyn, não sendo já o gago imbecil que o irmão sempre desprezara. Pelo contrário, tinha-se tornado feiticeiro e Lengar ficava estranhamente nervoso na sua presença.

 

Os deuses têm de te perdoar a morte de Hengall, mas não a de Saban dissera-lhe Camaban. E quando Lengar exigira saber porquê, Camaban afirmara ter falado com Slaol em sonhos. Lengar obedecera à mensagem. Lamentava-o, mas receava os poderes de feiticeiro de Camaban. Por fim, este sugerira que Saban se tornasse escravo de Haragg e Lengar tinha a certeza de que os escravos deste comerciante não viviam muito tempo.

 

Lengar descansou a testa sobre o monte funerário. Terra e greda tinham sido grosseiramente empilhadas sobre os restos da fogueira, o fumo ainda saía fazendo-lhe arder os olhos, mas Lengar continuava respeitosamente com a cabeça baixa.

 

Terás orgulho em mim, pai disse a Hengall. Vou erguer Ratharryn e humilhar Cathallo. Vou ser um grande chefe... Ficou em silêncio, pois ouviu passos.

 

Os passos aproximavam-se, parecendo estar mesmo sobre o monte e apesar de ter cortado o pé ao pai, Lengar ficou subitamente aterrorizado, temendo que se tratasse do seu espírito que vinha para se vingar.

 

Não murmurou. Não.

 

Sim disse uma voz profunda e Lengar soltou um profundo suspiro de alívio, endireitando-se para olhar para Camaban. Afinal resolvi vir de Sarmennyn atrás de ti.

 

Lengar descobriu que nada tinha para lhe dizer. Transpirava de medo.

 

Camaban era agora um homem. Tinha o rosto mais magro que antes e muito mais duro, com os ossos salientes, olhos profundos e uma boca grande e sardónica. O cabelo que dantes era um emaranhado de porcaria, estava agora bem atado na nuca com uma fita de couro, de onde pendia um guizo formado por pequenos ossos. Usava um colar de costelas de crianças e trazia um bordão enfeitado com uma queixada humana. Bateu com a extremidade deste sobre o monte funerário.

 

Sentiste, pai?

 

Não faças isso pediu Lengar em voz rouca.

 

Tens medo de Hengall? perguntou Camaban com ironia. Bateu de novo com o bordão no monte e depois cuspiu. Sentiste? Cuspi sobre ti! Escavou o cascalho de greda com o bordão. Sentes, Hengall? Sentes arder? É Camaban!

 

Lengar endireitou-se sobre a sepultura.

 

Porque vieste para cá? perguntou.

 

Para ter a certeza de que fazias o que era devido, claro explicou Camaban e depois, cuspindo de novo sobre a sepultura do pai, à laia de despedida, desceu do monte e dirigiu-se ao Templo do Céu. Ainda coxeava, mas notava-se muito menos. Embora Sannas lhe tivesse endireitado o pé forçando os ossos, estes não dobravam como era devido, de modo que conservava ainda um passo defeituoso, mas que já não se parecia de maneira alguma com a sua antiga forma de caminhar grotesca e torcida.

 

Lengar seguiu Camaban e disse:

 

Não preciso que me digas o que é certo.

 

Voltou-te a coragem, não? perguntou-lhe Camaban com desprezo. Estavas a tremer quando te encontrei! Pensaste que eu era o espírito de Hengall, não pensaste? riu-se.

 

Toma cuidado, irmão avisou Lengar. Camaban voltou-se e cuspiu-lhe para cima.

 

Matas-me, não é? Mas, Lengar, eu sou o servo de Slaol, o amigo de Slaol. Mata-me, imbecil, o céu há-de queimar-te, a terra recusará os teus ossos e até os animais se encolherão ao sentir o cheiro da tua morte. Mesmo os vermes e as varejeiras hão-de recusar a tua carne putrefacta, irmão, e secarás até te transformares numa casca amarelada que os ventos hão-de levar para os pântanos venenosos do fim do mundo.

 

Falava apontando com o bordão para Lengar, fazendo-o recuar com medo das ameaças. Lengar podia ser mais velho, podia ter uma invejável reputação como guerreiro, mas Camaban comandava poderes que ele não entendia.

Mataste Saban? perguntou Camaban.

 

Fi-lo escravo de Haragg.

 

Ainda bem disse Camaban distraído.

 

Também fiquei com a noiva dele.

 

E porque não? perguntou Camaban. Alguém teria de o fazer. É bonita? Sem esperar resposta dirigiu-se para o Templo do Céu, atravessou a pequena barreira exterior, coxeou pelo fosso e trepou a alta barreira interior. Ali se deteve, olhando para as quatro pedras da Lua. Têm estado muito ocupados afirmou sarcástico. É obra de Gilan?

 

Lengar encolheu os ombros, pois nada sabia acerca do novo templo.

 

Gilan está morto.

 

Ainda bem respondeu Camaban. Tinha de ser obra dele. Ou dele ou de outro sacerdote da escumalha de Cathallo. Não tiveram coragem de fazer um templo a Slaol, sem se curvarem também a Lahanna.

 

Lahanna?

 

Estas são pedras da Lua explicou Camaban, apontando com o bordão os pilares duplos e as lajes dentro do anel.

 

Queres retirá-las? perguntou Lengar.

 

Eu trato daquilo que Slaol desejar disse Camaban. E tu não faças nada sem que eu te diga. Dirigiu-se ao centro do templo, onde a Lua lá no alto lançava uma pequena sombra sobre o montículo que marcava o corpo da criança surda. Camaban espetou com força o bordão na terra mole e tentou erguer o cadáver, mas apesar de a ter remexido não conseguiu mover o corpo.

 

Lengar recuou perante o fedor que vinha da terra desprendida.

 

Que estás a fazer? protestou.

 

Estou a livrar dela este local disse Camaban.

 

Não podes fazer isso! disse Lengar, mas Camaban ignorou-o e ajoelhou de modo a poder revolver a terra com as mãos e a libertar o corpo. Quando o conseguiu, levantou-se e usou de novo o bordão, desta vez erguendo à luz da Lua o cadáver em decomposição.

 

Agora terá de voltar a ser enterrada comentou Lengar. Camaban voltou-se furioso para ele.

 

Este templo é meu, Lengar, e não teu. É meu! Sibilou a última palavra de tal forma, que assustou Lengar. Era eu que em criança o mantinha limpo! Adorava este local, adorava Slaol neste círculo, quando todos vocês mamavam nas tetas de Lahanna. Este sítio é meu! Bateu com a ponta do bordão sobre a criança morta, esmagando-lhe as costelas. Esta coisa era uma mensageira enviada antes de tempo, pois o templo não está terminado. Cuspiu sobre o cadáver e depois libertou o bordão. As aves e os animais podem ficar com ela disse por fim, dirigindo-se à entrada do Sol. Ignorou os dois pilares que a ladeavam, dirigindo-se para as pedras do Sol. Olhou-as com a testa franzida. Esta fica disse, encostando a mão à maior do par. Mas podes deitar abaixo a outra. Apontou para a pedra mais pequena. Uma pedra é suficiente para o Sol. Acenou um lacónico adeus ao irmão e, com a mesma falta de cerimónia com que chegara, partiu em direcção ao norte.

 

Onde vais? gritou Lengar atrás dele.

 

Ainda tenho coisas que aprender respondeu Camaban. E quando as souber volto.

 

Para fazer o quê?

 

Para construir o templo, claro afirmou, voltando-se. Queres que Ratharryn seja grande, não é verdade? Mas pensas que podes conseguir alguma coisa sem os deuses? Vou dar-te um templo, Lengar. Um templo que erguerá ao céu esta miserável tribo. Continuou a caminhar.

 

Camaban! chamou Lengar.

 

O que é? perguntou Camaban irritado, voltando-se de novo.

 

Estás do meu lado, não estás? perguntou Lengar ansioso. Camaban sorriu.

 

Amo-te, Lengar disse. Amo-te como um irmão. E partiu na escuridão.

 

Saban soube que tinha sido Haragg quem guiara Lengar e os seus homens de Sarmennyn para Ratharryn, pois apenas um comerciante experiente conheceria os caminhos, saberia onde se encontravam os perigos e como os evitar, e Haragg era um dos comerciantes mais experimentado da terra. Durante dez anos atravessara o mundo com um cortejo de três cavalos peludos carregados de bronze, machados e tudo o mais que se pudesse trocar por sílex, azeviche, âmbar e ervas que faltavam em Sarmennyn. Por vezes, disse Haragg a Saban, levava dentes e ossos de monstros marinhos lançados para as praias de Sarmennyn e que podiam ser trocados por ricos metais e pedra preciosa.

 

Resmungou tudo isto para Saban enquanto se dirigiam para norte. Parte do tempo falava na língua do cativo, mas quase sempre insistia em falar a língua do Povo da Fronteira e chicoteava-o com uma vara se não fosse compreendido ou se Saban não lhe respondesse na mesma língua.

 

Aprenderás a minha língua insistia e Saban aprendeu por temer a vara.

 

As tarefas de Saban eram simples. À noite, acendia a fogueira que cozinhava os alimentos e impedia os animais da floresta de atacar, enquanto de dia conduzia os três cavalos, ia buscar água, cortava forragem e soprava o corno de boi de Haragg, quando se aproximavam de uma aldeia para avisar que iam chegar forasteiros. O surdo-mudo, que se chamava Cagan, sabia fazer tudo aquilo, mas Saban percebeu que o rapaz enorme, uns anos mais velho do que ele, nascera simples. Cagan era imensamente prestável e olhava para o pai, constantemente à espera de um sinal que lhe permitisse ser útil, mas logo a seguir atrapalhava-se com a tarefa. Se acendia uma fogueira, queimava-se, se tentava conduzir os cavalos fazia-o com demasiada força, porém Saban reparou que Haragg tratava Cagan com uma extraordinária delicadeza, como se o surdo-mudo, que era uma vez e meia mais alto que Saban, fosse um cão muito estimado. Cagan respondia à bondade do pai com um prazer comovente. Se o pai lhe sorria, ele estremecia de alegria, ou então balançava a cabeça e sorria também, emitindo pequenos gemidos com a garganta. Todas as manhãs, Haragg tratava do cabelo do filho, penteava-o, entrançava-o e atava-o com uma tira de couro; depois, penteava-lhe a barba e Cagan contorcia-se de felicidade. Mas Saban notava que por vezes Haragg tinha lágrimas nos olhos.

 

O comerciante não derramava lágrimas por Saban. As grilhetas de bronze deixavam-lhe vergões na pele, que abriram e deitaram sangue e pus. Haragg tratou-os com ervas e por dentro das grilhetas metia folhas para impedir o atrito, contudo estas caíam sempre. Alguns dias depois permitiu, resmungando, que Saban atasse à volta da cintura uma miserável pele de lobo, mas ficou aborrecido porque Saban se coçava devido aos piolhos que dela saíam.

 

Deixa de te coçar vociferava, batendo-lhe com a vara. Não suporto ver-te fazer isso! Não és um cão.

 

Viajaram para oriente e depois para norte, habitualmente protegidos pela companhia de outros comerciantes, mas por vezes sós, pois apesar dos bosques estarem cheios de proscritos e caçadores, Haragg achava que havia poucos riscos de uma emboscada.

 

Se um comerciante for atacado, os outros também são disse a Saban. Assim os ladrões protegem-nos. Mas há ainda locais perigosos e para esses só viajo com companhia.

 

Haragg explicou que muitos comerciantes iam por mar, remando junto à costa nos seus barcos de madeira, trocando a mercadoria apenas com os povos que viviam junto à praia; mas esses marinheiros perdiam as maiores aldeias do interior, onde Haragg ganhava a vida.

 

Quando chegavam a uma aldeia, era Saban que descarregava dos cavalos a mercadoria de Haragg e a expunha em peles de lontra diante da cabana do chefe. Cagan retirava os pesados sacos de cima dos animais e depois sentava-se a ver, enquanto as gentes o olhavam espantadas, pois de facto era um gigante. As mulheres soltavam risinhos e, por vezes, os homens, apercebendo-se de que Cagan tinha a inteligência de uma criança pequena, tentavam provocá-lo, mas Haragg gritava-lhes e eles recuavam, assustados pela sua altura e pela sua fúria.

 

Havia alguma mercadoria que nunca era aberta: principalmente pequenas lascas de ouro e uma mão-cheia de elegantes pregadores de bronze, que eram guardados para os chefes que Haragg calculava poderem pagar melhor.

A discussão dos preços durava um dia inteiro, por vezes dois, e quando terminava, Saban colocava a mercadoria destinada a Sarmennyn num enorme saco de couro e o resto dos objectos para troca noutro, que Cagan subia para o dorso dos cavalos. Um saco mais pequeno continha apenas conchas do mar, belas e grandes, enroladas numa estranha erva que Haragg dizia crescer no oceano, mas como Saban nunca vira o mar, pouco significado aquilo tinha para ele. As conchas eram trocadas por comida.

 

Haragg não era mau. Saban levou muito tempo a percebê-lo, pois temia o rosto inexpressivo do comerciante e a rapidez da sua vara, mas descobriu que Haragg não sorria senão para o filho, não fazendo, contudo, má cara a ninguém; enfrentava homens, mulheres e circunstâncias com a mesma determinação soturna e, se bem que pouco falasse, escutava muito. Conversava com Saban, nem que fosse para passar o tempo das longas viagens, mas falava sem entoação, como se as informações que prestava pouco interesse tivessem.

 

Estavam muito a norte quando chegaram os primeiros sinais do Inverno, com ventos frios e aguaceiros. Ali as gentes falavam uma língua estranha, que até mesmo Haragg tinha dificuldade em compreender. Naquela altura trocava as suas barras de bronze e machados de pedra negra por pequenos sacos de ervas que, segundo dizia, temperavam o licor destilado pelo povo de Sarmennyn, mas trocou também de mau modo uma pequena ponta de lança, feita de bronze, por uma túnica de lã e um par de botas de pele de boi, bem cosidas, que deu a Saban.

 

As botas não serviam sobre as grilhetas, de modo que Haragg fê-lo sentar, retirou um machado de um dos sacos e depois bateu e alargou o metal o suficiente para as fazer sair pelos tornozelos de Saban.

 

Agora se fugires, morres disse sem qualquer expressão. Esta região é perigosa. Meteu as grilhetas entre a restante carga e na aldeia seguinte trocou-as por vinte sacos de ervas preciosas. Era uma daquelas aldeias em que, ao soar o chifre que indicava a chegada de um comerciante, todas as mulheres se escondiam nas cabanas de modo a que os forasteiros não lhes vissem o rosto.

 

Aqui em cima têm um comportamento muito estranho disse Haragg.

 

Nesta altura Haragg e Saban falavam apenas na língua fronteiriça. Ratharryn era uma recordação dolorosa, claro, mas quase a desaparecer. Até o rosto de Derrewyn se esbatia na cabeça de Saban. Sentia ainda um terrível remorso quando pensava nela, mas agora, em vez de ter pena de si próprio, sentia um ardente desejo de vingança.

 

Noite após noite, consolava-se com imagens da morte de Lengar, mas essa consolação estava a diluir-se nas novas maravilhas que via e nas estranhas coisas que aprendia.

 

Viu templos. Muitos eram templos importantes; uns de madeira, mais de pedra. As pedras formavam círculos vastos, enquanto os templos de madeira se erguiam para o céu e estavam cobertos de azevinho e hera. Viu sacerdotes que se cortavam com pederneira, para manchar o peito de sangue enquanto oravam. Esteve num local onde a tribo adorava um ribeiro e Haragg explicou-lhe que o povo afogava aí uma criança em cada lua nova. Noutro local, os homens adoravam um boi, um boi diferente todos os anos e matavam o animal no Solstício, comendo a sua carne antes de escolherem o seguinte. Uma tribo tinha um sacerdote louco que se contorcia, babava e dizia disparates, enquanto outra apenas permitia sacerdotes aleijados. Nesse local adoravam as víboras e ali perto havia uma aldeia governada por uma mulher. Foi o que pareceu mais estranho a Saban, pois ela não era apenas uma influente feiticeira, como Sannas, mas a chefe de toda a tribo.

 

Sempre tiveram mulheres como chefes contou-lhe Haragg. Desde que os conheço. Parece que foi o que a deusa deles ordenou. A mulher chefe insistiu para que Haragg dormisse uma noite com ela. Se dissesse que não, não me comprava nada explicou o gigante.

 

Foi nessa aldeia que Haragg ordenou a Saban que cortasse um ramo de teixo e fizesse um arco. Haragg comprou-lhe flechas, com a condição de que Saban não usasse a arma contra o seu dono.

 

Mas não deixes que Cagan pegue nas flechas avisou-o Haragg. Haveria de se ferir.

 

A cicatriz do dedo cortado tornara-se um calo duro, mas Saban descobriu que podia usar o arco tão bem como dantes. A falta do dedo era a marca da sua servidão, mas não uma deficiência. O cabelo voltara a crescer com força e certos dias até dava consigo a rir ou a sorrir. Uma manhã acordou, apercebendo-se que gostava da vida com o austero Haragg. A ideia causou-lhe remorsos em relação a Derrewyn, mas Saban era ainda novo e o desgosto estava a ser rapidamente diluído pela novidade.

 

Esperaram na aldeia chefiada pela mulher até que se juntassem mais mercadores. A viagem seguinte, disse Haragg, seria perigosa e os homens sensatos não viajavam sós por aqueles caminhos. Pagaram à mulher-chefe uma peça de bronze para que ela lhes fornecesse vinte guerreiros como escolta e, numa manhã fria, os comerciantes partiram para norte, em direcção a charnecas ermas e escuras sob o céu nublado. Aqui não cresciam árvores e Saban não entendia como é que um povo podia viver num local assim. Haragg disse-lhe que na charneca havia profundas fendas nas rochas, onde se escondiam grutas e que os proscritos viviam nesses sítios frios e húmidos.

 

São desesperados afirmou Haragg.

 

No fim desse dia um bando de homens atacou-os. Saíram da urze, disparando flechas; poucos mas cautelosos, mostraram-se cedo de mais. Os lanceiros contratados tentaram assustar os proscritos, gritando e agitando as lanças, mas o inimigo era teimoso e continuava a impedir-lhes o caminho.

 

Têm de os atacar gritou Haragg aos guerreiros, que pareciam pouco dispostos a morrer por uns quantos comerciantes.

 

Cagan queria carregar sobre os homens esfarrapados, uivando como um animal, mas Haragg impediu-o e deixou Saban avançar em seu lugar. Este disparou uma flecha e viu-a falhar por pouco, de modo que avançou mais uns passos e lançou outra. Ficou bastante longe do alvo, mas Saban calculou que fosse falta de pontaria ou então devido ao vento e soltou uma terceira que acertou no ventre de um homem. As flechas do inimigo eram agora apontadas a Saban, mas os arcos eram fracos, de modo que resolveu avançar mais uns passos e puxar a corda, soltando-a para fazer recuar outro homem. Gritou-lhes, troçando da sua coragem e falta de pontaria e depois disparou outra flecha de ponta de sílex para um homem despenteado vestido com uma túnica de lã muito suja. Dançava enquanto os outros fugiam.

 

As vossas mães são porcas! gritava Saban. As vossas irmãs dormem com bodes! Nenhum dos inimigos teria entendido os insultos, mesmo que estivessem suficientemente perto para os ouvir.

 

Haragg sorriu então a Saban. Bateu-lhe mesmo no ombro e riu-se.

 

Devias ter sido guerreiro e não escravo disse, e Cagan, seguindo o exemplo do pai, abanou a cabeça e sorriu para Saban.

 

Sempre quis ser guerreiro confessou Saban.

 

Todos os rapazes querem. De que serve um rapaz querer ser outra coisa? perguntou Haragg. Todos os homens são guerreiros, excepto os sacerdotes. Disse as últimas palavras com intensa amargura, mas recusou-se explicar porquê.

 

No dia seguinte os comerciantes expuseram a sua mercadoria numa aldeia a norte das charnecas. Tinham vindo tribos de outros povoados e centenas de pessoas passeavam pelas pastagens onde regatearam desde o nascer ao pôr do Sol. Nesse dia Haragg trocou a maior parte dos seus produtos, recebendo mais ervas e a promessa de um monte de peles que lhe seria entregue no fim do Inverno.

 

Até lá, ficaremos aqui disse a Saban.

 

O local parecia soturno a Saban, pois era apenas um vale profundo entre montes altos. As encostas mais baixas estavam cobertas de pinheiros e um regato frio descia das rochas cinzentas por entre as árvores escuras.

 

Havia um templo de pedra mais em baixo, no vale, e mais acima encontravam-se várias cabanas. Haragg e Saban arranjaram uma para si, que não estava em muito boas condições, mas Saban arranjou as traves, depois cortou turfa para fazer o telhado.

 

Porque gosto de estar aqui respondeu Haragg, quando Saban lhe perguntou porque não voltava a Sarmennyn para passar o Inverno. E vai ser um longo Inverno avisou. Longo e frio mas, quando terminar, devolvo-te ao teu irmão.

 

A Lengar? perguntou Saban amargamente. O melhor seria matares-me já aqui.

 

Não, não é a Lengar respondeu Haragg. A Camaban. Não foi Lengar que quis que fosses meu escravo, mas sim Camaban.

 

Camaban? exclamou Saban, estupefacto.

 

Camaban confirmou calmamente Haragg. Lengar queria matar-te quando voltasse a Ratharryn, mas Camaban determinou que deverias viver. Parece que uma vez protestaste quando o teu pai o quis matar.

 

Protestei? perguntou Saban, mas depois recordou-se do fracassado sacrifício e do seu involuntário grito de horror. É verdade, protestei.

 

Então Camaban convenceu Lengar que teria má sorte se te matasse. Sugeriu a escravatura e, para um homem com o espírito de Lengar, a escravatura é pior que a morte. Mas tinhas de ser meu escravo e não de outro homem qualquer, pois Camaban afirmava que lho tinham ordenado em sonhos. Eu e o teu irmão planeámos tudo isto. Passámos noites inteiras a discutir como o faríamos. Haragg olhou para a mão de Saban, onde a cicatriz do dedo cortado era agora uma prega de pele seca. Tinha de ser feito devidamente explicou. Senão Lengar não concordaria e estarias morto. Abriu a bolsa e retirou de lá a preciosa faca que fora oferta de Hengall a Saban e com a qual o dedo deste tinha sido cortado. Entregou-lhe a faca. Toma disse, devolvendo-lhe também o amuleto de âmbar.

 

Saban colocou o amuleto da mãe à volta do pescoço e meteu a faca no cinto.

 

Estou livre? perguntou admirado.

 

Estás livre garantiu Haragg solenemente. Podes ir, se quiseres, mas o teu irmão desejava que eu te retivesse em segurança até podermos ir ter com ele a Sarmennyn. Não sabia de outra maneira de te conservar com vida, senão destinando-te a seres meu escravo, mas encarregou-me de te proteger, porque precisa de ti.

 

Camaban precisa de mim? perguntou Saban totalmente abismado por tudo aquilo que Haragg inexpressivamente lhe revelava. Saban pensava ainda no irmão como sendo aleijado e gago, uma pessoa digna de piedade, porém fora o desprezado Camaban que tratara da sua sobrevivência e que recrutara o assustador Haragg para cumprir os seus desígnios. Porque é que Camaban precisa de mim? perguntou.

 

Porque o teu irmão está a fazer uma coisa maravilhosa disse Haragg e pela primeira vez havia emoção na sua voz. Uma coisa que apenas um grande homem podia fazer. O teu irmão está a fazer um mundo novo.

 

Haragg ergueu a cortina de couro que tapava a porta da cabana e espreitou para ver que a neve caía de novo espessa e lenta para abafar o mundo.

Durante muitos anos lutei contra este mundo e contra os seus deuses afirmou, continuando a olhar para a neve. Tentava explicar tudo. Largou a cortina e lançou a Saban um olhar que era quase de desafio. Essa luta não me deu qualquer prazer. Mas depois conheci o teu irmão. Ele não sabe, pensei, é muito novo! Mas sabia. Sabia. Encontrou a forma.

 

A forma? perguntou Saban confuso.

 

Encontrou a forma repetiu Haragg gravemente. Tudo será novo, tudo ficará bem e tudo mudará.


UMA NOITE DE INVERNO EM QUE A TERRA ESTAVA DURA COMO O GELO E AS árvores cobertas de geada cintilavam sob uma Lua pálida e húmida, um homem saiu a coxear das árvores a norte de Cathallo e atravessou os campos de pousio. Era a noite mais longa, as trevas da morte do Sol e ninguém o viu chegar. Das cabanas da aldeia saía uma débil nuvem de fumo, pois as fogueiras eram agora apenas brasas, porém os cães de Cathallo dormiam e os bois, carneiros, cabras e porcos passavam o Inverno em segurança dentro das cabanas, onde não poderiam ser perturbados pelo desconhecido.

 

Os lobos tinham visto o homem e seguiam-no com as línguas pendentes, nas voltas que dava, porém este voltou-se e uivou-lhes, de modo que os animais primeiro ganiram e depois fugiram, abrigando-se por entre as árvores escuras cobertas de geada. O homem continuou a andar. Então, nos momentos iluminados pelas estrelas que antecediam a madrugada, chegou à entrada norte do grande santuário.

 

As pedras enormes dentro da alta barreira de terra cintilavam com a geada. Por um momento, ao deter-se junto à porta, pareceu-lhe que o anel enorme de blocos de pedra tremeluzia como um círculo de dançarinos passando o peso do corpo de um pé para outro. As pedras dançantes. Sorriu com a ideia, contudo apressou-se a percorrer a relva até à cabana de Sannas.

 

Afastou suavemente a cortina de couro que tapava a entrada, deixando entrar uma rajada de ar frio que reavivou o lume mortiço. Baixou-se para entrar, deixou cair a cortina e ficou muito quieto.

 

Quase não via nada. O lume não passava de brasas e cinzas, e o luar não entrava pelo buraco do telhado que servia de chaminé, de modo que se acocorou à escuta até detectar o ruído de três pessoas a dormir. Três adormecidos.

 

Atravessou a cabana de joelhos, lentamente, para não fazer ruído e, quando descobriu o primeiro adormecido, uma jovem escrava, tapou-lhe a boca e passou-lhe a faca com a mão livre. A respiração difícil borbulhou-lhe na garganta cortada, estrebuchou um pouco, mas depois ficou imóvel. A segunda rapariga morreu do mesmo modo e então o homem pôs de lado as cautelas e dirigiu-se ao fogo para soprar as brasas incandescentes, alimentando-as com bufa-de-lobo e pequenos rebentos, e assim as chamas subiram luminosas para iluminar as caveiras penduradas, as asas de morcego e os molhos de ervas e ossos. O sangue fresco rebrilhava nas peles e nas mãos do assassino.

 

A última pessoa adormecida agitou-se no outro extremo da cabana.

 

Já é de manhã? perguntou a voz idosa.

 

Ainda não, minha querida disse o homem. Lançava agora para o fogo bocados maiores de madeira. Mas é quase acrescentou, consolando-a. Porém vai estar muito frio, mesmo muito frio.

 

Camaban! Sannas ergueu-se no monte de peles que lhe servia de cama. O seu rosto de caveira, emoldurado pela cabeleira branca, mostrava surpresa e até algum prazer. Sabia que voltarias continuou. Não se apercebeu do cheiro a sangue-vivo, disfarçado pelo odor do fumo. Por onde andaste? perguntou em tom de lamúria.

 

Andei pelos montes e adorei em templos mais velhos que o tempo disse Camaban em voz baixa, alimentando o fogo com mais lenha. Falei com sacerdotes, velhas e feiticeiros, até ter sugado completamente todos os conhecimentos deste mundo.

 

Completamente! Sannas riu. Mal lambeste a teta, jovem imbecil, quanto mais sugar. Na verdade, Sannas sabia que Camaban tinha sido o seu melhor pupilo, um homem cujos dons rivalizavam com os seus, mas tal nunca lho diria. Inclinou-se para o lado, revelando o seio pendido, semelhante ao couro, enquanto estendia a mão para apanhar o favo de mel. Pôs um bocado na boca e chupou-o ruidosamente.

 

O teu irmão está a combater-nos disse amargamente.

 

Lengar adora combater disse Camaban.

 

E adora fazer filhos prosseguiu Sannas. Derrewyn está grávida.

 

Ouvi dizer.

 

Que o leite dela envenene o bastardo proferiu Sannas. E o pai dele também. Puxou as peles para cima dos ombros. Lengar faz os nossos homens prisioneiros, Camaban, e sacrifica-os aos seus deuses.

 

Camaban voltou-se.

 

Lengar pensa que os deuses são como cães, que podem ser chicoteados para obedecer. Mas em breve aprenderá que têm chicotes maiores que o dele. Por enquanto faz o trabalho de Slaol, de modo que calculo que será próspero.

 

Slaol sussurrou Sannas com desprezo.

 

O grande deus disse Camaban reverente. O deus acima dos outros deuses. O único deus que tem poder para mudar o nosso triste mundo.

 

Sannas olhou-o enquanto um fio de mel lhe escorria dos lábios.

 

O único deus? perguntou incrédula.

 

Disse-te que desejava aprender explicou Camaban. Descobri que Slaol é o deus acima de todos. O nosso erro foi adorarmos os outros que, por sua vez, estão demasiado ocupados a adorar Slaol e não reparam em nós.

 

Sorriu da expressão estupefacta de Sannas. Sou seguidor de Slaol, Sannas. Sempre o fui, desde criança. Mesmo quando te ouvia falar de Lahanna, adorava Slaol.

 

Ela estremeceu ao ouvir tal impropério.

 

Então porque voltaste cá, idiota? perguntou. Pensas que amo Slaol?

 

Vim para te ver, claro, minha querida respondeu calmamente Camaban. Pôs no fogo o último bocado de madeira, depois sentou-se ao lado dela, passando-lhe o braço pelos ombros. Paguei-te para que me ensinasses, lembras-te? Agora quero uma lição final.

 

A velha viu-lhe o sangue nas mãos e tentou deitar-lhe as unhas ao rosto.

 

Não te dou nada ameaçou. Camaban voltou-se de frente para ela.

 

Vais dar-me uma última lição, Sannas disse em voz baixa. Paguei-a com o ouro de Slaol.

 

Não! respondeu em tom sibilante.

 

Sim insistiu gentilmente Camaban, inclinando-se e beijando-a na boca.

 

Ela debateu-se, mas Camaban usou o seu peso para a empurrar. Continuava a beijá-la, com a boca colada à dela, que por segundos tentou escapar ao beijo, afastando a cara. Porém não conseguia opor-se à força dele.

 

A velha lançou-lhe um olhar furioso quando ele lhe retirou as peles de cima dos seios, lhe rodeou o corpo com o braço e começou a apertá-la. Debateu-se de novo, deixando escapar um pequeno gemido, mas Camaban colou com força a sua boca à dela, apertou-a e tapou-lhe as narinas com a mão esquerda. Durante todo o tempo, manteve os seus olhos verdes nos negros da feiticeira.

 

Levou muito tempo. Um tempo surpreendente. A velha esperneou e estrebuchou debaixo das peles, até que algum tempo depois terminaram os espasmos, embora Camaban continuasse a beijá-la. O fogo estava de novo a apagar-se quando os fracos movimentos de Sannas esmoreceram, embora continuasse ainda com os olhos abertos. Camaban manteve os seus fixos nos da feiticeira, só os afastando quando tudo terminou e, mesmo assim, foi com muita cautela, como se esperasse qualquer artimanha da sua parte, que afastou o rosto. Esperou, com a boca a um sopro da dela, mas Sannas não se moveu. Mesmo assim esperou sem se atrever a respirar, até que, por fim, sorriu.

 

Mas que beijo tão doce disse para o cadáver, tocando-lhe depois com o dedo na testa. Fiquei com o teu último sopro, senhora. Roubei-te a alma.

 

Ficou um momento sentado, a saborear o triunfo. Com o último alento, ficara-lhe também com os poderes e engolira-lhe o espírito, mas depois lembrou-se da chegada da manhã e apressou-se a percorrer a cabana. Retirou as pedras que formavam a pequena lareira e depois, utilizando um bocado de lenha, afastou as brasas e as cinzas quentes. Encontrou uma armação de veado partida e utilizou-a para escavar o chão quente por baixo do local do lume, retirando a terra de onde sabia que Sannas escondia os seus pertences mais preciosos.

 

Desenterrou uma bolsa de couro. Retirou-a suavemente, depois levantou a cortina da entrada da cabana onde a primeira infiltração cinzenta da manhã oferecia uma luz soturna. Desatou a bolsa e despejou o conteúdo na palma da mão. Havia onze pequenos losangos de Sarmennyn e um grande. Era o ouro que Hengall trocara pelas pedras de Cathallo e os dois que o próprio Camaban pagara a Sannas. Olhou para o tesouro por uns instantes, depois voltou a colocá-lo na bolsa, atou-a ao cinto e saiu para o frio.

 

Seguiu para norte. Uma criança viu-o abandonar o santuário na bruma cinzenta, mas não deu o alarme. Coxeou pelos campos cobertos de geada até à floresta escura, onde desapareceu antes que o Sol se erguesse para abrasar o templo de Cathallo.

 

Onde Sannas, a feiticeira jazia morta.

 

Haragg contratou três escravas para o Inverno. Vinham de uma tribo que vivia ainda mais a norte e falavam uma língua que nem mesmo ele compreendia, mas conheciam bem os seus deveres. A mais nova dormia com Haragg, Saban e Cagan dividiam as outras duas.

 

Um homem deve dormir com uma mulher disse Haragg a Saban. É uma coisa natural, como deve ser.

 

Haragg pouco gozo parecia tirar da mulher que tinha. O seu prazer vinha antes da vida parca e fria daquele longo Inverno. Todas as manhãs ia orar ao templo, trazendo depois água ou gelo para pôr ao lume, enquanto Cagan alimentava com feno ou folhas os três cavalos com que dividiam a cabana. O chefe da aldeia considerava Haragg um hóspede de honra e providenciava comida para todos, contudo Saban acrescentava estas ofertas, indo à caça. Preferia fazê-lo sozinho, perseguindo as raras presas pela terra coberta de gelo, embora se tenha juntado uma vez aos homens da aldeia quando encontraram um urso a dormir numa caverna. Acordaram o animal com fogo, mataram-no com sílex e bronze, depois Saban levou para a cabana um bocado de carne ensanguentada. A comida nunca era suficiente, pelo menos para o gigantesco Cagan, mas nenhum deles morreu de fome. Comiam bagas e frutos secos que armazenavam em potes, esvaziavam os sacos de grão e ervas e, de vez em quando, banqueteavam-se com veado, lebre ou peixe.

 

Dia após dia, a neve cintilava sobre os montes e o ar parecia cheio de uma geada brilhante; o Sol aparecia por pouco tempo e as noites eram infinitas. Queimavam turfa, coisa que Saban nunca tinha visto, mas por vezes, para tornar mais forte a luz da cabana, acrescentavam troncos de pinho resinoso, que ardia com muito fumo e com um cheiro picante. As longas noites eram geralmente silenciosas, contudo Haragg conversava.

 

Fui sacerdote disse uma noite o homem enorme, sobressaltando Saban. Fui sacerdote em Sarmennyn e tinha esposa, um filho e uma filha.

 

Saban não disse nada. A turfa ardia avermelhada. Os três cavalos batiam com as patas e Cagan, que os adorava, sentia a vibração e voltava-se fazendo pequenos ruídos para os acalmar. As mulheres olhavam para os homens, abrigando-se as três debaixo da mesma pele. Tinham enormes cabeleiras emaranhadas, que quase lhes escondiam as cicatrizes da testa, sinal de que eram escravas. Saban estava a aprender a língua delas, mas agora ele e Haragg falavam na língua do Povo da Fronteira.

 

A minha filha chamava-se Miyac disse Haragg, olhando para o brilho firme do lume. Era quase como se estivesse a falar consigo próprio, pois não olhava para Saban. Miyac acariciava o nome com a voz. Era uma criatura de grande beleza. Grande beleza. Pensei que quando crescesse se casaria com um chefe ou com um importante guerreiro e estava satisfeito, pois a riqueza do marido manter-me-ia a mim e à minha esposa quando fôssemos velhos e protegeria Cagan depois de morrermos.

 

Saban nada disse. Ouviu-se um ruído arrastado quando uma massa de neve escorregou do telhado de turfas.

 

Mas em Sarmennyn, escolhemos uma noiva do Sol todos os anos continuou Haragg. É escolhida na Primavera e durante três luas torna-se uma deusa abanou a mão para mostrar que três luas era uma data aproximada. Depois, no Solstício, na glória do Sol, matamo-la.

 

Matam-na? perguntou Saban chocado.

 

Enviamo-la para Erek. Erek era o nome que o Povo da Fronteira dava a Slaol. E um ano, escolhemos Miyac.

 

Saban estremeceu.

 

Escolheram-na?

 

Os sacerdotes escolheram-na disse Haragg. Eu era sacerdote. A minha esposa gritou comigo, bateu-me, mas pensei que fosse uma honra para a nossa família. Que marido mais grandioso que Erek poderia Miyac arranjar? E assim, a minha filha caminhou para a morte e a minha esposa seguiu-a uma lua depois. Eu caí numa negra tristeza e, quando saí dela, já não queria ser sacerdote, de modo que, como as minhas ideias não eram bem recebidas, comecei a andar pela terra. A fazer comércio.

 

Tinha a tristeza no rosto mas ao ver que o filho choramingava, Haragg inclinou-se sobre ele para lhe dar umas palmadinhas na mão, dando-lhe a entender que tudo estava bem.

 

Saban aproximou-se mais do lume e aconchegou a pele nos ombros, perguntando a si próprio se alguma vez mais haveria calor no mundo.

 

O meu irmão gémeo era sumo sacerdote em Sarmennyn afirmou Haragg. Quando lhe disse que já não acreditava em sacrifícios, permitiu que me tornasse comerciante, em vez de sacerdote. Chama-se Scathel. Hás-de conhecê-lo, se ainda for vivo.

 

Houve qualquer coisa no tom em que Haragg pronunciou o nome do irmão, que fez Saban pensar que não gostaria de o conhecer.

 

O teu irmão ainda é sumo sacerdote? perguntou. Haragg encolheu os ombros.

 

Perdeu o juízo quando os tesouros foram roubados e fugiu para as montanhas. Por isso não sei se está vivo ou morto.

 

Quem roubou os tesouros? perguntou Saban.

 

O seu nome nunca é pronunciado respondeu Haragg. Mas era filho do nosso chefe e queria suceder ao pai; porém tinha três irmãos mais velhos, todos mais importantes que ele, de modo que roubou os tesouros para trazer má sorte a Sarmennyn. Ouvira falar de Sannas e acreditava que ela poderia utilizá-los para fazer uma magia que matasse o pai e os irmãos, tornando-o chefe da tribo. Sabemo-lo, pois foi o que contou à esposa, que por sua vez no-lo confessou antes de a matarmos; depois, Scathel evitou a má sorte, matando o chefe e toda a família. O ouro nunca chegou a Sannas, mas de qualquer modo Scathel enlouqueceu. Só sei que o meu povo tudo faria para ter os seus tesouros de volta.

 

Têm de dar um templo disse Saban, recordando o que Lengar lhe dissera na manhã em que tinha sido feito escravo.

 

Devem ouvir Camaban declarou Haragg em voz baixa e de novo Saban ficou cheio de espanto por o seu irmão desajeitado e coxo ter subitamente conseguido uma reputação espantosa.

 

Uns dias mais tarde, quando o degelo começou a derreter a neve nas passagens dos montes e depois de terem sido entregues as preciosas peles brancas de Haragg, quando os dias cresceram de novo e Slaol recuperou a força, Haragg conduziu Saban e Cagan para ocidente. Ostensivamente iam comprar machados feitos de pedra negra, muito apreciados no Sul do país, porém Saban suspeitava que a viagem tivesse outra finalidade. Passado meio dia, chegaram inesperadamente a um monte alto que acabava abrupto num rochedo sobre o mar. Era a primeira vez que Saban via tal extensão de água e gemeu ao avistá-la. Nunca imaginara uma coisa tão escura, cinzenta, fria e peçonhenta. Erguia-se constantemente, como se houvesse músculos a trabalhar por baixo da sua superfície salpicada de branco; quando encontrava terra quebrava-se numa miríade de fragmentos rodopiando ao vento, para depois recuar, secar, investindo de novo e voltando a quebrar-se. Aves brancas grasnavam no ar. Poderia ficar a olhá-lo para sempre, mas Haragg levou-o para norte ao longo da costa. As pequenas praias nas curvas dos rochedos estavam cheias de ossos de monstros e quando chegaram à aldeia onde trocariam os machados.

Saban ficou a dormir numa cabana cujas vigas eram feitas de enormes ossos curvos, que se arqueavam sobre ele para suportar um telhado baixo de madeira e turfa.

 

Na manhã seguinte, Haragg levou Cagan e Saban até um estreito fragmento de terra que avançava pelo vasto oceano. Ali, no fim da terra, no alto de um rochedo que parecia estremecer com o infinito trovão do mar, havia um templo. Era um santuário muito simples, um mero anel de oito pedras altas, das quais uma se destacava do círculo.

 

Erek, de novo disse Haragg. Por onde quer que viajes, descobrirás que Erek é adorado. Sempre Erek.

 

Saban calculou que a pedra que se destacava apontava a direcção do local em que o Sol nascia no Solstício e que a sua sombra penetraria no círculo quando o astro desse vida à terra. Na base das pedras encontravam-se pequenos rebentos de urze seca, prova de que houvera ali preces e nem mesmo o vento uivante vindo do mar conseguia arrancar o cheiro a sangue de um animal que fora sacrificado no templo havia pouco tempo.

 

Temos um santuário como este, em Sarmennyn disse Haragg em voz baixa. Chamamos-lhe o Templo do Mar, embora nada tenha a ver com Dilan. Saban sabia agora que Dilan era o deus do mar de Sarmennyn. O nosso Templo do Mar não se ergue diante do Sol nascente. Olha para o local em que se põe no Solstício e, se fosse eu que mandasse, mandava-o deitar abaixo. Agarraria nas pedras e deitá-las-ia ao mar. Fá-lo-ia desaparecer. Falava com uma amargura pouco comum.

 

A noiva do Sol? arriscou timidamente Saban. Haragg acenou afirmativamente.

 

Morre no Templo do Mar. Fechou os olhos por alguns segundos. Dirige-se para o templo enfeitada com o ouro de Erek e depois despem-na, para ficar como uma noiva deve ir para o seu esposo, e enviam-na para a morte.

 

Haragg apertou os joelhos. Saban viu-lhe as lágrimas nos olhos ou talvez fosse o efeito do vento, que trazia os salpicos de água e fazia rodopiar no céu as aves marinhas. Saban compreendia agora a razão pela qual Haragg chegara a este local tão elevado: daqui podia avistar a vastidão do mar, para onde voara o espírito da filha junto com as enormes aves brancas.

 

O ouro foi uma oferta de Dilan continuou Haragg. Os tesouros chegaram à praia num barco afundado, perto do local onde está situado o Templo do Mar, de modo que os nossos antepassados decidiram que o ouro era a oferenda de um deus a outro. Talvez tivessem razão.

 

Talvez?

 

Os barcos afundam-se disse Haragg. E os comerciantes trazem ouro das terras do outro lado do mar.

 

Saban franziu a testa ao ouvir-lhe o cepticismo na voz.

 

Estás a dizer que... começou a perguntar. Haragg voltou-se para ele, zangado.

 

Não estou a dizer nada. Os deuses falam connosco e talvez nos tenham mandado o ouro. Talvez Dilan tenha afundado e empurrado o barco para aquela praia por baixo do rochedo, mas porquê? Haragg franziu a testa enfrentando o vento. Nunca perguntámos porquê, limitávamo-nos a envolver em ouro uma rapariga e a matá-la, e continuamos a fazê-lo ano após ano, após ano! Estava zangado e cuspiu no templo de pedra onde ainda se via o sangue do sacrifício misturado com cabelos castanhos. E são sempre os sacerdotes que exigem os sacrifícios. De cada animal morto ficam com o fígado, os rins, os miolos e a carne de uma perna. Quando a noiva- do Sol é feita deusa, dão-lhe o tesouro, mas quem o recebe quando a matam? Os sacerdotes! Sacrifício, dizem, ou então as colheitas serão más e, quando de qualquer modo o são, dizem simplesmente que os sacrifícios não foram suficientes e exigem mais!

 

Cuspiu de novo.

 

Estás a dizer que não deveria haver sacerdotes? perguntou Saban. Haragg abanou a cabeça.

 

Precisamos dos sacerdotes. Precisamos de pessoas que possam transmitir-nos os desígnios dos deuses, mas porque será que os escolhemos entre os mais fracos? Lançou a Saban um olhar de esguelha. Tal como na tua tribo, escolhemos os sacerdotes por entre aqueles que falham nas provas. Eu falhei! Não sei nadar e quase me afoguei, mas o meu irmão salvou-me e, ao fazê-lo, acabou por falhar também as suas. Mas Scathel sempre quis ser sacerdote. Encolheu os ombros como se quisesse dar pouca importância à história. Assim, a maior parte dos sacerdotes são homens fracos, mas como todos, quando lhes conferem alguma autoridade, tornam-se tiranos. E por tantos sacerdotes serem imbecis não pensam; repetem simplesmente as coisas que aprenderam. Tudo muda, mas eles não. E agora a mudança é muito rápida.

 

Ah, sim? perguntou Saban. Haragg lançou-lhe um olhar infeliz.

 

O nosso ouro foi roubado! Mataram o teu pai! São sinais dos deuses, Saban! A dificuldade está em saber o que significam.

 

E tu sabes? Haragg abanou a cabeça.

 

Não, mas o teu irmão Camaban, sabe.

 

Por um momento a alma de Saban revoltou-se contra este fado, que o tinha trazido a um estranho templo sobre um mar implacável. Pensou que Camaban e Haragg o tinham envolvido numa loucura e sentia um enorme ressentimento contra o destino, que o arrancara a Ratharryn e aos braços de Derrewyn.

 

Só quero ser guerreiro protestou.

 

Pouca importância tem aquilo que queres disse Haragg lacónico. Mas o que o teu irmão deseja, tem muita, e foi ele quem te salvou a vida. Estarias morto, esquartejado pela espada de Lengar, se Camaban não o tivesse convencido de outra coisa. Deu-te a vida, Saban, e, aquela que te resta, deves pô-la ao seu serviço. Foste escolhido.

 

Para transformar o mundo, pensou Saban, sentindo-se tentado a rir. Mas fora apanhado no sonho de Camaban e, quer quisesse quer não, deveria levar a cabo a sua visão.

 

Camaban voltou a Sarmennyn no início da Primavera. Passara o Inverno na floresta, num antigo templo de madeira. Encontrara-o cheio de arbustos e a apodrecer, mas limpara-o; observava o Sol a retirar-se perto do anel de postes, iniciando depois o caminho para a plenitude do Verão. Durante todo o tempo falara com Slaol até discutira com o deus, pois por vezes lamentava o fardo que lhe fora imposto. Só ele compreendia os deuses e o mundo, sabia que só ele o poderia fazer voltar ao início, mas ao meditar nas suas ideias, gemia infeliz, balançando-se para diante e para trás. Uma vez um grupo de Fronteiriços em busca de escravos ouvira-o, vira-o e fugira dele pois apercebera-se de que era um homem santo. Estava também cheio de fome quando regressou a Sarmennyn: chegou num dia de festa, esfomeado, magro e amargo, à aldeia do chefe da tribo, tal como um corvo sarnoso pousando no meio de um bando de cisnes. A entrada principal da aldeia estava enfeitada com grinaldas de erva cicutária e flores de pereira, pois chegara o dia em que a nova noiva do Sol seria saudada pelo povo.

 

Kereval, chefe de Sarmennyn, recebeu calorosamente Camaban. À primeira vista, não parecia ser o chefe apropriado para uma nação tão guerreira, pois não era o mais alto, nem o mais forte da tribo. Porém, dizia-se que era sábio e, depois da perda dos seus tesouros, fora o que Sarmennyn procurara no seu novo chefe. Era um homem pequeno e magro, com olhos escuros que espreitavam do emaranhado de tatuagens cinzentas que lhe cobria as faces; tinha o cabelo negro preso com espinhas de peixe e usava uma capa de lã tingida de azul. O seu povo pedia-lhe apenas uma coisa: que recuperasse os tesouros e que procurasse fazê-lo mediante uma aliança com Lengar. Nas negociações tinham cedido um pequeno grupo dos temidos guerreiros de Sarmennyn para ajudarem Lengar a derrotar Cathallo, bem como um templo da tribo que seria oferecido a Ratharryn em troca da devolução dos losangos de ouro.

 

Há quem pense que não se pode confiar no teu irmão disse Kereval a Camaban. Os dois homens estavam acocorados à entrada da cabana do chefe, onde o feiticeiro comia avidamente uma tigela de caldo de peixe e um bocado de pão duro e seco.

 

Claro que sim retorquiu Camaban, embora na verdade não se importasse com o que pensavam os outros e a sua cabeça estivesse cheia da glória de Slaol.

 

Pensam que deveríamos entrar em guerra afirmou Kereval, espreitando para a entrada do templo para ver se a noiva do Sol já tinha chegado.

 

Então, entrem disse Camaban, despreocupado e com a boca cheia. Pensas que me importa que devolvam ou não os vossos miseráveis tesouros?

 

Kereval nada disse. Sabia que não poderia esperar conduzir um exército até Ratharryn, visto ser demasiado longe e os seus lanceiros encontrariam muitos inimigos pelo caminho, apesar do facto de serem famosos pela sua bravura e temidos por todos os vizinhos, já que eram duros e impiedosos como a terra de onde provinham. Sarmennyn era uma terra rochosa, um local amargo enfiado entre o mar e as montanhas, onde as árvores já cresciam dobradas como os velhos, embora poucos da tribo tivessem uma vida longa. As dificuldades da vida faziam vergar as pessoas como o vento vergava as árvores, vento esse que raras vezes deixava de gemer no cimo pedregoso das montanhas por baixo das quais vivia o povo de Sarmennyn, em cabanas baixas feitas de pedra, cobertas de madeira, algas, palha e turfa. O fumo das cabanas atarracadas misturava-se com a bruma, a chuva e o granizo. Dizia-se que era uma terra que ninguém queria, de modo que a tribo do Povo da Fronteira tinha-a ocupado, para aí viver do que o mar dava, de fabricar machados com a pedra escura das montanhas e do que roubava aos vizinhos. Tinham prosperado naquela região estéril, mas desde que os tesouros foram roubados, nada nela corria bem. Houvera mais doenças do que o habitual, doenças que tinham também chegado ao gado e às ovelhas. Tinha-se perdido no mar uma dezena de barcos e os corpos das tripulações chegavam a terra, brancos, inchados e mordidos pelos peixes. As tempestades tinham danificado as poucas colheitas, de modo que havia fome. Os lobos tinham descido dos montes e os seus uivos pareciam um lamento pelos tesouros perdidos.

 

Se o teu irmão não mantiver o acordo... começou Kereval.

 

Se o meu irmão quebrar a sua palavra, então encarregar-me-ei de devolver o ouro interrompeu-o Camaban. Eu, Camaban, enviar-te-ei o ouro. Confias em mim, não é verdade?

 

Claro respondeu Kereval e assim era, pois da primeira vez que visitara Sarmennyn, Camaban curara a esposa favorita do chefe, nessa altura a morrer de uma doença que a definhava. Os sacerdotes e curandeiros de Kereval nada tinham conseguido, mas Camaban dera à mulher uma poção que aprendera com Sannas e esta recuperara rápida e completamente.

 

Camaban limpou o caldo da tigela com o resto do pão e voltou-se para a multidão que se juntara na entrada engrinaldada e que de repente se ajoelhara.

 

Chegou a vossa última noiva? perguntou sarcástico a Kereval. Outra criança de dentes tortos e cabelo emaranhado para atirarem ao deus?

 

Não, disse Kereval, erguendo-se para se juntar com a multidão à entrada. Chama-se Aurenna e os sacerdotes disseram-me que nunca tínhamos enviado ao Sol uma jovem tão bela. Nunca. Esta é uma maravilha.

 

Dizem o mesmo todos os anos afirmou Camaban e era verdade, pois as noivas do Sol eram sempre consideradas belas. A tribo dava o seu melhor ao deus, mas por vezes, em anos anteriores, se os pais tinham uma filha bonita, escondiam-na quando os sacerdotes vinham em busca de uma noiva: mas os pais da noiva do Sol daquele ano não a tinham ocultado, nem casado com um jovem qualquer que, ao tirar-lhe a virgindade, a teria tornado inaceitável para o leito do deus do Sol. Tinham-na antes guardado para Erek, embora Aurenna fosse uma rapariga tão bela que alguns homens ofereceram a seu pai rebanhos inteiros pela sua mão; também um chefe guerreiro do outro lado do mar, um homem cujos comerciantes traziam ouro e bronze para Sarmennyn, oferecera o peso de Aurenna em metal, se ela se metesse num barco e rumasse para a sua ilha distante.

 

O pai rejeitara todos os pretendentes, mesmo precisando desesperadamente de bens, pois não tinha gado, rebanhos, campos ou barcos. Partia pedra dia após dia. Ele, a mulher e os filhos partiam a pedra escura, esverdeada, que chegava das montanhas para fabricar cabeças de machado, que as crianças poliam com areia; depois lá vinha um comerciante que levava as peças, deixando alguma comida para a família de Aurenna. Só Aurenna nunca partira nem polira pedra. Os pais não o permitiam, pois era muito bela e um sacerdote da tribo profetizara que haveria de ser a noiva do Sol. Assim, a família tinha-a protegido até os sacerdotes virem buscá-la. O pai chorara e a mãe abraçara-a quando chegara o momento.

 

Quando fores deusa, olha por nós implorou a mãe.

 

Agora a nova noiva do Sol chegava à aldeia de Kereval e a multidão que a esperava tocou com as testas no solo, enquanto os sacerdotes a escoltavam pela entrada florida. Kereval deitou-se ao comprido na entrada da aldeia e não se mexeu até Aurenna lhe dar permissão para se erguer; porém um dos sacerdotes teve que lhe indicar que o fizesse, pois a jovem ainda não compreendera perfeitamente que se iria transformar em deusa. Kereval levantou-se e sentiu um enorme alívio ao ver que Aurenna era tudo o que lhe tinham descrito. O nome dela significava ”dourada” na língua fronteiriça, o que era adequado, já que a sua cabeleira brilhava como ouro pálido. Tinha a pele mais branca e limpa que Kereval alguma vez vira, um rosto comprido, olhos calmos e um estranho ar de autoridade. Era de facto uma beleza. Kereval gostaria de a ter levado para casa, mas seria impossível. Escoltou-a então até à cabana, onde as esposas dos sacerdotes a lavaram, lhe pentearam o longo cabelo dourado e a cobriram com um vestido branco de lã.

 

É muito bela disse Camaban, mal-humorado, a Kereval.

 

Muito repetiu Kereval e atreveu-se a desejar que o deus do Sol recompensasse a tribo por esta lhe oferecer uma noiva de tão etérea beleza.

 

Linda disse Camaban em voz baixa e soube de súbito que Aurenna teria de ser incluída no seu grande esquema. Num mundo em que toda a gente era curvada, marcada, desdentada e suja, se não fosse vesga, aleijada e coberta de verrugas, Aurenna era uma pálida, serena e ofuscante presença, que fez Camaban entender que o seu sacrifício tornaria aquele ano especial para Slaol.

 

Mas e se o deus a rejeitar? perguntou.

 

Kereval tocou nas partes baixas, o mesmo gesto que o povo de Camaban utilizava para evitar a má sorte.

 

Não o fará disse Kereval orgulhoso, mas na verdade receava essa mesma rejeição.

 

No passado, as noivas do Sol dirigiam-se calmamente para a morte para serem arrebatadas por um braseiro de luz, mas desde o desaparecimento dos tesouros, todas elas eram difíceis de morrer. A última fora a pior, pois berrara como uma porca durante a matança. Estrebuchara, guinchara e os seus gemidos de dor tinham sido piores que os uivos dos lobos ou o suspiro do mar sempre frio ao afastar-se das rochas escuras à volta da lúgubre terra de Sarmennyn. Kereval acreditava que a morte de Aurenna seria a pedra-de-toque da sua sabedoria. Se o deus aprovasse a transacção com Lengar, então Aurenna morreria sossegada, se não, a sua morte seria uma agonia e os inimigos de Kereval dentro da tribo rejeitar-lhe-iam a chefia.

 

No extremo sul da aldeia, ao lado do rio, no local onde se encontrava uma dezena de barcos puxados para cima por causa da maré cheia, havia um círculo de rudes pilares de pedra: o templo da noiva do Sol. A tribo dançava à volta do círculo, entoando cânticos, enquanto esperavam que a noiva aparecesse, vinda da cabana onde a lavavam e vestiam. Leckan, o feiticeiro coxo que fora a Ratharryn quando o povo de Sarmennyn tentara reaver o ouro e que era agora o sacerdote superior na aldeia de Kereval, olhou para o céu e viu que as nuvens estavam a desaparecer, de modo que havia a possibilidade de o Sol ver a jovem. Era um bom presságio. Depois os cânticos e as danças pararam e a tribo prostrou-se no chão.

 

Aurenna aparecera e, conduzida por dois sacerdotes, dirigiu-se ao seu templo. Tinham-lhe penteado o cabelo, que fora recolhido numa trança e preso por uma fita de couro rematada com primaveras e flores de abrunheiro. O vestido limpo e branco caía-lhe liso dos ombros. Normalmente estaria enfeitada com ouro, com uma cascata de losangos à volta do pescoço e as peças maiores cosidas no vestido, porém, mesmo tendo o ouro desaparecido, a jovem estava deslumbrante. Era uma rapariga alta, esguia e direita, de modo que pareceu a Camaban, que era o único que a via desfilar por entre a tribo prostrada, que ela se movia com uma graça etérea.

 

Aurenna não estava segura do que deveria fazer. Hesitava ao entrar no círculo, até que um dos sacerdotes lhe murmurou que era naquele momento que se ia tornar deusa, que aquele era o seu templo e poderia fazer o que desejasse, mas que era costume a noiva ir ao centro do círculo e aí ordenar à tribo que se erguesse e dançasse. Aurenna fez como lhe mandaram, embora tivesse a voz presa, quando falou. Nesse preciso momento, o Sol apareceu por entre as nuvens e as pessoas suspiraram satisfeitas, pois tratava-se de um bom presságio.

 

Kereval, o chefe, trazia uma bolsa de couro que entregou a Leckan; este abriu-a para descobrir dentro dela novos tesouros, encomendados à terra do outro lado do mar e que lhe tinham custado caro em bronze, âmbar e azeviche. Embora não substituíssem os tesouros perdidos, podiam mesmo assim honrar Erek e a sua noiva. O sacerdote retirou um enorme losango de ouro e três cadeias de outros mais pequenos, enfiados em cordões feitos de tendão, e colocou-os ao pescoço de Aurenna. Depois exibiu uma faca de lâmina de bronze com pregos de ouro enterrados no cabo de madeira. Guardou-a como símbolo de que o fio da vida de Aurenna seria cortado quando chegasse a altura.

 

Trouxeram oferendas para a deusa: sacos de cereal, ostras, mexilhões, muito peixe seco. Havia também cabeças de machado e lascas de bronze que foram guardadas pelos sacerdotes para seu uso, mas a comida foi amontoada aos pés de Aurenna e levada para o templo por homens que se atreveram a lançar um olhar à deusa antes de se prostrarem. Esta agradeceu a todos com sedutora timidez. Riu-se mesmo quando um homem trouxe peixes secos, enfiados pelas guelras num pau e um deles caiu. Quando o homem se voltou para o apanhar caiu outro na outra ponta do pau; quando o apanhou caiu um terceiro. O riso de Aurenna era luminoso como o seu prometido que ainda brilhava por entre as nuvens.

 

É costume dar os alimentos às viúvas disse-lhe em voz baixa Leckan, o sacerdote.

 

Os alimentos devem ir para as viúvas disse Aurenna em voz clara. Leckan deu-lhe mais instruções. Era agora uma deusa, de modo que não deveria ser vista a comer ou a beber, embora para onde quer que fosse em Sarmennyn tivesse uma cabana para o fazer com privacidade. Teria duas mulheres constantemente a servi-la e quatro lanceiros para a guardarem.

 

És livre de ir onde quiseres, senhora murmurou a Aurenna. Mas o costume é viajar para levar bênçãos à região.

 

E... Aurenna começou uma pergunta, mas as palavras morreram-lhe na garganta. Quando... recomeçou, mas mesmo assim não pôde terminar.

 

E no fim estarás aqui para te escoltarmos ao teu esposo disse Leckan calmamente. Não é doloroso. Apontou para o Sol que agora brilhava por entre as nuvens. O teu esposo não desejará esperar um momento mais do que o necessário. Não haverá dor.

 

Não haverá dor? gritou de súbito uma voz por trás deles. Não haverá dor? Tem de haver! Que noiva não sente dor? Dor e sangue! Sangue e dor! O homem que gritara estas palavras entrava agora no templo, para se deixar cair no chão e estender as mãos para os pés de Aurenna. Claro que haverá dor! gritou com a boca na erva. Dor inimaginável! O teu sangue ferverá, os teus ossos estalarão e a tua pele enrugar-se-á. É uma agonia. Não podes imaginar uma dor assim, nem que vivesses atormentada até ao fim dos tempos! Voltou a levantar-se. Deves gritar de dor vociferou a Aurenna. És uma noiva!

 

O homem aparecera com uma dúzia de seguidores, todos nus como o seu chefe e todos os sacerdotes, mas apenas o homem que gritara se aproximara de Aurenna. Era uma criatura alta e magra, com cara esfomeada e olhos ardentes, dentes compridos e amarelos, cabelo emaranhado e a pele marcada por cicatrizes. A sua voz parecia o grasnar de um corvo, os ossos pesados, nodosos como o sílex e os dedos escurecidos aduncos como garras.

 

A dor é o preço que pagas! gritou para a aterrorizada rapariga. Levava uma pesada lança com cabeça de sílex que manobrava descontroladamente enquanto pulava por entre as pedras. Vão saltar-te os olhos, mirrar-te os tendões e os teus gritos farão eco pelos rochedos! gritou.

 

Camaban observou a exibição a sorrir, mas Kereval correra para o templo.

 

Scathel? gritou zangado. Scathel!

 

Scathel era o sumo sacerdote de Sarmennyn, cargo que detinha quando os tesouros foram roubados mas, culpando-se pela perda do ouro, fugira para os montes, onde uivara às rochas e ferira o corpo com sílex. Seguiram-no outros sacerdotes e, depois de lhe passar a loucura, construíram um novo templo nas rochas altas, para orarem, jejuarem, humilharem-se, redimindo-se da perda do ouro. Muitos membros da tribo pensavam que Scathel tinha desaparecido para sempre; porém, agora, estava de volta.

 

Ignorou Kereval e, com a lança, obrigou Leckan a sair-lhe do caminho, para poder avançar para a aterrorizada Aurenna. Se Scathel estava impressionado com a sua beleza, não o demonstrava, pois intrometeu o seu rosto avermelhado junto ao dela.

 

És uma deusa? perguntou.

 

Aurenna não conseguia falar, mas acenou nervosamente com a cabeça, para responder à pergunta.

 

Então tenho uma petição a fazer-te gritou Scathel de modo a toda a gente da aldeia o conseguir ouvir. Os nossos tesouros têm de nos ser devolvidos! Têm de nos ser devolvidos! Enquanto gritava, salpicava-a com cuspo, o que a fez recuar para o evitar. Construí um templo! Scathel berrava sobre o ombro de Aurenna, dirigindo-se à multidão que o olhava horrorizada. Construí um templo com as minhas próprias mãos, sacrifiquei ao deus com sangue e ele falou comigo! Temos de ir buscar os tesouros!

 

Os tesouros ser-nos-ão devolvidos interrompeu Kereval.

 

Tu! Scathel voltou-se para o chefe, erguendo a lança, de modo que uma dúzia de guerreiros acorreu para junto de Kereval. Que fizeste para recuperar os tesouros?

 

Emprestámos homens a Ratharryn respondeu calmamente Kereval. Vamos também mandar-lhes um templo.

 

Ratharryn! exclamou Scathel com desprezo. Um local pequeno, miserável, um pântano de gente enfezada, porcos gordos e serpentes enroladas. És chefe, não comerciante! Não podes trocar o nosso ouro, tens de o ir buscar! Leva as lanças e as flechas e recupera os tesouros! Desviou-se para o lado e ergueu os braços para conseguir a atenção da tribo. Temos de ir para a guerra! gritou. Para a guerra! Começou a bater com a lança nas pedras. Temos de levar as nossas lanças, espadas e arcos, temos de matar e ferir até essa gente de Ratharryn implorar a nossa misericórdia! O pau da lança quebrou-se e a rudimentar cabeça de pedra saltou sem fazer mal a ninguém. Temos de lhes queimar as cabanas, arrasar-lhes os templos, esquartejar-lhes o gado e atirar as crianças para as fogueiras de Erek! Voltou-se para Kereval, agitando o pau partido. Lengar tem os nossos homens para combaterem nas suas guerras, tem o nosso ouro e quando as suas guerras forem ganhas, vai voltar-se contra os nossos homens e matá-los. Dizes tu que és chefe? Um chefe estaria a conduzir os jovens para a guerra!

 

Kereval desembainhou a espada. Era uma arma de bronze, maravilhosamente equilibrada, parte do tributo que cada comerciante chegado da ilha pelo mar ocidental tinha de pagar ao povo de Sarmennyn para poder transportar a sua mercadoria para oriente. De repente, Kereval bateu no pau da lança e a violência do ataque obrigou Scathel a recuar.

 

Guerra? perguntou Kereval. Que sabes tu de guerra, Scathel? Desferiu um novo golpe afastando ferozmente a arma para o lado. Para ir para a guerra, Scathel, tenho de levar os homens a atravessar os montes negros e depois as terras do povo de Salar. Combatê-los-ias? A espada cortou uma terceira vez, lascando o rude pau de freixo. E depois de enterrarmos os nossos mortos, sacerdote e de atravessarmos mais montes, chegaríamos às tribos do grande rio. Não nos têm em grande estima. Mas talvez os pudéssemos combater também. Bateu de novo no pau com a espada. E depois de atravessarmos o rio e de subirmos mais montes, os aliados de Ratharryn estariam à nossa espera com as suas lanças. Com centenas de lanças!

 

Então como chegou Vakkal a Ratharryn? perguntou Scathel. Vakkal era o homem que conduzira as forças para ajudar Lengar a tomar a chefia.

 

Foram por caminhos escondidos, conduzidos pelo teu irmão disse Kereval. Mas eram apenas cinquenta homens. Pensas que conseguias levar secretamente todos os nossos lanceiros? Para conquistarmos Ratharryn teríamos de levar todos os homens e quem ficaria aqui para proteger as mulheres?

 

O deus protegê-las-ia insistiu Scathel.

 

Kereval brandiu de novo a espada. Desta vez Scathel deixou cair o pau e abriu as mãos como se convidasse Kereval a meter-lhe no ventre a pesada espada, porém o chefe limitou-se a abanar a cabeça.

 

Dei a minha palavra afirmou Kereval. Daremos a Lengar de Ratharryn tempo para cumprir a sua. Ergueu a espada e esta desapareceu no nojento emaranhado da barba de Scathel. Tem cuidado com o que fazes nesta tribo, sacerdote, porque ainda sou eu quem manda aqui.

 

E eu ainda sou o sumo sacerdote respondeu Scathel cheio de cólera.

 

Os tesouros ser-nos-ão devolvidos! gritou Kereval. Voltou-se para olhar a tribo. Escolhemos uma noiva mais bela do que qualquer outra já enviada para o leito de Erek anunciou. Ela levará as nossas preces.

 

Scathel repetiu então a tímida pergunta de Saban:

 

Que farás se o deus rejeitar a noiva? Voltou-se e arrancou de súbito a faca de bronze da mão de Leckan. Por um instante parecia disposto a atacar Aurenna, mas segurou antes na sua longa barba com a mão esquerda e cortou-a com a faca, arrancando enormes tufos de pêlo sujo. Depois atirou-a para o centro do templo.

 

Com a minha barba lanço uma maldição a Kereval, se o deus recusar a noiva! E se tal acontecer, haverá guerra, nada mais que guerra! Guerra, morte, sangue e matança, até que os tesouros nos sejam devolvidos! Dirigiu-se aos saltos para a sua antiga cabana, abrindo caminho por entre a tribo, que o deixou passar, enquanto no seu templo Aurenna estremecia de terror.

 

Camaban assistiu a tudo e depois, quando ninguém o via, pegou nos tufos da barba de Scathel e formou com eles um anel que mostrou a Slaol já coberto de nuvens.

 

Ele vai combater-me disse ao deus. Porém ama-te tanto como eu. Deves mudar-lhe a forma dos pensamentos, tal como eu mudei a forma do seu cabelo.

 

A seguir lançou a coroa de cabelos ao rio que passava junto à aldeia de Kereval. Duvidava que o pequeno encantamento pudesse efectuar essa mudança, mas poderia ajudar e Camaban sabia que necessitava de auxílio, pois o deus encarregara-o de uma gigantesca tarefa. Fora por isso que voltara a Sarmennyn durante o governo da noiva do Sol, já que nessa altura a tribo do Povo da Fronteira era mais vulnerável à sugestão, magia e mudanças.

 

E Camaban tinha todo o mundo para mudar.


SABAN E CAGAN CHEGARAM À ALDEIA DE KEREVAL NO MESMO DIA que Aurenna, mas era de noite e o bom tempo transformara-se num pesado aguaceiro que fustigava a terra escura e encharcava o cabelo e a túnica de Saban. Haragg descarregou os cavalos e conduziu os animais cansados para uma decrépita cabana, evidentemente a sua casa, antes de levar Saban e Cagan para uma outra enorme que ficava no terreno mais elevado, dentro da paliçada de madeira da aldeia. A água escorria do telhado de colmo, que era maior do que algum que Saban já tivesse visto; tão grande que, quando se inclinou para entrar, viu que a sua viga mestra precisava do apoio de cinco tábuas. O recinto cheirava a peixe, fumo, peles e suor e estava cheio de homens que se banqueteavam à luz de duas enormes fogueiras. A um canto, um homem tocava um tambor de peles enquanto outro soprava uma flauta de osso de garça.

 

Fez-se silêncio quando Haragg entrou e Saban percebeu que as pessoas estavam desconfiadas do gigantesco mercador, porém este não lhes deu importância, apontando antes para um homem sentado numa ponta do compartimento, junto ao lume fumacento. Tinha o cabelo encaracolado metido num círculo de bronze e o rosto cheio de cicatrizes cor de cinza.

 

O chefe, murmurou Haragg a Saban. Chama-se Kereval. É um homem como deve ser.

 

Camaban estava sentado ao lado de Kereval, embora a princípio Saban não reconhecesse o irmão, vendo um feiticeiro de faces encovadas e olhos baixos com o rosto terrível emoldurado pelos ossos que lhe adornavam o cabelo. Só depois deste lhe ter espetado e dobrado o dedo comprido, indicando-lhe com o gesto que se aproximasse e sentasse entre ele e o chefe, é que Saban se apercebeu tratar-se do irmão.

 

Levaste muito tempo a cá chegar resmungou Camaban, sem mais saudações, indicando mal-humorado o nome do irmão a Kereval, que sorria para o receber e bateu depois as palmas para dizer aos que festejavam quem era o recém-chegado. Os homens olhavam para Saban quando souberam que era irmão de Lengar, depois Kereval ordenou a um escravo que lhe trouxesse comida.

 

Duvido que queira comer disse Camaban.

 

Quero afirmou Saban, que estava esfomeado.

 

Queres comer esta porcaria? perguntou Camaban, mostrando a Saban uma taça de peixe estufado e carneiro viscoso. Ergueu um fio de algas.

 

Isto é para eu comer? perguntou a Kereval.

 

Kereval ignorou a repugnância de Camaban e disse para Saban:

 

O teu irmão curou a minha melhor esposa de uma doença que ninguém mais conseguia resolver! O chefe sorriu para Camaban. Está boa outra vez! O teu irmão faz milagres.

 

Limitei-me a tratá-la convenientemente disse Camaban. Ao contrário desses imbecis a quem chamais curandeiros e sacerdotes. Não conseguem curar uma verruga!

 

Kereval tirou as algas das mãos de Camaban e comeu-as.

 

Tens viajado com Haragg? perguntou a Saban.

 

Foi um longo caminho respondeu este.

 

Haragg gosta de viajar disse Kereval. Tinha olhos pequenos e brilhantes num rosto bem-humorado e de sorriso fácil. Haragg acredita que se viajar para longe, vai encontrar um mágico que dê ao filho língua e ouvidos

 

continuou, inclinando-se para Saban.

 

O que Cagan precisa é de um bom soco na cabeça disse Camaban em tom de desprezo. Curava-se.

 

Verdade? perguntou Kereval ansioso.

 

Isto é licor? perguntou Camaban, servindo-se do conteúdo de um vaso enfeitado que estava ao lado de Kereval. Levou-o à boca e bebeu avidamente.

 

Agora ficas por cá? Talvez durante o Verão? perguntou Kereval a Saban, com um sorriso.

 

Não sei porque estou aqui confessou Saban, olhando para Camaban. Estava estupefacto com a mudança do irmão. Camaban, o gago aleijado, estava sentado no lugar de honra.

 

Estás aqui, irmãozinho, para me ajudares a mover um templo. O sorriso de Kereval desapareceu.

 

Nem todos estão de acordo em que cedamos um templo.

 

Claro que não! disse Camaban, sem se preocupar em baixar a voz.

 

Há aqui tantos imbecis como em qualquer outra tribo, mas não interessa aquilo que pensam. Apontou para os outros com ar de desprezo. Os deuses pedem a opinião destes tolos, antes de mandarem a chuva? Claro que não, então porque o faríamos tu ou eu? Só interessa que obedeçam.

 

Kereval mudou imediatamente de conversa, preferindo falar da alteração do tempo, enquanto Saban olhava à volta do recinto iluminado pelo lume. A maioria dos homens tinha bebido bastante do famoso licor forte dos Fronteiriços, de modo que estavam agitados e barulhentos. Uns discutiam acerca das expedições de caça enquanto outros, aos berros, pediam silêncio para poderem escutar o flautista, cujas notas agudas eram abafadas pelo tumulto. As escravas traziam comida e bebida, mas depois, quando Saban viu quem se sentava do outro lado da fogueira, o seu mundo mudou.

 

Naquele momento pareceu-lhe que o coração lhe deixava de bater, o mundo e os seus ruídos a chuva no colmo, as vozes ásperas, os estalos da madeira que ardia, as notas etéreas da flauta e o ritmo do tambor desapareceram. Tudo ficou então em suspenso, como se nada mais existisse senão ele e a jovem de vestes brancas, sentada num estrado de madeira, ao fundo do compartimento.

 

A princípio, quando a viu através do fumo esvoaçante, Saban pensou que não poderia ser humana, pois estava muito limpa. O vestido era branco, adornado com losangos brilhantes, enquanto o cabelo lhe caía numa cascata de ouro cintilante, emoldurando o rosto mais pálido e belo que alguma vez contemplara. Sentiu uma onda de remorsos por Derrewyn, uma onda que desapareceu assim que a viu. Ficou a olhá-la fixamente, imóvel, como se tivesse sido atingido por uma seta semelhante à que atravessara o crepúsculo para matar o seu pai. Não comeu e recusou o licor que Camaban lhe oferecia, observava apenas a jovem etérea através do fumo, enquanto esta parecia pairar sobre a ruidosa festa. Não comia, não bebia, não falava. Estava apenas ali entronizada como uma deusa.

 

A voz rouca de Camaban soou ao ouvido de Saban.

 

Chama-se Aurenna e é uma deusa. É a noiva de Erek e esta festa serve para lhe dar as boas-vindas à aldeia. Não é bela? Quando falares com ela, tens de ajoelhar. Mas se lhe tocares, irmão, morrerás. Morrerás até se sonhares em lhe tocar.

 

É a noiva do Sol? perguntou Saban.

 

E vai ser queimada daqui a menos de três luas continuou Camaban. É assim que se casam as noivas do Sol. Saltam para uma fogueira à beira-mar. Entre assobios de gordura e estalos dos ossos. Chamas e gritos. Morrer. É essa a sua finalidade. É por isso que vive, para morrer. Por isso não olhes para ela como um vitelo tonto, porque não podes tê-la. Arranja uma escrava para te divertires pois morres se tocares em Aurenna.

 

Mas Saban não conseguia desviar o olhar da noiva do Sol. Valeria a pena morrer, pensou atrevidamente, só para tocar naquela jovem dourada. Calculou que tivesse catorze ou quinze Verões de idade, a mesma que ele, uma noiva na sua perfeição; depois foi subitamente assaltado por uma enorme sensação de perda. Primeiro Derrewyn e agora esta rapariga. Miyac, a filha de Haragg teria presidido a uma festa assim? Seria assim tão bela? E teria algum jovem olhado para ela com desejo antes de ela se entregar às chamas, à beira-mar?

 

Os seus pensamentos foram interrompidos quando a cortina de couro da enorme entrada foi puxada para o lado com tanta violência, que se arrancou das pegas de madeira que a seguravam ao lintel. Uma rajada de vento gelado e húmido fez estremecer as duas fogueiras quando um homem esquelético e de cabelo hirsuto entrou na cabana.

 

Onde está ele? gritou, com a capa de pele de lobo a escorrer água. Haragg levantou-se, pensando que o homem de cabelos em desalinho vinha procurá-lo, mas o recém-chegado cuspiu-lhe, voltando-se antes para Kereval.

 

Onde está ele? gritou. Entrara na cabana seguido por mais três homens, todos sacerdotes, pois tinham ossos entrançados nas barbas.

 

Onde está quem? perguntou Kereval.

 

O irmão de Lengar!

 

Estão aqui os dois irmãos de Lengar disse Kereval, apontando para Camaban e Saban. São ambos meus hóspedes.

 

Hóspedes! disse o louco, com desprezo, abrindo os braços e olhando para os que festejavam, que entretanto estavam já em silêncio. Não devia haver hóspedes em Sarmennyn gritou. Não devia haver festas, música ou danças, não devia haver alegria até nos devolverem os tesouros! E essas coisas, deu a volta para apontar um dedo ossudo na direcção de Camaban e Saban, esses pedaços de esterco podem devolver-nos o ouro de Erek.

 

Scathel! gritou Kereval. São convidados!

 

Scathel empurrou os homens sentados e olhou para Saban e Camaban, franzindo a testa quando viu os ossos presos ao cabelo deste último.

 

És sacerdote? perguntou.

 

Camaban fingiu não ouvir. Bocejou. De súbito, Scathel curvou-se, pegou na túnica de Saban e com uma força extraordinária para um homem tão magro e ossudo, puxou-o para cima.

 

Vamos usar a magia do irmão disse a Kereval.

 

É um hóspede! protestou Kereval de novo.

 

A magia do irmão? perguntou Camaban, num tom de genuína curiosidade. Fala-me dela.

 

O que eu lhe fizer explicou Scathel, enfiando um dedo nas costelas de Saban será feito também ao irmão. Arranco-lhe um olho, Lengar perde um olho. Bateu no rosto de Saban. Pronto. Lengar tem a face a arder.

 

A minha não está disse Camaban.

 

És um sacerdote continuou Scathel para explicar a razão por que Camaban não sentira a dor de Saban.

 

Não disse Camaban. Não sou sacerdote. Sou feiticeiro.

 

Um feiticeiro que não conhece a magia do irmão? escarneceu Scathel.

 

Que feiticeiro és tu? Riu-se, voltando Saban de modo a que todos o pudessem ver. Lengar de Ratharryn nunca entregará os tesouros! gritou.

 

Nem que lhe ofereçamos todos os templos de Sarmennyn! Nem que arranquemos todas as pedras de todos os campos e lhas lancemos aos pés! Mas se lhe arrancar os olhos, as mãos, os pés e a virilidade, então cederá.

 

Os homens que escutavam bateram com as mãos no chão em sinal de concordância e Camaban, observando-os em silêncio, viu quanta oposição ao acordo com Lengar havia na tribo de Kereval. Não acreditavam que Ratharryn alguma vez devolvesse o ouro. Tinham aceite o contrato, pois na altura não parecera haver alternativa, mas agora Scathel viera dos montes a rugir e propunha-se usar magia, tortura e feitiçaria.

 

Abrimos uma cova e metemos lá dentro esta desgraça dizia Scathel. Vai ficar lá dentro até que o irmão nos entregue os tesouros!

 

Os homens concordaram aos gritos.

 

Mete o meu irmão numa cova ameaçou Camaban quando houve silêncio e eu encho-te a bexiga de carvões, de modo que quando urinares estrebuches na agonia do fogo líquido. Inclinou-se, serviu-se um bocado de peixe da tigela de Kereval e comeu-o calmamente.

 

Tu? Um feiticeiro coxo? Ameaças-me? Scathel apontou para o pé esquerdo de Camaban, que estava ainda deformado, embora já não grotescamente torto. Pensas que os deuses ouvem coisas como tu?

 

Camaban retirou da boca a espinha do peixe e dobrou-a delicadamente entre o polegar e o indicador.

 

Vou fazer os deuses dançarem nas tuas entranhas, enquanto as almas dos mortos te chupam o cérebro pelas órbitas disse calmamente. Vou dar o teu fígado a comer aos corvos e os teus intestinos aos cães. Partiu a espinha em duas. Solta o meu irmão.

 

Scathel inclinou-se para Camaban e Saban, ao observá-los, apercebeu-se de como os dois homens eram parecidos. O feiticeiro fronteiriço, irmão gémeo de Haragg, era mais velho, mas tal como Camaban, era muito magro, alto e forte.

 

Vai para dentro da cova esta noite, coxo, disse Scathel a Camaban, em tom sibilante. Vou urinar-lhe em cima.

 

Vais soltá-lo! ordenou uma voz de mulher. Ouviu-se um suspiro de admiração na assistência e os homens voltaram-se na direcção de Aurenna, que estava de pé, e apontava um dedo ao raivoso sacerdote. Vais soltá-lo insistiu. Imediatamente!

 

Scathel estremeceu por um instante, mas depois engoliu em seco e soltou Saban com alguma relutância.

 

Arriscas-te a perder tudo! disse a Kereval.

 

Kereval cumpre os desejos de Erek disse Camaban ainda calmamente, respondendo pelo chefe; depois inclinou-se para diante e deitou na fogueira as duas metades da espinha do peixe. Há muito que te queria conhecer, Scathel de Sarmennyn continuou. Ouvi falar de ti muitas vezes e pensei, imbecil que sou, que poderia aprender contigo. Mas vejo que, pelo contrário, eu é que terei de te ensinar.

 

Scathel olhou para o lume onde os dois bocados de espinha se encontravam sobre o tronco em brasa. Olhou para eles por um instante, depois estendeu o braço e apanhou primeiro um depois o outro; chamuscou os pêlos do braço e sentiu-se um cheiro a carne queimada que fez estremecer os homens, mas Scathel manteve-se impávido. Cuspiu na espinha e apontou uma das metades a Camaban.

 

Nunca levarás daqui um templo nosso, coxo, nunca! atirou-lhe os bocados de espinha, aconchegou mais ao corpo magro as húmidas peles de lobo e retirou-se, deixando todos em silêncio.

 

Bem-vindo a Sarmennyn disse Camaban a Saban.

 

Que faço eu aqui? perguntou Saban.

 

Amanhã digo-te. Amanhã dou-te uma vida nova. Mas esta noite, meu irmão, come, se puderes. E mais não disse.

 

No dia seguinte, no turbilhão de vento fresco que se seguiu à noite de chuva, Camaban conduziu Haragg, Saban e Cagan ao Templo do Mar. Ficava a alguma distância da aldeia, sobre um promontório, onde o mar rebentava em ondas brancas. Cagan não quis aproximar-se do templo onde a irmã morrera, escondendo-se numas rochas próximas a chorar. Haragg consolou o seu gigantesco filho, dando-lhe palmadinhas como se de uma criança se tratasse e falando-lhe ternamente, embora o rapaz não o ouvisse. Depois Haragg deixou Cagan no seu abrigo de pedra e seguiu os dois irmãos até ao templo deserto, onde se ouvia o enorme ruído proveniente dos gritos aflitivos das aves brancas.

 

O templo era um simples anel de doze pedras, cada uma delas da altura de um homem, e dele saía um pequeno corredor que, ladeado por outras doze mais pequenas, levava à ponta do rochedo. Este não era nem alto nem alcantilado e, logo por baixo da parte mais elevada, encontrava-se um enorme parapeito com um monte de madeira.

 

Já começaram a empilhar a lenha para a fogueira disse Haragg com desagrado.

 

Kereval disse-me que este ano vão fazer uma fogueira maior disse Camaban. Querem que a rapariga morra rapidamente.

 

O vento levantava-lhe o cabelo, fazendo entrechocar os pequenos ossos que lhe franjavam a túnica. Olhou para Saban.

 

Despem a rapariga dentro do círculo, depois esperam que o Sol toque no mar para que ela percorra a avenida de pedra e salte para dentro das chamas. Assisti o ano passado continuou. A rapariga assustou-se. Tentou atravessar as chamas. Riu-se ao recordar. Que morte teve!

 

Então não vão de livre vontade? perguntou Saban.

 

Algumas vão afirmou Haragg. A minha filha foi. O gigante chorava. Dirigiu-se ao seu esposo como uma noiva, sorrindo a cada passo.

 

Saban estremeceu. Olhou para a beira do rochedo e tentou imaginar a filha de Haragg a entrar na fogueira. Ouviu-a gritar, viu os seus longos cabelos rebrilharem mais do que o Sol que iria desposar e quis de súbito gritar por Aurenna. Não conseguia afastar-lhe o rosto dos pensamentos.

 

Os ossos queimados de Miyac foram reduzidos a pó e espalhados pelos campos prosseguiu Haragg. E para quê? Para quê? gritou as últimas palavras.

 

Para o bem da tribo replicou Camaban amargamente. Nessa altura eras sacerdote e queimaste as filhas de outros homens sem qualquer escrúpulo.

 

Haragg encolheu-se como se tivesse sido atingido. Era muito mais velho que Camaban, mas inclinou a cabeça, aceitando a autoridade de um homem mais jovem.

 

Estava enganado disse simplesmente.

 

A maior parte das pessoas também o está disse Camaban. O mundo está cheio de imbecis e é por isso que temos de o mudar. Acenou a Haragg e a Saban para que se acocorassem, embora se mantivesse de pé como um mestre dirigindo-se aos seus pupilos. Lengar concordou em devolver o ouro de Erek, se Sarmennyn lhe desse um templo. Fez esse contrato porque não acredita que seja possível levar um templo para Ratharryn, mas vamos provar-lhe que está enganado.

 

Levamos este disse Haragg, apontando com a cabeça para os fortes pilares do Templo do Mar.

 

Não disse Camaban. Escolheremos o melhor templo de Sarmennyn e será esse que levamos.

 

Porquê? perguntou Saban.

 

Porquê? respondeu-lhe agressivamente Camaban. Porquê? Slaol enviou o ouro para Ratharryn. É um sinal, imbecil, que quer alguma coisa de nós. E que quer ele? Quer um templo, evidentemente, porque é nos templos que os deuses tocam na terra. Slaol quer um templo, e quere-o em Ratharryn, portanto enviou-nos o ouro de Sarmennyn para nos mostrar de onde deve vir. Será assim tão difícil de compreender? Lançou a Saban um olhar compadecido e começou a percorrer a turfa de um lado para o outro. Quer um templo de Sarmennyn porque é aqui que Slaol é adorado acima de todos os outros deuses. Aqui as pessoas entreviram parte da verdade e essa verdade tem de ser levada à região central. Mas há uma verdade ainda maior. Deteve-se a olhar para os outros dois, com uma expressão feroz. Vi as coisas até ao âmago disse, em voz baixa, esperando que algum deles o desafiasse, porém Haragg limitou-se a olhá-lo com ar de adoração, enquanto Saban nada tinha a dizer. Os sacerdotes acreditam que o mundo é fixo continuou Camaban em tom de desprezo. Acreditam que nada muda e que se obedecermos às suas regras e fizermos os seus sacrifícios, então nada será alterado. Mas o mundo está a mudar. Já mudou. O p... alterou-se.

 

O padrão? perguntou Saban. Haragg falara de um padrão quando estavam na região norte, mas não quisera explicar. Agora Camaban teria de o fazer.

 

Assim, Camaban inclinou-se e retirou uma flecha da aljava de Saban, pois este não ia a parte alguma sem o seu arco de teixo, símbolo de que já não era escravo. Camaban usou a ponta de sílex da flecha para desenhar na turfa um largo círculo, fazendo tanta força que a terra castanha apareceu sob a erva amarelada.

 

O círculo representa o ano solar disse. Conhecemo-lo. Marcámo-lo. Aqui em Sarmennyn matam uma rapariga em todos os Solstícios para mostrar que quando um círculo termina, outro começa. Percebes? Olhava para Saban, pois Haragg já conhecia o padrão interrompido.

 

Compreendo disse Saban. Em Ratharryn marcavam também o fim e o princípio do círculo no Solstício, embora o fizessem matando um vitelo ao nascer do Sol e não uma rapariga ao ocaso.

 

Agora, quanto ao mistério disse Camaban, desenhando um círculo muito mais pequeno, colocando-o junto ao maior como uma conta sobre um círculo de fio de bronze. Esta é Lahanna disse batendo no círculo menor.

 

Nasce, cresce percorria a conta com o dedo e morre de novo. Depois volta a nascer. Desenhou um novo círculo, do mesmo tamanho do primeiro e a seu lado. Cresce, morre e renasce mais uma vez. Desenhou um terceiro círculo. Aquilo que Camaban desenhara, pareciam três contas que quase enchiam o quadrante do grande círculo do Sol. Nasce, morre repetiu uma e outra vez, desenhando mais círculos até ter doze contas, e depois parou.

 

Vês? perguntou, apontando com a cabeça da flecha para o intervalo entre a última e a primeira conta.

 

O círculo tinha então doze contas.

 

Doze luas em cada ano, mas o mistério está aqui disse Camaban, batendo no pequeno espaço que havia entre o primeiro e o último círculo lunar.

 

Haragg voltou-se para Saban, desejoso de que este compreendesse.

 

O ano lunar é mais curto do que o ano solar.

 

Saban percebera-o. Os sacerdotes de Ratharryn, e afinal de todas as partes, havia muito que tinham reparado que o ano lunar com doze aumentos e diminuições era mais curto do que o grande circuito do Sol no céu, mas Saban nunca pensara muito nesta disparidade. Era um dos mistérios constantes da vida, como o facto de os veados terem armações só uma parte do ano, ou para onde iam as andorinhas no Inverno. Viu então Camaban retirar da bolsa um osso de perna de homem.

 

Quando era pequeno disse Camaban sentava-me no nosso Velho Templo a olhar para o céu. Ia à casa dos mortos roubar ossos e marcava-os, como este. Entregou o osso a Saban. Olha instruiu-o, apontando para uma série de pequenas marcas cortadas a todo o comprimento. Estas marcas são os dias do ano solar.

 

Saban teve de chegar a si o osso, pois as marcas eram muito pequenas, mas conseguia ver centenas de cortes, demasiados para se poderem contar, e cada pequeno arranhão marcava um dia e uma noite, acrescentados ao ano.

 

Estas marcas são os dias em que a Lua cresce e diminui. Camaban mostrou a Saban um segundo grupo de golpes, paralelo ao primeiro. Mostravam doze nascimentos e doze mortes. O segundo grupo de marcas era fraccionariamente mais curto que o primeiro.

 

De novo Saban aproximou o osso dos olhos e usou a unha para contar os dias a mais na linha do Sol.

 

Onze dias? perguntou.

 

Tanto quanto sei respondeu Camaban. O tom de desprezo desaparecera-lhe da voz, sendo substituído por uma humildade sincera. Mas é difícil contá-los. Usei muitos ossos no decorrer dos anos e por vezes havia muitas nuvens, assim, tinha de adivinhar os dias da Lua; nalguns anos a diferença era de mais de onze, noutros menos. Camaban devolveu-lhe o osso.

 

Mas este osso é do ano melhor e tem a mesma mensagem que todos os outros. Diz-me que o padrão se quebrou.

 

O padrão?

 

Os círculos deveriam encontrar-se! disse Camaban, batendo furiosamente no diagrama que desenhara na turfa. Esta diferença colocou os dedos no espaço entre as contas tem a duração de onze dias. Mas não deveria existir. Ergueu-se de novo e começou a andar de um lado para o outro. Há uma finalidade para tudo no mundo, pois sem finalidade não há significado. O significado está no padrão. Noite e dia, homem e mulher, caçador e presa, estações e marés! Todos têm um padrão! As estrelas têm um padrão. O Sol segue um padrão, a Lua segue um padrão, mas ambos diferentes e o mundo está a dividir-se em dois. Apontou para o mar. Alguns padrões seguem o Sol, outros a Lua. As colheitas aparecem e são cortadas seguindo o Sol, mas as marés seguem a Lua. Porquê? E porque mandou Dilan o ouro a Erek? Utilizava os nomes fronteiriços dos deuses do mar e do Sol e depois respondeu furiosamente à sua pergunta: Enviou-o para que as marés retomassem o padrão do Sol!

 

As mulheres seguem o padrão da Lua disse Haragg lugubremente.

 

Ah, sim? Camaban parecia surpreendido.

 

Quando sangram disse Haragg encolhendo os ombros. Pelo menos assim mo disseram.

 

Mas tudo, tudo, deveria seguir o Sol declarou Camaban. Tudo deveria ser regular, mas não é. Apontou de novo para o esquema na turfa.

 

O mistério está em como acertar o padrão.

 

Como? perguntou Saban.

 

Diz-me tu pediu Camaban e Saban apercebeu-se de que o pedido não fora feito sem pensar.

 

Olhou para o padrão. Pensa nele, disse para consigo, como em contas enfiadas num fio de bronze e a resposta tornou-se óbvia. Poderiam fazer-se mais contas, mais pequenas e tentar enfiá-las no fio, até este estar preenchido, porém a tarefa seria laboriosa. A maneira mais simples seria encurtar o fio, tarefa fácil para qualquer ferreiro. Se o fio fosse encurtado, o círculo grande tornar-se-ia mais pequeno e as contas tocar-se-iam.

 

Teremos de trazer Slaol para mais perto da terra? perguntou Saban timidamente.

 

Muito bem disse Camaban entusiasmado. E o que é que isso te diz?

 

Saban pensou bastante, durante algum tempo, e por fim encolheu os ombros.

 

Não sei.

 

Contamos histórias acerca do amor de Slaol e Lahanna e de como se tornaram inimigos, mas não passam disso mesmo. Deixam coisas por explicar. Nós... Porque estamos aqui? Sabemos que os deuses nos fizeram, mas porquê? Porque fazemos nós coisas? Fazemos um arco, para matar. Fazemos um vaso, para conter coisas. Fazemos um pregador, para apertar uma capa. Portanto fomos feitos com uma finalidade, mas qual? Esperou uma resposta, mas nem Haragg, nem Saban lhe responderam. E porque seremos imperfeitos? Faríamos um arco que fosse fraco? Ou um vaso rachado? Não fomos feitos defeituosos! Os deuses não nos fariam com defeitos, tal como um oleiro não faria um vaso com uma racha ou um ferreiro não faria uma faca romba; porém adoecemos, ficamos defeituosos e somos aleijados. Os deuses fizeram-nos perfeitos, mas somos defeituosos. Porquê? Fez uma pausa, antes de sugerir uma resposta. Porque ofendemos Slaol.

 

Ah, sim? perguntou Saban. Estava habituado à história de que Lahanna ofendera Slaol, tentando ofuscar-lhe o brilho, mas agora Camaban acusava a humanidade.

 

Ofendemo-lo adorando deuses inferiores com tanto fervor como o adoramos a ele afirmou Camaban. Insultámo-lo, de modo que se retirou e agora temos de o fazer voltar, adorando-o como deve ser, oferecendo-lhe o seu devido lugar, acima de todos os outros deuses e construindo-lhe um templo que lhe revele que compreendemos o padrão. Assim, ele voltará e quando voltar já não haverá Inverno.

 

Não haverá Inverno? perguntou Saban, atónito.

 

O Inverno é o castigo de Slaol explicou Camaban. Ofendemo-lo, de modo que nos castiga todos os anos. Como? Retirando-se para longe de nós. Como sabemos? Porque quanto mais longe estivermos de uma fogueira, menos lhe sentimos as chamas quentes. No Verão, quando Slaol está perto de nós, sentimos o seu calor, mas no Inverno, quando as coisas morrem, este desaparece. Desaparece pois está longe de nós, portanto, se o pudermos trazer de volta, não haverá mais Inverno. Voltou-se de frente para o Sol. Não haverá mais Inverno disse de novo. Não haverá mais doenças, mais desgostos ou mais crianças a chorar na noite. Tinha lágrimas nos olhos e Saban recordou-se da noite em que morrera a mãe do irmão e em que a criança deformada uivara como a cria de um lobo.

 

Nem mais raparigas a saltar para dentro da fogueira afirmou Haragg em voz baixa.

 

E tu? Camaban ignorou as palavras de Haragg e voltou-se para Saban. Tu não serás guerreiro. Retirou o arco de teixo do ombro de Saban e, num esforço que o fez contorcer o rosto, partiu-o sobre o joelho. Lançou o arco partido do cimo do rochedo, para que caísse no mar. Serás construtor, Saban, e vais ajudar Haragg a levar o templo de Sarmennyn para Ratharryn, de modo a podermos recuperar o deus.

 

Se o meu irmão o permitir disse Haragg, referindo-se a Scathel.

 

No seu devido tempo afirmou confiante Camaban Scathel juntar-se-á a nós, porque entenderá que vimos a verdade. Ajoelhou e inclinou-se na direcção do Sol. Vimos a verdade disse humildemente e mudaremos o mundo.

 

Saban sentia-se entusiasmado. Mudariam o mundo. Naquele momento, ali sobre o mar, sabia que o poderiam fazer.

 

No tempo entre a sua elevação a deusa e a sua morte no fogo do Sol, Aurenna deveria visitar a região e escutar as preces do povo, para as levar ao seu esposo. Deixou a aldeia de Kereval escoltada por quatro lanceiros para a guardarem, duas mulheres para a servirem e por muitas outras pessoas que apenas queriam seguir os passos da noiva do Sol.

 

Kereval governava uma região de maiores dimensões do que a de Ratharryn, embora menos povoada, pois o solo de Sarmennyn era duro; Aurenna tinha o dever de se mostrar a toda a tribo e aos mortos nos seus túmulos comunitários. Todas as noites os habitantes e animais saíam de uma cabana para que a noiva do Sol tivesse privacidade para dormir e todas as manhãs havia um grupo de peticionários a esperá-la à saída. As mulheres pediam que lhes concedesse varões, os pais que lhes curasse os filhos, os guerreiros que lhes abençoasse as espadas e os pescadores inclinavam-se quando ela tocava nos barcos e nas redes. Os sacerdotes conduziam-na de templo em templo e de túmulo em túmulo. Abriam as sepulturas, afastando as enormes pedras para que Aurenna pudesse inclinar-se para o seu cavernoso interior e falar com os mortos, cujos ossos se misturavam nas sombras húmidas.

 

Camaban e Saban também a acompanhavam, seguindo a jovem dourada pelos vales abrigados da costa sul de Sarmennyn, onde o povo lavrava a terra e levava para o mar os seus compridos barcos de madeira. Seguiram depois para as terras altas e nuas do Norte, onde o gado, as ovelhas e o fabrico de machados de pedra oferecia uma vida difícil a algumas famílias, distantes umas das outras. Onde quer que fosse, Camaban inspeccionava os templos, procurando um que quisesse transportar para Ratharryn. As gentes, reconhecendo-o como feiticeiro, inclinavam-se.

 

Sabes fazer mágica? perguntou-lhe um dia Saban.

 

Transformei-te num escravo, não é verdade? retorquiu Camaban. Saban olhou para a cicatriz que tinha na mão.

 

Foi muito cruel disse.

 

Não sejas absurdo disse Camaban em tom cansado. De que outra maneira haveria de te poupar a vida? Lengar queria matar-te, o que era afinal a coisa mais sensata a fazer, mas pensei que acabasses por me ser útil. Assim, impingi-lhe uma história imbecil acerca da vingança dos deuses sobre aqueles que matavam os meios-irmãos, dando-lhe depois a ideia de te escravizar. Gostou. E queria que conhecesses Haragg.

 

Gosto dele disse calorosamente Saban.

 

Gostas de quase toda a gente disse Camaban com desprezo. Haragg é muito esperto continuou. Mas não podes confiar em todas as suas ideias. Ficou absurdamente influenciado pela morte da filha! Desconfia dos rituais, mas não há nada de mal neles. Mostram aos deuses que lhes reconhecemos poder. Se nos fiássemos das suas ideias, não queimaríamos Aurenna; de que serviria a existência dessa rapariga, senão para queimar?

 

Saban olhou em frente, para o local onde Aurenna caminhava por entre os sacerdotes acompanhantes. Naquele momento odiou Camaban, mas nada disse e este, que sabia exactamente o que o irmão estava a pensar, riu-se.

 

Nessa tarde chegaram a outro templo, um simples círculo de cinco pedras, típico dos santuários da parte norte de Sarmennyn. Alguns, muito poucos, chegavam a ter doze pedras, não sendo porém nenhum dos blocos tão grande como os que ficavam dentro dos muros de Cathallo. As pedras de Sarmennyn raramente eram mais altas que um homem ou mais largas que a sua cintura e todas elas estavam cortadas em forma de pilar.

 

Camaban não gostou de nenhum dos santuários que viram.

 

Queremos um templo que cause espanto disse a Saban. Temos de encontrar um que diga a Slaol o muito que nos esforçámos por ele. Qual será a dificuldade em deslocarmos quatro ou cinco pedrinhas para Ratharryn?

 

Saban calculava que transportar uma pedra que fosse seria já uma proeza e começava a duvidar que Camaban alguma vez encontrasse o templo que queria.

 

Porque não escolhes um templo qualquer? perguntou uma noite. Slaol saberá o muito esforço que despenderemos para o transportar.

 

Se eu quisesse terminar a tarefa depressa e sem dificuldade, mandava-te à procura do templo, em vez de perder o meu tempo disse Camaban. Não sejas absurdo, Saban.

 

Estavam a comer numa cabana cheia de gente, onde os acompanhantes de Aurenna tinham recebido ofertas de peixe, carne, peles e vasos de licor. Um vaso de licor retirava a um homem o poder do cérebro e das pernas, embora Camaban nunca parecesse afectado. Bebia-o como se fosse água, arrotava, bebia mais e nunca arrastava as palavras nem cambaleava. De manhã, enquanto a cabeça de Saban lhe latejava de dor, Camaban estava cheio de energia.

 

Nessa noite encontravam-se na morada do chefe de um clã, senhor de toda a sua família, cujas cabanas estavam agrupadas na encosta da montanha, abrigadas do vento. O chefe era um velho desdentado que, em honra da chegada de Aurenna, usava um círculo de ouro à volta do pescoço escanzelado. As suas esposas tinham preparado num lume fumacento uma mistura desagradável de algas e marisco; depois de comerem, um dos seus filhos, tão velho e desdentado como o pai, pegou numa casca polida de tartaruga do mar que estava pendurada numa viga e usou-a para marcar o ritmo, enquanto entoava um cântico, aparentemente infinito, sobre os feitos do progenitor, na terra do outro lado do mar ocidental; aí tinha dizimado muitos inimigos e de lá trouxera muitos escravos e ouro.

 

O que provavelmente isto significa disse Camaban a Saban é que o velho idiota andou pela praia três dias e voltou com umas quantas pedrinhas às riscas e uma pena de gaivota.

 

Chegou gente das outras cabanas enquanto o cântico continuava. Entravam cada vez mais pessoas, até Camaban e Saban serem empurrados contra a parede baixa de pedra. Deveriam ter ouvido a história muitas vezes, pois de vez em quando juntavam-se ao cântico e o velho acenava satisfeito, sempre que se ouvia o coro; depois, os batimentos e o cântico terminaram de súbito. O velho abriu os olhos e olhou indignado para o silêncio, até ver que Aurenna que comera na privacidade da sua cabana, acabara de entrar. O chefe do clã sorriu, indicando à noiva do Sol que se deveria sentar a seu lado; porém Aurenna abanou a cabeça, olhou à volta, depois avançou delicadamente por entre os corpos e sentou-se ao lado de Saban. Acenou ao cantor, indicando-lhe que podia recomeçar e o homem bateu na carapaça da tartaruga, fechou os olhos e retomou o fio da história.

 

Saban sentiu-se fortemente consciente da proximidade de Aurenna. Falara-lhe algumas vezes, enquanto percorriam os caminhos rudes de Sarmennyn, mas como ela nunca procurara a sua companhia, sentia-se desajeitado, tímido e sem saber o que dizer, quando viu a seu lado. Doía-lhe até o ter de olhar para ela, pensando no que em breve lhe iria acontecer. O seu destino e o de Derrewyn tinham-se misturado no seu espírito, parecendo-lhe que a alma desta, entrara no corpo da noiva do Sol e lhe seria arrancada de novo. Fechou os olhos e baixou a cabeça, tentando afastar os pensamentos da violação de Derrewyn e da morte iminente de Aurenna.

 

Depois esta inclinou-se para ele, de modo a que a sua voz pudesse ser ouvida por cima da voz do cantor.

 

Haveis encontrado o vosso templo? perguntou.

 

Não respondeu ele, tremendo de nervosismo.

 

Porque não? inquiriu Aurenna. Deveis ter visto pelo menos um por dia.

 

São demasiado pequenos respondeu Saban corando. Não olhou para ela, com medo de gaguejar.

 

Como ides transportar o templo? perguntou Aurenna. Pedireis ao deus que o faça voar até Ratharryn?

 

Saban encolheu os ombros.

 

Não sei.

 

Devíeis falar com Lewydd disse ela, indicando um dos lanceiros que a guardava acocorado junto ao poste central da cabana. Ele diz que sabe como o podem fazer.

 

Se Scathel alguma vez nos deixar ficar com um templo lamentou-se Saban.

 

Eu derrotarei Scathel afirmou Aurenna, confiante.

 

Saban atreveu-se então a olhá-la nos olhos. Eram escuros, embora reflectissem a luz da lareira. De repente teve vontade de chorar porque ela ia morrer.

 

Derrotarás Scathel? perguntou.

 

Detesto-o respondeu em voz baixa. Cuspiu sobre mim quando me levaram pela primeira vez ao meu templo. Foi por isso que não o deixei meter-te na cova. Assim, quando for para o fogo, direi ao meu esposo que te deixe levar um templo para Ratharryn. Desviou os olhos de Saban, pois outro homem pegou no tambor de carapaça de tartaruga e deu início a um novo cântico, desta vez em louvor da própria noiva do Sol. Aurenna escutou-o respeitosamente, como cumprimento ao cantor que descrevia a solidão do Sol e o seu desejo de uma noiva humana, mas quando ele passou a retratar a beleza da noiva do Sol, Aurenna pareceu perder o interesse, pois inclinou-se de novo para Saban.

 

É verdade que em Ratharryn não enviais uma noiva para o deus?

 

É.

 

E em Cathallo também não?

 

Não.

 

Aurenna suspirou, olhando depois para o fogo. Saban observou-a enquanto os guardas o vigiavam.

 

Amanhã, Aurenna voltou a inclinar-se para Saban tenho de voltar para a aldeia de Kereval, mas tu deves subir ao monte que há aqui por trás.

 

Porquê?

 

Porque há lá um templo respondeu. A gente daqui falou-me dele. É o novo templo de Scathel, o que construiu enquanto recuperava da sua loucura. Diz que o vai consagrar quando os tesouros forem devolvidos.

 

Saban sorriu, pensando em como Scathel ficaria furioso se soubesse que o seu templo poderia ir para Ratharryn.

 

Iremos lá vê-lo prometeu Saban, se bem que preferisse ficar com Aurenna, mesmo sem saber dizer com que finalidade. Em breve estaria morta, morta e na glória do céu abrasador.

 

Na manhã seguinte, enquanto um cerrado nevoeiro rolava, vindo do mar, Aurenna começou a sua viagem para sul, mas Camaban e Saban seguiram para norte, subindo o monte por entre a brancura da bruma.

 

Vai ser uma perda de tempo resmungou Camaban. Mais outro insignificante círculo de pedras.

 

Mas, mesmo assim conduziu Saban pela encosta íngreme coberta de ervas e pedras, até que por fim saíram das nuvens para um Sol glorioso. Estavam agora sobre o nevoeiro que cobria tudo abaixo deles, como um mar branco e silencioso no qual o pico da montanha parecia uma ilha de rochedos partidos, emaranhados e recortados, martelados por um deus furioso. Saban percebia agora a razão de todos os pilares dos templos de Sarmennyn serem iguais: a rocha, esmagadora desde o pico, caía naturalmente em blocos quadrados e tudo o que um homem precisava para fazer um templo era transportar a pedra pela montanha abaixo.

 

Não havia qualquer templo à vista, mas Camaban calculava que se encontrasse algures por entre o cerrado nevoeiro, de modo que se sentou num parapeito de pedra à espera.

 

Saban andava de um lado para o outro.

 

Para que queremos o templo de Scathel, se ele é nosso inimigo?

 

Não é meu inimigo. Saban suspirou com desprezo.

 

Então o que é?

 

É um homem como tu, irmão respondeu Camaban. Um homem que detesta que as coisas mudem. Mas é bom servidor de Slaol e dentro em breve será nosso amigo. Voltou-se e olhou para oriente, onde os picos de outras montanhas se destacavam como uma linha de ilhas sobre a brancura. Scathel deseja a glória de Slaol e isso é bom. Mas e tu que queres, irmão? Não me digas que é Aurenna acrescentou. Em breve estará morta.

 

Saban corou.

 

Quem disse que eu a queria?

 

O teu rosto di-lo. Olhas para ela como um vitelo sequioso para as tetas da mãe.

 

É muito bela disse Saban.

 

Derrewyn também, mas o...

que importa a beleza? À noite numa cabana escura, quem o pode saber? Não importa, diz-me o que queres.

 

Uma esposa respondeu Saban. Filhos. Boas colheitas. Muitos veados.

 

Camaban riu-se.

 

Pareces o nosso pai.

 

E que mal haverá nisso? perguntou em tom de desafio.

 

Não há mal nenhum disse Camaban com ar cansado. Mas tens pouca ambição! Queres uma esposa? Procura-a! Filhos? Hão-de vir, quer queiras, quer não, metade partir-te-á o coração e a outra metade morrerá. Colheitas e veados? Já os tens.

 

E tu o que queres? perguntou Saban, ofendido pelo desprezo do irmão.

 

Já te disse respondeu calmamente Camaban. Quero que tudo mude e depois nada há-de mudar, pois chegaremos a um equilíbrio. O Sol não viajará, não haverá Inverno, doenças ou lágrimas. Mas para isso temos de fazer um templo digno de Slaol, e é isso que quero. Um templo que honre Slaol. Terminando estas palavras ficou de súbito em silêncio, observando o nevoeiro lá em baixo, com os olhos muito abertos. Saban voltou-se para ver o que atraíra a atenção do irmão.

 

A princípio via apenas nevoeiro, mas depois, aos poucos, tal como a terra vai aparecendo quando a noite termina, emergiu uma forma da brancura.

 

E que forma. Era um templo, mas diferente de todos os que Saban já contemplara. Em vez de um círculo de pedras tinha dois, um metido dentro do outro, mas a princípio Saban apenas via as pontas escuras das pedras saindo do vapor. Tentou contar os pilares, mas eram muitos e no ponto mais afastado daquele círculo duplo, voltado para o local do horizonte onde o Sol se punha no Inverno, havia uma entrada formada por cinco pares de pilares de pedra, com outra pedra colocada atravessada sobre os cimos, formando uma fila de cinco arcadas na direcção do ocaso. Saban olhava fixamente e, por um tempo mágico, todo o templo pareceu flutuar na bruma; mas depois o nevoeiro levantou do vale e deixou as pedras enraizadas na terra escura.

 

Camaban estava agora de pé, com a boca aberta.

 

Scathel não era louco disse calmamente, mas logo deu um grito, saltou por cima dos rochedos e correu pela encosta abaixo, espantando as ovelhas malhadas. Saban seguiu-o mais devagar, mantendo-se depois entre os círculos de pedra, enquanto Camaban se acocorara no lado nordeste do templo, espreitando pelo túnel formado pelos arcos de pedra.

 

Os portões de Slaol! exclamou Camaban, maravilhado.

 

O templo fora construído num vale sobranceiro às terras mais baixas que ficavam a sul e, no Solstício de Inverno, com o Sol no horizonte longínquo, brilharia sobre o oceano e chegaria a terra entrando pelas portas de pedra.

 

Tudo o mais ficaria na escuridão disse Camaban em voz baixa. Tudo sombreado pelas pedras, mas no centro da sombra haveria uma fenda de luz! É um templo de sombras! Apressou-se a chegar à pedra oposta à entrada e aí, de frente para a porta do templo, abriu os braços e encostou-se como se a luz do pôr do Sol o pregasse ao bloco. Scathel é magnífico! exclamou. Magnífico!

 

Os pilares, naturalmente quadrados, não eram grandes. Os da entrada do Sol eram um pouco mais altos que Camaban, mas os outros eram mais baixos que um homem, sendo alguns deles da altura de uma criança pequena. Todas as pedras tinham sido empurradas ou erguidas no cimo recortado da montanha e postas a deslizar pela encosta íngreme elevada até este vale, onde tinham sido metidas em pequenas covas no solo fino. Saban encostou-se a uma delas, que balançou perigosamente. Esta era realmente formada por dois pilares, ambos muito finos, que tinham sido reunidos escavando uma ranhura de lado num deles e esculpindo uma língua no outro, de modo que as duas pedras se adaptavam uma à outra, como um homem se adapta a uma mulher.

 

As duas metades de um círculo disse Camaban, reverente, reparando nas pedras juntas. O lado do Sol apontou para sul, indicando as pedras sobre as quais o Sol viajaria no seu caminho diário e o lado da noite; juntam-se aqui e a união tem de ser selada com sangue no momento do ocaso.

 

Como sabes? perguntou Saban. Estivera a contar as pedras e já chegara a mais de setenta.

 

De que outra maneira seria? perguntou Camaban concisamente. É óbvio. Rodopiava excitado. O Templo do Mar para o Solstício de Verão e o Templo das Sombras para o de Inverno! Scathel é maravilhoso! Mas este será nosso. Será nosso! Começou a andar em círculo, batendo com o seu bordão nas pedras até chegar à entrada em arco, onde se baixou para espreitar pelo túnel formado pelos cinco arcos de pedra.

 

Um portal para Slaol disse maravilhado; depois endireitou-se e limpou a pedra mais próxima. A humidade do nevoeiro deixara as pedras cobertas por uma estranha película azul-esverdeada, que começava a escurecer à medida que o Sol da Primavera e o vento vindo do mar a secavam. Camaban, para horror de Saban, tentou empurrar um lintel como se o quisesse deitar abaixo, porém este não se moveu.

 

Como os assentam? interrogava-se.

 

Quem poderá sabê-lo?

 

Suponho que tu! não, respondeu Camaban, distraído. Depois franziu a testa. Já te disse que Sannas morreu?

 

Não. Saban ficou estranhamente chocado, não porque sentisse algum afecto pela velha, mas porque desde que se conhecia ela fora parte nada insignificante do seu mundo com a sua presença imponente. Como?

 

Como hei-de saber? retorquiu Camaban. Está morta e pronto. Um comerciante trouxe a notícia e como ela era inimiga de Slaol, a notícia é boa.

 

Olhou de novo para o templo. Agora, livre da humidade do nevoeiro era um anel duplo, negro, num vale escuro metido por entre as rochas escuras da montanha. Era enorme e esplêndido, o tributo de um sacerdote louco ao seu deus. Camaban tinha lágrimas nos olhos.

 

É o nosso templo disse reverente e vai pôr fim ao Inverno. Teriam de arranjar uma maneira de convencer Scathel a deixá-los levá-lo e de o transportarem depois através de metade do mundo, até Ratharryn.

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades