Eduardo III assume a Coroa inglesa aos quinze anos após a trágica morte de seu pai, Eduardo II, no castelo de Berkeley. Neto de Filipe IV, o jovem monarca decide reivindicar o trono da França, prestando um juramento que mudaria o curso da história: tem início a Guerra dos Cem Anos. No nono livro da Saga dos Plantagenetas, Jean Plaidy reconstitui a trajetória deste grande líder, desde o seu casamento com Filipa de Hainault até as vitoriosas campanhas na França ao lado do filho, o memorável Príncipe Negro, herói de Crécy e Poitiers.
Dono de um temperamento enérgico e generoso, Eduardo levou o reino à prosperidade, mas foi traído por seus próprios sentimentos...
No VELHO CASTELO DE YORK, a rainha Isabella estava deitada, sem sono, ao lado do amante. Nada havia a temer, assegurou-lhe ele. Aquele castelo de York, aquela grande fortaleza que se dizia ter sido construída pelo Conquistador, com seu fosso profundo, sua ponte levadiça e suas paliçadas, era invulnerável. O sentinela no alto da torre de Clifford iria avisá-los da aproximação de qualquer inimigo; ninguém poderia irromper pelos maciços muros de pedra e por aquelas torrinhas circulares. Mas não era um exército invasor que Isabella temia, e sim o fantasma de seu marido assassinado.
Desde que lhe haviam noticiado sobre aquela noite em que os agoniados gritos dele tinham sido ouvidos, segundo lhe disseram, até por quem estava do lado de fora dos muros do castelo de Berkeley, aquela terrível inquietação tomara conta dela. Às vezes, ela acordava e imaginava ver um vulto alto no quarto. O rei tinha sido um homem alto, e ela imaginava seu rosto na escuridão distorcido por uma expressão de uma terrível angústia. Às vezes, sonhava que os lábios dele se mexiam e ele expressava maldições sobre aqueles que o tinham condenado a uma morte tão brutal. No suspirar do vento, Isabella ouvia a voz dele.
- Isabella, você é a culpada... você... com seu amante Mortimer. Sei que ele era seu amante. Você vive com ele em clamoroso pecado, você, a Loba da França. Por quanto tempo você me enganou? Há quanto tempo planejou meu assassinato?
Há quanto tempo?, pensou ela. Assim que passou a ser necessário. Você me acusa. Já se esqueceu da maneira pela qual você tratava a num... como você me humilhava e desprezava, quando eu estava pronta a amá-lo, me ignorava para ficar com seus belos rapazes? Você mereceu o que lhe aconteceu.
Não, isso não. Ninguém poderia merecer uma morte daquelas. Por que tiveram que fazer daquela maneira?
Ela imaginou a fisionomia zombeteira de Ogle.
- Mas, minha senhora, foi por ordem sua... sua e do senhor. Nada de marcas no corpo. Ninguém deve saber que ele morreu por outro tipo de morte que não a natural.
Era apenas um banco comprido de madeira, com encosto alto, que ela via na escuridão. À medida que seus olhos se acostumavam, o banco assumia sua forma. Só por um rápido instante ela achara que tinha a forma de um homem e que era Eduardo que saíra da sepultura para zombar dela. Mas porque continuara vivo na imaginação dela, ele não a deixaria esquecê-lo e aparecia sem ser chamado... na calada da noite.
- Mortimer - sussurrou ela -, você está acordado? Meu doce Mortimer, acorde para mim.
O doce Mortimer, suspirando, virou o corpo enorme para ficar de frente para ela.
- O que é, meu amor? - murmurou ele, sonolento. - Mais sonhos?
- Sonhos - respondeu ela. - Sempre sonhos.
- Nesse caso, não têm substância.
- Não consigo dormir - disse a rainha. - Penso nele lá... na cama dele. Eles colocaram uma mesa sobre ele para que ele não se mexesse. Foi um espeto de ferro em brasa, num estojo de osso, para não deixar marcas... e com ele, queimaram-lhe as entranhas.
- A morte deve ter vindo logo - tranquilizou-a Mortimer.
- E de forma agoniante - respondeu ela. - Dizem que os gritos dele penetraram os muros do castelo de Berkeley.
- Isso é um absurdo. Lembre-se de Berkeley... construído como uma fortaleza.
- Quem dera que eu pudesse esquecer Berkeley. Mortimer, escute. No castelo, o pessoal fala. Os criados... eles trocam sussurros.
- Sempre há rumores quando um homem morre, e se esse homem for um rei, os rumores permanecem durante algum tempo. Tenha calma. Eles vão passar.
- E se chegarem aos ouvidos do rei?
- Ele jamais acreditaria neles. Poderíamos cuidar disso. Ele não acredita sempre no que você diz? Não passa de uma criança
- Mas vai crescer.
- Até lá, seu marido estará esquecido. A esta altura, seu filho já soube da morte do pai.
- Foram enviados mensageiros até ele, e com toda certeza já devem ter chegado. Vão dizer a ele que o pai morreu em paz, no castelo de Berkeley, e que já há algum tempo ele vinha doente.
- Meu Deus, como ele se agarrava à vida!
- Tornando necessário eliminá-lo, eu sei, mas os meios...
- Isabella, minha rainha, você não deve insistir nisso. Deveria ter sido rápido, eu sei. O jovem Eduardo vai aceitar o que lhe disserem. Neste momento, ele tem de cuidar das próprias feridas. A paz com a Escócia irá deixá-lo ocupado. Esse pequeno exercício deve torná-lo um pouco mais humilde, deve mostrar a ele o quanto depende de nós. Creio que ele achava que estava marchando para o norte ao encontro da glória.
- O menino tem alguma coisa, Mortimer. Alguma coisa que o pai nunca teve.
- Deus seja louvado por isso.
- Ouvi dizer que ele se parece com o avô.
- Duvido que o primeiro Eduardo tivesse sido um bom governante aos quatorze anos de idade.
- Ele está crescendo depressa.
- Mas ainda tem muito o que crescer. Isabella, meu amor, pare de se amargurar. Está tudo bem. Pense nos planos que fizemos. Pense nas nossas vitórias. Aqui estamos... governantes deste reino. Eles não nos nomearam regentes, mas fomos mais espertos. O rei está sob nossa orientação, e é isso que queríamos. Vamos, anime-se. Nunca vamos ser perturbados pelo seu marido. Ele morreu. Esqueça-o. Ele já não tem importância. Rumores. Sempre há rumores. Mas somos bastante fortes para abafá-los. Ele era um perigo para nós. Tinha de morrer. Para o país, foi melhor ele ter morrido. Agora, temos o nosso terceiro Eduardo, seu promissor filho, que tem muito que aprender, e uma coisa eu lhe prometo, ele irá voltar-se para nós e continuaremos a orientá-lo. É assim que vai ser, minha rainha. Deixe isso por conta do seu doce Mortimer.
- Ah, doce Mortimer, como sempre, você me consola. Agora, me acalme e me faça dormir, e de manhã todos os meus temores terão terminado.
Mas não foi isso que aconteceu, porque pouco depois o fantasma do marido assassinado voltou para assombrá-la.
QUANDO O JOVEM EDUARDO, poucas semanas após sua coroação, cavalgara à frente de seu exército para enfrentar os escoceses, seu pai estava vivo e, segundo Eduardo acreditava, confortavelmente alojado no castelo de Kenilworth como convidado do primo, o conde de Lancaster.
É um tanto desconcertante ver-se na posição de um rei aos quatorze anos de idade, mas Eduardo sempre estivera a par de seu destino e estava decidido a mostrar a todos que ele podia ser uma réplica exata do avô. A vida toda, ele fora comparado ao avô. "A cada dia que passa, ele fica mais parecido com o Grande Eduardo." Quantas vezes ouvira aquilo ser sussurrado! Nunca se dizia: "Como ele se parece com o pai." E aprendera que isso não teria sido um elogio, porque percebera que nem tudo ia bem com seu pai.
Na realidade, ele nunca se sentira à vontade com o homem alto, de cabelos claros e bonito que tinha sido sempre bom para ele, embora com frequência distraído, como se não estivesse interessado nele.
Despenser estava sempre com ele, e ao menino parecia que os dois partilhavam de piadas só deles e que qualquer pessoa que se aproximasse deles estava se intrometendo.
Quando se juntara à sua mãe na França, Eduardo estivera pronto a acreditar que o pai não era um bom homem e aceitar o fato de que ela não podia mais sentir amor por ele. Tinham sido muitas as pessoas a convencê-lo de que ela estava com a razão. Roger de Mortimer, conde de Wigmore, e agora o conde de March, era uma delas, e, embora houvesse algo em relação a Mortimer de que ele não gostasse, o conde era um homem poderoso e tinha um modo convincente de tratá-lo, e sua mãe dizia que ele era o mais fiel amigo deles.
Sir John de Hainault era outro, e tratava-se de um valoroso soldado. Havia seus tios, os duques de Kent e de Norfolk. Eles tinham ido ajudá-la; e com tantos adeptos e com o povo da Inglaterra aclamando-a, Eduardo estava certo de que a mãe fizera a coisa certa quando voltara para a Inglaterra com um exército e seu pai fora obrigado a desistir da coroa.
Depois, chegara o momento em que ele tivera de tomar uma decisão e algo lhe dissera que ele não devia aceitar o que era de seu pai, a menos que este, primeiro, desse o seu consentimento. Quando foram procurá-lo levando a concordância de seu pai, ele então se permitira ser coroado. Aquele fora o seu primeiro ato de desafio, e surpreendera um pouco a todos. Fora preciso uma certa firmeza para insistir naquilo, mas por estar prestes a tornar-se rei, ele estivera decidido a agir como um soberano.
Quase que de imediato, ele se envolvera na campanha escocesa, porque Robert, o Bruce, concordara em encontrar-se com ele para discutir as condições de paz. Robert, o Bruce, era um homem do qual ele ouvira falar durante toda a sua infância e sabia que ali estava um líder a ser respeitado, apesar do fato de que, segundo os rumores, ele estivesse morrendo de lepra, o que provavelmente era a razão pela qual ele queria uma paz permanente. Era um homem audaz, e em pouco tempo percebeu-se que, apesar do seu desejo de paz, estava decidido a consegui-la de acordo com seus termos, e caso não conseguisse isso invadiria a Inglaterra. com essa finalidade, ele reunira um grande exército e só podia haver uma única resposta a isso. Eduardo tinha de marchar à frente do seu exército e ficar pronto para agir se as conversações fracassassem.
Recém-coroado e sabendo que o pai era hóspede do primo, o conde de Lancaster, em Kenilworth, Eduardo partira para o norte. com ele e seu exército seguiram sua mãe e Mortimer, seu irmão John, de onze anos, e as duas irmãs, Eleanor, de nove anos, e Joana, de seis. Claro que não entrariam em combate com o exército, mas ficariam em York, enquanto os soldados, com Eduardo à frente, marchavam até a fronteira e entravam na Escócia.
A eles juntara-se Sir John de Hainault, um cavaleiro romântico muito exuberante que ficara com pena da rainha Isabella quando fora exilada do país do irmão, a França, e precisara de ajuda para iniciar a invasão da Inglaterra. Sir John ficara tão dominado pela admiração por ela que convencera o irmão dele a fornecer o dinheiro para que Isabella e Mortimer levantassem um exército.
Isso não era inteiramente verdade. Tinha havido um entendimento entre Isabella e o conde de Hainault que dizia respeito ao casamento de Eduardo. Tinham negociado em segredo e, por estranho que pareça, Eduardo não ficara com ressentimento algum, e por um motivo muito especial. Quando ele chegara à corte de Hainault, depois de ter deixado, de forma um tanto humilhante, a corte francesa onde se haviam tornado hóspedes indesejáveis, Eduardo desfrutara de uma das mais agradáveis semanas de sua vida. Isso se devera aos momentos felizes que passara com as quatro encantadoras filhas do conde, e uma delas se tornara sua amiga especial. Era Filipa. Ele achara a irmã mais velha, Margaret, encantadora, e as duas irmãs mais novas, Jeanne e Isabella, interessantes; mas Filipa o afetara de maneira mais profunda. Era uma menina alta, de cabelos e olhos castanhos e uma estonteante pele rosada e branca, e ficara impressionado com uma certa simplicidade que faltava às meninas da idade dela que ele conhecera na corte da França. Não que fosse uma boba, longe disso. Ela era animada e ria com facilidade, e era honesta com tanta franqueza, que ele não podia deixar de encantar-se por ela. Talvez também o deleite dele com a companhia de Filipa fosse aumentado pela admiração que a jovem sentia por ele. Quando Eduardo deixara Hainault, ela impressionara a todos ao cair no choro por ter de se despedir dele; e ela o fizera diante dos pais e de todos os membros da casa que se haviam reunido para desejar felicidades a ele, sua mãe e seus seguidores.
De modo que o fato de sua mãe ter conseguido do conde de Hainault recursos para levantar um exército, com a condição de que o filho dela se casasse com uma de suas filhas, e de o dinheiro fornecido ser, na verdade, o dote de tal filha, não perturbava muito Eduardo.
Uma coisa na qual ele iria insistir, quando uma das jovens Hainault fosse escolhida para ele, era que a jovem teria de ser Filipa.
Quando pensava em Filipa e no casamento que teria de acontecer em breve, sentia uma crescente exultação. Era verdade que ele ainda não tinha quinze anos, mas a sua idade não seria um empecilho. Filipa era alguns meses mais nova do que ele, mas quando os dois tinham cavalgado juntos e ele passara a conhecê-la, percebera que estava tão preparada para o casamento quanto ele. Seria uma satisfação oferecer a ela a coroa da Inglaterra, e Eduardo queria voltar da Escócia como um conquistador. Quando pensava nessas coisas, era fácil abafar pensamentos inquietantes sobre o pai. Não tinha ele abdicado por sua livre vontade? Ele preferira uma vida de lazer em Kenilworth, em companhia do primo Lancaster, a governar o país. Não precisava ficar pensando e preocupar-se com ele. Sempre fora muito estranho, diferente de outros homens; e a rainha garantira a Eduardo que tudo fora feito com a melhor das intenções.
Ele acreditava que sim, e quando Filipa fosse para o seu lado, seria maravilhoso coroá-la sua rainha.
Assim que aquele caso escocês fosse encerrado, ele insistiria no casamento e em que a noiva tinha de ser Filipa de Hainault.
Eduardo deu a Sir John as boas-vindas a York. Estava encantado ao vê-lo, não apenas porque era tio de Filipa, mas porque chegou com um grande exército.
Sua mãe recebeu Sir John com grande afeto. Jamais esqueceria o que ele fizera por ela, e estava sempre dizendo isso a ele. Sir John estava apaixonado pela rainha, o que tornava a situação encantadoramente romântica.
Eduardo encontrou sua mãe nos aposentos privados dela. Roger de Mortimer estava com ela. Estava ficando cada vez mais impossível ver a mãe sem que Mortimer estivesse ausente.
- Meu filho adorado - disse a rainha, abraçando-o -, não é bom ver esses homens de Hainault na cidade?
- Eu os recebo de bom grado - replicou Eduardo.
- Eles foram bons amigos nossos - comentou Mortimer.
Ele estava um pouco petulante, pensou Eduardo. Portava-se como se fosse membro da família. Muitas vezes, os modos de Mortimer o irritavam, mas sua mãe parecia não notar que houvesse algo de errado, e Eduardo se sentia muito incerto sobre si mesmo para mostrar que estava ciente disso.
- É verdade - disse Eduardo com uma certa altivez. - O conde de Hainault foi muitíssimo hospitaleiro conosco.
- Numa época em que mais precisávamos - prosseguiu a rainha.
Agora, quero mostrar uma hospitalidade semelhante para com Sir John. Estou providenciando um banquete para recepcioná-los em York.
O jovem Eduardo inclinou a cabeça. Talvez eles devessem ter pedido sua permissão primeiro. Sem dúvida que a mãe, não! Claro que ele era o rei, mas tinha de ser orientado por eles na maioria das coisas. Não era tão mau assim quando partia de sua mãe, mas ele não tinha certeza de que gostava de ver Mortimer por lá o tempo todo, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça como se ele mesmo tivesse sido o principal juiz quanto ao que devia ser feito. Eduardo se perguntava se devia conversar com a mãe sobre Mortimer. Sempre que ela mencionava aquele homem havia uma nota muito especial em sua voz. O que era? Respeito? Admiração? Afeto? Bem, talvez Mortimer a tivesse apoiado de verdade quando ela mais precisara de amigos.
- Sir John ficará alojado numa abadia pertencente aos Monges Brancos - disse Mortimer. - Seus homens ficarão por perto, em aposentos designados para eles. É bom não colocá-los perto demais dos nossos soldados ingleses.
Eduardo pareceu intrigado.
- Tem havido um certo atrito - explicou a rainha. - Os flamengos fazem certas coisas de forma diferente dos ingleses, e parece que as pessoas tendem a zombar de quem não é exatamente igual a elas. Um traço estranho da natureza humana... mas, segundo creio, encontrado com facilidade.
- Que estupidez - disse Eduardo. Mortimer deu seu sorriso lento e condescendente.
- Isso mesmo, majestade, mas são tantas as coisas da vida que são estúpidas.
Como se estivesse lembrando-me de que tenho muito o que aprender, pensou o rei.
- Onde será o banquete?
- Na Casa dos Frades Menores - disse-lhe a mãe. – Pareceu adequado... o conde March e eu fomos de opinião de que era o melhor lugar.
O conde March! Roger de Mortimer. Ele não era nada, exceto um barão da fronteira, até ter fugido da Torre-onde estava sendo mantido preso - e a rainha ter-se juntado a ele na França. Depois, eles tinham ido para Hainault e, lá, tinham encontrado ajuda para retornar à Inglaterra, o que resultara em o pai de Eduardo estar hospedado no castelo de Kenilworth e ele, Eduardo, ser o rei.
- Sir John foi convidado? - perguntou ele, com frieza.
- Foi - respondeu a mãe. - E ficou encantado.
- Talvez tivesse sido mais adequado o convite ter partido de mim.
- Majestade!-bradou Mortimer, fingindo consternação. -Mas é claro que ele foi feito em seu nome.
- Sem meu conhecimento!
- Um assunto tão trivial assim parecia muito abaixo do nível da atenção do rei, majestade.
Mortimer estava dando aquele sorriso muito irónico. A mãe colocou uma das mãos no braço de Eduardo.
- Você não faz objeção a esse banquete, Eduardo? - perguntou, aflita.
- Não, não. É só que...
Ele olhou de um para o outro. Os dois conseguiram assumir expressões de preocupação. Ele ficou indeciso. Ah, como desejava não ter quatorze anos! Mas teve a sensação de que Mortimer estava zombando dele.
com voz tranquila, Eduardo disse:
- Terei prazer em receber Sir John e seus homens na Casa dos Frades Menores.
Havia uma certa tensão no salão da Casa dos Frades Menores. Ao centro da mesa, sobre a plataforma, sentava-se o rei, e a um de seus lados estava Sir John e, ao outro, a mãe do rei. Ao lado da mãe estava Roger de Mortimer, com os homens de mais nível compondo o restante da mesa. Nas mesas situadas na parte principal do salão, em breve ficou evidente que os homens de Hainault não se misturavam com os ingleses. Parecia que dois inimigos, e não dois aliados, tinham se encontrado para um banquete, porque era impossível não perceber os olhares de desprezo que eles trocavam, e Eduardo ouviu alguns insultos lançados de um lado do salão para o outro.
A rainha pareceu não perceber. Ela conversava amigavelmente com Mortimer, mas Sir John estava alerta.
Ele sussurrou para o rei que seus homens estavam ficando inquietos. Eles estavam longe de casa havia um tempo demasiado longo.
- Depois dessa campanha - acrescentou ele - devem ser dispensados. Precisam voltar para casa, para suas famílias.
- Não devemos nos demorar na Escócia - disse Eduardo. Dizem que Robert, o Bruce, está doente.
- Um homem doente - concordou Sir John, e acrescentou: Mas astuto. Não vamos nos enganar e pensar que será uma vitória fácil.
- Estou decidido a recuperar tudo o que meu avô ganhou.
- Sim, vossa majestade será igual a ele. Foi uma pena que tanta coisa ganha com sangue e trabalho tivesse sido perdida tão depressa.
Eduardo sabia que aquilo era mais uma censura a seu pai; e não ficou contrariado, porque era mais uma justificativa do que acontecera. Era bom tornar-se rei. Seria tudo aquilo que o avô tinha sido... e talvez... Sim, seu sonho era chegar a ultrapassá-lo.
Naquele momento, dois homens que estavam jogando a uma das mesas levantaram-se e ficaram um diante do outro. De repente, um banco saiu voando. Atingiu um dos homens e ele caiu. Aquilo foi o sinal. Por alguns segundos, Eduardo ficou olhando, perplexo. Sir John, a rainha e Mortimer ficaram também silenciosamente perturbados.
- Parem com isso - gritou Mortimer. - Por Deus, qualquer homem que trouxer suas desavenças para diante do rei condena a si mesmo como um traidor.
Aquilo deveria ter acalmado os homens. A morte de um traidor, por enforcamento, estripamento e esquartejamento, era o fim mais temido que poderia abater-se sobre um homem. Mas não teve efeito sobre aqueles. Numa questão se segundos, a discussão entre dois homens tornara-se uma briga generalizada e o salão estava se tornando rapidamente um campo de batalha.
Eduardo levantou-se e gritou:
- Ordem! Em nome do rei...
Mas sua voz foi desperdiçada. Eles não a ouviram, e mesmo que a tivessem ouvido ele sabia que o teriam ignorado.
Sentiu-se frustrado e irado. Um momento antes, ele se vira como um rei triunfante cuja palavra era lei. Como a realidade era diferente! Ele não passava de um garoto que gritava em vão e cuja voz nem mesmo podia ser ouvida acima dos gritos da batalha.
Sir John e Mortimer se meteram na multidão. Eduardo os teria seguido, mas sua mãe o segurou.
- Solte-me, minha senhora - disse, autoritário Mas ela agarrou-se a ele.
- Acho que a disposição deles é perigosa, meu filho.
com um safanão, ele se libertou e correu para a parte principal do salão, gritando:
- Desistam! Estou dizendo para desistirem! Orei está mandando! Mas foram Mortimer e Sir John que conseguiram impor a ordem ao gritarem para seus homens que obedecessem e terminassem aquela briga absurda. Cerca de cinco minutos passaram-se até que se fez silêncio no salão.
Então foi possível ver que na rápida e curta batalha vários homens tinham morrido e muitos tinham ficado feridos.
- Que vergonha! - bradou Sir John. - Vocês vieram combater os escoceses, não uns aos outros.
Suas palavras foram recebidas com o silêncio, mas os olhares mal-humorados dos hainaultenses e os truculentos dos ingleses enquanto se olhavam mostravam que eles não estavam, de forma alguma, arrependidos, nem dispostos a se tolerarem mutuamente.
Orei, ali de pé, sentia-se jovem e inadequado. Não conseguira fazer com que a luta parasse, e aqueles homens haviam tido a ousadia de deixar que acontecesse em sua presença.
Jamais teriam ousado fazer isso diante de seu avô.
E jamais tornarão a fazê-lo diante de mim outra vez, prometeu a si mesmo. Como era trágico ser rei e ter apenas quatorze anos!
A constrangida tensão entre os aliados continuava.
Sir John falava bastante com o jovem rei, e Eduardo o escutava. A desordem ensinara a ele que tinha mais a aprender sobre combates do que ele percebera. Estava decidido a ser um grande soldado; portanto, tinha de aprender tudo o que pudesse; tinha de esquecer que era um rei e tornar-se um estudante; jamais devia ser orgulhoso demais para ouvir. Sir John era um guerreiro experiente. Tinha muito a transmitir.
- O problema com esses homens é que não estão interessados na luta explicou ele. - Não estão lutando no país deles. Homens lutando em sua terra ou por uma causa em que acreditem lutam como leões. Nunca é a mesma coisa travar combates de terceiros. Eles lutaram na Inglaterra porque estavam defendendo uma bela dama cujo marido fora cruel para com ela. Por isso tiveram um excelente desempenho. Os homens precisam de um motivo, se tiverem que lutar.
- O motivo de muitos é saquear e destruir.
- É verdade, senhor meu rei. Mas um motivo desses não provoca feitos heróicos. Esses homens buscam obter vantagem e irão bater em retirada se isso for conveniente. Não, meus homens têm de voltar para casa depois dessa campanha. Tenho conversado com eles e prometi-lhes isso. Eu disse: "Façam uma campanha rápida, meus amigos, e depois voltarão para casa."
- E o senhor acha que lutarão por isso?
- Acho, majestade. Disso eu tenho certeza. Dentro de poucas semanas teremos os escoceses implorando misericórdia. Depois, haverá seu belo tratado. Paz com os escoceses para vossa majestade e volta para casa para John de Hainault e seu exército.
Sim, era mais agradável conversar com Sir John do que com Roger de Mortimer. Sir John ensinava de um modo respeitabilíssimo. Havia algo em relação aos modos de Mortimer de que o rei não gostava e do qual desconfiava.
Poucos dias depois da briga no salão, chegaram mensageiros vindos do norte.
Os escoceses tinham cruzado o Tyne e estavam avançando, destruindo o interior ao atravessá-lo.
- Está na hora de me encontrar com Robert, o Bruce - disse Eduardo.
Ele e Sir John saíram de York com seus exércitos, deixando a rainha e Mortimer com as crianças reais.
- Você voltará em breve... vitorioso - disse a rainha ao despedir-se do filho.
Eduardo percebeu Mortimer por perto, observando com ar sardónico. Depois, Eduardo achou que era quase como se ele tivesse uma antevisão do que estaria por acontecer.
Robert, o Bruce, realmente era um homem muito doente. A terrível doença da lepra avançava com rapidez, e ele sabia que a morte não podia demorar muito. Por isso estava muitíssimo ansioso por fazer uma paz duradoura com a Inglaterra. Seu filho David não passava de uma criança e ele temia o que poderia acontecer ao menino, herdeiro da Escócia, quando ele ficasse sozinho, como sem dúvida ficaria em breve.
A doença de Bruce era o resultado de nunca se poupar durante uma vida de agruras. Ele vivera em acampamentos úmidos e ventosos e enfrentara todos os perigos dos combates.
Por uma boa sorte, havia escoceses que estavam tão ansiosos quanto ele por obrigar os ingleses a sair de seu país, e com eles Bruce debateu os métodos que queria utilizar contra o inimigo. Os homens em que mais confiava eram Thomas Randolph, conde de Moray, e Sir James Douglas.
Moray, por ser filho de sua irmã Isabel, era seu sobrinho. Exercera um papel predominante em Bannockburn e sempre fora o fiel partidário do tio. Douglas tornara-se cavaleiro no campo de Bannockburn e também se mostrara um forte adepto de Bruce. Ele era um homem ousado e um combatente feroz, e no norte da Inglaterra nascera uma lenda sobre ele. Mães diziam a filhos travessos que se eles não fossem bons, o Negro Douglas iria pegá-los. Era um tipo ostentoso, sempre chamando atenção para si mesmo por alguma proeza ousada, e seus olhos negros e sua pele escura tinham-lhe valido o nome de Negro Douglas, que se encaixava à sua reputação.
Robert ficava muito triste por não ter condições de juntar-se ao seu exército. Estava dividido entre fazer um esforço e estar lá para conduzir as operações, talvez de um acampamento na retaguarda do exército, e o medo de que sua aparência macilenta pudesse solapar o espírito e seus soldados. Fora devido aos seus esforços que os escoceses tinham expulsado os ingleses da Escócia com o magnífico clímax em Bannockburn, mas Bruce não era homem de enganar a si mesmo e sabi que a vitória tinha muito a ver com o fato de Eduardo I ter morrido e seu ineficiente filho ter tomado o lugar dele.
Agora, ele discutia com seus mais confiáveis adeptos o plano de ação contra os ingleses.
- O que quero evitar, se possível - disse Bruce -, é o confronto direto.
- Nós os derrotaríamos, então, como fizemos em Bannockburn - replicou Douglas.
- Talvez sim, James, e talvez não. Isso significaria qu seria derramado sangue escocês, e eu não quero isso, se puder ser evitado. A vantagem está conosco. Os ingleses vieram carregados de suprimentos, e nossos homens aprenderam a viajar com o mínimo de bagagem.
- É isso mesmo - acrescentou Moray. - Uma saca de farinha de aveia e um prato de ferro para cozinhá-la. Isso e o gado que pudermos roubar pelo caminho mantêm os homens bem alimentados.
- É verdade-disse Bruce -, e aí, insisto, está a nossa vantagem. Meu plano é que os ingleses não fiquem de frente com o nosso exército enquanto não os tivermos atraído para aquele ponto em que haverá uma batalha se não puder ser evitada.
- Você está falando em recuar diante deles.
- Recuar, não - respondeu Bruce. - Não gosto dessa palavra. Deixaremos a Inglaterra com eles avançando em nossa direção, e enquanto passarmos pelas cidades e aldeias inglesas, pegaremos o gado deles e arrasaremos a terra. Seremos esquivos. Nunca nos pegarão. E ficarão cansados e exaustos ao tentar fazê-lo. Nosso plano deveria ser, na verdade, provocar um tratado de paz que nos livre para sempre da dominação inglesa.
O Negro Douglas estava um pouco desapontado. Tinha a esperança de uma outra Bannockbum, mas, tal como Moray, percebia a sensatez das palavras do rei. Se a Escócia quisesse prosperar, precisava de paz. A guerra podia ser excitante para homens como Douglas, mas também era destrutiva. Uma paz vantajosa era o que país precisava.
- O rei da Inglaterra tem duas irmãs - prosseguiu Bruce.-Elas têm mais ou menos a mesma idade do meu jovem David. Vocês percebem aonde eu quero chegar. Não há nada como uma aliança entre dois países para provocar a paz.
Moray e Douglas admitiram que aquilo era verdade.
Fizeram-se planos e, assim, quando Eduardo e Sir John e seus exércitos marcharam para o norte perseguindo os escoceses, encontraram sinais deles mas não conseguiram alcançá-los.
Atravessaram o Tyne. Por toda parte havia aldeias saqueadas, mas nada dos escoceses. O tempo estava ruim; caíam tempestades violentas; os homens ficavam cada vez mais inquietos, e havia doença no acampamento.
- Se pudéssemos alcançar os escoceses e houvesse uma batalha de verdade, vossa majestade veria uma modificação nos homens disse Sir John ao rei. - Essa situação tem um efeito debilitante sobre eles.
- Isso mostra que os escoceses têm medo de nós-disse Eduardo. Sir John balançou a cabeça.
- Creio que Robert, o Bruce, está fazendo um jogo conosco.
- Ele é um homem doente. Não está com o exército dele.
- Ele dirige as operações, majestade. Pode estar certo disso, e não é um homem fácil de se derrotar, esteja montado a cavalo ou num leito, enfermo.
Eduardo estava descobrindo que a guerra não era a gloriosa aventura que imaginara. Ele achara que fosse igual a um torneio, uma espécie de joust à lóutrance, quando os oponentes lutavam até o amargo fim. Imaginara armaduras brilhantes, lanças faiscando ao sol, grandes atos de bravura. Em vez disso, ele encontrava doença, uma chuva torrencial, moscas, acampamentos ventosos e o frustrante hábito dos escoceses que, zombeteiramente, os estavam fazendo seguir por aquele exaustivo caminho.
Um dia, um homem foi levado ao acampamento de Eduardo por Sir John de Hainault. O homem tinha uma história a contar. Seu nome era Rokeby e fora feito prisioneiro pelos escoceses e, por conseguinte, passara algum tempo com eles.
- Assim que fugi, segui direto para seu acampamento, majestade - disse Rokeby. - Posso lhe dizer exatamente onde vossa majestade poderá encontrar o exército escocês.
- Então - bradou Eduardo -, nós os encontraremos. Iremos convidá-los a entrar em combate. Aí, teremos a nossa vingança.
Ali mesmo, ele fez de Rokeby um cavaleiro e, enquanto se ajoelhava para receber a comenda, o homem riu para si mesmo. Eduardo era mesmo uma criança. Podia ser enganado com facilidade. Ele iria dizer ao Negro Douglas que aquilo não parecia justo, era como tapear uma criança.
Douglas daria risadas. Tinha sido ideia sua fazer com que Rokeby levasse o exército inglês para as margens do rio Wear, pois Douglas pretendia se divertir um pouco com eles.
No devido tempo, o acampamento do exército foi instalado nas margens do rio Wear no condado de Durham e, realmente, do outro lado do rio os escoceses estavam acampados.
- Agora - disse Eduardo -, vamos entrar em combate e não tenho dúvida de que a vitória será nossa.
- Deveríamos pensar em alguma maneira de pegá-los de surpresa replicou Sir John.
- Nada disso - bradou Eduardo. - vou lutar com honra. Eles estão de um lado do rio, e nós do outro. vou dizer a eles que devem atravessar o rio para enfrentar-nos e que vou considerar falta de cavalheirismo atacá-los enquanto estiverem atravessando.
- Senhor meu rei - disse Sir John, em desespero -, isso é uma guerra.
- Pretendo conduzir a guerra de maneira honrosa - replicou Eduardo. - vou dizer a eles que se preferirem que nós atravessemos o rio, nós o faremos e a nós se aplicarão
as mesmas condições que propus a eles.
O experiente guerreiro John de Hainault encolheu os ombros. Chegara à conclusão de que os escoceses não estavam ansiosos por lutar, e quando levava em consideração a condição de seus homens, ele também não estava.
Eduardo esperou por uma resposta pelo mensageiro que teve de vadear o rio até o acampamento escocês. Finalmente, ela veio.
"Nós estamos em seu país", dizia ela. "Devastamos a sua terra. Se isso desagradá-los, vocês terão de vir nos atacar. Vamos continuar onde estamos enquanto quisermos."
O que deveriam eles fazer?
Eduardo disse que, por uma questão de honra, eles agora tinham de atravessar o rio, mas Sir John sacudiu a cabeça, num gesto de cansaço.
- Os homens estão exaustos - explicou ele. - Os suprimentos estão escasseando. Nossos homens não viajam com uma saca de farinha de aveia e uma chapa de assar.
- Então, temos de agir com rapidez - retrucou Eduardo.
Eduardo conseguiu o que queria, e eles fizeram planos para atravessar o rio no dia seguinte. Eduardo passou a noite sem dormir. Do outro lado do rio, a luz do acampamento escocês bruxuleava na escuridão.
- De manhã, atacaremos - pensou Eduardo -, e a vitória será nossa. Voltarei para minha corte e as pessoas não irão mais sorrir diante de minha juventude e inexperiência. Ficarão sabendo que não sou apenas uma figura simbólica. Sou um rei de verdade. vou parar de apenas reinar e vou governar.
Mas de manhã, antes que ele se levantasse, Sir John entrou de supetão em sua tenda.
- Venha dar uma olhada - disse ele.
Eduardo o seguiu para fora. Do lado oposto do rio, as fogueiras do acampamento ainda fumegavam, mas o exército tinha ido embora.
Uma vez mais, havia espiões para lhes indicar o local. Os escoceses ainda estavam na margem do mesmo rio, mas dessa vez num ponto mais vantajoso para eles. Era num bosque conhecido como Stanhope Park, uma área de caça pertencente ao bispo de Durham.
- É mais fácil vadear o rio aqui - disse Sir John.
- Então foi por isso que se deslocaram - bradou Eduardo. Agora temos de nos preparar para o combate com afinco.
Os preparativos levaram aquele dia todo, e ao anoitecer Eduardo se sentia muito cansado. Sabia que o fim estava próximo, e enquanto se achava deitado na sua tenda, pensou em voltar para Londres. Seu primeiro ato seria mandar chamar seus ministros e dizer-lhes que não adiaria mais seu casamento. Havia sido feito um acordo com o conde de Hainault, segundo o qual ele deveria casar-se com uma de suas filhas. Pois bem, ele queria que aquele casamento acontecesse logo. Todos ficariam satisfeitos. Eles sempre diziam que nunca era cedo demais para um rei começar a ter herdeiros. Era um pensamento agradável. Eduardo já descobrira que gostava do contato com as mulheres e pensara muito em Filipa, que evidentemente o achara maravilhoso. Tratava-se de uma jovem bonita, e também encantadora e simples. Na verdade, era a esposa feita para ele.
Ele caiu num sono agradável pensando em Filipa.
Acordou de um salto. Havia uma gritaria no acampamento. Ele ouviu cavalos relinchando, berros, barulho de correria.
Houve um grito de "A Douglas! A Douglas!" e, enquanto Eduardo se punha de pé de um salto, ele viu que sua tenda começara a desabar, o que significava que alguém havia cortado as cordas. Correu para fora e, ao fazê-lo, percebeu um homem de pele escura rindo dele.
Um de seus guardas saltou para a frente.
- Corra, majestade. Corra, majestade - gritou o guarda, antes de cair ao chão com uma espada atravessada no corpo.
Eduardo agiu com rapidez. Sabia o que tinha acontecido. Tinham sido ludibriados pelos escoceses. Black Douglas tivera a ousadia de chegar até sua tenda, talvez para matá-lo ou toma-lo como prisioneiro. O rei da Inglaterra sendo um refém! Ele precisava correr. Aquilo era ignóbil. Não se encaixava em suas ideias de atos dignos de um rei: mas estava desarmado, e Black Douglas estava à espera para pegá-lo.
Sir John estava gritando ordens. Os ingleses tinham acordado e o pequeno grupo de escoceses liderado por Black Douglas, que invadira o acampamento inglês, saiu em fuga.
Seguiu-se a consternação. Como aquilo acontecera? A guarda tinha sido descuidada. O rei poderia ter sido morto ou feito prisioneiro.
Os escoceses pareciam levar vantagem sobre eles todas as vezes.
- Mas esta foi a última vez - bradou Eduardo. - Amanhã, atacaremos.
Sir John disse que eles precisariam de um dia para se reorganizar. O ataque pegara-os de surpresa, e quando atacassem os escoceses deveriam estar preparados sob todas as formas. Tinha de haver uma vitória.
Ainda sentindo-se humilhado, Eduardo era a favor de uma ação imediata.
Ele não precisava ter-se preocupado. Ao amanhecer, ficou claro que os escoceses tinham levantado acampamento mais uma vez. Haveria mais uma viagem para alcançá-los. Os escoceses tinham cavalos velozes. Apesar de não terem a beleza dos pertencentes aos ingleses, podiam deslocar-se muito mais depressa, por levarem cargas leves. Além do mais, para onde fossem os ingleses, precisavam dos suprimentos cavalos encilhados e carroções eram muito diferentes de uma chapa de assar e uma saca de farinha de aveia. Tornavam lento o avanço.
Chegaram notícias de que os escoceses tinham atravessado a fronteira. Eduardo sabia que jamais poderia alcançá-los. Seus homens estavam exaustos, os suprimentos estavam no fim e havia mais discussões entre os ingleses e os hainaultenses. Aquilo era uma experiência despropositada, deprimente e humilhante.
Chegou um recado de Robert, o Bruce. Ele estaria disposto a discutir condições de paz e sugeria uma união dos dois países através de um casamento. Eduardo tinha irmãs; ele tinha um filho. Muitas vezes, a paz era conseguida de forma mais definitiva através de uniões do que de batalhas.
Que houvesse reuniões. Que se discutissem aquelas questões. E enquanto isso, que terminassem as hostilidades.
Eduardo percebeu que eles tinham razão.
Em meio àquela situação, chegou até ele um mensageiro com notícias enviadas por sua mãe.
Seu pai havia morrido em paz no castelo de Berkeley.
Bem, talvez fosse a vontade de Deus. Pobre Eduardo II, sua vida tinha sido um fracasso. Talvez finalmente ele estivesse em paz. Era uma pena Eduardo não ter estado
ao lado dele no final. Teria gostado de ouvi-lo repetir que achava que o filho estava certo ao pegar a coroa.
Mas ele morrera em paz, e fora melhor assim. O jovem Eduardo já não precisava sofrer os remorsos da consciência. Agora era o rei de verdade.
Mas Eduardo tinha de voltar para York, onde sua mãe estaria à sua espera.
Como teria sido diferente se tivesse voltado como um herói triunfante, se tivesse vencido uma batalha que teria sido como Bannockburn ao contrário.
- Eduardo vinga os ingleses na Escócia - podia ele ouvir as pessoas dizerem. - Ele é igual ao avô.
Um dia mostraria a eles. Mas nem sempre iriam compará-lo ao avô. Falariam no Grande Eduardo III, e também no primeiro que levara aquele nome.
Nesse ínterim, os escoceses haviam-lhe enganado e ele tinha de voltar para a sua corte castigado mas com uma valiosa lição aprendida. A guerra não era um torneio em que se obtinham honrarias fáceis. Era uma questão de vida e morte, de truques e estratégia, de desconfortes e derramamento de sangue.
Iria lembrar-se disso e para ele isso seria vantajoso.
Enquanto viajava em direção sul, para York, o humor de Eduardo melhorou um pouco. Pelo menos não fora derrotado em combate, como acontecera com seu pai. Sua missão fracassara, mas porque os escoceses recusaram-se a lutar. Ele tentou imaginar o que deveria ter feito e percebeu que tudo o que tinha sido possível era perseguir o inimigo. Era verdade que ele estava voltando sem conseguir coisa alguma; e quando pensava em como a coisa poderia ter acabado se o Negro Douglas tivesse conseguido capturá-lo, ficava aflito.
Mas estava voltando para York, e os escoceses tinham concordado em examinar a possibilidade de tratado. Era verdade que seu exército não estava na mesma forma em que partira, e os hainaultenses tinham dito peremptoriamente que para eles não haveria mais combate algum. O passo seguinte era fazer um tratado vantajoso e... o que ele queria mais do que qualquer outra coisa... casar-se com Filipa.
Sua família estava esperando por ele em York, e com ela, como uma sombra, estava Roger de Mortimer.
O rei franziu o cenho. Sabia que não adiantava recusar-se a pensar em Mortimer e no motivo pelo qual sua mãe estava tão decidida a manter aquele homem ao lado dela. Eduardo ignorou os mexericos e, é claro, ninguém ousaria falar mal de sua mãe se ele pudesse ouvir.
A rainha abraçou-o. Disse, com fervor, estar encantada em vê-lo de volta são e salvo.
Mortimer fez uma mesura, e Eduardo teve a certeza de que percebera um brilho de satisfação no olhar dele.
- Vossa majestade está com boa aparência - disse ele. - Não há sinais de cicatrizes de batalha.
- Os covardes dos escoceses! - disse a rainha. - Quem iria acreditar que eles iriam recusar-se a lutar!
- A notícia da morte de meu pai me entristeceu - disse Eduardo.
- Como entristeceu a todos nós - replicou a rainha.
- Foi uma passagem tranquila - disse Mortimer -, e aqueles que estavam perto dele disseram que o falecido rei ansiava pela paz.
O jovem Eduardo franziu o cenho.
- Quem dera que eu pudesse tê-lo visto no final. Sua mãe passou o braço pelo dele e ergueu o rosto.
- Meu filho - disse ela-, todos pensamos a mesma coisa. Mas devemos nos contentar com a certeza de que ele agora está descansando.
Eduardo voltou-se para o irmão e as irmãs, que o olhavam com ar de respeito. Agora não era apenas irmão deles. Era o rei deles.
- Ora, irmão John, como vai você?
John sorriu e disse que ia bem, como esperava que o senhor seu rei também fosse.
- Irmão Eduardo para você, John. - Eduardo ajoelhou-se e abraçou as duas garotas. Como eram bonitas, com os olhos vivos e a suave pele rosada que o faziam lembrar-se da pele de Filipa.
- Estão preparando um banquete porque você voltou - disse Eleanor, a mais velha das duas.
- É mesmo? - replicou Eduardo. - Neste caso, devo comparecer a ele, não devo?
De repente, os olhos de Joana, que tinha seis anos, encheram-se de lágrimas.
- Nós agora não temos pai - disse ela.
As lágrimas tinham começado a rolar dos olhos de Joana, e Eleanor e John estavam a ponto de chorar. lembravam-se vagamente do pai um homem bondoso, que era delicado e tranquilo. Eles não haviam tido, em absoluto, medo dele como sentiam de sua mãe.
- Ora - disse a rainha -, vocês têm de lembrar que seu irmão agora é o rei. Vocês não estão na ala infantil, sabem?
A rispidez da voz dela fez as crianças ficarem sérias, exceto Joana, que não conseguia conter as lágrimas.
- Levem sua irmã daqui-disse arainha.-Estou com vergonha por vocês se comportarem assim diante do rei.
Mas Eduardo as manteve apertadas contra seu corpo.
- É natural se lamentar - disse ele. - Eu lamento com vocês. Mas, irmãzinhas, agora sou o guardião de vocês. Sou o seu rei e seu irmão, e vou providenciar para que nada de mau lhes aconteça.
Joana atirou os braços em volta do pescoço dele e uma vez mais ele se lembrou de Filipa.
- Leve suas irmãs daqui, John - disse a rainha com tom de autoridade, e quando Eduardo as soltou, elas foram embora.
- Pobres crianças sem pai! - disse Eduardo. - Elas têm ciência da perda que sofreram.
- Meu querido Eduardo, elas o viam muito pouco. O rei não tinha tempo para elas.
- Ele era bondoso com elas quando as visitava.
- Nós conhecemos os defeitos de seu pai. Não vamos torná-lo um santo só porque se foi.
Havia rispidez na voz de sua mãe. Talvez seja sua dor, pensou Eduardo. Talvez ela lamente a diferença entre eles e deseje que tivesse havido tempo para uma reconciliação.
- Você deve querer ir para os seus aposentos-disse ela.-Deve estar cansado da viagem, e eu vou levá-lo até lá agora.
Eduardo confirmou com um gesto da cabeça.
- Sim, majestade - disse ele. - Só a senhora.
As palavras foram dirigidas evidentemente aMortimer, que fez uma curvatura e ficou para trás.
Quando ficaram a sós, o rei disse:
- Quero saber como meu pai morreu.
- Foi como eu lhe disse. Ele morreu em paz... durante a noite. Foi para a cama como sempre, e na manhã seguinte eles entraram e o encontraram... morto.
- Meu pobre pai, teve uma vida infeliz.
- Ele se considerava um fracassado, Eduardo, e era, mesmo. Agora não adianta fingir que era diferente.
- Sei que ele não era como o pai.
A risada da rainha tinha um tom de histeria.
- Meu querido, compreendo sua emoção. Você está triste por causa de seu pai, agora que ele está morto. Seu avô foi um grande homem. A tragédia de Eduardo foi vir em seguida a um homem daqueles. Se ele tivesse sucedido a... digamos, João... seu defeitos não teriam sido óbvios. Mas veio depois do Grande Eduardo, e era um homem de gostos estranhos. Ele está morto. Que descanse em paz. - Colocou a mão sobre o braço dele e olhou para ele com uma expressão de súplica.
- Querida senhora, é claro que tem razão.
- Você e eu temos trabalhado juntos, Eduardo. Eu o trouxe para a Inglaterra. Fiz de você um rei.
- Sim, majestade, mas passei a ser rei naturalmente, com a morte de meu pai.
- Fiz de você um rei antes de seu pai morrer, e por ele ser seu pai isso deixou você constrangido. Não precisa ficar assim. Pense nos desejos do povo. Ele não queria seu pai. Ele quer que você o governe. Esqueçamos o passado. Vamos olhar para o futuro.
- Façamos isso. Estou decidido a me casar logo.
Um sorriso estonteante iluminou o rosto dela, e Eduardo percebeu o imenso alívio que ela sentia.
- É natural que você se case.
- A senhora fez um acordo com o conde de Hainault.
- Isso foi necessário. Sem esse acordo, eu jamais poderia ter levantado o exército que nos trouxe de volta para a Inglaterra.
- Gostei muito de a senhora fazê-lo. Senti um grande afeto por Filipa.
A rainha riu com uma alegria excessiva.
- Deu para perceber um pouco - disse ela. - Eu nunca me esquecerei de como a menina debulhou-se em lágrimas quando teve de se despedir.
- Ela é encantadora - bradou Eduardo. - Muito jovem, muito natural.
- Neste caso, por que o casamento não acontece logo?
- É o que eu penso.
Passou o braço pelo dele e caminhou até a janela.
- O acordo - disse-lhe ela - foi para uma das filhas do conde.
- Eu quero Filipa... ninguém mais.
- Você terá Filipa, claro, mas me ocorreu a ideia de que o conde pode querer livrar-se primeiro da filha mais velha. É um costume. Margaret é a mais velha.
- Estou lhe dizendo que quero Filipa.
- Por favor, não fique tão enfático. vou lhe dizer o que faremos. Enviaremos nossa embaixada a Hainault e daremos instruções para que o chefe escolha a mais indicada das quatro jovens.
- E se ele não escolher Filipa?
- Vai escolher, porque diremos a ele, antes, que terá de escolhê-la. Eduardo riu.
- Parece um bom projeto - disse ele.
- Muito bem, vamos colocá-lo em ação logo. Mandarei chamar Adam de Orlton. Ele é o homem indicado. Ele agora está conosco. Sempre nos serviu bem. É astuto e inteligente. Fará exatamente o que for preciso. vou mandá-lo falar com você. Não há motivo para que ele não parta imediatamente.
O rei afastou-se de sua mãe e mandou logo chamar Adam de Orlton. Nesse ínterim, a rainha voltara para Mortimer.
- O senhor nosso rei tornou-se um tanto imperioso desde suas aventuras ignóbeis no norte - comentou Mortimer. - Ele me desprezou de maneira clara.
- Não deve levar isso a sério, meu amor. Ele falou sobre o pai. Creio que está remoendo esse caso na cabeça. Tive dificuldade em fazê-lo mudar de assunto.
- Ele não vai ouvir rumores.
- Ninguém teria a ousadia. Todos sabem que seria uma insensatez a toda prova. Insisti em dizer que Eduardo agora está em paz. Estou sempre dizendo isso a ele. Ele não desconfia de coisa alguma. Está apaixonado por Filipa de Hainault e isso ocupa sua mente, o que é uma felicidade. Ele quer se casar logo.
Não devemos impedir. Que a mente dele se ocupe com o leito matrimonial e não com o leito de morte do pai.
- Por isso, vamos casá-lo logo. Nada deverá ocupá-lo com maior exclusividade do que a sua pequena Filipa.
- Ela vai agradar muito bem ao nosso rapaz - disse Mortimer.
- Você a achou atraente?
- Deslumbrado pela incomparável beleza de minha rainha, eu mal a vi. Observei vagamente que é uma flamenga típica. Já rechonchuda. Terá tendência a ganhar peso, você vai ver. Mas é bem bonita, e eu diria que é certa para o menino. Não tenho dúvida de que será uma boa reprodutora.
- Espero que ele não continue a falar sobre o pai - disse a rainha com um tremor.
Mortimer envolveu-a com um braço.
- Ah, meu amor, você precisa deixar de cismar. Vamos trazer Filipa para cá. Teremos um casamento real... bebés. Querida, já imaginou que vai se tornar avó?
- Não gosto de ouvir falar nisso.
- A mais bonita e jovem avó que o mundo já viu.
Adam de Orlton, bispo de Hereford, estava de pé diante do rei.
Ali estava um homem que tinha sido inimigo do falecido rei e servira bem à rainha. Astuto, calculista e decidido a ir longe na sua profissão, ele percebera rapidamente que Eduardo II acabaria tornandose intolerável para o povo da Inglaterra e por isso jogara sua sorte na rainha. Tinha sido ele, em grande parte, o responsável pela fuga de Mortimer da Torre, porque se a rainha não tivesse conseguido recrutar sua ajuda e, por intermédio dele, os dois comerciantes londrinos que forneceram o barco e os cavalos, a aventura teria fracassado.
Assim que a rainha chegara a Londres com o exército, ele se apresentara e desde então vinha trabalhando com ela e Mortimer.
Eduardo sabia que ele era um servidor fiel.
Adam agora se curvou diante do rei, e Eduardo disse:
- Sente-se, por favor.
Sentia-se um pouco constrangido com o fato de que um venerável homem daqueles devesse ficar de pé... enquanto ele ficava sentado. Ele teria de dominar tais sentimentos. Como sempre, desejou poder crescer mais depressa.
- Senhor bispo - disse o rei -, quero que parta imediatamente para a corte do conde de Hainault. Como vossa eminência sabe, ele tem quatro filhas jovens e eu me decidi a casar com uma delas.
- vou partir agora mesmo, majestade - garantiu-lhe o bispo.
- Por favor, apresente-se ao conde e diga-lhe qual é a sua missão. Ele terá prazer em recebê-lo. Ele está ansioso por esse casamento.
- Como é natural - replicou o bispo. - Ele tem quatro filhas. Naturalmente, a sua esposa deverá ser a mais velha.
- Não, senhor. Não! Eu já conheci a futura rainha da Inglaterra e não é Margaret, a mais velha, mas Filipa, a segunda filha.
- Entendo, majestade.
- Por isso, quando lhe pedirem que escolha a mais adequada, o senhor saberá qual delas deverá escolher.
- vou escolher Filipa, majestade.
- E providencie para que os demais membros de sua embaixada aprovem sua escolha.
- Farei isso.
- Eu sabia que podia contar com você, Adam. O bispo sorriu.
- Estou percebendo que seria prejudicial para mim se eu voltasse com a notícia de seu noivado com a dama errada.
- Poderia custar-lhe a cabeça, senhor bispo.
O rei falou em tom de brincadeira, mas o bispo teve um arrepio de aflição. com aqueles Plantagenetas nunca se podia ter certeza.
O mau génio que seguira pela linhagem toda a partir de Henrique II era notório.
- Fique tranquilo, majestade. vou mante-la. Ela é um bem valioso demais para ser posta de lado como se não fosse coisa alguma. Mas ocorreu-me uma questão, da qual
sem dúvida vossa majestade tem conhecimento. Há um parentesco muito próximo entre vossa majestade e Lady Filipa.
O rei deu de ombros, num gesto de impaciência.
- Os reis têm muitos parentescos entre as casas nobres - disse ele.
- É verdade, majestade, mas esse é próximo. Vossa majestade e a senhorita têm o mesmo bisavô em Filipe
III da França.
- E então? - perguntou Eduardo.
Acho que seria aconselhável eu preparar uma missão a Avignon depois de ter resolvido o assunto em Hainault. Não acredito que o papa levante qualquer objeção quanto à dispensa.
Irei ignorá-lo, se ele levantar.
O bispo curvou a cabeça.
Estou certo, majestade, de que isso não será necessário. vou
partir já para Hainault e, completada a minha missão por lá, seguirei de imediato para Avignon.
O rei confirmou com a cabeça, confiante em que em breve Filipa estaria com ele.
DESDE QUE EDUARDO PASSARA uma semana na corte de Hainault, Filipa jamais deixara de pensar nele. Antes de ele aparecer, estivera inteiramente satisfeita com a vida que levava. Sua família era muito unida, e se o fato de se constituir de apenas um filho homem e quatro filhas era motivo de decepção para o conde e a condessa de Hainault, estes nada demonstravam.
Eles tinham tido uma grande tragédia na vida, porque tinham existido cinco filhas. Amais velha, Sybella, morrera ainda jovem; só as duas mais velhas se lembravam dela, e nunca se esqueceriam da profunda tristeza causada na família pela sua partida prematura.
As meninas sempre estiveram cientes de que sua mãe vinha de uma família muito nobre - nada menos do que a família real da França. A condessa Jeanne era filha de Charles de Valois, e seu irmão, Filipe de Valois, era o próximo na linha de sucessão à coroa da França se o rei Carlos, que reinava, morresse sem um herdeiro homem. Parecia provável que isso acontecesse, porque a má sorte vinha sendo o destino dos reis da França desde que Filipe IV perseguira os Cavaleiros Templários e seu grão-mestre, Jacques de Molai, amaldiçoara a linhagem dos Capeto enquanto estava sendo queimado vivo. Parecia mesmo que aquele ramo da família iria acabar; com isso os Valois assumiriam o poder.
A condessa Jeanne nunca se cansava de falar de sua vida na França e as quatro irmãs sabiam como a vida lá era mais elegante do que em Hainault e que a música e a poesia compostas por lá eram as melhores do mundo.
- Mesmo assim - acrescentava ela -, tenho sido mais feliz em Hainault do que jamais fui na França.
Isso não evitou que ela introduzisse costumes franceses e lembrasse às filhas, se alguma vez elas agissem de modo que sua mãe de alto berço desaprovasse, que elas pertenciam à casa real da França.
Filipa estava certa de que em nenhuma parte do mundo havia um menino tão bonito quanto Eduardo da Inglaterra. Nem a França podia produzir um menino tão cheio de encantos, vitalidade e delicadeza, e depois que ele partira a vida tornara-se excessivamente enfadonha.
Todos os dias eram iguais. Cada um deles era formado, a maior parte do tempo, por aulas, mas também havia muito exercício. O conde acreditava muito nos benefícios da vida ao ar livre; elas eram todas excelentes amazonas e o frescor da pele era um indício da boa saúde de que gozavam.
A vida que levavam era simples, e tanto o conde como a sua condessa tinham desejado que as filhas fossem, antes de tudo, mulheres de bem. Elas diziam o que pensavam livremente e não viam virtude no engano. Tinham sido ensinadas a ser delicadas com aqueles que lhes fossem inferiores e que, embora estes tivessem nascido sem as vantagens que elas possuíam, eram seres humanos e dignos da sua consideração.
A condessa Jeanne muitas vezes sorria ao pensar no quanto sua criação tinha sido diferente; mas era sensata bastante para perceber que a felicidade simples da corte de Hainault era infinitamente mais interessante do que a sofisticação da corte da França.
As meninas discutiam, com frequência, a visita da rainha da Inglaterra e seu filho, que depois disso se tornara rei. Filipa costumava levar a conversa para ele, e em geral isso acontecia naquela hora do dia em que estavam dedicadas ao trabalho de agulhas, porque tinham de separar certa parte do dia para costurar para os pobres. Todas elas teriam preferido trabalhar em alguma tapeçaria bem colorida, mas a condessa dissera-lhes que deveriam fazer com que gostassem de trabalhar nos tecidos bem grossos porque poderiam pensar no conforto que aquilo levaria para os menos afortunados do que elas.
Enquanto costurava, Filipa pensava em Eduardo, e isso fazia com que a hora passasse depressa. Ficava sentada sorrindo para o trabalho e não via a linha forte, mas Eduardo montando seu cavalo de um salto, mostrando até onde podia disparar uma flecha, saindo a cavalo com seu falcão e, o melhor de tudo, dando um jeito para que os dois fossem ficando para trás um pouco ou cavalgassem à frente, a fim de que pudessem afastar-se do grupo e ficar a sós.
Suas irmãs também falavam sobre ele. Todas o tinham achado atraente. Um dia, enquanto estavam sentadas costurando as roupas para os pobres, ouviram sons de alguém que chegava ao castelo.
A jovem Isabella largou o trabalho e correu para a janela. Olhou para fora em silêncio, e Margaret perguntou:
- Quem é?
Isabella deu meia-volta, as faces habitualmente rosadas um tanto mais vivas.
- Acho que é importante - disse ela. Todas as jovens estavam na janela.
- Ora - disse Margaret. - Olhem o estandarte. Eles vêm da Inglaterra.
O coração de Filipa dançava alucinado; ela não teve coragem de falar.
- O que será que isso significa? - perguntou Jeanne.
- Sem dúvida vamos acabar descobrindo - replicou a irmã mais velha.
Elas ficaram na janela, observando.
- Eduardo não está com eles - observou Isabella.
- Como se devesse estar. - Filipa encontrara a voz. - Ele agora é rei. Tem um país para governar.
- Às vezes os reis fazem visitas - retorquiu Isabella. - Não fazem, Margaret?
- Fazem, sim. Eduardo deve ser um dos reis mais jovens que já existiram.
- Há gente que é rei quando ainda é recém-nascido-acrescentou jeanne.
Filipa não estava prestando atenção a elas. Por que os mensageiros vinham da Inglaterra? O que poderia significar aquilo?
Elas iriam descobrir em breve. Mais tarde, naquele dia, foram chamadas aos aposentos dos pais e, lá, encontraram o conde e a condessa mais sérios do que de costume.
- Venham cá, crianças - disse a condessa.
Elas se aproximaram e pararam diante dos pais; Margaret primeiro, depois Filipa, Jeanne e Isabella em ordem de idade, como se esperava que fizessem.
- Vocês devem ter ouvido a chegada de pessoas - prosseguiu a condessa.
- Ouvimos, senhora - respondeu Margaret por todas.
- Elas vêm a mando do rei da Inglaterra. Vocês se lembram de Eduardo, que ficou aqui com a mãe e que o tio de vocês levou até a Inglaterra?
- Sim, senhora.
- Creio que todas vocês ficaram gostando muito de seu primo.
- Ah, ficamos, sim, senhora. - Desta vez foi Filipa, falando um pouco antes das outras.
- Fico satisfeita - disse a condessa.
- Eu também - disse o conde. - Vocês, meninas, sabem que terá de chegar a hora em que deverão sair de casa para se casarem. Sua mãe e eu sabemos que vocês não vão querer ir. Infelizmente, este é o destino das moças. O detalhe é que o rei da Inglaterra está pedindo a mão de uma de vocês em casamento.
- Uma de nós! - bradou Margaret.
- Qual? - a voz de Filipa ficara reduzida a um sussurro.
- Isso é que tem de ser decidido - prosseguiu o conde. Chegou uma embaixada enviada pelo rei e chefiada pelo seu bispo de Hereford. Ao longo de amanhã ou coisa assim, ele irá observá-las e escolher aquela que ele considerar mais indicada para ser a rainha da Inglaterra.
Filipa sentiu-se mal de tanto medo. Margaret é mais bonita do que eu, pensou ela; Jeanne é mais graciosa, e Isabella tem belos olhos; todas são mais inteligentes do que eu. vou morrer se não me escolherem... e como é que vão me escolher, quando minhas irmãs são tão mais atraentes?
- Não fiquei surpreso - continuou o conde - quando a embaixada chegou, porque sua mãe e eu já tínhamos concordado, quando a rainha e o rei... na época, ele era príncipe... foram nossos hóspedes, com que não colocaríamos obstáculos no caminho de um casamento entre uma de vocês e Eduardo. Esse foi o nosso pacto. Estamos muito felizes pelo fato de o rei, agora que tem o seu trono, ter-se lembrado dele.
- Estou certa - disse a condessa - de que aquela dentre vocês que for escolhida será feliz. Eduardo é jovem... é apenas alguns meses mais velho do que você, Filipa, e aquela que for escolhida irá aprender rapidamente o jeito dele e, talvez, ele aprenderá um pouco do de vocês.
- Quando... quando - gaguejou Filipa - será feita a escolha?
- O bispo é que vai dizer. Ele irá observá-las, isso eu posso dizer, e depois virá até nós e nos dirá qual aquela que ele acha que combinará mais com o senhor dele. Pronto, podem ir, agora. Acho que o bispo não vai querer demorar muito. Por isso, talvez dentro de uns poucos dias ficaremos sabendo.
Pela primeira vez na vida, Filipa sentiu a necessidade de esconder seus sentimentos.
Naquela noite, ela rezou. Ó, Deus, que eu seja a escolhida.
Depois, teve ódio de si mesma por ser tão egoísta, porque a ela parecia que o casamento com Eduardo devia ser o máximo da ambição de toda jovem, e isso seria negado àquelas que não fossem escolhidas.
Mas eu o amo, disse para si mesma. Era comigo que ele cavalgava sozinho. Eracomigo que ele conversava. Eduardo disse que voltaria para me buscar. Como pode mandar um bispo para escolher uma de nós!
Será que ele esqueceu? Deve ter esquecido. Ela não significava mais para ele do que Margaret, Jeanne ou Isabella.
Uma das filhas do conde de Hainault! Será que era só isso que importava?
Foi um período horrível. Na sua angústia, ela ficara menos atraente do que as irmãs. Ficou desastrada à mesa. Via o bispo observando-a sério e achava que ele conversava mais com as outras do que com ela.
Ele não poderia escolhê-la, disso estava certa, e iria passar a vida sentindo-se uma desgraçada. Imploraria aos pais que a deixassem entrar para um convento. Era a única maneira. Não se casaria com ninguém mais.
Uma vez mais, as quatro foram chamadas aos aposentos dos pais.
pilipa rezava em silêncio. "Querido Deus, permita que eu me esconda. Não deixem que vejam meu sofrimento. Não devo chorar. Tenho de beijar e cumprimentar Margaret... Jeanne ou Isabella. Mas é claro que será Margaret. com toda certeza será a mais velha. A mais velha sempre casa primeiro. E ele não se importa. Tudo o que quer é uma filha do conde de Hainault, porque prometeu que se casaria com uma de nós quando fosse coroado rei da Inglaterra. Qual delas, não importava. Por que me deixei gostar tanto dele?"
O pai estava falando com uma voz suave, porque achava profundamente emocionante a perspectiva do casamento de uma de suas filhas. Por mais que quisesse um casamento de alto nível, não queria perder nenhuma delas.
Elas estavam em pé à frente dele, em ordem de idade. Estavam todas excitadíssimas e as duas mais moças tendiam a dar risadinhas. Margaret estava séria porque, tal como Filipa, achava que bem poderia ser a escolhida. As emoções de Filipa estavam abafadas demais para serem descritas. Só podia continuar a rezar para que ela, que sempre fora sincera, não as revelasse.
- O senhor bispo veio nos dizer que escolheu a futura rainha da Inglaterra - disse o conde. - Eu lhe peço, senhor bispo, que diga a minha filha que ela é aquela que o senhor considera mais indicada.
O bispo pigarreou e franziu ligeiramente o cenho.
- Meu senhor e minha senhora - disse ele -, suas filhas são, todas, encantadoras. Para mim, esta foi a tarefa mais difícil. A senhora Margaret... - Ele pareceu fazer uma longa pausa.
Filipa pensou: eu não aguento. Ó, como sou maldosa! É uma maravilha para a querida Margaret, mas eu não aguento!
- A senhora Margaret é graciosa e encantadora. A senhora Jeanne também, como acontece com sua irmã Isabella. Eu e os membros de minha embaixada conversamos muito sobre isso e chegamos à conclusão de que a senhora Filipa, por ter uma idade que mais se aproxima da do senhor meu rei, seria a mais indicada para ser esposa e rainha dele, e é por este motivo, senhor conde, senhora condessa, que peço, em nome do senhor meu rei, a mão da senhora Filipa.
Ela estava desmaiando. Estou sonhando, pensou. Não pode ser.
Estavam todos olhando para ela, que ficara branca e depois vermelha; estava tremendo. Queira Deus que as lágrimas não rolem. Então era a escolhida. Ela... e porque tinha uma idade que mais se aproximava da dele!
Seu pai segurara-lhe a mão e a estava colocando na do bispo.
- Ela ainda é jovem, meu senhor - disse ele.
- Ela será uma encantadora rainha da Inglaterra - disse o bispo.
Ela agora era mais importante, a noiva do rei da Inglaterra.
As irmãs falaram todas ao mesmo tempo sobre o casamento. Filipa sentiu-se aliviada porque elas não se importaram muito. Isabella ficou um pouco ressentida, mas acontece que era criança e apenas pensara que seria agradável ser uma rainha.
- Claro - disse Margaret -, você é a mais próxima dele na idade.
- Claro - disse ela, recatada.
- Achei que ele iria pedir você - disse Jeanne. - Ele parecia gostar mais de você quando esteve aqui.
- Pois eu acho que ele nos esqueceu por completo assim que partiu - interveio Margaret. - Ele tinha de conseguir a coroa, e havia alguma coisa a respeito do pai dele. Parece estranho não ser amigo do próprio pai.
- Havia motivos - declarou Filipa, vindo imediatamente em defesa dele.
- Pensei que ele é que iria pedir você - disse Margaret - e não ter deixado que o bispo escolhesse.
Não, Filipa também pensava assim. Aquilo fora um golpe para ela, mas pouco importa. Não iria lamentar-se. Tornaria a vê-lo. Os dois iriam renovar a amizade e seria como se nunca tivessem se separado.
Tinha de ser feliz, muito embora tivesse sido o bispo que a escolhera e não Eduardo, e isso por causa de sua idade.
Havia outro problema.
Os pais explicaram-no a ela.
- Você sabe que sua mãe e a mãe do Eduardo são primas em primeiro grau-disse o conde. - Os pais delas eram filhos do rei Filipe in da França. Isso significa que há um laço sanguíneo muito próximo entre você e Eduardo, e por causa disso o papa precisa dar permissão para que vocês se casem.
- E se ele não der? - bradou ela, desanimada.
- Parece não haver motivo para ele não dar - replicou a mãe dela. - Estamos enviando imediatamente uma embaixada a Avignon, e esperamos para muito breve saber que a dispensa foi concedida.
E assim, havia mais motivos para angústia. Como ela queria que o próprio Eduardo tivesse ido buscá-la! Nas suas fantasias, imaginava-o chegando e dizendo: "Não ligue para o papa. Nada vai impedir nosso casamento."
No final, porém, ficou tudo bem. O papa deu prontamente a dispensa necessária, e o rei da Inglaterra, agora que a noiva fora escolhida, não queria saber de demoras. Filipa deveria casar-se por procuração e, imediatamente após a cerimónia, seguir para a Inglaterra.
Houve uma grande agitação nos preparativos por todo o castelo de Valenciennes, porque Eduardo estava enviando o bispo de Lichfield pararealizar o casamento por procuração.
Todas as manhãs, ao acordar, Filipa tinha de certificar-se de que aquilo estava acontecendo de verdade. Ela se perguntava quanto tempo levaria para que visse Eduardo. Por sobre a intensidade de sua felicidade pairava uma leve sombra. Essa sombra ali estava porque Eduardo não a havia escolhido, mas deixara seu bispo escolher, e isso dava a entender, sem dúvida, que aquela idílica semana que os dois tinham passado juntos não significara para ele o mesmo que significara para ela.
vou fazer que com o tempo ele me ame, garantiu a si mesma; mas a sombra continuava.
- Seu pai está decidido a fazer com que você vá para a Inglaterra ricamente equipada - disse sua mãe. - Seu futuro marido não é nada rico, embora seja rei. Grande parte do tesouro dele foi gasta com guerras, e o pai dele não era um homem previdente.
- Não me preocupo em ser rica, querida senhora.
- Minha queridíssima filha, acho que você se sente muito feliz por casar-se com Eduardo.
Filipa entrelaçou as mãos com firmeza e disse:
- Acho que teria morrido se não tivesse sido a escolhida.
- Querida filha, não deve falar de modo assim tão extravagante. Mas conheço seus sentimentos para com seu marido, e fico contente, porque, independente do que acontecer, sei que esse amor vai continuar constante e irá enriquecer a vida dos dois.
A condessa perguntou-se não devia prevenir a filha. Ela revelara seus sentimentos com demasiada facilidade, e a condessa ficava imaginando se Eduardo apreciaria uma devoção tão cega quanto a que Filipa parecia preparada a oferecer. Talvez devesse haver um certo comedimento. Não, talvez fosse melhor a filha comportar-se da maneira que lhe era natural, que cativara Eduardo quando ali estivera quando príncipe.
- Vocês dois são muito jovens - prosseguiu a condessa. Quinze anos. E você, Filipa, vai para um novo país!
- Mas, senhora, não é como ir para viver com um estranho.
- Não, filha querida, e eu me alegro por você estar indo para um marido que você já ama.
Era melhor deixar a coisa assim, decidiu a condessa. A natureza franca de Filipa, seu inerente desprendimento e bondade fariam com que se saísse bem do que pudesse lhe acontecer. Era de se esperar que o menino rei reconhecesse aquelas qualidades e as apreciasse.
As irmãs deliciavam-se com os preparativos; muitas vezes estavam presentes durante as constantes sessões de prova de roupa; soltavam exclamações de admiração diante da riqueza de seus trajes.
- Imagine só, nossa irmã vai ser rainha!
- Filipa, qual é a sensação de ser uma rainha?
Filipa dizia que era a coisa mais maravilhosa do mundo. Estava plenamente feliz... bem, não plenamente, porque para ir para o lado de Eduardo teria de deixá-las - e, acrescentou para si mesma: não foi ele que me escolheu. Poderia ter sido qualquer uma de vocês.
À medida que os dias se passavam, sua felicidade ficava cada vez mais afetada pela tristeza diante da ideia de sair de casa. Seria muito estranho não ver as irmãs e os pais todos os dias.
- Vocês todas precisam me visitar na Inglaterra - disse ela; e ocorreu-lhe o pensamento de que dentro de pouco tempo as irmãs estariam casadas e teriam deixado aquele belo e velho castelo em Valenciennes, onde tinham sido muito felizes. Via a tristeza nos olhos dos pais; as irmãs estavam agitadas demais com toda aquela confusão para pensar muito na separação. Como era triste o fato de não poder haver uma felicidade completa.
Os dias passavam-se com rapidez. Em breve chegaria a hora em que ela teria de dizer adeus.
- Seu tio John irá recebê-la quando você chegar a Dover - disse-lhe a mãe -, de modo que não será como ir para uma terra de estranhos.
Ela disse que seria bom tornar a ver o tio John.
- Ele gosta muitíssimo da Inglaterra e dos ingleses - replicou a mãe. - Foi um grande amigo da rainha, mãe de Eduardo.
Filipa tornou a sentir uma leve pontada de preocupação. Lembrava-se da mãe de Eduardo, a rainha - uma mulher de notável beleza, na verdade uma das mais bonitas que já vira. Foi Isabella que lhe disse: "Ela é uma feiticeira, creio eu, uma bela feiticeira. O tipo que Satã faz mais bonita do que qualquer outra, a fim de que possa se aproveitar dos outros."
Filipa também se lembrava de um homem grande, com brilhantes olhos negros e sobrancelhas espessas, que estava sempre ao lado da rainha e que, por algum motivo, também lhe provocava apreensões.
Mas a excitação daqueles dias abafou sua inquietação e ela pensava em poucas outras coisas que não em Eduardo.
Por fim, chegou o dia. O conde dissera que seria melhor a família não acompanhá-la. Iriam despedir-se na privacidade do castelo e iriam todos para a torrinha mais alta, para vê-la partir com a grande companhia de cavaleiros, escudeiros e damas que seriam seus companheiros até o fim da viagem.
Os pais abraçaram-na com fervorosa afeição, as irmãs, chorosas.
- Como vai ficar estranho sem você - disse Isabella. - Agora só restam três.
E em breve apenas duas, pensou a mãe dela, pois estava sendo providenciado um casamento para Margaret.
A condessa lançou um olhar triste para o marido. Estava lembrando-o da inevitabilidade de perder as filhas.
E assim, cavalgando à frente do cortejo, Filipa iniciou sua viagem para a Inglaterra.
A travessia foi relativamente suave, e por fim Filipa ficou no convés e viu os rochedos inteiramente brancos chegando cada vez mais perto. E lá, dando para o mar, estava o castelo-fortaleza erguendo-se a mais de
120 metros acima do nível do mar - imponente, espantando os invasores e, no entanto, parecendo dar as boas-vindas àquela que chegava como esposa do rei.
Ao desembarcar, ali estava, como lhe haviam dito que estaria, seu tio John de Hainault, esperando para recebê-la. Abraçou-a com fervor e disse que aquele era um dos dias mais felizes de sua vida. Ele sempre quisera um elo entre a Inglaterra e Hainault, e ali estava sua querida sobrinha Filipa para forjá-lo.
Passariam a noite no castelo de Dover e depois seguiriam para Londres, passando por Canterbury, onde naturalmente teriam de fazer uma pausa para uma oferenda no santuário de São Thomas à Becket, para agradecer-lhe a travessia segura e pedir a bênção para a união.
Filipa dormiu pouco na primeira noite em seu novo país e estava pronta ao amanhecer para iniciar a viagem até Canterbury.
Envolta em peles para isolar o frio do inverno, cavalgou com o tio e nas aldeias por onde passavam as pessoas saíam de suas casas para ficar nas estradas e vê-la.
Era evidente que gostaram do fresco rosto jovem com um sorriso franco, e naquela viagem Filipa ficou ciente de que o povo da Inglaterra estava pronto a recebê-la com carinho.
Era tão jovem, tão atraente, tão pronta a sorrir, e os rumores sobre a morte do antigo rei e sobre a rainha e seu amante Mortimer estavam começando a circular até mesmo nos remotos distritos do interior. O povo queria uma mudança e estava mais do que pronto para mostrar um grande afeto pelo inocente e jovem rei e sua esposa.
Filipa chegou às redondezas de Londres na véspera de Natal. Lá, foi recebida por uma procissão composta em sua maior parte pelo clero, que tinha ido para escoltá-la na entrada da cidade.
Ansiosa, ela procurou por Eduardo mas não o encontrou no meio deles.
Vão me levar até ele, pensou Filipa.
Seu tio John cavalgou a seu lado e disse estar muito orgulhoso dela e feliz, porque estava claro que ela estava causando uma boa impressão junto aos ingleses. Ela disse que estava apenas agindo com naturalidade, o que fez com que Sir John sorrisse, porque ele sabia que era a naturalidade que o povo estava achando muito atraente.
Ele sentia prazer ao apontar os pontos principais que passara a conhecer tão bem. Mostrou a ela a Torre de Londres, que ela achou muito sombria e desejou não ter de passar muito tempo no palácio de lá. O rio, porém, brilhava no ar gelado, e os jardins de grandes casas que iam até a linha dágua eram realmente bonitos. Havia muitas árvores - ornamentais e frutíferas. Agora, os galhos brancos desenhavam uma renda contra o céu, e a falta de folhas tornava possível ver a paisagem com maior clareza.
O tio salientou a abundância de campos verdes e falou-lhe sobre os poços de Londres, nos quais havia águas que comprovadamente eram benéficas à saúde. Holy Well, Clerken Well e St. Clemenfs Well. E havia Smithfield, onde todas as sextas-feiras - quando não havia alguma festa ou feriado importante - os melhores cavalos da Inglaterra mudavam de dono. Havia o Great Moor, no lado norte da cidade que banhava as margens de Moorfields, e ali, poucas semanas depois, em pleno inverno, quando o rio estivesse congelado, os jovens iriam patinar.
Tudo isso, ele tinha visto; e achava a vida na capital muito agradável.
Estava claro que tio John acreditava que a maior felicidade que a sua sobrinha poderia ter tido era casar-se com um membro de uma família inglesa.
No centro da cidade, o prefeito e seus vereadores esperavam para recebê-la. Foi uma cerimónia muitíssimo impressionante, durante a qual ela recebeu de presente um serviço de peças folheadas a ouro que tio John lhe disse mais tarde valer uns trezentos marcos e era um sinal da alegria do povo pela sua chegada.
Como no dia seguinte seria Natal, ela iria passá-lo em Londres. Seria conduzida ao palácio de Westminster e lá ficaria nos três dias seguintes.
Mas por que, perguntava-se, Eduardo não estava ali para recebê-la?
No palácio, foi levada para os aposentos que tinham sido restaurados com grande arte e custo sob a direção ao bisavô do rei, Henrique III. Eram lindos e tinham sido especialmente preparados para ela, por ordens do rei.
Mas se ao menos ele tivesse estado aqui em pessoa para recebê-la!
- Em breve estaremos seguindo para York, onde o rei está com a mãe, a rainha - explicou o tio.
- Pensei em encontrá-lo aqui - disse Filipa, e o tio percebeu o desânimo dela.
- Querida sobrinha - respondeu ele -, você tem de se lembrar de que está casada com um rei. Por mais ansioso que ele esteja pela sua chegada, tem deveres de Estado que exigem sua atenção. Desta vez, está dedicado a fazer um tratado com os escoceses, e é por isso que não pode estar ao seu lado. Você viu que o povo dele a recebeu bem. Por que acha que isso aconteceu? Porque todos receberam ordens do rei para tal.
- Então a boa recepção do povo não foi porque estava contente por me ver, mas porque tinha recebido ordens de aparentar isso - disse a lógica Filipa.
- Eu lhe digo isso para mostrar a grande deferência do rei por você. Mas sempre é possível dizer se a recepção do povo vem do coração... como jamais poderia, se fosse demonstrado apenas por ter sido ordenado. Não, minha sobrinha querida, você é a mais afortunada das jovens. Não desconfie da sua sorte.
- Não desconfio - replicou Filipa. - Entendo que Eduardo tem seus deveres de Estado. E estou certa de que o povo gosta realmente de mim. As pessoas não poderiam ter sido tão calorosas e amáveis se não gostassem.
Havia muita gente que queria conhecê-la, e as festividades foram muitas. Os três dias do Natal tinham passado e, deixando os londrinos para continuar a celebrar o casamento de seu rei com a agradável menina de Hainault, Filipa e sua comitiva começaram a viagem para o norte.
O primo em segundo grau de Eduardo, John de Bohun, conde de Hereford e Essex, chegara para conduzi-la em sua viagem ao norte, e no dia de Ano-Novo eles já haviam chegado a Peterborough, onde descansaram na abadia de lá.
O tempo piorara e a velocidade deles foi diminuída por causa das estradas cobertas de gelo; os ventos eram violentos e a quantidade de bagagem que seguia com eles reduziu-lhes ainda mais o ritmo, de modo que pareceu a Filipa que demorou muito até que visse as torres da catedral ao longe e soubesse que a viagem estava chegando ao fim.
Então, ela viu, em direção aeles, um cortejo de armaduras brilhando ao pálido sol de inverno; estandartes tremulavam ao forte vento do leste, porque a nata da nobreza que estava com o rei em York saíra para saudá-la; e à frente deles cavalgava o rei em pessoa.
O coração de Filipa deu saltos de alegria quando o viu montado num belo cavalo branco. Gloriosamente trajado, mais alto do que da última vez em que o vira, os cabelos louros de trigo adornados por uma fina coroa de ouro, parecia mais um deus do que um rei, e Filipa ficou dominada pela adoração por ele.
O rei afastou-se do grupo em sua ansiedade de saudá-la. Seu cavalo estava perto do dela. Os olhos azuis de Eduardo olhavam insistentes nos dela enquanto ele lhe tomava a mão e a beijava.
- Filipa... Filipa-disse ele -, finalmente você veio para o meu lado. Pareceu demorar muito.
- Para mim também - replicou ela. - Eu pensava em ver você muito antes.
- Ah, você está a mesma coisa. Eu temia que pudesse ter mudado. Parece que foi há muito tempo que estivemos juntos nos bosques de Hainault. Achei a espera penosa, mas agora acabou. Vamos nos casar imediatamente. Não vou admitir demora.
O brilho de felicidade que tomara conta dela tornava-a bonita, mas mesmo naquele momento não se esqueceu daqueles dias de angústia, quando temia não vir a ser a escolhida.
- Eu tive medo... - começou ela.
- Medo! - bradou ele. - Você... de mim!
- Medo de que uma de minhas irmãs pudesse ter sido a escolhida pelo bispo.
Eduardo sorriu ao ouvir aquilo.
- Isso nunca poderia ter acontecido.
- Ah, mas podia, sim. Margaret é a mais velha. Eu achei que ele iria escolhê-la.
- Ele não teria tido a ousadia.
- Mas achei que ia. Ele parecia estudá-la. Tive vontade de morrer de tristeza por você ter pedido a ele que escolhesse.
Eduardo estourou numa gargalhada.
- Ah, sim - disse ele -, o bispo foi mandado lá para escolher. Esse é o costume, sabe? Ele deve escolher a mais adequada. Os reis têm de seguir os costumes, Filipa. Mas sabe o que eu disse a ele? "Bispo", disse eu, "se der valor à sua cabeça, irá escolher a Filipa. Compreenda isso agora, que eu, o rei, lhe ordeno que escolha Filipa." E é claro que ele não teria a ousadia de escolher outra.
- Ó, Eduardo, foi isso mesmo?
- Eu juro, minha adorada. Juro pelos nossos votos do casamento, sobre o túmulo de S. Thomas, sobre os ossos de meu pai. Foi Filipa que eu amei em Valenciennes e jurei então, e juro agora, que não vou aceitar nenhuma outra como minha rainha.
Ela ficou calada por alguns instantes. Depois, disse com tranquilidade:
- Eu tinha pensado que ia querer morrer se não tivesse sido escolhida. Agora, sinto que posso morrer de felicidade.
- Por favor, nada de falar em morte. Você vai viver para mim, doce Filipa, e eu para você, e assim será até o fim dos nossos dias.
A ela pareceu que York era a mais bonita de todas as cidades e ela nunca acreditara que pudesse haver tanta felicidade no mundo.
O povo ovacionava-os. Eles eram muito jovens - aquele rei e aquela rainha; eram muito bonitos e estavam muito apaixonados.
No dia 13 de janeiro, um mês depois de Filipa ter chegado a Londres, os dois se casaram em York Minster. Foi uma cerimonia impressionante, presenciada não apenas pelos principais membros da nobreza inglesa, mas também por muitos dos grandes nobres escoceses, pois eles haviam ido a York para concluir o tratado de paz que estava sendo negociado entre os dois países.
Os jovens apaixonados estavam encantados um com o outro. Eduardo só faria dezesseis anos em novembro daquele ano, e Filipa era ainda mais jovem, mas era uma idade para um amadurecimento precoce e nunca passara pela cabeça de nenhum dos dois ou de qualquer outra pessoa que fossem jovens demais para consumar o casamento.
Embora houvesse reuniões com os escoceses, e o Parlamento e o conselho real estivessem reunidos em York, ainda assim Eduardo passava a maior parte do tempo em companhia da esposa. Os dois saíam a cavalo juntos e eram ovacionados aonde quer que fossem; estavam apaixonados um pelo outro, e o país estava apaixonado por eles. Filipa não fazia segredo de sua adoração pelo jovem marido, e ele, de seu amor por ela. Os dois formavam um par ideal, era o que se dizia de modo geral; na verdade, os ricos tesouros que Filipa levara consigo para o país eram muito úteis, pois o erário inglês estava muito baixo dessa vez. A rainha Isabella fora obrigada a gastar muito na manutenção de seu exército e para manter-se, assim como Mortimer, na posição que eles tinham assumido; a campanha escocesa tinha sido cara; por isso, apesar do fato de a nova rainha ser filha de um simples conde, ela era, por comparação, uma moça rica e era bem recebida por causa disso.
Filipa estava encantada ao ver que seu tesouro era recebido com tamanho entusiasmo. Queria dar tudo o que tinha ao marido maravilhoso, e na sua bagagem havia ricas tapeçarias e ricos tecidos, além de valiosas jóias, porque seu pai não quisera que ela chegasse como pobre em seu novo país.
Ela ficou imensamente popular com seu jovem cunhado e suas cunhadas. John deEltham, de doze anos, que achava que o irmão rei era a pessoa mais maravilhosa do mundo, apaixonou-se imediatamente por Filipa; a opinião que os dois partilhavam sobre o rei criou logo um elo entre eles. As duas garotinhas, Eleanor, de dez anos, e Joana, de sete, estavam prontas a adorá-la.
- Eu gosto de você - disse-lhe Eleanor - porque você está sempre sorrindo.
- E eu gosto de você porque suas faces são muito vermelhas acrescentou Joana.
Elas eram suas queridas irmãzinhas, disse-lhes Filipa, e sentia-se especialmente feliz em tê-las porque quando fora para a Inglaterra tivera de deixar três irmãs. E agora tinha duas para substituí-las.
- Devíamos ser três - disse Joana, com ar de quem pedia desculpas.
- Pouco importa - interveio Eleanor. - Tem John. Será que ele vale tanto como uma irmã?
Filipa disse que achava que ele valeria perfeitamente.
Quando Eduardo era obrigado a reunir-se com alguns de seus ministros e ela não podia estar com ele, Filipa aproveitava a oportunidade para ir à sala de aula real. Sentiu logo que havia uma certa inquietação na família do marido. Pode ter sido devido ao fato de que ela viera de um lar muito feliz e de que a honestidade de propósito que lá imperava a deixasse alerta para algo que era inteiramente estranho a ele.
Sabia que aquilo emanava de sua sogra e do conde de March. Via os dois o menos possível, porque os dois a amedrontavam um pouco. Ela sentia uma estranheza nos modos da rainha Isabella e sabia que a rainha-mãe e o conde de March a vigiavam atentamente. Imaginava que estivessem tentando encontrar algum defeito nela. É verdade que eram amáveis para com ela, na verdade quase chegando à afetação na sua atitude, e isso era uma coisa em que ela não confiava. Filipa, na verdade, não os compreendia. A rainha deixava-a muito angustiada, e não era só sua atitude que a fazia sentir-se assim. Tinha, até, algo a ver com a beleza de Isabella. Ela se movia com uma graça e um silêncio que era quase felino, e muitas vezes aparecia de repente num aposento onde Filipa pensava estar sozinha. Esforçava-se por fazer com que a jovem se sentisse constrangida, a ponto de ficar um pouco atrapalhada e um tanto hesitante ao falar. Filipa não compreendia o efeito que a rainha exercia sobre ela; no entanto, sentia nele algo prejudicial, até mesmo malévolo.
Quanto ao conde de March, havia algo em seus traços frios que lhe dizia que se tratava de um homem cruel e brutal, e ela não entendia por que era tratado com tanto respeito por todos - e acima de todos, pela rainha. Acreditava que as pessoas tinham medo dele e estava certa de que tinha de ter cuidado com ele.
Um dia, prometeu a si mesma que falaria com Eduardo sobre seus sentimentos, mas teve medo de que fosse muita grosseria dizer aquilo sobre a mãe dele, o que poderia ser considerado uma crítica.
Além do mais, quando estava com Eduardo, os dois falavam sobre eles mesmos, o quanto se amavam, e como a vida vinha sendo feliz desde que tinham se casado; falavam, até, dos filhos que iriam ter, porque estavam certos de que em breve teriam um filho.
- Vai ser um menino - declarou Eduardo.
- E vamos chamá-lo de Eduardo.
Então falavam sobre aquele garoto que, declarou Filipa, tinha de ser exatamente igual ao pai, ou então ela ficaria contrariada.
Que bobagem que estavam dizendo, dizia Filipa, mas os dois riam e se beijavam e faziam amor e a vida era maravilhosa... maravilhosa demais para levantar impressões sinistras que, no final, poderiam estar apenas em sua imaginação.
Mas havia um certo tom de infelicidade até mesmo na sala de aula. Filipa descobriu isso graças às irmãs de Eduardo.
Elas se lembravam muito do que acontecera. Houve época em que tinham ficado na Torre e Lady lê Despenser tinha sido a guardiã. O pai colocara-a para tomar conta delas e a mãe sentira-se infeliz porque a senhora era esposa de Hugh.
Filipa sabia o suficiente sobre a história recente de seu novo país para compreender que Hugh lê Despenser tinha sido um grande favorito do rei e que a rainha Isabella fora negligenciada por causa dele. O povo odiara-o, e ele tinha sido executado e, mais tarde, o rei passara a coroa para Eduardo.
Filipa não conversava com Eduardo sobre isso porque o assunto era deprimente e ele sempre ficava triste quando o nome do pai era mencionado.
- Houve muita gritaria nas ruas - disse-lhe Eleanor.
- E nós ficamos com medo - acrescentou Joana.
- E então vieram umas pessoas e nos levaram para nossa mãe.
- Nós continuamos com medo. - O rosto de Joana enrugou-se um pouco.
Filipa percebeu que a garotinha tinha um grande medo respeitoso da mãe.
- Uma vez, eu vi um homem balançando pendurado numa corda - prosseguiu Joana. - Ele estava morto.
- Era o pai do Hugh - continuou Eleanor. - Eles tinham feito coisas terríveis com ele. Depois, penduraram ele na corda do lado de fora do castelo... e ele balançou e balançou...
- Isso tudo já acabou. Eu não pensaria mais nisso - disse Filipa.
- Eu às vezes penso, quando estou na cama - disse Eleanor. Quando está escuro.
- Eu também - acrescentou Joana.
- Então não devem mais pensar. Acabou.
- Querida irmã, você já viu um homem pendurado numa corda?
- Não - disse Filipa com firmeza. - Talvez vocês também não tenham visto. Talvez tenha sido um sonho.
As duas garotinhas olharam para ela, atónitas.
- É - disse Filipa -, foi isso. Um sonho. Ninguém se procupa muito com sonhos. Eles parecem sem importância quando nasce o dia.
As duas meninas pareceram gostar da ideia de o homem enforcado ser um sonho.
- É, foi um sonho - viviam as duas repetindo.
Joana tinha mais outra coisa em mente. Queria saber a respeito do casamento.
- Como é o casamento? - perguntou Eleanor.
Filipa disse que considerava a coisa mais maravilhosa que podia acontecer a uma pessoa.
- Mas você se casou com Eduardo - lembrou-lhe Joana. - Eu gostaria de poder me casar com Eduardo.
- Você não pode se casar com seu irmão - explicou Filipa. Além disso, ele agora já está casado.
- Quando eu era pequenina - prosseguiu Eleanor -, eles iam me casar com Alfonso, o rei de Castela. Mas nunca me casei. Talvez ele não gostasse de mim.
- Não pode ter sido isso-respondeu Filipa com firmeza.-Ele nunca viu você.
- Você viu Eduardo? - perguntou Joana.
- Vi, sim.-Contou às duas a ida dele a Valenciennes e disse que os dois tinham cavalgado na floresta e se apaixonado um pelo outro e depois ele mandara buscá-la para ser sua esposa.
Elas escutavam, ávidas. Filipa contava com tanto entusiasmo, que as garotinhas nunca se cansavam de ouvir. O rosto de Joana enrugava-se de ansiedade.
- Eles vão me fazer casar com o filho do rei dos escoceses.-De repente, ela voltou-se para Filipa e enfiou a cabeça no colo dela. - Não deixe eles fazerem isso, querida irmã. Não quero ir para a Escócia.
Filipa acariciou os cabelos de Joana.
- Você ainda é muito criança. Vai ter de esperar anos e anos. Aquilo consolou Joana.
- Não quero ir para a Escócia - disse ela -, mesmo quando for velha. É um país muito frio, e os escoceses são nossos inimigos.
- É por isso que você vai ter de se casar com o filho de Robert, o Bruce - explicou Eleanor. - Nós sempre temos de casar para evitar que as pessoas façam guerras.
- Ele é um garotinho - disse Joana, com ar de desprezo. - Tem menos idade do que eu.
- Você também é criança demais - garantiu-lhe Filipa.
E então contou a elas mais coisas sobre a visita de Eduardo a Valenciennes, e embora Joana risse e fizesse perguntas, Filipa viu que não estava de todo convencida. Ela devia ter andado ouvindo mexericos que eram muitos, e as pessoas nem sempre eram muito cuidadosas com o que diziam ao alcance de ouvidos de crianças.
Quando ficaram a sós, Filipa falou com Eduardo sobre os temores de Joana.
- Pobre garotinha-disse ela -, leva uma vida muito triste. Ela e Eleanor parecem estar sempre esperando que alguma coisa de ruim lhes aconteça.
Eduardo franziu o cenho.
- As duas sempre foram bem tratadas no castelo de Pleshy, em Essex. Isabella de Valence foi destacada para cuidar delas. Tinha ligações com a família porque se casara com Ralph Monthermer depois que minha tia Joana morreu. Johanette Jermyn era a governanta delas, e parecia uma mulher agradável. Elas devem ter tido uma casa feliz.
- Não tenho dúvidas de que receberam todo o conforto - disse Filipa. - Mas acho que sentiam falta de amor. Na minha família, os pais estavam sempre conosco e todos éramos felizes juntos.
- Sua família era fora do comum, querida. Foi por isso que produziram você.
Filipa dirigiu a ele um sorriso carinhoso, mas continuou no assunto.
- É verdade, mesmo, que Joana deve se casar com o filho de Robert, o Bruce?
- Faz parte do tratado. Na verdade, isso é bom. Essas guerras com a Escócia são dispendiosas em vidas e dinheiro. O país é selvagem e montanhoso demais para uma conquista completa. Nem meu avô conseguiu. Sou plenamente a favor de uma solução pacífica entre nossos dois países, e é para isso que serve o tratado.
- Os escoceses concordam? Ele confirmou com a cabeça.
- Robert, o Bruce, está ansioso por isso. É um homem muito doente. Vem morrendo lentamente de lepra há muitos anos, e o fim não pode estar longe. Tudo o que ele deixa é um menino de cinco anos, David, que será rei da Escócia quando Robert morrer.
- Então o plano é casar Joana com ele.
- Isso mesmo.
- Como o menino tem cinco anos e Joana sete, o casamento vai levar anos para acontecer.
- Terá de acontecer dentro de pouco tempo. Em poucos anos, tudo poderá acontecer. Tem de ficar claro já uma união entre a Inglaterra e a Escócia, e a única maneira de deixar isso aparente é celebrar o casamento.
- Então Joana permanecerá aqui até ficar mais velha. Eduardo franziu o cenho.
- Acho que não. Joana terá de ir para a Escócia.
- Pobrezinha! Então os temores dela têm fundamento.
- Ora, vamos, Filipa, essas coisas acontecem com as princesas. Elas têm de se conformar com o fato de que são objetos de negociações. Sempre foi assim.
- Mas tão criança assim!
- As princesas crescem depressa. Ele beijou-lhe os lábios.-Não quero saber de você se preocupando com essas coisas. Vamos, amor, nunca passo com você metade do tempo que quero passar. Vamos esquecer esses cansativos escoceses. Há séculos que são uma pedra no nosso sapato. Esse caso pode muito bem resolver o problema.
Ela se encaixou no abraço dele e esqueceu Joana, mas só temporariamente. Mais tarde, suas angústias com relação à menina voltaram com aquelas inquietas agitações de apreensão que Isabella e o conde de March provocavam nela.
O tratado tinha sido assinado. Eduardo explicou os termos a Filipa. Ele estava abrindo mão de sua reivindicação feudal sobre a Escócia, e a grande pedra de Scone, que seu avô tirara da Escócia, seria devolvida a eles juntamente com certos tesouros que tinham sido confiscados. Os escoceses iriam pagar vinte mil libras ao rei da Inglaterra ao longo dos três anos seguintes. Mas a cláusula mais importante referia-se ao casamento entre David, filho de Robert, o Bruce, e Joana, filha do rei Eduardo II, a ser realizado quatro meses depois da assinatura do tratado.
Filipa ficou horrorizada. Então a pobre criança seria sacrificada. Viu logo que nada havia que pudesse fazer. Isabella e o conde de March eram a favor. Eles não desejavam uma guerra demorada. Queriam desfrutar dos espólios de sua vitória e isso não poderia ser feito se recursos fossem desperdiçados na luta do que só poderia significar uma guerra prolongada que talvez não levasse ao sucesso no final. Eduardo I, um dos mais poderosos guerreiros que se conhecera, tinha sido incapaz de dominar os escoceses.
Isso foi o que Eduardo disse a Filipa, mas ela desconfiou que, de certo modo, ele estava sob a influência da mãe. Ela podia compreender isso de certa maneira, porque Isabella era muito bonita e fazia muita questão de mostrar afeto pelo filho - embora, pensou Filipa com tristeza, não demonstrasse o mesmo para com os outros filhos. A pobre Joana estava precisando com urgência de consolo, porque antes do fim do ano, se aquele lamentável assunto fosse levado adiante, a menina estaria na Escócia.
Não havia nada que Filipa pudesse fazer. Ela era criança demais e inexperiente. Ficava contente com o fato de Eduardo compadecer-se da irmãzinha, mas, como ele disse a Filipa, aquilo tinha de ser feito.
Era uma felicidade o fato de restar um pouco de tempo para Joana e, com a adaptabilidade da infância e durante semanas, ela esquecia as provações que a aguardavam.
A Páscoa chegara, e depois dos ofícios na igreja e das celebrações, a corte inteira preparou-se a fim de seguir para o sul.
Enquanto saíam da cidade de York e entravam na aldeia de Bishoppesthorpe, ocorreu um estranho incidente que pareceu indicar que o povo já começara a adivinhar a natureza de sua jovem e nova rainha.
Filipa seguia ao lado de Eduardo, à frente do cortejo, quando uma mulher correu para a estrada diante dos cavalos que se aproximavam e, ajoelhando-se, ergueu as mãos.
Os cavalos foram detidos com rapidez, e a mulher, maltrapilha e desalinhada, dirigiu-se diretamente a Filipa. Caiu de joelhos, e Filipa, inclinando-se para a frente, falou com ela com delicadeza e perguntou o que ela queria.
- Ouvi falar na sua bondade, majestade - disse a mulher-e ela brilha em seu rosto. Minha filha, que tem apenas onze anos, está para ser enforcada. Eu imploro, majestade, interceda em favor dela. Salve-a. Ela é minha filha...
- Que crime ela cometeu? - perguntou Filipa.
- Ela roubou um berloque. Foi apenas um impulso infantil. Pode acreditar, majestade, ela é uma boa menina.
- Eu lamento, meu amor - disse Eduardo -, mas você vai encontrar muita gente para perturbá-la dessa maneira.
- Tenho de ajudá-la - replicou Filipa, com firmeza. A rainha-mãe disse:
- Levem a mulher daqui - disse a rainha-mãe. Nós queremos passar.
Por um momento, as duas rainhas olharam uma para a outra. O olhar de Isabella era impaciente e depois passou a levemente perturbado. Ela vira um toque de firmeza nos grandes olhos sinceros. Filipa voltara-se para Eduardo:
- Estou certa de que vossa majestade vai querer me atender.
- Mais do que tudo no mundo - respondeu Eduardo.
- Então - disse Filipa -, vamos fazer uma parada aqui para eu investigar esse assunto. Não posso admitir que meus súditos acreditem que não quero ouvir os apelos de uma mãe. E evidente que essa mulher está profundamente angustiada.
- Faça como quiser, minha adorada - respondeu Eduardo.
- Como você é bom para mim - sussurrou ela.
E assim houve uma estada em Bishoppesthorpe, e Filipa em pessoa viu a menina que roubara o berloque e conversou com os despenseiros e o chefe da criadagem da casa onde o roubo tinha acontecido e o juiz que condenara a menina; e o resultado foi a menina ser salva do laço do carrasco.
A mãe caiu de joelhos e beijou a barra do vestido de Filipa, enquanto Eduardo assistia, sorrindo, com ar benigno, e o povo dizia: "Foi um dia feliz em que o nosso
rei trouxe a boa rainha Filipa para a nossa terra."
Depois disso, eles continuaram a viagem para o sul e finalmente chegaram ao palácio de Woodstock em Oxfordshire, aquela muitíssimo encantadora residência em ambiente rural tão adorada pelo ancestral de Eduardo, Henrique II.
- Vamos descansar um pouco aqui - disse Eduardo -, Filipa e eu com uns poucos criados, porque desde nosso casamento têm havido tantos assuntos de Estado e tanta viagem, que merecemos um pouco de paz.
E eles ficaram em Woodstock, e os criados de Filipa que tinham viajado com ela a partir de Hainault voltaram para seu país de origem. Ela ficou com apenas um. Walter de Manny, que era o seu entalhador, porque ele já mostrara ser um cavaleiro digno e jurara vassalagem ao rei.
- Agora - disse Eduardo - você deixou Hainault para trás e é a minha rainha inglesa. Está triste, doce Filipa, por vê-los partir?
- Eu os recompensei bem - disse ela - e eles são meus amigos. Mas eu não poderia ficar triste enquanto estou ao seu lado e você me ama.
A vida idílica continuou em Woodstock.
ISABELLA NÃO CONSEGUIA fugir das negras sombras que a pressionavam. Às vezes, ela pensava que estivesse ficando louca. Sonhava sempre com o marido assassinado, que ele voltava à vida e não a largava, que aparecia não apenas no quarto dela à noite quando estava deitada ao lado do amante, mas às vezes pensava ver o rosto dele na multidão, e uma vez até mesmo a uma mesa de conferência.
Mortimer zombava dela. Mortimer era forte e pouco compreendia de visões caprichosas. Vivia inteiramente para o presente, e se houvesse ameaças no futuro, ele não queria saber delas.
Às vezes, ela pensava em Gaveston e em Hugh - os quais tinham tido mortes violentas, embora nenhuma delas se comparasse com o que acontecera ao seu marido - e no fato de que eles se recusavam a ver o destino que se aproximava deles. Aquele destino parecera bem claro para todo mundo, exceto para os que tinham continuado a saquear o rei e desprezar o ódio do povo. Se ela não estivesse tão cegamente apaixonada por Mortimer, iria dizer que ele era igual?
Ele nunca desejava conversar sobre as possibilidades de um desastre. Jamais queria prestar atenção às sombras que davam seus avisos. Ficara encantado com o pacto com os escoceses, porque Robert, o Bruce, iria pagar a Eduardo vinte mil libras. A primeira parcela chegara, e Mortimer ficara encarregado dela, o que significava que iria gastá-la. Mortimer era um grande perdulário. Gostava de viver com ostentação, e ela também. Ora, os dois mereciam, depois de tudo o que tinham sofrido - ele um prisioneiro na Torre com um tio que morrera de inanição, como teria acontecido com ele se não fosse tão forte; e ela, que humilhação suportara durante anos, relegada a segundo plano enquanto os favores eram despejados sobre os amigos homens de seu marido, gerando os filhos dele enquanto o desprezava, só porque tinha de dar herdeiros ao país.
Agora estavam colhendo a recompensa. Mortimer era o homem mais rico e mais poderoso do país, e os dois o governavam juntos. Eduardo era muito criança e continuava maleável.
Ela, porém, estava preocupada com Filipa.
Falou com Mortimer sobre isso.
- Mortimer, o que acha de Filipa?
- Nunca penso nela. O que é ela? Uma simples menina do interior, jovem e sem instrução. Por que deveríamos considerar Filipa alguma coisa mais do que uma bela companheira para o nosso menino? Ele gosta da vida de casado, é evidente. Ora, que a aproveitem. Isso irá mante-los ocupados.
- Aquela mulher na estrada... Ela insitiu, sabe... e Eduardo quer agradá-la.
- Ela nos fez parar, sim. Mas isso não teve muita importância.
- Só para nos mostrar que ele fará muita coisa para agradá-la.
- Claro que fará... durante algum tempo. Trata-se de um menino; está experimentando um amor precoce. Isso parece muito importante para ele. Espere até que ela lhe dê filhos e que ele descubra que existem mulheres no mundo mais atraentes do que essa pequena rechonchuda hainaultense.
- No momento, ela poderia orientá-lo.
- Como uma menina tão inocente pode orientar alguém?
- Ele está mudando, querendo as coisas à sua maneira. Poderia ficar menos fácil controlá-lo.
- Vamos, querida, deixemos esse problema para quando ele
chegar.
- Essa paz com a Escócia...
- Eu gosto muito dela.
Claro que gostava. Ela levara dinheiro para seu bolso.
- O povo de Londres está fazendo arruaças.
- Que se dane o povo de Londres.
- Não diga isso. Poderia ser um desastre para o país.
- Quero dizer que não dou a mínima por ele.
- Eles podem ser perigosos. Estão dizendo que a pedra de Scone não será devolvida e que é uma humilhação mandar uma criança para aquela terra bárbara a fim de se casar com o filho de um leproso.
- Ela será a rainha da Escócia.
- Eles não gostam disso. Mortimer, você se lembra de como me apoiavam? Como me ovacionavam nas ruas!
- Eles sempre gostaram muito de você. Basta você aparecer, e eles gritam votos de lealdade.
- Já não é mais assim.
- É uma questão momentânea. Eles não gostam do casamento. Não querem abrir mão da pedra de Scone. Esses londrinos têm um conceito alto demais sobre a importância deles. Isso vai acabar.
- Ontem, alguém gritou "Puta!" quando passei a cavalo.
- Viu quem foi? Esse homem pode ser enforcado, estripado e esquartejado por isso.
- É, mas mesmo assim gritou. Eles estão se afastando de mim, Mortimer. Estão se afastando de nós.
- Grande coisa.
- Às vezes eu me pergunto...
Ele a consolou como sempre fazia. Dava o desprezo ao perigo ao recusar-se a vê-lo.
Ele era o grande Mortimer; ela, a rainha da Inglaterra. Na verdade, havia outra rainha - mas esta não tinha importância, não mais do que seu jovem marido. Eduardo e Filipa eram os testas-de-ferro. Os verdadeiros governantes eram Isabella e Mortimer - e assim continuaria a ser.
Todas as noites, Joana chorava até pegar no sono. Não adiantava dizerem a ela que seria feliz na Escócia. Sabia que isso não aconteceria.
Iria ganhar um horrendo marido, dois anos mais novo do que ela, David, o Bruce, que tinha cinco anos de idade.
Ela sabia que muitas princesas ficavam noivas com sua idade e que às vezes tinham de ir para a casa do noivo, a fim de serem educadas segundo o sistema de vida dele, mas isso de nada adiantava. Eleanor era mais velha do que ela e não tinha de ir embora. E agora Filipa chegara e Joana a adorava. Filipa era a sua nova irmã, mas do que adiantava ter uma nova irmã, se não estaria com ela?
Ela ouvia as criadas falando sobre o caso em que a rainha salvara uma jovem do enforcamento e o rei fizera a vontade dela, embora a rainha-mãe e o conde de March não tivessem ficado muito contentes e tivessem querido continuar a viagem imediatamente.
Talvez se pedisse a Filipa para que evitasse que ela fosse para a Escócia, Filipa poderia falar com Eduardo, e como Eduardo não lhe negava coisa alguma - assim diziam os mexericos -, talvez ela fosse salva.
Era sua única esperança. Pediria a Filipa.
Filipa ouviu, séria. Sim, era verdade que Eduardo lhe permitira salvar a jovem, mas isso não era um assunto de Estado. O casamento com a Escócia era, e talvez não houvesse como evitá-lo. Mas Filipa falaria com Eduardo.
Falou. Ele lamentou, mas nada podia fazer. Tratava-se de um assunto de Estado e estava no tratado.
- Mas quando uma criança é tão nova, poderia casar-se por procuração e ficar em sua casa até atingir a idade de partir?
Eduardo só pôde dizer que aquilo estava no tratado.
Ele próprio estava perturbado, porque gostava muito da menina, da irmã dela e de seu irmão John. Mas ele mesmo era muito jovem, e depois de suas aventuras na Escócia repugnava-o decidir algum assunto sobre o qual não tivesse muita certeza. Achava que fizera um grande papel de tolo, marchando para o norte com um exército e perseguindo os esquivos escoceses, que, obviamente, haviam feito uma brincadeira com ele.
Tinha de ser cuidadoso no futuro.
Detestava desapontar Filipa, de modo que disse que examinaria o assunto e veria o que poderia ser feito.
Isso significava conversar com a mãe.
Isabella ficou contente por ele tê-la consultado em vez de tentar agir por conta própria. Fingiu pensar no assunto, mas estava decidida a fazer com que Joana fosse para a Escócia. Aquilo fora resultado de comum acordo, e se o tratado fosse rompido os escoeses poderiam exigir a devolução do dinheiro que Mortimer já havia apanhado.
- Estamos lidando com bárbaros, meu doce filho - disse ela. Você viu como eles são, quando foi castigá-los. Fizeram você de tolo.
Ele ruborizou-se um pouco. Era muito jovem. Era bom fazer, com sutileza, com que ele percebesse o quanto era inexperiente.
- Não se pode dizer o que aconteceria se não cumprirmos o contrato. A guerra poderia estourar novamente.
- O povo está contra esse casamento, majestade.
- O povo inclina-se na direção do vento. Não sabe o que é melhor para ele.
- A rainha está preocupada com Joana. Não passa de uma menininha... e ser mandada para longe...
Isabella enrijeceu o corpo imperceptivelmente. A rainha? Sua majestade Filipa teria de aprender que não tinha ido para lá para governar o país.
- Querida Filipa - disse Isabella. - Ela tem um coração muito sensível. Vi lábios contorcerem-se de gozação quando ela permitiu que aquela mulher se aproveitasse dela.
- A senhora se refere à mulher com a filha que Filipa salvou da corda do carrasco? Acho que o povo passou a gostar mais dela por causa disso.
- Os criminosos vão gostar, meu filho. Eles dirão: "Podemos cometer nossos crimes e ser apanhados. Pouco importa. Faremos um apelo à rainha."
- Era uma simples jovem...
- Claro que ela, a nossa Filipa, é jovem. Ela vai crescer. Vai aprender depressa, acho eu. É uma garota encantadora. Fico muito feliz por você, Eduardo.
Eduardo sorriu. Ele adorava ouvir elogios a Filipa.
- Eduardo, querido - continuou a mãe -, você sabe que só penso em você. Tudo o que faço é o que acho ser o melhor para você. Mas você sempre soube disso.
Os belos olhos dela estavam úmidos de lágrimas; ele beijou-lhe a face.
Ela agarrou-se nele.
- Não tem sido fácil para mim, Eduardo - prosseguiu ela. – Às vezes, olho para o meu passado e me pergunto como consegui vencer tudo isso. Eu era muito mimada quando jovem na corte da França, e depois, quando vim para a Inglaterra... - ela estremeceu. - E quando penso em tudo que tive de fazer... bem, valeu a pena, porque isso me trouxe você. Se eu puder vê-lo garantido no trono, crescendo e se transformando no grande rei que sei que será... com o tempo... morrerei em paz.
- Querida senhora, não vai morrer ainda... vai demorar muito, muito tempo.
- Rezo para que demore bastante... porque vou me recusar a morrer enquanto você não tiver se tornado um rei como seu avô foi.
Ela conseguira fazer com que o filho se conscientizasse de sua juventude, de sua dependência dela. Eduardo aceitou a palavra dela de que o casamento escocês tinha de ser realizado.
Eduardo disse a Filipa que entendia perfeitamente que nada havia que ele pudesse fazer, e Filipa aceitou sua palavra.
Durante os quentes e abafados dias de julho, a procissão viajou em direção ao norte, para Berwick. À frente cavalgava a rainha Isabella, ao lado da mais desventurada garotinha do reino.
Joana pensava muito em fugir, e poderia tê-lo tentado se o conde de March não tivesse cavalgado a seu lado e se ela não tivesse tanto medo dele. Na verdade, não sabia de quem tinha mais medo - da mãe ou do conde.
A mãe falara com ela com rispidez. Ela não devia bancar a criancinha. Tinha de aceitar o destino. Não era a primeira princesa que tinha de sair de casa. Os escoceses iriam tratá-la muito bem. Será que ela não compreendia que estaria saindo de casa como uma princesa e na Escócia iria tornar-se uma rainha?
Joana permanecia na cama nos vários castelos em que ficavam durante a viagem e conversava com a irmã Eleanor. Estava contente por Eleanor ter ido junto. A irmã tentava fingir que iria ser uma maravilha na Escócia e que o casamento era uma coisa emocionante. Veja como Eduardo e Filipa estavam contentes com o deles, Joana!
Às vezes, Joana era consolada pela irmã; mas havia ocasiões em que Eleanor não conseguia pensar em coisa alguma para dizer que servisse de consolo e ficava apenas bem ciente de que não demoraria muito e ela própria poderia estar num apuro semelhante.
Lamentava-se por Eduardo e Filipa não as terem acompanhado. Os dois tinham conversado bastante sobre o casamento, e Eduardo estava ansioso por impedi-lo. Uma vez mais ele se revoltou contra a sua juventude e inexperiência. No intimo, achava que o casamento estava errado, e no entanto não se sentia confiante bastante para impedi-lo. Se tivesse sido bem-sucedido na Escócia, teria se portado de forma diferente.
Não que lhe faltasse a força do propósito; mas ele sentia falta de experiência; e se pudesse ter convencido a si mesmo que havia uma coisa certa a fazer, ele a teria feito.
A rainha Isabella ficou sentida por ele não os acompanhar. Tentara atraí-lo providenciando uma batalha de mentira e mandara fazer lanças para ele elaboradamente pintadas com seu brasão real; mandara fazer outras menos vistosas para outros combatentes. Aquele era o tipo da diversão de que Eduardo teria gostado de tomar parte e no qual ele iria sobressair. Mas ele não ficou tentado. Na verdade, Isabella não entendera o filho. A última coisa que queria era ser tratado como um menino que é subornado com um capricho especial.
Ele não gostava da ideia do casamento. Não queria ir de novo ao norte, onde sofrera tamanha humilhação fazia pouco tempo. Estava em dúvida e desgostoso com as questões escocesas. Por isso, ficaria na consoladora companhia de sua adorada rainha.
Nesse ínterim, a comitiva real chegou a Berwick e a cerimónia dos esponsais teve lugar com uma triste noivinha sofrendo sob o peso dos magníficos trajes cheios de jóias e um noivinho que era ainda mais novo e parecia estar imaginando o motivo de tanta agitação.
Foi uma cerimónia esplêndida, mas ninguém parecia mais magnífico do que Roger de Mortimer, que levara 180 cavaleiros para servi-lo, e eles, por sua vez, erar servidos pelos seus escudeiros; e todos estavam elaborada e esplendidamente trajados.
Seguiram-se dias de festividades. Houve desfiles e torneios, e a todos a noivinha compareceu com expressão atónita. Agora estava menos amedrontada, quando via que o noivo não passava de um menino fraco que lhe parecia muito criança, porque tinha a vantagem de ser dois anos mais velha do que ele.
Acabou chegando a hora de Joana se despedir da comitiva inglesa. A mãe abraçou-a e deu-lhe algumas ricas jóias a que ela não deu muita importância. Também não ficou triste ao se despedir da mãe. Sempre tivera medo dela.
Isabella, com Mortimer e com o esplêndido cortejo a cavalo, seguiu para o sul, enquanto Joana, que tinha sido entregue nas mãos dos nobres escoceses e suas esposas, era levada para Edinburgh. Lá, foi conduzida à presença do rei da Escócia - um homem muito velho que, embora estivesse muito fraco e mal pudesse se mexer, tinha olhos brilhantes que sorriam para ela e uma expressão bondosa.
Era Robert, o Bruce, seu sogro, e deu ordens para que ela fosse tratada com o máximo de cuidado e que as pessoas se lembrassem de que era muito criança e estava numa terra estranha.
Havia algo de estranho em relação a ele. Estava morrendo, ela sabia, de uma doença terrível, mas não lhe inspirava medo, como faziam sua mãe e Roger de Mortimer.
Sentia uma forte saudade de casa. Queria a ala infantil de Windsor. Queria Johanette Jermym e a querida Isabella de Valence; queria sua irmã Eleanor e seu irmão John. E acima de tudo, queria Eduardo e Filipa.
Mas precisava ser corajosa. Tinha de se lembrar de que aquilo acontecia com a maioria das princesas. Era para isso que elas nasciam. Tinha de fazer a paz e acabar com as guerras.
Não ficou surpresa quando ouviu referirem-se a ela como Joana Pacificadora.
Acontecimentos na França tinham levado deslumbrantes novas perspectivas para a coroa inglesa. A história da França nos últimos anos tinha sido encoberta pela Maldição dos Templários. Filipe, o Belo, pai da rainha Isabella, cometera o erro do século quando, afim de tirar ariqueza deles, destruíra os Cavaleiros Templários. O último ato daquela triste tragédia foi a morte, na fogueira, de Jacques de Molai na lie de Ia Cite. Enquanto as chamas lambiam seus membros, de Molai lançara a maldição - nada de bom aconteceria ao rei e a seus herdeiros, e Deus seria vingado sobre eles por causa daquela maldade. Aquilo fora dito na presença dos milhares de pessoas que tinham ido testemunhar o fim do grão-mestre. Foi levado muito a sério, e quando no espaço de um ano o papa (que se envolvera muito) e o rei morreram, aquilo foi aceito como uma certeza de que a maldição seria realizada. Filipe tinha três filhos e uma filha, Isabella, esposa de Eduardo II. Todos os três filhos tornaram-se reis da França - Luís X, o Teimoso, Filipe V, conhecido como o Comprido, devido à sua altura fora do comum, e Carlos IV, o Belo, por causa de sua bela aparência. Todos remaram por curtos períodos e nenhum deles deixara um herdeiro homem. Todos acreditavam que isso se devia à maldição.
Carlos IV acabara de morrer, e o povo estava achando que Filipe de Valois, filho de Carlos, irmão mais novo de Filipe, o Belo, seria o herdeiro do trono.
Mas, ponderaram os conselheiros de Eduardo, Filipe tivera uma filha - Isabella - e Isabella tinha um filho Eduardo, rei da Inglaterra.
A lei sálica vigorava na França, e isso significava que uma mulher não podia herdar o trono. Talvez não, mas, e se essa mulher tivesse um filho? Por que não teria ele direito à coroa?
O assunto foi discutido no Parlamento, e a perspectiva de enriquecer o país e a eles mesmos era agradável. Eduardo se entusiasmava só em pensar. Não conseguira conquistar a Escócia, mas que grande presa a França seria! Convenceu-se de que tinha direitos, através de sua mãe.
Os franceses, muito naturalmente, tinham ideias diferentes e elegeram Filipe de Valois seu rei.
Havia gente exaltada na Inglaterra que teria gostado de levantar um exército e marchar sobre a França. O próprio Eduardo ansiava por obter a glória li Se pudesse conquistar a coroa da França, teria feito algo que nem mesmo seu ilustre avô conseguira fazer.
Isabella e Mortimer foram contra.
- Não é como se se pudesse obter a vitória... mesmo que houvesse uma vitória... em algumas semanas - disse Mortimer. - Haveria uma guerra. Você acha que os franceses iriam aceitar Eduardo? Eles iriam lutar com violência para evitar que um rei inglês subisse ao trono da França. Isso levaria anos e anos. O país ficaria pobre. Nós ficaríamos pobres.
Isabella concordou com ele.
Ela falou delicadamente com o filho.
- O momento ainda não chegou - disse ela. - Você precisa crescer um pouco. Não tem experiência em matéria de guerra, como demonstrou a façanha escocesa.
- Se os escoceses tivessem vindo para a luta... - começou Eduardo, exaltado.
Mas a mãe dirigiu-lhe um sorriso afetuoso.
- Eram táticas de guerra, meu filho querido. São coisas para as quais todo comandante deve estar preparado.
Podia fazer Eduardo voltar a depender dela lembrando-o de sua juventude e sua inexperiência.
- A aventura escocesa foi um exercício proveitoso - disse ela a Mortimer. - Uma referência a ela, e Eduardo fica propenso a aceitar qualquer conselho.
E assim a questão de reivindicar a coroa francesa foi posta de lado. Mas apenas temporariamente, prometeu Eduardo a si mesmo. Chegaria o momento em que ele tentaria a coroa da França.
Logo depois da coroação, Filipe VI reuniu seus inúmeros vassalos para que ele, como o novo rei da França, pudesse aceitar a vassalagem deles. Entre eles estava Eduardo, que teria de jurar fidelidade devido aos seus feudos franceses.
Ao receber a ordem, Eduardo convocou o Parlamento para decidir o que deveria ser feito quanto à questão um tanto delicada de sua reivindicação à coroa francesa.
Depois de muita discussão, ficou decidido que ele devia ir mas, ao prestar vassalagem, não devia, de forma alguma, renunciar à sua reivindicação do trono. Ele devia viajar com grande pompa, para que os franceses pudessem ficar cientes de sua riqueza, mas o momento decisivo seria quando ele ficasse frente a frente com Filipe na cerimónia.
Eduardo despediu-se carinhosamente de Filipa. Era a primeira vez que os dois tinham de se separar desde o casamento, e ele prometeu voltar tão logo lhe fosse possível.
O rei viajou pela França até Amiens, onde foi recebido com grande entusiasmo, para esconder as suspeitas que os franceses pudessem ter de alguém que se declarara com direito a reivindicar o trono da França.
Foi num quente dia de junho que Eduardo ficou diante do rei da França para prestar a necessária vassalagem, esplendorosamente trajado numa túnica de veludo vermelho bordado em ouro com leopardos. Sua espada estava a seu lado e na cabeça ele usava uma faiscante coroa de ouro, e as esporas eram de ouro para combinar com a coroa.
Era inevitável que o rei francês estivesse igualmente esplendoroso. Sentado no trono, usando sua coroa e vestido de veludo azul decorado com flores-de-lis douradas, ele olhou de soslaio para o rei da Inglaterra.
Filipe murmurou para o seu ajudante-de-ordens que não esperava que seu vassalo jurasse fidelidade usando uma coroa. Todos sabiam que Eduardo era o rei da Inglaterra, mas isso não era considerado naquela ocasião. Ele fora prestar vassalagem devido a suas terras na França, e o ato devia ser feito com a cabeça descoberta e uma espada frouxa.
- Majestade - disse Eduardo -, eu posso apenas prestar vassalagem de maneira geral. Não posso pôr de lado a minha coroa inglesa.
Houve uma grande onda de murmúrios pelo salão. Filipe olhou para aquele homem muito jovem - pouco mais que um menino, e perguntou-se o que devia temer dele. Decidiu agir com cuidado.
- vou aceitar vassalagem nas suas condições - disse ele.-Mas quando voltar para a Inglaterra, quero que consulte os registros e, se descobrir que deve prestar vassalagem plena, que me envie cartas nesse sentido.
- Isso eu concordo em fazer - disse Eduardo.
- Aceito sua palavra de honra - respondeu o rei da França. Mas antes que a vassalagem prosseguisse com Eduardo usando a coroa na cabeça e a espada ao lado, ele pediu que os territórios tirados de seu pai fossem devolvidos a ele.
- Por que isso? - perguntou Filipe. - Essas terras foram tiradas de seu pai numa guerra.
Houve um profundo silêncio em todos os presentes. Todos compreendiam a relutância com que Eduardo prestava vassalagem a um rei cuja coroa ele achava que ele mesmo devia estar usando. Mas sua reivindicação do trono parecia tão ridícula aos franceses, que não a levavam a sério; e o fato de Eduardo ser tão criança tornava-a ainda mais absurda.
Mas ali, entre os nobres da França, Eduardo chegou a uma decisão. Em determinada época, quando fosse mais velho e mais experiente, iria lá reclamar aquilo a que ele ia rapidamente acreditando que tinha direito.
A lição da campanha escocesa tinha sido bem aprendida, e ele agiria com cuidado. Portanto, concordou em prestar vassalagem só por aquelas terras que mantinha na França, de modo que a cerimónia prosseguiu e, segundo o costume, Eduardo colocou as mãos entre as do rei da França, e Filipe respondeu beijando-lhe a boca.
Depois da cerimónia, ele ficou ansioso por voltar para casa, para Filipa, em Windsor, e foi grande a alegria do reencontro dos dois.
Ela lhe disse o quanto ficara angustiada. Odiara a separação dele e ficara horrorizada com a possibilidade de que alguma coisa lhe acontecesse.
Ele riu dos temores dela e falou com muitos detalhes sobre as glórias da França.
- É um país maravilhoso, Filipa, e enquanto eu o atravessava a cavalo, dizia para mim mesmo: "Meu... isto devia ser meu."
- Eles jamais a entregarão - disse Filipa.
- Não. Eu vou ter que lutar por ela. Ela ficou preocupada.
- Você não acha que vou conseguir, Filipa?
- Estou certa de que fará tudo o que quiser, Eduardo. Mas eu não gosto de batalhas. Primeiro, porque irão afastá-lo de mim.
Eduardo respondeu dizendo que abriria mão da França por ela.
Ele chegara à Inglaterra havia apenas quatro dias, quando chegou uma notícia do pequeno castelo de Cardross, as margens do Clyde, dizendo que Robert, o Bruce, tinha morrido, esgotado por lutas contínuas e fatalmente doente da terrível lepra, da qual vinha sofrendo havia vários anos.
Filipa estava ao lado de Eduardo quando ele recebeu a notícia.
- O Bruce morreu - murmurou ela. - Isso significa que a nossa pequena Joana é a rainha da Escócia.
Isabella estava ficando cada vez mais apreensiva. Era muito diferente de quando desembarcara na Inglaterra. Parecia que seus amigos estavam se afastando dela. Sir John de Hainault, aquele fiel adorador, que se apaixonara por ela e lutara tão bem pela sua causa devido a isso, voltara para Hainault. Ela sabia que aqueles que estavam ao seu lado no início estavam se afastando.
Era impressionante como as pessoas culpavam-na pelo casamento de Joana. Ela sabia que as pessoas estavam dizendo que era cruel ter enviado uma criança de sete anos para aquele país nortista de invernos terríveis e povo bárbaro. Ter casado a garota com um noivo de cinco anos de idade, cujo pai estava morrendo de lepra, e que podia muito bem ter herdado a terrível doença, era monstruoso. Mas aquilo, poder-se-ia alegar, tratava-se de um assunto de Estado; o que não podia ser aceito era o flagrante comportamento dela com o aventureiro Mortimer. Realmente, grande parte da impopularidade dela resultava de sua associação com Mortimer. Mortimer era um homem forte, um lutador, que não tinha medo, mas não se podia dizer que tivesse uma inteligência muito sutil. Ele só via as vantagens do momento, e era evidente que havia muitas.
Agarrava o que podia, nenhum outro homem - nem mesmo os favoritos do rei anterior-poderia ter ficado tão rico num prazo tão curto. Se houvesse terras e dinheiro a pegar, podia-se ter certeza de que Mortimer os encontraria e os pegaria para si.
E a razão pela qual Isabella estava sendo olhada com uma desconfiança cada vez maior era o fato de confiar naquele homem. Era como se ele a tivesse enfeitiçado. Não via defeitos nele. A apaixonada ligação sexual dos dois era tão necessária a ela quanto fora no início da associação.
Se os dois tivessem agido com discrição, o relacionamento poderia ter sido aceito. O país inteiro sabia o quanto ela devia ter sofrido por causa das deficiências do falecido rei. Mas aquele caso com Mortimer não era discreto. Era às claras e cada vez ficava mais. Raramente um deles aparecia em público sem o outro, e os dois se comportavam com tamanho abandono descuidado, que estava evidente que não se importavam com quem soubesse da ligação.
Muitas vezes ela se recordava de suas realizações. Quem teria acreditado que fosse possível, quando ela fora para a França, depois de atrair o marido e Hugh lê Despenser e fazê-los concordar com a sua partida, que ela fosse retornar de maneira tão triunfante, provocasse a derrubada de Eduardo, colocasse seu filho no trono e, com Mortimer, governasse o país por intermédio dele? Tudo o que eles haviam planejado realizara-se. Então, por que ela não iria desfrutar disso? Mortimer desfrutava. Ah, ele era mais inteligente do que ela.
Claro que havia os seus pesadelos, e estavam se tornando mais frequentes. Às vezes, eles avançavam dia adentro. Ela desejava poder parar de pensar no marido morto. Desejava não vê-lo em seus sonhos. Naquela vaga nuvem entre o estado desperto e o sono, ela imaginava ouvir os gritos dele quando o espeto em brasa penetrava em seu corpo.
- Ó, Deus - bradava ela -, deixe-me esquecer. Por que tenho de ser perseguida? Por que não posso ser inteligente como Mortimer?
Mortimer era realmente inteligente. Não se importava com pessoa alguma - era evidente que não se importava com os mortos.
"Esqueça" era o seu lema. "O que está feito está feito."
E ele tinha razão, é claro.
O que estava acontecendo com Isabella? Ela, que era filha de um dos homens mais cruéis do século, o saqueador e assassino dos templários, devia ter herdado um pouco de sua força implacável. Sou filha dele, pensava ela. Talvez a maldição tenha me atingido.
Começava a perceber a mudança na atitude das pessoas para com ela.
Por exemplo, o conde de Kent. Como jovem meio-irmão de seu marido, filho de mãe francesa, ele fora atraído por ela desde o dia em que ela chegara ao país. Era evidente que ele ficara impressionado pela sua beleza, como acontecera com tantos outros, e quando ela chegara à Inglaterra com o seu exército para ficar contra Eduardo II e colocar o jovem Eduardo III no trono, Edmund lá estivera para apoiá-la.
No entanto, no dia anterior, quando estivera cavalgando com ele, ela percebera a sua frieza para com ela.
Ele falara sobre o irmão. Isabella se lembrava de cada palavra da conversa, porque esta lhe parecera significativa.
- Acho que ele não foi bem tratado em Berkeley - dissera ele, de repente.
Ela sentira o encolher da pele que indicava medo, e não tinha certeza de que aquilo ficara evidente ou não. Pouco tempo atrás, não teria dado sinal algum, mas algo estava acontecendo com ela. Estava ficando cada vez mais tensa e nervosa, e demonstrando isso.
- Ó... Thomas de Berkeley era muito amigo dele.
- Ele é parente do conde de March, creio eu.
- É... pelo casamento...
Um silêncio seguira-se, durante o qual Edmund cerrara fortemente o cenho. Ela e Mortimer sempre tinham dito que Edmund era um homem simplório. Nunca conseguira esconder seus sentimentos e agora estava muito pensativo.
Isabella tentara mudar de assunto, mas ele o trouxera de volta.
- Nosso primo Lancaster e ele se davam muito bem quando o rei estava em Kenilworth.
Ela quisera gritar: "Pare com isso! Pare! Os pesadelos vão voltar esta noite. Eles sempre voltam quando eu falo nele durante o dia." Ela tentara desesperadamente mudar de assunto.
- Tenho motivos para acreditar que a rainha está grávida. Edmund sorrira. Ele gostava da nova rainha de Eduardo. Isabella continuara:
- Será uma bênção se isso for verdade, e acho que a nação vai ficar louca de alegria se for um menino.
Edmund concordara e, para alívio de Isabella, os dois conversaram sobre as alegrias da paternidade. Edmund tinha quatro filhos e nunca se cansava de falar neles.
Mas quando Isabella estava congratulando a si mesma por ter sido felicíssima em mudar de assunto, eles encontraram um grupo de pessoas que se afastara para deixá-los passar.
Não houvera saudações à rainha Isabella como no passado.
Mas uma voz fizera-se ouvir, e o que fora dito chegara com muita nitidez ao ouvido deles.
- Puta!
Isabella fingira não ter ouvido, mas vira o leve rubor no rosto do conde. Ele parecera desconcertado, e ela achara ter percebido seus lábios apertarem-se.
Ela foi procurar Mortimer. Em circunstâncias como aquela, sempre o procurava. Ele iria consolá-la e saber o que fazer.
- O povo está se voltando contra nós - disse ela.
- Por que nos preocuparmos com ele?
- Querido Mortimer, ele pode se levantar contra nós.
- Ele jamais ousaria fazer isso.
Olhando para Mortimer, ela acreditava nisso. Parecia tão poderoso, tão importante, tão esplêndido! O fulgor de seu traje aumentava a cada dia. Ele nunca ia a lugar algum sem um grande número de cavaleiros, trajados quase tão esplendidamente quanto ele, proclamando sua riqueza e sua importância.
Ela lhe disse o que o conde de Kent dissera.
- Pude ver o raciocínio nos olhos dele. Se o povo se voltar contra nós, o sangue real dele o tornará um líder.
- Kent! Ele jamais lideraria alguém.
- Eu acredito que sim.
- O homem é um ingénuo.
- Pode ser, mas ele é meio-irmão de Eduardo.
- O povo jamais gostou dele.
- O povo jamais foi contra ele.
- Não, ele não é nem uma coisa nem outra.
- Mas podia ser um fantoche. Outros decidiriam sobre a política. Tenho medo dele, Mortimer. Ele falou sobre o rei. Creio que andou fazendo investigações.
Mortimer semicerrou os olhos.
- Maltravers, Gurney e Ogle estão fora do país.
- Sim, eu sei. E se ele descobrisse onde, e eles falassem? Mortimer ficou calado por uns instantes e depois disse:
- Vamos fazer um exemplo de um deles. Vamos deixar que vejam o que acontece com aqueles que se intrometem.
- Um exemplo de quem? - perguntou Isabella.
- Minha escolha recai sobre Kent - disse Mortimer.
- Kent! O meio-irmão do rei. Tio de Eduardo.
- É sempre melhor, meu amor, atacar quem está em cima.
Edmund, conde de Kent, tinha 29 anos. Estava com seis anos quando o pai, Eduardo I, morreu. Tinha visto muito pouco o grande guerreiro que estava sempre fora de casa em alguma campanha militar, e ele e o irmão Thomas de Brotherton, conde de Norfolk, que era apenas um ano mais velho, tinham sido criados pela delicada mãe francesa, Marguerite.
Era natural que quando o novo rei, Eduardo II, casou-se com uma francesa ele se sentisse atraído por ela. Era bonita e graciosa, e todos comentavam o quanto era uma esposa boa e dócil para um marido que nada tinha de admirável.
Quando Eduardo se tornara tão impopular devido à sua associação com os Despenser, Edmund passara a ser membro do grupo de Lancaster para ficar contra eles, o que significava opor-se ao rei. Ele estivera numa missão malsucedidana França quando Isabella visitara a corte do irmão, e ele se juntara aos descontentes que se reuniram em torno dela. Assim, quando ela voltara para a Inglaterra com um exército, ele estava ao lado dela; e tinha sido fiel à causa dela até agora.
No entanto, Mortimer estava ficando intolerável. Havia murmúrios contra ele por todo o país, tal como acontecera com Gaveston e os Despenser no reinado anterior. Aquele barão da fronteira tinha-se instalado como um rei, e mesmo que fosse rei de direito teria provocado insatisfação pelo seu comportamento. Além do mais, ele era amante de Isabella e, embora ninguém tivesse feito grandes objeções se a ligação tivesse sido conduzida com discrição, era intolerável o fato de Mortimer, recém-levantado da cama de Isabella, andar empertigado de um lado para o outro como poucos reis jamais tinham tido a temeridade de fazer.
Aquilo tinha de acabar.
Ele conversara com Henry de Lancaster, seu primo, e com o irmão, Thomas, conde de Norfolk, e os dois haviam concordado com ele. Ao mesmo tempo, tinham-no lembrado de que o rei estava muito sob a influência da mãe, e isso queria dizer de Mortimer. A situação estava cheia de perigos, e todos concordaram que tinham de agir com cautela.
Nessa época um frade chegou à casa do conde de Kent em Kensington e solicitou uma audiência particular com ele, porque tinha algo a dizer-lhe que tinha a certeza de que seria do máximo interesse.
Assim que ficaram a sós, o frade disse:
- Senhor conde, parece incrível, mas sei que é verdade. Eduardo II não está morto. Ele ainda vive.
Kent ficou sem fala, e o frade continuou:
- Posso lhe dizer onde ele está, senhor conde. Está no castelo de Corfe. O governador do castelo é um grande conhecido meu e tenho a palavra dele de que o rei ainda vive. Está sendo mantido prisioneiro lá e está ansioso por manter contato com aqueles em quem possa confiar. Ele considera o senhor conde como seu irmão.
- Eu... - balbuciou Kent - eu não posso acreditar que seja verdade. Tenho de ir vê-lo imediatamente.
- Senhor conde, desculpe-me, mas precisa agir com o maior cuidado. O governador está com medo que o matem. Ele já lamenta ter me revelado o segredo. Se o senhor for a Corfe, terá de ser com discrição.
- Claro, claro - bradou Kent. - Qual a intenção deles?
- Dizer ao mundo que ele está morto, para que possam reinar como quiserem através do jovem rei.
- Mas Eduardo abdicou em favor do filho.
- Sim, mas o jovem Eduardo relutou em aceitar o trono e não podia ser feliz com a coroa enquanto o pai fosse vivo. Por isso... eles traçaram esse plano...
- Isabella... e Mortimer...
O frade confirmou com a cabeça.
- vou partir para lá, imediatamente - disse o conde.
- Irei acompanhá-lo, senhor conde, mas o senhor há de compreender que nossa missão tem de ser mantida em completo segredo.
O conde prometeu que assim seria e nem mesmo disse à sua mulher para onde estava indo.
Durante a viagem, o frade contou a Kent que Eduardo estava preso e que a ideia de Mortimer era livrar-se dele tão logo quanto convenientemente possível.
O conde de Kent era um homem simples. Oscilara de um lado para o outro durante os problemas que perturbaram o país durante os reinados de Gaveston e dos Despenser. Sempre fora um crédulo e deve ter sido por isso que Mortimer o escolhera para ser seu exemplo, em vez de escolher o irmão mais velho, Thomas de Norfolk, que nunca estivera tão envolvido em conflitos. Embora tivesse apoiado Isabella em seu retorno à Inglaterra, retirara-se logo para suas propriedades e não tomara grande parte no conflito. Kent era diferente: um dia, era todo entusiasmo, e no outro, só dúvidas.
Agora estava pronto para acreditar naquela história da prisão de Eduardo em Corfe, embora quando chegou ao castelo a recepção que teve teria prevenido qualquer outro homem de que havia algo de uma trama naquilo tudo.
A princípio, o governador não queria deixar que ele entrasse e repreendeu o frade por tê-lo levado, mas depois de muita conversa os visitantes tiveram permissão para entrar.
- É verdade que o senhor tem meu irmão aqui? - perguntou Kent.
O governador atrapalhou-se, gaguejou e olhou para o chão, para o teto e para todos os cantos, menos para o conde de Kent.
- Não posso acreditar - disse Kent. - Houve algum engano.
- Não houve - disse o frade.
- Tudo isso é muito estranho - disse o conde. - Não vou acreditar enquanto não vir meu irmão aqui.
- Senhor conde-bradou o governador -, não tenho coragem... não posso... não sei se...
- O senhor tem de me dizer a verdade - bradou o conde. Depois de um certo tempo, o governador disse:
- Se o senhor quiser se comunicar com o rei, deverá fazê-lo por meio de uma carta.
- Então o senhor admite que ele está aqui.
- Estou dizendo que se o senhor escrevesse uma carta e se ela fosse entregue à pessoa à qual fosse dirigida, o senhor ficaria sabendo se o prisioneiro que está aqui é ou não o rei.
- Então o senhor admite que tem um prisioneiro. O governador ficou calado.
Um aviso passou pela mente do conde. Estão fazendo muito mistério sobre isso. Por quê? Claro que estavam fazendo mistério. O assunto era misterioso. Mas ele não iria pôr coisa alguma por escrito enquanto não estivesse certo. Foi o que disse.
- Senhor conde, não tenho coragem de levá-lo até o rei. Ele tem-se recusado a receber qualquer pessoa. Ele acha que todos os que vêm são seus inimigos, enviados pelo conde de March.
- Eu sei - disse o frade - que o rei não quer receber ninguém, mas que seria possível o senhor conde ver o rei... talvez de algum lugar em que não fosse observado.
- vou pensar se isso seria possível - disse o governador.
Edmund passou uma noite agitada no castelo. Estava tudo envolvido em mistério demais para que ele se sentisse à vontade, e não gostava muito do governador.
Ao anoitecer do dia seguinte, o frade disse que se ele olhasse por um buraco acima do aposento em que o rei estava alojado, iria ver.
- Por que não devo visitá-lo?
- Senhor conde, o rei tem momentos de desolação nos quais não fica inteiramente lúcido. Essa questão de salvamento terá de ser comunicada a ele com delicadeza, de preferência por meio de uma carta. Venha conosco e assegure-se de que é o seu irmão que está instalado neste castelo.
Era muito estranho, mas o conde disse a si mesmo que se pudesse ver Eduardo, acreditaria na história. Ele foi conduzido por uma escada espiral acima e levado a um aposento. Ali, foi mostrado um buraco na parede. Era um buraco pequeno, o suficiente para um olho ver o que havia no outro lado, e o conde viu um quarto com uma cama, uma mesa e uma cadeira. Na cadeira estava sentado um homem. Embora estivesse sentado, era fácil ver que era excepcionalmente alto e que os cabelos que iam ficando grisalhos tinham sido muito claros. A semelhança era acentuada, mas a luz era fraca. No entanto, o conde de Kent estava muito predisposto a ser enganado.
Deixou o castelo de Corfe no dia seguinte para refletir sobre o que tinha visto e, pensativo, voltou para Kensington. Perguntava-se se devia contar ao irmão. Será que podia ter sido mesmo o rei aquele homem que ele havia visto sentado na cadeira à mesa no quarto do castelo de Corfe? Mas por que alguém iria querer enganá-lo?
Durante alguns dias ele raciocionou, e então recebeu outra visita do frade.
- Recebi uma mensagem do papa, senhor conde. Ele mandou que eu lhe dissesse que ele quer que o rei seja resgatado do castelo de Coife.
- Então o papa acredita nesta história.
- Não é história, meu senhor. Seu irmão está no castelo de Corfe, prisioneiro de Mortimer. Há planos para eliminá-lo por completo. É isso que o papa teme que aconteça e mandou que eu submetesse o assunto ao senhor e implorasse que o senhor não demore.
O conde ficou pensativo.
- Primeiro, tenho de escrever uma carta ao meu irmão.
- Isso seria um plano excelente-replicou o frade.-Se o senhor disser a ele que é amigo e também irmão e que irá reunir outras pessoas para irem em auxílio dele. Se disser a ele que está decidido a revelar a maldade de Roger de Mortimer, o senhor irá incutir esperança no rei, senhor conde. Sim, e Deus o louvará, como o papa dá a entender, pelo que o senhor fez.
Edmund ardeu de entusiasmo.
Iria escrever imediatamente, o frade deveria levar a carta até Corfe. Poderia ele ter a certeza de que ela chegaria às mãos do rei? Claro que podia. O governador não seria contra repassar uma carta.
Kent escreveu com detalhes e com indiscrição, explicando que estava a serviço do irmão e que iria levantar um exército para lutar por ele e contra seus inimigos. Ele poderia, se quisesse, ser colocado de volta ao trono, porque parecia que ele abrira mão dele mediante pressão.
O frade apanhou a carta e cavalgou de volta para seus aposentos, onde se desfez do hábito de frade. Sabia que seria recompensado. Tudo funcionara de acordo com os planos deles. Estava com a carta que era uma nítida traição contra o rei, como nenhum outro documento fora até ali. Quem iria pensar que um homem na posição do conde de Kent seria enganado com tanta facilidade por um homem que tinha uma leve semelhança com o rei falecido? O frade partiu para Winchester, onde estava reunido o Parlamento, e Mortimer o recebeu imediatamente.
Ele ria enquanto lia a carta.
- bom trabalho, meu esforçado frade. O ingénuo Kent escreveu o suficiente para colocar uma corda no pescoço. Ele foi bem enganado.
- Não foi difícil, meu senhor. Nunca vi um homem mais ansioso por cair numa armadilha.
- Vai ser a última vez que ele cairá-disse Mortimer, impetuoso.
Já tomei uma decisão quanto a isso. Você trabalhou bem e não será esquecido.
Agora, vamos agir, pensou ele. vou chamar o conde de Kent a Winchester.
O rei e a rainha estavam em Woodstock. Estavam dedicados um ao outro como sempre e sentiam-se numa felicidade especial desta vez, porque a rainha estava grávida.
Eduardo estava decidido a fazer com que se tomasse o máximo de cuidado com ela e que não podia confiá-la a ninguém a não ser a ele próprio, e, apesar de prementes assuntos de Estado, não saía de perto dela.
Pouco antes, ela havia sido coroada. Eduardo se orgulhara muito dela. Muitas vezes pensava no quanto fora feliz. Quantos reis se casavam com mulheres pelas quais já estivessem apaixonados? Quantos conseguiam uma mulher como Filipa? Era adorável, delicada e boa. O povo apreciava o valor dela, tal como ele. E quando ela lhe desse um filho... Ela o advertira um pouco, temerosa, é claro, de que a criança não fosse um menino. Mas embora ele quisesse um menino, não se importaria muito se fosse menina. Os dois eram jovens, estavam apaixonados e teriam uma série de filhos - entre eles, muitos meninos.
A coroação não tinha sido tão pomposa quanto ele teria gostado. O erário estava muito baixo e ele começava a ficar muito preocupado. Sua mãe e Mortimer estavam tirando muito dinheiro e era preciso numerário para outras coisas. Ele devia examinar aqueles casos. Mas estava preocupado com a mãe e odiava perturbá-la, e ultimamente ela se perturbava com facilidade. Qualquer palavra de crítica, por mais leve que fosse, dirigida a Mortimer, e ela estava pronta a cair num daqueles estados de espírito no qual falava sem cessar e, às vezes, de forma não muito coerente, e isso o deixava preocupado.
Eduardo estava em Woodstock para esquecer aquelas coisas. Ele e Filipa podiam caminhar juntos e ele podia tratá-la com mimo e os dois podiam conversar sobre o filho que deveria chegar em junho.
Chegaram mensageiros de Winchester. Havia notícias alarmantes de traição e seu tio, o conde de Kent, estava envolvido.
Ah, pensou ele, isso não é sério. Tio Edmund jamais podia ser levado muito a sério. Ele achava que podia, é claro, mas podia estar muito entusiasmado com determinado plano, e umas poucas palavras podiam alterar por completo o curso de sua excitação. Eduardo não levava o tio Edmund totalmente a sério.
Não iria a Winchester. Não deixaria Filipa. Ela era muito jovem, mas era forte e até ali tinha tido uma gravidez fácil. Ele queria ficar ali e conversar sobre a criança que ia nascer, porque nada poderia ter alguma importância além disso.
Os dias estavam ficando quentes. Filipa ia ficando maior. Cada dia tornava mais perto a chegada daquela bendita criança. Quem poderia pensar no que estivesse acontecendo em Winchester?
Mostraram ao conde de Kent a carta que ele tinha escrito para o rei morto. Perguntaram se aquela letra era dele. O conde respondeu que sim. Não adiantava negar. Acreditara que o rei morto estivesse vivo e, de fato, tinham-lhe mostrado um homem no castelo de Corfe que se parecia muito com ele.
- Ele lhe disse que era o rei morto? - perguntaram-lhe.
- Não falei com ele - respondeu o conde.
- No entanto, acreditou que se tratava do rei morto e escreveu esta carta a ele. O senhor sabe que esta carta é um ato de traição? Sabe que suas ofertas de serviço foram feitas a um homem que não é o nosso rei e a quem o senhor está propondo organizar-se contra o nosso verdadeiro rei... percebe, senhor conde, que isso é traição?
Ele sabia o suficiente para reconhecer que era.
Sabia, também, qual era o castigo por traição.
Isabella e Mortimer conversaram sobre isso quando ficaram a sós.
- Você não pode sentenciá-lo à morte, Mortimer-disse Isabella.
- Ele é tio do rei.
- Posso e vou - bradou Mortimer. - Ele escreveu esta carta. Ele próprio condenou-se à morte. Ele não deve reclamar se a sentença for cumprida.
- Você está se esquecendo de que ele tem sangue real.
- Real ou não, ele vai para o cadafalso. Não há ninguém que se considere tão alto que não possa ser derrubado.
- O rei precisa ser avisado.
- Meu amor, você quer arruinar nosso plano? Sabe o que Eduardo iria fazer. Iria perdoar o querido parente.
- E então, Mortimer?
- Execução - replicou Mortimer. - Execução imediata.
Eles o haviam condenado à morte, e a sentença deveria ser executada sem demora. Tinham-no levado ao tribunal presidido pelo magistrado da casa real, Robert Howel, e ele estivera vestido apenas com uma camisa, com uma corda passada pelo pescoço.
Ele pediu clemência. Disse que queria falar com o rei.
Seus acusadores olharam-no com frieza. Era tarde demais para pensar em clemência, disseram. Ele era um traidor do rei; tinha cometido um ato de traição; tentara levantar outras pessoas para compartilhar de sua deslealdade; planejara levantar um exército contra o rei. O que importava se fosse parente próximo do rei? Ele era um traidor e merecia ainda mais o castigo por ser de sangue real.
Por ordens de Mortimer, ele foi levado através de Winchester para um ponto fora dos muros da cidade. Lá, o machado estava à sua espera.
Era de manhã cedo, pois Mortimer desejara que o ato fosse executado antes de a cidade se agitar. Ele imaginara que a execução de um homem tão conhecido assim fosse atrair multidões e poderia haver algumas pessoas que não concordassem com o veredicto.
Passou-se meia hora, e o carrasco não apareceu. Chegou um mensageiro com um recado dele, alegando que fugira porque tinha medo de realizar a execução, pois o conde de Kent era de sangue real; ele não iria decapitar uma pessoa dessas. Quem sabe, mais tarde ele poderia ser acusado de ter feito isso.
Mortimer, que estava lá em pessoa para testemunhar o fim de seu inimigo, ficou furioso.
- Que patife! - bradou ele. - Mandem buscar outro. Qualquer um. Mas que não haja demora. O carrasco não tinha um assistente?
Tinha, foi a resposta, mas ao saber o que o seu superior fizera, ele agira da mesma forma. Também chegara à conclusão de que não assumiria a responsabilidade de decapitar um membro da família real.
Mortimer espumava de raiva. Era como se o estivessem desafiando, como se dissessem: "Eduardo, o rei, não iria querer que esse ato fosse cometido." Claro que não. Por isso ele tinha de ser feito com o máximo de rapidez.
- Procurem um carrasco - bradou Mortimer; e embora se procurasse, nenhum foi encontrado. Seus cavaleiros e escudeiros desviaram o olhar, com medo de que ele lhes ordenasse que cometessem o ato. Ele não poderia fazer isso, porque acabariam comentando que um de seus homens tinha assassinado o conde de Kent. A execução tinha de ser feita por um homem cuja atividade estivesse relacionada com as prisões.
Chegou o meio-dia, e o conde ainda vivia. Ele estava rezando a Deus, dizendo a si mesmo que aquilo era uma intervenção divina. Seria salvo porque Deus não iria permitir que ninguém o decapitasse.
A tarde foi avançando, e ainda ninguém fora encontrado para fazer o serviço. Então, Mortimer teve uma ideia.
- Vão até a prisão-disse ele.-Procurem um homem que esteja condenado à morte. Prometam-lhe a liberdade se ele atuar como carrasco do conde de Kent.
Aquilo foi o fim da busca.
A vida era uma recompensa grande demais para se deixar passar. Às cinco horas daquele dia de março, Edmund, conde de Kent, colocou a cabeça num cepo e esta foi separada de seu corpo.
O rei estava em Woodstock quando soube da notícia.
Não podia acreditar. Seu próprio tio. Ser executado sem que lhe dissessem nada!
Um traidor, diziam. Estava tramando levantar um exército contra o seu rei.
O mês de março chegava ao fim, e a criança deveria nascer em junho. Eduardo tinha de se afastar de Filipa e ir até Winchester, para ouvir em pessoa o que realmente acontecera.
Filipa não queria que Eduardo fosse, é claro, e ele também não. Queria acompanhá-lo, mas ele não queria deixar. O inverno acabara, mas as estradas estavam ruins. Como é que ela viajaria? Levada numa liteira. Isso não seria bom para o bebé.
- Você tem de ir? - perguntou ela.
- Ele era meu tio.
- E um traidor.
- De algum modo, não posso acreditar nisso em relação a meu tio.
- Você sempre achou que ele não era muito.
- Não era muito inteligente, mas não iria levantar-se contra mim.
- Alguma coisa o preocupa muito - disse ela.
- Meu amor, meu tio foi decapitado, acusado de traição contra mim. É verdade, estou perturbado.
- Existe algo mais - disse ela.
Eduardo acariciou-lhe os cabelos, afastando-os do rosto dela.
- Estou perturbado por ter de deixá-la. Não tenha medo, voltarei logo. vou dar ordens para que me mantenham informado sobre sua saúde todos os dias.
E assim Eduardo partiu para Winchester e, lá, encontrou a mãe e Mortimer.
- Meu belo filho - bradou Isabella -, como é bom ver você aqui.
- Não estou contente com a minha missão - respondeu ele, em tom grave. - Vim saber o que houve com meu tio Kent.
Mortimer estava lá, sorrindo com atrevimento. Poder-se-ia pensar que Mortimer era o rei e ele, Eduardo, o súdito.
- Majestade, sempre dedicados a seu serviço, não podíamos deixar que vivesse uma pessoa que estava tentando levantar um exército contra Vossa Majestade.
- Eu não acredito que isso seja verdade.
- Havia provas. Ele admitiu. Ele inventara uma história sobre um homem que estava em Corfe e que acreditava ser o pai de Vossa Majestade.
Eduardo ficou calado. Olhou para aquele homem e pensou: o que aconteceu com meu pai? Como foi que ele morrem? A mãe observava-o atentamente.
- Mortimer tem sido um bom servidor seu, Eduardo.
- E dele mesmo, minha senhora - replicou Eduardo; e suas palavras provocaram arrepios de alarma no coração de Isabella.
Ele está amadurecendo, pensou ela. Está amadurecendo depressa demais.
- Meu querido filho, seu avô sempre lidou rapidamente com os traidores, segundo ouvi dizer. Nunca é bom deixar que vivam para fermentar problemas.
- Meu tio era um tolo, mas não um patife.
- Às vezes os atos dos tolos e dos patifes seguem por linhas semelhantes - disse Isabella. - Eduardo, eu sei que isso é um choque para você, mas foi necessário. Acredite em mim. Acredite em mim.
Isabella parecia tão agitada, que ele teve de consolá-la.
- Sei que a senhora só pensa no meu bem - assegurou-lhe Eduardo.
- Eu sempre o amei. Você era tudo para mim. Quando você era uma criança, fez com que valesse a pena tudo o que eu tinha sofrido.
- Eu sei. Eu sei. Não reclamo da senhora. Aquilo era uma direta, mas Mortimer deu de ombros.
- Ele não passa de um menino - disse ele, depois, a Isabella. A campanha escocesa ensinou-lhe isso e é algo que ele jamais esquecerá.
- E se ele descobrir que você armou a armadilha para Kent? Que você providenciou a queda dele?
- Como poderá saber? Ele já descobriu como o pai morreu?
- Ainda não - disse Isabella.
- Meu amor, o que foi que deu em você? Anda tão amedrontada!
- Tenho uma premonição ruim. Mortimer, nunca devíamos ter matado Edmund de Kent.
- Absurdo. Isso mostrou às pessoas que devem ter cuidado antes de não me levarem a sério. - Ele esticou o corpo. Ultimamente, o sorriso complacente estava sempre em seus lábios. O que havia de errado com a execução de Kent? Mortimer havia-se apoderado de grande parte das possessões dele e ficara mais rico por isso. Por todo o país, as pessoas estariam impressionadas com o poder de Mortimer.
- Tome cuidado - diriam elas. - Nunca ofenda o conde de March.
ERAM DEZ HORAS DA MANHÃ do dia 15 de junho e a expectativa pairava sobre o palácio de Woodstock.
Filipa estava calma; as amas à sua volta declararam que isso era extraordinário numa mulher tão jovem esperando o primeiro filho. Ela estava apenas com dezessete anos.
- Se for um menino - dissera ela a Lady Katherine Haryngton -, minha felicidade estará completa.
- Nunca é muito bom pensar demais no sexo do filho, majestade - fora a resposta.
- Não pense que eu não adoraria uma menina. Adoraria. E não é por mim mesma que quero um menino, mas por Eduardo. Imagine a alegria dele se eu pudesse ter um filho
homem. Tudo tem sido perfeito até agora, Katherine. Eu gostaria apenas que isso fosse coroado com um menino... um menino perfeito... um menino que se pareça exatamente
com Eduardo.
- Vamos rezar por isso, majestade.
- Querido Eduardo. Ele está ansioso por estar a meu lado agora, e sei que chegará aqui em breve. De certo modo, sinto-me contente por ele não se encontrar. Poderei sofrer e isso iria deixá-lo triste. Não, eu quero que ele chegue a tempo de ver o filho... não antes.
- Vossa Majestade exige muito do destino.
Ela e Katherine eram boas amigas. Katherine era esposa de Sir John Haryngton de Farleton em Lancashire, esposa e mãe e muito competente para tomar conta de Filipa.
Durante aqueles dias de espera, as duas conversavam sobre crianças e a melhor maneira de criá-las; então chegara o dia 15, o dia no qual Filipa iria pensar anos mais tarde como um dos mais felizes de sua vida, porque pela manhã ela deu à luz um filho - um menino, perfeito sob todos os pontos de vista, e mesmo ao nascer mostrara ter os membros longos dos Plantagenetas e aquele aspecto vigoroso que Katherine Haryngton declarou ser evidente desde o primeiro momento em que o vira.
Exausta mas triunfante, Filipa pegou-o nos braços-aquela criança maravilhosa, aquele fruto de seu amor por Eduardo.
- Deus me favoreceu-disse ela.-Nunca uma mulher foi mais abençoada. A notícia deve ser levada a Eduardo imediatamente.
- vou mandar seu criado, Thomas Priour, partir agora mesmo disse Katherine.
- Quem dera que ele estivesse aqui. Quem dera que eu pudesse ver a expressão do rosto dele.
- Ele estará aqui. Vossa Majestade verá a expressão do rosto dele.
- Estou ansiosa por mostrar-lhe nosso menino.
Ela não precisou esperar. Eduardo foi imediatamente. Ele dera ao encantado Thomas Priour uma recompensa de quarenta marcos por ter-lhe levado a boa nova.
Entrou no quarto da esposa, ajoelhou-se ao lado da cama e beijoulhe a mão. Havia lágrimas nas faces dela.
- Nunca pensei que poderia haver tanta felicidade - disse a rainha.
- Nem eu - replicou o rei -, e só você poderia me dar isso.
Os dois ficaram maravilhados com o filho. Eduardo precisou assegurar-se de que as informações sobre ele eram verdadeiras. Sim, ali estava no berço oficial decorado com retratos de quatro evangelistas, grande para sua idade, de pernas longas e com um começo de cabelo muito claro. Um verdadeiro Plantageneta.
- Um Eduardo - disse Filipa.
E por isso foi esse o nome que ele recebeu.
Eduardo tinha dezessete anos e sete meses quando seu filho nasceu, e esse acontecimento, vindo tão logo depois da execução de seu tio, que fora um grande choque para ele, sacudiu-o, fazendo com que saísse da meninice e entrasse na maturidade.
Havia certos fatos que ele se recusara a enfrentar antes, e isso devido ao envolvimento de sua mãe. Tinha sido inteiramente por causa dela que Eduardo não agira antes. Ele se recusara a enfrentar os fatos ousadamente, de frente, porque sabia que se o fizesse encontraria algo que o deixaria horrorizado.
Estava percebendo, rapidamente, que não podia mais adiar a visão da verdade, e para fazer isso com clareza, tinha de esquecer que Isabella era sua mãe; devia fugir do feitiço que a mãe lançara sobre ele desde a infância. Ela sempre estivera separada das demais pessoas; era mais bonita do que qualquer outra mulher que ele já vira; quando Eduardo, ainda menino, cavalgara com ela e ouvira as saudações do público, a mãe lhe parecera uma deusa. Só agora é que ele estava forçando a si mesmo a vê-la como realmente ela era.
O homem que ele odiava era Mortimer. Durante algum tempo, o conde de March mostrara que se considerava o homem mais importante do reino. Tomara o dinheiro recebido da Escócia como se fosse o rei; mas um rei não teria usado aquele dinheiro para suas necessidades pessoais - pelo menos, Eduardo não faria isso. Agora ficara sabendo dos detalhes da execução do conde de Kent. Mortimer o matara porque queria tirá-lo de seu caminho. Havia rumores de que Mortimer armara o cenário para a morte dele inventando uma história que dizia que Eduardo II ainda estava vivo.
Mortimer era um canalha e um vilão, e não haveria um bom governo na Inglaterra enquanto ele vivesse.
Mas o que preocupava Eduardo era a mãe.
Filipa estava em estado de bem-aventurança, recusando-se a separar-se da criança, amamentando-a, correndo para o berço ao acordar todas as manhãs, para assegurar-se de que o menino tinha sobrevivido à noite. Se ele choramingava, ela ficava toda angustiada; quando ele sorria, sua felicidade era avassaladora. Era uma felicidade o fato de o jovem príncipe ser uma criança forte e praticamente não dar motivos para aflição.
Eduardo não queria perturbá-la comunicando-lhe seus temores nessa ocasião. No entanto, desejava externar-se com alguém em quem pudesse confiar. Entre seus amigos, havia um de quem ele gostava mais. Era William de Montacute, que estava com quase trinta anos de idade - com idade suficiente para dar um conselho proveitoso, mas jovem bastante para ser quase da geração de Eduardo.
Montacute tinha sido um bom amigo de Eduardo. Acompanhara-o na humilhante campanha escocesa e viajara com ele à França quando ele fora prestar vassalagem ao rei. Nos últimos dois anos, a amizade amadurecera e foi a Montacute que ele decidiu confiar seus sentimentos.
Montacute concordou logo que Eduardo jamais seria rei de verdade enquanto Mortimer vivesse. Ele ouvia sussurros que não chegavam aos ouvidos de Eduardo. O povo estava dizendo que Mortimer era o rei e que o povo não gostava disso. Eles queriam que o país se livrasse de Mortimer e que seu verdadeiro rei os governasse.
- Posso falar francamente com você - disse Eduardo. - Existe minha mãe.
- E será que tenho permissão para falar francamente com Vossa Majestade?
- Vejo que não vamos avançar muito sem usar de franqueza.
- Então, majestade, o mundo todo sabe que sua mãe é amante de Mortimer. Ela está enfeitiçada por ele e é por isso que ele tem tanto poder. Ela não lhe nega coisa alguma, e quando ele decidiu assassinar seu tio de Kent, ela concordou com ele.
- Eu sei - disse o rei.
- Então, majestade, use as táticas dele. Por que ele não pode ser preso como prendeu Kent? Por que não deve ele ser submetido a um julgamento rápido e a uma morte igualmente rápida?
- Eu não gostaria que este país mergulhasse numa guerra civil.
- Guerra civil, majestade! Vossa Majestade acha que há homens neste país que lutariam por Mortimer? Não há ninguém tão odiado quanto ele. Gaveston não achou ninguém para apoiá-lo. Os Despenser também não. Esses favoritos são odiados pelo povo. Não, majestade. Deve ser uma coisa simples. Prenda Mortimer. Deus sabe que há provas suficientes contra ele. Não perca tempo. Procure a primeira oportunidade.
Leve-o a julgamento. Ele será condenado rapidamente e será o fim dele.
- E minha mãe?
Montacute ficou calado por uns instantes, e depois disse:
- Vossa Majestade vai decidir, depois que Mortimer se for, a melhor maneira de lidar com ela.
- vou convocar uma reunião do Parlamento no fim do mês. Será em Nottingham. Mortimer estará lá. Enquanto isso, vamos descobrir tudo o que pudermos sobre seus atos perversos. Estou certo de que não será difícil.
- Então - disse Montacute -, vamos nos preparar para Nottingham no final de outubro.
Isabella sabia que algo estava errado. Eduardo era jovem demais para esconder-lhe isso. Ele tinha consciência disso e a evitava. Ela ouvia rumores, transmitidos por pessoas que trabalhavam para ela em segredo, de que o rei estava planejando alguma coisa.
Ela avisou a Mortimer, mas ele se manteve complacente como sempre.
- Você duvida de minha capacidade de lidar com nosso garoto? - perguntou ele.
- Meu doce Mortimer, acredito que o nosso garoto cresceu muito nas últimas semanas.
- Meu amor, ele é pai. Ouvi dizer que o novo príncipe é um menino saudável. Vão se passar anos antes que precisemos nos preocupar com ele. Mas o seu nascimento deu ao nosso garoto uma sensação de que finalmente ele ficou homem. Não é nada mais do que isso, meu amor.
- Ele é um homem, Mortimer - disse Isabella, com calma. Quando ficava preocupada, ouvia vozes durante a noite. Às vezes, acordava e sussurrava:
- Você está aí, Eduardo, não está? Zombando de mim nas sombras. É você que está semeando maus pensamentos na cabeça de Eduardo? Não faça mal a Mortimer, Eduardo. Ele é o meu amor, a minha vida. Estou presa a ele como nunca pensei que fosse ficar por homem algum. Não faça mal a Mortimer.
Ela sempre tinha medo de acordar Mortimer. Tinha horror à risada de escárnio. Mas ele sempre era amoroso-apaixonadamente amoroso.
Havia vezes em que ela pensava: sim, eu sou uma rainha. Ele precisa de mim como eu preciso dele.
Haveria uma reunião do Parlamento em Nottingham. Havia algo de especial com relação a esse Parlamento. Alguns dos espiões de Mortimer tinham descoberto que o rei estava se encontrando muito com William Montacute e um dos criados deles tinha ouvido os dois falando em levar Mortimer a Nottingham.
Mortimer soltou uma gargalhada quando soube.
- Que tentem - disse ele. Mas Isabella estava aflita.
- Podíamos nos recusar a ir-disse ela.-Você podia fingir uma doença.
- Nada disso, meu amor. Nós iremos. Vamos nos hospedar no castelo de lá. Ele é a mais resistente fortaleza dos arredores. Vamos tomar posse dele e ver de lá o que acontece.
Mortimer e Isabella seguiram a cavalo para Nottingham cercados pela sua comitiva de cavaleiros, que ficavam cada vez mais esplendorosos nos trajes sempre que apareciam, proclamando a riqueza e o poder de Mortimer.
Apesar de todas as bravatas, Mortimer estava afetado pelos temores de Isabella. Sabia que vários daqueles que o haviam apoiado estavam agora afastando-se dele, e passou-lhe pela cabeça que aqueles que ficaram com ele o fizeram porque estavam tão envolvidos nas suas tramas que seriam julgados culpados, mesmo se se afastassem.
Agora, era tarde demais para irem embora. Tarde demais. Essas palavras tinham um som de mau agouro.
Ele tivera a precaução de chegar a Nottingham antes do rei, e isso lhe possibilitara tomar posse do castelo em nome da rainha Isabella.
Ocorreu à rainha que poderiam dar ao rei as chaves do castelo, e por isso ela providenciou para que as fechaduras externas fossem trocadas.
- Todas as noites - disse ela - as chaves serão trazidas para mim e eu irei guardá-las embaixo do meu travesseiro, onde saberei que estão em segurança.
O castelo em Nottingham era realmente uma fortaleza. Diziam que era inexpugnável e jamais poderia ser tomado, exceto pela fome. Fora construído no topo de um rochedo com 42 metros de altura, e mesmo antes de Guilherme o Conquistador mandar erguê-lo já existia ali uma torre que tinha sido usada pelos dinamarqueses contra Ethelred.
Enquanto isso, Montacute chegara a Nottingham com o plano de prender Mortimer no Parlamento e então levá-lo a julgamento. Àquela altura, Mortimer tinha ciência do que estava para acontecer e sabia qual seria seu destino se fosse preso.
Como tinha sido inteligente ao nunca viajar para parte alguma sem seus cavaleiros armados! Havia 180 deles - um pequeno exército que defenderiam seu senhor com a própria vida, porque o que teriam eles se o perdessem?
Ele não sairia do castelo. Não tinha coragem. O castelo estava bem fortificado. Estava bem abastecido. Eles poderiam sitiá-lo, se quisessem, mas não achariam fácil prender Mortimer.
A rainha estava desesperada.
- Quem iria pensar que chegaria a esse ponto? - bradou ela. Tenho que falar com meu filho.
- Minha querida - replicou Mortimer -, é tarde demais para falar com Eduardo. Ele jamais voltará a nos dar ouvidos. Já não é um menino. Acredita ser um homem e um rei.
- Então, ai de nós - lamentou a rainha. - Ouvi dizer que ele está fazendo investigações sobre a morte do pai. Eu sabia que isso aconteceria.
- Fique certa de que vou encontrar uma saída. Este não é o fim de Mortimer. Não cheguei tão longe para ter o mesmo fim que Kent.
- Mortimer, Mortimer - lamentou Isabella -, não fale assim.
- Isabella! - admoestou Mortimer. - O que aconteceu com você? Onde está a minha brava rainha que certa vez estava pronta a enfrentar o mundo?
- Isso foi antes... - murmurou ela.
Ele não pediu que ela continuasse. Ele sabia. Antes do assassinato de Eduardo. Antes de ela ter aqueles pesadelos em que ele vinha procurá-la na escuridão da noite.
- Ora-disse ele, ríspido -, temos que raciocinar com cuidado. Não podemos cometer um erro agora.
Ele mandou chamar Sir William Eland, o governador do castelo.
- O senhor compreende - disse ele - que agora somos uma fortaleza. Nossos inimigos estão na cidade de Nottingham. Um homem da minha posição tem inimigos, sem dúvida alguma, tenho motivos para acreditar que Sir William Montacute é um deles. Ele poderá tentar entrar no castelo, mas deve ser impedido, custe o que custar.
- Sim, senhor conde - disse Sir William Eland.
- Eu praticamente não preciso lembrá-lo-prosseguiu Mortímer
- de que seria perigoso desobedecer às minhas ordens.
- Eu compreendo, senhor.
- Então está tudo bem. Vamos ficar no castelo. Nossos inimigos que venham. Eles não poderão entrar. As chaves devem ser entregues à rainha Isabella todas as noites. Está claro?
- Está perfeitamente claro, meu senhor.
Mortimer dispensou o governador e foi falar com Isabella.
- Estamos perfeitamente a salvo aqui. Todas as entradas do castelo estão sob o controle de meus amigos. Eles nunca me abandonarão, porque têm sido meus partidários há muito tempo. Além do mais, têm certeza de que em breve dominarei esse pequeno bando que veio me prender. Depois que você falar com o rei, irá conquistá-lo para o nosso lado. Não foi sempre assim?
Isabella concordou, mas sentia uma mudança no ar. As vozes, agora, estavam chegando até ela com muita frequência.
- Estaremos seguros se ficarmos juntos - disse Mortimer. - O rei jamais lhe faria mal.
Ela não tinha certeza. O rei mudara. Já não era mais um menino, mas um homem.
O rei chegara a Nottingham. Montacute já estava lá e explicou a Eduardo o que acontecera. Mortimer, pressentindo o que eles pretendiam fazer, apossara-se do castelo e não havia como chegar até lá. Ele providenciara, com habilidade, para que todos os portões ficassem fortemente vigiados por homens em quem confiava, pessoas cujas fortunas subiam ou caíam com ele. As chaves tinham sido mudadas e estavam em poder da mãe de Eduardo. Todas as noites, ela dormia com elas debaixo do travesseiro.
- E o governador do castelo?
- Ele aparenta ser amigo de Mortimer, mas poderíamos sondá-lo.
- Quem é ele?
- Sir William Eland.
- Ele sempre foi um bom e leal cavaleiro.
- Não há dúvida de que tem medo de Mortimer, como tantos outros. Sabem que ele é cruel e brutal e por muito tempo tem conseguido o que quer. Dizem que a única maneira de uma pessoa manter-se viva é estar bem com Mortimer. vou encontrar meios de sondá-lo.
Isso não foi necessário. Sir William Eland foi procurá-los.
Ele era fiel ao rei, disse ele. Aquela era uma situação fora do comum, porque a rainha-mãe e seu filho estavam em lados opostos, ao passo que antes os dois tinham ficado juntos. Ele odiava Mortimer. Quem não o odiava? Quem não lamentava a influência que ele exercia sobre a rainha-mãe? E agora que parecia haver dois lados, ele tomaria o do rei, a quem jurara vassalagem.
- Assim, majestade - disse ele -, venho informá-lo de uma entrada para o castelo que muito pouca gente conhece. Existe uma passagem que fica por baixo do fosso e vai dar na despensa. Foi construída por um príncipe saxão durante as invasões dinamarquesas. Vossa Majestade poderia entrar por esse buraco e, assim, tomar posse do castelo.
O ânimo de Montacute despertou. Ele podia avistar um fim satisfatório para o empreendimento.
Planejou com o rei e com Sir William entrar no castelo naquela noite.
No quarto deles, Isabella e Mortimer preparavam-se para deitar-se. Ela colocara as chaves do castelo debaixo de seu travesseiro e, acreditava ela, os dois estavam a salvo durante a noite.
Devemos agradecer cada noite que passa, dizia ela com frequência para si mesma. Tenho um medo terrível de que um destino funesto paire sobre mim.
Era por Mortimer que ela temia, e não por si mesma. Não podia acreditar que Eduardo algum dia permitiria que alguém lhe causasse algum mal.
Mortimer disse que pensara em algo que deveria dizer ao bispo de Lincoln e a seus dois amigos de confiança, Sir Oliver Ingham e Sir Simon Bereford, que estavam no castelo aquela noite. Ele viria juntar-se a Isabella mais tarde.
Ele nunca se juntou a ela.
Enquanto falava com os amigos, Montacute, com uma guarda armada, chegou pela passagem secreta e entrou no castelo.
Mortimer ouviu a confusão do lado de fora da porta, seguida de gritos e gemidos. Abriu a porta e viu os homens armados e vários de seus guarda-costas mortos no chão.
- O que significa isso? - berrou ele. Foi imediatamente agarrado.
- Significa, senhor conde - disse Montacute -, que é um prisioneiro do rei.
Isabella, ouvindo os gritos, veio correndo em trajes de dormir. Quando viu Mortimer seguro pelos guardas, soltou um grande grito de agonia.
- Onde está o rei? O rei está aqui. Eu sei que o rei está aqui. Ninguém lhe respondeu, e ela correu e teria se atirado aos pés de
Mortimer, mas dois dos homens gentilmente a detiveram.
- Para onde estão indo? O que estão fazendo? Soltem Mortimer.
- Majestade, o conde de March é prisioneiro do rei.
- Levem-me até o rei. Levem-me até o rei-disse ela, soluçando.
- Meu doce filho, tenha piedade do meu bondoso Mortimer.
Ela escorregou suavemente para o chão. Estava gemendo enquanto arrastavam Mortimer para fora.
O rei emitira uma proclamação. Assumira pessoalmente a administração do país. Convocara um Parlamento que deveria reunir-se em Westminster no dia 26 de novembro, e sua primeira tarefa seria julgar o prisioneiro, Roger de Mortimer, conde de March.
O país inteiro falava sobre Mortimer. O povo havia muito que o odiava e deplorara o relacionamento dele com a rainha. Praticamente não havia um só homem na Inglaterra que não ficasse contente ao ver o fim do governo de Mortimer. O rei, agora, era um homem. Era igual ao avô. Graças a Deus, dizia o povo, finalmente a Inglaterra tem um rei.
A história da captura de Mortimer foi contada e a passagem secreta que dava entrada ao castelo de Nottingham foi batizada de o Buraco de Mortimer e assim passou a ser chamada dali em diante. Aquele devia ser o fim de Mortimer. Ele devia ter o mesmo destino dos outros favoritos que tinham tirado tanto da riqueza do país e a usado em benefício próprio. A Inglaterra já estava farta dele. O país precisava de um rei forte, um rei que restaurasse a lei e a ordem ao país, para que ele pudesse realizar as atividades comerciais e conhecer a justiça e, assim, ficar rico.
Chegou o dia em que Mortimer ficou diante do rei e seus pares.
As acusações contra ele diziam que usurpara o poder real, que assassinara o rei Eduardo II e Edmund, conde de Kent. Ele se apossara de receitas do Estado, a mais recente das quais tendo sido o pagamento feito pelos escoceses. Por todos esses crimes, foi considerado traidor e inimigo do rei e do reino e condenado à morte dos traidores, que era ser enforcado, estripado e esquartejado.
Era importante, concordaram todos, que não houvesse demora na execução da sentença. A rainha-mãe enviara repetidos apelos ao filho, mas ele não queria vê-la enquanto a sentença não fosse cumprida.
Mortimer tinha de morrer. O país assim o exigia.
Três dias depois de sua sentença, Roger de Mortimer foi levado para Tyburn e lá, vista por milhares de pessoas que se haviam reunido para presenciar o fim do homem mais odiado da Inglaterra, a terrível sentença foi executada.
.O reinado de triunfo de Mortimer terminara.
Eduardo estava angustiado. Não conseguia decidir-se sobre o que devia ser feito com a mãe. O velho fascínio que ela exercia sobre ele ainda existia. Acreditava que ela fosse culpada do assassinato de seu pai, pois sem dúvida que o tramara com Mortimer. Ele estava ouvindo rumores terríveis sobre a maneira pela qual o assassinato fora cometido e não havia dúvida de que qualquer pessoa que concordasse com um ato daqueles merecia a mais rigorosa forma de castigo.
No entanto... ela era sua mãe.
O que ele podia fazer? Não podia deixar que ela vivesse com honras. Nem permitir que ela se aproximasse de Filipa e do menino. Ela não podia acreditar que agindo daquela maneira diabólica nada aconteceria. Isso seria injusto para com o pai dele.
Ele pensava muito no pai. Recriminava a si mesmo por não ter sido mais vigilante. Ele deveria ter sabido, quando o internaram, que algum destino terrível estava sendo planejado para ele. com toda a honestidade, Eduardo podia apresentar como justificativa sua pouca idade. Um menino, como ele tinha sido, não sonhara que uma maldade daquelas fosse possível.
Eduardo ainda não iria falar com a mãe. Não podia encará-la. Ela assassinara seu pai - ela e Mortimer, em comum acordo-e se o rumor fosse verdade, da maneira mais horrível.
Não podia condená-la à morte como fizera com Mortimer. Mas não permitiria que ela ficasse em liberdade. Não permitiria que fosse à corte dele. Como permitir? Toda vez que olhasse para ela, pensaria nas coisas terríveis que ela deixara que fizessem com o pai dele. Ele discutiu o assunto com Montacute.
- Minha mãe! - murmurou ele. - Minha própria mãe!
- É uma situação difícil em que vossa majestade se encontra concordou Montacute. - vossa majestade terá de agir pronta e sensatamente.
- Eu sei. vou tirar-lhe toda a riqueza que ela acumulou - ela e Mortimer, juntos. Os ganhos mal adquiridos deverão ser devolvidos aos seus donos de direito. Mas ela é minha mãe, Montacute. Não posso me esquecer disso.
- Nem deve. Permita que ela tenha uma renda adequada de, digamos, três mil libras por ano. Isso irá mante-la com um padrão digno de uma rainha, mas sem extravagâncias. Mande-a para um de seus castelos e deixe-a ficar lá até vossa majestade ter decidido fazer o que for melhor para todos.
- Você tem a resposta, Montacute. vou fazer isso. E acho que o castelo de Rising daria a resposta.
- Está falando naquele lugar em Norfolk, não longe da cidade de Lynn?
- Naquele mesmo. Fica a uma certa distância de Westminster e de Windsor. Parece um ponto ideal.
- Sim, majestade, penso que fez uma escolha sábia.
Pelos sombrios aposentos do castelo de Rising, Isabella perambulava como se estivesse procurando o amante. Às vezes chamava o nome dele.
- Ele não morreu - dizia ela às amas. - Não pode estar morto. Ninguém podia matar Mortimer. Mortimer é invencível.
Elas tentavam consolá-la. Eram os pesadelos que a atormentavam. Alguém tinha de dormir no quarto dela e estar ali para consolá-la quando eles chegassem.
Uma vez Isabella imaginou que ele estava pendurado numa corda aos pés da sua cama. Ela ouvira dizer que, havia muito tempo, o rei João mandara mutilar o amante da mulher e pendurá-lo no dossel da cama dela, para que quando ela acordasse de manhã a primeira coisa que visse fosse o corpo dele, obscenamente agredido.
Então, ela sonhava que estavam fazendo com Mortimer o que tinha sido feito com Eduardo.
Nessas ocasiões, elas diziam:
- A loucura tomou conta dela.
Aquilo passava, e Isabella se lembrava de onde estava e por que estava ali. E que seu filho Eduardo, o rei, a enviara para lá, tornando-a sua prisioneira.
- Ele me quer fora do seu caminho - disse ela. - Eu me tornei um estorvo para ele... um lembrete.
Depois, caía numa melancolia e dizia às amas que a ânsia por Mortimer estava acima de suas forças. Ela chorava muito.
- Devia ter sido muito diferente - dizia ela. - Se ao menos eu pudesse falar com meu filhoMas Eduardo não se aproximava dela. Estava tentando encontrar os assassinos do pai. Todos tinham fugido para além-mar, mas isso não significava que não podiam ser encontrados e levados de volta para enfrentar a justiça. Depois, o interrogatório começaria. Ela teve um tremor.
- Deixe isso para lá, deixe isso para lá-disse ela.-Isso é coisa do passado e já acabou.
Era isso, lembrava-se ela, que Mortimer sempre dissera. E agora ele - o bravo, o forte, o viril -, o único ser que ela realmente amara em toda a vida, era coisa do passado e estava acabado.
Passaram-se os meses. Ela não viu o filho, nem a rainha dele e o filho dela.
- Um dia meu filho virá - dizia ela. - Ele jamais abandonará a mãe por completo.
Havia dias em que ela estava bem, mas as amas nunca sabiam quando o frenesi tomaria conta dela ou a loucura voltaria.
Às vezes, elas ouviam passos fantasmagóricos durante a noite.
- É a rainha Isabella perambulando pelo castelo - diziam. - A loucura está tomando conta dela outra vez.
EDUARDO ESTAVA NUM DILEMA. Descobrira os nomes dos homens que desconfiava que tinham matado seu pai. William Ogle, acreditava ele, tinha realmente cometido o ato. Quando Eduardo pensava nisso, sentiase mal de tanto horror, e seu génio, que ele herdara de seus ancestrais, ficava a ponto de explodir num acesso de fúria, o que sem dúvida faria se um dia pusesse as mãos em Ogle. Nada seria ruim demais para aquele homem sofrer. "E por Deus, ele vai sofrer", jurava Eduardo.
Havia outras pessoas envolvidas. Sir John de Maltravers era uma, Sir Thomas Gurney era outra. Eles tinham fugido para o continente no dia seguinte ao assassinato, o que sem dúvida era uma admissão de culpa.
Todos serão encontrados, prometia Eduardo a si mesmo, e quando forem, meu pai será vingado.
Mas aqueles homens culpados tinham desaparecido. Mortimer pagara o preço pelos seus pecados e a rainha Isabella estava morando no castelo de Rising, do qual não
podia sair sem seu consentimento. Ele ouvira dizer que a melancolia dela era tão grande, que ela estava tendo acessos de loucura.
Uma retribuição justa, pensava ele. Mas se trata de minha mãe, e não cabe a mim aumentar seu sofrimento. Seus pecados criaram para ela um inferno na Terra e cabe a ela viver nele.
Enquanto isso, havia problemas domésticos. Ele queria que sua irmã Eleanor fosse morar com Filipa.
Em meio a todas as coisas horríveis que tinham acontecido, o brilho de sua vida vinha de sua rainha e de seu filho.
O pequeno Eduardo estava progredindo bem e mostrando ser o menino mais bonito e inteligente que jamais vivera. Filipa era uma esposa e mãe feliz, e sempre que o rei sentia necessidade de consolo, ia procurá-la. Encontrou-a deliciando-se com uma carta que chegara da corte de Hainault. Ela sempre fora dedicada à família dela e havia uma troca constante de cartas entre as duas cortes, de modo que Filipa era mantida informada sobre a saúde, as emoções e as tristezas da família.
- Ela escreve de uma forma tão viva - disse Filipa. - Quando leio as cartas de minha mãe, é como se eu estivesse lá em casa.
Dessa vez, ela estava mais agitada do que o normal.
- Notícias muito boas, Eduardo. Minha mãe quer nos visitar.
- Será uma maravilha para você.
- É claro que digo a ela o quanto sou feliz, que você é maravilhoso para mim e o quanto combinamos um com o outro.
- Aposto que também escreve sobre as perfeições de seu filho.
- Naturalmente que ela quer ouvir falar sobre Eduardo.
- O que o menino tem feito ultimamente?
- Gritado de vez em quando, para chamar minha atenção. Continuando a gritar se a ama o pega no colo, porque quer a mãe dele.
- Eu não o culpo - disse Eduardo, carinhoso.
- Ele sabe exatamente o que se passa.
- Estou certo de que sabe tudo sobre o problema com os escoceses e com os franceses e todos os nossos outros assuntos.
Filipa notou a tristeza que se inseriu na voz dele e imaginou que ele estivesse pensando na mãe dele. Ela foi logo dizendo:
- Todos dizem que o pequeno Eduardo tem algo verdadeiramente maravilhoso. A cada dia que passa, ele se parece mais com você.
- Então parece que está a caminho de se tornar um paradigma de todas as virtudes... pelo menos aos olhos da mãe. Agora me fale mais sobre essas visitas propostas.
- Ela quer ver pessoalmente.
- Neste caso, precisamos fazer grandes preparativos para ela.
- Ó, Eduardo, como você é bom para mim!
Ele sorriu com um pouco de tristeza. As festividades seriam pagas com o dinheiro que ela levara para o país. O erário estava baixo. Quando é que não estava? Aqueles Plantagenetas eram uma família extravagante. Alguns gastavam com eles mesmos e suas famílias, como Henrique III, alguns com os seus favoritos, como Eduardo. Alguns em guerras, como seu avô. Ele mesmo não era contra certas extravagâncias no trajar. Na verdade, gostava muito. Um rei, afinal, devia aparecer num esplendor régio, para agradar aos súditos e impressionar os inimigos - caso contrário, o povo começaria a se perguntar se ele era ou não um rei de verdade.
- Temos de preparar um espetáculo realmente rico para ela. Suponho que seu pai não vai viajar com ela?
- Ele não pode deixar Hainault. Isabella vai ficar com ele. É a única de nós que está solteira.
- Duvido que vá ficar assim por muito tempo.
- Para ela deve ser solitário... com todas nós fora de casa. Primeiro eu saí para me casar com você, depois Margaret, com o imperador Luís da Baviera, e depois Jeanne, para a corte de Juliers. Agora deve estar muito diferente.
- Falar em famílias me faz lembrar uma coisa. Quero que Eleanor venha ficar com você.
- Ficar comigo? Você está falando para morar?
- Estou, quero que ela entre para sua equipe. Sabe, Filipa, o que aconteceu com minha mãe foi um choque para todos nós. Não sei como Eleanor está se sentindo, porque não quero perguntar a ela. Você é boa e delicada e doce e eu quero que a tome sob seus cuidados. Quero que você a console.
Os olhos de Filipa refletiam delicadeza.
- Meu querido Eduardo, pode contar comigo para fazer tudo o que puder para fazê-la feliz.
Eduardo olhou-a com emoção.
Será que algum dia um homem teve uma esposa tão perfeita?
Para a princesa Eleanor foi um grande alívio entrar para a equipe da cunhada. Filipa recebeu-a com entusiasmo e a amigável atmosfera caseira que a rainha levara para sua corte era exatamente aquilo de que Eleanor precisava naquele momento.
Tinham sido muitos os choques em sua vida. Ela aprendera logo que seus pais estavam em guerra um com o outro. Ouvira sussurros que não compreendia sobre os Despenser. Lembrava-se de ver um corpo balançando numa corda e ela e Joana tinham-se agarrado uma à outra, com medo de olhar pela janela e no entanto incapazes de deixar de olhar, embora soubessem que seus sonhos seriam assombrados por aquela visão durante muito tempo. Depois, o pai dela desaparecera e sua mãe viera da França com o conde de March; depois, o pai havia morrido e então, o que era mais aterrorizante de tudo, Joana fora separada dela e casara com o príncipe da Escócia. Eleanor jamais se recuperara de todo daquele choque, porque ela e Joana sempre tinham estado juntas até então. Tinham partilhado da mesma criadagem. Lady Isabella de Valence tinha sido a guardiã delas, e Johanette Jermyn a governanta, enquanto John de Tresk tomara conta do guarda-roupa delas. Eles haviam formado uma criadagem feliz, e então aos poucos ela percebera uma apreensão tomar conta deles. Naqueles primórdios, ela nunca pensara na vida sem Joana, e então de repente a irmã fora levada embora.
Pobrezinha da triste Joana, que ficara muito amedrontada e se agarrara a ela durante a noite e declarara que nunca, nunca iria embora. Mas chegara o dia em que todos tinham viajado até a Escócia - exceto Eduardo. Ele não quisera ir e dizia-se que era porque não gostava de que mandassem Joana embora.
E desde então Eleanor percebera que ela poderia ter sido a escolhida para ser enviada para aquele país frio e desagradável para viver entre estranhos, longe de casa, de Eduardo, de Filipa, de Lady de Valence e do resto. Eles poderiam ter permitido que Johanette a acompanhasse, mas depois de um certo tempo os conterrâneos das princesas eram sempre mandados de volta ao país de origem. Os de Filipa tinham sido, mas isso não era importante porque Filipa tinha Eduardo e era isso que ela queria; e agora eles tinham o querido filho.
Foi um dia alegre para Eleanor quando ela soube que em vez de ser mandada para alguma terra estrangeira iria fazer parte da equipe que servia à rainha. Aquilo era um bálsamo; servia para compensar a perda de Joana; e a intenção de Filipa era de que substituísse.
Havia o filho para ser admirado, porque Filipa não se portava nem um pouco como Isabella. Eleanor raramente a vira quando era criança, e quando o fizera tinha havido muitas coisas a serem lembradas-fazer mesuras da forma correta, dar as respostas certas às perguntas que lhe fossem dirigidas, e embora poucas o fossem, ela sempre tinha que estar pronta para isso. Filipa era bem diferente. Gostava de sentar-se com o filhinho no colo, com Eleanor sentada num banco, enquanto as duas conversavam sobre o menino e maravilhavam-se com ele.
Eleanor desejava que Joana estivesse ali, para que pudesse ter desfrutado daquela vida antes de ser levada embora para a Escócia.
Filipa fez muito para atenuar os temores de Eleanor. Tinha a certeza, dizia, de que quando Eleanor se casasse seria com alguém a quem amasse como ela, Filipa, amava Eduardo. Filipa nunca se cansava de contar a maneira romântica pela qual Eduardo chegara à corte de seu pai e que as quatro meninas tinham gostado muito dele, mas que houvera algo de especial entre ela e Eduardo, e contava o quanto ficara com medo de que não fosse ser a escolhida.
com o tempo, os sonhos de Eleanor deixaram de ser assombrados pela desgraça. Os dias eram agradáveis. Via mais Eduardo do que nunca e achava que realmente tinha sorte por ter um irmão daqueles e uma nova irmã que era boa, delicada e que a ajudara a compreender o que se esperava dela.
A grande excitação, agora, era a chegada da condesssa de Hainault. Filipa não via a mãe desde seu casamento; sua agitação era contagiante, e Eleanor foi contaminada por ela.
Eduardo juntava-se a elas e, muito animados, os três discutiam os preparativos para as recepções que iam dar. Eduardo estava determinado a fazer com que todas a honrarias fossem prestadas à mãe de sua rainha. Ele adorava justar, porque era excelente nesse esporte. Seus longos braços e pernas davam-lhe uma vantagem, e desde a morte de Mortimer e o afastamento da mãe uma aura de rei o envolvera. A cada dia que passava ele se parecia mais com o avô, mas gostava muito mais do esplendor do que Eduardo I jamais gostara. Não havia dúvida de que Eduardo gostava de exibir sua bela aparência e seu belo físico com finas roupas e aparecer diante de seu povo como um campeão; mas aquilo era uma vaidade compreensível, e o povo gostava.
- Haverá torneios em Londres e nos arredores - disse ele. Vamos começar com Dartmouth e Stepney, e o melhor de todos será em Cheapside. Seguirei pelas ruas com quinze cavaleiros escolhidos e iremos desafiar todos a nos enfrentar.
- Será uma maravilha - bradou a rainha.
- Mandarei erguer uma galeria por cima da estrada e vocês, as senhoras, irão assistir ajusta de lá.
- Minha mãe ficará muitíssimo grata pela sua bondade ao recebê-la com tanta prodigalidade - disse Filipa, mas estava pensando no custo, porque ficara impressionada com a pobreza da Inglaterra... que ainda estava sentindo o efeito das extravagâncias, primeiro de Gaveston, depois dos Despenser e, depois disso, de Mortimer... quando comparada com a prosperidade de Hainault, que era muitíssimo menor e de menos importância no mundo do que a Inglaterra. Ela estava certa de que alguma coisa deveria ser feita quanto a isso. Mas com o rei exultando com a previsão do prazer que estava para acontecer, aquele não era o momento de conversar sobre a pobreza do país.
A felicidade de Filipa completou-se quando a condessa chegou. Mãe e filha ficaram abraçadas durante algum tempo, e a condessa estava nitidamente ansiosa por ficar a sós com Filipa. Quando se viram sozinhas, ela disse:
- Agora posso olhar para você com clareza. Está com um aspecto radiante, filha adorada. Então tudo é tão maravilhoso quanto você me contou nas cartas?
- Eu me sinto perfeitamente feliz - garantiu-lhe Filipa.
- Eu previa que estivesse. Você nunca conseguiu enganar ninguém, Filipa. Não faz parte de sua natureza, e fico alegre com isso. Eduardo é um bom marido para você, não é?
- Eu não poderia ter outro melhor. Eu sabia disso desde o momento em que o vi.
- São poucas as pessoas tão afortunadas quanto você, filha querida. Seu pai vai ficar encantado quando eu voltar e contar a ele como as coisas são aqui. Andam falando na intenção de Eduardo de reivindicar a coroa da França.
- Ele tem direito, através da mãe dele - respondeu Filipa. A condessa abanou a cabeça.
- Filipejamais abrirá mão dela. Seria uma guerra longa e violenta.
- Acho que Eduardo percebe isso. Mas ele diz que há um direito através da mãe dele.
- Você sabe que ele teria o apoio de Hainault se vocês fossem à guerra, mas espero que nunca chegue a esse ponto. Receio que pouco se ganharia com isso e significaria longas separações. Nunca é bom marido e mulher ficarem separados um do outro. No entanto, às vezes com os reis isso é necessário. E quando há guerras...
- Não tenha medo, mãe querida - disse Filipa. - Eduardo é sensato. Ele já não é mais guiado pela mãe e por Mortimer. Mudou bastante. A senhora entende, ele era muito jovem. Agora, não é muito velho.
A condessa assentiu com a cabeça.
- Tanto peso sobre ombros tão jovens!
- Eduardo tem condições de carregá-lo. Disso não tenho dúvidas. A condessa beijou a filha.
- E onde está essa criança maravilhosa? - perguntou ela. Eduardo foi trazido e mostrou o que as duas declararam ser um interesse extraordinariamente inteligente pela avó.
As duas conversaram sobre a corte de Hainault e as irmãs de Filipa. A condessa estava um pouco triste por perder as filhas.
- Mas isso é inevitável, e ainda temos Isabella. Apesar de não termos dúvida de que a vez dela chegará. Seu pai e eu sentimos muito a falta de vocês. Mas quando eu voltar para casa e disser-lhe o quanto você é feliz, será um grande consolo para ele.
Seguiram-se dias de festejos, e o clímax das celebrações seria o torneio em Cheapside, entre Wood Street e Queen Street. Durante dias, homens tinham estado trabalhando na preparação do local e uma bela galeria de madeira tinha sido construída por ordens do rei. Ela se estendia de um lado ao outro da estrada e colocaria as senhoras na melhor posição possível para assistir ajusta.
Filipa estava muito ansiosa por que Eleanor desfrutasse das festividades e insistia em ter a menina a seu lado. Foi assim que ela se viu muitas vezes em companhia de Raynald, o conde de Gueldres e Zutphen. O conde, um bonito homem de grande charme, estava nitidamente impressionado com a fresca inocência da jovem. Filipe estava encantada por ele reparar em Eleanor e esta parecia muito contente ao lado dele.
- Pobre menina - disse ela à mãe -, teve uma infância muito infeliz, e como a minha foi muito feliz, quero fazer tudo o que puder por ela.
- Você sempre tevo a índole mais bondosa da família-disse-lhe a mãe, com carinho.
- Ela parece gostar da companhia de Raynald - prosseguiu Filipa. - Acho que ele a admira. Será bom para Eleanor apreciar o convívio com um homem desses e sabe que é velho demais para ser considerado como um possível marido. Ele tem quatro filhas, creio eu... como a senhora e meu pai tiveram.
- Ele perdeu a mulher há pouco tempo-acrescentou a condessa.
- Por isso, pode muito bem estar à procura de uma esposa.
- Se Eleanor fosse mais velha e ele mais moço, eu diria que poderiam apaixonar-se.
- Você é tão romântica!-disse a condessa. - Apaixonou-se por Eduardo da primeira vez que o viu, e eu nunca me esquecerei de como ficou aterrorizada, com medo de que uma de suas irmãs pudesse ser escolhida para se casar com ele.
- Meus temores não tinham fundamento. Nunca houve qualquer questão de uma delas ser a escolhida. Eduardo mandou seu bispo para escolher, é verdade, mas ele mais tarde me contou que avisara o bispo de que se desse valor à vida deveria me escolher.
- Eu achava que fora isso que acontecera - disse a condessa, carinhosa. - E você é realmente afortunada. Fico feliz por perceber isso e, minha querida filha, vou rezar para que continue com Eduardo como está agora.
Durante três dias, o rei, acompanhado de quinze de seus cavaleiros escolhidos, cavalgou pelas ruas de Londres desafiando para as justas todos os que chegavam. Eduardo estava esplendoroso. Estava agora com dezenove anos e já atingira sua grande altura, de pernas quase tão longas quanto o avô e com os mesmos cabelos muito claros, brilhantes olhos azuis e pele clara. Tinha a aparência, segundo seu povo, que um rei tinha de ter. O povo sentia orgulho dele. Parecia um deus cavalgando pelas ruas, a capa de tecido verde bordado com flechas douradas e forrada de seda vermelha. Os escudeiros seguiam atrás, com túnicas brancas de mangas verdes. Aquilo, diziam as pessoas, era uma visão agradável. O brilhante sol de setembro banhava benignamente o cenário, e nas janelas de cada casa as pessoas viam passar os cavaleiros. Elas ovacionavam o rei; estavam encantadas com ele. Finalmente, ele chegara ao poder e à maturidade. Destruíra o implacável e brutal Mortimer, que tudo agarrava e que todos odiavam. O rei agira com discrição com a mãe e, embora tivesse entendido que era culpada de grandes crimes, instalara-a de forma um tanto modesta no castelo de Rising, onde ficaria por um determinado prazo até que o tempo mostrasse a ele o que fazer. Dizia-se que ninguém tinha coragem de criticá-la a uma distância em que ele pudesse ouvir, o que mostrava um boa lealdade; por outro lado, não tornara a vê-la desde a morte do amante dela; Isabella ficara no castelo de Rising.
E havia a rainha - de faces rosadas, um pouco rechonchuda, delicada e esplendidamente vestida, a coroa na cabeça, a capa de veludo guarnecida de arminho. Podianão ter a beleza notável da rainha anterior, mas ninguém queria ser lembrado dela; e se havia algo de um pouco simples sobre o rosto de Filipa, ele brilhava com a suavidade de uma boa e delicada natureza. Ela fizera feliz o rei deles; ela lhes dera o seu príncipe; e o povo já se recordava de pequenos atos de bondade e da jovem que a rainha salvara da execução.
O povo de Londres estava contente com o rei, a rainha e o pequeno príncipe. Por isso, acudia em massa às liças e queria ver o rei sair triunfante.
Era como uma repetição da época do grande Eduardo.
Filipa, a mãe dela, Eleanor e algumas das mais nobres senhoras subiram a torre, sentaram-se e prepararam-se para ver o desfile.
Os trompetes soavam; a multidão ovacionava; a real procissão para as liças tinha começado.
Os músicos caminhavam à frente dos cavaleiros, tocando enquanto andavam. Estes eram seguidos pelos escudeiros do rei em seus brilhantes librés. Depois, o rei. O amor de Eduardo pelas roupas era evidente, já que para cada dia dos torneios ele escolhera trajes diferentes. Decidira que naquele dia ele e seus cavaleiros deveriam estar disfarçados de tártaros, e pareciam ferozes nos longos casacos de pele e chapéus altos.
Enquanto cavalgava nas liças, o primeiro olhar de Eduardo foi para a rainha na galeria, sentada ao lado da mãe, da irmã dele e das damas da corte. O rei fez uma curvatura acentuada, e a rainha imediatamente levantou-se para responder à sua saudação; quando ela fez aquilo, todos os que estavam na galeria também se levantaram; e quando se sentaram ouviu-se um som de estalo, seguido por um grito de uma das damas, porque a galeria pareceu oscilar e afundar, e de repente desabara numa nuvem de poeira.
Houve um momento de silêncio antes de instalar-se o pandemônio. O rei havia corrido para a estrutura que caía. Filipa, a túnica coberta de poeira, as faces brilhantes manchadas de poeira, levantou-se. Estava ilesa. A galeria tinha sido feita de madeira leve; era fraca demais para o peso das senhoras e nunca fora testada para ver se suportaria o peso de tanta gente.
- Filipa - gritou o rei -, você está ferida? Ela riu dele.
- Não, meu senhor. Um pouco abalada. Foi tão de repente! Eu não esperava.
Foi um alívio descobrir que ninguém estava ferido. As pessoas estavam se aproximando em grande número do local, e Eduardo gritou para que não se aproximassem. Ele estava nitidamente abalado e preocupado com as senhoras e, em especial, com a rainha.
- Como uma coisa dessas foi acontecer? - perguntou ele.
- Bem, estamos a salvo - assegurou-lhe Filipa. - Só um pouco abaladas e com os vestidos sujos. Eduardo, espero que isso não tenha estragado o dia para você. Não deve deixar que isso aconteça.
Filipa tinha visto um franzir de cenho começar na testa de Eduardo e sabia o que isso significava. Estava zangado. A rainha tinha medo da raiva dele. Ela vira muito pouco aquela raiva, e nunca fora dirigida a ela, mas ouvira falar no mau génio dos Plantagenetas. Parecia que a maioria deles o possuía e que em alguns era mais
violento do que nos outros. Henrique II e o rei João costumavam deitar no chão e morder os juncos nos seus acessos de raiva; Henrique III tivera pouco e Eduardo I
controlara o seu, como aquele Eduardo deveria controlar; mas havia ocasiões em que aquilo explodia, e aquela era uma delas.
- Quero que encontrem os homens que construíram esta galeria e os tragam à minha presença - disse ele. Houve uma pequena pausa.
- Procurem-nos - berrou ele - e tragam-nos aqui imediatamente.
- Já passou - disse Filipa, delicada. - Não ficamos machucadas. Esses acidentes acontecem.
- Acidentes desse tipo só podem acontecer uma vez no meu reino - retorquiu ele. Olhou para o rosto amável dela, sujo de poeira, e para o vestido rasgado. Sua Filipa, que poderia ter morrido com tanta facilidade. A ideia do que poderia ter acontecido com Filipa o deixou ainda mais irado.
- Por que essa demora? - berrou ele. - Encontrem esses homens. Tragam-nos aqui. Por Deus, eles vão desejar nunca terem nascido.
Filipa colocou a mão no braço dele, mas ele a afastou com um movimento do braço. Queria apenas dar vazão à raiva.
Os homens tinham sido encontrados. Chegaram temerosos e a expressão deles quando viram a galeria que desabara e as senhoras desgrenhadas fez com que começassem a tremer. O rei, com aspecto feroz em seus trajes de tártaro, quis saber por que aquilo tinha acontecido.
Os homens só conseguiam ficar com o olhar parado.
- Por que ela não foi testada para ver se poderia suportar o peso?
- Majestade... não houve tempo-disse o porta-voz deles.-Ela só ficou pronta cerca de uma hora antes do momento em que a justa deveria começar.
- Seus idiotas, seus patifes... sabem que isso poderia ter custado a vida da rainha?
- Majestade, a galeria era leve e frágil - disse Filipa, bem rápido.
- Na pior das hipóteses, poderíamos ter levado uma queda. Veja, não sofri arranhão algum.
Mas o rei não queria ouvir. Estava provocando em si mesmo a fúria, exagerando os danos, pretendendo infligir o castigo máximo àqueles homens descuidados cujo trabalho malfeito tinha estragado o dia e poderia ter causado mal à rainha.
- Levem-nos daqui - berrou ele. - Coloquem uma corda no pescoço deles e que sejam pendurados até a morte.
Houve um silêncio na multidão. Um dos operários, ainda um menino, caiu de joelhos e começou a soluçar. O rei virou o rosto para o outro lado e berrou:
- Levem-nos daqui. Façam o que mandei.
Filipa ficou horrorizada. Pensou nas famílias daqueles homens, que iriam ficar sem quem ganhasse seu sustento; pensou nos amores das esposas pelos maridos e das mães pelos filhos, e não deixaria que aquilo acontecesse.
Ajoelhou-se de repente diante do rei. Tomou-lhe a mão e disse:
- Meu senhor, o senhor tem dito que me ama e que me venera. Tem me dado muitos presentes. Não há nada que eu queira mais do que a vida desses homens. Se morrerem enforcados, irei lembrar-me deles pelo resto da vida. Não sofri arranhão algum. Nem essas senhoras. A galeria foi construída às pressas. Por favor, meu senhor, eu lhe peço, se me amar, poupe a vida desses homens.
O rei olhou para ela, com os cabelos soltos pelos ombros e os queridos olhos bondosos cheios de lágrimas; a dor aparente no rosto que ele estava acostumado a ver alegre e contente.
Eduardo hesitou, e ela esperou, observando-o.
Então, ela disse:
.- Meu senhor, se não atender ao meu pedido, jamais voltarei a ser inteiramente feliz. Sempre me lembrarei do que foi feito a esses homens que não me queriam mal e que são seus súditos leais.
- Soltem os homens - ordenou o rei. - Minha rainha pede por eles com tamanho ardor, que não posso resistir a ela.
A rainha cobriu o rosto, porque as lágrimas de alegria desciam-lhe pelas faces. De repente, ouviu-se uma ovação ensurdecedora. Ela enchia as ruas; o público avançava.
- Deus abençoe a rainha! - bradava ele. - Deus abençoe a boa rainha Filipa.
A condessa voltou para Hainault feliz com a visita à Inglaterra. Não podia haver dúvida da felicidade de Filipa, que evidentemente parecia a mais afortunada das princesas, por ter desfrutado de uma infância feliz e ter passado com muita facilidade para um casamento feliz.
Havia um motivo de preocupação para Filipa. Sabia que as celebrações em honra à sua mãe tinham sido muito dispendiosas e seu estilo frugal de vida não a deixava aceitar isso. Ela comparou sua terra natal com a Inglaterra; um país pequeno, mas uma economia rica; chegou à conclusão de que isso era porque o povo de Hainault trabalhava mais do que os ingleses.
Conversou com Eduardo sobre isso e a princípio ele achou divertido, mas depois de um certo tempo percebeu que o que ela dizia parecia sensato. Era verdade que a economia do país não estava progredindo. Havia muita pobreza em certas áreas. Durante o reinado de seu pai e de Mortimer não se pensara em aproveitar ao máximo os recursos do país; a riqueza era apropriada e absorvida pelos favoritos, que a usavam não para o bem do país, mas em seu próprio proveito.
Ela percebera logo que a lã produzida na Inglaterra, reconhecida como a melhor do mundo, seria mais lucrativa para o país se fosse transformada em tecido, em vez de ser exportada para os Países Baixos, para lá ser transformada em tecido e trazida de volta para a Inglaterra.
Eduardo raciocinou sobre isso e percebeu a lógica da teoria.
- Nosso povo não é tecelão - disse ele. - Não se preocupa em trabalhar com tanto afinco quanto o povo de Flanders. Gosta de cuidar de suas ovelhas, vigiá-las e esperar pela época da tosquia.
- Ele seria mais próspero se trabalhasse mais. Um país precisa de prosperidade, Eduardo. Ele fica mais feliz por causa dela.
Ele admitiu que sim.
- Diga o que tem em mente - disse ele.
- Quero mandar buscar alguns tecelãos para que venham à Inglaterra e instalem aqui uma colónia de tecelãos. Então, poderemos fazer o nosso tecido... um pouco, no início, e depois aumentar a produção. Eu gostaria de ver o tecido inglês... não apenas a lã... como o melhor do mundo.
- Muito bem, minha perspicaz rainha, vamos dar andamento nisso.
- Então tenho a sua permissão para escrever a um deles que conheço e que é um excelente profissional?
- Tem, minha queridíssima esposa e rainha.
Filipa escreveu imediatamente a um certo John Kempe, de Flanders. Se ele fosse para a Inglaterra com seus empregados, aprendizes e tudo de que precisasse para exercer suas atividades, teria a proteção do rei; e era desejo deste que eles montassem uma florescente indústria de tecelagem na Inglaterra.
Filipa estava encantada, porque acreditava plenamente que o trabalho árduo era o caminho para a prosperidade.
Houve muito coisa que John Kempe quis que fosse esclarecida antes de poder dar aquele grande passo. Mas o projeto começara, e embora levasse cerca de um ano para ser posto em execução, o bom senso de Filipa acabou sendo responsável pela instalação, em Norfolk, de uma indústria de tecelagem que levaria prosperidade não apenas a esta cidade, mas a toda a Inglaterra.
A princesa Eleanor iria casar-se. Por estranho que parecesse, a perspectiva deixara-a animada. Havia algo a respeito do conde de Gueldres que a fascinava. Pode ter sido porque ela ouvira Filipa falar tanto do encontro romântico entre ela e Eduardo, de como os dois tinham se apaixonado à primeira vista, e as provas que seus próprios olhos haviam presenciado lhe diziam como aquilo acabara em felicidade.
Eleanor estava apenas com treze anos, mas muitas meninas se casavam naquela idade; a própria Filipa não tinha sido muito mais velha e parecia que o rei estava satisfeito com o conde de Gueldres como marido para sua irmã.
Filipa se perguntava se Eduardo ainda pensava em obter a coroa francesa. Se pensasse, iria precisar de amigos no continente. O casamento dela se realizara, na verdade, por causa de uma aliança entre dois países. Se a rainha Isabella e Mortimer não tivessem precisado de um exército, nunca teria consentido com um casamento entre Hainault e a Inglaterra. Filipa estremeceu ao pensar o quanto sua felicidade dependera do acaso.
Eleanor conversou sobre Raynald com Filipa, que a estimulou, porque sabia, pelo que Eduardo lhe dissera, que ele havia decidido em favor do casamento; portanto, se Eleanor pudesse apaixonar-se pelo futuro marido, Filipa ficaria muito contente.
- Há algo muito emocionante nele - disse Eleanor com um sorriso.
Filipa concordou que, de fato, havia.
- É claro que ele é bem velho...
Eleanor esperou Filipa defender a idade, o que ela fez prontamente.
- A experiência tem um valor muito grande - comentou ela.
- Você teria amado Eduardo se ele tivesse sido casado antes?
- Eu teria amado Eduardo, não importa o que tivesse acontecido antes - disse Filipa com veemência.
- Suponha que ele tivesse tido quatro filhas?
- Eu as teria amado como amei as irmãs dele.
- Eu acho que filhas são diferentes de irmãs.
- Não teria feito diferença alguma - declarou Filipa. - Se a pessoa ama, nada pode fazer diferença.
- Você acha ele bonito?
- Muito! - disse Filipa.
- Eles o chamam de Raynald de Swerte no país dele. Você acha que ele é trigueiro? Ele tem uma pele muito escura, não tem?
- Ele é muitíssimo atraente. Isso o faz parecer forte, um pouco impetuoso... como um homem deve ser.
- Você deve preferir homens louros. Eduardo é muito louro.
- Eu não o amo por causa da cor dos cabelos.
- Não, não se faz isso. Na verdade, eu acho que um pouco de moreno fica muito atraente.
- Eu também acho - disse Filipa. - Mas não conte a Eduardo. Eleanor soltou uma gargalhada. Como eram confortadoras aquelas conversas!
Filipa as estimulava e todo dia preparava Eleanor para o casamento que se aproximava. Na intimidade, ela muitas vezes ficava um pouco aflita e conversou sobre Raynald com Eduardo e perguntou se ele achava realmente que o casamento era indicado.
- Tenho de achar um marido para Eleanor - disse ele. - Você sabe que tentei Alfonso de Castela e o filho e herdeiro do rei da França. Tentei, também, conseguir o filho do rei de Aragon. Todos esses foram examinados e deram em nada. Eleanor foi rejeitada três vezes. Começo a pensar que isso poderá pesar contra ela. Eu gostaria de vê-la casada em breve antes que se acredite que há algum feitiço trabalhando contra ela. Não quero que ela fique solteira.
- Parece errado que ela tenha de se casar com esse homem porque outras ofertas não deram resultado. Não é verdade que isso acontece nos círculos reais?
- Acontece, de fato, mas eu quero Eleanor casada e posso aproveitar a ajuda de Raynald. É impressionante, mas essas pequenas províncias parecem ter mais do que eu mesmo tenho das coisas de que preciso... dinheiro... armas... homens... tudo o que é necessário para obter conquistas. E pode muito bem acontecer que se não tiver que disputar a coroa da França eu tenha que voltar à Escócia um dia. Precisarei de ajuda, Filipa, e é mais provável que a consiga com membros da minha família do que em outro lugar qualquer.
- Raynald é um homem um tanto ambicioso.
- Todos os governantes competentes são ambiciosos.
- Não gostei do que ele fez com o pai.
- Minha querida e suave Filipa, você é boa demais para este mundo. Eu não disse sempre que o pai de Raynald era um homem fraco? Se ele tivesse continuado a governar, não haveria nada que valesse a pena Raynald herdar. Por isso, ele antecipou-se ao destino, só isso.
- Mas prender o próprio pai! Ouvi dizer que o manteve preso durante seis anos, e ele era um velho.
- Temos de admirar Raynald. Ele assumiu o controle de uma província que balançava... Se não tivesse feito isso, não haveria coisa alguma para ele controlar quando assumisse.
- Ele manteve o pai na prisão até morrer.
Sim, sim, mas o que foi que ele fez? Governou bem, com grande habilidade e vigor. E o resultado. Agora Gueldres, embora pequeno, é um dos mais importantes dos países europeus menores. O que ele fez é admirável, Filipa, muito embora significasse dominar o próprio pai. Na verdade, tudo o que ele fez foi tomar seis anos antes aquilo que acabaria sendo dele, e tomou antes que tudo ficasse imprestável. Ele tem-se mostrado um bom soldado e um governante sábio. É muito respeitado na Europa, e eu lhe digo uma coisa: até mesmo o rei da França teria de pensar duas vezes antes de entrar em desacordo com ele. Eu o receberei bem como meu cunhado.
- Acho que Eleanor está bem feliz.
- Não duvido que você a tenha ajudado a reconhecer a sua boa fortuna.
- Ajudei. Mas espero sinceramente que ele seja bom para ela.
- Mas é claro que ele vai ser bom para minha irmã.
- É um homem ambicioso e ela ainda não completou quinze anos. Ele escolheu a primeira esposa por causa da riqueza dela, creio eu, porque ouvi dizer que aquela riqueza estava muito acima do nível dela e que o casamento foi realizado quando os pais da noiva prometeram pagar todas as dívidas dele.
- De uma coisa podemos estar certos. O irmão de Eleanor não terá condições de ajudá-lo da mesma forma.
- Desta vez ele se casa com uma princesa da Inglaterra.
- Ah, minha Filipa, você é muito delicada e adorável para este mundo de ambição. Não que eu quisesse que fosse diferente. Eleanor, tal como a irmã dela, tem de se casar da maneira que melhor possa servir ao país. Fico satisfeito por ela não estar descontente com o nosso herói moreno. Mas se estivesse, não haveria solução.
Ela tem de ir para Gueldres como a pobre Joana foi para a Escócia. É o destino das princesas, meu amor.
- Sei muito bem disso, e agradeço a Deus eu ter podido seguir meu coração. Nunca deixarei de agradecer ao destino e a Deus, ou a quem quer que tenha determinado isso, o dia em que você chegou cavalgando pela floresta de Hainault; e bastou eu olhar para você para me apaixonar.
- Como me apaixonei por você. Assim que a vi, eu disse: "Ali está a minha rainha" e tomei a decisão naquele primeiro momento.
- vou rezar para que Eleanor sinta tanta felicidade quanto nós.
- Mas sabe, meu amor, isso é impossível, porque ninguém poderá sentir a mesma coisa.
Eduardo estava decidido a fazer com que a irmã fosse para o novo país bem equipada, e foi grande a agitação nos aposentos dela, onde o seu guarda-roupa estava sendo preparado sob a supervisão de Filipa. Ela fazia Eleanor experimentar os vestidos e, rindo, assinalava que ela mesma não poderia fazer aquilo. Estava muito rechonchuda e muito diferente da esguia Eleanor. Como era bonita a capa de tecido azul de Bruxelas, com bordas de arminho, a túnica de tecido dourado espanhol que a jovem usaria no dia do casamento; havia capas compridas trabalhadas com fios de ouro e brilhando com contas de prata e sobretúnicas de veludo e tecido de prata. O rei presenteara-a com caros ornamentos incrustados de jóias; havia diademas incrustados de pérolas e diamantes e várias faixas artisticamente trabalhadas em rubis e esmeraldas.
Não apenas ela iria levar seus vestidos e jóias, mas também muitas peças de mobília, a principal das quais era o leito nupcial, um magnífico trabalho com cortinas de seda de Trípoli finissimamente bordadas e decoradas em ouro com os brasões da Inglaterra e de Gueldres entrelaçados. Havia um carro triunfal, outro presente do irmão, decorado com o brasão dela e forrado de veludo roxo salpicado de estrelas douradas; e havia cadeiras, mesas, tapetes, cortinas e baixelas de prata e de ouro; até canecões, facas de mesa, pratos e colheres seriam levados por ela.
Eduardo decidira que ela deveria ir para o novo país equipada como uma princesa real.
Não foram apenas vestidos e móveis que Eleanor levou consigo. Foram preparadas para ela três toneladas de provisões, inclusive canela, açafrão, gengibre, arroz, tâmaras, sessenta quilos de açúcar branco em tabletes e 98 quilos de açúcar de Chipre para satisfazer a preferência dela pelos doces.
Eleanor providenciou, também, um bom estoque de sândalo, que pulverizado tinha um tom vermelho de carne, porque ela tinha uma pele muito pálida e, por admirar as rosadas faces da cunhada, gostava de retocar as suas com sândalo para dar a ela um brilho saudável.
Vários navios foram necessários para levar tudo para o outro lado do oceano, e já estavam sendo carregados em Sandwich.
Chegou o dia da partida. Eleanor teve uma carinhosa e muito lacrimosa despedida do irmão e de Filipa. A título de presente de última hora, Filipa deu a Eleanor uma túnica magnificamente forrada de peles e Eduardo presenteou-a com seis toalhas de altar que ela poderia dar as igrejas por onde passasse na viagem para o seu novo país.
Foi um cortejo esplêndido que viajou para a costa. Eleanor seguia à frente e entre a comitiva estavam 136 criados homens - pajens, salgadores, negociantes de aves domésticas, arreeiros, camareiros, lavadeiros, despenseiros, cavaleiros e escudeiros.
Ao longo de todo o caminho, as pessoas saíam para ver a procissão passar. Aquilo era muito diferente do casamento da irmã de Eleanor, Joana. Aquele casamento não agradara nem um pouco ao povo. Mas era evidente que Eleanor não se sentia infeliz.
O povo estava satisfeito com o novo rei, de modo que ovacionava a irmã dele e o casamento dela com Gueldres.
Filipa sentia saudade da jovem cunhada, mas estava profundamente absorvida em sua vida, porque para alegria sua ela ficara grávida outra vez.
Ela fora uma vez mais para Woodstock, onde o seu precioso primogénito Eduardo nascera.
- Tenho a impressão - disse ela - de que Woodstock me dá sorte.
E Eduardo, claro, tinha o máximo de prazer em atender aos desejos dela.
Foram feitos preparativos para o nascimento da criança, e dois berços estavam prontos, à espera de seu ocupante. Um deles, o berço de gala, era muito pomposo e, é claro, só seriausado em ocasiões especiais, quando a nobreza iria querer inspecionar a criança. Esse berço, que levava os brasões da Inglaterra e de Hainault, era belamente forrado de tafetá dourado e tinha um cobertor de peles feito com 670 peles e que praticamente só poderia ser usado quando o bebé fosse alguns meses mais velho e o inverno tivesse chegado.
No dia 16 de junho daquele ano de 1332, Filipa deu à luz o seu segundo filho. Desta vez, foi uma filha, tão bonita e tão fisicamente perfeita quanto fora o irmão.
O rei ficou encantado, e se teria preferido mais um menino, não demonstrou. Ele amava a garotinha tanto quanto amava o irmão dela, e nenhuma outra criança poderia ter vindo ao mundo com recepção mais calorosa.
O rei estivera pensando muito na mãe. Na verdade, em certa ocasião a visitara no castelo de Rising, onde soubera pelas criadas dela que ela sofria de acessos de loucura e que o sofrimento dela era tão grande, em certas horas, que temiam que ela pudesse ferir-se. Eduardo falara com ela com delicadeza, porque não podia esquecer tudo o que outrora ela significara para ele, e dera ordens para que nunca fosse tratada com um respeito menor do que aquele que era devido à posição dela e que ninguém esquecesse que se tratava de sua mãe.
Claro que era necessário mante-la no castelo de Rising, e ele não queria vê-la com muita frequência porque, embora sua consciência o perturbasse com relação ao fato de ela ser virtualmente uma prisioneira, sempre que a visitava vinham-lhe à mente pensamentos terríveis sobre a morte do pai. Todas as tentativas de encontrar os assassinos tinham dado em nada, até ali, mas ele acreditava que no devido tempo eles lhe seriam entregues; e quando isso acontecesse e ele tivesse vingado o pai, talvez ficasse com a mente mais tranquila.
Seus sentimentos mistos de tristeza e incerteza sobre a mãe levaram-no a sugerir que a filha fosse batizada em homenagem a ela. Apresentou a sugestão na forma de uma tentativa a Filipa, que imediatamente entendeu seus sentimentos.
- É um nome bonito - disse ela. - Sim, eu gostaria que a nossa primeira filha se chamasse Isabella.
A jovem Isabella desabrochava. Foi colocada sob os cuidados de Sir William e Lady Omer, enquanto que uma jovem chamada Joana Gaunbun foi contratada como assistente, cabendo-lhe as funções de balançar o berço, e o catre dela foi colocado ao lado do berço, a fim de que a qualquer hora da noite ela pudesse atender à criança, se preciso fosse.
Filipa amamentava a filha. Não suportava transferir essa atividade para qualquer outra pessoa; e, ao contrário de sua antecessora, passava muitas horas felizes na ala infantil.
QUASE QUATRO ANOS TINHAM-SE passado desde que a princesa Joana fora para a Escócia como noiva de David, o Bruce. Tinham sido anos de inquietação para Joana. Ela não ligava muito para o marido, que lhe parecera uma criança, sendo dois anos mais novo; ele tinha cinco anos quando ela chegou.
O país era frio e sombrio, os ventos eram cortantes, o povo casmurro, e ela sentia uma saudade amargurada do irmão, da irmã Eleanor e de sua nova cunhada, Filipa.
O velho rei tinha sido bom para com ela, mas sofria de uma doença terrível que distorcera sua aparência de forma horrível, e ele lhe dava medo, apesar da bondade. Ela ansiava pela sua casa e costumava falar ao pequeno marido sobre ela e o quanto queria voltar para lá.
Robert, o Bruce, morreu, e então David era o rei e ela era a rainha, o que os tornava muito importantes.
Pouco depois da morte de Robert, eles tinham sido solenemente ungidos e coroados e então perceberam que eram realmente rei e rainha.
David ficara ansioso quanto ao que teria de fazer, mas lhe disseram que não precisava se preocupar.
Tudo o que tinha a fazer era aquilo que lhe dissessem, e havia muita gente para dizê-lo.
Os dois homens principais a que eles tinham de obedecer eram os regentes. Um deles era lorde James Douglas, e o outro, o conde de Moray. Robert, o Bruce, expressara
o desejo de que seu coração fosse levado para a Terra Santa, porque durante sua vida ele fizera um juramento de que iria combater o Infiel. com todas as suas responsabilidades, nunca lhe fora possível cumprir o juramento, mas ele acreditava que se seu coração fosse levado até lá, seria absolvido do juramento não cumprido. Ele confiara em lorde James Douglas como confiava em poucos homens, e quando Douglas concordou em cumprir a missão, Robert sabia que ele faria tudo ao seu alcance para executá-la.
Lorde James Douglas tinha sido uma figura impressionante aos olhos de Joana desde o início. Era um homem muito grande, alto, ombros largos, com massas de cabelos muito pretos que lhe tinham valido o nome de Black Douglas. No entanto, quando ele falava - e, por estranho que parecesse, com um leve ceceio - revelava uma natureza bem tranquila e cortês, e embora ninguém pudesse ser mais violento em combate, nos relacionamentos pessoais era um homem delicado.
Joana começara a gostar muito dele, porque ele lhe demonstrava claramente que iria tomar conta dela. Compreendia exatamente como ela se sentia ao deixar a família, e queria que ela soubesse que enquanto estivesse perto dela nada teria a temer de ninguém.
Por isso, foi um grande alívio saber que ele tinha sido nomeado um dos regentes da Escócia e estaria em estreito contato com ela e com o jovem rei.
Mas infelizmente havia aquele juramento que ele fizera e deveria partir com o coração de Robert, o Bruce, a fim de cumprir a promessa.
Quando ele foi se despedir deles, mostrou-lhes o pequeno cofre feito de ouro em que era levado o coração de Robert, o Bruce. As crianças seguraram-no e ficaram impressionadas, e Black Douglas lhes disse o quanto aquele coração tinha sido corajoso.
- Os escoceses jamais se esquecerão do que devem a Robert, o Bruce - disse-lhes ele.
Mas Joana ficou amedrontada quando ele partiu. Caiu sobre ela uma solidão que parecia uma premonição de coisas ruins.
O conde de Moray tomará conta de vocês - confortara-os Douglas. - Tudo o que têm a fazer é o que ele mandar. E em breve estarei de volta.
Thomas Randolph, conde de Moray, era primo de Robert, o Bruce. Servira com o tio dele e fora mais chegado a ele do que qualquer outro homem, e Robert, em seu leito de morte, fizera-o regente ao lado de Douglas para ajudá-lo. Moray era um homem honrado; não havia ninguém em quem Robert, o Bruce, confiasse mais. Havia uma dignidade em Moray e uma determinação para fazer o que o tio esperava dele, e Joana sentia-se tão segura com Moray quanto com Douglas.
Por isso, quando Douglas partiu em sua missão, ela sentira que embora um daqueles que eram muito importantes para ela e David tivesse ido embora, o outro ficara e, como dissera Douglas, ele estaria de volta em breve.
Infelizmente, chegaram notícias tristes sobre Douglas.
Moray foi procurar as crianças, a fim de que ele mesmo pudesse dizer-lhes o que acontecera.
Ele sentou-se e atraiu-as para perto, e enquanto os dois ficavam ao seu lado, passou um braço em torno de cada um.
- Há notícias tristes sobre Black Douglas - disse ele em voz baixa.
Ele sentiu Joana enrijecer o corpo e prosseguiu com delicadeza:
- Eu sei que vocês gostavam muito dele. Douglas às vezes parecia feroz, não parecia?
Joana confirmou com a cabeça. Ela ouvira a história de como ele quase capturara o irmão dela. Considerava-o um homem amedrontador até conhecê-lo, e ele mesmo lhe contara a história.
- Era a guerra - dissera ele. - A guerra é uma coisa horrível, minha rainha. Nós queremos evitá-la por todos os meios.
- Na verdade, ele não era violento - disse Joana. - Quando ele vai voltar?
Moray abanou a cabeça.
- Vocês são rei e rainha - lembrou-lhes ele -, e quando há notícias ruins, é melhor que saibam logo. Douglas jamais voltará. Ele morreu.
- Morreu! - bradou David, com estridência. - Ele não pode estar morto!
- Infelizmente, meu pequeno senhor, está. Como sabe, ele levou daqui o coração de seu pai. Ele foi procurar Alfonso, o rei de Castela e Leon, porque sabia que ele estava em guerra contra o rei sarraceno de Granada.
- Eu pensei que ele iria para a Terra Santa - disse Joana.
- Não importa, majestade, se um cavaleiro vai para Jerusalém ou para a Espanha, desde que lute por Cristo contra o Infiel. Assim, haverá o mesmo mérito, aos olhos de Deus, em lutar na Espanha ou em Jerusalém. Assim, Black Douglas foi para a Espanha. Lutou bravamente nas planícies da Andaluzia, mas quando a batalha foi vencida ele perseguiu os mouros que fugiam. Foi longe demais e de repente ficou isolado de seus amigos. Ele levava o coração do Bruce e sabendo, é claro, que não poderia sair vivo daquela luta, atirou o coração para o meio dos inimigos e seguiu-o como seguira Robert, o Bruce, enquanto este vivera.
- Eles... o mataram - sussurrou Joana. Moray sacudiu a cabeça.
- Mas os mouros respeitavam um homem valente. Vão mandar o corpo dele para a Escócia e nós o enterraremos.
As duas crianças estavam chorando. Nunca mais tornariam a ver o Black Douglas; mas Joana, que era a mais velha, pensou: ele não estará mais aqui para nos proteger.
Mas eles tinham o querido conde de Moray. Estariam seguros enquanto o tivessem.
Joana estava cônscia de que havia algum problema se armando. Ninguém lhe disse nada, é claro, mas ela sentia uma certa tensão no castelo. Prestava atenção à conversa de amas e criados, porque achava ser importante saber o que se passava agora que Black Douglas tinha morrido e o conde de Moray tinha de ficar tanto tempo afastado dali.
Havia um nome que ela estava sempre ouvindo ser mencionado, e o nome era Baliol.
- Quem é Baliol? - perguntou ela a uma de suas amas que era do tipo que gostava de um mexerico e que, Joana descobrira, tinha mais probabilidade de prestar informações do que algumas das outras.
- Baliol, majestade. Vossa Majestade deve estar se referindo a Edwards Baliol. Ele é filho de John Baliol, que certa vez foi rei da Escócia. Eu diria que mestre Edward pensa que tem direito à coroa. Isso não me surpreenderia.
Mas David é o rei. Ele foi coroado, e eu também.
Isso é bem verdade, majestade, mas quando alguém acha que tem direito a alguma coisa, esse alguém tenta obter essa coisa.
- Você está dizendo que esse Baliol vai tentar tirar a coroa de
David?
- Isso jamais seria permitido.
- O conde de Moray irá impedi-lo, e Black Douglas teria feito o mesmo... se estivesse aqui. Pouco importa, o conde de Moray nunca deixará que isso aconteça. Conte-me mais sobre esse Baliol.
Mas a mulher havia percebido que já falara demais. Lady Joana era muito esperta. Num determinado momento, ela parecia apenas uma criança, mas no momento seguinte estava fazendo perguntas as quais era melhor não dar respostas.
- Não sei de nada-disse a mulher, franzindo os lábios. O velho sinal, pensou Joana, irritada. Todas chegavam a esse ponto quando alguma coisa estava se tornando interessante.
Mais tarde, ela ouviu mais coisas de uma outra fonte de mexericos.
Baliol estava provocando encrenca na Inglaterra, e o rei inglês não era tão hostil para com ele como seria de esperar-se, levando-se em consideração que sua irmã era a rainha da Escócia.
Parecia que havia alguns barões que tinham perdido suas propriedades ao apoiarem os ingleses contra os escoceses e, por estarem muito contrariados, estavam se unindo a Baliol.
Tudo aquilo parecia muito perturbador, e Joana falou no assunto com David que, por ser dois anos mais novo do que ela, ouviu atentamente e quando ela disse achar que poderiam estar tentando tirar as coroas deles, abanou a cabeça. Não podiam fazer isso, porque o pai dele tinha sido Robert, o Bruce, e aquilo que Robert, o Bruce, dizia que tinha de ser feito era feito.
- Mas ele já morreu - disse Joana. - Está morto como Black Douglas.
A ideia de que jamais tornaria a ver aquele ameaçador rosto moreno fez com que ela ficasse prestes a debulhar-se em lágrimas. Sentiu medo, também, até lembrar-se do conde de Moray.
- Está tudo bem - disse ela. - Ainda temos o conde de Moray. Ele nunca permitiria que alguém nos tirasse as coroas.
Moray foi visitá-los pouco depois disso e ela lhe fez perguntas.
Quando mencionou o nome de Baliol, ele quis saber quem lhe contara aquilo. Ela respondeu que prestara atenção e ouvira conversas.
- Ora-disse Moray -, é frequente haver problemas nos países. Muitas vezes acontece que quando existe uma coroa há quem queira tirá-la daqueles a quem ela pertence, para ficar com ela.
- Mas nós a temos - disse David.
- Sim, senhor meu rei, Vossa Majestade a tem, e na sua cabeça ela permanecerá enquanto eu tiver um braço para lutar para mante-la ali.
- Neste caso, ela ficará sempre ali - declarou Joana.
- Obrigado, majestade.
- Nós perdemos Black Douglas, mas ainda temos o senhor disse Joana. - Jamais sentirei medo enquanto tivermos o senhor.
O conde ficou emocionado. Beijou a mão dela e disse que serviria à sua pequena rainha com a própria vida.
- Será que esse tal de Baliol virá aqui para lutar? - perguntou Joana.
- É bem possível que ele faça isso.
- Ele jamais vencerá - disse David -, não é?
- Não deixaremos que ele vença - respondeu Moray.
- Meu irmão tampouco deixaria - acrescentou Joana.
O conde de Moray ficou calado; mas Joana não percebeu. Estava absorta demais com as recordações que a menção do irmão lhe trouxera. Muito pouco depois disso Moray despediu-se deles.
- Falarei com os senhores em breve - disse ele. - Ouçam o que ouvirem, não tenham medo.
Tudo o que têm a fazer é o que eu disser. E se eu disser que devem ir para
tal e tal lugar, sabem que será para a sua segurança e vão fazê-lo, não vão?
- Vamos - disse Joana falando por David, como tantas vezes fazia.
- Tudo vai ficar bem.
- Vai - disse Joana, com confiança -, enquanto tivermos o senhor para tomar conta de nós.
Moray partiu para Musselburgh e poucas semanas depois chegou um mensageiro ao castelo de Edinburgh. Ele queria falar com o rei e a rainha.
Eles sabiam que ele era um dos escudeiros do conde e a seriedade de sua expressão fez com que Joana ficasse aterrorizada.
Você vem a mando do senhor conde? - perguntou David.
- Majestade, tenho notícias tristes. Tínhamos ido de Musselburgh para Wemyss quando de repente ele ficou doente. Ele morreu naquela mesma noite.
As crianças ficaram pasmas. Primeiro, Black Douglas, e agora o conde de Moray. Os dois protetores arrancados deles um atrás do outro.
Ficaram perplexos demais para chorar. Isso viria depois. Tudo em que podiam pensar agora era que tinham perdido o querido Moray.
Nada poderia ser o mesmo outra vez. Havia muitos sussurros. Joana prestava atenção e na cama, à noite, ficava tremendo por temer que algo de horrível estivesse para acontecer.
Tinha de ficar sabendo de tudo que pudesse. Sentia-se muito criança, inútil, e David era ainda mais.
Não ficou surpresa, ao ouvir as vozes abafadas, quando percebeu a palavraj "Veneno!"
- Não há dúvida de que ele foi envenenado - diziam. - Edward Baliol tinha homens em toda parte. Muito fácil... um pouco na comida dele. Algo no vinho que ele tomava. Nada será a mesma coisa agora que Moray está morto.
Eduardo estava a par de que haveria encrenca na Escócia. Ainda sentia os efeitos da humilhação quando se lembrava daquela sua campanha. Era muito jovem, muito inexperiente. Agora seria diferente, prometeu a si mesmo, se surgisse a oportunidade.
Muitas vezes pensava que gostaria de dar seguimento à obra de seu avô. Gostaria de ser o homem que subjugasse a Escócia; em vez disso, durante o fraco reinado de seu pai, Robert, o Bruce, conseguira consolidar seus sucessos. Mas Robert, o Bruce, tinha morrido e um garotinho estava no trono. Era verdade que ele contara com dois homens fortes para ficar a seu lado - Moray e Black Douglas -, mas agora os dois estavam mortos.
Ele pensava nos problemas na Escócia quando Henry de Beaumont pediu permissão para falar com ele. Eduardo ficou alerta. Beaumont era um daqueles barões de quem os escoceses tinham confiscado as possessões porque ele ficara do lado dos ingleses.
Eduardo o recebeu imediatamente.
- Majestade - disse ele -, Edward de Baliol está lá fora. Vim perguntar se Vossa Majestade quer recebê-lo.
- Edward de Baliol! - bradou o rei, surpreso. - com que finalidade?
- Isso é algo que ele gostaria de lhe dizer em pessoa.
- Neste caso, eu o recebo.
Baliol! Um filho fraco de um pai fraco, pensou Eduardo. O que queria ele? Eduardo podia dar uma resposta rápida a essa pergunta: a coroa da Escócia.
Eduardo esperou para ouvir o pedido dele.
- Majestade - disse Baliol -, os regentes da Escócia morreram há pouco tempo.
- Dizem que Moray morreu envenenado. É verdade?
- Isso, majestade, não sei dizer.
Ou seja, não vai dizer, pensou Eduardo. Posso jurar que foi um de seus agentes que administrou a dose fatal.
- E Douglas, naquele ato impensado! Pensei que ele iria perceber que o seu dever era para com o país.
- Majestade, ele morreu como achou que devia. O que vim dizer é que a Escócia está num torvelinho. Os dois homens que estavam governando... alguns dizem que com competência... já morreram. Vossa Majestade sabe que o rei e a rainha são meras crianças.
- Sei, já que uma delas é minha irmã.
Baliol vacilou um pouco. Seria loucura pedir ao rei da Inglaterra que agisse contra a própria irmã?
- Escolheram o conde de Mar para o lugar de Moray. Ele é uma pessoa fraca. A situação do país é grave demais para ele controlar.
- E o que é que o senhor gostaria que eu fizesse? - perguntou Eduardo.
- Eu gostaria de pedir a sua ajuda, majestade. Meu pai foi rei da Escócia. Eu sou seu herdeiro. Se Vossa Majestade me ajudar a recuperar o que é meu, prestarei vassalagem a Vossa Majestade como meu soberano.
Eduardo ficou calado. Aquilo seria um passo na direção certa. Iria recolocá-lo na posição em que seu avô estivera. Significaria depor sua irmã; significaria desonrar o tratado que ele fizera; além do mais, estaria obrigado a pagar ao papa vinte mil libras se rompesse o tratado.
- Majestade - disse Baliol -, o casamento de sua irmã com David Bruce nunca foi consumado. Se eu fosse rei da Escócia, poderia haver uma dispensa. Eu me casaria com sua irmã. Eu daria Berwick a Vossa Majestade.
Já chega - disse Eduardo. - Não posso ajudá-lo. E também
não posso permitir que o senhor marche em território inglês.
- É a sua última palavra?
Eduardo hesitou apenas coisa de um segundo a mais do que o devido e as esperanças de Baliol foram às alturas.
- vou ter de submeter o assunto ao meu Parlamento - disse Eduardo.
Eduardo estava vigilante. Enquanto isso, Baliol reunira uma frota na Inglaterra e Eduardo não fizera objeções. Dentro de um certo tempo, ele partiu para Fife, desembarcou num lugar chamado Duplin Moor e, sem que ninguém esperasse, derrotou as forças escocesas reunidas. Durante o combate o novo regente, conde de Mar, foi morto e nada havia para evitar que Baliol marchasse em direção a Scone, onde foi coroado rei da Escócia.
David e Joana souberam do que estava acontecendo e se perguntavam o que seria deles. Joana era de opinião de que o irmão iria salvá-los.
- Ele vai chegar marchando sobre a Escócia - disse ela -, e Baliol vai correr para salvar a vida, você vai ver.
O que aconteceu foi que Baliol enviou um mensageiro até eles.
- Meu senhor - disse o mensageiro -, o rei da Escócia lhe faz uma proposta.
- Como pode ser isso? - perguntou David, arrogante. - Eu sou o rei da Escócia.
- Parece que já não é mais, meu senhor - foi a resposta. - O rei Edward de Baliol envia suas saudações ao senhor e deseja que saiba que se renunciar ao seu direito à coroa ele lhe oferecerá um salvo-conduto para sair da Escócia ou permitirá que fique em qualquer lugar que quiser.
- É generoso da parte dele-disse David com sarcasmo. - Diga a Edward de Baliol que deploramos sua insolência e que a rainha e eu continuaremos onde queremos, no nosso próprio domínio.
O mensageiro partiu e Joana instou o jovem marido a escrever sem demora ao irmão dela. Estava certa de que ele marcharia até a Escócia para ajudá-los.
A carta de Baliol ao rei da Inglaterra chegou primeiro. Ele lembrava ao rei que estava disposto a se casar com Joana, a aumentar a terça dela e, se ela não quisesse casar-se com ele, pagaria a ela dez mil libras pela sua parte se ela se casasse com outra pessoa. Tudo o que pedia era que ela renunciasse ao seu direito ao trono da Escócia que viera através de Davíd, o Bruce.
Eduardo vacilava. Nesse ínterim, recebeu o urgente pedido de ajuda do seu jovem cunhado.
Não iria ajudá-lo. A desculpa foi de que alguns de seus nobres tinham sido privados de suas heranças pelos reis escoceses e, portanto, não poderia tomar partido contra eles.
O triunfo de Baliol durou pouco. Muitos escoceses leais ao jovem rei levantaram-se contra ele e atacaram-no com tamanha decisão e sucesso, que o rei recém-coroado foi obrigado a abandonar sua recente conquista e fugir para a Inglaterra.
Eduardo permitiu que ele fizesse isso e chegou até a recebê-lo com certa amabilidade em sua corte. Quando a notícia disso chegou à Escócia, a raiva dos escoceses foi intensa e, para demonstrar a sua indignação, muitos deles voltaram a adotar táticas antigas e atravessaram a fronteira com a finalidade de provocar os ingleses, incendiando aldeias e fugindo com o gado.
Eduardo não ficou contrariado de todo. Aquilo lhe dava a oportunidade que na verdade queria, porque a ideia de instalar Baliol no trono escocês como seu testa-de-ferro o atraía. Não iria fracassar como seu pai. Para ele não haveria Bannockburn. Mesmo assim, havia o tratado; era preciso pensar no papa; e havia o fato de que sua irmã estava casada com David, o Bruce.
Mas aquela era a oportunidade de recuperar o que pertencera a seu avô e levar adiante os planos de subjugar a Escócia para sempre, que tinha sido o principal objetivo da vida de Eduardo I.
Mas ele tinha de ir com cuidado. Estava numa situação delicada. Primeiro, exigiu a devolução de Berwick e que a Escócia lhe prestasse vassalagem feudal.
O jovem David ficou perplexo; Joana, também. Ela acreditara que assim que soubesse que estava em perigo Eduardo iria até lá. Ele gostava tanto dela! Beijara-a com muito carinho na despedida e lhe dissera que ela deveria sempre lembrar-se de que era irmã dele e de que seriam amigos para sempre. Será que ele quisera dizer que ela deveria ajudá-lo se ele precisasse dela, mas que se ela precisasse dele isso seria uma outra história?
David, instruído pelos seus ministros, recebeu um discurso para decorar. Joana o escutava enquanto ele treinava. Era deprimente o fato de o irmão dela, Eduardo, ser considerado um inimigo.
- Nem meu pai, nem qualquer um dos seus ancestrais reconheceram a submissão à Inglaterra, tampouco irei admitir isso... - A voz de David se arrastava. - Se qualquer outro príncipe nos prejudicar, Vossa Majestade deverá nos defender, com base no amor que tem pela sua irmã e nossa rainha.
Joana não suportava ouvir aquilo. Eduardo!, pensou ela. Eduardo, como pode fazer isso conosco? Gostaria de poder ir falar com ele, vê-lo, explicar-lhe. Se ao menos pudesse falar com Filipa!
Os escoceses tinham rompido o contrato, declarou Eduardo. Tinham feito ataques de surpresa a pequenas cidades da fronteira e tinham-se recusado a devolver Berwick, que lhe tinha sido prometida por Baljol. Se ele não agisse, em breve estariam penetrando mais para o sul da Inglaterra. Ele tinha justificativa para o que estava prestes a fazer.
Queria vingar-se. Queria apagar para sempre a deprimente recordação de sua primeira campanha contra os escoceses.
Enquanto Eduardo preparava seus exércitos para a marcha em direção ao norte, Filipa declarou que não podia deixar que ele fosse sozinho. Eduardo ficou encantado. Sua avó acompanhara seu avô em suas campanhas e ele estava cada vez mais ansioso por ser igual a ele.
- Há as crianças - disse Filipa, preocupada.
- Ah - replicou Eduardo. - Você vai ter de escolher entre nós. Foi a escolha mais triste que Filipa tivera de fazer em sua vida de casada. Havia em Eduardo uma característica que ela observara. Era um marido fiel, disso estava certa, mas tinha visto os olhos dele seguirem mulheres atraentes e observara que ele gostava de guiá-las nas danças, de ficar ao lado delas. Eram grandes as tentações dessa natureza na vida de um rei.
Eduardo sentia um amor profundo por ela. Dava provas disso. Mas ao mesmo tempo seria uma esposa muito ingénua se permitisse que a tentação chegasse a ele enquanto estivesse longe dele.
Eduardo era muito vivaz, muito viril. Era muito bonito. Todas as mulheres deviam admirá-lo; e além de sua extrema masculinidade e de sua notável beleza, tinha à sua volta aquela aura de realeza que tantas mulheres achavam irresistível.
Filipa chegou à conclusão de que colocaria as crianças sob bons cuidados e seguiria o marido para a frente de batalha.
Ela escolheu guardiãs em quem achava que podia confiar e mandou os filhos para o palácio de Clarendon; e partiu para a Escócia com Eduardo.
Quando chegaram a Knaresborough, ocorreu mais um daqueles incidentes nos quais Filipa foi capaz de demonstrar sua natureza bondosa, e uma vez mais salvou uma pessoa do patíbulo. Tratava-se de uma mulher chamada Agnes, que roubara um sobretudo e três xelins. Quando ela estava sendo levada para a forca, a rainha passava a cavalo com o rei perto dali e a jovem filha da mulher atirou-se à frente do cavalo da rainha, e poderia ter sido atropelada se Filipa não tivesse puxado as rédeas com violência.
A visão de uma criança em apuros sempre conseguia emocionar profundamente a rainha, e quando soube que a mulher condenada estava grávida, Filipa implorou ao rei que lhe desse uma suspensão da sentença pelo menos até que o filho nascesse.
Galantemente, Eduardo aceitou o pedido e houve vivas à rainha. Naquela noite, porém, enquanto os dois estavam deitados em Knaresborough, Filipa estava muito preocupada com o que seria da criança órfã quando, depois que ela nascesse, o carrasco reclamasse a sua vítima.
- Ela precisa viver para cuidar do filho, Eduardo. E me pareceu uma coisa terrível o fato de um sobretudo e três xelins serem considerados como valendo uma vida.
- Parece que sim - disse Eduardo, pensativo. - Mas não podemos permitir que os ladrões vicejem. Na época do meu grande ancestral, Guilherme, o Conquistador, nenhum viajante precisava ter medo de usar as estradas. A penalidade pelo roubo não era a morte, mas a perda de orelhas, mãos, pés, olhos... O que quer que se achasse indicado. No fraco reinado de Estêvão, quando essa penalidade foi abolida, as estradas ficaram cheias de ladrões... e pior. Viajantes eram raptados e levados para os castelos dos barões ladrões, a fim de serem roubados e torturados e servirem de cruel diversão para os convidados daqueles malvados. É fácil dizer que o preço de um sobretudo é a morte, mas não é apenas um sobretudo que estamos levando em consideração.
Filipa ficou calada.
- Sei muito bem disso - disse ela, por fim. - Mas vou sentir pena daquela criança. Creio que a mulher roubou para alimentar a filha que está viva. Eduardo, você está sempre querendo me dar uma jóia para mostrar o quanto me ama. Eu preferiria ganhar a vida dessa mulher a qualquer jóia.
É assim Eduardo disse que a mulher deveria ser perdoada; e o povo cercava a rainha quando ela saía e a abençoava com lágrimas nos olhos, e ela passou a ser chamada de a Boa Rainha Filipa.
O rei da Inglaterra estava em marcha. Robert, o Bruce, estava morto e o rei Eduardo parecia e agia como o avô. Não havia um exército escocês digno deste nome. Nunca tinha sido fácil disciplinar os escoceses. Eles precisavam de um William Wallace ou de um Robert, o Bruce, e não tinham nenhum dos dois. Moray tinha morrido. Black Douglas também. Eles estavam sem aqueles líderes que poderiam tê-los levado à vitória.
Sir Malcolm Fleming foi a Edinburgh. Ele sabia o que Eduardo planejava. Iria instalar Baliol como um rei títere e levar David e Joana de volta para a Inglaterra. Lá, os dois viveriam com conforto - mas como prisioneiros. Aquilo não podia acontecer. David deveria continuar como o rei da Escócia e se algum dia caísse nas mãos de Eduardo, quem podia dizer o que o rei inglês o levaria, com engodos, a prometer?
O plano de Sir Malcolm era levar os jovens rei e rainha para Dumbarton, reconhecido como o mais bem fortificado castelo do país, e ele era seu governador. Lá, ele iria manter o casal real; se fosse necessário que os dois deixassem o país, ele poderia colocar um navio à espera deles e eles poderiam seguir para a França, quando o perigo chegasse perto demais.
Parecia um bom plano, e as crianças partiram com Sir Malcolm.
E assim seguiram para Dumbarton, aquela lúgubre fortaleza situada sobre uma ponta de terra formada pelo Clyde e o Leven, de onde seria possível embarcar caso necessário.
Foi uma aventura cavalgar durante a noite com o bondoso Sir Malcolm, embora David odiasse abandonar seu castelo e - ainda mais - a possibilidade de abandonar a própria Escócia. Ele era o rei e estavam tentando fazer com que fosse destronado.
Tudo era culpa do irmão de Joana. Ele ficou emburrado e não falava com ela. A jovem não ligou para isso, mas estava profundamente magoada por Eduardo ter marchado contra a Escócia enquanto era a rainha.
- Não precisava ter havido casamento - disse David. - A intenção era fazer com que Eduardo ficasse nosso amigo.
- Ele é mesmo nosso amigo - tentou explicar Joana. Mas infelizmente não conseguiu encontrar argumentos que apoiassem aquela declaração.
Eles se instalaram em Dumbarton e David esqueceu a animosidade para com ela, porque aquilo tudo era muito emocionante. Mensageiros estavam sempre chegando ao castelo e os dois costumavam sentar-se junto à janela e ver os navios dançando sobre as águas. Havia sempre homens para carregá-los de produtos e por isso, disse David, nós poderíamos entrar neles e partir em uma hora.
- Nós teríamos de esperar a maré - retorquiu Joana.
- Claro que esperaríamos pela maré.
- Neste caso, poderia demorar mais de uma hora.
- Não seja boba. Eu gostaria de partir naquele navio. Joana pensou no caso. Sim, ela achava que também gostaria. E um dia os dois partiram. Sir Malcolm foi procurá-los e disse:
- Preparem-se. Vamos partir com a maré.
- Para onde vamos? - bradou David.
- Para a França, senhor meu rei.
Eles se prepararam com rapidez. Estavam contentes por terem sido avisados, semanas antes, de que ficassem prontos. Haveria menos probabilidade de esquecerem algo importante.
Dentro em pouco, estavam subindo a bordo. E depois... seguiram para a França.
Foi uma travessia difícil, mas o jovem casal estava excitado demais pela perspectiva diante deles para perceber os rigores do mar. David achava que era errado ficar agitado, porque estava deixando seu reino; ele seria um rei no exílio e o seu conhecimento de história lhe dizia que aquilo não era muito bom. Joana estava deprimida pela ideia de estar fugindo dos exércitos de seu próprio irmão que se aproximavam.
Ainda assim, o tédio da vida em Edinburgh acabara e aquilo estava se tornando muito aventuroso.
Quando chegaram a Boulogne, foi enviado um mensageiro ao rei da França para comunicar-lhe a chegada deles, e muito pouco depois ele enviou uma companhia de cavaleiros para dar-lhes as boas-vindas e levá-los para a corte da França.
A amável preocupação do rei da França foi um grande consolo para os escoceses, e eles não perderam tempo e aceitaram sua hospitalidade.
Filipe VI já se mostrara um monarca poderoso, e o contraste entre ele e seus três antecessores, os filhos de Filipe IV, era marcante e a mudança colocara novas esperanças no coração de seus súditos, particularmente agora que eles acreditavam que a maldição dos templários se esgotara. Ela fora dirigida à linhagem dos Capelo; e com a morte de Carlos IV, os Valois tinham assumido o lugar da casa governante.
É verdade que o pai do rei tinha sido irmão de Filipe IV, mas se tratava de um novo ramo na árvore real e a maldição acabara.
Ficara claro, desde o início, que Filipe era um homem forte. Imediatamente, ele se pôs a arrancar a França do atoleiro para onde três reis fracos a tinham levado. Ele já subjugara os flamengos e ordenara que o jovem rei da Inglaterra lhe prestasse vassalagem. Era verdade que ele sentia uma certa inquietação, devida à reivindicação do trono da França pelo jovem Eduardo, por ridículo que pudesse parecer, mas mesmo assim Filipe acreditava que deviam estar preparados para encrencas. Através do casamento com Filipa de Hainault, Eduardo assegurara a amizade dos Países Baixos. Filipe ouvira dizer que a rainha inglesa tinha ideias de melhorar o comércio da Inglaterra.
- Quem é ela? - dizia Filipe. - A filha de um comerciante!
- Os habitantes dos Países Baixos são comerciantes por profissão - era a resposta zombeteira.
Ainda assim,.Eduardo precisava ser vigiado. Ele era popular em seu país, e, desde que se livrara de Mortimer e assumira as rédeas, tinha havido melhorias. Filipe soubera que Filipa estava importando tecelões para a Inglaterra e que eles estavam-se tornando prósperos naquela pequena comunidade.
Sim, Eduardo precisava ser vigiado.
Era bom ele precisar ser mantido ocupado na Escócia, porque enquanto gastava suas energias por lá não poderia voltar-se para a França. A última coisa que Filipe queria era ter uma guerra, cujo objetivo seria provar se ele ou Eduardo tinha direito ao trono da França. Por mais absurda que essa sugestão parecesse, significaria uma longa e calamitosa guerra, e se Eduardo estivesse ficando cada vez mais parecido com o avô, ele poderia ser um inimigo fortíssimo.
Portanto, Filipe iria aproveitar-se bastante daquele pequeno rei escocês. Títere ele poderia ser, mas podia ser ensinado, e quem sabe se daquilo poderia resultar algum bem?
O próprio Filipe seguiu a cavalo para receber o cortejo que entrava em Paris.
Abraçou Joana e cumprimentou-a pela sua beleza. Tratou David como se fosse um grande rei. Por isso, as duas crianças ficaram encantadas pelo rei da França.
Haveria uma festa em honra deles, disse-lhes Filipe, e os dois sentariam um de cada lado dele. Havia comidas que eles jamais tinham provado, música e dança elegante. A corte francesa, segundo os dois, era uma espécie de paraíso e o rei era o homem mais encantador do mundo.
Os aposentos deles eram luxuosos-muito diferentes dos cómodos escassamente mobiliados da Escócia e ainda mais grandiosos do que muitos da Inglaterra.
Parecia não haver coisa alguma que o rei da França não fizesse para o conforto deles.
- Pobres crianças - dizia ele, abraçando-as -, como estou contente por terem me procurado para consolá-los.
- Vai me ajudar a recuperar meu reino? - perguntou David, que estava sempre se lembrando de que era um rei.
- De todo o coração-replicou Filipe. - Claro que sei que Vossa Majestade é um rei orgulhoso. Vai aceitar minha ajuda e meus conselhos, mas vai querer fazer algo por mim em troca. Posso ver que estava prestes a dizer isso.
- É verdade - disse David.
- Então prometa-me o seguinte. Vossa Majestade jamais fará a paz com a Inglaterra sem primeiro obter meu consentimento para isso. Pronto. Não é pedir muito, é? E faço este pedido porque estou vendo que seu orgulho exige que Vossa Majestade dê alguma coisa em troca.
- Concordo de bom grado - disse David, animado.
- Agora lhes darei uma renda enquanto estiverem comigo, para que possam viver no nível que merecem.
- Majestade, a sua bondade me domina - bradou David.
- Nada disso. Vossa Majestade é jovem e valente e eu não gosto de ver meus amigos explorados devido à idade. Essa bela senhora... ele voltou-se para Joana... - deve ficar feliz e alegre, e farei tudo para que isso aconteça durante sua permanência na França.
Era impossível não ficar agradecido por tanta coisa dada com tamanha graciosidade.
O rei sugeriu que eles deveriam ter uma moradia privada durante a estada na França e ofereceu-lhes o castelo de Gaillard, aquela fortaleza construída sobre um alto rochedo, que era simbólica tanto para a Inglaterra como para a França. Fora construído por Ricardo Coração de Leão e tinha sido um orgulho especial dele. O rei João, em sua loucura, o perdera para os franceses; e desde então ele tivera uma história triste e tornara-se mais uma prisão do que um castelo real.
Eles iriam levar a alegria para o castelo de Gaillard, disse Filipe; e achou divertido oferecer aquele castelo que tinha sido construído por um rei inglês àqueles dois jovens exilados da Escócia.
O próprio Filipe levou-os à residência deles e lá disse que permitiria que hospedassem a ele e seus cavaleiros em casa deles.
Isso encantou David em particular. Não que o rei da França não tivesse encantado Joana. O problema era que o tempo todo ela pensava que era um inimigo de Eduardo. Mas Eduardo a abandonara. Seu próprio irmão fizera guerra contra o país dela. Era uma bobagem, como dizia David, pensar mais nele com afeto.
O benigno rei daFrança nunca era outra coisa que não bondoso para com os dois. Eles ofereceram um lauto banquete a ele, todo financiado por ele e preparado pelos criados dele; mas ele estava sempre dizendo que aquilo era a hospitalidade do rei e da rainha da Escócia.
Ele lhes falou sobre vinhos franceses e os fez prová-los.
- Quem sabe - disse ele - um dia poderemos organizar um exército na França e recuperar a Escócia para vocês. O que fariam, se nós o fizéssemos? Eu sei. Iriam querer prestar vassalagem à França pelo seu reino, não iriam?
- Eu ficaria muito grato - disse David, com ingenuidade.
- Neste caso, vão jurar. Prometido?
- Prometido.
- Então, vou dizer que vocês mantêm a Escócia como feudo da França. Isso significa que estão sob minha proteção. Penso que é uma situação muito boa, certo?
David, sentindo-se muito feliz e sonolento, sacudiu a cabeça. O rei ergueu a sua taça.
- Meus amigos - disse ele, dirigindo-se a todos os presentes. Meu amigo, o rei da Escócia, me fez muito feliz esta noite. Ele acaba de declarar que a Escócia é um feudo da França. Vamos brindar a isso, meus amigos.
Houve muita bebida e muito falatório.
O rei da França beijou primeiro David e depois, Joana.
- Pronto - disse ele -, selamos o nosso pacto neste ambiente amigável.
com uma certa relutância, Filipa concordou em ficar no castelo de Bamborough enquanto Eduardo seguia para Berwick.
Seria necessário sitiar o castelo, pois era natural que ele seria entregue com facilidade. Se houvesse um combate acirrado, a rainha poderia ficar em perigo.
- Se você estiver lá, eu gostaria de ficar ao seu lado - disse ela.
- Eu sei, meu amor, mas eu estaria pensando na sua segurança e não na batalha.
Quando aquilo era explicado a Filipa daquela maneira, ela não podia se recusar, de modo que se instalou em Bamborough para aguardar o retorno dele.
A velha fortaleza tinha sido erguida muito antes da chegada do Conquistador e sua situação sobre um rochedo quase perpendicular e dando para o mar aberto tornava-o um baluarte de valor inestimável.
Ali Filipa devia instalar-se para aguardar a volta do rei. Ele lhe enviava mensagens com frequência, para que ela ficasse sabendo como a campanha prosseguia. Afinal, ele estava apenas a uma distância de cerca de 32 quilómetros. Ele não previra que o cerco fosse longo e tivera a inesperada boa sorte que se apressou a transmitir à rainha. Alguns de seus soldados tinham encontrado dois meninos andando a cavalo na floresta e os tinham levado à presença dele. Ao interrogá-los, ele descobrira que eram filhos do governador do castelo de Berwick.
- Está vendo, querida, que boa arma o destino colocou nas minhas mãos? Estou com esses dois meninos como reféns. Não acho que o governador resistirá muito quando souber que estou com os filhos dele.
Embora reconhecesse a sorte que dera a Eduardo aquela vantagem, Filipa não podia deixar de pensar nos pobres pais daqueles meninos e no que deveriam estar sofrendo àquela altura. Estava certa de que eles nunca permitiriam que os meninos sofressem algum mal, e se aquilo encurtasse o sítio ela achava que seria ótimo e iria trazer Eduardo de volta para ela ainda mais depressa.
Pouco depois disso, olhando da janela da torrinha do lado que dava para a terra, ela viu um bando de homens se aproximando. Enquanto olhava, viu um número cada vez maior. Então, reconheceu os estandartes escoceses e viu que o inimigo estava marchando contra o castelo de Bamborough.
Chamou depressa a guarda. Tudo deveria ser trancado. Os guardas deveriam assumir seus postos para a defesa. O inimigo estava prestes a fazer o sítio a Bamborough.
- Temos de dar um jeito de levar uma mensagem ao rei - disse ela.
Houve vários voluntários, e ela decidiu que mais de um deveria ir, para o caso de haver dificuldade em chegar até o exército que estava fora de Berwick.
Quando Eduardo soube que Filipa estava sendo sitiada em Bamborough, o primeiro impulso foi disparar em auxílio dela, mas mesmo antesde poder fazer os preparativos para partir, percebeu que era exatamente aquilo que os escoceses pretendiam. Queriam afastá-lo de Berwick, para permitir a entrada de reforços, tornar impossível a tomada da cidade. O objetivo daquela campanha tinha sido tomar Berwick, e se não conseguisse realizá-la seria mais um fracasso a ser atribuído a ele.
Eduardo se encontrava num dilema. Estava muito angustiado por causa da segurança de Filipa; e ao mesmo tempo sabia que seria uma loucura deixar Berwick. Filipa era inteligente; estava bem protegida. O cerco de Berwick acabaria em breve. Era uma estratégia escocesa atraí-lo para longe logo quando ele estava à beira da vitória.
Uma raiva incontrolável tomou conta dele. Filipa em perigo e ele impossibilitado de ir socorrê-la! Malditos fossem os escoceses. Aquele incontrolável génio dos Plantagenetas nunca fora tão violento nele. Tinha de descarregar a raiva em alguém.
O governador de Berwick! Por Deus, ele estava com os dois filhos dele. Os reféns!
Mandou chamar seu guarda.
- Mate esses meninos - disse ele.
O guarda olhou para ele, perplexo. Ele não podia acreditar que tivesse ouvido direito, porque os dois reféns tinham sido tratados como mascotes no acampamento. Haviam jogado com os soldados, e o rei falava com eles com frequência, muito delicadamente. Todos gostavam deles. Eram dois meninos inocentes.
- Vá, seu tolo - berrou Eduardo. - Você me ouviu. Ousa recusar-se a executar minha ordem?
- Majestade... Não posso acreditar que ouvi direito.
- Você me ouviu dizer "Mate os meninos". Mate os reféns. Tentaram me tapear, e ninguém tenta tapear Eduardo da Inglaterra. Corte a cabeça deles e traga-as para mim, para que eu veja que o ato foi consumado. Vá. Ou quer que a mesma sentença seja imposta a você?
O guarda retirou-se.
Em menos de dez minutos ele voltou com as duas jovens cabeças, e, ao olhar para elas, a raiva de Eduardo passou e um terrível remorso tomou conta dele. Perguntou-se se algum dia iria esquecer-se daquela inocência manchada de sangue.
Tinha de ser assim, disse para si mesmo. Tinha de ser. Não há lugar para brandura.
Agora, para Berwick. Ele tomaria o lugar de assalto. Não haveria mais espera.
Era um soldado. Agora sabia disso. Disputaria com o avô as honras da batalha. Ele nada tinha de brando. Iria vencer.
Berwick caiu em suas mãos com uma facilidade impressionante. E assim que ele colocou sua guarnição lá, voltou-se para Bamborough, com a veemente disposição de luta ainda a dominá-lo.
Matou o conde de Douglas, que chefiara as tropas até Bamborough, e dizimou-lhe as tropas com facilidade; depois, entrou no castelo.
Filipa estava esperando por ele, calma, certa de que ele iria salvá-la.
Os dois abraçaram-se com fervor.
- Eu sabia que nada havia a temer - disse ela. - Eu sabia que você viria.
- Berwick é minha - disse ele. - Ganhei o que pretendia. vou levá-la para Berwick amanhã e você cavalgará pelas ruas comigo, em triunfo.
- Eduardo, eu me orgulho de você.
Ele mesmo tinha que contar-lhe sobre os meninos, porque não queria que ela soubesse por qualquer outra pessoa. Tentou explicar, tentou desculpar-se.
- Foi um ardil para me afastar de Berwick e por Deus, Filipa, por pouco não caí nele. Quase fiz o que queriam que eu fizesse. Então percebi que devia ficar em Berwick.
- Claro que tinha de ficar em Berwick. Claro que você agiu certo.
- Uma loucura tomou conta de mim. Pensar que eu tinha de ficar enquanto você corria perigo.
- O castelo é um grande baluarte. Eu não corria perigo. Eu poderia resistir durante semanas.
- Sim, eu sei. Mas na minha fúria, mandei matar os reféns.
- Os reféns... Os... - Ele viu o tremor passar por ela. - Os garotos... - prosseguiu ela.
- Foi porque você estava em perigo. Uma grande fúria tomou conta de mim. Foi como um acesso...
Ela tentou esconder o horror que havia em seus olhos. Pensou na mãe dos meninos. Pobre, pobre mulher desolada por perder os dois filhos.
- Filipa, foi por sua causa... você... em perigo. Ela compreendeu. Filipa sempre compreenderia.
- Foi uma infelicidade da guerra - disse ela, bem rápido.
- Sim - concordou ele -, uma infelicidade da guerra.
Ele iria esquecer. Era necessário. Ninguém pensaria que podia zombar dele.
Ele ganhara Berwick. Seus pés estavam, agora, seguindo um determinado caminho. Estava gradativamente surgindo como o homem que iria ser e naquelas últimas semanas dera um passo à frente.
Homens iriam tremer à menção de seu nome, como haviam tremido à do nome de seu avô.
Haveria dois Grandes Eduardos para os homens admirarem.
O objetivo alcançado ali era não haver mais necessidade de ficar longe dos filhos. Berwick estava em mãos inglesas, onde Baliol prometera que ficaria. Por enquanto, isso era o suficiente. Mostrar aos escoceses que quando o rei da Inglaterra tinha uma finalidade, ele a alcançava. Mais um Eduardo se levantara para forçá-los à submissão.
Filipa ficou encantada por estar voltando para os filhos. Ela não tornara a mencionar a morte dos reféns, e Eduardo se convencera de que um soldado tinha de ficar insensível à brutalidade quando fosse necessária, e quando homens morriam às centenas e aos milhares em combate a vida não era assim tão preciosa.
Quando chegaram ao castelo de Clarendon, ficaram impressionados ao descobrir que parecia quase vazio. Surpreenderam um ou dois serventes perambulando por ali, e
Filipa percebeu imediatamente que havia algo de desleixado em relação ao local. Um medo terrível tomou conta dela; temia pela segurança dos filhos.
- Onde estão os guardas? - trovejou Eduardo. - Onde estão os criados?
Mas Filipa já estava correndo para a ala infantil.
Eduardo, de três anos, estava sentado no chão, rolando pratos de peltre e soltando muxoxos de alegria quando os pegava. Isabella, de um ano, engatinhava em volta dele. As duas crianças não tinham tomado banho, as roupas estavam manchadas e rasgadas.
A rainha correu até eles e pegou Isabella, que gritou em protesto, mas Eduardo, reconhecendo a mãe, correu para ela e agarrou-se à sua saia, sorrindo de satisfação.
Ela se ajoelhou e passou os braços em torno dos dois, assegurandose de que, apesar das condições de negligência, estavam bem.
Tinham sido alimentados. Havia provas disso na roupa, mas como podiam estar naquelas condições? Onde estavam as governantas, as amas?
Em pouco tempo Eduardo convocara ao salão todas as amas e criados que estavam no castelo e com voz enérgica quis saber o que significava aquilo.
Houve um silêncio profundo; estavam todos com medo de falar, até que Eduardo berrou que seria bom darem-lhe alguma explicação para a sua conduta antes que a raiva
dele fosse tal que todos pagassem com a cabeça pelo que tinham feito.
Foi um dos criados menores que falou, achando-se, sem dúvida, sem culpa, já que seu único dever era obedecer aqueles que ficavam acima dele.
- Disseram-nos, majestade, que não iríamos ter o que precisávamos porque não havia dinheiro suficiente para pagar.
- Foi verdade - disse um outro. - Não podíamos arranjar a comida que era necessária para a criadagem. Por isso, ela foi tirada da vizinhança e o povo ficou muito irritado.
- Está dizendo que vocês roubaram das aldeias vizinhas para se alimentarem... e alimentarem meus filhos!
- Bem, majestade, não havia dinheiro suficiente para pagar pelo que era necessário.
- É uma situação lamentável. E isso explica pelo estado de abandono em que encontrei meus filhos?
Houve silêncio.
- Por Deus - bradou Eduardo -, alguns de vocês vão lamentar terem contrariado minha vontade.
- As crianças estão bem - disse Filipa. - Parece que foram alimentadas. Foram deixadas à própria sorte e não foram lavadas nem cuidadas... isso é tudo. Majestade, tudo o que desejo é estar com elas, cuidar delas. Se Vossa Majestade demitir essa gente já será um castigo suficiente, porque não terão para onde ir e não arranjarão emprego. Podemos trazer outras pessoas para ocuparem o lugar deles.
Eduardo, que sentira a raiva crescente começar a agitar-se nele, ficou de repente assombrado pela visão das duas crianças sem cabeça. Precisava controlar o génio, se não a sua vida seria salpicada de arrependimentos por atos violentos cometidos impulsivamente.
Filipa estava certa. Nenhum mal fora feito as crianças. Elas não tinham passado fome ou sido maltratadas. Estavam bem alegres.
-Voltou-se para Filipa.
- vou deixar você para lidar com a criadagem - disse ele. Convocarei os aldeões e ouvirei a versão deles para essa triste história. Eles devem ser reembolsados pelo que perderam. E deixem que eu avise a vocês todos que se chegar aos meus ouvidos que tornaram a se comportar dessa maneira vergonhosa, não terão misericórdia da minha parte e o que fizeram desta vez será usado contra vocês.
Eduardo soube, pelos moradores das vizinhanças, que eram devidas quinhentas libras. Mandou que a quantia fosse paga imediatamente.
Filipa ficara profundamente chocada ao ver as crianças, mas em pouco tempo ela mesma as lavara e vestira-as com roupas limpas. Eduardo tagarelava sem parar com ela e sentiu-se aliviada por ele não fazer ideia de que tinha sido desprezado.
Filipa estava pensativa. Tomara a decisão de que teria de ser muito cuidadosa quanto a afastar-se deles de novo. Se o fizesse não teria um só momento de paz. Por outro lado, não queria afastar-se de Eduardo.
Rezava por uma paz que permitisse que Eduardo ficasse na corte com ela; mas sabia que chegaria a hora em que a difícil escolha teria de ser feita.
Para sua grande alegria, descobriu que estava grávida outra vez. O rei ficou muito satisfeito. Seus dois filhos proporcionavam-lhe uma grande alegria, e Filipa observava que embora Eduardo fosse o orgulho dele, era por Isabella que ele se derretia.
Isabella era uma criança muito bonita, voluntariosa e mais exigente do que Eduardo, mas isso parecia divertir o rei. Ele gostava que ela sentasse no seu colo e falasse
com ele na sua fala infantil; era evidente que gostava de ser o foco de atenções e sempre corria para o pai assim que ele aparecia.
Filipa ficava feliz ao ver Eduardo com os filhos, e por isso era uma grande felicidade saber que em breve haveria mais um.
com Berwick em mãos inglesas, poderia haver uma pausa nas guerras escocesas, e o Natal era uma ocasião alegre, e eles o passaram em Wallingford. Filipa, àquela altura, estava em estado bem adiantado de gravidez, já que a criança deveria nascer em fevereiro.
A corte estava em Londres na ocasião do nascimento, e a criança nasceu no palácio da Torre. Talvez tenha sido por esse motivo que Filipa decidiu chamá-la de Joana, em memória da outra Joana, sua tia, que nascera na Torre e agora vivia na França com o marido, David, o Bruce, sob a proteção de Filipe VI.
No entanto, Joana foi um bem-vindo aumento da família, e Eduardo, mais do que nunca, estava encantado com uma esposa amorosa e fértil.
Mas ele estava cercado por problemas. O comércio sofrera muito com a guerra escocesa. Navios estrangeiros evitavam ir à Inglaterra, com medo de serem apreendidos e terem a carga roubada. Eduardo percebera logo que se quisesse ter um país próspero, este país deveria ser pacífico. Era de comércio que o país precisava. Emitiu
cartas de salvo-conduto a todos os comerciantes e aos poucos os navios estavam de volta aos portos ingleses. Os tecelões que tinham ido para a Inglaterra por sugestão
de Filipa estavam se instalando em Norfolk, embora enfrentassem um pouco de hostilidade por parte do pessoal local, que achava que eles eram muito trabalhadores para o seu gosto. Mas eram pessoas tranquilas e tão ativas, que apesar de uma certa oposição progrediram. Além do mais, contavam com a aprovação do rei e da rainha, e os nativos tinham medo de demonstrar demais a hostilidade.
Baliol estava, agora, de volta ao trono da Escócia com o apoio de Eduardo. Ele concordara com que Eduardo ficasse com todo o sul da Escócia abaixo do Forth e, por aceitá-lo como seu senhor feudal para o norte, ele tinha permissão de reinar sobre aquela parte. Não era de esperar que os escoceses fossem achar satisfatória aquela situação. Baliol era fraco e precisava de um ânimo constante, o que significava que para Eduardo, durante os meses que se seguiram, deveria haver contínuas viagens de ida e volta ao norte. Depois de sua experiência em Clarendon, Filipa não queria deixar as crianças, de modo que ela e os filhos, até mesmo a pequenina Joana, estavam constantemente viaj ando. Houve uma ocasião, no entanto, em que ela não pôde levá-las junto e depois de muito raciocinar decidiu que iria deixá-las na abadia de Peterborough, onde sabia que estariam a salvo.
O abade, Adam de Botheby, foi apanhado de surpresa. A abadia não era lugar para crianças, salientou ele. No entanto, a rainha implorou. Contou-lhe suas experiências em Clarendon e também mencionou a necessidade que Eduardo tinha dela. Tão eloquente foi a sua defesa, que depois de consultar seus monges o abade concordou em aceitar as crianças.
Ele disse que elas não poderiam esperar muito conforto. Ficariam sujeitas à disciplina e deveriam seguir as normas da abadia.
Pelo menos Filipa sabia que seriam bem cuidadas por aqueles bons homens. Mas ficou impressionada, porém, quando voltou para descobrir que elas haviam mudado por completo a vida da abadia. Encontrou o jovem Eduardo sentado nos ombros do reverendo abade e Isabella tinha um dos monges de quatro, enquanto ela o montava como um cavalo. Joana era embalada para dormir por um dos despenseiros da abadia e não aceitava ninguém mais para fazer aquele serviço, expressando em voz alta sua desaprovação se qualquer outro tentasse.
As crianças ficaram relutantes em deixar Peterborough, e a rainha descobriu que se elas tinham sido negligenciadas em Clarendon, tinham sido extremamente mimadas pelos monges.
- Tenho que mante-las comigo - disse ela a Eduardo. - É preciso.
Não demorou muito e nasceu mais uma criança. Desta vez foi um menino, a quem a rainha quis chamar de William, e teve a imediata aprovação do rei. A vida dele foi triste e curta. Faltava-lhe a vigorosa saúde do irmão e das irmãs, e depois de alguns meses ele morreu.
A dor da rainha foi grande, e por muito tempo depois que o menino foi enterrado em York Minster ela continuou a lamentar-se.
Eduardo a consolava. Tinham três filhos saudáveis. Deviam estar agradecidos por eles - e haveria mais.
Chegaram notícias tristes da Escócia, onde o irmão de Eduardo, o conde de Cornwall, conhecido como John de Eltham em homenagem ao local de seu nascimento, fora ajudar a subjugar os escoceses que tinham se levantado contra o regime Baliol-Eduardo. Nada havia de estranho nisso, porque estava sempre havendo problemas e fora para tratar disso em nome do irmão que John marchara para Perth. Ele estava lá havia alguns meses quando irrompera a luta e nela ele tinha sido morto.
Eduardo ficou muito triste. John sempre fora um bom irmão para ele. Tinha apenas vinte anos e nunca se casara, embora tivessem sido propostas alianças para ele. Era horrível pensar, disse Eduardo, que o irmão morrera sem viver de verdade. Era diferente com crianças como William, que nunca soubera como era a vida; mas John vivera vinte anos e então, de repente, a morte o levara.
A perda do irmão fez com que Eduardo pensasse na sua infância, quando os dois tinham estado juntos na ala infantil. Naquela época, eles quase não viam os pais, e quando os viam Isabella lhes parecera uma deusa. Nunca tinham visto ninguém tão bonita. Era verdade que ela ignorara John, mas sempre dera muito valor a Eduardo e, olhando para o passado, Eduardo percebeu que ele sempre considerara a atenção dela como um direito dele. Pobre John. Eduardo esperava que ele não tivesse dado muita importância; mas as irmãs deles também tinham compartilhado aquela negligência. Pobre Eleanor, e mais pobre ainda de Joana. Ele se perguntava como Eleanor ia se saindo com o marido já em idade madura. Ela fora esplendidamente equipada de bens materiais ao partir, mas aquilo não contribuiria para a felicidade. Ela agora tinha um filhinho, Raynald, em homenagem ao pai; Eduardo achava que Eleanor iria dar uma boa mãe. Mas a pobre e jovem Joana, como seria a vida para ela no castelo de Gaillard, com o jovem marido que não era muito simpático ou encantador?
Como ele tinha sorte com a sua Filipa!
Por estar deprimido por problemas de família, ultimamente ele pensara muito em sua mãe e decidiu ir ao castelo de Rising para visitá-la.
Não havia dúvida quanto à satisfação dela quando ele chegou.
Abraçou-o e chorou um pouco, e ele percebeu, com alívio, que ela estava mais serena do que a vira em qualquer momento antes.
- Ah - disse ela -, você agora é um rei de verdade.
- Fiquei mais velho... e talvez mais depressa do que a maioria.
- Era necessário. Você era muito criança quando a coroa foi colocada em sua cabeça.
- Diga-me, minha senhora, está contente aqui no castelo de Rising?
Ela ficou em silêncio por algum tempo, e ele desejou não ter feito aquela pergunta, porque aquilo a fizera olhar para o passado.
- Aqui há paz - disse ela.
- Paz... ah, paz! Não é por isso que todos nós ansiamos?
- Nunca a desejei quando era jovem. Só quando se fica velho e sábio é que se percebe as virtudes dela. Você, meu filho querido, não gostaria de ficar trancado aqui no castelo de Rising. Vejo muito pouca gente, mas tenho bons criados. Ando um pouco a cavalo. Saio com o meu falcão de vez em quando. Caço antílopes. Leio muito e rezo, Eduardo. Rezo pela remissão dos meus pecados.
- A senhora está... melhor do que antes?
- Você quer saber se eu ainda tenho meus acessos de loucura? De vez em quando, Eduardo, de vez em quando, mas acho que são menos frequentes, hoje em dia, e mais curtos. Tenho visões nos meus sonhos, mas não quando estou acordada. Às vezes fico deitada me lembrando de todas as ações más da minha vida.
- Uma ocupação que faz mal à saúde e que acho que de nada adiantaria a nenhum de nós.
- Algumas das minhas ações precisarão de muita oração para serem perdoadas. E agora seu irmão morreu. Eu penso nele, Eduardo. Nunca fui uma boa mãe para ele.
- Ele a considerava uma deusa. Ele disse, não faz muito tempo, que nunca vira uma mulher cuja beleza se comparasse com a sua.
Ela abanou a cabeça.
- Eu mal olhava para ele. Eu queria filhos pelo poder que iriam me dar. Sou uma mulher perversa, Eduardo. A morte de John me fez compreender isso.
- A senhora não deve remoer-se com isso.
- Pelo menos isso fez com que você viesse me ver.
- Eu deveria ter vindo antes.
- Você tem sido condescendente para comigo, embora tenha matado Mortimer... - A voz dela faltou diante da menção daquele nome. - Não devo pensar nele - disse, em voz baixa -, se não, terei pesadelos. Eduardo, eu quero visitar você um dia desses. Você... e as crianças e a sua boa Filipa.
Ele se aproximou dela e beijou-lhe a testa.
- A senhora irá nos visitar, mamãe. Filipa vai querer isso. A senhora deve ver o jovem Eduardo.
- Ele se parece com você quando você tinha a idade dele. Estou contente por tê-lo batizado de Eduardo.
Perguntas vieram à cabeça dela. Queria perguntar a ele se os assassinos de seu pai tinham sido descobertos. Mas não teve coragem. Não queria que ele se lembrasse de que papel ela representara no mais horrível assassinato da História.
Ela sabia que o longo exílio poderia acabar se ela quisesse. Poderia ir para a corte. O povo iria esquecer.
Os dois falaram de John por algum tempo, e ficou claro que ela lamentava aquele filho, embora nunca o tivesse amado em vida. A morte dele servira para lembrar-lhe mais uma de suas deficiências. Tinha sido uma mãe má para os filhos... para todos, exceto Eduardo, e deixara que este depusesse o pai.
Eduardo despediu-se dela com carinho.
Agora, a vida poderia mudar se ela quisesse. Ele tinha ido visitá-la; ele estava lhe dizendo que independente do que ela tivesse feito, era mãe dele e ele a amara e admirara até descobrir sua verdadeira natureza.
Ele poderia perdoá-la.
O ânimo dela revigorou-se. Mas naquela noite pedira que uma de suas criadas dormisse em seu quarto. Tinha medo de que os fantasmas viessem.
Eduardo revivera recordações.
O CONDE ROBERT d ARTOis, primo da rainha Isabella, chegara à Inglaterra. Ele discutira com o rei Filipe e viera como fugitivo, tendo saído da França disfarçado de mercador.
Robert dArtois era um homem que nascera para criar caso. Tinha sido seu destino nunca conseguir o que achava ser seu por direito; sofria de uma inveja permanente e um desejo de causar infelicidade àqueles que possuíssem o que ele gostaria de ter.
Sua grande animosidade era dirigida contra o rei da França. Ele era bisneto de Robert, o primeiro conde de Artois, que fora o irmão mais novo de São Luís, e era frustrante, para um homem do temperamento de Robert, descender da árvore genealógica real e, apesar disso, não do tronco principal. Ele estava sempre lembrando a si mesmo como tudo teria sido diferente se em vez de ser o irmão mais novo seu avô tivesse sido o mais velho.
Além do mais, Filipe, o rei atual, não era da linha direta. No entanto, lá estava ele sentado no trono, eleito por consenso como o mais próximo de Filipe, o Belo, já que seu pai era irmão daquele rei. Os três filhos de Filipe, Luís, Filipe e Carlos, tinham feito um reinado ignóbil sob a sombra da maldição dos templários, e agora Filipe, filho de Carlos de Valois, tornara-se o rei da França.
Durante alguns anos, Robert tivera de entrar com um processo para obter o que era seu de direito - o condado de Artois, que pertencera ao seu bisavô.
Filipe, o Belo, recusara-se a conceder-lhe aquelas terras e tentara impingir-lhe outras, e durante os reinados dos três filhos de Filipe ele tentara outra vez; chegara até a se casar com a irmã de Filipe; mas de nada adiantara. Filipe mostrara claramente que não estava interessado nas reivindicações do parente.
Quando a rainha Isabella estivera na França, ele ficara impressionado pela beleza dela e tornara-se um de seus ardentes adeptos. Na época em que o irmão dela estava achando embaraçosa sua presença na corte, tinha sido Robert dArtois que se apressara a avisá-la para que fugisse e a ajudara a chegar a Hainault.
A verdade era que Robert nunca resistia a se envolver em qualquer intriga. Ele gostava de estar no centro dela e, se não podia desfrutar das propriedades que acreditava serem suas de direito, pelo menos podia desfrutar das encrencas.
Se houvesse algo com probabilidades de provocar uma situação daquelas, ele aproveitava a oportunidade se envolver nela. Só conseguia apaziguar a sua inveja do rei da França fazendo com que ficasse mais difícil ele se manter no cargo.
Repetidas vezes, os levantamentos das fontes de descontentamento levavam até ele; e chegara o momento em que o rei resolvera que não ia mais tolerar aquilo.
Nunca haveria paz no reino enquanto Artois estivesse lá para provocar encrencas, de modo que o rei convocara um tribunal de pares para examinar o caso contra Robert dArtois, com o resultado de que ele fora banido e sua propriedade confiscada.
Robert não era o tipo de homem para sair pacificamente. Fora ficando. Procurara outros meios de criar casos até que o rei ficara tão enfurecido que mandara guardas para prendê-lo. Se Robert não saísse por bem, em liberdade, teria de ser colocado em algum lugar onde nada pudesse fazer para perturbar o país.
Robert, então tendo sido avisado de que pretendiam prendê-lo, disfarçara-se de mercador e fugira.
Para onde deveria ir? Para onde, a não ser para a Inglaterra? Se não tivesse sido por ele, Eduardo poderia nunca ter conseguido o trono, era o que ele acreditava.
Ele se apresentou na corte no mais dramático dos estilos. Eduardo estava jantando, na ocasião, no grande salão de Westminster com um grande grupo de pessoas. A rainha estava sentada a seu lado e, como era costume, as pessoas tinham permissão para entrar e ver o rei fazendo sua refeição.
Houve uma súbita comoção entre a multidão e um mercador avançou. Como tivesse chegado perto demais da mesa, os guardas aproximaram-se para detê-lo.
Eduardo, a faca na mão, estivera no ato de levar um saboroso pedaço de lampreia à boca.
- O que significa isso? - perguntou ele. O mercador adiantou-se.
- Permita-me uma palavra com o rei - disse ele.
Os guardas ficaram hesitantes, esperando as ordens do rei. Todos os olhos estavam fixos no mercador.
- Meu querido, querido primo - disse ele. - Vim de longe para buscar hospitalidade em sua corte. Sei que você não irá negá-la.
Eduardo olhou fixo para ele, assombrado.
- É. Não pode ser. Mas sim... Robert... Robert dArtois!
- Seu primo... seu amigo leal. Meu coração se alegra ao vê-lo em meio aos seus devotados súditos.
Eduardo levantou-se, abraçou Robert e fê-lo sentar-se a seu lado e comer, o que Robert fez com grande ímpeto enquanto falava muito sobre a maldade do rei da França.
Ele era muito diferente do querido primo de Robert na Inglaterra. As justas solicitações que ele, Robert, fizera tinham-lhe sido negadas. Ele nunca mais queria voltar para a França enquanto Filipe de Valois se sentasse no trono. Mas voltaria quando aquele indigno monarca fosse derrubado daquela posição.
Era uma maneira imprudente de falar em público, mas Robert já nascera imprudente.
- Aquele filho enjeitado! - prosseguiu Robert. - É assim que eles o chamam na França. Ele não fazia ideia de que um dia chegaria ao trono... nem teria chegado, não fosse uma série de infortúnios. Primeiro o pai, e depois os filhos... um por um. Estava claro que eles eram uma linhagem amaldiçoada. E quem é Valois? Filho de um irmão do rei. Acho que há outros que vêm antes dele.
Houve olhares de esguelha para Eduardo, que estava um pouco ruborizado - ou por aquela sugestão ou com a excitação do encontro.
Filipa estudou aquele ostentoso homem que parecia como se tivesse visto muita coisa do mundo e estivesse contrariado com ele.
Não gostou muito dele. Algo lhe dizia que onde ele estivesse logo viriam problemas sérios.
Ela estava com a razão. Robert tornou-se imediatamente membro daquele círculo íntimo que envolvia o rei. Afinal, ele tinha sangue real. Caçava com o grupo real e declarara a intenção de ajudar na guerra contra a Escócia. Tinha um certo encanto e era experiente, sendo muitos anos mais velho do que Eduardo. Tinha muitos casos fascinantes para contar sobre suas aventuras e tornou-se um dos favoritos, principalmente entre as mulheres. Viajou com o cortejo real até a Escócia, mas a guerra não era a ideia que ele tinha sobre diversão. Não a guerra com a Escócia.
Ele conversava muito com Eduardo sobre a Escócia.
- Por que se preocupar com esse pequeno país pobre? Esse Baliol... por que ampará-lo? Esse homem está condenado ao fracasso. Ele jamais manterá o país unido. Filipe não tem sido um bom amigo para você, tem? Ele tem demonstrado nitidamente a preferência pelos seus inimigos. Veja como ele mantém os jovens rei e rainha da Escócia no castelo de Gaillard.
- Ele não tem sido meu amigo, isso está bem claro - admitiu Eduardo.
- Meu querido amigo e senhor, é uma situação lamentável quando sua própria irmã é hóspede do rei da França e está fugindo de você.
- Eu ofereci refúgio a eles aqui. Prometi que se Baliol morrer o trono lhes será devolvido.
- Ah, mas eles não se aproveitam de sua bondade, majestade. Por quê? Porque o rei da França diz a eles que não. Já percebeu que esse seu ardiloso inimigo colocou aquelas duas crianças sob sua proteção com a única finalidade de causar problemas para você na Escócia?
- Eu sei disso, Robert.
Escócia! - Robert estalou os dedos. - O que é a Escócia? Um
pequeno e pobre país... e no entanto tem sido derramado tanto sangue para se apossar dele! Eu me admiro de você, Eduardo. Desperdiça suas energias com a Escócia, quando há uma coroa muito mais importante esperando por você. Parece até que você não tem direito algum a ela.
- A coroa da França! - disse Eduardo. - Há muita gente que diria que eu não tenho direito.
- O Valois diria! Naturalmente. Ele quer a coroa para ele. O rei rejeitado!
- Ele foi escolhido pelo povo para reinar. Ouvi dizer que é um bom rei.
- Qualquer rei que viesse depois dos últimos três seria considerado bom. Graças a Deus os reinados dos três não duraram muito. Sua bela mãe era filha de Filipe, o Belo. Os três irmãos dela governaram... se é quese pode chamar aquilo de governar... e ela é a próxima na fila e, através dela, o filho.
- Você sabe muito bem que a lei sálica vigora na França. Robert estalou os dedos.
- Eu não peço que Isabella governe. Não. Mas ela agora tem um filho, um filho que usa a coroa da Inglaterra. Por que não iria ele, em vez de desperdiçar sua capacidade, seus homens e suas armas com a pequenina Escócia, procurar uma coroa mais digna?
- Ah, Robert, você quase me convence. Mas pense no derramamento de sangue que haveria. Não seria algo que pudesse ser resolvido em um mês ou em um ano. Posso imaginá-lo continuando... continuando...
- Nada que vale a pena é obtido com facilidade.
- É bondade sua preocupar-se com meu bem-estar.
- Isso é apenas um caso de justiça.
Eles estavam na floresta, e quando uma pessoa foi falar com o rei, Robert seguiu em frente. Por enquanto, ele já dissera o bastante. Suas palavras teriam seu efeito, que seria profundo, se o veneno fosse administrado em pequenas doses. Devia-se deixar que ele penetrasse na mente aos poucos, a fim de que pudesse assumir um controle firme antes que a vítima percebesse.
Seria divertido iniciar uma guerra. Filipe tinha medo disso. Ele queria tornar seu país rico, fazer com que voltasse à sua solidez, depois dos últimos reinados desastrosos. O que diria ele se tivesse que começar uma guerra para se agarrar à coroa?
Robert estava no seu jogo favorito - moldar malevolamente os acontecimentos segundo a sua vontade.
Uma guerra!, pensou ele. Uma guerra entre a Inglaterra e a França. Filipe era matreiro; Eduardo era jovem; mas Eduardo mostraria ser o melhor general.
Robert estava contente consigo mesmo. Nunca ele fizera uma coisa tão importante quanto aquela.
Eduardo percebera, desde o início, que suas chances de tirar Filipe do trono e toma-lo para si mesmo não eram grandes. Levar a guerra para um país estrangeiro era sempre um grande empreendimento, e mesmo a defesa de províncias francesas esgotara as energias dos reis ingleses desde o Conquistador. O conflito escocês empobrecera seu avô e, diziam alguns, o debilitara; e embora ele, Eduardo, tivesse deixado Baliol com uma força defensiva na Escócia, não esperava que a paz durasse por lá. Era uma ideia agradável considerar-se com direito a ser o rei da França, mas se devia ou não fazer a tentativa de conquistar aquela coroa, era coisa que precisava de um exame muito minucioso. Robert dArtois estava constantemente a seu lado salientando a simplicidade da tarefa; mas Eduardo tinha experiência suficiente para saber que a guerra só era simples na cabeça das pessoas.
Havia muita coisa em seu país para exigir sua atenção. Desde a morte de Mortimer, ele fizera várias tentativas de levar os assassinos de seu pai à justiça. Berkeley tinha sido preso, já que o ato tivera lugar em seu castelo; mas conseguira provar que não estivera em qualquer ponto próximo do castelo quando o crime fora cometido. Ele caíra em desgraça, mas nenhum castigo lhe tinha sido imposto. Seu crime tinha sido o de dar as costas ao que se passava no castelo de Berkeley, quando deveria ter chamado atenção para o modo pelo qual o rei estava sendo tratado. Mas ele não podia ser executado apenas com base nisso.
Sir John Maltravers desaparecera em Flanders e parecia que estava fazendo o possível para estimular o comércio para a Inglaterra naquela região. Portanto, era melhor que não fosse perturbado. Sir William Ogle, no entanto, tinha sido preso em Nápoles.
Eduardo temia a chegada dele na Inglaterra, quando toda a terrível história seria revelada, porque Ogle, com a conivência de outros e tendo sido mandado agir daquela forma por Mortimer e pela rainha, era a pessoa que executara a horrível sentença.
Não se podia permitir que Ogle continuasse vivo.
Os comissários de Eduardo conheciam sua vontade, e porque havia a rainha Isabella a ser considerada, o rei não queria que os erros de sua mãe fossem levados a público.
Ficou combinado que Ogle deveria morrer na viagem de Nápoles para a Inglaterra. Assim, ele iria expiar seus pecados com o mínimo de inconveniência; e não haveria relembranças da velha história na qual a rainha Isabella ficava sob uma luz de tanta maldade.
Ela agora vivia tranquilamente no castelo de Rising e parecia ter perdido toda aquela fogosa ambição e orgulho que fizeram dela a mulher que fora no passado.
Não se deve mexer nesses assuntos, pensava Eduardo. Seria melhor assim, para a paz do reino.
Enquanto isso, Robert dArtois estava sempre a seu lado. Robert era animado, divertido e sabia exatamente como encantar Eduardo. Ele se instalara na corte e com frequência dizia que voltaria para a França assim que o rei de direito estivesse reinando lá.
- Nós somos iguais, Eduardo - dizia ele. - Nós dois temos de recuperar a nossa herança. De uma coisa eu sei: quando você for o rei da França, as propriedades dos Artois estarão de novo com os donos.
- Pode ficar certo, Robert, de que estarão.
Robert falava muito sobre seus erros, mas sempre de maneira leve e divertida.
- A batalha de Courtrai nunca deveria ter acontecido-disse ele.
- Se não tivesse, meu avô não teria sido morto e minhas propriedades jamais teriam sido tiradas de mim. Imagine, Eduardo, este pobre pequeno órfão... eu... criança demais para me defender. Meu pai morreu pouco depois que nasci. Foi um caso fraudulento. Sem dúvida que os bens de um pai devem passar para o filho e depois de filho para filho através de gerações. Era assim que deveria ter acontecido com Artois. Mas como eu era apenas uma criança sem pai e o rei estava casado com a filha de minha tia Mahaut, eles foram dados a Mahaut.
- Isso foi muitíssimo injusto - bradou Eduardo.
- Injusto! Claro que foi injusto. Disseram que Mahaut apresentou documentos escritos por meu avô, nos quais ele dissera que ela deveria ser a herdeira, não eu.
- Os documentos eram falsos?
- Estou certo de que eram, mas quando Mahaut morreu as propriedades passaram para a filha dela, a esposa do rei. De modo que você percebe como foi a coisa. Tenho sido tratado da maneira mais vergonhosa, majestade. Mas não sou homem de ficar de lado e permitir que me humilhem.
- Realmente, não é.
- O senhor também não deve ser, meu bravo rei. O senhor é afortunado. Recebeu sua herança... ou parte dela. A Inglaterra é sua, mas o senhor terá de lutar pela França. E sei que vai ganhá-la. Assim que se mexer para conquistá-la.
- O que foi que fez seu avô deixar as propriedades dele para sua tia?
- Ele não deixou. Os documentos são falsos. Havia uma mulher na criadagem dele que sempre fora uma boa amiga minha. O nome dela era La Divion. - Robert sorriu ao se lembrar. - Ah, sim, ela sempre foi uma boa amiga minha. Quando eu disse que os documentos tinham sido adulterados e meu nome tinha sido substituído pelo de minha tia, ela jurou que era verdade e apresentou novos documentos nos quais eu era citado como único herdeiro.
- E o que foi que você fez sobre isso?
- Pode acreditar que eu não iria deixar o assunto morrer. O rei atual já havia, àquela altura, subido ao trono. Ele era diferente de seus antecessores. Eles se contentavam em deixar que as coisas ficassem à deriva. Filipe, não. Apresentei o caso a ele e sua resposta foi prender La Divion. Pobre mulher, ela estava decidida a confirmar a verdade, mas a tortura acabou por derrotá-la. Sob pressão, ela disse-lhes que estivera mentindo e que os documentos nos quais eu era o preferido eram falsos. Era o que eles queriam que ela dissesse, e a pobre mulher, enlouquecida de tanta dor, concordava com qualquer coisa, só para fazer com que parassem com a tortura. Ela foi queimada viva. Mas isso não foi o bastante para Filipe. Eu ainda estava lá. Eu sabia demais, de modo que ele também queria livrar-se de mim. Foi declarado que durante o interrogatório de La Divion tinham descoberto provas de que ela... por ordens minhas... tinha envenenado Mahaut. Vi o que ia acontecer. Foi quando me disfarcei de mercador e vim procurá-lo. Ah, esse rei da França é malvado. Ele inventou que um boneco de cera que se parecia com ele fora encontrado no meu castelo e que no boneco tinham sido espetados alfinetes em brasa. Ele disse que eu estava mexendo com feitiçaria.
Parece que ele está decidido a perseguir você.
Não satisfeito por ter tirado minhas propriedades, ele agora
tornara impossível eu viver na França. É uma verdade, sabe, que há pessoas que odeiam aquelas a quem fizeram mal. Filipe de Valois é uma delas. Pouco importa, o dia dele chegará. Espere até que os exércitos de Eduardo da Inglaterra dominem a França. É esse o dia que estou ansioso para ver.
- Ah - replicou Eduardo -, isso não pode ser realizado num dia.
- Talvez em um mês...
- Meu avô, que é reconhecido como um dos maiores guerreiros de todos os tempos, não conseguiu dominar a Escócia. Meu ancestral, Ricardo Coração de Leão, nunca chegou a Jerusalém, e mesmo o grande Conquistador não conseguiu colocar o País de Gales sob seu controle. Quando se fala em conquista, esquecem-se as longas marchas na chuva e na lama, na neve, na neve semiderretida, e no calor que empola a pele. Esquecem-se os rigores da vida nos acampamentos. Antes de uma campanha ser desencadeada, é necessário decidir o que será ganho com a vitória e o que será perdido com uma derrota.
- É assim que fala um grande comandante? Não acho que em algum momento a ideia de derrota tenha entrado em seu pensamento.
- Ele não será um grande comandante se essa ideia não lhe ocorrer. O líder de um exército tem de pensar em tudo o que poderia acontecer a seus homens e a ele mesmo. Tem de estar preparado. É verdade que ele entra em combate com grandes esperanças; no momento da luta, vai acreditar que tem de sair vitorioso. Mas em suas meditações antes da batalha, não deve ficar bestificado pelo excesso de confiança.
- Você me surpreende, Eduardo. Eu o considerava um dos maiores generais que o mundo já conheceu.
- Por que iria pensar assim, já que ainda não provei que sou?
- Você tem à sua volta uma aura de grandiosidade.
- Ora vamos, Robert, já tenho idade suficiente para não levar a sério uma lisonja. Ainda tenho de provar o que sou a mim mesmo e ao mundo.
- Posso lhe dizer uma coisa? O rei de Nápoles me disse que ele consultou os astros e descobriu que o rei da França pode ser derrotado em combate... e por um único homem, o rei da Inglaterra.
- É mesmo?
- Meu caro Eduardo, eu juro. Está escrito nos astros que se você... e só você... liderasse suas tropas contra o rei da França, não poderia deixar de sair vitorioso. Filipe ouviu falar nisso. Ele treme, Eduardo. Treme de medo que você marche contra ele. Eu lhe prometo o seguinte: se você entrasse em combate daqui a um ano, a coroa da França seria sua.
Eduardo ouviu com atenção, e Artois acreditou que estava causando uma certa impressão.
Eduardo estava pensativo. Era muito agradável ouvir Artois dizerlhe que ele era um guerreiro destinado à magnificência.
Conversou sobre o assunto com Filipa. Ela ficou inquieta. Agora que os tecelões flamengos estavam se instalando, o comércio de Norfolk estava aumentando. Não havia nada como uma guerra para empobrecer um país. Filipa acreditava na paz. Além do mais, queria manter a família a seu lado. Jamais esqueceria seu horror ao voltar para os filhos e descobrir que eles tinham sido negligenciados. Ela gostaria que a família ficasse junta. Detestava afastar-se das crianças e, por outro lado, nem sempre era possível levá-las junto em suas viagens. E então chegaria a hora da terrível decisão. Ela deveria ir com Eduardo, ou ficar com os filhos?
- Filipe não é como os filhos de Filipe, o Belo - salientou ela.
- As notícias sobre ele dizem que é matreiro e astuto. Não vai entregar o reino sem lutar.
- Vai haver guerra, disso não há dúvida.
- Tem havido tantas guerras entre a Inglaterra e a França!
- O que é uma das razões pelas quais deve haver uma última para resolver a questão. Se eu tivesse a coroa da França, a Inglaterra e a França ficariam sendo como um só país e as guerras acabariam.
- Mas haveria uma guerra longa antes de você sair vitorioso, Eduardo.
- Artois acha que devo conseguir a vitória em poucos meses.
- Artois está obcecado pelo ódio que tem do rei da França. Deve haver outras pessoas que não fazem tão pouco caso dele.
- É verdade. E Filipe, tenho certeza, seria um adversário violento. Mas Artois me disse que houve uma profecia. O rei de Nápoles consultou os astros e eles lhe disseram que se eu enfrentar o rei da França em pessoa a coroa da França será minha.
- Os países têm de ser conquistados, ainda que seja para que as profecias sejam cumpridas, Eduardo. Eu lhe peço que pense muito nisso.
- Minha querida Filipa, pode estar certa de que é isso que vou fazer.
Ela pareceu um pouco mais satisfeita; e quanto mais Eduardo pensava no projeto, mais ele queria arquivaro assunto. Se decidisse agir contra a França, teria de ter certeza quanto a seus aliados. Ele calculava poder contar com o sogro, William de Hainault, e o tio de Filipa, John, sempre fora um bom amigo.
A jovem Joana, embora pouco mais que um bebé, estava prometida ao filho do duque de Áustria. Isso poderia garantir a ajuda da Áustria.
Eduardo continuava a pensar naqueles casos e nada de definido era arranjado. Artois estava ficando desesperadamente impaciente.
Será que vou ficar aqui no exílio a vida inteira?, perguntava-se Artois. Será que Eduardo nunca fará um gesto para conquistar a coroa da França?
Como ele ansiava por ver Filipe humilhado. Ele odiava Filipe como nunca odiara alguém na vida, e ele era um homem de paixões violentas. Filipe de Valois ser o rei da França! O rei enjeitado que estava no trono por causa de uma série de acidentes! Era injusto. Devia ser impedido. E pensar que Filipe apoiara aqueles que lhe haviam roubado suas propriedades e deixara claro que enquanto estivesse no trono elas não lhe seriam devolvidas.
Ao longo de toda a vida de Artois, ele sempre tivera algum projeto que perseguia com apaixonada intensidade. Ele jamais se permitia uma reflexão calma. Gostava de se entregar auma paixão de ódio ou de amor. Tinha de satisfazer aquelas emoções violentas; tinha de viver perigosamente.
De seu ódio por Filipe da França nascera a ideia de derrubá-lo do trono; e ali estava uma solução já pronta. Por intermédio de sua mãe, poder-se-ia dizer, segundo alguns, que Eduardo tinha direito a reivindicar a coroa francesa. Outros poderiam dizer que esse direito era ténue, pois vinha através de sua mãe, e a lei sálica impedia que mulheres subissem ao trono. Eduardo era filho dela, um homem... mas mesmo assim a sua herança vinha através de uma mulher. A reivindicação não seria levada muito a sério na França. Mas é claro que aqueles que desejavam apaixonadamente que aquilo acontecesse poderiam convencer-se de que a pretensão tinha méritos.
No entanto, Eduardo não se mexia. Era cauteloso. Talvez ele mesmo não acreditasse na sua reivindicação. Talvez ele estivesse pensando no tamanho do empreendimento que seria ir até a França e combater os franceses, com o objetivo de derrubar Filipe do trono.
Eduardo tivera um começo incómodo como guerreiro na Escócia. Não agiria com precipitação outra vez. Poder-se-ia dizer que tinha posto de lado aquela primeira humilhação por um sucesso mais tarde, mas até ali nada havia de espetacular em suas proezas militares.
Repetidas vezes, Robert assinalara as diferenças que havia na França e na Escócia. Os escoceses eram um povo incivilizado; tinham suas montanhas para ajudá-los. Era difícil manter a fronteira fortificada. Na França seria muito diferente. Ele imaginava a coroa sendo colocada em sua cabeça, o povo francês aclamando-o.
Será que aclamaria?, perguntava-se Eduardo. Por que iria fazê-lo?
Porque o povo odiava Filipe, o opresssor, o usurpador, o rei enjeitado.
Mas ele o colocara no trono e, segundo diziam todos, a França tinha ficado mais estável sob o seu reinado.
Como Eduardo era irritante! Artois estava ficando muito impaciente, e quando ficava impaciente tornava-se imprudente.
Saiu sozinho a cavalo, num acesso de impaciência, e ao passar pela floresta viu um curso de água e, andando por ali, à procura de comida, estava um pássaro cinza-azulado com uma estreita crista preta que descia enroscada pelo pescoço comprido. Seu pontudo bico amarelo parecia uma adaga pronta para espetar alguma criatura que de nada desconfiasse. Uma garça!
Robert observou-a em silêncio por algum tempo. Sabia que tinha de ficar quieto, pois ela era um dos pássaros mais assustadiços. Ele tinha ouvido pessoas chamando-o de covarde. Então, teve uma ideia.
Liberou seu falcão e muito em breve segurava a garça nas mãos.
Sorrindo consigo mesmo, voltou para o castelo.
O rei e a rainha estavam no salão de jantar. Artois estava atrasado. O rei estava a ponto de perguntar por ele quando Robert entrou. Atrás dele vinham duas mulheres levando um prato e no prato estava a garça que ele mandara assar.
- O que significa isso?-perguntou Eduardo, preparando-se para se divertir, porque Artois era famoso pelas brincadeiras que gostava de fazer.
Artois aproximou-se do rei e fez uma mesura acentuada.
- Enquanto caçava com o falcão em sua floresta, majestade, encontrei este pássaro. Achei que vossa majestade iria gostar. Ele deve ser um pássaro favorito de vossa majestade.
- Uma garça. Por quê? - perguntou Eduardo.
- Majestade - disse Artois, falando alto bastante para que todos os que estavam no salão pudessem ouvir e agora todos estavam prestando atenção no que o conde tinha a dizer. - Majestade, a garça é o mais tímido dos pássaros. Todo mundo sabe disso. E vossa majestade é um rei que não está preparado para lutar pelo que é seu. Um pássaro tímido... um rei tímido. Deve haver uma certa predileção. Por isso, eu trouxe este pássaro para vossa majestade porque, embora ele não passe de um pássaro e vossa majestade de um rei, os dois se parecem sob um aspecto.
Eduardo levantou-se, o rosto rubro. Filipa tremeu, porque os primeiros sinais do génio Plantageneta começavam a se apresentar.
Artois cruzou os braços e estudou o rei com ar zombeteiro, e para a surpresa de todos Eduardo estourou numa gargalhada.
- Você é um tratante, Artois - disse ele.
- Sim, majestade - respondeu Artois, humildemente.
- Você me comparou com a garça. Você me chama de covarde. Artois não disse coisa alguma, e todos ficaram impressionados com
a sua temeridade. Não importava as outras coisas que ele fosse, era um homem valente.
- É verdade que eu tenho uma reivindicação a fazer da França e juro sobre essa garça que vou levar um exército até lá e lutarei contra o rei da França-bradou Eduardo -, ainda que as forças dele sejam duas vezes o tamanho das minhas. Vamos, meus amigos, todos faremos um voto sobre essa garça. Vamos todos jurar juntos. Iremos para a França. Vamos tirar a coroa da cabeça do impostor Filipe e não descansaremos enquanto ela não for colocada onde deve. Nunca mais o conde de Artois vai me comparar a uma garça. Venham, aqueles que me amam, aqueles que gostariam de me servir, façam o voto da garça.
E um por um todos os grandes nobres presentes avançaram até a mesa e comprometeram-se com a aventura francesa.
Artois ficou de lado, sorrindo benignamente. Por fim, ele conseguira.
AGORA QUE DECIDIRA EM favor da guerra com a França, Eduardo sabia que deveria ter certeza quanto aos seus aliados. O mais importante deles era o pai de Filipa, William de Hainault, pois Eduardo acreditava que ali estava uma pessoa com quem poderia contar.
Filipa estava preocupada sobre a saúde do pai, porque as cartas de sua mãe que chegavam com regularidade eram perturbadoras. O conde William, escrevia ela, estava muito doente de gota e não podia sair da cama.
Mas seu apoio pela reivindicação de Eduardo era forte. Aquilo significava um bom sinal, pois embora algumas pessoas pudessem achar natural que ele ficasse ao lado do genro, sua mulher, a mãe de Filipa, era irmã do rei da França, e por isso os laços dele com os dois países eram muito estreitos. No entanto, ele ficou do lado de Eduardo, e tendo em vista que Hainault, embora sendo um país pequeno, contava com um povo trabalhador que se concentrava no comércio e se mostrava um dos mais prósperos da Europa, era, portanto, um aliado de muita valia.
A Áustria era importante, e por esse motivo a jovem Joana, que fora prometida ao filho do duque da Áustria, já não podia mais retardar sua saída da Inglaterra para seu novo país.
Quando a governanta, a bondosa Lady Pembroke, lhe disse que ela sairia da Inglaterra com os pais, Joana ficou encantada, porque na ocasião não sabia do significado daquela viagem.
Foi sua irmã Isabella que lhe contou. Isabella era muito bonita e sempre fora mimada pelo pai. Não conseguia entender por que devia ficar em casa. Sabia que a mãe odiava deixar qualquer um deles e só faria isso por alguma razão especial, mas ela e Eduardo deveriam ficar no palácio da Torre com Lady St. Omer e Joana deveria seguir com os pais. O que poderia significar aquilo? Isabella estava com apenas seis anos - pouco mais de um ano mais velha do que Joana, mas era ela a inteligente irmã mais velha.
- Você vai morar com o seu marido - disse ela. - É por isso que está indo.
- Não vou - replicou Joana. - Ainda não tenho idade suficiente para me casar.
- As meninas vão para a casa dos maridos e crescem com eles, não é, Eduardo?
Eduardo disse que sim, e Joana mergulhou em dúvidas.
Depois, suas esperanças aumentaram. Sua mãe jamais a deixaria ir embora, disso estava certa. No entanto, era estranho que ela devesse viajar com os pais e Isabella e Eduardo não os acompanhassem.
Na próxima vez em que viu a mãe, agarrou-se à mão dela, e Filipa adivinhou logo o que havia de errado. A menina estivera ouvindo mexericos. Filipa se perguntara se seria prudente contar-lhe o que estava para acontecer e prepará-la ou esperar até mais tarde. Agora, não lhe restava alternativa.
- Sim, minha filha querida, você vai para a Áustria - disse ela.
- Sabe, você vai ganhar um marido e ele é filho do duque da Áustria. Como seu marido é austríaco, parece melhor você ser criada na corte deles, para que ele não seja um estranho para você quando vocês se casarem. Eu fui criada em Hainault e depois vim para a Inglaterra e tive de aprender a ser inglesa. Você vai aprender desde o início a ser austríaca.
- Eu quero continuar inglesa - disse Joana.
- Meu amor, daqui a algum tempo você vai rir disso. Vai querer ser exatamente como seu marido. Eu quis ser uma inglesa quando me casei com seu pai.
Joana prestou atenção, mas estava com medo.
- Sua nova família queria que você fosse para lá há muito tempo, mas seu pai não queria deixar-prosseguiu Filipa. - Ele disse: "Não, ela é muito criança e eu tenho de manter a minha Joana aqui comigo."
- Talvez ele ainda diga isso - sugeriu Joana, com entusiasmo.
- Ele vai à Europa e eu também, e você vai conosco. Seu pai não a deixaria ir sem ele. Ele gosta muito de você.
- Então talvez ele fique comigo.
Pobre menina. A esperança que havia em seu olhar causou pena a Filipa. Por que aquilo tinha de acontecer com as crianças? Elas eram arrancadas de seus lares por motivos políticos. Como poderia ela explicar àquela garota que ela estava indo agora porque o pai precisava da ajuda do duque da Áustria e não tinha coragem de ofendê-lo ao manter -Joana com os pais por mais tempo? Como era fervoroso seu desejo de que nunca tivesse havido aquela reivindicação do trono francês! Como ela desejava que Robert de Artois nunca tivesse ido para a Inglaterra, nunca tivesse apanhado aquela garça simbólica!
Mas acontecera, e ela era obrigada a deixar os dois filhos mais velhos em casa e viajar com Eduardo à Europa, levando aquela filha patética que seria tirada da família e dada a estranhos.
Filipa tentou interessá-la nas roupas que ela iria levar e no catre em que iria dormir quando estivesse no navio. Joana os estudou com um interesse nada animador. Ela não conseguia parar de pensar em deixar Isabella e Eduardo e em como seria seu marido.
Mas primeiro havia a viagem, e durante aquele tempo ela estaria com os pais, e era disso que gostava mais do que de qualquer outra coisa. Isabella ficara triste e chorara quando eles partiram e quisera saber por que ela devia ficar em casa. Então, Eduardo a beijara e dissera que da próxima vez a levaria junto e ela tivera de se contentar com aquilo.
Quando partiram no navio, e tudo era tanta novidade e emocionante, Joana esqueceu-se de para onde estavam indo; ela adorava o mar e o seu catre e, apesar da apreensão, foi tudo muito interessante.
Foi num quente dia de julho que o grupo desembarcou em Antuérpia. Não havia uma residência real onde pudessem se alojar, e um comerciante flamengo chamado Sirkyn Fordul ofereceu-lhes abrigo. Ele se sentia muito honrado, disse, ao tê-los em sua casa, e ele e a mulher prepararam-se para recepcioná-los no estilo mais régio que lhes fosse possível.
Foi uma aventura emocionante para a pequena Joana, especialmente quando durante a noite foi acordada pela mãe, que a pegou nos braços e correu com ela para fora da casa. Joana agarrou-se à mãe, aterrorizada; a fumaça sufocava-a e ela mal podia respirar até sair para o frio ar noturno nos braços da mãe, e seu pai estava ao lado delas. A casa em que estavam passando a noite era uma massa de madeira em chamas.
Então, Joana viu figuras encapuzadas indo em direção a eles. Era um abade com seus monges, que sugeriam que a comitiva real fosse com eles para o convento de São Miguel, onde poderiam abrigar-se o resto da noite.
Para Joana, parecia um sonho estranho - tudo parte da aventura de ir para a casa do marido. Filipa ficou muito triste por causa da tragédia que a chegada deles tinha levado a Sirkyn Fordul e sua mulher, porque a conflagração fora provocada devido a todas as fogueiras que eles haviam feito para poder cozinhar para tanta gente. Eduardo a consolou e assegurou-a de que indenizaria os dois por todos os danos e então o digno casal teria dinheiro suficiente para construir uma nova casa.
Foi um começo infeliz para a aventura, e Eduardo estava preocupado com Filipa, que tornara a engravidar. Não fosse pelo fato de ela ter insistido em acompanhar Joana até o novo país dela, Eduardo a teria convencido a ficar na Inglaterra.
Os poucos dias seguintes foram passados em Antuérpia, onde eles puderam fazer viagens pelo rio Scheldt e visitar a cidade e suas várias igrejas.
Eduardo estava muito preocupado porque sabia que precisava de aliados com quem pudesse contar e ouvira dizer que Luís da Baviera estava indeciso e poderia muito bem decidir tornar-se aliado do rei da França.
- Preciso visitá-lo e conversar com ele - disse a Filipa. - Ao mesmo tempo, posso levar Joana até a Áustria.
- Eu vou com você - disse Filipa.
- Minha adorada, lembre-se de seu estado. Tremi de medo pelo que poderia ter acontecido a você durante o incêndio. Esse tipo de coisa não é bom para o bebé.
Filipa teve de concordar.
- Pode confiar em mim, que tomarei conta de nossa filha-disse ele - Acho que é melhor ela se separar de um de nós agora e do outro mais tarde. Isso vai amortecer o choque de perder a nós dois juntos.
Filipa concordou que poderia ser isso mesmo; e na verdade estava sentindo as costumeiras inconveniências da gravidez, que não eram ajudadas pelas dificuldades que necessariamente a viagem impunha.
Uma ideia ocorrera-lhe.
- vou escrever para Margaret-disse ela-e pedir que ela cuide de Joana.
Parecia uma ideia excelente, porque a irmã mais velha de Filipa, Margaret, era agora esposa de Luís da Baviera.
Aquilo suavizou bastante o coração maternal de Filipa. E eles partiram para Herenthals, onde descansariam uma noite antes da separação, quando Eduardo e Joana continuariam com destino à Baviera e Filipa voltaria para Antuérpia, a fim de aguardar o nascimento do filho.
Não havia lugar, em Herenthal, digno do posto deles e foram alojados na casa de um dos camponeses. Dominados pela honra que lhes fora concedida, Podenot de Lippe e sua esposa Catherine, percebendo que a casa não poderia conter tanta gente, decidiram que a única coisa que poderiam fazer era servir o jantar no jardim.
Isso pareceu uma ideia excelente, até que se viu que a grama e as plantas estavam arruinadas pelo pisotear das pessoas, porque não apenas ali estavam os criados que compunham a comitiva real, mas multidões que chegavam para apresentar seus respeitos a eles.
As fisionomias abatidas de Podenot e Catherine de Lippe representavam tamanha censura, que imediatamente Eduardo se ofereceu para indenizá-los pelo dano causado, de modo que acabou saindo um jantar muito dispendioso.
No entanto, havia outros assuntos de maior importância para ele, porque estava na hora de Filipa despedir-se da filha. A menina agarrouse à mãe e Filipa teve dificuldade em conter as lágrimas.
- Seu pai ainda está com você, meu amor - disse ela. - Há muito tempo para os dois ficarem juntos. vou pensar em você todos os dias. Rezarei por você e sei que será feliz no seu novo país. Sua tia Margaret estará lá. Ela tomará conta de você. Você se lembra de eu ter falado sobre minha irmã Margaret e o quanto nos divertíamos juntas quando éramos crianças em Hainault?
Joana sacudiu a cabeça, triste, e Eduardo ergueu-a nos braços e a beijou.
- Você vai estar segura comigo, minha filha - disse ele, carinhoso.
Filipa ficou olhando até que o cortejo desapareceu de vista; depois, triste, voltou para Antuérpia.
Joana era criança o bastante para gostar da viagem e esquecer o que esperava por ela no final. Adorava o pai. Ele era sempre bom para ela; amava muito todos os filhos, mas sempre estivera mais inclinado a favor das filhas, e como sabia que a separação da mãe perturbara muito Joana, fazia todo o possível para compensá-la pela perda. De modo que às vezes Joana sentia-se inteiramente feliz. Era emocionante cavalgar seu pequeno cavalo ao lado do magnífico homem que era seu pai e ver que todo mundo dedicava um grande respeito a ele - e a ela, simplesmente por ser filha dele. Os dois viajavam com 66 arqueiros que apresentavam um espetáculo impressionante, e depois havia seus criados pessoais, de modo que formavam um grande grupo.
O cenário era belo. Joana adorou navegar Reno acima enquanto seu pai assinalava os castelos nas margens e o rochedo no qual Lorelei atraíra marinheiros para a destruição. A menina não tinha medo deles, porque o pai estava a seu lado e estava certa de que ele levaria vantagem sobre qualquer pessoa - até mesmo Lorelei.
Em Bonn, eles desembarcaram e foram hóspedes do arcebispo de Colónia, que tinha sua residência naquela cidade. Passaram ali uma noite tranquila e depois prosseguiram, ficando em vários lugares onde eram recepcionados e lhes eram oferecidas festas, até que chegaram a Coblenz, onde o imperador Luís em pessoa os aguardava. com ele estavam os vários príncipes do Império, entre eles o duque da Áustria, pai do garoto com quem Joana iria se casar.
com Luís estava sua mulher, que imediatamente tomou Joana pela mão e disse que tomaria conta dela.
Era a tia de Joana, Margaret.
- Sua mãe me escreveu e pediu que tivesse um cuidado especial com você - disse ela a Joana.
O ânimo de Joana melhorou um pouco, porque nos últimos dias não conseguira esquecer que em breve deveria despedir-se do pai. Ela se agarrou aquela nova esperança. Sua tia ali estava e era irmã de sua mãe
- e, sim, ela se parecia um pouco com Filipa. Tinha a mesma pele clara, o mesmo rosto rechonchudo; mas não era igual a Filipa. Joana foi rápida em perceber a diferença. Faltava a ela o olhar limpo e sincero que era tão reconfortante. A tia era delicada e sorria, mas Joana sentiu instintivamente que na verdade não era igual à sua mãe.
No entanto, havia muitas coisas a ver. O imperador ordenara que fossem armados dois tronos na praça do mercado e ali ele e Eduardo sentaram-se durante algumas cerimónias muito demoradas.
TiaMargaret ficou ao lado de Joananaquelas ocasiões e fez algumas perguntas sobre a irmã. Disse que escreveria para ela e diria que gostara muito da filhinha dela à primeira vista e cuidaria dela até que tivesse idade suficiente para ir para a corte do pai de seu futuro marido. O duque Otho também era delicado, embora Frederic, o futuro marido, fosse muito jovem e olhasse Joana com a mesma desconfiança que ela lhe dedicava.
- Vocês vão ter tempo de se conhecer e de amar um ao outro disse tia Margaret. - Mas por enquanto, você ficará comigo.
Eduardo quase não viu a filha durante os poucos dias anteriores à separação. Sua finalidade principal de ter ido tão longe fora encontrar-se com o imperador e com o duque Otho e persuadi-los a apoiá-lo em sua reivindicação do trono francês contra Filipe.
Os dois foram cordiais mas pareciam ser evasivos, pensou Eduardo, embora acreditasse que a aliança pelo casamento garantiria a amizade entre eles. Em pouco tempo percebeu que, por mais que se demorasse ali, não poderia fazer mais, de modo que se preparou para partir. Antes de fazê-lo, deu presentes caros ao imperador e sua mulher e ao duque da Áustria. Esses presentes tinham a finalidade de se constituírem em subornos em dois sentidos. Em troca, ele queria a cooperação deles contra a França e que sua filha fosse tratada com o máximo de delicadeza.
Os presentes foram aceitos de pronto e garantias de amizade foram trocadas, de modo que Eduardo poderia partir sentindo que o pacto entre eles estava assegurado e a filha estaria em boas mãos.
O duque Otho queria levar a menina com ele para sua corte, mas Margaret interveio.
- Ela ainda é muito criança - declarou ela -, e minha irmã me pediu que ficasse com ela durante algum tempo.
O duque Otho teria gostado de protestar. Afinal, Joana ia se casar com o filho dele; mas não teve coragem de ofender o imperador, que, naturalmente, seria influenciado pela mulher. Além do mais, Eduardo ficara muito satisfeito com o combinado.
- Será melhor a menina ficar com a tia - disse ele. - É muito jovem e já gosta muito dela.
Assim ficou combinado que Joana ficaria na Baviera com a tia Margaret até a época em que pudesse juntar-se ao futuro marido.
Foi uma despedida emocionante. Joana chorou, e Eduardo teve dificuldade em conter as emoções.
- Vai tudo ficar bem, minha queridíssima filha - disse ele. Eu e sua mãe estaremos pensando em você. Nada de mal lhe acontecerá. Lorde John de Montgomery cuidará de você. Ele vai providenciar para que tudo corra bem. Pronto, filhinha, você vai ficar com sua tia e eu sei que já começa a gostar dela. vou dizer a sua mãe que você vai ser feliz aqui... caso contrário, ela ficará triste. Sei que você não vai querer isso.
Joana agarrou-se ao pai e ele teve dificuldade em retirar-se dos braços dela. Chegou quase a querer levá-la de volta com ele. Isso, é claro, seria o fim das relações de amizade entre ele e o imperador e o duque. E Eduardo precisava deles.
Durante alguns instantes, ele se perguntou por que teria se metido naquela aventura arriscada. Gostaria de nunca ter feito amizade com Robert dArtois e lhe dado tanta liberdade, a ponto de poder iludi-lo com a sua garça.
Aquilo era um absurdo. A vida de um rei não devia ser dedicada à sua família, por mais que a amasse. Tinha uma coroa a conquistar e faria tudo o que estivesse ao seu alcance para consegui-la.
Por fim, separou-se de Joana e iniciou a viagem de volta para Antuérpia e para Filipa.
Eduardo chegou a Antuérpia, onde Filipa o esperava, ansiosa. Ela queria saber sobre a despedida dele de Joana e ficou encantada pelo fato de Margaret tê-la tomado sob seus cuidados; e, no entanto, tinha certas apreensões. Poucas pessoas poderiam conhecer Margaret tão bem quanto ela, e não podia deixar de estar ciente de que durante a infância delas Margaret sempre arranjara um jeito de obter a parte maior de quaisquer coisas boas que recebiam e deixar para as outras o que não lhe interessasse.
Mas acontece que na época ela não passava de uma criança - a mais velha das meninas e um tanto cônscia de sua posição superior. Ela devia ter amadurecido e ficado mais tranquila, e iria gostar de Joana por causa de sua irmã. Além disso, Filipa providenciara para que alguns presentes caros fossem dados a Margaret, porque sabia o quanto Margaret adorava jóias.
Tudo estaria bem.
Eduardo ficara um pouco deprimido com a viagem. Não tinha, em absoluto, certeza quanto a Luís da Baviera. Tinha havido algo de muito indeciso com relação a ele, e embora enquanto em suapresença Eduardo tivesse acreditado em sua amizade, de longe não tinha tanta certeza assim.
Se ele pudesse contar com Luís, teria o apoio dos príncipes alemães, pois era natural que seguissem o imperador. O conde de Guelres casara com a irmã de Eduardo, Eleanor, de modo que havia um elo íntimo ali e ele achava que podia contar com o conde.
Mas o rei da França tinha alguns aliados fortes. Navarra, Sicília e Luxemburgo estavam com ele. O papa, no entanto, escreveu a Eduardo censurando-o por fazer uma aliança com o imperador Luís, que fora excomungado. Eduardo praticamente não podia esperar apoio do papa, que, instalado em Avignon, era um subalterno do rei da França. Ainda assim, se aqueles que ele acreditava ter conquistado continuassem fiéis, ele tinha boas condições de fazer seu ataque contra a França.
Ele discutia muito o assunto com Filipa. O que precisava era de dinheiro e já empenhara grande quantidade das jóias que Filipa levara consigo de Hainault.
- Receio - disse Eduardo a ela - que teremos de levantar o que pudermos com a sua melhor coroa.
Filipa deu de ombros. Se tinha de ser, que fosse, e a satisfação do marido e da família significava, para ela, mais do que quaisquer jóias. Mas lamentou a perspectiva de guerra e ansiava por estar em casa com os filhos. Estava sempre pensando em Eduardo e Isabella e se perguntava se eles estariam sendo bem tratados. Sempre haveria aquela angústia quando estivesse separada dos filhos e, não fosse a guerra, a pequena Joana não precisaria ter ido embora tão cedo.
Em novembro, o filho nasceu. Foi uma grande alegria para ela, porque era um menino. Filipa decidiu que ele deveria chamar-se Lionel, por causa do leão no brasão de Brabant. Seria uma homenagem ao povo que tinha sido tão hospitaleiro para com eles.
Embora tivesse membros compridos, fosse bonito e tipicamente um Plantageneta, a criança sofria de algum ligeiro problema no peito, e Filipa insistiu para que mandassem chamar o médico que cuidara dela e de sua família em Hainault, para tratar da criança. Filipa tinha uma grande confiança nele.
O pai dela havia morrido e isso tinha sido um grande golpe para ela, mas ela sabia que era inevitável; e sua mãe, que agora estava sozinha, porque todas as meninas tinham-se casado, decidira retirar-se para um convento. Portanto, Filipa não tinha constrangimento algum quanto a chamar o médico para cuidar do pequeno Lionel.
Ele foi e, para alegria de Filipa, num prazo muito curto Lionel era uma criança vivaz e saudável - o maior de todos os seus bebes, inclusive Eduardo, que fora uma criança com muita saúde.
Eduardo tinha um amigo muito bom na pessoa de Jacob van Arteveldt, um homem muitíssimo extraordinário que, devido ao seu caráter destacado e à sua indubitável integridade, tornara-se governador de Flanders. Era um homem de seus cinquenta anos, e quando era mais moço vivera numa obscuridade muito afluente. O pai, Jan, tinha sido um operário do setor de tecidos que fora xerife de Ghent. Jacob era muito viajado, tendo estado a serviço de Carlos de Valois, irmão de Filipe, o Belo, e, com ele, viajara à Itália, Grécia e Sicília. Voltando a Ghent, dedicara-se à vida em família, aos seus negócios de tecelagem e ao que sua esposa tinha levado para ele - uma fábrica onde era feita cerveja doce. Ele mesmo nada tinha de pobre; sua família tinha sido formada de gente trabalhadora e acumulara fortuna e ele vivia numa bela casa no Calanderberg, na qual podia exibir o brasão da família. Ele era, na verdade, um homem de substância.
Era um homem grande nos dois sentidos do termo, um reformador por natureza e um fervoroso patriota. Compreendia bastante o que havia de errado em seu país e acreditava que aquilo fosse consequência de um governo incompetente. O conde Luís de Flanders era o instrumento do rei francês, e os franceses estavam ansiosos por que os tecelões ficassem dependentes da lã deles, e Jacob acreditava que devido à interferência francesa o comércio da tecelagem não florescia como devia.
A aliança que surgira com a Inglaterra quando a rainha Filipa providenciara para que tecelões flamengos fossem para a Inglaterra parecera a Jacob uma promessa de coisas melhores; e se os flamengos pudessem eliminar o jugo que o conde Luís de Flanders impusera a eles através de sua amizade com a França, ele tinha a certeza de que haveria tempos melhores pela frente.
Nas ruas de Ghent, tecelões que não tinham emprego reuniam-se para conversar. Suas famílias não tinham o suficiente para comer; suas casas eram pequenas e exíguas e estavam superlotadas. Eles eram uma gente que trabalhava com afinco e parecia um azar o fato de eles, que estavam tão dispostos a ganhar a vida, não conseguirem sustentar-se e sustentar suas famílias.
Então, começaram a ouvir falar num homem chamado Jacob van Arteveldt, que acreditava poder encontrar uma solução para suas dificuldades. A cidade inteira falava nele; por toda parte seu nome era mencionado. Ele era bem conhecido na cidade; um homem que sempre tratara bem seus operários; um patriota que amava seu país.
- Vamos ouvir o que ele diz - bradava o povo.
O resultado foi que Jacob concordou em falar-lhes, e se se reunissem nos terrenos do mosteiro de Biloke, ele estaria lá para se dirigir a eles.
Os terrenos do mosteiro ficaram lotados de cidadãos ansiosos e, lá, Jacob falou com grande eloquência e com o que eles achavam ser um bem fundado bom senso.
Pediu que eles não esquecessem o poder e a glória de Flanders. Quem deveria dizer o que eles deviam fazer? Eles sabiam muito bem que o rei da França estava tentando evitar que fizessem comércio com a Inglaterra. O que é que eles tinham a temer da França? Todas as comunas de Brabant ficariam ao lado deles, como aconteceria com as de Hainault, Holanda e Zealand. Por isso, era loucura ficar intimidado pela França.
- O que eu quero ver e o que sei que fará o nosso comércio florescer é a liberdade de procurar um justo intercâmbio comercial entre Flanders e a Inglaterra, e ao mesmo tempo garantir a neutralidade se essa guerra que ameaça acontecer entre a Inglaterra e a França vier a estourar.
O público ovacionou-o. Havia algo de sólido em relação àquele homem com uma grande barriga e palavras eloquentes. Ele era conhecido como um comerciante honesto. Era um bom cidadão. Era o tipo de homem que eles queriam para gerenciar seus negócios.
Não demorou para que todos os representantes das várias comunas tivessem aderido a Jacob van Arteveldt em Ghent e, juntos, eles visitaram Luís, o conde de Flanders, que, ao ver a determinação deles, concordou logo em apoiá-los, e um tratado foi assinado em Antuérpia, para onde Jacob havia convidado os embaixadores ingleses. Eles chegaram a um acordo sobre três artigos principais. Primeiro, que deveriam poder comprar lã e qualquer outra mercadoria da Inglaterra. Segundo, os comerciantes de Flanders em visita à Inglaterra deveriam ser livres, no que se referia à pessoa deles e à sua mercadoria; e terceiro, não deveriam intrometer-se, de qualquer forma, através de assistência em homens e armas, nas guerras entre Eduardo da Inglaterra e Filipe de Valois.
Filipe, é claro, ficou muito contrariado com tudo aquilo e enviou uma mensagem ao conde de Flanders dizendo-lhe que aquele homem perigoso, von Arteveldt, deveria ser eliminado, se não, acrescentou ele de forma ameaçadora, aquilo seria o fim do conde de Flanders. No entanto, as tentativas do conde de mandar assassinar Jacob deram em nada. O povo estava decidido a que o seu salvador deveria viver, e quando o conde mandou chamar Jacob ao palácio, ele chegou acompanhado de tantos cidadãos, que o conde Luís viu que não poderia eliminá-lo com tanta facilidade assim. Tudo o que poderia fazer era explicar a Jacob que se ele persuadisse o povo a gostar do rei da França isso seria muito proveitoso para ele, ao passo que se não o fizesse poderia ficar numa situação precária.
Jacob não era homem de se impressionar com subornos ou ameaças. Respondeu que queria fazer o que fosse melhor para o povo de Flanders, e para ninguém mais. Tinha sido ele que o escolhera para aquela tarefa, e ele pretendia executá-la.
Era impossível o conde Luís fazer mal a Jacob, porque o povo estava com ele por unanimidade.
Jacob disse ao povo que este precisava armar-se para revidar um ataque. Deveria haver bandos treinados por todas as cidades. Eles não estavam se armando para uma guerra, mas para preservar seus direitos. Aquilo era uma neutralidade armada.
Essa hostilidade entre a França e Flanders era, naturalmente, vantajosa para Eduardo, e ele percebeu que devia fazer todo o possível para aumentar o intercâmbio entre os dois países. Era isso que queriam e que era bom para ambos.
Filipa compreendera isso com muita clareza quando levara os tecelões para a Inglaterra; depois, criara-se entre os dois países uma grande amizade que agora estava sendo de muita valia para ele.
- Ah - disse Filipa -, não fosse o estado de guerra, como todos os nossos países seriam prósperos!
Ela ficava triste ao pensar na concentração de Eduardo naquela batalha por uma coroa.
Ela sempre pensara em como seria muito melhor ter uma Inglaterra próspera do que uma Inglaterra em guerra; e mesmo se houvesse sucesso para Eduardo e ele conseguisse a coroa da França, ele iria apenas ganhar um país devastado pela guerra.
Mas o que uma mulher podia fazer? Ninguém daria ouvidos a ela e iriam desprezar suas ideias por considerarem-nas raciocínio de mulher. No entanto, se tivessem parado para pensar, teriam tido de admitir que ela era mais inteligente do que eles.
Quando o príncipe Eduardo e sua irmãlsabella tinham sido deixados na Inglaterra, os dois tinham ficado desapontados. Era injusto, disse Isabella, que Joana devesse ir com os pais.
- Ela é mais nova do que eu - resmungou Isabella. - Por que ela deve ir e eu devo ficar aqui?
Eduardo salientou que Joana tinha ido por um motivo. Seria deixada na corte do futuro marido. A pobre Joana não se sentira muito satisfeita com isso.
Sem dúvida que Isabella não queria separar-se dos pais. O pai fazia muito espalhafato com ela, e no íntimo ela adorava o fato de ser a sua favorita.
Eduardo olhava para ela com tolerância. Ele estava ficando muito alto e bonito. Tinha apenas dez anos de idade, mas os empregados que o serviam diziam que parecia ter dezesseis anos e tinham visto muita mulher olhar para ele com olhares de aprovação e esperança.
Eduardo não tomava conhecimento delas. Estava interessado em cavalos e era muito habilidoso na luta de espadas. Dizia-se que seria um comandante como o pai e o avô, e que o rei e o país deviam sentir-se muito orgulhosos por terem um herdeiro ao trono tão promissor.
O príncipe tinha noção de suas responsabilidades. Ele era, agora, conde de Chester e duque da Cornualha, e desde que o pai viajara para a França tinha sido nomeado guardião do reino. Naturalmente que ele era jovem demais para isso constituir nada além de um título, mas significava que era obrigado a comparecer a reuniões. Embora tudo o que tivesse de fazer fosse ficar sentado e ouvir, as pessoas dirigiam-se a ele com grande respeito e ele tinha de parecer que dava seu consentimento a certas medidas, o que na verdade significava fazer o que lhe diziam.
No entanto, aquilo era uma boa preparação para o que um dia caberia a ele fazer. Os estudos não eram negligenciados. O Dr. Walter Burley, do Merton College, Oxford, era o seu tutor e um homem rigoroso ao passar deveres. Um príncipe tinha grandes responsabilidades, diziam-lhe, e ele não podia fugir a elas.
Não que ele alguma vez fugisse do dever. Tinha um grande desejo de sobressair. Tinha ouvido sussurros sobre a vida desregrada e o infeliz fim do avô, e era seu dever assegurar-se de que não herdaria a fraqueza que aparecera naquele lamentável rei.
Pareciam ser poucas as probabilidades disso.
Ele estava no palácio da Torre quando o Dr. Burley mandou chamá-lo para lhe dar algumas novas.
- Alteza - disse o doutor -, recebi instruções do rei a seu respeito, e agora vossa alteza deve preparar-se para uma viagem.
- Vou para junto de meu pai? - perguntou o príncipe, ansioso. O Dr. Burley confirmou com a cabeça.
- Quando?
- Assim que a viagem puder ser preparada.
- Isso quer dizer imediatamente. Porque fique certo de que não vou me demorar.
- Vossa alteza deve saber que o rei está ansioso por celebrar seus esponsais.
- Eu vou ter uma esposa?
- O casamento é necessário aos planos do rei. Ele está ansioso por fortalecer suas alianças no continente e está providenciando o casamento entre vossa alteza e Margaret, filha do duque de Brabant.
Eduardo ficou decepcionado. Ele desejara entrar em combate, não no casamento.
- Devo me casar logo?
- Não, não. Mas o rei precisa dessas alianças.
O príncipe ficou pensativo. Ora, era aquilo que acontecia com os membros de famílias reais. Os cônjuges eram escolhidos para eles e tinham de aceitá-los. Ficou imaginando como seria aquela Margaret.
Pelo menos, quando ele se casasse não teria de sair de casa e separar-se da família, como fizera a pobre da Joana.
- O casamento não seria consumado de imediato - disse o Dr.
Burley.
O príncipe compreendia. Haveria algum tipo de cerimónia, e ele continuaria vivendo como antes. Pôs de lado a ideia de casamento.
- Espero que meu pai não termine a guerra antes de eu chegar disse ele.
- Duvido que permitam que vossa alteza participe de batalhas.
- O senhor acha que a guerra vai acabar antes que atinja a idade de participar?
O Dr. Burley não respondeu. Ele acreditava que aquela guerra continuaria por muitos anos. O rei da França contra o rei da Inglaterra, e a batalha travada em solo francês! Ela estava demorando a começar, de modo que talvez os dois lados estivessem percebendo como era difícil a tarefa que tinham pela frente. A de Filipe era a mais fácil. Ele estava defendendo a sua pátria.
O Dr. Burley, com sua sagacidade, pensou que era uma pena Eduardo ter-se envolvido num empreendimento daqueles. Faltavam-lhe os meios; ele estava sempre precisando de dinheiro; além do mais, era certo que haveria problemas graves na fronteira escocesa se ele se envolvesse demais no continente.
Mas os talentos do doutor não estavam na guerra; sua missão era educar o jovem herdeiro do trono. E ele não estava contrariado com o trabalho. Eduardo estava dando sinais de que se tornaria um crédito para ele.
Eduardo retirou-se e começou imediatamente os preparativos.
Isabella soubera da novidade e entrou nos aposentos dele. Era típico de Isabella chegar sem se fazer anunciar, sempre presumindo que todos ficassem encantados ao vê-la.
Agora, seus olhos faiscavam e as faces estavam rubras.
- Estão dizendo que você vai para a França - bradou ela.
- É verdade - disse Eduardo. - Talvez eu parta amanhã.
- E eu deverei ficar aqui.
- Foi o que ouvi dizer. Ela bateu com o pé.
- Isso não é justo. Por que devo ficar aqui? Eduardo, me leve com você. - Ela se atirou contra ele e agarrou-se nele, mas ele, friamente, afastou-a.
- Como posso levá-la? Não houve ordens para que você fosse.
- Nosso pai prometeu... ele prometeu. Ele disse, quando partiu, que um dia iria me levar.
- Esse dia ainda não chegou.
- Isso é cruel. Eu odeio isso aqui.
- Você sabe muito bem que não odeia. Lady St. Omer é muito boa para você e cuida bem de você.
- Eu quero ir para a França - disse Isabella, aos soluços.
O príncipe afastou-se, impaciente. Não tinha tempo a perder com a irmã mimada.
Ele partiu no dia seguinte, observado por uma Isabella emburrada, mas estava agitado demais com a perspectiva para pensar muito nela. A travessia ocorreu tranquila e foi um momento emocionante quando pisou em terra. Lamentava sua pouca idade; estava ansioso por poder mostrar seu valor como soldado. Mas o fato de seu pai tê-lo mandado buscar era um bom sinal.
O jovem ficou tão encantado ao tornar a ver a mãe quanto ela ficou ao vê-lo. Abraçou-o e quase se deixou dominar pela emoção. Filipa raramente dava vazão aos sentimentos, mas naquela ocasião, ao ver aquele belo primogénito, ficou profundamente emocionada.
Como ele crescera! Estava um homem. Parecia muito com o pai, com os cabelos claros, as altas maçãs do rosto, o nariz aquilino um pouco arredondado na ponta-muito parecido com o do pai-e aqueles olhos azuis que tudo viam. Era um filho do qual qualquer mãe poderia orgulhar-se. Era tudo o que um futuro rei devia ser.
Filipa ficou contente por tê-lo batizado de Eduardo.
- Você fica cada vez mais parecido com seu pai - disse-lhe ela. O rei também ficou encantado. Um filho daqueles era suficiente
para animar o coração de qualquer pai. O pequeno Lionel também estava ficando mais forte a cada dia e crescia depressa. Suas amas diziam que nunca tinham visto uma criança crescer como Lionel... nem mesmo Eduardo tinha sido tão grande.
Se ao menos ele pudesse estar tão satisfeito com o progresso da guerra quanto estava com a família, Eduardo teria sido um homem muito feliz.
O jovem Eduardo estava muito ansioso por ouvir sobre o avanço da guerra, e seu pai percebeu que ele estava se perguntando por que ela ainda não fora ganha, e o rei da Inglaterra ainda não era também o rei da França.
- Meu filho querido - disse ele -, você tem muito o que aprender. Guerras não se ganham com facilidade. Quando tinha sua idade, eu pensava a mesma coisa. Tornei-me rei jovem demais e fui para a Escócia, onde aprendi uma amarga lição. As guerras engolem dinheiro. É preciso pagar aos soldados, é preciso conseguir armas, é preciso comprar amizade.
- Eu não pensava que a amizade fosse sincera se dependesse de presentes - disse o príncipe.
- Estou vendo que o bom doutor lhe ensina o bom senso. Tenho de comprar aliados, Eduardo. Eu os chamo de amigos, mas como você salienta com razão, eles não são meus
amigos de verdade e poderiam ser meus inimigos se alguém chegasse com uma proposta melhor. Eduardo, você está aqui em Brabant para ser visto pelo duque. Ele irá decidir, então, se você é um marido digno da filha dele.
- O duque é um desses amigos que precisara ser comprados?
- Preciso da ajuda dele, Eduardo. Essa é uma grande tarefa...
- O senhor precisa tanto assina da coroa francesa, papai?
- Eu preciso não ser privado de meus direitos. O príncipe entendeu.
- Nós a tomaremos. Estou ansioso por lutar a seu lado.
- Um dia, meu filho. Um dia.
O príncipe não tinha muita certeza de que gostava de ser inspecionado como um futuro marido. Ele não viu Margaret. Isso ocorreria mais tarde. Havia muita coisa que dependia da guerra. Se Eduardo tivesse tido alguns sucessos, todos os príncipes das redondezas estariam ansiosos por ser seus amigos. O que ele precisava era de sucesso. Mas antes de tudo precisava de dinheiro.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro! Era a necessidade clamorosa. Tanto dinheiro para gastar, tantos subornos a serem pagos, tantas recepções onerosas.
O príncipe perguntava-se se era assira que se ganhava uma guerra.
Ele se viu cavalgando lado a lado com uai homem muito bonito, cerca de dez anos mais velho do que ele. Havia algo de honesto nele, e o príncipe, àquela época, refletindo sobre o que seu pai dissera sobre subornar em troca de amizade, preocupava-se profundamente com a honestidade.
O jovem perguntou-lhe se gostava de ter saído da Inglaterra, e Eduardo replicou que era bom estar onde iriam acontecer fatos importantes.
Os dois conversaram durante algum tempo sobre coisas banais, e então Eduardo perguntou ao jovem o que ele achava sobre a demora dos combates. Será que ele achava que havia uma certa relutância por parte de ambos os lados?
O jovem ficou pensativo. Parecia que sim. Tinha-se falado tanto em guerra, que sem dúvida era estranho não ter acontecido nenhuma batalha. Para ele, isso se devia à falta de dinheiro. Disse que estivera presente ao banquete quando Robert dArtois apresentara a garça assada. Talvez o rei tivesse feito o juramento antes de estar pronto para lutar.
Depois, conversaram sobre as reivindicações do rei por intermédio de sua mãe e que Filipe, na realidade, não estava na linha direta.
Eduardo achou muitíssimo interessante e gostou muito da companhia do jovem.
Perguntou o nome dele.
- John Chandos - foi a resposta.
- Pois bem, John Chandos - disse ele -, espero que tornemos a cavalgar juntos outra vez.
John Chandos disse que estava à disposição do príncipe, e à medida que os dias se passavam o príncipe se encontrava mais com John Chandos, e quando lamentou o fato de ser muito novo e, portanto, de não lhe permitirem participar dos combates, John salientou que sempre havia compensações em todas as situações.
- Imagine só - disse ele -, se vossa alteza tivesse mais quatro ou cinco anos, eles iriam casá-lo com Margaret de Brabant.
- E eu não estou tão certo assim de que quero me casar com ela, John.
- Foi o que eu quis dizer. Por isso, agradeça o fato de ainda não poder se casar.
O príncipe soltou uma gargalhada. E sua amizade com John Chandos aumentava.
Filipa percebeu isso e ficou satisfeita. Era bom Eduardo fazer amigos, e embora Sir John Chandos não fosse um homem do mais nobre dos berços, era de boa família e um homem honrado que prestara bons serviços ao rei. Uma de suas irmãs, Elizabeth, tinha sido dama de honra de Filipa em determinada época. Ela gostara da mulher, assim como do irmão dela.
John Chandos podia ensinar muita coisa a Eduardo.
Filipa estava profundamente preocupada com outros assuntos. Eduardo dissera que talvez tivesse de ir à Inglaterra para levantar algum dinheiro.
Ela suspirou. Podia-se gastar dinheiro de muitas maneiras melhores do que na guerra. Ela lamentava muito Eduardo ter pensado, um dia, em reclamar o direito ao trono da França. Se ele não tivesse feito isso, poderiam estar todos juntos na Inglaterra.
Ela pensava sempre nos filhos. Preocupava-se com Joana e Isabella. Se ao menos eles pudessem voltar para a Inglaterra, que era o seu lugar, e passar a viver em paz!
Estava desconfiada de que devia estar grávida outra vez.
Joana sentia-se desesperadamente infeliz. Pelo fato de sua tia Margaret parecer-se um pouco com sua mãe, ela esperara que agisse da mesma forma. Quando o pai fora embora, a garota caíra em lágrimas e continuava a soluçar muito.
A tia olhou para ela com um certo desagrado e disse, muito ríspida:
- Ora, menina, você não é uma criança. Por que está fazendo esse barulho?
Joana parou de chorar para olhar para a imperatriz com espanto.
- Eu quero meu pai e minha mãe - disse ela. A imperatriz deu-lhe as costas, com impaciência.
- Por favor, façam com que a menina lave o rosto - disse ela. A aparência dela é ofensiva.
Joana ficou pasma. Pensara que a tia fosse compreender. Fora tão delicada quando seu pai estava lá e dissera-lhe que tinha sido muito generoso ao dar-lhe jóias tão bonitas.
- Pode confiar em mim, que vou tomar conta de sua filha dissera a imperatriz.
E agora não compreendia o quanto Joana se sentia infeliz. Sem dúvida que ela sabia que nunca houvera no mundo um pai como o dela, nem uma mãe como a irmã, Filipa. E não era razoável supor que qualquer filha que os perdesse ficaria muito triste?
Foi lamentável perceber que nem tudo poderia ser como Joana pensava que fosse.
Quando tornou a ver a tia, estava comportada e foi uma ocasião cerimoniosa. O imperador e a imperatriz participavam de um banquete e Joana foi levada até a presença dela porque a imperatriz assim o desejara. A imperatriz era toda sorrisos e amabilidades.
- Minha querida menina-disse ela -, ah, você agora está bem. Foi uma despedida triste, não foi? - E então, para alguém que estava a seu lado: - A filha de minha irmã, a rainha da Inglaterra, está um pouco triste agora, por separar-se dos pais, mas vai sentir-se feliz e bem comigo. Não vai, Joana?
A pobre Joana ficou perplexa. Ficou se perguntando se ouvira bem naquela outra ocasião.
Às vezes ela cavalgava ao lado da imperatriz no seu pequeno pónei e as pessoas sorriam para ela e pareciam estar contentes ao vê-la.
O duque Otho era delicado e ela foi apresentada a Frederic, seu futuro marido. Joana não ligou muito para ele.
- Vai demorar muito para você atingir a idade de se casar-disse a imperatriz, sendo delicada.
- Espero que eu nunca me case - disse Joana.
- Isso foi uma declaração muito boba - replicou a imperatriz, com frieza.
Ela agora estava olhando para Joana com uma fria antipatia, e Joana sentiu uma grande vontade de chorar como uma criança que queria a mãe.
Era um pouco desnorteador quando não se estava com idade suficiente para deixar a família e ir morar com estranhos, muito embora sempre tivesse sido salientado que as princesas tinham de crescer mais depressa do que as outras pessoas.
Joana era grata a lorde John de Montgomery, embora não pudesse confiar nele, mas ele lhe dava a sensação de estar sendo bem cuidada.
Ela contava com algumas criadas e era reconfortante conversar com elas, mas via que à medida que as semanas se passavam elas se tornavam muito aflitas. Era frequente ter muito pouco para comer - na verdade, não havia o bastante para a criadagem, e Joana ouvia as criadas conversando e dizendo que se a rainha Filipa soubesse como a irmã estava tratando a princesinha, jamais a perdoaria.
Depois de sua primeira exibição de amizade, a imperatriz raramente se aproximava da sobrinha. Na verdade, parecia ter esquecido sua existência. Joana estava profundamente magoada; esperara um tratamento muito diferente por parte da irmã de sua mãe.
Lorde John foi visitá-la e lhe disse que não adiantava fingir que estava sendo tratada como devia na corte imperial e sugeriu que ela escrevesse ao rei e contasse o que acontecia com sua filha.
- Eu sugiro, senhora princesa - disse ele -, que vossa alteza escreva para sua mãe.
Os olhos de Joana ficaram arregalados de horror.
- E se as cartas caírem nas mãos deles!
Ela imaginou coisas terríveis lhe acontecendo, coisas sobre as quais ouvia sussurros pelos cantos. Que os traidores eram jogados em masmorras para viver com os ratos, como eles morriam...
Lorde John percebeu, então, como tinha sido profundo o sofrimento da menina e nasceu nele uma grande raiva da imperatriz egoísta e pensou no quanto era diferente da irmã.
- Não tenha medo - disse ele -, suas cartas não cairão em mãos deles, e se caíssem, nada de mal poderia acontecer à filha do rei Eduardo da Inglaterra.
- Poderão dar a ela muito pouco de comer e ser indelicados com ela - retorquiu Joana, com lógica.
Era verdade. Lorde John concordou, mas se Joana pudesse escrever sobre o que acontecera com ela, providenciaria para que as cartas não caíssem em outras mãos que não as de sua mãe.
Escrever cartas às escondidas deu uma nova emoção à vida - e esperança, também. Se sua mãe soubesse, jamais a deixaria ficar naquele lugar horrível.
No devido tempo, as cartas tiveram o efeito desejado.
O rei da Inglaterra queria, agora, que a filha fosse colocada aos cuidados do futuro sogro, o duque Otho da Áustria.
A imperatriz deu de ombros. De qualquer modo, esquecera-se da menina. Os caros presentes que o rei tinha dado a ela também tinham sido esquecidos.
- Deixem que a criança vá - disse ela.
A vida ficou um pouco mais confortável para Joana depois disso, embora sentisse muita saudade de casa e ansiasse por estar ao lado da mãe. As brigas com Isabella pareciam, agora, uma perfeita bem-aventurança e ela ansiava por ver o irmão Eduardo. Queria ser erguida nos braços do pai e encostar o rosto no dele; queria correr para os braços de sua mãe e ser abraçada com força.
Será que um dia os veria de novo? Sorte de Isabella, que apesar de ser mais velha ainda estava em casa!
O duque Otho era um homem bom. Achava a nova filhinha encantadora. Joana o achava muito velho, mas talvez fosse porque estava doente.
Lá, naturalmente, ela via Frederic quase todos os dias. Ele nem chegava perto de seu irmão Eduardo em matéria de beleza, mas isso seria pedir demais. Era um garotinho arrogante e disse-lhe que os maridos eram sempre os senhores e que as esposas tinham de obedecêlos.
- Ninguém respeita garotinhos - replicou Joana, o que deixou Frederic irritado.
Ele estava crescendo depressa. Era o que diziam os criados dele. Ficaria com mais de dois metros de altura e então iria mostrar a ela.
O consolo de Joana era que levaria muito tempo para que ele ficasse em idade de se casar. Enquanto isso, Joana tinha de estudar junto com ele e falar o tempo todo na horrível língua deles.
O tio de Frederic, Albrecht, vivia na corte ducal. Joana não gostava nada dele. Faltava-lhe a delicadeza do duque Otho e achava que ele olhava para ela com uma certa antipatia divertida que era muito desagradável. Todos eram muito deferentes para com ele, que costumava ir até a sala de aula e ficar sentado ouvindo com aquele sorriso desdenhoso nos lábios sempre que Joana falava.
A princípio, a menina se sentira aliviada por ficar livre da tia Margaret, e agora o tio Albrecht e Frederic a faziam perguntar-se se a mudança representara tanta melhora assim.
Albrecht tinha uma voz alta e ressoante e um ar de ter sempre razão. Certa vez, Joana ouviu-o dizer ao irmão:
- Isso poderia ser um erro.
E instintivamente ela percebeu que ele se referia ao casamento dela com Frederic.
- Os ingleses não terão chance alguma contra os franceses prosseguiu ele.
O duque Otho murmurou alguma coisa inaudível, mas Joana imaginou que ele estava defendendo o casamento proposto e a aliança dele com seu pai.
Poucos dias depois, o duque Otho ficou muito doente. Havia uma atmosfera abafada em todo o palácio.
- Dizem que o duque está morrendo - comentou uma de suas
criadas.
- Então - disse uma outra -, Frederic será o duque.
- É, mas nós sabemos quem será o verdadeiro governante. O duque Albrecht.
- Vai haver algumas mudanças.
- Ouvi dizer que ele se dá às maravilhas com o rei da França.
O rei da França!, pensou Joana. O inimigo de seu pai! Mas era porque o pai queria que a Áustria fosse sua amiga que ela iria casar-se com Frederic.
Foi um dia triste quando o duque Otho morreu. Joana gostara dele e perdê-lo foi mais uma tragédia; e à medida que os dias se passavam ela percebia que a atitude para com ela mudava cada vez mais.
Frederic lhe disse que o pai dela não tinha direito algum ao trono da França. Ele devia ter ouvido aquilo em algum lugar, porque nunca chegaria àquela conclusão por si mesmo.
- Ele é do meu pai - bradou Joana, igualmente ignorante dos fatos, mas certa de que o pai tinha razão. Iria defendê-lo, mesmo que isso fosse perigoso.
- Seu pai será expulso da França - bradou Frederic.
- Quem disse isso?
- Meu tio Albrecht.
Ela sabia, é claro. O duque Albrecht sempre tivera antipatia por ela. Agora, a antipatia estava mais aparente do que nunca.
Lorde John foi visitá-la, e quando Joana ouviu o que ele tinha a dizer, ficou quase delirante de alegria.
- Escrevi para seu pai - disse ele -, para contar sobre a morte do duque Otho e dizer que as simpatias do duque Albrecht, o regente, recaem sobre os franceses. Agora ele mandou dizer que devemos partir imediatamente e juntarmo-nos à rainha em Flanders.
Joana perdeu a fala, de tanta alegria.
Então aquele pesadelo tinha acabado. Ela ia voltar para casa. Quis correr pelo palácio, contando a todo mundo.
Ela iria iniciar os preparativos imediatamente, mas lorde John avisou-a de que devia esperar um pouco, até que o próprio duque Albrecht falasse com ela sobre a partida.
Ela o viu naquele mesmo dia. Ele estava com Frederic, como acontecia com frequência. Diziam que ele estava ensinando Frederic a governar.
- Ora, aqui está a nossa pequena noiva - disse ele. - Está radiante hoje, não acha, Frederic?
Frederic não disse coisa alguma. Idiota, pensou Joana. Como vou ficar feliz quando não tiver que tornar a vê-lo!
- Diga-nos por que está tão feliz, alteza.
- Fique sabendo que meu pai mandou me buscar - disse ela.
- E a perspectiva de nos deixar a torna feliz?
Agora não era mais preciso aplacá-los. Não era preciso outra coisa, a não ser a verdade.
- Deixa, sim - disse ela.
- Isso não é um pouco indelicado?
- É a verdade - respondeu ela.
- Devo lhe dizer uma outra verdade, minha princesa? A senhora está aqui conosco e aqui ficará até que digamos que pode partir. Vamos apelar ao duque. Não é isso mesmo, Frederic?
Frederic deu o seu sorriso bobo.
- É - disse ele. - Ela só pode ir quando autorizarmos.
Um terror frio tomou conta de Joana. Toda a animação fugira de seu rosto. Ela girou sobre os calcanhares e saiu correndo da sala.
- O duque Albrecht nunca vai tratar seu pai com desprezo - diziam as criadas, mas ela via que lorde John não tinha tanta certeza assim.
Não havia tentativa alguma, agora, de esconder o fato de que a Áustria ficaria do lado da França na luta que se aproximava e que todos os ricos presentes não precisariam ter sido dados nem o proposto casamento arranjado.
Frederic, que estava muito sob a influência do tio, disse a Joana que o rei francês era o maior do mundo e em breve faria com que o rei inglês desejasse nunca ter pensado em tirar o que não lhe pertencia.
Joana recusava-se a discutir com ele. Estava muito abatida, imaginando o que iria lhe acontecer agora.
Olhando sua fisionomia triste, lorde John tentou consolá-la.
- Vossa alteza sabe que seu pai é um homem que sempre consegue o que quer.
Ela sabia disso.
Pois bem, agora ele quer que vossa alteza deixe a Áustria e vá para junto de sua mãe. Ele pediu seu retorno, e como vossa alteza não partiu, ele enviou outra carta, que levei ao duque. Nela, ele exige sua volta.
Joana tinha uma grande fé no pai. Mas ainda assim o duque Albrecht não quis deixá-la partir.
- Ele vai me fazer casar com Frederic, então? - quis ela saber. Ela falava sobre o assunto com as criadas.
Elas ficavam caladas, e Joana sabia que isso significava que elas acreditavam que ele poderia fazê-lo.
- Por quê? Por que, se eles me odeiam?
Ela precisava amadurecer. Tinha de aprender que às vezes princesas casavam-se com príncipes que elas odiavam e que as odiavam, por alguma razão política.
Ela ouviu alguém sussurrar "como uma espécie de refém, quer dizer?", e a resposta: "Bem, é, pode ser isso." E Joana sabia que estavam falando a seu respeito.
As semanas passavam-se, a tensão aumentava. Todos os dias havia alguma menção sobre o conflito que se aproximava, entre o pai dela e o rei da França, e Joana sabia que estava entre inimigos de seu país.
Um dia, lorde John foi procurá-la um tanto agitado.
- Acabo de levar uma carta ao duque Albrecht, enviada pelo seu pai. Não acho que o duque vai ter a ousadia de recusar-se a deixá-la partir quando receber a carta.
- Ele não liga para meu pai. Acha que o rei da França irá derrotá-lo.
- O duque tem medo de seu pai, como devem ter todos os inimigos dele. Não acredito que vá ter a coragem de detê-la por mais tempo.
Lorde John estava certo.
O duque Albrecht não foi procurá-la nem mandou chamá-la.
Um de seus camaristas chegou e disse a ela que se preparasse. Ela deixaria a Áustria nos próximos dias, para fazer a longa viagem Danúbio acima até Munique, passando por Coblenz e indo até o castelo de Ghent, onde se juntaria à sua mãe.
Num belíssimo dia de abril, Joana partiu a cavalo. Nunca houve alguém no mundo, disso estava certa, tão feliz quanto a princesa Joana naquele radiante dia de abril.
Era uma fase de aflição para Filipa. Estava em adiantado estado de gravidez e num país estranho. Estava muito preocupada com Joana. Sabendo muito bem que sua irmã não era a mais altruísta das mulheres, Filipa pensara, a princípio, que o afeto pela irmã tivesse provocado em Margaret seus sentimentos mais nobres. Ela recebera presentes caros, na esperança de que a fizessem lembrar-se de que devia algo à irmã, mas agora Filipa tinha certeza de que Margaret ficara mais insensível e os pequenos traços egoístas da infância tinham sido ampliados. Filipa ficara horrorizada com a narrativa que lorde Johm fizera sobre o desprezo que a pobre Joana tivera de sofrer e havia muito tempo queria evitar o casamento e trazer Joana de volta.
- É muito anormal mandar uma filha tão criança para longe de casa - reclamou ela de Eduardo.
Eduardo concordava, mas era necessário procurar aliados, se quisesse conquistar a coroa da França.
A coroa da França!, pensou Filipa. Aquela ninharia! O que era aquilo comparado com a infelicidade de uma menina e sua mãe? E mesmo que ele a conquistasse - o que, estava certa, só poderia acontecer depois de anos de luta, sofrimento, privações e persistência -, o que aconteceria, então?
Como ela ansiava por deixar os Países Baixos! Pensava, ansiosa, em Windsor - as florestas, o rio e o castelo que ela passara a amar. Agora, o filho dela nasceria num país estrangeiro.
Eduardo também estava preocupado. A campanha era muito dispendiosa, e até ali nada fora conseguido. Era desconcertante o fato de aqueles que ele se esforçara tanto por agradar, e a um custo elevado, agora estarem voltando-se para a França como o lado com maiores probabilidades de ser o vencedor.
Aquilo o deixava enfurecido. Além do mais, precisava levantar mais dinheiro, e como poderia fazer isso em Flanders?
Ele chegou à conclusão de que teria de voltar à Inglaterra. Tinha de convencer o Parlamento de que precisava de dinheiro para seus exércitos. Tinha de pagar os soldados; tinha que mante-los abastecidos de armas.
Disse isso a Filipa, e a angústia dela aumentou. É verdade que ele escrevera à Áustria exigindo a volta de Joana, e Filipa esperava, a toda hora, notícias de que sua pequena filha estava a caminho. Que dia feliz aquele em que pudesse apertar a filha nos braços!
Chegou o momento em que Eduardo não podia mais adiar. Precisava de dinheiro e teria de fazer uma breve visita à Inglaterra para consegui-lo. Ficou preocupado por deixar Filipa, mas ela lhe garantiu que seria capaz de cuidar de si mesma. Além do mais, ela contava com bons amigos em Ghent, o principal dos quais era Jacob van Arteveldt, que o rei tinha em alta conta.
- Como eu gostaria de ir com você - disse Filipa, com tristeza. O rei partilhava de sua tristeza, mas lembrou-lhe que assim como o dever dele era conseguir dinheiro para armas e soldados, o dela era dar herdeiros à Inglaterra, e até ali ela se desempenhara de maneira excelente.
- Para sua maior segurança - disse o rei -, vou mandá-la para a abadia de St. Bavon. Lá você estará em segurança, e quando eu tornar a vê-la nosso filho já terá nascido.
E assim Filipa recolheu-se à abadia de St. Bavon, na cidade de Ghent, e Eduardo partiu para a Inglaterra.
Dentro de um mês depois da partida dele, Fiíipa deu à luz um menino. Era uma bela criança saudável e ela decidiu que o nome dele devia ser John. Mostrou logo ser um saudável Plantageneta e ficou conhecido como John de Ghent, que os ingleses, usando a forma anglicizada, chamavam de Gaunt.
A cada dia que passava, a felicidade de Joana aumentava. Ela achava estranho estar fazendo a mesma viagem que fizera antes em companhia do pai. Naquela ocasião, seu coração estivera angustiado de tantos presságios. Agora, sentia-se aliviada, cheia de uma antecipação alegre.
Tudo parecia muito mais bonito - o Reno de prata, os castelos de pedra cinza, as cidades e aldeias pelas quais ela passava e onde as pessoas corriam para fora de suas casas para vê-la.
Fazia dezoito meses desde que ela vira a mãe, e para a menina parecia uma vida inteira.
Por fim, ela chegou à cidade de Ghent, e lorde John foi informado de que o rei estava na Inglaterra e, a princípio, ela desanimou; mas quando soube que a mãe estava na abadia de St. Bavon, o ânimo revigorou-se.
E ali estava ela, a velha abadia de pedra cinza, e enquanto cavalgavam em direção a ela, Joana viu a mãe e pensou que o coração iria explodir de felicidade.
Saltou do cavalo. Não podia haver cerimónia. Ela não suportaria. Correu para a mãe e atirou-se nos braços dela. Filipa a estava abraçando com força, murmurando palavras de carinho.
- Minha queridinha... Faz tanto tempo... Pensei que você nunca mais voltaria para mim.
- Queridíssima, queridíssima senhora minha mãe... Estou aqui... finalmente. Parece um sonho.
Filipa acariciou os cabelos da filha. Ela mudara. Tivera tantas experiências desde que saíra de casa... e não tinham sido nada felizes.
- Meu amor - murmurava Filipa -, eu tenho tanta coisa para lhe dizer, tanta coisa para lhe mostrar! Você tem um irmãozinho.
Joana ria de tanta felicidade.
- Mais um irmão!
- O pequeno John. Ele nasceu aqui em Ghent. Eles o chamam de John de Gaunt... Já é estimado por todos.
- E meu pai?
- Infelizmente, teve de voltar à Inglaterra.
- Então não irei vê-lo.
- Ele voltará em breve.
- Talvez - disse Joana - tê-lo visto também tivesse sido felicidade demais ao mesmo tempo.
- Você está contente por ter voltado, minha filha adorada. Então as duas estavam juntas; e Joana só podia pensar no presente feliz.
E a rainha alegrava-se por ter a filha de volta.
ASSIM QUE EDUARDO ACABOU de ter uma conferência com seu Parlamento e de convencer seus membros a conceder-lhe mais recursos para levar adiante a luta pela coroa da França, ele foi visitar a filha Isabella no palácio da Torre.
Lá, encontrou uma Isabella chorosa. Ela se atirou em seus braços e agarrou-se a ele.
Eduardo ficou profundamente emocionado. Por mais que adorasse todos os filhos, Isabella era a favorita. Ele gostava imensamente da companhia feminina. Tinha sido um marido fiel, mas isso não significava que não percebesse mulheres bonitas, e houvera momentos em que, se estivesse menos decidido, poderia ter-se transviado. Um de seus maiores prazeres era a justa, é claro que com ele mesmo sendo o campeão e cavalgando em triunfo em volta do campo, ciente do aplauso e da admiração das damas. Gostava de vestir trajes vistosos, para salientar a sua notável boa aparência. Aquele lado de seu caráter estava em contraste direto com o grande guerreiro e com o rei dedicado, mas apesar disso lá estava e era apreciado por aquela fraqueza que destacava a sua força em outras direções.
Por mais orgulhoso e encantado que se sentisse por ter gerado filhos homens saudáveis, era das filhas que, no fundo do coração, ele mais gostava em segredo.
Isabella estava bem ciente disso, e por ser voluntariosa, autoritária e gostasse de que as coisas saíssem à sua maneira, aproveitava-se bem.
Depois de ter mostrado a ele o quanto gostara de vê-lo, ela perguntou-lhe por que era a única pessoa da família que não podia estar com a mãe em Flanders.
- Minha filha adorada, estamos em guerra, sabe? - disse Eduardo. - Você está mais segura aqui em Londres.
- Não quero estar segura - retorquiu ela. - Quero estar com vocês todos.
- E vai estar... no devido tempo.
- Mas não quero esperar pelo devido tempo.
- vou lhe dizer uma coisa, Isabella. Sua irmã Joana está voltando da Áustria. Nossos planos por lá não funcionaram como esperávamos. Em breve ela estará vindo juntar-se a você aqui com Lady St. Omer.
Isabella franziu o cenho. Ela não queria Joana. Queria partilhar das aventuras. A vida ali era muito enfadonha, salientou ela. Além do mais, fazia muito tempo que não via a mãe, e se estivesse em Flanders veria o pai com frequência.
- Meu querido, querido pai, tenho sentido muitas saudades suas.
- Meu amor-replicou Eduardo -, você não acha que eu tenha sentido saudades suas?
- Mas coisas emocionantes acontecem com o senhor. Aqui é só aulas e ficar sentada fazendo trabalhos de agulha. Não sou como Joana, que sempre quer estar costurando e fazendo bordados.
- Pobre Joana, acho que ela passou por uma fase triste.
- Pelo menos não foi enfadonha para ela. Viajou e quase se casou.
- Mas ela tem sido muito infeliz. Em breve, assim espero, ela estará com sua mãe.
- Enquanto eu fico aqui...
Eduardo segurou o rosto de Isabella com as mãos e beijou-a.
- Não é seguro você viajar, filhinha. Ela bateu os pés.
- Não quero estar segura. Além do mais, o senhor prometeu...
Disse que da próxima vez que viesse iria levar-me. O senhor prometeu. O senhor prometeu.
Escute - disse ele -, assim que esta guerra terminar, vou
levá-la comigo para a França.
Pode demorar anos e anos...
Uma sensação de depressão tomou conta de Eduardo. Anos e anos! Ele sempre soubera que conquistar a coroa francesa não seria um caso fácil, mas havia momentos em que parecia uma tarefa insuperável.
- E o senhor prometeu... o senhor prometeu. O senhor disse que nunca se deve quebrar promessas. O senhor não poderia fazer isso, poderia? Não poderia quebrar a promessa feita à própria filha...
- Só estou pensando na sua segurança.
- Meu querido senhor, eu sou tão infeliz... Por favor... por favor... leve-me com o senhor.
Eduardo hesitou, e ela percebeu logo. Entrelaçou os braços no pescoço dele.
- Não consigo suportar não ver o senhor. Quero ver todos eles... minha mãe, meus irmãos e Joana... mas acima de tudo o senhor, pai querido. E o senhor me prometeu...
Eduardo tomou uma decisão repentina.
- Muito bem. vou levá-la de volta comigo - disse ele.
Ele ficou profundamente emocionado ao ver a transformação. Ela estava radiante.
Apertou-a bem nos braços e acrescentou:
- Porque não suporto ficar sem você.
Filipa, angustiada, esperava em Ghent pela volta de Eduardo; e quando ele voltasse ela sabia que o confronto com os franceses estaria perto. Muitas vezes ela pensava, com arrependimento, em Robert de Artois e sua garça. Entendia que em grande parte se devia ao ódio daquele homem pelo rei da França o fato de ele ter quase forçado Eduardo a tomar uma atitude. Eduardo deveria ter resistido ao homem que o tentava. Que ele o chamasse de covarde. Não havia um só homem na Inglaterra que não soubesse que aquilo era a última coisa que Eduardo era. Ele era valente a ponto de ser imprudente; lutava à frente de seus exércitos. Mas no íntimo Filipa desejava que fosse por uma causa mais digna. Ela fora desprezada por algumas pessoas pela sua moderação; as pessoas não compreendiam que justamente essa moderação nascera de saber o que era melhor na vida. Devia-se desejar mais a harmonia do que a discórdia, mais a paz do que a guerra; o amor poderia triunfar sobre o ódio em qualquer momento, e como eram mais felizes aqueles que podiam aproveitar-se disso!
Se ao menos ela e Eduardo pudessem voltar para a Inglaterra e abandonar aquela reivindicação do trono da França, como todos ficariam muito mais felizes!
Às vezes Eduardo lhe parecia um de seus filhos. Ela sorria das vaidades dele, da paixão dele por belas roupas e por admiração; do seu prazer num torneio, quando ele se mostrava possuído de uma habilidade maior do que a dos outros. Sim, como uma criança. No entanto, por outro lado, era um homem forte, o grande rei, o general astuto, o sábio governante.
Ela não sabia por qual das duas - a força ou a fraqueza-o amava mais.
E o papel dela na vida era simplificar o caminho para ele, cuidar dele, estar por perto sempre que ele mais precisasse dela, apoiá-lo, esconder dele o seu as vezes maior bom senso; estar sempre ao lado do rei quando ele precisasse dela.
De modo que agora Filipa estava em Ghent, correndo um certo perigo, porque a informação de que Eduardo tinha ido à Inglaterra chegara aos franceses, que, naturalmente, pensavam que aquela poderia ser uma boa ocasião para atormentar sua rainha.
Ela não estava com medo, mas Jacob van Arteveldt estava angustiado. Temia que os franceses pudessem capturá-la e mante-la prisioneira. Que presa ela daria, com os filhos pequenos!
Jacob fortaleceu as defesas em torno da abadia de St. Bavon e rezava por um retorno rápido do rei. Tinha um interesse especial no pequeno John, de quem era padrinho. A amizade entre os Arteveldt e a rainha tornara-se muito sólida. Filipa gostava da mulher de Jacob, Catherine, e por sua vez tornou-se madrinha do filho dela, que foi batizado com o nome de Filipe, que era o mais próximo que se podia chegar de Filipa, considerando-se o sexo da criança.
Havia escaramuças nas vizinhanças, entre os franceses e os ingleses, e Filipa ficou muito aflita, um dia, ao saber que William de Montacute, que três anos antes tornara-se conde de Salisbury e era ura dos maiores amigos de Eduardo, fora capturado e levado para Paris.
Jacob estava muito sério quando deu a notícia a Filipa.
- Tenho medo do que possa acontecer ao conde de Salisbury disse ele. - Todos sabem que é muito amigo do rei.
Filipa ficou profundamente triste.
- Eles são amigos há muito tempo - disse ela. - Na verdade, acho que se poderia dizer que William é o maior amigo dele. Espero que nenhum mal lhe aconteça.
- O ânimo do rei da França não é muito benigno para com os ingleses no presente momento.
- Como eu queria que Eduardo estivesse aqui! Ele poderia ter condições de fazer alguma coisa.
Jacob abanou a cabeça.
- Lamento, mas pouco há a se fazer. Só podemos ter a esperança de que aconteça o melhor.
Havia um motivo ainda maior para preocupação. A frota francesa estava se reunindo para interceptar Eduardo em seu retorno ao continente, e o poderio dela seria muito maior do que qualquer coisa que Eduardo pudesse conseguir.
Rumores da concentração da frota francesa tinham chegado a Eduardo e ele ficou desalentado - não por ele mesmo, porque recebia de braços abertos a oportunidade de enfrentar o inimigo, mas por causa de sua filha.
Nunca deveria ter sido fraco a ponto de prometer levá-la com ele. Quando estava longe dela, chegava à conclusão de que a mimava. Filipa estava cônscia disso e tentava conter a sua generosidade para com a filha mais velha, mas ele nunca conseguia resistir às artimanhas da filha. Ele sorriu, pensando na pele delicada, nos cabelos bonitos, naqueles olhos claros que se enevoavam tão depressa de paixão quando ela ficava agitada. Isabella, marota! Mas não queria que ela fosse de outro jeito.
E agora? Não podia quebrar a promessa que lhe fizera. Isso nem se discutia. Ora, pensou, tolerante, ela jamais me perdoaria!
Deu ordens para que trezentos dos soldados mais valentes e quinhentos arqueiros fossem designados para proteger a princesa, e uma comitiva de condessas, damas, esposas de cavaleiros e outras damas foi escolhida para viajar com ela, para que pudesse fazê-lo com o máximo de conforto.
E assim eles embarcaram e, ao se aproximarem do Helvoetsluys, o rei, do convés de seu navio, teve a primeira visão rápida da grande frota de navios franceses que estava reunida para interceptá-lo.
A frota do rei era pequena, mas era uma questão de seguir em frente ou voltar, o que era inimaginável.
- Há muito tempo que quero enfrentá-los - bradou ele -, e agora, com a ajuda de Deus e de São Jorge, vou combatê-los. Eles têm me causado tanta contrariedade, que vou me vingar.
Era verdade que Eduardo recebia bem o conflito; seu único temor estava relacionado com a filha. Mandou avisar aos que a protegiam que deviam fazer aquilo com a própria vida, porque se algo acontecesse a Isabella todos teriam de responder perante ele.
Houve exultação entre os franceses quando viram os ingleses, devido à sua grande vantagem numérica, e acreditaram que seria tarefa simples dominar os insignificantes duzentos navios ingleses.
Eduardo nunca estava melhor do que quando se achava em desvantagem, e aprendera bastante desde a época de sua primeira campanha na Escócia. Agora estava mostrando aqueles sinais de qualidade como general que haviam distinguido seu avô; e nunca deixava de pensar nele quanto entrava em combate. Havia lido sobre as campanhas dele; herdara seu espírito, e embora o antigo rei tivesse morrido antes de ele nascer, Eduardo achava que o conhecia bem.
A luta começara. Isabella, em sua cabine cercada por suas damas, ouvia o tumulto e se perguntava se tornaria a ver a família outra vez. Pensou realmente, mas um pensamento passageiro, que não devia ter coagido o pai a levá-la, porque sabia que embora ele devesse estar pensando apenas no inimigo, estaria preocupado com ela.
- Mas-disse ela, confiante-ele vai ganhar. Meu pai vai vencer sempre. Vai lutar ainda mais porque estou aqui. Por isso, no final, isso foi bom.
Isabella aprendera que era agradável acreditar que aquilo que fazia era com a melhor das intenções. Não era uma pessoa de sentir grandes remorsos.
Durante o longo dia calorento, foi travada a batalha. O barulho era ensurdecedor; o navio jogava, e havia momentos em que parecia que ia afundar. Mas à medida que o dia passava, o calor foi ficando menos intenso e o mesmo aconteceu com a batalha.
Isabella não ficou surpresa quando lhe disseram que os ingleses tinham afundado inúmeros navios franceses, que o resto estava fugindo e que o resultado era a vitória de seu pai.
Triunfos assim davam uma satisfação especial ao lado vencedor, porque tinham conseguido sair-se bem quando isso parecia quase impossível.
Eduardo ordenou missas especiais de ação de graças em todos os navios e disse que eles deveriam seguir ao longo da costa por algum tempo, para terem certeza de que a frota francesa não voltaria a se reunir e lutar. Mais de uma vez batalhas tinham sido perdidas quando os vitoriosos retiraram-se depressa demais da cena de conflito.
Eduardo foi procurar Isabella e perguntou como havia passado.
- Muito barulho - disse ela -, e o navio jogou de um lado para o outro.
- Então você pensou que ia afundar, não pensou?
- Eu sabia que o senhor não ia deixar que isso acontecesse. Ora, Filipa teria salientado à menina que só Deus era onipotente e que aquilo que fora conseguido tinha sido com a Sua ajuda. Eduardo era diferente; não podia deixar de aproveitar a admiração da filha e não queria que Deus tivesse participação naquilo.
- Aposto que você desejou estar lá na Torre.
- Como poderia fazer isso, se o senhor está aqui! Quero estar em todas as batalhas que o senhor vencer, meu querido pai.
- Não posso me arriscar a isso, minha filha.
Ela sorriu, contente, sabendo o quanto era preciosa para Eduardo e que, ainda que ele lhe recusasse alguma coisa no início, ela sempre acabaria conseguindo.
Depois de uma peregrinação a Ardenberg, para agradecer à Virgem de lá pela grande vitória, Eduardo e sua comitiva seguiram para Ghent.
Foi grande a alegria de Filipa ao estar de novo com o marido e com a filha mais velha. Isabella não cabia em si de contente.
Olhou com pouco interesse para o novo irmão John; até mesmo Lionel, de dois anos, era um estranho para ela. Seu irmão Eduardo parecia muito mais velho do que quando ele deixara a Inglaterra e Joana, sem dúvida alguma, mudara. Estava quieta e havia uma certa tristeza nela que sem dúvida se devia à fase desagradável passada na Áustria.
Quando Filipa ficou a sós com o marido, deu-lhe anotícia dacaptura de William Montacute. Eduardo ficou profundamente triste.
- William sempre foi um bom amigo meu. - Na verdade, não conheço nenhuma outra pessoa, fora da minha família, de quem eu goste tanto. Espero que não seja maltratado. Tenho de fazer o possível para libertá-lo.
- Não vai ser fácil - salientou a rainha -, porque todos sabem que ele é um de seus amigos mais fiéis.
Eduardo quis saber como ele fora capturado e ficou ainda mais triste ao saber que tinha sido numa simples escaramuça perto da cidade de Lille.
- Tenho que me movimentar imediatamente para conseguir a libertação dele - declarou ele.
- Não vai ser fácil. Filipe não vai libertá-lo de imediato.
- Mas tenho de fazer o possível. vou mandar já uma mensagem a Filipe.
Filipa estava certa de que depois de sofrer uma desastrosa derrota durante a qual sua frota tinha sido aniquilada, seria pouco provável que Filipe fosse entrar em negociações para a devolução de um dos amigos de Eduardo.
Depois de alguns dias, ela comentou com Eduardo sobre os filhos.
- Eles estão todos aqui em Ghent - disse ela. - Isso é sensato?
- Eu estava pensando como é bom estarmos todos juntos, embora seja apenas por um curto período.
- De fato-disse Filipa -, mas o povo não vai gostar se a família toda estiver fora da Inglaterra. Ele vai ficar inquieto. Você sabe como é. O povo poderá voltar-se contra nós.
Eduardo meditou sobre isso e no fundo do coração sabia que era verdade. Tinha sido muito imprudente ao ter permitido que Isabella o acompanhasse. Ela deveria ter ficado no palácio da Torre e Joana devia ter sido enviada para juntar-se a ela.
- Isabella implorou com tanta insistência... - começou ele.
- Eu sei - replicou Filipa, tolerante -, e ela pode fazer o que quiser com você.
- Nossa filha é uma menina muito encantadora.
- Ainda assim - disse Filipa -, eu acho que ela e Joana devem voltar para a Inglaterra. Os meninos devem ficar comigo, é claro, e Eduardo tem de ficar com você aqui. Mas as meninas devem voltar. Aqui não é lugar para elas, e serão mais uma preocupação para você,
- Elas vão odiar ir embora. Joana acaba de voltar para nós.
Eu sei, eu sei. Mas, meu querido senhor, elas têm de ir. Isabella vai esquecer a desilusão ao consolar Joana.
Eduardo sabia que Filipa tinha razão.
Pouco depois - embora Isabella protestasse -, as duas princesas partiram para a Inglaterra. Para agradar Isabella, Eduardo providenciou para que ela viajasse em grande estilo. Ela ficou com três damas de companhia, enquanto Joana, por ser mais moça, tinha apenas duas; tinham novos vestidos e capas com as bordas de peles e feitos ao estilo alemão, que para elas era novidade. Isabella ficou um pouco calma, e como a irmã mais moça foi colocada sob os seus cuidados e ela sentiu a importância que tinha, aceitou o destino.
- Dentro em breve - prometeu-lhe o rei - estaremos todos juntos.
Embora Eduardo tivesse aniquilado os franceses e destruído o poder naval da França, começava a penetrar em sua mente que vencer aquela guerra era um feito quase impossível. Se não tivesse sido necessário lutar em solo estrangeiro, os problemas de transporte não teriam surgido. Constantemente, a vitória ou lhe era roubada ou não conseguia consolidar seus ganhos porque tinha de fazer uma pausa para esperar suprimentos. Fora o caso em Tourney, que ele cercara e atacara com violência mas que tivera de abandonar por falta de suprimentos para o exército.
De repente, pareceu-lhe que havia uma só maneira de resolver aquela disputa, e essa maneira era desafiar Filipe a um combate isolado.
Eduardo ficou encantado com a ideia, porque a vida inteira fora campeão na justa e nada o teria agradado mais do que desfilar diante de uma brilhante plateia com seu adversário, o rei da França.
Filipe, no entanto, não tinha essas ambições e recusou-se a enfrentar Eduardo, com a justificativa de que Eduardo se dirigira a ele como duque de Valois, quando o seu título era rei da França. Aquilo não passava de desculpa, é claro, disse Eduardo. Na verdade, todos sabiam da competência, no campo, do rei da Inglaterra.
Ainda que Filipe tivesse ficado inclinado a aceitar o desafio, ele teria de dar ouvidos aos muitos avisos que lhe foram dirigidos. Não que ele o tivesse aceitado, de qualquer maneira. Ele era ladino demais. Resolvido por um combate isolado! Uma coroa! Ele nunca ouvira tamanha idiotice.
Sua irmã Jeanne, condessa de Hainault, sogra de Eduardo, avisou o irmão para que não participasse de nenhum combate daqueles, pois ela já vira Eduardo em ação e sabia que Filipe seria morto.
Ela tivera notícias de Filipa e sabia o quanto a filha deplorava aquela guerra, que ela acreditava não poder resultar em outra coisa que não desgraça e morte para os dois lados. Acondessa Jeanne estava, na época, num convento, já que o marido morrera e as filhas tinham-se casado, e decidiu fazer o possível para acabar com aquele insensato conflito entre os membros de sua família.
Quando Eduardo soube do que se passava, ficou em dúvida. Tivera sua grande vitória naval e conseguira avariar a marinha francesa, e gostaria de ter prosseguido a partir dali.
Mas Filipa assinalou que o custo de conseguir os meios de ir para a guerra eram tão grandes, que ela duvidava que o povo fosse suportar uma tributação daquelas.
Eduardo concordou, finalmente, em examinar as propostas que tinham sido apresentadas pela condessa e, para alívio de Filipa e de muitos outros, chegou-se a um acordo sobre uma trégua. Ele deixou Robert dArtois no coroando de seu exército e preparou-se para voltar para a Inglaterra.
- Isso vai nos dar um pouco de descanso-disse Filipa. - Como estou ansiosa por estar na Inglaterra com as crianças!
Para sua grande alegria, eles fizeram preparativos para deixar Flanders.
Novembro já havia chegado quando eles partiram - não era a melhor época para atravessar o Canal, e mal tinham perdido de vista a costa francesa, abateu-se uma violenta tempestade. Os navios eram agitados e agredidos, e todos pensaram que a sua hora havia chegado.
Alguns puseram-se de joelhos e rezaram a Deus pedindo a Sua ajuda. Muitos estavam certos de que feiticeiras francesas tinham provocado os elementos e produzido aquela temível tempestade, a fim de que o rei morresse ou, mesmo se vivesse, ficasse com tanto medo que nunca mais atravessaria o mar de novo.
Eduardo não tinhacomo ser dissuadido dessa maneira quando havia uma coroa a ser conquistada. Eles deviam saber que ele só tinha concordado com a trégua porque precisava daquela pausa. A Escócia estava começando a lhe dar muitas apreensões, e percebeu instintivamente que estivera fora da Inglaterra por um tempo demasiado longo.
Sentia-se deprimido. Teria gostado de voltar para casa com os frutos de uma vitória decisiva. Por importante que abatalha naval tivesse sido, estava longe disso. Os franceses podiam ter perdido o poderio naval, mas pareciam ser invencíveis em terra.
Filipa percebeu o quanto ele parecia zangado enquanto cavalgavam em direção à Torre. Ela estava sempre consciente dos estados de espírito dele, e quando o mau génio começava a dar sinais, era a única pessoa que podia acalmá-lo e evitar que o génio estourasse naquela fúria total que podia criar problemas para qualquer pessoa com quem ele entrasse em contato.
Enquanto se aproximavam da Torre, eles ficaram surpresos ao verificar que o local parecia deserto. O cenho de Eduardo franziu-se ainda mais.
- O que pode ter acontecido? - murmurou ele, e havia uma grande angústia em seu tom de voz, pois seus pensamentos dirigiram-se imediatamente para as filhas que deveriam estar protegidas na fortaleza.
Ele dera instruções especiais ao administrador da Torre, Nicholas de la Bèche, para que sempre houvesse uma guarda em volta da Torre; ele designara vinte soldados armados e cinquenta arqueiros para ficar sob o comando dele, com aquela finalidade. Onde estavam todos, agora?
O rei entrou na Torre a cavalo. Se fosse um estranho, poderia ter entrado sen ser interceptado.
- Onde estão as princesas? - berrou ele, mas não havia ninguém para responder.
Furioso, ele desmontou; um de seus auxiliares segurou as rédeas e, com Filipa ao lado, ele entrou na Torre.
Não havia sinal de pessoa alguma. A fortaleza estava completamente desprotegida.
Isabella apareceu de repente, e com ela, Joana.
Vendo o pai e a mãe, as meninas correram para eles, e Isabella atirou-se nos braços do pai e Joana, nos da mãe.
Por alguns segundos, à expressão de Eduardo ficou mais suave e então, ao pensar no perigo que aquelas preciosas crianças poderiam ter corrido, desprotegidas como estavam, ele berrou:
- Onde estão os guardas? Onde está o administrador?
- Nós gostamos de ficar aqui sozinhas - disse Isabella.
- Sozinhas! Está me dizendo que vocês estão aqui sozinhas?
- Temos duas das damas conosco e alguns criados, e os outros vão voltar logo. Eles só foram à cidade para visitar amigos.
- Por Deus, alguém vai pagar por isso - bradou Eduardo.
O palácio estava, agora, barulhento e agitado, enquanto os criados do rei se instalavam em seus postos. O próprio Eduardo aguardou, sério, a volta de Nicholas de la Bèche.
Quando o administrador voltou, ficou branco de horror. Adivinhou que aquilo significaria o fim de sua carreira, talvez de sua vida. Ele abandonara o posto; deixara as filhas do rei desprotegidas; era um ato que, sem dúvida, poderia provocar o mau génio Plantageneta aos píncaros mais ferozes.
- Então - bradou Eduardo -, você achou melhor voltar ao seu posto.
- Majestade - gaguejou de la Bèche -, eu estive por perto o tempo todo... Eu via a Torre...
- Você não estava a uma distância suficiente para ver a nossa chegada, se não teria voltado às pressas há muito tempo, disso não tenho dúvidas. E seus guardas, homem, onde estão? Sem dúvida que farreando nas tabernas! Ah, você vai lamentar este dia, isso eu lhe prometo!
Nicholas de la Bèche tremia tanto que não conseguia falar.
- Levem este homem daqui - trovejou o rei. - vou decidir o que será feito com ele. E os guardas dele também, que desertaram de seus postos, mas ele é o principal suspeito. Por Deus, ex-administrador da Torre, você vai lamentar o trabalho de hoje.
Eduardo andou de um lado para o outro, tentanto pensar em um terrível castigo para punir aquela falta grave. Filipa aproximou-se dele.
- Querido senhor - disse ela -, este assunto está estragando o seu prazer de estar com a família. Fez com que o senhor esquecesse que estamos todos juntos aqui na Inglaterra e faz muito tempo que isso não acontece.
- Mais uma razão para que ele sofra.
- Descobri que ele foi visitar a amante.
- Vilão.
- Duvido que ela pense assim - disse a rainha. - Eduardo, ponha de lado sua raiva. Ela entristece a todos nós. O administrador está fora de si de tanta dor e remorso.
E de terror, sem dúvida, que é como quero que ele se sinta. Está pensando no que o aguarda e lhe prometo que não será nada agradável. Meu senhor, prometa-me mais uma coisa.
- O que é?
- Que vai aplacar a sua raiva e pensar com calma neste caso.
- com calma! Quando minhas filhas estavam em perigo!
- Não estavam. O povo de Londres as adora. O mesmo acontece com os criados. Eles abandonaram o posto por um curto período, e se tivesse havido problema estariam de volta para proteger as crianças com a própria vida. Creio que o administrador e seus guardas já sofreram bastante.
- Pretendo fazer deles um exemplo. A cabeça dele vai estar na ponte, para que todos a vejam. vou mandar esfolá-lo vivo...
- Majestade, um castigo tão cruel...
- Bem, talvez vá ser a morte dos traidores. Não há dúvida de que para mim ele foi um traidor.
Filipa estremeceu.
- Meu senhor, eu lhe imploro, satisfaça-me quanto a isso.
- Eu não faço sempre o possível para satisfazê-la?
- Faz, e é por isso que sei que vai fazê-lo agora.
- Filipa, você está sempre pedindo pelos que agem errado.
- Quero que as pessoas o chamem de rei misericordioso. Não há nada tão atraente quanto um homem que tem o poder e mostra misericórdia. Isso é um sinal de grandeza.
Eduardo ficou em silêncio, e naquele momento a porta se abriu e Isabella entrou.
- É maravilhoso. Os senhores estão em casa. Os dois. Estamos todos muitos felizes - bradou ela.
O humor do rei cedeu diante da visão da filha.
- E você acha que não me sinto feliz por estar com meus filhos? - disse ele.
- O senhor não tem feito outra coisa que não reclamar, desde que chegou - reclamou Isabella. - Meu pai adorado, não faça mal ao administrador. Ele é muito divertido.
- Ele não me diverte.
- Ele nos contou sobre a amante dele, que é muito bonita... e ardente, e um pouco volúvel, de modo que se ele não a visitar, ela poderá arranjar um novo amante. E me pediu permissão para visitá-la e eu a dei... de modo, meu pai adorado, o senhor não pode pôr a culpa nele.
- Você deu permissão.
- Eu era a senhora da Torre, na sua ausência. Então disse a ele: "Vá para essa sua amante ardente, administrador", e quando ele partiu eu disse aos guardas que também podiam ir. Isso foi tudo, papai. E estão dizendo que o senhor vai fazer coisas horríveis com ele. Por favor, ponha-o em liberdade. Sabe, se não fizer isso, eu me sentirei infeliz e foi tudo minha culpa e jamais voltarei a sorrir.
- Você é uma boba - disse o rei.
Isabella passou os braços em torno do pescoço dele.
- Mas o senhor me ama assim mesmo. Apesar das minhas loucuras. Ama, não é?, porque se não amar, eu vou... morrer.
- O que vamos fazer com esta nossa filha? - perguntou o rei.
- Eu acho que, neste momento, você vai dar-lhe o que ela querrespondeu a rainha.
- Bem - disse o rei -, se eu disser que o administrador vai ser posto em liberdade, isso será do seu agrado?
Isabella deu-lhe um beijo fervoroso.
- O senhor é o melhor pai do mundo, e eu o adoro.
- Mas - disse o rei -, hoje não. Ele vai se preocupar e suar de pânico a noite toda.
- Mas de manhã ele será libertado-bradou Isabella.-O senhor é um rei querido e bom. E estaremos todos juntos no Natal, não? Já planejei uns jogos.
Filipa percebeu que o mau humor do rei desaparecera por completo.
- Vamos para o lado de Eduardo e Joana - disse ela - e vamos ouvir esses planos.
E assim o administrador da Torre reassumiu suas atividades e ficou impressionado com a complacência do rei, enquanto jurava que nunca seria tão louco outra vez e iria servir Eduardo e sua família com a própria vida, caso necessário.
ERA EVIDENTE que havia uma mudança no ar por todo o castelo de Gaillard, onde o rei e a rainha da Escócia viviam como hóspedes do rei da França.
A pessoa mais infeliz naquele castelo da Normandia era a rainhaJoana, irmã de Eduardo, rei da Inglaterra. Ela sempre ficara perturbada pelo conflito entre o marido e o irmão, e agora que Eduardo estava envolvido em uma briga com o rei da França, ela sofria com o fato de David ficar do lado do inimigo de seu irmão e ter até entrado em combate junto com os franceses contra os ingleses.
Joana ficara sabendo da triste história das aventuras de sua homónima na Áustria. Pobre menina, ela compreendia e solidarizava-se com ela por ter sido tirada de seu país natal com pouca idade. Não tinha acontecido com ela? Talvez as pessoas com o nome de Joana fossem infelizes. Ela quase chegava à conclusão de que o nome em si trazia má sorte.
Não havia dúvida de que ela tivera muito pouca boa sorte.
Esperava que sua irmã Eleanor fosse mais feliz com o conde de Gueldres do que ela era como hóspede do rei da França.
Agora estava com quase dezenove anos, e David tinha dezessete, não jovem demais para ter tido casos amorosos com algumas das mulheres do castelo. Os dois nunca chegaram mesmo a gostar um do outro, embora ela tivesse tentado demonstrar afeição por ele. Tratava-se de um rapaz petulante e arrogante. Estava sempre lembrando às pessoas
que era um rei, embora, pelo fato de estar no exílio, elas pudessem esquecer-se disso.
Ser filho do maior rei que a Escócia jamais conhecera era uma desvantagem. As pessoas estavam sempre comparando-o com o pai e, naturalmente, o filho ficava em desvantagem. David sabia disso, o que o incomodava; ele gostava de escarnecer de Joana com observações sobre o pai dela, que era tão diferente de Robert, o Bruce, quanto possível. Pobre pai, que morrera de forma misteriosa e, pelo que ela temia, de maneira ignóbil no castelo de Berkeley.
Mas o filho do rei, e irmão dela, agora reinava e provocava uma grande irritação em David. Às vezes Joana achava que ele alardeava sua infidelidade mais diante dela porque era irmã de Eduardo da Inglaterra.
Era como se ele dissesse: vou fazer o que quiser. O que me importa seu nobre irmão, sobre o qual agora os homens começam a falar como falavam de seu avô.
David aproveitava a vida no castelo de Gaillard. Havia danças e brincadeiras, jogos e festas. O rei da França dissera: "Vocês devem me considerar seu amigo, e a França, como seu país."
E David fizera exatamente isso; Joana, nem tanto. Jamais se esquecia que o anfitrião deles era inimigo de seu irmão e sentia vergonha por aceitar a sua hospitalidade.
Tinham chegado ao castelo visitantes vindos de longe. As notícias que traziam eram excitantes. Os escoceses, naturalmente, tinham-se aproveitado da ausência de Eduardo na França. Tinham-se levantado e não houvera ninguém para detê-los, evidentemente não a força simbólica que Eduardo deixara com eles. Tinham deposto Baliol, que não passava de um instrumento de Eduardo. Ele saíra depressa da Escócia e procurara refúgio na Inglaterra.
Chegou uma delegação ao castelo de Gaillard, chefiada por Simon Fraser, que fora tutor de David e no qual este depositava grande confiança.
Foi um dia agitado no castelo, porque Simon apresentou ao rei exilado planos para a sua volta à Escócia. Aproximadamente há um ano que os escoceses vinham conseguindo uma vitória atrás da outra sobre os ingleses. A ausência de Eduardo na França tinha sido uma dádiva para eles, e ele teve de admitir que tinham tido uma grande ajuda do rei da França, que sentia prazer em ver que os ingleses eram atormentados na fronteira escocesa, com isso desviando a atenção deles de suas atividades na França. Agora, os adeptos de Bruce conseguiram livrar-se do fantoche de Eduardo, Baliol, e, portanto, estava na hora de David voltar para ocupar o lugar que por direito era seu no reino.
David ficou animadíssimo com aquela perspectiva. A vida no castelo de Gaillard tinha sido bem agradável, mas era um rei e queria governar seu país. Não conseguia se esquecer de que, muito embora o rei da França o tivesse tratado como um rei visitante, ainda dependia da generosidade dele.
- Quando posso partir para a Escócia? - perguntou David a Simon Frase.
Simon respondeu que achava aconselhável visitar a corte da França, comunicar ao rei o pedido que seus súditos faziam para o seu retorno e pedir ajuda para isso.
Os dois estavam certos de que essa ajuda seria dada de imediato.
E foi o que aconteceu.
Ainda sofrendo com a derrota em Helvoetsluys, Filipe sentia o máximo de prazer ao aumentar os problemas de Eduardo; e sabia que o maior deles seria uma guerra na Escócia que devia, por necessidade, mante-lo longe da França.
- É bom saber que eles expulsaram Baliol, aquele traidor, e a Escócia já não é mais vassala da Inglaterra - bradou Filipe. - Vossa majestade tem de mante-la nessa situação. David, o Bruce, é o rei da Escócia, e não Eduardo Plantaganeta.
- Quero voltar e recuperar meu reino. Então, irei protegê-lo contra os ingleses.
- É assim que deve ser - disse o rei da França. - Agora, como sabe, perdi muitos de meus navios em conflito com Eduardo. Ele vai ficar sabendo que vossa majestade se propõe a seguir para a Escócia e o que sua chegada por lá vai significar para ele. O rei inglês vai usar de todo o seu poder e astúcia para capturar vossa majestade antes de sua chegada. Precisamos ser cautelosos, senão vossa majestade e sua rainha irão descobrir que saíram do feliz Gaillard para um castelo menos agradável na Inglaterra. Vossas majestades têm sido meus hóspedes de honra. Iriam ser prisioneiros de Eduardo. Deixem este assunto comigo.
David voltou para Gaillard, e o rei da França deu ordens para que fossem construídos navios bem fortificados para escoltá-lo de volta à Escócia. Os empregados de estaleiros de Harfleur trabalhavam dia e noite; na verdade, por toda a França havia homens trabalhando nos navios e em todos os equipamentos necessários para levar um monarca até seu país.
Aquilo era muito lisonjeiro, mas David ficaria sabendo que o astuto Filipe não estava gastando todo o seu tempo e dinheiro com ele. Os navios eram, na verdade, substitutos dos que tinham sido perdidos na batalha de Helvoetsluys. Filipe mandou uma mensagem secreta a Gaillard, no sentido de que David e a rainha fossem levados até a costa, ostensivamente para inspecionar os navios que estavam sendo construídos. Eles deveriam fingir iniciar uma viagem de volta a Gaillard e, em vez disso, dirigir-se a um local tranquilo na costa. Ali encontrariam dois navios modestos à sua espera. Deveriam embarcar naqueles navios e seguir para a Escócia.
Os ingleses ficariam sem saber que eles tinham deixado a França até que eles estivessem a salvo da Escócia.
David ficou um tanto contrariado ao perceber que todos os preparativos grandiosos não eram para ele. Teria gostado de seguir de volta para o seu país cercado pelo poderio da marinha francesa. Os ingleses teriam, então, decidido interceptá-lo. Ele era fútil e arrogante, mas não um covarde e teria aguardado ansioso por um confronto daqueles.
Joana viu a perspicácia do que o rei francês havia preparado, e no primeiro dia de junho eles puseram-se ao mar.
A viagem transcorreu sem incidentes, e eles chegaram no segundo dia de junho em Inverbervie, um pequeno porto em Kincardineshire.
Embora o desembarque tivesse sido pouco percebido, quando os escoceses souberam que David, o Bruce, seu rei de direito, voltara para a Escócia, ficaram loucos de alegria.
Agora, eles iriam expulsar para sempre os ingleses de seu país.
David e sua rainha foram levados em triunfo para Edinburgh. Ele descobriu que a fraqueza de Baliol e sua subserviência à Inglaterra tinham provocado o espírito dos homens que ansiavam por ver uma volta do governo forte de Robert, o Bruce. Havia um punhado de homens que eram grandes guerreiros e tinham muito da qualidade de liderança; estavam se agrupando em torno do jovem rei. Havia Sir William Douglas, o Cavaleiro de Liddesdale, Robert, o Despenseiro, Murray de Bothwell, e Randolph; a determinação de todos esses homens era livrar a Escócia do domínio inglês. O fato de Eduardo estar decidido a reivindicar a coroa da França inspirara-os com uma esperança maior do que tinham tido desde a morte de Robert, o Bruce.
A ajuda recebida da França tinha sido uma inspiração. Sentiam-se gratos a Filipe pela hospitalidade que dedicara ao rei deles, embora, é claro, estivessem cientes da razão para isso.
Foram dias emocionantes, na Escócia, que se seguiram ao retorno do rei.
É possível que tenham ficado um pouco perturbados ao notarem os modos afrancesados dele. Adorava roupas finas - do tipo que nunca tinha sido visto na Escócia. Suas maneiras eram francesas; ele passara a gostar muito do luxo e, por ser um rapaz, dedicava-se com uma liberdade e um abandono aos seus casos levianos que eram, acreditavam eles, um reflexo de seus hábitos franceses. Sentiam pena da jovem rainha, mas no final ela era inglesa e irmã do rei Eduardo, e sem dúvida tinha outros assuntos com que se preocupar que não as infidelidades do marido.
Era um sucesso atrás do outro, um castelo atrás do outro era capturado em nome do rei, e David era leniente, e como ainda não tinha sido chamado a participar de quaisquer batalhas sérias, sua falta de discernimento não ficava óbvia.
Estava cercado por homens fortes, e parecia haver poucas dúvidas de que a vitória estava no ar.
Não parecia provável que Eduardo fosse deixar as coisas marcharem daquela maneira.
Eduardo e Filipa decidiram que aquele Natal deveria ser memorável
- Prometemos isso às crianças - disse Eduardo. - Isabella insistiu para que todos o passássemos juntos.
- E no Natal do ano passado a pobre Joana estava na Áustria acrescentou Filipa.
- Bem, sem dúvida haverá folguedos neste Natal, caso contrário, vou ficar em maus lençóis com nossa filha.
- Eu lhe peço, Eduardo: não seja leniente demais.
- Ah, ainda são crianças. Deixe que sejam felizes enquanto podem. Em breve será necessário arranjar casamento para todos. Isso é uma coisa que não gosto de fazer.
Os planos começaram a ser executados, e havia uma grande agitação nos aposentos das princesas. Joana bordava presentes para seus familiares - um passatempo de que gostava muito e sabia que seus pais gostavam do que fazia. Havia bolsas para os dois, decoradas com dragões e pássaros, feitos com sedas de belas cores. Isabella não tinha aptidão para aquele tipo de trabalho; mandou seu tesoureiro comprar presentes para os pais. As duas deliciavam-se com os novos vestidos escarlate e roxo, cheios de pérolas. Iriam usar os cabelos soltos às costas, porque era assim que o pai gostava. Tinham sobrecasacos de fino tecido de ouro com padrões de pássaros e animais; e por baixo deles usariam um vestido justo de tecido muito fino. Isabella adorava experimentar os vestidos e, de fato, tinha uma grande admiração por si mesma. Quanto a Joana, sentia-se tão feliz por estar de volta que estava pronta a rir de qualquer coisa - até da vaidade de Isabella e da determinação da irmã de conseguir o melhor, sempre que parecesse haver uma opção.
Pouco importa. Era Natal no palácio da Torre, e uma ocasião rara, porque para início de conversa a família toda estava reunida.
Filipa estava contente por se encontrar com os filhos e estava esperando mais um para junho. Tinha uma bela família e disso sentia-se orgulhosa. Uma das alegrias de sua vida fora a capacidade de dar a Eduardo aqueles filhos que ele tanto amava.
Talvez algumas outras mulheres fossem sentir ciúme da dedicação dele aos filhos. Filipa, não. Ela vibrava com aquilo.
De modo que foi realmente um Natal feliz. Eduardo convocara o mais talentoso de seus menestréis, um homem chamado Godenal, que era famoso em toda a corte pela sua música, pelo seu cantar, pela sua mímica e pela sua capacidade de divertir os outros.
Dava gosto ver a alegria das crianças, e até o jovem Eduardo participou e, mais tarde, comentaram que ele estava crescendo depressa e ninguém acreditaria que tinha apenas onze anos.
Eu poderia morrer amanhã, pensou o rei, que teria um digno sucessor.
Mas ele não tinha intenção de morrer. Havia muita coisa que precisava fazer. Mais filhos a ter. Era um homem para o qual não havia filho que chegasse. Quanto mais tinha, mais queridos eram para ele. Esperava que o próximo fosse uma menina. Eles tinham Eduardo, Lionel e John; e garotinhas eram muito encantadoras.
Isabella estava, agora, aninhando-se no colo dele, e ele puxou Joana para perto, a fim de que não pensasse que ele preferia mais a irmã do que ela, o que talvez fosse verdade, mas adorava as duas.
A apresentação de Godenal foi saudada com grande alegria pelas crianças, e o rei sussurrou para elas que deviam recompensar o menestrel com um presente.
- Creio que seis xelins e oito pence de cada um de vocês seria o adequado - disse ele.
Ele sorria com condescendência enquanto as crianças, sérias, pagavam ao menestrel pelos seus serviços.
Foi um Natal feliz, mas logo depois chegaram da Escócia notícias perturbadoras.
Eduardo viu que não havia outra solução. Não adiantava deixar outras pessoas para lidar com os escoceses. Tinha de fazer aquilo pessoalmente.
Lembrou-se, com tristeza, de que da última vez em que tinha ido, o principal companheiro tinha sido William Montacute, conde de Salisbury. Pobre William, ainda definhando numa prisão francesa! Eduardo fizera várias tentativas para conseguir sua libertação, mas Filipe devia saber como era grande a amizade que tinha pelo conde e estava decidido a fazer uma exigência muito grande para soltá-lo.
Independente de qual fosse, teria de ser paga.
Mas Filipe era protelatório. Afinal, por que iria esforçar-se por agradar ao rei da Inglaterra?
Depois do Natal, foi necessário despedir-se das crianças. Elas ficariam no palácio da Torre até que a rainha partisse para Langley, onde ela decidira ter o próximo filho.
Enquanto isso, Eduardo deveria ocupar-se em reunir um exército para marchar contra a Escócia.
Em junho, em Langley, nasceu o filho de Filipa. Mais um menino - saudável e com um par de pulmões tão bom quanto os de qualquer um dos seus irmãos. Recebeu o nome de Edmund.
Eduardo marchou para o norte e ficou acampado em Berwick. Os meses passaram-se sem que nenhum dos lados fizesse grandes progressos.
Eduardo estava preparado para fazer um grande ataque depois do Natal, e na grande fortaleza de Berwick seus pensamentos voltaram para o feliz Natal que passara com os filhos no ano anterior. Como era diferente em Berwick! Estava decidido a resolver o problema com os escoceses; mas depois, é claro, teria de atacar a questão francesa.
Filipa teria gostado que ele ficasse na Inglaterra, para governar bem aquele país e esquecer a Escócia e a França. Mas Filipa era mulher, dedicada ao lar. O rei pensava nela tal como fora quando a vira pela primeira vez no castelo do pai dela em Hainault e na feliz atmosfera tranquila existente por lá.
O conde, já falecido, não tinha sido ambicioso - nem sua mulher, embora fosse filha de um rei da França. Querida Filipa-faces rosadas, forte, rechonchuda, nascida para ser esposa e mãe.
Eduardo pensava, com frequência, na mãe, que agora vivia com um certo luxo no castelo de Rising, mas raramente a via. Achava aquilo muito deprimente, mas quando a via, percebia que os lapsos mentais que a faziam cair em confusão eram menos frequentes e que embora ela não estivesse na corte, vivia como uma rainha. Quando estivera com ela, ficara surpreso com a comida abundante e dispendiosa à mesa. Cisnes, rodovalho, lampreias e outros tira-gostos existiam em grande quantidade. Ela disse que os habitantes das redondezas tinham prazer em dar-lhes presentes. Gostavam muito de ter uma rainha entre eles.
Ele se perguntava se alguma vez a mãe pensava em Mortimer, aquele amante ao qual se dedicara com tanta paixão, ou no pai dele e se ele ainda ia assombrar os sonhos dela.
Eduardo iria visitá-la quando saísse do norte. Afinal, era sua mãe.
Um dos guardas veio dizer-lhe que um rapaz cavalgara até o acampamento e estava implorando para que o deixassem vê-lo.
- Que rapaz é esse? - perguntou o rei.
- Mal passa de um menino, majestade. Disse que vem do castelo de Wark, que está sitiado pelos escoceses. Ele veio pedir sua ajuda.
- Wark. Ora, é a propriedade de Salisbury. Tragam-no à minha presença imediatamente.
O menino foi levado. Parecia-se com o pai. Eduardo ficou preocupado ao vê-lo tão desesperado.
- Majestade - gaguejou o menino -, precisamos de sua ajuda. Minha mãe e eu temos tentado defender o castelo, e temos conseguido.
Não podemos aguentar por muito mais tempo. Receio que eles possam tomar minha mãe como refém.
Pode estar certo - disse Eduardo - de que vou expulsar os escoceses e evitar que sua mãe caia nas mãos deles. Não há tempo a perder.
Catharine Montacute, condessa de Salisbury, lamentava profundamente a ausência do marido. O casamento deles tinha sido de uma felicidade fora do comum, mas como todas as mulheres casadas ela tivera de aceitar o fato de que haveria momentos em que ficariam separados. William estava havia muito tempo a serviço do rei, e embora ela nunca tivesse visto Eduardo, achava que o conhecia bem, pelo que William lhe contava a respeito.
Havia um elo entre Eduardo e William. Os dois eram felizes no casamento - coisa rara no círculo deles, onde a maioria das vezes os casamentos eram feitos no berço, o que acabava resultando em certos ressentimentos quando os jovens cresciam e descobriam que não tinham como escolher com quem se casariam.
Ela fora muito afortunada.
Como Catharine Grandison, filha do primeiro barão de Grandison, ela fora considerada uma esposa adequada para o filho mais velho do segundo barão de Montacute. William era um homem de grande charme, e Catharine teria sido acusada de falsa modéstia se não admitisse ser uma beldade. Na verdade, aonde quer que ela fosse, sua beleza excepcional chamava atenção. Era não apenas uma mulher bonita, mas também inteligente, tinha dignidade, coragem e uma falta de vaidade que numa mulher tão dotada assim era realmente de admirar.
Aunião deles tinha sido abençoada com vários filhos, dois dos quais eram meninos, William e John. William, o mais velho, naquela época estava com quase quatorze anos.
O marido progredira muito a serviço do rei, porque Eduardo gostara dele desde o início e quando era pouco mais de um menino fora a William que ele confidenciara quando percebera que precisava livrar o país de Mortimer.
Tinha sido William que encontrara um meio de entrar no castelo de Nottingham e estivera presente quando da prisão de Mortimer. O menino rei voltara-se para o homem mais velho à procura de amizade e conselhos, pois William era quase onze anos mais velho do que ele.
Tinha sido uma amizade duradoura, e poucos anos antes Eduardo demonstrara seu reconhecimento fazendo dele conde de Salisbury. Ele escolhera William para ir à França apresentar sua reivindicação da coroa francesa; e Catharine sabia que Eduardo ficara muito abalado ao saber que ele fora capturado.
Desde aquele dia, nada dera certo. A possibilidade do que poderia estar acontecendo com ele em alguma escura prisão francesa assombrava os sonhos dela; todas as manhãs, ao acordar, seus primeiros pensamentos eram para o marido. Só podia encontrar consolo tomando conta dos castelos e dos negócios dele, para que não sofressem com a ausência dele.
O castelo de Wark ficava na margem sul do Tweed, e por estar imediatamente junto à fronteira entre a Inglaterra e a Escócia, não podia se achar numa posição mais vulnerável. Até ali, ele fora uma fortaleza boa demais para ser atacada; e talvez nunca tivesse sido, se o cunhado de Catharine, Edward Montacute, não tivesse desconcertado os escoceses levando a melhor sobre eles depois de um dos ataques de surpresa em território inglês.
Desde a volta de David, o Bruce, aquelas incursões estavam se tornando mais frequentes. Os escoceses adaptavam-se muito bem àquele tipo de guerra, por viajarem em pequenos cavalos de andar seguro, muito diferentes dos magníficos animais que os ingleses montavam para entrar em combate; mas eles eram muito adequados ao terreno acidentado. Cada homem carregava uma sertã pequena e um saco de farinha de aveia, de modo que podia alimentar-se durante longos períodos de cada vez, ainda que não pudesse aumentar a carga com os espólios roubados de aldeias que eles saqueavam. Isso lhes dava uma grande vantagem. Podiam ficar imóveis durante dias sem ser perturbados pela necessidade de procurar comida. E não havia dúvida de que aqueles ataques rápidos de surpresa estavam tendo um grande efeito sobre os habitantes ingleses. Eles nunca sabiam quando os ataques aconteceriam; Catharine admitia que no passado muitos deles tinham feito pactos com os escoceses simplesmente porque não suportavam continuar a viver na incerteza.
Quando recentemente houvera um grande ataque de surpresa escocês a Durham e Edward Montacute fora avisado, ele levara um bando de homens do castelo de Wark e ficara à espera do inimigo. Os escoceses pararam para descansar em um bosque; estavam cansados de tanto viajar; e tinham levado consigo os valiosos artigos que tinham roubado da cidade.
Enquanto eles dormiam, Edward Montacute e seus homens apareceram de repente entre eles, pegando-os inteiramente desprevenidos. Tinha sido um ataque bem-sucedido. Duzentos escoceses foram mortos, contra a perda de um ou dois ingleses, e Montacute voltou para Wark com doze cavalos carregados de espólios de Durham.
Ninguém iria supor que os escoceses fossem perdoar um ataque daqueles.
Passaram-se alguns dias. Nada acontecera, e Edward Montacute fora chamado a serviço do rei. Dois dias depois de sua partida, o exército escocês chegara a Wark e naquele momento estava acampado nos campos que cercavam o castelo.
O sítio começara.
Catherine estava decidida a defender o castelo para o marido, mas, embora depois do ataque de surpresa tivesse feito certos preparativos, em pouco tempo começou a ver que se achava numa situação vulnerável.
Precisava de ajuda. O rei estava nas vizinhanças. Da última vez que tivera notícias, ele estivera em Berwick; e de fato era aquela cidade em que ele sempre instalava seu quartel-general. Se ela pudesse fazer chegar uma mensagem até o rei, estava certa de que ele mandaria ajuda.
Seu filho mais velho estava ansioso para ver se podia escapar do castelo, mas ela relutava em deixar que ele tentasse. O jovem William, no entanto, era muito determinado, e ela tinha muito medo de que caso o proibisse, mesmo assim ele fosse. Tinha o espírito do pai e estava decidido a fugir e conseguir ajuda. Ele ficara sabendo que no acampamento escocês estavam circulando piadas sobre sua mãe. Dizia-se que ela - tão famosa pela sua beleza - seria uma presa mais valiosa do que o castelo. O rei deles, David, muito chegado a mulheres, gostaria muito dela; e o fato de a reputação dela como mulher virtuosa ser tão grande quanto aquela como mulher bonita aumentaria muito o interesse do caso.
O jovem William tomara uma decisão, e à noite, sob a proteção da escuridão, conhecendo as portas e as passagens secretas do castelo, conseguiu escapar sem ser visto. Não foi difícil conseguir um cavalo, porque os habitantes das redondezas tinham-se beneficiado muitas vezes com a bondade da condessa e estavam prontos a ajudar. Logo depois ele estava a caminho de Berwick.
Cavalgando à frente de seu exército, Eduardo viu as cinzentas torres de Wark ao longe. Pensou que seria uma tarefa simples aniquilar os escoceses. E quando voltasse a Westminster, renovaria as tentativas de conseguir a libertação de William Montacute.
Enquanto isso, era preciso pensar na condessa. Eduardo sabia o quanto William amava a esposa. Muitas vezes, os dois tinham feito comparações de suas mulheres. Duas mulheres virtuosas, duas mulheres que os amavam. Ele salvaria Catharine Montacute para William. Eduardo soltou uma sonora gargalhada quando os acampamentos escoceses foram avistados. Suficientes para talvez causar medo em uma senhora sozinha num castelo. Ele os liquidaria em pouco tempo. Um de seus homens sugeriu que descansassem antes do ataque, mas Eduardo não quis saber disso.
- Há uma senhora esperando ansiosa por nossa ajuda-disse ele.
- Seria uma ingratidão deixar que ela ficasse nessa situação um segundo a mais do que o necessário.
E assim o ataque começou e, como Eduardo previra, não durou muito. Os ingleses eram imensamente superiores em armas e em número, e em pouco tempo os escoceses tinham sido desbaratados e fugiam em desordem.
Vendo a aproximação dos ingleses, o primeiro impulso de Catharine foi dar graças a Deus. Então seu filho conseguira chegar até o rei, porque ali, tremulando na brisa, estava o estandarte real, de modo que ela sabia quem era seu salvador.
O alívio foi intenso. Os escoceses não teriam chance alguma contra ele. Por um curto momento, ela se permitiu pensar no que poderia ter-lhe acontecido. A humilhação de ter sido aprisionada pelos rústicos escoceses. Ela ouvira rumores sobre os hábitos libertinos do rei; sabia que houvera referências obscenas sobre ela nas fileiras escocesas, e no fundo do coração tinha sido aquilo que ela temera mais do que qualquer outra coisa, embora até aquele momento em que a libertação parecia certa não tivesse se permitido pensar naquilo.
O rei sairia vitorioso. Ela estava tão certa disso, que foi até às cozinhas e disse aos empregados que preparassem o que restasse de comida e fizessem o máximo possível, pois ela acreditava que antes do fim do dia o rei estaria comendo à mesa deles.
Eles deveriam usar os melhores librés. Todos deveriam ter o melhor desempenho possível. Eles já não estavam mais sitiados. Era preciso haver uma comemoração condigna da vitória.
Catharine foi ao seu quarto e mandou que suas aias trouxessem seus mais finos trajes. Seus cabelos foram penteados e arrumados em toda sua faiscante glória ondulada, a jaqueta justa de veludo revelava sua fina e elegante cintura, e sobre a jaqueta usavao casaco recamado de objetos brilhantes com as elegantes mangas compridas pendentes.
Depois, foi para a janela de uma torrinha para observar.
Aconteceu como ela previu assim que vira o pavilhão real se aproximando.
Os escoceses estavam fugindo em desordem, e o rei estava pronto para entrar no castelo.
Ela deu ordens para que a ponte levadiça fosse arriada; e quando ele atravessou-a a cavalo, Catharine estava esperando para saudá-lo.
Eduardo desmontou e dirigiu-se a ela.
Ela fezuma mesura profunda e ergueu os olhos agradecidos para ele.
- Majestade - disse ela -, seja bem-vindo. Meu coração está batendo demais para lhe agradecer neste momento.
O rei não falou. Continuava a olhar para ela. Percebeu que os olhos dele eram intensamente azuis; era mais bonito do que se dizia.
Catharine se ergueu e os olhares dos dois se encontraram. O rei continuou calado.
Parecia bestificado. Catharine repetiu seus agradecimentos.
Então, ele disse, falando devagar:
- Senhora, estou ao seu dispor... agora... e sempre. Nunca na vida vi uma mulher tão bonita quanto a senhora.
- Vossa majestade é bondoso - respondeu ela. - Permita que eu o conduza para dentro do castelo, que sua atuação na hora exata salvou para o meu marido.
Eduardo pareceu não tê-la ouvido, e ela caminhou a seu lado, entrando no castelo.
Eduardo, bestificado, estonteado, disse a si mesmo que depois de ver aquela mulher perfeita nada poderia ser a mesma coisa para ele outra vez.
Wark não era o melhor dos castelos do país. Na verdade, era primitivo se comparado com a grandiosidade daqueles aos quais Eduardo estava acostumado. Mas ele não percebeu isso. Só conseguia pensar na bela condessa. Os belos cabelos abundantes, os contornos do rosto, a cintura fina, a dignidade do caminhar, a elegância.
A condessa estava inquieta. Estivera com medo de ser capturada e do que lhe aconteceria nas mãos dos rudes escoceses, mas agora um novo medo tomara conta dela. Percebeu o que acontecera mais depressa do que Eduardo, porque já provocara emoções similares muitas vezes antes. Quando William estava com ela, podia protegê-la, mas William agora estava preso na Europa, e tratava-se do rei.
- Majestade - disse ela -, lamento não podermos recebê-lo aqui em Wark da maneira à qual vossa majestade está acostumado.
- Não existe outro lugar em que eu preferiria estar neste momento do que em Wark - respondeu ele.
Ele não percebera que o castelo era pouco mais do que uma fortaleza. Conhecia aquelas construções, que praticamente não mereciam o nome de castelo. Tinham sido erguidas pelos normandos fazia quase trezentos anos, e nunca tinham sido reformadas. Havia o salão com o seu alto teto abobadado, e os quartos eram locais parecidos com celas, situados ao longo das paredes externas.
- vou levá-lo ao quarto que mandei preparar as pressas para vossa majestade. É pequeno, mas é o melhor da casa. Espero que não o ache intoleravelmente frio...
- Sei que vou gostar dele - disse ele.
- Meu marido vai querer agradecer-lhe o que vossa majestade fez por nós hoje.
Ele não respondeu. Ela viu o leve franzir de cenho que aumentou sua apreensão.
- Majestade, se me der permissão para me retirar, irei até as cozinhas para me certificar de que lhe seja oferecido o que tivermos de melhor.
Os olhos dele nunca se haviam desviado dela. Catharine pensou: preciso sair daqui. Fez novamente uma mesura e dessa vez ele tomoulhe a mão e a beijou.
Seus lábios eram ardentes e arrebatados sobre a pele dela.
Deus me ajude, rezou ela.
Retirou a mão e, para seu espanto, ele a liberara. Então, sem olhar para trás, girou sobre os calcanhares e saiu correndo da sala.
Catharine foi para um quarto no outro lado do castelo. Lá, ficou algum tempo apoiada na porta.
Devo estar enganada, disse para si mesma. Não pode ser. William sempre falara sobre a devoção dele por Filipa. Se ao menos William estivesse ali!
Começava a anoitecer. Havia o resto do dia para passar e depois ele iria retirar-se para o quarto que ela preparara... o quarto dela... o único digno de ser oferecido ao rei.
Iria dormir o mais longe dele possível.
Não havia tranca naquela porta. Ela escolheria outro quarto.
Precaução absurda. A coisa não era assim. Não podia ser.
- O rei é dedicado à rainha - dissera William repetidas vezes.
- E nunca olha para outras mulheres? - perguntara ela.
- Olha. Ele sente uma certa atração por elas. Uma vez ele me disse que, exceto quando tinha de discutir uma entrada em combate ou assuntos de Estado, preferia a companhia de mulheres. Ele diz que elas são mais inteligentes de muitas maneiras e ele gosta muito de olhar para elas. No entanto, é o marido mais fiel do país. Amou Filipa desde o momento em que a viu e ela o segue nas batalhas, de modo que nunca fica longe.
Ó Filipa, pensou a condessa, onde está você agora?
Mas isso é um engano, garantiu a si mesma. Estou imaginando isso. Ele acaba de expulsar o inimigo. Está satisfeitíssimo por ter desbaratado os escoceses. Está satisfeito comigo porque lhe dei uma oportunidade de fazer isso e, por ser um fidalgo, gosta de ajudar uma senhora em apuros.
Pronto. Aquela era a explicação.
Tinha de ser a explicação.
Sozinho, Eduardo estava sentado na cama. A cama dela. Sabia que ela lhe dera seu quarto. Na noite anterior, ela devia ter dormido ali.
Nunca vira alguém igual a ela. Naturalmente que não. Não havia ninguém igual a ela.
Que perfeições! Prestava atenção a muitas mulheres, belas mulheres, mulheres com quem ele teria gostado de fazer amor. Por estranho que parecesse, apesar de sua posição, que poderia ter significado conquistas ainda mais fáceis do que sua beleza fora do comum lhe haveria trazido, ele se abstivera de ceder. Muitas vezes à custa de um grande controle.
Sempre pensava em Filipa. Havia algo em Filipa que o deixava avesso a trair a confiança que ela depositava nele. Uma doce simplicidade que o atraíra desde o início. Uma delicadeza, uma bondade, uma simplicidade. Nenhuma outra poderia ser melhor esposa para ele.
Mas nunca antes daquele dia ele se vira à frente de uma deusa. Porque era isso que Catharine Montacute lhe parecia. A beleza era ofuscante. Porque William não lhe contara? Obviamente porque queria guardá-la só para ele. Por que William não a levara até a corte? Aquilo estava perfeitamente claro. Ele teria feito o mesmo se estivesse no lugar de William.
Pela primeira vez ele ficava contente por William estar preso.
Ficou assombrado consigo mesmo. Não conseguia evitá-lo. Um desejo violento tomara conta dele. Tinha sido um bom marido; nunca se afastara do leito matrimonial. Mas acontece que até aquele dia nunca vira Catharine Montacute.
Ela mudara tudo. Todos os seus bons propósitos tinham desaparecido. Aquela urgente necessidade dela estava combatendo sua consciência, dominando-a, destruindo-a.
Eduardo não tinha consciência. Tinha apenas o desejo por aquela mulher.
Havia alguém à porta. Ele não viu quem era.
Tinham ido ajudá-lo a vestir-se, porque dali a pouco desceria para o grande salão, onde estavam fazendo o possível para lhe dar uma recepção digna de um rei.
A mesa estava pronta; os cavaleiros começavam a entrar no salão. O rei não se achava entre o grupo. Seu escudeiro disse que deixara Eduardo mergulhado em meditação e que nem mesmo respondera quando o escudeiro lhe lembrara que estava na hora de descer para o salão.
- Eu acho, minha senhora - disse o escudeiro -, que ele espera pela senhora para escoltá-lo até sua mesa.
Aquilo era, na verdade, um velho costume, e com uma certa apreensão Catharine foi àquele quarto que até há pouco tinha sido dela.
Bateu à porta, e o rei em pessoa abriu-a. Quando a viu, um sorriso de grande satisfação surgiu em seu rosto. Ele tomou-lhe a mão e atraiu-a para dentro do quarto, fechando a porta.
A condessa viu que ele estava como quando chegara e não tinha tirado toda a armadura.
- Majestade, devo deixá-lo para que tire sua armadura, a fim de que possa descer à vontade para a nossa simples refeição.
- Tenho pensado bastante desde que a senhora se retirou - disse ele - Não tenho pensado em outra coisa que não na senhora... e em mim mesmo... e no que este encontro significa para mim.
- Majestade, ele significou minha salvação, e estou certa de que meu senhor de Salisbury irá abençoá-lo para sempre pelo que fez à senhora dele hoje.
- Eu não estava pensando nele - disse o rei. - Ele tem sido seu marido. Isso é recompensa suficiente para qualquer homem. Não, eu estava pensando na senhora e em mim. Porque hoje me aconteceu uma coisa que nunca havia acontecido antes. Fiquei conhecendo a mais graciosa e mais bonita dama do mundo e, para dizer a verdade, descobri que a amo de todo o coração.
Ela sorriu, fingindo não dar importância ao assunto.
- Vossa majestade mostra sua galanteria tanto nas palavras como nas ações. Refere-se a mim com bondade e agora eu gostaria de mostrar-lhe o que preparamos para vossa majestade comer, porque estou certa de que deve estar com muita fome.
- Tenho fome apenas de uma coisa, senhora. Da senhora.
- Há homens com fome lá em baixo, majestade, e não podem começar sem a sua presença.
- Que esperem. Não posso esperar mais para dizer-lhe que seu belo rosto, suas perfeições, seus modos me afetaram tanto que não posso ter outro momento de paz enquanto a senhora não me disser que não me vê com desagrado.
- Como poderia uma súdita fiel ver com desagrado seu rei?
- Não quero que esta súdita veja o rei, mas sim o homem que ama.
- Vossa majestade se diverte com isso, mas lhe peço que pense no seguinte. Sua presença neste quarto e a minha com vossa majestade vão dar motivos a mexericos. Pode ser que a sua boa rainha os ouça e ficará muito contrariada.
Ela percebeu que a menção de Filipa o afetou um pouco; mas ele não queria ser desviado de seu propósito.
- Eu lhe peço - disse ela -, venha para sua mesa.
- Vamos falar sobre isso depois - disse ele.
- Sim, sim-respondeu ela, porque sabiaque deviafugirdaquele pequeno quarto, daqueles olhos ardentes, das ansiosas mãos que não ficavam quietas.
- Majestade - disse ela -, vou voltar para meus convidados e dizer-lhes que vossa majestade irá juntar-se a nós dentro em pouco.
Com isso, ela fugiu.
Eduardo ficou calado durante a refeição, mas todos perceberam que não conseguia tirar os olhos da dona do castelo.
Claro que ele devia ser recepcionado de acordo com o costume, e era Catharine que deveria cantar e tocar alaúde para ele.
Observou-a o tempo todo, os olhos brilhando, os sentimentos por ela evidentes para que todos vissem.
Ele expressou o desejo de dançar, e ela teve de liderar a dança com ele ao lado.
O rei segurou-lhe a mão com firmeza.
- Precisamos ficar juntos esta noite - sussurrou para ela -, porque não posso viver outra hora sem a senhora.
- Eu lhe peço, majestade, que pense no que está dizendo.
- Da importância que isso tem... mas apenas para nós dois.
- Há que se pensar em outras pessoas - respondeu ela. - Meu marido, preso a seu serviço, sua esposa, a rainha. Minha honra e meu dever para com meu marido, a sua para com seu país e sua família. Todos os seus súditos que esperam que vossa majestade dê o exemplo. Eu lhe imploro, majestade, deixe o castelo. Esqueça-me.
- A senhora me pede o impossível. Acha que algum dia irei esquecê-la? Não seja cruel comigo, minha senhora. Nunca desejei coisa alguma na vida como desejo a senhora. A coroa da Inglaterra, a coroa da França, eu desistiria das duas em troca de uma noite com a senhora.
Ela riu com a indiferença que lhe foi possível.
- Na noite seguinte entraria em combate para reconquistá-las. Majestade, eu o conheço bem. Meu marido me falava muito em vossa majestade. Ele gosta muito de vossa majestade. Vossa majestade o trairia quando ele foi preso a seu serviço?
- Não quero pensar nele. E a proíbo de pensar nele.
- Nem mesmo um rei pode guiar os pensamentos de um súdito, majestade. Eu pensaria no meu marido enquanto vivesse.
- Não vou descansar enquanto a senhora não me disser que me ama como eu a amo. E quando um homem sente o que eu sinto... ainda que seja o mais nobre do país... não descansará enquanto não conquistar o objeto de seu desejo.
E quando uma mulher está decidida a manter a honra até a morte, ela o fará, majestade.
- A senhora me deixa desesperado.
- Infelizmente, majestade, é o que tenho a fazer. Terminada a dança, o rei expressou o desejo de recolher-se e olhou para a dona do castelo para que o conduzisse até o quarto.
Catharine tomou-lhe a mão. Agora estava com medo, porque vira a decisão nos olhos do rei.
Outras pessoas também haviam percebido.
Mas a determinação do olhar de Catharine era igualmente forte.
O rei atraiu-a para dentro do quatro e, voltando-se para ela, abraçou-a.
- Vamos, meu amor - disse ele. - Não resista mais. Ela ficou rígida em seus braços, e ele a soltou.
- Então continua a resistir?
- Majestade, tenho de fazer isso, pela minha honra e pela sua.
- Honra ao lado de... Ela respondeu por ele.
- Desejo.
- Eu chamo isso de amor - respondeu ele.
- Não é o amor que vem em poucos momentos - respondeu. Não aquele amor verdadeiro como o que sinto pelo meu marido e vossa majestade pela sua esposa.
- Uma coisa eu lhe digo. Nunca houve uma mulher que me afetasse tão profundamente quanto você.
- Não, majestade. Sou uma mulher como as outras. Vossa majestade gosta de meu rosto e de meu físico. Isso é tudo. Sobre mim, a verdadeira mulher, vossa majestade pouco sabe.
- Sei que você é valente como um leão e teimosa como uma mula.
- Neste caso, majestade, eu lhe peço, afaste de mim seus pensamentos.
- Eu poderia possuí-la, se quisesse. Você poderia protestar à vontade, e ninguém prestaria atenção em você se o rei assim o quisesse.
- É verdade - disse ela -, mas eu sei que vossa majestade jamais faria isso.
- Parece que sabe tão pouco a meu respeito quanto diz que sei sobre você.
- Vejo em seus olhos, majestade, que embora fosse capaz de quebrar os votos matrimoniais e me peça que faça o mesmo, não seria capaz de violentar uma mulher. Respeitaria a vontade dela, porque sabe muito bem que a satisfação que procura jamais seria sua se o fizesse e tudo o que sentiria seria vergonha.
- A senhora é ousada, condessa - disse ele.
- Tanto quanto vossa majestade.
Ele tomou-lhe a mão e pressionou os lábios contra ela.
- Acho que a amo mais a cada minuto que passa.
- Majestade, vou desejar-lhe boa-noite. É melhor assim. Vai concordar comigo. Rezarei para que Deus o conserve e afaste de seu nobre coração os pensamentos maldosos que tomaram temporariamente posse dele. Estou sempre pronta a servi-lo como sua súdita fiel, mas apenas naquilo que seja condizente com sua honra e com a minha.
Catharine retirou a mão e, abrindo a porta, retirou-se. Foi para o quarto que escolhera. Fechou a tranca e deitou-se na cama. Estava exausta, mas já não sentia medo.
Ele jamais a pegaria à força, de modo que nada tinha a temer. Ela jamais iria quebrar os votos matrimoniais.
Eduardo partiu para Berwick na manhã seguinte.
Estava calado, e era claro que seus pensamentos estavam muito longe da guerra com a Escócia.
Jamais voltaria a estar contente, disse a si mesmo. Como poderia estar, quando Catharine era esposa de outro homem e ele estava casado com Filipa?
Sua deslealdade atacou-o com força. Gostaria de poder parar de pensar em Filipa. Não conseguia. Ela fazia uma parte muito grande de sua vida, era a mãe de seus adorados filhos. No entanto, ele teria abandonado Filipa, os filhos e a vida deles juntos por Catharine Montacute.
Não precisaria ser assim. Ele e Catharine poderiam ter sido amantes, e Filipa não precisava ficar sabendo de coisa alguma.
A ideia o fez sorrir com ironia. Quantas pessoas em Wark, à noite passada, tinham observado astutamente a sua obsessão? Elas estariam falando sobre ela, sussurrando sobre ela, balançando a cabeça ao comentá-la.
Elas sempre tinham ficado assombradas com sua fidelidade a
Filipa.
Como Catharine tinha sido nobre! Era o tipo de mulher que morreria nelas suas crenças e acreditava ser errado os dois quebrarem os votos matrimoniais.
Não era apenas bonita, era sem igual. O arco das sobrancelhas, o traço puro do perfil, a maneira de manter a cabeça... tudo isso ele via claramente e de tudo isso iria lembrar-se para sempre.
Se fosse a sua rainha, Eduardo seria o homem mais feliz sobre a Terra.
Filipa parecia estar à sua frente - os olhos calmos mostrando tristeza. Ela iria compreender, é claro. Filipa sempre compreendera. Pobre Filipa, nunca fora uma beleza de verdade. Ele percebia isso mais do que nunca quando a comparava com a incomparável Catharine - a rechonchuda Filipa, com as brilhantes faces rosadas e a bondade que estava aparente na expressão de seu rosto! Ele sempre pensara que tivesse a melhor esposa do mundo... mas agora conhecera Catharine.
E assim seguia seu pensamento.
Estava arrasado. Não sentia ânimo para o combate. Estava cansado da guerra escocesa. Queria ir para o sul, para colocar a maior distância possível entre ele e a tentação. Iria para a França. Lutar pela sua coroa lá. Às vezes achava que os escoceses jamais seriam dominados. Retiravam-se sempre para seu baluarte nas montanhas, e a luta poderia prosseguir indefinidamente.
Chegaram notícias de Filipa. Estava grávida outra vez. Ele deveria regozijar-se, pois adorava os filhos e nunca achava que fossem demais. Mas o pensamento em Filipa perturbava tanto sua consciência, que se sentiu mais inquieto do que nunca.
Filipa lembrou-lhe que já fazia algum tempo que não tivera notícia alguma de sua querida irmã Eleanor, esposa do duque de Gueldres, e como Eleanor se correspondia com frequência com ela, esperava que aquilo não fosse um mau sinal.
Foi um alívio deixar os pensamentos desviarem-se momentaneamente de seus assuntos particulares. Raynald de Gueldres, marido de sua irmã, tinha sido seu firme aliado na França. Fazia oito anos que Eleanor se casara com ele e tinha dois filhos homens saudáveis e sempre parecera feliz. Claro que as irmãs dele tinham tido uma infância diferente da de seus filhos. Talvez as lembranças dos primeiros anos de sua vida tivessem feito com que ele fosse de um carinho especial para com os filhos. Como seus pais tinham sido diferentes dele e de Filipa! Seu pai não tinha sido indelicado, mas nunca se interessara por eles, e sua mãe não ligara a mínima para as meninas e só concentrava sua atenção nele e no irmão, devido à importância que os dois poderiam ter para ela. Por isso, quando Eleanor partira para Gueldres, fora preparada para adaptar-se. Ela nunca fora mimada como as filhas dele tinham sido em especial Isabella.
Devia haver alguma razão simples para ela não ter escrito. Eduardo estava certo de que ia tudo bem em Gueldres.
A notícia de Filipa o fizera criar um pouco de juízo, lembrando-o da felicidade de sua vida familiar até ali. Catharine estava certa. Teria sido um erro destruí-la. Muitos de seus antecessores tinham tido amantes, e aquilo fora considerado uma situação muito natural. Chegara, até, a haver um começo de escândalo a respeito do Conquistador. Seu avô tinha sido um marido fiel, e o mesmo acontecera com seu bisavô. Eles tinham estabelecido um exemplo para a família. O pai dele desgraçara-a, mas até mesmo ele tinha sido fiel aos seus amantes.
À medida que os dias se passavam, Eduardo começava a ver que Catharine tinha razão. Nem ele nem ela eram do tipo de se envolver num caso amoroso fútil. A paixão dos dois teria sido profunda demais para isso. E Filipa, como teria sofrido!
Ele tomou uma decisão. A primeira coisa que iria fazer seria levar o marido de Catharine de volta para ela. Aquilo mostraria aela a natureza de sua devoção.
Ele fizera várias tentativas de tirar o amigo do cativeiro, mas o preço exigido por Filipe tinha sido muito alto.
Imediatamente, enviou mensageiros à França para perguntar a Filipe qual o prisioneiro que ele gostaria de trocar pelo conde de Saiisbury.
Filipe pediu o conde de Moray, que Eduardo capturara pouco antes com grande alegria, porque Moray era reconhecido como um dos melhores líderes escoceses, um homem que seria de grande valia para o jovem David, o Bruce.
Era natural que Filipe pedisse um preço alto.
Eduardo concordou.
- O conde de Salisbury é um de meus maiores amigos - disse ele.
E quando pensou que tentara seduzir a mulher dele, ficou envergonhado. Mas o desejo pela bela Catharine ardia com a mesma violência de sempre.
O conde voltou para a Inglaterra, e Eduardo fez uma trégua com os escoceses e marchou para o sul.
HAVIA TRISTEZA NO PALÁCIO da Torre de Londres. Filipa dera à luz uma garotinha. Eles a haviam batizado de Blanche, mas dizia-se que mal tivera tempo de abrir os olhos antes de morrer.
Uma grande depressão tomou conta de Filipa. Tinha vários filhos bonitos, mas nunca suportava perder um. E aquele era uma menininha. Eduardo adorava meninas.
Tinham circulado rumores inquietantes que a tinham perturbado. Ninguém lhe contara, é claro, mas ela captara palavras sussurradas; vira olhares furtivos; e não pôde evitar ficar sabendo que Eduardo passara a sentir paixão pela condessa de Salisbury e que a condessa era uma mulher virtuosa que repelira seus avanços, e que só por causa disso o caso dera em nada. Mas mudara tudo. Muitas vezes se assombrava com a dedicação de Eduardo por ela. Sabia que não era uma mulher bonita, e as gravidezes não tinham melhorado seu físico. Nos últimos anos, ficara rechonchuda demais, e sempre tivera tendência a engordar. Isso era uma característica de sua raça. Eduardo era muito bonito. Não tão alto quanto o avô, Eduardo Pernas Longas, mas bem acima da altura média; de olhos azuis, cabelos louros, e com a paixão pelos belos trajes, ele sempre apresentava ao mundo uma figura magnífica. Além do mais, havia aquela aura de realeza à sua volta que muitas mulheres achavam irresistível. Parece que a condessa de Salisbury não achara.
Eduardo, apesar do grande rei que era, frequentemente parecia uma criança para ela. Seus entusiasmos, sua impulsividade-a maneira pela qual Robert dArtois o incitara a entrar na luta pela coroa francesa era um exemplo disso -, seu amor pela pompa, seu prazer na justa quando queria que todos o vissem como o campeão... tudo isso ela achava constituir atos de uma criança adorável. E o desejo dele por Catharine Montacute fazia parte do esquema. Filipa ouvira dizer que ela era uma das mulheres mais bonitas da Inglaterra. Ora, a rainha de Eduardo, sem dúvida alguma, não era.
Pobre Eduardo, ele ficara desapontado com o prémio que recebera!
Para Filipa, ele era como um de seus filhos, e a natureza dela era tal, que procurava o defeito em si própria e não nele.
Ela o desapontara. Desapontara por não ser bonita como Catharine de Montacute.
Ela o perdoava, mas era a primeira vez que ele se transviara - ou tentara transviar-se - e a ela parecia o fim de um certo padrão no relacionamento dos dois.
E agora, ela perdera a filha recém-nascida.
Eduardo chegara ao palácio.
Era a primeira vez que o via desde a salvação do castelo de Wark.
Ele chegou e ajoelhou-se ao lado da cama e beijou-lhe as mãos com fervor.
- Não precisa se preocupar, meu amor - disse ele.
Filipa se perguntou se ele estava se referindo à perda da filha ou ao seu amor não correspondido.
- Uma menininha - disse ele. - Filipa, querida, andei tão preocupado com você!
Aquilo que havia nos olhos dele era uma preocupação sincera. Remorso, talvez. Ela quis consolá-lo. Dizer-lhe que esquecesse o que acontecera. Eles tinham sido muitíssimo felizes um com o outro, e tinham estado juntos por um tempo longo demais para que qualquer coisa destruísse o que se passara.
Eduardo falava sobre a filha que tinham perdido.
- Vamos ter mais, Filipa. E somos bem-abençoados nos que já temos.
Os dois conversaram durante algum tempo sobre os filhos, e Filipa percebeu que ele estava lhe dizendo que sempre iria amá-la. Muito embora ele tivesse visto a mulher mais bonita da Inglaterra e jamais fosse esquecê-la, aquilo não podia fazer diferença alguma para seu amor por Filipa.
A pequenina Blanche foi enterrada na capela de St. Peter, na abadia de Westminster. A família toda esteve presente à cerimónia-Eduardo, príncipe de Gales, Isabella, Joana, Lionel, John e Edmund.
Um pano de tecido de ouro foi colocado sobre o túmulo dela e ofereceram-se orações para a recepção de sua alma no céu.
Eduardo ficou com a família algum tempo. Estava ansioso para que Filipa soubesse o quanto a estimava.
Filipa tivera razão quando adivinhara que havia algum motivo para que sua cunhada não tivesse escrito de Gueldres.
Eleanor, a princípio, tinha sido muito feliz em Gueldres. Houvera algumas dúvidas sobre seu casamento, porque o marido era viúvo na época e muito mais velho do que ela; mas Eleanor encontrara nele um marido delicado e dedicado, e quando os filhos nasceram ela ficara plenamente satisfeita.
Depois de sua juventude um tanto lamentável, quando tinha havido sussurros e indiretas na ala infantil, ela não fora muito feliz, e depois sua irmã Joana fora enviada, com uma idade muito tenra, para a Escócia, a fim de casar-se com David, o Bruce. A vida não fora muito feliz para elas. De modo que quando ela fora para Gueldres sentira uma satisfação que não conhecera antes.
Quando o filho mais velho, o pequeno Raynald, nascera, tinha havido uma grande alegria, porque do primeiro casamento o duque havia tido meninas. Eleanor tinha apenas dezesseis anos na época, porque acontecera fazia oito anos; e desde então ela dera à luz mais um menino.
Tildo foi bem até que de repente ela pegou uma estranha doença que tornou sua pele muito clara numa coloração extremamente escura. Não conseguia entender o que acontecera, e nenhuma das pomadas ou unguentos que usara tivera qualquer efeito.
Então, percebeu uma frieza na atitude do marido para com ela.
Raramente o via e quando isso acontecia era apenas por um curto espaço de tempo durante o dia.
Um dia, Eleanor estava andando a cavalo quando suas amas lhe disseram que olhasse para uma casa que ficava a uma certa distância do palácio ducal.
- Por quê?-perguntou, e pelos olhares tristonhos das damas ela viu que fizera uma pergunta embaraçosa.
O camareiro do duque, que se juntara ao grupo, explicou:
- O duque deseja que a senhora passe a morar aqui, duquesa.
- Passar a morar aqui! Meu lugar é no palácio.
- Esse é o desejo do duque... essa é a ordem do duque, senhora. Ela ficou aturdida e tomada pelo medo.
- E meus filhos?
- Eles irão juntar-se à senhora aqui.
Eleanor não entendia o que aquilo significava, nem lhe permitiram falar com o marido para perguntar-lhe quais eram suas intenções. Não escreveu a Filipa e a Eduardo como pretendera. Não saberia o que dizer-lhes, porque não fazia ideia de que crime devia ter cometido.
Nunca arranjara amantes, de modo que não podia haver questão de infidelidade. Sempre fora uma esposa amorosa. Aquilo era incompreensível.
A ligeira infecção na pele que alterara sua corja desaparecera e sua pele estava branca e perfeita como sempre. Ficara magra de tanta angústia, e seu único consolo estava nos filhos.
Suas fiéis criadas não conseguiam decidir-se se seria prudente contar-lhe sobre os rumores a respeito de seu relacionamento com o rei ou omitir-lhe os acontecimentos. Mas uma delas, considerando o que estava em jogo, decidiu contar.
- Duquesa, a senhora não deve deixar que isso aconteça. Eleanor quis saber o quê.
- Dizem que o duque planeja divorciar-se da senhora e deserdar os filhos. Ele vai arranjar outra esposa e espera ter filhos homens com ela.
- Isso não pode ser verdade. Por que ele não me diz pessoalmente que deixou de me amar?
- Não parece que ele tenha deixado de amá-la. Dizem que está muito triste por ter de tomar essa decisão.
- Talvez eu deva escrever para meu irmão. Não compreendo. O duque e eu nunca brigamos. Ele parecia satisfeito com a nossa união. E meus filhos. Você me diz que eles vão ser deserdados?
- Tem havido muitos rumores, senhora. A senhora sabe o quanto a lepra é temida.
- Lepra!
- Sim, senhora duquesa. Eles estavam convencidos de que a senhora estava sofrendo dessa doença. Começou com a mudança da cor da pele. O duque quis separar-se da senhora antes que ela se espalhasse demais e se tornasse contagiosa. Dizem, também, que a mãe transmite a doença para os filhos, e por este motivo o duque quer o divórcio e deseja relacionar-se com mulher capaz de lhe dar filhos saudáveis que possam continuar a linhagem.
- Então é isso. Por que ele não me contou? Lepra! Eu pareço leprosa?
- Agora não, senhora duquesa. Sua pele está clara e limpa como antes.
- O que tive foi um ligeiro distúrbio. Acabei eliminando-o com ervas e loções. Já passou por completo. Tenho de pedir ao duque que venha falar comigo.
A mulher pareceu em dúvida, mas Eleanor não se deixou demover. Mandou um recado ao duque, mas ele não quis recebê-la, tamanho era o seu medo de contaminação.
- Então - bradou Eleanor -, vou ser jogada fora sem uma oportunidade de mostrar a verdade.
Parecia que era isso mesmo.
Ela não tinha amigos em Gueldres, só as criadas, mas pelo menos por meio delas compreendera o que estava na raiz de seus problemas.
O duque, seu marido, tinha sido um entusiasta defensor da reivindicação de Eduardo ao trono da França, mas havia muitos nobres em Gueldres que pendiam para os franceses. Se eles pudessem livrar o duque de sua esposa inglesa que, na verdade, era irmã de Eduardo, poderiam arranjar um casamento com uma mulher apresentada pelo rei da França e, assim, provocar o que tantos procuravam: romper o elo com a Inglaterra e forjar um novo com a França.
Era imperativo que Eleanor impedisse aquilo. Como ousavam insistir que ela sofria de lepra? Tinham alarmado o duque a ponto de ele se recusar a vê-la. Isso indicava, de fato, que o amor dele por ela não era muito forte. Mas Eleanor acreditava poder reavivá-lo se ao menos pudesse falar com ele.
Ela percebia que se apelasse para Eduardo aquilo poderia ter o efeito inverso do que ela queria. Agora sozinha tinha de fazer o que era necessário, para o bem de seus filhos, dela e de seu irmão.
Ela ficara sabendo que ia haver uma reunião dos nobres no palácio na semana seguinte e, levando isso em consideração, fez os planos.
No dia em que a reunião deveria acontecer, vestiu uma túnica fina que expunha a maior parte do corpo; por cima, enrolou uma capa e, levando os dois filhos, seguiu para o palácio.
Ninguém tentou detê-la, tão surpresos ficaram ao ver sua duquesa, e ela dirigiu-se para a sala do conselho onde os nobres estavam reunidos. O duque estava sentado na cadeira semelhante a um trono, e, segurando um filho em cada mão, ela foi até ele e tirando a capa e expondo grande parte da pele clara, delicada e perfeita, bradou:
- Senhor duque, venho até sua presença para mostrar-lhe que as histórias sobre meu estado leproso são totalmente falsas. Se eu estivesse com aquela doença, ela não poderia ser vista por todos? Olhe para mim, meu senhor. Olhem para mim, senhores nobres, alguns dos quais têm espalhado essas histórias a meu respeito. Estou intacta e com boa saúde. Insisto para que seus médicos me examinem. Aqui estão seus filhos, meu senhor. Não pode duvidar de que sejam seus. Eles se parecem com o senhor. Se deixar que essas calúnias encubram a verdade, meu senhor, eu lhe digo o seguinte: vai se arrepender do nosso divórcio e vai ver o fracasso de sua linhagem.
Fez-se silêncio no salão. Todos os olhos estavam fixos na duquesa, que, usando nada além da túnica, exibia uma negativa extrema dos rumores de lepra.
O duque levantou-se e, aproximando-se dela, colocou-lhe as mãos nos ombros. Depois, apanhou a capa e envolveu-a nela.
- Minha senhora - disse ele -, tem razão ao dizer que andei dando ouvidos a calúnias. Tive medo da lepra e do efeito que teria sobre a senhora e seus filhos. Eu não tinha coragem de correr o risco de uma infecção. Mas era mentira... Não quero o divórcio. Achei que era meu dever, porque tenho de fornecer herdeiros.
- O senhor tem seus herdeiros - bradou ela. - E aqui estão eles.
- É verdade. Esta reunião está encerrada-disse ele, dirigindo-se aos presentes. - vou levar minha esposa aos nossos aposentos.
Ele então dirigiu-a e aos filhos para fora do salão e enquanto subiam a escada disse-lhe o quanto estava contente por ela estar de volta, o quanto lamentara a necessidade de se divorciar dela, na qual tantos de seus nobres o tinham obrigado apensar.
Havia muitas perguntas que ela poderia ter feito, mas não quis. Já era suficiente o pesadelo ter terminado. Estava de volta ao palácio e não havia coisa alguma que o duque achasse suficiente para mostrar-lhe o quanto estava satisfeito com o fato de o problema ter acabado.
Agora Eleanor podia sentar-se e escrever para Filipa e contar o estranho episódio que agora tivera um final feliz.
Pobre Eleanor, pensou Filipa. E censurava a si mesma por aquele sentimento íntimo porque Eduardo preferira por um instante outra mulher.
Eduardo mostrava claramente que não queria ficar longe de Filipa. Esforçava-se muito para mostrar sua devoção para com ela, o que ela achava muito tocante. Nunca dissera a ele que sabia de seus sentimentos pela condessa de Salisbury, e ele nunca falava sobre aquela senhora com ela. Aonde quer que ele fosse, queria que o acompanhasse; e sempre insistia que estivesse trajada com o mesmo esplendor que ele - e como ela gostava muito de belas roupas, os dois formavam um casal magnífico.
Eduardo decidiu realizar um grande torneio em Windsor e para isso convidou todos os campeões da Europa. Esperava que entre eles fossem incluídos os cavaleiros franceses; e achou divertido pensar no dissabor do rei Filipe ao saber que seus maiores nobres estavam competindo em solo inglês.
Eduardo, tal como o avô, sempre tivera um grande interesse pelas lendas do rei Artur e seus cavaleiros, e decidiu que para aquela ocasião deveria haver uma mesa redonda e que a ela as mais bonitas damas do país, lideradas pela rainha, deveriam sentar-se com seus cavaleiros, cujo objetivo deveria ser o verdadeiro exercício da fidalguia.
Foram fornecidos salvo-condutos a todos os cavaleiros, não importava sua origem, e isso se aplicava especialmente aos franceses. Eles começaram a chegar de todos os cantos da Europa.
Aquela seria a mais esplendorosa justa de todos os tempos. As princesas Isabella e Joana estariam presentes, e havia uma grande agitação nos aposentos delas enquanto eram tomadas as medidas para os trajes brilhantes que usariam. Ficariam sentadas com a rainha na galeria das damas, e de lá escolheriam os cavaleiros que mais admirassem e talvez um deles usasse um presente de uma delas, o que proclamaria a dama que ele homenageava.
A prima do pai delas, Joan, estava com elas. O fato de ela ter doze anos de idade - quatro anos mais velha do que Isabella - dava-lhe uma certa autoridade e às duas princesas ela parecia muito instruída. Havia em Joan uma aura de romance. Em primeiro lugar, tinha uma beleza notável. Isabella percebera, com desalento, que sempre que Joan estava presente as pessoas olhavam para ela, sorriam para ela, estavam prontas a fazer suas vontades. Aquilo irritava Isabella, porque até mesmo seu pai gostava da menina por ser muito bonita.
Na verdade, era chamada de a Bela Donzela de Kent. Outra razão pela qual parecia tão romântica era porque seu pai, o duque de Kent, de sangue real de nascimento, sendo filho de Eduardo I, fora executado antes de completar trinta anos, por ordem da antiga rainha e de Mortimer. Apropria Joan não se lembrava dele, porque tinha apenas dois anos na época - mas este fato e sua beleza a tornavam uma personalidade de destaque.
Joan estava muito cônscia de seus encantos e tinha seus admiradores. Um deles era William de Montacute, filho mais velho do conde de Salisbury, mas quando morava na casa do duque ela ficara conhecendo Sir Thomas Holland, escudeiro do pai dele, e não tinha certeza quanto a qual dos dois preferia.
- Minha irmã Joana ficou noiva e quase se casou - lembrou Isabella a Joan - e já houve entendimentos a meu respeito.
Joan jogou para trás os belos cabelos louros e sorriu com tolerância para elas.
- Pobres princesinhas - disse ela -, vocês terão de se casar com príncipes que são escolhidos para vocês. Vão ter de ir embora para o país deles e ser muito dóceis. Eu lhes garanto que isso nunca serei.
Não precisava garantir. Estava claro que Joan iria fazer o que quisesse.
Então contou-lhes sobre William de Montacute, cujo pai estava preso pelos franceses e cuja mãe, segundo se dizia, era uma das mulheres mais bonitas do país.
- Naturalmente, ela é velha - acrescentou Joan com complacência.
Não estava certa de com quem se casaria, disse às princesas. Se se casasse com William de Montacute, seria a condessa de Salisbury quando o pai dele morresse e a vida numa prisão francesa não era o tipo de condição para prolongar a vida. Por outro lado, ela tinha Sir Thomas Holland, e ele devia ser muito rico. De modo que as princesas deviam perceber que para ela tratava-se de uma escolha difícil. De modo geral, ela achava que preferia Thomas, e por ser tão de sangue real quanto elas, o título de condessa pouco significava para ela.
Isabella ficou um pouco desconcertada com o fato de o problema de Joan ser o assunto principal da conversa. Era perturbador ver que quando Joan experimentava seus brilhantes trajes ficava muito mais atraente do que elas. Joan estava bem cônscia disso e não resistia a chamar atenção para seus encantos.
Isabella sussurrou para as irmãs que não acreditava naquelas histórias sobre Joan e seus pretendentes. Teria de se casar com quem a mandassem casar-se - como iriam mandar -, e quanto a isso não haveria escolha para ela.
Mas quando o irmão delas chegou aos aposentos, sentiu-se imediatamente atraído por Joan e sentou-se num banco da janela, com ela falando e rindo e agindo como se lhe concedesse uma grande honra ao deixar que conversasse com ela.
- Que ares ela se dá - disse Isabella. - Dá a impressão de que é filha de um rei.
O jovem Eduardo, no entanto, parecia achá-la muito atraente, e quando eles saíam a cavalo era verdade que ela levava três acompanhantes - o príncipe, William de Montacute e Thomas Holland.
Não podia haver dúvida de que Joan, a Bela Donzela de Kent, era uma criatura muito fascinante.
Chegou mais um para a justa. Ele se dirigiu diretamente ao rei, e quando Eduardo o viu ficou muitíssimo emocionado.
- William! - bradou ele, e abraçou o amigo.
O conde de Salisbury disse que achou que não deveria perder tempo e se apresentar ao seu soberano, que, pelo que ele sabia, fizera tamanhos esforços em seu favor.
- Esperei apenas para ver minha família, e ao saber que meu filho já havia partido para ajusta, percebi que vossa majestade iria querer que eu viesse para cá.
Seja bem-vindo, William. É bom ver você. - O rei hesitou. - Diga-me, a condessa veio com você?
Majestade, ela pede a sua indugência. Uma indisposição.
- Nada sério?
Não, majestade. Ela me garante que não. Mas sentiu-se sem condições de fazer a viagem.
O rei não sabia se estava profundamente decepcionado ou aliviado. Sabia que ela fizera a coisa certa - como insistiriam sempre o seu tato e a sua discrição. Estava ansioso por vê-la, e no entanto se ela tivesse ido teria sido embaraçoso, com o marido recém-chegado do cativeiro e os mexericos que ele imaginava existirem, embora ninguém fosse ter a ousadia de deixar que chegassem aos seus ouvidos.
- Venha - disse ele -, você deve se apresentar à rainha. Ela andava muito preocupada com sua prisão. Depois, deve nos dizer como foi tratado. Pela sua aparência, eu diria que não está muito fraco.
- Não. Filipe deu instruções para que eu fosse bem tratado. Mas você sabe que tive de jurar não tornar a pegar em armas contra ele.
- Eu sei. Foi parte das condições. Falaremos sobre isso mais tarde. Agora, vamos ver a rainha.
Nunca houve uma justa como aquela.
Era janeiro e havia um frio cortante no ar. A rainha, com as filhas e as damas sentadas na galeria, era uma figura cintilante, o vestido decorado com pérolas e jóias, a capa de veludo ornada das melhores peles. O rei, a seu lado, usava um traje de veludo vermelho, e a comitiva toda brilhava.
Eduardo devia ser a estrela mais brilhante. E também o campeão da justa. Ninguém deveria suplantá-lo; e não seria fácil fazê-lo, porque ele se tornara um mestre no campo.
A ênfase naquela ocasião era a fidalguia. Como fizera seu avô, ele queria voltar ao tempo em que a condição de cavaleiro significava fidalguia. E em nenhum outro lugar isso era tão salientado quanto nos contos lendários do rei Artur e sua Távola Redonda. Os verdadeiros cavaleiros, declarava ele, deviam respeitar a compaixão e defender todos os mais fracos que eles, e isso significava uma glorificação daquele sexo que se dizia ser o mais fraco. Todo cavaleiro gostava de levar um memento de uma dama para a luta. Um verdadeiro cavaleiro tinha de acreditar na Igreja e defendê-la. Devia mostrar uma estrita obediência ao seu senhor, exceto quando isso conflitasse com seu dever para com Deus. Ele deveria sempre combater as forças do mal.
Eduardo iria usar um memento da rainha, e de forma ostensiva, a fim de que pudessem ser abafados todos os sussurros sobre ele e pudesse transmitir aos presentes que o desagradava o fato de haver calúnias relativas ao seu relacionamento com a condessa de Salisbury.
Como o povo ovacionava a sua vitória! Como ele gostava de cavalgar em torno do campo e ir descansar no balcão real e, lá, fazer sua mesura para a rainha! Filipa, sorrindo ternamente, sabia o que aquilo significava. Contrição. Ele poderia desviar-se em pensamento, mas ela era a sua rainha, a mãe de seus filhos, e ele a adorava.
O rei manteve o conde de Salisbury a seu lado, e ficou claro que o considerava como um amigo muito querido. Isso não surpreendeu William de Montacute, porque ele sempre se considerara muito íntimo do rei; tinham participado de muitas aventuras juntos, e parecia natural que, tendo voltado há tão pouco tempo do cativeiro a serviço do rei, Eduardo mostrasse seu agradecimento.
William acabou aparecendo na arena. Talvez por estar enfraquecido por causa do encarceramento, mas para consternação do rei, foi derrubado pelo adversário.
Um silêncio profundo tomou conta da assistência, e muitos correram para oferecer ajuda ao conde derrubado.
O rei ordenou que ele fosse levado para o castelo e que seus médicos reais cuidassem dele. Havia uma estranha tensão no ar. Não era raro acontecerem acidentes desse tipo em ocasiões como aquela-e podiam resultar em morte -, mas o fato de naquela vez a vítima vir a ser o conde de Salisbury parecia, de alguma forma, um ato do destino.
O conde não estava morto, mas muito machucado e certos ossos tinham sido fraturados. Os médicos disseram que se ele repousasse haveria uma leve esperança de que pudesse recuperar-se.
- Ele não é velho - disse o rei. O conde estava, na verdade, com 43 anos. - Sem dúvida vai se recuperar.
Tinha sido a mais magnificente justa de que Eduardo se lembrava, e seu prazer era aumentado porque Filipe da França estava furioso porque muitos de seus cavaleiros tinham participado dela. Filipe esforçara-se para fazer um espetáculo semelhante na sua corte ao mesmo tempo - o que acabara em fracasso. Isso era inevitável, porque muitos dos campeões franceses, tendo recebido salvo-condutos para Windsor, tinham ido para lá.
- Não fosse o acidente com Salisbury - disse Eduardo a Filipa -, teria sido perfeito.
- Pobre homem - replicou a rainha. - Talvez devêssemos mandar buscar a esposa dele.
Eduardo não enfrentou o olhar dela.
- Isso não vai ser preciso - disse ele, rápido -, ele estará recuperado dentro de uma semana... Não foi grave. Não passou de um tombo.
Ele estava realmente pesaroso, pensou Filipa. E não achava que Catharine devia estar ali para tentá-lo. Era muito jovem e ingénuo, e ela o adorava. Ansiava por consolá-lo, aliviar-lhe a consciência e dizer-lhe que sabia que lhe faltava o fascínio de mulheres como Catharine de Salisbury e que ela compreendia a admiração e o desejo dele por elas. O rei não devia se preocupar. Ela o amaria ainda mais porque ele resistira à tentação por sua causa. Ou será que era verdade? Teria sido a elevada moral da condessa que o salvara da infidelidade, ou a sua rígida consciência? Filipa não sabia. Nem queria saber.
- vou fazer disso um acontecimento anual - disse o rei. Mandarei chamar carpinteiros e construtores para que seja feita uma mesa redonda à qual possam sentar-se duzentas pessoas, e ela ficará aqui em Windsor em comemoração desta ocasião.
A rainha considerou aquilo uma excelente ideia. A fidalguia devia ser estimulada. Era bom lembrar as pessoas aquela gloriosa época lendária do rei Artur, quando a tarefa dos fortes era defender os fracos.
- Disso só pode resultar o bem - declarou ela.
Os trabalhos foram iniciados e começou a construção de uma grande Torre Redonda em Windsor.
O rei dedicou-se ao projeto com entusiasmo. Era um prazer poder planejar alguma coisa que não a guerra. A rainha concordou com ele. Uma trégua com a França, uma trégua com a Escócia. Era uma situação satisfatória. Deveria haver uma Távola Redonda uma vez por ano, declarou o rei; e ele mandaria que todos os cavaleiros comparecessem. Ninguém mais deveria preparar um torneio enquanto a Távola Redonda estivesse acontecendo, a fim de que ninguém pudesse ter uma desculpa para não comparecer.
A corte toda ficou entusiasmada com o projeto. Então, percebeu-se que os ferimentos do conde de Salisbury eram mais graves do que se pensara.
Ele ficou muito doente, e dentro de poucos dias morreu, de acordo com os médicos, "dos ferimentos".
Assim, a bela Catharine estava, agora, viúva. Eduardo pensava nela com frequência e permitiu-se imaginar que agora que estava livre ela não estaria quebrando os votos matrimoniais. Mas ele sabia, no íntimo, que o código moral de Catharine era tal, que ela jamais participaria de um adultério.
Filipa ficara grávida outra vez, e Eduardo passava muito tempo ao seu lado. Não se lembrava de um período na vida dos dois em que ele tivesse podido ficar tantas vezes junto à família.
Estava muito ansioso para que Filipa fosse bem tratada e que ela não acreditasse por um só instante que suas mais profundas preocupações não fossem a ela dedicadas.
Ocorrera a Eduardo que se ela morresse ele poderia, agora com a morte de Salisbury, casar-se com Catharine, e ele permitia-se imaginar qual seria a reação do país se ele o fizesse. Mas pensar na vida sem Filipa era intolerável. Não, por coisa alguma iria querer que ela não estivesse a seu lado. Não esquecia, por um só momento, o que lhe devia, e se havia quem a achasse simples, devia ser a simplicidade da sabedoria, porque ele nunca conhecera alguém tão capaz de ser feliz e fazer outras pessoas felizes como a sua rainha; e não havia dúvida de que a felicidade estava no cerne do sucesso.
Talvez aquela não fosse a maneira de um rei pensar. Mas era a verdade.
Robert dArtois ficara gravemente ferido na França e levado de volta para a Inglaterra para morrer. Foi enterrado com uma grande cerimónia na catedral de St. Paul, e o rei ficou muito triste. Robert estivera insatisfeito desde que nascera; sempre acreditara que o destino estava contra ele; tinha sido um criador de problemas, mas, no entanto, tivera um grande charme, e o rei gostara de sua companhia. Muitas vezes Eduardo pensava que se não tivesse sido por Robert, ele nunca teria se lançado naquela imensa tarefa de conquistar a coroa da França. Às vezes, quando pensava nisso, via a guerra estendendo-se pelo século, sem trazer uma conclusão definida. Muitas vidas seriam perdidas nos combates, e qual seria o fim? Sucesso para a Inglaterra significaria uma troca de coroas. Sucesso para a França, a manutenção da coroa.
Naquele ano, ele ficara na Inglaterra. A família ficara à sua volta e tinha sido um dos mais felizes e mais prósperos anos que eleja passara.
Chegou o mês de outubro. A rainha retirara-se para Waltham, perto de Winchester, para aguardar o nascimento do filho.
No devido tempo, a criança chegou. Houve muita alegria, porque era uma criança saudável, e depois da breve aparição e saída da pequena Blanche, houvera certas apreensões.
O rei ficou encantado por ter uma filha, e a rainha acompanhou-o na alegria.
Eles a batizaram com o nome de Mary.
Foi um dia maravilhoso quando o resto dos filhos foi ao quarto da mãe conhecer a nova irmã. Até Edmund, de dois anos de idade, estava lá para olhar admirado para a nova criança. Eles agora tinham sete filhos saudáveis e só tinham perdido dois-os pequeninos William e Blanche.
Era um ótimo love, disse Eduardo.
Sentia-se contente com a família, e a união com a condessa de Salisbury não passava de um sonho impossível.
O PRÍNCIPE EDUARDO ESTAVA, agora, quase um homem. Aos quinze anos, era alto, adulto para a idade, e estava ansioso por mostrar ao pai que se tornara um homem.
Eduardo ficava encantado com ele. Por mais que amasse as filhas, tinha de admitir que todo mundo olhava para seus filhos, e à frente deles estava Eduardo. Podia orgulhar-se de todos eles: Lionel, um rapaz corpulento e forte; John - sempre chamado de John de Gaunt até mesmo na Inglaterra e estava sempre pronto a chamar atenção e exibirse; e Edmund, ainda um garotinho, mas crescia como os outros. Sim, ele era um homem de sorte por ter filhos assim.
Os eventos, é claro, não ficam estáticos. Eduardo acreditava que o melhor lugar para começar o ataque contra a França era chegar pelo norte. Quanto mais perto estivesse da Inglaterra, mais fácil seria conseguir os suprimentos necessários. Não tinha intenção de cair naquela armadilha que mostrara ser a desgraça de muito comandante. Vitória nas mãos e nada para mante-la, sucesso transformando-se logo em terrível fracasso. Não, Eduardo queria um caminho aberto ao transporte em sua retaguarda. Portanto, seria o norte, e contava com os flamengos para receber ajuda.
Chegaram notícias inquietantes de Jacob van Arteveldt.
Os flamengos estavam irrequietos. A prosperidade começava a desaparecer e eles agora estavam resmungando entre si e acusando Jacob de não cumprir as promessas.
Eduardo tivera uma ideia. Por que Flanders não era transformada em ducado e o príncipe Eduardo não se tornava seu duque? Quanto mais pensava nisso, mais a ideia o agradava. com Flanders nas mãos através de seu duque, estaria em boas condições de atacar a França. Já imaginava a raiva e a contrariedade de Filipe quando soubesse daquele fait accompli.
Primeiro, porém, aquilo tinha de ser efetuado. Jacob van Arteveldt concordou com Eduardo quando o assunto foi abordado com ele, e garantiu a Eduardo que poderia conquistar o apoio das principais cidades cujo consentimento seria necessário. Ele levara o povo de Flanders para seu lado com sua eloquência e sua honestidade, e poderia tornar a fazê-lo, porque acreditava sinceramente que a união com a Inglaterra era a melhor esperança para Flanders.
Muito satisfeito, Eduardo mandou chamar o filho e explicou-lhe o que esperava fazer. O jovem Eduardo, ansioso por lutar ao lado do pai, ficou agitado com aquela perspectiva. Na verdade, estava impaciente com a demora em ir para a França e arrancar a coroa de Filipe e colocá-la onde achava que devia estar, na cabeça de seu pai, e sabia que com o tempo aquilo deveria significar na dele, também.
- Temos de nos preparar para partir imediatamente para Flanders - disse o rei -, mas sem muito alarde. Não se deve saber o que temos em mente, até que os flamengos nos avisem que nos receberão de bom grado em Flanders. Não queremos problemas vindos dos nossos inimigos. Confio em van Arteveldt de todo o coração e ele nos avisará assim que seus compatriotas estiverem prontos a nos receber. Meu plano é levar poucos homens conosco. Vamos a cavalo, sem chamar atenção, até Sandwich, e lá pegaremos o navio. O Swallow estará à nossa espera. Mas lembre-se, meu filho, fique de boca fechada. Contei à sua mãe e a poucos mais, e é só. Agora, prepare-se.
Filipa ouvira o projeto com uma certa apreensão. Aquilo significava que os meses pacíficos tinham chegado ao fim. Por mais que desejasse que Eduardo abandonasse seu projeto da conquista da França, não disse coisa alguma; mas um pouco triste, despediu-se do marido e do filho e no último dia do mês de junho os dois Eduardos partiram em viagem para Sandwich.
No dia seguinte, embarcaram no Swallow.
Jacob van Arteveldt, no entanto, chegara à conclusão de que a coisa não era tão fácil como pensara. Da primeira vez em que ele subira ao poder, os cidadãos das principais cidades de Flanders - Bruges, Ghent e Ypres - o tinham recebido como seu salvador. Ele era um deles; um trabalhador bom e honesto, um homem de ideais e com a coragem de apresentá-los; um homem honesto; um líder de estatura. Talvez tivesse sido um pouco esperançoso demais. Talvez tivesse fixado seus sonhos de prosperidade num ponto alto demais. A verdade é que grande parte do que ele prometera não acontecera.
Ele conversou com o povo nos mercados. As pessoas estavam descontentes com o seu conde, que trabalhava contra elas com os franceses, mas, queriam elas saber, por que deveriam trocá-lo por um estrangeiro, um menino inglês de quem elas não sabiam nada? Não, elas ficariam com o que tinham. Quem poderia dizer qual poderia ser o menor dos dois males?
Enquanto isso, Eduardo e o filho continuavam a bordo do Swallow em Sluys, aguardando o chamado de van Arteveldt. Estava demorando, mas Eduardo estava certo quanto à influência de Jacob junto ao povo e acreditava que o chamado acabaria chegando. Esquecera-se de que fazia muito tempo desde a última vez em que estivera em Flanders, e reputações como a de Jacob van Arteveldt, adquiridas com tanta rapidez, podiam evaporar-se com a mesma velocidade.
O sucesso de Jacob em Ghent provocara muita inveja entere seus concidadãos. Quem é esse homem que decide ser nosso líder?, perguntavam eles. Ele é apenas um de nós. O que ele tem que nós não temos?
Ele era um excelente homem de negócios. Fizera uma pequena fortuna. Mas quem era ele para ditar o que Flanders devia fazer?
Depois, vieram os sussurros. Ele estava trabalhando com os ingleses. Queria depor o conde e colocar o filho do rei da Inglaterra no lugar dele. Ele queria escolher os governantes deles. Era um traidor, não era?
Quando Jacob voltou para Ghent, estavam à sua espera. Sentiu logo a hostilidade deles. Viu olhares assassinos lançados em sua direção, de modo que se apressou a ir para casa e, lá chegando, trancou-se.
Mal acabara de se esconder dentro de casa, a turba estava diante de sua porta. Ouviu-os berrando para que saísse e percebeu que se estivessem decididos, em determinado momento, arrombariam as portas de sua casa. Era uma turba feroz.
Tinha sido a sua eloquência que os conquistara no início, de modo que ele iria experimentá-la outra vez. Dirigiu-se à janela mais alta da casa e olhou para a multidão.
Alguns levavam porretes e outros haviam apanhado o que pudessem achar que serviriam de arma. Jacob percebeu que agora eles o odiavam com a mesma intensidade com que outrora o tinham amado. Era aquela a emoção da turba.
Ele abriu a janela e pediu que o deixassem falar.
- Meus amigos e compatriotas - bradou ele -, ouçam o que quero dizer...
Mas eles não conseguiam ouvi-lo, tamanho o barulho que faziam.
- Desça e venha nos enfrentar, Jacob - gritavam eles. - Nós vamos lhe mostrar o que faremos com você.
- Vocês não têm prosperado ultimamente? - berrou ele. - Não facilitei a venda de seus produtos? Não consegui...
Mas estava vendo que não adiantava. Eles não tinham ido para ouvir. Queriam destruí-lo.
Vários estavam subindo pelo lado da casa.
- Posso trazer-lhes prosperidade - gritou ele.
Mas eles não podiam ouvir. Naquele momento, não queriam prosperidade. Só queriam satisfazer a sede de vingança sobre um dos seus que subira muito acima deles, que decidira ser o líder deles e que fazia acordos com reis.
A mão de alguém agarrou-o pelo braço. Estava com a metade do corpo para fora da janela. Outras mãos agarraram-no e o puxaram para o chão.
Eles estavam pisando nele; dando-lhe pontapés. Estavam desferindo uma chuva de golpes sobre ele.
Tinha sido tudo em vão, pensou ele.
E assim ele morreu.
Ansioso à espera de um recado de Jacob van Arteveldt, fazendo os preparativos para sua entrada e a de seu filho em Ghent, Eduardo recebeu o mensageiro.
Não acreditou no que ouviu.
Van Arteveldt tinha morrido! Assassinado pelo povo de Ghent. Mas ele era um homem que fizera tanto por Flanders! Assassinado. Era impossível.
- É verdade, majestade - replicou o mensageiro, e contou ao rei que o povo de Ghent se voltara contra Jacob porque ele queria colocar um príncipe estrangeiro para mandar nele, e batera nele até a morte.
Eduardo ficou abatido.
- Jacob era um homem bom - disse ele. - Foi um homem que serviu bem ao seu país e teria continuado a fazê-lo. Um homem honesto, raro hoje em dia.
Eduardo viu que aquilo era o fim de um sonho. Gratificou o mensageiro e, dispensando-o, chamou o filho.
- Está vendo, Eduardo, como nesta vida aquilo que achávamos que estava ao nosso alcance muitas vezes nos escapa? Nunca devemos contar com coisa alguma enquanto não a tivermos nas mãos.
- Não deveríamos ir vingar a morte desse bom amigo, papai? perguntou o príncipe.
O rei abanou a cabeça.
- Jacob morreu. Nada poderá trazê-lo de volta. Estamos empenhados numa guerra para conquistar a coroa da França. Não podemos nos envolver em guerras menores que nos desviem do nosso propósito. Eu tinha a esperança de atacar com os flamengos do nosso lado. Agora, vamos esquecer isso e começar de outro ponto.
- O que faremos agora?
- Meu filho, vamos voltar para a Inglaterra. Lá, nos prepararemos para uma campanha maciça contra os franceses.
Não devia haver mais demora.
Eduardo não dependeria de ninguém, a não ser de si mesmo. Os meses seguintes deveriam ser gastos em preparativos, e naquela mesma época, no próximo ano, ele estaria na França com o melhor exército que pudesse reunir.
Graças a Deus por aquela trégua! Tempo de preparativos. Esse tempo deveria ser bem empregado.
Filipa ficou encantada ao vê-los de volta. Lamentou a morte de Jacob van Arteveldt, homem que ela muito admirara; ficou imaginando o que poderia ter acontecido ao filho dele, Philip, que fora afilhado dela,
- Pobre menino órfão de pai - disse ela. - E Jacob era um homem tão bom! Por que as pessoas não entendem que homens como ele não procuram honrarias para si mesmos, mas apenas o bem do país?
Mas ficou satisfeita por ter o marido e o filho de volta, ainda que fosse apenas por um curto intervalo de tempo. Ela não quisera que o jovem Eduardo assumisse o título de duque em Flanders. Homens como o marido dela nunca compreendiam como aquelas honrarias custavam caro e que o mundo seria mais feliz sem elas.
Agora, por toda a Inglaterra havia oficinas ocupadas. Arcos e flechas estavam sendo feitos aos milhares. As ferrarias em todo o país tilintavam de atividade; estavam fazendo arreios para os cavalos que iriam para a guerra. Carpinteiros e fabricantes de tendas trabalhavam a toda velocidade, e isso levava prosperidade ao país.
Todos sabiam com que finalidade estavam trabalhando. Era para a excursão à França. Era para colocar a coroa da França na cabeça de Eduardo Plantageneta porque, todo inglês acreditava, o lugar dela era ali, por direito. A mãe do rei deles não era filha de um rei da França e os irmãos dela não tinham morrido... todos eles? Os franceses diziam que nenhuma mulher poderia herdar a coroa da França. Era essa a lei sálica deles. Pois bem, por que o filho de uma mulher não podia herdar? Fosse como fosse, era nisso que eles queriam acreditar e era nisso que iriam acreditar.
O Eduardo deles era o verdadeiro rei da França, não Filipe de Valois. E eles iriam lutar para dar a ele aquilo a que tinha direito.
No verão seguinte havia um exército de vinte mil homens pronto para seguir o rei até a França. E todos os dias treinavam com os arcos. Estavam decididos a ser os melhores arqueiros que a Inglaterra já tivera. Lança, espada e acha. Saberiam usá-las contra os franceses quando chegasse o grande dia.
Filipa disfarçou o sofrimento na despedida. Estava grávida mais uma vez, caso contrário teria ido com o rei para a França.
Sorriu com ternura para o marido, que agora estava muito ansioso por partir. O rei tinha a certeza da vitória; aquilo era uma característica sua. Uma vez mais, ela achou que na verdade Eduardo nunca amadurecera, um traço que muitas vezes lhe era favorável. Seu inabalável otimismo fizera-o enfrentar com sucesso muitas situações difíceis. Eduardo sempre acreditara na vitória e tinha o dom de fazer com que os outros também acreditassem; e quando seus sonhos não se tornavam realidade, ele nunca ficava cismado com o fracasso; dava início à campanha seguinte. Assim, não tendo conseguido o ducado de Flanders, ele voltara os esforços para a coroa da França.
Abraçou Filipa com carinho.
- Eu a deixo, meu amor, regente deste reino - disse ele. - O conde de Kent ficará a seu lado. E Lionel será o guardião do reino.
Lionel, que foi chamado à presença do rei, ouviu sério as instruções do pai. Parecia uma maravilha ser guardião do reino. Não entendia bem o que aquilo significava, mas era algo sobre o que ele poderia jactar-se junto aos irmãos e irmãs e lhe dava uma chance de sobrepujar Isabella, que sempre achava ser a pessoa mais importante da família por ser a favorita do pai.
Quando ele perguntou à mãe o que teria de fazer, ela o tranquilizou dizendo que seria apenas aquilo que ela mandasse. Lionel poderia ter de comparecer a reuniões, e quando o fizesse deveria lembrar-se de que tinha de ficar quieto e prestar atenção, ou dar a impressão de que estava prestando atenção.
Aquilo não pareceu insuperável e foi um grande alívio para o menino de oito anos.
E assim eles se despediram do rei e do príncipe Eduardo e a regência começou.
Pouco depois, a rainha foi para Windsor para os trabalhos do parto e muito em breve deu à luz a filha Margaret.
O príncipe Eduardo ficou no convés com seus amigos William de Montacute, que se tornara conde de Salisbury com a morte do pai, e Sir John Chandos. Ele admirava mais John Chandos do que qualquer outra pessoa que conhecia, e tinha orgulho de sua amizade por ele. John, por ser mais velho do que ele, ensinara-lhe muitas coisas, e ao príncipe parecia o cavaleiro perfeito. Era destemido, mas delicado; tinha horror a oprimir os fracos e não mostrava medo algum dos fortes. Eduardo gostava muito de sua companhia. Tinha um sentimento diferente em relação a William de Montacute, que era dois anos mais velho do que ele e tinha a tendência de salientar a sabedoria superior da idade. Além do mais, houvera uma certa rivalidade entre eles quanto à fascinante Joan de Kent que, na justa da Távola Redonda, jogara uns contra os outros, com Thomas Holland, apesar de ser de nível inferior, parecendo ser o preferido. Mas talvez aquilo fizesse apenas parte da perversidade de Joan.
Tanto William de Montacute como Eduardo ainda tinham que obter o título de cavaleiro, e esta era a ambição imediata dos dois. O príncipe sentia inveja de William, porque ele comandaria o desembarque da primeira leva de invasores - tarefa que Eduardo achava que seu pai poderia ter-lhe dado.
William estava se apurando, decidido a transformar aquilo em sucesso e prestando atenção aos conselhos dados por John Chandos.
Eduardo dava de ombros. Ora, se ele quisesse ser o cavaleiro perfeito como John, não devia mostrar inveja, mas desejar o máximo de sucesso a William, o que, com uma certa relutância, foi o que fez sob o olhar de John.
E agora, ao desembarque e ao início das operações.
Houve uma certa oposição por parte dos habitantes locais, mas eles estavam desarmados, e William, uma visão nobre avançando entre eles brandindo a espada, teve pouca dificuldade em pô-los em fuga e a operação a ele atribuída foi realizada com facilidade.
Eduardo deveria desembarcar com o pai, e ficou ao lado dele aguardando o momento.
O rei foi carregado aos ombros de soldados até terra firme, e ao pôr-se de pé errou o pulo e caiu esparramado.
Houve um silêncio chocado. Homens prestes a entrar em combate estavam sempre à procura de maus presságios, e o fato de o rei cair ao pisar em terra parecia um presságio mortal.
Eduardo soltou uma gargalhada.
Levantou-se e estendeu as mãos sujas de terra.
- Vejam, meus amigos-bradou ele.-Apropria terra da França não pode esperar para abraçar-me como seu senhor de direito. - Olhou para aquelas fisionomias sérias e continuou: - Quando meu grande ancestral foi da Normandia para a Inglaterra, caiu ao desembarcar, tal como aconteceu comigo. Ele disse aos seus soldados o que acabo de dizer a vocês, e vejam só, não é que ele conquistou aquele país? Agora, houve uma mudança. Venho para conquistar a França, assim como ele outrora foi conquistar a Inglaterra.
Sim, eles se lembravam da história do Conquistador. Ela fora transmitida de geração em geração.
Aquilo era um sinal do céu. Eduardo conquistaria a França.
Era importante, acreditava Eduardo, imbuir o filho daquela aura que homens como ele mesmo e seu avô possuíam. Era uma pena Eduardo não ser alguns anos mais velho.
Dezesseis era muito pouco. Ainda nem era um cavaleiro. Isso poderia ser remediado, e seria um bom gesto dramático fazer dele um cavaleiro ali mesmo, naquela primeira hora em solo francês. Então, aqueles homens ficariam sabendo que se o rei deles caísse em combate haveria outro que poderiam seguir, pronto para assumir seu lugar.
Mandou chamar o príncipe e ali, num montículo, fez com que ele se ajoelhasse. Tocou-lhe o ombro com sua espada desembainhada, apertou o cinto em torno da cintura dele e as esporas de ouro em seus calcanhares. O seu príncipe, estava ele dizendo aos que assistiam, já não é mais um menino.
Ele fez cavaleiros um ou dois outros naquele lugar, e entre eles estava William de Montacute, o jovem conde de Salisbury. Eduardo sentiu uma onda de emoção enquanto tocava o ombro dele com a espada desembainhada.
Queria que a mãe do rapaz pudesse ver aquela cerimónia. Ela ficaria sabendo, então, que ele pensava nela com frequência e que estava decidido a honrar e fazer tudo o que pudesse para promover os filhos dela.
A marcha através do norte da França começara, e houve pouca resistência nas primeiras semanas. Barfleur, Valonges, Carentan e St. Lo caíram rapidamente nas mãos de Eduardo. Naquela última, foram descobertos mil tonéis de vinho, que repararam tanto as forças do exército inglês que ele ficou algum tempo sem poder se deslocar.
- Mas - explicou Eduardo ao filho - é preciso levar em consideração as necessidades dos soldados. Hoje à noite, eles vão agradecer a Deus por terem vindo para a França e sentir pena daqueles que não vieram. Que seja assim, porque nem sempre terão sentimentos desse tipo, pois a guerra, meu filho, não é apenas procurar uma mulher na aldeia e ficar tonto com um vinho que foi achado.
Depois de St. Lo seguiram para Caen, que Eduardo ocupou com facilidade, e de Caen ele marchou para Lisieux.
Àquela altura, Filipe, percebendo o que acontecera, estava reunindo uma grande força; pretendia levar para o campo o dobro do número de soldados ingleses, se possível, e numa única batalha enorme esmagar o poder de luta da Inglaterra. Mostraria a Eduardo que uma coisa era ocupar uma cidade indefesa, e outra era vencer um exército bem treinado.
Enquanto isso, Eduardo seguia em frente, encontrando aqui e ali uma resistência francesa, mas nada de sério. Ele sabia o que estava acontecendo, e dentro de muito pouco tempo teria de combater o grande exército que Filipe estava levando para enfrentá-lo.
Eduardo escolheu o lugar com grande visão. Mandou seus homens ocuparem a margem direita do rio Maye. À sua direita ficavam o rio e a aldeia de Crécy; ordenara que carroções fossem empilhados no flanco esquerdo, onde o exército poderia ficar vulnerável, e eles serviam de uma certa proteção. Da frente, ele dominava o Vallée-aux-Clercs.
Dessa maneira, colocara-se numa posição privilegiada.
Eduardo sabia que precisava disso. Enfrentaria um exército imensamente superior ao seu em número. Desembarcara com vinte mil soldados, mas durante a marcha para Crécy, com as escaramuças que a acompanharam, vários tinham perdido a vida; outros tinham ficado incapacitados devido a doenças. Ele tomara várias cidades, mas era inevitável que alguns soldados perdessem a vida durante aquelas operações. Tivera de mandar alguns de volta para a Inglaterra, porque os ataques de disenteria os haviam tornado um ónus para o exército.
De modo que lhe faltava o belo exército com que partira, mas no seu otimismo garantia a si mesmo que ficara com o que havia de melhor. Os sobreviventes aos rigores das últimas semanas deviam ser os fortes e os bravos.
Filipe, no entanto, chegou com o seu exército em plena força. Estimou-se que tinha cerca de cinquenta mil homens, e isso significava trinta mil a mais do que Eduardo tivera ao sair, porque naturalmente tinha de deixar soldados em seu país para a defesa da Inglaterra, enquanto que Filipe podia recrutar de todos os pontos de seu domínio.
Seria uma batalha difícil, mas Eduardo não era homem de ficar oprimido pela ideia de números.
- Nossos homens tiveram a experiência da guerra nas últimas semanas - disse ele ao príncipe.-Estarão preparados para o combate. E saiba de uma coisa: um inglês vale três franceses, de modo que isso nos vai deixar aproximadamente iguais em número.
O príncipe estava ansioso por entrar em combate, provar seu valor, mostrar ao pai que, embora tivesse apenas dezesseis anos, podia lutar tão bem quanto qualquer homem.
A manhã de sábado, 26 de agosto, nasceu e ainda não havia sinal do exército francês, embora batedores tivessem trazido a notícia de que Filipe e seus homens estavam nas proximidades.
O rei e o príncipe assistiram à missa, como fez a maioria do exército; e se prepararam para esperar. O príncipe usava uma armadura preta que o distinguia dos outros, O rei estava um pouco inquieto, porque em pouco tempo seria descoberto quem ele era e Eduardo temia que algo lhe acontecesse, pois não tinha experiência de combate.
- Eu quero ser reconhecido - disse o príncipe. - Não me importa quem vem me atacar, vou me sair bem. Eu teria desprezo por mim mesmo se tivesse medo de ser reconhecido.
O rei temia pelo que pudesse acontecer ao filho, mas ao mesmo tempo sentia-se satisfeito pela bravura dele. Não queria ter um filho covarde. Era melhor um filho morto do que um filho indigno.
Robert, o Bruce, entrava em combate usando um diadema de ouro na cabeça para que todos soubessem que ele era o rei. Eduardo Pernas Longas fora reconhecido pela altura fora do comum e nunca procurara disfarçá-la. E assim, o príncipe seguiria aqueles exemplos e iria mostrar-se como o Príncipe Negro de Gales.
Era meio-dia quando os franceses descobriram que estavam quase frente a frente com os ingleses.
A hora da batalha estava próxima.
Alguns franceses achavam que devia ser adiada por um dia, pois ( seus homens tinham cavalgado bastante a manhã toda e deviam estar, cansados, mas a sugestão foi recusada pelo irmão do rei, e a batalha começou.
Durante a tarde, o conflito eclodiu, oscilando para um lado e para outro e, não fosse a perícia dos arqueiros ingleses, teria havido uma vitória dos franceses. O sol estava quente, mas de repente o céu ficou encoberto e desabou uma terrível tempestade. O céu ficou, então, negro; relâmpagos riscavam os céus, e a chuva despencava. A posição dos ingleses, que Eduardo planejara com tanto cuidado, ajudou-os. com os franceses, foi diferente. Eles pegaram o grosso da chuva e, quando de repente várias gralhas se levantaram e grasnando alto fizeram círculos sobre o exército francês, houve alarma em suas fileiras.
Todos ficaram impressionados com o que viram - a súbita escuridão, a carga de água, os relâmpagos, os ensurdecedores trovões, e depois as gralhas.
Isso é uma profecia de desastre para os nossos inimigos - bradou Eduardo. - A vitória será nossa. O céu está nos dizendo isso.
De repente, a tempestade acabou e o sol intenso foi visto outra vez. Ele brilhava no rosto dos franceses e estava por trás dos ingleses, o que era mais uma vantagem.
O jovem Eduardo, destacando-se na sua armadura preta, aparecia no centro da luta. Estava cercado pelo inimigo e não havia um só homem entre eles que não ansiasse pela honra de pegar o filho do rei da Inglaterra vivo ou morto.
Sir John Chandos questionara a prudência de usar uma armadura tão diferente assim, mas pela primeira vez o príncipe não quisera ouvir o amigo. Salisbury tivera a honra de desembarcar a primeira leva de soldados; ele conquistaria a honra maior na batalha de Crécy.
De súbito, ele foi ao chão. Seu cavalo jazia ferido, com ele quase embaixo do animal.
- É o Príncipe Negro! - ouviu ele o grito, e percebeu que os inimigos o estavam cercando por todos os lados. Lutaria até o fim. Jamais deixaria que o pegassem vivo. Agora parecia que todos os seus sonhos iriam acabar no campo de Crécy.
Alguém estava em pé, montado sobre o seu corpo caído, brandindo um machado. O homem estava gritando:
- Eduardo e São Jorge! Eduardo, fils du rói!
Antes que ele caísse, mas ao vê-lo cercado, Sir John Beauchamp saíra a galope para falar com o rei.
- Majestade, majestade - bradou ele -, o príncipe está com sérios problemas.
- Ele morreu? - perguntou Eduardo, com calma.
- Não, não. Mas precisa de ajuda... precisa de ajuda já.
- Então ele está gravemente ferido, para precisar de ajuda.
- Ele não está ferido, majestade. Mas sabendo que ele é o príncipe, estão pressionando bastante o jovem.
- Sir Thomas - replicou o rei -, enquanto meu filho viver, ele irá lutar. Eu lhe digo uma coisa: deixe o rapaz fazer jus às suas esporas de cavaleiro. Eu me sentiria honrado se hoje fosse o dia dele.
Sir Thomas se afastou. Não se discutiam as ordens do rei, mas enquanto Eduardo o via partir foi tomado por um medo terrível.
E se ele pudesse ter salvado o rapaz? E se Eduardo fosse morto ou feito prisioneiro? Como ele poderia encarar Filipa? Ela iria dizer: "Nosso menino estava em perigo e você não enviou ajuda."
Eu queria que ele provasse o seu valor. Queria que não sentisse vergonha depois de hoje, que não tivesse de dizer que teria fracassado se o pai não tivesse mandado ajuda.
- Ó Deus das batalhas - rezou ele -, permita que o rapaz faça jus às suas esporas de cavaleiro hoje.
John Chandos liderou a carga. Ele galopou em frente, espalhando aqueles que teriam agarrado o príncipe.
- John... - bradou Eduardo.
- Monte neste cavalo, meu senhor - disse John. - Temos de perseguir o inimigo.
Como era bom estar montado de novo. Ter estado perto da morte e não ter sentido medo.
Ele cavalgou ao lado de John. O calor do sol envolveu-o; o capim verde e brilhando depois da chuva recente tinha um cheiro de fresco.
- Nunca esquecerei este dia, John - disse ele.
- Duvido que algum de nós jamais se esquecerá do campo de Crécy, meu senhor - foi a resposta.
Os franceses estavam derrotados, mas não reconheciam a vitória dos ingleses. Repetidas vezes atiravam-se à luta. Até o rei da França foi ferido, e só a urgente súplica dos amigos fiéis fez com que ele acabasse decidindo retirar-se. Ele perdera uma batalha, diziam eles, mas uma batalha não era uma guerra. Ele precisava ir embora, dar aos ingleses aquela vitória e viver para lutar novamente.
Conselho sensato, que Filipe seguiu.
E assim, contra desvantagens enormes, a vitória coube a Eduardo.
Ele estava exultante.
- Enquanto os homens viverem - declarou ele -, comentarão sobre Crécy.
Depois, voltou-se para Eduardo, que estava de pé a seu lado na sua armadura preta, e abraçou-o.
- Você é realmente meu filho - disse ele com voz sonora. Hoje você se portou como um membro da realeza. É digno de ser um rei, e rei da Inglaterra.
O príncipe murmurou que devia a vida a muitos e que todos os homens ali tinham contribuído para a vitória de Crécy.
Todos o ovacionaram pela sua bravura e sua modéstia e disseram que quando se falasse em Crécy iria ligar-se àquela grande vitória o nome do Príncipe Negro.
FILIPAHCARA SABENDO da vitória em Crécy quando Eduardo escreveu em termos candentes sobre a bravura do filho deles e sobre o quanto se orgulhava dele e dizia que, embora jovem, os homens já o estavam considerando como um líder deles. Quando soube o quanto o príncipe estivera perto da morte, ela tremeu de apreensão.
- Ó Deus-rezou ela -, faça com que esta guerra tenha um fim. Traga-os sãos e salvos de volta para mim.
Eles tinham sido vitoriosos em Crécy, mas e dali para a frente? Quantas batalhas mais iriam acontecer, nas quais a família dela aluaria desafiadora diante da morte? Quantas vezes eles poderiam esperar que Deus fosse misericordioso e atender às orações de uma mãe amedrontada?
Filipa tinha pouco tempo para pensar no que se passava na França, porque acontecimentos na Inglaterra começavam a reclamar sua atenção.
Começou quando o jovem conde de Kent foi procurá-la muito apressado. Ele era co-regente, e com o pequeno Lionel com um título só simbólico, os dois estavam governando o reino. A notícia dele era alarmante.
- Os escoceses estão atacando, e David atravessou a fronteira.
- Isso quer dizer guerra - disse Filipa.
- Isso mesmo, majestade, e há pouco tempo a perder. Filipe, depois de ser derrotado em Crécy, está decidido a nos atacar através da Escócia, e como seu aliado, David dará total apoio ao rei francês. Temos de enviar imediatamente para o norte os homens que pudermos reunir. Vou pôr o exército em marcha e mante-la informada.
- Não vai ser preciso manter-me informada - disse Filipa -, porque eu estarei lá.
O duque ficou estupefato, mas ela continuou.
- Quando o rei entrava em combate, eu nunca estava muito longe. Sei o que significa, meu senhor, ir para a guerra. Infelizmente, o rei não está aqui. Tenho de ocupar o lugar dele. Não posso ter a esperança de inspirar os homens como ele faria, mas penso que gostarão de me ver ao lado deles.
Quando David soube que a rainha estava marchando em direção ao norte à frente de um exército, soltou uma gargalhada.
- Vai ser divertido - disse ele. - vou estar interessado em conhecer a senhora. - Os olhos dele brilhavam enquanto saboreava por antecipação uma vitória fácil. - Nada me deterá - bradou ele -, nada... até eu chegar aos portões de Westminster!
Ele mergulhara num sonho. Finalmente, ali estava a sua vingança. Enfrentaria a realidade e admitiria que tinha pouca chance contra Eduardo, nome que os escoceses tremiam ao ouvir; todos o temiam como tinham temido o avô dele. Mas Eduardo estava longe e no lugar do poderoso guerreiro achava-se uma mulher fraca.
A vitória seria sua, sem dúvida. Como seria bom conquistar Londres! Que notícia para mandar para a França, onde Eduardo estava lutando pela coroa da França! Que prazer seria informá-lo de que não só ele não ganhara a coroa da França, como perdera a da Inglaterra.
Ele passou a noite com a amante, que viajaria com o exército.
Sua esposa, Joana, estava apreensiva. Era natural que estivesse. Ele sempre desconfiara de que ela tivesse lealdades divididas. O rei da Inglaterra era, afinal, irmão dela, e como a maioria das pessoas Joana parecia pensar que Eduardo era uma espécie de deus. Aquilo serviria de exemplo. O que iria o deus fazer quando percebesse que perdera o reino? David não podia resistir a provocá-la. Às vezes, a odiava. Ela era muito calma; nunca expressara uma reprovação, embora às vezes esta estivesse lá no seu modo de agir. Ele não fizera segredo de que preferia a amante a ela. Fazer aquilo o acalmava, principalmente porque Joana era irmã do rei da Inglaterra.
- Talvez eu a leve para Londres comigo-disse ele. - Para você vai ser como voltar para casa.
- Primeiro, você tem de ganhar muitas batalhas - respondeu ela -, e acho que não vai achar fácil a conquista.
- Claro que você pensa assim. Acha que seu nobre irmão iria deter-me. Pois deixe-me dizer uma coisa: ele está lutando uma guerra que jamais vencerá. O rei da França é meu amigo. Sempre foi meu amigo. Já se esqueceu de que ele colocou Gaillard à nossa disposição? E que boa vida tivemos lá!
Joana ficou calada e afastou-se. David gritou enquanto ela se afastava:
- Este é o fim do reino de Eduardo. Esta é a derrota dos ingleses para sempre. Chegou a hora.
- Não fique muito certo, David - disse ela em voz baixa e retirou-se.
- Malditos sejam os ingleses! - murmurou David.
Ele reunira três mil homens de cavalaria e cerca de trinta mil outros soldados, muitos deles sem experiência e montados apenas em póneis, mas estes eram animais seguros.
William Douglas avisou-o de que não devia haver demora, pois o verão acabara, e se a campanha fosse longa iria estender-se pelo inverno.
- Eu lhe prometo, Douglas, que não haverá uma campanha longa. Antes de o inverno chegar, estarei em Londres.
William Douglas replicou dizendo que deviam esperar uma certa resistência.
- Resistência! O exército do rei está na França lutando uma guerra sem esperança.
- Vossa majestade soube de Crécy.
- Eu disse que vou mandar cortar a cabeça do próximo homem que me falar em Crécy, William Douglas.
Douglas fez uma mesura e pediu licença para retirar-se, pois havia muito a fazer.
Ele saiu pensando em como o filho era diferente do pai. Mal podia acreditar que Robert, o Bruce, tivesse sido pai daquele fanfarrão.
Mas David era o rei e devia ser obedecido.
Dentro de uma semana, o exército escocês estava marchando para o sul, devastando o terreno enquanto avançava. Os selvagens homens da Alta Escócia não tinham respeito pelas igrejas e abadias que jaziam em seu caminho, e os monges lamentavam-se entre as ruínas e amaldiçoavam os invasores e clamavam aos santos que vingassem os inocentes que tinham sofrido nas mãos deles.
Alguns dos escoceses ficaram com medo, mas David ria das profecias azarentas.
Eram exércitos, dizia ele, e não santos que decidiam as batalhas.
A notícia do que acontecia chegou até Filipa. Ela estivera reunindo um exército que estava preparando para mandar para a França, onde Eduardo planejava sitiar Calais. Discutindo o assunto com o conde de Kent, ela decidiu desviar o exército e enviá-lo para o norte, por perceber que a necessidade de derrotar os escoceses era maior do que a de sitiar uma cidade francesa.
Em breve, um exército de bom tamanho marchava para o norte.
Além do mais, não era de esperar-se que o povo do norte fosse ficar apático e deixar que os escoceses o usasse como quisessem, e os lordes do norte, Neville e Percy, estavam reunindo homens para enfrentar os escoceses e, quando Filipa chegou com o seu exército vindo do sul, juntos eles formavam uma força considerável.
Os escoceses eram menos disciplinados do que os ingleses; eram bravos ao máximo, mas sob o controle de um comandante experiente como Robert, o Bruce, podiam agir como uma equipe. David não chegava a isso. Não aceitavam ordens e, por conseguinte, não eram o exército bem treinado que os ingleses podiam colocar em campo apesar de ser um exército secundário.
Os ingleses tinham chegado a Durham, e lá Filipa dirigiu-se aos soldados.
- O rei ficará orgulhoso da maneira pela qual vocês aderiram à sua bandeira. Eu quisera que ele estivesse aqui hoje para vê-los, leais sem exceção, cada qual ansioso por servir ao seu rei e ao seu país. Esses escoceses têm devastado nosso país, têm queimado, saqueado, e têm levado nossas mulheres. Não permitiremos que isso continue. Eu sei que o rei vai querer agradecer a todos vocês por aquilo que fizeram hoje. Eu sou apenas uma mulher, mas sou sua rainha, e represento o rei na ausência dele. Meus amigos, eu sei que hoje vocês serão dignos dele.
Os homens ovacionaram-na. Uma mulher nobre, que só levara o bem para o país. Os tecelões de Norfolk tinham prosperado graças à rainha; levara o comércio para a Inglaterra; tinha sido uma esposa leal e fiel para o rei e dera-lhes seu Príncipe Negro e outros filhos saudáveis.
Vida longa para a rainha!
Eles a respeitavam por ter ido ao norte, mas não iriam querer, disso ela sabia, que se unisse a eles no campo de batalha, onde os cuidados com ela iriam atrapalhar serviços mais importantes.
Eles não estavam longe da cidade de Nevilles Cross, onde parecia provável que fossem encontrar os escoceses, e Filipa deveria ficar em Durham, onde ela disse que rezaria pelo sucesso.
William Douglas, à procura de alimentos e afastando-se do corpo principal do exército escocês com um pequeno grupo de seguidores, cavalgou até o topo de um morro e ficou assombrado ao ver um exército acampado lá em baixo.
Reconheceu os estandartes ingleses e ficou desalentado.
Tão perto, e que exército! Ali não estava apenas um punhado de homens, mas uma força respeitável.
Não perdeu tempo e voltou para o acampamento escocês à procura do rei.
David ouviu com ar sardónico.
- Isso é um absurdo-bradou ele.-Os ingleses estão na França. Não sobraram na Inglaterra homens suficientes, mas monges, porqueiros, alfaiates e curtidores. Acha que meus soldados vão ser detidos por gente assim?
- Eu lhe digo, majestade - insistiu Douglas -, que vi um exército acampado a menos de três quilómetros daqui.
- Você estava sonhando, Douglas. Você é covarde? Tem medo de enfrentar os ingleses?
Insinuar que um Douglas era covarde era um insulto que não podia ser aceito como se nada acontecesse.
Ele fez uma mesura e retirou-se sem pedir permissão.
- Nunca gostei de Douglas - comentou David. - Ele se acha mais de sangue real do que eu.
Um dos companheiros de Douglas foi até o rei para repetir a história.
Porqueiros tomando conta de seus animais! - bradou o rei. - Amanhã, comeremos uma suculenta carne de porco.
- Majestade - disse o homem -, aqueles não eram porqueiros. Eram homens fortes e pareciam estar prontos para a luta.
- Sabe o que há de errado com você, homem? - disse David, irritado. - Você andou dormindo e sonhou. Retire-se. Não quero saber de nenhuma de suas imaginações idiotas. Se você e Douglas estiverem com medo, que voltem para a Escócia. Pronto, eu lhes dou licença. Não quero covardes no meu exército.
O homem voltou para perto de Douglas.
- Ele não quer dar ouvidos - disse ele. - O que vai ser de nós?
- Vamos lutar como bons escoceses, e quem sabe talvez possamos derrotar os ingleses. Não pode ser a nata dos ingleses que vamos enfrentar, porque estão na França. Mas por que estamos lutando? É isso que os escoceses se perguntam. Por David, o Bruce? Quem iria pensar que ele podia ser igual ao pai?
Na madrugada do dia seguinte os ingleses atacaram, e David, apanhado de surpresa, viu rudemente o quanto tinha sido um tolo ao não dar ouvidos a Sir William Douglas.
Dominado pela fúria, decidido a mostrar aos ingleses e aos seus homens que era invencível, ele berrou para que lhe trouxessem a armadura e seu cavalo, e brandindo a espada conclamou os homens a segui-lo.
Não havia como discutir sua bravura, mas era um louco na sua imprudência. Seus oficiais tentavam contê-lo. Ele não tinha plano de ação. Tudo o que queria era matar o inimigo e conquistar a glória. Liderava o exército expondo a ele e a si mesmo a uma centena de perigos ao fazê-lo.
Em vão foi avisado da perícia dos arqueiros ingleses, a cuja mira mortal era devida a vitória em Crécy. Os arqueiros da Inglaterra eram famosos. Dizia-se que inseriam magia em seus arcos e flechas. David não queria saber disso. Era o rei. Estava cansado de ouvir falar na fama de Robert, o Bruce. Agora as pessoas deviam começar a falar de David.
Mas isso não aconteceria. A derrota cercou os escoceses, porque a falta de treinamento e a errática liderança do rei foram a sua desgraça. David foi ferido duas vezes por flechas inglesas. Não se importou. Ficou cada vez mais imprudente, agora que percebia que a derrota estava perto e Douglas tivera razão; ele preferia morrer a se entregar.
Um inglês avançava sobre ele, pretendendo conquistar a glória de capturar o rei. O cavalo de David caiu e ele foi ao chão.
Era o fim. Aquilo era a desgraça. Todos os seus inimigos ficariam contentes, e não seriam apenas os ingleses. Seu próprio povo iria sussurrar: "Eu bem que lhe disse. Ele nunca foi o homem que o pai foi."
O homem que se curvava sobre ele sorria. David estava quase impotente, mas num acesso de fúria lançou a mão na manopla contra a cara sorridente. Houve um ruído de algo sendo esmagado e ele viu sangue na boca do homem.
William tinha ido socorrê-lo. Que degradação aquilo! Douglas lutou com valentia, mas homens o tinham agarrado.
Douglas fora aprisionado pelos ingleses.
E David também seria. Morte!, pensou ele. É preferível a morte.
Mas o homem com a boca sangrando estava com a sua espada.
- Você é meu prisioneiro - disse ele.
E assim, no campo de Nevilles Cross, começara o cativeiro de David da Escócia.
Nada podia haver de mais humilhante. David sentiu-se um desgraçado. Sir Malcolm Fleming e os condes de Fife e Monteith, junto com William Douglas, estavam todos em mãos dos ingleses.
E ele fora capturado por um simples escudeiro. O nome dele era John Copeland, e o homem não cabia em si de felicidade. Não deixava ninguém chegar perto do rei dos escoceses. David era o seu espólio, e não iria largá-lo.
com que então ele era prisioneiro de Eduardo. Até mesmo quando estava fora do país o rei da Inglaterra era invencível.
E agora?, perguntava-se ele.
Será que Deus nunca sorriria para ele? Ficara anos no exílio na França; então, voltara para seu país e depois de alguns anos era prisioneiro dos ingleses.
De uma coisa David estava certo: não o soltariam por qualquer motivo.
Filipa ficou contentíssima com o resultado da batalha de Nevilles Cross. Tivera medo de que, sem Eduardo, os soldados fossem vacilar.
Mas isso não aconteceu. Tinham entrado em combate decididos a lutar, e fora uma vitória retumbante.
Ela soube que o homem que capturara David era um certo John Copeland, um escudeiro nortumbriano, e mandou que ele fosse falar com ela e levasse seu prisioneiro. Achara divertido saber que Copeland levara David para casa e o mantinha bem vigiado lá, tal era o medo de que ele pudesse fugir, embora isso praticamente não fosse provável, considerando-se a gravidade dos ferimentos de David. Além do mais, Copeland não deixava que ninguém, exceto ele, se aproximasse de David.
- Ele é um bom carcereiro - disse Filipa com um sorriso. Disseram a ela que tinham querido levar David à presença dela, mas
que Copeland não queria largá-lo.
Ela sacudiu a cabeça e mandou chamar John Copeland.
Ele chegou - um homem simples, concluiu ela, sem noção dos modos da corte.
- Eu o congratulo pela captura que fez-disse ela. - Estou certa de que o rei vai querer recompensá-lo. vou levar o rei dos escoceses para Londres e gostaria que você o trouxesse para mim aqui.
John Copeland abanou a cabeça.
- Ah, não, majestade - disse ele. - Ah, não. Filipa ficou pasma.
- O que quer dizer? - perguntou ela.
- Eu capturei o rei dos escoceses para o meu senhor, o rei da Inglaterra.
- Eu sei disso, e foi feito com nobreza. Traga-o para mim e eu escreverei imediatamente ao rei para contar-lhe que estou com David da Escócia nas mãos.
- Não, majestade, quando eu digo que não entrego ele a ninguém, a não ser ao rei, é isso que quero dizer. O rei é o meu senhor. A ele eu juro vassalagem de minhas terras. A ninguém mais. E não vou entregar meu prisioneiro a nenhum duque, conde ou mulher.
Filipa não perdeu a calma, embora achasse o homem um louco.
- Você precisa saber que estou atuando como regente em nome do rei.
- Não sei nada dessas coisas, minha senhora. Tudo o que sei é que devo vassalagem ao meu rei e a mais ninguém, e só entrego meu prisioneiro a ele.
- O rei vai ficar contrariado por você me desrespeitar - avisou Filipa.
- Que assim seja. vou entregar meu prisioneiro a ele, e a ninguém mais.
Filipa dispensou-o.
O conde de Kent foi falar com ela. Ele estava zangado.
- Mas majestade, ele a insultou. Devemos prendê-lo? O homem é um traidor. Recusa-se a obedecê-la. O rei vai mandar enforcá-lo. Vamos prendê-lo e depois trazer o prisioneiro para a senhora.
A rainha abanou a cabeça.
- Há algo nele que eu admiro. É um verdadeiro servidor do rei. Disso não há dúvida. Deixe para lá. vou escrever ao rei e contar-lhe a estranha atitude dele. Já escrevi para falar sobre a vitória de Nevilles Cross, e eleja sabe que David está em nossas mãos.
- Conheço a natureza do rei-foi a resposta.-Ele ficará furioso com quem a tiver insultado.
- Talvez não fique, depois que eu explicar como esse homem fala de sua lealdade ao rei. Acho que ele vai compreender, como eu compreendo. Tentarei expor o caso com bastante clareza.
O conde ficou assombrado. Perguntou-se quantas mulheres não teriam dado importância aos insultos de Copeland.
A resposta de Eduardo foi imediata.
David deveria ficar bem vigiado na casa de Copeland e este deveria deixar a Inglaterra e apresentar-se a ele.
Quando Copeland recebeu as ordens, sua mulher entrou em pânico.
- Seu louco, John - bradou ela. - Veja o que você fez. Você devia ter entregado o rei dos escoceses. Foi a rainha que pediu, não foi? Meu querido, nunca mais tornarei a ver você.
Copeland estava aflito. Ele ouvira falar no génio do rei e na sua dedicação à esposa. Ele gostava que as pessoas prestassem homenagens a ela. Quanto mais pensava naquilo, mais percebia o quanto ofendera a rainha.
Eduardo, naquela ocasião, estava nos arredores de Calais. Planejava tomar a cidade, e sabendo que seria uma tarefa demorada, construíra moradias para abrigar a si e ao exército.
Assim que Copeland chegou, foi levado à presença do rei. Eduardo, sempre vaidoso quanto à aparência, estava sempre esplendoroso, e o escudeiro ficou tomado de uma admiração respeitosa e apreensão.
- Seja bem-vindo, meu escudeiro - disse Eduardo. - Eu soube de sua bravura ao capturar meu inimigo, o rei dos escoceses.
- Majestade, foi uma honra servi-lo nesse caso, como eu faria sempre. - O escudeiro continuou de joelhos, erguendo os olhos interrogativos para o rei. - Deus foi bom para mim, um humilde escudeiro - prosseguiu ele -, ao permitir que eu fizesse uma captura dessas. Achei que, por se tratar de um rei dos nossos inimigos, eu não deveria entregá-lo a ninguém, a não ser ao senhor. Não tive intenção de desrespeitar a rainha, mas a rainha não é o rei, majestade, e foi ao rei que prestei meu juramento.
Eduardo riu. A simplicidade de sua natureza permitia-lhe uma percepção imediata da maneira de funcionar da mente de seus súditos mais humildes. Aquele homem era um servidor leal. Eduardo precisava de gente assim. Tudo o que ele fizera tinha sido, na opinião dele, a serviço de seu rei. Pobre Filipa, fora humilhada, mas compreendia tanto quanto ele.
- Levante-se, John Copeland. Talvez devamos chamá-lo, daqui por diante, de Sir John Copeland. Você vai voltar para a Inglaterra, onde receberá terras no valor de quinhentas libras.
- Majestade...
O rei ergueu a mão.
- Mas temos de acalmar a rainha. Não tenho dúvida de que ela ficou surpresa quando você não quis entregar-lhe o rei dos escoceses. Leve-o para ela. Entregue-o nas mãos dela e apresente suas desculpas da melhor maneira que puder. Creio que ela vai aceitá-las.
- Meu bondoso senhor, eu quisera ter a chance de morrer pelo senhor.
- Ah - disse o rei -, quem sabe, é possível que um dia eu peça até isso. Agora, retire-se. Gosto muito daqueles que me servem com o coração, e se talvez há vezes em que eles se enganam nos seus atos, isso não tem importância em comparação à boa e legítima lealdade.
Foi um Sir John Copeland muito feliz que voltou à Inglaterra e imediatamente entregou David da Escócia nas mãos da rainha com murmurados pedidos de desculpas que ela teve a bondade de aceitar.
Torturado pela humilhação, David jazia no pequeno quarto na casa de Copeland. Sob um aspecto, era uma sorte estar ferido tão gravemente, pois aquilo evitava que remoesse muito amargamente sua situação. A mulher de Copeland cuidava pessoalmente de seus ferimentos, e ele estava exausto demais para protestar.
Aos poucos, os ferimentos começaram a cicatrizar, e quando John Copeland voltou entusiasmado com o triunfo do título de cavaleiro e novas terras, ficou decidido que David deveria ser levado para Londres. O próprio John Copeland providenciou para que o rei da Escócia ficasse bem vigiado porque, como disse à mulher, agora que ele estava melhorando, quem poderia saber o que poderia tramar?
A humilhação para David era intensa. Montado num cavalo preto, o filho de Robert, o Bruce, foi levado através da cidade de Londres à frente de um cortejo de vinte mil pessoas, composto das companhias da cidade vestindo seus librés de gala e do povo de Londres e dos distritos vizinhos, que cavalgaram com ele.
Ele era o símbolo da derrota. Agora talvez fosse haver paz na fronteira, não houvesse mais saques de cidades inglesas; não houvesse mais ameaças dos insubordinados escoceses. Era um dia para comemorações.
Era uma pena o rei não estar lá para ver. A rainha também não estava.
Eduardo a chamara para juntar-se a ele na França e ela já partira.
No máximo das humilhações, ele foi levado perante o conselho e ali, sentado no trono, estava o príncipe Lionel, duque de Clarence, de oito anos de idade, para condená-lo
à prisão na Torre.
O sonho de entrar em Londres a cavalo, em triunfo, fora amargamente invertido.
A REPUTAÇÃO DE EDUARDO aumentara bastante depois da Batalha de Crécy e os flamengos, tendo assassinado o amigo de Eduardo, Jacob van Arteveldt, ficaram com muito medo da sua ira, e quando ele enviou embaixadores a Ghent para descobrir os meios e a causa do assassinato de Arteveldt, a apreensão deles cresceu e andaram procurando um meio de aplacá-lo. Sim, admitiram, o assassinato fora cometido, e o motivo tinha sido que o povo era contrário a que van Arteveldt tentasse depor o conde de Flanders que, afinal, era o verdadeiro governante deles. Sabiam que Eduardo quisera que seu filho se tornasse o duque de Flanders, mas tentar impor aquilo significava, sem dúvida alguma, derramamento de sangue. Por que o assunto não era resolvido amigavelmente com o casamento do novo conde de Flanders, que acabara de suceder ao título? Eles não salientaram o fato de que o pai dele fora morto pelos ingleses na Batalha de Crécy. O novo conde era jovem, solteiro e seria um marido ideal para a filha mais velha do rei da Inglaterra.
Eduardo achou uma excelente ideia. Por mais que detestasse a ideia de Isabella casar-se, ele sabia que não podia simplesmente arquivar o assunto. Se a filha se casasse com um homem de Flanders, eles poderiam encontrar-se com frequência. Eduardo estava constantemente em Ghent, e não seria difícil ela ir à Inglaterra.
Além do mais, o rei da França estava ansioso para que Luís de Flanders se casasse com Margaret de Brabant, o que significaria uma aliança favorável à França. Ah, sim, Eduardo compreendia a vantagem daquele casamento. Escreveu imediatamente a Filipa. Ele estava nos arredores de Calais, onde ficaria até que a cidade tivesse caído em suas mãos. Disse a ela que estava arranjando um casamento para Isabella com o jovem conde de Flanders. Os burgueses de Flanders concordavam com a união, porque sua prosperidade dependia da Inglaterra, que fornecia a lã com a qual eles teciam seus produtos, e sem aquela concessão o intercâmbio deles seria prejudicado. Sempre ansiosos por estimular os negócios, os flamengos viam a sensatez daquilo. Precisavam da lã inglesa; portanto, o jovem Luís devia casar-se com Isabella.
"Deixe a Inglaterra imediatamente", escreveu o rei. "Os escoceses não podem mais nos causar problemas. Temos o rei deles, graças a você e ao exército em Nevilles Cross. Estou ansioso por que esse casamento se realize o mais rápido possível, antes que Filipe consiga prender Luís a ele através de Margaret de Brabant."
Quando recebeu a carta, Filipa foi logo procurar a filha no palácio da Torre e disse que ela devia preparar-se para uma viagem.
A princesa Joana, que estava com a irmã, ficou ouvindo, apreensiva. Pobre Joana, tinha um medo enorme de ser enviada para o lado de algum marido. Nunca se esqueceria das infelizes experiências que tivera na Áustria e temia que um dia elas se repetissem. Sabia que estavam acontecendo negociações para casá-la com o filho do rei de Castela e vivia apavorada com a possibilidade de receber instruções para que se preparasse para partir para a Espanha.
Isabella pensava de forma diferente. Estava tão certa de si mesma, tão certa de que era a criatura mais fascinante do mundo, que não duvidava de sua capacidade de cativar qualquer pessoa.
- Seu pai quer que partamos imediatamente - disse a rainha. Não, você não, Joana. Ficará aqui com os outros. Isabella vai se casar com o conde de Flanders.
Um mero conde! - bradou Isabella, desanimada.
Minha filha querida, trata-se de um casamento importantíssimo.
Seu pai está muito ansioso por ele. Os flamengos têm uma grande influência, particularmente agora, quando seu pai tem de conquistar a coroa francesa. Ele está ansioso por esse casamento, especialmente porque significa que você ficará perto dele. Pronto. Foi isso o que ele disse.
Isabella ficou tranquila.
- Eu sabia que ele não ia querer que eu ficasse muito longe.
- Vamos providenciar para que você seja equipada da maneira adequada. Preciso falar com as costureiras agora mesmo.
Isabella ficou exultante.
Estava com quatorze anos, idade suficiente para se casar, e achava que em breve encontrariam um marido para ela. Esperara um mais importante, era verdade, mas seria bom não ficar muito longe do pai, e tinha certeza de que aquele conde de Flanders deveria ficar contentíssimo com a perspectiva de um casamento com a filha mais velha do rei da Inglaterra.
Assim, num estado de grande excitação, fez seus preparativos. Muitíssimo vaidosa de sua aparência, deliciou-se com os belos trajes que foram feitos para ela, porque herdara o gosto pelos atavios que seu pai tinha, e mal podia esperar pelo início da viagem. Consigo, levaria um grupo de damas da corte, muitas das quais tinham maridos ou filhos servindo no exército do rei, de modo que para eles era uma época de feliz reencontro.
Eduardo recebeu-os em terra, e quando viu a filha encheu-se de orgulho e emoção.
Haveria uma grande comemoração nos acampamentos por toda a cidade temporária que Eduardo construíra fora dos muros de Calais, e se parecia estranho comemorar e celebrar um noivado naquele local, quando tão perto dali, dentro dos muros da cidade, o povo estava passando fome e esperava ansioso por ajuda, Isabella não pensava assim.
Era a adorada filha do grande rei da Inglaterra, e o noivo escolhido iria apaixonar-se por ela assim que a visse. Estava absolutamente certa disso.
Ela poderia ter ficado perturbada caso soubesse das circunstâncias em que o noivo se encontrava naquele momento.
Por ter sido criado na corte francesa, o jovem Luís aparentava ser um francês, e Filipe, percebendo sua importância como um peão no mercado de casamentos, sempre mostrara uma grande amizade por ele. Luís gostara da elegância da corte francesa, que lhe parecia muito mais atraente do que a de Flanders, e pensava como um francês, vestia-se como um francês e agia como tal. O rei francês tecera loas a Margaret de Brabant. Luís a conhecera e, instigado pelo astuto Filipe, achara-a uma jovem a seu gosto.
Prometera a si mesmo que se casaria com ela; e na verdade acreditava nisso.
Então, houvera a batalha de Crécy. Luís jamais esqueceria aquele dia, porque cavalgara com o exército francês ao lado do pai, ao lado de quem ele estivera quando a flecha inglesa perfurara o coração do duque, e fora nos braços do filho que o Luís pai morrera. O jovem jamais esqueceria a agonia refletida naquele rosto orgulhoso; continuaria a ouvir os gemidos daqueles lábios distorcidos; tentava não pensar no sangue... no sangue do pai.
- Ó Deus - bradara ele -, como eu odeio os ingleses!
Ele iria sempre lembrar-se de que fora um arqueiro inglês que lhe tirara o pai.
Ficou estupefato quando os representantes das principais cidades de Flanders o visitaram e disseram-lhe que eram a favor de um casamento com Isabella, filha do rei da Inglaterra.
- Casar-me com a filha do assassino de meu pai! - bradou ele, pasmo. - Os senhores devem estar loucos ao propor isso. Nunca.
- Meu senhor - explicaram os burgueses -, uma união com a Inglaterra será útil para Flanders. Precisamos da lã inglesa, se quisermos manter nossos tecelões trabalhando. O casamento é necessário à prosperidade do país.
- Já concordei em me casar com Margaret de Brabant.
- Isso é o que os franceses querem, mas, senhor conde, os ingleses são mais necessários ao nosso país do que os franceses. Esse casamento com Isabella é importante. Trata-se de uma jovem vivaz, de muita beleza. O senhor não ficará desapontado.
Os olhos de Luís brilharam de raiva.
Não serei forçado a um casamento que não seja de meu agrado disse ele.
Meu senhor, meu senhor - bradaram eles -, como pode não ser do seu agrado quando o senhor ainda não viu a jovem? Ela tem um encanto e uma beleza insuperáveis, pelo que ouvimos dizer.
- Pelo pai dela, sem dúvida. Aquele assassino vem aqui e tenta roubar a coroa da França do seu legítimo dono!
Os burgueses ficaram consternados. Temeram problemas pela frente. Luís precisava ser razoável.
- Meu senhor -, disse o principal burguês, com decisão -, o senhor devia tomar cuidado com o que fala. Se provocar a ira de Eduardo, isso poderá ser um desastre para Flanders. O senhor tornou-se francês demais, e seria bom lembrar-se de que este não é o país ao qual o senhor deve vassalagem.
- .Não quero mais ouvir falar nisso - disse o jovem conde com arrogância.
Mas os burgueses tinham-no cercado quase que de forma ameaçadora.
- O que significa isso? - bradou Luís.
- Significa, senhor conde, que o senhor não poderá deixar este castelo.
- O quê! Os senhores querem me prender!
- Prender, não, meu senhor. O senhor estará à vontade para caçar e caçar com falcão. Mas haverá guardas ao seu lado, já que não queremos que volte correndo para o lado de seu amigo, o rei da França... que não é amigo do seu país. Nós, os flamengos, precisamos voltar-nos para os ingleses. Vamos mante-lo aqui conosco até que compreenda e concorde com um esponsal com Isabella da Inglaterra.
O conde ficou furioso, mas percebeu que estava nas mãos de seus súditos e tinha de dar tempo ao tempo. Tinha de ficar ouvindo as cansativas diatribes deles. Enquanto isso, desfrutaria de seus esportes favoritos.
Mas casar-se com a filha do assassino de seu pai, nunca!
Ressentido, submeteu-se ao tipo de cativeiro de luxo que lhe era oferecido. Mas embora pudesse desfrutar dos confortos aos quais estava acostumado, estava sempre cônscio da desagradável presença de guardas. Percebeu que estes tinham sido escolhidos com o maior cuidado. Não havia um só entre eles que pudesse ser seduzido a tramar contra aqueles que o mantinham detido. Cada um dos homens destacados para vigiá-lo acreditava fervorosamente na necessidade de uma aliança com a Inglaterra.
Passaram-se alguns meses assim, e então Luís capitulou.
Mandou chamar os principais membros do conselho e disse que mudara de ideia. Concordaria em casar-se com Isabella.
Foi cumprimentado pelo bom senso. Veria que a princesa era uma criatura encantadora. Jamais se arrependeria de ter demonstrado tamanho bom senso.
Foram enviados mensageiros a Eduardo, e então ele disse a Filipa que levasse a filha para Calais.
Foi num gelado dia de março que Isabella e Luís ficaram um diante do outro. O encontro aconteceu no mosteiro de Bergues e seria uma ocasião muito cerimoniosa.
Os flamengos dos mais altos cargos faziam parte da comitiva de Luís, e podia-se confiar que Eduardo providenciaria para que sua filha estivesse cercada por uma pompa e um brilhantismo ainda maiores.
Eduardo disse que antes do encontro dos jovens ele gostaria de falar com o conde Luís a sós, e recebeu-o em um dos aposentos do mosteiro.
Figura impressionante em qualquer ocasião, Eduardo, naquela, estava ainda mais magnificente do que de costume. Usava trajes de gala e parecia um rei poderoso, como pretendia, pois era muito importante impressionar Luís.
Luís, no entanto, não era de se impressionar facilmente. Era um jovem de certo espírito, e guardava um ressentimento latente contra aqueles que o tinham forçado àquela situação. Eduardo sabia muito bem que grandes esforços tinham sido feitos para conseguir que Luís concordasse com o casamento e aplaudia os sentimentos do rapaz. O pai dele morrera em seus braços no campo de Crécy, e por ser um homem de família capaz de sentimentos, Eduardo compreendia os de Luís.
Foi direto ao assunto.
- Conde - disse ele -, eu quis falar com o senhor primeiro, antes das cerimónias, porque queria dizer-lhe pessoalmente que não sou culpado da morte de seu pai.
- Foi em Crécy - murmurou Luís com um toque de desafio.
- Eu sei. E foi uma retumbante vitória para os meus exércitos.
Lá seu pai morreu. Eu não sabia que ele estava com o exército francês. Só quando a batalha terminou foi que eu soube da morte dele. comendo seus sentimentos. Tenho filhos a quem muito amo, e sei que se tivesse morrido no campo de Crécy eles sentiriam pelo rei da França o que o senhor sente por mim. Sou inocente quanto à morte de seu pai. Precisa entender isso. Se eu tivesse sabido que ele estava lá, se eu o tivesse encontrado precisando de ajuda, embora estivesse do lado do inimigo, eu teria poupado a vida dele. O senhor precisa compreender isso, e não guardar ressentimento algum contra mim.
Mas mesmo enquanto Luís olhava para aquele homem de presença dominadora, só podia pensar no pai caído em agonia. Via apenas o sangue horrível... o sangue do pai.
Eduardo colocou uma das mãos em seu ombro.
- Vamos esquecer, meu caro senhor, que seu pai e eu estivemos em lados opostos. Vamos, deixe-me ser o pai que o senhor perdeu. Eu lhe juro que jamais irá se arrepender.
Os olhos de Luís estavam vidrados de emoção, e o rei, deslocandose para ele, abraçou-o.
- Está tudo bem entre nós, meu filho - disse Eduardo. - Agora, conversaremos sobre esse casamento que vamos celebrar.
Os nobres flamengos ficaram impressionados com o poder e o encanto que o rei da Inglaterra demonstrou ao conquistar seu teimoso chefe, pois sabiam que embora tivesse cedido aos desejos deles, fizera-o com o máximo de relutância.
Isabella e seu marido em perspectiva ficaram frente a frente. Ela estava magnificamente vestida, uma princesa fulgurante. Sorriu para ele, atraindo sua admiração.
A filha do assassino de meu pai!, pensou ele. Como era vaidosa! Bem bonitinha, mas por que permitiria que escolhessem minha esposa?
Isabella pensou: ele é bonito. Gosto dele. Deve estar pensando o quanto sou bonita e na sorte que tem por fazer uma aliança com a Inglaterra e... comigo.
Os dois conversaram um pouco. Ele lhe falou sobre Flanders. Isabella não prestou muita atenção. Estava ansiosa por falar com ele sobre a Inglaterra, que ela e a irmã viajavam de vez em quando, e que contava com três damas de companhia, enquanto a irmã tinha apenas duas, que ela era a mais velha e que o pai gostava de mimá-la.
De fato, pensou Luís, isso pelo menos é óbvio.
O rei e os flamengos assistiam, com ar indulgente.
- Acho que nosso feliz casal está contente um com o outro -- disse Eduardo.
Os esponsais foram realizados com grande cerimónia. O casamento em si deveria ser um acontecimento muito pomposo. Ocorreria dentro de duas semanas, o que, disse o rei, daria a todos tempo para os preparativos. Eduardo queria que fosse uma ocasião que ficasse na memória de todos.
Isabella deixou Bergues com os pais, e Luís voltou para seu cativeiro porque, diziam alguns dos astutos nobres flamengos, eles sabiam que seu príncipe era teimoso por natureza e eles, por serem homens cautelosos, estavam decididos a continuar com os cuidados até o dia em que Isabella fosse realmente esposa de Luís.
Luís, vendo o dia de seu casamento cada vez mais próximo, decidiu arriscar. Ficara muito amigo de dois de seus guardas e confidenciaralhes suas apreensões quanto ao seu futuro. Deu a entender que acreditava que os flamengos estavam errados ao procurar aquela firme aliança com a Inglaterra. Será que Eduardo pensava que conquistaraia a coroa da França? É verdade que havia Crécy, mas até que ponto aquilo o levara para perto da coroa?
Luís calculava que em pouco tempo eles veriam o rei da França expulsar Eduardo do país, e então o que aconteceria àqueles que tinham apoiado Eduardo?
Os guardas gostavam de discutir, e Luís era tão insistente que começou a atraí-los para seu modo de pensar. Chegou o dia em que estavam prontos a arriscar qualquer coisa para agradá-lo, e ele começou a planejar.
Claro que o plano teria de ser executado com a máxima urgência, pois restava só uma semana para o casamento. Tinha permissão para caçar com falcão com seus guardas, e é possível que eles tenham ficado um pouco relaxados, agora que houvera um noivado oficial com Isabella.
Era um plano simples. Ele sairia com os guardas a cavalo, e o seu falcoeiro deveria soltar uma garça. Os dois falcões seriam enviados atrás dela. Ele galoparia como de costume, mas em vez de seguir o caminho dos falcões, iria para um ponto onde os dois guardas tinham deixado cavalos prontos. Ele passaria para o cavalo mais rápido e seguiriam a toda velocidade para as fronteiras flamengas.
Isso não seria impossível. Na verdade, parecia infalível.
Saiu com os guardas e os falcoeiros. A garça foi solta, como planejado; ele liberou seu cavalo e, gritando para eles, foi galopando... e galopando...
Foi até mais simples do que ele imaginara. Frustrara-os por completo. Tinham acreditado que estava sendo sincero quando prometera casar-se com Isabella. Que surpresa teriam!
Do outro lado da fronteira, Luís cavalgou para a província de Artois e depois seguiu para Paris.
O rei da França achou muito divertida sua proeza. Disse que estava ansioso por saber qual seria o efeito sobre Eduardo quando este soubesse da fuga do noivo.
Isabella não acreditou.
Abandonada pelo noivo. Ela, Isabella, a mais desejável das noivas, a bela princesa, a queridinha do pai!
Á rainha fora dar-lhe a notícia.
- Não haverá casamento - disse ela. Isabella ficou ouvindo, incrédula.
- Então ele... fugiu. Ele fugiu de mim...
- Não foi de você, filha querida - disse Filipa. - Foi do casamento com a Inglaterra.
- Traidor - bradou Isabella. - Espero que faça um casamento infeliz com a sua Margaret de Brabant.
- Foi bom você não se casar com ele - replicou a mãe dela. Só posso me alegrar por ele ter-se mostrado tal como era antes do casamento.
O rei chegou. Tomou a filha nos braços e apertou-a contra ele.
- Minha adorada filha. Esse bandido... esse criminoso... - Não conseguia falar de forma coerente, tal era sua raiva. Estava mais preocupado com o insulto à sua filha do que com a perda de uma aliança que teria sido proveitosa para ele.
- Ele fugiu de mim! - disse Isabella, atónita.
- De você, não - replicou Eduardo. - Não deve pensar assim.
- Expliquei a ela-replicou Filipa. - Não é Isabella que ele não quer. É a aliança.
- Minha querida filha - disse Eduardo -, teremos diversão do lado de fora de Calais. Vamos mostrar a todos que não ligamos a mínima para esse idiota.
- Está bem, papai - disse Isabella, submissa.
Garantira a si mesma que o jovem não estava rugindo dela; ela iria dançar com animação; mostraria a todo mundo que não se importava por ter sido abandonada pelo noivo.
TINHA SIDO UM INVERNO horrível para os habitantes de Calais. Durante todos os meses terrivelmente frios, eles tinham sido atacados pelo lado de fora; houvera uma chuva de flechas sobre a cidade; os muros estavam sempre precisando de reparos, para que não houvesse uma brecha que pudesse permitir a entrada do inimigo. A maior dificuldade era o frio e a fome. Muitos dos habitantes estavam morrendo de inanição, mas eles estavam decididos a resistir. "O socorro vai chegar", dizia o povo de Calais. "O nosso rei não vai se esquecer de nós."
O cerco de Calais estava mostrando que era a operação mais difícil da guerra. O local era muito bem fortificado. Sua importância para o outro lado era evidente. Eduardo acreditava que se pudesse toma-la, não demoraria para que sua ambição fosse realizada; Filipe sabia que perdê-la seria um golpe maior do que as derrotas em Helvoetsluys e Crécy.
Eduardo mandara avisar à Inglaterra que precisava de mais suprimentos. Necessitava de mais navios para bloquear a baía, porque na cidade tinham surgido grandes esperanças quando Filipe conseguira enviar suprimentos para o povo.
Isso não poderia tornar a acontecer, declarou Eduardo, e ordenou que o conde de Warwick mantivesse o domínio do Canal. Para essa finalidade, ele contava com oitenta navios sob seu comando. Filipe, no entanto, devia esforçar-se para chegar a seus súditos que passavam fome e fez uma tentativa de atracar 44 navios, a maioria deles levando provisões. Mas foram avistados por Warwick, e os condes deNorthampton e Pembroke foram informados. Juntos, conseguiram capturar alguns dos navios e afundar os outros, de modo que não houve ajuda aos cidadãos famintos de Calais, e a cidade continuou em extrema penúria. Todo o milho, toda a carne e todo o vinho haviam desaparecido fazia muito tempo; eles estavam se alimentando de gatos, cachorros e cavalos, e até mesmo o estoque deles estava acabando.
Filipe tinha de ajudá-los.
Ele fez preparativos para o ataque. Estava ficando muito impopular, porque tributara muito o povo da França, para pagar a guerra; e quando ordenou uma reunião de tropas, muitos dos nobres mostraram grande relutância em participar.
Eduardo, enquanto isso, tinha o apoio de seu povo. Este começava a considerá-lo um rei de que podia orgulhar-se. Sua aparência magnífica, suas exibições de grandiosidade, aquele encanto Plantageneta especial que fora de seu avô e talvez ainda mais aparente nele, a coragem de seu filho e herdeiro, o Príncipe Negro, o vencedor de Crécy - porque Eduardo mandara proclamar que aquele sucesso era devido, em grande parte, à habilidade e à capacidade de comando de seu adorado filho -, tudo isso fizera com que os ingleses aderissem ao seu rei, e eles estavam dispostos a pagar sua quota na glória que ele levava para a Inglaterra. Eles falavam sobre Helvoetsluys e Crécy e queriam jactar-se sobre Calais.
Portanto, estavam prontos a pagar a guerra de seu rei.
Eles deprezavam os franceses. De maneira geral, acreditava-se que os homens pareciam mulheres, que passavam muito tempo penteando os cabelos, que sua pele era pálida, ao contrário do saudável corado da dos ingleses; falavam e sorriam com afetação, e sua maneira de falar era mais condizente com um quarto de vestir de uma dama do que com um campo de batalha. Eram muitíssimo imorais, e todo homem, por mais humilde que fosse, tinha uma dúzia de amantes. Em pouco tempo, seriam derrotados pela superior força e virilidade dos ingleses.
O franceses, naturalmente, desprezavam os ingleses. "Eles são a escória dos homens, a vergonha do mundo e a mais ínfima de todas as coisas", declaravam eles. Eram bárbaros; comiam grandes quantidades de comida e não ligavam muito para o modo pelo qual essa comida era cozida ou servida; bebiam sofregamente cerveja, em vez de vinhos finos. O que os refinados franceses tinham a temer de gente assim?
Durante todo o inverno e a primavera, os sofredores habitantes aguardavam ajuda. O verão chegara e o calor parecia pior do que o frio.
Sabiam que não poderiam resistir por muito mais tempo, quando chegaram as animadoras notícias de que Filipe estava marchando para lá. Estava levando um exército de duzentos mil homens para salvá-los.
Eduardo esperou a chegada deles. Por onde viriam?, perguntava-se ele. Havia três caminhos que Filipe poderia tomar: pelas dunas, por Gravelines, ou atravessando a fronteira pela ponte de Nieulay.
Eduardo providenciou para que qualquer que fosse o caminho que Filipe tentasse tomar ele o achasse quase intransitável.
Eles chegaram pelos montes de areia e viram logo que era impossível chegar mais perto do que uns dois quilómetros do inimigo. Eduardo distribuíra suas defesas com tanta habilidade, que a única maneira de os franceses se aproximarem dos ingleses era pela estreita ponte de Nieulay, o que significaria que iriam lutar com uma tremenda desvantagem.
Filipe tinha um recurso. Tinha de pedir a Eduardo que viesse para o campo aberto e lutasse.
Quando Eduardo recebeu aquele recado, caiu na gargalhada.
Disse ao mensageiro que voltasse para seu patrão, Filipe de Valois, que erradamente evitava que ele recebesse sua herança, e lhe dissesse que ele, Eduardo, passara os últimos doze meses às portas de Calais.
- O seu senhor sabia muito bem disso-prosseguiu ele.-Devia ter vindo mais cedo, mas deixou que eu ficasse aqui e gastasse grandes somas de dinheiro nesta campanha. Não estou disposto a atender agora ao pedido dele. Se ele e seu exército quiserem vir até aqui, deve achar outro caminho, ou vir me expulsar.
O mensageiro voltou para o rei da França, que, espumando de raiva, viu que tentar expulsar Eduardo da posição em que se colocara seria derrota sem nenhuma dúvida. Como poderiam tomar aquela ponte estreita, defendida como estava? Seria impossível. Eles seriam triturados. Era suicídio. E que outra maneira havia para abordar o inimigo?
Só havia uma saída para ele: ir embora e abrir mão de Calais.
Ordenou que se preparassem para marchar ao amanhecer. Antes de saírem, destruiriam o acampamento, para que não caísse em mãos do inimigo.
Quando os cidadãos de Calais souberam que seu rei os abandonara, quando das muralhas da cidade eles viram as chamas e a fumaça das tendas incendiadas, perceberam que a batalha estava perdida.
Poderia ser uma questão de horas para que Calais ficasse nas mãos dos ingleses.
Sir John de Vienne, o governador de Calais, enviou um mensageiro a Eduardo. Calais, disse ele, estava pronta a chegar a um acordo com o rei. A cidade ser-lhe-ia entregue se ele poupasse a vida da guarnição e dos cidadãos.
Quando Eduardo recebeu aquele recado, caiu na gargalhada.
- Vá dizer ao seu senhor que não cabe a ele ditar condições replicou ele. - Calais vai ser tomada por mim.
Depois que o mensageiro partiu, a raiva de Eduardo aumentou.
- Eles me pedem isso - bradou ele. - Já esperei aqui por muito tempo. Gastei muito dinheiro com este cerco. E agora que ele acabou e estão se rendendo, como deveriam ter feito há meses, falam em ditar condições para um acordo comigo! Por Deus, vou mostrar-lhes que não lhes cabe impor condições. Cabe a eles obedecer ordens. Esta é uma rendição incondicional.
Filipa, que estava com ele, replicou que os homens de Calais tinham defendido a cidade como quaisquer outros cidadãos.
- Vossa majestade não iria ter seus conterrâneos em alta estima se eles se rendessem logo ao inimigo.
- Mas falar em condições! - resmungou Eduardo. - Eles vão ver.
Ele mandou chamar Sir Walter de Manny - um de seus cavaleiros de maior confiança e natural de Hainault, que tinha ido para a Inglaterra na comitiva de Filipa. Ele se mostrara inteiramente leal ao rei e à rainha e era um homem encantador e corajoso, conhecido por sua fidalguia e sua cortesia. O rei e a rainha gostavam muito dele.
- Bem, Walter-disse Eduardo -, finalmente Calais é nossa.
O governador teve a insolência de mandar me procurar para estabelecer os termos! Isso não é para rir? Sim, ele queria estabelecer condições. Acho que devemos passar a cidade toda pela espada.
De Manny ficou em silêncio. Percebeu que teria de falar com cuidado. Era raro Eduardo deixar que seu mau génio sobrepujasse seu senso comum; e de Manny sabia que se ele agisse com brutalidade iria arrepender-se depois. Calais era a cidade mais importante da França, sob o ponto de vista estratégico. Estava nas mãos deles e deveriam usá-la da melhor maneira possível. Isso não seria feito passando seus habitantes pelas espadas.
- Quando penso no que a tomada dessa cidade me custou... Os meses de espera... construir esta cidade fora de seus muros... o fluxo constante de armas que foi despejado nessa aventura... e depois me dizem que eles vão examinar as condições.
- Um último gesto de desafio, majestade, de homens que defenderam bravamente sua cidade durante meses desesperados.
- Por Deus, Walter, você parece estar do lado deles.
- O meu senhor não está querendo dizer isso, eu sei. Mas não posso, nem qualquer outro homem poderia, fazer outra coisa que não respeitá-los pela defesa que fizeram da cidade que custou tão caro a vossa majestade. Homens de menos valor teriam desistido há muito tempo.
- E me poupado grandes despesas.
- E granjeado seu desprezo, majestade.
Eduardo ficou em silêncio. Walter de Manny era um homem inteligente. Várias vezes ele lhe dera ouvidos e lucrara com isso.
- Então... - começou ele, e parou.
- Um pouco de misercórdia nunca fez mal a nenhum líder-disse de Manny. - Dizem que um toque de misericórdia indica mais coisas do que um toque de grandeza.
- Por Deus, Walter, você quer que eu poupe essa gente que custou tão caro.
- Eu diria para pôr de lado sua ira, meu senhor, e estudar o que melhor sirva à sua causa.
Eduardo ficou calado por alguns segundos, e depois disse:
- Pois muito bem, não vou passar a cidade pela espada. O alívio de de Manny era óbvio.
- Mas - prosseguiu Eduardo - não vou deixar que esses cidadãos imaginem que podem me desafiar dessa maneira. Resistindo durante meses! Custando-me caro, e quando desistem esperam ser tratados como se tivessem sido meus
bons amigos. Não, não vou aceitar isso, Walter. Ora, vá até a praça principal e pergunte por seis de seus principais cidadãos. Eles deverão vir à minha presença sem usar coisa alguma na cabeça, descalços, com cordas em torno do pescoço. Deverão trazer-me as chaves da cidade, e depois irei enforcá-los nos muros da cidade, onde ficarão como um aviso a todos de que não é prudente ficar contra mim.
De Manny percebeu que não adiantava argumentar mais com o rei. O fato de ele ter-se conformado com seis dos principais cidadãos em vez de com a cidade inteira era uma grande concessão. O génio do rei era tão incerto quando ele calculava o quanto Calais lhe custara, que seria insensato provocá-lo.
Houve uma grande consternação na praça principal de Calais quando Sir John de Vienne disse à multidão reunida quais eram as exigências de Eduardo.
- Esses seis de nossos mais destacados cidadãos - disse ele deverão ir à presença do rei com toda humildade, descalços, de cabeça descoberta, com cordas em torno do pescoço. Deverão levar-lhe as chaves da cidade, e depois serão executados.
Houve grunhidos de angústia na praça principal, mas o mais rico de todos os comerciantes, Eustache de St. Pierre, adiantou-se imediatamente. Seu filho o acompanhou.
- Papai - disse ele -, se o senhor for, eu vou também. Eustache tentou dissuadir o filho, mas o rapaz não admitia ser persuadido, e àquela altura quatro outros tinham se adiantado.
- Seis de nós é um preço pequeno - disse o bravo Eustache -, quando poderia ter sido a cidade inteira. Se não nos oferecermos, todos serão passados pela espada. Tenho a esperança de graça e perdão de nosso Senhor se eu morrer para salvar meus concidadãos. Por minha livre e espontânea vontade, eu me coloco à mercê do rei inglês.
Os seis homens caminharam até os portões da cidade, levando junto as chaves.
Sir Walter de Manny esperava por eles lá. Várias das mulheres gritaram para Sir Walter:
- Meu senhor, salve nossos homens. Interceda por nós junto ao rei.
- É o que farei - respondeu Sir Walter.
Eduardo providenciara para que houvesse muitas testemunhas daquela cena e que fosse representada para obter o máximo de drama. Ele estava usando suas esplêndidas túnicas reais, e fora armado um trono, com um dossel com franja dourada.
Ao lado dele estavam a rainha, o Príncipe Negro e as damas que tinham ido na comitiva de Isabella.
Os seis burgueses, mostrando sinais das agruras recentes, magros de tanta fome, desfigurados pelo sofrimento, faziam um triste contraste com o esplendor da comitiva real.
Eles se ajoelharam diante do rei, com Eustache de St. Pierre entregando as chaves da cidade.
Ele falou em nome dos seis:
- Boníssimo rei - disse ele -, estamos à mercê de sua vontade e de seu agrado absolutos, para que possamos salvar o resto de nosso povo. Eles sofreram muita angústia e miséria. Eu lhe imploro que se apiede de nós, em nome de sua alta nobreza.
Houve um silêncio profundo em meio aos espectadores. Praticamente não havia quem não estivesse emocionado pela visão daqueles homens - as provas do sofrimento em suas fisionomias; o estado maltrapilho de sua aparência dando-lhes, de algum modo, uma dignidade que o grande rei, em toda a sua gala no trajar, não podia igualar.
Eduardo olhou para eles com o cenho franzido. Não podia parar de calcular o quanto o cerco a Calais lhe custara. Pensou na insurreição escocesa, que poderia com muita facilidade ter levado a desgraça à Inglaterra. E fora Calais que exaurira seu dinheiro, tomara seu tempo e lhe provocara uma angústia que ele raramente sentira em todo o seu reinado.
Não, ele não perdoaria Calais, e aqueles seis dos mais ricos e mais influentes de seus cidadãos deveriam morrer.
- Levem-nos - bradou ele - e cortem-lhes a cabeça.
- Majestade - murmurou de Manny -, mostre sua clemência para com esses homens. Será bom para a sua causa.
- Cale-se, Sr. Walter-murmurou o rei.-Não pode ser de outra maneira. Mande chamar o carrasco... agora:
Filipa, então, levantou-se de sua cadeira e pôs-se de joelhos diante do rei.
- Meu senhor - disse ela -, atravessei o oceano, correndo um certo risco, para vir ter com o senhor, e não lhe pedi favores. Mas agora peço. Pelo amor do Filho de Nossa Senhora, e como prova de seu amor por mim, tenha piedade desses seis homens.
Eduardo olhou fixo para a rainha; ela começou a soluçar em silêncio e era tanta a infelicidade aparente em sua atitude, que ele disse, delicado:
- Levante-se, Filipa. Eu quisera que você não estivesse aqui presente hoje. Esta cidade de Calais me custou caro e eu gostaria de que soubessem que não há misericórdia para quem me desrespeita.
- Meu senhor, se o senhor me ama-continuou Filipa -, vai me atender. Isso é tudo o que peço. Conceda-me isso e ficarei contente por ter recebido esse sinal de seu amor por mim.
- A senhora precisa desse sinal, minha senhora?
Ela ergueu os olhos para os dele e confirmou com a cabeça.
- A senhora me suplica de tal maneira que torna impossível eu me recusar. Digo isso contra a minha vontade. Leve esses homens. Eu os entrego à senhora.
Um grande silêncio caiu sobre a multidão, enquanto Filipa beijava a mão do rei. Depois, ela se pôs de pé e, indo até os seis bravos homens de Calais, mandou que as cordas fossem retiradas do pescoço deles.
Ela fez um sinal para um dos guardas e disse-lhe que os levasse aos aposentos dela, onde receberiam roupas e comida. Ela também gostaria de dar-lhes um presente, pois admirava muito sua coragem. Que cada um recebesse seis nobres e depois tivessem permissão para atravessar os portões de Calais de volta para suas casas.
Todos os que tinham testemunhado aquelas cenas do lado de fora dos muros e os que estavam do lado de dentro e que em breve iriam ficar sabendo delas iriam falar naquilo o resto da vida. O povo de Calais contaria aos filhos sobre o dia em que os seis bravos burgueses que tinham saído com cordas no pescoço seguindo, segundo acreditavam, para uma morte certa, tinham voltado pelos portões andando, em liberdade - tudo graças à bondade da rainha Filipa e ao amor de seu temível marido por ela.
Eduardo não ficara tão contrariado quanto aparentara e estava contente com o fato de os burgueses não terem sido executados. Assim que sua raiva diminuíra, ele começara a pensar na melhor maneira de aproveitar sua mais recente conquista.
Não havia dúvida de que não seria por meio de crueldade.
Calais valia tudo o que lhe custara, e estava decidido a fazer com que continuasse sob seu domínio. Os burgueses, depois da clemência, penderam para o seu lado, porque Filipe agora se mostrara a eles de modo desfavorável, quando não conseguira salvá-los.
Eduardo ordenou imediatamente que se mandassem comestíveis para a cidade e que o povo fosse alimentado. Na verdade, foi tal a voracidade com que eles atacaram as provisões que ele forneceu, que alguns morreram de excesso de comida, depois de quase morrerem de inanição. Os burgueses agora estavam prontos a servi-lo, pois a eles parecia que um rei que mostrava misericórdia na conquista era um grande rei.
Eduardo e Filipa cavalgavam pela cidade ao som de fanfarras de trompetes, e as pessoas saíam para olhar a senhora que tinham passado a reverenciar.
Eduardo passou de imediato a fazer preparativos para o caso de Filipe decidir atacar a cidade na esperança de recuperá-la. Ficou satisfeito quando foi preparada uma trégua de nove meses. Assim, fortificou a cidade e, confiante em que o povo de Calais o considerava um governante mais confiável do que o rei francês, partiu para a Inglaterra.
QUANDO os DOIS VOLTARAM para a Inglaterra, Filipa deu à luz outra vez. Desta vez foi um menino, que eles chamaram de William. Infelizmente, parecia um nome azarado, porque a criança morreu pouco depois de nascer.
Eduardo consolou Filipa e pediu-lhe que olhasse para seus filhos fortes e saudáveis - Eduardo, Lionel, John e Edmund; e as queridas filhas - sua adorada Isabella, Joana, Mary e Margaret. Não podiam reclamar. Era verdade que tinham perdido o outro William e a pequenina Blanche, mas Deus os abençoara através dos filhos.
Filipa teve de reconhecer o fato, mas embora sentisse prazer nos filhos vivos, não parava de lamentar os que perdera.
Além do mais, chegaria a época em que uma rainha teria de enfrentar a partida das filhas. Se Isabella tivesse se casado com Luís de Flanders, não teria ficado tão longe assim. Mas aquilo dera em nada e Filipa achava que Eduardo não ficara contrariado, e Isabella se mostrara um tanto decepcionada, porque achava que a maneira pela qual Luís fugira depois de tê-la visto era uma desonra para seus encantos que o pai a levara a acreditar serem irresistíveis.
Agora era a vez de Joana. Pobre Joana. Se fosse possível dizer que Filipa contava com favoritos entre os filhos, Joana era a mais amada entre as meninas. Filipa não podia deixar de mimar sua bela primogénita e compartilhava do encanto geral que chegava quase à reverência com relação ao Príncipe Negro, mas era Joana que recebia o amor mais profundo. Filipa nunca se esquecera da horrível fase que a menina passara na Áustria. Desde então, Filipa vinha tentando recompensá-la por isso.
Agora, como salientou Eduardo, estava na hora de ela se casar, e embora odiasse perder a filha, ficou irritado com as evasivas dos espanhóis.
A demora, segundo suspeitas do rei, era provocada por Eleanora de Guzmán, a amante do rei da Espanha. Tratava-se da mulher mais poderosa da corte, porque o rei a mimava e ela já lhe dera três filhos. Sua grande esperança era de que o filho do rei, Pedro - que Eduardo decidira que seria o marido de Joana -, morresse ou não tivesse filhos, para que um dos filhos dela pudesse herdar. Essa a razão por ela não estar nada ansiosa por ver um casamento entre Joana e Pedro e procurar adiar as coisas.
Mas nem mesmo a poderosa Eleanora podia evitar indefinidamente o casamento do filho do rei.
A Joana que se preparou para a viagem para a Espanha e para o casamento era diferente da garotinha que partira para a Áustria. Ela estava, agora, com quatorze anos e havia algum tempo sabia que mais cedo ou mais tarde teria de sair de casa. Ela vira Isabella voltar de Flanders e soubera da história da partida apressada de Luís. E ali estava Isabella, de volta a Londres. De modo que os casamentos não podiam ser considerados definitivos enquanto não se realizassem de fato. Tudo poderia acontecer para impedi-los até o último momento. Ela pensava em Isabella - faltando apenas uma semana para fazer os votos decisivos!
Enquanto isso, ela precisava preparar-se para a Espanha.
Filipa estava inquieta. Ela podia imaginar as intrigas da corte espanhola, com o rei extremoso e sua amante que queria ver o filho, Henrique de Trastamarre, no trono. Ela se perguntava como Joana se sairia numa atmosfera daquelas. Seus filhos tinham desfrutado de uma vida feliz que era rara nos círculos reais. Ela mesma tivera uma vida assim em Hainault, mas como a infância de Eduardo tinha sido diferente! Às vezes ela se perguntava se uma infância agradável e segura ajudava uma criança a enfrentar o mundo.
Talvez ela não tivesse se saído tão mal assim; mas também se casara com o homem por quem se apaixonara à primeira vista e Eduardo era um homem notável; era um bom pai, apesar de ter a tendência de mimar as filhas; era um marido amoroso, embora as vezes seus olhos se desviassem para outras mulheres. Mas estava ansioso por ser um marido fiel, e ela acreditava que fosse.
Mas agora, quanto a Joana, elaprecisavapreparar-se para partir para a Espanha, e Filipa rezava todas as noites pela felicidade da menina. Ela ouvira rumores inquietantes não apenas sobre as intrigas de Eleanora de Guzmán, mas sobre sinais de crueldade no jovem Pedro. Dizia-se que ele gostava de provocar dor em animais e, se conseguisse, nos seus semelhantes. Seria isso verdade? Ouvia-se tanta coisa que era falsa! Ela rezava sempre por Joana.
Joana estava resignada ao fato de que em breve partiria. Isabella parecia um pouco invejosa. Ela passava, enciumada, os dedos sobre o vestido de tecido de ouro com uma manta e uma sobretúnica combinando, que eram para o casamento de Joana. Isabella gostava que todas as atenções e os belos vestidos fossem para ela.
- Como você ficará bonita!-bradou ela, acariciando os vestidos escarlate e de veludo, os arminhos e cintos adornados com belas jóias.
- Mas eu preferiria ficar aqui. Estou contente por não ter me casado com um homem de Randers.
- Eu também preferiria ficar aqui - disse Joana, pensativa.
- Mas você vai ser uma rainha-rainha de Castela. Pense nisso! Mas o pensamento não alegrou muito Joana.
- Nunca pensei que Luís de Randers fosse o indicado para mim - continuou Isabella. - Juro que um dia vou ter um marido rei.
Joana afastou-se e reassumiu o bordado que fazia. Aquilo lhe dava um grande consolo. Enquanto bordava, maravilhava-se com as belas sedas coloridas e pensava nos dias felizes que tivera no seio da família.
Em janeiro, ela iniciou a viagem. O rei, a rainha e sua irmã Isabella acompanharam-na do palácio de Westminster até Mortlake. Lá, despediram-se e tanto o rei como a rainha foram dominados pela emoção. A rainha achava que Isabella sempre poderia cuidar de si mesma, mas Joana era mais vulnerável.
A princesa continuou a viagem pelo país até Plymouth, o porto do qual ela iria embarcar no navio.
Seguiu-se uma estada de cinco semanas na cidade, porque o vento era tal que tornava a travessia perigosa, e em meados de março Joana e sua comitiva deixaram a Inglaterra.
Sete dias depois, ela chegou a Bordeaux.
Foi necessário permanecer ali enquanto prosseguiam as negociações entre as cortes da Espanha e da Inglaterra, porque Eduardo desconfiava muito de uma corte que se achava sob o feitiço de uma mulher ambiciosa como Eleanora de Guzmán. Estava tão ansiosa por evitar o nascimento de uma criança que pudesse tirar seu filho da linha de sucessão, que estava usando de todos os meios que conhecia para adiar o casamento. Tentava persuadir Alfonso a escolher outra noiva para o filho dele. Por outro lado, a rainha de Castela, que estava tão ávida por sobrepujar a amante do marido quanto esta por colocar o filho no trono, estava ansiosa por provocar a união com a Inglaterra. Entre as duas, Alfonso parecia não ter vontade própria.
Eduardo estava decidido a que Joana só fosse para a Espanha depois que tudo estivesse assinado e selado e não houvesse possibilidade de o casamento entre a filha dele com o herdeiro de Castela ser adiado ou cancelado de vez.
Já tivera uma filha abandonada pelo noivo. Não deixaria que isso acontecesse com uma outra.
Portanto, era necessário que Joana permanecesse em Bordeaux até que o rei estivesse plenamente satisfeito de que o casamento iria acontecer.
O castelo estava situado em um local muito agradável; de suas janelas, Joana podia olhar para os morros cobertos de árvores e para os vinhedos, e depois dos meses frios em Plymouth e da travessia marítima, não ficou contrariada por demorar-se um pouco naquele ambiente agradável. Sentava-se com suas damas de companhia enquanto trabalhava com a agulha e, como gostasse muito daquela ocupação, não se sentia infeliz.
Se as negociações levassem um ano, ela não se importaria. Não estava, em absoluto, ansiosa por continuar a viagem.
Assim, ela e suas damas sentavam-se e conversavam, e um dia, enquanto se dedicavam àquele agradável passatempo, uma delas disse:
- Ontem ouvi dizer que uma doença terrível está se espalhando pela Europa. Começou em Constantinopla e está chegando rapidamente aos portos marítimos.
- Sempre existem histórias assim-disse Joana, com serenidade.
- É verdade, minha senhora, mas eles disseram que esta é a mais terrível que já se viu.
- Coisas estranhas acontecem em lugares distantes - disse uma outra.
- Eu gosto desta seda azul - disse Joana.-Mas talvez não seja do tom certo. O que acham?
As damas de companhia trocaram olhares e preocuparam-se com a escolha da seda azul.
Não demorou muito, e o mundo inteiro falava aterrorizado sobre a temerosa peste que passara pela Arménia, entrara na Ásia Menor, passando para o Egito e a África do Norte; aquela começara no oriente, e ao passar de país em país deixava atrás de si uma trilha de horror e morte.
As pessoas falavam nela em sussurros abafados e rezavam para que ela nunca chegasse até elas, mas cada dia trazia narrativas da morte que se aproximava cada vez mais. Ela atingira a Grécia e a Itália e ainda seguia rastejando.
Parecia que assim que um homem ou uma mulher percebia os primeiros sintomas - uma inchação descorada embaixo das axilas -, estava condenado e só um milagre poderia salvá-lo. Em uma questão de horas, aconteceriam mais inchações e as vítimas iriam tossir sangue, sofrer de uma sede violenta antes de entrarem misericordiosamente em coma, depois do que a morte se seguia rapidamente. O único aspecto misericordioso daquela terrível peste era a rapidez com que as vítimas morriam. Tinha uma consequência desagradável, porque assim que o doente morria, manchas pretas apareciam na pele e o odor que emanava do cadáver era desagradável, a ponto de sufocar. Isso transmitia a infecção. Animais morriam da peste; ela era altamente infecciosa e devastadadoramente contagiosa. E como se tornasse cada vez mais difícil desfazer-se dos corpos, a doença espalhava-se com uma rapidez alarmante. Quando ela chegava a uma aldeia ou cidade, esta ficava condenada.
A peste era comentada por toda a Europa, porque o fato de ter chegado à Grécia e à Itália fizera com que muita gente ficasse preocupada.
Eduardo assegurou a Filipa que a peste não podia chegar à Inglaterra. A água iria salvá-los. Àquela altura, ele estava entusiasmado com as vitórias. Vencera em Helvoetsluys e Crécy, e agora, Calais. Podia dar-se ao luxo de reclinar-se e contemplar os sucessos.
Seu amor pela exibição não diminuía à medida que ficava mais velho. Queria mais torneios da Távola Redonda, mais justas nas quais pudesse mostrar-se como o campeão de seu povo.
Não havia nada de que mais gostasse do que sentar-se sob o dossel real com sua rainha e os filhos e assistir ajusta. Melhor ainda, gostava de tomar parte e mostrar-se como o campeão.
Como eles o ovacionavam! O povo amava-o. O caminho, para ele, não tinha sido difícil. Ele havia sucedido a um rei que granjeara a revulsão do povo e cujo reinado acontecera não fazia tanto tempo assim, de modo que muitas pessoas se lembravam do quanto um país sofria com um rei indigno. Mesmo o avô, Eduardo I, nunca fora tão popular. Aquele traço vaidoso em Eduardo, que o fazia esperar ansioso por espetáculos e diversões grandiosos, era bem recebido pelo povo, porque este participava deles; e ver seu rei com a aparência que, segundo eles, um rei devia ter e vê-lo obtendo grandes vitórias sobre os franceses era um prazer para o povo. Ele estava contente com seu rei Eduardo.
Nessa época, ele disse a Filipa que criaria uma ordem que concederia a apenas uns poucos cavaleiros que fossem dignos dela. A ideia tinha estado em sua mente desde a vitória de Crécy, quando alguns de seus súditos tinham-se distinguido pelo serviço altruísta ao país deles.
Ele acreditava que deveria haver um certo reconhecimento para pessoas assim, e estava pensando no assunto.
Enquanto isso, deviam haver mais torneios, mais comemorações na corte, para lembrar o povo de que estava tudo indo bem com seu rei e seu país. As vitórias dele na França precisavam ser celebradas, e ele ficara tanto tempo diante de Calais, que devia mostrar a seu povo o quanto estava satisfeito por estar de volta. Queria ver cavaleiros galantes e belas damas dançando juntos.
A mais bonita de todas as damas da corte era Joan, conhecida como a Bela Donzela de Kent.
Estava, agora, com dezenove anos, no auge da beleza. Estava mais ou menos prometida a William, conde de Salisbury, mas era muito amável com Sir Thomas Holland, e o príncipe de Gales, evidentemente, não era indiferente a ela. O Príncipe Negro era dois anos mais novo do que Joan, mas percebia-se que embora parecesse amigo dela, passava longos períodos ignorando-a, e isso não agradava à principal beldade da corte.
Ela era de sangue real, o pai fora filho do Eduardo I, e embora os príncipes muitas vezes tivessem de se casar com mulheres de outros países para consolidar alianças, se o Príncipe Negro tivesse realmente querido casar-se com suaparenta, parecia praticamente impossível que Eduardo e Filipa-sempre condescendentes no que se referia aos filhos - não tivessem permitido que o acasamento se realizasse.
No entanto, ninguém falava nisso, e o Príncipe Negro, embora estivesse nitidamente atraído pela bela Joan e muitas vezes se referisse a ela como a "Pequena Jeanette", não mostrava sinal algum de desejar casar-se com ela. Era verdade que ele tinha apenas dezessete anos, mas já estava com idade suficiente para casar, e os rumores diziam que ele não era mais virgem.
Joan era uma menina tão inteligente quanto bonita. Sentia-se muitíssimo atraída por Thomas Holland, que menos podia oferecer-lhe; não ligava muito para Salisbury; e gostava do príncipe de Gales. Se este tivesse falado em casamento, ela teria posto imediatamente de lado os outros dois, pois naturalmente teria ficado encantada com a perspectiva de se tornar a rainha da Inglaterra em determinado momento.
Todos esperavam que ela se casasse com Salisbury, pois fora prometida a ele quando jovem; mas, claro, se o príncipe de Gales quisesse casar-se com ela, seria fácil conseguir uma dispensa.
Apesar de muito cortejada pelos ardentes Holland e Salisbury, ela ficava extremamente decepcionada com a conduta indiferente do príncipe. Possuía uma natureza apaixonada e logo percebeu que não era do tipo que esperava indefinidamente na esperança de conquistar seu grande amor. Era uma mulher que teria de contentar-se com um resultado mais modesto.
Thomas Holland estivera com ela em um de seus momentos de depressão. Ele declarara seu imorredouro afeto por ela e a abraçara de um jeito muito familiar, ao qual ficou muito evidente que ela não era avessa. Na verdade, o ousado Thomas provocava nela emoções que, apesar de toda a sua ambição, ela achava impossível controlar.
Era inimaginável que uma mulher com seu grau de realeza fosse tornar-se amante dele, de modo que, depois de ceder a ele e ter achado a experiência muito de seu agrado, ela concordara com um casamento secreto, e quando fora para a corte a fim de participar das festividades reais, ela já estava casada com Sir Thomas Holland.
Sir Thomas fora obrigado adeixá-lapouco depois da cerimôniapara ir para a França e ainda estava lá entre os que estavam protegendo Calais para o rei.
Joan estava, portanto, recebendo as atenções de Salisbury e de vez em quando percebendo o olhar do príncipe de Gales, que um dia estava muito ardoroso e amável, e no outro parecia ter-se esquecido de sua existência.
O rei, em várias ocasiões, pedira-lhe que se sentasse ao lado dele, e estava ficando claro que tinha uma grande admiração por ela. O mesmo acontecia com muitos outros, e ela estava acostumada à admiração, mas sem dúvida sentia-se satisfeita ao recebê-la de uma pessoa daquele nível.
A possibilidade de tornar-se rainha da Inglaterra ocorrera muitas vezes a Joan, mas é claro que não seria através de Eduardo, o rei. Não estava preparada para ser amante real - não que a coisa fosse chegar até esse ponto com Eduardo. Ela ouvira rumores sobre a condessa Salisbury, que ela conhecera muito bem - durante um certo tempo, ela morara com a condessa, porque fora planejado que aquela muito bonita e virtuosíssima senhora seria sua sogra - e o caso dera em nada. Eduardo, pensou Joan com cinismo, não fora imteligente ao escolher uma mulher tão virtuosa como a condessa, mas é claro que Catharine de Montacute era uma criatura de uma beleza excepcional. Embora velha, pensou Joan, complacente.
E a rainha nunca fora muito bonita. Tinha a pele clara, com uma fisionomia agradável, só isso; e agora, gestações constantes tinham-lhe afetado a aparência e ela estava, na verdade, gorda demais.
Joan se deleitava com a admiração dos que a cercavam, em especial com a do rei, e então havia, é claro, William, o conde de Salisbury, que acreditava realmente que ela ainda estava prometida a ele.
Em que confusão Joan se metera! Ela se perguntava o que Salisbury iria dizer se soubesse que ela e Thomas já tinham vivido juntos.
Enquanto isso, ela desdenhava do futuro enquanto tentava cativar o Príncipe Negro e não o pai dele. O príncipe era quem poderia colocar-lhe uma coroa na cabeça. Mas, e Thomas? Ela providenciaria alguma coisa quando chegasse a hora. Quando chegasse a hora! Que homem estranho, o príncipe! Não parecia querer envolver-se num casamento - embora, como herdeiro do trono, devesse pensar em dar ao país um futuro rei.
Às vezes Joan ficava furiosa consigo mesma por ter cedido a Thomas. O que ela poderia perder por causa disso! Ah, mas era esperta. Se precisasse, iria desvencilhar-se daquela situação. Como uma pessoa se desvencilhava de um contrato de casamento? Havia uma coisa chamada divórcio e uma dispensa do papa. Estava certa de que poderia conseguir. O verdadeiro obstáculo era aindiferença daquele pachorrento amante, o Príncipe Negro.
Eduardo, o rei, estava no seu elemento. A Torre Redonda que ele mandara construir em Windsor era o local ideal para reunir a sua Távola Redonda. Ele a mandara erigir sobre um morro artificial cercado por um fosso profundo. Chegava-se ao interior subindo uma escada de cem degraus, e havia mais degraus levando às ameias da torre de menagem. Era de uma aparência muitíssimo impressionante, e Eduardo se orgulhava dela.
Ele permitia que David da Escócia participasse das festas. David era seu prisioneiro e continuaria assim até que fosse pago o enorme resgate exigido por Eduardo. Eduardo fixara-o deliberadamente assim tão alto por saber que enquanto David fosse seu prisioneiro ele poderia ter certeza quanto à paz na Escócia. No entanto, David era de sangue real; era seu cunhado e um rei. Eduardo queria que ele desfrutasse de todas as amenidades possíveis, exceto de uma liberdade completa. David tinha permissão para caçar normalmente e com falcão nas florestas, mas estava sempre cercado de guardas. Parecia que ele se acostumara ao exílio, e como vivesse com conforto, não achava isso penoso. Ele estivera na França durante sete anos, reinara na Escócia durante cinco, e aquela altura já fazia quase dois anos que era prisioneiro de Eduardo. Não via sinais de que aquele cativeiro fosse acabar, porque sabia que o dinheiro para pagar pela sua liberação não poderia ser levantado.
David não lamentava seu destino. Não lhe faltava o luxo. Ele era hóspede, poder-se-ia dizer, do rei da Inglaterra e se lhe permitissem participar de festividades como aquelas agora acontecendo na Torre Redonda de Windsor, não reclamaria muito.
Ele gostava das justas e das festas, da dança e da música.
Além do mais, tinha várias amantes. Era um homem profundamente sensual, e a virtuosa Joana com quem o tinham casado não era do tipo que o agradava. com frequência, ele arranjava mulheres nas classes mais inferiores. Gostava muito delas.
Na justa, ficou conhecendo uma mulher pela qual se sentiu logo atraído. O nome dela era Katherine Mortimer; era voluptuosa, bonita e experiente.
Os dois ficaram juntos os dias e as noites do torneio.
Tinha sido um dia de justas brilhantes. O rei estava com um humor excelente. Entregou-se por completo ao banquete e ao baile. Parecia ter esquecido que havia apenas uma calmaria na luta pela coroa da França; ele não se preocupava com a terrível peste que, mesmo no exato momento em que ele e seus convidados dançavam, chegava cada vez mais perto.
Se Filipa pensava naquelas coisas, tentavanão demonstrar. Eduardo gostava muito da presença dela, e ao vê-lo se deliciando sentia ternura por ele, como sentia por Isabella, que se sentava ao lado dos pais, esplêndida em seus trajes brilhantes, muito satisfeita por estar com eles - o que era bom, porque Filipa temera que uma jovem orgulhosa como Isabella pudesse entrar em depressão após ser abandonada pelo noivo.
Claro que havia sussurros ocasionais sobre os olhos marotos do rei. A própria Filipa sabia que ele apreciava muito as mulheres bonitas. Ela já vira os olhos dele acompanhando-as e pareciam ficar de um azul mais escuro quando ele fazia aquilo. Ela sabia sobre a condessa de Salibsury. A boa Catharine de Montacute, cujo sólido bom senso fizera com que o rei voltasse ao dele. Pobre Catharine, estava doente, pelo que Filipa soubera; ela nunca ia à corte, e nunca mais aparecera depois daquele caso que fora seguido tão logo pela morte do marido.
Sem dúvida achara prudente assim - e de fato tinha sido.
E agora havia a esbelta e encantadora jovem - Joan de Kent. Romântica devido ao cruel assassinato do pai e também de sangue real, e a mais bela jovem da corte. Não era de admirar que Eduardo gostasse de olhar para ela, porque ela era realmente uma visão encantadora e teria o mesmo destaque, naquele ambiente de damas com trajes tão magnificentes, se estivesse vestida como pastora de gansos.
Eduardo estava dançando com ela e de repente houve um momento de consternação, porque no chão, aos pés de Joan de Kent, estava sua jarreteira, ou liga.
Houve um súbito abafar de risadinhas por todo o salão. Joan ficou levemente ruborizada. Joan não era a mais modesta das mulheres, e não se podia afastar a hipótese de que tivesse deixado a liga cair de propósito. Poderia aquilo ser, na verdade, um convite ao rei?
Filipa pensou: que bobagem! Como se ela fosse fazer a coisa daquela maneira se fosse, mesmo.
Eduardo apanhara a liga. Segurou-a na mão, quase acariciando-a, e então correu os olhos pelo salão e viu as expressões no rosto de muitos dos que estavam olhando.
Por alguns segundos, houve silêncio. Então, o rei colocou a jarreteira no seu próprio joelho e, numa voz alta e sonora, disse:
- Que o mal recaia sobre quem mal pensar.
Tomou a mão de Joan e a dança continuou. Quando a dança chegou ao fim, ele dirigiu-se aos presentes e disse:
- Os senhores viram a jarreteira e agora irei homenageá-la. A jarreteira é um velho símbolo de honra na cavalaria de nosso país. Meu grande ancestral, Ricardo Coração de Leão, ordenou que os mais bravos de seus cavaleiros a usassem no ataque contra Acre. Aqueles cavaleiros destacaram-se em coragem e denodo, e ficaram conhecidos como os Cavaleiros da Correia Azul. É uma história que passa de geração em geração nos anais da cavalaria. Agora darei à minha nova ordem o nome de Ordem da Jarreteira, e por ser uma peça íntima, e vi expressões nas faces dos senhores que não me agradaram, haverá um lema gravado na liga, que será o seguinte: "Honi soit qui mal y pense" Essa honraria será a mais alta entre os cavaleiros ingleses e não haverá mais de 25 cavaleiros da Jarreteira esperando por membros de minha família e estrangeiros ilustres.
Houve um forte aplauso, e o rei ficou vários dias mergulhado nos trabalhos de decidir como a ordem deveria ser apresentada e do que deveria ela consistir.
Ficou decidido que as posses teriam lugar na Capela de Windsor e que o distintivo da ordem seria um medalhão de ouro representando São Jorge e o Dragão, pendurado numa fita azul. A liga seria de veludo azul-escuro e deveria ser usada na perna esquerda, logo abaixo do joelho. O principal de tudo era a inscrição.
E dali em diante, as festividades da Torre Redonda eram lembradas não devido aos campeões das justas ou pela grande comemoração que se seguira, mas porque a Bela Donzela de Kent deixara cair a sua liga aos pés do rei e, com isso, criara a mais alta ordem de cavalaria.
Enquanto a corte se divertia a valer, a tragédia preparava-se para atingir a família real.
A princesa Joana aguardava o chamado para deixar Bordeaux e seguir para Castela; esperava aquilo todos os dias e sentia uma certa apreensão. Já ficara sabendo como era ficar longe de casa, ter saudades da família, descobrir que não se podia esperar da parte de outras pessoas o mesmo calor humano recebido de seus adorados pais.
Às vezes, ela ouvia suas damas sussurrando e sabia que era a respeito de seu futuro marido. Todas as noites, rezava para que não precisasse ir para Castela. Alguma coisa iria acontecer, como ocorrera na Áustria, e ela seria devolvida aos pais.
O casamento,, às vezes, parecia fugidio. Vejam o que acontecera com Isabella. Ela estivera a uma semana de se tornar uma mulher casada e o futuro marido fugira. Havia uma esperança, é claro, de que algum obstáculo evitasse o casamento de Joana. Ela ouvira dizer que havia algumas pessoas na corte que não a queriam.
Talvez no ano que vem, nessa mesma época, eu já esteja de volta a Windsor, pensava esperançosa.
Ela encontrava um grande consolo no seu trabalho de agulha. Era relaxante observar as figuras de seda irem surgindo. Ela adorava as cores suaves e escolhia-as com cuidado. Suas damas gostavam de trabalhar com ela e conversavam enquanto a ajudavam.
Ali em Bordeaux estavam todos felizes; as árvores eram muito bonitas durante os meses de verão, e elas as haviam visto dar botões e flores. Joana disse que gostaria de bordar a cena vista da janela do castelo, para que quando olhasse para ela, quando ficasse velha, pudesse se lembrar do tempo que passara naquele local encantador.
- Um dia - disse ela -, vou olhar por essa janela e ver mensageiros chegando. Eles vão trazer instruções de meu pai. Então, sairei daqui e este período acabará...
- Não deve ficar triste, senhora-replicou uma das damas. - A senhora vai se tornar uma grande dama.
Ela não respondeu. Um calafrio passou-lhe pelo corpo. Se não tivesse sido por suas experiências na Áustria, poderia ter tido esperanças. Pensava em Isabella partindo para se casar. Como estivera animada! Mas ficara muito feliz por voltar para casa.
Um mensageiro chegou ao castelo. Joana percebeu uma certa atividade lá embaixo. Quase que imediatamente, uma das criadas apareceu.
- Minhas senhoras, as senhoras devem preparar-se para partir já. A peste chegou a Bordeaux.
com algumas de suas damas de companhia, Joana deixou o castelo e foi para a pequena aldeia de Loremo.
Tinha sido decidido que as aldeias eram mais seguras do que as cidades, e de qualquer maneira Bordeaux seria uma cidade afetada em menos de uma semana.
As damas estavam desanimadas. Agradeciam a Deus por terem escapado. Tentavam dedicar-se ao trabalho de agulha, mas o tempo todo pensavam na terrível peste que as pessoas começavam a chamar de Morte Negra, porque as vítimas ficavam cobertas de grandes manchas pretas putrefatas, que continuavam após a morte.
Não era fácil trabalhar naquelas belas sedas e não ver os horrores da realidade. As pessoas atacadas pela doença morriam tão depressa, que as que ficavam não conseguiam enterrá-las e tinham de ser atiradas em valas. Chegar a uma distância em que se pudesse ver uma pessoa morta de peste representava o máximo de perigo.
Graças a Deus, diziam as damas de Joana, fomos avisadas e saímos de Bordeaux.
Mas um dia, quando Joana estava sentada fazendo seu bordado, uma certa lassidão tomou conta dela. O azul brilhante da seda ficou escuro; a tapeçaria recuou e escorregou de suas mãos.
Suas damas de companhia curvaram-se sobre Joana. Ela ouvia as vozes que pareciam vir de muito longe.
- A nossa patroa não está bem. E então, o grito lancinante:
- Deus do céu, não pode ser! Não... não... Não pode ser. Levaram-na para a cama. Olharam para ela horrorizadas, porque havia sangue em seus lábios e as manchas pretas começavam a se formar.
A peste chegara à aldeia de Loremo, e sua primeira vítima era a princesa Joana.
Filipa foi tomada pela dor quando a notícia chegou até ela. Trancou-se no quarto, para que pudesse ficar sozinha no seu sofrimento.
Sua filhinha, sua adorada Joana, que sempre fora amorosa e carinhosa... morta. Filipa ficara preocupada com ela, porque ouvira sussurros sobre a natureza do rapaz que se tornaria seu marido, e embora fosse jovem ela ficara sabendo que as pessoas começavam a referir-se a ele como Pedro, o Cruel. Joana já sofrera bastante no início de sua infância, ao ser enviada para a Áustria. Pobre Joana, parecia condenada pelo destino. Alguma coisa dizia a Filipa que a menina estaria melhor morta do que casada com Pedro, o Cruel.
Mas talvez estivesse apenas tentando consolar-se.
Eduardo foi para o lado dela e os dois se lamentaram juntos. Eduardo adorava os filhos com a mesma devoção dela, e tinha um amor especial pelas filhas. Joana nunca tivera o mesmo grau de favoritismo com ele que Isabella, mas ele adorara Joana e sua morte o abalara profundamente.
- Temos de nos lembrar de que temos outros, meu amor - disse a Filipa. - Fomos abençoados de uma forma sem igual com nossos filhos.
Ela curvou a cabeça. Era verdade. Tinham a família deles. Filipa tinha sido uma esposa fértil para Eduardo e ficava contente com isso. Eduardo pensava o mesmo enquanto passava um braço em torno dela.
Querida Filipa, sempre tão inabalavelmente boa para ele. Adoravaa, mas verificava que sua atenção estava sendo atraída, cada vez mais, para mulheres mais jovens.
A constante geração de filhos deixara a sua marca na rainha. Estava ficando tão gorda, que estava achando mais difícil locomover-se. Antigamente, ela estivera ao lado dele sempre que possível. Agora, havia ocasiões em que não podia fazer viagens longas.
Ele sempre fora um homem de fortes desejos e estes não diminuíam porque estivesse ficando mais velho e sua boa esposa já não fosse jovem. Ele amava Filipa; sentia-se grato por ter Filipa; não teria escolhido outra mulher, se pudesse fazê-lo agora. Ela era sua querida esposa e mãe de seus filhos; mas não impedia que sua atenção se desviasse para outras mulheres.
Eduardo acreditava na santidade do matrimónio; queria ser um marido fiel; mas muito embora já não fosse jovem, continuava viril como sempre. Era de uma beleza fora do comum; sem dúvida alguma, destacava-se como líder de qualquer grupo em que se achasse; seu amor pela ostentação só fizera aumentar seus atrativos; e havia a aura da realeza. Não ficava mais fácil para ele reprimir seus desejos naturais quando estava claro que haveria pouca oposição por parte dos objetos deles.
O rei era delicado e terno com Filipa, mais ainda devido àqueles pensamentos infiéis que estavam ficando cada vez mais difíceis de abafar.
Mas cerca de uma semana depois da notícia da morte de Joana havia pouco tempo ou tendência a pensar em outra coisa que não naquele terrível mal.
A Morte Negra chegara à Inglaterra. Ela atacou primeiro no oeste do país, na costa de Dorset, levada do continente por um marinheiro. Espalhou-se rapidamente e, em uma semana, chegou até Bristol. Era apenas uma questão de tempo antes de chegar a Londres.
Á capital oferecia as condições perfeitas nas quais ela podia florescer. As casas e as ruas superlotadas e as imundas sarjetas infestadas de ratos eram o melhor campo de reprodução possível.
Não havia quem pudesse cuidar dos doentes. Eles eram deixados para morrer, e os cadáveres malcheirosos exalavam odores tão nauseabundos, que chegar perto deles significava quase uma morte certa.
As pessoas tentavam fugir das cidades lotadas, e as estradas estavam cheias de homens e crianças levando consigo tudo o que podiam carregar em cavalos de carga e jumentos. Alguns ficaram para fazer o que pudessem e ficou combinado que os corpos tinham de ser enterrados. Sir Walter de Manny, então, comprou uma área chamada Spittle Croft (Sítio do Lazareto) porque pertencera aos mestres e irmãos do Lazareto de São Bartolomeu. Ela consistia de cerca de sete hectares. Ali foram cavadas covas e os mortos foram enterrados. Dentro de um ano, dizia-se que ali jaziam cinquenta mil corpos. A área foi cercada por um alto muro de pedras, para impedir a saída da peste, que continuava a grassar na Inglaterra.
Para muitos parecia que o fim da espécie humana estava próximo.
"Isso é a vingança de Deus contra a humanidade", diziam os piedosos. Cidades estavam desertas; aldeias perderam todos os seus habitantes; navios flutuavam sem rumo ao longo da costa até que uma tempestade os levasse para sempre; o motivo era que todos os membros de suas tripulações tinham sucumbido à peste.
Pessoas amedrontadas olhavam à sua volta à procura de bodes expiatórios, e como de costume em casos assim no continente, os judeus levaram a culpa. Dizia-se que eles tinham envenenado os poços e as fontes com preparados feitos por eles mesmos e retirados de aranhas, corujas e outros animais venenosos. Muitos foram torturados e, como era de se esperar em casos de extrema agonia, confessaram o que se queria.
Algumas pessoas mais criteriosas tinham descoberto que eram os navios que carregavam a peste de um lugar para outro, porque ela sempre aprecia primeiro nos portos; mas ninguém percebeu que os portadores da doença eram os ratos que estavam infestados de vermes. com o passar do tempo, o tráfego entre países era tão reduzido, devido à diminuição da população mundial, que a peste começou a desaparecer.
Mas a prosperidade que existira no país acabara. Não havia quem cultivasse os campos. Trabalhadores eram tão escassos que exigiam salários mais altos. Haveria uma fome inevitável, e muito embora a população tivesse diminuído não haveria trigo suficiente para atender a suas necessidades.
A crença de que o juízo final estava à sua frente exercia efeitos diferentes sobre certas pessoas. Algumas viviam na devassidão, entregando-se a atividades sexuais com um ar quase piedoso porque, como diziam, era necessário ser fértil e reabastecer a terra assim que possível. À Hungria e à Alemanha chegaram fanáticos que se intitulavam Irmãos da Cruz. Quando chegaram à Inglaterra, eram conhecidos como Flagelantes. Declararam que assumiriam os pecados do povo que tinham provocado a vingança divina contra o mundo sob a forma da peste. Eles marchavam pelas ruas vestindo túnicas pretas com cruzes vermelhas à frente e nos gorros que usavam. Levavam açoites amarrados em nós com pontas de ferro. O público afluía em peso para ouvi-los pregar e para segui-los. Eles eram proibidos de ter qualquer coisa a ver com mulheres, e se o fizessem e fossem apanhados, eram condenados a vários golpes de açoite.
Todos os dias, a uma hora combinada, eles marchavam pelas ruas, quando tiravam as túnicas de modo a que a parte superior do corpo ficasse nua, e açoitavam uns aos outros enquanto caminhavam. Quando chegavam a um determinado ponto, deitavam-se um a um, e cada homem, antes de se deitar, dava uma chicotada naquele que se deitara antes dele.
O público observava-os espantado, muitos juntavam-se a eles porque parecia um ato nobre assumir os pecados do mundo. Alguns diziam que a peste estava diminuindo devido aos esforços deles.
Eduardo, agradecido por ele e sua família terem escapado da peste - à exceção de Joana -, dedicou-se a restaurar a prosperidade do país.
Viu que era impossível pagar aos trabalhadores os salários que agora estavam pedindo, e os campos precisavam ser cultivados; o trabalho tinha de continuar, e como havia menos gente para realizar aquelas tarefas, seria desastroso para o país se os altos salários que estavam exigindo fossem pagos.
Ele agiu prontamente e criou o Estatuto dos Trabalhadores.
Nele, ficava estabelecido que:
"Tendo em vista que grande parte do povo e especialmente trabalhadores e criados morreram de peste, muitos, vendo a necessidade dos patrões e a grande escassez de empregados, não querem trabalhar a menos que recebam salários excessivos e alguns preferem mais viver naraatividade do que trabalhando para ganhar seu sustento, nós, considerando as graves inconveniências que a falta de lavradores e de tais trabalhadores nos trouxe, ordenamos:
"Que todo homem e mulher do nosso reino da Inglaterra, qualquer que seja sua condição e que estiver com idade de até sessenta anos, sem exercer qualquer atividade, seja obrigado a servir a quem o requerer; e receber apenas o salário que costumava ser pago em tais lugares (...)
"Que seleiros, esfoladores, cordovaneiros, alfaiates, ferreiros, carpinteiros, pedreiros, telheiros, construtores de navios e carroceiros e todos os outros trabalhadores não irão receber pelo seu trabalho mais do que aquilo que costumava ser pago; e se alguém receber mais, será mandado para a prisão.
"Que açougueiros, peixeiros, hoteleiros, fabricantes de cerveja e outros vendedores de géneros alimentícios serão obrigados a vendê-los por um preço razoável, a fim de que os vendedores tenham lucros moderados, mas não excessivos."
Aos poucos, o país começou a entrar em sua rotina normal. com a população enormemente exaurida lutando para fazer dele o país próspero que tinha sido antes de a peste atacar.
Muitas crianças nasceram nos meses seguintes e isso foi considerado um sinal de que a ira de Deus estava aplacada. Os flagelantes juravam que eram responsáveis e seguiam pelas ruas agredindo uns aos outros, extasiados.
Mas com a peste diminuindo e tanto trabalho a fazer, o povo perdeu o interesse pelos Irmãos da Cruz.
Ele estava, agora, ansioso por voltar à prosperidade. Percebeu que muitas mulheres tinham gémeos e, com uma frequência maior do que nunca, algumas geravam trigêmeos.
- A má fase terminou - declarou o povo. - Deus está sorrindo para nós outra vez.
O REI FICOU PERTURBADO ao receber uma carta de sua irmã Joana, a rainha daEscócia. Da última vez em que a vira, ele estava com dezesseis anos e ela era uma menina de sete. Sentira muita pena dela, por ter sido enviada para se casar na Escócia, considerada, segundo diziam todos, um país sombrio e selvagem.
Ele foi imediatamente procurar Filipa para expor-lhe a proposta de Joana.
- Ela quer um salvo-conduto para a Inglaterra - disse ele. Você pode adivinhar o que ela pretende.
Filipa confirmou com a cabeça.
- Um perdão para o marido. Qual vai ser a sua resposta?
- Não - replicou Eduardo. - Em breve terei de ir de novo para a França. Seria uma loucura dar aos escoceses um revigoramento na pessoa do rei deles.
- Mas você não tem David em alta conta.
- David! - o rei soltou uma gargalhada. - Quem iria acreditar que esse molengão é filho de Robert, o Bruce!
Ele fez uma pausa, franzindo o cenho. Quem acreditaria que ele era filho de seu dissoluto pai? Grandes pais, às vezes, tinham filhos fracos, e pais fracos tinham grandes filhos. Ele tinha certeza de que o rei que o seguisse seriaum grande rei. O Príncipe Negro, jáídolo do povo, homem que mostrara, na guerra, ser um líder de homens. vou morrer feliz, pensou Eduardo. Mas estava na hora de o príncipe se casar.
- Pobre Joana - disse Filipa -, não acho que algum dia ela vá ser feliz com ele. Todos sabem que ele é um devasso.
- Parece que ele ficou firme com Katherine Mortimer-replicou Eduardo.
- A mulher mora com ele, acho eu. Ele é bem tratado como prisioneiro.
- Ele é um rei e eu não iria negar-lhe uma amante. Não, eu não vou dar ouvidos aos pedidos de Joana. É melhor que o marido dela continue nesse feliz cativeiro aqui do que voltar para a Escócia e reunir um exército.
- Você acha que é isso mesmo?
- Acho, meu amor. Mas não posso negar um salvo-conduto a Joana.
- Talvez quando ela chegar vá implorar com insistência... Eduardo abanou a cabeça, e Filipa sorriu. Ninguém era mais firme do que Eduardo quando tomava uma decisão. Ela mesma tinha um grande interesse no assunto, porque David fora capturado em Nevilles Cross quando ela se encontrava como regente. Eduardo mudou de assunto.
- Está na hora de nosso filho se casar. Por que você acha que ele adia tanto?
Filipa ficou pensativa. Ela não compreendia aquele filho a quem adorava talvez mais do que ninguém mais, mesmo Eduardo. O seu Príncipe Negro era um herói em todos os sentidos. Sua beleza, sua bravura, sua perícia no campo de batalha eram inegáveis. As pessoas chamavam-no de o vencedor de Crécy - e isso acontecera quando era pouco mais do que um menino. Ela tremera ao saber que o pai dele não queria mandar ninguém em seu auxílio porque queria que o jovem Eduardo obtivesse a glória naquele dia. Ele poderia ter sido morto. Mas na verdade fizera jus ao título de cavaleiro.
Havia nele um ar de alheamento, uma indiferença. E por que não se casava? Não lhe faltava interesse pelas mulheres. Na verdade, tinha havido um rumor de que tivera um filho com uma delas. Por que ele hesitava?
- Parece que ele não se interessa pelo Estado - disse Filipa -, mas é verdade...
- Ele teve uma ou duas amantes - disse Eduardo. - Tudo bem, mas agora está com idade para se casar. Eu gostaria de ver meu neto antes que se passem muitos anos.
- Creio que ele gosta de Joan de Kent. É uma bela jovem... há quem diga que é a mais bonita da corte... e tem sangue real.
Eduardo não enfrentou o olhar da rainha. Concordava que Joan de Kent era uma das jovens mais atraentes da corte. Às vezes desejava não ter imposto a si mesmo um código tão rígido. Então, liberaria seus impulsos. Outros reis tinham feito aquilo, e a pequena fraqueza tinha sido aceita. Era em Filipa que ele estava pensando. Amava Filipa; não iria querer magoá-la de forma alguma.
Mas Joan de Kent... que beleza! Involuntariamente, ele comparou aquele corpo esguiamente sedutor, aqueles magníficos ossos, aqueles olhos lânguidos, aquele sorriso que era quase um convite, com Filipa. Como Filipa engordara! Ela chiava ao andar e não conseguia deslocar-se sem dificuldade.
Sempre tentava vê-la como a menina de rosto juvenil que tinha sido quando se casara com ela e estava muito satisfeito com ela. Mas é claro que ela sempre fora simples.
- Joan de Kent - disse ele. - Não poderíamos dizer não a um casamento desses. Por que ele não a pede em casamento?
- Talvez você pudesse falar com ele.
- Talvez você devesse falar - replicou Eduardo.
Filipa concordou que iria falar, mas não era fácil conversar com o príncipe sobre coisas daquele tipo. Ele fugia do assunto com grande facilidade.
Eduardo pensou em ter a perturbadora Joan como nora.
Seria desconcertante.
Foi para Filipa que a rainha escocesa voltou-se à procura de consolo. Filipa parecia compreender o quanto ela estava desolada e o quanto se sentia intimidada pela corte inglesa. Eduardo era delicado como sempre com ela, mas mostrava um constrangimento que ela achava ser devido à sua presença na Inglaterra.
Era uma situação estranha; o cunhado era seu prisioneiro e a irmã viera implorar a liderdade dele. Para um homem de família como Eduardo, era uma situação penosa, e ele acreditava que teria sido melhor para todos se Joana tivesse ficado na Escócia.
Quando ela pediu com fervor a libertação do marido, Eduardo ficou inflexível. Ela devia compreender que com a libertação de David era muito provável que uma vez mais explodisse a guerra na fronteira. Eduardo não podia permitir que isso acontecesse. Seu país fora devastado pela peste - e por falar nisso, a França também; o mesmo acontecera com a Europa inteira, o mundo inteiro. Não era hora de deixar que homens imprudentes causassem problemas.
Joana entendeu perfeitamente, mas sugeriu a Filipa que poderia haver um tratado, com uma das cláusulas sendo a libertação de seu marido.
Mas. Filipa estava certa de que Eduardo jamais concordaria.
- Nesse caso - replicou Joana -, devo ficar aqui na Inglaterra com meu marido e compartilhar de sua prisão.
Filipa ficou constrangida. Como poderia dizer à cunhada que David tinha uma companheira compartilhando de sua prisão - a bela e descarada Katherine Mortimer?
Filipa discutiu isso com Eduardo e os dois concordaram que de nada adiantaria dar a Joana conhecimento daquela ligação entre o marido e a amante, que tinha tal importância para ele que preferia-ou assim dizia - continuar na Inglaterra com a amante do que voltar para a Escócia para o lado da rainha.
Claro que se ele fosse solto não havia dúvida de que Katherine Mortimer iria acompanhá-lo à Escócia.
Era muito melhor, argumentou Filipa, Joana voltar para a Escócia acreditando que o rei da Inglaterra estava firme em sua decisão de manter o marido dela preso do que ficar sabendo da verdade sobre o irresponsável e infiel marido, pelo qual era claro que ela nutria uma grande afeição leal.
Assim, Joana fez os preparativos para partir.
Primeiro, visitou o túmulo do pai em Gloucester. Ficou triste ao pensar no infeliz fim que ele tivera e na tragédia da vida dele e da sua. O mistério ainda cercava os acontecimentos no castelo de Berkeley, mas havia rumores maldosos sobre eles, e Joana sonhava muito com o pai e pensava nele como ele fora quando ela era criança e fora obrigada a um casamento escocês por sua mãe dominadora.
Ela não possuía muitas jóias, mas colocou algumas sobre o túmulo do pai, pensando nele quando fora bonito e delicado - embora nunca passasse muito tempo com os filhos.
Rezou com fervor pela alma dele e depois foi ao castelo de Rising para visitar a mãe.
A rainha Isabella, que representara um papel tão importante na deposição do marido e durante algum tempo governara a Inglaterra com o amante, Roger de Mortimer, parecia ter aceitado uma vida tranquila. Ainda era bonita, apesar da idade, e era a Senhora Dadivosa para o povo da vizinhança. Vivia bem e parecia não ter remorsos sobre os atos perversos que inspirara.
Era difícil acreditar que aquela senhora tranquila tinha sido a instigadora do terrível assassinato ocorrido no castelo de Berkeley.
Ela recebeu a filha com graça e ofereceu-lhe uma recepção digna da realeza no castelo. Falou com indisfarçável prazer dos presentes que recebera, de vinhos e de esturjão em barris, seu alimento preferido.
Não tinha o mínimo interesse pelos problemas de Joana e praticamente não mencionou a prisão do marido dela.
Havia nela uma alheamento, até mesmo sinais de que não se sentia à vontade. Joana soubera que de vez em quando a mãe caía em estados de quase loucura, mas que estes estavam ficando cada vez menos frequentes.
Para Joana, o passado parecia um sonho; o presente era uma tragédia, e ela não tinha coragem de olhar para o futuro.
Triste, voltou para a Escócia.
A princesa Isabella ainda sofria, de vez em quando, ao se lembrar da maneira pela qual Luís de Flanders a abandonara e quase que imediatamente se casara com Margaret de Brabant.
O fato de ele ter ficado tão decidido a ponto de planejar uma fuga, que executou com alguns de seus amigos, era realmente ultrajante.
Ela fingira não ligar - e na verdade não sentira nenhum grande amor por Luís -, mas o fato de ela, a filha adorada do rei, por quem ele mostrava um favoritismo maior do que por qualquer outra pessoa, ter sido abandonada pelo noivo era torturante para sua vaidade.
Sentia-se um pouco contrariada, também, devido à atenção que Joan de Kent chamava da corte. Dizia-se - longe dos ouvidos de Isabella, é claro - que Joan era a jovem mais bonita da corte. Ela também tinha sangue real, o que era de irritar. Tinha muitos admiradores, e Isabella também percebera que até o rei muitas vezes deixava os olhos pousarem nela.
Joan provocara um certo escândalo recentemente ao admitir que se casara em segredo com Thomas Holland. Isso acontecera quando os planos de casá-lacom o conde de Salisbury estavam avançando depressa demais; e quando se descobriu que ela de fato vivera com Holland como esposa, nada se pôde fazer a não ser aceitar o casamento.
O Príncipe Negro, nitidamente atraído por Joan, devia ter ficado profundamente decepcionado; mas Isabella compreendia a impaciência de Joan para com ele, porque embora fosse evidente que gostava dela, não fizera esforço algum para casar-se com a jovem.
Joan era astuta; Joan era inteligente. Isabella acreditava que se Eduardo tivesse proposto casamento, ela teria encontrado algum meio de livrar-se de sua união com Holland. Joan poderia estar enamorada por aquele rapaz - tanto que não pudera resistir a ele -, mas seus olhos estariam na coroa que um dia o Príncipe Negro herdaria.
De modo que havia muito falatório sobre a Bela Donzela de Kent e pouca atenção para a bela filha do rei.
Era uma situação que não se podia permitir que continuasse.
Isabella passara a se interessar por um jovem nobre gascão. Chamava-se Bernard Ezi, cujo pai-também chamado Bernard-era lorde de Albret e fora para a Inglaterra quando estava sendo providenciado o casamento de Joana, irmã de Isabella, com Pedro de Castela. O filho dele - Bernard Filho - o acompanhara.
O jovem Bernard era muito bonito, alto, charmoso, e ele e aprincesa tinham ficado amigos. Na verdade, Bernard se apaixonara por Isabella.
Ainda sofrendo com a rejeição de Luís, Isabella gostou muito de aceitar as atenções dele e concluiu que ali estava alguém que a adorava, formando um grande contraste com Luís de Flanders.
Ele ficaria muito contente se ela concordasse em se casar com ele. Naturalmente que ele não ousaria aspirar tão alto, mas estimulado por ela, declarou sua paixão e disse-lhe que o maior prazer de sua vida seria casar-se com ela.
Isabella disse que falaria com o pai antes dele. Isso não era, em absoluto, um comportamento ortodoxo na corte. Estrangeiros sem dinheiro não chegavam à corte e pediam mãos de princesas. Isabella não se preocupou com isso. Ela se jactava de poder conseguir o que quisesse do pai. Bernard não sabia que o rei a adorava tanto que não podia negar-lhe coisa alguma?
Bernard sabia disso, mas achava que a complacência do rei para com a filha não se estenderia ao casamento.
Isabella decidiu mostrar-lhe que ele estava errado.
Procurou uma oportunidade de ficar a sós com o pai, o que não foi difícil, porque Eduardo estava gostando cada vez mais dela, enquanto ficava levemente crítico em relação à sua mulher. Não que não amasse Filipa, mas admirava outras mulheres com corpos bonitos, e o de Filipa estava ficando cada vez mais pesadão a cada semana que passava.
Isabella segurou o braço dele e levou-o até um banco da janela porque, segundo ela, tinha uma coisa muito importante a lhe dizer.
Ele ficou radiante, pois adorava partilhar confidências da filha.
- Meu querido pai - disse ela -, é maravilhoso ter o senhor a meu lado. Como me senti infeliz enquanto estava na Torre e o senhor estava na França! O senhor não quis me deixar ir com o senhor...
- Eu temia pela sua segurança, querida - explicou o rei. - No final você foi comigo, lembra-se?, e ficou com medo quando os franceses atacaram nossos navios, não ficou?
Ela abanou a cabeça.
- O senhor estava perto de mim. Eu sabia que o senhor venceria. Ela beijou-lhe as faces, e ele sorriu, afetuoso.
- O senhor deve ter pensado que está na hora de eu me casar. E penso que não faz pressão porque teria horror de me perder. Confesse.
- Eu confesso - disse Eduardo.
- E o senhor gostaria muito se eu me casasse com alguém que não precisasse me levar para fora do país, de modo que pudéssemos todos viver felizes na Inglaterra.
- O meu desejo seria esse, é claro. Ah, se ao menos fosse possível!
- É, meu querido pai, é possível. E é o único casamento pelo qual me interesso. Acha que um dia me permitiria ficar separada do senhor?
- Para mim será uma grande tristeza quando chegar o dia... como receio que chegará.
- Ele não chegará-disse ela.-Decidi com quem vou me casar. Ora, papai, meu querido pai, aquele a quem mais vou amar em toda a minha vida... marido ou não... não me separarei do senhor. Isso eu juro.
De modo que, para mim, nada de príncipe estrangeiro. Vai ser um homem de nível tão modesto, que não importa se ele vai para o país dele ou fica no meu.
- Você é uma menina encantadora. Infelizmente, porém, precisa amadurecer e casar-se um dia.
- Esse dia chegará em breve, majestade. Eu escolhi Bernard Ezi. Eduardo ficou assombrado demais para falar, e Isabella apressou-se a continuar:
- Tenho de me casar com ele. Não quero nenhum outro. Sei que ele não tem nada... mas o senhor dará a ele propriedades aqui... perto de Windsor, talvez, e eu não perderei o senhor. Esta é a minha maior preocupação.
- Minha doce filhinha, isso é impossível.
- Eu disse a Bernard que o senhor daria o consentimento.
- Não, minha filha. Não vai ser possível.
Os lábios de Isabella formavam uma linha firme.
- Sim, meu pai querido, vai ser. Tem de ser. É isso que eu quero.
- Isabella, minha doce filha, você é jovem e isso é uma empolgação passageira por esse rapaz. Se você quiser um marido, encontrarei um que seja digno de você.
- Alguém que me leve para longe do senhor. - Ela se levantou e bateu o pé. - Eu não vou. Jamais irei. vou me casar com Bernard ou... morrer.
- Mas isso é um absurdo...
- Não é, não. Meu querido pai, o senhor tem de concordar com isso, tem de dar seu consentimento, senão serei a mulher mais infeliz do seu reino. Tenho de me casar com Bernard. Meu pai adorado, se o senhor me ama, diga que vai me conceder isso...
Ele estava vacilando. Não suportava desapontá-la. Era um pai muito sentimental, em especial ao que se referia a suas filhas, e a favorita de todos os filhos era a bonita Isabella.
Ele estava raciocinando com rapidez. A querida filha está falando sério. Ora, vamos pensar nesse Bernard Ezi. O que ele vai herdar? Albret! Não é nada. Como posso deixar que minha filha se case com um homem de tão poucas posses? No entanto, eu poderia promovê-lo. Poderia dar-lhe um condado... Poderia fazer a coisa de tal maneira que eles ficariam morando na Inglaterra. Eu iria vê-los com frequência. Os filhos deles estariam aqui comigo... meus netos.
Ela passara os braços em torno dele; estava quase sufocando-o com os seus abraços.
- O senhor é o mais querido e bondoso pai do mundo - declarou ela.
E sabia que havia vencido.
A corte inteira ficou perplexa ao saber que o rei concordara com o casamento de sua filha com o filho de um nobre menor, muito embora ele fosse herdeiro do pai. Filipa compreendeu perfeitamente. Sua obstinada e mimada filha conseguira, uma vez mais, o que queria do pai. Ora, se Isabella e Eduardo estavam contentes, isso era o bastante para Filipa.
E Isabella parecia felicíssima. Estava decidida a ter o casamento mais pomposo que há muito a corte não via. Mandou chamar costureiras e bordadeiras, porque tinha paixão por aquele tipo de decoração. Tinha encanto por um traje em especial. Uma manta de seda com arminho nas bordas e bordada em prata e ouro com figuras de pássaros, árvores e animais. Havia outros trajes belíssimos, e Isabella insistia em experimentar tudo e desfilar diante da mãe, e das irmãs e dos irmãos que estavam na corte.
Convenceu o pai a ir admirá-la, e ele ficava sentado, de braços cruzados, olhando com um prazer benigno, enquanto a filha andava de um lado para o outro à sua frente chamando atenção para a excelência do bordado e do fino tecido de suas roupas.
As pessoas tinham deixado de impressionar-se com a terna complacência dele para com aquela filha e de surpreender-se com o fato de o grande rei e guerreiro envolver-se com atavios femininos.
Ele parecia muito satisfeito com o casamento e, de fato, disse a Filipa que tendo em vista o fato de sua filha estar fazendo um casamento tão insignificante assim, não havia necessidade de dar-lhe um dote vultoso que um príncipe ou um rei teria exigido.
Fosse como fosse, era tudo válido para ver a filha tão feliz.
Faltava apenas uma semana para o dia da celebração das núpcias, quando Isabella foi procurar o pai e disse que, afinal das contas, resolvera não se casar.
Eduardo olhou para ela, pasmo. Onde estava a feliz noiva dos últimos dias? O que acontecera?
Ela atirou-se nos braços dele e caiu em lágrimas. Ele procurou consolá-la, perguntando as razões para aquela mudança de opinião.
Meu pai querido, não sei. Só sei que não posso me casar com Bernard. Não quero me casar com ninguém. Quero ficar com o senhor sempre. Não posso me casar com Bernard. Por favor, entenda.
- Filha querida, está tudo preparado. A cerimónia vai acontecer dentro em pouco.
- Eu sei, eu sei. Mas não, não posso.
O rei ficou perplexo. Mas nada havia a fazer. A princesa estava inflexível.
A corte inteira comentava o assunto. Bernard, coitado, estava desconsolado. Estivera tão apaixonado pela princesa e tão encantado com a sua grande sorte ao se casar com a filha do rei, que ver-se privado de amor e honraria quando aquilo parecia tão próximo de ser seu fez com que caísse na mais profunda melancolia.
Isabella não dizia a ninguém o que pensava. Estava exultante. Fizera com Bernard o que Luís tinha feito com ela. Seu orgulho estava vingado. Ela sentia uma satisfação secreta e se perguntava se o tempo todo pretendera se casar com Bernard.
Talvez. Gostara muito dele. Era bonito, charmoso, e ela gostara de curvar-se para o nível social do rapaz. Ele sempre estivera cônscio do fato de que ela era uma princesa e ele um humilde nobre.
Agora todos estavam falando dela. As pessoas a viam sob uma luz diferente daquela da pobre princesa abandonada pelo noivo.
Além do mais, ela continuaria perto do pai, porque independente das providências que tinham sido tomadas, ela teria, num determinado momento, de ir com o marido para as propriedades dele na Gasconha.
Era uma situação estimulante que ela desfrutava por completo. Teve um sabor especial quando Bernard declarou estar cansado do mundo, retirou-se para um convento para tornar-se um monge franciscano e abriu mão de sua herança em favor de um irmão mais novo.
UM DOS EFEITOS DAMORTE NEGRA foi tornar impossível que continuassem as hostilidades entre a França e a Inglaterra, e o sonho de Eduardo de conquistar a coroa francesa teve de ser adiado por algum tempo.
Filipe da França, agora um homem idoso, tornara a se casar e sua mulher era Blanche de Navarra, uma jovem de dezenove anos, mas poucos meses depois do casamento Filipe morreu e seu filho Jean tornou-se rei.
Jean queria pôr um fim às reivindicações de Eduardo, que considerava absurdas, e quando havia uma oportunidade que permitisse um terceiro ajudar a lutar suas batalhas, ele se aproveitava dela.
Jean reconhecia que a vantagem da Inglaterra estava no seu superior poderio naval, que aumentara de forma considerável depois da batalha de Helvoetsluys, e acreditava que se pudesse afetar aquele poder a vitória final sobre a Inglaterra estaria à vista.
Alfonso de Castela, pai daquele Pedro, o Cruel, que teria sido marido de Joana se ela não tivesse morrido da peste, também fora vítima daquela horrível maldição, de modo que agora Pedro era o rei de Castela. No entanto, Pedro tivera um irmão mais velho que morrera mas deixara um filho, e este filho, Charles de Ia Cerda, afirmava que tinha primazia na reivindicação do trono da Castela. Charles apelou a Jean da França que o ajudasse a obter seus direitos, e Jean deu a entender que se ele agisse contra os ingleses e mostrasse ser realmente amigo da França, Jean poderia examinar a possibilidade de ajudá-lo a conquistar a coroa de Castela.
Charles, portanto, começou reunindo seus navios com o objetivo de invadir a Inglaterra. Eduardo ficou logo alerta para o perigo. Tinham morrido muitos de seus marinheiros; o trabalho nos estaleiros quase parara e o país precisava desesperadamente de paz para voltar a tornar-se próspero.
Ele esperava com fervor que a frota espanhola não fosse grande, porque se fosse, ele não poderia enfrentá-la. Era verdade que ele derrotara os franceses em Helvoetsluy s com um número de navios muito menor do que o do inimigo. Sem dúvida que poderia ganhar outra vez; mas não estava propenso a ir à guerra. Era bem típico de Jean da França fazer com que outros lutassem suas batalhas por ele!
Nada havia a fazer, a não ser partir para a costa e reunir quantos navios pudesse. Em consequência, ele, com a rainha e os filhos, partiram para Canterbury.
O Príncipe Negro, entusiasmado como sempre diante da perspectiva de uma batalha, cavalgou ao lado do irmão mais novo, John de Gaunt, de dez anos de idade. O príncipe gostava muito daquele irmão, e quando o jovem John perguntou se podia ficar com ele durante a batalha, ele irrefletidamente prometeu que podia. A rainha, as filhas e suas damas de companhia iriam ficar em Canterbury e rezar pela vitória.
Filipa estava aflita. Ela odiava pensar em batalhas e, como sempre, sofria bastante quando sua família se envolvia nelas. Rezaria com fervor pela vitória, é claro, e sabia muito bem que como rainha da Inglaterra devia esperar que o marido e seu filho mais velho fossem à guerra; mas ficou horrorizada quando soube que o Príncipe Negro levaria o pequeno John com ele.
- Ele é uma criança - protestou ela. - Não, Eduardo, não vou admitir. John tem de ficar aqui em Canterbury comigo.
O Príncipe Negro soltou uma gargalhada.
- Ora, minha senhora, o menino tem de aprender como entrar num combate um dia.
- Um dia-disse Filipa-, mas não agora, quando é tão criança. O jovem John parecia que ia explodir. Voltou-se para o irmão e bradou:
- Mas você prometeu! Eduardo, você prometeu...! Eduardo esfregou os cabelos do irmão e disse:
- Não se preocupe, garoto. Você vem comigo. A senhora nossa mãe vai entender que é necessário. A senhora não quer que ele seja um fracote, quer?
- Ele tem dez anos...
John esticou-se até ficar com o máximo de sua altura e olhou para ela com o cenho franzido. O Príncipe Negro riu.
- Eu lhe digo o que vamos fazer. Vamos perguntar ao nosso pai. Ele vai nos dizer se você tem ou não idade para ir. - Ele se curvou em direção ao irmão. - Prometo que ele vai dizer que você deve ir. Ele mesmo já participava de batalhas bem cedo. Além disso, estarei com você. Você não vai se afastar do meu lado. Jure.
- Eu juro - disse John.
O rei deu o veredicto de que o menino tinha idade suficiente para ir, e Filipa se viu derrotada.
Sua tarefa seria ficar ali, rezar por eles, preocupar-se com eles, e ela não teria paz enquanto não voltassem.
De Sandwich, o rei partiu no navio de que ele mais gostava, o Cog Thotnas. O Príncipe Negro seguiu em outro navio, e com ele estava o jovem John de Gaunt.
Eles navegaram ao longo da costa, à procura da frota espanhola. Fazia calor e havia nevoeiro, porque era agosto, e como não havia sinal do inimigo o rei ficava sentado no convés ouvindo os menestréis tocarem para ele. Os homens estavam em todos os pontos de vigia, para o caso de os espanhóis tentarem aproximar-se sem serem percebidos.
A perspectiva de uma batalha agora, como sempre, estimulava o rei e, vestindo um casaco preto e um chapéu de pele de castor que destacava de forma ideal sua brancura, ele parecia jovem e bonito.
De repente, do castelo do mastro ouviu-se um grito de: "Espanhóis avista!"
- Toquem os clarins-bradou ele.-Chamem todos para as suas funções. Chegou a hora.
As armaduras foram vestidas as pressas, e àquela altura os espanhóis estavam muito próximos. Entusiasmado porque estava lutando em situação de grande desvantagem, Eduardo liderou sua frota ao ataque. Arremeteram contra os espanhóis, e quando ficaram bem perto, abordaram os navios deles. Eduardo derrotaria aqueles espanhóis; iria expulsá-los do mar. Ele sabia disso. Seu filho também sabia. Os dois eram iguais.
Os espanhóis estavam lançando pedaços de ferro sobre os navios ingleses, numa tentativa de afundá-los -e às vezes conseguindo. Mas Eduardo estava sempre à frente gritando palavras de estímulo, ensinando seus soldados a lutar, lembrando-lhes de que ele era invencível.
O Cog Thomas foi ao fundo, mas só depois de Eduardo ter capturado o navio que o atacara, abordado-o e assumido o comando dele. A mesma coisa acontecera com o Príncipe Negro, que se certificara de que o irmão mais novo estava a salvo a seu lado.
Foi um grande dia-uma grande batalha. Eduardo estava exultante. Ganhar uma batalha era sempre emocionante, mas quando isso acontecia lutando em uma desvantagem desesperada, era a aventura mais inebriante do mundo.
Quatorze navios espanhóis tinham sido afundados, enquanto muito poucos ingleses tinham sofrido o mesmo destino e o que restara da frota espanhola voltou capengando para a costa francesa, enquanto Eduardo seguia em triunfo para o litoral da Inglaterra.
Foi um momento de grande alegria para Filipa quando voltaram todos para a residência dela.
- Louvado seja Deus! - bradou ela.
- Foi uma grande vitória - disse-lhe Eduardo.
- Está vendo? - brincou o Príncipe Negro. - Eu trouxe seu pequeno John de volta para a senhora, são e salvo.
John correu para ela e começou a contar-lhe que os malvados espanhóis tinham afundado o navio deles e até o Cog Thomas.
- Mas nós afundamos mais navios deles - disse ele, excitado.
- E eu posso dizer-lhe, minha senhora - disse o Príncipe Negro -, que seu filho saiu-se bem.
Filipa só podia regozijar-se por eles terem voltado a salvo para ela.
A batalha foi chamada de Lês Espagnols surMer, e devido à grande vitória, Eduardo começou a ser chamado de o Rei dos Mares.
Ele estava satisfeito com o rumo que as coisas estavam tomando. Fora uma grande derrota para os franceses e eles iriam compreender isso.
Eduardo disse que deveria haver festejos para comemorá-la, e Filipa concordou. Ela não podia deixar de se perguntar, porém, o que teria acontecido se o resultado da luta tivesse sido contrário a eles; e as histórias de como o navio do rei e o do Príncipe Negro tinham sido afundados quase que com eles dentro faziam-na tremer de apreensão.
Ninguém poderia estar mais cônscio do que Eduardo da necessidade de paz. com uma população reduzida e o terrível prejuízo que a peste causara a seu país, ele precisava de tempo para recuperar as forças. Isso não poderia ser feito em poucos anos; mas parecia mesmo que Deus se arrependera de sua vingança - pois era opinião geral que a peste os visitara por intermédio da ira divina - porque nos anos seguintes nasceram crianças em grande quantidade e muitas mulheres tiveram gémeos e houve muito mais casos de trigêmeos do que tinha sido observado antes.
O povo queria paz; o mesmo acontecia, com fervor, com Eduardo. Ele admitiu isso ao seu parlamento e ficou combinado que o arcebispo de Canterbury e o duque de Lancaster seriam enviados à França para negociações.
Jean da França também compreendia a necessidade de paz, mas tomara a decisão de que liquidaria de uma vez por todas com a reivindicação inglesa da coroa francesa. Por isso, tergiversou e declarou que o assunto deveria ser submetido ao papa. Durante aquele período, Eduardo foi obrigado a manter um exército, porque não podia ter certeza de que os franceses decidiriam atacar; e assim passaram-se os meses.
Filipa ficara grávida uma vez mais, e num dia frio de janeiro deu à luz um menino, em Woodstock. Ela deu-lhe o nome de Thomas, e houve dispendiosas comemorações, apesar da necessidade de equipar um exército.
As celebrações duraram pouco, porque uns espiões vieram da França para dizer a Eduardo que o rei francês estava jurando expulsar os ingleses da França e que ele estava reunindo um grande exército com essa finalidade.
Eduardo não perdeu tempo para planejar a campanha. O Príncipe Negro deveria levar um exército dele até Bordeaux e atacar a partir de lá; enquanto que Eduardo, acompanhado pelos filhos Lionel e John, partiria para Calais.
Uma vez mais.Filipafoiobrigadaaver seus entes queridos partirem para enfrentar o perigo. Acima de qualquer coisa, ela queria paz e muitas vezes se perguntava como teria sido sua vida se Robert dArtois não tivesse incitado Eduardo a reivindicar a coroa francesa. O fato de aquela reivindicação ter vindo através da rainha viúva Isabella, cujo retorno à Inglaterra mudara a história do país, encaixava-se perfeitamente na sequência dos acontecimentos. Se uma esposa diferente tivesse sido escolhida para Eduardo II, a face inteira da história inglesa poderia ter sido diferente. Mas como era possível dizer-se "se" daquela maneira? Não era assim que a vida era feita?
Mesmo assim, como mulher, esposa e mãe, ela sabia, no íntimo, que quaisquer que fossem as conquistas feitas na França não valeriam a angústia e o sofrimento que seriam o preço pago por elas.
Assim que Eduardo chegou a Calais, os escoceses decidiram atacar na fronteira, evidentemente acreditando que com Eduardo e o Príncipe Negro fora do país eles tinham uma boa chance de vitória.
Enviaram-se mensageiros a toda velocidade para Eduardo, a fim de dizer-lhe que os escoceses tinham sitiado Berwick.
A fúria dele foi grande.
- Eu juro por Deus - disse ele - que não dormirei em cidade alguma mais de uma noite até ter chegado à fronteira entre a Inglaterra e a pérfida Escócia.
Mandou um recado para o filho.
- Eu o deixo para comandar essa campanha na França. Sei que posso confiar no seu sucesso.
Cumprindo a palavra, não descansou em lugar algum mais tempo do que o necessário.
Em pouco tempo liberara Berwick.
O rei da França fez um muxoxo de prazer quando soube que Eduardo fora obrigado a seguir para a Escócia. Falou de seus bons aliados, os escoceses, pois não era a primeira vez que lhe haviam sido úteis, e quem fosse inimigo da Inglaterra era amigo dele.
- Desta vez - declarou ele -, vou esmagá-los de uma vez por todas.
Pelo rei da Inglaterra, Jean sempre tivera uma mistura de temor respeitoso, admiração e ódio. Seu pai falara dele com o máximo de respeito. Uma vez, ele dissera que se Eduardo III tivesse sido igual ao pai aquela questão sem propósito da reivindicação inglesa da sucessão teria sido resolvida havia muito tempo e a Inglaterra teria ficado de joelhos, virando uma província da França. Mas o destino dera à Inglaterra esse outro Eduardo. Ele era igual ao avô. Havia uma certa mística em relação a esse tipo de líder. Os homens seguiam-nos e esforçavam-se ao máximo sem recompensa, não tendo outra coisa em mente que não servir. Homens assim eram invencíveis, a menos que ficassem diante de outros nas mesmas condições. Jean esperava ser um deles; mas no fundo do coração tinha suas dúvidas.
Por isso, foi boa a notícia de que os escoceses tinham levado Eduardo de volta à Inglaterra e era só o filho dele que eles tinham de enfrentar. Era verdade que o Príncipe Negro estava adquirindo uma reputação ao nível do pai. Ela se incorporara a ele depois de Crécy, embora lá ele pudesse ter sido morto ou feito prisioneiro. Que triunfo teria sido! Mas o destino mostrara-se bondoso para com ele e vivera para obter uma grande vitória e os ingleses tinham derrotado os franceses. O que tornava isso ainda mais torturante era o fato de que eles tinham vencido mesmo em inferioridade numérica. Aquilo não poderia acontecer outra vez.
Jean sempre estava ansioso por saber o que Eduardo estava fazendo. Quando Eduardo instituíra a Ordem da Jarreteira, ele o imitara formando uma irmandade chamada de Nossa Senhora da Estrela Nobre. A ela, Jean admitira quinhentos cavaleiros que tinham de jurar nunca ceder ao inimigo mais de dois hectares de terreno e morrer em combate, em vez de recuar.
Ele acreditava que agora chegara sua grande oportunidade. O Príncipe Negro estava marchando pelo país, arrasando-o enquanto avançava e conseguindo uma conquista fácil. Jean assumiu sua posição fora de Poitiers e ali esperou a chegada do exército inglês. Ali deveria travar-se a batalha decisiva.
Jean estava certo do sucesso. Tinha de enfrentar o Príncipe - não a lenda que era Eduardo III. Contava com quarenta mil homens - um número muito superior do que o que os ingleses poderiam colocar em campo. Quase toda a nobreza francesa estava com ele e havia 26 duques e condes. Seus quatro filhos marchavam ao seu lado; o caçula, Filipe, tinha apenas doze anos e ele dera ordens ao menino que não saísse do seu lado, porque aquele menino era o favorito entre todos os filhos e ele o adorava.
Houve uma certa consternação no acampamento inglês quando se percebeu a grande disparidade que havia nos números dos exércitos que se enfrentavam. Até mesmo o príncipe sentiu um receio no íntimo. Não que fosse demonstrá-lo. Como dizia ao seu amigo íntimo e companheiro constante, Sir John Chandos, agora ao seu lado:
- As batalhas muitas vezes são decididas antes de começarem. A última coisa que deve prejudicar nossos soldados é o medo de uma vantagem numérica.
- E ao senhor?
- A diferença é grande - disse o príncipe. - Mas tenho de mostrar a meu pai que sou digno de ser filho dele.
- O senhor já fez isso repetidas vezes.
- E continuarei fazendo. Falarei com os soldados antes da batalha. vou dizer a eles que os ingleses costumam vencer uma batalha quando o adversário está em maior número do que ele. Se pensaram em derrota, não podem fazer isso agora. Veja o poderio dos franceses. Isso significa uma vitória certa para nós. Lembre-se de Crécy, Helvoetsluys, Lês Espagnols sur Mer. É uma tradição inglesa. Lutar em condições de inferioridade... e vencer.
Chandos confirmou com a cabeça.
- É bom lembrar isso a eles.
Mas ao mesmo tempo Chandos tinha visto as dúvidas nos olhos do príncipe.
- Se fosse oferecida uma trégua... - começou Sir John.
- Se pudesse fazê-lo com honra, bem, meu amigo, eu iria pensar nisso. Eu não seria um tolo se a ignorasse?
Aquilo foi o bastante para Sir John. O príncipe estava preocupado com o tamanho do exército francês.
Na entrada de sua tenda, o rei da França conversava com o jovem Filipe.
- O que me diz, meu filho, vamos capturar o Príncipe Negro ou matá-lo no campo de batalha?
- Vamos capturá-lo - bradou o menino. - Assim, vamos nos divertir mais.
- Você é um menino inteligente - disse o rei, colocando uma das mãos no ombro do filho. - Seria um grande trofeu se o levássemos para Paris conosco, não?
- Posso cavalgar a seu lado quando fizer isso, meu senhor?
- Eu lhe prometo que você estará lá.
O menino olhou para o pai com olhos brilhantes; acreditava que ele era o maior homem que já existira. Não havia dúvida de que na mente do jovem Filipe eles voltariam para Paris levando o Príncipe Negro.
Os dois entraram na tenda real, magnífica construção em samito rubro, como condizia com o rei da França. Na tenda, fora armada uma mesa e sobre ela tinham pendurado a auriflama da França.
Eles celebraram com suntuosidade enquanto discutiam a ação que deveria ser adotada.
No acampamento inglês era diferente. Lá não havia festejos. Era impossível procurar alimentos, porque os franceses os cercavam. E o que eram dez mil homens contra 2.500? O príncipe não podia esquecer que a superioridade numérica significava que o rei francês poderia dividir seu exército em quatro e cada um deles ficaria do tamanho de toda a força inglesa.
- Quando a batalha estiver ganha, nós vamos festejar - disse o príncipe.
Mas primeiro precisava acontecer aquilo que a cada hora que passava parecia cada vez mais um milagre.
Enquanto isso, na cidade de Poitiers o cardeal Talleiran de Périgord convocou alguns de seus clérigos e declarou que faria o possível para evitar o combate. A cidade poderia ser arrasada se ele acontecesse, e os arredores seriam devastados. Deus mostrara, havia pouco tempo, sua contrariedade ao lançar a peste sobre eles. Agora Deus começava a sorrir para eles, mas se aquela guerra continuasse a bela terra da França seria arrasada e isso era algo que ela não podia suportar, depois de já ter enfrentado um inimigo sob a forma da terrível peste.
Houve um grande apoio a essa atitude e, como resultado, o cardeal dirigiu-se a cavalo para falar com o rei francês.
Jean recebeu-o em um estado de grande indecisão. Ele queria desesperadamente derrotar os ingleses, mas apesar de equipado como estava, tinha suas dúvidas de que conseguiria isso. Temia aqueles arqueiros ingleses que tinham dizimado o exército francês em Crécy e, embora a princípio desprezasse as sugestões do cardeal, acabou concordando em esperar para ver quais as condições que seriam conseguidas.
O cardeal, então, foi procurar o Príncipe Negro e conversou com ele.
O príncipe ouviu com atenção, e enquanto ouvia raciocinava depressa. Estava em iaferioridade numérica. Qualquer estudante de assuntos militares diria que a vitória dos franceses parecia inevitável. Como grande general, ele sabia que, se pudesse evitar aquela batalha com honra, deveria fazê-lo.
- Alteza-pediu o cardeal -, tenha piedade daqueles excelentes homens que hoje morrerão neste campo se a batalha acontecer. O senhor sabe que o rei da França tem um grande exército que numericamente representa quatro soldados para cada um dos seus.
- Eu sei muito bem disso, meu bom padre - disse o príncipe. Mas nossa disputa é justa. Meu pai, o rei da Inglaterra, é rei legítimo da França e deve ser o dono deste país. No entanto, eu não gostaria que dissessem que jovens bons foram mortos por causa do meu orgulho. Mas não posso decidir sobre este assunto sem o rei, meu pai. Mas vou dar descanso aos meus homens, e se a minha honra e a honra do meu exército forem mantidas, estarei pronto a ouvir quaisquer condições razoáveis.
- O senhor diz bem, meu bom filho - replicou o cardeal. - vou fazer o possível para conseguir a paz.
O cardeal voltou para o acampamento francês e, como resultado, foi declarada uma trégua por um dia, enquanto eram realizadas negociações.
Uma delegação de ingleses, chefiada pelo príncipe, e os condes de Warwick e Suffolk foram ao acampamento francês. Jean e Eduardo olharam um para o outro com firmeza. Jean havia visto a determinação nos olhos do príncipe, o que o deixou preocupado. Ali estava mais um daqueles líderes. Por que Deus não enviara um outro Eduardo II? Se tivesse, aquela guerra poderia ser encerrada agora e para sempre.
O que o príncipe poderia oferecer com seu lado do ajuste?, perguntou o cardeal.
O príncipe disse que soltaria todos os prisioneiros sem cobrar resgate, devolveria as cidades e os castelos que tomara durante a campanha e concordaria com uma paz durante sete anos.
Jean pensou naquela proposta. Parecia bem razoável. Correu os olhos pelos seus nobres que tinham comparecido ao conselho. Viu contrariedade em muitas fisionomias. Aqui estamos nós, diziam-lhe eles, com quatro vezes a quantidade de homens que os ingleses têm. A vitória está em nossas mãos. Não é esta a hora de negociar com eles. É a hora de entrar e aniquilá-los.
- Eu exijo a rendição do príncipe, com cem de seus principais cavaleiros - disse o rei.
O príncipe soltou uma gargalhada. com que então Jean não tinha intenção alguma de fazer uma trégua. Eduardo iria considerá-lo um louco se tivesse tal intenção, com um exército quatro vezes superior ao do inimigo.
- Seus compatriotas o têm um alta conta, senhor príncipe-disse o rei. - Eu acho que não demoraria muito e eles aumentariam seu resgate.
- Que tipo de cavaleiro o senhor pensa que eu sou?! - bradou o príncipe, irritado.-Prefiro morrer de espada na mão do que ser culpado de atos assim contrários à minha honra e à glória da Inglaterra. Os ingleses jamais pagarão resgate por mim.
O conde de Warwick, incapaz de controlar a indignação, bradou:
- Vocês, os franceses, não têm intenção alguma de fazer uma trégua. Por que iriam ter? Têm quatro vezes mais homens do que nós. Não ligamos para isso. Este é o campo e o lugar. Que cada um faça o máximo possível e Deus defenda quem tiver razão.
O príncipe deu um sorriso de aprovação. A conferência terminou e a batalha de Poitiers aconteceria dentro em pouco.
Ao nascer do sol daquele fatídico dia 19 de setembro de 1356, o príncipe estava em atividade. Precisava se preparar para um ataque ao amanhecer. Naquele dia, precisaria de toda a sua habilidade militar. Por estranho que parecesse, estava exultante pelo fato de seu exército ser tão pequeno. Conversara com seus homens durante a noite, visitando-os depois que escurecera, inspirando-os, dizendo-lhe que ocorrera a mesma coisa em Crécy, e como um inglês valia cinco franceses, eles tinham grande chance de vitória. Cada um deles deveria dar o máximo de si. Se cada um fizesse isso, não poderiam deixar de vencer.
- Por Deus - bradou ele para Chandos -, vamos vencer esta batalha. Eu sinto isso. Quero mensageiros prontos para irem até meu pai quando tivermos vencido. Deverá haver comemorações na Inglaterra, Chandos, porque pretendo fazer disso não só uma vitória contra os franceses, mas uma vitória decisiva.
- Deus o acompanhe, Eduardo.
- E você estará ao meu lado, meu bom amigo.
- Até a morte.
- Não fale em morte, John. É melhor dizer a vida toda, e quando você estiver de barba grisalha, comentaremos este dia e riremos juntos porque num determinado momento sentimos um pouco de incerteza. Agora, ao trabalho. Nossos arqueiros vão ganhar, assim como fizeram em Crécy. Não há exército na terra que possa enfrentar bons arqueiros ingleses. Nossos homens conhecem suas posições. Estarão protegidos por trás de cercas, ao longo de trilhas estreitas e entre vinhedos, cora nossos bons arqueiros enfileirados. Vamos trabalhar. A atividade começou.
A batalha atingia níveis muito altos de violência e muitas vezes parecia que as forças esmagadoras iriam decidi-la.
Havia uma pessoa que nunca vacilava, que estava sempre ali na frente de batalha, identificável pela armadura preta. A legenda! O Príncipe Negro, que não podia ser derrotado. Sempre ao lado dele estava seu bom amigo Sir John Chandos, e onde o príncipe estivesse deveria haver esperança.
Os arqueiros, em Crécy, representaram um papel decisivo, e em nenhuma parte do mundo havia arqueiros que se comparassem com os ingleses; mas durante a manhã toda a batalha oscilava entre um lado e o outro e chegou uma hora em que os arqueiros não tinham mais flechas. Mesmo assim, não se entregavam; apanhavam pedras e atiravam-nas contra o inimigo. Para muitos ingleses pareceu, então, que a batalha estava perdida, mas nem por um momento o Príncipe Negro admitiria isso.
Um dos cavaleiros, vendo a armadura brilhante da coluna francesa marchando contra eles, gritou:
- Nós, os pobres diabos dos ingleses, estamos liquidados. Isto é o fim.
O príncipe berrou muito, para que todos pudessem ouvir:
- O que você diz é uma maldita de uma mentira! É blasfémia dizer que posso ser derrotado vivo.
Quando ele aparecia, o ânimo dos soldados aumentava. Ele era o Príncipe Negro. Era invencível. Era impossível acreditar que pudesse ser outra coisa que não o vencedor.
Berrando ordens do pequeno montículo onde se posicionara, a armadura preta como um talismã para todos, ele era a inspiração deles. Era invencível - e então, seus soldados também eram. Não havia um único homem que ousasse dar meia-volta e procurar abrigo. Não havia um só que não preferisse morrer em vez de viver com a vergonha eterna de não ter lutado ao lado do Príncipe Negro naquela hora.
Que eles estavam cansados, que estavam exaustos, era claro. Que os franceses tinham sofrido pesadas baixas, também era verdade. Mas havia tantos! Por quanto tempo, perguntavam-se os ingleses, eles poderiam aguentar?
O rei da França estava esgotado. Estava no cerne da batalha, porque estava tão decidido quanto o Príncipe Negro a ganhá-la. Parecia incrível que ela tivesse durado tanto. Devia ter sido vencida havia muito tempo. Quatro para um, pensava ele sempre. E mesmo assim... está demorando muito.
O jovem Filipe estava ao seu lado, lembrando-se das instruções dele. "Você não pode sair do meu lado", dissera o rei. Filipe não queria sair. Ele não estava com medo. Sabia que homens estavam caindo à sua volta; sabia que o dia não seria como seu pai planejara. Estava ciente de que se o rei tivesse sabido que haveria tamanha desordem, teria mandado o filho para um lugar seguro.
Filipe não queria ficar em um lugar seguro. Queria ficar ao lado do pai. Aquele era um terrível batismo de guerra, mas ele estava com o pai e o pai deveria ganhar.
O rei, agora, estava a pé. Seus homens o cercavam, reagrupando-se ao seu lado. Mas os ingleses estavam investindo contra ele. O jovem Filipe olhou com horror ao ver um dos cavaleiros desabar no chão coberto de sangue.
Eles estavam vindo em direção a seu pai. Um a um, aqueles que tinham se reagrupado em volta dele iam caindo.
- Olhe à direita, papai! - gritou ele. - Papai, à esquerda! À direita! À esquerda...
Eles agora estavam todos à volta dele.
Filipe ouviu o grito: "Renda-se!"
Render-se! Seu pai! Era inconcebível.
Ele abriu a boca para dizer-lhes que estavam falando com o rei da França. Mas hesitou. Isso não seria prudente. Eram inimigos de seu pai.
Filipe viu as flores-de-lis douradas caindo ao chão. Viu o sangue que havia nelas e para ele aquilo pareceu simbólico. Seus temores eram todos dirigidos ao pai - aquele grande homem que aos seus olhos parecia um deus. Ele nunca vira o pai antes, a não ser no centro de alguma cerimónia, sendo tratado com respeito; ninguém-nem mesmo os filhos dele - esquecia que ele era o rei da França.
A multidão afastou-se e um homem forçava seu avanço. Ele reconheceu o rei e percebeu que prémio seria aquele para levar ao Príncipe Negro.
- Afastem-se-ordenou ele aos soldados que batiam com maços na armadura do rei. E depois, ao rei: - Majestade, renda-se!
- Render-me! - bradou o rei. - A quem devo me render? Onde está o príncipe de Gales? Eu gostaria de falar com ele.
- Majestade, se se render a mim, eu o levarei até ele.
- Quem é você, me diga? Você é francês.
- Eu sou Denis de Morbeque, um cavaleiro de Artois. Mas estou servindo ao rei da Inglaterra porque perdi minhas possessões na França.
Aquela conversa transmitira a quem a assistia que o prisioneiro era o rei da França e que todos queriam reivindicar a honra de tê-lo aprisionado. Um deles agarrou Filipe, que esperneou como um louco enquanto gritava:
- Soltem-me, seus bandidos! Como ousam pôr as mãos no filho real da França?
- Esse aqui é um garotinho ousado - disseram os soldados.
- Não o machuquem - ordenou Denis de Morbeque. - Venha, majestade, vou conduzi-lo ao príncipe de Gales.
A multidão cercou os prisioneiros, e o Príncipe Negro, ao ver a comoção e temendo que pudesse significar um motim, mandou dois cavaleiros verificar o que se passava. Quando os cavaleiros souberam que o prisioneiro era o rei da França, obrigaram a multidão a recuar e foram até onde estava o Príncipe Negro levando os prisioneiros.
O príncipe mal podia acreditar na sua boa sorte. Era, mesmo, o rei da França. Então, o dia estava ganho. Poitiers era um nome que seria mencionado junto ao de Crécy. Uma grande vitória, a sua.
Ele quase adorou o rei da França naquele momento. Tirou seu elmo, e indo ao encontro de Jean, curvou-se acentuadamente para ele.
- Meu bom senhor - disse ele -, isso é obra de Deus e eu representei nela apenas um pequeno papel. Temos de dar graças a Ele, insistindo bastante para que Ele nos dê a glória e perdoe esta nossa vitória.
Então, deu ordens para que trouxessem vinho para revigorar seu ilustre convidado e ele mesmo desfez os laços da armadura do rei francês.
- Meu bom primo - disse Jean, com calma -, acabe com isso. Vamos encarar a verdade. Este é o dia mais amargo de minha vida. Sou seu prisioneiro.
- Não, primo - respondeu o príncipe -, você é meu ilustre convidado.
Eduardo voltara da Escócia e estava em Westminster. Não sabia de nada do que estava acontecendo na França e só teve conhecimento quando chegaram mensageiros ao palácio.
Foi um momento que ele sabia que nunca esqueceria enquanto vivesse, porque quando percebeu de onde vinham os mensageiros, seu coração encheu-se de apreensão. Nunca se podia ter certeza se aqueles mensageiros traziam boas ou mas notícias. Ele andara preocupado, porque soubera que os franceses estavam reunindo um grande contingente e sabia como seria grande a vantagem numérica dos exércitos deles em relação aos de seu filho.
Aqueles mensageiros não tinham a aparência de arautos da desgraça.
Não, eles estavam sorrindo abertamente.
- Majestade - disse um deles, como que ensaiando um discurso -, o príncipe de Gales mandou um presente para vossa majestade. Ele espera que o presente lhe dê uma grande satisfação.
- Um presente! Meu filho! Então ele está bem?
- Bem e muito animado, majestade.
"Uma vitória", pensou o rei. "Tem de ser uma vitória."
Dois mensageiros estavam fazendo uma mesura diante dele. Carregavam algo que entregaram ao rei.
Ele olhou para o objeto. Era um elmo com uma coroa, como aqueles que só podiam pertencer a um rei.
O elmo do rei francês. Aquilo só podia significar uma coisa.
- É verdade, meu senhor - bradaram os mensageiros. - O rei da França é prisioneiro do Príncipe Negro. A vitória de Poitiers foi completa. Agora, a guerra deve terminar.
Eduardo sentiu que as emoções estavam para dominá-lo.
- Meu filho! Meu filho! - foi tudo o que disse. Então, controlou-se.
- Vocês não poderiam ter-me trazido notícias melhores. Serão recompensados por isso. Este é um grande dia para a Inglaterra. Ela terá motivos para abençoar o Príncipe Negro.
Foi imediatamente procurar Filipa e colocou o elmo coroado em suas mãos.
- Trabalho de seu filho, minha senhora - disse ele. - O nosso nobre filho. Hoje não existe um homem na Inglaterra que sinta mais orgulho de meu filho do que eu.
- O elmo do rei francês! - bradou Filipa.-Então, a luta acabou.
- Uma grande vitória. Ele fez jus ao título de cavaleiro em Crécy, e graças a Deus em Poitiers coroou-se de glória. A Inglaterra tem razão de festejar este dia.
- Isso vai significar paz - disse Filipa.-Nossos filhos voltarão para casa. Espero que seja o fim desta guerra.
Eduardo sorria em triunfo, mas Filipa pensou: jamais haverá um fim para as guerras. Pelo menos, enquanto houver coroas a conquistar e defender.
Mas era uma boa notícia. Ela não devia estragar o prazer com pensamentos melancólicos.
- O país inteiro deve comemorar-bradou o rei.-Haverá festas e fogueiras. E você e eu, minha boa rainha, devemos nos preparar para receber o herói conquistador com seu prisioneiro real.
O Príncipe Negro não tinha intenções de voltar depressa para casa. Queria saborear a vitória. Tinha de dar ao seu prisioneiro um tratamento régio, para que não fossem dizer que a hospitalidade inglesa não era do nível da francesa.
Isso lhe deu a oportunidade de dar vazão à paixão pela extravagância que herdara do pai. Seus exércitos também precisavam de descanso. Eles tinham lutado bravamente em Poitiers e mereciam certas recompensas. Durante todo aquele inverno ele ficara em Bordeaux, e só em abril decidiu-se por viajar, atravessando o país para pegar o navio para Sandwich.
A Inglaterra estava aguardando os conquistadores, e a caminho de Canterbury, onde eles passaram a noite, as pessoas saíam de suas casas para ovacionar o príncipe. De Canterbury a Rochester e de Rochester a Dartford, o triunfante cortejo seguiu seu caminho - e então, Londres.
O rei não pôde conter a impaciência e providenciou para que estivesse caçando na floresta que ficava perto de onde passaria seu filho.
O príncipe não ficou surpreso quando da floresta saiu a comitiva real liderada pelo rei.
com grande cerimónia, os reis se encontraram.
- Bem-vindo à Inglaterra, meu senhor da França - bradou Eduardo.
Jean recebeu a saudação com dignidade, e Eduardo lhe disse que ele era o seu ilustríssimo hóspede e se quisesse participar da caçada, teria plena liberdade.
O rei da França recusou-se, e o rei e sua comitiva seguiram com o cortejo até Londres.
Para a capital, foi uma grande ocasião. Não era sempre que um monarca preso era levado à cidade deles. Estava tudo muito bem ao tratá-lo como um hóspede, mas todos sabiam que o rei da França era prisioneiro do rei da Inglaterra.
Nas casas tinham sido penduradas bandeiras e tapeçarias; as fontes davam vinho e havia cerveja grátis em barris, para quem a preferisse. Em uma das ruas fora armada uma jaula dourada, e nela estava uma bela jovem que jogou flores de filigrana prateadas e douradas sobre o príncipe e o rei quando eles passaram.
- Vida longa para o Príncipe Negro! - era o grito constante. Deus abençoe o vencedor de Poitiers!
O rei exultava de prazer e orgulho e alegrava-se por não ter estado em Poitiers para roubar qualquer parcela da glória que pertencia a seu filho. Ele estava orgulhoso e feliz por ter dado ao seu povo um homem daqueles.
Que rei ele vai dar, pensou. A Inglaterra tem certeza de que vai prosperar sob o reinado dele. Graças a Deus por ele.
Era típico do Príncipe Negro ter escolhido para si um palafrém preto um tanto insignificante. Ele gostava de lembrar às pessoas que era o Príncipe Negro, e o preto de sua armadura contrastava com a brilhante glória de seus feitos. Agora, o rei da França vinha num magnífico cavalo branco que chamava a atenção, enquanto seu captor cavalgava com uma certa humildade. Esses contrastes o agradavam e, na verdade, chamavam atenção para a sua grandeza.
Eles chegaram a Westminster Hall, onde Filipa esperava para recebê-los. Todos os filhos reais que se achavam na Inglaterra estavam com ela, e um grande banquete fora preparado para recepcionar o rei da França, mas o que Filipa mais queria era ver o filho mais velho.
Finalmente, ele estava diante dela. Seu filho, seu primogénito, o mais amado de todos os seus filhos.
- Minha senhora - disse ele, tomando-lhe a mão e beijando-a.
- A bênção de Deus recaia sobre você - replicou ela.
Ela cumprimentou calorosamente o rei da França. Sentia pena dele. Devia ser uma fase muito triste para ele, acentuada ainda mais pelas desenfreadas comemorações que ele vira nas ruas. O triunfo da Inglaterra só podia significar a derrota dele. Mas aquilo deveria ser um fim para a guerra insensata.
No banquete, o rei insistiu para que Jean se sentasse ao seu lado direito; e ao lado do rei da França estava o filho dele, Filipe, que estava mal-humorado, porque sabia que aquilo que ele acreditara ser impossível tinha acontecido.
O próprio Eduardo parecia um pouco insensível com relação aos sentimentos de seu prisioneiro e parecia esperar que ele participasse das comemorações, o que era pedir demais.
Pratos abundantes foram servidos e havia aqueles que se acreditava que iriam agradar ao rei da França.
Jean comeu pouco, e por fim Eduardo disse, em tom de reprovação:
- Vamos, meu senhor, deixe de lado sua melancolia. Os senhores são nossos convidados. Cante conosco e alegre-se.
Jean olhou fixo para Eduardo e respondeu de forma sucinta:
- Como vamos cantar as canções do Senhor num país estranho? Filipa dirigiu ao rei um sorriso triste e disse:
- Esta é uma fase difícil para o senhor. Não tenho dúvidas de que passará logo.
Naquele instante, o copeiro chegou com o vinho e serviu Eduardo. O jovem Filipe, que estivera observando, pôs-se de pé num salto e acertou um forte golpe no rosto do copeiro.
Houve um silêncio perplexo à mesa. Então, o menino bradou:
- Como ousa servir outra pessoa antes do rei da França? Todos os olhares estavam fixos em Eduardo. Qual seria sua reação? O menino, o rosto vermelho, os olhos faiscando, enfrentou o olhar de Eduardo. Todos estavam esperando que um insulto daqueles ao copeiro do rei pudesse provocar a notória raiva Plantageneta, mas tal não aconteceu. Eduardo soltou uma gargalhada e disse:
- Você é mesmo Philip lê Hardi.
Filipe, o Ousado! Daquele dia em diante, o menino passou a ser chamado por aquele nome, que o acompanhou a vida toda.
O rei da França percebeu que Eduardo estava decidido a tratá-lo com o máximo de cortesia. Deram-lhe o palácio Savoy para sua residência; ele poderia caçar e ir à caça de falcão quando lhe aprouvesse.
Na verdade, poderia ter uma vida de luxo. A única condição era continuar prisioneiro do rei da Inglaterra.
329
Assassinato em Melrose
Com O SEU GRANDE INIMIGO preso na Inglaterra, Eduardo já não precisava temer os escoceses e, como resultado, decretou que David, o Bruce, devia voltar para seu reino.
A esposa de David, Joana, ficou encantada. Ela acreditava que agora os dois poderiam viver felizes juntos. Era o que ela sempre esperara. A vida de casados dos dois tinha sido malfadada desde o início; eles nunca tinham tido uma oportunidade de qualquer grau de felicidade doméstica, e quando ela estivera na corte inglesa e vira a devoção de Eduardo e Filipa e seus filhos, ficara ansiosa por uma felicidade semelhante. O destino estivera contra eles. A vida no castelo de Gaillard fora muito artificial, e David parecera indiferente ao seu destino enquanto estivera na França, mas ela sempre acreditara que se ele pudesse voltar para a terra dos pais, iria mudar. Ela decidira esquecer que ele não mudara quando, depois de sete anos na França, voltara para a Escócia. Tinha sempre havido problemas, e aqueles cinco anos juntos na Escócia tinham estado longe de ser agradáveis, mas quando ele fora preso pelos ingleses e houvera outra separação, ela se permitira sonhar que eles tinham sido felizes juntos. Fazia onze anos que ele fora para a Inglaterra.
Agora estamos mais experientes, prometeu a si mesma. E vamos aprender a compreender um ao outro.
O encontro, para ela, foi emocionante. David ainda estava muito bonito e portava-se como se estivesse tão satisfeito por estar ao seu lado quanto ela se sentia por estar com ele. E por algumas semanas, Joana foi feliz; depois, começou a vê-lo menos vezes, porque ele explicava que estava ocupado com assuntos de Estado.
A verdade era que ela o aborrecia. Ela o fazia lembrar-se da cunhada dela, e ele muitas vezes se perguntava como Eduardo podia fingir que não via todas as belas mulheres de sua corte e continuar sendo o marido fiel da rechonchuda e inexpressiva Filipa.
Joana não era rechonchuda; era bem bonita, de uma forma suave, mas ele não ligava para mulheres suaves. Gostava de uma certa vulgaridade, uma devassidão... gostava de uma mulher como Katherine Mortimer.
Onde estava Katherine, agora? Sem dúvida de que com saudade dele, assim como sentia saudade dela. Katherine jurara que não o deixaria ir embora. Dissera que faria planos de ir atrás dele e não o surpreenderia se um dia ela chegasse à Escócia.
E então, o que seria de madame Joana?
Ocorreu-lhe uma ideia. Não podia esperar para pô-la em prática. Providenciou para que Joana percebesse o quanto ele estava preocupado e aflito, e quando ela perguntou o que o atormentava, David admitiu que certos assuntos o preocupavam demais.
- É um tratado com seu irmão - disse-lhe ele. - Deve haver problemas sérios com relação a ele. Deus sabe que quero a paz, mas Eduardo vai impor condições rigorosas para isso.
- Acho que ele está ansioso pela paz na Escócia.
- Sem dúvida, mas de acordo com as condições dele, e pode muito bem acontecer que alguns de nossos lordes escoceses não aceitem com tranquilidade o que ele sugere. Eduardo sempre foi duro comigo. Acredito que, primeiro que tudo, ele não aprovou nosso casamento.
Joana ficou em silêncio. Era verdade que Eduardo não gostara do casamento. Ele evitara estar presente às cerimónias. Considerara a irmã jovem demais; e mais tarde, é claro, ela percebera que ele não gostava de David.
- É claro que ele é dedicado a você - prosseguiu David. – Ele gosta das mulheres que são suas parentas. Dizem que as filhas dele podem convencê-lo a fazer qualquer coisa. Isso pode muito bem acontecer com a irmã dele.
- Eduardo sempre foi muito bom para mim.
- Eu sei. Ele sempre falou com muito entusiasmo sobre você. Se fosse você que tivesse de lidar com ele, em vez de mim...
- Você sabe, David, que eu faria qualquer coisa... qualquer coisa pela paz entre os nossos dois países.
- Faria? Não, isso é pedir demais. Além disso, eu não poderia perdê-la agora que acabamos de ficar juntos.
- Você quer dizer... Ir à Inglaterra... Eu negociar com meu irmão!
- O pensamento me passou pela cabeça. Isso significaria paz... uma longa trégua entre nossos países. É disso que a Escócia precisa.
Ela ficou pensativa.
- Irei à Inglaterra se você quiser, David.
- Eu quero pela Escócia, e não por mim.
- Temos de pensar na Escócia antes de pensar em nós.
- Não será por muito tempo. Joana, você poderia completar esse negócio em uma semana. Eduardo seria condescendente com você... ouviria o que tem a dizer. Que destino feliz para a Escócia, ter a irmã do rei da Inglaterra como rainha.
- Quanto mais cedo eu for, melhor.
- Quanto mais cedo você for, mais cedo voltará.
- Partirei imediatamente - disse ela.-E prometo que farei tudo ao meu alcance para ajudar este país.
Antes do fim da semana, ela partira.
Foi bem a tempo, disse a si mesmo o encantado David, porque aquilo que ele profetizara acontecera. Katherine Mortimer chegara ao palácio.
Como riram juntos! Como se deliciaram por estarem juntos! compensando o tempo perdido, dizia David.
Ele não se importava com o que aqueles que o cercavam pensavam ou diziam. Katherine estava de novo com ele, e não havia mulher que o satisfizesse como ela.
Os dois estavam juntos noite e dia, e nenhum dos cavaleiros ou ministros conseguia falar com ele a sós.
O que acontecerá, perguntavam uns aos outros, quando a rainha voltar? David não se preocupava com aquela pergunta. Katherine estava instalada como a amante real, a mulher pela qual o rei fazia qualquer coisa, que estava ao lado dele o tempo todo e sem cuja assessoria ele jamais agia. David estava muito contente por viver o extasiante presente.
Eduardo recebeu a irmã com delicadeza e ouviu atentamente suas súplicas para que não tratasse os escoceses com demasiado rigor.
Ele não fora exatamente condescendente e estava exigindo um resgate pela volta de David e também apresentava a ele uma conta pelas suas despesas durante a época em que ele estivera na Inglaterra.
Não era uma importância pequena, e Joana salientou que não via como os escoceses poderiam pagá-la.
Quando ela implorou, Eduardo ficou profundamente emocionado. Ela era uma esposa boa e fiel para David, que não merecia uma esposa daquelas. Ele e Filipa tinham ficado chocados com o comportamento de David quando ele estava na Inglaterra, e Eduardo descobrira que Katherine Mortimer tinha ido para o norte e tivera certeza de que agora deveria estar na Escócia.
A pena que ele sentia da irmã - na qual Filipa o acompanhavafez com que ele decidisse ajudá-la o máximo que pudesse, de modo que teve prazer em modificar suas condições, o que a deixou muito satisfeita, pois ela achou que sua viagem à Inglaterra realmente valera a pena.
- Você devia ficar conosco algum tempo - disse Filipa. - Foi uma viagem longa e cansativa. Não faça planos de partir tão cedo.
- Eu adoro estar com vocês - replicou Joana. - Os dois têm sido muito bons para mim. Mas estou ansiosa por voltar e dizer a David o que consegui realizar.
Eduardo não opôs obstáculos em seu caminho, e logo depois ela estava a caminho da Escócia.
- Pobre menina - disse Eduardo a Filipa -, espero que não encontre o que receio que poderá encontrar quando chegar lá.
Atravessando a fronteira, Joana sentia-se feliz. Ela passara a gostar muito da insípida terra adotiva. As montanhas encantavam-na; ela se acostumara com o clima, que era muito mais rigoroso do que o do sul. Se seu casamento não tivesse sido perturbado por tantos desastres, poderia ter sido muito feliz com o marido.
David tinha charme; era inegavelmente bonito; ela sabia que as mulheres o admiravam. Percebera o olhar delas nas multidões quando os dois saíam a cavalo. No castelo de Gaillard, houvera mulheres... Mas ela preferia não pensar nisso. Na ocasião ele era muito criança, um menino infeliz, expulso de seu país. O que se poderia esperar?
Tudo seria diferente, agora... muito diferente.
Ela chegou a Edinburgh e entrou no castelo a cavalo. Pensou que David fosse estar ali para recebê-la.
No seu quarto, tinham acendido uma fogueira para ela. Deveria estar com frio, depois da viagem. Eles sabiam que ela sentia o frio.
As damas ajudaram-na a vestir-se. Era uma estranha volta ao lar.
Ela queria perguntar onde estava o rei, mas isso chamaria a atenção para o caráter estranho da situação. Achou que as damas tentavam dizer-lhe alguma coisa.
Quando pediu que dissessem, elas ficaram embaraçadas e constrangidas, e sentindo-se inquieta ela saiu de seus aposentos e foi para os do rei. Deles chegavam sons de risadas - risadas de uma mulher. Sim, e aquela era a voz de David.
Um dos guardas meteu-se à frente dela.
- Majestade...
Ela olhou para ele com um olhar em que havia uma pergunta. Sabia que havia alguma coisa errada. Passou pelo guarda e abriu a porta.
David estava lá; estava sentado em sua cadeira, e a seus pés, num banco, sentava-se uma mulher, com cabelos pretos caindo soltos sobre os ombros nus, dos quais o vestido escorregara.
- David! - começou ela. Ele não se voltou para olhar.
- É a rainha que voltou de sua missão - disse ele. A mulher também não olhou. Limitou-se a rir.
- O que significa isso? - bradou Joana, o coração aos pedaços, a mente dizendo aquilo que ela sabia perfeitamente bem. Era aquele o significado das expressões de constrangimento de suas damas, a tentativa de evitar que ela fosse aos aposentos do marido.
- O que significa o quê? - perguntou David, lânguido.
Ela se adiantara e agora os encarava. Viu a mesa sobre a qual havia comida e vinho. Uma das taças estava derrubada e o vinho escorria sobre a mesa.
- Quem é esta mulher?
A mulher levantou-se e fez uma mesura cheia de zombaria.
- Katherine Mortimer, majestade, a seu serviço... e a serviço do rei - disse ela.
- E quem...?
- A senhora pode dizer amiga do rei - foi a resposta. Joana recuou, o rosto vermelho.
- Eu... eu acho que compreendo - disse ela, e saiu do quarto. Nenhum dos dois se mexeu. Ouviu-o rindo enquanto saía do quarto. De volta a seus aposentos, ela dispensou as damas.
Não pode ser verdade, disse para si mesma. Mas sabia que era. Aquilo era pior do que o castelo de Gaillard. Lá, tinham sido infidelidades furtivas, menores, que ele tentara sem muito empenho esconder dela. Aquilo era um insulto clamoroso.
Claro que enganara a si mesma. David jamais mudaria. Era um fraco; era um libertino, um devasso. Que esperança havia para o casamento deles? Que esperança havia para a Escócia? Ela fora enganada a vida toda. Era-uma tola; todos deviam estar rindo dela. Deviam saber o que ele era; e Joana, aquela que pensara que fosse a mais chegada a ele, era a que menos via.
A condessa de Carrick estava pedindo para entrar.
Ela pertencia à família Bruce e fora uma boa amiga de Joana durante suas dificuldades. Agora, olhou para ela com grande compaixão.
- Então você descobriu - disse ela. - Minha pobre Joana!
- Quem é a mulher?
- Uma criatura vulgar que ele conheceu na Inglaterra. Ela viveu na prisão com ele.
- Ele tem sido fiel a ela há muito tempo - disse Joana com amargura.
- Ela o seguiu até a Escócia. Tem estado abertamente com ele desde que você partiu.
- Não vou suportar isso,
- O que você vai fazer? Ele é o rei. Faz o quer.
- O que as pessoas pensam?
- Elas sentem vergonha dele. Falam muito bem de você. O povo não gosta... mas ele não se importa.
- Não posso ficar aqui e admitir que esses insultos continuem disse Joana. - vou para a Inglaterra. Mandarei imediatamente um mensageiro para pedir a permissão de meu irmão para ficar na corte dele.
- É o melhor a fazer - disse a condessa. - vou com você. Não quero ficar aqui e ver um membro de minha família portar-se dessa maneira... ainda que seja o rei. Fico imaginando o que o pai dele pensaria dele se estivesse vivo hoje.
- Se estivesse - disse Joana, desconsolada -, David não seria rei da Escócia.
- Isso mesmo, e a Escócia seria um país mais feliz do que é sob o filho de Robert, o Bruce.
- vou me preparar para partir imediatamente - disse Joana -, porque estou decidida a não ficar aqui para ser insultada.
- Vamos partir amanhã e seguir para o sul. Estou preparada, porque sabia o que você iria encontrar e como se sentiria.
- Obrigada, Annabella. É bom ter amigos. Vamos fazer nossos preparativos para partir.
Eduardo e Filipa receberam Joana com entusiasmo. Eduardo estava furioso por sua irmã ter sido tratada daquela maneira e disse que seria encontrada uma residência para ela e teria uma renda para que pudesse ficar inteiramente independente do marido.
Enquanto isso, David, sabendo da partida da mulher e sabendo muito bem o motivo, ficou muito desconcertado. Quando ele saía a cavalo, as pessoas estavam emburradas
e caladas; de vez em quando, ele ouvia vozes levantadas contra ele. O conde de Mar e vários dos lordes mostravam nitidamente a desaprovação de seus atos que tinham levado à partida de Joana, e o conde salientou os efeitos que aquilo teria sobre o rei da Inglaterra. As condições que Eduardo impusera eram bem rigorosas, mas havia sempre a possibilidade de serem modificadas. Que esperança havia de conseguir que Eduardo concordasse com aquela condescendência, quando a irmã dele tinha sido flagrantemente insultada?
Eduardo era um inimigo inflexível; também era um homem de família e ficava sempre irritadíssimo se acontecesse algum mal àqueles que lhe eram íntimos.
Aturdido, David estava pronto a fazer o que pudesse para remediar a situação, exceto uma coisa. Não abriria mão de Katherine Mortimer. Quando o conde de Mar sugeriu que ela fosse mandada de volta para a Inglaterra, ele foi inflexível e declarou que preferia ficar contra todos eles a perder Katherine.
O conde viu que David poderia muito bem perder o reino por causa daquela mulher, e um reino sem um rei poderia levar a toda sorte de problemas. O conselho dele - que tinha o apoio da maioria dos lordes e conselheiros - era de que David devia ir de imediato à Inglaterra e pedir à mulher que voltasse com ele.
- Pode ser - disse o conde, longe dos ouvidos do rei - que se ele ficar separado de Katherine Mortimer por algum tempo se liberte dos encantos. É uma chance.
- Ir à Inglaterra! - bradou David. - Pedir a Joana que volte! Isso, eu não faço.
- Meu senhor, precisa fazer isso. A rainha é uma senhora amante da paz, delicada. Quando perceber o que a ausência dela significa para a Escócia, ela voltará para vossa majestade. Não precisa chegar com um jeito suplicante demais. Pode guardar isso para quando estiver a sós com a rainha. O país inteiro sabe que não podemos pagar a próxima parcela de-seu resgate, por isso deixe que pensem que vossa majestade vai procurar o rei para pedir-lhe tempo para levantar o dinheiro. É um motivo plausível. Mas o principal objetivo, claro, é trazer a rainha de volta.
Por fim, David foi persuadido e partiu com uma comitiva de oitenta soldados de cavalaria liderados pelo conde de Mar.
Era demais esperar que Eduardo o recebesse na corte, e ele instalou-se no priorado de Holborn, de onde enviou um recado para Joana, pedindo-lhe muito humildemente que fosse ao priorado falar com ele.
Ela foi e encontrou-o em um estado de espírito muito diferente daquele da última vez em que o vira. Ele lhe dirigiu um olhar que pedia desculpas.
- Minha querida Joana-disse ele -, acho que tinha bebido vinho demais da última vez em que estivemos juntos. Quero pedir seu perdão.
Ela ficou calada.
David segurou-lhe a mão, que ela deixou ficar relaxada na dele. Ele começou a exercer seu encanto, a tentar conquistar a confiança dela. Não compreendia Joana. Era delicada e tinha horror a conflitos; estava preparada para sofrer bastante pela causa do dever; mas não era fraca. E jamais voltaria a ser enganada pelo marido. Ele cometera o erro de confundir delicadeza com fraqueza. Precisava aprender que quando uma mulher com a natureza de Joana tomava uma decisão podia mostrar uma firmeza da qual ele jamais seria capaz.
- Pode poupar seus esforços - disse ela, com frieza. - Você quer que eu fique ao seu lado, enquanto você estiver aqui, devido ao efeito que isso causará. vou ficar. Mas não pense que haverá nenhuma intimidade entre nós. vou estar com você em cerimónias, e só. Ajudarei a defender a causa da Escócia junto ao rei meu irmão, mas não me considero mais sua esposa, e jamais me considerarei.
Aquilo, para David, parecia uma vitória. Ela viveria sob o mesmo teto. Ele estava certo de que seria apenas uma questão de tempo e, com muita conversa, conseguiria que ela voltasse para a Escócia com ele. E quando estivessem lá, ela iria, com toda certeza, aceitar a presença de Katherine. Não seria a primeira vez que uma rainha tivera de concordar em viver junto com a amante do marido.
Joana cumpriu o que prometera. Foi morar com o marido e acompanhou-o até a corte de Eduardo para pedir uma redução da dívida escocesa.
Filipa compreendeu a situação e aplaudiu o tato e o bom senso de Joana.
- Com sua ajuda - disse-lhe Joana -, vou ficar aqui. Sei que tenho o seu apoio e o de Eduardo. Nunca mais voltarei para ele.
Filipa colocou uma das mãos sobre a da cunhada, dizendo com entusiasmo:
- Você sempre será bem-vinda aqui.
Sentia muita pena de Joana e estava certa de que se estivesse na situação dela teria se portado da mesma maneira. Como Filipa tinha tido sorte na sua vida de casada! Justamente por isso ela queria mostrar sua gratidão ajudando Joana em tudo que pudesse.
Eduardo concordou que o pagamento da parcela fosse adiado e deixou claro que aquela concessão era feita em consideração à sua irmã, que a pedira com tanta insistência. Eles discutiram o tratado de paz e ficou combinado que seria permitido que jovens escoceses trabalhassem em universidades inglesas.
Quando aquele assunto ficou encerrado, não havia mais motivo para que David continuasse na Inglaterra, e ele se preparou para voltar ao seu país.
Ele esperava que Joana o acompanhasse, e pela primeira vez ficou provado que não compreendia sua mulher.
Ela o enfrentou com sinceridade.
- Pode estar certo de que jamais voltarei para a Escócia. Decidi ficar aqui com minha família, que me ama e me respeita.
Em vão ele protestou. Ela estava decidida.
David voltou com seus nobres carrancudos para o outro lado da fronteira. O verdadeiro objetivo da missão fracassara. Joana o abandonara; e o povo não estava satisfeito com o tratamento que ele dava à sua rainha.
Ele estava ficando muito impopular e se não fossem as recordações de seu pai, Robert, o Bruce, o povo poderia ter-se levantado contra ele.
Katherine Mortimer estava à sua espera, e quando estava com ela David se esquecia de tudo o mais.
No castelo de Rising, a rainha viúva, Isabella, estava muito doente. Ela estava com 63 anos e fazia quase 28 anos que o amante, Roger de Mortimer, fora arrancado de seu lado e barbaramente executado. Ele tinha sido a-sua vida; a única pessoa que ela amara, e quando o perdera ela caíra numa loucura temporária. A medida que envelhecia, os acessos foram ficando menos frequentes e nos últimos dez anos praticamente não houvera crise alguma.
Ela mudara muito. Tinha-se tornado a Senhora Generosa do castelo de Rising, conhecida por suas boas ações. Mas pessoas mais velhas que se lembravam da confusão que ela causara e o assassinato do marido, Eduardo II, que se dizia ter sido o mais cruel de que se tivera notícia, sussurravam que uma vida inteira de boas ações nunca poderia pagar os seus pecados.
Ela ficara tranquila, esquecida daquilo que havia no seu passado que ela não queria lembrar.
Deitada na cama, ela cochilava, e quando acordava os pensamentos eram alegres. Pensava em todas as boas ações que fizera e providenciara para que fossem feitas. Vinte e oito anos eram muito tempo. Ela era amada e respeitada ali no castelo de Rising. Só de vez em quando é que as pessoas se lembravam, e quando tudo era sopesado, ela privara o país de um rei indigno e lhe dera um grande rei. Sem dúvida que aquilo era justificável.
Ela gostara de receber notícias de fora do castelo. Que seu filho Eduardo era reverenciado aonde quer que fosse; que ele estava reivindicando a coroa francesa porque ela, sua mãe, fora filha de um rei da França; que ele e sua rechonchuda mulher tinham tido aquele herói, o Príncipe Negro. Sem dúvida que não era uma vida tão ruim assim! O que acontecera no castelo de Berkeley tinha sido esquecido havia muito tempo. Sem dúvida que ela podia morrer em paz.
Eduardo foi visitá-la. Como ele era bonito, que porte de rei!
Ele se ajoelhou ao lado da cama e, tomando-lhe a mão, segurou-a com firmeza.
- Filho querido - disse ela -, você realizou todos os sonhos que tive para você.
Ele curvou a cabeça. Não podia fingir que a amava. Talvez tivesse amado, há muito tempo, quando eles tinham estado na França e em Hainault juntos e ele vira Filipa pela primeira vez. Naquela época, ele fazia o que ela e Mortimer diziam e tinha sido instrumento deles. Ora, ele era um menino e os dois tinham governado por seu intermédio. Depois, Eduardo descobrira a verdade sobre eles - a relação adúltera e, ainda pior, a ambição desenfreada. Pode ter sido por causa de sua mãe que ele fora um marido fiel e um pai dedicado. Tomara a decisão de que não iria parecer com os pais de maneira alguma.
Mas tudo isso era passado. Ela agora estava morrendo.
Ele se perguntava se a mãe sabia.
Sabia, porque disse:
- Estou morrendo, Eduardo. Prometa que serei enterrada nos frades cistercienses de Newgate.
- Assim será - disse Eduardo, porque ninguém podia recusar um pedido de uma moribunda. Mas era nos frades cistercienses de Newgate que estava o corpo mutilado de Mortimer. com que então ela ainda se lembrava do amante e queria ser enterrada ao lado dele.
- E o coração de seu pai deverá ficar comigo - continuou ela.
- Quero que ele seja colocado sobre o meu peito. Vai fazer isso por mim, Eduardo?
Eduardo jurou que sim.
Os desejos dela foram atendidos e pouco se comentou sobre o enterro. Ela mesma era uma figura do passado. Poucos se lembravam de sua história, de modo que não foram muitos os que se impressionaram com o fato de querer que o coração do marido que ela e Mortimer tinham mandado matar fosse enterrado com ela.
O rei da Escócia recusava-se a ficar deprimido pelo que chamava de deserção de sua mulher.
- Que fique com seu nobre irmão - bradou ele. - Pelo menos não tenho de sustentá-la.
Katherine o consolava, e ele se apoiava nela cada vez mais. Em vão aqueles que desejavam o seu bem imploravam-lhe que usasse de discrição. David não ligava para eles, e a conduta dos amantes ficava cada vez mais espalhafatosa.
Katherine mostrava seu desprezo por aqueles lordes que a tratavam com frieza. Dava um jeito para que nem mesmo pudessem falar com o rei, a menos que fosse em presença dela. Gostando de se exibir, enfeitava-se com as jóias reais e era uma figura cintilante ao lado do rei aonde quer que ele fosse.
Nas ruas, o povo resmungava contra ela. As pessoas chamavam-na de prostituta devassa, a puta do rei, mas Katherine limitava-se a rir delas e fazia David rir com ela. Às vezes ele se sentia um tanto constrangido, mas Katherine sempre zombava de seus estados de espírito. Sabia excitá-lo e também acalmá-lo, e ele dizia para si mesmo que não podia viver sem ela.
Qualquer pessoa, exceto David, teria percebido que ele não podia continuar assim, mas estava cego para tudo, a não ser para a satisfação que sentia com a companhia da amante.
Um dia, eles cavalgavam juntos perto de Melrose, com um pequeno grupo de amigos.
David estava a certa distância à frente de Katherine, quando subitamente ouviu um grito de agonia e, voltando-se bruscamente, viu-a cair do cavalo.
As pessoas que cavalgavam com ele estavam um pouco para trás. Elas nada fizeram quando um homem irrompeu entre o grupo e correu para a floresta. Então, horrorizado, David viu que Katherine estava coberta de sangue e uma faca sobressaía de um lado do corpo.
David se ajoelhou ao lado dela, chamando seu nome. Ela olhou para ele com olhos vidrados e então percebeu que ela não podia vê-lo; Katherine nunca mais voltaria a ver qualquer outra coisa.
Assim, Katherine, a amante do rei, fora assassinada, e David ficou alucinado de uma dor que só podia ser atenuada por uma violenta vingança. Ele queria o homem que cometera aquele ato. Queria que o levassem à sua presença. Queria que o torturassem. Seria uma morte bem lenta.
Fizeram-se investigações e descobriu-se que o assassino era um camponês chamado Richard de Hulle.
- Tragam-me esse homem - bradou David. A ideia do que ele iria fazer com aquele homem era tudo que podia acalmá-lo. Só vê-lo tremendo de agonia, enquanto sua vida era prolongada para que pudesse sofrer repetidas vezes, poderia tranquilizá-lo.
Mas Richard de Hulle nunca foi julgado. Tinha amigos demais em altos postos. Na verdade, ele trabalhara para homens que lhe pagaram bem e prometeram proteção, porque achavam que a única maneira de salvar a Escócia e seu rei de um desastre completo era livrar-se daquela mulher. E assim David foi obrigado a viver sem a sua adorada Katherine. A conselho de seus ministros, pediu a Joana que voltasse. Katherine estava morta. Ele agora seria um bom marido para Joana.
Mas Joana já ouvira aquilo antes. Ela foi firme.
- Eu me sinto feliz - foi a sua resposta-por estar no meu país natal, onde desfruto do amor daqueles em quem posso confiar. Nunca mais voltarei para a Escócia.
A PRINCESA IsABELLA DECLAROU ter tomado a decisão de não se casar, e seu pai, indulgente como sempre, parecia contente com isso. Ela estava com 27 anos e, assim, parecia que estava realmente sendo sincera. Ela se vingara ao romper cruelmente com Bernard Ezi e gostava de ouvir a história de que ele ficara tão arrasado que desistira de tudo na vida. Então ela se esquecia do quanto Luís de Flanders a insultara.
Se alguma vez ela pensava em Luís era para congratular-se consigo mesma por ter escapado, porque o casamento dele com Margaret de Brabant estivera longe de ser feliz. Margaret morrera de forma horrível, e havia boatos de que o marido a matara. Dizia a história que enquanto ele estava ausente da corte Margaret descobrira que uma camponesa muito bonita fora amante dele e ia ter um filho dele. Num acesso de ciúme, Margaret mandara prender a jovem, o nariz e os lábios dela foram cortados e fora aprisionada numa cela úmida até a morte, o que acontecera muito depressa. Quando Luís voltara e procurara a bela amante e fora informado do que acontecera, ficara dominado por tamanha fúria que colocara a mulher numa masmorra semelhante àquela em que ela prendera sua amante. Não havia janelanaquela masmorra, só um buraco através do qual eram empurrados pão e água todos os dias. Ou ela ainda estava lá, ou tinha morrido. Parecia que Luís não tinha intenção de soltá-la.
- Claro que ele é louco - dizia Isabella. E isso parecia uma razão muito boa para ele tê-la abandonado.
Por que iria ela, a adorada filha do rei, da qual todo mundo sabia que ele gostava mais do que qualquer outra pessoa no mundo, querer trocar sua confortável existência pelo casamento?
Veja-se, então, o caso de sua irmã Joana, que morrera de peste perto de Bordeaux. Havia quem dissesse que ela tivera um destino mais feliz do que poderia ter tido se tivesse se casado com Pedro de Castela, que já granjeara o nome de Pedro, o Cruel. Ele desprezava a mulher, e quando ela morreu, dizia-se que a envenenara. Não havia dúvida de que ele envenenara a amante do pai, Eleanor de Guzmán, e havia muitas outras pessoas que ele matara por métodos extremamente cruéis.
Não! Quem iria se casar e correr tantos riscos?
A princesa Isabella estava muito feliz no estado que escolhera-e seu pai também. Eram muitas as vezes que ele lhe dizia que se sentia contente por mante-la perto dele.
Suas irmãs Mary e Margaret não pensavam da mesma forma. Além do mais, o pai delas sabia que não podia deixar que todas as filhas ficassem solteiras. Margaret estava gostando de John Hastings, conde de Pembroke. O pai de John morrera quando ele tinha um ano de idade e ele se tornara um tutelado do rei. Em consequência, fora criado na ala infantil real e desde uma tenra idade ele e Margaret sempre compartilhavam segredos e gostavam muito da companhia um do outro.
- Quando eu crescer - dissera Margaret -, vou me casar com John Hastings.
Isabella soltara uma gargalhada.
- Ele não é bom o bastante para uma princesa - dissera ela a Margaret, arrogante.
- John é bom o bastante para qualquer mulher - retrucara Margaret. - Até para você - acrescentara ela com bastante malícia, porque a excessiva vaidade de Isabella era muito comentada entre as irmãs.
Isabella replicara que se ele não era bom o bastante para Margaret, estava claro que não o era para a irmã mais velha. Mas nunca era sensato entrar em discussão com Margaret, porque esta sempre levava a melhor sobre qualquer pessoa naquela área. Era reconhecidamente a mais inteligente de todas, e ela e John Hastings costumavam debruçar-se sobre seus livros e nada podia afastá-los deles. Naquela época, um rapaz que era um pajem da equipe da casa do irmão de Margaret, Lionel, duque de Clarence, chamara a atenção deles. Chamava-se Geoffrey Chaucer e se interessava muito por literatura, matéria que intrigava Margaret. Ela escrevera poesia e ela e John tinham lido algumas coisas escritas por Geoffrey.
Isabella não podia interessar-se por um simples pajem, de modo que sabia muito pouco sobre o rapaz mas ficava imaginando qual seria o resultado do entusiasmo de Margaret por John Hastings. Mary estava noiva de outro John, o conde de Montfort, que reivindicava o ducado da Bretanha. Sua posição, na época, não estava muito garantida e fora por isso que houvera uma demora no casamento, porque Mary, dois anos mais velha do que Margaret, estava em idade casadoura.
Isabella achava que se ela tivesse querido casar-se com o conde de Pembroke, isso teria ocorrido. Não teria demorado muito a arrancar do pai o consentimento. Claro que Margaret não era Isabella, e todos sabiam que o rei não conseguia negar coisa alguma à filha mais velha.
Mas Margaret estava bem ciente do amor excessivo do pai pelos filhos, e mesmo que Isabella fosse a favorita, Eduardo adorava todos eles, em especial as filhas.
Ela escolheu bem o momento. Porque era necessário abordá-lo quando ele estivesse com bom humor, e como ele se sentia sempre feliz e pronto para ver as filhas, não teve dificuldade em falar-lhe a sós.
Margaret tomou-lhe a mão e a beijou; depois, ergueu os olhos para ele, expectante. Disse-lhe que ela e John tinham sempre sido inseparáveis na ala infantil, que seus interesses eram os mesmos, que queriam ficar juntos pelo resto da vida.
- Pembroke - disse Eduardo, bem provocador -, um título não muito elevado para uma de minhas filhas.
- É o que prefiro ter a qualquer outro.
- Você é uma criança apaixonada.
- Não sou criança, papai. Sei o que quero, e é me casar com John e viver na Inglaterra, para que nunca possa me separar do senhor e de minha mãe.
Era inevitável. Os olhos dele estavam vidrados de afeto. Essas suas queridas filhas! Não suportava perdê-las, tanto quanto elas não suportavam perdê-lo.
Era um velho bobo, um pai que fazia tudo pelos filhos. Os homens ficariam impressionados com sua fraqueza. Mas, como poderia ele negar o que ela queria?
A filha foi coberta de beijos. Aquele foi um momento como os que Eduardo adorava.
- Agora - disse ele - você tem de procurar sua mãe e dizer-lhe o que você decidiu. Eu não tive influência alguma nisso.
- Meu pai adorado - bradou Margaret, com sinceridade -, é o senhor que decide tudo por nós. Se eu não soubesse que o senhor está feliz com isso, eu também não ficaria.
- Vai ser um grande casamento, não? vou lhe mostrar que seu pai ainda pode dançar um compasso com sua filha.
Filipa ficou encantada, porque sabia que era o que Margaret queria e reconhecia que aquela, a mais inteligente dos filhos, precisava de um marido que fosse igual a ela. Margaret ficaria perto dela a vida toda, e era isso que ela queria. Todos os seus filhos deveriam casar por amor, como acontecera com ela. Quando pensava no destino da pobre e triste Joana da Escócia, ela se alegrava com seu casamento. E também havia sua filha Joana que morrera, ao que parece felizmente, de peste. Era horrível pensar que uma filha sua estava melhor morta do que casada com um monstro - e um monstro que seus pais tinham escolhido para ela.
- Quero ver todos eles fazendo casamentos felizes - disse Filipa a Eduardo. - É tudo o que peço.
- Você é uma criatura sentimental - disse Eduardo, e Filipa sorriu para ele. Sabia o que ela queria dizer. Ninguém podia ser mais sentimental do que ele... mas apenas no que dizia respeito à sua família.
E assim Margaret se casou, e o rei deu-lhe um diadema feito em sua maioria de pérolas, que ele disse ser adequado devido ao nome dela.
Parecia que havia uma onda de casamentos, porque poucos meses depois o irmão dela, John de Gaunt, casou-se com Blanche de Lancaster. John estava com dezenove anos e era o mais vigoroso de todos os irmãos depois do Príncipe Negro. Havia muitas especulações sobre este último, porque ele não dava sinais de que queria se casar. Alguns diziam que ele desejara Joan de Kent, sobre a qual houvera um escândalo quando se descobriu que estivera vivendo com Thomas Holland. E desde que ela deixara a Inglaterra e fora para o continente como esposa de outro homem, o príncipe perdera o interesse pelo matrimónio. Mas ninguém tinha certeza, porque ele não se abria com ninguém, nem mesmo com John Chandos.
A vida do Príncipe Negro parecia dedicada à guerra, e a cada ano que passava, ele se parecia com o pai. A mesma aura de invencibilidade que pertencera ao primeiro Eduardo e que agora envolvia seu pai era, sem dúvida alguma, herdada por ele também; e o que era muito entusiasmador era que pai e filho estavam em completo acordo um com o outro. Apesar de um guerreiro brilhante, o príncipe nunca procurava usurpar o poder do pai, e embora estivesse preparando-se de todas as maneiras para ser rei, não se mostrava, de forma alguma, ansioso por herdar a coroa antes do momento em que esta passasse para ele naturalmente. Excetuando o fato de que se negava a se casar e dar um herdeiro ao país, ele era o príncipe perfeito.
Como David da Escócia estava se mostrando inteiramente indigno de usar a coroa da Escócia e parecia improvável que fosse haver qualquer problema vindo daquela área, e como a trégua com a França chegara ao fim, parecia que o momento era adequado para começar outra invasão na esperança de obter uma vitória completa e a posse total do que Eduardo considerava como direitos seus.
Ele deixou a Inglaterra, e uma vez mais Filipa ficou apreensiva. No entanto, Eduardo não entrou em combate, porque o delfim Charles recusou-se a enfrentá-lo e antes que pudesse ser forçado a fazê-lo aconteceu um fato estranho que a Eduardo e seu exército pareceu um sinal de interferência sobrenatural.
Era época da Páscoa, e o tempo ficara repentinamente tão frio, que muitos dos soldados ingleses morreram por causa dele, desmaiando e caindo dos cavalos enquanto cavalgavam. Nunca se ouvira falar de coisa igual.
Foi na segunda-feira depois do dia de Páscoa que a tempestade desabou. Ela desceu de repente sobre os soldados; a escuridão envolveu a região ao meio-dia e o granizo caiu sobre o exército. Depois, o céu foi rasgado por tamanho som e fúria como nenhum deles jamais vira. Relâmpagos faiscavam no céu, sendo seguidos por uma escuridão absoluta e pelo violento ruído do trovão.
Muitos dos soldados acreditaram que o mundo estava chegando ao fim; muitos dos cavalos e homens foram atingidos pelos raios, e pedras de granizo do tamanho de um ovo começaram a cair sobre eles.
Aquilo parecia, sem dúvida, um sinal da ira divina, e por que iria Deus lançar sua fúria sobre o exército de Eduardo? Havia uma resposta para essa pergunta, e era que Deus não gostava da reivindicação da coroa francesa e não permitiria que as tentativas do rei da Inglaterra fossem bem-sucedidas.
Eduardo ficou desalentado. Seis mil de seus melhores cavalos tinham sido mortos pelos raios. Mil de seus homens tinham morrido nas mesmas condições. Os soldados tinham-se voltado para ele, à espera de uma providência.
Mas o que até o maior soldado do mundo poderia fazer contra os atos de Deus?
Eduardo só via uma saída. Saltou do cavalo e, de cabeça descoberta e com o granizo batendo nele e os terríveis relâmpagos iluminando-lhe o rosto, ele bradou:
- Ó Deus, leve esta tempestade daqui. Se provoquei sua ira vou me corrigir. Permita que meu exército sobreviva a este dia e farei um acordo razoável com o rei da França. vou livrá-lo do cativeiro. Dou a minha palavra.
Fez-se silêncio em volta dele. Ele ergueu os olhos para o céu e pareceu que os relâmpagos eram menos violentos, que o trovão ia ficando mais distante.
A tempestade estava passando. O juramento dele continuava valendo, e não era como uma promessa feita a outro rei. Aquele, ele fizera a Deus e teria de cumpri-lo.
Quando disse aos soldados que todos voltariam para a Inglaterra imediatamente, houve um grande grito de alegria. Cada um dos homens já estava farto de guerra, e o sinal de que Deus não os apoiava devia ter solapado qualquer ânimo que pudessem ter tido para lutar.
Eduardo estava perfeitamente cônscio disso. Era por isso que sabia que tinha de abandonar a luta.
Filipa recebeu-o com uma alegria imensa, e o rei Jean foi informado de que seria libertado mediante o pagamento de um resgate menor. Mas Eduardo salientou que os filhos de Jean deveriam ir para a Inglaterra como reféns até que a quantia fosse paga.
Jean partiu para a França, levado até lá pelo Príncipe Negro e pelo duque de Lancaster; e Filipa, encantada com aquela solução das quêstoes na França, preparou-se confortavelmente para desfrutar o fato de ter a família com ela e, por enquanto, fora de um perigo iminente.
Joan de Kent voltara para a corte, viúva, O marido, Thomas Holland, acabara de morrer na Normandia, onde estivera a serviço do rei, de modo que não havia outra coisa para Joan fazer senão voltar para a Inglaterra com os filhos.
Sua chegada coincidiu com a do príncipe de Gales, que acabara de voltar da França, para onde seguira escoltando o rei Jean.
O príncipe pareceu muito satisfeito ao tornar a ver a prima. Já não era jovem, pois estava com 33 anos e era mãe de três filhos, mas tão logo ela voltou para a Inglaterra ele enviou-lhe um copázio de prata para que se lembrasse dele; e com o copázio seguiu um bilhete dando à prima Jeanette as boas-vindas por sua volta à Inglaterra.
Joan também ficou contente ao vê-lo. Achara que Thomas Holland era um marido satisfatório e sentira-se fisicamente atraída por ele, mas na sua juventude sua ambição secreta tinha sido casar-se com o príncipe de Gales.
Parecia-lhe estranho que ele nunca tivesse se casado, porque estava certa de que devia ter sido exercida alguma pressão sobre ele para que se casasse. Mas Eduardo e Filipa - ao contrário do costume real sempre se preocuparam com a felicidade dos filhos. E sem dúvida que Eduardo tinha sido firme em sua tendência a não se casar. Além do mais, havia outros filhos homens, de modo que o assunto não era tão urgente quanto teria sido em outras condições.
Joan não tinha intenção alguma de continuar viúva, e depois de se casar com um homem considerado muito abaixo dela sob o aspecto social, agora estava decidida a escolher o máximo do país. Sempre fora astuta, e se estava ligeiramente menos bonita do que fora na juventude, isso era compensado por um aumento da sua astúcia.
Dava um jeito de se colocar no caminho do príncipe, e como este não tentava fugir dela, os dois estavam juntos com frequência. Ele era dois anos mais novo do que ela e, para consternação de Joan, parecia ter-se decidido a nunca se casar. Ficou magoada e com raiva quando o príncipe lhe falou sobre a possibilidade de ela se casar.
- Não vou tornar a me casar - respondeu ela, e acrescentou, mentindo: - Não tenho vontade.
- Holland morreu há muito pouco tempo - replicou o príncipe.
- Estou certo de que mais tarde você vai mudar de ideia.
- Você não me conhece, primo - respondeu ela.
- Querida Jeanette, há poucas pessoas que eu conheça melhor. Nós crescemos juntos.
Aquele era o problema, pensou Joan. Ele a via como uma prima, a companheira da época da ala infantil. Era um homem muito estranho. Na verdade, ninguém entendia o que ele realmente sentia.
Mesmo assim, Joan iria mostrar-lhe. Ele não era indiferente às mulheres e estava claro que gostava da sua companhia. Era bastante atraente para ainda ser conhecida como a Bela Donzela de Kent. Se ficara um pouco rechonchuda, aquilo lhe caía bem. Sempre fora a mulher mais bonita da corte e recusava-se a acreditar que perdera essa posição.
A situação ficou crítica quando Sir Bernard de Brocas, um muito digno e rico cavaleiro daGasconha, pediu ao rei permissão para casar-se com ela.
- Uma boa união - disse o rei. - Sir Bernard tem me servido bem e eu gostaria de recompensá-lo. O casamento seria ótimo para ele. Joan levará para ele as propriedades da família e eu me convencerei de que o recompensei pelo seu bom serviço.
O príncipe concordou com um gesto da cabeça. Como único membro vivo da família, o título e as propriedades de Kent tinham passado para ela. De fato, era uma grande herdeira.
- Claro - disse o príncipe -, está viúva e sem dúvida vai querer dar sua opinião.
- Quanto a isso, podemos confiar em Joan - replicou Eduardo.
- Mas será anunciado que concordo com o casamento e só resta ela concordar. Talvez, meu filho, você devesse falar com ela e expressar-lhe meu desejo.
O príncipe aceitou a missão, e na primeira oportunidade procurou Joan.
Perguntou se poderia falar com ela a sós.
O coração dela começara a bater tão descontrolado, que ela se perguntou se ele iria perceber sua agitação. Seria aquele o momento? Será que finalmente ele se decidira?
- Você está viúva, Jeanette - disse ele -, rica e, em absoluto, velha. Meu pai acha que você deve se casar de novo.
Joan não teve coragem de olhar para ele, mas disse com calma;
- E você, primo? O que acha?
- É, eu acho que deve - respondeu ele.
Ela fechou os olhos. Seu sonho tornara-se realidade. Ele ia propor casamento. Princesa de Gales, rainha num futuro não muito longe.
- Por falar nisso, houve uma proposta para você.
- Uma... proposta!
- Sir Bernard de Brocas gosta muito de você. Ele falou com o rei. Joan olhou para ele, confusa, com raiva.
- E o rei, o que disse? - perguntou, ríspida.
- Ele disse que gostaria de recompensar Sir Bemard e essa seria uma maneira de fazê-lo.
- Então... eu vou ser uma... recompensa!
- Você representa um excelente casamento, prima.
- As propriedades de minha família, sim. Uma boa recompensa para um fiel servidor.
- E você é muito bonita, prima.
- Achei que você não tinha percebido.
- Você sabe muito bem o quanto a admiro.
- Você nunca achou aconselhável me dizer isso.
- Por que iria eu dizer o que você já sabe?
- A resposta é que eu teria gostado de ouvir.
- Pois muito bem, é isso, prima. Repito que você é uma mulher bonita, e rica. Mas não acho que sejam só as suas propriedades que ele está levando em consideração. Qual é a sua resposta?
- O que você gostaria que eu fizesse? - perguntou ela, em tom quase de lamentação.
- Eu gostaria que você examinasse a proposta.
- Então deixe que lhe diga uma coisa. Nunca mais vou me casar. Ele ficou surpreso.
- Você não está sendo sincera - protestou ele. - Você é muito jovem... bonita demais para ficar solteira. Sei que já teve vários pretendentes.
- Nenhum que eu quisesse aceitar. - Espero que o rei não pretenda me obrigar a isso.
- Na verdade, ele não a obrigaria. Apenas a aconselharia.
Joan voltou-se para ele e, erguendo os belos olhos para os dele, bradou:
- Me aconselhe você.
Ele tomou-lhe a mão e agarrou-a.
- Sir Bernard de Brocas é um cavaleiro muito digno.
- Pare! - bradou ela. - Não diga isso. Não quero ouvir. - E então sentou-se num banco e cobriu o rosto com as mãos.
Ele a olhou, perplexo; então, ajoelhou-se ao lado dela e afastou as mãos dela do rosto. Os olhos estavam febris de excitação.
- Minha adorada Jeanette, o que há com você? Deve saber que de Brocas é um dos mais fidalgos cavaleiros a serviço de meu pai.
- Nunca me casarei com ele... enquanto viver. Não posso, porque...
- Você está apaixonada por outra pessoa! - bradou o príncipe. Ela não negou. Bradou:
- Você me diz que Bernard de Brocas é um cavaleiro fidalgo. Estou apaixonada pelo mais fidalgo cavaleiro do mundo. Como pode me pedir para aceitar algo inferior a isso?
- Então talvez... Ela abanou a cabeça.
- Não. - Eu não posso me casar com esse homem, de modo que não vou aceitar nenhum outro.
- Ele... esse cavaleiro... a fez infeliz. Isso não me parece um gesto muito fidalgo.
Ela sorriu languidamente.
- Não, ele não sabe até que ponto vai meu amor por ele. Foi sempre assim e ele não sabe disso.
- Diga-me o nome dele.
- Você sabe muito bem.
O príncipe se pôs de pé, e ela se levantou e ficou ao seu lado.
- Nunca tive coragem de lhe dizer - disse ela.
- Jeanette, você vai me dizer. Eu preciso saber. Quero fazer todo o possível para fazê-la feliz.
Ela riu.
- Eduardo, é claro que você sabe. Não está claro? Quem é o mais fidalgo cavaleiro do mundo? Quem foi meu companheiro de infância? Quem eu sempre amei? Claro que você sabe.
Eduardo olhou para ela com ar de incrédulo.
- O Príncipe Negro-disse ela.-Nunca houve um homem que se comparasse a ele e nunca haverá, e como só vou aceitar o melhor, continuarei solteira pelo resto da vida.
Ele continuou a olhar fixo para ela, e de repente a alegria estampouse no seu rosto. Joan se decidira por ele. Jeanette! Claro que era a Jeanette. A mulher mais bonita da corte. Era por ela que Eduardo estivera esperando.
Beijou as mãos dela com fervor.
- Então o tempo todo... era eu...
- O tempo todo - disse ela, inflamada. - Desde que eu era pequena e que você era pequeno... Já então era só você.
- No entanto, você se casou com Holland.
- Porque perdi a esperança. Eu não ia aceitar Salisbury, com quem não simpatizava. Achei que não adiantava esperar por você. Pronto, revelei meus segredos e você vai me desprezar.
- Juro por Deus - disse o príncipe, ardente - que não vou aceitar nenhuma outra mulher como esposa, a não ser você... minha adorada prima, minha Jeanette.
Ela estava triunfante. Por que não fizera aquilo antes? Fora tão fácil! Aquele estranho homem cujos pensamentos estavam tão envolvidos na glória militar precisara apenas de uma mulher para tomar a decisão por ele.
Joan sabia do perigo. O que iriam o rei e a rainha dizer do casamento proposto? Antes de ela ter-se casado com Thomas Holland, eles teriam concordado; mas já não era uma das favoritas da rainha. Filipa não aprovara o casamento um tanto escuso com Holland quando Joan revelara que já vivera com ele como esposa enquanto fingia que ia se casar com Salisbury. Além do mais, Filipa percebera os olhares do rei para a beldade. Havia aquele incidente da liga. Filipa não iria querer que seu filho mais velho se casasse com uma mulher ardilosa. E o rei. O que poderia ele sentir sobre aceitar como nora uma mulher que um dia ele já desejara-porque Joan sabia muito bem que ele a desejara, e por ser ele o rei, ela lhe dirigira vários olhares promissores, sabendo muito bem que o elevado código moral que ele impunha a si mesmo impediria que o relacionamento deles se afastasse além das fronteiras do flerte.
Os dois iriam considerá-la algo como uma aventureira, e aquela não era a mulher que iriam querer como a futura rainha da Inglaterra.
Desejariam alguém como Filipa - austera, sempre cônscia de seu dever.
E até que ponto Eduardo estava decidido? Pouco tempo atrás, ele estivera pronto a oferecê-la a Bernard de Brocas.
- Meu adorado Eduardo - disse ela, rápida. - Estou perplexa com minha felicidade. Você é tão precioso para mim, porque esperei todos esses anos nunca acreditando que meus sonhos seriam realizados, que agora estou com medo.
- Você nunca deve ter medo de coisa alguma comigo a seu lado.
- Tenho medo de que tentem impedir nosso casamento.
- Não, eles jamais impediriam.
- Para me agradar, Eduardo. Não diga a ninguém por enquanto... só quando tivermos feito nossos planos. Só quando pudermos ir falar com o rei e dizer-lhe que estamos decididos a nos casar, que os planos estão feitos e que não pode haver demora.
Para agradá-la, ele concordou.
Quando Eduardo e Filipa souberam que o Príncipe Negro ia se casar com Joan de Kent ficaram consternados.
- Uma viúva! - bradou o rei. - Uma mulher mais velha do que você.
- Dois anos - replicou o príncipe -, e não estou velho demais para gerar filhos, nem Joan.
- O parentesco é muito próximo - acrescentou Filipa.
- Já mandei pedir uma dispensa a Roma - respondeu o príncipe.
- Estou certo de que não vai haver dificuldade em consegui-la.
Filipa estava pensando: será que ele vai ser feliz com ela? Tinha sido realmente vergonhosa a maneira pela qual Joan fingira não ser casada quando o tempo todo vivera com Holland. Filipa teria gostado que o filho se casasse com uma jovem virgem, alguém que o respeitasse e amasse - não uma mulher experiente, mais velha do que ele, cheia de astúcia, e que já tivera três filhos.
Quanto ao rei, ele pensou: será uma nora perturbadora... Ela o deixava inquieto. Havia em torno dela uma sexualidade ostensiva, uma qualidade que o perturbava nas mulheres mais agora do que no passado. Filipa envelhecera mais depressa do que ele e estava tão gorda que não conseguia deslocar-se sem dificuldade. À medida que Eduardo envelhe cia, a tentação era mais frequente. Não, ele não queria uma mulher como Joan de Kent na família.
Mas os dois viram que o Príncipe Negro, depois de resistir por tanto tempo, estava agora todo entusiasmado e conduziria seu casamento como uma campanha militar. Estava claro que nada iria detê-lo. Não era mais um garoto e parecia que devia estar esperando pela prima, assim como antes mostrara claramente sua falta de desejo de se casar e constituir uma família.
Eduardo e Filipa discutiram o assunto juntos e concordaram que deveriam aceitar o casamento.
Chegou de Roma a notícia de que a dispensa fora concedida e seria mandada para a Inglaterra. No entanto, o príncipe e Joan decidiram que não poderiam esperar por ela.
Casaram-se na capela de Windsor. O rei não compareceu. Não tinha como se convencer de ver o filho casar-se com uma mulher que provocara tais desejos nele. Sentia-se muito constrangido, e era melhor ficar longe.
Joan adivinhou o verdadeiro motivo, mas contentou-se em deixar que acreditassem que o rei não estava de todo satisfeito com o casamento. O que me importa, pensou ela. Pobre Eduardo! Ainda estava com ótima aparência, é claro, mas começava a envelhecer um pouco. Havia muito branco nos outrora dourados cabelos. Ele estava com um pouco de inveja do filho por ter escolhido uma esposa tão voluptuosa. Ela sabia disso, e compreendia. A piedosa Filipa nada tinha de fascinante agora.
Eles deixaram a corte logo depois da cerimónia, indo para uma das residências do príncipe em Berkhamstead, e como o rei concedera ao filho todos os seus domínios na Aquitânia e na Gasconha, os recém-casados deixaram a Inglaterra e em pouco tempo tinham constituído uma esplêndida corte que às vezes ficava em Aquitânia, mas na maioria das vezes ficava em Bordeaux.
A família toda alegrou-se quando, no devido prazo, Joan deu à luz um filho homem. Ele recebeu o nome de Eduardo, o que pareceu adequado, porque estava na linha direta do trono.
ANTES DO NASCIMENTO DO FILHO do Príncipe Negro, uma tragédia atingiu a família, tragédia esta da qual Filipa jamais se recuperaria.
Agora que os filhos homens estavam indo para longe dela, o que era inevitável, ela ficava cada vez mais em companhia das filhas. Isabella parecia uma rainha e dava-se mais ares do que Filipa jamais dera. Filipa sabia que o rei era, em grande parte, responsável pelo comportamento de sua autoritária filha, mas quanto mais velho ele ficava, mas extremoso se tornava.
Margaret estava casada e se tornara condessa de Pembroke, mas era jovem demais para viver com o marido e continuava sob os cuidados da mãe.
Mary era mais velha e queria casar-se com o duque da Bretanha, de quem era noiva havia muito tempo. Eduardo, no entanto, retardara o casamento devido à incerteza da situação do noivo; mas agora, como os jovens estivessem ansiosos pela união, ele decidira que o casamento iria acontecer.
De modo que agora as duas filhas estavam casadas. A única que não estava era Isabella, e era doze anos mais velha do que Mary. Parecia que Isabella ficaria solteira, mas ela e Filipa nunca tinham sido tão chegadas quanto as outras; e Filipa sabia que devia resignar-se com a separação das filhas, que deveria acontecer com o tempo.
Ela não sabia que essa separação viria logo e de maneira muito trágica.
Havia algumas semanas que ela notava que Margaret parecia apática. Dormia muito, até durante o dia, e parecia incapaz de animar-se.
Certa manhã, as damas de companhia de Filipa foram procurá-la, um tanto aflitas, e disseram que as criadas de Margaret estavam preocupadas porque não conseguiam acordá-la. Filipa, já ciente algum tempo de que havia algo de errado com a filha, dirigiu-se angustiada aos aposentos dela, onde encontrou Margaret deitada na cama, parecendo muito cansada.
- O que é, minha adorada? - perguntou Filipa. - Está se sentindo doente?
- Só cansada, minha senhora. Muito cansada.
- Venha, deixe-me ajudá-la a se vestir.
Filipa tentou erguer a filha, mas Margaret tornou a cair nos travesseiros.
- Eu lhe peço, mãe querida, deixe-me ficar como estou. Não consigo me levantar. Estou cansada demais.
Angustiada, Filipa mandou chamar os médicos. Eles não sabiam o que Margaret tinha, mas quando o dia ia avançado, ela mergulhou num sono profundo.
- Deixe-a descansar - disseram os médicos. - Então talvez se recupere da exaustão.
Mas Margaret não se recuperou. Silenciosamente, deixou a vida.
Filipa ficou aturdida. Pensara que a filha estivesse apenas cansada. Não era possível que estivesse morta.
Mas estava. Fora uma doença de que nunca se ouvira falar; e parecia fatal.
Filipa chorou e isolou-se. Se Margaret tivesse ficado doente, ela poderia ter ficado preparada. Mas Margaret parecia muito feliz. Ela amava o jovem marido, que também a amava. Pobre rapaz. Ficou desconsolado; foi procurar Filipa e chorou a seus pés. Ela fez o possível para consolá-lo, mas de nada adiantou.
A mão de Deus parecia estar contra ela, porque poucas semanas depois da morte de Margaret, outra filha, Mary, foi atacada pela mesma doença.
Dessa vez, estavam preparados e quando a sonolência atacou a segunda filha, Filipa e Eduardo chamaram todos os médicos de renome para assisti-la.
Não adiantou. Ninguém fazia ideia do que era a misteriosa doença e nada havia a fazer, a não ser observar as forças da jovem irem diminuindo até desaparecerem.
Em poucas semanas, Mary estava morta.
Filipa, inteiramente arrasada, parecia ter perdido o interesse pela vida.
Houve uma tristeza profunda por toda a corte e os dois jovens maridos juraram nunca mais se casar.
Isabela era, agora, a única filha viva. Era tratada com o maior respeito e indulgência, mas começou a sentir que estava perdendo muita coisa na vida. Continuara solteira por vontade própria, porque abandonara Bernard Ezi com a mesma desfaçatez com que Luís de Flanders fizera com ela.
Podia congratular-se consigo mesma por ter escapado de Luís, mas decidira que talvez não devesse casar-se com ninguém.
Quando o rei da França voltara para seu país escoltado por Eduardo, Isabella fizera parte da comitiva, e entre os componentes estava lorde de Coucy, que se destacava pela extraordinária beleza e pelo seu sucesso nas justas; sabia cantar e dançar com muita elegância, e Isabella o achava o homem mais bonito que já vira. Era sete anos mais novo do que ela, mas isso não impediu que surgisse um vínculo entre os dois.
Isabella então decidiu abandonar o voto de ficar solteira e aceitar Ingelram, lorde de Coucy, como marido.
O fato de ser apenas um nobre francês não a tolhia. Sabia que ele hesitava em falar em casamento porque ela era filha do rei da Inglaterra, mas Isabella foi logo dizendo que se ela decidisse casar-se, o rei jamais permitiria que qualquer coisa se colocasse no caminho de sua felicidade.
De Coucy estava um pouco pessimista a esse respeito, o que só serviu para deixar Isabella ainda mais decidida a casar-se com ele.
Quando ela abordou o assunto com o pai, ele ficou surpreso.
- Minha adorada Isabella - bradou ele -, pensei que você estivesse resignada com a sua condição de solteira.
- E estava, majestade. Mas agora fiquei conhecendo Ingelram. Não é o homem mais bonito que o senhor já viu?
- Já vi outros que me agradassem mais.
- Ninguém tem a graça de Ingelram. Seja como for, eu o amo, papai, e quero me casar com ele. Sei que o senhor quer me ver feliz e que não vai impedir que eu o seja. - Passou o braço pelo dele. - Não vou ficar longe. vou vê-lo com frequência. Meu pai adorado. Não posso perder o que as outras mulheres têm. Quero ter filhos. Quero me casar agora, antes que seja tarde.
Como Isabella sabia, Eduardo não resistiria a ela por muito tempo.
- Espero que não haja um cancelamento apressado desse, se eu deixar que você se case.
- Não, eu juro. Quero me casar com Ingelram. Estou ansiosa por esse dia.
- Pois que seja - disse o rei.
E assim o casamento teve lugar, e a noiva de 33 anos parecia mesmo apaixonada pelo noivo de 27 anos.
Depois de algum tempo, o casal partiu para o castelo de Coucy, onde Isabella levou uma vida quase tão régia quanto a que levara na corte de seu pai.
Isabella estava mais profundamente apaixonada pelo jovem marido do que nunca, e para alegria dos dois, menos de um ano depois do casamento, ela deu à luz uma filha. Isabella deu-lhe o nome de Mary, em homenagem à irmã falecida, e disse que deviam levar a criança à Inglaterra, pois o rei jamais descansaria enquanto não conhecesse a neta.
Quando chegaram à Inglaterra, Eduardo ficou transbordando de alegria e encantado pelo fato de sua adorada Isabella estar feliz com o casamento. Admitiu que estava contente por ela ter um marido, apesar de ele tê-la levado para longe dele.
- O senhor sempre será muito querido por mim, papai - disselhe ela. - Nada que eu tivesse poderia mudar isso.
Exultante com a companhia deles, organizando festas elaboradas e justas para recepcioná-los, Eduardo estava feliz. Isabella percebeu que o pai estava envelhecido, embora não tanto quanto a mãe dela.
A pobre Filipa, agora, praticamente não saía da cadeira. Devia ser um grande sacrifício não poder acompanhar o rei em suas viagens.
Um dia, Eduardo disse à filha:
- Tenho um plano para mante-la aqui. vou fazer de seu marido um par do reino inglês.
Isabella soltou uma gargalhada de triunfo.
- Entendo - disse ela. - O senhor vai dar a ele propriedades e, por um compromisso de honra, ele terá de ficar na Inglaterra para tomar conta delas.
Significava, admitiu Eduardo, que ele teria de passar grande parte do tempo naquele país.
- Parece um plano excelente - disse Isabella, séria.
Assim, o lorde de Coucy tornou-se conde de Bedford, e Eduardo concedeu-lhe a Ordem da Jarreteira.
Eles tinham uma grande renda e propriedades na Inglaterra, mas a pedido do rei residiam a maior parte do tempo na corte.
- É um resultado feliz - disse Eduardo a Filipa. - Nossa filha arranjou um marido, e nós não perdemos nossa filha.
FlLIPAESTAVA ACHANDO cada vez mais difícil esconder suas enfermidades dos que a cercavam. Sofria de dores internas e era vítima de hidropisia, o que fazia com que seus membros inchassem tanto, que ela achava muito difícil sair da cadeira. Se se deslocava, era com a ajuda das damas de companhia, e isso lhe causava um grande constrangimento.
Eduardo era um ano mais velho do que ela, mas parecia muito mais novo. Ainda estava ativo e parecia ter perdido muito pouco do vigor de outrora.
Filipa sabia que ele lhe dedicava uma grande afeição, mas a época da juventude dela, quando os dois se completavam, passara.
Havia uma mulher hipócrita que chegara à corte como uma de suas camareiras. Filipa temia aquela mulher. Estava certa de que havia maldade nela.
Alice Perrers não era exatamente bonita, e estudando-a em detalhes Filipa não entendia bem por que ela teria provocado o interesse do rei.
Talvez fosse uma sexualidade latente que não era óbvia mas da qual Filipa começara a desconfiar. Ela vira olhares que eram trocados entre suas aias e percebera que eram rudes com Alice, que parecia não se importar. Havia em torno dela um ar de quem acalentava uma ideia, como se estivesse dando tempo ao tempo.
A verdade era que o rei, finalmente, sucumbira à tentação.
Eduardo notara Alice Perrers assim que a vira, e era evidente que ela percebera o seu interesse.
Alice não vinha de berço nobre. Eduardo não estava certo de como ela conseguira inserir-se na criadagem real, mas não tentou descobrir. Era uma mulher de conceder um favor em troca de outro, de modo que poderia ter conseguido o emprego por intermédio de uma pessoa bem colocada na corte. Eduardo decidiu não apurar. Já era suficiente Alice estar ali.
Alice o pegara olhando para ela e dera um sorriso convidativo. Outras mulheres tinham feito isso antes, é claro, e ele nunca se afastara de Filipa, mas esta, agora, era uma mulher doente. Eduardo gostava tanto dela quanto antes, mas era viril e era rei, e Filipa já não podia ajudá-lo a fugir à tentação.
Durante algum tempo, ele lutou com a consciência. Depois de uma vida de fidelidade aos seus votos matrimoniais, não era fácil rompê-los. Mas Alice era diferente das outras. Era decidida. Uma noite, ela chegou e meteu-se na cama dele e nada havia que ele pudesse fazer a não ser expulsá-la, e isso era a última coisa que ele queria.
Depois daquela noite, Alice tornou-se sua amante, e nada faria com que ele deixasse de mante-la naquela situação. Fora uma experiência alucinante, diferente de tudo o que tinha conhecido antes, e o deixara aturdido, perplexo e - diziam alguns de seus cortesãos - enfeitiçado.
No entanto, acontecera, afinal. O rei tinha uma amante. E ainda por cima uma de classe inferior. "Ela não vai durar muito", profetizavam os que o cercavam. Eles não conheciam Alice.
Depois de pôr um pé no caminho da libertinagem, Eduardo não podia evitar ir mais longe. Era como se tivesse de recuperar os anos perdidos. Havia momentos em que ficava dominado pelo remorso, mas então Alice aparecia e zombava de sua consciência. Ele era o rei, não era? E os reis não deviam fazer o que quisessem?
Eduardo tentava explicar o grande afeto que existia entre ele e a rainha. Alice achava que estava tudo bem, e que a rainha compreenderia. Afinal, estava velha e doente demais para ser uma esposa para ele.
- Ela é mais nova do que eu - lembrava-lhe ele.
- Mas o senhor, meu rei, é imortal.
Às vezes ele tentava compreender que atração era aquela. Alice não era bonita como fora a condessa de Salisbury; evidentemente que não era como Joan, a Bela Donzela de Kent. Mas havia algo de tão irresistível nela, algo tão sensual, que combinava tanto com a natureza que ele percebera ter reprimido durante todos aqueles anos, que não conseguia largá-la.
Os filhos dele estavam espalhados pelo país, e alguns se achavam no exterior. Já não era como no passado, quando eles eram crianças na ala infantil e uma contínua fonte de interesse entre ele e Filipa. A rainha, doente e gorda com aquela deformante e dolorida hidropisia, já não tinha coisa alguma a lhe oferecer. Na verdade, ele a evitava-principalmente porque estar pom ela provocava sua consciência a ponto de ele começar a sentir desprezo por si mesmo.
Seu único consolo estava em Alice, que tinha muito consolo para lhe dar.
Alice não exibia muito a generosidade de Eduardo. No íntimo, sentia um pouco de medo respeitoso da rainha. Havia uma força latente em Filipa, e Alice sabia que seria insensato provocá-la. O rei tinha uma grande consideração pela sua mulher; Alice sabia melhor do que ele quantas vezes Filipa estava ali no quarto deles - um controle sombrio, um breve contra os prazeres. Sim, o espírito de Filipa sempre estaria com ele... até ela morrer.
E a cada dia ficava mais evidente que Filipa não poderia demorar-se por muito mais tempo neste mundo.
Filipa sabia que seu fim estava próximo. Ficava na cama, tão pesada agora com sua hidropisia, que era exaustivo mexer-se.
Tinha sido uma vida bem vivida, uma vida feliz, e ainda guardava a lembrança de seu primeiro encontro com Eduardo na corte de seu pai. Sem dúvida que o casamento deles fora um dos mais felizes casamentos reais de que havia notícia. Até agora. Ela não queria pensar naquela fogosa mulher que andava por ali com segredos no olhar. Era uma pena Filipa saber a respeito dela. Mas aquilo era muito óbvio, e não podia deixar de saber. Sempre soubera que Eduardo era um homem de paixões fortes. Um homem com sua natureza evidentemente iria ser assim. Ela sabia que tinha havido tentações. Ouvira sussurros a respeito da bela condessa de Salisbury, e ele lançara olhares cobiçosos para aquela atrevida da Joaa de Kent; mas ele nunca cedera à tentação. Até agora. Filipa não devia ficar muito triste com aquilo. Ele era homem e ela se tornara uma pobre criatura, doente demais para outra coisa que não ficar na cama e esperar o fim, olhar para o passado. Tinha muita felicidade para recordar e podia sentir-se orgulhosa dos filhos que criara.
Eduardo, o primogénito, o mais amado, era agora pai de dois filhos, Eduardo e Ricardo, e parecia contente com a vida em Bordeaux com Joan de Kent. Talvez Joan tivesse gostado dele o tempo todo. Era estranho ele não ter falado que a queria quando aquilo teria sido normal. Nem ela nem Eduardo teriam feito qualquer objeção quando os dois eram jovens. Isabella, finalmente, estava casada e feliz. A pobre Joana não tivera o que poderia ser chamado de vida; e os seus dois Williams e a pequenina Blanche jamais seriam esquecidos, muito embora tivessem vivido tão pouco. E então havia o alto e bem-humorado Lionel, o ousado John de Gaunt, Edmund e Thomas. Ela tentava não pensar em Mary e Margaret; nunca se conformara com a morte das duas.
Seus filhos adorados - todos levando sua vida, que na verdade não dizia respeito a ela. Eduardo estava contente com os filhos que os dois tinham tido. Filipa nada tinha a se reprovar quanto a isso.
E agora o fim aproximava-se depressa.
Certa manhã, ela acordou em seus aposentos no castelo de Windsor e viu que ele estava perto, de modo que mandou um mensageiro ao rei pedindo-lhe que fosse imediatamente ao seu quarto. E quando ele foi a toda velocidade e viu o quanto ela estava doente, ficou muito triste e a consciência doeu-lhe mais forte do que nunca.
Ela dirigiu-lhe um sorriso afetuoso.
- Eduardo, este é o fim - disse ela.
Ele se ajoelhou ao lado da cama e, tomando-lhe a mão, beijou-a. Manteve a cabeça abaixada, porque não tinha coragem de olhar para ela.
- Não pode ser - murmurou.
- Querido marido - disse ela -, querido senhor e rei, não podemos ir contra a vontade de Deus. Ele decidiu que minha hora chegou, e é claro que temos de aceitar isso. Nossa união foi longa, e você me deu muita felicidade.
Eduardo mal podia suportar ouvir aquilo. Pensava sempre em Alice Perrers e repreendeu-se violentamente. Por que não esperei? Por que fiz isso com Filipa? Porque ela sabe... todo mundo sabe. Essa vergonhacaiu sobre mim.
- Meu senhor - disse Filipa -, peço-lhe que cumpra meus compromissos tal como os estipulei no meu testamento. Citei aquelas de minhas damas que devem receber algum benefício.
- Tudo o que você desejar será concedido, minha adorada rainha.
- Eduardo, quando sua hora chegar, você vai ficar ao meu lado no meu túmulo, e será que este pode ser na clausura de Westminster?
- Assim será - disse Eduardo.
- Então, vamos dar graças a Deus pelos anos felizes. Pelos filhos que Ele nos deu...
- Eu agradeço a Deus por tudo isso - disse Eduardo - e peço a Ele que não me tire você.
Ele estava jurando a Deus: deixe-a viver e jamais tornarei a ver Alice; mas mesmo naquele momento sabia que a atração de Alice seria forte demais para ele. Estava tomado pelo sofrimento, que estava carregado de remorso.
Se ao menos eu tivesse esperado!, pensou. Se ao menos ela nunca tivesse sabido!
Ela fechara os olhos.
Era o fim. A longa associação com a sua rainha terminara, e sentiu-se perdido e perplexo. Seu filho Edmund, que estava a seu lado junto à cama, colocou a mão no braço do pai.
- Meu senhor - disse ele -, vamos sair. Ela nos deixou para sempre.
Eduardo lutava com a consciência. Ela não sabia. Ele era sempre muito cuidadoso. Ela jamais devia ter adivinhado o que se passava.
Estava sempre vendo-a como a menina de faces rosadas que ela fora quando tinham se casado. Naquela época, estivera certo de que nunca iria querer outra mulher enquanto vivesse.
Mas ela nunca soube, prometia a si mesmo. Ela acreditava, até o fim, que era a única.
Mas quando leu o testamento e viu as dotações às mulheres que trabalhavam no quarto de Filipa, Eduardo percebeu logo que faltava um nome. O de Alice Perrers.
Com A MORTE DE PhiLIPA, a influência de Alice Perrers sobre o rei começou a aumentar. A consciência já não o preocupava mais, e ele ficava cada vez mais bestificado.
Nunca se afastava dela; tornou-se seu escravo; bastava ela expressar um desejo, e ele queria satisfazê-lo. Dizia-se que ela era muito hábil nas artes do amor e que isso lhe dava poderes especiais sobre um homem que envelhecia e que mantivera suas paixões sob controle até então.
Alice era ávida por objetos valiosos. Adorava jóias e não havia jóias que chegassem; além do mais, era astuta e, tendo em vista a idade do rei, sabia que o reino dela não poderia durar muito; portanto, estava decidida a aproveitar o máximo enquanto ele durasse.
Procurava meios de tornar-se a mulher mais rica do país. Havia uma quantidade enorme de artimanhas que poderia aplicar. Eduardo foi logo concedendo-lhe terras, o que ela aceitou com entusiasmo, mas aquilo não era suficiente para suas necessidades vorazes. Aproveitava-se do costume da tutela, que significa que quando pais ricos morriam deixando herdeiros menores de idade algum membro da corte tomava conta deles. Receber a tutela de um rico herdeiro era uma grande concessão, porque com o herdeiro vinha uma boa renda paga pelo espólio. Alice tinha três meninos sob os seus cuidados, como se dizia, o que era muito lucrativo.
Era interessante o fato de que ela, que fora uma mulher sem importância, tivesse se tornado a mais importante do país. Ficava cada vez mais audaciosa à medida que tinha cada vez mais certeza de seu poder e chegava até a acompanhar o rei durante reuniões do conselho e sentar-se ao lado dele dando conselhos que ele ouvia com o que parecia um medo respeitoso; ela adquirira o hábito de ir a Westminster Hall e sentar-se ao lado do juiz, para que pudesse dizer-lhe que veredicto deveria dar. E o veredicto iria depender de se o acusado a tivesse gratificado de maneira que considerasse adequada a provocar a absolvição.
Alice era vista usando jóias da falecida rainha quando se sentava ao lado do rei em banquetes. Era apaixonada por jóias, e seus vestidos brilhavam com elas, e as bordas de pele em cada vestido eram uma fortuna em separado. Eduardo não podia ter escolhido uma mulher mais diferente de Filipa, e assim como o povo adorara sua rainha, o sentimento dele pela mulher que chamava de A Meretriz tinha a mesma intensidade, mas em sentido inverso.
O nome de Alice Perrers era dito com rancor nas ruas de Londres, e ela era notória no país inteiro.
A morte de Filipa provocara, sem dúvida alguma, uma grande mudança no país. Ela e Eduardo tinham sido como pilares de força e virtude. Dificilmente Eduardo poderia ser assim classificado agora. Em vez do grande guerreiro, o correto nobre cavaleiro que fora se tornara um velho decrépito que não podia evitar que suas mãos - mesmo em público - acariciassem uma descarada rameira. O povo lamentava profundamente a morte de Filipa. Quando ela estava viva, o povo sabia de sua virtude, mas não reconhecera a sua força.
Sim, havia mudanças. Antigamente, parecera que a guerra com a França estava chegando a um fim vitorioso com a prisão do rei da França e tinha-se chegado a honrosas condições de paz.
O Príncipe Negro - ídolo do povo - obtivera sucessos no continente, onde ficara vivendo com sua dedicada esposa; ele tinha dois filhos, Eduardo e Ricardo, e tudo parecia estar pronto para a prosperidade.
Então, chegaram notícias perturbadoras. O Príncipe Negro estava com a saúde abalada. Era atacado por uma febre intermitente, o que muitas vezes significava que precisava ficar de cama por longos períodos.
Além do mais, uma nova onda de patriotismo tomara conta da França. O rei Jean morrera e seu filho Charles subira ao trono. Ele estava decidido a recuperar o que tinha sido perdido na época do pai e os franceses estavam-se lembrando de a quem deviam vassalagem. O Príncipe Negro, percebendo o que estava acontecendo, foi obrigado a pedir reforços. Houve ataques à Aquitânia, que ele conseguiu defender, mas enquanto estava ocupado naquela área estouravam problemas em outros pontos.
Joan teria sido inteiramente feliz se não fossem as constantes ausências do marido e o fato de que ela se preocupava com a saúde dele. Seu filho mais velho, Eduardo, de quem o marido fazia todas as vontades, também estivera mal de saúde. Joan estava ansiosa por voltar para a Inglaterra e para a vida da corte de lá. Se ao menos pudesse fazer isso e seu marido recuperasse a saúde, ela ficaria contente. Mas começou a perceber que se um daqueles desejos fosse satisfeito, isso significaria que o outro não poderia ser, porque ele só podia voltar à Inglaterra se sua saúde se deteriorasse, e se ele ficasse bom e forte, seria obrigado a permanecer na França.
Ela era realista demais para esperar uma satisfação completa. Adorava o Príncipe Negro, chegando até a devoção. Ele era o herói nacional; o mais fidalgo cavaleiro do mundo, e herdeiro do trono. Ele iria fazer dela uma rainha e a mãe de um rei. Ela sentia que o terrível assassinato de seu pai fora vingado.
Mas a angústia quanto à saúde do Príncipe Negro continuava; e quando ele soube que seu maior amigo, John Chandos, tinha sido morto, caiu em melancolia, o que provocou outro ataque de febre.
A própria Joan tratou dele, e quando ele se recuperou um pouco, abordou o assunto da volta deles para a Inglaterra.
- Não adianta continuar dessa maneira - disse ela. - Esses ataques estão se tornando cada vez mais frequentes. Outra pessoa deve assumir seu cargo.
- Quem? - perguntou o príncipe.
- O mais indicado parece ser seu irmão, John de Gaunt.
- Um homem muito ambicioso, meu irmão John.
- Todos os filhos de reis são ambiciosos, especialmente os mais novos.
- John é o mais inteligente de todos.
- E se ele viesse tomar seu lugar, não tenho dúvidas de que ficaria com o crédito de todas as suas vitórias-disse Joan, mordaz.-Mesmo assim, sua saúde é mais importante, para mim, do que sua glória.
O príncipe sorriu do arrebatamento dela.
- Você tem sido uma boa esposa para mim, Joan. Ela o beijou de leve.
- Havia muito tempo a recuperar - disse ela, delicada. - Você hesitou, hesitou, e só foi levado a se casar comigo quando o obriguei.
Ele concordou.
- Por isso, Eduardo, você compreende que posso cuidar dos nossos interesses muito melhor do que você.
Ele estava cansado demais para discutir; a febre começava a subir.
Aquelas malditas guerras!, pensou Joan. Que maldição elas eram! Recordava-se da atitude de Filipa em relação a elas, e como tivera razão! A diferença entre as duas era que Filipa teria guardado para si mesma a irritação com elas. Joan não era assim.
O caso em Limoges perturbara mais Eduardo do que ele queria admitir. Era um erro, Joan sabia, envolver-se na guerra castelhana. Pedro era odiado pelos seus súditos; muitos diziam que ele não tinha direito algum ao trono, que ele tirara do filho de seu irmão mais velho, Carlos de la Cerda. Seu meio-irmão, Enrique de Trastamarra, filho ilegítimo do pai de Pedro e sua amante Eleanor de Guzmán, agora procurava tomar a coroa e quando Pedro fizera apelos ao Príncipe Negro, este os atendera.
Um grande erro, reiterara Joan. Aquilo dera aos franceses a chance de que precisavam.
E agora, com a morte do muito amado Chandos e a febre voltando... estava na hora de uma mudança.
Joan mandou chamar os médicos e fez algumas perguntas.
O que eram aquelas febres de que o marido sofria e será que iriam aumentar com o passar do tempo?
Aresposta foi que a doença fora contraída devido ao sistema de vida do príncipe - acampar em locais úmidos e países estrangeiros; e a natureza da doença era que inevitavelmente iria piorar à medida que o tempo passasse.
- Quero que os senhores insistam para que ele volte para a Inglaterra - disse Joan com firmeza.
Os médicos concordaram com ela, que um repouso longe dos acampamentos e longos dias a cavalo seria benéfico para o príncipe.
Abatido pela febre, lamentando a morte do amigo Chandos, percebendo que suas vitórias na França estavam escorregando das mãos inglesas, ele deixou que Joan fizesse
os preparativos para a partida.
Sabia que estava muito doente. Tinha pesadelos e o cerco de Limoges aparecia muito neles. A cidade estivera em mãos inglesas e , fora dada traiçoeiramente aos franceses por Jean de Cros, o bispo de Limoges, que ele considerava amigo seu. Como ficara com raiva!
Impossibilitado de montar num cavalo, ele foi carregado numa liteira.: Ele jurara que tomaria Limoges e coitado do traidor quando ele a tomasse.
E ele não se poupou, embora a febre quase o deixasse louco. A cidade foi tomada, e a carnificina foi terrível. Ele mesmo mandou que assim fosse. Não haveria misericórdia, declarara ele. Todo ser vivo deveria ser massacrado. Ele atravessara a cidade em uma pesada carroça de quatro rodas porque estava doente demais para montar um cavalo. Havia sangue por todo canto, cadáveres em pilhas em todas as ruas; fervendo de febre, ele supervisionou a matança. Sentia-se derrotado por circunstâncias avassaladoras demais para controlar.
O bispo omisso que entregara a cidade aos franceses foi arrastado até ele.
- Quero a cabeça dele - bradou Eduardo.
Foi seu irmão, John de Gaunt, que pediu que ele levasse em consideração o fato de que o bispo era um homem da Igreja. Era verdade que ele dera a cidade aos franceses, mas talvez para evitar um massacre. Eduardo devia lembrar-se de que a Igreja ficaria contrariada e eles não podiam dar-se ao luxo de ofender a Igreja.
Àquela altura, a raiva do príncipe esgotara-se. O sangue quente que o levara à loucura com a necessidade de derramamento de sangue passara; ele estava tremendo com a febre intermitente e ansiava pela tranquilidade de sua cama.
- Leve o bispo - disse ao irmão. - Faça o quiser. E o príncipe foi carregado de volta para Joan.
Faça o que quiser. Sim, John iria fazer o que queria. John era um homem ambicioso que se ofendia amargamente por não ter sido o primogénito.
Mas eu tenho dois filhos, raciocinava o príncipe. Meu pequeno Eduardo irá me suceder, e se alguma coisa acontecer a ele, também há Ricardo.
Assim, ele voltou para a paz de sua casa, onde deveria continuar a sonhar com Limoges - uma mancha em seu escudo de glória. Ele já fora um grande príncipe que não precisava de apelar para a matança de mulheres e crianças para provar a sua força.
Joan e os médicos disseram:
- Você tem de ir para a Inglaterra. Tem de descansar por algum tempo.
A princípio ele protestou, mas sabia que tinham razão. Um guerreiro não entrava em combate numa liteira; não percorria uma cidade capturada numa carroça de quatro rodas.
Por isso, os preparativos continuaram. Assim que aquele acesso diminuísse, eles partiriam.
Certa manhã, quando os navios estavam quase carregados, Joan foi procurá-lo muito consternada. O jovem Eduardo estava doente.
Os médicos não tinham certeza do que ele tinha, mas estavam profundamente preocupados com o estado do menino.
A preocupação mostrou que tinha seus motivos. Em poucos dias, o pequeno Eduardo morreu.
Esse foi o maior de todos os golpes.
Limoges, o soerguimento do poder francês, a perda do poder da Inglaterra, a morte de Chandos... e agora o pequeno Eduardo.
Joan ficou arrasada de dor. O jovem Eduardo fora seu orgulho; ela olhara bem à frente, para o futuro distante, e o vira subindo a um trono. Ainda faltava muito tempo, prometera a si mesma, mas um dia aconteceria.
E agora... ele se fora.
Mas ela era uma mulher de forte ambição. Depois de uma longa espera, conseguira casar-se com o príncipe de Gales. Perdera o filho adorado dos dois. Mas poderia haver mais, prometeu a si mesma. Eles tinham o pequenino Ricardo. Apesar de ainda não ter completado quatro anos, era um menino alto e louro com os traços dos Plantagenetas.
O menino, conhecido como Ricardo de Bordeaux devido ao seu lugar de nascença, estava agora em linha direta para o trono.
A corte estava muito mudada. Todos sentiam falta da presença da rainha Filipa, que não tinham percebido enquanto ela ali estivera.
Em seu lugar estava a assanhada descarada, sentando-se na cadeira da rainha, usando as jóias da rainha, envolta na capa real com a borda de arminho e apoiada pelo rei.
E o que mudara mais do que tudo fora o próprio rei. Sem estar mais alerta, sem se preocupar mais com o bem-estar do país, querendo apenas o consolo que sua rameira podia oferecer e deixando que todos soubessem disso.
O príncipe percebeu logo a situação. O rei mudara. A mente enfraquecera-se; ele sofrera de alguma doença. Aquela não podia ser a grande figura imponente que guiara o país durante mais de trinta anos.
O rei recebeu o filho com entusiasmo, manifestou seu pesar pela morte do jovem Eduardo e recebeu o neto Ricardo com afeto.
Mas havia nele um alheamento; e o príncipe recusou-se a conhecer Alice Perrers.
Ficou logo evidente que se ele persistisse naquela atitude não seria bem-vindo na corte.
Ele aproveitou a primeira oportunidade para conversar com a irmã Isabella, que estivera mais próxima do rei do que qualquer um deles.
Isabella estava perplexa. Não adiantava tentar fazer o pai deles ver o que estava fazendo. Parecia inteiramente enfeitiçado por aquela mulher.
- A vida toda, bastava eu pedir para vê-lo e me deixavam explicou ele. - Mas se aquela mulher disser que não posso falar com ele, não me deixam.
- Isso deve passar - disse o príncipe.
- Não há sinais disso. Cada vez ela fica mais escandalosa, mas ainda assim ele a mantém ao lado dele. Ele só se preocupa com ela. Acho que está ficando com a cabeça fraca.
- Parece que sim - disse o príncipe. - Não vou ficar aqui, nem Joan, para ser tratado assim por uma mulher desse tipo. Você, sem dúvida, voltará para a França.
Isabella ficou em silêncio. Os que a cercavam diziam muitas vezes que se tornara uma mulher diferente depois do casamento. A princesa mandona tornara-se, estranhamente, uma esposa um tanto dócil. A verdade era que seu jovem marido estava menos enamorado por ela do que ela por ele, e gostava muito de deixá-la na Inglaterra enquanto ia à França. Ele estava relutando em pegar em armas contra o rei francês e, por outro lado, não podia fazer isso contra o pai dela e seus cunhados. O atraente lorde de Coucy estava menos satisfeito com seu casamento do que a princípio pensara que ficaria. A tragédia, para Isabella, era que a cada dia ficava mais apaixonada pelo marido.
Isso tivera o efeito de dominá-la e inserir na sua natureza uma certa humildade que nunca existira. Ela era devotada às filhas, e agora que seu pai estava menos decidido a agradá-la, estava descobrindo uma afeição por ele maior do que aquela que parecia ser capaz de ter.
- Fico magoada ao vê-lo assim - disse ao irmão. - Há momentos em que penso em deixar a corte, mas acabo achando que devo ficar. Ele precisa de um de nós ao lado, e eu sou a única filha que resta e sempre fui a favorita. Não, Eduardo, ficarei aqui na corte e cheguei até a tratar Alice Perrers com amabilidade. Nem lhe digo o prazer que isso dá ao nosso pai. Além do mais, me dá a oportunidade de ficar de olho nele... e ajudá-lo a fugir do encanto... feitiço, ou seja lá o que for.
Eduardo ficou surpreso com o fato de Isabella ter-se tornado desprendida, mas ele estava doente demais para se procupar com outra coisa que não suas próprias necessidades. Além do mais, Joan estava ali para levá-lo depressa para a casa deles em Berkhamstead, e lá ela passou a cuidar dele e consolá-lo pelas terríveis perdas que ele sofrera com as mortes de Chandos e do jovem Eduardo.
O reinado de Alice Perrers não dava sinal de que chegasse ao fim. O rei ficava cada vez mais bestificado. Alice dera à luz uma menina a quem deu o nome de Jane, e embora o ódio do povo se intensificasse com o passar do tempo, ela mantinha um controle firme de seu poder.
Eduardo organizava grandes justas em homenagem a ela, e nelas Alice se sentava ao lado dele, trajada com uma suntuosidade muito maior do que a de Filipa.
O rei estava muito envelhecido, e muita gente achava que seu fim estava próximo. Até a morte de Filipa, parecera mais novo do que era na realidade e tivera mais vigor do que homens com a metade de sua idade, mas a vida que estava levando com Alice começava a mostrar seus efeitos. Apropria Alice se perguntava quanto tempo aquela sua vida iria durar.
Se o rei morresse, seria o fim da sua glória, e como Alice comentara com um certo cavaleiro um tanto empobrecido pelo qual se sentira atraída, a mulher precisava cuidar do seu futuro.
Alice estava fazendo isso muito bem. Assim que seus olhos batiam numa jóia, ficava ansiosa por possuí-la. Gostava imensamente de descobrir novos meios de enriquecer, e estava se saindo muito bem. Mas tinha de pensar no futuro.
O homem pelo qual se interessara era William de Windsor. Não era de berço nobre elevado nem tinha uma grande fortuna; mas será que ela poderia esperar que algum nobre cavaleiro se casasse com ela? Claro que não. Seu casamento teria de ser secreto, porque se soubessem que ela estava casada seria imediatamente acusada de adultério - e o rei também. Eles teriam os prelados metidos falando em excomungá-los e isso era uma coisa que até mesmo o velho e abobalhado Eduardo teria de levar a sério.
William de Windsor concordou de bom grado. Ele via um futuro muito mais brilhante com Alice do que podia esperar sem ela. Além do mais, era uma mulher de amplos conhecimentos sexuais que prometia levar alguma emoção para a sua vida insípida.
E assim os dois se casaram... no maior segredo, e quando Alice deu à luz outra filha, foi fácil fazer a jovem Joan passar por filha do rei.
Era uma vida interessante, e bens valiosos fluíam para os bolsos de Alice.
A devoção do rei não diminuiu, e quanto mais velho ficava, mais escravo dela se tornava.
Eduardo organizaria uma grande justa em Smithfield em homenagem a Alice. Ela seria a Senhora do Sol. Estaria lá como uma rainha, e todos deveriam homenageá-la. Iria a cavalo da Torre de Londres a Cheapside, e seus trajes seriam fornecidos pelo guarda-roupas real.
Foi um grande dia para Alice. Ali estava ela cavalgando à frente do cortejo num vestido castanho-avermelhado e branco com as bordas de arminho e decorado com fios dourados. Por baixo do chapéu de couro, seus belos cabelos pretos caíam-lhe sobre os ombros; seus grandes olhos negros, brilhando de excitação, corriam pela multidão, que se limitava a olhar perplexa e com um medo respeitoso para aquela mulher de nível inferior que conquistara o coração de um grande rei.
A Inglaterra estava em estado precário, e os franceses aproveitaram-se disso. O Príncipe Negro ficava mais fraco a cada dia. Ele e Joan não tinham tido mais filhos, e o herdeiro do trono era o menino Ricardo de Bordeaux.
John de Gaunt voltara para a Inglaterra e quase todas as conquistas inglesas na França estavam, agora, em mãos dos franceses. O astuto John mostrou-se amigo de Alice Perrers a fim de bajular o pai e, em consequência, estava agindo como regente no governo do país.
O marido de Isabella deixara-a na Inglaterra e não dava sinais de voltar para a mulher. Ela estava triste e continuava na corte, embora soubesse que para ficar junto ao pai precisava apaziguar Alice.
Lionel morrera na Itália; Edmund e Thomas não demonstravam talentos especiais; e os grandes e heróicos feitos da primeira fase da vida do rei pareciam ter sido em vão.
O Príncipe Negro acompanhava os acontecimentos com uma crescente melancolia. Embora com seu retorno à Inglaterra a febre tivesse diminuído um pouco, os ataques voltaram e estavam ficando mais frequentes. Ele ficava muito preocupado quando via seu filho Ricardo. O que seria dele?, perguntava-se ele. Quanto tempo o rei poderia durar? A saúde dele deteriorava-se com rapidez; e ele? Por quanto tempo poderia continuar? Ele sabia que a doença que contraíra acabaria por matá-lo. Parecia inevitável que aquele pequeno Ricardo seria rei antes de atingir a maioridade. John de Gaunt ansiava pela coroa. Ele era inteligente e astuto. Como se sairia aquele menino inocente contra ele?
- Dê-me força para viver até que meu filho tenha idade para governar - rezava ele. - Dê-me tempo para ensinar o que ele tem de saber.
Enquanto isso, lá estava o velho rei governado por uma mulher dissoluta que não tinha senso de honra e cuja única ideia era reunir o máximo de riqueza possível. O povo estava inquieto. Porquanto tempo teria ele de aceitar aquele estado de coisas em que o país estava mergulhando?
Se ao menos o rei pudesse ser como antigamente - forte, justo! Ninguém podia negar que Eduardo fora um dos maiores reis que a Inglaterra já tivera antes que a senilidade tomasse conta dele. Se ao menos Filipa tivesse vivido. Ah, sim, se ao menos Filipa tivesse vivido! Se ao menos o Príncipe Negro, herói de Crécy e Poitiers, tivesse suas forças.
Era quase impossível acreditar como a Inglaterra podia ter sido tão derrubada através de uma sequência de certas circunstâncias inesperadas. A morte da rainha; o domínio de Alice Perrers sobre um rei que caíra da grandeza para a senilidade; um príncipe de Gales atacado pela febre; um John de Gaunt maquinador; e um herdeiro ao trono que era pouco mais do que um bebé.
O príncipe recuperara-se da febre e sentia-se um pouco melhor quando William de Wykeham, bispo de Winchester, foi a Berkhamstead um tanto apressado e agitado. William de Wykeham sempre fora amigo do Príncipe Negro e com ele lamentara a maneira pela qual a Inglaterra estava decaindo.
Ele foi logo dizendo ao príncipe o motivo da visita.
- Eu acho, meu senhor - disse ele -, que agora temos o que precisamos para romper a associação entre o rei e a rameira. Descobri que ela é casada e, portanto, está cometendo adultério.
O príncipe ficou agitado.
- É mesmo? Pode-se provar? O caso devia ser submetido ao Parlamento.
- E deve mesmo, meu senhor. O adultério da mulher será examinado, e com ele as práticas malévolas de suborno e corrupção que ela provocou. Isso nos dá uma oportunidade.
Ele se sentia melhor. Havia uma chance. O rei teria de desistir de Alice Perrers. A ideia fez com que ele se sentisse bem outra vez. Levantaria da cama. Tornaria a ser o homem forte. Seu pai, livre daquela mulher, voltaria ao velho estilo de vida. Talvez ele pudesse ter muitos anos pela frente, e depois dele viria o Príncipe Negro, e anos e anos depois, quando Ricardo fosse um homem que tivesse aprendido o bom senso com quem tinha experiência, a coroa seria colocada em sua cabeça e a Inglaterra seria próspera outra vez.
O Parlamento se reuniu. Seus membros estavam prontos a contrariar os desejos do rei, e o povo alegrou-se porque, tal como o Príncipe Negro, acreditava que aquele Parlamento poderia provocar um retorno aos velhos métodos sensatos. O povo chamou o Parlamento de o bom Parlamento. Ele era apoiado pelo ídolo do povo, o Príncipe Negro, e agiria contra John de Gaunt, de quem o povo não gostava e, além do mais, traria a público as práticas nefastas de Alice Perrers.
O Parlamento fez jus as expectativas do povo. Alice foi convocada a comparecer. Foi acusada de práticas execráveis nos tribunais, de envolver-se em outros assuntos e de ter seduzido o rei graças ao uso de magia negra.
Alice exibiu uma insolência que não a ajudou em coisa alguma e o resultado foi ela ser expulsa da corte e ameaçada de excomunhão se voltasse.
O rei ficou desolado. Uma delegação chefiada pelo bispo de Winchester foi visitá-lo e lhe disse que Alice casara-se com William de Windsor e, portanto, os dois estavam cometendo adultério.
- Eu me recuso a acreditar - bradou ele, angustiado. - Ela nunca se casou com ninguém.
Eles provaram que ela o fizera recentemente, e Eduardo ficou muito abalado.
- Ela também é culpada de fraude e roubo - disseram-lhe.
- Ela nada fez sem meu consentimento.
- Majestade, mesmo assim ela é culpada.
Não houve um único homem presente que não ficasse impressionado com o estado a que o outrora grande rei estava reduzido. Poucos anos antes, qual deles teria tido a ousadia de ficar diante dele e dizer-lhe o que tinha de fazer?
Agora, ele ouviu docilmente.
- Eu lhes peço que a tratem com delicadeza - disse ele.
O grande Eduardo deixou-os e foi para o seu quarto e chorou.
Quando o Príncipe Negro soube da expulsão de Alice da corte, ficou contentíssimo.
Ele sabia que no país inteiro as pessoas estavam olhando para ele. Todas sabiam que tinham sido o seu apoio e a sua força que deram ao bom Parlamento a coragem de enfrentar o rei e expulsar Alice da corte. Mas o que impressionava a todos era o fato de Eduardo ter permitido que aquilo acontecesse.
Ele devia estar doente mesmo.
Durante as semanas que se seguiram, a saúde do príncipe deteriorou-se rapidamente.
Ele mandou chamar o filho Ricardo, um menino de nove anos, bonito, inteligente, vivo. Deus o conserve, rezou ele. Se ao menos fosse um pouco mais velho! Se ao menos o irmão dele, Eduardo, tivesse vivido!
O que ele podia dizer a Ricardo? Como poderia incutir naquela jovem cabeça a importância do destino que estava à sua frente?
Pediu ao rei que fosse vê-lo, porque estava fraco demais para ir até ele.
Eduardo foi e sentou-se ao lado da cama do filho. Sua dor era intensa.
Aquele seu filho, aquele nobre cavaleiro, seria possível que ele fosse aquele homem doente e fraco? Como Deus podia ser tão cruel com ele! Lembrava-se de quando aquele filho nascera para ele e Filipa e a grande alegria que os dois tinham sentido, e quando ficara homem, parecia que todos os sonhos deles tinham sido realizados na pessoa dele.
Crécy. Ele era muito criança na época. "Deixem que o menino faça jus às esporas de cavaleiro", dissera ele; e como ele o fizera! Como o povo o adorara! Ele fora o perfeito cavaleiro do povo, o símbolo da fidalguia; pessoas tinham curvado a cabeça em referência à menção do nome do Príncipe Negro.
- Meu filho, meu filho - disse o rei, soluçando. - Será que isso é mesmo o fim? Não pode ser. Você vai se recuperar. Voltará a ser forte. Eu preciso de você, Eduardo. O país precisa de você.
O príncipe abanou a cabeça.
- Eu estou morrendo, papai. Sei muito bem disso. Lamento deixá-lo... e deixar a Inglaterra. Há três desejos que devo pedir ao senhor. Confirme as doações que fiz, pague minhas dívidas com recursos do espólio e, acima de tudo, proteja meu filho contra os inimigos. Ele ainda é criança... um menino. Tenho medo do que possa acontecer a ele, papai.
- Você vai viver para reinar depois de mim, meu filho, e eu ainda não morri.
- Papai, o senhor tem de viver, não pode ir... ainda não... ainda não...
O rei prometeu que faria tudo o que o filho lhe pedira e retirou-se triste.
Joan sabia que o fim estava próximo e que não havia coisa alguma que ela pudesse fazer para evitá-lo. Cuidara do marido durante a doença e havia muito tempo sabia que devia estar preparada para o fim.
Tudo o que lhe restava, agora, era o filho. Uma grande responsabilidade cabia-lhe, porque quando o pai morresse o menino seria o herdeiro do trono.
Haveria quem fosse tentar depô-lo. Era sempre assim quando um menino se tornava rei.
Ela rezava pedindo forças e sabia que seria atendida.
Enquanto isso, fazia o possível para manter o marido vivo.
Chegou o dia em que o Príncipe Negro mandou chamar o bispo de Bangor e a família reuniu-se em torno de sua cama.
Ele rezou pedindo perdão daqueles a quem ele prejudicara e pedindo a Deus que perdoasse seus pecados. Ao morrer, seus olhos estavam fixos no rosto sofrido do menino Ricardo, que então não podia compreender o que o futuro lhe reservava.
O rei ficou muito abalado. Deu ordens para que o filho fosse enterrado com grande cerimónia na catedral de Canterbury e que seu casaco, seu elmo, seu escudo e suas manoplas fossem pendurados sobre o túmulo para que ninguém se esquecesse de que ali jazia o maior de todos os guerreiros.
com a morte do Príncipe Negro, Eduardo dissolveu o bom Parlamento. John de Gaunt estava em ascendência e parecia exercer total poder sobre o pai.
com a conivência dele, Eduardo revogou a pena de Alice, que voltou com o máximo de exuberância.
O povo ficou com raiva, mas tendo em vista a evidente saúde debilitada do rei, não insistiu em tirar Alice dele.
Não havia dúvida de que ela agradava ao rei, que se sentia felicíssimo com ela, porque ela podia fazê-lo esquecer que a prosperidade do país, por que ele se sacrificara tanto e gastara uma vida inteira de esforços para construir, estava desabando. Ela não o deixava lembrar-se de que estava deixando um reino agitado para um menino sem experiência alguma de governar. Ele fechava os olhos para as ambições de John de Gaunt e entrou num estado de euforia.
Alice estava de volta. Alice tinha consolo a oferecer. Ela não aceitaria o fato de que ele tinha pouco tempo para viver.
- Um absurdo - bradou ela. - Você não está morrendo. Você e eu vamos cavalgar juntos para ir à caça. Tenho um falcão novo. vou mostrá-lo a você. Você precisa ficar bom depressa, para que possamos andar a cavalo juntos.
Ela falava com tanto entusiasmo, ria tão alto, que ele acreditava nela.
- Alice, meu amor, vamos cavalgar juntos. Vamos fazer outra justa em Smithfíeld? Nunca esquecerei de você cavalgando como a Rainha do Sol. Você é a Rainha do Dia e a Rainha da Noite, minha Alice. Nunca houve mulher como você.
Às vezes ele ficava sonolento, sonhando com o passado. Queria Alice ao lado, a aparência vibrante dela contrastando tristemente com a dele, que envelhecia. Mas ao seu lado Eduardo se sentia jovem outra vez. Estava convencido de que os dois iriam andar a cavalo na floresta e haveria uma justa e ele iria levar o memento dela em seu elmo. Seria de novo o campeão de todos, como no passado.
Estava tão fraco, que ainda precisava ficar de cama. Poucas pessoas aproximavam-se dele. Isso não importava enquanto tivesse Alice.
- Vamos ter um torneio - disse ela - assim que você puder se levantar. E será em breve.
- Será, Alice? Você acha?
- Eu sei que será. Devo usar um vestido cravejado de pérolas e forrado de arminho. vou precisar de um cinto de esmeraldas e rubis para combinar. Posso mandar fazer?
- Mande - respondeu ele. - Mande. Ela o beijou com fervor.
- Você é melhor homem do mundo.
O cinto deveria ser feito bem depressa. Ela estava bem ciente de que não devia haver demoras. Sabia, mesmo enquanto falava em caça de falcão e de caça comum e em justas dispendiosas, que o tempo estava se esgotando.
A corte toda sabia. Já não era necessário mostrar respeito pelo rei. Como poderiam mostrar esse sentimento, quando isso significava ter de passar pela rameira, que era como a chamavam?
Ela ordenou aos criados mais imediatos que fizessem o que ela queria; eles levaram alimentos que ele estava fraco demais para comer.
Astuta, Alice observava. Não devia demorar.
Chegou a manhã em que o rei jazia imóvel, impossibilitado de falar, e a morte colocara sua marca em sua testa.
Jamais voltaria a falar com ela. Nunca mais sorriria para ela.
Alice sabia que, em seus pensamentos, ele estava bem longe.
Estava com Filipa de Hainault, a primeira vez em que a vira, uma menina rechonchuda de faces rosadas, em pé no grande salão com as irmãs. Vira que era ela que ele queria, e Filipa também vira isso. Eduardo se lembrou dela debulhando-se em lágrimas quando ele se despedira... ali, diante de toda a corte reunida. Fora então que se apaixonara por ela e decidira casar-se com ela.
Os dois tinham sido felizes juntos - fora um casamento ideal. Fértil, feliz, e Eduardo soubera que ela era a melhor mulher do mundo.
Só uma vez ela o decepcionara... ao morrer. E depois tudo dera errado.
A luz estava esmaecendo, e a escuridão o estava envolvendo. Agora iria para o lado de Filipa...
Pensou que alguma coisa tivesse lhe tocado as mãos, mas não teve certeza. Estava cansado demais para olhar.
Era Alice, tirando depressa os anéis de seus dedos. Chegara a hora de ela ir embora.
Havia apenas um padre ao lado da cama. O padre segurava o crucifixo diante dos olhos dele.
-. Jesu nuserere... - murmurou Eduardo.
Foi esse o passamento do Grande Eduardo. Ele foi enterrado como mandara, na abadia de Westminster, junto ao corpo de Filipa.
Jean Plaidy
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