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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


1356 / Bernard Cornwell
1356 / Bernard Cornwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

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Havia escurecido e ele não tinha lanterna, mas as chamas da cidade lançavam um brilho sinistro que chegava ao fundo da igreja e iluminava apenas o suficiente para mostrar as lajes de pedra na cripta funda onde o homem golpeava o chão com um pé de cabra.

Estava atacando uma pedra gravada com um brasão que mostrava um cálice cercado por um cinto afivelado onde estava escrito Calix Meus Inebrians. Raios de sol esculpidos no granito davam a impressão de que o cálice irradiava uma luz. O relevo e a inscrição estavam desgastados pelo tempo, e o homem mal os havia percebido, embora ouvisse os gritos vindos dos becos ao redor da igrejinha. Era uma noite de fogo e sofrimento, e os gritos abafavam os ruídos de seus golpes na beirada da pedra, enquanto ele tentava lascar um pequeno espaço em que poderia enfiar o comprido pé de cabra. Golpeou com a barra de ferro, depois se imobilizou ao escutar gargalhadas e passos na igreja acima. Encolheu-se atrás de uma passagem em arco logo antes de dois homens descerem à cripta. Carregavam uma tocha acesa que iluminou o comprido espaço em arco e revelou que não havia saques fáceis à vista. O altar da cripta era de pedra simples, sem nada além de uma cruz de madeira como decoração, não tinha sequer um candelabro. Um dos homens disse algo numa língua estranha, o outro gargalhou, e os dois voltaram para a nave, cujas paredes pintadas e altares conspurcados estavam iluminados pelas chamas das ruas.

O homem com o pé de cabra usava capa e capuz pretos. Por baixo da capa pesada havia um hábito branco manchado de sujeira, e era preso na cintura por uma corda com três nós. Era um frade, um dominicano, mas nesta noite isso não serviria de proteção contra o exército que devastava Carcassonne. Era alto e forte, e antes de ter feito os votos havia sido um homem de armas. Sabia como estocar com uma lança, cortar com uma espada ou matar com um machado. Na época chamava-se Sire Ferdinand de Rodez, mas agora era simplesmente o frei Ferdinand. Antigamente usara cota de malha e placas, cavalgara em torneios e matara em batalha, mas fazia 15 anos que era frade e rezava diariamente pelo perdão de seus pecados. Agora estava velho, com quase 60 anos, mas ainda tinha ombros largos. Havia caminhado para chegar a esta cidade, mas as chuvas tinham prolongado sua jornada, inundando os rios e tornando os vaus intransponíveis, e era por isso que estava atrasado. Atrasado e cansado. Enfiou o pé de cabra embaixo da pedra com relevos e fez força de novo, temendo que o ferro se dobrasse antes que ela cedesse, então houve um som áspero e o granito se levantou, em seguida deslizou de lado, oferecendo uma pequena abertura.

O espaço estava escuro porque a luz demoníaca da cidade em chamas não podia entrar na sepultura, de modo que o frade se ajoelhou junto ao buraco e enfiou a mão. Encontrou madeira, por isso usou o pé de cabra de novo. Um golpe, dois golpes, e a madeira se lascou, e ele rezou para que não houvesse um caixão de chumbo ali dentro. Golpeou com o pé de cabra uma última vez, depois enfiou a mão e puxou pedaços de madeira para fora do buraco.

Não havia caixão de chumbo. Seus dedos, penetrando mais na tumba, encontraram um tecido que se desfez ao ser tocado. Depois sentiram ossos. Os dedos exploraram uma órbita ocular seca, dentes soltos, e descobriram a curva de uma costela. Deitou-se para esticar o braço mais fundo, tateou no negrume da sepultura e encontrou alguma coisa sólida que não era osso. Mas não era o que ele procurava; tinha a forma errada. Era um crucifixo. De repente soaram vozes altas na igreja. Um homem gargalhou e uma mulher soluçou. O frade ficou deitado imóvel, ouvindo e rezando. Por um momento desanimou, pensando que o objeto que procurava não estava no túmulo, mas então estendeu a mão o mais longe que conseguia e seus dedos tocaram algo envolto em um pano fino que não se desfez. Remexeu-se desajeitadamente no escuro, segurou o pano e puxou. Havia um objeto pesado embrulhado no tecido, e ele puxou-o lentamente, depois segurou-o direito e soltou o objeto das mãos do esqueleto que o estavam prendendo. Tirou a coisa da tumba e se levantou. Não precisava desembrulhá-lo. Sabia que havia encontrado la Malice e, agradecendo, voltou-se para o altar simples no lado leste da cripta e fez o sinal da cruz.

— Obrigado, Senhor — disse num murmúrio —, e obrigado, São Pedro, e obrigado, São Juniano. Agora me mantenham em segurança.

O frade precisaria de ajuda celestial para se manter seguro. Por um momento pensou em se esconder na cripta até que o exército invasor deixasse Carcassonne, mas isso poderia demorar dias, e, além do mais, assim que os soldados tivessem saqueado tudo que estivesse ao seu alcance, abririam os túmulos na cripta em busca de anéis, crucifixos ou qualquer outra coisa que rendesse uma moeda. A cripta havia abrigado la Malice durante um século e meio, mas o frade tinha consciência de que ela não lhe daria segurança por mais do que algumas horas.

O frei Ferdinand abandonou o pé de cabra e subiu a escada. La Malice tinha o mesmo comprimento de seu braço e era surpreendentemente pesada. Antigamente era equipada com um cabo, mas restava apenas a fina espiga de metal, e ele segurou-a por esse suporte grosseiro. Ainda estava envolta no que ele achou que fosse seda.

A nave da igreja estava iluminada pelas casas que ardiam na pracinha do lado de fora. Havia três homens dentro da igreja, e um deles gritou interpelando a figura de capa escura que surgiu vinda da escada da cripta. Os três eram arqueiros, e seus arcos longos estavam encostados no altar, mas, apesar da interpelação, não se interessaram realmente pelo estranho, só pela mulher que tinham posto de pernas abertas nos degraus do altar. Por um instante o frei Ferdinand ficou tentado a salvar a mulher, mas então quatro ou cinco outros homens entraram por uma porta lateral e gritaram de alegria ao ver o corpo nu estendido nos degraus. Tinham trazido outra jovem, uma garota que gritava e lutava, e o frei estremeceu ao ouvir o som de seu sofrimento. Ouviu as roupas dela sendo rasgadas, ouviu-a gemer e se lembrou de todos os seus próprios pecados. Fez o sinal da cruz.

— Perdoai-me, Cristo Jesus — sussurrou e, incapaz de ajudar as jovens, passou pela porta da igreja e saiu à pequena praça.

Chamas consumiam tetos de palha que queimavam violentamente, cuspindo fagulhas ao vento noturno. A fumaça se retorcia sobre a cidade. Um soldado usando a cruz vermelha de São Jorge estava vomitando nos degraus da igreja, e um cachorro correu para lamber o vômito. O frade se virou para o rio, esperando atravessar a ponte e subir para a Cité. Pensava que a muralha dupla, as torres e as ameias de Carcassonne iriam protegê-lo porque duvidava de que aquele exército feroz tivesse paciência para realizar um cerco. Eles haviam capturado o bourg, o bairro comercial que ficava a oeste do rio, mas aquele local jamais fora defensável. A maioria dos negócios da cidade era feita no bourg — lá estavam as oficinas de couro, os artesãos de prata, os armeiros, os abatedouros de aves e os mercadores de tecidos —, mas apenas um muro de terra cercava essas riquezas, e o exército havia passado em bando por cima dessa barreira risível, como uma enchente. Mas a Cité de Carcassonne era uma fortaleza, uma das maiores da França, um bastião cercado por enormes torres de pedra e muros altíssimos. Lá dentro ele estaria seguro. Encontraria um local para esconder la Malice até que pudesse devolvê-la ao dono.

Esgueirou-se por uma rua que não tinha sido incendiada. Homens invadiam casas, usando marretas ou machados para arrebentar as portas. A maior parte dos cidadãos tinha fugido para a Cité, mas algumas poucas almas tolas haviam permanecido, talvez com esperança de proteger suas propriedades. O exército havia chegado tão rapidamente que não houvera tempo de levar cada bem valioso para o outro lado da ponte, até as portas monstruosas que protegiam a cidadela no topo da colina. Havia dois corpos na sarjeta central. Usavam os quatro leões de Armagnac, besteiros mortos na defesa inútil do bourg.

O frei Ferdinand não conhecia a cidade. Agora tentava encontrar um caminho escondido até o rio, usando becos sombreados e passagens estreitas. Deus estava com ele, pensou, porque não encontrou inimigos enquanto corria para o leste, mas então chegou a uma rua mais larga, muito iluminada por chamas, e viu a ponte comprida, e do outro lado, no alto do morro, as muralhas da Cité refletindo o fogo. As pedras pareciam avermelhadas pelos incêndios que ardiam no bourg. Os muros do inferno, pensou o frade, e um sopro de vento da noite fez uma grande máscara de fumaça redemoinhar para baixo, amortalhando sua visão da muralha, mas não da ponte, onde, vigiando a extremidade oeste, havia arqueiros. Arqueiros ingleses, usando as túnicas com cruzes vermelhas e portando seus arcos longos e mortais. Dois cavaleiros, com cota de malha e elmo, estavam com eles.

Não havia como atravessar, pensou. Não havia como chegar à segurança da Cité. Agachou-se, refletindo. Depois voltou aos becos. Iria para o norte.

Precisou cruzar uma rua importante, iluminada por incêndios ateados recentemente. Uma corrente, uma das muitas que tinham sido colocadas atravessando a rua para conter os invasores, estava jogada na sarjeta, onde um gato lambia sangue. O frei Ferdinand correu em meio à luz do incêndio, enfiou-se em outro beco e continuou correndo. Deus continuava com ele. As estrelas estavam obscurecidas pela fumaça pontilhada de fagulhas. Atravessou uma praça, foi contido por um beco sem saída, voltou e foi para o norte de novo. Uma vaca mugia numa construção em chamas, um cachorro atravessou seu caminho com algo preto e pingando nos dentes. Passou por um curtume, pulando por cima das peles estendidas nas pedras do calçamento, e mais adiante estava o risível muro de terra que servia como única defesa do bourg. Subiu nele, ouviu um grito e olhou para trás, vendo três homens perseguindo-o.

—   Quem é você? — gritou um deles.

—   Pare! — berrou outro.

O frade os ignorou. Desceu correndo o barranco, indo para o campo escuro que ficava além do amontoado de choupanas construídas do lado de fora do muro de terra, enquanto uma flecha passava sibilando por ele, errando-o, com a graça de Deus, pela distância de um dedo. Retorceu-se de lado, entrando numa passagem entre dois casebres. Ali havia um monte fedido de esterco. Passou correndo pela bosta e viu que a passagem terminava numa parede. Virou-se de volta, vendo os três homens barrando seu caminho. Estavam rindo.

—   O que você tem? — perguntou um deles.

—   Je suis gascon — disse o frei Ferdinand. Sabia que os invasores da cidade eram gascões e ingleses, e ele não falava inglês. — Je suis gascon! — repetiu, indo na direção deles.

—   É um dominicano — disse um dos homens.

—   Mas por que o desgraçado fugiu? — perguntou outro inglês. — Tem alguma coisa escondida, é?

—   Dá aqui — disse o terceiro, estendendo a mão. Era o único que tinha o arco encordoado; os outros dois estavam com os arcos pendurados às costas e seguravam espadas. — Anda, seu cara de bunda, me dá logo. — O homem estendeu a mão para la Malice.

Os três tinham metade da idade do frei e, como eram arqueiros, provavelmente possuíam o dobro da sua força, mas frei Ferdinand havia sido um grande guerreiro, e as habilidades da espada jamais o haviam abandonado. E estava com raiva. Com raiva por causa do sofrimento que tinha visto e das crueldades que tinha ouvido, e essa raiva o deixou selvagem.

—   Em nome de Deus — disse, e levantou la Malice como um chicote.

A espada continuava enrolada em seda, mas sua lâmina cortou fundo o pulso estendido do arqueiro, partindo os tendões e quebrando ossos. Frei Ferdinand estava segurando-a pela espiga, que oferecia um suporte precário, mas a espada parecia viva. O homem ferido se encolheu, sangrando, enquanto seus companheiros rugiam de fúria e golpeavam com as espadas. O frei aparou as duas com um único movimento e estocou, e la Malice, mesmo após mais de 150 anos na tumba, provou-se afiada como uma lâmina recém-polida. Seu gume frontal atravessou a túnica acolchoada do homem mais próximo, abriu suas costelas e perfurou um pulmão, e, antes que o sujeito ao menos soubesse que tinha sido ferido, frei Ferdinand girou a lâmina de lado para acertar os olhos do terceiro homem. O sangue brilhou no beco, e agora os três recuavam, mas o frade não lhes deu chance de escapar. O que estava cego tropeçou para trás e caiu na pilha de esterco, e seu companheiro brandiu a espada em desespero. La Malice encontrou-a, e a lâmina inglesa se partiu ao meio. O frade moveu rapidamente a espada envolta em seda, cortando a goela do sujeito, e sentiu o sangue espirrar no rosto. Tão quente, pensou, e que Deus me perdoe. Um pássaro guinchou no escuro, e as chamas rugiam no bourg.

Matou os três arqueiros, depois usou a seda para limpar a lâmina de la Malice. Pensou em fazer uma breve oração pelos homens que havia acabado de matar, depois decidiu que não queria compartilhar o céu com aquelas criaturas grosseiras. Em vez disso beijou la Malice, depois revistou os três corpos e encontrou algumas moedas, um pedaço de queijo, quatro cordas de arco e uma faca.

A cidade de Carcassonne ardia e enchia com fumaça a noite de inverno.

E o frade caminhou para o norte. Ia para casa, para casa, na torre.

Levava la Malice e o destino da cristandade.

E desapareceu no escuro.

 

Os homens chegaram à torre quatro dias depois do saque de Carcassonne.

Eram 16, todos com capas de boa lã grossa e todos montando bons cavalos. Quinze usavam cota de malha e tinham espadas à cintura, e o cavaleiro restante era um padre que carregava no pulso um falcão encapuzado.

O vento descia áspero o desfiladeiro da montanha, agitando as penas do falcão, sacudindo os pinheiros e chicoteando a fumaça dos casebres na aldeia abaixo da torre. Fazia frio. Essa parte da França raramente via neve, mas o padre, olhando por baixo do capuz, achou que talvez houvesse flocos no vento.

Havia muros arruinados em volta da torre, prova de que o lugar já fora uma fortaleza, mas tudo que restava do velho castelo era a torre e uma construção baixa, com teto de palha, onde talvez morassem serviçais. Galinhas ciscavam na poeira, uma cabra amarrada olhava os cavalos e um gato ignorava os recém-chegados. O que já fora uma ótima fortaleza simples, que tinha por objetivo defender a estrada para as montanhas, era agora uma fazenda, mas o padre notou que a torre continuava em boas condições e que a pequena aldeia na reentrância abaixo da velha fortaleza parecia bastante próspera.

Um homem saiu correndo da cabana com teto de palha e fez uma reverência profunda diante dos cavaleiros. Não porque os reconheceu, mas porque homens com espada exigiam respeito.

—   Senhores? — perguntou o homem, ansioso.

—   Guarde os cavalos — ordenou o padre.

—   Primeiro caminhe com eles — acrescentou um dos homens com cota de malha. — Ande com eles, escove-os, não deixe comerem demais.

—   Senhor — disse o homem, fazendo outra reverência.

—   Isto aqui é Mouthoumet? — perguntou o padre enquanto apeava.

—   Sim, padre.

—   E você serve ao Sire de Mouthoumet?

—   Ao conde de Mouthoumet, sim, senhor.

—   Ele está vivo?

—   Deus seja louvado, padre, ele está vivo.

—   Deus seja louvado mesmo — disse o padre descuidadamente, depois foi até a porta da torre, que ficava no topo de uma pequena escada de pedra.

Chamou dois dos homens com cota de malha para acompanhá-lo e ordenou que o resto esperasse no pátio, depois empurrou a porta e se viu numa ampla sala redonda usada para guardar lenha. Presuntos e maços de ervas pendiam das traves. Uma escada subia por metade da parede, e o padre, não se incomodando em se anunciar ou em esperar que um empregado o recebesse, foi para o andar de cima, onde havia uma lareira junto à parede. Ali ardia um fogo, mas boa parte da fumaça permanecia na sala circular, empurrada de volta pelo vento frio. As antigas tábuas do piso eram cobertas por tapetes puídos; havia dois baús com velas acesas em cima, porque, mesmo sendo dia lá fora, as duas janelas do cômodo tinham cobertores estendidos para bloquear o vento. Sobre uma mesa estavam dois livros, alguns pergaminhos, um tinteiro, um feixe de penas, uma faca e um velho peitoral enferrujado de armadura, que servia como tigela para três maçãs murchas. Junto à mesa havia uma cadeira, e o conde de Mouthoumet, senhor da torre solitária, estava deitado numa cama perto das brasas na lareira. Havia um padre grisalho sentado junto dele, e duas mulheres idosas encontravam-se ajoelhadas ao pé da cama.

—   Saiam — ordenou aos três o padre recém-chegado. Os dois homens com cotas de malha subiram a escada atrás dele e pareceram preencher o cômodo com sua presença maligna.

—   Quem é o senhor? — perguntou nervoso o padre grisalho.

—   Eu mandei sair, então saia.

—   Ele está morrendo!

—   Vai logo!

O velho sacerdote, com um escapulário em volta do pescoço, abandonou os sacramentos e seguiu as duas mulheres descendo a escada. O homem agonizante olhou os recém-chegados, mas não disse nada. Seu cabelo era comprido e branco, a barba cheia e os olhos fundos. Viu o padre colocar o falcão na mesa, e as garras do pássaro rasparam na madeira.

—   Ela é une calade — explicou o padre.

—   Une calade? — perguntou o conde, com a voz muito baixa. Olhou as penas cor de ardósia e o peito claro e riscado da ave. — É tarde demais para uma calade.

—   O senhor deve ter fé — disse o padre.

—   Vivi mais de 80 anos e tenho mais fé do que tempo restante.

—   O senhor tem tempo suficiente para isso — disse o padre, sério. Os dois homens com cotas de malha ficaram parados no topo da escada, silenciosos. A calade soltou uma espécie de miado, mas quando o padre estalou os dedos o pássaro encapuzado ficou imóvel e quieto. — O senhor já recebeu os sacramentos?

—   O padre Jacques ia dá-los agora mesmo — respondeu o agonizante.

—   Eu farei isso — disse o padre.

—   Quem é o senhor?

—   Venho de Avignon.

—   Do papa?

—   De quem mais? — O padre andou pelo cômodo, examinando-o, e o velho o observou. Viu um homem alto, de rosto duro, com os mantos de padre muito bem-cortados. Quando o visitante levantou uma das mãos para tocar o crucifixo pendurado na parede, sua manga se abriu, revelando um forro de seda vermelha. O velho conhecia esse tipo de padre, duro e ambicioso, rico e esperto, do tipo que não ministrava aos pobres, mas subia a escada do poder clerical na companhia dos ricos e privilegiados. O padre se virou e espiou o velho com olhos verdes e duros. — Diga, onde está la Malice?

O velho hesitou um segundo além do que deveria.

—   La Malice?

—   Diga onde ela está — exigiu o padre, e, como o velho não disse nada, acrescentou: — Venho em nome do Santo Padre. Ordeno que me diga.

—   Não sei a resposta — sussurrou o velho. — Então como posso dizer?

Um pedaço de lenha estalou no fogo, soltando fagulhas.

—   Os frades dominicanos têm espalhado heresias — disse o padre.

—   Que Deus não permita — respondeu o velho.

—   Você as ouviu?

O conde balançou a cabeça.

—   Ouço pouca coisa ultimamente, padre.

O padre enfiou a mão numa bolsa pendurada à cintura e pegou um pedaço de pergaminho.

—   Os Sete Senhores Negros a possuíram — leu em voz alta — e eles são amaldiçoados. Aquele que deve nos governar irá encontrá-la e será abençoado.

—   Isso é heresia? — perguntou o conde.

—   É um versículo que os dominicanos estão espalhando por toda a França. Por toda a Europa! Só existe um homem para nos governar, e é o Santo Padre. Se la Malice existe, é seu dever cristão me dizer o que sabe. Ela deve ser dada à Igreja! Quem pensa diferente é herege.

—   Não sou herege — disse o velho.

—   Seu pai era um Senhor Negro.

O conde estremeceu.

—   Os pecados do meu pai não são meus.

—   E os Senhores Negros possuíram la Malice.

—   Dizem muitas coisas a respeito dos Senhores Negros — retrucou o conde.

—   Eles protegiam os tesouros dos hereges cátaros — disse o padre —, e quando, pela graça de Deus, esses hereges foram queimados, exterminados da terra, os Senhores Negros pegaram seus tesouros e os esconderam.

—   Ouvi dizerem isso. — A voz do conde mal passava de um sussurro.

O padre estendeu a mão e acariciou as costas do falcão.

—   La Malice está perdida há muitos anos — disse ele —, mas os dominicanos dizem que ela pode ser encontrada. E deve ser encontrada! É uma arma para trazer o reino de Cristo à terra, e você a esconde!

—   Não escondo! — protestou o velho.

O padre sentou-se na cama e se inclinou perto do conde.

—   Onde está la Malice?

—   Não sei.

—   Você está muito perto do julgamento de Deus, velho. Portanto, não minta para mim.

—   Em nome de Deus, eu não sei.

E era verdade. Ele sabia onde la Malice estivera escondida e, temendo que os ingleses a descobrissem, mandara seu amigo, o frei Ferdinand, recuperar a relíquia, e presumia que o frade tivesse feito isso. E, supondo que o frei Ferdinand tenha conseguido, o conde não sabia mais onde la Malice estava. Logo, não havia mentido, mas também não dissera toda a verdade ao padre, porque alguns segredos deviam ser levados para a sepultura.

O padre olhou o conde por um longo tempo, depois estendeu a mão para tirar a peia do falcão. O pássaro, ainda encapuzado, subiu cuidadosamente no pulso do padre. O homem levou-o até a cama e instigou o pássaro a ficar sobre o peito do agonizante, depois soltou gentilmente o laço do capuz e levantou o couro de cima dos olhos da ave.

—   Esta calade é diferente — disse ele. — Ela não revela se você viverá ou morrerá. E sim se morrerá em estado de graça e irá para o céu.

—   Rezo para que eu vá.

—   Olhe para o pássaro — ordenou o padre.

O conde de Mouthoumet olhou para o falcão. Tinha ouvido falar daqueles pássaros, calades, que podiam prever a morte ou a vida de um homem. Se o pássaro olhasse diretamente os olhos de uma pessoa doente, essa pessoa iria se recuperar, mas se não olhasse ela morreria.

—   Um pássaro que conhece a eternidade? — perguntou o conde.

—   Olhe para o pássaro — disse o padre — e diga: você sabe onde la Malice está escondida?

—   Não — sussurrou o velho.

O falcão parecia estar olhando para a parede. Em seguida se remexeu no peito do velho, as garras apertando o cobertor puído. Ninguém falou. O pássaro ficou imóvel, mas então, inesperadamente, baixou a cabeça bruscamente e o conde gritou.

—   Quieto — vociferou o padre.

O falcão havia cravado o bico adunco no olho esquerdo do agonizante, transformando-o numa polpa, deixando uma trilha de geleia sangrenta em sua bochecha barbada. O conde gemia. O bico do falcão fez um barulho áspero quando o padre puxou-o para trás.

—   A calade afirma que você mentiu — disse o padre. — E agora, se quiser manter o olho direito, vai me contar a verdade. Onde está la Malice?

—   Não sei — soluçou o velho.

O padre ficou em silêncio um tempo. O fogo estalou e o vento soprou fumaça no cômodo.

—   Você mente — insistiu o padre. — A calade me diz que mente. Você cuspiu no rosto de Deus e de seus anjos.

—   Não! — protestou o velho.

—   Onde está la Malice?

—   Não sei!

—   O nome de sua família é Planchard — disse o padre em tom de acusação. — E os Planchard sempre foram hereges.

—   Não! — protestou o conde, e então, parecendo mais fraco: — Quem é o senhor?

—   Pode me chamar de padre Calade, e sou o homem que decide se você vai para o inferno ou para o céu.

—   Então me absolva — implorou o velho.

—   Eu preferiria lamber a bunda do diabo.

Uma hora depois, quando o conde estava cego e chorando, o padre finalmente se convenceu de que o velho não sabia onde la Malice estava escondida. Atraiu o falcão para o pulso e colocou o capuz de volta na cabeça dele, depois fez sinal para um dos homens com cota de malha.

—   Mande esse velho idiota para o senhor dele.

—   Para o senhor dele? — perguntou o soldado, perplexo.

—   Para Satã — respondeu o padre.

—   Pelo amor de Deus — implorou o conde de Mouthoumet, depois se sacudiu impotente quando o soldado colocou um travesseiro de pelo de cordeiro em seu rosto. O velho demorou um tempo surpreendentemente longo para morrer.

—   Nós três vamos voltar a Avignon — disse o padre aos companheiros —, mas o resto ficará aqui. Diga para revistarem este lugar. Ponham tudo abaixo! Pedra por pedra.

O padre cavalgou para Avignon, a leste. Mais tarde, naquele dia, caiu um pouco de neve, macia e fina, cobrindo de branco as pálidas oliveiras no vale abaixo da torre do morto.

Na manhã seguinte a neve havia sumido, e uma semana depois os ingleses chegaram.

 

A mensagem chegou à cidade depois da meia-noite, trazida por um jovem monge que tinha vindo da Inglaterra. Havia deixado Carlisle em agosto com outros dois irmãos, os três com ordens de chegar à grande casa cisterciense em Montpellier, onde o irmão Michael, o mais novo, aprenderia medicina e os outros estudariam na famosa escola de teologia. Os três haviam caminhado por toda a extensão da Inglaterra, navegado de Southampton a Bordeaux e depois se dirigido a pé para o interior, e, como qualquer viajante numa longa jornada, traziam mensagens. Havia uma para o abade de Puys, onde o irmão Vincent havia morrido de fluxo, depois Michael e seu companheiro tinham caminhado até Toulouse, onde o irmão Peter havia adoecido e fora levado ao hospital em que, pelo que Michael sabia, ainda se encontrava. Assim o jovem monge estava sozinho e tinha apenas uma mensagem consigo, um pedaço de pergaminho surrado, e haviam lhe avisado que talvez não encontrasse o homem a quem ela era endereçada caso não viajasse naquela mesma noite.

—   Le Bâtard move-se depressa — dissera o abade de Paville. — Esteve aqui há dois dias, agora está em Villon, mas amanhã?

—   Le Bâtard?

—   É o nome dele por aqui — dissera o abade, fazendo o sinal da cruz, o que de certo modo sugeria que o jovem monge inglês teria sorte se sobrevivesse ao encontro com o homem chamado le Bâtard.

Depois de um dia de caminhada, o irmão Michael olhou a cidade de Villon, do outro lado do vale. Tinha sido fácil achá-la porque, à medida que a noite caía, o céu se iluminava pelas chamas, que serviam como farol. Fugitivos que passavam por ele na estrada diziam que Villon estava pegando fogo, por isso o irmão Michael simplesmente caminhou na direção do incêndio para encontrar le Bâtard e lhe entregar a mensagem. Atravessou o vale, nervoso, vendo o fogo se retorcer acima das muralhas da cidade, preenchendo a noite com uma fumaça manchada por vermelho vivo nos pontos em que refletia as chamas. O jovem monge achou que era assim que devia parecer o céu de Satã. Fugitivos ainda escapavam da cidade e disseram ao irmão Michael para dar meia-volta e fugir, porque os demônios do inferno estavam à solta em Villon, e ele sentiu-se tentado, ah, tentado demais, porém outra parte de sua alma jovem estava curiosa. Jamais vira uma batalha. Nunca vira o que os homens faziam quando se entregavam à violência, por isso continuou andando, pondo sua fé em Deus e no forte cajado de peregrino que havia carregado desde Carlisle.

Os incêndios se concentravam ao redor do portão oeste, e suas chamas iluminavam o castelo que coroava o morro a leste. Era o castelo do senhor de Villon, segundo o que o abade de Paville dissera, e o senhor de Villon estava sendo sitiado por um exército comandado pelo bispo de Lavence e pelo conde de Labrouillade, que juntos haviam contratado o bando de mercenários comandados por le Bâtard.

—   Qual é a disputa deles? — perguntara o irmão Michael.

—   Eles têm duas disputas — respondeu o abade, fazendo uma pausa para um serviçal lhe servir o vinho. — O senhor de Villon confiscou uma carroça com peles pertencentes ao bispo. Pelo menos é o que o bispo diz. — Ele fez uma careta, porque o vinho era novo e áspero. — Na verdade Villon é um cretino sem Deus, e o bispo gostaria de ter um novo vizinho. — Ele deu de ombros, como se admitisse que a causa da luta era trivial.

—   E a segunda disputa?

O abade fez uma pausa.

—   Villon tomou a mulher do conde de Labrouillade — revelou finalmente.

—   Ah. — O irmão Michael não soube o que dizer.

—   Os homens vivem disputando — disse o abade. — Mas as mulheres sempre os tornam piores. Veja Troia! Todos aqueles homens mortos por causa de um rosto bonito! — Ele olhou sério para o jovem monge inglês. — As mulheres trouxeram o pecado para este mundo, irmão, e nunca deixaram de fazer isso. Agradeça por ser monge e ter feito voto de celibato.

—   Graças a Deus — disse o irmão Michael, sem muita convicção.

Agora a cidade de Villon estava cheia de casas pegando fogo e de pessoas mortas, tudo por causa de uma mulher, seu amante e uma carroça de peles. O irmão Michael se aproximou da cidade pela estrada do vale, cruzou uma ponte de pedra e chegou à entrada oeste de Villon, onde parou porque o portão fora arrancado das pedras do arco por uma força tão grande que ele não conseguia imaginar o que poderia ter feito algo assim. As dobradiças eram forjadas em ferro, e cada uma fora presa à sua folha da porta com suportes mais compridos do que um báculo de bispo, mais largos do que a mão de um homem e grossos como um polegar, mas as duas folhas da porta agora pendiam tortas, com as tábuas queimadas, despedaçadas, e as dobradiças enormes encontravam-se retorcidas de modo grotesco. Era como se o próprio diabo tivesse mergulhado seu punho monstruoso através do arco para rasgar um caminho pela cidade. O irmão Michael fez o sinal da cruz.

Esgueirou-se pelo portão enegrecido pelo fogo e parou de novo porque, logo depois do arco, uma casa ardia em chamas e, do outro lado, havia o corpo de uma jovem, de rosto para baixo, quase totalmente nua, a pele clara riscada por riachos de sangue que pareciam negros à luz do fogo. O monge olhou-a, franzindo a testa ligeiramente, perguntando-se por que a forma das costas da mulher era tão excitante, e em seguida sentiu vergonha por ter pensado aquilo. Fez o sinal da cruz de novo. O diabo estava em toda parte esta noite, pensou, mas especialmente nesta cidade em chamas sob as nuvens de fogo do inferno.

Dois homens, um deles com uma cota de malha em mau estado e o outro com uma túnica de couro frouxa, ambos segurando facas compridas, passaram por cima da mulher morta. Ficaram alarmados ao ver o monge e se viraram depressa, prontos para atacar, os olhos arregalados. Contudo, logo reconheceram o hábito branco e sujo e viram a cruz de madeira no pescoço do irmão Michael, e correram em busca de vítimas mais ricas. Um terceiro soldado vomitou na sarjeta. Um caibro caiu na casa em chamas, soprando um jato de ar quente e fagulhas que rodopiavam.

O irmão Michael subiu pela rua, mantendo distância dos cadáveres, então viu um homem sentado perto de um barril de água da chuva, tentando estancar o sangramento de uma ferida na barriga. O jovem monge servira como ajudante na enfermaria de seu mosteiro, por isso se aproximou do soldado ferido.

—   Posso fazer uma atadura — disse ajoelhando-se, mas o homem ferido rosnou para ele e golpeou com uma faca, da qual o irmão Michael só se desviou tombando de lado. Em seguida se levantou rapidamente e recuou.

—   Tire o hábito — disse o ferido, tentando seguir o monge, mas o irmão Michael correu morro acima. O homem desmoronou outra vez, cuspindo palavrões. — Volte aqui — gritou —, volte aqui! — Por cima do gibão de couro usava uma túnica que mostrava um esmerilhão dourado sobre um campo vermelho, e o irmão Michael, atordoado e tentando entender o caos ao redor, percebeu que o pássaro dourado era símbolo dos defensores da cidade, e que o ferido planejara escapar roubando o hábito do monge e usando-o como disfarce. Em vez disso foi encurralado por dois soldados de verde e branco que cortaram sua garganta.

Alguns homens usavam um brasão em que havia um cajado episcopal amarelo cercado por quatro cruzetas, e o irmão Michael decidiu que deviam ser os soldados do bispo, enquanto as tropas que usavam o cavalo verde sobre campo branco deviam servir ao conde de Labrouillade. A maioria dos mortos usava o esmerilhão dourado, e o monge notou o grande número de cadáveres espetados com as compridas flechas inglesas, cujas penas brancas estavam salpicadas de sangue. A luta havia passado por essa parte da cidade, deixando-a em chamas. O fogo saltava de um teto de palha para outro, enquanto, nos lugares onde o incêndio não havia alcançado, uma horda de soldados bêbados e indisciplinados saqueava e estuprava em meio à fumaça. Um bebê chorava, uma mulher berrou, depois um homem cujos olhos não passavam de poços vazando sangue saiu cambaleando de um beco e colidiu com o monge. O sujeito se encolheu, gemendo, levantando as mãos para evitar o golpe esperado.

—   Não vou machucar você — disse o irmão Michael em francês, língua que aprendera quando era noviço para ter condições de terminar os estudos em Montpellier, mas o cego o ignorou e saiu cambaleando pela rua. Em algum lugar, incongruente no meio daquele sangue, da fumaça e dos gritos, um coro cantava, e o monge imaginou se estaria sonhando, mas as vozes eram reais, tão reais quanto as mulheres gritando, as crianças soluçando e os cães latindo.

Seguiu cautelosamente, porque os becos estavam escuros e os soldados, enlouquecidos. Passou por um curtume em que o fogo ainda estava ardendo e viu um homem que fora afogado num tonel de urina usada para curtir as peles. Chegou a uma pequena praça, enfeitada com uma cruz de pedra, e ali foi atacado por trás por um brutamontes barbudo usando o uniforme episcopal. O monge foi empurrado para o chão, e o homem se curvou para cortar a bolsa pendurada na corda do cinto.

—   Saia! Saia!

Em pânico, o irmão Michael se esqueceu de onde estava e gritou em inglês. O homem riu e levantou a faca para ameaçar os olhos do monge, depois arregalou os seus, parecendo horrorizado, e a noite iluminada por chamas ficou escura com um esguicho de sangue enquanto o homem tombava lentamente. O sangue espirrou no irmão Michael, que viu que o agressor tinha uma flecha cravada no pescoço. O sujeito sufocava, tentando arrancar a flecha, e depois começou a estremecer, o sangue saindo, pulsando da boca aberta.

—   Você é inglês, irmão? — perguntou uma voz inglesa. Michael levantou os olhos e viu um homem usando um uniforme preto, onde um brasão branco era cortado pela barra diagonal da bastardia. — Você é inglês? — perguntou o homem de novo.

—   Sou inglês — conseguiu dizer o irmão Michael.

—   Você deveria ter dado uma porretada nele — disse o sujeito, pegando o cajado de Michael, e depois ajudando-o a se levantar. — Devia ter lhe dado uma porretada e ele cairia. Todos os desgraçados estão bêbados.

—   Sou inglês — repetiu o irmão Michael. Estava tremendo. O sangue fresco era quente contra sua pele. Estremeceu.

—   E está longe demais de casa, irmão. — O homem tinha um grande arco de guerra atravessado nos ombros musculosos. Curvou-se sobre o agressor do monge, pegou uma faca e arrancou a flecha do pescoço do sujeito, matando-o no processo. — As flechas são difíceis de conseguir — explicou. — Por isso nós tentamos recuperá-las. Se vir alguma, pegue.

Michael espanou o hábito branco, depois observou o brasão brutal no gibão de seu salvador. Ele mostrava um estranho animal segurando uma taça nas garras.

—   E você serve… — começou ele.

—   Ao Bastardo — interrompeu o sujeito. — Somos os hellequins, irmão.

—   Hellequins?

—   As almas do demônio — respondeu o homem com um riso —, e que diabo você está fazendo aqui?

—   Tenho uma mensagem para o seu senhor, le Bâtard.

—   Então vamos encontrá-lo. Meu nome é Sam.

O nome combinava com o arqueiro, que tinha rosto juvenil, alegre, e riso rápido. Guiou o monge, passando por uma igreja que ele e dois outros hellequins estavam vigiando porque era o refúgio de algumas pessoas da cidade.

—   O Bastardo não aprova estupros — explicou.

—   E não deveria mesmo — respondeu Michael respeitosamente.

—   É o mesmo que desaprovar a chuva — disse Sam, alegre, indo até uma praça maior onde meia dúzia de cavaleiros esperava com as espadas desembainhadas. Usavam malha e elmos, e todos tinham o uniforme episcopal, e atrás deles estava o coro, cerca de vinte meninos cantando um salmo.

—   Domine eduxisti — cantavam — de inferno animam meam vivificasti me ne descenderem in lacum.

—   Ele deve saber o que isso significa — observou Sam, batendo no brasão e evidentemente falando de le Bâtard.

—   Significa que Deus tirou nossas almas do inferno — disse o irmão Michael. — Deu-nos a vida e vai nos manter longe do abismo.

—   É muita gentileza de Deus. — Sam fez uma reverência superficial para os cavaleiros e levou a mão ao elmo. — É o bispo — explicou, e o irmão Michael viu um homem alto, com o rosto moreno emoldurado por um elmo de aço, sentado em seu cavalo sob um estandarte que mostrava o báculo com as cruzetas. — Está esperando que lutemos. Todos fazem isso. Venham lutar conosco, dizem, depois ficam totalmente bêbados enquanto fazemos toda a matança. Mas é para isso que somos pagos. Cuidado aqui, irmão, a coisa fica perigosa. — Ele tirou o arco do ombro, levou o monge por um beco e depois verificou a esquina. Espiou em volta. — Tremendamente perigosa — acrescentou.

Sentindo ao mesmo tempo fascínio e repulsa pela carnificina ao redor, o irmão Michael se inclinou atrás de Sam e descobriu que haviam chegado ao topo da cidade e estavam às margens de um grande espaço aberto, uma praça de feira, talvez, e do lado oposto havia uma rua recortada na rocha preta que seguia até o portão do castelo. A casa acima do portão, iluminada pelas chamas da cidade abaixo, tinha grandes estandartes pendurados. Alguns evocavam a ajuda dos santos, e outros mostravam o brasão do esmerilhão dourado. A seta de uma besta acertou a parede perto do sacerdote e caiu nas pedras do beco.

—   Se capturarmos o castelo até o pôr do sol de amanhã — disse Sam, colocando uma flecha em sua corda —, nosso dinheiro será dobrado.

—   Dobrado? Por quê?

—   Porque amanhã é dia de Santa Bertille, e a mulher de nosso empregador se chama Bertille, logo a queda do castelo provará que Deus está do nosso lado, e não do dela.

O irmão Michael achou isso uma teologia dúbia, mas não questionou.

—   É a esposa que fugiu?

—   Não posso culpá-la. O conde é um porco, um porco desgraçado, mas casamento é casamento, não é? E o inferno vai congelar no dia em que uma mulher puder escolher o marido. Mesmo assim sinto pena dela, casada com aquele porco. — Ele retesou um pouco o arco e virou a esquina. Procurou um alvo, não o viu e recuou de volta. — Então a pobre garota está lá — continuou —, e o porco está nos pagando para capturá-la o mais rápido possível.

O irmão Michael espiou ao redor da esquina, depois recuou rapidamente quando duas setas refletiram a luz do incêndio. As setas bateram na parede ao seu lado, depois ricochetearam pelo beco.

—   Você tem sorte, não é? — disse Sam, animado. — Os desgraçados me viram, miraram, depois você se mostrou. Poderia estar no céu agora, se os desgraçados soubessem atirar direito.

—   Vocês nunca vão tirar a dama daquele lugar — opinou o irmão Michael.

—   Não?

—   É forte demais!

—   Nós somos os hellequins. O que significa que a pobrezinha tem cerca de uma hora com seu amante. Espero que ele esteja lhe dando uma das boas, para ela guardar de recordação.

Sem ser visto, Michael ficou vermelho. Sentia-se perturbado pelas mulheres. Durante a maior parte de sua vida essa tentação não importara, porque, fechado na casa cisterciense, raramente as via, mas a jornada desde Carlisle espalhara um milhar de armadilhas do diabo em seu caminho. Em Toulouse uma prostituta o havia agarrado por trás e acariciado. Ele se soltou com esforço, tremendo de embaraço, e caiu de joelhos. A lembrança do riso dela era como um chicote na alma, assim como as lembranças de todas as jovens que havia visto e encarado, em quem havia pensado, e se lembrou da pele nua e branca da garota junto ao portão da cidade, então percebeu que o diabo estava tentando-o de novo. Já ia fazer uma prece pedindo forças quando se distraiu com um zumbido e viu uma chuva de setas de bestas caindo sobre a praça da feira. Algumas, batendo nas pedras, soltavam fagulhas, e ele se perguntou por que os defensores estariam atirando. Depois percebeu que havia homens de capas pretas correndo de todos os becos para o espaço aberto. Eram arqueiros, que começaram a disparar flechas contra as altas ameias. Flechas voavam; não as setas dos besteiros, curtas e de metal, emplumadas em couro, e sim flechas inglesas, de penas brancas e compridas, subindo em silêncio até o topo da muralha, propelidas pelos grandes arcos de teixo com cordas de cânhamo que soltavam uma nota aguda a cada disparo. As flechas tremiam ao sair da corda, em seguida as penas capturavam o ar e elas subiam, clarões brancos contra a escuridão, a claridade do incêndio brilhando nas pontas de aço, e o monge notou como as setas dos defensores, tão densas um momento atrás, tornaram-se subitamente raras. Os arqueiros estavam inundando os defensores do castelo com flechas, obrigando os besteiros a se esconder atrás do parapeito, enquanto outros arqueiros disparavam contra as fendas nas torres dos flancos. O som das pontas de aço batendo na parede do castelo era como granizo em pedras de calçamento. Um arqueiro caiu para trás, com uma seta no peito, mas foi a única baixa que o monge viu, e então escutou as rodas.

—   Para trás — alertou Sam, e o padre recuou para o beco enquanto uma carroça passava por ele trovejando.

Era uma carroça pequena, leve o bastante para seis homens empurrarem, mas tinha ficado mais pesada porque dez grandes paveses, escudos do tamanho de homens destinados a proteger um besteiro enquanto ele recarregava sua arma desajeitada, tinham sido pregados na frente e nas laterais para proteger os homens que empurravam a carroça, carregada com pequenos barris de madeira.

—   Bem menos de uma hora — disse Sam, saindo para a rua após a carroça ter passado. Em seguida retesou seu grande arco e mandou uma flecha na direção do portão do castelo.

Tudo estava estranhamente silencioso. O irmão Michael havia esperado que a batalha fosse barulhenta, tinha esperado ouvir homens gritando a Deus por suas almas, escutar vozes exaltadas de medo ou dor, mas os únicos sons eram os berros das mulheres na cidade baixa, o estalar das chamas, as notas de harpa dos arcos e as flechas batendo nas pedras. Michael ficou olhando espantado enquanto Sam continuava atirando, sem parecer mirar, apenas lançando uma flecha depois da outra contra as ameias do castelo.

—   É uma coisa boa podermos enxergar — disse Sam, disparando outra flecha.

—   Quer dizer, com as chamas?

—   Foi por isso que incendiamos as casas, para iluminar os desgraçados. — Ele disparou outra flecha, aparentemente sem esforço. Um dia, quando o irmão Michael tentou retesar um arco de teixo, não conseguiu puxar a corda por mais do que um palmo.

A carroça havia chegado ao portão do castelo. Parou ali, uma sombra negra dentro do arco escuro, e o irmão Michael viu um tremular de luz brotar naquela escuridão, depois diminuir, reanimar-se, em seguida se firmar num brilho fraco enquanto os seis homens que haviam empurrado a carroça corriam de volta na direção dos arqueiros. Um deles caiu, evidentemente atingido por uma seta de besta. Dois outros agarraram seus braços e o arrastaram para trás, e foi então que o monge vislumbrou le Bâtard pela primeira vez.

—   É ele — disse Sam, com admiração —, o nosso maldito bastardo.

O irmão Michael viu um homem alto vestindo uma cota de malha comprida presa com cinto e pintada de preto. Tinha botas de cano alto, uma bainha preta de espada, e seu elmo era um bacinete simples, preto como a cota de malha. Sua espada estava desembainhada, e ele a usou como um sinal para que uma dúzia de homens seguisse em frente, se formasse em linha, com escudos se sobrepondo, e se dirigisse para o espaço aberto. Olhou na direção do irmão Michael, que notou que o nariz de le Bâtard era quebrado e a bochecha marcada por cicatrizes, mas também percebeu no rosto uma força, uma selvageria, e entendeu por que o abade de Paville havia falado daquele homem com espanto reverente. O irmão Michael havia esperado que le Bâtard fosse mais velho, e ficou surpreso ao ver que o soldado com armadura preta parecia tão jovem. Então le Bâtard viu Sam.

—   Achei que você estava vigiando a igreja, Sam — disse ele.

—   Cara de Bexiga e Johnny ainda estão lá — respondeu Sam —, mas trouxe este sujeito para ver você. — Ele acenou com a cabeça na direção do irmão Michael.

O monge deu um passo à frente e sentiu toda a força do olhar de le Bâtard. Ficou subitamente nervoso, e a boca se ressecou de medo.

—   Tenho uma mensagem para o senhor — gaguejou. — É de…

—   Mais tarde — interrompeu le Bâtard. Um serviçal havia lhe trazido um escudo, que ele pendurou no braço esquerdo, depois se virou para olhar o castelo.

A construção de repente irrompeu em chamas e fumaça. A fumaça era preta e vermelha, entrecortada por labaredas, e preencheu a noite com um trovão que fez o irmão Michael se agachar de medo. Pedaços de destroços incendiados cortaram a noite enquanto o ar aquecido passava pelo beco com uma pancada forte. A fumaça amortalhou o espaço aberto ao mesmo tempo que o ruído da explosão ecoava, vindo da lateral do vale. Pássaros aninhados em fendas nas paredes do castelo voaram para o céu enfumaçado, enquanto um dos grandes estandartes, pedindo a ajuda de são José, pegava fogo e clareava as ameias.

—   Pólvora — explicou Sam laconicamente.

—   Pólvora?

—   É um cara esperto, o nosso bastardo. Isso derruba os portões depressa, não é? Veja bem, é muito caro. O porco sem esposa teve de pagar o dobro para que a gente usasse pólvora. Ele deve querer muito a cadela, para pagar tanto assim! Espero que ela valha a pena.

O irmão Michael viu pequenas chamas tremeluzindo na fumaça densa junto ao arco. Agora entendia por que a entrada da cidade parecia ter sido rasgada, enegrecida e despedaçada pelo punho do diabo. Le Bâtard havia aberto seu caminho usando pólvora, e tinha repetido o truque para explodir os grandes portões de madeira do castelo. Agora levava seus vinte soldados na direção dos destroços.

—   Arqueiros! — gritou outro homem, e os arqueiros, inclusive Sam, seguiram os soldados até o portão.

Avançavam em silêncio, e isso também era aterrorizante. Aqueles homens, com seus uniformes em preto e branco, pensou o irmão Michael, haviam aprendido a viver calmamente e a lutar de maneira implacável no vale escuro da morte. Nenhum parecia estar bêbado. Eram disciplinados, eficientes e apavorantes.

Le Bâtard sumiu em meio à fumaça. Gritos vieram do castelo, mas o monge não podia ver o que acontecia lá dentro, embora estivesse claro que os atacantes haviam entrado, porque agora os arqueiros passavam pelo arco do portão. Mais homens iam atrás, usando os brasões do bispo e do conde, para saquear a fortaleza condenada.

—   Pode ser perigoso — alertou Sam para o jovem monge.

—   Deus está conosco — disse o irmão Michael, e pensou na empolgação feroz que sentia, feroz a ponto de levantar o cajado de peregrino como uma arma.

Visto do beco, o castelo parecera grande, mas, quando passou pelo portão destruído, o irmão Michael viu que era muito menor do que aparentava. Não possuía um pátio fortificado nem um grande fortim, tinha apenas a torre do portão e uma torre alta, separadas por um pátio pequeno onde uma dúzia de besteiros usando o uniforme vermelho e dourado estavam caídos, agonizando. Um homem fora eviscerado pela explosão no portão, e, apesar de os intestinos terem se espalhado nas pedras do pátio, ele ainda vivia e gemia. O monge parou para oferecer alguma ajuda ao sujeito, depois deu um salto para trás quando Sam, com uma facilidade que era tão casual que parecia insensível, cortou a garganta dele.

—   Você o matou! — disse horrorizado o irmão Michael.

—   Claro que matei — respondeu Sam, animado. — O que você queria? Que eu o beijasse? Espero que alguém faça o mesmo por mim se eu um dia estiver naquele estado.

Ele limpou o sangue de sua faca de lâmina curta. Um defensor gritou ao cair do parapeito da torre do portão, enquanto outro descia cambaleando a escada até desmoronar lá embaixo.

Havia uma porta no topo da escada, mas ela não era defendida, ou então a coragem dos defensores havia evaporado quando o portão explodira. E assim os homens de le Bâtard entraram na torre. O irmão Michael foi atrás, e se virou quando uma trombeta soou. Um grupo de cavaleiros, todos vestidos de verde e branco, abria caminho pelo portão do castelo, usando espadas para fazer seus próprios homens recuarem. No centro dos cavaleiros, protegido pelas armas deles, estava um sujeito monstruosamente gordo, vestindo cota de malha e placas e montado num cavalo enorme. O grupo parou ao pé da escada, e foram necessários quatro homens para tirar o gordo da sela e firmá-lo de pé.

—   Sua alteza porcina — disse Sam, ironicamente.

—   O conde de Labrouillade?

—   Um dos nossos empregadores — respondeu Sam. — E ali está o outro. — O bispo e seus homens haviam seguido o conde através do portão, e Sam e Michael ficaram de joelhos enquanto os dois líderes subiam a escada e entravam na torre.

Sam e o irmão Michael seguiram os homens do bispo até a câmara da entrada, depois subiram um lance de escada com degraus rasos e chegaram a um salão grande, um espaço alto com pilares, iluminado por uma dúzia de tochas soltando fumaça e cheio de tapeçarias nas paredes, adornadas com o esmerilhão dourado em seu fundo vermelho. Já havia pelo menos sessenta homens no salão, e agora eles arrastavam os pés até as bordas do cômodo, permitindo que o conde de Labrouillade e o bispo de Lavence andassem lentamente até o tablado onde dois homens de le Bâtard seguravam o nobre derrotado de joelhos. Atrás dele, alto e preto em sua armadura, estava o próprio Bâtard, o rosto inexpressivo, e ao lado, sem qualquer contenção, uma jovem de vestido vermelho.

—   Aquela é Bertille? — perguntou o irmão Michael.

—   Deve ser — respondeu Sam, apreciando. — E é uma bela eguazinha!

O irmão Michael prendeu o fôlego, e, por um momento herético, lamentou ter feito os votos religiosos. Bertille, a infiel condessa de Labrouillade, era mais do que uma bela eguazinha, era uma beldade. Não podia ter mais de 20 anos e tinha um rosto doce, sem qualquer marca de cicatriz ou doença, com lábios cheios e olhos escuros. O cabelo era preto e encaracolado, os olhos grandes, e, apesar do terror óbvio no rosto, era tão adorável que o irmão Michael, que também tinha apenas 22 anos, tremeu. Pensou que nunca vira uma criatura tão linda, e então respirou de novo, fez o sinal da cruz e uma oração silenciosa para que a Virgem e são Miguel não o deixassem cair em tentação.

—   Eu diria que ela vale o preço da pólvora — comentou Sam, animado.

O irmão Michael ficou olhando enquanto o marido de Bertille, que havia tirado o elmo, revelando uma cabeça com cabelos grisalhos e untuosos e rosto pesado, porcino, cambaleava até ela. A respiração do conde estava curta por causa do esforço de andar com a armadura pesada. Parou a alguns passos do tablado e olhou para o peito do vestido da esposa, onde havia o brasão do esmerilhão dourado, símbolo de seu amante vencido.

—   Parece-me, senhora — disse o conde —, que demonstra mau gosto no vestir.

A condessa se ajoelhou e juntou as mãos na direção do marido. Quis falar, mas o único som que saiu foi um soluço. Lágrimas em seu rosto refletiam as chamas das tochas. O irmão Michael esforçou-se para lembrar que ela era adúltera, pecadora, uma fornicadora perdida para a graça, e Sam olhou o jovem monge e pensou que um dia uma mulher seria motivo de encrenca na vida dele.

—   Tirem aquele brasão dela — ordenou o conde a dois de seus soldados, indicando o esmerilhão dourado bordado no vestido da esposa, e os dois homens, com cotas de malha tilintando e botas com placas soando pesadas nas pedras do piso, subiram ao tablado e seguraram a condessa. Ela tentou resistir, gritou uma vez, mas então se rendeu quando um homem segurou seus braços atrás do corpo e o outro pegou no cinto uma faca de lâmina curta.

O irmão Michael moveu-se instintivamente como se pretendesse ajudá-la, mas Sam o conteve com uma das mãos.

—   Ela é mulher do conde, irmão — disse o arqueiro baixinho. — O que significa que é propriedade dele. Ele pode fazer o que quiser com ela, e, se você interferir, ele vai abrir sua barriga.

—   Eu não ia… — começou o irmão Michael, depois ficou quieto para não dizer uma mentira, porque havia se movido para intervir, ou pelo menos para protestar, mas apenas ficou olhando enquanto os soldados cortavam o tecido precioso, arrancando os fios de ouro presos no escarlate, rasgando o corpete até a cintura da condessa e finalmente soltando o esmerilhão dourado e jogando-o aos pés de seu senhor. A condessa, desvencilhando-se do segundo homem, agachou-se e apertou os trapos do vestido contra os seios.

—   Villon! — ordenou o conde. — Olhe para mim!

O homem contido pelos dois soldados de le Bâtard levantou os olhos com relutância na direção do inimigo. Era jovem, bonito como um falcão, e, até uma hora atrás, fora governante deste lugar, senhor de suas terras e dos camponeses, mas não era mais nada. Usava cota de malha, com peitoral e placas nas pernas, e uma mancha de sangue no cabelo escuro mostrava que havia lutado contra os sitiantes, mas agora estava preso por eles e era forçado a olhar enquanto o conde gordo levantava desajeitadamente a barra de sua cota de malha. Ninguém no salão se moveu nem falou, todos somente olharam enquanto o conde puxava couro e aço de lado e, com um sorriso no rosto, mijava no esmerilhão rasgado do vestido da esposa. Ele tinha a bexiga de um boi, e a urina jorrou durante longo tempo. Em algum lugar no castelo um homem gritou, e o grito continuou por um tempo, até que por fim, abençoadamente, interrompeu-se.

Nesse momento, o conde terminou, depois levantou a mão para seu escudeiro, que lhe deu uma faca pequena de lâmina malignamente curva.

—   Está vendo isso, Villon? — O conde levantou a faca de modo que a lâmina captasse a luz. — Sabe o que é?

Contido pelos dois soldados, Villon não disse nada.

—   É para você — continuou o conde. — Ela — e apontou a faca para a esposa — vai voltar para Labrouillade, e você também, mas só depois de o termos cortado.

Os homens de uniforme verde e branco riram, prevendo a dor e o prazer que viriam a seguir. A faca, com a lâmina enferrujada e o cabo que era apenas um pedaço de madeira gasto, era usada para castração, para capar carneiros, bezerros ou os meninos destinados aos coros das grandes igrejas.

—   Tirem a roupa dele — ordenou o conde aos seus homens.

—   Ah, meu Deus — murmurou o irmão Michael.

—   Não tem estômago para isso, irmão? — perguntou Sam.

—   Ele lutou bem — interveio uma nova voz, e o monge viu que le Bâtard havia chegado à beirada do tablado. — Ele lutou bravamente e merece morrer como homem.

Alguns homens do conde puseram as mãos no punho das espadas, mas o bispo os conteve com um sinal.

—   Ele ofendeu as leis do homem e de Deus — disse o bispo — e se colocou além dos limites do cavalheirismo.

—   A desavença é minha — vociferou o conde para le Bâtard — e não sua.

—   Ele é meu prisioneiro — disse le Bâtard.

—   Quando o conde contratou você — retrucou o bispo —, foi acordado que todos os prisioneiros pertenceriam a ele e a mim, independentemente de quem os capturasse. Nega isso?

Le Bâtard hesitou, mas estava claro que o bispo havia falado a verdade. Aquele homem alto, com armadura preta, olhou ao redor, mas seus homens estavam em número muito menor do que as forças do bispo e do conde.

—   Então apelo ao senhor — disse ele ao bispo. — Deixe que Villon vá ao seu Deus como homem.

—   Ele é fornicador e pecador — respondeu o bispo. — Por isso entrego-o ao conde, para fazer o que desejar. E lembro-lhe de que seu pagamento depende de sua obediência a todas as ordens razoáveis.

—   Isso não é razoável — insistiu le Bâtard.

—   A ordem para você não interferir é razoável — disse o bispo. — E eu a dou.

Os soldados do conde bateram com os escudos no chão para mostrar que concordavam, e le Bâtard, sabendo que estava em menor número e que havia perdido a discussão, deu de ombros e afastou-se. O irmão Michael viu um soldado pegar a faca de castração e, incapaz de suportar o que iria acontecer, abriu caminho até a escada de saída da torre, onde respirou o ar enfumaçado da noite. Queria ir para mais longe, mas alguns homens do conde haviam encontrado um boi no estábulo do castelo e estavam torturando o animal, cutucando-o com lanças e espadas, afastando-se quando ele se virava para encará-los, e não ousou passar no meio daquele jogo maligno. Então os gritos começaram no salão atrás.

Uma mão tocou seu ombro e ele se virou, levantando o cajado pesado, mas viu que era um padre, um homem mais velho, que lhe ofereceu um odre de vinho.

—   Parece que você não aprova o que o conde faz — disse o padre.

—   O senhor aprova?

O padre deu de ombros.

—   Villon pegou a esposa do conde, então o que esperava? Nossa Igreja abençoa a vingança dele, com razão. Villon é um homem desprezível.

—   E o conde não é? — O irmão Michael decidiu que odiava o conde gordo, com seu cabelo oleoso e as papadas fartas.

—   Sou capelão e confessor dele — disse o padre mais velho —, por isso sei o que ele é. — Sua voz parecia áspera. — E você, o que o traz a este lugar?

—   Uma mensagem para le Bâtard.

—   Que mensagem?

O monge inglês balançou a cabeça.

—   Não li.

—   Você sempre deve ler as mensagens — disse o padre com um sorriso.

—   Está lacrada.

—   Uma faca quente resolve isso.

O irmão Michael franziu a testa.

—   Fui instruído a não ler.

—   Quem disse?

—   O conde de Northampton. Disse que era urgente e particular.

—   Urgente?

O irmão Michael fez o sinal da cruz.

—   Dizem que o príncipe de Gales está formando outro exército. Acho que é uma ordem para le Bâtard se juntar a ele. — Ele deu de ombros. — Pelo menos faria sentido.

—   Faria.

A conversa havia distraído o irmão Michael dos gritos terríveis que vinham de dentro do salão. Os gritos foram diminuindo aos poucos, viraram gemidos patéticos, e só então o capelão do conde levou o monge de volta para a luz das tochas no salão repleto de colunas. O irmão Michael não olhou a coisa nua que estava no chão ensanguentado. Ficou no fundo do salão, escondido do castrado pela turba de soldados com cotas de malha.

—   Terminamos — disse o conde de Labrouillade a le Bâtard.

—   Terminamos, senhor — concordou le Bâtard. — Só que o senhor nos deve o dinheiro por termos capturado este lugar rapidamente.

—   Eu lhe devo o dinheiro — concordou o conde. — E ele o espera em Paville.

—   Então iremos a Paville, senhor. — Le Bâtard fez uma reverência ao conde, depois bateu palmas para atrair a atenção de seus homens. — Vocês sabem o que fazer! Façam!

Os homens de le Bâtard precisavam recolher seus feridos, pegar os mortos e recuperar as flechas disparadas na luta, porque as flechas inglesas eram difíceis de ser encontradas na Borgonha, em Toulouse e na Provença. A alvorada já se aproximava quando os homens de le Bâtard saíram pelo portão destroçado da cidade, atravessaram a ponte no vale e viraram para o leste. Os feridos eram transportados em carroças, mas todos os outros homens cavalgavam, e o irmão Michael, que conseguira dormir algumas horas, pôde finalmente calcular o número dos acompanhantes de le Bâtard. Ficara sabendo que alguns hellequins guardavam o castelo em Castillon que lhes servia de refúgio, mas le Bâtard ainda comandava uma força formidável. Eram pouco mais de sessenta arqueiros, todos ingleses ou galeses, e 32 homens de armas, principalmente da Gasconha, mas alguns eram dos estados italianos, um punhado da Borgonha, uma dúzia da Inglaterra e alguns de mais longe, todos aventureiros que buscavam dinheiro e o haviam encontrado com le Bâtard. Com seus serviçais e escudeiros, formavam um bando de guerra que podia ser contratado por qualquer senhor que tivesse recursos para pagar pelos melhores, mas qualquer senhor que desejasse lutar contra os ingleses ou seus aliados gascões teria de procurar em outro local, porque le Bâtard não ajudaria. Ele gostava de dizer que ajudava os inimigos da Inglaterra a matarem uns aos outros, e esses inimigos lhe pagavam por essa ajuda. Eram mercenários e se chamavam de hellequins, os amados do demônio, e alardeavam que não podiam ser derrotados porque suas almas já tinham sido mandadas para o inferno.

E, depois de testemunhar sua primeira luta, o irmão Michael acreditou neles.

 

O conde de Labrouillade estava ansioso para deixar Villon e chegar à segurança de sua fortaleza, que, por possuir um fosso e uma ponte levadiça, estava a salvo do método de le Bâtard de abrir portões usando pólvora. O conde precisava ficar em segurança porque tinha certeza de que le Bâtard logo arranjaria uma desavença com ele. Assim, havia deixado os homens do bispo para guardar o castelo recém-capturado em Villon enquanto ele e sua força, sessenta homens de armas e 43 besteiros, retornariam rapidamente para casa em Labrouillade.

Mas a viagem foi retardada pelos cativos. Ele havia pensado em espancar Bertille em Villon, e até ordenara que um dos seus serviçais trouxesse um chicote do estábulo do castelo, mas adiou o castigo para apressar a volta para casa. Porém, queria humilhá-la, e para isso havia trazido uma carroça de Labrouillade. Essa carroça estivera no estábulo desde que podia se lembrar, e nela havia uma jaula de tamanho suficiente para conter um urso dançarino ou um touro de briga, e provavelmente fora feita para isso. Ou talvez um dos seus ancestrais tivesse usado a carroça para manter prisioneiros, ou para transportar os mastins selvagens usados na caça a javalis. Mas, qualquer que fosse a função original, agora a carroça pesada servia de jaula para sua esposa. O conde de Villon, sangrando e enfraquecido, era transportado em outra carroça. Se o sujeito sobrevivesse, o conde planejava acorrentá-lo nu em seu pátio como objeto de riso dos homens e poste de mijo para os cães, e essa perspectiva o animava enquanto ele cavalgava devagar rumo ao sul.

Tinha mandado uma dúzia de cavaleiros com armas leves para o leste. Seu serviço era seguir os mercenários de le Bâtard e retornar com um informe para o caso de os ingleses estarem perseguindo-o. Mas agora isso parecia improvável, porque o capelão do conde tinha boas notícias.

—   Suspeito que ele foi convocado por seu senhor — disse o capelão ao conde.

—   Quem é o senhor dele?

—   O conde de Northampton, senhor.

—   Na Inglaterra?

—   O monge veio de lá, senhor, e acha que le Bâtard recebeu a ordem de se juntar ao príncipe de Gales. Ele disse que a mensagem era urgente.

—   Espero que esteja certo.

—   É a melhor explicação, senhor.

—   E, se você estiver certo, le Bâtard terá ido para Bordeaux, hein? Terá ido embora!

—   Mas pode retornar, senhor — alertou o padre Vincent.

—   Com o tempo, talvez, com o tempo — disse Labrouillade levianamente.

Não estava preocupado, porque, se le Bâtard fosse mesmo para a Gasconha, o conde teria tempo de conseguir mais homens e reforçar sua fortaleza. Diminuiu o passo do cavalo, deixando as carroças o alcançarem para poder olhar seu inimigo nu e ensanguentado. Ficou satisfeito. Villon estava em agonia, e Bertille podia esperar o castigo de adúltera. A vida era boa, decidiu ele.

Sua esposa chorava. O sol subiu mais alto, esquentando o dia. Camponeses se ajoelhavam quando o conde passava. A estrada subia para os morros que separavam as terras de Villon e Labrouillade, e, mesmo tendo havido morte na primeira, haveria júbilo na segunda, porque o conde fora vingado.

 

Paville ficava apenas duas horas a cavalo a oeste do castelo derrotado. Já fora uma cidade próspera, famosa por seu mosteiro e pela excelência de seu vinho, mas agora restavam apenas 32 monges, e menos de duzentas pessoas viviam na cidadezinha. A peste havia chegado, e metade dos moradores fora enterrada nos campos ao lado do rio. Os muros da cidade estavam desmoronando, e os vinhedos do mosteiro sufocavam sob as ervas daninhas.

Os hellequins se reuniram na praça da feira diante do mosteiro e levaram os feridos para a enfermaria. Os cavalos cansados foram levados para caminhar e as flechas foram consertadas. O irmão Michael queria encontrar algo para comer, mas le Bâtard se aproximou dele.

—   Seis dos meus homens estão morrendo ali. — Ele acenou com a cabeça na direção do mosteiro. — E outros quatro podem não viver. Sam disse que você já trabalhou numa enfermaria, é verdade?

—   Trabalhei, mas também tenho uma mensagem escrita para o senhor.

—   De quem?

—   Do conde de Northampton, meu lorde.

—   Não me chame assim. O que o Billy quer? — Le Bâtard esperou uma resposta e fez uma careta quando nenhuma foi dada. — Não diga que você não leu a carta! O que ele quer?

—   Eu não li! — protestou o monge.

—   Um monge honesto? O mundo vê um milagre. — Le Bâtard ignorou a carta. — Vá cuidar dos meus feridos. Lerei a carta mais tarde.

O irmão Michael trabalhou durante uma hora ajudando outros dois monges a lavar e cuidar de ferimentos. Quando terminou, voltou ao sol e viu dois homens contando uma enorme pilha de moedas de aparência inferior.

—   O trato — dizia le Bâtard ao abade — era que o pagamento deveria ser em genoveses.

O abade pareceu preocupado.

—   O conde insistiu em substituir as moedas — disse ele.

—   E você permitiu isso? — perguntou le Bâtard. O abade deu de ombros. — Ele nos enganou e você permitiu que isso acontecesse!

—   Ele mandou homens de armas, senhor — respondeu o abade, amargurado. Labrouillade havia concordado em fazer o pagamento a le Bâtard em genoveses, que eram boas moedas de ouro, reconhecidas em toda parte. Contudo, depois que os homens d e le Bâtard verificaram o pagamento, o conde mandara seus soldados levarem os genoveses e substituí-los por uma mistura de óbolos, écus, agnos, florins, deniers e sacos de pence, nenhum de ouro e a maioria adulterada ou partida. Ainda que o valor nominal das moedas fosse igual à quantia acordada, o valor real era de menos da metade. — Os homens dele me garantiram que o valor era o mesmo, senhor — acrescentou o abade.

—   E você acreditou? — perguntou le Bâtard azedamente.

—   Eu protestei — declarou o abade, preocupado com a possibilidade de não receber o pagamento costumeiro por guardar a quantia.

—   Tenho certeza de que sim — retrucou le Bâtard num tom que sugeria o oposto. Ainda estava usando sua armadura preta, mas havia tirado o bacinete, revelando o cabelo preto e curto. — Labrouillade é um idiota, não é?

—   Um idiota ganancioso — concordou o abade prontamente. — O pai dele era pior ainda. O feudo de Labrouillade já abarcou toda a terra desde aqui até o mar, mas o pai dele perdeu no jogo a maior parte da área ao sul. O filho é mais cuidadoso com o dinheiro. É rico, claro, muito rico, mas não é generoso. — A voz do abade ficou no ar enquanto espiava a pilha de moedas velhas, desiguais e amassadas. — O que o senhor vai fazer? — perguntou nervoso.

—   Fazer? — Le Bâtard pareceu pensar nisso, depois deu de ombros. — Eu estou com o dinheiro, aparentemente — disse por fim. E fez uma pausa. — É uma questão para os letrados — decidiu.

—   Para os letrados, sim. — Preocupado com a hipótese de receber a culpa pela substituição das moedas, o abade não conseguiu esconder o alívio.

—   Mas não nos tribunais do conde.

—   A questão pode ser levada ao tribunal do bispo? — sugeriu o abade.

Le Bâtard concordou, depois fez uma carranca para o abade.

—   Vou contar com o seu testemunho.

—   Claro, lorde.

—   E pagarei bem por isso.

—   O senhor pode contar com meu apoio — disse o abade.

Le Bâtard jogou para cima uma das moedas com a mão disforme, que parecia ter sido mutilada, esmagada por um peso grande demais.

—   Então vamos deixar isso para os letrados — anunciou, depois ordenou que seus homens pagassem ao abade com qualquer moeda boa que pudessem achar no meio daquele refugo. — Não tenho desavença com você — acrescentou ao clérigo aliviado, em seguida se virou para o irmão Michael, que havia tirado o pergaminho da bolsa e estava tentando entregá-lo. — Num momento, irmão — disse.

Uma mulher e uma criança estavam se aproximando. O irmão Michael não os tinha notado até esse momento, porque viajavam com as outras mulheres que seguiam os hellequins e que haviam esperado do lado de fora de Villon enquanto o castelo era atacado. Mas o jovem monge notou-a agora, notou-a e tremeu. Tinha permanecido assombrado o dia inteiro com a lembrança de Bertille, mas essa mulher era igualmente linda, porém com um tipo de beleza muito diferente. Bertille era morena, suave e gentil, enquanto esta era loura, dura e impressionante. Era alta, quase tanto quanto le Bâtard, e seu cabelo louro claro parecia brilhar ao sol do início do inverno. Tinha olhos inteligentes, boca larga e nariz longo, e o corpo esguio vestia uma cota de malha que fora esfregada com arame, areia e vinagre, de modo que parecia feita de prata. Santo Deus, pensou o monge, deviam brotar flores nas pegadas dela. A criança, um menino que parecia ter uns 7 ou 8 anos, tinha o rosto dela, mas com cabelo preto parecido com o de le Bâtard.

—   Minha mulher, Genevieve — apresentou le Bâtard —, e meu filho, Hugh. Este é o irmão… — Ele fez uma pausa, sem saber o nome do monge.

—   Irmão Michael — disse o monge, incapaz de afastar o olhar de Genevieve.

—   Ele me trouxe uma mensagem — disse le Bâtard à esposa, e fez um gesto indicando que o monge deveria entregar a Genevieve o pergaminho amassado com o lacre do conde agora seco, rachado e lascado.

—   Sir Thomas de Hookton — Genevieve leu o nome escrito no pergaminho dobrado.

—   Eu sou le Bâtard — disse Thomas. Ele fora batizado como Thomas e durante a maior parte da vida havia se chamado Thomas de Hookton, mas poderia ser conhecido por mais do que isso, se quisesse, porque o conde de Northampton o havia feito cavaleiro sete anos antes, e, mesmo tendo nascido bastardo, Thomas tinha o direito de reivindicar um condado no leste da Gasconha. Mas preferia ser conhecido como le Bâtard. Isso colocava o temor do diabo nos inimigos, e um inimigo amedrontado é um inimigo meio vencido. Pegou a mensagem com a esposa, enfiou uma unha embaixo do lacre, então decidiu que esperaria antes de ler a carta. E, assim, enfiou-a embaixo do cinto da espada e bateu palmas para atrair a atenção de seus homens. — Vamos cavalgar para o oeste dentro de alguns minutos! Preparem-se! — Ele se virou e fez uma reverência ao abade. — Obrigado — disse cortesmente. — E sem dúvida os letrados virão falar com você.

—   Eles receberão a assistência do céu — respondeu o abade, ansioso.

—   E isto — Thomas acrescentou mais dinheiro — é pelos meus homens feridos. Você vai cuidar deles, e, quanto aos que morrerem, enterre-os e mande rezar missas.

—   Claro, lorde.

—   E retornarei para ver se eles foram bem-tratados.

Os hellequins montaram, e as moedas ruins foram postas em bolsas de couro e levadas até cavalos de carga, enquanto Thomas se despedia dos homens na enfermaria. Então, com o sol ainda baixo no leste, cavalgaram para o oeste. O irmão Michael montava um cavalo emprestado, ao lado de Sam, que, apesar do rosto jovem, era evidentemente um dos principais arqueiros.

—   Le Bâtard costuma usar letrados? — perguntou o monge.

—   Ele odeia os letrados. Por sua vontade ele enterraria até o último letrado no poço mais fundo do inferno e deixaria o diabo cagar neles.

—   Mas os usa?

—   Se usa? — Sam gargalhou. — Ele disse isso ao abade, não disse? — Em seguida virou a cabeça para o leste. — Lá atrás, irmão, há meia dúzia de homens nos seguindo. Eles não são muito espertos, porque nós os vimos, e nesse momento devem estar falando com o abade. Vão voltar ao seu senhor e dizer que nos viram ir para o oeste e que seu senhor gordo deve esperar uma visita de um homem da lei. Só que não vai receber essa visita. Vai receber isso. — Sam deu um tapinha nas penas de ganso das flechas em sua sacola. Algumas penas estavam salpicadas de sangue seco da luta em Villon.

—   Quer dizer que nós vamos lutar contra ele? — perguntou o irmão Michael, e não notou que tinha usado a palavra “nós”, assim como não havia pensado no motivo para ainda estar com os hellequins, em vez de caminhando para Montpellier.

—   Claro que vamos lutar contra ele — respondeu Sam com desprezo. — O desgraçado do conde nos enganou, não foi? Então vamos virar para sudeste assim que aqueles idiotas estúpidos tiverem terminado de falar com o abade. São do tipo de idiotas estúpidos que não pensam em nada além da próxima caneca de cerveja, mas Thomas pensa. Thomas pensa sempre duas canecas à frente, de verdade.

Thomas ouviu o elogio e girou na sela.

—   Só duas canecas à frente, Sam?

—   Quantas você quiser — respondeu Sam.

Thomas deixou o irmão Michael o alcançar.

—   Tudo depende de descobrirmos se o conde de Labrouillade ficou naquele castelo que demos a ele. Suspeito que não. Ele não se sente seguro lá, e é um homem que gosta de conforto, por isso acho que vai para o sul.

—   E o senhor vai encontrá-lo?

—   Vou emboscá-lo. — Thomas olhou para o sol atrás, avaliando a hora. — Com a ajuda de Deus, irmão, vamos barrar o caminho do conde esta tarde. — Ele tirou o pergaminho de baixo do cinto. — Você não leu isso?

—   Não! — insistiu o irmão Michael, e falava a verdade. Viu le Bâtard partir o lacre e desdobrar o pergaminho rígido, depois espiou Genevieve, que montava um cavalo cinza do outro lado do marido. Thomas viu o olhar de desejo do monge e achou divertido.

—   Você não viu ontem à noite, irmão, o que acontece com um homem que toma a esposa de outro?

Michael ficou vermelho.

—   Eu… — começou ele, mas descobriu que não tinha o que dizer.

—   E, além disso — continuou Thomas —, minha mulher é herege. Foi excomungada pela Igreja e mandada para o inferno. Assim como eu. Isso o preocupa?

O irmão Michael continuava sem palavras.

—   E por que você ainda está aqui? — perguntou Thomas.

—   Aqui? — O jovem monge ficou confuso.

—   Você não tem ordens?

—   Eu deveria ir para Montpellier — confessou o irmão Michael.

—   Montpellier fica lá, irmão. — Thomas apontou para o sul.

—   Nós vamos para o sul — disse Genevieve secamente. — E acho que o irmão Michael gostaria da nossa companhia.

—   Gostaria? — perguntou Thomas.

—   Eu ficaria feliz em tê-la — respondeu o irmão Michael, e se perguntou por que havia falado tão ansiosamente.

—   Então bem-vindo às almas perdidas do diabo.

Que agora viravam para o sudeste para dar uma lição a um conde gordo e ganancioso.

 

O conde de Labrouillade progredia lentamente. Os cavalos estavam cansados, o dia ficou mais quente, a maioria de seus homens sofria pelo vinho que havia bebido na cidade capturada e as carroças chacoalhavam desajeitadas na estrada ruim. Mas isso não importava, porque pouco depois do meio-dia os homens mandados para espionar le Bâtard tinham retornado com a notícia que Labrouillade queria.

Os ingleses tinham ido para o oeste.

—   Vocês têm certeza? — perguntou o conde rispidamente.

—   Nós o vimos, senhor.

—   Vocês o viram fazer o quê? — indagou o conde desconfiado.

—   Ele contou o dinheiro, senhor; os homens tiraram as armaduras e depois cavalgaram para o oeste. Todos eles. E ele disse ao abade que mandaria letrados para exigir o pagamento.

—   Letrados! — O conde gargalhou.

—   Foi o que o abade disse, e ele prometeu a seu senhor que falaria a favor dele durante qualquer processo.

—   Letrados! — O conde gargalhou outra vez. — Então a disputa não será resolvida enquanto estivermos vivos! — Agora ele estava seguro e a lentidão da viagem não importava. Parou numa aldeia miserável e exigiu vinho, pão e queijo, sem pagar por nada disso. A recompensa dos camponeses era estar na sua presença e isso, ele acreditava sinceramente, era suficiente. Depois da refeição bateu com a faca de castração nas barras da jaula da esposa. — Quer ficar com isso como lembrança, Bertille? — perguntou.

Bertille não disse nada. Sua garganta estava áspera de tanto soluçar; os olhos vermelhos e fixos na lâmina enferrujada.

—   Mandarei raspar seu cabelo, senhora — prometeu o conde —, e farei com que se ajoelhe no altar para implorar perdão. E Deus pode perdoá-la, senhora, mas eu não perdoarei, e quando terminar a senhora irá para um convento. Vai lavar o chão, senhora, e lavar os hábitos das freiras até que seus pecados sejam limpos, e então poderá viver em arrependimento pelo resto dos seus dias sofridos.

Ela continuou sem dizer nada, e o conde, entediado porque não conseguia provocá-la a protestar, chamou seus homens para erguê-lo à sela. Havia tirado a armadura e estava usando uma túnica leve com seu brasão, enquanto as armaduras de seus homens estavam empilhadas em cavalos de carga junto com os escudos e as lanças. Eles cavalgavam descuidadamente, sem ser ameaçados, e os besteiros andavam atrás de cavalos que carregavam os sacos com a pilhagem.

Seguiam por uma estrada que serpenteava pelos morros em meio a castanheiras. Porcos escarvavam entre os troncos, e o conde ordenou que dois fossem mortos, já que gostava de carne de porco. As carcaças foram jogadas sobre a jaula da condessa para que o sangue pingasse em seu vestido rasgado.

No meio da tarde aproximaram-se do desfiladeiro que iria levá-los às terras do conde. Era um local elevado, com pinheiros magros e rochas enormes, e, segundo as lendas, uma força de sarracenos havia lutado e morrido no desfiladeiro muitos anos antes. Os camponeses iam ali para lançar maldições, prática desaprovada tanto pelo conde quanto pela Igreja, mas quando Bertille fugira com seu amante o conde foi ao Passo dos Sarracenos, enterrou uma moeda e bateu três vezes na pedra alta no topo do morro, amaldiçoando Villon. Achava que tinha dado certo, pois agora seu inimigo era um capado que sangrava, agonizante, acorrentado numa carroça de carregar esterco.

A luz estava diminuindo. O sol baixava sobre os morros a oeste, mas restava uma hora de luz do dia, e isso deveria bastar para que os soldados cansados atravessassem o desfiladeiro. Dali a estrada descia diretamente até Labrouillade. Os sinos do castelo tocariam pela vitória do conde, enchendo de júbilo a nova escuridão.

Foi nesse momento que a primeira flecha voou.

 

Le Bâtard havia comandado trinta arqueiros e 22 homens de armas em direção ao sul enquanto o resto de sua força continuava para o oeste com os feridos que ainda podiam cavalgar. Os cavalos de le Bâtard estavam cansados, mas mantinham passo firme, reconhecendo os caminhos que seguiram nos longos dias em que esperaram o ataque contra Villon.

Thomas leu a mensagem do conde de Northampton enquanto cavalgava. Leu uma vez, leu de novo, e seu rosto nada revelava. Seus homens o observavam, suspeitando de que a mensagem poderia afetar o futuro deles, mas Thomas apenas dobrou o pergaminho e o enfiou numa bolsa pendurada no cinto da espada.

—   Ele nos convocou? — perguntou Sam finalmente.

—   Não. E por que convocaria? Que utilidade você tem para o conde, Sam?

—   Absolutamente nenhuma! — respondeu Sam, animado. Estava satisfeito porque o conde não havia chamado Thomas de volta à Inglaterra ou, mais provavelmente, à Gasconha. O conde de Northampton era o suserano de Thomas, mas sentia-se satisfeito em deixar ele e seus homens servirem como mercenários. Compartilhava os lucros, que eram vultosos.

—   Ele diz que devemos estar preparados para nos juntar ao exército do príncipe no verão — disse Thomas.

—   O príncipe Eduardo não vai precisar de nós — retrucou Sam.

—   Ele pode ser o rei da França, se decidir entrar no jogo. — Thomas sabia que o príncipe de Gales estava devastando o sul da França e que o rei João não fazia nada para impedi-lo, mas certamente marcharia se o príncipe conduzisse outra chevauchée. E isso podia ser tentador, pensou Thomas, porque a França estava fraca. O rei da Escócia, aliado da França, era prisioneiro na Torre de Londres, e havia ingleses na Normandia, na Bretanha e na Aquitânia. A França era um grande cervo sendo mutilado por cães de caça.

—   E é só isso que a mensagem diz? — perguntou Sam.

—   Não. Mas o resto não é da sua conta, Sam. — Thomas esporeou o cavalo e chamou Genevieve para acompanhá-lo. Os dois foram para as árvores, buscando privacidade. Hugh, o filho deles, que montava um pequeno animal castrado, havia seguido a mãe, e Thomas acenou para mostrar ao garoto que podia chegar mais perto. — Você se lembra do dominicano que foi a Castillon? — perguntou Thomas a Genevieve.

—   O que você expulsou da cidade?

—   Ele estava pregando absurdos — disse Thomas, azedo.

—   Como se chamava esse absurdo?

—   La Malice, uma espada mágica, outra Excalibur. — Ele cuspiu.

—   Por que você se lembra dele agora?

Thomas suspirou.

—   Porque Billy ouviu falar nessa porcaria. — “Billy” era o senhor de Thomas, William Bohun, conde de Northampton. Thomas entregou a carta a Genevieve. — Parece que outro dominicano pregou em Carlisle e soltou o mesmo absurdo. Um tesouro dos Sete Senhores.

—   E o conde sabe… — começou Genevieve, insegura, e parou.

—   Que eu sou um dos sete senhores. — Algumas pessoas os chamavam de Sete Senhores Negros do Inferno, e todos estavam mortos, mas seus descendentes viviam. Thomas era um deles. — E Billy quer que a gente encontre o tesouro. — Ele sorriu com desdém ao dizer as três últimas palavras. — E quando encontrarmos devemos entregá-lo ao príncipe de Gales.

Genevieve franziu a testa, olhando a carta. Estava escrita em francês, claro, a língua da aristocracia inglesa.

—   Os Sete Senhores Negros a possuíram — leu em voz alta — e eles são amaldiçoados. Aquele que deve governar irá encontrá-la e será abençoado.

—   O mesmo absurdo — disse Thomas. — Parece que os dominicanos se empolgaram. Estão espalhando a história por toda parte.

—   E onde você vai procurar?

Thomas queria dizer que em lugar nenhum, que aquele absurdo não valia um instante do tempo deles, mas o abade Planchard, o melhor homem que já conhecera, um cristão realmente parecido com Cristo e que além disso era descendente de um dos Senhores Negros, tinha um irmão mais velho.

—   Há um lugar chamado Mouthoumet, em Armagnac — disse Thomas. — Não consigo pensar em outro local para procurar.

—   “Não falhe conosco” — Genevieve leu a última linha da carta em voz alta.

—   Billy foi vitimado pela loucura — disse Thomas, achando graça.

—   Mas nós vamos a Armagnac?

—   Assim que tivermos terminado aqui.

Porque, antes que o tesouro pudesse ser procurado, o conde de Labrouillade deveria aprender que a ganância tem um preço.

Assim, le Bâtard montou a emboscada.

 

Chovia em Paris. Uma chuva constante que diluía a imundice nas sarjetas e espalhava o fedor pelas ruas estreitas. Mendigos se encolhiam sob o segundo andar saliente de algumas casas, estendendo as mãos magras para os cavaleiros que passavam pelo portão da cidade. Havia duzentos homens de armas, todos grandes e em cavalos robustos, e os cavaleiros estavam envoltos em capas de lã com a cabeça protegida da chuva por elmos de aço. Olhavam ao redor enquanto cavalgavam pela chuva, nitidamente perplexos com uma cidade tão grande, e os parisienses abrigados sobre os andares salientes notavam que esses homens pareciam selvagens e estranhos, como guerreiros saídos de um pesadelo. Muitos eram barbudos, e todos tinham rostos endurecidos pelo tempo e cheios de cicatrizes de guerra. Eram soldados de verdade; não seguidores de algum grande senhor que passava metade do tempo discutindo em recintos de castelos, mas sim homens que carregavam as armas pela neve, pelo vento e pelo sol, que montavam cavalos com cicatrizes de batalhas e levavam escudos sovados. Homens que matariam pelo preço de um botão. Um porta-estandarte cavalgava portando uma bandeira encharcada pela chuva, na qual estava estampado um grande coração vermelho.

Atrás dos duzentos homens de armas vinham cavalos de carga, mais de trezentos, levando bolsas, lanças e armaduras. Os escudeiros e os servos que guiavam os cavalos de carga usavam cobertores, ou pelo menos era o que parecia para quem olhava. Aquelas peças de roupa, pouco mais do que trapos embolados e sujos, eram jogadas sobre um ombro e depois enroladas e presas com uma correia à cintura, e os serviçais não usavam calções, mas ninguém ria deles porque seus cintos levavam armas, espadas longas e grosseiras com punhos simples, machados com mossas ou facas de esfolar. Eram armas camponesas, mas que pareciam ter sido muito usadas. Havia mulheres com os serviçais, e elas se vestiam do mesmo modo bárbaro, com as pernas nuas enlameadas e vermelhas. Usavam o cabelo solto, mas nenhum parisiense ousaria zombar, porque aquelas mulheres esfarrapadas tinham armas como seus homens e pareciam igualmente perigosas.

Os cavaleiros e seus serviçais pararam junto ao rio no centro da cidade e ali se dividiram em grupos pequenos, cada um indo encontrar seus alojamentos, mas um grupo de meia dúzia de homens, acompanhado de serviçais mais bem-vestidos, atravessou a ponte até uma ilha no Sena. Serpentearam por becos estreitos até chegar a uma casa com portão dourado, onde lanceiros uniformizados montavam guarda. Dentro havia um pátio, estábulo, uma capela e uma escada que conduzia ao palácio real, e os seis cavaleiros foram recebidos com reverências, seus cavalos, guardados, e eles, guiados por escadas e corredores até seus aposentos.

William, senhor de Douglas e líder dos duzentos homens de armas, recebeu um aposento voltado para o rio. Folhas de chifre cobriam as janelas, mas ele tirou-as para deixar que o ar úmido entrasse no quarto, onde um grande fogo ardia numa lareira esculpida com o brasão real da França. O senhor de Douglas parou junto ao fogo enquanto serviçais traziam roupa de cama, vinho, comida e três mulheres.

—   Pode escolher, senhor — disse o mordomo.

—   Ficarei com as três — respondeu Douglas.

—   Sábia escolha, senhor. — O mordomo fez uma reverência. — Deseja algo mais?

—   Meu sobrinho está aqui?

—   Está, senhor.

—   Então quero falar com ele.

—   Ele será mandado até aqui, e Sua Majestade receberá o senhor para o jantar.

—   Diga a ele que estou muito feliz só de pensar nisso — disse Douglas, inexpressivo. William, senhor de Douglas, tinha 28 anos e aparentava 40. A barba era castanha curta, o rosto com cicatrizes de uma dúzia de escaramuças e olhos frios como o céu de inverno. Falava um francês perfeito porque havia passado boa parte da infância na França, aprendendo os costumes dos cavaleiros franceses e se aperfeiçoando com a espada e a lança, mas fazia dez anos que tinha voltado para casa na Escócia, onde se tornara líder do clã Douglas e magnata do conselho escocês. Havia se oposto à trégua com a Inglaterra, mas o restante do conselho insistira, por isso o senhor de Douglas havia trazido seus guerreiros mais ferozes à França. Se não podiam lutar contra os ingleses em casa, ele iria soltá-los contra o velho inimigo na França.

—   Tirem as roupas — disse às três jovens.

Por um instante elas pareceram atônitas, mas a expressão no rosto sério de Douglas as convenceu a obedecer. Era um homem bonito, pensaram as três, alto e musculoso, mas tinha rosto de guerreiro, duro como uma lâmina e sem piedade. A noite prometia ser longa. As três estavam nuas quando o sobrinho de Douglas chegou. Ele não era muito mais novo do que o tio, tinha rosto largo e alegre e usava uma túnica de veludo com acabamento bordado em ouro acima de calças justas azul-celeste, que estavam enfiadas em botas de couro macio com borlas de fios de ouro.

—   Que diabo é isso que você está usando? — perguntou Douglas.

O rapaz puxou a bainha bordada da túnica.

—   É o que todo mundo usa em Paris.

—   Santo Deus, Robbie, você está parecendo uma puta de Edimburgo. O que acha dessas três?

Sir Robert Douglas se virou e inspecionou as jovens.

—   Gosto da do meio — disse.

—   Jesus Cristo, ela é tão magra que você poderia usá-la como agulha. Gosto de garotas com carne nos ossos. E então, o que o rei decidiu?

—   Esperar os acontecimentos.

—   Jesus Cristo — repetiu Douglas, e foi até a janela, por onde olhou para o rio salpicado pela chuva. O fedor de esgoto subia da água que corria lenta. — Ele sabe o que está sendo preparado?

—   Eu disse a ele.

Robbie fora enviado a Paris para negociar os termos com o rei João e tinha arranjado para que os homens de seu tio fossem pagos e armados pelo rei francês. Agora eles tinham chegado, e o senhor de Douglas estava ansioso para soltá-los no campo de batalha. Havia forças inglesas em Flandres, na Bretanha e na Gasconha, e o príncipe de Gales estava devastando o sul da França. Douglas queria ter a chance de matar alguns daqueles desgraçados. Odiava os ingleses.

—   Ele sabe que o garoto Eduardo provavelmente vai atacar o norte no ano que vem? — perguntou Douglas. O garoto Eduardo era o príncipe de Gales.

—   Contei a ele.

—   E ele está falando bobagem?

—   Está falando bobagem — confirmou Robbie. — Ele gosta de festa, música e diversão. Não gosta de guerra.

—   Então teremos de colocar um pouco de fibra na porcaria do sujeito, não é?

A Escócia praticamente só conhecera o desastre nos últimos anos. A peste havia chegado e esvaziado os vales, e quase dez anos antes, em Durham, um exército escocês fora derrotado e o rei da Escócia havia sido feito prisioneiro pelos odiados ingleses. Agora o rei Davi era prisioneiro na Torre de Londres, e para tê-lo de volta os escoceses deveriam pagar um resgate tão gigantesco que empobreceria o rei durante anos.

Mas o senhor de Douglas achava que o rei poderia ser restaurado de modo diferente, como um soldado, e esse era o principal motivo para ter trazido seus homens à França. Na primavera, o príncipe de Gales provavelmente comandaria outro exército para fora da Gasconha, e esse exército faria o que os ingleses sempre faziam: estuprar, queimar, pilhar e destruir. O objetivo dessa chevauchée era obrigar os franceses a armar um exército contra eles, e então os temidos arqueiros ingleses fariam seu trabalho e a França sofreria outra derrota. Seus homens importantes seriam aprisionados e a Inglaterra ficaria ainda mais rica com os resgates.

Mas o senhor de Douglas sabia como derrotar arqueiros, e esse era o presente que trouxera à França. Se pudesse convencer o rei francês a se opor ao garoto Eduardo, haveria chance de uma grande vitória, e nessa vitória planejava capturar o príncipe. Cobraria um resgate por ele, um resgate igual ao do rei da Escócia. Isso poderia ser feito, pensou, se ao menos o rei da França lutasse.

—   E você, Robbie? Vai lutar?

Robbie ficou vermelho.

—   Eu fiz um juramento.

—   Dane-se a porcaria do seu juramento!

—   Eu fiz um juramento — insistiu Robbie.

Ele fora prisioneiro dos ingleses, mas tinha sido solto e seu resgate fora pago com a promessa de que nunca mais lutaria contra os ingleses. A promessa fora obtida e o resgate pago por seu amigo, Thomas de Hookton, e durante oito anos Robbie a mantivera, mas agora seu tio estava pressionando-o para ele violar o juramento.

—   Quanto dinheiro você tem, garoto?

—   O seu dinheiro, tio.

—   E ainda resta algum? — Douglas esperou, viu que seu sobrinho estava sem graça. — Então você jogou com ele?

—   Joguei.

—   Está devendo?

Robbie assentiu.

—   Se quiser mais, garoto, lute. Tire essa túnica de puta e vista uma cota de malha. Pelo amor de Deus, Robbie, você é um bom guerreiro! Quero você! Não tem orgulho?

—   Eu fiz um juramento — repetiu Robbie, teimoso.

—   Então pode desfazer. Ou virar pobre. Veja se eu me importo. Agora pegue essa puta magricela e prove que é homem, e verei você no jantar.

Ocasião em que o senhor de Douglas tentaria transformar o rei da França em homem.

 

Os arqueiros se enfileiraram no bosque. Tinham amarrado os cavalos a 100 metros dali, vigiados por dois homens, mas depois correram até a margem das árvores e, quando os primeiros cavaleiros da coluna preguiçosa do conde de Labrouillade estavam a menos de 100 metros, dispararam as flechas.

Os hellequins tinham ficado ricos por causa de duas coisas. A primeira era seu líder, Thomas de Hookton, um bom soldado, excelente pensador e inteligente na batalha, mas havia muitos homens no sul da França capazes de se igualar à esperteza de le Bâtard. O que não podiam era usar a segunda vantagem dos hellequins, o arco de guerra inglês, e era isso que enriquecera Thomas e seus homens.

Era uma coisa simples. Uma haste de teixo, um pouco mais longa do que a altura de um homem e de preferência cortada de uma das terras próximas ao Mediterrâneo. O artesão pegava a haste e moldava, mantendo o cerne duro de um dos lados e o alburno flexível do outro, e o pintava para manter a umidade presa na haste. Depois colocava duas pontas de chifre que prendiam a corda tecida com fibras de cânhamo. Alguns arqueiros gostavam de acrescentar fios do cabelo de sua mulher à corda, afirmando que isso impedia que ela se partisse, mas Thomas, em 12 anos de luta, não havia visto diferença. A corda era forrada no ponto em que a flecha encostava nela, e esse era o arco de guerra. Uma arma camponesa, feita de teixo, cânhamo e chifre, disparando uma flecha de freixo ou bétula, com ponta de aço e penas tiradas de um ganso, sempre da mesma asa, de modo que se curvassem na mesma direção.

O arco de guerra era barato e mortal. O irmão Michael não era um homem fraco, mas não conseguia retesar uma corda de arco por uma distância maior do que um palmo, porém os arqueiros de Thomas puxavam a corda até a orelha e faziam isso 16 ou 17 vezes por minuto. Tinham músculos de aço, calombos nas costas, peitos largos, braços grossos, e o arco era inútil sem músculos. Qualquer homem era capaz de atirar com uma besta, e uma boa besta tinha alcance maior do que o arco de teixo, mas custava cem vezes mais para ser feita e demorava cinco vezes mais para recarregar. E, enquanto o besteiro estava girando a manivela para puxar sua corda de volta, o arqueiro inglês chegava mais perto e disparava meia dúzia de flechas. Eram os arqueiros ingleses e galeses que tinham os músculos e começavam a treinar desde crianças, como Hugh, o filho de Thomas, estava treinando agora. Ele tinha um arco pequeno, e seu pai esperava que ele disparasse trezentas flechas por dia. Deveria atirar, atirar e atirar até não precisar pensar mais em aonde a flecha iria, e simplesmente dispará-la, sabendo que ela aceleraria na direção pretendida, e todo dia os músculos iam crescendo até que, em dez anos, Hugh estaria pronto para ficar na linha de arqueiros e lançar a morte com plumas de ganso a partir de um grande arco de guerra.

Thomas tinha trinta arqueiros na beira do bosque, e no primeiro meio minuto eles dispararam mais de cento e cinquenta flechas, e não foi uma batalha, e sim um massacre. Uma flecha era capaz de furar uma cota de malha a duzentos passos, mas nenhum dos homens do conde de Labrouillade estava usando armadura ou carregando escudo; tudo isso estava nos cavalos de carga. Alguns homens tinham casacos de couro, mas todos haviam tirado as pesadas placas e malhas, e assim as flechas cravavam-se neles, ferindo homens e cavalos, levando-os a um caos instantâneo. Os besteiros seguiam a pé e muito atrás dos cavaleiros do conde, e de qualquer modo estavam atrapalhados pelos sacos de pilhagem. Demorariam minutos para se preparar para a batalha, e Thomas não lhes deu esse tempo. Em vez disso, enquanto as flechas se cravavam nos cavalos que relinchavam e nos cavaleiros caídos, Thomas levou seus vinte homens de armas para fora do bosque, em direção ao flanco do conde.

Os homens de Thomas montavam cavalos de campanha, os grandes garanhões capazes de carregar o peso de um homem, armadura e armas. Não tinham trazido lanças, porque eram armas pesadas e diminuiriam o ritmo da marcha; em vez disso desembainharam as espadas ou levantaram machados e maças. Muitos carregavam um escudo onde estava pintado o brasão com a faixa preta de le Bâtard. E assim que saíram das árvores Thomas virou a formação para encarar o inimigo e girou sua espada para baixo, como sinal para avançar.

Trotaram, joelho a joelho. Havia pedras espalhadas no capim alto e a linha se dividia ao redor delas, depois se juntava de novo. Os homens usavam cotas de malha. Alguns tinham acrescentado placas de armadura, um peitoral ou talvez uma espaldeira para proteger os ombros, e todos usavam bacinetes, o elmo simples, aberto na frente, que permitia enxergar na batalha. As flechas continuavam a cair. Alguns cavaleiros do conde estavam tentando escapar, puxando as rédeas para voltar na direção norte, mas os cavalos feridos os atrapalhavam, e eles podiam ver a formação negra dos homens de armas dos hellequins vindo de lado, e alguns, em desespero, sacaram as espadas. Um grupo conseguiu voltar correndo para a floresta ao norte, onde os besteiros poderiam ser encontrados, enquanto outro grupo se reuniu em volta de seu senhor, que tinha uma flecha na coxa apesar das ordens de Thomas de que o conde não deveria ser morto.

— Um morto não pode pagar as dívidas — disse Thomas. — Portanto, atirem em todos os outros, mas garantam que Labrouillade viva.

Agora o conde estava tentando virar o cavalo, mas era muito pesado e o animal estava ferido. Então os hellequins esporearam, colocando os cavalos em meio galope, as espadas abaixadas na posição de estocar, e as flechas pararam.

Os arqueiros pararam por medo de acertar seus próprios cavaleiros, em seguida largaram os arcos, sacaram as espadas e correram para se juntar à matança enquanto os homens de armas golpeavam.

O som do ataque foi igual ao de cutelos de açougueiro batendo em carcaças. Homens gritavam. Alguns largavam as espadas e levantavam as mãos numa rendição muda. Thomas, não tão confortável a cavalo quanto segurando um arco, teve seu golpe desviado por uma espada. Passou pelo homem com um estrondo, girou a espada para trás, acertando couro sem causar dano, depois mandou-a para a frente contra o cabelo ruivo de outro homem. O oponente caiu, escorregando da sela, e os hellequins deram meia-volta, retornando para acabar com o inimigo. Um cavaleiro de chapéu preto com longas plumas brancas tentou acertar a barriga de Thomas com uma espada. A lâmina resvalou na cota de malha e Thomas trouxe sua espada de volta num giro louco que cortou o rosto do homem no instante em que Arnaldus, um dos gascões que faziam parte dos hellequins, cortava a coluna do sujeito com outra espada. O cavaleiro do conde soltou um som agudo, tremendo incontrolavelmente, sangue jorrando do rosto devastado. Ele deixou a espada cair, e Arnaldus furou-o de novo. O homem caiu lentamente de lado. Um arqueiro segurou as rédeas do cavalo do sujeito. O homem agonizante foi o único a oferecer alguma resistência. Os soldados do conde tinham sido apanhados de surpresa, lutando numa escaramuça desigual contra homens vestidos em armaduras cujas vidas eram dedicadas à guerra, e o combate acabou em segundos. Uma dúzia dos homens do conde escapou, o resto estava morto ou aprisionado, e o conde foi capturado.

—   Arqueiros! — gritou Thomas. — Arcos!

O serviço deles seria vigiar a floresta ao norte para o caso de os besteiros sentirem alguma vontade de lutar, mas Thomas duvidava de que algum deles desejaria isso depois da captura de seu senhor. Uma dúzia de arqueiros recolheu flechas, arrancando-as dos mortos e dos cavalos feridos, pegando-as no chão e enchendo as sacolas. Os prisioneiros foram arrebanhados para um lado e obrigados a entregar as armas enquanto Thomas levava seu cavalo até onde o conde ferido estava caído no chão.

—   Senhor — cumprimentou ele. — O senhor me deve dinheiro.

—   Você foi pago! — reagiu o conde num rompante.

—   Sam — gritou Thomas. — Se Sua Alteza discutir comigo você pode enchê-lo de flechas. — Ele falava em francês, que Sam entendia, e o arqueiro pôs uma flecha na corda e deu um sorriso feliz para o conde.

—   Senhor — disse Thomas de novo. — O senhor me deve dinheiro.

—   Você poderia ter reivindicado na justiça — disse Labrouillade.

—   Reivindicado? Argumentado? Implorado? Adiado? Por que eu deveria deixar seus letrados tecerem feitiços? — Thomas balançou a cabeça. — Onde estão os genoveses que o senhor tirou de Paville?

O conde pensou em dizer que as moedas ainda estavam no castelo em Villon, mas o arqueiro estava com a flecha no arco retesado e o rosto de le Bâtard era implacável. E assim, relutante, o conde contou a verdade.

—   Estão em Labrouillade.

—   Então você mandará um dos seus homens de armas a Labrouillade — disse Thomas cortesmente — com ordens para que o dinheiro seja trazido até aqui. E quando isso acontecer, senhor, iremos soltá-lo.

—   Vão me soltar? — O conde ficou surpreso.

—   Que utilidade o senhor tem para mim? Demoraria meses para juntar um resgate, e nesses anos o senhor consumiria um valor maior do que o seu resgate em comida. Não, vou soltá-lo. E agora, senhor, depois que tiver mandado buscar as moedas, permite-me que meus homens tirem essa flecha da sua coxa?

Um homem de armas foi chamado dentre os prisioneiros, recebeu um cavalo capturado e foi mandado para o sul com a mensagem. Então Thomas chamou o irmão Michael.

—   Você sabe tirar flechas da carne?

O jovem monge pareceu alarmado.

—   Não, senhor.

—   Então observe Sam. Você pode aprender.

—   Não quero aprender — disse bruscamente o irmão Michael, depois ficou sem graça.

—   Não quer aprender?

—   Não gosto de medicina — confessou o monge. — Mas meu abade insistiu.

—   O que você quer? — perguntou Thomas.

Michael ficou confuso.

—   Servir a Deus? — sugeriu.

—   Então sirva a ele aprendendo a extrair flechas.

—   É melhor o senhor esperar que seja de ponta lisa — disse Sam ao conde, cheio de animação. — Vai doer de qualquer modo, mas eu posso tirar uma flecha de ponta lisa num piscar de olhos. Se for uma flecha para carne, terei de cortar para arrancar a maldita. Está preparado?

—   Ponta lisa? — perguntou o conde debilmente. Sam havia falado em inglês, mas ele entendeu um pouco.

Sam pegou duas flechas na bolsa. Uma tinha ponta comprida e fina, sem farpas.

—   Esta é de ponta lisa, senhor, feita para atravessar armadura. — Ele bateu nela com a segunda flecha, que tinha ponta triangular, farpada. — Esta é uma flecha para carne. — Sam tirou uma pequena faca do cinto. — Vai ser rápido. Está preparado?

—   Meu médico tratará de mim! — gritou o conde para Thomas.

—   Se assim desejar, senhor — disse Thomas. — Sam? Corte a haste fora, depois ate o ferimento.

O conde ganiu quando a flecha foi cortada. Thomas se afastou cavalgando até a carroça do senhor de Villon. O sujeito estava enrolado, nu e ensanguentado. Thomas apeou, amarrou o cavalo aos postes e chamou Villon pelo nome. O conde não se mexeu, e Thomas subiu na carroça, virou-o e viu que ele havia morrido. Na carroça havia sangue coagulado suficiente para encher dois baldes, e Thomas fez uma careta enquanto pulava no chão, depois limpou as botas no capim claro antes de ir à carroça com a jaula, onde a condessa Bertille o espiava com olhos arregalados.

—   O senhor de Villon está morto — disse ele.

—   Por que você não matou o conde de Labrouillade? — perguntou ela, virando a cabeça na direção do marido.

—   Não mato um homem porque me deve dinheiro, só se ele se recusar a pagar. — Ele desembainhou a espada e usou-a para partir o fecho frágil da porta da jaula, depois estendeu a mão para ajudar a condessa a descer. — Seu marido será libertado em breve. A senhora também poderá ir.

—   Eu não vou com ele! — disse ela em tom de desafio. Foi andando irritada até onde o conde estava caído no capim. — Ele pode dormir com os porcos — disse apontando para as duas carcaças em cima da jaula. — Não vai perceber a diferença.

O conde tentou se levantar para dar um tapa na esposa, mas Sam estava atando seu ferimento com uma tira de pano rasgada da camisa de um cadáver e a puxou com força, fazendo o conde gritar de dor outra vez.

—   Desculpe, senhor — disse Sam. — Fique parado, só vai demorar um pouquinho.

A condessa cuspiu nele e se afastou.

—   Tragam a puta aqui! — gritou o conde.

A condessa continuou andando, apertando o vestido rasgado contra os seios. Genevieve tocou o ombro dela, disse alguma coisa, depois se aproximou de Thomas.

—   O que vai fazer com ela?

—   Ela não é minha para que eu faça alguma coisa. Mas não pode vir conosco.

—   Por quê?

—   Quando sairmos daqui precisaremos ir a Mouthoumet. Talvez lutemos para ir até lá. Não podemos levar bocas inúteis que nos atrasem.

Genevieve sorriu brevemente, depois olhou para os besteiros sentados na margem da floresta ao norte. Nenhum deles tinha arma, em vez disso apenas observavam a humilhação de seu senhor.

—   Sua alma endureceu, Thomas — disse ela baixinho.

—   Sou um soldado.

—   Você era soldado quando eu o conheci, e eu era prisioneira, acusada de heresia, excomungada, condenada à morte, mas você me levou consigo. O que eu era, senão uma boca inútil?

—   Ela é encrenca — disse Thomas, irritado.

—   E eu não era?

—   Mas o que faremos com ela?

—   Vamos levá-la para longe.

—   De quê?

—   Daquele marido porco, de um futuro num convento? De ser arranhada por freiras secas que odeiem a beleza dela? Ela deve fazer o que fiz. Encontrar o próprio futuro.

—   O futuro dela é causar desavença entre os homens.

—   O que é bom, porque os homens causam bastante encrenca para as mulheres. Eu vou protegê-la.

—   Santo Deus — disse Thomas, exasperado, depois se voltou para Bertille. Era uma beldade rara, pensou. Seus homens estavam espiando-a com desejo sem disfarces, e ele não podia culpá-los. Homens morreriam por uma mulher como Bertille. O irmão Michael havia encontrado uma capa enrolada atrás da sela do conde e sacudiu-a, levou-a até ela e a ofereceu como cobertura para o vestido rasgado. Ela disse alguma coisa, e o jovem monge ficou vermelho como as nuvens a oeste. — Parece que ela já tem um protetor.

—   Eu farei um trabalho melhor — disse Genevieve, em seguida foi até o cavalo do conde e pegou a faca ensanguentada de castração que pendia de uma alça no arção da sela. Foi até o conde, que se encolheu ao ver aquilo. Ele fez uma carranca para a mulher com malha prateada, que o olhou com desdém. — Sua mulher vai viajar conosco — disse Genevieve —, e se você fizer qualquer tentativa de tomá-la de volta eu mesma vou cortá-lo. Vou cortá-lo devagar e fazê-lo guinchar como o porco que você é. — Ela cuspiu nele e se afastou.

Mais um inimigo, pensou Thomas.

Os genoveses chegaram quando o crepúsculo virava noite. As moedas foram postas em dois cavalos de carga. E, assim que confirmou que todo o dinheiro estava ali, Thomas voltou ao conde.

—   Vou ficar com todas as moedas, senhor, as ruins e as boas. O senhor me pagou duas vezes, a segunda pelo problema que causou hoje.

—   Vou matar você — disse Labrouillade.

—   Foi um prazer servi-lo, conde.

Thomas montou, depois levou seus homens e todos os cavalos capturados para o oeste. As primeiras estrelas perfuraram o céu que ia escurecendo. Subitamente ficou frio, porque um vento norte começou a soprar, trazendo um sinal do inverno.

E na primavera, pensou Thomas, haveria outra guerra. Mas primeiro precisava ir a Armagnac.

E assim os hellequins cavalgaram para o norte.

 

Teria sido fácil para o frei Ferdinando roubar um cavalo. O exército do príncipe de Gales havia deixado suas montarias do lado de fora de Carcassonne, e os poucos homens que vigiavam os animais estavam entediados e exaustos. Os grandes cavalos de campanha, montados pelos homens de armas, eram mais bem-vigiados, mas as montarias dos arqueiros estavam num cercado, e o dominicano poderia ter pegado uma dúzia. Contudo, um homem sozinho a cavalo atraía atenção, era alvo de bandoleiros, e o frei Ferdinando não ousava se arriscar a perder la Malice, por isso preferiu andar.

Levou dez dias para chegar em casa. Durante um tempo viajou com alguns mercadores que haviam contratado uma dúzia de homens de armas para vigiar seus bens, mas depois de quatro dias eles pegaram a estrada para o sul, em direção a Montpellier, e frei Ferdinand continuou seguindo para o norte. Um dos mercadores havia perguntado por que ele carregava la Malice, e o frade desconsiderou a pergunta.

—   É só uma espada velha — respondeu. — Pode servir como uma boa faca para cortar feno.

—   Não parece capaz de cortar nem mesmo manteiga — disse o mercador. — Seria melhor mandar derretê-la.

—   Talvez eu faça isso.

Ele tinha ouvido notícias durante a viagem, mas essas histórias de viajantes nem sempre eram confiáveis. Diziam que o exército inglês em fúria havia queimado Narbonne e Villefranche, outros diziam que a própria Toulouse havia caído. Os mercadores resmungaram. A chevauchée inglesa era uma tática para destruir a força de um país, impedir os senhores de cobrar impostos, queimar seus moinhos, arrancar seus vinhedos, demolir cidades inteiras, e o único modo de fazer parar uma força tão destruidora era com outro exército, mas o rei da França ainda estava no norte, longe, e o príncipe de Gales causava devastação no sul.

—   O rei João deveria vir para cá e matar o principezinho inglês — disse um dos mercadores —, caso contrário não haverá França para governar.

O frei Ferdinand ficou quieto. Os outros viajantes estavam nervosos com ele. Era magro, sério e misterioso, mas seus companheiros sentiam-se gratos porque ele não fazia pregações. Os dominicanos eram uma ordem predicante, destinada a percorrer o mundo na pobreza e a encorajá-lo a seguir os caminhos de Deus, e quando os mercadores viraram para o sul deram-lhe dinheiro, que o frei Ferdinand suspeitou ser gratidão por seu silêncio. Aceitou a caridade, ofereceu uma bênção aos doadores e caminhou sozinho para o norte.

Mantinha-se nas áreas de floresta para evitar estranhos. Sabia que existiam coredors, bandoleiros e mercenários que não achariam errado roubar um frade. O mundo, pensou, havia se tornado maligno, e ele rezava pela proteção de Deus. E suas preces foram atendidas, porque não viu qualquer bandoleiro e não encontrou nenhum inimigo, e no fim da tarde de terça-feira chegou a Agout, o vilarejo logo ao sul das colinas onde ficava a torre. Foi à estalagem e ali soube da notícia.

O senhor de Mouthoumet estava morto. Recebera a visita de um padre acompanhado por homens de armas, e quando o padre foi embora o senhor de Mouthoumet estava morto. Fora enterrado, e os homens de armas tinham permanecido na torre até que uns ingleses chegaram e houve uma luta, e os ingleses mataram três homens do padre. O resto fugiu.

—   Os ingleses ainda estão lá?

—   Foram embora também.

O frei Ferdinand foi até a torre no dia seguinte, onde encontrou a governanta do senhor de Mouthoumet, uma mulher faladeira que se ajoelhou para a bênção do frade, mas não parou de falar nem enquanto ele a abençoava. Contou que um padre havia chegado.

—   Ele foi grosseiro! — E contou que depois o padre foi embora e os homens que ficaram para trás revistaram a torre e a aldeia. — Eram animais. Franceses! Mas animais! Então chegaram os ingleses. — Ela falou que os ingleses usavam um brasão com um animal estranho segurando uma taça.

—   Os hellequins — disse o frei Ferdinand.

—   Hellequins?

—   É um nome do qual eles se orgulham. Os homens deviam sofrer por causa desse tipo de orgulho.

—   Amém.

—   Mas os hellequins não mataram o senhor de Mouthoumet?

—   Ele já estava enterrado quando eles chegaram. — Ela fez o sinal da cruz. — Não, os franceses é que o mataram. Vieram de Avignon.

—   Avignon!

—   O padre veio de lá. O nome dele era padre Calade. — Ela fez o sinal da cruz. — Tinha olhos verdes e eu não gostei dele. Meu senhor ficou cego! O padre arrancou os olhos dele!

—   Santo Deus — disse baixinho frei Ferdinand. — Como você sabe que eles vieram de Avignon?

—   Eles disseram! Os homens que ele deixou para trás contaram! Disseram que, se nós não déssemos o que queriam, todos seríamos amaldiçoados pelo Santo Padre em pessoa. — Ela fez uma pausa por tempo suficiente para se persignar. — Os ingleses também fizeram perguntas. Não gostei do líder deles. Uma das mãos do sujeito parecia a pata do diabo, como uma garra. Ele era gentil — concedeu ela de má vontade —, mas era duro. Pela mão, dava para ver que era mau!

O frei Ferdinand sabia como a velha era supersticiosa. Era uma boa mulher, mas via presságios em nuvens, em flores, em cães, na fumaça, em qualquer coisa.

—   Eles perguntaram por mim?

—   Não.

—   Bom. — O frade havia encontrado refúgio em Mouthoumet. Estava ficando velho demais para andar pelas estradas da França e contar com a gentileza de estranhos para conseguir cama e comida. Um ano antes havia chegado à torre, e o velho o convidara a ficar. Os dois haviam conversado, comido juntos, jogado xadrez, e o conde contou ao frei Ferdinand todas as histórias antigas sobre os Senhores Negros. — Acho que os ingleses vão voltar — disse o frade por fim. — E talvez os franceses também.

—   Por quê?

—   Estão procurando uma coisa.

—   Eles procuraram! Abriram até as sepulturas novas, mas não acharam nada. Os ingleses foram para Avignon.

—   Como sabe?

—   Foi o que disseram. Que iriam seguir o padre Calade até Avignon. — Ela se persignou de novo. — O que um padre de Avignon iria querer aqui? Por que os ingleses vieram a Mouthoumet?

—   Por causa disto — disse o frei Ferdinand, mostrando a espada velha.

—   Se eles só querem isso — reagiu ela com desprezo —, entregue!

O conde de Mouthoumet, temendo que os ingleses furiosos saqueassem as sepulturas em Carcassonne, havia implorado que o frade resgatasse la Malice. O frei Ferdinand suspeitava de que na verdade o velho queria tocar a espada, ver aquela coisa milagrosa que seus ancestrais haviam protegido, uma relíquia de tamanho poder que sua posse poderia levar a alma de um homem diretamente ao céu, e tão desesperada foi a súplica do velho que o frei Ferdinand concordou. Tinha resgatado la Malice, mas seus colegas frades estavam pregando que a espada era a chave do paraíso, e por toda a cristandade os homens a desejavam. Por que pregariam isso? O frei Ferdinand achava que deveria sentir culpa. Depois que o conde lhe contara a lenda de la Malice, o frade fora obedientemente a Avignon e repassara a história ao mestre-geral de sua ordem, e o mestre-geral, um bom homem, sorriu, depois disse que mil histórias assim eram contadas todo ano, e que nenhuma jamais fora verdadeira.

—   Você se lembra de dez anos atrás, quando a peste chegou? — perguntou o mestre-geral. — E de como toda a cristandade acreditou que o Graal tinha sido visto? E antes disso o que houve? Ah, a lança de São Jorge! E aquilo também foi um absurdo, mas agradeço por ter me contado, irmão.

Ele dispensou o frei Ferdinand com uma bênção, mas talvez tenha contado a outros sobre a relíquia, não? E agora, graças aos dominicanos, o boato havia infectado toda a Europa.

—   “Aquele que deve nos governar irá encontrá-la e será abençoado” — disse o frade.

—   O que isso quer dizer? — perguntou a velha.

—   Quer dizer que alguns homens ficam loucos buscando Deus — explicou o frei Ferdinand. — Quer dizer que todo homem que deseja o poder busca um sinal de Deus.

A velha franziu a testa, sem entender, mas acreditava que o frei Ferdinand era estranho de qualquer modo.

—   O mundo está louco — disse ela, escolhendo essa palavra dentre as que ele falara. — Dizem que os diabos ingleses queimaram metade da França! Onde está o rei?

—   Quando os ingleses vierem — disse o frei Ferdinand —, ou qualquer outro, diga que fui para o sul.

—   O senhor vai embora?

—   Aqui não é seguro para mim. Talvez retorne quando a loucura passar, mas por enquanto vou para as montanhas altas da Espanha. Vou me esconder lá.

—   Para a Espanha! Existem demônios lá!

—   Vou para as montanhas — tranquilizou-a o frei Ferdinand. — Perto dos anjos.

Na manhã seguinte caminhou para o sul, e só quando estava fora o bastante das vistas do vilarejo e teve certeza de que ninguém o vigiava virou-se para o norte. Tinha uma longa jornada e um tesouro a proteger.

Devolveria la Malice ao seu dono de direito. Iria a Poitou.

 

Um homem baixinho, de rosto moreno e carrancudo, com um tufo de cabelo preto com manchas de tinta branca, estava empoleirado num andaime alto usando um pincel para passar pigmento marrom num teto em arco. Disse algo numa língua que Thomas não entendeu.

—   Você fala francês? — perguntou Thomas.

—   Todos precisamos falar francês aqui — respondeu o pintor, mudando para essa língua, que ele falava com sotaque terrível. — Claro que falamos essa merda de francês. Você veio me dar conselhos?

—   Sobre o quê?

—   Sobre o afresco, claro, seu maldito idiota. Não gosta da cor das nuvens? As coxas da Virgem são grandes demais? As cabeças dos anjos estão pequenas demais? Foi o que me disseram ontem. — Ele apontou com o pincel para o teto, onde anjos alados tocavam trombetas em honra da Virgem. — As cabeças são pequenas demais, disseram, mas de onde estavam olhando? De cima de uma das minhas escadas! Do chão parecem perfeitas. Claro que são perfeitas. Fui eu que pintei. Pintei os dedos dos pés da Virgem também. — Ele apontou o pincel com raiva para o teto. — E os malditos dominicanos disseram que era heresia! Mostrar os dedos dos pés da Virgem? Doce e santo Jesus Cristo, eu a pintei com os peitos nus em Siena, mas lá ninguém ameaçou me queimar. — Ele deu uma pincelada e em seguida se inclinou para trás. — Desculpe, ma chérie — falou para a imagem de Maria que estava pintando no teto —, você não tem permissão para ter peitos e agora perdeu os dedos dos pés, mas eles vão voltar.

—   Vão? — perguntou Thomas.

—   O reboco está seco — vociferou o pintor, como se a resposta fosse óbvia. — E, se você pintar por cima de um afresco enquanto ele estiver seco, essa tinta vai descascar como as feridas de uma puta. Vai levar alguns anos, mas os dedos hereges vão reaparecer, e os dominicanos não sabem porque são uns malditos idiotas. — Ele mudou para seu italiano nativo e gritou insultos contra seus dois ajudantes, que estavam usando um pilão gigantesco para misturar reboco fresco num barril. — Eles também são idiotas — acrescentou para Thomas.

—   Você precisa pintar no reboco molhado? — perguntou Thomas.

—   Você veio aqui para uma aula de pintura? É melhor me pagar. Quem é você?

—   Meu nome é d’Evecque — respondeu Thomas.

Não queria ser conhecido por seu verdadeiro nome em Avignon. Tinha inimigos suficientes na Igreja, e Avignon era o lar do papa, o que significava que a cidade estava atulhada de padres, monges e frades. Tinha ido ali porque aquela mulher intratável em Mouthoumet havia lhe garantido que o misterioso padre Calade viera de Avignon, mas agora Thomas tinha a sensação desagradável de que seu tempo estava sendo desperdiçado. Havia perguntado a uma dúzia de padres se tinham ouvido falar a respeito de um tal padre Calade e nenhum reconheceu o nome, porém, da mesma forma, nenhum reconheceu Thomas nem sabia que ele fora excomungado. Agora ele era herege, estava fora das graças da Igreja, era um homem a ser caçado e queimado, mas não podia resistir a visitar o grande palácio-fortaleza do papado. Também havia um papa em Roma, por causa do cisma da Igreja, mas Avignon tinha o poder, e Thomas estava pasmo com as riquezas à mostra naquela construção enorme.

—   Pela sua voz — disse o pintor —, suponho que seja normando, não? Ou talvez inglês, hein?

—   Normando — respondeu Thomas.

—   E o que um normando está fazendo tão longe de casa?

—   Quero ver o Santo Padre.

—   Claro que quer. Mas o que está fazendo aqui? Na Salle de Herses?

A Salle de Herses era um cômodo que dava na grande câmara de audiências do palácio papal, e um dia contivera o mecanismo que baixava a grade levadiça da porta do palácio. Contudo, fazia muito tempo que esse sistema de polias fora tirado, de modo que, evidentemente, a sala podia se tornar outra capela. Thomas hesitou antes de responder, depois disse a verdade.

—   Queria achar um lugar para mijar.

—   Naquele canto — indicou o pintor com o pincel. — Naquele buraco embaixo da pintura de são José. É onde os ratos entram, de modo que me faça o favor de afogar alguns daqueles desgraçados. E o que você quer com o Santo Padre? A remissão dos pecados? Um passe livre para o céu? Um dos meninos do coro?

—   Só uma bênção.

—   Você pede muito pouco, normando. Peça muito e talvez consiga um pouquinho. Ou talvez nada. Esse Santo Padre não é suscetível a subornos. — O pintor desceu atabalhoadamente do andaime, fez uma careta para seu novo trabalho e depois foi até uma mesa coberta com pequenos potes de pigmentos preciosos. — É uma coisa boa você não ser inglês! O Santo Padre não gosta de ingleses.

Thomas abotoou a calça.

—   Não?

—   Não. E como eu sei? Porque eu sei de tudo. Eu pinto, e eles me ignoram porque não podem me ver! Sou Giacomo, fico no andaime, e eles falam embaixo de mim. Aqui, não — disparou ele, como se a câmara que estava decorando não valesse o esforço —, mas também estou pintando por cima dos peitos nus dos anjos na Câmara do Conclave, e é lá que eles falam. Falam, falam, falam! Parecem aves, as cabeças próximas, chilreando, e Giacomo está ocupado escondendo peitos no andaime acima deles, por isso esquecem que estou lá.

—   E o que o Santo Padre diz sobre os ingleses?

—   Quer o meu conhecimento? Então pague.

—   Quer que eu jogue tinta no seu teto?

Giacomo gargalhou.

—   Ouvi dizer, normando, que o Santo Padre quer que os franceses derrotem os ingleses. Há três cardeais franceses aqui, agora, todos falando sem parar no ouvido dele, mas ele não precisa de encorajamento. Mandou Borgonha lutar ao lado da França. Mandou mensagens a Toulouse, à Provença, ao Delfinado, até à Gasconha, dizendo aos homens que o dever deles é resistir à Inglaterra. O Santo Padre é francês, lembre-se. Ele quer a França forte de novo, forte o bastante para pagar à Igreja os impostos adequados. Os ingleses não são populares aqui. — Ele parou para lançar um olhar maroto a Thomas. — Portanto é bom que você não seja inglês, hein?

—   É bom.

—   O Santo Padre poderia amaldiçoar um inglês. — Giacomo riu. Em seguida subiu de novo no andaime, falando ao mesmo tempo. — Os escoceses mandaram homens para lutar pela França, e o Santo Padre ficou satisfeito! Disse que os escoceses são filhos fiéis da Igreja, mas quer que os ingleses — ele parou para dar uma pincelada — sejam castigados. Então, você veio até aqui só para uma bênção?

Thomas havia andado até o final da câmara, onde uma pintura velha desbotava na parede.

—   Uma bênção — disse ele. — E para procurar um homem.

—   Ah! Quem?

—   O padre Calade.

—   Calade! — Giacomo balançou a cabeça. — Conheço um padre Callait, mas não Calade.

—   Você é da Itália?

—   Pela graça de Deus venho de Córdoba, que é uma cidade veneziana — disse Giacomo, depois desceu agilmente o andaime e foi até a mesa, onde limpou as mãos num trapo. — Claro que venho da Itália! Se quiser que alguma coisa seja pintada, peça a um italiano. Se quiser que alguma coisa seja manchada, borrada ou tenha respingos de tinta, peça a um francês. Ou peça àqueles dois idiotas. — Ele fez um gesto para seus ajudantes. — Idiotas! Continuem mexendo o reboco! Eles podem ser italianos, mas têm cérebro de francês. Não há nada além de espinafre entre as orelhas deles! — Ele pegou um rebenque de couro como se fosse bater num dos ajudantes, mas se abaixou abruptamente sobre um dos joelhos. Os dois ajudantes também se ajoelharam, e então Thomas viu quem adentrara a sala e também tirou o chapéu e se ajoelhou.

O Santo Padre havia entrado na câmara, acompanhado por quatro cardeais e uma dúzia de outros padres. O papa Inocêncio sorriu distraidamente para o pintor, depois olhou um dos afrescos recentes.

Thomas levantou a cabeça para olhar o pontífice. Inocêncio VI, papa havia três anos, era um velho com cabelo ralo, rosto sério e mãos que tremiam. Usava uma capa vermelha com borda de pele branca e era ligeiramente encurvado, como se tivesse a coluna aleijada. Arrastava o pé esquerdo ao andar, mas sua voz era bastante forte.

—   Você está fazendo um bom trabalho, filho — disse ao italiano. — Um trabalho excelente! Estas nuvens parecem mais reais do que as nuvens de verdade!

—   Tudo pela glória de Deus — murmurou Giacomo — e pelo seu renome, Santo Padre.

—   E pela sua própria glória, filho — disse o papa, e esboçou uma bênção vaga para os dois ajudantes. — E você também é pintor, filho? — perguntou a Thomas.

—   Sou soldado, Santo Padre — respondeu Thomas.

—   De onde?

—   Da Normandia, Santo Padre.

—   Ah! — Inocêncio pareceu deliciado. — Você tem nome, filho?

—   Guillaume d’Evecque, Santo Padre.

Um dos cardeais, com o manto vermelho apertado com um cinto em volta de uma pança de glutão, virou-se rapidamente, afastando o olhar do teto e parecendo em vias de protestar. Então fechou a boca, mas continuou com os olhos cravados em Thomas.

—   E diga, filho — Inocêncio não havia percebido a reação do cardeal —, você jurou fidelidade aos ingleses?

—   Não, Santo Padre.

—   Tantos normandos juraram! Mas não preciso lhe dizer isso. Eu choro pela França! Muitos morreram, e é hora de haver paz na cristandade. Minha bênção, Guillaume. — Ele estendeu a mão e Thomas se levantou, foi até ele, ajoelhou-se de novo e beijou o anel do pescador, que o papa usava por cima da luva bordada. — Você tem minha bênção — disse Inocêncio, pondo a mão na cabeça descoberta de Thomas — e minhas orações.

—   E eu rezarei pelo senhor, Santo Padre — disse Thomas, imaginando se não seria o primeiro excomungado a ser abençoado por um papa. — Rezarei para que tenha uma vida longa — acrescentou educadamente.

A mão em sua cabeça tremeu.

—   Sou um velho, meu filho — disse o papa —, e meu médico diz que me restam muitos anos! Mas os médicos mentem, não é? — Ele deu um risinho. — O padre Marchant diz que sua calade me dirá se ainda tenho vida longa, mas prefiro confiar nos meus médicos mentirosos.

Thomas prendeu o fôlego, subitamente ciente dos próprios batimentos cardíacos. Parecia haver um vento gelado na sala, e então um tremor na mão do papa o fez soltar o ar de novo.

—   Calade, Santo Padre? — perguntou.

—   Um pássaro que diz o futuro — respondeu o papa, tirando a mão da de Thomas. — De fato vivemos numa era de milagres, em que os pássaros fazem profecias! Não é, padre Marchant?

Um sacerdote alto fez uma reverência ao papa.

—   Sua Santidade é milagre suficiente.

—   Ah, não! O milagre está aqui! Na pintura! É soberba. Parabéns, filho — disse o papa a Giacomo.

Thomas lançou um olhar para o padre Marchant e viu um homem magro, de rosto moreno, com olhos que pareciam reluzir; olhos verdes, intensos, apavorantes e que, de súbito, o espiaram diretamente. Baixou o olhar para os chinelos do papa, bordados com as chaves de São Pedro.

O papa abençoou Giacomo e depois, satisfeito com o progresso dos novos afrescos, saiu mancando da sala. Seu séquito seguiu-o, todos menos o cardeal gordo e o padre de olhos verdes, que ficaram. Thomas já ia se levantar, mas o cardeal pôs a mão pesada em sua cabeça descoberta e o empurrou de volta.

—   Repita seu nome — exigiu o cardeal.

—   Guillaume d’Evecque, Eminência.

—   E eu sou o cardeal Bessières — disse o homem de manto vermelho, mantendo a mão na cabeça de Thomas. — Cardeal Bessières, cardeal arcebispo de Livorno, legado papal ao rei João da França, que Deus o abençoe acima de todos os monarcas da terra. — Ele fez uma pausa, obviamente querendo que Thomas ecoasse suas últimas palavras.

—   Que Deus abençoe Sua Majestade — disse Thomas obedientemente.

—   Ouvi dizer que Guillaume d’Evecque morreu — disse o cardeal em tom perigoso.

—   Era meu primo, Eminência.

—   Como ele morreu?

—   Com a peste — respondeu Thomas vagamente. Sire Guillaume d’Evecque havia sido seu inimigo, depois seu amigo, e tinha morrido de peste, mas não antes de lutarem juntos.

—   Ele lutou pelos ingleses — disse o cardeal.

—   Foi o que ouvi dizer, Eminência, e para vergonha de nossa família. Mas eu mal conheci meu primo.

O cardeal afastou a mão e Thomas se levantou. O padre de olhos verdes estava olhando a pintura desbotada na parede do fundo.

—   Você pintou isso? — perguntou a Giacomo.

—   Não, padre — respondeu Giacomo. — É uma pintura muito antiga e muito malfeita, de modo que foi provavelmente salpicada por um francês, ou talvez um borgonhês. O Santo Padre quer que eu a substitua.

—   Certifique-se de fazer isso.

O tom do padre atraiu a atenção do cardeal, que olhou a velha pintura. Ele estivera observando Thomas, franzindo a testa como se duvidasse da verdade do que ele dissera, mas a visão da pintura o distraiu. A pintura desbotada mostrava São Pedro, identificável porque segurava duas chaves douradas numa das mãos, oferecendo uma espada a um monge ajoelhado. Os dois estavam num campo coberto de neve. O monge estendia a mão para a espada, vigiado por um segundo monge que espiava, apreensivo, através do postigo semiaberto de uma pequena casa coberta de neve. O cardeal olhou-a por longo tempo e pareceu surpreso a princípio, mas depois estremeceu de raiva.

—   Quem é o monge? — perguntou a Giacomo.

—   Não sei, Eminência.

O cardeal olhou interrogativamente para o padre de olhos verdes, que respondeu dando de ombros. O cardeal fez uma carranca.

—   Por que você ainda não a cobriu? — perguntou ao pintor.

—   Porque o Santo Padre ordenou que o teto fosse pintado antes das paredes, Eminência.

—   Então a cubra agora! — vociferou o cardeal. — Cubra antes de terminar o teto. — Ele lançou um olhar a Thomas. — Por que você está aqui?

—   Para receber a bênção do Santo Padre, Eminência.

O cardeal Bessières franziu a testa. Obviamente suspeitava do nome que Thomas havia fornecido, mas a existência da velha pintura parecia perturbá-lo ainda mais.

—   Cubra-a! — ordenou novamente a Giacomo, depois olhou de volta para Thomas. — Onde está alojado?

—   Perto da Igreja de São Benezet, Eminência — mentiu Thomas.

Na verdade tinha deixado Genevieve, Hugh e cerca de vinte homens numa taverna do outro lado da grande ponte, longe da Igreja de São Benezet. Mentiu porque a última coisa que desejava era que o cardeal Bessières sentisse um interesse súbito por Guillaume d’Evecque. Thomas havia matado o irmão do cardeal, e, se Bessières soubesse quem era de verdade, as fogueiras da heresia seriam acesas na grande praça diante do palácio papal.

—   Estou curioso com as questões de estado na Normandia — disse o cardeal. — Vou mandar chamá-lo depois das nonas. O padre Marchant irá buscá-lo.

—   Irei mesmo — concordou o padre, e fez as palavras parecerem uma ameaça.

—   Ficarei honradíssimo em auxiliar Vossa Eminência — respondeu Thomas, de cabeça baixa.

—   Livre-se dessa pintura — disse o cardeal a Giacomo, depois levou seu companheiro de olhos verdes para fora da sala.

O italiano, ainda de joelhos, soltou um longo suspiro.

—   Ele não gostou de você.

—   Ele gosta de alguém? — perguntou Thomas.

Giacomo se levantou e gritou com seus ajudantes.

—   O reboco vai endurecer se eles não ficarem mexendo-o! — explicou sua raiva a Thomas. — Eles têm mingau no lugar dos miolos. São milaneses, não é? Por isso são idiotas. Mas o cardeal Bessières não é idiota e seria um inimigo perigoso, meu amigo. — Giacomo não sabia, mas o cardeal já era inimigo de Thomas, embora, felizmente, Bessières nunca houvesse se encontrado com ele e não fizesse sequer ideia de que o inglês estava em Avignon. Giacomo foi à mesa onde estavam seus pigmentos em pequenos potes de barro. — E ele tem esperança de ser o próximo papa. Inocêncio é frágil, Bessières não. Talvez tenhamos outro santo padre em breve.

—   Por que ele não gosta dessa pintura? — perguntou Thomas, apontando para a parede dos fundos.

—   Talvez tenha bom gosto, não é? Ou talvez porque parece que ela foi pintada por um cachorro segurando um pincel na bunda.

Thomas olhou a pintura antiga. O cardeal quisera saber que história ela contava, e nem Giacomo nem o padre de olhos verdes puderam responder, mas obviamente ele desejava que a pintura fosse destruída, para que mais ninguém descobrisse a resposta. E a pintura realmente contava uma história. São Pedro estava entregando sua espada a um monge na neve, e o monge devia ter um nome, mas qual era?

—   Você não sabe mesmo o que a pintura significa? — perguntou Thomas a Giacomo.

—   Uma lenda? — supôs o italiano despreocupadamente.

—   Mas que lenda?

—   São Pedro tinha uma espada, e acho que ele está entregando-a à Igreja, não é? Ele deveria tê-la usado para cortar a mão do pintor e nos poupado de olhar esses borrões hediondos.

—   Mas geralmente a espada é pintada no Getsêmani. — Thomas tinha visto muitas paredes de igreja com a pintura da cena anterior à prisão de Cristo, quando Pedro desembainhou a espada e cortou a orelha do serviçal do sumo sacerdote, mas nunca tinha visto Pedro numa nevasca.

—   Então o idiota que pintou isso não conhecia as histórias — concluiu Giacomo.

Mas tudo nas pinturas tinha um significado. Se um homem segurava uma serra, ele era São Simão, porque Simão fora serrado aos pedaços em seu martírio. Um punhado de uvas lembrava ao povo a Eucaristia, o rei Davi segurava uma harpa, São Tadeu tinha um porrete ou uma régua de carpinteiro, São Jorge enfrentava um dragão, São Dênis era sempre pintado segurando a própria cabeça cortada: tudo tinha um significado, mas Thomas não fazia ideia do que aquela velha pintura queria dizer.

—   Vocês, pintores, não deveriam conhecer todos esses símbolos?

—   Que símbolos?

—   A espada, as chaves, a neve, o homem na janela!

—   A espada é a espada de são Pedro, as chaves são as chaves do céu! Você precisa que lhe ensinem como sugar as tetas de sua mãe?

—   E a neve?

Giacomo assumiu uma expressão séria, obviamente desconfortável com a pergunta.

—   O idiota não sabia pintar grama — decidiu finalmente —, por isso jogou um pouco de cal barata! Não tem significado! Amanhã vamos descascá-la e colocar alguma coisa bonita no lugar.

Mas quem havia pintado a cena tivera o trabalho de limpar aquele trecho de neve ao redor do homem ajoelhado, e havia pintado a grama com bastante habilidade, salpicando pequenas flores amarelas e azuis. Portanto a neve limpa tinha um significado, assim como a presença do segundo monge olhando temeroso da janela da cabana.

—   Você tem carvão? — perguntou Thomas.

—   Claro que tenho! — Giacomo fez um gesto para a mesa onde estavam seus pigmentos.

Thomas foi até a porta e olhou a grande câmara de audiências. Não havia sinal do cardeal Bessières nem do padre de olhos verdes, por isso pegou um pedaço de carvão, foi até a pintura estranha e escreveu sobre ela.

—   O que está fazendo? — perguntou Giacomo

—   Quero que o cardeal veja isso — disse Thomas.

Ele escreveu Calix Meus Inebrians em grandes letras pretas sobre a neve.

—   Minha taça me embebeda? — perguntou Giacomo, perplexo.

—   É de um salmo de Davi.

—   Mas o que significa?

—   O cardeal saberá.

Giacomo franziu a testa.

—   Jesus Cristo, você joga perigosamente.

—   Obrigado por me deixar mijar aqui — disse Thomas. O pintor estava certo, isso era perigoso, mas, se não conseguisse encontrar o padre Calade nesta cidade de seus inimigos, o convidaria a segui-lo, e Thomas suspeitava de que ele era o sacerdote de olhos muito verdes.

E o padre de olhos verdes estava interessado numa pintura antiga e malfeita mostrando dois monges e São Pedro, mas o centro da pintura não era o monge ajoelhado, nem mesmo a figura do próprio São Pedro em seu manto, e sim a espada.

E, mesmo não tendo certeza, Thomas se convenceu de repente de que a espada tinha um nome: la Malice.

E naquele dia, muito antes das nonas, e antes que alguém pudesse encontrá-lo e entregá-lo à tortura da Igreja, Thomas e seu grupo deixaram Avignon.

 

O tempo quente chegou. Era o clima certo para a campanha, e por toda a França homens afiavam espadas, exercitavam cavalos e esperavam a convocação para servir ao rei. Os ingleses estavam mandando reforços à Bretanha e à Gasconha, e os homens achavam que certamente o rei João montaria um grande exército para esmagá-los, mas em vez disso ele levou um exército menor para as imediações de Navarra, ao castelo de Breteuill, e ali, diante das muralhas lúgubres da fortaleza, seus homens construíram uma torre de cerco.

Era uma coisa monstruosa, mais alta do que o pináculo de uma igreja, um andaime de três andares empoleirado em dois eixos de ferro unidos a quatro rodas gigantescas de olmo maciço. A frente e as laterais da torre foram cobertas com pranchas de carvalho para impedir que a guarnição do castelo enchesse as plataformas com setas de bestas, e agora, num frio amanhecer, os homens pregavam grossas peças de couro nessa armadura de madeira. Trabalhavam a meros quatrocentos passos do castelo, e de vez em quando um defensor disparava uma besta, mas a distância era muito grande e as setas sempre caíam bem antes. Quatro bandeiras balançavam no cume da torre, duas com a flor-de-lis francesa e duas mostrando um machado, símbolo do santo padroeiro da França, o martirizado são Dênis. As bandeiras se estendiam e se retorciam ao vento. Houvera um vendaval à noite e o vento ainda chegava forte do oeste.

—   Basta uma chuvarada e essa porcaria ficará inútil — disse o senhor de Douglas. — Eles jamais conseguirão movê-la! Vai atolar na lama.

—   Deus está do nosso lado — disse placidamente seu jovem companheiro.

—   Deus — respondeu enojado o senhor de Douglas.

—   Ele cuida de nós — disse o rapaz.

Era alto e magro, não teria mais de 20 ou 21 anos, com rosto incrivelmente bonito. Tinha cabelos claros escovados para trás, mostrando a testa alta, olhos azuis calmos e uma boca que parecia pairar constantemente à beira de um sorriso. Era da Gasconha, onde possuía um feudo que fora tomado pelos ingleses, o que o deixou sem as rendas de suas terras e quase pobre, mas Sire Roland de Verrec era famoso como o maior lutador de torneios da França. Alguns haviam afirmado que Joscelyn de Berat era melhor, mas em Auxerre ele fora derrotado três vezes por Roland, que depois atormentou o campeão brutal, Walther de Siegenthaler, com uma espada velocíssima. Em Limoges fora o único homem de pé no fim de uma violenta luta coletiva, e em Paris as mulheres haviam suspirado enquanto ele destruía dois cavaleiros endurecidos que tinham o dobro de sua idade e experiência muito maior. Roland de Verrec ganhava os rendimentos de um campeão porque era mortal.

E virgem.

Seu escudo preto tinha o símbolo da rosa branca, a rosa sem espinhos, a flor da Virgem Maria e uma demonstração orgulhosa de sua pureza. Os homens que ele derrotava com tamanha constância nas liças o achavam louco, as mulheres que o observavam pensavam que ele estava sendo desperdiçado, mas Roland de Verrec havia dedicado a vida à cavalaria, à santidade e à bondade. Era famoso pela virgindade; também era zombado por isso, mas jamais cara a cara e nunca ao alcance de sua espada veloz. Também era admirado pela pureza, até mesmo invejado, porque diziam que fora induzido a uma vida de santidade por uma visão da própria Virgem Maria. Ela lhe havia aparecido quando ele estava com apenas 14 anos, tinha-o tocado e dito que ele seria abençoado acima de todos os homens caso se mantivesse tão casto quanto ela.

—   Você irá se casar — dissera ela —, mas até lá você é meu. — E era.

Os homens podiam zombar de Roland, mas as mulheres suspiravam por ele. Uma mulher chegara ao ponto de dizer a Roland de Verrec que ele era lindo. Havia estendido a mão e tocado seu rosto.

—   Todas essas lutas e nenhuma cicatriz! — dissera, e ele recuou como se o dedo dela queimasse, depois disse que toda a beleza não passava de um reflexo da graça de Deus.

—   Se eu acreditasse em outra coisa — disse a ela —, seria tentado à vaidade.

E talvez ele sofresse dessa tentação, porque se vestia com cuidado fora do comum e sempre tinha a armadura branqueada, esfregada com areia, vinagre e arame até refletir o sol com brilho ofuscante. Mas não neste dia, porque o céu sobre Breteuil estava baixo, cinza e escuro.

—   Vai chover — resmungou o senhor de Douglas —, e esta porcaria de torre não vai a lugar algum.

—   Ela vai nos trazer a vitória — disse Roland de Verrec, parecendo ter uma confiança tranquila. — O bispo de Châlons a abençoou ontem à noite; ela não vai falhar.

—   Ela nem deveria estar aqui — vociferou Douglas. Os cavaleiros escoceses tinham sido convocados pelo rei João para se juntar a esse ataque contra Breteuil, mas os defensores do lugar não eram ingleses, e sim franceses. — Eu não vim aqui para matar franceses. Vim para matar os ingleses.

—   Eles são navarrenses — disse Roland de Verrec. — Inimigos da França, e nosso rei quer que sejam derrotados.

—   Breteuil é uma porcaria de uma espinha na cara! — protestou o senhor de Douglas. — Pelo amor de Cristo, que importância tem esse lugar? Não existe nenhuma porcaria de inglês aí dentro!

Roland sorriu.

—   Independentemente de quem esteja dentro, senhor — disse ele baixinho —, eu obedeço ao meu rei.

O rei da França, ignorando os ingleses que estavam em Calais, na Gasconha e na Bretanha, insistira em marchar contra o reino de Navarra, nos limites da Normandia. A disputa era obscura, e a campanha, um desperdício de recursos já escassos, porque Navarra não podia ameaçar a França, e, no entanto, o rei João escolhera lutar. Evidentemente era uma disputa de família, que o senhor de Douglas não entendia.

—   Deixe-os apodrecer aí enquanto marchamos contra a Inglaterra — disse. — Deveríamos estar perseguindo o garoto Eduardo, e em vez disso estamos mijando em brasa na fronteira da Normandia.

—   O rei quer Breteuil — respondeu Roland.

—   Ele não quer enfrentar os ingleses — disse o senhor de Douglas, e sabia que estava certo.

Desde que os cavaleiros escoceses haviam chegado à França, o rei vinha hesitando. João escolhia ir para o sul num dia, para o oeste no outro e ficar parado no terceiro. Agora, finalmente, havia marchado contra Navarra. Navarra! E os ingleses tomavam suas fortalezas na Gasconha e devastavam o interior outra vez. Outro exército encontrava-se reunido no litoral sul da Inglaterra, sem dúvida para desembarcar na Normandia ou na Bretanha, e o rei João estava em Breteuil! O senhor de Douglas quase chorava só de pensar nisso. Vá para o sul, insistira com o rei francês, vá para o sul e esmague o moleque Eduardo, capture o patife, pisoteie as tripas dos homens dele na lama, depois aprisione o príncipe como objeto de barganha para o rei capturado da Escócia. Em vez disso sitiavam Breteuil.

Os dois estavam de pé na plataforma superior da torre. Roland de Verrec havia se oferecido para comandar o ataque. A torre de cerco seria empurrada à frente por dezenas de homens. Alguns deles cairiam, atingidos por setas de bestas, mas outros iriam substituí-los, e por fim a torre se chocaria contra a muralha do castelo e os homens de Roland cortariam as cordas que sustentavam a ponte levadiça que protegia a frente da plataforma superior. A ponte levadiça cairia, criando uma larga passagem até as ameias de Breteuil, e então os atacantes se lançariam nela, soltando gritos de guerra, e esses primeiros homens, os homens com mais probabilidade de morrer, deveriam sustentar a muralha capturada por tempo suficiente para deixar que centenas de soldados do rei subissem pelas escadas da torre. Eles precisavam subir essas escadas, mas seriam atrapalhados pelas cotas de malha, pelas armaduras de placas, por escudos e armas. Isso demoraria, e os primeiros homens a atravessar a ponte precisavam ganhar esse tempo com a própria vida. Havia grande honra em estar entre os primeiros atacantes, honra merecida sob o risco da morte, e Roland de Verrec havia se ajoelhado diante do rei da França, implorando para receber o privilégio.

—   Por quê? — perguntara o rei, e Roland explicou que amava a França e serviria ao seu rei, e que nunca estivera em batalha, havia lutado apenas em torneios, e era hora de seus talentos de lutador serem dedicados a uma causa nobre, e tudo isso era verdade. Mas o verdadeiro motivo para Roland de Verrec desejar o comando do ataque era porque ansiava por um grande feito, uma aventura, algum desafio digno de sua pureza.

O rei, graciosamente, dera a permissão a Roland para comandar o ataque, depois concedera a mesma honra a um segundo homem, o sobrinho do senhor de Douglas, Robbie.

—   Você quer morrer — resmungara o senhor de Douglas a Robbie, na noite anterior.

—   Quero festejar no salão daquele castelo amanhã à noite — respondera Robbie.

—   Por quê? — perguntara o senhor de Douglas. — Com que objetivo?

—   Fale com ele — apelou agora o senhor de Douglas a Roland de Verrec.

Era por isso que Douglas havia ido à torre, para convencer Roland de Verrec, supostamente o cavaleiro mais idiota e cavalheiresco de toda a França, a instigar Robbie a cumprir seu dever.

—   Robbie respeita você — disse a Roland. — Ele admira você, quer ser como você, então lhe diga que é sua obrigação cristã lutar contra os ingleses e não morrer neste lugar miserável.

—   Ele fez um juramento — disse Roland de Verrec —, um juramento de não lutar contra os ingleses, e esse juramento foi feito de livre vontade e com devoção. Não posso aconselhar que o viole, senhor.

—   Dane-se o juramento! Fale com ele!

—   Não é possível um homem violar um juramento e conservar sua alma — disse Roland com calma. — E o seu sobrinho obterá grande renome lutando aqui.

—   Dane-se o renome.

—   Senhor — Roland virou-se para o escocês —, se eu pudesse convencer seu sobrinho a lutar contra os ingleses, faria isso. Sinto-me lisonjeado vendo que o senhor acha que ele me ouviria, mas, com toda a consciência cristã, não posso aconselhá-lo a violar um juramento solene. Não seria cavalheiresco.

—   E dane-se o cavalheirismo também — disse o senhor de Douglas —, danem-se Breteuil e todos vocês, desgraçados. — Ele desceu a escada e fez uma cara feia para Robbie, que esperava com os outros quarenta homens de armas que liderariam o ataque pela ponte levadiça da torre. — Você é um idiota desgraçado! — gritou com raiva.

Passou-se uma hora antes que as peles finalmente estivessem pregadas no lugar e encharcadas com água, e nesse ponto uma chuva fraca e fria tinha começado a cair, vinda do oeste. Os homens de armas entraram na torre, os mais corajosos subindo a escada até a plataforma de cima, de modo a serem os primeiros a atravessar a ponte levadiça. Robbie Douglas era um deles. Tinha se protegido com armadura de couro e malha, mas decidira não usar placas, a não ser as grevas cobrindo as canelas e um braçal no antebraço direito. O braço esquerdo estava protegido pelo escudo, pintado com o coração vermelho de Douglas.

Sua espada era velha, mas boa, com um cabo simples de madeira que escondia uma unha de Santo André, o patrono da Escócia. A espada havia pertencido a outro tio, Sir William Douglas, cavaleiro de Liddesdale, mas ele fora assassinado pelo senhor de Douglas numa disputa familiar. Depois disso Robbie fora obrigado a se ajoelhar diante dele e jurar aliança.

—   Agora você é meu — dissera o senhor de Douglas, sabendo que Robbie gostava de Sir William. — E se não for meu não é de ninguém, e se não for de ninguém você é um fora da lei, e se for um fora da lei eu posso matá-lo. Então, o que você é?

—   Seu — dissera Robbie humildemente.

Agora, enquanto se juntava a Roland de Verrec no topo da torre, imaginou se teria feito a escolha certa. Poderia ter cavalgado de volta para a amizade de Thomas de Hookton, mas fizera sua escolha, havia jurado aliança ao tio, e agora atravessaria uma ponte levadiça para a morte provável na muralha de uma fortaleza que não significava nada para ele nem para a Escócia, e representava pouco para qualquer outra pessoa. Então por que participar do ataque? Porque era seu presente à sua família, pensou. Um gesto para mostrar aos franceses a qualidade dos guerreiros escoceses. Esta era uma batalha que ele poderia travar de consciência limpa, mesmo que isso significasse sua morte.

Passava uma hora do alvorecer quando o rei da França ordenou que seus besteiros avançassem. Eram oitocentos, na maioria vindos de Gênova, mas havia alguns da Alemanha, e cada besteiro tinha um ajudante carregando um grande escudo, um pavês, atrás do qual o besteiro podia se proteger enquanto girava a manivela para retesar a besta. Os besteiros e os carregadores de escudos formavam falanges dos dois lados da torre, a qual agora tinha paus compridos enfiados na base de modo que os homens pudessem empurrar aquela coisa enorme.

Atrás da torre havia duas linhas de homens de armas, que seguiriam os primeiros atacantes subindo as escadas para inundar o topo da muralha de Breteuil, e eles estavam reunidos sob os estandartes de seus senhores. O vento continuava forte, balançando as bandeiras coloridas; havia uma variedade de leões e cruzes, corações e estrelas, listras e grifos, o baronato da França reunido para o ataque. Sacerdotes caminhavam à frente dos homens, oferecendo bênçãos, garantindo-lhes que Deus favorecia a França, que os navarrenses estavam condenados ao inferno e que Cristo ajudaria no ataque. Então apareceu um novo estandarte, azul e enfeitado com uma flor-de-lis dourada, e os homens de armas gritaram em saudação enquanto seu rei cavalgava entre as fileiras. Ele usava uma armadura de placas que fora polida até brilhar, e em volta do pescoço havia uma capa de veludo vermelho que se agitava ao vento. Seu elmo reluzia, e em volta dele havia uma coroa de ouro com diamantes. Seu cavalo, um corcel branco, levantava as patas bem alto enquanto João da França cavalgava entre os soldados, sem olhar à direita ou à esquerda. Então ele chegou às estacas compridas que esperavam os camponeses encarregados de empurrar a torre e ali virou-se. Conteve o cavalo; os homens acharam que ele diria alguma coisa, e o silêncio se espalhou no campo. Mas o rei simplesmente levantou a mão esquerda como se desse uma bênção, e os gritos recomeçaram. Alguns homens se ajoelharam, outros olhavam pasmos para o rosto longo e pálido do rei, emoldurado pelo elmo polido. João, o Bom, era como o chamavam, não porque fosse bom, mas porque gostava dos prazeres mundanos que eram prerrogativas de um rei. Não era um grande guerreiro, seu temperamento difícil era famoso, e ele era considerado indeciso, mas nesse momento os cavaleiros da França estavam prontos para morrer por ele.

—   Não faz muito sentido o sujeito estar montado — resmungou o senhor de Douglas. Estava esperando com meia dúzia de seus escoceses atrás da torre. Vestia uma túnica de couro simples, porque não tinha intenção de participar do ataque. Havia trazido sua companhia para matar ingleses, não para espanar uns poucos navarrenses. — Não é possível usar uma porcaria de um cavalo para subir muralhas de pedra.

Seus homens resmungaram concordando, depois se enrijeceram quando o rei, seguido por seus cortesãos, cavalgou até eles.

—   Ajoelhem-se, desgraçados — ordenou Douglas.

O rei João refreou o cavalo perto dele.

—   Seu sobrinho luta hoje? — perguntou.

—   Sim, majestade.

—   Somos gratos a ele — disse o rei João.

—   O senhor ficaria mais grato se nos liderasse em direção ao sul, senhor. Para matar aquele moleque do Eduardo de Gales.

O rei piscou. Douglas, o único escocês que não havia se ajoelhado, estava repreendendo publicamente o rei, mas este sorriu, para demonstrar que não ficara ofendido.

—   Iremos para o sul quando esta questão estiver resolvida — disse o rei. Ele tinha voz fina, com um tom de petulância.

—   Fico feliz com isso, senhor — respondeu ferozmente o senhor de Douglas.

—   A não ser que outra questão se intrometa — completou o rei, alterando a observação inicial. Em seguida levantou a mão num gesto de bênção vaga e foi em frente. A chuva ficou mais forte.

—   A não ser que outra questão se intrometa — repetiu irritado o senhor de Douglas. — Ele tem ingleses devastando suas terras e acha que outras questões podem se intrometer? — Cuspiu, depois se virou quando gritos de comemoração dos homens de armas anunciaram que a torre finalmente estava sendo empurrada para as altas muralhas. Trombetas soaram. Um grande estandarte com a imagem de são Dênis fora desenrolado no topo da torre. Na bandeira, o martirizado Dênis segurava a própria cabeça cortada.

A grande torre de cerco estremecia enquanto era empurrada, e Robbie precisou se segurar numa das escoras que prendiam a ponte levadiça. As estacas compridas tinham sido enfiadas na base da torre, de modo que se projetavam dos dois lados, e várias dezenas de homens faziam força contra elas, encorajados por chicotadas e tocadores de tambor que batiam num ritmo constante nos enormes instrumentos cobertos com pele de cabra, que estrondeavam feito canhões.

—   Nós devíamos ter canhões — resmungou o senhor de Douglas.

—   São caros demais. — Geoffrey de Charny, um dos maiores nobres guerreiros do rei João, viera para perto do nobre escocês. — Os canhões custam dinheiro, amigo, e pólvora também. E a França não tem dinheiro.

—   Ela é mais rica do que a Escócia.

—   Os impostos não estão sendo coletados — disse Geoffrey com desânimo. — Quem pagará esses homens? — Ele indicou os soldados que esperavam.

—   Mande-os coletar os impostos.

—   Eles ficariam com os impostos. — Geoffrey fez o sinal da cruz. — Reze para haver um pote de ouro dentro de Breteuil.

—   Não há nada além de um punhado desses malditos navarrenses. Deveríamos marchar para o sul!

—   Concordo.

—   Então por que não vamos?

—   Porque o rei não ordenou isso. — Geoffrey olhou para a torre. — Mas vai ordenar — acrescentou baixinho.

—   Vai?

—   Acho que sim. O papa está pressionando-o para a guerra, e ele sabe que não pode deixar os malditos ingleses tumultuarem metade da França de novo. Portanto, sim, ele vai.

Douglas desejou que Charny parecesse mais seguro, mas não disse mais nada e seguiu os franceses para ver a torre oscilar e chacoalhar pelo caminho. Os besteiros avançavam, acompanhando a torre, e depois de 50 metros as primeiras setas vieram dos muros do castelo. Os besteiros correram à frente e atiraram de volta. Seu trabalho era simples: manter os defensores agachados atrás das ameias enquanto a torre prosseguia chacoalhando. As setas sibilavam, batiam com barulho nas pedras e sacudiam os grandes estandartes pendurados nas ameias; uma seta voava depois da outra enquanto os besteiros disparavam, depois eles se abaixavam atrás dos paveses e giravam as grandes manivelas que retesavam as cordas. Os defensores atiravam de volta, e suas setas batiam na terra ou cravavam-se nos paveses, e logo algumas acertaram a própria torre.

Robbie ouviu-as. Viu a ponte levadiça estremecer com os golpes, mas a ponte, que agora estava erguida formando uma parede na frente da plataforma superior, era feita de carvalho grosso coberto com peles, e nenhuma seta navarrense penetrava no couro e na madeira. Simplesmente acertavam a torre em pancadas constantes, e abaixo dele a estrutura oscilava, estalava e se sacudia enquanto avançava. Era possível espiar pela borda direita da ponte levadiça, e ele viu que o castelo estava a duzentos passos de distância. Grandes estandartes pendiam na frente da muralha, muitos rasgados por setas. Os projéteis dos defensores batiam na torre, transformando a parede da frente numa almofada de alfinetes, cheia de mísseis emplumados com couro. Os tambores soavam, as trombetas conclamavam, a torre seguia rolando mais alguns metros, acompanhando o declive do terreno, e algumas setas disparadas da muralha dos dois lados cravavam-se nos camponeses que a empurravam. Outros eram trazidos para substituir os feridos ou mortos, e os homens de armas gritavam com eles e os chicoteavam. Eles faziam força contra as estacas e a grande torre avançava aos solavancos, indo mais rápido agora, tão rápido que Robbie desembainhou a espada e olhou para uma das cordas torcidas que seguravam a ponte levadiça. Havia duas cordas de cânhamo, uma de cada lado, e quando a torre estivesse suficientemente perto elas precisariam ser cortadas para que a grande ponte batesse com estrondo sobre as ameias. Agora não faltava muito, pensou ele, e beijou o punho da espada onde estava escondida a relíquia de Santo André.

—   O seu tio está com raiva de você — disse Roland de Verrec. O francês parecia absolutamente calmo enquanto a torre trovejava, seguindo lentamente, e as setas dos defensores batiam com mais força na ponte levadiça.

—   Ele está sempre com raiva. — Robbie ficava nervoso ao lado de Roland de Verrec. O jovem francês era contido demais, seguro demais da própria segurança, e Robbie sentia-se inadequado. Não se sentia nada seguro.

—   Eu disse a ele que você não poderia violar o juramento. O juramento não foi forçado, foi?

—   Não.

—   O que estava no seu coração quando você o fez?

Robbie pensou.

—   Gratidão — disse depois de um tempo.

—   Gratidão?

—   Um amigo cuidou de mim durante a peste. Eu deveria ter morrido, mas não morri. Ele salvou minha vida.

—   Deus salvou sua vida — corrigiu Roland. — E salvou-a com um objetivo especial. Invejo você. Você foi escolhido.

—   Escolhido? — perguntou Robbie, agarrando-se à escora enquanto a torre se sacudia.

—   Você esteve doente de peste, mas sobreviveu. Deus precisa de você por algum motivo. Saúdo-o. — Roland de Verrec levantou sua espada em saudação. — Invejo você — repetiu.

—   Inveja? — perguntou Robbie, surpreso.

—   Eu busco uma causa.

E então a torre parou.

Parou com uma sacudida tão forte que os homens a bordo foram lançados para o lado. Uma roda havia caído num buraco, um buraco de tamanho suficiente para prender o veículo, e nenhum esforço era capaz de levantá-la e tirá-la. Em vez disso os empurrões apenas inclinavam a torre ainda mais para a esquerda.

—   Parem! — gritou um homem. — Parem!

Os defensores gritaram, zombando. Setas atravessaram a chuva fina e se cravaram nos camponeses que vinham empurrando a torre. O sangue coloria a terra, e os homens gritavam enquanto as hastes grossas penetravam na carne e despedaçavam ossos.

Geoffrey de Charny correu à frente. Usava cota de malha e elmo, mas não carregava escudo.

—   As alavancas — gritou. — As alavancas!

Ele havia torcido para isso não acontecer, mas os franceses estavam preparados, e um grupo de homens equipados com grossos mastros de carvalho correu para a parte da torre que estava atolada, na qual foram colocados blocos de madeira semelhantes a bigornas que seriam usados como pontos de apoio, a fim de que as alavancas pudessem soerguer o lado esquerdo e permitir que a torre continuasse a ser empurrada. Outros homens traziam baldes de pedras para encher o buraco, de modo que a roda de trás pudesse passar por cima.

As setas de bestas jorravam da muralha. Dois, três homens caíram, então Geoffrey berrou para que os soldados com paveses que estivessem mais perto trouxessem os escudos e protegessem os homens das alavancas. Tudo isso demorou, e os defensores, encorajados pela torre empacada, faziam chover mais setas. Alguns navarrenses foram atingidos por setas francesas, mas apenas uns poucos, enquanto a guarnição se escondia atrás dos merlões de pedra para retesar as bestas. Geoffrey de Charny parecia estar enfeitiçado, porque não se protegia com nenhum escudo, e, ainda que as setas caíssem ao lado, nenhuma o acertou enquanto ele organizava os homens que fariam força com as grandes alavancas de carvalho para liberar a torre.

—   Agora! — gritou ele, e os homens tentaram levantar a torre monstruosa com os compridos mastros de carvalho.

E a primeira flecha incendiária voou do castelo.

Era uma seta de besta enrolada com um chumaço protegido por uma saia de couro e encharcado de piche, que deixava uma trilha de fumaça preta e oscilante enquanto a seta voava do topo da muralha e batia na parte inferior da torre. A chama tremeluziu brevemente e se apagou, mas uma dúzia de setas incendiárias veio em seguida.

—   Água! Água! — gritou Roland de Verrec.

Já havia alguns baldes de couro com água na plataforma superior, e a instabilidade da torre havia derramado boa parte, mas os homens de Roland jogaram o que restava sobre a ponte levadiça, fazendo a água cascatear pela frente da torre, encharcando as peles já molhadas. Mais e mais setas incendiárias atingiam o alvo, de modo que a frente da torre soltava fumaça em dezenas de lugares, mas ela vinha apenas das setas em chamas. Até aquele momento as peles molhadas estavam protegendo a estrutura.

—   Força! — gritou Geoffrey de Charny, e os homens empurraram de novo as alavancas para baixo, e elas se curvaram e a torre estalou. Depois uma alavanca se partiu, e meia dúzia de homens se estatelou no chão. — Tragam outro pau!

Demorou cinco minutos para outro mastro ser trazido, então os homens fizeram força para baixo outra vez e os camponeses receberam ordem de empurrar para a frente ao mesmo tempo, e alguns guerreiros correram para ajudar os camponeses. As setas das bestas vinham densas. Mais flechas incendiárias foram disparadas, dessa vez do lado direito da torre, e uma acertou por baixo da borda de uma pele e se alojou na proteção de carvalho. Ninguém viu. Ela queimou ali, com as chamas se esgueirando no espaço entre as peles e as tábuas, escondida pelo couro, e, ainda que a fumaça brotasse de baixo das peles rígidas, havia tantas outras fumaças que esta permaneceu sem ser detectada.

Então os besteiros navarrenses mudaram de tática. Alguns continuavam disparando as setas incendiárias, e outros, das fendas na muralha, miravam nos homens amontoados junto ao lado esquerdo da torre, enquanto o restante mirava as bestas para o alto, de modo que as setas chispavam em direção ao céu, pairavam ali um instante e depois mergulhavam na plataforma aberta da torre. A maioria errava. Algumas acertavam os homens que esperavam para empurrar as alavancas, mas outras caíam sobre a plataforma, e Roland, temendo que seus homens fossem mortos, ordenou que levantassem os escudos, mas com isso eles não poderiam derramar a água que havia começado a chegar em baldes de couro. Agora a torre estava se sacudindo enquanto alguns homens forçavam as alavancas laterais e outros empurravam atrás. Havia um cheiro de queimado.

—   Puxe-a para trás! — aconselhou o senhor de Douglas a Geoffrey de Charny.

Uma seta cravou-se no chão aos pés do escocês e ele a chutou, irritado. Os tambores continuavam tocando, as trombetas atropelavam as notas e os defensores gritavam com os franceses, que faziam força de novo com as alavancas e empurravam a torre, que não queria se mover. Foi então que os defensores navarrenses revelaram sua última arma.

Era um espringal, uma besta gigante, que fora montada na muralha e estava sendo retesada por quatro homens que giravam manivelas de metal. Ela atirava um quadrelo de 1 metro de comprimento e grosso como um punho de homem, e a guarnição optara por mantê-lo escondido até que a torre estivesse a apenas cem passos de distância, mas a desorganização dos franceses os convenceu a usá-lo agora. Eles puxaram de lado o grande anteparo de madeira que havia abrigado a arma e dispararam a seta de metal.

O quadrelo acertou a face da torre, sacudindo-a para trás, e tamanha era a força do arco reforçado com aço, de 3 metros de envergadura, que a grande cabeça de ferro penetrou no couro e na madeira, atravessando a frente da torre pela metade. O projétil espirrou fagulhas e empurrou uma das peles, revelando as tábuas por baixo, e três setas incendiárias acertaram a madeira nua, enquanto o espringal era laboriosamente retesado com as manivelas.

—   Puxem essa porcaria para trás! — vociferou o senhor de Douglas. Talvez a torre pudesse ser puxada para trás do buraco, em vez de passar por ele, então o buraco poderia ser preenchido. Assim a grande geringonça seria empurrada para a frente outra vez.

—   Cordas! — gritou Geoffrey de Charny. — Peguem cordas!

Agora os homens de armas olhavam em silêncio. A torre estava ligeiramente inclinada e envolta em fumaça rala, mas não era óbvio o que havia de errado, a não ser para os homens mais próximos. O rei, ainda montado em seu cavalo branco, avançou alguns metros e parou.

—   Deus está do nosso lado? — perguntou a um capelão.

—   Ele não pode estar de qualquer outro, senhor.

—   Então por que… — começou o rei, e decidiu que era melhor que a pergunta não fosse respondida.

A fumaça ia ficando mais densa do lado direito da torre, que estremeceu quando uma segunda seta do espringal a acertou. Um homem de armas se afastou das alavancas mancando com uma seta na coxa, enquanto escudeiros corriam com braçadas de cordas, mas era tarde demais.

De repente o fogo apareceu no piso central. Por um momento houve apenas um grande rolo de fumaça, depois chamas surgiram em meio ao cinza. As tábuas do lado direito estavam pegando fogo, e não havia água suficiente para apagá-lo.

—   Deus pode ser muito volúvel — disse o rei com amargura e se virou.

Um homem balançava uma bandeira para um lado e para o outro no topo da muralha, zombando da derrota francesa. Os tambores e as trombetas ficaram em silêncio. Homens gritavam na torre; outros pulavam para escapar daquele inferno.

Roland só percebeu o incêndio quando a fumaça começou a subir em espirais pelo buraco da escada.

—   Para baixo! — gritou. — Para baixo!

Os primeiros homens desceram correndo a escada, mas a bainha da espada de um deles se prendeu nos degraus e a chama irrompeu pelo buraco enquanto o guerreiro preso gritava. Ele estava sendo assado em sua cota de malha. Outro homem pulou passando por ele e quebrou a perna ao cair. Agora o homem que pegava fogo estava soluçando, e Roland correu para ajudá-lo, batendo nas chamas com as mãos nuas. Robbie não fez nada. Estava amaldiçoado, pensou. Tudo em que tocava virava cinzas. Tinha fracassado com Thomas uma vez, fracassara com seu tio agora, tinha se casado, mas a esposa morrera no primeiro parto, junto com a criança. Amaldiçoado, pensou Robbie, e continuou sem se mexer enquanto a fumaça se tornava mais densa e as chamas lambiam a plataforma embaixo dele. Então toda a torre se sacudiu quando uma terceira seta do espringal a acertou. Restavam com ele três homens na plataforma superior da torre, e eles insistiram para que Robbie tentasse escapar, mas ele não conseguia se mexer. Roland estava carregando um ferido escada abaixo, e Deus devia amar o cavaleiro virgem porque um feroz redemoinho de vento soprou as chamas e a fumaça para longe enquanto ele descia os degraus.

—   Vá — gritou um homem para Robbie, mas ele estava desanimado demais para se mexer.

—   Vão vocês — disse ele aos homens. — Vão.

Em seguida desembainhou a espada, pensando que no mínimo podia morrer com uma espada na mão, e ficou olhando os três homens que tentavam descer pela estrutura de madeira na parte de trás da torre, que era aberta, mas os três foram chamuscados pela ferocidade do fogo e pularam para salvar a vida. Um ficou incólume, com a queda amortecida pelos homens que estavam embaixo, mas os outros dois tiveram alguns ossos quebrados. Uma das quatro bandeiras sobre a torre estava pegando fogo, a flor-de-lis virando brasas reluzentes, e toda a torre desmoronou. A princípio caiu devagar, estalando, lançando fagulhas, depois a queda ficou mais rápida enquanto a grande estrutura se inclinava como um orgulhoso navio afundando. Os homens de armas correram para longe da base, e ainda assim Robbie não se mexeu. Roland havia chegado ao chão, e agora Robbie estava sozinho e desceu junto com a torre em chamas, agarrando-se à grande escora. A estrutura caiu com um ruído forte e uma explosão de fagulhas, e Robbie foi jogado para longe, rolando no meio das pequenas chamas e da fumaça densa. Dois franceses o viram e correram em meio à fumaça para puxá-lo. Ele ficara inconsciente com o impacto, mas quando jogaram água em seu rosto e tiraram sua cota de malha descobriram que, milagrosamente, não estava ferido.

—   Deus salvou o senhor — disse um dos homens que resgatara Robbie. Os navarrenses na muralha de Breteuil continuavam zombando. Uma seta bateu numa tábua da torre caída, que agora era um inferno de madeira em chamas. — Temos de nos afastar daqui — observou.

O segundo homem trouxe a espada de Robbie enquanto o primeiro o ajudava a se levantar e o guiava até as tendas francesas.

—   Roland — perguntou Robbie. — Onde está Roland?

Um último quadrelo de besta perseguiu-o, deslizando inofensivo na lama. Robbie apertou sua espada. Estava vivo, mas por quê? Sentiu vontade de chorar, mas não ousou porque era um soldado, mas soldado de quem? Era escocês, mas, se não podia lutar contra os ingleses, qual era a sua utilidade?

—   Deus o salvou, amigo — disse Roland de Verrec, que havia escapado praticamente incólume da destruição da torre. O francês estendeu a mão para firmar a de Robbie. — Você tem um destino santo.

—   Torneio! — vociferou uma segunda voz.

Ainda atordoado, Robbie viu seu tio, o senhor de Douglas, parado na fumaça da torre em chamas.

—   Torneio? — perguntou Robbie.

—   O rei vai voltar a Paris e quer um torneio! Um torneio! Os ingleses estão mijando em toda a terra dele e ele quer jogar!

—   Não entendo — murmurou Robbie.

—   Não houve um sujeito que tocou alaúde enquanto a cidade dele pegava fogo?

—   Nero — disse Robbie. — Acho.

—   Vamos participar de torneios enquanto os ingleses mijam em toda a França. Não, mijam não, enquanto eles deixam cair enormes cagalhões fedorentos por toda a terra preciosa do rei João, e ele não se importa nem um pouco? Ele quer um torneio! Portanto pegue seu cavalo, junte as bagagens e se prepare para i r. Torneio! Eu deveria ter ficado na Escócia!

Robbie olhou ao redor, procurando Roland. Não tinha certeza do motivo, mas admirava o jovem, e, se alguém podia explicar por que Deus havia infligido essa derrota, certamente era o francês. No entanto, ele estava concentrado conversando com um homem que usava um uniforme que Robbie desconhecia. A túnica do sujeito mostrava um cavalo verde empinando num campo branco, e Robbie não vira nenhum outro homem do exército do rei João usando aquele brasão. O sujeito falava baixo e sério com Roland, que pareceu fazer algumas perguntas antes de apertar a mão do estranho. Quando se virou para Robbie, o rosto do jovem francês estava cheio de felicidade. O resto do exército do rei podia estar arrasado, uma vez que agora as esperanças da França eram uma massa de madeira queimando num campo molhado, mas Roland de Verrec praticamente reluzia de júbilo.

—   Fui encarregado de uma busca aventuresca — disse. — Uma busca aventuresca!

—   Haverá um torneio em Paris — observou Robbie. — Tenho certeza de que você será necessário lá.

—   Não. Há uma donzela em perigo! Ela foi arrancada de seu marido legítimo, levada embora por um vilão, e fui encarregado de salvá-la.

Robbie simplesmente ficou olhando boquiaberto o cavaleiro virgem. Roland tinha dito essas palavras com seriedade absoluta, como se acreditasse que era de fato um cavaleiro de um daqueles romances cantados pelos trovadores.

—   O senhor será pago generosamente — disse o cavaleiro de túnica verde e branca.

—   A honra da aventura é pagamento suficiente — respondeu Roland de Verrec, porém acrescentou depressa: — Mas se o seu senhor, o conde, quiser oferecer um pequeno voto de gratidão, ficarei agradecido, claro. — Ele baixou a cabeça para Robbie. — Vamos nos encontrar de novo, e não se esqueça do que eu disse. Você foi salvo com um grande objetivo. Você é abençoado. Eu também! Uma busca aventuresca!

O senhor de Douglas ficou olhando Roland de Verrec se afastar.

—   Ele é mesmo virgem? — perguntou incrédulo.

—   Ele jura que sim — respondeu Robbie.

—   Não é de se espantar que tenha um braço direito tão forte. Mas deve ser tão maluco quanto um saco cheio de arminhos. — Douglas cuspiu.

Roland de Verrec tinha uma aventura, e Robbie estava com ciúme.

 

— Perdoai-me — disse Thomas.

Ele não pretendera falar alto. Falou com o crucifixo sobre o altar principal da pequena Igreja de São Sardos, que ficava abaixo do castelo de Castillon d’Arbizon. Estava ajoelhado. Tinha acendido seis velas, que ardiam no altar lateral de santa Agnes, onde um padre jovem e pálido contava genoveses novos e brilhantes.

—   Perdoá-lo pelo quê, Thomas? — perguntou o padre.

—   Ele sabe.

—   E você não?

—   Só reze as missas por mim, padre.

—   Por você ou pelos homens que matou?

—   Pelos homens que matei. Dei dinheiro suficiente?

—   Você me deu o suficiente para construir outra igreja. O remorso é uma coisa cara, Thomas.

Thomas deu um meio sorriso.

—   Eles eram soldados, padre, e morreram em obediência ao seu senhor. Eu lhes devo a paz na outra vida, não é?

—   O senhor feudal deles era um adúltero — disse sério o padre Levonne.

O padre Medous, seu predecessor, tinha morrido um ano antes, e o bispo de Berat havia mandado o padre Levonne como substituto. Thomas suspeitara de que o recém-chegado era um espião, porque o bispo apoiava o conde de Berat, que já fora dono de Castillon d’Arbizon e queria a cidade de volta, mas parecia que o bispo havia enviado o padre para se livrar de um incômodo.

—   Eu cutuquei a consciência do bispo — explicara Levonne a Thomas.

—   Cutucou?

—   Preguei contra o pecado, senhor, e o bispo não gostou dos meus sermões.

Desde essa conversa o padre Levonne havia aprendido a chamar Thomas pelo nome, e Thomas passara a contar com os conselhos do padre jovem e sério, e sempre que retornava de uma investida em território inimigo ia à Igreja de São Sardos, confessava e pagava missas para os homens que havia matado.

—   E se o conde de Villon era um adúltero — perguntou Thomas —, ele merecia ser castrado e morto? Padre, o senhor teria de matar metade desta cidade.

—   Só metade? — perguntou o padre Levonne, achando graça. — Falando por mim, eu preferiria que Deus determinasse o castigo de Villon, mas talvez Ele tenha escolhido você como instrumento, não é?

—   Eu errei?

—   Diga você.

—   Só reze as missas, padre.

—   E a condessa de Labrouillade — continuou Levonne —, uma adúltera descarada, está aqui no castelo.

—   O senhor quer que eu a mate?

—   Deus escolherá o destino dela — respondeu o padre gentilmente. — Mas o conde de Labrouillade pode não esperar por isso. Ele tentará reivindicá-la. A cidade prospera, Thomas. Não quero que ela seja invadida por Labrouillade ou por qualquer outro. Mande-a para longe, muito longe.

—   Labrouillade não virá aqui — disse Thomas, vingativo. — Ele não passa de um idiota gordo e tem medo de mim.

—   O conde de Berat também é idiota, e é um idiota rico e corajoso, que está procurando aliados para lutar contra você.

—   Só porque perdeu em todas as vezes que tentou.

Thomas havia capturado a cidade e o castelo do conde, que por duas vezes tentara recapturar a propriedade, e por duas vezes fora derrotado. A cidade ficava na fronteira sul do condado de Berat e era protegida por altas muralhas e pelo rio que corria ao redor de três lados do penhasco onde se situava. Acima da cidade ficava o castelo, no cume alto do penhasco. O castelo não era grande, mas era alto, forte e protegido por uma nova torre de entrada, enorme e com pequenas guaritas, que substituía a antiga entrada, destruída por um canhão. O estandarte do conde de Northampton, com o leão e as estrelas, adejava ali e no fortim, mas todo mundo sabia que era Thomas de Hookton, le Bâtard, quem tomara o castelo. Ali era a base de onde seus hellequins podiam sair cavalgando para o leste e o norte, penetrando em território inimigo.

—   O conde vai tentar de novo — alertou Levonne —, e Labrouillade pode ajudá-lo na próxima vez.

—   E não só Labrouillade — disse Thomas, soturno.

—   Você fez novos inimigos? — perguntou o padre Levonne, fingindo escárnio. — Estou pasmo.

Thomas fitou o crucifixo. A Igreja de São Sardos era pobre quando ele havia capturado a cidade, mas agora reluzia com riquezas. As estátuas dos santos estavam recém-pintadas e cheias de contas semipreciosas penduradas. A Virgem usava uma coroa de prata. Os candelabros e os vasos no altar eram de prata e folheados a ouro; as paredes reluziam com pinturas de são Sardos, santa Agnes e do juízo final. Thomas havia pagado por tudo isso, assim como pela decoração das outras duas igrejas da cidade.

—   Fiz novos inimigos — disse ele, ainda olhando o Cristo ensanguentado em sua cruz de bronze dourado. — Mas primeiro, padre, diga-me: que santo se ajoelha num pedaço de terreno cercado de neve?

—   Num pedaço de terreno cercado de neve? — perguntou o padre Levonne, achando divertido, depois viu que Thomas falava sério. — Santa Eulália, talvez?

—   Eulália? — perguntou Thomas.

—   Ela foi perseguida — disse o padre Levonne — e seus atormentadores a lançaram nua na rua para envergonhá-la, mas o Senhor Abençoado mandou uma tempestade de neve para cobrir sua nudez.

—   Não. Esse era homem, e a neve parecia evitá-lo.

—   São Venceslau, então? O rei? Dizem que a neve derretia quando ele andava.

—   Era um monge. E na pintura que vi ele estava ajoelhado na grama e existia neve ao redor, mas nenhuma em cima dele.

—   Onde fica essa pintura?

Thomas contou sobre o encontro na Salle de Herses com o papa em Avignon e sobre a antiga pintura na parede.

—   O homem não estava sozinho — explicou ele. — Havia outro monge olhando de uma cabana, e São Pedro entregava uma espada a ele.

—   Ah — disse o padre Levonne num tom estranhamente pesaroso. — A espada de Pedro.

Thomas franziu a testa diante da expressão dele.

—   Você faz com que ela pareça maligna. A espada é ruim?

O padre Levonne ignorou a pergunta.

—   Você disse que se encontrou com o Santo Padre? Como ele estava?

—   Frágil, e foi muito gentil.

—   Pediram que rezássemos pela saúde dele — comentou o padre. — Coisa que eu faço. É um bom homem.

—   Ele nos odeia, odeia os ingleses.

O padre Levonne sorriu.

—   Como eu disse, ele é um bom homem. — E gargalhou, depois pareceu sério outra vez. — Não é de surpreender — disse com cautela — que uma pintura da espada de Pedro esteja no palácio do Santo Padre. Talvez só signifique que o papado abandonou o uso da espada, não é? Uma pintura para ensinar que devemos abrir mão de nossas armas se quisermos ser santos?

Thomas balançou a cabeça.

—   Há uma história por trás disso, padre. Por que outro motivo haveria um monge observando de uma cabana? Por que o pedaço de chão sem neve? As pinturas contam histórias! — Ele apontou para as paredes da igreja. — Por que colocamos essas pinturas aqui? Para contar aos iletrados histórias que queremos que saibam.

—   Então não conheço essa história — disse o padre Levonne. — Mas ouvi falar da espada de Pedro. — Ele fez o sinal da cruz.

—   Na pintura, a ponta da lâmina da espada era grossa. Mais parecia um alfanje.

—   La Malice — murmurou o padre Levonne.

Thomas ficou em silêncio por alguns instantes.

—   Os Sete Senhores Negros a possuíram — continuou Thomas, citando o versículo que os dominicanos espalhavam por toda a cristandade —, e eles são amaldiçoados. Aquele que deve nos governar irá encontrá-la e será abençoado.

—   A espada do pescador — disse o padre Levonne. — Não é uma espada, Thomas, e sim “a” espada. A espada que são Pedro usou para desgosto de Cristo, e por causa dessa desaprovação dizem que é maldita.

—   Conte-me.

—   Já contei tudo o que sei! É só uma velha história, mas diz que la Malice carrega a maldição de Cristo na lâmina, e, se houver apenas um pouco de verdade nisso, deve ser horrivelmente poderosa. Por que outro motivo a espada teria esse nome?

—   E o cardeal Bessières está procurando por ela — disse Thomas.

Levonne olhou-o rapidamente.

—   Bessières?

—   E ele sabe que também estou procurando por ela.

—   Ah, santo Deus, você escolhe inimigos poderosos, Thomas.

Thomas se levantou.

—   Bessières é a bosta do diabo.

—   Ele é um príncipe da Igreja — disse Levonne, numa leve censura.

 

—   Ele é um príncipe dos cagões, e eu matei o irmão dele a menos de 400 metros daqui.

—   E Bessières quer vingança?

—   Ele não sabe quem matou seu irmão. Mas me conhece e agora vai me perseguir porque acha que eu sei onde la Malice está.

—   E sabe?

—   Não, mas deixei que pensasse que sei. — Thomas fez uma genuflexão diante do altar. — Pendurei uma isca na frente dele, padre. Convidei-o a me perseguir.

—   Por quê?

Thomas suspirou.

—   Meu senhor — disse, falando do conde de Northampton — quer que eu encontre la Malice. E acho que Bessières está procurando a mesma coisa. O problema é que não sei como encontrá-la, padre, mas quero estar perto de Bessières caso ele a encontre antes de mim. Manter os inimigos perto, não é um bom conselho?

—   La Malice é uma ideia, Thomas, uma ideia para inspirar os fiéis. Duvido que exista.

—   Mas deve ter existido. Por que então existiria uma pintura de são Pedro entregando a espada a um monge? Esse monge deve tê-la possuído! Preciso saber qual é o santo pintado de joelhos num terreno cercado por neve.

—   Só Deus sabe — respondeu Levonne. — Mas eu não sei. Talvez seja um santo local. Como Sardos, aqui. — Ele indicou uma pintura de são Sardos, um pastor que afastava os lobos do cordeiro de Deus. — Eu nunca tinha ouvido falar de Sardos antes de vir para cá, e duvido que alguém a 15 quilômetros daqui tenha ouvido falar dele! O mundo está cheio de santos, existem milhares! Todo povoado tem um santo que ninguém mais conhece.

—   Alguém deve saber.

—   Um homem instruído, sim.

—   Achei que você fosse instruído, padre.

O padre Levonne deu um sorriso triste.

—   Não sei quem é o seu santo, Thomas, mas sei que, se seus inimigos vierem para cá, esta cidade e seu bom povo serão destruídos. Seus inimigos podem até não capturar o castelo, mas a cidade não pode ser defendida por muito tempo.

Thomas sorriu.

—   Tenho 42 homens de armas, padre, e 73 arqueiros.

—   Não é o suficiente para sustentar a muralha da cidade.

—   E Sir Henri Courtois comanda a guarnição do castelo. Ele não será derrotado facilmente. E por que meus inimigos viriam para cá? La Malice não está aqui!

—   O cardeal não sabe disso. Você arrisca a segurança de todas essas boas pessoas — repreendeu o padre Levonne, falando dos moradores da cidade.

—   Proteger essas boas pessoas é minha tarefa e a responsabilidade de Sir Henri. — Thomas falou com mais aspereza do que pretendia. — O senhor reza e eu luto, padre. E vou procurar la Malice. Vou primeiro para o sul.

—   Para o sul? Por quê?

—   Para encontrar um homem instruído, claro, um homem que conheça todas as histórias.

—   Tenho a sensação, Thomas, de que la Malice é uma coisa maligna. Lembre-se do que Cristo disse quando Pedro desembainhou a espada.

—   “Guarde sua espada” — citou Thomas.

—   Esta é uma ordem do nosso redentor! Abandonar nossas armas. La Malice mereceu o desagrado dele, Thomas, por isso não deveria ser encontrada, mas sim destruída.

—   Destruída? — perguntou Thomas, depois se virou porque batidas de cascos e guinchos de eixos sem lubrificação soaram alto na rua. — Podemos discutir isso mais tarde, padre — disse ele, em seguida foi andando pela nave e abriu a porta, o sol de primavera ofuscando seus olhos.

As flores das pereiras estavam brancas nas árvores ao redor do poço, onde uma dúzia de mulheres observava uma desajeitada carroça de quatro rodas sendo arrastada por seis cavalos. Cerca de vinte cavaleiros a acompanhavam, todos homens de Thomas, a não ser dois estranhos. Um desses estranhos usava uma cara armadura de placas por baixo de uma túnica preta simples com uma rosa branca bordada. Seu rosto estava escondido por um elmo de torneio com uma pluma tingida de preto na crista, e seu cavalo de campanha estava coberto por um tecido listrado de preto e branco. Seguia acompanhado de um serviçal que carregava um estandarte com o mesmo símbolo da rosa branca.

—   Esses patifes estavam esperando lá na estrada. — Um arqueiro montado indicou com o polegar o estranho com o brasão da rosa branca. Ele, como o resto dos homens que vigiavam a carroça, usava o brasão dos hellequins, que mostrava um yale, uma criatura mítica parecida com um bode montês, segurando uma taça. — São oito desgraçados, mas dissemos que só dois poderiam entrar na cidade.

—   Thomas de Hookton — inquiriu o cavaleiro com armadura de placas, a voz abafada pelo grande elmo.

Thomas ignorou-o.

—   Quantos barris? — perguntou ao arqueiro, apontando para a carroça.

—   Trinta e quatro.

—   Jesus Cristo — disse Thomas, enojado. — Só 34? Precisamos de 134!

O arqueiro deu de ombros.

—   Parece que a porcaria dos escoceses violaram a trégua. O rei precisa de cada flecha que está na Inglaterra.

—   Ele vai perder a Gasconha se não mandar flechas — disse Thomas.

—   Thomas de Hookton! — O cavaleiro instigou seu cavalo para mais perto de Thomas.

Thomas continuou ignorando-o.

—   Você teve algum problema na estrada, Simon? — perguntou ao arqueiro.

—   Absolutamente nenhum.

Thomas passou pelo cavaleiro, foi até a grande carroça e subiu nela, então usou o punho da faca para tirar a tampa de um barril. Dentro havia flechas. Estavam arrumadas frouxamente, para garantir que as penas não amassassem, caso contrário as flechas não voariam direito. Thomas pegou duas e olhou ao longo das hastes de freixo.

—   Parecem bem-feitas — disse de má vontade.

—   Nós disparamos umas duas dúzias — observou Simon. — E elas voaram retas.

—   Você é Thomas de Hookton? — O cavaleiro da rosa branca tinha levado seu cavalo para perto da carroça.

—   Falarei com você quando estiver pronto — disse Thomas em francês, depois falou em inglês de novo: — Cordas, Simon?

—   Um saco.

—   Bom, mas só 34 barris?

Uma das suas preocupações constantes era o suprimento de flechas para seus temidos arqueiros. Ele podia fornecer arcos novos em Castillon d’Arbizon porque os teixos locais eram bons o bastante para produzir as hastes para a guerra, e Thomas, como meia dúzia de seus homens, era um artesão de arcos bastante eficaz, mas ninguém sabia como fazer flechas inglesas. Elas pareciam bastante simples: uma haste de freixo com ponta de aço e emplumada com penas de ganso; mas não havia freixos podados perto da cidade, e os ferreiros não conseguiam fazer as cabeças lisas, afiladas como agulhas, capazes de perfurar armaduras, e ninguém sabia como atar e colar as penas. Um bom arqueiro era capaz de disparar 15 flechas por minuto, e em qualquer escaramuça os homens de Thomas eram capazes de disparar 10 mil em dez minutos. E, ainda que algumas flechas pudessem ser reutilizadas, muitas eram destruídas na luta, de modo que Thomas era obrigado a comprar outras entre as centenas de milhares que eram transportadas de Southampton a Bordeaux e depois distribuídas para as guarnições inglesas que protegiam as terras do rei Eduardo na Gasconha. Thomas recolocou a tampa do barril.

—   Este lote deve durar uns dois meses, mas Deus sabe que vamos precisar de mais. — Ele olhou para o cavaleiro. — Quem é você?

—   Meu nome é Roland de Verrec — respondeu o sujeito.

Falava francês com sotaque gascão.

 —  Ouvi falar de você — disse Thomas, o que não era surpreendente, porque o nome de Roland de Verrec era citado com espanto reverente por toda a Europa. Não existia lutador de torneios melhor. E, claro, havia a lenda de sua virgindade, imposta por uma visão da Virgem Maria. — Quer se juntar aos hellequins? — perguntou Thomas.

—   Recebi uma missão do conde de Labrouillade… — começou Roland.

—   Aquele gordo desgraçado provavelmente vai enganar você — interrompeu Thomas. — E se quiser conversar comigo, Verrec, tire essa porcaria de penico da cabeça.

—   Meu senhor, o conde, ordena que eu… — começou Roland.

—   Eu mandei tirar essa porcaria de penico da cabeça — interrompeu Thomas de novo.

Ele havia subido na carroça para inspecionar as flechas, mas também porque dali podia olhar o sujeito de cima para baixo. Era sempre desconfortável confrontar um cavaleiro estando a pé, mas agora o desconforto era de Roland. Uns vinte homens de Thomas, curiosos com a presença dos estranhos, tinham vindo do portão aberto do castelo. Genevieve estava com eles, segurando a mão de Hugh.

—   Você verá meu rosto — disse Roland — quando aceitar meu desafio.

—   Sam? — gritou Thomas para as ameias da torre do portão. — Está vendo este idiota? — E apontou para Roland. — Prepare-se para cravar uma flecha na cabeça dele.

Sam riu, pôs uma flecha na corda e retesou o arco até a metade. Sem entender o que fora dito, Roland voltou-se para a direção em que Thomas havia gritado. Precisou inclinar a cabeça para ver a ameaça através das fendas do elmo.

—   Aquela é uma flecha de freixo inglês — disse Thomas. — Com cabeça de carvalho farpada e ponta lisa de aço, afiada como uma agulha. Vai atravessar esse seu elmo, fazer um belo buraco no seu crânio e parar no espaço oco onde seu cérebro deveria estar. Portanto dê um alvo para Sam treinar ou então tire a porcaria do elmo.

O elmo foi retirado. A primeira impressão de Thomas foi de um rosto angelical, calmo e de olhos azuis, emoldurado por cabelos claros que tinham sido comprimidos e moldados pelo forro do elmo, de modo que o topo estava grudado no crânio como um gorro, enquanto as pontas se projetavam em cachos teimosos. Era tão estranho que Thomas não resistiu a uma gargalhada. Seus homens também estavam rindo.

—   Ele parece um malabarista que vi na feira de Towcester — disse um. Sem entender por que os homens riam, Roland franziu a testa.

—   Por que zombam de mim? — perguntou indignado.

—   Eles acham que você é um malabarista — respondeu Thomas.

—   Você sabe quem eu sou — disse Roland em tom grandioso. — E estou aqui para desafiá-lo.

Thomas balançou a cabeça.

—   Não fazemos torneios aqui. Quando lutamos, lutamos de verdade.

—   Acredite, eu também. — Roland instigou o cavalo mais para perto da carroça, talvez com esperança de intimidar Thomas. — Meu senhor de Labrouillade exige que você devolva a esposa dele.

—   As escrituras nos ensinam que o cão retorna ao próprio vômito — disse Thomas. — Portanto a cadela do seu senhor é livre para voltar a ele quando quiser. Ela não precisa da sua ajuda.

—   Ela é uma mulher — argumentou Roland asperamente — e não tem liberdade além daquela determinada pela vontade de seu senhor.

Thomas apontou na direção do castelo.

—   Quem é dono daquilo? Eu ou o seu senhor?

—   Você, por enquanto.

—   Então por enquanto, Roland não-sei-de-onde, a condessa de Labrouillade é livre para fazer o que quiser, porque está dentro do meu castelo, e não do seu.

—   Podemos decidir isso lutando. Eu o desafio! — Ele tirou a luva e jogou na carroça.

Thomas sorriu.

—   E o que a luta decide?

—   Quando eu matá-lo, Thomas de Hookton, levarei a mulher.

—   E se eu matar você?

Roland sorriu.

—   Com a ajuda de Deus, irei matá-lo.

Thomas ignorou a luva que fora lançada entre dois barris.

—   Pode dizer ao seu senhor gordo, Roland, que se ele quiser a mulher dele de volta é melhor vir pegá-la pessoalmente, e não mandar seu malabarista.

—   O malabarista foi encarregado de realizar dois feitos — retrucou Roland. — Reivindicar a esposa de direito do meu senhor e castigar você pela insolência. Então, vai lutar?

—   Vestido assim? — perguntou Thomas. Ele estava usando uma calça justa e camisa, com sapatos frouxos.

—   Vou lhe dar tempo para colocar sua armadura.

—   Jeanette! — gritou Thomas para uma das garotas próximas ao poço. — Jogue seu balde no poço, chérie, depois puxe de volta!

—   Agora? — perguntou ela.

—   Agora mesmo — disse Thomas, e depois se curvou para pegar a luva, que era feita de couro fino com escamas de aço. Entregou-a a Roland. — Se você não estiver fora desta cidade quando Jeanette tirar o balde do poço, deixarei que meus arqueiros o cacem. Agora vá dizer ao seu senhor gordo para vir e pegar a esposa dele pessoalmente.

Roland olhou para Jeanette, que estava puxando a corda do balde com as duas mãos.

—   Você não tem honra, inglês — disse com orgulho —, e vou matá-lo por isso.

—   Vá enfiar a cabeça numa fossa de latrina.

—   Eu vou… — começou Roland.

—   Sam! — interrompeu Thomas. — Não mate o cavalo dele. Vai ficar para mim.

Ele havia gritado em francês, e Roland finalmente pareceu levar a ameaça a sério porque virou a montaria e, seguido por seu porta-estandarte, esporeou morro abaixo, em direção ao portão sul da cidade.

Thomas jogou uma moeda para Jeanette, depois foi para o castelo.

—   O que ele queria? — perguntou Genevieve.

—   Lutar comigo. É o novo campeão de Labrouillade.

—   Ele lutaria para recuperar Bertille?

—   É por isso que foi mandado.

O irmão Michael veio correndo pelo pátio.

—   Ele veio por causa da condessa? — perguntou a Thomas.

—   O que você tem a ver com isso, irmão?

O jovem monge ficou confuso.

—   Eu estava preocupado — disse, sem graça.

—   Bom, pode parar de se preocupar, porque amanhã vou levar você embora.

—   Embora?

—   Você deveria ir para Montpellier, não? Então partimos amanhã, na alvorada. Arrume suas coisas, se tiver alguma.

—   Mas…

—   Amanhã. Ao amanhecer.

Porque Montpellier tinha uma universidade, e Thomas precisava de um homem instruído.

 

O senhor de Douglas estava com raiva. Tinha trazido duzentos dos melhores guerreiros escoceses à França, e, em vez de lançá-los contra os ingleses, o rei da França ia fazer um torneio.

Uma porcaria de torneio! Os ingleses estavam queimando cidades para além da fronteira da Gasconha e sitiando castelos na Normandia, mas João da França queria brincar de soldado. Então o senhor de Douglas também brincaria, e, quando os franceses sugeriram uma escaramuça, 15 dos melhores cavaleiros do rei João contra 15 escoceses, Douglas chamou um dos seus guerreiros de lado.

—   Acabe com eles depressa — resmungou.

O homem, magro e de bochechas fundas, apenas assentiu. Seu nome era Sculley. Somente ele, dentre os homens de armas do senhor de Douglas, não usava elmo, e seu cabelo escuro, com riscas grisalhas, era comprido e retorcido em duas tranças em que havia inserido numerosos ossos pequenos, e segundo boatos cada osso vinha do dedo de um inglês que ele havia matado, mas ninguém ousava perguntar a Sculley sobre a veracidade dessa afirmação. Os ossos podiam facilmente ter vindo de colegas escoceses.

—   Acabe com eles de uma vez por todas — disse Douglas. Sculley sorriu, mostrando os dentes, mas sem qualquer humor.

—   É para matar?

—   Meu Deus, não, seu idiota maldito! É a porcaria de um torneio! Só acabe com eles, homem, com força e depressa.

Moedas trocavam de mãos e apostas eram feitas, e a maior parte do dinheiro era apostada nos franceses, porque eles tinham montarias soberbas, armaduras lindas, e cada um dos 15 era um renomado lutador de torneios. Eles desfilaram, trotando com seus cavalos de campanha para um lado e para o outro diante das arquibancadas, de onde o rei e sua corte assistiam, e olhavam com ar superior para os escoceses, cujos cavalos eram menores e cuja armadura era antiquada. Os franceses tinham elmos fantásticos, acolchoados e emplumados, enquanto os escoceses usavam bacinetes, meros gorros com uma aba para proteger o pescoço, e Sculley não usava elmo algum. Mantinha seu grande alfanje embainhado, preferindo uma maça.

—   Qualquer cavaleiro que grite pedindo misericórdia receberá. — Um arauto estava lendo as regras, que todo mundo conhecia, de modo que ninguém prestava atenção. — As lanças terão pontas arredondadas. As pontas das espadas não podem ser usadas. Os cavalos não devem ser mutilados.

Ele continuou arengando enquanto o rei oferecia uma bolsa a um serviçal, que correu para apostar o dinheiro no soberbo contingente francês. O senhor de Douglas apostou todo o seu dinheiro em seus homens. Tinha decidido não lutar, não porque temesse a escaramuça, mas porque não tinha nada a provar, e agora olhava seu sobrinho, Sir Robbie, e imaginou se o rapaz fora amaciado pelo tempo que passara na corte francesa. Mas pelo menos Robbie Douglas sabia lutar, e era um dos 15, com o escudo que — como todos os escudos dos escoceses — mostrava o coração vermelho de Douglas. Um dos cavaleiros franceses obviamente conhecia Robbie, porque havia cavalgado até onde os escoceses se preparavam, e os dois tiveram uma conversa concentrada.

Um cardeal gordo, que estivera fazendo corte ao rei o dia inteiro, deslizou em meio aos assentos acolchoados para ocupar o espaço vago ao lado de Douglas. A maioria dos homens evitava o escocês de rosto moreno e sério, mas o cardeal sorriu receptivamente.

—   Não fomos apresentados ainda — disse ele, afável. — Meu nome é Bessières, cardeal arcebispo de Livorno, legado papal ao rei João da França, que Deus o preserve. Gosta de amêndoas?

—   Gosto sim — disse, relutante, o senhor de Douglas.

O cardeal estendeu a mão gorducha para oferecer a tigela de amêndoas.

—   Pegue quantas quiser, senhor. Elas vêm das minhas propriedades. Disseram que o senhor apostou em seu próprio lado?

—   O que mais faria?

—   Poderia ter apreço por seu dinheiro — disse o cardeal, cheio de animação. — E suspeito que tenha. Então diga o que o senhor sabe e eu não sei.

—   Sei lutar.

—   Então deixe-me tentar outra pergunta. Se eu fosse lhe oferecer um terço dos meus ganhos, e fosse colocar uma grande quantia na luta, o senhor me aconselharia a apostar nos escoceses?

—   O senhor seria idiota se não fizesse isso.

—   Acho que ninguém alguma vez me acusou de ser idiota — disse Bessières. O cardeal chamou um serviçal e lhe deu uma pesada bolsa de moedas. — Nos escoceses — instruiu, depois esperou que o serviçal se afastasse. — O senhor não está contente — disse a Douglas. — E hoje deveria ser um dia de júbilo.

Douglas fez uma carranca para o cardeal.

—   Júbilo pelo quê?

—   Pelo sol, pelas bênçãos de Deus, por um bom vinho.

—   Com os ingleses à solta na Normandia e na Gasconha?

—   Ah, os ingleses. — Bessières se recostou na cadeira, pousando o prato de amêndoas na barriga proeminente. — O Santo Padre nos instiga a fazer a paz. Uma paz duradoura.

Ele falava sarcasticamente. Houvera uma época, não muito antes, em que Louis Bessières tinha certeza de que seria papa. Só precisaria descobrir o Santo Graal, a relíquia mais desejada de toda a cristandade, e com esse objetivo despendeu um esforço imenso e caríssimo para mandar fabricar um falso Graal, mas a taça fora arrancada de suas mãos. E com a morte do antigo papa a coroa fora para outro homem. No entanto Bessières não havia perdido a esperança. Pela graça de Deus o papa estava doente e poderia morrer a qualquer momento.

Douglas captou o tom de voz do cardeal e ficou surpreso.

—   O senhor não quer a paz?

—   Claro que quero a paz. Na verdade sou encarregado pelo Santo Padre de negociar a paz com os ingleses. Quer um pouco de amêndoas?

—   Achei que o papa queria que os ingleses fossem derrotados.

—   Ele quer.

—   Mas instiga a paz?

—   O papa não pode encorajar a guerra, por isso prega a paz e me manda negociar.

—   E o senhor… — Douglas deixou a pergunta no ar.

—   Negocio — respondeu Bessières airosamente. — E darei à França a paz que o Santo Padre quer, mas até mesmo ele sabe que o único modo de dar a paz à França é derrotando os ingleses. Portanto, sim, meu senhor, a estrada para a paz passa pela guerra. Mais amêndoas?

Uma trombeta soou, chamando os dois grupos de cavaleiros para as extremidades do terreno inclinado. Fiscais inspecionavam as lanças, certificando-se de que possuíam blocos de madeira nas pontas, para não perfurar escudos nem armaduras.

—   Haverá guerra — disse Douglas. — Mas cá estamos, jogando.

—   Sua Majestade fica nervosa com relação à Inglaterra — disse Bessières com franqueza. — Ele teme os arqueiros.

—   Arqueiros podem ser derrotados — disse Douglas com veemência.

—   Podem?

—   Podem. Há um modo.

—   Ninguém descobriu esse modo — observou o cardeal.

—   Porque são idiotas. Porque acham que brincar a cavalo é o único modo de fazer guerra. Meu pai esteve em Bannock, já ouviu falar dessa batalha?

—   Infelizmente não.

—   Nós esmagamos os malditos ingleses, fizemos picadinho deles, com arqueiros e tudo. Isso pode ser feito. Já foi feito. Deve ser feito.

O cardeal olhou os cavaleiros franceses formando uma linha de dez homens. Os cinco restantes atacariam alguns passos atrás, para aproveitar o caos criado pelo impacto dos dez.

—   O que deve ser temido — disse Bessières, indicando com uma amêndoa — é o brutamontes com escudo espalhafatoso. — Apontou para um homem grande num cavalo enorme, um guerreiro com armadura de placas brilhantes segurando um escudo que mostrava um punho vermelho fechado contra um campo de listras laranja e brancas. — O nome dele é Joscelyn de Berat, e é um idiota, mas um grande lutador. Não foi derrotado nos últimos cinco anos a não ser, claro, por Roland de Verrec, e ele, infelizmente, não está aqui.

Joscelyn de Berat era o homem com quem Robbie Douglas estivera conversando antes que os cavaleiros se retirassem para as extremidades do campo.

—   Onde fica Berat? — perguntou Douglas.

—   No sul — respondeu Bessières vagamente.

—   Como meu sobrinho o conhece?

Bessières deu de ombros.

—   Não sei, senhor.

—   Meu sobrinho esteve no sul antes da chegada da peste. Ele viajou com um inglês. — Douglas cuspiu. — Um maldito arqueiro.

O cardeal estremeceu. Conhecia a história, bem demais. O arqueiro desgraçado era Thomas de Hookton, que ele culpava pela perda do Graal e do Trono de São Pedro. O cardeal também sabia sobre Robbie Douglas, na verdade era por isso que viera ao torneio.

—   Seu sobrinho está aqui? — perguntou.

—   No cavalo malhado — respondeu Douglas, apontando na direção dos escoceses, que pareciam muito mal armados em comparação com os rivais.

—   Eu gostaria de falar com ele. Poderia fazer a gentileza de mandá-lo a mim? — Mas, antes que o senhor de Douglas pudesse responder, um arauto baixou seu estandarte e os cavaleiros esporearam.

Bessières se arrependeu imediatamente da aposta. Os cavalos dos escoceses pareciam esqueléticos em comparação com os corcéis magníficos montados pelos franceses, e os franceses cavalgavam unidos, joelho com joelho, como os cavaleiros devem fazer, enquanto os escoceses, mais lentos, se espalharam instantaneamente, deixando aberturas através das quais os oponentes poderiam passar. Tinham optado por cavalgar numa linha ampla, todos os 15 lado a lado, mas também cavalgavam mais depressa, aumentando a desorganização, ao passo que os franceses vinham lentamente, mantendo posição, apenas esporeando para colocar as montarias em meio galope quando os dois grupos estavam separados por cerca de 15 passos. O cardeal olhou para o senhor de Douglas querendo identificar se o escocês compartilhava sua apreensão, mas ele estava sorrindo ironicamente, como se soubesse o que viria.

O som dos cascos era alto, mas abafado pelos gritos da multidão. O rei, que gostava particularmente das justas, inclinou-se para a frente cheio de expectativa, e o cardeal olhou para trás, vendo os franceses da primeira linha levantarem os escudos e apontarem as lanças, preparando-se para o impacto. A multidão ficou subitamente silenciosa, prendendo o fôlego, esperando o choque de homens com armaduras e cavalos.

O cardeal não chegou a entender direito o que aconteceu em seguida, ou melhor, só entendeu quando lhe explicaram na festa onde galheteiros foram usados para representar os cavaleiros. No momento em que o choque aconteceu, ele não entendeu nada.

Os escoceses tinham parecido muito desorganizados, mas no último segundo convergiram subitamente para dentro formando uma coluna de cavaleiros, três na primeira fila, e essa coluna penetrou na linha francesa como uma agulha passando por uma folha de pergaminho. As lanças escocesas se chocaram contra os escudos, franceses foram jogados para trás contra as altas patilhas das selas, e a coluna partiu a linha, golpeando com força o segundo grupo, o segmento menor de cavaleiros franceses, que, não esperando se envolver no início da luta, não estavam preparados para o impacto. Uma lança acertou um francês na base do elmo e, mesmo sem ponta, rachou o elmo e jogou o homem para trás, por cima da sela. Um cavalo relinchou. Os escoceses das fileiras seguintes haviam descartado as lanças e desembainhado as espadas, ou então carregavam maças brutais com peso de chumbo, e agora moviam-se ao redor. A maioria estava por trás dos oponentes, que ficaram sem campo de visão para o ataque. Outro francês caiu, arrastado para fora da confusão pela bota presa no estribo.

Até agora, pelo que o cardeal podia ver, era o puro caos, mas estava claro que os escoceses venciam. Mais dois franceses caíram, e Sculley, muito em destaque porque não usava elmo, baixava a maça sobre um elmo com plumas magníficas, batendo e batendo de novo, fazendo careta de pé nos estribos, e o cavaleiro, obviamente atordoado, escorregou para o chão enquanto o escocês se virava para outro homem, desta vez girando a maça para acertar direto as fendas do elmo na altura dos olhos. O homem caiu, derrubado num instante, e os escoceses começaram a procurar novos inimigos, entrando no caminho uns dos outros, na ânsia de acabar com os cavaleiros franceses. Joscelyn de Berat estava recuando seu cavalo, lutando contra Robbie Douglas e outro homem. Joscelyn era rápido e perigoso com a espada, mas Sculley veio por trás e acertou a maça na cintura dele, pelas costas. Sabendo que não poderia enfrentar três homens, Joscelyn gritou, rendendo-se, e Robbie Douglas teve de enfiar seu cavalo entre Joscelyn e Sculley para impedir que a maça voltasse num golpe que ameaçava partir a coluna do francês.

Sculley girou para longe, viu um francês cambaleando com uma espada na mão, por isso chutou-o no rosto e levantou a maça para acabar com o sujeito, mas os arautos correram para intervir, as trombetas tocaram agudas e outro escocês impediu o golpe. A multidão estava em silêncio absoluto. Sculley rosnava, remexendo-se, balançando a cabeça de um lado para o outro em busca de alguém para golpear, mas, dos franceses, apenas Joscelyn de Berat ainda estava na sela, e havia se rendido. A luta fora rápida, brutal, e acontecera apenas de um lado, e o cardeal descobriu que estivera prendendo o fôlego.

—   Uma demonstração das proezas dos escoceses, meu senhor? — perguntou ao senhor de Douglas.

—   Imagine só se eles estivessem lutando contra os ingleses — vociferou Douglas.

—   É um pensamento animador, senhor — disse o cardeal, olhando os serviçais correrem para resgatar os cavaleiros franceses, um dos quais não se mexia. Seu elmo estava amassado e havia sangue escorrendo pelas fendas da viseira. — Quanto antes soltarmos vocês contra os ingleses, melhor — continuou Bessières.

Douglas se virou para o cardeal.

—   O rei ouve o senhor?

—   Eu o aconselho — respondeu Bessières, como se não fosse importante.

—   Então diga a ele para nos mandar ao sul.

—   Não para a Normandia?

—   O cachorrinho de Eduardo está no sul.

—   O príncipe de Gales?

—   O cachorrinho de Eduardo, e eu o quero. Quero que ele se renda a mim. Quero-o de joelhos e gemendo, pedindo misericórdia.

—   E o senhor vai conceder? — perguntou Bessières, achando divertida a paixão na voz do escocês.

—   O senhor sabe que nosso rei é prisioneiro na Inglaterra?

—   Claro.

—   E o pagamento do resgate vai nos falir. Quero o cachorrinho de Eduardo.

—   Ah! — entendeu Bessières. — Então o resgate do seu rei será o príncipe de Gales?

—   Exato.

Bessières estendeu a mão e tocou um dedo enluvado na mão do escocês.

—   Farei o que o senhor pede — prometeu calorosamente. — Mas primeiro quero que me apresente ao seu sobrinho.

—   A Robbie?

—   A Robbie — respondeu o cardeal.

Bessières e Robbie se conheceram naquela noite, enquanto os sobreviventes do torneio festejavam com a corte francesa. Comiam enguias fervidas em vinho, cordeiro com figos, aves canoras assadas, veado e uma vintena de outros pratos trazidos para um salão onde menestréis tocavam por trás de uma tela. Os guerreiros escoceses comiam juntos, agrupados numa mesa como se estivessem se protegendo dos vingativos franceses, que haviam sugerido que alguma estranha magia pagã, vinda dos morros selvagens do norte, fora usada contra seus campeões, de modo que, quando Robbie foi chamado e seu tio ordenou que ele obedecesse à convocação, ele atravessou o salão com nervosismo. Fez uma reverência ao rei, depois acompanhou o serviçal até a mesa onde estava o cardeal, com quatro tabuleiros de carne à sua frente.

—   Você se sentará ao meu lado, rapaz — comandou o cardeal. — Gosta de cotovia assada?

—   Não, Eminência.

—   Chupe a carne dos ossos e você descobrirá que o sabor é um deleite. — O cardeal pôs um pássaro minúsculo diante de Robbie. — Você lutou bem.

—   Nós lutamos como sempre.

—   Eu observei você. Em mais um instante teria derrotado o conde de Berat.

—   Duvido — disse Robbie com indelicadeza.

—   Mas então a fera do seu senhor interveio — continuou o cardeal, fitando Sculley, que estava curvado sobre a comida como se temesse que alguém fosse tirá-la. — Por que ele usa ossos no cabelo?

—   Para se lembrar dos homens que matou.

—   Algumas pessoas acham que é por feitiçaria.

—   Não é feitiçaria, Eminência, apenas habilidade mortífera.

O cardeal chupou os ossos de uma cotovia.

—   Disseram-me, Sir Robert, que o senhor se recusa a lutar contra os ingleses. É verdade?

—   Fiz um juramento.

—   A um homem que foi excomungado pela Igreja. A um homem que se casou com uma herege. A um homem que se mostrou inimigo da Madre Igreja, a Thomas de Hookton.

—   A um homem que salvou minha vida quando contraí a peste, e que pagou meu resgate para que eu fosse libertado.

O cardeal tirou uma lasca de osso dos dentes.

—   Vejo um homem que usa ossos nos cabelos e você me diz que pegou a peste e sobreviveu com a ajuda de um herege. E nesta tarde vi vocês derrotarem 15 homens bons, homens que não são vencidos com facilidade. Parece, Sir Robert, que o senhor tem ajuda sobrenatural. Será que o diabo o ajuda? Você nega que usa feitiçaria, mas as evidências sugerem o contrário, não concorda? — Ele fazia as perguntas com voz sedosa, depois parou para tomar um gole de vinho. — Talvez eu precise falar com os dominicanos, Sir Robert, e dizer que há um fedor de malignidade em sua alma. Posso ser obrigado a encorajá-los a esquentar seus fogos e a enrolar as cordas das máquinas que esticam homens até parti-los. — Ele estava sorrindo, e sua mão direita gorducha massageava o joelho esquerdo de Robbie. — Uma palavra minha, Sir Robert, e sua alma estará aos meus cuidados.

—   Sou um bom cristão — disse Robbie em desafio.

—   Então deve me provar isso.

—   Provar?

—   Percebendo que um juramento feito a um herege não tem validade no céu nem na terra. Só no inferno, Sir Robert, esse juramento tem poder. E quero que me faça um serviço. Caso recuse, direi ao rei João que o mal entrou em seu reino e pedirei aos dominicanos para explorar sua alma e queimar esse mal que está em seu corpo. A escolha é sua. Vai comer essa cotovia?

Robbie fez que não com a cabeça e ficou olhando o cardeal sugar a carne dos ossos frágeis.

—   Que serviço? — perguntou com nervosismo.

—   Um serviço para Sua Santidade, o papa — respondeu Bessières, tendo o cuidado de não dizer de qual papa estava falando. O serviço era para ele próprio, que rezava todas as noites para ser o próximo homem a usar o anel do pescador. — Já ouviu falar da Ordem da Jarreteira?

—   Já.

—   Ou da Ordem da Virgem e de São Jorge? — continuou Bessières. — Ou da Ordem da Faixa, na Espanha? Ou mesmo da Ordem da Estrela do rei João? Grupos de grandes cavaleiros, Sir Robert, jurados uns aos outros, ao seu rei e aos mais nobres objetivos da cavalaria. Fui encarregado de criar uma ordem semelhante, um grupo de cavaleiros jurados à Igreja e à glória de Cristo. — Ele fizera parecer que o papa ordenara a criação da ordem, mas tudo era ideia dele. — Um homem que servisse sob a ordem da Igreja jamais conheceria os tormentos do inferno nem as agonias do purgatório. Um homem que servisse à nossa nova ordem seria recebido no céu e levado à companhia dos santos seguido pelo coro de anjos reluzentes! Quero que você, Sir Robert, sirva na Ordem do Pescador.

Robbie ficou em silêncio. Observava o cardeal. Homens aplaudiam um malabarista que manuseava meia dúzia de varas pegando fogo ao mesmo tempo em que se equilibrava em pernas de pau, mas Robbie não notou. Estava pensando que sua alma seria liberta de suas perplexidades caso se tornasse um cavaleiro a serviço do papa.

—   Quero que os maiores cavaleiros da cristandade lutem pela glória de nosso Salvador — continuou o cardeal. — E cada homem, enquanto lutar, receberá uma pequena subvenção da Igreja, o bastante para se alimentar e manter seus auxiliares e cavalos. — O cardeal pôs três moedas de ouro na mesa. Sabia da propensão de Robbie ao jogo e a perder dinheiro. — Todos os seus pecados serão perdoados caso você se torne um Cavaleiro do Pescador e use esta faixa.

Ele tirou de uma bolsa uma faixa feita da mais fina seda branca, com bainha e franja de tecido de ouro e bordada com chaves escarlates. O papa recebia diariamente presentes que eram amontoados na sacristia de Avignon, e antes de sair da cidade Bessières havia procurado nas trouxas e descoberto uma quantidade significativa de faixas tecidas por freiras da Borgonha e mandadas ao papa, cada uma delas amorosamente bordada com as chaves de são Pedro.

—   O homem que usar esta faixa em batalha — continuou o cardeal — terá Deus ao lado, os anjos desembainharão suas espadas flamejantes para protegê-lo, e os santos implorarão ao nosso abençoado Salvador para lhe dar a vitória. O homem que usar esta faixa não perderá uma luta, mas também não poderá estar preso a um juramento feito a um herege sem Deus.

Robbie olhou faminto para a estupenda faixa, imaginando-a em volta de sua cintura ao cavalgar para a batalha.

—   O papa tem inimigos? — perguntou, imaginando contra quem teria de lutar.

—   A Igreja tem inimigos — disse Bessières asperamente — porque o diabo jamais cessa de lutar. E a Ordem do Pescador já tem uma tarefa, uma tarefa nobre, talvez a mais nobre de toda a cristandade.

—   Que tarefa? — perguntou Robbie, em voz baixa.

Como resposta o cardeal chamou um padre. Para Robbie, o padre recém-convidado, que tinha espantosos olhos verdes, parecia ser o oposto do cardeal em quase todos os sentidos. Bessières tinha encanto, enquanto o padre parecia sério e inflexível; o cardeal era gorducho, o padre era magro como uma espada; o cardeal estava envolto em seda vermelha com acabamento de arminho, e o clérigo de menor posição usava preto, mas Robbie vislumbrou um forro vermelho numa das mangas.

—   Este é o padre Marchant — apresentou o cardeal. — E ele será o capelão de sua ordem.

—   Pela graça de Deus — disse Marchant. Seus estranhos olhos verdes se voltaram para Robbie e sua boca se retorceu, como se desaprovasse o que via.

—   Diga ao meu jovem amigo escocês, padre, qual é a santa tarefa da Ordem do Pescador.

O padre Marchant tocou o crucifixo pendurado no pescoço.

—   São Pedro era pescador — disse ele —, mas foi muito mais do que isso. Foi o primeiro papa, e Deus lhe deu as chaves do céu e da terra. Mas ele também possuía uma espada, Sir Robert. Talvez o senhor se lembre da história.

—   Na verdade, não — respondeu Robbie.

—   Quando os homens maus foram prender nosso Senhor no Getsêmani, foi são Pedro quem pegou uma espada para protegê-lo. Pense nisso! — Subitamente a voz de Marchant estava passional. — O abençoado são Pedro pegou uma espada para proteger nosso redentor, nosso precioso Cristo, nosso Filho de Deus! A espada de são Pedro é a arma de Deus para proteger sua Igreja, e precisamos encontrá-la! A Igreja está em perigo e precisamos da arma de Deus. É a vontade de Deus!

—   É mesmo — disse o cardeal. — E se encontrarmos a espada, Sir Robert, o guerreiro mais digno da Ordem do Pescador terá permissão de guardá-la e de andar com ela, e de usá-la em batalha, de modo que o próprio Deus estará ao lado dele em cada luta. Esse homem será o maior cavaleiro de toda a cristandade. Assim — ele empurrou as moedas e a faixa mais para perto de Robbie —, como dizem as escrituras, Sir Robert, choisissez aujourd’hui qui vous voulez servir. — Ele citou em francês porque tinha certeza de que Robbie não entenderia latim. — Hoje, Sir Robert, você deve escolher entre o bem e o mal, entre um juramento feito a um herege e a bênção do próprio Santo Padre. — O cardeal fez o sinal da cruz. — Escolha hoje a quem vai servir, Sir Robert Douglas.

E de fato não havia escolha. Robbie estendeu a mão para a faixa e ficou com lágrimas nos olhos. Tinha encontrado sua causa e lutaria por Deus.

—   Deus o abençoe, meu filho — disse o cardeal. — Agora vá rezar. Graças a Deus você escolheu direito.

Olhou Robbie se afastar.

—   Bom — disse ao padre Marchant —, este é o primeiro dos seus cavaleiros. Amanhã você encontrará Roland de Verrec. Mas por enquanto — ele apontou para Sculley — me traga aquele animal.

E assim nasceu a Ordem do Pescador.

 

O irmão Michael estava arrasado.

—   Não quero ser um hospitalário — disse a Thomas. — Fico tonto quando vejo sangue. O sangue me dá náusea.

—   Você tem um chamado — respondeu Thomas.

—   Para ser um arqueiro? — sugeriu o irmão Michael.

Thomas gargalhou.

—   Diga isso daqui a dez anos, irmão. É o tempo que demora para aprender a usar o arco.

Era meio-dia e eles estavam descansando os cavalos. Thomas havia levado vinte homens, todos homens de armas, cujo serviço era simplesmente dar proteção contra os coredors que assombravam as estradas. Não ousara levar arqueiros. Seus arcos longos cavalgavam com os hellequins, mas quando viajava num grupo pequeno a visão dos temidos arcos ingleses provocava os inimigos, por isso todos os homens que estavam com ele falavam francês. A maioria era de gascões, mas havia dois alemães, Karyl e Wulf, que haviam ido a Castillon d’Arbizon oferecer aliança.

—   Por que vocês querem me servir? — perguntara Thomas.

—   Porque você vence — respondera Karyl simplesmente. O alemão era um lutador magro e rápido, cuja bochecha direita exibia duas cicatrizes paralelas e fundas. — Garras de um urso guerreiro — explicou ele. — Eu estava tentando salvar um cachorro. Eu gostava do cachorro, mas o urso não.

—   O cachorro morreu? — perguntou Genevieve.

—   Morreu. Mas o urso também.

Genevieve estava com Thomas. Não saía do lado dele, temendo que, se ficasse sozinha, a Igreja a encontraria de novo e tentaria queimá-la, por isso tinha insistido em acompanhá-lo. Além do mais, dissera a ele, não havia perigo. Thomas só planejava passar um ou dois dias em Montpellier procurando um erudito capaz de explicar o que era um monge ajoelhado no meio de neve, depois todos voltariam rapidamente a Castillon d’Arbizon, onde o restante de seus homens esperava.

—   Se eu não puder ser arqueiro — disse o irmão Michael —, deixe-me ser seu médico.

—   Você não terminou os estudos, irmão, é por isso que vamos a Montpellier. Para que possa ser educado.

—   Não quero ser educado — resmungou o irmão Michael. — Já tenho educação suficiente.

Thomas gargalhou. Gostava do jovem monge e sabia muito bem que Michael estava desesperado para escapar da jaula de sua ocupação, um desespero que Thomas conhecia. Thomas era filho ilegítimo de um padre, e obedientemente fora a Oxford aprender teologia para se tornar padre também, mas já havia encontrado então outro amor, o arco de teixo. O grande arco de teixo. E nenhum livro, nenhum sacramento, nenhuma palestra sobre a substância indivisível do Deus de natureza tripla poderia competir com o arco, por isso Thomas se tornara soldado. Achava que o irmão Michael seguiria pelo mesmo caminho, mas no caso dele a estrela guia era a condessa Bertille. Ela ainda estava em Castillon d’Arbizon, onde aceitava a adoração do irmão Michael como se fosse algo devido, e em troca era gentil com ele, mas não parecia perceber seu desejo. Tratava-o como um cachorrinho de estimação, e isso fazia o jovem monge ansiar ainda mais.

Galdric, que era serviçal de Thomas e mais do que capaz de cuidar de si mesmo numa luta, trouxe o cavalo de seu senhor de volta do riacho.

—   Aquelas pessoas pararam — disse.

—   Perto?

—   Muito atrás. Mas acho que estão nos seguindo.

Thomas subiu o barranco da margem do rio até a estrada. A 1 quilômetro e meio, talvez mais, um pequeno grupo de homens dava água aos cavalos.

—   É uma estrada movimentada — disse Thomas. Os homens, pelo menos ele presumiu que eram todos homens, estavam atrás deles havia dois dias, mas não faziam qualquer tentativa de alcançá-los.

—   São tropas do conde de Armagnac — disse Karyl, cheio de confiança.

—   Armagnac?

—   Isto tudo é território do conde — respondeu o alemão, movimentando um braço para abarcar a paisagem. — Seus homens patrulham as estradas para manter os bandoleiros longe. O conde não pode cobrar impostos dos mercadores se eles não tiverem o que taxar, não é?

A estrada ficou mais movimentada ainda à medida que se aproximavam de Montpellier. Thomas não queria atrair atenção entrando com um grande grupo de homens armados, por isso, na tarde seguinte, procurou um local onde a maioria de seus homens pudesse esperar enquanto ele ia à cidade. Encontraram um moinho queimado no topo de um morro, a oeste. O povoado mais perto ficava a 1 quilômetro e meio, e o vale abaixo do moinho era isolado.

—   Se não voltarmos em dois dias — disse a Karyl —, mande alguém descobrir o que aconteceu e buscar ajuda em Castillon. E fiquem quietos aqui. Não queremos que os cônsules da cidade enviem homens para investigar vocês. — Era possível ver que a cidade estava perto por causa da mancha de fumaça no céu ao sul.

—   E se as pessoas perguntarem o que estamos fazendo aqui?

—   Vocês não podem pagar os preços cobrados na cidade, por isso vão esperar aqui para se encontrar com os homens do conde de Armagnac. — O conde era o maior senhor de todo o sul da França, e ninguém ousaria mexer com homens que o servissem.

—   Não vai haver problema — disse Karyl, sério. — Prometo.

Thomas, Genevieve, Hugh e o irmão Michael continuaram cavalgando. Eram acompanhados por apenas dois homens de armas e Galdric, e chegaram a Montpellier naquela tarde. Os dois morros da cidade, as torres de suas igrejas e seus bastiões cobertos com telhas formavam grandes sombras. A cidade era cercada por uma muralha alta e clara, de onde pendiam estandartes mostrando a Virgem e seu filho. Outros estampavam um círculo, vermelho como o sol poente, contra um campo branco. Do lado de fora da muralha havia uma vastidão coberta por mato baixo, e embaixo do mato havia cinzas, enquanto em alguns lugares fogões de pedra mostravam onde houvera casas antigamente. Uma mulher, curvada e velha, com um cachecol preto sobre o cabelo, remexia perto de um dos fogões.

—   Você morava aqui? — perguntou Thomas.

Ela respondeu em occitano, uma língua que Thomas mal conhecia, mas Galdric traduziu.

—   Ela morava aqui até a chegada dos ingleses.

—   Os ingleses estiveram aqui? — Thomas pareceu surpreso.

Parecia que, no ano anterior, o príncipe de Gales chegara perto de Montpellier, muito perto, mas no último instante seu exército destruidor havia se afastado, não antes que a cidade tivesse queimado todas as construções do lado de fora para negar aos ingleses qualquer esconderijo para arqueiros ou máquinas de cerco.

—   Pergunte o que ela está procurando — ordenou Thomas.

—   Qualquer coisa. — Foi a resposta. — Porque ela perdeu tudo.

Genevieve jogou uma moeda para a mulher. Um sino estava tocando dentro da cidade, e Thomas temeu que fosse o sinal para fechar os portões, por isso instigou seus homens a prosseguir. Uma fileira de carroças carregadas com madeira, peles e barris esperava junto ao portão, mas Thomas passou por elas. Estava usando cota de malha, carregando espada, e isso o destacava como homem de privilégio. Galdric, cavalgando logo atrás, desenrolou um estandarte que exibia um falcão carregando um maço de centeio. Era o antigo estandarte de Castillon d’Arbizon, um instrumento útil quando Thomas não queria revelar sua lealdade ao conde de Northampton ou seu comando sobre os temíveis hellequins.

—   Seu objetivo aqui, senhor? — perguntou um guarda junto ao portão.

—   Estamos em peregrinação — respondeu Thomas. — Queremos rezar.

—   As espadas devem permanecer embainhadas dentro da cidade, senhor — disse o guarda respeitosamente.

—   Não viemos aqui para lutar. Só para rezar. Onde podemos encontrar estalagens?

—   Existem muitas logo ali adiante, perto da Igreja de São Pedro. A que tem a placa de Santa Luzia é a melhor.

—   Porque pertence ao seu irmão? — supôs Thomas.

—   Eu gostaria que sim, senhor, mas é do meu primo.

Thomas gargalhou, jogou uma moeda para o sujeito e passou pelo arco alto. O som dos cascos de seu cavalo ecoou nas construções, o sino tocava constantemente, e Thomas foi na direção da Igreja de São Pedro, subitamente sitiado pelo fedor fecal da cidade. Um homem com túnica vermelha e azul e carregando uma trombeta com a bandeira da Virgem pendurada passou correndo pelos cavalos.

—   Estou atrasado! — gritou ele para Thomas.

Os homens que vigiavam o portão começaram a fechá-la.

—   Vocês terão de esperar até de manhã! — gritaram para os carroceiros.

—   Espere — gritou outro guarda. Tinha visto oito cavaleiros atravessando o terreno limpo, com os cascos levantando tufos de cinzas e poeira enquanto corriam na direção da cidade. — É alguma porcaria de senhor — resmungou o guarda. Um dos cavaleiros desenrolou um estandarte para mostrar que vinham com objetivo nobre. A bandeira mostrava um cavalo verde sobre um fundo branco, mas o cavaleiro da frente tinha uma túnica preta com uma rosa branca. Todos os oito cavaleiros usavam malha e carregavam armas. — Abram caminho para eles! — gritou o guarda para os carroceiros.

—   Se vão deixar que eles entrem — implorou um carroceiro com uma carga de lenha —, por que não nos deixam entrar também?

—   Porque vocês são lixo e eles não — respondeu o guarda, depois fez uma reverência para os cavaleiros, que passaram ruidosamente pelo arco.

—   Tenho negócios aqui — explicou o líder deles aos guardas, que não exigiram maior explicação, simplesmente fecharam as grandes folhas do portão e puseram a barra nos suportes. — Obrigado — disse ele, e entrou na cidade.

Roland de Verrec tinha chegado a Montpellier.

 

— A proposição — berrou o Dr. Lucius suficientemente alto para que suas palavras fossem ouvidas pelos peixes no Mediterrâneo, 10 quilômetros ao sul de Montpellier — é que uma criança que morre sem ser batizada está, portanto, condenada aos tormentos intermináveis do inferno, aos fogos eternos da perdição e à separação de Deus para sempre com toda a dor, a agonia, o remorso, o arrependimento e a tribulação que essa perdição implica. Minha pergunta é: esta proposição é verdadeira?

Ninguém respondeu.

O Dr. Lucius, que usava um hábito branco da ordem dominicana manchado de tinta, olhou com ira para os estudantes acovardados. Tinham dito a Thomas que o dominicano era o homem mais inteligente de toda a Universidade de Montpellier, por isso ele viera com o irmão Michael para a sala de aulas do doutor, que, aos olhos de Thomas, parecia ser uma câmara construída às pressas, composta por um telhado sobre um pequeno claustro do Mosteiro de São Simeão. O tempo bom desaparecera durante a noite, substituído por nuvens baixas e furiosas, que jorravam uma chuva que penetrava entre as telhas mal-encaixadas do teto da sala de aula. O Dr. Lucius estava sentado numa plataforma atrás de um tablado, e diante dele havia três filas de bancos, onde uns vinte estudantes de rosto opaco encontravam-se sentados frouxamente, usando hábitos pretos ou azul-escuros.

O Dr. Lucius acariciou a barba. Era uma barba enorme, descendo até a corda puída enrolada na cintura.

—   Será que somos parvos? — perguntou aos alunos. — Estamos dormindo? Bebemos vinho demais ontem à noite? Alguns de vocês, que Deus ajude sua Santa Igreja, irão se tornar sacerdotes. Terão um rebanho para cuidar, e em meio a esse rebanho haverá mulheres cujos bebês morrerão antes de receber o sacramento do batismo. A mãe, lacrimosa e ansiosa pelo conforto que vocês darão, perguntará se o bebê foi recebido na companhia dos santos, e qual será a resposta? — O Dr. Lucius esperou uma reação, que não veio. — Ah, pelo amor de Deus — vociferou ele. — Um de vocês deve ter uma resposta.

—   Sim — respondeu um rapaz com um velho gorro preto de estudante, do qual o cabelo comprido e preto caía sobre o rosto.

—   Ah! O jovem Sr. Keane está acordado! — gritou o Dr. Lucius. — Ele não viajou desde a Irlanda até aqui sem propósito, graças a Deus. Ora, jovem Sr. Keane, você diria à mãe sofredora que o bebê morto está no paraíso?

—   Porque se eu disser que ele está no inferno, doutor, ela continuará chorando e gritando, e há poucas coisas piores do que uma mulher chorando. É melhor simplesmente se livrar dela dizendo à pobre criatura o que deseja ouvir.

A boca do Dr. Lucius retorceu-se, talvez achando graça.

—   Então você não se importa, jovem Sr. Keane, com a verdade da proposição, só em ser poupado do som de uma mulher chorando? Você não consideraria que é dever de um sacerdote consolar a mulher?

—   Dizendo à coitada que seu bebezinho foi para o inferno? Meu Deus, não! E, se ela fosse bonita, eu certamente gostaria de lhe oferecer consolo.

—   Sua caridade não conhece limites — disse azedamente o Dr. Lucius. — Mas vamos retornar à proposição. É ou não verdadeira? Alguém?

Um jovem pálido com gorro e hábito impecáveis pigarreou, e a maioria dos outros alunos gemeu. O jovem pálido, magro como um rato esfomeado, era obviamente o aluno mais assíduo, cujos feitos tornavam insignificantes os esforços do restante da turma.

—   Santo Agostinho nos ensina que Deus não irá remir os pecados de ninguém que não seja batizado.

—   Ergo? — perguntou o Dr. Lucius.

—   Portanto — disse o jovem com voz precisa —, a criança está condenada ao inferno porque nasceu com pecado.

—   Então temos nossa resposta? — perguntou o Dr. Lucius. — Com a autoridade do jovem Sr. Beaufort — o jovem pálido sorriu e tentou parecer humilde — e do abençoado santo Agostinho. Todos concordamos? Podemos ir adiante e discutir as virtudes cardeais?

—   Como um bebê pode ir para o inferno? — perguntou o jovem Sr. Keane, enojado. — O que ele fez para merecer isso?

—   Ele nasceu de uma mulher — respondeu sério o aluno chamado Beaufort —, e não tendo o sacramento do batismo a criança está condenada a sofrer a culpa do pecado que, portanto, ela contém.

—   O jovem senhor de Beaufort vai direto ao cerne do argumento, não é? — sugeriu o Dr. Lucius ao aluno irlandês.

—   Deus não é comandado pelos sacramentos — exclamou Thomas falando em latim, como todo mundo.

Houve silêncio, e todos se viraram para olhar o estranho sério e de rosto duro que estava encostado a uma coluna na borda do claustro.

—   E quem nós temos aqui? — perguntou o Dr. Lucius. — Imagino que tenha pagado para comparecer à minha aula, não?

—   Estou aqui para dizer que o jovem senhor de Beaufort é cheio de merda — respondeu Thomas — e não entende ou não leu os ensinamentos de Aquino, que nos garante que Deus não é atado pelos sacramentos. Deus, e não o jovem Sr. Beaufort, decidirá o destino do bebê, e são Paulo nos diz, em sua primeira carta aos Coríntios, que uma criança nascida de um casal em que um dos pais é pagão é santa para Deus. E santo Agostinho, em A Cidade de Deus, declarou que os pais da criança morta poderiam encontrar um modo de redimir sua alma.

—   Poderiam, não iriam — rugiu Beaufort.

—   Você é padre? — O Dr. Lucius ignorou Beaufort e fez a pergunta a Thomas, que estava envolto numa capa preta.

—   Sou soldado — respondeu Thomas.

Deixou a capa se abrir ligeiramente, revelando a cota de malha.

—   E você? — perguntou o Dr. Lucius ao irmão Michael, que havia recuado para um dos antigos arcos do claustro num esforço para se distanciar de Thomas. O jovem monge sentia-se infeliz por ficar até mesmo nas proximidades da universidade, e parecia mal-humorado. — Está com ele? — perguntou o Dr. Lucius, indicando Thomas.

O irmão Michael pareceu sem graça.

—   Estou procurando a Escola de Medicina — gaguejou.

—   Os consertadores de ossos e cheiradores de mijo dão suas aulas em Santo Estêvão. — O jovem Sr. Beaufort deu um risinho de desprezo enquanto o doutor olhava de volta para Thomas. — Um soldado que fala latim! — disse o dominicano com falsa admiração. — Deus seja louvado, parece que a era dos milagres retornou. Você não deveria estar matando alguém?

—   Vou cuidar disso depois que lhe fizer uma pergunta.

—   E assim que tiver pagado pela minha resposta — retrucou o Dr. Lucius. — Mas no momento — ele fez um gesto pedindo a atenção de seus alunos —, mesmo não tendo dúvida de que nosso visitante — ele balançou a mão suja de tinta na direção de Thomas — vence suas discussões no campo de batalha usando a força bruta, ele está totalmente errado nessa questão. Um bebê não batizado está condenado aos tormentos intermináveis do inferno, e o jovem Sr. Beaufort demonstrará agora por quê. Levante-se, jovem Sr. Beaufort, e nos esclareça.

O jovem erudito pôs-se de pé.

—   O homem — disse cheio de confiança — é feito à imagem de Deus, mas a mulher, não. As leis da Igreja são claras nessa distinção. Cito o Corpus Iuris Canonici para apoiar isso.

Mas antes que ele pudesse recitar a lei da Igreja soaram passos pesados no corredor aberto do lado de fora, e a voz de Beaufort foi reduzindo-se a nada quando seis homens armados e com armaduras passaram pelo arco e entraram na sala de aulas. Vestiam malhas compridas sobre as quais tinham túnicas com a imagem da Virgem sentada, e todos carregavam lanças e usavam elmos. Eram seguidos por dois homens com os mantos azuis e cor-de-rosa dos cônsules de Montpellier, os governadores da cidade, e também por um homem usando o brasão da rosa branca: Roland de Verrec.

—   Vocês nos interrompem — disse indignado o Dr. Lucius, mas em latim, de modo que nenhum dos recém-chegados entendeu.

—   É ele. — Roland de Verrec ignorou o doutor e apontou para Thomas. — Prendam-no agora!

—   Por quê?

Dessa vez o Dr. Lucius usou o francês. Não estava defendendo Thomas com a pergunta, em vez disso defendia sua dignidade, afrontada pela vinda dos homens armados, e estava tentando estabelecer sua autoridade na sala de aula.

—   Pelo sequestro da mulher legítima de outro homem — respondeu Roland de Verrec — e por crime pior, de heresia. Ele é excomungado, foi considerado fora da lei pela Igreja e é odiado pelos homens. Seu nome é Thomas de Hookton, e eu exijo que ele seja entregue agora à minha custódia. — E fez um gesto para os homens armados capturarem Thomas.

O inglês praguejou baixinho e deu dois passos para trás. Em seguida agarrou o irmão Michael, que continuava espiando boquiaberto os recém-chegados. Thomas havia deixado sua espada com Genevieve, porque proibiriam sua entrada no mosteiro se chegasse armado, mas tinha uma faca curta no cinto e sacou-a. Passou o braço esquerdo em volta do pescoço do irmão Michael e encostou a ponta da faca em sua garganta. O monge fez um som estrangulado que conteve os guardas da cidade.

—   Para trás — disse Thomas a eles — ou eu mato ele.

—   Se você se render pacificamente — disse Roland de Verrec — pedirei ao conde de Labrouillade para tratá-lo com leniência. — Ele fez uma pausa, como se esperasse que Thomas baixasse a faca. — Peguem-no — ordenou aos guardas quando a faca permaneceu junto ao pescoço do irmão Michael.

—   Vocês querem que ele seja morto? — gritou Thomas. E apertou mais o pescoço do jovem monge, provocando um gemido aterrorizado.

—   Uma recompensa para o homem que o pegar — anunciou Roland de Verrec, avançando.

O pensamento na recompensa empolgou os estudantes, que estavam olhando arregalados o súbito drama que havia animado sua aula de teologia. Eles rugiram como caçadores vendo a presa e pularam por cima dos bancos, na pressa de capturar Thomas.

—   Ele está morto! — gritou Thomas, e os estudantes pararam, temendo que o sangue do monge jorrasse subitamente. — Diga a Genevieve — sussurrou Thomas no ouvido do irmão Michael — para se juntar a Karyl. — Genevieve, proibida de entrar no mosteiro por causa de seu sexo, havia ficado na taverna com Hugh, Galdric e os dois homens de armas.

—   Deus, me salve. — O irmão Michael ofegou.

Thomas soltou seu braço esquerdo e empurrou o monge violentamente contra a confusão de estudantes, em seguida partiu para outro corredor aberto. Os perseguidores rugiram de novo, berrando. O Dr. Lucius gritou pedindo ordem, mas em vão, e Thomas ouviu os passos, viu uma porta à direita e abriu-a. Um lavatório! Três monges estavam evacuando, empoleirados em bancos de pedra alinhados nas laterais do cômodo fedorento, com uma porta em arco na outra extremidade. Os monges olharam Thomas boquiabertos, mas não ousaram se mexer, e Thomas agarrou um pela barba e jogou-o no chão, de bunda nua, suja e tudo. Fez o mesmo com o segundo e correu para a outra ponta da sala. Os perseguidores se apinharam entrando no lavatório, tropeçaram no monge caído, e Thomas passou pela porta. Não havia trinco para fechá-la. Um corredor se estendia adiante com portas dos dois lados. Seriam celas de monges? Foi correndo, xingando o velho ferimento na perna que o fazia não ser tão rápido como antigamente, mas estava conseguindo se manter à frente dos perseguidores. Passou por outra porta, que tinha o trinco do lado errado. Entrou no que parecia uma lavanderia com grandes tigelas de pedra, jarras e pilhas de hábitos. Jogou os hábitos no chão, passou por outra porta e chegou a uma pequena horta fechada. Não havia ninguém ali, e nenhuma saída a não ser a porta que tinha acabado de usar. Homens gritavam no corredor. Estavam perto, perto demais. Chovia mais forte. Um muro alto barrava um dos lados da horta, e Thomas pulou, agarrou o topo e usou seus enormes músculos de arqueiro para subir. Jogou uma perna para cima, montou no muro, levantou-se e correu pelo topo até onde o muro se juntava a um telhado inclinado. Homens irromperam na horta enquanto ele subia pelo telhado. A chuva tornava as telhas escorregadias, e ele se desequilibrou por alguns segundos antes de subir até a cumeeira.

—   Ele está ali! — gritou o irlandês Keane, entusiasmado. — Indo para a cozinha!

Thomas arrancou uma telha e jogou-a contra os alunos, depois outra. Keane praguejou maldosamente, abaixou-se, e em seguida Thomas estava na cumeeira, correndo, fora das vistas, mas podia ouvir os estudantes gritando animados, entregues ao júbilo da caçada. Perseguir um inglês herege era muito mais divertido do que discutir as quatro virtudes cardeais ou a necessidade do batismo dos bebês.

Uma seta de besta passou sibilando por Thomas e ele olhou à esquerda, vendo um homem com o uniforme da cidade recarregando a arma num andaime junto a uma igreja. Desgraça! Sentou-se na cumeeira, depois deslizou pelo telhado escorregadio até seus pés baterem com força num pequeno parapeito de pedra.

—   Ele está no refeitório! — gritou um homem. Thomas soltou outra telha e jogou-a para longe e para o alto, através da chuva e por cima do telhado, para cair em qualquer lugar. Ouviu-a batendo e o som dos cacos.

—   Para o outro lado! — gritou uma voz. — Está na sala do capítulo!

Um sino começou a tocar, depois outro, e Thomas ouviu pés pisando no telhado do outro lado da cumeeira. Olhou à esquerda e à direita, não enxergou uma fuga fácil, por isso espiou com cautela por cima do baixo parapeito de pedra. Havia um pomar, cheio de frutas.

—   Vá pela esquerda — soou uma voz em algum lugar atrás dele.

—   Não, ele foi por aqui! — Era o irlandês Keane, que parecia muito seguro de si. — Por aqui! — gritou ele. — Eu vi o desgraçado!

Thomas prestou atenção enquanto o som da perseguição ficava mais baixo. Keane estava levando-os numa direção totalmente errada, mas mesmo assim Thomas não se encontrava fora de perigo. Precisava achar um modo de descer do telhado, por isso decidiu se arriscar no pequeno pomar. Passou as pernas sobre o parapeito e sentou-se, hesitando porque o lugar era alto, depois decidiu que não tinha opção. Pulou, passando ruidosamente por flores, galhos e folhas molhadas. Pousou com força e foi jogado para a frente, sobre as mãos. Houve uma dor aguda no tornozelo direito, por isso ficou de quatro, ouvindo os perseguidores, cujas vozes iam ficando mais fracas. Fique parado, pensou. Fique parado e deixe os caçadores se afastarem. Espere.

—   Essa besta está apontada para suas costas — disse a voz muito perto, atrás dele. — Vai machucar você. Muito.

 

Tinha sido um golpe de gênio, pensou o padre Marchant, escolher a Abadia de São Dênis como o local onde a Ordem do Pescador teria sua vigília e receberia sua consagração solene. Ali, sob as altíssimas abóbadas do teto, sob a luz da tarde que reluzia rica em poeira através da glória dos vitrais e diante de um altar coberto de vasos de ouro e prata lustrosa, os Cavaleiros do Pescador se ajoelhavam para ser abençoados. Um coro cantava, a melodia parecia triste mas inspiradora enquanto as vozes masculinas subiam e desciam na grande abadia onde os reis da França descansavam frios em suas tumbas e a auriflama esperava no altar. A auriflama era a bandeira de guerra da França, a grande flâmula de seda vermelha que tremulava sobre o rei quando ele ia para a batalha. Era sagrada.

—   É nova — rugiu Arnould d’Audrehem, um marechal da França, para seu companheiro, o senhor de Douglas. — Os malditos ingleses capturaram a última em Crécy. Provavelmente estão limpando a bunda com ela agora mesmo.

Douglas resmungou. Estava olhando seu sobrinho ajoelhado com outros quatro homens diante do altar, onde o padre Marchant, resplandecente em mantos carmesins e brancos, rezava a missa.

—   Essa porcaria de Ordem do Pescador — disse Douglas com sarcasmo.

—   Uma tremenda bobagem, concordo — disse d’Audrehem —, mas é uma bobagem que pode convencer o rei a marchar para o sul. É isso que você quer, não é?

—   Vim aqui para lutar contra os ingleses. Quero marchar para o sul e acabar com aqueles desgraçados.

—   O rei está nervoso, e procura um sinal. Talvez esses Cavaleiros do Pescador o convençam, não acha?

—   Ele está nervoso?

—   Por causa das flechas inglesas.

—   Eu já disse, elas podem ser derrotadas.

—   Lutando a pé?

D’Audrehem parecia cético. Tinha 50 e poucos anos, era antigo na guerra, um homem duro, com cabelos grisalhos curtos e o maxilar entortado pelo golpe de uma maça. Conhecia Douglas havia muito tempo, desde quando, na juventude, fizera campanha na Escócia. Ele ainda estremecia ao se lembrar daquela terra fria e distante, ao pensar na comida, nos castelos rudes e sem conforto, nos pântanos, nos penhascos, nas névoas e nas charnecas, mas, ainda que não gostasse do país, tinha admiração por seu povo. Os escoceses, dissera ao rei João, eram os melhores guerreiros da cristandade.

—   Se é que são de fato cristãos, senhor.

—   São pagãos? — perguntara o rei, ansioso.

—   Não, senhor, só que vivem nas extremidades do mundo e lutam como demônios para não cair de lá.

E agora duzentos daqueles demônios estavam ali na França, desesperados por uma chance de lutar contra o velho inimigo.

—   Deveríamos retornar à Escócia — resmungou Douglas a d’Audrehem. — Ouvi dizer que a trégua foi violada. Podemos matar ingleses lá.

—   O rei Eduardo recapturou Berwick — disse calmamente d’Audrehem. — A guerra terminou, os ingleses venceram. A trégua foi reinstalada.

—   Maldito Eduardo.

—   E você acha que os arqueiros podem ser vencidos por homens a pé?

—   A pé — disse o senhor de Douglas. — Vocês podem lançar alguns homens montados contra os desgraçados, mas ponham boas armaduras nos cavalos. Não são os arqueiros, são os cavalos! Aquelas malditas flechas não furam armaduras, pelo menos armaduras boas, mas fazem o diabo com os cavalos. Deixam os animais malucos. Com isso os cavaleiros são jogados no chão, pisoteados, os cavalos ficam enlouquecidos de dor, e tudo porque os arqueiros miram nos cavalos. As flechas transformam uma carga de cavalaria numa capela mortuária, por isso não lhes deem cavalos para matar. — Esse fora um longo discurso para o geralmente taciturno senhor de Douglas.

—   O que você diz faz sentido — admitiu d’Audrehem. — Eu não estive em Crécy, mas ouvi dizer que os cavalos sofreram.

—   Mas homens a pé podem carregar escudos ou usar armadura pesada. Podem chegar perto dos desgraçados e matá-los. É assim que é feito.

—   Foi assim que o seu rei lutou em… Onde foi? Durham?

—   Ele escolheu o terreno errado para lutar — disse Douglas —, de modo que agora o pobre coitado é prisioneiro em Londres, e não podemos pagar o resgate.

—   E é por isso que você quer o príncipe de Gales?

—   Quero o maldito garoto de joelhos, mijando-se de medo, lambendo a bosta de cavalo das minhas botas e implorando que eu seja gentil. — Douglas soltou uma gargalhada curta que ecoou na grande abadia. — E, quando eu o tiver, vou trocá-lo pelo meu rei.

—   Ele tem uma reputação — disse d’Audrehem em tom ameno.

—   De quê? Jogo? Mulheres? Luxo? Pelo amor de Deus, ele é um cachorrinho.

—   Com 26 anos? Um cachorrinho?

—   Um cachorrinho — insistiu Douglas. — E podemos prendê-lo numa jaula.

—   Ou Lancaster.

—   Dane-se Lancaster! — Douglas cuspiu.

Henry, duque de Lancaster, tinha comandado um exército inglês partindo da Bretanha e estava devastando o Maine e o Anjou. O rei João havia pensado em comandar um exército contra ele, deixando seu filho mais velho para assediar o príncipe de Gales no sul, e era isso que Douglas temia. Lancaster não era idiota. Diante de um exército grande provavelmente recuaria para as grandes fortalezas da Bretanha, mas o príncipe Eduardo de Gales era jovem e tinha cabeça dura. Havia sobrevivido ao verão anterior, comandando seu exército destruidor até o Mediterrâneo e de volta à Gasconha sem encontrar uma oposição real, e isso certamente o havia encorajado para a campanha que tinha acabado de começar. Douglas tinha certeza de que o príncipe marcharia até bem longe de suas bases seguras na Gasconha, por isso poderia ser atraído para uma armadilha e destroçado. O príncipe inglês era irresponsável demais, gostava demais de suas prostitutas e seu ouro, era viciado demais nos luxos do privilégio. E seu resgate seria gigantesco.

—   Deveríamos ir para o sul — disse Douglas — e não ficar perdendo tempo com essa história de pescadores.

—   Se você quer ir para o sul — disse d’Audrehem —, dê toda a ajuda possível à Ordem do Pescador. O rei não nos ouve! Mas ouve o cardeal. O cardeal pode convencê-lo, e ele quer ir para o sul. Portanto, faça o que o cardeal quiser.

—   Eu fiz! Deixei que pegasse Sculley. Pelo amor de Deus, Sculley não é um homem, é um animal. Tem força de touro, garras de urso, dentes de lobo e colhões de bode. Ele me aterroriza, e Deus sabe o que fará com os ingleses. Mas o que, em nome de Deus, Bessières quer com ele?

—   Falaram de uma relíquia — respondeu d’Audrehem. — E ele acredita que a relíquia irá lhe dar o papado. E o papado lhe dará poder. E se ele se tornar papa, meu amigo, é melhor tê-lo do seu lado do que contra você.

—   Mas tornar Sculley um cavaleiro, santo Deus todo-poderoso! — Douglas gargalhou.

No entanto Sculley estava ali, nos degraus do altar-mor, ajoelhado entre Robbie e um cavaleiro chamado Guiscard de Chauvigny, um homem cujas terras tinham sido perdidas para os ingleses na Bretanha. Chauvigny, como os outros homens, era famoso por seus feitos em torneios por toda a Europa. Só faltava Roland de Verrec, e o padre Marchant havia mandado homens por toda a França para encontrá-lo. Esses eram os melhores lutadores que o cardeal podia recrutar, os maiores guerreiros, homens que causavam medo nos oponentes. Agora eles matariam em nome de Cristo, ou pelo menos do cardeal Bessières. A última luz do sol foi sumindo, escurecendo os vitrais. Velas reluziam e tremiam nos muitos altares da abadia, onde padres murmuravam orações pelos mortos.

—   Vocês foram escolhidos — disse o padre Marchant aos homens ajoelhados com armaduras diante do altar. — Foram escolhidos como guerreiros de são Pedro, Cavaleiros do Pescador. Sua tarefa é grandiosa, e sua recompensa será celestial. Seus pecados estão perdoados, vocês estão livres de todos os juramentos terrenos, têm concedido o poder dos anjos para derrotar seus inimigos. Sairão daqui como homens novos, ligados uns aos outros pela lealdade e unidos a Deus por seu juramento sagrado. Vocês são os escolhidos Dele, farão Sua vontade e um dia serão recebidos por Ele no paraíso.

Robbie Douglas sentiu um jorro de puro júbilo. Durante muito tempo havia procurado uma causa. Pensava que a tinha encontrado na companhia de mulheres, na amizade de outros guerreiros, mas sabia que era um pecador, e esse conhecimento o fazia sofrer. Jogava e traía as promessas. Era um lutador temido nos torneios da Europa, mas se sentia fraco. Sabia que seu tio o desprezava; agora, no entanto, diante do altar reluzente e sob a voz séria do padre Marchant, tinha uma tarefa dada pela Igreja e a promessa de uma recompensa no céu. Sentiu a alma se enlevar diante da solenidade do momento e jurou a si mesmo que serviria a essa ordem com todo o coração e toda a força.

—   Fiquem e rezem — disse o padre Marchant aos homens. — Porque amanhã partiremos em nossa missão.

—   Graças a Deus — respondeu Robbie.

E Sculley soltou um peido. Um barulho que ecoou nas paredes da abadia e pareceu se demorar.

—   Meu Deus — disse Sculley. — Esse foi dos molhados.

A Ordem do Pescador estava consagrada e iria à guerra.

 

— O segredo — disse Thomas — é colocar uma seta no entalhe.

—   Uma seta?

—   Um quadrelo. Uma flecha.

—   Ah! — disse a mulher. — Eu sabia que tinha esquecido alguma coisa. Isso acontece quando a gente fica velha. A gente esquece as coisas. Meu marido me mostrou como usar isso. — Ela pôs a besta num pequeno banco de madeira entre duas laranjeiras. — Nunca atirei. Mas ficava tentada a atirar nele. Você está fugindo?

—   Estou.

—   Vamos nos molhar. Venha para dentro.

A mulher era velha e encurvada, uma coisa minúscula, que mal chegava à cintura de Thomas. Seu rosto era astuto, enrugado e moreno. Usava hábito de freira, mas por cima havia uma capa rica, de lã carmesim com acabamento de pele branca.

—   Onde estou? — perguntou Thomas.

—   Você pulou num convento. O Convento de Santa Dorcas. Acho que eu deveria lhe dar as boas-vindas, portanto, bem-vindo.

—   Santa Dorcas?

—   Ela era cheia de boas obras, pelo que me dizem, por isso acho que devia ser terrivelmente chata. — A velha passou por um portal baixo, e, seguindo-a, Thomas pegou a besta. Era uma linda arma, com cabo de nogueira escura incrustada de prata. — Era do meu marido — disse a mulher — e tenho tão pouca coisa dele que guardo isso como lembrança. Não que eu queira de fato me lembrar. Era um homem especialmente mau, como o filho.

—   O filho? — perguntou Thomas, pondo a besta numa mesa.

—   Meu filho. O conde de Malbuisson. Eu sou a condessa viúva do mesmo local.

—   Senhora — disse Thomas, fazendo uma reverência.

—   Ora essa! Os bons modos não morreram! — exclamou a condessa, parecendo feliz, depois se sentou numa cadeira acolchoada e deu um tapinha no colo.

Por um instante Thomas pensou que ela queria que ele se sentasse ali, mas então, para seu alívio, um gato cinza veio de trás de um baú e pulou nos joelhos dela. A mulher fez um gesto sugerindo que Thomas podia se sentar onde quisesse, mas ele permaneceu de pé. O cômodo era pequeno, apenas quatro ou cinco passos em qualquer direção, mas estava cheio de móveis que pareciam pertencer a um grande salão. Havia uma mesa coberta por tapeçaria, dois grandes baús, um banco e três cadeiras. Quatro enormes candelabros de prata ficavam sobre a mesa junto com algumas tigelas, pratos e um conjunto de baús ornamentados, e nas paredes caiadas havia um crucifixo e três painéis de couro, um pintado com uma cena de caçada, outro com um homem arando a terra e o terceiro com um pastor e seu rebanho. Uma tapeçaria mostrando dois unicórnios num roseiral pendia sobre um pequeno arco, presumivelmente escondendo o quarto da condessa.

—   E você quem é? — perguntou ela.

—   Meu nome é Thomas.

—   Thomas? Isso é inglês? Ou normando? Seu sotaque parece inglês.

—   Sou inglês, mas meu pai era francês.

—   Sempre gostei dos cães mestiços. Por que está fugindo?

—   É uma história muito longa.

—   Gosto de histórias longas. Fui trancada aqui porque caso contrário estaria gastando o dinheiro que minha nora prefere esbanjar, por isso cá estou, sem nada além de freiras para me fazer companhia. São boas mulheres — ela fez uma pausa — no geral, mas muito entediantes. Você vai encontrar vinho na mesa. Não é muito bom, mas é melhor do que nada. Gosto do meu misturado com água, que está na jarra espanhola. Então, quem está perseguindo você?

—   Todo mundo.

—   Você deve ser um homem muito cruel! Que esplêndido! O que você fez?

—   Sou acusado de heresia e de ter sequestrado a esposa de outro homem.

—   Que coisa! Poderia fazer a gentileza de me dar aquela manta? A escura? Raramente fica frio aqui, mas hoje está nitidamente gelado. Você é herege?

—   Não.

—   Alguém deve achar que é! O que você fez? Negou a Trindade?

—   Incomodei um cardeal.

—   Não é uma coisa sábia. Qual?

—   Bessières.

—   Ah, aquele homem é horrendo! Um porco! Mas um porco perigoso. — Ela fez uma pausa, pensando. Havia fracas vozes de mulheres do outro lado da porta interna. — Nós ouvimos coisas no convento — prosseguiu a condessa. — Notícias do mundo. Bessières não estava procurando o Santo Graal?

—   Estava. Não achou.

—   Ora, claro que não. Duvido que ele exista!

—   Provavelmente não — mentiu Thomas. Ele sabia que o Graal existia porque o havia encontrado e jogado no oceano, onde não poderia fazer mal. E a espada que ele procurava? Será que deveria escondê-la também?

—   E de quem era a esposa que você roubou?

—   Do conde de Labrouillade.

A condessa bateu palmas com as mãos finas.

—   Ah, gosto de você cada vez mais! Muito bem! Muito bem! Labrouillade é uma criatura vil! Sempre senti pena daquela jovem, Bertille. E é uma coisinha linda! Não posso imaginá-la no leito nupcial, ou melhor, posso! Que coisa horrível. Seria como ser fornicada por um saco de gordura rançosa grunhindo. Ela não fugiu com o jovem Villon?

—   Fugiu. Eu peguei-a de volta, depois a tirei dele de novo.

—   Você faz com que soe muito complicado, portanto terá de começar do início. — A condessa parou subitamente, inclinou-se para a frente na cadeira e sibilou entre os dentes. O sibilo terminou num gemido.

—   A senhora não está bem — disse Thomas.

—   Estou morrendo. Poderíamos pensar que todos os doutores desta cidade conseguiriam fazer alguma coisa, mas não conseguem. Bom, um deles quer me abrir, mas não vou deixar! Por isso eles cheiram minha água e dizem que devo rezar. Rezar! Bom, eu rezo.

—   Não existe remédio?

—   Não para ter vivido 82 anos, meu caro, isso é incurável. — Ela estava se balançando para trás e para a frente na cadeira, apertando a manta contra os seios. Respirava fundo, e, aos poucos, pareceu sentir menos dor. — Há um pouco de vinho de mandrágora numa garrafa verde, ali, na mesa. As freiras da enfermaria ferveram para mim, elas são muito gentis. Ele alivia a dor, mas deixa minha mente muito turva. Poderia me servir uma taça? Sem misturar água, meu caro. Depois pode me contar sua história.

Thomas lhe deu o remédio e depois contou parte da história, como fora contratado para derrotar Villon e como Labrouillade havia tentado enganá-lo.

—   Então Bertille está na sua fortaleza? — perguntou a condessa. — Porque sua esposa gosta dela?

—   É.

—   Ela tem filhos?

—   Bertille? Nenhum.

—   Isso é uma bênção. Se tivesse, o desgraçado do Labrouillade iria usá-los para atraí-la de volta. Em vez disso você pode simplesmente matar o conde e torná-la viúva! É uma solução excelente. As viúvas têm muito mais opções.

—   É por isso que a senhora está aqui?

Ela deu de ombros.

—   É um refúgio, acho. Meu filho não gosta de mim, a esposa dele me odeia, e eu estava velha demais para encontrar um novo marido. Portanto aqui estou, só eu e Nicholas. — Ela acariciou o gato. — Então Labrouillade quer você morto, mas ele não está aqui em Montpellier, está? Então quem estava perseguindo você?

—   Labrouillade contratou um homem para lutar comigo. Ele começou a perseguição e todos os estudantes se juntaram.

—   Quem Labrouillade contratou?

—   Ele se chama Roland de Verrec.

—   Ah, que coisa! — A condessa pareceu achar graça naquilo. — O jovem Roland? Conheci a avó dele muito bem, coitada. Ouvi dizer que ele é um lutador maravilhoso, mas que, infelizmente, não tem cérebro.

—   Não tem cérebro?

—   Foi apodrecido por romances, meu caro. Ele lê todas aquelas histórias ridículas sobre valor cavalheiresco e, não tendo cérebro, acredita nelas. Culpo a mãe dele; é uma criatura enérgica, toda feita de orações e despeito, e ele, coitadinho, acredita em tudo que ela diz. Ela lhe diz que o cavalheirismo existe, e suponho que exista, mas jamais no marido dela, que era um bode. Não era como o filho! O cavaleiro virgem! — Ela deu um risinho. — Até que ponto um jovem pode ser idiota? E ele é muito idiota. Ouviu dizer que a Virgem Maria apareceu para ele?

—   Todo mundo ouviu isso.

—   Ele era só um garoto bobo, e acho que a mãe o embebedou! Tenho certeza de que a Virgem Maria tem coisas melhores para fazer do que estragar a vida de um rapaz. Nossa, coitado! Agora o jovem Roland sonha em ser cavaleiro da Távola Redonda do seu rei Artur. Acho que você terá de matá-lo.

—   Terei?

—   É melhor! Ou então ele irá considerar que você é a grande busca aventuresca da vida dele e irá persegui-lo até os confins da terra.

—   Ele me perseguiu até aqui — disse Thomas, pesaroso.

—   Mas o que, afinal, você está fazendo em Montpellier?

—   Queria consultar um erudito.

—   Aqui existem muitos — disse ela sem dar importância. — E são um bando bastante diversificado. Passam o tempo debatendo uns com os outros por causa das coisas mais idiotas, mas talvez seja isso que os eruditos façam mesmo. Posso perguntar por que você quer consultar um?

—   Estou procurando um santo.

—   Isso está muito em falta! Que tipo de santo?

—   Foi uma pintura que eu vi — disse Thomas, e descreveu o monge ajoelhado na grama rodeada por neve densa. — Há uma história por trás disso, mas ninguém parece saber, e ninguém consegue me dizer quem ele é.

—   Um santo congelado, pelo visto, mas por que você precisa saber?

Thomas hesitou.

—   Meu senhor — disse finalmente — me encarregou de encontrar uma relíquia, e acho que esse santo tem alguma coisa a ver com ela.

—   Você é tão mau quanto Roland! Está numa busca aventuresca! — Ela deu um risinho. — Há um livro em algum lugar naquela mesa, meu caro. Pegue-o para mim.

Antes que Thomas pudesse encontrar o livro soaram vozes de mulheres do lado de fora, perto, depois houve uma batida tímida à porta.

—   O que vocês querem?

—   A senhora está sozinha?

—   Tenho um homem aqui — gritou a condessa. — Um rapaz muito viril. Você estava certa, irmã Véronique, Deus realmente atende às nossas preces.

A porta foi empurrada, mas a condessa a havia trancado.

—   Senhora? — gritou de novo a irmã Véronique.

—   Não seja boba, irmã — disse a condessa. — Estou falando alto, só isso.

—   Muito bem, senhora.

—   Traga-me o livro — disse a condessa, baixando ligeiramente a voz. Era um volume pequeno, não maior do que a mão de Thomas. A condessa desamarrou o laço e abriu a capa de couro macio. — Pertenceu à minha sogra — disse —, e ela era uma mulher querida! Só Deus sabe como ela deu à luz um monstro como Henri. Acho que as estrelas estavam mal-alinhadas quando ela o concebeu, ou então Saturno estava ascendente. Nenhuma criança concebida quando Saturno está em ascensão dá em coisa boa. Os homens jamais se importam com detalhes assim, mas deveriam. É bem bonito, não é? — Ela passou o livro a Thomas.

Era um saltério. O pai de Thomas tivera um, mas não tão ricamente decorado como aquele, que intercalava as palavras dos sete salmos penitenciais e ilustrações lindamente pintadas, com retoques de ouro brilhante. As letras eram bem grandes, de modo que apenas algumas palavras eram escritas em cada página.

—   Minha sogra não enxergava bem — explicou a condessa quando Thomas observou o tamanho das palavras —, por isso os monges fizeram as letras grandes. Foi gentileza deles.

A maioria das pinturas, viu Thomas, era de santos. Havia Radegonde com sua coroa, pintada entre uma pilha de pedras enquanto, atrás dela, uma grande igreja era construída. Thomas virou a página rígida e viu uma imagem horrenda de são Leodegário sendo cegado, com um soldado furando o olho do padre com uma sovela.

—   Não é horrendo? — A condessa estava inclinada para ver as imagens. — Arrancaram a língua dele também. Henri sempre ameaçou arrancar a minha, mas nunca fez isso. Acho que eu deveria ser grata. Esse é Clémentin.

—   Sendo martirizado?

—   Ah, de fato, ser estripado é o caminho certo para a santidade, coitadinho. — Em seguida havia são Remígio batizando um homem nu num enorme caldeirão. — Esse era Clóvis sendo batizado — explicou a condessa. — Ele não foi o primeiro rei da França?

—   Acho que sim.

—   Creio que deveríamos agradecer então porque ele virou cristão — disse a condessa, depois se inclinou para virar uma página, revelando são Cristóvão carregando o menino Jesus. A matança dos inocentes era pintada ao fundo, mas o santo barbudo havia levado o bebê Jesus para longe do campo atulhado com dezenas de crianças mortas e agonizantes, cobertas de sangue. — São Cristóvão parece prestes a largar o bebê, não é? Sempre acho que Jesus devia ter acabado de molhá-lo, ou algo assim. Os homens não têm o menor jeito com bebês. Ah, coitadinha. — Esse último comentário foi porque santa Apolônia era mostrada sendo serrada ao meio por dois soldados. Sua barriga estava aberta, com sangue escorrendo pela página, enquanto ela olhava e orava para anjos que espiavam por trás de uma nuvem. — Sempre me pergunto por que os anjos não descem para salvá-la! Deve ser muito desagradável ser serrada ao meio, mas eles simplesmente ficam nas nuvens sem fazer nada! Não é muito angelical. E esse homem é um idiota! — Thomas havia virado uma página que mostrava são Maurício ajoelhado entre os restos de sua legião. Maurício havia encorajado seus homens a ser martirizados em vez de atacar uma cidade cristã, e seus colegas romanos haviam cedido ao seu desejo devoto. O pintor mostrava uma enormidade de corpos partidos e ensanguentados espalhados num campo enquanto os matadores avançavam sobre o santo ajoelhado. — Por que ele não lutou? — perguntou a condessa. — Dizem que ele tinha seis mil soldados, mas simplesmente os encorajou a ser trucidados como cordeiros. Às vezes acho que é preciso ser extremamente imbecil para ser um santo.

Thomas virou a última página e ficou paralisado.

Porque ali estava: o monge na neve.

A condessa sorriu.

—   Está vendo? Você não precisava de um erudito, só de uma velha senhora.

A imagem era diferente da pintura em Avignon. No livro o monge não estava ajoelhado numa parte do terreno sem neve, e sim deitado, encolhido, dormindo. Não havia são Pedro, mas havia uma casinha do lado direito, e um segundo monge estava espiando por uma janela. O monge adormecido, que tinha o halo de santo, estava sobre a grama, mas o resto da paisagem, como o teto da cabana, estava coberto de neve. Era noite e as estrelas estavam pintadas contra um céu azul-escuro, e um único anjo espiava entre essas estrelas. Na borda florida da página estava o nome do santo.

—   São Juniano — disse Thomas. — Nunca ouvi falar dele.

—   Duvido que muitas pessoas tenham ouvido.

—   Juniano — repetiu ele.

—   Era filho de um nobre — disse a condessa — e deve ter sido muito devoto, porque percorreu um longo caminho para estudar com santo Armando, mas chegou à noite e Armando havia fechado a porta. Assim, Juniano bateu à porta. Mas santo Armando achou que eram bandidos que vinham roubá-lo, por isso se recusou a abri-la. Não entendo por que Juniano não se explicou! Era inverno, estava nevando, e tudo que ele precisava fazer era dizer a Armando quem ele era! Mas aparentemente Juniano era tão idiota quanto os outros, e, como não conseguiu entrar na casa de Armando, deitou-se para dormir no jardim, e, como você pode ver, Deus fez a gentileza de garantir que a neve não caísse sobre ele. Por isso ele teve uma boa noite de sono e no dia seguinte o equívoco foi esclarecido. Não é uma história muito empolgante.

—   São Juniano — repetiu Thomas, olhando o monge adormecido. — Mas por que ele está no livro?

—   Olhe o início — sugeriu a condessa.

Thomas virou de volta as páginas rígidas e viu um brasão pintado na primeira página. Mostrava um leão vermelho empinando em fundo branco. O leão rosnava e tinha as garras estendidas.

—   Não conheço esse brasão — disse ele.

—   Minha sogra vem de Poitou — explicou a condessa. — E o leão vermelho é o símbolo de Poitou. Todos os santos deste livro, meu caro, têm ligações com a região, e imagino que simplesmente não havia um número suficiente deles para ser cegados, escaldados, decapitados, estripados ou serrados ao meio, por isso acrescentaram o pobre Juniano só para preencher uma página.

—   Mas não puseram são Pedro — disse Thomas.

—   Não creio que são Pedro já tenha estado em Poitou, então por que ele estaria no livro?

—   Achei que são Juniano teria se encontrado com ele.

—   Tenho certeza de que todos os santos já se visitaram, meu caro, só para conversar um pouco sobre coisas felizes como a litania, ou por que seus amigos tinham sido recentemente queimados ou esfolados vivos, mas são Pedro morreu muito antes de Juniano ser apanhado na neve.

—   Claro que sim, mas existe uma ligação entre Juniano e Pedro.

—   Não imagino qual seja.

—   Mas alguém deve saber. Em Poitou.

—   Em Poitou, sim, provavelmente, mas primeiro você precisa sair de Montpellier — disse a condessa, achando aquilo divertido.

Thomas deu um meio sorriso.

—   Voltando por cima do muro para o mosteiro, suponho.

—   Tenho certeza de que quem está procurando você estará vigiando o mosteiro. Mas e se você esperar até o anoitecer?

—   Se a senhora não se incomodar — disse Thomas galante.

—   Você pode sair depois que escurecer. Assim que são rezadas as Completas as freiras gostam de dormir. Saia pela minha porta, siga pelo corredor, e há uma saída para a rua pela sala das esmolas, que fica no final. Você não vai demorar mais de um minuto, mas até lá deveremos passar várias horas juntos. — Ela olhou-o com ar dúbio, e subitamente se animou. — Diga, você joga xadrez?

—   Um pouco.

—   Eu jogava razoavelmente, mas com a velhice… — Ela suspirou e olhou o gato. — Minha mente está tão mole quanto seu pelo é fofo, não é?

—   Se a senhora quiser jogar — disse Thomas.

—   Não vou jogar bem — respondeu ela com tristeza —, mas mesmo assim vamos tornar a coisa um pouquinho mais interessante apostando algum dinheiro?

—   Se a senhora quiser.

—   Digamos um leopardo por partida? — sugeriu ela.

Thomas se encolheu. Um leopardo valia quase cinco xelins em dinheiro inglês, uma semana de pagamento de um artesão muito hábil.

—   Um leopardo? — perguntou, evasivo.

—   Só para tornar interessante. Mas você deve perdoar meu esquecimento. Acho que o vinho de mandrágora me deixa tonta. — Ela parecia vaga, mas conseguiu se controlar. — Muito tonta, e cometo os erros mais tolos.

—   Então talvez não devêssemos jogar valendo dinheiro.

—   Posso gastar alguns leopardos — disse ela, hesitando. — Talvez um ou dois, e isso acrescenta tempero ao jogo, não é?

—   Um leopardo, então — concordou Thomas.

A condessa sorriu e fez um gesto para ele trazer o tabuleiro de xadrez e as peças à mesinha ao lado da cadeira.

—   Você pode jogar com as peças de prata, meu caro — disse ela, e ainda estava sorrindo enquanto Thomas avançava com o primeiro peão. — Isso vai machucar você — continuou, não parecendo nem um pouco vaga. — Vai machucar muito!

 

Sair do convento foi mais fácil do que Thomas esperava. A condessa estava certa. Bastou seguir pelo corredor, passar por uma sala atulhada com roupas de cheiro execrável que seriam dadas aos pobres e sair à rua por uma porta fechada com um único trinco. Thomas havia recebido uma lição de xadrez e estava sete leopardos mais pobre, mas havia descoberto o nome do santo que recebia a espada de Pedro, ainda que esse conhecimento fosse inútil caso não conseguisse escapar de Montpellier. Havia aguardado até a calada da noite para sair do convento, pois sabia que as portas da cidade estariam fechadas até o amanhecer. Teria de esperar até lá, porque duvidava de que seria capaz de pular da muralha. As fortificações, com suas bandeiras, pareciam altas demais e sem dúvida eram bem-guardadas.

Enrolou-se na capa escura. Havia parado de chover, mas as ruas continuavam molhadas, brilhando com o reflexo tremeluzente de uma lanterna débil pendurada no arco de uma casa do outro lado da rua. Precisava de um lugar para se esconder até o nascer do sol, e depois precisaria da sorte para escapar dos homens que sem dúvida estariam caçando-o.

—   Um soldado que fala latim — disse a voz. — Não é um milagre?

Thomas se virou rapidamente e parou. As duas pontas de um forcado estavam apontando para sua barriga, e segurando a arma encontrava-se o alto estudante irlandês, o jovem Sr. Keane. Estava envolto em sua capa de estudante, preta no negrume da noite.

—   Imagino que você ainda tenha a faca, mas acho que meu forcado vai furar suas tripas antes que você possa cortar minha garganta.

—   Não quero matar você — disse Thomas.

—   Bom, é um alívio saber disso, e olhe que eu me preocupei com a possibilidade de estar morto antes das Matinas.

—   Baixe o forcado.

—   Estou confortável nesta posição, e me sentindo um pouco satisfeito comigo mesmo.

—   Por quê?

—   Todos perseguiram você por meia cidade como um punhado de cachorrinhos caçando um cervo, mas eu pensei que você só poderia ter descido no Convento de Santa Dorcas, e estava certo. Não é esperteza minha?

—   Muita esperteza. Então por que mandou todos eles para longe de Santa Dorcas?

—   Para longe?

—   Ouvi você gritando que eu tinha ido na outra direção.

—   Porque estão oferecendo dinheiro para quem pegar você! Para um estudante pobre essa é uma tentação maravilhosa! Por que compartilhá-lo com os outros? Eu mantenho o forcado onde ele está e recebo dois meses de cerveja, putas e vinho grátis, e cantorias.

—   Eu lhe ofereço mais.

—   Ora, é bom ouvir isso. A cantoria é grátis, claro, mas a cerveja, o vinho e as putas? São caros nesta cidade. Já notou como o preço das putas aumenta nas cidades onde há muitos homens da Igreja? É estranho, ou talvez não, considerando quantos clientes as jovens têm, e isso é fato. Então, quanto vai me pagar?

—   Vou poupar sua vida.

—   Meu Deus, o camundongo oferece a vida ao gato!

—   Largue o forcado, me ajude a sair desta cidade e eu pago o suficiente para você ter putas durante um ano.

—   Sua mulher foi capturada — disse Keane.

Thomas sentiu o corpo gelar. Encarou o jovem irlandês.

—   É verdade?

—   Foi detida no portão norte, levada com três homens e uma criança. Sir Roland de Verrec está com ela.

—   Santo Deus. Você sabe onde ela está?

—   Segundo os boatos, o cavaleiro virgem está levando-a para o oeste, para Toulouse, mas isso foi só o que disseram na Taverna da Cegonha, e metade das coisas que a gente escuta lá é mentira. Ano passado disseram que o mundo ia acabar no dia de santo Arnulfo, mas ainda estamos respirando. Você acha que ele é mesmo virgem?

—   Como vou saber?

—   Acho curioso. Um virgem! É um sujeito bonito.

Thomas encostou-se na parede do convento e fechou os olhos. Genevieve fora presa. A Igreja ainda a perseguia porque, quando Thomas a conhecera, ela estava numa cela, esperando para ser queimada sob a acusação de ser uma herege. Ele soltou um palavrão.

—   Não é bom citar o salmista — disse Keane.

Thomas ficou de olhos fechados.

—   Vou tirar esse forcado de você — disse ele em tom azedo — e cravá-lo na sua barriga.

—   Não é a melhor ideia que você já teve, porque não vou ser de muita utilidade com um forcado nas tripas.

Thomas abriu os olhos. O forcado havia abaixado e estava apontado para suas pernas.

—   Você quer me ajudar?

—   Meu pai é importante, sabe? E eu sou o terceiro filho, e isso é meio como ser a quinta pata de um cavalo, por isso ele quer que eu seja padre, que Deus me ajude, porque sempre é bom ter um padre na família. Torna o perdão dos pecados muito mais acessível, mas isso não é do meu gosto. Meus irmãos mais velhos podem lutar, e eu estou condenado a rezar, mas não me sinto bem de joelhos. Por isso só preciso que alguém me dê um cavalo, uma cota de malha e uma espada e ficarei muito mais feliz.

—   Ah, meu Deus, você é o irmão Michael?

—   Aquele monge? Achei que ele estava com você, mas ninguém quis acreditar. Ele não parecia suficientemente amedrontado quando você encostou aquela faca em seu pescoço.

—   Qual é o seu nome?

—   Éamonn Óg Ó Keane, mas não ligue para o Óg.

—   Por quê?

—   Só não ligue. Quer dizer que sou mais novo do que o meu pai, mas não somos todos? Será um dia estranho no paraíso quando formos mais velhos do que nossos pais.

—   Bom, Éamonn Óg Ó Keane, agora você é um dos meus homens de armas.

—   E dou graças ao bom Cristo por isso — disse Keane, pousando o forcado nas pedras do calçamento. — Chega daquele bostinha do Roger de Beaufort. Como ele pode acreditar que todos os bebês estão condenados ao inferno? Mas acredita mesmo! Aquela lesma cretina vai acabar sendo papa, guarde minhas palavras.

Thomas sinalizou para o irlandês ficar em silêncio. Onde estaria Genevieve? Independentemente de onde estivesse, a única certeza de Thomas era que ele precisava sair da cidade.

—   Sua primeira tarefa — disse ao irlandês — é me ajudar a passar pelo portão.

—   Vai ser difícil. Eles estão oferecendo uma rara recompensa pela sua captura.

—   Eles?

—   Os cônsules da cidade.

—   Então me tire da cidade.

—   Merda — disse Keane depois de uma pausa breve.

—   Merda?

—   Carros de merda, carroças de bosta — respondeu o irlandês. — Eles coletam a merda e levam para fora da cidade, pelo menos a das casas dos ricos. Os pobres simplesmente chafurdam na bosta, mas há gente rica o suficiente para manter essas carroças andando. Geralmente há duas esperando para sair da cidade quando os portões se abrem e — ele parou e olhou sério para Thomas —, você pode confiar na minha palavra, os guardas da cidade não examinam as carroças muito de perto. Eles recuam um pouco, tampam o nariz, mandam passar e desejam que Deus as leve embora depressa.

—   Mas primeiro — disse Thomas — vá à estalagem perto da Igreja de São Pedro e…

—   Quer dizer, a Tetas Cegas?

—   A estalagem perto da Igreja de São Pedro…

—   A Tetas Cegas, é como a chamam na cidade, por causa da placa que mostra santa Luzia sem olhos e com um belo par de…

—   Só vá até lá e encontre o irmão Michael.

O monge relutante estivera hospedado na estalagem, e Thomas esperava que ele tivesse notícias confiáveis sobre o paradeiro de Genevieve.

—   Vou acordar todo o lugar — disse Keane, em dúvida.

—   Então acorde. — Thomas não ousava ir pessoalmente porque tinha certeza de que a estalagem estaria sendo vigiada. Pegou uma moeda na bolsa. — Compre um pouco de vinho, afrouxe a língua deles. Procure aquele monge, o irmão Michael. Veja se ele sabe o que aconteceu com Genevieve.

—   Ela é sua mulher, não é? — perguntou Keane, depois franziu a testa. — Dá para acreditar que santa Luzia arrancou os próprios olhos? Meu Deus! E só porque um homem elogiou os olhos dela? Graças a Jesus Cristo ele não gostou dos peitos dela! Mesmo assim ela seria uma boa esposa.

Thomas olhou boquiaberto para o rapaz.

—   Uma boa esposa?

—   Meu pai sempre diz que o melhor casamento é entre uma mulher cega e um homem surdo. Então, onde encontro você depois que eu tiver afrouxado as línguas?

Thomas apontou para um beco ao lado do convento.

—   Vou esperar ali.

—   E então vamos virar transportadores de merda. Meu Deus, adoro ser homem de armas. Quer que esse tal de irmão Michael se junte a nós?

—   Cristo, não. Diga que o dever dele é aprender medicina.

—   Coitado. Ele vai ser provador de mijo?

—   Vá logo — disse Thomas. Keane foi.

Thomas se escondeu no beco, abrigado por sombras negras como um monge em seu capuz. Ouviu os ratos remexendo no lixo, um homem roncando atrás de uma janela fechada, um bebê chorando. Um par de vigias carregando lanternas passou pelo convento, mas nenhum deles olhou para dentro do beco onde estava Thomas, de olhos fechados e rezando por Genevieve. Se Roland de Verrec a entregasse à Igreja, ela seria condenada outra vez. Mas certamente o cavaleiro virgem iria mantê-la para cobrar um resgate, e o resgate seria Bertille, condessa de Labrouillade, e isso significava que Verrec iria mantê-la em segurança até a troca. A espada de são Pedro poderia esperar; primeiro Thomas acertaria as contas com o cavaleiro virgem.

 

Era quase manhã quando Keane retornou.

—   O seu monge não estava lá — disse ele —, mas havia um cavalariço de língua solta. E você está encrencado, porque os guardas da cidade receberam ordem de procurar um homem com a mão esquerda mutilada. Foi numa batalha?

—   Um torturador dominicano. Keane se encolheu, olhando a mão.

—   Meu Deus. O que ele fez?

—   Usou uma prensa.

—   Ah, eles não têm permissão de tirar sangue, não é? Deus não gosta. Mas mesmo assim esses sujeitos podem acordar a gente de um sono profundo.

—   O irmão Michael não estava na taverna?

—   Não, e o tal sujeito não o tinha visto nem parecia saber de quem eu estava falando.

—   Bom, ele foi aprender medicina.

—   Uma vida inteira bebericando mijo. Mas o cavalariço me contou que seu outro colega saiu da cidade ontem.

—   Roland de Verrec?

—   O próprio. Levou sua mulher e o menino para o oeste.

—   Para o oeste? — perguntou Thomas, intrigado.

—   Ele tinha certeza disso.

Então Verrec ia para Toulouse? O que haveria em Toulouse?  Perguntas borbulhavam sem respostas. Thomas só tinha certeza de que Roland havia saído de Montpellier, e isso sugeria que o cavaleiro virgem não estava mais interessado nele. Tinha a posse de Genevieve e devia saber que poderia trocá-la por Bertille, e poderia supor que Thomas seria capturado pela guarda da cidade.

—   Onde estão as carroças de merda?

Keane levou-o para o oeste. As primeiras portas das casas estavam se abrindo. Mulheres carregavam baldes para os poços da cidade, e uma garota forte vendia leite de cabra ao lado de um crucifixo de pedra. Thomas mantinha a mão esquerda mutilada embaixo da capa enquanto Keane o levava por becos e ruas estreitas, passando por pátios onde o gado mugia. Os sinos das igrejas tocavam, chamando os fiéis para as orações matinais. Thomas seguiu o irlandês morro abaixo, até onde as ruas não eram calçadas e a lama estava manchada de sangue. Era ali que o gado era abatido, onde os pobres moravam. O fedor de excrementos os atraiu até uma pequena praça em que havia três carroças. Cada uma tinha um par de bois atrelados e estava cheia de barris gordos.

—   Meu Deus, a bosta dos ricos fede — disse Keane.

—   Onde estão os carroceiros?

—   Bebem na Viúva — Keane apontou para uma pequena taverna —, e a viúva é uma galinha velha e dura que também é dona das carroças. O vinho faz parte do pagamento. Eles devem sair quando as portas se abrem, mas costumam demorar com o vinho, o que é surpreendente.

—   Surpreendente?

—   O vinho é horrível. Tem gosto de mijo de vaca.

—   Como sabe?

—   Essa é uma pergunta digna do Dr. Lucius. Tem certeza de que quer fazer isso?

—   De que outro modo vou sair da cidade?

—   O truque é se enfiar entre dois barris. Esprema-se até o meio da carroça e ninguém vai saber que você está lá. Eu aviso quando for seguro sair.

—   Você não vai se esconder comigo?

—   Eles não estão me procurando! É você que eles querem enforcar.

—   Enforcar?

—   Meu Deus, você é inglês! Thomas de Hookton! Líder dos hellequins! Claro que querem enforcá-lo! Vai haver uma multidão maior do que no Domingo das Putas.

—   O que é o Domingo das Putas?

—   O domingo mais próximo da festa de são Nicolau. As garotas devem dar de graça nesse dia, mas nunca vi isso acontecer. E você não tem muito tempo. — Ele parou quando um postigo no andar de cima de uma casa se abriu do outro lado da pequena praça. Um homem olhou para fora, bocejou e sumiu. Galos cantavam por toda a cidade. Uma pilha de trapos se mexeu num canto da praça, e Thomas percebeu que era um mendigo dormindo. — Não temos muito tempo. Os portões estão abertos, então as carroças vão sair logo.

—   Bom Jesus — disse Thomas.

—   Quando isso terminar, você vai estar cheirando como Judas Iscariotes. Eu subiria agora, não há ninguém olhando.

Thomas correu, atravessou a pracinha e se enfiou na carroça que estava mais atrás. O cheiro era forte o suficiente para derrubar um urso. Os barris eram velhos, vazavam, ou melhor, exsudavam, e o leito da carroça tinha 3 centímetros de gosma. Ouviu Keane dar um risinho, depois respirou fundo e se enfiou entre dois barris enormes. Entre as fileiras só havia espaço suficiente para um homem se esconder entre os barris volumosos. Algo pingou em sua cabeça. Moscas rastejaram em seu rosto e no pescoço. Ele tentou manter a respiração curta enquanto se espremia até o centro da carroça, e puxou o capuz da capa sobre a cabeça. A cota de malha com seu forro de couro oferecia alguma proteção contra a gosma escorregadia, mas ele podia sentir a imundície entrando por baixo da malha até encharcar a camisa e esfriar a pele.

Não precisou esperar muito. Escutou vozes, sentiu a carroça estremecer quando dois homens se empoleiraram nos barris da frente, depois o estalo de um chicote. A carroça se moveu bruscamente, com o único eixo guinchando. Cada sacudida fazia a cabeça de Thomas bater contra a lateral molhada de um barril. A viagem parecia interminável, mas pelo menos Keane estivera certo com relação aos guardas, que devem simplesmente ter sinalizado para permitir a passagem das três carroças pelo portão da cidade sem qualquer tentativa de inspecioná-las, porque o carro não parou enquanto ia das sombras da cidade para a luz do sol no campo. Keane estava andando ao lado dos bois, conversando animado com os carroceiros, e então a carroça deu uma sacudida assustadora ao começar uma descida. O líquido chacoalhou nos barris e um pouco se derramou nas costas de Thomas. Ele praguejou baixinho, depois praguejou de novo quando a carroça se sacudiu em alguns sulcos da estrada. Keane estava contando uma longa história sobre um cachorro que havia roubado uma perna de cordeiro no Mosteiro de Santo Estêvão, mas de repente falou em inglês:

—   Saia agora!

O irlandês continuou com a história enquanto Thomas se espremia para trás, passando por gosma nova, cada sacudida da carroça fazendo a imundície penetrar ainda mais nas roupas.

Jogou-se da traseira, caindo na crista cheia de capim entre os sulcos formados pelas rodas na estrada. A carroça, sem saber que havia carregado um passageiro, continuou chacoalhando. Keane voltou rindo.

—   Meu Deus, você está terrível.

—   Obrigado.

—   Tirei você da cidade, não foi?

—   Você é um santo vivo. Agora só precisamos encontrar cavalos, armas e um modo de ultrapassar Roland.

Estavam numa estrada funda, entre dois barrancos, sobre os quais começavam os olivais. A estrada descia até uma margem de rio onde a primeira carroça virava os barris na água. Uma mancha marrom escorreu rio abaixo.

—   E como vamos achar cavalos? — perguntou Keane.

—   Uma coisa de cada vez. — Thomas bateu numa mosca, depois subiu o barranco ao lado da estrada e foi andando para o norte, entre as oliveiras.

—   E qual é a primeira? — perguntou Keane.

—   O rio.

Thomas andou até estar fora das vistas das três carroças, então tirou a roupa e mergulhou na água. Estava fria.

—   Meu Deus, você é cheio de cicatrizes — disse Keane.

—   Se você quiser continuar bonito, não seja soldado. E me jogue minhas roupas.

Keane chutou as roupas no rio, para não tocar nelas. Thomas pegou-as, pisoteou-as, esfregou-as com uma pedra até que nenhuma mancha colorisse a água, depois ficou mergulhando e tirando a cota de malha numa poça, tentando livrar os elos e o couro do fedor. Enfiou a cabeça na água uma última vez, passou os dedos pelos cabelos e subiu à margem. Espremeu as roupas do melhor modo que pôde e depois as vestiu ainda molhadas. Carregou a cota de malha. Seria outro dia quente, e a camisa e a calça iriam secar depressa.

—   Para o norte — disse peremptoriamente. A primeira coisa era encontrar os homens de armas que ele tinha deixado no moinho arruinado.

—   Cavalos e armas, foi o que você disse? — perguntou Keane.

—   Quanto estão oferecendo por mim?

—   O peso da sua mão direita em moedas de ouro, foi o que ouvi dizer.

—   Minha mão? — perguntou Thomas, depois entendeu. — Sou arqueiro.

—   Isso é só o começo. O peso da sua mão direita em ouro e o peso da sua cabeça degolada em prata. Eles odeiam os arqueiros ingleses.

—   É uma pequena fortuna. Por isso ouso dizer que os cavalos e as armas vão nos encontrar.

—   Vão nos encontrar?

—   Logo as pessoas vão achar que escapei da cidade, então virão procurar. Até lá vamos continuar indo para o norte.

Thomas pensou em Genevieve enquanto andava. Quando a conhecera, ela estava aterrorizada, e por que não estaria? Tinham feito uma pira do lado de fora da prisão e ela deveria ser queimada como herege, e a perspectiva daquela fogueira santa era uma cicatriz na memória da mulher. Estaria torturando-a agora. Presumiu que ela e Hugh estavam em segurança por enquanto, pelo menos até Roland encontrar Bertille, mas e depois? O cavaleiro virgem era zombado por sua retidão, mas também famoso por ser incorruptível, por isso trocaria humildemente Genevieve e Hugh por Bertille? Ou pensaria que seu dever sagrado era entregar Genevieve à Igreja para que pudesse terminar o negócio que havia começado tanto tempo atrás? Thomas precisava desesperadamente alcançar Karyl e os outros homens de armas. Precisava de homens, precisava de armas, precisava de um cavalo.

Estavam seguindo o rio em direção ao norte. O sol subiu mais alto e as oliveiras deram lugar a vinhedos. Pôde ver cinco homens e três mulheres trabalhando entre os terraços, a cerca de um quilômetro e meio, mas com exceção disso o campo estava vazio. Quando podia, mantinha-se em terreno baixo, mas sempre ia para as montanhas. Pensou que Roland estaria pelo menos a cinco léguas da cidade.

—   Eu deveria tê-lo matado — disse.

—   Roland?

—   Um de meus arqueiros já mirou a cabeça gorda dele. Deveria ter deixado que o sujeito atirasse.

—   Aquele é um homem difícil de matar. Ele parece frágil, não é? Mas eu o vi lutar em Toulouse, e, Jesus Cristo, ele é rápido! Rápido como uma cobra.

—   Preciso ultrapassá-lo. — Thomas estava falando mais consigo mesmo do que com Keane.

—   Mas por que Toulouse? — Porque é seguro — disse em voz alta.

—   Seguro?

—   Toulouse. Não podemos segui-lo dentro de Toulouse. A cidade pertence ao conde de Armagnac, e seus homens patrulham a estrada ao norte, mas isso significa que é uma rota segura para Verrec. — Roland precisava manter Genevieve incólume até ela ser trocada. Então a resposta estava se revirando em sua cabeça. — Ele não vai para Toulouse, vai pegar a estrada que passa por Gignac.

Keane pareceu não entender.

—   Gignac?

—   Há uma estrada que passa por Gignac e que se une à estrada principal que vem de Toulouse, ao norte. Ele vai estar mais seguro nessa rota.

—   Tem certeza de que o sujeito está indo para o norte?

—   Ele vai para Labrouillade! — Esse era o destino óbvio. Genevieve poderia ser mantida lá até que Bertille fosse entregue.

—   A que distância fica Labrouillade?

—   Cinco ou seis dias a cavalo. E podemos ir pelas montanhas, é mais rápido. — Ou seria mais rápido se ele tivesse certeza de que nenhum coredor o emboscaria no caminho. Precisava de seus homens de armas. Precisava de seus arqueiros com longos arcos de guerra e flechas com penas de ganso. Precisava de um milagre.

Havia povoados adiante. Eles precisavam ser evitados. O campo ganhava vida à medida que mais homens iam para as plantações e para os vinhedos. Todos os trabalhadores estavam longe, mas Thomas tinha crescido no campo e sabia que esse tipo de gente não deixava escapar nada. A maioria jamais se afastava de suas casas por mais de alguns quilômetros durante toda a vida, mas eles conheciam cada árvore, arbusto e animal naquela pequena área, e uma coisa pequena como o voo de um pássaro poderia alertá-los quanto a um intruso. Assim que soubessem que uma recompensa equivalente ao peso da mão de um homem em ouro estava ao alcance, seriam implacáveis. Thomas desanimou.

—   Se eu fosse você — disse ele a Keane —, voltaria para a cidade.

—   Por que, pelo amor de Deus?

—   Porque estou perdendo meu tempo — respondeu Thomas com amargura.

—   Você chegou até aqui, então por que desistir agora?

—   E por que diabos você está comigo? Deveria ir pegar logo aquela recompensa.

—   Ah, meu Deus, se eu tiver de passar mais um ano assistindo às aulas do Dr. Lucius e ouvindo aquele verme desgraçado do Roger de Beaufort vou ficar louco, vou mesmo. Dizem que você enriquece os homens!

—   É isso que quer?

—   Quero estar a cavalo, percorrendo o mundo como um homem livre. Uma mulher seria algo bom, ou duas. Até mesmo três! — Ele riu e voltou-se para Thomas. — Quero estar fora das regras.

—   Quantos anos você tem?

—   Nunca tive certeza porque nunca fui bom em contar, mas provavelmente tenho 18. Ou 19.

—   As regras mantêm você vivo. — As roupas úmidas de Thomas estavam irritando a pele, e uma costura na bota havia se rompido.

—   As regras nos mantêm no lugar, e outras pessoas as fazem. Essas mesmas pessoas pisoteiam a gente caso as normas sejam quebradas, e foi por isso que você as violou, não foi?

—   Fui mandado para Oxford. Como você, eu deveria ser padre.

—   Então é assim que sabe latim?

—   Meu pai me ensinou desde o início. Latim, grego, francês.

—   E agora você é Sir Thomas de Hookton, líder dos hellequins! Você não se ateve às regras, não é?

—   Sou arqueiro — respondeu Thomas. Um arqueiro sem arco. — E você vai descobrir que eu faço as regras para os hellequins.

—   Quais são?

—   Compartilhamos os saques, não abandonamos uns aos outros e não estupramos.

—   Ah, disseram que você era notável. Ouviu isso?

—   O quê?

—   Um cão? Talvez dois? Latindo?

Thomas parou. Tinham deixado o rio e estavam andando mais rápido porque haviam entrado num bosque de castanheiras que os escondia de olhares curiosos. Ouviu o vento fraco nas folhas, um pica-pau a distância, depois os latidos.

—   Maldição — disse.

—   Eles podem estar simplesmente caçando.

—   Caçando o quê? — perguntou Thomas, depois foi para a margem do bosque. Havia uma vala seca, e do outro lado feixes de estacas de castanheira bem-amarrados, usados para sustentar as videiras. Os terraços do vinhedo se curvavam para longe e para baixo até o vale do rio, e o som dos cães, porque havia mais de um, vinha daquele terreno baixo. Ele correu alguns passos para dentro do vinhedo, mantendo-se abaixado, e viu três cavaleiros e dois cães. Podiam estar caçando qualquer coisa, pensou, mas suspeitava de que a presa fosse a mão de um arqueiro. Dois seguravam lanças. Os cães tinham o nariz junto ao chão e guiavam os cavaleiros para as castanheiras. — Eu não tinha pensado em cães — disse Thomas quando voltou para o meio das árvores.

—   Vai ficar tudo bem — retrucou Keane com uma confiança jovial.

—   Eles não estão atrás da sua mão direita, e já devem ter captado nosso cheiro. Se quiser me abandonar, esta é uma boa hora.

—   Meu Deus, não! Sou um dos seus homens, lembra? Não abandonamos uns aos outros.

—   Então fique aqui. Tente não ser despedaçado por um cão.

—   Os cães me amam.

—   Estou contando com a ideia de que eles vão chamar os cães de volta antes que o mordam.

—   Eles não vão me morder, você vai ver.

—   Fique aqui, e fique quieto. Quero que pensem que você está sozinho.

Thomas subiu no galho baixo de uma árvore e, usando os fortes músculos, frutos do arco de guerra, escalou até se esconder entre as folhas. Agachou-se num galho. Tudo dependia de os cavaleiros pararem, e certamente parariam. Agora podia ouvi-los, podia ouvir a batida pesada dos cascos e o som mais rápido dos cães que corriam à frente. Para perplexidade de Thomas, Keane havia caído de joelhos e estava com as mãos juntas, erguidas em oração. De muita ajuda isso seria, pensou Thomas, e então os cães surgiram. Dois cães de caça de pelo cinza com mandíbulas babando correram para o irlandês. Keane simplesmente abriu os olhos, estendeu os braços e estalou os dedos.

—   Cachorrinhos bonzinhos — disse o irlandês. Agora os cães de caça estavam ganindo. Um se deitou junto aos joelhos de Keane, o outro lambeu uma das mãos estendidas. — Deite, garoto — disse Keane em francês, depois acariciou os dois cachorros entre as orelhas. — E que bela manhã para caçar um inglês, não é?

Agora os cavaleiros estavam perto. Tinham diminuído o passo até um trote, curvando-se entre os galhos baixos.

—   Cachorros malditos — disse um deles, atônito, ao ver os cães sucumbindo aos carinhos de Keane. — Quem é você? — gritou o sujeito.

—   Um homem rezando — respondeu Keane. — E bom dia a todos vocês, senhores.

—   Rezando?

—   Deus me chamou para seu sacerdócio — respondeu Keane em tom hipócrita —, e me sinto mais próximo dele quando rezo sob as árvores no alvorecer de Seu bom dia. Deus os abençoe, e o que os cavalheiros estão fazendo tão longe, tão cedo? — Sua capa preta, tecida em casa, lhe dava uma aparência clerical convincente.

—   Estamos caçando — disse um dos homens, em tom divertido.

—   Você não é francês — disse outro.

—   Sou da Irlanda, a terra de são Patrício, e rezei para ele aplacar a raiva dos seus cães. Não são uns animais doces?

—   Eloísa! Abelardo! — gritou o cavaleiro chamando os cães, mas nenhum dos dois se mexeu. Ficaram com Keane.

—   E o que estão caçando? — perguntou Keane.

—   Um inglês.

—   Não vão encontrá-lo aqui, e, se é o sujeito em que estou pensando, ele certamente ainda está dentro da cidade, não é?

—   Talvez — disse um deles. Ele e seus companheiros estavam à esquerda de Thomas, Keane à direita, e Thomas precisava que eles chegassem mais perto. Podia vê-los por entre as folhas. Eram três jovens, ricamente vestidos, com roupas finas, penas nos chapéus e botas de cano longo nos estribos. Dois seguravam lanças de caçar javali, com pontas largas e cruzetas logo atrás das lâminas, e todos tinham espadas. — E talvez não — continuou o sujeito. Em seguida instigou o cavalo adiante. — Você veio aqui para rezar?

—   Não foi o que eu disse?

—   A Irlanda fica perto da Inglaterra, não é?

—   Ela sofre essa maldição, sem dúvida.

—   E na cidade um mendigo viu dois homens perto da Viúva. Um usava capa de estudante e o outro estava subindo numa carroça de merda.

—   E eu que estava pensando que era o único estudante que saía cedo da cama!

—   Eloísa! Abelardo! — O dono dos cães disse os nomes rispidamente, mas os animais apenas ganiram e se acomodaram ainda mais perto de Keane.

—   Então o mendigo foi procurar os cônsules — disse o primeiro homem.

—   E em vez disso nos encontrou — completou outro cavaleiro, em tom divertido. — Agora não há recompensa para ele.

—   Nós o ajudamos a ir para um mundo melhor — retomou o primeiro homem —, e talvez também possamos ajudar a sua memória.

—   É sempre bom ter alguma ajuda — observou Keane. — E é por isso que rezo.

—   Os cães sentiram um cheiro — disse o homem.

—   Cachorrinhos espertos — respondeu Keane, dando tapinhas nas cabeças cinzentas.

—   Eles seguiram o cheiro até aqui.

—   Ah, sentiram o meu cheiro! Não é de espantar que estivessem correndo tão ansiosos.

—   E dois pares de pegadas junto ao rio — acrescentou outro homem.

—   Acho que você tem perguntas a responder. — O primeiro homem sorriu.

—   Como, por exemplo, por que quer ser padre — disse o dono dos cães. — Não gosta de mulheres, é? — Os outros dois cavaleiros gargalharam. Agora Thomas podia vê-los mais claramente. Eram jovens muito ricos, as selas e os arreios eram caros, as botas, polidas. Filhos de mercadores, talvez. Achou que eram do tipo de filhos ricos que podiam violar o toque de recolher da cidade impunemente por causa da posição dos pais, jovens que percorriam a cidade procurando encrenca e certos de que conseguiriam evitar as consequências. Homens que aparentemente matavam um mendigo para não ter de dividir a recompensa com ele. — Por que um homem desejaria ser padre? — perguntou o cavaleiro com escárnio. — Talvez porque não seja homem, não é? Deveríamos descobrir. Tire a roupa. — Seus companheiros, ansiosos para se juntar ao esporte, instigaram as montarias passando por baixo do galho de Thomas. Ele saltou.

Caiu sobre o cavaleiro de trás, passou o braço direito em volta do pescoço dele e agarrou a lança de javali com a outra. O sujeito caiu. O cavalo empinou e relinchou. Thomas bateu no chão, e o cavaleiro caiu sobre ele. O pé esquerdo do sujeito ficou preso no estribo, e o animal saiu em disparada, arrastando o homem enquanto Thomas se levantava, agora com a lança nas mãos. O outro lanceiro estava virando o cavalo, e Thomas girou a arma ferozmente. A parte chata da lâmina bateu com força no crânio do homem. Ele oscilou na sela enquanto Thomas corria para o homem da frente, que estava tentando desembainhar a espada, mas Keane segurou o braço dele enquanto a montaria rodava freneticamente. Os cães saltavam para Keane e o cavalo, achando que era uma brincadeira. Thomas girou a lança, e a ponta maligna fez um corte embaixo das costelas do sujeito. Ele gritou de dor, Keane puxou-o da sela e levantou o joelho direito, acertando a cabeça do cavaleiro, que tombou, atordoado. O primeiro tinha conseguido soltar o pé do estribo, mas estava tonto. Tentava se levantar, mas Thomas chutou-o na garganta e também acabou caindo. O cavaleiro atordoado ainda estava na sela, mas olhava para o nada, a boca se abrindo e fechando.

—   Pegue os cavalos — ordenou Thomas a Keane, depois correu para fora da sombra das árvores e usou a faca para cortar a tira que prendia as estacas de castanheira. — Vamos amarrar os desgraçados, e, se você precisar de uma troca de roupas, sirva-se. — Ele puxou o terceiro homem da sela e o atordoou ainda mais com uma pancada que tirou sangue do ouvido do sujeito.

—   Isso é veludo? — perguntou Keane, passando o dedo pelo casaco de um dos jovens. — Sempre pensei em usar veludo.

Thomas tirou as botas dos três e encontrou um par que lhe servia. Um dos cavalos tinha bolsas de sela com um frasco de vinho, um pouco de pão e um pedaço de queijo, e ele dividiu tudo com Keane.

—   Sabe cavalgar?

—   Meu Deus, eu sou da Irlanda! Nasci numa sela.

—   Amarre-os. Primeiro tire toda a roupa deles. — Thomas ajudou Keane a amarrar os três homens, depois tirou as roupas úmidas e encontrou uma calça que lhe servia, uma camisa e uma bela jaqueta de couro apertada demais sobre os músculos de arqueiro, mas estava seca. Prendeu um cinturão de espada na cintura. — Então vocês mataram o mendigo? — perguntou a um dos três. O homem não respondeu, então Thomas bateu com força em seu rosto. — Vocês têm sorte por eu não cortar seus bagos, mas na próxima vez que ignorarem minha pergunta vou arrancar um deles. Vocês mataram o mendigo?

—   Ele estava morrendo — disse, carrancudo, o rapaz.

—   Então foi caridade cristã. — Thomas se curvou e segurou a faca entre as pernas do sujeito. Viu o terror no rosto fechado. — Quem é você?

—   Meu nome é Pitou, meu pai é cônsul, ele vai pagar por mim! — O rapaz estava balbuciando, desesperado.

—   Pitou é um homem importante na cidade — disse Keane. — É um produtor de vinhos que vive como nobre. Dizem que ele come em pratos de ouro.

—   Sou o único filho dele — implorou Pitou. — Ele pagará por mim!

—   Ah, pagará sim — disse Thomas, depois cortou a corda dos tornozelos e dos pulsos dele. — Vista-se — disse, chutando suas próprias roupas úmidas na direção do rapaz apavorado. Em seguida amarrou os pulsos dele outra vez quando ele terminou de se vestir. Era pouco mais do que um garoto, devia ter uns 17 anos. — Você vem conosco, e, se tem esperanças de ver Montpellier de novo, é melhor rezar para que meu serviçal e meus dois homens de armas estejam vivos.

—   Eles estão! — disse Pitou, ansioso.

Thomas olhou para os outros dois.

—   Digam ao pai de Pitou que o filho dele será devolvido quando meus homens chegarem a Castillon d’Arbizon. E, se eles não estiverem com suas armas, cotas de malha, cavalos e roupas, o filho dele será mandado para casa sem os olhos. — Pitou olhou para Thomas ao ouvir essas palavras, e de súbito inclinou-se para a frente e vomitou. Thomas sorriu. — Além disso, ele deve mandar uma luva direita de adulto cheia de genoveses, e quero dizer cheia de verdade. Entenderam?

Um deles assentiu. Thomas alongou os estribos do cavalo maior, um garanhão cinza, e montou na sela. Tinha uma espada, uma lança, um cavalo e esperança.

—   Os cães vão conosco — anunciou Keane enquanto montava num capado marrom. Em seguida pegou as rédeas do terceiro cavalo, em que Pitou estava montado.

—   Vão?

—   Eles gostam de mim, então vão. Aonde vamos agora?

—   Tenho homens esperando aqui perto, vamos para o norte.

E cavalgaram nessa direção.

 

Roland de Verrec estava infeliz. Deveria sentir-se em êxtase, porque o término bem-sucedido de sua busca aventuresca estava próximo. Havia capturado a mulher e o filho de Thomas de Hookton, e, mesmo não tendo dúvida de que eles seriam trocados pela adúltera condessa Bertille de Labrouillade, ainda havia hesitado antes de fazer a captura. Ia contra o cerne de seus ideais românticos usar uma mulher e uma criança, mas os homens de armas que o ajudavam, todos os seis emprestados pelo conde de Labrouillade, o haviam persuadido.

—   Não vamos machucá-los — dissera Jacques Sollière, o líder dos seis homens do conde. — Só vamos usá-los.

A captura fora simples. Os cônsules de Montpellier haviam-lhe emprestado mais homens ainda, e Genevieve e o filho tinham sido presos enquanto tentavam sair da cidade com dois homens de armas e um serviçal como única proteção. Esses três estavam agora na cidadela de Montpellier, mas não interessavam a Roland. Seu dever era chegar a Labrouillade e trocar os cativos pela esposa desgarrada do conde, e então sua aventura estaria terminada.

Mas de algum modo isso não parecia cavalheiresco. Roland insistiu para que Genevieve e seu filho fossem tratados com cortesia, mas ela devolvia esse favor com um escárnio cheio de desafio, e suas palavras o feriam. Se Roland fosse um homem mais perceptivo teria visto o terror por baixo do escárnio, mas só sentia o golpe e tentava desviá-lo contando histórias ao jovem Hugh. Contou ao garoto a história do velocino de ouro, e depois como o grande herói Ipomadon havia se disfarçado para vencer um torneio, e como Lancelot fizera o mesmo, e Hugh ouvia fascinado enquanto sua mãe parecia desprezar os relatos.

—   E por que eles lutavam? — perguntou ela.

—   Para vencer, senhora — respondeu Roland.

—   Não, eles lutavam por suas amantes — disse Genevieve. — Ipomadon lutava pela rainha Proud, e Lancelot, por Guinevere, que, como a condessa de Labrouillade, era casada com outro homem.

Roland ficou vermelho.

—   Eu não as chamaria de amantes — disse rigidamente.

—   De que chamaria? — perguntou ela com um desprezo feroz. — E Guinevere era prisioneira, como eu.

—   Senhora!

—   Se não sou prisioneira, deixe-me ir.

—   A senhora é refém, e está sob minha proteção. Genevieve gargalhou diante disso.

—   Sua proteção?

—   Até ser trocada, senhora — disse Roland rigidamente. — Juro que nenhum mal lhe será feito se estiver ao meu alcance impedi-lo.

—   Ah, pare com essa falação insensata e conte ao meu filho outra história de adultério — disparou ela.

Então Roland contou uma história que achou muito mais segura, a gloriosa narrativa de seu xará, o grande Roland de Roncesvalles.

—   Ele marchou contra os mouros na Espanha — disse a Hugh. — Sabe quem são os mouros?

—   Pagãos — respondeu Hugh.

—   Isso mesmo! São gentios e pagãos, seguidores de um falso deus, e, quando o exército francês voltou cruzando os Pireneus, foi emboscado de modo traiçoeiro pelos pagãos! Roland comandava a retaguarda e estava em menor número, numa razão de vinte para um, alguns dizem que de cinquenta para um! Mas ele possuía uma espada grandiosa, Durindana, que já pertencera a Heitor de Troia, e essa grande espada matou seus inimigos. Eles morreram às vintenas, mas nem mesmo Durindana podia conter aquela horda pagã, e os pobres cristãos corriam o risco de ser sobrepujados. Mas Roland também possuía uma trompa mágica, Olifante, e soprou a trompa, soprou-a tão forte que o esforço o matou, mas o som de Olifante atraiu o rei Carlos Magno e seus cavaleiros magníficos para matar aquele inimigo descarado!

—   Eles podiam ser descarados — disse Genevieve —, mas nunca foram mouros. Eram cristãos.

—   Senhora! — protestou Roland.

—   Não seja ridículo. Já esteve em Roncesvalles?

—   Não, senhora.

—   Eu já! Meu pai era malabarista e engolia fogo. Íamos de cidade em cidade recolhendo moedas e sempre ouvíamos histórias, e em Roncesvalles eles sabem que foram os bascos, todos cristãos, que emboscaram Roland. E o mataram. Você só finge que eram mouros porque não suporta pensar que seu herói foi morto por rebeldes camponeses. E que morte gloriosa é essa? Soprar uma trombeta e cair?

—   Roland é um herói tão grande quanto Artur!

—   Que teve mais bom senso do que se matar soprando uma trombeta. E, por falar em trombetas, que antigamente eram feitas de chifres, por que você serve ao conde de Labrouillade?

—   Para fazer o que é certo, senhora.

—   Certo! Devolvendo aquela pobre garota a um porco como seu marido?

—   Ao seu marido legítimo.

—   Que estupra as esposas e as filhas de seus vassalos. Então por que você não o está castigando por adultério? — Roland não tinha resposta, a não ser franzir a testa na direção de Hugh, perturbado ao ver um assunto assim ser abordado na frente de um menino. Genevieve gargalhou. — Ah, Hugh pode ouvir. Quero que ele seja um homem decente como o pai, por isso estou educando-o. Não quero que seja um idiota como você.

—   Senhora! — protestou Roland outra vez.

Genevieve fungou.

—   Há sete anos, quando Bertille estava com 12, foi levada até Labrouillade e obrigada a se casar com ele. Ele estava com 32 anos e queria o dote dela. Que opção tinha a garota? Estava com 12 anos!

—   Ela é casada legalmente, diante de Deus.

—   Com uma criatura repugnante em quem Deus cuspiria.

—   Ela é mulher dele — insistiu Roland, mas sentia-se estranhamente desconfortável. Desejava jamais ter aceitado aquela aventura, mas havia aceitado, e sua honra exigia que ela fosse levada até o final, por isso cavalgaram em direção ao norte.

Ficaram numa estalagem na praça da feira de Gignac, e Roland insistiu em passar a noite do lado de fora do quarto em que Genevieve dormia. Seu escudeiro compartilhou a vigília. Ele era um garoto inteligente de 14 anos, Michel, que Roland estava treinando nos costumes da cavalaria.

—   Não confio nos homens do conde de Labrouillade — disse ao garoto. — Especialmente Jacques, por isso vamos dormir aqui, com nossas espadas.

O homem do conde estivera olhando a loura Genevieve o dia inteiro. Roland ouvira os risos às costas e suspeitava de que os homens de armas estariam falando de sua prisioneira, mas eles não fizeram qualquer tentativa de passar por ele durante a noite. Na manhã seguinte continuaram para o norte e pegaram a estrada principal que ia na direção de Limoges, enquanto Genevieve atormentava Roland sugerindo que seu marido havia escapado de Montpellier.

—   Ele é difícil de ser capturado — disse ela. — E terrível na vingança.

—   Não tenho medo de lutar com ele — respondeu Roland.

—   Então é idiota. Acha que sua espada vai protegê-lo? Você a chama de Durindana? — Ela gargalhou quando Roland ficou vermelho, porque obviamente era verdade. — Mas Thomas tem um arco de teixo pintado de cor escura, com uma corda de cânhamo e flechas de freixo branco e descascado. Você já enfrentou um arqueiro inglês?

—   Ele vai lutar com cortesia.

—   Não seja tão idiota! Ele vai trapacear, fazer truques, enganar você, e no fim da luta você vai estar tão espetado de flechas que vai parecer uma escova. Ele já pode estar à sua frente! Talvez os arqueiros estejam esperando na estrada. Você não vai vê-los. Quando perceber, verá as flechas acertando o alvo, depois os gritos dos cavalos e a morte dos seus homens.

—   Ela está certa — interveio Jacques Sollière.

Roland deu um sorriso corajoso.

—   Eles não vão atirar, senhora, por medo de acertá-la.

—   Você não sabe de nada! A duzentos passos eles podem arrancar a meleca do seu nariz com uma flecha. Eles vão atirar. — Ela se perguntou onde Thomas estaria. Tinha medo de que a Igreja a pegasse de novo. Temia pelo filho.

A noite seguinte foi passada na casa de hóspedes de um mosteiro, e de novo Roland vigiou a soleira. Não havia outra saída do quarto, não havia como escapar. Na estrada, antes de chegarem ao mosteiro, tinham passado por um grupo de mercadores com guardas armados, e Genevieve gritou para eles, dizendo que fora capturada contra sua vontade. Os homens pareceram preocupados, até que, com sua cortesia calma, Roland disse que ela era sua irmã e era lunática. Dizia a mesma coisa sempre que Genevieve apelava aos passantes.

—   Estou levando-a a um lugar onde ela pode ser tratada por freiras santas — disse, e os mercadores acreditaram e foram em frente.

—   Você não é incapaz de contar mentiras — zombou ela.

—   Uma mentira a serviço de Deus não é mentira.

—   E este é um serviço de Deus?

—   O matrimônio é um sacramento. Minha vida é dedicada ao serviço de Deus.

—   É por isso que é virgem?

Ele ficou vermelho, depois franziu a testa, mas mesmo assim respondeu seriamente.

—   Foi-me revelado que minha força em batalha depende da pureza. — E parou para encará-la. — Foi a Virgem Maria que falou comigo.

Genevieve estivera zombando dele, mas algo no tom de sua voz a fez conter o escárnio.

—   O que ela falou?

—   Ela era linda — disse Roland, pensativo.

—   E falou com você?

—   Ela desceu do teto da capela e me disse que eu devia levar uma vida casta até me casar. Que Deus me abençoaria. Que eu era escolhido. Na época eu era só um menino, mas fui escolhido.

—   Você teve um sonho. — Genevieve pareceu não dar importância.

—   Uma visão — corrigiu ele.

—   Um menino sonhando com uma mulher linda — disse Genevieve, com o escárnio de volta na voz. — Isso não é visão.

—   E ela me tocou e disse que eu devo permanecer puro.

—   Diga isso à flecha que vai matá-lo — comentou ela, e Roland ficou quieto.

Agora, no terceiro dia da viagem, ele examinava constantemente a estrada à frente em busca de qualquer sinal dos hellequins. Havia um grande número de viajantes: mercadores, peregrinos, tropeiros ou pessoas indo à feira, mas ninguém informava ter visto homens armados. Roland ficava cada vez mais cauteloso e havia mandado dois homens de armas do conde 400 metros adiante, para examinar a estrada, mas à medida que o dia passava eles não informaram nada ameaçador. Ele se preocupava porque o progresso era muito lento e suspeitava de que Genevieve estava deliberadamente provocando a demora, mas não podia provar isso, e sua cortesia determinava que ele respeitasse cada pedido de privacidade dela. Será que a bexiga das mulheres era mesmo tão pequena? Mas dentro de dois dias, pensou Roland, ele chegaria a Labrouillade e poderia mandar uma mensagem aos hellequins, exigindo a devolução de Bertille em troca da segurança da mulher e do filho de Thomas, por isso tentava se tranquilizar pensando que a busca aventuresca estava quase terminada.

—   Precisamos achar um local para passar a noite — disse a Genevieve enquanto o sol baixava no terceiro dia de viagem.

Então viu seus batedores voltarem correndo do norte. Um deles estava gesticulando feito louco.

—   Ele viu alguma coisa — disse Roland, mais para si mesmo do que para qualquer um dos companheiros.

—   Meu Deus — disse um dos homens de armas, porque agora podiam ver o que havia alarmado os batedores.

A tarde estava caindo e o sol lançava sombras compridas no campo, mas no horizonte ao norte, subitamente claro à luz do sol poente, havia homens. Homens e aço, homens e ferro, e homens e cavalos. A luz se refletia em armaduras e armas, em elmos e no remate de uma bandeira, mas ela estava distante demais para ser vista com clareza. Roland tentou contá-los, mas os cavaleiros distantes estavam se movimentando. Doze? Quinze?

—   Talvez você não viva para ver a noite — observou Genevieve.

—   Eles não podem ter passado à nossa frente — disse Jacques, mas sem muita convicção.

O pânico fez Roland hesitar. Ele raramente sentia pânico. Num torneio, mesmo numa escaramuça, ficava calmo em meio ao caos. Nesses momentos sentia como se um anjo o guardasse, o alertasse contra o perigo e mostrasse as oportunidades. Era rápido, de modo que mesmo no tumulto mais desastroso parecia que os outros homens se moviam lentamente. Mas agora sentiu medo de verdade. Ali não havia regras, nem juízes para interromper a luta, apenas perigo.

—   A primeira coisa que você vai ver — disse Genevieve — é o voo de uma flecha.

—   Há algum tipo de povoado ali! — Um dos batedores, com o cavalo branco de suor, galopou até o hesitante Roland e apontou para leste. — Há uma torre lá.

—   Uma igreja?

—   Deus sabe. Uma torre. Não é longe, talvez uma légua.

—   Quantos homens você viu?

—   Duas dúzias? Talvez mais.

—   Vamos! — vociferou Jacques.

Uma trilha áspera passava por um vale cheio de árvores e conduzia à torre escondida. Roland seguiu por esse caminho, puxando a égua de Genevieve pelas rédeas. Apressou-se. Olhou para trás e viu que os homens distantes haviam desaparecido do horizonte. Logo estava no meio das árvores, se agachando para evitar os galhos baixos. Imaginou ter ouvido cascos atrás, mas não viu nada. Seu coração martelava de um modo que jamais acontecera nos torneios.

—   Vá na frente — disse ao escudeiro, Michel. — Descubra quem é o dono dessa torre e exija abrigo. Vá! Vá!

Roland disse a si mesmo que não poderia ser Thomas perseguindo-o. Se Thomas havia escapado de Montpellier, estaria ao sul de Roland, e não ao norte. Talvez ninguém estivesse perseguindo-o. Talvez os homens armados estivessem em alguma empreitada inocente, mas por que estariam usando armaduras? Por que usariam elmos? Seu cavalo pisava forte na camada de folhas do chão. Passou espirrando água num riacho raso e fez uma curva ao lado de um vinhedo insignificante.

—   Os homens de Thomas chamam suas flechas de granizo de aço do diabo — disse Genevieve.

—   Fique quieta! — reagiu Roland com rispidez, esquecendo a cortesia.

Dois homens do conde cavalgavam perto dela, para garantir que ela não tentaria cair do cavalo e atrasá-los. Ele subiu uma pequena encosta, olhou para trás e não viu qualquer perseguidor, depois chegou ao topo da colina baixa e ali estava um pequeno povoado, e logo depois a torre de uma igreja meio arruinada. O sol quase havia sumido e a torre estava na sombra. Não havia qualquer luz.

Os cavalos passaram a toda a velocidade pelo povoado, espantando galinhas, cães e cabras. A maioria das casas estava abandonada, com a cobertura de palha enegrecida ou caída, e Roland percebeu que devia ser uma aldeia assolada pela peste. Fez o sinal da cruz. Uma mulher agarrou uma criança, tirando-a do caminho dos grandes cavalos. Um homem gritou uma pergunta, mas Roland a ignorou. Estava imaginando o granizo de aço do diabo. Imaginando as flechas voando do crepúsculo para trucidar homens e cavalos, e então chegou a um pequeno cemitério; um dos seus homens estava na nave partida da igreja e encontrara a escada que levava à velha torre do sino.

—   Está vazia! — gritou ele.

—   Para dentro — ordenou Roland.

E assim, no crepúsculo, Roland chegou à torre negra.

 

Thomas, Keane e seu prisioneiro chegaram ao moinho e encontraram Karyl e nove homens de armas preparados, mas nenhum deles sabia para quê. Todos usavam cota de malha, os cavalos estavam selados, e eles pareciam nervosos.

—   Sabemos de Genevieve — disse Karyl recebendo Thomas.

—   Como?

Karyl balançou o rosto cheio de cicatrizes na direção de um homem que vestia apenas calça justa, camisa, botas e casaco. O homem estivera se encolhendo para fugir das vistas de Thomas, mas este esporeou o cavalo até ele.

—   Fique de olho nesse desgraçado — disse a Karyl, indicando Pitou. — Se ele o incomodar, bata nele. — Conteve o cavalo perto do homem relutante e olhou um rosto muito ansioso. — O que aconteceu com seu hábito de monge?

—   Ainda o tenho — respondeu o irmão Michael.

—   Então por que não está usando?

—   Porque não quero ser monge! — protestou ele.

—   Ele trouxe notícias. — Karyl havia seguido Thomas. — Disse que Genevieve foi levada e que você está sendo caçado.

—   Eles levaram Genevieve — confirmou Thomas.

—   Verrec?

—   Presumo que ele a esteja levando para Labrouillade.

—   Enviei o restante dos homens a Castillon — disse Karyl — e mandei Sir Henri enviar pelo menos quarenta homens para cá. Foi ideia dele. — Karyl apontou para o irmão Michael.

Thomas olhou para o monge.

—   Sua ideia?

O irmão Michael olhou ansioso ao redor, como se procurasse algum local para se esconder.

—   Pareceu sensato — disse finalmente.

Thomas não teve tanta certeza. Tinha dez homens, 12 se contasse com o estudante relutante e o monge mais relutante ainda, e estariam perseguindo Roland de Verrec enquanto os homens de Castillon d’Arbizon percorreriam um território hostil à procura de Thomas. Isso poderia levar a um desastre se qualquer um dos pequenos grupos fosse confrontado por um inimigo muito maior. Mas e se eles se encontrassem?

Balançou a cabeça, aprovando.

—   Provavelmente foi uma boa ideia — disse de má vontade. — Então agora você vai voltar a Montpellier?

—   Eu? Por quê? — perguntou indignado o irmão Michael.

—   Para aprender a cheirar mijo.

—   Não!

—   Então o que você quer?

—   Ficar com você.

—   Ou com Bertille?

O irmão Michael ruborizou.

—   Ficar com o senhor.

Thomas acenou na direção de Keane.

—   Ele não quer ser padre e você não quer ser monge. Agora os dois são hellequins.

O irmão Michael pareceu incrédulo.

—   Sou? — perguntou empolgado.

—   É.

—   Então agora só precisamos de um par de garotas suculentas que não queiram ser freiras — disse Keane, animado.

Karyl não tinha visto Roland de Verrec ir para o norte com Genevieve.

—   Você disse para ficarmos escondidos — disse com censura. — Longe da estrada. E ficamos.

—   Ele não veio por esse caminho — explicou Thomas. — Está na estrada de Gignac, ou pelo menos acho que está, e o desgraçado tem um dia de cavalgada à nossa frente.

—   Vamos atrás?

—   Vamos usar as estradas que passam pelos morros.

Thomas não conhecia essas estradas, mas elas deviam existir porque, olhando para o norte, ele podia ver aldeias no terreno mais elevado. Podia ver um moinho no horizonte e fumaça subindo de um vale sombreado, e onde havia pessoas havia estradas. Seriam mais lentas do que as rotas principais, mas com sorte, se não perdessem ferraduras e não surgissem coredors, poderiam alcançar Verrec antes que o cavaleiro virgem chegasse a Labrouillade. Apeou e foi até a borda sul do pequeno platô onde ficava o moinho arruinado. Podia ver Montpellier claramente, e também pequenos grupos de cavaleiros percorrendo o terreno cinzento do lado de fora da cidade, onde as casas tinham sido queimadas para impedir que os ingleses atacassem ou se abrigassem. Havia pelo menos seis grupos, nenhum com mais de sete ou oito homens, todos explorando os arbustos nas margens do terreno limpo.

—   Estão me caçando — disse Thomas a Karyl, que se juntara a ele.

Karyl protegeu os olhos.

—   Homens de armas — resmungou. Mesmo a essa distância era possível ver que pelo menos dois grupos usavam malha cinza. O sol se refletia nos elmos.

—   Guardas da cidade, provavelmente — disse Thomas.

—   Por que não formam um único grupo? — perguntou Karyl.

—   E dividir a recompensa?

—   Há uma recompensa?

—   Das grandes.

Karyl deu um sorriso.

—   De que tamanho?

—   Provavelmente o bastante para você comprar uma fazenda decente... onde mesmo? Na Boêmia?

Karyl confirmou.

—   Você já esteve na Boêmia?

—   Não.

—   Os invernos são frios. Acho que vou ficar por aqui.

—   Eles vão revistar a cidade — disse Thomas. — Mas, quando não encontrarem nada, um número muito maior virá para fora dos portões.

—   Estaremos longe.

—   E eles vão adivinhar isso.

—   E vão nos perseguir?

—   Espero que sim.

Os cavalos da cidade provavelmente estariam bem-alimentados e descansados, enquanto os do moinho haviam se alimentado mal, e se ele quisesse viajar depressa pelos morros precisaria de bons cavalos. Também precisava de malhas e armas para Keane e o irmão Michael.

Disse isso a Karyl, que se virou para o monge.

—   Uma arma para ele seria desperdício — disse com escárnio. — Mas o irlandês parece útil.

—   Os dois precisam parecer homens de armas — disse Thomas —, mesmo não sendo. E também precisamos de cavalos de reserva. Vamos viajar depressa.

—   Emboscada — disse Karyl com deleite.

—   Emboscada — concordou Thomas. — E precisamos que seja rápida, brutal e eficaz.

Agora que estava com seus homens ele se sentia vingativo. A situação de Genevieve o torturava, mesmo presumindo que ela era simplesmente um objeto de troca. Bertille estava segura em Castillon d’Arbizon, e ele duvidava de que Sir Henri a liberasse sem sua permissão. Mesmo assim queria vingar Genevieve, e a raiva transbordou quando, logo antes do meio-dia, acionaram a emboscada.

Foi muito simples. Keane e o irmão Michael, os dois sem malha ou elmos, apenas se mostraram num olival que era visível para um dos grupos que reviravam o campo. Esses homens uivaram e gritaram, esporearam os cavalos, desembainharam espadas e galoparam. Keane e o irmão Michael correram, desaparecendo dos perseguidores num pequeno vale onde os homens de Thomas esperavam.

E a raiva foi despejada em golpes de espada. Seis homens estavam na caçada e disputavam corrida para pegar os fugitivos. Os dois primeiros montavam cavalos pequenos e rápidos e ultrapassaram os companheiros, galopando por cima da encosta e descendo ao vale. Seus cavalos iam espirrando água num riacho minúsculo, quando eles então perceberam que estavam encrencados. Os homens de Thomas chegaram pelos dois lados enquanto os quatro caçadores restantes passavam trovejando pelo topo da colina, assistindo à confusão embaixo e tentando desesperadamente dar meia-volta nos cavalos.

Thomas instigou seu cavalo encosta acima. Um homem usando uniforme de Montpellier estava tentando se virar, depois mudou de ideia e girou a espada de volta para Thomas, que se inclinou à esquerda na sela, deixou a lâmina passar diante do rosto e depois trouxe sua espada num golpe violento que acertou a nuca do sujeito logo abaixo da borda do elmo. Não se incomodou mais com ele, pois sabia que o sujeito estava fora da luta. Thomas simplesmente levou seu cavalo mais para o alto e cravou a espada num segundo homem, enquanto Arnaldus, um dos gascões que faziam parte dos hellequins, girou para trás um machado de batalha, acertando o rosto do sujeito. Karyl, que havia arrancado um homem da sela, virou-se e golpeou com a espada de cima para baixo, e Thomas viu sangue espirrar mais alto do que o combalido elmo de Karyl. Keane estava segurando um dos primeiros cavaleiros embaixo d’água, afogando-o enquanto os dois cães mordiam um braço que se agitava.

Seis homens derrotados em menos de seis segundos, e nenhum hellequin ferido.

—   Keane! Pegue os cavalos! — gritou Thomas.

Um segundo grupo de homens tinha visto o primeiro partir para o norte, e agora vinha atrás, mas a visão de cavaleiros usando malha e esperando no topo do olival os dissuadiu. Deram meia-volta.

—   Você — Thomas apontou para o irmão Michael —, encontre uma cota de malha que lhe sirva. Encontre um elmo e uma espada. Pegue um cavalo.

Cavalgaram para o norte.

 

Roland de Verrec ordenou que os cavalos fossem amarrados na nave arruinada, depois subiu a escada íngreme e estreita da torre do sino. Não havia mais sino, apenas um espaço aberto. Cada uma das quatro paredes era cortada por um arco largo, a maioria das telhas do teto de caibros podres havia caído, e o piso rangia perigosamente sob o peso dos homens.

—   As flechas vão atravessar os arcos — disse Genevieve.

—   Fique quieta — respondeu ele, e então, porque sempre tentava ser cortês, acrescentou: — Por favor.

Estava nervoso. Os cavalos batiam os cascos na nave, alguém gritou da aldeia, mas com exceção disso o mundo parecia silencioso. A escuridão ia baixando depressa e lançando sombras irregulares no cemitério junto à igreja. As sepulturas não tinham lápides. Essa aldeia devia ter sofrido um terrível golpe da peste que levara tantas almas, e os corpos estavam em covas rasas. Roland se lembrou de ter visto cães selvagens desenterrarem vítimas da peste. Quando menino, havia chorado de pena ao ver os animais rasgarem a carne podre dos servos de sua mãe. Seu pai havia morrido, assim como seu único irmão. Sua mãe lhe dissera que a doença fora mandada como castigo pelo pecado.

—   Os ingleses e a peste — dissera ela. — Ambos são obra do demônio.

—   Dizem que os ingleses também têm a peste — observara Roland.

—   Deus é bom — retrucara a viúva.

—   Mas por que papai morreu?

—   Ele era pecador — dissera a mãe.

Mesmo assim, ela transformou a casa num templo dedicado ao marido e ao filho mais velho, um templo com velas e crucifixos, panos pretos e um padre pago para rezar missas pelos dois falecidos que tinham partido vomitando e sangrando. Então os ingleses chegaram, e a viúva foi expulsa de sua terra e fugiu para as terras do conde de Armagnac, um primo distante. E o conde criou Roland para ser guerreiro, mas um guerreiro que sabia que o mundo era um campo de batalha entre Deus e o diabo, entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal. Agora ele via a escuridão aumentar enquanto as sombras se esgueiravam através do terreno marcado pela peste. O diabo estava lá fora, pensou, deslizando entre as árvores enegrecidas pelo crepúsculo, uma serpente rastejando ao redor da igreja arruinada.

—   Talvez eles não tenham nos seguido — disse quase num sussurro.

—   Talvez os primeiros arcos estejam sendo retesados agora mesmo — observou Genevieve. — Ou talvez acendam um fogo embaixo de nós.

—   Fique quieta — falou ele, e dessa vez seu tom era de súplica, não de comando.

Os primeiros morcegos estavam voando. Um cachorro latiu na aldeia e foi silenciado. Os galhos secos dos pinheiros chacoalhavam ao vento fraco, e Roland fechou os olhos e rezou a são Basílio e são Dênis, seus dois padroeiros. Apertou a bainha da espada, Durindana, e encostou a testa no grande botão do punho.

—   Não deixeis que o mal venha a mim nesta escuridão — rezou como sua mãe havia ensinado. — Fazei com que eu seja bom.

Um casco de cavalo soou entre as árvores. Ele ouviu o estalo de couro de sela e o tilintar de um arreio. Um cavalo relinchou, e seguiram-se mais passos.

—   Jacques! — gritou uma voz no escuro. — Jacques! Você está aí?

Roland levantou a cabeça. As primeiras estrelas estavam brilhando sobre as colinas. A mãe de são Basílio era viúva.

—   Não deixeis que minha mãe perca seu único filho — rezou.

—   Jacques, seu desgraçado — gritou a voz de novo.

Os homens de armas abrigados na torre olharam para Roland, mas ele continuou rezando.

—   Estou aqui — gritou Jacques Sollière para a escuridão. — É você, Philippe?

—   Sou o Espírito Santo, seu idiota — gritou de volta o homem chamado Philippe.

—   Philippe! — Agora os homens de armas na torre estavam de pé, gritando e dando as boas-vindas.

—   Eles são amigos — disse Jacques a Roland. — São homens do conde.

—   Ah, meu Deus — ofegou Roland.

Não podia acreditar no alívio que o inundava, tanto alívio que se sentiu fraco. Não era covarde. Nenhum homem que tivesse enfrentado Walter de Siegenthaler nos torneios poderia ser chamado de covarde. O alemão havia matado e mutilado homens em torneios incontáveis, sempre afirmando que a carnificina havia sido um acidente, mas Roland lutara contra o sujeito quatro vezes e o humilhara em cada combate. Não era covarde, mas ficara aterrorizado naquele crepúsculo arrepiante. Percebia que a guerra não tinha regras, e que nem toda a habilidade do mundo poderia ser suficiente para ajudá-lo a sobreviver.

Philippe apareceu na sombra embaixo da torre.

—   O conde nos enviou! — gritou ele.

—   Labrouillade? — perguntou Roland, ainda que a pergunta fosse desnecessária. Os homens de armas do conde haviam cumprimentado seus colegas de modo familiar.

—   Os ingleses estão marchando — explicou Philippe. — O senhor é o Sire de Verrec?

—   Sou. Onde estão os ingleses?

—   Em algum lugar ao norte — respondeu Philippe vagamente. — Mas é por isso que estamos aqui. O conde quer todos os seus homens de armas. — Mais soldados surgiam da escuridão, puxando os cavalos para a nave arruinada. — Podemos acender uma fogueira?

—   Claro. — Roland desceu rapidamente a escada. — O conde mandou vocês porque os ingleses estão marchando?

—   Ele foi chamado a Bourges, e quer levar pelo menos sessenta homens à guerra. Ele precisa dos homens que foram com o senhor. — Philippe ficou olhando enquanto um serviçal batia aço contra uma pederneira para acender um pouco de palha torcida. — Encontraram le Bâtard?

—   Ele está em Montpellier, preso, espero. — Roland ainda se sentia fraco, perplexo com o medo que o havia subjugado. — Está em Montpellier — repetiu. — Mas tenho a mulher dele.

—   Os rapazes vão gostar disso — disse Philippe.

—   Ela está sob minha proteção — afirmou Roland rigidamente. — Meu plano é trocá-la pela condessa.

—   Os rapazes vão gostar disso mais ainda — disse Philippe.

—   Porque a justiça será feita.

—   Dane-se a justiça, eles vão gostar de ver a cadela ser castigada. Ah, e apareceram uns sujeitos em Labrouillade. Estão procurando pelo senhor.

—   Quem são?

—   Um homem da Igreja — respondeu Philippe vagamente.

—   Como vocês souberam onde me encontrar? — perguntou Roland, ainda surpreso com o alívio que sentia.

—   Não estávamos procurando vocês. Queremos Jacques e os homens dele, mas sabíamos que vocês tinham ido a Montpellier. Temos um homem em Castillon d’Arbizon. Ele é dono de uma taverna, ouve as conversas e nos manda mensagens. Ele disse que le Bâtard tinha ido a Montpellier, o que significava que vocês iriam segui-lo. O seu homem da Igreja também o quer.

—   Meu homem da Igreja?

—   O que está procurando o senhor. O desgraçado pode até estar nos seguindo. Ele é muito ansioso. — Philippe parou abruptamente, vendo Genevieve descer a escada para a luz da pequena fogueira, que agora ardia com palha e madeira podre. — Ah, isso é bom.

—   Eu já lhe disse — afirmou Robert. — Ela está sob minha proteção.

—   O que não vai significar muito se o marido não nos entregar a condessa, não é? E o senhor disse que ele está em Montpellier. De qualquer modo, o conde quer os homens de armas dele de volta. Os malditos ingleses estão queimando, saqueando, estuprando, matando. Temos uma guerra de verdade para lutar.

—   Haverá batalha? — perguntou Roland, subitamente consciente de fazer parte de uma luta em que não havia regras.

—   Só Deus sabe. Alguns dizem que o rei vai trazer um exército para o sul, alguns dizem que não. E a verdade é que ninguém sabe. Todos recebemos ordem de ir para Bourges, e eles nos querem lá o mais depressa possível.

—   Eu venci um torneio em Bourges — disse Roland.

—   O senhor vai descobrir que a guerra é um pouco diferente. Não há juízes para impedir a matança, para começo de conversa. Mas só Deus pode dizer se haverá mesmo uma luta. Por enquanto nosso serviço é ficar de olho nos desgraçados.

—   E o meu é devolver a condessa ao marido — disse Roland com firmeza.

—   Ele vai ficar feliz com isso — respondeu Philippe, depois riu. — E nós também. — Em seguida bateu palmas, atraindo a atenção dos homens. — Vamos partir ao amanhecer! Descansem um pouco! Os cavalos ficam aqui; se quiserem arrancar alguns desgraçados da cama na aldeia, façam isso. Jean, o outro Jean e François: vocês três estão de guarda.

—   Minha prisioneira vai dormir na torre — disse Roland —, e eu vou guardá-la.

—   Bom, bom — respondeu Philippe distraidamente.

Naquela noite Roland praticamente não dormiu. Ficou sentado na escada de pedra da igreja e pensou em como o mundo estava desmoronando. Na mente dele havia uma ordem correta para as coisas. Um rei governava, aconselhado por seus nobres e pelos homens sábios da Igreja, e juntos garantiam a justiça e a prosperidade. O povo deveria agradecer por esse governo e mostrar sua gratidão com deferência. Havia inimigos, claro, mas um rei sábio os enfrentava com cortesia, e Deus decidiria o resultado de qualquer desacordo através dos mecanismos do destino. Essa era a ordem correta, mas em vez disso o mundo era infestado por homens como Jacques e Philippe, duros, que não demonstravam respeito, que roubavam, trapaceavam e tinham orgulho disso. Se os ingleses estavam marchando, isso era lamentável e obviamente ia contra a vontade de Deus, mas o rei da França, com seus bispos e nobres, traria a bandeira de são Dênis para destruí-los. Essa era uma tarefa santa, uma tarefa lamentável, mas, para o desgosto de Roland, Philippe adorava a ideia da guerra.

—   É uma chance de ganhar dinheiro — disse ele a Roland durante a refeição frugal. — Ter um prisioneiro rico é a melhor coisa que existe.

—   Ou entrar nas carroças de bagagens do inimigo — concordou Jacques com ar lupino.

—   Geralmente não há nada além de feridos e serviçais acompanhando a bagagem — explicou Philippe a Roland. — Por isso a gente simplesmente mata os desgraçados e se serve.

—   E as mulheres — completou Jacques.

—   Ah, meu Deus, as mulheres. Lembra aquela luta em… Onde mesmo? — Philippe franziu a testa, tentando lembrar. — O lugar da ponte quebrada.

—   Nunca soube qual era o nome. Ao sul de Reims, não foi?

Philippe riu da lembrança.

—   Os ingleses estavam de um lado do rio e as mulheres deles do outro. Eu amarrei quatro delas no rabo do meu cavalo, todas nuas. Meu Deus, aquele foi um mês bom.

—   Ele ficou alugando as mulheres — explicou Jacques a Roland.

—   Menos ao conde, claro — disse Philippe. — Ele as teve de graça, porque era o conde.

—   Os nobres têm privilégios — concordou Jacques.

—   E também o privilégio de não lutar — acrescentou Philippe, parecendo ressentido.

—   Ele é gordo demais — defendeu Jaques. — Mas, quando luta, é um demônio! Eu o vi esmagar a cabeça de um homem, crânio, elmo e tudo, com um golpe daquela maça. Havia miolos por toda parte!

—   A luta já havia terminado — disse Philippe com desprezo. — Ele só participou quando era seguro. — E balançou a cabeça com a lembrança, depois olhou para Roland. — Então, vai se juntar a nós, sire?

—   Juntar-me a vocês?

—   Para lutar contra os malditos ingleses!

—   Quando eu tiver terminado minha… — Roland hesitou. Já ia dizer “busca aventuresca”, mas suspeitou que aqueles homens mais velhos e mais endurecidos zombariam dele. — Minha tarefa.

Assim, desconfortável na escada de pedra, Roland praticamente não dormiu. Estava incomodado pela lembrança do riso de zombaria dos dois homens de armas. Poderia derrotar qualquer um dos dois na liça, mas suspeitava de que o destino seria bem diferente no campo de batalha. Teve uma visão súbita da torre de cerco desmoronando em Breteuil, dos homens gritando enquanto queimavam. Tranquilizou-se pensando que não havia entrado em pânico naquele momento, tinha mantido a calma e resgatado um homem, mas ainda assim fora uma derrota, e nenhuma das suas habilidades evitara tal vergonha. Ele temia a guerra.

Na manhã seguinte, ao alvorecer, continuaram cavalgando para o norte. Roland sentia-se muito mais seguro agora que estava escoltado por quase vinte homens com espadas e armaduras, enquanto Genevieve se mantinha quieta. Ficava olhando para o leste, esperando o surgimento de arqueiros montados, mas nada se movia nos morros baixos. O sol de verão era implacável, cozinhando os campos, diminuindo o ritmo dos cavalos e fazendo os homens suarem nas malhas pesadas. Philippe havia assumido a liderança, usando trilhas fora da estrada principal. Passaram por outra aldeia arruinada pela peste. Girassóis cresciam em jardins abandonados. Devia haver pessoas trabalhando nos campos e nos vinhedos, mas elas se escondiam sempre que viam cavaleiros usando malha.

—   Quanto falta? — perguntou Roland enquanto davam água aos cavalos num vau que atravessava uma plantação.

—   Não muito — respondeu Philippe. Ele havia tirado o elmo e estava enxugando o rosto com um pedaço de pano. — Talvez duas horas de cavalgada.

Roland fez um gesto para seu escudeiro trazer o cavalo.

—   Não o deixe beber demais — ordenou, depois olhou para Philippe de novo. — E assim que você chegar a Labrouillade terá de partir para o norte? — perguntou.

—   Dentro de um ou dois dias.

—   Vão seguir os ingleses?

Philippe deu de ombros.

—   Presumo que sim. Se o rei nos alcançar vamos nos juntar a ele, caso contrário vamos assediar os forrageiros dos ingleses, matar os retardatários e mantê-los preocupados. — Ele levantou a cota de malha para mijar em uma árvore. — E com sorte faremos alguns prisioneiros ricos.

E a primeira flecha atingiu o alvo.

 

Thomas levou seus homens e os cavalos para dentro de um pequeno vilarejo. Não tinha ideia de como ele se chamava, só que não havia um modo fácil de contorná-lo, por isso deveriam cavalgar pelas ruas estreitas e esperar que ninguém os retardasse. Tomou a precaução de amarrar as mãos do prisioneiro e amordaçá-lo com trapos.

—   Deveríamos comprar comida — sugeriu Karyl.

—   Mas faça isso depressa — respondeu Thomas.

Os cavaleiros entraram numa pracinha no centro da cidade, mas chamá-la de cidade seria lisonjear demais um local que não tinha muros nem fortaleza. Barracas de feira se enfileiravam no lado oeste da praça, onde havia uma taverna sob um morro íngreme ao norte, e Thomas deu algumas moedas a Karyl.

—   Peixe seco, pão, queijo — sugeriu.

—   Ninguém está vendendo — resmungou Karyl.

Todos os feirantes e fregueses haviam se juntado perto da igreja. Olhavam curiosos para os cavaleiros, mas nenhum perguntou o que queriam. Uns dois, ao ver que eles se interessavam pela comida à venda nas barracas, correram para ajudar. Thomas levou seu cavalo pelas pedras do calçamento até onde a multidão era mais densa e viu que um homem de ombros largos estava lendo em voz alta no topo da escadaria da igreja. O homem havia perdido a mão direita e no lugar dela usava um espeto de madeira onde o pergaminho estava empalado. Tinha um elmo justo, barba grisalha e curta e usava uma túnica desbotada que mostrava uma flor-de-lis dourada contra campo azul. Baixou o pergaminho ao ver Thomas se aproximar.

—   Quem é você? — gritou ele.

—   Servimos ao conde de Berat — mentiu Thomas.

—   Seria bom retornar para lá — disse o homem.

—   Por quê?

O homem fez um floreio com o pergaminho.

—   Isto é o arrière-ban. Berat e todos os outros senhores estão convocados a guerrear pelo rei. Os ingleses saíram. — A multidão resmungou baixo e algumas pessoas até olharam nervosas para o norte, como se esperassem ver o velho inimigo aparecer nas montanhas.

—   Eles vêm nesta direção? — perguntou Thomas.

—   Não, Deus seja louvado. Aqueles malditos estão muito ao norte daqui, mas quem sabe? O diabo pode trazê-los para o sul a qualquer dia.

O cavalo de Thomas bateu com o casco no chão. O cavaleiro se inclinou e acariciou o pescoço dele.

—   E o rei? — perguntou.

—   Deus vai lhe dar a vitória — disse devotamente o homem de barba grisalha, o que na verdade queria dizer que não tinha notícias dos movimentos do rei francês. — Mas, até que Deus faça isso, meu senhor convoca todos os homens de armas para se juntar em Bourges.

—   E quem é o seu senhor?

—   O duque de Berry — respondeu o homem com orgulho. Isso explicava a flor-de-lis real em sua túnica, porque o duque de Berry era filho do rei João e dono de grande quantidade de ducados, condados e feudos.

—   O duque planeja lutar sozinho contra eles?

O mensageiro deu de ombros.

—   O rei ordenou. Todas as forças do sul da França devem se reunir em Bourges.

—   Onde fica Bourges?

—   Ao norte, mas para ser honesto não sei exatamente. Sei apenas que o senhor deve ir até Nevers e de lá há uma estrada boa.

—   Onde quer que seja Nevers — resmungou Thomas. — O seu senhor convocou Labrouillade também?

—   Claro. O arrière-ban convoca todos os senhores e todos os vassalos. Com a graça de Deus vamos fazer uma armadilha para os malditos e destruí-los.

—   E esse bom povo? — Thomas indicou a multidão que seria de sessenta ou setenta pessoas e que não tinha nenhum homem de armas, pelo que podia ver.

—   Ele quer os nossos impostos! — gritou um homem com avental de açougueiro sujo de sangue.

—   Os impostos devem ser pagos — disse o mensageiro com firmeza. — Para que os ingleses sejam derrotados, o exército precisa ser pago.

—   Os impostos foram pagos! — gritou o açougueiro, e o restante o apoiou ruidosamente.

Temendo a raiva da multidão, o mensageiro apontou para o jovem Pitou.

—   Um prisioneiro? — perguntou a Thomas. — O que ele fez?

—   Roubou do conde — mentiu Thomas.

—   Quer enforcá-lo aqui? — perguntou o homem cheio de esperança, obviamente querendo uma distração para a hostilidade da turba.

—   Ele deve retornar a Berat. O conde gosta de enforcar os ladrões pessoalmente.

—   Que pena. — O homem tirou o documento do espeto de madeira e abriu caminho pela multidão até chegar ao estribo de Thomas. — Uma palavra, monsieur?

Agora que o mensageiro estava perto, Thomas viu que ele tinha um rosto astuto e marcado pelo tempo, o que sugeria que havia passado por coisas demais e que nada que acontecesse no futuro iria surpreendê-lo.

—   Você já foi soldado? — perguntou Thomas.

—   Fui, até que um gascão filho da puta cortou minha mão. — Ele usou o espeto de madeira para afastar os homens que o haviam seguido na esperança de ouvir a conversa, então fez um gesto para Thomas, em direção ao centro da praça. — Meu nome é Jean Baillaud — apresentou-se. — Sargento de Berry.

—   Ele é um bom senhor?

—   É a porcaria de uma criança.

—   Criança?

—   Tem 15 anos. Acha que sabe tudo. Mas, se o senhor me ajudar, tenho certeza de que posso convencê-lo a ser agradecido. — Ele fez uma pausa, sorrindo. — E a gratidão de um príncipe é algo que vale a pena.

—   E como posso ajudar?

Baillaud olhou de volta para a pequena multidão e baixou a voz.

—   Os pobres coitados pagaram os impostos, ou pelo menos a maioria.

—   Mas você quer mais?

—   Claro. Os impostos nunca são suficientes. Se você for idiota e pagar uma vez, pode ter certeza de que vamos voltar para espremê-lo de novo.

—   E o conde mandou você espremê-los sozinho?

—   Ele não é tão idiota assim. Tenho sete homens de armas aqui, mas a cidade sabe por que viemos.

Thomas olhou para a taverna.

—   E a cidade foi generosa com o vinho?

—   Com vinho e putas.

—   Então… — disse Thomas, e deixou a palavra no ar quente do meio-dia.

—   Esprema os desgraçados por mim e você pode levar dez por cento de volta a Berat.

—   O conde gostaria disso.

—   Aquele açougueiro é o tesoureiro da cidade — disse Baillaud. — Ele tem a lista dos impostos, mas diz que perdeu. O senhor poderia começar ajudando-o a encontrá-la, não é?

Thomas assentiu.

—   Deixe-me falar com meus homens — disse, e instigou o cavalo até taverna. Assim que ficou fora do alcance da audição de Baillaud, chamou Keane. — Há oito cavalos no estábulo da taverna — disse. — E vamos levar todos. Você e o irmão Michael vão dar a volta até os fundos e certificar-se de que eles estão arreados. Karyl!

O alemão havia terminado de comprar os suprimentos e estava enfiando a comida nas bolsas das selas.

—   Quer mais? — perguntou ele.

Thomas chamou-o para perto.

—   Há sete homens com putas na taverna. Vamos pegar as malhas e as armas deles.

—   Vamos matá-los?

—   Só se causarem encrenca.

Karyl foi em direção à taverna enquanto Baillaud alcançava Thomas.

—   Eles vão fazer?

—   De boa vontade — respondeu Thomas.

—   Não ouvi o seu nome — disse Baillaud.

—   Thomas — respondeu, e estendeu a mão para apertar a do outro homem, porém percebeu que não havia nada para apertar.

—   Você fala como normando — disse o sargento.

—   É o que as pessoas dizem. É para lá que os ingleses estão indo?

—   Deus sabe. Eles saíram da Gasconha e a última coisa que ouvi foi que estavam em Périgueux.

—   Podem estar vindo para cá.

—   Há mais saque no norte. O principezinho inglês tirou tudo que havia no sul no ano passado. — Ele fez uma careta. — É um tremendo escândalo — disse com raiva.

—   Escândalo?

—   Eduardo de Gales! É um nada! Um cachorrinho mimado, privilegiado! Só quer saber de mulheres e jogo, e está causando devastação na França porque o rei João tem medo de flechas. Deveríamos pegar o desgraçado, derrubar o cavalo dele e espancá-lo como um menino de sete anos. — De repente Baillaud se virou e olhou para a estalagem. Era possível ouvir gritos. — O quê? — começou ele, e parou abruptamente quando um homem nu foi jogado de costas de uma escada do andar de cima. O sujeito caiu violentamente e ficou ali, remexendo-se ligeiramente. — Aquele é…

—   Um dos seus homens — respondeu Thomas. — As putas desta cidade devem ser bem fortes.

—   Sangue de Deus — protestou Baillaud, e foi na direção do sujeito prostrado, mas parou porque um segundo homem nu havia saído pela porta da taverna. Estava recuando freneticamente, perseguido por dois dos homens de Thomas.

—   Eu me rendo — gritou o sujeito. — Chega! Chega!

—   Deixem-no! — disse Thomas.

—   O desgraçado jogou um penico em mim — vociferou Arnaldus.

—   O mijo vai secar — disse Thomas.

—   Não estava cheio de mijo — respondeu o gascão, e chutou com força o homem nu entre as pernas. — Agora posso deixá-lo ir embora.

—   O que você está… — começou Baillaud.

Thomas sorriu de cima da sela.

—   Os homens me chamam de le Bâtard — disse. — E nós somos os hellequins. — Em seguida tocou o punho da espada só para lembrar a Baillaud que ela existia. — Vamos pegar seus cavalos e suas armas — continuou, depois virou o cavalo e instigou-o na direção das pessoas da cidade, ainda reunidas em volta da escadaria da igreja. — Paguem seus impostos! — gritou. — Tornem seus senhores ricos, para que quando nós os capturarmos eles possam nos pagar um grande resgate. Vocês vão ficar pobres, e nós, ricos! Vocês têm nossa gratidão. — As pessoas simplesmente o olharam boquiabertas.

Agora Thomas tinha mais cavalos de reserva, mais armas, mais cotas de malha. Se houvesse alguém perseguindo-o desde Montpellier, estaria muito atrás, mas não eram esses perseguidores que o preocupavam. Era Genevieve.

Por isso continuaram em direção ao norte.

 

A flecha acertou Philippe bem no peito. O som do impacto fez Roland pensar num machado de açougueiro se chocando contra uma carcaça. Philippe foi jogado para trás pela força do golpe. A flecha havia perfurado sua cota de malha, partido uma costela e perfurado um pulmão. Ele tentou falar, mas o sangue borbulhou nos lábios e ele caiu para trás. Mais flechas voaram. Dois outros homens caíram. O sangue misturava-se ao riacho em redemoinhos. Uma flecha passou perto da cabeça de Roland, errando sua orelha por um palmo. O vento produzido pelo deslocamento da flecha foi como um tapa. Um cavalo estava relinchando com uma flecha na barriga. Elas eram muito mais longas do que Roland esperava. Ele ficou pasmo por conseguir notar isso, mas, mesmo enquanto os projéteis passavam chicoteando vindos do oeste, ele ficava atônito com o tamanho das hastes, muito maiores do que as flechas curtas que ele usava para caçar. Outra acertou uma árvore e se fincou, tremendo.

Philippe estava morrendo. Os homens corriam para se esconder atrás de árvores, ou sob o barranco baixo da margem, mas foi Jacques quem os salvou. Correu para perto de Genevieve e arrancou o filho dela de seus braços. Agarrou o menino pelo cinto e segurou-o no alto, com a mão forte, e com a outra desembainhou uma faca longa. Segurou a lâmina junto ao pescoço do garoto. Genevieve gritou, mas as flechas pararam.

—   Diga a eles que seu filho morre se mais uma flecha for disparada — declarou Jacques.

—   Seu… — começou Genevieve.

—   Diga a eles, cadela! — vociferou Jacques.

Genevieve pôs as mãos em concha em torno da boca.

—   Chega de flechas! — gritou em inglês.

Houve silêncio, a não ser pelo gorgolejar na garganta de Philippe. Cada respiração trazia mais sangue para se derramar pela boca. O cavalo começou a relinchar baixo, com os olhos arregalados.

—   Diga a eles que vamos embora — ordenou Jacques — e que o garoto morre se tentarem nos impedir.

—   Vocês devem nos deixar em paz! — gritou Genevieve.

Então os arqueiros apareceram, saindo de um bosque 100 metros a leste. Eram dezesseis, todos segurando os grandes arcos de guerra.

—   Genny! — gritou um deles.

—   Eles vão matar Hugh se tentarem impedi-los — gritou ela de volta.

—   Alguma notícia de Thomas?

—   Não, Sam! Agora deixem-nos ir!

Sam acenou, como a sugerir que podiam partir, e Roland começou a respirar de novo. Dois homens estavam colocando o agonizante Philippe num cavalo, e dois cadáveres foram postos sobre outras selas. Os homens montaram, mas Jacques continuou segurando o garoto.

—   Quebre as flechas — ordenou a um homem.

—   Quebrar?

—   Para que não possam usá-las de novo, seu idiota com meio cérebro.

O homem partiu o máximo de flechas caídas que pôde encontrar, depois Jacques levou-os para o norte.

Roland estava em silêncio. Pensava nas flechas voando. Pela graça de Deus nenhuma o havia atingido, mas o terror daquelas hastes ainda o deixava trêmulo, e havia sido apenas um punhado de arqueiros. O que mil homens assim eram capazes de fazer?

—   Como eles nos encontraram? — perguntou.

—   Eles são arqueiros — disse Genevieve. — Vão encontrar você.

—   Quieta, cadela — gritou Jacques. Ele estava com Hugh na frente da sela e continuava segurando a faca.

—   Seja cortês — disse Roland, com mais raiva do que havia pretendido.

Jacques murmurou alguma coisa baixinho, mas esporeou o cavalo para se afastar da companhia de Roland. Este olhou de volta para a estrada e viu que agora os arqueiros haviam montado e os seguiam, porém a uma boa distância. Imaginou até que distância um arco inglês era capaz de disparar, depois esqueceu a questão enquanto os homens de armas chegavam ao topo de uma pequena colina, e ali estava Labrouillade. O castelo ficava no centro de um vale amplo e raso, com o fosso alimentado por um riacho sinuoso que serpenteava pela pastagem calma. Nenhuma árvore crescia perto do castelo e nenhuma construção era permitida num raio de meio quilômetro, de modo que nenhum sitiante pudesse encontrar abrigo para um arqueiro ou uma máquina de cerco. As pedras da muralha pareciam quase brancas contra o sol forte. O fosso brilhava. O estandarte branco do conde pendia imóvel na torre mais alta. Então Jacques esporeou, e os outros cavaleiros foram atrás. Roland viu a grande ponte levadiça descer rangendo. Os cascos ecoaram alto nas tábuas; ele mergulhou na escuridão súbita do arco de entrada, e ali, esperando no pátio do castelo, estava um homem alto da Igreja com olhos verdes e um falcão no pulso.

O enorme cabrestante da torre do portão estalou quando dois homens giraram a manivela para fechar a pesada ponte levadiça. A lingueta que a mantinha fechada fez barulho sobre os dentes de metal, depois as pranchas encontraram o arco com um estrondo e dois homens correram para trancar a enorme ponte soerguida.

E Roland sentiu-se em segurança.

 

Thomas chegou no fim do dia. Seus cavalos estavam exaustos, tropeçando no bosque de nogueiras e carvalhos. Um arqueiro, vendo cavaleiros escuros contra a fornalha do crepúsculo, gritou interpelando:

—   Quem são vocês?

—   Não é bom gritar em inglês, Simon — gritou Thomas de volta.

—   Pelas entranhas de Deus. — Simon baixou seu arco. — Achamos que você estava morto.

—   Estou me sentindo assim.

Thomas e seus companheiros haviam cavalgado intensamente o dia inteiro, depois andaram ao redor do castelo do conde de Labrouillade procurando os homens que tinham vindo de Castillon d’Arbizon, sem saber se eles estariam ali, até que os encontraram nessa colina coberta de árvores que dava uma boa visão da única entrada do castelo. Thomas desceu da sela com o ânimo enfraquecido, o moral tão baixo quanto o sol inchado que lançava sombras compridas pelo vale amplo onde Labrouillade construíra sua fortaleza.

—   Nós tentamos impedi-los — disse Sam.

—   Fizeram bem — respondeu Thomas ao ouvir toda a história.

Sam e seus arqueiros haviam chegado ao riacho apenas alguns minutos antes de Roland e sua escolta surgirem, e de fato tinham feito bem em montar uma emboscada.

—   Nós teríamos derrubado todos os homens, se não fosse Hugh — continuou Sam. — O desgraçado estava com uma faca no pescoço dele. Ainda assim matamos uns dois.

—   Mas Genevieve está lá dentro?

Sam confirmou com a cabeça

—   Ela e Hugh.

Thomas, na beirada do bosque, olhou para o castelo. Sem chance, pensou. O sol avermelhava a muralha, reluzia no fosso, tornando-o escarlate, e refletia um fiapo de luz sinistra no elmo de uma sentinela. Com um canhão, pensou, poderia despedaçar a ponte levadiça num dia, mas como atravessaria o fosso?

—   Eu trouxe o seu arco — disse Sam.

—   Você estava me esperando? Ou planejava usá-lo?

Sam pareceu confuso por um momento, depois mudou de assunto.

—   E trouxemos a condessa também — disse ele.

—   Trouxeram?

Sam indicou o sul com a cabeça.

—   Está numa fazenda lá atrás. Pitt está garantindo que a cadela idiota não fuja.

—   Por que diabos você a trouxe?

—   Para o caso de você querer trocá-la. Foi ideia do padre Levonne. Ele também está lá.

—   O padre Levonne? Por quê?

—   Ele quis vir. Ele não tem certeza de se você deveria trocá-la, mas… — A voz de Sam ficou no ar.

—   Seria uma solução simples — completou Thomas.

Ele estava pensando que não deveria perder tempo ali. Havia a busca por la Malice e, mais importante, a notícia de que o príncipe de Gales marchava com um exército por algum lugar da França. Arqueiros e homens de armas estavam devastando uma grande área do campo, destruindo propriedades, queimando cidades e espalhando pânico, tudo isso na esperança de atrair um exército francês para o alcance dos longos arcos de guerra e de suas flechas com penas de ganso. Thomas sabia que seu lugar era com aquele exército, mas em vez disso estava enjaulado ali porque Genevieve e Hugh eram prisioneiros, e a solução simples seria realmente oferecer Bertille, a condessa de Labrouillade, de volta ao marido vingativo. Contudo, se fizesse isso enfrentaria a fúria de Genevieve. Bom, pensou, que ela ficasse com raiva. Melhor estar furiosa e livre do que prisioneira e desamparada.

—   Você tem sentinelas? — perguntou a Sam.

—   Ao longo de toda a margem do bosque. Mais umas duas na estrada a leste, uma dúzia em volta da fazenda.

—   Fez bem — disse Thomas outra vez. A lua estava subindo enquanto a última luz do dia se esgotava no oeste. Thomas fez um sinal para Keane se juntar a ele enquanto ia na direção da fazenda onde Bertille estava. — Quero que você cavalgue até uma distância em que possa ser ouvido no castelo — disse ao irlandês. — Sem armas. Mantenha as mãos longe do corpo para mostrar que está desarmado.

—   E vou estar desarmado?

—   Vai.

—   Meu Deus. A que distância uma besta pode acertar?

—   Muito mais longe do que você consegue gritar.

—   Então você quer que eu seja morto?

—   Se eu fosse pessoalmente, acho que eles poderiam atirar, mas eles não o conhecem, e você tem língua afiada.

—   Notou isso, não foi?

—   Eles não vão atirar — disse Thomas, tranquilizando-o, esperando que fosse verdade — porque vão querer ouvir o que você tem a dizer.

Keane estalou os dedos e os dois cães de caça vieram para perto.

—   E o que devo dizer?

—   Diga que vou trocar a condessa por Genevieve e meu filho. Não deve haver mais de três homens como escolta de cada lado, e a troca vai acontecer na metade do caminho entre a floresta e o castelo.

—   Essa confusão toda é por causa disso? Da condessa?

—   Labrouillade a quer de volta.

—   Ah, que tocante! O sujeito deve amá-la.

Thomas preferiu não pensar no motivo para o conde querer Bertille de volta, porque sabia que ao trocá-la estava condenando-a ao sofrimento e possivelmente à morte, mas Genevieve e Hugh eram infinitamente mais importantes para ele. Era uma pena, pensou. Mas era inevitável.

—   E exatamente quando devo entregar essa mensagem?

—   Agora. Há luar suficiente para eles verem que você não está armado.

—   Também há o suficiente para mirar com uma besta.

—   É — concordou Thomas.

Encontrou a condessa na enorme cozinha da fazenda, um cômodo atravessado por pesados caibros de onde pendiam ervas para secar. O padre Levonne, sacerdote de Castillon d’Arbizon, encontrava-se ali, e Pitt estava vigiando-a. Pitt, que não respondia a qualquer outro nome, era um homem alto, magro e taciturno com rosto magro, cabelo liso amarrado com uma corda de arco esgarçada e olhos fundos. Era inglês de Cheshire, mas havia se juntado aos hellequins na Gasconha, saindo a cavalo de uma floresta como se fizesse parte deles e depois simplesmente entrando na fileira, sem dizer nada. Tinha humor sombrio, pensativo, e Thomas suspeitava de que ele havia desertado de alguma outra companhia, mas além disso era um arqueiro esplêndido e sabia comandar homens em batalha.

—   Que bom que você voltou — resmungou ele ao ver Thomas.

—   Thomas — disse o padre Levonne, com alívio, e se levantou da cadeira ao lado de Bertille.

Thomas sinalizou para o sacerdote permanecer sentado. Bertille estava sentada à grande mesa onde duas velas ardiam, soltando fumaça. Uma criada, fornecida por Genevieve dentre as jovens de Castillon d’Arbizon, permanecia ajoelhada ao lado dela. Os olhos da condessa estavam vermelhos de tanto chorar. Ela voltou-se para Thomas.

—   Você vai me devolver, não é?

—   Vou, senhora.

—   Thomas… — começou o padre Levonne.

—   Vou — disse Thomas asperamente, cortando qualquer protesto que o padre pudesse fazer.

Bertille baixou a cabeça e começou a chorar de novo.

—   Você sabe o que ele vai fazer comigo?

—   Ele está com minha mulher e meu filho.

Ela soluçou baixinho.

—   Meu Deus — sussurrou Keane ao lado de Thomas.

Thomas ignorou o irlandês.

—   Sinto muito, senhora — disse ele.

—   Quando? — perguntou ela.

—   Esta noite, espero.

—   Eu preferiria estar morta.

—   Thomas — disse o padre Levonne —, deixe-me falar com o conde.

—   De que diabo você acha que isso vai adiantar? — perguntou Thomas, mais irritado do que pretendia.

—   Só me deixe falar com ele.

Thomas balançou a cabeça.

—   O conde de Labrouillade é um filho da mãe maligno, furioso, malévolo e gordo, e a esta hora provavelmente está um tanto bêbado. Se eu deixar que você entre no castelo dele, provavelmente não sairá.

—   Então eu fico lá. Sou padre. Vou aonde sou necessário. — O padre Levonne fez uma pausa. — Deixe-me falar com ele.

Thomas pensou por um momento.

—   Do lado de fora do castelo, talvez.

Levonne hesitou, depois concordou com a cabeça.

—   Está bem.

Thomas segurou o cotovelo de Keane e levou-o para o pátio da fazenda.

—   Não deixe o padre Levonne entrar no castelo. Provavelmente vão fazê-lo refém também.

Pela primeira vez o irlandês parecia sem palavras, mas finalmente encontrou a própria língua.

—   Pelo sangue de Cristo — disse, desejoso —, ela é uma criatura linda.

—   Ela pertence a Labrouillade — reagiu Thomas asperamente.

—   Ela é capaz de apagar as estrelas e transformar a mente de um homem em fumaça.

—   Ela é casada.

—   Uma criatura tão linda… — continuou Keane, pensativo. — Ela nos faz acreditar que Deus realmente nos ama.

—   Agora encontre um cavalo descansado, e você e o padre Levonne levarão a mensagem a Labrouillade. — Thomas se virou para o padre, que os havia seguido ao luar. — Pode dizer suas palavras, padre, mas, a não ser que consiga convencer o conde a soltar Genevieve, vou trocar a condessa.

—   Tudo bem — respondeu sem entusiasmo o padre Levonne.

—   Quero acabar logo com isso — disse Thomas asperamente —, porque amanhã vamos para o norte.

Para o norte. Juntar-se a um príncipe ou encontrar la Malice.

 

Roland de Verrec sentiu sua alma voar como um pássaro num céu límpido, um pássaro capaz de rasgar as nuvens da dúvida e ascender às alturas da glória, um pássaro com asas de fé, branco como os cisnes que nadavam no fosso do castelo do conde de Labrouillade, onde agora ele estava ajoelhado na capela iluminada por velas. Tinha consciência do próprio coração batendo, não somente batendo, mas martelando no peito, como se acompanhasse o ritmo das asas de sua alma em voo. Roland de Verrec estava em êxtase.

Naquela noite ficara sabendo da Ordem do Pescador. Tinha ouvido o padre Marchant falar sobre o objetivo da ordem e a busca de la Malice.

—   Mas eu sei sobre la Malice — dissera Roland.

O padre Marchant ficou pasmo, mas se recuperou.

—   Sabe? — perguntou ele. — E o que sabe, filho?

—   É a espada que são Pedro estava usando em Getsêmani, uma espada que foi desembainhada para proteger nosso Salvador.

—   Uma arma sagrada — disse gentilmente o padre Marchant.

—   Porém amaldiçoada, padre. Dizem que é amaldiçoada.

—   Também ouvi dizer isso — respondeu o padre Marchant.

—   Foi amaldiçoada porque são Pedro a usou e Cristo o censurou.

—   “Dixit ergo Iesus Petro mitte gladium in vaginam…” — O padre Marchant começara a citação do evangelho, depois conteve-se porque Roland parecera perturbado demais. — O que é, filho?

—   Se homens maus encontrarem a espada, padre, terão um enorme poder!

—   É por isso que a ordem existe — explicou o padre com paciência. — Para garantir que la Malice pertença apenas à Igreja.

—   Mas a maldição pode ser retirada! — disse Roland.

—   Pode? — O padre Marchant pareceu surpreso.

—   Dizem que, se ela for levada a Jerusalém e abençoada dentro das paredes da Igreja do Santo Sepulcro, a maldição será retirada e a espada se tornará um instrumento da Glória de Deus. — Nenhuma outra espada, nem a Durindana de Roland, nem a Joyeuse de Carlos Magno, nem mesmo a Excalibur de Artur, poderia se comparar a la Malice. Ela seria a arma mais sagrada da terra de Deus caso a maldição pudesse ser retirada.

O padre Marchant ouvira o espanto reverente na voz de Roland, mas, em vez de dizer que uma viagem a Jerusalém era quase tão provável quanto o ressurgimento de são Pedro, balançou a cabeça solenemente.

—   Então devemos acrescentar esse dever às tarefas da ordem, filho.

Agora, na capela iluminada pelas velas, Roland estava sendo iniciado. Tinha feito sua confissão, recebido a absolvição, e agora se ajoelhava no degrau do altar. Os outros cavaleiros estavam atrás dele, de pé na pequena nave pintada de branco. Roland ficara feliz ao encontrar Robbie na ordem, mas Sculley, o segundo escocês, com ossos nos cabelos, o havia chocado. Até mesmo uns poucos instantes na presença de Sculley significavam ser golpeado pela grosseria do sujeito: o perpétuo riso irônico, os palavrões, a maldade, a zombaria e o apetite pela crueldade.

—   Ele é de fato um instrumento grosseiro — dissera o padre Marchant a Roland —, mas Deus faz uso da argila mais humilde.

Agora Sculley estava arrastando os pés e murmurando algo sobre tempo desperdiçado. Os outros cavaleiros permaneciam em silêncio, assistindo ao padre Marchant rezar em latim. Ele abençoou a espada de Roland, pôs as mãos na cabeça dele e uma faixa com as chaves do pescador bordadas em seu pescoço. E, enquanto ele rezava, as velas na capela estavam sendo apagadas uma a uma. Era como o serviço religioso na Sexta-Feira Santa, quando, para marcar a morte do redentor, as igrejas da cristandade eram mergulhadas na escuridão. E quando a última vela se apagou havia apenas a luz pálida da lua do lado de fora da janela única da capela e a pequena chama vermelha da presença eterna, lançando sombras escuras cor de sangue no Cristo crucificado em prata que Roland espiava com adoração. Ele havia encontrado sua causa, uma busca aventuresca digna de sua pureza, e acharia la Malice.

Então Genevieve gritou.

E gritou de novo.

 

Keane e o padre Levonne haviam cavalgado para perto da ponte levadiça, onde o irlandês gritou para uma sentinela, que simplesmente olhou os dois cavaleiros ao luar e depois deu alguns passos ao longo do parapeito da torre do portão.

—   Está ouvindo? — gritou Keane. — Diga ao seu senhor que estamos com a mulher dele! Ele a quer de volta, não é? — E esperou. Seu cavalo bateu com o casco no chão. — Meu Deus, homem, está me ouvindo? — gritou. — Nós estamos com sua senhora aqui! — A sentinela se inclinou entre duas ameias para olhar Keane outra vez, mas não respondeu, e depois de um instante voltou para trás das pedras. — Está surdo? — perguntou Keane.

—   Meu filho — gritou o padre Levonne. — Sou um sacerdote! Deixe-me falar com seu senhor!

Não houve resposta. A lua iluminava o castelo e tremeluzia branca no fosso ondulado pelo vento. Só houvera um homem visível na muralha da torre do portão, mas agora ele desaparecera, deixando Keane e Levonne aparentemente sozinhos. O irlandês sabia que Thomas e uma dúzia de homens observavam das árvores, mas se perguntou quem mais estaria observando das fendas escuras na muralha e nas torres enluaradas, e se esses observadores teriam bestas retesadas, com setas curtas e pesadas com pontas de aço. Os dois cães, que haviam seguido Keane, ganiram.

—   Tem alguém ouvindo? — gritou Keane.

Um sopro de vento levantou a bandeira no fortim do castelo. Ela se agitou, depois tombou quando a brisa morreu. Uma coruja piou do outro lado do vale, e os cães levantaram a cabeça e farejaram o ar. Eloísa rosnou baixinho.

—   Calma — disse-lhe Keane. — Quieta, menina. Amanhã vamos caçar umas lebres. Talvez um cervo, se você tiver sorte, hein?

—   Inglês! — gritou uma voz no castelo.

—   Se vai insultar um homem — gritou Keane de volta —, não poderia ser mais inteligente?

—   Volte de manhã! Volte às primeiras luzes!

—   Deixe-me falar com seu senhor! — gritou o padre Levonne.

—   Você é padre?

—   Sou.

—   Aqui está sua resposta, padre — gritou o homem, e uma corda soou numa torre e uma seta de besta atravessou o ar, acertando a trilha a 20 metros dos dois cavaleiros. A seta rolou na terra, parando entre os cães espantados.

—   Parece que teremos de esperar até de manhã, padre — disse Keane. Em seguida virou o cavalo, bateu os calcanhares e saiu do alcance das bestas.

Até de manhã.

 

O conde de Labrouillade estava jantando. Havia um empadão de carne de veado, ganso assado, um presunto coberto por grosso mel com perfume de lavanda e uma bandeja de hortulanas engordadas com painço, que era o seu prato predileto. Ele tinha uma cozinheira que sabia como afogar aqueles pássaros minúsculos em vinho tinto, depois assá-los em fogo alto. O conde cheirou um deles. Simplesmente perfeito! O aroma era tão delicioso que quase fazia sua cabeça girar, e então sugou a ave minúscula e a gordura amarela pingou pelo seu queixo enquanto ele mastigava os ossos frágeis. A cozinheira também havia assado três galinholas e encharcado as aves de bico fino com uma mistura de mel e vinho.

O conde gostava de comer. Estava levemente chateado porque seus hóspedes, o severo padre Marchant, Sir Robbie Douglas e o risível cavaleiro virgem estavam fazendo tolices na capela, mas não iria esperá-los. As hortulanas estavam quentíssimas e o peito escuro das galinholas era delicioso demais para ficar aguardando, então ele mandou avisar que os hóspedes poderiam juntar-se a ele quando quisessem.

—   Sire Roland se saiu bem, não foi? — observou para seu administrador.

—   De fato, senhor.

—   O sujeito agarrou a mulher de le Bâtard! Roland pode ser virgem — o conde riu disso —, mas não deve ser um idiota completo. Vamos dar uma olhada nela.

—   Agora, senhor?

—   É um entretenimento melhor do que aquele imbecil — disse o conde, indicando um menestrel que tocava uma pequena harpa e cantava sobre a excelência do conde nas batalhas. Os feitos narrados na música eram quase totalmente inventados, mas os serviçais do conde fingiam acreditar neles. — Está tudo pronto para amanhã? — perguntou o conde, antes que o administrador pudesse cumprir a tarefa.

—   Tudo, senhor? — perguntou o administrador, confuso.

—   Cavalos de carga, armadura, armas, provisões. Pelas entranhas de Cristo, homem, será que eu preciso fazer tudo?

—   Tudo está pronto, senhor.

O conde grunhiu. O duque de Berry o havia convocado a Bourges. O duque, claro, era apenas uma criança com nariz cheio de ranho, e o conde sentira-se tentado a fingir que a convocação não chegara, mas a criança ranhenta era filha do rei francês, e a arrière-ban fora entregue com uma carta que observava delicadamente que o conde havia ignorado duas convocações anteriores, e que não obedecer a um arrière-ban justificaria o confisco de suas terras. “Temos certeza”, dizia a carta, “de que o senhor deseja manter suas propriedades, por isso prevemos sua chegada a Bourges com júbilo, sabendo que virá com muitos arcobalistas e homens de armas.”

—   Arcobalistas — resmungou o conde. — Por que não pode chamá-los simplesmente de besteiros? Ou arqueiros?

—   Senhor?

—   O duque, seu idiota. É uma porcaria de uma criança. Tem 15 anos? Ou 16? Ainda faz xixi na cama. Arcobalista, pelo amor de Cristo. — Mesmo assim o conde levaria 47 arcobalistas e 67 homens de armas a Bourges, uma força considerável, maior ainda do que o pequeno exército que havia comandado contra Villon para recuperar Bertille. Tinha pensado em deixar um dos seus capitães comandar a força enquanto ele permanecia em casa, onde seria vigiado pelos 20 besteiros e 16 homens de armas que guarneceriam o castelo, mas a ameaça de perder suas terras o convencera a viajar. — Então traga a mulher! — disse rispidamente para seu administrador, que havia hesitado, pensando que seu senhor poderia ter mais perguntas.

O conde encostou uma galinhola na boca e mordeu a carne com sabor de mel. Não era tão delicada quanto a hortulana, pensou, por isso deixou a galinhola cair e enfiou a décima hortulana na boca.

Ainda estava sugando a pequena carcaça quando Genevieve e seu filho foram trazidos à pequena sala onde ele optara por comer. O grande salão estava cheio com seus homens de armas, que certamente bebiam seu vinho e comiam sua comida, mas ele se certificara de que não recebessem carne de veado, hortulanas ou galinholas. O conde esmagou os ossos do passarinho, engoliu-os e apontou para um espaço perto o bastante da mesa para que as grandes velas iluminassem Genevieve.

—   Ponha-a ali — disse. — E por que trouxeram o garoto?

—   Ela insistiu, senhor — disse um homem de armas.

—   Insistiu? Ela não tem o direito de insistir. É uma cadela magra, não é? Vire-se, mulher. — Genevieve ficou imóvel. — Eu mandei se virar, uma volta inteira, lentamente — disse o conde. — Se ela não obedecer, Luc, pode bater nela.

Luc, o homem de armas que havia segurado o braço de Genevieve para trazê-la ao salão, fez menção de bater na prisioneira, mas isso não foi necessário. Genevieve girou, depois encarou em desafio os olhos do conde. Ele limpou a mão e o queixo com um guardanapo, depois bebeu vinho.

—   Dispa-a — disse ele.

—   Não — protestou Genevieve.

—   Eu mandei despi-la — disse o conde, fitando Luc.

Antes que Luc pudesse obedecer, a porta da sala se abriu e Jacques, que agora era o primeiro capitão do conde, parou na entrada.

—   Eles mandaram dois mensageiros, senhor — disse. — Oferecendo-se para trocar a mulher pela condessa.

—   E?

—   Estão com a condessa aqui, senhor — respondeu Jacques.

—   Aqui?

—   Foi o que ele disse.

O conde se levantou e deu a volta na mesa, mancando. O ferimento de flecha em sua perna latejava, mas estava cicatrizando bastante bem. Ainda doía pôr seu peso considerável naquela perna, e ele se encolheu quando desceu do tablado para confrontar Genevieve.

—   Seu marido, senhora — resmungou ele —, me desafiou. — Esperou que ela respondesse, mas ela permaneceu em silêncio. — Diga aos mensageiros deles para voltar de manhã — ordenou o conde, sem afastar o olhar de Genevieve. — Vamos trocá-la ao amanhecer.

—   Sim, senhor.

—   Mas primeiro tenho outra utilidade para essa cadela — disse ele, e com essas palavras uma fúria terrível tomou conta dele. Ele fora humilhado, primeiro por sua esposa, depois por le Bâtard. Suspeitava de que seus próprios homens zombavam dele pelas costas, motivo pelo qual preferia comer num salão separado. De fato, sabia que toda a França ria dele. Fora insultado, fora coroado com cornos de traído, e era um homem orgulhoso. O ferimento em sua honra era fundo, de modo que de repente a fúria o deixou rubro e ele rugiu com o que parecia dor enquanto estendia a mão, segurava o vestido de linho de Genevieve e o rasgava.

Ela gritou.

O grito só enfureceu o conde ainda mais. Toda a dor das últimas semanas estava fervilhando por dentro, e ele só conseguia pensar na vingança contra os homens que o haviam menosprezado, e que modo melhor do que tirar os chifres de sua cabeça e colocá-los em le Bâtard? Rasgou o vestido até embaixo enquanto Genevieve gritava pela segunda vez e cambaleava para trás. Seu filho estava chorando, e o conde deu-lhe um cascudo com força, depois puxou de novo o vestido de Genevieve. Ela apertou o pano rasgado contra o pescoço.

—   Cadela imunda! — gritou o conde. — Mostre as tetas, puta magricela! — Em seguida deu-lhe um soco violento, e nesse instante meia dúzia de homens entrou pela porta.

—   Pare! — Quem gritou foi Roland de Verrec. — Pare! — gritou de novo. — Ela é minha refém.

Mais homens ainda passaram pela porta. Robbie Douglas estava ali, olhando boquiaberto para Genevieve, agora agachada nas pedras do piso e tentando segurar os fragmentos rasgados do vestido junto ao pescoço. Sculley estava rindo. Os homens de armas do conde olhavam do furioso Labrouillade para o calmo Roland, enquanto o padre Marchant avaliava a situação e se posicionava entre eles.

—   A jovem é cativa da ordem, senhor — disse ao conde.

Essa declaração deixou Roland perplexo, pois achava que ela era sua refém, mas ele recebeu as palavras como declaração de apoio, por isso não protestou.

O conde estava ofegando. Era um javali acuado. Por um instante pareceu que a prudência poderia controlar sua fúria, mas então, como uma onda se partindo por dentro, a ira o dominou de novo.

—   Saiam — rosnou para os recém-chegados.

—   Senhor… — começou o padre Marchant em tom conciliador.

—   Saiam! — rugiu o conde. — Este castelo é meu!

Ninguém se mexeu.

—   Você! — O conde apontou para Luc. — Livre-se deles!

Luc tentou levar Roland, o padre Marchant e os outros cavaleiros da Ordem do Pescador para fora do salão, porém Roland permaneceu firme.

—   Ela é minha refém — disse ele outra vez.

—   Vamos lutar pela dona gostosa — disse Sculley animado.

—   Quieto — sibilou Robbie.

Robbie tinha consciência de todo o antigo tumulto interno que pensara ter sido acalmado pela Ordem do Pescador. Conhecia Genevieve e se apaixonara por ela desde o dia em que a vira pela primeira vez nas celas em Castillon d’Arbizon. Esse amor não correspondido havia quebrado sua amizade com Thomas, levara à violação dos juramentos, às suas discussões com o senhor de Douglas e só terminara, ou pelo menos Robbie havia pensado assim, com o dever sagrado da Ordem do Pescador. Agora viu Roland pôr a mão no punho da espada e temeu pela escolha que deveria fazer. Genevieve estava encarando-o com surpresa e apelo nos olhos feridos.

O conde viu a mão de Roland ir para o punho da Durindana e, de maneira idiota, fez menção de sacar sua espada. O padre Marchant levantou as mãos.

—   Em nome de Deus! — gritou, e segurou o braço de Roland. — Em nome de Deus! — repetiu, e levantou a mão com cautela na direção do conde. E completou, tentando ponderar: — Senhor, o senhor está certo. Este castelo é seu. O que acontece dentro destas muralhas é por sua ordem, por seu privilégio, e não podemos impedir. Mas, meu senhor — o padre Marchant fez uma reverência profunda ao conde —, esta mulher deve falar conosco. Sua Santidade, o papa, exige isso, o rei da França exige isso, e, senhor, Sua Santidade e Sua Majestade agradecerão se o senhor permitir a mim, seu mais humilde servo — e fez outra reverência a Labrouillade —, interrogar esta mulher maldita.

O padre Marchant tinha inventado o interesse do papa e do rei, mas era uma invenção inspirada, suficiente para abrandar a fúria de Labrouillade.

—   Estou certo? — exigiu saber o conde.

—   Totalmente, e se algum de nós o impediu, senhor, se algum de nós desafiou sua autoridade indubitável, o senhor tem nossas mais humildes desculpas.

—   Mas o papa e o rei têm interesse aqui?

—   Por mais espantoso que possa parecer, senhor, sim. É por isso que estou aqui, enviado pelo cardeal Bessières. Senhor, se quiser ganhar uma reputação de homem que lutou corajosamente pelo reino do céu aqui na terra, eu imploro que me permita ter algum tempo com esta criatura.

—   E quando você tiver terminado com ela?

—   Como eu disse, senhor, este castelo é seu.

—   E seria bom que seus homens se lembrassem disso — vociferou o conde.

—   De fato, senhor.

—   Então levem-na — disse o conde, magnânimo.

—   A Igreja estará para sempre em dívida com o senhor. — O padre Marchant sinalizou para Sculley e Robbie levarem Genevieve para fora. Ele apontou para Hugh. — Levem-no também.

E Robbie soltou um suspiro de alívio.

 

Thomas se ajoelhou nos limites da floresta.

—   O que ele disse? — perguntou pela décima vez.

—   Para voltarmos às primeiras luzes — respondeu Keane.

E entre agora, o coração da noite, e as primeiras luzes da manhã, o que aconteceria com Genevieve? Essa era a pergunta que torturava Thomas e para a qual a imaginação dava uma resposta imunda. A inteligência, por sua vez, também não oferecia solução. Ele não podia resgatá-la. Não podia atravessar um fosso, subir uma muralha e entrar lutando. Para isso precisaria de um exército e de tempo.

—   Vocês devem dormir um pouco — disse aos seus homens, e era verdade, mas os arqueiros haviam optado por permanecer em vigília com Thomas. Nenhum queria dormir. — Quantos homens há lá dentro? — pensou ele em voz alta.

—   O desgraçado tinha uns cem homens quando lutamos em Villon — sugeriu Sam.

—   Não podem estar todos lá dentro — disse Thomas, mas era a esperança que falava mais alto.

—   É um lugar bem grande — observou Keane.

—   E temos 34 arqueiros aqui — retrucou Thomas.

—   E homens de armas — acrescentou Karyl.

—   Ele tinha umas quarenta bestas — disse Sam. — Talvez mais.

—   Ele não disse que iria trocá-la? — perguntou Thomas, pela décima vez.

—   Só disse para voltar. Eu teria feito algumas perguntas ao sujeito, se pudesse, mas ele usou uma besta para sugerir que o padre Levonne e eu não éramos exatamente bem-vindos.

Se Genevieve estivesse machucada, pensou Thomas, ele esqueceria la Malice, esqueceria o príncipe de Gales, esqueceria tudo até amarrar o conde de Labrouillade numa mesa e cortá-lo como ele havia cortado Villon. E era uma esperança fútil nessa noite enluarada. Havia ocasiões em que tudo que um homem podia fazer era esperar e se fortalecer contra o desespero por meio de sonhos.

—   Ao amanhecer quero cada arqueiro, cada homem de armas — disse Thomas. — Vamos nos mostrar. Vamos estar prontos para a luta, mas fiquem fora do alcance das bestas. — Era um gesto, ele sabia, nada mais. Contudo, neste momento estava reduzido a isso.

—   Estamos prontos agora — disse Sam. Como todos os arqueiros, estava com seu arco, mas com a expectativa do orvalho havia tirado a corda e guardado-a no chapéu. — E vai amanhecer cedo.

—   Vocês deveriam dormir — disse Thomas. — Todos que não estão de sentinela deveriam dormir.

—   É, deveríamos — disse Sam.

E ninguém se mexeu.

 

O padre Marchant pôs a mão com suavidade no braço de Roland.

—   Você fez bem, filho. Ela é sua prisioneira e você precisava defendê-la, mas deve ser cauteloso.

—   Cauteloso?

—   Isto aqui é domínio do conde. Ele manda aqui. — O padre sorriu. — Mas isso é passado. Agora você deve nos entregar a prisioneira.

—   Prisioneira? — perguntou Roland. — Ela é uma refém, padre.

O padre Marchant hesitou.

—   O que você sabe sobre ela? — perguntou. Roland franziu a testa.

—   Ela é de nascimento plebeu e se casou com le Bâtard, mas, além disso, nada de importante.

—   Você gosta dela?

Roland hesitou, depois se lembrou de seu dever para com a verdade.

—   A princípio não gostei, padre, mas passei a admirá-la. Ela tem espírito. Tem mente ágil. Sim, gosto dela.

—   Ela o enfeitiçou — disse o padre Marchant, sério. — E você não tem culpa. Mas deve saber que ela é excomungada, foi condenada pela Santa Madre Igreja. Deveria ser queimada por heresia, mas le Bâtard salvou-a, e então, para aumentar o mal, ela matou o dominicano devoto que descobriu sua heresia. Com toda a consciência, filho, não posso deixar que ela se vá agora, não posso permitir que espalhe suas doutrinas desprezíveis. Ela foi condenada.

—   Eu jurei protegê-la — disse Roland, inquieto.

—   Eu o libero desse juramento.

—   Mas ela parece ser uma mulher muito boa!

—   O diabo mascara suas obras, filho. Ele encobre o vil com vestes de luz e adoça sua imundície com palavras cheias de mel. Ela parece bela, mas é uma criatura do demônio, assim como o marido. Os dois são excomungados, os dois são hereges. — Ele se virou enquanto seu serviçal se aproximava pelo corredor repleto de sombras. — Obrigado — disse, pegando o falcão com o sujeito. Tinha calçado uma luva de couro e enrolou as peias do pássaro em volta do pulso, antes de acariciar o capuz que lhe cobria os olhos. — Você sabe por que os hereges foram a Montpellier? — perguntou a Roland.

—   Ela disse que foram escoltar um monge inglês que ia se matricular na universidade, padre.

O padre Marchant deu um sorriso triste.

—   Ela mentiu sobre isso, filho.

—   Mentiu?

—   O marido dela procura la Malice.

—   Não! — disse Roland, não em protesto, e sim com perplexidade.

—   Creio que ele ouviu dizer que a arma poderia estar lá. Roland balançou a cabeça.

—   Acho que não está — disse cheio de confiança. Foi a vez de o padre Marchant ficar atônito.

—   Acha que não… — retrucou ele com a voz fraca e parou.

—   Bom, claro que não sei — disse Roland —, e talvez o senhor tenha informações sobre la Malice que eu não possuo.

—   Ouvimos dizer que ela estava num lugar chamado Mouthoumet, mas tinha sumido quando chegamos.

—   É possível que ela tenha sido levada a Montpellier — retrucou Roland, em dúvida —, mas alguém que tenha apreço por la Malice certamente iria devolvê-la ao seu lugar de direito.

—   Existe um lugar de direito? — perguntou o padre com cautela. Estava acariciando a cabeça encapuzada do pássaro, o dedo suave contra o couro macio.

Roland deu um sorriso modesto.

—   Minha mãe, que Deus a abençoe, descende dos antigos condes de Cambrai. Eram grandes guerreiros, mas um deles desafiou o pai e abandonou a profissão das armas para se tornar monge. Chamava-se Juniano, e segundo a tradição da família o abençoado são Pedro apareceu a ele num sonho e lhe deu a espada. São Pedro disse a Juniano que só um homem que fosse ao mesmo tempo santo e guerreiro seria adequado para proteger a espada.

—   São Juniano?

—   Ele não é muito conhecido — admitiu Roland com tristeza. — Na verdade, se ele tem alguma fama é por ter dormido ao relento durante uma nevasca que deveria tê-lo matado, mas ele foi protegido pela graça de Deus… — Roland fez uma pausa porque o padre Marchant havia apertado seu braço com tanta força que doeu. — Padre? — perguntou ele.

—   Esse tal Juniano tem um relicário?

—   Os beneditinos em Nouaillé guardam seus restos terrenos, padre.

—   Em Nouaillé?

—   É em Poitou, padre.

—   Deus o abençoe, filho — disse Marchant.

Roland ouviu o alívio na voz do sacerdote.

—   Não sei se la Malice está lá, padre — alertou ele com cautela.

—   Mas pode estar, pode estar — disse o padre Marchant, depois fez uma pausa quando um serviçal passou carregando um penico na passagem iluminada pela claridade fraca que vinha do salão iluminado por velas. — Não sei — admitiu ele finalmente após o serviçal ter passado. — Ela pode estar em qualquer lugar! Não sei onde mais procurar, mas talvez le Bâtard saiba, não é? — Ele acariciou o falcão que estava se agitando inquieto em seu pulso. — Portanto, devemos descobrir o que ele sabe e por que foi a Montpellier. — Ele levantou o braço no qual o falcão estava empoleirado. — Logo, minha querida — disse ao animal. — Vamos tirar seu capuz logo.

—   Tirar o capuz? — perguntou Roland. Pareceu uma coisa estranha para fazer durante a noite.

—   Ela é uma calade.

—   Uma calade?

—   A maioria das calades descobre a doença numa pessoa — explicou o padre Marchant —, mas este pássaro também tem o talento, dado por Deus, de descobrir a verdade. — Ele se afastou de Roland. — Você parece cansado, filho. Posso sugerir que durma?

Roland deu um sorriso abatido.

—   Dormi pouco nas últimas noites.

—   Então descanse agora, filho, com a bênção de Deus, descanse. — Ele olhou Roland se afastar, depois se virou para onde os outros cavaleiros esperavam, no final do corredor. — Sir Robbie! Pode me trazer a jovem e o garoto? — Ele empurrou uma porta ao acaso e se viu num pequeno cômodo onde havia barris de vinho empilhados em volta de uma mesa com jarras, funis e taças. Limpou o tampo da mesa com um movimento brusco. — Isso vai servir. — E gritou: — Tragam velas!

Acariciou o falcão.

—   Está com fome? — perguntou à ave. — Minha querida está com fome? Vamos alimentar você logo. — Em seguida ficou de pé num dos lados do pequeno cômodo enquanto Robbie trazia Genevieve pela porta. Ela segurava o vestido rasgado contra o seio. — Parece que você já conhecia a herege, não é? — perguntou o padre Marchant a Robbie.

—   Conhecia, padre.

—   Ele é um traidor — disse Genevieve, e cuspiu no rosto de Robbie.

—   Ele fez um juramento de servir a Deus — respondeu o padre Marchant. — E você é amaldiçoada por Ele.

Sculley arrastou Hugh pela porta e o empurrou para o chão ao lado da mesa.

—   Velas — disse o padre Marchant a Sculley. — Pegue algumas no salão.

—   Quer enxergar o que vai fazer, não é? — disse Sculley com um sorriso.

—   Vá — ordenou o padre com aspereza, depois se virou de novo para Robbie. — Quero-a em cima da mesa. Se ela resistir, pode bater nela.

Genevieve não resistiu. Sabia que não poderia lutar com Robbie, muito menos com o homem medonho com ossos nos cabelos que trouxe duas velas enormes e as colocou sobre barris de vinho.

—   Deite-se como se estivesse morta — ordenou o padre Marchant. Viu-a estremecer. Ela havia posto as mãos sobre os seios para manter o vestido rasgado no lugar. O padre desenrolou as peias da luva e pôs o falcão no pulso de Genevieve. As garras se cravaram na carne fina, e ela soltou um pequeno gemido. — In nomine Patris — disse baixinho o padre Marchant — et filii, et Spiritus Sancti, amém. Sir Robert?

—   Padre?

—   Não temos um escrivão para registrar a confissão desta pecadora, portanto você prestará atenção e será testemunha do que for dito. Você tem o dever sagrado de se lembrar da verdade.

—   Sim, padre.

O padre olhou para Genevieve, que estava deitada de olhos fechados e as mãos apertadas com força.

—   Pecadora — disse gentilmente —, diga por que vocês foram a Montpellier.

—   Levamos um monge inglês até lá — respondeu Genevieve.

—   E por quê?

—   Ele ia estudar medicina na universidade.

—   Quer que eu acredite que le Bâtard foi até Montpellier só para escoltar um monge?

—   Foi um favor ao suserano dele.

—   Abra os olhos — ordenou o padre. Continuava falando suavemente. Esperou até que ela obedecesse. — Agora diga: você já ouviu falar de são Juniano?

—   Não — respondeu Genevieve.

O falcão encapuzado não se mexeu.

—   Você foi excomungada, não foi?

Ela hesitou, depois assentiu levemente.

—   E foi a Montpellier como favor a um monge?

—   Sim — respondeu ela baixinho.

—   Seria de seu interesse dizer a verdade — disse o padre Marchant. Em seguida se inclinou para a frente e desamarrou o capuz, tirando-o da cabeça do falcão. — Isto é uma calade, um pássaro que sabe se você fala a verdade ou mente. — Genevieve olhou nos olhos do falcão e estremeceu. O padre Marchant deu um passo atrás. — Agora diga, pecadora, por que foi a Montpellier?

—   Já disse, para acompanhar um monge.

Seu grito ecoou por todo o castelo.

 

Roland acordou assustado com o grito.

O conde não havia pensado em fornecer camas. O castelo estava apinhado de homens esperando para marchar até Bourges, e eles dormiam onde pudessem. Muitos ainda estavam bebendo no grande salão, enquanto alguns haviam se acomodado no pátio onde os cavalos que não tinham espaço no estábulo descansavam, mas o escudeiro de Roland, Michel, havia espertamente encontrado um baú cheio de estandartes e estendeu-os sobre um banco de pedra na antecâmara da capela. Roland tinha acabado de cair no sono nessa cama improvisada quando o grito ecoou pelo corredor. Ele acordou confuso, pensando que estava de novo em casa com a mãe.

—   O que foi isso? — perguntou.

Michel estava olhando pelo corredor comprido. O garoto não disse nada. Então um berro de raiva ecoou no corredor e despertou Roland totalmente. Ele rolou para fora do banco e pegou sua espada.

—   Suas botas, sire? — perguntou Michel, oferecendo-as, mas Roland já estava correndo. Um homem na outra ponta do corredor parecia alarmado, mas ninguém mais aparentava estar incomodado com os gritos. Roland empurrou a porta do depósito de vinho e ficou boquiaberto.

O cômodo estava quase totalmente escuro porque as velas tinham sido derrubadas, mas à luz fraca viu Genevieve sentada na mesa com uma das mãos sobre um olho. Seu vestido rasgado havia caído em volta da cintura. O padre Marchant estava esparramado de costas com os lábios ensanguentados, um falcão decapitado se retorcia no chão e Sculley ria. Robbie Douglas estava de pé com a espada desembainhada acima do padre, e, enquanto Roland tentava entender a cena, o escocês usou o punho da espada para bater de novo em Marchant.

—   Seu desgraçado!

Hugh estava gritando, mas, ao ver Roland, correu para ele. Roland havia lhe contado histórias, e Hugh gostava dele. Agarrou-se ao cavaleiro, que se encolheu quando Robbie acertou o padre pela terceira vez, fazendo a cabeça de Marchant bater com força contra um barril de vinho.

—   Você a cegou, seu desgraçado? — gritou Robbie.

—   O que… — começou Roland.

—   Temos de ir embora! — gritou Genevieve.

Sculley parecia achar divertido o que tinha visto.

—   Belas tetas — disse a ninguém em particular, e isso pareceu acordar Robbie, levando-o a perceber o que tinha feito.

—   Ir para onde? — perguntou ele.

—   Achar um buraco e se enterrar — aconselhou Sculley, depois olhou de volta para Genevieve. — Meio pequenas, mas boas.

—   O que aconteceu? — conseguiu perguntar Roland.

—   O desgraçado queria cegá-la — retrucou Robbie.

—   Gosto de tetas — disse Sculley.

—   Quieto — vociferou Robbie.

Tinha pensado que encontrara objetivo e tranquilidade espiritual na Ordem do Pescador, mas a visão do falcão lançando o bico contra o olho de Genevieve havia aberto os seus olhos. Percebeu que tinha fugido de seus antigos juramentos, que havia traído suas promessas, e agora faria o bem. Tinha arrancado a espada da bainha e decepado a cabeça do falcão num golpe só, depois se virara para o padre Marchant e o golpeara com o punho da espada, partindo os lábios e os dentes do padre. Agora não tinha ideia do que fazer.

—   Precisamos ir agora — disse Genevieve.

—   Para onde? — perguntou Robbie de novo.

—   Para um buraco bem fundo — disse Sculley, achando graça, depois franziu a testa para Robbie. — Vamos lutar com alguém?

—   Não — respondeu Robbie.

—   Pegue minha capa — ordenou Roland a Michel, e, quando o escudeiro a trouxe, o cavaleiro virgem colocou-a nos ombros nus de Genevieve. — Sinto muito — disse ele.

—   Sente muito?

—   A senhora estava sob minha proteção, e eu fracassei.

Robbie voltou-se para Roland.

—   Precisamos ir — disse, parecendo apavorado.

Roland concordou. Como o escocês, havia descoberto que o mundo tinha virado pelo avesso. Tentava desesperadamente pensar no que fazer, em qual seria a coisa certa. A jovem era herege, e nessa noite mesmo ele havia feito um juramento diante de Deus para juntar-se à Ordem do Pescador, mas ali estava o capelão da ordem, gemendo e sangrando, e Genevieve o encarava com um olho só, o outro ainda coberto pela mão. Roland naquele momento soube que precisava salvá-la. Tinha prometido protegê-la.

—   Precisamos ir — disse ele, naquele momento ecoando Robbie.

Ambos sabiam que estavam dentro de um castelo que subitamente era um local hostil, mas quando Roland olhou para o corredor viu que não havia ninguém ali. O barulho do grande salão onde os homens ainda bebiam certamente fora alto o bastante para abafar o grito de Genevieve. Roland prendeu o cinturão da espada.

—   Simplesmente vamos em frente — disse, parecendo atônito.

—   Suas botas, sire — repetiu Michel.

—   Não há tempo — disse Roland. Estava em pânico. Como iriam sair?

O padre Marchant tentou se levantar. Robbie se virou e chutou sua cabeça.

—   Chute-o com força, Sculley, se ele se mexer de novo.

—   Estou lutando pelo senhor ou por ele? — perguntou Sculley.

—   A quem você serve?

—   Ao senhor de Douglas, é claro!

—   E quem eu sou?

—   Um Douglas.

—   Então não faça perguntas idiotas.

Sculley aceitou isso.

—   Então o senhor quer que eu mate o desgraçado? — perguntou, olhando para o padre.

—   Não! — respondeu Robbie. Matar um padre era um convite à excomunhão, e ele já estava suficientemente encrencado.

—   Eu não me incomodo — ofereceu Sculley. — Não mato ninguém há uma semana. Não, mais que isso. Deve fazer pelo menos um mês! Jesus! Tem certeza de que não estamos lutando contra ninguém?

Roland voltou-se para Robbie.

—   Vamos simplesmente sair?

—   Não temos muita escolha — respondeu o escocês, parecendo nervoso.

—   Então vamos! — gemeu Genevieve. Ela havia encontrado um pano limpo e o apertava contra o olho com uma das mãos, enquanto a outra segurava a capa junto ao pescoço.

—   Pegue o garoto — ordenou Roland a Michel, depois saiu para o corredor. — Embainhe sua espada — disse a Robbie.

—   Embainhar? — Robbie pareceu confuso.

Roland olhou para a espada, que tinha uma mancha de penas ensanguentadas.

—   Somos hóspedes aqui.

—   Por enquanto.

—   O que, em nome de Deus, estamos fazendo? — perguntou Sculley.

—   Lutando pela honra de Douglas — respondeu Robbie peremptoriamente.

—   Então estamos lutando?

—   Por Douglas! — rosnou Robbie.

—   Não precisa gritar — disse Sculley, e, enquanto Robbie embainhava sua espada, ele sacou a sua. — Só diga quem o senhor quer que seja trucidado, certo?

—   Por enquanto ninguém — respondeu Roland.

—   E fique quieto — acrescentou Robbie. Roland o olhou como se quisesse ser tranquilizado, mas o jovem escocês estava tão nervoso quanto ele. — Temos de continuar em movimento — sugeriu.

—   Vamos sair do castelo?

—   Acho que precisamos, sim. — Ele fez uma pausa, olhando ao redor. — Se pudermos.

Roland foi na frente, saindo no pátio. Algumas fogueiras meio apagadas em que os homens haviam assado bolos de aveia soltavam fumaça no espaço amplo, mas o luar era claro e as sombras, escuras. Ninguém os notou com interesse especial. Genevieve estava envolta na capa, e Hugh agarrava as dobras do tecido enquanto eles caminhavam entre cavalos e homens adormecidos. Outros homens passavam odres de vinho entre si e conversavam em voz baixa. Alguém cantava. Houve uma gargalhada baixa. A luz de uma lanterna brilhava na torre do portão.

—   Procure meu cavalo — disse Roland a Michel.

—   Acha que eles vão deixar que a gente saia? — sussurrou Robbie.

—   Não procure meu cavalo — disse Roland, imaginando como escapariam a pé.

—   Suas botas, sire? — Michel ofereceu-as.

—   Não tenho tempo — respondeu Roland. Seu mundo havia se fragmentado; não sabia mais onde estava a salvação, a não ser que ela fosse sua honra. Isso significava que deveria salvar uma herege, ainda que isso implicasse violar um juramento feito na igreja. — Vou mandar baixarem a ponte levadiça — disse a Robbie, e foi na direção da torre do portão.

—   Parem-nos! — O grito veio da porta logo atrás. O padre Marchant, segurando-se no portal, estava apontando para o grupo. — Parem-nos! Em nome de Deus!

Os homens no pátio reagiram com lentidão. Alguns estavam dormindo, outros tentavam dormir, e muitos tinham sido acalentados pelo vinho, mas agora se remexiam enquanto mais homens ouviam os gritos. Sculley praguejou, depois cutucou Robbie.

—   Já estamos lutando?

—   Já! — gritou Robbie.

—   Contra quem?

—   Todo mundo!

—   Até que enfim! — disse Sculley.

Ele usou sua espada num golpe para trás, contra um homem que lutava para se livrar de uma capa. O sujeito desmoronou, com sangue escuro na testa, e Sculley usou a espada para cortar as cordas que prendiam três cavalos a uma argola na parede. Espetou um dos cavalos com a ponta da espada e o animal disparou, provocando o caos entre os homens que acordavam. Bateu nos outros dois, e por todo o pátio os cavalos relinchavam e empinavam.

—   A ponte levadiça! — gritou Roland.

Havia dois homens diante dele, ambos com espadas, mas subitamente ele ficou calmo. Essa era a sua profissão. Até agora só havia lutado em torneios, mas as vitórias nas liças eram resultado de horas de treino, horas e mais horas de treino obsessivo com a espada, e ele afastou a lâmina de um inimigo, desviou-se para trás, deu um passo adiante e sua espada deslizou entre as costelas do sujeito da esquerda. Em seguida foi para o outro homem, desviou-se de seu giro descontrolado e recuou o braço que segurava a espada, de modo que o cotovelo acertou a barriga do soldado.

—   Peguei-o — gritou Robbie, como se estivessem numa escaramuça de torneio.

Roland deu um passo para a esquerda e desfechou um golpe curto de cima para baixo; o primeiro homem estava fora da luta e ele mal precisara respirar. Agora duas sentinelas haviam saído da torre do portão, e ele foi rapidamente na direção dos dois. Um carregava uma lança e tentou atacá-lo, mas Roland podia ver o nervosismo no rosto do sujeito e nem precisou pensar para aparar o golpe e em seguida erguer a espada, de modo que a ponta abriu um ferimento horrendo no rosto do sujeito. Cortou lábios, nariz e uma sobrancelha, e o homem, com um dos olhos enchendo-se de sangue, girou para trás contra o segundo soldado, que entrou em pânico, recuando até a casa da guarda.

—   Traga a Sra. Genevieve para dentro da arcada! — gritou Roland para Michel.

Roland desapareceu na sala da guarda enquanto Robbie e Sculley barravam a entrada para o profundo túnel em arco, bloqueado na outra extremidade pela ponte levadiça fechada.

—   Ela tem trancas, merda — disse Sculley.

Michel não falava inglês, mas tinha visto as trancas e arrastou a da direita, soltando-a do suporte de pedra. Genevieve levantou a mão e tentou soltar a outra, mas ela não se mexia, e a capa caiu de seus ombros. Os homens no pátio viram suas costas nuas e gritaram, pedindo mais. Michel veio ajudá-la, e a enorme tranca de ferro guinchou ao ser retirada.

—   Segure-os, Sculley! — gritou Robbie.

—   Douglas! — Sculley deu seu grito de guerra e investiu contra os homens no pátio.

Restava um soldado dentro da sala da guarda, mas ele se encolheu para longe de Roland, que o ignorou. Em vez disso Roland subiu a escada em caracol que levava à grande câmara acima do arco do portão. Não havia ninguém ali, mas estava escuro. A única luz vinha do brilho fraco da lua vazando entre as seteiras, mas ainda assim Roland podia ver o enorme sarilho em que estavam enroladas as correntes da ponte levadiça. O tambor do sarilho era tão largo quanto o arco do portão e tinha mais de 1 metro de altura. Havia manivelas enormes nas duas extremidades, mas Roland não conseguia mover a mais próxima. Ouviu gritos embaixo e o choque de espadas. Ouviu um grito. Um cavalo relinchou. Por alguns segundos ficou parado, impotente, perguntando-se como liberaria o mecanismo. Então, à medida que seus olhos se acostumavam à penumbra, viu uma enorme alavanca de madeira junto à manivela mais distante. Correu até ela, segurou e puxou. Por um instante ela resistiu à sua força, depois cedeu de súbito e houve um estalo espantosamente alto. O vasto tambor girou rápido, e as correntes chicotearam nos carretéis, sacudindo-se e tremendo. Uma delas se partiu, e os elos quebrados voaram, acertando o rosto de Roland justo quando um estrondo pavoroso anunciou que a ponte levadiça estava baixada.

Ele cambaleou, um pouco atordoado pela pancada da corrente, depois se recuperou, pegou a espada que havia largado para puxar a alavanca e começou a descer a escada.

O portão estava aberto.

 

— Senhor? — Sam tocou o ombro de Thomas.

—   Jesus. — Ele ofegou.

Estivera meio adormecido, ou melhor, sua mente estivera vagamente em suspenso como a névoa tênue sobre o fosso enluarado do castelo de Labrouillade. Ele estivera pensando no Graal, na tigela de barro simples que havia lançado ao mar, e se perguntara, como fazia frequentemente, se aquilo seria mesmo o Santo Graal. Às vezes duvidava, e às vezes tremia diante da audácia de escondê-lo abaixo do eterno balançar e trovejar das ondas. E antes disso, havia pensado que procurara a lança de são Jorge, e ela também se fora, e que, se encontrasse la Malice, talvez ela também devesse ser escondida para sempre. Enquanto sua mente vagueava, ele vira o brilho súbito e fraco de fogo aparecer no arco do castelo e em seguida ouvira o grande estrondo confirmando que a ponte levadiça havia caído.

—   Eles estão saindo? — perguntou Sam.

—   Arcos! — gritou Thomas. Em seguida se levantou e curvou sua grande haste de teixo, passando a corda pelo entalhe de chifre. Tocou o lado interno do pulso esquerdo, para confirmar que a braçadeira de couro estava ali para protegê-lo das pancadas da corda. Tirou uma flecha da bolsa.

—   Nenhum cavaleiro — disse um homem. Os arqueiros haviam saído do meio das árvores para um local de onde poderiam disparar sem obstáculos.

—   Tem alguém saindo — disse Sam.

Por que eles baixariam a ponte, pensou Thomas, a não ser para fazer um ataque surpresa? Mas, se eles planejavam um ataque noturno contra seu acampamento, por que os cavalos já não estavam galopando pela campina aberta que se estendia até o castelo tingido de branco pelo luar? Podia ver algumas pessoas atravessando a ponte, mas nenhum cavaleiro. Então viu mais homens vindo atrás, e o luar fez as lâminas brilharem.

—   Avante! — gritou. — Cheguem ao alcance!

Thomas amaldiçoou sua perna manca. Não era aleijada, mas ele não conseguia correr tão depressa quanto antigamente, e seus homens o ultrapassaram com facilidade. Então Karyl e dois outros passaram a cavalo, a meio galope, com as espadas na mão.

—   Aquele é Hugh! — gritou alguém.

—   E Genny! — Outra voz inglesa. Thomas teve um vislumbre de formas contra a passagem iluminada e pensou ter visto Genevieve e Hugh. Mas então viu outra forma, um homem com uma besta. Parou, levantou o grande arco de guerra e esticou a corda.

Os músculos de suas costas assumiram a enorme tensão. Dois dedos puxaram a corda, e outros dois firmaram a flecha na madeira do arco enquanto ele o inclinava para as estrelas. Era a maior distância que qualquer arco longo poderia alcançar, talvez longe demais. Olhou para a passagem do portão, viu o besteiro se ajoelhar e levar a arma ao ombro, e Thomas puxou a corda, passando-a além da orelha direita.

E disparou.

 

Roland esperava morrer. Estava apavorado. Parecia que os guinchos, as pancadas e o ruído estrondoso do tambor do sarilho se desenrolando ainda ressoavam em seus ouvidos como o grito de algum demônio infernal que o enchia de terror. Só queria se esconder, encolher-se em algum canto escuro e esperar que o mundo passasse por ele, mas em vez disso Roland se movia. Desceu correndo a escada, ainda sem as botas, e imaginava que os homens de Labrouillade tivessem retomado a casa da guarda e que ele seria cortado por espadas vingativas, mas, para sua perplexidade, só havia um homem ainda na câmara da casa da guarda, e ele estava ainda mais apavorado do que Roland. Robbie gritava para que ele corresse.

—   Jesus — disse Roland, e era uma oração.

Sculley estava chamando aos berros os homens do pátio para se aproximarem e serem mortos. Havia três homens aos seus pés, e a luz das fogueiras se refletia no preto brilhante do sangue deles que enchia os espaços entre as pedras do calçamento.

—   Genevieve já foi — gritou Robbie para Roland. — Agora venha! Sculley!

—   Não acabei! — rosnou Sculley.

—   Acabou sim — disse Robbie, e puxou o ombro dele. — Fuja!

—   Eu odeio fugir.

—   Fuja! Agora! Por Douglas!

Fugiram. Tinham sobrevivido até então porque os homens no pátio estavam meio adormecidos e confusos, mas agora haviam despertado. Eles perseguiam os fugitivos, e Roland ouviu um som que temia, a catraca de uma besta sendo retesada. Correu com pés descalços pela ponte levadiça, ouviu o estalo da besta sendo disparada, mas a seta passou longe. Não a viu, mas soube que haveria outras. Agarrou a mão de Hugh e o arrastou para a frente. E nesse instante algo branco passou relampejando pelo canto de sua visão. Outro clarão branco! Em seu pânico e medo pensou que fossem pombas. Mas à noite? Um terceiro clarão passou e um grito soou atrás, e ele percebeu que eram flechas. Flechas com penas de ganso, flechas da Inglaterra, flechas ricocheteando pela escuridão para acertar os homens que vinham do castelo. Uma deslizou perto de Roland, e então elas fizeram uma pausa enquanto quatro cavaleiros trovejaram pelo terreno coberto de capim, espadas nas mãos. Os cavalos passaram pelos fugitivos e viraram, e as lâminas compridas golpearam os perseguidores. Os cavaleiros não pararam, continuaram indo em frente, fazendo uma curva atrás de Roland, e as flechas voaram de novo, jorrando implacáveis no arco aberto da torre do portão, onde os besteiros estavam apinhados.

E de repente os fugitivos estavam cercados por homens com arcos, os cavaleiros funcionando como escudos atrás, e eles continuavam se afastando do alcance do castelo até que chegaram às árvores. E ali Roland caiu de joelhos.

—   Santo Deus — disse em voz alta —, obrigado. — Estava ofegante, tremendo, e ainda segurava a mão de Hugh.

—   Senhor? — perguntou Hugh, nervoso.

—   Você está em segurança — disse Roland, e então alguém veio e levantou o menino, carregando-o e deixando Roland sozinho.

—   Sam! — gritou uma voz áspera. — Mantenha uma dúzia de homens na linha das árvores. Arcos preparados! O restante de vocês! De volta à fazenda. Irmão Michael! Onde você está? Venha aqui!

Roland viu homens se apinhando ao redor de Genevieve. Ainda estava de joelhos. A noite se enchia com agitadas vozes inglesas, e poucas vezes ele se sentira tão solitário. Olhou em volta e viu que a longa campina enluarada entre a floresta e o castelo estava vazia. Se o conde de Labrouillade ou o padre Marchant planejavam uma perseguição, ela ainda não havia começado. Roland pensou em como só tentara ser honrado, no entanto isso virara sua vida de cabeça para baixo. Então Michel deu-lhe um tapa no ombro.

—   Perdi suas botas, sire. — Roland não respondeu, e Michel se agachou. — Sire?

—   Não faz mal — disse Roland.

—   Perdi as botas e os cavalos, sire.

—   Não faz mal! — respondeu Roland mais asperamente do que pretendia.

O que iria fazer agora? Pensara que estava empregado em duas buscas aventurescas, uma delas de elevada santidade, no entanto elas o haviam levado a esse desespero solitário. Fechou os olhos, rezando, implorando por orientação, em seguida percebeu que alguém respirava junto ao seu rosto. Estremeceu, depois sentiu uma lambida molhada e abriu os olhos espantados, vendo um par de cães de caça próximos a ele.

—   Eles gostam de você! — disse uma voz animada, mas, como o homem falava em inglês, Roland não teve ideia do que dissera. — Agora venham, vocês dois — continuou o sujeito. — Nem todo mundo quer ser batizado por uma dupla de cachorros malditos.

Os cães saíram brincando para longe, e Thomas de Hookton ocupou o lugar deles.

—   Senhor? — disse ele, mas não havia respeito em sua voz. — Devo matá-lo ou agradecer-lhe?

Roland olhou para le Bâtard. O cavaleiro virgem ainda estava tremendo e não sabia o que dizer, por isso se virou e olhou de novo para o castelo.

—   Eles vão atacar? — perguntou.

—   Claro que não — respondeu Thomas.

—   Claro que não?

—   Eles estavam meio adormecidos ou meio bêbados. Talvez estejam prontos para um ataque surpresa de manhã. Mas duvido. É por isso que meus homens têm duas regras, senhor.

—   Regras?

—   Eles podem beber o quanto quiserem, mas só quando eu deixo. E nada de estupros.

—   Não… — começou Roland.

—   A não ser que queiram ser enforcados na árvore mais próxima. Ouvi dizer que Labrouillade queria estuprar minha mulher. É verdade? — perguntou Thomas, e Roland apenas confirmou. — Então lhe devo um agradecimento, senhor. Porque o que o senhor fez foi corajoso. Então, obrigado.

—   Mas sua esposa…

—   Ela vai viver. Talvez com apenas um olho. O irmão Michael fará o que puder, mas duvido que possa fazer muito. Só não sei se ainda devo chamá-lo de “irmão”. Não sei bem o que ele é agora. Venha, senhor.

Roland se permitiu ser erguido e levado pela floresta até a fazenda.

—   Eu não sabia — disse ele, e hesitou.

—   Não sabia que Labrouillade era um canalha? Eu lhe disse, mas e daí? Todos somos canalhas. Eu sou le Bâtard, lembra?

—   Mas não deixa seus homens estuprarem?

—   Pelo amor de Deus — disse Thomas, virando-se para ele. — Você acha a vida fácil? Pode ser fácil num torneio, senhor. Um torneio é artificial. A gente está de um lado ou do outro, ninguém pensa que Deus toma partido e há juízes para garantir que o sujeito não seja carregado como um cadáver. Mas aqui não existem juízes. É só a guerra, guerra sem fim, e o máximo que a gente pode fazer é tentar não estar do lado errado. Mas quem, em nome de Deus, sabe que lado é o certo? Depende de onde a gente nasceu. Eu nasci na Inglaterra, mas se tivesse nascido na França estaria lutando pelo rei João e achando que Deus estava do meu lado. Enquanto isso, tento não fazer o mal. Pode não ser uma regra muito boa, mas funciona, e quando faço o mal rezo, dou esmolas à Igreja e finjo que minha consciência está limpa.

—   Você faz o mal?

—   É a guerra. Nosso trabalho é matar. As escrituras dizem non occides, mas nós matamos. Um doutor inteligente em Oxford me disse que o mandamento significa que não devemos cometer assassinato, e isso não é a mesma coisa que “não matarás”, mas quando levanto a viseira de um pobre coitado e enfio uma espada no olho dele isso não serve muito como consolo.

—   Então por que o faz?

Thomas lhe deu um olhar quase gentil.

—   Porque gosto, porque sou bom nisso. Porque na escuridão da noite às vezes consigo me convencer de que estou lutando por todas as pessoas pobres que não podem lutar por si mesmas.

—   E está?

Thomas não respondeu, em vez disso chamou um homem que estava parado junto à porta da fazenda.

—   Padre Levonne!

—   Thomas?

—   Este é o canalha que causou toda essa encrenca. Sire Roland de Verrec.

—   Senhor — disse o padre, fazendo uma reverência a Roland.

—   Preciso conversar com Robbie, padre — disse Thomas —, e cuidar de Genevieve. Então será que o senhor pode arranjar botas para Sire Roland?

—   Botas? — perguntou o padre, atônito. — Aqui? Como?

—   Você é padre. Reze, reze, reze.

Thomas tirou a corda de seu arco, censurando-se por não ter feito isso antes. Caso fique tensionado pela corda por tempo demais, um arco pode permanecer curvado. Ele seguiria a corda, como diziam os arqueiros, e um arco assim tinha menos força. Enrolou a corda, enfiou-a na bolsa e entrou na fazenda, que estava iluminada por fracas velas de junco. Robbie encontrava-se sentado no estábulo, que, com exceção dele, era ocupado apenas por uma vaca de um chifre só, que estava amarrada.

—   Ele tinha um pássaro — disse Robbie assim que Thomas passou pela porta pesada. — Um falcão. Disse que era uma calade.

—   Já ouvi essa palavra — respondeu Thomas.

—   Eu achava que as calades descobriam doenças nas pessoas! Mas o sujeito tentou cegá-la! Eu matei o bicho. Devia ter matado o padre!

Thomas deu um meio sorriso.

—   Eu me lembro de quando Genevieve matou o padre que a havia torturado. Você desaprovou isso. Agora mataria um padre?

Robbie baixou a cabeça e olhou para a palha podre no chão do estábulo. Ficou quieto por um tempo, depois deu de ombros.

—   Meu tio está aqui. Quero dizer, na França. Ele não é muito mais velho do que eu, mas mesmo assim é meu tio. Ele matou meu outro tio, de quem eu gostava.

—   E você não gosta desse tio?

Robbie balançou a cabeça.

—   Ele me amedronta. O senhor de Douglas. Acho que agora é chefe do meu clã.

—   E o que ele exige de você?

—   Que eu lute contra os ingleses.

—   Coisa que você jurou não fazer.

Robbie confirmou, depois deu de ombros.

—   E o cardeal Bessières me liberou desse voto.

—   O cardeal Bessières é um cagalhão nojento.

—   É, eu sei.

—   Por que o seu tio está aqui?

—   Para lutar contra os ingleses, claro.

—   E espera que você lute junto com ele?

—   Ele quer isso, mas eu disse que não poderia violar o juramento. Por isso ele me mandou para Bessières. — Robbie olhou para Thomas. — A Ordem do Pescador.

—   O que é isso, em nome de Deus?

—   Onze cavaleiros... bom, éramos onze antes desta noite. Juramos encontrar… — Ele parou de repente.

—   La Malice — completou Thomas.

—   Você sabe — disse Robbie de maneira inexpressiva. — O cardeal disse que você sabia. Ele odeia você.

—   Também não gosto dele — respondeu Thomas, em tom ameno.

—   É uma espada, supostamente uma espada mágica.

—   Não acredito em magia.

—   Mas outras pessoas acreditam, e se ele pegar a espada terá o poder, não é?

—   Poder para se tornar papa — disse Thomas.

—   Acho que isso não é realmente uma coisa boa, não é?

—   Você seria um papa melhor. Diabos, até eu seria. Essa vaca seria.

Robbie deu um sorriso torto, mas não disse nada.

—   E o que você vai fazer agora? — perguntou Thomas, e de novo Robbie não disse nada. — Você salvou Genevieve, por isso eu o libero de seu juramento. Você está livre, Robbie.

—   Livre? — Robbie fez uma careta e olhou para Thomas. — Livre?

—   Eu o libero. Todos os seus juramentos a mim estão terminados. Você está livre para lutar contra os ingleses, para fazer o que quiser. Te absolvo.

Robbie sorriu do latim sacerdotal.

—   Você me absolve — disse, cansado — para ser livre e pobre.

—   Ainda joga?

Robbie fez que sim.

—   E perco.

—   Bom, você está livre. E obrigado.

—   Obrigado?

—   Pelo que fez esta noite. Agora preciso ver Genny.

Robbie viu Thomas sair pela porta.

—   E o que eu faço? — perguntou bruscamente.

—   A escolha é sua, Robbie. Você está livre. Sem juramentos. — Thomas parou junto à porta, percebeu que Robbie não iria responder e saiu. A vaca levantou o rabo e encheu o estábulo com fedor.

Sculley escancarou a porta.

—   Eles são uns malditos ingleses — protestou.

—   São.

—   Mesmo assim foi uma boa luta — disse Sculley, e gargalhou. — Um filho da puta tentou dar uma machadada nos meus pés, eu pulei por cima do golpe do sujeito e encostei a espada na boca dele, e ele só ficou olhando. Eu dei um momento para ele pensar nisso e depois enfiei. Cristo maldito, que barulho ele fez! Acho que estava chamando a mãezinha, mas isso não adianta quando você tem uma espada dos Douglas enfiada na goela. — Ele gargalhou de novo. — É, uma luta muito boa, mas pelos ingleses?

—   Estávamos lutando por Genevieve, e ela é francesa.

—   A puta magra? É bem bonita, mas eu gosto delas com mais carne. E então, o que a gente vai fazer? O que aconteceu com aquela porcaria de pescador?

Robbie deu um sorriso desanimado.

—   Acho que o padre Marchant não vai nos querer de volta.

—   De qualquer modo era perda de tempo. Ficar perambulando por causa de um padre maluco com um pássaro mágico. — Sculley parou, pegou um punhado de palha e esfregou na lâmina de sua espada. Os ossos trançados em seu cabelo chacoalharam enquanto ele se curvava sobre a arma.

—   Então, vamos embora?

—   Embora?

—   Meu Deus! Para perto do senhor, claro!

Ele estava falando do senhor de Douglas, o tio de Robbie.

—   É o que você quer? — perguntou Robbie, com a voz apagada.

—   O que mais existe? A gente veio até aqui fazer a merda de um serviço, e não para ficar de bobagem com a merda de uns pescadores.

—   Vou falar com Thomas, e tenho certeza de que ele vai lhe dar um cavalo. E dinheiro também.

—   O senhor de Douglas vai querer o senhor de volta.

—   Eu fiz um juramento — disse Robbie, então se lembrou de que Thomas tinha acabado de libertá-lo de todos os compromissos. Agora podia escolher seu próprio destino. — Eu vou ficar, Sculley.

—   Ficar?

—   Você pode ir para perto do meu tio, mas eu vou ficar aqui.

Sculley franziu a testa.

—   Se você ficar com esse sujeito — disse ele, fazendo um gesto para a outra parte da casa, para onde presumia que Thomas tivesse ido —, na próxima ver em que eu vir o senhor terei de matá-lo.

—   Sim, terá.

Sculley olhou na direção da vaca.

—   Vou fazer com que seja rápido. Sem ressentimentos. O senhor vai falar com o sujeito a respeito do cavalo?

—   Vou, e vou pedir para ele lhe dar umas moedas para a viagem.

Sculley balançou a cabeça.

—   Parece justo. O senhor fica, eu vou, e depois eu o mato.

—   É — disse Robbie.

Estava livre.

 

O padre Levonne, para sua própria perplexidade, descobriu um par de botas num baú num pequeno cômodo do andar de cima da fazenda.

—   O fazendeiro fugiu — disse ele, olhando enquanto Roland experimentava as botas —, mas vamos deixar dinheiro para ele. Elas cabem?

—   Cabem — respondeu Roland. — Mas não podemos roubá-las.

—   Vamos deixar mais dinheiro do que elas valem. Acredite em mim, ele é um fazendeiro francês, prefere ter ouro a sapatos.

—   Eu não tenho dinheiro. Ou melhor, o dinheiro que eu tenho está no castelo.

—   Thomas vai pagar.

—   Vai?

—   Claro. Ele sempre paga.

—   Sempre? — Roland ficou surpreso.

—   Le Bâtard vive nos limites da Gasconha inglesa — explicou o padre Levonne com paciência. — Para comer ele precisa de grãos, queijo, carne e peixe, precisa de vinho e feno, e se roubar essas coisas o povo do campo não vai gostar dele. Vai traí-lo, entregá-lo a Berat ou Labrouillade, ou a qualquer outro senhor que gostaria de pendurar seu crânio em um salão, por isso Thomas se certifica de que gostem dele. Ele paga. A maioria dos senhores não faz isso, então quem o senhor acha que é mais popular?

—   Mas… — começou Roland, e hesitou.

—   Mas?

—   Le Bâtard — disse Roland, perplexo. — Os hellequins?

—   Ah, o senhor acha que eles são criaturas do diabo? — O padre Levonne gargalhou. — Thomas é cristão, e ouso dizer que é até um bom cristão. Ele não tem certeza disso, mas tenta.

—   Mas foi excomungado — observou Roland.

—   Por fazer o que o senhor fez: salvar a vida de Genevieve. Talvez o senhor seja excomungado daqui a pouco, não é? — O padre Levonne viu o horror no rosto de Roland e tentou aliviá-lo. — Existem duas Igrejas, sire, e duvido que Deus se dê conta de uma excomunhão feita por uma delas.

—   Duas? Só existe uma Igreja. — Roland olhou para o padre como se Levonne fosse herege. — Credo unam, sanctam, catholicam et apostolicam Ecclesiam — disse, sério.

—   Outro soldado que fala latim! O senhor e Thomas! E eu também acredito em uma Igreja santa, católica e apostólica, filho, mas essa Igreja é como Jano. Uma Igreja, dois rostos. O senhor estava servindo ao padre Marchant?

—   Sim — respondeu Roland, com algum embaraço.

—   E a quem ele serve? Ao cardeal Bessières. Ao cardeal Louis Bessières, arcebispo de Livorno e legado papal na corte da França. O que o senhor sabe sobre Bessières?

—   Ele é cardeal — respondeu Roland, mas obviamente não sabia mais nada.

—   O pai dele era mercador de sebo em Limousin. O jovem Louis era um garoto inteligente, e seu pai tinha dinheiro suficiente para garantir que ele estudasse, mas que chance tem o filho de um mercador de sebo neste mundo? Não pode se tornar um lorde, não havia nascido como o senhor, com privilégio e respeito, mas sempre existe a Igreja. Não importa se ele nasceu numa sarjeta, desde que tenha um bom cérebro, e um filho de mercador de sebo pode virar um príncipe da Igreja. Por isso ela atrai todos esses garotos inteligentes, e alguns deles, como Louis Bessières, também são ambiciosos, cruéis, gananciosos e implacáveis. Desse modo, um dos rostos da Igreja, sire, é o nosso papa atual. Um bom homem, um pouco sem graça, um pouco ligado demais à lei canônica, mas um homem que tenta fazer a vontade de Cristo neste mundo mau. E o segundo rosto é Louis Bessières, um homem maligno, que quer ser papa acima de tudo.

—   E por isso procura la Malice — disse Roland baixinho.

—   Claro.

—   E eu disse ao padre Marchant onde encontrá-la! — continuou Roland.

—   Disse?

—   Ou talvez onde ele possa encontrá-la. Não sei. Ela pode não estar lá.

—   Acho que o senhor deveria conversar com Thomas — disse gentilmente o padre Levonne.

—   Você pode contar a ele.

—   Eu? Por que eu?

Roland deu de ombros.

—   Preciso partir, padre.

—   Para onde?

—   Uma arrière-ban foi anunciada. Devo obedecer.

O padre Levonne franziu a testa.

—   Vai se juntar ao exército do rei da França?

—   Claro.

—   E quantos inimigos o senhor terá por lá? Labrouillade? Marchant? O cardeal?

—   Eu posso me explicar ao padre Marchant — respondeu Roland, hesitante.

—   O senhor acha que ele é capaz de ouvir a voz da razão?

—   Eu fiz um juramento.

—   Então retire-o!

Roland balançou a cabeça.

—   Não posso. — Ele viu que o padre ia interrompê-lo, então prosseguiu rapidamente: — Sei que as coisas não são tão rígidas, padre, e talvez Bessières seja maligno, e sei que Labrouillade é uma criatura vil, mas a mulher dele é melhor? Ela é uma adúltera! Uma fornicadora!

—   Metade do mundo cristão tem esse pecado, e a maior parte da outra metade gostaria de tê-lo também.

—   Se eu ficar aqui, estarei de acordo com o pecado dela.

—   Santo Deus — disse atônito o padre Levonne.

—   É tão ruim desejar a pureza? — perguntou Roland, quase implorando.

—   Não, meu filho, mas você não está sendo razoável. O senhor concorda que fez juramentos a homens malignos, mas agora não quer rompê-los. Qual é a pureza disso?

—   Então talvez eu viole os juramentos se minha consciência mandar — admitiu Roland —, mas por que violar um juramento para apoiar um homem que luta contra meu país e abriga uma adúltera?

—   Achei que o senhor fosse gascão. Os ingleses governam a Gasconha e ninguém questiona o direito deles.

—   Alguns gascões questionam, e, se lutar, vou lutar pelo que acho certo.

O padre Levonne deu de ombros.

—   O senhor pode fazer mais do que isso — concordou —, mas no mínimo deve se despedir de Thomas. — Ele olhou pela janela e viu que o alvorecer estava acinzentando o horizonte. — Venha, ele gostará de agradecer.

Levou Roland para baixo, para dentro da grande cozinha. Genevieve estava lá, com uma bandagem sobre o olho esquerdo. Hugh dormia no canto e Thomas estava sentado ao lado da esposa, com um braço em volta do ombro dela.

—   Padre — disse ele, cumprimentando Levonne.

—   Sire Roland deseja partir — disse o padre. — Tentei convencê-lo a ficar, mas ele insiste em ir até o rei João.

O padre se virou e fez um gesto para Roland dizer o que quisesse, mas este ficou quieto. Estava olhando, fascinado, para a terceira pessoa sentada à mesa. Parecia incapaz de falar ou mesmo de se mover. Simplesmente olhava, e por sua cabeça passavam todos os versos das poesias que os trovadores haviam cantado no castelo de sua mãe, versos sobre lábios que pareciam pétalas de rosa esmagadas, sobre rostos brancos como asas de pombos, sobre olhos capazes de iluminar o céu mais escuro e sobre cabelos da cor das asas dos corvos. Tentou falar de novo, mas nada saiu, e ela estava olhando-o de volta com olhos igualmente arregalados.

—   O senhor não foi apresentado à condessa de Labrouillade — disse Thomas. — Senhora, este é Sire Roland de Verrec… — Ele fez uma pausa, depois acrescentou objetivamente: — … Que fez um juramento de devolvê-la ao seu marido.

Mas parecia que Bertille não escutava as palavras de Thomas — assim como o cavaleiro não as ouvia — porque estava simplesmente fitando Roland. Os dois se encaravam, e para ambos o mundo tinha deixado de existir. O tempo havia parado, o céu estava prendendo a respiração e o cavaleiro virgem estava apaixonado.

 

Os dois dados rolaram na mesa.

Era uma mesa muito fina, feita de nogueira escura incrustada com um padrão de unicórnios de prata e marfim, mas agora estava coberta por um tecido do veludo azul mais escuro, com franja de borlas de ouro. O veludo abafava o som dos dados, que eram observados por cinco homens.

—   Pelas entranhas de Deus — disse o mais jovem entre eles quando os dados pararam.

—   Elas se esvaziaram no senhor, sire — disse outro homem enquanto se curvava sobre a mesa. — Três vezes! — Ele precisou se curvar porque os dados, ainda que feitos do marfim mais fino e branco, eram marcados com ouro, o que os tornava difíceis de ler, e a dificuldade era aumentada pela luz estranha dentro da tenda enorme, feita de lona tingida em listras vermelhas e amarelas. Não que houvesse muita luz para ser maculada pela lona, já que, mesmo sendo o meio da manhã, o céu estava cheio de nuvens densas. O homem olhou para o príncipe interrogativamente, buscando permissão para recolher os dados. O príncipe assentiu. — Dois e um — disse o homem, rindo. — O que, acredito, senhor, somam três e aumentam sua dívida comigo em trezentos.

—   Seu júbilo é indecoroso — disse o príncipe, mas sem qualquer raiva.

—   É mesmo, sire, mas mesmo assim é júbilo.

—   Ah, meu Deus, não. — O príncipe levantou os olhos porque de súbito a tenda ressoou com o som de uma chuva forte. Ela havia tamborilado de leve na tenda durante toda a manhã, mas agora rufava, cascateando com tanta força que os homens precisaram levantar a voz para ser ouvidos. — Deus não me ama hoje!

—   Ele o adora, sire, mas gosta mais da minha bolsa.

O príncipe tinha 26 anos, era um homem de bela aparência, com cabelos louros escurecidos pela luz peculiar da tenda. Seu rosto era ossudo, com olhos fundos tão escuros quanto os botões de azeviche que decoravam o colarinho alto da túnica elegantemente curta, de cintura justa, de um azul-celeste pálido. A barra era firmada com ossos e costurada com bordas de pérolas, forrada de seda amarela e com acabamentos de borlas trançadas em tecido de ouro. O cinto da espada era feito do mesmo tecido, mas bordado com seu brasão de três penas feito de seda marfim. A espada dentro da bainha estava encostada numa cadeira junto à entrada da tenda, e o príncipe foi até lá para espiar o céu encharcado pela chuva.

—   Santo Deus, isso não vai parar nunca?

—   Construa uma arca, sire.

—   E vou enchê-la com quê? Mulheres? Aos pares? Essa é uma ideia interessante! Duas garotas de cabelos dourados, duas com cabelos pretos e um par de ruivas para dar variedade?

—   Vão ser companhia melhor do que os animais, sire.

—   Você sabe por experiência própria?

Os homens gargalharam. Os homens sempre riem das pilhérias dos príncipes, mas esse riso era genuíno, porque Eduardo de Woodstock, príncipe de Gales, duque da Cornualha, conde de Chester e senhor de Deus sabe quantos outros territórios, era um rapaz afável, tranquilo e generoso. Era alto e atrairia os olhares das mulheres ainda que não fosse herdeiro do trono da Inglaterra e, segundo os letrados e senhores que serviam ao seu pai, herdeiro do trono da França também. O rei João II questionava isso, naturalmente, mas essa reivindicação era o motivo para o exército inglês estar na França. O brasão de armas do príncipe era o brasão real, mostrando os três leões dourados da Inglaterra esquartelados pela flor-de-lis da França, acima da qual havia uma barra prateada com três estandartes indicando que ele era o filho mais velho do rei, mas o príncipe preferia levar um escudo pintado de preto sobre o qual suas três penas reluziam em branco de alabastro.

O príncipe olhou mal-humorado para o céu.

—   Maldita chuva.

—   Ela deve parar logo, sire.

O príncipe não respondeu a esse comentário, mas olhou por entre os dois carvalhos que pareciam sentinelas junto à entrada da tenda. A cidade de Tours mal era visível por causa da chuva pesada. O local não parecia formidável. Certo, a Cité era muito bem-protegida, com torres e pesadas muralhas, mas o bourg, onde certamente ficava boa parte da riqueza da cidade, era baixo e cercado apenas por um fosso raso e um muro de madeira quebrado em muitos lugares. As tropas do príncipe, endurecidas pela guerra, podiam atravessar essa barreira com facilidade, mas o rio Loire havia transbordado, e agora Tours estava protegida por campos inundados, terras agrícolas transformadas em pântanos e lama grossa.

—   Chuva maldita — repetiu o príncipe, e Deus respondeu com um trovão tão súbito e alto que todos os homens na tenda se encolheram. Um raio serrilhado partiu o céu, caindo no morro baixo onde estava a tenda, pintando tudo de um branco nítido e, num instante, de preto novamente. Logo um segundo trovão ecoou no céu, e, mesmo parecendo que não poderia chover mais forte, a intensidade do aguaceiro dobrou. A chuva ricocheteava no chão lamacento, jorrava da tenda e criava mais riachos no morro. — Jesus — disse o príncipe. — Jesus, Jesus, Jesus.

—   São Martinho é ouvido por ele, sire — observou um dos seus companheiros.

—   São Martinho?

—   Patrono de Tours, sire.

—   Ele morreu afogado?

—   Acho que morreu na cama, sire, mas não tenho certeza.

—   O desgraçado merecia se afogar, se foi ele quem mandou essa porcaria de chuva.

Um cavaleiro apareceu ao pé do morro. Seu cavalo estava coberto por um pano onde havia um brasão, mas o tecido estava tão molhado que a insígnia não podia ser distinguida. A crina do cavalo estava grudada no pescoço, pingando água. Os cascos chapinhavam na lama enquanto o cavaleiro, que usava um gorro de malha sob um bacinete, estava frouxo na sela. Ele instigou o animal relutante a subir a pequena encosta e franziu os olhos na direção da tenda.

—   Sua Majestade está aí?

—   Sou eu! — gritou Eduardo. — Não, não, não apeie!

O homem já ia sair da sela para se ajoelhar diante do príncipe, mas em vez disso apenas fez uma reverência. A chuva ricocheteava em seu elmo.

—   Fui mandado para dizer a Vossa Majestade que vamos tentar de novo — gritou o mensageiro. Ele estava a apenas cinco passos de distância, mas a chuva era ruidosa demais para que sua voz fosse ouvida em um volume normal.

—   Vocês vão nadar até a porcaria daquele lugar? — gritou o príncipe e acenou indicando que não queria resposta. — Diga a ele que eu irei! — gritou, depois se virou de novo para dentro da tenda e estalou os dedos para um serviçal que esperava na sombra. — Uma capa! Um chapéu! Cavalo!

Mais um trovão ensurdeceu o mundo. O raio acertou a arruinada Igreja de Santa Lidoire, cujos restos tinham sido demolidos de modo a fornecer pedras para o conserto das muralhas da Cité.

—   Sire — gritou um dos homens à mesa de jogo. — O senhor não precisa ir!

—   Se eles vão atacar, precisarão me ver!

—   O senhor está sem armadura!

O príncipe ignorou isso, levantando os braços para um serviçal prender a bainha da espada às correntes de prata que pendiam do cinturão. Outro serviçal envolveu Eduardo numa grossa capa preta.

—   Esta não! — disse o príncipe, empurrando a capa. — A vermelha! Com franjas de ouro!

—   A tinta vai sair, senhor.

—   Dane-se a tinta, eles precisam me ver. A vermelha! Precisam reconhecer meu rosto bonito. Me dá esse chapéu, o pequeno. Há um cavalo pronto?

—   Sempre, sire — disse um serviçal.

—   Qual cavalo?

—   Foudre, sire.

O príncipe riu.

—   Isso é bem adequado, não é? Foudre! — Foudre significava raio em francês, e o príncipe, como seu séquito, preferia falar francês. Só quando precisava falar com os soldados comuns usava o inglês. Correu para a chuva, xingando a grama escorregadia. Firmou-se, agarrando o cavalariço que segurava Foudre. — Ajude-me a montar! — Ele já estava totalmente encharcado. — Quero roupas secas na volta! — gritou para um serviçal dentro da tenda, depois puxou as rédeas.

—   Espere! — gritou alguém, mas o príncipe já estava esporeando o cavalo e indo embora, franzindo a testa porque a chuva lhe batia nos olhos.

O vento havia aumentado, sacudindo os galhos molhados, e Foudre se desviou de um galho baixo e pesado de carvalho que balançava ao vendaval. Um raio rasgou o céu, revelando os penhascos de calcário do outro lado do rio com uma luz ofuscante e súbita, seguido logo depois por um trovão que soou como se as torres do céu estivessem desmoronando.

—   O senhor é um idiota! — Outro cavaleiro havia alcançado o príncipe, que estava gargalhando.

—   Sou um idiota molhado!

—   Não podemos atacar neste tempo!

—   Talvez seja isso o que o inimigo pensa, não é?

O cavalo do príncipe corria por uma campina encharcada na direção de um agrupamento de salgueiros em que havia, na penumbra do dia, uma massa escura de homens usando cotas de malha. O rio estava logo atrás, a superfície ampla tornada turbulenta pela chuva incessante. À esquerda do príncipe, mais perto das frágeis defesas do bourg, mas separados por um grande trecho de pântano meio inundado, estavam os arqueiros. Vadeavam para o norte em direção à cidade, mas o príncipe notou que nenhum deles estava retesando arcos e disparando flechas.

—   Sir Bartholomew! — gritou enquanto passava abaixado sob um galho de salgueiro.

—   Essas cordas de merda estão molhadas — disse Sir Bartholomew Burghersh sem olhá-lo. Era um homem atarracado, de rosto moreno, um pouco mais velho do que o príncipe, e era conhecido por seu ódio violento contra tudo que fosse francês, a não ser, possivelmente, vinho, ouro e mulheres. — Essas cordas de merda estão encharcadas. Podem cuspir nos desgraçados, em vez de disparar flechas. Vamos!

A massa de homens de armas usando malha caminhou com dificuldade para atrás dos arqueiros, que, como tinham as cordas encharcadas, não podiam atirar a partir de seu alcance usual.

—   Por que os arqueiros estão lá? — gritou o príncipe.

—   Um sujeito entrou nas nossas linhas e disse que os desgraçados tinham voltado para dentro da Cité — respondeu Burghersh.

Seus homens de armas, todos a pé e carregando escudos, espadas e machados, esforçavam-se pelo terreno ensopado, marchando contra o vendaval e a chuva. O vento era tão forte que criava ondas na água da inundação; havia até espuma nelas. O príncipe esporeou atrás dos homens de armas, olhando para a tempestade e imaginando se seria verdade que os inimigos teriam abandonado o bourg. Esperava que sim. Seu exército estava acantonado no terreno mais alto que pôde encontrar. Alguns homens sortudos tinham cabanas ou choupanas para se abrigar, um punhado possuía tendas, mas a maioria havia precisado montar abrigos com galhos, folhas e turfa. O bourg poderia abrigar todos os seus homens até que o clima horrendo melhorasse.

Sir Bartholomew, montando um belo cavalo de campanha, cavalgava ao lado do príncipe.

—   Alguns arcos vão disparar, sire — disse um tanto nervoso.

—   Você confia no sujeito? O que disse que os desgraçados tinham fugido?

—   Ele parecia ter muita certeza, sire. Disse que o conde de Poitou ordenou que cada defensor entrasse na Cité.

—   Então o cachorrinho Carlos está aqui, é? — disse o príncipe. Carlos era o delfim de 18 anos, herdeiro do rei João da França. — O garoto fez uma marcha rápida desde Bourges, não foi? E vai deixar que tomemos a cidade? — O príncipe espiou através da chuva. — Os estandartes dele ainda estão no muro — acrescentou em dúvida. As defesas frágeis do bourg estavam cheias de estandartes; era difícil distinguir seus detalhes, porque a chuva havia manchado a tinta dos tecidos, mas havia santos e flores-de-lis, e a presença das bandeiras sugeria que os defensores ainda estavam atrás da paliçada.

—   Eles querem que pensemos que ainda estão no bourg, sire — disse Burghersh.

—   E eu quero esta cidade.

O príncipe havia trazido seis mil homens da Gasconha, e eles tinham queimado cidades, capturado castelos, arrasado fazendas e trucidado rebanhos. Tinham feito prisioneiros nobres cujos resgates custeariam metade dos gastos da guerra e haviam saqueado tanto que os homens não conseguiam carregar tudo o que tinham roubado. Somente do tesouro de Saint-Benoît-du-Sault haviam tirado nada menos do que 14 mil écus de ouro, cada um valendo três xelins de prata ingleses. Mais de 2 mil libras em bom ouro francês! Não haviam encontrado praticamente qualquer resistência. O grande castelo de Romorantin se sustentara por alguns dias, mas, quando as flechas incendiárias dos arqueiros do príncipe conseguiram pôr fogo no teto do grande fortim, a guarnição saiu correndo, escapando dos caibros que despencavam em chamas espetaculares. Um padre do séquito do príncipe achava que o exército havia percorrido 400 quilômetros até então, e haviam sido 400 quilômetros de saques, destruição, pilhagem e morte, 400 quilômetros empobrecendo os franceses e mostrando que a Inglaterra podia marchar com impunidade pelas terras do inimigo.

Mas o príncipe sabia que seu exército era pequeno. Ele havia comandado seis mil homens por 400 quilômetros, e agora estava bem no centro da França, e a França seria capaz de juntar milhares de homens para se opor a ele. Segundo boatos, o rei francês estava reunindo um exército, mas onde, e de que tamanho, o príncipe não sabia. Porém, de uma coisa ele tinha certeza: o exército do rei João seria maior do que o seu, e o motivo pelo qual desejava Tours com tanta intensidade era porque o lugar ficava na rota por onde poderia se juntar à força menor do conde de Lancaster. Lancaster havia marchado para fora da Bretanha com o objetivo de devastar uma imensidão de terras no norte da França, e agora diziam que vinha para o sul, esperando se juntar ao príncipe enquanto este abria caminho em direção ao norte. Contudo, para unir-se a Lancaster, ele precisava cruzar o Loire, e para cruzar o Loire precisava da ponte, e para tomar a ponte precisava capturar Tours. Se o príncipe pudesse se juntar a Lancaster, comandaria um contingente grande o bastante para continuar indo para o norte em direção a Paris, devastar o coração das terras do inimigo e dominar o exército real francês, mas se não pudesse atravessar o rio não teria escolha a não ser recuar.

Os arqueiros seguiam pelo pântano. A chuva caía forte e o vento impelia a água em ondulações velozes. Um homem retesou o arco e disparou uma flecha contra a paliçada de madeira do bourg, mas a corda fora enfraquecida pela chuva e a flecha caiu muito antes.

—   Não desperdicem as malditas flechas! — gritou com raiva um ventenar, um homem que comandava vinte arqueiros. — Esperem até poderem matar um francês miserável.

—   Se houver algum para matar — disse Burghersh. Nenhum inimigo aparecia nas defesas frágeis do bourg. — Talvez os desgraçados tenham mesmo saído — acrescentou com esperança.

—   Mas por que ele abandonaria o bourg? — perguntou o príncipe.

—   Porque é idiota, sire?

—   Ouvi dizer que o delfim é feio — disse o príncipe —, mas não idiota.

—   E o senhor, sire? — sugeriu seu outro companheiro, e Burghersh ficou atônito com a insolência, mas o príncipe gargalhou, gostando da pilhéria.

Alguns arqueiros estavam usando seus arcos como cajados, sondando em busca de terreno mais firme ou então apenas tentando se equilibrar. E ainda não surgia nenhum inimigo. Um grupo de arqueiros, mais perto do rio, encontrou uma faixa de terreno mais alta e firme, e correu na direção do muro patético atrás do qual ficavam as casas ricas e as igrejas prósperas do bourg de Tours. Outros arqueiros foram para o mesmo terreno, e os homens de armas, lutando contra a inundação e a lama, seguiram-nos até haver uma multidão na área ligeiramente mais elevada e mais seca.

E as bestas dispararam.

Dezenas de bestas, mantidas secas porque seus arqueiros estavam nos andares mais altos das casas próximas do muro. As setas cortavam a chuva, e os primeiros arqueiros eram empurrados para trás pela força dos projéteis. Dois homens tentaram responder com os longos arcos de guerra, mas as cordas úmidas haviam se esticado e as flechas caíam muito antes do muro de madeira, que subitamente ficou repleto de homens segurando machados, espadas e lanças.

—   Jesus — praguejou o príncipe.

—   Mais cinquenta passos — disse Burghersh, indicando que em mais cinquenta metros seus arqueiros poderiam atirar contra o bourg, mas as bestas estavam cuspindo quadrelos rápido demais.

O príncipe viu um homem ser atingido no rosto, viu o sangue voando e quase imediatamente sendo lavado pela chuva enquanto o homem caía para trás espirrando água do charco, com uma haste curta e preta projetando-se de um olho.

—   Chame-os de volta — ordenou o príncipe.

—   Mas…

—   Chame-os de volta!

Burghersh gritou uma ordem para seu corneteiro, que soprou o toque de retirada. O vento e a chuva eram ruidosos, mas não o suficiente para abafar as zombarias dos defensores.

—   Sire! O senhor está perto demais! — insistiu o companheiro do príncipe. Era Jean de Grailly, captal de Buch, um gascão que havia seguido o príncipe desde sua tenda luxuosa. — O senhor está perto demais, sire!

—   Há quatrocentos homens mais perto do que eu — respondeu Eduardo.

—   O senhor está usando uma capa vermelha. Isso se chama alvo. — O captal esporeou seu cavalo para perto de Eduardo. — Malditos — disse com ódio. Ele era tão jovem quanto o príncipe, um rapaz de sobrancelhas pretas com olhos escuros intensos, e, apesar da juventude, tinha reputação formidável como comandante. Havia trazido seus seguidores da Gasconha, todos usando um brasão de cinco conchas de vieira sobre uma cruz preta contra um campo de ouro. Seu cavalo usava o brasão, e sua capa era listrada de preto e amarelo, tornando-o um alvo tão proeminente quanto o príncipe. — Se uma seta o acertar, sire… — disse ele, mas não terminou a frase porque um projétil passou sibilando perto de seu rosto, forçando-o a se encolher involuntariamente.

O príncipe Eduardo estava olhando os arqueiros e os homens de armas que se esforçavam para voltar pela lama aquosa.

—   Sir Bartholomew! — gritou ele para Burghersh, que havia cavalgado alguns passos mais para perto dos homens que marchavam.

—   Sire?

—   O desgraçado que contou a você que eles haviam recuado. Onde está?

—   No meu alojamento, sire.

—   Enforque-o. Enforque-o lentamente. Bem devagar.

Uma seta de besta acertou o chão do pântano diante de Foudre e fez espirrar um jato de água entre os cascos do cavalo. Mais dois projéteis chegaram perto, e mesmo assim o príncipe continuou sem se mover.

—   Eles não podem me ver fugindo — disse ao captal.

—   É melhor fugir do que morrer, sire.

—   Nem sempre — respondeu o príncipe. — Reputação, meu senhor, reputação.

—   Estar morto antes da hora não é o caminho para uma grande reputação.

—   Minha hora não chegou. Minha sorte foi lida em Argenton.

—   Foi?

—   Era uma velha imunda, mas as pessoas dizem que ela vê o futuro. Fedia igual a uma fossa.

—   E o que ela disse?

—   Que eu estava destinado a coisas maravilhosas.

—   Ela sabia que o senhor era o príncipe de Gales?

—   Ah, sabia.

—   Então não iria dizer que o senhor morreria numa tempestade lamacenta uma semana depois, iria? Quanto melhor a sorte que leem, melhor o senhor paga. E aposto que o senhor foi generoso, não foi?

—   Acho que sim.

—   E mais provavelmente um dos seus cortesãos disse à velha o que falar. Ela disse que o senhor teria sorte no amor?

—   Ah, disse.

—   Essa é uma profecia fácil de se fazer a um príncipe. Um príncipe pode parecer um sapo e mesmo assim as mulheres abrem as pernas.

—   Deus é mesmo bom — comentou feliz o príncipe. A tinta escarlate estava escorrendo de seu chapéu, criando leves riscas em seu rosto, de modo que ele parecia estar sangrando.

—   Venha para longe, sire — implorou o captal.

—   Num instante, meu senhor. — O príncipe estava decidido a esperar até que o último inglês ou galês tivesse passado pelo seu cavalo.

Um besteiro no andar de cima da casa de um artesão de couro, perto do portão sul, tinha visto as capas luxuosas do par de cavaleiros. Girou a manivela de sua arma, puxando a corda lentamente, centímetro a centímetro, retesando o arco de madeira e metal que a segurava, depois procurou entre as setas até encontrar uma que parecesse afiada e limpa. Colocou-a na ranhura e apoiou a arma no parapeito da janela. Mirou. Notou que o vento estava soprando forte da esquerda para a direita, por isso virou a arma ligeiramente para a esquerda. Encostou o cabo no ombro, respirou e tateou o gatilho com a mão direita. Esperou. Os cavaleiros não estavam se movendo. Os soldados a pé fugiam, alguns caindo quando as setas furavam couro ou malha, penetrando em osso e carne, mas o besteiro ignorou-os. Mirou na capa vermelha de novo, levantou a mira ligeiramente para compensar a queda do projétil, firmou-se, prendeu o fôlego e puxou o gatilho. A besta bateu contra seu ombro quando a seta partiu, uma risca preta na chuva torrencial e prateada.

—   Talvez a chuva pare esta noite — disse o príncipe, pensativo.

A seta passou entre sua coxa direita e a sela. Cortou o pano fino da calça justa sem arranhar a pele, furou o couro grosso da sela, teve a velocidade contida pela estrutura de madeira e finalmente bateu contra uma costela de Foudre. O cavalo relinchou e se encolheu por causa da dor. O príncipe acalmou o garanhão.

—   Cristo — disse ele —, 5 centímetros acima e eu estaria cantando na primeira fila do coro.

—   Sire — observou o captal —, o senhor pode me castigar por isso, mas não quero perdê-lo. — Ele se inclinou, segurou as rédeas de Foudre e arrastou o príncipe na direção dos salgueiros. O príncipe gritou palavras de encorajamento para os soldados derrotados enquanto se permitia ser levado para longe do perigo.

—   Amanhã! — gritou. — Amanhã teremos nossa vingança! Amanhã vamos saquear Tours!

Mas o amanhecer seguinte não deu trégua. O vento ainda uivava sobre a terra molhada, a chuva caía, os trovões ribombavam e os raios riscavam o céu. Parecia que Deus desejava que Tours ficasse em segurança. Queria prender os ingleses e seus aliados gascões ao sul do rio Loire. No dia seguinte — porque permanecer parado seria um convite para um cerco francês — o exército do príncipe se virou para o sul.

A retirada havia começado.

 

As armas eram guardadas nas masmorras embaixo do fortim do castelo de Castillon d’Arbizon. Ali havia cinco celas, e uma era ocupada por Pitou, que esperava seu pai mandar os homens de Thomas de volta de Montpellier. Duas outras celas estavam vazias.

—   Eu ponho os bêbados nelas — explicou Thomas a Keane.

—   Meu Deus, elas devem ficar cheias o tempo todo.

—   Raramente — disse Thomas, levando o inglês para a cela maior, que funcionava como arsenal improvisado. Os dois cães farejaram o corredor, observando Keane ansiosamente enquanto ele se enfiava na cela. — Eles sabem que podem ficar bêbados quanto quiserem — continuou Thomas —, mas não quando devem estar sóbrios.

— Em seguida levantou a lanterna e pendurou-a num gancho preso ao teto, mas a vela tremeluzente dava pouca luz. — Você permanece vivo se for bom.

—   Se for sóbrio? — Keane pareceu achar divertido.

—   Se for bom — disse Thomas. — Através do treino, sendo rápido, sendo forte o bastante para retesar um arco ou carregar uma espada pesada. As armas precisam de habilidades, e o homem com quem você acaba lutando pode ter treinado essas habilidades, durante vinte anos, por isso você precisa ser melhor. Caso contrário está morto. E aqui somos uma guarnição pequena cercada por inimigos, por isso precisamos ser os melhores.

—   E se um homem não for bom o bastante?

—   Eu o dispenso. Há muitos que querem servir aqui. Eles ganham dinheiro. Keane riu.

—   São coredors com um castelo, não é?

Ele pretendera fazer uma pilhéria, mas Thomas se encolheu porque existia verdade nela. Os coredors eram bandoleiros, homens e mulheres expulsos de suas terras para viver como selvagens nos morros e atacar viajantes ou pequenas comunidades, e as guerras incessantes na França significavam que havia muitos coredors. As estradas maiores eram patrulhadas por homens de armas, mas outras eram perigosas, a não ser para formidáveis grupos de homens armados. Os coredors eram odiados, mas o que eram os hellequins, se não coredors? Exceto que serviam a um senhor, nesse caso William Bohun, conde que estava Deus sabe a quantos quilômetros de distância vigiando a fronteira entre a Escócia e a Inglaterra, e era o desejo do conde que Thomas dominasse esse trecho da França. Isso tornava a coisa certa? Ou a igreja de São Sardos em Castillon d’Arbizon era rica em prata e cheia de pinturas nas paredes porque Thomas suspeitava do contrário?

—   Conheci Genevieve nesta cela — disse a Keane.

—   Aqui?

—   Ela ia ser queimada como herege. Já haviam montado a fogueira. Tinham feixes de palha para acender e haviam empilhado a lenha em pé porque assim ela queima mais devagar. E desse modo a dor dura mais.

—   Meu Deus.

—   Dor, não — corrigiu-se Thomas —, agonia. Pode imaginar Jesus queimando alguém vivo? Pode imaginá-lo fazendo uma fogueira para arder lentamente, depois assistindo a alguém gritar e se retorcer?

Keane ficou surpreso com a raiva pura na voz de Thomas.

—   Não — disse cautelosamente.

—   Eu sou uma cria do diabo — observou Thomas com amargura. — Filho de um padre. Conheço a Igreja, mas se Cristo voltasse amanhã não saberia que diabo a Igreja é.

—   Somos todos uns desgraçados cruéis — disse Keane, desconfortável.

—   E você não é suficientemente rápido com uma espada. Com mais cinco anos de treino talvez possa ser rápido o bastante. Aqui, experimente isso.

Todas as armas que estavam na cela haviam sido capturadas de inimigos. Havia espadas, machados, bestas e lanças. Muitas eram inúteis, com as lâminas só esperando para serem derretidas e fundidas de novo, mas havia um bom número de armas boas, e Thomas havia escolhido uma acha.

—   Cristo, isso é maligno — disse Keane, avaliando o machado pesado.

—   A cabeça tem esse peso por causa do chumbo — explicou Thomas. — Não precisa de muita habilidade, mas de força. Mas veja bem, a habilidade ajuda.

—   A cortar?

—   Pense nisso como uma lança com lâmina. Você pode fazer a pessoa tropeçar nela, pode enfiá-la ou usá-la para cortar. — A acha era curta, com pouco mais de 1 metro e meio de comprimento, e um grosso cabo de madeira. A cabeça, forjada em aço, tinha uma lâmina de machado e, do lado oposto, uma ponta em gancho, e as duas extremidades do cabo tinham espetos curtos. — Uma espada não tem muita utilidade contra um homem com armadura. A malha impede um corte, e até mesmo o couro fervido contém a maioria dos golpes de espada. Uma estocada pode funcionar contra a malha, mas isso — ele tocou o espeto na ponta da acha —, isso funciona contra qualquer armadura.

—   Então por que os homens usam espadas?

—   Na batalha? A maioria não usa. Você precisa derrubar um homem se ele estiver usando armadura. Uma maça, uma estrela-d’alva ou um machado vão ser bem melhores. — Ele virou a arma para mostrar a ponta em gancho. — Você pode desequilibrar um homem com o gancho. Puxe com o gancho ou faça-o tropeçar no chão e bata no desgraçado com a cabeça do machado até ele morrer. Se você gostar, fique com ela, mas amarre uns trapos abaixo da lâmina.

—   Trapos?

—   Você não vai querer sangue escorrendo pelo cabo e deixando-o escorregadio. E peça a Sam para tecer um pouco de corda de arco, para melhorar a empunhadura. Conhece o ferreiro da cidade?

—   Aquele que chamam de Jaques Zarolho?

—   Ele vai fazer um gume nela para você. Mas primeiro vá ao pátio e treine. Despedace umas estacas. Você tem dois dias para virar especialista.

O pátio já estava cheio de homens treinando. Thomas sentou-se no topo da escada do fortim e sorriu cumprimentando Sir Henri Courtois, que se sentou ao seu lado, flexionou um tornozelo e se encolheu.

—   Ainda dói? — perguntou Thomas.

—   Tudo dói. Estou velho. — Sir Henri franziu a testa. — Me dá dez?

—   Seis.

—   Bom Jesus, só seis? E flechas?

Thomas fez uma careta.

—   Estamos com poucas flechas.

—   Seis arqueiros e poucas flechas — disse Sir Henri, infeliz. — Seria melhor deixar os portões do castelo abertos.

—   Seria menos trabalhoso — concordou Thomas, provocando um sorriso em Sir Henri. — Vou deixar mil flechas com você — sugeriu.

—   Por que não podemos fazer flechas? — perguntou Sir Henri, desanimado.

—   Eu posso fazer um arco em dois dias, mas uma flecha demora uma semana.

—   Mas você pode conseguir flechas com o príncipe de Gales?

—   Espero que sim. Ele deve ter trazido centenas de milhares. Carroças cheias de flechas.

—   E cada uma demora uma semana para ser feita?

—   É preciso muita gente, milhares de pessoas na Inglaterra. Algumas cortam as varas, algumas forjam as pontas, algumas coletam as penas, algumas colam e atam, algumas fazem o entalhe e nós disparamos.

—   Dez homens de armas? — sugeriu Sir Henri.

—   Sete.

—   Oito, ou então você vai me deixar com treze, o número do azar.

—   Quatorze com você — disse Thomas —, e em breve deve ter dezesseis.

—   Dezesseis?

—   O prisioneiro lá embaixo deve ser trocado por Galdric e nossos dois homens de armas. Eles devem chegar a qualquer dia. Portanto serão dezesseis. Meu Deus! Eu poderia sustentar este castelo até o Dia do Juízo Final com dezesseis homens!

Estavam discutindo como o castelo seria protegido. Thomas planejava cavalgar para o norte e queria levar o maior número de hellequins que pudesse, mas não ousava deixar o castelo com uma guarnição muito pequena. No grande salão havia baús que continham o ouro e a prata que Thomas queria levar de volta para a Inglaterra. Um terço pertencia ao seu senhor, o conde de Northampton, mas o resto lhe garantiria uma bela propriedade.

—   Em Dorset — disse, pensando em voz alta. — Em casa.

—   Eu achava que nossa casa era aqui.

—   Prefiro viver num lugar em que não preciso de sentinelas toda noite.

Sir Henri sorriu.

—   Parece bom.

—   Então venha para Dorset conosco.

—   E ouvir sua língua bárbara todo dia?

Sir Henri estava com mais de 50 anos, era um homem que havia passado sua longa vida usando malha e placas. Fora comandante dos homens de armas do antigo conde de Berat, e com isso havia sido inimigo de Thomas, mas o novo conde havia considerado Sir Henri velho e cauteloso demais. Prometera a Sir Henri, com escárnio, o comando da pequena guarnição de Castillon d’Arbizon quando o lugar fosse recapturado, mas em vez disso o cerco do conde sofrera uma derrota. Sir Henri, abandonado por seu senhor, fora feito prisioneiro por Thomas, que, reconhecendo a vasta experiência e o bom senso do homem mais velho, mantivera a promessa do conde, tornando Sir Henri seu próprio castelão. Nunca se arrependeu. Sir Henri era confiável, honesto, estoico e estava decidido a fazer com que seu antigo senhor lamentasse o desprezo.

—   Ouvi dizer que Joscelyn foi para o norte — disse sir Henri.

Joscelyn era o novo conde de Berat, um sujeito cabeça-dura que ainda não desistira do sonho de retomar Castillon d’Arbizon.

—   Para Bourges? — perguntou Thomas.

—   Provavelmente.

—   Onde fica Bourges?

—   No norte — disse Sir Henri, mas obviamente não tinha certeza. — Se fosse eu, iria para Limoges e de lá perguntaria o caminho.

—   E o príncipe de Gales?

—   Estava perto de Limoges — respondeu Sir Henri com cautela. — Pelo menos é o que dizem.

—   Dizem?

—   Um frade que esteve aqui na semana passada. Disse que os ingleses tinham cavalgado para algum lugar ao norte de Limoges.

—   E onde fica Limoges? Bourges fica a leste ou oeste de Limoges?

—   Sei que fica ao norte, mas imagino que seja também a leste. O senhor poderia perguntar ao padre Levonne. Ele viajou muito.

Thomas estava tentando fazer a imagem mental de um território desconhecido e enquadrar nessa ideia vaga uma avaliação do que os exércitos faziam. Sabia que os franceses estavam reunindo forças e que os homens do sul da França estavam se reunindo em Bourges enquanto os nortistas, sob o comando do rei, certamente se juntariam em algum local perto de Paris. Mas e o príncipe de Gales? Estava fazendo outra chevauchée, uma marcha destruidora pelo coração da França que deixava fazendas queimadas, moinhos destruídos, cidades arruinadas e animais trucidados. Uma chevauchée era brutal e cruel, mas deixava o inimigo empobrecido. Por fim, se os franceses quisessem parar os ingleses, teriam de sair de seus castelos e suas fortalezas para lutar, e então as flechas voariam. Centenas de milhares de flechas com penas de ganso.

—   Se eu fosse você — disse Sir Henri —, iria para o oeste. Primeiro a Limoges, depois a Poitiers, e de lá continuaria para o norte, na direção de Tours. Em algum lugar você deve encontrar o príncipe.

—   Poitiers fica em Poitou?

—   Claro.

—   O homem que tentou cegar Genevieve pode estar lá — disse Thomas, sem acrescentar que la Malice também poderia estar, mas não tinha certeza se sequer acreditava na existência da espada.

—   E Genny? — perguntou Sir Henri. — Vai ficar aqui?

Thomas balançou a cabeça.

—   São Paulo disse que as esposas devem ser submissas aos maridos, mas ninguém se incomodou em contar isso a Genny.

—   Como está o olho dela?

Thomas fez uma careta. Genevieve tinha feito um tapa-olho de couro que odiava usar, mas preferia isso ao branco leitoso de seu globo ocular arruinado.

—   O irmão Michael acha que ela não vai perdê-lo, mas está cega. — Ele deu de ombros. — Agora ela se acha feia.

—   Genny não ficaria feia nem se tentasse — disse Sir Henri, galanteador. — E o irmão Michael? Você vai levá-lo?

Thomas riu.

—   Ele é todo seu. Dê-lhe uma besta; ele deve conseguir atirar com uma sem se matar.

—   Você não o quer?

—   E ficar olhando-o se desesperar por causa de Bertille?

Sir Henri deu um risinho.

—   Meu Deus, ele é rápido! — Estava observando Sire Roland de Verrec, que lutava com dois homens ao mesmo tempo, aparando os golpes com sua espada veloz. Parecia fazer isso sem esforço, mas os dois homens que o atacavam estavam obviamente utilizando cada músculo para derrubar suas defesas. — Ele vai para o norte com você — disse Sir Henri.

—   Ele quer ir, sim.

—   Sabe por quê? Ele não quer mais ser o cavaleiro virgem.

Thomas gargalhou.

—   Isso pode ser consertado facilmente. Estou pasmo por ainda não ter sido.

Sir Henri olhou Roland lutar.

—   Ele é extraordinário! Como conseguiu aparar aquela estocada?

—   Habilidade e prática.

—   E pureza — disse Sir Henri. — Ele acredita que sua habilidade depende da pureza.

—   Meu Deus, eu devo ser um fracote. Verdade?

—   O que significa que ele deve transformar Bertille em viúva antes de se casar com ela, e não vai perder a virgindade antes de se casar.

—   Santo Deus. Verdade?

—   Ele diz que os dois estão noivos. É possível ficar noivo de uma mulher casada? De qualquer modo ele conversou com o padre Levonne e acha que pode manter a pureza casando-se, mas para se casar com a condessa ela precisa ser viúva, por isso primeiro ele tem de matar o marido dela.

—   Espero que o padre Levonne tenha explicado que Labrouillade provavelmente não vai morrer em batalha.

—   Não?

—   Claro que não. Ele é rico demais. Vale uma fortuna como prisioneiro. Se as coisas ficarem ruins ele se rende, e ninguém vai abrir mão de um resgate enorme para ajudar Roland de Verrec a perder a virgindade.

—   Acho que o nosso cavaleiro virgem não pensou nisso — disse Sir Henri. — E Sir Robbie?

—   Vai comigo — respondeu Thomas, com a voz séria.

Sir Henri balançou a cabeça.

—   Você não confia nele?

—   Digamos que quero que ele fique onde possa ser visto.

Sir Henri massageou o tornozelo.

—   O homem dele voltou para o norte?

Thomas assentiu. Sculley desejara retornar ao senhor de Douglas, e assim Thomas lhe agradeceu, dera-lhe uma bolsa e deixara que ele fosse para o norte.

—   A última coisa que ele me disse foi que estava ansioso para me matar — disse Thomas.

—   Meu Deus, ele era uma coisa horrível.

—   Horrível — concordou Thomas.

—   Acha que ele vai conseguir chegar ao exército francês?

—   Acho que Sculley poderia cavalgar até o inferno sem ser tocado.

—   Esse nome é escocês? Sculley?

—   Ele me disse que sua mãe era inglesa, e que assumiu o nome dela porque ela não sabia quem era o pai. Foi capturada em Northumberland por um grupo de guerreiros escoceses, e eles evidentemente se revezaram nela.

—   Então na verdade ele é inglês?

—   Segundo ele, não. Só espero que não tenha de lutar contra o desgraçado.

Em seguida houve dois dias de preparativos, dias esfregando os arcos com lanolina, ajustando a emplumação de centenas de flechas, consertando arreios, afiando espadas e machados, olhando o futuro e imaginando o que ele guardaria. Thomas não conseguia tirar a luta em Crécy da mente. Não que lembrasse muita coisa, além do caos da batalha, dos relinchos dos cavalos e dos gritos dos homens, dos gemidos dos agonizantes e do fedor de merda daquele campo de soldados mortos. Lembrava-se do barulho de mil flechas saltando das cordas e do francês usando elmo com nariz de porco, enfeitado com longas fitas vermelhas, e como essas fitas giravam tão belas enquanto o sujeito caía do cavalo e morria. Lembrava-se do forte trovão dos tambores franceses impelindo seus cavaleiros para as lâminas assassinas; lembrava-se dos orgulhosos estandartes na lama, das mulheres chorando, dos cães se refestelando nos soldados eviscerados e dos camponeses se esgueirando no escuro para saquear os cadáveres. Lembrava-se de toda a glória da batalha: as fitas vermelhas de um homem morrendo, os cadáveres rendilhados de sangue e a criança chorando inconsolavelmente por seu pai morto.

E sabia que os franceses estavam reunindo um exército.

E tinha recebido ordem de se juntar ao príncipe.

Assim, enquanto as primeiras folhas amarelavam, levou os hellequins para o norte.

 

Jean de Grailly, captal de Buch, parou seu cavalo à sombra dos carvalhos. Toda vez que o corcel mexia os cascos havia o estalar de sementes. Já era outono, mas pelo menos a chuva forte que havia derrotado a tentativa do exército de capturar Tours parara, e o terreno fora seco por dias de tempo quente.

O captal não estava usando suas cores ousadas naquela manhã. As listras amarelas e pretas o tornavam visível demais, e assim, como os 32 homens que ele comandava hoje, vestia uma capa marrom simples. O corcel também era marrom. Na batalha o captal montaria um grande cavalo de campanha, treinado para lutar, mas para esse tipo de combate o corcel era melhor. Era mais rápido e tinha mais energia.

—   Estou vendo 16 — disse baixinho um homem.

—   Há mais no meio das árvores — disse outro.

O captal ficou em silêncio. Estava observando os cavaleiros franceses que haviam aparecido na linha das árvores do outro lado de um pasto. Por baixo da capa marrom ele usava um gibão longo de couro sem mangas, coberto com cota de malha. Usava um bacinete sem viseira, e não tinha qualquer proteção além disso, a não ser o escudo simples no braço esquerdo. Uma espada pendia no lado esquerdo do quadril, e na mão direita havia uma lança. Ela fora encurtada. Era uma lança pesada, como a que um homem carregaria num torneio, e desajeitada demais para esse trabalho. A ponta da lança, cujo cabo pousava no chão coberto de folhas, tinha uma pequena flâmula triangular mostrando a concha de vieira prateada do captal sobre um campo de listras pretas e amarelas. Era sua única concessão à vaidade da nobreza.

O exército do príncipe estava mais de um quilômetro e meio atrás dele, viajando para o sul por estradas que passavam por florestas aparentemente intermináveis, e ao redor de todo o exército havia pequenos grupos de cavaleiros como este comandado pelo captal. Eram os batedores, e à frente deles estavam os batedores do inimigo. Havia um exército inimigo em algum lugar, mas os batedores do príncipe viam apenas grupos de cavaleiros.

Esses cavaleiros haviam seguido o exército desde o dia em que ele deixara a segurança da Gasconha, mas agora havia um número muito maior. Pelo menos uma dúzia de grupos de cavaleiros franceses seguia os ingleses. Eles cavalgavam o mais perto que ousavam e se afastavam rapidamente caso se vissem diante de uma força maior, e o captal sabia que estavam mandando mensagens ao rei francês. Mas onde ele estava?

Tendo se afastado do rio em Tours e vendo contida sua ambição de se juntar ao conde de Lancaster, o príncipe estava retornando para o sul. Cavalgava em direção à segurança da Gasconha e levava seus saques. Todo o exército estava montado, até os arqueiros tinham cavalos, e a maioria das carroças de bagagens era leve e puxada por cavalos, para que o exército pudesse se mover rapidamente. Contudo, era óbvio que os franceses viajavam com velocidade igual, e qualquer idiota entenderia que o rei João estava se esforçando ao máximo para ultrapassar o príncipe. Ir à frente, escolher um campo de batalha e matar os abusados ingleses e gascões.

Mas onde estavam os franceses?

Havia uma leve mancha cinza no céu a leste, que o captal supôs que fosse fumaça dos restos das fogueiras que os franceses haviam acendido no acampamento da noite anterior. E essa mancha estava perto, perto demais e muito ao sul. Se essa mancha fosse indicação da posição francesa durante a noite, eles já estariam lado a lado com o príncipe, e um prisioneiro, tomado dois dias antes, havia confirmado que o rei João dispensara os soldados de infantaria de seu exército. As forças francesas viajavam como os ingleses, todos os homens a cavalo. Os soldados de infantaria tornariam sua marcha mais lenta, e ele não queria se retardar. Era uma corrida.

—   Agora são 21 — disse um homem.

O captal olhou para os cavaleiros. Seriam uma isca? Será que outros cem estariam esperando nas árvores para atacar, caso algum inglês ou gascão investisse contra os 21? Então ele colocaria sua própria isca.

—   Hunald! — gritou para seu escudeiro. — A bolsa. Eude? Seu cavalo e dois homens para irem com você.

O escudeiro pegou uma bolsa de couro que estava pendurada em sua sela, apeou e revirou o chão sob a floresta em busca de pedras. Não havia muitas que tivessem peso suficiente, por isso ele demorou até encher a bolsa. Enquanto isso os franceses olhavam para o oeste. Estavam sendo cautelosos, o que era bom, decidiu o captal. Ficariam mais confiantes se fossem apoiados por um bando maior de cavaleiros escondidos.

A bolsa cheia foi atada com seus cordões à pata direita dianteira do cavalo de Eude.

—   Pronto, sire — disse Eude. Ele havia apeado.

—   Então vá.

Os três homens, dois nas selas enquanto Eude puxava seu cavalo, saíram da cobertura das árvores e foram na direção sul. O cavalo, atrapalhado pela bolsa com pedras, andava desajeitadamente. Refugava a intervalos de alguns passos e, quando andava com docilidade, arrastava a pata direita dianteira. Para um observador distante, parecia que o animal estava muito manco e que seu dono tentava levá-lo de volta à segurança. Os três homens pareciam uma presa fácil, e os franceses, sem dúvida esperando que um deles fosse suficientemente rico para garantir um pagamento de resgate, engoliram a isca.

—   Sempre funciona — disse o captal, pasmo.

Observava e contava os cavaleiros franceses que saíam das árvores. Trinta e três. A idade de Nosso Senhor, pensou, e viu o inimigo se voltando para a presa e se espalhando. Lanças baixaram para posição de descanso, espadas foram desembainhadas, e então os franceses esporearam os cavalos pelo pasto que separava os dois trechos de floresta. Passaram do trote ao meio galope. Agora estavam disputando corrida entre si, ansiosos para tomar os prisioneiros, e o captal esperou mais alguns instantes. Em seguida, levantou sua lança e esporeou o corcel. O cavalo saltou adiante.

Então 29 cavaleiros saíram do meio das árvores. Lanças foram apontadas. Os franceses não tinham encurtado suas lanças, por isso possuíam uma vantagem, mas haviam sido apanhados de surpresa e, para enfrentar a carga, precisariam dar meia-volta. Foram lentos, as lanças longas eram pesadas, e o captal os acertou com força antes que tivessem chance de se realinhar.

Sua lança atingiu um homem por baixo do escudo. O captal sentiu o choque enquanto firmava o braço contra o cabo da lança. A alta patilha de sua sela o segurou no lugar enquanto a arma cravava-se fundo. Passou por malha e couro, por pele e músculo e penetrou em tecido macio. Havia sangue na sela do inimigo, e o captal soltou a lança, desembainhando a espada. Girou a lâmina para trás, acertando o elmo do agonizante, e usou os joelhos para virar o corcel para a direita, na direção de outro francês, cuja lança fora atrapalhada pelo cavalo de um companheiro. O sujeito entrou em pânico, soltou a comprida lança de freixo e tentou pegar a espada, e ainda estava desembainhando-a quando a lâmina do captal rasgou sua garganta desprotegida. Um golpe vigoroso acertou o escudo do captal, mas então um dos seus cavaleiros afastou o agressor. Um cavalo estava relinchando de dor. Um homem a pé cambaleava com sangue espirrando de um talho em seu bacinete.

—   Quero um prisioneiro! — gritou o captal. — Pelo menos um prisioneiro!

—   E os cavalos deles! — gritou outro homem.

A maioria dos franceses estava fugindo, e o captal se contentou em deixá-los ir. Ele e seus homens haviam matado cinco inimigos, ferido outros sete e feito prisioneiros, além de pegar os valiosos cavalos.

Levou tudo de volta para a floresta onde a emboscada fora feita e ali interrogou os cativos, cujos cavalos tinham a marca do conde d’Eu. Essa marca, um leão estilizado flamejante nos flancos dos animais, disse ao captal que aqueles homens eram normandos. E eram normandos faladores. Contaram como os homens do conde de Poitou, atraídos dos condados do sul da França, tinham se juntado ao exército do rei francês. Portanto, o inimigo estava reforçado. Disseram também que haviam cavalgado menos de 8 quilômetros desde o acampamento noturno na campina até onde os homens do captal os interceptaram.

Então os franceses estavam perto. Tinham sido reforçados, estavam marchando com intensidade, estavam se esforçando ao máximo para ultrapassar o príncipe e chegar a uma posição segura. Queriam uma batalha.

O captal foi encontrar o príncipe para contar que os caçadores tinham virado caça.

E a retirada continuou.

 

Foi uma viagem estranha.

Thomas podia sentir o nervosismo na região. As cidades mantinham as portas fechadas. Aldeões se escondiam ao ver cavaleiros se aproximando; fugiam para as florestas próximas ou, se fossem pegos de surpresa, abrigavam-se em igrejas. Camponeses em meia à colheita largavam as foices e corriam. Por duas vezes os hellequins encontraram vacas mugindo de dor porque precisavam ser ordenhadas depois que seus donos fugiram. Os arqueiros de Thomas, quase todos vindos do campo, ordenharam os animais.

O tempo estava pouco firme. Não chovia, mas sempre parecia em vias de chover. As nuvens eram baixas, e o incessante vento norte tinha um frio incomum. Thomas comandava 34 homens de armas, o que, a não ser pelos deixados na guarda de Castillon d’Arbizon, eram todos os que estavam em condições de viajar, e cada um desses tinha dois cavalos, e alguns tinham três ou quatro. Tinham escudeiros, serviçais e mulheres, que, como os 64 arqueiros de Thomas, estavam montados. Os cavalos inevitavelmente perdiam ferraduras ou ficavam mancos, e cada incidente custava tempo para ser remediado.

Havia poucas novidades, e nenhuma era confiável. No terceiro dia de viagem ouviram sinos de igreja tocando. Eram barulhentos e desarmônicos demais para serem os toques de um enterro, por isso Thomas deixou seus homens em segurança numa floresta e foi com Robbie descobrir o que causava aquela agitação. Encontraram um povoado de tamanho suficiente para ter duas igrejas, e ambas tocavam os sinos, enquanto na praça da feira um frade franciscano, com hábito manchado, estava nos degraus de uma cruz de pedra proclamando uma grande vitória francesa.

—   Nosso rei — gritou o frade — é chamado, com justiça, de João, le Bon! Ele é de fato João, o Bom! João, o Triunfante! Ele espalhou seus inimigos, fez prisioneiros nobres e encheu as sepulturas com ingleses! — O frade viu Robbie e Thomas e, presumindo que fossem franceses, apontou para eles. — Ali estão os heróis! Os homens que nos deram a vitória!

A multidão, que parecia mais cautelosa do que em júbilo, virou-se para olhar os dois cavaleiros.

—   Eu não estive na batalha — gritou Thomas. — Você sabe onde ela foi travada?

—   No norte! — declarou o frade vagamente. — E foi uma grande vitória! O rei da Inglaterra está morto!

—   O rei da Inglaterra!

—   Glória a Deus — disse o frade. — Eu mesmo vi! Vi o orgulho da Inglaterra ser trucidado por franceses!

—   Pelo que ouvi da última vez — disse Thomas a Robbie —, o rei ainda estava na Inglaterra.

—   Ou lutando na Escócia — completou Robbie com azedume.

—   Há uma trégua, Robbie, uma trégua.

—   O senhor de Douglas não reconhece a trégua — disse Robbie, soturno. — Por isso estou aqui, porque disse a ele que não podia lutar contra os ingleses.

—   Agora pode. Você não está comprometido por qualquer juramento.

—   Pela gratidão, então? — perguntou Robbie. Thomas deu um sorriso breve, mas não disse nada. Observava um menino, que provavelmente não era mais velho do que Hugh, incomodando uma menina igualmente pequena tentando levantar a saia dela com um gancho usado para colher nozes. O menino percebeu o olhar de Thomas e fingiu se interessar pelo que o frade dizia. — Você acha que ele está certo? — perguntou Robbie. — Será que houve batalha?

—   Não, é boato.

Agora o frade estava arengando às pessoas para doarem moedas a dois homens mais novos, ambos com hábitos de frade, que carregavam pequenos barris no meio da multidão.

—   Nossos bravos homens sofreram ferimentos! — gritou o frade. — Sofreram pela França! Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, ajudem-nos nesse momento de sofrimento. Sejam generosos e recebam as bênçãos de Cristo! Qualquer moeda ajudará nossos heróis feridos!

—   Ele é uma fraude — disse Thomas, sem dar importância. — É só um patife ganhando algum dinheiro.

Continuaram indo para o norte. Os hellequins precisavam evitar cidades porque qualquer local que tivesse uma muralha teria inevitavelmente ao menos vinte homens capazes de atirar com uma besta, e Thomas queria terminar sua jornada sem perder nenhum homem numa escaramuça insignificante. Havia desviado para o leste porque tinha mais probabilidade de encontrar ingleses naquela direção, e encontrou uns vinte deles num povoado dominado por uma igreja de torres altas. Essa igreja era a única construção de pedra; todo o resto era feito de madeira, reboco e palha. Havia um ferreiro com uma fornalha construída no quintal dos fundos, sob um carvalho chamuscado, e uma taverna cercada por um agrupamento de pequenas casas. Quando Thomas vislumbrou a aldeia no meio dos vinhedos também viu vários cavalos bebendo água no riacho que passava junto da igreja imponente. Eram mais de cinquenta cavalos, o que sugeria pelo menos vinte homens, e ele presumiu que os animais deviam pertencer a franceses, mas então viu a bandeira de são Jorge, com sua cruz vermelha se destacando no fundo branco, encostada na parede da taverna. Levou seus homens morro abaixo e entrou na pracinha onde homens de armas saltaram, alarmados.

—   Somos ingleses! — gritou Thomas.

—   Meu Deus — disse aliviado um homem alto, enquanto passava por baixo do lintel da taverna. Usava uma túnica mostrando um leão dourado empinando num fundo de flores-de-lis em campo azul. — Quem é você? — perguntou ele.

—   Sir Thomas de Hookton — respondeu Thomas. Ele raramente usava o “sir” honorífico, mas fora feito cavaleiro pelo conde de Northampton e isso às vezes era útil.

—   Benjamin Rymer — disse o homem alto. — Servimos ao conde de Warwick.

—   Vocês estão com o exército? — perguntou Thomas, esperançoso.

—   Estamos procurando a porcaria do exército — disse Rymer, depois explicou que ele e seus homens tinham partido num navio de Southampton, mas haviam se separado da frota que carregava o restante dos reforços do conde para a Gasconha. — O vento ficou mais intenso, o idiota do comandante do navio entrou em pânico e fomos parar na Espanha — disse ele. — E os desgraçados levaram dois meses para fazer os reparos e nos levar até Bordeaux. — Ele voltou-se para os homens de Thomas. — É um alívio ver alguns arqueiros de novo. Os nossos estavam em outro navio. Sabe onde está o exército do príncipe?

—   Não faço ideia.

—   Um cego guiando outro cego. E não tem cerveja aqui, de modo que as notícias ruins nunca terminam.

—   Há vinho?

—   Dizem que sim. Para mim tem gosto de mijo de gato. Você vem de Bordeaux?

Thomas balançou a cabeça.

—   Somos de uma guarnição a leste da Gasconha.

—   Então conhecem a porcaria do país?

—   Um pouco. Ele é grande.

—   Então vamos para onde?

—   Para o norte. O último boato que ouvi é que o exército estava em Tours.

—   Onde quer que seja Tours.

—   É no norte — disse Thomas, e desceu da sela. — Descansem os cavalos — gritou para seus homens. — Andem com eles! Deixem que bebam! Vamos partir de novo em uma hora.

Rymer e sua tropa viajaram com os homens de Thomas, que se perguntou como o sujeito havia sobrevivido até então, porque o soldado demonstrou surpresa quando ele mandou batedores à frente.

—   Está tão perigoso assim? — perguntou.

—   É sempre perigoso. Aqui é a França.

Mas nenhum inimigo os perturbou. De vez em quando Thomas via um castelo e levava sua coluna num desvio amplo para evitar encrenca, mas as guarnições não faziam qualquer tentativa de interpelar ou mesmo de identificar os soldados montados.

—   Provavelmente mandaram a maioria dos seus homens para o norte — disse Thomas a Rymer — e deixaram um punhado para guardar as ameias.

—   Rezo a Deus para que não estejamos atrasados para a batalha!

—   Reze a são Jorge para não haver batalha — disse Thomas.

—   Precisamos derrotá-los! — disse Rymer, animado.

Thomas pensou em Crécy, no sangue no capim e no choro à noite depois da batalha. Não disse nada, e seus pensamentos vaguearam até são Juniano. Sentiu que deviam estar se aproximando da abadia onde o santo fora enterrado, mas isso era meramente uma suspeita que poderia ter sido inspirada mais pela esperança do que pela realidade. No entanto o terreno estava mudando, os morros eram menores e mais redondos, os rios mais largos e mais lentos, as folhas amarelavam mais rápido. Sempre que encontrava uma aldeia ou um viajante pedia orientações, mas geralmente as pessoas só sabiam como chegar à próxima aldeia ou talvez a uma cidade da qual Thomas nunca tinha ouvido falar, por isso ele simplesmente continuava indo para o norte.

—   Estamos tentando chegar a Poitiers? — perguntou Sire Roland no sexto dia.

—   Disseram que o príncipe pode estar lá — respondeu Thomas, mas como fora Sir Henri, que não sabia mais do que Thomas, quem sugerira isso, na melhor das hipóteses era um destino vago.

—   Ou está indo para lá porque fica perto de Nouaillé?

—   Nouaillé?

—   É onde descansa o abençoado Juniano.

—   Você já esteve lá?

Roland balançou a cabeça.

—   Só ouvi falar. Você vai para lá?

—   Se ficar no caminho.

—   Porque quer la Malice? — perguntou Roland, e isso era quase uma acusação.

—   Ela existe?

—   Ouvi dizer que sim.

—   O cardeal Bessières acredita nisso, e os dominicanos também devem acreditar, e meu senhor ordenou que eu a encontrasse — disse Thomas.

—   Para poder usá-la na luta contra a França? — perguntou Roland indignado. Ele havia se juntado aos hellequins e estava disposto a lutar contra o exército do rei João, mas isso era por Bertille. Sua lealdade profunda ainda era para com a França, o que significava que faria aquilo por Bertille, só por Bertille, porque ela pedira para ele fazer, e o que ela pedisse ele daria. Roland girou na sela para olhá-la. Ela cavalgava com Genevieve. Thomas não quisera que mais nenhuma mulher fosse para o norte, mas Bertille havia insistido, e fora impossível negar, já que tantos arqueiros e homens de armas tinham suas mulheres montadas em pangarés.

Um rugido de trovão soou em algum lugar ao norte.

—   Você está preocupado com a hipótese de eu encontrar la Malice? — perguntou Thomas.

—   Eu não desejaria aquela espada nas mãos dos inimigos da França.

—   Você quer que a Igreja a tenha?

—   É a quem ela deveria pertencer — disse Roland, mas as lembranças do padre Marchant deixaram seu tom inseguro.

—   Deixe-me contar uma história. Já ouviu falar dos Sete Senhores Negros?

—   Eram os homens encarregados de guardar os tesouros dos hereges cátaros — disse Roland, desaprovando.

Thomas achou sensato não dizer que descendia de um desses Senhores Negros.

—   Contam que eles possuíam o Santo Graal — disse em vez disso. — E ouvi falar que o tiraram de Montségur e depois o esconderam, e não faz muito tempo que outros homens decidiram encontrá-lo.

—   Ouvi dizer a mesma coisa.

—   Mas o que você não ouviu dizer é que um desses homens o encontrou.

Sire Roland fez o sinal da cruz.

—   São boatos — disse sem dar importância.

—   Juro a você, pelo sangue de Cristo, que o Graal foi achado, mas o homem que o descobriu às vezes duvidava do que havia encontrado.

Roland encarou Thomas por alguns segundos, depois viu a sinceridade em seu rosto.

—   Mas, se foi encontrado — disse ele ansioso —, por que não está num relicário de ouro, sobre um altar, adorado por peregrinos?

—   Porque o homem que achou o Graal o escondeu de novo. Levou-o a um lugar onde não pode ser encontrado. Escondeu-o no fundo do oceano. Devolveu-o a Deus porque o Graal não pode ser confiado aos homens.

—   Verdade?

—   Garanto — disse Thomas, e lembrou-se do momento em que jogara a tigela de barro no mar cinzento e vira o pequeno borrifo de água. Parecera então que o mundo ficara em silêncio quando o Graal sumiu, e passaram-se alguns segundos até ele ouvir o som das ondas, o ruído do cascalho sendo arrastado para o oceano e o grito triste das gaivotas. O próprio céu havia prendido o fôlego, pensou. — Garanto — repetiu.

—   E se você encontrar la Malice… — começou Roland, e hesitou.

—   Vou devolvê-la a Deus, porque ela não pode ser confiada aos homens. — Fez uma pausa, depois olhou para Roland. — Portanto, sim, eu quero la Malice, mesmo que seja só para impedir o cardeal Bessières de encontrá-la.

O trovão murmurou longe, ao norte. Não havia chuva, só as nuvens escuras, e os hellequins cavalgaram na direção delas.

 

A chuva mudara para o sul, deixando para trás um céu sem nuvens e um sol quente. Era meados de setembro e parecia junho.

O exército do príncipe estava seguindo as nuvens, indo para o sul, esfalfando-se numa alta encosta coberta de floresta. As carroças de bagagens, pesadas com o saque d a chevauchée, estavam a oeste, usando estradas no vale, mas a parte principal do exército, os arqueiros montados e os homens de armas, seguia trilhas em meio às árvores no terreno elevado.

Tinha se tornado uma corrida, mas ninguém sabia como ela terminaria. Os conselheiros do príncipe, aqueles guerreiros sábios e experientes mandados por seu pai para manter Eduardo longe de encrenca, acreditavam que, se conseguissem ir à frente do rei francês e encontrar um local adequado para se posicionar, poderiam travar uma batalha e vencer. Se conseguissem obrigar os franceses a subir um morro íngreme em direção aos letais arqueiros ingleses, havia a chance de uma grande vitória, mas esses mesmos conselheiros temiam o que aconteceria caso o rei João virasse a mesa e colocasse seu exército no caminho dos ingleses em retirada.

—   Prefiro não atacar — disse o conde de Suffolk ao príncipe.

—   Meu Deus, está quente — observou Eduardo.

—   É sempre melhor se defender — aconselhou o conde, que estava cavalgando à direita do príncipe.

—   Onde estamos, em nome de Deus?

—   Poitiers fica para lá. — O conde de Oxford, à direita de Eduardo, apontou vagamente para o leste.

—   Perdoe-me, mas seu avô cometeu esse erro em Bannockburn — disse Suffolk.

—   Erro?

—   Ele atacou, sire. Não havia necessidade, e ele perdeu.

—   Ele era um idiota — disse o príncipe, animado. — Não sou idiota, sou?

—   Não mesmo, sire — respondeu Suffolk —, e o senhor deve se lembrar da grande vitória de seu pai em Crécy. Sua também, sire. Nós defendemos.

—   Foi mesmo! Meu pai não é idiota!

—   Deus nos livre, sire.

—   Mas vovô era. Não precisa se desculpar! Tinha o cérebro de um esquilo, é o que meu pai diz. — O príncipe se abaixou sob o galho baixo de um olmo. — Mas e se virmos os desgraçados na estrada? Devemos atacar, não?

—   Se as circunstâncias forem propícias — respondeu cautelosamente o conde de Oxford.

—   E se não encontrarmos uma colina conveniente? — perguntou o príncipe.

—   Continuamos indo para o sul, sire, até encontrarmos — disse Suffolk. — Ou até chegarmos a uma das nossas fortalezas.

O príncipe fez uma careta.

—   Não gosto de fugir.

—   O senhor vai descobrir que isso é preferível a ficar preso em Paris, sire — disse Oxford secamente.

—   Ouvi dizer que há garotas bonitas em Paris.

—   Existem garotas bonitas em qualquer lugar, sire — observou Suffolk —, como o senhor sabe melhor do que a maioria dos homens.

—   Deus é bom — observou o príncipe.

—   Amém — acrescentou Oxford.

—   E reze para ele estar tornando os franceses mais lentos — disse Suffolk, carrancudo. A última informação confiável que ele ouvira era que o rei francês estava a apenas 15 ou 20 quilômetros de distância, e que seu exército, que, como o do príncipe, estava todo montado, viajava mais rápido. Depois de desperdiçar tempo durante todo o verão, de súbito o rei da França estava cheio de energia e, presumiu Suffolk, de confiança. Queria uma batalha, mas não era idiota a ponto de se arriscar a lutar em terreno desvantajoso. Os franceses queriam criar uma armadilha para o príncipe, obrigá-lo a lutar num local que eles escolhessem, e Suffolk sentia-se apreensivo. Um prisioneiro feito pelo captal de Buch havia confirmado que o rei João tinha mandado todos os soldados de infantaria para longe porque eles tornariam seu exército mais lento, mas mesmo sem essa infantaria ele possuía mais homens do que o príncipe, mas ninguém sabia quantos a mais. Além disso, ele não estava sendo obrigado a viajar naquele maldito cimo de morro coberto de árvores. Estava usando estradas boas. Estava correndo para o sul. Estava querendo acionar a armadilha.

Mas o maldito cimo de morro coberto por floresta era a maior esperança do príncipe. Era um atalho. Poderia lhe poupar um dia de marcha, e um dia de marcha valia ouro. Talvez no fim houvesse um local para emboscar os franceses. Ou talvez não. E Suffolk se preocupava com a bagagem. Enquanto estivesse separada do exército ela era vulnerável, e mesmo que ganhassem o dia de marcha eles precisariam esperar meio dia para a bagagem alcançá-los. E ele se preocupava com os cavalos. Não havia água nesse terreno alto, os animais estavam com sede e os homens que os montavam estavam com fome. Os suprimentos de comida do exército eram desesperadamente escassos. Eles precisavam chegar a um terreno baixo e fértil onde os silos estariam cheios, precisavam de água, precisavam de descanso, precisavam de uma folga.

Seis quilômetros à frente de onde o príncipe e os dois condes cavalgavam entre as árvores, o captal de Buch estava em sua sela, na parte final do cume. Adiante, uma longa encosta descia até uma estrada e o brilho de um rio, e à direita, para além de alguns morros baixos cobertos de floresta, havia uma mancha de fumaça sujando o céu, e ele sabia que isso devia sinalizar os fogos de cozinha de Poitiers. A encosta do outro lado do vale era coberta por vinhedos, uma fileira depois da outra, densa de parreiras.

Era um dia lindo. Quente e ensolarado, com apenas umas poucas nuvens brancas e altas. As árvores estavam pesadas de folhas que tinham começado a apresentar a cor do outono. As uvas estavam gordas, quase no ponto de colheita. Era um dia perfeito para levar uma garota ao rio e nadarem nus, pensou o captal, e depois fazer amor no capim e beber vinho antes de fazer amor de novo.

Em vez disso ele via o inimigo.

Um exército havia passado pelo vale suave. O terreno dos dois lados da estrada fora revirado por cascos, milhares e milhares de cascos, deixando uma cicatriz escura no gramado partido. Um dos batedores do captal, montado num cavalo pequeno e rápido, vira o exército passar.

—   São 87 estandartes, sire — disse ele.

O captal grunhiu. Só os maiores senhores carregavam os estandartes à mostra durante a marcha, de modo que os seguidores soubessem de seu lugar na coluna, mas quantos homens isso significava? Nenhum grande senhor levaria menos de cem homens para a batalha, portanto seriam 10 mil? Ou 12? Muitos, pensou o captal, sombrio. Os ingleses e seus aliados gascões não levariam mais de quarenta daqueles estandartes, mas seu batedor havia contado 87! Contudo, agora, enquanto o sol brilhava no vale riscado pelas cicatrizes e no rio tranquilo, o captal só podia ver dois estandartes adejando sobre uma multidão de homens e cavalos que descansavam ao lado do rio.

—   Essa é a retaguarda? — perguntou.

—   Sim, sire.

—   Tem certeza?

—   Não há ninguém atrás deles. — O batedor fez um gesto para o leste. — Cavalguei uma légua naquela direção. Não tem nada.

E a retaguarda francesa estava descansando. Os homens não demonstravam pressa. E por que deveriam? Haviam ultrapassado os ingleses e os gascões. O príncipe não ganhara um dia de marcha, os franceses tinham vencido a corrida, e o captal chamou um dos seus homens e lhe disse para levar a má notícia a Eduardo.

—   Vá, depressa — disse ele. E depois, como os franceses, o captal esperou.

—   Quantos você acha que são? — perguntou a um homem de armas, apontando para os franceses junto ao rio.

—   Seiscentos, sire? Setecentos?

Seiscentos ou setecentos franceses estavam imóveis no vale. A maioria não usava elmos por causa do calor do dia, mas muitos tinham chapéus de aba larga com extravagantes penas brancas, clara evidência de que não esperavam encrenca. Havia um punhado de carroças leves, que transportavam lanças e escudos. Aqueles franceses não faziam ideia de que havia um inimigo tão perto. Alguns tinham apeado e uns poucos até estavam deitados no capim, como se cochilassem. Serviçais conduziam cavalos sem cavaleiros pelo pasto, enquanto outros animais já pastavam. Havia homens de pé em pequenos grupos, passando odres de vinho. O captal não podia distinguir os dois estandartes porque pendiam frouxos no calor sem vento, mas sua presença significava que havia senhores entre aqueles homens de armas, e senhores significavam pagamento de resgate.

—   Eles estão em maior número do que nós — disse o captal, depois parou quando seu cavalo bateu uma pata dianteira no chão coberto de folhas. — Estamos em menor número, numa relação de dois para um — continuou. — Mas somos gascões.

Ele tinha pouco mais de trezentos homens de armas, todos com elmos, todos com escudos, todos prontos para lutar.

—   Por que estão esperando? — perguntou um homem de armas.

—   Água? — sugeriu o captal.

O dia estava quente, os dois exércitos haviam feito marcha forçada, os cavalos estavam com sede e não havia água no terreno elevado. Ele supôs que aquela retaguarda estivesse deixando seus garanhões beber no riacho. Virou-se na sela e fez um gesto para Hunald, seu escudeiro.

—   Elmo, escudo, lança, esteja com o machado a postos. — Em seguida olhou para o porta-estandarte, que captou seu olhar e riu. — Cerrar fileiras! — gritou para seus homens, depois levantou a viseira e colocou-a sobre o capuz de malha. Enfiou o braço esquerdo na alça do escudo preto e amarelo, depois segurou a manopla. Seu escudeiro o ajudou a pôr a lança em riste. Por todo o limite das árvores seus homens faziam a mesma coisa. Alguns simplesmente desembainharam espadas, enquanto Guillaume, um sujeito enorme montando um cavalo igualmente enorme, segurava uma estrela-d’alva, uma maça cheia de pontas. — Nada de trombeta — gritou o captal. Caso sinalizasse o ataque com uma trombeta o inimigo ganharia alguns segundos de aviso. Era melhor simplesmente irromper da floresta e chegar à metade da encosta antes que os franceses percebessem que a morte os visitava numa tarde quente. Seu cavalo relinchou e bateu a pata outra vez. — Em nome de Deus, da Gasconha e do rei Eduardo — disse o captal.

E bateu com os calcanhares no cavalo.

E por Deus, pensou, não havia nada parecido com essa sensação. Um bom cavalo, uma sela alta e justa, uma lança e um inimigo tomado de surpresa. O trovão dos cascos encheu a tarde, torrões de terra lançados por patas pesadas enquanto 317 cavaleiros irrompiam das árvores e se lançavam encosta abaixo. O estandarte do captal, com as conchas de vieira prateadas brilhando na cruz preta contra o campo amarelo, balançava bem alto, carregado pelo porta-estandarte. Agora os homens gritavam.

—   Santa Quitéria e a Gasconha!

O captal gargalhou. Santa Quitéria? Ela fora uma virgem cristã que, recusando-se a se casar com um senhor pagão, fora decapitada. Mas seu tronco havia pegado a cabeça cortada e ensanguentada e a levado morro acima para um local onde, até hoje, dizia-se que aconteciam milagres. Era a santa da Gasconha. A porcaria de uma virgem! Mas talvez trouxesse o milagre de que precisavam. Oitenta e sete estandartes inimigos poderiam exigir um milagre?

—   Santa Quitéria e são Jorge — gritou ele, e viu um francês virar um cavalo para enfrentar o ataque.

O homem não tinha lança nem escudo, só uma espada desembainhada, e o captal apertou o joelho esquerdo contra o flanco do cavalo de campanha, que se virou obediente. Ele parecia sentir aonde o captal desejava i r, e estava a pleno galope quando atravessou a estrada. O captal deixou a lança deslizar pela barriga do inimigo, sentindo apenas seu leve tremor quando atravessou a malha e bateu numa costela inferior. Ele soltou a lança e levantou a mão direita, para que o escudeiro lhe desse o machado. Preferia o machado a uma espada. O machado cortava malha, até mesmo armadura de placas, e ele tocou o cavalo com o joelho outra vez, perseguindo um homem que fugia, girou o machado e sentiu a lâmina esmagar o crânio e atravessá-lo. Soltou a lâmina, levantou o escudo para aparar um golpe fraco de espada vindo da esquerda e vislumbrou esse homem se desvanecer num jorro de sangue quando a estrela-d’alva de Guillaume obliterou um chapéu com penas brancas, junto com crânio e miolos.

Os cavaleiros gascões penetraram no inimigo. Não era uma luta justa. A retaguarda francesa estivera relaxando, confiando que, se alguém do seu exército visse o inimigo, seria a vanguarda, mas em vez disso o inimigo estava no meio deles, matando-os. O captal matava e esporeava o cavalo para adiante, sem deixar que os franceses estabelecessem qualquer tipo de ordem. Eles estavam mais densos junto ao vau, onde havia uma multidão de homens e cavalos sob alguns salgueiros. O captal se virou para lá.

—   Sigam-me! — gritou. — Sigam-me! Santa Quitéria!

Seus homens viraram os cavalos de campanha para o seguirem, homens com malha carregando aço brilhante sobre cavalos pesados. Os animais tinham olhos arregalados, os dentes à mostra e os arreios sujos de sangue espirrado do inimigo. O captal mergulhou na massa desorganizada de franceses e girou o machado, ouvindo os gritos, levando pânico aos cavalos dos inimigos, infiltrando-se na multidão e gritando o tempo todo. Os franceses já estavam correndo. Homens subiam atabalhoadamente nas selas e esporeavam. Outros gritavam rendendo-se, e por toda a campina do riacho os gascões galopavam, matavam, giravam e esporeavam de novo para matar outra vez. O captal havia pensado que precisaria lutar em meio à turba de homens, mas em vez disso a multidão se partia, fugia, e ele a perseguia; não havia modo mais fácil de matar do que em perseguição. Seu cavalo se fixava na montaria de um fugitivo, acelerava, esperava a pressão de um joelho para dizer que o machado fizera o serviço, depois procurava outra vítima. E à esquerda e à direita do captal outros gascões faziam o mesmo. Deixavam uma trilha de homens sangrando, feridos e retorcendo-se, de cavalos sem cavaleiro e de mortos. Continuavam esporeando, perseguindo e matando, todas as frustrações de dias de retirada sendo descontadas nessa orgia de morte. Um francês entrou em pânico e virou o cavalo bruscamente para a esquerda. O animal perdeu o apoio das patas. Os corpos sangrentos de dois gansos saqueados estavam amarrados à patilha da sela, e penas voaram enquanto o cavalo despencava. O homem gritou quando sua perna ficou presa e se partiu sob o cavalo, depois tentou se retorcer para longe quando o machado do captal girou. Os gritos cessaram. Uma mulher estava pedindo socorro, mas seu homem havia fugido e ela se viu cercada por gascões num campo ensanguentado.

O captal gritou, chamando seu corneteiro.

—   O toque de parar — ordenou.

Seus homens haviam matado, triunfado, aprisionado pelo menos três senhores importantes e deixado dezenas de mortos sem sofrer praticamente nenhum arranhão, mas os cavaleiros perseguidos estavam galopando na direção do corpo principal dos franceses, e seria apenas questão de minutos até que esse exército reagisse e mandasse homens muito armados e com armaduras para contra-atacar. E assim o captal subiu a pequena colina e desapareceu entre as árvores. O vale, que parecera tão pacífico, estava salpicado de vermelho sangue e cheio de corpos.

Os exércitos haviam se encontrado.

 

— A Abadia de São Juniano? — perguntou o camponês. — Certamente, senhor, seguindo o vale. — Ele apontou o norte com um dedo sujo. — Não é longe, senhor. O senhor pode levar um boi até lá e voltar em uma manhã.

O homem estivera batendo grãos para descascar quando os hellequins chegaram à sua aldeia, e ele não havia percebido os cavalos até que as sombras deles escureceram a porta de seu celeiro. Havia espiado os cavaleiros numa perplexidade idiota, depois se ajoelhara e passara a mão na franja. Thomas tinha dito que ele estava em segurança, que não queriam fazer mal. E depois, como fizera uma centena de vezes na viagem, perguntara se o homem sabia sobre a Abadia de São Juniano. E agora, pela primeira vez, alguém sabia.

—   Há monges lá, senhor — disse o homem, nervoso, tentando ser útil.

Seus olhos se viraram rapidamente para a esquerda, sem dúvida onde sua família morava. Seu mangual, duas estacas de pau unidas por um pedaço de couro, estava largado no chão, para o caso de aqueles homens sérios, a cavalo, o confundirem com uma arma.

—   Quem é o seu senhor? — perguntou Thomas.

—   O abade, senhor.

—   Que tipo de monges são eles?

A pergunta deixou o sujeito perplexo.

—   Monges negros, senhor? — sugeriu ele.

—   Beneditinos?

—   Ah, isso! Beneditinos, acho. — Ele sorriu, mas era óbvio que não sabia o que eram os beneditinos.

—   Outros soldados estiveram aqui?

Agora ele tinha mais certeza.

—   Faz muito tempo, senhor; alguns vieram no dia de santa Perpétua, eu lembro. Eles vieram; não ficaram.

—   Desde então não veio nenhum?

—   Não, senhor.

O dia de santa Perpétua fora meio ano atrás. Thomas jogou uma moeda de prata para o homem e virou o cavalo.

—   Vamos para o norte — disse rapidamente aos seus homens, e esporeou naquela direção.

Estava anoitecendo, o que significava que deviam procurar abrigo para a noite. Um rio serpenteava no fundo do vale onde havia um par de choupanas escuras sob carvalhos, mas na extremidade norte do vale, escondido por uma elevação coberta de floresta, havia um vilarejo ou uma pequena cidade, traído pela densidade da fumaça das cozinhas. A abadia devia ficar lá. Dois corvos voaram sobre o rio, pretos contra o céu que escurecia. Um sino tocou, chamando homens e mulheres para as orações noturnas.

—   Há uma cidade aqui? — Rymer, o homem do conde de Warwick, havia esporeado seu cavalo até chegar perto de Thomas.

—   Não sei, mas geralmente povoados crescem ao lado de mosteiros.

—   Um mosteiro! — Rymer pareceu surpreso.

—   Estou indo lá.

—   Rezar? — sugeriu Rymer, em tom irônico.

—   É.

Rymer ficou sem graça com a resposta e se calou. Thomas percorreu uma curva no vale e pôde ver um rio ladeado com salgueiros, e, logo atrás, um vilarejo amplo e as torres de um mosteiro. A construção era surpreendentemente grande, cercada por um muro alto e dominada por sua grande igreja.

—   Podemos ficar no povoado — disse Rymer.

—   Deve haver uma taverna lá — respondeu Thomas.

—   Era isso que eu esperava.

—   Meus homens também vão ficar lá. — Thomas olhou para o mosteiro, cujos muros altos estavam escuros no crepúsculo que se avizinhava. Aqueles muros pareciam tão formidáveis quanto as fortificações de qualquer castelo. — É esse o lugar? — perguntou a Sire Roland, que havia esporeado seu cavalo para alcançar Thomas.

—   Não sei — respondeu Roland.

—   Parece mais uma fortaleza do que um mosteiro.

O cavaleiro virgem franziu a testa para os muros distantes.

—   São Juniano recebeu a ordem de manter a espada de são Pedro em segurança, portanto talvez seja uma fortaleza mesmo.

—   Se ao menos for o Mosteiro de São Juniano. — À medida que chegava mais perto, Thomas pôde ver que o enorme portão do mosteiro estava aberto. Supôs que só seria fechado quando o sol finalmente desaparecesse no oeste. — Ele está enterrado aí, não é?

—   Seus restos terrenos estão aí, sim.

—   Então talvez la Malice também esteja.

—   E talvez devêssemos deixá-la aí — disse Sire Roland.

—   Eu deixaria, se não acreditasse que Bessières está procurando por ela, e que, se encontrá-la, irá usá-la, não para a glória de Deus, mas para a dele.

—   E você irá usá-la?

—   Eu lhe disse — respondeu Thomas peremptoriamente. — Vou perdê-la. — Em seguida se virou na sela. — Luc! Gastar! Arnaldus! Comigo. O resto fique no povoado! E paguem pelas vitualhas! — Ele havia escolhido gascões para ficar com ele, de modo que os monges não suspeitassem de sua aliança com a Inglaterra.

Robbie, Keane e Sire Roland também ficaram com Thomas, e Genevieve e Bertille insistiram em acompanhá-lo. Hugh foi posto aos cuidados de Sam e dos outros arqueiros.

—   Por que não levar os arqueiros? — perguntou Genevieve.

—   Só vou fazer umas perguntas ao abade — disse Thomas. — Não quero amedrontar o sujeito. Nós entramos, perguntamos e vamos embora.

—   Foi o que você disse em Montpellier — observou Genevieve, irritada.

—   Esses são monges, apenas monges. Vamos interrogá-los e partiremos de novo.

—   Com la Malice? — perguntou Genevieve.

—   Não sei. Nem sei se la Malice existe.

Ele apressou o passo para chegar ao portão antes que o sol desaparecesse atrás do horizonte a oeste. Seguiu a meio galope por um pasto onde um rebanho de cabras era vigiado por um menino pequeno e um cachorro grande, que observaram os cavaleiros passarem em silêncio. Uma boa ponte de pedra atravessava o rio do outro lado do pasto, e na área oposta à ponte a estrada se bifurcava. Thomas viu que o mosteiro era cercado em parte por um canal do rio que fora desviado para fazer uma espécie de fosso largo, talvez para que os monges pudessem criar peixes. Também podia ver duas figuras de hábito andando na direção do portão aberto, e esporeou o cavalo de novo. Os dois monges o viram chegando e esperaram.

—   Vocês estão aqui por causa dos peregrinos? — gritou um deles, cumprimentando.

Thomas abriu a boca para perguntar o que o sujeito queria dizer, depois decidiu responder afirmativamente.

—   Estamos — respondeu.

—   Eles chegaram há uma hora. Vão ficar felizes com a proteção, acham que os ingleses estão perto.

—   Não vimos nenhum inglês — disse Thomas.

—   Mesmo assim eles vão ficar felizes em ver vocês — respondeu o monge. — Este é um tempo perigoso para fazer peregrinação.

—   Todos os tempos são perigosos — disse Thomas, e passou com seus seguidores pelo arco alto. O som dos cascos dos cavalos ecoou nas paredes de pedra enquanto os dobres dos sinos paravam. — Onde eles estão? — perguntou Thomas em voz alta.

—   Na abadia! — gritou o monge.

—   Há alguém esperando por nós? — perguntou Genevieve.

—   Eles não estão esperando por nós — retrucou Thomas.

—   Quem? — perguntou ela, ansiosa.

—   São só peregrinos.

—   Mande chamar os arqueiros.

Thomas olhou para seus três gascões, para Robbie e Sire Roland.

—   Acho que estamos em segurança para lidar com um bando de peregrinos — disse secamente.

Os cavalos ocuparam o pequeno espaço entre o muro e a igreja da abadia. Thomas desceu da sela e instintivamente verificou se a espada estava correndo livremente na bainha. Ouviu o portão do mosteiro se fechar com um estrondo, depois a pancada quando a tranca foi posta no lugar. Agora estava quase escuro, e as construções do mosteiro eram negras contra o céu levemente luminoso onde brilhavam as primeiras estrelas. Uma tocha presa num suporte ardia entre duas casas de pedra que podiam ser dormitórios, e outras duas chamejavam claras nos degraus da abadia. Uma rua calçada de pedras cruzava a frente do edifício, e na sua extremidade mais distante, onde ainda estava aberto outro portão, que passava pelo muro alto do mosteiro, Thomas pôde ver uma quantidade de cavalos arreados e quatro pôneis de carga contidos por serviçais. Apeou, virando-se para os degraus da abadia, onde as fagulhas das tochas tremulavam e morriam junto à porta aberta, de onde era possível ouvir monges cantando, um som lento e belo, profundo e rítmico, vindo e indo como as marés. Subiu os degraus lentamente, e aos poucos o interior do prédio se revelou, uma glória de velas acesas, pedra pintada, colunas esculpidas e altares brilhantes. Tantas velas! E a longa nave estava cheia de monges com hábitos pretos, cantando e se ajoelhando, e agora Thomas percebeu que o som era aterrador, como se a maré cheia estivesse se partindo em ondas profundas de ameaça. Pôde distinguir as palavras enquanto chegava à luz das velas e as reconheceu como sendo de um salmo. “Quoniam propter te mortificamur tota die”, cantavam as vozes masculinas, demorando-se nas sílabas longas, “æstimati sumus sicut oves occisionis.”

—   O que significa? — sussurrou Genevieve.

—   Por vossa causa somos entregues à morte todos os dias — traduziu Thomas baixinho — e tratados como ovelhas de matadouro.

—   Não gosto disso — disse ela, nervosa.

—   Só preciso falar com o abade — tranquilizou-a Thomas. — Vamos esperar o fim da missa.

Olhou para o alto coro, onde podia ver um grande mural de Cristo julgando. Pecadores caíam num inferno feroz de um lado, e suas fileiras estavam surpreendentemente cheias de padres com batinas e monges com hábitos. Mais perto, na nave, havia uma pintura de Jonas e a baleia, que pareceu a Thomas um tema estranho para um mosteiro tão interiorano, mas o fez se lembrar de seu pai contando aquela velha história e de como tinha ido à praia de cascalhos em Hookton, quando era menino, na esperança de ver uma grande baleia capaz de engolir um homem. Do lado oposto a Jonas, e meio oculta por colunas, havia outra pintura que ele percebeu ser de são Juniano. Mostrava o monge ajoelhado num trecho de terra sem neve e olhando para cima, em êxtase, na direção de um braço que se estendia do céu para lhe oferecer uma espada.

—   É isso! — disse, fascinado.

Os monges que estavam no fundo da igreja o ouviram e a maioria se virou, vendo Genevieve e Bertille.

—   Mulheres! — sibilou um deles, alarmado.

Um segundo monge veio rapidamente até Thomas.

—   Os peregrinos só podem entrar na igreja entre as matinas e a nona — disse indignado. — Agora não! Todos vocês, saiam!

Robbie, Keane, Sire Roland e os três gascões haviam seguido Thomas dentro da igreja, e o monge indignado abriu os braços para mandá-los todos embora.

—   Vocês estão usando espadas! — protestou o sujeito. — Devem sair!

Mais monges se viraram, e o cântico foi interrompido por um rosnado. Thomas se lembrou de seu pai dizendo que um bando de monges era algo mais amedrontador do que qualquer bando de bandoleiros. “As pessoas acham que eles não passam de idiotas capados”, dissera o padre Ralph, “mas não são, por Deus, não são! Eles podem lutar como selvagens!” Aqueles monges estavam doidos por uma briga, e deviam ser pelo menos duzentos. Talvez achassem que nenhum homem de armas ousaria desembainhar uma espada dentro da abadia, e o monge mais perto de Thomas provavelmente acreditava nisso, porque lançou a mão carnuda contra o peito dele no instante em que um sino tocou no altar elevado. Tocou freneticamente e foi reforçado pelo som de um cajado batendo no chão de pedra.

—   Deixem que eles fiquem! — gritou uma voz forte. — Ordeno que permaneçam! — As vozes do cântico foram silenciando, desencontradas, até cessarem por completo. O monge ainda estava com a mão no peito de Thomas.

—   Tire-a — disse Thomas baixinho.

O homem espiou-o com olhos hostis. Thomas segurou a mão dele. Torceu-a para trás com a mesma força que usava para puxar a corda de um arco de guerra. O monge resistiu, depois seus olhos se arregalaram de medo ao sentir a força do arqueiro. Tentou afastar a mão, e Thomas curvou-a com mais força até sentir os ossos do pulso fraturarem-se.

—   Eu mandei que você tirasse.

—   Thomas! — Genevieve ofegou.

Thomas olhou para o altar elevado e viu uma figura se levantando ali, um homem enorme envolto em vermelho, volumoso, alto e imponente. Os peregrinos eram comandados pelo cardeal Bessières. E ele não estava sozinho. Havia besteiros nas bordas da nave, e Thomas ouviu os estalos quando as cordas foram travadas pelos mecanismos de disparo. Eram pelo menos uma dúzia, todos usando a insígnia de um cavalo verde sobre um campo branco, e com eles havia homens de armas. Ao lado do cardeal, no topo dos degraus da escada, estava o conde de Labrouillade.

—   Você estava certa — disse Thomas baixinho. — Eu deveria ter trazido os arqueiros.

—   Tragam-nos aqui — ordenou Bessières. O cardeal estava sorrindo, o que não era de espantar; seus inimigos tinham vindo diretamente a ele e estavam à sua mercê, e o cardeal, arcebispo de Livorno e legado papal na França, não tinha misericórdia. O padre Marchant, alto e sério, estava logo atrás do cardeal, e Thomas pôde ver mais homens de armas nos outros cantos da abadia enquanto era forçado a seguir pela nave entre os monges, que se separaram para deixá-los passar. — Bem-vindo, Guillaume d’Evecque — disse o cardeal.

—   Thomas de Hookton — respondeu Thomas em desafio.

—   Le Bâtard — disse o padre Marchant.

—   E a prostituta herege que é sua esposa! — completou o cardeal.

—   E a minha esposa também — murmurou Labrouillade.

—   Duas prostitutas! — disse o cardeal, parecendo achar divertido. — Mantenham-nas aí! — Ele rosnou a ordem para os besteiros que estavam vigiando Thomas. — Thomas de Hookton, le Bâtard. Então, por que está aqui, neste local de orações?

—   Recebi uma missão — respondeu Thomas.

—   Uma missão! E qual é? — O cardeal fingia gentileza, como se incentivasse uma criança pequena.

—   Impedir que uma relíquia sagrada caia em mãos malignas.

A boca do cardeal se retorceu num pequeno sorriso.

—   Que relíquia, meu filho?

—   La Malice.

—   Ah! E nas mãos de quem?

—   Nas suas.

—   Vocês veem de que infâmia le Bâtard é capaz! — Agora o cardeal estava se dirigindo a toda a abadia. — Ele decidiu negar à Santa Madre Igreja uma de suas relíquias mais sagradas! Ele já é excomungado! Foi considerado fora de salvação, no entanto ousa vir aqui, trazendo suas prostitutas a este local santíssimo para roubar o que Deus entregou a seus fiéis servidores. — Ele levantou a mão e apontou para Thomas. — Você nega que é excomungado?

—   Só admito culpa de uma coisa.

O cardeal franziu a testa.

—   E qual é?

—   Você tinha um irmão — disse Thomas. O rosto do cardeal ficou sombrio e o dedo estendido tremeu, depois baixou. — Você tinha um irmão — repetiu Thomas. — E ele está morto.

—   O que você sabe sobre isso? — perguntou o cardeal num tom ameaçador.

—   Sei que ele foi morto com uma flecha disparada por um filho do diabo — respondeu Thomas. Ele poderia ter implorado pela própria vida, mas sabia que não conseguiria nada. Estava cercado por bestas retesadas e por homens de armas, e tudo que lhe restava era a postura de desafio. — Sei que ele foi morto por uma flecha cortada de um pé de freixo ao pôr do sol, morto por uma flecha cuja casca foi arrancada pela faca de uma mulher, que recebeu uma ponta de aço forjada numa noite sem estrelas e penas tiradas de um ganso morto por um lobo branco. E sei que a flecha foi disparada de um arco que tinha permanecido por uma semana em uma igreja.

—   Feitiçaria — sussurrou o cardeal.

—   Todos eles devem morrer, Eminência — falou o padre Marchant pela primeira vez. — E não só as prostitutas e os excomungados, mas aqueles homens também! — Ele apontou para Robbie e Sire Roland. — Eles violaram seus juramentos!

—   Um juramento para um homem que tortura mulheres? — zombou Thomas. Ele ouviu cascos de cavalos nas pedras do pátio do lado de fora da abadia. Havia vozes lá, e estavam furiosas.

O cardeal também ouvira as vozes e olhou na direção da porta da abadia, mas não viu nada ameaçador ali.

—   Eles morrerão — disse, fitando Thomas de novo. — Eles serão mortos por la Malice. — E estalou os dedos.

Uma dúzia de monges que estiveram parados junto ao altar elevado se afastou, e Thomas viu um frade ali. Era um homem mais velho, e fora tão espancado que seu hábito branco estava sujo do sangue que havia pingado do lábio partido e do nariz. E atrás dele, nas sombras atrás do altar, havia uma tumba. Era um caixão de pedra, esculpido e pintado, repousando sobre dois pedestais de pedra num nicho da abside. A tampa do caixão fora deslizada para o lado, e agora uma figura familiar surgiu das sombras. Era o escocês Sculley, com os ossos amarrados no cabelo estalando enquanto ia até a tumba e enfiava a mão dentro dela. Ele tinha mais ossos amarrados na barba, que batiam no peitoral sobre a cota de malha.

—   Você mentiu para mim — gritou para Robbie. — Fez com que eu lutasse pelos ingleses desgraçados e seu tio diz que você deve morrer, que é um fracote, um peido. Não é digno do nome Douglas. Você é bosta de cachorro, isso sim.

E da tumba ele tirou uma espada. Não se parecia nem um pouco com as espadas nas pinturas das paredes. Mais parecia um alfanje, uma daquelas espadas baratas que podiam servir tanto como ceifadeira quanto como arma. Tinha uma lâmina curva e grossa, alargando-se na direção da ponta, uma arma mais adequada a cortes grosseiros do que a perfurar. A lâmina parecia velha e mal cuidada, estava cheia de manchas, era escura e grosseira, no entanto Thomas sentiu o ímpeto de cair de joelhos. O próprio Cristo havia visto aquela espada, e talvez a tivesse tocado, e na noite anterior à sua agonia ele se recusara a deixar que aquela arma o salvasse. Era a espada do pescador.

—   Mate-os — disse o cardeal.

—   Sangue não deve ser derramado — protestou um monge alto e de barba grisalha.

Devia ser o abade.

—   Mate-os — repetiu o cardeal, e os besteiros levantaram suas armas. — Não com flechas! — gritou Bessières. — Deixem la Malice cumprir seu dever e servir à Igreja, como é seu destino. Deixem que ela faça seu trabalho glorioso.

E o arqueiro disparou, e a flecha voou.

 

A flecha acertou Sculley diretamente no peitoral. O projétil era de ponta lisa, feito para perfurar armaduras. As pontas lisas eram forjadas em aço. Longas, finas e aguçadas, sem farpas, nessas flechas os primeiros centímetros de madeira de freixo tinham sido substituídos por um pequeno pedaço de carvalho mais pesado. Se havia algum projétil que podia atravessar o aço era uma flecha pesada de ponta lisa que concentrasse o peso e o ímpeto num ponto pequeno. Contudo, aquela ponta de flecha se amassou como aço barato. Poucos ferreiros sabiam fazer aço bom, e alguns trapaceavam, mandando pontas lisas de ferro em vez de aço, mas, ainda que a ponta lisa tivesse deixado de penetrar no peitoral de Sculley, a força do golpe bastou para fazê-lo cambalear três passos para trás, de modo que tropeçou nos degraus do altar e caiu sentado pesadamente. Ele pegou a flecha que o havia acertado, olhou a cabeça amassada e riu.

—   Se alguém vai matar alguém nesta porcaria de igreja — gritou uma voz no fundo da abadia — serei eu. Agora, que diabos está acontecendo aqui?

Thomas se virou. O fundo da abadia estava se enchendo de homens de armas e arqueiros, todos usando o mesmo brasão: um leão dourado empinando contra um fundo de flores-de-lis douradas em campo azul. Era o mesmo brasão de Benjamin Rymer, a insígnia do conde de Warwick, e o rosnado da voz e a confiança do recém-chegado sugeriam que devia ser o próprio conde quem caminhava agora pela nave. Estava usando uma bela armadura suja de lama que tilintava ao andar, e suas botas com placas de aço ressoavam brutalmente alto nas pedras. Não usava túnica, portanto não portava qualquer brasão, mas sua posição era proclamada por uma corrente de ouro curta e grossa que pendia sobre uma echarpe de seda azul. Era alguns anos mais velho do que Thomas, tinha rosto fino, não barbeado, e cabelo castanho revolto que fora comprimido pelo elmo que agora era carregado por um escudeiro. Ele fez uma careta. Seus olhos rápidos examinaram a abadia e pareceram sentir desprezo por tudo o que via. Um segundo homem, mais velho e com cabelos grisalhos, barba curta e usando uma armadura muito amassada, seguia-o, e havia algo familiar a Thomas no rosto duro e queimado de sol do sujeito.

O cardeal bateu com seu cajado nos degraus do altar.

—   Quem são vocês? — perguntou ele.

O conde, se é que era mesmo ele, ignorou-o.

—   Quem diabos está matando quem aqui? — perguntou.

—   Isto é uma questão da Igreja — respondeu o cardeal altivamente. — E vocês irão embora.

—   Eu vou embora quando estiver pronto para ir — disse o recém-chegado, e se virou rapidamente quando um som de pés se arrastando soou no fundo da abadia. — Se houver qualquer encrenca de merda aqui mandarei meus homens tirarem todos vocês deste mosteiro. Querem passar a noite na porcaria dos campos? Quem é você?

Essa última pergunta foi dirigida a Thomas, que, presumindo que o homem fosse o conde, abaixou-se sobre um dos joelhos.

—   Sir Thomas de Hookton, sire, servidor do conde de Northampton.

—   Sir Thomas esteve em Crécy, senhor — disse baixinho o homem de cabelos grisalhos. — Era um dos homens de Will Skeat.

—   Você é arqueiro? — perguntou o conde.

—   Sim, senhor.

—   E foi feito cavaleiro? — Ele pareceu ao mesmo tempo surpreso e reprovador.

—   De fato, senhor.

—   Foi feito cavaleiro por mérito, senhor — disse com firmeza o segundo homem, e então Thomas se lembrou dele. Era Sir Reginald Cobham, um soldado de renome.

—   Nós estivemos juntos no vau, Sir Reginald — disse Thomas.

—   Blanchetaque! — disse Cobham, lembrando-se do nome do vau. — Ah, santo Deus, que luta especial foi aquela! — Ele riu. — Você tinha um padre lutando junto, não era? O desgraçado rachava cabeças francesas com um machado.

—   O padre Hobbe — respondeu Thomas.

—   Vocês dois terminaram? — vociferou o conde.

—   Nem de longe, senhor — disse Cobham, animado. — Poderíamos tecer lembranças por mais algumas horas.

—   Vão se danar, seus desgraçados — disse o conde, mas sem rancor. Ele podia ser um conde da Inglaterra, mas sabia muito bem que era recomendável ouvir os conselhos de pessoas como Sir Reginald Cobham. Esses homens eram ligados a todos os grandes senhores, nomeados pelo rei como conselheiros. Um sujeito podia nascer rico, com posto, título e privilégio, mas isso não o tornava um soldado, portanto o rei se certificava de que seus nobres fossem aconselhados por homens inferiores que soubessem mais. O conde podia comandar, mas se fosse ajuizado só comandaria depois da decisão de Sir Reginald. O conde de Warwick era experiente, tinha lutado em Crécy, mas era suficientemente sensato para ouvir os conselhos. Nesse momento, no entanto, parecia furioso demais para ser prudente, e sua raiva cresceu ao ver o coração vermelho na túnica suja de Sculley. — Isso é o brasão de Douglas? — perguntou, ameaçador.

—   É o santíssimo coração de Cristo — respondeu o cardeal antes que Sculley tivesse chance de falar. Não que Sculley tivesse entendido a pergunta, feita em francês. O escocês tinha se levantado e agora estava olhando Warwick com tanta ferocidade que o cardeal, achando que Sculley poderia começar uma briga, puxou-o de volta para o pequeno grupo de monges perto do altar. — Esses homens — Bessières indicou os besteiros e os homens de armas que usavam a insígnia de Labrouillade — estão servindo à Igreja. Estamos numa missão para Sua Santidade, o papa, e você — ele ergueu um dedo ameaçador para o conde — está atrapalhando nossas tarefas.

—   Não estou atrapalhando porcaria nenhuma!

—   Então deixe este recinto e permita que nossa devoção continue — exigiu o cardeal em tom majestoso.

—   Devoção? — perguntou o conde, olhando para Thomas.

—   Assassinato, senhor.

—   Execução legítima! — trovejou o cardeal. Seu dedo tremeu apontando para Thomas. — Esse homem é excomungado. É odiado por Deus, desprezado pelos homens e inimigo da Madre Igreja!

O conde encarou Thomas.

—   É? — perguntou, parecendo decepcionado.

—   É o que ele diz, senhor.

—   É um herege! — Vendo uma vantagem, o cardeal pressionou mais. — Foi condenado! Assim como aquela prostituta, esposa dele, e aquela prostituta, uma adúltera! — Ele apontou para Bertille.

O conde olhou para Bertille, uma visão que pareceu aliviar seu humor maligno.

—   Vocês iam matar essas mulheres também?

—   O julgamento de Deus é justo, é certo, é misericordioso — disse o cardeal.

—   Enquanto eu estiver aqui, não é — reagiu o conde com beligerância. — As mulheres estão sob sua proteção? — perguntou a Thomas.

—   Sim, senhor.

—   Levante-se, homem — ordenou o conde. Thomas ainda estava ajoelhado. — E você é inglês?

—   Sou, senhor.

—   Ele é um pecador — retrucou o cardeal — e foi condenado pela Igreja. Está fora da lei dos homens, sujeito apenas à de Deus.

—   Ele é inglês — respondeu o conde enfaticamente —, assim como eu. E a Igreja não mata! Ela entrega os homens ao poder civil, e neste momento eu sou esse poder! Sou o conde de Warwick e não vou matar um inglês em benefício da Igreja, a não ser que o arcebispo de Canterbury em pessoa ordene.

—   Mas ele foi excomungado!

O conde zombou dessa afirmação com uma gargalhada.

—   Há dois anos — disse ele — seus malditos padres excomungaram duas vacas, uma lagarta e um sapo, tudo isso em Warwick! Vocês usam a excomunhão como uma mãe usa uma vara de bétula para disciplinar os filhos. Vocês não podem tê-lo. Ele é meu, ele é inglês.

—   E neste momento — acrescentou baixinho Sir Reginald Cobham, em inglês — precisamos de cada arqueiro inglês que possamos encontrar.

—   E por que estão aqui? — perguntou o conde ao cardeal e, depois de uma pausa deliberadamente insultuosa, acrescentou: — Eminência?

O cardeal fez uma careta de raiva ao ver negada a vingança que buscava, mas controlou-se.

—   Sua Santidade, o papa, mandou-nos para insistir que o seu príncipe e o rei da França façam as pazes. Viajamos sob a proteção de Deus, reconhecidos como mediadores por seu rei, pelo príncipe e por nossa Igreja.

—   Paz? — O conde cuspiu a palavra. — Diga ao usurpador João para entregar o trono da França ao seu dono por direito, Eduardo da Inglaterra, e então vocês terão sua paz.

—   O Santo Padre acredita que já houve muita matança — disse o cardeal em voz piedosa.

—   E você estava a ponto de aumentá-la — retrucou o conde. — Vocês não farão a paz matando mulheres numa abadia, portanto vão embora! Vocês vão encontrar o príncipe naquela direção. — Ele apontou para o norte. — Quem é o abade aqui?

—   Sou eu, sire. — Um homem alto e calvo, com barba grisalha e comprida, saiu das sombras da abside.

—   Preciso de grãos, preciso de feijão, preciso de pão, preciso de vinho, preciso de peixe seco, preciso de qualquer coisa que homens ou cavalos possam comer ou beber.

—   Temos muito pouco — respondeu nervoso o abade.

—   Então tomaremos o pouco que vocês têm — disse o conde, depois olhou para o cardeal. — O senhor ainda está aqui, Eminência, e eu o mandei ir embora. Então vá. Agora este mosteiro está em mãos inglesas.

—   O senhor não pode me dar ordens — disse Bessières.

—   Acabei de dar. E tenho mais arqueiros, mais espadas e mais homens do que o senhor. Portanto, vá antes que eu perca a cabeça e mande carregá-lo para fora.

O cardeal hesitou, depois decidiu que a prudência era melhor do que o desafio.

—   Vamos partir — anunciou. Em seguida fez um gesto para seus seguidores e foi andando pela nave. Thomas moveu-se para interceptar Sculley, depois viu que o escocês havia desaparecido.

—   Sculley — disse ele. — Onde ele está?

O abade fez um gesto na direção de um arco sombreado, junto da abside. Thomas correu para lá e empurrou a porta, mas não havia nada do lado de fora a não ser uma faixa de calçamento iluminada por chamas e o muro externo do mosteiro. A espada do pescador se fora.

 

A lua intermitente deslizava entre as nuvens altas, o que, junto com as tochas, fornecia luz suficiente para ver que o pátio calçado de pedras atrás da igreja estava vazio. Os pelos da nuca de Thomas se eriçaram, e, temendo que o escocês estivesse numa sombra escura esperando para emboscá-lo, ele desembainhou a espada. A lâmina comprida raspou na bainha.

—   Quem era ele? — perguntou uma voz, e Thomas se virou rapidamente, com o coração disparado. Viu que quem falara era o frade dominicano que estava sangrando.

—   Um escocês — respondeu Thomas. E fitou novamente as sombras. — Um escocês perigoso.

—   Ele está com la Malice — disse o padre peremptoriamente.

Um ruído nos arbustos fez Thomas se virar, mas era só um gato que saiu dos galhos baixos e foi na direção de algumas construções distantes.

—   Quem é você? — perguntou ele ao frade.

—   Meu nome é frei Ferdinand.

Thomas o encarou e viu um homem mais velho, cujo rosto gasto pelo tempo estava sangrando.

—   Como seu nariz e seu lábio foram partidos?

—   Eu me recusei a dizer onde la Malice estava — respondeu o frade.

—   Então bateram em você?

—   Foi o escocês, por ordem do cardeal. Aí o abade contou a ele onde ela estava escondida.

—   Na tumba?

—   Na tumba — confirmou o frei Ferdinand.

—   Você esteve em Mouthoumet — disse Thomas, acusador.

—   O senhor de Mouthoumet era meu amigo, era bom comigo.

—   E o senhor de Mouthoumet era um Planchard, e a família Planchard era de hereges.

—   Ele não era herege — disse enfaticamente o frei Ferdinand. — Pode ter sido pecador, mas quem entre nós não é? Ele não era herege.

—   O último dos Senhores Negros?

—   Ele disse que um ainda vive — respondeu o frade, e fez o sinal da cruz.

—   Vive — disse Thomas. — E seu nome é Vexille.

—   Eles eram os piores dos sete — disse o frei Ferdinand. — Os Vexille não conheciam piedade, não demonstravam misericórdia e carregam a maldição de Cristo.

—   Meu pai se chamava Vexille — disse Thomas. — Ele não usava o nome, e eu também não, mas sou um Vexille. Senhor de Deus-sabe-o-quê e conde de-não-sei-das-quantas.

O frei Ferdinand franziu a testa, olhando para Thomas como se ele fosse alguma fera perigosa.

—   Então o cardeal está certo? Você é herege?

—   Não sou herege — disse Thomas violentamente. — Sou apenas um homem que cruzou o caminho do cardeal Bessières. — Ele enfiou a espada de volta na bainha. Tinha acabado de ouvir um portão sendo fechado e trancado, e achou que Sculley e o cardeal teriam ido embora. — Então me fale sobre la Malice.

—   La Malice é a espada de são Pedro — respondeu o frade. — A que ele usou no jardim de Getsêmani para proteger nosso Senhor. Ela foi dada a são Juniano, mas os Senhores Negros a encontraram e, quando sua heresia foi queimada da terra, esconderam-na para que seus inimigos não a achassem.

—   Esconderam-na aqui?

O frei Ferdinand balançou a cabeça.

—   Estava enterrada na tumba de um Planchard em Carcassonne. O senhor de Mouthoumet pediu que eu a encontrasse, para que os ingleses não a descobrissem.

—   E você a trouxe para cá?

—   O senhor de Mouthoumet estava morto quando voltei de Carcassonne, e eu não sabia aonde mais poderia levá-la. Achei que estaria mais segura escondida aqui. — Ele deu de ombros. — É o lugar dela.

—   Ela jamais terá paz aqui.

—   Porque não está mais escondida?

Thomas confirmou.

—   E é isso que você quer? — perguntou o frei Ferdinand com suspeita. — Que ela tenha paz?

Thomas olhou uma última vez para o pátio do mosteiro, depois voltou para a abadia.

—   Não sou um Senhor Negro. Meus ancestrais podem ter sido cátaros, mas eu não sou. Mas mesmo assim vou fazer o que eles queriam. Vou garantir que seus inimigos não possam usá-la.

—   Como?

—   Tirando-a daquele desgraçado do Sculley, claro.

Thomas voltou para a igreja. Os monges estavam saindo e as velas iam sendo apagadas, mas havia luz suficiente para enxergar dentro do caixão de pedra semiaberto, que ficava no local de honra junto ao altar. São Juniano estava ali, as mãos cruzadas e a pele marrom-amarelada do rosto muito esticada sobre o crânio. As órbitas dos olhos estavam vazias, e os lábios, encolhidos e repuxados, mostravam cinco dentes amarelos. Ele usava um hábito de beneditino, e em suas mãos havia uma cruz simples de madeira.

—   Descanse em paz — disse o frei Ferdinand ao cadáver, e tocou as mãos do santo. — E como você vai garantir que seus inimigos não usem la Malice? — perguntou a Thomas.

—   Fazendo o que você queria fazer. Vou escondê-la.

—   Onde?

—   Onde ninguém possa encontrar, é claro.

—   Sir Thomas — gritou Sir Reginald Cobham da outra extremidade da nave. — Você vem conosco.

O frei Ferdinand pôs a mão no braço de Thomas para impedi-lo de sair.

—   Você me promete?

—   O quê?

—   Que vai escondê-la?

—   Juro por são Juniano. — Thomas se virou e pôs a mão direita na testa do santo morto. A pele parecia pergaminho macio sob seus dedos. — Juro que vou esconder la Malice para sempre — disse. — Juro por são Juniano, e que ele interceda a Deus para me mandar ao fogo eterno se eu violar essa promessa solene.

O frade balançou a cabeça, satisfeito.

—   Então vou ajudá-lo.

—   Rezando?

O dominicano sorriu.

—   Rezando. E, se você cumprir o juramento, meu trabalho está feito. Vou retornar a Mouthoumet. É um lugar tão bom quanto qualquer outro para morrer. — Ele tocou o ombro de Thomas. — Você tem a minha bênção.

—   Sir Thomas!

—   Já vou, Sir Reginald!

Sir Reginald levou Thomas rapidamente pelos degraus da abadia até a rua calçada de pedras onde duas carroças estavam sendo carregadas com feijão, grãos, queijo e peixe seco dos depósitos do mosteiro.

—   Somos a retaguarda — explicou Sir Reginald. — O que não significa porcaria nenhuma, já que estamos à frente do exército do príncipe. Mas ele está em cima do morro. — O soldado apontou para o norte, onde Thomas podia ver a encosta cercada de árvores de um morro alto, escuro sob o fraco luar. — Os franceses estão em algum lugar atrás, Deus sabe onde, mas não estão longe.

—   Vamos lutar contra eles?

—   Só Cristo sabe. Acho que o príncipe gostaria de chegar mais perto da Gasconha. Estamos com pouca comida. Se ficarmos aqui mais de dois dias vamos deixar a região sem nada, mas se continuarmos indo para o sul os malditos franceses podem nos ultrapassar. Eles marcham depressa. — Ele disse tudo isso enquanto andava ao lado das carroças, que estavam sendo carregadas por arqueiros. — Mas sair daqui vai ser um trabalho dos diabos. Eles estão perto, e nós precisamos levar as carroças e os cavalos de carga para o outro lado do rio sem que os desgraçados nos ataquem. Veremos o que a manhã traz. Isso é vinho? — Ele gritou a pergunta para um arqueiro que colocava um barril numa carroça.

—   Sim, Sir Reginald!

—   Quanto há aí?

—   Seis barris como este.

—   Mantenha suas mãos de ladrão longe deles!

—   Sim, Sir Reginald!

—   Eles não farão isso, claro — disse Sir Reginald a Thomas. — Mas precisamos dele para os cavalos.

—   Para os cavalos?

—   Não há água no morro; os pobres animais estão com sede. Por isso damos vinho a eles. De manhã vão estar tontos, mas lutamos a pé, então não importa. — Ele parou de repente. — Meu Deus, que mulher bonita! — Thomas pensou que ele falava de Bertille, que estava junto de Genevieve, mas então Sir Reginald franziu a testa. — O que aconteceu com o olho dela?

—   Um dos padres do cardeal tentou arrancá-lo.

—   Jesus Divino! Existem uns desgraçados cruéis na Igreja. E ele foi mandado para fazer a paz?

—   Acho que o papa preferiria ver o príncipe se render.

—   Rá! Espero que a gente lute. — Ele disse essas palavras em tom sério. — E acho que vamos lutar, acho que teremos de lutar, acho que eles vão nos obrigar a lutar e acho que vamos vencer. Quero ver nossos arqueiros matando os desgraçados.

E Thomas se lembrou da ponta lisa batendo no peitoral de Sculley. As flechas eram feitas às centenas de milhares na Inglaterra, mas seriam bem-feitas? Ele tinha visto um número grande demais se amassar. E Sir Reginald achava que haveria batalha.

Mas o aço das pontas das flechas era fraco.

 

O rei não conseguia dormir.

Tinha jantado com seu filho mais velho, o delfim, e com o mais novo, Filipe. Tinham ouvido menestréis cantarem sobre batalhas antigas cheias de glória, e o rei ficara cada vez mais soturno enquanto pensava no que era esperado dele. Agora, querendo ficar sozinho e ter tempo para pensar, caminhava no pomar murado de uma bela casa de pedra que fora requisitada compulsoriamente como alojamento. A toda a volta, espalhadas num povoado cujo nome ele não sabia, as fogueiras de seu exército reluziam na escuridão. Podia ouvir homens gargalhando ou gritando de prazer quando os dados ou as cartas traziam sorte. Tinha ouvido dizer que Eduardo, o príncipe de Gales, era um jogador, mas como jogaria agora? E será que tinha sorte?

O rei caminhou até o muro norte do pomar, de onde, em pé sobre um banco, podia ver o brilho vermelho das fogueiras inglesas. Pareciam se espalhar no céu noturno, mas a luz mais forte delineava um morro alto e comprido. Quantos homens haveria lá? E será que estavam mesmo lá? Talvez tivessem acendido as fogueiras para convencê-lo de que permaneciam imóveis, mas depois podiam ter marchado para o sul, levando seu saque. E, se tivessem ficado, será que ele deveria lutar? A decisão era sua e ele não sabia como tomá-la. Alguns de seus senhores o aconselhavam a evitar a batalha, dizendo que os arqueiros ingleses eram letais demais e que seus homens de armas eram demasiadamente ferozes, enquanto outros confiavam que esse príncipe jogador poderia ser derrotado com facilidade. Resmungou. Queria estar de volta em Paris, onde músicos iriam entretê-lo e dançarinas iriam cercá-lo; em vez disso estava em um local desconhecido em seu próprio país, e não sabia o que fazer.

Sentou-se no banco.

—   Vinho, Majestade? — disse um serviçal nas sombras.

—   Obrigado, Luc, não.

—   O senhor de Douglas está aqui, sire. Ele deseja falar com o senhor.

O rei assentiu, cansado.

—   Traga uma lanterna, Luc.

—   O senhor vai falar com ele, sire?

—   Vou falar com ele — respondeu o rei.

Imaginou se o escocês teria algo de novo a dizer. Achava que não. Douglas insistiria no ataque. Lute agora. Mate os desgraçados. Ataque. Trucide-os. O escocês vinha dizendo a mesma coisa havia semanas. Ele só queria uma batalha. Queria matar ingleses, e o rei tinha simpatia por esse desejo, mas também era assombrado pelo medo do fracasso. E agora Douglas iria argumentar com ele de novo. O rei João suspirou. Tinha medo de Douglas, e, ainda que o sujeito jamais tivesse sido desrespeitoso, o rei suspeitava de que ele o desprezava. Mas Douglas não tinha culpa por isso. Era um brutamontes confiante, um lutador, um homem nascido para o sangue, o aço e a batalha, porém o rei João tinha todo um país para cuidar e não ousava perder uma luta para os ingleses. Havia sido necessário um esforço gigantesco para juntar esse exército, o tesouro estava vazio, e, se o rei sofresse uma derrota, só Deus sabia que caos recairia sobre a pobre França. E a pobre França já havia sido estuprada. Exércitos ingleses assolavam o país queimando, saqueando, destruindo, matando. E esse exército, o exército do príncipe, estava encurralado. Ou quase encurralado. Havia uma chance de destruí-lo, de cortar o orgulho do inimigo, de dar uma grande vitória à França, e o rei João se permitiu imaginar-se cavalgando até Paris com o príncipe de Gales como cativo. Imaginou os aplausos, as flores sendo jogadas diante de seu cavalo, as fontes jorrando vinho e o te-déum sendo cantado em Notre-Dame. Era um sonho atraente, maravilhoso, mas vinha acompanhado do pesadelo da possibilidade da derrota.

—   Alteza. — Douglas apareceu sob as pereiras carregando a lanterna. Abaixou-se sobre um dos joelhos e inclinou a cabeça. — O senhor está acordado tarde, sire.

—   Assim como o senhor — disse o rei. — E por favor, senhor, levante-se. — O rei João estava usando um manto de veludo azul com franja de ouro, bordado com flores-de-lis douradas e com uma grossa gola de pele prateada. Desejava estar usando algo mais marcial, porque Douglas era impressionante com sua malha e couro, tudo cheio de marcas e mossas. Tinha uma túnica curta mostrando o desbotado coração vermelho de sua família e um grosso cinturão do qual pendia uma espada monstruosamente pesada. Também segurava uma flecha. — Um pouco de vinho, senhor? — ofereceu o rei.

—   Prefiro cerveja, Alteza.

—   Luc! Temos cerveja?

—   Temos, Majestade! — gritou Luc da casa.

—   Traga um pouco para o senhor de Douglas — disse o rei, depois fez um grande esforço e sorriu para o escocês. — Suspeito, senhor, que tenha vindo me encorajar a atacar.

—   Confio que o senhor fará isso, sire. Se os desgraçados ficarem naquele morro, teremos uma chance única de esmagá-los.

—   Mas parece — disse o rei em tom ameno — que os desgraçados estão no topo do morro e nós não. Isso não parece pertinente?

—   As encostas do norte e do oeste são fáceis — respondeu Douglas como se não desse importância. — Encostas longas, suaves, fáceis, sire. Na Escócia nem chamaríamos de morro. Não é mais do que um passeio. Uma vaca aleijada poderia subir sem alterar o fôlego.

—   Isso é tranquilizador. — O rei parou enquanto o serviçal trazia um grande pote de couro com cerveja, que o escocês engoliu. O som do gorgolejo era horrível, assim como a visão do líquido escorrendo dos cantos da boca de Douglas e encharcando sua barba. Um bruto, pensou o rei João, um bruto vindo da fronteira do mundo. — O senhor estava com sede — disse ele.

—   Assim como os ingleses estão, sire — disse Douglas, depois jogou casualmente o pote de couro para Luc. O rei suspirou por dentro. Será que aquele sujeito não tinha modos? — Conversei com um fazendeiro — continuou o escocês —, e ele disse que não existe porcaria nenhuma de água naquele morro.

—   Um rio passa por ele, não é?

—   E como se carrega água suficiente para milhares de homens e cavalos morro acima? Eles carregam um pouco, senhor, mas não o suficiente.

—   Então talvez devêssemos deixar que morram de sede, não é? — sugeriu o rei.

—   Antes disso eles partirão para o sul, sire.

—   Então você quer que eu ataque — disse João, cansado.

—   Quero que o senhor veja isto, sire — respondeu Douglas, e entregou a flecha ao rei.

—   Uma flecha inglesa — disse João.

—   Tenho um homem que andou ajudando o cardeal Bessières nas últimas semanas. Não sei bem se ele é um homem, sire, porque mais parece um animal e luta como um demônio demente. Pelas entranhas de Cristo, ele me amedronta, sire, portanto Deus sabe o que ele faz com o inimigo. E nesta tarde, senhor, um arqueiro inglês disparou esta flecha contra a minha fera. Acertou-o direto no peitoral. O desgraçado disparou a coisa de uma distância que não era maior do que trinta ou quarenta passos, e minha criatura ainda está viva. Mais do que isso, o animal sortudo está fazendo bebês com alguma garota da aldeia agora mesmo. E se um homem leva um disparo de uma flecha inglesa a quarenta passos e sobrevive para procriar por aí algumas horas depois, há nisso uma mensagem para todos nós.

O rei passou os dedos na ponta da flecha. Antes ela medira 10 centímetros, era lisa e afiada, mas agora estava amassada e esmagada. De modo que não havia penetrado no peitoral.

—   Temos um ditado, senhor — disse o rei —, de que uma andorinha só não faz verão.

—   Temos o mesmo ditado, sire. Mas olhe para ela!

O tom peremptório do escocês irritou o rei, que tinha pavio notoriamente curto, mas ele conseguiu controlar a raiva. Passou o dedo pela ponta de flecha amassada.

—   Você está me dizendo que ela foi malfeita? Uma flecha? Sua fera simplesmente teve sorte.

—   Eles fazem flechas aos milhares, sire. — Agora Douglas estava falando em voz baixa, mais sério do que professoral. — Cada condado na Inglaterra tem o dever de fazer certo número de flechas. Alguns homens cortam a madeira, outros aparam as hastes, outros coletam penas de ganso, alguns fervem a cola, e ferreiros fazem as pontas. Centenas de ferreiros, por todo o território, forjando pontas aos milhares, e todas essas coisas, as hastes, as penas e as flechas, são coletadas, montadas e mandadas para Londres. Agora, uma coisa que eu sei, sire, é que, quando a gente faz as coisas às centenas de milhares, elas não são tão bem-feitas quanto um único objeto feito por um artesão. O senhor come em pratos de ouro, sire, o que está certo, mas seus súditos comem em pratos de argila barata. Os pratos deles são feitos aos milhares e se quebram com facilidade. E as flechas são mais difíceis de fazer do que tigelas e pratos! O ferreiro precisa avaliar a quantidade de ossos que coloca na fornalha, e quem vai garantir que ele fez isso, para começo de conversa?

—   Ossos? — perguntou o rei. Estava fascinado com o que Douglas dizia. Será que era mesmo assim que os ingleses faziam as flechas? Mas de que outro modo seria? Eles disparavam centenas de milhares numa única batalha, por isso elas precisavam ser feitas em números gigantescos, e sem dúvida isso exigia organização. Tentou se imaginar fazendo algo assim na França, e suspirou com a impossibilidade do pensamento. — Ossos? — perguntou de novo, em seguida fez o sinal da cruz. — Parece feitiçaria.

—   Se o senhor fundir ferro numa fornalha, sire, terá ferro, mas se acrescentar ossos ao fogo terá aço.

—   Eu não sabia.

—   Dizem que os ossos de uma virgem fazem o melhor aço.

—   Acho que faz sentido.

—   E as virgens são raras, mas os seus armeiros, senhor, cuidam bem do aço. Fazem bons peitorais, bons elmos, boas grevas. A ponto de parar uma flecha inglesa barata.

O rei balançou a cabeça. Precisava admitir que o que o escocês dizia fazia sentido.

—   O senhor acha que temos medo demais dos arqueiros ingleses?

—   Acho, sire, que se vocês atacarem os ingleses a cavalo eles vão despedaçá-los. Até mesmo flechas baratas matam um cavalo. Mas se lutarem a pé as flechas vão ricochetear no aço bem-feito. Elas podem furar um escudo, mas não vão furar armadura. Seria o mesmo que jogarem pedras contra nós.

O rei olhou para a flecha. Em Crécy, ele sabia, os franceses haviam atacado a cavalo e os cavalos foram mortos às centenas, e no caos que veio em seguida os homens de armas haviam morrido às centenas também. E os ingleses tinham lutado a pé. Eles sempre lutavam a pé. Eram famosos por isso. Tinham sido derrotados na Escócia, mortos às centenas por lanceiros escoceses, e essa havia sido a última vez em que lutaram a cavalo. O rei refletiu que os inimigos tinham aprendido a lição. Ele também precisava aprender. Os cavaleiros franceses achavam que só existia um modo de lutar: a cavalo. Era o modo nobre de lutar: o modo magnífico, amedrontador, homens, metal e cavalos juntos; mas o bom senso dizia que Douglas estava certo. Os cavalos seriam trucidados pela tempestade de flechas. Passou os dedos pela ponta amassada. Então deveriam lutar a pé? Fazer o que os ingleses faziam? E então as flechas fracassariam?

—   Pensarei no que o senhor disse — respondeu a Douglas, oferecendo a flecha de volta. — E obrigado pelo conselho.

—   Fique com a flecha, sire, e obtenha essa grande vitória amanhã.

O rei balançou abruptamente a cabeça.

—   Amanhã não! Amanhã é domingo. A Trégua de Deus. Os cardeais prometeram falar com o príncipe e convencê-lo a ceder às nossas exigências. — Ele voltou-se para o norte. — Se os ingleses ainda estiverem lá, claro.

O senhor de Douglas precisou se conter para não ridicularizar a ideia de manter uma trégua santa num domingo. Para ele, qualquer dia era bom para matar ingleses, porém sentiu que havia convencido o rei de que o inimigo estava vulnerável; logo, não fazia sentido antagonizá-lo.

—   Mas quando o senhor obtiver essa grande vitória, sire — disse ele —, e levar seus prisioneiros de volta a Paris, leve a flecha também, como lembrança de como os ingleses colocam sua fé numa arma que não funciona. — Ele fez uma pausa, depois uma reverência. — Boa noite, sire.

O rei não disse nada. Estava virando a flecha amassada repetidamente nas mãos.

E sonhando com Paris ecoando com aplausos.

 

Ao amanhecer havia uma névoa nas árvores. Tudo estava cinza. A fumaça de mil fogueiras adensava a névoa através da qual homens em cota de malha caminhavam como fantasmas. Um cavalo se soltou da amarra e partiu correndo em meio aos carvalhos, depois desceu a encosta na direção do rio distante. O som dos cascos foi sumindo no nevoeiro. Os arqueiros mantinham as cordas secas enrolando-as dentro dos elmos ou em bolsas. Homens passavam pedras nos gumes das lâminas cinza. Ninguém falava muito. Dois serviçais chutavam bolotas de carvalho para longe dos cavalos amarrados.

—   É estranho — observou Keane. — É possível dar bolotas aos pôneis, mas não aos cavalos.

—   Odeio bolotas — disse Thomas.

—   Elas envenenam os cavalos, mas não os pôneis. Nunca entendi isso.

—   São amargas demais.

—   Você precisa lavá-las em água corrente — explicou Keane — e, quando a água ficar limpa, elas não estarão mais amargas.

As bolotas eram densas sob seus pés. O visgo pendia nos galhos dos carvalhos, mas à medida que Thomas e Keane andavam até a borda oeste da floresta os grandes carvalhos deram lugar a castanheiras, pereiras selvagens e juníperos.

—   Antigamente — disse Thomas — contavam que uma flecha feita de visgo não podia errar.

—   Como, em nome de Deus, seria possível fazer uma flecha de visgo? O visgo não passa de um monte de gravetos.

—   Seria uma flecha curta.

Os dois cães correram adiante, com os focinhos no chão.

—   Eles não vão passar fome — disse Keane.

—   Você dá comida a eles?

—   Eles se alimentam sozinhos. São cães de caça.

Saíram das árvores, atravessando um trecho áspero de capim até onde o morro descia íngreme para o vale do rio. O rio propriamente dito estava escondido pela névoa. As carroças do exército se encontravam lá embaixo, em algum lugar, paradas numa trilha que ia até um vau. Copas de árvores surgiam acima do nevoeiro. A oeste existia outro vale, muito mais raso. Em Dorset, pensou Thomas, chamariam aquilo de “combe”. A encosta mais próxima era recortada em terraços para as videiras, a mais distante era de terra arável que subia até um platô amplo e chato. Nada se movia por lá.

—   É onde os franceses estão? — perguntou Keane, acompanhando o olhar de Thomas.

—   Parece que ninguém sabe. Mas estão perto.

—   Estão?

—   Escute.

Ficaram em silêncio, e depois de uma pausa Thomas ouviu o som distante de uma trombeta. Tinha ouvido-a instantes atrás e se perguntara se fora sua imaginação. Os dois cães eriçaram as orelhas e olharam para o norte. Thomas, por curiosidade, foi na direção do som.

Os ingleses e seus aliados gascões estavam acampados no meio das árvores altas num morro comprido, largo e alto que seguia ao norte do rio Miosson. Se eles quisessem escapar dos franceses precisariam atravessar aquele rio. Não era largo, mas era fundo, e para cruzá-lo o exército poderia usar a ponte perto da abadia e um vau que ficava mais a oeste. Essa travessia custaria tempo e daria aos franceses uma oportunidade de atacar enquanto o exército estivesse apenas na metade do caminho. De modo que talvez o exército fosse ficar ali. Ninguém sabia.

Mas era certo que o exército ficaria pelo menos por um tempo, porque estandartes estavam sendo fincados no capim que cercava a floresta alta no cume do morro comprido. Os estandartes iam do sul até o norte e marcavam o local onde os homens de armas deveriam se reunir. A trombeta distante estava tocando mais insistentemente agora, e seu chamado fez os ingleses e os gascões saírem do meio das árvores. Eles se perguntaram se o som pressagiava algum ataque. O estandarte do leão do conde de Warwick estava no ponto mais ao sul do cume, e, ainda que esse fosse o lugar para onde Thomas deveria ir, ele continuou andando rumo norte. O combe ficava à sua esquerda. A encosta do combe era absurdamente íngreme no ponto em que o morro encontrava o rio Miosson, mas à medida que ele e Keane caminhavam para o norte a encosta foi ficando mais suave, o vale se elevando. Quando Thomas chegou ao grande estandarte com o brasão das penas do príncipe de Gales, a encosta à sua esquerda era longa e rasa, uma mera reentrância entre esse cume e o morro de topo plano a oeste, mas não seria uma abordagem fácil caso os franceses quisessem atacar a partir daquele morro distante. A longa encosta era cruzada por vinhedos, as parreiras amarradas com tiras de salgueiro em barbantes de cânhamo esticados entre postes de castanheira. Para tornar as coisas mais difíceis, a cerca viva mais densa que Thomas já vira estendia-se cruzando a encosta com largura de 3 metros ou pouco mais, formando um emaranhado longo e impenetrável de espinheiros e árvores novas. Havia duas aberturas largas na cerca viva, onde carroças tinham deixado grandes sulcos no solo, e agora arqueiros se reuniam dos dois lados dessas aberturas. Os estandartes ingleses estavam quarenta ou cinquenta passos atrás das aberturas sulcadas.

Keane olhou o exército inglês se reunindo. Fileiras de homens usando malha e aço. Fileiras de homens com machados e marretas, manguais, porretes, espadas e lanças.

—   Eles estão esperando um ataque? — perguntou, ansioso.

—   Acho que ninguém sabe. Mas por enquanto nada está acontecendo.

Então uma trombeta soou de novo, porém muito mais perto. Os arqueiros, que estavam sentados, levantaram-se, e alguns puseram as cordas nos arcos. Enfiaram flechas no chão, prontas para ser apanhadas e disparadas.

—   Veio daquele morro lá — disse Keane, observando o morro amplo e chapado a oeste.

Nada apareceu no morro distante. Dois cavaleiros usando a insígnia do príncipe de Gales galoparam saindo das árvores e pararam numa das grandes aberturas na cerca viva, de onde olharam para o oeste. Grupos densos de homens de armas estavam agora sob os estandartes ingleses, e Thomas sabia que deveria retornar para a extremidade sul da linha, onde o morro se erguia sobre o vale do Miosson, mas no momento em que se virou para ir a trombeta soou de novo. Três notas fortes, cada uma sustentada por um longo tempo, e, quando a terceira nota sumiu, um cavaleiro apareceu no morro de topo plano. Estaria a uns 800 metros de distância, talvez mais, porém Thomas podia ver que ele usava uma túnica espalhafatosa. Depois viu o sujeito se levantar e balançar um pedaço de pau grosso e branco acima da cabeça.

—   Um arauto — disse ele.

Houve uma pausa. O arauto francês ficou parado, apenas observando o morro ocupado pelos ingleses, mas podia ver pouca coisa do exército do príncipe porque ele estava escondido pela grossa cerca viva de espinheiros.

—   Ele só vai ficar ali parado? — perguntou Keane.

—   Está esperando um arauto inglês — supôs Thomas, mas, antes que algum dos arautos do príncipe tivesse a chance de se encontrar com o colega francês, um grupo de cavaleiros apareceu no horizonte distante. Vestiam-se de vermelho ou preto e esporearam os cavalos pela longa encosta abaixo até onde começavam os vinhedos. — Três cardeais! — exclamou Thomas.

Havia seis homens de armas usando armaduras de placas, mas na maioria eram homens da Igreja: padres e monges de preto, marrom ou branco, comandados por três homens com mantos vermelhos de cardeais. Um deles era Bessières. Thomas reconheceu o volume do sujeito e teve pena do cavalo que precisava carregá-lo.

Todos os cavaleiros, menos um, pararam junto à margem do terreno, enquanto um cardeal subia sozinho a encosta. Serpenteou entre as videiras por uma trilha estreita, observado por dezenas de ingleses e gascões que se apinhavam junto às amplas aberturas na cerca viva.

—   Abram caminho! Abram caminho! — gritaram vozes atrás de Thomas. Homens de armas usando a insígnia real atravessavam a multidão, dividindo-a para abrir espaço para o príncipe de Gales. Homens se ajoelharam.

O príncipe, montado num garanhão cinza, vestido com uma túnica com seu brasão sobre uma cota de malha e com um elmo encimado por uma pequena coroa, franziu a testa perplexo enquanto o cardeal se aproximava.

—   É domingo, não é? — perguntou ele em voz alta.

—   Sim, sire.

—   Talvez ele tenha vindo nos dar a bênção, rapazes!

Homens gargalharam. O príncipe, não querendo que o cardeal que se aproximava visse muito do que havia atrás da cerca viva, avançou alguns passos com seu cavalo. Esperou, a mão direita pousada no punho dourado da espada.

—   Alguém o reconhece? — gritou.

—   Aquele é Talleyrand — resmungou um dos companheiros mais antigos do príncipe.

—   Talleyrand de Périgod? — O príncipe pareceu surpreso.

—   O próprio, sire.

—   Quanta honra! — disse o príncipe, sarcástico. — De pé! — gritou para os homens que estavam atrás dele. — Não queremos que o cardeal pense que estamos reverenciando-o.

—   Ele gostaria que fizéssemos isso — resmungou o conde de Warwick.

O cardeal conteve sua égua. O animal tinha arreios de couro vermelho com acabamentos em prata. A manta da sela era escarlate com franjas douradas, o arção e a patilha tinham bordas de ouro. Até os estribos eram de ouro. Talleyrand de Périgod era o homem mais rico da Igreja em toda a França. Tinha nascido nobre e jamais levara a sério a pregação de sua Igreja sobre humildade, mas fez uma reverência respeitosamente baixa em sua sela quando chegou ao príncipe, que esperava.

—   Majestade — disse ele.

—   Eminência — respondeu o príncipe.

Talleyrand olhou os arqueiros e os homens de armas, e eles olharam de volta, vendo um homem alto, de rosto fino, com altivos olhos escuros. Ele se inclinou para a frente e deu um tapinha no pescoço do cavalo com a mão coberta por uma luva vermelha onde reluzia um grosso anel de ouro com um rubi engastado.

—   Majestade — repetiu ele. — Vim com um pedido.

O príncipe deu de ombros e nada disse.

O cardeal Talleyrand olhou o céu como se procurasse inspiração, e quando olhou de volta para o príncipe havia lágrimas em seus olhos. Ele estendeu os braços.

—   Rezo para que me ouça, sire. Imploro que ouça minhas palavras!

Ele havia olhado para onde o sol ardia através de uma camada fina de nuvens, pensou Thomas, para fazer os olhos lacrimejarem.

—   Esta não é hora para um sermão! — respondeu o príncipe bruscamente. — Diga o que tem a dizer e seja rápido.

O cardeal se encolheu diante do tom do príncipe, mas recuperou a expressão de pesar e, olhando nos olhos de Eduardo, declarou que uma batalha seria um desperdício pecaminoso de vidas humanas.

—   Centenas deverão morrer, sire, e morrerão longe de seus lares, sendo enterrados em terreno não consagrado. O senhor marchou uma distância tão grande só para ganhar uma cova rasa na França? Porque o senhor corre perigo, Majestade, o senhor corre um perigo terrível! Eles vão esmagá-lo, e eu imploro, imploro, sire, que me permita buscar outra saída. Por que travar uma batalha? Por que morrer pelo orgulho? Prometo, sire, pelo Cristo crucificado e pela Virgem abençoada, que farei todo o possível para satisfazer seus desejos! Falo pela Igreja, pelo Santo Padre, pelo próprio Cristo, que não deseja ver homens morrendo aqui. Vamos parlamentar, sire. Vamos nos sentar e argumentar juntos. Hoje é domingo, um dia que não é adequado à matança, um dia para os homens de boa vontade conversarem. Em nome do Cristo vivo, eu imploro, sire.

O príncipe ficou em silêncio. Houve um murmúrio nas fileiras inglesas enquanto homens traduziam as palavras do cardeal. O príncipe levantou uma das mãos pedindo silêncio, em seguida simplesmente olhou calado para o cardeal pelo que pareceu um longo tempo. Depois deu de ombros.

—   O senhor fala pela França, Eminência?

—   Não, sire. Falo pela Igreja e pelo Santo Padre. O Santo Padre deseja a paz, em nome de Cristo, juro. Ele suplicou que eu impedisse o derramamento de sangue, que eu acabasse com esta guerra insensata e fizesse a paz.

—   E o nosso inimigo manterá uma trégua no dia de hoje?

—   O rei João prometeu isso. Jurou dar este dia à Igreja na esperança devota de que possamos forjar uma paz duradoura.

O príncipe assentiu, depois ficou em silêncio de novo por um tempo. As nuvens altas deslizaram revelando o sol, que brilhou no céu claro, prometendo um dia quente.

—   Manterei uma trégua no dia de hoje — disse finalmente o príncipe — e mandarei emissários para tratar com os senhores. Eles podem conversar lá. — Ele apontou para onde os outros homens da Igreja esperavam ao pé da encosta. — Mas a trégua é apenas pelo dia de hoje.

—   Então declaro que este dia é a Trégua de Deus — disse Talleyrand em tom grandioso.

Houve uma pausa desajeitada como se ele sentisse que deveria falar mais alguma coisa, mas então simplesmente acenou para o príncipe, virou o cavalo e o esporeou, descendo de volta a encosta longa e ensolarada.

E o príncipe soltou um longo suspiro de alívio.

 

— Trégua de Deus — disse azedamente Sir Reginald Cobham.

—   Eles vão cumpri-la, não vão? — perguntou Thomas.

—   Ah, vão. Eles gostariam que toda a semana que vem fosse a Trégua de Deus. Aqueles desgraçados adorariam isso. — Ele instigou seu cavalo encosta abaixo na direção do rio Miosson. A névoa havia se dissipado sob o sol de setembro, de modo que Thomas podia ver o rio serpenteando no vale. Era um rio pequeno, menos de 10 metros na parte mais larga, mas, enquanto seguia Sir Reginald descendo a encosta, pôde ver que o fundo do vale era pantanoso, o que sugeria que o rio transbordava com frequência. — Eles gostariam que ficássemos aqui e exauríssemos os suprimentos. Então ficaríamos com fome, sede e vulneráveis. O que já estamos. Sem nada para comer, sem água no morro, e estamos em menor número.

—   Estávamos em menor número em Crécy — disse Thomas.

—   O que não torna isso uma coisa boa.

Sir Reginald havia convocado Thomas com um rápido “Você vai servir. Monte no seu cavalo e traga meia dúzia de arqueiros”, em seguida levou-o à extremidade sul da linha inglesa, onde o estandarte do conde de Warwick se agitava na brisa suave. Sir Reginald continuou em frente, levando Thomas e seus arqueiros para baixo do morro íngreme até o vale pantanoso do Miosson. O trem de bagagem inglês, uma massa de carroças e carretas, estava parado sob as árvores.

—   Elas poderiam atravessar o rio pela ponte — explicou Sir Reginald, fazendo um gesto para o leste, na direção do mosteiro escondido pelas grandes árvores que cresciam na terra luxuriante junto ao rio —, mas as ruas do povoado são estreitas e você pode apostar sua última moeda que algum maldito idiota vai quebrar uma roda de carroça na quina de uma casa. Será mais rápido se elas puderem cruzar o vau aqui. Portanto é o que vamos fazer. Ver se o vau pode ser atravessado.

—   É porque vamos nos retirar?

—   O príncipe gostaria disso. Gostaria de atravessar o rio e ir para o sul o mais rápido que pudéssemos. Gostaria que brotassem asas nas nossas costas e voássemos até Bordeaux. — Sir Reginald parou perto do rio, se virou e olhou para os seis arqueiros de Thomas. — Certo, rapazes, fiquem aqui. Se algum maldito francês se aproximar, simplesmente gritem. Não atirem. Só gritem, mas certifiquem-se de que os arcos estão encordoados.

Uma trilha elevada atravessava o pântano. Era um caminho firme e cheio de sulcos, o que indicava que carroças o usavam, e descia até o vau, onde os dois cavalos pararam para beber. Sir Reginald deixou seu cavalo aplacar a sede, depois o esporeou até o centro do rio.

—   Ande por aí — disse a Thomas. Estava deixando os cavalos sentirem o fundo do rio, procurando alguma vala traiçoeira ou um local pantanoso que pudesse prender uma carroça, mas os animais encontraram terreno firme em toda a travessia.

—   Senhor! — gritou Sam, e Sir Reginald se virou na sela.

Uma dúzia de cavaleiros estava espiando das árvores que ficavam na metade do morro a oeste. Usavam malha e elmos. Três tinham túnicas, mas estavam longe demais para que Thomas visse qual era o seu brasão. Um carregava um pequeno estandarte vermelho contra o verde e o amarelo das árvores.

—   Le Champ d’Alexandre — disse Sir Reginald e, ante o olhar interrogativo de Thomas, apontou para o morro de topo chapado a oeste. — É como as pessoas da região o chamam, Campo de Alexandre, e suponho que aqueles desgraçados estão explorando a porcaria do morro inteiro. — Os franceses, tinham de ser franceses se estavam naquela encosta oeste, encontravam-se fora do alcance dos arcos. Thomas se perguntou se eles ao menos teriam visto os arqueiros na sombra dos salgueiros que cresciam perto do vau.

— Eu não queria trazer vinte homens porque não quero que os desgraçados achem que estamos interessados no vau. E certamente não quero que os desgraçados vejam nossas carroças. — As carroças estavam paradas na margem norte do Miosson, escondidas do Champ d’Alexandre por árvores e pela dobra alta do morro onde crescia a Floresta de Nouaillé e onde o príncipe havia formado sua linha de batalha. Sir Reginald franziu a testa enquanto olhava os franceses, que, por sua vez, observavam os dois cavaleiros no rio. — Pode ser uma trégua — continuou Sir Reginald —, mas mesmo assim eles podem se sentir tentados por nós.

Os franceses ficaram mesmo tentados. Seu trabalho era sondar a posição inglesa, e, pelo que podiam ver, os dois cavaleiros estavam muito longe do resto das tropas do príncipe, por isso esporearam, não atacando, apenas andando devagar e deliberadamente na direção do rio.

—   Eles querem bater um papo conosco — disse Sir Reginald azedamente. — Seus arqueiros são bons?

—   Tanto quanto qualquer um.

—   Rapazes! Vamos treinar tiro ao alvo! Matem algumas árvores, certo? Não mirem nos homens nem nos cavalos, só espantem os desgraçados.

Os franceses haviam se dividido em dois grupos, que agora desciam o morro mais rapidamente, abrindo caminho entre as árvores grossas enquanto os cavaleiros se encolhiam sob os galhos. Sam disparou a primeira flecha. A pena relampejou branca contra as folhas, depois a haste se cravou no tronco de um carvalho. Outras cinco flechas se seguiram. Uma acertou um galho e caiu, as outras bateram forte nas cascas, e a que chegou mais perto cravou a não mais de dois passos de um cavaleiro francês, que conteve seu animal abruptamente. — Mais um tiro cada um! — gritou Sir Reginald. — Só a alguns passos deles, rapazes. Que saibam que vocês estão aqui e ansiosos!

Os arcos dispararam outra vez, as flechas voaram, cravando-se em árvores com força espantosa, e os franceses deram meia-volta. Um deles acenou afavelmente para Sir Reginald, que acenou de volta.

—   Graças a Deus pelos arqueiros — disse ele. Em seguida viu os franceses subindo de volta o morro até ficarem fora de vista.

—   Sam — gritou Thomas —, pegue as flechas de volta. — Ele havia refeito o suprimento de seus homens com flechas da bagagem do príncipe, mas nunca eram suficientes.

—   Quero que você fique aqui — disse Sir Reginald. — A noite toda. Vou mandar o restante dos seus homens para cá. Você tem um trombeteiro?

—   Não.

—   Vou enviar um. Fique aqui e toque o alarme se os franceses retornarem com uma força maior. Mas mantenha-os longe, se vierem. Se virem as carroças perto do vau adivinharão o que vamos fazer.

—   A retirada?

Sir Reginald deu de ombros.

—   Não sei. — Em seguida franziu a testa e olhou com expressão vazia para o norte, como se tentasse avaliar o que o inimigo poderia fazer. — O príncipe acha que deveríamos continuar marchando. Deu ordens para que de manhã bem cedo atravessemos o rio e marchemos para o sul como se o próprio diabo estivesse nos nossos calcanhares. Um ataque francês impediria isso, claro, mas suponho que eles não atacarão às primeiras luzes. Vão precisar de pelo menos duas horas para preparar o exército, e eu quero que as carroças tenham partido antes que eles sequer saibam que estamos aqui, e depois o resto do exército pode cruzar o rio e ganhar um dia de marcha. — Ele instigou seu cavalo para fora do vau, retornando à trilha que cruzava o pântano. — Mas quem sabe o que aqueles malditos padres estão propondo? Se pudéssemos ter nos juntado a Lancaster… — Ele deixou o pensamento no ar.

—   Lancaster?

—   A ideia era nos juntarmos ao conde de Lancaster e fazer um estrago no norte da França, mas não conseguimos atravessar o Loire. Desde então nada deu certo, e agora estamos tentando voltar à Gasconha sem que os malditos franceses nos matem. Portanto, fique aqui até o amanhecer!

Para ajudar um exército a escapar.

 

O captal de Buch levou vinte homens de armas para o norte. Passaram cavalgando pelos homens do conde de Salisbury que vigiavam o norte do cume do morro. A maioria dos homens do conde fora disposta depois da extremidade norte da cerca viva protetora, e por isso seus arqueiros estavam cavando e camuflando buracos para quebrar as patas de cavalos que viessem atacar. Um arqueiro guiou o captal e seus homens pelos buracos, e assim que ultrapassaram as armadilhas o captal pôde olhar de volta e ver os cardeais e os homens da Igreja que tentavam forjar a paz. Eles e os negociadores franceses haviam se encontrado com os emissários ingleses no campo aberto, logo depois do vinhedo. Alguém havia trazido bancos, e os homens estavam sentados conversando, enquanto arautos e homens de armas esperavam a alguns passos de distância. Não havia tenda nem toldo. Um único estandarte estava plantado atrás dos homens da Igreja. Mostrava as chaves de são Pedro cruzadas, sinal de que havia um legado papal presente.

—   O que eles estão conversando? — perguntou um dos homens do captal.

—   Estão tentando nos retardar — respondeu o captal. — Querem nos manter aqui. Que passemos fome.

—   Ouvi dizer que o papa os mandou. Será que não querem a paz?

—   O papa caga bosta francesa — disse o captal peremptoriamente. — E a única paz que deseja é nos ver dentro do seu penico.

Ele se virou para o outro lado e levou seus gascões para baixo da longa encosta que descia suavemente para o norte. Estavam entrando numa paisagem emaranhada de florestas, vinhedos, cercas vivas e morros, e em algum ponto daquele emaranhado havia um exército francês, mas ninguém tinha certeza de onde estava ou de seu tamanho. Certamente estava perto. O captal sabia disso porque a fumaça das fogueiras que usavam para cozinhar era densa no horizonte, mas o príncipe havia pedido que ele tentasse descobrir exatamente onde os inimigos estavam acampados e quantos eram, por isso desceu a encosta, agora se mantendo ao abrigo das árvores. Nem ele nem seus homens montavam seus grandes cavalos de campanha, os animais adestrados que participavam das batalhas, e sim corcéis, cavalos leves e rápidos que podiam tirá-los rapidamente de encrenca. Usavam malha, mas não armadura de placas, e tinham elmos e espadas, mas não escudos. Eram gascões, o que significava que estavam acostumados à guerra perpétua, a enfrentar investidas francesas ou a atacar. Cavalgavam em silêncio. Havia uma trilha de carroças à esquerda, mas eles permaneceram longe dela, escondidos. Diminuíram a velocidade quando chegaram ao pé da encosta, porque agora estavam muito além do alcance dos arcos ingleses, e, se os franceses tivessem postado sentinelas, elas poderiam estar em qualquer local entre as árvores.

O captal fez um gesto para seus homens se espalharem, depois fez outro para avançarem. Seguiram muito devagar, examinando a floresta adiante em busca de movimentos que pudessem revelar um besteiro escondido. Não viram coisa alguma. Estavam subindo por uma floresta densa, e ainda não havia sinal do inimigo. O captal parou. Será que estaria sendo atraído para uma armadilha? Balançou uma das mãos indicando que seus homens deveriam esperar onde estavam, desceu da sela e prosseguiu sozinho, a pé. A encosta não era íngreme e ele podia ver o cume do morro, não muito longe. Certamente aquele era um local para colocar sentinelas. Movia-se em silêncio, furtivamente, atento ao voo de um pássaro, mas apesar de toda a cautela sentiu que estava sozinho. Observou o horizonte por um momento, depois seguiu até o cume e de repente pôde enxergar longe, em direção ao norte e ao oeste.

Agachou-se.

O principal acampamento francês estava apenas a 800 metros de distância, as tendas agrupadas em volta de um povoado e uma propriedade senhorial, mas o que o interessou mais foi a visão de homens indo para o oeste. Estavam invisíveis para os ingleses em seu morro, mas o captal observou as forças francesas serem levadas para sudoeste, fazendo uma curva mais para perto do rio. Não estavam em ordem de batalha, na verdade não estavam em qualquer ordem que ele pudesse identificar, mas inegavelmente iam para o oeste. Pareceu-lhe que iam para o morro de topo plano, o Champ d’Alexandre. Não podia contá-los, eram em número demasiado e havia muito terreno oculto. Oitenta e sete estandartes, lembrou-se.

Recuou, levantou-se e foi até seu cavalo. Montou, certo de que nenhum inimigo estava ao alcance da visão ou da audição, e imaginou se os franceses manteriam a trégua.

Mas de duas coisas tinha certeza. O inimigo estava se preparando para atacar, e o ataque viria do oeste.

 

Os condes de Warwick e Suffolk retornaram à tenda do príncipe no fim da tarde. Sentaram-se, cansados, quando Eduardo ofereceu cadeiras, depois beberam o vinho trazido pelo serviçal. Todos os conselheiros do príncipe estavam ali, esperando os resultados das longas negociações que seriam anunciados.

—   Os termos são os seguintes, sire — disse em tom monótono o conde de Warwick. — Devemos devolver todas as terras, fortalezas e cidades capturadas nos últimos três anos. Devemos entregar os saques que estão em nossas carroças de bagagem. Devemos libertar todos os prisioneiros mantidos aqui ou na Inglaterra sem pagamento de resgate. E devemos pagar à França uma indenização de 66 mil libras para compensar a destruição que produzimos no decorrer dos anos.

—   Santo Deus — reagiu debilmente o príncipe.

—   Em troca, sire — disse o conde de Oxford —, seu exército terá permissão de marchar até a Gasconha, o rei da França lhe dará uma de suas filhas como noiva e ela levará como dote o condado de Angoulême.

—   As filhas dele são bonitas? — perguntou o príncipe.

—   Mais bonitas do que um morro coberto de cadáveres ingleses, sire — disse asperamente o conde de Warwick. — Há mais. O senhor e toda a Inglaterra devem jurar que não tomarão armas contra a França durante um período de sete anos.

O príncipe olhou de um conde para o outro, depois para o captal, que estava sentado num dos cantos da tenda.

—   Aconselhe-me — disse ele.

O conde de Warwick recuou ligeiramente enquanto esticava as pernas.

—   Estamos em menor número, sire. Sir Reginald acha que podemos nos esgueirar ao amanhecer, atravessar o rio e ir para longe antes que o inimigo note, mas confesso que estou cético. Os desgraçados não são idiotas. Vão nos vigiar.

—   E estão movendo-se para o sudoeste, sire — interpôs o captal. — Devem estar pensando que vamos atravessar o Miosson e estão tentando fechar essa rota de fuga.

—   E estão confiantes, sire — disse o conde de Oxford.

—   Por causa do número de soldados?

—   Porque nossos homens estão cansados, com fome e com sede. E o cardeal gordo disse uma coisa estranha. Alertou que Deus mandou para a França um sinal de que está do lado dela. Perguntei o que ele quis dizer com isso, mas o gordo maldito simplesmente se calou, presunçoso.

—   Achei que os cardeais falassem em nome do papa.

—   O papa está nas mãos dos franceses — disse Warwick azedamente.

—   E se lutarmos amanhã? — perguntou o príncipe.

Houve silêncio. Então o conde de Warwick deu de ombros e usou as mãos para imitar uma balança. Para cima e para baixo. A coisa poderia terminar de um modo ou de outro, sugeriam suas mãos, mas seu rosto não mostrava nada além de pessimismo.

—   Estamos numa posição forte — disse o conde de Salisbury, que comandava as tropas na extremidade norte do morro inglês —, mas se a linha se romper… Fizemos buracos e trincheiras que vão obrigá-los a parar, mas não podemos entrincheirar o morro inteiro. E creio que eles têm pelo menos o dobro do nosso número.

—   E hoje estão comendo bem — disse o captal —, enquanto nossos homens fazem cozido de bolotas de carvalho.

—   Os termos são duros — observou o príncipe. Uma grande mosca pousou em sua perna, e ele deu-lhe um tapa com raiva.

—   E eles exigem reféns nobres, sire, como garantia de que os termos serão honrados — disse o conde de Oxford.

—   Reféns nobres — repetiu o príncipe em tom inexpressivo.

—   Nobres e cavaleiros, sire — disse o conde. — O que inclui todo mundo que está nesta tenda. — Ele pegou um pedaço de pergaminho numa bolsa presa ao cinto da espada e estendeu-o para o príncipe. — Esta é uma lista parcial, sire, mas sem dúvida eles acrescentarão outros nomes.

O príncipe balançou a cabeça e um serviçal pegou a lista e se ajoelhou para entregá-la ao senhor. O príncipe fez uma careta enquanto lia os nomes.

—   Todos os nossos melhores cavaleiros?

—   Inclusive Sua Majestade Real — disse Oxford.

—   É o que vejo — respondeu o príncipe. Ele franziu a testa enquanto lia os nomes. — Sire Roland de Verrec? Certamente ele não está no nosso exército, não é?

—   Parece que está, sire.

—   E um Douglas? Eles estão loucos?

—   Sir Robert Douglas também está aqui, sire.

—   Está? Pelas entranhas de Cristo, o que um Douglas está fazendo conosco? E quem, em nome de Deus, é Thomas de Hookton?

—   Sir Thomas, sire — disse Sir Reginald, falando pela primeira vez. — Foi um dos homens de Will Skeat em Crécy.

—   Um arqueiro?

—   Agora é vassalo de Northampton, sire. Um homem útil.

—   Por que, em nome de Cristo, Billy está dando título de cavaleiro a arqueiros? — perguntou o príncipe, petulante. — E por que, em nome do inferno, os franceses sabem que ele está aqui e eu não?

Ninguém respondeu. O príncipe deixou o pergaminho cair no tapete que cobria o chão. O que seu pai pensaria? O que seu pai faria? Mas Eduardo III, o mais temido rei guerreiro da Europa, estava longe, na Inglaterra. Portanto, essa decisão era do príncipe. Certo, ele tinha conselheiros e era sensato o bastante para ouvi-los, mas no fim a decisão seria somente sua. Levantou-se, foi até a porta da tenda e olhou para além dos estandartes, através das árvores, até onde a luz ia sumindo no oeste.

—   Os termos são duros — repetiu. — Mas a derrota será mais dura ainda. — Ele se virou e olhou para o conde de Warwick. — Vença a barganha, meu senhor. Ofereça metade do que eles exigem.

—   Isso não é uma exigência, sire, e sim uma sugestão dos cardeais. Os franceses também devem aceitar os termos.

—   Claro que vão aceitar — disse o príncipe. — Eles os ditaram! Mesmo metade do que querem significará a vitória para eles! Meu Deus! Eles ganham tudo!

—   E se os franceses não aceitarem os termos da barganha, sire? O que faremos?

O príncipe suspirou.

—   É melhor ser refém em Paris do que um cadáver em Poitiers — sugeriu, depois se encolheu enquanto pensava de novo nas exigências francesas. — Na verdade é uma rendição, não é?

—   Não, sire — disse com firmeza o conde de Warwick. — É uma trégua e um acordo. — Ele franziu a testa, tentando encontrar alguma boa notícia no meio das ruins. — O exército terá permissão de marchar de volta à Gasconha, sire. Nenhum prisioneiro será exigido.

—   E reféns não são prisioneiros? — perguntou o conde de Salisbury.

—   Reféns não pagam resgate. Seremos tratados com honra.

—   Você pode envolvê-la em veludo e encharcá-la de perfume — disse o príncipe, infeliz —, mas ainda assim é uma rendição. — Porém, ele e seu exército estavam encurralados. Poderia chamar aquilo de trégua, de acordo ou de tratado, mas sabia que na verdade era uma rendição. Contudo, não tinha escolha. Pelo que podia ver, era render-se ou ser trucidado.

Porque os ingleses estavam vencidos.

 

Os hellequins tomavam conta do vau. Sire Roland de Verrec e Robbie Douglas haviam ficado no morro com o restante dos soldados do conde de Warwick, mas todos os outros homens de Thomas estavam acampados logo ao sul do rio. Um cordão de arqueiros encontrava-se na margem norte, e Keane estava lá com seus cães.

—   Eles vão uivar se sentirem cheiro de homens ou cavalos — disse ele.

—   Nada de fogueiras — ordenara Thomas. Eles podiam ver a claridade das fogueiras dos ingleses e dos gascões no morro, e uma claridade mais forte estendendo-se ao redor do horizonte na direção noroeste, que marcava o local onde o exército francês estava passando a noite, mas Thomas não permitiu fogueiras, por isso os homens de armas e os arqueiros tremiam na fria escuridão do outono. Nuvens abafavam a lua, mas havia frestas através das quais surgiam estrelas brilhantes. Uma coruja piou, e Thomas fez o sinal da cruz.

Em algum momento da noite e em algum lugar na escuridão soaram cascos. Os cães se levantaram e rosnaram, mas então uma voz chamou baixinho:

—   Sir Thomas! Sir Thomas!

—   Estou aqui.

—   Meu Deus, está escuro. — Era Sir Reginald, que surgiu da escuridão e desceu da sela. — Muito bem, nada de fogueiras. Alguma visita?

—   Nenhuma.

—   Mas nós achamos que eles levaram homens para aquele morro. — Ele fez um gesto na direção da forma escura do Champ d’Alexandre. — Maldição, eles devem saber que o vau está aqui, devem ter percebido que tentaremos escapar. Só que talvez não façamos isso.

—   Talvez não?

—   Os homens da Igreja vieram com termos. Nós pagamos uma fortuna ao maldito francês, oferecemos reféns, devolvemos todas as terras que conquistamos e prometemos nos comportar nos próximos sete anos. O príncipe concordou.

—   Meu Deus — disse Thomas baixinho.

—   Duvido que ele tenha alguma coisa a ver com isso. E, se os franceses concordarem com a proposta da Igreja, amanhã nós entregamos reféns a eles e iremos embora com o rabo entre as pernas. — Ele parecia enojado. — E você é um dos reféns.

—   Eu!

—   Seu nome está na lista.

—   Meu Deus — repetiu Thomas.

—   Por que os franceses querem você?

—   O cardeal Bessières me quer. Eu matei o irmão dele. — Este não era o momento para falar de la Malice, e a morte do irmão do cardeal era explicação suficiente.

—   O irmão dele?

—   Com uma flecha. E o desgraçado mereceu.

—   Ele era da Igreja?

—   Meu Deus, não, era um cretino.

Sir Reginald deu um risinho.

—   Então meu conselho, Sir Thomas, é partir para longe daqui se a trégua for declarada.

—   E como vou saber?

—   Sete toques de trombeta. Toques longos, todos os sete. Isso significa que não haverá batalha, só humilhação.

Thomas pensou na última palavra.

—   Por quê? — perguntou finalmente.

Ele sentiu que Sir Reginald dava de ombros.

—   Se lutarmos, provavelmente vamos perder. Achamos que eles podem ter 10 mil homens, por isso estamos em número tremendamente inferior, exaustos, sem comida, e os malditos franceses têm tudo em quantidade suficiente. Por isso, se lutarmos, condenaremos um monte de bons ingleses e leais gascões à morte, e o príncipe não quer isso na consciência. É um homem bom. Talvez seja distraído muito facilmente pelas damas, mas quem culparia um homem por isso?

Thomas sorriu.

—   Eu conheci uma das damas dele.

—   Conheceu? — Sir Reginald pareceu surpreso. — Qual? Deus sabe que são muitas.

—   Ela se chamava Jeanette. Condessa da Armórica.

—   Você a conheceu? — A surpresa continuava presente.

—   Frequentemente me pergunto o que aconteceu com ela.

—   Morreu, que Deus tenha sua alma — disse Sir Reginald, soturno. — Ela e o filho. A peste.

—   Santo Deus — murmurou Thomas e fez o sinal da cruz.

—   Como você a conheceu?

—   Eu a ajudei — respondeu Thomas vagamente.

—   Agora me lembro! Falaram que ela escapou da Bretanha com um arqueiro inglês. Era você?

—   Foi há muito tempo — disse Thomas evasivamente.

—   Ela era uma beldade. — Sir Reginald ficou em silêncio um momento, e quando falou de novo sua voz saiu brusca: — Das duas uma, Sir Thomas: você vai ouvir sete toques de trombeta e, se tiver algum bom senso, vai montar e cavalgar feito o diabo para escapar do cardeal. E a outra opção? Os franceses vão decidir que ganham mais lutando conosco, o que significa que vão atacar. E se isso acontecer quero que a bagagem atravesse o rio. Os malditos franceses geralmente levam horas se preparando para a batalha, por isso teremos a chance de ir embora antes que eles saibam. E para escapar precisamos deste vau. Você terá de ajudar se houver luta, mas sabe tão bem quanto eu que numa batalha nada acontece de acordo com os planos.

—   Vamos sustentar o vau — disse Thomas.

—   E vou pedir ao padre Richard para descer aqui antes do alvorecer — continuou Sir Reginald, voltando ao seu cavalo.

—   Padre Richard?

Houve um ranger de couro quando Sir Reginald montou de novo.

—   É um dos capelães do conde de Warwick. Você vai querer uma missa, não é?

—   Se houver luta, sim — respondeu Thomas, depois ajudou Sir Reginald a encontrar os estribos. — O que o senhor acha que vai acontecer de manhã?

O cavalo de Sir Reginald bateu com os cascos na trilha. O cavaleiro era uma sombra escura contra o céu igualmente escuro.

—   Acho que vamos nos render — respondeu ele desanimado. — Que Deus me ajude, mas é o que acho. — Ele virou o cavalo e foi na direção do morro.

—   Consegue enxergar o caminho, Sir Reginald? — gritou Thomas.

—   O cavalo consegue. Um de nós deve ter algum tino. — Ele estalou a língua e o animal acelerou o passo.

Parecia que a noite não terminaria jamais. O negrume era completo, e com ele veio o sentimento de fracasso que a escuridão traz. O rio corria ruidoso no vau raso.

—   Você deveria tentar dormir. — Era a voz Genevieve, surpreendendo Thomas. Ela havia cruzado o vau para se juntar a ele na margem norte.

—   Você também.

—   Eu trouxe isto — disse ela.

Thomas estendeu a mão e sentiu o peso familiar do arco. Um arco de teixo, do tamanho de um homem, haste grossa no centro e reta como uma flecha. A textura era lisa.

—   Você encerou? — perguntou.

—   Sam me deu o resto de sua lanolina.

Thomas passou a mão pela haste. No centro grosso, onde a flecha repousava antes que a corda a lançasse em sua missão de morte, ele pôde sentir a pequena placa de prata. Era gravada com um yale segurando uma taça, o brasão da família Vexille, que caíra em desgraça, sua família. Será que Deus iria castigá-lo por ter lançado o Graal no mar frio?

—   Você deve estar gelada — disse ele.

—   Levantei as saias, e o vau não é fundo. — Ela sentou-se ao lado dele e pousou a cabeça em seu ombro. Durante um tempo nenhum dos dois falou, apenas ficaram olhando a noite. — E o que acontecerá amanhã? — perguntou ela.

—   É hoje — disse Thomas, soturno. — E depende dos franceses. Ou aceitam os termos da Igreja ou decidem que podem se sair melhor nos derrotando. E, se aceitarem, cavalgaremos para o sul. — Ele não disse que seu próprio nome estava numa lista de homens que deveriam ser entregues como reféns. — Quero que você garanta que os cavalos estejam arreados. Keane vai ajudá-la. Eles precisam estar prontos antes do alvorecer. E, se ouvir sete toques de trombeta, vamos embora. Vamos depressa.

Ele sentiu a cabeça de Genevieve sinalizar um sim.

—   E se a trombeta não tocar?

—   Então os franceses virão nos matar.

—   Quantos são?

Thomas deu de ombros.

—   Sir Reginald acha que devem ser uns 10 mil homens. Ninguém sabe de fato. Talvez mais, talvez menos. Um monte.

—   E nós temos…?

—   Temos dois mil arqueiros e quatro mil homens de armas.

Genevieve ficou em silêncio e ele supôs que ela estivesse pensando na disparidade dos números.

—   Bertille está rezando — disse ela.

—   Imagino que muita gente esteja rezando.

—   Ela está ajoelhada perto da cruz.

—   Cruz?

—   Do outro lado da cabana, na encruzilhada, há um crucifixo. Ela diz que vai ficar lá a noite toda e rezar pela morte do marido. Você acha que Deus ouve orações assim?

—   O que você acha?

—   Acho que Deus está cansado de nós.

—   Labrouillade não vai lutar nas primeiras fileiras. Vai garantir que haja outros homens na frente dele. E se as coisas ficarem ruins vai simplesmente se render. Ele é rico demais para ser morto.

Thomas acariciou o rosto dela, sentindo o tapa-olho de couro sobre o globo ocular ferido. Genevieve estava cega desse olho, que agora era de um branco leitoso. Ele disse que aquilo não a desfigurava, e acreditava nisso, mas ela não. Ele abraçou-a, puxando-a para perto.

—   Gostaria que você fosse rico demais para ser morto.

—   E sou — respondeu Thomas com um sorriso. — Eles podem cobrar uma fortuna por mim, mas não farão isso.

—   O cardeal?

—   Ele não perdoa nem esquece. Quer me queimar vivo.

Genevieve queria dizer para ele tomar cuidado, mas era um desperdício de palavras tão grande quanto as orações de Bertille junto à cruz da encruzilhada.

—   O que acha que vai acontecer? — perguntou em vez disso.

—   Acho que vamos ouvir a trombeta tocar sete vezes.

E então ele cavalgaria para o sul como se todos os demônios do inferno estivessem nos seus calcanhares.

 

O rei João e seus dois filhos se ajoelharam para receber a hóstia que era o corpo de Cristo.

—   In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti — entoou o bispo de Châlons. — E que são Dênis guarde o senhor, conserve-o e lhe traga a vitória que Deus deseja.

—   Amém — resmungou o rei.

O príncipe Carlos, o delfim, levantou-se e foi até uma janela. Abriu um dos postigos.

—   Ainda está escuro — disse ele.

—   Não por muito tempo — respondeu o conde de Douglas. — Ouvi os primeiros pássaros.

—   Deixe-me voltar ao príncipe — disse o cardeal Talleyrand no canto da sala.

—   Com que objetivo? — perguntou o rei João, chateado porque o cardeal não o havia chamado de “sire” ou “Majestade”.

—   Para oferecer uma trégua enquanto os termos são esclarecidos.

—   Os termos estão claros — disse o rei. — E não estou inclinado a aceitá-los.

—   O senhor propôs os termos, sire — observou Talleyrand respeitosamente.

—   E eles os aceitaram muito facilmente. Isso sugere que estão com medo. Eles têm motivo para estar com medo.

—   Com todo o respeito, sire — interveio o marechal Arnould d’Audrehem. Ele tinha 50 anos, era sábio nas questões da guerra, e cauteloso com relação aos arqueiros do exército inimigo. — Cada dia que eles se demoram naquele topo de morro, sire, os enfraquece. Cada dia faz aumentar o medo deles.

—   Eles já estão amedrontados e fracos há uma semana — disse Jean de Clermont, o segundo marechal do exército francês. — São ovelhas prontas para o abate.

— Ele zombou de seu colega marechal. — Você está é com medo deles.

—   Se lutarmos — disse d’Audrehem —, você vai olhar traseiro do meu cavalo.

—   Chega! — reagiu rispidamente o rei João. Os homens temiam seu notório mau humor e ficaram em silêncio. O rei franziu a testa para um serviçal que carregava uma pilha de túnicas no braço. — Quantas?

—   Dezessete, sire.

—   Entregue-as aos homens da Ordem da Estrela. — Ele se virou e olhou pela janela, para o local onde uma luz fraquíssima surgia no leste. O rei já estava usando uma túnica de tecido azul decorada com flores-de-lis douradas, e as 17 que o serviçal carregava eram idênticas. Se fosse haver batalha, que o inimigo ficasse confuso para saber quem era o rei, e os homens da Ordem da Estrela estavam entre os maiores guerreiros da França. Era a ordem de cavalaria do próprio rei João, uma reação à Ordem da Jarreteira inglesa, e hoje os cavaleiros da Estrela protegeriam seu monarca. — Se os ingleses forem suficientemente idiotas para aceitar mais alguns dias no topo do morro, que seja — disse a Talleyrand.

—   Então posso estender a trégua? — perguntou o cardeal.

—   Veja o que eles dizem — respondeu o rei, e dispensou Talleyrand com um gesto. — Se pedirem tempo — disse aos homens que permaneciam na sala —, significa que estão com medo.

—   Homens amedrontados são vencidos com facilidade — observou o marechal Clermont.

—   Ah, vamos derrotá-los — disse o rei João, e sentiu um ligeiro nervosismo com a decisão que havia tomado.

—   Então vamos lutar, sire? — perguntou o senhor de Douglas. Estava confuso, sem saber se o rei queria mesmo lutar ou estender a trégua.

Todos os homens na sala tinham passado metade da noite acordados enquanto armeiros os cobriam de couro, malha e aço, e agora o rei estava flertando de novo com a ideia de uma trégua?

O rei franziu a testa diante da pergunta. Fez uma pausa. Passou o peso do corpo para o outro pé e coçou o nariz, depois balançou a cabeça com relutância.

—   Vamos lutar — respondeu.

—   Graças a Deus — murmurou Clermont.

O senhor de Douglas se abaixou sobre um dos joelhos.

—   Então, com sua permissão, sire, eu gostaria de cavalgar com o marechal d’Audrehem.

—   Você? — O rei pareceu surpreso. — Foi você que me disse para lutar a pé!

—   E vou lutar a pé, sire, e sentirei prazer em transformar seus inimigos numa massa sangrenta, mas primeiro gostaria de cavalgar com o marechal.

—   Que seja — permitiu o rei. Os franceses temiam os arqueiros inimigos, por isso haviam reunido quinhentos cavaleiros cujas montarias tinham armaduras elaboradas, pesadas com malha, placas e couro. Esses grandes cavalos de combate adestrados, protegidos contra as flechas, investiriam contra os flancos ingleses, e, quando os cavaleiros tivessem espalhado os arqueiros e os matado com machados, espadas e lanças, o resto do exército avançaria a pé. — Quando os arqueiros estiverem mortos você vai se juntar ao príncipe Carlos — ordenou o rei a Douglas.

—   Sinto-me honrado, sire, e obrigado.

O delfim Carlos, com apenas 18 anos, comandaria a primeira força de combate dos homens de armas franceses. Seu trabalho era avançar pela encosta longa e se chocar contra os cavaleiros ingleses e gascões e trucidá-los. O irmão do rei, o duque de Orléans, comandaria a segunda linha, enquanto o próprio rei, junto com seu filho mais novo, comandaria as tropas de retaguarda. Três grandes forças de combate, comandadas por príncipes e um rei, assaltariam os ingleses, e o ataque seria feito a pé porque os cavalos, a não ser que tivessem armaduras como os homens, eram vulneráveis demais às flechas.

—   Ordene que todas as lanças sejam encurtadas — exigiu o rei. Os homens a pé não podiam usar lanças compridas, por isso elas deviam ser reduzidas a tamanhos manuseáveis. — E às suas tropas, senhores.

Os franceses estavam prontos. Os estandartes voavam. O rei tinha uma armadura com o melhor aço que Milão podia fazer. Foram necessárias quatro horas para cobrir o rei com placas de aço, cada peça sendo abençoada pelo bispo de Châlons antes que os armeiros prendessem as fivelas e as tiras ou amarrassem cada item confortavelmente. As pernas eram protegidas por coxotes, grevas e rondéis sobre os joelhos, enquanto as botas tinham escamas de aço sobreposto. Ele usava tiras de aço fixas numa blusa de couro, sobre a qual ficavam as placas peitorais e costais, afiveladas fortemente sobre uma cota de malha. Ombreiras protegiam os ombros, havia braçais sobre os braços, e as mãos usavam luvas que, como as botas, tinham escamas de aço. Seu elmo tinha uma viseira com bico sobre o nariz e uma coroa de ouro, e sobre o corpo havia uma túnica com o brasão francês da flor-de-lis. A auriflama estava pronta; os franceses estavam prontos. Este era um dia para entrar na história, o dia em que a França iria derrotar seus inimigos.

O senhor de Douglas se ajoelhou para a bênção do bispo. O escocês continuava nervoso com a possibilidade de o rei mudar de ideia, mas não ousava perguntar qualquer coisa para que as próprias indagações não deixassem João cauteloso. Mas o que Douglas não sabia era que o rei havia recebido um sinal do céu. Durante a noite, enquanto os armeiros se agitavam, mediam e apertavam, o cardeal Bessières viera ao rei. Havia se ajoelhado, grunhindo com o esforço, e depois encarado o rei.

—   Majestade — dissera ele, e oferecera com as duas mãos uma espada enferrujada, de aparência frágil.

—   Está me dando uma arma de camponês, Eminência? — perguntou o rei, irritado porque o cardeal gordo interrompera seus preparativos. — Ou quer que eu ceife um pouco de cevada? — perguntou, porque a espada grosseira, com a lâmina mais larga na ponta do que na base, parecia uma faca de ceifar grotescamente alongada.

—   Esta é a espada de são Pedro, Majestade — disse o cardeal. — Entregue nas nossas mãos pela providência de Deus para garantir sua grande vitória.

O rei ficou espantado, depois incrédulo, mas a seriedade com que Bessières havia falado era tranquilizadora. Ele estendeu a mão e tocou nervoso em la Malice, depois manteve o dedo na lâmina cheia de marcas.

—   Como o senhor pode ter certeza?

—   Tenho certeza, Majestade. Os monges de são Juniano receberam a guarda dela e a entregaram como um sinal de Deus.

—   Ela esteve desaparecida por muitos anos — observou com reverência o bispo de Châlons, depois se ajoelhou diante da relíquia e beijou a lâmina enferrujada.

—   Então é verdadeira? — perguntou o rei, pasmo.

—   É verdadeira — respondeu Bessières —, e Deus a enviou ao senhor. Esta é a espada que protegeu nosso Salvador, e o homem que a possuir não pode conhecer a derrota.

—   Então Deus e são Dênis sejam louvados — disse o rei.

Em seguida pegou a espada das mãos do cardeal e tocou-a com os lábios. O cardeal ficou olhando, escondendo o prazer. A espada traria a vitória, e a vitória elevaria o rei João, tornando-o o monarca mais poderoso da cristandade. Quando o papa morresse, o rei da França acrescentaria sua persuasão aos homens que defenderiam a candidatura de Bessières ao Trono de são Pedro. O rei fechou os olhos momentaneamente e beijou a lâmina pela segunda vez, antes de devolvê-la às mãos enluvadas do cardeal.

—   Com a permissão de Vossa Alteza — disse o cardeal —, darei esta lâmina sagrada a um campeão merecedor, para que ele mate seus inimigos.

—   O senhor tem minha permissão — respondeu o rei. — Dê-a a um homem que irá usá-la bem!

Sua voz estava firme porque a visão da espada lhe dera uma nova confiança. Estivera esperando um sinal, alguma sugestão de que Deus concederia uma vitória à França, e nesse momento ele o tinha. A vitória era sua. Deus a havia decretado.

Mas agora, enquanto o alvorecer se delineava no limite do mundo, o rei sentia as dúvidas antigas retornando. Seria sensato lutar? O príncipe inglês aceitara termos humilhantes, de modo que talvez a França devesse impor esses termos, não? No entanto, a vitória renderia riquezas muito maiores. A vitória traria a glória, além de tesouros. O rei fez o sinal da cruz e disse a si mesmo que Deus faria a França prosperar nesse dia. Ele confessara os pecados, fora perdoado e recebera um sinal do céu. Hoje, pensou, Crécy seria vingada.

—   E se o cardeal arranjar uma trégua, sire? — perguntou d’Audrehem, interrompendo seus pensamentos.

—   Por mim o cardeal pode ir peidar — respondeu o rei João.

Porque ele fizera a escolha. Os ingleses estavam encurralados, e ele iria trucidá-los.

Saiu da casa à frente dos outros, até um mundo tornado cinzento pelas primeiras luzes lupinas do dia. Passou o braço pelos ombros do filho mais novo, Filipe, de 14 anos.

—   Hoje, meu filho, você lutará ao meu lado. — O garoto fora equipado como o pai, coberto da cabeça aos pés em aço. — E hoje, filho, você verá Deus e são Dênis derramarem uma chuva de glória sobre a França. — O rei levantou os braços para que um armeiro pudesse prender um grande cinturão de espada em sua cintura. Um escudeiro segurava um machado de guerra com o cabo decorado com argolas douradas, e um cavalariço segurava um belo garanhão cinza, que o rei montou. Lutaria a pé, como seus homens, mas nesse momento, enquanto o alvorecer prometia um dia novo e luminoso, era importante que todos vissem o rei. Levantou a viseira do elmo, depois desembainhou a espada polida e ergueu-a bem alto, acima do elmo com pluma azul. — Avancem os estandartes — ordenou — e desenrolem a auriflama.

Porque a França iria lutar.

 

O príncipe de Gales, como o rei da França, havia passado a maior parte da noite colocando a armadura. Seus homens tinham permanecido nas fileiras, sob seus estandartes. Estavam dispostos em ordem de batalha havia 24 horas, e agora, ao alvorecer, resmungavam porque estavam com sede, fome e desconfortáveis. Sabiam que no dia anterior uma batalha havia sido improvável; era domingo e os homens da Igreja tinham proclamado uma Trégua de Deus, mas mesmo assim haviam esperado nas fileiras para o caso de o inimigo traiçoeiro violar a trégua. No entanto, agora era segunda-feira. Os boatos voavam pelo exército. Os franceses eram 12 mil, 15 mil, 20 mil. O príncipe havia se rendido aos franceses, ou o príncipe havia arranjado uma trégua, mas apesar dos boatos não viera ordem para relaxar a vigilância. Esperavam alinhados, todos menos os que voltavam à floresta para esvaziar as tripas. Olhavam o horizonte a noroeste, procurando um inimigo, mas ali estava escuro e nada se movia.

Padres circulavam no meio dos homens. Rezavam a missa, davam pedaços de pão e absolvição. Alguns homens comiam torrões de terra. Da terra tinham vindo, para a terra retornariam, e comer o solo antes da batalha era uma antiga superstição. Outros soldados tocavam seus talismãs, rezavam aos seus santos padroeiros, faziam as piadas que os homens sempre faziam antes do confronto.

—   Mantenha a viseira erguida, John. Se os malditos franceses virem sua cara vão fugir que nem lebres.

Olhavam a luz fraca aumentar e a cor retornar a um mundo morto. Falavam de batalhas antigas. Tentavam esconder o nervosismo. Mijavam com frequência. As tripas pareciam cheias de água. Os franceses eram 20 mil, 30 mil, 40 mil! Viam seus comandantes se encontrarem a cavalo no centro da linha.

—   Para eles está tudo certo — resmungavam. — Quem vai matar a porcaria de um príncipe ou um conde? Eles só pagam a merda do resgate e voltam para suas putas. Nós somos os desgraçados que precisam morrer.

Alguns pensavam em suas esposas, nos filhos, nas putas, nas mães. Meninos pequenos carregavam feixes de flechas para os arqueiros concentrados nas extremidades da linha.

O príncipe observava o morro a oeste e não via ninguém lá. Será que os franceses estavam dormindo?

—   Estamos prontos? — perguntou a Sir Reginald Cobham.

—   Basta dizer a palavra, sire, e iremos.

O que o príncipe queria fazer era uma das coisas mais difíceis que qualquer comandante poderia tentar. Queria escapar enquanto o inimigo estava perto. Não recebera nenhuma notícia dos cardeais e tinha de presumir que os franceses atacariam, por isso suas tropas precisariam contê-los enquanto a bagagem e a vanguarda cruzassem o Miosson e marchassem para longe. Se conseguisse fazer isso, se conseguisse levar a bagagem para o outro lado do rio e fazer a retirada, passo a passo, sempre ludibriando os ataques inimigos, conseguiria ganhar um dia inteiro de marcha, talvez dois, mas o perigo, o perigo assustador, era que os franceses encurralassem metade de seu exército numa das margens e a destruísse, em seguida perseguissem a outra metade e a trucidassem também. O príncipe deveria lutar e recuar, lutar e recuar, mantendo o inimigo a distância com um número cada vez menor de homens. Era um risco que o levou a fazer o sinal da cruz, depois acenou para Sir Reginald Cobham.

—   Vá — disse —, ponha a bagagem em movimento! — A decisão estava tomada; os dados, lançados. — E o senhor? — Ele se virou para o conde de Warwick. — Seus homens vão guardar o ponto de travessia?

—   Vamos, sire.

—   Então que Deus esteja com vocês.

O conde e Sir Reginald galoparam rumo ao sul, e o príncipe, glorioso em suas cores reais e montado num alto cavalo preto, seguiu mais lentamente. Seu rosto belo estava emoldurado em aço. O elmo tinha uma fina coroa de ouro e três penas de avestruz no topo. Ele parava a intervalos de alguns metros para falar com os homens que esperavam.

—   Provavelmente lutaremos hoje! E vamos fazer neste lugar o que fizemos juntos em Crécy! Deus está do nosso lado; são Jorge nos guarda! E vocês permanecerão na linha! Ouviram? Nenhum homem vai romper a linha! Se virem uma puta nua nas fileiras inimigas, deixem-na lá! Se romperem as fileiras os inimigos vão nos derrotar! Permaneçam em formação. Não a rompam. Obedeçam aos seus comandantes! Fiquem juntos, escudo com escudo. Deixem o inimigo vir até nós. Não rompam a linha!

—   Sire! — Um mensageiro veio galopando do centro da formação, onde havia uma grande abertura na densa cerca viva. — O cardeal está vindo!

—   Encontre-o, descubra o que ele quer! — disse o príncipe, depois se virou de novo para seus homens. — Fiquem em linha! Cada um fique junto do vizinho! Não deixem as fileiras! Escudo com escudo!

O conde de Salisbury trouxe a notícia de que o cardeal oferecia mais cinco dias de trégua.

—   Em cinco dias morreremos de fome — retrucou o príncipe. — E ele sabe disso.

— O exército estava sem comida para homens e cavalos, e a presença do inimigo significava que nenhum grupo de forrageiros poderia procurar comida nos campos ao redor. — Ele só está fazendo a vontade dos franceses, portanto diga para ele ir rezar e que nos deixe em paz. Agora estamos nas mãos de Deus.

A missão da Igreja havia fracassado. Arqueiros encordoavam os arcos. O sol estava quase despontando no horizonte e o céu se enchia com uma enorme luz pálida.

—   Fiquem em linha! Vocês não deixarão as fileiras! Ouviram? Fiquem em linha!

Abaixo do morro, junto ao rio onde as sombras da noite ainda permaneciam, as primeiras carroças seguiram em direção ao vau.

Porque o exército iria escapar.

 

Os eixos guinchavam feito porcos sendo abatidos no começo do inverno. As carretas e as carroças — não havia duas iguais — sacudiam-se na trilha irregular que seguia ao longo da margem norte do rio. A maior parte carregava pilhas altas, mas era impossível dizer do quê, porque panos grosseiros tinham sido postos sobre as cargas.

—   Saque — disse Sam, parecendo desaprovar.

—   Imagino quantos mosteiros, castelos e igrejas foram necessários para encher aquela carroça enorme — disse Thomas olhando a primeira a entrar no vau. Era puxada por quatro cavalos grandes, e, para seu alívio, o veículo desajeitado cruzou o rio facilmente, com a água mal alcançando os dois eixos.

—   Não são somente saques de pessoas ricas — disse Sam. — Eles pegam qualquer coisa! Espetos, rastelos, foices, caldeirões. Não me incomodaria se eles só tirassem dos ricos. Se é feito de metal, eles tomam.

Um cavaleiro usando a insígnia do leão dourado do conde de Warwick esporeou seu animal percorrendo a fila de carretas e carroças.

—   Mais rápido! — gritou.

—   Mãe de Deus — disse Sam, com nojo. — Os pobres coitados não podem ir mais depressa! — Os cocheiros precisavam virar os veículos para o vau, que era um lugar complicado para manobrar as carroças maiores. — Devagar e sempre é melhor.

Um número incontável de mulheres e crianças andava junto das carroças. Eram os seguidores que todo exército atraía. Uma carroça enorme era guiada por uma mulher. Ela também era enorme, com uma juba de cachos revoltos sobre a qual se empoleirava um chapéu como um pássaro diminuto num grande ninho. Dois meninos estavam ao seu lado, um segurando uma espada de madeira e o outro agarrado às amplas saias da mãe. A carroça estava carregada de saque e era decorada com fitas de todas as cores. A mulher riu para Thomas e Sam.

—   Ele acha que os malditos franceses vêm nos pegar! — disse ela, virando a cabeça na direção do cavaleiro. Em seguida estalou o chicote, batendo num dos cavalos da frente, e a carroça entrou no vau. — Upa, upa! — gritou ela. — Não fiquem para trás, rapazes — gritou animada para os arqueiros de Thomas, depois sacudiu as rédeas fazendo seus quatro cavalos porem a força nas cangas e puxarem a carroça até a outra margem.

Algumas mulheres e crianças viajavam em carroças vazias que haviam transportado alimentos e forragem, agora já consumidos, enquanto outras carretas simplesmente levavam barris vazios onde as preciosas flechas tinham sido mantidas com discos de couro para que as penas não se amassassem. Havia muitas carroças assim, com barris, o que fazia Thomas se lembrar de sua fuga de Montpellier.

—   Continuem em frente — gritou o cavaleiro. Ele olhava nervoso por cima do ombro, em direção ao norte, acima do vale ascendente que passava entre o morro ocupado pelos ingleses e o Champ d’Alexandre.

Thomas olhou naquela direção e viu estandartes movendo-se no morro inglês. Vinham na direção dele, meros lampejos de cor no cume do morro. Eram os homens do conde de Warwick, marchando para guardar o rio. A retirada estava acontecendo. Não houvera toques de trombeta, sete notas longas para alardear uma trégua. Em vez disso haveria um rio a cruzar e, presumiu Thomas, um longo dia impedindo os franceses de interferir na travessia.

—   Não atrasem, pelo amor de Cristo! — gritou o cavaleiro. Ele estava chateado porque uma carroça muito pesada havia parado no local onde a trilha fazia a curva, por isso esporeou o cavalo até chegar junto aos dois cavalos de carga e bateu na anca de um deles com a parte chata da espada. O cavalo entrou em pânico, empinou um pouco, mas foi contido pelos arreios. Ele se virou para a direita e o outro cavalo o seguiu, os dois dispararam e o cocheiro puxou as rédeas, mas a carroça se sacudia na trilha. Os cavalos tentaram se afastar do rio e a carroça tombou lentamente na beira da estrada. Os cavalos relincharam. Houve um estrondo e toda a carroça caiu de lado, bloqueando o vau. Caldeirões saqueados caíram com estrondo no pântano.

—   Meu Deus! — gritou em pânico o cavaleiro que havia provocado a confusão. Somente duas dúzias de carroças haviam cruzado o Miosson, e um número pelo menos três vezes maior estava agora encurralado na margem errada.

—   Meu Deus! — ecoou Sam.

Não porque a carroça havia tombado, mas porque surgiam mais estandartes. Só que não estavam no morro. Estavam no vale coberto de floresta, um vale amortalhado em sombras, já que o sol ainda não o alcançara. Entre as árvores havia bandeiras e sob as bandeiras havia cavaleiros. Uma massa de cavaleiros.

Vindo para o rio.

 

O marechal d’Audrehem e o senhor de Douglas comandavam os cavaleiros com armaduras pesadas cuja tarefa era exterminar os arqueiros na ala esquerda do exército inglês. Tinham 320 homens, todos experientes e renomados, todos capazes de pagar por armaduras para os cavalos, armaduras capazes de resistir a uma flecha inglesa. Os animais adestrados usavam testeiras — placas de metal sobre a fronte, com buracos para os olhos — e os peitos eram protegidos por couro, malha e até mesmo placas. A armadura tornava os grandes animais lentos, mas quase invulneráveis.

D’Audrehem e Douglas esperavam atacar atravessando o vale e subindo a longa encosta na direção da Floresta de Nouaillé, depois rodear os limites da cerca viva que protegia e escondia as tropas inimigas. Atravessariam o vale com seus cavalos pesados e subiriam a encosta, confiando nas armaduras para proteger os grandes animais. Quando tivessem circundado a cerca viva, instigariam os cavalos para um galope pesado, invadindo a massa de arqueiros ingleses que esperavam encontrar. Talvez mil arqueiros? E os grandes cavalos penetrariam fundo naquela massa em pânico, a qual os cavaleiros golpeariam com espadas e machados. Destruiriam os arqueiros, obrigá-los-iam a fugir do campo e depois retornariam às linhas francesas, apeariam e tirariam as esporas, para então juntar-se ao ataque a pé, golpeando o centro do exército inglês.

Este era o plano de batalha: usar os cavalos com armaduras pesadas para destruir os arqueiros ingleses, depois trucidar os homens de armas. Mas enquanto d’Audrehem e Douglas levavam seus soldados por cima do morro a oeste viram as pontas de estandartes ingleses do outro lado da cerca viva, e esses estandartes estavam se movendo para o sul.

—   O que os desgraçados estão fazendo? — perguntou d’Audrehem a ninguém especificamente.

—   Escapando — respondeu Douglas mesmo assim.

O horizonte a leste estava muito iluminado pelo sol nascente, e a floresta parecia escura contra essa claridade, mas os estandartes podiam ser vistos contra as árvores. Havia uma dúzia de bandeiras, todas se movendo para o sul, e d’Audrehem olhou naquela direção e viu o brilho de água no fundo do vale.

—   Estão fugindo — disse Douglas.

O marechal d’Audrehem hesitou. Tinha 50 anos e havia passado quase toda a vida adulta como soldado. Havia lutado na Escócia, onde aprendera a matar ingleses, e depois na Bretanha, na Normandia e em Calais. Conhecia a guerra. Não estava hesitando por temer o que estava acontecendo, mas porque sabia que o plano de batalha deveria mudar. Se atacassem o morro distante, indo para onde acreditavam que ficava a ala esquerda dos ingleses, encontrariam homens de armas, e não arqueiros, e seus cavaleiros montados tinham recebido a ordem de destruir os odiados arqueiros inimigos. E onde estavam os arqueiros?

—   Há um vau lá embaixo — disse um homem, apontando para o brilho da água.

—   Como você sabe?

—   Eu cresci a menos de cinco quilômetros daqui, sire.

—   Vamos para o vau — decidiu d’Audrehem. Em seguida virou seu cavalo, que estava coberto por uma grande manta com as largas tiras diagonais azuis e brancas de sua insígnia. Carregava um escudo com as mesmas cores fortes, e seu elmo com viseira tinha uma pluma branca e uma azul. — Por aqui! — gritou, e levou os cavaleiros para o sul.

E isso era mais fácil do que atravessar o vale. Agora, em vez de forçar os cavalos pesados pela longa encosta acima do morro defendido pelos ingleses, eles estavam cavalgando morro abaixo. Trotavam. As armaduras dos cavalos tilintavam e chacoalhavam; os cascos batiam com força no terreno seco. Alguns homens carregavam lanças, porém a maioria tinha espadas. Cavalgavam numa pastagem aberta, mas adiante deles, onde o vale descia e se alargava, penetrando no vale mais amplo do Miosson, havia árvores, e para além dessas árvores d’Audrehem esperava encontrar arqueiros protegendo o vau.

O senhor de Douglas estava à direita, onde uma dúzia dos seus escoceses se juntou a ele.

—   Baixem as viseiras quando virem uma flecha — lembrou-lhes — e aproveitem a matança! — Ele aproveitaria. O esporte do clã Douglas era matar ingleses, e Douglas sentiu um júbilo feroz com a perspectiva da batalha. Tivera medo de que os homens da Igreja, ao interferirem, arranjassem uma fuga para o exército inglês, mas em vez disso as negociações haviam fracassado e ele estava livre para provocar tumulto. — E lembrem-se! Se virem meu maldito sobrinho, ele deve viver! — Douglas duvidava que encontraria Robbie no caos da batalha, mas mesmo assim queria que o rapaz fosse capturado vivo. E depois levado a sofrer. — Quero o pequeno idiota vivo e chorando! Lembrem-se disso!

—   Eu vou fazê-lo chorar — respondeu Sculley. — Chorar como um bebê.

Então os cavalos pesados chegaram às árvores e os cavaleiros diminuíram o passo, abaixando-se sob os galhos. Ainda não viera nenhuma flecha. Ainda não havia inimigo. Espero que d’Audrehem esteja certo, pensou Douglas. Será que estavam cavalgando para um espaço aberto? Será que os ingleses estavam mesmo recuando? Ou será que os cavaleiros perseguiam um fogo-fátuo? O som dos cascos de seu cavalo havia mudado, e ele percebeu que estavam entrando num pântano. Havia salgueiros e amieiros em vez de carvalhos, pequenas elevações de terra e trechos de solo verde e líquido em vez de folhas caídas. Os cavalos estavam afundando suas patas pesadas no atoleiro, mas continuavam em movimento, e então ele viu o rio à frente, uma fatia de claridade na penumbra verde, e também viu homens ali, homens e carroças, e havia arqueiros!

O marechal d’Audrehem também os viu, e viu que uma carroça havia tombado e que os ingleses estavam no caos, então uma flecha relampejou no céu. Ele não viu para onde ela foi, mas aquilo lhe disse que ele havia tomado a decisão certa e encontrado os arqueiros. Baixou a viseira com força, escurecendo seu mundo, bateu com as esporas e atacou.

 

Os arqueiros do conde de Warwick ainda estavam descendo do morro. Os homens de Thomas viram os cavaleiros e, como os arqueiros eram treinados e experientes, escolheram flechas para carne. Eram feitas para matar cavalos, porque os animais eram vulneráveis e todo arqueiro sabia que, para derrotar uma carga de cavaleiros montados, era preciso mirar nos cavalos. Foi assim que se dera a vitória em Crécy, por isso eles instintivamente pegaram essas flechas, que tinham pontas triangulares e farpadas, e as bordas de cada ponta eram afiadas como navalhas, feitas para rasgar a carne, cortar vasos sanguíneos e dilacerar músculos. Eles retesaram os arcos até as orelhas, escolheram os alvos e dispararam.

O arco de guerra era mais alto do que um homem. Cortado do tronco de um teixo que crescia nas terras ensolaradas perto do Mediterrâneo, era retirado de onde o alburno encontrava o cerne escuro, e o coração escuro do teixo era rígido, resistia a se curvar, enquanto o alburno externo era flexível, de modo que voltava à forma original se fosse encurvado. A pressão do cerne comprimido e o puxão de volta do alburno dourado trabalhavam juntos para dar ao grande arco de guerra uma força terrível. Mas, para liberar essa força, o arco precisava ser retesado até a orelha, e não até o olho, por isso o arqueiro precisava aprender a mirar por instinto, assim como precisava treinar os músculos para puxar a corda até parecer que a tensão no teixo certamente o faria estalar e se partir. Eram necessários dez anos para formar um arqueiro, mas, se um arco de guerra de teixo fosse dado a um homem treinado, ele poderia matar a mais de duzentos passos de distância e ser temido por toda a cristandade.

Os arcos soaram. As cordas estalavam nas braçadeiras que protegiam o pulso dos arqueiros; as flechas foram disparadas. Os arqueiros miravam no peito dos cavalos, tentando cravar as flechas fundo nos pulmões em atividade. Thomas sabia o que deveria acontecer. Os cavalos iriam tropeçar e cair. O sangue espumaria nas narinas e na boca. Os homens gritariam, enquanto os cavalos agonizantes rolariam sobre eles. Outros tropeçariam nos animais caídos e as flechas continuariam sendo disparadas, selvagens, enviando a morte com ponta branca impelida por madeira e cânhamo. Só que isso não aconteceu.

As flechas acertavam. Os cavalos seguiam em frente.

Homens gritavam. Os cocheiros saltavam dos bancos e fugiam, atravessando o rio. O cavaleiro que havia tentado apressar a retirada estava boquiaberto e incrédulo diante dos franceses que se aproximavam. Os primeiros arqueiros do conde de Warwick chegavam ao rio, e seus vinteneiros gritavam para que começassem a disparar.

E os franceses continuavam se aproximando. Vinham devagar, implacáveis, aparentemente sem se afetar pelas flechas. Agora os cavaleiros mais próximos estavam a 150 passos.

Thomas disparou uma segunda flecha, viu-a voar, viu-a fazer um arco baixo até mergulhar bem no centro de uma manta enfeitada com listras diagonais azuis e brancas, mas o cavalo não falhou um passo, e Thomas viu outras flechas apanhadas no tecido listrado. Sua flecha tinha ido exatamente aonde ele queria, bem no peito do cavalo, e não havia feito nada.

—   Eles têm armaduras embaixo das mantas! — gritou para seus homens. — Pontas lisas! Pontas lisas! — Arrancou uma de ponta lisa do chão, onde havia enfiado um punhado de flechas. Retesou o arco, procurou um alvo, viu o coração vermelho de Douglas num escudo e disparou.

O cavalo continuou vindo.

Mas os cavalos seguiam lentamente. Aquilo não era um galope, nem mesmo um meio galope. Os grandes cavalos de campanha estavam pesados com malha e placas, limitados pelas grossas saias de couro fervido, carregando homens com armadura completa e afundando as patas no pântano à beira do rio. O pântano os tornava lentos, o peso os tornava lentos, e Thomas viu uma flecha deslizar junto à cabeça de um cavalo, passar pelo joelho do cavaleiro e acertar a anca do animal, que saltou de lado por causa da dor. A armadura ficava toda na frente!

—   Hellequins! Sigam-me! — gritou ele. — Hellequins! Sigam-me!

Pegou rapidamente suas flechas e correu para a esquerda. Chapinhou na lama e na gosma do pântano, mas obrigou-se a continuar. Vá para o lado, disse a si mesmo, vá para o lado.

—   Sigam-me! — repetiu, e olhou rapidamente para trás, vendo que seus homens obedeciam. — Corram! — gritou, e esperou em nome de Deus que ninguém pensasse que estavam fugindo.

Percorreu quarenta, talvez cinquenta passos, e enfiou as flechas de volta no pântano, pegou uma flecha para carne, apoiou-a na haste, levantou o arco e retesou a corda, mirando de novo no cavalo que tinha o coração vermelho em sua manta espalhafatosa. Agora estava mirando no flanco do cavalo, logo atrás da pata dianteira e à frente da sela. Não pensou. Olhou para onde queria que a flecha fosse e seus músculos obedeceram, os dois dedos soltaram a corda, a flecha passou acima do atoleiro e desapareceu no cavalo. O cavalo empinou, e agora mais flechas voavam por cima do pântano e finalmente perfuravam os animais. Os cavalos estavam caindo. Os arqueiros do conde de Warwick haviam entendido. Os cavalos do inimigo tinham toda a armadura na frente, e nada nos flancos e nas ancas. Um cavaleiro usando túnica esquartelada em vermelho e amarelo com uma estrela branca num canto gritava para os arqueiros do conde se juntarem aos homens de Thomas.

—   Vão para o flanco! Vão, rapazes, vão, vão, vão!

Mas os franceses estavam perto. Tinham as viseiras abaixadas, de modo que os rostos não podiam ser reconhecidos, porém Thomas podia ver onde as mantas haviam sido rasgadas e ensanguentadas pelas esporas. Eles estavam instigando os cavalos, e ele disparou de novo. Desta vez uma flecha de ponta lisa atravessou as escamas sobrepostas da armadura de pescoço de um cavalo. O animal tropeçou nos joelhos dianteiros, e seu cavaleiro, preso pelo alto arção e pela patilha da sela, tentou desesperadamente tirar os pés dos estribos antes que o cavalo rolasse. O animal, que ainda estava sobre as patas traseiras, inclinou-se para trás, e o cavaleiro estava caindo sobre o pescoço do cavalo quando duas flechas acertaram seu peitoral. Uma se amassou, a outra perfurou-o, e o homem se sacudiu para trás sob o impacto dos golpes. Começou a cair para a frente de novo e foi atingido outra vez. Arqueiros gritaram em comemoração. Ele se balançou para trás e para a frente, atormentado, até que um homem de armas usando o leão de Warwick avançou e abriu seu elmo com um machado, espirrando sangue. Um cavaleiro tentou matar o inglês, mas agora as flechas voavam densas do flanco, acertando as laterais sem armaduras dos cavalos. A barriga do cavalo do francês foi atingida por três flechas e o animal relinchou, empinou e disparou.

—   Santo Cristo, matem-nos! São Jorge! — O cavaleiro com a estrela branca na túnica estava logo atrás de Thomas. — Matem-nos!

E os arqueiros obedeceram. Tinham se amedrontado com o fracasso das primeiras flechas, mas agora se sentiam vingativos. Cada um era capaz de disparar 15 flechas num minuto, e nesse ponto havia mais de duzentos arqueiros no flanco francês, e aqueles franceses estavam derrotados. Todos os cavaleiros da frente estavam caídos, os cavalos morrendo ou agonizando, alguns animais haviam dado meia-volta e fugido, relinchando enquanto tentavam escapar da dor medonha junto ao rio. Os homens de armas do conde de Warwick avançavam para o meio do caos para usar machados e maças contra os cavaleiros tombados. Os cavaleiros de trás estavam dando meia-volta. Dois homens de armas de Warwick levavam um prisioneiro de volta para o vau, e Thomas viu que o sujeito usava uma túnica de listras azuis e brancas. Depois procurou o coração vermelho de Douglas e viu que o cavalo havia caído, prendendo o homem. Mandou uma flecha de ponta lisa contra o cavaleiro e viu-a furar a placa que cobria a parte de cima do braço. Disparou de novo, cravando uma flecha na lateral do corpo do sujeito, logo abaixo da axila, mas antes que pudesse atirar uma terceira flecha três homens, todos apeados, pegaram o cavaleiro caído e o tiraram de baixo do cavalo. Flechas os atingiram, mas dois sobreviveram, e Thomas reconheceu Sculley. Ele estava usando um elmo com viseira, mas seu cabelo comprido com os ossos amarelados pendia abaixo da borda. Tomas retesou o arco, mas dois cavalos feridos galoparam entre ele e Sculley, que conseguira levantar o cavaleiro caído e levá-lo até um animal incólume e sem cavaleiro. Sculley deu um tapa na anca do cavalo. Os cavalos feridos se afastaram galopando e Thomas disparou, mas a flecha ricocheteou no peitoral de Sculley. O cavalo com o homem salvo lutou para sair do pântano até o abrigo das árvores, seguido por Sculley e quatro outros homens que usavam o coração vermelho.

E então houve um silêncio súbito, a não ser pelo som eterno do rio, dos cantos dos pássaros, dos relinchos dos cavalos, das batidas dos cascos no chão e dos gritos agonizantes dos animais.

Os arqueiros desencordoaram os arcos de modo que as hastes de teixo ficassem retas. Prisioneiros, alguns feridos, alguns cambaleando, estavam sendo levados para o vau enquanto ingleses despiam as preciosas armaduras, os arreios e as selas dos cavalos mortos. Alguns acabavam com o sofrimento dos animais desafivelando as testeiras e batendo-lhes com força entre os olhos com um machado de guerra. Outros homens desafivelavam placas de armadura dos cavaleiros mortos e tiravam cotas de malha dos cadáveres. Um arqueiro prendeu a espada de um cavaleiro francês na cintura.

—   Sam! — gritou Thomas. — Pegue as flechas de volta!

Sam riu e levou uma dúzia de homens até os restos da carnificina para coletar as flechas. Também era uma chance de saquear. Um francês ferido tentou se levantar. Ergueu a mão para um homem de armas inglês, que se ajoelhou ao lado dele. Os dois falaram, então o inglês levantou a viseira do francês e cravou uma adaga em seu olho.

—   Devia ser pobre demais para garantir um resgate, acho — disse o cavaleiro que estava atrás de Thomas. Ele viu o homem de armas embainhar a adaga e começar a despir o cadáver. — Meu Deus, somos cruéis, mas capturamos o marechal d’Audrehem, e isso não é um ótimo começo para um dia ruim?

Thomas se virou. A viseira do sujeito estava levantada, revelando um bigode grisalho e olhos azuis pensativos. Thomas se ajoelhou instintivamente.

—   Senhor.

—   Thomas de Hookton, não é?

—   Sim, sire.

—   Eu me perguntei quem, em nome de Deus, estaria usando as cores de Northampton — disse o homem, falando em francês. Thomas havia ordenado que seus homens usassem túnicas com o brasão de Northampton, um brasão que a maioria dos homens no exército inglês reconheceria. Uns poucos tinham a cruz vermelha de são Jorge numa faixa em volta do braço, mas não havia braçadeiras suficientes para todos os homens. O cavaleiro que havia falado com Thomas usava a estrela branca em sua túnica vermelha e amarela, enquanto a corrente no pescoço proclamava sua posição elevada. Era o conde de Oxford, cunhado do senhor de Thomas. O conde estivera em Crécy, e depois Thomas o havia encontrado na Inglaterra, e ficou pasmo não só porque o conde se lembrava dele, mas também porque falava francês. Ficou mais atônito ainda quando o conde usou o apelido de seu cunhado. — É uma pena Billy não estar aqui — disse, sério. — Nós precisamos de todos os homens bons que pudermos ter. E acho que agora você deveria levar seus homens para cima do morro.

—   Para cima do morro, sire?

—   Escute!

Thomas escutou.

Eram os tambores de guerra.

 

Os cavaleiros franceses haviam atacado no vau e na extremidade direita da linha inglesa, mas, enquanto esses ataques aconteciam, outros cavaleiros se posicionavam diante das tropas do delfim, desafiando os ingleses em seu morro.

Seis homens optaram por cavalgar. Cada um era um campeão de torneio com reputação temível. Montavam cavalos de campanha soberbamente treinados, e suas vitórias nas liças haviam garantido a eles as melhores armaduras que poderiam ser feitas em Milão. Cavalgavam perto da cerca viva dos ingleses e gritavam em desafio, e os arqueiros ingleses os ignoravam. Seis homens não faziam uma batalha, e não havia honra nem muita utilidade em matar um cavaleiro solitário quando tantos outros homens de armas se aproximavam a pé.

—   Passem adiante a ordem de que eles devem ser ignorados — ordenou o príncipe de Gales.

Os desafiadores faziam parte da dança da batalha. Provocariam os ingleses, na esperança de encontrar um oponente que pudessem derrubar do cavalo e matar, tirando o ânimo dos adversários. Gritavam em desafio.

—   Vocês são mulheres? Não sabem lutar?

—   Ignorem-nos — resmungavam os comandantes aos seus homens.

Mas um homem desobedeceu. Ele não devia aliança a nenhum comandante do lado inglês e sabia que os desafiadores insolentes deveriam ser ignorados. Que desperdiçassem o fôlego, a verdadeira batalha não era entre dois campeões. Mas ainda assim esse homem montou, pegou uma lança com seu escudeiro e se afastou do flanco esquerdo da linha inglesa.

Ele não usava túnica. Sua armadura fora esfregada a ponto de brilhar. Seu cavalo dava passos pequenos enquanto ele o continha. Usava um elmo de torneio, coroado com plumas azul-claras, e o pequeno escudo pintado de preto tinha o símbolo da rosa branca, a rosa sem espinhos, a flor da Virgem Maria. No pescoço usava uma echarpe azul da seda mais fina, uma echarpe de mulher, presente de Bertille. Seguiu por uma trilha que serpenteava pelo vinhedo até chegar ao terreno coberto de capim na base rasa do vale, e ali virou seu cavalo e esperou que um dos seis aceitasse o desafio.

Um homem aceitou. Era de Paris, um homem brutal, rápido como um relâmpago e forte como um touro. Sua armadura não era polida, e a túnica era de um azul tão escuro que parecia quase preto. Seu brasão, bordado na túnica e pintado no escudo, era uma lua crescente vermelha. Ele se virou para Roland de Verrec.

—   Traidor! — gritou.

Roland não disse nada.

Os dois lados observavam. Os outros campeões tinham se afastado do vinhedo abaixo da cerca viva e olhavam por trás do companheiro.

—   Traidor! — gritou de novo o parisiense.

Roland continuou sem dizer nada.

—   Não vou matar você! — gritou o parisiense. Seu nome era Jules Langier, e sua profissão era lutar. Ele sentiu o peso da lança, 5 metros de freixo e ponta de aço. — Não vou matar você! Vou levá-lo acorrentado ao rei e deixar que ele o mate. Prefere fugir agora?

A única resposta de Roland de Verrec foi apoiar a lança no joelho direito e fechar a viseira. Levantou a lança de novo.

—   Jules! — gritou um dos campeões dos franceses. — Cuidado com a lança dele. Ele gosta de levantá-la no último minuto. Proteja a cabeça.

Langier balançou a cabeça.

—   Ei, virgem — gritou. — Você pode fugir agora! Não vou persegui-lo!

Roland baixou a lança. Seu cavalo dava minúsculos passos ariscos. Uma leve trilha de carroças passava em diagonal à sua frente e ele a havia notado; tinha visto onde as rodas haviam aberto sulcos no solo. Não eram fundos, mas bastavam para fazer um cavalo hesitar ligeiramente. Ele cavalgaria à esquerda dos sulcos.

Sentia pouca emoção. Ou melhor, sentia como se observasse a si mesmo, como se estivesse fora do seu corpo. Os momentos seguintes tinham a ver com habilidade, com habilidade e sangue-frio. Nunca havia enfrentado Langier nas liças, mas o havia observado e sabia que o parisiense gostava de se curvar sobre a sela ao dar o golpe. Isso o tornava um alvo pequeno. Langier se abaixava e usava o grosso escudo para afastar a lança do oponente, depois se virava rápido como uma serpente e usava a maça curta e pesada para atacar por trás. Isso havia funcionado muitas vezes. A maça era mantida num fundo bolso de couro preso no lado direito da sela, atrás do joelho. Podia ser retirada num piscar de olhos. Retirada e girada de frente para trás, e tudo que Roland iria perceber seria um súbito clarão no crânio enquanto a arma golpeava seu elmo.

—   Covarde! — gritou Langier, tentando provocá-lo.

Roland continuou sem dizer nada. Em vez disso levantou o braço esquerdo. Largou o escudo. Lutaria sem ele.

O gesto pareceu enfurecer Langier, que, sem dizer mais nada, bateu com as esporas de modo que seu cavalo saltou adiante. Roland reagiu. Os dois cavaleiros se aproximaram. Não estavam distantes o suficiente para qualquer um chegar a um galope, mas os cavalos se esforçavam à medida que avançavam. Ambos conheciam o trabalho, ambos sabiam aonde seus cavaleiros queriam que fossem. Roland guiava a montaria com os joelhos, mantendo-a logo à esquerda do sulco, e levantou a ponta da lança para ameaçar os olhos de Langier. Agora os dois estavam próximos, seu mundo era o bater dos cascos. Langier virou o cavalo ligeiramente para a direita e o animal hesitou minimamente quando uma pata bateu em terreno irregular, e Langier estava se curvando para baixo, o escudo protegendo o corpo enquanto a lança apontava diretamente para a base do peitoral de Roland. Então o cavalo tropeçou e a lança voou. Langier tentou desesperadamente endireitar o cavalo com a pressão das pernas, mas o animal havia caído sobre os joelhos, deslizando no capim escorregadio por causa do sangue que espumava. Langier viu que a lança do oponente, em vez de apontar para sua cabeça, havia rasgado o peito de seu cavalo.

—   Isto não é um torneio — disse Roland pela primeira vez.

Ele havia virado seu animal, abandonado a lança e desembainhado a espada que chamava de Durindana, e cavalgou de volta para onde seu oponente estava lutando para se soltar da montaria caída, agonizante. Langier tentou encontrar sua maça, mas o cavalo havia caído sobre a arma, então Durindana acertou seu elmo. Sua cabeça foi empurrada violentamente para um dos lados, em seguida para o outro, enquanto a espada voltava para esmagar o elmo de novo.

—   Tire o elmo — disse Roland.

—   Vá mijar na bunda da sua mãe, virgem.

A espada o golpeou de novo, deixando Langier meio atordoado, em seguida a ponta foi impelida entre a beirada superior da viseira e a borda do elmo. A lâmina cortou a cartilagem do nariz de Langier e parou.

—   Se quer viver — disse Roland calmamente —, tire o elmo. — E puxou a espada de volta.

Langier soltou as fivelas que mantinham o elmo no lugar. Seus companheiros observavam, mas não fizeram qualquer esforço para ajudá-lo. Estavam ali para lutar homem a homem, e não dois contra um, porque seria pouco cavalheiresco. Por isso apenas olharam enquanto Langier finalmente tirava o elmo do cabelo preto e liso. Um fio de sangue escorria pelo rosto a partir de onde Durindana o havia cortado.

—   Volte para o seu exército — disse Roland — e diga a Labrouillade que o virgem vai matá-lo.

Foi a vez de Langier ficar calado.

Roland virou seu cavalo, embainhou Durindana e bateu com os calcanhares no animal. Tinha dado a mensagem. Ouviu gritos de comemoração vindos dos ingleses que tinham visto a luta através da abertura na cerca viva, mas aquilo não significava nada para ele.

Era tudo por Bertille.

 

O senhor de Douglas não mataria nenhum inglês nesse dia. Sua perna havia se quebrado quando o cavalo caiu, o braço fora perfurado até o osso por uma flecha, e outra havia quebrado uma costela e perfurado um pulmão, de modo que ele estava respirando bolhas de sangue. Sentia dor, uma dor horrível, e foi carregado à casa onde o rei havia passado a noite. Ali os cirurgiões-barbeiros tiraram sua armadura, cortaram a flecha rente à pele, deixando a ponta cravada no peito, e derramaram mel sobre o ferimento.

—   Arranjem uma carroça e o levem a Poitiers — ordenou um cirurgião a um homem que usava o símbolo do coração vermelho. — Leve-o devagar. Imagine que está carregando leite e não quer transformá-lo em manteiga. Vá. Se quiser que ele veja a Escócia de novo, vá!

—   Vocês podem levá-lo para a porcaria dos monges — disse Sculley aos seus companheiros. — Eu vou lutar. Vou matar.

Mais homens estavam sendo carregados para a casa. Tinham feito o ataque junto com o marechal Clermont, investindo contra os arqueiros à direita da linha inglesa, mas ali o inimigo havia cavado trincheiras e os cavalos afundaram, outros tinham quebrado as pernas em buracos, e o tempo todo as flechas acertavam. O ataque fracassara miseravelmente, assim como o ataque no pântano.

Mas agora que os campeões haviam alardeado seu desafio e Langier fora derrubado do cavalo em frente ao exército francês, a principal força de ataque se aproximava do morro inglês. O delfim comandava as primeiras tropas francesas, mas estava bem-protegido por cavaleiros escolhidos da Ordem da Estrela, criada por seu pai. Sua força de batalha tinha mais de três mil homens e vinha a pé, chutando as estacas de castanheira dos vinhedos e pisoteando as parreiras enquanto subiam a encosta suave na direção do morro inglês. Estandartes balançavam acima deles, e atrás, no morro a oeste, a auriflama tremulava orgulhosa nas fileiras que o rei comandava. Essa bandeira, a comprida flâmula de duas pontas feita de seda escarlate, era a bandeira de batalha francesa, e enquanto ela tremulasse nenhum prisioneiro seria feito. Capturar homens ricos para cobrar resgate era o sonho de todo cavaleiro, mas no início de uma batalha, quando tudo que importava era dobrar o inimigo, despedaçá-lo, matá-lo e aterrorizá-lo, não havia tempo para as sutilezas da rendição. Só quando a bandeira era enrolada os franceses podiam cuidar de suas bolsas, mas até lá não haveria prisioneiros, apenas matança. Assim a auriflama balançava de um lado para o outro, uma ondulação de vermelho no céu da manhã, e atrás das tropas do delfim as forças de seu tio avançavam na direção do fundo raso do vale. Ali os nakerers tocavam seus enormes tambores num ritmo de marcha, a fim de impelir os homens do delfim morro acima para uma vitória gloriosa.

Para os ingleses e os gascões, pelo menos para os que podiam enxergar do outro lado da cerca viva, o morro mais distante e o vale próximo estavam tomados pelos aparatos da guerra. Seda e aço, plumas e espadas. Uma massa de homens cobertos de metal, com túnicas coloridas em vermelho, azul, branco e verde, marchando sob os orgulhosos estandartes da nobreza. Tambores martelavam o ar da manhã, trombetas rasgavam o céu, e os franceses avançavam gritando em comemoração, não porque tivessem uma vitória ainda, mas para levantar o ânimo e amedrontar o inimigo.

Montjoie Saint Denis! gritavam. Montjoie Saint Denis e o rei João!

Havia besteiros nos flancos franceses. Cada um tinha um acompanhante que levava um grande pavês, atrás do qual a besta podia ser rebobinada a salvo das mortais flechas inglesas. Essas flechas ainda não estavam voando. Os primeiros homens da investida francesa podiam ver a grande cerca viva e as largas aberturas, e atrás delas encontravam-se os ingleses, sob seus estandartes. As viseiras dos franceses estavam levantadas e permaneceriam assim até que as flechas começassem a chegar. Todos os homens das primeiras filas usavam armaduras de placas, e a maioria não carregava escudo; só os homens que não podiam pagar pelas caras placas levavam um escudo de salgueiro. Alguns avançavam com lanças encurtadas, esperando desequilibrar algum inglês e deixar que outro homem matasse o inimigo caído com machado, maça ou estrela-d’alva. Poucos homens carregavam espadas. Uma espada não furaria nem cortaria armadura. Um homem com armadura precisava ser derrubado por armas com peso de chumbo, espancado, esmagado e transformado em polpa.

O delfim não gritava. Insistira em estar na fila da frente, mas não era um homem forte como o pai. O príncipe Carlos era magro, de membros fracos, nariz comprido, pele tão pálida que parecia pergaminho descorado, pernas tão curtas e braços tão compridos que alguns cortesãos o chamavam de le singe pelas costas, mas o macaco era jovem e inteligente, um macaco ajuizado, e sabia que devia comandar. Devia ser visto comandando. Usava uma armadura feita para ele em Milão e esfregada com areia e vinagre até refletir o sol em feixes de luz ofuscantes. Seu peitoral era coberto por uma túnica azul com flores-de-lis bordadas em fios de ouro, e na mão direita havia uma espada. Seu pai insistira para que ele aprendesse a lutar com espada, mas ele nunca havia dominado a arma. Escudeiros seis anos mais novos podiam vencê-lo num treinamento, motivo pelo qual os cavaleiros que o flanqueavam eram homens experientes em luta e carregavam escudos pesados para proteger a vida do príncipe.

—   Deveríamos deixá-los passar fome — disse o delfim enquanto se aproximavam da cerca viva.

—   Sire? — gritou um homem, incapaz de escutar a voz do delfim acima do som dos tambores, das trombetas e dos gritos.

—   Eles têm uma posição forte!

—   Mais glória ainda quando os derrotarmos, sire.

O delfim achou essa afirmação idiota, mas segurou a língua, e nesse momento um lampejo branco atraiu seu olhar, e o homem que fizera a observação idiota levantou a mão e baixou a viseira do príncipe com tanta força que o delfim ficou momentaneamente surdo e atordoado.

—   Flechas, sire! — gritou o homem.

As flechas estavam sendo disparadas dos limites da cerca viva e seguiam em direção às tropas que avançavam. Mais flechas vinham de pequenos grupos de arqueiros que guardavam as aberturas na cerca. O delfim escutou os projéteis batendo em escudos com um baque surdo ou retinindo nas armaduras. Agora mal conseguia enxergar. A viseira tinha barras muito apertadas, seu mundo estava escuro, cortado por luminosas fendas de sol, e ele sentia, mais do que via, que os homens ao seu lado andavam mais depressa. Estavam cerrando fileiras à sua frente, e ele era fraco demais para abrir caminho entre eles.

—   Montjoie Saint Denis! — gritaram os homens de armas, e continuaram gritando, de modo que houve um grande e interminável rugido enquanto os guerreiros da França corriam para a abertura na cerca viva.

Os arqueiros que estavam ali haviam recuado. Ocorreu ao príncipe que os ingleses estavam em silêncio, e nesse momento eles soltaram seu grito de guerra:

—   São Jorge!

E houve o primeiro som áspero de aço contra aço.

E gritos.

E assim começou a carnificina.

 

— Peguem seus cavalos! — gritou o conde de Oxford a Thomas. O conde, que era o segundo no comando abaixo do conde de Warwick, queria que a maioria dos homens que haviam protegido o vau retornasse ao terreno elevado. — Vou deixar os arqueiros de Warwick aqui — disse a Thomas —, mas você vai levar seus homens para cima do morro. Era um longo caminho de subida, e seria muito mais rápido se fossem a cavalo.

—   Cavalos! — gritou Thomas para o outro lado do rio. Serviçais e cavalariços os trouxeram pelo vau, passando pela carroça tombada. Keane, montando uma égua em pelo, os comandava.

—   Os desgraçados foram embora? — perguntou o irlandês, olhando além dos cavalos mortos e agonizantes, na direção em que os cavaleiros franceses haviam desaparecido entre as árvores.

—   Descubra para mim — sugeriu Thomas. Ele não queria abandonar o vau e ficar sabendo que os franceses haviam renovado o ataque contra as carroças de bagagem.

Keane pareceu surpreso, mas assobiou para os dois cães e levou-os para o norte, na direção das árvores. O conde de Oxford estava mandando os homens de armas de Warwick subir de volta o morro íngreme e gritava para eles carregarem odres cheios de água.

—   O pessoal está com sede lá em cima! Levem água se puderem! Mas depressa!

Montando o cavalo que havia capturado perto de Montpellier, Thomas encontrou uma carroça esperando para cruzar o rio assim que a carreta virada fosse retirada. O leito da carroça estava cheio de barris.

—   O que havia nisso aí? — perguntou ao cocheiro.

—   Vinho, senhor.

—   Encha-os com água, depois leve a porcaria da carroça morro acima.

O cocheiro ficou perplexo.

—   Esses cavalos nunca vão conseguir subir o morro, principalmente transportando barris cheios!

—   Então pegue cavalos extras. Mais homens. Faça isso! Ou vou voltar e encontrá-lo. E quando você tiver feito uma vez, volte para pegar mais.

O homem resmungou baixinho. Thomas o ignorou e retornou ao vau, onde agora seus homens estavam montados.

—   Vamos subir o morro — disse ele, e então viu que Genevieve, Bertille e Hugh estavam no meio dos cavaleiros. — Vocês três! Fiquem aqui! Fiquem com a bagagem! — Em seguida bateu os calcanhares e conduziu o cavalo pela encosta, passando pelos homens de Warwick que subiam com suas armaduras.

—   Reboquem os soldados! — gritou Thomas. Em seguida acenou para um homem de armas que, agradecido, segurou o couro de um estribo e deixou o cavalo puxá-lo morro acima.

Keane voltou depressa, procurou Thomas e o viu no meio dos homens que subiam. Bateu os calcanhares, instigando a égua.

—   Eles foram embora — disse o irlandês. — Mas há milhares lá na frente!

—   Onde?

—   No topo do vale. Milhares! Jesus!

—   Vá ao topo do morro e encontre um padre.

—   Um padre?

O padre prometido jamais havia chegado ao vau.

—   Os homens precisam se confessar — disse Thomas. — Encontre um padre e diga a ele que não ouvimos a missa. — Agora não haveria tempo para missa, mas pelo menos os agonizantes poderiam ter a extrema-unção.

Keane assobiou para os cães e bateu os calcanhares de novo.

E Thomas ouviu os estrondos no topo do morro enquanto homens se chocavam uns contra os outros. Aço contra aço, aço contra ferro, aço contra carne. Subiu.

 

As forças do delfim miravam o centro da linha inglesa. A maior abertura na cerca viva estava ali, e, à medida que os franceses se aproximavam, viram os maiores estandartes tremulando acima dos homens de armas que esperavam do outro lado. Entre esses estandartes estava a bandeira despudorada que esquartelava as armas reais francesas com leões da Inglaterra. Esse estandarte proclamava que o príncipe de Gales estava ali, e através das fendas das viseiras os franceses podiam vê-lo montado num cavalo, logo atrás da linha, e agora a fúria da batalha estava ao seu lado. Não somente a fúria, mas o terror, e, para alguns, o júbilo. Esses homens abriam caminho até a frente. Estavam famintos para lutar, eram confiantes e violentamente bons no que faziam. Muitos outros estavam bêbados, mas o vinho os deixara presunçosos, e as flechas vinham da esquerda e da direita, acertando escudos e amassando-se em armaduras. Às vezes elas encontravam um ponto fraco, mas o ataque continuava ao redor dos homens caídos, e, estando tão perto agora, os franceses começaram a correr, gritando, e logo caíram sobre os ingleses.

A primeira corrida era a mais importante. Era quando as lanças encurtadas podiam derrubar o inimigo, quando os machados, as marretas e as maças teriam o ímpeto extra da carga, e por isso os homens do delfim gritavam a plenos pulmões enquanto atacavam, giravam, estocavam e cortavam com suas armas.

E a linha inglesa recuou.

Os homens foram forçados para trás pela ferocidade do ataque e pelo peso de soldados que se espremiam para passar através da abertura, mas, mesmo recuando, não se rompeu. Lâminas se chocavam em escudos. Machados e maças golpeavam. Aço com peso de chumbo esmagava elmos, despedaçava crânios, fazia sangue e miolos jorrarem através do metal partido. Homens caíam, e ao cair formavam obstáculos, fazendo com que outros homens tropeçassem neles. O impacto da carga perdeu velocidade, homens tentavam se levantar e eram atordoados por golpes, mas os franceses haviam forçado o caminho através da abertura e agora alargavam a luta, atacando à esquerda e à direita à medida que mais homens passavam pela cerca viva.

Os ingleses e gascões ainda estavam sendo impelidos para trás, mas agora lentamente. O impacto inicial deixara homens mortos, feridos, sangrando e gemendo, mas a linha não havia se rompido. Os comandantes, montados em cavalos logo atrás dos homens de armas a pé, gritavam para eles permanecerem em formação cerrada. Manter a linha. E os franceses tentavam rompê-la, abrir caminho cortando e esmagando através dos escudos a fim de despedaçar os ingleses em pequenos grupos que poderiam ser cercados e trucidados. Homens golpeavam com machados, gritavam palavrões, estocavam com lanças, giravam maças. Os escudos lascavam, mas a linha se mantinha. Recuou sob a pressão, e mais franceses passaram pela abertura, enquanto ingleses e gascões lutavam com o desespero de homens encurralados e com a confiança de tropas que haviam passado meses juntas, homens que conheciam uns aos outros e confiavam uns nos outros, e que sabiam o que os esperava caso a linha se rompesse.

—   Bem-vindo ao matadouro do diabo, sire — disse Sir Reginald Cobham ao príncipe de Gales. Os dois estavam a cavalo, olhando logo de trás da linha de batalha, e Sir Reginald viu que a luta estava afrouxando. Tinha esperado que os franceses viessem a cavalo e ficara apreensivo ao entender que pretendiam lutar a pé. — Eles aprenderam a lição — observou secamente ao príncipe.

Ele vira as linhas se chocarem e notara que a violenta carga francesa não conseguira rasgar os ingleses e os gascões, mas agora era difícil dizer qual lado era qual, tão perto estavam. As fileiras de trás dos dois lados faziam força, esmagando os homens da frente contra os opositores e oferecendo pouco espaço para que usassem as armas. Os franceses continuavam forçando a passagem através das aberturas da cerca viva, alargando o ataque, mas não rompiam a teimosa linha. Ficavam esmagados contra o inimigo, ou então um grupo de homens atacava, batia e cortava, depois recuava para recuperar o fôlego e avaliar o oponente. Estavam gritando insultos em vez de lutar com fúria, e Sir Reginald entendia isso. Atacantes e defensores se recuperavam do choque inicial, porém mais franceses continuavam passando pela abertura na cerca e agora a luta ficaria mais feia, porque os ataques seriam mais deliberados, e os ingleses, com sede e fome, iriam se cansar mais depressa.

—   Estamos indo bem, Sir Reginald! — disse o príncipe com animação.

—   Precisamos continuar indo bem, sire.

—   Aquele garoto é o príncipe?

O príncipe de Gales tinha visto a pequena coroa dourada sobre um elmo polido nas fileiras francesas, e soube, por causa do estandarte maior, que o delfim devia fazer parte desse ataque.

—   É um príncipe, certamente — respondeu Sir Reginald. — Ou talvez um substituto, não é?

—   Príncipe de verdade ou não — disse o verdadeiro príncipe inglês —, seria cortês lhe dar meus cumprimentos. — Ele riu, passou a perna por cima da alta patilha da sela e saltou ao chão, e então chamou seu escudeiro. — Escudo — disse, estendendo a mão esquerda — e um machado, acho.

—   Sire! — gritou Sir Reginald, depois ficou em silêncio. O príncipe estava cumprindo com seu dever e o diabo estava jogando os dados. Aconselhar Eduardo a ser cauteloso não adiantaria de nada.

—   Sir Reginald? — perguntou o príncipe.

—   Nada, sire, nada.

O príncipe deu um meio sorriso.

—   O que tiver de ser será, Sir Reginald. — Em seguida baixou a viseira e abriu caminho entre as fileiras inglesas para enfrentar os franceses. Os cavaleiros escolhidos para proteger o herdeiro do trono da Inglaterra foram atrás.

Os inimigos viram sua túnica de cor forte, reconheceram o insolente símbolo francês esquartelado em seu peito amplo e soltaram um rugido de desafio e raiva.

E atacaram de novo.

 

Thomas chegou ao topo do morro no instante em que a batalha estava se alargando. Os franceses haviam forçado a passagem através das aberturas na cerca viva e se espalhavam por toda a extensão dela, enquanto outros cortavam os espinheiros grossos para fazer novas aberturas. Em algum lugar à direita de Thomas um homem gritou:

—   Arqueiros! Arqueiros! Aqui!

Thomas desceu da sela. Seus homens estavam chegando em pequenos grupos e se juntando à esquerda da linha inglesa, que ainda não entrara na batalha, mas ele correu por trás da formação de onde viera o chamado. Então viu o que provocara o grito. Dois besteiros haviam encontrado um caminho até o centro da cerca viva com seus paveses e estavam disparando contra os homens do conde de Warwick. Thomas parou para encordoar seu arco, apoiando uma das pontas numa raiz de árvore que se projetava do chão e curvando a outra com a mão esquerda, de modo a passar a corda pelo chifre entalhado, na extremidade superior do arco. A maioria dos homens nem era capaz de curvar um arco o suficiente para encordoá-lo, mas ele fez isso sem pensar, depois pegou uma flecha nova na bolsa, abriu caminho com os ombros através das fileiras de trás e retesou a corda. Os dois besteiros estavam a uns trinta passos de distância, ambos abrigados por seus enormes escudos, o que significava que estavam girando as manivelas que rebobinavam as cordas.

—   Estou com você — disse uma voz, e ele viu que Roger de Norfolk, conhecido por todos como Cara de Bexiga, tinha se juntado a ele com o arco retesado.

—   O seu é o da esquerda — respondeu Thomas.

O escudo do homem da direita girou subitamente de lado e o besteiro estava ali, ajoelhado, com a arma apontada para os homens de armas ingleses. Thomas disparou, e a flecha acertou o arqueiro francês no rosto. O sujeito caiu para trás, o dedo apertando o gatilho por reflexo, de modo que a besta disparou e a seta voou para o céu. Em seguida o homem ao seu lado tombou com a flecha de Cara de Bexiga no peito. Thomas já havia retesado o arco de novo e cravou uma flecha nas costas de um soldado com um pavês, o qual estava fugindo.

—   Adoro arqueiros — disse um homem de armas.

—   Pode se casar comigo — respondeu Cara de Bexiga, e houve uma explosão de gargalhadas logo seguida por um grito, pois uma massa de franceses vinha ao longo da face interna da cerca viva.

—   Não deixem que venham, rapazes, não deixem que venham! — gritou uma voz.

Agora o conde de Oxford estava atrás da linha. Seu cavalo tinha uma risca de sangue na anca, onde aparecia o cotoco de uma seta de besta. Thomas se livrou das fileiras comprimidas e correu de volta para a esquerda, onde seus homens de armas prolongavam a formação.

—   Mais perto da cerca! — gritou Thomas.

Keane estava recolhendo cavalos abandonados, amarrando-os num galho baixo de carvalho. Os arqueiros encordoavam seus arcos, mas não tinham alvos porque os homens de armas escondiam o inimigo.

—   Sam! Vigie o final da cerca! — gritou Thomas. — Avise se os desgraçados tentarem dar a volta.

Ele duvidava que fizessem isso. Ali a encosta era mais íngreme, o que tornaria o lugar difícil para um ataque francês, mas os arqueiros podiam sustentar aquele flanco contra qualquer coisa que não fosse um ataque extremamente determinado.

O perigo estava no lado de dentro da cerca viva, onde os franceses, sentindo que chegavam ao fim da linha inimiga, faziam investidas. Um grupo de homens atacava unido, soltando seu grito de guerra. Os tambores continuavam tocando. Trombetas soavam do outro lado da cerca, encorajando os franceses a romper o inimigo. Rompê-lo, parti-lo e impeli-lo para trás, para dentro da floresta, onde poderia ser caçado e trucidado. Seria uma vingança por todos os danos que os ingleses haviam causado em toda a França, pelas casas queimadas e pelos animais mortos, pelos castelos capturados e pelas viúvas que choravam, pelos incontáveis estupros e pelos tesouros roubados. E assim eles vinham com raiva renovada.

Agora os homens de armas de Thomas estavam lutando. Caso rompessem a fileira não haveria nada atrás deles, mas Karyl se sustentava como uma rocha, desafiando os franceses a vir ao alcance de sua maça. Eles ousaram. Houve um grito, uma corrida, e os soldados batiam uns nos outros com machados, maças e marretas de guerra. Um francês passou sua acha por cima da espaldeira de Ralph de Chester e puxou-o com força, e o inglês tropeçou para a frente, arrastado pelo gancho preso ao ombro da armadura, e uma maça acertou a lateral de seu elmo. Ele caiu, e outro francês girou um machado para partir sua placa das costas. Thomas viu Ralph se sacudindo; não pôde ouvir seus gritos acima do ruído da batalha, mas a maça o golpeou de novo, e Ralph ficou imóvel. Karyl acertou um golpe de raspão no ombro do matador, apenas o bastante para fazê-lo recuar, mas o francês voltou, sentindo a vitória, e o choque de aço em madeira e em ferro era ensurdecedor.

Thomas colocou seu arco e sua bolsa de flechas junto às árvores e abriu caminho para dentro da linha. Havia um machado no chão, e ele o pegou.

—   Volte — disse alguém.

Thomas não usava nada além de malha e couro, e esse era um lugar onde os homens estavam envoltos em aço, mas Thomas pressionou até chegar à segunda fila e usou sua força de arqueiro para girar o machado acima da cabeça, descendo a lâmina pesada com força sobre um elmo francês. A arma atravessou pluma, aço e crânio. O machado foi brandido com tamanha força que a lâmina cortou fundo até a cavidade peitoral do inimigo, onde ficou presa num emaranhado de costelas, carne e aço. Uma névoa de sangue levantou-se no sol da manhã enquanto Thomas tentava soltar a arma, e um homem atarracado e de peito largo, usando elmo com bico sobre o nariz, viu sua chance e tentou cravar uma lança encurtada na barriga do arqueiro. Arnaldus, o gascão, acertou o sujeito com um machado, impelindo sua cabeça para o lado. Thomas abandonou seu machado e pegou a lança, puxando-a para trazer o homem até suas fileiras, onde ele poderia ser morto, mas o sujeito a puxou de volta. Karyl girou a maça e a viseira com bico se soltou, ficando pendurada por uma dobradiça, mas o francês continuou prendendo a lança. Estava rosnando, gritando insultos, e Karyl acertou a maça no rosto com bigode, esmagando o nariz e quebrando dentes, e agora o sujeito, cuja face se tornara uma máscara de sangue, tentou atacar com a lança de novo, mas Karyl o golpeou com a maça uma segunda vez, e Arnaldus baixou seu machado sobre o ombro do homem, partindo sua espaldeira. O inimigo tombou de joelhos, cuspindo sangue e dentes. Arnaldus acabou com ele dando um giro poderoso com o machado e chutou o corpo ajoelhado de volta na direção dos franceses.

Agora a batalha havia se encolhido até a distância que a arma de cada homem podia alcançar. Inimigo sentia cheiro de inimigo, sentia o cheiro de merda quando as tripas se esvaziavam em terror, sentia cheiro de vinho e cerveja no hálito, sentia cheiro do sangue que tornava o capim escorregadio. Havia um espasmo de luta brutal, depois uma pausa enquanto os homens recuavam e recuperavam o fôlego. Thomas tinha pegado a lança encurtada. Não fazia ideia de onde suas armas estavam, presumivelmente num cavalo de carga que poderia ter sido levado morro acima. Por enquanto a lança teria de servir. Os franceses, uma centena dos quais ele podia ver ali perto, estavam olhando através de viseiras fechadas. A maioria usava um brasão azul-claro com duas estrelas vermelhas. Ele se perguntou a que senhor eles serviam e se o senhor estaria ali no meio deles. Eles olhavam, avaliavam, preparavam-se para outro ataque. Os arqueiros de Thomas seguravam achas ou maças. Os arqueiros galeses cantavam uma canção de batalha em sua língua. Thomas presumiu que ela comemorasse uma vitória sobre os ingleses, mas, se isso os ajudasse a romper as linhas francesas, poderiam cantar sobre derrotas inglesas até o inferno congelar.

— A linha está se sustentando! — gritou o conde de Oxford de cima de seu cavalo. — Não deixem que eles nos rompam!

Um homem grande, carregando uma estrela d’alva, abriu caminho até a frente da linha inimiga. Usava armadura de placas e não tinha túnica, e seu elmo era um bacinete com viseira suja de sangue. Usava uma espada pesada numa bainha presa ao cinto. A maioria dos homens deixava de lado suas bainhas na batalha, temendo tropeçar nelas, mas aquele inimigo precisava da bainha para manter a espada enquanto usava a monstruosa estrela d’alva, toda suja de sangue.

A arma tinha um cabo quase tão comprido quanto a haste de um arco, e a cabeça era uma bola de ferro do tamanho do crânio de um bebê. Uma longa ponta de aço se projetava da extremidade da bola, e uma dúzia de espetos mais curtos a cercava. O sujeito sentiu o peso da arma. O focinho de sua viseira moveu-se de um lado para o outro enquanto ele espiava ao longo da linha dos hellequins. Dois companheiros, ambos carregando pequenos escudos de torneio, juntaram-se a ele. Um estava armado com uma acha, o outro com um goupillon, que tinha um cabo de madeira curto ligado por uma corrente grossa a uma bola de metal cheia de pontas. Era um mangual.

—   Eles vieram aqui para morrer — disse o grandalhão da estrela-d’alva, alto o bastante para Thomas ouvir. — Então vamos fazer a vontade desses desgraçados.

—   Mate primeiro o da acha — disse Karyl baixinho. O sujeito que carregava essa arma também tinha um escudo, o que significava que não podia usar o grande machado com gancho, aproveitando toda a força.

—   Querem morrer? — perguntou o grandalhão.

De algum lugar no norte veio um súbito frenesi: gritos, metal se chocando, berros. O inimigo devia estar fazendo um esforço frenético para romper a linha, pensou Thomas, e rezou para que os ingleses e seus aliados gascões se sustentassem. Em seguida não pôde dispensar nenhum pensamento porque o sujeito enorme com a estrela-d’alva pontuda estava atacando. Ia diretamente contra Thomas, que era o único na linha de homens de armas inglesas que não usava armadura de placas.

—   São Dênis! — gritou o sujeito alto.

E são Denis encontrou são Jorge.

 

O cardeal Bessières assistia à batalha parado no morro francês. Estava montado num cavalo forte e paciente e usava seus mantos de cardeal, ainda que, de modo incongruente, tivesse um bacinete empoleirado na cabeça. Estava a poucos metros do rei João, também montado, mas o cardeal notou que o rei havia descartado as esporas, o que sugeria que, se lutasse, seria a pé. O filho mais novo do rei, Filipe, e o restante dos cavaleiros e homens de armas estavam todos a pé.

—   O que está acontecendo, Majestade? — perguntou o cardeal.

O rei não sabia realmente como responder e ficou irritado porque o cardeal, com seu elmo ridículo, estava muito perto. Não gostava de Bessières. O sujeito era filho de um mercador, pelo amor de Deus, mas havia ascendido na Igreja e agora era legado papal e, o rei sabia, tinha esperanças de se tornar papa. E talvez Bessières fosse uma boa escolha porque, apesar de seu nascimento humilde, apoiava ferozmente a monarquia francesa, e nunca era ruim ter o apoio de Deus. Por isso o rei o suportava.

—   Nossa primeira linha de batalha está rompendo o inimigo — explicou.

—   Deus seja louvado — disse o cardeal, depois apontou para o estandarte do duque de Orléans, que tremulava acima da segunda linha de batalha que aguardava no vale raso entre os dois morros. O duque tinha bem mais de dois mil homens de armas. Estavam a pé, mas seus cavalos se encontravam logo atrás de suas fileiras, para o caso de precisarem perseguir um inimigo destruído. — Existe algum motivo para o seu irmão não estar avançando e fazendo o serviço de Deus?

O rei quase perdeu as estribeiras. Estava nervoso. Esperava que as tropas do delfim bastassem para romper os ingleses, mas era evidente que a luta estava mais dura do que todo mundo havia imaginado. Tinham-lhe garantido que o inimigo estava fraco de fome e sede, mas ele continuava lutando. Era o desespero, pensou.

—   Meu irmão avançará quando receber ordem para tal — disse peremptoriamente.

—   É uma questão de espaço — interveio o conde de Ventadour, um rapaz que era um dos favoritos do rei. Tinha sentido a irritação do monarca e agiu para poupá-lo de qualquer outra explicação tediosa.

—   Espaço? — perguntou o cardeal.

—   O inimigo tem uma posição forte, Eminência — disse o conde, apontando. — Está vendo a cerca viva? Ela nos restringe.

—   Ah — disse o cardeal, como se só agora tivesse notado a cerca. — Mas por que não avançamos com todas as forças?

—   Porque nem mesmo um rei ou um cardeal podem colocar um litro de água dentro de um pote de meio litro, Eminência.

—   Então quebre o pote — sugeriu Bessières.

—   Eles estão tentando fazer exatamente isso, Eminência — respondeu o conde, paciente.

Era difícil determinar o que acontecia do outro lado da cerca viva. Certamente havia luta, mas quem estava vencendo? Ainda havia franceses no lado oeste da cerca, o que sugeria que não tinham espaço suficiente para lutar do outro lado, ou talvez que aqueles fossem os covardes que não queriam arriscar a vida. Um pequeno fluxo de homens feridos recuava descendo o morro, e parecia óbvio para o cardeal que os franceses deveriam mandar cada homem que possuíam para colocar uma pressão insuportável sobre o inimigo, mas em vez disso o rei e seu irmão esperavam calmamente, deixando as tropas do delfim fazerem o serviço. Geoffrey de Charny, o porta-estandarte real, ainda segurava a auriflama no alto, indicando que nenhum prisioneiro deveria ser tomado, e o cardeal entendia o suficiente para ver que a grande bandeira permaneceria estendida até que o inimigo estivesse rompido. Só quando aquela grande flâmula vermelha sumisse os franceses poderiam confiar que tinham tempo para garantir resgates vultosos, e Bessières se sentia frustrado porque ela ainda tremulava. O rei João estava sendo hesitante, pensou. Tinha mandado um terço de seu exército para a luta; por que não mandara o exército inteiro? Mas sabia que não poderia fazer essa crítica. Quando o próximo papa fosse eleito, precisaria da influência do rei João.

—   Eminência? — O conde de Ventadour interrompeu os pensamentos do cardeal.

—   Meu filho? — respondeu o cardeal em tom grandioso.

—   Posso? — O conde levantou a mão na direção da espada de aparência barata que o cardeal segurava.

—   Com reverência, filho — disse o cardeal.

O conde tocou la Malice, fechou os olhos e rezou.

—   Teremos a vitória — disse quando terminou a oração.

—   É a vontade de Deus — respondeu o cardeal.

A trinta passos do cardeal, o conde de Labrouillade fazia parte das fileiras dos homens do rei. Estava suando. Usava roupas de baixo de linho e, sobre elas, um gibão de couro justo e uma calça apertada. Uma cota de malha cobria o couro, e sobre a malha havia uma armadura de placas completa. Precisava mijar. O vinho que tinha bebido a noite toda estava inchando a bexiga, mas ele temia que, se liberasse a pressão, suas tripas também resolvessem se aliviar. Sua barriga estava azeda. Meu Deus, pensou, que o delfim vencesse isso depressa! E por que estava demorando tanto? Mudou o peso de um pé para o outro. Pelo menos o duque de Orléans seria o próximo na batalha. O conde de Labrouillade havia pagado em ouro ao marechal Clermont para que ele e seus homens de armas fossem postados nas tropas do rei, a última linha de batalha, e rezava fervorosamente para que aqueles três mil homens não fossem necessários. E por que estavam lutando a pé? Todo mundo sabia que os nobres lutavam a cavalo! Mas um maldito escocês tinha convencido o rei a lutar a pé, como os ingleses. Se os ingleses e os escoceses queriam lutar como camponeses, isso era problema deles, mas um nobre da França deveria estar sobre a sela! Como um homem poderia fugir estando a pé? Labrouillade gemeu.

—   Senhor? — Seu porta-estandarte pensara que o conde havia falado.

—   Fique quieto — disse Labrouillade.

Suspirou com alívio enquanto mijava. A urina quente encharcou as pernas e pingou por baixo do saiote de placas de aço que protegia a genitália. Apertou as tripas com força e, abençoadamente, permaneceu limpo. Olhou à direita para ver se a auriflama ainda tremulava, e rezou pelo momento em que ela seria enrolada e seus homens poderiam ser liberados para encontrar Roland de Verrec, que mandara uma mensagem insultuosa e ameaçadora pelo homem cujo cavalo ele matara diante de todo o exército francês. O conde havia prometido fazer com Roland o que fizera com o descarado Villon. Iria capá-lo por causa de sua traição. Essa perspectiva o consolou.

—   Mensageiros — disse alguém, e ele olhou na direção da luta distante, vendo dois cavaleiros retornarem pelo vale. Traziam notícias, pensou, e rezou para que fossem boas e para que não tivesse de lutar, apenas fazer prisioneiros.

Sculley, o escocês ameaçador, passou por Labrouillade, que achou que ele lembrava uma criatura saída de um pesadelo. O sangue havia encharcado sua túnica de modo que o coração vermelho de Douglas parecia ter explodido. Havia sangue em suas luvas e nos braçais que cobriam os antebraços. A viseira estava levantada. Ele dirigiu um olhar feroz ao conde e foi andando até o cardeal.

—   Quero a espada mágica — disse Sculley ao Bessières.

—   O que esse animal está dizendo? — perguntou o cardeal ao padre Marchant, montado numa égua logo atrás. Sculley havia falado em inglês, e mesmo que o cardeal entendesse a língua jamais decifraria o sotaque do escocês.

—   O que foi? — perguntou o padre Marchant a Sculley.

—   Diga ao seu homem para me dar a espada mágica!

—   La Malice?

—   Me dá! Os desgraçados machucaram meu senhor e eu vou matá-los! — Ele cuspiu as palavras, olhando irado para o cardeal como se quisesse começar a vingança abrindo a enorme barriga de Bessières. — Aquele arqueiro é um homem morto — continuou Sculley. — Eu vi o desgraçado! Atirando no meu senhor quando ele estava no chão! É só me dar a espada mágica!

—   Eminência — disse o padre Marchant, falando de novo em francês. — A criatura quer la Malice. Ele expressa o desejo de trucidar o inimigo.

—   Graças a Deus alguém quer isso — disse o cardeal. Ele estivera pensando em que homem seria mais adequado a usar a relíquia, mas parecia que o homem escolhera por ele. Olhou para o escocês e estremeceu diante da crueza de sua aparência, depois sorriu, esboçou uma bênção e entregou a espada a Sculley.

E em algum lugar uma trombeta soou.

 

O príncipe de Gales apareceu na linha de frente inglesa com sua bandeira, a maior do lado inglês, tremulando no alto. Os franceses reagiram com um rugido enquanto renovavam o ataque, mas os ingleses responderam com um grito de guerra e também avançaram. Escudo encontrou escudo com estrondo, as armas baixavam e estocavam, e os ingleses avançaram. Os homens encarregados de guardar o príncipe de Gales eram dos mais experientes e selvagens de todo o exército. Tinham lutado em dezenas de batalhas, desde Crécy até escaramuças menores, e guerreavam com sangue-frio implacável. Os dois franceses mais perto do príncipe foram derrubados instantaneamente. Nenhum dos dois foi morto. Um deles estava meio atordoado com um golpe de maça e caiu de joelhos, e o outro levou um golpe de machado no cotovelo direito que despedaçou o osso e o deixou sem arma. Foi arrastado para trás pelos companheiros, e esse movimento de recuo dispersou os franceses próximos. O homem meio atordoado tentou se levantar, mas o príncipe chutou-o para trás no chão e pisou em seu pulso coberto pela armadura.

—   Acabe com ele — disse ao homem que vinha atrás, o qual usou o pé coberto de aço para levantar a viseira do sujeito e em seguida cravou a ponta da espada. Sangue espirrou no príncipe.

—   Deem-me espaço! — gritou o príncipe. Em seguida avançou e girou o machado, sentindo o impacto estremecer pelo braço quando a lâmina acertou a barriga de um homem. Puxou o machado de volta e usou-o para estocar. A cabeça era encimada por um espeto de aço que amassou o peitoral do ferido, mas não o perfurou. O homem cambaleou, o príncipe deu outro passo à frente e passou a arma pesada pelo pescoço do inimigo. A lâmina afiada atravessou o gorro de malha que ele usava sob o elmo para cobrir o pescoço e os ombros. O homem cambaleou e o príncipe chutou-o para trás, girando a arma contra outro adversário. Estava lutando sem viseira e podia claramente ver Carlos, o delfim, a menos de dez passos de distância. — Venha lutar comigo! — gritou em francês. — Você e eu! Carlos! Venha lutar!

O delfim, magro e desajeitado, não se incomodou em responder. Viu o príncipe de Gales derrubar um homem com o machado e um francês cravar uma lança encurtada que rasgou a túnica de Eduardo. Por baixo da túnica a couraça do príncipe era esculpida com seu brasão. A lança estocou de novo, e o príncipe baixou o machado sobre o ombro do atacante. O delfim viu a lâmina enorme cortar a armadura e o sangue espirrar súbito e brilhante.

—   Para trás, Alteza — disse um dos guardas do delfim. Esse guardião podia ver que o príncipe inimigo estava decidido a abrir caminho até o herdeiro do trono francês. Isso não poderia acontecer. Mas os ingleses estavam lutando feito demônios, de modo que Eduardo se aproximaria caso ele não agisse. — Para trás, Alteza — repetiu, e dessa vez puxou o delfim para longe.

O delfim estava sem fala. Tinha se surpreendido ao ver como sentira pouco medo depois do início da batalha. Certo, ele estava bem-guardado e os homens encarregados de sua segurança eram todos guerreiros brutalmente eficazes, mas o delfim tentara fazer o máximo que podia. Havia estocado uma espada contra um cavaleiro inimigo e pensou que tinha ferido o sujeito. Acima de tudo ficara fascinado. Observara a batalha com olhar inteligente, e, mesmo pasmo com a chacina, achou-a intrigante. Era um modo idiota de decidir grandes questões, porque a decisão certamente se tornava uma loteria assim que começava a briga. Devia existir um modo mais inteligente de derrotar o inimigo, não devia?

—   Para trás, sire! — gritou um homem, e o delfim se permitiu ser puxado para trás pela abertura na cerca viva. Fazia quanto tempo que estavam lutando? Pareciam minutos, mas agora ele viu que o sol estava alto sobre as árvores, de modo que devia ter se passado pelo menos uma hora!

—   O tempo voa — disse.

—   O senhor falou algo, sire? — gritou um homem.

—   Eu disse que o tempo voa!

—   Jesus Cristo — disse o homem. Ele olhou para o príncipe de Gales, que estava parado, presunçoso, acima dos homens que ele havia derrubado com seu machado sujo de sangue.

O príncipe balançou o machado para o inimigo que recuava.

—   Volte! — berrou.

—   Ele é um idiota — disse o delfim, perplexo.

—   Sire?

—   Eu disse que ele é um idiota!

—   Um idiota guerreiro — respondeu o homem, com admiração relutante.

—   Ele está gostando disso — disse o delfim.

—   Por que não gostaria, sire?

—   Só um idiota pode gostar disto. Para um idiota isto é o paraíso, e ele está chafurdando na idiotice.

O homem encarregado dos guardas do delfim achou que o príncipe de 18 anos era louco e sentiu uma pontada de raiva por ser o responsável pela vida desse fracote pálido, de peito fundo, com pernas curtas e braços compridos, aparentemente dotado de um cérebro feito de queijo derretido. Um príncipe deveria parecer um príncipe, como o príncipe de Gales. O francês odiou admitir, mas o príncipe inimigo parecia um governante de verdade em sua glória e seu peito largo sujo de sangue. Parecia um guerreio de verdade, não essa pálida paródia de homem. Mas a pálida paródia era o delfim, por isso o soldado manteve o respeito na voz.

—   Devemos mandar mensageiros ao seu pai, o rei — disse.

—   Sei quem é meu pai.

—   Devemos pedir que ele mande mais homens, sire.

—   Faça isso, mas garanta que ele mande seus idiotas mais idiotas.

—   Idiotas, sire?

—   Envie os mensageiros! Agora!

Assim os franceses mandaram pedir ajuda.

 

O homem gigantesco com a estrela-d’alva correu para Thomas, enquanto seus companheiros, um com o mangual e o outro com um machado, atacavam juntos. Berravam palavras de desafio enquanto corriam. Thomas estava flanqueado por Karyl e Arnaldus, ambos homens endurecidos, um alemão e um gascão, e Karyl enfrentou o sujeito da acha enquanto Arnaldus era desafiado pelo homem com rosto de aço que usava o mangual de guerra.

Thomas ainda segurava a lança encurtada. Largou-a.

A estrela-d’alva girou. Levantando os olhos, Thomas viu gotas de sangue voando dos espetos enquanto a arma cortava o céu. Agora ele próprio não tinha arma, por isso simplesmente deu um passo adiante, girou, e passou o braço de arqueiro em volta do grandalhão. Apertou-o enquanto o erguia.

Arnaldus havia aparado o golpe do mangual com o escudo. Com a mão direita, baixou o machado contra a perna do agressor. Karyl havia seguido o exemplo de Thomas e girou, golpeando sua maça contra a virilha do inimigo. Golpeou de novo. Thomas ouviu um guincho. Estava agarrado ao inimigo. O mangual raspou pelas suas costas, rasgando malha e couro. Mais franceses vinham, mas outros hellequins também chegavam. O homem com a acha estava dobrado ao meio, e isso foi um convite para Karyl, que o aceitou de boa vontade. Segurou a maça perto da cabeça, encurtando o giro, e acertou-a na nuca do francês. Uma, duas vezes, e o homem caiu em silêncio. Karyl sacou uma adaga e enfiou-a na borda inferior do peitoral usado pelo homem enorme preso nos braços de Thomas. Cravou a adaga por baixo das costelas do sujeito.

—   Jesus! Jesus! — gritou o homem.

Thomas apertou o abraço. O grandalhão deveria ter soltado a estrela-d’alva e tentado quebrar o pescoço de Thomas, mas teimosamente continuava segurando a arma enquanto Karyl retorcia a lâmina comprida e fina, e o sujeito gritou mais alto. Thomas sentiu cheiro de merda. Estava apertando-o o máximo que podia, e Karyl enfiou a adaga de novo, passando-a por baixo da borda do peitoral, de modo que a luva ensanguentada desaparecia embaixo do aço, no bolo de malha e lã.

—   Pode largá-lo agora — disse Karyl.

O sujeito caiu pesadamente. Estava se sacudindo, ofegando.

—   Pobre coitado — continuou Karyl. — Devia ter pensado melhor. — Em seguida pegou sua maça, pôs um pé no peito do sujeito que se retorcia e golpeou-a com força contra o elmo. — Boa sorte no inferno. Dê um olá ao diabo por nós.

Os franceses estavam recuando. Passo a passo, vigiando o inimigo, mas retornando ao longo da cerca viva ou então tentando forçar a passagem entre os espinheiros embolados. Os ingleses e os gascões não os seguiram. Homens a cavalo atrás da linha gritavam para eles.

—   Mantenham a linha! Não persigam! Deixem os franceses partirem!

A tentação era persegui-los e capturar prisioneiros ricos, mas essa perseguição romperia a linha, e, se os franceses tinham fracassado em fazer isso com aço, os ingleses não iriam fazê-lo com a ganância. Permaneceram em formação.

—   Você deveria tentar lutar com uma arma — disse Karyl a Thomas, brincando.

Thomas estava com a boca seca. Mal podia falar, mas enquanto os franceses iam embora as mulheres das bagagens inglesas vieram com odres de vinho cheios de água do rio. Não havia o suficiente para todo mundo matar a sede, mas os homens beberam o que puderam.

Trombetas soaram no vale.

O inimigo vinha de novo.

 

O primeiro mensageiro que alcançou o rei estava empoeirado. O suor abrira canais na poeira de seu rosto. Seu cavalo estava branco de suor. Ele apeou e se ajoelhou.

—   Meu senhor, o príncipe seu filho requisita reforços.

O rei estava olhando para o morro distante. Podia ver os estandartes ingleses através da abertura mais larga na cerca viva.

—   O que aconteceu? — perguntou.

—   O inimigo está enfraquecido, sire. Muito enfraquecido.

—   Mas não rompido.

—   Não, sire.

Mais dois mensageiros chegaram, e o rei juntou os fragmentos de um relato do que acontecera até então naquela manhã. Os mensageiros despejaram louvores sobre seu filho mais velho, dizendo que o delfim havia lutado magnificamente, histórias em que o rei fingiu acreditar. O que parecia verdadeiro era que os ingleses tinham mesmo sido enfraquecidos, mas haviam mantido a disciplina e sustentado a linha intacta.

—   Eles são teimosos, sire — disse um dos mensageiros.

—   Ah, sim, teimosos — respondeu o rei vagamente. Viu as tropas de seu filho mais velho recuarem descendo o morro distante. Vinham devagar. Deviam estar cansadas, porque fora uma longa luta. A maioria dos confrontos entre homens de armas terminava em minutos, mas os dois exércitos deviam ter lutado durante pelo menos uma hora.

O rei observou um ferido subir o morro mancando, usando uma espada como cajado para sustentar o peso.

—   Meu filho não foi ferido? — perguntou ao mensageiro.

—   Não, senhor, graças a Deus.

—   Graças a Deus mesmo — disse o rei, depois chamou o conde de Ventadour. — Vá até o delfim e diga a ele para deixar o campo.

—   Deixar o campo? — O conde não tinha certeza de ter ouvido corretamente.

—   Ele é o herdeiro. Já lutou bastante. Provou sua coragem, e agora deve ser mantido em segurança. Diga a ele que deve cavalgar até Poitiers com seu séquito. Vou me juntar a ele esta tarde.

—   Sim, sire — concordou o conde, e pediu seu cavalo.

Sabia que estava sendo mandado ao delfim com a mensagem porque ele desconfiaria de uma ordem daquelas, a não ser que fosse levada por um homem próximo do rei. E o conde decidiu que o rei estava certo. O herdeiro do trono deveria ser mantido em segurança.

—   E diga ao duque de Orléans para assumir a luta — ordenou o rei.

—   Ele deve avançar, sire?

—   Ele deve avançar, deve lutar e deve vencer! — ordenou o rei. Em seguida olhou para o filho mais novo, de apenas 14 anos. — Você não partirá com Carlos — disse.

—   Não quero partir, pai!

—   Você testemunhará a vitória, Filipe.

—   Nós vamos lutar, pai? — perguntou o garoto, ansioso.

—   O seu tio vai lutar em seguida. Vamos nos juntar a ele se for necessário.

—   Espero que ele precise de nós!

O rei João sorriu. Não queria privar o filho mais novo das empolgações do dia, mas queria desesperadamente que ele ficasse em segurança. Talvez, pensou, fosse avançar com seus três mil homens no fim da batalha para se juntar à destruição dos ingleses. Seus guerreiros estavam entre os melhores cavaleiros e homens de armas que a França possuía, motivo pelo qual serviam na força de batalha do rei.

—   Você verá um pouco da luta — prometeu ao filho —, mas deve jurar que não vai sair do meu lado!

—   Juro, pai.

O conde de Ventadour tinha levado seu cavalo pelo meio da massa de homens comandados pelo irmão do rei. Era o caminho mais curto para chegar ao delfim. O rei o viu transmitir a mensagem ao duque, depois continuar cavalgando para encontrar o delfim, agora na metade da encosta distante. Os ingleses não o haviam perseguido. Só aguardavam atrás da cerca viva, e o rei esperava que isso fosse um sinal de que estavam mesmo enfraquecidos.

—   Quando o duque atacar — gritou o rei para o marechal Clermont —, avançaremos com nossa força de batalha até a posição atual dele.

—   Sim, sire.

O primeiro golpe de marreta havia enfraquecido os ingleses. Outros dois ainda estavam por vir.

E em seguida apenas um.

Porque, sob o olhar incrédulo do rei, seu irmão decidiu deixar o campo com o delfim. O duque de Orléans não havia lutado, sua espada não estava manchada por sangue inimigo, no entanto ele pediu seus cavalos e levou suas tropas para o norte.

—   Que diabo…? — perguntou o rei no ar da manhã.

—   O que, em nome de Cristo, ele está fazendo? — perguntou o marechal Clermont.

—   Bom Jesus — disse um homem.

—   Ele está indo embora!

—   Seu idiota! — gritou o rei para o irmão, que estava longe demais para ouvir. — Seu idiota manco, seu covarde! Seu desgraçado cretino! Seu cagalhão covarde! — O rosto do rei estava vermelho, cuspe voava de sua boca. — Avancem os estandartes! — gritou. Em seguida apeou e entregou as rédeas a um cavalariço. Se o seu irmão não queria lutar, então a força de batalha do rei, a melhor do exército, decidiria o dia. — Trombetas! — gritou ele, ainda com raiva. — Deem-me a porcaria daquele machado! Toquem as trombetas! Toque de avançar! Avante!

As trombetas soaram, os tambores bateram e a auriflama foi carregada na direção do inimigo.

 

—      O que eles estão fazendo? — O príncipe de Gales havia montado em seu cavalo para ver melhor o inimigo, e o que viu era preocupante. A segunda linha de batalha francesa estava indo para o norte. — Planejam atacar nosso flanco direito?

—   E o nosso centro ao mesmo tempo, sire. — Sir Reginald Cobham, velho em batalhas, observava a última força francesa avançar. Era a força que levava a auriflama e o estandarte real. Sir Reginald se inclinou adiante e deu um tapa numa grande mosca que havia pousado no pescoço de seu cavalo. — Será que alguém de lá tem algum bom senso, afinal?

—   O conde de Salisbury tem arqueiros? — perguntou o príncipe.

—   Muitos, mas será que tem flechas suficientes?

O príncipe grunhiu. Um serviçal lhe trouxe uma jarra de vinho diluído em água, mas ele balançou a cabeça.

—   Garanta que todos os homens bebam antes de mim — ordenou em voz suficientemente alta para ser ouvida a trinta passos de distância.

—   Um carroceiro trouxe dez barris de água morro acima, sire — disse o conde de Warwick.

—   Trouxe? Bom homem! — O príncipe olhou para um serviçal. — Encontre-o! Dê-lhe um marco! — O marco de prata era uma moeda valiosa. — Não, dois! Eles não estão muito ansiosos para lutar, não é? — O príncipe estava olhando para as tropas do duque de Orléans, as quais ele presumira que iriam atacar os homens do conde de Salisbury na direita dos ingleses, mas, para sua perplexidade, essas tropas inimigas continuaram indo mais para o norte ainda. Alguns haviam montado nos cavalos, alguns andavam e outros se demoravam no fundo do vale, como se não tivessem certeza do que fazer. — Jean! — gritou o príncipe. — Lorde Jean!

Jean de Grailly, captal de Buch, que havia permanecido próximo ao príncipe durante boa parte da batalha, levou seu cavalo mais para perto.

—   Sire?

—   O que aqueles diabos estão fazendo?

—   Um ataque montado? — sugeriu o captal, mas pareceu muito inseguro. Se os franceses planejavam um ataque de cavaleiros montados, estavam levando os cavalos para muito longe da linha inglesa. Alguns já haviam desaparecido no horizonte distante.

—   Ou talvez queiram ser os primeiros a chegar aos bordéis de Poitiers — sugeriu.

—   Que sujeitos sensatos! — disse o príncipe. Em seguida franziu a testa, olhando as tropas que se afastavam. Cerca de metade da força de batalha do duque de Orléans estava indo para o norte, a outra metade tinha ficado onde estava, juntando-se aos homens do delfim que já haviam lutado. Então alguns desses começaram a seguir o estandarte do duque de Orléans para o norte. Esse estandarte, em vez de ser carregado para a direita da linha inglesa, ia direto para o noroeste. — Por Deus — comentou Eduardo, atônito —, acho que você está certo. Eles estão disputando corrida para pegar as melhores putas! Depressa, rapazes! — gritou o encorajamento para o inimigo que desaparecia, depois deu um tapinha no cavalo. — Você não, meu velho. Você precisa ficar aqui. — Em seguida olhou de novo para as tropas do rei francês que agora avançavam em sua direção. — Ele deve estar muito confiante para mandar tropas embora, não é?

—   Ou é muito idiota — comentou o conde de Warwick.

Havia uma dúzia de cavaleiros ao redor do príncipe. Eram os homens sábios, experientes, tinham olhos enrugados de tanto espiar inimigos distantes, a pele escurecida pelo sol, a armadura arranhada e amassada e os cabos das armas lustrados de tanto uso. Tinham lutado na Normandia, na Bretanha, na Gasconha, na França e na Escócia, confiavam uns nos outros, e, o mais importante, o príncipe confiava neles.

—   E pensar — disse Eduardo — que nesta manhã eu imaginava que seria feito refém.

—   Tenho certeza de que João de Valois aceitaria a oferta agora, sire — disse o conde de Earwick, recusando-se a chamar João de rei da França, um título reivindicado por Eduardo da Inglaterra.

—   Não acredito no que acho que estou vendo — disse o príncipe. Ele estava franzindo a testa na direção das tropas francesas que se afastavam e realmente pareciam estar deixando o campo de batalha. E não eram somente os cansados homens do delfim, mas também as tropas novas do duque de Orléans. Alguns haviam permanecido no campo, e esses homens se juntavam à força de batalha do rei. — Acho que pensam que aqueles sujeitos são suficientes. — Ele apontou para os homens de armas que se aproximavam. O grande estandarte do rei, espalhafatoso em azul e dourado, chegara ao fundo do vale, e agora a enorme quantidade de homens com armaduras começou a subir. — Meu senhor. — O príncipe virou-se para o captal. — O senhor tem cavaleiros?

—   Tenho sessenta homens montados, sire. O restante está na linha de batalha.

—   Sessenta — observou o príncipe, pensativo. Em seguida olhou de volta para os franceses que se aproximavam. Sessenta eram pouco. Seu exército castigado devia ter mais ou menos o mesmo número das tropas do rei da França que se aproximavam, mas o inimigo estava descansado. Os homens do príncipe estavam exaustos, e ele não queria enfraquecer sua linha exaurida tirando homens de armas das fileiras. Mas então lhe ocorreu um pensamento feliz. — Leve uma centena de arqueiros. Todos montados.

—   Sire? — perguntou o conde de Warwick, tentando imaginar o que o rei pensava.

—   Eles planejam nos atacar com força, então vamos ver se gostam de ser atacados também. — O príncipe se voltou para o captal. — Primeiro deixe que nos ataquem, depois golpeie pela retaguarda.

O captal estava sorrindo. Não era um sorriso agradável.

—   Preciso de uma bandeira inglesa, sire.

—   Para que eles saibam quem os está matando?

—   Para que seus arqueiros não usem nossos cavalos como treino de tiro ao alvo, sire.

—   Meu Deus — disse Warwick. — O senhor vai atacar um exército com 160 homens!

—   Não, vamos trucidar um exército — respondeu o príncipe. — Com a ajuda de Deus, de são Jorge e da Gasconha! — O príncipe se inclinou na sela e bateu na mão do captal. — Vá com Deus, senhor, e lute como o diabo.

—   Nem o diabo luta como um gascão, sire.

O príncipe gargalhou.

Sentia cheiro de vitória.

 

Roland de Verrec havia passado toda a batalha montado. Iria se sentir desconfortável lutando a pé, não porque não tivesse habilidade para esse tipo de combate, mas porque não tinha amigos próximos na linha de batalha. Os homens lutavam em pares ou grupos, unidos por parentesco ou amizade, e juravam defender uns aos outros. Roland de Verrec não tinha parente nesse exército e suas amizades eram tênues, e, além disso, queria encontrar seu inimigo. Quando os franceses tinham irrompido pela primeira vez através das aberturas na cerca viva para empurrar a linha inglesa para trás, Roland havia procurado entre os estandartes o cavalo verde de Labrouillade e não o vira. Por isso havia mantido seu cavalo de campanha perto do príncipe de Gales, mas não tão perto a ponto de ser notado. Olhara através da maior abertura da cerca tentando encontrar o cavalo verde entre as duas forças de batalha que esperavam para atacar, e ainda não conseguira vê-lo. Isso não era surpreendente. As forças que esperavam estavam cheias de bandeiras, estandartes e flâmulas, e havia pouco vento para abri-las, tão pouco que o homem que segurava a auriflama a balançava de um lado para o outro para que ela fosse notada. Essa flâmula era uma ondulação de vermelho vivo que se aproximava cada vez mais do morro inglês.

Robbie havia se juntado a ele. O escocês, como Roland, não tinha amigos no exército. Era verdade que ele considerava Thomas amigo, mas essa amizade era marcada por generosidade de um lado e ingratidão do outro, e Robbie sentia-se envergonhado. Com o tempo a amizade poderia ser restaurada, mas por enquanto Robbie não achava que Thomas confiaria nele como companheiro de batalha. Portanto, como Roland, tinha visto a luta de trás da linha. Vira os ingleses receberem o ataque francês, interrompê-lo e repeli-lo. Ouvira o sofrimento da batalha, os gritos de homens sendo mutilados pelo aço; tinha visto os franceses tentarem romper a linha repetidamente e vira-os perder o ânimo. Eles haviam recuado. Deixaram cadáveres para trás, mais cadáveres do que os ingleses, muito mais, mas afinal de contas era sempre mais fácil defender. Os ingleses precisavam manter a linha. Os homens que relutavam em participar da luta tinham poucas opções além de permanecer com os companheiros; não precisavam avançar e iniciar a batalha. Porém os franceses tinham de avançar. Os mais tímidos ficavam para trás, deixando os corajosos lutar, o que significava que os corajosos costumavam ficar isolados, lutando contra meia dúzia de defensores, e os franceses eram os que mais haviam sofrido com sua coragem. Agora tudo recomeçaria.

—   O que vai acontecer? — perguntou Roland subitamente. Robbie olhou os franceses se aproximando.

—   Eles vêm, eles lutam, quem sabe?

—   Eu não quis dizer isso. — Roland também observava os franceses se aproximando. — Eles guardaram os melhores para o final.

—   Os melhores?

Agora Roland podia ver algumas bandeiras porque os porta-estandartes as balançavam de um lado para o outro.

—   Ventadour — disse. — Damartin, Brienne, Eu, Bourbon, Pommiers. E o estandarte real também.

—   E o que você quis dizer?

—   Eu quis dizer: o que acontece depois da batalha?

—   Você se casa com Bertille.

—   Com a ajuda de Deus, sim — disse Roland, tocando a echarpe de seda azul no pescoço. — E você?

Robbie deu de ombros.

—   Fico com Thomas, acho.

—   Não vai para casa?

—   Duvido que haja uma recepção para mim em Liddesdale. Terei de criar um novo lar.

Roland concordou. Ainda observava a força que se aproximava.

—   Terei de fazer as pazes com a França — disse pensativo.

Robbie deu um tapinha no pescoço de sua montaria, um cavalo de campanha malhado que fora presente de Thomas.

—   Achei que suas terras ficavam na Gasconha.

—   E ficam.

—   Então preste vassalagem ao príncipe de Gales. Ele devolverá suas terras.

Roland balançou a cabeça.

—   Sou francês e vou pedir o perdão da França. — Ele suspirou. — Acho que isso custará dinheiro, mas qualquer coisa é possível com dinheiro.

—   Só se certifique de matá-lo depressa — disse Robbie. — Eu vou ajudá-lo.

Roland não respondeu imediatamente. Tinha visto um lampejo esverdeado nas fileiras inimigas e estava observando o lugar. Seria uma insígnia com um cavalo verde?

—   Depressa? — perguntou depois de um tempo, ainda olhando. — Você acha que eu atormentaria Labrouillade até a morte? — Ele pareceu ofendido. — Ele pode merecer o tormento, mas sua morte será rápida.

—   Quero dizer para matá-lo antes que ele tenha chance de se render.

Finalmente Roland deu as costas aos franceses que se aproximavam. Sua viseira estava levantada, e ele franziu a testa.

—   Render-se?

—   Labrouillade vale uma fortuna. Se a batalha for ruim para ele, vai se render. Preferirá pagar resgate a ser enterrado. Você não preferiria?

—   Meu Deus.

Roland não havia pensado nessa possibilidade, mas era tão óbvia! Sonhara libertar Bertille com a espada, mas Robbie estava certo. Labrouillade jamais lutaria. Ele se entregaria.

—   Então o mate bem depressa — disse Robbie. — Não lhe dê a chance de dizer nada. Chegue depressa, ignore seus pedidos de misericórdia e mate-o. — Ele fez uma pausa, observando Roland, que encarava novamente as forças do rei. — Se é que ele está aí.

—   Está — disse Roland em tom azedo. Tinha visto o cavalo verde agora. Estava à esquerda da linha francesa, no fundo das forças do rei. De algum modo precisaria abrir caminho através daquela linha se quisesse libertar Bertille, e sabia que isso era impossível. Precisaria matar homens demais, e mesmo que tivesse sucesso daria muito tempo a Labrouillade para ver a morte se aproximando. Robbie estava certo, ele precisava matar depressa e não sabia como isso poderia ser feito.

E nesse momento houve um estrondo de cascos. Roland virou-se, viu cavaleiros se reunindo atrás das árvores e supôs que se preparavam para fazer um ataque.

—   Preciso de uma lança — disse.

—   Precisamos de duas lanças! — respondeu Robbie.

Eles viraram os cavalos e foram procurar lanças.

 

O conde de Labrouillade tropeçou em alguma coisa. Ainda estava com a viseira levantada, mas era difícil olhar para baixo porque a borda inferior do elmo, que cobria seu maxilar, raspava no gorro de malha e no topo do grosso peitoral, mas captou o vislumbre de uma maça abandonada, suja de sangue e cabelo humano. Suas tripas se reviraram. Havia mais sangue no chão, evidentemente deixado por um ferido mancando ou se arrastando de volta do primeiro ataque contra a linha inglesa. Diminuiu o passo, certificando-se de estar bem no final das forças do rei. Os tambores vinham logo atrás, os tocadores produzindo um barulho gigantesco, de estourar os ouvidos, com as baquetas golpeando as peles de cabra esticadas. Armaduras tilintavam. O conde estava encharcado de suor, que escorria pelo rosto e ardia nos olhos. Estava cansado da longa caminhada desde o topo chapado do morro, e era pior agora, porque ele subia suavemente, cada passo um esforço. Os músculo das pernas eram apenas dor, seu estômago se revirava e as tripas tinham virado água. Tropeçou em parreiras pisoteadas, mas conseguiu ficar de pé. Trombetas soaram.

—   Não estão atirando flechas! — gritou alguém.

—   Os desgraçados ficaram sem flechas!

—   Podem manter as viseiras levantadas! — gritou outro homem.

Nesse momento uma flecha relampejou vinda da esquerda, penetrando nas fileiras, resvalando num braçal e cravando a ponta lisa na terra. Mais flechas vieram, e por todas as fileiras francesas os homens fechavam rapidamente as viseiras. Um tocador de tambor foi atingido e caiu para trás, com o enorme instrumento em cima da barriga, que sangrava enquanto ele expelia uma mistura de vômito e sangue.

—   Ah, meu Deus — gemeu o conde de Labrouillade.

O vinho chacoalhava em sua barriga. Ele estava enjoado. Muitos homens haviam bebido para ganhar coragem e agora o vinho estava azedo, e ele tropeçava à medida que prosseguia. Não conseguia ver quase nada através das fendas estreitas da viseira. Só queria manter as tripas quietas e que aquele inferno acabasse. Rezava a Deus para que os idiotas entusiasmados na frente do ataque rompessem a linha inglesa e matassem os idiotas inimigos. Com alguma sorte ele tomaria algum prisioneiro que valesse um grande resgate, mas na verdade não se importava de fato. Só queria que aquilo acabasse.

As flechas foram diminuindo. Os arqueiros à direita da linha inglesa tinham apenas um punhado ainda, e a maioria descartou os arcos e pegou achas ou maças, observando o inimigo perto da cerca viva.

O rei da França estava andando para a maior abertura da cerca, onde podia ver o grande estandarte proclamando a presença do príncipe de Gales. Seu filho Filipe estava ao lado e os guarda-costas os cercavam. Dezessete outros homens vestiam as cores do rei, com o objetivo de enganar os ingleses. Todos eram cavaleiros renomados, membros da ordem do rei, a Ordem da Estrela, e a esperança era que os ingleses morressem atacando-os, e com isso se enfraquecessem.

—   Fique perto de mim, Filipe — disse o rei ao filho.

—   Sim, pai.

—   Esta noite vamos festejar em Poitiers. Vamos ter música!

—   E prisioneiros?

—   Dezenas de prisioneiros — disse o rei João. — Centenas de prisioneiros! E vamos fazer uma camisola para você com a túnica do príncipe de Gales.

Filipe gargalhou. Carregava espada e escudo, mas ninguém esperava que fosse lutar, e quatro cavaleiros da Estrela tinham sido destacados para protegê-lo.

Agora as primeiras filas dos franceses convergiam para a abertura na cerca viva.

—   Montjoie Saint Denis! — gritavam. — Montjoie Saint Denis! — A linha de ataque era irregular. Os empolgados tinham partido à frente, os relutantes haviam diminuído o passo de propósito, e a linha francesa estava torta. Os ingleses permaneciam em silêncio. O rei teve um vislumbre deles através das fileiras dianteiras e viu uma linha cinza de aço amassado entre bandeiras rasgadas.

—   São Dênis — gritou ele. — Montjoie Saint Denis!

O cardeal Bessières estava cem passos atrás do ataque francês. Continuava montado e escoltado pelo padre Marchant e por três homens de armas. Estava lívido. O exército francês era supostamente comandado por homens que conheciam seu trabalho, homens experientes na guerra, no entanto os primeiros ataques feitos por cavaleiros tinham fracassado completamente, o segundo ataque fora repelido, e agora pelo menos metade do exército havia deixado o campo, alguns homens sem ao menos tentar lutar. O que deveria ter sido uma vitória fácil estava custando caro, mas apesar de toda a raiva continuava confiante. As tropas do rei eram as mais fortes das três, e cheias de homens com grande reputação. Estavam descansadas, o inimigo estava exausto, e com a ajuda de Deus o rei venceria. A auriflama continuava tremulando. O cardeal pensou em fazer uma oração, mas nunca depositara sua confiança na ajuda de Deus, preferindo contar com a inteligência e a esperteza.

—   Quando esse desastre acabar — disse ao padre Marchant —, certifique-se de recuperar la Malice daquele animal escocês.

—   Claro, Eminência.

E, para surpresa do cardeal, a lembrança da espada de são Pedro lhe deu um súbito jorro de esperança. Ele, mais do que qualquer pessoa, conhecia a natureza espalhafatosa e de pouco valor da maioria das relíquias, e aquilo costumava servir para iludir os crédulos. Qualquer pedaço de osso velho, fosse de cabra, bezerro ou de um ladrão executado, poderia ser vendido como a falange do dedo de um mártir, mas, apesar de seu ceticismo, sentiu a certeza de que la Malice era de fato a espada do pescador. Ela não falharia. Os próprios anjos lutariam pela França, e a vitória impeliria Louis Bessières para o Trono de São Pedro.

—   Agora vão! — gritou o cardeal para os homens à frente, ainda que eles estivessem longe demais para ouvir.

E os franceses atacaram.

—   Montjoie Saint Denis!

 

Thomas cavalgava para o norte ao longo da linha inglesa. Podia escutar os franceses se aproximando, os grandes tambores socando o ar, e sentia-se curioso para descobrir o que estava acontecendo. Até agora sua batalha fora o rechaço curto e violento dos cavaleiros junto ao vau, e depois a luta igualmente curta e selvagem no lado de dentro da cerca viva. O que acontecera no resto do campo era um mistério, por isso cavalgou para descobrir, e viu, através da abertura maior na cerca, outro ataque francês avançando. O estranho era que não havia mais franceses no horizonte distante, a não ser uns poucos cavaleiros que, como ele, pareciam estar apenas assistindo à batalha.

Já ia se virar para contar aos seus homens o que descobrira e alertá-los para estarem preparados para outra luta junto à cerca quando uma voz gritou:

—   Você é arqueiro?

Thomas presumiu que a pergunta era dirigida a outra pessoa e a ignorou, depois percebeu que era estranho a pergunta ser feita em francês. Virou-se e viu um homem com insígnia preta na qual um escudo amarelo era decorado com conchas de vieira prateadas. O sujeito olhava diretamente para ele.

—   Sou arqueiro — gritou Thomas de volta.

—   Preciso de arqueiros montados! — O homem era jovem, mas tinha um inconfundível ar de confiança e autoridade. — Tragam armas de mão!

—   Posso lhe dar pelo menos sessenta arqueiros — retrucou Thomas.

—   Seja rápido!

Os franceses vieram pela abertura, soltando seu grito de guerra, e, como antes, chocaram-se contra a linha inglesa. E, como antes, aço chocou-se contra aço.

—   Firmes! — berrou um homem em inglês. — Sustentem a linha!

Trombetas rasgaram o céu com um ruído, os tocadores de tambor bateram em suas peles, os gritos de guerra foram dados, e Thomas cavalgou, só parando ao chegar à extremidade sul da linha, que ainda não havia participado da batalha.

—   Karyl! Vai ser a mesma coisa de antes! Segure-os! Sam! Quero todos os arqueiros a cavalo. Tragam machados, espadas, maças, qualquer coisa que mate, e depressa!

Thomas se perguntou quem era o homem de túnica preta e no que, em nome de Deus, ele havia acabado de se meter. Seus homens estavam correndo para a linha das árvores onde Keane tinha amarrado os cavalos.

—   Keane — gritou Thomas —, me dê uma acha!

O irlandês a trouxe, depois montou em seu cavalo.

—   Estou indo. Aonde vamos?

—   Não faço ideia.

—   Uma cavalgada misteriosa, é? Nós costumávamos fazer isso em casa. Sair a cavalo para ver onde iríamos parar. Em geral numa cervejaria.

—   Duvido que nosso destino seja esse — disse Thomas, depois levantou a voz. — Venham comigo! — E instigou o cavalo de volta para o norte. À sua esquerda a batalha continuava ruidosa. A linha inglesa tinha quatro homens de profundidade e estava se sustentando. Os homens das fileiras de trás firmavam a da frente, ou então estocavam com lanças encurtadas, passando-as entre os corpos dos colegas, enquanto atrás dois cavaleiros cutucavam com lanças qualquer inimigo que tivesse a viseira levantada. Havia uma massa de franceses na abertura da cerca viva, onde estandartes balançavam, mas a maioria continuava atrás da cerca, esperando que os da frente abrissem um espaço que eles pudessem preencher.

—   Sigam-me! — gritou o homem da túnica preta. Ele tinha uns sessenta homens usando suas insígnias pretas e amarelas, e Thomas e seus arqueiros os seguiram, embrenhando-se entre as árvores. Mais arqueiros se juntaram, todos atrás do homem de preto até o norte. Thomas viu Robbie e Roland cavalgando juntos e instigou o cavalo para alcançá-los.

—   O que vamos fazer?

—   Atacar por trás — disse Robbie. E riu.

—   Quem está comandando?

—   O captal de Buch — respondeu Roland.

—   Captal?

—   É um título gascão. Ele tem bastante reputação.

Meu Deus, pensou Thomas, esse sujeito precisa ser bom. Pelo que podia ver, o captal tinha menos de duzentos homens e planejava atacar o exército francês. E a maioria deles era de arqueiros montados, e não homens de armas treinados. No entanto, se o captal sentia qualquer nervosismo, não demonstrava. Levou os homens morro abaixo, permanecendo na floresta e indo bem para trás das forças do conde de Salisbury, que defendiam a extrema direita da linha inglesa. Ali a luta era feroz. O conde se posicionava além da cerca, e a encosta que levava até a linha inglesa era suave, por isso os franceses atacaram ao redor da extremidade norte da cerca viva, sendo recebidos por homens de armas e arqueiros. Trincheiras atrapalharam alguns franceses. Arqueiros lutavam com armas de mão, usando a força dada pelos arcos para espancar homens com armaduras. Thomas teve um vislumbre dessa luta, depois foi para as árvores de novo. Bolotas de carvalho eram esmagadas sob os cascos de seu cavalo. Homens se abaixavam sob os galhos de carvalhos e castanheiras. Um punhado dos homens de armas carregava lanças compridas que tinham de ser guiadas com cuidado por entre as árvores grossas, mas não iam rápido. A força dos cavalos precisava ser conservada, por isso o captal os comandava a trote, certo de que estava escondido do inimigo. O som da batalha foi diminuindo à medida que cavalgavam mais ao norte.

Entraram num vale, atravessaram um fio d’água e subiram a outra encosta, que era um campo cheio de mato baixo. Árvores cobriam o horizonte a norte e a oeste. Pouco antes de alcançá-las, o captal virou seu cavalo para a esquerda e entrou num bosque de carvalhos que coroava um morro. Quando Thomas entrou no meio das árvores, pôde ver que os morros baixos ao norte estavam cobertos de homens em retirada. Por quê? Será que os franceses haviam sofrido uma derrota que escapara à sua percepção? No entanto ali estavam, centenas e centenas de homens indo para o norte enquanto a batalha continuava sendo travada no morro inglês.

Um pequeno lagarto atravessou correndo o caminho de Thomas. Seria um presságio bom ou ruim? Desejou ainda ter a pata de cachorro seca que costumava usar pendurada no pescoço como talismã, uma pata que, segundo alardeava, era relíquia de são Guinefot, um cão que fora considerado santo. Como um cão podia ser santo? Fez o sinal da cruz, lembrando-se de que não havia se confessado antes da batalha e não recebera a absolvição. Se fosse morto, pensou, iria para o inferno. Fez menção de tocar a pata de novo e conteve o cavalo. Agora todos os cavalos estavam parados, escarvando o chão e balançando a cabeça.

—   Porta-estandarte! — gritou o captal.

—   Sire?

—   A bandeira inglesa.

O porta-estandarte desenrolou a bandeira branca com a ousada cruz de são Jorge.

—   Armas, senhores — disse o captal em seu forte sotaque inglês. Ele riu, e seus dentes pareceram muito brancos contra a pele escurecida pelo sol e ensombreada pelo elmo. — Agora vamos destruí-los!

Com essas palavras, esporeou o cavalo para fora das árvores. Os homens de armas e arqueiros foram atrás, e quando Thomas cavalgou para a luz do sol enxergou o exército francês apinhado junto à cerca viva, e viu que o captal os havia conduzido por um círculo amplo, de modo que agora estavam indo na direção dos franceses pela retaguarda. Os soldados com lanças mantinham as armas erguidas. Todas as lanças compridas tinham uma flâmula preta e amarela, as cores do captal. Havia uma pequena cerca viva na frente dele, mas era cheia de aberturas, e os cavaleiros passaram, colocando-se em forma de novo do outro lado enquanto o captal esporeava até chegar a um meio galope. O mundo de Thomas era o som dos cascos, diabólico em contraponto com os tambores franceses, que pareciam não perceber os cavaleiros aproximando-se por trás.

Agora estavam cavalgando em terreno coberto de capim. Thomas instigou o cavalo até um meio galope. Não era longe. Os franceses estavam a apenas dois tiros de arco, e os 160 cavaleiros começaram a se espalhar. Desceram ao pequeno vale, depois subiram a encosta até onde os cavalos haviam pisoteado os vinhedos quebrados. A bandeira de são Jorge estava no alto, as lanças foram abaixadas para o ataque, as esporas retornaram e um homem berrou:

—   São Jorge!

—   Santa Quitéria! — gritou um gascão.

—   E matem todos! — berrou o captal.

Os cavaleiros deixaram seus pesados cavalos e corcéis correrem, e as fileiras da retaguarda francesa, onde os mais tímidos se abrigavam, viraram-se e se depararam com os grandes animais e os homens com armaduras recaindo sobre eles, e se romperam antes mesmo que a carga chegasse. Bandeiras caíram, homens começaram a correr, desajeitados dentro das armaduras. Os cavalos se infiltraram entre eles, as lanças deslizaram, penetrando em corpos cobertos de aço, e machados giraram, rachando placas costais e despedaçando ossos, enchendo o ar do outono com uma névoa de sangue. Thomas pegou-se gritando feito um demônio, em uma empolgação completa.

—   São Jorge!

E mandou a ponta da acha contra o elmo de um francês, deixando o ímpeto de seu cavalo arrancar a arma de volta. Um tocador deixou seu tambor enorme cair e correu, mas um cavaleiro se virou e casualmente rachou o crânio do sujeito com uma espada antes de se virar para atacar um cavaleiro francês. Girou a arma de novo e despedaçou a espada do francês. Um cavalo empinou e derrubou um homem com os cascos. Sam estava matando besteiros com um machado.

—   Odeio esses malditos besteiros! — gritou e baixou o machado na cabeça de um homem. — É igual a quebrar um ovo! — gritou para Thomas. — Quem é o próximo?

—   Fiquem juntos — gritou o captal.

Eram apenas 160, e a força de batalha do rei da França tinha três mil homens, mas os 160 haviam despedaçado as fileiras de trás dos franceses, que agora corriam desesperados de volta para o oeste. As filas da frente, lutando do outro lado da cerca viva, ouviram o pânico, e toda a força de batalha moveu-se para trás enquanto a linha inglesa rugia em triunfo e avançava. Mais cavaleiros apareceram, dessa vez da extremidade sul da linha, uma carga mais desencontrada de homens que vinham completar o pânico. E os franceses haviam mesmo entrado em pânico. Estavam fugindo, todos eles, e o captal gritou para seus homens recuarem.

Cento e sessenta homens haviam rompido um exército, mas ainda estavam em número imensamente inferior. Os franceses começaram a perceber isso e a formar linhas para resistir aos cavaleiros. Três deles pegaram Pitt, o arqueiro taciturno, e Thomas olhou, horrorizado, quando eles cortaram seu cavalo com machados, arrancaram Pitt da sela e o espancaram até a morte com maças. Thomas cavalgou até eles, alcançando-os tarde demais, mas girando a acha feito louco e acertando a lâmina no pescoço de um homem.

—   Desgraçados! — gritou ele.

Depois girou o cavalo rapidamente para longe de seus golpes de machado. Seguiu o captal para o norte, saindo do alcance das armas francesas. Os homens do príncipe tinham atravessado a cerca viva e estavam caindo sobre os franceses, que de novo entraram em pânico. Fugiram, perseguidos pelos homens de armas a pé que vinham em número cada vez maior através da cerca e pelos cavaleiros que tinham chegado do sul.

Era como juntar um rebanho de ovelhas. Os cavaleiros ameaçavam e os franceses não faziam qualquer esforço para se reorganizar, mas continuavam indo para o oeste. A auriflama havia sumido, porém Thomas podia ver o azul e dourado do estandarte real francês ainda tremulando no centro daquela massa desorganizada.

Um número cada vez maior de homens de armas gascões e ingleses havia apanhado seus cavalos e vinha participar da perseguição. Desceram até o vale raso, depois subiram no topo plano do Champ d’Alexandre, de onde os franceses haviam investido contra os ingleses naquela manhã, e agora eram os cavaleiros que atacavam. Grupos de homens iam para o meio dos franceses desorganizados, armas girando, cavalos mordendo homens, e o pânico francês virou desespero enquanto suas fileiras se partiam. Pequenos grupos ficaram unidos e tentaram se defender. Os nobres gritavam que eram ricos, que se rendiam. Arqueiros ingleses, tendo largado os arcos, usavam uma força enorme para brandir machados, maças e marretas. Homens berravam com sede de sangue e terror. Agora toda a ordem havia desaparecido entre os franceses, que estavam sendo fragmentados em grupos cada vez menores, atacados por homens enlouquecidos pela batalha, com rostos suados e dentes trincados, querendo apenas matar e matar. E faziam isso. Um francês se defendeu de dois arqueiros usando a espada para repelir seus machados, depois deu um passo atrás, tropeçou num homem caído e tombou, e os arqueiros pularam adiante, girando os machados. O francês gritou quando uma lâmina acertou seu ombro; tentou se levantar, caiu para trás de novo e girou a espada num gesto amplo que aparou um machado. Thomas podia ver o homem trincando os dentes, o rosto inteiro distorcido pelos esforços desesperados. Ele aparou outro machado, depois gritou quando o segundo arqueiro cortou a carne de sua coxa. Tentou dar uma estocada nesse homem, cuspindo dentes que haviam se quebrado porque havia mordido com muita força, mas o golpe desesperado foi aparado. Então um machado se chocou contra seu rosto e uma ponta de acha se cravou em sua barriga, fazendo o corpo inteiro se sacudir em grandes espasmos enquanto ele morria. Por um momento a face aberta de seu elmo se encheu de sangue, depois o sangue escorreu para longe quando os dois arqueiros se ajoelharam para revistar o corpo.

Keane havia apeado e estava de pé junto a um cadáver cuja barriga fora aberta por sua acha. As tripas do sujeito tinham sido pisoteadas no mato baixo, e ao lado do cadáver, usando o mesmo brasão de círculos amarelos sobre campo azul, havia um homem mais velho com rosto pálido, enrugado, cabelo grisalho e barba bem-aparada. Usava armadura de placas com um crucifixo de ouro blasonado na placa peitoral. Parecia aterrorizado. Claramente havia se rendido a Keane, porque o irlandês estava segurando o elmo do homem com uma cruz no topo e uma longa pluma azul atrás.

—   Ele diz que é o arcebispo de Sens! — disse Keane a Thomas.

—   Então você está rico. Segure-o! Garanta que ninguém o roube de você.

—   Esse sujeito tentou protegê-lo. — Keane olhou para o homem estripado. — Não foi uma decisão inteligente, não mesmo.

Havia uma confusão louca no centro do campo, e, olhando naquela direção, Thomas viu que o estandarte real francês continuava tremulando. Homens golpeavam os defensores do estandarte, loucos em sua selvageria enquanto tentavam abrir caminho até o rei João. Thomas ignorou aquilo, cavalgando para o sul e vendo homens fugindo morro abaixo na direção do Miosson, mas os arqueiros do conde de Warwick os estavam esperando lá, e os franceses corriam em direção à morte.

Um homem saudou Thomas, ele se virou e viu Jake, um dos seus arqueiros, guiando um prisioneiro num cavalo. O homem usava uma túnica mostrando um punho vermelho fechado contra listras alaranjadas e brancas, e Thomas não pôde deixar de gargalhar. Era Joscelyn de Berat, o sujeito que havia jurado retomar Castillon d’Arbizon.

—   Ele disse que só vai se render a você — disse Jake —, porque eu não sou nobre.

—   Nem eu — respondeu Thomas, e depois falou em francês para Joscelyn: — Você é meu prisioneiro.

—   É o destino — respondeu Joscelyn, resignado.

—   Keane! — gritou Thomas. — Mais um para vigiar! Cuide dos dois, eles são ricos! — Thomas olhou de volta para Jake. — Guarde-os bem! — Os homens discutiam a posse de prisioneiros, mas Thomas achou que havia hellequins suficientes para impedir que o arcebispo e o conde de Berat fossem roubados por outros.

Thomas esporeou, indo para o norte. Mais franceses fugiam nessa direção, desesperados para chegar à segurança de Poitiers. Uns poucos, muito poucos, tinham conseguido encontrar seus cavalos ou então haviam tomado um cavalo de algum inglês. A maior parte corria, ou melhor, tropeçava, incitada o tempo todo por perseguidores vingativos, mas um homem cavalgou direto para Thomas, que reconheceu o cavalo malhado e depois o coração vermelho de Douglas. A túnica estava tão encharcada de sangue que, por um momento, Thomas achou que estava tingida de preto.

—   Robbie! — gritou ele, feliz em ver o amigo, depois notou que o cavaleiro não era Robbie, e sim Sculley.

—   Ele está morto! — gritou Sculley. — O traidor está morto! E agora é a sua vez. — Ele estava carregando la Malice, a lâmina parecendo pateticamente enferrujada e fraca, mas também descolorida pelo sangue. — Parece uma merda — disse o escocês —, mas é uma arma interessante. — Ele havia perdido o elmo, e seu cabelo comprido e liso chacoalhava com os ossos. — Arranquei a cabeça do fracote do Robbie. Bastou um corte da espada mágica e Robbie foi para o inferno. Está vendo? — Ele riu e apontou para a sela, onde Thomas viu a cabeça sangrenta do amigo pendurada pelos cabelos. — Gosto de uma lembrancinha de uma luta, e a visão disso vai deixar o tio dele feliz. — Sculley gargalhou diante da expressão de Thomas. Ninguém estava atacando o escocês porque qualquer inglês ou gascão presumia que um cavaleiro que não estivesse fugindo para o norte devia estar do seu lado, mesmo que, como era o caso de Sculley, não usasse uma cruz vermelha de são Jorge. Sculley conteve seu cavalo roubado. — Você não prefere simplesmente se render a mim? — perguntou, e de repente bateu as esporas de modo que o animal adestrado partiu diretamente na direção de Thomas, que, tomado de surpresa, só pôde dar uma estocada com a acha na direção do escocês. Ele evitou facilmente o golpe desajeitado e girou a lâmina antiga com força contra o pescoço do adversário, tentando decapitá-lo como havia feito com Robbie.

Thomas puxou a acha de volta e para cima, e de algum modo conseguiu aparar o golpe. As duas armas se encontraram com violência, e ele achou que a espada velha iria se partir. No entanto, la Malice ainda estava inteira, e Sculley girou-a para trás com velocidade maligna. Thomas se abaixou. A lâmina de la Malice acertou seu bacinete e raspou pelo cocuruto. Thomas puxou instintivamente o cavalo para a esquerda e viu a espada voltando, rápida como uma serpente, cônscio da ponta larga relampejando perigosamente perto. Tentou mandar a ponta da acha contra o escocês, mas Sculley simplesmente aparou a lâmina pesada e golpeou de novo, dessa vez mandando la Malice de cima para baixo, com força. A lâmina se chocou tão violentamente contra seu elmo que Thomas ficou meio atordoado, os ouvidos zumbindo, mas o aço de seu bacinete resistiu, ainda que ele tenha ficado frouxo na sela, grunhindo, tentando manter a concentração e abrir espaço para girar sua acha.

—   Pelas entranhas de Cristo, você é mole — provocou Sculley. E riu, cutucou Thomas com a espada e gargalhou quando ele oscilou na sela. — Está na hora de dizer olá ao diabo, inglês — disse Sculley, e puxou la Malice para o golpe mortal.

Thomas largou a acha, soltou o pé esquerdo do estribo e pulou na direção do escocês. Jogou os braços em volta do peito de Sculley e se agarrou, apertando-o, arrancando-o da sela, de modo que os dois caíram no chão, com Thomas por cima. Ele usou sua força de arqueiro para dar um soco no rosto de Sculley, a luva de ferro despedaçando o malar e o nariz. Acertou-o de novo; o escocês tentou mordê-lo, e Thomas golpeou com a luva novamente, mas dessa vez com dedos rígidos que se cravaram na órbita do olho esquerdo de seu oponente. Sculley soltou um grito gorgolejado enquanto o olho estourava, então Thomas deu-lhe uma cabeçada com o elmo e rolou de cima dele. Em seguida agarrou o braço direito de Sculley e arrancou a espada.

—   Desgraçado — disse ele.

Segurou a espada com as duas mãos, a esquerda no punho, a direita na parte de trás da lâmina, em seguida apertou o gume da frente contra a garganta de Sculley e o pressionou com tanta força que cortou traqueia, vasos sanguíneos, tendão e músculo. O escocês continuou gorgolejando; um jato de sangue bateu no rosto de Thomas, que continuou fazendo força enquanto o sangue pulsava quente. As pulsações diminuíram se afrouxando aos poucos, mas Thomas continuou pressionando a espada, até que a lâmina velha encontrou osso.

E Sculley estava morto.

—   Jesus — disse Thomas. — Meu bom Jesus. — Estava de joelhos, tremendo. Olhou para a espada. Era um milagre? Viu que alguém havia feito um novo cabo de madeira para a lâmina antiga, e esse cabo estava escorregadio com sangue.

Levantou-se. O cavalo de Robbie estava ao seu lado, e, num espasmo de raiva, Thomas cortou os cabelos que prendiam a cabeça do amigo. Ela bateu com força no chão. Ele precisaria encontrar o resto do velho amigo e cavar uma sepultura, mas antes que conseguisse pensar em como faria isso viu Roland de Verrec parado impotente diante de um homem gordo em uma armadura. O gordo tinha uma túnica verde e branca, e, enquanto Thomas olhava, ele desembainhou a espada e estendeu-a para Roland. Era o conde de Labrouillade. Havia merda pingando por trás de suas pernas cobertas pela armadura.

—   Sou seu prisioneiro! — anunciou ele em voz alta.

Thomas foi até os dois. Sam e meia dúzia de arqueiros o tinham visto e agora cavalgaram na direção dele, trazendo seu cavalo.

—   Ele se rendeu — gritou Roland para Thomas.

Thomas não disse nada. Continuou andando.

—   Eu me entreguei — disse o conde em voz alta. — E vou pagar o resgate.

—   Mate o gordo desgraçado! — gritou Sam.

—   Não! — Roland de Verrec levantou a mão. — Você não pode matá-lo. É desonroso. — Ele tropeçou na palavra em inglês.

—   Desonroso? — perguntou Sam, incrédulo.

—   Sir Thomas. — Roland parecia desesperadamente infeliz. — Um homem que se rendeu está em segurança, não está?

Thomas ignorou Roland, parecendo nem vê-lo. Continuou sem dizer nada. Foi até o conde, que estava estendendo a espada em rendição.

—   O cavalheirismo dita que ele deve ser mantido vivo — insistiu Roland. — Não é, Sir Thomas?

Thomas nem olhou para Roland. Olhou de relance o conde e, quase tão rapidamente quanto Sculley, girou la Malice para trás, fazendo a lâmina acertar o pescoço dele. A espada passou abaixo da aba do elmo, cortando o gorro de malha e se cravando fundo no pescoço grosso. Thomas puxou-a como se estivesse serrando algo, impeliu-a adiante com a força de um arqueiro e foi golpeado por mais sangue enquanto o conde de Labrouillade tombava de joelhos. Thomas enfiou a lâmina cada vez mais fundo até que a vida deixou os olhos de Labrouillade e ele caiu com força no capim.

—   Sir Thomas! — disse Roland ultrajado.

Thomas voltou os olhos arregalados para Roland.

—   Você disse alguma coisa?

—   Ele havia se rendido! — protestou Roland.

—   Estou surdo. Fui golpeado na cabeça e não estou ouvindo nada. O que você está dizendo?

—   Ele tinha se rendido!

—   Não estou escutando o que você diz. — Thomas se virou de costas e piscou para Sam.

A 50 metros dali, homens estavam lutando em volta de João da França. Seu estandarte havia caído, o porta-estandarte estava morto e o filho do rei tentava ajudá-lo.

—   Olhe à esquerda, pai! À direita! Cuidado!

O rei estava lutando com um machado, mas ninguém tentava matá-lo, apenas capturá-lo. Os homens que tinham usado roupas iguais às suas estavam mortos ou tinham fugido, mas todos sabiam que aquele era o rei de verdade porque seu elmo tinha uma coroa de ouro e queriam capturá-lo vivo porque seu resgate seria incomensuravelmente gigantesco. Homens tentavam agarrar o rei, lutavam uns com os outros para chegar perto dele, e o rei gritava dizendo que podia tornar todos eles ricos, mas então dois cavaleiros forçaram seus grandes cavalos de campanha para o meio da confusão e gritaram para os homens recuarem, sob pena de morte.

O conde de Warwick e Sir Reginald Cobham confrontaram o rei João e o príncipe Filipe. Os dois apearam e fizeram reverências profundas.

—   Majestade — disse o conde.

—   Sou prisioneiro — respondeu o rei da França.

—   Infelizmente, Majestade — disse Sir Reginald —, é o destino da batalha.

O rei foi aprisionado.

 

Um dos arqueiros tocava uma flauta feita de palha de aveia, e a canção era tristonha e débil. Uma fogueira ardia, lançando uma luz vermelha e oscilante nos galhos dos carvalhos. Um homem cantava; outros gargalhavam.

O rei da França estava recebendo um festim do príncipe de Gales, enquanto no topo do morro plano, onde a batalha havia terminado, os pássaros e os animais banqueteavam-se dos mortos. Os corpos iam até as portas de Poitiers, porque os ingleses e gascões haviam perseguido o inimigo até lá, e os cidadãos, temendo uma invasão inglesa, tinham se recusado a abrir as portas. Os fugitivos ficaram encurralados sob as muralhas, e ali os últimos morreram. A velha estrada romana que ia até a cidade estava coberta de mortos, mas agora os vivos sentavam-se ao redor das fogueiras e comiam os alimentos que haviam saqueado do acampamento abandonado pelo inimigo.

Thomas havia participado da perseguição, cavalgando com Sam e uma dúzia de outros arqueiros. Todos ficariam ricos com os saques, mas Thomas não havia cavalgado para encontrar joias, armaduras ou um cavalo caro.

—   Você o encontrou? — perguntou Genevieve. Estava sentada junto dele, a cabeça em seu ombro, e Hugh encostado nela.

—   Encontrei os dois.

—   Conte de novo — disse ela, como uma criança querendo ouvir uma história familiar e reconfortante.

Assim ele contou como havia alcançado o cardeal Bessières e como os homens de armas dele tinham tentado proteger seu senhor, e como Sam e os arqueiros os haviam derrubado. Thomas confrontou o padre Marchant, que declarou em voz alta que era padre e não um guerreiro, e Thomas usou la Malice para estripá-lo, de modo que as vísceras escorregaram da batina e se derramaram na sela, depois até o chão, e Thomas riu dele.

—   Isso é o pagamento pelo olho da minha mulher, seu desgraçado. — Ele ficara tentado a deixar o padre morrer em agonia, mas depois acabou com ele com outro golpe de la Malice.

O cardeal Bessières estava implorando por misericórdia.

—   Você é combatente — disse Thomas.

—   Não! Sou um cardeal! Pagarei a você!

—   Não estou vendo nenhum chapéu vermelho, só um elmo.

E o cardeal tentou tirar o bacinete da cabeça, depois gritou quando viu la Malice vindo, e o grito só parou quando a espada de são Pedro rasgou sua garganta. Só então Thomas se virou de volta para o campo de batalha, onde agora os mortos estavam caídos sob as estrelas.

Roland estava com Bertille.

—   Eu deveria ter gritado com você — disse ele a Thomas. — Não percebi que estava surdo.

—   Foi um erro terrível — mentiu Thomas, sério —, e peço desculpas.

—   Não foi desonroso porque você não sabia que ele havia se rendido — disse Roland. — Ele ainda segurava a espada e você estava surdo.

—   Foi a vontade de Deus — disse Bertille, radiante.

Roland fez que sim.

—   Foi a vontade de Deus — concordou. E em seguida, depois de uma pausa: — E la Malice?

—   Sumiu — disse Thomas.

—   Onde?

—   Onde não pode ser encontrada.

Ele havia levado la Malice até a abertura mais larga da cerca viva, onde homens estavam empilhando as armas descartadas no campo de batalha. As armas boas eram postas numa pilha, as baratas e ruins em outra. Havia espadas quebradas, bestas despedaçadas, um machado com lâmina torta e uma quantidade de alfanjes enferrujados.

—   O que vai acontecer com elas? — perguntou Thomas a um homem que usava o brasão de três penas do príncipe de Gales.

—   Vão ser derretidas, provavelmente. Essa daí parece uma merda.

—   E é — disse Thomas.

Em seguida jogou a espada do pescador na pilha de lixo inútil. Não parecia diferente de todos os outros alfanjes baratos. Uma lança despedaçada caiu em cima dela, depois uma espada partida foi jogada com ruído na pilha. Quando olhou para trás, Thomas nem podia dizer qual espada era a relíquia e qual não era. Ela seria posta no fogo, derretida e depois forjada de novo. Talvez como arado, não?

—   Agora vamos para casa — disse. — Primeiro Castillon, depois de volta à Inglaterra.

—   Para casa — respondeu Genevieve, feliz.

A espada de são Pedro tinha surgido. Tinha desaparecido. Essa história estava terminada. Era hora de voltar para casa.

 

                                                                                            Bernard Cornwell

 

 

                      

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