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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


1Q84 - L.1 / Haruki Murakami
1Q84 - L.1 / Haruki Murakami

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A rádio do táxi estava sintonizada numa estação em FM e transmitia música clássica. A Sinfonietta de Janáček. Não se podia dizer que fosse a obra ideal para ouvir no meio de um engarrafamento. O taxista também não parecia dar grande atenção ao programa. Homem de meia-idade, contentava-se em observar calado a interminável fila de carros, estendendo-se diante dele, na passagem superior da autoestrada, como um pescador veterano que, de pé na proa do seu barco, interpreta os sinais ameaçadores na linha de convergência de duas correntes marítimas.
Bem recostada no assento traseiro, de olhos fechados, Aomame escutava a música. Quantas pessoas no mundo saberiam identificar aquela peça, aos primeiros acordes, como sendo a Sinfonietta de Janáček? A resposta deverá andar entre «muito poucas» e «quase nenhumas». Mas, por qualquer razão, Aomame era uma das poucas habilitadas para o fazer. Janáček escreveu a sua pequena sinfonia em 1926. O tema foi por ele composto, originalmente, como uma fanfarra para uma competição desportiva. Aomame imaginou a Checoslováquia no ano de 19261. A Primeira Guerra Mundial havia terminado, e o país libertara-se, por fim, do longo reinado da Casa de Habsburgo. As pessoas bebiam cerveja pilsner nos cafés, produziam elegantes metralhadoras ligeiras e saboreavam a paz efémera que se instalara na Europa. Dois anos antes, Franz Kafka tinha abandonado este mundo na mais completa obscuridade.


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Pouco depois surgiria Hitler, vindo do nada para, num abrir e fechar de olhos, devorar aquele pequeno e belo país, sem que as pessoas soubessem que ia acontecer algo de tão terrível. Talvez seja esta a mais importante lição que a História ensina: «À época, ninguém podia saber o que o futuro lhes reservava.» Com a música de Janáček nos ouvidos, Aomame imaginou o vento ameno soprando através das planícies da Boémia, enquanto meditava sobre as vicissitudes da História.
No Japão, corria o ano de 1926; o imperador Taishō morreu, e deu-se início à transição para a Era Shōwa. Também neste país se anunciavam tempos terríveis, e começou então uma época obscura. O breve interlúdio em que modernismo e democracia tinham desempenhado o seu papel estava prestes a terminar, cedendo terreno ao fascismo.
A História, juntamente com o desporto, era uma das paixões de Aomame. Lia poucos romances, mas nunca se cansava de obras históricas. O que lhe agradava na História era o facto de todos os acontecimentos estarem relacionados com determinadas épocas e lugares concretos. Não tinha qualquer dificuldade em recordar-se das diferentes datas. Mesmo que não se esforçasse por memorizar uma efeméride, bastava relacionar os diversos factos para que as datas lhe viessem automaticamente à cabeça. Nos exames de História, tanto no colégio como no liceu, obtivera sempre as notas mais altas da turma. Estranhava quando ouvia alguém dizer que tinha dificuldade em decorar datas. Como é que uma coisa tão simples podia constituir um problema? Aomame2 era o seu verdadeiro nome. O avô paterno nascera na prefeitura de Fukushima, e dizia-se que ali, naquelas pequenas povoações e aldeias escondidas no meio da montanha, havia uma grande quantidade de pessoas com apelido idêntico. Que é como quem diz, um nome escrito com os carateres que significam «ervilha-verde» e pronunciado com as mesmas quatro sílabas, «Ah-oh-mah-meh». Porém, ela nunca ali tinha estado. Antes do seu nascimento, o pai cortara relações com a família, e o mesmo acontecera com a mãe, por isso, Aomame não chegara a conhecer os avós. Viajava pouco, mas, nas raras ocasiões em que se encontrava numa cidade estranha ou num local obscuro, tinha por hábito abrir a lista telefónica para averiguar se na zona havia alguém chamado Aomame. Até à data, nunca encontrara uma única pessoa com esse nome, e, de todas as vezes que voltava a tentar e a experiência não dava em nada, sentia-se como uma náufraga solitária perdida na imensidão do oceano. Dizer o seu nome era sempre uma experiência desagradável. Assim que o pronunciava, as pessoas ficavam com uma expressão de espanto ou olhavam-na desconcertadas. – Aomame? – Sim. Escreve-se como se fosse «ervilhaverde». Sempre que uma empresa a contratava, mandavam as regras que apresentasse aos clientes o seu nome impresso nos cartões de visita, o que só contribuía para piorar a situação. As pessoas olhavam fixamente para o cartão como se ela tivesse acabado de lhes entregar uma carta anunciando alguma desgraça. Quando dizia o apelido ao telefone, já lhe acontecera por mais de uma vez ouvir risos abafados. Se chamavam por ela na sala de espera de um consultório médico ou de uma repartição pública, os presentes erguiam a cabeça e punham-se a olhar, curiosos por descobrir que cara poderia ter alguém que respondia pelo nome de «Ervilha-Verde».
Volta e meia, havia quem percebesse mal o nome da planta e lhe chamasse «Edamame» ou «Soramame»3, altura em que ela própria tomava a iniciativa de corrigir delicadamente o seu interlocutor: «Não, não é soja-verde nem fava, mas anda lá perto; é ervilha. Aomame.» Quantas vezes tinha escutado a mesma cantilena ao longo da vida? Trinta anos a ouvir as mesmas piadas gastas à custa do seu nome. A sua existência poderia ter sido totalmente diferente, quem sabe?, se não tivesse nascido com esse nome. Com um apelido mais vulgar, como Sato, Tanaka ou Suzuki, talvez pudesse levar uma existência mais descontraída e encarar as pessoas que a rodeavam com um pouco mais de tolerância. É possível. De olhos fechados, Aomame concentrouse na música, deixando que a perfeita harmonia produzida pelo uníssono dos metais invadisse o interior da sua cabeça. Só então se deu conta de que a qualidade do som era demasiado boa para um rádio que habitualmente uma pessoa vê nos táxis. Apesar de o volume estar bastante baixo, o som chegavalhe com profundidade, e as harmonias eram claramente audíveis. Abriu os olhos, inclinou-se e observou o equipamento estereofónico encastrado no painel de instrumentos. O aparelho era preto-azeviche e refulgia com um brilho que transmitia orgulho. Não dava para ler o nome do fabricante, mas tratava-se, sem dúvida, de um produto de tecnologia avançada, a começar na quantidade de botões e a acabar nos números digitais verdes que se destacavam no painel. Uma empresa de táxis normal não se daria ao luxo de equipar a sua frota com um sistema de som tão sofisticado. Aomame olhou à sua volta e inspecionou de novo o interior do veículo. Demasiado perdida nos seus pensamentos desde que entrara no carro, só então reparou que aquele não era um táxi vulgar. A qualidade dos acabamentos saltava à vista, e o assento não podia ser mais confortável. Acima de tudo, era silencioso. O carro, muito provavelmente devia ter um isolamento especial, que mantinha os ruídos exteriores afastados, ao ponto de parecer um estúdio musical à prova de som. Podia dar-se o caso de o motorista ser ele próprio dono do táxi. Numerosos condutores de táxis privados não se poupam a meios para manter a sua viatura devidamente artilhada. Aomame procurou com o olhar a placa de identificação do taxista, mas não a encontrou. E, no entanto, aquele não parecia um táxi ilegal, sem licença. Possuía um taxímetro regulamentar, que marcava a tarifa devida. Até ali, tinha a pagar 2150 ienes. O que não impedia que a placa com o nome do motorista não se visse em parte alguma. – Belo carro – observou Aomame, falando para as costas do motorista. – Bastante silencioso. De que marca é?
– Um Toyota Crown Royal Saloon – respondeu o condutor, lacónico. – A música ouve-se com grande nitidez. – É uma viatura muito silenciosa. Foi também por essa razão que a escolhi. Em matéria de insonorização, a Toyota possui uma das melhores tecnologias. Aomame concordou com a cabeça e tornou a recostar-se no assento. Havia algo no motorista que a incomodava, como se, ao falar, deixasse qualquer coisa de importante por dizer. Por exemplo (e não passa de um exemplo), a observação relativa ao impecável sistema de insonorização da Toyota parecia querer dar a entender que haveria um outro aspeto da marca passível de apresentar falhas. E depois, ao acabar a frase, ficou um pequeno fragmento de silêncio a flutuar no espaço reduzido do veículo, como uma nuvem imaginária em miniatura. Por causa disso, Aomame sentiu-se inquieta sem saber porquê.
– É, de facto, um carro silencioso – declarou Aomame, a fim de dissipar aquela pequena nuvem. – E a aparelhagem tem aspecto de ser artigo de primeira. – Garanto-lhe que não foi uma decisão fácil de tomar – disse o motorista, num tom de voz que fazia lembrar o de um oficial reformado do Estado-Maior a explicar alguma operação do seu passado militar. – Uma vez que passo tantas horas enfiado aqui dentro, faço questão de ter o melhor som possível. Além disso... Aomame ficou à espera do que o homem tinha para dizer, mas não houve continuação. Voltou a fechar os olhos e concentrouse na música. Desconhecia que tipo de pessoa era Janáček, mas de uma coisa estava certa: o compositor não podia imaginar que a obra por ele criada seria escutada em 1984, no interior de um Toyota Crown Royal Saloon, na autoestrada metropolitana de Tóquio.
Em todo o caso, interrogou-se Aomame, o que a teria levado a reconhecer logo a peça e a identificá-la como sendo a Sinfonietta de Janáček? E como sabia ela que fora composta em 1926? Não era grande fã de música clássica, nem se podia dizer que tivesse alguma recordação pessoal relacionada com Janáček. Apesar disso, no momento em que escutou os acordes iniciais, foi como se todo o seu conhecimento da peça lhe viesse à mente, de forma automática. Como se um bando de pássaros entrasse a voar numa sala por uma janela aberta. Além do mais, aquela música transmitia-lhe uma sensação estranha, dilacerante, equivalente a uma «torção» interna. Sem que associado a ela houvesse dor ou mal-estar, mas apenas a impressão de que todos os elementos do seu corpo estavam a ser fisicamente comprimidos e retorcidos. Aomame não fazia ideia do que se passava com ela. Por que motivo lhe causaria a Sinfonietta aquela sensação inexplicável? – Janáček – murmurou Aomame de um modo meio inconsciente. No momento em que a palavra saiu dos seus lábios, sentiu vontade de não o ter feito. – Como disse? – Janáček. O homem que compôs esta obra. – Nunca ouvi falar. – Um compositor checo. – Ah, sim? – comentou o motorista, impressionado. – É dono deste táxi? – perguntou Aomame, na esperança de mudar o rumo da conversa. – Sou – respondeu o condutor. Após uma breve pausa, acrescentou: – É um táxi privado. A minha segunda viatura. – Os assentos são muito confortáveis.
– Obrigado, minha senhora. A propósito – perguntou ele, virando um bocadinho a cabeça na direção dela –, está com pressa? – Tenho encontro marcado em Shibuya. Por isso é que lhe pedi para apanhar a autoestrada metropolitana. – A que horas é o seu encontro? – Quatro e meia. – Bom, já são quatro menos um quarto. Não vamos chegar a tempo. – O engarrafamento é assim tão grande? – Deve ter havido algum acidente grave mais à frente. Este trânsito todo não é normal. Estamos praticamente sem avançar há já algum tempo. Aomame estranhou o facto de o motorista não escutar as informações de trânsito via rádio. Chegados àquele ponto, a autoestrada transformara-se num interminável para-arranca. O normal seria o condutor estar atento à frequência especial com informações exclusivas para os taxistas.
– Como é que sabe que houve um acidente, se não tem acesso a informações de trânsito? – perguntou Aomame. – Não nos podemos fiar neles – disse o condutor, num tom desprovido de emoções. – Metade do que dizem é mentira. A Empresa Nacional de Estradas só passa a informação que lhe convém. Quem estiver interessado e quiser saber o que acontece em tempo real não tem outro remédio senão fazer como eu, que uso os meus olhos, penso pela minha cabeça e tiro as minhas próprias conclusões. – E, pelos seus cálculos, estamos condenados a ficar presos neste congestionamento? – Por bastante tempo – afirmou o condutor, assentindo com toda a calma. – Isso posso eu garantir-lhe. Quando o trânsito está assim congestionado, a autoestrada fica um inferno. A reunião é importante? Aomame pensou um pouco antes de responder.
– Sim, muito importante. Tenho um encontro com um cliente. – Que pena! Lamento, mas é pouco provável que consiga chegar a tempo. Ao dizer aquilo, o condutor abanou a cabeça um par de vezes, como se pretendesse aliviar a tensão dos músculos do pescoço. As rugas da nuca moviam-se como uma espécie de criatura pré-histórica. Seguindo o movimento com os olhos de um modo quase inconsciente, Aomame deu por si a pensar no instrumento afiado, guardado no fundo do saco que levava a tiracolo. As palmas das mãos estavam molhadas de suor. – Que me aconselha a fazer? – perguntou ela. – Não há nada que possa fazer aqui, pelo menos até à próxima saída da autoestrada. Se estivéssemos numa qualquer rua da cidade, havia sempre a hipótese de sair porta fora e apanhar o comboio numa estação aí perto.
– Qual é a próxima saída? – Ikejiri. Mas nada nos garante que lá cheguemos antes do pôr do Sol. O pôr do Sol? Aomame imaginou-se fechada naquele táxi até ao lusco-fusco. A música de Janáček continuava a tocar. Os instrumentos de corda, abafados pela surdina, tinham sido colocados à frente, como que para acalmar a sua ansiedade em crescendo. A anterior sensação de torção diminuíra em larga medida. Que diabo poderia ter sido aquilo? Aomame apanhara o táxi perto de Kinuta e, uma vez chegados a Yōga, tinha mandado o condutor seguir pela autoestrada. A princípio, o trânsito fluía sem dificuldades, mas, de repente, antes de Sangenjaya, começou a andar com mais lentidão, e a partir daí ficou quase tudo parado. No sentido contrário, os carros circulavam sem problemas. Só a faixa com destino a Tóquio conhecia aquele engarrafamento monstruoso. Às três da tarde, não era costume a linha Shibuya, em direção ao centro, entupir, razão pela qual Aomame tinha dado indicações ao condutor no sentido de apanhar aquela via. – A tarifa não vai aumentar por estarmos parados na autoestrada – observou o condutor, enquanto olhava pelo espelho retrovisor. – Por isso, não vale a pena preocuparse, que não paga mais. Em compensação, calculo que o facto de não chegar a horas ao seu encontro possa constituir um prejuízo, estou certo? – Claro que sim, mas, pelos vistos, não há nada a fazer. O homem olhou de soslaio para ela através do retrovisor. Usava óculos de sol com lentes espelhadas. Devido à forma como a luz incidia, Aomame não conseguia distinguir a sua expressão. – Vendo bem, talvez haja uma possibilidade. A senhora podia apanhar o comboio até Shibuya, mas, para isso, teria de tomar uma medida um bocado... drástica. – Uma medida drástica? – Uma coisa que não a aconselho a fazer, digamos assim. Aomame deixou-se estar calada, de olhos semicerrados, à espera do que viria a seguir. – Olhe, está a ver aquele desvio, onde dá para o carro parar? – perguntou ele, apontando um local mais adiante. – Ao pé do grande letreiro da Esso. Aomame fez um esforço e lá conseguiu descortinar a escapatória, na berma, onde os carros poderiam imobilizar-se em caso de avaria. Na ausência de margens na autoestrada metropolitana, existiam, a intervalos regulares, alguns desvios destinados a paragens de emergência. Aomame reparou que havia uma cabina amarela para contactar a empresa concessionária da autoestrada. De momento, não se encontrava qualquer viatura ali parada. No telhado de um edifício que separava aquela faixa da faixa contrária, via-se um enorme painel a fazer publicidade à petrolífera Esso. Exibia um tigre sorridente que empunhava uma mangueira de combustível. – Para dizer a verdade, existe uma escada com ligação ao nível do solo. Destina-se aos condutores que são obrigados a abandonar a viatura em caso de incêndio ou terramoto, e que assim podem descer até à rua. Normalmente, só é usada pelos operários que fazem trabalhos de manutenção. Descendo por essa escada, não muito longe, vai dar a uma estação de comboio da rede de Tóquio. A partir daí, é um instante até Shibuya. – Não fazia ideia de que houvesse escadas de emergência em plena autoestrada metropolitana – disse Aomame. – De uma forma geral, quase ninguém sabe. – E quem me garante que não me vou meter em trabalhos se utilizar as escadas sem autorização, uma vez que não é uma emergência? O motorista fez uma pausa antes de responder. – Bom, isso já não sei. Desconheço as regras da concessionária, embora não me pareça que pudessem levantar alguma questão, visto que ninguém sairia lesado. Além do mais, por estas bandas não costuma haver vigilância. A Empresa Nacional de Estradas é conhecida por ter muitos empregados, mas poucos fazem alguma coisa de jeito. – Como são as escadas? – Tipo escadas de incêndio, daquelas que se veem nas traseiras dos edifícios antigos. Não se pode dizer que sejam perigosas, nem nada disso. Devem ter para aí a altura de um prédio de três andares, mas descem-se bem. Existe uma barreira à entrada, que não é assim tão alta quanto isso, e quem quiser pode saltar sem problemas.
– Alguma vez utilizou essas escadas? Em lugar de responder, o condutor limitou-se a fazer um sorrisinho para o espelho retrovisor interior. Um sorriso que podia ser interpretado de diversas maneiras. – É uma decisão exclusivamente sua – disse ele, tamborilando ao de leve com a ponta dos dedos no volante, ao ritmo da música. – Se quiser ficar aqui sentada, a ouvir boa música, a mim tanto se me dá como se me deu. Visto que a situação nos ultrapassa e não vamos a lado nenhum, não temos outro remédio senão resignarmo-nos à nossa sorte. Só lhe estou a dizer que, em caso de emergência, há certas medidas apropriadas que pode sempre tomar. Aomame franziu a testa e verificou as horas no relógio. A seguir, ergueu os olhos e estudou os carros que rodeavam o táxi. À direita estava um Mitsubishi Pajero preto coberto de uma fina camada de pó branco. O jovem sentado ao volante abrira a janela e fumava um cigarro. Usava o cabelo comprido, estava bronzeado e vestia um impermeável vermelho-escuro. Tinha o porta-bagagens cheio de pranchas de surf gastas. À frente seguia um Saab 900 cinzento. Os vidros fumados, completamente fechados, não permitiam ver nada lá para dentro. A carroçaria estava de tal forma bem encerada que qualquer pessoa poderia ver a sua cara ali refletida. Diante do táxi encontrava-se um Suzuki Alto com uma matrícula amolgada, do bairro de Nerima, no para-choques traseiro. Uma jovem mãe agarrava com força no volante. Ao lado, a filha pequena, aborrecida, não parava quieta. A mãe ralhava com ela, incapaz de esconder o desagrado. Aomame conseguia distinguir o movimento dos lábios. Era rigorosamente a mesma cena a que assistira dez minutos antes. Nesses dez minutos, o carro devia ter avançado dez metros, se tanto.
Aomame refletiu bem, ordenando mentalmente os factos, um a um, por ordem de prioridade. Não precisou de se esforçar muito para chegar a uma conclusão. Ao mesmo tempo, como que por coincidência, a sinfonia de Janáček entrou no seu movimento final. Aomame tirou uns óculos de sol Ray-Ban do saco de desporto e, a seguir, entregou ao motorista as três notas de mil ienes que sacou do porta-moedas. – Saio aqui. Não posso chegar atrasada ao tal encontro. O homem assentiu com a cabeça e aceitou o dinheiro. – Quer recibo? – Não é preciso. Pode guardar o troco. – Obrigado – disse o condutor. – Tenha cuidado com o vento lá fora, não vá perder o equilíbrio. – Assim farei. – Só mais uma coisa – acrescentou ele, sem tirar os olhos do espelho interior. – Não se esqueça do que lhe digo: as coisas não são o que parecem. «As coisas não são o que parecem», repetiu Aomame na sua cabeça. – O que pretende dizer com isso? – perguntou ela, com a testa franzida. O taxista escolheu as palavras com todo o cuidado. – Digo isto porque se prepara para fazer uma coisa fora do vulgar. Estou certo ou estou errado? Normalmente, não se vê ninguém descer pelas escadas de emergência de uma autoestrada metropolitana, à luz do dia. Sobretudo tratando-se de uma mulher. – Lá nisso dou-lhe razão. – Aí tem. E quando uma pessoa dá esse passo e faz uma coisa desse género, é provável que o cenário quotidiano... como hei de eu dizer?… pareça mudado. As coisas à nossa volta podem revelar-se um pouco diferentes do que é costume. Eu próprio já passei por essa experiência. Contudo, não se deixe iludir pelas aparências. A realidade é apenas uma. Aomame ponderou as palavras que o condutor acabava de dizer. Entretanto, chegou ao fim a música de Janáček e, ato contínuo, fizeram-se ouvir os aplausos da audiência. Tratava-se de um concerto ao vivo, disso não havia dúvida; faltava saber onde teria sido gravado. A ovação entusiástica parecia nunca mais acabar, e, de vez em quando, ouviam-se gritos de «bravo!». Pôs-se a imaginar o diretor de orquestra a sorrir, enquanto se desdobrava em vénias e mais vénias de agradecimento diante do público que aplaudia de pé. Levantava a cabeça, erguia os braços, apertava a mão ao primeiro-violino, ficava de costas para a audiência, alçava ambos os braços em sinal de apreço pela prestação dos membros da orquestra, virava-se para o público e fazia uma profunda reverência. Ao fim de algum tempo sempre a escutar aqueles longos aplausos gravados, deu-lhe a impressão de estar a ouvir uma interminável tempestade de areia em Marte. – Realidade, existe apenas uma, sempre o disse – repetiu o condutor, lentamente, como se estivesse a sublinhar uma passagem importante num livro. – Claro – disse Aomame. O homem tinha razão. Um objeto físico só pode estar num determinado momento e num determinado lugar. Einstein demonstrou isso mesmo. A realidade é profundamente imperturbável e solitária do princípio ao fim. Aomame apontou para o sistema estereofónico. – Grande som. O motorista concordou com a cabeça. – Como se chamava o tal compositor? – Janáček. – Janáček – repetiu ele, como se estivesse a memorizar uma palavra de ordem. A seguir, carregou na alavanca que destrancava automaticamente a porta traseira. – Tenha cuidado – disse ele. – Espero que consiga chegar a tempo. Aomame saiu do táxi levando na mão o saco de pele que costumava usar ao ombro. Através da rádio, continuavam a fazer-se ouvir os aplausos. Seguiu pela margem esquerda da autoestrada, tomando grande cuidado, sempre em direção ao espaço destinado a qualquer desvio de emergência, que ficava dez metros mais adiante. De cada vez que um camião pesado passava em sentido contrário, o pavimento da estrada parecia estremecer – ou, melhor dizendo, ondular – debaixo dos seus saltos altos. A sensação que tinha era a de caminhar pela coberta de um porta-aviões em pleno mar encapelado. A miúda no Sukuzi Alto vermelho pôs a cabeça de fora da janela no assento dianteiro e ficou a ver Aomame passar, fitando-a de boca aberta. Depois virou-se para a mãe e desatou a perguntar:
– Mamã, o que é que aquela senhora está a fazer? Onde é que ela vai? Também quero sair. Por favor, também quero sair, mamã!!! Aos gritos insistentes respondeu a mãe com o silêncio, enquanto abanava a cabeça e lançava um olhar acusatório a Aomame. O pedido lancinante da miudinha e o olhar de relance por parte da mãe constituíram a única reação evidente. Os restantes condutores deixaram-se estar, enquanto fumavam o seu cigarro e a observavam a abrir caminho, no seu passo firme, entre os carros e o muro lateral. Exibiam o sobrolho franzido e semicerravam os olhos, como se estivessem a observar um objeto demasiado brilhante. Dir-se-ia que as suas capacidades de análise e de julgamento se encontravam suspensas no tempo. Independentemente de haver ou não trânsito, o facto de estar alguém a caminhar pela autoestrada não era uma coisa habitual. Logo, assimilar a cena que tinham diante dos olhos e aceitar o que viam como tratando-se 35/1088
de um episódio real exigia tempo. Sobretudo considerando que a pessoa que caminhava pela berma da autoestrada era uma jovem de minissaia e sapatos de salto alto. De queixo erguido e costas direitas, sempre a olhar em frente, Aomame avançou com passos decididos. Os sapatos castanhos Charles Jourdan produziam um ruído seco ao bater no pavimento e a brisa fazia ondular a bainha do casaco. Estava-se no começo de abril4, mas o vento, ainda frio, continha a promessa de uma certa inclemência. Por cima do vestido verde de lã fina assinado por Junko Shimada, Aomame vestia um casaco primaveril bege. Ao ombro levava o saco preto de pele, e o cabelo – que lhe chegava aos ombros – estava bem cortado e penteado. Não usava qualquer acessório. Com um metro e sessenta e oito de altura, não tinha um grama de gordura a mais. Todos os músculos do seu corpo estavam treinados, embora o casaco não o deixasse perceber. 36/1088
Vista de frente, uma observação atenta revelaria diferenças significativas no que tocava ao tamanho e à forma das suas orelhas. Isto para dizer que a orelha esquerda era bastante maior e um nadinha deformada. Contudo, ninguém dava por isso, uma vez que o cabelo as tapava quase sempre. Os lábios formavam uma linha a direito, sugerindo um feitio difícil. Um nariz pequeno e estreito, maçãs do rosto um tanto proeminentes, testa alta e sobrancelhas longas e retas contribuíam para reforçar ainda mais a impressão inicial. O conjunto integrava-se numa cara mais ou menos oval e bem proporcionada, e, gostos à parte, poderia dizerse que era bonita. O único problema consistia na ausência de expressão, por demais gritante. Cerrados com força, os seus lábios não sabiam o que era um sorriso, a não ser que fosse absolutamente necessário. Os olhos mostravam-se frios e vigilantes, fazendo lembrar um marinheiro de vigia na 37/1088
coberta de um navio. Graças a essas caraterísticas, o seu rosto não causava boa impressão. O que fazia com que a sua pessoa atraísse as atenções não se prendia com as qualidades das feições descritas, mas com a graça e a elegância dos seus gestos. Nesse sentido, Aomame fazia lembrar um inseto hábil na arte do mimetismo biológico. Gostava, acima de tudo, de se camuflar, de mudar de cor e de forma, a fim de se integrar na paisagem, de chamar as atenções o menos possível e não ser recordada com facilidade. Tinha sido sempre esse o seu mecanismo de defesa, desde a infância. Quando acontecia alguma coisa suscetível de a obrigar a franzir a testa ou fazer uma careta, as suas feições mudavam de forma dramática. Os músculos da face crispavamse, repuxando-lhe o rosto em todas as direções ao mesmo tempo e colocando em evidência a falta de simetria dos seus traços. Formavam-se-lhe profundas rugas, os olhos 38/1088
ficavam de repente mais próximos e encovados, o nariz e a boca mostravam-se violentamente deformados, o queixo retorcia-se todo, os lábios arrepanhados deixavam à mostra enormes dentes brancos. De um momento para o outro, como se alguém tivesse cortado a corda que prendia a máscara atrás da qual ela se escondia, transformava-se numa pessoa diferente. O espetáculo chocante da sua metamorfose deixava qualquer um aterrado, por isso, Aomame tinha cuidado para nunca franzir o cenho na presença de desconhecidos. Retorcia a cara apenas quando se encontrava sozinha ou caso fosse sua intenção intimidar algum homem que não lhe caía no goto. Ao chegar à zona da saída de emergência, Aomame imobilizou-se e olhou em volta, à procura das escadas. Encontrou-as logo. Tal como o motorista de táxi dissera, havia uma barreira metálica a bloquear a entrada. Dava-lhe um pouco acima da cintura e estava 39/1088
trancada com um cadeado. Saltar por cima da vedação com a minissaia justa podia representar um pequeno problema, mas para isso era preciso que ela se ralasse com os olhares alheios. Sem hesitar, descalçou os sapatos de salto alto e enfiou-os dentro do saco ao ombro. Arriscava-se a romper as meias se seguisse descalça, mas podia sempre comprar um novo par numa loja qualquer. As pessoas olhavam em silêncio para ela à medida que tirava os sapatos e despia o casaco. Através da janela aberta do Toyota Celica preto, parado junto ao desvio de emergência, a voz aguda e penetrante de Michael Jackson proporcionou-lhe música de fundo. «Billie Jean». Aomame sentiu-se como se estivesse no meio de um espetáculo de striptease. Que se lixe! Olhem à vontade. Devem estar fartos, aqui enfiados no meio deste engarrafamento. Tenho muita pena, senhoras 40/1088
e senhores, mas, por hoje, não vou despir mais nenhuma peça de roupa. Aomame passou o saco à volta do peito, para evitar que caísse. O Toyota Crown Royal preto acabado de sair da fábrica, no qual viajara, encontrava-se já a alguma distância. Recebia de frente o sol da tarde e o parabrisas refletia uma luz ofuscante. Não se conseguia distinguir a cara do condutor, mas ela sabia que o homem devia estar a vê-la. Não se deixe iludir pelas aparências. A realidade é apenas uma. Aomame inspirou fundo e deixou sair o ar, devagarinho. Depois, ao som de «Billie Jean», passou a perna para o outro lado e saltou a vedação. Tratara entretanto de arregaçar a minissaia até à cintura. Que se lixe. Que olhem, se quiserem. Não é espreitando por baixo das minhas saias que conseguirão ver através de mim e ficar a conhecer quem sou. 41/1088
As pernas eram a parte do corpo em que Aomame depositava mais orgulho. Assim que se apanhou do lado de lá, Aomame endireitou a saia, sacudiu o pó dos braços e das mãos, tornou a vestir o casaco e voltou a colocar a mala ao ombro. A seguir, ajustou a ponte dos óculos de sol de encontro à cara. As escadas de emergência estavam diante de si – eram de ferro, pintadas de cinzento. Tudo nelas correspondia ao mesmo princípio: simples, prático, funcional. Não tinham sido fabricadas para serem utilizadas por jovens de minissaia e calçando apenas meias. Tal como Junko Shimada também não desenhava vestidos, como o que Aomame trazia, pensando que alguém iria alguma vez envergá-lo para subir e descer escadas de emergência da Autoestrada Metropolitana 3 de Tóquio. Um camião enorme percorreu a via contrária, fazendo vibrar tudo. O vento assobiava por entre a armação de ferro. Em todo o caso, ali estavam as 42/1088
escadas, à frente do seu nariz. Só tinha de descer por elas até tocar no solo e chegar à rua. Aomame virou-se e fez questão de olhar pela última vez para a dupla fila de veículos encalhados na autoestrada, da esquerda para a direita e, depois, da direita para a esquerda, sentindo-se como alguém em cima de um pódio, após um discurso, à espera das perguntas da audiência. A fila continuava sem progredir. Apanhadas no meio da autoestrada, sem nada que fazer, as pessoas entretinham-se a observar os movimentos dela ao pormenor, envoltas em silêncio. Que diabo poderia aquela mulher fazer a seguir?, interrogavam-se, agora que passara para o outro lado da barreira. Aomame ergueu ligeiramente o queixo, mordeu o lábio inferior e avaliou o seu público através das lentes verde-escuras. De certeza que não imaginam quem eu sou, para onde vou, nem o que vou fazer a 43/1088
seguir, começou Aomame a dizer sem mexer os lábios. Estão aí encurralados. Não podem ir a lado nenhum. Não podem avançar nem fazer marcha atrás, mas eu não. Tenho um trabalho pela frente. Uma missão para executar. Por isso, se me dão licença, vou seguir em frente. Sentiu vontade de contrair o rosto e presentear a multidão ali reunida com uma das suas caretas únicas. No entanto, lá se conteve. Não havia tempo para coisas supérfluas. Contrair o rosto implicava tempo e esforço para recuperar o seu aspeto habitual. De costas para os espetadores, Aomame principiou a descer as escadas de emergência com pequenos passos cuidadosos, sentindo o gélido e tosco metal de encontro à planta dos pés. Frio era também o vento de princípios de abril. Fez ondular os seus cabelos, deixando a descoberto, por momentos, a orelha esquerda deformada. 44/1088
1 Ano em que se realizou o Campeonato Mundial de Ginástica, na cidade de Praga, atualmente República Checa. (N. das T.)
2 Aomame significa ervilha (e ervilha-verde), para além de designar uma variedade de soja-verde. (N. das T.)
3 Edamame significa vagem de soja-verde, outro tipo de legume verde muito utilizado na preparação de bebidas alcoólicas, e Soramame, fava (Vicia faba). (N. das T.)
4 No Japão, em abril, o tempo começa a aquecer, as cerejeiras dão flor e celebra-se a primavera; em maio, porém, o céu aparece muitas vezes coberto e os aguaceiros são frequentes: é a estação das chuvas, a quinta, a somar às tradicionais quatro. (N. das T.)
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TENGO
Uma ideia um bocado diferente em mente
A primeira recordação de Tengo era de quando tinha um ano e meio. A sua mãe tinha despido a blusa, deixara cair a alça da combinação branca e dava o peito a um homem que não era o seu pai. A criança no berço, ali ao pé, era provavelmente Tengo. Estava a observar a cena como se fosse uma terceira pessoa. Ou poderia tratar-se do seu irmão gémeo? Não, aquele era o próprio Tengo, quando tinha um ano e meio de idade. Sabia-o por intuição. O bebé estava a dormir, com os olhos fechados; podia ouvir
se a sua respiraçãozinha profunda e regular. Os dez segundos que a cena durou ficaram gravados com nitidez nas paredes da sua consciência, constituindo a primeira recordação na vida de Tengo. Não houve nada antes nem depois. A lembrança daquele momento destacava-se sozinha, como um campanário numa cidade vítima de inundação, erguendo-se acima das águas turvas. Sempre que podia, Tengo fazia questão de perguntar às pessoas com que idade tinham tido a primeira recordação da sua infância. Na maioria dos casos, quatro ou cinco anos. Três anos, quando muito. Mais cedo do que isso, uma criança não estava em condições de testemunhar e compreender, com alguma lógica, uma situação em que estivesse envolvida. Numa fase anterior, ficava tudo registado como um caos incompreensível. O mundo apresentava os contornos de uma massa espapaçada e diluída, sem estrutura 47/1088
nem pontos de apoio. Tudo desaparecia através das janelas abertas da nossa mente sem chegar nunca a formar uma recordação no cérebro. Naturalmente que uma criança de ano e meio não tinha capacidade de avaliar o que significava um homem, que não era seu pai, estar a sugar no peito da sua mãe. Isso era evidente. Portanto, a acreditar que a evocação de Tengo era genuína, a cena deve terlhe ficado gravada na retina tal como ele a viu, enquanto uma imagem pura e sem juízos de valor – da mesma forma que uma câmara grava, de forma automática, os corpos em filme misturando luz e sombra. E à medida que a consciência desperta, as imagens fixas, de reserva, vão sendo pouco a pouco analisadas e preenchidas de sentido. Mas poderia aquilo, na realidade, ter acontecido? É de admitir a possibilidade de o cérebro de um lactente conseguir armazenar uma imagem daquela natureza? 48/1088
Ou seria, pura e simplesmente, uma falsa recordação? Uma partida que a memória de Tengo lhe pregara, ainda que desconhecendo com que finalidade ou intenção, era outra possibilidade. Tengo considerara como muito provável a hipótese de se tratar de uma invenção da memória, mas chegara à conclusão de que não devia ser. A imagem era demasiado nítida e por demais convincente, no modo como o tocara, para ser falsa. A luz, o odor, o palpitar do seu coração: o realismo da cena provocava nele uma impressão forte, que nenhuma imitação, por mais perfeita, consegue transmitir. Além do mais, e partindo do princípio de que tinha acontecido realmente, explicava muitas coisas. Tanto no plano da lógica como no das emoções. Por vezes, aquela imagem vívida aparecia, sem aviso prévio e sem cerimónia, independentemente do lugar onde se encontrava ou da ocasião. Podia acontecer quando ele 49/1088
viajava de comboio, quando escrevia fórmulas no quadro ou quando se encontrava sentado à mesa, a comer e a conversar com alguém (como, por exemplo, naquele preciso momento), altura em que avançava como um tsunami silencioso, arrastando tudo à sua passagem e levando-o na onda. Quando se dava conta, já estava diante dele, e os braços e as pernas ficavam paralisados. O tempo deixava de existir. O ar tornava-se rarefeito e custava-lhe respirar. A relação com as pessoas perdia-se e os objetos que o rodeavam convertiam-se em coisas estranhas. A parede líquida do tsunami engolia o seu corpo. E, apesar de ter a sensação de que o mundo se ia fechando e ficando às escuras, a consciência das coisas não o abandonava. Era como se tivesse havido uma mudança de linha e fosse obrigado a circular por outra via. Em parte, os seus sentidos haviam-se tornado ainda mais apurados. Não experimentava qualquer sensação de medo, mas não 50/1088
conseguia abrir os olhos. Tinha as pálpebras bem cerradas. Os ruídos que o rodeavam iam-se afastando, e a imagem familiar era então projetada no ecrã da sua mente, vezes sem conta. O suor irrompia de todos os poros, a tal ponto que a camisola, na zona das axilas, ficava encharcada. O corpo começava a tremer, as pulsações tornavamse mais rápidas e mais fortes. Quando estava acompanhado, Tengo fingia sentir-se agoniado. Na verdade, era uma experiência semelhante a ter vertigens. Passado algum tempo, voltava tudo à normalidade. Ele tirava um lenço do bolso e encostava-o à boca. Na esperança de que o «enjoo» passasse, levantava a mão para mostrar à outra pessoa que não havia motivos de preocupação. Por vezes, o episódio demorava trinta segundos a passar; outras, prolongava-se por mais de um minuto. Durante esse tempo, repetia-se automaticamente a mesma imagem, como se 51/1088
estivesse a passar num aparelho de vídeo programado para aquela função. A mãe deixava descair as alças da combinação e o homem punha-se a chupar os mamilos endurecidos. Ela fechava os olhos e deixava escapar um suspiro profundo. O odor quente e familiar do leite materno pairava vagamente no ar. O olfato é o sentido mais desenvolvido num bebé de tenra idade. O olfato revela muitas coisas, e, em certas ocasiões, pode revelar tudo. A cena desenrolava-se em silêncio. A atmosfera convertia-se num líquido denso. Tudo o que ele escutava eram os batimentos suaves do seu próprio ritmo cardíaco. «Olha para isto», diziam-lhe. «Olha apenas para isto», diziam. «Estás aqui. Não tens outro sítio para onde ir», diziam-lhe. A mensagem repetia-se vezes sem conta. * * * 52/1088
Daquela vez, o «ataque» foi dos grandes. Tengo fechou os olhos, levou o lenço à boca, como sempre, e mordeu-o com força. Não podia dizer quanto tempo aquilo durou; só podia adivinhar, com base no seu estado de exaustão. Sentia-se fisicamente esgotado, mais cansado do que nunca. Passou-se algum tempo até que conseguisse abrir os olhos. A sua mente queria despertar, mas os músculos e os órgãos internos resistiam. Como um animal em estado de hibernação que acordasse do seu sono antes de tempo, na estação errada. – Tengo! Ei, Tengo! – Havia alguém que chamava. A voz chegava abafada aos seus ouvidos, parecia vir das profundezas de uma caverna. Às tantas, Tengo lá começou a perceber que era o seu nome que diziam. «O que se passa, Tengo? É outra vez a mesma história? Estás bem?» A voz soava agora mais perto. 53/1088
Tengo abriu por fim os olhos e fixou o olhar na sua mão direita, agarrada à beira da mesa. Confirmou que o mundo estava no mesmo sítio e que fazia parte dele. A perda de sensibilidade persistia, mas aquela era a sua mão direita, sem dúvida. Assim como o calor que emanava dele, um odor estranho e penetrante, familiar a quem está habituado ao cheiro dos animais selvagens no jardim zoológico. Tengo sentia a garganta seca. Esticou a mão, pegou no copo que estava em cima da mesa e bebeu metade da água, com cuidado para não entornar. Depois de ter descansado, e uma vez recuperado o fôlego, bebeu o resto. A sua mente começava a voltar ao que era, pouco a pouco, e os sentidos regressavam à normalidade. Depositou o copo vazio em cima da mesa e serviu-se do lenço para limpar a boca. – Desculpe. Já estou bem. 54/1088
Tinha consciência de que o homem à sua frente era Komatsu e que se tinham encontrado numa cafetaria perto da estação de Shinjuku. As vozes das conversas em redor começavam a soar como vozes normais. O parzinho da mesa ao lado olhava na direção deles, interrogando-se sobre o sucedido. A empregada de mesa aproximara-se com uma expressão preocupada. Talvez receasse que o cliente desatasse a vomitar. Tengo levantou a cabeça e assentiu, como que a dizer: «Está tudo bem. Não há problema.» – Tiveste um ataque qualquer, não foi? – perguntou Komatsu. – Nada de grave, foi uma espécie de vertigem. Das antigas – respondeu Tengo. Aquela ainda não lhe parecia a sua voz, mas estava cada vez mais próxima. – Pode ser grave, se te acontecer uma coisa do género quando fores ao volante – observou Komatsu, sem tirar os olhos dele. – Não conduzo. 55/1088
– Ainda bem. Um conhecido meu, com alergia ao pólen de cedro-japonês, um dia começou a espirrar quando ia a conduzir e foi contra um poste telefónico. Claro que o teu problema é mais complicado, não estamos propriamente a falar de simples espirros. Confesso que, da primeira vez, apanhei um susto valente. No entanto, agora já me habituei. – Lamento imenso. Tengo pegou na chávena de café e bebeu o resto, de um trago. Não sabia a nada, a única coisa que sentia era o líquido morno a escorregar pela garganta. – Queres mais água? – perguntou Komatsu. Tengo abanou a cabeça. – Não. Já passou, estou bem. Komatsu tirou do bolso do casaco um maço de Marlboro, levou um cigarro à boca e acendeu-o, usando a carteira de fósforos 56/1088
daquele estabelecimento comercial. A seguir, viu as horas no relógio de pulso. – Bom, de que é que estávamos a falar? – quis saber Tengo, para ver se voltava tudo ao normal. – Boa pergunta – disse Komatsu, a fixar o vazio enquanto pensava sobre o assunto. Ou fingia que pensava. Tengo não tinha a certeza. Havia uma grande dose de encenação nos gestos e na maneira de falar de Komatsu. – Ah, já sei! Falávamos sobre aquela rapariga, a Fuka-Eri, e A Crisálida de Ar. Tengo assentiu. Era isso mesmo. No preciso momento em que ele começara a dar a sua opinião acerca de Fuka-Eri e A Crisálida de Ar, tinha sido acometido pelo tal «ataque». – Ia precisamente comentar contigo o pseudónimo que ela escolheu, fora do vulgar, por sinal – comentou Komatsu. 57/1088
– Estranho, não acha? «Fuka» soa como um antigo nome de família, e «Eri» pode ser um vulgar nome de rapariga: Eri ou Eriko... – Acertaste em cheio. Tem como nome de família Fukada, e Eriko é o primeiro nome5, daí que, ao juntá-los, Fuka mais Eri, dá Fuka-Eri. Tengo retirou um manuscrito da pasta e colocou-o em cima da mesa. Deixou ficar a mão em cima do monte de folhas, como que para comprovar a sua existência física. – Tal como disse ao telefone, a grande virtude de A Crisálida de Ar é que não imita nada nem ninguém. A autora não evidencia nenhum daqueles tiques de novel escritora, armada em «eu quero ser uma herdeira da tradição deste e daquele». O estilo, como não podia deixar de ser, ainda está por apurar, e as escolhas lexicais revelam alguma inépcia. A começar pelo título, a autora engana-se, ao confundir «crisálida» com «casulo». Se estivesse para aí virado, podia enumerar mais 58/1088
uns quantos lapsos e deitar o livro abaixo. Mas a verdade é que a história tem potencial: conquista o leitor. O enredo remete-nos para um universo fantástico, se bem que as descrições sejam extraordinariamente realistas. Devo acrescentar que o equilíbrio entre estes dois planos é excelente. Não sei se palavras como «originalidade» e «consistência» fazem sentido neste contexto, e até posso estar de acordo se alguém me disser que não está ao nível de outros, mas o certo é que, depois de o ler de uma ponta à outra, mesmo com todos os defeitos, deixanos uma impressão genuína. Dir-se-ia que o livro mexe com os nossos sentimentos de uma maneira estranha, difícil de explicar. Komatsu olhou Tengo nos olhos, sem dizer nada. Queria ouvir mais. Tengo continuou: – Não gostaria que esta obra ficasse arredada do concurso pelo simples facto de o 59/1088
estilo ser, aqui e ali, menos hábil. Tenho lido imensas obras candidatas ao longo dos anos, ou, mais do que ler, talvez se deva dizer que tenho passado os olhos pelo que lá vem escrito. Deparei-me com algumas bastante bem escritas, reconheço, mas, na sua maioria, são coisas que não têm ponta por onde se lhes pegue. E, de todos os manuscritos que li, confesso que A Crisálida de Ar é a única obra que provocou em mim uma reação. Pela primeira vez, deu-me vontade de tornar a lêla do princípio ao fim. – Estou a ver o género – disse Komatsu. Depois, como se a conversa estivesse a seguir um rumo que não lhe interessava por aí além, deixou escapar o fumo do cigarro por entre os lábios contraídos. Tengo, porém, conhecia Komatsu desde há muito e não se deixou enganar pela atitude do amigo, destinada a impressionar terceiros. Komatsu empregava muitas vezes expressões que não correspondiam – para não dizer que eram 60/1088
opostas – ao que, no fundo, pensava e sentia. Daí que Tengo esperasse com paciência que Komatsu dissesse de sua justiça. – Também eu já li – afirmou Komatsu, passado um bocado. – Fiz questão, assim que recebi a tua chamada. Achei que estava muito mal escrito. Dá pontapés na gramática, e, em certas partes do livro, não se percebe o que a autora quer dizer. Quanto a mim, antes de se abalançar a escrever um romance ou qualquer outra obra de ficção, ela deveria regressar à escola e aprender a construir uma frase escorreita. – Mas leu até ao fim, ou não? Komatsu sorriu. Era um daqueles sorrisos que pareciam tirados do fundo de uma gaveta que, normalmente, nunca é aberta. – Tens razão. Li o manuscrito de fio a pavio, para minha grande surpresa. Nunca me acontecera ler uma obra candidata inteirinha. Mais: confesso que até reli certas partes. Digamos que os planetas se 61/1088
encontravam perfeitamente alinhados. Nesse particular, dou-te razão. – Isso significa que tem qualquer coisa, não lhe parece? Komatsu pousou o cigarro no cinzeiro e esfregou a cana do nariz com o dedo médio da mão direita. Não fez, porém, menção de responder à pergunta colocada por Tengo. – A jovenzinha tem dezassete anos, ainda está a estudar. Precisa de ler mais e falta-lhe disciplina para escrever ficção, só isso. Não digo que possa arrebanhar o prémio destinado a uma primeira obra, mas tem valor para integrar a lista de finalistas. Com a sua ajuda, senhor Komatsu, ela poderá conseguir, tenho a certeza. O que tornará tudo mais fácil da próxima vez. – Hum – voltou Komatsu a grunhir num tom enfastiado, reforçado por um bocejo. A seguir, levou o copo à boca e bebeu um gole de água. – Escuta, Tengo. Imagina que eu a ponho na lista restrita e que a coisa vai até ao 62/1088
fim. Os membros do comité de seleção iam ficar siderados, se é que não tinham um ataque de fúria. Uma coisa é certa: para começar, não a vão ler inteira. Quatro jurados são escritores no ativo, ocupados até dizer chega com o seu labor. Quando muito, folheiam as duas primeiras páginas e depois põem-nas de lado, dizendo que não passa de uma redação escrita por uma estudante da primária. Quem me daria ouvidos, partindo do princípio de que eu me empenhava pessoalmente e os convencia a dar uma segunda oportunidade ao texto, explicando-lhes que ficaria brilhante com uns melhoramentos, aqui e ali? Mesmo considerando que tenho poderes para tal, prefiro guardá-los para um projeto com mais potencial. – Por outras palavras, devemos recusar a obra? – Não disse isso – retorquiu Komatsu, esfregando a cana do nariz. – Tenho uma ideia diferente para esta história. 63/1088
– Uma ideia diferente – repetiu Tengo. Pressentia nas palavras do outro um vago tom funesto. – Afirmas que devemos esperar pela obra seguinte, e que essa, sim, valerá a pena – disse Komatsu. – Gostaria de fazer isso, claro. Uma das coisas que a nós, editores, dá mais gozo é cuidar da carreira de um jovem escritor, ajudá-lo e vê-lo crescer. Nada se compara à emoção de descobrir uma nova estrela no firmamento, numa bonita noite sem nuvens, antes que mais alguém o faça. Para ser franco, Tengo, não creio que a rapariga tenha uma segunda obra dentro dela. Não é para me gabar, mas ando nesta profissão há vinte anos. Durante todo este tempo, já vi muitos escritores aparecerem e eclipsarem-se. Se aprendi alguma coisa foi a distinguir quem tem potencial para lá chegar e quem não tem. E, se queres a minha opinião, a jovem não tem futuro. É com grande pena que o digo, mas não teremos uma 64/1088
próxima obra que se veja, nem a seguir a esta, nem nunca. Primeiro, o estilo deixa muito a desejar. Por mais que trabalhes, que te esforces por burilar o texto, nunca dará resultado. E a razão para isso é muito simples: a autora não quer saber do estilo para nada, não tem a mínima intenção de escrever bem nem de melhorar a sua técnica. Para obter um bom estilo, das duas, uma: o escritor nasce com o dom da literatura ou trabalha que nem um louco para ser bom no seu mister. E esta rapariga, Fuka-Eri, como podes ver, não encaixa em nenhuma das categorias. Desconheço porquê, mas a questão do estilo, enquanto tal, não lhe interessa. Agora, o que ela tem é uma grande vontade de contar uma história: um desejo fortíssimo, admito. Foi isso que atraiu a tua atenção, Tengo, de forma natural, e foi o que me levou a ler o manuscrito até ao fim. Nada mau, apesar de tudo. Ainda assim, não tem futuro como 65/1088
romancista, ponto final. Lamento desapontar-te, mas é a minha opinião sincera. Pensando bem, Tengo era obrigado a reconhecer que as observações de Komatsu faziam sentido. Quanto mais não fosse, o homem tinha um bom intinto, na sua qualidade de editor. – No entanto, não vinha mal ao mundo se lhe déssemos uma oportunidade; que me diz? – insistiu Tengo. – Para ver se ela se aguenta no balanço ou se vai ao fundo? É isso que pretendes? – Por outras palavras, sim. – Já dei para esse peditório. Não quero estar presente quando mais alguém se afogar. – E no meu caso, o que aconselha? – Tu, pelo menos, estás disposto a trabalhar no duro – afirmou Komatsu, medindo cada palavra. – Pelo que tenho observado, não te poupas a esforços. Encaras o ofício da escrita com grande respeito. E porquê? 66/1088
Porque gostas de escrever. Dou valor a isso. Gostar de escrever é a qualidade mais importante para alguém que aspira a ser escritor. – Mas isso não chega. – Não, claro que só por si não chega. Tem de haver um «toque especial», uma espécie de qualidade indefinível que não pode ser descrita. No que respeita aos romances, é esse o critério a que dou mais valor. As coisas previsíveis não me dizem nada. Lógico. Tão simples quanto isto. Tengo permaneceu calado durante um bocado. Quando abriu a boca, foi para perguntar: – A escrita da Fuka-Eri tem alguma coisa de imprevisível, na sua opinião? – Sim, claro que tem. A rapariga possui qualquer coisa de valioso. Não sei ao certo o quê, mas que tem, tem. Tu sabes isso, e eu também. Entra pelos olhos dentro de qualquer pessoa, como o fumo de uma 67/1088
fogueira numa tarde sem vento. Mas uma coisa te digo, Tengo: esta rapariga pode não conseguir arcar sozinha com o peso que tem nas mãos. – Está a querer dizer que corre o risco de se afundar, se a deixarmos cair à água? – Acertaste. – E é por isso que não a quer incluir na lista restrita de nomes candidatos a submeter à fase final do concurso. – Aí tens. – Komatsu retorceu os lábios e juntou as mãos por cima da mesa. – Chegados a esta altura da nossa conversa, tenho de medir muito bem as minhas palavras. Tengo pegou na chávena que tinha à sua frente e olhou para os restos do café. Depois tornou a pôr a chávena no sítio. Komatsu ainda não dissera mais nada. Tengo voltou à carga. – É agora que me vai dizer o que entende por «uma ideia diferente»? 68/1088
Komatsu semicerrou os olhos, como um professor que tem diante de si um aluno aplicado, e assentiu devagar com a cabeça. – Acertaste.
Havia qualquer coisa de insondável na figura de Komatsu. Pela sua expressão, pelo seu tom de voz, uma pessoa não conseguia ler nos seus pensamentos nem adivinhar o que lhe ia na alma. Parecia que o simples facto de deixar os outros na expectativa lhe dava um certo gozo. Tinha uma notória agilidade mental, disso não restavam dúvidas. Era do género que pensa e decide segundo a sua própria lógica, sem se deixar influenciar pela opinião de terceiros. Apesar de não ter por hábito fazer alarde dos seus conhecimentos, era óbvio que tinha lido uma grande quantidade de livros e que possuía amplos conhecimentos sobre as mais variadas áreas do saber. De resto, não era só uma questão de conhecimentos. Na verdade, tinha um olho clínico para pessoas e obras literárias.
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Ainda que os preconceitos desempenhassem o seu papel em todo o processo, para Komatsu o preconceito constituía um elemento fundamental da realidade. Nunca fora um homem de muitas palavras e detestava entrar em grandes explicações, mas, quando necessário, sabia defender os seus pontos de vista com lógica e sagacidade. Se lhe desse na gana, também podia ser bastante cáustico, e era vê-lo, impiedoso, fazer uso da retórica e atingir o adversário no seu ponto fraco sem lhe dar tempo para respirar. Tinha uma opinião muito pessoal no que respeitava às pessoas e à literatura; contavam-se em maior número, sem comparação, as obras e os indivíduos que ele não podia tolerar. Como seria de esperar, também eram mais aqueles que não gostavam dele do que os que pensavam bem da sua pessoa, o que, diga-se de passagem, ia precisamente de encontro ao que ele pretendia. Tengo defendia a teoria segundo a qual 70/1088
Komatsu preferia estar isolado – e, mais, até tirava prazer do facto de ser abertamente odiado. Komatsu acreditava que a agudeza de espírito não nascia de um ambiente agradável. Komatsu tinha quarenta e cinco anos, mais dezasseis do que Tengo. Dedicara-se por completo à edição de uma revista literária e granjeara uma certa fama como editor reconhecido no meio, se bem que a sua vida pessoal permanecesse um mistério. O seu trabalho permitia-lhe conhecer uma quantidade de pessoas, mas não falava com ninguém das questões que diziam respeito à sua privacidade. Tengo não fazia ideia do lugar onde ele nascera, tão-pouco sabia onde vivia, de momento. Era frequente manterem longas conversas, só que esses temas nunca vinham à baila. Havia quem se interrogasse como é que um homem tão inacessível quanto Komatsu tinha acesso aos manuscritos dos escritores, quando era do 71/1088
conhecimento de todos que não tinha amigos, que se soubesse, e só destilava desprezo pelo mundo literário; contudo, ao longo dos anos, e quase sem ter de se esforçar muito, conseguira publicar na sua revista obras de autores famosos, e um número muito apreciável de edições ficou a dever-se a ele. Por isso, mesmo que não gostassem de Komatsu, as pessoas respeitavam-no. Corria o rumor de que, na altura em que andava a estudar literatura na Faculdade de Letras da prestigiada Universidade de Tō dai6, nos anos sessenta, Komatsu encontrava-se entre os líderes do movimento estudantil de esquerda, na época das manifestações contra o Tratado de Cooperação Mútua e Segurança assinado entre o Japão e os Estados Unidos. Dizia-se que ele teria estado nas manifestações ao lado da estudante Michiko Kanba, quando esta morrera na sequência de confrontos com a Polícia, e que ele próprio teria recebido ferimentos graves. 72/1088
Ninguém sabia até que ponto era verdade, mas o certo é que havia qualquer coisa em Komatsu que conferia verosimilhança às histórias. Alto e desengonçado, com uma boca demasiado grande e um nariz demasiado pequeno, tinha umas pernas e uns braços enormes, e manchas de nicotina na ponta dos dedos. Fazia lembrar um daqueles revolucionários falhados da intelligentsia que apareciam retratados nos romances russos do século XIX. Quase nunca sorria, porém, quando isso acontecia, todo o seu rosto se transformava. Tal não o fazia parecer especialmente feliz, mas antes um velho feiticeiro rindo-se entre dentes de uma qualquer profecia fatídica que estivesse prestes a revelar. Limpo e asseado, aparecia sempre vestido com o mesmo «uniforme», possivelmente para demonstrar ao mundo que não ligava peva a essas coisas: um casaco de tweed, uma camisa oxford de algodão branco ou um polo cinzento-claro, calças 73/1088
cinzentas, sem gravata, e sapatos de camurça. Tengo imaginava meia dúzia de casacos de tweed com três botões, de cor, tecido e padrão ligeiramente diferentes, muito bem escovados e arrumados no armário lá em casa. Talvez Komatsu tivesse criado etiquetas numeradas, para diferenciar um casaco do outro. No seu cabelo, rijo como arame, começavam a aparecer os primeiros fios brancos, perto das têmporas. Usava-o enguedelhado dos lados, a tapar as orelhas, e, uma coisa que fazia espécie a Tengo, o tamanho era sempre o mesmo, como se ele tivesse ido ao barbeiro uma semana antes. Por vezes, os olhos de Komatsu adquiriam um brilho penetrante, à imagem das estrelas cintilantes no céu noturno de inverno. Quando se calava, por qualquer motivo, permanecia mudo e quedo, como uma pedra na face oculta da Lua. Toda e qualquer expressão desaparecia do seu rosto, e dava a 74/1088
impressão de que a temperatura do corpo descia profundamente. Tengo travara conhecimento com Komatsu cinco anos antes. Na altura, tinha concorrido ao prémio atribuído pela revista literária em que Komatsu trabalhava enquanto editor e chegara à fase final. Komatsu telefonou-lhe para lhe dizer que gostaria de o conhecer e ter uma conversa com ele. Combinaram encontrar-se numa cafetaria em Shinjuku (a mesma em que estavam sentados naquele momento). Komatsu comunicou-lhe que não tinha qualquer hipótese de ganhar o prémio (e, de facto, não ganhou). Contudo, afirmou ele a título pessoal, gostara da história. «Não espero que me agradeças, mas é muito raro eu dizer uma coisa do género a alguém.» (O que era a mais pura verdade, como Tengo veio depois a confirmar.) «Portanto, gostaria que me deixasses ler a tua próxima história, antes de 75/1088
a mostrares a alguém», acrescentou. Tengo prometeu que assim faria. Komatsu pretendia ainda saber informações pessoais acerca de Tengo. Como tinha sido a sua juventude, a que é que se dedicava no presente. Tengo explicou-lhe tudo o que pôde, tintim por tintim. Nascera e tinha sido criado na cidade de Ichikawa, na prefeitura de Chiba. Pouco depois de dar à luz, a sua mãe adoeceu e acabou por morrer. Pelo menos foi essa a história que o pai lhe contou. Não tinha irmãos. O progenitor nunca voltara a casar-se; criara Tengo sozinho, a trabalhar como cobrador de taxas para a estação de televisão NHK7. Entretanto, com a idade, fora-lhe diagnosticada doença de Alzheimer e encontrava-se internado num lar localizado no extremo sul da península de Bōsō. Tengo licenciara-se na Universidade de Tsukuba, num programa de estudos com o estranho nome de Especialidade em Matemática do Primeiro Grupo de Ciências 76/1088
Puras, e, ao mesmo tempo, trabalhava como professor de Matemática numa escola particular em Yoyogi, que preparava os alunos para o exame de acesso à universidade. Quando se licenciou, teve a oportunidade de trabalhar como professor no liceu da prefeitura da zona, mas, em vez disso, preferiu dar aulas na escola preparatória, onde tinha maior liberdade de horários. Vivia sozinho num pequeno apartamento, no distrito de Koenji, a oeste do coração de Tóquio. Bastava-lhe meia hora de comboio para chegar à escola. O próprio Tengo não sabia bem por que razão queria ser escritor profissional, tãopouco estava certo de ter talento para escrever romances. O que sabia era que não podia passar sem escrever todos os dias, dedicando à escrita umas boas horas. Para ele, escrever era como respirar. Komatsu ouviu a história de Tengo e poucos ou nenhuns comentários fez. Por 77/1088
qualquer razão, o rapaz parecia ter-lhe caído no goto. Tengo era corpulento (por sinal, um dos elementos mais influentes da equipa de judo, do secundário à universidade), e tinha um olhar de camponês madrugador. Usava o cabelo curto, parecia andar sempre bronzeado e as suas orelhas, redondas e de lóbulos enrugados como pergaminho, faziam lembrar couves-flor, de tão redondas e carnudas. Não tinha nem o aspeto de um jovem com aspirações literárias nem de um professor de Matemática, o que também devia contribuir para que Komatsu lhe achasse uma certa graça. Sempre que Tengo acabava de escrever uma história, levava-a a Komatsu. Este lia-a e fazia os seus comentários. A seguir, Tengo reescrevia o texto com base nesses conselhos e mostrava-o de novo ao editor, que tornava a dar-lhe mais indicações, como um treinador que, pouco a pouco, fosse aumentando o nível de exigência. «No teu caso, pode 78/1088
levar um certo tempo», dizia Komatsu, «mas não há pressa. Preocupa-te em escrever todos os dias. E, lembra-te, não deites nada fora. Podes vir a precisar desse material mais tarde.» Tengo respondeu que assim faria. Pela sua parte, Komatsu encarregava Tengo de fazer pequenos trabalhos jornalísticos. Escreveu textos anónimos para a revista feminina publicada pela editora de Komatsu. Ocupava-se de tudo: desde reescrever as cartas ao editor até fazer recensões sobre filmes e livros, passando pelos horóscopos. Estes tornaram-se especialmente apreciados, porque ele acertava muitas vezes em cheio. Certa ocasião, quando escreveu: «Cuidado com o terramoto, previsto para amanhã de manhã cedo», houve, de facto, um grande terramoto ao romper do dia. Tengo tinha de agradecer a Komatsu, não só pelo dinheiro extra que lhe vinha parar ao bolso, mas também por representar um bom exercício, independentemente da forma que esses escritos 79/1088
tomavam. Acima de tudo, dava-lhe gozo ver os seus textos publicados, fosse em que formato fosse, e à venda nas livrarias. Ao fim de algum tempo, Tengo foi convidado a trabalhar como leitor de primeiras obras candidatas ao prémio da revista literária. Não deixava de ser estranho ter de proceder à leitura dos romances dos outros candidatos, sendo ele próprio candidato, mas lia-os com imparcialidade, sem se deixar impressionar demasiado com os contornos delicados da situação. Quanto mais não fosse, à força de devorar quantidades industriais de ficção escrita com os pés, aprendeu, da forma mais eficaz, o que era um romance mal escrito. Lia centenas de obras e, entre elas, escolhia umas dez que, aos seus olhos, tinham valor para mostrar a Komatsu, depois de a cada manuscrito juntar uma nota com as suas apreciações. Cinco dessas obras passavam à fase final e, de entre elas, os 80/1088
quatro membros do júri elegiam a vencedora. Para além de Tengo, havia outras pessoas que trabalhavam em regime parcial como leitores, e Komatsu era apenas um dos vários editores encarregados da fase prévia de seleção. Apelava-se, acima de tudo, à imparcialidade, mas não lhes dava assim tanto trabalho quanto isso. Independentemente do elevado número de obras a concurso, apenas duas ou três, no máximo, tinham algum valor literário, e quem as lesse não deixaria de reparar nelas. Por três vezes as obras de Tengo tinham chegado à final. Escusado será dizer que não fora Tengo a escolhê-las, mas outros dois leitores, bem como Komatsu, que tinha assento no comité de editores. Apesar de em nenhuma das vezes ter ganhado o prémio, Tengo não ficou dececionado. Para começar, gravara no seu espírito as palavras de Komatsu, segundo as quais tinha de dar tempo ao tempo. Além disso, não estava, 81/1088
para já, grandemente interessado em ser escritor. Desde que organizasse bem o horário de trabalho, podia dar-se ao luxo de ficar em casa durante quatro dias por semana, a fazer o que gostava. Tengo dera aulas na mesma academia durante sete anos e tornara-se bastante popular entre os alunos, não só porque ensinava a matéria de forma sucinta e com clareza, mas também por ser capaz de responder na hora a qualquer pergunta que lhe fosse colocada. O próprio Tengo ficava por vezes surpreendido com a sua eloquência. As explicações que dava eram inteligentes, tinha uma voz penetrante e punha os alunos todos a rir com uma boa piada. Sempre se considerara um fraco orador, e mesmo no presente havia alturas, no diálogo com outra pessoa, em que ficava mais nervoso e lhe faltavam as palavras. Num grupo reduzido de gente, limitava-se ao papel de ouvinte. Diante de uma turma inteira, 82/1088
porém, sentia o espírito lúcido e conseguia falar sem problemas durante o tempo que fosse preciso. A sua experiência enquanto professor reforçava a impressão que muitas vezes tinha de não entender os seres humanos. Tengo estava satisfeito com o que ganhava. Não se podia dizer que fosse muito, mas a escola pagava-lhe um ordenado de acordo com as suas capacidades. Periodicamente, os alunos realizavam uma avaliação dos professores, e a compensação financeira dependia dos resultados obtidos. A escola temia que os melhores professores fossem cobiçados por outras instituições (e, com efeito, no caso de Tengo, isso já acontecera por mais de uma vez). Numa escola normal, este sistema era coisa que não existia: aí, a antiguidade de posto determinava o ordenado, o conselho diretivo controlava a vida dos professores e o talento e a popularidade não tinham peso rigorosamente nenhum. 83/1088
Tengo gostava do seu trabalho na academia, era um facto. Na sua maioria, os alunos frequentavam-na com o objetivo explícito de se prepararem para os exames de admissão à universidade e assistiam às aulas dele com entusiasmo. Os professores só tinham de se preocupar com isso: dar as suas aulas, mais nada. E era o que Tengo fazia. Nunca precisava de se preocupar com problemas de comportamento ou infrações das normas escolares por parte dos alunos. Tinha apenas de aparecer para dar matéria e ensinar os alunos a resolver problemas matemáticos. E, neste ponto, é preciso dizer que a manipulação de conceitos puros mediante a ferramenta da matemática era, por natureza, o seu ponto forte. Quando estava em casa, Tengo tinha por hábito levantar-se cedo e escrever até começar a anoitecer. Uma caneta Montblanc, tinta azul e folhas quadriculadas normais, cada uma com espaço para 400 84/1088
carateres, era quanto bastava para ele ficar satisfeito. Uma vez por semana, a sua amante, uma mulher casada, aparecia no apartamento, e passavam a tarde juntos. O sexo com aquela mulher dez anos mais velha, com o marido à espera em casa, tinha a vantagem de não provocar stresse e satisfazia-o por não levar a nada. Ao cair da tarde, dava longos passeios e, quando o Sol se punha, lia enquanto escutava música. Nunca via televisão. Quando aparecia o cobrador da NHK, explicava que não possuía televisor, e recusava-se delicadamente a pagar. «Lamento, não tenho aparelho de televisão. Pode entrar e ver, se quiser», dizia ele, mas nunca entravam. Os cobradores estavam proibidos de entrar em casa das pessoas.
– Estou a pensar numa coisa de outra dimensão – disse Komatsu. – De outra dimensão? – Sim. Porquê contentarmo-nos com o prémio de jovens escritores? Não quero com
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isto retirar-lhe mérito nem grandeza, mas, em todo o caso, aspiro a uma coisa em grande. Tengo ficou em silêncio. Não fazia ideia de quais seriam as intenções de Komatsu, mas o que pressentia deixava-o inquieto. – O Prémio Akutagawa! – declarou Komatsu, depois de fazer uma pausa. – O Prémio Akutagawa? – repetiu Tengo, como se escrevesse as palavras na areia molhada com um pauzinho, em grandes carateres. – Vá lá, Tengo, tens obrigação de saber, não podes estar assim tão desligado. Estamos a falar do Prémio Akutagawa. Todos os escritores sonham com este prémio. Passam a vida a falar dele nos jornais e na televisão. – Agora é que me deixou perdido, senhor Komatsu. Ainda estamos a falar da FukaEri? 86/1088
– Claro que sim; da Fuka-Eri e do romance A Crisálida de Ar. Não estou a ver de que outro assunto teremos nós estado a falar. Tengo mordeu o lábio, ao mesmo tempo que se esforçava por ir além das palavras que acabara de ouvir e adivinhar os planos de Komatsu. – Mas não me disse que A Crisálida de Ar não tem qualquer hipótese de ganhar o prémio destinado aos jovens escritores? Não foi isso que dissemos, que, no estado em que está, não tem condições para conseguir nada? – Isso mesmo. Não tem condições para nada, tal como está. Isso é óbvio. Tengo precisava de tempo para pensar. – Está a querer dizer-me que o texto precisa de ser revisto? – Não vejo outra maneira. Não é assim tão invulgar quanto isso, o facto de um autor proceder à revisão de uma obra promissora, candidata a um prémio, a conselho do seu 87/1088
editor. Acontece muitas vezes. A diferença é que, neste caso, não será o autor a fazer as emendas, mas sim outra pessoa. – Outra pessoa? Quem? – Tengo fez a pergunta na mesma, apesar de saber à partida qual era a resposta. – Tu. Tengo procurou as palavras adequadas, mas não as encontrou. Deixou escapar um suspiro e disse: – O senhor sabe melhor do que eu que um trabalho desses precisa de muitas correções. Se não pegarmos no romance e o emendarmos da primeira à ultima página, lá se vai a coesão da obra. – Por isso é que conto contigo, para o reescreveres do princípio ao fim. Usa o esqueleto da história tal como está. E procura manter-te o mais fiel possível ao estilo. Agora, no que respeita ao texto propriamente dito, é preciso alterar a linguagem, proceder a uma mudança substancial. Tu 88/1088
ficas encarregado de reescrever o texto e eu serei responsável pela supervisão do produto final. – Sairá bem? – murmurou Tengo, como se falasse consigo mesmo. – Vais ver que sim – disse Komatsu, pegando numa colher e apontando com ela na direção de Tengo, fazendo o típico gesto de um diretor de orquestra que dirige um solista com a sua batuta. – Esta rapariga, Fuka-Eri, tem qualquer coisa de especial. Basta uma pessoa ler A Crisálida de Ar para se dar conta disso. Possui uma imaginação fora do vulgar, mas, infelizmente, a escrita não vale nada, para não dizer que é um falhanço total. Tu, por outro lado, escreves bem. Sabes delinear uma história e tens bom gosto. Com essa tua aparência de lenhador, a verdade é que os textos que escreves denotam inteligência e sensibilidade. Sem esquecer outra coisa importante: desprende-se deles uma espécie de brilho. Ao contrário da 89/1088
Fuka-Eri, contudo, ainda não sabes muito bem o que queres escrever. Daí que, muitas vezes, o fio condutor das tuas histórias se perca. Tens algo guardado no teu interior e precisas de escrever acerca disso, o problema é que ainda não conseguiste ir ao fundo de ti mesmo, a fim de resgatar o que lá existe. Comparo-o a um animal assustado, escondido no fundo de uma caverna. Sabes onde se encontra; acontece, porém, que só lhe poderás deitar a mão quando sair de lá para fora. É nesse sentido que estou sempre a dizer-te que dês tempo ao tempo. Sentado na cadeira de vinil, Tengo mudou desajeitadamente de posição. Não respondeu nada. – A questão é muito simples – continuou Komatsu, a agitar a colher de chá ao sabor do improviso. – Reunimos dois escritores e criamos um novo autor. Juntamos o teu estilo perfecionista à história em bruto da FukaEri. Parece-me ser a combinação ideal. Sei 90/1088
que tens capacidade para tal. Por que razão pensas que tiveste o apoio que te dei até agora? Quanto ao resto, deixa o assunto nas minhas mãos. Se unirmos forças, o prémio destinado aos jovens escritores está no papo, e, a seguir, poderemos aspirar ao Akutagawa. Não andei a desperdiçar o meu tempo nesta atividade durante estes anos. Conheço os segredos todos. Tengo ficou a olhar para Komatsu com a boca entreaberta. Komatsu voltou a pousar a colher no pires. O som produzido revelou-se desproporcionado. – Vamos imaginar que o romance conquista o Akutagawa. O que acontece a seguir? – perguntou Tengo, recuperando a presença de espírito. – Se ganhar o Akutagawa, causará sensação. As pessoas, na sua maioria, não sabem dar o devido valor a um bom romance, mas não querem ficar à margem. Por isso, quando aparece um livro vencedor do 91/1088
prémio, compram-no e leem-no, sobretudo a partir do momento em que souberem que foi escrito por uma estudante. Se o livro vender, podemos ganhar muito dinheiro. Os lucros serão repartidos pelos três. Disso encarregome eu. – O dinheiro não me preocupa rigorosamente nada – afirmou Tengo, numa voz desprovida de emoção. – Agora, diga-me uma coisa, o que acabou de me propor não vai contra o seu código deontológico, como editor? Se este esquema se tornasse público, teríamos aqui um grave problema. Calculo que até o seu posto de trabalho ficaria ameaçado. – Não se vai descobrir assim com tanta facilidade. Proponho-me tratar de tudo com a máxima discrição. E mesmo que a história viesse a saber-se, ficaria contente por me ir embora da editora. Os patrões nunca simpatizaram comigo e sempre me falaram com duas pedras na mão. Acredito que não terei 92/1088
dificuldade em arranjar trabalho noutro sítio. Além disso, não o faço por dinheiro. Tudo o que desejo é humilhar o mundo literário. Quero ficar a rir-me desse bando de aves raras e de convencidos, que mais não fazem do que passar o tempo reunidos em caves lúgubres, a bajularem-se uns aos outros e a lamberem as feridas em conjunto, e a apunhalarem-se pelas costas sem nunca deixarem de debitar as suas teorias da treta sobre a missão da literatura. Faço tenções de trocar as voltas ao sistema e de os pôr por completo a ridículo. Não te parece divertido? Aos olhos de Tengo, nada daquilo lhe parecia divertido. Em boa verdade, ele nunca fora introduzido nos chamados «círculos literários». E, depois, o simples facto de um indivíduo competente como Komatsu apresentar motivos pueris como aqueles para dar um passo tão perigoso deixara-o, por momentos, sem palavras. 93/1088
– Parece-me uma espécie de esquema fraudulento, isso que me propõe – acabou ele por dizer. – As coautorias neste ramo não são assim tão raras quanto isso – referiu Komatsu, franzindo a testa. – Metade dos trabalhos que aparecem nas revistas de manga são fruto de colaborações. A equipa reúne e atira umas ideias para o ar, cria uma história, o artista limita-se a desenhá-la com traços simples, os assistentes ocupam-se dos pormenores e dão cor ao conjunto. Vendo bem, o processo não é muito diferente do que existe numa fábrica que produz despertadores. O mesmo acontece no mundo da ficção. Os romances de amor, por exemplo. Na maior parte dos casos, os escritores são contratados para inventar histórias que sigam o padrão traçado por uma determinada linha editorial. Trata-se de um sistema de divisão de trabalho, por outras palavras. Caso contrário, a produção em massa não funcionaria. Porém, 94/1088
como no mundo sério da ficção literária esses métodos não são usados abertamente, por uma questão de estratégia teremos de indicar o nome da Fuka-Eri à frente de todo o processo, na qualidade de autora. Se a verdade fosse descoberta, possivelmente seria um escândalo, mas, ainda assim, não teríamos infringido qualquer lei. Hoje em dia, é a coisa mais normal do mundo. Além disso, não estamos propriamente a falar de Balzac nem de Murasaki Shikibu8. O que nos propomos fazer é pegar na história, cheia de buracos, por sinal, escrita por uma estudante do secundário, e transformá-la numa obra de ficção decente. Que mal tem? Se o trabalho final resultar numa obra de qualidade que dê prazer a numerosos leitores, não vejo qual é o problema. Tengo refletiu sobre o que acabara de ouvir e respondeu a Komatsu, medindo bem as palavras. 95/1088
– Vejo dois problemas. De certeza que há mais, mas, por enquanto, prefiro concentrarme nestes dois. Em primeiro lugar, não sabemos se a autora, que é como quem diz, a Fuka-Eri, estará disposta a dar o seu consentimento e a permitir que o seu trabalho seja revisto por terceiros. Basta que ela diga que não, e todo o projeto cairá pela base. O outro problema, partindo do princípio de que ela aceita a proposta, consiste em saber se eu serei capaz de melhorar a história, ao reescrevê-la. A coautoria é um terreno muito delicado; não creio que as coisas funcionem assim tão bem como sugere. – Sei que consegues, Tengo – disse Komatsu, sem hesitar, como se tivesse previsto a reação do outro. – Não tenho qualquer dúvida. Soube-o assim que li A Crisálida de Ar. A primeira coisa que me passou pela cabeça foi: «Esta história tem de ser reescrita pelo Tengo.» Trata-se da história perfeita 96/1088
para ti, e está ali à espera, para que pegues nela e lhes dês a volta. Não entendes isso? Tengo limitou-se a negar com a cabeça. Não disse nada. – Não há pressa – afirmou Komatsu, com toda a calma. – É importante. Pensa no assunto durante dois ou três dias. Volta a ler A Crisálida de Ar e vê se consideras a minha proposta. Ah, é verdade, deixa-me dar-te isto, antes que me esqueça... Komatsu tirou do bolso do casaco um envelope castanho e entregou-o a Tengo. Dentro do envelope havia duas fotografias a cores, em tamanho normal. Polaroides de uma rapariga. O retrato dela, da cintura para cima, e uma fotografia de corpo inteiro. Pareciam ter sido tiradas na mesma ocasião. A rapariga encontrava-se de pé, diante de uma larga escadaria de pedra. Era uma jovem bela, de feições clássicas. Cabelo longo e liso. Blusa branca. Pequena e magra. Os lábios esforçavam-se por sorrir, mas os olhos 97/1088
resistiam. Tinha um olhar sério. Um olhar em busca de qualquer coisa. Tengo estudou as duas fotografias durante algum tempo. Quanto mais observava as fotografias, mais se lembrava de si mesmo com aquela idade. E foi então que sentiu uma dor ligeira e maçadora no peito. Era uma dor especial, que há muito não experimentava. – É a Fuka-Eri – disse Komatsu. – Bonita rapariga, não achas? Sensível e cheia de frescura. Tem dezassete anos. Perfeito. Não dizemos a ninguém que, na realidade, se chama Eriko Fukada. Mantemos o nome Fuka-Eri. Só isso já vai dar que falar, caso ela ganhe o Prémio Akutagawa, não te parece? Os jornalistas vão andar de roda dela que nem um bando de morcegos ao anoitecer. O livro vai esgotar a edição assim que for posto à venda. Tengo estranhou a situação e interrogouse quanto à origem das fotografias. Não era costume as obras candidatas trazerem fotografias dos autores junto com os 98/1088
manuscritos. Decidiu, contudo, não fazer perguntas, até porque não queria saber, apesar de não fazer ideia de qual pudesse ser a resposta. – Fica com elas – disse Komatsu. – Podem vir a servir-te para alguma coisa. Tengo tornou a guardar as fotografias no envelope e colocou-o em cima do manuscrito. A seguir, explicou a Komatsu. – Não sei lá muito bem como funciona a chamada «indústria» do livro, mas quer-me parecer, e estou a guiar-me pelo estrito senso comum, que se trata de um plano extremamente perigoso. A partir do momento em que se conta uma mentira em público, é preciso continuar sempre a mentir. A história nunca mais acaba. Não deve ser fácil, nem do ponto de vista psicológico nem do prático, ser obrigado a distorcer a verdade para o resultado se tornar verosímil. Se alguma das pessoas envolvidas no esquema cometer um 99/1088
deslize, isso poderá revelar-se fatal para todos. Concorda? Komatsu puxou de um cigarro e acendeuo. – Tens toda a razão. É, de facto, arriscado. Há demasiadas incertezas, neste momento. Um passo em falso, e a situação pode tornarse muito desagradável para o nosso lado. Tenho a perfeita noção disso, Tengo. Mas, sabes uma coisa?, levando tudo em consideração, o meu instinto diz-me para seguir em frente. Pela simples razão de que oportunidades destas não aparecem muitas vezes. Por mim falo, que nunca tive uma, e o mais certo é não voltar a tê-la tão cedo. Talvez a comparação não seja a melhor, mas os dados estão lançados. Temos uma quantidade de trunfos e de fichas, pela parte que nos toca. As condições não podiam ser melhores. Se deixarmos passar a oportunidade, iremos arrepender-nos para o resto da vida. 100/1088
Tengo deixou-se ficar calado a olhar para Komatsu. O rosto do editor deixava transparecer um sorriso sinistro. Komatsu continuou: – E o mais importante é que vamos transformar A Crisálida de Ar numa obra muito melhor. Estamos a falar de uma história que merecia estar mais bem escrita. Possui qualquer coisa de importante, e é preciso alguém que saiba extrair dela o que de valioso tem. De certeza que, no fundo, também pensas o mesmo, Tengo. Engano-me? Vamos lá contribuir em conjunto para este projeto, cada um com o seu talento: propomo-nos juntar os nossos recursos com uma finalidade apenas, a saber: realçar o que a obra tem de melhor e elevá-la. Não há que ter vergonha, são genuínos os motivos que nos movem. – Bom, o senhor Komatsu pode encontrar toda a espécie de justificações e inventar os 101/1088
mais variados e nobres pretextos, mas uma fraude não deixa de ser uma fraude. – Vê se entendes isto, Tengo, porque querme parecer que estás a esquecer-te de um elemento muito importante – insistiu Komatsu, abrindo a boca num sorriso rasgado tão exuberante como Tengo nunca lhe vira antes. – Ou devo antes dizer que estás a evitar o assunto, de propósito? Refiro-me ao facto de estares decidido a levar isto por diante. O risco e a moral que se lixem. Até aí, sei do que a casa gasta. Tens uma vontade louca de deitar mãos à obra e reescrever A Crisálida de Ar. Queres ser tu a extrair dali o que de especial a história contém. Olha, vai para casa e pensa a sério no que queres fazer. Põe-te diante do espelho e olha para ti, observa bem a imagem que tens pela frente. Está escrito na tua cara. Tengo teve a sensação de que o ar à sua volta se tornava mais fino de repente. Olhou em redor. Outra vez aquela visão? Não, não 102/1088
havia qualquer indício. O ar rarefeito devia ter outra origem distinta. Tirou um lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Komatsu tinha sempre razão. Porque seria?
5 Por tradição, a ordem dos nomes japoneses começa pelo nome de família, seguido do nome próprio. Regra geral, entre si, tratam-se pelo apelido. Contudo, os próprios japoneses são muitas vezes os primeiros a alterar a ordem dos fatores, sobretudo quando se apresentam aos ocidentais. (N. das T.)
6 Abreviatura de Tōkyō Daigaku (Universidade de Tóquio), a mais prestigiada do Japão. (N. das T.)
7 3 Radiotelevisão pública japonesa. Sempre identificada pela pronúncia inglesa das suas iniciais (Nippon Hōsō Kyōkai), é uma empresa pública cujo financiamernto advém de uma taxa de televisão paga pelos telespetadores, à imagem do que aconteceu com a RTP desde 1958 até 1991. (N. das T.)
8 Murasaki Shikibu (978-1026) pertenceu à aristocracia da corte imperial japonesa e marcou o panorama literário do
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seu tempo. O Romance do Genji, considerado o primeiro romance da literatura, está dividido em 54 livros e foi escrito numa linguagem coloquial (e em hiragana, um dos alfabetos silábicos da língua japonesa). O tom narrativo é dominado por aquilo a que Harold Bloom chamou «um pathos irónico». (N. das T.) 104/1088
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AOMAME
Algumas coisas que mudaram
Aomame desceu pelas estreitas escadas de emergência. Sem sapatos, só com as meias nos pés. O vento soprava através dos degraus, desprotegidos e expostos aos elementos da natureza. Trazia uma minissaia justa, mas, apesar disso, as fortes rajadas que por vezes vinham de baixo enfunavam a saia como a vela de um veleiro, levando o seu corpo a elevar-se e fazendo-a correr o risco de perder o equilíbrio. Com as mãos despidas, agarrou-se aos frios tubos de metal que lhe serviam de corrimão e desceu os degraus um a um, sempre de costas. Volta e
meia, interrompia a descida para afastar o cabelo que lhe caía sobre a testa e aproveitava para ajustar a posição do saco que levava na diagonal, sobre o peito. Diante de si, estendia-se a Estrada Nacional 246. Estava rodeada pelos ruídos tipicamente citadinos: motores de carros, buzinadelas, gritos estridentes dos alarmes antirroubo das viaturas, uma velha canção de propaganda militar emitida por uma carrinha ao serviço de um grupo de extremadireita, o estrondo provocado por uma marreta a partir cimento algures na cidade. Trazido pelo vento, o barulho afluía de todos os lados – de cima, de baixo, vindo de trezentos e sessenta graus à sua volta. Ao ouvir aquele chinfrim (não que ela quisesse, mas não estava em posição de tapar os ouvidos), começou a sentir-se maldisposta, para não dizer mesmo nauseada, como se estivesse a bordo de um barco. 106/1088
Depois de ter descido um bocado, as escadas foram dar a uma passadeira que regressava à parte central da autoestrada. A partir daí, o caminho era sempre a direito, num plano inclinado. Um pequeno edifício de cinco andares separava a estrada das escadas de emergência expostas à intempérie. Era um prédio de tijolo castanho, acabado de construir. Cada apartamento tinha uma varanda que dava para a escada de emergência onde se encontrava Aomame, mas todas as janelas estavam fechadas, com as cortinas cerradas ou as persianas descidas. Que género de arquiteto se lembraria de desenhar aquelas varandas num prédio que ficava mesmo virado para a autoestrada? De certeza que ninguém ia pôr roupa a secar num sítio como aquele, ou deixar-se estar ali, com um gim-tónico na mão, a observar o trânsito da hora de ponta ao entardecer. Ainda assim, via-se meia dúzia de cordas de náilon para estender a 107/1088
roupa, e numa das varandas até havia uma cadeira de jardim e uma árvore-da-borracha dentro do respetivo vaso. A planta estava maltratada, e as suas folhas, descoloridas, apresentavam pequenas manchas castanhas, sinal de que começava a secar. Aomame não podia deixar de ter pena daquela planta. Só esperava, caso voltasse a nascer, não reencarnar numa mísera árvore-da-borracha! A julgar pelas teias de aranha que se viam penduradas, a baloiçar, as escadas de emergência quase nunca eram usadas. Agarrada à sua teia, uma viúva-negra esperava, paciente, por alguma presa pequena, se bem que para as aranhas não exista o conceito de «paciência». Uma aranha, a única habilidade especial que possui é tecer a sua teia, e não lhe resta outra opção de vida que não seja deixar-se estar ali. Ficar quieta num sítio, esperar pela sua presa, até que, pela ordem natural das coisas, acaba por morrer e secar. Tudo isto se encontra programado nos seus 108/1088
genes. As aranhas desconhecem a dúvida metafísica, o desespero, conflitos morais. Provavelmente. Ao contrário de mim. Tenho de agir segundo o meu objetivo, razão pela qual me encontro sozinha, neste momento, a descer por estas estúpidas escadas de emergência da Autoestrada Metropolitana 3, que vão dar algures à porcaria das imediações de Sangenjaya, com as meias rasgadas, vendome obrigada a afastar do caminho as malditas teias de aranha e a ter de aturar uma árvore-da-borracha que alguém se lembrou de pespegar na estúpida varanda. Movo-me, logo existo. À medida que descia as escadas, Aomame pôs-se a pensar em Tamaki Ōtsuka. Não era sua intenção, mas, assim que Tamaki lhe veio à cabeça, não foi capaz de deixar de pensar nela. Tratava-se da sua melhor amiga nos tempos da escola secundária, e ambas tinham pertencido à mesma equipa de 109/1088
softbol. Enquanto companheiras de equipa, tinham viajado para muitos lugares diferentes e fizeram toda a espécie de coisas em conjunto. Uma vez, partilharam uma experiência lésbica. As duas embarcaram numa viagem de verão e acabaram por dormir juntas, acontecendo então uma pequena cama de casal, que foi a única que o hotel lhes pôs à disposição. Quando deram por elas, estavam a explorar o corpo uma da outra. Não eram lésbicas; simplesmente, estimuladas pela curiosidade natural, própria das adolescentes, ousaram experimentar. Nenhuma delas tinha namorado, na altura, e não haviam ainda tido qualquer experiência sexual. A vivência daquela noite ficara-lhe gravada na memória como um episódio «excecional mas interessante» da sua vida. Contudo, enquanto descia as escadas batidas pelo vento, ao recordar imagens soltas de Tamaki e dela própria a tocarem-se naquela noite que já lá ia, Aomame começou a sentir 110/1088
um certo calor naquela parte pequena e ínfima de si. Os mamilos ovais de Tamaki, os esparsos pelos púbicos, a delicada curva das nádegas e a forma do clítoris: para seu grande espanto, Aomame lembrava-se de tudo com uma estranha clareza. Enquanto evocava aquelas memórias tão gráficas, na sua mente ressoava, como música de fundo, o tom em uníssono dos instrumentos de corda da Sinfonietta de Janáček. Com a palma da mão, acariciava a cintura estreita de Tamaki. A princípio, a amiga ria-se como se lhe estivessem a fazer cócegas, mas, às tantas, o riso sufocado ficou preso na garganta e a respiração dela passou a ser diferente. Na sua origem, a peça tinha sido composta como uma fanfarra para uma competição desportiva. O vento soprava suavemente através das planícies verdes da Boémia, ao som da música. Aomame apercebeu-se de os mamilos de Tamaki ficarem rijos, e o mesmo aconteceu com os seus. 111/1088
E foi então que os timbales rasgaram o ar numa complexa sequência musical. Aomame deteve-se e abanou a cabeça várias vezes. Não devia pôr-me para aqui com pensamentos destes. Preciso de me concentrar e tratar de descer as escadas. Mas não conseguia deixar de recordar. Com grande nitidez, as imagens passavam-lhe, uma atrás da outra, diante dos olhos. A noite de verão, a cama estreita, o ligeiro odor a suor. As palavras que então foram ditas. Os sentimentos que não tinham chegado a traduzir-se em palavras. As promessas esquecidas. Os desejos por realizar. As aspirações que tinham ficado pelo caminho. Uma lufada de vento levantou-lhe o cabelo e lançou-o com violência contra as faces. A dor fez-lhe subir uma pequena lágrima aos olhos. As correntes de ar que se seguiram encarregaram-se de lhe secar a lágrima. Quando é que tudo se passara?, interrogou-se Aomame. No entanto, o tempo 112/1088
enredava-se na sua memória, transformando-se numa espécie de fio emaranhado. Perdera o eixo que o mantinha em equilíbrio, e para trás e para diante, para a esquerda e para a direita, tudo ficara alterado. A posição das gavetas estava diferente, uma ocupara o lugar da outra. Por alguma razão, já não se conseguia lembrar de coisas que antes lhe ocorriam com facilidade. Estamos em abril de 1984. Nasci em 1954. Até aí, a sua memória ainda dava. Essas datas estavam gravadas na sua mente, mas bastava evocá-las para que deixassem de ter significado. Era como se estivesse a ver uma série de cartões brancos com a data espalhados ao sabor do vento, em todas as direções. Ela corria, tentando apanhá-los no maior número possível, mas o vento soprava demasiado forte, e o número de cartões perdidos revelava-se por demais elevado. 1954, 1984, 1645, 1881, 2006, 771, 2041... Essas datas, levava-as o vento. Perdiam a sua 113/1088
ordenação sistemática, desvaneciam-se os conhecimentos e a escada do pensamento desmoronava-se aos seus pés. Aomame e Tamaki estavam as duas na mesma cama. Tinham dezassete anos e gozavam em pleno da liberdade recém-conquistada. Era a primeira viagem que faziam juntas como amigas, e isso tornava a situação ainda mais excitante. Tomaram um banho quente nas águas termais do hotel, dividiram uma lata de cerveja que tiraram do frigorífico, apagaram as luzes e enfiaram-se na cama. Ao princípio, tudo não passou de um jogo, com uma e a outra a apalparem-se na brincadeira. A dada altura, porém, Tamaki estendeu o braço e tocou no mamilo de Aomame através da T-shirt que esta usava como pijama. Uma espécie de corrente elétrica percorreu Aomame. Às tantas, despiram a parte de cima e a roupa interior, e ficaram nuas. Era uma noite de verão. Onde teriam ido naquela viagem? Não se 114/1088
conseguia lembrar. Tanto fazia. Num abrir e fechar de olhos, sem que nenhuma delas o tivesse sugerido, estavam entretidas a examinar o corpo uma da outra ao pormenor. Contemplavam, tocavam, acariciavam, beijavam, lambiam, meio a brincar, meio a sério. Tamaki era de estatura baixa e a atirar para o roliço, com peitos grandes. Aomame era mais alta, elegante e musculada, sem peito que se visse. Tamaki passava o tempo a falar em fazer dieta, mas Aomame achava-a atraente tal como estava. A pele de Tamaki era suave e fina. Os seus mamilos tinham uma bonita forma oval e faziam lembrar duas azeitonas. Os pelos púbicos eram fininhos e esparsos, como um salgueiro delicado. Em contrapartida, o cabelo do púbis de Aomame era duro e rígido. Essas diferenças fizeram-nas rir. Experimentaram tocar-se até nas zonas íntimas, trocando informações sobre as mais sensíveis. Numas coincidiam, noutras não. 115/1088
Usaram os dedos e tocaram-se mutuamente no clítoris. Tanto uma como a outra já tinham antes experimentado masturbar-se – muitas vezes. Todavia, ambas se deram conta de como era diferente a sensação de serem tocadas por outra pessoa. O vento atravessou as planícies verdes da Boémia. Aomame voltou a deter-se e abanou a cabeça. Suspirou fundo e tornou a agarrar-se com firmeza ao corrimão. Tenho de deixar de pensar nestas coisas. Preciso de me concentrar nas escadas que ainda falta descer. Já devo ter descido mais de metade. Porque será que ainda há tanto barulho? Por que razão sopra o vento tão forte? É como se tudo isto fosse uma reprimenda e um castigo que me são destinados. Pondo de lado aquele género de considerações subjetivas, Aomame começou a preocupar-se com o cenário que estaria à sua espera quando chegasse ao fundo das 116/1088
escadas. E se encontrasse alguém e fosse obrigada a identificar-se e a justificar a sua presença, que diria? Vi-me obrigada a descer por estas escadas de emergência porque há engarrafamento na autoestrada, e eu tenho um assunto que não pode esperar? Seria essa explicação suficiente? Ou não serviria para evitar problemas? Aomame não queria ver-se enredada em complicações. Pelo menos nesse dia.
Por sorte, não chegou a encontrar ninguém. A primeira coisa que fez ao pisar solo firme foi tirar os sapatos do saco a tiracolo e calçá-los. A escada ia ter a um descampado convertido numa zona de depósito de materiais, cercado a toda a volta por um gradeamento de metal. Espalhados pelo chão, de forma desordenada, viam-se vários pilares de ferro; era provável que fossem excedentes de alguma obra, pois estavam, na sua maioria, oxidados e cheios de crostas de ferrugem.
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A um canto, debaixo de um revestimento de plástico, amontoavam-se três sacos de serapilheira. Não era possível ver o que tinham dentro, porque estavam cobertos com plásticos para não se molharem. Também os sacos tinham todo o ar de serem restos de alguma obra, ali deixados ao abandono, porque daria demasiado trabalho mudá-los de sítio. Debaixo do telhado, viam-se ainda umas quantas caixas grandes de cartão esmagadas, várias garrafas de plástico e uma quantidade de revistas manga. Tirando alguns sacos de plástico que dançavam ao vento sem rumo certo, não havia mais nada. Existia uma porta de rede metálica, mas em torno dela tinham enrolado uma corrente com várias voltas e posto um grande cadeado. Ainda por cima, estava rematada com arame farpado. Tudo indicava que seria impossível passar por cima. Mesmo que ela conseguisse saltar, arriscava-se a rasgar a roupa. Tentou empurrar e fazê-la ceder, 118/1088
contudo, a porta não se moveu um centímetro. Não havia sequer espaço para um gato passar. Para quê tantas medidas de segurança num sítio daqueles? Não havia ali nada que valesse a pena roubar. Aomame franziu a testa, amaldiçoou a sua sorte e cuspiu no chão. Merda! Dera-se a todo aquele trabalho de descer pelas escadas de emergência a partir da autoestrada para se encontrar prisioneira num depósito de material de construção! Deu uma olhadela ao relógio de pulso. Ainda tinha algum tempo, mas não podia demorar-se eternamente naquele lugar. E, escusado será dizer, regressar à autoestrada estava fora de questão. As meias estavam ambas rasgadas no calcanhar. Depois de se ter certificado de que não havia ninguém a ver, descalçou os sapatos de salto alto, arregaçou a saia, puxou as meias para baixo, tirou-as e voltou a calçar os sapatos. Guardou as meias rotas no bolso. De certo modo, esse gesto acalmou-a. A 119/1088
seguir, pôs-se a fazer o reconhecimento do depósito, prestando atenção a todos os pormenores. Tinha mais ou menos o tamanho de uma sala de aulas, pelo que não demorou muito a dar a volta. Só tinha uma única porta de entrada e de saída, isso ela já sabia. O material metálico que cercava o recinto era fraco, mas estava bem fixado; sem ferramentas, dificilmente conseguiria soltar os parafusos. Encontrava-se encurralada. Regressou à zona do tejadilho de plástico, onde se encontravam as caixas de cartão, e inspecionou-as por dentro. Deu-se conta de que alguém as utilizara para fazer as vezes de cama. Havia também um par de mantas usadas, enroladas lá dentro. Não deviam ser tão velhas quanto isso. Era provável que algum sem-abrigo9 vivesse ali, o que explicaria a presença de garrafas e de revistas. Sem sombra de dúvida. Aomame pôs a cabeça a funcionar. Se alguém utilizava aquele local para pernoitar, teria de haver um sítio escondido 120/1088
por onde entrar e sair. Os vagabundos costumam ser especialistas em descobrir lugares para se resguardarem do vento e da chuva, sem que ninguém dê pela sua existência. E sabem o que fazer para manter essas passagens secretas só para eles, como se fossem trilhos de animais selvagens. Aomame inspecionou com cuidado, um a um, os segmentos de metal da vedação. Abanava-os com a mão, para ver se aguentavam. Tal como esperava, encontrou uma placa que devia ter ficado sem um parafuso e que se movia. Experimentou inclinála de um lado e de outro. Ao mudar um pouco o ângulo e empurrando ligeiramente para dentro, lá conseguiu arranjar espaço suficiente para deixar passar uma pessoa. Era provável que os vagabundos entrassem por ali, ao anoitecer, à procura de um teto para dormir, mas decerto arranjariam problemas se ali fossem apanhados, por isso, enquanto havia luz do dia, deviam andar por fora, à 121/1088
procura de comida e a recolher garrafas para ganhar uns trocos. Aomame deu graças aos habitantes noturnos sem nome. Ela, tal como eles, sabia o que era ter de se mover furtivamente, anonimamente, pelo lado oculto de uma grande cidade. Vendo as coisas por esse prisma, podia dizer-se que eram companheiros de percurso. Aomame encolheu-se e passou através da estreita abertura, sempre com o máximo cuidado para que o caríssimo fato que levava vestido não ficasse preso nem se rasgasse. Para além de ser o único saia-casaco que tinha, era a sua roupa preferida. Por regra, não andava assim arranjada, tão-pouco calçava sapatos de salto alto. Porém, em certas ocasiões, o tipo de trabalho que era chamada a fazer exigia que se vestisse de uma forma mais formal. Resultado: não podia dar-se ao luxo de estragar a fatiota. Por sorte, não se via ninguém do outro lado da vedação. Depois de passar revista à 122/1088
roupa que levava no corpo e de recuperar a expressão serena, caminhou até um semáforo, atravessou a Nacional 246 e entrou numa loja para comprar um par de meias, que tratou de calçar depois de ter pedido à empregada para utilizar a casa de banho dos fundos. Uma vez calçadas as meias novas, ficou logo bastante melhor e deixou de sentir aquele ligeiro desconforto, parecido com a sensação de enjoo que se tem quando se anda de barco. Agradeceu então à funcionária da loja e abandonou o estabelecimento comercial. Talvez porque tivesse circulado a notícia de que o trânsito na autoestrada metropolitana se encontrava parado devido a um acidente, a Nacional 246, paralela àquela via, estava mais congestionada do que era normal. Por esse motivo, Aomame desistiu de tomar outro táxi e decidiu apanhar a linha Shin-Tamagawa de Tóquio na estação mais próxima. Parecia-lhe ser a solução mais 123/1088
segura. Não queria voltar a ver-se metida noutro engarrafamento dentro de um táxi. Quando ia para a estação de Sangenjaya, cruzou-se com um polícia. Era um agente alto e jovem que se dirigia a pé, em grandes passadas, para qualquer lado. Por um breve instante, Aomame ficou nervosa, mas o polícia, que parecia ter pressa, seguiu em frente e nem sequer olhou para ela. Pouco antes de se cruzar com ele, Aomame deu-se conta de que havia qualquer coisa de diferente no uniforme do polícia. Aquela não era a farda da polícia que ela estava habituada a ver. Tratava-se do mesmo casaco azul-marinho, sim, mas a forma variava um pouco. Davalhe um ar mais informal. Até o material era diferente, no que tocava à textura, e não assentava tão bem como o antigo. Tinha as lapelas mais pequenas e o tom de azulmarinho mostrava-se mais ténue. Também a arma era de um modelo diferente. A que ele trazia à cintura era grande, tipo pistola. 124/1088
Normalmente, o modelo atribuído aos polícias japoneses era um revólver. Num país como o Japão, onde os crimes com armas de fogo eram tão escassos, e considerando que as ocasiões em que a polícia se via envolvida em tiroteios se contavam pelos dedos, bastava os velhos revólveres de seis tiros. Os revólveres tinham um mecanismo mais simples, eram mais baratos e fáceis de manter, para além de causarem menos acidentes. No entanto, aquele polícia, por uma razão qualquer, levava uma pistola de último modelo, que permitia disparar de rajada. Das que se podem carregar com dezasseis munições de nove milímetros. Talvez fosse uma Glock ou uma Beretta. Que diabo estaria a acontecer? Teriam mudado os fardamentos e as armas sem que ela se apercebesse? Não, não podia ser. Aomame consultava o jornal todos os dias para saber as notícias ao pormenor. A verificar-se uma mudança daquelas, por certo teria tido 125/1088
grande destaque na imprensa. Além do mais, ela costumava prestar sempre muita atenção à figura dos polícias. Ainda nessa manhã, poucas horas antes, os vira passar, e iam vestidos com o velho uniforme rígido e armados com os toscos revólveres de sempre. Aomame tinha a imagem deles gravada com nitidez na sua mente. Era muito estranho. A verdade, porém, é que não havia tempo para ficar ali parada a pensar naquilo. Tinha um trabalho por concluir. Aomame guardou a gabardina no depósito da estação de Shibuya, que funcionava com moedas, e ficou vestida apenas com o fato; depois, começou a subir a encosta de Dogenzaka em passo ligeiro até chegar ao hotel. Tratava-se de um hotel situado no centro, de categoria média. Bastante decente, estava bem equipado e aparentava ser asseado, sem clientes indesejáveis. No primeiro andar havia um restaurante, e também dispunha de 126/1088
uma loja aberta vinte e quatro horas por dia. Ficava bem situado, perto da estação. Ao entrar no hotel, foi direita à casa de banho. Por sorte, estava vazia. A primeira coisa que fez foi sentar-se e urinar. Aquilo demorou o seu tempo. Fechou os olhos e, sem pensar em nada de concreto, pareceulhe, ao ouvir o som da sua própria urina, que era como se estivesse a escutar o rumor das ondas ao longe. A seguir, pôs-se de pé, diante do lavatório, lavou cuidadosamente as mãos com sabão, passou a escova pelo cabelo e assoou-se. Tirou a escova dos dentes e lavouos a correr, sem usar pasta. Como estava com falta de tempo, passou por cima do ritual do fio dental. Não fazia diferença. Afinal, não estava propriamente a preparar-se para um encontro amoroso. Em frente ao espelho, pintou ao de leve os lábios e retocou as sobrancelhas com o lápis. Despiu a parte de cima do fato, ajeitou a armação de arame do sutiã, alisou as rugas da camisa branca e 127/1088
cheirou as axilas. Não cheirava a suor. Depois, fechou os olhos e recitou uma oração, como fazia sempre. Aquelas palavras não queriam dizer nada. O significado não importava. O importante era rezar. Quando acabou de rezar, abriu os olhos e olhou-se ao espelho. Perfeito. Era uma mulher de negócios competente, digna desse nome, e não tinha motivos para estar preocupada. Costas direitas. Boca firme. Apenas o saco desportivo, grande e volumoso, parecia destoar, mas, por outro lado, tratava-se de um artigo mais prático. Voltou a passar em revista o seu conteúdo, a fim de confirmar se tinha lá dentro o que precisava. Não havia problema. Estava tudo no sítio, de tal maneira que podia sacar de lá fosse o que fosse às apalpadelas. Só faltava executar a tarefa que lhe fora atribuída. Tinha de ir direita ao assunto, sem hesitações, e mostrar-se implacável. Aomame desapertou o primeiro botão da 128/1088
blusa, para que lhe vissem o decote com mais facilidade quando se baixasse. Pena que não tivesse um pouco mais de peito para mostrar! Sem chamar a atenção de ninguém, subiu no elevador até ao quarto andar, caminhou pelo corredor e não demorou muito a encontrar a porta do quarto 426. Tirou de dentro do saco uma prancheta que trazia preparada, colocou-a diante do peito e bateu à porta, com um toque suave e telegráfico. Aguardou um momento. Novo toque, desta vez um pouco mais forte. Ouviu alguém resmungar lá dentro e a porta entreabriu-se. Apareceu o rosto de um homem. Devia ter à volta de quarenta anos. Camisa azul-marinho e calças de flanela cinzentas. O típico homem de negócios que se liberta por momentos do casaco e da gravata. Tinha os olhos vermelhos e parecia estar de mau humor. Provavelmente por falta de sono. Pareceu um tanto surpreendido ao ver Aomame vestida com o 129/1088
seu fato de executiva. Talvez estivesse à espera de uma empregada, das que estão encarregadas de repor as bebidas no minibar do quarto. – Lamento incomodá-lo. Sou a senhora Itō e pertenço à administração do hotel. Houve um problema com o ar condicionado e venho inspecionar o quarto. Importa-se que entre? Não demoro mais de cinco minutos – anunciou Aomame num tom profissional, com um sorriso afável. O homem entortou os olhos, nitidamente agastado. – Estou com um trabalho urgente em mãos, uma coisa importante que tenho de acabar. Daqui a uma hora fico despachado e abandono o quarto. Não pode voltar nessa altura? Até agora, o ar condicionado tem estado a funcionar bem. – Tenho muita pena, mas trata-se de uma verificação urgente relacionada com um curto-circuito. Precisamos de resolver o 130/1088
assunto quanto antes, por uma questão de segurança. Andamos de porta em porta, como o senhor pode ver. Se contar com a sua colaboração, nem cinco minutos demoro... – Bom, que remédio – exclamou ele, dando um estalo com a língua. – E pensar que reservei este quarto de propósito para poder trabalhar sem ser incomodado por ninguém. O homem apontou para os papéis espalhados em cima da secretária. Uma data de gráficos pormenorizados, impressos por computador. Provavelmente, estivera a preparar o material necessário para uma reunião que ia ter mais tarde. Havia também um computador e uma calculadora, bem como folhas de apontamentos cheias de números. Aomame sabia que ele trabalhava para uma empresa petrolífera. Era um especialista em investimentos relacionados com instalações e equipamento nos países do Médio 131/1088
Oriente. Segundo as informações que lhe haviam transmitido, tratava-se de uma das pessoas mais competentes nesse domínio. Notava-se na maneira como se comportava. De boas famílias, e com elevados rendimentos, conduzia um Jaguar último modelo. Após uma juventude protegida e irresponsável, prosseguira os seus estudos no estrangeiro, falava fluentemente inglês e francês, e tinha confiança para dar e vender. Era daquelas pessoas que não tolerava que os outros lhes dissessem o que fazer, tãopouco gostava de ser criticado, sobretudo se a crítica viesse da boca de uma mulher. No entanto, estava sempre pronto a exigir coisas aos outros, sem pensar duas vezes. Bater na mulher com um taco de golfe e partir-lhe duas costelas também não constituía para ele qualquer problema. Pensava que o mundo girava à sua volta e que, sem ele, a Terra deixaria de se mover. Ficava furioso, para não dizer que reagia com violência, quando 132/1088
alguém lhe negava algo ou interferia nos seus planos. – Desculpe o incómodo – disse Aomame, exibindo o seu sorriso mais comercial. E, dando o facto por consumado, enfiou metade do corpo porta adentro, abriu a prancheta e começou a anotar qualquer coisa com uma esferográfica. – Hum... Estou a falar com o senhor Miyama, não é verdade? – perguntou ela. Vira-o muitas vezes nas fotografias, por isso sabia que era ele, mas não custava nada tirar a questão a limpo, por mera precaução. Caso se enganasse, não poderia voltar atrás. – Sim, sou eu, Miyama – disse o homem, num tom abrupto. A seguir, suspirou em sinal de resignação. Como se dissesse: «De acordo, faz lá o que tens a fazer.» Regressou então ao seu lugar à secretária e, de esferográfica em punho, pegou num documento qualquer que estivera entretanto a ler. O casaco do fato e a gravata às riscas 133/1088
encontravam-se em cima da cama de casal, ainda por desfazer, para onde deviam ter sido atirados de qualquer maneira. Tinham todo o ar de ser artigos bastante caros. Aomame foi direitinha ao armário, sempre com o saco ao ombro. Tinha-lhe sido comunicado de antemão que o painel com o interruptor do ar condicionado se encontrava ali. Dentro do guarda-fatos estava pendurava uma gabardina feita de um material suave ao toque e, ainda, um lenço de pescoço cinzento-escuro de caxemira. A única bagagem consistia numa mala de pele. Não se via em parte alguma mudas de roupa nem qualquer saco com artigos de higiene. O mais certo era o homem não ter a intenção de passar ali a noite. Em cima da secretária havia uma cafeteira com café, que só podia ter sido pedida ao serviço de quartos. Depois de ter fingido que inspecionava o painel durante uns trinta segundos, Aomame dirigiu-se a Miyama. 134/1088
– Obrigada pela sua colaboração, senhor Miyama. Não encontro qualquer problema com a instalação do ar condicionado neste quarto. – Não lhe disse logo que estava a funcionar bem? – grunhiu ele. – Senhor Miyama – começou ela, timidamente –, desculpe, mas parece que tem qualquer coisa na nuca. – Na nuca? – perguntou ele, levando a mão à parte de trás do pescoço e esfregando o cachaço. Depois, olhou para a palma da mão, admirado. – Não me parece. – Importa-se que verifique? – disse Aomame, aproximando-se da mesa. – Sim, faça favor – disse ele, fazendo uma expressão de estranheza. – O que é? – Uma mancha de tinta, quer-me parecer. Em tons de verde-claro. – Tinta? 135/1088
– Não tenho a certeza. Pela tonalidade, tem de ser tinta. Importa-se que lhe toque aqui atrás? Pode ser que saia com a mão. – Pode ser – disse Miyama, inclinando a cabeça para a frente e expondo o pescoço a Aomame. Devia ter acabado de cortar o cabelo, pelos vistos, e apresentava a nuca descoberta. Aomame inspirou, reteve a respiração e, concentrando todos os seus sentidos, conseguiu encontrar rapidamente o ponto exato. Assinalou-o ao de leve com a ponta do dedo, para fazer uma marca. Depois fechou os olhos e comprovou que não se havia enganado. Sim, é aqui mesmo. Quem me dera ter mais tempo para me certificar, mas não há margem de manobra. Terei de fazer o meu melhor, dadas as circunstâncias. – O cavalheiro desculpe o incómodo, mas poderia aguentar-se um bocadinho nessa posição? Vou ali ao saco buscar uma lanterna 136/1088
de bolso. Não se consegue ver muito bem com a iluminação do quarto. – Como é que a porcaria da tinta terá ido parar aí atrás? – Não faço ideia. Vou examinar agora mesmo. Com o dedo a fazer pressão sobre a nuca do homem, naquele ponto preciso, Aomame extraiu um estojo rígido de plástico do bolso, abriu a tampa e tirou lá de dentro um objeto envolto num pano fino. Ao desembrulhar o pano com movimentos hábeis, deixou à mostra aquilo que parecia ser uma espécie de picador de gelo, se bem que mais pequeno; teria, no máximo, dez centímetros de comprimento, com uma pega compacta, feita de madeira. Parecia um picador de gelo, mas, vendo bem, não servia para picar gelo. Só tinha a forma de um picador de gelo. A própria Aomame tinha desenhado e fabricado o artefacto. A ponta era afiada e comprida, como uma agulha de costura. A 137/1088
extremidade da agulha estava cravada num pedaço de cortiça – cortiça essa de fabrico especial, macia como algodão. Com a ponta dos dedos, Aomame retirou a cortiça e guardou-a no bolso. Em seguida, encostou a ponta despida da agulha de encontro ao tal ponto especial no pescoço de Miyama. Vá, tem calma, convenceu-se a si própria. Agora chegou a parte mais importante. Não posso falhar nem por uma décima de milímetro. Basta um desvio e todo o esforço irá para o galheiro. Concentração é a palavra de ordem. – Quanto tempo mais é que vai demorar? – protestou Miyama. – Desculpe, estou mesmo a terminar. Não te preocupes, espera um pouco e tudo acabará num abrir e fechar de olhos. Vais ver que depois não tens de pensar em nada. Nem no sistema de refinação do petróleo, nem acerca das tendências do mercado de crude pesado, nem sobre o relatório 138/1088
trimestral para o grupo investidor, nem na reserva do voo para o Barém, nem nos presentes para a tua amante... Imagino como deve ter sido duro para ti pensar em todas estas coisas. Por isso, aguenta um pouco mais. Não vês que me estou a concentrar, a fim de executar o meu trabalho com toda a eficácia? Não me distraias, por favor. Assim que teve a certeza da posição e se mentalizou, Aomame levantou a palma da mão direita no ar, conteve a respiração e, após uma breve pausa, fê-la descer com um movimento seco – mas não muito forte – sobre a pega de madeira. Caso aplicasse demasiada força, corria o risco de partir a agulha debaixo da pele, e deixar ficar o rasto da agulha estava fora de questão. O importante era deixar cair a palma da mão direita suavemente, quase com ternura, com o ângulo e a força apropriados. A direito, sem se opor à gravidade, fazendo o possível para 139/1088
que a fina ponta da agulha penetrasse de forma natural e fosse absorvida naquele ponto. Profundamente, com suavidade, para obter um resultado fatal. O importante era o ângulo e a força – ou, melhor dizendo, a força moderada. Desde que ela prestasse atenção a estes pormenores, a coisa revelavase tão simples como espetar uma agulha num pedaço de tofu. A ponta da agulha trespassava a carne, perfurava um ponto específico na base do encéfalo, e o coração deixava de bater, como quando se apaga a chama de uma vela. Acabava tudo numa questão de segundos, quase com demasiada facilidade. Aomame era a única que podia fazê-lo. Não havia outra pessoa capaz de encontrar aquele ponto delicado apenas pelo toque. Ela possuía essa intuição especial na ponta dos dedos. Ouviu-se o homem soltar um profundo espasmo, e em seguida todos os músculos do seu corpo se contraíram. Ato contínuo, 140/1088
Aomame retirou a agulha e, sem perder tempo, pressionou contra a ferida uma pequena gaze que levava preparada no bolso, a fim de evitar uma hemorragia. Uma vez que a agulha era muito fina e não permanecera cravada mais do que escassos segundos, a produzir-se uma hemorragia seria sempre diminuta; ainda assim, ela sentia-se na obrigação de tomar todas as precauções. Não podia deixar o mais pequeno vestígio de sangue. Uma só gota poderia deitar tudo a perder. A cautela era uma das virtudes de Aomame. O corpo de Miyama ficou hirto e, pouco a pouco, foi perdendo energia. Como acontece quando o ar começa a sair de uma bola de basquetebol. Mantendo a pressão do indicador no ponto preciso da nuca, Aomame colocou o homem de borco sobre a secretária. A sua cara ficou de lado, com os documentos a servirem de almofada. Os olhos estavam abertos, ainda com uma 141/1088
expressão de surpresa. Dir-se-ia que testemunhara algo totalmente inexplicável no derradeiro momento de vida. Não se podia dizer que fosse dor. Ou medo. No seu rosto, lia-se puro espanto. Acontecera uma coisa fora de normal no seu corpo, porém, ele não chegara a compreender o que se passara. Desconhecia se era dor, picada, prazer ou algum tipo de revelação. Neste mundo existem muitas maneiras de morrer, mas, provavelmente, não havia nenhuma tão fácil. Talvez seja uma morte demasiado agradável para alguém como tu, pensou Aomame, franzindo o sobrolho. Foi demasiado fácil. Talvez devesse ter pegado no ferro 5 que usas para jogar golfe e partia-te duas ou três costelas; depois de te infligir bastante dor, só então daria o golpe de misericórdia. Essa teria sido a morte ideal para um filho da mãe como tu. Foi o que fizeste à tua mulher. Para mal dos meus pecados, não me deram liberdade de 142/1088
escolha. A minha missão consistia em enviar-te deste para o outro mundo rapidamente e de forma certeira, e, já agora, discreta. Posso dizer que acabei de executar a minha missão. Este homem estava vivo há momentos, e agora está morto. Passou o limiar que separa a vida da morte sem sequer dar por isso. Aomame aplicou a gaze na ferida durante cinco minutos, com paciência e sem fazer muita pressão, para não deixar a marca dos dedos. Nem por um segundo tirou os olhos dos ponteiros do relógio. Foram cinco minutos muito longos. Se alguém, nesse instante, tivesse entrado no quarto e a visse com um dedo a pressionar a nuca do homem e a empunhar uma arma mortífera, fina e aguçada, ao mesmo tempo, seria o fim de tudo. Não teria escapatória. Havia a possibilidade de aparecer um empregado de quarto para levar a cafeteira. Podiam bater à porta a qualquer momento. Apesar disso, aqueles 143/1088
cinco minutos eram imprescindíveis. Para acalmar os nervos, Aomame respirou fundo por mais de uma vez. Não posso perder o sangue-frio. Não posso perder a calma. Tenho de continuar a ser aquela pessoa controlada e imperturbável, a Aomame de sempre. Conseguia ouvir o seu coração bater. Na cabeça, o início da fanfarra da Sinfonietta de Janáček ressoava ao ritmo das pulsações. Um vento suave soprava em silêncio através das planícies verdes da Boémia. Aomame tinha consciência de que se dividira em duas. Uma parte dela continuava a fazer pressão na nuca do morto, dando mostras de uma frieza extraordinária. Porém, a outra metade estava cheia de medo. Queria deixar tudo para trás e fugir daquele quarto, de imediato. Estou aqui e, ao mesmo tempo, não estou aqui. Encontro-me em dois lugares simultaneamente. Bem sei que contradiz a teoria 144/1088
de Einstein, mas não há nada a fazer. É o momento zen de uma assassina. Os cinco minutos chegaram ao fim. Por precaução, Aomame esperou um minuto mais. Posso esperar mais um minuto. Quanto maior a pressa, maior atenção merecem os pormenores. Aguardou imóvel, enquanto decorria esse minuto que parecia não acabar. Depois, retirou o dedo lentamente e examinou a ferida com uma pequena lanterna. A marca deixada era mais pequena do que a picadela de um mosquito. A morte provocada pela picada de uma agulha extremamente fina naquele ponto especial da base do cérebro era muito semelhante a uma morte natural. Aos olhos de qualquer médico, passaria por um ataque cardíaco. Dera-lhe de repente, enquanto trabalhava sentado à secretária, e exalou o último suspiro. Excesso de trabalho e stresse. 145/1088
Não parecia haver causas antinaturais, tãopouco razões para realizar uma autópsia. Aquele homem era uma pessoa competente, ainda que trabalhasse em excesso. Ganhava muito bem, mas, uma vez morto, o dinheiro de nada lhe serviria. Apesar de vestir fatos Armani e de conduzir um Jaguar, teve o mesmo final que uma formiga, ao morrer de forma absurda, à força de tanto trabalhar. Com o tempo, as pessoas acabariam por esquecer que ele tinha existido. «Que pena, morreu tão novo», podia ser que alguns dissessem. Ou talvez não.
Aomame tirou a rolha de cortiça do bolso e colocou-a na extremidade da agulha. Tornou a envolver aquele delicado instrumento no pano fino, meteu-o no estojo e guardou-o no fundo do saco. A seguir, foi à casa de banho buscar uma toalha e limpou todas as impressões digitais. Os únicos sítios onde poderia ter deixado a marca da sua presença eram o painel do aparelho de ar
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condicionado e a maçaneta da porta. Tivera o cuidado de não tocar em mais nada. Depois voltou a pôr a toalha no mesmo lugar. Colocou a cafeteira e a chávena em cima do tabuleiro do serviço de quartos e foi levá-lo lá fora, ao corredor. Sempre evitava que o empregado tivesse de bater à porta quando fosse recolher a loiça, e assim o cadáver demoraria mais tempo até ser encontrado. Se tudo corresse bem, a senhora da limpeza descobriria o corpo pouco depois da hora de abandonar o hotel, no dia seguinte. Provavelmente, ao ver que o homem não aparecia para a tal reunião dessa noite, telefonariam para o quarto, mas não obteriam resposta. Podia dar-se o caso de haver alguém que, achando o facto estranho, pedisse ao gerente para abrir a porta; e daí, podia ser que não. As coisas seguiriam o seu curso. Aomame colocou-se em frente ao espelho da casa de banho e verificou se estava arranjada como devia ser. Fechou o botão de cima 147/1088
da blusa. Não havia necessidade de exibir o decote. O sacana nem sequer olhara duas vezes para ela. Julgava-se muito importante, seria isso? Franziu o cenho com moderação. Em seguida, passou a mão pelo cabelo, massajou a cara com a ponta dos dedos para libertar a tensão dos músculos e lançou um sorriso doce na direção do espelho, aproveitando para exibir os dentes branqueados, em resultado da limpeza profunda que acabara de fazer no dentista. Muito bem. Agora vou abandonar o quarto, deixar este morto para trás e voltar ao mundo real. Preciso de ajustar a pressão. Já não sou uma assassina calculista. Sou uma mulher de negócios, competente e afável, enfiada num fato todo catita. Aomame entreabriu a porta, verificou que não havia ninguém no corredor e saiu do quarto sorrateiramente. Em vez de apanhar o elevador, desceu pelas escadas. Quando passou diante da receção, ninguém lhe 148/1088
prestou atenção. Endireitou a cabeça e as costas, olhou em frente e caminhou com passo ligeiro – mas não de modo a chamar as atenções. Era uma profissional. Aliás, uma profissional que roçava a perfeição. Se ao menos o seu peito fosse maior, lamentou-se, então sim, poderia ter sido a profissional perfeita. Voltou a franzir a testa, parcialmente. Não há volta a dar. Uma pessoa tem de se remediar com o que lhe calha em sorte.
9 Depois de, nos anos noventa, terem sido obrigados pelo governo municipal a abandonar uma espécie de aldeia de cartão construída nos corredores da estação de Shinjuki, os «desalojados» procuraram refúgio nas imediações. (N. das T.)
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TENGO
Se é isso que tu queres
Tengo acordou com o toque do telefone. Segundo os ponteiros luminosos do relógio, passavam alguns minutos da uma da manhã. O quarto estava mergulhado na escuridão, como não podia deixar de ser. Tengo soube à partida que a chamada só podia ser de Komatsu. Mais ninguém lhe telefonaria àquela hora tardia, e não conhecia outra pessoa que deixasse tocar o telefone com tanta insistência, até que ele se dignasse a atender. Komatsu não tinha noção do tempo. Quando se lembrava de ligar a alguém, pegava no telefone e fazia a chamada, sem atender à hora.
Tanto se lhe dava que fosse a meio da noite ou de manhã cedo, que a outra pessoa estivesse a gozar os prazeres da lua de mel ou deitada no leito de morte. A ideia prosaica de que alguém, do lado de lá, poderia, às tantas, sentir-se melindrado por um telefonema naquelas circunstâncias não parecia entrar na cabeça ovalada de Komatsu. Vendo bem, aquilo não era coisa que se fizesse. Até mesmo Komatsu trabalhava como assalariado para uma empresa, recebia o seu ordenado por trabalhar dentro do sistema. Não podia andar por aí a fazer o que lhe dava na gana e a demonstrar uma total ausência de bom senso na forma como se comportava com os demais. O único que lhe aturava aquilo era Tengo. Para Komatsu, Tengo era mais ou menos um prolongamento de si mesmo, como um braço ou uma perna. Logo, dando-se o caso de Komatsu estar acordado, o outro também deveria estar a pé. Tengo costumava deitar-se às dez da 151/1088
noite e acordar às seis da manhã, esforçando-se, de uma maneira geral, por manter uma vida regrada. Dormia como uma pedra, mas, quando alguma coisa o despertava, tinha dificuldade em voltar a adormecer. Fazia parte da sua maneira de ser. Já tentara explicar a situação a Komatsu mais de mil vezes, pedindo-lhe que não ligasse a meio da noite. Como um agricultor que implora a Deus para não enviar uma praga de gafanhotos antes da colheita. «Entendido», dizia Komatsu. «Nada de chamadas durante a noite.» Depois, o que acontecia era que a promessa não ganhava raízes suficientes na sua consciência e bastava que caíssem as primeiras águas para levar consigo as boas intenções. Tengo arrastou-se para fora da cama e, sempre a chocar com tudo, lá conseguiu chegar ao telefone da cozinha. Entretanto, este nunca deixara de tocar. 152/1088
– Falei com a Fuka-Eri – disse Komatsu. Para não variar, passou por cima das saudações da ordem. Nem um «estavas a dormir?», nem um «desculpa ligar tão tarde». Nunca se vira semelhante coisa. Ao mesmo tempo, Tengo não podia deixar de ficar espantado. Manteve-se em silêncio no escuro e franziu o sobrolho. Quando era acordado a meio da noite, o seu cérebro demorava a arrancar. – Ouviste o que eu disse? – Sim, ouvi. – Falámos ao telefone, mais nada. Em boa verdade, só eu é que falei, ela limitou-se a escutar. Não se pode chamar àquilo propriamente uma conversa, uma vez que é uma rapariga de poucas palavras. E, quando abre a boca, tem uma maneira estranha de se expressar. Vais perceber melhor quando chegares à fala com ela. Em todo o caso, expliquei-lhe por alto o meu plano, tipo, a sondar o que ela teria a dizer sobre a 153/1088
eventualidade de uma outra pessoa meter a mão na massa e reescrever A Crisálida de Ar, com o objetivo de que essa versão mais polida ficasse em condições de aspirar ao prémio. Como a conversa era por telefone, não me foi possível adiantar-lhe muito. Perguntei-lhe se estava interessada em marcar um encontro para falarmos de aspetos concretos. Deixei a questão no ar, de propósito. Se me tivesse mostrado demasiado sincero, poderia comprometer a minha situação. – E então? – Não me respondeu. – Não respondeu? Aqui, Komatsu fez uma pausa dramática. Levou um cigarro à boca e acendeu-o com um fósforo. Ao ouvir o som através do telefone, Tengo conseguiu imaginar nitidamente a cena. Komatsu nunca usava isqueiro. – A Fuka-Eri diz que te quer conhecer primeiro – afirmou Komatsu, expulsando o 154/1088
fumo do cigarro. – Não chegou a dizer se estava ou não interessada no plano, nem se a ideia era do seu agrado. Pelos vistos, o mais importante é que ela te conheça e fale contigo, cara a cara. Depois, logo me dá uma resposta, diz ela. Ficas com a responsabilidade toda, o que não é pouco. – E depois? – Tens que fazer amanhã à tarde? As aulas começavam de manhã cedo e acabavam às quatro da tarde. Por sorte (ou por azar), ele não tinha nada combinado depois disso. – Estou livre – respondeu Tengo. – Excelente. Nesse caso, vai ter ao restaurante Nakamuraya, em Shinjuku10, às seis. Reservei uma mesa em meu nome, ao fundo da sala, sempre é mais sossegado. A despesa fica por conta da editora, podem comer e beber o que vos apetecer. Aproveitem para falar com calma. – Sem a sua presença? 155/1088
– É a condição imposta pela Fuka-Eri. Por agora, diz que não vê razão para se encontrar comigo. Tengo ficou calado. – Pronto, acho que é tudo – disse Komatsu num tom jovial. – Dá o teu melhor, Tengo. És um verdadeiro calmeirão, mas causas boa impressão nas pessoas. Além do mais, dás aulas numa escola que prepara candidatos à universidade, estás habituado a falar com jovens alunas do secundário. Tens outros trunfos que eu não tenho. Lembra-te de sorrir, é importante que ganhes a confiança dela. Mostra-lhe que pode confiar em ti. Fico então à espera de boas notícias. – Espere aí um minuto. Toda esta história, desde a primeira hora, é ideia sua. Na verdade, ainda não disse se estava disposto a isso. Como no outro dia lhe fiz saber, trata-se de um plano demasiado arriscado para o meu gosto, e suspeito bem que as coisas poderão não ser tão simples quanto isso, 156/1088
ameaçando transformar-se num verdadeiro escândalo. Como é que vou convencer essa rapariga, que nem sequer conheço, quando eu próprio ainda não me decidi a aceitar o repto? Komatsu permaneceu em silêncio do outro lado da linha. Depois dessa pausa, disse: – Escuta, Tengo, o assunto já está em andamento. É tarde para saltar fora do comboio. Por mim, estou totalmente empenhado no processo em curso. E tu, tu estás meio decidido, tenho a certeza. Partilhamos o mesmo destino. Tengo abanou a cabeça. Partilhar o mesmo destino? Quando é que a história teria começado a adquirir contornos tão melodramáticos? – Se bem me lembro, senhor Komatsu, ainda no outro dia me disse para pensar no assunto com calma, não foi? – Entretanto, já se passaram cinco dias. Tiveste tempo mais do que suficiente para 157/1088
pensar. Chegaste a alguma conclusão? – perguntou Komatsu. Tengo não encontrava as palavras certas. – Ainda não tomei uma decisão – respondeu com sinceridade. – Nesse caso, porque não te encontras com a tal Fuka-Eri e tens uma conversa com ela? A seguir, podes decidir o que fazer. Tengo fez pressão com a ponta dos dedos sobre as têmporas. A cabeça ainda não estava a funcionar como devia ser. – Muito bem. Vou falar com ela. Amanhã às seis no Nakamuraya, em Shinjuku. Doulhe a conhecer a minha versão da história, mas não prometo mais do que isso. Explicarlhe o plano, tudo bem, agora no que toca a convencê-la, já não está nas minhas mãos. – É só o que te peço. – A propósito, o que é que ela sabe acerca de mim? – Contei-lhe o mais importante. Que tens vinte e nove ou trinta anos, solteiro, que dás 158/1088
aulas de Matemática numa escola em Yoyogi. Que és um matulão, mas bom tipo. Que não andas por aí a comer miúdas novinhas. Levas uma vida simples e tens um olhar meigo que inspira confiança. E que me agrada muito a tua escrita. Foi mais ou menos isto que lhe disse. Tengo suspirou. Quando se esforçava por pensar, sentia a realidade pairar à sua volta e afastar-se de novo. – Importa-se que me vá deitar? É quase uma e meia da manhã e gostaria de dormir umas horas antes que o dia nasça. Tenho três aulas para dar logo de manhã cedo. – Com certeza. Boa noite – disse Komatsu. – Bons sonhos. A seguir, desligou. Tengo ficou durante um bocado a olhar para o auscultador que tinha na mão, antes de o tornar a pousar. Só pensava em voltar para a cama, em dormir e, se possível, ter bons sonhos, mas sabia que não lhe seria 159/1088
fácil conciliar o sono, uma vez acordado daquela maneira e obrigado a participar numa conversa tão desagradável. Podia sempre preparar uma bebida, remédio santo, mas não lhe estava a apetecer álcool. Acabou por beber um copo de água, enfiou-se na cama, apagou a luz e pegou num livro. A sua ideia era ler até ficar com sono, mas só adormeceu pouco antes do amanhecer.
No final da terceira aula, Tengo apanhou o comboio para Shinjuku. De caminho, comprou alguns livros na livraria Kinokuniya, e só então se dirigiu ao restaurante Nakamuraya. À entrada, deu o nome de Komatsu e foi conduzido a uma mesa afastada da zona mais concorrida. Fuka-Eri ainda não havia chegado. Tengo disse que se encontrava à espera de outra pessoa. Quando o empregado lhe perguntou se queria beber alguma coisa enquanto esperava, Tengo respondeu que não queria nada. O empregado deixou ficar uma ementa e um copo de água
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em cima da mesa, e a seguir foi à vida dele. Tengo abriu um dos livros acabados de comprar e começou a ler. Tratava-se de uma obra sobre artes ocultas, que se debruçava sobre maldições e feitiçarias na sociedade japonesa, ao longo dos tempos. A maldição desempenhara um papel fundamental nas comunidades ancestrais. A sua função era colmatar os defeitos e as contradições do sistema social. Deviam ter sido tempos muito divertidos para uma pessoa viver. Eram seis e um quarto, e Fuka-Eri continuava sem aparecer. Pouco preocupado, Tengo continuou a ler. Não o surpreendia que ela estivesse atrasada. Toda aquela história era, em si mesma, tão absurda que ninguém podia queixar-se caso se verificasse mais alguma reviravolta. Por isso, não era de admirar que ela tivesse mudado de ideias e decidido não pôr lá os pés. Em boa verdade, até preferia que assim fosse, uma vez que tornaria tudo mais simples. Só teria de 161/1088
comunicar a Komatsu que esperara durante uma hora, mas que Fuka-Eri nunca chegara a aparecer. O que viesse a acontecer depois já não era da sua conta. Podia jantar sozinho e regressar a casa; desse modo, teria cumprido a sua obrigação para com Komatsu. Fuka-Eri chegou quando eram 18h22. O empregado conduziu-a até à mesa e ela sentou-se diante dele. Pousou as mãos pequenas sobre a mesa, sem tirar o casaco, e fixou Tengo nos olhos. Não disse «peço desculpa por ter chegado tarde», nem «desculpa ter-te feito esperar». Nem sequer um «olá» nem um «muito gosto em conhecer-te». Limitou-se a olhar fixamente para Tengo, mantendo os lábios cerrados numa linha a direito. Como se estivesse a observar à distância uma paisagem nunca vista. Tengo ficou impressionado. Fuka-Eri era uma rapariga pequena, em todos os sentidos, e tinha uma cara ainda 162/1088
mais engraçada do que nas fotografias. O que chamava a atenção eram os olhos, bonitos e profundos. Tengo ficou pouco à vontade, ao sentir-se perscrutado por aquelas pupilas brilhantes, preto-azeviche. Quase não pestanejava e parecia mal respirar. Tinha o cabelo liso, como se alguém lhe tivesse esticado cada madeixa com a ajuda de uma régua, e a forma das sobrancelhas combinava na perfeição com o penteado. Como muitas jovens e belas adolescentes que se veem um pouco por toda a parte, à expressão faltavalhe a marca da experiência. O resultado mostrava-se pouco harmonioso e causava uma certa estranheza, talvez porque existia uma pequena diferença entre a profundidade do seu olho esquerdo e a do direito, fazendo com que a pessoa que estivesse a olhar para ela se sentisse incomodada. Tornava-se impossível saber em que é que estava a pensar. Nesse sentido, não era propriamente aquele tipo de rapariguinha bonita que tem carreira 163/1088
assegurada como modelo ou estrela pop. Apesar disso, havia nela qualquer coisa que provocava a imaginação das pessoas e as atraía. Tengo fechou o livro e pô-lo de lado. Ajeitou-se na cadeira, endireitou as costas e bebeu um gole de água. Komatsu tinha razão. Caso a jovem arrebatasse o prémio literário, a comunicação social ia cair-lhe em cima e não a deixaria em paz. Aquele episódio causaria sensação, sem dúvida. E depois, o que se seguiria? O empregado apareceu e colocou uma ementa e um copo de água à frente dela. No entanto, Fuka-Eri não se mexeu. Em vez de pegar na ementa, continuava a olhar para Tengo. Às tantas, ele achou-se na obrigação de lhe dizer «olá». Na presença dela, parecia-lhe que o seu corpo ocupava ainda mais espaço. Fuka-Eri não respondeu à saudação, mas continuou sem tirar os olhos dele. 164/1088
– Conheço-te – murmurou ela, passado um bocado. – Como é que me conheces? – perguntou Tengo. – Ensinas Matemática. Ele fez sinal que sim com a cabeça. – Isso mesmo. – Ouvi-te por duas vezes. – Nas minhas aulas? – Sim. A sua maneira de falar apresentava certas peculiaridades: frases desprovidas de ornamentos, uma ausência crónica de entoação, vocabulário limitado (ou, pelo menos, dava essa ideia). Komatsu tinha razão: tudo aquilo era estranho. – Quer então dizer que andavas a estudar na escola secundária onde eu ensinava? – perguntou Tengo. Fuka-Eri negou com a cabeça. – Fui apenas assistir às aulas. 165/1088
– Em princípio, não se consegue entrar nas aulas sem cartão de estudante. Fuka-Eri encolheu os ombros, como se dissesse: «É de imaginar que os adultos feitos não digam parvoíces desse género.» – Que achaste das minhas aulas? – quis saber Tengo. Mais uma pergunta sem sentido. Fuka-Eri bebeu um gole de água sem desviar os olhos. Não respondeu à pergunta. Tengo calculou que a impressão causada não devia ter sido muito má, para ter voltado à escola. Se não tivesse despertado interesse nela, ter-se-ia ficado pela primeira vez. – Andas no último ano do secundário, certo? – perguntou-lhe Tengo. – Mais ou menos. – Estás a estudar para os exames de admissão à universidade? Ela sacudiu a cabeça. Tengo não soube dizer se isso significava «não quero falar acerca dos exames de 166/1088
admissão» ou «não vou fazer exames de admissão». Veio-lhe à lembrança a observação feita por Komatsu ao telefone, acerca de ela ser uma jovem muito calada. O empregado apareceu e tomou nota dos pedidos. Fuka-Eri ainda não despira o casaco. Mandou vir uma salada e pão. – É tudo – disse ela, antes de devolver a ementa ao empregado. Depois, como se de repente se tivesse lembrado, acrescentou: – E um copo de vinho branco. O jovem empregado preparava-se para lhe perguntar a idade, mas Fuka-Eri lançou-lhe um olhar que o fez ficar vermelho como um tomate, e este engoliu as palavras. «Impressionante», pensou Tengo outra vez. Pediu linguine com marisco e decidiu acompanhar Fuka-Eri e beber também um copo de branco. – És professor e escritor – disse Fuka-Eri. Parecia ser uma pergunta dirigida a Tengo. Pelos vistos, fazer perguntas sem entoação 167/1088
interrogativa era outra caraterística do seu discurso. – De momento, sim – respondeu Tengo. – Não tens pinta de ser nem uma coisa nem outra. – Se calhar, não – disse ele. Pensou em sorrir, mas não foi capaz. – Tenho habilitações na área do ensino e dou aulas, mas não sou bem um professor. Escrevo ficção, mas nunca tive nenhum livro publicado, por isso, da mesma forma, não se pode dizer que seja escritor. – Não és nenhuma das coisas. Tengo assentiu com a cabeça. – Acertaste. De momento, não sou nada. – Gostas de matemática. Tengo acrescentou mentalmente um ponto de interrogação ao enunciado dela e respondeu à pergunta que acabara de ser formulada: – Confesso que sim. Sempre gostei, e continuo a gostar. 168/1088
– Gostas de quê. – De que é que gosto na matemática? Bom, quando me encontro diante dos números, descontraio-me automaticamente. Tipo, sinto que as peças encaixam todas umas nas outras. – A parte sobre o cálculo integral foi interessante. – Estás a referir-te a uma das minhas aulas? Fuka-Eri acenou em sinal de concordância. – Gostas de matemática? Ela voltou a responder com um movimento da cabeça. Não gostava de matemática. – Mas achaste interessante a parte do cálculo integral? – insistiu. Fuka-Eri encolheu ligeiramente os ombros. – Falavas disso como se fosse importante. 169/1088
– Ah, sim? – retorquiu Tengo. Era a primeira vez que alguém lhe dizia uma coisa daquele género. – Como se estivesses a falar de alguém importante para ti – disse ela. – Se calhar, consigo demonstrar ainda mais entusiasmo quando me ponho a falar acerca de progressões aritméticas – afirmou Tengo. – Do programa que dei no secundário, as progressões eram a minha parte favorita. – Gostas de progressões – perguntou Fuka-Eri, outra vez sem dar à frase a entoação de uma pergunta. – Para mim, são como O Cravo Bem Temperado, de Bach. Nunca me canso de o ouvir. Há sempre qualquer coisa de novo para descobrir nas peças. – Conheço O Cravo Bem Temperado. – Gostas de Bach? – O Professor passa a vida a escutar isso. 170/1088
– O Professor? – repetiu Tengo. – Um dos teus professores? Fuka-Eri não lhe deu resposta. Ficou a olhar para Tengo com uma expressão que parecia dizer «ainda é muito cedo para falar dessa cena». A seguir, como se tivesse acabado de se lembrar, desembaraçou-se do casaco. Parecia um inseto quando muda de pele. Sem perder tempo, colocou-o, sem o dobrar, na cadeira ao lado. Por baixo do casaco trazia vestida uma camisola verde-clara fininha de gola redonda e calças de ganga brancas. Não usava acessórios de moda nem maquilhagem, o que não a impedia de dar nas vistas. Em relação ao seu corpo elegante, o tamanho do peito atraía visivelmente as atenções. Para além de grandes, os seios tinham uma forma muito bonita. Tengo teve de se esforçar para não se pôr a olhar para eles, mas, uma vez ou outra, foi apanhado em flagrante delito. Os seus olhos inclinavam-se 171/1088
na direção do peito dela sem que ele pudesse evitar, como se fossem atraídos para o centro de um grande vórtice. Os dois copos de vinho branco foram servidos. Fuka-Eri bebeu um gole do seu e, depois de analisar o copo, absorta nos seus pensamentos, pousou-o em cima da mesa. Tengo deu um golinho. Chegara o momento de falar de assuntos importantes. Fuka-Eri levou a mão ao cabelo, liso e preto, e entreteve-se a penteá-lo com os dedos durante um bocado. Era um gesto encantador, e ela tinha uns dedos fascinantes: cada um parecia possuir uma vontade e princípios próprios e mover-se de acordo com eles, como se de cada um se desprendesse uma certa magia oculta. – Do que é que gosto na matemática? – perguntou Tengo a si próprio em voz alta, para desviar a atenção dos dedos e do peito da jovem. – A matemática é como a água. Há uma quantidade de teorias complicadas, 172/1088
naturalmente, mas a sua lógica básica é muito simples. Assim como a água flui de um ponto mais elevado para outro mais baixo, percorrendo a distância mais curta, também só existe uma corrente matemática. Basta estarmos atentos e esperarmos que o caminho se revele, à frente dos nossos olhos. Não é preciso fazer mais nada. É não perder a concentração e manter os olhos bem abertos, que tudo se torna claro diante de nós. Neste grande e imenso mundo em que vivemos, não se compara à matemática. Fuka-Eri pensou durante um bocado sobre o que ele acabara de dizer. – Por que razão escreves romances – perguntou ela, no mesmo, tom inexpressivo. – Por outras palavras, se é verdade que gosto assim tanto de matemática, porque é que me dou ao trabalho de escrever ficção, é isso que pretendes saber? Pensando bem, poderia dedicar-me apenas à matemática. É isso? 173/1088
Ela respondeu que sim com a cabeça. – Vamos lá ver. A vida real é diferente da matemática. No nosso dia a dia, nem sempre chegamos às coisas pelo caminho mais rápido. Para mim, a matemática é... como dizer... mais do que natural. Como uma bela paisagem. Está ali, apenas isso. Não há necessidade de a substituir por nada. Assim, quando me encontro no mundo da matemática, tenho por vezes a sensação de me tornar invisível. Chega a ser assustador. Fuka-Eri olhava fixamente para Tengo nos olhos. Como se olhasse para uma casa desabitada, mantendo a cara encostada ao vidro da janela. – Quando estou a escrever uma história – disse Tengo –, utilizo palavras para transformar a realidade que me rodeia, tornandoa, aos meus olhos, mais natural. Por outras palavras, reconstruo. Desse modo, confirmo a existência da minha pessoa neste mundo. Estamos a falar de um processo totalmente 174/1088
diferente em relação ao que me rodeia quando mergulho no universo matemático. – Confirmas que existes – disse Fuka-Eri. – Não posso dizer que tenha sido totalmente bem-sucedido – afirmou Tengo. Fuka-Eri não pareceu ficar convencida com a explicação de Tengo, mas calou-se e deixou morrer o assunto. Limitou-se a levar o copo de vinho à boca e a tomar pequenos goles sem fazer barulho, como se estivesse a beber por uma palhinha. – A meu ver – prosseguiu Tengo –, andas, no fundo, a fazer a mesma coisa. Traduzes as cenas nas tuas próprias palavras, e depois constróis de novo. Confirmas assim a tua existência enquanto ser humano. Fuka-Eri parou de mexer a mão com que agarrava no copo de vinho. Deixou-se estar ali a pensar na observação feita por Tengo, mas, para não variar, guardou os comentários para si. 175/1088
– És tu que dás forma a esse processo, ao escreveres uma obra que fica – acrescentou Tengo. – Se essa obra tiver o mérito de despertar a aprovação generalizada e se as pessoas se identificarem com ela, converte-se numa obra literária com valor objetivo. Fuka-Eri negou com a cabeça de forma categórica. – A forma não me interessa. – A forma não te interessa – repetiu Tengo. – A forma não tem sentido. – Nesse caso, porque escreveste a história e a apresentaste a concurso? Fuka-Eri pousou o copo de vinho sobre a mesa. – Não fui eu – disse ela. Tengo pegou no copo e bebeu um gole de água para se acalmar. – Queres dizer que não foste tu quem apresentou o texto a concurso? Fuka-Eri abanou a cabeça. 176/1088
– Não enviei o manuscrito. – Bom, então, quem foi? Fuka-Eri encolheu ligeiramente os ombros e depois permaneceu calada durante uns bons quinze segundos. Por fim, disse: – Não vem ao caso. – Não vem ao caso? – repetiu Tengo, deixando escapar um longo e lento suspiro por entre os lábios arrepanhados num esgar franzido. «Bonito! As coisas não vão correr bem para o nosso lado. Tal como eu pensava.»
Até à data, Tengo tinha mantido relacionamentos com as suas alunas por mais de uma vez, quer dizer, sempre depois de elas terem deixado a escola e entrado para a universidade, e eram sempre as jovens a tomar a iniciativa. Regra geral, punham-se em contacto com ele e diziam que gostariam de o ver. Depois combinavam um programa e iam juntos a qualquer lado. Tengo não fazia ideia do que viam nele, mas estava solteiro e elas haviam
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deixado de ser suas alunas. Logo, não tinha motivo para recusar aqueles encontros. Apenas em duas ocasiões a coisa tinha levado ao sexo, se bem que as relações se fossem desgastando e acabassem por terminar naturalmente, ao fim de pouco tempo. Tengo sentia dificuldade em descontrair-se na companhia de jovens universitárias cheias de pedalada. Era o mesmo que brincar com uma gatinha ainda jovem, que é como quem diz, dava um certo gozo e tinha um lado de novidade, mas depois acabava por se tornar cansativo. Por seu lado, também as miúdas descobriam que, em pessoa, Tengo não era bem o professor que lhes falava com paixão sobre matemática nas aulas. Tengo compreendia como elas se sentiam. Era preciso estar com mulheres de uma certa idade para se sentir à vontade. Pensar que, fizesse ele o que fizesse, não tinha de tomar a iniciativa parecia tirar-lhe um peso de cima dos ombros. Além de que havia muitas 178/1088
mulheres mais velhas que gostavam dele. Por isso, após ter iniciado uma relação com uma mulher casada, dez anos mais velha, isto no ano anterior, deixara por completo de se encontrar com rapariguinhas. Pelo simples facto de se encontrar uma vez por semana com a namorada mais velha, no seu apartamento, qualquer desejo (ou necessidade) que pudesse sentir por uma companheira de carne e osso ficava satisfeito. O resto da semana, passava-o fechado no quarto, a escrever, a ler e a ouvir música; volta e meia, acontecia-lhe ter vontade de ir nadar na piscina do bairro. Tirando as poucas conversas com os colegas de escola, quase nunca falava com mais ninguém. Não se podia dizer que esta rotina o deixasse insatisfeito. Longe disso: com efeito, aproximava-se do seu ideal de vida. Porém, com aquela rapariga de dezassete anos, Fuka-Eri, era diferente. O mero facto de a ver à sua frente provocava-lhe uma 179/1088
espécie de tremor violento, ao ponto de o atingir em cheio no coração. Era o mesmo sentimento que lhe provocara a fotografia da jovem, quando a vira pela primeira vez, com a diferença de que, na presença dela, o estremecimento se intensificou. Não se tratava de amor nem de desejo sexual. Qualquer coisa conseguira infiltrar-se no seu interior através de uma pequena brecha e procurava colmatar o vazio que existia dentro dele. Era a sensação que tinha. O vazio não fora criado por Fuka-Eri. Existira desde sempre no seu íntimo. Ela limitara-se a fazer incidir sobre ele uma luz especial.
– Não te interessa escrever nem apresentaste a tua obra a concurso – constatou Tengo, para confirmar o que ela lhe dissera. Fuka-Eri assentiu, sem tirar os olhos dele. Depois encolheu os ombros ao de leve, como uma pessoa faz quando se quer proteger de um vento frio no inverno.
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– Não queres ser escritora. – Tengo ficou chocado com ele próprio ao ouvir-se fazer uma pergunta sem a entoação interrogativa no fim. Pelos vistos, o estilo estava a tornarse contagioso. – Não, não quero – confirmou Fuka-Eri. Nesse momento, chegou o empregado com a comida. Uma grande taça com salada e um pãozinho para Fuka-Eri; para Tengo, linguine de marisco. Fuka-Eri pegou no garfo e utilizou-o para remexer as folhas de alface, inspecionando-as como se estivesse a ler títulos de jornais em cada uma delas. – Bom, em todo o caso, alguém enviou A Crisálida de Ar, obra escrita por ti, à editora, a fim de concorrer ao prémio. Foi assim que eu dei por ela, quando andava a fazer a triagem dos manuscritos. – A Crisálida de Ar – disse Fuka-Eri, e os seus olhos ficaram mais pequenos. – É o título da novela que escreveste – disse Tengo. 181/1088
Fuka-Eri manteve os olhos semicerrados, sem dizer nada. – Não foi esse o título que lhe deste? – perguntou Tengo, com uma ponta de inquietação. Fuka-Eri negou com um pequeno movimento de cabeça. Ele tornou a sentir-se confuso, mas optou por não insistir na questão do título. O importante era fazer a conversa progredir para outro tema, sem perder tempo. – Deixa lá. Seja como for, não é um mau título. Cria uma certa atmosfera e capta a atenção das pessoas, leva-as a interrogaremse: «De que trata este livro?» É-me indiferente quem se se saiu com o título, uma vez que não tenho qualquer problema com isso. Não sei ao certo qual a diferença entre uma «crisálida» e um «casulo», mas que importância tem? O que te queria dizer era que a obra me impressionou, ao lê-la, e que foi por isso que a levei ao senhor Komatsu. Ele 182/1088
também gostou; no entanto, é da opinião de que, para ser um sério candidato ao primeiro prémio, o texto precisa de uma boa revisão. A ideia dele é que deveria ser eu, e não tu, a reescrever o texto. Confesso que ainda não tomei uma decisão, nem lhe dei sequer uma resposta, até porque não sei se é o mais correto. Tengo interrompeu o seu discurso neste ponto e observou a reação de Fuka-Eri. – O que gostaria de saber é o que tu pensas de ser eu a reescrever A Crisálida de Ar, no teu lugar. Mesmo que decida ir com o projeto avante, nunca o faria sem o teu consentimento nem a tua colaboração. Fuka-Eri pegou num tomate-cereja com os dedos e levou-o à boca. Tengo espetou um mexilhão com o garfo e comeu-o. – Podes avançar – limitou-se Fuka-Eri a dizer. A seguir, escolheu outro tomatinho. – Corrige à vontade. 183/1088
– De certeza que não queres pensar com calma? Olha que estamos a falar de uma decisão importante. Fuka-Eri abanou a cabeça. Não era preciso. – Agora, imaginando que eu reescrevia a tua obra – prosseguiu Tengo –, teria o cuidado de não alterar a história e de burilar apenas o estilo, o que significa que, provavelmente, haverá grandes mudanças. Mas a autora és tu, e continuarás a sê-lo. A Crisálida de Ar continua a ser um romance escrito por uma rapariga de dezassete anos que dá pelo nome de Fuka-Eri. Esse aspeto é incontornável. Se a obra ganhar, quem recebe o prémio és tu. Tu e mais ninguém. Se o livro for publicado, serás tu a única autora. Nós os três formamos uma equipa: tu, eu e o senhor Komatsu, que é o editor, mas tu vais ser a única pessoa com direito a ter o nome na capa. Tanto eu como ele ficaremos nos bastidores, remetidos ao silêncio, como 184/1088
figurantes numa peça de teatro. Entendes o que quero dizer? Fuka-Eri levou um pedaço de aipo à boca com o garfo. – Entendo – disse ela com um movimento afirmativo de cabeça. – A história de A Crisálida de Ar pertencete única e exclusivamente. Saiu da tua imaginação. Nunca poderei fazê-la minha, é impossível. A única coisa é que tentarei ajudarte do ponto de vista técnico, e tu, pelo que te toca, terás de fazer segredo desse facto. Estamos envolvidos numa conspiração, isto é, vamos contar ao mundo uma mentira. Por mais voltas que se dê, não vai ser fácil, guardar durante tanto tempo cá dentro um segredo como este. – Se tu o dizes. Tengo colocou as cascas dos mexilhões de lado no prato e começou a servir-se de linguine, mas, às tantas, mudou de ideias e interrompeu o que estava a fazer. Fuka-Eri 185/1088
pegou num pepino e deu-lhe uma dentada muito delicadamente, como se se tratasse de uma especialidade que nunca tivesse provado. – Pergunto, uma vez mais – voltou Tengo à carga, de garfo em punho –, de certeza que não te opões a que eu reescreva o teu texto? – Faz como achares melhor – disse FukaEri, quando acabou de comer o pepino. – Posso reescrevê-lo à minha maneira? – Podes. – Porque é que dizes isso? – perguntou ele. – Não me conheces de lado nenhum. Fuka-Eri encolheu ligeiramente os ombros e ficou calada. Os dois continuaram a refeição sem trocar palavra. Fuka-Eri concentrou toda a sua atenção na salada. Volta e meia, punha um bocadinho de manteiga no pão, comia-o e deitava a mão ao copo de vinho. Tengo levava os linguine à boca de forma mecânica, ao mesmo tempo que dava voltas à cabeça 186/1088
para digerir as diversas possibilidades. Até que, por fim, pousou o garfo e abordou FukaEri: – Sabes, a primeira vez que o senhor Komatsu me apareceu com este assunto, pensei que ele estava doido, que a coisa não tinha qualquer hipótese de funcionar. A minha intenção era recusar a proposta. No entanto, e depois de ter ido para casa e de matutar um bocado sobre o projeto, começou a crescer em mim o desejo de experimentar. Deixando de parte as questões éticas, a história de ser moralmente aceitável ou não, senti vontade de inscrever a minha marca na novela escrita por ti. Não sei se me estou a explicar bem... Falo de um desejo bastante natural e espontâneo. «Ou, mais do que um desejo, talvez seja melhor falar em fome», acrescentou Tengo para si próprio. Tal como Komatsu tinha previsto, reprimir essa ânsia tornava-se cada vez mais difícil. 187/1088
Fuka-Eri não disse nada. Com os seus bonitos olhos, lançou-lhe um olhar neutro que vinha do mais fundo de si. Parecia estar a lutar para compreender as palavras que Tengo pronunciava. – Queres reescrever a história – perguntou ela. Tengo olhou-a nos olhos. – Creio que sim. Um brilho fugaz atravessou os olhos cor de azeviche de Fuka-Eri, parecendo ter sido projetado por eles. Pelo menos, foi a sensação com que ele ficou. Tengo ergueu as mãos, como se estivesse a segurar uma caixa no ar. Em si mesmo, o gesto não tinha qualquer significado concreto, mas ele precisava de se valer desse objeto imaginário para expressar os seus sentimentos. – Não sei como explicar melhor – disse ele –, mas, ao ler A Crisálida de Ar, a páginas tantas, comecei a ver o que tu vias. 188/1088
Sobretudo na parte em que aparece o Little People11. Tens uma imaginação poderosa, deixa-me que te diga. Original e contagiosa. Fuka-Eri colocou a colher no prato sem fazer barulho e limpou a boca com o guardanapo. – O Povo Pequeno existe na realidade – disse num tom calmo. – Existe na realidade? Fuka-Eri fez uma pausa antes de continuar. – Como tu e eu. – Como tu e eu – repetiu Tengo. – Se te esforçares, poderás vê-los. Apesar de lacónica, a maneira de falar de Fuka-Eri possuía um estranho poder de persuasão. Por cada palavra que saía da sua boca, ele sentia uma investida precisa, que funcionava como uma cunha do tamanho exato. No entanto, Tengo não sabia dizer ainda até que ponto poderia confiar em Fuka-Eri. Havia nela qualquer coisa que não batia 189/1088
certo. Se calhar era uma qualidade inata. Podia dar-se o caso de ele estar na presença de um talento genuíno, na sua forma mais pura. Ou talvez não passasse tudo de uma invenção. Por vezes, as raparigas inteligentes na idade dela tinham tendência para representar um papel, de forma instintiva. Armavam-se em adolescentes excêntricas e confundiam as outras pessoas com um discurso feito de palavras por demais sugestivas. Ele próprio tinha observado umas quantas vezes esse comportamento, e sabia até que ponto se tornava difícil distinguir o que era autêntico do que era encenação. Tengo achou por bem trazer a conversa para a realidade – ou, pelo menos, aproximá-la de um ângulo mais real. – Se estiveres de acordo, amanhã gostaria de começar a reescrever A Crisálida de Ar. – Se é o que queres fazer. – Sim, é o que quero fazer – respondeu Tengo. 190/1088
– Há uma pessoa que tens de conhecer – disse Fuka-Eri. – Alguém que tu queres que eu conheça? Ela fez que sim com a cabeça. – Quem é? Ela não fez caso da pergunta. – É para falar com essa pessoa – acrescentou ela. – Se for preciso – afirmou Tengo –, não me importo. – Estás livre no domingo de manhã – quis saber Fuka-Eri, sem interrogação no fim da frase. – Sim, estou – respondeu Tengo. «É a mesma coisa que estar a comunicar através de sinais feitos com bandeiras», pensou ele.
Quando a refeição chegou ao fim, Tengo e Fuka-Eri despediram-se. À porta do restaurante, Tengo enfiou várias moedas de dez ienes no telefone do restaurante e ligou para Komatsu. O editor encontrava-se ainda a trabalhar na empresa, mas demorou a atender a
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chamada. Com o auscultador colado ao ouvido, Tengo deixou-se estar à espera. – Como é que correu? – perguntou Komatsu, de raspão. – Basicamente, a Fuka-Eri deu-me consentimento para reescrever A Crisálida de Ar, penso eu. – Fantástico! – exclamou Komatsu. – Maravilhoso! Para te dizer a verdade, estava um tanto preocupado contigo, meu rapaz. Não se pode dizer que sejas o tipo de pessoa talhada para negociações do género. – Não foi preciso entrar em negociação nenhuma – esclareceu Tengo. – Nem sequer tive de a convencer. Expliquei-lhe a situação por alto, e ela tomou a decisão sozinha. – É-me indiferente. Os resultados é que contam. Agora podemos dar seguimento ao nosso plano. – Antes disso, ainda tenho de conhecer uma pessoa. – Conhecer uma pessoa? Quem? 192/1088
– Não sei. Ela quer que eu conheça essa pessoa e que tenhamos uma conversa. Komatsu ficou em silêncio durante alguns segundos. – E quando é que esse encontro vai acontecer? – No domingo que vem. A Fuka-Eri vai levar-me até junto dessa tal pessoa. – Há uma regra importante no que diz respeito a guardar segredos – disse Komatsu, com voz grave. – Quanto menos pessoas conhecerem o segredo, melhor. Até agora, só três pessoas estão por dentro do plano. Tu, eu e a Fuka-Eri. Se possível, gostaria que ficássemos por aí e que o número não aumentasse. Entendido? – Em teoria, sim – disse Tengo. A voz de Komatsu tornou-se mais suave, antes de prosseguir. – Seja como for, o que interessa é que a Fuka-Eri te autorizou a reescrever o texto dela. Do resto ocupamo-nos nós. 193/1088
Tengo passou o auscultador para a mão esquerda e massajou a testa devagarinho com o indicador direito. – Para ser franco – confessou ele a Komatsu –, tudo isto me deixa nervoso. Se bem que não existam razões concretas para sustentar as minhas afirmações, tenho a sensação de me estar a meter em qualquer coisa fora do normal. Quando estava na presença da Fuka-Eri, não senti nada parecido, mas, desde que nos separámos, essa sensação avolumou-se. Chame-lhe uma premonição ou apenas um pressentimento estranho, se quiser; porém, há aqui algo de esquisito. Fora do normal, como referi. Sinto-o com todo o corpo, mais do que apenas com a cabeça. – Terá sido o encontro com a Fuka-Eri que te levou a ficar assim? – Se calhar. Ela parece-me autêntica. Isto não deixa de ser a minha intuição a falar, claro. 194/1088
– Queres com isso dizer que ela tem verdadeiro talento? – Se tem talento, não sei – respondeu Tengo. – Acabei de a conhecer, afinal de contas. O que quero dizer é que pode muito bem ver aquilo que nós não vemos. Provavelmente, tem qualquer coisa que nos escapa. Isso preocupa-me. – Referes-te a um problema mental? – Excêntrica, sem dúvida, mas não me parece que seja pírulas. Existe uma certa lógica no seu discurso. A questão é que... não sei... há coisas que me inquietam. – Em todo o caso, ela manifestou interesse por ti, não foi? – perguntou Komatsu. Tengo procurou as palavras certas para lhe responder, mas não as encontrou em parte alguma. – Sobre isso não posso pronunciar-me – respondeu. – Bom, pelo menos ela foi ter contigo e achou que estavas à altura de reescrever A 195/1088
Crisálida de Ar. Isso significa que gostou de ti. Bom trabalho, Tengo! O que vai acontecer a partir de agora também é uma incógnita para mim. Corremos um certo risco, escusado será dizer, mas o risco é o sal da vida. Começa já a trabalhar na revisão, peço-te. Não temos tempo a perder. Preciso de devolver, quanto antes, o romance corrigido à pilha das obras candidatas e trocá-lo pelo original. Dez dias chegam-te? Tengo suspirou. – Que empreitada! – Deixa lá. Não tem de ficar uma versão definitiva. Podes sempre burilá-la um pouco mais na fase seguinte. Basta que consigas uma versão bastante decente. Tengo calculou mentalmente, por alto, o trabalho que tinha pela frente. – Nesse caso, acho que dez dias chegam para me desenrascar. Ainda assim, vai darme muito trabalhinho. 196/1088
– Faz o teu melhor – incitou-o Komatsu, num tom alegre. – Contempla o mundo através dos olhos dela. Pensa em ti como o mensageiro, como aquele que estabelece a ligação entre o mundo da Fuka-Eri e o mundo real em que vivemos. Sei que podes fazê-lo, Tengo, sei... Naquele momento, acabaram-se as moedas de dez ienes.
10 Uma espécie de instituição na zona cosmopolita de Shinjuku. O restaurante ocupa vários pisos, cada um com a sua especialidade, que vai da comida japonesa à italiana, passando pela indiana. (N. das T.)
11 2 Povo Pequeno. (N. das T.)
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AOMAME
Um trabalho que exige conhecimentos técnicos e formação especializada
Terminado o trabalho, Aomame caminhou durante algum tempo, e só depois apanhou um táxi para se dirigir a outro hotel, no distrito de Akasaka. Sentia necessidade de tomar uma bebida alcoólica para acalmar os nervos antes de se deitar. Vendo bem, tinha acabado de despachar um homem para o outro mundo. Verdade seja dita que se tratava de um filho da mãe que merecia ser morto, mas, em última análise, era um ser humano. Ainda tinha nas mãos a sensação que experimentara no momento em que lhe
tirara a vida. O homem a exalar o último suspiro, à medida que a alma se ia separando do corpo. Aomame já se deslocara ao bar daquele hotel por mais de uma vez. Ficava no terraço de um arranha-céus, tinha uma vista fantástica e um ambiente acolhedor. Passava pouco depois das sete da tarde quando ela entrou no bar. Um jovem duo de piano e guitarra interpretava o tema «Sweet Lorraine». A versão deles era uma cópia da velha gravação de Nat King Cole, mas não estava mal de todo. Como sempre, sentou-se ao balcão e pediu um gim-tónico com um pratinho de pistácios a acompanhar. O lugar ainda não estava cheio – via-se um parzinho jovem que bebia cocktails e apreciava a vista, quatro homens de fato pareciam estar a discutir negócios e um casal estrangeiro de meia-idade, cada um com o seu copo de martíni na mão. Aomame bebeu o seu gimtónico com calma. Não queria que o álcool 199/1088
lhe subisse à cabeça demasiado cedo. A noite era ainda uma criança. Tirou um livro do saco que trazia ao ombro e começou a ler. Era a história da companhia dos caminhos de ferro da Manchúria nos anos trinta. A Sociedade Ferroviária do Sul da Manchúria tinha sido cedida ao Japão pela Rússia no final da Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, após o que a companhia expandira rapidamente as suas operações, ao ponto de se tornar um eixo fundamental quando da invasão da China desencadeada pelo Império japonês, e em 1945 foi desmantelada pelo Exército soviético. Até ao início da guerra entre alemães e russos na frente da Europa Oriental, no ano de 1941, era possível viajar de Shimonoseki até Paris em treze dias, apanhando aquela rede ferroviária e fazendo transbordo para o transiberiano. Aomame pensou que uma rapariga a beber sozinha num bar de hotel, absorvida na 200/1088
leitura de um livro (e de capa dura, atenção) sobre os caminhos de ferro da Manchúria, vestida com um saia-casaco e levando ao ombro um grande saco, corria menos riscos de ser confundida com uma prostituta de luxo à procura de clientes. Em boa verdade, Aomame não fazia ideia do aspeto que poderiam ter as verdadeiras prostitutas de luxo… Se ela fosse prostituta e andasse em busca de homens de negócio endinheirados, faria os possíveis por não dar muito nas vistas, a fim de não afastar os seus potenciais clientes nem os deixar nervosos. Uma maneira de pôr isso em prática seria, por exemplo, vestir um fato prático assinado por Junko Shimada, com uma blusa branca, usar maquilhagem discreta, um grande saco desportivo ao ombro, e ter um livro sobre a linha de caminho de ferro da Manchúria aberto à frente dela. Pensando bem, o que ela estava a fazer não era muito diferente do 201/1088
que faria uma prostituta à caça de um cliente. À medida que o tempo foi passando, o local encheu-se de gente. Quando se deu conta, Aomame estava rodeada pelo fervilhar das vozes e das conversas. Continuava, porém, sem ver o tipo de homem de que andava à procura. Bebeu outro gim-tónico, mandou vir alguns legumes crus para trincar (ainda não tinha jantado) e continuou a ler. Passado um bocado, aproximou-se um homem que se sentou ao balcão, separado dela por alguns assentos. Estava sozinho. Bastante bronzeado, vestia um fato azulmarinho de corte impecável. A gravata também denotava bom gosto – nem demasiado chamativa, nem demasiado vulgar. Devia ter os seus cinquenta anos, e começava a perder cabelo. Não usava óculos. Palpitava-lhe que devia ter vindo a Tóquio em viagem de negócios, despachara os assuntos que tinha na agenda de trabalho e queria emborcar um 202/1088
copo antes de se deitar. Tal como acontecia com Aomame. A ideia era meter no corpo uma quantidade moderada de álcool para ver se relaxava. Poucos homens que se deslocavam a Tóquio em viagem de negócios ficavam num hotel de luxo como aquele. Escolhiam antes alojar-se em hotéis de negócios, a um preço mais acessível. Ficavam mais perto da estação, a cama ocupava praticamente todo o espaço do quarto, a única vista era a parede do edifício ao lado, e uma pessoa não podia tomar duche sem chocar pelo menos vinte vezes contra a parede. No corredor de cada piso havia máquinas distribuidoras de bebidas e de artigos de higiene. Ou as ajudas de custo pagas pela empresa não lhes davam para melhor, ou preferiam meter o dinheiro ao bolso e hospedar-se num hotel barato. Tomavam uma cerveja nos locais tradicionais12 da zona e iam dormir. De manhã, engoliam uma tigela de arroz com carne nos 203/1088
restaurantes da especialidade13, logo ao virar da esquina. Quem ficava hospedado naquele hotel, em concreto, pertencia a uma categoria diferente. Quando essas pessoas iam até à cidade de Tóquio em viagem de negócios, só viajavam nas «carruagens verdes» de primeira classe do comboio-bala e ficavam instaladas apenas em certos hotéis de luxo. Uma vez terminado o trabalho que ali as levara, davam-se ao luxo de ficar a beber uísque e licores caros no bar do hotel. Tratava-se, na sua maioria, de pessoas que trabalhavam para grandes empresas, quase sempre ocupando cargos de chefia, e ainda empresários, ou profissionais liberais, como médicos e advogados. Chegados à meia-idade, o dinheiro não constituía problema. Também sabiam, em maior ou menor grau, o que fazer para passar um momento agradável. Era esse o tipo de indivíduo que ela tinha em mente. 204/1088
Aomame não sabia explicar porquê, mas, quando ainda não completara vinte anos, já se sentia atraída por homens maduros cujo cabelo começava a rarear. Era preferível que não fossem completamente calvos e que tivessem algum cabelo. De resto, não era só a história do pouco cabelo que a atraía: a cabeça precisava de ser bem feita. O seu ideal era Sean Connery, nesse particular. Achava a cabeça do ator elegante e sexy. Bastava olhar para ele e o seu coração punha-se a bater desalmadamente. O homem sentado no bar a dois lugares do seu tinha uma cabeça bastante bonita – não tão perfeita quanto a de Sean Connery, claro, mas atraente à sua maneira. A linha do cabelo retrocedia a partir da testa, e os poucos cabelos que lhe restavam faziam lembrar uma planície coberta de geada nos finais de outono. Aomame levantou os olhos das páginas do livro e admirou a forma da cabeça daquele homem. As suas feições não eram nada de 205/1088
especial. Apesar de não ser gordo, a papada começava a notar-se um bocadinho, e debaixo dos olhos tinha uma espécie de bolsas. Enfim, um homem de meia-idade, igual a tantos outros. Tirando talvez o formato da cabeça, que lhe agradou sobremaneira. Quando o empregado lhe trouxe a ementa e uma toalhinha húmida para limpar as mãos, o homem pediu um highball de uísque escocês sem olhar sequer para a lista das bebidas. – Deseja alguma marca em especial? – perguntou o empregado. – Não tenho preferência – respondeu o homem. – Qualquer uma serve. Falava num tom de voz calmo e descontraído, em que se notava um vago sotaque da região de Kansai14. A seguir, como se tivesse acabado de se lembrar, perguntou se havia Cutty Sark. O empregado respondeu que sim. «Não está mal», pensou Aomame. Agradava-lhe o facto de ele não ter escolhido 206/1088
Chivas Regal ou um sofisticado single malt. Defendia a tese segundo a qual as pessoas que se mostravam mais esquisitas e demoravam mais tempo a escolher bebidas num bar eram, de uma forma geral, mais cândidas no que tocava ao sexo. Desconhecia por completo a razão por que assim acontecia. Aomame gostava também do sotaque de Kansai. Acima de tudo, apreciava o contraste um tanto desajustado entre o vocabulário e a entoação sempre que alguém, nascido e criado naquela região ocidental do Japão, viajava para a capital e se esforçava por introduzir à força no seu discurso palavras utilizadas em Tóquio, mesmo com pronúncia do Oeste. Por estranho que pareça, e apesar de se registar um certo contraste, aquele som tinha o condão de a aquietar. Decidiu-se: tentaria seduzir aquele homem. Estava deserta por tocar com os dedos nos poucos cabelos que ainda lhe restavam na cabeça. 207/1088
Por isso, quando o barman serviu ao outro o highball de Cutty Sark, Aomame virou-se para o empregado do bar e pediu, alto e bom som, de forma a poder ser ouvida pelo homem: – Um Cutty Sark on the rocks, por favor. – Sim, minha senhora – respondeu o barman, de forma inexpressiva. O homem desapertou o primeiro botão da camisa e alargou o nó da gravata, que era azul-escura com motivos finos estampados. O fato era azul-marinho. Usava uma camisa azul-clara de colarinho normal. Aomame continuou a ler enquanto esperava que lhe trouxessem o seu Cutty Sark. Entretanto, desapertou o botão de cima da blusa. O duo de jazz interpretava «It’s Only a Paper Moon». O pianista cantou apenas um verso do refrão. Quando lhe serviram a bebida, levou o copo à boca e bebeu um gole. Sentiu o homem lançar um olhar na sua direção. Levantou os olhos do livro e encarou-o. Sem fazer alarde, 208/1088
como que por mero acaso. Os seus olhos encontraram-se e ela lançou-lhe um sorriso que nem chegou a concretizar-se. A seguir, voltou a olhar em frente e fingiu contemplar a paisagem noturna. Era o momento perfeito para o homem abordar a mulher, e tinha sido ela a criar aquela situação. Mas o homem não disse nada. Merda! Que está ele a fazer? Já não é nenhum menino. Devia saber interpretar um sinal subtil como este. Se calhar não tem tomates, preocupa-o a questão da diferença de idades. Tem medo que o ignore ou que lhe dê para trás, acusando-o de ser um cota de cinquenta anos a armar-se em bom e a abordar uma jovem na casa dos vinte. Que lata! Aomame fechou o livro e guardou-o no saco. Em seguida, tomou ela a iniciativa de abordar o homem. – Gosta de Cutty Sark? 209/1088
O homem pareceu ficar chocado, como se não tivesse entendido o significado da pergunta. Depois, a expressão dele suavizou-se. – Ah, sim, Cutty Sark – disse ele, como se, de repente, se fizesse luz. – Gostei sempre dessa marca, por causa do desenho de um veleiro. – Quer então dizer que gosta de barcos? – De veleiros, em especial. Aomame ergueu o copo. O homem também levantou um nadinha o seu highball. Era quase como se estivessem a fazer um brinde. A seguir, Aomame colocou o saco ao ombro e, sempre com o copo de uísque na mão, deslizou dois assentos e sentou-se ao lado dele. O indivíduo pareceu ficar um pouco surpreendido, mas esforçou-se para não deixar transparecer os seus sentimentos. – Tinha combinado encontrar-me aqui com uma antiga companheira de escola, mas parece que ela me deixou a ver navios – disse 210/1088
Aomame, olhando para o relógio de pulso. – Nem sequer me telefonou a avisar. – Se calhar, fez confusão com o dia. – Se calhar. Ela sempre foi um tanto despistada – adiantou Aomame. – Acho que vou esperar mais um bocado. Importa-se que lhe faça companhia, enquanto aqui estou? Ou prefere ficar sozinho? – Não, claro que não – respondeu o homem, apesar de deixar transparecer uma certa incerteza na voz. Franziu o sobrolho e olhou para ela com atenção, como se estivesse a examinar uma hipoteca. Parecia suspeitar que poderia tratar-se de uma prostituta. Acontecia, porém, que Aomame de prostituta não tinha nada. Ele descontraiu-se e baixou as defesas. – Estás hospedada neste hotel? – Não, vivo em Tóquio – respondeu ela, abanando a cabeça. – Só vim cá para me encontrar com a tal amiga. E o senhor? 211/1088
– Estou aqui em viagem de negócios – disse ele. – Venho de Osaka. Para uma reunião. Uma reunião perfeitamente estúpida, mas, como a sede da empresa fica em Osaka, alguém tinha de se deslocar a Tóquio. Aomame esboçou um sorriso mecânico. «Quero lá saber do teu trabalho de merda», pensou, mas não disse. «Gosto da forma da tua cabeça, só isso.» – Acabei o trabalho e estava a precisar de um copo. Amanhã de manhã tenho outro assunto pendente, e depois regresso a Osaka. – Também eu acabei um trabalhinho – disse Aomame. – Ah, sim? E que tipo de trabalho? – Não gosto de falar acerca do meu trabalho. Digamos que executo um trabalho de especialista. – Especialista – repetiu o homem. – Tens uma profissão que requer técnicas concretas e formação especializada. 212/1088
«E tu? És uma espécie de enciclopédia ambulante ou quê?», disse Aomame para si mesma. Em silêncio, ela sorriu, sem chegar a desafiá-lo abertamente. – Sim, pode dizer-se isso. O homem bebeu outro trago do seu highball e tirou uma mão-cheia de frutos secos da taça. – Gostaria de saber mais acerca do teu trabalho, mas não te apetece falar disso. Ela abanou a cabeça. – Pelo menos por enquanto. – Por acaso esse trabalho não estará relacionado com as palavras? Por exemplo, editora ou investigadora universitária? – O que te leva a pensar isso? Ele ajustou o nó da gravata e voltou a apertar o botão da camisa. – Não sei, talvez o facto de te ver assim concentrada nesse calhamaço. Aomame tocou ao de leve com as unhas na borda do copo. 213/1088
– Nada disso. Leio por gosto. Não tem que ver com o trabalho. – Desisto, nesse caso. Não faço ideia. – Aposto que não – disse ela. «Nem farás nunca», acrescentou para si mesma. O homem examinou o corpo de Aomame com naturalidade. Ela fingiu que tinha deixado cair qualquer coisa, baixou-se e ofereceu-lhe a possibilidade de lançar uma longa espreitadela para o seu decote e, quem sabe?, distinguir os contornos do sutiã branco com armação. Depois, endireitou-se e bebeu mais um gole de Cutty Sark on the rocks. Os grandes pedaços de gelo chocaram entre si e tilintaram. – O que me dizes a outra bebida? – perguntou ele. – Também vou pedir uma para mim. – Sim, por favor. – Aguentas bem o álcool. Aomame esboçou um sorriso vago, mas pôs-se séria logo a seguir. 214/1088
– Ah, é verdade. Gostaria de te perguntar uma coisa. – Que coisa? – Houve alguma mudança nos uniformes dos polícias, ultimamente? Ou no modelo de armas que utilizam? – O que entendes por «ultimamente»? – Na semana passada – disse ela. O homem fez uma cara estranha. – Os uniformes e o armamento mudaram, mas isso já foi há uns anitos. O velho uniforme deixou de ser tão convencional e rígido, e tornou-se mais informal, quase como um corta-vento. E a pistola utilizada agora é um novo modelo automático. Não creio que tenha havido outras alterações importantes desde então. – Os polícias japoneses não costumavam andar armados com revólveres dos antigos? Até à semana passada, tenho quase a certeza. O homem negou com a cabeça. 215/1088
– Nesse aspeto, estás enganada. Há já algum tempo que a polícia anda com pistolas automáticas. – Tens a certeza absoluta? O tom da rapariga fê-lo hesitar. Franziu a testa e fez um esforço para reavivar a memória. – Bom, se pões a coisa nesses termos, não posso dizer que esteja cem por cento seguro. Saiu uma notícia qualquer nos jornais que dava conta da troca de armamento e de os polícias terem passado a usar outro modelo de pistolas. Lembro-me de que a história causou uma certa polémica. Parece que as pistolas eram demasiado potentes e, como de costume, os grupos de cidadãos protestaram contra o Governo. – E há quantos anos aconteceu isso? O homem chamou o empregado, que era de meia-idade e, como tal, também mais velho, e perguntou-lhe quando é que os 216/1088
polícias tinham mudado de fardamento e de armas. – Na primavera, faz agora dois anos – respondeu o barman, sem hesitar. – Estás a ver? – disse o homem, ao mesmo tempo que dava uma gargalhada. – Os barmen dos hotéis de luxo sabem tudo! O barman também se riu. – Longe disso – afirmou ele. – O que acontece é que o meu irmão mais novo é polícia, daí ter esse episódio bem presente. Ele passava a vida a queixar-se do novo uniforme e a dizer que a pistola era demasiado pesada. Ainda hoje se queixa, aliás. A nova arma é uma Beretta de nove milímetros, daquelas que se pode converter em automática tocando apenas na patilha de segurança. Tenho quase a certeza de que é a Mitsubishi que detém a licença de fabrico, aqui no Japão. Como neste país quase nunca temos casos de tiroteio nas ruas, não há necessidade de armas com uma potência tão grande. 217/1088
Quando muito, os agentes têm de se preocupar em não ser roubados e despojados das suas armas. Contudo, assistiu-se a uma política do Governo no sentido de reforçar e melhorar a estrutura policial. – O que aconteceu aos revólveres velhinhos? – perguntou Aomame, procurando manter o tom de voz tão calmo quanto possível. – Imagino que os tenham retirado de circulação e destruído – respondeu o barman. – Lembro-me de ter visto na televisão como é que isso era feito. Desmantelar tantas pistolas e desfazerem-se das munições dá uma trabalheira dos diabos. – Podiam ter vendido tudo ao estrangeiro – disse o homem de negócios com pouco cabelo. – A Constituição proíbe a exportação de armas – referiu o barman, com modéstia. – Estás a ver? Os barmen dos hotéis de luxo... 218/1088
Aomame cortou-lhe a palavra e perguntou: – Estão a querer dizer-me que a Polícia japonesa não utiliza revólveres desde há dois anos, pelo menos? – Tanto quanto sei, sim. Aomame franziu ligeiramente a testa. Terei enlouquecido? Ainda esta manhã vi um polícia que vestia um uniforme dos antigos e que usava o velho revólver da ordem à cintura. Estou certa de nunca ter ouvido falar na história de a Polícia se ter desfeito de todas as pistolas antigas. Ao mesmo tempo, porém, não posso acreditar que dois homens de meia-idade estejam enganados ou a mentir. O que significa que devo ter cometido um erro. – Obrigada. Já sei tudo quanto é preciso – disse ela ao barman, que lhe respondeu com um sorriso profissional, em jeito de sinal de pontuação bem vincado, e regressou ao seu trabalho. 219/1088
– A Polícia interessa-te por algum motivo em especial? – perguntou o homem de meiaidade. – Não se pode dizer que seja isso – respondeu Aomame, acrescentando de forma atabalhoada: – Acontece que não me lembrava bem. Beberam os dois mais um gole de Cutty Sark – o homem do seu highball e ela do seu on the rocks. O homem pô-se a falar sobre iates. Tinha um, pequeno, fundeado na marina de Nishinomiya, contou. Aos fins de semana e quando chegavam as férias, costumava sair com ele para o mar alto. Falou com paixão da maravilha que era sentir o vento quando andava a navegar sozinho, em pleno oceano. Aomame estava-se marimbando para a porcaria dos iates. Antes ouvir a história dos rolamentos de esferas ou ficar a saber coisas sobre a distribuição dos recursos minerais na Ucrânia. Às tantas, olhou para o relógio de pulso e disse: 220/1088
– Está a fazer-se tarde. Gostaria de te fazer uma pergunta direta, posso? – Claro que sim. – Para dizer a verdade... é uma pergunta bastante pessoal. – Se eu souber responder... – Tens um membro de tamanho decente? Pode dizer-se que é um pénis grande? O homem ficou de boca aberta, semicerrou os olhos e deixou-se ficar a olhar para ela. Parecia não ser capaz de acreditar no que acabava de ouvir. No entanto, a expressão de Aomame não podia ser mais séria. Não estava a brincar. Os seus olhos encarregavamse de transmitir a mensagem. – Deixa-me cá ver – respondeu ele, muito compenetrado. – Não sei, penso que deve ser normal. Fico sem saber o que dizer, se me fazes a pergunta assim de supetão. – Que idade tens? – perguntou Aomame. – Fiz cinquenta e um no mês passado, mas... – começou ele numa voz titubeante. 221/1088
– Vives há mais de cinquenta anos com um cérebro normal, tens um emprego como qualquer outro, até possuis o teu próprio iate, e nem assim és capaz de me dizer se tens a verga maior ou mais pequena do que a média? – Bom, calculo que talvez seja um pouco maior do que o normal – disse ele, com uma certa hesitação e depois de pensar um bocado. – De certeza? – Porque é que estás tão preocupada com isso? – Preocupada? Quem diz que estou preocupada? – Bom, ninguém, mas... – atrapalhou-se ele, recuando um tudo-nada para trás no tamborete. – Só pergunto porque, de repente, parece ter-se tornado um problema. – Problema? Não há problema nenhum – declarou Aomame, de forma categórica. – Acontece que gosto de pénis grandes. Por 222/1088
causa do impacto visual. Não quer dizer que precise, em concreto, de um grande membro para me preencher as medidas, nem nada que se pareça. Ou que só me contente com os tamanhos grandes. Confesso que prefiro quando é assim para o maiorzinho. Há algum mal nisso? Cada um tem os seus gostos. Mas também não demasiado grandes, porque fazem doer. Percebes onde quero chegar? – Nesse caso, pode ser que fiques satisfeita com o meu. É um pouco maior do que o normal, mas não se pode dizer que seja enorme. É, por assim dizer, razoável... – Como é que sei que não me estás a enganar? – De que me serviria mentir num assunto desta natureza? – Muito bem, se tu o dizes... Então, deixame espreitar. – Aqui? 223/1088
Aomame enrugou a testa e fez um esforço para se conter. – Aqui? Estás louco? Como é que uma ideia dessas pode passar pela cabeça de um homem da tua idade? Um homem todo bemposto, de fato, com gravata e tudo... O que é feito da tua consciência social? Não podes pura e simplesmente sacar da pila num sítio destes! Imagina só o que não pensariam as pessoas à nossa volta? A ideia é ir até ao teu quarto, tu tiras as calças e mostras-mo. Os dois sozinhos, bem entendido. – Mostro-te, e depois, acontece o quê? – perguntou o homem, preocupado. – O que é que acontece depois de mo teres mostrado? – espicaçou-o Aomame, contendo a respiração e contraindo o rosto sem conseguir controlar-se. – Damos uma queca, pois claro. Que outra coisa iríamos fazer? Estavas à espera de quê? Que eu subisse contigo ao quarto, para me mostrares o teu instrumento, e depois virava-me para ti e dizia: 224/1088
«Obrigada por me teres proporcionado a oportunidade de ver um espetáculo destes, boa noite», e regressava a casa? Deves ter um parafuso desapertado. O homem engoliu a saliva ao presenciar as transformações tão dramáticas na cara de Aomame. Quando franzia a testa, Aomame tinha o condão de pôr qualquer um a tremer. Uma criança pequena podia até mijar-se pelas pernas abaixo, tal o impacto do seu cenho franzido. «Se calhar, passei das marcas», pensou ela. «A verdade é que não o devia ter assustado tanto. Pelo menos, antes de ter tratado do que me interessava.» A seguir, voltou ao seu estado normal e esboçou um sorriso forçado. Depois tornou a explicar a situação muito bem explicada. – O que vai acontecer é o seguinte: vamos para o teu quarto. Metemo-nos na cama. Fazemos amor. Não és homossexual nem impotente, pois não? – Não me parece. Tenho dois filhos... 225/1088
– Olha, ninguém te perguntou quantos filhos tens. Achas-me com cara de quem está a realizar algum inquérito à população? Por favor, guarda os pormenores para ti. Só me interessa saber se o consegues levantar quando vais para a cama com uma mulher. Mais nada. – Tanto quanto me lembre, o meu desempenho, na hora, nunca desiludiu – disse ele. – Mas diz-me uma coisa: és uma profissional? É este o teu trabalho? – Não, não é o meu trabalho, por isso, a conversa morre aqui. Não sou uma profissional, nem uma pervertida, sou uma simples cidadã como outra qualquer. Uma cidadã comum que deseja apenas ter relações sexuais com um indivíduo do sexo oposto. Não há nada de especial a assinalar acerca de mim. Sou perfeitamente normal. Qual é o problema? Acabei um trabalho complicado, já é noite, bebi uns copos e apeteceme libertar a tensão fazendo sexo com um 226/1088
estranho. Para acalmar os nervos. Preciso disso. Sendo homem, imagino que entendas o que sinto. – Claro que entendo, mas... – Não é dinheiro que pretendo. Estou até disposta a pagar-te, se me conseguires satisfazer. E tenho preservativos, por isso, não te preocupes que não corres o risco de apanhar doenças. Faço-me entender? – Sim, está claro, mas... – Mas o quê? Não pareces muito entusiasmado. Não sou do teu agrado? – Nada disso. Há aqui uma coisa que não entendo. És jovem e bonita, e eu tenho idade suficiente para ser teu pai... – Deixa-te disso, por favor. Claro que és bastante mais velho do que eu, mas, que diabo!, nem eu sou tua filha nem tu és meu pai. Parece-me mais do que óbvio. Além de que este tipo de generalizações absurdas só serve para me pôr os nervos em franja. Gosto 227/1088
da tua careca, só isso. Gosto da forma que tem, não sei se estás a ver? – Ainda não me considero propriamente careca! Bem sei que tenho as entradas um bocado... – Cala-te, de uma vez por todas – ordenou Aomame, esforçando-se ao máximo por não franzir a testa. «Não o posso assustar além de um certo ponto», disse para consigo, lá conseguindo imprimir à sua voz um tom mais suave. – Isso não interessa rigorosamente nada. Olha, meu menino, podes acreditar no que quiseres, mas o certo é que estás calvo. Se houvesse um inquérito sobre calvos, estavas lá caído, sem tirar nem pôr. Se fores para o céu quando morreres, vais para o céu dos calvos. Se fores para o inferno, o teu destino é o inferno dos calvos. Entendeste bem? Se a resposta for sim, não feches mais os olhos e encara a realidade, por favor. 228/1088
Vamos lá embora. Vou levar-te direitinho ao paraíso dos calvos.
O homem pagou a conta e os dois subiram até ao quarto dele. O seu pénis era, com efeito, maior do que a média, mas sem ser demasiado grande. Ele não a enganara ao fazer a autoavaliação. Aomame atacou-o e, manuseando-o com perícia experimentada, o membro não tardou a ficar maior e mais rijo. Ela despiu a blusa e a saia. – Deves estar a pensar que tenho as mamas pequenas – disse ela, com voz fria, ao mesmo tempo que o examinava de alto a baixo. – Vendo bem, tu, com o teu grande pénis, chegas aqui e vens encontrar uma gaja com o peito pequeno. Aposto que te sentes enganado. – Olha que não – reconfortou-a ele. – Não tens o peito tão pequeno quanto isso. É até muito bonito. – Não me digas – exclamou Aomame. – Ficas a saber que nunca uso sutiãs rendados
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e com armação. Usei este hoje por motivos de trabalho, porque precisava de mostrar um bocadinho mais de pele. – Que tipo de trabalho é o teu? – Já te disse, e repito, que não quero falar acerca do meu trabalho. Uma coisa posso assegurar-te: independentemente do trabalho, não é fácil ser mulher. – A vida também não está fácil para os homens. – Acredito, mas nunca foste obrigado a vestir um sutiã todo armado. – É um facto... – Por isso, não fales do assunto como se estivesses por dentro dele. Ser mulher é muito mais duro do que ser homem. Alguma vez na tua vida tiveste de descer por umas escadas de emergência com sapatos de salto alto? Alguma vez saltaste por cima de uma barreira com uma minissaia vestida? – Lamento que tenhas passado por isso – desculpou-se o homem, com sinceridade. 230/1088
Ela levou as mãos às costas, desapertou o sutiã e lançou-o para o chão. A seguir, tirou as meias de seda, desenrolou-as e também as atirou ao chão. Depois de se deitar ao lado dele, começou a brincar outra vez com o pénis do homem. – Bastante imponente – observou ela. – Tem uma bonita forma, mesmo o tamanho ideal, e é firme como um tronco. – Ainda bem que te agrada – disse ele, aliviado. – Agora deixa que esta rapariga faça o seu trabalho. Vais ver como ponho o teu zezinho a contorcer-se de gozo. – Se calhar devíamos tomar um duche antes, que me dizes? Estou todo suado... – Cala-te, de uma vez por todas – disse Aomame, dando-lhe uma sapatada ligeira no testículo direito, em sinal de advertência. – Vim aqui para ter sexo, e não para tomar duche. Entendido? Primeiro fazemos sexo. Fodemos que nem loucos. Quero lá saber do 231/1088
suor para alguma coisa. Não sou nenhuma colegial tímida. – Entendido – disse o homem. Quando acabaram de fazer sexo, e enquanto acariciava com os dedos a nuca desprotegida do homem, que estava estendido de cara para baixo, Aomame sentiu um forte desejo de lhe cravar a agulha pontiaguda no tal ponto especial. «Talvez devesse fazê-lo.» O pensamento atravessou-lhe o cérebro como um relâmpago. O picador de gelo encontrava-se dentro da mala, embrulhado num pano. Na sua extremidade, que passara tanto tempo a afiar, espetara uma espécie de rolha de cortiça, especialmente fabricada para o efeito. Teria sido tão fácil, bastava-lhe agarrar com a palma da mão direita na pega de madeira, e ele estaria morto antes de lhe dar tempo para saber o que tinha acontecido. Quase sem sentir dor. Morte natural, determinariam os médicos. Porém, como seria de esperar, renunciou à ideia. Não havia 232/1088
razão para eliminar da sociedade aquele homem, tirando o facto de já não lhe servir para nada. Aomame abanou a cabeça e afastou este pensamento, por demais perigoso, da sua cabeça. «Este homem até não é má pessoa», disse ela para se convencer a si mesma. Além do mais, revelara-se bastante bom na cama. Conseguira controlar-se e só ejaculara depois de ela se ter vindo. A forma da sua cabeça e aquela calva eram do seu agrado. O tamanho do pénis também não estava nada mal. Era educado, tinha bom gosto no vestir e não se armava em controlador. O que não impedia que, sempre que abria a boca, o discurso dele fosse enfadonho até dizer chega. Isso deixava-a irritada, mas não era motivo para o matar. Provavelmente. – Importas-te que ligue a televisão? – perguntou ela. – À vontade – respondeu ele, continuando de barriga para baixo. 233/1088
Dentro da cama, despida, ela assistiu às notícias das onze do princípio ao fim. No Médio Oriente, Irão e Iraque prosseguiam envolvidos numa guerra sangrenta. O conflito armado convertera-se num terreno pantanoso, sem que ninguém conseguisse descortinar um caminho para uma solução de paz. No Iraque, aos jovens que desertavam do Exército atavam-nos aos postes elétricos, para servirem de exemplo. O Governo iraquiano acusava Saddam Hussein de utilizar gás tóxico e armas biológicas. Nos Estados Unidos da América, Walter Mondale e Gary Hart disputavam a candidatura pelo Partido Democrático às eleições presidenciais. Nenhum dos dois tinha ar de ser a pessoa mais inteligente do mundo. Uma vez que os presidentes inteligentes se transformavam quase sempre em alvo privilegiado dos assassinos, talvez as pessoas com uma inteligência acima da média se esforçassem por não ser eleitas. 234/1088
Na Lua, avançava a passos largos a construção de um posto de observação permanente. Neste projeto, e por estranho que parecesse, colaboravam os Estados Unidos e a União Soviética, tal como acontecera no caso do observatório na Antártida. «Um posto de observação na Lua?», interrogou-se Aomame, de cabeça à banda. «Nunca tinha ouvido falar em semelhante coisa. Que se estará a passar comigo?» Porém, decidiu que não valia a pena aprofundar a questão. Havia outros problemas mais urgentes a considerar. Numerosas pessoas tinham morrido num acidente nas minas de carvão de Kyū shū e o Governo investigava as causas do desastre. O que deixava Aomame espantada era o facto de haver quem continuasse a extrair carvão das entranhas da Terra, numa altura em que o Homem construía bases na Lua. Os Estados Unidos exigiam ao Japão a abertura do mercado financeiro. Bancos como Morgan Stanley e Merryl Lynch andavam a brincar 235/1088
com o fogo debaixo do nariz do Governo, em busca de novas possibilidades de lucro. A notícia seguinte dava conta de um gato muito inteligente que vivia na prefeitura de Shimane. O animal abria a janela pelos seus meios e saía; uma vez no exterior, tornava a fechá-la. O dono ensinara-lhe aquele truque. Aomame observava com admiração enquanto o elegante gato negro dava a volta, estendia a pata e, com um olhar de quem só lhe faltava falar, fechava a janela. Havia uma grande quantidade de outras reportagens, mas nenhuma se referia à descoberta de um cadáver num hotel de Shibuya. Quando o noticiário chegou ao fim, Aomame desligou a televisão com o comando. À sua volta, tudo estava em silêncio. O único som que se ouvia era a respiração suave do homem de meia-idade que dormia ao seu lado. O outro homem, que ficou no hotel, ainda deve estar deitado na mesma posição, 236/1088
virado de frente sobre a secretária, como se estivesse a dormir. Igualzinho a este, com a diferença de que não se ouve a respiração. Aquele filho da mãe nunca mais vai ter hipótese de se levantar e de voltar ao mesmo. De olhos fixos no teto, Aomame pôs-se a imaginar o morto. Abanou ligeiramente a cabeça e permitiu-se uma pequena enrugadela de testa. A seguir, saiu sorrateiramente da cama e arrebanhou, uma a uma, as peças de roupa que espalhara pelo chão.
12 Nas izakaya, que são lojas de bebidas onde também se pode comer qualquer coisa. (N. das T.)
13 Nas yoshinoya servem gy don, arroz com de carne de vaca, cebola e outros ingredientes. Estão abertas 24 horas por dia, o serviço é rápido e têm preços muito convidativos. (N. das T.)
14 Kansai-ben. Dialeto da região de Kansai, no Sudeste do Japão, carateriza-se pelas vogais fortes, enquanto a
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pronúncia de Tóquio ( Tōkyō-ben) é marcada por consoantes fortes, apesar de a base fonética ser a mesma. (N. das T.) 238/1088
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TENGO
Significa isto que ainda temos uma longa viagem pela frente?
Foi numa sexta-feira de manhã cedo, pouco passava das cinco, que recebeu outra chamada de Komatsu. Tengo estava a meio de um sonho em que se via atravessar uma comprida ponte de pedra sobre um rio, a fim de apanhar um documento importante que deixara esquecido na outra margem. Encontrava-se sozinho. O rio era enorme e muito bonito, salpicado de bancos de areia. A água fluía mansamente e nos bancos de areia cresciam salgueiros. Podia ver-se a elegante silhueta das trutas. As folhas de um verde
intenso pendiam docemente sobre a superfície das águas. A cena evocava as paisagens pintadas nos pratos de porcelana chineses. Foi então que Tengo acordou e, sempre às escuras, olhou para o relógio que tinha à cabeceira. Nem é preciso dizer que ele estava farto de saber, antes de levantar o auscultador, quem lhe poderia ligar a uma hora daquelas. – Por acaso trabalhas com um processador de texto, Tengo? – perguntou Komatsu. Nem «bom dia», nem «estavas acordado?», nada. Para estar desperto àquela hora, queria dizer que devia ter passado a noite a pé. De certeza que não madrugara só porque lhe apetecia ver o Sol nascer. O mais provável era ter-se lembrado de qualquer coisa que precisava de dizer a Tengo, antes de se deitar. – Não, claro que não – respondeu Tengo. Ainda se encontrava mergulhado na escuridão, a meio caminho da tal ponte que nunca 240/1088
mais acabava. Era raro sonhar com tanta nitidez. – Tenho uma certa vergonha de o confessar, mas a verdade é que não tenho dinheiro para comprar um. – Sabes usá-lo? – Sim, isso sei. Tanto no caso de um computador como no de um processador de texto, estou habituado a usá-los, na escola e no trabalho. – Perfeito. Preciso que vás comprar um ainda hoje. Deixo isso ao teu critério, o fabricante e o modelo, uma vez que não percebo nada dessas máquinas, confesso. Depois envia-me a conta. Quero que comeces a trabalhar e a rever A Crisálida de Ar o mais depressa possível. – Tem noção de que a coisa pode custarlhe a módica quantia de duzentos e cinquenta mil ienes, e estou a falar de um modelo barato? – Não há problema. 241/1088
Tengo inclinou a cabeça em sinal de estranheza. – Nesse caso, vai mesmo comprar-me um processador de texto, senhor Komatsu? – Sim, com ajuda do meu modesto fundo de maneio. Este trabalho a que nos propomos merece um pequeno investimento. Não se consegue nada sem abrir os cordões à bolsa. Como sabes, A Crisálida de Ar chegou às nossas mãos escrita com um processador de texto, o que significa que teremos de usar outro que tal para fazer a correção. Peço-te que lhe dês um aspeto em tudo semelhante ao da obra original. Podes começar a trabalhar nisso hoje sem falta? Tengo pensou no assunto. – Posso começar assim que quiser, mas a Fuka-Eri, para eu poder reescrever a obra, pôs como condição apresentar-me uma certa pessoa, e esse encontro só vai acontecer no domingo que vem. Temos sempre de considerar a hipótese de essas negociações 242/1088
poderem ir por água abaixo; nessa altura, todo o esforço avançado por mim teria sido em vão. – Não te preocupes, a coisa vai resultar. Esquece os pormenores e começa a trabalhar logo que possas. Estamos numa corrida contra o tempo. – Tem a certeza de que o encontro com essa tal pessoa vai correr bem? – É o que diz a minha intuição – afirmou Komatsu. – Tenho boa intuição para essas coisas. Não sou um homem de muitos talentos, mas tenho intuição para dar e vender. Foi assim que sobrevivi durante todos estes anos. A propósito, Tengo, sabes qual é a principal diferença entre talento e intuição? – Não faço ideia. – Por mais talentos com que tenhas sido dotado, nem sempre consegues encher a barriga, ao passo que, se tiveres um instinto apurado, isso garante-te que nunca passarás fome. 243/1088
– Vou procurar nunca me esquecer disso – disse Tengo. – Não tens razões para estar preocupado, só te digo isto. Podes começar o trabalho hoje mesmo. – Se assim o diz. Não queria adiantar-me aos acontecimentos, envolver-me demasiado cedo e depois descobrir que andei a desperdiçar o meu trabalho. – Deixa que seja eu a preocupar-me com essas questões. Assumo por inteiro a responsabilidade. – Entendido. Hoje à tarde já tenho um encontro marcado, mas amanhã estou livre e posso começar. Quanto ao processador de texto, irei comprá-lo ainda esta manhã. – Isso seria ouro sobre azul, Tengo. Conto contigo. Vamos unir forças e revolucionar o mundo.
Passava das nove da manhã quando lhe telefonou a amante. Tinha acabado de levar o marido e os filhos à estação, de carro. Em
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princípio, aquele era o dia marcado para ir ter com Tengo ao apartamento dele. Costumavam encontrar-se todas as sextasfeiras. – Não me sinto bem – disse ela. – Desculpa, mas acho que hoje não consigo encontrar-me contigo. Vemo-nos na semana que vem. «Não se sentir bem» era um eufemismo para dizer que lhe aparecera a menstruação. Tinha sido educada para utilizar, de preferência, expressões delicadas e refinadas. Na cama não se mostrava assim tão delicada nem utilizava eufemismos, mas isso era outra história. Tengo disse-lhe que tinha muita pena e que ficava para a próxima, uma vez que não havia nada a fazer. Verdade seja dita que, naquela semana em concreto, não se sentia assim com tanta pena por não a ver. Gostava muito de fazer sexo com ela, contudo, os seus sentidos já se encontravam canalizados para a revisão do 245/1088
livro. As ideias fervilhavam na sua cabeça como as primeiras formas de vida num oceano pré-histórico. Num certo sentido, não sou muito diferente do Komatsu. Antes que as coisas estejam oficialmente decididas, já os meus sentimentos ganharam vida própria e começaram a funcionar. Às dez da manhã, deslocou-se a Shinjuku e comprou um computador da marca Fujitsu, que pagou com cartão de crédito. Tratava-se do último modelo daquela marca, mais leve, em comparação com produtos anteriores da mesma linha. Comprou também papel e cartuchos de tinta. Regressou ao apartamento, instalou o computador na secretária e ligouo. No trabalho, costumava utilizar um processador de texto Fujitsu dos maiores, e as funções básicas eram mais ou menos as mesmas. Para comprovar a eficácia da máquina, lançou mãos à obra e começou a rever A Crisálida de Ar. 246/1088
Não tinha aquilo a que se poderia chamar um plano bem definido sobre como reescrever o romance. À falta de um método consistente ou de linhas de fundo, alinhavara algumas ideias que tencionava aplicar em certos e determinados capítulos. Tengo nem sequer estava seguro de poder imprimir uma sequência lógica a um romance fantástico e delicado como aquele. Tal como Komatsu havia dito, o estilo precisava de levar uma grande volta e de ser melhorado. A questão era: iria conseguir fazer isso sem destruir o espírito e o ambiente da obra? Não seria o mesmo que dar um esqueleto a uma borboleta? Pensamentos como estes só serviam para o deixar confuso e aumentavam a sua ansiedade. No entanto, o assunto estava em andamento. Não tinha tempo para se sentar de braços cruzados e pôr-se a cismar naquilo. A única solução era ir lidando com os problemas concretos, à medida que lhe fossem aparecendo pela frente. Ao ocupar-se 247/1088
de cada pormenor, com espírito de artesão, quem sabe?, talvez o corpo da obra ganhasse uma imagem global. «Não te preeocupes, a coisa vai resultar», declarara Komatsu, cheio de confiança, e, por uma razão insondável, o próprio Tengo acreditava piamente nas palavras do mestre. Tanto no que ao seu discurso dizia respeito como pela sua maneira de estar na vida, Komatsu era uma figura bastante problemática e, basicamente, só pensava em si mesmo. Caso a oportunidade se proporcionasse, deixaria Tengo ficar malvisto sem grandes escrúpulos. Mas, como o próprio gostava de dizer, possuía uma intuição especial como editor. Tomava decisões na hora e passava da teoria à prática sem hesitar. Pouco ou nada importava o que os outros poderiam dizer. Tratava-se de uma qualidade necessária para ser um excelente comandante na frente de batalha. Escusado será dizer que 248/1088
aquela não fazia parte das qualidades de Tengo. Era meio-dia e meia quando Tengo começou a reescrever A Crisálida de Ar. Digitou no computador, tal como estavam, as primeiras páginas do manuscrito original, até encontrar o momento certo para fazer um corte. A sua ideia era começar por reescrever aquele bloco de texto sem mexer no conteúdo, mas procurando trabalhar melhor o estilo. Um bocado como acontece quando uma pessoa se dedica à remodelação de um apartamento. A estrutura principal ficaria inalterada, incluindo a cozinha e a casa de banho, uma vez que não apresentavam problemas. Mas tudo o resto, desde o revestimento do chão ao teto, passando pelas paredes e pelas divisórias, tinha de ser arrancado e substituído. «Sou eu o hábil carpinteiro encarregado do trabalho», repetia Tengo com os seus botões. «Não tenho um desenho fixo do projeto, por isso 249/1088
preciso de me socorrer da minha intuição e da minha experiência de cada vez que for confrontado com um problema concreto.» Depois de passar as emendas para o documento informático, relia o que acabara de escrever e, se havia partes que achava difíceis de entender, acrescentava uma explicação, procurando facilitar o fluxo da leitura. Quanto às expressões redundantes e às passagens que estavam a mais, eliminava-as, e completava as partes incompletas. Volta e meia, mudava a ordem das frases e dos parágrafos. Fuka-Eri mostrava-se bastante parca no uso de adjetivos e advérbios, e ele fazia questão de respeitar essa caraterística do seu estilo; porém, quando notava que era preciso empregar alguma figura de estilo, escolhia a que lhe parecia mais apropriada. A prosa de Fuka-Eri era, de um modo geral, pueril e despretensiosa, e as partes boas podiam facilmente diferenciar-se das más, pelo que a escolha de soluções acabou por se 250/1088
revelar menos complicada do que ele pensara. Havia partes, é certo, que, de tão infantis, se tornavam difíceis de compreender, mas, por outro lado, a mesma caraterística resultava de forma surpreendentemente original nalgumas passagens. Tudo o que tinha de fazer era eliminar e substituir as primeiras, e deixar as segundas tal qual tinham sido escritas. Ao avançar no seu trabalho, Tengo ganhou consciência de que Fuka-Eri não havia escrito aquele romance com a intenção de deixar uma obra literária para a posteridade. Limitara-se a deixar registada por escrito uma história – ou, segundo as suas próprias palavras, as coisas que vivera na realidade – que tinha dentro de si. As palavras não eram especialmente importantes, mas não encontrou outro meio adequado de se expressar. Tão simples quanto isso. Por conseguinte, nunca tivera quaisquer ambições literárias. A partir do momento em que não tinha 251/1088
intenção de comercializar o que produzira, não precisava de prestar grande atenção ao lado formal. Era como se ela considerasse que, com umas paredes e um teto para se abrigar da chuva e do vento, podia chamar a essa divisão um quarto que fosse seu. Daí que Fuka-Eri não se importasse com a quantidade de correções que Tengo pudesse fazer ao seu texto original. Ela já conseguira o seu objetivo. Quando lhe disse: «Corrige à vontade», de certeza que estava a ser sincera. E, no entanto, as frases e os parágrafos alinhavados por Fuka-Eri ao longo das páginas de A Crisálida de Ar não eram, de forma alguma, o resultado de um trabalho destinado a satisfazer apenas o seu autor. Se o único objetivo de Fuka-Eri fosse registar para a posteridade coisas que ela tivesse testemunhado ou que lhe tivessem passado pela cabeça, ter-lhe-ia bastado para tal redigir essa informação em forma de notas ou de lista. Não era necessário dar-se ao trabalho 252/1088
de criar uma história. Aquele era, sem sombra de dúvida, um texto escrito para ser posto a circular e lido por outras pessoas. Por isso mesmo, apesar de não ter sido escrita com o objetivo de se converter numa obra literária, e levando em consideração a sua linguagem crua e infantil, A Crisálida de Ar possuía a capacidade de tocar no coração de muito boa gente. Quanto mais avançava na leitura, mais Tengo se convencia de que essa «gente» parecia ser diferente do leitor comum de que falamos quando falamos, por norma, de literatura contemporânea. Nesse caso, a que tipo de leitor é que se dirige? Tengo não fazia ideia, claro. Sabia apenas que A Crisálida de Ar era, de facto, uma obra de ficção única, combinando enormes virtudes e enormes defeitos, e que parecia destinada a um propósito especial.
Em resultado do seu trabalho de reescrita, Tengo descobriu que o manuscrito original
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aumentara para mais do dobro. Como as partes insuficientes se revelaram em maior número do que as partes prolixas, o lógico era que, ao corrigir o texto, o volume total aumentasse. No início, tudo correu sem espinhas. O estilo de Fuka-Eri era tão básico! Aos poucos, Tengo deu-lhe uma outra consistência lógica, o ponto de vista tornou-se mais conseguido e, por conseguinte, a obra passou a ser lida com outra desenvoltura. Ainda assim, a narrativa, no seu todo, teimava em arrastar-se. A lógica aflorava por demais à superfície e tendia a ofuscar o engenho patente no original. Logo que cumpriu a primeira parte da missão, Tengo avançou para a fase seguinte, que consistia em pegar no manuscrito e eliminar tudo o que não fosse estritamente necessário, que é como quem diz, eliminar as gorduras. A operação de eliminar anunciavase muito mais simples do que a de acrescentar. Como tal, o texto ficou reduzido a 254/1088
cerca de menos trinta por cento do seu volume original. Era uma espécie de jogo mental. Havia um período de tempo para acrescentar tudo o que fosse possível, depois, um período de tempo para eliminar o máximo possível. Na medida em que ele alternava os dois processos, a margem de oscilação reduzia-se de forma gradual, até que o volume estabilizou, atingindo um ponto em que já não era possível aumentar nem reduzir. Removeu os sinais de egolatria, suprimiu todos os floreados inúteis e mandou que a lógica transparente se retirasse para o quarto dos fundos. Tengo possuía um talento especial para essa tarefa. Era engenhoso por natureza. Possuía a concentração aguda da ave que paira no céu em busca da sua presa e a paciência da mula que carrega a água. Como se não bastasse, fazia questão de respeitar as regras do jogo até ao fim. 255/1088
Mal parando para respirar, profundamente entregue ao seu trabalho, quando Tengo deu por si e olhou para o relógio de parede viu que eram quase três da tarde. Só então se lembrou de que nem sequer tinha almoçado. Foi até à cozinha, pôs a cafeteira ao lume e, entretanto, aproveitou para moer alguns grãos de café. Comeu duas ou três bolachas com queijo e uma maçã, e, assim que a água começou a ferver, preparou o café. Enquanto bebia o café numa grande chávena, entreteve-se a pensar em ter sexo com a amante. Normalmente, estaria a fazer aquilo com ela naquele momento. Pôs-se a imaginar as coisas que ele faria, e as coisas que ela faria. Fechou os olhos, olhou para o teto e deixou escapar um suspiro profundo pleno de sugestões e possibilidades. De regresso ao seu posto de trabalho, Tengo voltou a trocar os circuitos no cérebro e leu no monitor a primeira parte do romance A Crisálida de Ar, já depois de ter 256/1088
sido reescrito por si. Pôs-se na pele do general que, na cena inicial do filme Horizontes de Glória15, de Stanley Kubrick, passa revista ao acampamento nas trincheiras. Sentia-se satisfeito com o que via à sua frente. Nada mal. A escrita melhorara bastante. Estava a fazer progressos. Contudo, não era suficiente. Ainda havia muito por fazer. Os sacos de terra ameaçavam desmoronar-se, ali e acolá. As munições para as metralhadoras escasseavam. Nas barreiras de arame farpado detetavam-se zonas desprotegidas. Deu ordem de impressão, salvou o documento, desligou o computador e afastou-o para um dos lados da mesa de trabalho. A seguir, munido de um lápis, pôs a cópia à sua frente e releu-a com toda a atenção, desta vez em papel. Aquelas passagens que considerava supérfluas, riscava-as, e completava as que lhe pareciam insuficientes, corrigindo sempre até ficar com a noção de que as partes encaixavam no resto da história. 257/1088
Escolhia as palavras com o mesmo cuidado com que um operário seleciona o fragmento de mosaico destinado a preencher uma pequena fenda nos azulejos na casa de banho, inspecionando a sua obra de todos os ângulos possíveis e imagináveis. Caso não encaixasse na perfeição, modificava a forma. Uma ínfima diferença de matizes podia dar vida ao texto ou matá-lo. A impressão causada não deixava de ser ligeiramente diferente, consoante o mesmo texto podia ser lido em papel ou visto no monitor. O toque das palavras escritas num papel ou tecladas no computador também mudava. Era obrigatório experimentar das duas maneiras. Tengo tornou a ligar o computador e introduziu no documento informático todas as partes já corrigidas a lápis. A seguir, leu de novo o texto no ecrã. «Não está mal», disse para consigo. Cada frase possuía o seu peso próprio, que conferia ao todo um ritmo natural. 258/1088
Tengo sentou-se melhor na cadeira, endireitou as costas, olhou para cima e soltou um grande suspiro. O seu trabalho estava longe de ter terminado. Daí a uns dias, quando voltasse a reler a prosa, encontraria mais coisas que precisariam de ser corrigidas. Mas, por enquanto, era suficiente. A sua capacidade de concentração atingira o limite. Necessitava de um tempo para deixar arrefecer os circuitos. Os ponteiros do relógio aproximavam-se das cinco, e à sua volta começava a escurecer. No dia seguinte, emendaria o próximo bloco de texto. Corrigir as primeiras páginas tinha-lhe levado quase um dia inteiro. Estava a ser mais demorado do que pensara. Uma vez encarrilado e entrando no ritmo, por certo o trabalho avançaria com outra rapidez. Além disso, a parte difícil e espinhosa era o início. Assim que ultrapassasse esse primeiro obstáculo, o resto... 259/1088
Tengo recordou o rosto de Fuka-Eri e perguntou a si mesmo como iria ela reagir quando lesse a versão reescrita. Percebeu que a questão era desprovida de sentido. Em boa verdade, não podia fazer a mínima ideia, uma vez que não sabia nada acerca dela, apenas que tinha dezassete anos, que andava no último ano do secundário, mas que não estava interessada em fazer os exames de acesso à universidade, que falava de uma maneira esquisita, gostava de vinho branco e possuía uma beleza perturbadora. Apesar disso, Tengo ficara com a sensação de que começava a ter uma noção clara dos contornos do mundo que Fuka-Eri procurava retratar em A Crisálida de Ar. As cenas que Fuka-Eri criara com ajuda do seu vocabulário peculiar e por vezes limitado, graças à correção minuciosa efetuada por Tengo, ressaltavam com mais nitidez e com outra frescura. Dir-se-ia que fluíam. Tengo conseguia ver que assim acontecia. Limitara-se a 260/1088
reforçar a obra, do ponto de vista técnico, mas o que resultara desse trabalho era profundamente natural, como se ele próprio tivesse escrito o texto de início. A história contada em A Crisálida de Ar começava a emergir em toda a sua pujança. Este facto constituiu para Tengo um motivo de grande satisfação. As longas horas de concentração mental haviam-no deixado exausto do ponto de vista físico, mas, no fundo, sentia-se emocionalmente recompensado. Passado algum tempo depois de ter desligado o computador e abandonado a secretária, Tengo descobriu que sentia vontade de continuar a trabalhar no texto, tal o gozo que lhe estava a dar a tarefa. Avançando àquele ritmo, talvez não corresse o risco de desapontar Fuka-Eri – isto apesar de ele não ser capaz de imaginar Fuka-Eri contente ou desapontada. A bem dizer, nem sequer podia imaginá-la a esboçar um sorriso ou a manifestar o seu desagrado por 261/1088
qualquer coisa. O rosto dela era desprovido de expressão. Tengo desconhecia se era porque ela não tinha sentimentos, ou, no caso de possuir sentimentos, não os conseguia expressar. Em todo o caso, não deixava de ser uma rapariga estranha.
O mais certo era a heroína de A Crisálida de Ar ser a própria Fuka-Eri, retratada no passado. Tinha dez anos de idade, vivia numa comunidade (ou numa espécie de comuna) no meio das montanhas e a sua missão consistia em tomar conta de uma cabra cega. Todas as crianças recebiam tarefas que tinham de cumprir. A cabra estava velhota, mas revestia-se de um significado especial para a comunidade, daí que a rapariga tivesse por incumbência vigiá-la e certificar-se de que nenhum mal lhe acontecia. Não podia tirar os olhos dela nem por um minuto. Um dia, sem querer, teve um momento de distração, perdeu a cabra de vista e ela morreu. De castigo, a jovem foi
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enviada para um velho armazém, juntamente com o corpo da cabra morta, e condenada a permanecer completamente isolada durante dez dias. A cabra fazia a ligação entre o Povo Pequeno e este mundo. A rapariga não sabia se o Povo Pequeno era bom ou mau (e Tengo também não). Ao anoitecer, o Povo Pequeno penetrava através do corpo da cabra neste mundo, e, quando amanhecia, regressava ao outro lado. A rapariga podia comunicar com aquela gente pequena. Foram eles que lhe ensinaram a fazer uma crisálida de ar.
Aquilo que deixava Tengo mais espantado era o pormenor com que os hábitos e os movimentos da cabra se encontravam descritos no livro. Essa preocupação com a minúcia conferia à obra, no seu todo, grande vivacidade. Teria Fuka-Eri cuidado realmente de uma cabra cega? E seria possível que ela tivesse alguma vez vivido numa comuna algures nas montanhas, como a que aparecia
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descrita na história? A Tengo, palpitava-lhe que a resposta a ambas as perguntas era «sim». Porque, imaginando por um momento que ela nunca vivera na pele aquelas experiências, isso queria dizer que Fuka-Eri era dona de um talento único que fazia dela uma contadora de histórias extraordinária. Tengo tomou a decisão de perguntar a Fuka-Eri, da próxima vez que se encontrasse com ela (o que deveria acontecer no domingo), mais coisas acerca da cabra e da tal comuna nas montanhas. Claro que não sabia se ela estaria disposta a responder. Tengo lembrava-se perfeitamente da conversa anterior e, a julgar pela amostra, Fuka-Eri parecia só responder às perguntas quando lhe apetecia. Quando não estava para aí virada, ou sempre que não fazia tenções de responder, ignorava pura e simplesmente as perguntas, como se nem as tivesse ouvido. Igualzinha a Komatsu. Os dois tinham isso em comum. Já Tengo não era assim. Bastava 264/1088
fazerem-lhe uma pergunta, e ele fazia os possíveis por fornecer logo a resposta. Devia ser uma coisa inata.
Eram cinco e meia da tarde quando a sua namorada mais velha telefonou. – O que fizeste hoje? – perguntou ela. – Fiquei a escrever durante todo o dia – respondeu ele, avançando com uma meiaverdade. Não estivera a escrever uma obra da sua lavra, mas não viu razão para se pôr com muitas explicações ao telefone. – Correu bem? – Mais ou menos. – Desculpa por ter desistido, tão em cima da hora, de ir aí hoje. Podemos ver-nos para a semana que vem. – Estou cheio de vontade. – Também eu – disse ela. A seguir, falou das filhas. Costumava falarlhe muitas vezes delas. Tinha duas meninas. Tengo não tinha irmãos e era filho único, pelo que não entendia grande coisa de
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crianças pequenas. Mesmo assim, isso não a impedia de abordar o assunto. Embora fosse raro ser ele a puxar conversa, Tengo escutava com interesse o que os outros tinham para lhe dizer. Logo, ouvia atentamente as histórias dela. Contou-lhe que, segundo parecia, andavam a implicar com a filha mais velha, que frequentava o segundo ano da primária. A menina não tinha dito nada em casa, mas a mãe de uma das colegas de turma pusera-a a par. Tengo nunca se encontrara com a menina, como é óbvio, mas lembrava-se de ter visto uma fotografia. Não se podia dizer que fosse muito parecida com a mãe. – Porque será que se metem com ela? – perguntou Tengo. – Por vezes, dão-lhe uns ataques de asma, não pode participar em várias atividades com os outros. Deve ser por isso. É uma criança muito obediente, e não tem tido más notas. 266/1088
– Não entendo – afirmou Tengo. – Uma criança que tem asma deveria ser mais bem tratada, e não alvo de bullying. – As coisas não são assim tão simples no mundo dos mais pequenos – observou ela, com um suspiro. – Só por seres diferente, há sempre quem te ponha de parte e te exclua das brincadeiras. De resto, passa-se o mesmo no mundo dos adultos, só que no das crianças acontece de uma forma muito mais direta. – Como, em concreto? Ela deu-lhe vários exemplos. Enquanto gestos isolados, nenhum deles era grave, mas, quando se convertiam numa prática continuada, quotidiana, podiam afetar gravemente a menina. Escondiam-lhe coisas. Não lhe falavam. Faziam troça dela e imitavam-na por maldade. – Quando eras pequeno, alguma vez se meteram contigo? Tengo lembrou-se de quando era pequeno. 267/1088
– Não creio – respondeu. – Ou, se calhar, fui eu que nunca dei por isso. – Se não davas por isso, quer dizer que nunca aconteceu. O objetivo da humilhação e da provocação é fazer com que a outra pessoa tenha consciência do que lhe está a ser feito. Não existe bullying sem que a vítima dê por isso. Tengo tinha sido uma criança grande e forte para a sua idade, e as pessoas tratavamno com respeito. Talvez por isso nunca se tivessem metido com ele. Naquela época, verdade seja dita, Tengo deparava-se com outros problemas mais sérios do que o bullying. – E tu, alguma vez foste alvo de agressão na escola? – perguntou Tengo. – Não – começou por declarar ela, mas depois pareceu hesitar. – Pode dizer-se que eu própria pratiquei bullying. – Fizeste parte de um grupo que se dedicava a isso? – perguntou Tengo. 268/1088
– Sim, quando estava no quinto ano. Juntámo-nos todos e decidimos não falar com um determinado rapaz. Já não me lembro porquê. Deve ter havido uma razão, mas, para não me lembrar, é porque não devia ser nada de especial. Seja como for, ainda hoje me incomoda e tenho vergonha só de pensar no que fiz. O que me terá levado a agir assim? Confesso que nem eu sei. Aquele episódio fez Tengo pensar numa história que lhe sucedera havia muito tempo e que, de tempos a tempos, teimava em regressar à sua memória. Nunca conseguira esquecê-la. Apesar disso, optou por não mencionar o episódio. Tratava-se de uma longa história, nunca mais acabaria de a contar. Ainda por cima, era o tipo de acontecimento que, traduzido por palavras, perderia os matizes mais significativos. Nunca falara do assunto a ninguém, e o mais provável era nunca o vir a fazer. 269/1088
– Afinal de contas – disse a amante –, todos nos sentimos mais seguros pelo simples facto de pertencermos ao grupo maioritário dos que rejeitam, e não à minoria dos que são excluídos. «Olha, ainda bem que não acontece comigo», pensas tu. Basicamente, acontece o mesmo em todas as épocas e em todas as sociedades. Quando se está com a maioria, o que acontece é que acabamos por não pensar muito em certas coisas que, de outro modo, poderiam revelar-se bastante perturbadoras. – E quando se faz parte da minoria, não se consegue deixar de pensar nelas. – Assim é, com efeito – disse ela, num tom pesaroso. – Mas, já que te encontras numa situação dessas, ao menos aprendes a pensar pela tua própria cabeça. – Sim, ou podes sempre pensar pela tua própria cabeça em todas essas coisas deprimentes. – Esse é outro problema, acho eu. 270/1088
– O melhor é não levar o assunto tão a peito – afirmou Tengo. – Duvido que o caso seja assim tão terrível. Tenho a certeza de que deve haver alguns meninos na classe dela que sabem pensar pela sua própria cabeça. – Deves ter razão – disse ela, e em seguida deu a ideia de ficar perdida nos seus pensamentos. Com o auscultador encostado à orelha, Tengo esperou pacientemente durante algum tempo que ela pusesse as ideias em ordem. – Obrigada – concluiu ela. – Sinto-me melhor depois de ter falado contigo. – Parecia ter encontrado algumas respostas. – Também eu me sinto mais aliviado – referiu ele. – E isso porquê? – Por ter desabafado contigo. – Encontramo-nos na sexta que vem – despediu-se ela. 271/1088
Depois de ter desligado, Tengo saiu e foi até ao supermercado do bairro comprar comida. Regressou a casa carregado com um grande saco de compras, envolveu as verduras e o peixe em celofane e guardou tudo no frigorífico. Encontrava-se a preparar o jantar ao som de uma emissão de música na rádio, quando tocou o telefone. Que lhe ligassem quatro pessoas num só dia era coisa rara e nunca vista. Podia contar pelos dedos de uma mão as ocasiões em que isso acontecia num ano. Desta vez era Fuka-Eri. – Acerca de domingo – disse ela, sem cumprimentar. Do outro lado, ouviam-se carros buzinar. Os condutores pareciam estar com os azeites. Certamente que telefonava de uma cabina pública numa grande avenida cheia de movimento. – Sim, domingo que vem – acrescentou ele, pegando nas parcas palavras dela e tratando de puxar o fio à meada –, quer 272/1088
dizer, encontramo-nos depois de amanhã e, em princípio, eu vou conhecer mais alguém. – Nove da manhã. Estação de Shinjuku, na parte da frente, a que está virada para Tachikawa. – Fuka-Eri enunciou os três dados de uma assentada. – Por outras palavras, queres que me encontre contigo na plataforma da linha Chūō a direção contrária à de Tóquio, onde costuma parar a carruagem da frente? – Isso. – Compro bilhete para onde? – Tanto faz. – Compro um bilhete para um sítio qualquer e, quando chegarmos ao destino, pago a diferença – disse ele, acrescentando as palavras em falta e aplicando ao discurso dela o mesmo tratamento que à obra A Crisálida de Ar, em que estivera a trabalhar. – Significa que vamos para muito longe da cidade? 273/1088
– O que estavas a fazer – quis ela saber, ignorando a pergunta dele. – A preparar o jantar. – O quê. – Nada de especial, uma coisa ligeira só para mim. Cavala salgada grelhada com rábano daikon ralado por cima. Uma sopa de miso com ameijoas e cebolas verdes, para acompanhar com tofu. Pepino e algas wakame em vinagre. Sem esquecer o arroz e a couve-chinesa em picles. É tudo. – Parece-me bem. – Nada de especial. Como quase sempre a mesma coisa – esclareceu Tengo. Fuka-Eri ficou calada. Os longos silêncios não pareciam incomodá-la, mas de Tengo já não se podia dizer a mesma coisa. – Ah, é verdade. Comecei hoje a corrigir A Crisálida de Ar. Bem sei que ainda não nos deste a tua autorização, mas, como não temos muito tempo, achei que era melhor ir avançando, se queremos cumprir o prazo. 274/1088
– O senhor Komatsu disse-te para fazeres isso – perguntou ela, sem ponto de interrogação. – Sim, foi ele que me disse para avançar. – Dás-te bem com o senhor Komatsu. – Sim, acho que se pode dizer isso – respondeu Tengo. Palpitava-lhe que não devia haver ninguém no mundo que se desse «bem» com Komatsu, mas explicar isso a Fuka-Eri faria com que a conversa demorasse uma eternidade. – A correção está a correr bem. – Até ao momento, sim. Sem espinhas. – Fico contente. – Disse aquilo com sinceridade. Queria parecer a Tengo que, à sua maneira, ela sentia-se feliz pelo facto de o trabalho de revisão estar a correr bem, ainda que, atendendo à expressão limitada dos seus sentimentos, não lhe fosse possível ir tão longe. – Espero que gostes – disse ele. – Não te preocupes. 275/1088
– Porquê? – quis saber Tengo. Fuka-Eri não respondeu, voltando a cair num dos seus silêncios, do outro lado. Parecia uma espécie de mutismo deliberado, que tivesse como propósito fazer Tengo pensar, mas, por mais que desse voltas à cabeça, não encontrava uma explicação plausível que justificasse aquela confiança toda nele. Tengo falou para quebrar o silêncio. – Escuta, há uma coisa que gostaria de saber. Viveste, de facto, numa espécie de comuna e tomaste conta de uma cabra? Pergunto isto porque as descrições são de tal forma realistas, que me interrogo até que ponto aquilo que descreves aconteceu na realidade. Fuka-Eri aclarou a garganta. – Não vou falar da cabra. – Tudo bem – disse Tengo. – Se não queres falar, não precisas de falar. Foi só uma pergunta. Não te preocupes. Para um autor, a obra é tudo. Não é preciso dar mais 276/1088
explicações. Vemo-nos no domingo. Há alguma coisa que eu deva saber, no que respeita a essa tal pessoa que vou conhecer? – Por exemplo. – Refiro-me a saber se deverei ir bem vestido, levar uma lembrança, ou assim. Como não me adiantaste nada sobre o tipo de pessoa que vou encontrar pela frente... Fuka-Eri voltou a remeter-se ao silêncio, mas, desta vez, tratava-se de um silêncio não intencional. Simplesmente, não entendia o objetivo da pergunta de Tengo ou o que o levava a colocar semelhante questão. A pergunta dele não chegara a ganhar terreno na sua consciência. Parecia superar os limites do significado e ter-se perdido para sempre, sugada para o interior do vazio. Como um solitário foguetão espacial que tivesse passado sem parar para lá de Plutão. – Deixa lá – disse ele, desistindo –, não tem importância. – Fora um erro colocar a Fuka-Eri aquela pergunta. Bom, de caminho, 277/1088
podia sempre comprar um cesto de fruta16, ou uma coisa do género. – Okay, nesse caso, até domingo, às nove – despediu-se Tengo. Fuka-Eri hesitou durante alguns segundos, e depois desligou sem dizer nada. Nem «adeus», nem «até domingo», nada. Ouviu-se apenas o clique da ligação cortada. Podia ser que tivesse acenado com a cabeça antes de desligar o aparelho. Infelizmente, na maioria dos casos, a linguagem corporal revela-se ineficaz quando as pessoas falam ao telefone. Tengo tornou a pousar o auscultador, respirou fundo duas vezes, trocou os circuitos e regressou a um estado mais real, antes de prosseguir com a preparação do seu jantar frugal.
15 Paths of Glory, realizado em 1957, com Kirk Douglas no papel principal. Baseado num facto ocorrido nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial, que levou soldados inocentes a serem fuzilados devido aos erros estratégicos cometidos pelo alto-comando, utilizando-os como bodes expiatórios para o seu fracasso no campo de batalha. Estudo
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aprofundado da insanidade da guerra e filme polémico (em França, esteve durante vários anos proibido). (N. das T.)
16 2 No Japão, é costume oferecer fruta, entre outros artigos. Os presentes fazem parte das regras da etiqueta. Viajar e conhecer pessoas implica levar sempre uma lembrança, por norma muito bem embrulhada. (N. das T.)
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AOMAME
Baixinho, para não acordar a borboleta
No domingo, passava da uma da tarde quando Aomame visitou a Casa dos Salgueiros. Nos terrenos à volta cresciam vários salgueiros, árvores frondosas e vetustas assomando por cima do muro de pedra, e que, quando o vento soprava, abanavam em silêncio como espíritos errantes. Por essa razão, e de uma forma natural, as pessoas que viviam nas redondezas habituaram-se a chamar àquela antiga mansão, construída ao estilo ocidental, a Casa dos Salgueiros. Ficava localizada no alto de uma encosta íngreme, nas imediações da cosmopolita zona de Azabu17.
Quando Aomame chegou lá acima, avistou, pousados na copa dos salgueiros, um bando de pássaros tão levezinhos que mal tocavam nos ramos. Um gato enorme dormia, esparramado ao sol debaixo do telhado, com um olho aberto e o outro fechado. As ruas que rodeavam a casa eram estreitas e sinuosas, ao ponto de os carros quase não conseguirem passar. Havia uma grande quantidade de árvores gigantescas que, mesmo de dia, conferiam ao lugar um aspeto sombrio, e, uma vez lá dentro, o tempo dava a impressão de andar mais devagar. Algumas embaixadas encontravam-se ali localizadas, mas os seus visitantes contavam-se pelos dedos. Apenas com a chegada do verão, quando o chiar das cigarras fazia doer os ouvidos, se quebrava o silêncio e o ambiente mudava de forma drástica. Aomame tocou à campainha no portão e deu o nome através do intercomunicador. Em seguida, esboçou um leve sorriso para a 281/1088
câmara situada por cima da sua cabeça. O portão de ferro abriu-se automaticamente, devagar, e, assim que ela entrou, tornou a fechar-se. Aomame atravessou o jardim, como de costume, e dirigiu-se à entrada principal. Sabendo que as câmaras de videovigilância estavam apontadas na sua direção, caminhou sempre em frente pelo caminho de acesso à casa, com as costas direitas, como uma modelo, mantendo o queixo levantado. Estava vestida de maneira informal, com uma parca azul-marinho por cima de uma camisola cinzenta e das calças de ganga. Calçava sapatilhas de desporto brancas e levava o saco do costume ao ombro. Naquele dia, não trazia o picador de gelo com ela. Como não ia precisar dele, deixarao dentro de uma gaveta do roupeiro, onde repousava posto em seu sossego. Diante da entrada estavam dispostas umas poucas cadeiras de jardim feitas de teca, e numa delas encontrava-se sentado um 282/1088
homem de compleição robusta, com todo o ar de se sentir um tanto ou quanto encolhido. Não se podia dizer que fosse muito alto, mas, da cintura para cima, o seu corpo parecia extraordinariamente desenvolvido. Tinha à volta de quarenta anos, usava a cabeça rapada e um bigode bem aparado. Vestia um fato cinzento com ombreiras largas. A camisa lisa branca contrastava com a gravata cinzento-escura. Calçava sapatos de couro pretos, impecáveis, sem uma mancha. Ali estava um homem que ninguém confundiria com um funcionário das Finanças nem com um vendedor de seguros automóveis. À primeira vista, parecia ser um guarda-costas profissional, e essa era, na realidade, a sua especialidade, muito embora, às vezes, também desempenhasse as funções de motorista. Alcançara um elevado dan em karaté e, se necessário, sabia manejar armas com eficácia. Arreganhava os caninos sempre que era preciso e podia mostrar-se mais 283/1088
animalesco do que ninguém. Mas, no fundo, revelava-se uma pessoa bastante calma e pacífica, para não dizer inteligente. Olhandoo de frente – se é que ele permitia tal coisa –, era possível vislumbrar uma luz quente no seu olhar. No que tocava à sua vida privada, tinha uma predileção por tudo o que se relacionava com máquinas e engenhocas. Fazia coleção de discos de rock progressivo dos anos sessenta e setenta, e vivia noutra zona de Azabu com o namorado, um jovem bem-parecido que era cabeleireiro. Chamava-se Tamaru. Aomame não sabia se era nome ou apelido, nem sequer com que ideogramas se escrevia. Toda a gente lhe chamava Tamaru. Sem se levantar, Tamaru acenou com a cabeça ao ver Aomame, que, por seu turno, se sentou na cadeira à frente dele e o cumprimentou com um simples «olá». – Ouvi dizer que morreu um homem num hotel em Shibuya – afirmou Tamaru, ao 284/1088
mesmo tempo que passava revista ao brilho dos seus sapatos. – Não sabia – disse Aomame. – Bom, também não era caso para sair nos jornais. Ao que parece, tratou-se de uma paragem cardíaca. Pobre alma, só tinha quarenta e poucos anos. – É preciso ter cuidado com o coração. Tamaru concordou com a cabeça. – Os hábitos de vida são muito importantes – disse ele. – Levar uma vida irregular, o stresse, a falta de sono. São tudo coisas que matam uma pessoa. – Mais cedo ou mais tarde, todos temos de morrer. – A lógica aponta para isso. – Será feita a autópsia? Tamaru inclinou-se e limpou uma pequena mancha que mal se via na parte de cima dos sapatos. – A polícia, como todos nós, tem muito com que se ocupar, sem esquecer que possui 285/1088
um orçamento limitado. Os polícias não dispõem de tempo nem de margem de manobra para andarem a dissecar cadáveres, para mais sem qualquer lesão externa. Além de que a família do sujeito se calhar também não quereria vê-lo aberto sem motivo; afinal, morreu em paz. – Sobretudo a viúva. Tamaru manteve-se em silêncio durante algum tempo e depois estendeu a Aomame a sua mão direita, grossa como uma luva de basebol. Ela aceitou-a, e os dois trocaram um firme aperto de mão. – Deves estar estafada – disse ele. – Precisas de descansar um pouco. Aomame esticou a comissura dos lábios, como fazem as pessoas normais quando sorriem, mas o que o seu rosto produziu não passou do arremedo de um sorriso. – Como está a Bun? – perguntou ela. – Está boa – respondeu Tamaru. Bun era a cadela lá de casa, uma pastora alemã 286/1088
inteligente e bem-mandada, apesar de alguns hábitos menos ortodoxos que se lhe conheciam. – Ainda continua a comer espinafres? – perguntou Aomame. – Sempre que os apanha à frente. E com os espinafres ao preço a que estão, olha que a despesa não é pequena. – Nunca me lembro de ter visto uma pastora alemã que gostasse de espinafres. – Esta cadela não se considera uma cadela. – Considera-se o quê? – Deve pensar que é um ser especial e que está para lá de qualquer tipo de classificações, ou assim. – Uma supercadela? – Talvez. – Será por isso que gosta tanto de espinafres? – Não, isso não tem nada que ver. Gosta de espinafres, e pronto. Já gostava desde que era cachorrinha. 287/1088
– Se calhar é por culpa disso que tem os tais pensamentos perigosos. – Talvez – admitiu Tamaru. A seguir, olhou para o relógio de pulso. – Diz-me uma coisa, hoje tens encontro marcado à uma e meia, não é verdade? Aomame fez que sim com cabeça. – Certo. Ainda falta. Tamaru levantou-se da cadeira devagar. – Espera aqui um momento. Pode ser que tenhas de ir mais cedo. – E, ao dizer aquilo, desapareceu para dentro de casa. Enquanto esperava, Aomame entreteve-se a contemplar os magníficos salgueiros. Não soprava vento, e os seus ramos pendiam em silêncio e tocavam no chão. Dava a ideia de serem pessoas perdidas em meditação. Tamaru regressou passado pouco tempo. – Vamos pelas traseiras. Hoje disse para ires ter com ela à estufa. Os dois foram dar a volta ao jardim, passaram junto aos salgueiros e dirigiram-se 288/1088
para a estufa, que se encontrava por trás do edifício principal, numa parte do terreno livre de árvores para receber a luz do Sol. Tamaru abriu a porta de vidro com muito cuidado, para não deixar sair as borboletas que estavam lá dentro, e deixou passar Aomame primeiro. A seguir, deslizou ele próprio pelo espaço, apressando-se a fechar a porta. Não era um gesto que um homem corpulento pudesse realizar sem agilidade, contudo, foi o que ele fez, com movimentos precisos e calculados. Acontece que ele não pensava naquilo como sendo o seu forte. A primavera chegara definitivamente e instalara-se no interior do enorme palácio de inverno de cristal. Cresciam em profusão flores das mais diversas espécies. As plantas que ali havia, na sua maioria, eram conhecidas e comuns. Vasos de gladíolos, anémonas e margaridas enchiam as prateleiras. Pelo meio encontravam-se plantas que, aos olhos de Aomame, mais não eram do que ervas 289/1088
daninhas. Não se viam, porém, flores que pudessem ter valor – como as orquídeas raras, variedades únicas de rosas, nem aquelas flores da Polinésia com as suas cores primárias. Apesar de não possuir especial interesse pelas plantas, Aomame apreciava aquela estufa sem pretensões. O lugar era habitado por inúmeras borboletas. Na verdade, a dona daquela enorme casa de cristal parecia mais empenhada em criar borboletas exóticas do que em cultivar plantas raras. As flores ali presentes eram, quase todas, uma fonte do precioso néctar que as borboletas tanto apreciavam. Criar mariposas numa estufa requeria mil e um cuidados, para não falar dos conhecimentos e do esforço exigidos, mas Aomame não fazia a mínima ideia do que era necessário. Exceto no pino do verão, de vez em quando a dona da casa convidava Aomame para se encontrar com ela na estufa, e as duas ficavam ali à conversa. Lá dentro não 290/1088
havia perigo de mais alguém escutar o que diziam. As conversas não eram propriamente para ser tidas em voz alta, num lugar qualquer. Além disso, dizia ela, estar rodeada de flores e de borboletas também lhe acalmava os nervos. Aomame podia confirmar isso mesmo nas suas feições. Fazia demasiado calor dentro da estufa, mas nada que Aomame não conseguisse aguentar. A velha senhora era uma mulher dos seus setenta e cinco anos, de constituição franzina. Tinha um bonito cabelo branco, que usava curto. Vestia uma camisa de manga comprida, boa para trabalhar, calças de algodão de cor creme, e calçava uns ténis sujos. Usava luvas brancas de algodão e estava a regar as plantas, uma a uma, com um regador metálico. A roupa que usava parecia sempre um pouco grande, o que não impedia de lhe assentar bem. De cada vez que olhava para ela, Aomame sentia uma espécie de 291/1088
respeito diante dessa elegância natural, sem pretensões. Filha de boas famílias – o pai fora dono de um importante consórcio financeiro –, casara-se ainda antes da guerra com um homem que pertencia à aristocracia, mas não dava mostras de ostentação nem de arrogância. No pós-guerra, pouco depois de ter perdido o marido, ajudara a formar uma pequena empresa familiar de investimentos e mostrou ser dotada para se movimentar no mercado de ações. Toda a gente à sua volta reconhecia que se tratava de um dom inato. Graças aos seus esforços, a empresa desenvolveu-se rapidamente, e a sua fortuna pessoal também foi aumentando a bom ritmo. Com esse capital, adquiriu várias terrenos valorizados na cidade de Tóquio, que haviam pertencido à aristocracia ou a antigos membros da família imperial. Depois de fazer os cálculos e de ter vendido todas as suas ações a um preço alto, num momento 292/1088
oportuno, havia dez anos que se retirara dos negócios. Visto que, na medida do possível, evitara sempre aparecer em público, o seu nome não era muito conhecido junto da sociedade em geral, apesar de não haver quem não soubesse quem ela era no mundo empresarial. Também se dizia que possuía bons contactos políticos. Do ponto de vista pessoal, tratava-se de uma mulher simples e inteligente, que não sabia o que era o medo, confiava nos seus instintos e, uma vez tomada uma decisão, perseguia o seu objetivo até ao fim. Quando viu chegar Aomame, pousou o regador no chão e fez sinal à outra para se instalar numa pequena cadeira metálica perto da entrada. Assim que Aomame se sentou, também ela se sentou, por seu turno, na cadeira em frente. Fizesse o que fizesse, os seus movimentos não produziam qualquer ruído. Assemelhava-se a uma raposa matreira cortando caminho pela floresta. 293/1088
– Deseja que vá buscar alguma bebida? – perguntou Tamaru. – Uma tisana para mim – disse a senhora; depois olhou para Aomame. – E para ti? – O mesmo. Tamaru assentiu ligeiramente e abandonou a estufa. Olhando em redor para se certificar de que não havia nenhuma borboleta por perto, a mulher abriu uma nesga da porta, esgueirou-se e voltou a fechá-la depressa. Executou estes movimentos com a precisão de uma bailarina num salão de dança. A dona da casa despiu as luvas de algodão e colocou-as em cima da mesa, uma sobre a outra, com o mesmo cuidado que teria se fossem luvas de seda para usar numa noite de baile. Em seguida, olhou para Aomame de frente com os seus olhos negros e luminosos, que haviam sido testemunhas de uma infinidade de coisas. Aomame devolveu-lhe o 294/1088
olhar até onde a sua boa educação lho permitiu. – Parece que perdemos um membro importante da nossa sociedade – afirmou a viúva. – Pelos vistos, tratava-se de uma figura muito conhecida no mundo do petróleo. Jovem, é certo, mas bastante influente, segundo ouvi dizer. A velha senhora falava sempre baixinho. A sua voz soava tão baixo que deixaria de se ouvir de todo no caso de o vento soprar com um pouco mais de força. Quem a escutava tinha de prestar sempre muita atenção ao que ela dizia. De vez em quando, Aomame sentia vontade de esticar a mão e fazer girar o botão do volume – se houvesse um botão, coisa que não havia, claro! Por isso, não tinha outro remédio senão prestar a máxima atenção. – Acontece que o desaparecimento súbito do tal homem não parece ter causado grande 295/1088
inconveniente. O mundo continua a girar – referiu Aomame. A viúva sorriu. – Neste mundo não há ninguém insubstituível. Por muitos conhecimentos e faculdades que uma pessoa tenha, regra geral, existe sempre um sucessor à espera de ser encontrado. Se o mundo estivesse cheio de pessoas imprescindíveis, teríamos sérios problemas. Se bem que – e neste ponto do seu discurso ela levantou o indicador direito para sublinhar o que ia dizer – não consiga imaginar quem possa ocupar o teu lugar. – Ainda não encontraram uma pessoa para me substituir, mas não me parece que seja assim tão difícil encontrar outro método de fazer as coisas – sugeriu Aomame. A velha senhora olhou para Aomame com toda a calma; os seus lábios esboçaram um sorriso de satisfação. – Isso até pode ser verdade – disse ela –, mas, então, duvido que estivéssemos as duas 296/1088
aqui a partilhar este momento. Tu és tu, és uma pessoa única. Estou-te muito agradecida. Mais do que as palavras dizem. A dona daquela casa inclinou-se para a frente, estendeu a mão e tocou nas costas da mão de Aomame. Deixou-se estar assim durante uns dez segundos. Depois, com um sorriso de grande satisfação estampado na cara, retirou a mão e endireitou as costas. Uma borboleta apareceu a esvoaçar sem rumo fixo e pousou-lhe no ombro, por cima da camisa azul da mulher. Era uma pequena borboleta branca com umas quantas pintas escarlates. A borboleta ficou ali adormecida, como se não tivesse nada a temer. – Imagino que nunca terás visto uma borboleta como esta – disse a viúva, olhando de esguelha para o ombro. Na sua voz percebiase uma ténue nota de orgulho. – Nem em Okinawa é fácil de encontrar. Esta borboleta só se alimenta de um tipo de flor, uma flor especial que se dá apenas nas montanhas de 297/1088
Okinawa. Para a criar, é preciso começar por arranjar essa planta e cultivá-la aqui, em Tóquio. O que, escusado será dizer, representa uma trabalheira desgraçada, mais os encargos financeiros. – Parece que a borboleta está bastante familiarizada com a senhora. – Esta «pessoa» pensa que eu sou sua amiga. – É possível fazer amizade com uma borboleta? – Para seres amiga de uma borboleta, primeiro tens de procurar transformar-te num elemento da natureza. Há que eliminar qualquer vestígio da tua presença, enquanto ser humano, e convenceres-te de que és árvore, erva ou flor. Demora o seu tempo, mas, uma vez aceite por elas, ficam a ser tuas amigas. – Deu-lhe nome? – perguntou Aomame, por curiosidade. – Quero dizer, como se fosse um cão ou um gato. 298/1088
A mulher negou com a cabeça. – Não lhe dei um nome. Às borboletas, mesmo sem nome, consigo distingui-las pela forma e pelos desenhos. Além disso, de pouco ou nada me serviria dar-lhe um nome, uma vez que não tardam a morrer. Digamos que são amigas passageiras sem nome. Venho aqui todos os dias, visito-as e falo com elas acerca de vários assuntos. Quando é chegada a sua hora, as borboletas desaparecem, sem fazer alarde. De certeza que isso significa que morreram, porém, a verdade é que nunca encontrei o corpo delas sem vida. Desaparecem sem deixar rasto, como se tivessem sido absorvidas pelo ar. As mariposas são, acima de tudo, criaturas de uma elegância efémera: vêm do nada, procuram tranquilamente um número limitado de coisas e voltam a desvanecer-se em silêncio. Talvez regressem a um mundo diferente deste. 299/1088
No interior da estufa, o ar conservava uma humidade tépida e estava impregnado da fragrância das plantas. Centenas de borboletas esvoaçavam num perpétuo movimento, como sinais de pontuação que acompanhassem a corrente da consciência sem princípio nem fim. De cada vez que penetrava naquele lugar, Aomame tinha a sensação de se perder no tempo. Tamaru regressou com um bule lindíssimo de porcelana verde, e duas taças a condizer, numa bandeja metálica. Trazia ainda um pratinho com bolachas e guardanapos de pano. O aroma da tisana misturou-se com o perfume das flores em redor. – Obrigada, Tamaru. Nós servimo-nos – disse a dona da casa. Tamaru pousou o tabuleiro em cima da mesa de jardim, fez uma vénia e saiu em silêncio. Tal como acontecera antes, abriu e fechou a porta da estufa, afastando-se com passos ligeiros. A mulher levantou a tampa 300/1088
do bule, aspirou o aroma e verificou se as folhas de chá já estavam abertas o suficiente para o chá ser servido. Em seguida, deitou o chá lentamente nas duas taças, com grande cuidado para que ficassem ambas com a mesma quantidade de infusão. – Não é da minha conta, mas porque é que não instala uma rede mosquiteira na entrada? – perguntou Aomame. – Uma rede mosquiteira? – Sim, se mandasse instalar uma na parte de dentro, ficaria com uma porta dupla, por assim dizer, e, de cada vez que as borboletas entrassem ou saíssem, já não teria de se preocupar com a possibilidade de elas fugirem. A senhora ergueu o pires com a mão esquerda e, com a direita, levou a taça à boca e bebeu um gole de chá. Saboreou o aroma e assentiu com um pequeno gesto da cabeça. A seguir, tornou a colocar a taça em cima do prato, e o prato na bandeja18. Depois de limpar a boca com o guardanapo, deixou-o 301/1088
ficar no colo. Para executar estes gestos, precisou, sem exagerar, do triplo do tempo que uma pessoa normal. Fez lembrar a Aomame uma fada a beber o orvalho da manhã, nas profundezas da floresta. A velha senhora aclarou a garganta.
– Não gosto de redes – declarou. Aomame esperou em silêncio que a mulher continuasse o que ia a dizer, porém, ela não o fez. Acabou de falar sem deixar claro se o facto de não gostar de redes mosquiteiras era uma posição de fundo, diante das coisas que restringiam a liberdade, ou se se tratava de uma postura baseada em considerações estéticas, ou ainda se resultava de uma preferência meramente visceral. Contudo, naquele momento, não era um problema que tivesse uma importância por aí além. Aomame lembrara-se de fazer a pergunta, e fizera-a. Aomame também levantou a sua taça, tal como a dona da casa, e bebeu um gole sem
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fazer barulho. Não era grande apreciadora de chá. Preferia café, quente e escuro como um demónio à meia-noite. Reconhecia, no entanto, que talvez não fosse a bebida apropriada para tomar numa estufa às primeiras horas da tarde. Por isso, sempre que ia ter ali com a velha senhora, pedia a mesma bebida que ela. A senhora ofereceu-lhe uma bolacha, e Aomame comeu. Eram de gengibre. Acabadas de sair do forno, ainda sabiam a gengibre fresco. Antes da guerra, aquela mulher havia passado algum tempo em Inglaterra, lembrou-se Aomame. A dona da casa pegou também numa bolacha e comeu-a aos pedacinhos, devagar e delicadamente, para não acordar a borboleta rara que dormia no seu ombro. – Quando te fores embora, o Tamaru entrega-te a chave – disse a mulher. – Quando estiveres despachada, mete-a no correio e envia-a para cá de volta, como é costume. 303/1088
– De acordo. Seguiu-se um agradável momento de silêncio. Ao interior selado da estufa não chegou qualquer som do mundo exterior. As borboletas continuavam a dormir. – Não fazemos nada de errado – disse a velha senhora, olhando para Aomame de frente. Aomame mordeu um pouco o lábio. A seguir, concordou com a cabeça. – Bem sei. – Vê o que está dentro do envelope, por favor – disse a dona da casa. Aomame pegou no envelope que estava em cima da mesa e pôs em fila, ao lado do bule verde de porcelana fina, os sete polaroides que estavam lá dentro. Pareciam fatídicas cartas de tarô. Mostravam em grande plano partes do corpo de uma mulher jovem: costas, peito, nádegas, coxas, até mesmo as solas dos pés. Só não havia fotografias da cabeça. Eram visíveis as marcas de violência, sob a 304/1088
forma de nódoas negras e vergões, provocados, quase de certeza, por um cinto. Tinha o púbis rapado, com marcas do que pareciam ser queimaduras de cigarro. Aomame franziu a testa sem querer. Já se deparara com fotografias do género, mas nenhuma com imagens tão atrozes. – Já as tinhas visto? Aomame abanou a cabeça, sem palavras. – Tinha ouvido falar, mas é a primeira vez que vejo as fotografias. – Foi esse homem o responsável – disse a senhora. – Tratámos das três fraturas, mas a vítima apresenta sintomas de surdez num ouvido e pode nunca vir a recuperar. – Continuava a falar baixo, mas a sua voz tornara-se mais fria e dura, ao ponto de assustar a borboleta pousada no seu ombro, que abriu asas e voou. A mulher prosseguiu: – Não podemos dar tréguas a quem comete esse tipo de atos. Por nada deste mundo. 305/1088
Aomame reuniu as fotografias e tornou a guardá-las dentro do sobrescrito. – Não concordas comigo? – Claro que sim. – Fizemos o que estava certo – declarou a velha senhora. Levantou-se da cadeira e, para se acalmar, quem sabe?, pegou no regador que tinha ao pé de si. Parecia empunhar uma arma sofisticada. Estava um tudo-nada pálida. Os seus olhos cravaram-se com intensidade num ponto ao canto da estufa. Aomame seguiu o olhar dela, mas não descobriu nada de estranho. Apenas um vaso de cardos. – Obrigada por teres vindo. Bom trabalho – disse ela, com o regador vazio na mão. Pelos vistos, a entrevista tinha chegado ao fim. Aomame levantou-se e pegou no saco. – Muito obrigada pelo chá. – Eu é que agradeço, de novo – disse a velha senhora. 306/1088
Aomame sorriu um pouco. – Não tens de ficar preocupada – insistiu a senhora. A sua voz recuperara a serenidade inicial. Nos seus olhos vislumbrava-se uma luz quente. Pousou a mão sobre o braço de Aomame. – Fizemos o que estava certo. Aomame acenou com a cabeça. As conversas com aquela mulher terminavam sempre da mesma maneira. Se calhar, tinha por hábito dizer aquela frase, para se convencer a si mesma. Como se rezasse ou repetisse um mantra. «Não tens de ficar preocupada. Fizemos o que estava certo.» Depois de se certificar de que não havia nenhuma borboleta ali por perto, Aomame abriu a porta da estufa o suficiente para conseguir passar, saiu e fechou-a. A dona da casa ficou para trás, com o regador na mão. Lá fora, a atmosfera estava fria. Cheirava a árvores e a erva fresca. Aquele era o mundo real. O tempo corria como de costume. 307/1088
Aomame inspirou fundo e encheu os pulmões daquele ar.
Tamaru esperava por ela na entrada, sentado na mesma cadeira de teca. Estava ali para lhe entregar a chave de um apartado dos correios. – Já acabaram o que tinham a tratar? – perguntou ele. – Parece-me que sim – respondeu Aomame. Sentou-se ao lado dele, recebeu a chave e guardou-a num dos bolsos do saco. Durante algum tempo, deixaram-se estar ali os dois sem trocar palavra, a ver os pássaros que apareciam no jardim. Não soprava uma única brisa, e os ramos dos salgueiros pendiam, reclinados, sem se mexerem. Alguns quase tocavam com as extremidades no solo. – A mulher encontra-se bem? – perguntou Aomame. – Que mulher?
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– Refiro-me à esposa do homem que teve um enfarte no hotel de Shibuya. – Bem, não se pode dizer que esteja bem, por enquanto – afirmou Tamaru, franzindo o cenho. – Ainda continua em estado de choque. Não consegue falar muito. Necessita de tempo. – Como é que ela é? – Trinta e poucos anos. Não tem filhos. Bonita e boa pessoa. Com bastante estilo. Infelizmente, não vai poder usar fato de banho este verão. E, se calhar, no próximo também não. Viste as fotografias? – Acabei de as ver há bocado. – Horrível, não é? – Sim, muito – concordou Aomame. – É um padrão que se repete com frequência. O homem costuma ser competente na sua área, com prestígio, de boas famílias e com estudos académicos. Sem esquecer o nível social elevado. 309/1088
– Mas depois, ao chegar a casa, transforma-se por completo – prosseguiu Aomame, tirando-lhe as palavras da boca. – Sobretudo no caso dos que bebem álcool e se tornam violentos. Se bem que estes homens só utilizem a força bruta contra as mulheres. Só se viram contra as esposas. Aos olhos de toda a gente, mostram apenas o lado agradável. À sua volta, consideram-nos homens de família dedicados e amantíssimos. Quando a mulher tenta dizer às pessoas as coisas terríveis que ele lhe faz e os maustratos de que é alvo, ninguém acredita nela. E o marido, como sabe disso, procura exercer a sua violência sobre partes do corpo onde os outros não possam encontrar sinais exteriores. Era este o «padrão» a que te referias? Tamaru acenou em sinal de concordância. – De uma forma geral, sim. Todavia, este indivíduo em concreto não bebia uma gota de álcool. Fazia-o estando sóbrio, friamente, 310/1088
em plena luz do dia. Estamos a falar de um caso extremo. Ela queria divorciar-se, mas ele sempre o recusou. Talvez estivesse apaixonado por ela, quem sabe? Ou não queria deixar escapar uma presa fácil, que tinha ali à mão de semear. Ou então gostava pura e simplesmente de violentar a sua mulher. Tamaru levantou um pé, em seguida levantou o outro, para verificar de novo o brilho dos sapatos. Depois continuou a falar. – Claro que é possível conseguir o divórcio, a partir do momento em que se faz prova de violência doméstica, mas isso demora tempo e custa dinheiro. No caso de o marido arranjar um bom advogado, a mulher arrisca-se a passar um mau bocado. Os tribunais de família não têm mãos a medir, e a verdade é que o número de juízes é escasso. Além disso, mesmo no caso de o processo judicial ir para a frente e a mulher conseguir divorciar-se, são poucos os homens que pagam a pensão estabelecida como 311/1088
indemnização. A verdade é que eles lá arranjam maneira de se safar. No Japão, é muito raro os ex-maridos irem parar à cadeia por não cumprirem o pagamento das indemnizações. Basta que demonstrem boa vontade e façam menção de pagar qualquer coisa, em jeito de adiantamento, e logo os juízes fazem vista grossa. A sociedade japonesa ainda se mostra demasiado condescendente para com os homens. – Pode ser que tenhas razão, mas quis a sorte que um desses maridos violentos tivesse sofrido um ataque de coração num quarto de hotel, em Shibuya. – A palavra «sorte» é demasiado óbvia para o meu gosto – disse Tamaru, dando um ligeiro estalido com a língua. – Prefiro dizer que foi a Divina Providência. Em todo o caso, uma vez que não há nada de suspeito quanto à causa da morte, tão-pouco seguros elevados que pudessem atrair as atenções, a companhia seguradora não terá quaisquer 312/1088
dúvidas. O mais certo é pagarem à mulher sem levantarem objeções. Com esse dinheiro, por sinal uma quantia nada desprezível, ela estará em condições de começar uma vida nova. Mais, pode evitar os trâmites jurídicos complicados e sem sentido, bem como todo o sofrimento psicológico que a situação acarreta. – Sem esquecer que já não haverá perigo de um filho da mãe perigoso como ele andar à solta por aí, a fazer novas vítimas. – A Divina Providência – afirmou Tamaru. – Graças ao enfarte, resolveu-se o caso a contento. Tudo está bem quando acaba bem. – Partindo do princípio de que tem de acabar. Na boca de Tamaru formaram-se algumas rugas que pretendiam ser uma espécie de sorriso. – Tem de haver um fim, necessariamente. O que acontece é que não aparece escrito: «Este é o fim.» Também não encontras, ao 313/1088
chegar ao último degrau da escada, nada a dizer: «Este é o último degrau. Não suba mais a partir daqui», pois não? Aomame abanou a cabeça. – Isto é a mesma coisa – disse Tamaru. – Usando os sentidos e abrindo bem os olhos, o final descobre-se por si só – acrescentou Aomame. Tamaru acenou afirmativamente. – Mesmo que não saibas que – ao dizer aquilo, fez o gesto de deixar cair o dedo – o fim está mesmo à tua frente. Durante um bom bocado, os dois ficaram ali a escutar em silêncio o trinado dos pássaros. Estava uma tarde de abril agradável. Não havia nada que fizesse lembrar maldade ou violência. – Quantas mulheres residem aqui? – perguntou Aomame. – Quatro – respondeu Tamaru, sem hesitar. – Todas na mesma situação. 314/1088
– Mais ou menos. – Tamaru franziu os lábios. – Porém, os outros três casos não são tão graves. Os maridos são todos uns canalhas, como é costume, mas nenhum chega aos calcanhares, no que toca à maldade e à mesquinhez, dos outros de que nos ocupámos até à data. Estes são, por assim dizer, pesos leves com pretensões, nenhum deles precisa que lhe deites a mão. Destes encarregamo-nos nós. – De maneira legal. – Mais ou menos legal. Por vezes, isso implica ter de os intimidar. Muito embora um enfarte também seja uma causa de morte «legal». – Claro – assentiu Aomame com a cabeça. Tamaru ficou calado, com as mãos em cima dos joelhos, observando os ramos dos salgueiros que apontavam para o chão. Depois de um momento de hesitação, Aomame decidiu abordar uma questão junto de Tamaru. 315/1088
– Tenho uma coisa para te perguntar. – O quê? – Sabes há quantos anos é que a Polícia procedeu à renovação dos uniformes e do armamento? Tamaru enrugou a testa de forma impercetível. – Por que razão me perguntas isso, assim do pé para a mão? – Por nenhuma razão em especial. Lembrei-me de repente. Tamaru fitou Aomame. Os seus olhos transmitiam imparcialidade, mas não tinham uma expressão definida. Procurava ficar com margem de manobra para seguir numa direção qualquer. – Em meados de outubro de 1981, quando ocorreu um tiroteio enorme entre a polícia da prefeitura de Yamanashi e um grupo radical, perto do lago Motosu; no ano seguinte, produziu-se uma grande reforma no corpo policial. Faz agora dois anos. 316/1088
Aomame assentiu sem mudar de expressão. Continuava sem se recordar minimamente do incidente, mas não tinha outro remédio senão concordar. – Foi uma coisa sangrenta ao máximo. Cinco Kalashnikovs AK-47 contra revólveres antiquados de seis tiros. Se é que se pode chamar a isso um combate. Em resultado da troca de disparos, três polícias ficaram feridos, para não dizer estraçalhados: coitados, mais parecia que tinham sido passados por uma máquina de costura. Um corpo especial da Brigada Paraquedista das Forças de Autodefesa foi chamado a intervir de imediato, de helicóptero. Estava em perigo a honra da Polícia. Pouco tempo depois, o primeiroministro Yasuhiro Nakasone decidiu encarar muito a sério o problema e reforçar o corpo policial. Procedeu-se a uma ampla reforma estrutural, foi criado um corpo especial da Brigada de Armas de Fogo e ficou decidido que os polícias regulares, que patrulham as 317/1088
ruas, passariam a andar armados com uma pistola automática de alta precisão. Uma Beretta. Já disparaste uma? Aomame negou com a cabeça. Nunca. Nem sequer tinha disparado uma espingarda de ar comprimido. – Pois eu sim – afirmou Tamaru. – Uma automática de quinze tiros. Com balas Parabellum de nove milímetros. Estamos a falar de uma das armas de eleição, utilizada também pelo Exército dos Estados Unidos. Não se pode dizer que seja barata, mas a grande vantagem está em que não é tão cara como uma SIG ou uma Glock. Contudo, não é uma pistola que um principiante possa manejar com facilidade. Se bem que os revólveres de antigamente não pesassem mais de quatrocentos e noventa gramas, esta pesa oitocentos e cinquenta. Nas mãos de um polícia japonês com falta de treino não serve para nada. E então se eles se põem a disparar no meio de um tumulto com uma arma de 318/1088
grande precisão, é caso para dizer que acabarão sempre por fazer vítimas entre os cidadãos inocentes. – Onde é que disparaste essa coisa? – A história de sempre, já se sabe. Um belo dia, estava eu a tocar a minha harpa à beira de uma fonte, apareceu-me de repente uma fada, vinda do nada, que me passou para as mãos uma Beretta 92 e me disse que disparasse contra um coelho branco que por ali passava, a fim de praticar tiro ao alvo. – Vá lá, a sério. Tamaru franziu ligeiramente os lábios. – Falo sempre a sério – replicou. – Por fim, o armamento e os uniformes acabaram por ser renovados na primavera, há coisa de dois anos. Precisamente nesta época do ano. Respondi à tua pergunta? – Há dois anos – murmurou Aomame. Tamaru voltou a lançar um olhar penetrante na direção dela. 319/1088
– Escuta, se tens alguma coisa que te preocupa, mais vale desabafares comigo. Está relacionado com a Polícia? – Não, não é isso – afirmou Aomame, e fez um gesto com ambas as mãos, como se quisesse afastar as suspeitas dele. – Só queria saber por causa da história dos uniformes, tipo, quando é que tinham mudado. Seguiu-se um período de silêncio e, às tantas, a conversa entre os dois acabou por morrer de forma natural. Tamaru voltou a estender a mão direita. – Fico contente que tenha corrido tudo sem problemas – disse-lhe ele. Aomame apertou-lhe a mão. «Este homem sabe», disse ela para consigo mesma. «Depois de um trabalho duro, em que estava implicada uma vida humana, uma pessoa precisa de receber o apoio caloroso e o encorajamento sereno que acompanham o contacto físico.» 320/1088
– Vê se descansas – aconselhou Tamaru. – Por vezes, é preciso fazer uma pausa, respirar fundo e esvaziar a cabeça. Pega no teu namorado e vai até à ilha de Guam, ou a outro sítio qualquer. Aomame levantou-se, pôs o saco ao ombro e ajustou o capuz da parca. Tamaru seguiulhe o exemplo. Não era assim tão alto quanto isso, mas, quando se levantava, parecia um muro de pedra a materializar-se. A solidez compacta da sua figura apanhava-a sempre de surpresa. Tamaru acompanhou-a com o olhar à medida que ela se afastava. Enquanto caminhava, Aomame podia sentir esse olhar nas suas costas. Por isso, fez questão de erguer o queixo e, endireitando a coluna, com passo firme, seguiu em frente, como se tivesse uma linha traçada no chão. Por dentro, onde ninguém a podia ver, sentia-se confusa. Estavam a acontecer demasiadas coisas que escapavam ao seu controlo, sobre as quais 321/1088
não possuía qualquer informação. Ainda não há muito tempo, tinha o mundo nas mãos, sem fracassos nem contradições. Naquele momento, porém, começava tudo a desmoronar-se. Um tiroteio no lago Motosu? Beretta 92? Que diabo estava a acontecer com ela? Como teria Aomame deixado escapar notícias tão importantes? O sistema mundial ameaçava perder o norte. Enquanto prosseguia o seu caminho, a mente andava às voltas, sem parar, processando informações e mais informações. Independentemente do que pudesse ter acontecido, tinha de fazer algo para remediar aquele estado de coisas e voltar a imprimir ao mundo um sentido lógico. E quanto mais depressa melhor. Caso contrário, a situação poderia não ter remédio. Quase de certeza que Tamaru conseguia perceber até que ponto ela se sentia confusa no seu interior. Era um homem precavido, 322/1088
dono de uma intuição espantosa. E também um homem bastante perigoso. Tamaru tinha um profundo respeito pela viúva para quem trabalhava e professava-lhe inteira lealdade. Tudo faria para a proteger. Aomame e Tamaru nutriam respeito e simpatia um pelo outro – ou, pelo menos, era essa a impressão que davam. No entanto, se ele, por qualquer razão, fosse levado a pensar que a existência de Aomame representava algum perigo para a sua senhora, não hesitaria em eliminá-la. Aomame não podia condená-lo. Afinal de contas, era essa a obrigação dele. O portão abriu-se no preciso momento em que Aomame chegou ao outro lado do jardim. Ela olhou para a câmara de videovigilância, fez o sorriso mais cordial que lhe foi possível e esboçou um breve aceno, como se não tivesse acontecido nada. Assim que saiu e ficou do lado de fora do muro, a cancela fechou-se devagar atrás de si. Enquanto descia a encosta de Azabu, Aomame tentou pôr 323/1088
os seus pensamentos em ordem e elaborou uma lista, tão pormenorizada e abrangente quanto possível, com tudo o que tinha de fazer a partir daí.
17 No centro de Tóquio, Azabu-Juban reúne o antigo e o novo, chamando japoneses e turistas durante todo o ano. No verão, realiza-se o Matsuri (festival), considerado o maior de Tóquio, e as suas ruas enchem-se de pequenas barracas que vendem comida, até mesmo pastéis de nata, e bebidas, enquanto locais e turistas deambulam, fazem compras e assistem a espetáculos. (N. das T.)
18 Os japoneses levam muito a sério o ritual do chá. As chávenas e as taças (ou malgas), bem como os pratinhos, podem ser erguidos à altura do peito, o que torna mais fácil levar a comida até à boca. É preferível erguer a tacinha a baixar demasiado a cabeça. (N. das T.)
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TENGO
Ir a um sítio estranho para conhecer um estranho
Muita gente considera as manhãs de domingo como um período de descanso. Porém, ao longo da sua infância, Tengo nunca soube o que era apreciar uma manhã de domingo. Pelo contrário, os domingos tinham o condão de o deprimir. Quando chegava ao fim de semana, sentia-se pesado, perdia o apetite e começava a doer-lhe o corpo todo. Para Tengo, os domingos eram como uma Lua disforme que mostrava apenas o seu lado obscuro. «Oxalá nunca fosse domingo», pensava ele muitas vezes quando
era miúdo. «Quem me dera ter aulas todos os dias e não descansar nunca!» Chegou a rezar para que o domingo não se materializasse, mas, como é óbvio, as suas preces não foram atendidas. Já adulto, era dominado por sentimentos sombrios ao acordar nas manhãs de domingo. As suas articulações rangiam e sentia náuseas, ao ponto de lhe apetecer vomitar. Aquela reação penetrara desde há muito no seu coração. Possivelmente, até ao profundo domínio da inconsciência. O pai trabalhava como cobrador de taxas para a NHK – organização de radiodifusão pública do Japão – e costumava levar Tengo quando ele era pequeno, sempre que ia fazer as suas cobranças de porta em porta. Aquele ritual começou antes de ele entrar para o jardim de infância e continuou, sem interrupções, até ao quinto ano da escola. Tengo acompanhava-o todos os domingos, sem falta, à exceção daqueles em que havia 326/1088
alguma atividade especial. Quando acordava, por volta das sete da manhã, o pai obrigava-o a lavar bem a cara com sabão, inspecionavalhe as orelhas e as unhas e vestia-o com a roupa mais limpa (e, ao mesmo tempo, discreta) que encontrava. Em troca, prometialhe que, a seguir, iriam comer uma refeição deliciosa. Tengo não fazia ideia se os restantes cobradores da NHK também trabalhavam nos dias de descanso, mas, pelo que se lembrava, o seu pai trabalhava sempre aos domingos. Podia até dizer-se que se entregava ao seu labor com mais entusiasmo do que era costume, pois ao domingo tinha possibilidade de encontrar em casa todas aquelas pessoas que durante os dias de semana estavam ausentes. Havia vários motivos para o pai levar consigo o pequeno Tengo nas suas rondas. O primeiro era que não podia abandonar o filho em casa. Durante a semana e aos 327/1088
sábados, deixava-o na creche, no jardim de infância ou na escola primária, mas, ao domingo, todos esses locais encerravam as portas. Outra razão, dizia ele, era que o pai precisava de mostrar ao herdeiro o seu ganha-pão. Uma criança devia conhecer desde pequena que tipo de atividade permitia ganhar a vida e aprender a dar valor ao trabalho. O próprio pai de Tengo começara bem cedo a trabalhar no duro, desde que tinha idade para pensar e saber o que era a vida, sem domingos nem nada. Durante as alturas em que havia muito que fazer nos campos, nem sequer ia à escola. Para ele, aquele género de vida era uma coisa natural. A terceira e última razão era de ordem monetária, logo, mais calculista, e, por conseguinte, a que deixara uma ferida mais profunda no coração de Tengo. O pai sabia que levar com ele o filho facilitaria a sua missão. Diante de um cobrador com uma criança pequena pela mão, tornava-se mais difícil a 328/1088
uma pessoa dizer «não quero pagar, vá-se embora». Quando o rapazinho olhava fixamente para a cara delas, muitas pessoas que não tinham a intenção de pagar acabavam por fazê-lo. Vai daí, o pai organizava o seu percurso de domingo em função das casas onde já esperava ter maior dificuldade para receber o dinheiro. Tengo percebera desde a primeira hora que era isso que se esperava dele e, pura e simplesmente, detestava esse papel. Ao mesmo tempo, porém, sentia que tinha de se esforçar por melhorar o seu desempenho, a fim de agradar ao pai, como se fosse um macaco treinado, desses que atuam nos espetáculos ambulantes. Caso o pai ficasse contente, tratava bem Tengo naquele dia. O que salvava a situação era o facto de o distrito atribuído ao seu pai ficar muito longe de casa. Tengo morava numa zona residencial às portas de Ichikawa, mas o pai fazia cobranças na parte da cidade localizada mesmo 329/1088
no centro. O distrito escolar também não coincidia com a ronda. Pelo menos, não andava a fazer cobranças pelas casas dos seus companheiros de infantário e de escola, o que não evitava que se cruzasse com alguns colegas no meio da rua ou na zona comercial. Sempre que isso acontecia, escondia-se à pressa atrás do pai para não ser visto por eles. Os pais dos companheiros de Tengo eram, na sua maioria, assalariados que trabalhavam no coração de Tóquio. Consideravam Ichikawa como uma parte da prefeitura de Tóquio que, por algum motivo, tinha sido incorporada na prefeitura de Chiba. Às segundas-feiras de manhã, os seus companheiros de turma contavam, todos animados, onde tinham ido e o que tinham feito na véspera. Iam ao parque de diversões, ao jardim zoológico e a jogos de basebol. No verão, iam nadar; no inverno, fazer esqui. Os pais levavam-nos a passear de carro ou a 330/1088
subir à montanha. Partilhavam as suas experiências com entusiasmo e trocavam informações sobre diferentes lugares. Tengo era o único que não tinha nada para contar. Nunca fora a nenhum sítio considerado uma atração turística nem a um parque de diversões. Aos domingos, de manhã à noite, andava com o pai a tocar às campainhas das casas de desconhecidos, e recebia, de cabeça baixa, o dinheiro de quem lhes abria a porta. Se alguém se negava a pagar, o pai experimentava ameaçá-lo ou então desatava a suplicar. No caso daqueles que se punham com desculpas para não pagar, chegava a haver discussões e, por vezes, eram insultados como se fossem cães. Não se podia dizer que fossem experiências que Tengo gostasse de poder partilhar com os seus amiguinhos da escola. Quando Tengo andava no terceiro ano da primária, toda a gente ficou a saber que o pai dele era cobrador da NHK. Deviam tê-lo 331/1088
visto durante uma das suas rondas pela cidade. Afinal, passava os domingos a calcorrear as ruas, sempre atrás do pai, de manhã até ser noite. Era natural que alguém tivesse dado por ele (sobretudo porque já estava demasiado crescido para se esconder à sombra do pai). Em boa verdade, o surpreendente era que não tivesse acontecido antes. Começaram então a dar-lhe a alcunha de «NHK». Num universo formado por rapazes da classe média, filhos de funcionários, não deixava de ser olhado como uma espécie de bicho raro. Muitas das coisas que os outros rapazes consideravam normais, para Tengo não o eram. Vivia num mundo diferente e levava uma vida de outro género. Para além de tirar excelentes notas, distinguia-se no desporto. Era grande e tinha uma constituição atlética. Os professores nutriam por ele uma grande estima. Por isso, apesar de ser de uma «raça diferente», nunca se converteu no pária da turma. Pelo contrário, 332/1088
respeitavam-no acima de tudo. O que acontecia era que, sempre que o convidavam para ir a casa de um deles, ao domingo, não podia aceitar. Sabia que, se fosse dizer ao pai que no domingo seguinte «os amigos iam reunir-se na casa deste ou daquele», ele não faria caso nenhum. À força de recusar uns quantos convites, acabou por deixar de ser convidado. E, de repente, deu-se conta de que não pertencia a nenhum grupo e que andava sempre sozinho. Todos os domingos, acontecesse o que acontecesse, a ronda das cobranças com o seu pai era sagrada. Era uma regra sem margem para exceções nem mudanças. Mesmo que estivesse constipado e não parasse de tossir, que estivesse com um pouco de febre ou mal da barriga, o pai não aceitava desculpas. Nessas ocasiões, enquanto caminhava atrás dele, chegou a desejar cair ali mesmo fulminado e ficar-se. Talvez então o pai parasse para meditar sobre o seu 333/1088
comportamento e, quem sabe?, chegaria à conclusão de que andava a ser demasiado severo para com o filho. Mas, por sorte ou por azar, Tengo nascera com uma constituição robusta. Por mais febre que tivesse ou que lhe doesse o estômago ou que se sentisse enjoado, continuava sempre a fazer a ronda com o pai, sem nunca cair nem perder a consciência. E sem uma queixa sequer.
Em 1945, no ano em que a guerra terminou, o pai de Tengo regressou da Manchúria sem dinheiro para mandar cantar um cego. Era o terceiro filho de uma família de camponeses de Tōhoku e atravessara os mares para viajar até à Manchúria com companheiros da mesma prefeitura que se haviam alistado no mesmo Corpo do Exército. Nenhum deles engolira a propaganda do Governo, segundo a qual a Manchúria era uma colónia paradisíaca de terras férteis que oferecia a todos os recém-chegados uma vida de opulência. Estavam conscientes, à
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partida, de que o «paraíso» era coisa que não existia. Simplesmente, tratava-se de gente pobre e a morrer à fome. Se ficassem nas suas terras, esperava-os uma existência miserável, sempre a tentar sobreviver à morte por inanição: viviam-se tempos terríveis, e a crise fizera numerosos desempregados. Deixara de haver esperança de encontrar emprego decente nas cidades. Nessas circunstâncias, a única forma de sobreviver consistia em seguirem viagem até à Manchúria. Aí, enquanto agricultores à conquista de novas terras, podiam receber instruções para utilizar espingardas, em caso de necessidade, formação básica sobre a situação agropecuária na região; despediram-se deles com vivas e foram levados de comboio a vapor desde o porto de Dalian até perto da fronteira da Manchúria e da Mongólia interior. Uma vez ali chegados, foram-lhes distribuídas terras de cultivo, alfaias agrícolas e uma pequena espingarda, e começaram 335/1088
então a dedicar-se à agricultura. O solo era pobre, as terras estavam cheias de pedras e seixos, e no inverno ficava tudo congelado. Como não tinham nada que levar à boca, por vezes até comiam os cães que andavam ao abandono. Apesar de tudo, lá conseguiram sobreviver durante os primeiros anos com alguma ajuda que receberam por parte do Governo. Em agosto de 1945, quando parecia que a vida começava a estabilizar, o Exército soviético rompeu o pacto de neutralidade com o Japão e lançou uma invasão em larga escala sobre a Manchúria. As forças soviéticas, que tinham posto fim à frente europeia, mobilizaram uma grande parte dos seus efetivos militares para o Extremo Oriente no transiberiano e dispersaram-nos, aos poucos, a fim de transpor a fronteira. O seu pai ficara a saber da notícia através de um funcionário de quem se tornara amigo por mero acaso, e já previa a invasão das tropas soviéticas. 336/1088
Como o Exército de Kwantung, enfraquecido, não dava mostras de ser capaz de resistir por muito tempo, o oficial aconselhara-o a preparar-se para fugir sozinho, apenas com a roupa que tinha no corpo, uma vez chegado o momento. Assim que ele ouviu dizer que, segundo tudo indicava, o Exército soviético havia violado a fronteira, montou no seu cavalo, galopou até à estação e subiu para o último comboio com destino a Dalian. Foi ele o único, de entre os seus companheiros, a regressar são e salvo ao Japão durante aqueles anos. No pós-guerra, o pai de Tengo foi viver para Tóquio, onde se dedicou ao mercado negro e trabalhou como aprendiz de carpinteiro, mas não se deu bem em nenhum dos ofícios. O que ganhava mal dava para se sustentar. No outono de 1947, quando trabalhava como distribuidor para uma loja de vinhos em Akasuka, deu de caras com um velho conhecido seu dos tempos da 337/1088
Manchúria. Tratava-se do oficial que lhe avançara a informação sobre a iminência da batalha. Tinham-lhe destinado um posto relacionado com o sistema postal de Manchukuo, mas, entretanto, havia regressado ao Japão e estava de novo a trabalhar para o Ministério das Telecomunicações, o mesmo em que estivera empregado antes da guerra. Por serem lavradores oriundos da mesma região, e sabendo o trabalhador esforçado que ele era, o homem nutria pelo pai de Tengo uma certa simpatia. Convidou-o para irem comer qualquer coisa. Quando soube das dificuldades que o pai de Tengo estava a encontrar para obter um emprego decente, perguntou-lhe se não quereria trabalhar como cobrador para a NHK. Acontece que tinha um conhecido no departamento de taxas, com quem poderia falar e recomendar o seu conterrâneo. O pai ficou-lhe naturalmente grato. Nada sabia acerca da NHK, mas estava disposto a tudo, 338/1088
desde que isso significasse um emprego com salário fixo. O outro escreveu-lhe uma carta de recomendação e ofereceu-se mesmo para servir de garante. Graças a ele, o pai de Tengo conseguiu o emprego de cobrador da NHK sem grandes problemas. Na empresa, deram-lhe formação, um uniforme e atribuíram-lhe uma quota de trabalho a cumprir. As pessoas começavam então a recuperar do choque provocado pela derrota na guerra e procuravam no entretenimento uma forma de escapar à sua existência miserável. A difusão da rádio, naquela altura, não se podia comparar com a que existia antes da guerra; a música, os programas de comédia e o desporto constituíam as diversões mais populares e acessíveis. A NHK precisava de ter ao seu serviço uma grande quantidade de pessoas que andasse de porta em porta, por tudo quanto fosse sítio, a arrecadar a taxa de receção de transmissões de rádio e televisão. 339/1088
O pai de Tengo executava o trabalho com grande afã. Os seus pontos fortes eram o vigor físico e a perseverança. Em toda a sua vida, nunca fora pessoa de comer até fartar. Para uma pessoa nessas condições, o trabalho de cobrador ao serviço da NHK não se revelava árduo por aí além. Podiam insultálo à vontade, que ele não se importava. E, apesar de se encontrar na base da hierarquia, a verdade é que pertencer a uma organização gigantesca enchia-o de satisfação. Trabalhou durante um ano como cobrador à comissão, sem qualquer garantia de manter o posto de trabalho no futuro; no entanto, o desempenho e a atitude profissional de que deu mostras foram de tal maneira excelentes que levaram à sua contratação como elemento do quadro. Atendendo aos critérios habituais da empresa, era um procedimento a todos os títulos excecional. É verdade que obtivera um rendimento excelente em zonas onde a cobrança tinha por hábito revelar-se 340/1088
particularmente difícil, mas, é bom que se diga, por trás encontrava-se também a influência do seu mentor, funcionário do Ministério das Telecomunicações. Passou a receber um salário-base, ao qual se somavam despesas. Pôde, finalmente, mudar-se para uma vivenda, que era propriedade da empresa, e teve direito a um seguro de saúde. A diferença no tratamento que recebia por parte da empresa não tinha termo de comparação. Aquele fora o maior golpe de sorte da sua vida. Por outras palavras, conseguira, por fim, cimentar a sua posição na base do totem. O pequeno Tengo ouvira esta história até dizer chega. O pai nunca lhe cantara canções de embalar, nem lhe lera contos infantis à hora de dormir. Em vez disso, contara-lhe vezes sem conta as suas experiências de vida. Desde que nascera numa família pobre de pequenos arrendatários, em Toōhoku, até ao capítulo mais recente, e ao final feliz da sua 341/1088
história, que consistia no seu trabalho como cobrador permanente para a NHK. O pai era um bom contador de histórias. Tengo não tinha maneira de saber até que ponto era verdade, mas, no geral, o relato fazia sentido. Ainda que houvesse um significado profundo a extrair dali, os pormenores tinham vida e a maneira de contar mostravase rica em matizes. Havia partes divertidas, partes comovedoras e partes violentas. Passagens fabulosas, que deixavam Tengo de boca aberta, e outras que ele tinha dificuldade em acompanhar, por mais que as escutasse da boca do pai. Se a vida se medisse pela cor e pela variedade dos seus episódios, podia dizer-se que a do seu pai havia sido uma vida rica, à sua maneira. Contudo, depois de ser contratado como empregado a tempo inteiro da NHK, as histórias do pai perderam, de repente, todo o colorido e o tom de realismo. O seu relato carecia de pormenores e coerência, como se 342/1088
não passassem de uma anedota que já não valia a pena contar. Conhecera entretanto uma mulher, casou-se com ela e teve um filho – que é como quem diz, Tengo. Vários meses depois de ter dado à luz, a mãe de Tengo adoeceu e acabou por morrer. O pai não voltara a casar e ninguém, sempre a trabalhar com a diligência que se sabe para a NHK. Fim. O pai nunca lhe contara em que circunstâncias havia conhecido a sua mãe e decidido casar-se, que género de mulher era, qual a causa da morte (estaria relacionada com o nascimento de Tengo?), se fora uma morte relativamente serena, ou se, pelo contrário, ela tinha sofrido muito. Sempre que Tengo lhe fazia alguma pergunta nesse sentido, o pai fugia à questão e acabava por nunca responder. O mais das vezes, semelhantes questões deixavam-no de mau humor, e então fechava-se em copas. Não conservara uma única fotografia da sua mãe, 343/1088
nem sequer uma foto do casamento. O pai explicara que não tinham podido dar-se ao luxo de organizar a cerimónia do casamento e que não tinham uma máquina fotográfica. Mas, no fundo, Tengo não acreditava na história do pai. Ele não só ocultava factos como passava a vida a alterar pequenas coisas. A sua mãe não morrera uns meses depois de ter dado à luz. Nas recordações que conservava, a mãe ainda era viva quando ele tinha um ano e meio. E, perto da cama onde o pequeno Tengo dormia, ela estava nos braços de um homem que não era o seu pai. A mãe tinha despido a blusa, deixara cair a alça da combinação branca e dava o peito a um homem que não era o seu pai. Ao lado, Tengo dormia profundamente. Ao mesmo tempo, porém, Tengo não dormia. Observava a figura da mãe. Aquela era a fotografia que Tengo guardara para recordar a mãe. Aquela 344/1088
imagem de apenas dez segundos ficara-lhe gravada a fogo com perfeita nitidez. Era a única informação concreta que possuía sobre ela; precisava de se agarrar ao fio ténue da consciência para chegar a essa imagem. Encontravam-se ligados por um hipotético cordão umbilical. A sua mente flutuava no líquido amniótico da memória, à procura dos ecos do passado. O pai, entretanto, não fazia ideia de que aquela cena tão vívida estava gravada na cabeça de Tengo. Ele não sabia que Tengo ruminava sem parar os fragmentos daquela cena, como uma vaca num prado, e que a partir dela obtinha valiosos nutrientes que alimentavam a sua imaginação. Pai e filho, cada um escondia os seus segredos profundos e obscuros.
Era uma manhã agradável e clara. Porém, soprava um vento frio que lembrava como, apesar de se estar em meados de abril, a estação do ano voltara para trás. Por cima de uma fina camisola de malha preta de decote
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redondo, Tengo vestia um casaco de padrão espinhado, que tinha desde os seus tempos de estudante universitário, umas calças de algodão beges e calçava uns Hush Puppies castanhos. Os sapatos eram relativamente novos. Podia dizer-se que ia bastante bem aperaltado. Na estação de Shinjuku, ao chegar à parte da frente da plataforma, na linha Chūō que ia em direção a Ichikawa, Fuka-Eri já se encontrava ali. Estava sentada sozinha num banco, muito quieta, a olhar para o ar com os olhos meio fechados. Por cima de um vestido de algodão estampado, que tinha todo o ar de ser de verão, trazia um grosso casaco de inverno, verde-claro, e calçava ténis cinzentos quase sem cor, o que não deixava de ser uma estranha combinação para aquela época do ano. O vestido era fino demais, e o casaco demasiado grosso. Contudo, o facto é que, nela, o conjunto não parecia destoar, nem isso a parecia incomodar. Talvez aquela falta 346/1088
de acomodação fosse a maneira que Aomame tinha de expressar a sua particular visão do mundo. Era uma hipótese a considerar. Ou então, se calhar, limitara-se a escolher a roupa ao calhas, sem pensar duas vezes no assunto. Estava ali sentada, sem ler o jornal, sem ouvir o walkman. Ali sentada, simplesmente, a olhar em frente com aqueles seus grandes olhos negros. Podia estar a observar alguma coisa ou a não observar rigorosamente nada. Podia estar a pensar em qualquer coisa e, ao mesmo tempo, não estar a pensar em coisa nenhuma. Vista de longe, assemelhava-se a uma escultura realista feita de materiais especiais. – Fiz-te esperar muito? – perguntou Tengo. Fuka-Eri olhou para ele de frente e inclinou a cabeça um centímetro ou dois. Os seus olhos negros tinham um brilho intenso como seda, mas continuava sem dar para ler neles 347/1088
qualquer expressão concreta. Naquele momento, parecia que não estava com vontade de falar com ninguém, por isso Tengo desistiu de meter conversa, sentou-se ao lado dela no banco e ficou calado. Quando o comboio chegou, Fuka-Eri levantou-se em silêncio, e embarcaram os dois. Havia poucos passageiros, por se tratar de um expresso destinado a Takao num dia de semana. Tengo e Fuka-Eri sentaram-se ao lado um do outro e seguiram viagem em silêncio, a ver passar a paisagem da cidade através da janela. Uma vez que Fuka-Eri nada dizia, Tengo mantinha-se também ele calado. Ela aconchegou a camisola junto ao pescoço, como que a preparar-se para uma anunciada onda de frio intenso, sem deixar nunca de olhar em frente, com os lábios fechados formando uma linha perfeita. Tengo pegou no livro que tinha levado e começou a ler, mas depois pensou melhor e pô-lo de parte. Voltou a guardar o volume no 348/1088
bolso e, para fazer companhia a Fuka-Eri, colocou as mãos em cima dos joelhos e deixou-se estar a olhar em frente. Tentou pensar em qualquer coisa, mas não lhe veio nada à cabeça. Talvez por ter estado tão concentrado na correção de A Crisálida de Ar, a sua mente recusava-se a pensar em algo de coerente. A sua cabeça dava a impressão de ser um novelo feito de fios emaranhados. Tengo contemplava a paisagem que deslizava do outro lado da janela e escutava o ruído monótono dos carris. A linha Chūō estendia-se sempre a direito até ao infinito, como se alguém tivesse traçado uma linha num mapa com ajuda de uma régua. Bem, convenhamos que o «como se» estava a mais, visto que tinha sido precisamente assim que a haviam construído na altura, cem anos antes. Na planície de Kantō não existia um único acidente geográfico digno desse nome, daí que tenham construído uma viaférrea sem curvas nem desníveis, sem pontes 349/1088
nem túneis de qualquer espécie. À época, bastara-lhes uma régua, e todos os comboios corriam em linha reta até ao seu destino. A dado momento, Tengo adormeceu. Quando foi acordado pela vibração da carroçaria, o comboio reduzira a velocidade e encontravam-se a descer, quase a chegar à estação de Ogikubo, a pouco mais de dez minutos de Shinjuku. Fora uma sesta breve. Sentada na mesma posição, Fuka-Eri fitava um ponto à sua frente. Tengo não sabia para onde é que ela estava a olhar. A julgar pelo ar compenetrado, não fazia tenções de se apear do comboio. – Que livros é que lês, normalmente? – perguntou Tengo a Fuka-Eri, quando já se tinham passado mais dez minutos e o comboio deixara a zona de Mitaka para trás. Colocou a questão por não conseguir aguentar mais o tédio, mas também porque já desde há algum tempo que andava para lhe perguntar acerca dos seus hábitos de leitura. 350/1088
Fuka-Eri olhou de esguelha para ele e tornou a dirigir a sua atenção para a frente. – Não leio livros – respondeu de forma concisa. – Nenhum? Ela assentiu com um ligeiro movimento de cabeça. – Não estás interessada em ler? – Leva-me tempo – disse ela. – Não lês porque não tens tempo? – tornou ele a perguntar, sem ter a certeza de estar a ouvir bem. Fuka-Eri continuou a olhar em frente, sem dizer água-vai. A postura da jovem parecia indicar que não era sua intenção negar a sugestão feita. De uma forma geral, com efeito, ler um livro demorava o seu tempo. Não era a mesma coisa que ver televisão ou ler banda desenhada. A leitura de um livro implica uma certa continuidade e desenvolve-se ao longo de um período relativamente longo. Mas, na boca 351/1088
de Fuka-Eri, aquele «leva-me tempo» parecia conter um matiz um tanto diferente do normal. – Quando dizes «leva-me tempo»... queres dizer que demoras muito tempo? – perguntou Tengo. – Muito – confirmou Fuka-Eri. – Muito mais do que a maioria das pessoas? Fuka-Eri assentiu com um movimento de cabeça. – Imagino que para ti isso deva ser um problema na escola. Deves ter de ler vários livros para as tuas aulas. – Finjo que os leio – disse ela, nas calmas. Na sua cabeça, Tengo ouviu um ruído funesto. Teria preferido ignorá-lo, mas não era possível. Tinha de saber a verdade. – Estás a querer dizer-me, nesse caso, que tens dislexia, ou isso? – voltou ele à carga. – Dislexia. 352/1088
– Um distúrbio de leitura. Significa que tens dificuldade em distinguir os carateres na página. – Disseram-me qualquer coisa acerca disso. Dis... – Quem te disse? A rapariga encolheu um nadinha os ombros. – Quer dizer – Tengo não desistiu e procurou as palavras às apalpadelas –, sempre foste assim desde pequena? Fuka-Eri fez que sim com a cabeça. – Assim se explica que tenhas lido tão poucos romances. – Por mim mesma – disse Fuka-Eri. Aquilo também explicava o facto de a sua escrita estar liberta da influência de outros autores. Fazia todo o sentido. – Não leste «por ti mesma» – afirmou Tengo. – Alguém mos leu. 353/1088
– O teu pai ou a tua mãe costumavam ler para ti em voz alta? Fuka-Eri não respondeu. – Podes não ler, mas quer-me parecer que não tens problemas em escrever, pois não? – perguntou Tengo, cada vez mais apreensivo. Fuka-Eri abanou a cabeça. – Escrever também me leva tempo. – Muito tempo? Fuka-Eri voltou a encolher os ombros. Significava que sim. Tengo corrigiu a postura e mudou de posição no assento do comboio. – Estás a querer dizer que não foste tu que escreveste A Crisálida de Ar sozinha? – Não fui eu. Tengo deixou passar alguns segundos. Uns segundos pesados como chumbo. – Nesse caso, quem foi? – A Azami. – Quem é a Azami? – Tem menos dois anos que eu. 354/1088
Voltou a fazer-se um breve silêncio. – Essa rapariga foi quem escreveu A Crisálida de Ar? Fuka-Eri assentiu como se fosse a coisa mais natural do mundo. A cabeça de Tengo trabalhava a mil. – Quer dizer, tu ditaste a história e a Azami escreveu-a. Foi assim? – Passou-a ao computador e imprimiu-a – acrescentou Fuka-Eri. Tengo mordeu o lábio e esforçou-se por ordenar na sua cabeça alguns elementos até aí obtidos. Assim que acabou, disse: – Para todos os efeitos, a Azami imprimiu o manuscrito e enviou-o para a revista, a fim de concorrer ao prémio de jovens escritores, se calhar sem te dizer nada. E, provavelmente, deu-lhe o título de A Crisálida de Ar. Fuka-Eri inclinou a cabeça de uma forma que não era um «sim» nem um «não», mas sem colocar qualquer objeção. Isto 355/1088
significava que ele devia ter acertado mais ou menos. – Essa tal Azami é uma amiga tua? – Vive comigo. – É a tua irmã mais nova? Fuka-Eri fez que não com a cabeça. – É filha do Professor. – O Professor19 – repetiu Tengo. – Esse Professor também vive lá em casa? Fuka-Eri assentiu. Como se dissesse: «Por que carga-d’água perguntar uma coisa tão óbvia?» – Nesse caso, a pessoa que vou conhecer deve ser o Professor, certo? Fuka-Eri virou-se para Tengo e olhou para a cara dele durante um bom bocado, como se estivesse a observar o fluir de uma nuvem longínqua. Ou com olhos de quem estava a pensar na melhor maneira para lidar com um cão de aprendizagem lenta. A seguir, concordou com a cabeça. 356/1088
– Vamos encontrar-nos com o Professor – disse ela num tom inexpressivo. Aquilo pôs um ponto final na conversa. Tengo e Fuka-Eri tornaram a ficar calados e, ao lado um do outro, contemplaram a paisagem citadina pela janela. Uma série de edifícios sem traço distintivo erguia-se no meio de um terreno monótono, pouco pronunciado. As inúmeras antenas de televisão apontavam para o céu como se fossem antenas de insetos. Teriam as pessoas que viviam naquelas casas pagado a taxa da NHK? Os domingos traziam sempre à memória de Tengo a taxa de cobrança. Não queria pensar no assunto, mas era mais forte do que ele.
Naquele dia, uma bela manhã domingueira de meados de abril, tinham vindo à luz alguns factos, e não se podia dizer que fossem muito agradáveis. Em primeiro lugar, Fuka-Eri não escrevera A Crisálida de Ar pelo seu próprio punho. Se fosse a dar valor
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ao que ela lhe contara (e, por enquanto, ele não tinha motivo nenhum para não o fazer), Fuka-Eri limitara-se a contar a história, e a outra rapariga tratara de a passar para o papel. O processo de criação era o mesmo que estava por trás da literatura oral, e que podia ser testemunhado em algumas das grandes obras-primas da literatura japonesa, como no Kojiki20, com a sua lendária história das dinastias, ou na Heike Monogatari21, narrativa dos clãs guerreiros do século XII. De certa maneira, este facto servia para diminuir um pouco o sentimento de culpa que sentia por corrigir A Crisálida de Ar; ao mesmo tempo, porém, só vinha tornar a situação ainda mais complicada, e não via maneira de se desenredar de tais dificuldades. Além disso, Fuka-Eri era disléxica e não podia ler um livro em condições normais. Tengo procurou lembrar-se de tudo o que sabia acerca de dislexia. Num curso para docentes, dado na universidade, tivera uma 358/1088
aula sobre esse distúrbio de leitura. Uma pessoa com dislexia pode, em princípio, ler e escrever. O problema nada tem que ver com a inteligência. Acontece que a leitura demora o seu tempo. Para se ler um texto curto, não há problema, mas, à medida que o texto aumenta de tamanho, mais dificuldade a pessoa encontra para processar a informação que vai ficando para trás, até que, às tantas, deixa de conseguir acompanhar o ritmo. Quebra-se, assim, a ligação entre os carateres e o seu significado. Estes são os sintomas gerais da dislexia. Ainda não se conhecem bem as causas, todavia, não seria de estranhar que em todas as salas de aulas houvesse um ou dois alunos disléxicos. Einstein foi um deles, assim como Thomas Edison e Charles Mingus. Tengo não sabia se as pessoas com dislexia tinham, de uma forma geral, as mesmas dificuldades para escrever textos e para os ler, mas parecia ser esse o caso de Fuka-Eri. Ela 359/1088
sentia o mesmo grau de dificuldade, tanto na escrita como na leitura. O que diria Komatsu quando ficasse a saber? Sem querer, Tengo soltou um suspiro. Aquela rapariga de dezassete anos sofria de uma dislexia congénita e tinha dificuldade em ler um livro ou escrever um texto longo. Mesmo no decorrer de uma conversa, conseguia enunciar apenas uma frase de cada vez (partindo do princípio de que não fazia de propósito). Transformá-la numa romancista profissional, embora só de fachada, revelava-se, à partida, uma espécie de missão impossível. Ainda que Tengo corrigisse com êxito A Crisálida de Ar e a obra arrecadasse o prémio, fosse publicada e aclamada pelos críticos, não poderiam continuar a enganar a sociedade eternamente. Ao princípio, a coisa poderia funcionar, mas não demoraria muito até as pessoas começarem a pensar que havia ali «qualquer coisa de estranho». Caso a verdade viesse a saber-se, todos os implicados 360/1088
no processo estariam condenados. Nesse instante, lá se ia a carreira de Tengo como romancista, e sem sequer ter começado. Um plano tão cheio de pontas soltas revelava-se insustentável. Desde o início, tivera a sensação de caminhar sobre gelo fino, mas, naquela altura, começava a achar a expressão demasiado morna para o seu gosto. Antes sequer de apoiar o pé, o gelo já dava mostras de estalar. O que tinha a fazer era regressar a casa, pegar no telefone e dizer: «Desculpe, senhor Komatsu, mas vou retirar-me deste assunto. É demasiado perigoso.» Era o que faria qualquer pessoa no seu perfeito juízo. No entanto, ao pensar n’A Crisálida de Ar, o coração de Tengo dividia-se. Por mais perigoso que o plano traçado por Komatsu pudesse ser, Tengo sentia-se incapaz de abandonar o manuscrito. Se fosse antes de começar a corrigir, talvez, mas, chegado àquele ponto, era tarde demais. Estava 361/1088
metido até ao pescoço na obra. Respirava o ar do seu mundo, adaptara-se à força da gravidade que dela se desprendia. A essência da história penetrara fundo em todas as partículas do seu ser, até às entranhas. Tengo sentia que tinha o dever de corrigir aquela obra: a própria história pedia para ser reescrita. E isso era uma tarefa que só Tengo estava em condições de executar: uma tarefa que valia a pena, um trabalho que ele tinha de fazer. Sentado no comboio, Tengo fechou os olhos e esforçou-se por retirar dali uma conclusão sobre como lidar com a situação, sem conseguir chegar a nenhuma. Uma pessoa confusa e dividida não podia tomar uma decisão equilibrada. – A Azami escreveu tal qual o que tu lhe contavas? – perguntou Tengo. – Tal como eu lhe contava. – Tu falavas e ela escrevia. – Mas tenho de falar baixinho. 362/1088
– Porque é que tens de falar baixinho? Fuka-Eri deu uma olhadela ao interior da carruagem. Ia quase vazia. Os únicos passageiros eram uma mãe e os seus dois filhos, que estavam sentados nos assentos mais à frente, a uma distância razoável. Os três tinham aspeto de ir de viagem até algum sítio em busca de divertimento. Existem pessoas felizes no mundo. – Para que eles não me oiçam – respondeu Fuka-Eri em voz baixa. – Eles? – perguntou Tengo. A julgar pelo olhar perdido da jovem, viase que não se referia à mãe com os filhos. Fuka-Eri falava de alguém em concreto, que ela conhecia bem e que Tengo não sabia quem era. – Quem são eles? – perguntou Tengo, diminuindo também o volume da sua voz. Fuka-Eri franziu o sobrolho e ficou calada. Tinha os lábios firmemente cerrados. 363/1088
– Referes-te ao Povo Pequeno? – inquiriu Tengo. Como seria de esperar, não obteve resposta. – Se a história chegasse aos ouvidos da imprensa e ao conhecimento do público, e as pessoas começassem a falar sobre o assunto, essa gente de que falas poderia ir aos arames? Fuka-Eri continuou sem responder àquela pergunta. O seu olhar deixara de estar focado num ponto qualquer. Depois de esperar um pouco para confirmar que não teria resposta, Tengo voltou à carga. – O que me podes dizer acerca do teu Professor? Como é ele? Fuka-Eri olhou para Tengo com uma expressão de estranheza, como se dissesse: «De que é que está este tipo para aqui a falar?» A seguir, abriu a boca. – Vais conhecer o Professor. 364/1088
– Claro que sim – replicou Tengo. – Tens toda a razão. Vendo bem, vou conhecê-lo daqui a pouco. Vou esperar por essa altura, e logo formarei a minha opinião. Na estação de Kokubunji, entrou para o comboio um grupo de anciãos vestidos para fazer montanhismo. Eram dez ao todo; cinco homens e cinco mulheres com idades compreendidas entre os sessenta e cinco e os setenta e cinco anos. Carregavam às costas uma mochila e traziam um gorro na cabeça. Conversavam entre si e pareciam alegres como um bando de alunos da primária a caminho de uma excursão. Todos andavam com uma garrafa-termo de água à cintura ou enfiada no bolso da mochila. Tengo deu por si a interrogar-se se, quando chegasse àquela idade, alguma vez teria assim um espírito jovial. Depois abanou a cabeça. Não, talvez fosse impossível. Pôs-se a imaginar aquelas pessoas de idade no cimo de uma montanha, 365/1088
a beber água das suas garrafas, cheios de orgulho.
Apesar do tamanho pequeno dos seus corpos, o Povo Pequeno bebia enormes quantidades de água. Preferiam água da chuva ou então água de um regato próximo, em vez de água da torneira. Por isso, a rapariga ia buscar a água ao regato durante as horas do dia e dava-a a beber ao Povo Pequeno. Sempre que chovia, recolhia a água num balde, pois o Povo Pequeno preferia a água das chuvas à água do regato. Eles agradeciam o gesto de bondade da rapariga. Tengo reparou que sentia dificuldades em concentrar-se. Não era um bom sinal. Talvez fosse por ser domingo. No seu íntimo, começava a sentir uma ameaça de perturbação. Uma tempestade de areia estava a formar-se na planície das suas emoções. Acontecia-lhe muitas vezes aos domingos.
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– Que se passa – perguntou Fuka-Eri, sem entoação interrogativa. Ela parecia ter captado a tensão que Tengo estava a sentir. – Serei capaz? – De quê. – De dizer o que tenho a dizer. – Diz o que tens a dizer – pediu Fuka-Eri. Parecia estar com uma certa dificuldade em perceber de que se tratava. – Ao Professor. – Diz o que tens a dizer ao Professor. Sem querer, Tengo suspirou. Depois de hesitar um pouco, este confessou: – Tenho a impressão de que as coisas não vão correr lá muito bem, e que tudo acabará por dar mau resultado. Fuka-Eri mudou de posição no assento até ficar de frente para Tengo. – Tens medo – perguntou ela. – Por que motivo tenho medo? – Tengo reformulou a pergunta dela. 367/1088
Ela assentiu com a cabeça. – Talvez esteja com medo de conhecer pessoas novas. Sobretudo a um domingo de manhã. – Porquê domingo – quis saber Fuka-Eri. Tengo começou a suar das axilas. Sentia um aperto no peito que o sufocava. Conhecer pessoas novas implicava ter coisas novas na sua vida e forçava-o a pensar nas consequências, para além de ameaçarem a sua existência. – Porquê domingo – voltou a perguntar Fuka-Eri. Tengo recordou os domingos da sua infância. Quando acabavam de fazer a ronda, o pai costumava levá-lo a um restaurante em frente à estação e dizia-lhe que pedisse o que lhe apetecesse. A coisa funcionava como uma espécie de recompensa. Tanto para um como para o outro, que levavam uma vida frugal, era praticamente a única ocasião de comer fora. Nessas alturas, o pai, coisa rara e nunca 368/1088
vista (pois quase nunca bebia álcool), mandava vir uma cerveja. Apesar do convite, Tengo não costumava ter grande apetite. Por regra, andava sempre esganado; aos domingos, porém, nada parecia saber-lhe bem. Cada dentada que dava – não tinha outro remédio senão comer, sem deixar nada no prato – era uma tortura para ele. Às vezes, sem querer, quase lhe dava vómitos. Assim se passaram os domingos dos seus verdes anos. Fuka-Eri olhou Tengo de frente. Procurava algo nos seus olhos. A seguir, estendeu a mão e agarrou na mão dele. O gesto surpreendeuo, mas esforçou-se por não deixar que isso transparecesse no seu rosto. Até o comboio chegar à estação de Kunitachi, Fuka-Eri manteve sempre a mão de Tengo ternamente agarrada entre as suas. A mão da jovem era mais sólida e suave do que se poderia pensar; nem fria nem quente. Devia ter metade do tamanho da mão dele. 369/1088
– Não tenhas medo, é um domingo como outro qualquer – disse ela, como se estivesse a comunicar uma realidade de conhecimento geral. Tengo pensou que aquela devia ser a primeira vez que a rapariga dizia duas frases seguidas.
19 Sensei. Vocábulo que designa professor, doutor, escritor consagrado, etc. De uma forma geral, trata-se de uma pessoa com uma cultura sólida, tida como mestre, e que exerce uma grande influência sobre os pensamentos e os valores dos seus seguidores. (N. das T.)
20 A mais antiga crónica sobre a história do Japão ancestral. Foi escrito em prosa, tudo leva a crer, no ano de 712. O corpo do texto é escrito em chinês, mas incorpora numerosos nomes e expressões japoneses. (N. das T. )
21 O Conto dos Heike foi escrito por volta de 1223. Relato épico sobre a luta entre os clãs Taira e Minamoto pelo controlo do Japão durante as Guerras Genpei (1180-1185). Como muitos poemas épicos da Grécia antiga, resulta de diferentes versões contadas oralmente por bardos tocadores
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de biwa, instrumento de cordas japonês. A ascensão dos guerreiros aristocratas à classe dominante, a partir do final do século XII, tornou populares os contos de guerra. (N. das T.) 371/1088
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AOMAME
Muda a paisagem, mudam-se as regras
Aomame foi até à biblioteca municipal, a mais próxima de casa. Chegada ao balcão de atendimento, pediu para consultar o arquivo de imprensa na sua edição compacta. Em concreto, todos os jornais durante o período de três meses, entre setembro e novembro de 1981. Havia vários jornais: Asahi, Yomiuri, Mainichi e Nikkei, pelo que a funcionária lhe perguntou qual deles desejava. Tratava-se de uma mulher de meia-idade, usava óculos, e, mais do que uma bibliotecária normal, parecia uma dona de casa empregada ali a tempo parcial. Não se podia dizer que fosse
excessivamente gorda, mas os pulsos roliços faziam lembrar pequenos presuntos. Aomame respondeu que tanto fazia. Aos seus olhos, eram todos a mesma coisa. – Percebo a sua ideia, mas tem de ser a senhora a escolher um – disse-lhe a mulher, num tom monocórdico destinado a evitar qualquer hipótese de discussão. Uma vez que Aomame não tinha intenção de entrar em conflito, optou pelo Mainichi, por nenhuma razão em especial. Assim que se sentou a uma mesa com divisórias, abriu um caderno de notas e, de esferográfica em punho, pôsse a assinalar os artigos publicados, um atrás do outro. No início do outono de 1981, não acontecera nada importante que valesse a pena destacar. Em julho desse ano, o príncipe Carlos de Inglaterra e Diana casaram-se, e os ecos da notícia ainda circulavam pela imprensa: onde tinham ido, o que haviam feito, que roupa Diana levava vestida e que 373/1088
acessórios usava. Claro que Aomame estava a par do casamento de Carlos e Diana, mas não tinha especial interesse neles. De resto, nem sequer conseguia perceber como é que havia gente tão interessada no destino do príncipe herdeiro e da princesa. A julgar pela sua aparência, Carlos mais parecia um professor de Física com problemas gastrointestinais do que um príncipe. Na Polónia, o sindicato Solidariedade, dirigido por Lech Walesa, intensificava a sua oposição ao Governo, e o poder soviético expressava a sua «preocupação». Por outras palavras, se o regime polaco não fosse capaz de controlar a situação, ameaçavam enviar tanques, como acontecera na Primavera de Praga, em 1968. De uma forma geral, Aomame lembrava-se bem desses acontecimentos. Sabia que, ao fim de várias peripécias, a União Soviética acabara por desistir da intervenção, por isso não precisava de ler os artigos que falavam no assunto ao 374/1088
pormenor. Havia, contudo, uma peça que lhe chamou a atenção e que continha uma declaração de Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, destinada a conter a intervenção na política interna da URSS. Qualquer coisa como: «Espero que o ambiente de tensão vivido na Polónia não constitua um obstáculo à cooperação do nosso país com a União Soviética no projeto de instalação de uma base lunar.» Construção de uma base lunar? Aomame nunca ouvira falar disso. Pensando bem, recordava-se de ter escutado qualquer coisa no telejornal, dias antes. No hotel de Akasaka, naquela noite em que fora para a cama com o careca de meia-idade oriundo de Kansai. No dia 20 de setembro, celebrou-se em Jacarta um grande festival de lançamento de papagaios, o maior do mundo, em que participaram mais de um milhão de pessoas. Aomame desconhecia semelhante notícia, mas não estranhou. Quem se lembraria de 375/1088
uma competição do género realizada em Jacarta três anos antes? A 6 de outubro, o presidente Anwar Sadat foi assassinado no Egito por um grupo radical islâmico. Aomame lembrava-se do sucedido e voltou a ter pena do que acontecera ao presidente Sadat. Apreciava bastante a sua careca e sentia uma forte aversão generalizada pelos fundamentalistas religiosos. Só de pensar na visão do mundo marcada pela intolerância, no seu complexo de superioridade e nas exigências que faziam às outras pessoas, ficava a ferver de raiva, ao ponto de não se conseguir controlar. Além disso, não tinha nada que ver com o problema que enfrentava naquele momento. Respirou fundo várias vezes para recuperar a calma e virou a página. No dia 12 de outubro, numa zona residencial do distrito de Shinbashi, em Tóquio, um cobrador da NHK (de cinquenta e seis anos de idade) tinha discutido com um estudante 376/1088
universitário que se recusava a pagar a taxa de receção e apunhalou-o no abdómen com uma faca de cozinha que transportava consigo, dentro de uma mala, ferindo-o com gravidade. O cobrador foi detido no local por um agente da Polícia. O homem encontravase de pé, num estado de prostração, com a faca ensanguentada na mão, e não ofereceu qualquer resistência na altura da prisão. Segundo os seus companheiros de ofício, estava na empresa havia seis anos, sendo considerado muito trabalhador e obtendo sempre excelentes resultados. Aomame ignorava por completo aquele episódio. Costumava ler o jornal Yomiuri de fio a pavio, prestando particular atenção às páginas que tinham artigos de recorte humano – sobretudo as que metiam crimes pelo meio (o que perfazia mais de metade das ditas histórias de faca e alguidar na edição da tarde). Era impossível que tivesse passado por cima de um artigo tão extenso. 377/1088
Claro que podia ter-se distraído por qualquer razão e não o ter lido na altura devida, se bem que fosse bastante improvável. Na sua testa formou-se uma ruga, enquanto meditava acerca dessa probabilidade. A seguir, Aomame tomou nota da data no caderninho e fez um resumo. O nome do cobrador era Shinnosuke Akutagawa. Um nome sonante. Parecido com o de um grande escritor22. Não havia nenhuma fotografia dele; apenas da vítima, Akira Tagawa, de vinte e um anos. O rapaz era estudante do terceiro ano de Direito na Universidade do Japão e segundo dan em kendo. Se tivesse nas mãos uma vara de bambu, por certo que não se deixaria apunhalar com tanta facilidade, mas a verdade é que as pessoas normais não abrem a porta aos cobradores de televisão armadas de varas de bambu. Por outro lado, um cobrador normal também não tem por hábito 378/1088
andar com uma faca de cozinha na mala. Aomame seguiu com atenção as notícias dos dias seguintes, mas não deu com nenhum artigo que dissesse que o estudante apunhalado havia falecido. O mais provável era ter sobrevivido. A 16 de outubro, registou-se um grande acidente numas minas de carvão, em Yūbari, Hokkaidō . Numa extração mineira, a mil metros de profundidade, teve origem um incêndio, e os mais de cinquenta mineiros que ali se encontravam a trabalhar morreram asfixiados. As chamas atingiram quase a superfície, e outras dez pessoas perderam a vida. Para evitar a propagação do fogo, a empresa inundou o poço com ajuda de bombas de água, sem antes alguém se ter certificado se havia ainda operários com vida lá dentro. O número total de mortes ascendeu às noventa e três vítimas. Tratou-se de um caso profundamente trágico e lamentável. O carvão é um recurso energético «sujo», e a sua 379/1088
extração considerada uma atividade muito perigosa. As empresas mineiras poupavam no investimento em infraestruturas, razão pela qual as condições de trabalho eram péssimas. Havia muitos acidentes laborais, nos quais os pulmões dos mineiros acabavam por ser atacados e destruídos. Porém, como o preço do carvão saía barato, continuava a haver pessoas e empresas que viviam à custa dele. Aomame lembrava-se bem daquele acidente. O episódio de que Aomame andava à procura ocorrera a 19 de outubro, escassos dias depois da tragédia nas minas de Yū bari, e tanto assim era que o jornal ainda continuava a falar do caso. Aomame não tinha ideia – pelo menos até Tamaru lhe ter falado no assunto – de esse incidente ter acontecido. Por mais que pensasse, não tinha explicação, visto que o título aparecia em grandes carateres, na primeira página da edição matinal: 380/1088
TIROTEIO ENTRE A POLÍCIA E UM GRUPO DE RADICAIS NAS MONTANHAS DE YAMANASHI: TRÊS AGENTES MORTOS
A peça vinha acompanhada de uma fotografia aérea do lugar onde ocorrera o incidente, perto do lago Motosu. Também havia um pequeno mapa: ficava no meio das montanhas, na prefeitura de Yamanashi, no extremo de uma zona residencial, mais para o interior. Sem esquecer as fotos dos três agentes mortos, elementos do Corpo da Polícia de Yamanashi. O Corpo Especial da Brigada de Paraquedistas das Forças de Autodefesa, deslocando-se num helicóptero. Uniformes militares camuflados, espingardas automáticas com mira telescópica e pistolas de cano curto. Aomame sentiu a cara contrair-se durante um grande bocado. A fim de expressar os seus sentimentos, esticou cada um dos músculos da face o mais que pôde. Por sorte,
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havia divisórias de ambos os lados da mesa da biblioteca, e ninguém pôde testemunhar a espantosa mudança súbita que se operara nela. Em seguida, aspirou todo o ar que pôde e respirou fundo, como fazem as baleias quando vêm à superfície e renovam o ar dos seus gigantescos pulmões. Um aluno do secundário que estava sentado por trás de Aomame a estudar assustou-se com o ruído e olhou para ela, mas não disse nada. Ficou apenas espantado. Depois de ter passado por tão violenta transfiguração, Aomame esforçou-se por retomar a sua expressão de sempre. Pôs-se a bater com a ponta da esferográfica nos dentes incisivos, tentando ordenar as ideias. Tinha forçosamente de haver uma razão. Como é que me escapou um assunto tão grave, que impressionou o Japão inteiro? E não é só este incidente, é bom não esquecer o caso do cobrador da NHK que apunhalou o estudante, outro que tal. É 382/1088
muito estranho. Não sei como é que passei ao lado de duas notícias tão importantes, de uma assentada. Para começar, sou uma pessoa demasiado prudente e meticulosa para isso. Costumo descobrir o mínimo erro. Além disso, confio na minha memória. Graças a isso, continuo viva, após ter enviado uma quantidade de homens para «o outro mundo», sem cometer uma única falha. Sempre li o jornal com toda a atenção, e quando digo «com toda a atenção» refiro-me a não deixar escapar uma só notícia que possa revelar-se significativa. Como seria de esperar, o incidente do lago Motosu tinha ocupado durante vários dias as principais manchetes dos jornais. As Forças de Autodefesa e o Corpo da Polícia da Prefeitura perseguiram os dez membros do grupo radical, e organizou-se uma gigantesca caça ao homem nas montanhas, a fim de encontrar dez militantes em fuga, durante a 383/1088
qual três pessoas foram abatidas, duas tiveram ferimentos graves e quatro (entre elas, uma mulher) acabaram por ser feitas prisioneiras. Um dos elementos do grupo encontrava-se desaparecido. O jornal dedicava grande atenção à cobertura deste caso; por isso, a história do cobrador da NHK que apunhalara um universitário em Itabashi passou para segundo plano. Sem dúvida que os responsáveis pela NHK – se bem que ninguém tenha dado a cara pela empresa – deviam ter respirado de alívio. No caso de o chamado «Incidente do Lago Motosu» não ter acontecido, os meios de comunicação social, por certo, teriam vindo a terreiro pedir explicações sobre o sistema de cobranças, ou até mesmo sobre a própria razão de ser de uma estrutura, por assim dizer, quase governamental, como a NHK. No princípio daquele ano, registara-se um incidente no qual o Partido Liberal Democrata protestara contra um programa 384/1088
especial sobre o escândalo de corrupção Lockheed transmitido pela NHK, e em resposta tinha conseguido que mudassem o conteúdo. Após as notícias vindas a lume, uma grande parte do povo japonês – e com razão – começou a desconfiar da autonomia da NHK em matéria de programação e a questionar a imparcialidade política dos programas da estação. Assistiu-se, então, a uma campanha generalizado contra o pagamento de taxas àquela emissora. Tirando estes dois casos, o do tiroteio no lago Motosu e o do cobrador da NHK, Aomame lembrava-se perfeitamente de ter lido todos os artigos na altura devida, dando conta de escândalos e acidentes acontecidos naquela época. Apenas no que dizia respeito àqueles dois episódios lhe falhava a memória. Porque seria? Por que cargad’água não retivera nada acerca desses casos? 385/1088
Mesmo considerando que a minha memória possui alguma disfunção, poderei ter apagado só as histórias acerca desses incidentes em concreto, deixando tudo o mais intacto? Aomame fechou os olhos e pressionou fortemente as têmporas com as pontas dos dedos. Existe ainda outra possibilidade. Pode ser que haja uma função no meu cérebro que tem por objetivo transformar a realidade, e que essa função selecione apenas determinadas histórias e as cubra por completo com um pano negro: a partir do momento em que não as posso ver, não ficam guardadas na minha memória. Sim, como aconteceu no caso da renovação dos uniformes e do armamento oficial da Polícia, ou da construção de uma base lunar dos Estados Unidos em cooperação com a URSS, com o esfaqueamento de um universitário por um cobrador da NHK, sem esquecer o violento 386/1088
tiroteio entre um grupo radical e as Forças de Autodefesa, no lago Motosu. Mas o que é que têm em comum esses acontecimentos? Por mais que pense, não consigo lá chegar. Aomame continuou a bater com a esferográfica nos dentes, enquanto dava voltas e mais voltas à cabeça. Esteve naquilo durante muito tempo, até que lhe ocorreu a seguinte hipótese: Vamos lá ver se consigo dar a volta… Se calhar, o problema não está em mim, mas sim no mundo que me rodeia. Não se passa nada de anormal com a minha consciência nem com os meus sentidos, o que acontece é que existe uma força inexplicável que mudou, por si mesma, o mundo em redor. E, quanto mais pensava, mais natural lhe parecia esta hipótese, visto que não acreditava que a sua consciência apresentasse alguma deficiência ou distorção sensorial. 387/1088
Por isso, decidiu explorar essa hipótese. Não sou eu que estou a ficar louca, mas sim o mundo. Sim, era isso mesmo. Num dado momento, desapareceu o mundo que eu conhecia até à data, e no seu lugar passou a existir outro mundo. Como acontece quando se troca de agulhas para o comboio mudar de via. Ou seja, a minha consciência, presente aqui, pertence ao mundo anterior, mas esse mundo já se transformou num mundo diferente. O que significa que as mudanças verificadas em todo este processo são em número limitado. A maior parte do mundo novo contém elementos do mundo que eu conheço, daí que não haja (quase) nada que me impeça de prosseguir com a minha vida normal, por enquanto. Contudo, é provável que essas diferenças se tornem cada vez maiores e, em certos casos, possam destruir a lógica das 388/1088
minhas atitudes. Podem até levar-me a cometer um erro fatal. Um mundo paralelo. Aomame franziu o sobrolho, como acontece quando se come uma coisa muito ácida. A contração não foi tão forte quanto a anterior. A seguir, tornou a martelar nos dentes com a ponta da esferográfica e soltou uma espécie de grunhido que parecia vir do fundo da garganta. O estudante que estava sentado nas suas costas, desta vez, fingiu que não era nada com ele. Isto começa a parecer uma história de ficção científica. E se estiver a inventar teorias apenas para me proteger? Na realidade, se calhar, estou a ficar louca. Tenho para mim, como um dado adquirido, que a minha mente funciona normalmente, que os meus sentidos não estão distorcidos. Muitos doentes mentais insistem em que estão na plena posse das suas faculdades e dizem que o mundo à 389/1088
sua volta é que está transtornado. Não será que eu desencantei esta hipótese disparatada dos mundos paralelos, só para justificar, à viva força, a minha própria demência? Preciso da opinião de outra pessoa. A verdade, porém, é que não posso ir a um psicanalista para ser examinada. O assunto complicou-se mais do que eu pensava, e há muitas coisas de que não posso falar. Por exemplo, os meus recentes «trabalhos» infringem a lei, sem sombra de dúvida. Afinal, ando por aí a assassinar à má fila homens com um picador de gelo de fabrico caseiro. Não posso confessar isto a um médico. Por mais que aqueles indivíduos não passassem de seres desprezíveis, retorcidos até dizer basta. Ainda que conseguisse omitir as minhas atividades ilegais, o certo é que a parte legítima da minha vida não pode ser tida como normal. Vendo bem, mais parece uma mala 390/1088
cheia de roupa suja. Lá dentro há material suficiente para deixar qualquer pessoa à beira do desvario – talvez mesmo duas ou três pessoas. Só a minha vida sexual serviria para o efeito. São tudo coisas sobre as quais eu não conseguiria falar diante dos outros. Não, não posso ir consultar um terapeuta. Tenho de resolver isto à minha maneira. Ora, vamos lá ver se é possível levar esta minha hipótese um pouco mais longe. Se é que tudo aconteceu realmente, ou seja, se o mundo em que me encontro no presente ocupou o lugar do velho mundo, então é caso para perguntar, muito concretamente, quando, onde e como se verificou essa troca? Aomame voltou a fazer um esforço para se concentrar e tentou seguir o fio da sua memória. A primeira vez que reparara que uma parte do mundo mudara tinha sido dias antes, ao 391/1088
eliminar o especialista em assuntos de exploração petrolífera num quarto de hotel em Shibuya. Saíra do táxi na linha de Shibuya da autoestrada metropolitana, descera pelas escadas de emergência que iam dar à Estrada Nacional 426, trocara de meias e dirigira-se à estação de Sangenjaya, na linha de Tóquio. Pelo caminho, cruzara-se com um agente da Polícia ainda novo, e foi nesse momento que, pela primeira vez, se deu conta de que havia qualquer coisa na aparência dele que era diferente. Isso foi o começo. Sendo assim, a troca de mundos devia ter acontecido antes dessa altura, uma vez que o polícia que encontrara perto de sua casa, naquela mesma manhã, tinha vestido o velho uniforme da ordem e levava consigo um revólver dos antigos. Aomame evocou aquela sensação estranha de «distorção» que experimentara ao escutar o início da Sinfonietta de Janáček, enfiada no táxi, presa no meio de um 392/1088
engarrafamento. Parecia que todos os componentes do seu corpo estavam retorcidos, como acontece quando se torce um pano. Depois, o taxista disse-me que havia umas escadas de emergência na autoestrada metropolitana, e eu tirei os sapatos de salto alto e abalancei-me a descer por aquelas escadas perigosas. Enquanto descia, descalça, ouvindo o vento soprar com força, a fanfarra inicial da Sinfonietta soava intermitentemente nos meus ouvidos. Se calhar foi aí que tudo começou. Também havia qualquer coisa de estranho no condutor do táxi. Aomame ainda se lembrava bem das palavras que o taxista pronunciara à despedida. Esforçou-se por reproduzi-las na sua cabeça com a máxima fidelidade:
E quando uma pessoa dá esse passo e faz uma coisa desse género, é provável que o cenário quotidiano... como é que hei de dizer?… pareça
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mudado. As coisas à nossa volta podem revelar-se um pouco diferentes do que é costume. Eu próprio já passei por essa experiência. Contudo, não se deixe iludir pelas aparências. A realidade é apenas uma.
Na altura, Aomame que achara esquisito, mas, como não sabia lá muito bem onde é que ele queria chegar com aquelas palavras, não se preocupou com o assunto. Estava cheia de pressa e não tinha tempo para se afligir com quebra-cabeças. Pensando bem, contudo, as palavras não deixavam de ser bastante estranhas. Tudo aquilo soava como advertência, ou então como uma mensagem subliminar. O que estaria o condutor do táxi a tentar transmitir-me? E depois havia ainda a considerar a música de Janáček. Por que motivo identifiquei de imediato aquela música como a Sinfonietta de
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Janáček Como fui capaz de saber que essa obra foi composta em 1926? A Sinfonietta de Janáček não era assim tão popular, ao ponto de qualquer pessoa a reconhecer só de escutar os acordes iniciais. Também não se pode dizer que eu seja propriamente uma apaixonada por música clássica. Nem sequer sei distinguir Haydn de Beethoven. E, no entanto, ao escutar através da rádio do táxi aquela música, soube, ato contínuo, que se tratava da Sinfonietta de Janáček. Porque será que aquela música provocou em mim, e em todo o meu corpo, um estremecimento tão violento? Sim, com efeito, tenho de reconhecer que mexeu profundamente comigo, de um modo muito próprio. Foi como se, de repente, alguma coisa tivesse acordado em mim uma memória latente, adormecida durante muito tempo. É como quando alguém nos agarra pelo ombro e nos faz estremecer. O que significa que, numa determinada altura 395/1088
da minha vida, aquela música deve ter estado, de alguma maneira, intimamente relacionada com a minha pessoa. Pode ter acontecido que, ao soar a música, se ligasse de forma automática dentro mim um interruptor, e algumas recordações começassem a despertar. A Sinfonietta de Janáček. Todavia, por mais que fosse ao fundo da sua memória, não conseguiu extrair de lá nada. Aomame olhou em volta, examinou as palmas das mãos, verificou o formato das unhas e aproveitou para confirmar a forma do peito, agarrando nos dois seios ao mesmo tempo, por cima da camisa. Tudo igual. Parecem os de sempre. Continuo a ser a mesma Aomame. O mundo é o mundo de sempre. E, contudo, alguma coisa estava a mudar. Ela podia pressenti-lo. Era como os desenhos das sete diferenças, sem tirar nem pôr. Naquele caso, andava ainda à procura das 396/1088
diferenças entre os dois desenhos: pendurados na parede, um ao lado do outro, pareciam iguaizinhos. Porém, verificando com atenção, ao pormenor, notavam-se algumas pequenas diferenças, aparentemente insignificantes. Aomame mudou de canal dentro da sua cabeça, regressou à leitura dos jornais e tomou nota dos pormenores do tiroteio ocorrido à beira do lago Motosu. Na imprensa especulava-se, e alguns jornalistas escreviam que as cinco Kalashnikovs AK-47 automáticas eram armas de contrabando que tinham chegado através da península da Coreia. Devia tratar-se de armas em segunda mão, e encontravam-se em boas condições, para além de virem com muitas munições. A linha de costa que dá para o mar do Japão é bastante extensa. Entrar no país, a coberto da noite, a fim de introduzir armas e munições não se afigurava tão difícil quanto isso, desde que se contasse com um barco 397/1088
espião camuflado de barco pesqueiro, carregado de armas e munições. Desse modo, introduziam armas e drogas no Japão e partiam carregados de ienes. A Polícia da Prefeitura de Yamanashi ignorava que este grupo radical estivesse tão bem armado. Obtiveram um mandado de busca e apreensão por agressão (tratava-se apenas de um pretexto), enfiaram-se dentro de dois carros-patrulha e de um miniautocarro, e dirigiram-se com a sua equipa convencional até à «quinta», que servia de base de operações a um grupo que dava pelo nome de Akebono, ou Amanhecer. Aparentemente, os membros do grupo dirigiam neste lugar uma exploração agrícola baseada no cultivo biológico. No decorrer da investigação, negaram o acesso às forças policiais. Como seria de esperar, a situação evoluiu para um confronto e, a determinada altura, por qualquer razão que se desconhece, iniciou-se a troca de tiros. 398/1088
Ainda que não tenham chegado a utilizálas, a verdade é que o grupo estava na posse de potentes granadas de mão fabricadas na China. A razão por que não procederam a uma ofensiva com essas granadas ficou a dever-se a terem-nas adquirido pouco tempo antes, pelo que não sabiam ainda manejálas. Isso veio a revelar-se providencial, de certa maneira. Se os militantes do tal grupo radical tivessem chegado a usar as granadas, os danos causados junto da Polícia e das Forças de Autodefesa teriam sido muito mais elevados, visto que os agentes nem sequer levavam vestidos os coletes à prova de bala. De resto, as críticas desde logo se fizeram sentir, recaindo sobre a «falta de inteligência» demonstrada pelas forças da lei e da ordem na análise feita da situação, a juntar ao equipamento antiquado. Porém, o que chocou a população foi o facto de ainda subsistirem no Japão militantes extremistas organizados e a funcionar ativamente como 399/1088
uma unidade de combate. Os bombásticos apelos à revolução feitos na segunda metade dos anos sessenta eram coisa do passado, e toda a gente pensava que os radicais sobreviventes tinham desaparecido do mapa após o incidente de Asama-Sansō 23. Assim que acabou de tomar todas as notas de que precisava, Aomame devolveu a versão compacta dos jornais, escolheu um grosso volume intitulado Compositores do Mundo da secção de música e regressou à mesa. Abriu o livro na página dedicada a Janáček.
Leoš Janáček nasceu numa aldeia da Morávia, em 1854, e morreu no ano de 1928. No livro aparecia uma fotografia dele nos seus últimos anos de vida. Longe de estar calvo, a sua cabeça fazia lembrar um espesso matagal de cabelos brancos, ao ponto de Aomame não ser capaz de distinguir a forma do crânio. A Sinfonietta fora composta no ano de 1926. Janáček teve uma vida matrimonial sem amor; contudo, em 1917, aos
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sessenta e três anos de idade, apaixonou-se por uma mulher casada chamada Kamilla. Entrara desde há um certo tempo numa fase de decadência, mas o seu encontro com Kamilla fê-lo recuperar o impulso criador, e desatou a compor, uma atrás da outra, as obras-primas que conquistaram o reconhecimento do público. Um dia, ao passear na companhia da mulher pelo parque, viu que estava a decorrer um concerto ao ar livre e deixou-se ficar ali de pé a escutar a interpretação. Foi nesse preciso instante que Janáček experimentou a repentina sensação de felicidade que o percorreu da cabeça aos pés, e teve a inspiração musical para a Sinfonietta. Por mero acaso, encarregaram-no de compor uma fanfarra destinada a celebrar um grande acontecimento desportivo; para criar a obra, usou o motivo que lhe ocorrera no parque, e, assim, fruto dessa «inspiração musical», nasceu a Sinfonietta. O livro explicava que se tratava 401/1088
de uma «pequena sinfonia», muito embora a sua estrutura nada tivesse de convencional, ao combinar os metais exultantes da fanfarra festiva com o suave som centro-europeu do conjunto das cordas, em uníssono, para criar um ambiente único. Aomame deu-se ao trabalho de resumir no seu caderno os comentários sobre a composição, bem como os dados biográficos. No entanto, as notas contidas no livro não lhe proporcionaram qualquer pista no que dizia respeito ao tipo de relação que existia – ou poderia existir – entre ela e a Sinfonietta. Ao abandonar as instalações da biblioteca, pôsse a deambular sem rumo pelas ruas, vendo o anoitecer cair sobre a cidade. Às vezes, falava sozinha; de tempos a tempos, abanava a cabeça. Claro que tudo isto não passa de uma hipótese, disse Aomame para consigo, enquanto caminhava. Mas, até agora, é a hipótese mais convincente. Até que me 402/1088
apareça à frente outra melhor, creio que devo agir em conformidade com ela. Caso contrário, corro o perigo de ser atirada ao chão e de aí ficar. O melhor que tenho a fazer é dar um nome adequado a esta nova situação em que me encontro. É necessário pôr-lhe um nome próprio, além do mais, a fim de distinguir entre este mundo presente e o mundo de antes, em que os polícias andavam com revólveres dos antigos. Se até os cães e os gatos precisam de um nome, um novo mundo, transformado, também. 1Q8424: é assim que vou chamar a este novo mundo, decidiu Aomame. Q é a letra inicial da expressão «question mark», o signo de qualquer coisa carregada de interrogações. Aomame assentiu com a cabeça enquanto prosseguia o seu caminho.
Quer goste, quer não goste, a verdade é que me encontro no ano de 1Q84. O ano de 1984, tal como eu o conhecia, já não existe.
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Estamos em 1Q84. A atmosfera mudou, mudou a paisagem. Tenho de me adaptar quanto antes a este mundo-com-um-pontode-interrogação. Tal como acontece com os animais, quando os deixam em liberdade numa floresta desconhecida. Para minha salvaguarda, para continuar viva, devo aprender as regras deste lugar, o mais depressa possível, e adaptar-me a elas.
Aomame dirigiu-se a uma loja de discos próxima da estação de Jiyūgaoka, à procura da Sinfonietta de Janáček. Não se podia dizer que fosse um compositor muito popular. A secção onde estava a coleção dos discos de Janáček era bastante pequena e só havia um disco com a Sinfonietta, uma versão interpretada pela Orquestra de Cleveland, dirigida pelo maestro George Szell. No Lado A tinha o Concerto para Orquestra de Bartók. Mesmo sem qualquer referência acerca da qualidade das interpretações, comprou o LP; não tinha escolha possível, uma vez que era o
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único exemplar. De regresso a casa, foi ao frigorífico buscar um Chablis, abriu a garrafa, pôs o disco a rodar no prato do gira-discos e fez descer a agulha. Deixou-se estar a ouvir música enquanto bebia o vinho fresco, no ponto certo. A fanfarra fez-se ouvir desde o início com o mesmo tom exultante. Era a peça que escutara no táxi, disso não havia dúvida. Fechou os olhos e concentrou toda a sua atenção na música. A interpretação não lhe pareceu má. No entanto, não aconteceu nada. Era música a tocar, só isso. Nem sentiu a tal torção corporal, tão-pouco as suas sensações conheceram qualquer metamorfose. Quando a obra chegou ao fim, guardou o disco dentro da bolsinha, sentou-se no chão e bebeu o Chablis encostada à parede. Sozinha e entregue aos seus pensamentos, o vinho quase não tinha sabor. Foi até à casa de banho, lavou a cara com sabonete e água, aparou as sobrancelhas com uma pequena 405/1088
tesoura e limpou os ouvidos com uma cotonete. Ou sou eu que estou a ficar louca ou o mundo enlouqueceu; das duas, uma. Não bate a bota com a perdigota: o problema será da bota ou da perdigota? Em todo o caso, não se pode negar que a diferença de ângulo existe. Aomame abriu a porta do frigorífico e examinou o seu interior. Não tinha grande coisa, uma vez que há vários dias que não ia às compras. Escolheu uma papaia madura, partiu-a ao meio e comeu-a à colher. Pegou em três pepinos, passou-os por água e comeu-os com maionese. Mastigou a comida lentamente. A seguir, bebeu um copo de leite de soja. Foi esse o seu jantar. Uma refeição frugal, simples mas ideal para evitar a obstipação. A obstipação era uma das coisas que Aomame mais odiava neste mundo, a par dos homens desprezíveis que praticavam violência doméstica e dos fundamentalistas 406/1088
religiosos que possuíam um espírito intolerante. Assim que acabou de comer, despiu-se e tomou um duche quente. Ao sair do chuveiro, Aomame secou o corpo e deixou-se ficar ali despida, diante do espelho a todo o comprimento da porta. Um ventre liso e músculos firmes. Os seios um tanto assimétricos e pequenos, um púbis que fazia lembrar um campo de futebol mal cuidado. E, de repente, observando a sua nudez, ela lembrou-se de que, dentro de alguns dias, ia fazer trinta anos. Outra vez o maldito aniversário. Que sorte a minha pensar que vou celebrar o meu trigésimo aniversário num mundo sem sentido, como este em que vivemos! E, ao dizer aquilo, franziu o cenho. 1Q84. Era ali o lugar onde ela se encontrava.
22 Referência a Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927), considerado o «pai do conto japonês». As suas histórias exploram
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o lado negro da natureza humana. Akira Kurosawa dirigiu o filme Rasho¯mon (Às Portas do Inferno), baseado em «Dentro da Mata», considerado por Borges e Bioy Casares como um dos melhores contos policiais de todos os tempos. Akutagawa deu origem a um dos mais importantes prémios literários japoneses, destinado a descobrir novos escritores. Suicidou-se aos trinta e cinco anos. (N. das T.)
23 Em fevereiro de 1972, mais concretamente entre 19 e 28 de fevereiro, membros do Exército Vermelho Unido, grupo paramilitar de extrema-esquerda, protagonizaram um longo e sangrento confronto com a Polícia, que envolveu a existência de um refém durante o período de cerco montado pelas forças policiais a uma casa situada nos campos de treino, perto de Karuizawa (considerados os Alpes japoneses), na prefeitura de Nagano. Koji Wakamatsu retratou este episódio que marcou a História do país no filme Exército Vermelho Unido. (N. das. T.)
24 Em japonês, o número 9 e a letra Q são homófonos, pronunciam-se do mesmo modo: kyū . (N. das T.)
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TENGO
Uma revolução a sério com um verdadeiro banho de sangue
– Mudança de comboio – disse Fuka-Eri, e tornou a pegar-lhe na mão. A cena aconteceu pouco antes de chegarem à estação de Tachikawa. Enquanto se apeavam do comboio e subiam e desciam escadas que os conduziriam a outra plataforma, Fuka-Eri nunca largou a mão de Tengo. Aos olhos das pessoas que os rodeavam, provavelmente, passariam por um parzinho de namorados. Apesar da diferença de idades, Tengo parecia mais novo do que era, na realidade. A disparidade na estatura entre os dois também devia
provocar, de certeza, alguns sorrisos. Um encontro feliz numa manhã de domingo primaveril. Verdade seja dita, a mão de Fuka-Eri não transmitia a Tengo qualquer apelo erótico. Ela agarrava-lhe na mão e fazia uma pressão constante; os seus dedos possuíam o rigor profissional de um médico que mede o pulso a um doente. Se calhar, esta rapariga pensa que podemos comunicar sem palavras, através do toque, usando os dedos e as palmas das mãos, disse Tengo para consigo. No entanto, mesmo considerando que o fluxo alternado de informações se produzisse, mais do que uma corrente em dois sentidos, funcionava como uma espécie de transmissão em sentido único. Era caso para dizer que Fuka-Eri talvez captasse o que Tengo escondia no seu coração, mas que tal não significava forçosamente que ele fosse capaz de ler no coração de Fuka-Eri. 410/1088
Contudo, isso não o preocupava por aí além, visto que nada possuía na sua mente – nem pensamentos, nem sentimentos – que se importasse que ela ficasse a conhecer. Mesmo que ela não me veja como um elemento do sexo oposto, deve gostar um bocadinho de mim. Era isto que Tengo imaginava. Ou, pelo menos, acredito que não lhe terei causado má impressão. Senão, independentemente das suas intenções, não me teria agarrado na mão durante tanto tempo. Dirigiram-se ambos à plataforma da linha O¯ me e subiram para o primeiro comboio, prestes a partir. Por ser domingo, a carruagem estava mais cheia do que seria de esperar, e viam-se por todo o lado famílias e anciãos, vestidos para escalar montanhas. Os dois deixaram-se ficar de pé junto à porta, um ao lado do outro. – Parece que vamos todos de excursão – disse Tengo, olhando em volta. 411/1088
– Importas-te que continue de mão dada contigo? – perguntou Fuka-Eri. Desde que tinham subido para o comboio, ainda não lhe soltara a mão. – Não, claro que não. Fuka-Eri continuou agarrada à mão dele, aliviada. Os seus dedos e a palma da mão mantinham-se frescos, sem uma gota de suor. Pareciam continuar à procura de alguma coisa que pudesse existir dentro dele. – Já não tens medo – perguntou ela, sem ponto de interrogação no fim. – Não, creio que não – respondeu ele. Não era mentira nenhuma. O ataque de pânico que o invadia aos domingos de manhã diminuíra de intensidade, sem dúvida, provavelmente devido ao facto de Fuka-Eri lhe ter dado a mão. Já não estava a suar, nem ouvia o coração bater descompassado. A sua respiração retomara o mesmo ritmo calmo de sempre. 412/1088
– Ainda bem – disse Fuka-Eri, num tom monocórdico. «Sim, ainda bem», murmurou Tengo para dentro. Ouviu-se um breve anúncio de que o comboio partiria dentro de instantes, e logo se fecharam as portas, com um tremor exagerado, mais parecendo um enorme animal primitivo a despertar do seu sono milenar. Decidindo-se, por fim, a andar, o comboio arrancou da plataforma e afastou-se lentamente. Sempre agarrado à mão de Fuka-Eri, Tengo contemplou a paisagem através da janela. Ao princípio, consistia numa zona residencial igual a tantas outras; porém, à medida que avançavam, o cenário da planície de Musashino deu lugar a uma zona montanhosa. A partir de Higashiōme, os carris transformaram-se numa via única a direito, e os passageiros tiveram de fazer o transbordo para um comboio de quatro carruagens naquela estação. As montanhas que os 413/1088
rodeavam foram-se tornando cada vez mais imponentes. Já não se encontravam na área metropolitana de Tóquio. Na superfície das montanhas ainda subsistiam os tons murchos do inverno, em que se destacava, com veemência, o verde das árvores perenes. Sempre que o comboio parava e as portas se abriam, Tengo sentia um perfume diferente no ar, e até os sons ressoavam de outra maneira. Os campos que se estendiam ao longo da via-férrea chamavam a atenção, e aí aumentava o número de construções ao estilo rural. Circulavam também mais carrinhas de caixa aberta do que ligeiros de passageiros. Parece que estamos muito longe. Que diabo, até onde teremos ainda de ir? – Não te preocupes – disse Fuka-Eri a Tengo, como se lhe tivesse lido o pensamento. 414/1088
Tengo assentiu em silêncio. Disse para consigo que era como se fosse conhecer os pais dela para a pedir em casamento.
Por fim, lá se apearam, numa estação chamada Futamatao25. O lugar não dizia nada a Tengo. Que nome mais curioso, pensou. Além deles, apearam-se outros cinco passageiros naquela pequena e velha estação de madeira. Ninguém subiu a bordo. As pessoas iam até Futamatao para percorrer os trilhos montanhosos e respirar ar puro; ninguém se deslocava àquelas paragens para assistir a uma representação de O Homem de La Mancha, nem para frequentar discotecas conhecidas pela sua reputação louca, nem para visitar um salão repleto de automóveis Aston Martin, tão-pouco para apreciarem um gratin de homard num famoso restaurante francês. Bastava ver o género de pessoas que desciam do comboio para compreender isso. Em frente à estação não existia uma única loja nem se via vivalma. No entanto, estava
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um táxi ali parado. O mais provável era ter chegado para receber os passageiros à saída do comboio. Fuka-Eri bateu ao de leve na janela, e a porta traseira abriu-se26. Ela entrou e fez sinal com a mão a Tengo para que a seguisse. A porta fechou-se. Fuka-Eri apressou-se a indicar a morada ao taxista, e este assentiu com a cabeça. Apesar de o trajeto não ser muito longo, o caminho revelou-se por demais tortuoso. Subiram por uma colina íngreme, desceram por uma encosta pronunciada, seguindo sempre ao longo de uma série de caminhos estreitos, por onde mal havia espaço para dois veículos se cruzarem. Quanto a curvas e contracurvas, eram mais que muitas, tantas que nem dava para contar. Como o motorista não dava mostras de diminuir nem um pouco a velocidade, Tengo passou a viagem agarrado à porta, com o coração nas mãos. Em seguida, o táxi avançou por um declive acima, tão escarpado como uma pista de esqui, até que, 416/1088
por fim, parou no que parecia ser o cume de uma pequena montanha. Mais do que uma viagem de táxi, Tengo ficou com a sensação de ter acabado de dar uma voltinha na montanha-russa do parque de diversões. Tirou da carteira duas notas de mil ienes e recebeu o troco e a fatura correspondente. Em frente a uma velha casa tradicional japonesa encontravam-se estacionados um Mitsubishi Pajero preto e um grande Jaguar verde. O Pajero, modelo ainda novo, brilhava de tão polido, mas o Jaguar, como era um modelo antigo, estava coberto de uma capa de pó branco que mal deixava perceber a sua cor original. Exibia o para-brisas dianteiro coberto de sujidade e dava a impressão de que ninguém o conduzia há bastante tempo. O ar possuía uma frescura surpreendente e, a toda a volta, respirava-se tranquilidade. Uma tranquilidade tão profunda que era preciso ajustar o ouvido para uma pessoa se adaptar a ela. O céu exibia 417/1088
uma claridade diáfana que parecia não ter fim, e era possível sentir o calor dos raios de sol incidir docemente sobre a pele nua. De quando em quando, Tengo escutava o trinado agudo e pouco familiar de uma ave, mas não havia qualquer pássaro à vista. Era uma mansão grande e imponente. Todos os sinais apontavam para uma construção muito antiga, porém, dava para ver que se encontrava bem conservada. As árvores e os arbustos no jardim estavam podados com grande cuidado. Algumas das árvores, recortadas com inusitada precisão, mais pareciam objetos artificiais de plástico. Um pinheiro enorme projetava uma ampla sombra sobre o solo. Ainda que a paisagem se estendesse a perder de vista, não se vislumbrava uma única casa. Tengo imaginou que a pessoa que mandara construir aquela casa num local tão afastado de tudo e de todos só podia ser alguém que odiava o contacto com os outros seres humanos. 418/1088
Fuka-Eri abriu a porta corrediça do vestíbulo, que não estava trancada, e fez sinal a Tengo para que a seguisse. Não apareceu ninguém a recebê-los. Tiraram os sapatos naquela sala de entrada, porventura demasiado vasta e silenciosa, avançaram por um corredor impecavelmente polido, sentindo através das meias o toque gélido do chão, até chegarem à sala de visitas. As janelas ofereciam uma vista panorâmica das montanhas, e a luz do Sol incidia sobre um rio serpenteante. Era um cenário maravilhoso, mas Tengo não estava com tempo nem disposição para tirar partido dele. Depois de o fazer sentar-se num sofá espaçoso, Fuka-Eri saiu da sala sem dizer nada. O sofá cheirava a velho, apesar de Tengo não fazer ideia a que época distante poderia remontar. Para receber visitas, aquela sala não podia ser mais espartana, ao ponto de o resultado se revelar, por assim dizer, assustador. Viase uma mesinha baixa feita a partir de uma 419/1088
tábua grossa – em cima não havia nada, fosse um cinzeiro ou um pano bordado. As paredes estavam despidas de quadros. Nem sequer um relógio ou um calendário, nem um único vaso com flores para amostra. Nada que se parecesse com um aparador. Revistas e livros eram coisa que não se via. O chão encontrava-se coberto por uma velha carpete, tão descolorida que não dava para distinguir o padrão estampado. Tirando aquele enorme sofá parecido com uma balsa salva-vidas, no qual Tengo se encontrava sentado, e três cadeiras iguais, pouco mais mobiliário existia. Havia uma grande lareira aberta, se bem que nada indicasse que a tivessem acendido nos últimos tempos. Apesar de se estar em meados de abril, a divisão encontrava-se gelada. Era como se a friagem que penetrara durante o inverno ainda ali permanecesse. Dava a impressão de que tinha passado uma eternidade desde que aquele espaço tomara a firme decisão de não 420/1088
mais receber qualquer visitante. Fuka-Eri regressou e sentou-se ao lado de Tengo sem dizer uma palavra, como era seu costume. Durante muito tempo, nenhum dos dois abriu a boca. Fuka-Eri mergulhou no seu próprio e enigmático mundo, enquanto Tengo procurava acalmar-se, respirando fundo, sem fazer barulho. Salvo o canto distante de um pássaro que, por vezes, se fazia ouvir, o interior da sala permanecia no mais completo silêncio. Ao escutar os sons do silêncio, parecia a Tengo que aquela quietude escondia diversas implicações. Sentia que não era apenas uma questão de ausência de som. O silêncio parecia querer contar alguma coisa acerca de si mesmo. Tengo deitou uma olhadela ao relógio de pulso, por nenhuma razão em especial. Ergueu a cabeça, observou a paisagem que se via pela janela e tornou a olhar para o relógio. Quase não passara tempo nenhum. Nas manhãs de domingo, o tempo avançava devagar. 421/1088
* * * Dez minutos mais tarde, a porta abriu-se de repente, sem aviso prévio, e um homem magro entrou na sala com passos apressados. Devia andar pelos sessenta e cinco anos. Media aproximadamente um metro e sessenta, mas, graças à sua excelente postura, não aparentava ser um indivíduo esquálido. Tinha as costas direitas, como se na coluna tivesse uma vara de ferro, e erguia o queixo em sinal de determinação. As sobrancelhas eram escuras e hirsutas, e usava óculos com uma armação grossa, de cor preta, que parecia destinada a intimidar alguém. Os seus movimentos faziam lembrar um mecanismo preciso, desenhado e construído de maneira compacta, em que todas as peças estivessem engrenadas ao serviço da eficácia. Tengo fez menção de se levantar, porém, com a mão, o homem apressou-se a fazer-lhe sinal para que ficasse sentado. Seguindo a indicação, Tengo, que estava meio levantado, deixou-se 422/1088
cair no sofá, ao mesmo tempo que o homem se sentou, precipitadamente, numa cadeira em frente, como se estivesse a competir com ele. Depois, ficou calado durante um grande bocado, limitando-se a olhar para a cara de Tengo. Não se podia dizer que tivesse um olhar penetrante, mas os seus olhos tinham o condão de examinar tudo, de cima a baixo, sem deixar escapar nada. Como acontece quando um fotógrafo regula a objetiva de uma câmara. O homem vestia uma camisola de malha verde-escura por cima de uma camisa branca e de umas calças de lã cinzento-escuras. Dirse-ia que tinha andado com aquela roupa todos os dias em cima do corpo uma boa dezena de anos. Devia ser uma pessoa que não ligava grande importância ao vestuário. E o mais certo era não ter ninguém por perto que se preocupasse com ele. O cabelo começava a rarear, o que lhe acentuava a forma alongada da cabeça, tanto à frente 423/1088
como atrás. Tinha as maçãs do rosto salientes e o queixo anguloso. Os lábios eram pequenos e carnudos, como os de uma criança; de certa maneira, era o único pormenor das suas feições que destoava do conjunto. Não fizera bem a barba, notando-se, ali e acolá, alguns pelos dispersos – ou talvez fosse apenas um efeito provocado pelos raios de sol ao incidirem nele. A luz da montanha que entrava pela janela parecia ser um tanto ou quanto diferente, na origem da sua luminosidade, em relação àquilo a que Tengo estava acostumado. – Lamento muito tê-lo feito vir de tão longe – disse o homem. A sua maneira de falar tinha uma modulação peculiar, indiciava alguém muito habituado a falar em público, e também, provavelmente, a exprimir-se com uma certa lógica. – Uma vez que as circunstâncias não me permitem sair daqui, não tive outro remédio senão obrigálo a vir até cá. 424/1088
Tengo respondeu que não tinha importância. A seguir, disse-lhe como se chamava e pediu desculpa por não levar com ele nenhum cartão de visita. – Eu chamo-me Ebisuno – disse o homem. – Também não tenho cartões de visita. – Ebisuno – repetiu Tengo. – Todos me chamam Professor, mesmo a minha filha, não sei porquê. – Como se escreve? – É um nome invulgar. Só o escrevo de vez em quando. Eri, queres fazer o favor de mostrar como se escreve o nome? Fuka-Eri assentiu, tirou uma espécie de bloco de notas e, com uma esferográfica, escreveu num papel branco os dois carateres que compunham o nome, devagarinho, demorando o tempo que foi preciso. Pareciam ideogramas esculpidos com a unha num pedaço de barro. Não se podia dizer que não tivessem o seu estilo. 425/1088
– Em inglês, o meu nome poderia ser traduzido como «field of savages», isto é, «terra de selvagens». Um nome perfeito para quem, como eu, se dedicava à antropologia cultural – afirmou o Professor. Nos seus lábios formou-se aquilo que poderia ser interpretado como um sorriso; contudo, o seu olhar não perdeu a capacidade de examinar Tengo com toda a atenção. – Seja como for, há já muito tempo que cortei os vínculos com a minha vida de investigador. Agora, dedicome a uma coisa completamente diferente. Vivo numa «terra de selvagens» de outra natureza. Com efeito, tratava-se de um nome bizarro, mas quis parecer a Tengo que já o tinha ouvido em qualquer lado. Na segunda metade dos anos sessenta, existira um famoso cientista chamado Ebisuno. Este escrevera vários livros que, à data, haviam sido bastante bem recebidos e obtiveram um êxito considerável. Tengo não sabia ao certo 426/1088
qual a temática abordada nos livros, muito embora aquele nome, pelo menos, tivesse ficado num recanto da sua memória. Depois, às tantas, deixara de se ouvir falar dele, de um dia para o outro. – Creio que já ouvi o seu nome antes – referiu Tengo, apalpando terreno. – É possível – respondeu o Professor, olhando para longe, como se falasse de alguém que não estivesse presente. – De qualquer maneira, isso já aconteceu há muito tempo. Tengo podia sentir a respiração serena de Fuka-Eri, sentada ao seu lado. Respirava lenta e profundamente. – Tengo Kawana – disse o Professor, como se lesse o nome dele numa placa identificativa. – Sou eu – respondeu Tengo. – Especializou-se em Matemática na universidade, e agora dá aulas numa escola particular de Yoyogi – disse o Professor. – Além 427/1088
disso, também escreve romances. Quem me contou foi a Fuka-Eri. Está correto? – Sim, está. – Não parece ser nem professor de Matemática nem escritor. Tengo esboçou um sorriso forçado e disse: – Ainda no outro dia me disseram a mesma coisa. Imagino que seja por causa da minha constituição física. – Não falei por mal – acrescentou o Professor, ao mesmo tempo que levava o dedo à ponte dos seus óculos pretos. – Uma pessoa não se parecer com uma coisa em concreto não tem de ser, por força das circunstâncias, uma coisa má. Significa apenas que ainda não o identificaram enquanto membro de uma categoria estereotipada. – É uma grande honra ouvi-lo dizer isso, mas, na verdade, ainda não sou escritor. Tento apenas escrever ficção. – Tenta. 428/1088
– Refiro-me ao facto de ir aprendendo por tentativas, à força de experimentar e errar. – Compreendo – disse o Professor. Em seguida, esfregou ligeiramente as mãos uma na outra, como se acabasse pela primeira vez de se dar conta da frialdade que se fazia sentir na sala. – E, segundo o que me chegou aos ouvidos, está a corrigir o romance que a Eri escreveu, a fim de o transformar numa obra mais perfeita e, desse modo, com ela ganhar o prémio destinado aos jovens escritores atribuído por uma revista literária. Está nos vossos planos dar a conhecer esta rapariga ao mundo como escritora. Interpreto bem as vossas intenções? Tengo mediu as suas palavras com cuidado. – Basicamente, é como o senhor diz. A ideia nasceu da cabeça de um editor chamado Komatsu. Não sei se o projeto vai ter êxito. Nem sequer se é correto o que estamos a fazer, de um ponto de vista ético. O meu 429/1088
papel, em todo este processo, consiste em corrigir o estilo da obra, A Crisálida de Ar. Podemos dizer que não passo de um técnico, no fundo. Quanto ao resto, quem assume a responsabilidade é o senhor Komatsu. O Professor concentrou-se, por instantes, nos seus pensamentos. Tengo quase podia ouvir o barulho do seu cérebro a funcionar. Quando falou foi para dizer: – Esse editor, o tal Komatsu, idealizou o plano, e o Tengo dá-lhe apoio e contribui na vertente técnica. – É isso mesmo. – Toda a vida fui um homem da ciência e, para dizer a verdade, a leitura de ficção nunca me despertou grande entusiasmo. Desconheço, por isso, as convenções que regem o vosso mundo literário, mas o que se propõem fazer soa-me a uma espécie de fraude. Engano-me? – Não, não se engana. Também a mim me parece o mesmo – afirmou Tengo. 430/1088
O Professor franziu ligeiramente a testa. – E, no entanto, apesar de ter dúvidas acerca da natureza ética do projeto, aceitou participar nele, de sua livre vontade? – Bom, de livre vontade... não diria, mas é verdade que estou envolvido nele. – E porquê? – Essa é a pergunta que me tem andado a perseguir durante toda a semana – respondeu Tengo, com sinceridade. O Professor e Fuka-Eri aguardaram em silêncio que Tengo prosseguisse. – A minha razão, o senso comum e o instinto aconselham-me a sair desta história o mais depressa possível. Sou, por natureza, uma pessoa prudente e razoável. Não sou aventureiro nem gosto de correr riscos. Pode até dizer-se que sou um cobarde, nesse particular. Desta vez, porém, fui incapaz de dizer não ao projeto arriscado proposto pelo senhor Komatsu. E a única razão prende-se com o facto de me sentir 431/1088
extraordinariamente atraído por A Crisálida de Ar. Se fosse qualquer outra obra, teria recusado sem pensar duas vezes. O Professor olhou para a cara de Tengo com uma expressão de assombro. – Em resumo, digamos que a parte fraudulenta do plano não lhe interessa, mas, por outro lado, tem um profundo interesse em corrigir a obra. É isso? – Precisamente. É mais do que «um profundo interesse». Considerando que é preciso reescrever A Crisálida de Ar, não gostaria que essa tarefa fosse confiada a mais ninguém. – Estou a ver – disse o Professor, fazendo uma expressão de repugnância, como se tivesse metido, por engano, qualquer coisa ácida na boca. – Estou a ver. Creio que percebo os sentimentos que o animam. E no que respeita aos objetivos desse tal Komatsu? O que o levará a tal? Dinheiro? Prestígio? 432/1088
– Para ser honesto, desconheço as intenções do senhor Komatsu – respondeu Tengo. – No entanto, dá-me a sensação de que aquilo que o move vai para além do dinheiro ou da fama. – Como, por exemplo? – Ainda que ele próprio não o reconheça, o senhor Komatsu é uma pessoa obcecada com a literatura. As pessoas como ele só pensam numa coisa: encontrar, nem que seja pelo menos uma vez na vida, uma obra autêntica, o chamado «artigo genuíno», a fim de poder servi-lo em bandeja de prata ao mundo. O Professor fixou a sua atenção em Tengo durante um bocado. A seguir, observou: – Portanto, os vossos motivos diferem. Motivos esses que nada têm que ver com prestígio ou dinheiro. – Creio que assim é. – Seja qual for a natureza dos propósitos que vos movem, como o Tengo mesmo disse, estamos diante de um plano demasiado 433/1088
arriscado. Se a verdade viesse a saber-se, rebentaria um escândalo, naturalmente, e a reprovação geral por parte do público não recairia apenas sobre vós. Poderia também representar uma machadada fatal na vida da Eri, uma rapariga de apenas dezassete anos. Confesso que é isso o que mais me inquieta em todo este processo. – E é natural que esteja preocupado – afirmou Tengo, acenando com a cabeça. – Tem razões para tal. O espaço que separava as sobrancelhas negras e farfalhudas do Professor contraiu-se apenas um centímetro. – E, apesar disso, continua apostado em emendar a obra pelo seu próprio punho, sabendo que, com esse gesto, estará a colocar a Eri em perigo? – Como tive oportunidade de lhe explicar agora mesmo, a minha determinação encontra-se fora do alcance da racionalidade e do bom senso. Claro que farei tudo o que 434/1088
estiver na minha mão para proteger a FukaEri, mas não posso prometer-lhe que ela não correrá qualquer risco. Se o fizesse, estaria a mentir. – Compreendo – disse o Professor, e pigarreou para mudar de assunto. – De qualquer maneira, o Tengo parece-me uma pessoa honesta. – Pelo menos, procuro sê-lo, na medida do possível. O Professor contemplou as suas próprias mãos, que repousavam em cima dos joelhos, como se as visse pela primeira vez. Observou as costas das mãos, virou-as e ficou a olhar para as palmas. Depois ergueu o rosto e voltou à carga. – Com que então, esse editor, Komatsu de seu nome, acredita que o plano vai funcionar? – Na opinião do senhor Komatsu, as coisas têm dois lados – afirmou Tengo. – Um bom e outro que não é tão bom quanto isso. 435/1088
O Professor riu-se. – Parece ser um ponto de vista assaz original. Esse Komatsu deve ser um otimista, ou então tem muita confiança em si mesmo... – Nem uma coisa nem outra – respondeu Tengo. – Não passa de um cínico. O Professor negou com um ligeiro movimento de cabeça. – Ao ser cínica, uma pessoa torna-se otimista. Ou, então, talvez tenha muita fé nele. É isso? – Pode ser que tenha uma certa tendência para isso. – Estou a ver que não deve ser fácil lidar com ele. – É bastante complicado lidar com ele – asseverou Tengo. – Mas não é parvo nenhum. O Professor deixou escapar um longo suspiro, devagar. Depois, dirigiu-se a Fuka-Eri. – Eri, que te parece? O que pensas deste projeto? 436/1088
Fuka-Eri fixou a sua atenção num ponto indeterminado e só depois respondeu: – Está bem. – Por outras palavras, não te importas que o jovem senhor Kawana corrija A Crisálida de Ar? – Não me importo. – Olha que podes vir a ter problemas. Fuka-Eri não respondeu. Limitou-se a aconchegar no pescoço a gola redonda da camisola. Todavia, aquele gesto não deixava de traduzir o sinal inequívoco da sua firme determinação – Se calhar, a rapariga tem razão – disse o Professor, parecendo, de certa forma, resignado. Tengo observou as pequenas mãos de Fuka-Eri, que se haviam transformado em punhos. – No entanto, existe outro problema – comunicou o Professor a Tengo. – Sei que pretende, juntamente com esse Komatsu, 437/1088
publicar A Crisálida de Ar e dar a conhecer a Fuka-Eri aos olhos do público como uma escritora, mas esta rapariga é disléxica. Sabia disso? – Fui informado esta manhã, durante a viagem de comboio. – É possível que seja uma disfunção congénita. Na escola, durante muito tempo, pensavam que ela tinha uma espécie qualquer de atraso mental, que lhe dificultava a compreensão das coisas, mas, na verdade, trata-se de uma jovem muito inteligente. Pode dizer-se que possui uma profunda sabedoria. Apesar disso, não creio que ser disléxica ajude em alguma coisa o vosso plano, para não ir mais longe. – No total, quantas pessoas estão a par disso? – Além dela, três pessoas – respondeu o Professor. – Eu, a minha filha Azami e, agora, o Tengo. Mais ninguém sabe. 438/1088
– Quer dizer que os professores da escola não sabem? – Não. Estamos a falar de uma pequena escola rural. Nunca devem ter ouvido falar de dislexia. Além de que ela andou na escola durante muito pouco tempo. – Nesse caso, talvez seja possível manter desconhecido esse dado. O professor ficou a olhar para a cara de Tengo, como se o estivesse a avaliar. – A Eri parece confiar em si – disse ele, passado um bocado. – Não sei por que motivo, e... Tengo aguardou em silêncio que ele prosseguisse. – E eu confio nela. A partir do momento em que a Eri diz que podemos entregar a obra nas suas mãos, pela minha parte, só me resta aceitar a decisão. No entanto, se pretende realmente que o projeto avance, há uma série de coisas relacionadas com ela que deveria saber. – Ao dizer aquilo, o Professor 439/1088
passou várias vezes a mão por cima das calças, na zona do joelho direito, como se estivesse a sacudir um fiozinho de tecido. – Refiro-me a saber como e onde passou a sua infância, e ainda em que circunstâncias é que me tornei responsável pela Eri e a criei. Aviso já que, se me ponho a falar, nunca mais saímos daqui. É uma longa história... – Sou todo ouvidos – disse Tengo. Sentada ao lado de Tengo no sofá, FukaEri corrigiu a posição. Continuava agarrada com as duas mãos à gola da camisola, apertando-a de encontro ao pescoço. * * * – Muito bem – disse o Professor. – A história remonta à década de sessenta. O pai da Eri e eu éramos grandes amigos desde há muito. Apesar de eu ser dez anos mais velho, dávamos ambos aulas no mesmo departamento da mesma universidade. Os nossos feitios e a nossa visão do mundo eram muito 440/1088
diferentes, mas, por qualquer razão, entendíamo-nos bem. Casámos tarde os dois, e tanto um como o outro tivemos uma filha pouco depois de casar. Como vivíamos na mesma residência oficial, as nossas famílias passavam bastante tempo juntas. Profissionalmente falando, a vida corria-nos bem. As pessoas começavam a referir-se a nós como sendo «novos e prometedores intelectuais». Éramos muitas vezes citados nos meios de comunicação social. Foi uma época fascinante, em todos os sentidos. «Todavia, à medida que os anos sessenta se aproximavam do fim, a situação começou a mudar para pior. Na década de setenta, assistiu-se, por parte do movimento estudantil, ao reacender da contestação contra o Tratado de Segurança entre o Japão e os Estados Unidos. Houve gente que ocupou as universidades, confrontos com a polícia antimotim, lutas internas sangrentas, chegando a registar-se mortes. Confrontado 441/1088
com esse estado de coisas, e não querendo, de forma alguma, ver-me metido ao barulho, decidi abandonar a universidade. Nunca me adaptara totalmente à vida académica, por uma questão de feitio, e, assim que os protestos começaram a dominar a cena, fartei-me de vez. Ser a favor ou contra o sistema, queria lá saber disso para alguma coisa! Ao fim e ao cabo, tudo aquilo mais não era do que um conflito entre fações, e, a bem dizer, eu não confiava nem um bocadinho em nenhuma organização, fosse ela grande ou pequena. Calculo que o Tengo, na altura, ainda não era estudante universitário. – Quando entrei para a universidade já os distúrbios estavam totalmente controlados. – Quer então dizer que já a festa tinha acabado. – Exato. O Professor ergueu as mãos por momentos e, logo a seguir, pousou-as nos joelhos. 442/1088
– Lá deixei a universidade e, dois anos depois, foi a vez de o pai da Eri fazer o mesmo. Naqueles anos, aderira à ideologia revolucionária de Mao Zedong e apoiava a Revolução Cultural chinesa. É preciso dizer que só há relativamente pouco tempo ouvimos falar no lado terrivelmente cruel e desumano que a Revolução Cultural conheceu na China. Para uma boa parte dos intelectuais, andar com o Livro Vermelho de Mao tornara-se, de facto, uma moda. O pai da Eri organizou uma fação dos estudantes, formou um grupo radical no interior da universidade, que pretendia ser uma espécie de «Guarda Vermelha», e chegou a participar na greve desencadeada pelos universitários. Também houve estudantes procedentes de outras universidades que se juntaram à sua organização. Durante algum tempo, a fação liderada por ele aumentou bastante o espectro da sua ação militante. Foi então que, a mando da instituição, a polícia antimotim tomou de 443/1088
assalto a cidade universitária, levando o pai da Eri preso, juntamente com os estudantes que se encontravam entrincheirados e que lutavam ao seu lado; foram, todos eles, condenados a penas de prisão. Além disso, ao pai dela, despediram-no da universidade. A Eri não passava de uma criancinha, na altura, e o mais provável é não se lembrar de nada. Fuka-Eri permaneceu calada. – O pai dela chamava-se Tamotsu Fukada. Logo a seguir a ter abandonado a universidade, recrutou cerca de dez estudantes, que formaram o núcleo do comando da Guarda Vermelha e entraram para a Academia Takashima. Estes estudantes, na sua maioria, tinham sido expulsos da universidade. Precisavam de um sítio para onde ir, e a Academia Takashima não era má como alternativa. A imprensa, à época, dedicou uma certa atenção ao movimento. Diz-lhe alguma coisa? 444/1088
Tengo negou com a cabeça. – Não conheço essa história. – A família do Fukada foi com ele. Refirome à esposa e à Eri. Entraram todos juntos para a academia. Sabe alguma coisa acerca de Takashima? – Em linhas gerais – disse Tengo. – Estamos a falar de uma organização parecida com uma comuna, que se rege por um estilo de vida totalmente em comum, subsistindo graças à agricultura. Também se dedicam aos produtos lácteos e operam a nível nacional. Não acreditam na propriedade privada, e todos os bens que possuem são partilhados. – Com efeito, assim é. O Fukada andava em busca da sua utopia no sistema de Takashima – afirmou o Professor, com uma expressão muito séria. – Mas é evidente que as utopias não existem neste mundo em que vivemos. Assim como não existe a alquimia nem existe o movimento perpétuo. Se quer a 445/1088
minha opinião, Takashima mais não fazia do que produzir robôs desprovidos de raciocínio. Pegavam nas pessoas e extraíam das suas cabeças os circuitos que lhes permitiam pensar por si mesmos. Tal como acontecia no mundo que George Orwell descreveu no seu romance. Porém, como já deve ter percebido, não são poucos os que procuram voluntariamente esse estado de morte cerebral. Pensando bem, não há dúvida de que tem as suas vantagens, além de tornar a vida mais fácil. Não é preciso torrar os miolos a pensar em coisas complicadas, basta uma pessoa calar-se bem caladinha e fazer o que lhe mandam. Assim, nunca corre o risco de ficar sem comer. Para quem procura esse meio de subsistência, a Academia de Takashima poderia, seguramente, funcionar como uma utopia. «Acontece que o Fukada não era uma pessoa desse género. Gostava de pensar pela sua cabeça e de examinar todos os ângulos 446/1088
da questão. Trata-se de um homem que passou a vida a pôr em prática essa filosofia e cuja profissão consistia nisso. Como tal, era impossível que se sentisse realizado num lugar como Takashima. Aliás, o Fukada sabia-o desde o início, de certeza. Expulso da universidade, arrastara atrás de si um punhado de estudantes temperamentais, e como não tinha para onde ir, escolheu aquele lugar como refúgio temporário. O que ele procurava, mais do que a utopia, era compreender a essência que estava por trás do sistema adotado em Takashima. A primeira coisa consistia em ficar a conhecer as técnicas agrícolas. O Fukada e os estudantes tinham todos sido criados na cidade e sabiam tanto acerca de agricultura como de engenharia aeroespacial. Por isso, havia muito que aprender, entre teoria e prática: sobre dispositivos de irrigação, possibilidades e limitações da economia autossuficiente, regras básicas da vida em 447/1088
comunidade, e por aí fora. Durante os dois anos que viveram em Takashima, absorveram tudo o que puderam, e depois o Fukada abandonou a comuna e partiu, levando com ele a sua fação. – Estava-se bem em Takashima – interveio Fuka-Eri. O Professor sorriu. – Para os mais pequenos, acredito que se estava bem. Agora, quando já se tem uma certa idade e se desenvolveu uma consciência e uma noção de individualidade, a vida em Takashima assemelhava-se a um inferno, uma vez que o desejo natural de pensar por si próprio era esmagado por quem detinha o poder, usando a força. Podemos dizer que era como se nos apertassem os miolos com uma banda, como fazem quando enfaixam os pés dentro dos sapatinhos. O chamado tensoku. – Tensoku – perguntou Fuka-Eri. 448/1088
– Antigamente, na China, às meninas pequenas metiam-lhes os pés à força dentro de uns sapatos minúsculos, para os impedir de crescer – explicou o Professor. Fuka-Eri pôs-se a imaginar a cena, sem dizer nada. O professor continuou a contar a sua história. – O núcleo que resultou da cisão, liderada pelo Fukada, era formado, escusado será dizer, pelos antigos estudantes que o seguiam fielmente, organizados segundo o modelo inspirado na tal Guarda Vermelha, mas, às tantas, juntaram-se outros que também queriam fazer parte do grupo, de modo que a fação cresceu espantosamente e ultrapassou todas as expectativas. Entre eles, não foram poucos os que entraram em Takashima abraçando certos ideais, mas acabaram por ficar desencantados com a experiência. Também havia quem desejasse, acima de tudo, viver numa comuna de hippies, esquerdistas que se sentiam frustrados com a 449/1088
revolta universitária, pessoas fartas da vida mundana que levavam, em busca de um novo mundo espiritual. Havia solteiros e pessoas, como o Fukada, que estavam acompanhadas da família. Aquilo mais parecia uma amálgama algo selvagem e caleidoscópica de gente, no meio da qual o Fukada desempenhava o papel de líder: um líder nato, por sinal. Como Moisés, que guiou o Povo de Israel. Era inteligente, tinha lábia e destacava-se pela sua capacidade de tomar decisões. Possuía ainda um grande carisma, a par de uma compleição robusta. Vendo bem, devia ser mais ou menos como o Tengo, agora que penso nisso. As pessoas tinham tendência para o eleger como cabecilha e acatavam as suas decisões. O Professor abriu as mãos a fim de indicar a corpulência do referido indivíduo. Fuka-Eri observou o espaço entre as mãos do Professor e depois olhou para Tengo, mas não disse nada. 450/1088
– O Fukada e eu éramos muito diferentes, tanto no que respeitava à maneira de ser como à nossa aparência. Apesar disso, fomos grandes amigos. Reconhecíamos as qualidades um do outro e existia entre nós um clima de confiança mútua. Não exagero se afirmar que foi o melhor amigo que tive em toda a minha vida.
O grupo liderado por Tamotsu Fukada encontrou, no meio das montanhas da prefeitura de Yamanashi, uma aldeia que se adaptava aos seus planos. Era um local praticamente despovoado, onde os velhos que ficaram para trás, sem ninguém que os substituísse na lavoura, haviam deixado de poder trabalhar nos campos. O grupo adquiriu as terras e as habitações por tuta-emeia, incluindo as estufas. A administração local ofereceu-lhes um subsídio, na condição de retomarem o cultivo dos terrenos agrícolas e continuarem a trabalhar a terra. Pelo menos durante os primeiros anos,
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beneficiaram de vantagens fiscais. Além disso, Fukada contava com uma espécie de fonte de financiamento pessoal, se bem que o Professor Ebisuno não fizesse a mínima ideia de onde vinha o dinheiro. – O Fukada recusava-se a discutir o assunto e nunca revelou a ninguém o segredo acerca da fonte de financiamento. No entanto, a verdade é que a algum sítio foi buscar o dinheiro necessário para pôr de pé a comuna, e não se pode dizer que fosse um pecúlio tão pequeno quanto isso. Com esse capital, adquiriram alfaias agrícolas, compraram material de construção e criaram um fundo de maneio. Eles próprios deitaram mãos à obra, restauraram as casas e construíram um anexo que podia dar abrigo aos trinta membros do grupo. Isto foi em 1974. A nova comuna passou a chamar-se Sakigake, ou seja, Vanguarda. Vanguarda? O nome dizia qualquer coisa a Tengo, mas não conseguia recordar onde é 452/1088
que o tinha ouvido. Sentia-se incapaz de seguir o fio das suas memórias, e isso deixava-o mais irritado do que era costume. O professor continuou a sua história: – O Fukada tinha consciência de que, durante os primeiros anos, até que estivessem adaptados às novas terras, a gestão da comuna seria uma tarefa complicada, mas tudo acabou por correr melhor do que esperavam. Além de terem sido abençoados com o bom tempo, os vizinhos mais próximos também lhes estenderam a mão e deram uma grande ajuda. As pessoas mostravam simpatia pelo Fukada, enquanto líder, atendendo ao traço honesto da sua personalidade, e admiravam a forma como os jovens elementos da Vanguarda suavam as estopinhas e se entregavam com afã à agricultura. Os habitantes locais apareciam amiúde e ofereciam valiosos conselhos. Foi assim que obtiveram conhecimentos práticos sobre como cultivar 453/1088
os campos e aprenderam as técnicas que lhes permitiram viver da terra. «Na Vanguarda, basicamente, colocaram em prática os ensinamentos recebidos em Takashima, mas sem com isso deixarem de introduzir, para certas coisas, os seus próprios recursos. Por exemplo, passaram a utilizar métodos agrícolas exclusivamente biológicos. Decidiram não recorrer a produtos químicos inseticidas e cultivavam verduras só com a ajuda de fertilizantes orgânicos. Deram ainda início a um serviço de venda de alimentos por correspondência dirigido às classes endinheiradas das cidades próximas. Desta maneira, podiam cobrar mais pelo preço unitário dos produtos. Foram pioneiros da chamada «agricultura ecológica», e não há dúvida de que tinham uma boa visão de mercado. Como muitos dos seus membros haviam sido criados nos meios urbanos, sabiam perfeitamente do que a gente da cidade andava à procura. Desde 454/1088
que as hortaliças fossem saborosas, frescas e sem produtos químicos, essas pessoas estariam dispostas a pagar bem. Assinaram um contrato com os distribuidores, simplificaram a distribuição e criaram um sistema que lhes permitia entregar com grande rapidez os alimentos na cidade. Foram os primeiros a transformar «as verduras naturais apanhadas da terra» em artigos para venda.
– Visitei várias vezes a quinta do Fukada e falei com ele – continuou o Professor a contar. – Parecia bastante entusiasmado por se encontrar num ambiente novo, onde podia experimentar novas possibilidades. Aquela deve ter sido a época mais tranquila da sua existência, e a mais cheia de esperança. A família dele também parecia ter-se adaptado bem a essa nova vida. «Aumentava o número de pessoas que, ouvindo falar da Vanguarda, ali chegavam com o desejo de participar. Através do serviço de
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venda por correspondência, aquele nome tornou-se conhecido nos meios de comunicação social e apareceu como um modelo bem-sucedido de comuna. Na sociedade da altura, não eram poucos os que estavam desertos por fugir do mundo real, dominado pelo dinheiro e pela informação, e ganhar o pão com o suor do rosto. A Vanguarda tinha todas as condições para apelar a esse estrato. Sempre que aparecia algum candidato, era entrevistado, examinavam à lupa os seus antecedentes e, se essa pessoa se revelasse útil, aceitavam-na no grupo. Não podiam dar-se ao luxo de admitir toda a gente, uma vez que era preciso, a um tempo, manter elevado o nível de qualidade e a moral dos seus membros. Procuravam elementos com conhecimentos de técnicas agrícolas e candidatos saudáveis, capazes de aguentar um regime duro imposto pelo trabalho físico. Homens e mulheres estavam ali mais ou menos na mesma proporção: também elas eram 456/1088
bem-vindas. Se o número de pessoas aumentava, isso significava que a herdade aumentaria de tamanho e de importância; porém, como ainda havia umas quantas casas e terras de cultivo por vender nos arredores, aumentar as instalações não representava um problema. De início, o núcleo dos membros da organização era composto, na sua maioria, por jovens solteiros, mas, pouco a pouco, aumentou o número de famílias que se juntaram a eles. Entre os que passaram a integrar o projeto havia quem tivesse recebido educação superior, e era possível encontrar profissionais das áreas mais nobres, como, por exemplo, médicos, engenheiros e professores. Também esses eram bem recebidos na comuna, uma vez que os conhecimentos especializados que traziam na bagagem se revelavam de grande utilidade. – A comuna adotou o sistema de comunismo primitivo, como em Takashima? – quis saber Tengo. 457/1088
O Professor negou com a cabeça. – Não. O Fukada rejeitava a noção do uso comum dos bens. Em termos políticos, era radical, mas também não deixava de ser um materialista moderado. Aspirava a um comunitarismo mais flexível. Não pretendia construir uma sociedade que se assemelhasse a um formigueiro. A sua fórmula consistia em dividir o conjunto em diversas unidades; dentro de cada unidade, as pessoas levavam uma vida de cooperação, flexível e moderada. Reconheciam a propriedade privada, e a remuneração também era repartida de forma igualitária. No caso de uma pessoa não estar satisfeita com a unidade a que pertencia, podia juntar-se a outra, e era, inclusivamente, livre de abandonar a Vanguarda. Os membros tinham ainda liberdade para comunicar com o exterior, e quase não existia formação ideológica nem se faziam lavagens ao cérebro. Em Takashima, ele aprendera que, graças à implementação de 458/1088
um sistema natural e aberto, como aquele, podia aumentar a produtividade laboral.
Sob a liderança de Fukada, a gestão da herdade da Vanguarda correu bem. A páginas tantas, porém, a comuna dividiu-se em duas fações bem diferenciadas. A cisão revelou-se, por assim dizer, inevitável, a partir do momento em que Fukada instituiu o sistema moderado de unidades. Uma das fações era partidária da luta armada: um grupo de orientação revolucionária constituído, no seu núcleo, por elementos da Guarda Vermelha que Fukada organizara no passado. Aos olhos deles, a vida agrária na comuna funcionava como uma fase preparatória para a revolução. Mantinham-se escondidos, ao mesmo tempo que se dedicavam à agricultura, até chegar a hora de pegar em armas e combater. Era essa a sua postura inquebrantável. A outra fação caraterizava-se por ser moderada, coincidia com a da luta armada na
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defesa do ideário anticapitalista, mas distanciara-se da política e aspirava a uma vida comunitária autossuficiente no meio da natureza. A fação moderada representava a maioria. Os dois grupos eram como a água e o azeite. No que dizia respeito ao trabalho nos campos, que é como quem diz, quando o objetivo que perseguiam era comum, não costumavam surgir problemas, mas, assim que se tratava de decidir a política de gestão de toda a comuna, dividiam-se as opiniões. Muitas vezes, não havia maneira de chegarem a um consenso. Nessas alturas, registavam-se violentas discussões. Sendo assim, a cisão era apenas uma questão de tempo. À medida que os dias passavam, a possibilidade de se adotar uma terceira via tornou-se cada vez mais improvável. Pouco depois, o próprio Fukada viu-se obrigado a ter de escolher entre uma posição e a outra. Por aqueles dias, também ele se dava conta de 460/1088
que, no Japão dos anos setenta, não havia margem, nem era tempo, diga-se de passagem, para levar a cabo uma revolução. Além disso, o que sempre tivera em mente era uma revolução enquanto metáfora, ou enquanto hipótese. Estava convencido de que o exercício daquele pensamento subversivo, antissistema, era indispensável a uma sociedade saudável. No entanto, os estudantes por ele liderados ansiavam por uma revolução a sério, com um verdadeiro banho de sangue. Fukada também tinha as suas responsabilidades no processo, disso não restavam dúvidas. Ao deixar-se arrastar pela situação, contribuíra, com a sua tendência para a efabulação, para criar nas cabeças deles uma série de mitos. Isso não queria dizer que lhes tivesse afirmado, com todas as letras: «A revolução é fantástica!» E foi assim que a Vanguarda se dividiu em duas. A fação moderada permaneceu na aldeia e continuou a ser conhecida pelo 461/1088
nome de Vanguarda, ao passo que a outra, a favor da luta armada, se mudou para uma aldeia despovoada a cerca de cinco quilómetros, onde estabeleceu a sua base para o movimento revolucionário. A família de Fukada, tal como aconteceu com o resto das famílias, optou por alinhar com a Vanguarda. Tratouse de uma separação mais ou menos amigável. Segundo parecia, Fukada conseguiu obter capital necessário para ajudar à construção da outra comuna. Após a separação, as duas herdades mantiveram uma relação superficial, em regime de cooperação aberta. Trocavam o material de que precisavam e, por razões económicas, utilizavam as mesmas vias para escoar os produtos. Se as duas comunas estavam interessadas em sobreviver, tinham de se entreajudar. Passado algum tempo, porém, chegou ao fim o relacionamento entre os membros da velha Vanguarda e as gentes da nova comuna, visto que os seus propósitos se 462/1088
revelavam demasiado diferentes. Contudo, após a separação, Fukada continuou a manter o contacto com os estudantes radicais que em tempos liderara. Era como se sentisse uma grande responsabilidade para com eles, pelo facto de os ter organizado desde a origem do grupo e conduzido até ao interior das montanhas de Yamanashi. Não podia, pura e simplesmente, abandoná-los à sua sorte. Além do mais, a comuna resultante da cisão precisava da fonte de financiamento secreto que Fukada tinha em seu poder.
– Poderia dizer-se que o Fukada se encontrava dividido – disse o Professor. – No fundo, ele não acreditava no ideal romântico de uma revolução, mas, ainda assim, também não podia renegar tudo, de forma categórica. Negar a revolução seria negar o que vivera até aí e reconhecer o seu erro diante de todos. E isso ele não podia fazer. Era demasiado orgulhoso, além de recear o que
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poderia acontecer aos estudantes, caso decidisse retirar-se de cena. É bom não esquecer que o Fukada exercia ainda, naquela fase, um certo controlo sobre todos eles. «Por essa razão, começou a fazer a sua vida num vaivém constante entre a Vanguarda e a comuna dissidente. Por um lado, o Fukada era líder da Vanguarda e, por outro, assumira o papel de conselheiro da comuna em prol da luta armada. Quer isto dizer que uma pessoa que, no fundo, não acreditava na revolução, continuava a pregar as teorias revolucionárias aos outros. Além de se dedicarem à faina agrícola, os membros da comuna recebiam um rigoroso treino militar, bem como formação ideológica. Politicamente, e ao contrário do que aconteceu com o Fukada, o seu pensamento foi-se radicalizando cada vez mais. A comuna adotou um rigoroso secretismo e tornou-se uma organização clandestina, proibindo a entrada de qualquer pessoa estranha nas 464/1088
suas instalações. As forças de segurança pública mantinham-nos debaixo de vigilância moderada, na qualidade de organização potencialmente perigosa que apregoava a insurreição armada. O Professor voltou a centrar a sua atenção nas joelheiras das calças, e só passado um bocado ergueu a cabeça. – A Vanguarda cindiu-se em duas fações em 1976. No ano seguinte, a Eri escapou da Vanguarda e veio para a nossa casa. A partir dessa data, a comuna resultante da cisão passou a chamar-se Akebono, ou Amanhecer. Tengo levantou a cabeça e semicerrou os olhos. – Espere aí – disse ele. Amanhecer. Lembrava-se de ter ouvido aquele nome, sem dúvida. Mas, por qualquer razão, as suas recordações apresentavam-se de forma vaga e desconexa. A única coisa de palpável que tinha para se agarrar eram uns quantos 465/1088
fragmentos dispersos de algo parecido com o real. – Esse tal Amanhecer... não foi um grupo que provocou um incidente grave, ainda não há muito tempo? – Com efeito – respondeu o professor Ebisuno, ao mesmo tempo que observava Tengo com um olhar sério, como até ali não tinha acontecido. – Estamos a falar do famoso Amanhecer, claro está, responsável pelo tiroteio contra as forças policiais, nas montanhas perto do lago Motosu. Um tiroteio. Recordo-me de ter ouvido falar nesta história. Constituiu um incidente grave, até aí lembro-me, mas depois não sou capaz de evocar os pormenores. As circunstâncias do incidente misturam-se na minha cabeça. Quando procurava forçar a memória, parecia que todo o seu corpo estava a ser torcido. Era como se pegassem nele ao meio e desatassem a puxar as duas metades com força, em direções opostas. Sentiu uma dor aguda 466/1088
no cérebro, e o ar à sua volta tornou-se, de repente, mais fino. Os sons perderam intensidade e chegaram até ele numa espécie de surdina, como acontecia quando estava dentro de água. O mais provável era encontrarse à beira de outro dos seus «ataques». – Passa-se alguma coisa? – perguntou o Professor, nitidamente preocupado. A sua voz parecia vir de muito longe. Tengo abanou a cabeça e lá conseguiu articular, num fio de voz: – Estou bem. Isto passa num instante.
25 1 Cauda bifurcada, à letra. (N. das T.)
26 2 No Japão, os táxis têm portas automáticas. (N. das T.)
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AOMAME
O corpo é o santuário do ser humano
Devem contar-se pelos dedos da mão as pessoas capazes de dominar, como Aomame, a arte de dar um pontapé nos testículos. Estudava as diferentes técnicas de bem pontapear com grande minúcia, e não havia um único dia em que não passasse da teoria à prática. O mais importante, quando se visa os testículos, consiste em eliminar todo e qualquer sentimento de hesitação. Há que desferir um ataque súbito e investir ferozmente, sem dar mostras de piedade, procurando atingir as partes mais frágeis do adversário. Como quando Hitler, fazendo tábua
rasa da declaração de neutralidade adotada pela Holanda e pela Bélgica, atacou o ponto fraco da Linha Maginot. Não se deve vacilar. Um segundo de hesitação pode ser fatal. De uma maneira geral, poderíamos dizer que, tirando esse golpe, não existe outra maneira para uma mulher pôr fora de combate um homem maior do que ela, e com mais força, numa luta corpo a corpo. Aomame acreditava piamente nisso. Aqueles atributos eram a zona mais desprotegida desse representante da espécie humana chamado homem, agarrados – pendurados, melhor dizendo – ao seu corpo. Sem esquecer que, na maioria dos casos, não estão resguardados de forma eficaz. Logo, seria uma pena não tirar partido de uma tal vantagem. É óbvio que Aomame, sendo mulher, não podia saber que tipo de dor, em concreto, sentem os homens ao receber um pontapé violento nos testículos. Quando muito, podia imaginar que deve ser uma dor insuportável, 469/1088
a julgar pelas reações e pelas expressões faciais daqueles que por ela foram atingidos nos respetivos tintins. Por mais arcaboiço que eles tivessem, ou por muito duros que fossem, sempre pareceram incapazes de suportar semelhante dor, assim como a enorme perda de dignidade que lhe está associada. – É uma dor tão brutal que parece mesmo que está a abater-se, naquele preciso momento, o fim do mundo. Não se pode comparar o que não tem comparação possível. É diferente de uma simples dor – confidenciara-lhe certo dia um homem, depois de muito pensar, quando Aomame lhe pedira uma explicação. Ela refletiu profundamente naquela analogia. O fim do mundo? – Nesse caso, invertendo os termos, podemos dizer que, quando o mundo estiver para acabar de um momento para o outro, uma pessoa sente como se tivessem acabado 470/1088
de lhe dar um pontapé valente nos testículos? – Como nunca passei pelo fim do mundo, não posso afirmar ao certo, mas deve andar lá perto – replicara o outro, fitando o vazio com uma expressão ausente. – Só sei que se experimenta uma forte sensação de impotência. Fica tudo escuro, é angustiante e não há salvação possível. Depois daquela conversa, calhara Aomame ter visto na televisão A Hora Final, numa emissão durante a noite. Tratava-se de um filme norte-americano produzido e realizado por volta de 196027. Estalara a guerra global entre os Estados Unidos e a União Soviética, o planeta assistia à troca de numerosos mísseis nucleares que se cruzam entre ambos os continentes como uma chuva de peixes voadores no céu. A Terra estava à beira da destruição e os seres humanos iam desaparecendo em quase todas as partes do mundo. Por qualquer razão desconhecida, talvez 471/1088
devido à direção do vento, quem sabe?, as cinzas radioativas da morte não chegam à Austrália, no hemisfério sul, razão pela qual aí ninguém morre disso. No entanto, trata-se apenas de uma questão de tempo. A extinção da raça humana é inevitável. É impossível travá-la, dê lá por onde der. Os sobreviventes aguardam o fim que os espera, sem que nada possam fazer. Cada um passa os últimos dias de vida como pode. O argumento era mais ou menos assim. Um filme negro e triste em que não se vislumbra salvação possível. (Apesar de tudo, ao vê-lo, Aomame convenceu-se de que, no fundo, todos esperamos, com o coração nas mãos, a chegada do fim do mundo.) De qualquer modo, enquanto assistia sozinha ao filme, a meio da noite, Aomame deu por si feliz da vida; finalmente, tinha ficado com uma ideia do que deve sentir um homem ao apanhar um pontapé nos tomates.
Após terminar os estudos de Educação Física na universidade, Aomame trabalhou
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durante quatro anos numa empresa que fabricava bebidas isotónicas e produtos dietéticos. Além disso, fez parte da equipa de softbol feminino da empresa como jogadora principal (a par de lançadora, era a quarta batedora28). A equipa foi obtendo bons resultados e, por mais de uma vez, chegou mesmo a estar entre as oito melhores ao chegar à parte final do campeonato nacional. Porém, um mês após a morte de Tamaki Ōtsuka, Aomame renunciou à equipa, pondo fim à sua carreira como jogadora de softbol. Em boa verdade, deixara de ter qualquer vontade de jogar e de competir, além de que despertara nela a firme vontade de começar uma vida nova. Com a ajuda de uma amiga dos tempos da universidade, mais velha uns anitos, arranjou emprego como instrutora num ginásio, situado no bairro de Hiroo. No health club, Aomame tinha principalmente a seu cargo as classes relacionadas com a tonificação muscular e as artes 473/1088
marciais. Era um ginásio reconhecido e bastante caro, que cobrava elevadas quotas de entrada e uma grande quantidade de taxas na inscrição, e do qual faziam parte membros bastante famosos. Aomame tratou de organizar vários cursos de defesa pessoal para mulheres, o terreno que melhor dominava. Fabricou um manequim de pano, com a forma de um homem corpulento, coseu-lhe uma luva de trabalho preta na zona entre as virilhas, a fazer as vezes dos testículos, e treinava as mulheres incitando-as a darem patadas nessa parte. Para imprimir mais realismo à coisa, havia alturas em que metia duas bolas de squash dentro da luva. O exercício consistia em desferir pontapés rápidos, sem compaixão, uma vez e outra. Para muitas das sócias do ginásio, essa era a parte mais divertida do treino, e a técnica delas melhorava a olhos vistos, mas, entre os outros membros (homens, na sua maioria, nem é preciso dizer), também havia quem 474/1088
franzisse o sobrolho diante daquele cenário. A situação complicou-se de tal modo que as queixas chegaram aos ouvidos da gerência e, como resultado, Aomame foi chamada ao gabinete do diretor, saindo de lá com a ordem expressa de abandonar a prática de pontapear testículos. – Sejamos realistas – protestou ela junto do gerente –, sem um bom pontapé nos testículos é praticamente impossível uma mulher defender-se dos ataques. De um modo geral, os homens são mais encorpados e mais fortes. Um ataque rápido aos testículos é a única arma ao alcance da mulher. Já lá dizia o camarada Mao Zedong: há que encontrar o ponto fraco do inimigo, antever a sua jogada e derrotá-lo centrando o ataque nesse ponto. Trata-se da única oportunidade que as forças de guerrilha têm, a fim de levarem de vencida as tropas regulares. – Como sabe, o nosso é um dos melhores ginásios de luxo da cidade – argumentou o 475/1088
diretor, com uma expressão que traduzia a sua preocupação. – Muitos dos nossos membros são celebridades. Temos de manter a dignidade, sempre e acima de tudo. O que importa é a imagem. Seja qual for o motivo que lhe assiste, e que possa estar na origem desse exercício, não se coaduna com a imagem do nosso estabelecimento ter um grupo de mulheres na flor da idade aos pontapés nas virilhas de um boneco, berrando que nem umas desvairadas. Pessoas houve que visitaram as nossas instalações e manifestaram vontade de se inscrever, mas que, ao assistir à sua aula, acabaram por desistir. Éme indiferente o que têm a dizer sobre o assunto Mao Zedong, ou Gengis Kahn, para o caso tanto faz! Fica avisada: nos homens, esse espetáculo tem o condão de provocar irritação, desagrado e angústia. A Aomame não lhe causava a mínima beliscadura na consciência o facto de os membros masculinos do ginásio se sentirem 476/1088
irritados, vexados e angustiados diante daquele tipo de cena. Comparado com a dor que experimentava uma mulher vítima de violação, o que era aquilo? Contudo, não podia desafiar as ordens do seu superior hierárquico. Como tal, viu-se obrigada a baixar o nível de agressividade nas suas aulas de defesa pessoal. Também lhe proibiriam o uso do boneco. Em resultado disso, os exercícios abrandaram de ritmo e o treino passou a ser bastante mais formal. Aomame era a primeira a ressentir-se de tal situação, e fizeram-se ouvir vozes de protesto por parte de algumas representantes do sexo feminino, mas, na qualidade de funcionária do ginásio, não havia nada que ela pudesse fazer a esse respeito. Na opinião de Aomame, se uma mulher não fosse capaz de desferir um pontapé valente nos tomates de um tipo ao ser atacada por ele, pouco mais poderia fazer. Era praticamente impossível safar-se, no 477/1088
meio de um combate a sério, recorrendo à técnica sofisticada que consistia em agarrar o adversário pelo braço e torcê-lo atrás das costas. Isso só acontecia nos filmes; na vida real era diferente. Em vez de tentar esse estratagema, o melhor que a mulher tinha a fazer era procurar fugir sem dar luta. Em todo o caso, para o que desse e viesse, Aomame conhecia uns dez métodos para atacar homens nos testículos. Chegara ao ponto de praticar com companheiros seus dos tempos da faculdade, depois de devidamente equipados com um protetor na zona das virilhas. «Um pontapé teu nos colhões faz doer que eu sei lá, mesmo com a proteção posta», gritou um deles. «Por favor, dá-me tréguas e deixa-me ir embora daqui!» Caso fosse necessário, ela não hesitaria, nem por um instante, em aplicar as sofisticadas técnicas de combate que apurara. Se aparecer à minha frente algum tipo suficientemente louco que tenha a ousadia de 478/1088
me atacar, vai ficar a saber o que é o fim do mundo, ai isso vai. Podem crer que o convidarei para receber de olhos bem abertos a chegada do Reino dos Céus. Faço tenções de o enviar direitinho para o hemisfério sul, e só espero que fique soterrado debaixo das cinzas radioativas, juntamente com os cangurus e os wallabies.
Matutava Aomame sobre a chegada do Reino dos Céus, sentada ao balcão de um bar, enquanto bebia pequenos goles do seu Tom Collins. Fingia que estava à espera de uma pessoa, por isso, volta e meia, dava uma espreitadela ao relógio de pulso, mas, na realidade, estava farta de saber que não ia aparecer ninguém. Interessava-lhe apenas deitar o olho à clientela que frequentava aquele local, para ver se encontrava um homem à maneira. O relógio marcava oito e meia da noite. Aomame vestia uma blusa azul-clara, debaixo de um casaco castanhoescuro Calvin Klein, e uma minissaia azul
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marinho. Naquele dia, deixara ficar o picador de gelo em casa, a descansar em paz dentro de uma gaveta da cómoda, muito bem enroladinho numa toalha. O estabelecimento comercial ficava situado em Roppongi e era conhecido por ser um bar de solteiros. Numerosos homens, muitos deles estrangeiros, apareciam por ali em busca de mulheres solteiras – e vice-versa. A decoração interior parecia evocar os bares que Hemingway costumava frequentar nas Baamas. Havia um peixe-espada encastrado na parede e do teto pendiam redes de pesca. Via-se uma grande quantidade de fotografias, deixadas como recordação, de pessoas que posavam para a objetiva exibindo peixes enormes, sem esquecer um retrato de Hemingway, por sinal, um jovial «papá» Hemingway. A fauna que frequentava aquele local não parecia dar grande importância ao facto de o escritor se ter suicidado com uma 480/1088
espingarda de caça, após passar os últimos anos da sua vida atormentado pelo álcool. Como de costume, foram vários os homens que nessa noite abordaram Aomame. Nenhum deles lhe agradou. Um par de estudantes com pinta de boémios convidaram-na para tomar um copo, mas nem sequer lhes deu troco. A um homem dos seus trinta e poucos anos, o típico funcionário público, que lhe apareceu à frente de olhar turvo, despediu-o secamente dizendo que estava à espera de companhia. De um modo geral, os jovens não a entusiasmavam. Mostravam-se arrogantes e, apesar de terem autoconfiança para dar e vender, sobravam-lhes poucos temas de conversa, e mesmo esses tornavam-se aborrecidos ao fim de pouco tempo. Na cama, comportavam-se como animais selvagens e não sabiam o que era o verdadeiro prazer sexual. Preferia os homens maduros, um tudo-nada entrados e, se possível, com sinais 481/1088
de calvície. A somar a isto, de preferência, que não fossem vulgares e tivessem bons hábitos de higiene. Também deveriam exibir uma cabeça bonita. No entanto, homens com estas caraterísticas não eram propriamente fáceis de encontrar. O que a obrigava a fazer, à partida, algumas cedências. Depois de olhar à sua volta, Aomame suspirou em silêncio. Por que motivo não se conseguia encontrar «homens decentes» neste mundo? Pensou em Sean Connery. Só de imaginar o formato da sua cabeça, começou logo a sentir um latejar surdo no mais fundo das entranhas. Se agora, de repente, me aparecesse à frente o Sean Connery, faria os possíveis e os impossíveis para o ter. Bom, escuso de me pôr para aqui com coisas, que o Sean Connery nunca iria mostrar a cara num bar decorado em falso estilo baamiano para tipos solteiros. 482/1088
Num televisor de ecrã gigante instalado no local passavam imagens dos Queen. Aomame não era grande fã da música dos Queen. Assim, esforçou-se por desviar os olhos e por não ouvir a música que saía através das colunas. Quando o videoclipe dos Queen chegou ao fim, foi a vez de os Abba entrarem em cena. Oh, não..., murmurou Aomame para consigo. Alguma coisa lhe dizia que a noite ia ser um desastre. * * * Aomame travou conhecimento com a viúva – a dona da Casa dos Salgueiros – no ginásio onde trabalhava. A anciã frequentara as radicais sessões de treino de defesa pessoal orientadas por Aomame, sessões efémeras, contudo, e consistindo, em grande parte, no ataque ao tal manequim de pano. Tratava-se de uma mulher de estatura meã, a mais velha da aula; os seus movimentos, porém, eram ágeis, e o pontapé certeiro. 483/1088
Aomame estava convencida de que, na hora da verdade, a mulher seria capaz de pontapear o seu adversário nas partes baixas sem a mínima hesitação. Nunca falava mais do que o necessário nem se punha com rodeios. Eram qualidades que Aomame apreciava na velha senhora. – Quando se chega à minha idade, já não é preciso recorrer especialmente à autodefesa – confessou ela a Aomame, no final da aula, com um sorriso distinto. – Não é uma questão de idade – retorquiu Aomame, toda despachada. – O que está em causa é a maneira como se vive. Acima de tudo, importa que uma pessoa tenha sempre presente a vontade de se proteger, um instinto fatal. Nunca chegaremos a lado nenhum se baixarmos os braços e deixarmos que nos ataquem. O sentimento crónico de impotência acaba por corroer o ser humano por dentro. 484/1088
A velha senhora ficou calada durante algum tempo, enquanto olhava de frente para Aomame. As palavras que a outra pronunciara pareciam ter-lhe causado uma forte impressão, ou se calhar tinha sido o tom de voz com que as dissera. Passado um bocado, assentiu com uma expressão grave. – O que dizes está certo. Tens toda a razão – afirmou a viúva. – Vê-se que tens os pés bem assentes no chão. Uns dias mais tarde, Aomame recebeu um envelope. Alguém lho deixara ficar na receção do ginásio. Dentro do envelope havia uma breve carta, escrita à mão numa caligrafia elegante, com a morada e o número de telefone da anciã. «Sei que, provavelmente, deves estar muito ocupada», lia-se no bilhetinho, «mas agradecia que entrasses em contacto comigo quando tiveres algum tempo livre.» Um homem, que devia ser o secretário, atendeu o telefone. Quando Aomame lhe 485/1088
disse o seu nome, ele passou a chamada para uma extensão sem fazer perguntas. A velha senhora apareceu em linha e agradeceu por lhe ter ligado. – Se não for muita maçada, gostaria de te convidar para irmos comer fora a qualquer lado. Preciso de falar contigo sobre um assunto pessoal, com calma – disse-lhe ela. Aomame respondeu que iria, encantada da vida. – Que tal amanhã à noite? – perguntou a anciã. Aomame não viu qualquer inconveniente. Só estranhou uma coisa. Que assunto quererá uma senhora tão janota discutir comigo?, perguntou a si mesma. As duas jantaram num pequeno restaurante francês que ficava situado numa zona tranquila de Azabu. Tudo indicava que a velha senhora era uma cliente habitual do estabelecimento. Levaram-nas para uma mesa excelente ao fundo do restaurante e foram atendidas por um empregado 486/1088
experimentado, com um serviço muito atento, que devia ser o que de costume a atendia. A viúva levava um bonito vestido liso, verde-claro, e a qualidade, tanto do tecido como da confeção, era primorosa (talvez um modelo Givenchy dos anos sessenta), para além de usar um colar de jade. A meio do jantar, o gerente apareceu junto da mesa e saudou-a com todo o respeito. Na ementa havia numerosos pratos vegetarianos de sabor simples e delicado. Por coincidência, a sopa especial do dia era de ervilhas, numa espécie de homenagem a Aomame. A velha senhora bebeu apenas um copo de Chablis, e Aomame fez-lhe companhia. Era um vinho requintado e muito delicado, que acompanhava a refeição às mil maravilhas. Aomame pediu peixe grelhado. A velha senhora preferiu um prato só com verduras. Comia de uma maneira bonita, esteticamente elegante, e olhar para ela era como estar diante de uma obra de arte. 487/1088
– Quando se chega à minha idade, contentamo-nos com muito pouco – assegurou ela. – Desde que sejam produtos de primeira qualidade – acrescentou, meio a sério, meio a brincar. A anciã pretendia que Aomame passasse a ser a sua treinadora pessoal. Perguntou se ela lhe podia dar aulas de artes marciais, em casa dela, duas ou três vezes por semana. Se possível, também gostaria que Aomame a ajudasse a fazer estiramentos musculares. – Claro que é possível – respondeu Aomame. – Se bem que a parte respeitante ao treino pessoal em casa tenha de passar pela secretaria do ginásio. – Não há qualquer problema – disse a senhora –, mas, se não te importas, prefiro que sejamos nós as duas a combinar o horário diretamente. É uma maneira de evitar que haja outras pessoas envolvidas e que as coisas se compliquem. De acordo? – Não podia estar mais de acordo. 488/1088
– Nesse caso, as sessões têm início a partir da semana que vem – disse a velha senhora. E os negócios ficaram por aí. A seguir, acrescentou: – No outro dia, quando falei contigo, fiquei impressionada com o que disseste acerca do sentimento de impotência. Qualquer coisa sobre isso nos prejudicar, e muito. Lembras-te? – Sim, lembro-me – respondeu Aomame, fazendo que sim com a cabeça. – Posso perguntar-te uma coisa? Uma pergunta muito direta, a fim de poupar tempo. – Pergunte o que quiser – disse Aomame. – És feminista? Ou lésbica? Aomame corou um bocadinho e abanou a cabeça. – Que eu saiba, não. Tenho ideias bastante pessoais acerca desses assuntos, mas não sou nem feminista nem lésbica. – Muito bem – retorquiu a velha senhora. Depois, parecendo mais aliviada, levou os 489/1088
brócolos à boca, mastigou-os com grande elegância e saboreou um golinho de vinho. A seguir, continuou a fazer as honras da conversa. – Confesso que não me ralaria nada se fosses feminista ou lésbica. Não teria qualquer influência. Porém, atrevo-me a dizer que, pelo facto de não o seres, as coisas tornam-se mais fáceis. Entendes o que quero dizer? – Creio que sim – disse Aomame. * * * Aomame passou a ir lá a casa duas vezes por semana, a fim de iniciar a anciã na prática das artes marciais. Havia uma sala ampla forrada de espelhos, que a dona da mansão mandara construir para a filha praticar ballet quando era pequena. Era naquele espaço que exercitavam cuidadosamente o corpo, de uma forma metódica. Para a idade que tinha, a velha senhora dava mostras de grande flexibilidade, e não tardou a experimentar 490/1088
rápidos progressos. Ainda que possuísse uma constituição frágil, Aomame reparou que ela soubera manter o corpo bem conservado ao longo dos anos. Na sua qualidade de treinadora pessoal, também lhe ensinou as noções básicas de trabalho ao nível dos estiramentos e deu-lhe massagens para relaxar os músculos. Aomame era muito boa na parte das massagens musculares. Quando andava a estudar Educação Física na universidade, ninguém tinha melhores notas do que ela nessa matéria. Parecia que os nomes de cada um dos ossos e dos músculos do corpo humano estavam gravados na sua cabeça. Conhecia as funções e as propriedades dos músculos todos, e sabia o que fazer para os manter fortes e tonificados. Na sua opinião, o corpo era um santuário, e movia-a a firme convicção de que, enquanto tal, o ser humano devia mantê-lo em forma, que é como 491/1088
quem diz, limpo e belo, independentemente do que nele fosse consagrado. Não contente com a medicina desportiva em geral, e levada por um mero interesse pessoal, Aomame aprendeu técnicas de acupuntura, tendo estudado a fundo com um professor chinês durante anos a fio. Impressionado com a rapidez dos progressos que ela revelava, o seu mestre foi o primeiro a recomendar-lhe que se dedicasse profissionalmente à acupuntura. Aomame tinha boa memória e possuía um incansável espírito investigador para os pormenores respeitantes às funções do corpo humano. Acima de tudo, porém, os seus dedos eram dotados de uma delicadíssima sensibilidade, chegando esta a revelar-se assustadoramente próxima de um sexto sentido. Tal como certas pessoas possuem um bom ouvido ou a capacidade para encontrar veios de água subterrâneos, Aomame conseguia distinguir, através das pontas dos dedos, a existência de um ponto 492/1088
crucial capaz de controlar todas as funções corporais. Não era uma coisa que alguém lhe tivesse ensinado. Era, pura e simplesmente, um dom inato, a que podia chamar seu. Passado pouco tempo, Aomame e a velha senhora começaram a prolongar a sessão de treino e massagem com uma conversa à volta de um chá. Tamaru costumava trazer-lhes os utensílios para preparar o chá numa bandeja de prata. Durante o primeiro mês, Tamaru nunca abriu a boca diante de Aomame, até que esta se sentiu na necessidade de perguntar à anciã se aquele homem era mudo. Um dia, a velha senhora quisera saber se Aomame alguma vez, em autodefesa, pusera em prática o tal pontapé nos testículos. – Apenas numa ocasião – respondeu Aomame. – Funcionou? – perguntou a senhora. – Teve o efeito pretendido – retorquiu Aomame, à cautela e em poucas palavras. – Pensas que resultaria com o Tamaru? 493/1088
Aomame negou com a cabeça. – Provavelmente, não. O Tamaru já sabe do que a casa gasta. Se a outra pessoa tiver conhecimentos na matéria e antecipar os nossos movimentos, não há hipótese. O pontapé nas partes baixas só resulta em amadores que não estejam habituados a verdadeiros combates. – Reconheces então, por outras palavras, que ele não é um amador? – Como é que hei de dizer? – Aomame escolheu as palavras com todo o cuidado. – O Tamaru tem uma presença especial, vê-se que é diferente do resto das pessoas. A velha senhora deitou leite na chávena e mexeu o chá com a colher, lentamente. – Parto do princípio de que o homem que levou o pontapé dado por ti era um amador, nesse caso. Um homem alto, já agora? Aomame assentiu, mas não disse nada. O homem era alto e robusto. Não deixava, no entanto, de ser arrogante, e baixara a guarda 494/1088
ao ver que tinha pela frente uma mulher. Até àquele momento, nunca uma mulher lhe dera um pontapé nos tomates, e nunca ele imaginara sequer que tal pudesse acontecerlhe. – Chegaste a magoá-lo? – perguntou a velha senhora. – Não, não cheguei a magoá-lo. Só sentiu uma dor descomunal durante um certo tempo. A anciã permaneceu calada por instantes. A seguir, fez mais uma pergunta: – Alguma vez atacaste um homem? Não me refiro a causar-lhe dor, mas a agredi-lo de propósito? – Sim – respondeu Aomame. Contar mentiras não era o seu forte. – E podes contar-me como foi? Aomame negou ao mesmo tempo que fazia um pequeno movimento de cabeça. – Lamento, mas custa-me falar do assunto. 495/1088
– Deixa estar – afirmou a velha senhora. – É normal. Não te quero obrigar a nada. As duas beberam o chá em silêncio, cada uma entretida a pensar em coisas diferentes. Pouco depois, a senhora voltou à carga. – Se algum dia te sentires capaz de falar disso, gostaria que me contasses o que se passou. Achas que será possível? – Talvez um dia seja capaz de contar a história – respondeu Aomame. – Para ser sincera, nem eu própria sei. A viúva olhou de frente para Aomame, antes de dizer: – Não estou a perguntar por mera curiosidade. Aomame permaneceu calada. – Dá-me a sensação de que vives com um peso dentro de ti. Senti isso mal nos conhecemos. Tens um olhar forte, como se estivesses decidida a fazer qualquer coisa. Para dizer a verdade, comigo passa-se uma coisa do mesmo género. Também eu carrego um 496/1088
peso enorme. Por isso, sei do que falo. Não há pressa, mas, um dia destes, deverias libertar-te desse fardo. Verás que sou uma pessoa muito discreta. Comigo, os segredos ficam guardados a sete chaves, além de que, na realidade, disponho de uns quantos recursos à minha disposição. Se calhar, poderia ajudar-te. Com o tempo, quando Aomame confiou por fim o coração à velha senhora, abriu-se uma nova porta na sua vida.
– Olha lá, o que estás a beber? – perguntou alguém ao ouvido de Aomame. A voz pertencia a uma mulher. Aomame levantou a cabeça e olhou para ver quem tinha falado. Uma mulher ainda jovem, com o cabelo apanhado num rabo-decavalo ao estilo dos anos cinquenta, encontrava-se sentada no tamborete ao lado do seu. Trazia um vestido às florinhas e, ao ombro, uma malinha Gucci. Tinha as unhas muito bem arranjadas, pintadas de verniz
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rosa-pálido. Não se podia dizer que fosse gorda, mas era a atirar para o rechonchudo, a começar pela cara, redonda, e a acabar no peito generoso. Aomame olhou para ela, meio desconcertada. Não estava à espera de que uma mulher lhe dirigisse a palavra. Aquele era um bar onde, por tradição, cabia aos homens abordar as mulheres. – Um Tom Collins – disse Aomame. – É bom? – Nada de especial. Mas, como não é muito forte, sempre posso ir dando pequenos goles e faço durar a coisa. – Porque será que lhe chamam «Tom Collins»? – Não faço ideia – respondeu Aomame. – Deve ser o nome do tipo que criou a bebida. Se bem que não me pareça uma invenção do outro mundo. A rapariga agitou a mão para chamar a atenção do barman e, por seu turno, pediu498/1088
lhe também um Tom Collins. Pouco depois, trouxeram-lhe a bebida. – Importas-te que me sente ao teu lado? – perguntou ela. – Claro que não, o lugar está livre. Além disso, disse Aomame para consigo, sem verbalizar a sua observação, já estás aí sentada há um bocado. – Por acaso tens encontro marcado aqui com alguém? – perguntou a mulher. Aomame deixou-se ficar a olhar para a outra e não respondeu logo. Calculou que fosse três ou quatro anos mais nova do que ela. – Escuta, que não te faça mossa, porque eu não tenho essa tendência – sussurrou a mulher, baixinho, como se estivesse a partilhar um segredo. – Digo isto para o caso de estares preocupada. Também eu prefiro homens. Como tu. – Como eu? 499/1088
– Quero dizer, se vieste a um sítio destes, sozinha, é porque andas à procura de homem. Estou enganada? – É isso que dou a entender? A rapariga semicerrou ligeiramente os olhos. – Até aí chego eu. Este sítio serve para isso mesmo. Além do mais, palpita-me que não és uma profissional. – Óbvio que não – retorquiu Aomame. – Se quiseres, podemos formar uma equipa; que me dizes? Parece que os homens têm mais facilidade em abordar duas mulheres juntas que uma só. Vendo bem, para nós, também deve ser melhor estarmos acompanhadas; sempre é mais seguro, não te parece? Ainda por cima, diferentes uma da outra como somos. Eu, um bocado mais feminina, enquanto tu, pelo contrário, tens ar de maria-rapaz. Acho que fazemos uma boa parelha. 500/1088
Maria-rapaz. É a primeira vez que alguém se refere a mim nesses termos. – Uma boa equipa, dizes... E quem te garante que gostamos do mesmo tipo de homens? Sim, as nossas preferências, no que toca a homens, podem ser diferentes. Como é que isso se enquadra na tua noção de «trabalho de equipa»? A outra franziu um pouco os lábios. – Agora que falas nisso... Deixa-me cá ver, o meu gosto em matéria de homens. Hum... E tu, qual é o teu tipo? – Homens de meia-idade, de preferência – respondeu Aomame. – Os muito novos não fazem o meu género. Prefiro os que já começam a ter pouco cabelo. – Uau! Com que então, homens de meiaidade? Pois eu gosto deles jovens, cheios de energia e bonitos. Confesso que os de meiaidade não me dizem muito, mas estou disposta a alinhar contigo e a fazer uma tentativa. É tudo uma questão de experimentar, 501/1088
certo? E que tal os homens maduros? Na cama, bem entendido. – Depende do tipo – respondeu Aomame. – Claro – disse a outra. Logo a seguir, fechou ligeiramente os olhos, como se estivesse a verificar uma teoria qualquer. – Não podemos generalizar quando se trata de sexo, não é verdade? Imagina, no entanto, que os metias todos no mesmo saco... – Não se safam mal. Mais do que uma vez, é difícil. Contudo, não se apressam e aguentam bastante. Quando são bons, fazem com que te venhas várias vezes. A mulher ficou a pensar naquilo, e, às tantas, disse: – Hum, despertaste a minha curiosidade. Se calhar, vou mesmo experimentar. – Como queiras – retorquiu Aomame. – E tu? Já experimentaste uma orgia a quatro? É uma cena em que a meio se troca de parceiro. – Não. 502/1088
– Eu também não. Estarias interessada? – Não me parece – disse Aomame. – Quer dizer, não me importo de formar equipa contigo, mas se a ideia é irmos fazer qualquer coisa juntas, mesmo que seja apenas durante algum tempo, nesse caso, gostaria de te conhecer um pouco melhor. Senão, corremos o risco de a comunicação entre nós falhar lá mais para diante. – Boa ideia – disse a outra. – Então, diz lá o que é que gostarias de saber acerca de mim, por exemplo? A rapariga bebeu um gole do seu Tom Collins e pousou o copo em cima da base. A seguir, limpou a boca, dando pequenos toques com um guardanapo de papel. Depois verificou as marcas de batom no guardanapo. – Não é má esta bebida – afirmou ela. – À base de gim, se não me engano. – Gim, sumo de limão e soda. 503/1088
– Não sendo uma invenção do arco-davelha, até que nem sabe nada mal. – Ainda bem que gostas. – Bom, querias saber ao que me dedico, não é verdade? É um tanto ou quanto complexo. Ainda que te diga a verdade, o mais certo é não acreditares em mim. – Nesse caso, começo eu – disse Aomame. – Sou instrutora num ginásio. Ensino artes marciais, principalmente. E também exercícios de alongamento muscular. – Artes marciais! – repetiu a outra, com uma nota de admiração na voz. – Estilo Bruce Lee? – Sim, uma coisa parecida. – E és boa no que fazes? – Aceitável. A mulher sorriu e levantou o copo para fazer um brinde. – Para que, na hora da verdade, possamos formar uma dupla invencível. Esta que tu aqui vês, diante de ti, já leva muitos anos de 504/1088
prática de aiquidô. Se queres mesmo saber a verdade, sou uma mulher-polícia.
– Mulher-polícia?! – repetiu Aomame, de boca aberta, apesar de não ter dito mais nada. – Trabalho na Polícia Metropolitana. Ninguém diria, pois não? – Não, realmente não. – Pois olha que é verdade. A sério. Chamome Ayumi. – E eu chamo-me Aomame. – Aomame. É o teu verdadeiro nome? Aomame assentiu com um gesto solene. – Uma agente da polícia, daquelas que usam uniforme e pistola, que se deslocam num carro de polícia e patrulham as ruas? – Era precisamente o que eu gostaria de andar a fazer. Pelo menos, foi por essa razão que entrei para lá. No entanto, não me deixam fazer nada disso – queixou-se Ayumi. Ao dizer aquilo, pegou numa mão-cheia de pretzels em miniatura que havia numa
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tacinha e desatou a mordiscá-los ruidosamente. – De momento, a minha tarefa consiste em usar um uniforme ridículo e passar o dia enfiada num carro-patrulha minúsculo, que pouco mais potência tem do que uma lambreta, a passar multas de estacionamento. Nem sequer me deixam andar armada, porque, como é óbvio, não vou precisar de uma pistola para disparar um tiro de advertência a um cidadão normal que tenha estacionado o seu Toyota Corolla diante de uma boca de incêndio. Obtive excelentes notas nas aulas de tiro, mas ninguém quer saber disso para nada. Pelo simples facto de ser mulher, põem-me todos os dias a dar voltas e mais voltas à cidade, a tomar nota das horas e dos números das matrículas no asfalto com um bocado de giz que levo preso na extremidade de uma vara. – Pistola? Referes-te a uma Beretta semiautomática? 506/1088
– Sim, porque agora mudámos para a Beretta. Para mim, é demasiado pesada. Quando está carregada, deve pesar quase um quilo. – A Beretta pesa oitocentos e cinquenta gramas – referiu Aomame. Ayumi olhou para Aomame como quem, numa casa de penhores, avalia um relógio de pulso acabado de lhe ir parar às mãos. – Como é que se explica que estejas tão bem informada, Aomame? – Sempre me interessei imenso por armas de fogo – confessou Aomame. – Isto apesar de nunca ter disparado uma em toda a minha vida. – A sério?! – exclamou Ayumi, parecendo convencida. – Para dizer a verdade, gosto de dar os meus tirinhos. Ainda que a Beretta seja pesada, o coice provocado pelo disparo não é tão brusco como o do modelo antigo. Só praticando é que nós, que somos mulheres e temos menos corpo para isso, conseguimos pegar na arma e usá-la sem grande 507/1088
dificuldade. Acontece, porém, que os mandachuvas da polícia não são dessa opinião. Defendem que uma mulher não pode manusear armas de fogo. Os altos cargos estão todos ocupados por fascistas e chauvinistas de primeira. Pela parte que me toca, obtive excelentes notas no manejo do cassetete, pelo menos tão boas como a maioria dos homens. Pensas que deram algum valor a isso? A única coisa que lhes oiço dizer são piadas com segundo sentido, tipo: «Sabes manusear o cassetete como ninguém... Quando precisares de praticar, não tenhas problemas, é só avisar, estou à tua inteira disposição.» Bocas foleiras do género. No que diz respeito à mentalidade, os cérebros deles não evoluíram nada, andam cento e cinquenta anos atrasados em relação a nós... Dito aquilo, Ayumi sacou de um maço de Virginia Slims da mala, tirou um cigarro, levou-o à boca com um gesto automático e acendeu-o com um pequeno isqueiro 508/1088
banhado a ouro. A seguir, expulsou o fumo devagar, apontando para cima. – Por que razão decidiste ser polícia? – perguntou Aomame. – Nunca foi minha intenção tornar-me polícia. Sabia, isso sim, que não queria ter um trabalho que me amarrasse a uma secretária, e, por outro lado, não possuía nenhuma capacidade especial. Por isso, na prática, as minhas saídas profissionais eram limitadas. No meu último ano de faculdade, fiz o exame de admissão e entrei para a Polícia Municipal. Na minha família sempre houve muitos polícias: o meu pai e o meu irmão mais velho também são agentes. E um dos meus tios também. A polícia é uma sociedade muito fechada, que funciona sobretudo à base de um esquema de favores, o que faz com que se torne mais fácil entrar para a polícia se uma pessoa tiver alguém lá dentro. – A polícia como uma grande família. 509/1088
– Isso mesmo. Mas, até ter entrado para os quadros, não fazia ideia de que fosse um local de trabalho onde houvesse tanta discriminação entre homens e mulheres. Ser mulher-polícia equivale, falando depressa e bem, a ser cidadã de segunda categoria. Só nos dão tarefas burocráticas e desinteressantes: ocupamo-nos das infrações de tráfego, passamos o dia sentadas à secretária, a mexer em papelada, vamos às escolas primárias dar conselhos de segurança aos miúdos, revistamos as mulheres que são suspeitas de ter cometido algum delito... Não podia ser mais fastidioso! Enquanto isso, passam o tempo a enviar homens muitíssimo menos competentes do que eu para os locais de crime, onde as coisas estão, de facto, a acontecer. Do alto dos seus gabinetes, os mandachuvas lá de cima apregoam «a igualdade de sexos» aos sete ventos, mas, na realidade, as coisas não são assim tão lineares. 510/1088
Aomame mostrou-se de acordo. – A sério, fico danada com isto! – Tens namorado, e tal? – perguntou Aomame. Ayumi franziu o sobrolho e cravou os olhos no cigarro fininho que tinha entre os dedos. – Quando uma rapariga escolhe ser agente da polícia, torna-se difícil arranjar namorado. O horário é irregular e não coincide com as horas de trabalho dos assalariados que têm empregos normais, de segunda a sexta. E mesmo quando, de início, tu pensas que as coisas estão a correr bem, basta que digas que és mulher-polícia e os gajos, em geral, começam a recuar e a dar-te para trás. Parecem caranguejos a fugir das ondas à beiramar. Terrível, não achas? Aomame disse que sim com a cabeça, que achava horrível. – Por isso, estás a ver, a única hipótese que me resta é a de me envolver com alguém 511/1088
no local de trabalho, com um senão: a ausência de homens decentes por aquelas bandas. Não passam de um bando de inúteis que só sabem contar piadas brejeiras. Das duas, uma: ou já nasceram estúpidos, ou só pensam na sua promoção. E são estes os homens responsáveis pela segurança da nossa sociedade! Não antevejo um futuro muito brilhante para o Japão. – Uma rapariga tão gira como tu deve ser bastante popular junto dos homens, imagino... – alvitrou Aomame. – Não me posso queixar de ser impopular... pelo menos, desde que não revele qual é a minha profissão. Em locais como este, por exemplo, digo-lhes sempre que trabalho numa seguradora. – Costumas vir aqui muitas vezes? – Não muito; volta e meia – respondeu Ayumi. Depois de pensar um pouco, acrescentou, em tom confessional: – De vez em quando, apetece-me ter sexo. Para chamar as 512/1088
coisas pelo nome, quero um homem. Acontece-me a intervalos regulares, se queres que te diga. Quando me dá na gana, emboneco-me toda, visto uma roupa interior atraente e venho até aqui. Procuro um homem à maneira e passo a noite a foder. Acalma-me o desejo por uns tempos. Tenho um apetite saudável no que toca ao sexo; repara, não sou ninfomaníaca nem tarada sexual, nem nada disso que possas pensar. Sinto-me bem assim que satisfaço o meu desejo sexual, o que não dura muito tempo. Nem me afeta, nem fico demasiado sentimental. No dia seguinte, volto ao trabalho e recomeço a distribuir multas de estacionamento como se nada tivesse acontecido. E tu? Aomame pegou no Tom Collins e bebeu um golinho. – Não sou muito diferente de ti, vendo bem. – Não tens namorado? 513/1088
– Não tenho nem quero ter. Só dão problemas. – Ter um homem é uma chatice, não achas? – Bem podes dizê-lo. – O pior é que, às vezes, dá-me cá uma vontade de fazer aquilo – confessou Ayumi. – Prefiro a expressão que usaste há minutos, «satisfazer o desejo». – E que tal: «gozar uma noite em cheio»? – Também não está mal. – Seja como for, estamos sempre a falar de um caso de uma só noite, sem qualquer compromisso. Aomame concordou com a cabeça. Ayumi apoiou os cotovelos na mesa, encostou o queixo às mãos e deixou-se ficar a cismar naquilo. – Palpita-me que temos muitos pontos em comum. – Assim parece – reconheceu Aomame. 514/1088
Com a diferença de que tu és polícia e eu mato pessoas. Estamos em lados opostos da lei. Da forma como eu vejo as coisas, isso faz toda a diferença. – Vê lá o que achas desta minha proposta – espicaçou Ayumi. – Trabalhamos as duas para a mesma seguradora. O nome da empresa é segredo. Tu és a veterana, que trabalha na firma há mais tempo do que eu. Como hoje tivemos um daqueles dias de expediente difíceis, viemos tomar um copo juntas para afogar os nossos problemas, e agora sentimo-nos com vontade de festejar. Que tal o cenário descrito? – Parece-me bem, tirando o facto de eu não saber nada acerca de seguros. – Deixa isso comigo. Inventar histórias é a minha especialidade. – Nesse caso, entrego o assunto nas tuas mãos – concordou Aomame. – Olha, sentados numa mesa mesmo atrás de nós estão dois homens de meia-idade que 515/1088
não têm feito mais nada senão olhar para aqui com cara de quem nos quer comer. Ora vira-te lá, como quem não quer a coisa, e dáme a tua opinião? Tal como Ayumi lhe pediu, Aomame voltou-se com toda a naturalidade. Os homens encontravam-se sentados a duas mesas de distância delas. Usavam ambos fato e gravata e tinham todo o ar de serem típicos salarymen, que tinham ido até ali para descontrair e beber um copo depois de um dia de trabalho. Os fatos mantinham-se impecáveis, sem um vinco, e as gravatas denotavam bom gosto. Pelo menos, não tinham um aspeto porco. Um deles parecia ter quarenta e muitos anos, ao passo que o outro não devia ter entrado ainda na casa dos trinta. O mais velho era magro, de cara oval e com entradas pronunciadas. O mais novo tinha pinta de antigo jogador de râguebi, nos seus dias de estudante universitário, mas depois devia ter começado a engordar por falta de 516/1088
exercício. Apesar de ainda conservar as feições de um jovem, a zona à volta do queixo engrossara e ganhara alguma gordura. Os dois conversavam animadamente enquanto bebiam um uísque com água lisa, ao mesmo tempo que se entretinham a percorrer com o olhar o interior do bar. Ayumi pôs-se a analisar a dupla. – Na minha opinião, não parecem muito habituados a este tipo de locais. Vieram até cá a fim de passar um bom bocado, mas não sabem como abordar uma mulher. Devem ser casados. Sim, é isso, nota-se que o peso na consciência os atormenta. Aomame ficou espantada com a capacidade de observação de Ayumi. Devia ter captado tudo aquilo sem que ela se desse conta, enquanto estavam as duas à conversa. Se calhar, era o resultado de pertencer a uma família de polícias. 517/1088
– Aomame, o que tem pouco cabelo é mais ao teu gosto, não é verdade? – quis saber Ayumi. – Assim, fico eu com o mais forte, pode ser? Aomame voltou a olhar para trás. A forma da cabeça do homem que tinha menos cabelo não era feia de todo. Estava a anos-luz de Sean Connery, é certo, mas, ainda assim, o cavalheiro passava no teste. Afinal de contas, começara a noite a ouvir os Queen, seguidos dos Abba. Não podia dar-se ao luxo de ser demasiado exigente. – Por mim, estou de acordo – disse Aomame. – E como fazemos para que venham falar connosco? – Uma coisa é certa, não podemos ficar à espera até ao amanhecer! Por isso, vamos nós ter com eles. Todas sorrisinhos, simpatias e, ao mesmo tempo, cheias de energia positiva. – Estás a falar a sério? 518/1088
– Claro que sim. Deixa a coisa comigo. Vou primeiro eu ter com eles e meto conversa. Tu só tens de ficar aqui, à minha espera – explicou Ayumi. Deu um bom gole no Tom Collins e esfregou as mãos com energia. A seguir, colocou a mala Gucci ao ombro e esboçou um sorriso sedutor. – Vamos a isto! Está na hora de dar uso ao cassetete.
27 1 On the Beach, um drama assinado por Stanley Kramer com base no romance de ficção científica de Nevil Shute e tendo nos principais papéis Gregory Peck, Ava Gardner e Fred Astaire. (N. das T.)
28 No basebol e no softbol japonês, os jogadores que batem a bola na quarta posição costumam ser elementos-chave da equipa. (N. das T.)
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TENGO
Venha a nós o Vosso Reino
O Professor voltou-se para Fuka-Eri e disse: – Desculpa incomodar-te, Eri, mas importavas-te de fazer chá para nós? A jovem ergueu-se e saiu da sala de visitas. A porta fechou--se sem barulho nas suas costas. O Professor esperou, calado, que Tengo recuperasse o fôlego e se recompusesse. Entretanto, aproveitou para tirar os óculos com a armação preta, limpou as lentes com um lenço que não parecia estar lá muito limpo e tornou a pô-los. Uma coisa pequena e negra atravessou o céu a toda a velocidade, do
outro lado da janela. Um pássaro, se calhar. Ou talvez o espírito de alguém a ser arrastado até aos confins do mundo. – Peço desculpa – disse Tengo. – Já me sinto bem. Não foi nada. Por favor, continue o que estava a contar. O Professor assentiu e começou a falar. – A comuna Amanhecer desapareceu do mapa após o violento tiroteio ocorrido em 1981, faz agora três anos. O incidente aconteceu quatro anos antes da chegada de FukaEri a esta casa. Mas, por agora, o assunto relacionado com a Amanhecer não vem ao caso. «A Eri tinha dez anos quando começou a viver connosco. A menina que apareceu à porta da nossa casa, sem aviso prévio, mudara em relação à Eri que eu conhecia até essa data. Sempre fora uma miúda calada, que não se abria com desconhecidos. Comigo, porém, tinha confiança desde pequena e costumava falar pelos cotovelos. 521/1088
Contudo, quando aqui veio ter, encontravase num estado tal que não estava em condições de manter uma conversa decente. Parecia ter perdido a fala. Sempre que alguém se dirigia a ela, o mais que conseguia era fazer que sim ou que não com a cabeça, em sinal de concordância ou de recusa. O Professor aumentara o ritmo do seu relato e a sua voz tornara-se mais nítida. Parecia a Tengo que ele se esforçava por imprimir um maior avanço à história, aproveitando o facto de Fuka-Eri ter abandonado a sala. – Chegar até ao cimo desta montanha deve ter sido extremamente penoso para ela. Trazia pouco dinheiro e um papel em que estava anotada a nossa morada, mas é bom não esquecer que fora criada num ambiente isolado e, além disso, mal conseguia dizer duas frases seguidas. Ainda assim, só com aquele papel na mão e utilizando os transportes públicos, conseguiu chegar até à nossa casa. 522/1088
«Soubemos, desde o primeiro minuto, que algo de terrível acontecera com ela. A Azami e a senhora que nos ajuda a tomar conta da casa ocuparam-se dela. Alguns dias mais tarde, quando a Eri começou a dar mostras de estar mais calma, telefonei para a Vanguarda e pedi para falar com o camarada Fukada, tendo-me sido respondido que, naquele momento, ele não podia ir ao telefone. Quando perguntei a que motivo se devia isso, não mo quiseram dizer. Pedi então para me porem em contacto com a sua mulher, ao que me responderam que também ela não podia atender a chamada. Resumindo, não consegui falar com nenhum dos dois. – Disse à pessoa que estava ao telefone que tinha acolhido a Eri em sua casa? O Professor negou com a cabeça. – Não. Pressenti que o melhor seria calarme bem calado, enquanto não pudesse, de viva voz, dizer a verdade, ao próprio Fukada. Claro que, mais tarde, voltei a tentar pôr-me 523/1088
em contacto com ele, por várias vezes. Usei todos os meios à minha disposição, mas sem qualquer resultado. Tengo franziu a testa. – Quer dizer que, ao longo destes sete anos, nunca conseguiu chegar à fala com os pais dela? O Professor fez que não com a cabeça. – Nem uma única vez. Sete anos sem notícias deles. – E, durante todo este tempo, os pais da Eri não fizeram nada para encontrar o paradeiro da filha? – Por mais voltas que dê, é algo que não me entra na cabeça. Para o casal Fukada, nada era mais importante nem mais valioso neste mundo do que a Eri. E se a Eri confiava numa pessoa, junto de quem procurar ajuda, essa pessoa era eu. Tanto o Fukada como a mulher haviam cortado relações com as respetivas famílias, e a Eri cresceu sem chegar a conhecer os avós, tanto de um lado como do 524/1088
outro. Éramos os únicos com quem ela podia contar. Aliás, os pais tinham-lhe dito que, no caso de alguma coisa acontecer, deveria recorrer a nós. No entanto, nunca chegámos a ter notícias da parte deles. Parece mentira. – Não disse, há pouco, que a Vanguarda era uma comuna aberta? – contrapôs Tengo. – Pois disse. Desde a sua criação, a Vanguarda sempre funcionou como uma comuna aberta. Contudo, pouco antes de a Eri ter fugido de lá, a Vanguarda começara a mudar progressivamente a sua política, no que dizia respeito às relações com o exterior. Apercebi-me disso pela primeira vez quando a comunicação com o Fukada passou a chegar até mim cada vez mais espaçada. Ele sempre foi muito amigo de escrever cartas e costumava enviar-me longas missivas, em que dava conta do que acontecia no dia a dia da comuna e me expunha os seus pensamentos e os sentimentos mais íntimos. No entanto, a partir de dada altura, a nossa 525/1088
correspondência foi interrompida, e as minhas cartas ficaram sem resposta. Tentei ligar, mas quase nunca consegui que o chamassem ao telefone. Das poucas vezes que isso aconteceu, a conversa terminava logo a seguir. Devo confessar, de resto, que o meu amigo Fukada falava comigo de uma forma assaz brusca, como se soubesse que alguém o estivesse a escutar às escondidas. O Professor fechou as mãos sobre os joelhos. – Visitei a Vanguarda por mais de uma ocasião. Tinha absoluta necessidade de falar com o Fukada acerca da Eri e, ao verificar que era impossível fazê-lo por telefone ou por carta, não tive outro remédio senão dirigir-me ao local em questão. Acontece, porém, que nunca me deixaram lá entrar. Aliás, que não me deixaram entrar é dizer pouco: ao chegar ao portão, fui sistematicamente expulso da propriedade. Nunca me permitiram vê-lo, por muito que eu 526/1088
insistisse. Mandaram construir uma vedação de arame farpado a toda a volta, isto da noite para o dia, e todas as pessoas estranhas que apareciam por ali em busca da Vanguarda batiam com o nariz na porta. «No exterior, ninguém tinha ideia do que se estava a passar dentro da comuna. Se tivesse sido a fação a favor da luta armada, a Amanhecer, a adotar aquela postura de clandestinidade, eu até teria compreendido. Afinal, planeavam uma revolução através da força das armas. Mas os membros da Vanguarda eram pacíficos, dedicavam-se à agricultura biológica e haviam mantido sempre uma postura cordial no relacionamento com o mundo exterior. Razão pela qual, precisamente, os camponeses locais os viam com bons olhos. No entanto, é preciso dizer que o local se transformara, desde então, numa verdadeira fortaleza. A atitude e a fisionomia dos que habitavam no seu interior haviam mudado profundamente. Os habitantes da 527/1088
região mostravam-se tão desconcertados quanto eu, ao serem confrontados com essa metamorfose operada. Sobretudo, preocupava-me, e muito, o que poderia ter acontecido ao senhor e à senhora Fukada. Desde então, sete anos passaram, sem que a situação se tornasse mais clara. – Nem sequer sabe se o senhor Fukada está vivo? – perguntou Tengo. O Professou negou com a cabeça. – Nem sequer isso. Não possuo uma única pista. Procuro não esperar o pior, mas, em circunstâncias normais, estar sem receber notícias do meu velho amigo Fukada é inconcebível. Vejo--me obrigado a pensar que lhe deve ter acontecido alguma coisa. – Baixou a voz ao chegar àquele ponto da conversa. – Pode ser que estejam retidos à força no interior das instalações. Ou, se calhar, reservaram-lhe um tratamento ainda mais terrível. – Mais terrível? 528/1088
– Quero com isto dizer que não podemos descartar o pior de todos os cenários. A Vanguarda já não é a pacífica comunidade agrícola de outros tempos. – Significa isso que essa organização começou a tomar um rumo perigoso? – Creio que sim. Pelo que me contam os habitantes da região, o número de pessoas que entram e saem da Vanguarda aumentou muito, comparado com o que era costume. Regista--se, inclusivamente, um grande movimento de carros, sempre a entrar e a sair, muitos deles com matrícula de Tóquio. De quando em quando, aparecem grandes limusinas topo de gama, daquelas que é raro ver numa zona rural. Segundo parece, o número de membros da comuna também aumentou de repente. E o mesmo aconteceu com o número de edifícios e instalações, todos equipados de cima a baixo. Fizeram grandes diligências e trataram de comprar os terrenos circundantes a preços baixos, não 529/1088
perdendo tempo a enfiar lá dentro tratores, escavadoras, betoneiras, e o diabo a sete. Continuam a trabalhar no campo, que, de resto, deve ser ainda a fonte de rendimento mais importante. As hortaliças comercializadas pela Vanguarda têm cada vez mais procura, e a comuna envia-as diretamente para os restaurantes que lhes compram as matérias-primas. Também estabeleceram contratos com supermercados de luxo. Calculo que os lucros com a venda dos produtos frescos devam ter aumentado. Ao mesmo tempo, porém, dir-se-ia que deve estar em marcha ali dentro alguma coisa mais, em paralelo, que vai para além da atividade agrícola. Não me parece que seja possível apenas com a venda de produtos do campo obter o capital necessário para financiar essa ampliação em toda a escala. Além disso, toda a gente que vive na região suspeita que, se no interior da Vanguarda estão a levar a cabo algo e o fazem com tanto secretismo, será 530/1088
porque não podem fazê-lo à luz do dia, não o podem revelar à sociedade em geral. – Refere-se ao facto de eles poderem ter retomado a atividade política? – perguntou Tengo. – Duvido que se trate de política – respondeu o Professor, sem hesitar. – A Vanguarda funciona a outro nível, diferente do universo político. Por isso mesmo, num determinado momento, foram obrigados a cortar amarras com o grupo Amanhecer. – Mas, depois disso, passou-se qualquer coisa com a Vanguarda, e a Fuka-Eri teve de escapar-se dali. – Passou-se alguma coisa, com efeito – repetiu o Professor. – Viveu uma experiência traumática, levando-a a abandonar os pais e a fugir pelos seus próprios meios. Contudo, verdade seja dita, a Eri nunca nos contou nada. 531/1088
– Talvez por ter sofrido um grande choque, ao ponto de lhe causar uma ferida que deixou marcas para toda a vida. – Não, a Eri não tem ar de quem sabe o que é receber um choque ou de quem se sente insegura por estar afastada dos pais e ter ficado sozinha. Trata-se apenas de uma criatura impassível. Apesar disso, e é bom que se diga, adaptou-se à vida nesta casa, aqui connosco, sem qualquer problema. Quase com demasiada facilidade, diria eu. O Professor lançou um olhar em direção à porta da sala de visitas. A seguir, tornou a concentrar a sua atenção em Tengo. – Mesmo que lhe tivesse acontecido alguma coisa, não quis forçar as portas do seu coração. Acima de tudo, creio que a jovem precisa de tempo. Por isso, evitei fazer-lhe perguntas e fingi-me despreocupado ao ser confrontado com o seu silêncio. A Eri tem estado sempre com a Azami. Quando a Azami chega a casa, depois das aulas, e enquanto 532/1088
comem qualquer coisa a correr, fecham-se no quarto. O que ali poderão estar a fazer, confesso que não faço ideia. Talvez conversem as duas sobre as coisas delas, vá lá saber--se. Seja como for, nunca interferi nesse ritual e sempre fiz questão de as deixar à vontade. Tirando o facto de ela não falar muito, nunca tivemos qualquer problema na nossa convivência diária. É uma menina inteligente, que sabe escutar os outros. A Azami tornou-se a sua melhor amiga, e as duas são inseparáveis. Naquela época, porém, a Eri não ia às aulas, pois uma criança que não dizia uma palavra não podia ir à escola. – Até então, o senhor e a Azami tinham vivido os dois sozinhos? – A minha esposa faleceu vai para dez anos – disse o Professor, fazendo uma breve pausa. – Teve um acidente de automóvel e morreu no local. Ficámos os dois sozinhos. Uma senhora que é parente afastada e que 533/1088
vive neste bairro dá uma ajuda com as tarefas da casa. Também se ocupa das raparigas. A morte da minha mulher foi um golpe terrível, tanto para a Azami como para mim, até porque aconteceu tudo de repente e não estávamos preparados. Daí que, nessas circunstâncias, a chegada da Eri tenha constituído um motivo de alegria. Mesmo sem podermos entrar em diálogo com ela, o simples facto de a sabermos aqui em casa, na nossa companhia, funcionava como uma espécie de bálsamo, e falo por mim e pela Azami ao dizer isto. No decorrer destes sete anos, a Eri foi recuperando aos poucos a fala, ainda que muito devagar. Comparada com outras pessoas, pode parecer que ela se expressa de uma forma estranha, para não dizer anormal, mas, aos nossos olhos, garanto que ela fez enormes progressos. – A Eri continua a ir à escola? – perguntou Tengo. 534/1088
– Não, agora já não vai. Encontra-se oficialmente inscrita, mas não lhe era possível levar uma vida normal na escola. Portanto, eu e alguns alunos que vêm a casa damos-lhe aulas particulares, quando temos tempo livre. Seja como for, o conhecimento que ela tinha era muito fragmentário, não se podia propriamente chamar àquilo uma educação sistematizada. Como lhe custava ler sozinha, decidimos pegar nos livros e ler-lhos em voz alta; pela minha parte, também lhe passava para as mãos histórias em cassetes. Esta foi toda a educação que lhe pudemos dar. Devo dizer, no entanto, que estamos diante de uma rapariga extraordinariamente inteligente. Tudo o que ela se propõe aprender, aprende-o com uma rapidez incrível, de uma maneira eficaz e profunda. Tem uma capacidade espantosa. Agora, aquilo que não lhe interessa passa-lhe completamente ao lado. A diferença é abissal. 535/1088
A porta da sala de visitas continuava fechada. Pelos vistos, ferver água e servir o chá demorava o seu tempo. – E foi assim que a Eri ditou A Crisálida de Ar à Azami, certo? – perguntou Tengo. – Como disse antes, a Eri e a Azami trancavam-se no quarto todas as noites. Desconheço o que faziam as duas. Lá tinham os seus segredos. A partir de certa altura, contudo, parece que o principal tema de conversa entre elas passou a ser a história narrada pela Eri. A Azami anotava ou gravava tudo o que a Eri lhe contava, e depois passava para o computador que eu tenho no escritório. A partir daí, foi como se a Eri começasse, pouco a pouco, a recuperar a capacidade de experimentar emoções. A apatia que a envolvia por inteiro, como uma membrana, desapareceu. O seu rosto voltou a ter uma certa expressividade, e ela foi-se tornando cada vez mais parecida com a Eri de 536/1088
antigamente, aquela rapariguinha alegre que nós tão bem conhecíamos. – Começou a recuperar a partir daí? – Bom, só em parte. Mas é como diz, a recuperação dela pode muito bem ter começado graças ao facto de contar a sua história. Tengo deixou-se estar a meditar naquilo. A seguir, mudou de assunto. – Alguma vez falou com a polícia sobre a ausência de notícias por parte do casal Fukada? – Claro que sim, entrei em contacto com a polícia local. Sem nunca mencionar a Eri, mas dizendo-lhes que andava desde há muito tempo a tentar pôr-me em contacto com uns amigos que viviam no interior da comuna e que, às tantas, suspeitava que estivessem retidos contra a vontade deles. Porém, naquela altura, a polícia estava de mãos atadas. O terreno onde os membros da Vanguarda estavam instalados era 537/1088
propriedade privada e, sem provas convincentes de um ato criminoso ali cometido, os polícias não podiam colocar um pé lá dentro. Por mais que insistisse, não me deram ouvidos. Além disso, conseguir a abertura de um inquérito, e é bom não esquecer que estamos a falar de 1979, era praticamente impossível. De um momento para o outro, o Professor abanou várias vezes a cabeça, como se tivesse acabado de se lembrar de algo. – Aconteceu alguma coisa em 1979 – perguntou Tengo. – Nesse ano, a Vanguarda obteve a autorização que lhe permitiu passar a funcionar como uma instituição religiosa com personalidade jurídica. Tengo perdeu a fala, antes de repetir: – Instituição religiosa com personalidade jurídica? – Por mais estranho que pareça, é rigorosamente verdade – observou o Professor. 538/1088
– Da noite para o dia, a Vanguarda converteu-se na «Vanguarda, instituição religiosa com personalidade jurídica». O governador da prefeitura de Yamanashi concedeu-lhes uma autorização especial. A partir do momento em que se recebe a designação de instituição religiosa com personalidade jurídica, torna-se mais difícil às forças policiais desencadearem uma investigação no terreno, uma vez que tal representaria uma ameaça ao direito à liberdade religiosa garantida pela Constituição. «Confesso que eu próprio, ao ser informado pela polícia da história da instituição religiosa com personalidade jurídica, fiquei abismado. A princípio, custou-me a acreditar, foi como se me tivessem dado uma bofetada, e, mesmo depois de eles me terem mostrado os documentos relacionados com o assunto e de eu ter comprovado a situação com os meus próprios olhos, continuei a ter dificuldade em admitir a verdade dos factos. 539/1088
A minha amizade com o Fukada vinha de longe. Conhecia-o melhor do que ninguém, conhecia a sua personalidade, a sua forma de ser. Devido ao trabalho que exerço na área da antropologia cultural, não se podia dizer que a minha relação com a religião fosse superficial. Ao contrário de mim, porém, ele era uma criatura política até à medula e regia-se pela lógica e a razão. Pode inclusivamente dizer--se que detestava todas as religiões, sem exceção. Nunca admitiria uma autorização especial a fim de o grupo passar a ser designado uma instituição religiosa com personalidade jurídica, mesmo por motivos estratégicos. – Sendo que essa autorização não devia ser fácil de obter, calculo eu. – Não necessariamente – explicou o Professor. – Claro que se realizam numerosos exames de qualificação e que, como se pode imaginar, é necessário passar por uma série de complicados trâmites burocráticos, mas, 540/1088
puxando os cordelinhos certos nos bastidores políticos, superar esses obstáculos até se revela bastante fácil. A linha que separa o que é uma religião propriamente dita de uma seita sempre foi ambígua. Não existe uma definição precisa, é tudo uma questão de interpretação. E quando se dá margem para a interpretação, há sempre espaço para a intromissão da política e para a influência do poder. Uma vez obtida a autorização da comunidade religiosa com personalidade jurídica, obtêm-se vantagens fiscais e beneficia--se de proteção jurídica. – Em todo o caso, a Vanguarda deixou de ser uma simples comuna agrícola e transformou-se numa organização religiosa. Por sinal, uma organização religiosa terrivelmente hermética. – Numa «nova religião», sim – confirmou o Professor. – Falando bem e claro, numa seita. 541/1088
– Não entendo – disse Tengo. – Deve ter havido um motivo importante para essa viragem ter ocorrido. O Professor contemplou as costas das mãos, onde cresciam numerosos pelos retorcidos e cinzentos. – Tem toda a razão. É evidente que alguma coisa grave terá propiciado semelhante transformação. Há muito que dou voltas à cabeça, em busca de uma resposta. Pensei em várias possibilidades, mas não cheguei a conclusão nenhuma. O que diabo poderia ter acontecido? O certo é que adotaram uma política de total secretismo, que impossibilita apurar qualquer informação acerca do que se passa lá dentro. E não é tudo: o nome do meu amigo e camarada Fukada, que costumava ser o líder da Vanguarda, deixou de ser mencionado em público. – Sem esquecer que, desde o tiroteio, há coisa de três anos, a Amanhecer foi dissolvida – interveio Tengo. 542/1088
O Professor assentiu com a cabeça. – A Vanguarda, que, em boa verdade, eliminou a fação Amanhecer, sobreviveu e, mais do que isso, deu um grande passo para o seu desenvolvimento enquanto organização religiosa. – O que significa que o incidente do tiroteio não representou um grande prejuízo para a Vanguarda, não é assim? – Com efeito – asseverou o Professor. – Pelo contrário, ainda funcionou como propaganda. São uns indivíduos espertos e, como tal, souberam tirar partido da situação. Em todo o caso, a história aconteceu depois de a Eri ter abandonado a Vanguarda. Como lhe disse antes, é um caso que não tem relação direta com ela. Tengo pressentiu que o Professor estava ansioso por mudar de tema. – Leu A Crisálida de Ar? – Claro que sim – respondeu o Professor. 543/1088
– Qual é a sua opinião? – perguntou Tengo – É uma história interessantíssima – respondeu o Professor. – Extraordinariamente sugestiva. Mas, para ser honesto, não compreendo algumas das imagens nem a sugestão nelas contida. Que significa a cabra cega? Qual é o sentido do Povo Pequeno e da própria crisálida de ar? – Não lhe parece que a história possa fazer referência a alguma experiência concreta que a Eri tenha vivido ou testemunhado enquanto esteve na Vanguarda? – Talvez, mas não me é fácil discernir até onde vai a realidade e onde começa a ficção. Pode ler-se o texto como uma espécie de relato mitológico ou como uma engenhosa alegoria. – A Eri disse-me que o Povo Pequeno existe na realidade. Ao escutar aquilo, o Professor franziu a testa e, por momentos, exibiu uma expressão 544/1088
que tinha tanto de pensativo como de preocupado. – A sério, acredita que os acontecimentos descritos na obra A Crisálida de Ar aconteceram na realidade? Tengo negou com a cabeça. – O que pretendo dizer é que a história está narrada de uma forma muito realista e com grande minúcia, o que, para uma obra de ficção, constitui uma grande virtude. – E, ao reescrever a histórias ao seu estilo, usando as suas palavras, seguindo o fio da narrativa, pretende dar uma maior clareza a esse não-sei-quê que a história sugere? É isso? – Se tudo correr bem, claro. – A minha especialidade é a antropologia cultural – voltou a dizer o Professor. – Já não me dedico à investigação, mas ainda me sinto impregnado do espírito da matéria. Um dos objetivos daquela ciência é o de relativizar as imagens particulares que as pessoas 545/1088
possuem e encontrar nelas elementos comuns, universais a todos os seres humanos, a fim de descobrir quais são as repercussões que têm junto dos indivíduos. Assim, talvez seja possível uma pessoa sentir que pertence a algo, sem deixar com isso de ser autónoma. Expliquei-me bem? – Creio que sim. – É possível que seja o mesmo processo que lhe é pedido a si no trabalho que desenvolve. Tengo estendeu as mãos e abriu-as em cima dos joelhos. – Parece um objetivo difícil. – Sim, mas vale a pena tentar. – Nem sequer sei se tenho capacidade para o fazer. O Professor olhou para Tengo de frente. Nos seus olhos brilhava uma luz especial. – O que eu quero saber é se aconteceu alguma coisa à Eri enquanto esteve na Vanguarda. E que destino tiveram o senhor e a 546/1088
senhora Fukada. Durante estes últimos sete anos, fiz o possível e o impossível para esclarecer estas questões, mas, ao fim e ao cabo, não encontrei uma única pista. O muro que encontrei por diante e que bloqueou o meu caminho era sólido e inexpugnável. Quem sabe se a chave para resolver o mistério não se esconderá, porventura, no interior da própria história que dá forma à obra A Crisálida de Ar? Enquanto existir essa possibilidade, por ínfima que seja, faço tenção de a perseguir. Não sei se o Tengo está habilitado para esse trabalho; o que sei é que tem um grande apreço pela obra em questão e está profundamente mergulhado nela. Talvez isto sirva para lhe dar a tal qualificação de que necessita. – Tenho uma coisa para lhe perguntar, em relação à qual gostaria de obter uma resposta clara, um «sim» ou um «não» – atalhou Tengo. – Foi isso que me trouxe hoje aqui. 547/1088
Conto com a sua autorização para reescrever A Crisálida de Ar? O Professor assentiu. Juntando as palavras ao gesto, disse: – Gostaria de ler a sua versão, e sei que a Eri tem grande confiança em si e no seu trabalho. Não existe mais ninguém em quem confie tanto, além da Azami e de mim, como é óbvio. Por isso, deve tentar. Deixo a obra nas suas mãos. Numa palavra, a resposta é «sim». Quando o Professor acabou de falar, instalou-se na sala um silêncio pesado que parecia obra do destino. Nesse preciso instante, Fuka-Eri apareceu com o chá. Parecia ter adivinhado que a conversa entre os dois chegara ao fim.
Tengo percorreu sozinho o caminho de regresso. Fuka-Eri saíra para levar o cão a passear. Chamaram um táxi que transportou Tengo até à estação de Futamatao, a horas de apanhar o comboio seguinte. Depois, em
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Tachikawa, fez transbordo para a linha de Chūō. Na estação de Mitaka, mãe e filha sentaram-se à sua frente. Iam as duas muito bem-apresentadas. A roupa que levavam vestida não era cara nem nova, mas via-se que estava limpa e que cuidavam dela com esmero. As partes brancas eram de um branco imaculado e estavam muito bem passadas a ferro. A filha devia andar no segundo ou no terceiro ano do ensino primário. Era uma menina com grandes olhos e feições bonitas. A mãe, pequena e magra, usava o cabelo apanhado numa espécie de carrapito, tinha uns óculos de armação preta e levava uma mala de pano grosso que já perdera a cor. A mala parecia cheia de tralha. Também ela tinha um rosto bastante bonito, se bem que o contorno dos olhos deixasse transparecer um certo cansaço psicológico que a fazia parecer mais velha do que provavelmente era. Apesar de se estar ainda em meados de 549/1088
abril, levava um guarda-sol. Estava bem enrolado, como uma vara ressequida. Permaneceram as duas caladas durante todo o caminho, sempre sentadas nos lugares marcados. A mãe dava a ideia de estar a congeminar algum plano na sua cabeça. Ao lado, sem nada para fazer, a filha olhava ora para os sapatos, ora para cima, onde se podiam ver os cartazes publicitários, ora olhava de esguelha para Tengo, sentado à sua frente. A corpulência dele, bem como as orelhas enrugadas em forma de couve-flor, pareciam aguçar-lhe a curiosidade. As crianças pequenas tinham o costume de olhar para ele assim, como se observassem um animal raro e inofensivo. A menina mantinha a cabeça muito direita e, sem mexer o corpo, inspecionava tudo e mais alguma coisa em seu redor apenas com o incansável movimento dos olhos. Mãe e filha apearam-se na estação de Ogikubo. Quando o comboio diminuiu a 550/1088
velocidade, a mãe pegou no guarda-sol e, sem dizer nada à filha, levantou-se rapidamente do assento, levando o guarda-sol na mão esquerda e a mala na mão direita; a menina apressou-se a segui-la. Ao pôr-se em pé, lançou um último olhar na direção de Tengo. Nos seus olhos ele vislumbrou uma luz misteriosa, uma espécie de súplica, ou era como se ela lhe pedisse que denunciasse alguma coisa. Ainda que a luz não passasse de um brilho ténue e fugaz, Tengo sentiu que a rapariguinha estava a fazer-lhe sinal. Mesmo sendo verdade, como é óbvio, ele nada podia fazer. Desconhecia a situação, não tinha o direito de se meter no assunto. A menina desceu do comboio com a mãe na estação de Ogikubo, as portas fecharam-se e Tengo seguiu o seu caminho, sem se levantar do assento. No lugar em que a menina estivera sentada instalaram-se três estudantes do secundário. Deviam ter acabado de fazer exame e desataram a falar em voz alta, todos 551/1088
animados, mas a imagem acidental da rapariga silenciosa permaneceu no ar por muito tempo. Aqueles olhos trouxeram à memória de Tengo os olhos de outra menina. Uma jovem que andava na mesma classe que ele, durante o terceiro e o quarto ano, no tempo da escola primária. Também ela costumava olhar para ele assim, observando-o fixamente com aqueles seus olhos. E então... * * * Os pais daquela menina eram membros devotos de uma comunidade religiosa que dava pelo nome de Associação das Testemunhas. Tratava-se de uma seita cristã que profetizava o fim do mundo, pregava fervorosamente o Evangelho e obedecia à letra a tudo o que vinha escrito na Bíblia. Por exemplo, recusavam-se a receber transfusões de sangue; portanto, no caso de um dos devotos sofrer um grave acidente rodoviário, 552/1088
por exemplo, as possibilidades de sobrevivência ficavam reduzidas de forma drástica. Também não deixavam que se realizassem grandes operações cirúrgicas. Por outro lado, quando chegasse o fim do mundo, seriam ser eles os únicos a sobreviver, enquanto povo escolhido por Deus, e viveriam durante milhares de anos num mundo paradisíaco. Aquela menina tinha os mesmos olhos, grandes e bonitos, da pequenita que seguia no comboio. Uns olhos impressionantes. E umas bonitas feições, também, mas o rosto estava coberto por uma espécie de membrana opaca, destinada a apagar todos os indícios da sua presença. Não abria a boca para falar com ninguém, a não ser que fosse absolutamente necessário. Tão-pouco deixava que à sua face aflorassem sentimentos. Os seus lábios finos mantinham-se sempre fechados, formando uma linha perfeita. 553/1088
A primeira coisa que levou Tengo a interessar-se por ela foi o facto de, aos fins de semana, acompanhar a mãe quando esta ia na sua missão evangelizadora. Nas famílias da Associação de Testemunhas, assim que os miúdos davam os primeiros passos, começavam a acompanhar os pais no trabalho de evangelização. Desde os três anos de idade, a menina habituara-se a andar de casa em casa, quase sempre na companhia da mãe, a distribuir uma brochura chamada Antes do Dilúvio, que explicava a doutrina das Testemunhas. A Deus, chamavam-Lhe Jeová. Na maior parte das casas, como seria de esperar, batiam-lhes com a porta na cara. A doutrina que defendiam era demasiado intolerante, em parte; por outro lado, estava demasiado afastada da realidade – ou, pelo menos, tal como era apreendida pela maioria das pessoas. Todavia, muito de vez em quando, havia quem estivesse disposto a escutar o que tinham para dizer. Neste mundo 554/1088
encontra-se gente que procura alguém com quem falar, acerca seja do que for. E, entre aquelas pessoas, também havia, ainda que se contassem pelos dedos da mão, quem se mostrasse disposto a assistir a uma das suas reuniões. Elas percorriam as ruas, tocando às campainhas, em busca dessa pessoa, uma ínfima possibilidade entre mil. A missão sagrada que lhes fora confiada ia no sentido de conseguirem despertar o mundo – mesmo que em número reduzido –, graças aos seus aturados esforços. E quanto mais dura a missão, quanto mais alto o patamar, maior seria a bênção concedida. Quando Tengo a viu, a menina acompanhava a mãe nas suas evangelizações. A mãe levava uma malinha de pano cheia de exemplares de Antes do Dilúvio; na outra mão tinha um guarda--sol. A menina seguia meia dúzia de passos atrás. Sempre com os lábios cerrados, sem expressão. Quando costumava acompanhar o pai nas suas rondas 555/1088
destinadas a cobrar a taxa da NHK, Tengo cruzou-se várias vezes com ela. Tengo reconhecia-a, e ela também o reconhecia. Sempre que isso acontecia, os olhos da rapariga pareciam conter um brilho fugaz. Escusado será dizer que nunca chegaram a trocar uma palavra. O pai de Tengo estava de propósito a aumentar o valor das suas cobranças, enquanto a mãe da rapariga se encontrava demasiado ocupada a anunciar o fim do mundo que se avizinhava. Nesses domingos, arrastados pelos pais, o rapaz e a rapariga apenas se cruzavam de forma apressada nas ruas da cidade e trocavam um breve olhar. Os colegas de turma sabiam que ela era crente das Testemunhas. Por «razões religiosas», não participava nas celebrações natalícias nem tomava parte nas excursões e nas viagens de estudo a templos xintoístas ou budistas. Tão-pouco participava nas competições desportivas, nem juntava a sua às 556/1088
outras vozes nas aulas de canto coral, nem cantava o hino nacional. Esse comportamento, incompreensível aos olhos de muitos, só servia para a isolar cada vez mais dos seus camaradas de escola. Ao meio-dia, antes do almoço que lhe davam no colégio, a jovenzinha tinha de rezar uma oração, sem falta – alto e bom som, para que todos ouvissem bem. Não era de estranhar que aos olhos do resto da turma aquela oração soasse como uma coisa horripilante. Como é evidente, ela não queria fazê-lo à frente dos outros, mas haviam-lhe inculcado que era obrigatório dizer as orações antes das refeições, e não podia descuidar o seu dever só porque os demais crentes não se encontravam ali a ver. Jeová observava tudo – até as coisas mais insignificantes – desde as alturas.
Jeová, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino. Perdoai as nossas ofensas e dai-nos a Vossa
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bênção enquanto prosseguimos o nosso humilde caminho. Ámen.
A memória é uma coisa estranha. Apesar de aquilo ter acontecido há vinte anos, Tengo lembrava-se de tudo na perfeição. Venha a nós o Vosso Reino. De cada vez que escutava a dita oração, ao tempo em que andava na primária, Tengo perguntava a si mesmo que tipo de reino seria aquele. Teria NHK? O mais provável era não ter. Assim sendo, não haveria taxas a cobrar. Logo, quanto mais depressa esse reino chegasse, melhor. Tengo nunca chegara à fala com a rapariga. Apesar de andarem na mesma turma, não tivera, uma única vez, oportunidade de conversar com ela. Andava sempre sozinha, afastada dos outros, e não se dirigia a ninguém, a não ser que fosse necessário. O ambiente na sala de aulas não era o mais propício para ir ter com a menina e meter conversa. No seu íntimo, porém, Tengo simpatizava com ela. Se mais não fora, tinham em
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comum o facto de, nos dias de descanso, serem obrigados a acompanhar os pais, de porta em porta. Apesar das diferenças entre a evangelização e a atividade de cobrar quotas, Tengo sabia até que ponto uma criança podia ficar ferida nos seus sentimentos sendo obrigada a desempenhar esse papel. Aos domingos, as crianças deviam ser livres de brincar à vontade umas com as outras, e não terem de andar a tocar às campainhas para cobrar dinheiro, ou a assustar as pessoas com cenários de um temível fim do mundo. Semelhante tarefa – se é que há necessidade dela – deveria ser desempenhada pelos adultos.
Uma única vez, devido a certas circunstâncias, Tengo teve ocasião de estender a mão à menina. Aconteceu no outono, no quarto ano da primária. Durante a aula de Ciências, a companheira que estava sentada ao lado dela no laboratório atirou-lhe à cara palavras muito duras, por ela ter metido os pés pelas
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mãos no decorrer de uma experiência de química. Tengo já não se lembrava de qual tinha sido o erro cometido. Nesse momento, um companheiro de turma aproveitou para troçar dela pelo facto de andar a pregar o Evangelho das Testemunhas e, dizia ele, por «andar de casa em casa a entregar brochuras estúpidas». Como se fosse pouco, pôs-se a dizer: «Jeová, Jeová!» Tudo aquilo não deixara de ser muito estranho, visto que, normalmente, em vez de a insultarem ou fazerem troça dela, tratavam-na como se não existisse. Nas chamadas atividades de grupo, porém, não tinham outro remédio senão incluí-la. As palavras que lhe atiraram à cara tiveram um efeito semelhante a dardos envenenados. Tengo estava na mesa ao lado, mas não foi capaz de fingir que não era nada com ele. Ainda que não soubesse explicar bem porquê, não podia deixar as coisas com estavam. 560/1088
Foi ter com ela e disse-lhe que passasse para o seu grupo. Fê-lo levado por um impulso, quase num gesto reflexo, sem hesitar. A seguir, explicou em pormenor à rapariga os passos essenciais da experiência. Ela escutou com atenção o que Tengo dizia, assimilou tudo e não voltou a cometer o mesmo erro. Nos dois anos em que estiveram juntos na mesma classe, foi a primeira (e última) vez que falou com ela. Tengo tirava boas notas, era corpulento e forte. Todos o respeitavam. Por isso, ninguém troçou dele pelo facto de a ter protegido – pelo menos à sua frente. Todavia, a consideração e a estima que o resto da classe tinha por Tengo pareceram diminuir um nadinha. Como se, ao tomar o partido daquela rapariga, ele tivesse ficado contaminado com um pouco da sua impureza. Tengo nunca deixou que isso lhe causasse mossa. Sabia que ela era uma rapariga cem por cento normal. Depois daquela cena, 561/1088
Tengo e a menina não voltaram a falar um com o outro. Não tiveram necessidade, nem houve ocasião para tal. Porém, sempre que os seus olhares se cruzavam por acaso, a cara dela deixava transparecer sinais de nervosismo. Tengo dava-se conta disso. Se calhar, ressentia-se por ele se ter dirigido à sua pessoa, aquando da famigerada experiência de ciências. Talvez isso a irritasse e, no fundo, tivesse preferido que ele a deixasse sossegada. Tengo não era capaz de formar uma ideia precisa a esse respeito. Afinal de contas, era ainda um rapazinho e não estava habilitado a ler na cara dos outros os traços das suas variações psicológicas. Então, um belo dia, a menina agarrou na mão de Tengo. Era uma tarde de sol, nos primeiros dias de dezembro. Do outro lado da janela, o céu estava límpido e via-se uma nuvem branca e plana. Por mera coincidência, depois da limpeza da sala de aulas, ela e Tengo haviam ficado sozinhos. Não havia 562/1088
mais ninguém. Em passo ligeiro, como se estivesse decidida a qualquer coisa, ela atravessou a sala em direção a Tengo. Sem hesitar, agarrou na mão dele, ergueu os olhos e olhou-o de frente. (Tengo era dez centímetros mais alto.) Ele também olhou para ela, apanhado de surpresa. Os seus olhares encontraram-se. Tengo logrou captar nos olhos dela uma profundidade transparente que nunca vira antes. A rapariga ficou durante muito tempo em silêncio, sempre agarrada à mão dele. Com força, sem deixar por um instante de fazer pressão. Às tantas, soltou-a de repente e saiu da aula disparada, com a saia a dar, a dar. Tengo perdeu a fala e deixou-se ficar ali, paralisado, sem compreender nada. O seu primeiro pensamento foi que esperava que ninguém os tivesse visto. Seria o bom e o bonito, nem queria imaginar. Olhou em redor e suspirou, aliviado. Depois, sentiu uma profunda perturbação. 563/1088
Talvez a mãe e a filha, as mesmas que haviam viajado sentadas de frente para ele desde a estação de Mitaka até à estação de Ogikubo, também fossem crentes das Testemunhas. Podia dar- -se o caso de irem realizar a sua evangelização, como faziam todos os domingos. A mala de pano, inchada até mais não, se calhar estava a abarrotar de panfletos de Antes do Dilúvio. O guarda-sol que a mãe empunhava e a luz cintilante que brilhava nos olhos da miudinha tinham-lhe feito recordar a sua taciturna camarada de classe. Mas não, era mais provável que fossem apenas uma mãe e uma filha iguais a tantas outras, a caminho de uma aula particular. Dentro da mala de pano grosso levariam, isso sim, partituras para piano, material de caligrafia, ou algo semelhante. «Devo ser eu que ando demasiado sensível», murmurou Tengo de si para si. Fechou os olhos e respirou devagar. Aos domingos, o tempo 564/1088
fluía de um modo singular e a paisagem em volta mostrava-se estranhamente deformada.
De regresso a casa, preparou um jantar simples. A bem dizer, não almoçara sequer. Após a refeição, pensou em telefonar a Komatsu. De certeza que o homem devia querer notícias do encontro, mas, como era domingo, não se encontrava a trabalhar na editora. Por outro lado, Tengo não sabia o número de telefone de casa dele. Ora, se quiser saber como correu o encontro, que telefone ele! O telefone tocou quando os ponteiros do relógio marcavam as dez, estava Tengo precisamente a pensar que eram boas horas de ir para a cama. Calculou que fosse Komatsu, mas, ao levantar o auscultador, escutou a voz da sua amante. – Não tenho muito tempo – disse ela –, mas estava a pensar passar por tua casa depois de amanhã à tarde. Pode ser?
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Ao fundo, soava baixinho música de piano. Pelos vistos, o marido ainda não devia estar em casa. Tengo respondeu que, por ele, tudo bem, podia ser. Caso a namorada mais velha aparecesse, teria de interromper por um tempo a correção da obra A Crisálida de Ar. Contudo, ao escutar a sua voz, Tengo deu-se conta do desejo que sentia por ela. Desligou o telefone, foi até à cozinha, serviu-se de um copo de Wild Turkey e bebeu-o puro, de pé, junto ao lava-loiça. A seguir, meteu-se na cama, leu meia dúzia de páginas de um livro e adormeceu. E assim chegou ao fim o longo e estranho domingo de Tengo. 566/1088
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AOMAME
Vítima de nascença
Ao acordar, Aomame deu por si com uma ressaca valente. A verdade é que nunca ficava de ressaca. Por mais álcool que bebesse, no dia seguinte acordava com a cabeça desanuviada e em condições de prosseguir com a sua vida normal. Era um ponto de honra para ela. Naquele dia, porém, havia qualquer coisa que não estava bem: sentia uma dor nas têmporas e via tudo envolto numa névoa ligeira. Parecia que tinha um aro metálico a apertar-lhe o crânio. Os ponteiros do relógio indicavam que passava das dez. A luz do fim da manhã penetrou como
uma agulha no fundo das suas pupilas. O ruído provocado por uma moto que passava na rua encheu o quarto, soando aos seus ouvidos como um instrumento de tortura. Estava deitada na cama, completamente nua, mas não se recordava de como voltara para casa. No chão via-se a roupa que trazia vestida na noite anterior, espalhada de qualquer maneira. Tudo indicava que tinha sido ela a arrancá-la do corpo. O saco desportivo que costumava carregar ao ombro encontrava-se em cima da secretária. Foi até à cozinha, passando por cima das roupas, e bebeu vários copos de água da torneira. Em seguida, dirigiu-se à casa de banho para lavar a cara com água fria e ficou ali, despida, diante do espelho enorme. Examinou a sua imagem de uma ponta à outra, sem encontrar marcas no corpo. Suspirou de alívio; do mal, o menos. Contudo, ainda subsistia da cintura para baixo aquela sensação com que sempre ficava de manhã, após uma noite 568/1088
intensa de sexo. Era uma doce lassidão, como se lhe revolvessem as entranhas. Também se apercebeu de um vago mal-estar no ânus. Céus!, disse para consigo, apertando as têmporas com os dedos, não me digas que os tipos também me foram aí! Que diabo!, não me lembro de nada. Com a consciência um tanto turva, tomou duche com a água quase a ferver, mantendo as mãos apoiadas na parede. Esfregou muito bem o corpo com sabonete, na esperança de apagar da memória – ou qualquer coisa sem nome mas equivalente à memória – a noite anterior. Lavou com especial cuidado a zona genital e o ânus. Também lavou o cabelo. Escovou os dentes para se livrar do hálito pastoso que tinha na boca, mas fê-lo com repugnância, por causa do cheiro mentolado da pasta dentífrica. Depois tratou de apanhar o que estava caído pelo chão do quarto, tanto a roupa interior como as meias, e, desviando 569/1088
o olhar, despejou tudo no cesto da roupa suja. Passou revista ao interior do saco que deixara em cima da secretária. A carteira estava lá dentro, os cartões de crédito também. O dinheiro que faltava devia ter servido para pagar o táxi que a trouxera de regresso a casa. Só dava pela falta dos preservativos – quatro, para ser precisa. Porquê quatro? Dentro do porta-moedas havia uma folha com um número de telefone de Tóquio, mas ela não fazia a mais pequena ideia a quem pudesse pertencer. Tornou a deitar-se em cima da cama e procurou desenredar o fio da meada, em relação aos desenvolvimentos da noite anterior. Ayumi fora ter com os homens à mesa, combinara tudo com eles graças à sua lábia, tomaram um copo juntos e gerou-se um clima agradável. O resto da noite decorreu como seria de esperar. Alugaram dois quartos num hotel perto do bar, Aomame foi para 570/1088
a cama com o homem que tinha pouco cabelo e Ayumi ficou com o mais jovem e mais encorpado. No tocante ao sexo, não foi mau de todo. Primeiro, tomaram banho juntos, seguindo-se uma sessão de sexo oral, longa e satisfatória. Antes da penetração, Aomame não se esqueceu de usar preservativo. Uma hora mais tarde, ligaram para o quarto. Era Ayumi a perguntar se podiam aparecer. «Para beberem um copo», tinha ela dito. Aomame respondeu que sim e, minutos mais tarde, chegaram Ayumi e o seu acompanhante. Encomendaram uma garrafa de uísque e gelo ao serviço de quartos e beberam todos juntos. Não se conseguia recordar bem do que acontecera a seguir. Era como se o álcool lhe tivesse subido de repente à cabeça, a partir do momento em que os quatro se haviam reunido de novo. Seria por culpa do uísque? (Aomame não estava acostumada a beber uísque.) Se calhar, baixara a guarda pelo 571/1088
facto de não estar sozinha com um homem, sabendo que tinha uma cúmplice ao lado. Lembrava-se muito vagamente de terem mudado de parceiros. Eu estava na cama com o homem mais novo, e a Ayumi no sofá entretida com o que tinha pouco cabelo. A seguir... O que aconteceu está envolto numa densa neblina. Não me lembro de nada. Bom, há males que vêm por bem. O melhor é esquecer tudo. Sei que me soltei e fodi que nem uma louca. Só isso. O mais provável é nunca tornar a pôr a vista em cima daqueles indivíduos. Agora, a questão é saber se o segundo tipo terá posto o preservativo. Isso, sim, deixava Aomame preocupada. Não me está a apetecer ficar grávida nem apanhar uma doença venérea por causa de um erro estúpido. Bom, talvez não seja nada. Por muito bêbeda, ou por mais assarapantada e fora de mim que estivesse, estas coisas não me costumam escapar. 572/1088
Hum, deixa cá ver, tenho algum trabalho marcado na agenda para hoje? Não, é sábado, aos sábados não há trabalho para ninguém. Não, espera aí. Mentira. Fiquei de aparecer na Casa dos Salgueiros, em Azabu, quando forem três da tarde; marquei uma sessão de estiramentos musculares com a viúva. Há um par de dias, o Tamaru ligoume a perguntar se eu me importava de mudar o nosso encontro para hoje, porque a senhora tinha de ir ao hospital fazer uns exames médicos. Varreu-se-me por completo. Mas ainda faltam quatro horas e meia. Até às três da tarde já me terei libertado da dor de cabeça e os meus sentidos estarão mais apurados. Fez café e obrigou-se a beber várias chávenas de uma assentada, sentindo o líquido deslizar, quente, até ao fundo do estômago. Depois, apenas com o roupão de banho no corpo, deitou-se em cima da cama e passou o resto da manhã a olhar para o 573/1088
teto. Não tinha vontade de fazer a ponta de um corno, senão olhar para cima, o que não era nada de divertido. Contudo, não se podia queixar: os tetos não existiam para entreter as pessoas. O relógio deu o meio-dia, mas ela continuava sem apetite. Na sua cabeça ecoava ainda o ruído das motos e dos carros. Era a primeira vez que sabia o que era cozer uma bebedeira. No entanto, aquele sexo todo parecia terlhe feito muito bem ao corpo. Ao ter um homem a abraçá-la, ao saber o seu corpo nu contemplado por ele, ao ser acariciada de cima a baixo, lambida, mordida, penetrada, e ao experimentar vários orgasmos, a tensão que se escondia no mais fundo de si, enrolada como uma mola, libertara-se. A ressaca não deixava de se revelar desagradável, claro, mas o sentimento de libertação compensava, e em larga medida.
Até quando continuarei a levar esta vida? Até quando poderei continuar a fazer tudo
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isto? Terei trinta anos não tarda. Logo a seguir, estão aí os quarenta. Chegando àquele ponto, decidiu não dar seguimento ao raciocínio. Quando chegar a altura, logo me debruçarei sobre o assunto, com mais calma. Por agora, não existe um prazo urgente que a tal me obrigue. Para pensar a sério nisto, eu... Nesse preciso instante, tocou o telefone. A Aomame soou como um ruído ensurdecedor. Parecia um comboio-bala a atravessar um túnel. Levantou-se devagar da cama e deitou a mão ao auscultador. O relógio grande da parede marcava meio-dia e meia. – Aomame – disseram do outro lado. Era uma voz rouca, de mulher. Tratava-se de Ayumi. – Sim, sou eu – respondeu ela. – Estás bem? Que voz! Parece que acabaste de ser atropelada por um autocarro. – Não devo andar longe disso. 575/1088
– Estás de ressaca? – Sim, uma ressaca das valentes, por sinal – queixou-se Aomame. – Como é que sabes o meu telefone de casa? – Não te lembras? Escreveste o número num papel e deste-mo, ontem. Deves ter o meu enfiado dentro da tua carteira. Para nos voltarmos a encontrar por estes dias, conforme combinado. – A sério? Não me lembro de nada. – Bem me parecia. Por isso é que te liguei, para ver como estavas – disse Ayumi. – Queria ter a certeza de que chegaste a casa sã e salva. Quando te meti no táxi, no cruzamento de Roppongi, e dei a tua morada ao motorista... Aomame suspirou. – Não me lembro de nada disso, mas creio que vim cá dar. Pelo menos, acordei na minha cama. – Já não é mau. – O que estás a fazer agora? 576/1088
– Estou a trabalhar, nem é preciso dizer – respondeu Ayumi. – Ando desde as dez da matina enfiada num minicarro-patrulha, a passar multas. De momento, estou na minha pausa. – Ena, impressionante – observou Aomame, num tom que não deixava margem para dúvidas. – Claro que não dormi quase nada, mas confesso que a noite passada foi incrível. Diverti-me imenso. Já não sabia o que isso era há imenso tempo, e tudo graças a ti. Aomame massajou as têmporas com os dedos. – Para dizer a verdade, não me recordo de quase nada do que aconteceu, sobretudo a partir do meio da noite. Ou seja, depois de vocês terem vindo até ao nosso quarto. – Pois, isso é que é uma pena – lamentou Ayumi, num tom muito sério. – A partir daí foi fantástico! Fizemos tudo e mais alguma coisa, nós os quatro. Nem deu para 577/1088
acreditar. Foi como num filme pornográfico. Tu e eu, sem roupa, fizemos cenas lésbicas. A seguir... Aomame cortou-lhe a palavra de forma precipitada. – Deixa lá isso. Só me interessa saber se estávamos a usar preservativo. Não me lembro, e é o que me está a preocupar. – Claro que sim. Sou muito rigorosa com esse tipo de coisas. Certifiquei-me sempre, de todas as vezes, por isso, não te preocupes. Afinal, quando não ando a passar multas aos carros mal estacionados nas ruas, passo os dias nas escolas dos bairros mais diversos, em reuniões com estudantes, para lhes ensinar ao pormenor como devem colocar o preservativo. – Como colocar o preservativo? – perguntou Aomame, chocada. – Por que cargad’água tem uma mulher-polícia de ensinar isso a alunos do secundário? 578/1088
– Na realidade, trata-se de uma informação pública dirigida aos estabelecimentos de ensino e insere-se numa série de palestras destinadas a alertar para o perigo das violações por conhecidos, medidas contra os exibicionistas e pervertidos que se passeiam pelo metro, sem esquecer outros métodos de prevenção de delitos sexuais, mas, pelo meio, também lhes falo deste tema, por minha iniciativa. Em certa medida, e como é inevitável que façam sexo, incita-os a evitarem uma gravidez indesejável ou o aparecimento de doenças venéreas. Claro que isto não podia ser dito assim, desta maneira, com os professores na mesma sala. Como vês, encaro estas coisas como uma espécie de deformação profissional. Por muito álcool que beba, tomo sempre as minhas precauções. Não tens de te preocupar. Estás mais do que limpa. «Sem preservativo não há penetração.» É o meu lema. 579/1088
– Obrigada – disse Aomame. – Fico mais aliviada. – Olha lá, queres que te relate em pormenor tudo o que fizemos ontem à noite? – Da próxima vez. Pode ser? – retorquiu Aomame. A seguir, expulsou todo o ar gelado que tinha estado a reter nos pulmões. – Contas-me num outro dia todos os pormenores picantes. Se o fizesses agora, tenho a impressão de que a minha cabeça estalava. – De acordo, fica para a próxima – disse Ayumi, num tom de voz alegre. – Sabes, Aomame, tenho estado a pensar, desde esta manhã, que formamos as duas uma equipa dos diabos. Importas-te que te volte a ligar? Quero dizer, quando acordar virada para aí e me apetecer outra noite como a de ontem? – Claro que podes ligar – respondeu Aomame. – Bestial! – Obrigada por teres telefonado. 580/1088
– Fica bem – recomendou Ayumi, antes de desligar.
Às duas da tarde, graças a um café forte e a uma sesta, já tinha a cabeça muito mais desanuviada. A dor de cabeça desvanecera-se, felizmente. Ficara apenas a sentir uma ligeira languidez no corpo; eram os restos da ressaca. Aomame pegou no saco de desporto e saiu de casa. Não levava com ela o picador de gelo de fabrico caseiro, bem entendido, mas apenas uma muda de roupa e uma toalha. Como de costume, Tamaru foi ao seu encontro e recebeu-a na porta principal. Acompanhou-a ao solário, numa divisão comprida e estreita. Uma enorme janela de vidro dava para o jardim, porém, as cortinas de renda impediam que se visse alguma coisa lá para fora. Ao lado da janela via-se uma fileira de plantas de interior. Pequenos altifalantes pendurados difundiam baixinho música barroca – uma sonata para flauta de bisel e cravo. No centro da sala havia uma
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marquesa para massagens, e a velha senhora encontrava-se lá deitada, de barriga para baixo. Trazia um robe branco vestido. Quando Tamaru abandonou a sala, Aomame trocou a roupa que tinha no corpo pelo fato de treino. Deitada na marquesa, a senhora observava a cena, virando o pescoço à medida que Aomame se ia despindo. Aomame não se deixava intimidar pelo facto de o seu corpo estar exposto ao olhar de alguém do mesmo sexo. Na sua qualidade de desportista, pode dizer-se que estar naquela situação era o pão nosso de cada dia e, além do mais, a velha senhora também ficava quase em pelota quando lhe dava massagens, visto que assim se tornava mais fácil examinar a condição dos músculos. Aomame tirou as calças curtas de algodão e a blusa, e vestiu umas calças e um top de jérsei. A seguir, dobrou a roupa e deixou-a ficar num montinho ao canto da sala. 582/1088
– Tens um corpo firme e atlético – disselhe a idosa senhora. Só então se sentou, despiu o robe e ficou apenas com duas peças de seda em cima da pele. – Obrigada – agradeceu Aomame. – Há muitos anos, também eu tinha uma figura como a tua. – Bem sei – disse Aomame. E acreditava no que dizia. Mesmo a chegar aos setenta anos, ainda permaneciam nela os vestígios de quando era nova. Mantinha a forma do corpo e até o peito conservava a firmeza. Uma alimentação moderada e exercício diário haviam contribuído para preservar a sua beleza natural. Aomame calculou que a isso seria preciso acrescentar algumas intervenções de cirurgia estética – porventura, uma ou outra eliminação periódica de rugas, um lifting à volta dos olhos e da boca. – A senhora conserva ainda um corpo muito bonito – afirmou Aomame. 583/1088
– Obrigada, mas não tem comparação com antigamente – retorquiu a velha senhora, torcendo um tudo-nada os lábios. Aomame não lhe deu resposta. – Desfrutei bastante deste meu corpo, aliás, dei muito prazer a outros com ele, se é que me faço entender. – Sim, entendo. – E tu, também tiras partido do teu corpo? – De vez em quando – respondeu Aomame. – De vez em quando pode não ser suficiente – retorquiu a viúva, estendida de barriga para baixo na marquesa. – Devias gozar mais, agora que és jovem. Gozar até à saciedade. Quando envelheceres e não puderes fazer nada, serão as recordações dos velhos tempos que servirão para te aquecer o corpo. Aomame lembrou-se da noite anterior. Ainda persistia no ânus, ligeiramente, a vaga sensação de ter sido penetrada. Seria esse o 584/1088
tipo de lembranças que lhe aqueceriam o corpo durante a velhice? Colocando as mãos sobre o corpo da anciã, Aomame executou uma série de exercícios de estiramento muscular. A moleza que antes se apoderara dela desaparecera. A partir do momento em que vestiu o fato de treino e tocou com os seus dedos no corpo da velha senhora, recuperou a agudeza de espírito. Com as pontas dos dedos, controlava cada músculo da anciã, como se seguisse o trajeto num mapa. Aomame tinha tudo bem decorado: a tensão, a contração e o grau de resistência de cada um dos músculos. Como uma pianista, tocando de cor uma longa peça. Aomame era dotada de uma memória minuciosa, no que respeitava ao corpo humano. E, no caso de se esquecer, encontravase tudo memorizado naquelas suas pontas dos dedos. Se algum dos músculos apresentasse um toque um tudo-nada diferente do habitual, poderia estimulá-lo de variadas 585/1088
formas e imprimir uma outra intensidade ao seu toque, e logo percebia qual a reação obtida: se era dor, prazer ou insensibilidade. Onde se registava uma contração forte, não se dava apenas ao trabalho de distender essas partes rígidas e compactas: ajudava a própria senhora, para que ela mesma fosse capaz de mexer o dito músculo por si mesma. Como seria de esperar, também havia partes do corpo em que o problema não se podia resolver só pela força exercida. Nessas zonas era necessário proceder ao estiramento com especial atenção. Porém, o que realmente fazia bem aos músculos e aquilo de que mais podiam beneficiar era o esforço pessoal e diário que cada qual realizava por si próprio. – Dói-lhe aqui? – perguntou Aomame. Tinha os músculos das virilhas muito mais rígidos do que era habitual, excessivamente crispados, por assim dizer. Meteu a mão na 586/1088
cavidade da pélvis e torceu um pouco o músculo da coxa, num ângulo especial. – Muito – respondeu a velha senhora, contraindo a cara de dor. – É bom que sinta dor. Se não sentisse, isso quereria dizer que tinha um problema sério. Vai doer um bocadinho mais. Está preparada para aguentar? – Claro – retorquiu a anciã. Nem era preciso perguntar. Mulher valente por natureza, aguentava em silêncio quase tudo. Podia contrair a cara de dor, mas nunca gritava. Aomame vira muitos homens grandes e fortes berrarem inadvertidamente de dor, com as suas massagens. Por isso, não podia deixar de admirar a velha senhora pela sua força de vontade. Aomame serviu-se do cotovelo direito como ponto de apoio e, usando o corpo da senhora como se de uma tábua se tratasse, esticou ainda mais o músculo da perna e dobrou-lhe a coxa. Ouviu-se um estalo agudo 587/1088
e a articulação moveu-se. A anciã engoliu a saliva, mas aguentou estoicamente e não disse palavra. – Já deve ter ficado bem – afirmou Aomame. – Vai ver que sentirá um certo alívio. A velha senhora soltou um profundo suspiro. A sua testa estava coberta de gotas de suor. – Obrigada – murmurou em voz baixa. Aomame passou uma hora inteira dedicada à anciã. Massajou o corpo inteiro da velha senhora, estimulou-lhe e procedeu ao estiramento dos músculos, ajudou a relaxar as articulações. Todo o processo acompanhado de um nível considerável de dor. Sem dor não havia solução. Tanto Aomame como a anciã estavam fartas de saber isso. Portanto, passaram aquela hora quase em silêncio. A sonata para flauta de bisel chegara ao fim sem que elas dessem conta, e o leitor de CD permanecia mudo. Não se ouvia mais 588/1088
nada a não ser o canto dos pássaros no jardim. – Sinto o corpo muito mais leve, agora – confessou a anciã, passado algum tempo. Encontrava-se de borco, deitada na marquesa. A toalha por baixo dela escurecera, encharcada de suor. – Ainda bem – disse Aomame. – És uma ajuda preciosa! Não sei o que faria sem ti. – Não se preocupe. Por enquanto, não está nos meus planos desaparecer do mapa. Após um breve silêncio, a senhora perguntou-lhe, como se estivesse confusa: – Não me quero meter onde não sou chamada, mas… gostas de alguém? – Sim, existe uma pessoa – respondeu Aomame. – Fico contente por saber. – Infelizmente, essa pessoa não gosta de mim. 589/1088
– Talvez seja uma pergunta um tanto ridícula, mas porque é que dizes isso? Objetivamente falando, olha-se para ti e és uma mulher fascinante a todos os níveis. – Porque ele nem sequer sabe que eu existo. A viúva ficou alguns momentos a cismar no que acabava de ouvir. – E tu, pela tua parte, não sentes necessidade de lhe transmitir essa informação e darlhe a conhecer a tua existência? – De momento, não – respondeu Aomame. – Existe alguma razão concreta para tal? Alguma coisa que te impeça de te aproximares dele? – Sim, deve-se a várias circunstâncias, mas pode dizer-se que grande parte do problema reside em mim. A anciã fitou Aomame com aparente espanto. 590/1088
– Ao longo da minha vida, conheci muitas pessoas excêntricas. Contudo, de todas elas, és bem capaz de ser única. Aomame afrouxou um pouco a tensão à volta dos músculos da boca. – Não me considero especialmente excêntrica. Sou apenas honesta comigo própria no que diz respeito aos meus sentimentos. – Queres tu dizer que és fiel às regras que estabeleceste. – É isso mesmo. – O que significa que és um nadinha obstinada e com tendência para ferver em pouca água. – Sim, reconheço que esse retrato pode ter uma ponta de verdade. – Mas, ontem à noite, as coisas escaparam um bocado ao teu controlo, não foi? Aomame corou. – Como é que sabe? – Vejo na tua pele. Sei pelo odor que transportas em ti. O teu corpo ainda cheira a 591/1088
homem. Quando se caminha para velha, uma pessoa começa a compreender uma quantidade de coisas. Aomame franziu por instantes o sobrolho. – Preciso daquilo. De vez em quando, fazme falta. Bem sei que não é lá muito edificante, mas... A velha senhora estendeu o braço e pousou a sua mão com ternura sobre a de Aomame. – Claro que sim. Por vezes, são coisas que é preciso fazer. Não te preocupes, longe de mim censurar o teu comportamento. Da forma como eu vejo as coisas, precisavas de conhecer na pele uma felicidade mais normal. Olha, por exemplo, encontrares alguém que te ame, casares com o teu amor e serem felizes para sempre. – Também eu gostava... Mas é difícil, não sei se sabe. – Porquê? 592/1088
Aomame não se dignou responder-lhe. Vendo bem, não era assim tão fácil quanto isso de explicar. – Se algum dia quiseres pedir conselho a alguém sobre uma questão mais pessoal, conta comigo – disse a velha senhora, soltando a mão de Aomame e enxugando o suor da cara com uma toalha pequena. – Independentemente do assunto, pode ser que eu te consiga ajudar. – Obrigada – disse Aomame. – As coisas nem sempre se resolvem com uma noite de puro desvario. – Tem toda a razão. – Não estás a fazer nada que te prejudique – afirmou a velha senhora. – Nada. Sabes isso, não sabes? – Sei – respondeu Aomame. Ela tem toda a razão. Não fiz nada que me pudesse prejudicar. Contudo, verifico que não deixa de existir alguma coisa que 593/1088
ficou para trás, posta em sossego. Como o depósito no fundo de uma garrafa de vinho.
Aomame ainda se lembrava ao pormenor dos acontecimentos que envolviam a morte de Tamaki Ōtsuka. E, só de pensar que nunca mais poderia vê-la nem falar com ela, tinha a sensação de ficar feita em pedaços. Tamaki fora a sua primeira e única amiga. Podiam confiar uma na outra, sem reservas. Antes de Tamaki, Aomame nunca soubera o que era ter uma verdadeira amiga, nem voltou a saber. Ninguém podia substituí-la. Caso não tivesse conhecido Tamaki, a vida de Aomame teria sido, com toda a certeza, mais infeliz e mais sombria. As duas contavam a mesma idade e eram companheiras na equipa de softbol, numa escola pública de Tóquio. Aomame dedicarase com fervor a essa modalidade desportiva desde os primeiros anos do secundário. A princípio, tinham-na convidado por haver falta de jogadoras na equipa, e, verdade seja
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dita, ela dava o seu melhor sem parecer esforçar-se demasiado; no entanto, o softbol não tardou a transformar-se na sua razão de viver. Agarrou-se ao jogo da mesma maneira que alguém, apanhado no meio de uma ventania desgraçada, deita a mão a um poste e não o larga mais. Apesar de nunca se ter dado conta disso antes, Aomame era uma atleta perfeita. Tanto no secundário básico como no secundário superior29, destacou-se como jogadora, passando a ser a alma da equipa, que, graças a ela, conseguiu obter sempre boas classificações em sucessivos torneios, o que proporcionava a Aomame uma espécie de confiança em si mesma. (Não era propriamente confiança, mas algo do género.) Pelo facto de sentir que, no interior da equipa, era uma pessoa que fazia a diferença e ocupava um lugar destacado, e mesmo considerando que estamos a falar de um mundo pequeno, Aomame sentia-se feliz. Alguém precisava dela. 595/1088
Aomame jogava tanto a lançadora como a batedora – que é como quem diz, era a jogadora principal. Tamaki Ōtsuka ocupava a segunda base, considerada a pivô da equipa, e também fazia as vezes de capitã. Apesar da sua pequena estatura, possuía excelentes reflexos e sabia usar a cabeça. Mostrava-se capaz de fazer uma boa leitura das várias situações de jogo, no momento da jogada e de um modo global. De cada vez que havia um lançamento, sabia onde devia situar o centro de gravidade e, ao baterem a bola, calculava de imediato a sua direção e corria a defender a posição certa. Poucas jogadoras da defesa interior seriam capazes de o fazer. Graças à sua capacidade de tomar decisões, tinha salvado a equipa de uma série de desaires. Não era uma lançadora de longas distâncias, como Aomame, mas, em compensação, o seu jogo revelava-se infalível e afinado, para além de ser muito rápida. Também se destacava enquanto líder. Integrava a 596/1088
equipa, fornecia táticas e numerosos conselhos a todas as camaradas. Sendo exigente no comando, contava com a confiança das demais jogadoras. Em resultado disso, o coletivo fortalecia-se de dia para dia, ao ponto de a equipa atingir a fase final dos campeonatos municipais de Tóquio. No campeonato anual entre as escolas secundárias de todo o Japão, em diferentes modalidades, ajudou também a equipa a chegar à final. Tanto Aomame como Tamaki foram escolhidas para integrarem a seleção da região de Kantō. Aomame e Tamaki reconheciam as qualidades uma da outra e – sem que nenhuma delas tomasse a iniciativa – forjaram uma amizade espontânea. Ao fim de pouco tempo, converteram-se em amigas do peito. Durante as digressões da equipa, passavam muito tempo juntas. Contavam as histórias passadas na infância, sem esconder nada. Aomame decidira separar-se dos pais 597/1088
quando andava no quinto ano e escolhera ir viver para casa de um tio por parte da mãe. A família do tio aceitou a situação e recebeu-a de braços abertos, o que não impedia que, em todo o caso, aquela não fosse a sua casa. A menina sentia-se só e ávida de carinho. Sem saber muito bem onde procurar um objetivo ou um destino, tinha a impressão de que os dias eram todos iguais e que a sua vida não fazia sentido. Tamaki provinha de uma família endinheirada e com elevado estatuto social, todavia, a péssima relação entre os pais transtornara a convivência familiar. O pai quase nunca parava em casa e a mãe mergulhava com frequência em estados de confusão mental. Tinha enxaquecas horríveis, e passavam-se dias em que não saía da cama. Tamaki e o seu irmão mais novo encontravam-se quase ao abandono. Muitas vezes, o problema das refeições era resolvido indo aos restaurantes do bairro, a locais onde se vendia comida rápida ou recorrendo 598/1088
às caixas bentō30 vendidas nos supermercados. Qualquer das raparigas tinha as suas razões pessoais para se entregar com paixão obsessiva ao softbol. Eram duas raparigas solitárias e problemáticas, com um montão de coisas para contar uma à outra. Numas férias de verão, foram viajar. E quando calhou não terem mais nada para fazer, entretiveram-se a tocar no corpo uma da outra, despidas, na cama de um hotel. Foi uma coisa completamente inesperada, aconteceu apenas uma vez e não tornou a repetir-se; tão-pouco falaram do sucedido a quem quer que fosse. No entanto, é um facto que a relação tornou-se ainda mais forte e, em consequência, ficou reforçada a cumplicidade entre elas. Ao entrar para a Faculdade de Educação Física e Desporto, Aomame continuou a jogar softbol. Uma vez que já era conhecida a nível nacional, foi recrutada por uma universidade privada e concederam-lhe uma bolsa 599/1088
especial. Na faculdade, como seria de esperar, destacou-se igualmente e tornou-se a jogadora mais influente da equipa. Ao mesmo tempo que dedicava a sua energia à prática do softbol, interessou-se a sério pela medicina desportiva e começou também a estudar artes marciais. Enquanto estivesse matriculada na universidade, pretendia adquirir todos os conhecimentos e as técnicas especializadas possíveis e imagináveis. Não tinha tempo para andar na boa-vai-ela. Tamaki entrou para a Faculdade de Direito de uma prestigiada universidade. Ao terminar o secundário, abandonou a prática do softbol. Aos olhos de Tamaki, que possuía um talento extraordinário para a modalidade, o softbol não tinha sido mais do que uma fase passageira na sua vida. O seu objetivo era fazer o exame de admissão à Ordem e tornar-se advogada. Ainda que tivessem escolhido caminhos diferentes, continuavam a ser amigas, do fundo do coração. Aomame 600/1088
vivia numa residência universitária, enquanto Tamaki frequentava as aulas a partir de casa – o que lhe proporcionava um certo desafogo económico, apesar de a estrutura familiar manter o mesmo padrão pouco convencional. Tomavam as refeições juntas uma vez por semana e conversavam acerca de tudo. Por mais que falassem, assunto era coisa que nunca lhes faltava. No outono do seu primeiro ano de faculdade, Tamaki perdeu a virgindade. Aconteceu com um estudante, mais velho do que ela um ano, que conhecera no clube de ténis. No final de uma reunião, convidou-a a acompanhá-lo até ao quarto dele, e foi aí que a violou. Não se podia dizer que ela não gostasse dele, e por alguma razão aceitara acompanhá-lo até ao quarto, mas a forma violenta como a forçara a ter relações sexuais, para não falar na atitude brutal e egoísta de que deu mostras naquela hora, provocaramlhe um choque terrível. Por causa disso, 601/1088
abandonou o clube e caiu numa grande depressão, que se prolongou durante muito tempo. Aquela experiência causara-lhe um sentimento de grande impotência. Deixou de ter apetite e perdeu seis quilos num mês. O que Tamaki procurava num homem era compreensão e consideração. Caso ele demonstrasse possuir quer uma quer outra qualidade, e desde que se tivesse dado ao trabalho de preparar o terreno, ela não teria tido problemas em entregar-lhe o seu corpo. Tamaki não havia meio de entender o que ele fizera. Por que diabo tivera de se comportar de um modo tão violento? Sobretudo quando não havia necessidade... Aomame consolou-a e aconselhou-a a castigar o rapaz, mas Tamaki não se mostrou disposta a tal. Cometera uma imprudência, tinha consciência desse facto, e era demasiado tarde para denunciar o caso. «Talvez seja melhor esquecer que tudo aconteceu», disse ela. Aomame, contudo, sentia na pele a 602/1088
ferida profunda que aquele incidente provocara na sua amiga. Não estava diante de um mero problema superficial, como a perda da virgindade. Era um assunto que atentava contra a dignidade da alma. Ninguém tinha o direito de invadir esse terreno sagrado, de entrar nele com os pés carregados de lama suja. Se isso acontecesse, havia o risco de a impotência corroer uma pessoa até às entranhas. Como tal, Aomame tomou para si a incumbência de lhe dar uma lição pelas suas próprias mãos. Conseguiu obter de Tamaki a morada do apartamento onde vivia o rapaz e foi até lá com um taco de basebol enfiado num enorme cilindro de plástico, daqueles que servem para guardar desenhos técnicos. No dia em questão, Tamaki encontrava-se em Kanagawa com a família, devido à celebração de uma cerimónia fúnebre, ou qualquer coisa do género, o que funcionou como o álibi perfeito. De antemão, Aomame 603/1088
certificara-se de que o jovem não estaria em casa. Forçou a fechadura da porta com uma chave de fendas e um martelo e entrou no quarto. A seguir, enrolou uma toalha à volta do taco e, com cuidado para não fazer barulho, reduziu a cacos tudo o que havia na divisão. O televisor, os candeeiros, o relógio, os discos, a torradeira, os vasos... Não ficou nada de pé. Cortou o cabo do telefone com uma tesoura, rasgou a capa de todos os livros, espalhou a pasta de dentes e o creme de barbear por cima da alcatifa; sobre a cama entornou molho de soja. Tirou os cadernos que estavam guardados numa gaveta e rasgou-os aos pedacinhos, partiu ao meio todas as canetas e lápis que encontrou, despedaçou lâmpadas, esquartejou cortinas e almofadas com uma faca de cozinha, pegou numa tesoura e reduziu a tiras todas as camisas que encontrou dentro da cómoda, despejou uma garrafa de ketchup dentro da gaveta da roupa interior, tirou o fusível do frigorífico e 604/1088
atirou-o pela janela, soltou e arrancou o tampão da cisterna, para além de ter esmigalhado a cabeça do chuveiro. A destruição foi deliberada e exaustiva, de uma ponta à outra. O quarto parecia o centro de Beirute depois de um bombardeamento, como ela vira numa fotografia no jornal, dias antes.
Tamaki era uma rapariga inteligente (em matéria de notas, Aomame não lhe chegava aos calcanhares) e, no que dizia respeito ao softbol, uma jogadora a quem não podia apontar rigorosamente nada. Sempre que Aomame se via em dificuldades durante um jogo, Tamaki aproximava-se logo a correr do terreno da lançadora e procurava dar-lhe um conselho útil, sorria com amizade, dava uma pancadinha com a luva no rabo da outra e voltava para a sua posição defensiva. Tinha uma visão aberta das coisas, um coração de ouro e sentido de humor. No plano académico, esforçava-se ao máximo e era muito eloquente. Tivesse ela continuado os
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estudos, por certo haveria dado uma excelente advogada. Contudo, na presença de um homem, a sua capacidade de tomar decisões desintegravase por completo e ficava feita em fanicos. Tamaki gostava de homens bem-parecidos. Pode mesmo dizer-se que tinha uma fixação por eles. Aos olhos de Aomame, essa sua propensão por homens bonitos roçava os limites da insanidade. Por muito boa pessoa ou por muito talentoso que fosse um homem interessado em convidá-la para sair, nada neste mundo a demoveria se ela não gostasse do seu físico. Por qualquer razão, eram sempre homens de feições doces e cabeça oca aqueles que despertavam o seu interesse. Além de que, tratando-se do sexo oposto, Tamaki dava mostras de uma teimosia inusitada e não fazia caso do que Aomame lhe dizia. Regra geral, estava pronta a escutar – e até mesmo a respeitar – a opinião da amiga sobre tudo e mais alguma coisa; no entanto, 606/1088
recusava-se a aceitar as críticas que ela pudesse fazer aos seus eleitos. Às tantas, Aomame desistira e deixara, pura e simplesmente, de lhe dar conselhos. Não queria discutir com Tamaki e colocar em perigo a amizade que as unia. Afinal de contas, era a vida de Tamaki. Não tinha outro remédio senão deixá-la fazer o que lhe desse na real gana. De qualquer forma, durante a sua passagem pela universidade, Tamaki envolverase com muitos homens e acabara sempre por se ver metida em sarilhos. Invariavelmente, os ditos cujos atraiçoavam-na, feriam-na e, por fim, abandonavam-na, deixando Tamaki à beira de um ataque de loucura. Tinha abortado por duas vezes. No que dizia respeito às relações entre um homem e uma mulher, Tamaki era uma vítima de nascença. Aomame não tinha namorado fixo. Quando a convidavam para sair, às vezes, calhava pensar que havia um ou outro que até não estava mal de todo, mas nunca foi ao 607/1088
ponto de se envolver numa relação verdadeiramente sólida. «Pensas ficar virgem para o resto da vida?», costumava perguntar-lhe Tamaki. «Estou muito ocupada», respondia Aomame. «O tempo mal me chega para as coisas do dia a dia, quanto mais para andar na brincadeira com namorados.» Ao terminar a licenciatura, Tamaki foi admitida na pós-graduação e preparou-se para continuar os estudos e fazer o exame de acesso à Ordem dos Advogados. Aomame foi trabalhar para uma firma de bebidas isotónicas e produtos dietéticos, continuando a jogar softbol pela equipa da empresa. Tamaki vivia ainda com os pais, enquanto Aomame morava numa residência da empresa destinada a albergar os funcionários, localizada em Yoyogi Hachiman. Tal como acontecia na época em que andavam as duas a estudar, encontravam-se ao fim de semana para 608/1088
comer qualquer coisa juntas e conversar, sem esgotarem nunca os temas de conversa. Aos vinte e quatro anos, Tamaki casou-se com um homem dois anos mais velho. Assim que ficou noiva, abandonou as aulas de pósgraduação e desistiu dos estudos de Direito, porque o seu futuro marido não lho permitia. Aomame apenas se encontrou com o noivo de Tamaki uma vez. Era filho de gente muito rica e, tal como ela imaginava, possuía umas feições bonitas e bem proporcionadas, mas um ar insignificante. Passava o tempo livre entretido com os seus veleiros. Mostrava-se exímio na arte das falas mansas e parecia medianamente inteligente, mas a sua personalidade denotava falta de solidez e as suas palavras careciam de peso. Por outras palavras, o género de homem que costumava cair no goto a Tamaki. Havia nele, contudo, qualquer coisa de sinistro que não agradava a Aomame. Desde o início que não gostara 609/1088
dele. E o mais provável era ele também não ter gostado dela. «Olha que este casamento não vai funcionar», avisara Aomame a sua amiga. Não queria meter-se onde não era chamada, mas tratava-se de um matrimónio, e não de andar a brincar aos namoricos. Sendo a melhor amiga de infância de Tamaki, não podia ficar calada. Naquela altura, tiveram a primeira discussão acalorada. Tamaki perdeu as estribeiras e, quase histérica, reagiu pelo facto de ela se mostrar contra o casamento, deixando escapar umas quantas palavras duras que lhe feriram os ouvidos. Aomame nem sequer assistiu à cerimónia. Ao fim de pouco tempo, as duas lá fizeram as pazes. Assim que regressou da lua de mel, Tamaki foi visitar Aomame sem avisar e pediu desculpa por lhe ter faltado ao respeito. Gostaria que a amiga se esquecesse de tudo o que havia sido dito daquela vez. «Não sei o que me deu», confessou. «Durante a lua de 610/1088
mel, fartei-me de pensar nas tuas palavras», acrescentou. Por seu turno, Aomame garantiu-lhe que já se tinha esquecido de tudo e que podia ficar descansada. A seguir, caíram nos braços uma da outra. Trocaram piadas e riram-se como dantes. Ainda assim, depois do casamento, assistiu-se a uma redução drástica dos encontros entre as duas. Trocavam cartas com frequência e falavam ao telefone, mas Tamaki parecia ter uma certa dificuldade em arranjar tempo para se verem. Desculpava-se com a casa, afirmando que andava muito ocupada. «Ser dona de casa a tempo inteiro também dá trabalho», costumava dizer. Pelo tom de voz, Aomame pressentia que o marido não devia gostar que ela saísse para se encontrar com outras pessoas. Além do mais, a amiga vivia no mesmo edifício onde moravam os sogros, o que devia tornar a coisa ainda mais complicada, no caso de Tamaki pretender escapar ao controlo deles. 611/1088
Aomame nunca chegou a ser convidada a visitar o novo lar de Tamaki. Que a sua vida de mulher casada corria sobre rodas, encarregava-se Tamaki de o apregoar a Aomame sempre que tinha oportunidade. Que o marido era um homem carinhoso e os sogros pessoas muito amáveis. Viviam muito bem e não lhe faltava nada. Aos fins de semana, pegavam muitas vezes no iate e iam dar uma volta até à ilha de Enoshima. Que tão-pouco se arrependia de ter abandonado os estudos de Direito, pois a pressão para o exame à Ordem era enorme. «Ao fim e ao cabo, esta vida normal e vulgar pode muito bem ser a mais indicada para mim. É possível que venha a ter filhos, num futuro próximo, e, nessa altura, passarei a ser apenas mais uma dessas mães aborrecidas. Aí é que deixarei de ter tempo para ti!» A voz de Tamaki continuava a ser jovial, e Aomame não tinha motivos para desconfiar das suas palavras. «Ainda bem, 612/1088
fico feliz da vida», respondia ela. E, de facto, dizia aquilo com sinceridade. Preferia mil vezes ter-se enganado naquele pressentimento funesto, sem dúvida, do que ter acertado. Podia ser que Tamaki tivesse encontrado a paz no seu interior, pensava Aomame. Ou, pelo menos, procurava convencer-se disso. Quando os contactos com Tamaki começaram a ser menos frequentes, e uma vez que não tinha mais ninguém a quem pudesse chamar amiga, os dias deixaram de fazer grande sentido para Aomame. Já não era capaz de se concentrar no softbol como dantes. Dir-se-ia que o interesse pelo jogo se desvanecera pelo simples facto de Tamaki ter deixado de fazer parte da sua vida. Aomame contava vinte e cinco anos, mas continuava a ser virgem. Às vezes, quando não conseguia controlar o desejo, masturbava-se. Não se podia dizer que ela própria achasse triste a vida solitária que levava. As relações 613/1088
estreitas com outras pessoas provocavam em Aomame uma certa angústia. Como tal, mais valia estar sozinha.
Soprava um vento forte quando Tamaki se suicidou, a três dias de completar vinte e oito anos. Enforcou-se e morreu na sua própria casa. O marido descobriu o corpo na manhã seguinte, ao regressar de uma viagem de negócios. «Não tínhamos problemas em casa, e confesso que nunca ouvi uma queixa da sua parte», declarou o marido à polícia. Os pais dele disseram algo parecido. Mas estavam a mentir. As permanentes agressões sádicas de que Tamaki era vítima por parte do marido haviam-na deixado profundamente ferida, tanto física como psicologicamente. A conduta dele roçava o terreno da paranoia, e os sogros estavam mais ou menos a par de tais práticas. Quando se procedeu à autópsia, a polícia teve oportunidade de ver o estado em que se encontrava o corpo
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dela, embora o caso nunca tenha vindo a saber-se. O marido chegou a ir à esquadra e a ser interrogado, mas apenas consideraram o suicídio como causa da morte, além de que, à hora em que Tamaki morrera, ele estava a centenas de quilómetros, em Hokkaidō . Tudo isto foi confiado a Aomame, passado algum tempo e no maior segredo, pelo irmão mais novo de Tamaki. Desde o início que as agressões tinham existido, contou ele, e, à medida que o tempo ia passando, as coisas haviam-se tornado cada vez mais persistentes e cruéis. Acontecia, porém, que Tamaki não podia escapar àquele pesadelo. Nunca dissera uma palavra a Aomame, pois sabia a resposta que a amiga lhe teria dado, caso lhe pedisse conselho. «Abandona essa casa, agora!» E isso era uma coisa que ela não podia fazer. No derradeiro momento, antes de se suicidar, Tamaki escrevera uma longa carta a Aomame, em que começava por dizer que 615/1088
estava enganada desde a primeira hora e que a amiga sempre teve razão. A carta terminava com as seguintes palavras:
A minha vida é um inferno diário. Mas, faça eu o que fizer, não lhe consigo escapar, nem saberia para onde ir se o fizesse. Estou encerrada numa terrível prisão que é a minha profunda impotência. Entrei neste lugar por minha vontade expressa, eu própria fechei a porta e atirei a chave para longe. Reconheço que o meu casamento foi um erro, sem dúvida. Tinhas toda a razão quando me alertaste. No entanto, devo confessar-te que o maior problema não reside no meu marido nem na minha vida conjugal; encontra-se dentro de mim. Mereço toda a dor que sinto. Não posso culpar ninguém. És a minha única amiga, a única pessoa no mundo em quem posso confiar. Só que já não tenho salvação possível. Peço-te que te
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lembres sempre de mim. Quem me dera que tivéssemos podido continuar a jogar softbol juntas eternamente.
Aomame foi-se sentindo cada vez pior, à medida que lia a carta. Não conseguia parar de tremer. Ainda telefonou várias vezes para casa de Tamaki, mas ninguém atendeu. Respondia-lhe uma mensagem gravada. Aomame apanhou o comboio para Setagaya e depois foi a pé até à casa da sua amiga, em Okusawa. Era uma mansão enorme, rodeada por um muro alto. Aomame tocou no botão do intercomunicador da entrada, sem, contudo, obter resposta. Lá dentro ouvia-se um cão ladrar. Não teve outro remédio senão dar meia-volta e voltar para trás. Obviamente, Aomame não tinha maneira de o saber, mas, naquele momento, Tamaki já não se encontrava neste mundo. Atara uma corda ao corrimão das escadas, e ali estava pendurada, completamente sozinha. Dentro de casa, onde reinava um silêncio absoluto, ecoava
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apenas o som abafado do telefone e da campainha da porta. Foi sem grande surpresa que Aomame recebeu a notícia da morte de Tamaki. No fundo do seu coração (e da sua mente), já o esperava, em parte. Nem sequer se pode dizer que a tristeza se apoderou dela. Deu uma resposta mecânica, desligou o telefone e sentou-se numa cadeira. Passado um grande bocado, foi como se todos os fluidos do seu corpo começassem a derramar-se e a abandonassem. Durante muito tempo, não conseguiu levantar-se daquela cadeira. Ligou para a empresa, dizendo que não se encontrava bem fisicamente e que não poderia ir trabalhar nos próximos dias, e limitou-se a ficar ali, fechada em casa, sem fazer nada. Não comia, não dormia, limitava-se a beber água. Nem sequer assistiu ao funeral. Sentia dentro dela como se algo tivesse trocado de sítio, depois de ter feito clique. Tinha plena consciência de estar na fronteira de qualquer 618/1088
coisa. Depois disto, nunca mais serei a mesma, disse para si mesmo. Foi então que Aomame tomou a firme decisão de castigar aquele homem. Hei de pôr fim à sua existência, aconteça o que acontecer. Caso contrário, o tipo voltará a fazer o mesmo com outra pessoa. Aomame demorou o tempo que foi preciso a engendrar cuidadosamente um plano. Com os conhecimentos que tinha, sabia que bastava espetar uma agulha afiada num ponto preciso situado na nuca, num determinado ângulo, para produzir a morte instantânea num ser humano. Não era algo que qualquer um pudesse fazer, mas ela estava habilitada para isso. Precisava apenas de apurar os sentidos, a fim de descobrir esse ponto extraordinariamente subtil, num intervalo de tempo tão curto, e obter o instrumento adequado para executar semelhante tarefa. Reuniu uma série de ferramentas e levou o seu tempo até fabricar uma peça 619/1088
especial, que parecia um pequeno picador de gelo, fino e estreito. A agulha possuía uma ponta afiada e fria como uma ideia impiedosa. A fim de encontrar o melhor método, Aomame praticou de mil e uma maneiras, com esmero. Assim que se convenceu de que estava preparada, passou à ação. Sem titubear, dando mostras de grande sanguefrio e precisão, fez com que o Reino dos Céus se abatesse sobre o homem. E quando estava tudo acabado, foi ao ponto de rezar. Os versículos da oração saíram-lhe dos lábios quase inconscientemente, de uma forma reflexa.
Jeová, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino. Perdoai as nossas ofensas e dai-nos a Vossa bênção enquanto prosseguimos o nosso humilde caminho. Ámen.
Foi a partir daí que Aomame começou a sentir, com uma certa regularidade, a necessidade intensa do corpo de um homem.
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29 No Japão, o ensino está dividido em seis anos de ensino primário, três anos de secundário básico e outros três de secundário superior, seguindo-se a universidade. (N. das T.)
30 Caixinhas de merenda para take-away. De plástico e cartão, contêm vários compartimentos separados com diferentes alimentos, do arroz ao atum e à cavala, passando pelos rebentos de bambu e pelo molho de soja. (N. das T.)
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TENGO
Coisas que a maioria dos leitores antes nunca viu
Komatsu e Tengo encontraram-se no sítio do costume. Numa cafetaria perto da estação de Shinjuku. O café custava um bocado mais caro do que noutros lugares, mas entre os assentos havia distância suficiente para uma pessoa poder estar à conversa sem se preocupar com terceiros. O ambiente era bastante agradável e no ar soava baixinho uma música anódina. Komatsu chegou vinte minutos atrasado, para não variar. O editor-mor nunca chegava a horas, da mesma maneira que Tengo nunca se atrasava. Havia, por assim
dizer, um pacto entre eles. Komatsu trazia uma mala de couro com documentos e, por cima de um polo azul-marinho, vestia um dos seus velhos casacos de tweed. – Desculpa a demora – disse Komatsu, sem parecer nada incomodado com o facto. Dava a impressão de estar mais bem-disposto do que era normal e na sua cara transparecia um sorriso que parecia uma lua em quarto crescente ao amanhecer. Tengo limitou-se a fazer um gesto com a cabeça, sem dizer nada. – Lamento ter-te feito vir a correr. Calculo que tenhas andado muito ocupado – disse Komatsu, assim que se apanhou sentado na cadeira, de frente para ele. – Sem querer exagerar, foram dez dias em que, de tanto trabalhar, já não sabia se estava vivo ou morto – afirmou Tengo. – Mas olha que te saíste muito bem. Recebeste o consentimento por parte do tutor da Fuka-Eri, sem problemas, e acabaste de 623/1088
reescrever o romance. Bom trabalho! Para alguém que vive afastado de tudo e de todos, é obra! Confesso que te tinha subestimado. Agora, quando olho para ti, vejo-te a uma luz diferente. A Tengo, os elogios entraram-lhe por um ouvido e saíram pelo outro. – Leu aquele relatório que escrevi sobre o passado da Fuka-Eri? Bastante extenso, por sinal. – Claro que sim. Li-o da primeira à última página. Agradeço o teu esforço. Ela tem ali uma situação, como é que hei de dizer?, deveras complicada. Dir-se-ia um capítulo de alguma saga, com contornos de romanfleuve31. A propósito, nunca me teria passado pela cabeça que o Professor Ebisuno fosse o tutor da Fuka-Eri. Como o mundo é pequeno! Ele fez algum comentário acerca da minha pessoa? – Acerca de si? – Sim, de mim. 624/1088
– Não disse nada de especial. – Estranho – observou Komatsu, parecendo nitidamente surpreendido. – O Professor e eu trabalhámos juntos, em tempos que já lá vão. Costumava ir buscar os manuscritos ao gabinete que ele tinha na universidade. Foi há muitos anos, quando eu ainda estava a dar os primeiros passos e não passava de um jovem revisor. – Por ter sido assim há tanto tempo, talvez ele esteja esquecido. Digo isto porque me perguntou que género de homem era o senhor. – Não pode ser! – exclamou Komatsu, abanando a cabeça e franzindo o cenho. – Impossível! O Professor é daqueles sujeitos que nunca se esquecem de nada. Tem uma memória tão boa que mete medo! Além disso, naquela época, conversávamos sobre tudo e mais alguma coisa. Não posso acreditar que ele se tenha 625/1088
esquecido... Bom, não tem importância. É uma velha raposa, e tem lá o seu feitiozinho. Com que então, segundo o relatório que elaboraste, as circunstâncias que rodeiam a Fuka-Eri parecem deveras complicadas… – Complicadas é dizer pouco. Temos nas mãos uma bomba-relógio, literalmente. A Fuka-Eri não é uma rapariga igual às outras. Não estamos aqui a falar de apenas mais uma bonita jovem de dezassete anos. Tem dislexia, não consegue ler um livro como deve ser, do princípio ao fim, e muito menos escrever. Sofreu um género de traumatismo, e, ao que parece, isso ter-lhe-á provocado, em parte, a perda da memória. Cresceu numa espécie de comunidade e quase não foi à escola. O pai dela era o líder de um grupo revolucionário de extrema-esquerda, indiretamente ligado ao tiroteio que envolveu a comuna Amanhecer. Foi recolhida por um homem considerado um dos grandes antropólogos culturais do nosso tempo No caso 626/1088
de o romance alcançar um êxito estrondoso, a imprensa vai andar em cima disto, apostada em revelar ao mundo toda a espécie de pormenores «escabrosos». Estamos a entrar em terreno minado. – Sim, provavelmente, a coisa poderá ter um efeito de caixa de Pandora – observou Komatsu. Apesar disso, o sorriso nunca se lhe apagou da boca. – Nesse caso, está a pensar em cancelar o plano? – Cancelar o plano? – O caso começa a ficar sério, para não dizer demasiado perigoso. Porque é que não pegamos no manuscrito original e voltamos a pô-lo junto com os outros, na pilha das obras candidatas? – Não é assim tão fácil como parece. A Crisálida de Ar, e falo da versão que tu corrigiste, foi entregue para compor, e até já temos as provas. Assim que fizermos cópias, é só uma questão de as enviarmos, e elas 627/1088
chegarão de imediato às mãos do editorchefe, do responsável pela editora e dos quatro membros do júri. Nessa altura, será tarde demais para lhes dizeres: «Desculpem, mas houve um engano. É favor devolver o original; façam como se nunca o tivessem visto.» Tengo suspirou. – O que não tem remédio remediado está. Não podemos voltar atrás no tempo – continuou Komatsu a sua lengalenga. A seguir, levou um Marlboro à boca, entortou os olhos e acendeu o cigarro com um dos fósforos da carteirinha que fazia publicidade àquele estaminé. – Quanto ao resto, logo vejo o que se há de fazer. Não precisas de te preocupar com nada. Se A Crisálida de Ar conquistar o prémio, trataremos de conseguir que a FukaEri fique longe das luzes da ribalta. Podemos sempre tentar vender o nosso peixe, sintetizando a história numa informação do estilo: «Jovem escritora enigmática, que não gosta 628/1088
de aparecer em público.» Eu, na qualidade de editor responsável pela obra, farei as vezes de porta-voz. Não te apoquentes, tenho tudo pensado. – Não ponho em dúvida os seus talentos, senhor Komatsu, mas não chamaria à FukaEri uma rapariga normal. Não é das que obedecem e executam o que lhes mandam. A partir do momento em que toma uma decisão, as coisas são como ela quer. Por mais que lhe digam para fazer «assim», ela fará «assado». Olhe que não vai ser tão fácil como pensa. Komatsu deixou-se ficar calado, a dar voltas à caixa de fósforos que tinha mão, e então disse: – Escuta, Tengo, aconteça o que acontecer, uma vez chegados a este ponto, não temos outro remédio senão arriscar e apostar tudo. Para começar, a tua versão é maravilhosa: está fantástica e superou todas as minhas previsões. Atrevo-me a dizer que roça a 629/1088
perfeição. Assim sendo, não tenho qualquer dúvida de que A Crisálida de Ar vai arrebatar o prémio destinado aos novos autores e causar sensação. Nesta altura do campeonato, já não vamos a tempo de pôr uma pedra sobre o assunto. Se queres a minha opinião, fazê-lo seria um crime. Como te disse anteriormente, o comboio há muito está em andamento, a todo vapor. – Um crime? – repetiu Tengo, olhando de frente para Komatsu. Este respondeu: – Há uma frase que reza assim: «Toda a perícia32 e todo o processo de investigação, do mesmo modo todo o procedimento prático e toda a decisão, parecem lançar-se para um certo bem. É por isso que tem sido dito acertadamente que o bem é aquilo por que tudo anseia.» – O que é isso? – Aristóteles. A Ética a Nicómaco. Leste alguma coisa de Aristóteles? – Quase nada. 630/1088
– Pois deverias fazê-lo. De certeza que ias gostar. Eu, quando não tenho nada que ler, leio os filósofos gregos. Nunca me canso. Aprende-se sempre alguma coisa nova. – E a que propósito vem essa citação? – O resultado de todas as coisas é o bem. Posto de outro modo, o bem é a consequência de todas as coisas. Logo, deixemos as dúvidas para amanhã – concluiu Komatsu. – Foi isso que quis dizer. – E que teria Aristóteles a dizer sobre o Holocausto? Komatsu alargou ainda mais o seu sorriso em forma de quarto crescente. – Nessa obra, Aristóteles refere-se sobretudo à arte, às ciências e aos ofícios artesanais.
O relacionamento de Tengo e Komatsu já vinha de longe. Durante todo esse tempo, Tengo tivera oportunidade de descobrir a faceta pública do homem e ficara a conhecer também o seu lado mais privado. Komatsu
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projetava no universo editorial a imagem de um lobo solitário, que só fazia o que lhe dava na veneta. Havia muita gente que se deixava enganar pelas aparências. Porém, observando-o com atenção e considerando as circunstâncias que o rodeavam, percebia-se facilmente até que ponto as suas jogadas eram calculadas com frieza, ao pormenor. Comparando com uma partida de shōgi, o xadrez japonês, adiantava-se, por regra, várias jogadas ao seu adversário. Verdade seja dita, ele gostava de estratégias engenhosas, mas, por outro lado, tinha o cuidado de traçar sempre uma linha no lugar pretendido, que depois procurava não ultrapassar. Podia dizer-se que, no fundo, tinha um temperamento sensível. Quanto às atitudes irreverentes que alardeava, não passavam de puro teatro, na sua maioria. Era um homem precavido, Komatsu, e sabia defender-se muito bem, de várias 632/1088
maneiras. Por exemplo, todas as semanas escrevia uma coluna de opinião na edição vespertina de um certo jornal diário. Na sua crónica literária, aproveitava para elogiar ou denegrir certos e determinados autores. Os textos que escrevia quando pretendia criticar pela negativa podiam ser bastante agressivos. Textos desses eram a sua especialidade. Apesar de se tratar de uma coluna não assinada, nos círculos literários toda a gente sabia quem se encontrava por trás dela. Naturalmente, ninguém gostava de ver o seu nome arrastado pela lama num jornal, daí que os escritores procurassem evitar, na medida do possível, travar-se de razões com Komatsu. Quando o senhor editor lhes pedia qualquer artigo para uma revista, faziam por nunca lhe dizer que não. Caso contrário, quem sabe o que poderia o homem escrever sobre eles na crónica seguinte. Tengo não apreciava essa vertente calculista de Komatsu. Por um lado, estava-se 633/1088
nas tintas para o mundo literário; por outro, aproveitava-se do sistema em seu proveito. Komatsu possuía um faro excelente enquanto editor e ajudara Tengo em repetidas ocasiões. Os conselhos que lhe havia dado sobre a arte de escrever romances também se tinham revelado, de uma maneira geral, bastante pertinentes. Contudo, Tengo mantinha uma certa distância e mostrava-se prudente na sua relação com Komatsu. Não estava para se aproximar demasiado e depois ver o tapete ser-lhe retirado de repente, na hipótese de cometer uma imprudência e pisar o risco. Nesse sentido, também Tengo era um indivíduo que tomava as suas cautelas. – Como acabei de te dizer, a tua versão do romance A Crisálida de Ar anda perto da perfeição. É um grande trabalho – prosseguiu Komatsu. – No entanto, há uma parte, uma única parte, que gostaria que voltasses a reescrever, se for possível. Não tem de ser agora. A coisa está com nível 634/1088
suficiente para conquistar o júri, até porque se trata de um galardão atribuído a uma primeira obra. Depois de ganhar o prémio e durante a fase de preparação do original para ser publicado na revista33, então sim, nessa altura poderias retocá-la. – Que parte? – No momento em que o Povo Pequeno fabrica a crisálida de ar, há duas luas. A rapariga olha para cima, para o céu, e vê duas luas, uma ao lado da outra. Lembras-te? – Claro que me lembro. – Na minha opinião, a referência às duas luas é insuficiente. Não chega. Gostaria que as descrevesses de forma mais pormenorizada. Só te peço que corrijas essa parte. – Talvez a descrição seja um pouco árida. Mas já lhe expliquei que não gostaria de estragar a fluência narrativa que a Fuka-Eri imprime ao texto, correndo o risco de o tornar demasiado explícito. 635/1088
Komatsu levantou a mão em que exibia um cigarro entre os dedos. – Analisa a questão desta maneira, Tengo: se no céu existisse uma única lua, o leitor não ficaria surpreendido, certo? No entanto, duvido que alguma vez tenham observado duas luas flutuando no céu, lado a lado. Ao introduzir num romance qualquer coisa que a maioria dos leitores nunca viu, é necessário descrevê-la ao pormenor e com grande precisão. Pelo contrário, o que se pode suprimir, o que é preciso eliminar, diria eu, são as descrições de coisas que o leitor está farto de ver. – De acordo – admitiu Tengo. A explicação de Komatsu tinha a sua lógica. – Vou descrever com mais pormenor a parte em que aparecem as duas luas. – Muito bem. Então sim, a obra ficará perfeita – afirmou Komatsu, antes de apagar o cigarro no cinzeiro. – É tudo o que tenho para te dizer. 636/1088
– Alegra-me que faça elogios ao meu trabalho, como sempre – retorquiu Tengo –, mas, desta vez, sinceramente, não me parece que seja tão simples quanto isso. – Estás a tornar-te bom naquilo que fazes – disse Komatsu, devagar, separando bem as palavras, de um modo enfático. – Como romancista, começas a ficar um escritor mais maduro. Só por si, deveria constituir motivo suficiente para te alegrares. Ao corrigires A Crisálida de Ar, aprendeste muito acerca da escrita e da literatura. Tenho a certeza de que esses conhecimentos se revelarão uma preciosa ajuda da próxima vez, quando escreveres a tua própria obra. – Oxalá haja uma próxima vez. – Não te preocupes, fizeste o que tinhas a fazer. Agora passas-me a bola e deixas que eu me encarregue do assunto. Senta-te na bancada, descontrai-te e limita-te a assistir ao desenrolar do jogo. 637/1088
A empregada aproximou-se e deitou água fria nos dois copos. Tengo bebeu logo metade da sua água. Só depois é que percebeu que nem sequer estava com sede. – Foi Aristóteles quem disse que a alma dos seres humanos é composta de razão, vontade e paixão? – perguntou Tengo. – Foi Platão. Comparar Aristóteles com Platão equivale a dizer que Mel Tormé é parecido com Bing Crosby. Seja como for, as coisas eram mais simples no passado – afirmou Komatsu. – Não te diverte só a ideia de imaginar a razão, a vontade e a paixão reunidas em assembleia à volta de uma mesa, numa discussão acalorada? – Julgo saber qual levaria as outras de vencida. – Do que eu gosto mais em ti – disse Komatsu, colocando o dedo indicador em riste – é desse teu sentido de humor. Não é sentido de humor, disse Tengo para si mesmo. Mas calou-se bem calado. 638/1088
Depois de se despedir de Komatsu, Tengo entrou numa das livrarias da cadeia Kinokuniya, comprou vários livros e começou logo a folheá-los num bar ali próximo, enquanto tomava uma cerveja. Não havia nada que lhe desse mais gozo: passar pela livraria e, logo a seguir, ir sentar-se a ler as novidades editoriais, com uma bebida na mão. Naquela noite, por qualquer razão, Tengo parecia incapaz de se concentrar na leitura. A imagem da mãe, que passava a vida a aparecer diante dos seus olhos, não havia meio de desaparecer. A mãe soltava as alças da combinação branca, tirava para fora os seus belos seios e oferecia-os a um homem que não era o seu pai. Tratava-se de um indivíduo corpulento, mais novo, com umas feições bem proporcionadas. No seu berço, ainda bebé, Tengo dormia profundamente; de olhos fechados, podia ouvir-se a sua respiração regular. Enquanto o homem lhe chupava os mamilos, ao rosto da mãe aflorava uma 639/1088
expressão de êxtase. Parecia a sua namorada mais velha quando atingia o orgasmo. Tengo perguntara-lhe, um dia, por mera curiosidade, se ela se importava de usar uma combinação branca. – Se quiseres – respondeu ela, com um sorriso. – Da próxima vez, visto uma. Tens mais algum pedido que desejes ver realizado? Não te acanhes, podes dizer-me tudo. – Já agora, podes trazer também uma blusa branca? Quanto mais simples, melhor. Na semana seguinte, ela apareceu-lhe à frente com uma blusa branca e uma combinação branca. Tengo despiu-lhe a blusa, baixou-lhe a alça da combinação e chupoulhe os mamilos, colocando-se na mesma posição do homem que aparecia nas suas visões e adotando o mesmo ângulo. Nesse momento, sentiu uma ligeira vertigem. A mente tornou-se turva e, à sua volta, as coisas perderam os seus contornos precisos. Na parte inferior do corpo formou-se uma 640/1088
sensação de languidez que se intensificou rapidamente, o membro inchou com uma rapidez incrível e, mal se deu conta, estava a estremecer e a ejacular com violência. – Tengo, que aconteceu? Já te vieste? – perguntou a amiga, espantada. Tengo não compreendia bem o que acontecera, só sabia que tinha acabado de ejacular para cima da roupa interior dela, na parte de baixo do slip. – Desculpa – disse ele. – Não era minha intenção, mas... – Não tens de pedir desculpa – confortouo a amante, num tom jovial. – Vou num instantinho passar isto debaixo da torneira, desaparece logo. É o tipo de coisa que está sempre a acontecer. Se fosse uma nódoa de molho de soja ou de vinho tinto, seria bem mais difícil de sair. A mulher despiu-se, foi à casa de banho e passou por água a zona manchada com 641/1088
sémen. A seguir, pôs a roupa a secar, pendurada no varão do chuveiro. – A excitação deve ser mais do que muita – referiu ela, e sorriu docemente. Com a palma da mão, acariciou devagarinho o ventre de Tengo. – Com que então, o meu Tengo gosta de combinações brancas... – Não é isso – ripostou Tengo. Ao mesmo tempo, porém, não foi capaz de explicar a verdadeira razão por que lhe fizera semelhante pedido. – Se tiveres mais alguma fantasia do género, conta-me tudo, ouviste? Aqui a tua irmãzinha, pura e simplesmente, adora fantasias. Não há ninguém que passe pela vida sem a sua fantasiazinha. Queres que eu volte a trazer a combinação branca? – Não é necessário. Uma vez chegou e bastou, obrigado.
Tengo perguntava-se amiúde se o homem novo que via a chupar o peito da mãe nas visões que tinha seria o seu pai biológico.
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Porque, em boa verdade, a pessoa que Tengo se tornara em adulto não se parecia em nada com o pai que conhecia – o ilustre cobrador da NHK. Tengo era grande, de compleição robusta, tinha a testa alta e o nariz estreito, as orelhas redondas e enrugadas. O pai era baixo e rechonchudo, de aparência humilde. Tinha uma testa pequena, o nariz achatado e as orelhas pontiagudas como as de um cavalo. Em contraste com o rosto calmo e generoso de Tengo, o pai parecia andar sempre com um ar nervoso e exibir uma expressão mesquinha. Muito boa gente, ao estabelecer comparação entre os dois, dizia que nem pareciam pai e filho. Porém, mais do que as feições, o que desagradava a Tengo no pai, e o que dificultava o processo de identificação com ele, eram as suas idiossincrasias e os seus traços psicológicos. Carecia de toda e qualquer curiosidade intelectual. Verdade seja dita que o pai não recebera uma educação digna desse nome. 643/1088
Nascera numa família pobre e não tivera oportunidade de apreender nem de interiorizar um sistema intelectual organizado que lhe permitisse pensar de forma autónoma. Até certo ponto, Tengo sentia pena do pai, devido às circunstâncias que haviam marcado a sua vida. No entanto, o desejo primário de obter conhecimentos – a chamada cultura geral, que, em maior ou menor grau, Tengo partia do princípio de que toda a gente tinha –, no caso daquele homem era praticamente nulo. Possuía, isso sim, um saber de natureza prática, que adquirira com a experiência, mas não se mostrava inclinado a superar-se por via do esforço, a querer aprofundar os seus conhecimentos com vista a alargar os seus horizontes. Apesar de o pai viver fechado no seu pequeno mundo rígido, seguindo as suas regras intolerantes, não se podia dizer que essa estreiteza de vistas e a fraca qualidade do ar que respirava lhe causassem qualquer 644/1088
sofrimento. Tengo não se lembrava de o ter visto pegar num livro em casa. Nem sequer o jornal lia (na sua opinião, ver os noticiários da NHK chegava e sobrava). Não se interessava por cinema nem por música. Nunca fora de viagem a nenhum lado. A única coisa que parecia despertar-lhe interesse eram as rotas de cobrança que lhe estavam destinadas. Traçara um mapa da zona, marcara os locais com esferográficas de cores diferentes e, sempre que tinha vagar, punhase a estudar os percursos que lhe cabiam. Como um biólogo atento ao processo de divisão e classificação de cromossomas. Em compensação, Tengo fora desde pequeno considerado um menino-prodígio das matemáticas. As suas notas em Aritmética destacavam-se da média. No terceiro ano da primária já ele resolvia problemas que constavam do programa do secundário superior. No resto das outras disciplinas também obtinha notas bastante boas, e 645/1088
com o mínimo de esforço. Sempre que tinha tempo livre, devorava livros. Era curioso e absorvia conhecimentos dos mais variados ramos, assim como uma escavadora engole a terra. Por tudo isso, de cada vez que punha os olhos no pai, Tengo não era capaz de entender como é que metade dos seus genes podiam ser os mesmos que os daquele homem, de vistas tão estreitas e tão inculto, que tornara biologicamente possível a sua existência. O meu verdadeiro pai deve estar algures, noutro lugar qualquer. Ao entrar na adolescência, Tengo deu por si a chegar a essa conclusão. Devido a circunstâncias diversas, tal como acontecia com as crianças desamparadas que aparecem nos romances de Dickens, Tengo devia ter sido criado pelo homem a quem chamava pai, com o qual não tinha qualquer laço de sangue. 646/1088
Para o jovem Tengo, então adolescente, essa hipótese revelou-se um pesadelo e, ao mesmo tempo, uma grande esperança. Lia Charles Dickens com um entusiasmo próximo do delírio. O primeiro romance tinha sido Oliver Twist, e desde aí ficara obcecado por Dickens, ao ponto de ter lido quase todas as obras que havia na biblioteca. Quando mergulhava no universo romanesco criado por aquele escritor, dava rédea solta à imaginação. Essa imaginação (ou fantasia) crescia rapidamente, tornava-se mais complexa e tomava conta da sua mente. A partir de um só padrão, nasciam infinitas variações. Tengo convencia-se a si próprio, em todo o caso, de que aquele não era o seu lugar. Alguém o devia ter encerrado por engano numa jaula. Um dia, quem sabe?, os seus verdadeiros pais, guiados pela boa fortuna, haveriam de o encontrar e de o resgatar daquela tenebrosa e sufocante prisão, levando-o com eles de volta ao lugar que lhe 647/1088
pertencia por direito. Saberia então o que era ter domingos maravilhosos, passados em paz e liberdade. O pai ficava contente com o aproveitamento brilhante que Tengo alcançava na escola. Não só contava que ele tirasse as melhores notas, como passava o tempo a gabarse disso na vizinhança. Ao mesmo tempo, porém, num canto recôndito do seu coração, não achava especial graça à inteligência e ao potencial do filho. De vez em quando, vendo o rapaz sentado à secretária, a estudar, interrompia-o, talvez de propósito, e mandava-o fazer tarefas domésticas ou recadinhos, ou então punha-se a atazaná-lo a propósito do seu comportamento (encontrava sempre alguma coisa com que implicar). As reprimendas iam sempre dar ao mesmo: «Enquanto eu passo os dias a aguentar toda a ordem de insultos, no meu trabalho como cobrador, e me vejo obrigado a percorrer longas distâncias e a fossar no 648/1088
duro, tu levas uma vida despreocupada e feliz. Quando tinha a tua idade, obrigavam-me a trabalhar que nem um cão em casa, e o meu pai e o meu irmão mais velho davamme tareias de morte, até eu ficar todo negro. E, outra coisa, para além de não me darem comida suficiente, ainda me tratavam como se eu fosse gado. Por isso, que não te suba à cabeça, só pelo facto de teres sacado umas notas mais ou menos decentes...» Era aquela lengalenga que o pai repetia vezes sem conta. O meu pai só pode ter inveja de mim. É isso: tem inveja de mim, por eu ser quem sou ou pela posição em que me encontro. Mas será possível que um pai sinta inveja do seu filho? Houve uma altura, quando já era mais crescido, em que Tengo começou a pensar que o homem sentia inveja dele. Sendo ainda uma criança, Tengo não tinha capacidade para responder a semelhante pergunta, mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de captar 649/1088
uma espécie de mesquinhez que transparecia nas palavras e nos gestos do pai – e isso tornava-se-lhe quase fisicamente insuportável. Não, não se tratava apenas de um sentimento de inveja. Muitas vezes, Tengo sentia que aquele homem detestava qualquer coisa que o filho albergava no mais fundo de si. Não que odiasse o filho, como pessoa. Odiava qualquer coisa que ele tinha no seu interior. Dava a Tengo a impressão de que o pai não lhe perdoava isso.
A matemática proporcionava a Tengo um eficaz meio de evasão. Ao procurar esconderse no mundo das fórmulas, podia escapar da complexa prisão que a realidade representava. Percebera desde muito novo que bastava acender um interruptor na sua cabeça para aceder com toda a facilidade ao universo matemático. Sentia-se totalmente livre enquanto percorria os corredores tortuosos do gigantesco edifício, e investigava aquele universo de coerência infinita,
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abrindo, uma atrás da outra, as portas numeradas. De cada vez que um novo cenário se oferecia diante dos seus olhos, o tenebroso rasto que havia ficado do mundo real desvanecia-se até se apagar por completo. O mundo regido pelas fórmulas matemáticas era, para ele, um refúgio legítimo, secreto e seguro. Melhor do que ninguém, Tengo conhecia a geografia desse planeta e estava em condições de escolher as rotas certas. Desde que ali estivesse, ninguém podia seguir-lhe no encalço; enquanto ali permanecesse, podia esquecer-se e ignorar por completo as regras e as responsabilidades impostas pelo mundo real. Comparado com o magnífico edifício imaginário da matemática, o mundo romanesco de Dickens representava para Tengo uma imensa floresta encantada. A matemática expandia-se pelo céu, até ao infinito, e, em contraste, a floresta estendia-se em silêncio diante dos seus olhos. As suas raízes escuras 651/1088
e robustas penetravam nas profundezas da terra. Ali não havia mapas nem portas numeradas. Desde a escola primária até ao secundário básico, Tengo entregara-se fervorosamente ao estudo da matemática, não só devido à sua lógica e ao sentimento de liberdade absoluta, mas porque necessitava dela para sobreviver. Porém, ao entrar na adolescência, o sentimento de que aquilo não era suficiente começou a avolumar-se. Quando visitava o mundo da matemática, os problemas não existiam. Tudo corria sobre rodas, nada lhe tolhia o passo. Mas bastava-lhe voltar à realidade para se encontrar de novo confinado ao interior daquela miserável jaula. A situação em nada havia melhorado. Pelo contrário, os grilhões que o prendiam davam a impressão de ser mais pesados. Sendo assim, para que diabo lhe servia a matemática? Acaso não era mais do que uma forma de 652/1088
evasão temporária, contribuindo apenas para tornar a sua situação real ainda pior? À medida que as dúvidas aumentavam, Tengo começou a manter, de forma consciente, uma distância entre ele e a matemática. Ao mesmo tempo, deu por si a sentir-se cada vez mais atraído pela floresta ficcional. Claro que a leitura de romances funcionava como um escape, só que a outro nível. Assim que fechava as páginas de um livro, via-se obrigado a voltar ao mundo real. A certa altura, porém, Tengo deu-se conta de que, quando regressava à realidade, depois de ter visitado o mundo a partir do universo dos romances, não experimentava a frustração que sentia sempre que voltava do universo matemático. A que se deveria? Depois de muito ter pensado sobre o assunto, não tardou em chegar a uma conclusão. Na floresta da ficção, por mais evidentes que fossem as relações entre as coisas, nunca obtinha respostas lógicas, ao inverso do que sucedia 653/1088
com a matemática. O papel da narrativa era, de modo geral, apresentar um problema numa forma distinta. E, dependendo da natureza e da transformação que a história podia conhecer, a solução podia estar sugerida na própria narrativa. Tengo pegava nesse material e regressava, assim, ao mundo real empunhando essa sugestão. Era como um pedaço de papel em que se tivesse escrito um presságio impossível de decifrar. Por vezes, faltava-lhe coerência e a coisa não tinha qualquer utilidade prática imediata. No entanto, continha em si uma possibilidade. Um dia, quem sabe?, seria capaz de decifrar aquele presságio. Essa possibilidade ia-lhe aquecendo o coração, devagarinho. Com o passar dos anos, tudo aquilo que a ficção sugeria começou a atrair cada vez mais o interesse de Tengo. A matemática continuava a dar-lhe um gozo incrível, mesmo em adulto. Quando ensinava matemática aos alunos que se preparavam para entrar na 654/1088
universidade, apoderava-se dele, naturalmente, o mesmo entusiasmo que sentia em pequeno. Partilhar a alegria dessa liberdade abstrata com terceiros era uma coisa maravilhosa, mas Tengo não conseguia já entregar-se sem reservas a um mundo dominado por fórmulas matemáticas, sabendo, como sabia, que, por muito longe que a sua busca o levasse, não encontraria a resposta de que andava realmente à procura.
Quando frequentava o quinto ano da primária, e depois de muito cismar, Tengo anunciou ao pai que não estava disposto a andar mais atrás dele durante as rondas dominicais destinadas a arrebanhar uns cobres para a NHK, como até aí tinha acontecido. Queria aproveitar esse tempo para estudar, para ler e para jogar. Tal como o pai tinha o trabalho dele, também ele, Tengo, tinha coisas para fazer, explicou. – Desejo levar uma vida normal, igual à de todos os meus companheiros. – Disse-lhe só
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isto. Foi breve e conciso, mas fez uso da lógica. O pai, como seria de esperar, ficou danado. – Tanto se me dá como se me deu o que acontece com as outras famílias. Nós temos a nossa maneira de fazer as coisas, mais nada. Em nossa casa, quem manda somos nós – afirmou ele. – E não te atrevas a vir ter comigo, armado em importante, com essa história da vida normal. Que sabes tu do que é uma vida normal? Tengo nem sequer tentou chamá-lo à razão. Limitou-se a ficar mudo e quedo. Dissesse ele o que dissesse, sabia à partida que as suas palavras não surtiriam efeito junto do pai. – Se é isso que pretendes, muito bem – continuou o pai na sua arenga. – Alguém que não acata as ordens do pai não merece que lhe continuem a dar de comer em casa. Por mim, podes ir-te embora daqui, hoje mesmo! 656/1088
Tengo fez as malas e saiu de casa, tal como lhe fora ordenado. Havia muito que a decisão estava tomada, e não ia acobardar-se, mesmo que o pai perdesse a cabeça, armasse um escândalo ou levantasse a mão para ele (muito embora nunca o tivesse feito). A partir do momento em que recebia autorização para escapar da jaula, era alívio o que sentia. No entanto, um rapaz de dez anos não podia subsistir entregue a si próprio. Como tal, depois da escola, viu-se obrigado a confessar a situação em que se encontrava à professora responsável por ele, quando as aulas chegaram ao fim. Disse-lhe que não tinha onde passar a noite. Depois, explicou-lhe o sacrifício que representava ter de acompanhar o pai na dita ronda, todos os domingos. A professora era uma mulher solteira que devia andar pelos seus trinta e tal anos. Não se podia dizer que fosse muito bonita, além de usar uns óculos grossos que metiam medo ao 657/1088
susto, mas era uma pessoa justa e carinhosa. De pequena estatura, taciturna por natureza, possuía, contudo, um lado temperamental e, quando lhe subia a mostarda ao nariz, transformava-se noutra pessoa e ninguém a conseguia agarrar. Semelhante metamorfose deixava toda a gente perplexa. Todavia, Tengo gostava dela, e não eram os seus repentes que lhe metiam medo. A professora escutou o que Tengo tinha para contar, compreendeu os seus sentimentos e mostrou-se solidária com ele. Deixou que o menino ficasse lá em casa e pô-lo a dormir no sofá da sala de estar, tapado com uma manta. Na manhã seguinte, preparoulhe o pequeno-almoço. À tardinha, acompanhou-o a casa do pai, com quem ficou a discutir durante muito tempo. A Tengo foi-lhe dito que abandonasse a sala, por isso ele nunca ficou a saber qual o teor da conversa, mas, finalmente, o pai não teve outro remédio senão enterrar o 658/1088
machado de guerra. Por muito exaltado que estivesse, não podia deixar um rapazinho de dez anos sozinho na rua. A lei determinava que os pais tinham o dever de tomar conta dos filhos. Em resultado da negociação, ficou acordado que Tengo poderia passar os domingos como lhe apetecesse. De manhã, teria a seu cargo as tarefas da casa, mas depois podia fazer o que bem lhe desse na bolha. Tratava-se do primeiro direito formal que obtinha do seu pai, desde que nascera. O pai continuava irritadíssimo e passou uma temporada sem lhe dirigir a palavra; no entanto, isso não perturbou Tengo por aí além. Tinha conseguido o mais importante. Dera o seu primeiro passo em direção à liberdade e à independência.
Ao terminar a escola primária, Tengo passou muito tempo sem tornar a ver aquela professora. Poderia ter-se cruzado com ela, no caso de assistir, de vez em quando, às
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reuniões de antigos alunos, para as quais era convidado, mas, em abono da verdade, Tengo não tinha vontade nenhuma de frequentar esse tipo de encontros. Não guardava boas recordações daquela escola primária. Ainda assim, volta e meia, lembrava-se da professora. Afinal, ela deixara-o passar a noite em sua casa, e depois lograra convencer o casmurro do pai. E isso não era uma coisa que se esquecesse. Quando voltou a vê-la, estava ele no segundo ano do secundário superior. Naquele tempo, Tengo pertencia ao clube de judo, mas, devido a uma lesão nos gémeos, passara dois meses sem participar em competições. Entretanto, tinham-no desafiado para fazer uma perninha como percussionista na banda da escola. Aproximava-se a data de um concurso e acontecia que um dos percussionistas se transferira para outro colégio, de repente, e o suplente apanhara uma gripe contagiosa. Resultado: como 660/1088
estavam desesperados, deitaram a mão ao primeiro que sabia agarrar em duas baquetas e enfiaram-no à força na banda, a fim de terem quem os ajudasse naquela situação de emergência. O professor de Música reparara em Tengo, a quem lhe doía a perna e sobrava tempo, e meteu-o nos ensaios da banda com a promessa de lhe fornecer comida em abundância e uma boa nota no trabalho final. Até à data, Tengo nunca tocara um instrumento de percussão em toda a sua vida, tãopouco havia sentido qualquer interesse nisso. Quando experimentou, viu que se ajustava espantosamente à natureza do seu intelecto. Sentia um prazer espontâneo ao dividir o tempo em pequenos fragmentos, para depois tornar a reagrupá-los até os transformar em eficazes séries tonais. Visualizava mentalmente o conjunto dos sons em forma de diagramas. Como uma esponja que embebe a água, conseguiu absorver o modo 661/1088
como funciona o sistema dos distintos instrumentos de percussão. O professor de Música apresentou-lhe um percussionista que tocava numa orquestra sinfónica, e Tengo iniciou-se com ele na arte de tocar timbales. Ao fim de algumas horas de aprendizagem, adquirir os rudimentos e ficou a dominar mais ou menos a técnica interpretativa do instrumento. Como as partituras apresentavam semelhanças com as equações matemáticas, não lhe foi difícil aprender a lêlas. O professor de Música mostrou-se impressionado ao descobrir o extraordinário talento de Tengo para a música. «Dir-se-ia que tens um dom inato para os ritmos complexos, para além de possuíres um ouvido fabuloso», elogiou ele. «Se continuares a estudar com profissionais, poderás perfeitamente tornarte um deles.» O timbale era um instrumento difícil, mas possuía uma profundidade e um poder de 662/1088
persuasão peculiares, para além de oferecer infinitas possibilidades no que tocava à combinação de sons. Tengo e os seus companheiros de banda encontravam-se precisamente a ensaiar vários movimentos d’A Sinfonietta de Janáček, num arranjo feito para instrumentos de sopro. Iam interpretá-la como «peça de livre escolha», numa competição de bandas. Na parte da fanfarra inicial, os timbales desempenhavam um papel preponderante. O professor de Música, que era diretor da banda, escolhera aquela obra sabendo que podia contar com excelentes percussionistas; mas como, de um momento para o outro, pelas razões atrás referidas, tinha ficado sem o concurso deles, andava à beira de um ataque de ansiedade. Escusado será dizer que, na qualidade de substituto, cabia a Tengo um papel principal. À margem de tudo e de todos, ele tirava partido dos ensaios e do prazer de tocar, sem sentir os efeitos da pressão. 663/1088
Mal a interpretação da banda chegou ao fim, sem que houvesse defeitos a apontar (não chegaram a vencer, mas ficaram entre os primeiros), a antiga professora do quinto ano aproximou-se de Tengo e deu-lhe os parabéns por ter tocado maravilhosamente. – Soube logo que eras tu, Tengo – disse ela. Ele reconheceu aquela mulher pequenina, mas não se conseguia lembrar do nome. – A execução dos timbales foi tão boa que olhei para ver quem estava a tocar... e eras tu, imagina! Cresceste muito desde a última vez que nos encontrámos, mas reconheci-te logo. Quando é que começaste a tocar? Tengo explicou-lhe as circunstâncias em breves palavras. Sem conseguir esconder a sua admiração, ela escutou o que ele tinha para lhe dizer. – Decididamente, és um homem de muitos talentos. 664/1088
– Sinto-me mais à vontade no judo, ainda assim – confessou Tengo, com um sorrisinho. – A propósito, como está o teu pai? – Vai andando – respondeu Tengo. Disse aquilo por dizer, de forma automática. Na verdade, não sabia se o pai se encontrava bem ou mal, nem queria saber. Por aqueles dias, já saíra de casa havia muitas luas e tinha ido viver para uma residência de estudantes; para mais, não se lembrava da última vez em que falara com o pai. – O que a trouxe até aqui, professora? – quis saber Tengo. – A minha sobrinha toca clarinete na banda de outro colégio e quis que eu viesse escutar o solo dela. E tu, tencionas continuar a fazer música? – Assim que ficar bom da perna, quero regressar ao judo. Afinal, o judo é que me põe comida na mesa. Na minha escola, a prática do judo é muito incentivada. Posso viver na 665/1088
residência de estudantes e, com a senha de refeição, como três vezes por dia. Já com a banda não se pode dizer que as coisas funcionem assim. – Estou a ver que não queres depender do teu pai, é isso? – Bom, a senhora conhece o feitio dele – respondeu Tengo. A professora sorriu. – É uma pena. Olha que tens talento para dar e vender. Tengo olhou de novo para a professora pequenota que tinha diante de si. A seguir, recordou-se da noite em que ela o acolhera na sua casa. Veio-lhe à memória o pequeno apartamento, simples e prático – mas limpo e arrumado – em que vivia. Com cortinas de renda, meia dúzia de plantas em vasos. Uma tábua de passar a ferro e livros deixados a meio, por ler. Um pequeno vestido cor-derosa pendurado na parede. O cheiro do sofá onde dormira. Naquele momento, Tengo 666/1088
deu-se conta de que ela estava ali, de pé, à sua frente, nervosa como uma jovenzinha. Compreendeu então que também ele já não era o rapaz indefeso, o miúdo de dez anos, mas que se transformara num jovem corpulento de dezassete. O peito alargara, crescera-lhe a barba e sentia um apetite sexual mais forte do que ele. Por estranho que parecesse, sentia-se calmo na presença daquela mulher adulta. – Estou muito contente por te ver outra vez – disse ela. – Também eu – respondeu Tengo. O sentimento era verdadeiro. Ao mesmo tempo, queria lembrar-se do nome da mulher, mas não havia maneira de o conseguir.
31 Roman-fleuve («romance-rio») designa uma sequência de obras ligadas entre si por uma personagem ou pela mesma família, que se desenvolvem ao longo de um intervalo de tempo, e que abarcam várias tramas, formando um verdadeiro painel da sociedade da época. (N. das T.)
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32 Na tradução feita por António de Castro Caeiro, publicada na coleção de Textos Clássicos da Quetzal (que reproduzimos fielmente neste livro), o tradutor acrescenta, em nota, que «Tέχνηη» não surge ainda nesta obra como terminus technicus. «Arte» seria a sua tradução tradicional. No entanto, considerando que o termo de origem latina «está longe de dar conta da riqueza e da especificidade semânticas do termo grego», o filósofo e estudioso fez uma opção que privilegia tanto uma atividade de produção artística como técnica. (N. das T.)
33 3 No Japão, as obras literárias começam muitas vezes por ser publicadas em revistas literárias, e só depois são editadas em livro. Haruki Murakami publicou o seu primeiro romance, Kaze no uta o kike (Hear the Wind Sing, na versão inglesa) na Gunzō , depois de ter concorrido a um prémio destinado a novos escritores (a revista não só aceitava textos longos como inovadores). Murakami tinha, então, 29 anos. (N. das T.)
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AOMAME
Com firmeza, como se prendesses uma âncora a um balão
Aomame dava extrema importância à sua dieta quotidiana. Na sua maioria, as refeições que preparava para si própria consistiam em pratos vegetarianos, aos quais acrescentava peixe, sobretudo peixe branco. Quando muito, poderia juntar um pedaço de frango, o que era raro, sendo este o único tipo de carne que se permitia comer. Escolhia apenas produtos frescos e usava um mínimo de condimentos, rejeitando por completo os ingredientes com alto teor de gordura e fazendo uma baixa ingestão de
hidratos de carbono. As suas saladas levavam um toque de azeite, sal e sumo de limão; nunca usava molhos. Não se limitava a comer muitos vegetais; estudava os seus valores nutricionais ao pormenor e fazia por seguir uma dieta bastante equilibrada. Elaborava as suas próprias ementas originais e, quando lho pediam, partilhava-as com os membros do ginásio onde trabalhava. «Esqueçam a contagem das calorias», aconselhava sempre. «Acertando nos ingredientes e comendo com moderação, não precisam de prestar atenção aos números.» Isto não quer dizer que se agarrasse de forma obsessiva às suas ementas ascéticas. Se sentia um forte desejo de carne, entrava num restaurante e pedia um bife alto ou costeletas de borrego. Acreditava que um desejo insuportável por um alimento em particular significava que o corpo estava a enviar sinais a pedir algo de que realmente 670/1088
necessitava, e ela obedecia ao apelo da natureza. Apreciava o vinho e o saqué, contudo, estabelecera três dias por semana em que não bebia, de forma a limitar a ingestão de álcool para proteger o fígado e controlar os níveis de açúcar no sangue. Para Aomame o corpo era sagrado e devia ser mantido limpo, sem o mais pequeno grão de pó nem a mais ínfima mancha. O que esse santuário guardaria era outra questão, a ponderar mais tarde. Aomame não tinha carne a mais, só músculo. Confirmava-o por si própria, em frente ao espelho todos os dias, de pé, completamente nua. Não que se deleitasse na contemplação do seu próprio corpo. Muito pelo contrário. Os seus seios, além de pouco volumosos, eram assimétricos. Os pelos púbicos faziam lembrar um tufo de erva pisado por um exército em marcha. Franzia o cenho ao olhar para o seu próprio corpo, era 671/1088
inevitável; porém, carne em excesso, que pudesse beliscar, era algo que ela não tinha.
Levava uma vida frugal e as refeições eram a única coisa em que gastava dinheiro deliberadamente. Nunca se privava de comprar alimentos de qualidade e só bebia bons vinhos. Nas raras ocasiões em que comia fora, escolhia restaurantes que preparassem a comida com o maior cuidado. Quase mais nada lhe interessava – nem roupa, nem cosméticos, nem acessórios. Umas calças de ganga e um camisolão era quanto lhe bastava para se vestir para o trabalho no health club e, uma vez aí chegada, passava o resto do dia com umas calças e uma camisola de malha… sem acessórios, claro está. Eram também raras as vezes em que tinha oportunidade de sair com roupas elegantes. Depois do casamento de Tamaki Ōtsuka, deixou de ter amigas com quem jantar fora. Usava maquilhagem e vestia-se bem apenas quando saía em busca de um encontro ocasional, mas
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isso acontecia uma vez por mês e não exigia um guarda-roupa vasto. Quando era necessário, Aomame percorria as lojas de Aoyama e mandava fazer um «vestido de arrasar», comprando depois um ou dois acessórios e um par de sapatos de salto alto a condizer. Era quanto lhe bastava. Por regra, usava sapatos rasos e rabo-decavalo. Desde que lavasse bem a cara com sabonete e água e aplicasse hidratante, tinha um brilho permanente. O mais importante era ter um corpo limpo, saudável. Desde criança que Aomame fora habituada a uma vida simples, sem atavios. Os valores do estoicismo e da moderação haviam-lhe sido inculcados desde que se lembrava. Na casa da sua família havia apenas aquilo que era considerado estritamente necessário e a palavra «desperdício» era a que mais usavam. Não tinham televisão nem assinavam qualquer jornal: até mesmo as notícias eram consideradas como «não 673/1088
essenciais». Carne e peixe raras vezes encontravam lugar à mesa. As refeições na escola forneciam a Aomame os nutrientes de que necessitava para o seu desenvolvimento. As outras crianças queixavam-se da falta de sabor dos almoços e deixavam grande parte por comer, mas ela quase chegava a desejar ter o que eles desperdiçavam. Só vestia roupa herdada de outros. Os crentes organizavam reuniões periódicas para trocarem entre si os artigos de vestuário de que não necessitavam e, como resultado, os pais nunca lhe compraram uma peça de roupa nova, exceção feita ao equipamento de ginástica que a escola exigia. Não se recordava de alguma vez ter vestido ou calçado alguma coisa que lhe servisse na perfeição, e as suas peças de roupa eram uma misturada de cores e padrões que não condiziam entre si. Se ao menos não pudessem pagar outro estilo de vida, ela ter-se-ia resignado à situação, mas a família de Aomame estava longe 674/1088
de ser pobre. O pai era engenheiro, recebia um ordenado normal e tinha algumas poupanças. Escolhera um estilo de vida demasiado frugal exclusivamente por uma questão de princípio. Porque a vida que levava era tão diferente da das crianças à sua volta, durante muito tempo Aomame não conseguiu travar amizade com ninguém. Não tinha nem a roupa nem o dinheiro que lhe teriam permitido sair com os amigos. Nunca lhe deram uma semanada, pelo que, se fosse convidada para a festa de aniversário de alguém (o que, para o melhor e para o pior, nunca aconteceu), não poderia levar uma pequena lembrança. Por causa de tudo isto, Aomame odiava os pais e nutria um profundo desprezo pelo mundo a que pertenciam e pela ideologia desse mesmo mundo. Ansiava por uma vida normal, igual à de tanta gente. Nada de luxos: apenas uma vidinha absolutamente vulgar, apenas. Tinha pressa em tornar-se 675/1088
adulta para poder deixar os pais e ir viver sozinha… comer tudo aquilo que tivesse vontade de comer, gastar o dinheiro disponível como bem lhe apetecesse, usar roupa nova escolhida por si, calçar sapatos que fossem o seu número, ir aonde a fantasia a levasse, fazer montes de amigos e trocar prendas com bonitos embrulhos entre todos. Contudo, uma vez adulta, Aomame descobriu que só se sentia confortável vivendo sob as regras do estoicismo e da moderação. O que mais desejava não era sair com alguém, toda bem vestida, mas passar o tempo sozinha, no seu quarto, com um conjunto de calças e top de jérsei. Depois de Tamaki morrer, Aomame demitiu-se da companhia de bebidas isotónicas, abandonou a residência em que vivera até então e mudou-se para um prédio de apartamentos de uma divisão para arrendar, no animado e descontraído bairro de Jiyūgaoka, afastado do centro da cidade. 676/1088
Apesar de dificilmente poder ser considerado espaçoso, a ela parecia-lhe enorme. Mobilou o apartamento apenas com o essencial… exceção feita à sua extensa panóplia de utensílios de cozinha. Dispunha de poucos bens. Gostava de ler livros, mas, assim que acabava de os ler, vendia-os a um alfarrabista. Gostava de ouvir música, mas não guardava os discos. Odiava ver os seus bens amontoarem-se. Sempre que comprava alguma coisa, tinha sentimentos de culpa. Não preciso verdadeiramente disto, dizia para si mesma. Só de ver a roupa e os sapatos mais bonitos guardados no armário, ficava com uma dor no peito e tinha dificuldade em respirar. Ainda que pareça paradoxal, essas imagens, sugerindo liberdade e opulência, recordavam a Aomame a sua infância despojada. O que significava para uma pessoa ser livre?, perguntava-se muitas vezes. Mesmo que a pessoa consiga fugir de uma gaiola, 677/1088
não dará consigo dentro de outra gaiola maior? Sempre que Aomame mandava para o outro mundo um homem marcado, a viúva de Azabu entregava-lhe uma remuneração. Um rolo de notas num embrulho de papel branco bem apertado era depositado numa caixa postal. Aomame recebia a chave das mãos de Tamaru, retirava o conteúdo da caixa dos correios e, mais tarde, devolvia a chave. Sem quebrar o selo no pacote de notas para contar o dinheiro, atirava o rolo para dentro do seu cofre no banco, que continha já dois sólidos tijolos de dinheiro vivo. Aomame não conseguia gastar o salário mensal que recebia do health club e dispunha mesmo de algumas poupanças no banco. Do mesmo modo, não achara um destino específico a dar ao dinheiro da viúva, o que tentara explicar-lhe quando recebera pela primeira vez a remuneração. 678/1088
– Não passa de uma formalidade – dissera a velha senhora, doce mas firmemente. – Pensa nisto como uma espécie de protocolo… um requisito. No mínimo, requer-se que o recebas. Se não precisas do dinheiro, não tens de fazer uso dele. Se odeias a ideia de o receber, não me importo que o does anonimamente a qualquer obra de caridade. És livre de o aplicar como quiseres. Mas, se queres a minha opinião, o melhor é guardá-lo num sítio qualquer e não lhe tocar durante uns tempos. – Não me agrada a ideia de dinheiro a trocar de mãos por causa de uma coisa destas – disse Aomame. – Percebo os teus sentimentos, mas lembra-te disto: graças à circunstância de estes homens horríveis terem tido a gentileza de se afastarem da nossa presença, não houve necessidade de processos de divórcio ou lutas pela custódia dos filhos, nem foi preciso que as mulheres vivessem no terror 679/1088
de que os maridos pudessem aparecer de um momento para o outro para lhes dar uma carga de pancada a ponto de ficarem irreconhecíveis. Os seguros de vida e as pensões de sobrevivência foram pagos. Pensa no dinheiro que recebes como a forma visível da gratidão das mulheres. Sem dúvida que fizeste o que estava certo, mas as tuas ações não devem ficar sem recompensa. Percebes porquê? – Não, realmente não percebo – retorquiu Aomame, com toda a honestidade. – Porque não és nem um anjo, muito menos Deus. Tenho a plena consciência de que as tuas ações foram resultado da pureza dos teus sentimentos e percebo perfeitamente que, por essa mesma razão, não queiras receber dinheiro pelo que fizeste. Mas, à sua maneira, os sentimentos puros e genuínos são perigosos. Não é fácil para um ser humano de carne e osso continuar a viver com tais sentimentos. É por isso que se torna 680/1088
necessário prender os teus à terra… com firmeza, como se prendesses uma âncora a um balão. O dinheiro é para isso. Para evitar que penses que podes fazer o que te der na cabeça, desde o momento que esteja correto e os teus sentimentos se mantenham puros. Percebes agora? Depois de pensar um bocado, Aomame fez um sinal de concordância com a cabeça. – Na verdade, não percebo lá muito bem, mas, por enquanto, farei como diz. A anciã sorriu e bebericou a sua tisana. – Agora não faças a patetice de o pôr na tua conta bancária. Se os homens dos impostos o descobrem, vão ter todo o gosto em descobrir de onde pode vir. Limita-te a guardar o dinheiro num cofre. Um dia, pode vir a dar jeito. – Assim farei – respondeu Aomame.
Regressada a casa depois do ginásio, estava a preparar o jantar quando o telefone tocou.
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– Ora viva, Aomame – disse uma voz de mulher. Uma voz ligeiramente rouca. Era Ayumi. Encostando com força o auscultador ao ouvido, Aomame estendeu a mão e baixou o gás do fogão, ao mesmo tempo que falava: – Que tal o trabalho de polícia, nos dias que correm? – Ando a passar multas de estacionamento que nem uma louca. Toda a gente me odeia. Nada de homens por perto, só trabalho, muito e bom trabalho. – Fico contente por saber. – O que estás tu a fazer neste momento? – perguntou Ayumi. – A cozinhar o jantar. – Estás livre depois de amanhã? À noite, quero dizer. – Estou livre, mas não estou preparada para outra saída como a última. Preciso de recuperar. 682/1088
– Eu também – disse Ayumi. – Estava só a pensar que já não te vejo há algum tempo. Gostava de estar contigo para conversar, é tudo. Aomame pensou um pouco na sugestão de Ayumi, mas não foi capaz de se decidir, assim do pé para a mão. – Sabes, apanhaste-me com o lume aceso – disse. – Agora não posso parar. Telefonasme dentro de meia hora? – Claro – disse Ayumi. – Meia hora, então. Aomame desligou e acabou de saltear os legumes. A seguir, fez uma sopa de miso com rebentos de soja e comeu-a com arroz integral. Bebeu meia lata de cerveja e despejou o resto pelo cano. Já tinha lavado a loiça e estava sentada no sofá quando Ayumi voltou a telefonar. – Pensei que podia ser agradável jantarmos as duas um destes dias – disse. – Estou farta de comer sozinha. – Comes sempre sozinha? 683/1088
– Vivo numa residência da polícia, com as refeições incluídas, pelo que costumo comer no meio de uma grande multidão barulhenta. No entanto, por vezes, apetece-me uma refeição boa e calma, talvez num sítio mais elegante. Mas sozinha não. Percebes o que estou a dizer? – Claro que sim – respondeu Aomame. – E não tenho ninguém, homem ou mulher, com quem possa ir comer numa ocasião dessas. Todos gostam de parar em sítios baratos. Contigo, no entanto, pensei que talvez fosse possível, se não te importasses… – Não, não me importava nada – retorquiu Aomame. – Vamos a isso. Vamos fazer uma refeição elegante as duas. Há bastante tempo que não faço nada do género. – A sério? Fico feliz da vida! – Disseste que depois de amanhã está bem para ti? – Certo. Estou de folga no dia a seguir. Conheces algum sítio agradável? 684/1088
Aomame referiu um determinado restaurante francês no bairro de Nogizaka. Ayumi teve um sobressalto. – Estás a brincar? É só o restaurante francês mais famoso da cidade. Li numa revista que era loucamente caro e que é preciso esperar dois meses por uma reserva. Não é lugar para uma pessoa que ganhe o meu salário! – Não te preocupes, o chef e dono do restaurante é membro do meu ginásio. Sou treinadora pessoal dele e costumo dar-lhe uns conselhos acerca do valor nutricional das ementas. Tenho a certeza de que, se lhe pedir, ele nos reserva uma mesa… e também vai cortar uma talhada à conta. É claro que não posso garantir que nos reserve lugares fantásticos. – Nesse sítio, nem me importo de ficar sentada no lavabo! – disse Ayumi. – É melhor levares o teu melhor vestido – aconselhou Aomame. 685/1088
Ao desligar o telefone, Aomame sentiu-se ligeiramente chocada por perceber que se tinha afeiçoado à jovem polícia. Não sentia o mesmo por ninguém desde a morte de Tamaki Ōtsuka. E, apesar de os sentimentos serem absolutamente diferentes dos que experimentara por Tamaki, era a primeira vez em muito, muito tempo que iria partilhar uma refeição com uma amiga… ou até mesmo querer fazer tal coisa. A juntar ao facto de a outra pessoa ser uma agente da polícia! Aomame suspirou. A vida é muito estranha.
Aomame vestia um casaquinho branco sobre um vestido de mangas curtas azulacinzentado e calçava os seus sapatos de salto alto Ferragamo. Acrescentou uns brincos e uma fina pulseira de ouro. Tendo deixado o seu habitual saco a tiracolo em casa (juntamente com o picador de gelo), levava uma bolsinha La Bagagerie34. Ayumi vestia um casaco preto discreto da Comme des
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Garçons sobre uma T-shirt castanha com decote redondo, uma saia évasé às flores, uma mala Gucci que já lhe conhecia, uns brincos de pérolas, pequenos, de orelhas furadas, e sapatos de meio salto castanhos. Estava com um ar muito mais encantador e elegante do que da última vez… e nada com aspeto de agente da polícia. Encontraram-se no bar, bebericaram umas mimosas e foram conduzidas à mesa, que acabou por ser bastante boa. O chef saiu da cozinha para trocar umas palavras com Aomame e fez-lhes saber que o vinho era por conta da casa. – Peço desculpa por já estar aberto e faltar o equivalente a uma prova. Ontem, um cliente queixou-se do sabor e demos-lhe uma garrafa nova, mas, na realidade, não há nada de errado com este vinho. O homem é um político famoso que gosta de pensar que é conhecedor, mas não sabe peva acerca de vinhos. Fez aquilo para se exibir. «Lamento, 687/1088
mas acho que parece ter um certo travo», disse. Tivemos de lhe fazer a vontade. «Oh, sim, é capaz de ter razão a esse respeito, senhor. Certamente que a culpa foi do armazém do importador. Trago-lhe já outra garrafa. Mas, as minhas felicitações, senhor! Não creio que haja outra pessoa no país que pudesse ter dado por isto!» Como podem imaginar, foi a melhor maneira de deixar toda a gente feliz. Bom, não posso dizer isto em voz alta, mas tivemos de fazer crescer um pouco a conta para cobrir a nossa perda. Seja como for, ele tinha despesas de representação. De qualquer forma, é impossível um restaurante com a nossa reputação servir uma garrafa já aberta. – A não ser a nós, quer dizer. O chef piscou os olhos. – Não se importam, pois não? – Claro que não – respondeu Aomame. – De todo – corroborou Ayumi. 688/1088
– Por acaso esta encantadora senhora não será sua irmã? – perguntou o chef a Aomame. – Parece-lhe? – Aomame perguntou em troca. – Não vejo uma semelhança física, mas há uma certa atmosfera… – É uma amiga – disse Aomame. – A minha amiga polícia. – A sério? – Olhou de novo para Ayumi, com uma expressão de descrença. – Quer dizer, com uma pistola e tudo? – Nunca disparei contra ninguém – afirmou Ayumi. – Não me lembro de ter dito alguma coisa que me incrimine, ou disse? Ayumi abanou a cabeça. – Não, nada. O chef sorriu e uniu as mãos à frente do peito. – De qualquer modo, trata-se de um Borgonha muitíssimo conceituado, que podemos 689/1088
servir com a maior confiança a qualquer pessoa. Vem de uma propriedade nobre, é de um bom ano. Não vou dizer quantas notas de dezenas de milhares de ienes costumamos cobrar por ele. O chef afastou-se e o empregado de mesa aproximou-se para servir o vinho. Aomame e Ayumi brindaram uma à outra, e o tinir dos seus copos soou como o eco distante de sinos celestiais. – Oh! Nunca tinha provado um vinho tão delicioso! – disse Ayumi semicerrando os olhos ao primeiro golinho. – Que tipo de pessoa é capaz de fazer reparos a um vinho destes? – É sempre possível encontrar alguém que se queixe de tudo – respondeu Aomame. As duas mulheres analisaram a ementa. Ayumi leu a descrição de cada prato duas vezes com o olhar apurado de um advogado que lê um contrato importante: estaria a escapar-lhe qualquer coisa fundamental, 690/1088
uma lacuna engenhosa? Mentalmente, escrutinou todas as cláusulas e disposições e ponderou nas repercussões prováveis, pesando com todo o cuidado perdas e ganhos. Do outro lado da mesa, Aomame apreciou a cena. – Já decidiste? – perguntou. – Mais ou menos – respondeu Ayumi. – E então, o que é que vais pedir? – Vou comer os mexilhões, a salada de três cebolas e o guisado de vitela Iwate com Bordéus. E tu? – Quero a sopa de lentilhas, a salada verde quente e o tamboril assado em pergaminho com polenta. Não é grande combinação para o vinho tinto, mas é de graça, por isso, não me posso queixar. – Deixas-me provar um bocadinho? – Não, claro que não – respondeu Aomame. – E se tu não te importas, vamos dividir o camarão frito como entrada. – Maravilhoso! 691/1088
– Se já acabámos de escolher, é melhor fecharmos as ementas – disse Aomame. – Senão, o empregado não vem. – É verdade – disse Ayumi, fechando a ementa com pena evidente e pousando-a sobre a mesa. O empregado aproximou-se imediatamente e anotou o pedido. – Sempre que acabo de pedir a comida num restaurante, fico com a impressão de que pedi a coisa errada – disse Ayumi quando o empregado se afastou. – E tu? – Mesmo que peças a coisa errada, não passa de comida. Não tem a mínima importância, se compararmos com os erros que fazemos na vida. – Não, claro que não – respondeu Ayumi. – Mas, para mim, não deixa de ser importante. Foi sempre assim, desde criança. Depois de pedir, fico sempre cheia de pena… «Oh, se ao menos tivesse pedido camarão 692/1088
frito em vez de hambúrguer!» Foste sempre assim tão calma? – Bem, por muitas e variadas razões, a minha família nunca comia fora. Nunca. Que me lembre, nunca pus os pés num restaurante, e só muito mais tarde passei pela experiência de escolher a comida a partir de uma ementa e pedir o que queria comer. Tinha de me calar e comer o que me davam, dia após dia. Não permitiam que me queixasse da falta de sabor da comida, ou se era pouca e não satisfazia, ou se a detestava. Para te dizer a verdade, ainda agora, não me importo muito com o que como, desde que seja saudável. – A sério? É mesmo verdade? Não sei grande coisa acerca da tua situação, mas a verdade é que não tens nada ar disso. Para mim, tens ar de quem está habituada desde miúda a frequentar lugares como este. O que Aomame devia inteiramente aos conselhos de Tamaki Ōtsuka. Como se 693/1088
comportar num restaurante elegante, como escolher a comida sem fazer figura de parva, como pedir o vinho, como pedir que lhe trouxessem a sobremesa, como lidar com o empregado, como usar os talheres de forma adequada: Tamaki sabia estas coisas todas e ensinara-as a Aomame até ao mais ínfimo pormenor. Também ensinara Aomame a escolher a roupa, a combinar os acessórios e a maquilhagem. Tudo fora novidade e descoberta aos olhos de Aomame. Tamaki crescera numa família influente de Yamanote. Mulher de sociedade, a mãe era extremamente rigorosa no que às boas maneiras e ao vestuário dizia respeito, donde resultou Tamaki ter interiorizado todas estas noções já por altura do liceu. Era capaz de conviver confortavelmente com adultos. Aomame absorveu estes conhecimentos com voracidade; teria sido uma pessoa muitíssimo diferente caso nunca se tivesse deparado com a excelente professora que 694/1088
Tamaki era. Muitas vezes, Aomame pensava que Tamaki ainda estava viva, escondida dentro de si. A princípio, Ayumi parecia um pouco ansiosa, mas foi-se descontraindo a cada pequeno gole de vinho que bebia. – Hum… quero perguntar-te uma coisa – disse Ayumi. – Não tens de responder se não quiseres, mas apetece-me fazer a pergunta. Não te vais zangar, pois não? – Não, não me vou zangar. – É uma pergunta um bocado estranha, mas não tenho qualquer motivo oculto para a fazer. Quero que percebas isso, não passo de uma pessoa curiosa. Mas há quem se zangue com coisas deste género. – Não te preocupes, eu não me zango. – Tens a certeza? É o que toda a gente diz, mas depois vão-se aos arames. – Sou especial, não te preocupes. 695/1088
– Alguma vez passaste pela experiência de teres um homem a fazer-te coisas estranhas quando eras pequena? Aomame abanou a cabeça. – Não, não me parece. Porquê? – Só queria saber. Se nunca te aconteceu, tudo bem – respondeu Ayumi. E mudou de assunto. – Conta, alguma vez tiveste um amante? Quer dizer, alguém com quem tivesses um envolvimento sério? – Nunca. – Nem mesmo uma vez só? – Nem mesmo uma vez só – respondeu Aomame. E, após uma hesitação, acrescentou: – Para dizer a verdade, fui virgem até aos vinte e seis anos. Ayumi ficou sem palavras. Pousou a faca e o garfo, limpou a boca com o guardanapo e olhou para Aomame, de olhos semicerrados. – Uma mulher linda como tu? Não acredito. – Não estava interessada. 696/1088
– Não estavas interessada em homens? – Houve uma pessoa por quem me apaixonei – disse Aomame. – Tinha eu dez anos. Dei-lhe a mão. – Apaixonaste-te por um rapaz quando tinhas dez anos? É tudo? – É tudo. Ayumi pegou na faca e no garfo e pareceu ficar imersa nos seus pensamentos enquanto cortava um dos camarões. – E onde anda esse rapaz agora? O que faz? Aomame abanou a cabeça. – Não sei. Andámos juntos no terceiro e no quarto ano em Ichikawa, na prefeitura de Chiba, mas eu mudei para uma escola em Tóquio, no quinto ano, e nunca mais o vi, nem soube nada dele. Tudo o que sei é que, se for vivo, terá vinte e nove anos agora. Provavelmente, fará trinta anos no próximo outono. 697/1088
– E estás a dizer-me que nunca tentaste descobrir onde está ou o que faz? Não seria assim tão difícil, sabes? Aomame abanou de novo a cabeça com firmeza. – Nunca me apeteceu tomar a iniciativa de descobrir. – Isso é muito estranho. Se fosse eu, faria tudo para o encontrar. Se o amas assim tanto, devias descobri-lo e dizer-lho cara a cara. – Não quero fazer isso – disse Aomame. – O que quero é que nos encontremos um dia, por acaso. Por exemplo, cruzarmo-nos na rua ou viajarmos no mesmo autocarro. – Destino. Um encontro fortuito. – Mais ou menos – retorquiu Aomame, bebendo um pouco de vinho. – Será então que me abrirei com ele. «O único homem que alguma vez amei na vida és tu.» – Que romântico! – exclamou Ayumi, atónita. – Mas eu diria que as probabilidades 698/1088
de um encontro assim são bastante baixas. E, além do mais, há vinte anos que não o vês. Pode ter um ar completamente diferente. Podes passar por ele na rua e nunca saberes. Aomame abanou a cabeça. – Saberei. A cara dele pode ter mudado, mas conhecê-lo-ei à primeira. Nunca falharia. – Como podes ter tanta certeza? – Tenho. – Então, vais continuar à espera, a acreditar que esse encontro fortuito venha a acontecer. – Razão pela qual estou sempre muito atenta quando ando na rua. – Incrível – disse Ayumi. – Mas, por muito que o ames, não te importas de fazer sexo com outros homens… pelo menos depois de teres feito vinte e seis anos. Aomame ponderou por um momento. Depois disse: – É tudo de passagem. Não dura. 699/1088
Seguiu-se um breve silêncio, durante o qual as duas mulheres se concentraram na comida que tinham no prato. Então, Ayumi perguntou: – Peço desculpa se isto for demasiado pessoal, mas aconteceu alguma coisa quando tinhas vinte e seis anos? Aomame fez que sim com a cabeça. – Aconteceu uma coisa. E mudou-me por completo. Mas não posso falar nisso aqui e agora. Desculpa. – Não há problema. – respondeu Ayumi. – Aborreci-te com estas perguntas todas? – Nem um pouco – respondeu Aomame. O empregado trouxe a sopa e, por alguns momentos, comeram em silêncio. Retomaram a conversa depois de pousarem as colheres e o empregado ter retirado as tigelas da mesa. – Não tens medo, apesar de tudo? – perguntou Ayumi a Aomame. – Medo de quê? 700/1088
– Não estás a ver? Tu e ele podem nunca se cruzar outra vez. É claro que um encontro fortuito pode acontecer, e espero que assim seja. A sério, por ti. Mas, falando em termos realistas, tens de ver que existe uma enorme possibilidade de nunca mais te conseguires encontrar com ele. E, mesmo que se encontrem, ele pode já estar casado com uma pessoa qualquer. Pode ter um par de filhos. Não é verdade? Nesse caso, poderás ter de viver o resto da tua vida sozinha, sem nunca gozares a companhia da única pessoa no mundo que amas. Não achas isso assustador? Aomame fixou o olhar no vinho tinto que tinha no copo. – Talvez sim – disse. – Mas, pelo menos, eu tenho alguém a quem amo. – Mesmo que ele nunca te tenha amado? – Se for possível amar alguém apaixonadamente, mesmo que só uma pessoa, então a vida tem salvação. Ainda que não seja possível reunirmo-nos com a tal pessoa. 701/1088
Ayumi pensou nisto durante um bocado. O empregado aproximou-se e encheu-lhes outra vez os copos de vinho. Enquanto bebericava, Aomame pôs-se a pensar. A Ayumi tem razão. Que tipo de pessoa é capaz de fazer reparos a um vinho destes? – És espantosa – disse Ayumi. – A maneira filosófica como encaras as coisas! – Não estou a ser filosófica. Limito-me a dizer-te honestamente o que penso. – Em tempos, estive apaixonada por uma pessoa – contou Ayumi, em tom confidencial. – Foi logo a seguir a ter acabado o secundário. O rapaz com quem tive a primeira experiência sexual. Era três anos mais velho do que eu. Mas ele trocou-me logo por outra. A seguir a isso, passei por uma fase um tanto louca. Foi muito difícil. Acabei por ultrapassar a perda do rapaz, mas ainda não ultrapassei a fase da loucura. Era um verdadeiro sacana traidor, todo falinhas mansas. Apesar de tudo, amei-o mesmo. 702/1088
Aomame assentiu, e Ayumi pegou no copo e bebeu. – Ainda me telefona de vez em quando, diz que quer que fiquemos juntos. Só quer o meu corpo, claro. Eu sei. Por isso, nunca vou ter com ele. Sei que, se o fizesse, metia-me em mais uma embrulhada. Deveria antes dizer que o meu cérebro sabe, mas o meu corpo reage sempre. Quere-o tanto, tanto! Quando isto começa a apoderar-se de mim, deixo-me enlouquecer outra vez. Será que percebes onde quero chegar? – Com toda a certeza que sim – respondeu Aomame. – É um tipo indecente, verdadeiramente horrível, e nem sequer é assim tão bom na cama, mas, pelo menos, não tem medo de mim e, quando estou com ele, trata-me bem. – Sentimentos desses não nos deixam escolha, certo? – perguntou Aomame. – Assaltam-nos quando lhes apetece. Não é a 703/1088
mesma coisa que escolhermos a comida numa ementa. – De certa forma, é; arrependemo-nos depois de fazer um erro. Partilharam uma gargalhada. Aomame disse: – Passa-se o mesmo com as ementas, os homens ou outra coisa qualquer: pensamos que estamos a fazer uma escolha, mas, de facto, podemos não estar a escolher nada. Tudo pode já estar escolhido de antemão e nós fingimos que fazemos escolhas. O livrearbítrio pode não passar de uma ilusão. Penso nisso muitas vezes. – A ser o caso, a vida é bastante negra. – Talvez sim. – Mas se é possível amar alguém apaixonadamente, mesmo que seja uma pessoa horrível e que não retribua esse amor, no mínimo, a vida não é um inferno, ainda que possa ser negra. É isso que estás a dizer? – perguntou Ayumi. 704/1088
– Precisamente. – Ainda assim – prosseguiu Ayumi –, parece-me que este mundo tem uma grave escassez tanto de lógica como de amabilidade. – Podes ter razão – respondeu Aomame. – Mas já é tarde demais para o trocarmos por outro. – A data para a troca passou há muito tempo – retorquiu Ayumi. – E já deitámos fora o talão. – Tu é que disseste. – Oh, bem, não há problema – disse Aomame. – O mundo vai acabar antes de darmos por isso. – Parece divertido. – E chegará o Reino dos Céus. – Mal posso esperar – concluiu Ayumi.
Comeram a sobremesa, beberam um expresso e dividiram a conta (para grande espanto delas, não foi nada cara). A seguir,
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foram até um bar ali perto para beber cocktails. – Oh, olha para aquele ali – disse Ayumi. – Faz o teu género, não achas? Aomame fez deslizar o olhar naquela direção. No fundo do bar, um homem alto, de meia-idade, sozinho, bebia um martíni. Dava ares de ter sido atleta no liceu, com boas notas, que chegara à meia-idade quase sem mudanças. O cabelo começava a faltarlhe, mas ainda tinha um rosto jovem. – Pode ser que faça, mas hoje não queremos ter nada que ver com homens – declarou Aomame. – Além do mais, estamos num bar com classe. – Eu sei. Só queria ver o que dizias. – Fazemos isso da próxima vez. Ayumi olhou para Aomame. – Quer isso dizer que da próxima vez vais comigo? Isto é, quando for à procura de um homem. 706/1088
– Claro – respondeu Aomame. – Vamos a isso! – Boa! Algo me diz que, juntas, poderemos fazer qualquer coisa! Aomame bebia um daiquiri, Ayumi um Tom Collins. – Oh, a propósito – disse Aomame –, no outro dia, ao telefone, disseste que tivemos uma cena lésbica. Que tipo de cena? – Oh, isso – disse Ayumi. – Não foi nada de especial. Fingimos um bocado, para animar as coisas. Não te lembras mesmo de nada? Foste muito sensual. – Nada de nada. Varreu-se-me por completo. – Estávamos nuas, tocámos no peito uma da outra, beijámo-nos lá em baixo e… – Beijámo-nos lá em baixo?! – exclamou Aomame. No instante em que as palavras se lhe escaparam dos lábios, olhou à sua volta, nervosa. Na tranquilidade daquele bar, falara 707/1088
demasiado alto, mas, felizmente, ninguém pareceu ter escutado as suas palavras. – Não te preocupes; como te disse, estávamos a fingir. Não houve línguas. – Oh, meu Deus – suspirou Aomame, pressionando as têmporas. – O que raio foi isso? – Desculpa – respondeu Ayumi. – A culpa não é tua. Nunca deveria ter-me deixado ficar tão bêbeda. – Mas deixa-me que te diga como és muito doce e limpa lá em baixo. Como nova. – Bem, claro, eu sou mesmo quase nova lá em baixo. – Queres dizer que não a usas muitas vezes? Aomame anuiu com a cabeça. – É precisamente o que quero dizer. Ora diz-me: interessas-te por mulheres? Ayumi abanou a cabeça. – Não, nunca tinha feito nada do género. Verdade. Mas também estava bastante 708/1088
bêbeda e achei que não me importava de fazer uns joguinhos daqueles, desde que fosse contigo. A fingir. Por graça. E tu? – Não, eu também não tenho esse tipo de inclinações. Todavia, uma vez, quando estava no secundário, fiz algo do género com uma grande amiga. Nenhuma de nós planeou aquilo. Deixámo-nos levar pelas circunstâncias. – Provavelmente, não será assim tão raro. Nessa altura, sentiste qualquer coisa? – Acho que sim – foi a resposta honesta de Aomame. – Mas foi só essa vez. Também achei que estava errado, e nunca mais fiz nada parecido. – Quer dizer que achas que o sexo lésbico está errado? – Não, não, que ideia! Não estou a dizer que o sexo lésbico está errado, que é sujo ou qualquer coisa do género. O que quero dizer é que senti que não devia entrar nesse tipo de relação com aquela amiga em particular. 709/1088
Não quis transformar uma amizade importante numa relação tão física. – Estou a ver – disse Ayumi. – Olha, não te importavas de me deixar dormir em tua casa esta noite? Não me apetece voltar para a residência. No instante em que entrar por aquela porta, o sentimento de elegância que conseguimos criar hoje destrói-se. Aomame acabou de beber o seu daiquiri e pousou o copo no balcão. – Não me importo que durmas lá em casa, mas nada de brincadeiras. – Não, não, está bem. Não estou à procura disso. Só queria ficar contigo mais um bocadinho. Não me importo onde me deitares. Sou capaz de dormir em qualquer sítio… até mesmo no chão. E amanhã estou de folga, pelo que também podemos fazer qualquer coisa durante a manhã.
No regresso ao apartamento de Aomame, em Jiyūgaoka apanharam o metro e chegaram a casa ao bater das onze. Estavam
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as duas agradavelmente alcoolizadas e sonolentas. Aomame fez a cama no sofá e emprestou um pijama a Ayumi. – Posso ir para a tua cama por um ou dois minutos? – perguntou Ayumi. – Quero ficar junto de ti mais um bocadinho. Não me ponho com brincadeiras, prometo. – Não me importo – disse Aomame, chocada com o facto de uma mulher que já matara três homens se deitar na cama com uma mulher-polícia ainda ao serviço. A vida é muito estranha! Ayumi deslizou para baixo das cobertas e passou os braços à volta de Aomame. Os seus seios firmes comprimiam-se contra o braço de Aomame e o seu hálito cheirava a álcool e a pasta de dentes. – Não achas que tenho umas mamas demasiado grandes? – perguntou a Aomame. – Não, não acho. São bonitas. – Sim, claro, mas… não sei, as mamas grandes dão um ar estúpido à pessoa, não 711/1088
achas? As minhas saltam quando corro e tenho demasiada vergonha de pôr os meus sutiãs a secar na rua… parecem duas enormes taças de salada. – Os homens parecem apreciá-las assim. – Até mesmo os meus mamilos são enormes. – Ayumi desabotoou o casaco do pijama e tirou um seio para fora. – Vê! Isto é um mamilo grande! Não o achas esquisito? Aomame observou o mamilo de Ayumi. Claramente, não era pequeno, mas também não era tão desmesurado que causasse preocupação, talvez um pouco maior do que os de Tamaki. – É bonito. Alguém já te disse que os teus mamilos são demasiado grandes? – Sim, um tipo. Disse que são os maiores que já viu. – Tenho a certeza de que não viu muitos. Os teus são normais. Os meus são demasiado pequenos. 712/1088
– Não, gosto das tuas mamas. Têm uma forma muito elegante e um ar intelectual. – Que ridículo! São demasiado pequenas e de tamanho diferente. Tenho sempre dificuldade em comprar sutiãs porque um lado é maior do que o outro. – A sério? Bom, cada um com os seus problemas. – Precisamente. Agora, dorme – disse Aomame. Ayumi esticou o braço e começou a enfiar um dedo no pijama de Aomame. Ela agarrou-lhe a mão. – Não, prometeste. – Desculpa – disse Ayumi, retirando a mão. – Tens razão, prometi, não foi? Devo estar bêbeda. Mas estou louca por ti. Como uma qualquer miúda tímida do secundário. Aomame não disse nada. Quase em sussurros, Ayumi acrescentou: – Na minha opinião, estás a guardar para o tal rapaz a coisa que para ti é a mais 713/1088
importante. É verdade, não é? Tenho inveja de ti. Inveja de que tenhas alguém para quem te guardares. Ela pode ter razão. Mas o que é para mim a mais importante? – Agora, dorme – disse Aomame. – Eu abraço-te até adormeceres. – Obrigada – disse Ayumi. – Desculpa estar a dar-te tanta maçada. – Não peças desculpa. Não é maçada nenhuma. Aomame continuou a sentir a respiração de Ayumi contra o seu corpo. Um cão uivou ao longe e alguém fechou uma janela com força. Durante todo esse tempo, Aomame não parou de acariciar o cabelo de Ayumi.
Depois de Ayumi cair num sono profundo, Aomame deslizou para fora da cama. Aparentemente, nessa noite seria ela a dormir no sofá. Tirou uma garrafa de água mineral do frigorífico e bebeu dois copos. Depois foi para a pequena varanda e sentou-se numa
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cadeira de alumínio, observando o bairro estendido por baixo dos seus pés. Estava uma noite primaveril suave. A brisa trazia o rugido de ruas distantes, como se de um oceano feito pelo homem se tratasse. O brilho dos néons tinha diminuído um pouco, agora que a meia-noite já lá ia. Gosto desta rapariga, a Ayumi, não restam dúvidas. Quero ser tão boa para ela quanto for capaz. Depois da morte da Tamaki, decidi viver sem criar grandes laços com ninguém. Nunca senti que precisasse de uma amiga. Mas, por qualquer razão, sinto o meu coração abrir-se para a Ayumi. Posso até confessar-lhe os meus verdadeiros sentimentos com um certo grau de honestidade. Ela é completamente diferente de ti, claro. Tu és especial. Crescemos juntas. Não há comparação possível com ninguém. Foi o que disse Aomame à Tamaki dentro de si. 715/1088
Aomame inclinou a cabeça para trás e olhou para o céu durante algum tempo. Mesmo enquanto teve os olhos fixos no céu, a sua mente vagueou por entre memórias distantes. O tempo que passou com Tamaki, as conversas que mantinham, o tocaremse…. Depressa começou a sentir que o céu que via por cima de si era ligeiramente diferente do céu que estava habituada a ver. Era uma estranheza subtil, mas inegável. Decorreu um certo tempo até ela conseguir perceber onde estava a estranheza. E, mesmo depois de ter percebido o que era, teve de se esforçar muito para aceitar a realidade. O que a sua vista notara, a sua mente tinha dificuldade em confirmar. Havia duas luas no céu – uma lua pequena e uma lua grande. Lá estavam, flutuando ao lado uma da outra. A grande era a lua habitual, que vira desde sempre. Estava quase cheia e era amarela. Mas havia outra lua mesmo ao seu lado. Tinha uma forma 716/1088
invulgar. Era ligeiramente disforme e esverdeada, como se estivesse coberta por uma fina camada de musgo. Fora o que a sua vista notara. Aomame ficou a olhar fixamente para as duas luas, de olhos semicerrados. A seguir, fechou-os. Deixou passar um instante, respirou fundo e tornou a abrir os olhos, na esperança de que tudo tivesse regressado ao normal e já só houvesse uma única lua. Mas nada mudara. Não era a luz que estava a pregar-lhe partidas, nem havia qualquer problema com os seus olhos. Não restavam dúvidas de que havia duas luas a flutuar no céu, lado a lado – uma lua amarela e uma lua verde. Pensou em acordar Ayumi para lhe perguntar se havia realmente duas luas ali em cima, porém, decidiu não o fazer. Ayumi poderia dizer: «É claro que há duas luas no céu. Aumentaram de número no ano passado.» Ou então poderia também dizer: «De 717/1088
que estás tu a falar? Só há uma lua lá em cima. Deves ter alguma coisa nos olhos.» Nenhuma das respostas resolveria o problema que enfrentava. Ambas iriam torná-lo ainda mais grave. Aomame ergueu as mãos para tapar a metade inferior da cara e continuou a olhar para as duas luas. Alguma coisa se está a passar, isso é certo. O seu coração aumentou de ritmo. Há qualquer coisa de errado com o mundo, ou há qualquer coisa de errado em mim: ou uma coisa ou outra. Não bate a bota com a perdigota: o problema será da bota ou da perdigota? Voltou para dentro, trancou a porta que dava para o pátio e correu a cortina. Tirou uma garrafa de brande de um armário e encheu um copo. Ayumi estava a dormir profundamente na cama, com uma respiração profunda e regular. Aomame ficou a vigiá-la, 718/1088
bebendo pequenos goles de brande de vez em quando. Apoiou os cotovelos em cima do tampo da mesa da cozinha e esforçou-se por não pensar no que estava por trás da cortina. Talvez o mundo esteja mesmo a acabar. – E chegará o Reino dos Céus – murmurou Aomame para si própria. – Mal posso esperar – respondeu uma voz, vinda não soube de onde.
34 Famosa marca de malas moles francesa, fundada em 1954. (N. das T.)
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TENGO
Ainda bem que gostaste
Tengo passara dez dias a reescrever A Crisálida de Ar antes de entregar o texto a Komatsu, já terminado, após o que gozou uma enfiada de dias calmos e tranquilos. Dava aulas na escola três dias por semana e encontrava-se com a sua amante casada uma vez a cada sete dias. O resto do tempo gastava-o a tratar da casa, a dar passeios e a escrever o seu próprio romance. Abril passou-se assim. As flores de cerejeira espalharam-se, apareceram novos rebentos nas árvores, as magnólias atingiram o máximo da floração e as estações foram
avançando por etapas. Os dias corriam amenos e regulares, sem incidentes de maior. Era esta a vida que Tengo mais almejava, cada semana encadeando-se na seguinte automática e suavemente. No meio de tanta uniformidade, contudo, uma mudança tornou-se evidente. Uma mudança boa. Tengo estava consciente de que, à medida que ia escrevendo o seu romance, uma nova fonte se formava dentro dele. Não que a água jorrasse já: era mais uma pequena nascente entre as rochas. O fluxo podia ser limitado, mas era contínuo, acumulando-se gota a gota. Ele não tinha pressa. Não sentia qualquer pressão. Tudo o que precisava de fazer era esperar pacientemente que a água se juntasse na bacia rochosa até ele conseguir recolhê-la. Então, sentava-se à secretária, transformava em palavras o que recolhera e a história fluía de forma bastante natural. 721/1088
O trabalho de concentração para reescrever A Crisálida de Ar talvez tivesse deslocado alguma rocha que estaria a bloquear a sua fonte até àquele momento. Tengo não fazia a mínima ideia da razão por que assim seria, mas tinha a nítida sensação de que uma pesada tampa acabara de ser retirada. A sensação era a de que o seu corpo se tornara mais leve, que emergira de um espaço exíguo, e podia agora esticar os braços e as pernas à vontade. Provavelmente, A Crisálida de Ar estimulara qualquer coisa que estivera sempre bem no fundo de si. Tengo também sentia que algo muito parecido com o desejo crescia dentro dele. Era a primeira vez na vida que experimentava um tal sentimento. Ao longo do seu percurso de estudante, no secundário e na universidade, o treinador de judo e os colegas diziam-lhe muitas vezes: «Tens o talento e a força e praticas o suficiente, mas falta-te desejo.» 722/1088
Era provável que tivessem razão. Faltavalhe a ânsia de ganhar, custasse o que custasse, razão pela qual chegava muitas vezes às meias-finais e às finais, embora depois perdesse o combate que decidia o campeonato. Exibia esta tendência em tudo, não só no judo. Era mais plácido do que determinado. Passava-se o mesmo com a ficção que escrevia. Era capaz de um certo estilo e de criar histórias razoavelmente interessantes, porém, faltava ao seu trabalho a força para agarrar o leitor pela garganta. Faltava qualquer coisa. E era assim que chegava sempre à lista de finalistas, mas nunca ganhava o prémio de autor revelação, como bem dissera Komatsu. Depois de reescrever A Crisálida de Ar, todavia e pela primeira vez na sua vida, Tengo ficou genuinamente mortificado. Enquanto estivera ocupado com a reescrita, deixara-se absorver por completo pelo processo, movendo as mãos sem pensar. Contudo, uma 723/1088
vez o trabalho pronto e entregue a Komatsu, Tengo foi assaltado por um profundo sentimento de impotência. Quando o sentimento de impotência começou a diminuir, uma espécie de raiva irrompeu do mais fundo de si. A raiva dirigia-se ao próprio Tengo. Usei a história de outra pessoa para escrever o que é basicamente uma fraude literária, e fi-lo com mais paixão do que a que dedico à minha própria obra. Um escritor não será aquela pessoa que encontra a história que tem escondida dentro de si e usa as palavras certas para a exprimir? Não tens vergonha de ti mesmo? Devias ser capaz de escrever algo tão bom quanto A Crisálida de Ar, se te desses a esse trabalho. Não é verdade? Mas tinha de o provar a si mesmo. Tengo decidiu rejeitar o manuscrito que havia escrito até então e começar uma nova história a partir do zero. Fechou os olhos e, durante muito tempo, escutou atentamente o 724/1088
pingar da pequena nascente que brotava dentro de si. As palavras acabaram por começar a ocorrer-lhe naturalmente. Pouco a pouco, levando o tempo que era preciso, começou a arrumá-las em frases.
No início de maio, Komatsu telefonou-lhe pela primeira vez em bastante tempo. O telefone tocou antes das nove da noite. – Está feito – declarou Komatsu, com uma nota de excitação na voz. Era raro nele. Ao princípio, Tengo não percebeu de que estava Komatsu a falar. – O que é que está feito? – O que havia de ser? A Crisálida de Ar ganhou o prémio de autor revelação há alguns minutos. O comité chegou a uma decisão unânime, sem a discussão habitual. Acho que se pode dizer que era inevitável, é uma obra tão poderosa. Seja como for, as coisas começaram a mexer. A partir deste momento, estamos nisto juntos, Tengo. Vamos dar o nosso melhor.
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Tengo deitou uma olhadela ao calendário que estava pendurado na parede. Agora que pensava nisso, percebeu que chegara o dia em que o comité de seleção iria escolher o vencedor. Tengo estivera tão absorto na escrita do seu próprio romance que perdera por completo a noção do tempo. – Então, o que acontece agora? – perguntou Tengo. – Em termos de calendário do prémio, quero dizer – Amanhã os jornais fazem o anúncio… todos os jornais do país. É provável que também publiquem fotografias. Uma bonita rapariga de dezassete anos ganha: só isso vai causar sensação. Não me interpretes mal, mas na imprensa, isto tem mais valor do que se o prémio tivesse ido parar às mãos de um professor de colégio com trinta anos e um ar de urso a sair do período de hibernação. – Muito mais – disse Tengo. 726/1088
– Depois é a cerimónia de entrega, no dia dezasseis de maio, num hotel de Shinbashi. A conferência de imprensa já está marcada. – E a Fuka-Eri vai lá estar? – Tenho a certeza que sim, pelo menos desta vez. Não há forma de o vencedor do prémio revelação não estar presente na cerimónia de entrega. Se conseguirmos levar isto a bom porto sem estragos de maior, podemos enveredar depois por uma política de segredo absoluto. «Lamentamos, mas a autora não deseja aparecer em público.» Podemos mantê-los afastados assim, e a verdade nunca será conhecida. Tengo tentou imaginar Fuka-Eri a dar uma conferência de imprensa no salão de baile de um hotel. Uma fila de microfones, os flashes das máquinas. Não foi capaz. – É mesmo preciso fazer uma conferência de imprensa? – perguntou a Komatsu. – Tem de ser, pelo menos uma vez, para manter as aparências. 727/1088
– É a receita certa para o desastre! – Razão pela qual, Tengo, será tarefa tua garantir que não vai descambar em desastre. Tengo ficou em silêncio. Nuvens negras e ameaçadoras surgiram no horizonte. – Ei, ainda aí estás? – perguntou Komatsu. – Estou aqui – disse Tengo. – O que quer isso dizer… é tarefa minha? – Tens de meter na cabeça da Fuka-Eri como funciona uma conferência de imprensa e como lidar com ela. Perguntam mais ou menos sempre a mesma coisa, pelo que deves preparar respostas às perguntas que é provável que façam e fazê-la decorar tudo palavra por palavra. Dás aulas numa escola. Deves saber como se faz isto. – Quer que eu faça isso? – Claro. Não sei porquê, mas ela confia em ti. Vai dar-te ouvidos. É impossível ser eu. Ela nem sequer quis conhecer-me. 728/1088
Tengo suspirou. Quem lhe dera cortar todos os laços que o prendiam ao texto de A Crisálida de Ar. Fizera tudo o que lhe haviam pedido, e agora só queria concentrarse no seu próprio trabalho. Algo lhe dizia, contudo, que não ia ser assim tão simples, e sabia que os maus pressentimentos têm uma percentagem de rigor muito mais alta do que os bons. – Estás livre ao final da tarde de depois de amanhã? – perguntou Komatsu. – Estou. – Seis horas, no café do costume, em Shinjuku. A Fuka-Eri vai lá estar. – Não posso fazer o que me está a pedir – disse Tengo a Komatsu. – Não sei nada de conferências de imprensa. Nunca vi nenhuma sequer. – Queres ser romancista, não é verdade? Imagina-a. Não é uma das qualidades do romancista… imaginar coisas que nunca viu? 729/1088
– Sim, mas não foi o senhor que me disse que tudo o que tinha de fazer era reescrever A Crisálida de Ar, que trataria do resto, a partir daí, que eu podia limitar-me a ficar sentado na bancada a assistir ao desenrolar do jogo? – Escuta: se pudesse ir, teria todo o gosto. Não sou louco por pedir às pessoas que assumam as minhas obrigações, mas é precisamente isso que te peço neste momento; imploro-te que tomes o meu lugar, porque eu não o posso fazer. Não vês? É como se estivéssemos dentro de um barco a descer os rápidos. Tenho as mãos ocupadas a segurar o leme, pelo que estou a permitir-te deitares a mão ao remo. Se me dizes que não és capaz, o barco vira-se e nós podemos ir todos ao fundo, a Fuka-Eri incluída. E não queres que isso aconteça, pois não? Tengo tornou a suspirar. Porque é que dava sempre consigo encostado a um canto de onde não podia fugir? 730/1088
– Okay, farei o que puder. Mas não posso garantir que resulte. – É tudo o que peço – respondeu Komatsu. – Fico a dever-te um enorme favor. Quer dizer, ao que parece, a Fuka-Eri meteu na cabeça que só fala contigo e com mais ninguém. E há ainda outra coisa. Tu e eu temos de formar uma nova empresa. – Uma empresa? – Empresa, escritório, firma… chama-lhe o que quiseres. Para gerir as atividades literárias da Fuka-Eri. Uma companhia só no papel, claro. Oficialmente, a Fuka-Eri receberá através da empresa. Vamos pedir ao Professor Ebisuno que seja o representante dela e tu serás funcionário da empresa. Podemos arranjar-te um título qualquer, não interessa, mas o que importa é que será a empresa a pagar-te. Eu também estarei incluído, claro, mas sem revelar o meu nome. Se alguém descobre que estou envolvido, isso poderia criar alguns problemas sérios. Seja 731/1088
como for, vai ser assim que dividiremos os lucros. Só preciso que ponhas o teu selo nuns documentos, e eu trato do resto. Conheço um bom advogado. Tengo analisou o que Komatsu lhe estava a dizer. – Por favor, não se importa de me deixar fora do seu plano? Não preciso que me pague. Gostei de reescrever A Crisálida de Ar e aprendi imenso com este trabalho. Fico feliz por a Fuka-Eri ter ganhado o prémio e darei o melhor de mim para a preparar para a conferência de imprensa. Mas é tudo. Não quero ter nada que ver com esse retorcido esquema da empresa. Isso seria uma fraude pura e simples. – Agora já não podes voltar atrás, Tengo – declarou Komatsu. – Fraude pura e simples? Talvez. Mas desde o início que devias saber isso, quando decidimos deitar areia para os olhos das pessoas com esta autora semi-inventada, a Fuka-Eri. Estou enganado? É 732/1088
claro que uma coisa destas envolve dinheiro e vai exigir um sistema sofisticado para tratar do assunto. Não estamos perante uma brincadeira de crianças. É tarde demais para começares a dizer que não queres ter nada que ver com isto, que é demasiado perigoso, que não precisas de dinheiro. Se querias saltar fora do barco, devias tê-lo feito antes, quando a corrente ainda não era forte. Agora, não podes. Precisamos de um número oficial de funcionários para criar a empresa, e eu não posso estar a arranjar gente nova que não sabe o que se está a passar. Tens de fazer isto. Neste momento, pode dizer-se que estás mesmo no centro dos acontecimentos. Tengo deu voltas à cabeça sem produzir um único pensamento útil. – Ainda assim, pergunto-lhe o seguinte – disse a Komatsu. – A julgar pelo que diz, o Professor Ebisuno faz tenções de dar o seu aval a este plano. O senhor dá a entender que 733/1088
ele já concordou em criar a empresa fictícia e aceita ser o representante dela. – Enquanto tutor da Fuka-Eri, o Professor compreende e aprova toda a situação e deunos luz verde para avançar. Telefonei-lhe no instante em que me contaste a vossa conversa. Lembrava-se de mim, claro. Penso que não me tinha falado em nada antes porque estava à espera da tua opinião descomprometida a meu respeito. Disse-me que ficou impressionado com a tua capacidade de avaliar as pessoas. Que raio lhe disseste acerca de mim? – O que tem o Professor Ebisuno a ganhar por participar neste plano? Não é possível que o faça por dinheiro. – Nisso tens razão. Não é tipo para se deixar influenciar por uns trocos. – Então, porque é que se deixa envolver num plano tão arriscado? Tem alguma coisa a ganhar com isto? 734/1088
– Sei tanto como tu. É uma pessoa insondável. – Também o senhor. O que nos deixa na posição de ter de adivinhar uma boa quantidade de motivos. – Bem, seja como for – disse Komatsu –, o Professor pode dar ares de velhote inocente, mas, na realidade, é inescrutável. – E até que ponto é que a Fuka-Eri está a par desse plano? – Não está; aliás não precisa de saber nada acerca das cenas de bastidores. Confia no Professor Ebisuno e gosta de ti. É por isso que te peço ainda mais esta ajuda. Tengo passou o auscultador de uma mão para a outra. Sentia necessidade de avaliar o progresso da situação com que se deparava. – A propósito, o Professor Ebisuno já não é académico, pois não? Deixou a universidade e não tem escrito livros, nem nada disso. – É verdade, cortou todos os laços com a academia. Era um erudito notável, mas não 735/1088
parece sentir a falta do mundo universitário. Ele também nunca quis ter muito que ver com autoridade ou organização. Foi sempre uma espécie de carta fora do baralho. – Em que tipo de trabalho se ocupa agora? – Acho que é corretor da bolsa – disse Komatsu. – Ou, se te soa muito antiquado, consultor de investimentos. Gere o dinheiro de outras pessoas, fá-lo circular em nome delas e, pelo caminho, vai criando o seu lucro extra. Recolhe-se no alto da montanha e vai dando sugestões de compra e venda. Tem uma intuição impressionante. Também é notável a analisar dados e chegou a criar o seu próprio sistema. Começou por ser um passatempo, mas tornou-se a sua ocupação principal. É esta a história. Ele é bastante famoso nesses círculos. De uma coisa podes ter a certeza: não está aflito de dinheiro. – Não descortino qualquer ligação entre a antropologia cultural e os negócios da bolsa – disse Tengo. 736/1088
– Em geral, não há, mas, para ele, parece que sim. – E é inescrutável. – Precisamente. Tengo fez pressão com a ponta dos dedos sobre as têmporas. Depois, resignando-se à sua sorte, disse: – Irei encontrar-me com a Fuka-Eri no café do costume, em Shinjuku, às seis horas, depois de amanhã, e preparo-a para a conferência de imprensa. É o que quer que eu faça, certo? – O plano é esse – respondeu Komatsu. – Sabes, Tengo, não sejas demasiado crítico, por agora. Deixa-te ir. Oportunidades destas não costumam aparecer muitas vezes na vida de uma pessoa. É o magnífico mundo da novela picaresca. Agarra-te e aprecia o aroma do mal. Vamos descer os rápidos. E, quando nos despenharmos na catarata, daremos um trambolhão em grande estilo! * * * 737/1088
Tengo encontrou-se com Fuka-Eri no café de Shinjuku ao final da tarde, dois dias depois. Ela vestia um par de calças de ganga apertadas e uma camisola leve de verão que revelava claramente o contorno dos seus seios. Trazia o cabelo solto, longo e liso, e a pele apresentava um brilho fresco. Os clientes masculinos não paravam de deitar olhares para a mesa deles. Tengo sentia esses olhares. No entanto, Fuka-Eri parecia totalmente alheia ao que a rodeava. Quando anunciassem que esta rapariga fora a vencedora do prémio revelação de uma revista literária, haveria com certeza grande alvoroço. Fuka-Eri já fora informada de que vencera o prémio, mas não parecia feliz ou excitada com isso. O resultado não lhe importava. Apesar de estar um dia estival, ela pediu cacau quente, envolveu a caneca com as duas mãos e saboreou cada gota. Ninguém lhe falara na conferência de imprensa que aí 738/1088
vinha, mas, quando Tengo lhe disse, nem sequer esboçou uma reação. – Sabes o que é uma conferência de imprensa, não sabes? – Conferência de imprensa… – Fuka-Eri repetiu as palavras. – Pões-te atrás de um púlpito e respondes às perguntas de um monte de repórteres de jornais e revistas. Vão tirar-te fotografias. Pode até haver câmaras de televisão. Todo o país verá reportagens das perguntas e respostas. É muito invulgar uma rapariga de dezassete anos vencer o prémio revelação de uma revista literária. Vai ser uma notícia de estrondo. Vão fazer grande alarde da unanimidade da decisão. Quase nunca acontece. – Perguntas e respostas – perguntou Fuka-Eri. – Eles fazem as perguntas, tu dás as respostas. – Que tipo de perguntas. 739/1088
– De todo o tipo. Acerca do texto, sobre ti, a tua vida privada, os teus passatempos, os teus planos para o futuro. Seria boa ideia prepararmos umas respostas para esse tipo de perguntas. – Porquê. – É mais seguro. Assim não ficas à procura de respostas e não dizes nada que possa gerar mal-entendidos. Não custa nada prepararmos isso agora. Uma espécie de ensaio geral. Fuka-Eri bebeu o cacau em silêncio. A seguir, olhou para Tengo com uns olhos que diziam: «Não estou nada interessada em fazer uma coisa dessas, mas se achas que é necessário…» Os seus olhos conseguiam ser muito mais eloquentes – ou, pelo menos, falar em frases mais completas – do que as suas palavras. Mas dificilmente poderia fazer uma conferência de imprensa só com olhares. 740/1088
Tengo tirou uma folha de papel da pasta e desdobrou-a em cima da mesa. Continha uma lista de perguntas que era provável que surgissem durante a conferência de imprensa. Na noite anterior, Tengo despendera muito tempo e esforço para a compilar. – Eu faço uma pergunta e tu respondesme como se eu fosse o repórter de um jornal, okay? Fuka-Eri disse que sim com a cabeça. – Já tinhas escrito muitas histórias antes? – Muitas – respondeu Fuka-Eri. – Quando começaste a escrever? – Há muito tempo. – Está perfeito – disse Tengo. – É bom dares respostas curtas. Não é preciso acrescentar mais nada. Como, por exemplo, o facto de a Azami ter escrito por ti. Okay? Fuka-Eri disse que sim com a cabeça. – Não podes dizer nada sobre esse assunto. É um segredinho só nosso. 741/1088
– Não digo nada sobre esse assunto – confirmou Fuka-Eri. – Pensavas que ias ganhar quando mandaste o teu texto para o prémio revelação? Ela sorriu e não disse nada. – Não queres responder a isto? – Não. – Muito bem. Quando não quiseres responder, deixa-te ficar calada e sorri. De qualquer forma, são perguntas estúpidas. Fuka-Eri tornou a dizer que sim com a cabeça. – Como foi que engendraste o enredo de A Crisálida de Ar? – Deu-ma a cabra cega. – Não digas «cega» – comentou Tengo –, é melhor falares de uma «cabra invisual». – Porquê. – Cega é um termo discriminatório. Se usasses essa palavra, haveria certamente alguém, entre os jornalistas, que teria um enfarte. 742/1088
– Termo-discriminatório. – Seria uma longa explicação. Em todo o caso, é melhor que esqueças a cabra cega e fales na cabra invisual. Fuka-Eri fez uma pequena pausa e falou de novo. – Deu-ma a cabra invisual. – Assim está bem – disse Tengo. – Cega não – confirmou Fuka-Eri. – Isso mesmo. Mas era uma boa resposta. Tengo continuou a fazer perguntas: – E o que dizem os teus colegas da escola acerca de teres ganhado o prémio? – Não ando na escola. – Porque é que não andas na escola? Não houve resposta. – Estás a pensar continuar a escrever ficção? Um novo silêncio. Tengo acabou de beber o café e pousou a chávena sobre o pires. Dos altifalantes encastrados no teto vinha uma interpretação para 743/1088
cordas da banda sonora de Música no Coração, muito baixinho. Gotas de chuva nas rosas e bigodes de gatinhos… – As minhas respostas são más – perguntou Fuka-Eri. – De todo – disse Tengo. – Nem pensar. São excelentes. – Boa – disse Fuka-Eri. Tengo estava a falar a sério. Mesmo não sendo ela capaz de proferir mais do que uma frase de cada vez e omitindo alguma pontuação, em certo sentido, as suas respostas eram perfeitas. O melhor de tudo era responder de imediato a cada pergunta. Também gostava da forma como ela olhava a direito para os olhos de quem lhe fazia as perguntas, sem pestanejar. Provava que as suas respostas eram honestas e a sua concisão não significava uma evasiva. Outra vantagem era não ser provável que alguém apreendesse o seu sentido na totalidade. Nisso residia a maior 744/1088
esperança de Tengo… que ela transmitisse uma sensação de sinceridade mesmo quando confundisse quem a estava a ouvir. – O teu romance favorito é…? – O Conto dos Heike. Tengo ficou estupefacto. Pensar que a crónica militar de um samurai do século XIII era o «romance» favorito dela! Que resposta maravilhosa! – E de que gostas tu acerca de O Conto dos Heike? – De tudo. – Tens mais algum de que gostes? – Contos do Tempo Que Foi. – Mas esse é ainda mais antigo! Não lês nada de literatura moderna? Fuka-Eri pensou durante um momento antes de responder. – Sansho, o Beleguim. Fantástico! Ogai Mori devia ter escrito a obra por volta de 1915. Era o que ela entendia por «literatura moderna». 745/1088
– Tens algum passatempo? – Ouço música. – Que tipo de música? – Gosto de Bach. – Alguma obra em particular? – BWV 846 a 893.35 Tengo pensou um bocado. – O Cravo Bem Temperado, Livros I e II. – Sim. – E porque é que respondeste com os números BWV? – São mais fáceis de fixar.
O Cravo Bem Temperado é, verdadeiramente, o que se pode designar de música celestial para matemáticos. Compõe-se de pares de prelúdio e fuga em tons maiores e menores, usando as doze notas da escala, vinte e quatro peças por livro, quarenta e oito peças ao todo, criando um ciclo perfeito. – Mais alguma obra? – perguntou Tengo. – BWV 244.
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Tengo não foi capaz de se recordar de imediato de que obra de Bach era a BWV 244. Fuka-Eri começou a cantar:
Buß’ und Reu’ Buß’ und Reu’ Knirscht das Sündenherz entzwei Buß’ und Reu’ Buß’ und Reu’ Knirscht das Sündenherz entzwei Knirscht das Sündenherz entzwei Buß’ und Reu’ Buß’ und Reu’ Knirscht das Sündenherz entzwei Buß’ und Reu’ Knirscht das Sündenherz entzwei Daß die Tropfen meiner Zähren Angenehme Spezerei Treuer Jesu, dir gebären.36
Por momentos, Tengo ficou sem palavras. Em rigor, não cantava muito afinada, mas a
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pronúncia alemã era espantosamente clara e certa. – A Paixão Segundo São Mateus – comentou Tengo. – Sabes a letra de cor. – Não, não sei – respondeu a rapariga. Tengo queria dizer qualquer coisa, mas faltaram-lhe as palavras. Só foi capaz de baixar os olhos sobre os seus apontamentos e passar à pergunta seguinte. – Tens namorado? Fuka-Eri abanou a cabeça. – Porque não? – Não quero ficar grávida. – É possível teres namorado e não ficares grávida. Fuka-Eri não disse nada, limitou-se a pestanejar várias vezes. – E por que razão não queres ficar grávida? Fuka-Eri manteve a boca firmemente cerrada. Tengo lamentou ter feito uma pergunta tão estúpida. 748/1088
– Okay, vamos parar – disse Tengo, arrumando a lista dentro da pasta. – Na realidade, nós não sabemos o que eles vão perguntar, e tu vais-te sair muito bem, seja como for que respondas. Consegues fazer isto. – Que bom – respondeu Fuka-Eri, com aparente alívio. – Estou certo de que pensas que preparar estas respostas é um desperdício de tempo. Fuka-Eri teve um ligeiro encolher de ombros. – Também acho. Não é porque queira fazer isto, mas o senhor Komatsu pediu-me. Fuka-Eri acedeu com a cabeça. – Mas – disse Tengo –, por favor, não digas a ninguém que eu reescrevi A Crisálida de Ar. Percebes isso, não é verdade? Fuka-Eri fez que sim com a cabeça duas vezes. – Fui eu que a escrevi sozinha. 749/1088
– Em todo o caso, A Crisálida de Ar é uma obra tua e de mais ninguém. Ficou claro logo desde o início. – Fui eu que a escrevi sozinha – repetiu Fuka-Eri. – Leste a minha reescrita de A Crisálida de Ar? – A Azami leu-ma. – E gostaste? – És um bom escritor. – O que significa que gostaste, imagino. – É como se tivesse sido eu a escrevê-la – disse Fuka-Eri. Tengo olhou para ela. Ela agarrou na caneca de cacau e bebeu mais um pouco. Ele teve de se esforçar para não olhar para a encantadora curva do peito dela. – Fico contente por saber – disse. – Gostei muito de reescrever A Crisálida de Ar. É claro que foi um trabalho difícil para tentar não destruir o que já tinhas feito. Por isso, é 750/1088
muito importante para mim saber se gostaste ou não do produto acabado. Fuka-Eri abanou a cabeça, silenciosa. Depois, como se quisesse asseverar-se de qualquer coisa, levou a mão ao seu pequeno e bem formado lóbulo da orelha. A empregada aproximou-se e tornou a encher-lhes os copos de água. Tengo bebeu um gole para molhar a garganta. Depois, reunindo coragem, deu voz a um pensamento que andava a bailar-lhe na cabeça já há algum tempo. – Se não te importas, tenho agora um pedido meu a fazer-te. – O que é. – Gostava que fosses à conferência de imprensa com a roupa que trazes hoje. Fuka-Eri deitou-lhe um olhar intrigado. Depois baixou os olhos para verificar cada peça de vestuário que envergava, como se, até então, não tivesse consciência do que tinha vestido. 751/1088
– Queres que use isto – perguntou. – Certo. Gostava que fosses à conferência de imprensa vestida da mesmíssima maneira que estás hoje. – Porquê. – Porque te fica bem. Mostra a curva do teu peito de uma maneira muito bonita. Isto é um palpite só meu, mas suspeito que os repórteres não vão conseguir evitar olhar para aí e esquecer-se-ão de te fazer perguntas difíceis. Claro que, se a ideia não te agradar, está bem na mesma. Não insisto. Fuka-Eri disse: – A Azami escolhe toda a minha roupa. – Não és tu? – É-me indiferente o que visto. – Quer dizer que foi a Azami que escolheu o que trazes vestido hoje? – A Azami escolheu. – Mesmo assim, fica-te muito bem. 752/1088
– Então, esta roupa faz-me um peito bonito – prosseguiu, sem ponto de interrogação. – Absolutamente. Chama a atenção. – Esta camisola liga bem com o sutiã. Fuka-Eri olhou-o a direito. Tengo sentiuse corar. – Não sou capaz de dizer que tipo de ligação têm, mas o efeito… hum… é excelente. Fuka-Eri tinha ainda os olhos fixos nos de Tengo. Muito séria, perguntou: – Não consegues parar de olhar aqui para baixo. – É verdade, tenho de confessar – respondeu Tengo. Fuka-Eri puxou pela gola da camisola e enfiou o nariz lá dentro, enquanto olhava para baixo, aparentemente para verificar que tipo de sutiã tinha nesse dia. A seguir, fixou por instantes os olhos no rosto vermelho que nem um pimentão de Tengo, como se olhasse para uma excentricidade. 753/1088
– Farei o que pedes – disse, um pouco mais tarde. – Muito obrigado – disse Tengo, concluindo a sessão.
Tengo acompanhou Fuka-Eri ao longo do caminho para a estação de Shinjuku. Muitas pessoas na rua tinham tirado os casacos. Algumas mulheres vestiam camisolas sem mangas. O bulício das pessoas misturado com o trânsito criava um som libertador muito próprio da cidade. Na rua corria uma brisa fresca de verão. Tengo estava intrigado: de onde viria um vento tão perfumado que conseguia chegar às ruas de Shinjuku apinhadas de gente? – Vais voltar para a tua casa no campo? – perguntou Tengo a Fuka-Eri. Os comboios iam à cunha; levaria uma eternidade para chegar a casa. Fuka-Eri abanou a cabeça. – Tenho um quarto em Shinano-machi. – A uns poucos minutos dali.
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– Ficas lá quando é tarde demais para regressares a casa? – Futamatao é demasiado longe. Tal como anteriormente, Fuka-Eri segurou a mão esquerda de Tengo ao longo do caminho para a estação. Fazia-o como o faria uma rapariguinha que dá a mão a um adulto, mas, ainda assim, o coração de Tengo batia com força por dar a mão a uma rapariga tão bonita. Quando chegaram à estação, ela soltou-lhe a mão, aproximou-se da máquina e comprou um bilhete para Shinano-machi. – Não te preocupes com a conferência de imprensa – disse Fuka-Eri. – Não estou preocupado. – Mesmo que não estejas, eu consigo fazêla sem problemas. – Eu sei – disse Tengo. – Não estou minimamente preocupado. Tenho a certeza de que vai correr bem. 755/1088
Sem dizer uma palavra, Fuka-Eri desapareceu para além dos torniquetes, misturando-se com a multidão.
Depois de ter deixado Fuka-Eri, Tengo foi até um barzinho perto da livraria Kinokuniya e pediu um gim-tónico. Frequentava aquele bar esporadicamente. Gostava da decoração antiquada e do facto de não ter música ambiente. Deixou-se ficar um bocado sentado no bar, a olhar para a mão esquerda, sem pensar em nada em particular. Era a mão que Fuka-Eri segurara. Ainda retinha a sensação. Pensou no peito dela, nas suas bonitas curvas. A forma era tão perfeita que quase não tinha significado sexual. Enquanto meditava nestas coisas, Tengo descobriu que estava com vontade de telefonar à sua namorada mais velha – para falar sobre qualquer coisa: as suas queixas acerca da educação das crianças, os índices de aprovação do governo Nakasone, não importava. Só queria ouvir a voz dela. Se fosse
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possível, queria encontrar-se com ela em qualquer sítio, naquele preciso instante, e fazer sexo. Mas telefonar-lhe para casa estava fora de questão. O marido podia atender. Um dos filhos podia atender. Nunca devia ser ele a telefonar. Foi uma das regras que estabeleceram. Tengo pediu outro gim-tónico e, enquanto esperava que lho dessem, imaginou-se dentro de um barquinho a descer os rápidos. Ao telefone, Komatsu dissera-lhe: «E, quando nos despenharmos na catarata, daremos um trambolhão em grande estilo!» Mas será que Tengo podia confiar na palavra dele? Komatsu não saltaria fora para um rochedo convenientemente perto antes de chegarem à catarata? «Desculpa, Tengo», diria, «mas lembrei-me agora de que tenho umas coisas para tratar. O resto fica por tua conta.» E o único a despenhar-se na catarata seria o próprio Tengo. Não era inverosímil. De facto, era muitíssimo verosímil. 757/1088
Regressou a casa, deitou-se e sonhou. Há muito tempo que não tinha um sonho tão vívido. Ele era uma pequena peça num puzzle gigantesco. Mas, em vez de ser definida, a sua forma estava sempre a mudar. E por isso, claro, não encaixava em sítio nenhum. Enquanto tentava descobrir qual era o seu lugar, também lhe deram um espaço de tempo limitado para reunir as páginas espalhadas da parte dos tímpanos de uma partitura. Um forte vento dispersara-as em todas as direções. Andou às voltas, a apanhar uma página de cada vez. Tinha de verificar a numeração e pô-las por ordem, ao mesmo tempo que o seu corpo mudava de forma, como uma amiba. A situação estava fora de controlo. Fuka-Eri acabou por aparecer e agarrar na sua mão esquerda. A forma de Tengo deixou de mudar. O vento caiu de repente e não mais espalhou as páginas da partitura. «Que alívio!», pensou Tengo, mas, nesse instante, o tempo que lhe tinham dado 758/1088
começou a esgotar-se. «É o fim», informou-o Fuka-Eri num sussurro. Uma só frase, como sempre. O tempo parou e o mundo acabou. Lentamente, a Terra foi-se detendo e todo o som e a luz desapareceram. Quando acordou no dia seguinte, o mundo ainda estava ali, as coisas estavam já a avançar como a grande roda cármica da mitologia hindu, que mata todos os seres vivos no seu caminho.
35 Iniciais de Bach-Werke-Verzeichnis, o sistema de numeração aplicado à obra de Bach. (N. das T.)
36 «Contrição e Arrependimento / desfazem o coração pecador em dois. / Que as gotas das minhas lágrimas / agradáveis bálsamos, / fiel Jesus, para ti se tornem.» (N. das T.)
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AOMAME
Se somos felizes ou infelizes
Na noite seguinte, Aomame regressou à varanda e descobriu que ainda havia duas luas no céu. A lua grande era a lua normal. Ostentava um misterioso revestimento branco como se tivesse acabado de abrir caminho pelo meio de uma montanha de cinzas, mas, fora isso, era a mesma velha lua de sempre, a que ela estava habituada a ver, a lua que Neil Armstrong marcara com um pequeno passo mas gigantesco salto, naquele quente verão de 1969. Flutuando ao seu lado estava uma pequena lua verde, disforme,
timidamente aninhada junto da lua grande, como se fora uma criança mais nova. Alguma coisa está errada com a minha mente. Sempre houve só uma lua, e deveria existir só uma agora. Se, de repente, o número de luas tivesse aumentado para duas, era forçoso que houvesse alterações reais na vida na Terra. Por exemplo, as marés deveriam ter sofrido sérias alterações, e toda a gente estaria a falar do assunto. É impossível não me ter dado conta até agora. Não é bem a mesma coisa do que perder um ou outro artigo no jornal. Ou será assim tão diferente? Posso fazer esta afirmação com cem por cento de certeza? Durante algum tempo, Aomame ficou de cenho franzido. Nos últimos dias, aconteceram à minha volta coisas muito estranhas. O mundo avança por si mesmo, sem que eu dê por isso, como se estivéssemos a jogar um jogo 761/1088
em que toda a gente só se pode mexer quando tenho os olhos fechados. Por isso, talvez até nem seja muito estranho haver duas luas, lado a lado no céu. Quem sabe, um destes dias, estando eu a dormir, a lua pequena tenha chegado de um ponto distante do espaço e decidido instalar-se no campo gravitacional da Terra, como se fosse uma prima distante da lua grande. Os polícias receberam uniformes novos e pistolas novas. A polícia e um grupo radical foram protagonistas de um tiroteio feroz nas montanhas de Yamanashi. Tudo isto aconteceu sem que me apercebesse. Também houve notícias dizendo que os Estados Unidos e a URSS construíram uma base lunar conjunta. Será possível existir alguma ligação entre isso e o aumento do número de luas? Aomame vasculhou a memória tentando recordar se existira algum artigo acerca da nova lua na edição resumida do jornal que 762/1088
lera na biblioteca, mas não conseguiu lembrar-se de nada. Desejou ter alguém a quem pudesse fazer perguntas sobre estes assuntos, mas não fazia a mínima ideia de quem abordar ou como. Seria atilado aproximar-se de uma pessoa e dizer simplesmente: «Olá! Acho que há duas luas no céu. Não se importa de dar uma olhadela?» Não, seria uma pergunta estúpida, fosse em que circunstância fosse. Se o número de luas tivesse, de facto, aumentado, seria estranho que ela não o soubesse. Se continuasse a existir apenas uma lua, as pessoas iriam pensar que enlouquecera. Sentou-se na cadeira de alumínio e pousou os pés no corrimão da varanda. Pensou em dez maneiras diferentes de fazer a pergunta, e até chegou a experimentar algumas em voz alta, mas todas lhe soaram tão estúpidas como a primeira. 763/1088
Oh, que se lixe. A situação é fora do comum, de uma ponta à outra. É óbvio que não há forma de arranjar uma pergunta sensata a esse respeito. Decidiu, de momento, pôr de lado o assunto da segunda lua. Vou esperar para ver o que acontece. Para já, não está a causar-me problemas práticos. E, quem sabe?, talvez, a dada altura, perceba que desapareceu enquanto eu não estava a ver.
Na tarde seguinte, foi ao ginásio em Hiroo, deu duas aulas de artes marciais e uma aula individual. Quando parou à frente do balcão da portaria, ficou surpreendida ao verificar que tinha uma mensagem da viúva de Azabu, pedindo-lhe que ligasse quando estivesse livre. Como de costume, foi Tamaru quem atendeu o telefone. Explicou que a velha senhora perguntava se Aomame podia ir até lá a casa logo no dia seguinte, caso fosse possível.
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Queria o programa habitual, seguido de um jantar leve. Aomame disse que podia aparecer por volta das quatro e que teria o maior prazer em fazer companhia à senhora durante o jantar. Tamaru confirmou o compromisso, mas, antes de poder desligar, Aomame perguntou-lhe se nos últimos dias tinha visto a Lua. – A Lua? – perguntou Tamaru. – Estás a falar da Lua… no céu? – Sim, da Lua. – Não tenho consciência de ter olhado para ela nos últimos tempos. Passa-se alguma coisa com a Lua? – Nada de especial – disse Aomame. – Muito bem, até amanhã, depois das quatro. Tamaru hesitou por um instante antes de pousar o auscultador.
Havia de novo duas luas nessa noite, ambas em quarto minguante, dois dias após a lua cheia. Como se examinasse um enigma
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irresolúvel, Aomame, com um copo de brande na mão, ficou a olhar para o par de luas, a pequena e a grande. Quanto mais olhava, mais enigmática lhe parecia aquela combinação. Quem lhe dera poder pôr a questão diretamente à Lua. «Como é que, de repente, arranjaste essa companheirazinha verde?» Mas a Lua não faria o favor de lhe dar uma resposta. A Lua observava a Terra de perto há mais tempo do que qualquer pessoa. Deve ter testemunhado todos os fenómenos que ocorreram – e todos os atos levados a cabo – à face da Terra. Mas a Lua mantinha-se em silêncio: não contava histórias. Limitava-se a carregar o peso do passado, fria e apropriadamente. Na Lua não havia ar ou vento. O seu vácuo era perfeito para preservar memórias intocadas. Ninguém podia abrir o coração da Lua. Aomame ergueu o copo para ela e perguntou: 766/1088
– Dormiste abraçada a alguém nos últimos tempos? A Lua não respondeu. – Tens amigos? – perguntou. A Lua não respondeu. – Nunca te cansas de levar uma vida tão fria? A Lua não respondeu.
Como era hábito, Tamaru veio recebê-la à porta. – Ontem à noite vi a Lua! – disse de imediato. – Oh, a sério? – respondeu Aomame. – Graças à tua pergunta, comecei a pensar nela. Há bastante tempo que não parava para ver a Lua. É bom. Muito relaxante. – Estavas com uma amante? – Precisamente – disse Tamaru, dando uma pancadinha na asa do nariz. – Passa-se alguma coisa com a Lua? – Nada – disse Aomame, e logo acrescentou, cheia de cautelas –, o que se passa é
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que… não sei, ultimamente tenho andado preocupada com a Lua. – Por alguma razão? – Nada em particular – disse Aomame. Tamaru fez que sim com a cabeça, em silêncio. Parecia estar a tirar as suas próprias conclusões. Ali estava um homem que não confiava em nada que não tivesse as suas razões. No entanto, em vez de continuar a conversa, conduziu Aomame ao solário. Lá estava a velha senhora, com uma camisola e umas calças de malha, próprias para fazer exercício, sentada na sua cadeira de leitura, a ouvir Lachrimae, uma peça instrumental de John Dowland37, enquanto lia um livro. Era uma das suas peças musicais favoritas. Aomame já a ouvira muitas vezes e sabia a melodia. – Peço desculpa por ser com tão pouca antecedência – disse a dona da casa. – Este buraco só surgiu ontem. 768/1088
– Não tem de me pedir desculpa – respondeu Aomame. Tamaru trouxe um tabuleiro com um bule e encheu duas elegantes chávenas. Quando saiu, fechou a porta atrás de si, deixando as duas mulheres sozinhas. Beberam a tisana em silêncio, enquanto escutavam Dowland e olhavam para a exuberância das flores das azáleas no jardim. Sempre que aqui vinha, Aomame sentia-se num outro mundo. O ar era pesado e o tempo tinha uma forma muito especial de correr. A velha senhora disse: – Muitas vezes, quando ouço esta música, sou assaltada por misteriosas emoções ligadas ao tempo. – Quase parecia ter lido os pensamentos de Aomame. – Só de pensar que as pessoas de há quatrocentos anos ouviram a mesma música que ouvimos agora! Não tens uma sensação estranha? – Tenho – respondeu Aomame –, mas, já que falamos nisso, essas pessoas de há 769/1088
quatrocentos anos também viam a mesma Lua que vemos. A viúva olhou para Aomame ligeiramente surpreendida. A seguir, assentiu com a cabeça. – Tens toda a razão. Vendo as coisas por esse prisma, penso que não há nada de estranho no facto de as pessoas escutarem a mesma música à distância de quatrocentos anos. – Talvez eu devesse ter dito quase a mesma Lua – disse Aomame, olhando para a senhora. O seu comentário parecia ter impressionado a mulher mais velha. – Neste CD, os músicos utilizam instrumentos de época – explicou a senhora –, tal qual foi escrito na altura, pelo que a música deve ter um som bastante parecido ao desse tempo. É como a Lua. Aomame falou de novo: – Mesmo que as coisas fossem as mesmas, nesse tempo, a forma como as pessoas as 770/1088
viam devia ser muito diferente. É provável que a escuridão da noite fosse mais escura e a Lua devia parecer muito maior e mais brilhante. E, claro, as pessoas não tinham discos, fitas ou CD. Não podiam ouvir música tocada como deve ser, de cada vez que lhes apetecia: era sempre uma ocasião especial. – Tens razão, certamente – disse a velha senhora. – Hoje em dia, as coisas são tão cómodas e fáceis que a nossa capacidade de ver deve estar bastante mais embotada. Mesmo que seja a mesma Lua que está ali no céu, podemos estar a olhar para uma coisa muito diferente. Há quatrocentos anos, devíamos ter um espírito mais rico, mais próximo da natureza. – Sim, mas era um mundo cruel. Mais de metade das crianças morria antes de chegar à maturidade, graças a doenças crónicas e à subnutrição. As pessoas caíam que nem tordos por causa de doenças como a poliomielite, a tuberculose, a varíola e o sarampo. Não 771/1088
devia haver muita gente com mais de quarenta anos. As mulheres tinham tantos filhos que, aos trinta, já não passavam de uns estafermos desdentados. Era frequente as pessoas terem de recorrer à violência para sobreviver. As crianças pequeninas eram obrigadas a trabalhar tanto que ficavam com malformações ósseas, e era vulgar as rapariguinhas serem forçadas a prostituir-se diariamente. E suspeito que os rapazinhos também. A maior parte das pessoas levava uma vida em condições mínimas de sobrevivência, em mundos que nada tinham que ver com riqueza, formas de ver ou espírito. As ruas das cidades estavam cheias de estropiados, pedintes e criminosos. Só uma pequena parte da população podia olhar para a Lua com um sentimento de fruição, ou apreciar uma peça de Shakespeare ou escutar a linda música de Dowland. A velha senhora sorriu. – Que pessoa interessante me saíste! 772/1088
– Sou uma pessoa muito vulgar – respondeu Aomame. – Acontece que gosto de ler livros. Sobretudo livros de História. – Eu também aprecio os livros de História. Ensinam-nos que, basicamente, somos iguais hoje ao que fomos outrora. Pode haver diferenças insignificantes em termos de vestuário e de estilo de vida, mas não há grande diferença no que pensamos e fazemos. No fundo, os seres humanos não passam de veículos, ou locais de passagem, para os genes. De geração em geração, correm dentro de nós até nos esgotarem, como cavalos de corrida. Os genes não pensam no bem e no mal. Não querem saber se somos felizes ou infelizes. Para eles, não passamos de um meio para atingir um fim. Só pensam no que é mais eficaz do seu ponto de vista. – Apesar de tudo, não conseguimos deixar de pensar no bem e no mal. Não é o que está a dizer? A senhora anuiu. 773/1088
– Precisamente. As pessoas têm de pensar nessas coisas. Mas os genes são o que controla a base da forma como vivemos. Como é natural, as contradições surgem – disse ela, com um sorriso. A conversa sobre história terminou ali. Beberam o resto da tisana e passaram ao treino de artes marciais.
Naquele dia, partilharam um jantar leve em casa da velha senhora. – Se não te importas, hoje tudo o que te posso oferecer é uma refeição simples – disse a anciã. – Por mim, está perfeito – respondeu Aomame. Tamaru fez avançar um carrinho onde vinha a refeição. Não havia dúvidas de que a comida fora preparada por um chef profissional, mas cabia a Tamaru servi-la. Tirou a garrafa de vinho branco de dentro do balde de gelo e, com movimentos estudados, serviu o vinho. A dona da casa e Aomame provaram
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o vinho. Tinha um bouquet excelente e estava gelado na perfeição. O jantar consistia em espargos cozidos, salada Niçoise, uma omeleta de caranguejo, pãezinhos e manteiga, sem mais. Os ingredientes eram todos frescos e deliciosos, em porções moderadas. A velha senhora ingeria sempre quantidades de comida parcimoniosas. Usava a faca e o garfo com elegância, levando à boca pequenos pedaços, um após o outro, como um passarinho. Ao longo de toda a refeição, Tamaru permaneceu no canto mais afastado da sala. Aomame ficava sempre espantada com a capacidade que aquele homem tão possante tinha de tornar a sua presença obscura durante tanto tempo. Ao longo da refeição, as duas mulheres limitaram-se a breves trechos de conversa, concentrando-se no que estavam a comer. A música tocava baixinho – um concerto para violoncelo de Haydn. Era outro dos favoritos da viúva. 775/1088
Após os pratos terem sido levados, chegou um bule com café. Tamaru serviu e, quando se retirava, a senhora virou-se para ele, com um dedo espetado. – Muito obrigada, Tamaru. É tudo. Tamaru curvou a cabeça, respeitoso, e abandonou a sala em passos silenciosos, como era seu hábito. A porta fechou-se suavemente atrás de si. Enquanto as duas mulheres bebiam o café, a música chegou ao fim e um novo silêncio abateu-se sobre a sala. – Tu e eu confiamos uma na outra, não é assim? – perguntou a viúva, olhando Aomame olhos nos olhos. Aomame concordou – em termos sucintos, mas sem reservas. – Partilhamos segredos importantes – prosseguiu a velha senhora. – Pusemos o nosso destino nas mãos uma da outra. Aomame concordou silenciosamente. 776/1088
Estavam na sala onde, pela primeira vez, Aomame confessara o seu segredo à dona da casa. Lembrava-se claramente da ocasião. Há muito que sabia que, a certa altura, iria ter de partilhar com alguém o peso que carregava no coração. Só seria capaz de o manter trancado dentro de si durante algum tempo, e estava a chegar ao seu limite. Assim sendo, quando a senhora lhe deu uma palavra de incentivo, Aomame escancarou a porta. Contou-lhe como a sua melhor amiga perdera o equilíbrio mental, ao fim de dois anos de violência doméstica infligida pelo marido, e que, sentindo-se incapaz de fugir dele, se suicidara. Aomame deixou que decorresse quase um ano antes de congeminar uma desculpa para visitar a casa do homem. E aí, seguindo um plano elaborado que ela própria engendrara, matou-o com uma agulha, que espetou na parte de trás do pescoço dele. Não provocou sangue nem deixou uma ferida visível. Aquela morte foi tratada como 777/1088
resultante de uma mera doença. Ninguém teve qualquer suspeita. Aomame dissera à viúva que achava que não fizera nada de mal, quer na altura quer agora. Nem sentia qualquer rebate de consciência, se bem que isso não diminuísse em nada o fardo de, propositadamente, ter tirado a vida a um ser humano. A idosa senhora escutou atentamente a longa confissão de Aomame e não fez qualquer comentário, mesmo nos momentos em que, aqui e ali, Aomame hesitou no seu relato cheio de pormenores. Quando Aomame terminou a história, a senhora pediu esclarecimentos quanto a alguns pontos. Depois estendeu a mão e agarrou na de Aomame com firmeza, assim se mantendo durante um bom bocado. – O que fizeste está certo – disse, falando devagar e com convicção. – Se estivesse vivo, acabaria por fazer o mesmo a outras mulheres. Homens desses encontram sempre 778/1088
mais vítimas. Estão programados para o fazerem uma e outra vez. Cortaste o mal pela raiz. Fica descansada que não se tratou de uma mera vingança pessoal. Aomame escondeu a cara nas mãos e chorou. Chorava por Tamaki. A viúva procurou um lenço e limpou-lhe as lágrimas. – É uma coincidência estranha – disse a velha senhora, numa voz baixa mas resoluta –, em tempos, também eu fiz desaparecer um homem, e por uma razão muito semelhante. Aomame levantou a cabeça e encarou a anciã. Ficou sem saber o que dizer. De que estaria ela a falar? A velha senhora prosseguiu: – Não o fiz pela minha mão, claro. Não tinha nem a força física nem o teu treino especial. A verdade é que o fiz desaparecer pelos meios de que dispunha, sem deixar qualquer prova concreta. Mesmo que me entregasse à polícia e confessasse, seria 779/1088
impossível prová-lo, tal como no teu caso. Imagino que, a haver um qualquer tipo de julgamento após a morte, será um deus a julgar-me, mas não tenho o mínimo receio. Não fiz nada de errado. Reservo-me o direito de declarar a justiça do meu caso aos olhos de quem quer que seja. A viúva soltou um suspiro de evidente alívio antes de prosseguir: – Quer isto então dizer que tu e eu temos nas mãos os segredos mais íntimos uma da outra, não é verdade? Aomame ainda não conseguia abarcar a totalidade do que a viúva lhe estava a contar. Fizera desaparecer um homem? Presa entre a dúvida profunda e um choque intenso, o rosto de Aomame começou a perder a sua forma habitual. Para a acalmar, num tom de voz tranquilo, a senhora começou a explicar o que acontecera.
A sua filha fora levada a acabar com a própria vida, forçada por circunstâncias muito
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semelhantes às de Tamaki Ōtsuka. A filha desposara o homem errado. Logo desde o início, a velha senhora percebera que o casamento não poderia correr bem. Para ela, era óbvio que o homem tinha uma personalidade distorcida. Estivera já envolvido em várias situações complicadas e as causas dos conflitos pareciam profundamente enraizadas. Mas não houve quem conseguisse impedir aquele casamento. Tal como a senhora esperava, houve situações recorrentes de violência doméstica. Aos poucos, a filha foi perdendo toda a autoestima e a confiança, e caiu numa depressão gravíssima. Desprovida da força para se aguentar por si própria, sentia-se cada vez mais presa numa armadilha, até que, por fim, um dia, engoliu uma grande quantidade de comprimidos para dormir com uísque. A autópsia revelou muitos sinais de violência: hematomas causados por murros e espancamentos, ossos partidos e inúmeras 781/1088
cicatrizes de queimaduras de cigarro na carne. Ambos os pulsos mostravam sinais de terem sido amarrados com força. Aparentemente, o marido gostava de usar uma corda. Os mamilos estavam deformados. A polícia chamou o homem para um interrogatório. Ele mostrou-se disposto a admitir um certo grau de violência, mas manteve que esta fazia parte das práticas sexuais do casal, sob mútuo consentimento, para satisfazer as preferências da mulher. Tal como no caso de Tamaki, a polícia não encontrou fundamentos para assacar a responsabilidade legal ao homem. A esposa nunca apresentara queixa, e agora estava morta. O homem tinha uma posição de algum relevo em termos sociais e contratara um advogado criminalista competente. Tudo somado, não restavam dúvidas de que a morte fora um suicídio. – E matou o homem? – aventurou-se Aomame a perguntar. 782/1088
– Não, não o matei… aquele homem, não – respondeu a viúva. Sem perceber onde é que aquilo ia dar, Aomame limitou-se a olhar fixamente para ela, em silêncio. A senhora prosseguiu: – O ex-marido da minha filha, aquele homem ignóbil, ainda está vivo neste mundo. Levanta-se da cama todas as manhãs e desce a rua pelo seu próprio pé. Uma morte simples não foi o que planeei para ele. Fez uma breve pausa para dar a Aomame a oportunidade de absorver bem as suas palavras. – Destruí o meu ex-genro em termos sociais, sem deixar ficar pedra sobre pedra. Acontece que disponho de um poder desse tipo. O homem é um fracalhote. Tem um certo grau de inteligência, fala bem e é bastante famoso, mas, antes de mais, é fraco e desprezível. Os homens que usam de grande violência em casa, contra mulheres e 783/1088
filhos, são invariavelmente gente de caráter débil. Atacam os que são mais fracos do que eles, devido às suas próprias fraquezas. Foi fácil destruí-lo. E, uma vez destruídos, tais homens não mais conseguem levantar-se. A minha filha morreu há muito tempo, mas eu mantive-o debaixo de olho até hoje. Se mostrar sinais de recuperar, não deixarei que tal aconteça. Continua vivo, mas bem podia ser já cadáver. Não se vai matar, não tem a coragem necessária para o fazer. E eu também não lhe vou fazer o favor de o matar. O meu método consiste em continuar a atormentá-lo sem piedade, sem pausas, mas também sem o matar, como se estivesse a esfolá-lo vivo. O homem que fiz desaparecer era outra pessoa. Houve um motivo real que me forçou a fazer com que o deslocassem para outro sítio.
A senhora continuou a explicar a sua história a Aomame. Um ano após a filha ter morrido, criou um abrigo privado para
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mulheres que sofriam do mesmo tipo de violência que a filha. Era dona de um pequeno edifício de apartamentos, com dois andares, num lote de terreno adjacente à sua Casa dos Salgueiros em Azabu, e mantivera-o desocupado, na intenção de o mandar demolir. Em vez disso, decidiu fazer obras de renovação no edifício e utilizá-lo como uma casa-abrigo para mulheres que não tinham mais para onde ir. Abriu também, na baixa da cidade, um «gabinete de apoio» onde as mulheres sujeitas a violência doméstica podiam procurar, entre outras coisas, aconselhamento jurídico, sobretudo junto de advogados da área metropolitana. O gabinete funcionava com voluntários que trabalhavam por turnos, fazendo entrevistas e prestando apoio telefónico. O pessoal mantinha-se em permanente contacto com a dona da casa. As mulheres que precisavam de uma ajuda de emergência eram enviadas para a casa-abrigo, muitas vezes com os filhos atrás 785/1088
(incluindo raparigas adolescentes que já tinham sido abusadas sexualmente pelos pais). Ficavam ali até se arranjar uma solução permanente. Atendiam às suas necessidades mais básicas – roupa, comida – e ajudavamse umas às outras numa espécie de vida comunitária. A velha senhora garantia pessoalmente todas as despesas. Os advogados e os conselheiros faziam visitas regulares à casa-abrigo, para verificarem o progresso das mulheres e discutir os seus planos de futuro. Sempre que tinha tempo, a viúva também aparecia, escutava a história de cada mulher e dava os seus conselhos. Por vezes, arranjava-lhes empregos ou uma residência permanente. Quando os problemas que surgiam impunham uma intervenção de natureza física, Tamaru ia até lá e tratava do caso – aconteciam quando, por exemplo, um marido tomava conhecimento do paradeiro da mulher e tentava ir buscá-la à força. Ninguém conseguia lidar com este 786/1088
tipo de problemas de forma mais expedita e eficaz do que Tamaru. – No entanto, há casos que nem eu nem o Tamaru podemos resolver por completo e para os quais não encontramos remédio legal eficaz – afirmou a viúva. Aomame reparou que, à medida que ia falando, a face da viúva ganhava um brilho de bronze e, ao mesmo tempo que esse fulgor se instalava, a sua habitual afabilidade elegante ia diminuindo, até desaparecer por completo. Em seu lugar surgira um certo não-sei-quê que transcendia a mera zanga ou o desprezo. Tratava-se, provavelmente, daquele núcleo pequeno, duro e inominado, que se esconde bem no fundo da mente. Todavia, apesar da mudança no seu rosto, a voz mantinha-se tão fria e desapaixonada como sempre. – Claro está que a existência, ou não existência, de uma pessoa não pode ser decidida com base em meras considerações 787/1088
práticas, como, por exemplo, se ele já não existir, as dificuldades de um divórcio desaparecem, ou mais depressa se efetua o pagamento de um seguro de vida. Só agimos em última instância, após exame cuidadoso e justo de todos os elementos envolvidos e tendo chegado à conclusão de que o homem não merece misericórdia. Esses homens parasitas, que vivem a chupar o sangue aos mais fracos! Esses homens incuráveis, com as suas mentes retorcidas! Nenhum deles demonstra qualquer interesse em reabilitarse, e nós não descortinamos qualquer vantagem em mantê-los vivos neste mundo! A senhora cerrou a boca e, por um instante, olhou para Aomame com olhos capazes de perfurar rocha. A seguir, retomou o seu tom calmo habitual: – Tudo o que podemos fazer com esses homens é arranjar maneira de desaparecerem, de uma forma ou de outra, mas tendo sempre o cuidado de não atrair as atenções. 788/1088
– E isso é possível? – Há muitas maneiras de as pessoas desaparecerem – disse a idosa, detendo-se para deixar que as suas palavras fossem compreendidas. Depois, prosseguiu: – Consigo fazer com que as pessoas desapareçam. Disponho desse poder. Aomame esforçou-se por compreender, mas as palavras da viúva eram demasiado obscuras. A anciã disse: – Tu e eu perdemos pessoas que eram importantes para nós e ambas ostentamos cicatrizes profundas, resultantes dessa experiência. Um coração assim ferido provavelmente nunca sarará. Mas não podemos deixar-nos ficar quietas, a lamber as nossas feridas. Temos de nos erguer e avançar para a próxima etapa… não para satisfazer a nossa vingança pessoal, mas em nome de uma forma de justiça mais abrangente. Ajudas-me nesta tarefa? Preciso de um colaborador hábil em 789/1088
quem confiar, alguém com quem possa partilhar os meus segredos e a minha missão. Queres ser essa pessoa? Queres juntarte a mim? Aomame levou algum tempo até perceber com clareza o que a viúva lhe dissera. Era uma confissão incrível e uma proposta igualmente inacreditável. Aomame precisava de mais algum tempo para perceber como se sentia quanto a esta proposta. Enquanto analisou isto de si para si, a velha senhora manteve-se em absoluto silêncio, sentada imóvel na sua cadeira, com o olhar fixo em Aomame. Não tinha pressa. Parecia preparada para esperar o que fosse preciso. Não há dúvida de que esta mulher foi acometida por uma espécie de loucura. Mas ela não é louca nem psicologicamente desiquilibrada. Não, a sua mente está firme como uma rocha, imperturbável e fria, facto apoiado em sólidas provas. Não sendo loucura, é algo que se assemelha à loucura. 790/1088
Um preconceito válido,talvez. E deseja agora que eu partilhe a sua loucura, preconceito, ou o que quer que seja. E com a mesma frieza com que o faz. Acha que estou habilitada a fazê-lo. Há quanto tempo estava ali, a pensar? A certa altura, parecia-lhe ter perdido o fio do tempo, imersa que estava nos seus pensamentos. Só o seu coração continuava a marcar o passo, num ritmo certo e fixo. Aomame visitou várias salinhas que tinha dentro de si, tentando avançar contra o tempo, da mesma forma que um peixe luta contra a corrente ao subir o rio. Ali encontrou visões familiares e aromas há muito esquecidos, doces lembranças e dores severas. De súbito, vindo de um ponto ignorado, um fino raio de luz perfurou o corpo de Aomame. Teve a misteriosa sensação de se ter tornado transparente. Quando ergueu a mão à frente da luz, viu para além dela. E, de 791/1088
repente, o seu corpo já não tinha peso nenhum. Nesse instante, Aomame pensou: Mesmo que me entregue à loucura, ou ao preconceito, aqui e agora, mesmo que isso me destrua, mesmo que este mundo desapareça por completo, o que tenho eu a perder? – Estou a ver – disse à viúva. Interrompeu-se, mordendo o lábio. A seguir, acrescentou: – Gostaria de ajudar como puder. A anciã estendeu a mão e agarrou as mãos de Aomame. A partir daquele momento, Aomame e a velha senhora partilharam os seus segredos, partilharam a sua missão e partilharam aquele não-sei-quê que mais se assemelha à loucura. Bem podia ser simples e mera loucura, mas Aomame era incapaz de discernir a linha de fronteira. Os homens que ela e a viúva haviam enviado para um mundo distante eram aqueles a quem não havia 792/1088
razão, de qualquer ponto de vista, para conceder misericórdia.
– Não foi há muito tempo que deslocaste aquele homem no hotel de Shibuya para o outro mundo – começou, baixinho, a viúva. Da maneira como dizia «deslocar» para o outro mundo, bem podia estar a falar de uma peça de mobiliário. – Dentro de quatro dias, fará precisamente dois meses. – Então, foi há menos de dois meses, não é verdade? – continuou a velha senhora. – Não devia pedir-te que te encarregasses de outro trabalho tão cedo. Prefiro que decorram, pelo menos, seis meses entre eles. Se forem muito próximos uns dos outros, o nosso fardo psicológico aumenta. Não se trata, como é que hei de dizer?, de uma tarefa normal. Além disso, alguém pode começar a ter suspeitas de que o número de ataques de coração entre homens ligados à minha casa-abrigo é um pouco elevado.
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Aomame esboçou um sorriso e comentou: – É verdade, anda por aí muita gente desconfiada. A viúva também sorriu. Falou de novo: – Como tu bem sabes, sou uma pessoa muito, muito cuidadosa. Não acredito em coincidências, em previsões ou na boa sorte. Procuro as possibilidades menos drásticas de lidar com estes homens, e só quando se torna óbvio que tais possibilidades não existem é que escolho a solução derradeira. Quando, em última hipótese, dou esse passo, elimino todos os riscos concebíveis. Examino todos os elementos com uma extrema atenção ao pormenor, não poupo nos preparativos, e só quando me convenço de que pode resultar é que recorro a ti. Razão pela qual, até agora, não tivemos um único percalço. Nunca tivemos, problemas, pois não? – Não, está absolutamente certa – respondeu Aomame, e falava a sério. 794/1088
Ela preparava o equipamento, ia até ao local designado e encontrava tudo rigorosamente como planeado. Espetava a sua agulha – uma vez – num ponto preciso na parte de trás do pescoço do homem. Por fim, após ter verificado que o homem fora «deslocado para outro lugar», saía. Até ao momento, tudo decorrera de forma tranquila e sem espinhas. – Contudo, neste caso – prosseguiu a viúva –, lamento dizer-te, mas é provável que vá ter de te pedir uma coisa muito mais exigente. O nosso plano não está afinado e ainda existem muitas incertezas. Posso não conseguir proporcionar-te uma situação tão bem preparada como até agora te dei. Por outras palavras, desta vez, vai ser uma coisa um tanto diferente. – Diferente como? – Bem, este homem não é uma pessoa com um estatuto vulgar – disse a anciã. – Com isto quero dizer, antes de mais nada, 795/1088
beneficia de uma segurança extremamente apertada. – É político, ou algo do género? A anciã abanou a cabeça. – Não, não é um político. Depois transmito-te mais informações. Esforcei-me por arranjar uma solução que evitasse o nosso envolvimento, mas nada dá mostras de resultar. Este desafio não pode ser resolvido com uma abordagem normal. Lamento, mas não consegui encontrar mais nada que não seja recorrer aos teus préstimos. – É um caso urgente? – perguntou Aomame. – Não, não é especialmente urgente. Nem sequer temos um prazo para o resolvermos. Mas, quanto mais o adiarmos, mais pessoas poderão sofrer. E a oportunidade com que nos deparamos tem um caráter limitado por natureza. Não há maneira de saber quando disporemos de uma ocasião semelhante. 796/1088
Escurecera lá fora. O solário estava imerso em silêncio. Aomame perguntou-se se a Lua já teria nascido, mas, do sítio onde estava sentada, não conseguia vê-la. – Faço tenções de te explicar a situação toda até ao mais ínfimo pormenor. Contudo, antes de o fazer, quero que conheças uma pessoa. Vamos vê-la? – Está a viver na sua casa-abrigo? A viúva inspirou devagar e soltou um pequeno som vindo do fundo da sua garganta. Os olhos ganharam um fulgor especial, que Aomame nunca vira antes. – Veio para cá há seis semanas, enviada pelo nosso gabinete de apoio. Durante as primeiras quatro semanas, não pronunciou uma única palavra. Vinha numa espécie de estado de choque e, pura e simplesmente, tinha perdido a capacidade da fala. Só lhe conhecíamos o nome e a idade. Tinham-na recolhido quando a descobriram a dormir numa estação de comboios, num estado 797/1088
terrível, e, depois de ter andado de Herodes para Pilatos, entre um gabinete e o outro, acabou por ser enviada para nós. Passei horas a falar com ela, pouco a pouco, um bocadinho todos os dias. Precisei de muito tempo para a convencer de que está num local seguro e que não precisa de ter medo. Agora já consegue dizer qualquer coisa. Tem um discurso confuso e fragmentado, mas, juntando as peças, fui capaz de formar uma ideia geral do que lhe aconteceu. É quase demasiado terrível para se falar nisso, verdadeiramente chocante. – Outro caso de marido violento? – Nem pouco mais ou menos – respondeu a viúva, num tom seco. – Tem apenas dez anos.
A velha senhora e Aomame cortaram pelo jardim e, destrancando uma pequena porta, entraram no pátio adjacente. A casa-abrigo era um pequeno edifício de apartamentos, com estrutura de madeira. Em tempos, fora
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utilizada como residência para os muitos criados que tinham trabalhado para a família da viúva. A casa, uma construção de dois andares, tinha um certo encanto antiquado, mas estava demasiado deteriorada para arrendar. Todavia, enquanto refúgio temporário para mulheres que não tinham mais para onde ir, era perfeita. Um velho carvalho estendia os ramos como que a proteger o edifício e a porta da frente ostentava um bonito painel de vidro ornamental. Ao todo, existiam dez apartamentos, sempre ocupados em certos períodos, mas quase vazios noutras ocasiões. Era habitual viverem ali calmamente cinco ou seis mulheres. Naquele momento, havia luzes acesas em cerca de metade dos quartos. A casa estava estranhamente silenciosa, tirando o som esporádico de vozes de crianças pequenas. O próprio edifício parecia suspender a respiração. Faltava-lhe a habitual gama de sons associados à vida quotidiana. Bun, a cadela 799/1088
pastora alemã, estava presa com uma corrente perto do portão da frente. Sempre que alguém se aproximava, ela soltava um rosnido e alguns ladridos. A cadela fora treinada – não se sabia ao certo como ou por quem – para ladrar com ferocidade sempre que um homem se aproximasse, apesar de Tamaru ser a pessoa em quem mais confiava. Assim que a viúva se aproximou, a cadela parou de ladrar. Abanou a cauda e bufou, feliz. A senhora dobrou-se e deu-lhe umas palmadinhas na cabeça. Aomame fez-lhe cócegas atrás das orelhas. A cadela pareceu recordar-se de Aomame. Era esperta. Por qualquer razão desconhecida, gostava de comer espinafres crus. A velha senhora abriu a porta da frente com uma chave. – Uma das mulheres está a tomar conta da rapariga – disse a Aomame. – Pedi-lhe que fosse viver para o mesmo apartamento e que não tirasse os olhos dela. É ainda demasiado cedo para a deixarmos sozinha. 800/1088
Por rotina, as mulheres da casa-abrigo cuidavam umas das outras, e fomentava-se implicitamente que contassem entre si as histórias daquilo por que tinham passado, como forma de partilharem a dor. As que já aí viviam há algum tempo ajudavam as recém-chegadas com dicas de como viver na casa e oferecendo-lhes artigos de primeira necessidade. Por regra, as mulheres cozinhavam e faziam as limpezas à vez, mas, obviamente, existiam algumas que desejavam manter-se isoladas, sem ter de falar sobre as suas experiências, e o seu desejo de silêncio e privacidade era respeitado. A maior parte das mulheres, contudo, queria falar e interagir com outras mulheres que tinham passado por tormentos semelhantes. Fora a proibição de beber álcool, fumar e receber indivíduos não autorizados, poucas mais restrições havia. O edifício tinha apenas um telefone e um aparelho de televisão, ambos na sala comum, 801/1088
junto da porta da frente. Aí se encontrava também um velho conjunto de sofás e uma mesa de jantar. Aparentemente, era onde a maioria das mulheres passava grande parte do tempo. A televisão quase nunca estava ligada, e mesmo quando estava, regulavam o volume para um nível quase inaudível. As mulheres preferiam ler livros ou jornais, tricotar ou dedicar-se a conversas em surdina. Algumas preenchiam os dias a pintar. Era um espaço estranho, com uma luz mortiça e parada, como se de um local transitório entre o mundo real e o mundo do além se tratasse. Ali, a luz era sempre igual, estivesse o dia soalheiro ou enevoado, de manhã à noite. Aomame sentia-se sempre pouco à vontade naquela sala, como se fosse uma intrusa insensível. Parecia um clube que exigia requisitos especiais para se ser aceite como membro. Na sua origem, a solidão destas mulheres era muito diferente da solidão que Aomame sentia. 802/1088
As três mulheres presentes na sala comum levantaram-se quando a viúva entrou. De relance, Aomame verificou que tinham o maior respeito pela senhora. A anciã convidou-as a sentarem-se. – Por favor, não parem o que estavam a fazer. Só queremos dar uma palavrinha à Tsubasa. – A Tsubasa está no quarto – informou uma mulher que Aomame calculou ter mais ou menos a sua idade. Tinha cabelo comprido e liso. – A Saeko está com ela. Ao que parece, a Tsubasa ainda não pode descer – disse uma mulher um pouco mais velha. – Não, é provável que ainda leve algum tempo – respondeu a viúva, com um sorriso. As três mulheres concordaram com a cabeça, em silêncio. Sabiam bem o que «levar algum tempo» significava. Aomame e a velha senhora subiram as escadas e entraram num dos apartamentos. A 803/1088
idosa pediu à mulher pequena e apagada que estava lá dentro que lhe desse algum tempo com Tsubasa. Saeko – era o nome da mulher – fez-lhe um leve sorriso e deixou-as com Tsubasa, a menina de dez anos, fechando a porta ao sair. Dirigiu-se para o andar de baixo. Aomame, a viúva e Tsubasa sentaram-se à volta de uma mesinha. A janela estava tapada por um pesado reposteiro. – Esta senhora chama-se Aomame – a idosa senhora informou Tsubasa. – Não te assustes, ela trabalha para mim. A rapariga olhou fugazmente para Aomame e fez um ligeiríssimo aceno. – E esta é a Tsubasa – disse a viúva, concluindo as apresentações. A seguir, perguntou à rapariga: – Há quanto tempo vieste para cá, Tsubasa? A rapariga abanou a cabeça – outra vez de forma muito subtil –, como que querendo dizer que não sabia. 804/1088
– Seis semanas e três dias – declarou a velha senhora. – Tu podes não contar os dias, mas eu conto. E sabes porquê? De novo, a rapariga fez um leve aceno com a cabeça. – Porque o tempo pode ser muito importante – prosseguiu a viúva. – E contá-lo será muito significativo. Aos olhos de Aomame, Tsubasa parecia igual a qualquer outra rapariga com dez anos. Era bastante alta para a idade, mas magra, e o peito ainda não tinha começado a desenvolver-se. Parecia sofrer de malnutrição crónica. Não havia nada de errado com as suas feições, mas a cara dela não chamava a atenção. Vendo os seus olhos, Aomame pensou em janelas cobertas de gelo, tão pouco revelavam do que existia por trás deles. Tinha uns lábios finos e secos que se contorciam num esgar nervoso ocasional, como se estivessem a tentar formar palavras, mas deles não saía som nenhum. 805/1088
Do saco de papel que trouxera consigo, a viúva retirou uma caixa de chocolates que tinha na tampa uma paisagem de montanha suíça. Espalhou o conteúdo sobre a mesa: uma dúzia de bonitos bombons com formas variadas. Estendeu um a Tsubasa, um a Aomame e pôs outro na boca. Aomame pôs o seu na boca. Após ter visto o que faziam, Tsubasa pôs também um bombom na boca. Durante algum tempo, as três comeram o chocolate, sem uma palavra. – Lembras-te de alguma coisa de quando tinhas dez anos? – perguntou a senhora a Aomame. – Muito bem – respondeu Aomame. Nesse ano, segurara na mão de um rapaz e jurara amá-lo para o resto da vida. Alguns meses mais tarde, tivera a sua primeira menstruação. Por essa altura, muita coisa mudou dentro de Aomame. Abandonou a religião e cortou os laços com os pais. 806/1088
– Eu também – disse a senhora. – Quando eu tinha dez anos, o meu pai levou-nos a Paris, e ficámos lá durante um ano. Era funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Vivíamos num antigo prédio de apartamentos perto do Jardim do Luxemburgo. Decorriam os últimos meses da Primeira Guerra Mundial e as estações de comboios estavam cheias de soldados feridos, alguns deles quase crianças, outros velhos. Paris é de uma beleza de cortar a respiração em todas as estações do ano, mas o que me resta desse tempo são imagens sangrentas. Na frente, travava-se uma medonha guerra de trincheiras, e as pessoas que tinham perdido braços, pernas e olhos deambulavam pelas ruas da cidade como fantasmas perdidos. A única coisa que me atraía o olhar era o branco das ligaduras e o negro dos fumos nos braços das mulheres enlutadas. Os carros de cavalos transportavam caixão atrás de caixão para os cemitérios e, sempre 807/1088
que um passava, as pessoas desviavam o olhar e fechavam a boca com força. A velha senhora estendeu a mão sobre a mesa. Após um momento de reflexão, a rapariga tirou a mão do colo e pousou-a na mão da viúva. Ela apertou-a com força. Quando era criança e passava por carros de cavalos que transportavam caixões pelas ruas de Paris, talvez o pai ou a mãe dela lhe segurassem a mão assim e lhe garantissem que nada tinha a recear, que tudo iria correr bem. Que ela estava num local seguro e não precisava de ter medo. – Os homens produzem milhões de espermatozoides por dia – disse a senhora a Aomame. – Sabias? – O número certo não – respondeu Aomame. – Bem, é claro que também não sei o número certo. É mais do que é possível contar. E saem todos ao mesmo tempo. Todavia, 808/1088
o número de ovócitos que uma mulher produz é limitado. Sabes quantos são? – Ao certo não. – São apenas cerca de quatrocentos ao longo de toda a vida – explicou a anciã. – E não são produzidos de novo a cada mês: estão armazenados no corpo da mulher, logo desde o instante em que nasce. Após o seu primeiro período, a mulher produz um óvulo maduro por mês. A pequena Tsubasa já tem todos os seus ovócitos armazenados dentro de si. Devem estar quase intactos, guardados numa gaveta qualquer, porque ainda não teve o seu primeiro período. Nem vale a pena dizer, claro, que a função de cada óvulo é ser fecundado pelo esperma. Aomame concordou com a cabeça. – A maior parte das diferenças psicológicas entre homens e mulheres parece provir dos seus aparelhos reprodutores. De um ponto de vista exclusivamente fisiológico, as mulheres vivem para proteger um número 809/1088
limitado de óvulos. Isto é verdade para ti, para mim e para a Tsubasa. – Neste ponto, a idosa senhora esboçou um pálido sorriso. – Devia ter dito isto no passado, no meu caso, claro. Aomame fez um rápido cálculo mental. O que significa que já expulsei cerca de duzentos óvulos. Portanto, ainda tenho cerca de metade, talvez com um rótulo de «reservado». – Mas os óvulos da Tsubasa nunca serão fecundados – disse a viúva. – Na semana passada, pedi a um médico meu conhecido para a examinar. O útero dela foi destruído. Aomame pregou os olhos no rosto da viúva, com a cara contorcida. Depois, inclinando ligeiramente a cabeça, virou-se para a rapariga. Mal conseguia falar. – Destruído? – Sim, destruído – respondeu a viúva. – Nem sequer a cirurgia poderá devolvê-lo ao seu estado original. 810/1088
– Mas quem faria tal coisa? – perguntou Aomame. – Ainda não tenho a certeza – respondeu a viúva. – O Povo Pequeno – respondeu a rapariga.
37 Compositor e intérprete de alaúde inglês, contemporâneo de Shakespeare para quem, inclusive, se considera que terá escrito algumas melodias. No entanto, a sua obra consiste maioritariamente em canções melancólicas e baladas. A obra aqui referida é uma coleção de danças (são sete pavanas), publicada em 1604, que foi muito popular na época. (N. das T.)
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TENGO
Já não há lugar para um grande irmão
Komatsu ligou a seguir à conferência de imprensa, para dizer que tudo correra bem. – Foi brilhante – exclamou, com um entusiasmo pouco habitual. – Nunca pensei que ela fosse capaz de fazer aquilo de forma tão impecável. Teve respostas prontas e muito inteligentes. Causou uma excelente impressão em toda a gente. Tengo não ficou nada surpreendido ao ouvir o relato de Komatsu. Sem ter qualquer base palpável, não estivera especialmente preocupado com a conferência de imprensa. Partira do princípio de que, no mínimo, ela
se aguentaria bem. Mas uma «excelente impressão»? Aquilo não encaixava bem na imagem da Fuka-Eri que conhecia. – Portanto, não veio à baila nenhuma da nossa roupa suja? – perguntou Tengo, para se certificar. – Não, conseguimos que fosse uma coisa curta e contornámos todas as questões embaraçosas. Se bem que não se possa dizer que tenha havido questões difíceis. Estás a ver, nem mesmo os repórteres dos jornais quiseram ficar com o papel de vilões a queimar uma rapariguinha de dezassete anos, doce e encantadora. Claro que devia acrescentar «por enquanto». Não há forma de saber como é que as coisas vão correr no futuro. Neste mundo, o vento muda de direção enquanto o diabo esfrega um olho. Tengo imaginou Komatsu no alto de um grande penhasco, com ar carrancudo, a molhar o dedo para verificar a direção do vento. 813/1088
– Seja lá como for, a tua sessão de treino resultou, Tengo. Muito obrigado por teres feito tudo tão bem. Amanhã, os vespertinos vão trazer a notícia do prémio e da conferência de imprensa. – O que é que a Fuka-Eri levava vestido? – O que levava vestido? Roupa normal. Uma camisola justa e calças de ganga. – Uma camisola que lhe realçava as mamas? – Agora que falas nisso, sim. Bonitas. Pareciam novinhas em folha, ainda quentes do forno – respondeu Komatsu. – Sabes, Tengo, ela vai ser o maior sucesso: rapariga escritora genial. Boa aparência, talvez um pouco estranha a falar, mas esperta. Tem um ar especial: sabes que não se trata de uma pessoa vulgar. Já assisti a muitas estreias de escritores, mas ela é especial. E quando eu digo que uma pessoa é especial, é porque é realmente especial. A revista que traz A Crisálida de Ar chega às livrarias na próxima 814/1088
semana e aposto contigo o que quiseres, a minha mão esquerda e a perna direita, que vai esgotar em três dias. Tengo agradeceu a Komatsu por lhe ter dado as novidades e terminou a chamada com uma certa sensação de alívio. Pelo menos, tinham conseguido passar a primeira barreira. Mas não fazia a mínima ideia de quantas mais barreiras estariam ainda à espera deles. Os vespertinos do dia seguinte traziam relatos da conferência de imprensa. Tengo comprou quatro jornais diferentes na estação, quando saiu do trabalho na escola onde dava aulas, e foi lê-los para casa. Todos diziam mais ou menos a mesma coisa. Nenhum dos artigos era especialmente longo, mas, comparados com as habituais cinco linhas, o tratamento dado à ocasião não tinha precedentes. Tal como Komatsu predissera, a imprensa entusiasmou-se com a notícia de que uma rapariga de dezassete anos ganhara 815/1088
o prémio. Todos os jornais referiam que os quatro membros do comité tinham escolhido a obra por unanimidade e que a deliberação não demorara mais de uns simples quinze minutos. O que, só por si, já era invulgar. Que quatro escritores egoístas se sentassem na mesma sala e se pusessem em total acordo era algo de que nunca se ouvira falar. A obra estava já a causar agitação no mundo editorial. Organizaram uma pequena conferência de imprensa no átrio do hotel onde decorrera a cerimónia de entrega do prémio, lia-se nos jornais, e a candidata vencedora respondera às perguntas dos jornalistas «com clareza e boa disposição». À pergunta: «Está a pensar continuar a escrever ficção?», respondeu: «A ficção é apenas uma forma possível de exprimir os meus pensamentos. Acontece que a forma que utilizei desta vez foi a ficção, mas não sei qual usarei da próxima vez.» Para Tengo era impossível acreditar que Fuka-Eri tivesse 816/1088
utilizado frases assim tão longas e contínuas. Os repórteres deviam ter juntado os seus fragmentos, preenchido as omissões e transformado tudo em frases completas. Mas podia ser que tivesse falado assim mesmo, quem sabe? Não se sentia habilitado a fazer afirmações com absoluta certeza em relação a Fuka-Eri. Quando lhe perguntaram qual era a sua obra de ficção favorita, claro que Fuka-Eri referiu O Conto dos Heike. Um repórter perguntou-lhe de que parte de O Conto dos Heike gostava mais, e, em resposta, ela recitou a sua passagem preferida de cor, no que levou cinco minutos. Toda a gente ficou tão atónita que, após ela ter acabado, se fez um silêncio assombrado. Por felicidade (na opinião de Tengo), ninguém lhe perguntou qual era a sua canção favorita. Em resposta à pergunta: «Quem foi a pessoa que ficou mais feliz por si quando ganhou o prémio?», ela fez uma longa pausa 817/1088
para pensar (uma cena que Tengo foi capaz de imaginar com facilidade), acabando por responder: «É segredo.» Tanto quanto conseguia ver pelas reportagens, durante a sessão de perguntas e respostas, Fuka-Eri nunca dissera nada que não fosse verdade. A fotografia dela estava em todos os jornais, e era ainda mais bonita do que a Fuka-Eri que Tengo recordava. Quando falava com ela em pessoa, a atenção dele desviava-se da sua cara para os gestos que fazia, as mudanças de expressão, as palavras que ela formava, mas vê-la numa fotografia, imóvel, permitiu-lhe verificar de novo como era uma rapariga verdadeiramente bonita. Até mesmo nas fotografias mais pequenas tiradas durante a conferência de imprensa (em que confirmou que ela usara a mesma camisola de verão) se percebia um certo brilho. Provavelmente, era a este brilho que Komatsu se referira quando falara num 818/1088
«ar especial: sabes que não é uma pessoa vulgar». Tengo dobrou os jornais vespertinos, pôlos de lado e foi para a cozinha. Aí preparou um jantar simples enquanto bebia uma lata de cerveja. O texto que ele tinha reescrito ganhara, por unanimidade, o prémio revelação e estava prestes a transformar-se num êxito de vendas. A ideia causou-lhe uma sensação de estranheza. Queria fazer uma simples celebração do facto, mas também se sentia ansioso e agitado. Estivera à espera de isto acontecer, mas interrogava-se se seria mesmo bom que as coisas corressem de forma tão fácil. Enquanto tratava do jantar, reparou que o seu apetite desaparecera. Sentira-se esfomeado, mas agora não lhe apetecia comer nada. Envolveu a comida semipreparada em filme transparente e guardou tudo no frigorífico. Sentou-se então numa cadeira na cozinha e bebeu a sua cerveja em silêncio, 819/1088
enquanto olhava fixamente para o calendário pendurado na parede, à sua frente. Era um calendário do seu banco, fora uma oferta, e tinha fotografias do monte Fuji. Tengo nunca trepara ao cimo do monte. Também nunca subira até ao topo da Torre Tóquio, ou ao telhado de um arranha-céus. Nunca se interessara por lugares altos. Porque seria?, pensou. Talvez porque passara a vida toda a olhar para o chão.
A profecia de Komatsu revelou-se verdadeira. A revista que publicou A Crisálida de Ar quase que esgotou no primeiro dia e depressa desapareceu das livrarias. As revistas literárias nunca se esgotavam. As editoras não paravam de encaixar perdas, mês após mês, sabendo que o verdadeiro papel das revistas do género consiste em descobrir e publicar ficção que, posteriormente, seria reunida e vendida numa edição de capa dura – e encontrar novos talentos através de concursos e prémios. Ninguém esperava que as
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revistas literárias vendessem ou dessem lucro. Razão pela qual a notícia de que uma revista literária tinha esgotado num único dia atraiu tanta atenção como se tivesse nevado em Okinawa (apesar de, só por ter esgotado, não se alterar o facto de continuar no vermelho). Komatsu telefonou-lhe a dar as novidades. – Fantástico – exclamou Komatsu. – Quando uma revista esgota, as pessoas mal podem esperar para ler o texto e saberem como é. Por isso, as gráficas estão que nem umas loucas a tentar pôr cá fora a versão em livro de A Crisálida de Ar: prioridade máxima! A este ritmo, nem interessa se o texto ganha o Prémio Akutagawa ou não. Há que vendê-los enquanto estão quentes! E, não tenhas dúvidas, vai ser um êxito de vendas, isso garanto-te. Portanto, Tengo, podes começar a fazer planos para gastar o teu dinheiro. 821/1088
A coluna literária de um vespertino de sábado discutia A Crisálida de Ar sob um título que, em grandes parangonas, proclamava que a revista se esgotara num só dia. Vários críticos literários emitiram a sua opinião – em geral, favorável. Afirmavam que a obra mostrava uma tal força estilística, profunda sensibilidade e riqueza de imaginação que se tornava difícil acreditar que fora escrita por uma rapariga de dezassete anos. Talvez até sugerisse a possibilidade de um novo estilo literário. Um crítico afirmou: «A obra não é totalmente desprovida de uma lamentável tendência fantasiosa e peca por perder, aqui e ali, o contacto com a realidade», o que era a única observação negativa que Tengo lera. Mas até mesmo esse crítico suavizara o tom, mais para o fim, concluindo: «Estou muito interessado em ver que tipo de obras esta rapariga vai escrever a seguir.» Não, não havia nada de errado com a direção do vento. Por agora. 822/1088
Quatro dias antes do lançamento da edição em capa dura de A Crisálida de Ar, Fuka-Eri telefonou a Tengo. Eram nove da manhã. – Estás a pé – perguntou, com o seu habitual tom inexpressivo, sem ponto de interrogação. – Claro que estou a pé – respondeu Tengo. – Estás livre esta tarde. – Depois das quatro, à hora que quiseres. – Podes vir ter comigo. – Posso – disse Tengo. – Naquele último sítio, pode ser – perguntou Fuka-Eri. – Excelente – disse Tengo. – Vou ao mesmo café de Shinjuku, às quatro horas. Oh, e as tuas fotografias no jornal ficaram muito bem. As da conferência de imprensa. – Levei a mesma camisola – disse ela. – Fica-te bem – disse Tengo. – Porque gostas do feitio do meu peito. 823/1088
– Talvez sim. Mas era mais importante, neste caso, causar uma boa impressão nas pessoas. Do outro lado, Fuka-Eri manteve-se em silêncio, como se tivesse acabado de pôr uma coisa numa prateleira próxima e olhasse agora para ela. Talvez considerasse qual seria a ligação entre a forma do seu peito e o causar boa impressão nas pessoas. O próprio Tengo, quanto mais pensava nisso, menos via a ligação entre as duas coisas. – Quatro horas – disse Fuka-Eri, e pousou o auscultador.
Fuka-Eri estava já à espera de Tengo quando ele entrou no café habitual, mesmo antes das quatro. Ao lado dela estava sentado o Professor Ebisuno. Trazia vestida uma camisa de mangas compridas cinzento-clara e calças cinzento-escuras. Tal como antes, tinha as costas perfeitamente direitas. Dirse-ia uma estátua. Tengo ficou ligeiramente surpreendido por ver o Professor ali.
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Komatsu afirmara que o Professor quase nunca «descia das montanhas». Tengo sentou-se à frente dos dois e pediu um café. A estação das chuvas ainda nem sequer tinha começado, mas fazia um tempo estival. Mesmo assim, Fuka-Eri estava sentada a beber uma caneca de cacau quente. O Professor Ebisuno pedira café gelado, mas ainda não lhe tocara. O gelo começara a derreter-se, formando uma camada transparente no cimo da bebida. – Muito obrigado por ter vindo – disse o Professor. O café de Tengo chegou. Bebeu um pouco. O Professor Ebisuno falava devagar, como se estivesse a fazer um teste de voz declamada. – Por agora, tudo parece estar a correr como planeado – disse. – A sua contribuição para este trabalho foi fundamental. Verdadeiramente fundamental. Primeiro que tudo, tenho de lhe agradecer. 825/1088
– Fico grato por ouvi-lo dizer isso, mas, como sabe, no que diz respeito a este assunto, oficialmente eu não existo – disse Tengo. – E pessoas oficialmente inexistentes não podem contribuir para nada. O Professor Ebisuno esfregou as mãos por cima da mesa, como se quisesse aquecê-las. – Não é preciso ser tão modesto – retorquiu o Professor Ebisuno. – Seja qual for a face que se mostra ao público, a verdade é que o Tengo existe. E se não tivesse sido pelo seu trabalho, as coisas não teriam chegado a este ponto ou corrido tão bem, sem percalços. Graças a si, A Crisálida de Ar transformou-se numa obra muito melhor, mais profunda e rica do que alguma vez imaginei possível. Aquele tipo, o Komatsu, tem mesmo um bom olho para o talento. A seu lado, Fuka-Eri continuava a beber o cacau quente, silenciosa, como um gatinho a lamber leite. Vestia uma blusa branca, simples, de manga curta, e uma saia azul826/1088
escura muito curta. Como de costume, não trazia joias nem bijutaria. O longo cabelo liso escondia-lhe a cara sempre que se inclinava para a frente quando bebia. – Queria dizer-lho pessoalmente, e foi por isso que o incomodei, pedindo-lhe que viesse aqui hoje – disse o Professor Ebisuno. – Não precisa de se preocupar comigo, Professor, a sério. Reescrever A Crisálida de Ar foi para mim um trabalho muito compensador. – Mesmo assim, ainda penso que devo agradecer-lhe adequadamente. – Não é mesmo necessário – disse Tengo. – No entanto, se não se importa, gostava de lhe fazer uma pergunta pessoal acerca da Eri. – Não, não me importo nada. Se for uma questão a que possa responder. – Gostava de saber se é o tutor legal da Eri. O Professor abanou a cabeça. 827/1088
– Não, não sou. Se fosse possível, gostaria de me tornar o tutor dela, mas, como acho que já lhe disse, não consegui estabelecer qualquer contacto com os pais. No que a ela diz respeito, não tenho direitos legais nenhuns. Mas recebi-a quando veio para minha casa, há sete anos, e, desde então, tenho tomado conta dela. – Se é esse o caso, então, não seria mais normal querer proporcionar-lhe uma existência discreta? Ao fazer dela o foco das atenções, pode estar a criar problemas. Bem vistas as coisas, ela é menor… – Problemas? Está a falar da hipótese de os pais requererem a tutela ou ela ser forçada a regressar à comunidade? – Sim. Não estou bem a ver o que está aqui em jogo. – As suas dúvidas são perfeitamente justificadas. Mas a outra parte também não está em condições de tomar qualquer iniciativa que chame a atenção. Quanto mais 828/1088
publicidade a Eri tiver, se tomarem qualquer iniciativa que a envolva, mais atenção podem atrair sobre si próprios. E isso é a última coisa que desejam. – Por «eles» imagino que se refira à gente da Vanguarda? – Precisamente – disse o Professor. – A entidade religiosa com personalidade jurídica que dá pelo nome de Vanguarda. Não se esqueça de que gastei sete anos da minha vida a educar a Eri e que ela deixou claro que deseja continuar a viver connosco. Seja qual for a situação dos pais, a verdade é que a ignoraram durante sete longos anos. Não há maneira de eu a entregar, assim sem mais nem menos. Tengo precisou de um momento para organizar os seus pensamentos. Depois, disse: – Então, A Crisálida de Ar torna-se o êxito com que todos estão a contar. E a Eri atrai a atenção de toda a gente. O que dificulta qualquer coisa que o pessoal da Vanguarda 829/1088
queira tentar. Até aí, percebo. Mas, e depois, como acha que as coisas se vão passar, Professor Ebisuno? – Sei tanto como o Tengo – respondeu o Professor, num tom átono. – Tudo o que ocorrer a partir de agora é território desconhecido para toda e qualquer pessoa. Não há mapas. Só descobriremos o que nos espera atrás de cada esquina quando a dobrarmos. Não faço ideia. – Não faz ideia – repetiu Tengo. – Sim, pode parecer irresponsável da minha parte, mas «não faço ideia» é a essência desta história. Uma pessoa atira uma pedra para um lago fundo. Splash. O som é alto e ressoa à nossa volta. E o que sai do lago depois disso? Só podemos olhar para lá e suspender a respiração. Aqui a conversa teve uma paragem momentânea. Cada um deles imaginou as ondulações concêntricas a crescerem na superfície do lago. Tengo aguardou pacientemente que 830/1088
as suas ondas imaginárias desaparecessem antes de voltar à carga. – Como lhe disse na primeira vez que nos encontrámos, estamos envolvidos numa espécie de fraude, muito provavelmente, um crime contra a nossa sociedade. E, dentro de muito pouco tempo, ainda podemos vir a ter um monte de dinheiro metido ao barulho: as mentiras vão aumentar como uma bola de neve até a situação acabar por ficar fora do controlo de quem quer que seja. E, quando a verdade vier à tona, todos os envolvidos, incluindo aqui a Eri, vão ser atingidos, de uma forma ou de outra, talvez mesmo destruídos, pelo menos em termos sociais. Está disposto a aceitar isto? O Professor Ebisuno levou a mão aos óculos. – Não me resta outra escolha. – E disse-me o senhor Komatsu que se dispôs a ser o representante da empresa-fantoche que ele está a criar em torno de A 831/1088
Crisálida de Ar, o que significa que o senhor participará abertamente no plano de Komatsu. Por outras palavras, está a dar passos para se deixar arrastar pela lama. – Pode muito bem vir a ser esse o resultado. – Segundo me parece, Professor, o senhor é um homem de um intelecto superior, com uma vasta sabedoria pragmática e uma visão do mundo única. Apesar de tudo isso, não sabe para onde se encaminha este plano. Afirma que não é capaz de adivinhar o que há para além da próxima esquina. A razão por que um homem como o senhor se põe numa situação tão frágil e arriscada ultrapassa-me. – Para além da embaraçosa alta estima em que tem «um homem como eu» – disse o Professor, respirando fundo –, compreendo o que está a tentar dizer. Seguiu-se um instante de silêncio. 832/1088
– Ninguém sabe o que vai acontecer – interpôs Fuka-Eri, sem aviso. E regressou ao silêncio. A caneca de cacau estava vazia. – É verdade – concordou o Professor. – Ninguém sabe o que vai acontecer. A Eri tem razão. – Mas calculo que tenha um plano em mente – aventou Tengo. – Tenho uma espécie de plano em mente, sim – respondeu o Professor Ebisuno. – Posso tentar adivinhar? – É claro que pode. – A publicação de A Crisálida de Ar pode conduzir a revelações sobre o que aconteceu aos pais da Eri. É isso a que se refere quando fala de atirar uma pedra a um lago? – Por aí – respondeu o Professor Ebisuno. – Se A Crisálida de Ar acabar por ser um êxito, os jornais vão lançar-se a ela como carpas num lago a um bocado de pão. Para dizer a verdade, o alvoroço já teve início. Logo a seguir à conferência de imprensa, 833/1088
começaram a chover pedidos de revistas e televisões para entrevistas. Claro que estou a recusar tudo, mas é possível que as coisas vão ficando cada vez mais quentes à medida que se aproximar a data de publicação do livro. Se não dermos entrevistas, vão usar todos os recursos ao seu alcance para vasculharem o passado da Eri. Mais cedo ou mais tarde vai saber-se tudo: quem são os pais dela, onde e como foi criada, quem toma conta dela agora. Tudo matéria para notícias sumarentas. «Não estou metido nisto por gozo ou proveito. A minha vida na montanha, aprazível e calma, agrada-me, e não quero ver-me envolvido com o que quer que seja que chame a atenção pública. Apenas espero conseguir lançar o isco que leve a imprensa aos pais da Eri. Onde estão e o que fazem? Por outras palavras, quero que a imprensa faça por mim o que a polícia não pode ou não quer fazer. Também considero a hipótese, se as coisas 834/1088
correrem bem, de aproveitarmos a sequência dos acontecimentos para salvar os pais da Eri. Dê por onde der, o Fukada e a mulher são duas pessoas muito importantes para mim, e, claro, para a Eri. Não os posso abandonar ao deus-dará sem tentar nada. – Sim, mas partindo do princípio de que os Fukada estão lá, que razão poderá tê-los mantido presos durante sete anos? Sete anos é muito tempo! – Sei tanto como o Tengo. Só posso deitarme a adivinhar – disse o Professor Ebisuno. – Como lhe contei da última vez, a polícia investigou a Vanguarda na altura do tiroteio com a Amanhecer, mas descobriu que o grupo não tinha absolutamente nada que ver com o caso. Desde então, degrau a degrau, a Vanguarda tem vindo a consolidar a sua posição enquanto organização religiosa. Mas que digo eu? Degrau a degrau? Fizeram-no com enorme rapidez. Mesmo assim, as pessoas cá fora não fazem a mínima ideia do que 835/1088
se passa lá dentro. Tenho a certeza de que não se sabe nada a respeito deles. – Nada – anuiu Tengo. – Não vejo televisão e quase não leio jornais. Estou fora das coisas que toda a gente sabe. – Não está só, não é o único que não sabe nada a respeito deles. Propositadamente, mantêm-se tão discretos quanto é possível. As religiões recentes organizam iniciativas espaventosas para converterem o maior número de pessoas que consigam, mas a Vanguarda não. Não tem como propósito aumentar o número dos seus seguidores. Procura crentes saudáveis, jovens, altamente motivados e com boas habilitações numa ampla série de áreas profissionais. Por isso, não se esforça para conseguir conversões. E não aceita qualquer pessoa. Quando aparece alguém a dizer que quer juntar-se ao grupo, fazem-lhe uma entrevista cuidadosa. Por vezes, empenham-se em recrutar pessoas com talentos especiais de que têm falta. O 836/1088
resultado é uma organização religiosa militante e de elite. – Assente em que espécie de doutrina? – É provável que não tenham qualquer livro sagrado. Ou, se têm, são muito ecléticos. Em traços largos, o grupo segue uma espécie de budismo esotérico, mas a vida quotidiana não está focada tanto na doutrina como no trabalho, e a prática ascética… uma austeridade bastante rigorosa. Há jovens que buscam esse tipo de vida espiritual, que ouvem falar deles e vêm de todo o país. O grupo é muitíssimo coeso e obcecado com o secretismo. – Têm algum chefe espiritual? – Declaradamente, não. Rejeitam o culto da personalidade e têm uma prática de liderança comunitária, mas a forma como tudo se processa não é clara. Tenho-me esforçado o mais que posso para reunir informações a seu respeito, mas cá fora chega muito pouco. A única coisa que posso afirmar é que a 837/1088
organização está a ter um crescimento regular e parece dispor de capitais avultados. As terras na posse da Vanguarda não param de aumentar e as instalações estão sempre a ser melhoradas. O muro que rodeia a propriedade também foi muito reforçado. – E, a determinada altura, o nome de Fukada, o primeiro líder da Vanguarda, deixou de aparecer. – Precisamente. É tudo muito estranho. Não fiquei convencido com o que ouvi – disse o Professor Ebisuno. Deitou uma olhadela a Fuka-Eri e voltou-se de novo para Tengo. – Ali dentro está escondido um qualquer segredo importante. Tenho a certeza de que, num dado momento, terá havido um realinhar na organização da Vanguarda. Em que é que consistiu, não sei. Mas, por causa disso, a Vanguarda fez uma grande inflexão de rumo e passou da agricultura à religião. Calculo que, nessa altura, tenha acontecido uma espécie de golpe de estado e que o 838/1088
Fukada tenha sido afastado. Como já lhe disse, o Fukada era um homem sem a mínima inclinação religiosa. Deve ter gastado todas as suas energias e forças na tentativa de impedir um tal desenvolvimento. É muito provável que, por essa altura, tenha perdido a batalha pela liderança da Vanguarda. Tengo analisou o que lhe fora dito durante um momento e disse: – Compreendo o que está a dizer, mas, mesmo que esteja certo, não se tratará de uma questão que se resolveria pela simples expulsão de Fukada da Vanguarda, tal como já acontecera quando a Amanhecer se separou pacificamente da Vanguarda? Não iam ter de o trancar, pois não? – Tem toda a razão nisso. Em circunstâncias normais, não se teriam dado ao trabalho de o fechar. Mas, então, com toda a certeza, já o Fukada tinha nas mãos alguns dos segredos da Vanguarda, segredos que teriam embaraçado o grupo, caso fossem tornados 839/1088
públicos. Por isso, a solução não passava por expulsá-lo. «Enquanto primeiro fundador da comunidade, o Fukada agira como líder virtual durante vários anos e deve ter testemunhado tudo o que se passava lá dentro. Devia saber demais. A juntar ao facto de ele ser uma figura bastante conhecida do público em geral. Por isso, mesmo que o Fukada e a mulher quisessem cortar os laços que os uniam ao grupo, a Vanguarda não estava em posição de os deixar sair. – Então, está a tentar agitar o impasse por portas travessas? Se a Eri tiver uma estreia literária sensacional e A Crisálida de Ar for um êxito, vai chamar a atenção do público? – Sete anos é muito tempo, e nada do que tentei serviu de alguma coisa. Se não tomar esta medida drástica agora, poderemos nunca vir a resolver o enigma. – Portanto, está a usar a Eri como isco para atrair o tigre grande para fora da selva. 840/1088
– Ninguém sabe o que poderá sair da selva. Pode não ser necessariamente um tigre. – Mas o senhor parece estar à espera de que seja algo violento, calculo. – É verdade, essa possibilidade existe – concordou, pensativo, o Professor. – O Tengo sabe bem o que pode acontecer dentro de grupos homogéneos e isolados. Seguiu-se um silêncio pesado, no meio do qual Fuka-Eri falou. – Foi porque o Povo Pequeno veio – disse, baixinho. Tengo olhou para ela, sentada ao lado do Professor. Como de costume, à sua cara faltava qualquer coisa a que se pudesse chamar expressão. – Estás a dizer que houve coisas que mudaram na Vanguarda porque o Povo Pequeno veio? – perguntou-lhe Tengo. Ela não deu resposta. Os dedos brincavam com o botão de cima da sua blusa. 841/1088
O Professor Ebisuno retomou a conversa como se pegasse no ponto onde Eri parara. – Não sei o que é o Povo Pequeno de que a Eri fala, e ela não consegue ou não quer exprimir por palavras aquilo em que consiste. Contudo, parece certo que o Povo Pequeno desempenhou um papel qualquer na mudança súbita e drástica que transformou a Vanguarda de comunidade agrícola em organização religiosa. – Ou qualquer coisa povo-apequenada – comentou Tengo. – É verdade – respondeu o Professor. – Também não sei se foi o Povo Pequeno, ou algo parecido. No mínimo, parece-me que a Eri está a tentar transmitir uma coisa importante ao incluir o Povo Pequeno na sua A Crisálida de Ar. O Professor ficou a olhar para as mãos durante um bom bocado, depois ergueu o olhar. 842/1088
– George Orwell incluiu o ditador Big Brother, o Grande Irmão, no seu romance, 1984, como certamente sabe. O livro era uma parábola do estalinismo, claro. Desde então, o termo «Grande Irmão» transformou-se num ícone social. Foi o grande feito de Orwell. Mas, agora, no ano de 1984 autêntico, o Grande Irmão é demasiado famoso e demasiado óbvio. Se o Grande Irmão aparecesse à nossa frente, apontávamos para ele aos gritos: «Cuidado! É o Grande Irmão!» Já não há lugar para um Grande Irmão no mundo real dos nossos dias. Em vez disso, entrou em cena este alegado «Povo Pequeno». Um contraste verbal interessante, não acha? Encarando Tengo de frente, o Professor tinha algo parecido com um sorriso a bailarlhe na cara. – O Povo Pequeno é uma presença invisível. Nem sequer podemos dizer se benévola ou malévola, se substancial ou etérea. 843/1088
Mas parece estar a minar-nos de forma bem consistente. – O Professor fez uma pausa e prosseguiu: – Pode ser que, para alguma vez virmos a saber o que sucedeu ao Fukada e à esposa, ou o que aconteceu à Eri, tenhamos de começar por descobrir o que é o Povo Pequeno. – Então, é este Povo Pequeno que está a tentar atrair para campo aberto? – perguntou Tengo. – Pergunto-me se, em última análise, será possível atrairmos qualquer coisa para campo aberto quando nem sequer podemos dizer se tem corpo ou não – afirmou o Professor, com o sorriso ainda a bailar-lhe nos lábios. – Mas talvez o «tigre grande» que mencionou seja mais realista, não lhe parece? – Seja como for, isso não altera o facto de a Eri estar a ser usada como isco. – Não, «isco» não é a palavra certa. Ela está a criar um torvelinho: é uma imagem 844/1088
muito mais próxima. Os que se encontram no exterior desse vórtice acabarão por começar a girar com ele. É isso que estou à espera de ver. O Professor desenhou lentos círculos no ar com o dedo. Prosseguiu. – A pessoa que está no centro do vórtice é a Eri. A pessoa que está no centro de um vórtice não tem de se mover. Esse papel cabe aos que estão na borda. Tengo escutava-o em silêncio. – Se me permite usar a sua perturbante figura de estilo, todos poderemos, e não só a Eri, estar a funcionar como isco. – O professor olhou para Tengo com os olhos semicerrados. – Incluindo o Tengo. – Alegadamente, eu só tinha de reescrever A Crisálida de Ar. Era para ter sido um assalariado, um assessor. Foi o que, no início, o senhor Komatsu me propôs. – Estou a ver. 845/1088
– Mas, ao longo do processo, as coisas parecem ter-se alterado – disse Tengo. – Quer isto dizer que reviu o plano original dele, Professor? – Não, e eu vejo as coisas do seguinte modo: o senhor Komatsu tem as suas intenções, eu tenho as minhas. Por enquanto, vão no mesmo sentido. – E o plano avança como se os dois tivessem propósitos comuns. – Imagino que se possa pôr o caso nesses termos. – Dois homens com destinos diferentes montam o mesmo cavalo ao longo da estrada. Até certo ponto, o seu caminho é igual, mas nenhum dos dois sabe o que acontecerá depois. – Bem dito. Digno de um verdadeiro escritor. Tengo suspirou. 846/1088
– O nosso futuro não se afigura muito brilhante, diria. Mas já não há como voltar para trás, não é verdade? – E, mesmo que pudéssemos voltar para trás, muito provavelmente não voltaríamos ao ponto de partida – afirmou o Professor. E isto pôs um ponto final na conversa. Tengo não foi capaz de se lembrar de mais nada para dizer.
O Professor Ebisuno foi o primeiro a abandonar o café. Tinha de ir visitar alguém ali perto, disse. Fuka-Eri ficou. Sentados à mesa, frente a frente, Tengo e Fuka-Eri permaneceram em silêncio ainda um bom bocado. – Tens fome? – Perguntou Tengo. – Nem por isso – respondeu Fuka-Eri. O café enchia-se. Saíram, sem que nenhum dos dois tivesse tido a iniciativa de o sugerir. Durante algum tempo, vaguearam sem destino pelas ruas de Shinjuku. Eram quase seis horas e já muita gente se
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apressava a caminho da estação, mas no céu ainda havia muita luz. O sol do início de verão banhava a cidade, porém, depois do café na cave, o seu brilho parecia estranhamente artificial. – Onde vais agora? – perguntou Tengo. – A nenhum sítio em especial – retorquiu Fuka-Eri. – Posso acompanhar-te a casa? – perguntou Tengo. – Ao teu prédio de Shinano-machi, quero dizer. Imagino que vás lá ficar hoje? – Não vou para lá – disse Fuka-Eri. – Porque não? Ela não respondeu. – Estás a dizer que pensas que é melhor não ires para lá? Fuka-Eri anuiu, sem uma palavra. Tengo ainda considerou perguntar-lhe por que razão pensava que era melhor não ir para lá, mas pressentiu que não iria receber uma resposta explícita. 848/1088
– Então, vais voltar para casa do Professor? – Futamatao fica demasiado longe. – Onde estás a pensar ficar? – Em tua casa – declarou Fuka-Eri. – Isso… pode… não… ser uma… boa ideia – gaguejou Tengo. – A minha casa é pequena, vivo sozinho e tenho a certeza de que o Professor Ebisuno não ia permitir. – O Professor não se importa – retorquiu Fuka-Eri, com um encolher de ombros. – E eu não me importo. – Mas talvez eu me importe – contrapôs Tengo. – Porquê. – Bem… – começou Tengo a dizer, mas da sua boca não saiu mais nenhuma palavra. Nem estava bem certo do que queria ter dito. Acontecia-lhe muitas vezes, quando passeava com Fuka-Eri. Por instantes, perdia o fio à meada do que ia dizer. Era como se as folhas 849/1088
de uma partitura se espalhassem levadas por uma rabanada de vento. Fuka-Eri estendeu a mão direita e, gentilmente, agarrou na mão esquerda de Tengo, como se quisesse consolá-lo. – Não estás a perceber – disse. – Não estou a perceber o quê? – Somos um só. – Somos um só? – perguntou Tengo, chocado. – Escrevemos o livro juntos. Tengo sentiu a pressão dos dedos de FukaEri na palma da sua mão. Não era uma pressão forte, mas era constante e firme. – Isso é verdade. Escrevemos A Crisálida de Ar juntos. E, quando formos devorados pelo tigre, seremos devorados juntos. – Não vai aparecer tigre nenhum – afirmou Fuka-Eri, num tom grave, nada habitual nela. – Ainda bem – retorquiu Tengo, apesar de não ter ficado especialmente feliz. Podia não 850/1088
aparecer nenhum tigre, mas não havia maneira de adivinhar o que poderia surgir no seu lugar. Pararam à frente da máquina de venda automática de bilhetes da estação de Shinjuku. Fuka-Eri ergueu os olhos para ele, segurando-lhe ainda na mão. As pessoas passavam por eles, apressadas, como a corrente de um rio que se divide em dois. – Okay, se queres ficar em minha casa, podes ficar – disse Tengo, resignando-se. – Eu durmo no sofá. – Obrigada – retorquiu Fuka-Eri. Tengo reparou que era a primeira vez que ouvia qualquer coisa que se parecesse com uma fórmula de cortesia na boca de FukaEri. Não, podia não ter sido a primeira vez, mas não conseguia lembrar-se da ocasião anterior. 851/1088
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AOMAME
Mulheres que partilham um segredo
– O Povo Pequeno? – perguntou Aomame, baixinho, olhando fixamente para a cara da rapariga. – Diz-nos, quem é o Povo Pequeno? Porém, tendo pronunciado aquelas poucas palavras, a boca de Tsubasa fechou-se de novo como uma ostra. A exemplo do que acontecera anteriormente, os olhos perderam toda a vivacidade, como se o simples esforço de dizer as palavras em questão tivesse esgotado a maior parte da sua energia.
– É alguém que tu conheças? – perguntou Aomame. Voltou a não haver resposta. – Ela já proferiu essas palavras várias vezes – disse a viúva. – «O Povo Pequeno». Não sei a que se refere. As palavras tinham uma nota aziaga, uma insinuação subtil, que Aomame sentiu como se fosse o ribombar de um trovão distante. – É possível que tenha sido esse tal Povo Pequeno a fazer-lhe mal? – questionou Aomame. A anciã abanou a cabeça. – Não sei. Mas, sejam eles quem forem, não restam dúvidas de que o Povo Pequeno assume uma grande importância para ela. Com as mãos pousadas na mesa, lado a lado, a rapariga mantinha-se perfeitamente imóvel, com os olhos opacos fixos num ponto invisível no espaço. – Mas que diabo lhe aconteceu? – perguntou Aomame. 853/1088
A viúva respondeu, quase indiferente: – Há vestígios óbvios de violação. Violação repetida. Lacerações terríveis nos grandes lábios da vagina e ferimentos no útero. Um sexo masculino adulto e entumecido penetrou no seu pequeno útero, ainda não completamente desenvolvido, e destruiu grande parte da área onde um óvulo fecundado se implantaria. O médico considera provável que nunca venha a engravidar. A velha senhora parecia ter um propósito específico para estar a discutir estes pormenores tão crus na presença da rapariga. Tsubasa escutou-a sem o mais pequeno comentário ou qualquer reação percetível. De vez em quando, a boca dela esboçava ligeiros movimentos, mas não emitia qualquer som. Quase parecia estar a escutar uma conversa sobre um estranho num local longínquo por simples boa educação. – E não é tudo – prosseguiu a viúva, em voz baixa. – Mesmo que fosse possível fazer 854/1088
uma intervenção que permitisse ao útero recuperar a sua função, muito provavelmente a rapariga nunca quererá ter sexo com quem quer que seja. A penetração, que causou estragos tão devastadores, deve ter sido muitíssimo dolorosa, e aconteceu repetidas vezes. Uma dor tão violenta não desaparece facilmente da memória. Compreendes o que estou a dizer? Aomame assentiu com a cabeça. Tinha os dedos enclavinhados em torno dos joelhos. – Por outras palavras, os óvulos que estão preparados dentro dela não têm para onde ir. Já… – A senhora deitou um olhar de relance a Tsubasa e prosseguiu: – Já foram tornados estéreis. Aomame era incapaz de dizer até que ponto Tsubasa perceberia o que estava a ser dito. Independentemente do que a sua mente fosse capaz de apreender, as suas emoções pareciam estar noutro sítio qualquer. Pelo menos, ali não estavam. Era como se o seu 855/1088
coração tivesse sido posto num pequeno quarto escuro fechado à chave, um quarto situado num outro local. A anciã prosseguiu: – Não estou a dizer que o propósito único da vida de uma mulher seja gerar filhos. Cada indivíduo é livre de escolher o rumo que quer para a sua existência. Mas é absolutamente inadmissível que, pela força, alguém lhe roube o seu legítimo direito intrínseco enquanto mulher antes de ela ter a oportunidade de o exercer. Em silêncio, Aomame disse que sim com a cabeça. – É claro que não é admissível – repetiu a idosa senhora. Aomame notou um ligeiro tremor na voz dela. Era óbvio que estava a ter dificuldade em controlar as emoções. – Esta criança fugiu sozinha de um determinado lugar. Como foi que o conseguiu é algo que me ultrapassa. E não tem para onde ir, 856/1088
só lhe resta esta casa. Em mais lugar nenhum poderá estar em segurança. – Onde estão os pais dela? A senhora franziu o sobrolho e tamborilou com as unhas no tampo da mesa. – Sabemos onde os pais estão. Mas foram eles que permitiram estas atrocidades. Foi deles que ela fugiu. – Está a afirmar que os pais aprovaram que violassem a filha? – Não só aprovaram, como o encorajaram. – Mas por que razão alguém…? – Aomame não estava a encontrar as palavras. A viúva abanou a cabeça. – Eu sei, é horrível. Este tipo de coisas nunca deveria acontecer. Mas estamos perante uma situação difícil. Não se trata de um simples caso de violência doméstica. O médico disse que devíamos denunciar o caso à polícia, mas pedi-lhe que não o fizesse. Trata-se de um bom amigo, pelo que consegui convencê-lo a esperar. 857/1088
– Não quer queixar-se à polícia porquê? – perguntou Aomame. – Esta criança foi claramente vítima de um ato selvagem e desumano. Além do mais, é um crime odioso que a sociedade deveria punir com várias penas severas – disse a viúva. – Mas, mesmo que apresentássemos queixa à polícia, que poderiam eles fazer? Como vês, a criança mal consegue falar. Não é capaz de explicar convenientemente o que aconteceu ou o que lhe fizeram. E, mesmo que fosse capaz, não temos forma de o provar. Se fosse entregue à polícia, talvez a devolvessem logo aos pais. Não há outro sítio para onde possa ir e, a juntar a tudo, eles têm direitos parentais. Uma vez de regresso, é muito provável que se repetisse o que já aconteceu. Não podemos permitir que isso aconteça. Aomame concordou, em silêncio. – Vou educá-la eu mesma – declarou a senhora. – Não vou mandá-la para lado 858/1088
nenhum. Não me interessa quem possa vir à procura dela: os pais ou seja quem for; não a entregarei. Vou escondê-la num sítio qualquer e encarregar-me da sua educação. Aomame deixou-se ficar sentada durante algum tempo, passando o olhar de uma para a outra, da viúva para a rapariga. – E conseguimos identificar o homem que praticou uma tal violência contra esta menina? Foi um homem só? – perguntou Aomame. – Conseguimos. Foi o único. – E não há maneira de o levar a tribunal? – É um homem muito poderoso – respondeu a idosa. – Exerce a sua influência diretamente sobre as pessoas. E os pais da rapariga estavam, e estão ainda, debaixo dessa influência. Fazem o que ele lhes manda. Não têm personalidade própria nem espírito crítico. Aceitam a palavra dele como sendo a verdade absoluta. Por isso, quando ele lhes diz que têm de lhe entregar a filha, 859/1088
não são capazes de recusar. Muito pelo contrário, fazem o que lhes manda e entregamna de boa vontade, sabendo muitíssimo bem os planos que tem para ela. Aomame levou algum tempo até compreender perfeitamente o que a senhora lhe estava a dizer. Pôs o seu raciocínio a trabalhar para analisar o problema e ordenar tudo. – Está a falar de um grupo especial? – Sim, para dizer a verdade, é um grupo especial que partilha um espírito doentio e tacanho. – Uma espécie de seita, é o que diz? – perguntou Aomame. A viúva assentiu. – Sim, uma seita particularmente maléfica e perigosa. Claro. Só poderia ser uma seita. Pessoas que fazem o que lhes mandam. Pessoas sem personalidade própria ou espírito crítico. Podia ter-me acontecido a mesma coisa, pensou Aomame, mordendo o lábio. 860/1088
Claro que, na Associação das Testemunhas, as pessoas não se envolviam em violações. Pelo menos no seu caso, as coisas nunca chegaram à ameaça sexual. Os «irmãos» e as «irmãs» que viviam à sua volta eram pessoas pacíficas e sinceras. Consideravam a sua fé um assunto sério e viviam no cumprimento das suas doutrinas – ao ponto de arriscarem a vida por elas. Mas os motivos decentes nem sempre têm resultados decentes. E a violação não é uma coisa que envolva apenas o corpo. A violência nem sempre assume uma forma visível e nem todas as feridas sangram. Olhando para Tsubasa, Aomame viu-se com a mesma idade. Nessa altura, a minha vontade permitiume escapar. Mas, quando se é ferida tão profundamente como esta rapariga, a pessoa pode não conseguir recompor-se. Pode nunca ser capaz de fazer o coração regressar ao estado normal. 861/1088
A ideia provocou-lhe uma pontada de dor no peito. O que vira em Tsubasa fora o que ela própria podia ter sido. – Tenho de te confessar uma coisa – disse, baixinho, a viúva a Aomame. – Já posso contar-te isto agora, mas a verdade é que, apesar de saber que se tratava de uma falta de respeito, mandei investigar a tua história. A observação trouxe Aomame de volta ao presente. Olhou para a idosa senhora. – Foi logo a seguir a ter-te convidado pela primeira vez a vires a minha casa. Espero que não fiques ofendida. – Não, não, de todo – respondeu Aomame. – Dada a sua situação, é natural que o tenha feito. O trabalho em que estamos envolvidas é tudo menos vulgar. – Precisamente. Caminhamos aqui sobre o arame. Temos de poder confiar na outra pessoa. Independentemente de quem seja a outra pessoa, contudo, não é possível ter confiança se não se sabe o que é preciso 862/1088
saber. Por isso pedi que fizessem uma investigação completa a teu respeito. Do presente até ao fundo do teu passado. Claro que seria mais correto dizer «quase completa». Ninguém consegue saber tudo acerca de uma pessoa. Provavelmente, nem mesmo Deus. – Ou o Diabo – disse Aomame. – Ou o Diabo – repetiu a viúva com um débil sorriso. – Sei que, por causa do que te aconteceu em criança, as tuas cicatrizes psicológicas estão relacionadas com uma seita. Os teus pais eram, e ainda são, crentes fervorosos da Associação das Testemunhas e nunca te perdoaram teres abandonado a fé. O que ainda te causa dor. Aomame concordou, em silêncio. – Se queres saber a minha sincera opinião – prosseguiu a senhora –, a Associação das Testemunhas não é uma religião decente. Se tivesses sido ferida com gravidade ou caído doente e precisasses de uma intervenção cirúrgica, terias perdido a vida nessa altura. 863/1088
Qualquer religião que impeça uma cirurgia fundamental só porque vai contra o sentido estrito das palavras da Bíblia não pode passar de uma seita. É um abuso do dogma que ultrapassa todas as marcas. Aomame disse que sim com a cabeça. A recusa das transfusões de sangue era a primeira ideia que metiam na cabeça às crianças das Testemunhas. Ensinam-lhes que é muito melhor morrer e ir para o Céu com o corpo e a alma imaculados do que receber uma transfusão, que viola preceitos divinos, e ir para o Inferno. Não há espaço para cedências. Só há duas alternativas: ou se vai para o Céu ou para o Inferno. As crianças não têm espírito crítico. Não têm forma de saber se uma tal doutrina está certa, quer enquanto noção aceite pela sociedade, quer como conceito científico. Só podem confiar no que os pais lhes ensinam. Se eu tivesse estado na situação de precisar de uma transfusão enquanto era criança, 864/1088
tenho a certeza de que teria cumprido as ordens dos meus pais e escolhido rejeitar o sangue e morrer. Nesse caso, teria alegadamente ido para o Céu, ou sabe-se lá para onde. – Essa seita de que fala é muito conhecida? – perguntou Aomame. – Chama-se Vanguarda. De certeza que já ouviste falar. Houve uma altura em que era diariamente referida nos jornais. Aomame não se lembrava de ter ouvido o nome «Vanguarda», mas, em vez de negar, esboçou um gesto de concordância. Pensou que era melhor deixar ficar as coisas assim, ciente de que já não vivia no ano de 1984, mas no ano transformado em 1Q84. Não passava de uma hipótese, mas era uma hipótese que ganhava corpo de dia para dia. Pelos vistos, corria muita informação neste mundo novo de que não tinha a menor consciência. Havia que estar mais atenta. A velha senhora prosseguiu: 865/1088
– A Vanguarda começou por ser uma pequena comunidade agrícola dirigida por um grupo da nova esquerda que abandonou a cidade, mas, a determinado ponto, fez uma brusca alteração de rumo e transformou-se numa religião. Como e porquê é algo que não está claro. A verdade é que se trata de uma história estranha até mais não. Seja como for, parece que a maioria dos membros ficou por ali. Agora também foi reconhecida como grupo religioso com personalidade jurídica, mas só a organização em si é conhecida. Dizse que, basicamente, se inclui num ramo do budismo esotérico, mas quase de certeza que a sua doutrina não vale nada. A verdade é que a comunidade está a ganhar adeptos com grande rapidez e reforça-se. Com a independência que assumiram face a esse grave incidente, a imagem deles saiu indemne, porque enfrentaram a situação com uma inteligência extraordinária. Poderemos 866/1088
inclusivamente dizer que lhes serviu de propaganda. A viúva fez uma pausa para recuperar o fôlego e continuou a falar. – Muito poucas pessoas sabem isto, mas o grupo tem um guru a quem chamam Líder. Atribuem-lhe poderes especiais, que ele alegadamente usa para curar as doenças graves, predizer o futuro, provocar fenómenos paranormais, coisas do género. Não passa tudo de uma fraude muito bem engendrada, estou certa, mas atrai as pessoas. – Fenómenos paranormais? As sobrancelhas bem desenhadas da senhora uniram-se. – Não tenho informações concretas quanto ao que isso significa rigorosamente. Nunca tive o mínimo interesse pelos assuntos do oculto. Desde o início dos tempos que, em todo o mundo, as pessoas repetem o mesmo tipo de fraudes, usam os mesmos velhos truques e, ainda assim, esses miseráveis 867/1088
aldrabões continuam a prosperar. Não porque a maioria das pessoas queira assim tanto saber a verdade, mas porque crê no que desejaria que fosse verdade. Podem ter os olhos bem abertos, mas não veem um palmo à frente do nariz. Enganá-las é tão fácil como tirar a chucha a um bebé. – Sakigake, ou Vanguarda – Aomame experimentou a palavra. E qual seria o significado? Inovador? Precursor? Pioneiro? Parecia mais o nome de um comboio-bala japonês do que o de uma religião. Quando a ouviu dizer «Vanguarda», Tsubasa baixou os olhos por uma fração de segundo, como se reagisse a um som especial escondido na palavra. Quando tornou a levantar os olhos, a sua cara inexpressiva mantinha a forma anterior, como se dentro da rapariga um pequeno redemoinho tivesse começado a girar, parando logo de seguida. – Foi o guru da Vanguarda quem violou a Tsubasa – revelou a viúva. – Tomou-a pela 868/1088
força com o pretexto de lhe conceder um nascimento espiritual. Os pais foram informados de que o ritual teria de ser realizado antes de a rapariga ter o primeiro período. Só se podia garantir um despertar espiritual puro a uma rapariga ainda por desflorar. A dor atroz que o ritual provocaria seria uma prova que ela teria de ultrapassar para ascender a um nível espiritual mais elevado. Os pais acreditaram piamente na palavra dele. É espantoso como as pessoas podem ser tão estúpidas. E o caso da Tsubasa nem sequer é o único. De acordo com as nossas informações, outras raparigas da seita já passaram pelo mesmo. O guru é um degenerado com gostos sexuais perversos. Não resta a mínima dúvida. A organização e a doutrina não passam de um cómodo disfarce para esconder os seus desejos individuais. – E esse «guru» tem nome? – Infelizmente, ainda não o sabemos. Chamam-lhe apenas «Líder». Não sabemos 869/1088
que tipo de pessoa é, qual a sua aparência ou o seu passado. Por mais que procuremos, a informação não surge. Foi bloqueada com toda a eficácia. Ele está trancado a sete chaves nas instalações da seita, nas montanhas de Yamanashi, e quase nunca se deixa ver em público. Mesmo no interior da seita, o número de indivíduos que podem contactar com ele é muitíssimo limitado. Diz-se que está sempre em lugares escuros, a meditar. – E não podemos permitir que continue à solta. A idosa senhora deitou uma olhadela a Tsubasa e assentiu, devagar. – Não podemos permitir que haja mais vítimas, não concordas? – Por outras palavras, temos de tomar medidas. A viúva estendeu a mão e pousou-a sobre a de Tsubasa, refugiando-se num momento de silêncio. Depois disse: – Precisamente. 870/1088
– E está mesmo confirmado que ele se entrega repetidamente a estes comportamentos perversos? – perguntou Aomame. A senhora confirmou: – Temos provas de que viola rapariguinhas, por sistema. – A ser verdade, é imperdoável – disse Aomame, baixinho. – Tem razão, não pode haver mais vítimas. Várias ideias diferentes pareciam cruzarse e competir por espaço na mente da viúva. Disse: – Precisamos de saber muito mais acerca desse alegado «Líder». Não podemos ficar com pontos por esclarecer. Bem vistas as coisas, há uma vida humana em jogo. – Essa pessoa quase nunca se deixa ver em público, diz a senhora? – Certo. E é provável que disponha de uma segurança extremamente apertada. Aomame semicerrou os olhos e viu à sua frente o picador de gelo de fabrico especial, 871/1088
no fundo da gaveta da sua cómoda, e a ponta afiada da agulha. – Parece uma tarefa muito difícil. – Invulgarmente difícil – respondeu a idosa. Retirou a mão de cima da de Tsubasa e espetou o dedo médio entre as sobrancelhas. Era sinal (não que o fizesse muitas vezes) de que se lhe tinham esgotado as ideias. Aomame prosseguiu: – Falando em termos realistas, ser-me-ia praticamente impossível ir até às montanhas de Yamanashi sozinha, imiscuir-me nessa seita tão protegida, despachar o líder deles e sair sem uma única arranhadela. Num filme de ninjas podia ser que resultasse, mas… – Não espero que faças uma coisa desse género, claro – afirmou a viúva, com energia, antes de perceber que a última afirmação de Aomame não passara de uma piada. – Está fora de causa – acrescentou, com um esboço de sorriso. 872/1088
– Há uma outra coisa que me preocupa – afirmou Aomame, encarando a anciã. – O Povo Pequeno. Quem, ou o quê, são eles? O que foi que fizeram à Tsubasa? Precisamos de mais informações. Ainda com o dedo a pressionar o sobrolho, a viúva disse: – Sim, também estou preocupada. A Tsubasa pouco ou nada diz, mas a expressão «Povo Pequeno» já se lhe escapou da boca uma série de vezes, como bem escutaste. É provável que tenha um grande significado para ela, mas recusa-se a dizer-nos seja o que for sobre eles. Fecha-se em copas de cada vez que o assunto vem à baila. Dá-me mais algum tempo. Vou tratar disso também. – Faz alguma ideia de como podemos tentar saber mais acerca da Vanguarda? A velha senhora ofereceu-lhe um sorriso doce. – Neste mundo não há nada palpável que não se possa comprar, assim haja dinheiro 873/1088
para o conseguir, e eu estou preparada para pagar bastante, em especial neste caso. Pode levar algum tempo, mas eu vou obter a informação necessária, sem falta. Existem coisas que, por mais que se pague, não se podem comprar. Um exemplo é a Lua. Aomame mudou de assunto: – Está mesmo a pensar em tomar a seu cargo a educação da Tsubasa? – Claro. É a minha firme intenção. E também estou a planear perfilhá-la legalmente. – Imagino que esteja ciente de que o processo formal não será simples, sobretudo tendo em conta a situação. – Sim, e estou preparada para isso – respondeu a viúva. – Usarei todos os meios ao meu dispor, farei tudo o que for possível. Não a entregarei a ninguém. Falhava-lhe a voz, devido à emoção. Era a primeira vez que deixava transparecer tal sentimento à frente de Aomame, que o achou 874/1088
um tanto preocupante. A idosa pareceu lerlhe os pensamentos na cara. – Nunca contei isto a ninguém – começou a velha senhora, baixando o tom de voz como se estivesse a preparar-se para revelar uma verdade há muito escondida. – Mantive o silêncio por me ser demasiado doloroso falar do assunto. A verdade é que, quando a minha filha se suicidou, estava grávida. Grávida de seis meses. É provável que não desejasse o bebé que trazia dentro de si. Por isso o levou consigo quando pôs fim à vida. Se tivesse tido o menino, ele seria agora mais ou menos da idade da Tsubasa. De uma só vez, perdi duas vidas preciosas. – Lamento muito – disse Aomame. – Mas não te preocupes. Não deixo que os meus assuntos pessoais me toldem o discernimento. Não te exporei a perigos desnecessários. Também tu és uma filha preciosa para mim. Já fazemos parte da mesma família. 875/1088
Aomame concordou, em silêncio. – Temos laços mais importantes do que os de sangue – disse a viúva, baixinho. Aomame concordou de novo. – Custe o que custar, temos de liquidar aquele homem – afirmou a senhora, como se estivesse a tentar convencer-se a si própria. Olhou para Aomame. – Na primeira oportunidade, temos de o despachar para o outro mundo, antes que ele magoe mais alguém. Aomame olhou para Tsubasa, sentada do outro lado da mesa. Os olhos da rapariga não tinham expressão. Contemplava um ponto invisível no espaço. Aos olhos de Aomame, a rapariga fazia lembrar a carapaça vazia de um inseto. – No entanto, também não devemos apressar demasiado as coisas – acrescentou a viúva. – Temos de ter cuidado e paciência.
Ao sair da casa-abrigo, Aomame deixou para trás a velha senhora e Tsubasa no apartamento. A dona da casa declarara que
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queria ficar junto da rapariga até ela adormecer. As quatro mulheres na sala comum do andar de baixo estavam reunidas à volta de uma mesa redonda, inclinadas para a frente, entretidas numa conversa em surdina. A cena não pareceu real a Aomame. As mulheres pareciam fazer parte de um quadro imaginário, cujo título possível seria «Mulheres que partilham um segredo». A composição criada não se alterou quando Aomame passou por elas. Já na rua, Aomame ajoelhou-se para fazer umas festas à pastora alemã. A cadela abanou a cauda com um abandono feliz. Sempre que via um cão, Aomame perguntava-se como seria possível aos cães serem tão incondicionalmente felizes. Nunca em toda a sua vida tivera um animal de estimação – nem cão, nem gato, nem pássaro. Nunca comprara sequer um vaso com uma planta. De súbito, Aomame lembrou-se de olhar para o céu, que estava tapado por um manto 877/1088
indistinto de nuvens cinzentas, sugerindo já o início da estação das chuvas. Não conseguiu ver a Lua. A noite estava calma e não havia vento. Percebia-se um reflexo do luar através da camada de nuvens, mas não era possível perceber quantas luas estavam no céu, escondidas. A caminho do metropolitano, Aomame não parava de pensar na estranheza do mundo. Se, como a senhora dissera, não passamos de veículos dos genes, por que razão tantos de nós têm vidas tão extravagantes? O nosso propósito genético – a transmissão do ADN – não se cumpriria igualmente bem se vivêssemos vidas simples, sem esgotarmos a cabeça em turbilhões de estranhos pensamentos, dedicando-nos unicamente à preservação da vida e à sua transmissão? Haveria algum benefício para os genes no facto de vivermos vidas tão retorcidas, para não dizer bizarras? 878/1088
Um homem que tem prazer em violar raparigas pré-púberes, um guarda-costas homossexual bem constituído, pessoas que escolhem a morte em vez de uma transfusão de sangue, uma mulher que se suicida com comprimidos para dormir quando está grávida de seis meses, uma mulher que liquida homens problemáticos espetando-lhes uma agulha na parte de trás do pescoço, homens que odeiam as mulheres, mulheres que odeiam os homens: que possíveis benefícios retiram os genes do facto de existir gente assim neste mundo? Será que os genes desfrutam dessas circunstâncias anormais, como se de um estímulo de cores vivas se tratasse, ou tiram proveito delas de acordo com um propósito mais vasto? Aomame não sabia as respostas para estas questões. Só sabia que era demasiado tarde para escolher outro rumo para a sua vida. Só me resta viver a vida que tenho. Não posso trocá-la por uma nova. Por mais 879/1088
estranha e extravagante que seja, é o veículo que sou para os meus genes. Aomame caminhava imersa nos seus pensamentos. Espero que a viúva e a Tsubasa sejam felizes, Se puderem vir a ser realmente felizes, não me importo de me sacrificar para que isso aconteça. Pelo meu lado, não devo ter futuro que se veja. Mas, para ser honesta, não acredito que venham a ter uma vida tranquila e cheia, ou mesmo vulgar. Nós as três somos mais ou menos iguais. Cada uma de nós transportou um fardo demasiado grande ao longo da vida. Como a velha senhora disse, somos uma família, mas uma família alargada empenhada numa batalha infindável, unidas por feridas profundas no coração, marcadas por uma ausência indefinível. Enquanto ia tendo estes pensamentos, Aomame tomou consciência do seu premente desejo pelo corpo de um homem. 880/1088
Mas por que carga-d’água estou com desejos de ter um homem, numa altura destas? Abanou a cabeça enquanto caminhava, incapaz de avaliar se esse aumento de desejo sexual fora provocado pelo aumento de tensão psicológica, se seria o apelo natural dos óvulos armazenados dentro de si ou um mero produto das maquinações retorcidas dos seus genes. O desejo parecia ter raízes profundas – ou, como Ayumi diria: «Apetece-me foder que nem uma doida.» Que fazer agora? Podia ir até um dos meus bares habituais e procurar o tipo certo. Estou a uma estação de Roppongi. Aomame ponderou a questão. Mas sentiase demasiado cansada para isso. Não estava sequer vestida para seduzir, nem tinha maquilhagem; apenas uns ténis e o saco de desporto. Porque não vais para casa, abres uma garrafa de vinho tinto, masturbas-te e 881/1088
deitas-te a dormir? É isso. E para de pensar na Lua.
Com apenas uma olhadela, Aomame percebeu que o homem sentado à sua frente no metropolitano a caminho de casa, de Hiroo para Jiyūgaoka, era o seu tipo – andaria pelos quarenta, rosto oval, entradas que começavam a notar-se. A forma da cabeça não era feia. Tez saudável. Magro, óculos elegantes, com armação escura. Bem vestido: casaco desportivo de algodão, ligeiro, um polo branco, mala de cabedal sobre os joelhos. Mocassins castanhos. A julgar pela aparência, seria trabalhador assalariado, mas não numa firma muito formal. Talvez fosse revisor numa editora, ou um arquiteto num ateliê pequeno, ou qualquer coisa ligada à moda, era isso, quase de certeza. Estava profundamente concentrado a ler um livro de bolso, cujo título se escondia por trás do papel de embrulho vulgar de uma livraria.
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Aomame pensou que gostaria de ir a qualquer sítio para ter sexo escaldante com ele. Imaginou-se a acariciar-lhe o pénis ereto. Desejou apertá-lo com tanta força que quase fizesse parar a circulação do sangue. Com a outra mão massajar-lhe-ia suavemente os testículos. As mãos, que tinha pousadas no colo, começaram a agitar-se. Inconscientemente, abriu-as e fechou-as. Os ombros dela subiam e desciam a cada respiração. Devagar, fez deslizar a ponta da língua pelos lábios. Mas estava quase a chegar à sua paragem. Tinha de sair em Jiyūgaoka. Não fazia a mínima ideia em que estação sairia o homem, alheio ao facto de constituir o objeto das fantasias sexuais dela. Estava ali, a ler o seu livro, obviamente indiferente à mulher sentada do outro lado da carruagem. Quando saiu do comboio, Aomame teve vontade de rasgar o raio do livro de bolso em pedaços, mas, claro, conteve-se a tempo. 883/1088
À uma da madrugada, Aomame estava profundamente adormecida na cama, a ter um intenso sonho sexual. No sonho, os seus seios eram volumosos e bonitos, como duas toranjas. Os mamilos eram duros e grandes. Estava a pressioná-los contra a metade inferior do corpo de um homem. Tinha a roupa aos pés, no chão, para onde a atirara. Aomame dormia com as pernas afastadas. Enquanto dormia, não se apercebeu de que duas luas pairavam no céu, lado a lado. Uma delas era a lua grande, que sempre lá estivera, e a outra, uma lua nova, um pouco mais pequena.
Tsubasa e a velha senhora também estavam a dormir, no quarto de Tsubasa. A rapariga tinha um pijama novo, de xadrez, e dormia dobrada sobre si mesma, formando uma pequena bola sobre a cama. A senhora, ainda com a roupa da rua, estava estendida numa espreguiçadeira e tinha um cobertor sobre as pernas. Planeara deixar Tsubasa
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quando esta adormecesse, mas acabara por adormecer ali também. Afastados dos ruídos da rua, os terrenos em torno da casa, no alto da colina, também estavam silenciosos, e os únicos sons que se ouviam eram o ruído esporádico e distante de uma motocicleta a acelerar ou a sirene de uma ambulância. A pastora alemã também dormia, enroscada, do lado de fora da porta da frente. Alguém tinha corrido as cortinas à frente da janela, mas, à luz de uma lâmpada de mercúrio, tinham um brilho branco. As nuvens começaram a afastar-se e, pela abertura, espreitavam agora as duas luas. Os oceanos do mundo inteiro ajustavam o curso das suas marés. Tsubasa dormia com a cara encostada à almofada e a boca ligeiramente aberta. A sua respiração não podia ser mais calma e, para além de um ou outro estremecimento de um ombro, mal se mexia. A franja tapava-lhe os olhos. 885/1088
Ao fim de um bocado, a boca abriu-se-lhe um pouco mais, e dela saíram, um após outro, vários elementos de um grupo do Povo Pequeno. Cada um deles examinava o quarto com toda a atenção, antes de sair. Se a viúva tivesse acordado nesse momento, teria conseguido vê-los, mas ela continuou profundamente adormecida. Não acordaria para já. Os do Povo Pequeno sabiam isto. Eram cinco ao todo. Quando saíram, tinham o tamanho do dedo mindinho de Tsubasa, mas, uma vez cá fora, contorciam-se todos, como quando alguém arma uma ferramenta, e esticavam-se até ficarem com cerca de trinta e poucos centímetros. Usavam a mesma roupa, sem qualquer pormenor que os diferenciasse, e as suas feições eram igualmente indefinidas, tornando-se impossível distingui-los. Saltaram da cama para o chão e, de debaixo da cama, tiraram uma coisa do tamanho de uma empada chinesa. Sentaram886/1088
se em círculo à volta do que haviam apanhado e começaram a trabalhar com afã. Era algo branco e muito elástico. Estendiam os braços e, em movimentos estudados, faziam aparecer do ar fios brancos, translúcidos, e aplicavam-nos sobre ela, fazendo-a crescer cada vez mais. Os fios aparentavam ter uma boa aderência. Pouco tempo passado, os próprios elementos do Povo Pequeno haviam crescido, até ficarem com cerca de sessenta centímetros. Gozavam da capacidade de modificar a sua altura, conforme as necessidades. Seguiram-se várias horas de trabalho aturado, durante as quais os elementos do Povo Pequeno não pronunciaram uma única palavra. Faziam um trabalho de equipa coeso e impecável. Ao longo de todo esse tempo, Tsubasa e a viúva continuaram a dormir como pedras, sem nunca mexerem um músculo sequer. Todas as outras mulheres que estavam na casa também gozaram de um 887/1088
sono mais profundo do que o habitual. Estendida no relvado da frente, talvez a sonhar, a pastora alemã soltou um gemido, vindo do fundo do seu inconsciente. Lá no alto, as duas luas trabalhavam em conjunto para banhar o mundo numa luz estranha. 888/1088
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TENGO
Os pobres guiliaks
Tengo não conseguia dormir. Fuka-Eri estava na sua cama, com o seu pijama vestido, a dormir profundamente. Tengo preparara um leito simples no sofá (nada difícil, uma vez que fazia ali muitas sestas), mas não tinha sono nenhum quando se deitou e encontrava-se agora sentado à mesa da cozinha, a escrever o seu longo romance. O processador de texto estava no quarto; por isso, usava uma esferográfica e um bloco de notas. Também isto não era grande inconveniente. O processador de texto era inegavelmente útil para escrever com rapidez e
guardar documentos, mas ele amava o clássico esforço de desenhar os carateres à mão, no papel. Era raro Tengo escrever ficção durante a noite. Gostava de trabalhar quando havia claridade lá fora e as pessoas passavam de um lado para o outro. Às vezes, quando escrevia durante a noite, enquanto o silêncio reinava e o mundo mergulhava na escuridão, o estilo tornava-se-lhe um pouco mais pesado e via-se forçado a reescrever tudo do princípio com a chegada do sol. Para não ter esse trabalho, Tengo preferia escrever de dia, logo de início. Ao escrever à noite pela primeira vez em muito tempo, no entanto, com esferográfica e papel, Tengo descobriu que os pensamentos lhe fluíam com facilidade. A sua imaginação despertou e a história correu, livre. Uma ideia ligando-se naturalmente à seguinte quase sem lapsos, e o ruído da ponta da esferográfica a arranhar 890/1088
persistentemente o papel branco. Sempre que sentia a mão direita cansada, pousava a caneta e agitava os dedos no ar, qual pianista a praticar escalas imaginárias. Os ponteiros do relógio aproximavam-se da uma e meia. Estranhamente, ouviam-se poucos sons vindos do exterior, como se todo o barulho excessivo tivesse sido absorvido pelas nuvens que encobriam o céu por cima da cidade, qual espessa camada de algodão. Voltou a pegar na esferográfica e estava ainda a dispor palavras sobre o papel quando, de repente, lhe ocorreu: a sua amante casada viria na manhã seguinte. Aparecia sempre à sexta-feira, por volta das onze da manhã. Teria de se livrar de FukaEri antes disso. Graças a Deus, ela não usava nem perfume nem água-de-colónia! Era certo e sabido que a amante repararia logo se a cama tivesse o cheiro de outra pessoa. Tengo conhecia-a, ela podia ser observadora e ciumenta. Não havia mal ela fazer sexo com 891/1088
o marido de quando em vez, mas ficava furibunda se Tengo saísse com outra mulher. – O sexo no casamento é diferente – explicava. – É pago numa conta à parte. – Uma conta à parte? – São artigos completamente diferentes. – Estás a dizer que usas uma parte diferente dos teus sentimentos? – Precisamente. E mesmo usando as mesmas partes do corpo, faço uma distinção entre os sentimentos que uso. Por isso, não interessa grande coisa. Posso fazer isto porque sou uma mulher madura. Mas não te consinto que durmas com outras mulheres, nem nada do género. – Mas eu não faço isso! – disse Tengo. – Mesmo que não tenhas sexo com outra mulher, sinto-me ofendida só de pensar que existe essa possibilidade. – Só de pensar que a possibilidade existe? – perguntou Tengo, estupefacto. 892/1088
– Não compreendes os sentimentos de uma mulher, pois não? E ainda dizes que és romancista! – Isso é terrivelmente injusto para mim. – Pode ser que sim. Mas eu compenso-te – afirmou ela. E cumpriu.
Tengo estava satisfeito com a relação que mantinha com a sua amante mais velha. Esta não era uma grande beldade, pelo menos não no sentido comum do termo. No máximo, podia dizer-se que tinha feições invulgares. Haveria até quem pudesse achá-la feia. Mas Tengo gostara da aparência dela, logo à primeira vista. E, enquanto parceira sexual, era irrepreensível. Fazia-lhe poucas exigências: um encontro semanal de três ou quatro horas, ser solícito no sexo – duas vezes, se possível – e manter-se afastado de outras mulheres. Era, em termos gerais, tudo o que lhe pedia. O lar e a família eram importantes para ela e não fazia a mínima tenção de dar cabo da vida que tinha por causa de Tengo.
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Pura e simplesmente, a vida sexual com o marido não a satisfazia. Os interesses dela encaixavam na perfeição nos de Tengo. Tengo não tinha um desejo especial por outras mulheres. Acima de tudo, ansiava ter tempo livre e sem interrupções. Se pudesse ter sexo com regularidade, não tinha mais nada a pedir a uma mulher. Não lhe agradavam as inevitáveis responsabilidades que advinham de namorar uma mulher da sua idade, apaixonar-se e ter uma relação física. As fases psicológicas por que era necessário passar, as sugestões veladas quanto às diferentes possibilidades, o inevitável choque de expectativas: Tengo tinha esperança de escapar sem ser obrigado a assumir tais fardos. A noção de dever sempre o fizera retrairse. Até então, esquivara-se habilmente a qualquer posição que implicasse responsabilidade e, para o conseguir, estava disposto a sofrer quase todo o tipo de privações. 894/1088
Para fugir das responsabilidades, Tengo descobrira, muito cedo na vida, como tornarse invisível. Envidara grandes esforços para se esconder, exibindo em público muito pouco das reais capacidades que possuía, guardando as suas opiniões para si e contornando toda e qualquer situação que o trouxesse para o centro das atenções. Desde criança que tivera de sobreviver por si próprio, sem depender de terceiros. Mas as crianças não têm um poder real. Por isso, sempre que o vento forte começava a soprar, tinha de procurar abrigo e agarrar-se a qualquer coisa para evitar ser levado pela ventania. Precisava de manter estas premissas sempre presentes, como os órfãos dos romances de Dickens.
Apesar de tudo, podia dizer-se que, até ao momento, as coisas não tinham corrido mal a Tengo. Havia logrado escapar-se a tudo o que fosse dever. Não tinha ficado na universidade, não tinha um emprego formal, não
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casara, exercia uma atividade profissional que lhe permitia uma relativa liberdade, encontrara uma parceira sexual que o satisfazia (e que lhe fazia poucas exigências) e aproveitava todo o tempo livre de que dispunha para escrever romances. Tinha um mentor literário chamado Komatsu, graças a quem recebia encomendas de trabalho com certa regularidade. Os seus romances não tinham ainda visto a luz do dia, mas, até agora, não havia nada na sua vida que o incomodasse. Não tinha amigos íntimos, nem uma parceira com quem estivesse comprometido. Até ao momento, saíra e mantivera relações sexuais com umas dez raparigas, mas nenhuma durara demasiado tempo. Pelo menos, era livre. Mas agora, desde que, pela primeira vez, pusera as mãos no manuscrito de A Crisálida de Ar, de Fuka-Eri, o tecido da sua vida tranquila começava a mostrar muitos rasgões. Em primeiro lugar, fora quase fisicamente arrastado para o perigoso plano de 896/1088
Komatsu. Em segundo, a bela rapariga que escrevera o livro assaltara-lhe o coração, abordando-o de um ângulo estranho. Parecia que a experiência de reescrever A Crisálida de Ar começara a mudar qualquer coisa dentro de si, e agora Tengo sentia o forte impulso de escrever o seu próprio romance. Claro que era uma mudança para melhor. Mas também era verdade que o seu estilo de vida ordeiro e satisfatório estava a ser posto à prova. Fosse como fosse, no dia seguinte era sexta-feira. A amante iria até lá. Tinha de ver-se livre de Fuka-Eri antes disso. * * * Fuka-Eri acordou pouco depois das duas da manhã. Em pijama, abriu a porta do quarto e entrou na cozinha. Bebeu um grande copo de água e, a esfregar os olhos, sentou-se à mesa da cozinha, em frente a Tengo. 897/1088
– Estou a incomodar-te – perguntou Fuka-Eri, da forma habitual, sem ponto de interrogação. – Não especialmente – disse Tengo. – Não me importo. – O que estás a escrever. Tengo fechou o bloco e pousou a esferográfica. – Nada de importante – respondeu. – Seja como for, estava quase a acabar. – Importas-te que fique aqui contigo um bocadinho – perguntou ela. – Não, de forma nenhuma. Vou beber um copo de vinho. Também queres? A rapariga abanou a cabeça. – Quero ficar aqui um bocado. – Está bem. Também não tenho sono. O pijama de Tengo era demasiado grande para Fuka-Eri. Ela enrolara as mangas e as pernas para cima. Quando se inclinava para a frente, a abertura da gola permitia uma visão fugaz da curva do seu peito. Perante a 898/1088
visão de Fuka-Eri vestida com o pijama que lhe emprestara, Tengo sentiu uma estranha falta de ar. Abriu o frigorífico e deitou o vinho que restava no fundo de uma garrafa para um copo. – Tens fome? – perguntou Tengo. Quando voltavam para o apartamento, pararam num pequeno restaurante perto da estação de Koenji para comer esparguete. As doses não eram muito grandes e já tinham passado umas horas desde o jantar. – Se quiseres, posso arranjar-te uma sanduíche ou qualquer outra coisa simples. – Não tenho fome. Preferia que me lesses o que escreveste. – O que eu estava a escrever ainda agora? – A-hã. Tengo pegou na esferográfica e fê-la rolar entre os dedos. Parecia ridiculamente pequena na sua mão grande. – Nunca mostro os manuscritos a outras pessoas antes de estarem terminados e 899/1088
revistos. Não quero atrair um jinx sobre o que escrevo. – Jinx? – É uma palavra inglesa. «Causar má sorte.» É uma espécie de regra que tenho. Fuka-Eri ficou a olhar para Tengo durante bastante tempo. Depois aconchegou a gola do pijama ao pescoço. – Então, lê-me um livro. – Não consegues dormir se não te lerem um livro? – A-hã. – Então, o Professor Ebisuno lê-te muitos livros. – Porque ele fica a pé a noite toda. – Foi ele que te leu O Conto dos Heike? Fuka-Eri abanou a cabeça. – Ouvi uma gravação. Então, foi assim que o aprendeste de cor! Deve ser uma gravação muito comprida. Fuka-Eri usou as duas mãos para indicar um grande pilha de cassetes. 900/1088
– Muito comprida. – Que parte recitaste na conferência de imprensa? – A fuga do general Yoshitsune da capital. – Isso é o bocado a seguir à derrota dos Heike, em que Yoshitsune, o general Genji vitorioso, foge de Quioto, perseguido pelo irmão, Yoritomo. Os Genji ganharam a guerra contra os Heike, mas, a seguir, a família começa a lutar entre si. – Isso. – Que outras secções consegues recitar de cor? – Diz-me o que queres ouvir. Tengo esforçou-se por recordar alguns episódios de O Conto dos Heike. Era um livro muito longo, com incontáveis histórias. Ao acaso, Tengo referiu «A Batalha de Dan-noura». Fuka-Eri levou uns vinte segundos a organizar os seus pensamentos, em silêncio. 901/1088
Depois, começou a entoar a parte crucial da batalha naval final, nos versos originais: «Os guerreiros Genji subiram aos navios dos Heike e viram Marinheiros e guerreiros por setas e espadas feridos, Corpos jazendo no porão, ninguém ao leme. O Novo Conselheiro do Meio, Tomomori, Num bote do Imperial Barco se acercou e disse: “E assim parece que a isto chegámos. Deitai quanto é disforme ao mar.” De proa à popa correu, esfregando, limpando. O lixo recolheu, tudo limpou com as suas mãos. As damas instavam: “E a batalha, Conselheiro?” “Cedo conhecereis os homens afoitos Do Leste”, com sarcasmo se riu. 902/1088
“Rides numa hora destas?” gritaram as damas.
Ao ver o estado das coisas, a Segunda Senhora Pôs em marcha o plano Que há muito engendrara. A cabeça cobriu com dois quimonos pardos, A bainha do hakama38 rosa-vivo ergueu, O Colar Imperial num braço prendeu, A Espada Imperial na faixa enfiou, E o Imperador-Menino nos braços tomou. “Simples mulher que sou, em mão inimigas Não cairei. Irei onde Sua Majestade for. E vós, mulheres, cujos corações fiéis Lhe são, vinde comigo, já.” Assim dizendo, Avançou para a amurada.
Sua Majestade oito anos completara, E já grande maturidade revelava.
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Na face elegante o imperial brilho cintilava, O longo cabelo negro era uma cascata Brilhante que a cintura ultrapassava. Confuso com a agitação indagou, “Avó, aonde me levais?” Olhando o inocente Soberano e Lutando contra as lágrimas, disse: “Não sabeis ainda o que se passa? Tendo seguido os Dez Preceitos em vida outra, Nascestes Senhor e comandante De dez mil aurigas, mas agora Arrastada por um mau carma Vossa boa fortuna esgotada está. Virai-vos para Oriente E saudai o Grande Santuário de Ise, Depois, para Poente chamai o Buda Amida: Que as suas hostes celestiais Vos conduzam às Terras Puras do Oeste. Este país não passa já de um destroço, 904/1088
Lugar onde o coração só conhece a dor. Levo-vos à terra maravilhosa A que chamamos ‘Paraíso’.” E as lágrimas corriam-lhe ao falar. O jovem Soberano de cinzento-oliva se vestia, E o cabelo em juvenis laços se prendia. De lágrimas nos olhos, as mãos uniu. Primeiro, inclinou-se para Leste E disse adeus ao Grande Santuário de Ise. Virou-se então para Oeste e uma vez chamou O Buda Amida. A Segunda Senhora Apertou-o ao peito e confortou-o Com as seguintes palavras: “Há outra capital debaixo das ondas.” E mergulhou no fundo mais fundo do mar.»
Enquanto escutava, de olhos fechados, a história recitada por Fuka-Eri, parecia a Tengo estar a ouvi-la da forma tradicional: entoada por um monge cego, acompanhando
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as palavras com um alaúde, e de novo lhe ocorreu que O Conto dos Heike era uma epopeia transmitida por via oral. Normalmente, Fuka-Eri tinha uma forma de falar muitíssimo inexpressiva, quase sem ênfase e inflexões, mas, no instante em que se lançara ao conto, a voz dela tornara-se espantosamente forte, ganhara riqueza e cor, como se estivesse possuída por qualquer coisa. A magnífica batalha naval, travada em 1185 nas correntes tumultuosas do estreito entre Honshū e Kyū shū , ganhava vida. O lado dos Heike estava condenado à derrota, e a esposa de Kiyomori, Tokiko, a «Segunda Dama», mergulhava nas ondas, segurando o neto, o imperador-menino Antoku, nos braços. As damas seguiram-na na morte, preferindo-a a cair nas mãos dos rudes guerreiros orientais. Tomomori, escondendo a dor, incitava alegremente as senhoras a matarem-se. «Se assim continuarem, experimentareis o inferno em vida», dissera-lhes. 906/1088
«É melhor acabardes com a vida aqui e agora.» – Queres que continue – perguntou FukaEri. – Não, já chega. Muito obrigado – respondeu Tengo, estupefacto. Percebia agora como os repórteres, que tinham ficado sem palavras, se deviam ter sentido. – Como é que conseguiste decorar um texto tão longo? – A ouvir a gravação vezes sem conta. – Mesmo a ouvir a gravação vezes sem conta, uma pessoa normal não é capaz de a decorar. De repente, veio à cabeça de Tengo que, precisamente porque não conseguia ler um livro, a capacidade que Fuka-Eri tinha de memorizar o que ouvia podia estar extremamente bem desenvolvida, tal como acontece com as crianças que sofrem da síndrome de Savant39, que conseguem aprender e recordar enormes quantidades de informação numa fração de segundo. 907/1088
– Quero que me leias um livro – disse Fuka-Eri. – E de que tipo de livro gostas? – Tens aquele livro de que falaste com o Professor – perguntou Fuka-Eri. – Aquele do Grande Irmão. – 1984? Não, esse não tenho. – Que género de história é. Tengo fez um esforçou por se recordar. – Li-o uma vez, há muito tempo, na biblioteca da escola, e não me lembro bem dos pormenores. Foi publicado em 1949, numa altura em que o ano de 1984 parecia ainda muito distante. – Este ano. – Por coincidência, sim. A dada altura, o futuro torna-se realidade. E depois, rapidamente se torna o passado. No tal romance, George Orwell mostra o futuro como uma sociedade obscura, dominada pelo totalitarismo. As pessoas são controladas com grande rigidez por um ditador chamado 908/1088
Grande Irmão. O acesso à informação é restringido e a História está constantemente a ser reescrita. O protagonista trabalha num organismo governamental, e tenho quase a certeza de que a sua função é corrigir palavras. Sempre que alguém escreve uma história nova, as histórias velhas têm de ser todas deitadas fora. Neste processo, as palavras são refeitas e o significado das palavras correntes altera-se. E com a História a ser reescrita tantas vezes, chega-se a um ponto em já ninguém sabe onde está a verdade. As pessoas deixam de saber quem é o inimigo e quem é o aliado. É uma história deste tipo. – Reescrevem a História. – E roubar a história às pessoas é o mesmo do que roubar-lhes uma parte de si próprias. É um crime. Fuka-Eri ponderou aquilo durante um momento. Tengo prosseguiu: 909/1088
– A nossa memória faz-se de memórias coletivas e memórias individuais. As duas estão intimamente ligadas. Se nos tiram a nossa memória coletiva, se a reescrevem, perdemos a capacidade de manter a nossa individualidade. – Tu reescreves coisas. Tengo riu-se e bebeu um pouco de vinho. – Eu limitei-me a retocar a tua história, para dar um jeito. É uma coisa completamente diferente de reescrever a História. – Mas o livro do Grande Irmão não está aqui agora – perguntou ela. – Infelizmente, não. Por isso, não to posso ler. – Pode ser outro livro qualquer. Tengo dirigiu-se à estante dos livros e olhou para as lombadas. Ao longo da vida, lera muitos livros, mas possuía poucos. Não gostava de encher a casa de tralha. Quanto terminava um livro, a menos que fosse muito especial, levava-o a um alfarrabista. Só 910/1088
comprava livros que sabia que ia ler de imediato e lia aqueles de que gostava com muita atenção, até os meter na cabeça. Outros livros de que precisasse, ia buscá-los à biblioteca do bairro. Tengo levou bastante tempo a escolher um livro para ler a Fuka-Eri. Não estava habituado a ler em voz alta e não fazia a mínima ideia que livro seria apropriado. Ao fim de grande indecisão, tirou da estante A Ilha de Sacalina, de Anton Tchékhov, que acabara de ler na semana anterior40. Marcara as partes mais interessantes com tiras de papel, e achou que isto iria ajudá-lo a escolher as passagens que lhe parecessem melhores. Antes de começar a leitura, Tengo fez uma breve introdução ao livro – contou-lhe que Tchékhov só tinha trinta anos quando empreendeu a viagem para a ilha de Sacalina, em 1890; que ninguém sabia bem a razão por que o citadino Tchékhov, que fora aclamado como um dos jovens escritores 911/1088
mais promissores da geração a seguir a Tolstói e Dostoiévsky, com uma vida cosmopolita em Moscovo, decidira ir viver para a ilha de Sacalina, que ficava nos confins do mundo. Sacalina começara por ser uma colónia penal e, para a maior parte das pessoas, mantinha-se um símbolo de má sorte e miséria. Vale a pena acrescentar que a linha do transiberiano ainda não tinha sido construída, o que significa que Tchékhov teve de percorrer os mais de quatro mil quilómetros da viagem em carruagens puxadas a cavalo através das terras geladas, o que castigou o frágil corpo do jovem, já de si gozando de pouca saúde, e o sujeitou a um sofrimento impiedoso. Depois dos oito meses que durou a sua viagem ao Extremo Oriente, publicou A Ilha de Sacalina, a obra que escreveu em resultado dessa experiência, desconcertando os leitores, a ponto de a acharam mais próxima de um árido trabalho de investigação ou um livro de topografia do que de uma obra 912/1088
literária. As pessoas murmuravam umas para as outras: «Porque é que Tchékhov, que está num ponto tão importante da sua carreira, fez uma coisa tão absurda e disparatada?» Um crítico teve um comentário mordaz: «Foi um golpe publicitário.» Outra das opiniões que correram foi a de que ele ficara sem ideias para escrever e fora em busca de novas. Tengo mostrou a Fuka-Eri onde ficava Sacalina, no mapa que vinha no livro. – Porque é que Tchékhov foi para Sacalina – perguntou Fuka-Eri. – Estás a querer saber a minha opinião? – A-hã. Leste o livro. – Claro que sim. – O que te parece. – O próprio Tchékhov pode não ter percebido muito bem por que razão fez tal viagem – disse Tengo. – Ou talvez nem sequer tivesse uma razão. Subitamente, apeteceulhe ir… por exemplo, estava a olhar para o 913/1088
feitio da ilha de Sacalina num mapa e o desejo de partir apareceu de repente, vindo do nada. Já passei por isso: estou a olhar para um mapa e vejo um sítio que me faz pensar: «Tenho de ir aqui, custe o que custar.» E, na maior parte das vezes, por qualquer razão, o sítio em que estou a pensar fica longe e é inóspito. Sinto um desejo avassalador de saber que tipo de paisagem tem ou o que é que as pessoas lá fazem. É como o sarampo, pelo que não é possível explicar aos outros a origem desse impulso. É curiosidade no seu sentido mais puro. Uma inspiração inexplicável. É claro que, nesses tempos, a viagem entre Moscovo e Sacalina era de uma dureza inconcebível, portanto, suspeito que não tenha sido essa a única razão de Tchékhov. – Diz outra. – Bem, Tchékhov era romancista e médico. Logo, pode ter-se dado o caso de, enquanto cientista, querer examinar com os 914/1088
seus próprios olhos uma zona enferma da gigantesca nação russa. Tchékhov sentia-se pouco à vontade na cidade, com a vida de estrela da literatura, e aborrecia-se com o pedantismo dos outros escritores, que estavam sobretudo interessados em pisar os calos uns dos outros. Tinha aversão pelos críticos maldizentes seus contemporâneos. A viagem até Sacalina pode ter constituído uma peregrinação destinada a lavar-lhe a alma dessas impurezas literárias. E a ilha de Sacalina deslumbrou-o em mais do que um sentido. Talvez seja por isso que nunca escreveu uma única obra literária com base nessa viagem a Sacalina. Não era o tipo de experiência mal alinhavada que ele pudesse transformar em material para um romance. A zona enferma da nação transformou-se, por assim dizer, numa parte física de si mesmo, o que pode muito bem ter sido aquilo de que foi à procura. 915/1088
– O livro é interessante – perguntou FukaEri. – Eu achei-o muito interessante. Está cheio de estatísticas e números áridos e, como já te disse, é quase desprovido de colorido literário. A costela científica de Tchékhov em toda a sua vitalidade. Mas é precisamente essa faceta do livro que me faz sentir a pureza da decisão que o indivíduo Anton Tchékhov tomou. Misturados com os números surgem exemplos extremamente interessantes de observação de pessoas e descrições de paisagens. O que não significa que haja algo de errado com as passagens em que se limita a relatar factos. Algumas são maravilhosas. Um exemplo é a passagem sobre os guiliaks. – Os guiliaks – repetiu Fuka-Eri. – Os guiliaks eram o povo indígena de Sacalina, muito antes de os russos terem colonizado a ilha. Originalmente, viviam no extremo sul da ilha, mas mudaram-se para o 916/1088
centro de onde foram expulsos pelos ainus que vieram do Norte e eram provenientes de Hokkaidō . Claro que os próprios ainus já tinham sido empurrados para o Norte, pelos japoneses. Tchékhov teve de se esforçar para observar de perto a cultura guiliak, em vias de rápida extinção, e registar tudo com o maior rigor possível. Tengo abriu o livro na passagem sobre os guiliaks. Saltava certas passagens e alterava o texto para o tornar mais fácil de compreender pela sua ouvinte. * * * «Os guiliaks são de constituição forte e robusta, e estatura mediana, mesmo pequena. Uma estatura elevada seria um estorvo na taiga41. “É uma floresta russa”, acrescentou Tengo.) Têm ossos fortes e distinguem-se pelo notável desenvolvimento das hipófises, apêndices e protuberâncias a que os músculos estão ligados, o que pressupõe uma 917/1088
musculatura poderosa, capaz de sustentar uma permanente luta com a natureza. O corpo é seco e fibroso, sem a mais pequena camada de gordura; entre os guiliaks não se encontra nenhum que seja obeso ou rechonchudo. Torna-se óbvio que toda a gordura é gasta a produzir energia, que o corpo de qualquer habitante de Sacalina tem de produzir em grande quantidade para compensar a perda de calor provocada pelas temperaturas baixas e a humidade excessiva do ar, circunstâncias que explicam a razão por que os guiliaks ingerem alimentos muito gordos. Comem carne de foca, salmão, esturjão e óleo, carne e sangue de baleia, tudo em grandes quantidades, cru, seco e muitas vezes gelado. A comida é grosseira e não refinada, o que faz com que os pontos a que os músculos da mastigação estão agarrados estejam particularmente bem desenvolvidos e os dentes muito desgastados. A dieta compõe-se unicamente de produtos de 918/1088
origem animal e, muito raramente, só quando acontece jantarem em casa ou se participa numa celebração, acrescentam alho da Manchúria ou frutos silvestres. De acordo com as observações de Nevelskói, os guiliaks consideram o trabalho do solo como um grande pecado; qualquer pessoa que cave a terra ou plante qualquer coisa morrerá cedo. Porém, comem com grande prazer o pão, que conheceram por intermédio dos russos, e consideram-no um acepipe; nos dias que vão correndo, não é raro ver-se em Aleksándrovsk ou Ríkovskoie um guiliak com um pão redondo debaixo do braço.» * * * Tengo interrompeu a leitura neste ponto para recuperar o fôlego. Fuka-Eri escutava-o, concentrada, mas ele foi incapaz de lhe ler no rosto a forma como ela estava a reagir. – O que achas? Queres que continue a ler? Ou preferes mudar de livro? – perguntou. 919/1088
– Quero saber mais acerca dos guiliaks. – Okay, eu continuo. – Importas-te que me meta na cama? – perguntou Fuka-Eri. – Força – respondeu Tengo. Passaram ao quarto. Fuka-Eri trepou para a cama e Tengo foi buscar uma cadeira, que colocou ao lado da cama, e sentou-se. Prosseguiu na sua leitura.
«Os guiliaks nunca se lavam, pelo que até mesmo os etnógrafos têm dificuldade em perceber qual a cor da sua pele; também não lavam a roupa interior, e as peças de vestuário feitas de peles que usam parecem acabadas de arrancar a um cão morto. Os próprios guiliaks emanam um odor forte e penetrante, e o cheiro repulsivo e quase insuportável a peixe seco e resíduos podres indica-nos que nos aproximamos de uma das suas habitações. Por regra, perto de cada iurtá42 existe uma zona de secagem, cheia até à borda de bocados de peixe que, à
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distância, especialmente quando o sol brilha sobre eles, parecem filamentos de coral. Em torno destes terrenos de secagem, Kruzenshtern observou um grande número de larvas que cobriam o chão, numa camada de vários centímetros.»
– Kruzenshtern. – Acho que foi um dos primeiros exploradores. Tchékhov era um grande estudioso. Leu todos os livros que se escreveram sobre Sacalina. – Continua.
«No inverno, as iurtás ficam cheias de um fumo acre, proveniente da lareira aberta, mas também do tabaco que todos os guiliaks, homens, mulheres e até mesmo crianças, fumam. Nada se sabe acerca da morbilidade e da taxa de mortalidade dos guiliaks, mas poderemos concluir que estes hábitos pouco higiénicos devem inevitavelmente ter consequências negativas na saúde do grupo.
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Talvez a isto se devam a sua baixa estatura, o rosto balofo e uma certa indolência e lentidão de movimentos.»
– Pobres guiliaks! – exclamou Fuka-Eri.
«Os autores dão-nos descrições variadas da personalidade dos guiliaks, mas todos concordam num ponto: não são uma raça guerreira, não gostam de brigas e lutas, e mantêm relações pacíficas e amistosas com os vizinhos. Acolhem sempre com suspeita a chegada de intrusos, temendo pelo futuro, mas recebem-nos com afabilidade, sem o mais pequeno protesto, e a pior coisa que fazem é mentir a quem chega, pintando Sacalina em cores sombrias, pensando que, agindo assim, afastam os intrusos da ilha. Receberam os companheiros de viagem de Kruzenshtern de braços abertos e, quando Shrenk adoeceu, a notícia espalhou-se entre os guiliaks com grande rapidez e causou uma preocupação genuína. Só mentem quando
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fazem negócios ou quando falam com pessoas suspeitas e, na sua opinião, perigosas, mas, antes de dizerem uma mentira, trocam olhares entre si, num gesto absolutamente infantil. Repugna-lhes toda a espécie de mentira e bazófia no decurso da vida quotidiana, mas não no âmbito dos negócios.»
– Maravilhosos guiliaks!
«Os guiliaks desempenham conscienciosamente as tarefas que lhes confiam, e não há memória de um guiliak abandonar o correio a meio do caminho ou apropriar-se de bens de outra pessoa. São alegres, sensatos, bem-dispostos e não sentem qualquer constrangimento na presença dos ricos e poderosos. Não reconhecem nenhum tipo de autoridade e, segundo parece, nem sequer têm o conceito de “superior” e “inferior”. Diz-se, e está escrito, que os guiliaks também não reconhecem a noção de autoridade familiar. O pai não se considera
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superior a um filho e o filho não tem respeito pelo pai, vivendo como bem deseja; dentro de uma iurtá, uma mãe idosa não tem mais autoridade do que a filha adolescente. Boshniak escreve que lhe aconteceu por mais de uma vez ver um filho bater na mãe e expulsála da tenda sem que ninguém se atrevesse a levantar a voz. Não existem diferentes níveis de autoridade entre os elementos masculinos de uma família; se alguém lhes oferece vodca, tem de a dar a todos, até ao mais pequeno. Mas os elementos femininos são também iguais na sua falta de direitos: seja a avó, a mãe ou a bebé que ainda mama, todas são maltratadas, como se fossem animais domésticos, como coisas que se podem deitar fora, vender ou afastar a pontapé, tal qual se faz a um cão. Todavia, os guiliaks fazem festas aos cães; às mulheres, nunca. O casamento é considerado um pormenor insignificante e tem menos importância do que, por exemplo, uma bebedeira, e não é 924/1088
acompanhado de qualquer tipo de cerimónia supersticiosa ou religiosa. Um guiliak troca uma lança, um barco ou um cão por uma rapariga, leva-a para a sua iurtá e deita-se com ela sobre uma pele de urso – e é tudo. A poligamia é aceite, mas não está generalizada, apesar de tudo levar a crer que existem mais mulheres do que homens. O desprezo pelas mulheres, enquanto criaturas inferiores ou objetos, chega a um tal extremo entre os guiliaks que, no âmbito dos seus direitos, nem sequer condenam a escravatura no sentido literal e grosseiro do termo. É evidente que a mulher representa o mesmo tipo de bem comerciável do que o tabaco ou o nanquim43. Strindberg, escritor sueco e célebre misógino, que desejava que as mulheres fossem meras escravas para servir os caprichos dos homens, pensa essencialmente como os guiliaks; se, por acaso, alguma vez fosse até ao Norte de Sacalina, 925/1088
passariam uma eternidade a abraçar-se uns aos outros.»
Neste ponto, Tengo fez uma pausa, mas Fuka-Eri manteve-se em silêncio e não emitiu qualquer opinião sobre a leitura. Tengo prosseguiu.
«Os guiliaks não têm tribunais e não conhecem o significado da palavra “justiça”. A dificuldade que têm para nos entender pode medir-se pelo simples facto de, até hoje, ainda não terem compreendido qual a finalidade das estradas. Mesmo nos sítios em que se construiu uma estrada, eles ainda viajam através da taiga. É frequente vê-los, com a família e os cães, a abrir caminho, em fila indiana, num pântano ao lado da estrada.»
Fuka-Eri fechara os olhos e a sua respiração acalmara. Tengo olhou para o rosto dela durante um bocado, mas não conseguiu perceber se estava ou não a dormir. Decidiu
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virar a página e continuar a ler. Se já estivesse adormecida, queria proporcionar-lhe um sono tão profundo quanto possível, e também lhe apetecia continuar a ler Tchékhov em voz alta.
«Perto da foz do rio Naibu, ergueu-se em tempos o entreposto Naibuchi, construído em 1866. Mitzul encontrou aí dezoito edifícios, para habitação, mas também para outras funções, mais uma capela e uma loja de víveres. Um correspondente que visitou Naibuchi em 1871 escreveu que havia aí vinte soldados, sob o comando de um cadete; numa das cabanas foi recebido com ovos frescos e pão escuro pela esposa de um soldado, alta e bonita, que elogiou a vida que levava ali e só se queixou da carestia do açúcar. Hoje já nem sequer existem vestígios dessas casas de madeira e, olhando para o espaço deserto e selvagem, a alta e formosa esposa do soldado afigura-se um mito. No local
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estão a construir uma casa nova para escritórios de inspetores ou, talvez, um observatório meteorológico, e é tudo. O mar tempestuoso é gelado e turvo, e as vagas alterosas e cinzentas esmagam-se na areia, como se dissessem, desesperadas: “Oh, Deus, porque nos criaste?” Trata-se do oceano Grande, ou, como é conhecido, o oceano Pacífico. Nesta costa, junto do rio Naibuchi é possível ouvir as pancadas dos machados dos condenados num trabalho de construção, ao mesmo tempo que, na outra costa, distante e apenas imaginada, fica a América… para a esquerda, por entre a bruma, distinguem-se os cabos de Sacalina, e para a direita, mais cabos… no entanto, à minha volta não vejo vivalma, nem um pássaro, nem uma mosca, e é impossível saber para quem rugem as ondas, quem as escuta ali, à noite, o que querem e, por fim, a quem rugiriam depois de eu partir. Ali, na costa, sou assaltado não por pensamentos lógicos e coerentes, mas pela 928/1088
meditação e o sonho. É uma sensação angustiante, porém, ao mesmo tempo, sinto o desejo de ficar ali para sempre a olhar o monótono movimento das vagas e a ouvir o seu rugir ameaçador.»
Fuka-Eri parecia agora profundamente adormecida. Escutou a respiração calma da rapariga. Fechou o livro e pousou-o na mesinha ao lado da cama. Pôs-se de pé e, com um derradeiro olhar a Fuka-Eri, apagou a luz. Dormia tranquila, de costas, com a boca fechada numa linha fina. Tengo fechou a porta do quarto e regressou à cozinha. Todavia, foi-lhe impossível continuar a escrever. Tinha a cabeça cheia das desoladas imagens da costa de Sacalina desenhadas por Tchékhov. Ouvia o som das vagas. Quando fechou os olhos. Tengo deu consigo de pé, sozinho, na costa do mar de Okhotsk, prisioneiro dos seus próprios pensamentos, comungando da inconsolável melancolia de Tchékhov. Ali, no fim do mundo, o escritor
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devia ter tido uma esmagadora sensação de impotência. Ser um escritor russo no final do século XIX devia ser sinónimo de ter de suportar um destino amargo e iniludível. Quanto mais tentava fugir da Rússia, mais a Rússia o engolia. Depois de passar o copo por água e lavar os dentes, Tengo apagou a luz da cozinha, estendeu-se sobre o sofá, puxou um cobertor e tentou dormir. O rugido do oceano ainda ecoava aos seus ouvidos, mas acabou por deslizar para a inconsciência e foi arrastado para um sono profundo.
Acordou às oito e meia da manhã. Na sua cama, não havia vestígios de Fuka-Eri. O pijama que lhe emprestara estava feito numa bola e fora atirado para dentro da máquina de lavar, com as mangas e as pernas ainda enroladas. Em cima da mesa da cozinha encontrou uma nota: «Como estão os guiliaks? Vou para casa.» Escritos a caneta esferográfica numa folha do bloco de notas, os
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carateres eram pequenos, quadrados e indefinivelmente estranhos, mais parecendo uma vista aérea de carateres feitos de conchas sobre a areia da praia. Dobrou o papel e guardou-o na gaveta da secretária. Se, ao chegar, às onze, encontrasse uma coisa deste género, a amante passava-se por completo. Tengo fez a cama e devolveu o fruto do labor de Tchékhov à estante. A seguir, preparou café e torradas. Enquanto tomava o pequeno-almoço, reparou que algo estranho e pesado se instalara no seu peito. Levou algum tempo até perceber o que era. O rosto tranquilo de Fuka-Eri adormecida. Será que estou apaixonado por ela? Não, impossível. Foi só qualquer coisa dentro dela que fez vibrar o meu coração. Então, porque estou eu tão preocupado com o pijama que usou junto ao corpo? Porque é que, quase sem dar por isso, lhe peguei e o cheirei? 931/1088
Havia demasiadas questões. Fora talvez Tchékhov quem afirmara que o romancista não é aquele que resolve problemas, mas alguém que os coloca. Era uma frase notável, mas Tchékhov aplicou esta atitude não só à sua obra como também à sua vida, que lhe levantou muitas perguntas, mas nunca lhe ofereceu respostas. Apesar de saber que padecia de uma doença incurável nos pulmões (enquanto médico, não podia deixar de o saber), tentou ignorar o facto o mais que pôde e recusou-se a acreditar que estava moribundo, até se encontrar, de facto, no seu leito de morte. Morreu jovem, tomado de violentos ataques de tosse, a cuspir sangue. Tengo afastou-se da mesa da cozinha, abanando a cabeça. A minha amante vem aí. Tenho de lavar a roupa e arrumar a casa. As reflexões ficarão para mais tarde. 932/1088
38 Peça de vestuário tradicional no Japão que consiste numa espécie de saia-calça, atada à cintura. Originalmente, era apenas usada por homens. (N. das T.)
39 Os portadores desta síndrome são donos de uma memória extraordinária – são capazes de decorar livros inteiros depois de uma única leitura ou tocar uma música com perfeição após a primeira audição –, mas possuem, ao mesmo tempo, sérios défices de desenvolvimento, como uma grande dificuldade para falar e se relacionar socialmente. (N. das T.)
40 A obra encontra-se editada em português. Com tradução a partir do francês e prefácio de Júlia Ferreira e José Cláudio, foi publicada pela Relógio d’Água em abril de 2011 (N. das T.)
41 Floresta de coníferas ou floresta boreal, que se encontra exclusivamente no hemisfério norte, em regiões de clima frio e com pouca humidade. (N. das T.)
42 Espécie de grande tenda portátil, arredondada e com paredes grossas, cobertas de feltro e uma estrutura de madeira. É a habitação tradicional das tribos nómadas
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turcas e mongóis, que vivem nas estepes da Ásia Central (N. das T.)
43 Tecido de algodão barato, amarelado, originalmente fabricado na China. (N. das T.)
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AOMAME
Por mais longe que tente ir
Aomame dirigiu-se à biblioteca municipal e, seguindo os mesmos trâmites que anteriormente, abriu uma edição resumida do jornal em cima de uma das mesas. Tinha ido ali para ler mais sobre o tiroteio entre o grupo radical e a polícia, que ocorrera na prefeitura de Yamanashi, no outono, três anos antes. A sede da Vanguarda, o grupo religioso que a viúva referira, situava-se nas montanhas de Yamanashi, e o tiroteio também ocorrera nessas mesmas montanhas. Podia ter sido uma simples coincidência, mas Aomame ainda não estava pronta para o aceitar como
tal. Era muito possível que existisse uma ligação entre as duas coisas. E a expressão que a senhora utilizara – «um grave incidente» – também parecia sugerir uma ligação assim. O tiroteio acontecera três anos antes, em 1981 (ou, segundo a hipótese de Aomame, três anos antes de 1Q84), no dia 19 de outubro. Uma vez que já lera as reportagens na sua anterior visita à biblioteca, Aomame tinha um conhecimento bastante pormenorizado dos factos, o que lhe permitiu saltar essa parte e concentrar-se nos artigos posteriores e nas análises que encaravam o ocorrido de diferentes ângulos. No primeiro recontro, três agentes morreram e dois ficaram feridos com gravidade por tiros disparados por Kalashnikovs de fabrico chinês. Depois disso, o grupo mais radical fugiu para as montanhas com as suas armas, e a polícia montou uma gigantesca caça ao homem. Ao mesmo tempo, elementos armados da Brigada de Paraquedistas das 936/1088
Forças de Autodefesa chegaram de helicóptero. Três radicais, que resistiram ao ataque, foram mortos a tiro, dois ficaram gravemente feridos (um deles morreu no hospital três dias mais tarde, mas o artigo não esclarecia a sorte do segundo) e outros quatro foram detidos, ilesos ou com ferimentos ligeiros. Envergando coletes à prova de bala de grande eficácia, a polícia e os elementos da Brigada de Autodefesa não sofreram mais baixas, sem contar com um polícia que partiu uma perna ao cair por uma ravina quando perseguia os radicais. Só um dos elementos do grupo estava dado como tendo paradeiro desconhecido. Aparentemente, conseguira escapar, não obstante o grande aparato policial. Quando passou o choque inicial causado pelo tiroteio, o jornal começou a publicar notícias pormenorizadas acerca das origens do grupo radical. Chegaram à conclusão de que o grupo se formara em consequência dos 937/1088
tumultos dentro das universidades, ocorridos por volta de 1970. Mais de metade dos membros eram veteranos do assalto ao Auditório Yasuda da Universidade de Tóquio ou da ocupação da Universidade de Nihon. Depois de a sua «fortaleza» ter caído nas mãos da polícia antimotim, os alunos e alguns professores que foram expulsos das universidades de que faziam parte, acabando por ficar desiludidos com a intervenção política urbana centrada nos campus universitários, superaram os sectarismos e construíram uma quinta comunitária na prefeitura de Yamanashi. No início, tentaram integrar-se na comuna agrícola conhecida como Academia Takashima, mas não gostaram daquela vida. Reorganizaram-se, tornaram-se autónomos, adquiriram uma aldeia abandonada no interior das montanhas por um preço invulgarmente baixo e aí começaram a viver da agricultura. Ao princípio, passaram por muitas dificuldades, mas, 938/1088
a pouco e pouco, foram tendo sucesso na venda de vegetais por correspondência, acompanhando o crescente e silencioso êxito que os produtos de agricultura biológica começaram a ter nas cidades. A quinta cresceu. Em última análise, eram pessoas sérias, trabalhadoras, bem organizadas pelo seu líder. O nome da comuna era «Vanguarda». Aomame franziu a cara numa grande careta e engoliu em seco. Soltou um gemido gutural e começou a tamborilar no tampo da mesa com a ponta da esferográfica. Continuou a ler. Leu as reportagens que descreviam como se foi cavando um fosso profundo entre os elementos da Vanguarda: o grupo estava dividido entre «uma fação radical a favor da luta armada», que preconizava um movimento revolucionário de guerrilha guiado pelos preceitos do marxismo, e uma fação «comunitária» relativamente pacífica, que rejeitava a revolução violenta, por não ser aceitável no Japão moderno, e 939/1088
que, além do mais, recusava o espírito do capitalismo e preconizava uma vida natural, em harmonia com a terra. E foi em 1976 que a fação comunitária, em número superior, expulsou da Vanguarda a fação a favor da luta armada. Há que dizer que a Vanguarda não expulsou a fação radical pela força. Segundo os jornais, arranjou-lhes novos terrenos, ofereceu-lhes alguns fundos e, em termos amigáveis, «pediu-lhes que se retirassem». A fação radical concordou e criou a sua própria comuna, «Amanhecer», no terreno que lhes haviam disponibilizado. Contudo, a certa altura, adquiriu armamento pesado. Espera-se que investigações futuras esclareçam como foi comprado e financiado. Por outro lado, aparentemente, nem a polícia nem a imprensa foram capazes de perceber com clareza qual o motivo por trás da reconversão, a dado momento, da comuna agrícola Vanguarda numa 940/1088
organização religiosa. Não obstante, a comuna, que se havia desfeito sem o menor problema da fação a favor da luta armada, evoluiu com grande rapidez, a partir desse ponto, no sentido da religião, até que, em 1979, obteve autorização para se tornar uma instituição religiosa com personalidade jurídica. Entretanto, foi comprando os terrenos à volta da sua propriedade original e expandindo os campos de cultivo e o número de edifícios. À volta dessas novas instalações construiu um muro alto, que os estranhos não podiam transpor. A razão que deu foi que «perturbava a ascese». Também ninguém conhecia a proveniência dos fundos de que dispunha, nem como conseguira a autorização para ganhar o estatuto de instituição religiosa com personalidade jurídica em tão pouco tempo.
Depois de o grupo radical se ter mudado para a nova propriedade, os seus membros receberam treino militar secreto, ao mesmo
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tempo que continuavam a cultivar a terra, o que esteve na origem de vários conflitos com os lavradores vizinhos. Um desses conflitos envolveu o direito à água de um ribeiro que corria através das terras da Amanhecer. O ribeiro fora sempre usado pelos agricultores da região como fonte de água comunitária, mas o grupo proibiu o acesso aos moradores da vizinhança. A disputa prolongou-se por muitos anos, até ao dia em que vários membros da Amanhecer espancaram com gravidade um agricultor, que se queixara da vedação de arame farpado que rodeava a propriedade do grupo. A polícia da prefeitura de Yamanashi arranjou um mandado de busca e dirigiu-se à Amanhecer para interrogar os suspeitos, tendo-se visto envolvida num tiroteio absolutamente inesperado. Depois de a Amanhecer ter sido quase totalmente dizimada pelo violento tiroteio nas montanhas, a organização religiosa Vanguarda não perdeu tempo e emitiu uma 942/1088
declaração formal. O porta-voz da organização, um jovem elegante, de fato, leu o documento aos meios de comunicação social durante uma conferência de imprensa. O ponto essencial era claro. Apesar do passado comum, naquele momento não havia qualquer ligação entre a Amanhecer e a Vanguarda. Após a cisão, a não ser em assuntos de natureza operacional, pouco ou nenhum contacto existira. Haviam-se separado em termos amistosos depois de concluírem que, enquanto comunidade dedicada à agricultura, respeitando a lei e empenhada na busca de um mundo espiritual e pacífico, a Vanguarda não podia já trabalhar com os membros da Amanhecer, que preconizavam uma ideologia revolucionária radical. Posteriormente, a Vanguarda tinha-se tornado uma organização religiosa, certificada em termos legais enquanto personalidade jurídica religiosa. Era uma verdadeira infelicidade que tivesse ocorrido um incidente envolvendo 943/1088
derramamento de sangue, e a Vanguarda deseja expressar a sua profunda simpatia pelas famílias dos agentes que tinham perdido a vida no cumprimento do dever, mas o grupo não estava, nem pouco mais ou menos, envolvido no caso. Todavia, era um facto inegável que a Vanguarda fora a organização-mãe da Amanhecer. Por consequência, se as autoridades considerassem necessário levar a cabo qualquer tipo de investigação ligada ao incidente ocorrido, a Vanguarda estava disposta a colaborar para evitar qualquer mal-entendido. A comunidade era um grupo legal, aberto à sociedade, sem nada a esconder. Caso fosse necessário disponibilizar alguma informação, desejavam colaborar na medida do possível. Uns dias mais tarde, como que em resposta ao comunicado formal da Vanguarda, a polícia da prefeitura de Yamanashi entrou nas instalações do grupo munida de um mandado de busca. Passaram um dia inteiro 944/1088
na vasta propriedade e vasculharam as instalações a fundo, bem como todos os arquivos. Também interrogaram vários dirigentes do grupo. A polícia suspeitava que os contactos entre os dois grupos eram tão intensos como sempre e que os elementos da Vanguarda teriam estado envolvidos à sorrelfa nas iniciativas da Amanhecer. No entanto, não encontraram provas que apoiassem este ponto de vista. Espalhadas ao longo das veredas que serpenteavam por entre a bonita floresta de folha caduca havia cabanas de madeira para meditação, onde muitos membros, envergando vestes ascetas, estavam ocupados em rigorosas atividades religiosas, e mais nada. Ali perto, outros seguidores ocupavam-se dos trabalhos agrícolas. Havia uma grande quantidade de alfaias bem conservadas e maquinaria agrícola pesada. A polícia não encontrou rasto de armas ou qualquer coisa do género que sugerisse violência. Tudo estava limpo e em ordem. Havia 945/1088
uma pequena e simpática sala de refeições, um albergue e umas instalações médicas simples, mas devidamente equipadas. A biblioteca, com dois andares, encontrava-se bem fornecida de escrituras e livros budistas, no meio dos quais alguns especialistas levavam a cabo estudos e traduções. No conjunto, o complexo tinha menos a aparência de uma instituição religiosa e mais a de um campus de uma pequena universidade privada. A polícia foi-se embora, desiludida por não ter encontrado nada que valesse a pena. Poucos dias depois, o grupo recebeu repórteres da televisão e da imprensa, que puderam observar por si próprios o que a polícia já vira. Não os conduziram ao longo de percursos cuidadosamente controlados, como seria de esperar, antes lhes permitiram que deambulassem livremente pela propriedade, sem companhia, para poderem falar com quem quisessem entrevistar e 946/1088
escrever as reportagens como bem entendessem. A única restrição acordada entre todos foi que, para proteger a privacidade dos fiéis, a imprensa só utilizaria fotografias e filmagens aprovadas pelo grupo. Vários dirigentes da comunidade, envergando vestes ascéticas, responderam às perguntas dos repórteres, reunidos num grande salão, e explicaram-lhes as origens, as doutrinas e a administração do grupo. Foram corteses, não se esquivaram às perguntas e nunca deixaram entrever qualquer sinal da propaganda tantas vezes associada a grupos religiosos. Mais pareciam quadros superiores de uma agência de publicidade, oradores experientes, do que líderes religiosos. A única diferença estava na roupa que usavam. «Não temos uma doutrina muito definida», explicaram. «Fazemos investigação teórica sobre o budismo primitivo e levamos à prática as doutrinas ascéticas dos primeiros tempos, na busca de um despertar 947/1088
religioso mais fluido, não tão apegado aos textos. Defendemos que é o despertar espontâneo de cada indivíduo que dá forma à doutrina. Não é a doutrina que dá origem ao despertar, mas é o despertar individual que precede a doutrina, como um fim natural, permitindo-nos então estabelecer as nossas regras. É este o nosso princípio fundamental. E é neste sentido que a nossa origem nos diferencia bastante das outras religiões estabelecidas. «Quanto ao financiamento das nossas atividades, como acontece com a maior parte das outras organizações religiosas, depende em parte das contribuições espontâneas dos nossos fiéis. No entanto, o nosso propósito é criar um estilo de vida frugal, autossuficiente e assente na agricultura, para não termos de depender de donativos. Do nosso ponto de vista, “menos é mais”: aspiramos alcançar a paz espiritual pela purificação do corpo e a disciplina da mente. Todos aqueles que se 948/1088
deram conta da vacuidade do materialismo da sociedade competitiva têm cruzado a nossa porta, um atrás do outro, em busca de um conjunto de coordenadas espirituais mais profundas. Muitos deles têm educação superior e gozam de elevado estatuto social. Não estamos a tentar ser uma dessas “novas” religiões, criadas à pressa, que fingem carregar nos ombros o real sofrimento das pessoas e que pretendem salvar tudo e todos. Claro que a salvação dos fracos é uma tarefa meritória, mas talvez seja melhor pensar em nós como uma escola de “pós-graduação”, um espaço que dá ajuda a quem sente forte motivação para se salvar e meios adequados para o fazer. «A determinada altura, surgiram grandes divergências entre nós e as pessoas do grupo Amanhecer quanto à política de gestão e, durante algum tempo, tivemos as nossas desavenças, mas acabámos por resolver o assunto com conversas que conduziram a uma 949/1088
harmoniosa tolerância de opiniões, tendo decidido seguir caminhos diferentes. Separámo-nos. À sua maneira, a Amanhecer também percorria um caminho puro e ascético na busca dos seus ideais, mas com os resultados desastrosos, e verdadeiramente trágicos, que se conhecem. A razão principal prende-se com o facto de se terem tornado demasiado doutrinários e perdido a ligação à sociedade real e atuante. Também para nós esse acontecimento foi uma chamada de atenção, recordando-nos que devemos continuar a ser uma organização de janelas abertas para o exterior, ao mesmo tempo que nos impomos a nós próprios uma disciplina cada vez mais rigorosa. Acreditamos que a violência não resolve nada. Esperamos que compreendam que não impomos a religião a ninguém. Não fazemos proselitismo nem atacamos as outras religiões. Limitamo-nos a oferecer um ambiente comunitário 950/1088
apropriado e eficaz a quem procura um despertar espiritual.»
A maior parte dos jornalistas presentes saiu dali com uma opinião favorável da organização. Os fiéis, quer homens quer mulheres, eram esbeltos, relativamente jovens (apesar de, uma vez ou outra, se terem avistado pessoas mais idosas) e tinham um olhar maravilhosamente límpido. Todos mostravam a maior cortesia na fala e na atitude. Nenhum deles mostrou grande vontade em revelar pormenores sobre o seu passado, mas, em geral, pareciam ter tido, de facto, educação universitária. O almoço que serviram aos jornalistas foi simples (pelos vistos, deram-lhes a mesma comida que aos crentes), mas, à sua maneira, delicioso. Os ingredientes tinham sido colhidos pouco tempo antes nos campos pertencentes à organização. Por causa de tudo isto, a imprensa definiu o grupo que se separara e fundara a
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Amanhecer como uma espécie de ovelha ronhosa, que a Vanguarda se vira forçada a expulsar. A ideologia revolucionária assente no marxismo passara de moda e tornara-se obsoleta no Japão dos anos oitenta. Os jovens que, durante a década de setenta, tinham alimentado ideias políticas radicais trabalhavam agora em grandes empresas e travavam lutas encarniçadas nas frentes de batalha da economia. Ou, em alternativa, tinham-se distanciado da luta e do clamor da sociedade real, numa busca individual por valores pessoais, num local afastado. Fosse qual fosse o caso, a verdade é que os tempos haviam mudado, e o tempo da política era agora coisa de um passado remoto. Apesar de o incidente com a Amanhecer ter sido extremamente infeliz e sangrento, a longo prazo mais não seria do que um episódio imprevisto e intempestivo em que um espectro do passado se manifestara por acidente. Seria interpretado como o cair do pano sobre 952/1088
uma determinada época. Foi este o tom geral das notícias na imprensa. A Vanguarda era uma prometedora opção por um mundo novo; a Amanhecer não tinha futuro.
Aomame pousou a caneta e respirou fundo. Visualizou os olhos de Tsubasa, tão sem profundidade e infinitamente inexpressivos. Aqueles olhos tinham fitado Aomame, mas, ao mesmo tempo, não estavam a olhar para nada. Faltava qualquer coisa importante. Não é tão simples como isso. A Vanguarda não pode ser assim tão pura. Tem um lado obscuro, escondido. A senhora diz que o tal «Líder» anda a violar raparigas pré-púberes e a dizer que se trata de um rito religioso. Os jornalistas não parecem saber nada sobre o assunto. Só lá estiveram meio dia. Guiaram-nos ordeiramente pelas instalações dedicadas à prática religiosa, ofereceram-lhes um almoço à base de ingredientes frescos, fizeram-lhes uma linda
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prédica sobre o despertar espiritual, e eles foram para casa todos satisfeitos. Nunca conseguiram ver o que realmente se passava lá dentro.
Aomame saiu da biblioteca e foi direita a uma cafetaria, onde pediu um café e telefonou para o emprego de Ayumi. Marcou o número que ela lhe dissera estar sempre disponível. Foi atendida por um colega. Ayumi andava na rua, a fazer a ronda, mas estaria de volta à esquadra dentro de duas horas, mais ou menos. – Eu volto a ligar – disse Aomame, sem indicar o nome. Regressou ao seu apartamento e, duas horas mais tarde, marcou o número de novo. Desta vez, foi a própria Ayumi quem atendeu. – Olá, Aomame, como vai isso? – Excelente! E tu? – Não tenho nada que um homem de jeito não resolva. E tu?
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– Na mesma – respondeu Aomame. – Que desgraça! – exclamou Ayumi. – Só pode haver qualquer coisa de errado num mundo em que mulheres como nós têm de se queixar umas às outras por terem saudáveis impulsos sexuais. Vamos ter de tratar disto. – É verdade, mas… ah… não faz mal dizeres essas coisas em voz alta? Estás de serviço, não é verdade? Não anda por aí ninguém? – Fica descansada, podes dizer-me tudo o que quiseres. – Bem, tenho um favor para te pedir, se é que me podes fazer isto. Não me lembro de mais ninguém a quem possa recorrer. – Claro – respondeu Ayumi. – Não sei se te posso ajudar, mas diz lá. – Conheces uma organização religiosa chamada Vanguarda? A sede é na prefeitura de Yamanashi, nas montanhas. – Vanguarda? Hum… – Ayumi levou cerca de dez segundos a dar voltas à cabeça. – 955/1088
Acho que sim. É uma espécie de comuna religiosa, certo? Os radicais da Amanhecer que desencadearam aquele tiroteio em Yamanashi faziam parte do mesmo grupo. Morreram três polícias. Foi uma tragédia. Contudo, a Vanguarda não participou nos acontecimentos. A seguir ao incidente, houve uma investigação e fizeram buscas às instalações, mas não encontraram nada. E então? – Queria saber se, depois do tiroteio, a Vanguarda se envolveu em mais algum incidente. Criminal, cível, qualquer coisa. Mas não sei como procurar uma coisa destas. Não consigo ler todas as edições compactas dos jornais, e pensei que a polícia talvez tivesse maneira de descobrir. – É fácil, basta fazer uma pesquisa no nosso computador; ou, pelo menos, bem que gostaria de poder dizer isto, só que, por desgraça, a informatização da polícia japonesa ainda não está lá muito avançada. E acho 956/1088
que ainda vai levar alguns anos. Assim, por agora, teria de pedir à Polícia de Yamanashi que me mandasse pelo correio as cópias do processo. E, para isso, tenho de começar por preencher um formulário de requisição e pedir autorização ao meu chefe. Claro que também tenho de pôr por escrito a razão do pedido. Para terminar, como pertencemos à função pública, pagam-nos para fazermos com que tudo seja mais complicado do que o necessário. – Estou a ver – suspirou Aomame. – Não é possível. – Mas porque é que queres saber uma coisa dessas? Tens alguma amiga metida em sarilhos relacionados com a comuna Vanguarda? Aomame teve um breve momento de hesitação antes de se decidir a contar a verdade a Ayumi. – Estás perto. Tem que ver com violações. Ainda não posso dar-te pormenores, mas 957/1088
trata-se da violação de rapariguinhas. Informaram-me que as violam sistematicamente a pretexto de executarem um ritual religioso. Mesmo pelo auscultador, sentiu que Ayumi franzia o sobrolho. – Violação de rapariguinhas, hã? Não podemos deixar que isso aconteça – declarou Ayumi. – Claro que não – corroborou Aomame. – O que entendes por «rapariguinhas»? – Com dez anos, ou talvez mais novas. Pelo menos, raparigas que ainda não são menstruadas. Durante um bocado, Ayumi ficou em silêncio. Depois, numa voz átona, disse: – Estou a ver onde queres chegar. Vou pensar em qualquer coisa. Dás-me dois ou três dias? – Claro. Avisa-me. Gastaram mais uns minutos numa conversa trivial, até Ayumi dizer: 958/1088
– Okay, tenho de voltar ao trabalho.
Depois de desligar, Aomame sentou-se na sua cadeira de leitura, junto da janela, e deixou-se ficar durante um bocado a olhar para a mão direita. Dedos compridos, esguios, com as unhas cortadas rentes. Unhas bem arranjadas, mas sem verniz. Enquanto olhava para as unhas, Aomame foi assaltada pela noção de como era frágil e efémera também a sua existência. Uma coisa tão simples como o feitio das suas unhas: fora determinado sem que a ouvissem. Uma outra pessoa qualquer tomou a decisão, e só me restou aceitá-la, sem mais, gostasse ou não. Quem poderá ter determinado que as minhas unhas tivessem esta forma? Pouco tempo antes, a idosa senhora dissera-lhe: «Os teus pais eram, e ainda são, fervorosos da Associação das Testemunhas.» Nesse caso, nesse preciso momento ainda se dedicavam à pregação do Evangelho.
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Aomame tinha um irmão, quatro anos mais velho, um jovem dócil. Quando Aomame decidiu sair de casa, ele ainda vivia segundo as instruções dos pais, mantinha a fé. Que seria feito dele? Aomame não tinha um desejo especial de saber o que se passava com a família. Para ela, faziam parte de um período da sua vida já terminado. Cortara todos os laços entre eles. Durante muito tempo, lutara para esquecer tudo o que vivera antes dos dez anos. A minha vida começou realmente aos dez anos. Tudo o que aconteceu antes não passou de um sonho infeliz. Quero deitar fora todas essas recordações. Mas, por mais que se esforçasse, o coração puxava-a sempre de volta para aquele mundo de pesadelo. Parecia-lhe que quase tudo o que tinha ou era estava profundamente enraizado naquele solo negro de que retirava o alimento. 960/1088
Por mais que me afaste, acabo sempre por voltar aqui. Tenho de deslocar aquele «Líder» para o outro mundo, para meu proveito também.
Três dias mais tarde, de noite, recebeu um telefonema de Ayumi. – Tenho alguns dados para ti – declarou. – Sobre a Vanguarda? – Sim. Andava a pensar no caso e, de repente, lembrei-me de que o tio de um dos meus colegas da Academia faz parte da Polícia da Prefeitura de Yamanashi. Parece que é um dos manda-chuvas de lá. Por isso, tentei pedir ao meu ex-colega. Disse-lhe que uma rapariga da minha família, uma miúda, se meteu em sarilhos quando estava a meio do processo de se converter àquela fé, pelo que eu andava a recolher informações sobre a Vanguarda, e se ele não se importava de me dar uma ajuda? Sou bastante boa a inventar tretas assim.
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– Obrigada, Ayumi. Fico-te muito grata – disse Aomame. – E ele telefonou para Yamanashi, falou com o tio, explicou-lhe a situação, e o tio pôs-me em contacto com o oficial encarregado da investigação sobre a Vanguarda. Falei pessoalmente com ele. – Oh, fantástico. – Pois. Bem, tivemos uma longa conversa e recolhi toda a sorte de informações sobre o grupo, mas, provavelmente, já sabes tudo o que saiu nos jornais, por isso, vou dizer-te só o que não foi publicado, as coisas que o público não sabe, está bem? – Perfeito. – Antes de mais nada, a Vanguarda tem tido uma série de problemas legais: processos cíveis, relacionados sobretudo com a titularidade de terrenos. Parecem dispor de muito dinheiro e andam a comprar todos os terrenos que fazem estrema com a propriedade que já têm. É certo que, no campo, 962/1088
a terra é barata, mas, mesmo assim… E, em muitos casos, utilizam métodos um tanto coercivos. Escondem-se por trás de empresasfantasma e compram tudo a que conseguem deitar a mão. Foi assim que começaram a arranjar problemas com os outros proprietários e com as autoridades locais. Quer dizer, usam o modus operandi de um especulador latifundiário vulgar. Por agora, não houve mais do que processos cíveis, pelo que a polícia não se meteu no caso. Já estiveram perto de cruzar a fronteira da legalidade, mas, até ao momento, ainda nada veio a lume. Podem estar envolvidos com o crime organizado ou com a política. E a polícia recua quando há políticos metidos ao barulho. É claro que a festa é outra se alguma coisa rebenta e o procurador tem de intervir. – Com que então, a Vanguarda não é tão limpa como parece no que toca à atividade económica. 963/1088
– Não posso falar pelos crentes comuns, mas, tanto quanto é possível avaliar pelos registos das transações imobiliárias, os chefes mais importantes, encarregados de gerir o dinheiro, não têm as mãos muito limpas. Mesmo tentando ver tudo à luz mais favorável, e por mais boa vontade que se tenha, é difícil acreditar que é possível ir em busca da espiritualidade ao mesmo tempo que se lida com tanto dinheiro. Além do mais, estes tipos têm propriedades não só em Yamanashi como também na baixa de Tóquio e de Osaka – propriedades de luxo! Em Shibuya, Minami-Aoyama, Shōtō… Parece que a organização tem planos para expandir as atividades religiosas à escala nacional… partindo do princípio de que não decidiu mudar de rumo e dedicar-se ao ramo imobiliário. – Pensava que queriam viver em comunhão com a natureza e seguir princípios religiosos simples e austeros. Por que carga964/1088
d’água uma organização destas se quer meter no meio de Tóquio? – E onde é que arranjam as quantias de dinheiro que andam a gastar a rodos? – acrescentou Ayumi. – Não é possível ganharem uma fortuna destas a vender rabanetes daikon e cenouras. – Andam a extorquir dinheiro aos seguidores. – Em parte, sim, tenho a certeza, mas não chega, nem de perto nem de longe. Devem ter outra fonte de rendimentos importante. Também descobri mais um facto preocupante, uma coisa que te deve interessar. Há um razoável número de filhos de crentes a viver nas instalações. Regra geral, frequentam a escola básica da zona, porém, muitos deles abandonam a escola ao fim de pouco tempo. A escola insiste para que sigam o programa nacional, mas a organização não se mostra cooperante. Dizem à escola que, pura e simplesmente, as crianças não 965/1088
querem ir, que eles próprios se encarregam da educação dessas crianças e que não há razão para preocupações com os estudos delas. Aomame recordou a sua própria experiência na escola básica. Percebia muitíssimo bem a razão por que as crianças da religião não queriam frequentar a escola, onde eram marginalizadas, postas de lado e ignoradas. – É possível que se sintam deslocadas numa escola pública – disse. – Além do mais, não é assim tão invulgar que algumas crianças não frequentem a escola. – Sim, mas, segundo os professores que tiveram os miúdos nas aulas, a maior parte deles, rapazes e raparigas por igual, parece ter problemas emocionais. Ao princípio, quando começam, são crianças animadas e extrovertidas, mas, a cada ano que passa, vão-se tornando menos faladoras e o seu rosto perde expressividade. Acabam por ficar completamente apáticas e deixam de ir à 966/1088
escola. Quase todas as crianças da Vanguarda passam pelas mesmas fases e exibem os mesmos sintomas. Os professores estão intrigados e preocupam-se com as crianças que deixaram de aparecer e se mantêm fechadas dentro das instalações. Querem saber se as crianças estão bem, contudo, não os deixam entrar para ir vê-las. Não permitem a entrada a ninguém. Eram os sintomas de Tsubasa, pensou Aomame. Apatia extrema, falta de expressão, quase não abre a boca. Ayumi prosseguiu: – E tu achas que as crianças da Vanguarda sofrem abusos. Sistemáticos. Talvez mesmo violações. – Mas a polícia não pode avançar com base numa acusação não confirmada feita por um cidadão comum. – Pois não, claro. Bem vistas as coisas, a polícia não passa de mais um departamento extremamente burocrático da Administração 967/1088
Pública. Os burocratas só pensam nas suas próprias carreiras. Alguns não são assim, todavia, a maior parte chegou onde chegou por não fazer ondas, e a única coisa que quer, depois da reforma, é arranjar um tacho confortável numa organização ligada ao governo ou numa empresa privada. Nem com pinças tocam em nada que seja arriscado ou escaldante. É bem provável que deixem arrefecer a piza, antes de lhe darem a primeira dentada. Claro que o caso mudaria de figura se fosses capaz de nos dar uma vítima real que pudesse provar qualquer coisa em tribunal, mas imagino que deve ser quase impossível. – É verdade, quase impossível – respondeu Aomame. – Seja como for, obrigada. As informações serão muito úteis. Tenho de arranjar maneira de te agradecer. – Não seja por isso! Vamos as duas até Roppongi uma destas noites e esquecemos os nossos problemas todos. – Está combinado – respondeu Aomame. 968/1088
– Isso é que é falar! – exclamou Ayumi. – Já agora, estás interessada numas brincadeiras com algemas? – Não me parece – disse Aomame. – Brincadeiras com algemas? – Não? É pena – disse Ayumi, num tom de genuíno desapontamento 969/1088
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TENGO
O tempo pode decorrer de forma distorcida
Tengo pensava sobre o seu próprio cérebro. Sentia a necessidade de fazer esta reflexão com alguma frequência. Ao longo dos últimos dois milhões e meio de anos, o cérebro humano quadruplicara de tamanho. Em termos de peso, o cérebro representa apenas dois por cento do corpo humano, mas consome cerca de quarenta por cento da energia deste (dizia um livro que lera pouco tempo antes). Graças à dramática expansão do cérebro, os seres humanos
conseguiram adquirir os conceitos de tempo, espaço e possibilidade. Os conceitos de tempo, espaço e possibilidade. Tengo sabia que o tempo pode deformarse quando decorre. O tempo em si, tem uma composição uniforme, mas, quando se consome, assume uma forma distorcida. Um período de tempo pode ser terrivelmente pesado e comprido, ao passo que outro pode revelar-se curto e ligeiro. Há ocasiões em que a ordem natural das coisas pode inverter-se e, nos piores momentos, essa ordem chega mesmo a desaparecer por completo. Por vezes, há coisas que nunca deveriam acontecer e que acontecem. Ao ajustar o tempo às suas conveniências, é provável que as pessoas regulem a sua razão de ser. Por outras palavras, acrescentando tais operações ao tempo, conseguem – mas por pouco – manter a sua sanidade. É certo e sabido que, se uma pessoa tivesse de aceitar o tempo por 971/1088
que passou, de forma uniforme, pela ordem certa, os seus nervos não aguentariam a pressão. Tengo acreditava que uma vida assim constituiria uma perfeita tortura. Devido à expansão do cérebro, as pessoas haviam adquirido a noção de temporalidade, mas, em simultâneo, tinham aprendido modos de alterar e ajustar o tempo. As pessoas consomem o tempo de forma incessante e, em sincronia, paralelamente, reproduzem sem cessar o tempo que a sua consciência ajustou. Um feito notável. Não admira que o cérebro tenha de consumir quarenta por cento da energia total do corpo!
Tengo perguntava-se muitas vezes se assistira realmente ao episódio que recordava, ocorrido quando tinha um ano e meio ou, no máximo, dois – a cena em que a mãe, em roupa interior, deixava que um homem que não era o seu pai lhe chupasse o peito. Os braços dela envolviam o homem. Seria possível a um bebé de dois anos identificar
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pormenores desses e recordar as coisas de forma tão nítida? Não se trataria de uma falsa lembrança que, convenientemente, criara mais tarde, para se proteger? Era perfeitamente concebível. A certa altura, o cérebro de Tengo podia ter criado a memória de um outro homem (talvez o seu pai «verdadeiro»), aproveitando um momento de inconsciência para «provar» que não era filho biológico do homem que alegava ser o seu pai. Fora o modo como escolhera eliminar «o homem que alegava ser o seu pai» dos apertados laços do sangue. Ao estabelecer dentro de si a hipotética existência de uma mãe, viva algures, e de um pai «verdadeiro», estava a tentar criar um portal que lhe permitisse sair da sua vida limitada e sufocante. O problema deste raciocínio é que a memória se fazia acompanhar por uma vívida sensação de realidade. Tinha toque e peso e cheiro e profundidade. Encontrava-se 973/1088
teimosamente agarrada às paredes da sua mente como uma lapa ao casco de um navio afundado. Ele não conseguia alhear-se dela, apagá-la. Era-lhe impossível crer que uma recordação tão nítida não passasse de uma criação da sua mente, em resposta a uma qualquer necessidade. Era demasiado real, demasiado sólida para ser imaginária. E se fosse mesmo real? Não restam dúvidas de que o bebé Tengo se teria assustado ao ver uma cena assim. Alguém, outro ser humano, chupava um peito que devia ser para si – alguém maior e mais forte. E, segundo parecia – pelo menos, temporariamente –, a mãe de Tengo tinha-se esquecido do filho, criando uma situação que ameaçava a sua própria sobrevivência, sendo ele tão pequeno e frágil. O terror primevo daquele instante podia ter ficado indelevelmente impresso no papel fotossensível que era a sua mente. 974/1088
A lembrança daquele terror assaltou-o quando menos esperava, atacando-o com a ferocidade de uma enxurrada e deixando-o à beira do pânico. Começou a falar-lhe e forçou-o a recordar-se: Vás aonde fores, faças o que fizeres, nunca escaparás à pressão desta água. Esta memória define-te enquanto pessoa, dá forma à tua vida e está a tentar enviar-te para o local que te foi destinado. Por mais que te revoltes, não conseguirás livrar-te desta força. De repente, ocorreu-lhe um pensamento: Quando tirei da máquina o pijama que a Fuka-Eri usou e o cheirei, bem que podia estar à procura do cheiro da minha mãe. Mas porque será que tenho de procurar a imagem da minha falecida mãe no odor de uma rapariga de dezassete anos? Devem existir locais mais lógicos onde a procurar. Por exemplo, no corpo da minha amante mais velha. 975/1088
A amante de Tengo tinha mais dez anos do que ele, mas, por qualquer razão, nunca procurou nela a imagem da mãe. Também nunca sentiu qualquer interesse pelo cheiro dela. Era ela que dirigia grande parte da atividade sexual dos dois. Tengo limitava-se a seguir as indicações que lhe dava, quase sem pensar, sem fazer escolhas ou tomar decisões. Ela só lhe pedia duas coisas: boas ereções e uma ejaculação na altura devida. «Não te venhas já», ordenava. «Aguenta mais um bocadinho.» E ele concentrava toda a sua energia em não ejacular. «Okay, agora! Vem-te agora!», sussurrava ao ouvido dele, e ele vinha-se naquele preciso momento, numa ejaculação tão intensa quanto era capaz de arranjar. E ela elogiava-o enquanto acariciava a face dele: «Oh, Tengo! És maravilhoso!» Tengo tinha um jeito instintivo para o rigor em tudo e mais alguma coisa, incluindo a pontuação certa e a fórmula mais simples 976/1088
possível na resolução de um problema matemático. Quando ia para a cama com mulheres mais jovens, as coisas não se passavam da mesma maneira. Do princípio até ao fim, tinha de pensar, de fazer escolhas e tomar decisões. Tudo isto deixava Tengo desconfortável. A responsabilidade caía inteira sobre os seus ombros. Sentia-se como o capitão de um pequeno barco, no mar alto e tempestuoso, forçado a agarrar-se ao leme, a verificar as velas, tendo em atenção a pressão barométrica e a direção do vento, e Tengo tinha de se submeter à mesma disciplina como forma de ganhar a confiança da tripulação. O mais pequeno erro ou acidente podia conduzir a uma tragédia. Mais do que sexo, isto parecia-lhe ser o cumprimento de um dever. Como consequência, ficava tenso, não controlava a ejaculação ou não conseguia uma ereção quando necessário. O que só servia para alimentar as suas dúvidas. 977/1088
Erros destes nunca aconteciam com a sua amante mais velha. Ela apreciava bastante a potência sexual dele. Elogiava-o e animavao. Na única vez em que ele teve uma ejaculação precoce, ela passou a ter o cuidado de nunca mais vestir cuecas brancas. E não só cuecas: nunca mais usou roupa interior branca. Nesse dia, vestia roupa interior preta. Começou por lhe fazer sexo oral, apreciando a firmeza do pénis e a suavidade dos testículos dele. Tengo via os seios dela subirem e descerem, envoltos na renda preta do sutiã, enquanto ela fazia deslizar a boca. Para evitar vir-se demasiado cedo, fechou os olhos e pensou nos guiliaks.
«Os guiliaks não têm tribunais e não conhecem o significado da palavra “justiça”. A dificuldade que têm para nos entender pode medir-se pelo simples facto de, até hoje, ainda não terem compreendido qual a finalidade das estradas. Mesmo nos sítios em que
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se construiu uma estrada, eles ainda viajam através da taiga. É frequente vê-los, com a família e os cães, a abrir caminho, em fila indiana, num pântano ao lado da estrada.»
Tengo imaginou a cena: os andrajosos guiliaks a caminharem por entre a floresta cerrada, em fila, ao lado da estrada, acompanhados pelos seus cães e as suas mulheres, quase sem falarem. Nos seus conceitos de tempo, espaço e possibilidade não cabiam as estradas. Apesar do transtorno, caminhar em silêncio pela taiga e não pela estrada devia permitir-lhes uma nítida compreensão da sua própria razão de existir. «Pobres guiliaks!», exclamara Fuka-Eri. O rosto de Fuka-Eri a dormir surgiu na sua mente. Adormecera vestida com o pijama demasiado grande de Tengo, e enrolara as mangas e as pernas. Ele tirara o pijama de dentro da máquina de lavar, levara-o ao nariz e cheirara-o.
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Não posso pôr-me a pensar nisto!, disse para si próprio, mas era já demasiado tarde. O sémen saltou de dentro de si em múltiplas e violentas convulsões para dentro da boca da amante. Ela aguentou até ele terminar, saiu da cama e foi lavar a boca. A seguir, como se nada tivesse acontecido, regressou à cama. – Desculpa – disse Tengo. – Não conseguiste aguentar mais, não foi? – perguntou ela, acariciando-lhe o nariz com a ponta do dedo. – Tudo bem, não faz mal. Foi assim tão bom? – Foi fantástico – respondeu. – Dá-me uns minutos e voltamos a fazê-lo. – Mal posso esperar – respondeu ela, encostando a face ao peito nu de Tengo. Fechou os olhos e deixou-se ficar muito quieta. Tengo sentia o suave sopro da respiração dela no seu mamilo. – Adivinhas o que é que o teu peito me faz lembrar? – perguntou a Tengo. 980/1088
– Não faço ideia. – O portão de um castelo num filme de samurais de Kurosawa. – O portão de um castelo – disse Tengo, acariciando-lhe as costas. – Sabes, como Trono de Sangue ou Kakushi-toride no san-akunin44. Naqueles velhos filmes a preto-e-branco dele há sempre um grande e sólido portão de um castelo, coberto de enormes rebites de ferro. Penso sempre neles. Grossos, sólidos… – Mas eu não tenho rebites. – Não tinha dado por isso – respondeu ela.
Depois de ter sido publicado, A Crisálida de Ar de Fuka-Eri entrou na lista dos livros mais vendidos logo na segunda semana, e saltou para o primeiro lugar da lista de ficção na terceira. Tengo foi seguindo o processo de subida do livro pelos jornais que havia na sala de professores da escola onde dava aulas. Nos jornais também saíram dois anúncios ao livro, com uma fotografia da capa
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do livro e uma outra, mais pequena, da própria Fuka-Eri vestindo a familiar camisola justa de verão que lhe fazia o peito tão bonito (tirada, sem dúvida, durante a conferência de imprensa). O cabelo comprido e liso caindo-lhe nos ombros. Olhos escuros e enigmáticos a olhar de frente para a câmara. Aqueles olhos pareciam espreitar para dentro da lente, focados sem vacilar em algo escondido no recesso mais fundo do coração do observador, algo de que, por regra, não se tem consciência. Um olhar neutro mas suave. O olhar firme desta rapariga de dezassete anos era desconcertante. Não passava de uma pequena fotografia a preto-e-branco, mas com toda a certeza que uma olhadela bastaria para levar muita gente a comprar o livro.
Poucos dias depois de ter sido posto à venda, Komatsu enviara a Tengo dois exemplares do livro, mas Tengo limitara-se a abrir o embrulho sem tirar o plástico que envolvia
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os dois livros. É bem verdade que o texto que vinha lá dentro tinha sido escrito pelo próprio Tengo, e era a primeira vez que a sua escrita se materializava em livro, mas não tinha o mínimo desejo de o abrir e ler – nem sequer dar uma vista de olhos pelas páginas. Olhar para os livros não lhe dava alegria nenhuma. As frases e os parágrafos podiam ser seus, mas a história que contavam pertencia única e exclusivamente a Fuka-Eri. A mente dela criara-a. O seu papel menor de escriba e técnico na sombra há muito que terminara, e a fortuna do livro, a partir desse momento, não lhe dizia respeito. Nem devia. Enfiou os dois livros no fundo da estante, fora da vista, ainda embrulhados.
Depois daquela noite em que Fuka-Eri dormiu no apartamento dele, durante algum tempo, a vida de Tengo decorreu sem incidentes. Choveu muito, mas Tengo quase não prestou atenção ao tempo: não se incluía nas suas preocupações. Desde esse dia que não
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tinha notícias de Fuka-Eri. A falta de notícias dever-se-ia, provavelmente, ao facto de ela não precisar que lhe resolvesse nenhum problema em particular. Além de trabalhar todos os dias no seu romance, Tengo escreveu ainda uma série de pequenos textos para revistas – trabalho anónimo que qualquer pessoa poderia fazer. Todavia, constituía uma mudança de ritmo bem-vinda e nada mal paga para o esforço mínimo que exigia. Três vezes por semana, como era hábito, Tengo dava aulas de Matemática na escola. Mais do que nunca, enterrou-se no mundo da matemática como forma de esquecer as suas preocupações – ligadas sobretudo a Fuka-Eri e ao seu livro, A Crisálida de Ar. Uma vez imerso no universo da matemática, o seu cérebro mudava de circuito (com um pequeno estalido), a boca emitia palavras diferentes e o corpo começava a utilizar outros músculos, e tanto o tom da sua voz como a expressão na sua 984/1088
face mudavam. Tengo gostava da sensação desta mudança de sistema. Era como passar de uma sala para outra ou trocar de sapatos. Em contraste com o tempo que passava a executar as tarefas quotidianas ou a escrever ficção, Tengo lograva alcançar um novo nível de relaxamento – e até mesmo ganhar eloquência – quando entrava no mundo da matemática. No entanto, sentia que se tornara uma pessoa um pouco mais pragmática. Não conseguiria dizer qual era o verdadeiro Tengo, mas a mudança era natural e quase inconsciente. Também sabia que era algo de que, em maior ou menor grau, precisava. Enquanto professor, Tengo tentava inculcar na cabeça dos alunos a noção da voracidade com que a matemática exigia a lógica. Neste campo, o que não pudesse ser provado não tinha significado, mas, uma vez que se conseguisse provar qualquer coisa, os enigmas do mundo aninhavam-se na sua mão como uma ostra macia. As aulas de Tengo 985/1088
ganhavam um calor invulgar e os estudantes davam consigo arrebatados pela sua eloquência. Ensinava-lhes como resolver problemas matemáticos de uma forma prática e eficaz, ao mesmo tempo que fazia uma exibição fantasiosa do romance escondido por trás de cada questão que levantava. Tengo via a admiração nos olhos de várias das suas alunas e tomou consciência de que seduzia aquelas raparigas de dezassete e dezoito anos através da matemática. A sua eloquência era uma espécie de jogo de preliminares intelectual. As funções matemáticas acariciavam-lhes as costas; os teoremas eram suspiros cálidos, soprados aos ouvidos delas. Todavia, desde que conhecera Fuka-Eri, Tengo deixara de sentir interesse sexual por raparigas assim, nem tinha qualquer desejo de cheirar os pijamas delas. Tengo tomou consciência de um facto: 986/1088
A Fuka-Eri é um ser muito especial. Não se compara a ninguém. É indubitável que significa algo muito especial para mim. É, como dizer?, uma espécie de imagem global projetada na minha direção, mas uma imagem que não consigo decifrar. * * * A mente racional de Tengo chegou a várias conclusões lúcidas: Mesmo assim, o melhor é terminar com qualquer envolvimento com a Fuka-Eri. Tenho também de pôr a maior distância possível entre mim e as pilhas de exemplares de A Crisálida de Ar expostas nas montras de todas as livrarias; e o inescrutável Professor Ebisuno e aquela sinistra organização religiosa. E também é melhor manter-me afastado de Komatsu, pelo menos por agora. Se não o fizer, ainda acabo arrastado para zonas ainda mais caóticas, empurrado para um canto 987/1088
perigoso sem o menor vestígio de lógica, atirado para uma situação de que nunca conseguirei sair. Porém, Tengo tinha plena consciência de que não seria nada fácil afastar-se daquela conspiração intricada em que estava tão profundamente envolvido. Não era um herói num filme de Hitchcock que se via embrulhado num grande sarilho antes de perceber o que se estava a passar. Embrulhara-se pelo seu próprio pé, sabendo perfeitamente que tal implicava um certo grau de risco. A máquina já estava em movimento, e ganhara demasiado impulso para que fosse capaz de a deter. Tengo era, ele mesmo, uma peça da engrenagem – uma peça fundamental, agora que pensava nisso. Conseguia ouvir o surdo gemido da máquina e sentir o seu ímpeto implacável.
Poucos dias depois de A Crisálida de Ar ocupar o primeiro lugar na lista dos mais vendidos pela segunda semana consecutiva,
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Komatsu ligou a Tengo. O telefone tocou depois das onze da noite. Tengo já estava na cama e de pijama. Estivera a ler um livro durante algum tempo, de barriga para baixo, e preparava-se para apagar a luz. A avaliar pelo toque, soube que era Komatsu. Não sabia como explicar, mas a verdade é que percebia sempre quando era ele. O telefone tocava de uma maneira especial. Tal como a escrita tem um cunho pessoal, as chamadas de Komatsu tinham um toque especial. Tengo saiu da cama, foi até à cozinha e pegou no auscultador. A verdade é que não lhe apetecia atender a chamada e teria preferido adormecer nas calmas, sonhar com gatos-leopardos de Iriomote, o canal do Panamá, a camada de ozono ou com Matsuo Bashō 45 – qualquer coisa, desde que fosse muito, muito longe dali. Contudo, se não atendesse logo o telefone, iria tocar de novo quinze minutos ou meia hora mais tarde. Komatsu não tinha a mínima noção do tempo, 989/1088
nem a mínima consideração por quem levava uma vida normal. Era melhor atender imediatamente. – Olá, Tengo, estavas a dormir? – perguntou Komatsu, no seu tom descontraído habitual. – Estava a tentar – respondeu Tengo. – Desculpa lá – disse Komatsu, sem o mínimo tom de remorso na voz. – Só queria dizer-te que A Crisálida de Ar está a vender bem. – Bestial. – Como pãezinhos quentes. Ninguém aguenta o ritmo. Os desgraçados dos tipos da gráfica estão a trabalhar vinte e quatro horas por dia. Seja como for, eu já calculava que os números iam ser bons, claro. A autora é uma bonita rapariga de dezassete anos. As pessoas comentam. E estão reunidos todos os requisitos para termos um êxito de vendas. 990/1088
– Nada que ver com um romance escrito por um professor de escola, de trinta anos e com pinta de urso, não é? – Precisamente. Mesmo assim, não se pode dizer que seja um romance comercial. Não tem cenas de sexo, não puxa à lágrima. Nem mesmo eu imaginei que as vendas pudessem ser tão fabulosas. Komatsu fez uma pausa, como se esperasse uma resposta de Tengo. Ela não vindo, prosseguiu: – E não é só o estar a vender muito. As críticas também são fantásticas. Não se trata de um drama superficial atamancado pelo capricho de uma jovem. A história, só por si, já é notável. É claro que foi a tua soberba revisão que tornou tudo isto possível. É, de longe, o trabalho mais maravilhosamente impecável que alguma vez fizeste. Tornou tudo isto possível. Ignorando o elogio de Komatsu, Tengo pressionou as pontas dos dedos contra as têmporas. 991/1088
Sempre que Komatsu lhe fazia um elogio declarado, sabia que vinha aí qualquer coisa desagradável. Tengo fez a pergunta: – E então, diga-me, qual é a má notícia? – Como é que sabes que há uma má notícia? – Veja só a hora a que está a ligar-me! Tem de haver alguma má notícia. – É verdade – reconheceu Komatsu, surpreendido. – Tens aquela sensibilidade especial, Tengo, eu já devia saber. A sensibilidade não é para aqui chamada. É a boa velha experiência a falar, pensou Tengo. Mas não disse nada e ficou à espera para ver aonde Komatsu queria chegar. – Infelizmente, tens razão, tenho uma notícia pouco agradável para te dar – disse Komatsu. Fez uma pausa carregada de significado. Tengo imaginou Komatsu do outro lado, com os olhos a brilhar como os de um mangusto no escuro. 992/1088
– E é possível que tenha que ver com a autora de A Crisálida de Ar, certo? – Nem mais. Trata-se da Fuka-Eri. E não é bom. Desapareceu já há algum tempo. Os dedos de Tengo pressionaram as têmporas com mais força. – Há algum tempo? Desde quando? – Há três dias, na quarta-feira de manhã, saiu de casa em Okutama e foi para Tóquio. O Professor Ebisuno viu-a sair. Ela não disse aonde ia. Mais tarde, nesse mesmo dia, ligou a dizer que não voltaria para a casa nas colinas e que ia passar a noite no apartamento em Shinano-machi. Também estava combinado que a filha do Professor passasse lá a noite, mas a Fuka-Eri não chegou a aparecer. Desde então, não tiveram mais notícias. Tengo percorreu mentalmente os últimos três dias, mas não encontrou nada de relevante. – Não fazem a mínima ideia de onde possa estar. Pensei que podia ter falado contigo. 993/1088
– Não sei de nada – disse Tengo. Já devia ter sido há mais de quatro semanas que ela passara a noite em casa dele. Tengo hesitou, ponderando se devia informar Komatsu do que ela dissera naquele dia, de ser melhor não regressar ao apartamento de Shinano-machi. A rapariga certamente tivera um mau pressentimento acerca daquele lugar. Acabou por decidir calar-se. Não queria ver-se forçado a dizer a Komatsu que Fuka-Eri dormira em sua casa. – É uma rapariga estranha – disse Tengo. – Pode ter ido para qualquer lado, sozinha, sem avisar ninguém. – Não, não me parece. Mesmo não parecendo, a Fuka-Eri é muito responsável. Nunca faz segredo acerca dos seus movimentos. Telefona sempre a dizer onde está e para onde vai e quando. É o que o Professor Ebisuno diz. Por isso, não é nada normal nela estar três dias sem dar notícias. Pode ter acontecido algum acidente grave. 994/1088
– Um acidente grave – murmurou Tengo. – O Professor e a filha estão muito preocupados – disse Komatsu. – Seja o que for que aconteceu, se continuar desaparecida, o senhor vai ver-se numa situação difícil, estou certo – disse Tengo a Komatsu. – É verdade, e especialmente se a polícia se meter ao barulho. Quer dizer, pensa só: escritora adolescente e bonita, autora de um êxito de vendas, desaparece! Bem sabes que a imprensa caía logo em cima de uma coisa destas. Se acontecer, é certo como o Sol nascer que virão ter comigo, o editor dela, a pedir-me que comente. E daí não pode vir nada de bom. Sou uma pessoa que se mantém na sombra, não me dou bem com a luz do Sol. Se chegarmos a esse ponto, vai acabar por se saber a verdade. – E o que diz o Professor Ebisuno? – Que vai à polícia participar o desaparecimento dela, talvez já amanhã – respondeu 995/1088
Komatsu. – Consegui que não o fizesse durante alguns dias, mas não é coisa que se possa adiar indefinidamente. – Se a imprensa sabe da participação à polícia, não deixam pedra por virar. – Não sei como vai reagir a polícia, mas a Fuka-Eri é a rapariga do momento, e não apenas uma adolescente que fugiu de casa. Vai ser impossível conseguir manter isto longe das notícias. Podia ser precisamente essa a esperança do Professor Ebisuno, pensou Tengo: agitar as águas usando Fuka-Eri como isco, explorá-la para esclarecer a relação entre a Vanguarda e os pais de Fuka-Eri e descobrir o paradeiro do casal. A ser assim, o plano do Professor estava a funcionar como planeado. Mas teria o Professor avaliado bem o perigo que daí advinha? Com toda a certeza que sim: o Professor Ebisuno não era uma pessoa imponderada. A ponderação fizera sempre parte do seu trabalho. Além do mais, parecia 996/1088
haver vários factos ligados à situação de Fuka-Eri que Tengo desconhecia: era como se estivesse a tentar montar um puzzle sem ter as peças todas. Uma pessoa sensata terse-ia esquivado a fazer parte da situação, logo desde o início. – Fazes alguma ideia de onde possa estar, Tengo? – perguntou Komatsu. – Neste momento, não. – Não? – perguntou Komatsu, deixando transparecer alguns sinais de fadiga na voz. Não era um homem que, por regra, deixasse transparecer esse tipo de fraquezas. – Desculpa ter-te acordado a meio da noite. Uma coisa rara, ouvir palavras de desculpa da boca de Ko-matsu. – Não faz mal – respondeu Tengo. – Dada a situação… – Sabes, Tengo, se as coisas fossem como eu queria, teria escolhido não te envolver nestas preocupações da vida real. A tua única tarefa seria reescrever o texto, e tu fizeste-o 997/1088
de forma exemplar. Mas as coisas nunca correm tão bem como queremos. E, como já te disse, estamos a descer os rápidos… – No mesmo barco. – Tengo terminou a frase automaticamente. – Certo. – Mas, pensando melhor – acrescentou Tengo –, A Crisálida de Ar não venderia muito mais se a notícia do desaparecimento da Fuka-Eri viesse a lume? – Já está a vender bastante – respondeu Komatsu, num tom de resignação. – Não precisamos de mais publicidade. Um escândalo só nos traria problemas. Devíamos estar a trabalhar para conseguir um canto simpático e calmo onde aterrar. – Aterrar – disse Tengo. Komatsu emitiu um som de quem estava a engolir qualquer coisa imaginária. Pigarreou levemente. – Bem, que tal jantarmos um destes dias e termos uma longa e calma conversa sobre 998/1088
isso? Depois de esta trapalhada estar resolvida. Boa noite, Tengo. Espero que durmas bem. Komatsu desligou. Como se ele lhe tivesse lançado uma praga, Tengo não conseguiu dormir mais. Sentia-se cansado, porém, não adormeceu. O que era aquilo do «espero que durmas bem»? Pensou sentar-se à mesa da cozinha e trabalhar um bocado, mas não estava para aí virado. Tirou uma garrafa de uísque do armário, serviu-se e bebeu logo, de seguida, em pequenos golinhos.
Talvez Fuka-Eri, cumprindo a sua função de isco, tivesse sido raptada pela Vanguarda. Aos olhos de Tengo, a hipótese não lhe parecia improvável. Um bando da Vanguarda estivera a vigiar o apartamento de Shinano-machi, e, quando Fuka-Eri surgiu, empurraramna para dentro de um carro e levaram-na para longe. Feito com rapidez e no momento certo, era perfeitamente possível. Talvez
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Fuka-Eri tivesse pressentido a presença deles quando lhe disse que era melhor não regressar ao apartamento. Fuka-Eri afirmara a Tengo que o Povo Pequeno e as crisálidas de ar existiam, de facto. Ela travara conhecimento com o Povo Pequeno na comuna da Vanguarda, quando estava de castigo por ter deixado morrer a velha cabra cega devido a uma negligência, e, juntos, ao longo de várias noites seguidas, fizeram uma crisálida de ar. Em consequência disso, acontecera-lhe qualquer coisa de grande significado para ela. Organizara os acontecimentos numa história, e Tengo refizera essa mesma história, transformando-a numa obra de ficção acabada. Por outras palavras, ele transformara-a num produto, e esse produto (para tomar de empréstimo a expressão de Komatsu) estava a vender-se que nem pãezinhos quentes. Para a Vanguarda, tudo aquilo devia constituir um grande transtorno. A história do Povo 1000/1088
Pequeno e da crisálida de ar deviam ser segredos importantes que não deviam ser revelados ao mundo exterior. Por isso, para evitar posteriores fugas de informação, tinham raptado e sequestrado Fuka-Eri. Tinham recorrido à força, mesmo correndo o risco de o seu desaparecimento chamar a atenção geral. Claro que tudo isto não passava de uma mera conjetura de Tengo. Não tinha bases em que o fundamentar, nem provas para o corroborar. Mesmo que dissesse às pessoas: «O Povo Pequeno e a Crisálida de Ar existem mesmo», quem iria levá-lo a sério? Antes de tudo o mais, o próprio Tengo não sabia o significado de dizer que coisas daquelas «existem mesmo». Havia outra possibilidade, que era FukaEri ter ficado farta do estardalhaço em torno do seu livro e ter decidido esconder-se. Perfeitamente concebível aos olhos de Tengo, claro. Era praticamente impossível predizer 1001/1088
o que ela faria, mas, partindo do princípio de que se escondera, não seria de descartar a possibilidade de ter deixado uma mensagem ao Professor Ebisuno e à sua filha Azami. Não havia razão para os afligir. Contudo, era fácil para Tengo imaginar que Fuka-Eri podia correr grande perigo se tivesse, de facto, sido sequestrada pela Vanguarda. Tal como nunca houvera qualquer notícia dos pais, também era possível não mais ter notícias dela. Mesmo que se revelasse a ligação entre Fuka-Eri e a Vanguarda (o que não demoraria muito a acontecer), provocando um escândalo na imprensa, tudo seria inútil caso a polícia recusasse envolver-se sob o pretexto de não existirem «provas concretas de ela ter sido sequestrada». Podia ficar trancada algures dentro dos altos muros da comunidade religiosa. Teria o Professor Ebisuno congeminado um plano que abarcasse o pior cenário? 1002/1088
Tengo queria telefonar ao Professor Ebisuno para lhe fazer estas perguntas, mas já passava da meia-noite. Teria de esperar pelo dia seguinte. De manhã, marcou o número que lhe tinham dado para ligar para casa do Professor Ebisuno, mas a chamada não passou. Respondeu-lhe uma mensagem gravada: «O número que marcou não se encontra atribuído. Por favor, verifique o número e ligue mais tarde.» Tentou ainda várias vezes, mas obteve sempre o mesmo resultado. Calculou que tivessem mudado de número depois da estreia de Fuka-Eri, dado os massacrantes pedidos de entrevistas. Ao longo da semana seguinte, não aconteceu nada de especial. A Crisálida de Ar continuou a ter os mesmos números de vendas, voltando a ficar em primeiro lugar na lista nacional dos mais vendidos. Durante essa semana, ninguém ligou a Tengo. Ele tentou telefonar para o escritório de Komatsu várias 1003/1088
vezes, mas nunca o apanhou (o que não era invulgar). Tengo deixou uma mensagem no departamento editorial, pedindo a Komatsu que lhe ligasse, mas não recebeu qualquer chamada (o que também não era invulgar). Todos os dias lia o jornal, mas nunca encontrou qualquer menção de alguém ter participado o desaparecimento de Fuka-Eri. O Professor Ebisuno teria decidido não o fazer? Ou talvez tivesse feito a participação, mas a polícia não lhe dera publicidade para poder procurá-la em segredo, ou não o tinham levado a sério, tratando o caso como o de qualquer outra adolescente fugida de casa. Tengo dava as suas aulas, como de costume, três vezes por semana, continuava a escrever o seu romance nos outros dias e passava a tarde de sexta-feira em fogosas sessões de sexo com a sua amante, quando ela ia visitá-lo ao apartamento. Mas não conseguia concentrar-se. Passava os dias tomado de um sentimento misto de 1004/1088
desconforto e desnorte, como alguém que, por engano, tivesse engolido um pedaço de uma nuvem espessa. Começou a perder o apetite. Acordava a meio da noite, a horas estranhas, e era incapaz de adormecer de novo. Nessas alturas, pensava em Fuka-Eri. Onde estaria agora? O que fazia? Com quem estaria? O que se passava? Pela sua cabeça passou uma grande variedade de situações, cada uma com pequenas variações e todas profundamente pessimistas. Nas cenas que imaginava, ela estava sempre vestida com a camisola leve e justa que revelava a bonita curva dos seus seios. A visão fazia-o ficar sem ar e só servia para aumentar a sua agitação. Finalmente, na quinta-feira da sexta semana consecutiva desde que A Crisálida de Ar entrara para a lista dos livros mais vendidos, Fuka-Eri deu sinal de vida.
44 The Hidden Fortress, um filme realizado em 1958 por Akira Kurosawa, que se estreou nos Estados Unidos em 1960 e nunca passou em Portugal no circuito comercial,
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tendo sido exibido na Cinemateca Portuguesa e na RTP com o título de A Fortaleza Escondida. Grande clássico do cinema de aventuras (e também o primeiro filme japonês em Cinemascope), com Toshiro Mifune no principal papel, serviu de inspiração a George Lucas para a saga Star Wars. (N. das T.)
45 Famoso poeta japonês do século XVII, que recriou uma forma poética antiga, transformando-a no haiku – poema breve, ainda hoje popular. (N. das T.)
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AOMAME
Não passa do princípio de qualquer coisa
Quando tocava a dar festas íntimas mas absolutamente eróticas, que duravam uma noite inteira, Aomame e Ayumi constituíam o par perfeito. Ayumi era pequenina e jovial, desinibida com estranhos e boa conversadora. Conseguia trazer uma nota positiva a toda e qualquer situação, assim metesse na cabeça fazê-lo. Também era senhora de um saudável sentido de humor. Por contraste, Aomame, esguia e musculada, tendia a ser quase inexpressiva e reservada, e sentia dificuldade em ser espirituosa com um homem
que tivesse acabado de conhecer. A sua conversa deixava transparecer uma subtil nota de cinismo e até mesmo de hostilidade, e os seus olhos mostravam um brilho de intolerância, igualmente subtil. No entanto, quando lhe dava para isso, Aomame assumia uma aura de inacessibilidade, que atraía naturalmente os homens. Parecia o cheiro com o estímulo sexual que emana de animais e insetos quando necessário. Não era uma coisa que se pudesse aprender por um esforço consciente. Era inato, quase de certeza. Mas não, ela podia ter adquirido aquela fragrância, por uma razão desconhecida, num dado momento da vida. Fosse como fosse, esta aura não só excitava subtilmente os seus parceiros sexuais como também Ayumi, acrescentado colorido e um calor positivo às noites das duas. Sempre que encontravam os homens adequados, Ayumi, com a sua boa disposição habitual, abordava-os primeiro. Aomame 1008/1088
juntava-se-lhes mais tarde, no momento certo, criando uma atmosfera única, mistura de opereta e filme negro. Uma vez as coisas nesse ponto, o resto era fácil. Iam para um local apropriado e (na frontal expressão de Ayumi) «fodiam que nem umas doidas». O mais difícil era encontrar os parceiros adequados. Preferencialmente, deviam ser dois homens que se encontrassem juntos – limpos e com um ar decente, com uma faceta um tanto intelectual; mas não de tal forma prevalecente que se revelasse um problema: uma conversa aborrecida podia dar cabo da noite. Também tinham de aparentar ser cavalheiros com boa situação financeira. Obviamente, cabia aos homens pagar as bebidas e os quartos de hotel. Contudo, quando tentaram fazer uma festinha de sexo simpática lá para o fim de junho (no que veio a revelar-se a sua última atividade em equipa), pura e simplesmente, não conseguiram arranjar homens decentes. 1009/1088
Passaram imenso tempo à procura deles, mudando de sítio várias vezes, sempre com os mesmos resultados. Não obstante ser a última sexta-feira do mês, todos os clubes onde foram, de Roppongi a Akasaka, estavam espantosamente calmos, quase desertos, não lhes proporcionando uma grande hipótese de escolha. Talvez tivesse algo que ver com as pesadas nuvens que pairavam no céu, como se toda a cidade de Tóquio estivesse de luto por alguém. – Hoje, isto não está nada com bom ar – disse Aomame. – Talvez fosse melhor desistir. – Já eram dez e meia. Relutante, Ayumi concordou. – Não me lembro de uma sexta-feira tão morta. E aqui estou eu, com a minha sensual roupa interior roxa vestida! – Vai para casa, põe-te à frente do espelho e masturba-te. 1010/1088
– Nem mesmo eu tenho tomates para fazer isso na casa de banho do dormitório da polícia! – Enfim, vamos esquecer isto. Tomamos um copo simpático, nas calmas, e vamos para casa dormir. – Talvez seja o melhor – disse Ayumi. Então, como se tivesse acabado de se lembrar, acrescentou: – Vamos comer qualquer coisa antes de irmos para casa. Tenho trinta mil ienes a mais na carteira. Aomame franziu o sobrolho: – A mais? Que demónio...? Não és tu que estás sempre a queixar-te do pouco que te pagam? Ayumi coçou a aba do nariz. – A verdade é que, no outro dia, um homem deu-me trinta mil ienes. Chamou-lhe «tarifa do táxi» e entregou-me o dinheiro quando estávamos a despedir-nos. Tu sabes, da vez em que estivemos com aqueles tipos que trabalhavam numa imobiliária. 1011/1088
– E tu aceitaste? – perguntou Aomame, chocada. – Talvez ele pensasse que éramos meio profissionais – respondeu Ayumi, com uma risadinha. – Aposto que nunca lhe passou pela cabeça que estava a falar com uma polícia e uma instrutora de artes marciais. Seja como for, qual é a diferença? Tenho a certeza de que ele ganha pipas de massa no imobiliário, mais do que pode ou sabe gastar. Pu-lo de parte, pensei que podia gastá-lo contigo, num bom restaurante, ou coisa parecida. Quer dizer, não quero gastar dinheiro ganho assim nas despesas quotidianas. Aomame não disse a Ayumi o que pensava acerca do assunto. Receber dinheiro por sexo ocasional, com um homem desconhecido – tinha dificuldade em entender que tal coisa tivesse acontecido. Sentia-se como se estivesse a olhar para a sua imagem distorcida num espelho deformado. Em termos de ética, o que seria melhor – receber dinheiro 1012/1088
por matar um homem ou receber dinheiro por ter sexo com homens? – Diz-me – perguntou Ayumi, pouco à vontade, a Aomame –, a ideia de receber dinheiro vindo de um homem incomoda-te? Aomame abanou a cabeça. – Mais do que incomodar-me, parece-me estranho. Mas, e no teu caso? Seria de pensar que uma agente da polícia tivesse relutância em agir como uma prostituta. – Não, nada – insistiu Ayumi, animada. – Não tenho qualquer problema com isso. Estás a ver, uma prostituta é uma pessoa que combina o preço e recebe o dinheiro antes de fazer sexo. A regra básica é: «paga-me antes de baixares as calças». Uma prostituta não conseguia ganhar a vida se os gajos lhe dissessem: «Ei! Não tenho dinheiro», depois de tudo acabado. Mas quando não existe um acordo prévio quanto ao preço e, no fim, o tipo dá-te qualquer coisa para «o táxi», isso não passa de um sinal de gratidão. É 1013/1088
diferente da prostituição profissional. Há uma nítida diferença entre as duas. A argumentação de Ayumi tinha a sua lógica.
Na última vez em que saíram, Aomame e Ayumi escolheram homens de trinta e muitos ou quarenta e poucos anos. Ambos tinham cabelo abundante, mas Aomame dispôs-se a ceder nesse ponto. Contaramlhes que trabalhavam numa firma de compra e venda de propriedades, mas, a julgar pelos fatos Hugo Boss e pelas gravatas Missoni, não eram simples assalariados de um grupo gigantesco como a Mitsubishi ou a Mitsui, cujos funcionários são condicionados por regras rígidas, tradições e intermináveis reuniões, antes pareciam fazer parte de uma empresa mais agressiva e flexível, com um nome sonante e estrangeiro, escrito em katakana46, uma firma onde se buscava o talento individual e se recompensava prodigamente o sucesso. Um dos homens exibia as
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chaves de um Alfa Romeo, novinho em folha. Em Tóquio quase não existe espaço para escritórios, disseram. A economia havia recuperado da crise do petróleo e mostrava sinais de querer acelerar de novo. O capital circulava com facilidade crescente e, dentro de pouco tempo, seria impossível responder às necessidades de espaço, por mais edifícios altíssimos que se construíssem. – Parece que o imobiliário é o que está a dar – Aomame comentou a Ayumi. – Verdade – respondeu Ayumi. – Se tens algum dinheiro posto de lado, devias investir em imobiliário. Há enormes quantias de dinheiro a desaguar em Tóquio, que tem um tamanho limitado. Os preços do terreno vão subir em flecha. Compra agora, e não há forma de perderes. É como apostar num cavalo quando sabemos que temos a aposta vencedora. Por infelicidade, os funcionários públicos de escalões inferiores como eu não 1015/1088
podem poupar nada. E tu, Aomame? Investes em alguma coisa? Aomame abanou a cabeça. – Só confio no dinheiro vivo. Ayumi desatou a rir às gargalhadas. – Tens alma de criminosa! – Queres dizer, assim como se enfiasse a massa no colchão e saísse pela janela quando os chuis viessem atrás de mim? – Isso mesmo! – exclamou Ayumi e estalou os dedos. – Como em Tiro de Escape, o filme com o Steve McQueen. Um maço de notas e uma arma. Gosto dessas coisas. – Mais do que estares do lado que faz cumprir a lei? – É uma coisa pessoal, sim – respondeu Ayumi, sorrindo. – Os fora da lei atraem-me. São muito mais excitantes do que andar por aí num carro de patrulha minúsculo a passar multas de estacionamento. É por isso que gosto de ti. – Tenho ar de fora da lei? 1016/1088
Ayumi disse que sim com a cabeça. – Como é que hei de dizer? Não sei, tens um certo ar. Embora não chegues aos calcanhares da Faye Dunaway de metralhadora na mão. – Não preciso de metralhadoras – disse Aomame.
– Pensando naquela comuna religiosa de que falámos no outro dia, a Vanguarda... – começou Ayumi. Estavam sentadas à frente de uma refeição ligeira e de uma garrafa de Chianti, num restaurantezinho italiano, aberto até tarde, em Iikura, um bairro tranquilo. Aomame comia uma salada com tiras de atum cru, ao passo que Ayumi pedira um prato de gnocchi com molho de manjericão. – A-hã – disse Aomame. – Fiquei curiosa com o que me disseste e fiz algumas pesquisas por minha conta. E quanto mais olhava, mais aquilo cheirava mal. A Vanguarda autodenomina-se uma
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religião, e até tem certificação oficial. Mas é desprovida de toda e qualquer conteúdo religioso. Do ponto de vista da doutrina, é uma espécie de desconstrucionismo, ou coisa do género, uma amálgama de imagens de religião. Juntaram-lhe algum espiritualismo new age, academismo sofisticado, um retorno à natureza, anticapitalismo, ocultismo, e coisas do género, mas é tudo: tem um monte de sabores, mas não existe uma base substancial. Não existe um corpo coeso em sítio nenhum. Ou seja, poder-se-ia dizer que a falta de corpo é a essência da religião. Para utilizar as palavras de McLuhan, o meio é a mensagem. Nesse sentido, dir-se-á que é bastante informal. – McLuhan? – Ei, até eu leio um livro de vez em quando – protestou Ayumi. – McLuhan estava à frente da sua época. Durante algum tempo, foi tão popular que as pessoas não o levavam muito a sério, mas tinha razão no que dizia. 1018/1088
– Por outras palavras, o embrulho é o conteúdo. É assim? – Precisamente. As caraterísticas do embrulho determinam a natureza do conteúdo, e não o contrário. Aomame pensou por um momento: – A base religiosa da Vanguarda é indefinida, mas isso não tem nada que ver com a razão que atrai as pessoas para ela, é isso? Ayumi assentiu. – Não vou dizer que o número de pessoas que se junta à Vanguarda é espantoso, mas está longe de ser pequeno. E quanto mais pessoas se juntam, obviamente mais dinheiro reúnem. Portanto, o que tem esta religião que atrai tantas pessoas? Se queres a minha opinião, falta-lhe o cheiro a religião. É muito nítida e intelectual e parece sistemática. Os jovens quadros deixam-se atrair por isso. Estimula-lhes a curiosidade intelectual. Dá-lhes um sentimento de realização que não encontram no mundo real, algo tangível 1019/1088
e pessoal. E estes crentes intelectuais, como um corpo de oficiais de elite, constituem o poderoso cérebro da organização. «E mais – prosseguiu Ayumi –, o “Líder” deles parece ter uma boa dose de carisma. As pessoas idolatram-no. A presença dele, poderias dizer, funciona como um núcleo doutrinal. Na sua origem, está próxima da religião primitiva. Até mesmo o cristianismo primitivo era mais ou menos assim. Mas este tipo nunca dá a cara. Ninguém sabe a aparência que tem, como se chama ou a sua idade. A religião tem uma direção colegial que, alegadamente, gere tudo, mas é outra pessoa que preside e representa a organização em ocasiões oficiais, apesar de eu achar que não passa de um fantoche. Quem parece estar bem no centro do sistema é esse tal «Líder» misterioso. – Parece que quer esconder a identidade. – Bem, das duas, uma: ou tem qualquer coisa a esconder, ou mantém-se na 1020/1088
obscuridade de propósito para aumentar a atmosfera de mistério à sua volta. – Ou é tremendamente feio – disse Aomame. – Também é uma possibilidade, imagino. Uma criatura grotesca de outro mundo – comentou Ayumi, com uma rosnadela de monstro. – Bem, seja lá como for, esta religião mantém demasiadas coisas escondidas. Como as transações imobiliárias agressivas de que te falei no outro dia ao telefone. O que está à vista não passa de uma encenação: os belos edifícios, a publicidade atraente, as teorias inteligentes, os adeptos provenientes de elites sociais, as práticas ascéticas, o ioga e a serenidade espiritual, a rejeição do materialismo, a agricultura biológica, o ar fresco e a bela dieta vegetariana, tudo parece calculado para a fotografia, como os folhetos dos condomínios de luxo que são distribuídos com os jornais de domingo. A embalagem é bonita, mas fiquei com a sensação de que, 1021/1088
nos bastidores, se congeminam planos suspeitos. Parte daquilo pode até ser ilegal. Agora que passei os olhos por um monte de informações, foi a impressão com que fiquei. – Mas a polícia não está a fazer nada, de momento. – Pode estar a acontecer qualquer coisa em segredo, mas não sei de nada. Em certa medida, a Polícia da Prefeitura de Yamanashi está de olho nas atividades deles. Fiquei com esse pressentimento quando falei com o tipo encarregado da investigação. Quer dizer, a Vanguarda deu origem à Amanhecer, o grupo que provocou o tiroteio, e supõe-se que as Kalashnikovs de fabrico chinês da Amanhecer vieram através da Coreia do Norte; o quadro não está completo. A Vanguarda ainda está sob suspeita, mas adquiriram aquela etiqueta de «grupo religioso com personalidade jurídica», pelo que têm de ser tratados com luvas de pelica. A polícia já revistou o complexo uma vez, o que deixou mais 1022/1088
ou menos claro que não existe relação direta entre a Vanguarda e o tiroteio. Não tenho forma de saber o que a Agência de Informação e Segurança Nacional anda a fazer. Aqueles tipos trabalham em sigilo absoluto e nunca foram à bola connosco. – E as crianças que deixaram de ir à escola pública? Soubeste mais alguma coisa a respeito delas? – Não, nada. Acho que, depois de deixarem de aparecer na escola, nunca mais foram vistas fora dos muros do complexo. Não temos maneira de investigar esses casos. Seria diferente se houvesse indícios de violência ou abuso sobre elas, mas não há nada. – Não conseguiram informações nenhumas das pessoas que já abandonaram a Vanguarda? Deve haver algumas que se desiludiram com a religião, ou que não conseguiram suportar a rigidez da disciplina e se vieram embora. 1023/1088
– É claro que há constantes idas e vindas, gente que se junta ao grupo, que se separa. Basicamente, as pessoas são livres de sair no momento em que o desejem. Se bem que não lhes devolvam nem um cêntimo da grande quantia que têm de entregar quando ingressam na comunidade como «doação para uso permanente das instalações», de acordo com o contrato que assinam. Desde que estejam dispostas a aceitar esse prejuízo, podem sair com a roupa que têm no corpo. Existe uma organização de pessoas que abandonaram a Vanguarda, que acusam de ser um culto perigoso, antissocial, e de se envolver em atividades fraudulentas. Intentaram um processo contra a organização, editam um boletim, mas é uma vozinha tão pequena que pouco ou nenhum impacto tem junto da opinião pública. A religião dispõe de uma falange de advogados excelentes e eles construíram um sistema de defesa à prova de bala. Não é um processo que os vai impressionar. 1024/1088
– Os ex-membros não fizeram declarações sobre o Líder ou as crianças que lá estão? – Não sei – respondeu Ayumi. – Nunca li o boletim que publicam. Tanto quanto pude apurar, os dissidentes provêm das camadas mais baixas do grupo, são peixe miúdo. A Vanguarda faz grande alarde da forma como rejeitam os valores mundanos, mas parte da organização é fortemente hierarquizada, com a liderança claramente separada do resto. Não é possível ascender a posições de liderança sem um grau académico brilhante ou qualificações profissionais especializadas. Só os crentes de elite do grupo da liderança veem ou recebem ordens diretas do Líder, ou têm contacto direto com figuras-chave da organização. Todos os outros limitam-se a fazer as doações exigidas e a passar dias estéreis, uns após o outro, a praticar as suas atividades ascéticas ao ar livre, a dedicar-se à agricultura ou a passar horas infindas nas salas de meditação. São um rebanho de 1025/1088
ovelhas, levados para a pastagem sob o olhar vigilante do pastor e do seu cão, e que, à noite, tornam ao redil, numa tranquila sucessão de dias. Esperam ansiosamente pela hora em que a sua posição no grupo seja suficientemente elevada para serem admitidos à presença do Grande Irmão, mas essa hora nunca chega. É por isso que os adeptos comuns não sabem quase nada do funcionamento da organização. Mesmo que abandonem a Vanguarda, não dispõem de informações relevantes que possam transmitir ao mundo exterior. Nunca viram o rosto do Líder. – E não haverá algum dos elementos de elite que tenha abandonado a organização? – Nem um, tanto quanto posso afirmar. – Isso quer dizer que a pessoa não pode abandonar o grupo, a partir do momento em que saiba os segredos? – É possível que ocorram alguns desenvolvimentos dramáticos, se a coisa chegar a esse 1026/1088
ponto – respondeu Ayumi, com um pequeno suspiro. A seguir, perguntou a Aomame: – Ora conta-me lá isso das violações a rapariguinhas de que me falaste: até que ponto é certo? – Bastante certo, mas ainda não há provas. – E está a ser feito de forma sistemática dentro da comunidade? – Também não é absolutamente claro. Todavia, temos uma vítima de facto. Já vi a rapariga. Fizeram-lhe coisas horríveis. – Por «violação» estás a querer dizer penetração? – Sim, quanto a isso, não há a mínima dúvida. Ayumi franziu os lábios, enquanto pensava. – Já sei! Deixa-me vasculhar um bocadinho mais, à minha maneira. – Vê lá, não faças loucuras. – Não te preocupes – disse Ayumi. – Posso não parecer, mas sou muito cuidadosa. 1027/1088
Terminaram a refeição e o empregado retirou a loiça da mesa. Não quiseram pedir sobremesa e, em vez disso, continuaram a beber o seu vinho. Ayumi disse: – Lembras-te de me teres dito que nenhum homem se tinha metido contigo quando eras pequena? Aomame deitou uma olhadela a Ayumi, registou a expressão da cara dela, e concordou com a cabeça. – A minha família era muito religiosa. Nunca houve uma palavra sobre sexo, e o mesmo se passava com todas as famílias que conhecíamos. O sexo era um assunto proibido. – Bem, okay, mas ser religioso não tem nada que ver com a força ou a fraqueza do impulso sexual de uma pessoa. Toda a gente sabe que o clero está cheio de tarados sexuais. Na realidade, nós prendemos muitas figuras ligadas à religião e à educação 1028/1088
por coisas como prostituição e assédio a mulheres nos comboios interurbanos. – Pode ser que sim, mas, nos nossos círculos, pelo menos, não havia vestígios desse tipo de coisas, ninguém que fizesse algo que não devia. – Tanto melhor – respondeu Ayumi. – Fico contente por ti. – Contigo foi diferente? Em vez de responder logo, Ayumi teve um leve encolher de ombros. Depois, disse: – Para dizer a verdade, abusaram muito de mim, quando era miúda. – Quem é o «eles»? – O meu irmão. E o meu tio. Aomame fez uma ligeira careta. – O teu irmão e o teu tio? – Precisamente. Agora são os dois polícias. Ainda não há muito tempo, o meu tio até recebeu uma condecoração oficial por serviços relevantes: trinta anos de serviço ininterrupto, contribuições importantes para a 1029/1088
segurança pública no distrito e melhorias no ambiente. Um jornal publicou uma notícia quando ele salvou uma estúpida de uma cadela e o cachorro quando andavam a vaguear numa passagem de nível. – E o que foi que te fizeram? – Tocaram-me lá em baixo, obrigaram-me a chupar-lhes a verga. As rugas na cara de Aomame tornaram-se mais fundas. – O teu irmão e o teu tio? – Em tempos diferentes, claro. Acho que eu tinha dez anos e o meu irmão talvez uns quinze. O meu tio foi antes disso: duas ou três vezes, quando esteve em nossa casa. – Não disseste a ninguém? A resposta de Ayumi veio acompanhada de um lento abanar de cabeça. – Não disse uma única palavra. Avisaramme para não o fazer, ameaçaram agredir-me se eu dissesse alguma coisa. E, mesmo que não tivessem dito nada, eu tinha medo de 1030/1088
que, se contasse, deitassem as culpas para cima de mim e me castigassem. Tinha demasiado medo para falar com quem quer que fosse. – Nem sequer com a tua mãe? – Especialmente com a minha mãe – respondeu Ayumi. – O meu irmão foi sempre o filho preferido, e ela não parava de me dizer o quanto a tinha desiludido: eu era desmazelada, gorda, nem um pouco bonita, tinha notas vulgares. Queria uma filha diferente, uma bonequinha amorosa, elegante, que pudesse levar às aulas de ballet. Era pedir o impossível. – Por isso, não quiseste desiludi-la ainda mais. – Pois. Tinha a certeza de que, se lhe contasse o que o meu irmão andava a fazer, ela ia odiar-me ainda mais. Diria que a culpa era minha, em vez de o culpar a ele. Aomame usou os dedos para alisar as rugas que se tinham formado na sua cara. 1031/1088
A minha mãe recusou-se a falar comigo depois de eu anunciar que ia abandonar a fé, quando tinha dez anos. Quando se revelava absolutamente necessário comunicar comigo, entregava-me papelinhos, mas não dizia uma palavra. Deixei de ser filha dela. Não passava «daquela que abandonou a fé». Saí de casa depois disso. – Mas não havia penetração? – Aomame perguntou a Ayumi. – Nada de penetração – respondeu Ayumi. – Por piores que fossem, não eram capazes de me fazer uma coisa tão dolorosa. Nem mesmo eles pediriam tanto. – Ainda te dás com o teu irmão e com esse teu tio? – Pouco, desde que arranjei emprego e saí de casa. Mas, bem vistas as coisas, são da família e estamos na mesma profissão. Às vezes, é impossível não os ver, e, quando isso acontece, desfaço-me em sorrisos. Não tomo atitude nenhuma que levante ondas. Aposto 1032/1088
que eles nem se lembram de que aconteceu uma coisa daquelas. – Não se lembram? – Eles conseguem esquecer, com toda a certeza – disse Ayumi. – Eu não. – Claro que não – disse Aomame. – É como um massacre histórico. – Massacre? – Os responsáveis são sempre capazes de racionalizar as suas ações, e chegar mesmo a esquecer o que fizeram. Podem afastar-se de tudo aquilo que não querem ver. Mas as vítimas sobreviventes não podem esquecer, nunca. Não podem afastar-se. As recordações passam de pais para filhos. Feitas as contas, é o mundo: uma interminável batalha de memórias contrastantes. – É verdade – respondeu Aomame, franzindo levemente o sobrolho. Uma interminável batalha de memórias contrastantes? 1033/1088
– Para te dizer a verdade – prosseguiu Ayumi –, eu pensava que tu tinhas passado pela mesma experiência que eu. – E porque é que pensaste isso? – Não sei, não sou capaz de explicar, imaginei. Talvez pensasse que ter casos loucos, de uma noite só, fosse o resultado de uma coisa do género. E também pressenti alguma zanga. Seja como for, tu não pareces alguém capaz de fazer o normal, sabes, o que faz toda a gente: arranjar um namorado fixo, sair com ele, comer e fazer sexo da maneira habitual, com uma só pessoa. É mais ou menos o que se passa comigo. – Estás a dizer que não és capaz de seguir o padrão normal porque alguém te violentou quando eras pequena? – Foi o que senti – respondeu Ayumi. Teve um leve encolher de ombros. – Para te dizer a verdade, tenho medo dos homens. Ou melhor, tenho medo de me envolver profundamente com um homem em particular, de 1034/1088
aceitar outra pessoa por completo. Só de pensar nisso, arrepio-me toda. Mas, às vezes, é duro estar sozinha. Quero um homem que me abrace, que me penetre. Quero tanto que, por vezes, não aguento. O facto de não conhecer o homem torna tudo mais fácil. Muito mais fácil. – Por teres medo dos homens? – Acho que, em grande parte, sim. – Não penso que tenha medo dos homens – disse Aomame. – Há alguma coisa de que tenhas medo? – Claro que há – retorquiu Aomame. – A coisa de que mais medo tenho sou eu. De não saber o que vou fazer. De não saber o que estou a fazer neste preciso momento. – E o que estás tu a fazer neste preciso momento? Durante um bocado, Aomame fixou os olhos no copo que tinha na mão. – Quem me dera saber! – Levantou os olhos. – Mas não sei. Nem sequer tenho a 1035/1088
certeza do mundo em que estou, ou em que ano. – Estamos em 1984. Em Tóquio, no Japão. – Quem me dera poder fazer essa declaração com tanta certeza. – Estás esquisita – disse Ayumi, com um sorriso. – São verdades evidentes. «Declaração» e «certeza» não são relevantes. – Não sei como explicar isto, mas não posso dizer que sejam verdades evidentes aos meus olhos. – Não podes? – Ayumi estava assombrada. – Não sei se percebo o que estás a dizer, mas uma coisa te asseguro: seja qual for o tempo e o lugar em que estamos, há uma pessoa que amas profundamente, e isso é uma coisa de que só posso ter inveja. Eu não tenho ninguém. Aomame pousou o copo de vinho na mesa e limpou a boca com o guardanapo. Depois, disse: 1036/1088
– Podes ter razão. Seja qual for o tempo e o lugar em que estamos, não tem nada que ver com isto. Quero vê-lo. Morro de tanto querer vê-lo! É a única coisa certa. É a única coisa que posso afirmar com confiança. – Queres que dê uma olhadela à documentação da polícia? Se me deres as informações básicas, podemos descobrir onde está e o que anda a fazer. Aomame abanou a cabeça. – Por favor, não o procures. Acho que já te disse isto, mas eu vou dar de caras com ele, um dia, algures, absolutamente por acaso. Vou ficar pacientemente à espera da chegada desse momento. – Como uma grande série romântica da televisão – comentou Ayumi, impressionada. – Adoro coisas assim. Fico com pele de galinha só de pensar nisso. – Mas para quem está nesta situação é duro. 1037/1088
– Eu sei que é – disse Ayumi, pressionando a ponta dos dedos contra as têmporas. – No entanto, mesmo estando tão apaixonada por ele, uma vez por outra, ainda te apetece dormir com estranhos. Aomame tiniu com as unhas no rebordo do copo. – Preciso de o fazer. Para manter o meu equilíbrio enquanto pessoa de carne e osso. – E não destrói o amor que tens dentro de ti. Aomame respondeu: – É como a Roda da Vida tibetana. Quando a roda gira, os valores e os sentimentos da orla exterior elevam-se e caem, reluzindo ou precipitando-se na escuridão. Mas o amor verdadeiro fica agarrado ao eixo e não se move. – Maravilhoso – disse Ayumi. – A Roda da Vida tibetana, hã? E bebeu de um trago o resto do vinho que tinha no copo. 1038/1088
Dois dias mais tarde, pouco depois das oito da noite, recebeu uma chamada de Tamaru. Como de costume, ele ignorou as saudações iniciais e foi direito ao assunto. – Estás livre amanhã à tarde? – De tarde não tenho nada. Posso ir quando precisarem. – Por volta das quatro e meia? Aomame disse que estaria perfeito. – Excelente – disse Tamaru. Ela conseguia ouvir o ranger da esferográfica no papel, enquanto escrevinhava a hora no calendário. Estava a escrever com muita força. – Como vai a Tsubasa? – perguntou Aomame. – Bem, acho eu. A senhora vai até lá todos os dias, tratar dela. Parece que a rapariga está a afeiçoar-se a ela. – Isso são boas notícias. – Sim, são boas notícias, mas aconteceu outra coisa que não é assim tão boa. 1039/1088
– Uma coisa não tão boa? – Aomame sabia que, quando Tamaru dizia que uma coisa não era «assim tão boa», tal significava que era terrível. – A cadela morreu – disse Tamaru. – A cadela? Estás a falar da Bun? – Sim, daquela pastora alemã esquisita que gostava de espinafres. Morreu ontem à noite. Aomame ficou chocada. A cadela tinha uns cinco ou seis anos, era muito nova para morrer. – Estava de perfeita saúde quando a vi pela última vez. – Não morreu de doença – disse Tamaru, numa voz sem entoação. – Encontrei-a hoje de manhã, aos bocados. – Aos bocados?! – Como se tivesse explodido. As entranhas estavam espalhadas por todo o lado. Foi bastante difícil. Tive de andar a apanhar os bocados, um a um, com papel de cozinha. A 1040/1088
força da explosão virou-lhe o corpo do avesso. Foi como se alguém tivesse posto uma bomba, pequena mas poderosa, dentro do estômago dela. – Pobre cadela! – Bom, quanto a ela, não há nada a fazer – disse Tamaru. – Está morta e não volta. Eu arranjo outro cão para a substituir. Contudo, o que me preocupa é o que aconteceu. Não foi uma coisa que uma pessoa vulgar pudesse fazer. Pôr uma bomba dentro de um cão como aquele. Quanto mais não seja, por uma simples razão: aquela cadela ladrava que nem uma doida sempre que um estranho se aproximava. Não foi tarefa fácil. – Com toda a certeza que não – disse Aomame, com uma voz seca. – As mulheres no abrigo estão mortas de medo. A que estava encarregada de dar comida à cadela foi quem a encontrou naquele estado, hoje de manhã. Vomitou o que tinha e o que não tinha no estômago antes de me 1041/1088
chamar. Perguntei-lhe se acontecera alguma coisa estranha durante a noite. Nada. Ninguém ouviu a explosão. Como toda a certeza que, se tivesse havido um estrondo daqueles, toda a gente acordaria. Mesmo nos dias melhores, estas mulheres vivem no medo. Deve ter sido uma explosão surda. Também não ouviram a cadela ladrar. Foi uma noite particularmente calma, mas, quando a manhã chegou, lá estava a cadela, virada do avesso. Órgãos, aos bocados, espalhados por todo o lado, e os corvos das redondezas no festim das suas vidas. Para mim, contudo, só houve chatices. – Está a passar-se algo de estranho. – Aí não há dúvida – concordou Tamaru. – Está a passar-se algo de estranho. E se o que sinto estiver certo, trata-se apenas do princípio de qualquer coisa. – Chamaste a polícia? – Nem pensar! – respondeu Tamaru, com uma fungadela. – A polícia é inútil… procura 1042/1088
sempre no sítio errado, segue a pista errada. Só complicam as coisas. – E o que diz a senhora? – Nada. Limitou-se a assentir com a cabeça quando lhe contei – respondeu Tamaru. – As medidas de segurança são da minha exclusiva responsabilidade, de uma ponta à outra. É o meu trabalho. Seguiu-se um curto silêncio, um silêncio pesado devido à responsabilidade. – Amanhã, às quatro e meia – disse Aomame. – Amanhã, às quatro e meia – repetiu Tamaru, e desligou sem fazer ruído.
46 Uma das formas de escrita do japonês, usada conjuntamente com os ideogramas. Utiliza-se sobretudo para a transcrição de palavras estrangeiras e para certos termos técnicos ou científicos. (N. das T.)
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TENGO
Que sentido faz ser um mundo que não é este?
Choveu durante toda a manhã de quintafeira. Não era uma chuvada intensa, mas era bastante pertinaz. Desde a tarde anterior que não havia uma aberta. Sempre que parecia prestes a amainar, caía uma nova cargad’água. Já lá ia metade de julho e não havia sinais de a estação das chuvas alguma vez ter um fim. O céu continuava escuro, como que coberto por uma tampa, e o mundo revestiase de uma humidade pesada. Pouco antes do meio-dia, Tengo enfiou uma gabardina e um chapéu e ia ao mercado
local quando reparou num envelope de papel pardo, almofadado, na sua caixa de correio. Não tinha carimbo, selo ou endereço, nem remetente. O nome dele estava escrito ao meio, na parte da frente do envelope, em letrinhas rígidas que podiam ter sido riscadas em barro seco com uma unha – a caligrafia de Fuka-Eri, não havia dúvida. Rasgou o envelope e viu uma simples cassete áudio TDK de sessenta minutos. Não vinha acompanhada de nenhuma carta ou nota. Não vinha numa caixa de plástico e a cassete não ostentava etiqueta nenhuma. Após um instante de incerteza, Tengo decidiu esquecer as compras e ir ouvir a cassete. De regresso ao apartamento, segurou a cassete no ar e deu-lhe alguns abanões. Apesar de todo o mistério que envolvera o seu aparecimento, era óbvio que se tratava de um vulgar objeto produzido em série. Nada indicava que explodisse depois de a passar. 1045/1088
Despiu a gabardina e pôs um gravador de cassetes na mesa da cozinha. Retirou a cassete do envelope e enfiou-a no aparelho, ao lado do qual colocou um bloco de notas e uma esferográfica, não se desse o caso de querer tomar algumas notas. Olhou à sua volta para se certificar de que não havia mais ninguém presente e carregou no botão play. No princípio não havia qualquer som. O que se prolongou por um certo tempo. Quando começava a ter suspeitas de que a cassete vinha virgem, ouviram-se pancadas surdas, como se alguém deslocasse uma cadeira e batesse com ela no chão. A seguir, um ligeiro pigarrear (pareceu-lhe). Então, sem aviso, Fuka-Eri começou a falar. – «Tengo» – disse, como se estivesse a fazer um teste de som. Tanto quanto era capaz de se recordar, aquela foi, de facto, a primeira vez que o tratou pelo nome. Ela voltou a pigarrear. Parecia tensa. 1046/1088
– «Devia escrever-te uma carta, mas sou má a escrever, por isso, vou gravar uma cassete. É-me mais fácil falar para aqui do que ao telefone… pode haver alguém à escuta. Espera, preciso de água.»
Tengo escutou o que achou serem os sons de Fuka-Eri a pegar num copo, beber um bocado e pousar o copo de novo em cima da mesa. Gravada em fita, a sua maneira única de falar, sem entoação, pontos de interrogação ou outra pontuação soava ainda mais estranha do que em conversa. Era quase irreal. No entanto, para a gravação, e, ao contrário do que acontecia durante uma conversa, ela revelava-se capaz de dizer várias frases de enfiada.
– «Disseram-me que não sabes onde estou. Talvez estejas preocupado. Mas não tens de estar. Não estou num sítio perigoso. Queria que o soubesses. Não devia estar a fazer isto, mas achei que devia.»
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(Dez segundos de silêncio.) – «Disseram-me para não contar a ninguém. Que estou aqui. O Professor participou o meu desaparecimento à polícia, para me procurarem. Mas não estão a fazer nada. Há sempre miúdos a fugir de casa. Por isso, vou ficar aqui durante algum tempo.» (Quinze segundos de silêncio.) – «Este sítio fica longe. Nunca ninguém me vai descobrir se eu não for passear lá para fora. Muito, muito longe. A Azami levate esta cassete. É melhor não a mandar pelo correio. Tenho de ter cuidado. Espera. Vou ver se está a gravar.» (Um estalido. Um intervalo vazio. Outro estalido.) – «Boa, está a gravar.»
Gritos de crianças à distância. Vagos sons de música. Era provável que viessem de uma janela aberta. Podia haver um jardim de infância por perto.
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– «Obrigada por me deixares ficar daquela vez. Precisava que o fizesses. Também precisava de te conhecer. Obrigada por me teres lido o livro. Senti-me próxima dos guiliaks. Porque é que os guiliaks caminham pelos pântanos da floresta e não nas estradas.» (Secretamente, Tengo acrescentou um ponto de interrogação ao final.) – «Mesmo sendo as estradas mais confortáveis, é mais fácil para os guiliaks manterem-se longe delas e caminharem pela floresta. Para andar nas estradas tinham de modificar completamente a forma como caminham. E se modificassem a forma como caminham, teriam de modificar outras coisas. Eu não era capaz de viver como os guiliaks. Odiava que os homens estivessem sempre a bater-me. Ia odiar viver com montes de larvas à minha volta: são tão sujas! Mas também não gosto de caminhar pelas estradas. Preciso de mais água.» * * * 1049/1088
Fuka-Eri bebeu mais água. Após um breve silêncio, o copo regressou à mesa, acompanhado de uma pancada. Depois houve um intervalo enquanto ela limpava os lábios com a ponta dos dedos. A rapariga não saberia que os gravadores têm botões para parar a gravação?
– «Pensei que podia arranjar-te problemas se me fosse embora. Mas eu não quero ser romancista e não tenho planos para escrever mais nada. Pedi à Azami que me procurasse coisas sobre os guiliaks. Ela foi à biblioteca. Os guiliaks vivem em Sacalina e são como os ainus e os índios americanos: não têm escrita. Não deixam registos. Eu sou igual. Uma vez escrita, a história deixa de ser minha. Fizeste um bom trabalho quando escreveste a minha história. Acho que mais ninguém conseguia fazer o mesmo. Mas já não é a minha história. Não te preocupes, no entanto. A culpa não é tua. Acontece que
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prefiro caminhar por sítios afastados da estrada, apenas isso.»
Neste ponto, Fuka-Eri inseriu mais uma pausa. Tengo imaginou-a a avançar com dificuldade, em silêncio, sozinha, afastada, longe da estrada.
– «O Professor tem uma grande força e uma profunda sabedoria. Mas o Povo Pequeno tem uma sabedoria tão profunda e uma força tão grande como ele. Na floresta é melhor ter cuidado. As coisas importantes estão na floresta e o Povo Pequeno também está na floresta. Para te assegurares de que o Povo Pequeno não te faz mal, precisas de encontrar qualquer coisa que o Povo Pequeno não possua. Se fizeres isso, poderás caminhar pela floresta em segurança.»
Tendo conseguido dizer isto tudo quase só de um fôlego, Fuka-Eri fez uma pausa para inspirar profundamente. Fê-lo sem afastar a
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cara do microfone, gravando assim o que pareceu ser uma fortíssima rajada de vento a passar entre dois edifícios. Quando aquilo acalmou, ouviu-se o som grave, de buzina de nevoeiro ou de um grande camião a apitar à distância. Dois toques curtos. Ao que parecia, Fuka-Eri estava num local não muito longe de uma autoestrada importante.
(Um pigarrear.) – «Estou a ficar rouca. Obrigada por te preocupares comigo. Obrigada por gostares do feitio do meu peito e deixares-me dormir no teu apartamento e emprestares-me o teu pijama. Provavelmente, não nos vamos ver durante algum tempo. O Povo Pequeno pode ficar furioso por eu ter escrito sobre eles. Mas não te preocupes. Estou habituada à floresta. Adeus.»
Ouviu-se um estalido e a gravação terminou.
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Tengo parou a fita e rebobinou-a até ao início. Enquanto escutava a chuva a pingar das caleiras, inspirou profundamente várias vezes e fez rolar a esferográfica entre os dedos. Depois, pousou a caneta. Não tirara uma única nota. Limitara-se a escutar, fascinado, o peculiar estilo narrativo habitual de Fuka-Eri. Sem precisar de recorrer a eventuais apontamentos, retivera os três pontos importantes da mensagem dela:
1 – Não fora raptada, estava apenas temporariamente escondida. Não havia necessidade de ficar preocupado com ela. 2 – Não tinha intenção de publicar mais livros. A história dela era para ser transmitida por via oral, não impressa. 3 – O Povo Pequeno não possuía menos sabedoria e força do que o Professor Ebisuno. Tengo tinha de ter cuidado. * * *
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Eram os pontos que ela esperava ser capaz de transmitir. Também falava dos guiliaks, o povo que tinha de se manter fora das estradas quando caminhava. Tengo foi até à cozinha e fez café. Enquanto bebia, foi observando a cassete, sem nenhum propósito especial. Depois escutoua de novo, do princípio. Desta vez, só para ficar com a certeza, foi carregando no botão de pausa e tomou umas breves notas. A seguir, o seu olhar percorreu o que escrevera. Não descobriu nada de novo. Teria Fuka-Eri começado por preparar umas notas simples, que depois seguira enquanto falara para o gravador? Custava-lhe acreditar que assim fosse. Não era o seu género. Sem dúvida que fora dizendo os seus pensamentos para o microfone, à medida que lhe ocorreram, em tempo real (sem sequer carregar no botão de pausa). Em que sítio poderia estar? Os ruídos de fundo na gravação não davam muitas pistas 1054/1088
a Tengo. O som distante de uma porta a bater. Gritos de crianças, que pareciam entrar por uma janela aberta. Um jardim de infância? A buzina de um camião. Era óbvio que não estava no meio de uma floresta, mas algures numa cidade. A gravação fora provavelmente feita ao final da manhã ou no início da tarde. O som da porta poderia sugerir que não estava sozinha. Uma coisa era clara: Fuka-Eri esconderase por sua própria iniciativa. Ninguém a forçara a gravar a fita: isso era mais do que evidente na voz dela e na maneira como falava. Havia um nervosismo percetível no início, mas, fora isso, dissera o que pensara para o microfone, sem entraves.
O Professor tem uma grande força e uma profunda sabedoria. Mas o Povo Pequeno tem uma sabedoria tão profunda e uma força tão grande como ele. Na floresta é melhor ter cuidado. As coisas importantes estão na
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floresta e o Povo Pequeno também está na floresta. Para te assegurares de que o Povo Pequeno não te faz mal, precisas de encontrar qualquer coisa que o Povo Pequeno não possua. Se fizeres isso, poderás caminhar pela floresta em segurança.
Tengo voltou a passar esta parte, mais uma vez. Fuka-Eri narrava esta secção um pouco mais depressa do que as restantes. Os intervalos entre as frases eram um pouco mais curtos. Potencialmente, o Povo Pequeno representava uma ameaça para Tengo e para o Professor Ebisuno, mas, pelo tom de voz de Fuka-Eri, ele não conseguiria dizer se ela os considerava maléficos; pareciam mais ser seres neutros que poderiam escolher um ou outro caminho. Tengo tinha dúvidas quanto a outra passagem:
O Povo Pequeno pode ficar furioso por ter sido posto por escrito.
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Se o Povo Pequeno ficara, de facto, furioso, era razoável pensar que Tengo seria um dos alvos da sua fúria. Bem vistas as coisas, ele era um dos responsáveis pela divulgação, por escrito, da sua existência. Mesmo que pedisse perdão explicando que o fizera sem ser por mal, não se afigurava provável que lhe prestassem atenção. De que forma poderia o Povo Pequeno infligir o mal? Não era de esperar que Tengo soubesse a resposta. Tornou a rebobinar a fita, enfiou-a no envelope e meteu-o dentro de uma gaveta. Voltou a vestir a gabardina, a pôr o chapéu, e de novo se meteu a caminho, debaixo de uma chuva torrencial, para ir ao mercado.
Komatsu telefonou-lhe nessa noite, depois das nove. Mais uma vez, Tengo soube que era Komatsu ainda antes de levantar o auscultador. Estava na cama, a ler. Deixou o telefone tocar três vezes, saiu da cama e
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sentou-se à mesa da cozinha para atender a chamada. – Olá, Tengo – saudou-o Komatsu. – A tomar uma bebida? – Não, estou sóbrio. – Depois desta chamada é possível que queiras beber qualquer coisa – disse Komatsu. – Então, deve ser uma coisa agradável. – Não sei. Não me parece que seja lá muito agradável. Contudo, pode ter uma certa dose de humor, por paradoxal que pareça. – Como um conto de Tchékhov. – Precisamente – respondeu Komatsu. – «Como um conto de Tchékhov.» Bem dito! As tuas observações são sempre curtas e certeiras, Tengo. Tengo permaneceu calado. Komatsu prosseguiu. – Surgiu um pequeno problema. A polícia respondeu à participação do Professor Ebisuno e deu início a uma busca formal pela 1058/1088
Fuka-Eri. Não penso, todavia, que cheguem ao ponto de fazer uma investigação a sério, já que nem sequer existe um pedido de resgate, ou algo do género. É provável que se limitem a deitar uma vista de olhos só para não serem acusados de imobilismo se acontecer, de facto, qualquer coisa. Senão, ficavam com o ar de quem se deixou estar parado e cruzou os braços. A imprensa não vai largar o caso tão facilmente. Já tive várias perguntas dos jornais. É claro que fingi que não sabia de nada. A verdade é que, no ponto em que estão as coisas, não há muito que possa dizer. Por esta altura, já devem ter descoberto a relação entre a Fuka-Eri e o Professor Ebisuno, bem como o passado de revolucionários dos pais. Vão começar a aparecer muitos factos destes. O problema são as revistas semanais. Os freelancers ou jornalistas, ou lá o que lhes chamam, vão começar a rondar como os tubarões quando sentem sangue. São todos bons naquilo que fazem e, uma vez que 1059/1088
ferrem o dente, não largam a presa. No final de contas, a sobrevivência deles depende disso. Não podem dar-se ao luxo de pensar em pormenores como o bom gosto ou a privacidade das pessoas. Podem ser «escritores» como tu, Tengo, mas pertencem a uma raça diferente, não vivem na tua torre de marfim literária. – Então, talvez seja melhor eu também tomar cuidado. – Absolutamente. Prepara-te para te protegeres. Não há forma de sabermos o que vão farejar. Tengo imaginou um bote cercado por tubarões, mas só viu um único quadradinho de uma banda desenhada, sem a menor graça. «Precisas de encontrar qualquer coisa que o Povo Pequeno não possua», dissera FukaEri. Que tipo de «coisa» poderia ser? Tengo perguntou: 1060/1088
– Mas não está a acontecer tudo como o Professor Ebisuno planeou desde o princípio? – Bem, pode ser que sim – respondeu Komatsu. – Talvez venhamos a descobrir que foi muito hábil na maneira como nos usou. Mas, até certo ponto, soubemos sempre o que ele queria. Nunca escondeu o seu plano. Nesse sentido, foi uma troca justa. Nós podíamos ter dito: «Desculpe, Professor, muito perigoso, não nos queremos meter nisso.» É o que qualquer editor normal teria feito. Mas, como sabes, Tengo, eu não sou um editor normal. Além do mais, nessa altura, as coisas já estavam a rolar e, pela minha parte, também houve alguma ganância envolvida. Talvez tenha baixado um pouco a guarda. Fez-se silêncio ao telefone – um silêncio curto, mas pesado. Tengo quebrou-o: 1061/1088
– Por outras palavras, o Professor Ebisuno apoderou-se do seu plano. – Pode dizer-se isso, sim. No final, os objetivos dele esmagaram os meus. Tengo continuou: – E acha que o Professor Ebisuno vai conseguir o que pretende? – Bem, é claro que ele pensa que sim. Sabe como interpretar a situação e tem uma grande autoconfiança. Pode ser que corra como quer. Mas se esta nova agitação exceder até mesmo as expectativas do Professor Ebisuno, ele pode não conseguir controlar o desfecho. Há limites para o que uma pessoa consegue fazer, mesmo sendo o indivíduo mais brilhante. Por isso, é melhor apertares o cinto de segurança! – Nem mesmo o cinto de segurança mais bem apertado ajuda quando o avião se despenha. – Não, mas, pelo menos, faz-te sentir um pouco melhor. 1062/1088
Tengo não conseguiu deixar de sorrir, mesmo sendo um sorriso débil. – Foi por isto que me telefonou? Para me dizer uma coisa não muito agradável que, contudo, pode implicar uma certa dose de humor paradoxal? – Para falar a verdade, lamento ter-te envolvido nisto – respondeu Komatsu, numa voz sem expressão. – Não se preocupe comigo. Não tenho nada a perder: nem família, nem estatuto, nem um futuro promissor. Mas estou preocupado com a Fuka-Eri. Não passa de uma rapariga de dezassete anos. – Também estou preocupado com ela, claro. É impossível não estar. Porém, podemos dar voltas à cabeça e não mudamos nada na posição dela. Para já, pensemos em agarrar-nos a qualquer coisa, antes que a tempestade nos arraste. É melhor andarmos com atenção aos jornais. 1063/1088
– Tenho tido o cuidado de ler os jornais todos os dias. – Perfeito – comentou Komatsu. – O que me lembra… não fazes a mínima ideia do paradeiro da Fuka-Eri? Não te ocorre nada? – Nada – respondeu Tengo. Não era um bom mentiroso. E Komatsu tinha uma sensibilidade aguda para este tipo de situações. Mas não pareceu notar o ligeiro tremor na voz de Tengo. Devia ter a cabeça cheia de outras preocupações. – Ligo-te se acontecer qualquer coisa de novo – disse Komatsu, e desligou. A primeira coisa que Tengo fez depois de pousar o telefone foi despejar dois dedos de bourbon num copo. Komatsu tinha razão: estava a precisar de uma bebida.
Na sexta-feira seguinte, a amante de Tengo veio para a sua visita do costume. A chuva parara, mas não havia um centímetro do céu que não estivesse tapado por uma nuvem negra. Comeram uma refeição ligeira
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e foram para a cama. Mesmo enquanto faziam amor, Tengo não parou de pensar em mil e uma coisas diferentes, de maneira fragmentada, o que não prejudicou em nada o seu prazer. Como era seu hábito, ela extraiu habilmente e tratou com desenvoltura o desejo que Tengo acumulara durante uma semana. Ao mesmo tempo, também obteve a sua satisfação, como um contabilista talentoso que retira um profundo prazer da complexa manipulação de números num livro de contas. Mesmo assim, pareceu dar conta de que Tengo tinha outra coisa na cabeça. – Hum… o teu uísque parece estar a evaporar – disse. A mão esquerda dela repousava no peito forte de Tengo, gozando as reverberações do pós-sexo. No dedo médio ostentava uma aliança com um diamante pequeno mas refulgente. Referia-se à garrafa de Wild Turquey que, há meses, estava na prateleira. Como grande parte das mulheres mais velhas que têm sexo com homens mais novos, 1065/1088
era lesta a reparar nas mais pequenas mudanças. – Tenho acordado bastantes vezes de noite – respondeu Tengo. – Não estás apaixonado, pois não? Tengo abanou a cabeça. – Não, não estou apaixonado. – Então, é a tua escrita que não te está a sair bem? – Não, a escrita está a avançar, se bem que não tenha a certeza para onde. – Apesar de tudo, há qualquer coisa que te preocupa. – Não sei. Não ando a dormir bem. Raras vezes me acontece. Sempre dormi sem problemas. – Pobre Tengo! – disse, acariciando-lhe os testículos com a palma da mão sem anel. – Andas a ter pesadelos? – Quase nunca sonho – respondeu Tengo, e era absolutamente verdade. 1066/1088
– Eu sonho imenso. Há sonhos que se repetem uma e outra vez, tantas vezes que chego mesmo a pensar, em sonhos: «Ei, já tive este sonho antes!» Estranho, não é? – Que tipo de sonhos tens? Conta-me um. – Bem, há aquele sonho da cabana no meio de uma floresta. – Uma cabana no meio da floresta – repetiu Tengo. Vieram-lhe à cabeça pessoas em florestas: os guiliaks, o Povo Pequeno e Fuka-Eri. – Que tipo de cabana? – Queres mesmo saber? Não te aborreces com os sonhos das outras pessoas? – Não, não, de todo. Conta-me, se não te importas – disse Tengo, com toda a honestidade. – Estou a caminhar sozinha pela floresta, não naquela floresta cerrada e assustadora onde Hansel e Gretel se perderam, mas numa floresta mais leve, mais luminosa. Está uma tarde agradável, quente, e eu passeio sem a menor preocupação. Então, de 1067/1088
repente, vejo a casinha. Tem uma chaminé, um pequeno alpendre e cortinas de algodão aos quadrados nas janelas. O aspeto é hospitaleiro. Bato à porta e digo: «Olá!» Não obtenho resposta. Tento bater com um pouco mais de força, e a porta abre-se por si mesma. Não estava completamente fechada, estás a ver? Entro aos gritos: «Olá! Está aqui alguém? Vou entrar!» Olhou para Tengo, acariciando-lhe os testículos com suavidade. – Estás a acompanhar, até aqui? – Sim, claro. – É uma cabana de uma só divisão. Uma construção muito simples. Tem uma pequena cozinha, camas e uma zona de refeições. Há um fogão a lenha no centro e, em cima da mesa, está servido um jantar para quatro. O vapor desprende-se dos pratos. Mas não se vê ninguém. É como se estivessem a preparar-se para comer quando aconteceu qualquer coisa estranha… como se 1068/1088
tivesse aparecido um monstro, ou coisa do género, e toda a gente fugisse a correr. Mas as cadeiras não se encontram fora do sítio. Está tudo muito arrumado e é quase estranhamente vulgar. Só que não há lá ninguém. – Que tipo de comida há sobre a mesa? Ela teve de pensar naquilo por um instante, com a cabeça inclinada para um lado. – Não me lembro. Boa pergunta: que tipo de comida é? Acho que a questão não é tanto o que estão a comer, como o facto de ter sido acabada de cozinhar e estar ainda quente. Seja como for, sento-me numa das cadeiras e espero que a família que ali vive regresse. É o que devo fazer: esperar que voltem para casa. Não sei porque é que tenho de o fazer. Quer dizer, é um sonho, por isso nem tudo está muito bem explicado. Talvez eu queira que me ensinem o caminho de regresso, ou talvez eu tenha de descobrir qualquer coisa: esse tipo de situação. E ali fico eu sentada, à espera de eles voltarem para casa, mas, por 1069/1088
mais que espere, ninguém chega. A comida ainda liberta vapor. Olho para a comida quente e fico com uma fome tremenda. Mas lá por estar esfomeada, não tenho o direito de tocar na comida que se encontra em cima da mesa sem que eles estejam presentes. Seria natural pensar assim, não achas? – Claro, eu talvez pensasse o mesmo – respondeu Tengo. – É claro que, sendo um sonho, também não tenho a certeza do que pensaria. – Mas, entretanto, faz-se noite. O interior da cabana fica escuro. A floresta que a envolve torna-se cada vez mais densa. Quero acender a luz da cabana, mas não sei como. Começo a ficar incomodada. E, a certa altura, percebo que algo de bizarro se passa: a quantidade de vapor que se desprende da comida não diminuiu. Decorreram horas, mas a comida ainda está agradável e quente. Começo a pensar que há algo de estranho. 1070/1088
Alguma coisa está errada. E o meu sonho acaba aqui. – Então, não sabes o que acontece depois? – Tenho a certeza de que vai acontecer alguma coisa – respondeu ela. – O Sol põe-se, não sei como voltar para casa e estou sozinha dentro daquela cabana esquisita. Algo está prestes a acontecer… e pressinto que não é muito bom. Mas o sonho acaba sempre aqui, e continuo a tê-lo, uma vez atrás de outra. Parou de lhe acariciar os testículos e encostou a face ao peito dele. – O meu sonho pode estar a sugerir qualquer coisa – disse. – Como, por exemplo? Não respondeu à pergunta de Tengo. Em vez disso, fez ela uma pergunta: – E queres saber qual é a parte mais assustadora do sonho? – Sim, conta. 1071/1088
Ela soltou um longo suspiro que acariciou o mamilo de Tengo como um vento quente que corre por um canal estreito no mar. – É que o monstro posso ser eu. A hipótese ocorreu-me, uma vez. Não seria porque me viram aproximar que estas pessoas abandonaram o seu jantar e fugiram de casa a correr? Enquanto eu ali estivesse, elas não podiam regressar. Apesar disso, eu tinha de ficar sentada dentro da cabana, à espera de que voltassem para casa. É a ideia que me causa um terror incontrolável. E ninguém pode fazer nada. – Ou também pode ser que estejas em casa – disse Tengo –, à espera de ti própria, depois de teres fugido. No momento em que as palavras lhe saíram da boca, Tengo percebeu que não as devia ter dito. Mas era demasiado tarde para isso, agora. Ela ficou em silêncio durante um bom bocado e, depois, apertou-lhe os 1072/1088
testículos com força – com tanta força que quase lhe cortou a respiração. – Como podes dizer uma coisa tão horrível? – Não tinha nenhum segundo sentido. Passou-me pela cabeça – conseguiu Tengo dizer, sem ar. Ela abrandou a pressão sobre os testículos dele e soltou um suspiro. A seguir, pediu: – Agora, conta-me tu os teus sonhos, Tengo. Já a respirar normalmente, ele disse: – Como já te disse, quase nunca sonho. Em particular, nos últimos tempos. – Tens de sonhar alguma coisa. Toda a gente sonha, em certa medida. O Doutor Freud vai sentir-se mal se tu dizes que não sonhas nada. – Pode ser que sonhe, mas nunca me recordo dos meus sonhos depois de acordar. Pode haver uma leve sensação de que terei sonhado, mas nunca me lembro do que foi. 1073/1088
Ela deslizou a palma da mão por baixo do pénis flácido de Tengo, verificando o seu peso com cuidado, como se o peso tivesse uma história importante para lhe contar. – Okay, esquece os sonhos. Em vez disso, fala-me do romance que estás a escrever. – Prefiro não falar de um texto de ficção enquanto estou a escrevê-lo. – Ei, não te estou a pedir que me contes tudo, até ao mais ínfimo pormenor, do princípio ao fim. Nem mesmo eu te pediria uma coisa dessas. Sei que és um homem muito mais sensível do que a tua constituição deixa transparecer. Conta-me só um bocadinho: onde se passa, um episódio secundário, qualquer coisa. Quero que me contes algo que mais ninguém no mundo saiba. Para compensar a coisa horrível que me disseste. Percebes? – Creio que sim – foi a resposta indecisa de Tengo. – Okay, começa! 1074/1088
Com o pénis ainda na mão dela, Tengo começou a falar. – É uma história sobre mim… ou sobre uma personagem baseada em mim. – Tenho a certeza que sim – disse ela. – E eu entro? – Não, não entras. Estou num mundo que não é este. – E eu não estou num mundo que não é este. – Não és só tu. As pessoas que fazem parte deste mundo não estão no mundo que não é este. – E como é que esse mundo que não é este é diferente deste mundo? Consegues dizer em que mundo estás agora? – Claro que consigo. Sou eu que estou a escrevê-lo. – Refiro-me ao resto das pessoas, não a ti. Diz-me, se, por acaso, eu vagueasse por esse mundo, era capaz de os distinguir? 1075/1088
– Acho que sim – respondeu Tengo. – Por exemplo, no outro mundo, há duas luas. Por isso, poderias perceber a diferença. A ideia de um mundo com duas luas vieralhe de A Crisálida de Ar. Tengo tencionava escrever uma história mais longa e intricada sobre o mesmo mundo – e acerca de si próprio. O facto de o cenário ser o mesmo poderia vir a revelar-se um problema mais tarde, mas, por agora, sentia um desejo avassalador de escrever sobre um mundo com duas luas. Lá para a frente, lidaria com os problemas que surgissem. – Por outras palavras – disse ela –, se quando cair a noite houver duas luas lá em cima, e tu olhares para o céu, poderás dizer «Aha! Este é o mundo que não é este!» – Certo, é o sinal. – Alguma vez as duas luas se sobrepõem, ou coisa do género? – perguntou ela. Tengo abanou a cabeça. 1076/1088
– Não sei porquê, mas a distância entre as duas luas mantém-se estável. A amante pensou naquele mundo durante um bocado. Com o dedo foi traçando uma espécie de diagrama no peito de Tengo. – Olha, Tengo, sabes a diferença entre as palavras inglesas lunatic e insane? – perguntou ela. – São ambos adjetivos que descrevem uma perturbação mental. Não tenho a certeza da diferença de cambiantes. – Insane refere-se, provavelmente, a um problema mental inato, algo que exige tratamento profissional, enquanto lunatic significa que a tua sanidade está temporariamente cativa da luna, que é lua em latim. No século dezanove, em Inglaterra, se a pessoa fosse reconhecida como lunática e cometesse um crime, a gravidade do crime era reduzida a quase nada. Tinha a atenuante de não ser da sua responsabilidade, uma vez que tinha sido provocado pelo luar. Acredites ou não, 1077/1088
havia, de facto, leis assim. O mesmo é dizer que a lei reconhecia que a Lua enlouquecia realmente as pessoas. – Como é que sabes uma coisa dessas? – perguntou Tengo, atónito. – Não devia ser uma surpresa assim tão grande. Tenho mais dez anos de vida, pelo que é normal que saiba bastante mais do que tu. Tengo viu-se forçado a admitir que ela tinha razão. – Para dizer a verdade, aprendi isto num curso de Literatura Inglesa, na Nihon Joshi Daigaku47. Uma palestra sobre Dickens. Tínhamos um professor excêntrico. Nunca falava no enredo propriamente dito e fazia toda a espécie de divagações. Mas o que queria dizer-te era apenas que uma lua é mais do que suficiente para levar as pessoas à loucura, pelo que, se tens duas luas no céu, é bem provável que tornem toda a gente ainda mais doida. As marés mudariam e 1078/1088
mais mulheres teriam períodos irregulares. Aposto que aconteceriam imensas coisas bizarras. – Pode ser que tenhas razão – concordou Tengo, ao fim de um bocado. – É isso que acontece nesse mundo sobre o qual estás a escrever? As pessoas estão sempre a passar-se? – Não, nem por isso. Quer dizer, não fazem coisas mais loucas do que neste mundo. Ela apertou levemente o pénis de Tengo. – Então, no mundo que não existe, as pessoas fazem mais ou menos as mesmas coisas que nós fazemos neste mundo. Nesse caso, onde está a vantagem de ser um mundo que não é este? – A vantagem de ser um mundo que não é este está em que posso reescrever o passado do mundo que existe – explicou Tengo. – Podes reescrever o passado como e quanto quiseres? 1079/1088
– Precisamente. – Queres reescrever o passado? – Tu não queres reescrever o passado? Ela abanou a cabeça. – Não, não tenho o mínimo desejo de reescrever o passado, a história, o que quer que seja. Gostaria, sim, de reescrever o presente, aqui e agora. – Mas, se reescrevesses o passado, é óbvio que o presente também mudaria. Aquilo a que chamamos presente resulta de uma acumulação do passado.
Ela soltou outro suspiro profundo. Depois, como se estivesse a testar um elevador, subiu e desceu a mão onde estava pousado o pénis de Tengo. – Só te posso dizer uma coisa. Tu eras um prodígio da matemática, tinhas um cinturão negro de judo e até estás a escrever um longo romance. Apesar de tudo isto, não percebes a ponta de um corno deste mundo. Nada.
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Tengo não sentiu nenhum choque especial por esta avaliação arrasadora. Nos últimos tempos, não compreender qualquer coisa tornara-se mais ou menos o seu estado normal. Não era um dado novo. – Mas não interessa que não percebas nada – declarou a sua amante mais velha, virando-se para comprimir o peito contra o dele. – És um professor de Matemática sonhador, que continua a escrever o seu longo romance, dia após dia, e quero que te mantenhas assim. Adoro o teu maravilhoso pénis: a forma, o tamanho, a sensação. Adoro-o quando está duro e quando está mole, quando estás doente e quando estás bem. E, pelo menos para já, pertence-me só a mim. É, não é? – Garantidamente – garantiu-lhe Tengo. – Já alguma vez te disse que sou muito ciumenta? – Sim, já. Tens uns ciúmes irracionais. 1081/1088
– Absolutamente irracionais. Sempre fui assim. – Nesse momento, começou a mexer ligeiramente os dedos em todas as direções. – Vou pôr-te teso outra vez. Alguma objeção? Tengo declarou que não tinha qualquer objeção. – Em que é que estás a pensar agora? – Em ti, quando andavas a ter aulas de Literatura Inglesa na Nihon Joshi Daigaku. – O livro de leitura obrigatória era o Martin Chuzzlewit. Eu tinha dezoito anos e vestia um vestido de pregas, amoroso. Usava o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Era uma estudante muito séria, ainda virgem. Parece que estou a falar de uma outra vida, mas a primeira coisa que aprendi quando cheguei à universidade foi a diferença entre lunatic e insane. O que achas? Não ficas excitado só de pensar nisto? – Claro que sim. – Fechou os olhos e imaginou o vestido de pregas e o rabo de cavalo 1082/1088
dela. Uma estudante muito séria, virgem. Mas ciumenta para além do razoável. A Lua iluminando a Londres de Dickens. Os loucos e os lunáticos a deambularem por Londres. Tinham chapéus parecidos, barbas parecidas. Como era possível distingui-los uns dos outros? De olhos fechados, Tengo não tinha a certeza de ser capaz de dizer a que mundo pertencia no momento presente.
47 Prestigiada universidade feminina privada. (N. das T.)

 

 

                                                                                                    Haruki Murakami

 

 

 

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