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Series & Trilogias Literarias
12
TENGO
Não se podem contar pelos dedos das mãos
Tengo conseguiu regressar ao seu apartamento antes de começar a chover. Foi a pé da estação até casa, sempre em bom andamento. No céu não se via uma nuvem. Nada indicava que, naquela tarde, fosse começar a chover ou estivesse iminente uma trovoada. Nenhuma das pessoas com quem se cruzou levava chapéu de chuva. Era um daqueles fins de tarde agradáveis, em que apetece ir até ao estádio assistir a um jogo de basebol e beber uma cerveja. Ainda assim, estava decidido a dar ouvidos a Fuka-Eri e a aceitar como verdade tudo o que saía da boca dela. É melhor acreditar do que não acreditar, pensou. Baseando-se mais na experiência do que na lógica.
Ao espreitar para a caixa do correio, reparou que havia um envelope comercial sem o nome do remetente. Abriu-o ali mesmo. Era um aviso a indicar que tinha sido feita uma transferência bancária para a sua conta corrente, no valor de 1 627 534 ienes. A transferência fora efetuada por uns tais Escritórios ERI, provavelmente a empresa-fantasma criada por Komatsu. Ou então, se calhar, o dinheiro provinha do Professor Ebisuno. Numa ocasião, Komatsu informara Tengo de que lhe pagaria uma parte dos direitos de autor relativos à obra A Crisálida de Ar, em jeito de agradecimento pelo seu trabalho, e podia ser que aquele montante representasse a sua «parte». Sem dúvida que o pagamento seria creditado por qualquer coisa como «despesas de colaboração» ou «gastos de investigação». Depois de verificar a quantia, voltou a guardar o papel dentro do sobrescrito e enfiou-o no bolso.
Para alguém como Tengo, um milhão e seiscentos mil ienes constituía uma pipa de massa (era a primeira vez na vida que recebia uma soma daquelas), mas a verdade é que não se sentia feliz por aí além nem surpreendido. O dinheiro não era o mais importante. Contava com os seus rendimentos fixos, que lhe permitiam levar uma vida bastante desafogada. Quanto ao futuro, tão-pouco tinha preocupações, pelo menos de momento. E, no entanto, toda a gente parecia disposta a oferecer-lhe dinheiro. O mundo era um lugar estranho.
Porém, no que dizia respeito à reescrita do romance A Crisálida de Ar, pressentia que não compensava ter-se metido em semelhante imbróglio para acabar por receber um milhão e seiscentos mil ienes. Em boa verdade, se lhe perguntassem de uma forma explícita qual a soma justa, o próprio Tengo não saberia responder. Para começar, desconhecia se era possível atribuir um preço razoável aos imbróglios. Neste mundo, é certo e sabido que não deviam faltar uns quantos imbróglios, alguns de valor incalculável, e outros pelos quais ninguém estaria disposto a pagar fosse o que fosse. A Crisálida de Ar continuava a vender-se, logo, tudo faria prever que haveria outras transferências nos tempos mais próximos. Todavia, quanto mais aumentassem as somas de dinheiro depositadas na sua conta bancária, mais os seus problemas se agravariam. Isto porque, ao receber uma compensação financeira maior, o seu grau de participação no livro avolumar-se-ia e seria apresentado aos olhos da sociedade como um facto consumado.
Às tantas, passou-lhe pela cabeça devolver o milhão e seiscentos mil ienes a Komatsu no dia seguinte de manhã. Pelo menos, evitaria certas responsabilidades. Para não falar no sentimento de alívio que representaria. Em todo o caso, estava decidido a formalizar a renúncia àquele dinheiro, mesmo que, com esse gesto, não eliminasse por completo a sua responsabilidade moral. Quando muito, em virtude da recusa em aceitar a recompensa monetária, ser-lhe-iam concedidas «circunstâncias atenuantes». Ou, quem sabe?, talvez lhe saísse o tiro pela culatra e o seu gesto acabasse por revelar-se ainda mais suspeito, fazendo com que a devolução do dinheiro pudesse ser interpretada como uma tentativa de apaziguar a má consciência.
Enquanto matutava naquilo, começou a sentir dores de cabeça, o que o obrigou a pôr de lado o milhão e seiscentos mil ienes. Podia sempre voltar a pegar naquela história com calma, quando tivesse tempo. O dinheiro não era um ser vivo. Podia deixá-lo quietinho onde estava, que não ia fugir. Provavelmente.
Neste momento, o problema é como endireitar a minha vida, pensou Tengo, enquanto subia as escadas do prédio até ao terceiro andar. Fora ao extremo sul da península de Boso visitar o pai, e viera de lá mais ou menos convencido de que ele não era o seu pai biológico. Vendo bem, aquilo podia representar uma nova oportunidade. Se calhar, estava na altura ideal para cortar com todos os problemas e reconstruir a sua vida. Um novo trabalho, um novo local de residência, conhecimentos novos. Mesmo que não estivesse cem por cento seguro de si mesmo, palpitava-lhe que seria capaz de levar uma vida um pouco mais sensata do que até essa altura.
Antes, porém, havia uma data de coisas que precisava de pôr em ordem. Não podia abandonar Fuka-Eri, Komatsu e o Professor Ebisuno e eclipsar-se de repente. É certo que não tinha nenhum dever moral para com eles, nem se podia falar em responsabilidade ética. Como dissera Ushikawa, Tengo havia sido mais do que prejudicado em toda aquela história. Contudo, ainda que o tivessem arrastado quase à força, sem lhe darem a conhecer a verdadeira trama que andavam a urdir nas suas costas, a verdade é que ele decidira alinhar. Não podia pura e simplesmente anunciar-lhes: «Ignoro o que se vai passar daqui para a frente. Arranjem-se como puderem.» Fosse qual fosse o rumo que tomasse a partir daí, queria saber que deixava as coisas resolvidas e ver-se livre de problemas. Senão, a sua nova vida corria o risco de ficar contaminada desde o início.
A palavra «contaminada» trouxe-lhe à memória a figura de Ushikawa. Ushikawa!, pensou Tengo, com um suspiro. Possuía informações sobre a sua mãe e tinha-lhe dito que estaria na disposição de as partilhar com ele.
Quero com isto dizer que há coisas neste mundo que é melhor nem saber. Por exemplo, o mesmo se aplica em relação à senhora sua mãe. Conhecer a verdade serviria apenas para o magoar nos seus sentimentos. Além disso, uma vez conhecida a verdade, não se podem enjeitar as responsabilidades que tal implica.
Tengo nem se dignara responder àquilo. Não tinha a mínima vontade de escutar qualquer informação daquele teor veiculada por Ushikawa. A partir do momento em que saísse da sua boca, a notícia ficaria desde logo contaminada. E, o que era mais importante, Tengo não queria ouvir essa informação da boca de ninguém. As notícias relativas à sua mãe, se é que realmente se justificavam, tinham de chegar até ele como uma «revelação» total, e não avançadas aos bocadinhos. Teria de se revelar diante dos seus olhos como uma paisagem cósmica, vasta e nítida, que se pudesse dominar por completo num abrir e fechar de olhos.
Naturalmente, Tengo desconhecia se chegaria algum dia a assistir à tão anunciada revelação dramática. Talvez nunca ficasse na posse dela, mas precisava que ocorresse alguma coisa de avassalador ou, pelo menos, a uma escala imponente, que pudesse contrastar e superar a imagem daquela visão que durante tantos anos o desorientara, o perturbara e contribuíra para o atormentar de maneira irracional. Precisava de qualquer coisa que o ajudasse a expulsar essa imagem dos seus pensamentos. As informações que lhe chegavam a conta-gotas não serviam de nada.
Isto foi o que lhe passou pela cabeça enquanto subia os lanços de escadas até chegar ao terceiro andar.
Tengo deteve-se em frente da porta de casa, tirou a chave do bolso, meteu-a na fechadura e deu uma volta. Então, antes de abrir, bateu três vezes, esperou, e bateu mais duas vezes. A seguir, abriu a porta sem fazer barulho.
Fuka-Eri estava sentada à mesa, a beber sumo de tomate por um copo alto. Vestia a mesma roupa que tinha na altura em que chegara ao apartamento. A camisa às riscas, de homem, e umas calças de ganga coladas ao corpo. Todavia, a impressão causada era muito diferente da produzida na parte da manhã. Isso devia-se – Tengo demorou um certo tempo a perceber porquê – ao facto de ter o cabelo apanhado, o que fazia com que as orelhas e a nuca ficassem expostas. Tinha umas orelhas pequenas e rosadas, que pareciam polvilhadas de pó de talco e acabadas de criar, por puras razões estéticas, mais do que para o fim prático de escutar os sons em volta. Ou, pelo menos, assim parecia aos olhos de Tengo. A nuca, esguia e elegante, que se prolongava a partir das orelhas, resplandecia como uma verdura fresca habituada a receber os raios de sol em abundância. Tinha um pescoço de uma pureza imaculada, que combinaria às mil maravilhas com o orvalho e com as joaninhas. Era a primeira vez que ele lhe via o cabelo apanhado, e a cena proporcionou-lhe uma espécie de visão milagrosa, de uma intimidade e de uma beleza espantosas.
Depois de fechar a porta, Tengo deixou-se ficar parado ali na entrada. As orelhas e a nuca da rapariga perturbavam-no e deixavam-no tão desorientado como se estivesse diante do corpo desnudado de outra mulher. Sentindo-se um explorador que acabasse de descobrir o manancial secreto que dá origem ao Nilo, perdeu a fala durante um bocado e contemplou Fuka-Eri, de olhos semicerrados. Ainda tinha a mão sobre a maçaneta da porta.
– Tomei um duche há bocadinho – lançou ela na direção de Tengo, que continuava parado no mesmo sítio. Disse aquilo com uma voz séria, como se tivesse acabado de se lembrar de um dado importante. – Usei o teu champô e o amaciador.
Tengo anuiu. Deixou escapar um suspiro e, por fim, soltou a maçaneta da porta e fechou-a à chave. Champô e amaciador? Depois, deu meia dúzia de passos, afastando-se da porta.
– O telefone tocou? – perguntou Tengo.
– Não, nem uma vez – replicou Fuka-Eri, negando muito ao de leve com a cabeça.
Tengo aproximou-se da janela, afastou ligeiramente a cortina e olhou lá para fora. Da janela do terceiro andar parecia tudo na mesma – não havia nada com ar suspeito, nem sequer um carro estacionado que desse nas vistas. Apenas a mesma paisagem insípida de um insignificante bairro residencial. Ao longo das ruas, as árvores de ramos retorcidos estavam cobertas de um pó cinzento; as barras de proteção mostravam várias amolgadelas e havia uma série de bicicletas cobertas de ferrugem abandonadas à beira da estrada. Num dos muros via-se um cartaz da polícia em que podia ler-se o seguinte: «Conduzir sob o efeito do álcool é uma via de sentido único que conduz à destruição da vida» (existiria um departamento na polícia especializado na criação daquele género de slogans?). Um ancião com ar de poucos amigos passeava um cão rafeiro com ar lerdo. Uma mulher com cara de estúpida conduzia um carro utilitário, apropriadamente feio. Uns quantos postes de iluminação inestéticos sustinham no ar os cabos elétricos. Aquela paisagem do lado de lá da janela sugeria que o mundo consistia numa acumulação infinita de pequenos mundos, cada um com a sua própria configuração, a meio caminho entre a «tragédia» e o «júbilo».
Mas, por outro lado, verdade seja dita, também existiam no mundo paisagens extraordinariamente belas, como, por exemplo, as orelhas e a nuca de Fuka-Eri. Em qual das realidades devia acreditar? Tornava-se difícil escolher. Tengo emitiu um pequeno grunhido que lhe veio do fundo da garganta, como fazem os grandes cães quando ficam alterados, depois fechou a cortina e regressou ao seu pequeno mundo.
– O Professor Ebisuno sabe que estás aqui? – perguntou ele.
Fuka-Eri negou com a cabeça. O Professor não sabia.
– Estás a pensar dizer-lhe alguma coisa?
Fuka-Eri abanou a cabeça.
– Não posso comunicar com ele.
– Por ser perigoso para ele?
– Arriscamo-nos a que escutem a nossa conversa ao telefone... O correio pode não lhe chegar às mãos.
– Sou eu o único a saber que estás aqui?
Fuka-Eri fez que sim com a cabeça.
– Trouxeste roupa e artigos pessoais?
– Pouca coisa – respondeu Fuka-Eri, e lançou uma olhadela ao saco de lona de pôr a tiracolo. Com efeito, parecia longe de estar cheio.
– Não faz mal – declarou ela.
– Se não te importas, por mim tudo bem – disse Tengo.
Ele foi até à cozinha, pôs água ao lume e deitou algumas folhas de chá preto para dentro da chaleira.
– Vem aí aquela tua amiga – perguntou Fuka-Eri.
– Deixou de aparecer – respondeu Tengo laconicamente.
Fuka-Eri ficou a olhar para ele, em silêncio.
– De momento – acrescentou ele.
– É por minha culpa – quis saber Fuka-Eri.
Tengo fez que não com a cabeça.
– Não sei de quem é a culpa, mas não me parece que seja tua. O mais provável é ser minha. Muito embora ela própria também tenha o seu quinhão de culpa.
– Mas, seja como for, essa mulher já não vem mais.
– Isso mesmo, já não vem mais. Provavelmente. O que significa que podes ficar comigo o tempo que quiseres.
Fuka-Eri ficou a matutar naquilo durante um bom bocado.
– Estava casada – perguntou.
– Sim, estava casada e tinha duas filhas.
– Não eram tuas filhas.
– Claro que não. Já tinha sido mãe antes de me conhecer.
– Gostavas dela.
– Talvez – disse Tengo. Sob certas e determinadas condições, acrescentou para si mesmo.
– Costumavam ter relações sexuais.
Tengo demorou o seu tempo a registar a pergunta. «Relações sexuais» não era uma expressão que estivesse à espera de ver sair da boca de Fuka-Eri.
– Claro. Não ia aparecer aqui todas as semanas para jogar Monopólio.
– Mo-no-pó-lio – estranhou ela.
– Deixa lá. Esquece – disse Tengo.
– Mas agora já não volta.
– Pelo menos, foi o que me disseram. Que não ia voltar...
– Foi ela que te disse – perguntou Fuka-Eri.
– Não, não foi ela que mo comunicou diretamente, mas sim o marido. Disse-me que ela se tinha perdido irremediavelmente e que não voltaria para mim.
– Perdeu-se irremediavelmente.
– Confesso que não te sei dizer o que isso significa em concreto. Perguntei-lhe, mas ele não me respondeu. Tenho muitas perguntas e poucas respostas. Como acontece numa troca comercial desequilibrada. Queres chá?
Fuka-Eri fez que sim com a cabeça, queria chá.
Tengo deitou a água fervida dentro da chaleira, tapou-a e esperou que passasse o tempo necessário.
– Não há nada a fazer – disse Fuka-Eri.
– O quê? Que eu tenha poucas respostas ou que ela se tenha perdido?
Fuka-Eri não se dignou responder.
Tengo deu-se por vencido e verteu o chá para duas taças.
– Queres açúcar?
– Uma colherzinha – disse ela.
– Limão ou leite?
Fuka-Eri fez que não com a cabeça. Tengo deitou uma colher de açúcar na taça, mexeu devagar e colocou-a à frente de Fuka-Eri. A seguir, pegou na sua taça de chá, sem lhe acrescentar nada, e sentou-se diante da rapariga, do outro lado da mesa.
– Gostavas de ter relações sexuais – perguntou Fuka-Eri.
– Se eu gostava de ter relações sexuais com a minha namorada? – Tengo reformulou corretamente a pergunta.
Fuka-Eri assentiu com a cabeça.
– Sim, creio que sim. Ter relações sexuais com alguém de quem se gosta. Parece-me que isso é uma coisa que agrada à maior parte das pessoas.
Além disso, ela era muito boa na cama. Da mesma forma que em todas as aldeias há sempre um camponês que se destaca mais do que os outros quando chama a si a tarefa de irrigar os campos, ela tinha um dom especial para amar. Gostava de experimentar as várias maneiras de fazer amor.
– Ficas com pena de ela não vir mais – perguntou Fuka-Eri.
– Talvez – respondeu Tengo, e bebeu o seu chá.
– Porque não podes ter relações sexuais.
– Isso também pesa.
Fuka-Eri fixou de novo a cara de Tengo, e assim se deixou ficar durante algum tempo. Dava a impressão de poder estar a cismar em qualquer coisa que se prendia com as relações sexuais, mas ninguém podia adivinhar o que lhe passaria pela cabeça.
– Tens fome? – perguntou Tengo.
Ela respondeu com um aceno afirmativo.
– Desde manhã que praticamente não como.
– Vou preparar qualquer coisa – disse Tengo. Também ele quase não comera nada e sentia o estômago vazio. Além disso, não se lembrava de outra coisa melhor para fazer naquele preciso momento, tirando cozinhar.
Tengo lavou o arroz, ligou a panela elétrica para cozinhar o arroz e, enquanto não ficava pronto, preparou uma sopa de miso com algas wakame e alho-porro, fritou umas cavalas secas, tirou do frigorífico um pedaço de tofu e preparou-o temperado com gengibre. Ralou rábano daikon. Pôs a aquecer numa caçarola um resto de caldo de legumes que tinha sobrado. Acompanhou tudo com nabo em salmoura e ameixas ume em conserva. Quando Tengo se movimentava, a pequena cozinha tornava-se ainda mais acanhada, o que não parecia incomodá-lo minimamente. Habituara-se desde há muito a contentar-se com o que a vida lhe dava.
– Lamento não poder arranjar-te uma coisa um bocadinho mais elaborada – disse Tengo.
Fuka-Eri seguiu com atenção a habilidade demonstrada por Tengo na arte da cozinha e, depois de reparar com curiosidade nos pratos que ele ia dispondo em cima da mesa, disse:
– Estás habituado a cozinhar.
– Vivo sozinho há muito tempo, é por isso. Costumo preparar qualquer coisa a correr e engulo tudo num ápice. Já se tornou uma rotina.
– Comes sempre sozinho.
– Sim, quase sempre. É raro ter companhia à hora das refeições, como hoje. Uma vez por semana, a tal mulher de quem estávamos a falar vinha cá a casa e almoçávamos juntos, mas, agora que penso nisso, há uma eternidade que não jantava com outra pessoa.
– Estás nervoso – perguntou Fuka-Eri.
Tengo abanou a cabeça.
– Não, não estou. Trata-se apenas de um jantar. Parece-me um bocado estranho, mais nada.
– Eu sempre tomei as minhas refeições rodeada de gente, porque desde pequena que vivemos todos em comunidade. Depois, quando fui morar para casa do Professor Ebisuno, também havia sempre pessoas à mesa, uma vez que ele costumava ter convidados lá em casa.
Era a primeira vez que Fuka-Eri pronunciava tantas frases de uma assentada.
– Mas comias sozinha, no sítio onde estavas escondida, não é verdade? – perguntou Tengo.
Fuka-Eri concordou com a cabeça.
– Onde ficava localizado esse tal esconderijo? – inquiriu Tengo.
– Longe. Foi o Professor quem tratou de tudo.
– Que comias tu quando estavas sozinha?
– Comida instantânea. Coisas enlatadas – respondeu Fuka-Eri. – Há muito tempo que não sei o que é uma refeição destas.
Com toda a calma do mundo, Fuka-Eri pôs-se a tirar as espinhas de uma cavala com a ponta de um pauzinho. Depois, levou o peixe à boca e mastigou-o devagar, como se estivesse a degustar um manjar dos deuses. A seguir, engoliu um bocadinho de sopa de miso, saboreou bem e pareceu formar uma opinião, antes de pousar os pauzinhos sobre a mesa e perder-se nos seus pensamentos.
* * *
Perto das nove, Tengo julgou ter ouvido um trovão ao longe. Abriu um pouco as cortinas e olhou lá para fora. O céu mostrava-se muito escuro, e via-se um cortejo de nuvens, avançando com ar funesto.
– Tens razão. O céu está com um aspeto ameaçador – observou Tengo, fechando as cortinas.
– Porque o Povo Pequeno anda agitado – asseverou Fuka-Eri com uma expressão sombria.
– Quando o Povo Pequeno anda agitado, isso faz com que se produzam fenómenos extraordinários no tempo?
– É relativo. O tempo depende de como olharmos para ele e interpretarmos os sinais.
– Depende de como olharmos para ele e interpretarmos os sinais?
Fuka-Eri sacudiu a cabeça.
– Não entendo bem.
Tengo era outro que tal. Sempre considerara as condições atmosféricas como independentes e objetivas, mas era provável que não fosse longe, se continuasse a explorar o tema, por isso decidiu mudar de assunto e fazer uma pergunta diferente.
– O Povo Pequeno está zangado com alguma coisa?
– Vai acontecer qualquer coisa – respondeu ela.
– O quê, em concreto?
Ela abanou a cabeça.
– Não tarda, saberemos.
Lavaram a loiça debaixo da torneira, secaram-na e arrumaram tudo no armário; sentaram-se à mesa, de frente um para o outro, e tomaram chá. A Tengo, o que lhe apetecia era uma cerveja, mas pensou que era melhor abster-se de beber álcool, naquele dia. No ambiente respirava-se uma certa sensação de perigo. Mais valia manter-se lúcido, não fosse dar-se o caso de acontecer qualquer coisa.
– Talvez seja melhor irmos para a cama cedo – disse Fuka-Eri. Ao dizer aquilo, levou as mãos às faces e pressionou-as, como a figura que grita sobre a ponte no quadro de Munch. Mas ela não gritou. Parecia apenas ter sono.
– De acordo. Podes usar a minha cama – disse Tengo. – Fico perfeitamente bem no sofá, como aconteceu no outro dia. Não te preocupes. Consigo dormir onde calha.
Era verdade. Tengo conseguia pregar olho em qualquer lado. Um talento digno de registo, por assim dizer.
Fuka-Eri concordou com a cabeça. Ficou a olhar para Tengo, sem fazer comentários. Depois levou momentaneamente as mãos às suas bonitas orelhas acabadas de formar, como se quisesse certificar-se de que ainda ali estavam.
– Emprestas-me um dos teus pijamas. Não trouxe o meu.
Tengo foi ao gavetão da cómoda que tinha no quarto buscar um pijama e entregou-lho. Era o mesmo pijama que lhe emprestara da vez em que ela dormira lá em casa. Um pijama azul, de algodão liso. Estava lavado e dobrado, tal como havia sido deixado. Por pura precaução, Tengo aproximou-o do nariz e cheirou-o, mas não cheirava a nada. Fuka-Eri recebeu o pijama das mãos dele, mudou de roupa na casa de banho e voltou para a sala. Aproveitara para soltar o cabelo. Arregaçara as mangas e as calças do pijama, tal como da outra vez.
– Ainda não são nove horas – disse Tengo, olhando para o relógio de parede. – Deitas-te sempre assim tão cedo?
Fuka-Eri negou com a cabeça.
– Hoje é diferente.
– Porque o Povo Pequeno anda agitado lá fora?
– Não sei. Acontece que estou cansada.
– Verdade seja dita que tens olhos de sono – corroborou Tengo.
– Quando estiver deitada, lês-me um livro ou contas-me uma história...
– Combinado – prometeu Tengo. – Não tenho nada urgente para fazer.
Apesar de a noite estar quente e húmida, ao meter-se na cama, Fuka-Eri puxou o edredão até ao pescoço, como se fosse sua intenção criar uma firme barreira entre o mundo exterior e o seu próprio mundo. Enfiada dentro da cama, parecia uma miúda pequena. Dava a impressão de que não tinha mais de doze anos. O barulho dos trovões entrando pela janela tornara-se mais forte. A trovoada parecia aproximar-se. De cada vez que trovejava, os vidros da janela estremeciam e tilintavam. No entanto, curiosamente, não se viam os relâmpagos. Tão-pouco se podia dizer que estivesse para chover. Sem dúvida alguma, havia ali um desequilíbrio de qualquer espécie.
– Estão a ver-nos – disse Fuka-Eri.
– O Povo Pequeno? – perguntou Tengo.
Fuka-Eri não respondeu.
– Sabem que estamos aqui – disse Tengo.
– Claro que sabem – afirmou ela.
– Será que têm intenções de fazer alguma coisa?
– Não nos podem fazer nada.
– Ainda bem – disse Tengo.
– Por agora.
– Por agora, não nos podem tocar – repetiu Tengo num tom apagado. – Porém, não sabemos até quando durará este estado de graça.
– Ninguém sabe – afirmou categoricamente Fuka-Eri.
– Não podem fazer nada contra nós, mas, em troca, podem fazer mal às pessoas que nos rodeiam? – perguntou Tengo.
– É possível.
– Ao ponto de lhes acontecerem coisas terríveis?
Fuka-Eri semicerrou os olhos e ficou absorta por momentos: parecia um marinheiro a procurar distinguir o canto de um navio-fantasma no meio da escuridão.
– Depende.
– Se calhar, o Povo Pequeno utilizou o seu poder contra a minha namorada, à laia de aviso.
Fuka-Eri tirou uma das mãos do edredão e coçou as orelhas novinhas em folha. Depois voltou a enfiar a mão para dentro.
– As coisas que o Povo Pequeno consegue fazer são limitadas.
Tengo mordeu o lábio. Depois arriscou:
– Por exemplo, que podem eles fazer?
Fuka-Eri pareceu inclinada a dar a sua opinião, mas, às tantas, mudou de ideias e desistiu. As palavras que ia dizer não passaram da boca e afundaram-se silenciosamente no seu lugar de origem, sem chegarem a ser pronunciadas. Onde, em concreto, ele não sabia, mas tratava-se de um lugar profundo e escuro como breu.
– Disseste que o Povo Pequeno possui sabedoria e força.
Fuka-Eri concordou com um aceno.
– Mas eles têm os seus limites.
Ela voltou a concordar.
– Porque vivem no interior da floresta e, ao afastarem-se dali, sentem dificuldade em exercer as suas capacidades. Além disso, neste mundo vigora um sistema de valores que pode competir com os seus conhecimentos e fazer frente à inteligência de que dão mostras. Não é assim?
Fuka-Eri olhou para ele com uma expressão vaga, como se não tivesse alcançado bem o sentido da pergunta.
– Chegaste a vê-los? – perguntou Tengo.
– Sim – respondeu Fuka-Eri.
– Com quantos deles te encontraste?
– Não sei. Não se podem contar propriamente pelos dedos das mãos...
– Em todo o caso, sempre mais do que um.
– Por vezes, aumentam de número, e outras, diminuem. Mas nunca um só.
– Como tu descreveste no romance A Crisálida de Ar.
Fuka-Eri fez que sim com a cabeça.
Tengo atreveu-se a formular a pergunta que andava para lhe fazer desde há muito tempo.
– Diz-me uma coisa, até que ponto A Crisálida de Ar é uma história verdadeira e é real o que ali se conta?
– O que significa real – perguntou Fuka-Eri.
Tengo não tinha resposta para aquilo, escusado será dizer.
O barulho dos trovões ribombou no céu. Os vidros da janela estremeceram ligeiramente, mas nem sombra de relâmpagos, muito menos o rumor da chuva. Tengo lembrou-se de um filme antigo passado no interior de um submarino. As cargas de profundidade rebentavam umas atrás das outras e sacudiam o submarino com violência. No entanto, os homens, encerrados dentro daquela jaula de aço escura, não tinham maneira de ver fosse o que fosse. Ao sítio onde se encontravam chegavam apenas o estrondo e as vibrações incessantes.
– Lê-me um livro ou conta-me uma história – pediu Fuka-Eri.
– Está bem – acedeu Tengo –, mas não me estou a lembrar de nenhum livro bom para ler em voz alta. Apesar de não ter a obra aqui comigo, conto-te a história «A Cidade dos Gatos», se quiseres.
– «A Cidade dos Gatos»...
– É a história de uma cidade governada por gatos.
– Gostaria de a ouvir.
– Olha que a história pode causar um bocadinho de medo, sobretudo se for contada na hora de ir para a cama...
– Não faz mal. Ainda está por inventar uma história que me tire o sono.
Tengo puxou uma cadeira para junto da cama, sentou-se, entrelaçou as mãos sobre os joelhos e começou a contar, com o ruído da tormenta como pano de fundo. Tinha lido aquele relato por duas vezes no comboio rápido e, depois, uma terceira, em voz alta, ao pai, no quarto da clínica. Sabia mais ou menos de memória a trama. Não se podia dizer que fosse intricada e rica em pormenores, nem que tivesse sido escrita numa prosa demasiado literária e estilizada, por isso não se coibiu de fazer algumas modificações, omitindo as partes maçadoras e acrescentando um ou outro episódio a seu gosto. E foi assim que narrou aquela história a Fuka-Eri.
Se bem que o conto original não fosse muito longo, levou-lhe mais tempo do que calculara, até porque Fuka-Eri não hesitava em fazer perguntas sempre que tinha uma dúvida. Nessa altura, Tengo interrompia a história e respondia-lhe com toda a paciência. Dava-lhe explicações sobre a cidade, o comportamento dos gatos ou a personalidade do protagonista. Quando se tratava de coisas que não vinham descritas no livro (o que acontecia na maioria das vezes), Tengo dava largas à sua imaginação e inventava, tal como havia feito, de resto, quando escrevera A Crisálida de Ar. Fuka-Eri parecia totalmente encantada com a história. Os seus olhos haviam perdido aquele ar de sono. Volta e meia, fechava-os e punha-se a imaginar a cidade dos gatos. Em seguida, abria-os de novo e pedia a Tengo que continuasse a contar a história.
Assim que ele acabou, Fuka-Eri abriu muito os olhos e fitou-o durante um grande bocado, como fazem os gatos quando dilatam as pupilas e se põem a observar qualquer coisa no escuro.
– Tu foste à cidade dos gatos – perguntou ela a Tengo, num tom que tinha o seu quê de recriminatório.
– Eu?
– Foste à tua cidade dos gatos. Depois apanhaste o comboio e regressaste.
– É isso que sentes?
Com o edredão de verão puxado até ao queixo, Fuka-Eri assentiu, para dizer que sim, que estava convencida disso.
– Tens razão – confessou Tengo. – Fui à cidade dos gatos e regressei de comboio.
– Purificaste-te a seguir – perguntou ela.
– Se me purifiquei? – perguntou Tengo, por sua vez. – Não, creio que não.
– Tens de o fazer.
– Que género de purificação?
Em vez de responder, Fuka-Eri disse:
– Não é bom ir à cidade dos gatos e deixar as coisas como estão. Podem acontecer cenas más.
Um trovão ressoou violentamente, ameaçando rasgar o céu em dois. O ruído tornava-se cada vez mais feroz. Fuka-Eri aninhou-se na cama.
– Vem para ao pé de mim e abraça-me – pediu ela. – Temos de ir juntos à cidade dos gatos.
– Porquê?
– O Povo Pequeno poderia encontrar a entrada.
– Porque eu não me purifiquei?
– Porque nós os dois juntos formamos um – disse a rapariga.
13
AOMAME
Sem o teu amor
– 1Q84 – disse Aomame. – Estás a referir-te ao facto de eu viver agora no ano designado por 1Q84 e não no 1984 real?
– Em que consiste o mundo real? Eis uma questão extremamente difícil – disse o homem a quem chamavam Líder, deitado de barriga para baixo. – O ser é uma proposição metafísica. Mas isto é o mundo real, não há dúvidas a esse respeito. A dor que sentimos neste mundo é uma dor real. As mortes que acontecem neste mundo são mortes reais. O sangue derramado neste mundo é sangue real. Não se trata de um mundo de imitação, imaginário ou metafísico. Isso posso garantir-to. Todavia, não estamos no ano de 1984 que conheces.
– É um mundo paralelo?
Os ombros do homem estremeceram com o riso.
– Tens andado a ler demasiada ficção científica. Não, não estamos num mundo paralelo. Não tens o ano de 1984 aqui e uma ramificação 1Q84 ali, e dois mundos a seguirem rumos paralelos. O ano de 1984 já não existe em sítio nenhum. Tanto para ti como para mim, o único tempo que ainda existe é o de 1Q84.
– Entrámos na sua dimensão temporal, de uma vez por todas.
– Precisamente. Entrámos neste local onde estamos agora. Ou a sua temporalidade entrou em nós de uma vez por todas. Tanto quanto sei, a porta só abre num sentido. Não há retorno possível.
– Calculo que tenha acontecido quando descia as escadas de emergência da autoestrada metropolitana.
– Autoestrada metropolitana?
– Perto de Sangenjaya – disse Aomame.
– O local é irrelevante – afirmou o homem. – Para ti, foi em Sangenjaya, mas a questão não é o local específico. No fim de contas, a questão é o tempo. As agulhas do tempo mudaram aí e o mundo passou a estar em 1Q84.
Aomame imaginou uma série de elementos do Povo Pequeno a unir forças para pôr em funcionamento o mecanismo que mudava as agulhas de uma via. A altas horas da noite. Sob o luar pálido.
– E, neste ano de 1Q84, há duas luas no céu, certo?
– Certo: duas luas. É esse o sinal de que as agulhas da vida mudaram. É assim que se distinguem os dois mundos. Contudo, nem toda a gente consegue ver as duas luas. Para falar verdade, a maior parte das pessoas nem sequer tem consciência disso. Por outras palavras, o número de pessoas que tem consciência de que estamos em 1Q84 é bastante limitado.
– A maior parte das pessoas do mundo não sabe que o correr do tempo foi alterado?
– Certo. Para a maior parte das pessoas, estamos no mesmo velho mundo vulgar, onde sempre estivemos. É a isto que me refiro quando digo que «este é o mundo real».
– Então, as agulhas da via mudaram – disse Aomame. – Se não tivessem mudado, não estaríamos os dois aqui reunidos. Será isto o que está a tentar dizer?
– Isso é a única coisa que ninguém sabe. É uma questão de probabilidades. Mas, provavelmente, é esse o caso.
– O que está a afirmar é um facto concreto, ou não passa de uma hipótese?
– Boa pergunta. No entanto, é praticamente impossível estabelecer uma distinção entre os dois. Lembras-te da canção? Without your love, it’s a honky-tonk parade9 – trauteou a melodia. – Conheces?
– «It’s Only a Paper Moon».
– Isso mesmo. Basicamente, 1984 e 1Q84 funcionam segundo os mesmos princípios. Se não acreditas no mundo e se não há amor, então é tudo falso. Não importa de que mundo falamos, não importa de que tipo de mundo falamos, a linha que separa os factos das hipóteses quase não existe. Só se pode ver com o olhar interior, o olho da mente.
– Quem mudou as agulhas da via?
– Quem mudou as agulhas? Eis outra questão difícil. Trata-se de um caso em que a lógica de causa e efeito é pouco relevante.
– Seja lá como for, existiu algum tipo de vontade que me transportou para este mundo de 1Q84 – afirmou Aomame. – Uma vontade que não a minha.
– É verdade. Foste transportada para este mundo quando o comboio em que viajavas foi desviado.
– E o Povo Pequeno tem alguma coisa que ver com o caso?
– Neste mundo existe aquilo que designam por «Povo Pequeno». Ou, pelo menos, é assim que lhes chamam. Mas nem sempre têm forma ou nome.
Pensativa, Aomame mordeu o lábio. Depois, disse:
– O que está a afirmar parece-me uma contradição. Partamos do princípio de que foi esse «Povo Pequeno» que mudou as agulhas da vida e me trouxe para este mundo de 1Q84. Porque fariam tal coisa se não quisessem que eu te fizesse o que estou prestes a fazer? Seria muito mais vantajoso verem-se livres de mim.
– Não é fácil explicar – respondeu o homem, sem a menor inflexão na voz. – Mas o teu pensamento é ágil. Poderás ser capaz de perceber, ainda que vagamente, o que estou a tentar dizer-te. Como já afirmei, a coisa mais importante no que diz respeito a este mundo em que vivemos é a manutenção de um equilíbrio entre o bem e o mal. Aqueles a quem chamam o «Povo Pequeno», ou uma qualquer manifestação de vontade, têm realmente um grande poder. Todavia, quanto mais usam o seu poder, mais poder surge automaticamente para se lhes opor. É assim que o mundo preserva um delicado equilíbrio. Este princípio fundamental é o mesmo em todos os mundos. Pode fazer-se a mesmíssima afirmação a propósito deste mundo de 1Q84 em que nos encontramos agora. Quando o Povo Pequeno começou a manifestar o seu enorme poder, surgiu também, automaticamente, um poder que se lhe opõe. E deve ter sido este impulso de resistência o que te atraiu para o mundo de 1Q84.
Estendido na sua esteira de ioga azul, qual baleia que deu à costa, o gigantesco homem expirou profundamente.
– Prosseguindo na analogia ferroviária: é-lhes possível mudar as agulhas, o que fez com que o comboio passasse para esta linha, a linha de 1Q84. Contudo, há uma coisa que não são capazes de fazer: distinguir um passageiro do outro, escolher o que querem. O que significa que pode haver a bordo passageiros indesejados.
– Passageiros que não foram convidados.
– Precisamente.
De novo ribombou um trovão. Este soou muito mais alto do que o anterior. Mas não houve qualquer relâmpago, só o ruído. Aomame admirou-se:
Que estranho! O trovão está tão próximo, mas não vejo o clarão do relâmpago. E nem sequer está a chover.
– Fui claro até agora?
– Estou a ouvir – respondeu ela, que já desviara a agulha do seu alvo no pescoço. Tinha-a agora cuidadosamente apontada para o vazio. Precisava de concentrar toda a sua atenção no que ele estava a dizer.
– Onde há luz tem de haver sombra, e onde há sombra é forçoso que haja luz. Não existe sombra sem luz, nem luz sem sombra. Num dos seus livros, Karl Jung disse o seguinte acerca da «Sombra»: «É tão má quanto nós somos positivos... quanto mais tentamos desesperadamente ser bons, maravilhosos e perfeitos, mais a Sombra desenvolve uma clara determinação em ser negra, má e destrutiva... A verdade é que, se tentamos muito para além das nossas forças, tornarmo-nos perfeitos, a Sombra desce ao Inferno e converte-se no Diabo. Porque, do ponto de vista da natureza e da verdade, é igualmente pecaminoso o facto de alguém tentar tornar-se superior ou inferior a si próprio.»
– Não sabemos se aqueles a quem chamam o Povo Pequeno são bons ou maus. Em certo sentido, isto está para além do nosso entendimento e das nossas definições. Vivemos com eles desde tempos imemoriais, desde um tempo anterior à existência do bem e do mal, desde os alvores da consciência humana. Mas sejam eles bons ou maus, luz ou sombra, o importante é que, quando começam a exercer o seu poder, surge inevitavelmente uma força compensatória. No meu caso, quando me converti num «representante» do dito Povo Pequeno, a minha filha converteu-se numa espécie de agente das forças que se opõem ao Povo Pequeno. Foi assim que o equilíbrio se manteve.
– A sua filha?
– Sim, a primeira pessoa que fez surgir o tal Povo Pequeno foi a minha filha. Na altura, tinha dez anos. Hoje tem dezassete. A dado momento, o Povo Pequeno emergiu da escuridão, passou por ela para chegar até aqui e os seus membros fizeram de mim representante deles. A minha filha tornou-se uma Apreensora, e eu um Recetor. Aparentemente, a natureza adequou-nos a tais funções. Seja como for, eles encontraram-nos. Não fomos nós que os encontrámos.
– Foi por isso que violou a sua própria filha?
– Uni-me a ela – respondeu ele. – Esta expressão está mais próxima da realidade. Estritamente falando, a pessoa a quem me uni é uma filha conceptual. Unir é um termo ambíguo. Para nós, o essencial era tornarmo-nos um, enquanto Apreensora e Recetor.
Aomame abanou a cabeça.
– Não compreendo o que está a dizer. Teve sexo com a sua filha, sim ou não?
– No fim de tudo, a resposta a essa questão é «sim e não».
– Também é verdade quanto à pequena Tsubasa?
– Em princípio, sim.
– Mas o útero da Tsubasa ficou destruído, não «em princípio», mas de facto.
O homem abanou a cabeça.
– O que viste não passa da manifestação exterior de um conceito, não da sua verdadeira essência.
Aomame não estava a ser capaz de seguir o fluxo veloz da conversa. Parou para fazer baixar o ritmo da sua respiração. Depois, perguntou:
– Está a dizer que houve um conceito que assumiu uma forma humana e fugiu a correr a sete pés?
– Para pôr as coisas de uma forma simples, sim.
– A Tsubasa que vi não é, de facto, um corpo?
– Razão pela qual foi recuperada.
– Recuperada – repetiu Aomame.
– Foi recuperada e agora estão a tratar dela. Está a receber o tratamento de que precisa.
– Não acredito em si – declarou Aomame.
– Não te censuro – respondeu o homem, numa voz monocórdica.
Durante um bocado, Aomame ficou sem palavras. A seguir, fez outra pergunta:
– Ao violar a sua filha, conceptual e ambiguamente, tornou-se agente do Povo Pequeno. Mas, em simultâneo, a sua filha compensou isso abandonando-o e tornando-se, de facto, uma opositora do Povo Pequeno. É isto o que está a afirmar?
– Precisamente. E para conseguir fazer isso ela teve de abandonar a sua própria nina – disse o homem. – Não tem qualquer significado para ti, pois não?
– Nina? – perguntou Aomame.
– Algo como uma sombra viva. É aqui que surge uma outra personagem: um velho amigo meu. Um homem de confiança. Entreguei a minha filha aos seus cuidados. Depois, não há muito tempo, a pessoa que conheces pelo nome de Tengo Kawana também se envolveu. Foi por puro acaso que o Tengo e a minha filha se juntaram e formaram equipa.
De súbito, o tempo pareceu deter-se. Aomame ficou sem palavras. Hirta da cabeça aos pés, esperou que o tempo começasse de novo a fluir.
O homem continuou a falar:
– Acontece que cada um deles tem as qualidades que potenciam as do outro. O que faltava ao Tengo, a Eriko tinha, e o que faltava à Eriko, o Tengo possuía. Uniram forças para levar a cabo uma única tarefa. E os frutos da sua colaboração parecem ter tido grande impacto. Isto, claro, no contexto do estabelecimento de uma oposição ao Povo Pequeno.
– Fizeram equipa?
– Não é que tenham uma relação romântica ou física. Por isso, não tens com que te preocupar... se é nisso que estás a pensar. A Eriko nunca terá uma relação romântica com ninguém. Ela já transcendeu essas coisas.
– E quais são, em concreto, os frutos dessa colaboração?
– Para explicar o que são teria de incluir uma segunda analogia. Os dois inventaram, por assim dizer, um anticorpo de um vírus. Se tomarmos as ações do Povo Pequeno como sendo o vírus, o Tengo e a Eriko criaram e disseminaram o anticorpo que o combate. Isto não passa, claro, de uma analogia parcial. Em contrapartida, do ponto de vista do Povo Pequeno, o Tengo e a Eriko são os portadores do vírus. Todas as coisas estão dispostas em espelho, colocadas frente a frente, reflexos umas das outras.
– E é a isso que chama função compensatória?
– Precisamente. Ao unir forças, o homem que amas e a minha filha conseguiram fazer surgir tal função. O mesmo será dizer que, neste mundo, tu e o Tengo estão literalmente a par um do outro.
– Mas, de acordo com o que diz, tal não se deve ao mero acaso. Afirma que fui trazida para este mundo por uma qualquer vontade. É isso?
– Isso mesmo. Vieste com um propósito, conduzida por uma forma de vontade, para este mundo de 1Q84. Não se pode dizer que uma eventual relação entre ti e o Tengo aqui, independentemente da forma de que se revista, seja um produto do acaso.
– Que tipo de vontade e que tipo de propósito?
– Não me cabe a mim responder, lamento dizê-lo – disse o homem.
– Não é capaz de o explicar?
– Não é que o significado seja inexplicável, mas há certos significados que se perdem no preciso instante em que são traduzidos em palavras.
– Muito bem, deixe-me fazer outra pergunta – disse Aomame. – Porque tive de ser eu?
– Ainda não percebeste o porquê, pois não?
Aomame deu uns valentes abanões de cabeça.
– Não, não percebo porquê. De todo.
– Na realidade, é muito simples. Porque tu e o Tengo sentem uma atração tão forte um para o outro.
Aomame manteve-se silenciosa durante um bom bocado. Sentia uma leve transpiração a brotar dos poros do seu rosto. Era como se toda a sua cara estivesse revestida de uma membrana invisível a olho nu.
– Atração um para o outro – disse.
– Sim, um para o outro. Muito poderosa.
Vinda do nada, ela sentiu crescer dentro de si uma emoção parecida com a fúria, acompanhada por uma vaga sensação de náusea.
– Não acredito nisso. Não é possível que ele se lembre de mim.
– Não, o Tengo sabe muito bem que existes neste mundo e quer que assim seja. Até hoje, ele nunca amou outra mulher.
Aomame ficou sem palavras por momentos e, nesse instante, os trovões fortíssimos sucederam-se a intervalos muito curtos; aparentemente, a chuva tinha começado a cair. A janela do hotel começou a ficar salpicada de grossos pingos de chuva, mas o som quase não chegava a Aomame.
O homem continuou:
– Podes acreditar ou não, estás à vontade. Mas seria melhor que começasses a acreditar, porque é uma verdade insofismável.
– Está a dizer que ele ainda se lembra de mim, apesar de terem passado vinte anos desde o último dia em que nos vimos? Mesmo nunca tendo nós falado um com o outro?
– Naquela sala de aulas vazia, apertaste-lhe a mão com força. Tinhas tu dez anos. Tiveste de reunir toda a tua coragem para o fazer.
A face de Aomame contorceu-se.
– Como é que é possível que saiba tal coisa?
O homem não respondeu.
– O Tengo nunca se esqueceu disso. E, este tempo todo, tem continuado a pensar em ti. Farias bem em acreditar. Sei muita coisa. Sei, por exemplo, que ainda hoje pensas no Tengo quando te masturbas. Imagina-lo. Tenho razão, não tenho?
O queixo de Aomame caiu-lhe ligeiramente, mas ela ficou sem palavras. Só conseguia produzir uma respiração superficial.
O homem prosseguiu:
– Não tens nada que ter vergonha. É uma função humana natural. O Tengo faz o mesmo. Ainda hoje, nessas alturas, ele pensa em ti.
– Mas como é que é possível...?
– Como é que é possível que eu saiba estas coisas? Ouvindo com atenção. É o meu trabalho: escutar as vozes.
Ela desejou rir às gargalhadas e, ao mesmo tempo, sentiu vontade de chorar. Mas não foi capaz de fazer nem uma coisa nem outra. Só conseguiu ficar ali, petrificada, dividida entre os dois sentimentos, incapaz de decidir para que lado fazer pender o seu centro de gravidade, sem palavras.
– Não tens de ter medo – disse o homem.
– Medo?
– Estás com medo, tal como a gente do Vaticano teve medo de aceitar a teoria heliocêntrica. Nem mesmo eles acreditavam na infalibilidade da teoria ptolemaica. Tinham medo da nova situação que resultaria de aceitarem a nova teoria de Copérnico. Receavam ter de reorganizar a forma como pensavam em consequência dela. Em rigor, a Igreja Católica ainda não aceitou publicamente a teoria de Copérnico. És igual a eles. Tens medo de abandonar a couraça com que há tanto tempo te defendes.
Aomame escondeu a cara nas mãos, soluçando convulsivamente. Não era o que queria fazer, mas foi incapaz de parar. Teria preferido assumir o ar de quem se ria, mas tal estava fora de questão.
– Tu e o Tengo foram, a bem dizer, trazidos para este mundo no mesmo comboio – disse o homem, baixinho. – Quando fez equipa com a minha filha, o Tengo empreendeu algumas ações contra o Povo Pequeno, e tu estás a tentar liquidar-me por razões diferentes. Por outras palavras, cada um de vocês, à sua maneira, está a fazer uma coisa perigosa num terreno muito perigoso.
– E está a dizer que existe uma vontade qualquer que nos impele a agir deste modo?
– Talvez.
– E por que razão o faria? – Ainda não tinha acabado de enunciar a pergunta e já Aomame se apercebera da sua futilidade. Não havia a menor réstia de esperança em obter resposta.
– A maneira mais satisfatória de resolver isto seria, a dada altura, vocês encontrarem-se e decidirem abandonar este mundo de mãos dadas – afirmou o homem, sem responder à pergunta. – Mas não seria tarefa fácil.
– Não seria tarefa fácil. – Inconscientemente, Aomame repetiu as palavras dele.
– Não seria tarefa fácil e, lamento dizê-lo, isto é pôr as coisas de uma maneira suave. Para dizer a verdade, é quase impossível. O adversário que vocês os dois enfrentam, seja qual for o nome que lhe atribuam, tem um poder brutal.
– Então... – disse Aomame, com a voz seca. Pigarreou. Já ultrapassara o seu desnorte. Não é altura de me pôr a chorar, pensou. – Chegámos ao ponto em que me vai apresentar uma proposta, não é verdade? Eu concedo-lhe uma morte indolor, em troca da qual me dará algo, uma escolha diferente.
– Apanhas as coisas muito depressa – retorquiu o homem, ainda de cara virada para o chão. – Está certo. A minha proposta é algo que tem que ver contigo e o Tengo. Pode não ser a mais agradável das escolhas, mas, pelo menos, dá-te espaço de manobra.
– O Povo Pequeno tem medo de me perder – continuou o homem. – Ainda precisam de mim, sou-lhes útil enquanto representante humano. Não lhes vai ser fácil encontrar quem me substitua. No ponto em que as coisas estão, ainda não prepararam o meu sucessor. Para se ser representante deles, há que satisfazer muitas condições exigentes, e dá-se o caso de eu as preencher todas, o que faz de mim uma raridade. Têm medo de me perder. Se ficassem sem mim neste preciso momento, gerar-se-ia um vazio temporário. É por isso que estão a tentar evitar que me tires a vida. Querem manter-me durante mais algum tempo. O trovão que ouves lá fora é um sinal da sua fúria. Mas não podem levantar um dedo que seja contra ti, pelo menos diretamente. Só podem avisar-te da sua zanga. Pela mesma razão, é possível que tenham usado métodos ínvios para conduzir a tua amiga à morte. E se as coisas continuarem assim, é certo e sabido que vão fazer algum tipo de mal ao Tengo.
– Vão fazer mal ao Tengo?
– O Tengo escreveu uma história sobre o Povo Pequeno e sobre aquilo que fazem. A Eriko forneceu-lhe a história básica e o Tengo transformou-a num texto escrito, propriamente dito. Foi um esforço conjunto e funcionou como anticorpo, que se opôs ao impulso do Povo Pequeno. Publicaram-na sob a forma de livro, que se transformou num êxito de vendas. Como consequência, pelo menos temporariamente, o Povo Pequeno deparou-se com muitas potenciais avenidas vedadas e enfrentou limites impostos a várias das suas ações. É provável que já tenhas ouvido falar do livro: chama-se A Crisálida de Ar.
Aomame assentiu com a cabeça.
– Li no jornal vários artigos sobre o livro. E vi os anúncios da editora. Mas ainda não li o livro.
– Quem escreveu de facto A Crisálida de Ar foi o Tengo. E agora está a escrever uma história dele. N’A Crisálida de Ar, ou seja, nesse mundo com duas luas, ele descobriu a sua própria história. Uma Apreensora superior, a Eriko, inspirou a história como se fosse um anticorpo dentro dele. Ao que parece, o Tengo tem excelentes capacidades de Recetor. Pode ter sido essa capacidade que te trouxe até aqui; por outras palavras, foi o que te meteu naquele comboio.
No escuro, o rosto de Aomame contorceu-se violentamente. Tinha de se esforçar bastante para seguir o que o homem lhe estava a dizer.
– Está a dizer-me que fui transportada para este outro mundo de 1Q84 pela capacidade que o Tengo tem de contar histórias, ou, para usar as suas palavras, pelo seu poder enquanto Recetor?
– É o que penso, pelo menos – respondeu o homem.
Aomame olhou para as suas mãos. Tinha os dedos molhados de lágrimas.
– Se as coisas continuarem a ir por este caminho, é mais do que certo que o Tengo será liquidado. Neste momento, ele é a ameaça número um para o Povo Pequeno. No fim de contas, estamos no mundo real onde se derrama sangue real e há mortes reais. E, claro, a morte é para sempre.
Aomame mordeu o lábio.
– Gostaria que pensasses no caso deste ponto de vista – disse o homem. – Se me matares aqui e me eliminares deste mundo, o Povo Pequeno deixará de ter razões para fazer mal ao Tengo. Se eu deixar de existir enquanto canal, o Tengo e a minha filha podem obstruir o canal tanto quanto queiram sem que com isso representem qualquer ameaça para eles. O Povo Pequeno limitar-se-á a esquecer-se daqueles dois e procurará um outro canal, noutro sítio qualquer, um canal com uma origem diferente. Será a sua prioridade. Estás a seguir-me?
– Em teoria, pelo menos – respondeu Aomame.
– Por outro lado, se eu for morto, a organização que criei nunca mais te deixará em paz. É verdade que poderá levar algum tempo até que te descubram, uma vez que vais certamente mudar de nome, mudar de vida e talvez até mesmo mudar de cara. Mesmo assim, eles vão acabar por te encontrar o rasto e infligir-te-ão um castigo severo. É o tipo de sistema que criámos: coeso, violento e irreversível. Podes fazer uma escolha.
Aomame precisou de algum tempo para organizar os seus pensamentos quanto ao que ele lhe tinha dito. O homem aguardou que a sua lógica sedimentasse na mente dela.
A seguir, continuou.
– Se, pelo contrário, não me matares aqui e agora, o que acontecerá? Tu limitas-te a sair deste local, e eu continuarei na minha vida. Nesse caso, o Povo Pequeno usará de todos os poderes de que dispõe para eliminar o Tengo a fim de me proteger a mim, o representante deles. A capa protetora que ele enverga não é ainda suficientemente forte. Vão descobrir onde está o ponto fraco dele e fazer tudo o que puderem para o destruir, uma vez que não conseguem tolerar que o anticorpo se dissemine. Entretanto, tu deixas de constituir qualquer ameaça e cessa a razão para te castigarem. A escolha é tua.
– Nesse caso, o Tengo morre e eu sobrevivo. Neste mundo de 1Q84 – disse Aomame, resumindo o que o homem lhe explicara.
– Provavelmente – respondeu.
– Mas não tenho razão para viver num mundo onde o Tengo não exista, porque a possibilidade de nos encontrarmos se perderá para sempre.
– Do teu ponto de vista, pode ser que assim seja.
Aomame mordeu o lábio com força, enquanto imaginava a situação.
– Mas eu só tenho o que me conta – sublinhou. – Por que razão deverei acreditar em si? Tenho algum fundamento ou prova?
O homem abanou a cabeça.
– Tens toda a razão. Não há nem fundamento nem provas. Só tens o que te digo. Mas, ainda há pouco, verificaste os meus poderes especiais. Aquele relógio não está preso a fios nenhuns e é muito pesado. Vai até lá ver por ti. Tens duas hipóteses: acreditar no que te digo ou não. Decide. Já não nos resta muito tempo.
Aomame olhou para o relógio pousado na cómoda. Os ponteiros indicavam que faltava pouco para as nove. O relógio estava um tanto fora do sítio. Ligeiramente esquinado, onde ficara depois de ter levitado e caído.
O homem prosseguiu:
– Neste momento, no ano 1Q84 parece não haver forma de vos salvar aos dois ao mesmo tempo. Tens duas hipóteses de escolha. Numa delas, é provável que morras e que o Tengo sobreviva. Na outra, é provável que morra ele e tu vivas. Como já disse, não é uma alternativa simpática.
– Mas não existe uma terceira possibilidade de escolha.
O homem abanou a cabeça.
– Neste momento, só podes escolher entre estas duas.
Aomame inspirou profundamente, enchendo os pulmões de ar, e exalou devagar.
– É uma pena – disse o homem. – Se tivesses ficado no ano de 1984, não estarias agora a ter de enfrentar esta escolha. Mas, ao mesmo tempo, se tivesses permanecido em 1984, é certo e sabido que nunca ficarias ciente de que o Tengo continua a pensar em ti. Foi precisamente por teres sido transportada para 1Q84 que pudeste tomar conhecimento da verdade. Tiveste consciência dos laços que unem os vossos corações.
Aomame fechou os olhos.
Não vou chorar. Ainda não é o momento de chorar.
– O Tengo pensa realmente em mim? Pode jurar que é verdade, sem mentir?
– Até hoje, o Tengo nunca amou profundamente ninguém a não ser a ti. É um facto. Não resta a menor dúvida.
– Mesmo assim, nunca foi à minha procura.
– Bom, tu também não foste à procura dele, não é verdade?
Aomame fechou os olhos e, numa fração de segundo, reviveu todo o seu longo passado, como se estivesse à beira de um precipício, a olhar para o oceano, lá muito abaixo. Sentia o odor do mar. Conseguia ouvir o profundo suspirar do vento.
Falou:
– Penso que devíamos ter tido a coragem de procurarmos um pelo outro há muito tempo. Poderíamos ter-nos unido no mundo original.
– Pelo menos em teoria, sim – respondeu o homem. – Mas tu nunca sequer pensaste em tal coisa no mundo de 1984. Causa e efeito estão ligados dessa forma tortuosa. Poderás sobrepor quantos mundos queiras e esse desacerto permanecerá sempre por desfazer.
As lágrimas saltaram dos olhos de Aomame. Chorou por tudo o que perdera. Chorou por tudo o que estava prestes a perder. E, a dado momento – quanto tempo teria chorado? – chegou a um ponto em que foi incapaz de chorar mais. As lágrimas secaram como se as suas emoções tivessem embatido numa parede invisível.
– Muito bem – disse Aomame. – Não existe uma base sólida. Nada se provou. Não compreendo todos os pormenores. Mesmo assim, parece que tenho de aceitar a sua oferta. Fá-lo-ei desaparecer deste mundo, como deseja. Oferecer-lhe-ei uma morte rápida e indolor para que o Tengo continue a viver.
– Quer isso dizer que aceitas a minha proposta?
– Sim. Temos um pacto.
– Sabes que é muito provável que morras? – disse o homem. – Vão perseguir-te e castigar-te. E o castigo será atroz. São fanáticos.
– Não importa.
– Porque amas.
Aomame assentiu com a cabeça.
– «Sem o teu amor, é uma charanga ruidosa» – declamou o homem. – Como na canção.
– Tem a certeza de que o Tengo continuará vivo se eu o matar?
Por um momento, o homem ficou em silêncio. A seguir, disse:
– O Tengo continuará vivo. Podes confiar na minha palavra. É o mínimo que te posso conceder, em troca da minha vida.
– E da minha também – disse Aomame.
– Há coisas que só podem ser feitas em troca de vidas – afirmou o homem.
Aomame fechou os punhos.
– Contudo, para dizer a verdade, teria preferido ficar viva e unir-me ao Tengo.
No quarto sobreveio um breve silêncio. Até mesmo o ribombar dos trovões parou. Tudo ficou em silêncio.
– Quem me dera poder ajudar-te – disse o homem, baixinho. – Infelizmente, não existe essa opção. Não existia em 1984, tal como não existe em 1Q84, se bem que por razões diversas.
– Os nossos caminhos nunca se cruzariam, o do Tengo e o meu, em 1984? É isso que está a dizer?
– Precisamente. Nunca teriam qualquer contacto, mas é provável que continuassem a pensar um no outro à medida que fossem chegando à solidão da velhice.
– Mas em 1Q84 posso, pelo menos, saber que morro por ele.
O homem respirou profundamente, sem dizer uma palavra.
– Quero que me diga uma coisa – declarou Aomame.
– Se puder – respondeu o homem, estendido de barriga para baixo.
– O Tengo alguma vez saberá que morri por ele? Ou nunca vai saber nada?
O homem ponderou a resposta com bastante calma.
– Provavelmente, dependerá de ti.
– De mim? – perguntou Aomame, com um ligeiro franzir de sobrancelhas. – O que quer dizer com isso?
O homem abanou a cabeça, devagar.
– Vais ter de passar por uma dura prova. Uma vez que o tenhas feito, deverás ser capaz de ver as coisas como elas são. É tudo o que te posso dizer. Ninguém sabe ao certo o que é morrer até morrer de facto.
Aomame agarrou numa toalha e, com todo o cuidado, limpou as lágrimas que ainda lhe corriam pela cara. Depois, examinou de novo o delgado picador de gelo que tinha na mão para se certificar de que a sua ponta finíssima não se quebrara. Com a ponta do indicador direito procurou de novo o ponto fatal na nuca do homem, tal como fizera antes. Encontrou-o de imediato, de tal forma estava vividamente impresso na sua mente. Exerceu uma leve pressão com a ponta do dedo, avaliou a resistência e tornou a assegurar-se de que a sua intuição não estava errada. Fez várias respirações lentas e profundas para acalmar o ritmo cardíaco e controlar a excitação dos seus nervos. Tinha de ter a mente perfeitamente clara. Afastou todos os pensamentos acerca de Tengo. Encerrou num espaço separado todos os sentimentos de ódio, ira, confusão e piedade. O erro não era aceitável. Tinha de concentrar a sua atenção na morte em si mesma, como se estivesse a focar um delgado raio de luz.
– Terminemos a nossa tarefa – disse Aomame, baixinho. – Tenho de o deslocar deste mundo.
– E deixarei para trás toda a dor que me foi concedida.
– Deixará para trás toda a dor, o Povo Pequeno, um mundo transformado, essas hipóteses... e o amor.
– E o amor. Tens razão – concordou o homem, como se falasse para si próprio. – Outrora houve gente que amei. Muito bem, que cada um de nós termine a sua tarefa. Uma coisa te digo, Aomame, és uma pessoa terrivelmente talentosa.
– O senhor também – respondeu Aomame. A voz dela adquirira a estranha transparência da pessoa que vai matar. – Também o senhor é uma pessoa talentosa, superior. Tenho a certeza de que deve ter existido um mundo onde eu não tenha tido de o matar.
– Esse mundo já não existe – disse o homem. Foram as últimas palavras que proferiu.
Esse mundo já não existe.
Aomame apoiou a ponta aguda naquele ponto subtil da nuca dele. Concentrando toda a sua atenção, ajustou o ângulo do picador de gelo. Ergueu então o punho direito no ar. Reteve a respiração e aguardou um sinal.
Nada de me pôr a pensar. Que cada um de nós termine a sua tarefa. É tudo. Não há necessidade de pensar, não são precisas explicações. Basta esperar pelo sinal.
O seu punho estava duro como uma rocha, desprovido de sentimentos.
Na rua, do lado de fora da janela, um trovão ribombava com uma força cada vez maior. As gotas de chuva fustigavam o vidro. Encontravam-se os dois numa caverna antiga – uma caverna escura, húmida, com o teto baixo. Bestas e espíritos obscuros rodeavam a entrada. Num brevíssimo instante, em torno dela, luz e sombra fundiram-se numa só. Uma rajada de vento sem nome varreu o canal distante. Era o sinal. Aomame fez descer o punho, num movimento breve e preciso.
Tudo terminou em silêncio. As bestas e os espíritos soltaram um suspiro profundo, interromperam o seu cerco e regressaram às profundezas da floresta que perdera o coração.
9 «Sem o teu amor, é uma charanga ruidosa». (N. das T.)
14
TENGO
Pôr-lhe um embrulho nas mãos
– Vem aqui e abraça-me – pediu Fuka-Eri. – Temos de voltar os dois à cidade dos gatos mais uma vez.
– Abraçar-te? – perguntou Tengo.
– Não queres abraçar-me – perguntou Fuka-Eri sem usar o ponto de interrogação.
– Não, não é isso. É só que... não percebi bem o que disseste.
– Será uma purificação – informou-o ela, numa voz inexpressiva. – Vem abraçar-me. Veste também o pijama e apaga a luz.
Tengo apagou a luz do quarto, como lhe tinha sido pedido. Despiu-se, agarrou no pijama e vestiu-o. Enquanto o vestia, pensou: Quando foi a última vez que o lavei?
Uma vez que não se lembrava, devia ter sido há bastante tempo. Por felicidade, não cheirava a suor. Tengo não costumava transpirar com frequência e não tinha um odor corporal muito intenso.
Mesmo assim, devia lavar o pijama mais frequentemente. A vida é uma enfiada de surpresas: nunca se sabe o que vai acontecer a seguir. Mais vale prevenir e ter sempre o pijama lavado.
Enfiou-se na cama e, timidamente, passou os braços em torno de Fuka-Eri, que pousou a cabeça no braço direito de Tengo. Ali ficou, muito quieta, como um animal em hibernação. O seu corpo era quente e tão suave que parecia absolutamente indefeso. Mas ela não estava a transpirar.
Os trovões aumentaram de intensidade, então começou a chover. Como num ataque de fúria, as gotas de chuva batiam com toda a força, enviesadas, contra os vidros das janelas. O ar estava húmido e pegajoso e dava a impressão de que o mundo escorria direito a um final obscuro. Devia ter sido esta a sensação durante o dilúvio de Noé. Em tal caso, não havia dúvidas de que entrar numa arca tão pequena em plena tempestade com casais de rinocerontes, leões, pitões, e por aí fora, deve ter sido bastante deprimente. Os hábitos de vida de cada par seriam todos diferentes, os recursos de comunicação muito limitados e os odores dos animais bastante intensos.
A palavra «par» trouxe à cabeça de Tengo o casal Sonny e Cher, mas Sonny e Cher não eram certamente os espécimes mais apropriados a incluir na arca de Noé, com o intuito de preservar a humanidade. Se bem que, simultaneamente, não devessem ser também os menos apropriados.
Deve existir outro casal qualquer que represente melhor a raça humana.
Tengo sentia-se estranho, abraçado a Fuka-Eri na cama, tendo ela o seu pijama vestido. Ele até sentia que estava a abraçar uma parte de si próprio, como se estivesse agarrado a alguém com quem partilhasse corpo e odor corporal e cuja mente estava ligada à sua.
Tengo imaginou os dois como tendo sido o par escolhido para embarcar na arca de Noé em vez de Sonny e Cher.
Mas nem mesmo eles poderiam ser considerados os representantes mais apropriados.
Seja lá como for, o simples facto de estarmos os dois abraçados na cama desta maneira está longe de ser apropriado.
Aquele pensamento não o tranquilizou minimamente. Muito pelo contrário. Em vez disso, Tengo decidiu imaginar que, uma vez dentro da arca, Sonny e Cher se tinham tornado bons amigos do casal de pitões. Era uma imagem absolutamente inútil, mas ajudou-o a diminuir a tensão que sentia no corpo.
Repousando nos braços de Tengo, Fuka-Eri não dizia uma palavra. Não se mexeu nem abriu a boca. Tengo também se manteve em silêncio. Mesmo estando abraçado a Fuka-Eri na cama, ele não sentia nada a que se pudesse chamar desejo sexual. Para Tengo, o desejo sexual era fundamentalmente uma extensão de uma forma de comunicar. Por isso, procurar desejo sexual num local onde não existia possibilidade de comunicação parecia-lhe desadequado. Além do mais, percebeu que Fuka-Eri não estava à procura do desejo sexual dele. Estava à procura de uma outra coisa, mas ele ignorava o que seria.
Fosse qual fosse o propósito, o simples ato de ter nos braços uma bonita rapariga de dezassete anos não era minimamente desagradável. De vez em quando, a sua orelha aflorava o rosto dele. A cálida respiração dela aquecia-lhe o pescoço. Os seus seios eram inusitadamente grandes e firmes para uma rapariga com um corpo tão esguio. Sentia-os pressionando-se contra o seu peito, na zona acima do estômago. Da pele dela desprendia-se uma fragrância maravilhosa. Era o odor especial da vida, que só se desprende de carne ainda em processo de formação, como o aroma das flores carregadas de orvalho, no início do estio. Muitas vezes sentira aquele cheiro quando, de manhã, ainda aluno do básico, ia a caminho das aulas de ginástica radiofónicas, que todos os verões eram organizadas para as crianças do bairro.
Espero não ter nenhuma ereção.
Se tivesse uma ereção, ela sabê-lo-ia instantaneamente, dadas as suas posições relativas. Se tal acontecesse, as coisas poderiam tornar-se um tanto desconfortáveis. Com que palavras e em que contexto explicaria a uma rapariga de dezassete anos que, por vezes, as ereções acontecem, mesmo não sendo diretamente provocadas por um desejo sexual? Por sorte, ainda não acontecera, nem sequer havia sinais de tal vir a ocorrer.
Tenho de parar de pensar em cheiros. Tenho de concentrar a minha mente em coisas que tenham o mínimo possível que ver com sexo.
Voltou a pensar no convívio entre Sonny e Cher e os dois pitões. Arranjariam tema de conversa? Se sim, que tipo de temas? Por fim, quando a sua capacidade de imaginar a arca no meio da tempestade ruiu, tentou fazer multiplicações mentais de números com três dígitos. Era frequente usar este truque enquanto fazia amor com a sua amante mais velha. Permitia-lhe atrasar a ejaculação (e ela era muito exigente no que tocava ao momento da ejaculação). Tengo não sabia se também resultaria para evitar uma ereção, mas era melhor do que não fazer nada. Tinha de fazer qualquer coisa.
– Não faz mal se ficares rijo – disse Fuka-Eri como se lesse o que lhe ia na cabeça.
– Não te importas?
– Não tem nada de mal.
– Não tem nada de mal – disse Tengo, fazendo eco das palavras dela. Pareço um miúdo do básico numa aula de educação sexual. «Vá lá, meninos, ter uma ereção não é vergonha nem está errado. Mas é claro que têm de escolher a altura e a ocasião certas.»
– Diz-me, a purificação já começou? – perguntou Tengo, tentando mudar de assunto.
Fuka-Eri não respondeu. O pequeno e bonito ouvido dela parecia querer captar um som qualquer por entre o estrondo da trovoada. Tengo deu-se conta disso, pelo que decidiu não dizer mais nada. Também desistiu de fazer multiplicações com números de três dígitos.
Se a Fuka-Eri não se importa, que diferença faz se eu ficar duro?
Fosse como fosse, o seu pénis não dava qualquer sinal de movimento. Por enquanto, estava tranquilamente aninhado numa espécie de lodaçal pacífico.
– Gosto do teu coiso – tinha-lhe dito a amante. – Gosto do feitio, da cor e do tamanho.
– Não sou louco por ele – respondera Tengo.
– Porque não? – perguntara ela, fazendo deslizar a palma da mão por baixo do pénis flácido de Tengo, como se sopesasse um animal de estimação adormecido.
– Não sei – retorquira Tengo. – Provavelmente porque não fui eu que o escolhi.
– És tão estranho – dissera ela. – Tens uns pensamentos muito estranhos.
Fora há muito, muito tempo. Antes do dilúvio universal, provavelmente.
A respiração cálida e silenciosa de Fuka-Eri acariciava o pescoço de Tengo a um ritmo regular. Ele via a orelha dela à luz esverdeada e pálida do relógio elétrico ou de um ou outro relâmpago esporádico, que tinham finalmente começado a cair. A orelha parecia uma caverna secreta e macia.
Se esta rapariga fosse minha amante, é provável que nunca me cansasse de a beijar ali. Enquanto estivesse dentro dela, beijaria esta orelha, mordiscá-la-ia, passaria a minha língua por ela, respiraria lá para dentro, inalaria a sua fragrância. Não que o queira fazer agora.
Não passava tudo de uma fantasia momentânea, assente na mais pura das hipóteses, relacionada com o que ele faria se ela fosse sua amante. Em termos morais, não havia nada de que se envergonhar... provavelmente.
Mesmo que implicasse uma questão moral, ele não devia ter pensado naquilo. O pénis de Tengo começara a despertar do seu tranquilo sono no lodo, como se um dedo o tivesse abanado. Soltou um bocejo e, devagar, ergueu a cabeça, ficando gradualmente mais duro, até, qual iate cujas velas incham com um forte vento de nordeste, alcançar uma ereção plena e sem reservas. Em resultado disto, não houve forma de evitar que o pénis intumescido se comprimisse contra a anca de Fuka-Eri. Dentro da sua cabeça, Tengo soltou um profundo suspiro. Há mais de um mês, desde que a sua amante desaparecera, que ele não tinha sexo. Provavelmente era essa a causa. Devia ter continuado a fazer multiplicações com números de três dígitos.
– Não deixes que te perturbe – disse Fuka-Eri. – É normal teres uma ereção.
– Obrigado – respondeu Tengo. – Mas talvez o Povo Pequeno esteja por aí a ver.
– Só a ver. Não podem fazer nada.
– Que bom – respondeu Tengo, pouco tranquilo. – Mas incomoda-me pensar que estou a ser observado.
De novo um relâmpago dividiu o céu em dois, como se fosse uma velha cortina a rasgar-se, e o trovão fez tremer violentamente o vidro da janela, como se estivessem a tentar, de facto, fazer a janela em fanicos. Parecia que o vidro iria estilhaçar-se dentro de pouco tempo. A janela tinha um caixilho de alumínio, forte, mas podia não aguentar durante muito tempo os abanões violentos e contínuos. Os grandes pingos de chuva continuaram a fustigar o vidro como balas a atingir um veado.
– Parece que os relâmpagos mal se mexem – disse Tengo. – Raramente as trovoadas duram tanto...
Fuka-Eri olhou para o teto.
– Não vai a lado nenhum durante algum tempo.
– Quanto tempo é «algum tempo»?
Fuka-Eri não lhe deu resposta. Apreensivo, Tengo continuou abraçado a Fuka-Eri, com uma pergunta sem resposta e uma ereção inútil, ambas intactas.
– Vamos ter de ir outra vez à cidade dos gatos – disse Fuka-Eri. – Por isso, temos de dormir.
– Achas que conseguimos dormir com esta trovoada? E pouco passa das nove – disse Tengo, ansioso.
Começou então a pensar em problemas matemáticos. Eram problemas que incluíam fórmulas longas e complexas, de que já sabia a solução. O desafio consistia em descobrir a forma mais rápida e curta de chegar à resposta. Não perdeu tempo e pôs a mente a funcionar, esforçando o cérebro até ao limite. Mas isto em nada ajudou a diminuir a sua ereção. Muito pelo contrário, tinha a impressão de que estava cada vez mais teso.
– Podemos dormir – disse Fuka-Eri.
E tinha razão. Apesar de estarem no meio de uma terrível chuvada, rodeados de trovões que faziam o edifício chocalhar, e atormentado pelos seus nervos sobre-excitados e uma ereção casmurra, antes de se dar conta disso, Tengo deslizou para o sono. Não acreditava que tal fosse possível, mas, mesmo assim...
É o caos total, pensou, mesmo antes de adormecer. Tenho de descobrir o caminho mais curto para a solução. Estou a ficar sem tempo e a folha de exame que distribuíram tem pouco espaço.
Tic-tac, tic-tac. Como lhe competia, o relógio marcava o tempo.
Quando acordou, estava nu, e Fuka-Eri também. Completa e absolutamente nus. Nada os cobria. Os seios dela tinham a linha maravilhosa de dois hemisférios perfeitos. Dois hemisférios impecáveis. Os mamilos, não demasiadamente grandes, eram suaves, ainda buscando a maturidade vindoura. Contudo, os seios eram grandes e plenamente maduros. Pareciam não sofrer a mais ínfima influência da força da gravidade, e os mamilos viravam-se para cima, de uma forma bonita, como os tenros rebentos da trepadeira buscando a luz do Sol. Logo a seguir, Tengo tomou consciência de que Fuka-Eri não tinha pelos púbicos. No sítio onde deveriam estar, existia apenas uma suave pele, branca e nua. A alvura da pele acentuava o seu ar indefeso. Tinha as pernas abertas, deixando ver a vagina. Tal como a orelha que estivera a observar, parecia que tinha sido feita poucos segundos antes. E talvez tivesse mesmo sido feita poucos segundos antes. Uma orelha e uma vagina acabadas de fazer são muito parecidas, pensou Tengo. Ambas pareciam revirar-se para fora, como se tentassem escutar qualquer coisa com a maior atenção – uma campainha distante, talvez.
Estava deitado de barriga para cima, a olhar para o teto. Fuka-Eri estava por cima dele. Todavia, a ereção de Tengo mantinha-se. A trovoada também continuava. Até quando duraria? E como trovejava! Por essa altura, o céu não estaria, por acaso, já em fanicos, estragado a ponto de não poder ser reparado?
De repente, percebeu: Eu estava a dormir. Adormecera com a ereção, e assim continuava. Teria ficado naquele estado durante todo o sono, ou seria uma segunda ereção, surgida depois de ter acalmado da primeira (tal como o segundo governo do ministro Fulano-de-Tal)?
Quanto tempo terei dormido? Que diferença faz? Ainda estou com a ereção, que não dá sinais de acabar. Nem o Sonny e a Cher nem a multiplicação de números com três dígitos conseguiram terminar com ela.
– Não me importo – disse Fuka-Eri. Tinha as pernas abertas e estava a pressionar a sua vagina acabada de fazer contra a barriga dele. Na voz dela não descortinou qualquer sinal de embaraço. – Ficar teso não é mau – acrescentou.
– Não consigo mexer o corpo – disse ele. Era verdade. Tentou levantar-se mas não foi capaz de mexer um dedo. Sentia o corpo – sentia o peso do corpo de Fuka-Eri sobre o seu, sentia a solidez da sua ereção –, mas tinha o corpo pesado e rígido como se tivesse sido preso à cama por qualquer coisa.
– Não precisas de te mexer – respondeu Fuka-Eri.
– Mas eu tenho necessidade de me mexer. Trata-se do meu corpo – respondeu Tengo.
Fuka-Eri não deu resposta.
Tengo nem sequer conseguia ter a certeza de que o que estava a dizer vibrava no ar, feito sons vocais. Não tinha a sensação de que os músculos à volta da sua boca estivessem a mexer-se e a formar as palavras que se esforçava por pronunciar. Não sabia como, as coisas que queria dizer estavam a ser transmitidas a Fuka-Eri, mas a comunicação entre os dois parecia uma chamada telefónica de longa distância com problemas de ligação. Ela, pelo menos, conseguia desenvencilhar-se sem ouvir o que não precisava de ouvir, mas Tengo não.
– Não te preocupes – disse Fuka-Eri, fazendo descer o seu corpo, devagar. O significado do movimento dela era claro. Os seus olhos adquiriram um certo brilho, de uma cor que ele nunca vira antes.
Parecia impossível que o seu pénis adulto fosse capaz de penetrar naquela pequena vagina recém-criada. Era demasiado grande, demasiado duro. A dor seria imensa. Mas, antes de dar por isso, já estava completamente dentro dela. Não oferecera qualquer resistência. A expressão do rosto de Fuka-Eri manteve-se inalterada enquanto o fez entrar dentro de si. A respiração da rapariga ficou um pouco mais agitada, e o ritmo a que os seus seios subiam e desciam alterou-se ligeiramente durante uns cinco ou seis segundos, mas foi tudo. A não ser isso, tudo mais decorreu de forma natural e lógica, parecendo fazer parte do quotidiano.
Ficaram imóveis, Fuka-Eri acolhendo Tengo no mais fundo de si e Tengo acolhido no mais fundo de Fuka-Eri. Ele continuava incapaz de mover o corpo, e ela, de olhos fechados, espetada nele como um para-raios, mantinha-se quieta. Ele via a boca dela ligeiramente aberta, com os lábios a desenharem pequenos movimentos, como se tenteassem o espaço para dar forma a palavras. Além disto, ela não revelava qualquer outro movimento. Parecia estar a manter a posição, à espera de que acontecesse qualquer coisa.
Tengo foi assaltado por uma intensa sensação de impotência. Mesmo pressentindo que se ia passar algo, não fazia a mínima ideia do que podia ser e não tinha como controlá-lo. O seu corpo não sentia nada. Não conseguia mexer-se. Mas o seu pénis sentia – ou melhor, em vez de sentir, tinha algo que podia aproximar-se mais de um conceito. Fosse como fosse, ele dizia-lhe que estava dentro de Fuka-Eri e que tinha uma ereção perfeita. Não deveria usar preservativo? Começou a ficar preocupado. Seria um grande problema se ela engravidasse. A sua amante mais velha era muito rigorosa no que tocava à contraceção e ensinara Tengo a ser igualmente rigoroso.
Tentou o mais que pôde pensar noutras coisas, mas, na realidade, não foi capaz de pensar em mais nada. Estava num caos. E, nesse caos, o tempo parecia ter parado. Mas o tempo nunca se detém. Era uma impossibilidade teórica. Talvez tivesse apenas perdido a sua uniformidade. Pensando a longo prazo, o tempo avançava a um ritmo constante. Quanto a isso, não havia dúvidas. Mas, se tomasse um período específico, era possível que deixasse de ser regular. Nesses períodos de momentânea frouxidão, coisas como a ordem e a probabilidade perdiam todo o sentido.
– Tengo – chamou Fuka-Eri. Ela nunca o tinha chamado pelo primeiro nome. Repetiu: – Tengo – como se estivesse a praticar a pronúncia de uma palavra estrangeira.
Porque é que, assim de repente, está a chamar pelo meu nome?
Tengo estava perplexo. Lentamente, Fuka-Eri inclinou-se para a frente, aproximando a sua cara da dele. Os seus lábios, antes entreabertos, estavam agora completamente abertos, e a sua língua macia e fragrante penetrou na boca dele, onde deu início a uma incessante busca de palavras por formar, do código secreto aí gravado. Inconscientemente, a língua de Tengo correspondeu a este movimento e, dentro de pouco tempo, as suas línguas pareciam duas jovens cobras num prado primaveril acabadas de despertar do seu período de hibernação e que, sentindo os odores mútuos, se entrelaçavam avidamente uma na outra.
Depois, Fuka-Eri estendeu a mão direita e agarrou na mão esquerda de Tengo. Agarrou-a com força, como se a quisesse enfiar na sua. As pequenas unhas enterraram-se-lhe na palma da mão. Então, pondo fim ao seu intenso beijo, ela endireitou-se.
– Fecha os olhos.
Tengo fez o que ela mandou. Por trás dos seus olhos cerrados encontrou um espaço profundo, sombrio – tão fundo que parecia estender-se até ao centro da Terra. Nesse espaço penetrou uma luz que lembrava o crepúsculo, um daqueles crepúsculos doces e nostálgicos, que ocorrem no final de dias muito, muito compridos. Viu, suspensas na luz, incontáveis partículas finíssimas e minúsculas – quiçá pó, ou pólen, ou outra coisa completamente diferente. Ao fim de um bocado, as profundezas começaram a contrair-se, a luz foi ficando mais brilhante e os objetos que o rodeavam tornaram-se visíveis.
Quando deu por si, tinha dez anos e estava numa sala de aulas da primária. Era um tempo real e um espaço real. A luz era real, bem como ele próprio com dez anos. Sentia realmente o cheiro da madeira envernizada e do pó do giz no apagador. Na sala estavam apenas ele e aquela menina. Não havia mais nenhuma criança. Ela tinha aproveitado aquela oportunidade com rapidez e determinação. Ou talvez a esperasse há muito tempo. Fosse como fosse, ali, de pé, ela estendeu a mão direita e agarrou a mão esquerda de Tengo, olhando-o olhos nos olhos.
Sentiu a boca seca. A humidade que aí havia existido desaparecera. Foi tudo tão súbito, que não fazia a mínima ideia do que dizer ou fazer. Limitou-se a ficar ali, deixando que a rapariga lhe apertasse a mão. Ao fim de um bocado, vindo do mais íntimo do seu ventre, começou a sentir um pulsar ténue mas profundo. Não era nada parecido com alguma coisa que tivesse sentido outrora; era antes um pulsar parecido com o distante troar das vagas. Ao mesmo tempo, chegavam-lhe aos ouvidos sons reais – pela janela aberta entravam os gritos das crianças, o som de um pontapé numa bola de futebol, um bastão a entrar em contacto com uma bola, as queixas estridentes de uma rapariga de uma turma das mais novas, as notas incertas de um grupo de flautas de bisel a praticar «A Última Rosa do Verão». Atividades extracurriculares.
Pensou em agarrar, por sua vez, a mão da rapariga com o mesmo vigor, mas a energia não aparecia na sua mão. Em parte porque a força da rapariga era demasiada. Mas Tengo também se apercebeu de que estava incapaz de se mover. Porque seria? Não conseguia mexer nem um dedo, como se estivesse completamente paralisado.
Parece que o tempo parou. Respirou com calma, escutando a sua própria respiração. O fragor do mar continuava. De repente, tomou consciência de que todos os sons reais haviam cessado. O pulsar no seu ventre transformara-se em algo diferente, algo mais limitado, e dentro de pouco tempo começou a sentir um tipo especial de formigueiro. Por sua vez, este formigueiro transformou-se numa substância fina, pulverulenta, que se misturou no seu sangue, quente e vermelho, e, devido ao impulso do incansável coração, correu nas suas veias por todos os recantos do seu corpo. No peito formou-se-lhe uma nuvem densa, alterando-lhe o ritmo da respiração e imprimindo maior solidez ao bater do coração.
Tenho a certeza de que virei a ser capaz de compreender o significado e o propósito deste incidente. Ora, o que tenho de fazer para que isto aconteça é registar este instante na minha mente, com o maior rigor possível.
Naquele preciso momento, de novo Tengo não passava de um miúdo de dez anos que, por acaso, era bom a matemática. À sua frente erguia-se uma nova porta, mas não sabia o que o esperaria do outro lado. Sentia-se impotente e ignorante, estava emocionalmente confuso e não pouco receoso. Isto sabia ele. E a rapariga, pela sua parte, não albergava qualquer esperança de ser compreendida aqui e agora. A única coisa que desejava era garantir que os seus sentimentos chegassem até Tengo, enfiados numa caixinha sólida, embrulhada numa imaculada folha de papel e atada com um cordel fino. Estava a pôr um embrulho assim nas mãos dele.
Sem palavras, a rapariga dizia-lhe: Não tens de abrir o embrulho aqui e agora. Abre-o quando for tempo. Agora, só tens de o aceitar.
Ela já sabe todo o tipo de coisas, pensou Tengo.
Eram coisas que ele ainda nem sequer sabia. Era ela quem liderava nesta nova arena. Havia novas regras, novas metas e novas dinâmicas. Tengo não sabia nada.
Mas ela sabe.
Ao fim de um bocado, ela soltou a mão esquerda de Tengo, que ainda apertava na sua mão direita, e, sem proferir uma única palavra ou olhar para trás, abandonou, apressada, a grande sala de aulas. Tengo ficou ali, sozinho. Pela janela aberta chegava o som das vozes de crianças.
Logo a seguir, Tengo apercebeu-se de que estava a ejacular. O violento espasmo prolongou-se por vários segundos, libertando uma grande quantidade de sémen num jorro enérgico.
Para onde vai o meu sémen?
A mente confusa de Tengo interrogava-se. Ejacular assim, na sala de aulas de uma escola primária, não era adequado. Se alguém o visse, era capaz de se meter em sarilhos. Mas já não estava na sala de aulas. Naquele instante, tomou consciência de que se encontrava dentro de Fuka-Eri, a ejacular para o útero dela. Não o fizera por vontade própria. Mas não tivera como o evitar. Tudo tinha acontecido sem que conseguisse ter algum controlo.
– Não te preocupes – disse Fuka-Eri, na sua habitual voz sem inflexão, alguns instantes mais tarde. – Não vou ficar grávida. Ainda não tenho o período.
Tengo abriu os olhos e fitou Fuka-Eri. Estava montada nele, com os olhos baixos. Os seios perfeitos dela estavam à sua frente, movendo-se ao ritmo calmo e regular da sua respiração.
Tengo queria perguntar se era isto o que significava «ir à cidade dos gatos». Que tipo de local era a cidade dos gatos? Tentou traduzir a pergunta em palavras reais, mas os músculos da sua boca recusavam mexer-se.
– Foi necessário – disse Fuka-Eri, como que em resposta aos pensamentos de Tengo. Como de costume, deu-lhe uma resposta concisa e que, ao mesmo tempo, não respondia a nada.
Tengo voltou a fechar os olhos. Tinha ido até lá, ejaculara e regressara aqui. Havia sido uma ejaculação real que soltara sémen real. Se Fuka-Eri dizia que fora necessário, então de certeza que o era. O corpo de Tengo, ainda paralisado, mantinha-se insensível. E a lassidão que se seguia à ejaculação envolvia-lhe o corpo como uma membrana finíssima.
Fuka-Eri manteve-se na mesma posição durante muito tempo, espremendo com eficácia até à última gota o sémen de Tengo, como um inseto que suga o néctar de uma flor. Literalmente, não deixou uma única gota. A seguir, libertou-se do pénis de Tengo e, sem dizer palavra, saiu da cama e foi para a casa de banho. Tengo tomou consciência de que a trovoada parara. O violento aguaceiro também parara sem que se apercebesse. As nuvens carregadas, que tinham pairado de forma tão teimosa sobre eles, haviam desaparecido sem deixar rasto. O silêncio era quase irreal. Só ouvia o vago ruído de Fuka-Eri no chuveiro. Tengo ficou a olhar para o teto, à espera de que o seu corpo recuperasse a sensibilidade. Mesmo depois de ter ejaculado, a sua ereção mantinha-se, se bem que estivesse ligeiramente mais flácido.
Parte da sua mente permanecia ainda naquela sala de aulas. Na sua mão esquerda continuava vívido o toque dos dedos da rapariga. Não conseguia levantar a mão para verificar, mas a sua palma ainda devia mostrar as marcas vermelhas das unhas dela. O pulsar do seu coração ainda retinha vestígios de excitação. Dentro do seu peito, a nuvem compacta desvanecera-se, mas o seu espaço imaginário perto do coração ainda se lamentava, numa dor surda mas agradável.
Aomame. Tenho de ver a Aomame. Tenho de a descobrir. Porque é que levei tanto tempo a perceber uma coisa tão óbvia? Ela entregou-me aquele embrulho precioso. Porque é que o pus de lado, sem o abrir, durante este tempo todo?
Quis abanar a cabeça, mas era algo que não podia fazer. O seu corpo ainda não recuperara da paralisia.
Fuka-Eri regressou ao quarto quase logo a seguir. Com uma toalha enrolada à volta do corpo, sentou-se na beira da cama.
– O Povo Pequeno parou de se agitar – disse, como um batedor frio e eficiente que transmite um relatório sobre as condições na frente de batalha. A seguir, usou a ponta de um dedo para desenhar no ar um pequeno círculo: um círculo perfeito, bonito, daqueles que um artista da Renascença italiana poderia traçar na parede de uma igreja, sem princípio nem fim. Por um instante, o círculo pairou no ar. – Está feito.
Tendo dito isto, a rapariga pôs-se de pé e largou a toalha. Completamente nua, ali permaneceu como se estivesse a secar o corpo ao ar, naturalmente. Constituía uma visão encantadora: os seios suaves, o baixo-ventre despido de pelos púbicos.
Dobrou-se e apanhou o pijama do chão, do sítio onde havia caído, e vestiu-o diretamente sobre a pele, sem roupa interior, abotoou a parte de cima e apertou o cordão das calças.
Na semiobscuridade do quarto, Tengo observou isto tudo como se estudasse um inseto a passar por uma metamorfose. O pijama de Tengo ficava-lhe demasiado grande, mas ela parecia sentir-se confortável. Fuka-Eri deslizou para dentro da cama, aninhou-se no seu espacinho e pousou a cabeça no ombro de Tengo. Ele sentia a forma da orelhinha da rapariga contra o seu ombro nu e o hálito quente dela na base do seu pescoço. Entretanto a paralisia começou a desaparecer, tal como a maré baixa quando chega a hora.
O ar ainda estava húmido mas já não desagradavelmente pegajoso. No exterior, os insetos começavam a cantar. Por essa altura, já a ereção de Tengo tinha desaparecido e o seu pénis começava a recolher-se de novo ao seu pacífico lodo. Parecia que as coisas tinham feito o seu percurso e o ciclo terminava. Um círculo perfeito fora desenhado no ar. Os animais tinham saído da arca e espalhavam-se, agora, pela terra por que ansiavam, cada par regressando ao local a que pertencia.
– É melhor dormires – disse ela. – Um sono pesado.
Dormir um sono pesado. Dormir e depois acordar. Que tipo de mundo verei amanhã?
– Ninguém tem resposta para isso – respondeu Fuka-Eri, lendo os pensamentos dele.
15
AOMAME
Chegou a hora dos fantasmas
Aomame tirou um cobertor extra do armário e estendeu-o por cima do homem corpulento. Pousou de novo um dedo na parte de trás do pescoço dele e confirmou que já não tinha realmente pulso. A pessoa a quem chamavam «Líder» partira para um outro mundo. Não tinha a certeza de que mundo seria, mas definitivamente não era 1Q84. Neste mundo, ele passara a ser aquilo que se designa por «o falecido». O homem cruzara a fronteira que divide a vida da morte e fizera-o sem causar o mínimo ruído, tivera apenas um fugaz tremor, como se tivesse sentido frio. Também não deitara uma única gota de sangue. Encontrava-se agora liberto de todo o sofrimento, ali deitado de barriga para baixo sobre a esteira de ioga azul. O trabalho dela decorrera com a rapidez e o rigor habituais.
Repôs a tampa sobre a agulha e guardou o picador de gelo dentro do estojo. Por sua vez, este foi enfiado dentro do saco de desporto. Retirou a Heckler & Koch da bolsa de plástico e enfiou-a na cintura das calças de treino, com a patilha de segurança destravada e uma bala na câmara. O metal duro encostado à coluna provocava-lhe uma sensação de tranquilidade. Aproximou-se da janela e fechou o cortinado pesado, mergulhando o quarto de novo na escuridão.
Agarrou no saco de desporto e dirigiu-se para a porta. Já com a mão na maçaneta, virou-se para deitar um último olhar ao homem corpulento estendido no quarto às escuras. Aparentava estar apenas adormecido, como quando o vira pela primeira vez. A própria Aomame era a única pessoa no mundo que sabia que já não estava vivo. Não, era provável que o Povo Pequeno também soubesse, razão pela qual tinham interrompido o trovejar. Sabiam que se tornara inútil continuar a mandar esse tipo de avisos. A vida do seu representante escolhido chegara ao fim.
Aomame abriu a porta e entrou na sala iluminada, desviando os olhos do foco de luz. Sem fazer barulho, fechou a porta. O Bola-de-Bilhar estava sentado no sofá, a beber café. Em cima da mesa via-se um bule de café e uma grande travessa cheia de sanduíches. Metade tinha já desaparecido. Perto encontravam-se duas chávenas de café limpas. O Rabo-de-Cavalo estava sentado numa cadeira rococó junto da porta, com as costas muito direitas, tal como dantes. Parecia que ambos os homens tinham passado o tempo todo naquela posição, sem falar. Era caso para dizer que naquela sala se respirava uma atmosfera contida.
Quando Aomame entrou, o Bola-de-Bilhar pousou a chávena no pires e, sem barulho, pôs-se de pé.
– Acabei – anunciou Aomame. – Já está a dormir. Demorou um bocado. Acho que foi uma grande carga para os músculos dele. Deixem-no dormir um bocado.
– Está a dormir?
– Profundamente – respondeu Aomame.
O Bola-de-Bilhar encarou Aomame. Os seus olhos mergulharam nos dela. Depois, fez deslizar o olhar nela até aos pés e de novo para cima, como se procurasse possíveis irregularidades.
– E isso é normal?
– Há muita gente que reage assim e adormece depois de se ter libertado de tensões musculares extremas. Não é invulgar.
O Bola-de-Bilhar avançou até junto da porta do quarto, girou a maçaneta devagar e entreabriu-a apenas o suficiente para espreitar lá para dentro. Aomame pousou a mão direita na cintura das calças de treino, de forma a poder sacar da arma no segundo em que acontecesse qualquer coisa. O homem esteve cerca de dez segundos a avaliar a situação no quarto de cama até que, por fim, recuou a cara e fechou a porta.
– E vai ficar a dormir durante quanto tempo? – perguntou a Aomame. – Não podemos deixá-lo ficar ali estendido no chão durante horas.
– Deve acordar dentro de duas horas. Até lá, é melhor deixá-lo ficar naquela posição.
O homem olhou para o relógio e fez um pequeno gesto com a cabeça na direção de Aomame.
– Muito bem. Para já, vamos deixá-lo ficar – disse o Bola-de-Bilhar. – Queres tomar um duche?
– Não preciso de duche nenhum, deixem-me só trocar de roupa outra vez.
– Claro. Por favor, usa o lavabo.
Aomame teria preferido não trocar de roupa e sair dali o mais depressa possível, mas precisava de garantir que não ia levantar suspeitas aos dois homens. Mudara de roupa à chegada, pelo que deveria fazer o mesmo antes de sair. Foi para a casa de banho e despiu o fato de treino e a roupa interior suada, secou-se com um toalhão e vestiu roupa interior lavada e o conjunto de calças de algodão e blusa que trazia quando chegara. Enfiou a pistola no cinto de forma a não ficar visível. Experimentou movimentar o corpo em várias direções para se certificar de que nada aparentava estar fora do normal. Lavou a cara com água e sabonete e escovou o cabelo. Olhou para o grande espelho por cima do lavatório, franziu a cara várias vezes fazendo todos os trejeitos de que se lembrou para relaxar os músculos da face e aliviar a tensão. Ao fim de algum tempo a fazer isto, o rosto regressou ao normal. No fim de tantas e tão prolongadas caretas, precisou de alguns instantes para se lembrar de qual era a expressão habitual da sua própria cara, mas após algumas tentativas foi capaz de se decidir por uma razoável imitação. Olhando para o espelho, estudou pormenorizadamente a sua expressão.
Não há problema. Estou com a minha cara do costume. Se for preciso, até vou ser capaz de sorrir. As minhas mãos também não tremem. O olhar está firme. Sou a calma Aomame de sempre.
Todavia, o Bola-de-Bilhar tinha olhado atentamente para ela, quando abandonara o quarto de cama. Podia ter reparado nas marcas das lágrimas. Algum vestígio deveria existir, depois de toda aquela choradeira. Aomame sentiu-se pouco à vontade com a ideia. Ele devia ter estranhado que ela chorasse enquanto trabalhava os músculos de um cliente. Podia tê-lo feito desconfiar de que algo de estranho se tivesse passado. Podia ter aberto a porta do quarto, entrado para verificar o estado do Líder e ter descoberto que o seu coração parara...
Aomame levou a mão à cintura para verificar que chegava bem à coronha da pistola. Tenho de me acalmar. Não posso ter medo. O medo vai ver-se na minha cara e levantar suspeitas.
Resignando-se ao pior, Aomame pegou no saco de desporto com a mão esquerda e, com cautela, abandonou a casa de banho. A sua mão direita estava pronta para agarrar na pistola, mas não havia qualquer sinal fora do vulgar. O Bola-de-Bilhar permanecia de pé, no meio da sala, de braços cruzados, com os olhos semicerrados, absorto nos seus pensamentos. O Rabo-de-Cavalo mantinha-se sentado na sua cadeira, junto da porta, observando calmamente a sala. Tinha os olhos frios de um atirador encarregado da metralhadora num bombardeiro, habituado a estar sozinho, observando o céu azul, com os olhos a tingirem-se da cor do céu.
– Deves estar cansada – disse o Bola-de-Bilhar. – Queres um café? Também temos sanduíches.
– Obrigada, mas vou ter de recusar. Não consigo comer logo a seguir ao trabalho. O meu apetite só regressa mais ou menos uma hora depois.
O Bola-de-Bilhar assentiu com a cabeça. Então, tirou um gordo envelope do bolso de dentro do casaco. Após verificar o seu peso, estendeu-o a Aomame.
– Poderás comprovar que contém um pouco mais do que foi acordado. Como te disse anteriormente, insistimos em que mantenhas segredo acerca de tudo isto.
– Estão a comprar o meu silêncio? – brincou Aomame.
– Por causa do esforço extra que tiveste de fazer – disse o homem, sem a menor sombra de um sorriso.
– Tenho uma política de confidencialidade absoluta, independentemente do pagamento. Faz parte do meu trabalho. Em circunstância alguma sairá daqui uma única palavra – disse Aomame. Pôs o envelope por abrir dentro do saco de desporto. – Querem recibo?
O Bola-de-Bilhar abanou a cabeça.
– Não será necessário. Fica só entre nós. Não há necessidade de declarares isto nos impostos.
Em silêncio, Aomame concordou com a cabeça.
– Deves ter tido necessidade de fazer muita força – comentou o Bola-de-Bilhar, à cata de informações.
– Mais do que é habitual – disse ela.
– Porque ele não é uma pessoa vulgar.
– Assim parece.
– Ele é absolutamente insubstituível – afirmou. – Há muito tempo que suporta dores horríveis. Como se costuma dizer, ele tomou para si todo o nosso sofrimento e as nossas dores. Esperemos que, no mínimo, tenhas conseguido proporcionar-lhe algum alívio.
– Uma vez que desconheço a principal causa das suas dores, não posso garantir – respondeu Aomame, escolhendo as palavras com todo o cuidado –, mas penso que posso ter-lhe aliviado alguma dor.
O Bola-de-Bilhar anuiu.
– Pareces-me bastante cansada.
– Talvez – respondeu Aomame.
Durante a conversa entre Aomame e o Bola-de-Bilhar, o Rabo-de-Cavalo deixou-se ficar sentado, junto da porta, observando a sala sem dizer uma palavra.
O rosto estava imóvel, só os olhos se moviam. A sua expressão manteve-se inalterada. Aomame não fazia a mínima ideia se ele estava sequer a escutar a conversa. Isolado, taciturno, atento, continuava a procurar sinais de aviões inimigos entre as nuvens. Quando apareciam, começavam por ter o tamanho de sementes de papoila.
Após alguma hesitação, Aomame fez uma pergunta ao Bola-de-Bilhar:
– Posso estar a meter-me onde não sou chamada, mas beber café, comer sanduíches de fiambre, não são transgressões aos preceitos da vossa religião?
O Bola-de-Bilhar virou-se para observar o bule de café e a travessa de sanduíches que estavam em cima da mesa. O mais ténue dos sorrisos atravessou-lhe a cara.
– A nossa religião não tem preceitos assim tão rígidos. Em termos gerais, o álcool e o tabaco são proibidos, e existem algumas restrições em matéria de sexo, mas, no que diz respeito à comida, gozamos de uma relativa liberdade. Por regra, temos uma alimentação simples, mas o café e as sanduíches de fiambre não são especialmente proibidos.
Aomame limitou-se a concordar com a cabeça, mas não emitiu qualquer opinião.
– Somos uma congregação grande, pelo que é necessário existir um certo grau de disciplina, claro, mas, se nos focarmos excessivamente nas formalidades, arriscamo-nos a perder de vista o nosso propósito essencial. Os preceitos e as doutrinas são, em última análise, meros expedientes. O importante não é a moldura mas o que está no interior da moldura.
– E o vosso Líder dá-vos o conteúdo para completar a moldura.
– Precisamente. Ele consegue escutar vozes que nós não ouvimos. É uma pessoa especial. – O Bola-de-Bilhar olhou para Aomame olhos nos olhos, de novo. A seguir, disse: – Muito obrigado pelos teus esforços de hoje. E, felizmente, parece que a chuva parou.
– A trovoada foi horrível – disse Aomame.
– Pois foi. Muito – concordou o Bola-de-Bilhar, apesar de não parecer excessivamente interessado nos trovões e na chuva.
Aomame fez-lhe uma pequena vénia e dirigiu-se para a porta, com o saco na mão.
– Espera aí – a voz do Bola-de-Bilhar soou nas suas costas. Penetrante.
Aomame deteve-se no meio da sala e virou-se. O coração dela fez um som brusco e seco. Num gesto aparentemente descontraído, levou a mão direita à anca.
– A esteira de ioga – disse o jovem. – Estás a esquecer-te da tua esteira. Ainda está no chão do quarto.
Aomame sorriu.
– Ele está deitado em cima dela, a dormir profundamente. Não podemos afastá-lo para o lado e tirá-la de lá. Se quiseres, dou-ta. Não é cara e já tem muito uso. Se não precisares dela, deita-a fora.
O Bola-de-Bilhar ponderou a questão durante uns instantes e acabou por assentir com a cabeça.
– Renovo os meus agradecimentos. Deves estar muito cansada.
Quando Aomame se aproximou da porta, o Rabo-de-Cavalo pôs-se de pé e abriu-lha. Depois, curvou-se ligeiramente.
Este nunca disse uma única palavra.
Retribuiu a mesura e preparou-se para passar à sua frente.
Contudo, naquele preciso instante, foi assaltada por um impulso irresistível que penetrou na sua pele, como uma corrente elétrica fortíssima. A mão do Rabo-de-Cavalo voou como se fosse agarrar o braço direito dela. Deve ter sido um movimento rápido e preciso – como quando se apanha uma mosca no ar. Aomame teve uma clara sensação de ter acontecido ali mesmo. Todos os músculos do seu corpo ficaram tensos. A pele dela arrepiou-se e o coração saltou uma batida. Formou-se-lhe um nó na garganta e a coluna foi percorrida por insetos de gelo. A sua mente foi inundada por um jorro de luz branca, escaldante:
Se este homem me agarra o braço, não vou conseguir deitar a mão à pistola. A acontecer alguma coisa, estou perdida. E ele pressente. Pressente que fiz alguma coisa. A intuição dele reconhece que alguma coisa se passou neste quarto de hotel. Não sabe o que foi, mas é qualquer coisa que não devia ter acontecido. Os seus instintos estão a avisá-lo: «Tens de deter esta mulher», ordenam-lhe que me derrube, que atire todo o seu peso para cima de mim e me desloque os ombros. Mas não passa de uma intuição, não tem provas. Se a sensação que tem se provar errada, vai meter-se em grandes sarilhos. Passou por um conflito violento, mas desistiu. É o Bola-de-Bilhar que toma as decisões e dá as ordens. O Rabo-de-Cavalo não tem capacidade para tanto. Lutou para reprimir o impulso da sua mão direita e deixou que os seus ombros se vissem livres da tensão.
Aomame tinha uma noção nítida das várias fases por que a mente do Rabo-de-Cavalo passara naquele par de segundos.
Saiu e foi em direção ao elevador sem olhar para trás, caminhando com calma ao longo do corredor alcatifado e perfeitamente a direito. Segundo lhe parecia, o Rabo-de-Cavalo tinha espetado a cabeça pela porta e seguia os seus movimentos com os olhos. Ela continuava a sentir o seu olhar, penetrante, afiado como um punhal, que lhe perfurava as costas. Cada um dos músculos do seu corpo vibrava, mas ela recusou-se a olhar para trás. Não podia olhar para trás. Só depois de dobrar a esquina do corredor sentiu a tensão abandoná-la. Mas ainda não podia relaxar. Não sabia o que poderia vir a acontecer. Chamou o elevador e passou a mão pela cintura, agarrando na coronha da pistola até o elevador chegar (o que demorou uma eternidade), pronta para puxar da arma no caso de o Rabo-de-Cavalo mudar de ideias e ir atrás dela. Teria de o abater sem hesitação antes que ele conseguisse pôr aquelas manápulas poderosas em cima de si. Ou matar-se sem hesitação. Não conseguia decidir-se por uma das duas hipóteses. Provavelmente, só o faria no último momento.
Contudo, ninguém veio atrás dela. O corredor do hotel estava mergulhado em silêncio. Com um toque metálico, a porta do elevador abriu-se e Aomame entrou. Carregou no botão que dava para o átrio do hotel e esperou que a porta se fechasse. Manteve os olhos fixos na indicação do número dos pisos enquanto mordia o lábio inferior. Abandonou o ascensor, atravessou o amplo átrio e entrou num táxi que aguardava por passageiros à frente da porta do hotel. A chuva parara por completo, mas o táxi escorria, como se tivesse chegado até ali por debaixo de água. Aomame disse ao motorista que a levasse para a saída ocidental da estação de Shinjuku. Enquanto se afastavam do hotel, ela expulsou todo o ar que tinha dentro de si. A seguir, cerrou os olhos e esvaziou a mente. Não queria pensar em nada durante um bocado.
Foi acometida de uma forte náusea. Parecia que tudo o que tinha no estômago estava a subir-lhe à garganta, mas forçou-se a fazê-lo descer. Carregou no botão para entreabrir a janela e encheu os pulmões com o ar húmido da noite. Então, recostou-se e respirou profundamente várias vezes. Da sua boca soltou-se um cheiro funesto, como se algo dentro de si estivesse a apodrecer.
De repente, lembrou-se de procurar no bolso das calças, onde encontrou duas tiras de pastilha elástica. Desembrulhou-as com as mãos a tremer ligeiramente. Menta. O agradável aroma familiar ajudou-a a acalmar os nervos. Enquanto movia o maxilar, o mau cheiro na sua boca começou a dissipar-se.
Não é que exista qualquer coisa a apodrecer dentro de mim. É o medo que me está a fazer isto, mais nada.
Seja como for, está tudo acabado. Já não terei de matar mais ninguém. E o que fiz foi certo. Ele merecia ser morto pelo que fez. Tratou-se de um simples caso de justo castigo. E deu-se o caso (rigorosamente fortuito) de o homem ter um grande desejo de ser morto. Dei-lhe a morte pacífica por que ansiava. Não fiz nada de errado. Limitei-me a infringir a lei.
No entanto, por mais que se esforçasse, Aomame não era capaz de se convencer da verdade disto. Poucos momentos antes, tinha matado com as suas próprias mãos um ser humano que estava longe de ser vulgar. Retinha a memória vívida da sensação da agulha a mergulhar silenciosamente na nuca do homem. O sentimento, longe de ser vulgar, ainda permanecia nas mãos dela, perturbando-a enormemente. Abriu as palmas das mãos e contemplou-as. Alguma coisa estava diferente, completamente diferente. Mas não conseguia perceber o que mudara e como.
Se fosse crer no que ele lhe tinha dito, acabara de matar um profeta, alguém a quem um deus confiara a sua voz. Mas o senhor dessa voz não era deus nenhum. Provavelmente, seria o Povo Pequeno. Um profeta é, simultaneamente, um rei, e um rei está destinado a ser morto. Por outras palavras, ela era uma assassina enviada pelo destino. Ao exterminar com violência um ser que era, a um tempo, profeta e rei, ela preservara o equilíbrio entre o bem e o mal no mundo e, em resultado disso, teria de morrer. Mas, quando o executara, estabelecera um acordo: matando o homem e, ao mesmo tempo, renunciando à sua vida, ela salvava Tengo. Era o acordo. A crer no que ele lhe dissera.
No entanto, Aomame não tinha escolha, a não ser crer, essencialmente, no que ele lhe dissera. Ele não era um fanático, e as pessoas que estão prestes a morrer não mentem. Mais importante do que isso, as palavras dele continham um poder de persuasão genuíno. Tinham o peso de uma grande âncora. Todos os navios têm âncoras proporcionais ao seu tamanho e ao peso. Por muito desprezíveis que os seus feitos tivessem sido, aquele homem trazia realmente à memória um enorme navio. A Aomame só restava reconhecer o facto.
Tomando cuidado para que o motorista não visse, Aomame fez deslizar a Heckler & Koch de debaixo do cinto, travou-a e pôs a arma na bolsa, libertando-se de uns bons quinhentos gramas de sólido e letal peso.
– Aquela trovoada não foi de estrondo? – perguntou o motorista. – E a chuva foi incrível.
– Trovoada? – indagou Aomame. Parecia que fora há muito, muito tempo, apesar de ter acontecido uns meros trinta minutos antes. Sim, já que falava nisso, houvera uns trovões. – Sim, é verdade, foi realmente incrível.
– O boletim meteorológico não falou em nada. Disseram que ia estar bom tempo o dia todo.
Tentou pôr a cabeça a funcionar.
Tenho de dizer qualquer coisa. Mas não sou capaz de me lembrar de nada. O meu cérebro parece estar enevoado.
– O boletim meteorológico nunca acerta – comentou.
Pelo retrovisor, o motorista deitou-lhe uma olhadela. Talvez houvesse qualquer coisa esquisita na maneira como falou. O motorista prosseguiu:
– Ouvi dizer que houve inundações e que a água entrou na estação de metro de Akasaka e chegou aos carris porque a chuva caiu toda numa pequena área. Pararam a linha de Ginza e Marunouchi, ouvi na rádio.
A chuva forte fez parar o metro. Será que isto vai ter alguma influência no que eu fizer? Tenho de pôr a cabeça a funcionar mais depressa. Vou à estação de Shinjuku buscar a mala de viagem e o saco que costumo usar a tiracolo, que deixei num cacifo. A seguir telefono ao Tamaru a pedir instruções. Se tiver de apanhar a linha Marunouchi na estação de Shinjuku, as coisas podem ficar feias. Só tenho duas horas para conseguir fugir. Passadas duas horas, vão começar a estranhar que o Líder não acorde. Nessa altura, irão ao quarto e descobrirão que exalou o último suspiro. Vão entrar imediatamente em ação.
– Sabe se a linha Marunouchi já está a funcionar? – Aomame perguntou ao motorista.
– Talvez. Não sei. Quer que ponha nas notícias?
– Sim, por favor.
Segundo o Líder, o Povo Pequeno provocara o aguaceiro. Concentraram a chuva intensa numa pequena área do bairro de Akasaka-Mitsuke e fizeram parar o metropolitano. Aomame abanou a cabeça. Talvez o tivessem feito de propósito. As coisas nem sempre correm de acordo com o planeado.
O motorista ligou o rádio na NHK. Estavam a transmitir um programa de música – canções folk de cantores japoneses que tinham estado na moda nos finais dos anos sessenta. Aomame escutara-as na rádio, em criança; lembrava-se delas vagamente, se bem que não com agrado. Aquelas canções despertavam-lhe memórias desagradáveis, coisas em que preferia não pensar. Aguentou aquilo durante um bocado, mas não havia uma notícia sequer acerca da situação no metropolitano.
– Desculpe, já chega. Importa-se de desligar isso? – pediu Aomame. – Vou para a estação de Shinjuku e logo vejo o que acontece.
O motorista desligou o rádio.
– Aquilo vai estar uma confusão – disse.
* * *
Tal como o motorista avisara, a estação de Shinjuku estava terrivelmente congestionada. Como a circulação na linha de Marunouchi fora interrompida, e porque ali havia ligação com o comboio, gerara-se o caos, e as pessoas vagueavam em todos os sentidos. A hora de ponta da tarde terminara já, mas, mesmo assim, Aomame teve dificuldade em avançar por entre aquela multidão.
Conseguiu finalmente alcançar os cacifos pagos e retirou de lá o saco de usar a tiracolo e a mala de viagem de cabedal artificial preto. Na mala de viagem estava o dinheiro que retirara do cofre do banco. Tirou as coisas que tinha no saco de desporto e dividiu-as pela mala e pelo saco a tiracolo: o envelope com dinheiro que recebera do Bola-de-Bilhar, a bolsa de plástico que tinha a pistola, o estojo rígido do picador de gelo. O saco da Nike, agora inútil, foi colocado num outro cacifo ali próximo, onde inseriu uma moeda de cem ienes e fez girar a chave. Não fazia tenções de o vir buscar. Não continha nada que pudessem ligar a ela.
Com a mala de viagem na mão, Aomame deu uma volta pela estação, à procura de uma cabina telefónica. As pessoas tinham-se juntado à frente de todos os telefones. Havia grandes filas de pessoas à espera da sua vez para poderem ligar para casa a avisar que estavam atrasadas porque o comboio parara. Aomame fez uma careta.
Ao que parece, o Povo Pequeno não vai deixar que me safe com tanta facilidade. O Líder disse que não podem atingir-me pessoalmente, mas são capazes de interferir nos meus movimentos de uma forma sub-reptícia, usando outros métodos.
Aomame desistiu de esperar pela sua vez de usar o telefone. Abandonou a estação e percorreu a pé uma curta distância, entrou no primeiro estabelecimento que encontrou e pediu um café gelado. O telefone cor-de-rosa10 que ali existia também estava ocupado, mas pelo menos não havia fila. Pôs-se atrás de uma mulher de meia-idade e esperou que a longa conversa que esta mantinha terminasse. A mulher foi lançando olhares furiosos a Aomame mas acabou por se resignar e desligar após mais cinco minutos de conversa.
Aomame introduziu as moedas no telefone e marcou o número que aprendera de cor. Após três toques, surgiu um anúncio gravado: «Lamentamos, mas de momento não podemos atender o telefone. Após o sinal, é favor deixar a sua mensagem.»
Ouviu-se o sinal e Aomame disse para o telefone:
– Olá, Tamaru, por favor, se estás aí, atende.
Alguém levantou o telefone e Tamaru disse:
– Estou aqui.
– Boa! – retorquiu Aomame.
Tamaru pareceu pressentir uma tensão fora do habitual na voz dela.
– Estás bem? – perguntou.
– Por agora.
– Como correu o trabalho?
Aomame respondeu:
– Ele caiu a dormir. Num sono o mais profundo possível.
– Estou a ver – disse Tamaru. Parecia genuinamente aliviado, o que deu cor à sua voz. Não era habitual. – Eu transmito as notícias. Ela vai gostar de saber.
– Não foi fácil.
– Bem sei que não. Mas conseguiste.
– Seja lá como for – respondeu Aomame. – Este telefone é seguro?
– Estamos a usar um circuito especial. Não te preocupes.
– Tirei os meus sacos do cacifo da estação de Shinjuku. E agora?
– Quanto tempo tens?
– Uma hora e meia – respondeu Aomame. Deu uma explicação breve. Ao fim de uma hora e meia, os dois guarda-costas iriam verificar o que se passava no quarto e descobririam que o Líder não estava a respirar.
– Uma hora e meia é mais do que o suficiente – respondeu Tamaru.
– Achas que telefonam logo à polícia?
– Não sei. Ainda ontem, a polícia foi às instalações da seita para dar início a uma nova investigação. De momento, estão na fase de fazer perguntas e não começaram a investigação propriamente dita, mas, se o fundador da religião aparecer morto de um momento para o outro, podem vir a ter grandes problemas.
– Pensas que podem tratar do caso sozinhos e não deixar vir nada a público?
– Para eles é canja! Saberemos o que aconteceu quando virmos os jornais de amanhã: se eles participaram a morte ou não. Não costumo fazer apostas, mas, se me perguntassem, apostaria em como não vão participar o caso à polícia.
– Não vão partir do princípio de que se deveu a causas naturais?
– À primeira vista, não vão ter a certeza. E não saberão, sem uma autópsia meticulosa se a morte se deveu a causas naturais ou se se trata de um homicídio. Em todo o caso, a primeira coisa que farão será ir à tua procura. No fim de contas, foste tu a última pessoa a vê-lo com vida. E, uma vez que percebam que abandonaste o teu apartamento e te escondeste, vão chegar à conclusão de que não se tratou de uma morte natural.
– E vão andar à minha procura... por todos os meios de que disponham.
– Quanto a isso, não resta a mínima dúvida – respondeu Tamaru.
– Achas que consegues esconder-me?
– Está tudo planeado... e ao pormenor. Se seguirmos escrupulosamente o plano e formos persistentes, ninguém irá encontrar-te. Agora, o pior de tudo é o pânico.
– Estou a fazer o melhor que posso – disse Aomame.
– Aguenta. Age depressa e ganha tempo. És uma pessoa cuidadosa e persistente. Limita-te a continuar o que já estás a fazer.
– Houve uma grande chuvada na zona de Akasaka-Mitsuke e o metro está parado.
– Eu sei – respondeu Tamaru. – Não te preocupes, não estava previsto que usasses o metro. Vais meter-te num táxi e seguir para uma casa segura, na cidade.
– Na cidade? Mas a ideia não era que eu fosse para bem longe?
– Sim, é claro que irás para longe – disse Tamaru, devagar, como se soletrasse. – Mas primeiro temos de te preparar, mudar-te o nome e a cara. E tratou-se de um trabalho particularmente complicado: deves estar em frangalhos. Numa altura destas, não ganhas nada em andar a correr de um lado para o outro que nem uma louca. Esconde-te nessa casa durante uns tempos. Vais ficar bem. Trataremos de tudo o que precisares.
– E onde é essa «casa segura»?
– No bairro de Koenji. A cerca de uns vinte minutos do sítio onde estás.
Kuenji, pensou Aomame, tamborilando com as unhas nos dentes. Sabia que era algures a oeste da Baixa, mas nunca lá pusera os pés.
Tamaru deu-lhe a morada e o nome do prédio. Como era seu hábito, não escreveu nada, fixou tudo na sua cabeça.
– Do lado sul da estação de Koenji. Perto da Circular 7. Apartamento 303. Para abrires a porta da frente, marca 2831.
Tamaru calou-se e Aomame repetiu baixinho «303» e «2831».
– A chave está colada à parte de baixo do capacho. O apartamento tem tudo o que precisas por agora, pelo que, durante algum tempo, não terás de sair. Eu faço os contactos deste lado. Deixo tocar três vezes, desligo, e ligo de novo vinte segundos depois. Gostaríamos que evitasses fazer chamadas.
– Bem vejo – respondeu Aomame.
– Os homens dele foram difíceis? – perguntou Tamaru.
– Estavam lá dois e ambos pareciam ser bastante duros. Passei por alguns momentos assustadores. Mas não são profissionais. Não chegam aos teus calcanhares.
– Não há muita gente como eu.
– Demasiados Tamarus podiam ser um problema.
– Pois podiam – concluiu Tamaru.
* * *
Carregada com as malas, Aomame dirigiu-se para a paragem de táxis da estação, onde se deparou com outra fila comprida. Segundo parecia, o metropolitano ainda não estava a funcionar normalmente. Não teve outra hipótese senão ocupar o seu lugar na fila.
Enquanto esperava pela sua vez, paciente, junto dos utilizadores habituais do metro, que exibiam um ar aborrecido, Aomame ia repetindo em pensamento a morada da casa segura, o nome do edifício e o número do apartamento, bem como o código da porta e o número de telefone de Tamaru. Parecia um asceta sentado no cume da montanha, a entoar um mantra precioso. Aomame sempre confiara nos poderes da sua memória. Era-lhe fácil memorizar aquelas pequenas informações. Agora, porém, aqueles números eram o seu salva-vidas. Se os esquecesse ou trocasse um que fosse, punha a vida em risco. Tinha de garantir que ficavam bem gravados na sua cabeça.
Quando por fim Aomame conseguiu meter-se num táxi, tinha passado já uma hora desde que deixara o cadáver do Líder no quarto de hotel. Até ao momento, tudo estava a demorar o dobro do tempo que imaginara – um atraso causado pelo Povo Pequeno, sem a menor dúvida. Tinham provocado chuvas torrenciais em Akasaka, conseguiram encher de gente a estação de Shinjuku, uma vez que o metro estava parado e as pessoas não podiam regressar a casa, tinham feito com que houvesse poucos táxis disponíveis e haviam entorpecido os movimentos de Aomame. Por causa disto tudo, ela ia ficando cada vez mais nervosa. Estava a perder o sangue-frio. Mas talvez fosse uma mera coincidência.
Pode não passar de uma simples coincidência. Talvez eu esteja a deixar-me assustar pelo fantasma de um Povo Pequeno inexistente.
Aomame deu a morada ao motorista, recostou-se no banco e fechou os olhos.
Mais ou menos por esta altura, é provável que aqueles dois tipos, nos seus fatos escuros, estejam a olhar para o relógio à espera de que o seu guru acorde.
Aomame imaginou-os. O Bola-de-Bilhar a beber café e a pensar em montes de coisas. O seu trabalho era pensar. Pensar e decidir. Talvez já estivesse a ficar com suspeitas: o sono do Líder era demasiado silencioso. Mas o Líder dormia sempre que nem uma pedra, sem fazer barulho – sem ressonar e nem mesmo com uma respiração pesada. Ainda assim, havia sempre a sua presença. A mulher afirmara que dormiria profundamente durante duas horas, pelo menos, que era importante que descansasse para que os músculos pudessem recuperar. Só tinha decorrido uma hora, mas havia qualquer coisa que estava a incomodar o Bola-de-Bilhar. Talvez devesse ir ver se o Líder estava bem. Não sabia o que fazer.
Contudo, perigoso, perigoso era o Rabo-de-Cavalo. Aomame ainda retinha a imagem nítida da fugaz sugestão de violência que ele revelara quando ela ia a sair do quarto do hotel. Era silencioso, mas tinha uma intuição aguçada. A sua técnica de luta devia ser fora de série – provavelmente, muito melhor do que imaginara até ao momento. Mesmo fazendo uso das suas técnicas de artes marciais, não teria qualquer hipótese numa luta contra ele. Era bem possível que nem lhe desse oportunidade de sacar da pistola. Por sorte, também não era um profissional. Deixara que o raciocínio se interpusesse entre a intuição e o agir. Estava habituado a seguir ordens – ao contrário de Tamaru. Tamaru dominaria o seu adversário e imobilizá-lo-ia antes mesmo de pensar. Primeiro agia. Confiava na sua intuição e deixava as considerações racionais para depois. Uma hesitação ínfima e seria demasiado tarde.
Ao recordar-se daquele instante junto da porta, Aomame sentiu o suor nascer-lhe debaixo dos braços. Abanou a cabeça.
Tive muita sorte. Pelo menos consegui não ser apanhada logo ali. A partir de agora, vou ter de passar a ser muito mais cuidadosa. O Tamaru tinha razão: acima de tudo, tenho de ter cuidado e ser persistente. O perigo surge no instante em que baixamos a guarda.
O motorista era um homem educado, de meia-idade. Puxou de um mapa, parou o carro, desligou o taxímetro e, amavelmente, procurou o local certo onde se localizava o prédio. Aomame agradeceu-lhe e saiu do táxi. Era um edifício agradável, de seis andares, situado numa zona residencial. Não estava ninguém na entrada. Aomame marcou «2831» para abrir a porta da frente, entrou e subiu até ao terceiro andar num elevador limpo mas acanhado. Assim que saiu do elevador, a primeira coisa que fez foi procurar as escadas de emergência. A seguir, apanhou a chave que estava colada ao capacho à frente do 303 e usou-a para abrir a porta. As luzes acenderam-se automaticamente no instante em que ela entrou. Sentiu o cheiro a apartamento novo. A mobília e os aparelhos tinham o ar de serem novinhos em folha, ainda por estrear, como se tivessem acabado de sair das caixas e sido retirados dos plásticos – as peças a condizer poderiam ter sido escolhidas por um decorador para mobilar um andar-modelo: simples, funcionais, sem o odor da vida quotidiana.
Para a esquerda da entrada ficava a sala de estar e jantar. Havia um corredor com um lavabo e uma casa de banho e, a seguir, dois quartos. Um tinha uma cama gigantesca, já feita. As persianas estavam descidas. Quando abriu a janela que dava para a rua, foi assaltada pelos ruídos do trânsito na Circular 7, lembrando o rugir do oceano distante. Fechou-a e deixou de os ouvir. A sala tinha uma pequena varanda. Estava virada para um parque, do outro lado da rua. Tinha baloiços, um escorrega, uma caixa de areia e uma casa de banho pública. Um candeeiro de mercúrio, alto, iluminava tudo à sua volta de uma maneira quase artificial. Uma enorme zelkova estendia os ramos sobre o parque todo. Era um terceiro andar, mas não havia outros edifícios altos ali perto, e não tinha de se preocupar se era vigiada.
Aomame pensou no apartamento de Jiyugaoka, que acabara de abandonar. Ficava num edifício antigo, não muito limpo, tinha uma ou outra barata e paredes finas – não era propriamente o tipo de casa a que alguém se afeiçoasse. No entanto, agora, estava com saudades. Neste apartamento novinho a estrear e imaculado, sentia-se uma pessoa anónima, desprovida de memória e de individualidade.
Aomame abriu o frigorífico e encontrou quatro latas de Heineken, que arrefeciam na prateleira da porta. Abriu uma delas e bebeu um gole. Ligou a televisão de 21 polegadas e sentou-se à frente dela para ver as notícias. Houve uma reportagem sobre a trovoada. A notícia mais importante falava da inundação da estação de Akasaka-Mitsuke e da interrupção das linhas Marunouchi e Ginza. A água que inundara as ruas escorrera pelas escadas como se fosse uma queda-d’água. Os funcionários da estação, com ponchos impermeáveis vestidos, tinham empilhado sacos de areia nas entradas, mas era óbvio que chegaram tarde demais. As linhas do metropolitano ainda não estavam a funcionar, e não havia estimativa de quando poderiam voltar ao normal. O repórter espetava o microfone à frente de passageiro atrás de passageiro sem transporte. Um dos homens queixou-se:
– O boletim meteorológico da manhã dizia que ia estar sol o dia todo!
Viu o noticiário até ao fim. É claro que ainda não havia notícias acerca da morte do Líder da Vanguarda. Provavelmente, o Bola-de-Bilhar e o Rabo-de-Cavalo ainda estavam na sala, à espera de que passassem as duas horas. Depois, descobririam a verdade. Da bolsa do saco de viagem tirou para fora a Heckler & Koch, que pousou na mesa de jantar. Ali, em cima da mesa nova, a pistola de fabrico alemão parecia terrivelmente rude e taciturna – e negra de uma ponta à outra, mas, pelo menos, criava um foco de atenção numa sala impessoal.
– «Paisagem com Pistola» – murmurou Aomame, como se estivesse a dizer o título de um quadro.
Seja como for, tenho de a ter à mão o tempo todo – quer a use para disparar sobre alguém ou sobre mim própria.
O enorme frigorífico fora abastecido com comida suficiente para a sua permanência durante duas ou mais semanas: fruta, legumes e uma série de pré-cozinhados já prontos. No congelador havia vários tipos de carne, peixe e pão. Havia até gelado. Nos armários encontrou uma boa variedade de comida embalada a vácuo e em latas, além de especiarias. Arroz e massa. Uma quantidade generosa de água mineral. Duas garrafas de vinho tinto e duas de branco. Não fazia a mínima ideia de quem se encarregara de arranjar aquilo tudo, mas a pessoa fizera um trabalho asseado. Pelo menos para já, não lhe ocorria nada que estivesse em falta.
Sentindo-se com alguma fome, tirou para fora o queijo camembert, cortou uma fatia e comeu-o com bolachas de água e sal. Quando já tinha comido metade do queijo, lavou um talo de aipo, cobriu-o com maionese e comeu-o inteiro, de uma só vez.
De seguida, foi examinar o conteúdo das gavetas da cómoda do quarto. A de cima tinha pijamas e um roupão fino – tudo novo, ainda nas embalagens de plástico. Mais coisas bem escolhidas. A gaveta a seguir continha três conjuntos de T-shirts, meias e roupa interior. Tudo simples, branco, peças que pareciam ter sido escolhidas para combinar com a mobília, e ainda nas embalagens originais. Era provavelmente o mesmo tipo de roupa que davam às mulheres na casa-abrigo, fabricada em bom material mas com muito ar de ter sido «fornecida» por uma instituição.
Na casa de banho havia champô, amaciador, creme hidratante e colónia, tudo aquilo de que precisava. Raras vezes se maquilhava, pelo que não tinha necessidade de cosméticos. Havia uma escova de dentes, fio dental e um tubo de pasta de dentes. Também tinham tido a atenção de lhe deixar uma escova de cabelo, cotonetes, uma tesourinha e produtos de higiene feminina. Havia bastante papel higiénico e lenços de papel. Dentro de um armário estavam toalhas de banho e de rosto, muito bem dobradas e empilhadas. Estava lá tudo.
Espreitou para dentro do armário do quarto, perguntando-se se, por acaso, iria encontrar vestidos e sapatos do seu número – de preferência Armani e Ferragamo. Mas não, o armário estava vazio. Havia um limite para o que podiam fazer. Conheciam a diferença entre ser meticuloso e exagerar. Parecia a biblioteca de Jay Gatsby11: os livros eram verdadeiros, mas as páginas não tinham sido abertas. Além do mais, enquanto ali estivesse, a roupa de rua não lhe faria falta. Não tinham arranjado coisas desnecessárias. Contudo, havia bastantes cabides.
Usou os cabides para pendurar a roupa que trouxera na mala de viagem: tirou as peças uma a uma, verificou se tinham rugas e pendurou-as no armário. Sabia que seria mais prudente, enquanto fugitiva, deixar a roupa dentro do saco em vez de a pendurar, mas se havia coisa que odiava era ter de usar roupa com vincos.
Nunca poderei vir a ser uma criminosa profissional fria se, numa altura destas, me preocupo com a roupa amarrotada!
De repente, lembrou-se de uma conversa que tivera com Ayumi:
– Guarda a tua massa debaixo do colchão; se vierem atrás de ti, podes deitar-lhe a mão e saltar pela janela.
– Sim, é isso – dissera Ayumi, estalando os dedos. – Como em Tiro de Escape, o filme com o Steve McQueen. Um maço de notas e uma caçadeira. Gosto dessas coisas.
Aomame falou para a parede:
Não é uma vida divertida.
Aomame foi para a casa de banho, despiu-se e meteu-se no duche. A água quente lavou o que ainda restava do desagradável odor a transpiração agarrado ao corpo. A seguir, foi à cozinha, sentou-se à frente do balcão e bebeu outro gole de cerveja enquanto secava o cabelo com a toalha.
Ao longo do dia de hoje, várias coisas deram um passo decisivo em frente. A engrenagem deu um clique e avançou. E as engrenagens que avançam nunca recuam. É uma das regras do mundo.
Aomame agarrou na arma, virou-a ao contrário e pôs o cano na boca. O aço encostado aos seus dentes era terrivelmente frio e duro. Sentiu um vago odor a gordura.
É a melhor maneira de estoirar os miolos. Destravar a patilha, apertar o gatilho. E tudo termina – assim mesmo. Sem ser preciso pensar. Sem ser preciso fugir.
Aomame não tinha propriamente medo de morrer.
Eu morro, o Tengo vive. Ele continua a viver neste 1Q84, neste mundo com duas luas. Mas eu não estarei cá. Não vou conseguir encontrá-lo neste mundo. Ou em qualquer mundo. Pelo menos, é o que diz o Líder.
Mais uma vez, percorreu todo o apartamento com o olhar, lentamente.
Parece um andar-modelo. Limpo e uniforme, todas as necessidades satisfeitas. Mas distante e impessoal. Feito de papier mâché. Não seria agradável morrer num lugar assim. Porém, mesmo que se mudasse o cenário para outro mais agradável, será que, neste mundo, existe uma forma agradável de morrer? E, agora que penso nisso, o mundo em que vivemos não é, só por si, uma sala-modelo gigantesca? Entramos, sentamo-nos, bebemos uma chávena de chá, olhamos pela janela e vemos a paisagem, e, quando chega a hora, agradecemos e saímos. A mobília é toda a fingir. Até mesmo a Lua, por trás da janela, pode ser feita de papel.
Mas eu amo o Tengo.
Aomame murmurou as palavras em voz alta. «Eu amo o Tengo.»
Não é uma charanga ruidosa. 1Q84 é o mundo real, onde os cortes fazem correr sangue real, onde a dor é dor verdadeira e o medo é medo real. A lua no céu não é de papel. É uma lua real – são duas luas reais. E, neste mundo, eu aceitei morrer para salvar o Tengo. Não permito que alguém diga que é falso.
Aomame olhou para o relógio de parede redondo. Um modelo simples, da Braun. A condizer com a Heckler & Koch. O relógio era o único objeto pendurado nas paredes do apartamento. Os ponteiros indicavam que já passava das dez. A hora de os homens descobrirem o corpo do Líder.
No quarto de uma elegante suíte do Hotel Okura, um homem soltara o seu último suspiro. Um homem corpulento. Um homem que estava longe de ser vulgar. Deslocara-se para outro mundo. Ninguém podia fazer nada para o trazer de volta.
Chegara a hora dos fantasmas.
10 Antigamente, no Japão, os telefones públicos instalados em estabelecimentos como cafetarias, restaurantes e hospitais eram cor-de-rosa. (N. das T.)
11 Protagonista do romance de Scott Fitzgerald, The Great Gatsby. A personagem veio a transformar-se numa referência do herói americano do século XX, símbolo do self-made man de sucesso que, vindo do nada, adquire uma grande fortuna e estatuto social. (N. das T.)
16
TENGO
Como um navio-fantasma
Que tipo de mundo teremos amanhã?
– Ninguém tem a resposta para isso – disse Fuka-Eri.
Mas o mundo em que Tengo acordou não parecia ter grandes diferenças em relação ao mundo em que adormecera na noite anterior. O relógio que tinha à cabeceira marcava as seis e pouco. Lá fora era já dia e o ar estava límpido. Os raios de sol escorriam pelos interstícios das cortinas. Parecia que, por fim, o verão estava a acabar. O chilrear dos pássaros soava vivo e penetrante. A violenta trovoada do dia anterior parecia uma assombração – ou talvez algo que tivesse ocorrido num local desconhecido num passado distante.
A primeira coisa que veio à cabeça de Tengo quando acordou foi que Fuka-Eri poderia ter desaparecido durante a noite. Mas não, ali estava ela ao seu lado, num sono profundo, como um animalzinho em hibernação. A sua face adormecida era bela e algumas madeixas soltas do seu cabelo negro formavam uma espécie de padrão intricado contra a face branca. Não se viam as orelhas, escondidas por baixo do cabelo. Mal se ouvia a sua respiração. Tengo deixou-se ficar um bocado a olhar para o teto, à escuta. A respiração dela lembrava o som de um pequeno fole.
Recordava com uma clareza vívida a sensação que tivera ao ejacular, na noite anterior. Soltara realmente sémen – muito sémen – dentro daquela rapariguinha. A ideia deixou-o atordoado. Mas agora que a manhã chegara, aquilo parecia tão irreal como a tempestade, algo que acontecera num sonho. Durante a adolescência tivera por várias vezes sonhos molhados. Tinha um sonho sexual realista, ejaculava, acordando logo de seguida. Todos os factos aconteciam no sonho, mas a libertação de esperma era bem real. A sensação que tinha de momento parecia-se muito com a de então.
Desta vez, porém, não fora um sonho húmido. Ele penetrara Fuka-Eri, sem a menor sombra de dúvida. Deliberadamente, ela fizera-se penetrar pelo seu pénis e esgotara todo o sémen que havia dentro dele. Ele limitara-se a segui-la. Na altura, ficara completamente paralisado, incapaz de mexer um dedo. E, no que lhe dizia respeito, ele viera-se dentro da sala de aulas da escola primária, não dentro de Fuka-Eri, que, mais tarde, lhe dissera não ter a mínima hipótese de engravidar, por ainda não ser menstruada. Ainda não estava capaz de perceber em toda a sua plenitude o que lhe havia acontecido de facto. Mas tinha acontecido. Um facto real, no mundo real. Provavelmente.
Saiu da cama, vestiu-se, foi até à cozinha, ferveu água e fez café. Enquanto isso, tentou pôr a cabeça em ordem, como se estivesse a arrumar o conteúdo de uma gaveta da secretária. Todavia, não conseguiu arrumar tudo. Só foi capaz de mudar o sítio das coisas que estavam dentro da gaveta pondo os clipes no sítio da borracha, o afia-lápis no sítio dos clipes e a borracha no sítio do afia-lápis, substituindo uma forma de confusão por outra.
Depois de beber uma chávena de café acabado de fazer, foi para a casa de banho barbear-se enquanto escutava um programa de música barroca na rádio FM: as partitas12 para vários instrumentos solistas de Telemann. Era a sua rotina habitual: ir à cozinha
fazer café, bebê-lo e barbear-se enquanto escutava «Música Barroca
Para Si» na rádio. A única coisa que mudava todos os dias era o conjunto de obras tocadas. Na véspera, quase de certeza que tinham sido as composições para teclado de Rameau.
O locutor estava a falar.
Ao longo da primeira metade do século XVIII, Telemann granjeou grande prestígio em toda Europa, mas, no século XIX, acabou desprezado por ser demasiado prolífico. Contudo, isto não fora culpa de Telemann. As razões para que se compusesse música sofreram grandes alterações, acompanhando a mudança de estrutura da sociedade europeia, o que levou à reviravolta do apreço em que o tinham.
O novo mundo é isto?, pensou.
Olhou de novo para o que o rodeava. Ainda não havia qualquer sinal de mudança. Para já, não havia qualquer sinal de gente desdenhosa. De qualquer forma, ele tinha de se barbear. Quer o mundo tivesse mudado ou não, ninguém iria fazer isso por ele. Não tinha outro remédio senão encarregar-se do caso.
Quando acabou de se barbear, fez torradas, barrou-as com manteiga, comeu-as e bebeu outra chávena de café. Foi ao quarto ver Fuka-Eri, mas, segundo parecia, ela continuava profundamente adormecida – não se mexera do sítio onde estava. O cabelo dela ainda formava o mesmo padrão sobre a sua face. A respiração mantinha-se tão leve como antes.
De momento não tinha nenhum plano. Não tinha aulas na escola. Não estava à espera de visitas, nem fazia sequer tenção de ir visitar fosse quem fosse. Tinha o dia por sua conta, podia passá-lo como bem quisesse. Tengo sentou-se à mesa da cozinha e continuou a escrever o seu romance, preenchendo os quadradinhos do papel de manuscrito13 com uma caneta de tinta permanente. Como era seu hábito, focou toda a atenção no trabalho. A troca de canais na sua mente fez com que tudo o resto desaparecesse do seu campo de visão.
Fuka-Eri acordou pouco antes das nove. Tinha despido o pijama e envergava uma T-shirt de Tengo – a da digressão japonesa de Jeff Beck, que ele usara quando fora visitar o pai, a Chikura. Os mamilos dela viam-se com toda a nitidez à transparência, e Tengo não conseguiu evitar a lembrança da sensação que havia experimentado quando ejaculara, na noite anterior, da mesma forma que uma determinada data nos traz à memória um facto histórico.
Na rádio FM tocava agora uma peça para órgão de Marcel Dupré. Tengo parou de escrever e foi preparar o pequeno-almoço à rapariga. Ela bebeu um chá Earl Grey e comeu torradas com compota de morango. Dedicou tanto tempo a espalhar a compota na torrada como Rembrandt quando pintava as pregas de uma peça de tecido.
– Quantos exemplares terá vendido o teu livro? – disse Tengo.
– Referes-te à Crisálida de Ar – perguntou Fuka-Eri.
– A-hã.
– Não sei – respondeu a rapariga, com um ligeiro franzir da testa. – Muitos.
Os números não são importantes para ela, pensou Tengo. O «muitos» dela evocou-lhe campos de trevos abertos a perder de vista. Os trevos traduziam apenas o conceito de «muitos», mas ninguém podia contá-los.
– Há muita gente a ler A Crisálida de Ar – disse Tengo.
Sem dar resposta, Fuka-Eri analisou atentamente a compota que tinha espalhado na torrada.
– Tenho de falar com o senhor Komatsu, o mais cedo possível – disse Tengo, olhando para Fuka-Eri, sentada à sua frente do outro lado da mesa. Como era seu hábito, a cara não deixou transparecer qualquer emoção. – Já conheces o senhor Komatsu, não é verdade?
– Vi-o na conferência de imprensa.
– Conversaram?
Fuka-Eri abanou ligeiramente a cabeça, num gesto negativo. Queria dizer que apenas se tinham falado.
Imaginava perfeitamente a cena: Komatsu a falar pelos cotovelos à velocidade da luz, a dizer tudo o que lhe ia na cabeça – talvez mesmo sem pensar duas vezes antes de falar –, enquanto ela mal abria a boca ou sequer escutava o que lhe dizia. Komatsu não estava preocupado com isso. Se alguma vez alguém lhe pedisse para dar um exemplo de duas personalidades absolutamente incompatíveis, ele diria os nomes de Fuka-Eri e Komatsu.
Tengo prosseguiu:
– Há muito tempo que não vejo o senhor Komatsu. E também não tenho tido notícias dele. Deve andar muito ocupado. Desde que A Crisálida de Ar se tornou um êxito de vendas, deve ter sido apanhado pelo circo montado à volta do caso. Mas já é mais que tempo de nos reunirmos e termos uma conversa séria. Há imensos problemas a discutir, e agora seria uma boa altura, uma vez que estás aqui. Que dizes? Vamos ter com ele, os dois?
– Encontrarmo-nos os três.
– A-hã. Seria a maneira mais rápida de resolver tudo.
Fuka-Eri ponderou a frase por breves instantes. Ou talvez estivesse a imaginar qualquer coisa. A seguir, respondeu:
– Não me importo. Se for possível.
Se for possível... Soava como um vaticínio.
– Achas que não vai ser possível? – perguntou Tengo, algo hesitante.
Fuka-Eri não respondeu.
– Partindo do princípio de que é possível, vamos ter com ele. Achas bem?
– Vamos ter com ele e fazer o quê.
– Vamos ter com ele e fazer o quê? Bem, antes de mais nada, tenho de lhe devolver dinheiro. Um destes dias, alguém transferiu uma quantia substancial para a minha conta como honorários por ter reescrito A Crisálida de Ar, mas eu não quero o dinheiro. Não que lamente ter feito o trabalho. Foi uma grande fonte de inspiração para o meu próprio projeto e orientou-me no rumo certo. E até resultou às mil maravilhas, apesar de ser eu a dizê-lo. A crítica recebeu-o bem e está a vender. Não penso que tenha sido um erro aceitá-lo. Mas também não pensava que o caso fosse assumir tamanhas proporções. É óbvio que aceitei fazê-lo e, portanto, devo assumir a responsabilidade. Mas não quero receber dinheiro.
Fuka-Eri teve um pequeno encolher de ombros.
– Tens razão. Pode não fazer diferença nenhuma. Mas eu gostava de deixar a minha posição bem clara.
– A quem.
– Principalmente, perante mim mesmo – respondeu, baixando um pouco a voz.
Fuka-Eri pegou na tampa do frasco de compota e observou-a, como se fosse algo fascinante.
– Mas pode já ser demasiado tarde – concluiu Tengo.
Fuka-Eri não disse nada a esse respeito.
Quando, depois da uma da tarde, Tengo tentou telefonar para o escritório de Komatsu (ele nunca lá estava de manhã), a mulher que atendeu informou-o de que Komatsu não ia ao escritório há vários dias. Era tudo o que sabia. Ou, se sabia mais qualquer coisa, não tinha obviamente intenção de o partilhar com Tengo. Pediu-lhe então que encaminhasse a chamada para outro editor que conhecia. Tengo escrevera uma pequena coluna, sob pseudónimo, para a revista mensal editada por este homem, mais velho do que ele uns dois ou três anos. Tinham frequentado a mesma universidade e ele simpatizava com Tengo.
– Há mais de uma semana que o Komatsu anda por fora – disse-lhe o editor. – Ao terceiro dia, telefonou a dizer que não voltaria ao trabalho tão cedo, porque se estava a sentir mal; desde então, nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Os tipos do departamento editorial estão pelos cabelos. O senhor Komatsu é o editor responsável por A Crisálida de Ar e chamou a si tudo o que dizia respeito ao livro. Em princípio, ele deveria restringir-se ao trabalho ligado à revista, mas ignorou isso e não deixou que ninguém tocasse sequer com um dedo neste projeto, nem mesmo quando passou à fase de produção do livro. Por isso, se ele agora desaparece, ficamos de mãos atadas, ninguém sabe o que fazer. Se está realmente doente, calculo que não haja nada a dizer, mas, mesmo assim...
– O que tem ele?
– Não sei. Só disse que não estava a sentir-se bem. A seguir, desligou. Desde esse dia que nunca mais tive notícias. Queríamos fazer-lhe umas perguntas e tentámos ligar-lhe, mas as chamadas vão sempre dar ao atendedor automático. Anda tudo à nora...
– Ele não tem família?
– Não, vive sozinho. Teve mulher e um filho, outrora, mas tenho quase a certeza de que se divorciou há já bastante tempo. Ele nunca conta nada a ninguém, pelo que não sei grande coisa, mas é o que ouvi dizer.
– Seja como for, é estranho que esteja fora uma semana e só tenha ligado uma vez.
– Bom, sabes como é o Komatsu. Não é a pessoa mais sensata do mundo.
Tengo ponderou esta observação, ainda com o telefone encostado à cara.
– É verdade, nunca se sabe o que vai fazer a seguir. Tem pouco traquejo social e consegue ser bastante egocêntrico, mas, tanto quanto sei, não é irresponsável no que toca ao trabalho. Mesmo que esteja a morrer, não é o estilo dele largar tudo e manter-se incontactável quando A Crisálida de Ar está a vender tanto. Não é assim tão reles.
– Tens toda a razão – respondeu o editor. – Talvez seja melhor alguém ir até casa dele para ver o que se passa. Houve aqueles sarilhos todos com a Vanguarda por causa do desaparecimento da Fuka-Eri, e por agora não sabemos onde ela anda. Pode ter acontecido alguma coisa. Não acredito que esteja a fingir uma doença para se poder afastar e esconder-se com a Fuka-Eri.
Tengo não respondeu. Não podia dizer ao homem que tinha Fuka-Eri ali consigo, à sua frente, a limpar os ouvidos com uma cotonete.
– Mudando de assunto, há qualquer coisa neste livro que me incomoda. É fantástico que esteja a vender tão bem, mas algo não bate certo. E não sou a única pessoa a pensar assim: muitos colaboradores da editora estão como eu. Oh, a propósito, Tengo, tinhas qualquer coisa para tratar com o senhor Komatsu?
– Não, nada de especial. Há algum tempo que não falo com ele e vinha só saber notícias.
– Talvez tenha finalmente cedido à pressão. Seja como for, A Crisálida de Ar é o maior êxito de vendas que esta casa alguma vez teve. Estou ansioso pelo bónus deste ano. Já leste o livro?
– Claro. Li o manuscrito quando foi entregue a concurso.
– Claro, foste uma das pessoas que o avaliaram.
– Achei que estava bem escrito e era bastante interessante.
– Oh, é claro que é interessante e vale bem a pena lê-lo.
Tengo sentiu uma nota agoirenta no comentário.
– Mas há qualquer coisa que te incomoda?
– Bem, não passa de instinto de editor. Tens razão: está bem escrito. Um pouco bem escrito demais para uma estreante de dezassete anos. E agora ela desapareceu. Também ninguém consegue contactar o editor dela. O livro parece um daqueles velhos navios-fantasma, sem tripulação: continua a navegar, de velas desfraldadas ao vento, direitinho ao mar dos êxitos editoriais.
Tengo conseguiu responder com um vago resmungo. O editor prosseguiu:
– É sinistro. Misterioso. Bom demais para ser verdade. Isto fica só entre nós, mas há gente que anda por aí a sussurrar que o próprio Komatsu pode ter dado um jeito ao manuscrito: um jeito maior do que o bom senso aconselharia. Custa-me a crer, mas, se é verdade, podemos ter uma bomba-relógio nas mãos.
– Talvez não passe de uma série de felizes coincidências.
– Mesmo assim, a sorte não é elástica – respondeu o editor.
Tengo agradeceu e pousou o telefone.
* * *
Depois de desligar, Tengo disse a Fuka-Eri:
– O senhor Komatsu não apareceu para trabalhar durante toda a semana. Não conseguem entrar em contacto com ele.
Fuka-Eri não disse nada.
– As pessoas à minha volta parecem estar a desaparecer, umas atrás das outras – comentou Tengo.
Fuka-Eri não disse nada.
De súbito, Tengo lembrou-se do facto de as pessoas perderem quarenta milhões de células de pele por dia. As células soltam-se, transformam-se num pó invisível e desaparecem no ar.
Pode ser que, em relação ao mundo, nós também não passemos de células. Se assim for, não há nada de misterioso no desaparecimento de uma pessoa.
– Talvez seja eu a seguir – disse Tengo.
Fuka-Eri fez um pequeno aceno com a cabeça, determinada.
– Não, tu não desaparecerás.
– Porque não?
– Porque eu fiz uma purificação.
Tengo contemplou-a por longos segundos. Claro que não chegou a conclusão nenhuma. Desde o princípio que sabia que, por mais que o fizesse, era inútil pensar. Mesmo assim, era incapaz de evitar fazer esse esforço.
– Em todo o caso, por agora, não vamos poder estar com o senhor Komatsu. E não posso devolver-lhe o dinheiro.
– O dinheiro não é problema – disse Fuka-Eri.
– Então qual é o problema? – perguntou Tengo.
Claro que não obteve resposta.
Tengo decidiu levar avante a decisão da noite anterior e procurar Aomame. Se passasse o dia todo num esforço de concentração, com certeza que, no mínimo, acabaria por descobrir uma pista. Na realidade, não foi assim tão fácil. Deixou Fuka-Eri no apartamento (após tê-la avisado insistentemente para não abrir a porta a ninguém) e foi até à sede da companhia dos telefones, que tinha disponível ao público a coleção completa das listas telefónicas de todo o país. Folheou todas as listas dos vinte e três bairros centrais de Tóquio à procura do nome «Aomame». Mesmo que não encontrasse a rapariga, podia ser que um dos seus familiares vivesse na cidade, e ele poderia pedir informações a essa pessoa.
Mas não encontrou ninguém chamado «Aomame». Alargou a pesquisa de forma a incluir toda a área metropolitana de Tóquio e voltou a não encontrar ninguém. Tornou a alargar o campo de pesquisa e incluiu toda a região de Kanto – as prefeituras de Chiba, Kanagawa, Saitama... Esgotou energias e tempo. Depois de passar o dia todo a ler a letrinha minúscula das listas telefónicas, doíam-lhe os olhos.
Ocorreram-lhe várias possibilidades:
1) Ela vivia num subúrbio da cidade de Utashinai, na ilha de Hokkaido.
2) Casara e agora chamava-se «Ito».
3) Tinha um número confidencial para proteger a sua privacidade.
4) Morrera dois anos antes, na primavera, de uma violenta gripe.
Deviam existir inúmeras possibilidades para além destas. Não fazia sentido limitar as buscas às listas telefónicas. Nem era possível ler as listas todas do país. Um mês mais tarde, estaria ainda a chegar às de Hokkaido. Tinha de encontrar uma nova forma de procurar.
Tengo comprou um cartão de chamadas pré-pagas e enfiou-se numa das cabinas telefónicas da companhia dos telefones. Dali ligou para a sua antiga escola primária em Ichikawa e pediu à funcionária que atendeu o telefone que procurasse a morada que tinham no processo de Aomame, dizendo que queria contactá-la por causa de um assunto da Associação de Antigos Alunos. A mulher pareceu-lhe amável e descontraída enquanto ia folheando as fichas dos ex-alunos. Aomame fora transferida para outra escola no quinto ano e não acabara a escolaridade ali. Por isso, o nome dela não constava do registo e eles não sabiam a sua presente morada. No entanto, era possível encontrar o endereço para onde se mudara. Estaria interessado?
Tengo disse que sim, estava interessado.
Apontou a morada e o número de telefone «a/c Koji Tasaki» no bairro Adachi, em Tóquio. Tanto quanto lhe era dado a perceber, na altura, ela saíra de casa dos pais. Alguma coisa teria acontecido. Calculando que deveria ser inútil, Tengo marcou o número. Tal como supunha, já não estava ligado. Bem vistas as coisas, tinham passado vinte anos. Telefonou para as informações e deu a morada e o nome de Koji Tasaki, mas a única coisa que soube foi que não havia nenhum telefone registado naquele nome.
A seguir, Tengo tentou descobrir o telefone da sede das Testemunhas, mas, na lista que consultou, não existiam quaisquer contactos deles. Nada em «Antes do Dilúvio», nada em «Associação das Testemunhas» ou em qualquer coisa do género. Também tentou os apartados de «Organizações Religiosas», mas não encontrou nada. No fim desta luta, Tengo concluiu que, provavelmente, eles não queriam ser contactados por ninguém.
Agora que pensava nisso, era bastante estranho. Estavam sempre a aparecer por todo o lado e a toda a gente. Tocavam à campainha, batiam à porta, sem se preocuparem em saber se a pessoa estaria ocupada – nem que fosse a fazer um soufflé, a soldar alguma coisa, a lavar a cabeça, a treinar um rato a fazer habilidades ou a pensar em equações do segundo grau –, e, com um grande sorriso, convidavam-nas a ler a Bíblia com eles. Não tinham qualquer problema em ir visitar alguém, mas a pessoa não era livre de ir visitá-los (a menos que se fosse crente, talvez). Não era possível fazer-lhes uma simples pergunta. Era bastante incómodo.
Contudo, mesmo que conseguisse encontrar o telefone da Associação e os contactasse, custava a crer que uma organização tão desconfiada desse de boa vontade qualquer informação acerca de um dos seus membros. Sem dúvida que teriam as suas razões para serem tão circunspectos. Havia muita gente que os odiava por causa das suas doutrinas extremistas e excêntricas, bem como pela natureza obstinada da sua fé. Tinham provocado vários problemas sociais e, em consequência disso, a forma como lidavam com eles tocava muitas vezes as raias da perseguição. Provavelmente, proteger a comunidade de um mundo exterior pouco menos do que hostil tornara-se já uma segunda natureza.
Em todo o caso, o caminho da pesquisa de Tengo levara-o a um beco sem saída, pelo menos por agora. Naquele momento, não conseguia pensar em mais nenhum método adicional. «Aomame» era um nome tão invulgar, que, uma vez ouvido, era impossível esquecê-lo. Mas, ao tentar seguir os passos de uma única pessoa com esse nome, depressa esbarrara com um muro sólido. Talvez fosse mais rápido perguntar diretamente aos membros da Associação das Testemunhas. Era provável que a sede desconfiasse dos seus motivos e se recusasse a dizer-lhe fosse o que fosse, mas, se perguntasse a um dos membros, ele talvez fosse amável e o informasse, sentia. Contudo, Tengo não conhecia nenhum membro da Associação das Testemunhas. Agora que pensava nisso, há uns bons dez anos que ninguém da Associação lhe batia à porta. Por que razão apareciam quando não eram desejados e, quando o eram, não apareciam?
Uma outra possibilidade seria pôr um anúncio num jornal. «Aomame, por favor, contacta-me imediatamente. Kawana.» Que estupidez! Tengo não acreditava que Aomame se desse ao trabalho de entrar em contacto com ele, mesmo que visse um anúncio desses. Talvez a alarmasse. «Kawana» também não era um apelido vulgar, mas custava a crer a Tengo que ela ainda o recordasse. Kawana... quem será? Pura e simplesmente, ela não entraria em contacto com ele. E, além do mais, quem é que ainda lia classificados?
Outra abordagem poderia ser contratar um detetive privado. Deviam saber como procurar pessoas. Tinham os seus métodos e contactos. As pistas de que Tengo já dispunha podiam ser suficientes para que a encontrassem depressa. Talvez não fosse demasiado caro. Mas seria algo a utilizar em último recurso apenas, considerou Tengo. Tentaria mais um bocado para ver o que conseguia fazer por si próprio.
* * *
Quando começou a escurecer, regressou a casa, onde foi encontrar Fuka-Eri sentada no chão a ouvir discos – velhos discos de jazz deixados pela sua amante. Havia capas de discos espalhadas pelo chão: Duke Ellington, Benny Goodman, Billie Holiday. Naquele momento, no prato girava um disco de Louis Armstrong, que cantava «Chantez les Bas», uma canção memorável. Trazia-lhe à lembrança a sua amante. Tinham ouvido esta canção entre uma e outra hora de sexo. Perto do fim, o trombone de Trummy Young entusiasma-se, esquece-se de terminar o seu solo no ponto que fora acordado e toca mais uns oito compassos extra. «Aqui, é neste sítio», explicara-lhe a amante. Quando acabava, cabia a Tengo a tarefa de sair da cama nu, ir à outra sala e virar o LP para pôr a tocar o lado B. Sentiu a mordedura da nostalgia ao recordar esses dias passados. Apesar de nunca ter pensado que a relação duraria para sempre, nunca esperara que terminasse de forma tão abrupta.
Tengo teve um sentimento de estranheza por ver Fuka-Eri escutar com tanta atenção os discos que Kyoko Yasuda deixara para trás. Com o sobrolho franzido numa atitude de profunda concentração, ela parecia tentar ouvir algo para além da velha música, esforçando-se por descortinar uma sombra por entre aqueles sons.
– Gostas deste disco?
– Fartei-me de o ouvir – respondeu Fuka-Eri. – Não te importas.
– Claro que não. Mas não te aborreceste por ficares aqui sozinha?
Fuka-Eri teve um ligeiro abanar da cabeça.
– Estive a pensar.
Tengo queria fazer perguntas a Fuka-Eri acerca do que se passara entre os dois durante a tempestade. Porque fizeste aquilo? Não estava em crer que Fuka-Eri sentisse algum desejo sexual por ele. Devia ter sido um ato sem nenhuma relação com o sexo. A ser assim, que significado poderia ter?
Todavia, mesmo que lhe perguntasse de caras, duvidava que recebesse uma resposta clara. E Tengo não conseguia decidir-se a abordar o tema numa tarde de setembro tão aprazível e tranquila. Fora algo feito de uma forma sub-reptícia, num local sombrio, a meio de uma trovoada furiosa. Trazido para a luz do dia, a natureza do seu significado poderia alterar-se.
Portanto, Tengo abordou a questão de um ângulo diferente, um ângulo que admitia uma simples resposta de «sim» ou «não».
– Não tens o período?
– Não – foi a curta resposta.
– Nunca tiveste, nem mesmo uma vez?
– Não, nem mesmo uma vez.
– Pode não ser da minha conta, mas tu já tens dezassete anos. É provável que não seja normal ainda não teres tido o período.
Fuka-Eri teve um leve encolher de ombros.
– Já falaste com o médico a esse respeito?
Fuka-Eri abanou a cabeça.
– Não vale a pena.
– E porque não?
Fuka-Eri não respondeu. Nem deu sinais de ter ouvido a pergunta. Talvez os seus ouvidos tivessem uma válvula especial que pressentia se uma pergunta era adequada ou inadequada, abrindo-se e fechando-se quando necessário, como as guelras de uma sereia.
– Tem que ver com o Povo Pequeno? – indagou.
Mais uma vez, não obteve resposta.
Tengo suspirou. Não estava capaz de se lembrar de nenhuma outra pergunta que lhe permitisse ficar mais perto de esclarecer os acontecimentos da noite anterior. O carreiro estreito e incerto interrompeu-se naquele ponto e à sua frente só existia uma floresta cerrada. Olhou para o sítio onde tinha os pés, examinou o que o rodeava e levantou o olhar para o céu. Era o problema de falar com Fuka-Eri. Todos os caminhos acabavam inevitavelmente cortados. Um guiliak talvez fosse capaz de continuar em frente, mesmo depois de a estrada ter terminado, mas para Tengo revelava-se impossível.
Em vez disso, puxou outro assunto.
– Ando à procura de uma pessoa. Uma mulher.
Era inútil falar disto a Fuka-Eri. Tengo estava plenamente consciente disso, mas queria falar do caso com alguém. Queria ouvir-se a contar a alguém – fosse quem fosse – o que andava a pensar acerca de Aomame. Sentia que, se não o fizesse, Aomame ficaria cada vez mais distante dele.
– Há vinte anos que não a vejo. Tinha dez anos, da última vez que a vi. Temos a mesma idade. Éramos da mesma turma na escola primária. Já tentei encontrá-la de várias formas, mas não tive sorte nenhuma.
O disco chegou ao fim. Fuka-Eri levantou-o do gira-discos, semicerrou os olhos e cheirou várias vezes o plástico. A seguir, segurando-o pelas bordas, com cuidado para não deixar marcas de dedos, fê-lo escorregar para dentro da capa interior de papel e enfiou tudo na capa do disco – suave, amorosamente, como se transferisse um gatinho para o seu cesto.
– Queres ver essa pessoa – perguntou Fuka-Eri, sem ponto de interrogação.
– Sim, ela é muito importante para mim.
– Há vinte anos que andas à procura dela – indagou Fuka-Eri.
– Não, não ando – respondeu Tengo. Enquanto buscava as palavras adequadas para prosseguir, Tengo dobrou as mãos sobre a mesa. – Para te dizer a verdade, só hoje me pus à procura dela.
– Hoje – disse ela.
– Se ela é tão importante para ti, porque é que, até hoje, nunca a procuraste? – perguntou Tengo, no lugar de Fuka-Eri. – Boa pergunta.
Fuka-Eri fitou-o em silêncio.
Tengo tentou arrumar os pensamentos. A seguir, disse:
– É provável que eu tenha feito um longo desvio. Durante este tempo todo, sem interrupções, essa rapariga chamada Aomame tem estado, como dizer?, no centro da minha consciência. Tem funcionado como uma âncora importante na minha vida. Apesar disto... será?... acho que ainda não consigo avaliar completamente o significado que tem para mim, precisamente por estar tão perto do centro.
Fuka-Eri pregou o olhar em Tengo. Pela sua expressão era impossível perceber se a jovem rapariga compreendia minimamente o que ele estava a dizer-lhe. Mas pouco importava. Em parte, Tengo falava para si mesmo.
– Mas, por fim, percebi: ela não é nem um conceito, nem um símbolo, nem uma metáfora. Ela existe de facto: tem carne quente e um espírito que se move. Nunca devia ter perdido de vista esse calor e esse movimento. Levei vinte anos a perceber uma coisa tão óbvia. Levo sempre algum tempo a pensar nas coisas, mas isto é demais. Pode já ser demasiado tarde. Mas, seja lá como for, quero encontrá-la.
De joelhos no chão, Fuka-Eri endireitou-se e o desenho dos seus mamilos via-se por baixo da T-shirt de Jeff Beck.
– Ah-oh-mah-meh – pronunciou Fuka-Eri devagar, como se pesasse cada sílaba.
– Sim. Ervilhas. É um nome invulgar.
– Queres encontrá-la – perguntou Fuka-Eri, sem ponto de interrogação.
– Sim, é claro que quero encontrá-la – respondeu Tengo.
Fuka-Eri pensou durante alguns instantes, mordendo o lábio inferior. Depois, levantou os olhos como se tivesse tido uma nova ideia e disse:
– Pode estar aqui perto.
12 «Partita» significa divisões ou partes. Inicialmente, designava apenas um conjunto de peças para instrumento solista – por regra, variações de um tema –, todas na mesma tonalidade. (N. das T.)
13 Genkyoshi – um tipo de papel japonês utilizado para escrever. É reticulado, normalmente tem 200 ou 400 quadrados por folha. Cada um receberá um caráter ou um sinal de pontuação. No Japão, os processadores de texto têm muitas vezes um modelo que segue estas regras. (N. das T.)
17
AOMAME
Fazer sair o rato
Na televisão, o noticiário das 7 da manhã mostrou uma grande reportagem sobre a inundação da estação de metro de Akasaka-Mitsuke, mas não houve uma única referência à morte do Líder da Vanguarda numa suíte do Hotel Okura. Quando terminaram as notícias da NHK, ela mudou de canal e viu alguns outros noticiários, mas nenhum deles anunciou a morte indolor daquele homem corpulento.
Esconderam o corpo, pensou Aomame, franzindo o sobrolho. Tamaru prevenira-a para essa possibilidade, mas custara-lhe a acreditar que o fizessem realmente. De alguma forma, tinham conseguido tirar o corpo do Líder da suíte do Hotel Okura, metê-lo num carro e levá-lo dali para fora. Era um homem bastante grande e o cadáver devia ser muitíssimo pesado. O hotel estava cheio de clientes e empregados. Havia câmaras de segurança por todo o lado. Como teriam conseguido levar o cadáver até à garagem subterrânea do hotel sem ninguém ter dado por isso?
Deviam ter transportado o corpo para a sede da comunidade em Yamanashi durante a noite. Uma vez lá chegados, teria havido uma discussão quanto ao que fariam com ele. Pelo menos, não iam fazer uma participação formal da sua morte à polícia. Uma vez escondida uma coisa, há que mantê-la escondida.
Provavelmente, aquela intensa trovoada, o aguaceiro localizado e a confusão que provocaram tinham-lhes facilitado a vida. Em todo o caso, tinham evitado tirá-lo de lá à luz do dia. Por sorte, o Líder pouco aparecia em público. A sua pessoa e os seus atos estavam envoltos em mistério, de modo que, mesmo tendo desaparecido de forma inesperada, a sua ausência não atrairia as atenções durante algum tempo. O seu falecimento – ou o seu assassínio – permaneceriam um segredo bem guardado por um punhado de pessoas.
Claro que Aomame não fazia a maior pequena ideia de como iriam preencher o vazio gerado pela morte do Líder, mas eles esgotariam todas as hipóteses de que dispusessem para manter a organização. Como o próprio homem dissera, o sistema perduraria, com ou sem líder. Quem poderia herdar a posição do Líder? Tal problema não dizia minimamente respeito a Aomame. A sua missão fora liquidar o Líder, não esmagar uma religião.
Pensou nos dois guarda-costas, de fatos escuros. O Bola-de-Bilhar e o Rabo-de-Cavalo. Uma vez de regresso às instalações, será que lhes teriam assacado a responsabilidade por terem deixado o Líder ir desta para melhor debaixo dos seus olhos? Aomame imaginou a próxima missão deles: «Custe o que custar, encontrem essa mulher. Não voltem sem ela.» Era possível. Tinham visto a cara dela de perto. Eram competentes e estavam sedentos de vingança. Eram dois caçadores capazes. Além do mais, a direção da comunidade teria de averiguar quem estaria por trás de Aomame.
Comeu uma maçã em jeito de pequeno-almoço, mas quase não tinha apetite. Nas suas mãos ainda retinha a sensação que tivera ao espetar a agulha na nuca do homem. Enquanto descascava a maçã com uma faquinha que segurava com a mão direita, sentiu o seu corpo estremecer ligeiramente – um estremecimento que nunca antes sentira. Dantes, sempre que matava alguém, a memória desse facto desvanecia-se quase por completo depois de uma boa noite de sono. Apesar de nunca se sentir bem quando tirava a vida a alguém, a verdade é que eram sempre homens que não mereciam continuar a viver. Inspiravam-lhe mais repulsa do que compaixão. Mas desta vez tinha sido diferente.
Em termos práticos, o que o homem fizera constituía, para não dizer mais, uma afronta à humanidade. No entanto, ele era, em muitos sentidos, um ser humano extraordinário e, pelo menos em parte, essa sua personalidade fora de série parecia transcender os parâmetros normais do bem e do mal. E tirar-lhe a vida também tinha sido algo extraordinário. Deixara-lhe nas mãos uma estranha sensação – uma sensação extraordinária.
Atrás de si deixara uma «promessa». Os pensamentos de Aomame levaram-na a essa conclusão. O peso de tal promessa ficara nas suas mãos como um sinal. Deu-se conta disto. Esse sinal talvez nunca mais desaparecesse.
Pouco depois das nove, o telefone tocou. Era Tamaru. Tocou três vezes, parou e começou outra vez, vinte segundos mais tarde.
– Afinal, não telefonaram à polícia – disse Tamaru. – Não veio nos noticiários da televisão nem nos jornais.
– Bem, ele morreu mesmo. Tenho a certeza.
– Sim, claro, eu sei. Não tenho a menor dúvida. Houve algumas movimentações por aqui. Já saíram do hotel. Convocaram várias pessoas da delegação da cidade a meio da noite, talvez para ajudarem a fazer desaparecer o corpo. Em coisas deste género, os tipos são bons. Por volta da uma da manhã, um Mercedes Classe S e uma carrinha Toyota Hiace abandonaram o parque de estacionamento do hotel. Ambos tinham vidros fumados e placas de matrícula de Yamanashi. É provável que, quando o Sol nasceu, já estivessem na sede da Vanguarda. Anteontem, a polícia fez uma rusga ao complexo, mas não foi uma operação em grande escala e todos os agentes há muito que se tinham ido embora. A Vanguarda tem um grande incinerador. Se alguém atirar um corpo lá para dentro, não sobra nem um osso que seja, só fumo.
– Sinistro.
– Sim, um grupo sinistro, é verdade. Apesar de o Líder estar morto, a organização continuará a funcionar durante ainda mais algum tempo, como uma cobra que permanece em movimento mesmo depois de lhe terem cortado a cabeça. Com cabeça ou sem cabeça, sabe rigorosamente para onde está virada. Ninguém pode dizer o que o futuro trará. Pode morrer. Ou arranjar outra cabeça.
– Não era um homem vulgar.
Tamaru não emitiu qualquer opinião a esse respeito.
– Completamente diferente dos outros – continuou Aomame.
Tamaru demorou um instante a aperceber-se do eco nas palavras de Aomame. Depois, disse:
– Sim, consigo perceber que esse homem fosse diferente dos outros. Mas é melhor pormo-nos a pensar no que vai acontecer a partir de agora e ser um pouco mais pragmáticos. Se não for assim, não sobreviverás.
Aomame pensou que devia dizer alguma coisa, mas as palavras não lhe saíram. O estremecimento ainda permanecia no seu corpo.
– A senhora quer falar contigo – informou-a Tamaru. – Pode ser?
– Claro – respondeu Aomame.
Passou o telefone à viúva. Aomame sentiu o alívio na voz dela.
– Estou-te muito grata, mais do que consigo exprimir. Trataste deste com a maior perfeição.
– Muito obrigada. Mas não me parece que vá ser capaz de fazer outra – disse Aomame.
– Não, tenho consciência disso. Pedimos-te demasiado. Fico muito contente por estares bem. Não voltaremos a pedir-te que faças uma coisa destas. Foi a última vez. Preparámos um sítio onde te poderás instalar tranquilamente. Não te preocupes. Por favor, deixa-te ficar nessa casa segura durante algum tempo. Entretanto, trataremos de tudo para que possas estabelecer-te na tua nova vida.
Aomame agradeceu-lhe.
– Tens aí tudo o que te faz falta? Se não tiveres, avisa-nos. Digo ao Tamaru que trate imediatamente do que for preciso.
– Não, muito obrigada. Tanto quanto me é dado a ver, tenho aqui tudo.
A senhora pigarreou.
– Bem. Só te peço que te lembres de uma coisa. O que fizemos está absolutamente certo. Punimos o homem pelos crimes que cometeu e evitámos que cometesse mais. Não haverá outras vítimas. Pusemos um ponto final nisso. Não deixes que esta situação te perturbe.
– Ele disse o mesmo.
– Ele?
– O Líder da Vanguarda. O homem que despachei ontem à noite.
A senhora ficou em silêncio durante uns bons cinco segundos. A seguir, disse:
– Ele sabia?
– Sim, sabia que eu estava ali para o matar e, ainda assim, deixou-me entrar. Estava mais do que ansioso pela morte. O corpo dele tinha sofrido uma grave lesão e encaminhava-se para um fim lento mas inevitável. Limitei-me a apressar um tanto o processo e dei descanso a um corpo torturado por dores violentas.
A viúva pareceu ter ficado muito chocada ao ouvir aquilo. De novo se viu sem saber o que dizer, o que não era nada vulgar nela.
– Estás a dizer... – começou a senhora, à procura das palavras adequadas – ... que ele desejava que o castigassem pelos seus erros?
– O que ele queria era que o libertassem o mais depressa possível de uma vida de sofrimento.
– E decidiu deixar-te matá-lo.
– Precisamente.
Aomame não referiu o pacto que fizera com o Líder. Em troca de permitir que Tengo continuasse a viver neste mundo, ela própria teria de morrer: era um acordo secreto entre Aomame e o homem. Mais ninguém deveria saber.
Aomame prosseguiu:
– Os atos desse homem eram anormais, desviantes e mereciam a morte, mas não era um homem vulgar. Ou, pelo menos, tinha qualquer coisa de especial. Não restam dúvidas.
– Qualquer coisa de especial? – perguntou a velha senhora.
– É difícil de explicar – replicou Aomame. – Era ao mesmo tempo um dom ou poder especial e um fardo cruel. Penso que estava a corroê-lo por dentro.
– Estás a querer dizer que esse algo especial o forçou a ter aquele comportamento desviante?
– Provavelmente.
– De qualquer modo, puseste-lhe um ponto final.
– É verdade – respondeu Aomame, num tom seco.
Enquanto segurava o auscultador com a mão esquerda, Aomame esticou a mão direita, com a sua persistente sensação de morte, e olhou para a palma. O que quereria dizer «unir-se de maneira ambígua àquelas raparigas»? Aomame não o compreendia nem era capaz de o explicar à senhora.
– Como de costume, fiz com que parecesse que a morte se deveu a causas naturais, mas é provável que não nos façam a gentileza de a encarar assim. Dadas as circunstâncias, estou certa de que chegarão à conclusão de que eu tive alguma coisa que ver com aquilo. E, como sabe, ainda ninguém participou a morte dele à polícia.
– Sejam quais forem os passos que decidam dar, faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para te proteger – afirmou a viúva. – Eles têm a organização deles, mas nós temos ligações fortes e dispomos de vastos fundos. E tu és uma pessoa inteligente e cautelosa. Não os vamos deixar levar a deles avante.
– Já encontraram a Tsubasa? – perguntou Aomame.
– Ainda não sabemos para onde foi. A minha opinião é que está dentro das instalações da Vanguarda. Não tem mais para onde ir. Ainda não arranjámos maneira de a trazer de volta, mas imagino que a morte do Líder tenha lançado a confusão no grupo. Pode ser que consigamos fazer qualquer coisa e aproveitar a confusão para a recuperar. Aquela criança precisa de ser protegida.
Segundo o Líder, aquela criança na casa-abrigo não era uma substância real. Era apenas uma forma de um conceito e, entretanto, fora «recuperada». Mas, naquele momento, Aomame não tinha como dizer isto à velha senhora. A própria Aomame não sabia o que significava, mas lembrou-se do relógio de mármore a levitar. Tinha-o visto com os seus próprios olhos. Perguntou:
– Quantos dias terei de ficar escondida nesta casa?
– Deves contar com qualquer coisa entre quatro dias e uma semana. Depois, receberás um novo nome e uma nova situação e serás deslocada para um local longe daqui. Uma vez que te tenhas instalado, para tua segurança, seremos forçados a cortar todos os contactos contigo. Durante algum tempo, não nos verás. Dada a minha idade, é bem provável que nunca mais te veja. Teria sido bem melhor não te ter metido neste assunto complicado. Muitas vezes pensei nisso. Não teria de te perder desta forma. Mas...
A voz ficou-lhe presa na garganta. Aomame esperou calmamente que ela continuasse a falar.
– ... mas não me arrependo. Tudo está mais ou menos determinado pelo destino. Tinha de te envolver, não tive escolha. Havia em ação forças muito poderosas, que me empurraram. Mesmo assim, lamento imenso que as coisas tenham chegado a este ponto.
– Por outro lado, partilhámos algo, algo importante, que não poderíamos ter partilhado com mais ninguém, algo que nunca poderíamos ter tido por outra via.
– Sim, tens razão – respondeu a velha senhora.
– Para mim, essa partilha foi importante, eu precisava dela.
– Muito obrigada por mo dizeres. Dá-me alguma redenção.
Para Aomame também era penoso saber que poderia não voltar a ver a senhora, que era um dos poucos laços que mantinha com o mundo exterior.
– Fique bem – disse Aomame.
– Tu também – respondeu a viúva. – E sê feliz.
– Se for possível – retorquiu Aomame. A felicidade era algo que estava muito distante dela.
Tamaru pegou no telefone.
– Ainda não usaste aquilo, pois não? – perguntou.
– Não, ainda não.
– Evita ao máximo usá-lo.
– Vou tentar não me esquecer disso.
Após uma curta pausa, Tamaru voltou a falar:
– Acho que no outro dia te disse que cresci num orfanato, nas montanhas de Hokkaido.
– Separaram-te dos teus pais quando foram evacuados de Sacalina e puseram-te lá.
– Nesse orfanato, havia um rapaz dois anos mais novo do que eu. Era mestiço: meio japonês, meio negro. Acho que o pai era militar, destacado na base americana em Misawa. Não sei quem era a mãe dele, mas é provável que fosse uma prostituta ou uma empregada de bar. Abandonou-o pouco tempo depois de ele nascer e puseram-no no orfanato. Era bastante maior do que eu, mas pouco esperto. Claro que os outros miúdos se metiam com ele, sobretudo porque a sua cor era diferente. Sabes como é.
– Acho que sim.
– Eu também não era japonês e, não sei bem como, dei comigo a agir como seu protetor. As nossas situações eram semelhantes: um refugiado coreano e o filho ilegítimo e mestiço de um negro e uma puta. Não se pode descer mais baixo. Mas fez-me bem, endureceu-me. A ele não, porém. Ele nunca poderia ser um duro. Entregue a si próprio, teria de certeza morrido. Naquele sítio, se não tivéssemos resposta pronta ou se não fôssemos bons a lutar, não sobrevivíamos.
Em silêncio, Aomame esperou que prosseguisse.
– Ele era mau em tudo. Não conseguia fazer nada como deve ser. Não era capaz de abotoar a camisa ou limpar o seu próprio rabo. Mas, a esculpir, o caso mudava de figura. Era excelente. Dessem-lhe meia dúzia de ferramentas e um bloco de madeira e, antes de um ai, ele fazia uma magnífica escultura. Nem esboços nem nada: a imagem surgia-lhe na cabeça e ele criava uma figura tridimensional rigorosa, tremendamente pormenorizada e realista. Era uma espécie de génio. Espantoso.
– Um savant – disse Aomame.
– Sim, claro. Mais tarde, aprendi isso tudo, a tal síndrome de Savant. Pessoas com poderes extraordinários. Mas, naquela altura, ninguém sabia nada acerca do assunto. Toda a gente partia do princípio de que ele era atrasado mental, ou coisa assim, um miúdo com um cérebro lento, mas com mãos dotadas que lhe permitiam ser bom a esculpir. Não sei porquê, a única coisa que ele conseguia esculpir eram ratos. Fazia-os muitíssimo bem. Fosse qual fosse o ângulo, pareciam sempre vivos. Mas ele nunca, nunca esculpiu outra coisa que não ratos. Toda a gente insistia para que fizesse outro animal... um cavalo ou um urso... e até chegaram a levá-lo ao jardim zoológico com essa intenção, mas ele nunca mostrou o mínimo interesse por outras criaturas. Por isso, acabaram por o deixar à vontade, a fazer o que queria: ratos. Fazia ratos e ratazanas de todos os tamanhos e feitios e em todas as posições. Estranho até mais não. E com isto quero dizer que não havia ratos no orfanato. Era demasiado frio e não tinham nada que comer. Aquele sítio era demasiado pobre, até mesmo para os ratos. Ninguém fazia a mínima ideia da razão por que tinha aquela fixação por ratos... Bem, seja lá como for, começou a espalhar-se que ele fazia ratos. O jornal da zona fez uma história e as pessoas começaram a pedir para os comprar. O responsável pelo orfanato, um padre católico, conseguiu que uma loja de artesanato ficasse com os bichos e começasse a vendê-los aos turistas. Devem ter feito uma quantia considerável, mas é claro que não chegou nada às mãos do rapaz. Não sei o que fizeram ao dinheiro e suspeito que os responsáveis do orfanato o usaram em proveito próprio. O rapaz só recebeu mais ferramentas e madeira para continuar a fazer ratos na oficina. É verdade que o dispensavam do trabalho duro no campo: ele só tinha de ficar ali sozinho, a esculpir ratos e ratazanas, enquanto todos nós andávamos por fora. Nesse sentido, tinha sorte.
– E o que foi que lhe aconteceu?
– Para te dizer a verdade, não sei. Aos catorze anos, fugi do orfanato e, desde então, vivi sozinho. Fui direito ao ferry, fiz a travessia para a ilha principal e, daí em diante, nunca mais pus os pés em Hokkaido. Na última vez que o vi, estava dobrado sobre a bancada, concentrado a esculpir. Nesses momentos, não era possível falar com ele, e eu nunca me despedi. Se ainda for vivo, imagino que esteja algures a esculpir ratos. Era o que sabia fazer.
Aomame manteve-se em silêncio e esperou pelo resto da história.
– Ainda hoje, penso muitas vezes nele. A vida no orfanato era horrível. Davam-nos pouca comida e andávamos sempre com fome. Os invernos eram gelados. O trabalho era duro e os miúdos mais velhos brutalizavam-nos. Mas ele nunca pareceu achar que aquela vida fosse assim tão dolorosa. Enquanto pudesse esculpir, parecia feliz. Às vezes, quando agarrava nas ferramentas, parecia ficar meio louco, mas, fora isso, era um tipo mesmo dócil. Não incomodava ninguém e deixava-se estar calmamente a esculpir os seus ratos. Agarrava num bocado de madeira e ficava a olhar para ele durante muito tempo até ser capaz de ver que tipo de rato e em que posição estava no interior da madeira. Levava muito tempo até ser capaz de ver a figura, mas, uma vez que a visse, só tinha de a tirar de dentro da madeira com as suas ferramentas. Dizia muitas vezes: «Vou fazer sair o rato.» E os ratos que ele fazia sair tinham o ar de poderem começar a mexer-se a qualquer instante. Não parava de libertar ratos aprisionados dentro de cada pedaço de madeira.
– E tu protegias o rapaz.
– Sim, mas não porque quisesse. Dei comigo naquela situação. Era a minha. E, uma vez que te visses em determinada situação, tinhas de estar à altura dela, por mais coisas que acontecessem. Era a regra. Por exemplo, se um dos outros rapazes lhe escondia as ferramentas só para gozar, eu ia ter com ele e partia-lhe a cara. Mesmo que o outro miúdo fosse mais velho ou maior do que eu ou se fossem vários contra um, eu tinha de lhe ir à cara. É claro que houve vezes em que me vieram à cara a mim. Muitas vezes. Mas não se tratava de ganhar ou perder: partissem-me eles a cara ou eu a deles, acabava sempre por recuperar as ferramentas e devolver-lhas. Isso é que era importante. Estás a ver onde quero chegar?
– Acho que sim – respondeu Aomame. – Mas acabaste por ter de o abandonar.
– Bom, eu tinha de viver a minha vida. Não podia ficar com ele para sempre e cuidar dele. Como é óbvio, não podia dar-me a esse luxo.
Aomame tornou a abrir a mão direita e olhou para ela.
– Já te vi com um pequeno rato esculpido na mão. Foi feito por ele?
– Foi, ele deu-me um pequenino, e eu trouxe-o quando fugi. Tenho-o comigo.
– Sabes, Tamaru, não és o tipo de pessoa que fale muitas vezes acerca de si próprio. Porquê agora?
– Uma das coisas que queria dizer-te é que penso nele muitas vezes – respondeu Tamaru. – Não que queira tornar a vê-lo, ou coisa do género. Não quero mesmo. Para começar, não teríamos conversa um para o outro. É só que eu ainda tenho gravada esta imagem muito nítida dele «a fazer sair os ratos» de bocados de madeira numa concentração absoluta; tornou-se uma referência mental importante para mim. Ensina-me algo... ou, pelo menos, tenta. As pessoas precisam de coisas assim para continuar a viver: paisagens mentais com um significado, mesmo que impossível de explicar por palavras. Em parte, a razão por que vivemos prende-se com o termos de arranjar explicações para estas coisas. Eu penso assim.
– Estás a dizer-me que são o fundamento da nossa vida?
– Talvez.
– Eu também tenho paisagens mentais dessas.
– É melhor que as trates com cuidado.
– Tratarei.
– Tenho ainda uma coisa para te dizer, que é isto: farei tudo o que puder para te proteger. Se houver alguém a quem eu tenha de ir à cara, eu vou. Ganhe ou perca, não te abandono.
– Obrigada.
Houve um silêncio tranquilo.
– Não saias do apartamento durante algum tempo. Pensa que, se deres um passo para fora da tua porta, estás na selva. Okay?
– Entendido.
A ligação foi cortada. Ao pousar o telefone, Aomame tomou consciência da força com que estava a agarrar no aparelho.
* * *
O Tamaru quis transmitir-me que agora sou parte indispensável da família deles, que os vínculos, uma vez criados, não se desfazem. Estamos unidos por um sangue artificial, se posso dizê-lo assim, pensou Aomame. Estava grata a Tamaru por lhe ter enviado aquela mensagem. Ele devia ter-se apercebido de que Aomame estava a passar por um período difícil. Precisamente porque a considerava um membro da família, ele tinha-lhe contado alguns dos seus segredos.
A ideia de que um laço assim só se podia formar através da violência era um pensamento quase insuportável para Aomame.
Só nos é possível partilhar estes sentimentos tão profundos devido às minhas circunstâncias únicas. Infringi a lei, matei várias pessoas e anda gente atrás de mim para me matar, é mais que certo. Teria sido possível estabelecer estes laços se não existisse um assassínio pelo meio? Poderíamos ter criado estes laços de confiança se eu não estivesse à margem da lei? Duvido.
Viu o noticiário na televisão enquanto bebia chá. Não houve mais notícias da inundação na estação de metro de Akasaka-Mit-suke. Assim que, no dia seguinte, a água desceu e os comboios voltaram a circular dentro da normalidade, a notícia perdeu pertinência. A morte do Líder da Vanguarda também ainda não era do conhecimento público. Só meia dúzia de pessoas o sabia. Aomame imaginou o cadáver daquele homem corpulento a arder dentro do incinerador a altas temperaturas. «Não sobrará nem um osso», dissera Tamaru. Tudo se converteria em fumo e se dissolveria no ar do princípio do outono, independentemente de qualquer graça divina ou sofrimentos. Aomame imaginou o fumo e o céu.
Houve uma notícia sobre o desaparecimento da rapariga de dezassete anos que escrevera A Crisálida de Ar, um grande êxito de vendas. Eriko Fukada, ou «Fuka-Eri», como era conhecida, desaparecera há já mais de dois meses. A polícia recebera uma participação e um pedido de ajuda por parte do tutor e estava a investigar o caso com todo o cuidado, mas ainda nada se esclarecera, disse o locutor. No ecrã surgiu uma pilha de exemplares de A Crisálida de Ar numa livraria e um cartaz com a fotografia da bonita autora pendurado numa parede da loja. Entrevistaram uma jovem funcionária da livraria: «O livro está a vender que nem pãezinhos quentes. É uma loucura. Comprei-o e li-o. É realmente bom, muito imaginativo. Espero que encontrem a Fuka-Eri rapidamente.»
O jornalista não fez qualquer referência à relação de Eriko Fukada com a Vanguarda. Quando havia organizações religiosas envolvidas, a imprensa era sempre muito cuidadosa.
Mas a verdade é que Eriko Fukada tinha desaparecido. Fora violada pelo pai quando tinha apenas dez anos. Tinham tido uma «união ambígua», se Aomame aceitasse a terminologia. Aquela união permitira que o Povo Pequeno entrasse nele.
Aomame não conseguia imaginar como é que Eriko Fukada iria lidar com a notícia da morte do pai.
Como é que ele disse? É isso, ela era a Apreensora e ele o Recetor. Eriko Fukada era quem apreendia e o pai dela era quem recebia. Depois o homem começou a ouvir vozes estranhas. Tornou-se o representante do Povo Pequeno e o fundador de uma religião chamada Vanguarda. Depois disso, ela abandonou a religião. A seguir, enquanto força que se opunha ao Povo Pequeno, formou equipa com o Tengo e escreveu o romance A Crisálida de Ar, que se transformou num êxito de vendas. Agora, por uma razão desconhecida, desapareceu, e a polícia anda à procura dela.
Entretanto, ontem à noite, armada de um picador de gelo especial, eu assassinei o pai da Eriko Fukada, Líder da associação religiosa a que chamam Vanguarda. Os fiéis dessa associação transportaram o cadáver para fora do hotel e, em segredo, «desfizeram-se» dele. Aomame não conseguia imaginar como reagiria Eriko Fukada à morte do pai. Foi uma morte que ele próprio pediu, uma morte indolor e misericordiosa, mas a verdade é que usei as minhas mãos para arrancar a vida a um ser humano. Já por si, a vida de uma pessoa pode ser bastante solitária, mas não está isolada. Está vinculada a outras vidas e é bem certo que isso acarreta algumas responsabilidades que têm de ser assumidas.
O Tengo também está profundamente envolvido nestes acontecimentos. Os Fukada, pai e filha, são o que nos une: Apreensora e Recetor. Por onde andará agora o Tengo e o que estará a fazer? Será que está envolvido no desaparecimento da Eriko Fukada? E ainda estarão a colaborar um com o outro? As notícias da televisão não dizem nada acerca do Tengo, claro. Até ao momento, ainda ninguém sabe que foi ele quem escreveu A Crisálida de Ar. Mas eu sei.
Aparentemente, ele e eu estamos a encurtar, pedacinho a pedacinho, a distância que nos separa. Fomos trazidos para este mundo pelas circunstâncias, e estas estão a aproximar-nos como se estivéssemos a ser arrastados para o centro de um grande vórtice. Um vórtice que pode ser letal. Mas o Líder insinuou que, fora de um lugar tão letal, nunca nos teríamos encontrado, da mesma forma que a violência gera certo tipo de vínculos puros.
Inspirou profundamente. Depois, estendeu a mão e agarrou na Heckler & Koch que estava em cima da mesa e verificou a sua solidez ao toque. Imaginou a sensação de ter o cano na boca e o dedo a premir o gatilho. Um grande corvo surgiu inesperadamente na varanda, empoleirou-se no corrimão e soltou uma série de gritos penetrantes. Através do vidro, Aomame e o corvo observaram-se durante algum tempo. Os grandes olhos brilhantes do corvo espiavam os movimentos de Aomame, dentro da sala. A ave parecia entender o significado da arma que a rapariga tinha na mão. Os corvos são animais inteligentes. Decerto saberiam que aquele pedaço de metal tinha um grande significado. Não sabiam porquê, mas sabiam.
O corvo abriu as asas e voou para longe de um modo tão inesperado como chegara, tendo aparentemente visto o que tinha querido ver. Assim que ele desapareceu, Aomame pôs-se de pé, desligou a televisão e suspirou, esperando que o corvo não fosse um espião do Povo Pequeno.
Aomame fez os seus alongamentos habituais em cima do tapete da sala, trabalhou os músculos até ao limite ao longo de uma hora, vivendo esse tempo com uma dor oportuna. Um por um, alongou cada músculo do seu corpo e submeteu-o a um interrogatório intenso e minucioso. Ela tinha o nome, a função e o tipo de cada músculo gravado na cabeça, sem escapar nenhum. Transpirou em bica, pondo a funcionar os pulmões e o coração a toda a força, fazendo alternar os canais da sua consciência. Escutou o fluir do sangue nas suas veias e recebeu as mensagens sem palavras que o coração lhe enviava. Os músculos do seu rosto contorceram-se nos mais diversos sentidos, como se ela estivesse a cravar os dentes em todas as mensagens.
A seguir, foi tomar um duche para limpar o suor. Pôs-se em cima da balança para verificar que não tinha havido nenhuma alteração significativa do seu peso. Diante do espelho confirmou que o tamanho dos seus seios e a forma do seu triângulo púbico não tinham mudado, e franziu o sobrolho com toda a força. Era o seu ritual matinal.
Quando se despachou da casa de banho, enfiou-se no fato de treino de malha para ter liberdade de movimentos. A seguir, para matar o tempo, decidiu examinar de novo todo o conteúdo do apartamento, a começar pela cozinha: os alimentos e os utensílios para cozinhar e comer. Memorizou cada um dos elementos e elaborou um plano de preparação de alimentos, decidindo o que comeria e por que ordem. Calculou que, mesmo não pondo nunca um pé fora do apartamento, poderia viver ali dez dias, no mínimo, sem ficar com fome e conseguiria que os alimentos durassem duas semanas se tivesse cuidado a dividir as porções. Tinham abastecido o apartamento com muita comida.
Depois, examinou as existências dos produtos não-alimentares: papel higiénico, lenços de papel, detergente para a roupa, luvas de borracha. Não faltava nada. As compras tinham sido feitas com grande esmero. Os preparativos deviam ter tido a colaboração de uma mulher – provavelmente, uma dona de casa experiente, a avaliar pelo óbvio cuidado que fora posto em toda a tarefa. Alguém tinha calculado meticulosamente o quê e quanto seria necessário para que uma mulher de trinta anos, saudável e solteira, pudesse viver ali sozinha durante um curto período de tempo. Um homem nunca poderia tê-lo feito – a menos que fosse gay, talvez, e muito perspicaz.
O armário da roupa de casa que se encontrava no quarto também estava bem fornecido de lençóis, cobertores e almofadas extra, tudo a cheirar a novo e de um branco imaculado. Todos os ornamentos tinham sido evitados com o maior cuidado, não havendo qualquer necessidade de gosto ou individualidade.
Na sala de estar havia um televisor, um gravador de vídeo e uma pequena aparelhagem com gira-discos e leitor de cassetes. Na parede oposta à janela estava um aparador de madeira que lhe chegava à cintura. Dobrou-se e abriu-o, tendo-se deparado com cerca de vinte livros, muito bem arrumados. Alguém se esforçara imenso para que Aomame não se aborrecesse enquanto estivesse ali escondida. Os livros eram todos novos, de capa dura, e não mostravam indícios de terem sequer sido abertos. A maior parte era recente, provavelmente escolhida nos escaparates dos êxitos de vendas do momento, numa grande livraria. A pessoa tivera algum cuidado na escolha – embora nem tanto bom gosto. Escolhera, em partes mais ou menos iguais, obras de ficção e de não-ficção. A Crisálida de Ar estava entre os escolhidos.
Com um pequeno aceno de cabeça, Aomame pegou neste último e sentou-se no sofá da sala, ao sol. Não era um livro muito grosso. Era leve e tinha letras grandes. Olhou para a sobrecapa e procurou o nome da autora, «Fuka-Eri», ali impresso; sopesou o livro na palma da mão aberta e leu a frase promocional que a editora imprimira na cinta colorida que o envolvia. Cheirou o livro, à procura daquele odor especial que os livros novos têm. Apesar de o seu nome não aparecer em sítio nenhum, a presença de Tengo estava ali. O texto impresso no interior passara pelo corpo de Tengo. Acalmou-se e abriu-o na primeira página.
A chávena de chá e a Heckler & Koch estavam ao alcance da mão.
18
TENGO
Aquele satélite solitário e taciturno
– Pode estar aqui perto – disse Fuka-Eri, depois de morder o lábio durante algum tempo, mergulhada nos seus pensamentos.
Tengo abriu e fechou as mãos em cima da mesa, fitando Fuka-Eri, olhos nos olhos.
– Aqui perto? Queres dizer aqui, em Koenji?
– Dá para ir a pé.
Como é que sabes isso?
Tengo desejou fazer-lhe a pergunta, mas estava bem ciente de que não obteria resposta. Ela precisava de questões concretas, a que pudesse responder com um simples «sim» ou «não».
– Estás a dizer que, se procurar aqui pela zona, posso encontrar a Aomame? – perguntou.
Fuka-Eri abanou a cabeça.
– Se andares apenas por aí às voltas, não a encontras.
– Dá para ir a pé, mas não a encontro se apenas der umas voltas. É o que estás a dizer?
– Porque ela está escondida.
– Escondida?
– Como uma gata ferida.
A imagem de Aomame encolhida e escondida num buraco a cheirar a bafio veio à cabeça de Tengo.
– Porquê? Anda a fugir de alguém? – perguntou.
Claro que ela não respondeu a isto.
– Mas o facto de ela estar escondida quer dizer que está metida numa situação crítica, não é verdade?
– Xi-tu-a-xão crí-ti-ca – disse Fuka-Eri, fazendo eco das palavras de Tengo, com o ar de uma criança forçada a tomar um remédio de que não gosta. Provavelmente, não gostava do som das palavras.
– Como se alguém andasse atrás dela – disse Tengo.
Fuka-Eri inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, querendo dizer que não compreendia.
– Mas não vai ficar lá para sempre.
– O nosso tempo é limitado.
– Sim, limitado.
– Mas agora ela está escondida num sítio, como uma gata ferida, pelo que não vai dar umas voltas por aí.
– Não, não vai – declarou a bonita rapariga, absolutamente convicta.
– Por outras palavras, tenho de a procurar num sítio especial.
Fuka-Eri assentiu com a cabeça.
– E que tipo de sítio especial? – perguntou Tengo.
Inútil será dizer que não obteve resposta.
– Tens recordações dela – disse Fuka-Eri, após uma ligeira pausa. – Uma dessas recordações pode ajudar-te.
– Pode ajudar – repetiu Tengo. – Estás a dizer que, se eu me lembrar de uma coisa a respeito dela, posso descobrir uma pista acerca do local onde está escondida?
Sem responder, ela teve um leve encolher de ombros. O gesto poderia incluir uma vaga sugestão afirmativa.
– Obrigado – agradeceu Tengo.
Fuka-Eri inclinou um nadinha a cabeça, qual gata satisfeita.
Tengo foi para a cozinha preparar o almoço. Fuka-Eri empenhava-se em escolher um dos discos que estavam na prateleira. Não que ele tivesse ali muitos discos, mas ela levou o seu tempo a escolher. No fim das suas deliberações, tirou um álbum antigo dos Rolling Stones, pô-lo no prato do gira-discos e fez descer o braço com a agulha. Era um disco que pedira emprestado a alguém durante o secundário e que, por qualquer razão, nunca devolvera. Há anos que não o ouvia.
Enquanto ouvia faixas como «Mother’s Little Helper» e «Lady Jane», fez um arroz pilau, integral, com fiambre e cogumelos, e uma sopa de miso com tofu e algas wakame. Cozeu couve-flor e acrescentou-lhe o molho de caril que tinha preparado. Fez uma salada de feijão-verde e cebola. Tengo não achava uma chatice cozinhar. Aproveitava o tempo para pensar – sobre os problemas do quotidiano, de matemática, sobre a sua escrita ou sobre questões metafísicas. Conseguia organizar melhor as ideias quando estava de pé na cozinha, a mexer as mãos, do que quando não fazia nada. Contudo, hoje não houve raciocínio que lhe dissesse de que tipo de «lugar especial» falava Fuka-Eri. Tentar pôr ordem em algo onde nunca tal existira era um desperdício de esforço. O número de sítios a que poderia chegar era muito limitado.
Sentaram-se para comer, à frente um do outro, um de cada lado da mesa. A conversa entre os dois era praticamente inexistente. Pareciam um casal enfastiado: transportavam a comida para a boca em silêncio, cada um deles a pensar – ou a não pensar – em coisas distintas. No caso de Fuka-Eri, era particularmente difícil distinguir as duas coisas. Quando a refeição terminou, Tengo bebeu um café e Fuka-Eri comeu uma sobremesa que encontrou no frigorífico. Comesse o que comesse, a sua expressão nunca se alterava. Parecia que a única coisa que tinha em mente era mastigar.
Tengo sentou-se à secretária e, seguindo a sugestão de Fuka-Eri, esforçou-se por recordar o que sabia acerca de Aomame.
Tens recordações dela. Uma dessas recordações pode ajudar-te.
Mas Tengo não conseguia concentrar-se. No gira-discos tocava agora outra canção dos Rolling Stones. «Little Red Rooster» – uma gravação da época em que Mick Jagger andava maluco com os blues de Chicago. Nada mau, mas não era uma canção escrita para acompanhar alguém que quisesse pôr-se a pensar profundamente, empenhado em desenterrar memórias antigas. Os Rolling Stones não eram uma banda muito dada a essas deferências. Precisava de um sítio calmo onde pudesse estar sozinho.
– Vou sair durante um bocado – disse Tengo.
Sem tirar os olhos da capa do álbum que tinha na mão, Fuka-Eri fez um gesto com a cabeça, como se dissesse: «Tudo bem!»
– Se alguém bater à porta, não abras! – avisou Tengo.
Tengo encaminhou-se para a estação, vestido com uma T-shirt azul-escura de mangas compridas, calças de algodão que há muito tinham perdido o vinco e ténis. Um pouco antes de chegar à estação, fez um desvio, entrou num bar chamado Barleyhead e pediu uma cerveja à pressão. Serviam bebidas e refeições leves. Era tão pequeno que ficava cheio com apenas vinte clientes. Já ali estivera variadas vezes. Durante a noite, tornava-se bastante barulhento devido aos jovens que o frequentavam, mas entre as sete e as oito havia relativamente pouca gente e o ambiente era simpático e silencioso. Era o sítio perfeito para se sentar a um canto a ler um livro e a beber uma cerveja. Além do mais, tinha umas cadeiras confortáveis. Não fazia a mínima ideia de qual seria a origem do nome do bar ou o que significaria. Poderia ter perguntado a um dos empregados, mas não gostava de meter conversa com estranhos, e não era realmente importante não saber de onde vinha o nome. Não passava de um bar agradável que, por acaso, se chamava «Barleyhead»14.
Felizmente, não estavam a passar música. Tengo sentou-se a uma mesa junto à janela, a beber uma Carlsberg à pressão enquanto ia mastigando uma mistura de frutos secos que tirava de uma tacinha e pensava em Aomame. Recordar Aomame fazia-o voltar a ter dez anos. Revivia um ponto de viragem na sua vida. Depois de Aomame lhe ter agarrado a mão quando tinham dez anos, ele recusara-se a acompanhar o pai em mais voltas para cobrar as taxas da NHK. Um pouco mais tarde, passara pela experiência de ter uma ereção inequívoca, bem como a sua primeira ejaculação. Fora um momento decisivo na vida dele. Claro que a transformação acabaria por chegar – mais cedo ou mais tarde –, quer Aomame lhe tivesse ou não agarrado a mão, mas Aomame estimulara-o e promovera a mudança como se lhe tivesse dado um pequeno empurrão nas costas.
Ficou a olhar para a palma da mão esquerda, aberta, durante muito tempo.
Aquela rapariga com dez anos agarrou esta mão e mudou qualquer coisa dentro de mim, mas não sou capaz de encontrar uma explicação racional para isso se ter passado. Mesmo assim, entendemo-nos às mil maravilhas e aceitamo-nos mutuamente de uma forma muito natural, até ao mais ínfimo pormenor; foi quase um milagre, mas aconteceu. Coisas destas não acontecem muitas vezes na vida. Há pessoas que nunca passam por isto.
Na altura, contudo, Tengo não tivera plena consciência do significado determinante daquele facto. E não fora só nesse momento. Não tinha sido capaz de compreender totalmente todas as implicações, até muito pouco tempo antes. Limitara-se a guardar no seu coração, de maneira difusa, a imagem da rapariga ao longo dos anos.
Ela tinha agora trinta anos, e com toda a certeza que teria mudado de visual e seria muito diferente de quando tinha apenas dez anos. Devia ser mais alta, ter peito e o estilo do penteado também devia ter sido alterado. Era provável que usasse maquilhagem, uma vez que abandonara a Associação das Testemunhas. Podia usar roupa cara e cheia de estilo. Tengo teve alguma dificuldade em imaginar Aomame a descer a rua num fato Calvin Klein e de saltos altos. Mas, claro, era perfeitamente concebível. As pessoas crescem e, quando crescem, mudam.
Ela até pode estar aqui no bar, agora, e eu não a reconhecer.
Tengo inclinou o copo de cerveja e, com o olhar, percorreu o que o rodeava. Ela estava por ali perto. Podia ir a pé. Fora o que Fuka-Eri dissera, e Tengo acreditava piamente em Fuka-Eri. Se ela o afirmara, tinha de ser verdade.
Os únicos clientes para além dele eram um jovem casal, provavelmente estudantes, sentados ao balcão e imersos numa conversa tão intensa e íntima, que as suas testas estavam quase encostadas uma à outra. Ao vê-los, Tengo foi assaltado por um sentimento de solidão profunda, que há muito tempo não sentia.
Estou só neste mundo. Não tenho laços com ninguém.
Fechou os olhos e concentrou-se de novo na sala de aulas da escola primária. Na noite anterior, ele também fechara os olhos e visitara aquele local – com uma tremenda sensação de realidade concreta – quando o seu corpo se unira ao de Fuka-Eri durante a violenta tempestade. Por causa disso, a imagem que agora conjurava chegou-lhe com uma nitidez muito especial, como se o pó tivesse sido lavado pela chuva que caíra durante a noite.
A insegurança, a esperança e o medo tinham fugido para os cantos mais afastados da ampla sala e esconderam-se dentro dos muitos móveis que ali havia, como animaizinhos cobardes. Tengo foi capaz de recriar a cena com minúcia – o quadro, com as suas fórmulas matemáticas meio apagadas, os bocados de giz, as cortinas baratas e gastas pelo sol, as flores na jarra no estrado do professor (se bem que não soubesse que flores eram), os desenhos das crianças pendurados nas paredes, o mapa-múndi por trás do estrado, o odor a cera do chão, o ondular das cortinas, os gritos das crianças que entravam pela janela. Os seus olhos conseguiam identificar cada presságio, plano ou enigma que continham.
Ao longo dos vários segundos em que Aomame lhe segurara a mão, Tengo vira muitas coisas e havia gravado, com precisão fotográfica, as imagens na retina. Estas imagens constituíam uma das paisagens básicas que o tinham ajudado a atravessar os dolorosos anos da sua adolescência. A cena incluía sempre a sensação intensa dos dedos da rapariga nos seus. A mão direita dela nunca falhou no apoio prestado a Tengo ao longo do agonizante processo de se tornar adulto. A mão dizia:
Não te preocupes, estou contigo.
Não estás só.
«Está escondida», afirmara Fuka-Eri. Como um gato ferido.
Agora que pensava no caso, era uma coincidência estranha. A própria Fuka-Eri estava escondida ali. Não punha um pé fora do apartamento de Tengo. Nesta zona de Tóquio, duas mulheres viviam escondidas, fugiam de qualquer coisa. Ambas tinham ligações fortes a Tengo. Seria importante? Ou não passaria de uma mera coincidência?
Claro que as respostas não estavam ali à mão; só tinha um monte de perguntas. Perguntas a mais, respostas a menos. Era sempre assim.
Quando acabou a cerveja, um jovem empregado abeirou-se dele e perguntou-lhe se desejava mais alguma coisa. Tengo hesitou uma fração de segundo e pediu um bourbon com gelo e outra taça de frutos secos.
– O único bourbon que temos é o Four Roses, se está bem para si.
Tengo disse que não se importava. Nada. Tornou a concentrar-se em Aomame. Da cozinha chegava-lhe o apetitoso aroma de uma piza acabada de fazer.
De que demónio se esconderia Aomame? Da polícia? Mas Tengo não era capaz de acreditar que ela se tivesse transformado numa criminosa. Que crime teria cometido? Não, não podia ser a polícia quem andava atrás dela. Quem quer que fosse, o que quer que fosse, a lei não tinha nada que ver com aquilo. Absolutamente nada.
De súbito, ocorreu-lhe:
Talvez sejam os mesmos que andam atrás da Fuka-Eri. O Povo Pequeno? Por que razão andaria o Povo Pequeno atrás da Aomame?
Mas se eles andam, de facto, a perseguir a Aomame, eu estou no centro disto tudo? Claro que Tengo não fazia a mínima ideia da razão por que tinha de ser a figura central nesta cadeia de acontecimentos, mas, quando se procurava o ponto de ligação entre as duas mulheres, esse elo era Tengo. Sem ter sido tido nem achado, eu posso ter andado a usar um poder que ignoro para atrair a Aomame para junto de mim.
Um poder ignorado?
Olhou para as mãos.
Não percebo. Onde posso ter um poder desse tipo?
O seu bourbon chegou, acompanhado de uma taça de frutos secos. Engoliu um trago do Four Roses, agarrou num punhado de frutos secos e fê-los saltar na palma da mão, como se fossem dados.
Seja lá como for, a Aomame está aqui perto. Dá para ir a pé. Foi o que disse a Fuka-Eri. E eu acredito nela. Se me perguntassem, ia ter dificuldade em explicar porquê, mas acredito. Mesmo assim, como é que vou arranjar maneira de descobrir a Aomame? Já é difícil encontrar alguém que tenha uma vida normal, mas torna-se uma tarefa bem mais complicada quando a pessoa está a esconder-se deliberadamente. E se desse uma volta pelas ruas, com um altifalante na mão, a chamar por ela? Claro, como se isso fosse fazê-la aparecer na hora! E só serviria para alertar os outros para a presença dela e expô-la a um perigo acrescido.
Deve haver outra coisa qualquer de que não estou a lembrar-me.
«Tens recordações dela. Uma dessas recordações pode ajudar-te», dissera Fuka-Eri. Mas, já antes de ela lhe ter dito aquilo, Tengo há muito que suspeitava que poderia estar a ignorar um qualquer facto importante ligado a Aomame. De vez em quando, aquilo incomodava-o, como se fosse uma pedra num sapato. O sentimento era vago mas persistente.
Tengo limpou a mente como quem apaga um quadro e começou de novo a desenterrar memórias – recordações de Aomame, de si próprio, memórias de coisas à volta dos dois, dragando o fundo macio e lodoso, como um pescador que arrasta a sua rede, ordenando os vários itens e analisando-os com todo o cuidado. Mas tudo se passara havia mais de vinte anos. Por muito vívidas que fossem as suas memórias, havia um limite para o que conseguiria recordar.
Portanto, Tengo devia recordar-se de algo que estivera presente, algo que lhe tinha escapado. E devia fazê-lo de imediato, sob pena de nunca mais encontrar Aomame, que devia andar por aquela zona. A crer nas palavras de Fuka-Eri, o tempo era limitado. Sem esquecer que alguém andava a persegui-la.
Ocorreu-lhe tentar pensar em termos de linhas de visão. Aomame estava a olhar para quê? E ele próprio olhava para quê?
Repensaria tudo seguindo o fluxo do tempo e as linhas do olhar.
A rapariga dava-lhe a mão e olhava-o a direito, olhos nos olhos. O olhar dela não vacilava. De início, Tengo, que não percebia o que se estava a passar e não tinha a certeza do que ela estava a fazer, procurou as respostas nos olhos dela.
Tem de haver um mal-entendido ou um erro, pensou.
Mas não havia nem mal-entendido nem erro, e ele tomara consciência de que os olhos dela eram quase chocantemente profundos e límpidos. Nunca vira olhos de uma transparência tão absoluta. Pareciam duas nascentes, perfeitamente límpidas mas de que não se via o fundo, por serem demasiado profundas. Sentira que poderia ser sugado para dentro delas se continuasse a fitá-las, pelo que não tivera alternativa senão virar-lhes as costas.
Primeiro, olhara para as tábuas do soalho debaixo dos seus pés, contemplara a porta de entrada da sala vazia e, por fim, dobrara ligeiramente o pescoço para espreitar para fora da janela. Durante este tempo todo, o olhar de Aomame nunca vacilou. Continuara de olhos fixos nos de Tengo, mesmo quando ele olhou pela janela. Ele sentira a linha de visão dela aflorar-lhe a pele e os dedos apertando-lhe a mão esquerda com uma força imutável e uma convicção absoluta. Não tivera medo. Não havia nada de que ela tivesse medo. E através dos seus dedos estava a tentar transmitir esse sentimento a Tengo.
Porque o encontro entre os dois se dera depois de terem limpado a sala, as janelas estavam abertas para deixar entrar o ar fresco e as cortinas brancas ondulavam suavemente na brisa. O céu estendia-se por trás delas. Dezembro já chegara, mas ainda não estava muito frio. Lá no alto havia uma nuvem – uma nuvem branca que se estendia ao comprido, retendo ainda vestígios do outono e lembrando uma pincelada de tinta acabada de fazer no céu. E havia ali mais qualquer coisa flutuando por baixo da nuvem. O Sol? Não, não era o Sol.
Tengo susteve a respiração, com os dedos fez pressão dos dois lados da cabeça e tentou perscrutar um lugar ainda mais recôndito dentro da sua memória, identificando um frágil fio de consciência que parecia ir partir-se a qualquer instante.
É isso. A Lua estava ali.
Ainda faltava algum tempo para o pôr do Sol, mas ali estava ela – a Lua – destacando-se do céu, quase cheia. Tengo ficara impressionado por conseguir ver uma lua assim, tão grande e brilhante, quando ainda havia luz. Lembrava-se disso. O bloco de pedra insensível pairava baixo no céu como se, não tendo nada melhor que fazer, pendesse de um fio invisível. Tudo aquilo tinha um vago ar artificial. À primeira vista, parecia uma lua falsa, um adereço de cena. Mas, claro, era a Lua verdadeira. Ninguém iria perder tempo e dar-se ao trabalho de pendurar uma lua falsa num céu verdadeiro.
De súbito, Tengo apercebeu-se de que Aomame já não tinha os olhos postos em si. Desviara o olhar e fitava agora o mesmo que ele. Em plena luz do dia, Aomame observava a Lua, segurando ainda a mão dele, com uma expressão seriíssima. Olhou de novo para os olhos dela. Já não estavam tão límpidos. Fora uma limpidez especial, momentânea, e em seu lugar encontrava agora algo duro e cristalino. Era, a um tempo, fascinante e duro, algo que evocava o gelo. Tengo não foi capaz de abarcar o sentido daquilo.
Por fim, a rapariga pareceu ter-se decidido. Soltou inesperadamente a mão dele, virou-lhe as costas e saiu a correr da sala sem uma única palavra ou um olhar para trás, deixando Tengo num vazio absoluto.
Tengo abriu os olhos, relaxou, respirou profundamente e bebeu um trago do seu bourbon. Sentiu o líquido escorrer-lhe pela garganta e descer até ao estômago. Inspirou e soltou de novo o ar.
Aomame já ali não estava. Virara-lhe as costas e abandonara a sala, apagando a sua presença, saindo da vida dele.
Tinham passado vinte anos.
Foi a Lua. Eu estava a olhar para a Lua, e a Aomame também. Aquele bocado de pedra cinzenta suspenso no céu ainda cheio de luz, às 3h30 da tarde. Aquele satélite solitário e taciturno. Estivemos os dois, lado a lado, a observar a Lua. Mas o que é que isto significa? Que a Lua me vai guiar até junto dela?
De repente, ocorreu a Tengo que Aomame poderia ter confiado os seus sentimentos à Lua. Ela e a Lua poderiam ter congeminado uma espécie de acordo secreto. O olhar que dirigira à Lua continha em si mesmo algo assustadoramente sério, que levava a sua imaginação a concluir isto.
Claro que Tengo não fazia a mínima ideia do que, nessa altura, Aomame teria oferecido à Lua, mas era-lhe fácil imaginar o que a Lua concedera à rapariga: solidão e tranquilidade absolutas. Era a melhor coisa que a Lua podia oferecer a uma pessoa.
Tengo pagou a conta e saiu do Barleyhead. Já na rua, olhou para o céu e não conseguiu ver a Lua. Estava um céu limpo e a Lua já devia ter nascido, mas ao nível da rua não era possível vê-la, por causa dos prédios altos a toda a volta. Com as mãos enterradas nos bolsos, Tengo andou de umas ruas para as outras, à procura da Lua. Queria ir para um sítio qualquer onde tivesse uma visão desimpedida, mas não era fácil encontrar um lugar assim num bairro como Koenji. A zona era tão plana que encontrar um ponto alto, mesmo pequeno, implicava uma boa dose de esforço, e não havia a mínima elevação. O melhor lugar poderia ser, talvez, o telhado de um prédio alto com uma vista a trezentos e sessenta graus, mas não conseguiu encontrar por ali um prédio desses que o deixasse subir ao telhado.
Enquanto caminhava sem destino, Tengo lembrou-se de que ali perto havia um parque infantil, por onde costumava passar nas suas andanças. Não era um parque grande, mas de certeza que havia um escorrega. Se trepasse até ao topo, devia conseguir ter uma boa visão do céu. Não era um escorrega muito alto, mas a vista devia ser melhor do que ao nível da rua. Dirigiu-se para lá. Os ponteiros do seu relógio de pulso indicavam que eram quase oito horas.
Não estava ninguém no parque. No centro erguia-se um candeeiro alto, de mercúrio, que iluminava tudo, até aos cantos mais afastados. Havia uma grande zelkova, ainda frondosa e cheia de folhas, muitos arbustos, uma fonte, um banco, baloiços e um escorrega. Também havia uma casa de banho pública, mas, ao pôr do Sol, fora fechada à chave por um trabalhador, talvez para manter os vagabundos afastados. Durante o dia, as jovens mães levavam ali os filhos que ainda não tinham idade para frequentar um jardim de infância e entregavam-se a animadas conversas enquanto as crianças brincavam. Inúmeras vezes, Tengo observara cenas do género. Contudo, assim que o Sol se punha, quase ninguém visitava aquele local.
Tengo trepou ao escorrega e, ainda de pé, levantou os olhos para o céu noturno. A norte do parque havia um prédio novo com seis andares. Nunca reparara nele. Devia ter sido construído pouco tempo antes. Bloqueava a visão do céu como se fosse um muro, mas nos outros três lados do parque só existiam edifícios baixos. Tengo virou-se para ver tudo à sua volta e descobriu a Lua a sudoeste, pairando por cima de uma velha casa de dois andares. Estava quase cheia.
Igualzinha à lua de há vinte anos. O mesmíssimo tamanho e feitio. Uma coincidência absoluta. Talvez.
Mas esta lua brilhante, flutuando no céu do início do outono, tinha contornos bem definidos e um calor ensimesmado, típico da época do ano. A impressão que causava era muito diferente da daquela lua no céu às 3h30 de uma tarde de dezembro. A sua luz suave e natural tinha o poder de acalmar e curar o coração como o correr da água límpida ou o suave restolhar das folhas.
De pé no alto do escorrega, Tengo deixou-se ficar a olhar para a Lua durante bastante tempo. Proveniente da Circular 7, chegava-lhe o som indistinto dos pneus de vários tamanhos, evocando o rugido do mar. O ruído trouxe-lhe imediatamente à mente o sanatório na costa de Chiba, onde o seu pai vivia.
Como era habitual, o brilho das luzes da cidade ofuscava o das estrelas. O céu estava limpo, mas só se vislumbravam uma ou outra estrela das mais brilhantes, que aqui e ali cintilavam como pontos ténues. Mesmo assim, a Lua destacava-se no céu com grande nitidez. Ali estava ela, fiel, sem um queixume para com as luzes da cidade ou o barulho ou a poluição do ar. Se fixasse o olhar na Lua, conseguia ver estranhas sombras formadas por crateras e vales gigantescos. Enquanto ele observava a luz da Lua, a mente de Tengo foi-se esvaziando. Dentro dele começaram a agitar-se memórias vindas do fundo dos tempos. Antes de o homem ter dominado o fogo, usado ferramentas ou criado a linguagem, já a Lua era sua aliada. Então, como no presente, acalmava os terrores das pessoas iluminando o mundo sombrio como uma lanterna celestial. A sucessão das suas diferentes fases concedera à Humanidade o sentido do tempo. Mesmo no momento presente, quando a escuridão fora já banida de grande parte do mundo, permanecia um sentimento de gratidão para com a Lua e a sua compaixão incondicional. Estava gravada nos genes do Homem como uma calorosa memória coletiva.
Agora que penso nisso, há bastante tempo que não olho para a Lua assim. Quando terá sido a última vez? Quando se vive um dia apressado atrás do outro, vive-se com os olhos postos no chão. A pessoa esquece-se de olhar para o céu.
Foi então que Tengo se apercebeu de que havia outra lua no céu. Começou por pensar que se tratava de uma ilusão de ótica, de um simples truque de ondas luminosas, mas, quanto mais olhava para ela, mais certo ficava de que havia uma segunda lua com um contorno bem definido ali em cima. Enquanto a observava, de boca aberta, a sua mente ficou vazia.
Que estou eu a ver?
Não conseguia decidir-se. Forma e substância recusavam sobrepor-se, como acontece quando palavra e conceito não conseguem unir-se.
Outra lua?
Fechou os olhos, abriu as mãos e esfregou as faces.
O que se passa comigo? Não bebi assim tanto.
Inspirou lenta e profundamente; a seguir, soltou o ar devagarinho. Comprovou que não tinha os sentidos alterados.
Quem sou? Onde estou? O que faço?, perguntou-se na escuridão, por trás das pálpebras cerradas. Estou em setembro de 1984, chamo-me Tengo Kawana, encontro-me num parque infantil em Koenji, no bairro de Suginami, e estou a olhar para a Lua no céu. Quanto a isto, não há dúvidas.
Depois, abriu os olhos devagar e olhou de novo para o céu, cautelosamente, com a mente calma; ainda assim, continuava a ver duas luas.
Não é uma ilusão. Há duas luas.
Tengo cerrou a mão e manteve-a assim durante muito tempo.
A Lua continuava tão taciturna como de costume. Mas já não estava sozinha.
14 Literalmente, «espiga de cevada». (N. das T.)
19
AOMAME
Quando a nina acorda
A Crisálida de Ar era uma história fantástica, mas assumira a forma de uma novela fácil de ler, escrita do princípio ao fim num estilo simples e coloquial por uma rapariga de dez anos. Não tinha vocabulário complicado, lógica forçada, explicações rebuscadas ou expressões palavrosas. As palavras e o estilo da jovem narradora tinham um encanto universal: concisos e, na maior parte dos casos, agradáveis, mas quase não davam explicações acerca dos factos narrados. Em vez disso, a rapariga limitava-se a deixar a narrativa fluir enquanto contava o que testemunhara por si própria sem nunca parar para pensar: «O que está a acontecer agora?», ou, «O que quer dizer isto?» O livro avançava a um ritmo fácil, adequado à história que contava. Os leitores seguiam-na, acolhendo com naturalidade o ponto de vista dela, e, antes de darem por isso, já estavam num outro mundo – um mundo que não é este mundo, um mundo em que o Povo Pequeno fazia as suas crisálidas de ar.
Ao fim de dez páginas de leitura, Aomame deu consigo a reagir intensamente ao estilo da novela. Se, de facto, era obra de Tengo, ele era um escritor muito talentoso. O Tengo que Aomame conhecera era, em essência, um génio da Matemática. Consideravam-no um prodígio, capaz de resolver problemas matemáticos difíceis até para a maior parte dos adultos. Tinha notas excelentes, não só nessa como também nas outras disciplinas, se bem que não chegassem ao nível das notas a Matemática e, fizesse o que fizesse, deixava os outros meninos para trás. Era também um rapaz corpulento e mostrava destreza nos desportos. Mas não se recordava de alguém mencionar que era bom a escrever. Possivelmente, esse talento teria estado ofuscado pelo seu brilhantismo em Matemática.
Por outro lado, Tengo poderia ter-se limitado a transferir para a página a voz narrativa da autora, tal como a recebera inicialmente. A sua originalidade podia não ter dado grande contribuição ao estilo. Mas tinha a impressão de que não era assim. À primeira vista, o texto parecia simples e claro, o que resultava enganador: uma leitura mais atenta revelava que, de facto, se tratava de uma narrativa calculada e construída com grande cuidado. Em parte nenhuma se encontrava excesso palavroso; ao mesmo tempo, porém, estava lá tudo o necessário. O uso de expressões figurativas era parcimonioso, mas as descrições resultavam, ainda assim, vívidas e de um colorido rico. Acima de tudo, o estilo revelava uma musicalidade maravilhosa. Mesmo sem o ler em voz alta, o leitor reconhecia uma sonoridade profunda. Não se tratava de uma escrita que saísse naturalmente da caneta de uma rapariga com dezassete anos.
Tendo concluído tudo isto, Aomame dedicou-se a ler o resto com a maior atenção.
A heroína é uma menina de dez anos. Pertence a uma comunidade que vive nas montanhas, conhecida por o «Agrupamento». O pai e a mãe vivem em comunidade no Agrupamento. Não tem irmãos nem irmãs. A menina foi levada para ali pouco depois de ter nascido e não sabe quase nada do mundo exterior. Ocupados nas suas tarefas diárias, os três membros da família têm pouco tempo para se reunirem e conversar tranquilamente, mas, mesmo assim, são bastante unidos. Durante o dia, a menina frequenta a escola local, enquanto os pais se dedicam sobretudo aos trabalhos agrícolas. No seu tempo livre, as crianças também ajudam nas tarefas do campo.
Todos os adultos do Agrupamento odeiam o mundo exterior. Nunca perdem uma oportunidade de dizer que o mundo em que vivem é uma ilha maravilhosa e solitária, vogando num mar de «ca-pi-ta-lix-mu», é uma «for-ta-leza». A menina não sabe o que significa «ca-pi-ta-lix-mu» (ou a outra palavra que por vezes também usam: «ma-tiii-rii-a-lix-mu») mas, a julgar pelo tom de desprezo que usam quando pronunciam as palavras, o ca-pi-ta-lix-mu e o ma-tiii-rii-a-lix-mu devem ser coisas horríveis que se opõem à Natureza e à virtude. Ensinaram à menina que, para manter o corpo e as ideias limpas, tinha de evitar o mundo exterior a todo o custo. Assim não sendo, o seu corpo ficaria «po-lu-íii-do».
O Agrupamento compõe-se de cerca de cinquenta homens e mulheres relativamente jovens, divididos em dois grupos. Um dos grupos quer a «rev-o-luu-xão», ao passo que o outro quer a «pax». Os pais da rapariga fazem parte do grupo da «pax». O pai é o membro mais antigo desse grupo e, desde a fundação do Agrupamento, tem desempenhado um papel importante.
Naturalmente, a menina de dez anos não é capaz de dar uma explicação lógica para a oposição existente entre os dois grupos, nem entende a diferença entre «re-vo-luu-xão» e «pax». Tem apenas a vaga noção de que «re-vo-luu-xão» é uma forma de pensar um tanto pontiaguda, enquanto a «pax» tem uma forma mais arredondada. Cada «forma de pensar» tem a sua forma e a sua cor próprias, que cresce e mingua tal como a Lua. E é só o que compreende.
A menina também ignora como se formou o Agrupamento. Foi-lhe dito que, há cerca de dez anos, pouco antes de ela nascer, houvera um grande movimento social e aquelas pessoas tinham abandonado a cidade para se mudarem para uma aldeia isolada nas montanhas. Não sabe grande coisa acerca da cidade. Nunca apanhou o metro nem andou de elevador. Nunca viu um edifício com mais de três andares. Pura e simplesmente, há demasiadas coisas que não conhece. Apenas compreende as coisas à sua volta, aqueles que pode ver e tocar.
Ainda assim, com uma visão simplista e uma voz narrativa despida de ornamentos, ela consegue desenhar um quadro vivo e natural da pequena comunidade chamada «Agrupamento», da sua estrutura e a sua paisagem, da maneira de ser e de pensar das pessoas que nela habitam.
Não obstante a divisão na forma de pensar dos residentes, o seu sentido de solidariedade é forte. Partilham a convicção de que é bom viver longe do «ca-pi-ta-lix-mu» e têm perfeita consciência de que, apesar das diferentes formas e cores das suas ideias, têm de permanecer unidos se quiserem manter uma esperança de sobrevivência. O dinheiro mal chega ao fim do mês. As pessoas trabalham arduamente de sol a sol, todos os dias. Cultivam legumes, fazem trocas com aldeias vizinhas, vendem os excedentes, evitam tanto quanto possível a utilização de produtos fabricados em série e, em geral, vivem em comunhão com a natureza. Quando se veem forçados a utilizar um qualquer aparelho elétrico, procuram-no num depósito de sucata e reparam-no. Quase toda a roupa que vestem é usada e foi-lhes doada.
Existem membros da comunidade que não conseguem adaptar-se a esta vida espartana e abandonam o Agrupamento, mas outros há que se juntam ao grupo. O número de novos membros ultrapassa o dos que saem, por isso, a população do Agrupamento aumenta paulatinamente. É uma tendência favorável. A aldeia abandonada em que organizaram a sua vida tinha muitas casas vazias, a precisar apenas de arranjos menores, e há ainda muitos campos abandonados. A comunidade está encantada por receber novos trabalhadores.
O número de crianças da comunidade oscila entre as oito e as dez. A maior parte delas já nasceu no Agrupamento, e a mais velha é a rapariga protagonista da história. As crianças frequentam uma escola primária da zona, e vão e vêm da escola juntas, todos os dias. Por lei, são obrigadas a frequentar uma escola da região, e os fundadores do Agrupamento acreditam que manter boas relações com as pessoas da vizinhança é indispensável para a sobrevivência da sua própria comunidade. Todavia, as crianças da zona têm medo delas e evitam-nas ou metem-se com elas, pelo que as crianças do Agrupamento costumam mover-se em bloco, como se fossem uma só. Mantêm-se perto umas das outras para se protegerem de danos físicos e da «po-lu-ii-xão» da mente.
Dentro da aldeia, completamente separada da escola oficial, o Agrupamento construiu a sua própria escola e os elementos da comunidade ensinam as suas crianças por turnos. Não é um fardo demasiado pesado, já que a maior parte dos membros tem educação superior e muitos deles têm diplomas pedagógicos. Fazem os seus próprios manuais e ensinam às crianças as bases da leitura, da escrita e da aritmética. Também ensinam algumas bases de química, física, fisiologia, biologia e o funcionamento do mundo exterior. O mundo tem dois sistemas, o «ca-pi-ta-lix-mu» e o «co-mu-nix-mu», que se odeiam mutuamente. No entanto, ambos os sistemas têm problemas sérios e, globalmente, o mundo segue numa direção que não é boa. O «co-mu-nix-mu» começou por ser uma ideologia notável, com ideais elevados, mas certos políticos egoístas deformaram-no. Mostraram à menina uma fotografia de um desses «políticos egoístas». O seu grande nariz e a barba negra comprida do homem fizeram a menina pensar que ele era o rei dos demónios.
No Agrupamento não há televisão e só é permitido escutar a rádio em ocasiões especiais. Os jornais e as revistas também são restringidos. As notícias consideradas relevantes são transmitidas em voz alta durante o jantar na «Sala de Reuniões». As pessoas reagem a cada notícia com vivas ou resmungos – com resmungos, na maioria das vezes. É o único contacto que a menina tem com a comunicação social. Nunca viu um filme. Nunca viu uma banda desenhada. Só lhe é permitido escutar música clássica. Na Sala de Reuniões existe uma aparelhagem e muitos discos que alguém trouxe, provavelmente, como série única. Durante os momentos livres é possível escutar uma sinfonia de Brahms, uma peça para piano de Schumann, uma obra para teclado ou música religiosa de Bach. Para a menina são momentos preciosos e praticamente o seu único entretenimento.
Então, um dia aconteceu qualquer coisa que fez com que a menina fosse castigada. Naquela semana, recebera ordens para, de manhã e à noite, tratar do pequeno rebanho de cabras da comunidade, mas, sobrecarregada com trabalhos de casa e outras tarefas, escapou-lhe uma noite. Na manhã seguinte, o animal mais velho, uma cabra cega, foi encontrada já fria, morta. Por castigo, a menina foi mantida afastada do resto do Agrupamento durante dez dias.
A comunidade pensava que aquela cabra específica tinha um significado especial, mas era bastante velha e uma doença desconhecida ferrara os dentes no corpo desgastado do animal, pelo que, quer tratassem do caso ou não, não havia esperança de que o animal recuperasse. Era uma questão de tempo. No entanto, tal não atenuou a gravidade do crime da menina. Não só a acusaram da morte da cabra mas também de negligência dos seus deveres. O isolamento é um dos castigos mais severos dentro do Agrupamento.
A rapariga é trancada dentro de um pequeno e velho armazém de paredes de barro, acompanhada do corpo da cabra cega. O armazém chama-se «Sala para Refletir». Qualquer pessoa que viole as regras do Agrupamento vai para lá meditar no seu crime. Durante o período de isolamento, ninguém fala com a menina. Tem de cumprir dez dias de silêncio absoluto. Trazem-lhe uma dose mínima de comida e água, mas o armazém é escuro, frio e húmido e ganha o cheiro da cabra morta. A porta está trancada pelo lado de fora. Num canto do armazém está um balde onde pode aliviar-se. Bem alto numa das paredes há uma janelinha que deixa entrar a luz do Sol e da Lua. Também é possível entrever algumas estrelas quando o céu não está nublado. Não há mais luz nenhuma. Ela deita-se no duro colchão montado nas tábuas do chão, enrolada em duas velhas mantas, e passa a noite a tremer de frio. Apesar de ser abril, na montanha as noites são frias. Quando cai a noite, os olhos da cabra morta cintilam à luz das estrelas. Cheia de medo, a menina pouco dorme.
Na terceira noite, a boca da cabra abre-se completamente. Tinha sido aberta por dentro, e da boca sai uma série de pessoas pequeninas, seis ao todo. Quando surgem, não têm mais de doze centímetros, mas, logo que põem um pé no chão, começam a crescer como os cogumelos que brotam depois de uma chuvada. Mesmo assim, não passam dos sessenta centímetros. Dizem à menina que são o Povo Pequeno.
Recordando uma história que o pai lhe contara quando era pequena, a menina pensou:
Isto parece a história «Branca de Neve e os Sete Anões». Mas falta um.
– Se preferes ter sete, nós podemos ser sete – diz-lhe um dos elementos do Povo Pequeno, numa voz suave. Aparentemente, são capazes de ler-lhe os pensamentos. Ela conta-os outra vez, e agora já são sete. Contudo, a menina não acha isto especialmente estranho. As regras do mundo já tinham mudado quando o Povo Pequeno saíra de dentro da boca da cabra. Depois disso, qualquer coisa podia acontecer.
– Porque é que saíram pela boca da cabra? – pergunta, não sem reparar que a sua voz soa estranha. A sua forma de falar também está diferente da habitual, provavelmente porque há três dias que não fala com ninguém.
– Porque a boca da cabra passou a ser uma passagem – responde um deles, em voz rouca. – Não sabíamos que era uma cabra morta até termos chegado cá fora.
Um outro, com uma voz aguda, tomou a palavra:
– Para nós é indiferente que seja uma cabra, uma baleia ou uma vagem de ervilha: basta que seja uma passagem.
– Tu criaste a passagem, por isso nós resolvemos experimentá-la e ver onde ia ter – diz o de voz suave.
– Eu criei a passagem? – pergunta a menina. Não, não parece nada o som da sua voz.
– Fizeste-nos um favor – diz um dos do Povo Pequeno, numa voz fraquinha.
Alguns dos outros manifestam o seu acordo.
– Vamos brincar – sugere um que tem voz de tenor. – Vamos fazer uma crisálida de ar.
– Sim – retorque um barítono. – Já que nos demos ao trabalho de vir até aqui.
– Uma crisálida de ar? – pergunta a menina.
– Puxamos fios do ar e construímos um abrigo. Pouco a pouco, vai crescendo! – conclui o baixo.
– Um abrigo? Para quem? – pergunta a menina.
– Verás – responde o barítono.
– Verás quando estiver pronto – diz o baixo.
– Oh, oh – um dos outros apanha o ritmo.
– Posso ajudar? – pergunta a menina.
– Claro – responde o rouco.
– Fizeste-nos um favor – conclui o tenor. – Vamos trabalhar em conjunto.
Uma vez apanhado o jeito, a menina não achou difícil puxar fios do ar. Sempre fora habilidosa com as mãos e conseguiu desenvencilhar-se bastante depressa. Se olhar com atenção, verá que existem muitos fios no ar. Se fizer um esforço, qualquer pessoa os consegue ver.
– Sim, isso mesmo. Estás a ir muito bem – diz o da voz fraquinha.
– És uma menina muito esperta. Aprendes depressa – diz o da voz aguda.
Todos os elementos do Povo Pequeno usam roupa igual e as suas feições são parecidas, mas cada um tem uma voz diferente, particular.
A roupa que vestiam era o mais normal e vulgar possível. Pode ser uma maneira estranha de a descrever, mas não há outra. Quando uma pessoa desvia o olhar deles, esquece-se por completo do que vestiam. O mesmo se poderia dizer das suas feições. Não são belos nem feios. Têm rostos normais e vulgares. Quando a pessoa desvia o olhar, esquece-se por completo do rosto deles. O mesmo se pode dizer do cabelo. Não é comprido nem curto. É cabelo, e mais nada. Há uma coisa que não têm: cheiro.
Ao aproximar-se o amanhecer, quando o galo cantou e o céu começou a iluminar-se, os sete elementos do Povo Pequeno pararam de trabalhar e começaram a espreguiçar-se. A seguir, esconderam a crisálida de ar meio pronta – que tem o tamanho aproximado de um coelho pequeno – num canto da barraca, provavelmente para que a pessoa que vem trazer a comida não a veja.
– Já é de manhã – diz o que tem a voz fraquinha.
– A noite acabou – continua o baixo.
Uma vez que todos têm vozes diferentes, deviam formar um coro, pensa a menina.
– Não temos canções – declara o tenor.
– Oh, oh – diz o que apanhou o ritmo.
Todos os elementos do Povo Pequeno encolhem até aos seus doze centímetros iniciais, dispõem-se em fila e entram para a boca da cabra morta.
– Voltamos logo à noite – diz o da voz fraquinha, antes de fechar a boca da cabra pelo lado de dentro. – Não fales de nós a ninguém.
– Se falares de nós a alguém, acontece uma coisa muito má – acrescenta o rouco, para reforçar a ideia.
– Eu não conto a ninguém – diz a menina.
E mesmo que dissesse, ninguém acreditaria em mim.
A menina era muitas vezes repreendida pelos adultos por dizer o que lhe ia na cabeça. Já houve quem dissesse que não distingue a realidade da fantasia. A forma e a cor dos seus pensamentos não são iguais às dos pensamentos das outras pessoas. Ela não percebe o que faz de mal. Em todo o caso, é melhor não dizer nada acerca do Povo Pequeno a ninguém.
Depois de o Povo Pequeno ter desaparecido e a boca da cabra ter-se fechado, a menina faz uma busca meticulosa de todo o espaço, à procura do sítio onde esconderam a crisálida de ar, mas não consegue encontrá-la. Que bem que a esconderam! É um espaço fechado e, mesmo assim, não é capaz de descobrir onde possa estar. Onde a terão escondido?
Depois, enrola-se nas mantas e adormece – o seu primeiro sono verdadeiramente descansado em muito tempo: sem sonhos nem interrupções. Desfruta do sono invulgarmente pesado.
A cabra morta mantém-se morta durante o dia todo. O corpo está rígido e os olhos turvos parecem berlindes. Porém, quando o Sol se põe e as trevas invadem a barraca, os olhos cintilam à luz das estrelas, a boca abre-se e o Povo Pequeno surge, como se fosse guiado pela luz. Desta vez, há sete elementos logo desde o início.
– Vamos continuar o que estivemos a fazer ontem – diz o da voz rouca.
As outras seis vozes manifestam a sua concordância, cada uma à sua maneira.
Os sete elementos do Povo Pequeno e a menina sentam-se em círculo à volta da crisálida e continuam o seu trabalho, puxando fios brancos do ar e acrescentando-os à crisálida. Pouco falam, focadas que estão todas as suas energias no trabalho. Concentrada no movimento das suas mãos, a menina não sente o frio da noite. Não dá pela passagem do tempo e não sente cansaço ou sono. Lenta mas visivelmente, o tamanho da crisálida aumenta.
– De que tamanho vai ficar? – pergunta a menina, quase de madrugada. Quer saber se a tarefa ficará concluída dentro dos dez dias em que vai ficar trancada no armazém.
– Tão grande quanto consigamos – responde o da voz aguda.
– Quando chegar a um determinado tamanho, abre-se sozinha – diz o tenor, alegremente.
– E lá de dentro sairá algo – afirma o barítono em tom vibrante.
– Que tipo de coisa? – pergunta a menina.
– O que sairá? – indaga o da voz fraquinha.
– Oh, oh – diz o que apanhou o ritmo.
– Oh, oh – os outros juntam-se em coro.
Um tom sombrio perpassava o estilo da novela. À medida que se foi apercebendo disso, Aomame começou a franzir ligeiramente o sobrolho. Parecia um conto infantil fantástico, mas escondida bem no fundo da história fluía uma corrente forte e sombria. Por baixo do uso claro e simples da língua, Aomame pressentia um eco funesto, uma sinistra sugestão de uma doença por vir – uma doença fatal que, progressivamente, corrói o espírito humano a partir do seu núcleo. Aquele coro do Povo Pequeno era o veículo de tal moléstia.
Há aqui qualquer coisa insalubre, sem dúvida, pensou Aomame.
E, todavia, reconhecia nas vozes deles algo que existia também dentro de si – algo quase fatalmente familiar.
Aomame levantou os olhos do livro e relembrou o que, antes de morrer, o Líder lhe dissera acerca do Povo Pequeno.
«Vivemos com eles desde tempos imemoriais, desde um tempo anterior à existência do bem e do mal, desde os alvores da consciência humana.»
Aomame retomou a leitura.
O Povo Pequeno e a menina continuaram a trabalhar e, ao fim de vários dias, a crisálida de ar cresceu e ficou do tamanho de um cão grande.
– O meu castigo acaba amanhã. Vou sair daqui – diz a menina ao Povo Pequeno quando o dia começa a clarear.
Em silêncio, os sete elementos escutam o que a rapariga lhes diz.
– Por isso, não vou poder continuar a fazer a crisálida de ar com vocês.
– Temos muita pena – diz o tenor, e parece genuinamente triste.
– Ajudaste-nos muito – continua o barítono.
O da voz aguda acrescenta:
– Mas a crisálida de ar está quase terminada. É só juntar mais um bocadinho e fica pronta.
Os elementos do Povo Pequeno alinham-se e observam a crisálida, como se quisessem medir o tamanho do que fizeram até ao momento.
– Só mais um bocadinho! – diz o da voz rouca, como se fosse o maestro do coro, numa monótona canção de barqueiro.
– Oh, oh – entoa o que apanhou o ritmo.
– Oh, oh – os outros juntam-se em coro.
* * *
A pena de dez dias de isolamento chega ao fim e a menina regressa ao Agrupamento. A vida comunitária retoma o seu curso e ela anda tão ocupada a cumprir todas as regras que deixa de ter tempo para estar sozinha. Claro que já não pode trabalhar na crisálida de ar com o Povo Pequeno. Todas as noites, antes de ir para a cama, vê na sua imaginação os sete elementos do Povo Pequeno, que continuam a sentar-se em círculo e a trabalhar para tornar a crisálida de ar cada vez maior. Não consegue pensar noutra coisa. É como se a crisálida de ar se tivesse infiltrado na sua cabeça.
A menina morre de curiosidade por saber o que pode estar dentro da crisálida. O que sairá lá de dentro quando a crisálida amadurecer e se rasgar? Está tristíssima por não poder assistir à cena e ver com os seus próprios olhos.
Trabalhei tanto para os ajudar a fazê-la, que devia estar lá quando se abrisse.
Chega mesmo a pensar seriamente em cometer outro delito para que a castiguem com novo período de isolamento no armazém. Mas, mesmo que se metesse nessa trapalhada, o Povo Pequeno podia não aparecer. A cabra morta já tinha sido retirada de lá e fora enterrada. Aqueles olhos não voltariam a cintilar à luz das estrelas.
A história prossegue com a descrição da vida da menina na comunidade – o horário rigoroso, as tarefas fixas, a orientação e os cuidados que dispensa às outras crianças, uma vez que é a mais velha, as suas refeições simples, as histórias que os pais lhe contam à hora de deitar, a música clássica que ouve sempre que arranja um momento livre. Uma vida sem «po-lu-ii-xão».
O Povo Pequeno faz-lhe visitas em sonhos. São capazes de entrar nos sonhos das pessoas sempre que queiram. Contam-lhe que a crisálida de ar está prestes a romper-se e insistem para que vá vê-la.
– Vai ao armazém depois de o Sol se pôr e traz uma vela. Não deixes que te vejam.
A menina não consegue controlar a curiosidade. Desliza para fora da cama e vai em bicos de pés até ao armazém, levando consigo a vela que preparou. Não está lá ninguém. Só encontra a crisálida de ar, pousada, imóvel, no ponto onde ficou, no chão do armazém. Tem o dobro do tamanho que tinha quando a viu pela última vez, bem mais de um metro e vinte de comprimento. A superfície brilha com uma luz suave, que vem do interior. Tem uma bonita forma arredondada com uma espécie de cintura a meio, que não existia quando era mais pequena. Torna-se óbvio que o Povo Pequeno se fartou de trabalhar. A crisálida está a romper-se. De um dos lados já se vê um rasgão vertical. A menina inclina-se para a frente e espreita pela abertura.
Descobre que é ela mesma que está dentro da crisálida. Olha para si própria ali deitada, nua, de costas e com os olhos fechados, aparentemente inconsciente, sem respirar, parecendo uma boneca.
Um dos elementos do Povo Pequeno fala com ela – o que tem a voz rouca:
– É a tua nina – informa, e aclara a garganta.
A menina vira-se e descobre que tem os sete elementos do Povo Pequeno alinhados atrás de si.
– Nina – diz, repetindo a palavra mecanicamente.
– E tu és a mã – diz o baixo.
– Mã e nina – repete a menina.
– A nina serve de substituta para a mã – prossegue o da voz aguda.
– Vou dividir-me em duas? – pergunta a menina.
– Não, nada disso – responde o tenor. – Isto não quer dizer que estejas dividida em duas. És a mesma, dos pés à cabeça. Não te preocupes. A nina não passa da sombra do coração e da mente da mã, que ganhou forma.
– E quando é que ela vai acordar?
– Dentro de muito pouco tempo. Quando chegar a hora – explica o barítono.
– E o que é que esta nina faz como sombra do meu coração e da minha mente? – pergunta a menina.
– Vai agir como Apreensora – diz o da voz fraquinha, furtivo.
– Apreensora – a menina repete a palavra.
– Sim – afirma o rouco. – A pessoa que apreende.
– Transmite o que apreende ao Recetor – acrescenta o da voz aguda.
– Por outras palavras, a nina torna-se a nossa passagem – declara o tenor.
– Em vez da cabra? – pergunta a menina.
– A cabra morta não foi mais do que uma passagem temporária – explica o baixo. – Precisamos de ter uma nina viva como Apreensora para fazer a ligação entre o sítio onde vivemos e este.
– E o que faz a mã? – pergunta a menina.
– A mã mantém-se perto da nina – responde o da voz aguda.
– E quando é que a nina acorda? – indaga a menina.
– Daqui a dois dias, ou talvez três – esclarece o tenor.
– Ou num, ou noutro – corrobora o da voz fraquinha.
– Cuida bem desta nina – diz o barítono. – É a tua nina.
– Sem os cuidados da mã, a nina não ficará completa e não conseguirá sobreviver durante muito tempo – acrescenta o da voz aguda.
– Se a nina desaparecer, a mã perderá a sombra do coração e da mente dela – diz o tenor.
– O que acontece a uma mã quando perde a sombra do coração e da mente? – quer saber a rapariga.
Os elementos do Povo Pequeno entreolham-se. Nenhum deles mostra vontade de responder à questão.
– Quando a nina despertar, haverá duas luas no céu – diz o da voz rouca.
– As duas luas criam a sombra do seu coração e da sua mente – diz o barítono.
– Haverá duas luas – repete a menina, mecanicamente.
– Será um sinal. Observa o céu com todo o cuidado – diz o da voz fraquinha, furtivo. Repete: – Observa o céu com todo o cuidado. Conta as luas.
– Oh, oh – entoa o que apanhou o ritmo.
– Oh, oh – os outros seis juntam-se, em coro.
* * *
A menina foge a correr.
Havia ali qualquer coisa errada. Algo estava mal. Algo muito distorcido. Oposto à natureza. A menina sabe isto. Não sabe o que quer o Povo Pequeno, mas horroriza-a ver a sua imagem dentro da crisálida de ar e treme violentamente. É-lhe impossível viver com outro eu, que vive e se move também. Tem de fugir dali. Assim que puder. Antes que a sua nina desperte. Antes que, no céu, surja uma segunda lua.
O Agrupamento proíbe que as pessoas tenham o seu dinheiro pessoal. Mas, em tempos, o pai da menina entregara-lhe em segredo uma nota de dez mil ienes e algumas moedas.
«Esconde isto e que ninguém o descubra», dissera-lhe. Também lhe entregara um papel com o nome, morada e número de telefone de uma pessoa. «Se alguma vez tiveres de fugir daqui, usa o dinheiro para comprar um bilhete de comboio e vai a esta morada.»
Já nessa altura o pai devia saber que ia acontecer algo de mau ao Agrupamento. A menina não hesita e age de imediato. Não tem tempo para se despedir dos pais.
Desenterra um boião onde guardara o dinheiro e tira a nota de dez mil ienes, as moedas e o papel. Durante uma aula, diz ao professor que se sente mal e pede para ir à enfermaria. Em vez disso, sai da escola e apanha o autocarro que vai para a estação. Mostra a sua nota de dez mil ienes ao homem que está na janela e compra um bilhete para Takao, a oeste de Tóquio. O homem por trás do vidro dá-lhe o troco. É a primeira vez na vida que recebe troco, compra qualquer coisa ou se mete num comboio, mas o pai dera-lhe instruções pormenorizadas e ela decorara o que tinha de fazer.
Seguindo as instruções escritas no papel, apeia-se do comboio na estação de Takao, na linha de Chuo, e entra numa cabina telefónica, donde liga para o número que o pai lhe tinha dado. O homem que atende é um velho amigo do pai, um artista que ainda pinta segundo o estilo tradicional japonês. É dez anos mais velho do que o pai e vive nas montanhas, com a filha, perto do monte Takao. A esposa falecera algum tempo antes. A filha chama-se Kurumi15 e é um ano mais nova do que a menina. Logo a seguir a ter falado com ela, o senhor apresenta-se na estação para a ir buscar e acolhe calorosamente em sua casa a jovem fugitiva.
Um dia depois de ter sido acolhida na casa deste pintor, a menina olha pela janela do seu quarto para o céu e descobre que o número de luas aumentou e há agora duas. Perto da lua habitual paira uma outra, mais pequena, que parece uma ervilha ligeiramente encarquilhada.
A minha nina deve ter acordado, pensa.
As duas luas começam a refletir a sombra do seu coração e da sua mente. O coração dá-lhe um salto.
O mundo mudou. Algo está prestes a acontecer.
A menina não tem notícias dos pais. Talvez ninguém do Agrupamento tenha dado pela sua falta, já que a nina, o seu outro eu, ainda está lá. As duas são rigorosamente iguais, pelo que a maior parte das pessoas nem dará pela diferença. Claro que os pais devem ser capazes de perceber que a nina não é a filha real, que ela não passa de um outro eu da filha, e que a sua filha real fugiu do Agrupamento, deixando a nina no seu lugar. Há só um sítio para onde a menina se pode ter dirigido, mas os pais não tentam entrar em contacto com ela. Só por si, isto pode ser uma mensagem dizendo-lhe para ficar onde está.
A menina falta muitas vezes à escola. Este novo mundo exterior é demasiado diferente do mundo do Agrupamento em que cresceu. As regras são diferentes, os propósitos são diferentes, as palavras que usam são diferentes. É por estas razões que lhe é difícil fazer amigos neste mundo novo. Não consegue habituar-se à vida da escola.
Contudo, na escola preparatória torna-se amiga de um rapaz. O nome dele é Toru. É baixo e magro e na cara tem várias rugas vincadas, como as de um macaco. Ao que parece, ele teve uma doença grave em criança e não pode participar em atividades que exijam grande esforço físico. Tem as costas ligeiramente curvadas. Durante os intervalos, costuma isolar-se a ler um livro. Tal como a menina, ele não tem amigos. É demasiado pequeno, demasiado feio. Um dia, durante a hora do almoço, a menina senta-se perto dele e inicia uma conversa. Pergunta-lhe que livro está a ler. Ele lê em voz alta para ela. Ela gosta da voz dele, fraca e rouca, mas que soa muito clara aos ouvidos dela. As histórias que lhe conta com aquela voz cativam-na. Toru lê prosa de uma forma tão bela que parece estar a ler poesia. Pouco tempo depois, ela passa a hora do almoço com ele todos os dias, sentada muito quieta, a escutar com a maior atenção as histórias que lhe conta.
Mas, pouco tempo depois, a menina perde o amigo. O Povo Pequeno arrebata Toru e fá-lo desaparecer.
Certa noite, uma crisálida de ar surge no quarto de Toru. O Povo Pequeno torna-a cada vez maior durante o sono do rapaz e, nos seus sonhos, mostra à menina o que está a fazer. Ela não tem forma de os deter. A crisálida acaba por atingir o tamanho final e, de um dos lados, abre-se uma fenda vertical, tal como acontecera com ela. Mas dentro da crisálida há três grandes cobras negras. As cobras estão entrelaçadas umas nas outras com tanta força que parece que nada – incluindo elas próprias – será capaz de as separar. Parecem um brilhante e perpétuo emaranhado com três cabeças. As cobras estão terrivelmente zangadas por não conseguirem desenredar-se. Contorcem-se num frenético esforço para se separarem umas das outras, porém, quanto mais se contorcem, mais se enredam. O Povo Pequeno mostra estas criaturas à menina. O rapaz chamado Toru dorme ao lado delas, alheio ao que se passa. Só a menina consegue ver tudo.
Dias mais tarde, o rapaz adoece inesperadamente e mandam-no para um sanatório distante. Ninguém revela a natureza da moléstia. Em todo o caso, Toru não voltará à escola. Perdeu-se irremediavelmente.
A menina percebe que se trata de uma mensagem do Povo Pequeno. Aparentemente, não podem fazer mal à menina, uma mã, pessoalmente. Em vez disso, podem fazer mal e até mesmo destruir quem estiver à sua volta. Mas não o podem fazer a qualquer pessoa – não podem tocar no seu tutor, o artista, ou na filha, Kurumi. Em vez deles, escolhem os mais frágeis como presa. Arrastaram as três cobras negras das profundezas da consciência do rapaz e despertaram-nas do seu sono. Destruindo o amigo, enviaram um aviso à menina, envidando os maiores esforços para a trazerem de novo para junto da sua nina.
«Tu tens a culpa disto tudo», é o que estão a dizer-lhe.
A menina regressa à sua solidão. Deixa de ir à escola. Fazer amigos só serve para pôr essas pessoas em perigo. É o que significa viver sob duas luas. Foi o que aprendeu.
Pouco tempo depois, a menina toma a decisão de começar a fazer as suas próprias crisálidas de ar. Sabe fazê-las. O Povo Pequeno dissera-lhe que tinham chegado ao mundo dela atravessando uma passagem do sítio onde viviam. Nesse caso, ela devia ser capaz de fazer o caminho inverso e atravessar a passagem na direção oposta. Se lá fosse, poderia aprender os segredos que se prendem com a sua permanência naquele local e o significado de mã e nina. Talvez fosse capaz, também, de salvar Toru, o seu amigo perdido. A menina começa a fazer a passagem. Só tem de puxar fios do ar e entretecê-los numa crisálida. Vai levar tempo, claro, mas, se tiver calma, conseguirá fazê-lo. No entanto, por vezes, sente-se insegura e é assaltada pela confusão.
Sou, de facto, uma mã? Em algum momento, posso ter trocado de lugar com a minha nina? Como posso provar que sou a verdadeira eu?
Quanto mais pensa no assunto, mais dúvidas tem.
Simbolicamente, a história termina no momento em que a menina abre a passagem. Nada conta do que acontece para lá da porta – provavelmente porque ainda não aconteceu.
Aomame entregou-se às suas reflexões:
Nina. O Líder usou a palavra antes de morrer. Disse que a filha dele tinha fugido, deixando a sua nina para trás, para criar uma força que se opusesse ao Povo Pequeno. Pode ter realmente acontecido. E eu não sou a única a ver duas luas.
Em todo o caso, Aomame sentiu que percebia porque é que aquela novela tinha tido tantos leitores. Claro que o facto de a autora ser uma bonita rapariga de dezassete anos também tivera decerto a sua influência. Não obstante, não tinha sido só por isso que se convertera num êxito de vendas. As descrições rigorosas e cheias de vida eram, sem sombra de dúvida, o grande encanto daquele texto. Pelo olhar dela, o leitor conseguia captar, com grande frescura, o mundo que rodeava a menina. Apesar de ser uma história acerca das experiências fantásticas de uma rapariga em circunstâncias invulgares, também tinha qualquer coisa que fazia apelo à simpatia natural dos leitores. Talvez despertasse algo do fundo dos seus subconscientes que os agarrava à leitura e os fazia virar página atrás de página.
Sem dúvida que Tengo dera uma contribuição importante para as qualidades literárias do livro, para as descrições precisas e vívidas, mas ela não era capaz de se prender a esse único facto. Tinha de focar a sua atenção nas partes da história em que o Povo Pequeno entrava na ação. Para Aomame, esta história era muito prática – era virtualmente um manual de instruções – de que dependia a vida e a morte de gente real. Precisava de retirar dele informações concretas, de acrescentar solidez e pormenor à compreensão que tinha do mundo em que se metera.
A Crisálida de Ar não era apenas uma louca fantasia sonhada por uma rapariga de dezassete anos. Os nomes podiam ter sido alterados, mas Aomame estava firmemente convencida de que a maior parte do que se descrevia era a inconfundível realidade da rapariga, tal como a vivera por experiência própria. Fuka-Eri registara esses acontecimentos da sua vida, de forma tão rigorosa quanto possível, para revelar ao mundo em geral esses segredos escondidos, para advertir tantas pessoas quantas conseguisse da existência do Povo Pequeno e do que andavam a fazer.
A nina que deixara para trás devia ter-se convertido numa passagem para o Povo Pequeno e tê-los guiado até ao Líder, pai da menina, que tinha sido transformado em Recetor. Então, eles tinham conduzido a Amanhecer à sua sangrenta autodestruição, uma vez que se convertera num empecilho, e tinha transformado a Vanguarda numa organização religiosa inteligente, militante e xenófoba, que era provavelmente o ambiente mais confortável e conveniente para o Povo Pequeno.
Aomame interrogou-se se a nina de Fuka-Eri teria conseguido sobreviver durante muito tempo sem a sua mã. O Povo Pequeno dissera-lhe que era praticamente impossível que uma nina vivesse longe da sua mã. E o que aconteceria com a mã? Como seria viver depois de ter perdido a sombra do seu coração e da sua mente?
Após a fuga da menina da Vanguarda, era provável que o Povo Pequeno tivesse utilizado o mesmo processo para criar novas ninas, já que teriam por fito alargar e estabilizar as passagens por onde iam e vinham, como se acrescentassem novas faixas a uma autoestrada. As várias ninas convertiam-se assim em outras tantas Apreensoras e desempenhavam o papel de sacerdotisas. Tsubasa fora uma delas. Se o Líder tinha relações sexuais não com as mãs reais das raparigas mas com os seus outros eus, as suas ninas, a expressão do homem – «unir-se de maneira ambígua» – fazia sentido. Também explicava os olhos inexpressivos e parados de Tsubasa e a sua incapacidade de falar. Aomame não fazia a mínima ideia de como ou porquê a nina, Tsubasa, se escapara da organização religiosa, mas com toda a certeza que fora metida dentro de uma crisálida de ar e «recuperada» para ser levada até junto da sua mã. A morte sangrenta do cão fora um aviso do Povo Pequeno, como o fora a de Toru, na história.
As ninas queriam ficar grávidas do Líder, mas, uma vez que eram desprovidas de essência, não tinham menstruação. Mesmo assim, o seu desejo de engravidar, segundo o Líder, era intenso. Porque seria?
Aomame abanou a cabeça. Havia ainda demasiadas coisas que não entendia.
* * *
Queria comunicar tudo isto à viúva, o mais depressa possível: que o homem poderia ter-se limitado a violar as sombras das raparigas; que, bem vistas as coisas, não teria sido necessário assassiná-lo.
Todavia, mesmo que lhe explicasse isto tudo, não seria fácil fazer com que a senhora acreditasse nela. Aomame sabia como ela iria sentir-se. A senhora – ou qualquer pessoa com dois dedos de testa – teria dificuldade em aceitar como verídica toda essa conversa acerca do Povo Pequeno, as ninas, as mãs ou as crisálidas de ar. Aos olhos de gente lúcida, não passariam de invenções que surgem na ficção, tão reais como a Rainha de Copas ou o Coelho Branco e o seu relógio em Alice no País das Maravilhas.
Mas a própria Aomame vira, de facto, duas luas – a velha e a nova – suspensas no céu. Estava, de facto, a viver sob o luar das duas. Sentira na pele o desvio que haviam gerado na gravidade. E, num quarto de hotel sombrio, matara por suas próprias mãos o homem a quem chamavam «Líder». A sensação agoirenta que tinha experimentado quando espetara a agulha naquele ponto da nuca mantinha-se viva na sua mão. Ainda agora lhe fazia pele de galinha. Além do mais, poucos instantes antes de o assassinar, tinha visto como o Líder conseguira fazer levitar a uns cinco centímetros um pesado relógio de mesa. Não fora uma ilusão de ótica nem um truque de magia. Era um facto insofismável, que havia que aceitar como tal.
Fora assim que o Povo Pequeno tinha assumido o controlo da Vanguarda. Aomame desconhecia o objetivo último que o Povo Pequeno pretendia conseguir com o controlo da organização. Talvez quisessem coisas que transcendessem o bem e o mal, mas a jovem protagonista de A Crisálida de Ar reconhecera intuitivamente que tais coisas não estavam certas e tentara combatê-las como pudera. Abandonara a sua nina, fugira da comunidade e, para usar a expressão utilizada pelo Líder, tentara criar uma «força de oposição ao Povo Pequeno» para preservar o equilíbrio do mundo. Refazendo a passagem por onde transitava o Povo Pequeno, tentava internar-se no lugar onde viviam. A história era o seu veículo. Tengo fora seu parceiro para conseguir que a história circulasse. Era provável que, nessa altura, o próprio Tengo não percebesse o sentido do que estava a fazer. Talvez ainda não entendesse.
Em todo o caso, a chave importante era a história de A Crisálida de Ar.
Parte tudo desta história.
Mas onde é que eu me encaixo?
A partir do momento em que ouvi a Sinfonietta de Janácek e desci as escadas de emergência para fugir ao engarrafamento na autoestrada metropolitana, fui puxada para este mundo que tem duas luas no céu, este mundo de 1Q84 repleto de enigmas. O que poderá querer dizer?
Fechou os olhos e continuou a pensar.
Provavelmente, fui arrastada pela passagem da «força que se opõe ao Povo Pequeno» criada pela Fuka-Eri e pelo Tengo. Essa força arrastou-me para este lado. Que outra explicação poderá haver? E o papel que desempenho nesta história está longe de ser insignificante. Posso até mesmo ser uma das personagens centrais.
Aomame olhou à sua volta.
Por outras palavras, estou dentro da história que o Tengo pôs em movimento. Em certo sentido, estou dentro dele: dentro do corpo dele. Estou dentro desse santuário, por assim dizer.
Há muito tempo, vi um filme de ficção científica na televisão. Era a história de um pequeno grupo de cientistas que fizeram encolher os seus próprios corpos até ficarem microscópicos, embarcaram num veículo parecido com um submarino (que também fora encolhido), entraram nos vasos sanguíneos de um doente e foram seguindo por eles até chegarem ao cérebro, onde executaram uma operação complexa que, em circunstâncias normais, teria sido impossível. Talvez eu esteja numa situação semelhante. Estou no sangue do Tengo e circulo pelo seu corpo. Lutei contra os glóbulos brancos que atacaram o corpo estranho invasor (eu) quando me dirigia para a raiz do problema, o que estava a causar a enfermidade. Devo ter conseguido «apagar» essa causa quando matei o Líder, no Hotel Okura.
Enquanto pensava em tudo isto, Aomame foi sentindo um certo calor.
Desempenhei a tarefa que me atribuíram. Foi uma missão difícil, sem dúvida, e tive medo, mas concluí-a fria e impecavelmente, no meio daquela trovoada imensa – e talvez perante os olhos do Tengo.
Sentiu-se orgulhosa do seu feito.
Prosseguindo na analogia com o sangue, devo estar quase a ser arrastada para uma veia, gasta, uma vez que terminei a minha missão. Dentro de pouco tempo, serei expelida do corpo. É assim que os corpos funcionam – um destino inescapável. Mas, e depois? Neste instante, estou dentro do Tengo, envolta no calor dele, guiada pelo bater do seu coração, pela lógica e pelas regras dele e, talvez, pela própria linguagem que está a passar a escrito. Que maravilha, fazer assim parte dele!
Ainda sentada no chão, Aomame fechou os olhos. Encostou o nariz às páginas do livro, inalou os seus cheiros – o cheiro do papel, o cheiro da tinta. Com toda a calma, entregou o seu corpo àquela corrente, prestando toda a sua atenção aos batimentos do coração de Tengo.
Chegou o reino, pensou.
Estou pronta para morrer, a qualquer instante.
15 Significa «noz» em japonês. (N. das T.)
20
TENGO
A Morsa e o Chapeleiro Louco
Não restava a mínima dúvida: havia duas luas.
Uma era a Lua habitual, que vira desde sempre, e a outra era uma lua bastante mais pequena, esverdeada, ligeiramente disforme e muito menos brilhante. Parecia uma parente afastada, pobre e feia, impingida à família devido a circunstâncias infelizes, e rejeitada por todos. Mas estava inequivocamente ali, não se tratava de um fantasma nem de uma ilusão de ótica. Pairava no espaço como os outros corpos celestes, uma massa sólida de contornos claramente definidos. Não era um avião, nem um dirigível, nem um satélite artificial, nem uma lua feita de papier mâché, por pura diversão. Era inegavelmente um bocado de rocha, que, furtivo e teimoso, marcava posição no céu noturno, como um sinal de pontuação colocado após um longo período de deliberação ou uma verruga concedida pelo destino.
Tengo ficou a olhar para a nova lua durante bastante tempo, como se a desafiasse, nunca se desviando do seu brilho, quase sem pestanejar. Mas, por mais que mantivesse os olhos fixos nela, a lua recusava mexer-se. Ali permanecia, naquele canto do céu, numa obstinação silenciosa e taciturna, como um coração de pedra.
Desfez o punho e, quase sem ter consciência disso, abanou ligeiramente a cabeça.
Raios, é a mesma lua de A Crisálida de Ar! Um mundo com duas luas no céu, lado a lado. Quando nasce uma nina, aparece uma segunda lua.
«Será um sinal. Observa o céu com todo o cuidado», dissera um dos elementos do Povo Pequeno à menina.
Tinha sido Tengo a escrever aquelas palavras. Seguindo o conselho de Komatsu, fizera a descrição da nova lua tão concreta e pormenorizada quanto fora capaz. Era a parte que burilara com mais cuidado. O aspeto da nova lua era da quase exclusiva responsabilidade de Tengo.
Komatsu dissera-lhe: «Pensa na coisa desta maneira, Tengo: os teus leitores já viram o céu com uma lua muitas e muitas vezes, certo? Mas imagino que nunca tenham visto um céu com duas luas, uma ao lado da outra. Quando se inclui num texto de ficção algo que nunca ninguém viu, há que descrevê-lo com todo o pormenor e rigor.»
Fazia todo o sentido.
Ainda com os olhos postos no céu, Tengo tornou a abanar a cabeça. A nova lua tinha rigorosamente o feitio e o tamanho que Tengo tinha imaginado e que usara para a descrever. Até mesmo a linguagem figurativa que utilizara se adaptava a esta lua de forma quase perfeita.
Não pode ser. Que realidade imita a ficção?
– Não pode ser – exclamou, em voz alta. Ou tentou exclamar. A sua voz mal se ouvia. Tinha a garganta seca, como se tivesse acabado de correr uma grande distância.
Não é possível. De todo. Trata-se de um mundo ficcional, um mundo que não existe na realidade.
Tratava-se de um mundo numa história fantástica, que Fuka-Eri contara a Azami, noite após noite, e a que o próprio Tengo dera corpo.
Quererá então dizer que isto é o mundo do romance? Que, não sei como, posso ter saído do mundo real e terei entrado neste mundo d’A Crisálida de Ar, como a Alice quando caiu pela toca do coelho? Ou será que transformaram o mundo real para condizer rigorosamente com a história d’A Crisálida de Ar? Quererá então dizer que o mundo que existia – o mundo habitual, com uma só lua – já não existe? E será que o poder do Povo Pequeno tem alguma relação com isto tudo?, interrogava-se Tengo.
Olhou em volta, à procura de respostas, mas a paisagem com que se deparou era o bairro residencial, vulgaríssimo. Não descortinou nada que lhe parecesse estranho ou invulgar – nenhuma Rainha de Copas, nenhuma Morsa, nem um Chapeleiro Louco. Perto de si não existia nada para além de uma caixa de areia e baloiços, um candeeiro de mercúrio que emitia uma luz estéril, os longos ramos de uma zelkova, uma casa de banho pública fechada à chave, um prédio residencial de seis andares, novo (só quatro apartamentos estavam iluminados), um quadro de avisos do bairro, uma máquina de venda automática vermelha, com o logotipo da Coca-Cola, um Volkswagen Golf antigo, verde, mal estacionado, postes de telefone e fios elétricos e, à distância, anúncios de néon em cores primárias. Os ruídos urbanos habituais, as luzes do costume. Há sete anos que Tengo vivia em Koenji. Não fora para ali viver por alguma preferência especial, mas porque, por acaso, encontrara um apartamento barato, não muito longe da estação. Era cómodo deslocar-se para o trabalho a partir dali, e tinha-se deixado ficar porque fazer uma mudança para outra zona qualquer causaria grandes transtornos. Mas, pelo menos, conhecia o bairro de uma ponta à outra e daria por qualquer alteração quase de imediato.
Desde quando existiria esta outra lua? Tengo não tinha a certeza. Talvez houvesse duas luas há muitos anos e ele nunca tivesse dado por elas. Tinham-lhe escapado muitas coisas assim. Não era um grande leitor de jornais e nunca via televisão. Havia inúmeras coisas que toda a gente sabia e ele não. Talvez tivesse acontecido alguma coisa recentemente que explicasse o aumento do número de luas. Queria perguntar a alguém: «Desculpe, eu sei que a pergunta é estranha, mas há quanto tempo é que há duas luas? Pensei que talvez soubesse.» Mas não havia por ali ninguém a quem pudesse fazer a pergunta – literalmente, nem mesmo um gato.
Não, estava ali alguém. Perto do sítio onde se encontrava, alguém estava a usar um martelo para pregar um prego numa parede. Pum, pum, pum. O som continuava, sem interrupções, um prego muito duro a entrar numa parede muito rija. Quem poderia estar a pregar pregos a uma hora daquelas? Intrigado, Tengo olhou à sua volta mas não viu parede nenhuma, nem ninguém que estivesse a martelar um prego.
Instantes mais tarde, Tengo percebeu que o que estava a ouvir era o pulsar do seu próprio coração. Estimulado por uma descarga de adrenalina, o seu coração bombeava grandes quantidades de sangue para todos os pontos do seu corpo. O ruído ecoava-lhe aos ouvidos.
A visão das duas luas provocou-lhe uma leve sensação de tontura, uma náusea, como se o seu sistema nervoso lhe tivesse feito perder o equilíbrio. Sentou-se no alto do escorrega, encostado ao corrimão, e fechou os olhos para combater a tontura. A sensação que teve foi de que a força da gravidade que o rodeava tinha-se alterado subtilmente. Algures a maré subia, e noutro sítio qualquer a maré estava a descer. Com rostos desprovidos de expressão, havia pessoas a mover-se de um lado para o outro, entre o «louco» e o «lunático».
Por entre as tonturas, Tengo tomou consciência de que há muito que não era assaltado pela imagem da mãe numa combinação branca, dando o peito a um homem que não era o seu pai. Quase se esquecera de que tinha vivido durante anos atormentado por aquela ilusão. Quando teria sido a última vez que a tivera? Não se conseguia lembrar com rigor, mas teria provavelmente sido por volta da altura em que começara a escrever o seu novo romance. Por qualquer inescrutável razão, o fantasma da mãe tinha deixado de lhe assombrar a vida a partir daquele momento.
Em vez disso, Tengo encontrava-se agora sentado no topo de um escorrega, num parque infantil de Koenji, a olhar para um par de luas no céu. Um novo mundo insondável rodeava-o em silêncio, como as águas escuras de um lago. Talvez um novo problema tivesse afastado o antigo. Talvez o velho enigma familiar tivesse sido substituído por um outro, novo e fresco. O pensamento veio-lhe à cabeça sem a menor ironia. Nem sequer sentiu necessidade de se queixar.
Seja qual for a composição deste mundo novo, está visto que não me resta alternativa senão aceitá-lo. Não tenho outra escolha. Mesmo no mundo que existiu até agora, não tinha outra escolha. É a mesma coisa. E, para além disso, mesmo que eu quisesse apresentar uma queixa, a quem poderia fazê-lo?
O som duro e seco do seu coração continuava, mas a sensação de tontura desaparecia a pouco e pouco. Com o coração a bater-lhe aos ouvidos, Tengo encostou a cabeça ao corrimão do escorrega e olhou para as duas luas lá no alto, no céu de Koenji. Que visão mais estranha – um mundo novo com uma nova lua. Tudo era incerto e, em última análise, ambíguo.
Mas há uma coisa que posso afirmar com toda a certeza, pensou Tengo. Seja o que for que me acontecer no futuro, esta visão de duas luas ali no alto, lado a lado, nunca será – nunca – vulgar e óbvia aos meus olhos.
Que pacto secreto teria Aomame firmado com a Lua naquele dia, perguntou-se Tengo. E recordou o ar tremendamente sério dos seus olhos quando olhara para a Lua, em plena luz do Sol. Que poderia ela ter oferecido à Lua?
E o que me vai acontecer a partir de agora?
Com dez anos, qual rapazinho assustado perante uma grande porta, Tengo dera voltas a esta pergunta enquanto Aomame lhe apertava a mão na sala de aulas vazia. Mesmo agora, Tengo continuava a fazer-se a mesma pergunta. Sentia a mesma ansiedade, o mesmo medo, o mesmo tremor. Uma nova porta, ainda maior. A Lua estava lá no alto outra vez, mas agora havia duas luas.
Onde estaria Aomame?
Do seu poleiro no alto do escorrega, Tengo voltou a percorrer a zona com o olhar, mas em sítio nenhum encontrou o que procurava. Estendeu a mão esquerda e esforçou-se por descobrir uma pista, mas não havia nada na palma da sua mão para além das mesmas linhas naturais de sempre. À luz pálida do candeeiro de mercúrio, pareciam os canais da superfície de Marte, mas não lhe revelaram absolutamente nada. O mais que conseguiu ver na sua grande mão foi a enorme distância que o separava dos seus dez anos – o caminho que percorrera até ao topo daquele escorrega num pequeno parque infantil de Koenji, sobre o qual pairavam duas luas.
Onde estará a Aomame? Onde estará escondida?, perguntou-se.
«Pode estar aqui perto», dissera Fuka-Eri. «Dá para ir a pé.»
Alegadamente nas redondezas, será que Aomame também via as duas luas?
Estou certo que sim, pensou Tengo. Não dispunha de provas, claro, mas tinha a misteriosa convicção de que haveria de ser assim. Não duvidava que ela visse o que ele via. Cerrou os dedos da mão esquerda e esmurrou a superfície polida do escorrega com força. Doeu.
É por essa razão que isto tem de acontecer: temos de nos encontrar por acaso, algures aqui perto. Alguém anda a perseguir a Aomame, e ela está escondida como um gato ferido. Não tenho muito tempo para a encontrar.
Mas onde poderia ela estar? Tengo não fazia a mínima ideia.
– Oh, oh – chamou o que apanhara o ritmo.
– Oh, oh – os outros seis juntaram-se em coro.
21
AOMAME
Que devo fazer?
Naquela noite, Aomame foi até à varanda, de chinelas e fato de treino cinzento, para olhar para as luas. Tinha na mão uma chávena de cacau. Era a primeira vez em muito tempo que lhe apetecia beber um cacau quente, mas o facto de ter posto a vista numa lata de cacau Van Houten, que estava na cozinha, despertou-lhe a vontade. A sudoeste, num céu perfeitamente limpo, pairavam as duas luas – uma grande e uma pequena. Em vez de suspirar, Aomame soltou um pequeno gemido. Uma nina nascera de uma crisálida de ar, e agora havia duas luas. 1984 transformara-se em 1Q84. O velho mundo desaparecera e ela nunca mais conseguiria regressar.
Sentada na cadeira de jardim que estava na varanda, bebericando o seu cacau quente e olhando para as duas luas com os olhos semicerrados, Aomame tentou recordar algumas coisas do velho mundo. Mas a única coisa de que conseguia lembrar-se era do vaso com uma árvore-da-borracha, que deixara no seu antigo apartamento. Onde estaria agora? Será que Tamaru tomava conta dela como prometera?
Falou para si mesma:
Claro que sim. Não tens nada a recear. O Tamaru é um homem de palavra. Se for necessário, é capaz de te matar sem qualquer hesitação, mas, ainda assim, é pessoa para tratar da tua árvore-da-borracha até ao fim.
Mas por que carga-d’água estou preocupada com a árvore-da-borracha?
Aomame mal gastara um segundo do seu tempo a pensar na planta, até ao dia em que teve de a deixar para trás, no apartamento. Não passava de uma árvore-da-borracha com ar triste, de uma cor mortiça e baça, cuja falta de viço saltava aos olhos. Tinha-a encontrado em saldos, a mil e oitocentos ienes, mas o vendedor ainda baixara o preço até aos mil e quinhentos sem que lho pedisse; se Aomame tivesse regateado um bocado, ainda poderia tê-la comprado mais barata. Era óbvio que estava há muito tempo à venda, e durante todo o caminho até casa lamentou tê-la comprado obedecendo a um impulso, não só por causa de ter um ar tristonho, ser volumosa e difícil de transportar, mas porque era um ser vivo.
Fora a primeira vez na vida que possuíra algo vivo. Fosse um animal de estimação, fosse uma planta, a verdade é que nunca comprara, recebera ou encontrara um. A árvore-da-borracha era o primeiro ser vivo com quem experimentava partilhar a sua vida. No momento em que vira os dois peixinhos-vermelhos na sala de estar e ouvira a velha senhora dizer que os tinha comprado para oferecer a Tsubasa, numa banca noturna de um mercado de rua, Aomame desejara ter os seus próprios peixes – desesperadamente. Não conseguia despegar os olhos deles. De onde viera aquele desejo súbito? Talvez tivesse inveja de Tsubasa. Nunca ninguém comprara nada a Aomame num mercado de rua – nem sequer a tinham levado a visitar um. Sendo membros fervorosos da Associação das Testemunhas, em todos os aspetos fiéis aos ensinamentos da Bíblia, os pais dela desprezavam e evitavam todas as festividades mundanas.
Por esse motivo, Aomame decidira ir a um armazém barato do seu bairro de Jiyugaoka comprar um peixinho-vermelho. Se ninguém lhe oferecia um aquário com um peixe, teria de ser ela a comprá-lo. Pensara:
E qual é o mal? Sou adulta. Tenho trinta anos e vivo no meu próprio apartamento. Tenho pilhas de dinheiro, ao monte, dentro do meu cofre. Não preciso de pedir autorização a ninguém para comprar o raio de um peixe.
Mas quando chegou à secção dos animais e viu os peixes a nadar dentro de um tanque, com as barbatanas rendilhadas a ondear, Aomame foi incapaz de comprar um. Apesar de serem pequenos e parecerem insensíveis e desprovidos de personalidade e consciência, ainda assim eram seres vivos. Não foi capaz de deixar de pensar que estava errado gastar dinheiro para ter um ser vivo na sua posse. Aquilo também a fez recordar os seus tempos de criança. O peixe era impotente, ali fechado num pequeno aquário de vidro, impossibilitado de ir onde quer que fosse. Tal facto não parecia incomodar o peixe. Provavelmente, não tinha para onde ir. Mas, para Aomame, era causa de uma genuína preocupação.
Não sentira nada parecido quando vira o aquário com os dois peixes na sala da velha senhora. Aparentemente, estavam a divertir-se, ali a nadar com tanta elegância dentro da sua taça de vidro, banhados pela luz do Sol, que tremeluzia dentro de água. Conviver com peixes pareceu-lhe uma ideia fantástica. Decerto trariam uma certa riqueza à sua vida. Mas a visão dos peixes na secção de animais do armazém perto da estação fez Aomame ficar sem ar.
Não, está fora de questão. Não sou capaz de ter um peixe em casa.
Foi a árvore-da-borracha, num canto da loja, que lhe prendeu então o olhar. Parecia ter sido atirada para o canto onde chamava menos a atenção, escondida como um órfão abandonado. Pelo menos, foi assim que Aomame a viu. Não tinha cor nem brilho, e estava com uma forma desalinhada, mas comprara-a sem pensar duas vezes – não porque gostasse dela, mas porque tinha de a comprar. E, na realidade, mesmo depois de a ter trazido para casa e colocado no sítio, poucas vezes olhava para ela, a não ser nas raras ocasiões em que a regava.
No entanto, quando tivera de a deixar ficar para trás e percebera que não tornaria a vê-la, Aomame não conseguia deixar de se preocupar com a planta. Franziu o sobrolho com toda a força, como fazia sempre que se sentia confusa e lhe dava ganas de gritar bem alto, contorcendo cada músculo do seu rosto até parecer uma pessoa completamente diferente. Após ter terminado de distorcer a cara em todos os ângulos possíveis, Aomame fê-la voltar ao seu estado normal.
Porque é que ando tão preocupada com a árvore-da-borracha?
Em todo o caso, tenho a certeza de que o Tamaru vai tratar bem dela. Está habituado a cuidar de seres vivos e a dispensar-lhes afeição. Não é como eu. Trata os cães como se fossem iguais a ele. Chega mesmo a usar o tempo que tem livre para percorrer o jardim da casa da velha senhora e examinar todas as plantas com o maior cuidado. Quando estava no orfanato, arriscou a vida para proteger um rapaz mais novo e deficiente. Eu nunca seria capaz de fazer uma coisa assim. Não posso assumir a responsabilidade de outras vidas. Só me resta suportar o fardo da minha vida e da minha solidão.
Aomame ficou a pensar.
A palavra «solidão» fê-la recordar Ayumi.
Um homem desconhecido algemara-a a uma cama de hotel, violara-a rudemente e estrangulara-a até à morte com o cinto de um roupão de banho. Tanto quanto sabia, o criminoso não fora preso.
A Ayumi tinha família e colegas, mas estava só, tão só que teve de passar por uma morte horrível. Mesmo eu não estava lá para ela. Ela queria pedir-me qualquer coisa, até aí eu sei. Mas eu tinha os meus próprios segredos – e a minha própria solidão – e era forçoso protegê-los. Nunca poderia partilhá-los com a Ayumi. Por que carga-d’água me terá escolhido, quando há tanta gente por aí?
Aomame fechou os olhos e visualizou, no vaso, a árvore-da-borracha que abandonara no seu apartamento.
Porque é que ando tão preocupada com a árvore-da-borracha?
* * *
Aomame esteve algum tempo a chorar.
O que se passa comigo? Nos últimos tempos, ando muito chorona. Aomame ia pensando e abanava a cabeça. Chorar era a última coisa que queria fazer, mas não conseguia deter as lágrimas. Os ombros tremiam-lhe. Não me resta nada. Tudo o que tinha com algum valor desapareceu, uma coisa atrás da outra. Foi-se tudo – resta-me o calor das minhas memórias do Tengo.
Tenho de parar com esta choradeira, disse para si própria. Aqui estou eu, dentro do Tengo, como os cientistas no filme Viagem Fantástica. Sim, é isso! O filme chama-se A Viagem Fantástica. Satisfeita por ter sido capaz de se lembrar do título, Aomame ficou mais calma e parou de chorar. Por mais lágrimas que eu chore, não vou resolver nada. Tenho de voltar a ser a mesma Aomame fria e dura de sempre.
Quem quer que isso aconteça?
Eu quero que isso aconteça.
Olhou à sua volta. Ainda havia duas luas no céu.
«Será um sinal. Observa o céu com todo o cuidado», dissera um dos elementos do Povo Pequeno, o da voz fraquinha.
«Oh, oh», entoara o que apanhara o ritmo.
Foi quando Aomame reparou numa coisa: não era a única pessoa a olhar para as luas. Viu um homem novo, no parque infantil do outro lado da rua. Estava sentado no topo do escorrega e olhava na mesma direção que ela. Soube intuitivamente o que se passava:
Ele vê duas luas, tal como eu. Não estou errada, ele está a olhar para o mesmo que eu. Ele sabe que há duas luas no céu. Mas o Líder disse que nem toda a gente é capaz de ver as duas luas.
Não havia margem para dúvidas: aquele homem jovem e corpulento estava a olhar para o par de luas no céu.
Aposto seja o que for. Eu sei. Está ali sentado a olhar para a lua grande e amarela e para a lua mais pequena, disforme e esverdeada, da cor do musgo. Aparenta estar a analisar profundamente o sentido das duas luas. E se ele também deslizou para 1Q84? Talvez esteja confuso, incapaz de apreender o sentido deste novo mundo. Sim, só pode ser. Deve ter sido por isso que teve de trepar ao alto do escorrega daquele parque infantil, durante a noite, e está a olhar para as luas completamente sozinho, a fazer listas mentais de todas as possibilidades, de todas as hipóteses que conseguir imaginar e a analisá-las com a maior atenção.
Mas não, pode não ser nada disto. Talvez trabalhe para a Vanguarda. Pode estar ali à minha procura.
A ideia pôs o coração de Aomame aos saltos. Num gesto inconsciente, a mão direita foi até à pistola que tinha à cintura e fechou-se com força em torno da coronha.
No entanto, o facto é que se revelava impossível perceber o mais pequeno sinal de ameaça ou de urgência na atitude daquele homem e não havia nada nele que sugerisse violência. Estava apenas ali sentado, sozinho, com a cabeça apoiada no corrimão, de olhos levantados para as luas no céu, absorto nos seus pensamentos. Aomame encontrava-se na varanda de um terceiro andar, e ele lá em baixo. Sentou-se na cadeira de jardim, a olhar para o homem pela abertura existente entre o painel de plástico opaco da varanda e a caixilharia de metal. Mesmo que ele levantasse os olhos e olhasse na direção de Aomame, não devia conseguir vê-la, mas, em todo o caso, o homem parecia completamente absorto, a olhar para o céu sem a mínima noção de que alguém podia estar a observá-lo.
Aomame recuperou a calma e, devagarinho, soltou o ar que sustinha. Afrouxou a tensão dos seus dedos e tirou a mão da pistola. Deixou-se ficar na mesma posição e continuou a observar o homem. Da posição privilegiada em que estava, só conseguia ver-lhe o perfil. O candeeiro de mercúrio do parque iluminava-o de cima. Era alto, tinha ombros largos. Tinha cabelo curto, espetado, e usava uma camisola de mangas compridas, arregaçadas até aos cotovelos. Não se podia considerá-lo bonito, mas as feições eram regulares, agradáveis, e a forma da cabeça não era má. Se fosse um pouco mais velho e tivesse um pouco menos de cabelo, seria bastante atraente.
De repente, Aomame apercebeu-se:
Era Tengo.
Pensou:
Não, não pode ser. Impossível. Abanou a cabeça em gestos curtos e decididos. Impossível. Só posso estar enganada. Não é assim que as coisas funcionam. Deu-se conta de que não conseguia respirar normalmente. O seu corpo não estava a funcionar bem. Pensamento e ação recusavam sincronizar-se. Tenho de olhar outra vez, com muita atenção, pensou, mas, fosse lá porque fosse, não estava a conseguir focar os olhos. Parecia que, de repente, havia uma reação qualquer que fazia com que a visão do olho direito e a do olho esquerdo fossem profundamente diferentes. Num agir inconsciente, franziu a cara, deformando-a.
Que devo fazer?
Abandonou a cadeira de jardim e olhou à sua volta, indefesa. A seguir, recordou que vira um par de binóculos Nikon pequenos dentro do aparador e foi buscá-los. Correu de regresso à varanda, com os binóculos na mão, e olhou para o escorrega. O homem ainda ali estava. Na mesma posição, de perfil, a olhar para o céu. Com os dedos a tremer, focou os binóculos e observou aquele perfil mais de perto, retendo a respiração, concentrando-se. Não havia dúvida: era Tengo. Apesar de terem passado vinte anos, ela estava absolutamente segura: só podia ser Tengo.
O que mais surpreendeu Aomame foi o facto de a aparência de Tengo pouco ter mudado desde o tempo em que tinha dez anos. Era como se o menino com dez anos se tivesse convertido diretamente num homem de trinta. Isto não queria dizer que tivesse um ar infantil. O seu corpo e a cabeça estavam, claro, muito maiores do que então, e tinha agora feições de adulto. A sua expressão facial ganhara profundidade. As mãos, pousadas nos joelhos, eram grandes e fortes, muito diferentes da mão que agarrara naquela sala da escola primária, vinte anos antes. Mesmo assim, a aura que emanava da sua presença física mantinha-se a mesma. O corpo dele, sólido e grande, transmitia-lhe uma sensação de calor e segurança. Sentiu um imenso desejo de encostar a face ao peito dele, o que a encheu de uma profunda alegria. Ele estava sentado num escorrega de um parque infantil, a olhar para o céu, com os olhos fixos nas mesmas coisas que ela estava a observar: as duas luas.
Sim, é possível vermos os dois as mesmas coisas.
Que devo fazer?
Aomame não sabia o que fazer. Pousou os binóculos no regaço e fechou as mãos – com tanta força que as unhas se lhe enterraram nas palmas e deixaram marcas. Os punhos cerrados tremiam ligeiramente.
Que devo fazer?
Escutou a sua própria respiração alterada. Parecia que, sem se dar conta, o seu corpo se tinha partido pelo meio. Uma metade parecia disposta a aceitar o facto de Tengo estar ali, à sua frente. A outra metade recusava-se a aceitá-lo, tentando convencer-se de que aquilo não estava a acontecer. Dentro dela, estas duas forças digladiavam-se, cada uma delas tentando arrastar a outra para o seu lado. Parecia que todos os seus músculos se esfrangalhavam, as articulações se desfaziam e os ossos se esmagavam.
Apetecia-lhe correr para o parque infantil, subir ao escorrega e falar com Tengo, ali mesmo. Mas o que havia de dizer? Não sabia como pôr em movimento os músculos da sua boca. Conseguiria articular algumas palavras?
«Chamo-me Aomame. Há vinte anos, na sala de aulas da escola primária, segurei a tua mão. Lembras-te de mim?»
E se lhe dissesse isto?
Devia haver qualquer coisa um bocadinho melhor.
A outra Aomame deu-lhe uma ordem:
«Fica escondida aqui, na varanda. Não há mais nada que possas fazer. Sabes isso. Ontem à noite, estabeleceste um acordo com o Líder: salvavas o Tengo, permitindo que continuasse a viver, e, em troca, abdicavas da tua própria vida. Foi o pacto que fizeste. O contrato está concluído. Enviaste o Líder para o outro mundo e concordaste em ceder a tua vida. Que vantagem terias em ver o Tengo agora e conversarem acerca do passado? E o que é que farias se ele não se lembrar de ti ou se te conhecer como “a miúda esquisita que costumava rezar aquelas orações sinistras”? Como é que te sentirias quando chegasse a tua morte?»
Ao pensar nesta possibilidade, o corpo dela retesou-se. Começou a tremer descontroladamente, como se tivesse apanhado um frio intenso e estivesse em risco de gelar até aos ossos. Abraçou-se a ela própria e ficou assim durante algum tempo, a tremer, mas nunca despegou os olhos de Tengo, sentado no alto do escorrega e a olhar para o céu. Podia desaparecer no segundo em que desviasse os olhos dele.
Desejou que Tengo a tomasse nos braços, a acariciasse com aquelas suas mãos grandes. Queria que o seu corpo sentisse o calor dele, que ele a cobrisse de carícias da cabeça aos pés e a aquecesse.
Quero que ele afaste este frio que sinto no íntimo do meu corpo. Depois quero que entre dentro de mim e me agite à sua vontade, como uma colher numa caneca de cacau quente, devagar, até ao fundo. Se ele me fizesse isso, não me importava de morrer logo ali. A sério.
Não! Seria mesmo verdade? Se isso acontecesse, eu podia já não querer morrer. Podia querer ficar com ele para sempre. A minha determinação em morrer podia evaporar-se, como uma gota de orvalho ao sol da manhã. Ou, ainda, eu podia sentir vontade de o matar, disparava sobre ele primeiro, com a minha Heckler & Koch, e depois rebentava com os meus miolos. Não sou capaz de prever o que podia acontecer ou do que seria capaz.
Que devo fazer?
Aomame estava incapaz de se decidir. A sua respiração tornou-se mais forte. Foi assaltada por uma selva de pensamentos, uns atrás dos outros, pensamentos emaranhados que desafiavam qualquer tentativa sua para os pôr em ordem. Onde estava o certo? Onde estava o errado? Só tinha a certeza de uma coisa: queria que aqueles braços robustos dele a abraçassem, ali e agora. O que acontecesse depois não interessava. Deus ou o Diabo que decidissem.
* * *
Aomame decidiu-se. Foi à casa de banho, fez desaparecer os vestígios das lágrimas. Olhou para o espelho e, com rapidez, alisou o cabelo. A cara estava um caco. Tinha os olhos vermelhos. A roupa que vestia era horrível – um fato de treino desbotado com um estranho alto nas costas, no sítio onde tinha a 9 mm enfiada no cós das calças. Não era maneira de se apresentar à frente do homem por quem há vinte anos sentia um desejo ardente. Porque não vestia uma coisa mais decente? Mas era demasiado tarde. Não tinha tempo de trocar de roupa. Enfiou um par de ténis e desceu os três andares a correr, saiu pela porta de emergência do prédio, atravessou a rua, entrou no parque deserto e caminhou até junto do escorrega, onde não havia sinal de Tengo. Banhado pela luz artificial do candeeiro de mercúrio, o topo do escorrega estava vazio – mais escuro, mais frio e mais vazio do que a outra face da Lua.
Terá sido uma alucinação?
Não, não foi uma alucinação, disse para si própria, sem fôlego. O Tengo esteve aqui até há uns instantes, não tenho dúvidas. Trepou ao alto do escorrega e ali ficou, olhando à sua volta. Ninguém à vista. Mas não pode ter ido muito longe. Ele estava aqui há uns minutinhos, quatro ou cinco, no máximo. Se correr, ainda sou capaz de o apanhar.
Aomame mudou de opinião. Deteve-se, quase à força.
Não, não posso fazer isso. Nem sequer sei em que direção foi quando se afastou. Não quero andar a percorrer as ruas de Koenji, sem destino, a meio da noite. Não é uma coisa que deva fazer.
Enquanto Aomame hesitara na varanda, a tentar decidir o que fazer, Tengo descera do escorrega e fora-se embora.
Pensando melhor, é o destino que me foi dado. Hesitei e hesitei, perdi por momentos a minha capacidade de decisão e, nesse intervalo, o Tengo foi-se embora. Foi o que me aconteceu.
Talvez seja melhor assim. É provável que tenha sido a melhor coisa que podia ter acontecido. Pelo menos, consegui encontrar o Tengo. Vi-o do outro lado da rua. Tremi com a possibilidade de ter os braços dele à volta de mim. Mesmo que por breves momentos, fui capaz de sentir aquela alegria e a ilusão intensas.
Fechou os olhos e agarrou o corrimão, mordendo o lábio.
Aomame sentou-se no alto do escorrega, na mesma posição em que Tengo estivera. Levantou os olhos para o céu, para sudoeste, onde havia duas luas, a grande e a pequena, flutuando lado a lado. Até poucos momentos antes, estivera a observar Tengo da varanda do seu apartamento, onde a sua profunda hesitação ainda parecia pairar.
1Q84: é o nome que deram a este mundo. Entrei nele, sem querer, há apenas seis meses, e agora estou prestes a abandoná-lo deliberadamente. Depois de eu partir, o Tengo vai ficar aqui. Claro que não faço ideia de que tipo de mundo será para ele. Não tenho maneira de ver o fim das coisas. E depois? Eu vou morrer por ele. Fui incapaz de viver por mim; a possibilidade já me fora retirada. Em vez disso, poderei morrer por ele. É suficiente. Morrerei com um sorriso.
Não estou a mentir.
Aomame esforçou-se por sentir qualquer vestígio da presença de Tengo no alto do escorrega, mas não havia ali a menor sensação de calor. O vento da noite, com o seu augúrio de outono, soprava por entre as folhas da zelkova, varrendo todos os vestígios de Tengo. Mesmo assim, Aomame deixou-se ficar ali sentada, a olhar para as duas luas, banhada pela sua luz estranha e desprovida de emoção. Os sons da cidade misturavam-se num zumbido urbano que a rodeava com o seu baixo contínuo16. Pensou nos aranhiços que tinham tecido as suas teias nas escadas de emergência da autoestrada metropolitana. Estariam ainda vivos e a cuidar das suas teias?
Sorriu.
Estou pronta. Fiz os meus preparativos.
Mas primeiro havia ainda um sítio que tinha de visitar.
16 Baixo contínuo é um tipo de acompanhamento musical inventado no Barroco. Era geralmente tocado por um cravo, órgão ou alaúde e consistia numa linha melódica grave, a que o compositor acrescentava símbolos específicos que representavam as notas do acorde completo correspondente. Era o instrumentista que tinha de os realizar, acrescentando também ornamentação da sua autoria. (N. das T.)
22
TENGO
Enquanto houver duas luas no céu
Após ter descido do escorrega, Tengo abandonou o parque infantil e vagueou sem destino pelas ruas de Koenji, passando de uma rua para a outra quase sem perceber por onde caminhava. Esforçava-se por organizar o emaranhado de ideias que tinha na cabeça, mas, por mais que tentasse, o pensamento coerente estava para lá das suas capacidades do momento, talvez porque pensara em demasiadas coisas ao mesmo tempo, enquanto estivera sentado no escorrega. Pensara no aumento do número de luas, nos laços de sangue, num novo capítulo na sua vida, no estonteante sonho realista que tivera, em Fuka-Eri e A Crisálida de Ar e em Aomame, que devia estar escondida num sítio qualquer ali perto. Com a cabeça num confuso turbilhão, Tengo sentia que a sua capacidade de concentração chegara ao limite. Só lhe apetecia enfiar-se na cama e dormir. Tornaria a pensar nisto tudo no dia seguinte, de manhã. Naquele momento, por muito que pensasse, não avançaria mais nada.
Quando regressou a casa, Fuka-Eri estava sentada à secretária dele, solícita, a afiar lápis com um pequeno canivete. Tengo tinha sempre dez lápis no copo dos lápis, mas agora havia, no mínimo, vinte. Ela afiara-os lindamente. Tengo nunca vira lápis tão bem afiados. Os bicos pareciam agulhas.
– Tiveste uma chamada – disse, verificando a ponta do lápis com um dedo. – De Chikura.
– Não devias ter atendido o telefone.
– Era uma chamada importante.
Muito provavelmente, ela percebera a importância da chamada pelo toque do telefone.
– O que era? – perguntou Tengo.
– Não disseram.
– Mas era do sanatório de Chikura, certo?
– Querem que lhes devolvas a chamada.
– Querem que lhes ligue?
– Hoje. Mesmo que seja a horas tardias.
Tengo suspirou.
– Imagino que não tenhas o número.
– Tenho.
Ela decorara o número. Tengo anotou-o. Depois olhou para o relógio: 8h30.
– A que horas ligaram?
– Há bocadinho.
Tengo foi à cozinha e bebeu um copo de água. Apoiou as mãos no lava-loiça, fechou os olhos e confirmou que o seu cérebro estava a funcionar normalmente. Depois aproximou-se do telefone e marcou o número. Talvez o pai tivesse morrido. Ou, no mínimo, seria um caso de vida ou de morte. Não teriam ligado tão tarde se não se tratasse de um assunto importante.
Uma mulher atendeu o telefone. Tengo deu o seu nome e informou que estava a devolver uma chamada anterior.
– É o filho do senhor Kawana? – perguntou a mulher.
– Sim – respondeu Tengo.
– Conhecemo-nos no outro dia – disse ela.
Veio-lhe à cabeça a imagem da enfermeira de meia-idade, com óculos de aros metálicos. Não se lembrava do nome dela.
Murmurou umas palavras educadas, acrescentando:
– Já me tinha ligado?
– Sim, liguei. Vou passar-lhe o médico responsável e fala com ele diretamente.
Tengo aguardou a ligação com o auscultador encostado à orelha. Esperou – e esperou – que o médico atendesse. A monótona melodia de «Home on the Range» parecia não ter fim. Tengo fechou os olhos e visualizou o sanatório na costa da península de Boso. O pinhal frondoso e cerrado, onde as copas se sobrepunham umas às outras, a brisa marítima soprando por entre elas, as ondas do oceano Pacífico a rebentar interminavelmente na praia. O átrio de entrada silencioso, sem visitantes. O som das rodas das camas que alguém empurrava pelos corredores. As cortinas queimadas pelo sol. Os uniformes brancos das enfermeiras, impecavelmente passados. O café aguado e insípido do refeitório.
O médico acabou por pegar no telefone.
– Lamento tê-lo feito esperar. Tive uma chamada de emergência de um dos outros quartos da enfermaria, há uns minutos.
– Não faz mal – disse Tengo. Tentou recordar-se das feições do médico do pai, até se aperceber de que nunca o vira. – Então, passa-se alguma coisa com o meu pai?
O médico fez uma pausa e disse:
– Bom, não é que tenha acontecido qualquer coisa especial hoje, mas, nos últimos tempos, o estado dele tem-se deteriorado. Odeio ter de lhe dizer isto, mas ele está em coma.
– Quer dizer que está absolutamente inconsciente?
– Exato.
Tengo esforçou-se para pôr o seu cérebro a funcionar.
– Ele teve alguma doença que provocasse o coma?
– Não foi bem isso – respondeu o médico, com visível dificuldade.
Tengo aguardou.
– É difícil explicar isto ao telefone, mas não há nada de particularmente mal com ele. Não tem cancro ou pneumonia ou qualquer outra doença que eu consiga identificar. Em termos clínicos, não vejo sintomas que possa atribuir a uma doença específica. Não sabemos qual possa ser a causa, mas, no caso do seu pai, parece que a força vital que o sustenta está a desaparecer com grande rapidez. E como não conhecemos a causa, não sabemos que tratamento aplicar. Vamos continuar a alimentá-lo por via intravenosa, mas estamos a tratar apenas os sintomas, e mais nada.
– Posso ser franco e fazer-lhe uma pergunta? – perguntou Tengo.
– Sim, claro – respondeu o médico.
– Está a tentar dizer-me que o meu pai não tem muito tempo de vida?
– Se continuar neste estado, as esperanças são poucas.
– Quer dizer que a velhice está a fazê-lo desaparecer?
O médico soltou um som vago. Prosseguiu:
– O seu pai é sexagenário, ainda está longe de «desaparecer de velhice». Em termos globais, é uma pessoa saudável. Não encontrámos qualquer problema, a não ser a limitação das suas capacidades cognitivas. Consegue resultados bastantes bons nos testes de força que fazemos regularmente. Não temos conhecimento de qualquer problema.
Chegado a este ponto, o médico interrompeu-se. Depois, continuou:
– Mas... agora que falo nisto... olhando para ele ao longo destes últimos dias, poder-se-á falar de um «desaparecimento por velhice». Em termos gerais, as suas funções físicas diminuíram, e ele parece estar a perder a vontade de viver. Por norma, estes sintomas só surgem já bem depois dos oitenta anos. Quando uma pessoa envelhece, verificamos muitas vezes que se cansa de viver e abandona o esforço para manter a vida. Mas não faço a mínima ideia da razão por que esteja a acontecer ao senhor Kawana, que ainda anda pelos sessenta.
Tengo mordeu o lábio e pensou um pouco.
– Quando é que ele entrou em coma? – perguntou.
– Há três dias – respondeu o médico.
– Está a dizer-me que há três dias que ele não acorda?
– Nem uma só vez.
– E os sinais vitais estão a diminuir gradualmente?
O médico respondeu:
– Não de uma forma drástica, mas, como já lhe disse, o nível da força vital que o sustenta está gradual mas visivelmente a decrescer, como um comboio que vai abrandando à medida que se aproxima da estação.
– Quanto tempo pensa que ainda lhe resta?
– Não posso dar uma certeza. Se continuar como até agora, uma semana, no pior dos casos – respondeu o médico.
Tengo mudou o auscultador de mão e mordeu outra vez o lábio.
– Vou aí amanhã – disse. – Mesmo que não me tivesse telefonado, já estava a pensar ir aí dentro de pouco tempo. Mas ainda bem que ligou, estou-lhe muito agradecido.
O médico pareceu ter ficado aliviado com estas palavras.
– Por favor, venha. Quanto mais cedo o vir, melhor. É a minha opinião. Pode não ser capaz de falar consigo, mas estou certo de que o seu pai vai gostar de o ter aqui.
– Mas está absolutamente inconsciente, é isso?
– Sim, está.
– Tem dores?
– Por agora, é provável que não. É a única vantagem nesta situação. Está a dormir que nem uma pedra.
– Muito obrigado – disse Tengo.
– Sabe, senhor Kawana, o seu pai é um doente fácil de tratar – declarou o médico. – Nunca deu problemas a ninguém.
– Sempre foi assim – retorquiu Tengo. Depois, despediu-se do médico e desligou o telefone.
Tengo aqueceu o café e bebeu-o, sentado à mesa da cozinha, de frente para Fuka-Eri.
– Amanhã vais sair – perguntou Fuka-Eri.
Tengo assentiu com a cabeça.
– Amanhã de manhã tenho de apanhar o comboio e ir outra vez à cidade dos gatos.
– Vais à cidade dos gatos – perguntou Fuka-Eri, inexpressiva.
– Ficas aqui, à minha espera – perguntou Tengo. De tanto conviver com Fuka-Eri, habituara-se a fazer perguntas sem pontos de interrogação.
– Fico aqui à espera.
– Vou à cidade dos gatos sozinho – explicou Tengo. Bebericou o café. De repente, ocorreu-lhe fazer a pergunta: – Queres beber qualquer coisa?
– Vinho branco, se tiveres.
Tengo abriu o frigorífico para ver se havia vinho branco fresco. Na parte de baixo encontrou uma garrafa de Chardonnay, que comprara em saldos, pouco tempo antes. No rótulo havia uma imagem de um javali. Tirou a rolha, deitou algum vinho num copo e pousou-o à frente de Fuka-Eri. Depois de alguma hesitação, serviu também um copo para si próprio. Estava a precisar muito mais de um copo de vinho do que de um café. O vinho estava demasiado fresco e era um tanto adocicado, mas o álcool teve um efeito calmante sobre os nervos de Tengo.
– Amanhã vais à cidade dos gatos – perguntou Fuka-Eri, de novo.
– Apanho o comboio logo de manhãzinha – respondeu Tengo.
Enquanto emborcava o copo de vinho branco, Tengo recordou que ejaculara dentro do corpo daquela bonita rapariga de dezassete anos, sentada agora à sua frente, do outro lado da mesa. Apesar de ter sido só na noite anterior, parecia-lhe que acontecera muito tempo antes, num passado distante, era quase um facto histórico. Mesmo assim, a sensação que experimentara mantinha-se vívida dentro de si.
– O número de luas aumentou – disse Tengo, como se partilhasse um segredo, enquanto fazia girar o copo na mão, lentamente. – Quando olhei para o céu há bocadinho, havia duas luas: uma grande, amarela, e uma pequena, verde. Podiam já lá estar há bastante tempo, mas nunca tinha reparado nelas. Só há bocadinho percebi que existiam.
Fuka-Eri não teve qualquer comentário acerca do aumento do número de luas, nem Tengo foi capaz de descortinar o mais pequeno sinal de surpresa. A sua expressão não sofreu a mínima alteração. Não pareceu que, para ela, fosse novidade.
– Não preciso de te dizer que um céu com duas luas é o que acontece em A Crisálida de Ar – continuou Tengo. – E as luas correspondem com todo o rigor à minha descrição: são precisamente do mesmo tamanho e da mesma cor.
Fuka-Eri não tinha nada a dizer. Nunca respondia a perguntas que não careciam de resposta.
– Porque pensas que aconteceu? Como pode ter acontecido uma coisa destas?
Continuou a não haver resposta.
Tengo decidiu fazer-lhe uma pergunta direta.
– Pode querer dizer que entrámos no mundo que descreveste em A Crisálida de Ar?
Fuka-Eri passou longos minutos a examinar a forma das unhas das mãos com toda a atenção. Depois, disse:
– Porque escrevemos o livro juntos.
Tengo pousou o copo de vinho na mesa. A seguir, perguntou:
– Escrevemos A Crisálida de Ar e publicámos o livro. Foi um esforço conjunto. Depois, tornou-se um êxito de vendas e a informação acerca do Povo Pequeno, das mãs e das ninas difundiu-se. Em resultado disso, tu e eu entrámos neste mundo alterado. É o que isto quer dizer?
– Tu desempenhas o papel de Recetor.
– Eu desempenho o papel de Recetor – repetiu Tengo, fazendo eco das palavras dela. – É verdade, escrevi sobre Recetores em A Crisálida de Ar, mas não percebi nada do assunto. Em termos específicos, o que faz um Recetor?
Fuka-Eri abanou ligeiramente a cabeça, indicando que não podia explicar.
«Se precisas que te explique, nesse caso não irás entender nunca, por mais explicações que te dê», dissera-lhe o pai.
– É melhor ficarmos juntos, até a encontrares – sugeriu Fuka-Eri.
Tengo olhou para Fuka-Eri durante algum tempo, a tentar ler a sua expressão, mas, como de costume, na sua cara não havia qualquer expressão que se pudesse ler. Num gesto inconsciente, virou-se e olhou para a janela, mas já não havia luas. Só se viam os postes de eletricidade e um emaranhado de feios cabos elétricos.
– É preciso algum talento especial para se ser um Recetor?
Fuka-Eri moveu subtilmente o queixo para cima e para baixo, querendo dizer que sim.
– Mas, originalmente, A Crisálida de Ar era a tua história, uma história que tu criaste a partir do zero. Veio de dentro de ti. Eu limitei-me a aperfeiçoar-lhe o estilo. Não passei de um técnico.
– Porque escrevemos o livro juntos – repetiu Fuka-Eri.
Sem se dar conta disso, Tengo levou os dedos às têmporas.
– Estás a dizer que já estava a agir como um Recetor, mesmo sem ter consciência disso?
– Já antes – afirmou Fuka-Eri. Com um dedo da mão direita, indicou-se primeiro a si própria, depois Tengo. – Eu sou uma Apreensora e tu és um Recetor.
– Por outras palavras, tu apreendes as coisas e eu recebo-as?
Fuka-Eri fez um pequeno gesto de anuência.
Tengo franziu o sobrolho.
– Então, tu sabias que eu era um Recetor ou tinha o talento especial de um Recetor, e foi por isso que me deixaste reescrever A Crisálida de Ar. Por intermédio do meu trabalho, transformaste o que tinhas apreendido num livro. É isto?
Não houve resposta.
Tengo descontraiu o sobrolho. Depois, olhando a direito para os olhos de Fuka-Eri, disse:
– Ainda não sou capaz de precisar o momento exato, mas imagino que, mais ou menos por essa altura, eu já tinha entrado neste mundo com duas luas. Até agora, tudo isto me passou ao lado. Como não costumo olhar para o céu durante a noite, nunca tinha reparado que o número de luas tinha aumentado. É assim, certo?
Fuka-Eri manteve-se calada. O seu silêncio flutuava e pairava no céu como um pó fino. Era o pó espalhado pouco tempo antes por uma nuvem de borboletas oriundas de um espaço particular. Tengo ficou a olhar para as formas que o pó traçava no ar. Tinha a sensação de se ter transformado num jornal vespertino, já com dois dias. Iam surgindo notícias novas, atualizadas, e ele era a única pessoa que não era informada.
– Causa e efeito parecem estar baralhados – disse Tengo, recuperando a sua presença de espírito. – Não sei o que veio primeiro e o que veio depois. Seja como for, agora encontramo-nos neste mundo novo.
Fuka-Eri levantou a cara e perscrutou o olhar de Tengo. Podia ter sido imaginação sua, mas ele pensou ter entrevisto uma centelha de emoção naquele olhar.
– Seja como for, o mundo original já não existe – afirmou Tengo.
Fuka-Eri teve um leve encolher de ombros.
– Vivemos neste.
– No mundo com duas luas?
A isto, Fuka-Eri não deu resposta. A bonita rapariga de dezassete anos apertou os lábios formando uma linha reta perfeita e encarou Tengo, olhos nos olhos – da mesmíssima maneira que Aomame tinha olhado para o rapaz de dez anos naquela sala de aulas vazia, com uma concentração mental forte e profunda. Sob o intenso olhar de Fuka-Eri, Tengo sentiu-se como se fosse converter-se em pedra e ser logo transformado na nova lua – a pequena lua disforme. Instantes mais tarde, Fuka-Eri abrandou, por fim, o olhar. Ergueu a mão direita e fez pressão com as pontas dos dedos na testa. Como se estivesse a tentar ler os seus próprios pensamentos secretos.
– Estavas à procura de alguém – perguntou a rapariga.
– Estava.
– Mas não a encontraste.
– Não, não encontrei – respondeu Tengo.
Não tinha encontrado Aomame, mas, em vez disso, descobrira as duas luas. E tal acontecera porque tinha seguido as indicações de Fuka-Eri e mergulhara bem fundo na sua memória, razão por que tinha tido a ideia de olhar para a Lua.
A rapariga aligeirou um pouco a tensão do olhar e pegou no copo de vinho que tinha à sua frente. Manteve o vinho na boca durante algum tempo e, depois, engoliu-o com todo o cuidado, como um inseto que suga o orvalho.
Tengo retomou a conversa:
– Dizes que ela está escondida em algum sítio. A ser esse o caso, não será fácil encontrá-la.
– Não precisas de te preocupar – afirmou a rapariga.
– Não preciso de me preocupar – Tengo repetiu as palavras dela.
Fuka-Eri abanou a cabeça, num grande «sim».
– Queres dizer que vou encontrá-la?
– Ela vai encontrar-te. – A voz de Fuka-Eri evocou o som de uma brisa ligeira varrendo um campo de erva tenra.
– Aqui, em Koenji?
Fuka-Eri inclinou a cabeça para um lado, querendo dizer que não sabia.
– Algures – disse.
– Algures neste mundo – precisou Tengo.
Fuka-Eri assentiu brevemente.
– Enquanto houver duas luas no céu.
Tengo ponderou por instantes o que ela afirmara e disse, com uma certa resignação:
– Penso que não me resta alternativa senão acreditar em ti.
– Eu apreendo e tu recebes – disse Fuka-Eri, pensativa.
– Tu apreendes e eu recebo – Tengo reformulou a frase.
Fuka-Eri assentiu.
Tengo sentiu desejo de perguntar a Fuka-Eri:
E foi por isto que unimos os nossos corpos? Durante aquela violenta tempestade de ontem à noite. O que terá significado?
Mas não fez as perguntas, que poderiam não ser apropriadas e às quais sabia que ela nunca daria resposta.
«Se precisas que te explique, nesse caso não irás entender nunca, por mais explicações que te dê», dissera-lhe o pai, em tempos.
– Tu apreendes e eu recebo – repetiu Tengo, mais uma vez. – O mesmo que aconteceu quando reescrevi A Crisálida de Ar.
Fuka-Eri abanou a cabeça. Puxou o cabelo para trás, revelando uma bonita orelhinha, como se fizesse subir a antena de um transmissor.
– Não é a mesma coisa – afirmou a rapariga. – Tu mudaste.
– Eu mudei – repetiu Tengo.
Fuka-Eri assentiu com a cabeça.
– Como é que eu mudei?
Fuka-Eri fitou o interior do copo que tinha na mão durante bastante tempo, como se estivesse a ver qualquer coisa muito importante lá dentro.
– Vais descobrir quando chegares à cidade dos gatos – afirmou a bonita rapariga. Depois, ainda com a orelha à mostra, bebeu um pouco de vinho branco.
23
AOMAME
Meta um tigre no seu depósito
Aomame acordou pouco depois das seis da manhã. Estava um dia lindo, sem nuvens. Fez uma cafeteira de café, umas torradas e cozeu um ovo. Enquanto tomava o pequeno-almoço, viu televisão e confirmou que ainda não havia qualquer notícia acerca da morte do Líder da Vanguarda. Era óbvio que tinham feito desaparecer o corpo às escondidas sem participar à polícia ou informar mais alguém. Não era importante. Um morto é um morto, independentemente da forma como nos vejamos livres dele.
Às oito da manhã tomou um duche, escovou o cabelo com todo o cuidado à frente do espelho do lavabo e aplicou uma camada quase invisível de batom. Calçou meias. Vestiu uma blusa de seda branca, que tinha pendurada no armário, e completou o conjunto com o elegante fato Junko Shimada. Enquanto retorcia o corpo várias vezes para permitir que o sutiã almofadado e com armação se adaptasse melhor ao peito, deu consigo a desejar, mais uma vez, que o seu peito fosse um pouco maior. Era um pensamento que já devia ter tido aí umas setenta e duas mil vezes à frente de espelhos.
E depois? Posso pensar nisto as vezes que quiser. Pode bem ser a vez setenta e duas mil e uma, mas qual é o mal? Enquanto estiver viva, posso pensar o que me der na gana, quando quiser, sempre que quiser, e ninguém tem nada que meter o bedelho.
Calçou os sapatos de salto alto Charles Jourdan.
Pôs-se à frente do espelho de corpo inteiro na entrada e olhou-se com atenção para verificar se estava impecável. Ergueu ligeiramente um dos ombros e considerou a possibilidade de poder estar parecida com Faye Dunaway em O Grande Mestre do Crime17. Naquele filme, Faye Dunaway fazia o papel de uma impassível investigadora de uma companhia de seguros – uma mulher fria como uma faca: sensual, com uma aparência excelente, sempre de fato completo. Uma executiva. Claro que Aomame não era, nem de perto nem de longe, parecida com Faye Dunaway, mas a aura que a envolvia era muito parecida – ou, pelo menos, não completamente diferente. Aquela aura especial que só uma profissional de primeira água pode emanar. Além do mais, a sua carteira a tiracolo guardava uma pistola automática, fria e dura.
Pôs os pequenos óculos de sol Ray-Ban e abandonou o apartamento. Atravessou a rua a caminho do parque infantil, aproximou-se do escorrega onde Tengo estivera sentado e, na sua mente, reproduziu a cena da noite anterior. Tinham passado doze horas. O Tengo real estivera ali mesmo – do outro lado da rua. Ficou aqui sentado durante muito tempo, sozinho, a olhar para as luas – as mesmas duas luas que ela própria estivera a observar.
Aos olhos de Aomame parecia quase um milagre – uma espécie de revelação – que tivesse chegado tão próximo de Tengo. Alguma coisa a conduzira à presença dele. E esse acontecimento parecia ter causado uma grande metamorfose na estrutura física de Aomame. Desde que acordara nessa manhã, continuava a sentir uma espécie de arrepio que lhe percorria o corpo todo.
Ele apareceu diante de mim e partiu. Não conseguimos falar um com o outro ou tocar-nos. Mas, nesse curto intervalo, ele transformou muitas coisas no meu íntimo. Agitou literalmente a minha mente e o meu corpo, da mesma maneira que uma colher agita o cacau dentro de uma caneca, até ao mais fundo dos meus órgãos internos e do meu útero.
Ficou ali, de pé, durante uns bons cinco minutos, com uma mão pousada num dos degraus do escorrega, o sobrolho ligeiramente franzido, batendo no chão com o salto pontiagudo do sapato. Tentava avaliar em que medida fora agitada física e mentalmente, e saboreava a sensação. Por fim, tomou uma decisão: saiu do parque infantil, caminhou até à rua mais próxima e mandou parar um táxi.
– Quero que primeiro passe por Yoga, depois siga pela Auto-estrada Metropolitana 3 até mesmo antes da saída para Ikejiri – disse ao taxista, que, como seria de esperar, se mostrou bastante perplexo.
– E diz-me qual é o destino final, menina? – perguntou, num tom descontraído.
– A saída para Ikejiri. Por agora.
– Bem, então era muito mais rápido ir diretamente daqui para Ikejiri. Dar a volta por Yoga é fazer um grande desvio. A esta hora da manhã, as faixas no sentido de entrada da número 3 estão completamente congestionadas. Quase não se avança. É tão certo como ser hoje quarta-feira.
– Não quero saber que a autoestrada esteja congestionada. Não quero saber se hoje é quinta ou sexta ou o aniversário do imperador. Quero que me leve até à autoestrada metropolitana e que vá por Yoga. Tenho todo o tempo do mundo.
O taxista era um homem de uns trinta, trinta e cinco anos. Esguio, tinha uma cara comprida e pálida e o ar tímido de um herbívoro cauteloso. O queixo dele era espetado como o das estátuas da ilha da Páscoa. Olhava para Aomame pelo espelho retrovisor, tentando decidir a partir da expressão na cara dela se esta passageira era completamente passada dos carretos ou um simples ser humano numa situação complicada. Não se revelava fácil decidir, todavia, sobretudo a partir da pequena imagem no espelho.
Aomame tirou o porta-moedas de dentro da carteira a tiracolo e exibiu uma nota de dez mil ienes na cara do homem. O dinheiro parecia impresso de fresco.
– Não quero troco nem recibo – disse, concisa. – Por isso, meta as suas opiniões no saco e faça o que lhe digo. Primeiro vá a Yoga, entre na autoestrada metropolitana e vá até Ikejiri. Isto deve chegar para pagar a corrida, mesmo que fiquemos presos no trânsito.
– É mais do que suficiente, claro – respondeu o taxista, se bem que num tom de dúvida. – Tem algum assunto especial a tratar na metropolitana?
Aomame agitou a nota à frente dele como se fosse uma bandeirola a ondular ao vento.
– Se não me quer levar, eu apanho outro táxi. Por isso, decida-se. Já.
O taxista olhou para a nota de dez mil ienes durante uns bons dez segundos, de sobrancelhas franzidas. Então, decidiu-se e agarrou na nota. Depois de a levantar contra a luz para verificar que não era falsa, enfiou-a dentro da bolsa do dinheiro.
– Muito bem, então, vamos lá: Autoestrada Metropolitana 3. Mas vai estar cheia de trânsito, garanto-lhe, menina. E não há saídas entre Yoga e Ikejiri. Também não há casas de banho. Por isso, se pensa que há qualquer hipótese de precisar de ir a uma, o melhor é tratar disso já.
– Não se preocupe, ponha-me lá.
O taxista percorreu as emaranhadas ruas da zona residencial até à Circular 8 e juntou-se ao trânsito que se dirigia para Yoga. Nem ele nem Aomame pronunciaram uma só palavra. Ele escutava as notícias, ela ia imersa nos seus pensamentos. Quando chegaram perto da entrada para a autoestrada metropolitana, o taxista baixou o volume do rádio e fez uma pergunta a Aomame.
– Não tenho nada que meter o nariz, menina, mas dedica-se a algum tipo de atividade especial?
– Sou investigadora de seguros – respondeu Aomame, sem hesitar.
– Uma investigadora de seguros. – O taxista repetiu as palavras dela com cuidado, como se saboreasse uma iguaria nova.
– Procuro provas em casos de participação fraudulenta – disse Aomame.
– Uau! – exclamou o taxista, obviamente impressionado. – E a Autoestrada Metropolitana 3 está ligada a isso das participações fraudulentas?
– Na realidade, sim.
– Como naquele filme, não é?
– Que filme?
– Um já muito antigo, com o Steve McQueen. Não me lembro do nome.
– O Grande Mestre do Crime – esclareceu Aomame.
– Sim, é isso. A Faye Dunaway faz de investigadora de seguros. É especialista em seguros contra roubo. O McQueen é um tipo rico que se mete a fazer crimes só para se divertir. É um filme bestial. Vi-o quando andava no secundário. Gostei à brava da banda sonora. Muito fixe!
– Michel Legrand.
O taxista cantarolou os primeiros compassos do tema principal. Então, olhou pelo retrovisor e tornou a analisar o rosto de Aomame com atenção.
– Agora que penso nisso, a menina tem qualquer coisa que faz lembrar a Faye Dunaway.
– Muito obrigada – agradeceu Aomame, esforçando-se por esconder o sorriso que se desenhara nos seus lábios.
Tal como o taxista havia previsto, havia um belo engarrafamento na Autoestrada Metropolitana 3. Era alucinante, digno de figurar num mostruário de engarrafamentos. O para-arranca começava a menos de cem metros da entrada, um exemplo quase perfeito de caos, precisamente o que Aomame queria. O mesmo fato, a mesma autoestrada, o mesmo engarrafamento. Era uma pena que a rádio não estivesse a transmitir a Sinfonietta de Janácek e que a qualidade de som não fosse tão boa como a daquele Toyota Crown Royal Saloon, mas seria pedir demais.
O táxi avançava a passo de tartaruga, encaixado entre dois camiões. Parava num determinado ponto, onde ficava durante bastante tempo, e depois, inexplicavelmente, avançava um bom bocado. Durante as paragens, o jovem condutor do camião-frigorífico parado na faixa ao lado enfronhava-se na leitura de uma revista de manga. O casal de meia-idade num Toyota Corona Mark II bege estava sentado a olhar fixamente em frente, de sobrolho franzido, mas os dois não trocavam uma única palavra. Era provável que não tivessem nada a dizer um ao outro, ou talvez já tivessem dito tudo e remetiam-se agora ao silêncio. Aomame recostou-se no assento. O taxista escutava a emissão da rádio.
A duras penas, o táxi acabou por chegar ao sinal de saída para Komazawa e prosseguiu à velocidade de um caracol para Sangenjaya. De vez em quando, Aomame erguia o olhar e olhava para a paisagem.
Nunca mais tornarei a ver esta zona da cidade. Vou para um sítio muito distante.
No entanto, não iria agora pôr-se com nostalgias, não tinha especial carinho pelas ruas de Tóquio. Sem falhar um, os edifícios dos dois lados da autoestrada eram feios, estavam sujos dos escapes dos automóveis e exibiam painéis publicitários espalhafatosos. Aquela paisagem deprimia-a.
Porque será que as pessoas têm de construir coisas tão deprimentes? Não é que pense que todos os cantos e recantos do mundo tenham de ser bonitos, mas será forçoso que sejam assim tão feios?
Por fim, passado algum tempo, no campo de visão de Aomame surgiu uma paisagem familiar – o ponto onde saíra do táxi. O taxista de meia-idade dissera-lhe, como se insinuasse um significado mais profundo, que existia ali uma escada de emergência. Mesmo à sua frente estava o enorme painel que publicitava a petrolífera Esso. Um tigre sorridente empunhava uma mangueira de gasolina. Era o mesmo painel que vira antes.
«Meta um tigre no seu depósito.»
De repente, Aomame deu-se conta de ter a garganta seca. Tossiu uma vez, enfiou a mão na mala a tiracolo e tirou de lá uma caixinha de rebuçados de limão para a tosse. Pôs um deles na boca e meteu a caixa de novo na mala. Enquanto tinha a mão lá dentro, deu um forte apertão à coronha da Heckler & Koch, confortando-se com o seu peso e a sua dureza.
Bom, pensou.
O táxi avançou um pouco mais.
– Se não se importa, passe para a faixa da esquerda, está bem? – pediu ao taxista.
– A da direita está a andar melhor – contrapôs o homem, em voz baixa. – E a saída para Ikejiri é à direita. Se passar para a faixa da esquerda aqui, vou ter de mudar de faixa mais à frente, outra vez.
Aomame não estava disposta a escutar as objeções do taxista.
– Esqueça isso, passe para a da esquerda.
– Às suas ordens, menina – resignou-se o homem.
Inclinou-se, pôs a mão fora da janela do pendura e fez sinais ao camião-frigorífico que vinha mesmo atrás dele, na faixa da esquerda. Depois de verificar que o motorista o tinha visto, subiu o vidro e enfiou o táxi à frente do camião. Avançaram mais cerca de cinquenta metros e de novo pararam.
– Agora, abra-me a porta. Saio aqui – disse Aomame.
– Sai? – exclamou o taxista, atónito. Não fez qualquer gesto para acionar o manípulo da porta. – Aqui?!
– Sim, aqui. Tenho uma coisa para tratar aqui.
– Mas estamos no meio da autoestrada metropolitana. É demasiado perigoso sair aqui, e mesmo que o fizesse, não pode ir a lado nenhum.
– Não se preocupe, há umas escadas de emergência neste ponto.
– Escadas de emergência. – Abanou a cabeça. – Não sei se há escadas de emergência ou não, mas, se alguém descobre que deixei um passageiro sair num sítio destes, caem-me em cima e fico metido num sarilho dos grandes com a companhia de táxis e com a concessionária da autoestrada. Por favor, menina, não me faça isso...
– Lamento, mas eu tenho de sair aqui – declarou Aomame. Tirou do porta-moedas outra nota de dez mil ienes, fê-la estalar e entregou-a ao taxista. – Sei que lhe estou a pedir para fazer uma coisa que não devia. Isto compensará todos os problemas que tiver. Por isso, por favor, pare de discutir comigo e deixe-me sair.
O homem não aceitou o dinheiro. Resignado, estendeu a mão e acionou a alavanca. A porta do passageiro do lado esquerdo abriu-se.
– Não, muito obrigado. Já me pagou mais do que o suficiente. Mas, por favor, tenha cuidado. A autoestrada não tem bermas e, por muito congestionado que o trânsito esteja, é sempre demasiado perigoso caminhar por aqui.
– Muito obrigada – respondeu Aomame. Depois de sair, bateu com os nós dos dedos na janela da frente do lado do passageiro e fez-lhe sinal para baixar o vidro. Inclinou-se para dentro do táxi e enfiou a nota na mão do taxista.
– Aceite, não se preocupe. Tenho dinheiro de sobra.
O olhar do taxista saltou entre a cara de Aomame e a nota.
Aomame insistiu:
– Se isto o meter em sarilhos com a polícia ou com a companhia, diga-lhes que o ameacei com uma pistola e que não houve remédio, teve mesmo de me deixar sair. Eles calam-se.
O taxista estava assombrado, não parecia entender o que lhe dizia. Dinheiro de sobra? Ameaçou-o com uma pistola? Ainda assim, recebeu o dinheiro, provavelmente com medo de que, caso recusasse, ela pudesse sair-se com qualquer coisa ainda mais irracional.
Como tinha feito antes, Aomame caminhou entre a fila de carros e o muro da autoestrada, na direção de Shibuya. Tinha de percorrer cerca de cinquenta metros. As pessoas que estavam nos carros observavam-na, incrédulas, mas Aomame não se deixou importunar. Caminhava determinada, em grandes passos e de costas bem direitas, como uma modelo numa passerelle parisiense. O vento agitava-lhe o cabelo. Os camiões que passavam a toda a velocidade no sentido oposto faziam tremer o pavimento. À medida que se ia aproximando, o painel da Esso foi aumentando de tamanho, até que, por fim, chegou à familiar saída de emergência.
Tudo tinha a mesma aparência que dantes – a barreira de metal, a caixa amarela mesmo ao lado, contendo um telefone de emergência.
Foi aqui que se iniciou o ano de 1Q84.
No instante em que comecei a descer esta escada até à Estrada 246, um mundo tomou o lugar de outro. Por isso, vou tentar descê-la de novo. Estávamos em abril quando a desci pela primeira vez, e eu tinha o meu casaco bege vestido. Agora, estamos no princípio de setembro e está demasiado calor para vestir um casaco. Fora isso, tenho vestido rigorosamente o mesmo fato que tinha nesse dia, quando matei aquele homem horrível do petróleo – o meu fato Junko Shimada e os sapatos de salto alto Charles Jourdan. Blusa branca. Meias e sutiã branco, com armação. Tive de puxar a minissaia para passar por cima da barreira e desci a escada de emergência a partir daqui.
Vou tentar fazer a mesma coisa outra vez... por simples curiosidade. Só quero saber o que acontece se fizer a mesma coisa, no mesmo sítio, vestindo a mesma roupa. Não estou com esperança de que isto me salve. Não tenho propriamente medo de morrer. Chegada a hora, não vacilarei. Posso morrer a sorrir.
Mas Aomame não queria morrer na ignorância, sem perceber como é que as coisas funcionavam.
Quero experimentar os meus limites e, se as coisas não correrem bem, dar-me-ei por satisfeita. Mas farei tudo o que puder até ao final cruel. É assim que eu vivo a minha vida.
Aomame dobrou-se por cima da barreira de metal e procurou pela escada de emergência. Não estava lá.
Olhou de novo, insistiu, sempre com o mesmo resultado. A escada de emergência desaparecera.
Aomame mordeu o lábio e contorceu a cara com toda a força.
Não estou no sítio errado. Foi nesta saída, de certeza absoluta. Tudo aqui à volta tem o mesmíssimo aspeto. O cartaz da Esso está ali. A saída de emergência existia naquele sítio no ano de 1984.
Aomame encontrara-a com facilidade, precisamente no mesmo sítio em que o estranho taxista lhe dissera que estava. Conseguira passar por cima da barreira e descer. Mas, no mundo de 1Q84, a escada de emergência já não existia.
A saída estava bloqueada.
Aomame relaxou a cara e, com o maior cuidado, observou o sítio onde estava. Levantou, de novo, o olhar para o painel da Esso. De mangueira em punho, com a cauda enrolada levantada, o tigre devolveu-lhe o olhar, com um sorriso contente – um sorriso tão feliz que parecia sugerir ser impossível uma satisfação maior.
Sim, claro.
Soubera-o desde sempre. O Líder confirmara-o antes de ela o matar, na suíte do Hotel Okura: não havia maneira de sair de 1Q84 e regressar a 1984. A porta de acesso a este mundo abria numa só direção.
Mesmo assim, Aomame precisava de confirmar o facto com os seus próprios olhos. Fim. A demonstração estava feita. Q.e.d.18
Aomame encostou-se à barreira de metal e olhou para o céu. Estava um tempo perfeito. Algumas nuvens compridas e estreitas desenhavam linhas no céu de um azul intenso. A visibilidade permitia estender o olhar até muito longe. Não parecia o céu de uma cidade. Mas, à vista, não havia luas. Onde poderiam ter-se metido as luas?
Oh, bem, uma lua é uma lua e eu sou eu. Cada uma de nós tem uma forma diferente de viver. Todas temos os nossos próprios planos.
Fora ela Faye Dunaway e, provavelmente, nesse instante teria puxado de um cigarro fino e, num gesto descontraído, tê-lo-ia acendido com um isqueiro, semicerrando os olhos num gesto elegante. Mas Aomame não fumava e não tinha consigo nem cigarros nem isqueiro. Dentro da mala pouco mais tinha do que uma caixa de rebuçados de limão para a tosse. Isso, uma 9 mm automática e um picador de gelo de fabrico especial que utilizara para matar vários homens, espetando-o nas respetivas nucas. Qualquer um dos dois objetos era bastante mais letal do que um cigarro.
Olhou para a fila de carros presos no engarrafamento. Dentro dos seus carros, as pessoas olhavam para ela com insistência. Claro. Não era todos os dias que se via um cidadão comum a caminhar ao longo da autoestrada metropolitana, especialmente tratando-se de uma mulher jovem, de minissaia e saltos altos, com óculos de sol verdes e um sorriso nos lábios. Qualquer pessoa que não olhasse teria de certeza um grave problema.
A maior parte dos veículos presos na autoestrada eram grandes camiões. Camiões que transportavam toda a sorte de mercadorias, de variadíssimas proveniências, para dentro de Tóquio. Muito provavelmente, os motoristas tinham estado ao volante a noite toda. Agora, viam-se presos naquele maldito engarrafamento matinal. Estavam aborrecidos, fartos e cansados. A única coisa que queriam era tomar banho, barbear-se, deitar-se e dormir. Fixavam Aomame com um olhar apático, como se estivessem a observar um animal desconhecido. Estavam demasiado cansados para reagir categoricamente à rapariga.
Enfiado no meio daqueles camiões todos, fazendo lembrar um gracioso antílope no meio de uma manada de rinocerontes, estava um Mercedes-Benz coupé prateado. O elegante chassis, com ar de ter acabado de sair da fábrica, refletia o sol da manhã. A cor das jantes combinava com o resto do carro. Era um modelo importado e tinha o volante do lado esquerdo. A janela do condutor estava descida e, lá dentro, uma mulher de meia-idade, bem vestida, olhava a direito para Aomame. Óculos de sol Givenchy. Mãos à vista, pousadas no volante. Anéis faiscantes.
A mulher tinha um ar amável e parecia estar preocupada com Aomame. Obviamente, interrogava-se sobre o que faria aquela rapariga vestida com elegância no meio da faixa de rodagem da autoestrada metropolitana e que razão teria para estar onde estava. Parecia prestes a chamar Aomame. Se lhe pedisse, talvez a levasse onde quisesse.
Aomame tirou os Ray-Ban e pô-los no bolso do peito do casaco. A luz do Sol fê-la semicerrar os olhos, e ela esfregou demoradamente as marcas que os óculos tinham deixado dos dois lados do nariz. Passou a língua pelos lábios secos e sentiu o ténue sabor do batom. Olhou para o céu sem nuvens e, mais uma vez, verificou o chão por baixo dos seus pés.
Abriu a mala a tiracolo e lá de dentro tirou a Heckler & Koch, deixando cair o saco aos pés, para ficar com as duas mãos livres. Com a mão esquerda destravou a arma e puxou a corrediça, fazendo a munição deslizar para a câmara. Cumpriu a sequência de movimentos com rapidez e precisão, numa série de estalidos satisfatórios. Abanou levemente a arma na mão, avaliando o seu peso. A arma sem munições pesava quatrocentos e oitenta gramas, a que havia que acrescentar o peso das sete balas.
Não há dúvida, está carregada.
Percebia-se pelo peso.
Na linha reta dos lábios de Aomame ainda pairava um leve sorriso. As pessoas estavam concentradas nas suas ações. Ninguém ficou surpreendido por a verem tirar uma arma da mala – ou, pelo menos, ninguém mostrou qualquer surpresa. Talvez não acreditassem que a arma fosse real.
Ah!, mas é, disse-lhes Aomame, em pensamento.
A seguir, virou a arma para si e enfiou o cano na boca. Agora, estava diretamente apontada ao cérebro dela – o labirinto cinzento onde se alojava a consciência.
As palavras de uma oração vieram-lhe automaticamente à cabeça, sem ter de pensar. Recitou-as depressa, com o cano da arma ainda enfiado na boca.
Ninguém consegue ouvir o que estou a dizer, tenho a certeza. Mas, e depois? O que importa é que Deus me ouça.
Na sua infância, Aomame tinha dificuldade em compreender as frases que debitava, mas as palavras ficaram gravadas bem no fundo de si mesma. Antes do almoço, no colégio, tinha de rezar, dizer as palavras em voz alta, sozinha, sem se deixar perturbar pelos olhares curiosos e pelos risos de escárnio das outras crianças. O que importa é que Deus está a ver. Ninguém pode fugir ao olhar de Deus.
O Grande Irmão está a observar-te.
Jeová, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino. Perdoai as nossas ofensas e dai-nos a Vossa bênção enquanto prosseguimos o nosso humilde caminho. Ámen.
A mulher de meia-idade e ar simpático ao volante do Mercedes-Benz novo em folha tinha ainda os olhos postos em Aomame. Tal como todos os outros que a observavam, também ela parecia incapaz de perceber o real significado da arma que Aomame tinha na mão.
Aomame deixava correr o pensamento:
Se percebesse, teria de desviar o olhar. Se vir o meu cérebro explodir em todas as direções, provavelmente não será capaz de olhar para o almoço hoje... ou para o jantar. Não a culpo se desviar os olhos. Não estou para aqui a lavar os dentes. Tenho uma arma automática alemã, uma Heckler & Koch, enfiada na boca. Rezei as minhas orações. Devia saber o que isto significa.
Sem palavras, Aomame dialogava com a mulher.
Deixe que lhe dê um conselho, um conselho importante. Não olhe para nada. Limite-se a conduzir o seu Mercedes novinho em folha até casa, até à sua linda casa, onde o seu precioso marido e as suas preciosas crianças esperam por si, e continue a viver a sua vidinha pacífica. Isto não é coisa para os seus olhos. Trata-se de uma pistola feia, verdadeira, carregada com sete feias balas de 9 mm. E, como disse Anton Tchékhov, quando uma arma surge numa história, num momento ou noutro, vai ter de ser disparada. É isto o que entendemos por «história».
Mas a mulher de meia-idade não desviava o olhar dela. Resignada, Aomame fez um leve gesto com a cabeça.
Lamento, mas não posso continuar à espera. O meu tempo terminou. Vamos a isto.
Meta um tigre no seu depósito.
– Oh, oh – disse o que apanhou o ritmo.
– Oh, oh – os outros seis juntaram-se em coro.
– Tengo! – exclamou Aomame e começou a apertar o gatilho.
17 The Thomas Crown Affair, Norman Jewison, 1968. (N. das T.)
18 Quod erat demonstrandum, expressão latina que significa «como fica demonstrado». (N. das T.)
24
TENGO
Enquanto fizer este calor
Pela manhã, Tengo apanhou o expresso que saía da estação de Tóquio para Tateyama, onde mudou para um comboio urbano, e foi até Chikura. Estava uma manhã bonita e sem nuvens. Não havia vento e não se via uma onda no mar. Há muito que o verão se fora. Tinha vestido um casaco de algodão leve, por cima de uma camisa de manga curta, o que se revelou ser a roupa adequada àquele tempo. Já sem banhistas, a cidade balnear estava surpreendentemente deserta e calma. Como uma autêntica cidade dos gatos, pensou Tengo.
Almoçou uma coisa simples perto da estação e apanhou um táxi para o sanatório, tendo chegado ao bater da uma. Foi recebido pela mesma enfermeira de meia-idade, que o saudou de detrás do balcão – a mulher que atendera a chamada telefónica da noite anterior. A enfermeira Tamura. Ela recordava-se da cara de Tengo e foi um pouco mais amável do que da primeira vez, ao ponto de conseguir esboçar um leve sorriso, quiçá por influência do ar mais aperaltado de Tengo.
A mulher começou por conduzi-lo ao refeitório, onde lhe serviu um café.
– Por favor, aguarde aqui. O médico virá falar consigo – disse. Dez minutos mais tarde chegou o médico assistente do pai, a enxugar as mãos numa toalha. Por entre o cabelo negro espetado viam-se já, aqui e ali, madeixas brancas. Andaria por volta dos cinquenta. Não trazia a bata branca, como se tivesse estado a terminar uma tarefa fora dali. Em vez disso, vestia uma camisola de fato de treino cinzenta com calças a condizer e calçava um velho par de ténis. Era bem constituído e tinha menos o ar de um médico do que de um treinador universitário que nunca tivesse conseguido passar da segunda divisão.
O médico repetiu mais ou menos o que lhe dissera ao telefone, na noite anterior. A julgar pela sua expressão e enquanto falava, ele parecia genuinamente triste ao informá-lo.
– Lamento dizer, mas, no ponto em que estamos e em termos médicos, não há muito mais que possamos fazer. Só nos resta fazê-lo escutar a voz do filho. Pode ser que volte a despertar nele o desejo de viver.
– Pensa que ele ouve o que lhe dizem? – perguntou Tengo.
O médico franziu o sobrolho, ponderando a questão, enquanto bebericava o seu chá verde morno.
– Para lhe dizer a verdade, nem mesmo eu tenho a resposta para isso. O seu pai está em coma. Não reage minimamente quando lhe falamos. Contudo, tem havido casos em que uma pessoa em coma profundo consegue ouvir o que lhe dizem e, por vezes, até compreende o que é dito.
– Mas, olhando para ele, não se consegue dizer.
– Não, não conseguimos.
– Posso ficar até às seis e meia da tarde – disse Tengo. – Vou sentar-me ao lado da cama e falar o mais possível. Veremos se resulta.
– Se ele mostrar qualquer tipo de reação, por favor, avise-me – pediu o médico. – Vou estar por aqui.
Uma enfermeira jovem conduziu Tengo ao quarto do pai. Tinha uma placa de identificação com o nome – Adachi. Fora transferido para um quarto individual numa nova ala da clínica, a ala onde ficavam os doentes mais graves. Por outras palavras, tinha avançado mais um dente na engrenagem. A partir dali, já não havia para onde ir. Era um quartinho sem graça, comprido e estreito, onde a cama ocupava mais de metade do espaço. Para lá da janela via-se o pinhal frondoso, protegendo a clínica do vento como uma espécie de biombo. O bosque cerrado fazia lembrar um muro, que separava o sanatório da vitalidade do mundo real. A enfermeira saiu, deixando Tengo sozinho com o pai, que, deitado de costas, estava profundamente adormecido. Tengo sentou-se num banquinho de madeira, ao lado da cama, e olhou para o pai.
Perto da cabeceira da cama havia um sistema de perfusão intravenosa e o líquido que se encontrava dentro do saco de plástico corria por um tubo para a veia do pai. Tinham-no algaliado para recolher a urina, mas o resultado era surpreendentemente escasso. Desde que o vira, um mês antes, o pai parecia ter encolhido um ou dois tamanhos. Nas maxilas e no queixo emaciados crescia uma barba branca com talvez dois dias. O pai sempre tivera os olhos encovados, mas agora tinham-se afundado mais do que nunca. Tengo não conseguiu evitar pensar se seria necessário puxar para fora os globos oculares com um instrumento cirúrgico qualquer. No fundo daquelas cavernas, as pálpebras encontravam-se firmemente cerradas, como persianas corridas, e tinha a boca ligeiramente aberta. Tengo não conseguia ouvir a respiração do pai, mas, quando aproximou o ouvido, sentiu a ligeira deslocação do ar. A energia vital era gerada calmamente a um nível mínimo.
As palavras do médico ao telefone na noite anterior – «como um comboio que vai abrandando à medida que se aproxima da estação» – começaram a assumir uma realidade assustadora aos olhos de Tengo. Aquele comboio «pai» estava gradualmente a perder a velocidade e a preparar-se para uma paragem silenciosa no meio de uma planície deserta. Pelo menos, já não havia nem um passageiro a bordo, ninguém que apresentasse uma reclamação quanto à paragem do comboio. Era a única salvação.
Tengo sentiu que devia começar a falar com o pai, mas não sabia o que dizer, ou se o devia dizer, ou que tom de voz empregar.
Muito bem, diz qualquer coisa.
Não obstante, foi incapaz de encontrar as palavras adequadas.
– Pai – arriscou num murmúrio, mas não lhe saíram mais palavras.
Levantou-se do banco, aproximou-se da janela e observou o relvado bem cuidado, o jardim e o céu que se estendia bem alto, por cima dos pinheiros. Um corvo solitário estava empoleirado numa grande antena, avaliando toda a zona com um olhar de desprezo, banhado pela luz do Sol. Perto da cabeceira da cama, alguém tinha posto um rádio-despertador, mas o pai não precisava de nenhuma das funções de que o aparelho dispunha.
– Sou eu... o Tengo. Vim de Tóquio. Está a ouvir-me? – disse, de pé, perto da janela, baixando os olhos para o pai, que não teve a mais pequena reação. Depois de ter feito vibrar o ar durante alguns instantes, o som da sua voz foi absorvido sem deixar vestígios por aquele vazio que viera ocupar o quarto.
Olhando para aqueles olhos afundados, Tengo foi capaz de perceber o que se passava.
Este homem está a tentar morrer. Decidiu terminar a sua vida, fechou os olhos e mergulhou neste sono profundo. Por muito que fale com ele, por mais que o anime, é impossível anular a decisão que tomou.
De um ponto de vista médico, ainda estava vivo, mas para aquele homem a vida já terminara. Já não tinha nem razão nem vontade de prosseguir a luta. A Tengo restava apenas cumprir os desejos do pai e deixá-lo morrer em paz. A expressão da sua cara revelava uma tranquilidade absoluta. Não parecia estar a sofrer. Como o médico afirmara ao telefone, era a única vantagem.
Contudo, Tengo via-se forçado a falar com o pai, quanto mais não fosse porque prometera ao médico que o faria. Ele parecia tratar do seu pai com um carinho genuíno. Em segundo lugar, havia a questão daquilo que designava por «cortesia». Há muito, muito tempo que Tengo não tinha uma conversa em condições com o pai, nem sequer uma troca de palavras frívola. A verdade é que era mais do que provável que, da última vez que conversaram a sério, Tengo frequentasse ainda o ensino básico. Depois disso, Tengo raras vezes ia a casa, e mesmo quando havia qualquer assunto que o obrigasse a ir lá, envidava todos os esforços para evitar cruzar-se com o pai.
Agora, tendo confessado que não era, de facto, o seu pai verdadeiro, o homem podia libertar-se do fardo que carregara. Inclusivamente, parecia aliviado.
O que significa que ambos fomos capazes de nos livrar do nosso fardo... no último momento.
Ali estava o homem que criara Tengo como se fora seu filho, incluindo-o nessa condição no registo familiar, apesar da ausência de laços de sangue, e criando-o até ter idade para trilhar o seu próprio caminho.
Devo-lhe isso. Tenho uma certa obrigação de lhe dizer o que fiz da minha vida até agora, bem como alguns pensamentos que tive enquanto a vivia. Não é tanto uma obrigação como uma cortesia. Não interessa que as coisas que digo não lhe cheguem aos ouvidos ou que o que lhe conto não tenha qualquer utilidade.
Tengo voltou a sentar-se no banquinho ao lado da cama e começou a narrar um resumo da sua vida até ao presente, começando no dia em que saíra de casa, indo viver para a residência do clube de judo quando entrara na escola secundária. Fora a partir daí que ele e o pai tinham perdido quase todo o contacto, criando uma situação em que nenhum dos dois se ralava com o que o outro andava a fazer. Tengo sentiu que era melhor preencher esse enorme vazio tão bem quanto pudesse.
Em última análise, não havia grande coisa a dizer acerca da vida de Tengo nessa fase. Frequentara uma escola privada na prefeitura de Chiba, cuja equipa de judo gozava de grande prestígio. Poderia facilmente ter entrado numa escola mais conceituada, mas as condições que aquela lhe oferecera eram as melhores. Estava isento de propinas, permitiam-lhe viver na residência estudantil e ainda lhe davam três refeições por dia. Tengo tornara-se uma estrela da equipa de judo, estudava entre os treinos (conseguia manter algumas das notas mais altas da sua turma sem ter de se esforçar demasiado) e ganhava algum dinheiro extra durante as férias, fazendo vários trabalhos manuais pesados com os colegas de equipa. Com tanto em que se ocupar, dava consigo sem dispor de tempo livre, um dia atrás do outro. Pouco mais havia a dizer sobre os seus três anos de secundário senão que fora um tempo em que andara muito ocupado. Não tinha sido particularmente agradável, nem fizera amigos íntimos. Nunca gostara da escola, que tinha muitas regras. Fazia o que tinha de fazer para se dar bem com os colegas de equipa, mas não estavam no mesmo comprimento de onda. Para falar com toda a franqueza, Tengo nunca se empenhara de alma e coração no judo enquanto desporto. Precisava de ganhar para se manter, pelo que dedicava muita energia aos treinos a fim de não trair as expectativas de terceiros. Para ele era menos um desporto e mais um meio de sobrevivência – um emprego. Passou os três anos do secundário a pensar no dia em que o concluiria para, tão cedo quanto possível, poder começar a levar uma vida mais a sério.
No entanto, continuou com o judo mesmo depois de entrar na universidade. Basicamente, levava a mesma vida que antes, já que, por continuar a praticar judo, podia viver na residência universitária e poupar-se ao trabalho e ao incómodo de ter de procurar onde dormir e comer (por pouco que fosse). Também recebeu uma bolsa, se bem que não desse nem de perto nem de longe para as suas necessidades. Claro que o seu major era Matemática. Estudava com razoável empenho e também conseguiu ter boas notas. O tutor até insistiu com ele para que prosseguisse com uma pós-graduação. No entanto, à medida que foi avançando pelo terceiro ano e, depois, pelo quarto, a sua paixão pela Matemática enquanto disciplina académica esfriou rapidamente. Ainda gostava tanto de Matemática como antes, mas não tinha a menor vontade de se dedicar profissionalmente à investigação. Acontecera o mesmo com o judo. Enquanto praticante amador, não estava mal, mas ele não tinha nem a personalidade nem o ímpeto de lhe dedicar a vida toda, e estava bem consciente desse facto.
À medida que o seu interesse pela Matemática se ia dissipando e o final do curso se aproximava, as razões para prosseguir com o judo evaporaram-se e ele ficou sem saber o que fazer, por que caminho enveredar a seguir. A sua vida parecia ter perdido o rumo – não que alguma vez tivesse tido um rumo bem definido, mas, até àquele ponto, outras pessoas tinham depositado esperanças em si, tinham-lhe feito exigências, e ele mantivera-se ocupado a corresponder-lhes. Uma vez as esperanças e as exigências fora do panorama, contudo, não restava nada de que valesse a pena falar. Faltava um propósito à sua vida. Não tinha amigos chegados. Andava à deriva e era incapaz de concentrar as suas energias no que quer que fosse.
Durante a faculdade, tivera uma série de namoradas e ganhara muita experiência sexual. No sentido geral da palavra, Tengo não era um homem atraente, sociável, tão-pouco bom conversador ou espirituoso. Andava quase sempre sem dinheiro e não se vestia de forma minimamente elegante. Mas tal como o aroma de determinadas plantas atrai as borboletas, Tengo exercia um certo fascínio sobre certos tipos de mulheres – um enorme fascínio.
Tomara consciência deste facto por volta dos vinte anos (mais ou menos na altura em que começara a perder o entusiasmo pela Matemática enquanto disciplina académica). Sem que fizesse nada por isso, via-se sempre rodeado de mulheres suficientemente interessadas nele para serem elas a tomar a iniciativa de se aproximarem. Queriam que as abraçasse com os seus braços fortes – ou, pelo menos, nunca resistiam quando o fazia. Ao princípio, Tengo não percebia como funcionava aquela espécie de fenómeno e sentia-se muito confuso, mas acabara por lhe apanhar o jeito e aprendera a explorar essa capacidade que possuía. Desde então, Tengo raras vezes se vira sem uma mulher. Todavia, nunca sentira um impulso amoroso por essas companheiras. Limitava-se a andar com elas e a ter relações sexuais. Preenchiam as solidões mútuas. Por mais estranho que pareça, ele nunca sentira uma ligação emocional forte por nenhuma das mulheres que se sentiam fortemente atraídas por ele.
Tengo foi descrevendo estas circunstâncias a um pai em estado inconsciente, escolhendo as palavras devagar e com cuidado, ao princípio, depois com maior fluidez à medida que o tempo passava e, no fim, já com um certo entusiasmo. Até falou com toda a honestidade acerca da sua vida sexual. Pensou:
Não faz sentido agora sentir-me embaraçado com estas histórias.
O pai mantinha-se deitado de costas, imóvel, num sono profundo. A respiração continuava regular.
Pouco antes das três da tarde, uma enfermeira veio trocar o soro. Substituiu o saco da algália cheio por um outro, vazio, e mediu a febre ao pai. Era uma mulher forte, robusta, de trinta e muitos anos. Na placa de identificação estava escrito «Omura». Tinha o cabelo apanhado num carrapito, onde espetara uma caneta esferográfica.
– Alguma mudança no estado dele? – perguntou a Tengo, enquanto registava os números na papeleta com a esferográfica.
– Nenhuma. Esteve sempre num sono profundo – respondeu Tengo.
– Por favor, se acontecer alguma coisa, carregue naquele botão – disse ela, apontado para o botão de chamada, por cima da cabeceira da cama. A seguir, espetou de novo a esferográfica no cabelo.
– Muito bem.
Pouco depois de a enfermeira ter abandonado o quarto, ouviu uma breve pancada na porta, e a enfermeira Tamura, de óculos, espreitou para lá para dentro.
– Quer comer alguma coisa? Pode ir ao refeitório.
– Obrigado, mas ainda não tenho fome – respondeu.
– Como está o seu pai?
Tengo fez um gesto com a cabeça.
– Tenho estado a falar com ele, sem interrupções. Não sei dizer se me está a ouvir.
– Falar com eles faz-lhes bem – disse. Teve um sorriso de encorajamento. – Não se preocupe, tenho a certeza de que ele o ouve.
Devagarinho, fechou a porta. Tengo e o pai ficaram de novo sozinhos naquele quarto.
* * *
Tengo continuou a falar.
Licenciara-se e começara a dar aulas em Tóquio, numa escola que preparava os alunos para a universidade. Deixara de ser o prodígio da Matemática, de quem toda a gente esperava grandes feitos, assim como já não era um elemento promissor da equipa de judo. Tornara-se um simples professor numa escola. Precisamente por causa disso, sentia-se feliz. Finalmente, podia respirar. Pela primeira vez, era livre: podia viver a sua vida como desejava sem ter de se preocupar com mais ninguém.
Ao fim de algum tempo, começou a escrever ficção. Candidatou-se a vários prémios com alguns dos seus contos, o que acabou por o levar ao contacto com um editor sui generis chamado Komatsu, que o encarregou de reescrever A Crisálida de Ar, uma história da autoria de uma rapariga de dezassete anos chamada Fuka-Eri (Eriko Fukada era o seu nome verdadeiro). Fuka-Eri criara a história mas não tinha talento para a escrita, pelo que Tengo teve de se encarregar de tal tarefa. Fez um trabalho tão bom que a obra ganhou um prémio para novos autores atribuído por uma revista, e foi depois publicada em livro, tendo-se transformado num enorme êxito de vendas. Deu tanto que falar que os membros do júri do Prémio Akutagawa, o prémio literário mais prestigiado, o acolheram friamente, mantendo-o à distância, e não ganhara aquele galardão em particular. Todavia, tinha-se vendido tanto que Komatsu, ao seu jeito brusco típico, declarara: «Quem precisa de prémios daqueles narizes empinados?»
Tengo não acreditava que a sua história estivesse a chegar aos ouvidos do pai e, mesmo que estivesse, não tinha forma de dizer se ele o entendia ou não. Estava com a sensação de que as suas palavras não tinham qualquer impacto e não descortinava a menor reação. Nem mesmo percebia se elas chegavam ao pai. Talvez o velho as achasse irritantes. Talvez estivesse a pensar: «Quem se importa com a vida dos outros, caramba? Deixem-me dormir!» No entanto, tudo o que Tengo podia fazer era continuar a dizer o que lhe viesse à cabeça. Não conseguia lembrar-se de nada melhor enquanto estivesse encafuado naquele quartinho com o pai.
O pai nunca esboçou o mais pequeno movimento. Tinha os olhos fechados, com força, encovados no fundo daqueles dois buracos escuros. Parecia estar à espera de que o inverno chegasse e os enchesse de neve.
– Não posso dizer que, de momento, as coisas estejam a correr muito bem, mas é possível que venha a poder ganhar a vida com a escrita; não a reescrever o trabalho de outros, mas a escrever o que quero, da maneira que me apetece. A escrita, especialmente a escrita de ficção, vai bem com a minha personalidade, creio. É bom ter qualquer coisa que se queira fazer, e agora, finalmente, isso aconteceu-me. Ainda não publiquei nada com o meu nome, mas espero que o venha a conseguir, dentro de pouco tempo. Não me cabe a mim dizê-lo, mas, modéstia à parte, não sou mau escritor. Há pelo menos um editor que acha que tenho talento. Desse ponto de vista, não estou muito preocupado.
Pensou acrescentar ainda:
E parece que também tenho as qualidades necessárias para ser um Recetor. Tanto assim é, que fui puxado para dentro do mundo ficcional que eu próprio descrevi.
Mas não era nem o tempo nem o lugar para discutir assuntos tão complexos. Era uma questão completamente diferente. Decidiu mudar de assunto.
– O que mais me preocupa é nunca ter sido capaz de amar alguém a sério. Desde o dia em que nasci que nunca senti um amor incondicional por alguém, nunca senti que poderia entregar-me em absoluto a uma pessoa. Nem uma única vez.
No momento em que disse isto, Tengo deu consigo a pensar se o velho com ar miserável à sua frente alguma vez experimentara amar alguém do fundo do coração. Talvez tivesse amado profundamente a mãe de Tengo, razão pela qual o tinha criado, pese embora o facto de não partilharem laços de sangue. A ser assim, tinha tido uma vida espiritualmente muito mais cheia do que Tengo.
– O único caso em que, provavelmente, as coisas não se passaram do mesmo modo é o de uma rapariga de que me lembro nitidamente. Durante o terceiro e o quarto anos, em Ichikawa, estivemos na mesma turma. Sim, estou a falar de uma coisa que se passou há uns bons vinte anos.
» Sentia-me muito atraído por ela. Ao longo deste tempo todo, nunca deixei de pensar nessa rapariga, e ainda agora o faço. Mas nem cheguei a falar realmente com ela. Mudou de escola e nunca mais a vi. No entanto, aconteceu uma coisa que me fez querer encontrá-la. Há pouco tempo, percebi que me faz falta, que quero vê-la e falar-lhe de tudo e mais alguma coisa. Mas não fui capaz de a localizar. Calculo que devesse ter-me posto à procura dela há muito mais tempo. Talvez tivesse sido bastante fácil encontrá-la.
Tengo ficou silencioso durante um bocado, aguardando que o que acabava de contar penetrasse na cabeça do pai – ou melhor, penetrasse na sua própria cabeça. Depois, prosseguiu:
– Sim, neste caso, fui muito cobarde. A mesma razão impediu-me de ir investigar o registo civil. Se quisesse, na altura teria sido fácil descobrir se a minha mãe morreu. Bastava deslocar-me à Câmara e não teria dificuldade em inteirar-me da situação. A bem dizer, pensei nisso muitas vezes. Até cheguei a ir à Câmara. Mas nunca me decidi a fazer o pedido dos documentos. Tive medo de ver a verdade à frente dos olhos. Tive medo de a expor pelas minhas próprias mãos. E, por isso, esperei que acontecesse por si, naturalmente.
Tengo soltou um suspiro.
– Oh, bem, pondo isto de parte, devia ter-me lançado à procura da rapariga mais cedo. Fiz um enorme desvio e fui incapaz de agir. Eu não passo... como dizê-lo?... de um cobarde, quando toca a assuntos do coração. É o meu erro fatal.
Tengo levantou-se do banco, foi até à janela, olhou para fora e contemplou o pinhal. O vento amainara. Não ouvia já o rugir do mar. Uma gata grande atravessava o jardim. A avaliar pelo arrastar da barriga, deveria estar grávida. Deitou-se junto a uma árvore, abriu as pernas e começou a lamber a barriga.
Encostado ao parapeito da janela, Tengo continuava a falar com o pai.
– Pondo este tema de parte, ultimamente parece que estão a dar-se algumas mudanças na minha vida. Pelo menos, tenho essa sensação. Para ser sincero, odiei-te durante muito tempo, pai. Desde pequeno que pensei que o meu destino não podia residir num lugar tão miserável e acanhado; eu merecia circunstâncias mais confortáveis. O tratamento que recebia parecia-me demasiado injusto. Todos os meus companheiros de colégio aparentavam levar vidas cheias e felizes. Tinham menos talento e menos qualidades do que eu, mas levavam vidas mais alegres, sem comparação possível. Nessa época, desejava que não fosses meu pai. Sempre pensei que tinha havido um engano e que eu não era teu filho. Que não existia o menor vínculo de sangue entre nós dois.
Tengo tornou a olhar pela janela e viu a gata. Distraída, continuava a lamber a barriga inchada, sem ter consciência de que estava a ser observada. Sem tirar os olhos da gata, Tengo prosseguiu:
– Mas já não sinto nada disto. Agora penso que estava no local que me competia e tive o pai que devia ter. Estou a falar a sério. A verdade é que eu era um ser insignificante, uma pessoa sem valor. Em certo sentido, eu próprio deitei-me a perder. Agora percebo-o. Em miúdo, fui um prodígio da Matemática, é verdade. Eu mesmo creio que tinha um grande talento. Toda a gente me mantinha debaixo de olho e me mimava. Mas, em última análise, era um talento sem grandes hipóteses de evoluir para algo de útil. Estava ali, pura e simplesmente. Fui sempre um miúdo grande e saía-me bem no judo. Tinha bons resultados nos campeonatos da prefeitura. Porém, quando passei para o mundo em geral, verifiquei que havia imensos tipos muito mais fortes do que eu. Nunca me escolheram para representar a minha universidade nos torneios nacionais. Foi um grande choque para mim e, durante algum tempo, nem sabia quem era. O que é natural, uma vez que não era nada.
Tengo abriu a garrafa de água mineral que trouxera consigo e bebeu. Depois, sentou-se de novo no banco.
– Já te disse isto, mas estou-te grato. Penso que não sou teu filho biológico. Tenho quase a certeza. Estou grato por me teres educado apesar de não partilharmos qualquer laço de sangue. Tenho a certeza de que não deve ter sido fácil criares um filho sozinho. Hoje, contudo, quando recordo as voltas contigo para ires cobrar as cotas da NHK, ainda fico doente. Só tenho memórias horríveis dessas voltas. Mas tenho a certeza de que não conseguiste arranjar outra forma de comunicar comigo. Como dizer? Provavelmente, era o melhor que conseguias fazer. Era o teu único elo de ligação com a sociedade e quiseste mostrar-me como eram as coisas. Agora percebo-o. Claro que também calculaste que ter uma criança contigo tornaria mais fácil receber o dinheiro. Mas suspeito que não se tratava só disso.
Tengo voltou a fazer uma pequena pausa para deixar que as palavras assentassem e reordenou as ideias.
– Claro que, em criança, não era capaz de ver as coisas por este prisma. Para mim, tudo aquilo era embaraçoso, e eu sofria por ter de o fazer: acompanhar-te na volta dos pagamentos enquanto os meus colegas passavam os domingos na brincadeira. Nem consigo exprimir o quanto odiava a chegada dos domingos. Mas agora, pelo menos em certa medida, eu percebo o que estavas a fazer. Não estou a dizer que fosse certo. Deixou-me cicatrizes. Para uma criança, era muito duro. Mas o que lá vai, lá vai. Não te preocupes. Sinto que, graças a isto tudo, fiquei bastante mais forte. Aprendi por experiência própria que não é fácil singrar na vida.
Tengo abriu as mãos e fitou as palmas durante um bom bocado.
– Seja lá como for, vou continuar a viver. Acho que, a partir de agora, posso melhorar as coisas, sem me perder em desvios inúteis. Não sei o que queres fazer. Talvez só queiras continuar a dormir, sossegado, sem voltar a acordar. Se é isso que queres, fá-lo. Não posso opor-me, se é o que desejas. Não tenho outro remédio senão deixar-te dormir. Em todo o caso, queria dizer-te isto tudo: dizer-te o que fiz na vida até agora e o que penso. Talvez tivesses preferido não ouvir nada disto, e, se é esse o caso, peço desculpa por ter-to imposto. Seja como for, não tenho mais nada para te contar. Já disse mais ou menos quanto havia a dizer. Não te incomodo mais. Podes dormir quanto tenhas vontade.
Passava das cindo da tarde quando a enfermeira Omura, a que tinha a esferográfica espetada no cabelo, entrou no quarto e verificou a quantidade de soro no saco. Dessa vez, não tirou a temperatura ao pai de Tengo.
– Houve alguma mudança? – perguntou.
– Não, nada em particular. Esteve o tempo todo a dormir – respondeu Tengo.
A enfermeira assentiu com um gesto de cabeça.
– O médico virá aqui dentro de pouco tempo. Até que horas pode ficar, senhor Kawana?
Tengo olhou para o relógio.
– Vou apanhar o comboio que sai mesmo antes das sete, por isso posso ficar até às seis e meia.
A enfermeira escreveu qualquer coisa na papeleta do pai e tornou a espetar a esferográfica no cabelo.
– Tenho estado a falar com ele o tempo todo, mas não me parece que ouça o que quer que seja – informou Tengo.
A enfermeira respondeu:
– Se alguma coisa aprendi na escola de enfermagem foi que as palavras alegres fazem os tímpanos vibrar com alegria. Há vibrações alegres nas palavras alegres. Portanto, mesmo que o doente não perceba o que lhe estão a dizer, os tímpanos vibrarão fisicamente nesse comprimento de onda alegre. Ensinam-nos a falar com os doentes sempre num tom animado, vivo, quer eles nos oiçam quer não. A verdade é que resulta, seja qual for a lógica que o explica. E falo por experiência.
Tengo matutou um pouco naquilo.
– Obrigado – disse. A enfermeira Omura fez um breve gesto de cabeça e, em poucos passos rápidos, abandonou o quarto.
Depois da saída dela, Tengo manteve-se silencioso durante um bom bocado. Já não lhe restava nada para dizer, e o silêncio não lhe era desconfortável. A luz da tarde começava a desaparecer e no ar pairava já uma sugestão de noite. Os derradeiros raios de sol deslocavam-se, lenta mas seguramente, pelo quarto.
De súbito, perguntou-se se já teria falado ao pai nas duas luas. Tinha a sensação de que provavelmente não o fizera. Tengo vivia agora num mundo onde havia duas luas. Uma visão muito estranha, por mais vezes que ocorra, quis dizer, mas também pensou que não haveria grande vantagem em mencioná-lo. O pai não se importava com o número de luas no céu. Era um problema que Tengo teria de resolver por si próprio.
Além do mais, houvesse nesse mundo (ou neste mundo) uma, duas ou três luas, não havia mais do que um Tengo. Que diferença faria? Fosse em que mundo fosse, Tengo era Tengo. A mesma pessoa com os seus problemas e as suas qualidades específicas. O cerne da questão não estava na lua mas no próprio Tengo.
Meia hora mais tarde, a enfermeira Omura regressou. Por qualquer razão desconhecida, já não trazia a esferográfica espetada no cabelo. Para onde teria ido? Tengo deu por si estranhamente preocupado com a caneta. Com ela vieram dois elementos masculinos do pessoal, a empurrar uma cama de rodas. Eram ambos corpulentos, de tez escura, e nenhum proferiu uma única palavra. Bem podiam ser estrangeiros.
– Temos de levar o seu pai para fazer uns exames, senhor Kawana – informou a enfermeira. – Quer esperar aqui?
Tengo olhou para o relógio.
– Passa-se alguma coisa de errado?
A enfermeira abanou a cabeça.
– Não, não, nada. Não temos o equipamento necessário para os exames neste quarto e vamos levá-lo para outro onde existe. Não é nada de especial. Provavelmente, o senhor doutor falará consigo depois.
– Muito bem. Espero aqui.
– Pode ir até ao refeitório beber um chá quente. Devia descansar.
– Muito obrigado.
Com cuidado, os dois ergueram o esquálido corpo do pai de Tengo, com os tubos intravenosos ainda ligados, e transferiram-no para a cama de rodas. Empurraram a cama e o suporte do soro para o corredor em movimentos rápidos e destros. Continuaram sem proferir uma palavra.
– Não vai demorar muito – informou a enfermeira.
Decorreu algum tempo e o pai não regressou. A luz que entrava pela janela foi ficando cada vez mais fraca, mas Tengo não acendeu o candeeiro. Sentiu que, se o fizesse, perder-se-ia algo muito importante.
No sítio onde o pai repousara, tinha ficado a marca do seu corpo. O pai já não devia ter peso quase nenhum; todavia, a marca do corpo era bem visível. Enquanto contemplava a cama vaga, foi assaltado pela forte sensação de que ficara sozinho neste mundo. Sentiu até que, uma vez caída a noite, a aurora poderia nunca mais despontar.
Sentado no banco ao lado da cama, mergulhado nas cores da noite que se avizinhava, Tengo deixou-se ficar na mesma posição, perdido nos seus pensamentos. Foi então que, de repente, se deu conta de que não tinha estado a pensar em nada, antes mergulhara num vazio sem sentido. Devagar, pôs-se de pé, foi à casa de banho e fez as suas necessidades. Lavou a cara com água fria, secou-a com o lenço e olhou-se ao espelho. Depois, recordando o que a enfermeira lhe dissera, desceu as escadas para o refeitório e foi tomar um chá verde quente.
Quando regressou, ao fim de vinte minutos, o pai ainda não tinha sido trazido de volta. Em vez dele, descobriu, na depressão que o corpo deixara na cama, um objeto branco, que nunca vira antes.
Media quase um metro e meio e tinha umas linhas suaves, arredondadas. À primeira vista, parecia ter a forma de uma casca de amendoim e estava coberto por uma espécie de plumagem curta, suave, que emitia um brilho ténue mas doce e uniforme. No quarto que escurecia com rapidez, uma luz azulada envolvia o objeto com suavidade. Aquela coisa estava imóvel na cama, estendida, como se preenchesse o espaço individual que o pai deixara temporariamente vago. Tengo deteve-se junto à porta, com a mão na maçaneta, a olhar para o misterioso objeto. Os lábios pareceram mexer-se, mas deles não saiu nenhum som.
Que demónio é isto?, perguntou-se Tengo, ali parado, de olhos semicerrados. Como é que teria ido parar ali, ao lugar do pai? Não fora trazido por um médico ou por uma enfermeira, era mais do que óbvio. À sua volta pairava um ar especial que, de certa forma, o fazia parecer dessincronizado da realidade.
De repente, percebeu.
É uma crisálida de ar!
Era a primeira vez que Tengo via uma crisálida de ar. No romance descrevera algumas com grande pormenor, mas claro que nunca vira nenhuma com os seus próprios olhos e nunca pensara nelas como algo que existisse de facto. Mas o que tinha agora à sua frente era o próprio objeto que imaginara e que as suas palavras haviam descrito: uma crisálida de ar. Teve uma sensação de déjà vu tão intensa que foi como se uma liga de ferro lhe apertasse o estômago. Mesmo assim, Tengo entrou no quarto e fechou a porta. Era melhor que ninguém visse aquilo. Engoliu a saliva que se lhe acumulara dentro da boca. Do fundo da sua garganta veio um som estranho.
Devagar, aproximou-se da cama, detendo-se a cerca de um metro de distância para examinar a crisálida de ar com grande atenção. Agora tinha a certeza absoluta de que era rigorosamente igual ao desenho que tinha feito quando escrevera a história. Antes de esboçar a descrição de uma crisálida de ar, fizera um simples esboço a lápis, na tentativa de criar uma imagem mental que, posteriormente, traduziria por palavras. Tivera o desenho preso na parede, por cima da secretária, enquanto escrevia A Crisálida de Ar. Tinha um formato mais próximo do de um casulo do que de uma crisálida, mas «crisálida de ar» era o único nome por que Fuka-Eri (e o próprio Tengo) conseguia designar a coisa.
Durante o trabalho, Tengo criara a maior parte das caraterísticas exteriores de uma crisálida de ar e acrescentara-as às descrições, incluindo a elegância da curva mais estreita na parte central e as protuberâncias redondas, inchadas e decorativas, em cada extremidade. Eram da exclusiva responsabilidade da imaginação de Tengo. No «relato» original de Fuka-Eri não havia qualquer referência a nada disto. Para Fuka-Eri, a crisálida de ar era apenas a crisálida de ar; a bem dizer, algo entre o concreto e o conceptual, e a rapariga não parecia sentir a necessidade de a descrever por palavras. Tengo vira-se forçado a inventar todos os pormenores, e a crisálida de ar que estava agora perante os seus olhos tinha rigorosamente os mesmos pormenores: o estreitamento no meio e as bonitas protuberâncias nas duas extremidades.
É a crisálida de ar que desenhei e descrevi. Passou-se o mesmo com as duas luas.
Por uma razão desconhecida, todos os pormenores que escrevera tinham-se tornado realidade. Causa e efeito enredavam-se.
Pernas e braços, os membros de Tengo foram percorridos por uma sensação estranha, nervosa, de pele de galinha, e os seus músculos começaram a retesar-se. Já não era capaz de distinguir quanto do mundo presente era realidade e quanto era ficção. Que parte pertencia à cabeça de Fuka-Eri, que parte à de Tengo e que parte à dos dois?
No topo da crisálida de ar surgiu uma pequena fenda: a crisálida estava prestes a abrir-se. Formara-se uma abertura de uns três centímetros de comprimento. Se se inclinasse para a frente e encostasse o olho à abertura, era provável que conseguisse ver o que estava no interior. Mas Tengo não encontrou coragem para o fazer. Sentou-se no banco, ao lado da cama, a olhar fixamente para a crisálida de ar, ao mesmo tempo que os seus ombros subiam e desciam de forma impercetível, enquanto ele lutava para controlar a respiração. A crisálida de ar branca ficou ali, emitindo o seu brilho pálido, numa espera silenciosa, qual equação matemática aguardando que Tengo a resolvesse.
Que poderia estar dentro da crisálida?
O que estaria a tentar mostrar-lhe?
No romance A Crisálida de Ar, a jovem protagonista descobre lá dentro um outro eu. A sua nina. A menina abandona a nina e foge da comunidade, sozinha. Mas o que poderia estar dentro da crisálida de ar de Tengo? (Sentia por intuição que aquela crisálida de ar era sua.) Seria bom ou mau? Algo que o guiaria até algum lugar ou algo que lhe barraria o caminho? E quem lhe poderia ter enviado, para ali, esta crisálida de ar, c’os demónios?
Tengo tinha a perfeita noção de que lhe estava a ser pedido que agisse. Mas não encontrou a coragem que lhe permitiria corresponder e espreitar para dentro da crisálida. Estava com medo. O que quer que estivesse lá dentro poderia feri-lo ou mudar a sua vida para sempre. Perante esta ideia, o corpo de Tengo retesou-se, sentado no banco como alguém que acabou de perder o seu último refúgio. Sentia o mesmo tipo de medo que o levara a não ir ver o registo civil ou a não procurar Aomame. Não queria saber o que estava dentro da crisálida de ar que lhe tinham arranjado. Se conseguisse abster-se de o saber, preferia que as coisas se mantivessem assim. Sendo possível, queria abandonar o quarto naquele instante, apanhar o comboio e regressar a Tóquio. Fecharia os olhos, taparia os ouvidos e esconder-se-ia dentro do seu humilde mundo interior.
Mas Tengo também sabia que era impossível.
Se sair daqui sem ver o que está lá dentro, vou arrepender-me para o resto da vida. Provavelmente, nunca me conseguirei perdoar por ter desviado os olhos daquela coisa, seja lá o que for.
Tengo deixou-se ficar sentado no banco durante muito tempo, sem saber bem o que fazer, incapaz de avançar ou recuar. Com as mãos dobradas sobre os joelhos, observava a crisálida de ar em cima da cama, lançando olhares para fora da janela, como se tivesse esperança de escapar. O Sol já se pusera, e havia uma luz pálida a envolver os pinheiros. Continuava a não haver vento, nem era audível o barulho das ondas. Estava tudo quase misteriosamente silencioso. E, à medida que a escuridão aumentava dentro do quarto, a luz que o objeto branco emitia ia-se tornando mais intensa e mais viva. Aos olhos de Tengo, a própria crisálida parecia um ser vivo, com o seu suave brilho da vida, o seu calor único e uma vibração extremamente ténue.
Por fim, Tengo decidiu-se, levantou-se do banco e inclinou-se sobre a cama. Fugir estava já fora de questão. Não podia viver a vida toda como uma criança assustada, desviando o olhar de tudo o que lhe aparecesse à frente. Só sabendo a verdade – fosse ela qual fosse – o ser humano conseguia alcançar a força de que necessitava.
A fenda da crisálida mantinha-se inalterada, nem maior nem mais pequena do que antes. Franziu os olhos e espreitou pela abertura, mas não conseguiu ver quase nada lá dentro. Estava escuro e parecia haver uma fina membrana que cobria todo o espaço interior. Tengo abrandou a respiração e verificou que não tinha as mãos a tremer. Depois, enfiou os dedos na abertura de três centímetros e fez força para os lados, como se estivesse a abrir duas portas corrediças. Abriu-se com facilidade, oferecendo pouca resistência e sem produzir qualquer som, como se tivesse estado à espera das suas mãos.
Era agora a luz da própria crisálida que iluminava suavemente o seu interior, como se fora um reflexo de neve. Apesar de não poder dizer-se que a luz era suficiente, ele conseguiu ver o que estava lá dentro.
Tengo viu uma bonita menina de dez anos.
Estava profundamente adormecida. Tinha um vestido branco discreto, sem enfeites, parecido com uma camisa de noite, e as mãozinhas cruzadas sobre o peito. Tengo soube instantaneamente de quem se tratava. A cara era esguia e a boca formava uma linha reta, como se tivesse sido desenhada a régua e esquadro. Uma franja impecável cobria uma testa suave e bonita. O narizinho parecia estar à procura de qualquer coisa, espetado para cima. As maçãs do rosto abriam ligeiramente para os lados. Tinha os olhos fechados, mas Tengo sabia como seriam, quando os abrisse. Como poderia não saber? Há vinte anos que vivia com a imagem desta rapariga guardada no coração.
– Aomame – disse, em voz alta.
A rapariga estava profundamente adormecida – um sono muito profundo e natural. A sua respiração quase não se sentia e o coração batia tão baixinho que mal se ouvia. Não tinha a energia necessária para levantar as pálpebras. Ainda não tinha chegado a sua hora. A sua mente não estava ali: andava por longe. Mesmo assim, a palavra que Tengo tinha pronunciado vibrara levemente nos tímpanos dela. Era o nome da menina.
Nesse local distante, Aomame ouviu a chamada.
Tengo, pensou. A sua boca formou a palavra, apesar de não ter feito mover os lábios da rapariga dentro da crisálida de ar nem a palavra ter chegado aos ouvidos de Tengo.
Tengo olhava fixamente para a menina, sem se cansar, como se lhe tivessem roubado a alma, respirando de forma entrecortada. Na face dela espelhava-se uma paz absoluta, sem a menor sombra de tristeza, dor ou ansiedade.
Os seus lábios, finos e pequenos, pareciam prestes a começar a mover-se para emitir sons relevantes. As pálpebras pareciam prontas a abrir-se. Do fundo do coração de Tengo saiu uma prece para que tal acontecesse. Apesar de não ter chegado a pronunciar qualquer palavra definida, do seu coração soltou-se uma reza informe, que se ergueu no ar. Todavia, a menina não mostrou sinais de acordar.
– Aomame – chamou de novo.
Havia umas quantas coisas que tinha de dizer a Aomame, sentimentos que queria transmitir-lhe. Há anos que vivia com eles, que os guardava no mais fundo de si mesmo. Mas, de momento, Tengo só podia repetir o nome dela.
– Aomame – chamou.
Ousou estender o braço e tocou na mão da menina estendida dentro da crisálida de ar. Pousou a sua manápula de adulto sobre a mão da criança. Era a mãozinha que com tanta força apertara a de Tengo, quando este tinha dez anos. Aquela mão estendera-se, procurara a sua e dera-lhe coragem. A mão da menina que dormia envolta naquele brilho pálido tinha o inconfundível calor da vida. Tengo pensou:
A Aomame veio para me transmitir o seu calor. Era o que significava o embrulho que me entregou naquela sala de aulas, vinte anos atrás.
Agora, por fim, podia abrir o embrulho e ver o que continha.
– Aomame – disse Tengo. – Vou encontrar-te, custe o que custar.
A crisálida de ar foi perdendo gradualmente o seu brilho e desapareceu, como que sugada pela escuridão. A jovem Aomame desapareceu com ela, e Tengo deu por si incapaz de decidir se tudo aquilo teria realmente acontecido. Mas os seus dedos retinham o toque e o calor íntimo da mãozinha dela.
Este calor nunca mais desaparecerá, é mais do que certo, pensou Tengo, já a bordo do comboio expresso, de regresso a Tóquio. Tengo vivera os últimos vinte anos com a memória do toque dela. A partir daquele instante, podia viver com este novo calor.
O comboio expresso descreveu um grande arco, percorrendo a linha da costa do oceano no sopé das altas montanhas, e chegou a um ponto onde se viam as duas luas, pairando, lado a lado no céu, por cima do mar calmo. Destacavam-se muito bem – a lua grande, amarela, e a lua pequena, verde – de contornos bem definidos, mas a uma distância incomensurável. Ao luar, a superfície do mar, com uma ondulação mínima, cintilava misteriosamente, como se de pedaços de vidro se tratasse. Enquanto o comboio descrevia a curva, as duas luas cruzaram devagar a janela, deixando um rasto desses fragmentos, qual recordação silenciosa, até desaparecerem de vista.
Quando as luas desapareceram, o calor regressou ao peito de Tengo. Apesar de fraco, era indubitável que estava lá, transmitindo uma promessa como uma luz que o viajante vê a grande distância.
A partir de agora, vou viver neste mundo, pensou Tengo, e fechou os olhos. Ainda não sabia como fora criado este mundo, ou quais os princípios que o regiam, e não tinha maneira de adivinhar o que iria acontecer. Mas não fazia mal. Não precisava de ter medo. O que quer que fosse que o esperava, ele sobreviveria neste mundo com duas luas e descobriria o caminho a seguir – desde que nunca se esquecesse daquele calor, desde que não perdesse o que o seu coração sentia.
Deixou-se ficar assim durante muito tempo, de olhos fechados. Mais tarde, abriu os olhos e olhou para a escuridão do princípio da noite outonal, para além da janela. O oceano há muito que desaparecera.
Repetiu o seu juramento:
Aconteça o que acontecer, vou encontrar a Aomame. Seja em que mundo for, seja ela quem for.
Haruki Murakami
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