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3 1Q84 / Haruki Murakami
3 1Q84 / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Pontapés num recanto afastado da consciência
– Importava-se de não fumar, senhor Ushikawa? – perguntou o homem mais baixo.
Por momentos, Ushikawa fixou o rosto do indivíduo sentado do outro lado da secretária, e depois baixou os olhos para o Seven Stars que tinha entre os dedos. O cigarro não estava aceso.
– Se não lhe causar transtorno – acrescentou o homem, sempre num tom muito delicado.
Ushikawa exibiu uma expressão de perplexidade, como se perguntasse a si mesmo o que fazia ele com aquela coisa na mão.
– As minhas desculpas – disse –, não deveria ter puxado do cigarro. Não tenho qualquer intenção de o acender. Foi um gesto automático.
O indivíduo ergueu e baixou o queixo um centímetro, se tanto, conseguindo que o olhar não se desviasse por um segundo. Toda a sua atenção estava concentrada nos olhos de Ushikawa. Este último voltou a guardar o cigarro dentro do maço, que meteu na gaveta.
O outro homem, alto e com o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, estava de pé à entrada, apoiando-se tão impercetivelmente na ombreira da porta que era difícil dizer se estava encostado a ela. Observava Ushikawa como se ele não passasse de uma simples mancha na parede. Que tipos tão sinistros, pensou Ushikawa. Era a terceira vez que se reunia com os dois, e aquela dupla continuava a produzir nele sempre a mesma sensação de intranquilidade.
O homem baixo e de cabeça rapada estava sentado à sua frente, atrás da única mesa que havia naquele exíguo gabinete. Era ele quem fazia as honras da conversa. O colega com o rabo-de-cavalo manteve-se em silêncio do princípio ao fim. Completamente imóvel, limitava-se a olhar para a cara de Ushikawa, como as estátuas em forma de leão1 que guardam a entrada dos santuários xintoístas.
– Já passaram três semanas – constatou o Bola-de-Bilhar.

 


 

 

Ushikawa pegou no calendário de secretária, comparou as suas anotações e assentiu com a cabeça.

– Com efeito, faz hoje precisamente três semanas desde a última vez que nos encontrámos.

– Durante todo este tempo, não recebemos qualquer notícia da sua parte. Como lhe disse antes, a situação é de extrema urgência. Não há um minuto a perder, senhor Ushikawa.

– Bem sei – respondeu Ushikawa, dando voltas ao seu isqueiro banhado a ouro, à falta de um cigarro entre os dedos. – Não dispomos de muito tempo. Tenho perfeita consciência desse facto.

O Bola-de-Bilhar esperou que o outro continuasse.

– Acontece que – prosseguiu Ushikawa – eu não quero fornecer-lhes informações a conta-gotas. Uma informação daqui, outra informação dali... Prefiro obter primeiro uma imagem de conjunto e ligar os diversos elementos, até chegar a um ponto em que seja possível vislumbrar o cerne da questão. Uma ideia mal cozinhada poderia ocasionar problemas desnecessários. Talvez lhe pareça egocêntrico, mas é este o meu método de trabalho, senhor Onda.

Onda, assim se chamava o Bola-de-Bilhar, olhou para ele com frieza. Ushikawa sabia que o homem não o tinha em grande conta, mas pouco ou nada se importava com isso. Que se lembrasse, nunca na sua vida causara boa impressão em ninguém. Para ele, aquele tratamento era moeda corrente, por assim dizer. Os pais e os irmãos nunca tinham gostado dele, e o mesmo acontecera com os professores e os companheiros de escola, por quem jamais fora apreciado. Nem sequer a mulher e as filhas sentiam um grande afeto por Ushikawa. Se alguém, de facto, simpatizasse com ele, aí, sim, era caso para ficar preocupado, porque normalmente acontecia o contrário. Já estava habituado.

– Na medida do possível, senhor Ushikawa, é nossa intenção respeitar a sua maneira de fazer as coisas. De resto, creio que o temos feito até à data. Acontece, porém, que desta vez o caso é diferente. Lamento, mas não nos podemos dar ao luxo de esperar até que obtenha todas as informações.

– Compreendo, senhor Onda, mas imagino que não tenham ficado de braços cruzados, à espera de eu entrar em contacto convosco – replicou Ushikawa. – Suspeito que, paralelamente à minha investigação, também devem ter tomado as vossas providências. Estou enganado?

O Bola-de-Bilhar não lhe deu resposta. Manteve os lábios apertados, formando uma perfeita linha horizontal. A sua expressão permaneceu inalterada. No entanto, pela reação, Ushikawa percebeu que não andava longe da verdade. Durante aquelas três semanas, os rapazes haviam-se organizado e, utilizando provavelmente táticas diferentes das suas, tinham-se posto em campo a fim de encontrar o paradeiro da mulher. Pelos vistos, não chegaram a nenhum resultado palpável, daí que a sinistra parelha se virasse de novo para ele, marcando presença no seu escritório.

– É costume dizer-se: «para vilão, vilão e meio» – sentenciou Ushikawa, abrindo as palmas das mãos, como se estivesse a revelar um segredo muito especial. – Tentem esconder alguma coisa e este vilão aqui conseguirá apurar o seu rasto. Posso não ter uma aparência muito agradável, mas o meu faro não me engana. Sou capaz de seguir a pista mais ténue e localizar a sua origem num ápice. Contudo, uma vez que sou o mau da fita, só posso trabalhar à minha maneira e impor o meu ritmo. Bem sei que o tempo é um fator importante, mas peço-lhes que esperem um pouco mais. Se não tiverem paciência, arriscam-se a ficar de mãos a abanar.

O Bola-de-Bilhar seguia calmamente com o olhar Ushikawa, que brincava com o isqueiro. Depois levantou a cabeça e olhou para cima.

– Gostaria que nos contasse o que descobriu até ao momento, mesmo que o relatório fique incompleto. O senhor terá a sua maneira de fazer as coisas, e nós compreendemos isso, acredite, mas, se regressarmos sem apresentar nenhum resultado concreto, por pequeno que seja, os nossos superiores não vão ficar contentes. O que equivale a dizer que nos veríamos metidos em apuros. Além disso, senhor Ushikawa, não creio que a sua situação se apresente muito favorável.

Estes tipos estão entre a espada e a parede, pensou Ushikawa com os seus botões. Especialistas em artes marciais, os dois foram escolhidos para trabalhar como guarda-costas do Líder. O que não impedira, no entanto, que o Líder tivesse sido assassinado mesmo nas suas barbas, muito embora não existissem provas concretas do homicídio. Com efeito, vários médicos ligados à Vanguarda haviam examinado o cadáver sem encontrar sinais de qualquer ferida exterior. Nas instalações médicas da organização não dispunham de equipamento sofisticado; por outro lado, o tempo corria contra eles. Se uma equipa de patologistas tivesse investigado o caso a fundo e procedesse a uma autópsia meticulosa, provavelmente acabariam por descobrir alguma coisa de errado, mas era demasiado tarde. Já se tinham desembaraçado do cadáver no interior das instalações onde funcionava a organização, garantindo que os seus membros não dessem por nada.

Em todo o caso, revelando-se incapazes de proteger o Líder, aqueles dois encontravam-se numa situação muito delicada no interior da comunidade religiosa. Por enquanto, estavam encarregados de localizar o paradeiro da mulher, da qual não havia qualquer indício. A missão consistia em encontrá-la por todos os meios ao seu alcance, nem que para isso tivessem de semear um rasto de destruição, não deixando pedra sobre pedra. A verdade, porém, é que, até à data, ainda não possuíam uma única pista para amostra. Apesar de serem profissionais experientes, não estavam preparados para se lançarem em perseguição de pessoas que se evaporavam sem deixar rasto.

– Muito bem – disse Ushikawa. – Vou partilhar convosco alguns dos factos que descobri até agora. Não digo a história toda, porque isso não posso revelar, mas uma parte.

O Bola-de-Bilhar semicerrou os olhos durante um bocado. Depois assentiu.

– Parece-me perfeito. Pela nossa parte, também estamos na posse de alguns pormenores. Refiro-me a certas coisas que se calhar já conhece, e daí talvez não. Podemos trocar informações.

Ushikawa pousou o isqueiro e entrelaçou os dedos por cima da mesa.

– Essa jovem, Aomame de seu nome – começou ele a explicar –, foi chamada à suíte do Hotel Okura para realizar uma sessão de alongamentos musculares que ajudariam o Líder a descontrair os músculos. Aconteceu no início de setembro, numa noite em que desabou sobre o centro de Tóquio uma trovoada das antigas. Aomame realizou o seu trabalho durante cerca de uma hora, num quarto separado, após o que se retirou, deixando o Líder a dormir. Pediu-vos que o deixassem sossegado, tal como estava, a descansar durante duas horas, e vocês seguiram as instruções dela. Acontece, porém, que o Líder não dormia. Já se encontrava morto. O seu corpo não exibia qualquer ferimento externo. Tudo indicava ter-se tratado de uma paragem cardíaca. Logo a seguir, a rapariga desapareceu do mapa. Tinha abandonado o apartamento onde vivia, não deixando lá nada: foram encontrá-lo desocupado e completamente vazio. No dia seguinte, chegou ao ginásio onde trabalhava a sua carta de demissão. Parecia estar tudo planeado ao pormenor. Daí que a conclusão inevitável aponte para ter sido essa tal Aomame a matar o Líder.

O Bola-de-Bilhar concordou com a cabeça. Até ali, não tinha objeções a fazer.

– O vosso objetivo consiste em averiguar a verdade – considerou Ushikawa. – Dê lá por onde der, têm de deitar a mão à rapariga.

– Precisamos de saber se foi realmente essa tal Aomame quem matou o Líder e, em caso afirmativo, por que motivo o fez e quem se encontra por detrás do golpe.

Ushikawa observou os seus dez dedos, unidos sobre a mesa, e teve a sensação curiosa de estar a olhar para eles como se nunca os tivesse visto antes. A seguir, levantou a cabeça e encarou o seu interlocutor.

– Calculo que já tenham investigado os familiares da Aomame. Todos eles são membros devotos das Testemunhas. Os pais ainda continuam as ações de proselitismo porta a porta. O irmão mais velho, de trinta e quatro anos, trabalha na sede, em Odawara; está casado com uma fervorosa crente, de quem teve dois filhos. Aomame é a única da família que se distanciou da organização religiosa. Uma apóstata, para empregar uma expressão que eles usam. Em consequência disso, a família cortou relações com ela. Tudo indica que não contactou os familiares durante estes últimos vinte anos. Não creio que haja possibilidade de estarem a dar-lhe cobertura. Houve uma temporada em que ficou a viver em casa de um tio, mas, assim que entrou para o secundário superior, tornou-se independente. Não deixa de ser espantoso! Estamos a falar de uma mulher cheia de garra, disso não restam dúvidas.

O Bola-de-Bilhar não disse nada. Já devia estar ao corrente de todas aquelas informações.

– Não acredito que os das Testemunhas estejam implicados no assunto – prosseguiu Ushikawa. – São conhecidos pelo seu pacifismo e pela defesa incondicional do princípio da não violência. É impensável que pudessem atentar contra a vida do Líder. Imagino que estarão de acordo comigo neste ponto.

– A Associação das Testemunhas não se encontra envolvida em nada disto – asseverou o Bola-de-Bilhar, confirmando-o com um aceno de cabeça. – Isso para mim é claro como água. À cautela, tivemos uma conversazinha com o irmão dela. Só por mera precaução. Mas ele não sabia de nada.

– Não me diga que, por mera precaução, lhe arrancaram as unhas? – insinuou Ushikawa.

O Bola-de-Bilhar ignorou a pergunta.

– Vamos, não fique tão sério, homem – atalhou Ushikawa. – Era apenas uma brincadeira. Tenho a certeza de que o irmão não estava a par nem do que fazia a Aomame, nem do seu paradeiro. Pela minha parte, sou um pacifista convicto e nunca me comporto de maneira violenta, mas compreendo determinados métodos. A Aomame não tem qualquer espécie de relação com a família nem com a Associação das Testemunhas. No entanto, salta aos olhos que não teria sido capaz de engendrar sozinha um plano tão elaborado. Dá para ver que o cenário foi preparado até ao mais ínfimo pormenor, e ela limitou-se a seguir os passos delineados. Ao mesmo tempo, a sua entrada em cena quase parece obra de um demónio. Para tal, precisou de ajuda exterior e de fundos consideráveis. Por detrás dela deve ter existido alguém, e quando digo alguém refiro-me a uma organização que desejava a todo o custo a morte do Líder. Foram eles que orquestraram tudo. Calculo que, também neste ponto, estaremos no mesmo comprimento de onda.

O Bola-de-Bilhar acenou afirmativamente com a cabeça.

– De uma forma geral, sim.

– Devo confessar, porém, que não faço a mínima ideia de que organização poderemos estar a falar – reconheceu Ushikawa. – Parto do princípio de que terão investigado o círculo das suas relações, não é verdade?

O Bola-de-Bilhar assentiu em silêncio.

– E, quase aposto, não encontraram nenhuma relação de amizade, nenhum conhecido que se mostrasse relevante para a vossa investigação – incitou Ushikawa. – Não tem amigos e, pelos vistos, não tem namorado. Entre os companheiros do ginásio, ninguém com quem mantivesse uma relação pessoal fora das horas de trabalho. Pelo menos eu não encontrei indícios de um relacionamento mais próximo com quem quer que fosse. Como é possível, pergunto eu? Sendo ela uma rapariga nova, saudável e com boa figura.

Dito isto, Ushikawa olhou de relance para o homem com o rabo-de-cavalo, que se encontrava de pé, encostado à porta. Não mudara de postura nem de expressão desde o início da conversa. Era caso para duvidar que ele tivesse expressão. Ushikawa perguntou a si mesmo se o indivíduo teria nome. A confirmar-se, isso não o surpreenderia.

– Vocês são os únicos que chegaram a ver a cara da Aomame – afirmou Ushikawa. – Que têm a dizer? Como é que ela era? Repararam em algum traço especial?

O Bola-de-Bilhar abanou a cabeça ligeiramente.

– Como lhe disse, é uma rapariga ainda jovem e bastante atraente. Mas também não se pode dizer que seja uma daquelas belezas estonteantes. Estamos a falar de uma mulher tranquila e calma. Parecia ter plena confiança nas suas capacidades enquanto fisioterapeuta. Fora isso, não houve nada que despertasse verdadeiramente a nossa curiosidade. De facto, pensando bem, é estranho que tenha deixado em mim uma impressão tão vaga. Nem sequer das suas feições me lembro bem...

Ushikawa voltou a olhar para o Rabo-de-Cavalo, que continuava especado junto à porta. Teria ele alguma observação a acrescentar? Decididamente, não lhe parecia que o outro fosse abrir a boca. Ushikawa virou de novo a sua atenção para o Bola-de-Bilhar.

– Calculo que tenham investigado o registo das chamadas telefónicas feitas pela Aomame nos dois últimos meses. É verdade?

O Bola-de-Bilhar negou com a cabeça.

– Não, ainda não chegámos a esse ponto.

– Pois deviam fazê-lo – sugeriu Ushikawa com um sorriso. – Vão ver que vale a pena. As pessoas passam a vida a fazer e a receber chamadas. A análise dos registos telefónicos de alguém permite ver como essa pessoa vive. A Aomame não é exceção. Por outro lado, se bem que aceder a um registo de chamadas não seja fácil, também não é impossível. Como vos dizia, para vilão, vilão e meio.

O Bola-de-Bilhar aguardou em silêncio que ele prosseguisse.

– Lendo o registo das chamadas feitas pela Aomame, vêm ao de cima certos dados. Coisa rara e pouco vista, tratando-se de uma mulher, a Aomame não gosta de falar ao telefone. Os telefonemas feitos são escassos e duram pouco. Volta e meia, lá mantinha uma ou outra conversa mais longa, mas são casos excecionais. As chamadas eram quase todas para o ginásio, porém, como trabalhava por conta própria, algumas vezes tratava com os clientes particulares e marcava ela diretamente os encontros, sem passar pela secretaria do health club. Chamadas dessas também havia muitas, mas, pelo que me foi dado a concluir, nenhuma suscetível de levantar suspeitas.

Ao chegar àquele ponto da conversa, Ushikawa fez uma pausa. Enquanto observava de diversos ângulos os dedos manchados de nicotina, passou-lhe pela cabeça fumar. Acendeu mentalmente um cigarro, deu uma passa e depois expulsou o fumo.

– No entanto, houve duas coisas que despertaram a minha atenção. A primeira é ter feito duas chamadas para a polícia. E não me refiro ao 1102, mas sim ao Departamento de Trânsito, que funciona na Esquadra de Shinjuku. Também recebeu umas quantas chamadas a partir desse mesmo local. Ora, ela não conduz e, que eu saiba, os polícias não têm recursos para receber treino particular num ginásio de luxo. O que significa que deve conhecer alguém nesse departamento. Não faço ideia de quem possa ser. A outra coisa que me preocupa prende-se com as várias chamadas de longa duração feitas para um número desconhecido. Foi sempre ela quem recebeu as chamadas; não telefonou uma única vez. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para localizar o número, mas sem êxito. Não há dúvida de que utilizam algum mecanismo para não tornar público o nome do assinante, porém, deitando mão a certos recursos, mesmo esses números podem ser obtidos. Por mais que me esforçasse, não consegui os meus intentos. É um segredo guardado a sete chaves. O que não deixa de ser fora do vulgar, convenhamos.

– Pelo que vejo, quem se encontra do outro lado pode conseguir coisas pouco usuais.

– Precisamente. Não restam dúvidas de que estamos a lidar com profissionais.

– Um ladrão de outra estirpe – acrescentou o Bola-de-Bilhar.

Ushikawa passou a mão pelo seu crânio disforme e calvo e esboçou um sorriso malicioso.

– Isso mesmo. Ladrões de outra estirpe. Gente bastante poderosa, em todo o caso.

– Pelo menos, tudo indica que por detrás dela operam profissionais – referiu o Bola-de-Bilhar.

– Isso é verdade. A Aomame trabalha para alguma organização. E não estamos a falar de amadores que se dediquem a isso nos tempos livres...

O Bola-de-Bilhar baixou as pálpebras e pôs-se a estudar Ushikawa. Depois virou costas e trocou um olhar com o Rabo-de-Cavalo, que permanecia de pé junto à porta. Este fez-lhe um breve sinal com a cabeça para dar a entender que estava a seguir a conversa. O Bola-de-Bilhar tornou a fitar Ushikawa.

– E agora? – perguntou o Bola-de-Bilhar.

– Agora – replicou Ushikawa – toca-me a mim fazer as perguntas. Vocês não têm pistas? Não fazem ideia de alguma organização ou de um grupo que pudesse ter interesse em liquidar o vosso Líder?

O Bola-de-Bilhar franziu as longas sobrancelhas. Formaram-se três rugas por cima do seu nariz.

– Olhe, senhor Ushikawa, pense bem no que lhe vou dizer. Nós somos uma organização religiosa. Perseguimos a paz da alma e os valores espirituais. Vivemos em harmonia com a Natureza, dedicamo-nos aos trabalhos agrícolas no dia a dia e entregamo-nos à prática da ascese. Quem é que, por alma do diabo, poderia considerar-nos seus inimigos? E que teriam a ganhar com o homicídio do nosso Líder?

Um sorriso ambíguo desenhou-se nos lábios de Ushikawa.

– Em toda a parte existem fanáticos. Quem sabe o que vai na mente de um fanático?

– Pela nossa parte, não temos pista nenhuma – respondeu o Bola-de-Bilhar, de maneira inexpressiva, fazendo tábua rasa da ironia que o comentário de Ushikawa deixava entrever.

– E que me dizem do grupo Amanhecer? Poderiam ser eles? Julgo saber que ainda existem membros espalhados por aí...

O Bola-de-Bilhar voltou a negar com a cabeça, desta vez de forma categórica. Pretendia com aquele gesto dizer que era impossível. Para evitar problemas no futuro, deviam ter esmagado todas as pessoas que estavam de alguma forma relacionadas com o Amanhecer, sem deixar rasto.

– Pronto! Já estou a ver que não fazem ideia de quem possa ter sido. O certo, porém, é que uma organização qualquer atentou contra a vida do vosso Líder e eliminou-o. De uma maneira muito hábil e engenhosa, há que reconhecer. E depois desfez-se em fumo e evaporou-se. É uma verdade incontornável.

– E nós temos de apurar o que aconteceu e descobrir quem está por detrás disso.

– Sem a ajuda da polícia.

O Bola-de-Bilhar assentiu, antes de dizer:

– O problema só a nós diz respeito. Não se trata de uma questão legal.

– Perfeito – afirmou Ushikawa. – Compreendido. Deixaram a vossa posição muito clara. No entanto, há outra coisa que vos quero perguntar.

– Força – disse o Bola-de-Bilhar.

– Na vossa organização, quantas pessoas sabem que o Líder morreu?

– Sabemos nós os dois – explicou o Bola-de-Bilhar. – Mais duas pessoas que ajudaram a transportar o cadáver, subordinados nossos. Da direção, apenas cinco membros estão ao corrente, o que perfaz nove pessoas. Ainda não dissemos nada às três sacerdotisas, mas vão acabar por descobrir, mais cedo ou mais tarde. Estavam única e exclusivamente ao serviço dele, portanto, não lhes podemos ocultar a notícia durante muito tempo. E, claro, não nos podemos esquecer de si, senhor Ushikawa, que também está a par.

– Treze pessoas, no total.

O Bola-de-Bilhar não fez comentários.

Ushikawa soltou um suspiro profundo.

– Posso dar-vos a minha opinião sincera?

– Claro que sim – retorquiu o Bola-de-Bilhar.

– Bem sei que nesta altura já não adianta muito dizer isto, meus rapazes, mas, na minha opinião, deveriam ter entrado em contacto com a polícia assim que perceberam que o vosso Líder estava morto. Essa morte, por todas as razões e mais alguma, devia ter sido do conhecimento público. Um segredo desta natureza não pode ser camuflado eternamente. Quando mais de dez pessoas conhecem um segredo, bom... deixa de haver segredo. Não estranharia que isso vos causasse sérios imbróglios, mais cedo ou mais tarde.

A expressão do Bola-de-Bilhar não se alterou.

– Tomar decisões não é o nosso trabalho. Limitamo-nos a acatar ordens.

– Nesse caso, quem toma as decisões?

A pergunta ficou sem resposta.

– A pessoa que substitui o Líder?

O Bola-de-Bilhar manteve-se em silêncio.

– Muito bem – declarou Ushikawa, num tom resignado. – Seguindo as instruções dos vossos superiores, desembaraçaram-se do cadáver do Líder no maior sigilo. Na organização a que pertencem, as ordens que vêm de cima são inquestionáveis. Contudo, de um ponto de vista jurídico, trata-se de um claro delito de inumação ilegal. Um crime bastante grave. Devem estar fartos de saber.

O Bola-de-Bilhar acenou afirmativamente.

Ushikawa voltou a suspirar.

– Como lhes disse antes, no caso de se verem a contas com a justiça, lembrem-se de que eu nada sei sobre a morte do Líder. A última coisa de que preciso é arcar com um processo...

– O senhor não foi informado acerca da morte do nosso Líder – referiu o Bola-de-Bilhar. – Na qualidade de investigador, foi por nós contratado para localizar o paradeiro de uma jovem chamada Aomame, mais nada. Não cometeu nenhuma infração à lei.

– Perfeito. Eu não sei de nada – disse Ushikawa.

– Por nós, se fosse possível, também preferíamos que uma pessoa estranha à organização não possuísse informações acerca do assassínio do Líder. Mas quem investigou o círculo de pessoas à volta da Aomame e quem deu luz verde para ela trabalhar connosco foi o senhor, Ushikawa. Por isso, está implicado no caso desde o princípio. Precisamos que nos ajude a encontrá-la. E, obviamente, terá de ser o mais discreto possível.

– Saber guardar segredos é um dos princípios básicos da minha profissão. Não se preocupem. A minha boca é um túmulo.

– Se o segredo viesse a saber-se e descobríssemos que tinha sido você a pôr a boca no trombone, a coisa poderia revelar-se muito desagradável para si.

Ushikawa olhou para a mesa e observou de novo os dez dedos rechonchudos ali pousados. Parecia surpreendido ao descobrir que aqueles eram os seus próprios dedos.

– Uma coisa desagradável – repetiu Ushikawa, levantando a cabeça.

O Bola-de-Bilhar semicerrou ligeiramente os olhos.

– Temos de ocultar a morte do Líder, dê lá por onde der. E estamos dispostos a não olhar a meios para atingir os fins.

– Guardarei segredo. Quanto a isso, podem ficar tranquilos – afirmou Ushikawa. – Até hoje, a nossa colaboração sempre deu bons resultados. É preciso não esquecer que me encarreguei de uma série de tarefas que vocês os dois nunca poderiam ter realizado às claras. Apanhei pela frente alguns trabalhos duros, mas sempre me pagaram bem. Por isso, a minha boca não se abrirá. Apesar de não ser crente, pessoalmente estou muito agradecido ao vosso defunto Líder por todas as atenções que me dispensou. Estou a fazer os possíveis e os impossíveis para localizar o paradeiro da jovem Aomame e empenhar-me-ei a fundo no sentido de averiguar o sucedido, aquilo que está por detrás de toda a história. De resto, já iniciei as minhas investigações e o esforço começa a dar frutos. Por isso, tenham um pouco de paciência e aguardem. Em breve deverei ter boas notícias para vos dar.

O Bola-de-Bilhar mudou um pouco de posição sem se levantar da cadeira. Como se estivesse sintonizado com ele, o Rabo-de-Cavalo, sempre encostado à porta, passou também o peso de uma perna para a outra.

– É toda a informação que possui até ao momento? – perguntou o Bola-de-Bilhar.

Ushikawa meditou na resposta a dar.

– Como tive ocasião de lhes dizer, a Aomame telefonou duas vezes para o Departamento de Trânsito da Polícia Metropolitana de Tóquio. Também recebeu algumas chamadas por parte deles. Desconheço ainda o nome do contacto que ela ali tem. No fim de contas, estamos a falar da polícia, e uma pessoa não se pode arriscar a perguntar-lhes diretamente. Porém, às tantas surgiu-me uma ideia, que começou a andar às voltas na minha cabecinha tola. Lembrava-me de qualquer coisa e sabia que era algo relacionado com o Departamento de Trânsito. O que seria? A informação devia estar presa no fundo da minha pobre memória. Demorei bastante tempo, mas lá acabei por me recordar. Isto de uma pessoa caminhar para velha tem que se lhe diga. Com o passar dos anos, os compartimentos da memória começam a emperrar e não abrem com tanta facilidade. Antigamente, lembrava-me de tudo e mais alguma coisa no mesmo instante. Isto para dizer que demorei uma semana, até que por fim me veio à lembrança.

Ushikawa calou-se ao dizer aquilo e fez um sorriso teatral, sem nunca deixar de olhar para o Bola-de-Bilhar, que aguardou pacientemente que ele retomasse o fio à meada.

– Em agosto deste ano, uma jovem agente do Departamento de Trânsito da Esquadra de Shinjuku apareceu estrangulada num love hotel do bairro de Maruyama, em Shibuya. Encontraram-na despida, com as suas próprias algemas postas. Foi um escândalo, claro. As conversas telefónicas que a Aomame manteve com alguém dessa esquadra ocorreram meses antes do incidente. A partir desse momento, não se registou mais nenhuma chamada. Que me dizem? Não lhes parece que há aqui uma coincidência demasiado grande?

O Bola-de-Bilhar ficou calado durante um bocado, até que se dignou responder:

– Está a sugerir que a pessoa com quem a Aomame mantinha contacto era a agente assassinada?

– Chamava-se Ayumi Nakano. Tinha vinte e seis anos. Era uma rapariga bastante agradável à vista, por sinal. Vinha de uma família de polícias: o pai e o irmão também são agentes. Sei que ela tinha obtido uma classificação excelente nas provas de admissão à academia. Como é evidente, a polícia está a investigar o caso e todos os meios foram disponibilizados, mas ainda não se sabe quem foi o assassino. Espero que não se deixe intimidar pela pergunta que vou fazer a seguir, mas não terão algumas informações que me possam avançar a propósito deste caso?

O Bola-de-Bilhar lançou a Ushikawa um olhar frio e duro, que parecia acabadinho de extrair de um glaciar.

– Não sei bem onde quer chegar, senhor Ushikawa – disse ele. – Acaso pretende insinuar que temos alguma relação com o sucedido? Que um dos nossos levou a agente da polícia a esse hotel de má fama, onde a algemou e estrangulou até à morte?

Ushikawa franziu os lábios e fez o gesto de negar com a cabeça.

– Não, que disparate! Essa ideia nunca me passou pelo espírito. O que pergunto é se terão alguma pista relacionada com o caso, só isso. Qualquer indício, por insignificante que seja, poderia revelar-se de grande utilidade. Por mais que esprema os miolos, não consigo encontrar uma relação entre a morte da agente no hotel de Shibuya e o homicídio do Líder.

O Bola-de-Bilhar observou Ushikawa, como se estivesse a tirar-lhe as medidas. Só passado um certo tempo deixou escapar um longo e contido suspiro.

– Entendido. Transmitirei essa informação aos meus superiores. – A seguir pegou num caderno de apontamentos e tomou as suas notas. – Ayumi Nakano. Vinte e seis anos. Departamento de Trânsito da Polícia de Tóquio. Esquadra de Shinjuku. Possível relação com Aomame.

– Exato.

– Mais alguma coisa?

– Sim, só mais uma coisa. Alguém na vossa comunidade deve ter mencionado o nome da Aomame, nem que fosse em conversa, para dizer que conhecia em Tóquio uma professora de ginásio especializada em alongamentos musculares. Tal como fez questão de referir, eu aceitei investigar o seu círculo de conhecimentos. Não pretendo justificar-me, mas fi-lo com a meticulosidade e o mesmo entusiasmo de sempre. O estranho foi que não encontrei nada... de estranho, nada que levantasse suspeitas. A rapariga estava completamente limpa. Daí que a tenham mandado ir ter convosco ao Hotel Okura. O resto já nós sabemos. Por isso pergunto outra vez: quem foi que a recomendou?

– Não sei.

– Não sabe? – admirou-se Ushikawa. Parecia um menino com dificuldade em perceber o que acabavam de lhe dizer. – Alguém dentro da vossa organização propôs o nome da Aoma-me e ninguém se lembra de quem foi. É isso que me está a dizer?

– Sim – respondeu o Bola-de-Bilhar sem mudar de expressão.

– É esquisito, para não dizer bizarro... – comentou Ushikawa, num tom que traduzia bem a sua enorme perplexidade.

O Bola-de-Bilhar manteve o silêncio.

– Parece-me inexplicável. Quer então dizer que não temos maneira de saber quando é que surgiu o nome da Aomame e quem poderá tê-lo divulgado. Sabemos apenas que alguém trouxe o nome dela à baila e que o plano seguiu em frente. Certo?

– Para ser franco, quem se mostrou mais entusiasmado com a ideia de a contratarmos foi o próprio Líder – respondeu o Bola-de-Bilhar, medindo cuidadosamente as suas palavras. – Na direção havia quem julgasse que poderia ser perigoso entregar o corpo do Líder nas mãos de uma desconhecida. Na qualidade de guarda-costas, nós os dois também não víamos a coisa com bons olhos, confesso. Mas o Líder não se mostrou preocupado com o assunto. Pelo contrário, até insistiu nisso.

Ushikawa tornou a pegar no isqueiro, abriu a tampa e acendeu-o para ver se funcionava. Ato contínuo, fechou-o outra vez.

– Estava convencido de que o Líder era um homem extremamente cauteloso – observou ele.

– E era, com efeito. Extremamente cauteloso e prudente.

Fez-se um silêncio profundo.

– Tenho outra pergunta – insistiu Ushikawa. – Agora, acerca de Tengo Kawana. Mantinha uma relação com uma mulher casada, mais velha do que ele, Kyoko Yasuda. Uma vez por semana, ela visitava-o no seu apartamento e passavam umas boas horas juntos, num ambiente de grande intimidade. O rapaz ainda é jovem, por isso são coisas que acontecem naturalmente. Certo dia, porém, o marido dela pegou no telefone e ligou ao Tengo para lhe comunicar que a sua mulher nunca mais voltaria a aparecer lá em casa. E, desde então, a Kyoko não tornou a entrar em contacto com ele.

O Bola-de-Bilhar franziu as sobrancelhas.

– Agora é que perdi o comboio. Está a insinuar que o Tengo Kawana tem alguma coisa que ver com esta história toda?

– Bom, não iria tão longe. Simplesmente, é uma questão que me preocupa desde há já algum tempo. O normal seria ela ter-lhe ligado, pelo menos uma última vez, atendendo a que a relação entre os dois era bastante séria. Mas a verdade é que a mulher desapareceu sem deixar rasto. Pessoalmente, fico desconfiado. Daí que tenha perguntado, por uma questão de precaução. Não fazem ideia do que poderá ter acontecido?

– Eu, pelo menos, não tinha sequer conhecimento da existência dessa mulher – respondeu o Bola-de-Bilhar numa voz monocórdica. – Kyoko Yasuda. Mantinha uma relação com o Tengo Kawana.

– Era casada, dez anos mais velha que ele.

O Bola-de-Bilhar apontou os dados no seu caderno.

– Em todo o caso, vou transmitir esta informação também aos meus superiores.

– Perfeito – disse Ushikawa. – A propósito... e no que diz respeito ao paradeiro da Eriko Fukada? Sabe-se alguma coisa?

O Bola-de-Bilhar levantou a cabeça e fitou Ushikawa, dando a ideia de estar a olhar para um quadro torto na parede.

– Por que carga-d’água haveríamos de saber alguma coisa da Eriko Fukada?

– Não lhes interessa saber o paradeiro dela?

O Bola-de-Bilhar abanou a cabeça.

– Digamos que o assunto não nos diz respeito. A Eriko Fukada é livre de fazer o que lhe der na real gana.

– E a respeito do Tengo Kawana? Não me digam que também não estão interessados nele?

– Não é da nossa conta.

– Se bem me lembro, tempos houve em que pareciam muito interessados nestas duas pessoas... – observou Ushikawa.

O Bola-de-Bilhar semicerrou os olhos por momentos e assim se deixou ficar. Depois, quando abriu a boca, foi para dizer:

– Por agora, o nosso interesse centra-se única e exclusivamente na Aomame.

– E o vosso interesse muda assim, de um dia para o outro?

O Bola-de-Bilhar alterou ligeiramente o ângulo dos seus lábios, mas não respondeu.

– Senhor Onda, por acaso leu A Crisálida de Ar, o romance que a Eriko Fukada escreveu?

– Não, não li. Estamos proibidos pela organização religiosa a que pertencemos de ler quaisquer livros que não tenham relação com a nossa doutrina. Nem sequer é permitido ter livros.

– Alguma vez ouviu falar no Povo Pequeno?

– Não – respondeu o Bola-de-Bilhar de imediato.

– Muito bem – disse Ushikawa.

A conversa ficou por ali. O Bola-de-Bilhar levantou-se devagar da cadeira e ajeitou as lapelas do casaco. Dando um passo em frente, o colega afastou-se da porta.

– Senhor Ushikawa, como lhe disse, neste caso o tempo é um fator de primordial importância – alvitrou o Bola-de-Bilhar, sempre a olhar fixamente de cima para Ushikawa, que permanecia sentado. – Precisamos de encontrar a Aomame quanto antes. Pela nossa parte, estamos a esforçar-nos ao máximo, mas gostaríamos que o senhor fizesse o mesmo, seguindo uma abordagem diferente. Se não a encontrarmos, a coisa pode ficar feia para nós os três. Afinal, estamos a falar com uma das raras pessoas que conhecem este importante segredo.

– Os grandes acontecimentos acarretam grandes responsabilidades.

– Exato – retorquiu o Bola-de-Bilhar num tom desprovido de emoção.

Em seguida, virou as costas e saiu da sala. O Rabo-de-Cavalo imitou-o e foi atrás dele, fechando a porta sem fazer ruído.

Assim que eles saíram, Ushikawa abriu a gaveta da secretária e desligou o gravador. Abriu a tampa do aparelho, extraiu a cassete e, com uma esferográfica, escreveu o dia e a hora na etiqueta. Para um homem com a sua desagradável aparência física, capaz de provocar uma certa repugnância, a verdade é que tinha uma bonita caligrafia. Depois, agarrou num maço de Seven Stars, tirou um cigarro, levou-o à boca e acendeu-o com o isqueiro. Puxou uma longa fumaça e expulsou o fumo em direção ao teto. Sempre com a cabeça virada para cima, deixou-se ficar um bocado com os olhos fechados. Quando voltou a abri-los, foi para verificar que horas eram no relógio de parede. Os ponteiros marcavam duas e meia. Mas que tipos mais sinistros, repetiu para si mesmo.

«Se não a encontrarmos, a coisa pode ficar feia para nós os três», dissera o Bola-de-Bilhar.

Ushikawa visitara a sede da Vanguarda nas montanhas de Yamanashi em duas ocasiões diferentes e tivera ocasião de ver o incinerador gigante localizado no meio do arvoredo, na parte de trás das instalações. Servia para queimar o lixo e os desperdícios, mas, como trabalhava a temperaturas extremamente elevadas, no caso de atirarem lá para dentro o cadáver do Líder não sobraria um único osso para amostra. Ushikawa sabia que eles se haviam desembaraçado dos corpos de várias pessoas desse modo. O do Líder provavelmente fora mais um. Ushikawa não queria conhecer a mesma sorte, como era natural. A ter de ir desta para melhor, um dia, preferia uma morte mais tranquila.

Claro está que havia um certo número de trunfos que Ushikawa guardara para si mesmo. Mostrar as cartas todas não era bem o seu estilo. Revelava umas quantas, que valessem menos, e deixava os parceiros espreitarem pelo canto do olho, mas as cartas de valor alto ficavam sempre escondidas atrás. Além disso, uma pessoa tinha de tomar as suas precauções. Por exemplo, gravando em segredo uma conversa privada, como ele acabara de fazer. Ushikawa era perito nesse tipo de jogadas. Tinha, de longe, bastante mais experiência do que aqueles dois jovens guarda-costas.

Conseguira os nomes que constavam na lista dos clientes particulares de Aomame. Desde que não se poupassem esforços e fazendo gala de um certo savoir-faire, era possível deitar a mão às informações mais secretas. Ushikawa levara por diante uma investigação bastante cuidadosa e ficara na posse da identidade dos tais doze nomes dos clientes particulares de Aomame. Oito mulheres e quatro homens, tudo gente bem colocada na vida, membros da alta sociedade. Ninguém entre eles levantava suspeitas de ter colaborado com uma assassina, mas, curiosamente, uma das clientes, uma septuagenária endinheirada, mandara construir uma casa-abrigo para acolher mulheres vítimas de maus-tratos. Recolhia essas mulheres que se encontravam em situação desfavorecida num edifício de dois andares, que ficava situado nos seus vastos domínios, mesmo ao lado da ampla mansão onde vivia.

Tratava-se de uma iniciativa digna de louvor. Porém, sempre que sentia qualquer coisa a dar-lhe pontapés num recanto afastado da sua consciência, Ushikawa não descansava enquanto não descobria do que se tratava. O seu faro era tão apurado como o de um animal, e, acima de tudo, confiava no seu instinto. Fora graças a ele que salvara a pele, por mais de uma ocasião. Cheirava-lhe que «violência» podia muito bem ser a palavra-chave daquele caso. A tal senhora de idade revelava uma forte consciência dos problemas relacionados com a violência, e, como tal, protegia as suas vítimas.

Ushikawa dera-se ao trabalho de inspecionar a casa-abrigo, a fim de proceder ao reconhecimento das instalações. O edifício, construído em madeira, erguia-se num terreno de valor elevado na zona alta de Azabu. Apesar de ser bastante antigo, tinha o seu encanto. Por entre a grade do portão da frente, vislumbrou um bonito canteiro de flores junto à entrada e um jardim coberto de relva, sobre o qual um enorme carvalho projetava a sua sombra. A porta da frente continha um pequeno vitral composto de diferentes motivos. Em Tóquio já não existiam muitas casas daquele género.

Contrastando com a tranquilidade que emanava daquele edifício, a segurança fazia-se notar, de tão excessiva. Os muros eram altos e estavam protegidos no topo por arame farpado. Atrás de um sólido portão de aço, à laia de patrulhador, encontrava-se um pastor alemão que fazia as vezes de cão de guarda, desatando a ladrar furiosamente sempre que alguém se acercava das instalações. Havia também várias câmaras de videovigilância instaladas. Uma vez que passava pouca gente naquela rua, não lhe convinha ficar ali especado durante muito tempo, para não chamar a atenção. Era uma zona residencial agradável, com várias embaixadas por perto. Se um homem com o aspeto inusitado de Ushikawa fosse visto a deambular por aquelas paragens, de certeza que haveria logo quem reparasse nele e questionasse as razões da sua presença.

Contudo, a vigilância era excessiva. Mesmo tratando-se de um refúgio para mulheres maltratadas, Ushikawa nunca vira tantas medidas de segurança. Palpitou-lhe que teria de indagar tudo o que pudesse sobre a casa-abrigo. Quanto mais protegida a mansão estivesse, mais compelido se sentia a forçar a porta e entrar lá dentro. Para tal, teria de puxar pelos neurónios e congeminar um plano engenhoso.

Veio-lhe à memória uma conversa tida com o Bola-de-Bilhar, a respeito do Povo Pequeno.

«Alguma vez ouviu falar no Povo Pequeno?»

«Não.»

A resposta do outro pecara por ser demasiado rápida. Se estivesse a ouvir aquele nome pela primeira vez, o normal seria ele demorar uns instantes antes de responder. O Povo Pequeno? Qualquer pessoa deixaria as palavras ecoarem na mente e rolarem na boca, e só então responderia. Isto é o que as pessoas normais costumam fazer.

Aquele homem que dava pelo nome de Bola-de-Bilhar tinha ouvido a expressão «Povo Pequeno» anteriormente. Ushikawa ignorava até que ponto ele conhecia o seu significado, mas, em todo o caso, não era a primeira vez que ouvia falar no Povo Pequeno.

Ushikawa apagou o cigarro, que entretanto já estava no fim, e, perdido nos seus pensamentos, acendeu outro. Desde há muito que decidira não passar a vida atormentado com a possibilidade de vir um dia a ter cancro do pulmão. Precisava da nicotina no seu sistema para se concentrar. Se nem sequer sabia o que o destino lhe reservava no tempo que ainda tinha pela frente, que necessidade havia de se preocupar com a sua saúde nos quinze anos mais próximos?

Enquanto fumava o seu terceiro Seven Stars, uma ideia atravessou-lhe o espírito.

Quem sabe?, pensou. Talvez a coisa funcione.

1 Komainu. (N. das T.)

2 Número de telefone de emergência, no Japão. (N. das T.)


2

AOMAME

Estou sozinha, mas não me sinto só

Quando escurecia, sentava-se na varanda e deixava-se estar ali a olhar para o parque infantil, que ficava do outro lado da rua. Aquela passara a ser a tarefa mais importante da sua rotina diária. O eixo da sua vida. Todos os dias, fizesse bom tempo, estivesse o tempo nublado ou mesmo quando chovia, ela sentava-se no seu posto de observação e vigiava sem descanso. Chegado o mês de outubro, o ar começou a arrefecer. Nas noites frias, usava várias camadas de roupa para se abrigar, colocava uma manta em cima das pernas e bebia chocolate quente. Até às dez e meia, entretinha-se a observar o escorrega; depois tomava um banho com todo o vagar e ia para a cama.

Naturalmente, não podia descartar a possibilidade de Tengo aparecer naquele sítio quando fosse de dia. No entanto, alguma coisa lhe dizia que tal não iria acontecer. Se ele se deixasse ver por aquelas bandas e aparecesse no parque, seria de noite, quando os candeeiros de mercúrio estivessem acesos e se visse a Lua brilhar no céu. Aomame comia sempre uma refeição ligeira à hora do jantar e vestia-se de forma a poder sair logo de casa se fosse preciso; penteava o cabelo e, sentada numa cadeira de jardim, deixava-se ficar de olhos postos no escorrega do parque infantil, com a pistola automática e o pequeno binóculo da Nikon sempre ao alcance da mão. Mal saía dali, com medo de que Tengo resolvesse dar um ar da sua graça quando ela estivesse enfiada na casa de banho; tirando o habitual chocolate quente, não bebia mais nada.

Mantinha uma vigilância cerrada todos os dias. Pusera de parte a leitura e deixara de ouvir música, limitando-se a observar o parque e prestando atenção a todos os ruídos provenientes do exterior. Praticamente não mudava de posição na cadeira. Limitava-se a erguer a cabeça, de tempos a tempos – no caso de a noite estar desanuviada –, para comprovar que as duas luas ainda continuavam ali. Depois tornava a dirigir o olhar em direção ao parque.

Aomame vigiava o parque, e as luas vigiavam-na a ela.

Mas não havia maneira de Tengo aparecer.

Poucas pessoas se aventuravam a frequentar o parque quando caía a noite. Volta e meia, aparecia um casal de namorados. Sentavam-se num banco, davam as mãos e trocavam pequenos beijos nervosos, como fazem as avezinhas. No entanto, o parque era pequeno e estava demasiado iluminado. Passado um bocado, mostravam-se inquietos e desistiam: iam namorar para outras paragens. Havia quem se aproximasse com a intenção de utilizar a casa de banho pública, mas, ao encontrar a porta fechada a cadeado, dava meia-volta e ia-se embora desapontado (ou, quem sabe?, irritado). De quando em quando, um qualquer indivíduo, talvez algum funcionário acabado de sair do escritório, passava por aquelas bandas, sentava-se sozinho num banco e assim ficava durante certo tempo, mudo e quedo, de cabeça baixa, provavelmente à espera de cozer a bebedeira. Ou então, se calhar, não lhe apetecia regressar direitinho a casa. Havia ainda um homem de idade que costumava levar o cão a passear, a altas horas da noite. Tanto o animal como o dono tinham um ar taciturno, de quem perdera toda a esperança.

De noite, porém, o parque encontrava-se quase sempre vazio. Nem sequer os gatos deambulavam por ali. Apenas a luz impessoal do candeeiro de mercúrio iluminava os baloiços, o escorrega, a caixa de areia e os lavabos públicos fechados a cadeado. Depois de passar muito tempo a observar aquele cenário, às tantas Aomame ficou com a sensação de ter sido abandonada num planeta desabitado. Veio-lhe à memória a cena de um filme que mostrava o mundo após uma guerra nuclear. Qual era o título? Ah, sim, A Hora Final.

Apesar de tudo, Aomame tomava o seu lugar e continuava na sua, muito concentrada na tarefa de vigiar o parque. Parecia um marinheiro que tivesse subido ao mastro mais alto e dali se aprestasse a descobrir um cardume de peixes ou a sombra ameaçadora de um periscópio em pleno mar alto. O olhar atento de Aomame procurava alcançar uma única coisa: a figura de Tengo Kawana.

Podia ser que Tengo vivesse noutro bairro e, naquela noite, calhasse passar por ali. Em todo o caso, a probabilidade de ele visitar novamente o parque era praticamente nula. Mas Aomame não pensava assim. A julgar pela maneira como estava vestido e pela sua atitude quando se sentara no escorrega, decidira sair de casa e dar uma volta pelo bairro, sem querer afastar-se muito de casa. E, de caminho, resolvera parar por minutos no parque e trepara para cima do escorrega. Sem dúvida para apreciar melhor a Lua. O que significava que não devia morar longe.

No bairro de Koenji não era fácil encontrar um lugar de onde se pudesse avistar a Lua. Tratava-se de uma zona plana, em geral, quase sem edifícios altos a que uma pessoa pudesse subir. Daí que o escorrega do parque não fosse um local nada mal escolhido. Era um posto de observação tranquilo, e ninguém o incomodaria. Isto no pensar de Aomame. O que não impediu que, um minuto depois, lhe passasse pela cabeça o seguinte: As coisas podem não ser assim tão lineares. Entretanto, se calhar, ele arranjou um sítio melhor para observar a Lua.

Aomame abanou a cabeça – um gesto breve e preciso. Não tenho nada que me pôr para aqui a dar largas à imaginação. A opção que me resta é aguardar pacientemente e acreditar que o Tengo vai regressar qualquer dia. Não posso afastar-me deste lugar, por agora, visto ser o único elo de ligação entre os dois.

* * *

Aomame não apertara o gatilho.

Estava-se no começo do mês de setembro. No meio de um engarrafamento, encadeada pela luz matinal, com o cano negro da Heckler & Koch enfiado na boca, encontrava-se em plena escapatória da Autoestrada Metropolitana 3 de Tóquio. Vestia um fato assinado pela estilista Junko Shimada e calçava uns sapatos de salto alto Charles Jourdan.

As pessoas que viajavam no interior dos outros carros observavam a cena, sem fazer ideia do que poderia estar a acontecer. Uma mulher de meia-idade num Mercedes-Benz coupé prateado. Homens de pele tisnada pelo sol, que olhavam para ela do alto da cabina, ao volante dos seus camiões de transporte de mercadorias. Aomame estava prestes a rebentar com os miolos, diante dos olhos de todos eles, enfiando na cabeça uma bala de nove milímetros. A única maneira de desaparecer de 1Q84 era acabando com a sua própria vida. Só assim poderia salvar a vida de Tengo. Pelo menos, fora o que o Líder lhe prometera. Tinha-lhe jurado isso e, depois, em troca, exigira que ela o matasse.

Aomame não tinha propriamente medo de morrer. O mais provável era estar tudo decidido, palpitava-lhe, pelo menos desde o momento em que fora arrastada para o mundo de 1Q84. No fundo, limito-me a seguir o guião. Que sentido faz continuar a viver completamente sozinha num mundo absurdo... um mundo com duas luas, uma grande e uma pequena, e onde seres que fazem parte de um tal Povo Pequeno controlam o destino dos humanos?

Às tantas, porém, acabou por não apertar o gatilho. No último instante, afrouxou a pressão feita pelo indicador direito e retirou o cano da boca. Como alguém que consegue por fim chegar à superfície, vindo das profundezas do mar, inspirou fundo, enchendo os pulmões de ar, para logo a seguir o expulsar. Parecia querer renovar todo o ar que albergava dentro de si.

Se interrompeu a sua tentativa de morrer foi por ter ouvido uma voz longínqua. A partir do momento em que pousara o dedo no gatilho, todo o ruído circundante se desvanecera. Tinha a sensação de estar mergulhada numa quietude extrema que fazia lembrar o fundo de uma piscina. No meio dessa calma, a morte não era obscura nem temível. Tal como o líquido amniótico, no caso de um feto, era algo natural, que se impunha como evidente. Não é assim tão mau, pensou Aomame, indo ao ponto de esboçar um leve sorriso. Foi então que ouviu a voz.

A voz parecia vir de longe, de um lugar e de um tempo distantes. Aomame não a reconheceu. Pelo facto de ter percorrido um longo caminho cheio de curvas e de obstáculos antes de chegar até ela, a voz perdera o seu verdadeiro timbre e a tonalidade original. Transformara-se num eco vazio desprovido de significado. Ainda assim, logrou captar nesse eco uma genuína réstia de calor, coisa que há muito não sentia. Dir-se-ia que a voz chamava pelo seu nome.

Em resposta, afrouxou a pressão no gatilho, semicerrou os olhos e prestou atenção, procurando escutar as palavras que a voz dizia. Mas o que conseguiu apurar, ou aquilo que pensou ter escutado, foi apenas o seu nome. O resto não passava do rumor produzido pelo vento que assobiava no vazio. Aos poucos, a voz afastou-se, acabou por se perder, até ser absorvida pelo silêncio. O vazio à sua volta desapareceu e, de repente, como se lhe tivessem tirado um tampão dos ouvidos, voltaram a ouvir-se os barulhos em redor. Quando se deu conta, a ideia de se matar já esmorecera.

É possível que torne a ver o Tengo naquele parque. Foi esse o pensamento que lhe passou pela cabeça. Tenho tempo para morrer depois. Vou apostar nessa hipótese com todas as minhas forças. Continuar a viver – e não morrer – pode significar a possibilidade de eu me reencontrar com o Tengo. Quero viver. Era uma sensação estranha. Alguma vez senti algo assim parecido na minha vida?

Aomame baixou o cão da pistola automática, colocou a patilha na posição de segurança e guardou a arma no saco que levava ao ombro. A seguir, corrigiu a sua postura, pôs os óculos escuros e começou a andar em sentido contrário ao do trânsito, em direção ao táxi que a levara até ali. As pessoas seguiam os seus movimentos com o olhar, sem dizer nada, observando como ela, de saltos altos, caminhava em grandes passadas pelo meio da autoestrada. Não teve de andar muito. O táxi em que se deslocara, apanhado no meio do engarrafamento, avançava a passo de caracol e encontrava-se a curta distância.

Quando Aomame bateu com os nós dos dedos na janela, o condutor baixou o vidro.

– Importa-se de me transportar de volta?

O taxista hesitou.

– Aquilo que tinha metido na boca... a modos que parecia uma pistola.

– E era uma pistola.

– A sério?

– Nem pensar – respondeu Aomame, fazendo uma careta.

O taxista abriu-lhe a porta automática e Aomame instalou-se no banco traseiro. Depois de se ter libertado do saco pendurado a tiracolo, que tratou de colocar ao seu lado no assento, limpou os lábios com um lenço. Na boca ainda sentia o sabor do metal e do óleo lubrificante utilizado para limpar a arma.

– Então, sempre encontrou as tais escadas de emergência? – perguntou-lhe o motorista de táxi.

Aomame negou com a cabeça.

– Não me admira nada. Nunca ouvi dizer que existissem escadas de emergência por estas bandas – observou o taxista. – E agora, sempre quer que a deixe ficar na saída de Ikejiri, como me disse ao princípio?

– Sim, isso seria perfeito – respondeu Aomame.

O condutor abriu a janela, pôs o braço de fora e passou para a faixa da direita, ficando diante de um grande autocarro. O taxímetro marcava a mesma quantia de quando ela tinha saído do táxi.

Aomame recostou-se no assento e, respirando com calma, dirigiu o olhar para o familiar letreiro da Esso. O tigre gigante olhava para ela de perfil, todo sorridente, ao mesmo tempo que empunhava uma mangueira de combustível. «Meta um tigre no seu depósito», lia-se no painel publicitário.

– Meta um tigre no seu depósito – murmurou Aomame.

– Desculpe... não percebi o que disse – observou o taxista, olhando para ela através do espelho retrovisor.

– Nada. Falava comigo mesma.

Afinal, creio que sempre vou viver um pouco mais, e depois logo vejo o que acontece, pensou Aomame com os seus botões. A morte pode esperar. Provavelmente.

No dia seguinte a ter abandonado a ideia de se suicidar, quando Tamaru lhe telefonou, Aomame anunciou-lhe que tinha mudado de ideias. Explicou não só que decidira ficar, assim como não fazia tenção de mudar de nome nem de se submeter a qualquer cirurgia plástica.

– Por outras palavras, estás a querer dizer-me que não queres mudar-te para outro sítio?

– Não – respondeu laconicamente Aomame. – Quero ficar aqui, por enquanto.

– Esse lugar não foi pensado para servir de esconderijo a alguém durante um período tão longo.

– Desde que fique dentro de casa, eles não me podem encontrar.

– Não deverias subestimá-los – argumentou Tamaru. – Investigaram a fundo e tudo farão para seguir as pistas que possam conduzir a ti. Além disso, lembra-te de que não és a única a correr perigo. Há outras pessoas à tua volta que podem ver-se metidas ao barulho. A verificar-se, também eu posso ficar em apuros.

– Sei disso e lamento que assim seja. Mas preciso de um pouco mais de tempo.

– «Um pouco mais de tempo»? A expressão não deixa de ser bastante vaga... – observou Tamaru.

– Desculpa, mas é a única coisa que te posso dizer.

Tamaru ficou a matutar naquilo, em silêncio. Parecia ter captado a determinação de Aomame pelo seu tom de voz.

– Eu sou uma pessoa que define as suas prioridades e se mantém fiel a elas – afirmou ele. – Aos meus olhos, a segurança da senhora está acima de tudo o resto, ou de quase tudo. Compreendes?

– Creio que sim.

Tamaru voltou a guardar silêncio.

– Está bem – acabou por dizer. – Queria apenas evitar mal-entendidos. Uma vez que tanto insistes, lá deves ter as tuas razões.

– Tenho as minhas razões – sublinhou Aomame.

Tamaru tossiu ligeiramente do outro lado do fio.

– Como tive oportunidade de te dizer antes, procurámos traçar um plano e seguimo-lo à risca. A ideia era arranjar-te um lugar afastado, que fosse seguro, eliminar toda e qualquer pista e providenciar-te uma nova identidade, recorrendo inclusivamente à cirurgia estética. Transformar-te quase numa outra pessoa, mesmo que não levássemos essa mudança ao extremo. Creio que, até aí, estávamos de acordo.

– Sim, bem sei, e por mim não tenho objeções em rela-ção ao plano. Simplesmente, aconteceu uma coisa que não estava prevista e, em resultado disso, preciso de ficar aqui mais tempo.

– Não estou autorizado a dizer-te que sim ou que não – referiu Tamaru, emitindo um ruído surdo que parecia vir do fundo da garganta. – Necessito de algum tempo para te dar uma resposta.

– Não está nos meus planos sair daqui – disse Aomame.

– Folgo em saber – retorquiu Tamaru, antes de desligar.

Na manhã seguinte, pouco antes das nove, o telefone tocou três vezes; depois parou e voltou a tocar. Só podia ser Tamaru.

Foi direito ao assunto, sem cumprimentar sequer.

– A velha senhora também receia pela tua estada prolongada nesse sítio. Vendo bem, não passa de um local de passagem, e, como tal, não possui as condições de segurança indispensáveis. Na nossa opinião, deverias ser transferida quanto antes para um lugar mais seguro e mais afastado. Faço-me entender?

– Claro que sim.

– Tu és uma pessoa calma e prudente. Não cometes erros estúpidos e envolves-te com coragem em tudo o que fazes. Basicamente, confiamos em ti.

– Obrigada.

– Se insistes tanto em ficar «um pouco mais» nesse apartamento, é porque deves ter as tuas razões. Desconheço o que te leva a isso, mas não acredito que se trate de um simples capricho. Assim sendo, a senhora acedeu a satisfazer o teu desejo, na medida do possível.

Aomame, que escutava com toda a atenção, não disse nada.

Tamaru prosseguiu com o seu discurso.

– Podes continuar no apartamento até ao fim do ano. Mas olha que essa é a data-limite.

– Ou seja, no princípio do ano tenho de me mudar para outro sítio.

– Tens de compreender que, pela nossa parte, é tudo o que poderemos fazer para respeitar a tua vontade.

– De acordo – replicou Aomame. – Ficarei aqui escondida até o ano chegar ao fim, e, nessa altura, partirei para outro sítio.

Na realidade, não estava a ser sincera. A sua verdadeira intenção era permanecer no apartamento onde se encontrava escondida até encontrar de novo Tengo. Mas explicar a situação só serviria para complicar mais as coisas. Ainda contava com uma certa margem de manobra: até ao final do ano. O que faria depois logo se veria.

– Muito bem – disse Tamaru. – A partir de agora, iremos providenciar para que te levem alimentos e artigos de primeira necessidade uma vez por semana. Todas as terças-feiras, à uma da tarde, as pessoas encarregadas do abastecimento passarão pelo apartamento. Como já têm a chave, podem entrar sem tocar à porta, mas ficam-se pela cozinha, o que significa que não entrarão nas restantes divisões. Enquanto eles estiverem dentro de casa, quero que te tranques no quarto. Não saias de lá, não fales com ninguém. Depois de eles se terem ido embora, têm instruções para tocar uma vez à campainha lá de baixo. Nessa altura, podes então sair do quarto. Se precisares de alguma coisa em especial, diz-me agora e farei os possíveis por te enviar o que pretendes na próxima entrega.

– Gostaria de ter alguns aparelhos para poder exercitar os músculos em casa – pediu Aomame. – Sem essa ferramenta, uma pessoa fica muito limitada no que toca aos exercícios e aos alongamentos que pode fazer.

– Se estás a pensar em aparelhos profissionais, como as máquinas que existem nos ginásios para trabalhar a musculatura, podes tirar o cavalinho da chuva. No entanto, consigo arranjar-te alguns aparelhos que existem para as pessoas treinarem em casa, desses que não ocupam muito espaço.

– Contento-me com algo básico – esclareceu Aomame.

– Uma bicicleta estática e material auxiliar para fortalecer os músculos. Que te parece?

– Parece-me bem. Também gostaria de um taco metálico de softbol, se for possível.

Tamaru ficou em silêncio durante alguns segundos.

– Um taco tem vários usos – acrescentou Aomame. – Saber que conto com um faz-me sentir mais segura. Afinal de contas, cresci com um taco na mão.

– De acordo. Vamos tratar disso – concordou Tamaru. – Se te ocorrer mais alguma coisa, toma nota numa folha de papel e deixa ficar a mensagem em cima do balcão da cozinha. Procurarei arranjar-te um e enviar-to já no próximo carregamento.

– Agradecida. De momento, não me parece que necessite de mais nada.

– Não queres livros nem vídeos?

– Não me estou a lembrar de nenhum título em particular...

– Que te parece Em Busca do Tempo Perdido? – sugeriu Tamaru. – Se ainda não leste a obra de Proust, creio que será uma boa ocasião para o fazeres.

– Tu já leste?

– Não. Nunca fui parar à prisão nem tive de andar escondido do mundo durante muito tempo. Dizem que é difícil ler essa obra em vários volumes, a não ser que uma pessoa se veja numa situação do género.

– Conheces alguém que tenha lido o romance até ao fim?

– Bom, conheço algumas pessoas que passaram longas temporadas atrás das grades, mas não é propriamente o tipo de gente que se interesse por Proust.

– Vou experimentar. Quando conseguires arranjar os livros, envia-mos.

– A verdade é que já os tenho aqui à mão – confessou Tamaru.

Na terça-feira seguinte, à uma da tarde em ponto, entrou pela casa dentro o pessoal encarregado do abastecimento. Tal como Tamaru lhe indicara, Aomame refugiou-se no quarto de dormir e procurou não fazer barulho, depois de se ter fechado à chave. Ouviu a porta da rua abrir-se e várias pessoas entrarem. Aomame desconhecia quem poderiam ser os tais «encarregados do abastecimento» de que lhe falara Tamaru. Pelo barulho que lhe chegava aos ouvidos, deduziu que eram dois, mas não os ouviu trocar uma palavra que fosse. Procederam ao transporte de várias caixas e deixaram ficar o material arrumado. Ela ouviu o som da água e percebeu que lavavam alguns alimentos debaixo da torneira para, em seguida, os guardarem no frigorífico. De certeza que tinham combinado antes quais as tarefas concretas que cada um teria de fazer. A seguir, puseram-se a desempacotar qualquer coisa, e ela ouviu-os dobrar as caixas e guardar o papel. Dava a impressão de que também haviam recolhido o lixo do caixote da cozinha. Aomame nem sequer podia descer à rua para levar o saco do lixo até ao contentor, por isso alguém tinha de se encarregar dessa tarefa por ela.

Os ditos-cujos deitaram mãos à obra e despacharam tudo com eficácia, sem movimentos desnecessários. Procuravam fazer apenas o barulho indispensável, indo ao ponto de abafar o ruído dos seus passos. A operação terminou cerca de vinte minutos mais tarde, altura em que saíram porta fora. Aomame ouviu dar a volta à chave e depois a campainha soou uma vez, conforme combinado. Por precaução, deixou passar quinze minutos. Só então abandonou o quarto, tendo o cuidado de se certificar de que ninguém se encontrava dentro de casa e de colocar a corrente de segurança por dentro.

O enorme frigorífico estava a transbordar de comida para toda a semana. Desta vez não se tratava de pratos pré-cozinhados, para aquecer no micro-ondas e comer na hora, mas sim de alimentos frescos. Frutas e verduras variadas. Peixe e carne. Tofu, wakame e natto3. Leite, queijo e sumo de laranja. Uma dúzia de ovos. Para não produzir mais lixo do que o necessário, tinham-se dado ao trabalho de tirar as coisas para fora das suas embalagens originais e de as envolver devidamente em película transparente. Era caso para dizer que conheciam na perfeição o tipo de alimentos que constituíam a alimentação de Aomame. Como saberiam isso?

Encostada à janela encontrava-se uma bicicleta estática: apesar de não ser muito grande, via-se pela marca que era de boa qualidade. O ecrã digital indicava a velocidade, a distância percorrida, bem como o consumo de energia. Podiam até controlar-se as rotações por minuto e a frequência cardíaca. Também lá estava um aparelho em forma de banco para exercitar os abdominais, os dorsais e os deltoides. Era fácil de montar e de desmontar. Aomame estava por demais familiarizada com aquele tipo de equipamento. Tudo modelos de última geração, capazes de cumprir o seu objetivo, embora fossem dotados de um desenho e de um mecanismo simples. Graças a esses dois aparelhos, não teria dificuldade em manter-se em forma.

Haviam também deixado ficar um taco metálico de softbol guardado no estojo. Aomame tirou-o de dentro do estojo macio e brandiu-o umas quantas vezes. O taco prateado, completamente novo e com um brilho reluzente, cortou o ar como uma lâmina afiada, produzindo uma espécie de silvo. O peso familiar do taco acalmou os seus sentidos. Sentir aquele corpo nas mãos trouxe-lhe à memória recordações da sua adolescência e dos momentos passados na companhia de Tamaki Otsuka.

Em cima da mesa empilhavam-se os sete volumes da obra Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Não estavam novos, mas nada indicava que tivessem sido lidos. Aomame escolheu um ao acaso e folheou-o. Além dos livros, havia uma série de revistas, entre títulos da imprensa semanal e mensal. Sem esquecer cinco filmes, ainda embalados. Não sabia por quem tinham sido escolhidos, mas eram filmes recentes, que ela nunca vira. Não tinha por hábito ir ao cinema, por isso havia sempre uma quantidade de filmes que lhe escapavam.

Dentro de um saco de papel gigante com o logótipo de um centro comercial foi dar com três novas camisolas de lã, acabadas de comprar, cada uma da sua espessura. Duas camisas quentes de flanela e quatro camisolas de manga comprida. Todas lisas e de linhas simples. O tamanho era o ideal. Também havia meias grossas e calças justas. Se ia ficar a viver naquele sítio até dezembro, faziam-lhe falta. Quem tomava conta dela sabia do seu ofício. Tinha sido tudo pensado ao pormenor.

Levou a roupa para o quarto, guardou-a nas gavetas e pendurou algumas peças nos cabides, dentro do roupeiro. A seguir, regressou à cozinha e, enquanto bebia café, ouviu tocar o telefone.

– Recebeste o material todo? – perguntou Tamaru.

– Sim, obrigada. Acho que tenho tudo o que preciso. Os aparelhos para fazer exercício também são mais do que suficientes. Agora só me falta mergulhar na leitura de Proust.

– Se vires que nos esquecemos de alguma coisa, não hesites em ligar.

– Assim farei – retorquiu Aomame. – Se bem que não deva ser fácil encontrar alguma coisa que vos tenha escapado...

Tamaru aclarou a garganta.

– Isto não é da minha competência, mas posso dar-te um conselho?

– Claro que podes. Força.

– Viver sozinho durante muito tempo, para mais confinado a um espaço reduzido, sem poder encontrar-se nem falar com ninguém, não é uma experiência fácil. Por muito forte que uma pessoa seja, não tardará a deixar-se ir abaixo. Sobretudo quando se dá o caso de andar alguém a seguir-lhe o rasto.

– Até à data, nunca vivi propriamente em lugares muito espaçosos...

– Pode ser que isso jogue a teu favor – admitiu Tamaru. – Mesmo assim, todo o cuidado é pouco. Quando estamos expostos a uma grande tensão durante muito tempo, os nervos, sem que nos dêmos conta, acabam por se converter num pedaço de borracha frouxa. Uma vez esticada, torna-se difícil devolvê-la ao seu estado original.

– Terei cuidado – prometeu Aomame.

– Creio que já te disse, numa ocasião anterior, que és uma pessoa bastante prudente. Para além de seres pragmática e paciente, não pecas por excesso de confiança. Porém, quando se perde a concentração, por mais cautelas que uma pessoa tenha, corre-se sempre o risco de cometer um ou outro erro. A solidão é um ácido que corrói as pessoas.

– Não me sinto sozinha – declarou Aomame. A frase foi dita tanto para ser ouvida por Tamaru, em jeito de confissão, como para ela. – Estou sozinha, mas não me sinto só.

Do outro lado da linha fez-se silêncio. Tamaru devia estar a equacionar a diferença entre uma pessoa sentir-se «sozinha» e «só».

– Em todo o caso, de futuro serei ainda mais prudente – disse Aomame. – Agradecida pelo conselho.

– Outra coisa – acrescentou Tamaru –, quero que saibas que podes contar com todo o nosso apoio. Mas se, por qualquer razão, te vires nalgum aperto, e não consigo imaginar qual poderia ser, terás de lidar sozinha com a situação. Posso não conseguir chegar a tempo de te socorrer, por mais que tente despachar-me. Dependendo das circunstâncias, poderia nem sequer estar em condições de te acudir num momento de aflição. Por exemplo, no caso de considerarmos pouco recomendável ter qualquer vínculo contigo.

– Compreendo perfeitamente. Estou aqui por vontade própria, de modo que terei de assegurar a minha proteção. Com o taco de metal e com aquilo que me arranjaste.

– A vida é dura.

– Onde há esperança, há luta, e espera-nos sempre uma prova pela frente – filosofou Aomame.

Tamaru voltou a optar pelo silêncio. Passado um momento, disse:

– Alguma vez ouviste falar do interrogatório final por que tinha de passar um candidato a interrogador da polícia secreta, na época de Estaline?

– Acho que não.

– Enfiavam com ele num cubículo. Na sala havia apenas uma pequena cadeira de madeira, sem nada de particular. Então aparecia um superior, que ordenava: «Obriga esta cadeira a confessar e faz o respetivo relatório. Até o conseguires, ficas impedido de abandonar esta sala.»

– Que história tão surreal!

– Não, estás redondamente enganada. Não se trata de uma história surrealista, de todo! É real, do princípio ao fim. Estaline erigiu um sistema paranoico que, durante o tempo em que ele esteve no poder, custou a vida a dez milhões de pessoas, na maioria seus compatriotas. É este, na verdade, o mundo em que vivemos. Grava isto na tua mente. Nunca te esqueças disto.

– Pelos vistos, conheces muitas histórias do arco-da-velha.

– Não são tantas quanto isso. O que acontece é que tenho algumas preparadas, à mão de semear, para o caso de ser preciso. Nunca recebi uma educação formal, de modo que fui aprendendo à medida que ia avançando na vida, armazenando as informações que me pareciam úteis e valiosas. «Onde há esperança, há luta, e espera-nos sempre uma prova pela frente», tu o disseste, e muito bem. Tens toda a razão. De uma forma geral, a esperança é limitada e quase sempre abstrata; provas, pelo contrário, é o que há mais, e não podiam ser mais concretas. Essa foi outra das coisas que a experiência me ensinou.

– E diz-me uma coisa: que tipo de confissão obtinham os candidatos a interrogadores da cadeira de madeira?

– Essa pergunta merece uma reflexão – afirmou Tamaru. – Dir-se-ia um paradoxo zen4.

– O zen de Estaline – disse Aomame.

Após uma breve pausa, Tamaru desligou o telefone.

À tardinha, Aomame exercitou-se na bicicleta estática e no aparelho em forma de banco. A sessão, apesar de moderada, soube-lhe às mil maravilhas, depois de ter passado tanto tempo sem fazer qualquer exercício. A seguir tomou um duche e, depois, preparou uma refeição simples, enquanto escutava uma estação de rádio sintonizada em FM. Sentou-se para assistir ao telejornal (se bem que não tivesse havido uma única notícia capaz de despertar o seu interesse). Quando o Sol se pôs, foi até à varanda e ficou a vigiar o parque. Como sempre, conservava junto dela a manta, o binóculo e a pistola. A que se juntava o taco recém-adquirido, com o seu brilho metálico.

Se o Tengo não aparecer por estas bandas, pensou ela, não terei outro remédio senão prosseguir com a minha monótona existência no bairro de Koenji, até que este enigmático ano de 1Q84 chegue ao fim. Enquanto espero por ele, cozinharei, farei os meus exercícios, irei estando atenta às notícias e começarei a ler o romance de Proust. Esperar por ele passou a ser a minha principal missão. De momento, esse fio ténue é a única coisa que me mantém viva. Tal como a aranha que vi quando desci pelas escadas de emergência da autoestrada metropolitana. Uma aranha negra minúscula, que tecera a sua mísera teia algures na aresta escondida de uma estrutura de metal toda enferrujada, e que ali estava, à espera, no mais completo silêncio. O vento que soprava por baixo dos pilares da ponte sacudia a teia, que pendia de forma precária, meio desfeita e coberta de pó. Ao presenciar aquela cena, senti pena, confesso. No entanto, agora sou eu que me encontro numa situação parecida.

Tenho de conseguir uma cassete com a Sinfonietta de Janácek. Preciso dela para os meus exercícios físicos. Aquela música tem o condão de me fazer sentir ligada a um lugar – um lugar indeterminado, não sei qual. É como se me conduzisse em direção a qualquer coisa. Tomou nota mentalmente para não se esquecer de acrescentar aquele pedido à lista de provisões solicitada por Tamaru.

Outubro chegara entretanto e já só faltavam três meses de tréguas. O relógio marcava o tempo, sem descanso. Sentada na cadeira de jardim, Aomame continuou a vigiar o parque por entre o painel de plástico. À luz dos candeeiros de vapor de mercúrio, o parque infantil revestia-se de uma tonalidade pálida. O cenário evocou nela os espaços desertos de um aquário quando cai a noite. Os invisíveis peixes imaginários nadavam em silêncio, por entre as árvores, não interrompendo por nada deste mundo os seus movimentos mudos. No céu alinhavam-se duas luas, aguardando que Aomame as reconhecesse.

«Tengo», murmurou ela, «onde estás?»

3 Feijões de soja fermentada, destinam-se sobretudo ao pequeno-almoço, tendo constituído uma fonte vital de nutrição no Japão feudal. Possuem um cheiro intenso, um sabor não menos forte e uma consistência pegajosa, e são mais populares nas regiões orientais do país, como Kanto e Hokkaido¯. (N. das T.)

4 Na tradição zen, um koan é um problema colocado por um mestre a um aluno para ser resolvido com recurso a um saber que vai para além da lógica. Um dos mais conhecidos é atribuído a Hakuin e reza assim: como soa o bater das palmas com uma só mão? (N. das T.)


3

TENGO

Todos os animais selvagens iam vestidos

De tarde, quando aparecia na clínica para visitar o pai, Tengo sentava-se na cama, abria o livro que levava consigo e punha-se a ler em voz alta. Lia apenas cinco páginas, fazia uma pausa e recomeçava, atacando outras cinco. Só lhe lia obras que ele mesmo andava a ler na altura. Tanto podia ser um romance ou uma biografia, como livros de ciências naturais. O importante não era o conteúdo, mas sim o facto de o pai ouvir ler alguma coisa pela voz dele.

Para dizer a verdade, Tengo ignorava se o pai lhe prestava atenção. Olhando para a cara dele, não dava para perceber qualquer tipo de reação. O velho, enfraquecido e com ar desleixado, mantinha os olhos fechados e passava o tempo a dormir. Não se mexia, e a sua respiração quase não era percetível. Respirar, claro que respirava, mas tornava-se impossível comprovar isso mesmo, a não ser que uma pessoa encostasse o ouvido à sua boca, ou aproximando um espelho e colocando-o diante do nariz para ver se ficava embaciado. O soro penetrava no seu corpo e era libertado através do cateter. Esse fluxo, pausado e silencioso, era o único sinal que indicava que ele continuava vivo. De tempos a tempos, uma enfermeira usava uma máquina elétrica para lhe aparar a barba e, com ajuda de uma pequena tesoura de pontas arredondadas, cortava-lhe os pelos brancos que lhe saíam do nariz e das orelhas. Também lhe arranjava as sobrancelhas. Apesar de ele estar inconsciente, continuavam a crescer. Vendo aquele homem ali deitado, Tengo deu por si a interrogar-se, incapaz de distinguir com clareza a diferença entre a vida e a morte. Existe realmente, à partida, uma diferença assim tão grande? Não será que pensamos que essa diferença existe apenas por se tratar de uma pura convenção?

Por volta das três da tarde, o médico passava pelo quarto e comentava com Tengo a evolução da doença. A explicação era sempre concisa, e o discurso mais ou menos o mesmo: a maleita não progredia. O seu velho pai continuava imerso num sono profundo; a sua vitalidade esmorecia a passos lentos. Por outras palavras: caminhava inexoravelmente em direção à morte. De um ponto de vista médico, por enquanto não existia qualquer tratamento disponível. Só deixá-lo dormir tranquilo. Era tudo o que o médico lhe podia dizer.

Ao entardecer, apareciam dois enfermeiros que transportavam o pai para uma sala de observações, onde o examinavam. Os enfermeiros não eram sempre os mesmos, mas revelavam-se igualmente taciturnos. Se calhar, tal ficava a dever-se ao facto de as máscaras que usavam lhes cobrirem a boca. O certo, porém, é que nunca diziam uma palavra. Um deles dava ares de estrangeiro. Era baixo e moreno, e lançava-lhe sempre um sorriso por cima da máscara. Tengo sabia que ele lhe sorria por causa da expressão dos seus olhos. Por seu turno, costumava devolver-lhe o sorriso e inclinar a cabeça.

Meia hora ou, por vezes, uma hora mais tarde, traziam o pai de volta. Tengo desconhecia a que tipo de exames o submetiam. Enquanto o progenitor se encontrava ausente, descia até ao refeitório, bebia um chá verde quente, e assim sempre matava o tempo durante cerca de quinze minutos antes de regressar ao quarto. Fazia-o na esperança de que a crisálida lhe tornasse a aparecer na cama vazia e, lá dentro, fosse encontrar a pequena Aomame deitada. Todavia, para não variar, na penumbra do quarto esperava-o apenas o cheiro da doença e a depressão que o corpo do pai deixara bem vincada no leito.

De pé, Tengo encostava-se à janela e costumava observar a paisagem. Para lá do jardim, envolto em sombras, estendia-se o pinhal que formava uma barreira de proteção contra o vento, e por entre as árvores chegava o som das ondas. As ondas impetuosas do Pacífico. Era um eco profundo e escuro, como se numerosos espíritos reunidos contassem as suas histórias em surdina. Parecia almejar que outras almas se juntassem ao grupo, na esperança de mais histórias.

Anteriormente, Tengo visitara a clínica de Chikura em duas ocasiões no mês de outubro, sempre nos dias de folga. Apanhava o comboio muito cedo, aparecia na clínica, sentava-se à cabeceira do pai e falava com ele a intervalos regulares. Contudo, não obtivera qualquer resposta. O pai não fazia mais nada senão dormir, deitado de costas. Tengo passava a maior parte do tempo a contemplar a paisagem através da janela. Quando começava a anoitecer, esperava que acontecesse alguma coisa, mas nunca tal se verificou. O Sol afundava-se devagar no horizonte e uma penumbra penetrante envolvia o quarto. Ao fim de um tempo, dando-se por vencido, Tengo levantava-se e regressava a Tóquio no último expresso.

Talvez deva arranjar paciência e passar mais tempo com o meu pai, pensou ele, certa ocasião. Se calhar, estas visitas esporádicas não são suficientes. Talvez seja preciso assumir um compromisso maior. Apesar de não existir qualquer fundamento para tal, agarrou-se à ideia.

Em meados de novembro, decidiu meter uns dias de férias. Explicou a quem de direito na escola onde dava aulas que o seu pai se encontrava em estado crítico e que tinha de tomar conta dele. Mentira também não era. Pediu a um companheiro dos tempos da universidade que o substituísse. Era uma das raras pessoas que, de certa maneira, ainda se encontrava unida a Tengo por ténues laços de amizade. Desde que se haviam licenciado, costumavam encontrar-se uma ou duas vezes por ano. O amigo ficara célebre por ter uma mente prodigiosa e, mesmo no campo da Matemática, que contava com um bom número de personagens excêntricas, era tido por extravagante até dizer chega. No entanto, ao abandonar a universidade, em vez de procurar emprego ou dedicar-se à investigação, escolheu dar aulas numa escola para alunos do secundário dirigida por um conhecido seu. Fora isso, passava o resto do tempo a ler, a pescar nas montanhas e a fazer o que lhe dava na veneta. Tengo sabia que o colega tinha imensas qualidades como professor. Porém, acontecia que estava farto de ser competente. Além do mais, sendo filho de boas famílias, não precisava de se matar a trabalhar. Já o substituíra numa ocasião anterior e causara a melhor das impressões junto dos alunos. Quando Tengo lhe ligou e o pôs ao corrente da situação, o amigo disse logo que sim.

Por outro lado, havia o problema do que fazer com Fuka-Eri. Tengo sentia-se dividido e não tinha bem a certeza se seria acertado deixar aquela jovem, que parecia viver noutro mundo, permanecer no seu apartamento durante muito tempo. Para tornar o cenário ainda mais complexo, ela andava a esconder-se de toda a gente. Por isso, não esteve com meias-medidas e decidiu perguntar-lhe diretamente.

– Se eu tiver de me ausentar, preferes ficar aqui sozinha ou ir para outro lugar durante uma temporada?

– Onde vais – quis saber Fuka-Eri com uma expressão séria.

– À cidade dos gatos – explicou Tengo. – O meu pai não parece ser capaz de recuperar a consciência. Desde há uns tempos que se encontra mergulhado num sono profundo. Disseram-me que talvez não dure muito.

Escondeu-lhe o facto de a crisálida de ar ter aparecido, certo dia ao entardecer, no quarto da clínica. Nem lhe contou que lá dentro dormia Aomame em pequena. Nem que essa crisálida de ar era igual, até ao mais pequeno pormenor, à descrita por Fuka-Eri no seu romance. Nem que alimentava secretamente a esperança de que um dia a crisálida voltasse a aparecer diante de si.

Fuka-Eri semicerrou os olhos, fechou a boca e concentrou a sua atenção em Tengo, como se estivesse a ler no rosto dele uma mensagem escrita em letra miudinha. Quase inconscientemente, Tengo levou as mãos à cara, mas não sentiu que pudesse haver nada lá escrito.

– Está bem – disse Fuka-Eri, passado um bocado, e concordou várias vezes com a cabeça. – Não te preocupes comigo. Fico aqui em casa. – Depois de refletir um pouco, acrescentou: – Por enquanto não corro perigo.

– Por enquanto não corres perigo – repetiu Tengo.

– Não te preocupes – insistiu ela.

– Prometo telefonar todos os dias.

– Tem cuidado para não ficares ao abandono, enquanto permaneceres na cidade dos gatos.

– Terei cuidado.

Tengo foi ao supermercado e comprou comida suficiente para que Fuka-Eri não se visse obrigada a sair de casa na sua ausência. Tudo coisas fáceis de preparar. Tengo sabia muito bem que a rapariga não só não gostava de cozinhar, como não tinha jeito nenhum para a cozinha. Queria assim evitar a ingrata surpresa de, ao abrir o frigorífico, no seu regresso a casa um par de semanas mais tarde, encontrar uma data de produtos meio podres em lugar dos alimentos frescos.

Enfiou várias mudas de roupa e produtos de higiene num saco de vinil. Atirou lá para dentro meia dúzia de livros, canetas e papel para escrever. Como de costume, apanhou o expresso na estação de Tóquio, fez o transbordo e mudou para um comboio urbano em Tateyama, apeando-se duas estações mais à frente, em Chikura. Dirigiu-se ao posto de turismo situado diante da estação e pediu informações que o ajudassem a encontrar um ryokan5 por um preço razoável. Como era inverno, – época baixa, portanto –, não lhe foi difícil encontrar quartos livres numa hospedaria modesta, frequentada sobretudo por pessoas que iam até àquelas bandas para pescar. O quarto era pequeno mas asseado e cheirava a tatâmis novos, acabados de estrear. Da janela do segundo andar via-se o porto pesqueiro. O quarto em regime de meia-pensão incluía pequeno-almoço e saía-lhe mais barato do que ele tinha previsto.

Tengo ainda não sabia durante quanto tempo iria ficar, mas disse que pagaria adiantado a soma equivalente a três dias. A dona do estabelecimento não colocou entraves. Passou a explicar-lhe que a porta exterior encerrava às onze da noite e que (isto por outras palavras e com a ajuda de eufemismos) não poderia levar mulheres para o quarto. Tengo achou perfeitamente normal. Uma vez instalado, ligou para a clínica. Perguntou à enfermeira que atendeu (a mesma mulher de meia-idade que já conhecia) se podia ir visitar o pai às três da tarde. Ela respondeu-lhe que sim.

– O seu pai continua em coma – acrescentou.

E assim começou a estada de Tengo à beira-mar, na cidade dos gatos. Levantava-se de manhã cedo, dava um passeio pela praia, ia até ao porto assistir à chegada e à partida dos barcos de pescadores, e depois regressava a tempo de almoçar no ryokan. A ementa era sempre a mesma: cavala salgada e tamagoyaki2, um tomate cortado aos quartos, algas nori, sopa de miso com amêijoas pequenas e arroz. Apesar de repetitiva, a refeição sabia-lhe pela vida. A seguir ao pequeno-almoço, sentava-se a uma mesinha e escrevia. Dava-lhe prazer voltar à escrita utilizando a caneta de tinta permanente, depois de tanto tempo sem escrever. A mudança de ares, encontrar-se a trabalhar num sítio diferente, longe da rotina habitual, revelou-se fonte de inspiração. Escutava o ruído monocórdico produzido pelo motor dos barcos de pesca que regressavam ao porto. Tengo gostava dessa sonoridade.

Estava a escrever uma história que se desenrolava num mundo com duas luas. Um mundo habitado pelo Povo Pequeno e onde aparecia a crisálida de ar. Tomara-o de empréstimo ao romance A Crisálida de Ar, de Fuka-Eri, mas entretanto apropriara-se dele e tornara-o seu. Enquanto escrevia, a sua mente vivia por completo nesse mundo. Até mesmo quando pousava a caneta e se afastava da mesa, a sua imaginação permanecia ali. Nesses momentos, experimentava uma sensação esquisita, como se o corpo e a mente se dividissem, e deixava de ser capaz de discernir onde terminava o mundo real e começava o mundo imaginário. O protagonista do conto «A Cidade dos Gatos» devia ter passado por uma situação parecida. Sem dar por isso, o centro de gravidade do mundo deslocara-se. E, como tal, o herói da história (muito provavelmente) nunca mais poderia apanhar o comboio que o transportaria para fora da cidade.

Às onze tinha de sair do quarto para se proceder à limpeza da ordem. Quando chegava a hora, abandonava a escrita e ia nas calmas dar um passeio até à estação, aproveitando para tomar café numa cafetaria ali perto. Por vezes, também comia uma sanduíche, mas normalmente tomava apenas café. Nessa altura, pegava no jornal que o estabelecimento punha à disposição dos clientes e examinava-o com atenção para ver se havia algum artigo que lhe fizesse referência, mas nunca encontrava nada. Há muito que A Crisálida de Ar desaparecera das tabelas dos mais vendidos. Por aqueles dias, o primeiro lugar era ocupado por um livro de dietas chamado Como Emagrecer Comendo Tudo Quanto Gosta e Quando Lhe Apetece. Com um título desses, de certeza que se venderia, mesmo que lá dentro as páginas estivessem em branco.

Depois de ter bebido o café e terminada a leitura do jornal, Tengo apanhava o autocarro que o transportava até à clínica. Costumava lá chegar entre a uma e meia e as duas da tarde. No balcão de atendimento, ficava sempre um bocadinho à conversa com a enfermeira. A partir do momento em que Tengo se instalara na cidade e começara a visitar o pai todos os dias, o pessoal de enfermagem passara a dispensar-lhe um tratamento mais amável – como uma família acolhendo com ternura o regresso do filho pródigo.

Uma das enfermeiras, a mais nova, sorria sempre, envergonhada, quando o via aparecer. Parecia nutrir um vago interesse por ele. Era baixinha, usava o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, com olhos grandes e faces rosadas. Tengo calculou que ela tivesse vinte e poucos anos. A verdade, porém, é que, desde que pousara os olhos na figura da menina a dormir dentro da crisálida de ar, Tengo só pensava em Aomame. As outras mulheres não eram senão sombras ténues que passavam por ele. A imagem de Aomame estava sempre presente no seu espírito. Algo lhe dizia que Aomame continuava viva algures, em qualquer parte; sentia isso. Tinha a certeza. E o mais importante: estava convencido de que também ela andaria à procura dele. Só assim se explicava que tivesse ido ao seu encontro através de uma passagem especial. Aomame tão-pouco se esquecera de Tengo.

Se é que aquilo que eu vi não foi uma ilusão.

Volta e meia, havia qualquer coisa que o fazia lembrar-se da sua antiga amante, e então punha-se a pensar no que seria feito dela. Ao telefone, o marido dissera que Kyoko se encontrava «irremediavelmente perdida» e que, como tal, não mais tornaria a vê-lo. Irremediavelmente perdida. A expressão continuava a provocar nele um sentimento de inquietação. Estava imbuída de um certo tom funesto, sem dúvida.

Aos poucos, contudo, a presença dela foi-se diluindo. As tardes que tinham passado juntos logo ocuparam o lugar destinado aos acontecimentos ocorridos no passado, destinados a cumprir a sua função. Isso fazia-o sentir-se culpado, mas, num abrir e fechar de olhos, o centro de gravidade mudara e as agulhas da via tinham-se deslocado. As coisas não voltariam a ser como dantes.

Assim que entrava no quarto do pai, Tengo costumava ir sentar-se numa cadeira à beira da cama e saudava-o com poucas palavras. A seguir, contava-lhe por ordem o que fizera desde a tardinha do dia anterior. Nada de especial, naturalmente. Regressara à cidade de autocarro, jantara qualquer coisa num restaurante, bebera uma cerveja, regressara ao ryokan e ficara a ler um livro. Sendo dez horas, deitava-se. O ritual repetia-se todos os dias. Apesar disso, Tengo insistia em fornecer àquele homem, ali deitado e inconsciente, um relatório pormenorizado das suas atividades. O pai, como seria de esperar, não reagia. Era o mesmo que falar com uma parede. Não deixava de ser uma rotina obrigatória. Aos olhos de Tengo, uma simples repetição podia significar muito.

Em seguida, Tengo lia ao pai o livro que levara consigo. Não era um livro escolhido a dedo. Limitava-se a ler em voz alta fragmentos da obra que andava a ler nesse momento. Se calhasse ser um manual de instruções de uma máquina elétrica para cortar relva, era isso que leria. Fazia-o devagar e com voz clara, de modo a facilitar a compreensão. Era esse o único ponto que tinha em conta.

«Lá fora, os relâmpagos tornaram-se mais intensos e, por breves momentos, os raios azuis iluminaram a rua, ainda que não se ouvisse o rumor dos trovões. Podia ser que trovejasse, mas ele não conseguia ouvir bem por estar imerso nos seus pensamentos. A água da chuva corria pela rua abaixo, formando pequenos rios. Depois de terem patinhado na água, os clientes entravam uns atrás dos outros na loja.

«O amigo que me acompanhava não fazia mais do que olhar para o rosto das pessoas. Bem que gostaria de saber porquê, mas ele mantinha-se na sua, estranhamente calado. À nossa volta ouviu-se uma grande barulheira, e os restantes clientes apinharam-se e começaram a empurrar na nossa direção, quase nos impedindo de respirar. O barulho em redor aumentou.

«Pareceu-me ouvir um som estranho, como se alguém tossisse ou aclarasse a voz por ter ficado com um pedaço de comida atravessado na garganta, mas, pensando bem, pelo tom do ganido devia ser um cão.

«De súbito, um raio tremendo inundou a sala com a sua luz azulada e iluminou os fregueses que se encontravam junto à entrada da loja, projetando as suas sombras sobre o soalho. Nesse instante soou um trovão que parecia querer rachar o teto, e eu levantei-me de onde estava, assustado, ao mesmo tempo que os presentes, por seu turno, se viravam à uma para mim. Se eram caras de animais – de cão ou de raposa –, não sei dizer ao certo, mas todos os animais selvagens iam vestidos e, entre eles, alguns lambiam os focinhos com as suas línguas compridas.»6

Ao chegar àquele ponto, Tengo interrompeu a leitura e olhou para o pai.

– Fim – disse ele. O livro acabava ali.

Não houve reação.

– Que te pareceu?

Como seria de esperar, o pai não lhe deu resposta.

Por vezes, lia-lhe o que acabara de escrever nessa manhã. Depois de ler, corrigia com uma esferográfica as partes que não o convenciam e relia as passagens emendadas. Se ainda assim não se desse por satisfeito, tornava a rever aquele bocado de prosa. E só depois lia tudo outra vez.

– Corrigido ficou melhor – dizia ao pai, como se estivesse à espera de o ouvir manifestar a sua concordância.

Mas o pai, como é óbvio, não dava a conhecer a sua opinião. Não lhe dizia se ficava mais perfeito assim, ou se o primeiro esboço era melhor, ou se, vendo bem, não havia tanta diferença quanto isso entre as duas versões. As pálpebras do velho cobriam uns olhos afundados nas órbitas, como uma casa habitada pelo infortúnio, com as persianas sempre corridas.

De vez em quando, Tengo levantava-se da cadeira, levado pela necessidade de esticar os músculos das pernas e dos braços, e aproveitava para espreitar pela janela. Ao fim de vários dias nublados, choveu finalmente. A chuva caiu durante toda a tarde, empapando os pinheiros e conferindo-lhes um aspeto pesado e escuro. Nesse dia não se ouviam as ondas. Não soprava vento e a chuva caía a direito do céu. Pássaros negros voavam em bando, atravessando a cortina de água. Os corações daqueles pássaros também deviam estar molhados e sombrios. Tal como acontecia no interior do quarto da clínica. A humidade penetrara um pouco em todo o lado – na almofada, nos livros, na mesa. O pai, esse, permanecia em coma, num constante estado de letargia, à margem do tempo e indiferente à humidade, ao vento ou ao fragor das ondas. A paralisia envolvia o seu corpo como uma túnica piedosa. Depois de uma pausa, Tengo regressou à sua leitura. Não havia mais nada para fazer naquele quarto húmido e acanhado.

Quando se fartava de ler, calava-se, pura e simplesmente, e deixava-se estar ali, a olhar para a figura adormecida do pai. A páginas tantas, punha-se a imaginar o que lhe passaria pelo espírito. Que tipo de consciência se ocultaria no interior daquele crânio, duro como uma velha bigorna? Será que ainda restava alguma coisa? Poderia dar-se o caso, como acontece nas casas abandonadas, de terem levado os móveis e os utensílios todos, sem deixar nada lá dentro, sem permitir sequer encontrar o rasto dos antigos inquilinos. Apesar de tudo, certas recordações, uma ou outra imagem, sempre deveriam ter ficado gravadas nas paredes e no teto. Tudo aquilo que se cultiva durante muito tempo não pode desaparecer assim, sem mais nem menos, tragado pelo vazio. Se calhar, deitado naquela humilde cama, numa clínica à beira-mar plantada, o seu pai, no meio da solitária obscuridade em que se transformara a casa desabitada que havia no seu interior, vivia rodeado de lembranças e de imagens invisíveis aos olhos dos outros.

Passado um bocado, apareceu a jovem enfermeira que tinha rosetas, sorriu a Tengo e tratou de medir a temperatura ao pai, verificar quanto soro ainda havia na embalagem, assim como a quantidade de urina recolhida. Com uma esferográfica, anotou os dados recolhidos numa folha. Os seus gestos eram eficazes e mecânicos, como se aplicasse à letra as instruções escritas num manual. Enquanto seguia com o olhar aquele encadeamento de gestos, Tengo perguntou a si mesmo como seria viver naquela clínica, perdida no meio de uma pequena cidade costeira, a tomar conta de velhos senis em estado terminal. A enfermeira era jovem e tinha um ar saudável. Por baixo do uniforme branco engomado dava para ver que a cintura e o peito, apesar de firmes, eram generosos. Uma fina penugem dourada brilhava no seu pescoço de proporções elegantes. Na placa de plástico que trazia ao peito podia ler-se o apelido: Adachi.

Além de boa profissional, Tengo sabia que ela era uma enfermeira esforçada. Se quisesse, facilmente teria encontrado trabalho num centro hospitalar de outro tipo, porventura um lugar mais interessante e animado. O que a teria levado a escolher um local tão deprimente para trabalhar? Sempre gostaria de saber a razão e as circunstâncias da sua escolha. Se lhe perguntasse, tinha a impressão de que ela responderia sinceramente. No entanto, mais valia não se meter onde não era chamado. Afinal de contas, Tengo encontrava-se em plena cidade dos gatos. E algum dia teria de apanhar o comboio e regressar ao mundo de onde vinha.

A enfermeira deu por concluídas as suas tarefas, guardou a papeleta e sorriu para Tengo com o ar mais natural do mundo.

– Tudo na mesma. A condição do doente não conheceu alterações.

– Quer então dizer que ele continua estável – afirmou Tengo no tom de voz mais alegre que conseguiu arranjar (para dar um tom positivo à coisa).

Ela esboçou um sorriso e inclinou um nadinha a cabeça, como que pedindo desculpa. Só então reparou no livro que ele tinha em cima dos joelhos.

– Está a ler-lhe esse livro?

Tengo assentiu com a cabeça.

– Se bem que não acredite muito que ele me consiga ouvir.

– Ainda assim, parece-me uma iniciativa de louvar – elogiou ela.

– Boa ou má, a verdade é que já não sei o que hei de fazer.

– Nem todos fazem o que podem.

– Porque, ao contrário de mim, há pessoas que têm vidas atarefadas – replicou Tengo.

A enfermeira pareceu querer abrir a boca para dizer qualquer coisa, mas acabou por ficar calada. Olhou para a figura do patriarca, ali adormecido, e depois para Tengo.

– Oxalá ele recupere.

– Obrigado – disse Tengo.

Depois de a enfermeira Adachi se ter ido embora, Tengo esperou um bocado e retomou a leitura.

* * *

Ao cair da noite, quando transportaram o pai para a sala de observações numa cadeira de rodas, Tengo foi até à cafetaria, bebeu um chá e telefonou a Fuka-Eri da cabina pública que ali havia.

– Está tudo bem? – perguntou Tengo à rapariga.

– Tudo bem – respondeu Fuka-Eri. – Para não variar.

– Pela minha parte, também não tenho novidades. Faço o mesmo todos os dias.

– Mas o tempo avança.

– Lá isso é verdade – afirmou Tengo. – A um dia segue-se outro dia.

E o tempo que passava não voltava para trás.

– Há bocado, o corvo voltou a dar um ar da sua graça – contou Fuka-Eri. – Um corvo grande.

– O corvo aparece no beiral da janela todas as noites.

– Faz sempre o mesmo.

– Assim é – referiu Tengo. – Tal como nós.

– Mas não pensa no tempo.

– Os corvos não têm de se preocupar com o tempo. Provavelmente só os homens é que compreendem a noção de tempo.

– Porquê – quis saber ela.

– Os seres humanos encaram o tempo como uma linha reta. Aos olhos deles, é o mesmo que fazer furos num pau comprido e plano. Como se dissessem: estamos aqui, neste ponto, que representa o presente, o que fica para trás é o passado, e ali à frente está o futuro. Entendes?

– Acho que sim.

– Acontece que, na realidade, o tempo não é uma linha a direito. Não tem forma. Carece de forma, em todos os sentidos. Visto que nós somos incapazes de imaginar algo amorfo, dá-nos jeito concebê-lo como tratando-se de uma linha reta, mas não passa de uma convenção. Nós, seres humanos, somos os únicos capazes de proceder a essa transposição de conceitos.

– Se calhar, estamos enganados.

Aquela afirmação da jovem deixou Tengo pensativo.

– Queres dizer que, se calhar, nos enganamos ao considerar o tempo uma linha a direito?

Fuka-Eri não respondeu.

– Claro, existe essa possibilidade. Pode ser que estejamos enganados e que os corvos tenham razão. Talvez o tempo não seja em nada parecido com uma linha direita. Talvez, quem sabe?, tenha a forma encurvada de um doughnut – sugeriu Tengo. – Porém, vivemos durante milhares de anos agarrados a essa ideia, que é como quem diz, a viver com base na premissa de que o tempo é uma linha reta que se prolonga até ao infinito. E, até à data, nunca se verificou nada que contrariasse essa teoria, tão-pouco se descortinaram quaisquer inconvenientes. De modo que, enquanto regra empírica, deveria ser válida.

– Regra empírica – repetiu Fuka-Eri.

– Refiro-me a observar se uma hipótese é válida, depois de a submeter a várias provas e de ver se funciona na prática.

Fuka-Eri ficou calada por instantes. Tengo desconhecia se a rapariga interiorizara o sentido das suas palavras.

– Estás aí? – perguntou ele, para ter a certeza de que ela ainda se encontrava do outro lado da linha.

– Até quando vais ficar em Chikura – perguntou Fuka-Eri, sem entoação interrogativa.

– Até quando vou ficar em Chikura?

– Sim.

– Não sei – respondeu ele com sinceridade. – A única coisa que te posso dizer é que vou ficar por aqui até certas coisas começarem a fazer sentido. E, por enquanto, há determinados aspetos que ainda não me convencem. Quero ver o que vai acontecer, por isso fico durante mais uns tempos.

Fuka-Eri tornou a calar-se do outro lado do aparelho. Quando ficava em silêncio, todos os sinais da sua presença se desvaneciam. Era como se não existisse.

– Estás aí? – voltou ele à carga.

– Não percas o comboio – aconselhou Fuka-Eri.

– Vou procurar ter cuidado – prometeu Tengo. – Para não perder o comboio. E contigo, está tudo bem?

– Há bocadinho esteve aqui uma pessoa.

– Quem?

– Alguém da ene-agá-kapa.

– Referes-te a um cobrador da NHK?

– Cobrador – perguntou ela, outra vez sem a interrogação da ordem no fim da frase.

– Falaste com essa pessoa? – insistiu Tengo.

– Não percebi o que me estava a querer dizer.

Nem sequer sabia o que era a NHK. A jovenzinha carecia de alguns conhecimentos básicos no que dizia respeito à cultura geral.

– Ia demorar uma eternidade a explicar, e não quero demorar muito tempo ao telefone – explicou Tengo –, mas, em resumo, estamos a falar de uma grande organização que dá emprego a muita gente. Essas pessoas andam pelos lares japoneses e recolhem todos os meses o dinheiro da taxa. Tu e eu não precisamos de pagar nada, uma vez que não recebemos nenhum serviço prestado pela tal empresa. De qualquer maneira, espero que não tenhas aberto a porta...

– Não abri. Fiz como me disseste.

– Fico contente.

– Mas o homem desatou aos berros e disse que éramos uns «ladrões».

– Não te preocupes com isso.

– Não roubámos nada.

– Claro que não. Tu e eu não fizemos nada de mal.

Do outro lado da linha, Fuka-Eri voltou a guardar silêncio.

– Estás aí?

Fuka-Eri não respondeu. Se calhar, entretanto desligara. Isto apesar de ele não ter ouvido nenhum ruído que o indicasse.

– Estou? – insistiu Tengo, desta vez mais alto.

Fuka-Eri deu uma tossidela que soou a falso.

– Essa pessoa afirmou que te conhecia bem.

– O cobrador de taxas?

– Sim. O tipo da ene-agá-kapa.

– E chamou-te ladrão?

– Não era a mim que ele se estava a referir.

– Referia-se a mim?

Fuka-Eri não lhe deu troco.

– Seja como for – prosseguiu Tengo –, televisão é coisa que não temos, por isso não roubei nada à NHK.

– Pois olha que o tal homem ficou todo enxofrado por eu não ter aberto a porta.

– Com isso posso eu bem. Ele que se irrite à vontade. A sério, não importa o que te digam, nunca abras a porta.

– Descansa, não abrirei.

Dito aquilo, Fuka-Eri desligou o telefone de repente. Ou talvez não o tivesse feito assim tão de repente. Para ela, pousar o auscultador naquele momento se calhar era um gesto natural e com o seu quê de lógico. No entanto, aos ouvidos de Tengo foi como se lhe tivessem desligado o telefone na cara. Em todo o caso, ele sabia perfeitamente que, por mais que se esforçasse, era inútil tentar adivinhar o que estaria Fuka-Eri a pensar ou a sentir. Dizia-lhe a sua experiência empírica.

Tengo pousou o telefone e regressou ao quarto do pai.

O ancião ainda não regressara. Notava-se a marca deixada pelo corpo na cama. Como era de esperar, não se via a crisálida de ar em parte alguma. No interior do quarto, tingido com as cores pálidas e frias do crepúsculo, apenas pairava o vestígio fugaz de aquele lugar ter estado poucos minutos antes habitado por uma pessoa.

Tengo suspirou e sentou-se na cadeira. Pousou as mãos sobre os joelhos e ficou durante muito tempo a olhar para a cova deixada nos lençóis pelo corpo do pai. Em seguida, levantou-se e espreitou pela janela. As nuvens de outono formavam uma linha reta por cima do pinhal. Tudo indicava que iria estar um bonito pôr do Sol, o primeiro desde há muito tempo.

Tengo não imaginava por que razão teria o cobrador da NHK dito que o «conhecia bem». Que se lembrasse, a última vez que o homem se apresentara lá em casa tinha sido cerca de um ano antes. Nessa altura, Tengo fora à porta e explicara amavelmente ao cavalheiro que não possuía televisor no apartamento. Mais: que nunca via televisão. Apesar de não ter ficado muito satisfeito com a explicação, o cobrador limitara-se a fazer um comentário desagradável e desandara sem acrescentar mais nada.

Seria o mesmo cobrador? Tinha a impressão de que o outro também aproveitara a ocasião para lhe chamar «ladrão». Todavia, não deixava de ser um tanto estranho que o mesmo cobrador se apresentasse em sua casa, ao fim de um ano, e dissesse que o «conhecia bem». Quando muito, os dois tinham ficado de pé a falar durante cinco minutos à porta de casa.

Que se lixe, pensou Tengo. O importante era que Fuka-Eri não lhe tivesse aberto a porta. O cobrador não devia regressar tão cedo. Tinham de cumprir uma determinada quota de trabalho, sendo normal que acabassem por ficar fartos das discussões desagradáveis com gente que se recusava a pagar. Se o homem fosse diligente, para não perder tempo, evitaria as zonas onde corria o risco de encontrar pela frente os clientes mais problemáticos e faria as cobranças onde lhe pagavam sem protestar.

Tengo dirigiu de novo o olhar para o vazio deixado pelo pai na cama. Vieram-lhe à memória todos os pares de sapatos gastos pelo seu progenitor. À força de percorrer a rota de cobrança, calcorreando os passeios de Tóquio dias a fio, estragara uma quantidade incrível de sapatos. Todos eles idênticos. Sapatos baratos, de couro preto e sola grossa, extremamente práticos. O pai usava-os até ficarem com as solas gastas e os tacões cambados. De cada vez que o via aparecer com aqueles sapatos deformados, o jovem Tengo sentia a alma cair-lhe aos pés. Faziam lembrar umas pobres bestas de carga, exploradas até ao limite e à beira da exaustão.

Contudo, pensando bem, não era o pai nesse momento um animal de carga moribundo? Não podia o pai ser comparado a um par de sapatos usados?

Voltou a olhar pela janela e apreciou os tons de púrpura que tingiam o céu a oeste, à medida que se aproximava o crepúsculo. Pensou na crisálida de ar, emitindo a sua ténue luz azulada, e em Aomame, que dormia no seu interior.

Voltaria a crisálida de ar a aparecer algum dia naquele lugar?

Formaria o tempo uma linha reta?

«Parece que me encontro num beco sem saída», disse Tengo, falando para as paredes. «Há demasiadas variáveis em jogo. Nem um menino-prodígio conseguiria encontrar uma resposta para tantos enigmas.»

As paredes não lhe deram resposta, claro está. Nem se dignaram expressar a sua opinião sobre o assunto. Limitaram-se a refletir as cores de fogo do crepúsculo.

5 Hospedaria tradicional japonesa, em que o chão está forrado de tatâmis e a zona de banhos é comum aos hóspedes. Regra geral, a pensão inclui pequeno-almoço ejantar. (N. das T.)

6 Fragmento da obra Tokyo nikki (Diário de Tóquio), publicada em 1938 pelo escritor e homem de letras Hyakken Uchida (pseudónimo de Eizo Uchida), inédita em língua portuguesa. O realizador Akira Kurosawa inspirou-se nela para filmar a personagem do velho mestre em Madadayo (Ainda Não!). (N. das T.)


4

USHIKAWA

A navalha de Occam

Ushikawa sentia dificuldade em habituar-se à ideia de que a anciã que morava na mansão de Azabu pudesse de alguma forma estar envolvida no assassínio do Líder da Vanguarda. Dera-se ao trabalho de recolher todas as informações disponíveis sobre a velha senhora. Visto tratar-se de um membro da alta sociedade e gozar de grande consideração, não tivera qualquer dificuldade em levar por diante as suas investigações. O marido fora um magnata, dono e senhor de um império financeiro no pós-guerra, tendo-se destacado no mundo da política. A sua atividade centrara-se nos investimentos e no ramo imobiliário, mas também participara em negócios que envolviam grandes superfícies e o setor dos transportes, áreas em desenvolvimento naquela altura. Após a morte do marido, em meados da década de cinquenta, a mulher tomou conta de tudo. Tinha talento para a gestão, a par de uma habilidade especial para prever situações de crise. Na segunda metade dos anos sessenta, quando percebeu que o império havia crescido muito e ameaçava escapar-se-lhe das mãos, tomou a decisão estratégica de vender – enquanto os preços estavam em alta – as ações de alguns dos negócios, o que tornou possível reduzir progressivamente o tamanho da sociedade. Dedicou então toda a sua energia ao fortalecimento dos setores que ficaram de pé. Graças a isso, conseguiu superar a crise do petróleo, minimizando os impactos negativos que se fizeram sentir pouco depois, e logrou acumular um bom capital. Sabia como transformar numa conjuntura favorável para ela o que para os outros era sinónimo de crise.

No presente, já com setenta e muitos anos, retirara-se da gestão dos negócios. Possuía uma fortuna considerável, que lhe permitia levar uma vida aprazível e livre de preocupações. Nascera numa família endinheirada, casara com um homem bem estabelecido na vida e, depois da morte do marido, enriquecera ainda mais. Por que razão iria uma mulher nessas condições planear um homicídio?

No entanto, Ushikawa decidiu conduzir a investigação até às últimas consequências. Por um lado, não encontrara nenhuma outra pista e, por outro, existia qualquer coisa naquela casa-abrigo dirigida por essa mulher que o intrigava. Não havia nada de estranho em oferecer refúgio a mulheres vítimas de maus-tratos. Podia ser considerado um serviço salutar e útil à sociedade. A senhora em questão dispunha de meios económicos, e as mulheres que se encontravam naquela situação ficavam-lhe profundamente agradecidas pela generosidade. O certo, porém, é que a vigilância à volta do edifício era demasiado apertada. A começar no portão robusto fechado a cadeado e a acabar nas múltiplas câmaras, sem esquecer o pastor alemão... Ushikawa não podia deixar de pensar que tudo aquilo pecava por excesso.

A primeira coisa que tratou de fazer foi comprovar em que nome se encontravam o terreno e a casa onde vivia a anciã. Era o tipo de informações à disposição do público, e bastava uma pessoa dirigir-se à Câmara Municipal para as obter. Estavam ambos em nome da velha senhora. Sobre eles não pendia qualquer hipoteca. Até aí, tudo claro como água. Ainda que os impostos sobre a propriedade ascendessem a uma soma considerável, calculava que, graças ao capital de que dispunha, o pagamento não representasse um problema de maior. O futuro imposto sucessório ascenderia igualmente a uma quantia avultada, mas também isso não parecia tirar-lhe o sono. Pelo que Ushikawa julgava saber, não havia nada no mundo que uma pessoa rica mais odiasse do que pagar impostos.

Desde a morte do marido, morava sozinha naquela enorme mansão. Sem dúvida que devia ter alguns empregados que lhe fizessem companhia, por isso não se podia dizer que estivesse entregue a si própria. Tivera dois filhos: o rapaz dera-lhe três netos e herdara o negócio da família; a rapariga, casada, morrera havia quinze anos, sem deixar descendência.

Aqueles tinham sido os dados que conseguira obter sem se esforçar muito. Contudo, ao tentar ir mais longe e aprofundar a investigação em torno da vida privada da senhora, um sólido muro ergueu-se de repente no seu caminho. A partir daí, todas as vias estavam fechadas. O muro era alto e o portão contava com múltiplas fechaduras. Ushikawa dera-se conta de que a mulher não tinha a menor intenção de abrir as portas da sua intimidade. E parecia disposta a não poupar esforços nem meios financeiros para garantir esse direito. Não respondia a perguntas nem se pronunciava a respeito de nada. Apesar de ter andado a meter o nariz numa grande quantidade de documentos, não conseguiu desencantar uma única fotografia dela.

O nome da anciã vinha na lista telefónica do bairro de Minato. Ushikawa experimentou ligar para o número que aí surgia, fiel à sua estratégia de abordar as questões de frente e na hora. Antes do segundo toque, a chamada foi atendida por um homem.

Ushikawa deu um nome falso, disse-lhe que trabalhava para uma firma de investimentos e que «gostaria de falar com a dona da casa sobre um dos seus fundos de investimento». O homem respondeu-lhe nos seguintes termos: «A senhora não pode vir ao telefone neste momento. Se desejar, queira transmitir-me a mensagem, que eu encarregar-me-ei de lha fazer chegar.» A voz neutra do indivíduo soava de uma forma mecânica, como se tivesse sido produzida por uma máquina. Ushikawa explicou-lhe que, segundo as normas da sua empresa, não podia abordar o assunto com mais ninguém a não ser com o cliente em questão e que, nesse caso, enviaria a documentação por correio, ainda que tal implicasse uma certa demora. O outro agradeceu e desligou o telefone.

Ushikawa não ficou desiludido por não poder chegar à fala com a velha senhora. Não estava à espera de tanto. O que realmente queria saber era até que ponto ela se preocupava em proteger a sua privacidade. E não havia dúvida de que o nível de preocupação era bastante elevado. Dentro da mansão deviam existir várias pessoas responsáveis pela sua segurança. Notava-se no tom de voz usado pelo homem que atendera o telefone (sem dúvida, um secretário); era o mais certo. Apesar de o nome da senhora vir na lista telefónica, só um grupo reduzido tinha acesso direto a ela, e todos os outros eram escorraçados sem contemplações, como se fossem formigas que estivessem a tentar trepar para dentro de um açucareiro.

Fingindo que andava à procura de casa para alugar, Ushikawa percorreu as imobiliárias da zona e usou de toda a subtileza para pedir informações acerca do prédio de apartamentos que fazia as vezes de casa-abrigo. A maioria das agências não estava sequer a par da existência de semelhante edifício naquele local. A zona ficava num dos mais sofisticados bairros residenciais de Tóquio. Os agentes imobiliários só trabalhavam com vivendas de luxo: não tinham em carteira nem estavam interessados em prédios de dois andares construídos em madeira. Bastou-lhes ver a cara e a forma como Ushikawa se apresentava vestido para o tratarem como se não existisse. Tanto assim era que, se um cão sarnoso com o rabo encolhido e todo empapado pela chuva tivesse entrado a mancar pela porta, seria tratado de forma mais calorosa.

Estava ele prestes a desistir da sua missão quando o anúncio na montra de uma pequena imobiliária – que, diga-se de passagem, parecia existir há séculos – captou a sua atenção. Em resposta à tal questão, o velhote de tez amarelada, que atendia os clientes sentado à secretária, disse qualquer coisa como: «Ah, sim! Esse sítio...», e predispôs-se a fornecer-lhe algumas informações. O homem tinha uma cara enrugada, mais parecia uma múmia de segunda, mas, para além de conhecer as redondezas como as palmas das suas mãos, estava sempre à coca, na esperança de encontrar com quem trocar dois dedos de conversa.

– Aquele edifício que pertence à esposa do senhor Ogata, não é verdade? Antigamente era um prédio de apartamentos para alugar. Não sei para que quereriam algo assim, porque, na sua condição, não tinham necessidade de alugar coisa nenhuma. Calculo que a senhora utilizasse os apartamentos para albergar os seus funcionários. Não lhe sei dizer grande coisa do que agora ali se passa, mas, ao que parece, converteu-se numa espécie de casa de acolhimento para abrigar mulheres vítimas de maus-tratos. Enfim, nada que possa interessar às imobiliárias, seja como for.

Dito aquilo, o velho riu-se sem abrir a boca. Parecia um pica-pau.

– Com que então, um kakikomidera7? – exclamou Ushikawa, oferecendo-lhe um Seven Stars.

O homem aceitou o cigarro, deixou que Ushikawa o acendesse com o isqueiro dele e puxou uma fumaça com visível gosto. Ushikawa deu por si a pensar que o cigarro Seven Stars devia estar satisfeito por ser apreciado com tamanho prazer.

– Sim, dão abrigo a mulheres que aparecem com a cara toda inchada, por terem sido espancadas, e que procuram escapar à fúria dos maridos. Escusado será dizer que não lhes cobram nada pela renda.

– Uma espécie de obra de assistência social – concluiu Ushikawa.

– Sim, isso mesmo. Como o edifício não lhes servia para nada, decidiram utilizá-lo a fim de ajudar pessoas necessitadas. Sendo ela uma mulher rica até dizer chega, pode dar-se ao luxo de fazer o que lhe dá na gana sem se preocupar em deitar contas à vida. Não é como nós, a plebe...

– E o que levaria a senhora Ogata a sustentar um projeto desses? Algum motivo terá, digo eu...

– Vá lá saber-se... Se calhar, rica como ela é, às tantas faz isso apenas para se distrair.

– Bom, mesmo considerando que se trata de um passatempo, não deixa de ter o seu mérito essa história de ajudar quem precisa – observou Ushikawa, com um sorriso de orelha a orelha. – Nem toda a gente endinheirada toma a iniciativa de fazer boas ações.

– Tem toda a razão, é uma obra meritória – concordou o ancião. – Se bem que eu não possa falar muito, visto já me ter acontecido levantar a mão para a minha senhora. – Ao dizer aquilo, deu uma sonora gargalhada, escancarando a boca e mostrando os poucos dentes que tinha. Dava a impressão de que bater na mulher representara uma das maiores alegrias que a vida lhe proporcionara.

– E sabe dizer-me quantas pessoas vivem ali, no presente? – tornou a perguntar Ushikawa.

– Todas as manhãs vou dar o meu passeio e passo lá em frente, mas de fora não se vê nadinha. Em todo o caso, deve haver meia dúzia de pessoas ali instaladas. Quer-me parecer que, no mundo em que vivemos, ainda há bastantes homens que batem nas mulheres.

– Há mais pessoas a fazer tudo para piorar as coisas do que gente interessada em fazer algo pela sociedade.

O velho tornou a soltar uma gargalhada com a boca toda aberta.

– Tem inteira razão. São mais os que cometem as asneiras do que aqueles que fazem tudo direitinho.

Dir-se-ia que Ushikawa caíra no goto ao velhadas. O que, de certo modo, não contribuiu para tranquilizar o seu interlocutor.

– A propósito, que género de pessoa é a senhora Ogata? – perguntou Ushikawa, esforçando-se por parecer natural.

– Confesso que não sei muito acerca da mulher do senhor Ogata – respondeu o ancião, franzindo a sobrancelha, ao ponto de esta parecer o espectro de uma velha árvore morta e ressequida. – Na verdade, ela leva uma vida bastante tranquila, para não dizer que se encontra retirada do mundo. Estou neste negócio há muito tempo, mas só a vi passar uma vez, ao longe. Quando sai de casa, é transportada pelo motorista, e são as empregadas que lhe fazem as compras. Tem ainda uma espécie de secretário, não sei se está a ver, e é ele que se ocupa de quase tudo. Quero dizer, essa gente rica e de boas famílias não trata diretamente com a arraia-miúda como nós. – O homem de idade fez uma careta e, por entre as rugas que se desenharam na testa, piscou o olho a Ushikawa.

Parecia querer com aquele gesto dizer-lhe que os dois, ele com a sua cara amarelada e Ushikawa, eram os principais elementos do grupo que designara como «arraia-miúda».

Ushikawa fez mais uma outra pergunta.

– Desde quando é que a senhora Ogata tem a funcionar essa casa-abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica?

– Hum... Isso, não lhe sei dizer ao certo, porque a história de a casa funcionar como uma espécie de refúgio foi-me contada por terceiros. Posso dizer-lhe, no entanto, que o vaivém de pessoas a entrar e a sair do edifício começou a dar nas vistas há coisa de quatro anos. Sim, quatro ou cinco anos, por aí... – O velho pegou na taça e bebeu um gole de chá frio. – A partir de então, instalaram um portão novo e reforçaram sensivelmente a segurança. Tem toda a lógica, uma vez que estamos a falar de uma casa-abrigo. Se qualquer um puder entrar com facilidade, as mulheres que lá vivem não ficariam em paz.

A seguir, lançou um olhar perscrutador a Ushikawa, como se tivesse regressado subitamente à realidade.

– E dizia-me o senhor que andava à procura de casa para arrendar por um preço razoável?

– Com efeito, assim é.

– Nesse caso, deveria tentar a sua sorte noutro sítio. Aqui só existem mansões de luxo, e, se aparecesse alguma coisa para arrendar, seriam por certo vivendas caríssimas, destinadas aos funcionários estrangeiros das embaixadas. Em tempos que já lá vão, sabe?, esta zona era habitada por gente vulgar, por pessoas que não eram assim tão ricas. Aliás, foi a trabalhar para elas e a fazer negócio com esses imóveis que construímos as nossas firmas, mas agora é outra história. De tal maneira, que começo a pensar em encerrar o negócio. Os preços dos terrenos em Tóquio dispararam sem controlo, e nós, os donos das pequenas agências, não nos conseguimos aguentar no balanço. A menos que esteja a nadar em dinheiro, sugiro-lhe que procure casa noutra zona.

– É o que farei – afirmou Ushikawa. – Para ser honesto, ando pouco abonado. Vou procurar casa para outra freguesia.

O velho deixou escapar o fumo do tabaco misturado com um suspiro.

– Quando a mulher do senhor Ogata morrer, a mansão está condenada a ir à vida, aposto o que o senhor quiser. O filho é um tipo ambicioso e não vai deixar um terreno tão vasto ficar desaproveitado, para mais localizado numa zona de primeira. Enquanto o diabo esfrega um olho, encarregar-se-á de deitar o edifício abaixo e construir em seu lugar um prédio de apartamentos de luxo. Se calhar, estamos nós os dois aqui a falar e ele já a arquitetar os seus planos...

– Isso pode querer dizer que o ambiente de tranquilidade que se respira neste bairro mudaria, não é verdade?

– Sim, tudo passaria a ser diferente.

– Falou há pouco no filho da tal senhora. A que se dedica ele?

– Principalmente ao negócio imobiliário. Tal como eu, ainda que estejamos a falar de campeonatos diferentes, é bom de ver. Seria o mesmo que comparar um Rolls-Royce com uma velha bicicleta. Movimenta capitais elevados e passa o tempo a comprar imóveis e a fazer grandes transações. O sistema está muito bem organizado, garanto, de modo a serem eles a comer tudo, sem deixar uma migalha que seja. Nós não apanhamos nem com as sobras. Uma coisa lhe digo: vivemos num mundo cão!

– Andei a dar uma volta, há bocado, e passei muito perto da tal mansão. Fiquei deveras impressionado. É uma bela casa.

– Sem dúvida, é a melhor vivenda da vizinhança. Só de imaginar esses magníficos salgueiros a serem abatidos, faz-me doer o coração – lamentou-se o velhote, abanando a cabeça em sinal de tristeza. – Espero que a mulher do senhor Ogata ainda dure uns anitos valentes...

– Oxalá que sim – concordou Ushikawa.

Ushikawa tentou entrar em contacto com o Centro para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica. Para sua surpresa, o número vinha na lista com esse mesmo nome. Tratava-se de uma organização sem fins lucrativos, gerida por voluntários e dirigida por vários advogados. Solidária com a organização, a dona da casa acolhia mulheres fugidas dos seus lares e sem sítio para onde ir. Ushikawa solicitou uma entrevista dando o nome do seu gabinete: a Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão. Para o efeito, mostrou-se na disposição de se tornar um potencial benfeitor e deu-lhes a entender que poderia conceder ajuda económica. Fixaram-lhe então o dia e a hora para uma entrevista.

Ushikawa entregou-lhes um cartão de visita (igual ao que dera a Tengo) e explicou-lhes que um dos objetivos da associação consistia em escolher, todos os anos, uma organização sem fins lucrativos, que se destacasse pela sua contribuição à sociedade, e premiá-la com a atribuição de um subsídio. Uma das organizações candidatas era o Centro para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica. Não podia revelar-lhes o nome dos patrocinadores, mas eram livres de atribuir o subsídio a quem lhes aprouvesse, sendo que o único requisito consistia na apresentação de um breve relatório no final do ano.

A aparência de Ushikawa não pareceu inspirar uma impressão muito favorável no jovem advogado que o atendeu, podendo mesmo dizer-se que ele começou por ser recebido com uma certa desconfiança. Contudo, a falta de verbas era crónica, e, como tal, toda e qualquer ajuda se revelava bem-vinda. Por isso, o advogado não teve outro remédio senão pôr de lado os seus pruridos e mostrar-se disposto a aceitar o contributo, viesse ele de onde viesse.

Ushikawa disse-lhe que gostaria de conhecer as atividades mais ao pormenor. O advogado explicou-lhe a génese da associação. A história provocou em Ushikawa um aborrecimento de morte, mas esforçou-se por aparentar grande interesse e lá ouviu as explicações. Mostrava o seu acordo no momento adequado, assentindo com a cabeça, fazia toda a espécie de ruídos apropriados e conservou uma expressão dócil e compreensiva. Entretanto, o advogado foi-se acostumando à presença de Ushikawa e, a páginas tantas, começou a pensar que, se calhar, o outro não seria assim tão má rês... Ushikawa sabia escutar e possuía uma maneira de tal modo atenta e sincera de se relacionar com os seus interlocutores, que, na maior parte dos casos, tinha quase sempre o efeito de os tranquilizar.

Assim que teve oportunidade, procurou desviar a conversa com grande naturalidade para o tema da casa-abrigo. Perguntou ao advogado onde se refugiavam as desgraçadas que procuravam fugir à violência doméstica, sobretudo no caso daquelas pobres mulheres sem eira nem beira. Fê-lo arvorando uma expressão de genuína preocupação por essas mulheres, cujo destino era parecido com o das folhas das árvores à mercê de um vendaval impiedoso.

– Para casos como esse, dispomos de várias casas-abrigo – respondeu-lhe o jovem advogado.

– Quando fala em casas-abrigo, refere-se a quê?

– São refúgios temporários. Não existem muitos, mas contamos com a ajuda de almas caridosas, que vão pondo à nossa disposição alguns lugares. Uma dessas pessoas foi ao ponto de nos oferecer um edifício inteiro.

– Um edifício inteiro? – exclamou Ushikawa, parecendo interessado. – E ainda dizem que não existe gente boa neste mundo!

– Pois é... Sempre que as nossas atividades são divulgadas nos jornais e nas revistas, aparecem pessoas que, ao ficarem a par da situação, querem colaborar connosco. Sem essa ajuda, a nossa organização nada poderia fazer, uma vez que dependemos quase exclusivamente das suas contribuições.

– É uma atividade muito meritória, a vossa – elogiou Ushikawa.

O advogado deixou escapar um sorriso que o tornou vulnerável. Não há ninguém mais fácil de enganar, confirmou Ushikawa, do que uma pessoa que está convencida de ter razão.

– Quantas mulheres vivem agora no tal edifício?

– O número vai variando, mas... eu diria que devem lá estar umas quatro ou cinco – respondeu o advogado.

– Interrogo-me sobre o que diz respeito a esse tal filantropo que lhes ofereceu o edifício – lançou-se Ushikawa a adivinhar. – Algum motivo terá havido em concreto para se mostrar tão generoso.

O advogado inclinou a cabeça em sinal de dúvida.

– Na verdade, não lhe sei dizer, mas parece que a pessoa em questão já antes se envolvera a título particular neste género de iniciativas. Nós limitámo-nos a receber a sua ajuda e a manifestar-lhe a nossa imensa gratidão. Se o benfeitor não entra em grandes explicações, não nos cabe a nós fazer-lhe perguntas.

– Como é evidente – respondeu Ushikawa, manifestando a sua concordância com a cabeça. – A propósito, parto do princípio de que o que diga respeito a todos os assuntos relacionados com a casa-abrigo seja confidencial, a começar pela localização, não é assim?

– Exato. Por um lado, temos o dever de proteger as mulheres e, por outro, muitos patrocinadores desejam conservar o anonimato. É bom não esquecer que estamos a falar de atos violentos.

A conversa prolongou-se por mais algum tempo, mas Ushikawa não foi capaz de extrair mais nenhuma informação concreta do advogado. Tudo somado, isto foi o que Ushikawa ficou a saber: o centro de acolhimento para mulheres vítimas de violência doméstica começara a funcionar a sério quatro anos antes; pouco depois, um filantropo entrou em contacto com eles e cedeu-lhes um edifício desocupado, com o fito de aí ser criada uma casa-abrigo. Essa pessoa soubera da existência da organização depois de ter lido vários artigos na imprensa. Uma das várias condições para colaborar com eles era que a sua identidade nunca fosse revelada. No entanto, pelo andamento da conversa, Ushikawa não tinha dúvidas de que essa tal pessoa dada à filantropia era a viúva que morava no bairro de Azabu, e que a casa-abrigo funcionava no edifício de madeira que era propriedade sua.

– Obrigado pelo tempo que me dispensou – agradeceu calorosamente Ushikawa ao jovem advogado idealista. – A sua organização pode ter a certeza de estar a fazer um trabalho válido e a contribuir para melhorar a sociedade. Passarei a expor tudo o que relatou na próxima reunião do nosso conselho de administração e em breve conto ter uma resposta para lhe dar. Entretanto, faço votos para que continuem a desenvolver as vossas atividades com renovado êxito.

O passo seguinte foi investigar em que circunstâncias morrera a filha da velha senhora. Tinha casado com um alto funcionário do Ministério dos Transportes e, no momento da sua morte, contava apenas trinta e seis anos. Ainda não conseguira determinar a causa da morte. O marido abandonou o ministério passado pouco tempo de ficar viúvo. Eram esses os factos que Ushikawa conseguira apurar. Não sabia por que motivo o marido abandonara o seu cargo no ministério, nem que caminho seguira na vida desde então. Tanto podia ser que a saída do ministério estivesse relacionada com o falecimento da mulher, como podia ser que não. O Ministério dos Transportes não era propriamente um organismo governamental que se mostrasse predisposto a oferecer informações internas ao primeiro cidadão que lhes aparecesse à frente. Porém, Ushikawa era dotado de um faro apurado. Havia ali qualquer coisa de estranho. Custava-lhe a crer que o homem abandonasse a sua carreira e se afastasse de toda a vida social, ao ponto de desaparecer do mapa, levado única e exclusivamente pela tristeza provocada pela morte da mulher.

Ushikawa sabia que não havia assim tantas mulheres que morressem por doença aos trinta e seis anos. Obviamente, não queria dizer que não houvesse casos desses. Às vezes, acontece uma pessoa adoecer e cair para o lado de repente – seja de cancro, por causa de um tumor no cérebro, de peritonite ou de pneumonia aguda –, independentemente da idade que tiver ou de viver num ambiente mais ou menos protegido. O corpo humano é frágil. Todavia, em termos estatísticos, quando uma mulher da classe alta vai desta para melhor aos trinta e seis anos, aumentam as probabilidades de a sua morte ficar a dever-se a um acidente ou a suicídio.

Ora vamos lá especular um bocadinho, disse Ushikawa com os seus botões. Segundo a famosa lei da navalha de Occam, tentarei formular as hipóteses mais simples. Logo, importa excluir fatores supérfluos e analisar os factos seguindo uma linha de raciocínio dedutivo.

Suponhamos que a filha da anciã não morreu de doença, mas que se suicidou. Ushikawa ia esfregando as mãos enquanto matutava naquilo. Fazer passar um suicídio por morte natural não é assim tão difícil. Sobretudo quando estamos a falar de alguém com dinheiro e influência. Indo um pouco mais longe na minha análise, vamos imaginar que esta jovem mulher sofria maus-tratos e, desesperada, acabou com a sua própria vida. Não é tão inusitado como parece. Sabe-se, por portas e travessas, que certos membros da chamada «elite» da sociedade possuem um lado negro, a par de tendências retorcidas e repulsivas, como se, neste campo, aceitassem de bom grado mais do que a quota de perversidade que lhes corresponde.

A ser esse o caso, que faria a velha senhora, sua mãe? Resignar-se-ia à sua sorte, acreditando que era o destino e que nada podia fazer? Não, impossível. De certeza que tomaria as suas providências e que procuraria castigar oportunamente a pessoa que causou a morte da filha. Ushikawa formara uma ideia do género de pessoa que a anciã devia ser: uma mulher inteligente e corajosa, com uma visão lúcida das coisas e uma força de vontade indomável. Como tal, não hesitaria em utilizar o seu capital nem as suas influências com o objetivo de vingar a morte de alguém que lhe era tão querido.

Ushikawa não tinha maneira de saber que tipo de retaliação desencadeara a senhora contra o marido da sua filha. O seu rasto desvanecera-se no ar, literalmente. Não acreditava que a anciã tivesse chegado ao extremo de o matar. Tudo apontava para que fosse uma pessoa prudente, comedida. Possuía uma mente aberta. Nunca seria capaz de um gesto tão brutal. No entanto, sem dúvida que tomara alguma medida drástica. E não acreditava que a anciã tivesse deixado algum indício capaz de levar até ela.

Até aí, as conjeturas de Ushikawa pareciam encaixar-se. Todavia, careciam de fundamento concreto. Apesar disso, aplicando a teoria aos factos, muitas das dúvidas eram eliminadas. Ushikawa esfregou as mãos com força, ao mesmo tempo que lambia os lábios. A partir desse ponto, as coisas tornavam-se um tanto ou quanto ambíguas.

No ginásio que costumava frequentar, a anciã travara conhecimento com uma jovem instrutora chamada Aomame e, por qualquer razão que Ushikawa desconhecia, as duas selaram um pacto secreto. Em sequência disso, prepararam tudo de maneira extremamente meticulosa, no sentido de Aomame ter acesso ao quarto do Hotel Okura e tirar a vida ao Líder. O método usado continuava por apurar. Havia a hipótese de Aomame dominar alguma técnica especial para assassinar pessoas. Em consequência disso, o Líder acabara por ser morto, apesar da vigilância apertada exercida pelos seus leais guarda-costas.

Até aí, ainda que de forma um tanto precária, podia seguir o fio da sua argumentação sem se perder, e as hipóteses aguentavam-se de pé. Agora, no que dizia respeito a estabelecer uma ligação entre o Líder da Vanguarda e o centro destinado às mulheres vítimas de violência doméstica, Ushikawa sentia-se completamente desnorteado. O seu pensamento ia ter a um beco sem saída, e, para sua grande deceção, o fio que unia todas as hipóteses era cortado cerce por uma navalha afiada.

O que a comunidade religiosa pedia a Ushikawa era a resposta a duas perguntas: «Quem planeara o homicídio do Líder?», primeiro que tudo, e, em segundo lugar: «Onde se encontrava Aomame?»

Tinha sido o próprio Ushikawa a encarregar-se da pesquisa prévia sobre Aomame, e não encontrara nada a apontar-lhe. De resto, já antes realizara outras investigações do género. Era, por assim dizer, um especialista na matéria. E o resultado ditara que a rapariga estava clean, não podendo estar mais limpa. Por mais que investigasse a vida dela de diferentes ângulos, não constatara nada de suspeito, tendo comunicado isso mesmo à organização. Foi então que eles pediram a Aomame para ir ter à suíte do Hotel Okura, a fim de aí realizar uma sessão de alongamentos musculares. Depois de ela ali se ter deslocado, o Líder aparecera morto. Aomame evaporara-se. Puf. Como fumo disseminado pelo vento. Por essa razão, os membros da organização deviam estar pouco satisfeitos com Ushikawa, e isso não deixava de ser um eufemismo. Segundo eles, Ushikawa não fizera um trabalho de prospeção decente.

Na realidade, a investigação levada a efeito por ele tinha sido impecável. Como dissera na altura ao Bola-de-Bilhar: quando se tratava de questões profissionais, tinha por hábito não negligenciar nada. Sem dúvida, cometera o erro de não comprovar de antemão o registo das chamadas telefónicas, mas por norma só o fazia quando se tratava de uma situação altamente duvidosa. E, pelo menos até onde lhe fora dado ver, o caso de Aomame não apresentava contornos duvidosos.

Em todo o caso, não estava disposto a permitir que continuassem descontentes com o seu desempenho. Pagavam bem, mas eram perigosos. Pelo simples facto de saber que se tinham desembaraçado do cadáver do Líder, Ushikawa representava uma ameaça para eles. Tinha de lhes demonstrar por «a + b» que era uma pessoa competente. Alguém que merecia continuar a viver.

Não dispunha de provas concretas que atestassem o envolvimento da velha senhora de Azabu no homicídio do Líder. Por enquanto, tudo continuava no terreno das hipóteses, apesar de ele estar a par de um segredo inconfessável, guardado a sete chaves algures dentro daquela mansão erguida nos terrenos onde cresciam magníficos salgueiros. Dizia-lhe o seu instinto. Tinha de apurar a verdade, mesmo sabendo à partida que a tarefa não seria fácil. A casa estava fortemente vigiada e deviam contar com a ajuda de profissionais.

Seriam membros da yakuza?

Provavelmente. No mundo dos negócios, sobretudo no setor imobiliário, a yakuza andava muitas vezes metida ao barulho. Quando a coisa dava para o torto, os seus elementos encarregavam-se do trabalho sujo. Não era de descartar a hipótese de a dita senhora ter recorrido aos seus serviços. Ainda assim, Ushikawa tinha as suas dúvidas. A anciã era demasiado bem-educada para se misturar com gentalha daquela. Além do mais, era improvável que recorresse aos membros da yakuza para proteger mulheres, elas próprias vítimas da violência machista. O mais provável era dispor do seu próprio sistema de segurança. Um sistema requintado e feito à medida das suas necessidades. Uma coisa do género devia custar uma fortuna, mas dinheiro não lhe faltava. E, se calhar, esse sistema poderia evoluir e adaptar-se às situações de maior violência quando as circunstâncias o exigissem.

No caso de as hipóteses de Ushikawa se revelarem corretas, Aomame contaria com o apoio da anciã e estaria refugiada algures, longe de Tóquio. Ter-se-iam dado ao trabalho de eliminar o seu rasto, já lhe deviam ter arranjado uma nova identidade, e o mais certo seria mudar de nome. Mesmo o seu aspeto físico estaria diferente. Como tal, seria impossível Ushikawa continuar no encalço dela seguindo o seu método habitual de pesquisa, tal como fizera até então.

De momento, não tinha outro remédio senão investigar melhor a teoria segundo a qual a senhora de Azabu se encontrava por detrás de tudo. A sua esperança era encontrar alguma falha e, a partir daí, conseguir chegar ao paradeiro de Aomame. O plano talvez funcionasse, talvez não. A seu favor, Ushikawa contava com dois trunfos: um faro apuradíssimo e uma grande tenacidade. Quando se propunha seguir uma pista, a fim de resolver um imbróglio, nunca mais a largava. E que outra qualidade de que me possa orgulhar tenho eu, além dessa?, perguntou a si mesmo. Possuo outro talento de que me possa gabar?

Nem um para amostra, respondeu Ushikawa, convencido de que tinha razão.

7 Refúgio, asilo. (N. das T.)


5

AOMAME

Por mais que se esconda e retenha a respiração

Para Aomame, aquela vida solitária e monótona, afastada de tudo e de todos, não representava um sacrifício assim tão grande. Levantava-se às seis e meia da manhã e tomava um pequeno-almoço ligeiro. Durante cerca de uma hora, entretinha-se a lavar a roupa, a passar a ferro e a limpar o chão. Antes de chegar a hora do almoço, utilizava os aparelhos que Tamaru lhe arranjara, dedicando ao exercício físico uma hora e meia. Como boa instrutora que era, sabia perfeitamente quais os músculos que precisavam de ser estimulados cada dia e durante quanto tempo. Distinguia com nitidez até onde podia ir no seu esforço e a partir de que altura é que o exercício se tornava excessivo.

Ao meio-dia, comia qualquer coisa, quase sempre uma salada e fruta. À tarde, passava a maior parte do tempo no sofá, a ler ou a dormir uma curta sesta. Quando o Sol se punha, dedicava mais ou menos uma hora do seu tempo a cozinhar, para estar despachada antes das seis. Assim que anoitecia, sentava-se na cadeira de jardim, à varanda, e ficava ali a vigiar o parque infantil. Chegando as dez e meia, metia-se na cama. E assim se passavam os dias, um atrás do outro, sem que ela, todavia, sentisse o peso do tédio.

Nunca tinha sido uma pessoa muito sociável. Não se importava de passar temporadas sem ver ou falar com alguém. Quando era pequena e andava na escola primária, era raro meter conversa com os seus companheiros. Para dizer a verdade, os outros é que evitavam falar com ela, a não ser quando era preciso. Na sua turma era a voz dissonante, o elemento incompreensível, que devia ser ignorado e excluído. Aomame achava isso injusto. Se ela tivesse feito qualquer coisa de mal, talvez merecesse ser marginalizada. Mas não era o caso. A fim de sobreviver neste mundo, uma rapariga deve acatar as ordens dos seus pais sem refilar. Por isso, rezava em voz alta antes de comer, percorria a cidade todos os fins de semana com a mãe na tentativa de captar mais devotos, negava-se a ir nas excursões aos templos xintoístas e budistas invocando motivos religiosos, rejeitava as festas de Natal pelas mesmas razões e não se queixava sempre que tinha de vestir roupa usada. Porém, os outros meninos não estavam a par dessas circunstâncias, tão-pouco pareciam interessados em conhecê-la. Viam-na apenas como um bicho raro. Até mesmo os professores a consideravam nitidamente um empecilho.

Claro está que Aomame poderia ter mentido aos pais, nas calmas. Dizer-lhes que rezava as suas orações todos os dias antes das refeições e depois não cumprir a sua palavra. Mas não queria fazê-lo. Primeiro, porque não queria mentir perante Deus – independentemente de Ele existir ou não –, e, segundo, porque, à sua maneira, estava zangada com os seus camaradas. «Se querem odiar-me, que me odeiem à vontade», pensava. Rezar passara a ser uma forma de os desafiar. A justiça estava do seu lado.

Acordar todas as manhãs e vestir-se para ir às aulas era um suplício. Por culpa dos nervos, ficava mal da barriga e chegava a vomitar. Outras vezes tinha febre ou dores de cabeça e sentia cãibras nas extremidades. Ainda assim, nunca faltava às aulas. Se deixasse de ir, por um dia que fosse, sabia que não regressaria à escola nos tempos mais próximos. E, caso a situação se prolongasse, arriscava-se a deixar de ir às aulas para sempre. Isso significava que os seus colegas e os professores teriam levado a sua avante. Com a menina afastada da sala de aulas, sem dúvida que todos se sentiriam mais aliviados. Quanto a ela, não queria dar-lhes esse prazer, razão pela qual não faltava nunca, nem que tivesse de se arrastar até ao colégio. Aguentava em silêncio, cerrando os dentes com força.

Comparado com os dias dolorosos da infância, estar encerrada num apartamento bem arranjado, como aquele, não era nada do outro mundo. Comparado com o sofrimento de ficar calada enquanto à sua volta os demais conversavam animadamente, guardar silêncio num lugar onde não havia mais ninguém tornava-se fácil e natural. Além disso, tinha livros por perto. Começou a ler o romance de Proust que Tamaru lhe fizera chegar. Procurava não ler mais de vinte páginas por dia. Lia todas as páginas com atenção, devagar, demorando-se em cada palavra. Quando chegava ao fim desse número de páginas, entregava-se a outra leitura. E antes de ir para a cama lia sem falta algumas páginas d’A Crisálida de Ar. Tengo ajudara a redigir a obra que, de certa maneira, se transformara numa espécie de manual que ela seguia para viver nesse mundo de 1Q84.

Também escutava música. A anciã tinha-lhe enviado uma caixa com cassetes de música clássica. Sinfonias de Mahler, música de câmara de Haydn, música para cravo de Bach, entre outras peças de diferentes géneros e estilos. Lá estava a Sinfonietta de Janácek, que Aomame pedira em concreto. Escutava a peça uma vez por dia, enquanto se entregava à prática do exercício físico sem fazer barulho.

O outono chegou e instalou-se pela calada. Com o passar dos dias, Aomame sentia que o seu corpo se ia tornando transparente. Esforçou-se por libertar a mente, mas tornava-se impossível não pensar em nada. Quando se produz um vazio, aparece logo alguma coisa que o preenche. Pelo menos já não sentia necessidade de odiar. Nem sequer tinha necessidade de odiar os seus companheiros de turma nem os professores. Deixara de ser aquela menininha vulnerável de outros tempos, e ninguém lhe podia impor a religião. Já não era preciso detestar os homens que batiam nas mulheres. Essa cólera que, volta e meia, invadia o seu corpo como se fosse a maré em dias de tempestade – uma irritação violenta, irracional, que a fazia ter vontade de desatar aos murros nas paredes – esboroara-se sem se dar conta. Não sabia porquê, mas deixara de a apoquentar. Aos seus olhos, era uma bênção. Se dependesse dela, nunca mais queria fazer mal a ninguém. Assim como não queria magoar-se.

Nas noites em que não conseguia dormir, pensava em Tamaki Otsuka e Ayumi Nakano. Quando fechava as pálpebras, evocava com nitidez a lembrança de quando as abraçava. Tinham uma pele sedosa e brilhante, macia. Os seus corpos eram quentes, tenros e suaves ao toque. Neles circulava sangue fresco, o coração batia compassadamente, com um doce palpitar. Ouviam-se pequenos suspiros e gargalhadinhas sufocadas. Dedos finos, mamilos rijos, coxas lisas... Contudo, essas duas mulheres já não faziam parte deste mundo.

Furtivamente, como um caudal de águas negras e mansas, a tristeza invadia o coração de Aomame. Nessas ocasiões, o melhor que tinha a fazer era mudar o rumo das suas memórias e esforçar-se por pensar apenas em Tengo. Concentrava-se e recordava o toque da mão do rapaz: tinha dez anos e apertara a mão dele entre as suas por breves minutos, em plena sala de aulas. Então, a imagem de Tengo, aos trinta anos, sentado no alto do escorrega que havia no parque infantil, reavivava-se na sua mente. Imaginava-se envolvida por aqueles dois braços vigorosos, de adulto.

Esteve quase ao alcance das minhas mãos.

Para a próxima, se estender bem os braços, pode ser que consiga tocar-lhe mesmo. Às escuras, Aomame fechou os olhos e mergulhou nessa possibilidade. Entregou-se de corpo e alma ao seu desejo.

E se nunca mais conseguir voltar a encontrá-lo, pensou ela, que farei? O seu coração estremeceu. As coisas eram mais simples quando não existia qualquer elo de ligação com Tengo. Encontrar-se com ele, sendo ambos adultos, não passara de um mero sonho, uma hipótese abstrata. Mas a partir do momento em que vira o verdadeiro Tengo diante dos seus olhos, a pessoa dele tornara-se mais concreta, mais poderosa do que nunca. Acontecesse o que acontecesse, Aomame queria a todo o custo vê-lo de novo. Desejava ser abraçada por ele, acariciada da cabeça aos pés. Só de pensar que o seu sonho nunca se tornaria realidade, sentia o corpo e a alma dilacerados.

Se calhar, devia ter enfiado aquela bala de nove milímetros nos miolos, ali mesmo em frente ao anúncio do tigre da Esso. Assim não teria de estar agora a viver nesta angústia. Alguma coisa, porém, a impediu de premir o gatilho. Escutara uma voz. Havia alguém que a chamava pelo nome, de muito longe. Talvez possa tornar a ver o Tengo, pensou. Assim que esse pensamento lhe ocorreu, sentiu-se compelida a viver. Mesmo correndo o risco de prejudicar Tengo, tal como o Líder dissera, o certo é que já não podia escolher outro caminho. Experimentara um impulso vital extraordinariamente forte, que desafiava a razão. Como resultado disso, todo o seu corpo ardia de desejo por ele. Sentia uma sede que não havia meio de saciar, a par de um pressentimento eivado de desespero.

A revelação atingiu Aomame em cheio. É este o sentido da vida. As pessoas dão-nos esperança, e nós alimentamos essa esperança, como se fosse um combustível. Não se pode viver sem ela. Ao pensar nisso, o coração de Aomame fez-se pequenino. A opressão que sentiu foi de tal ordem, que todos os ossos do corpo pareciam ter desatado a ranger, e então gritou.

Aomame voltou a sentar-se à mesa e pegou na pistola automática. Puxou a corrediça e meteu uma bala na câmara, levantou o percutor com o polegar e introduziu o cano da arma na boca. Bastava pressionar um pouco com o dedo no gatilho para acabar de vez com toda aquela angústia. Só preciso de mover um tudo-nada o dedo. Um centímetro mais... Não, meio centímetro para dentro é quanto basta para mergulhar num mundo silencioso e sem preocupações. A dor será momentânea. Depois, entrarei num vazio misericordioso. Aomame fechou os olhos. O tigre que se via no anúncio da Esso sorria-lhe alegremente, com uma mangueira na mão. Meta um tigre no seu depósito.

Aomame retirou o duro cano metálico da boca e abanou a cabeça devagar.

Não posso morrer. Diante da varanda existe um parque infantil, no parque há um escorrega e, enquanto houver esperança de que o Tengo possa regressar ali, sou incapaz de apertar este gatilho. Essa possibilidade deteve-a mesmo no limite. No seu íntimo, sentiu que fechava uma porta e abria outra, em silêncio, sem fazer ruído. Puxou a corrediça, a fim de retirar a bala da câmara, voltou a pôr a patilha de segurança e tornou a colocar a arma em cima da mesa. Quando fechou os olhos, distinguiu qualquer coisa no escuro, uma luzinha ténue que desaparecia a pouco e pouco. Dir-se-ia uma poalha de luz muito fina, mas Aomame não sabia o que era.

Sentada no sofá, concentrou-se na leitura, seguindo as páginas escritas por Proust: Do Lado de Swan. Imaginou as cenas descritas na história e tentou que nenhum outro pensamento interferisse com a sua mente. Lá fora começara a cair uma chuva fria. Na rádio, o boletim meteorológico anunciou que a chuva estava para ficar até à manhã do dia seguinte. Uma frente de tempestade com chuvas outonais concentrara-se na costa do Pacífico e não dava sinal de querer afastar-se – como quem, mergulhado nos seus pensamentos, se esquece da passagem do tempo.

O Tengo não vai aparecer, pensou ela. O céu estava completamente coberto por nuvens densas que não deixavam ver as luas. Apesar disso, o mais provável era Aomame ir até à varanda, com uma chávena de chocolate quente na mão, e ficar ali a vigiar o parque. Vestida como se fosse sair, observaria com atenção o escorrega fustigado pela chuva, mantendo o binóculo e a pistola à mão. Porque essa era a única coisa que fazia sentido para ela.

Às três da tarde soou a campainha da entrada do prédio. Alguém queria entrar. Aomame ignorou o toque. Era pouco provável que tivesse visitas. Tinha posto uma cafeteira com água ao lume para fazer chá, mas, pelo sim, pelo não, apagou o fogão e ficou à espera do que iria acontecer. A campainha tocou três ou quatro vezes e depois ficou tudo em silêncio.

Cinco minutos mais tarde, voltou a soar. Dessa vez era a campainha do apartamento. Encontrava-se alguém dentro do prédio, à porta dela. A «tal» pessoa podia ter acedido ao prédio aproveitando para entrar ao mesmo tempo que outro inquilino, ou então tocara para outro andar e, inventando uma desculpa qualquer, conseguira que lhe abrissem a porta. Aomame ficou no mais absoluto silêncio. Tamaru recomendara-lhe que, no caso de aparecer alguém, não respondesse nem desse a cara. Fechar a porta por dentro com a corrente e não fazer barulho. Tinham sido aquelas as instruções de Tamaru.

A campainha deve ter tocado para aí umas dez vezes. Demasiado insistente para ser um vendedor – quando muito, costumam tocar três vezes. Aomame conteve a respiração, e foi então que a pessoa começou a bater com o punho na porta. Apesar de não usar a força, percebia-se nas pancadas uma vaga irritação.

– Senhora Takai – dizia a voz de um homem de meia-idade. Uma voz ligeiramente rouca. – Boa tarde, senhora Takai. Poderia abrir a porta, por favor?

Takai era o nome falso que aparecia indicado na caixa de correio.

– Senhora Takai, desculpe incomodá-la, mas gostaria de falar consigo. Importa-se de me abrir a porta, por favor?

O homem fez uma breve pausa, à espera de resposta. Quando percebeu que ninguém respondia, bateu na porta com os nós dos dedos, desta vez empregando um pouco mais de força.

– Senhora Takai, sei que se encontra em casa. Por isso, deixe-se de histórias e faça o favor de me abrir a porta. Sei perfeitamente que está aí e que me pode ouvir.

Aomame pegou na pistola automática que estava em cima da mesa e destravou a patilha de segurança. Envolveu a arma numa pequena toalha de mãos e empunhou-a.

Não fazia ideia de quem era nem o que queria aquele homem, mas, por alguma razão, a hostilidade dele parecia dirigida à sua pessoa, além de estar decidido a obrigá-la a abrir a porta. Escusado será dizer que, naquela situação, era a última coisa que ela queria.

Por fim, cessaram os golpes na porta e a voz do homem voltou a ressoar no corredor do prédio.

– Senhora Takai, venho cobrar a taxa da NHK. Isso mesmo, a boa velha NHK, que é de todos nós. Sei que está em casa. Por mais que se esforce e que retenha a respiração, sei que está aí. Sou velho nestas andanças e consigo distinguir quando não está ninguém num apartamento e quando uma pessoa finge que não está em casa. Por mais que tentem não fazer barulho, os seres humanos deixam sempre uma espécie de sinal da sua presença. As pessoas respiram, o seu coração bate e o estômago faz a digestão. Senhora Takai, sei que está dentro de casa, neste preciso momento, à espera de que eu me dê por vencido e me vá embora. Não está nos seus planos abrir a porta nem responder, porque não quer pagar a taxa de emissão.

O indivíduo falava mais alto do que era preciso e a sua voz reverberava pelo corredor fora. Fazia de propósito. Chamava o inquilino pelo nome em voz alta, de modo a ridicularizá-lo e a fazê-lo sentir-se intimidado. Pretendia com isso que servisse de exemplo aos vizinhos. Aomame remeteu-se ao silêncio. Não estava para responder. Pousou a pistola em cima da mesa. Manteve a patilha de segurança destravada, não fosse o diabo tecê-las. O sujeito podia muito bem fazer-se passar por um cobrador da NHK, era uma hipótese a considerar. Deixou-se estar sentada à mesa da sala, sem tirar os olhos da entrada.

Tinha vontade de se aproximar da porta e de espreitar pela vigia, para ver como era o homem. No entanto, deixou-se estar sentada. Mais valia evitar movimentos desnecessários. De certeza que ele não tardaria a desistir e a ir-se embora.

O homem, porém, parecia apostado em botar discurso em frente à porta da casa onde se encontrava Aomame.

– Senhora Takai, vamos lá deixar de brincar às escondidas, pode ser? Olhe que não ando aqui por gosto! Ainda que não pareça, tenho mais que fazer... Senhora Takai, estou farto de saber que vê televisão. E toda a gente que vê televisão tem de pagar a taxa da NHK, sem exceção. Por muito que lhe desagrade, é a lei. Não pagar equivale a cometer um roubo. Calculo que a senhora não queira ser tratada como uma ladra por causa de uma insignificância destas, pois não? Vivendo num edifício novo e funcional como este, calculo que possa pagar a taxa de emissão sem qualquer dificuldade, não é assim? Não deve achar muita graça, imagino, ao ouvir-me dizer estas coisas diante de toda a vizinhança...

Em condições normais, Aomame não se teria importado com o estardalhaço feito pelo cobrador da NHK. Mas encontrava-se numa situação delicada: escondida dos olhares alheios, procurando passar despercebida. A última coisa que lhe interessava era chamar a atenção dos vizinhos. No entanto, não tinha outro remédio, senão ficar muda e queda, à espera de que o homenzinho desamparasse a loja.

– Senhora Takai, já sei que me estou a repetir, mas tenho a certeza de que se encontra em casa, a ouvir as minhas palavras e a perguntar a si própria: «Por que carga-d’água terá este indivíduo escolhido precisamente o meu apartamento para vir debitar o seu discurso?» Porque será, senhora Takai? Talvez porque não me agrada que haja quem faça de conta de que não está em casa... Não lhe parece de mau tom? Além de ser uma solução temporária, claro. Por todas as razões, gostaria que abrisse a porta e dissesse na minha cara que não faz tenções de pagar a taxa de emissão da NHK. Vai ver que se sentiria aliviada. E eu também. Pelo menos, poderíamos discutir o assunto. Agora, estar com fingimentos é que não. A senhora esconde-se aí no escuro, como se fosse uma miserável ratazana. Sai de casa às escondidas, quando não há ninguém a ver. Que vida mais triste!

O homem só podia estar a mentir, foi o que pensou Aomame. Não deixava de ser ridículo que ele conseguisse farejar a presença de alguém no interior da casa. Não fiz barulho nenhum, nem sequer a respirar. O seu único propósito consiste em armar um pandemónio dos diabos à frente de uma porta escolhida ao acaso para amedrontar o resto da vizinhança. Procura fazer ver aos demais residentes que é melhor pagarem a taxa antes que lhes aconteça o mesmo. Calculo que ele já tenha representado a mesma cena antes, ali e acolá, com resultados positivos.

– Senhora Takai, imagino que a minha presença a incomode. Acredite, adivinho o que deve estar a pensar. E tem razão. Sou, de facto, uma pessoa desagradável. Sei isso melhor do que ninguém. Mas deixe-me que lhe diga, senhora Takai, que as pessoas simpáticas não dão bons cobradores. Neste mundo há muita gente que não está disposta a pagar a taxa de emissão da NHK e, diante de uma pessoa dessas, quando toca a reclamar o dinheiro, nem sempre se pode ser amável. Se fosse só por mim, quem me dera dizer apenas: «Com que então, não pretende pagar a sua taxazinha? Compreendo. Desculpe o incómodo», e ir-me embora com o rabinho entre as pernas. Porém, as coisas não são assim. Arrecadar a taxa de emissão é o nosso trabalho, e, pela minha parte, confesso que não gosto nada de apanhar pela frente gente que me engana, levando-me a pensar que não está ninguém em casa.

O homem calou-se e fez uma pausa. Depois voltou a martelar na porta dez vezes seguidas.

– Senhora Takai, agora a coisa ameaça passar das marcas. Não começa a sentir-se uma verdadeira ladra? Pense bem: não estamos a falar de nenhuma fortuna. O dinheiro em questão serviria para pagar um jantar num dos restaurantes modestos que existem neste bairro. Só tem de pagar e deixará de ser tratada como uma ladra. Não voltaremos a armar escândalo neste andar nem a bater à porta de sua casa. Senhora Takai, sei que se encontra atrás dessa porta. Pensa que vai conseguir esconder-se eternamente aí e livrar-se de pagar o que deve. Muito bem, esconda-se à vontade. Por mais que retenha a respiração, haverá sempre alguém que a encontrará um dia destes, quando menos esperar. As artimanhas não funcionam para sempre. Atente no que lhe digo. Olhe que há muito boa gente no Japão, pessoas mais modestas do que a senhora, que pagam religiosamente a sua taxa todos os meses. Acha justo?

Seguiram-se quinze pancadas de uma assentada na porta. Aomame contou-as.

– Mensagem entendida, senhora Takai. Vejo que encontrei desse lado uma pessoa bastante obstinada. Muito bem. Por hoje, vou retirar-me. Não posso perder mais tempo consigo. Mas voltarei: é bom que fique desde já ciente disso. Quando me proponho fazer uma coisa, não desisto com facilidade. Voltarei a bater à sua porta. Insistirei até que o mundo inteiro oiça. É uma promessa. Dou-lhe a minha palavra de honra. Percebeu bem? Então, até à próxima.

Não se ouviram passos lá fora. Se calhar, o homem calçava sapatos com solas de borracha. Aomame deixou-se ficar onde estava durante cinco minutos. Contendo a respiração, olhava fixamente para a porta. O corredor estava mergulhado num silêncio absoluto. Não se ouvia rigorosamente nada. Abafando o ruído dos seus passos, aproximou-se da porta e, enchendo-se de coragem, deitou uma espreitadela pela vigia da porta. Não se via vivalma.

Voltou a travar a patilha de segurança da pistola. Respirou fundo várias vezes para ver se normalizava a frequência cardíaca. Tornou a acender o fogão, preparou um chá verde e bebeu-o. É um simples cobrador da NHK, disse para consigo. Mas havia qualquer coisa de sinistro, para não dizer de doentio, na voz daquele homem. Se ele se dirigia a ela ou a essa pessoa imaginária de apelido Takai, não saberia dizer. O que não impedia que a voz rouca do homem e a insistência com que batera à porta a tivessem perturbado, ao ponto de lhe deixarem uma sensação desagradável no corpo. Como acontece quando uma pessoa fica com uma substância viscosa agarrada à pele.

Aomame despiu-se e tomou duche. Meteu-se debaixo da água quente, lavou-se escrupulosamente com sabonete; ao sair do duche, mudou de roupa e sentiu-se um bocadinho melhor. Desaparecera aquela sensação peganhenta, incómoda, colada à pele. Sentou-se no sofá a beber o seu chá. Tentou regressar à leitura do romance, mas não foi capaz de se concentrar nas palavras. A voz do homem soava-lhe aos ouvidos, trazendo fragmentos do que ele dissera.

«Pensa que vai conseguir esconder-se eternamente aí e livrar-se de pagar o que deve. Muito bem, esconda-se à vontade. Por mais que se esconda e retenha a respiração, haverá sempre alguém que a encontrará um dia destes, quando menos esperar.»

Aomame abanou a cabeça. O homem limitara-se a dizer aquilo por dizer, vociferando a plenos pulmões com o propósito de assustar as pessoas. Ele não sabe nada acerca de mim. Nem o que fiz, nem por que motivo me encontro aqui escondida. Apesar disso, o seu coração continuou a bater desalmadamente.

«Por mais que se esconda e retenha a respiração, haverá sempre alguém que a encontrará um dia destes, quando menos esperar.»

As palavras do cobrador pareciam sugerir implicações mais profundas. Pode ter sido uma simples coincidência, mas o homem sabia exatamente o que dizer para me deixar inquieta. Aomame desistiu de ler e fechou os olhos, continuando deitada no sofá.

Tengo, onde estás?, perguntou a si mesma. «Tengo, onde estás?», experimentou dizer alto e bom som. «Vem ter comigo. Antes que alguém me encontre.»


6

TENGO

Pela comichão nos meus polegares

Tengo levava uma vida muito disciplinada na pequena cidade à beira-mar. Assim que conseguiu estabelecer uma rotina quotidiana, esforçou-se por mantê-la à risca: quanto menos alterações, melhor. Ele próprio desconhecia a razão; sabia que era importante, e isso bastava-lhe. De manhã, passeava, escrevia, ia até à clínica ver o pai e lia-lhe um livro qualquer que encontrasse à mão. A seguir, regressava ao ryokan e deitava-se. Os dias repetiam-se iguais, como o ritmo monótono das canções que os trabalhadores costumam entoar durante a cerimónia que celebra o ritual da plantação do arroz.

Ao princípio, fazia uma temperatura agradável durante a noite; ao fim de alguns dias, porém, o tempo começou a refrescar de uma forma espantosa, assim que o Sol se punha. O outono avançava com pezinhos de lã, depois dava um passo atrás, mas instalara-se sem apelo nem agravo. Alheio à mudança de estação, Tengo vivia cada dia à imagem e semelhança do anterior. Procurava, na medida do possível, ser um observador discreto. Esperava em silêncio que o momento chegasse, retendo o fôlego e apagando todo e qualquer indício da sua presença. À medida que o tempo decorria, a diferença entre um dia e o outro tornava-se cada vez mais subtil. Passou uma semana, passaram dez dias sem que a crisálida de ar se tivesse manifestado. Ao cair da tarde, depois de levarem o pai para a sala de exames, na cama ficava tão-só uma pequena e insignificante cova que representava o vazio deixado pelo corpo do homem.

Será que aquilo nunca mais volta a acontecer?, cismou Tengo, mordendo o lábio naquele quartinho mergulhado nas luzes do crepúsculo. Foi uma revelação que não se voltará a repetir? Ou terei apenas tido uma visão? Ninguém respondeu às suas dúvidas. O único som que lhe chegava aos ouvidos era o rumor distante do mar e, de quando em quando, o rugido do vento entre os pinheiros.

Tengo não tinha a certeza de estar a agir bem. Se calhar andava só a perder tempo naquele quarto de uma clínica situada numa cidade costeira, longe de Tóquio e afastada da realidade. Apesar de tudo, não podia abandonar o barco. Naquele quarto vislumbrara, certa tarde, a crisálida de ar e, no meio de uma luminosidade ténue, a figura adormecida da pequena Aomame. Chegara mesmo a tocar na sua mão. Ainda que tivesse acontecido apenas uma vez ou que não passasse de uma visão efémera, queria ficar por ali enquanto lhe fosse possível, procurando reviver infinitamente no seu coração a cena que lhe fora dada a observar.

Assim que souberam que Tengo permaneceria na cidade e não iria regressar logo a Tóquio, as enfermeiras começaram a tratá-lo com outra familiaridade. Sempre que faziam uma pausa nas suas tarefas, aproveitavam esse tempo para trocar dois dedos de conversa com o jovem. Se estavam desocupadas, às vezes chegavam a ir ter com ele ao quarto. Também lhe levavam chá e doces. Havia duas enfermeiras que se ocupavam por turnos do pai de Tengo – Omura, que tinha trinta e cinco anos e costumava andar sempre com uma esferográfica espetada no cabelo apanhado ao alto num carrapito, e Adachi, a das rosetas na cara, que usava um rabo-de-cavalo. Tamura, a enfermeira de meia-idade com óculos de armação metálica, atendia-o muitas vezes na receção, mas, quando não havia pessoal disponível, substituía as outras enfermeiras e também cuidava do pai. As três pareciam manifestar interesse pela pessoa de Tengo.

Tirando aquele momento especial ao entardecer, Tengo tinha tempo de sobra e, por seu turno, alimentava o diálogo. Que é como quem diz, esforçava-se por responder com a maior sinceridade às suas perguntas, visto que elas pareciam apostadas em saber tudo e mais alguma coisa sobre a vida de Tengo. Contou-lhes que ensinava Matemática e, além disso, redigia textos que lhe eram encomendados. Que o pai trabalhara como cobrador da NHK durante muitos anos. Que ele, Tengo, praticara judo desde pequeno e que, na altura em que frequentava a escola secundária, chegara à final do campeonato da sua prefeitura... Contudo, não referiu a longa desavença com o pai, que contribuíra para os separar. Tão-pouco mencionou a história de a mãe, entretanto já desaparecida, porventura os ter abandonado, ao pai e a ele, para se ir embora com outro homem. Abordar esses temas seria embaraçoso e complicaria tudo. Obviamente, também não lhes ia contar que desempenhara um papel preponderante na escrita do bestseller A Crisálida de Ar. Nem que havia duas luas no céu.

Elas, por sua vez, falaram-lhe acerca das respetivas vidas. Eram as três daquela região, haviam entrado para a escola de enfermagem após terem terminado o ensino secundário e saíram de lá com o canudo na mão, enfermeiras profissionais. Apesar de o trabalho na clínica ser monótono e fastidioso, com horários longos e irregulares, estavam satisfeitas pela oportunidade de arranjar trabalho na terra que as vira nascer. Sempre enfrentavam menos stresse do que se estivessem a prestar serviço num dos hospitais gerais, onde todos os dias enfrentariam casos de vida ou de morte. Na clínica, os anciãos iam perdendo aos poucos a memória e soltavam o último suspiro em paz, sem terem consciência do seu estado. Ali, a verdade é que elas não viam sangue em quantidades industriais e procuravam sempre minimizar o sofrimento. Nenhum doente chegava à clínica de ambulância, a meio da noite, nem apareciam familiares desesperados, com a lágrima ao canto do olho. Atendendo a que o custo de vida não era muito elevado, podiam subsistir sem grandes privações, mesmo com um salário que não fosse nada do outro mundo. Tamura, a enfermeira que usava óculos, perdera o marido cinco anos antes, num acidente, e vivia com a mãe numa localidade próxima. Omura, a que usava a esferográfica no cabelo, tinha dois filhos pequenos e um marido taxista de profissão. A jovem Adachi morava com a irmã, que era três anos mais velha e trabalhava como cabeleireira, num apartamento alugado nas imediações.

– É um bom filho, Tengo – elogiou uma vez a enfermeira Omura quanto trocava a embalagem de soro. – Não conheço mais ninguém que venha todos os dias ler em voz alta para um doente em coma.

Ao ouvi-la dizer aquilo, Tengo sentiu-se pouco à vontade.

– Aconteceu-me ter uns dias de férias, mais nada – referiu ele. – Mas não creio que possa ficar por cá muito tempo.

– Por mais tempo livre que tenham, as pessoas nunca aqui aparecem por vontade própria – replicou ela. – Custa-me dizer isto, mas os nossos doentes padecem de um mal que não tem cura. À medida que o tempo passa, toda a gente vai ficando mais desanimada.

– O meu pai pediu-me para ler qualquer coisa. Não importava o quê, desde que eu lesse para ele. Isto foi há tempos, quando ainda se encontrava consciente. Além disso, não tenho nada melhor que fazer.

– Que livros lhe lê?

– Todo o género de coisas, páginas de diversos livros. Limito-me a pegar no livro que tenho à mão e a ler alto a partir do ponto onde tinha ficado.

– E agora está a ler o quê?

– África Minha, de Isak Dinesen8.

A enfermeira abanou a cabeça.

– Não me diz nada.

– Foi escrito em 1937 por Isak Dinesen, uma autora dinamarquesa. Casou com um aristocrata sueco e, pouco antes de rebentar a Primeira Guerra Mundial, viajaram os dois juntos para África, onde exploraram uma plantação de café. Anos mais tarde, divorciaram-se e ela ficou à frente da propriedade agrícola. No livro dá conta das suas vivências durante esse período.

Depois de medir a temperatura ao pai e de a anotar numa ficha, a enfermeira voltou a enfiar a esferográfica no meio do cabelo; com a mão, afastou o cabelo da cara.

– Importa-se que fique a ouvi-lo ler durante um bocadinho? – perguntou ela.

– Não sei se irá gostar... – disse Tengo.

Omura sentou-se num banco pequeno e cruzou as pernas, por sinal, bonitas e bem torneadas, apesar de ela começar a engordar um pouco.

– Faça de conta de que eu não estou aqui e leia.

Tengo retomou a leitura no sítio onde ficara e continuou por ali fora, devagar. Ao ritmo a que flui o tempo em terras de África.

«Quando em África, no mês de março, tem início a longa estação das chuvas, após quatro meses de tempo quente e seco, a riqueza do que floresce e a frescura e a fragrância que se sentem por toda a parte são inexcedíveis.

«Mas o fazendeiro não dá largas ao seu regozijo antes de tempo e, sem se atrever a confiar na generosidade da Natureza, fica à escuta, com medo de ouvir abrandar o ruído da chuva que cai. A água que nessa época a terra absorve terá de chegar para que a fazenda, com toda a vida vegetal, animal e humana que nela existe, suporte os quatro meses de seca que se avizinham.

«É maravilhoso observar os caminhos que vão dar à fazenda transformados em ribeiros de água corrente e ver o fazendeiro patinhar na lama com a alegria no coração, rumo aos cafezais que despontam, floridos e empapados. Mas, no meio da estação das chuvas, acontece que as estrelas brilham ao entardecer através das nuvens espessas; então, o homem do campo sai de casa e olha para o alto, de braços estendidos, como se quisesse agarrar-se ao céu, na esperança de ele produzir mais chuva. E grita: “Dá-nos água, dá-nos o suficiente... dá-me mais do que isso. Abri-te o meu coração e não te deixarei partir sem que me abençoes. Afoga-me, se for essa a tua vontade, mas não me mates com os teus caprichos. Nada de coitus interruptus, céus, ó céus!”»

– Coitus interruptus? – perguntou a enfermeira, enrugando a testa.

– Esta escritora não tem papas na língua.

– Ainda assim, a linguagem peca por ser demasiado crua, considerando que a pessoa se está a dirigir a Deus.

– Tem razão – concordou Tengo.

«Por vezes, um dia frio e cinzento nos meses que se sucedem à estação das chuvas traz à memória a época do marka mbaya, o mau ano, o período de seca. Nesses dias, os quicuios levavam as vacas a pastar em redor da minha casa, e havia entre eles um rapaz que tinha uma flauta e que costumava tocar uma breve melodia. Quando a voltei a escutar, trouxe-me à memória, de súbito, toda a angústia e o desespero do passado, pois possuía o gosto salgado das lágrimas. Ao mesmo tempo, porém, descobri nessa melodia, de uma forma inesperada e surpreendente, um vigor, uma curiosa doçura, uma canção. Teriam esses tempos difíceis encerrado realmente tudo isso? Naquela época éramos jovens e tínhamos uma esperança selvagem. Durante esses longos dias formávamos uma unidade, de tal maneira, que, se nos encontrássemos noutro planeta, ter-nos-íamos reconhecido uns aos outros, e as coisas desatariam a chamar umas pelas outras, o relógio de cuco e os meus livros gritando para as vacas escanzeladas na pastagem e para os tristes e velhos quicuios: “Vocês também lá estavam. Também faziam parte da fazenda de Ngongo.” Esses tempos difíceis abençoaram-nos e partiram.»

– Que descrição tão vívida – comentou a enfermeira. – Parece que estou a ver a paisagem. África Minha, de Isak Dinesen?

– Isso mesmo.

– O Tengo possui uma boa voz, o que também ajuda. Profunda e cheia de sentimento. Parece feita para ler em voz alta.

– Obrigado.

A enfermeira deixou-se ficar sentada no banquinho, com os olhos fechados, respirando devagar, como que saboreando os sentimentos que a narração despertara nela. Debaixo do uniforme branco, os seios subiam e desciam ao ritmo da respiração. Ao ver aquilo, Tengo lembrou-se da namorada mais velha. Recordou as tardes de sexta-feira em que a despia e lhe acariciava os mamilos rijos. Vieram-lhe à memória os seus profundos gemidos e o sexo molhado. Lá fora, através das cortinas corridas, dava para perceber que caía uma chuva miudinha. Ela sopesava os testículos de Tengo com a palma da mão. Mas a evocação não o excitou. Todas as cenas e as emoções tinham ficado para trás, num lugar incerto, como se estivessem cobertas por uma fina película de filme.

Pouco depois, a enfermeira abriu os olhos e encarou Tengo. Parecia adivinhar os seus pensamentos. Porém, não havia nada de acusador no seu olhar. Levantou-se, esboçou um ligeiro sorriso e baixou a cabeça, uma vez que ele continuava sentado.

– Tenho de me ir embora. – Levou a mão ao cabelo, para verificar se a esferográfica ainda se encontrava no sítio, deu meia-volta e abandonou o quarto.

Tinha o hábito de ligar todas as noites a Fuka-Eri. A jovem dizia-lhe sempre que não acontecera nada de especial. O telefone tocara várias vezes, mas ela nunca atendia, tal como Tengo lhe recomendara. «Fizeste bem», dizia-lhe ele. «Deixa tocar.»

Tinham combinado que, sempre que ele telefonasse, desligaria depois de deixar tocar três vezes e tornaria a ligar de novo, logo a seguir. No entanto, Fuka-Eri nem sempre respeitava o combinado. Havia muitas ocasiões em que atendia a chamada ao primeiro toque.

– Tens de fazer como ficou combinado – advertia Tengo sempre que isso acontecia.

– Não te preocupes, sei quem é – retorquia ela.

– Como é que sabes que sou eu?

– Não atendo as outras chamadas.

É possível que tenha razão, pensava Tengo. Ele também sabia quando a chamada vinha de Komatsu. O telefone tinha um modo de tocar impaciente e nervoso, como se alguém estivesse a tamborilar com os dedos sobre o tampo de uma mesa. No entanto, não sabia explicar porquê; tratava-se apenas de um palpite. Não se podia dizer que soubesse quem estava do outro lado do aparelho.

Os dias de Fuka-Eri eram tão monótonos como os de Tengo. Não podia pôr um pé fora de casa. Não havia televisão no apartamento, e ela não tinha o hábito de ler. Quase não se alimentava, de maneira que, por enquanto, nem precisava de sair para fazer compras.

– Mexo-me pouco, por isso quase não preciso de comer – disse Fuka-Eri.

– O que fazes todo o dia aí sozinha?

– Penso.

– Em que pensas?

Ela não respondeu à pergunta.

– O corvo apareceu.

– Aparece uma vez por dia.

– Não disse uma vez; muitas vezes – emendou ela.

– O mesmo corvo?

– Sim.

– Mais alguém?

– O da ene-agá-kapa voltou a aparecer.

– O mesmo da outra vez?

– Pôs-se a berrar: «O senhor Kawana é um ladrão.»

– Queres dizer que gritou isso diante da porta?

– Para toda a gente ouvir.

Tengo ficou a matutar naquilo durante um bocado.

– Ignora-o. Não tem nada que ver contigo e não te pode fazer mal.

– Disse que sabia que eu me encontrava aqui escondida.

– Não deixes que isso te preocupe – tranquilizou-a Tengo. – O homem não tem como saber. Diz essas coisas para intimidar as pessoas. Às vezes, o pessoal da NHK recorre a esse tipo de estratagemas.

Tengo observara o seu pai fazer o mesmo um sem-número de vezes. Aos domingos à tarde, carregada de malícia, a sua voz ressoava no átrio dos blocos de vivendas. Proferia ameaças e punha a ridículo os residentes. Tengo pressionou suavemente as têmporas com as pontas dos dedos. As lembranças reavivaram-se, trazendo consigo o peso de uma carga acrescida.

Como se percebesse que aquele silêncio queria dizer alguma coisa, Fuka-Eri perguntou-lhe:

– Estás bem.

– Estou. Não faças caso do tal homem da NHK, okay?

– O corvo disse a mesma coisa.

– Folgo em saber isso – foi o comentário de Tengo.

Desde que vira duas luas penduradas no céu e lhe aparecera a crisálida de ar no quarto do pai, já nada o surpreendia. O que poderia haver de estranho no facto de Fuka-Eri trocar ideias com um corvo no beiral da janela?

– Creio que vou ficar por estas bandas durante mais alguns dias. Ainda não posso regressar a Tóquio. Importas-te?

– Deves ficar aí o tempo que for preciso.

Dito aquilo, Fuka-Eri desligou. A conversa extinguiu-se naquele preciso instante. Como se alguém tivesse cortado a linha telefónica com um machado bem afiado.

Em seguida, Tengo marcou o número da editora para falar com Komatsu, mas não o apanhou. Disseram-lhe que ele tinha lá passado perto da uma da tarde, saindo pouco depois. A pessoa que o atendeu ao telefone disse que ninguém sabia onde ele estava nem a que horas voltaria. Não era caso raro, tratando-se de Komatsu. Tengo deixou-lhes ficar o número de telefone da clínica, dizendo que permaneceria ali durante toda a tarde, e um recado a pedir que Komatsu lhe telefonasse, assim que pudesse. Caso desse o número da hospedaria, arriscava-se a que o outro lhe ligasse a meio da noite.

* * *

A última vez que falara com Komatsu tinha sido em finais de setembro. Uma breve conversa telefónica. A partir de então, não voltara a ter notícias do editor, e Tengo também não fizera questão de se pôr em contacto com ele. Desde o fim de agosto, ia fazer três semanas, o homem desaparecera do mapa. Tudo indicava que ligara para a editora e que invocara uma desculpa vaga, avisando que não se encontrava muito bem de saúde e que precisava de tirar uns dias de férias; depois disso, não voltara a dar sinal de vida. Encontrava-se, por assim dizer, com paradeiro desconhecido. A história deixava Tengo preocupado, claro está, mas não ao ponto de ficar alarmado. Komatsu era um tipo caprichoso, um homem habituado a levar sempre a sua avante. A qualquer momento podia aparecer, sem aviso prévio, e sentar-se a trabalhar à secretária como se não fosse nada com ele.

Nenhuma empresa, em geral, tem por norma admitir aos funcionários um comportamento assim tão inconstante. No seu caso, porém, algum dos colegas arranjaria maneira de o encobrir, a fim de lhe evitar complicações. Nem sequer se podia dizer que o fizessem por simpatia, uma vez que Komatsu não era propriamente a pessoa mais popular do mundo, mas o certo é que aparecia sempre uma alma caridosa disposta a arcar com a responsabilidade. O resto dos trabalhadores fazia vista grossa, desde que o caso não fosse grave. Para além de insolente, Komatsu era um sujeito egocêntrico e arrogante, mas bom no seu ofício, e conseguira transformar A Crisálida de Ar num êxito de vendas. Não se podiam dar ao luxo de o despedir por dá cá aquela palha.

Tal como ele havia previsto, Komatsu limitou-se a aparecer um belo dia na editora, e retomou o trabalho sem dar explicações nem pedir desculpas. Tengo ficou a saber da notícia por um editor seu conhecido, que lhe telefonara do escritório para tratar de outro assunto.

– E como é que ele se encontra de saúde? – quis saber Tengo.

– Parece em boa forma – respondeu o editor. – Mas dá-me a impressão de estar mais calado do que é costume.

– Mais calado? – perguntou Tengo, um tanto surpreendido.

– Sim... quero dizer, menos sociável.

– Estava assim tão mal?

– Bom, isso já não sei – balbuciou o editor, sem grande convicção. – Foi o que ele me disse, não tenho outro remédio senão acreditar. Agora que ele já se encontra a trabalhar, estamos a conseguir resolver muitos assuntos pendentes. Na sua ausência, surgiram vários problemas relacionados com A Crisálida de Ar. Vimo-nos bastante atrapalhados.

– A propósito, e já que estamos a falar do romance A Crisálida de Ar, sabe-se alguma coisa acerca da autora, Fuka-Eri?

– Nada. Continua tudo na mesma. Não temos novidade nenhuma. Ninguém faz a mais pequena ideia de onde poderá encontrar-se a rapariga. Todas as pessoas envolvidas no processo estão abismadas e não sabem o que pensar.

– Tenho seguido o caso pelos jornais, mas ultimamente não li nada a esse respeito.

– Os meios de comunicação social, de uma forma geral, preferiram afastar-se do assunto ou, pelo menos, mantêm uma distância prudente. A polícia também não dá mostras de estar muito interessada em resolver o caso. Quem está a par é o Komatsu: talvez ele possa avançar com mais pormenores. Ainda que, tal como já referi, se mostre parco em palavras, por estes dias... Para te dizer a verdade, nem parece ele. Costumava ser uma pessoa com confiança para dar e vender, e tornou-se uma criatura introspetiva, que passa o dia ensimesmado, perdido nos seus pensamentos. Também se tornou bastante arisco. Às vezes, parece esquecer-se por completo de que há mais gente à sua volta; é como se vivesse metido no seu buraco.

– Introspetivo – repetiu Tengo.

– Logo compreenderás quando falares com ele.

Tengo agradeceu e desligou.

Dias mais tarde, à noitinha, Tengo ligou para Komatsu. Este ainda se encontrava a trabalhar na empresa. Tal como lhe dissera o seu colega editor, a maneira de Komatsu falar não era a mesma. Normalmente, as palavras saíam-lhe da boca com fluidez e expressava-se sem interrupções, mas desta vez era diferente, havia um elemento de estranheza no seu discurso. Dava a impressão de que, enquanto conversava, estava com a cabeça noutro lado. Deve ter alguma coisa que o preocupa, pensou Tengo. Em todo o caso, deixara de ser o Komatsu impassível do costume.

– Já está recuperado? – quis saber Tengo.

– Recuperado?

– Vai dizer-me que não esteve ausente por se encontrar adoentado?

– Ah! Sim, claro – retorquiu Komatsu, como se tivesse acabado de se lembrar. Fez-se um breve silêncio. – Já passou. Depois conto-te, um dia destes. Agora não posso entrar em grandes pormenores.

Um dia destes, ruminou Tengo. Decididamente, havia qualquer coisa de estranho no modo como o outro falava. Faltava-lhe o sentido da distância, que seria normalmente de esperar. As palavras que ele pronunciava eram todas monocórdicas, sem profundidade.

Aproveitando a melhor altura para dar a conversa por encerrada, Tengo desligou o aparelho. Decidira nem sequer tocar no nome de Fuka-Eri nem meter A Crisálida de Ar ao barulho. Pelo tom de voz de Komatsu, notava-se que ele preferia evitar o assunto. Desde quando é que Komatsu tivera problemas em contar-lhe fosse o que fosse?

Em todo o caso, foi essa a última vez que falou com ele. No final de setembro, precisamente. Desde então tinham passado mais de dois meses. Komatsu gostava de pegar no telefone e manter longas conversas. Obviamente, escolhia o seu interlocutor, mas, de uma forma geral, tendia a pôr em ordem as suas ideias deitando cá para fora tudo o que lhe passava pela cabeça. E, nesse cenário, Tengo funcionava para ele como uma espécie de parede para bater umas bolas e treinar o seu ténis mental. Telefonava-lhe quando lhe dava na veneta, mesmo que não tivesse um assunto específico para discutir. Regra geral, a horas impróprias. Por outro lado, se estivesse para aí virado, podia estar longas temporadas sem ligar. Mas era raro não dar notícias durante mais de dois meses.

Tengo calculou que ele talvez se encontrasse numa altura da sua vida em que não tinha muita vontade de falar com as outras pessoas. Toda a gente passa por fases dessas. Até Komatsu. E, pela parte que lhe dizia respeito, Tengo não tinha nenhum assunto urgente para tratar com ele. As vendas do romance A Crisálida de Ar começaram a baixar, o livro quase deixara de ser tema de conversa e Tengo sabia exatamente onde Fuka-Eri se encontrava. Se Komatsu quisesse falar com ele, só tinha de pegar no telefone e marcar o número. Se não telefonava, queria dizer que nada havia para contar.

Ao mesmo tempo, porém, palpitava-lhe que o melhor era ser ele a telefonar-lhe. A verdade é que, por estranho que pareça, as palavras do editor tinham-lhe ficado gravadas. «Depois conto-te, um dia destes», afirmara Komatsu.

Tengo pegou no telefone, ligou a um professor que costumava substituí-lo quando precisava de faltar, e perguntou-lhe como iam as coisas.

– Tudo bem – respondeu o amigo. – E o teu pai, como está?

– Continua em coma – explicou Tengo. – Respira e, apesar de a temperatura e a pressão arterial manterem os valores baixos, por enquanto encontra-se estável. Inconsciente mas estável. Calculo que não sofra. É como se estivesse no mundo dos sonhos.

– Se calhar é uma boa maneira de morrer – disse o outro, sem dar mostras de grandes emoções. O que ele tinha querido dizer era: «Talvez isto soe de uma forma pouco sensível, mas, pensando bem, pode ser que até seja uma boa maneira de morrer.» Omitira o preâmbulo. Ao fim de muitos anos a estudar no departamento de Matemática de uma universidade, as pessoas habituam-se a recorrer às elipses.

– Tens reparado na Lua, ultimamente? – perguntou-lhe de repente Tengo. Se havia alguém no mundo que não estranhasse que ele lhe fizesse perguntas sobre a Lua, assim do pé para a mão, aquele camarada era essa pessoa.

O outro pensou um pouco antes de responder.

– Agora que falas nisso, não me lembro de ter olhado para a Lua por estes dias. Passa-se alguma coisa?

– Quando tiveres tempo disponível, experimenta olhar. Gostaria de saber o que pensas.

– O que eu penso? Em que sentido?

– Não interessa. Basta que olhes para a Lua e que me digas o que te parece.

Fez-se uma breve pausa.

– Não sei até que ponto serei capaz de expressar por palavras, assim de um momento para o outro, o meu ponto de vista.

– Não te preocupes com a forma de expressão. O importante é a sua natureza mais evidente.

– Queres então que olhe para a Lua e te diga o que penso sobre a sua natureza mais evidente.

– Isso mesmo – corroborou Tengo. – Se não te ocorrer nada, deixa estar, não tem importância.

– Hoje, como o céu está nublado, não me parece que se consiga ver a Lua, mas, assim que descobrir, logo te digo. Se me lembrar, claro.

Tengo agradeceu ao amigo e desligou. Se ele se lembrar. Esse era um dos problemas dos investigadores do departamento de Matemática. Em tudo o que dizia respeito a áreas fora do seu domínio, a memória deles tinha uma vida espantosamente curta.

Ao anoitecer, quando terminou o horário das visitas e chegou a hora de abandonar a clínica, Tengo despediu-se de Tamura, que se encontrava na receção.

– Obrigado por tudo. Boa noite! – disse ele.

– Quanto tempo mais vai ficar por cá? – perguntou ela, empurrando para cima a ponte dos óculos com o dedo. Devia ter acabado o seu turno, porque, em vez do uniforme, usava uma saia plissada grená, uma blusa branca e um casaquinho de malha cinzento.

Tengo deteve-se e ficou a pensar.

– Ainda não decidi. Depende de como correrem as coisas.

– Pode tirar mais dias?

– Por enquanto não há problema. Pedi a um professor meu amigo que me substituísse.

– Onde é que costuma ir comer? – perguntou a enfermeira.

– Num restaurante qualquer aqui perto – respondeu ele. – No ryokan só servem pequeno-almoço, de maneira que vou até um restaurante local e peço o menu do dia, uma taça de arroz com legumes9 ou assim.

– Presta para alguma coisa?

– Não se pode dizer que seja uma maravilha, mas também não é de deitar fora.

– Não, senhor! – exclamou a enfermeira, compondo uma expressão severa. – Precisa de se alimentar como deve ser, comer coisas nutritivas. Olhe bem para si: nos últimos tempos, faz-me lembrar um cavalo a dormir de pé...

– Um cavalo a dormir de pé? – exclamou Tengo, apanhado de surpresa.

– Os cavalos dormem de pé. Nunca viu?

Tengo negou com a cabeça.

– Nunca.

– Pois fique a saber que ficam exatamente com a mesma cara que tem agora – insistiu a enfermeira. – Pode ir à casa de banho e ver-se ao espelho. Assim à primeira vista, não se sabe se eles estão a dormir, porém, olhando melhor, percebe-se que sim, que dormem. Ainda que os seus olhos estejam abertos, não veem rigorosamente nada.

– Os cavalos dormem com os olhos abertos?

A enfermeira anuiu, muito convencida do que estava a dizer.

– São iguais a si.

Tengo pensou em ir até à casa de banho para se ver ao espelho, mas às tantas desistiu da ideia.

– Estou a perceber. Tentarei alimentar-me melhor, daqui em diante.

– Escute, porque não vem connosco ao restaurante comer yakiniku10?

– Yakiniku? – Tengo não era grande amigo de comer carne. Não se podia dizer que não gostasse, mas, regra geral, não lhe apetecia. No entanto, ao ouvir o que a enfermeira acabara de dizer, pensou que talvez não fosse má ideia comer um prato de carne, para variar. Quem sabe? Talvez o seu corpo estivesse a pedir alimentos mais nutritivos.

– Combinámos ir todas jantar yakiniku. Quer alinhar?

– Todas?

– As outras acabam o turno às seis e meia e encontramo-nos mais tarde. Somos três. Interessado?

As outras duas eram Omura, a enfermeira com filhos que andava sempre com a esferográfica enfiada no cabelo, e a miúda nova, Adachi. Pelos vistos, davam-se todas bem, até mesmo fora do local de trabalho. Tengo considerou seriamente a hipótese de ir jantar fora na companhia delas. Preferia alterar o menos possível o seu ritmo de vida, reduzido ao essencial, mas não lhe ocorreu nenhuma desculpa plausível para rejeitar o convite. Numa cidadezinha daquelas, toda a gente sabia que ele tinha tempo de sobra.

– Bom, nesse caso, se não vos incomodo... – disse Tengo.

– Claro que não – replicou a enfermeira. – Eu não costumo fazer convites destes só por delicadeza, muito menos se achar que essa pessoa é aborrecida. Portanto, deixe-se de vergonhas e venha daí. De vez em quando, para variar, sabe bem ter a companhia de um homem novo e saudável.

– Bom, saudável creio que sou... – disse Tengo num tom pouco seguro de si.

– Isso é o principal – declarou a enfermeira num tom profissional.

Não era frequente as três enfermeiras acabarem o turno à mesma hora. Uma vez por mês, contudo, faziam os possíveis por que essa ocasião se proporcionasse. Saíam da clínica e iam até à cidade, jantavam «qualquer coisa de nutritivo», bebiam um copo juntas, cantavam karaoke11, desinibiam-se e libertavam (se é que se podia dizer assim) a energia que lhes sobrava. Precisavam de espairecer dessa maneira. A vida numa cidade de província era monótona e, tirando os médicos e o restante pessoal de enfermagem, à sua volta eram só velhos que haviam perdido a memória e a vitalidade.

As três enfermeiras comeram e beberam que se fartaram. Enquanto elas iam ficando cada vez mais animadas, Tengo, incapaz de as acompanhar, limitava-se a ir petiscando o prato de carne, bebendo cerveja com moderação para não ficar bêbedo. Depois de terem saído do restaurante, foram a um bar de karaoke e mandaram vir uma garrafa de uísque. As três enfermeiras cantaram à vez as suas canções preferidas e, a seguir, juntaram as vozes para interpretar um tema das Candies12, com coreografia e tudo. De certeza que deviam ter ensaiado antes, mas o certo é que o momento resultou em cheio. Como Tengo não era muito dado à cena do karaoke, cantou apenas uma composição de Yosui Inoue13 de que se lembrava vagamente.

Adachi, a mais jovem das enfermeiras, que era por regra uma rapariga reservada, mostrava-se muito animada e parecia mais atrevida sob o efeito do álcool. As suas faces rosadas adquiriram um tom ainda mais saudável, como se estivessem bronzeadas. Passou a noite a rir por tudo e por nada, apoiando-se com naturalidade no ombro de Tengo, que estava sentado ao seu lado. Omura tinha um vestido azul-marinho, não muito escuro, e trazia o cabelo solto, fazendo-a parecer três ou quatro anos mais nova; o seu tom de voz tornara-se um nadinha mais grave. Abandonara os modos bruscos e profissionais e movia-se com languidez, como se quisesse adotar uma nova personalidade. Só em Tamura, a enfermeira com os óculos de armações metálicas, não se produzia nenhuma alteração, nem física nem ao nível da personalidade.

– Esta noite deixei ficar os meus filhos com uma vizinha – contou Omura a Tengo. – O meu marido está a fazer o turno da noite. Temos de aproveitar estas oportunidades para nos divertirmos ao máximo. Não te parece, Tengo-kun14?

Agora já não o tratavam por «Sr. Kawana» nem por «você», da mesma forma que haviam abandonado o tratamento mais formal, por «Kawana-san» ou «Tengo-san». Chamavam-lhe, quase todos, «Tengo-kun» ou apenas «Tengo». Até mesmo os estudantes tinham começado a chamá-lo assim, de forma espontânea, nas suas costas.

– Parece-me que sim, claro – concordou Tengo.

– Nós, pelo menos, precisamos disto como do ar que respiramos – acrescentou Tamura, enquanto bebia o seu Suntory Gold misturado com água. – Também somos de carne e osso.

– Por baixo dos nossos uniformes, somos mulheres normalíssimas – acrescentou Adachi. E desatou a rir, como se tivesse feito um comentário muito profundo.

– Diz-me lá, Tengo – perguntou Omura –, importas-te que te pergunte uma coisa?

– Que coisa?

– Andas a sair com alguém?

– Sim, conta-nos tudo, também quero saber – acrescentou Adachi, mordiscando uns grãos de milho com os seus grandes dentes brancos.

– É uma história complicada – respondeu ele.

– Melhor ainda – comentou a experimentada Tamura. – Temos todo o tempo do mundo, além de que estamos ansiosas por te ouvir. Que género de história é?

– Conta, vá lá, conta! – pediu Adachi, batendo as palmas e soltando pequenas gargalhadas.

– Não tem interesse por aí além – esclareceu Tengo. – É uma história banal e que não faz muito sentido.

– Nesse caso, basta que nos contes o desenlace – sugeriu a enfermeira Omura. – Andas a sair com alguém? Sim ou não?

Tengo não se deu por vencido.

– Resumindo, pode dizer-se que, de momento, não ando a sair com ninguém.

– Hum... – exclamou a enfermeira Tamura. Em seguida, agitou os cubos de gelo no copo com um dedo e lambeu-o. – Isso não me parece bem. Mesmo nada bem! Um rapaz como tu, em pleno vigor da juventude, sem ter uma namorada... É um desperdício!

– Além de não ser bom no plano físico – acrescentou a corpulenta Omura. – Se guardares as coisas durante muito tempo só para ti, acabarás por ficar tonto da cabeça.

A jovem enfermeira Adachi voltou a deixar escapar um riso sufocado.

– Tonto da cabeça – enfatizou, apontando com o dedo para a testa.

– Ainda não há muito tempo, tinha alguém – confidenciou Tengo, em tom de quem pedia desculpa.

– Mas ela desapareceu da tua vida, deixa-me adivinhar... – aventou Tamura, ajeitando os óculos com a ponta do dedo.

Tengo assentiu.

– Queres dizer que te deixou? – perguntou por sua vez Omura.

– Não sei como explicar – afirmou Tengo, inclinando o pescoço. – Se calhar, foi isso que aconteceu. Provavelmente, ela deixou-me, deve ter sido isso.

– Ouve, essa mulher não seria por acaso bastante mais velha do que tu? – perguntou a enfermeira Tamura, semicerrando os olhos.

– Era, sim – respondeu Tengo. – Como é que sabias?

– Não vos disse? – exclamou Tamura, dirigindo-se, toda ufana da sua descoberta, às outras duas enfermeiras, que anuíram. A seguir, dirigiu-se a Tengo.

– Bem tinha dito às minhas colegas: «Estou convencida de que o Tengo anda a sair com uma amiga mais velha.» Nós, as mulheres, temos um faro apurado para estas coisas.

Adachi fez o gesto de cheirar qualquer coisa.

– E de certeza que era casada – alvitrou a enfermeira Omura num tom lânguido. – Engano-me?

Tengo fez que sim com a cabeça, após uma breve hesitação. Não lhe valia de nada mentir.

– Que maroto – comentou a enfermeira Adachi, dando-lhe um beliscão na coxa.

– Quantos anos mais velha?

– Dez – respondeu Tengo.

– Livra! – exclamou Tamura.

– A sério? Então sabes o que é contar com o amor e o carinho de uma mulher mais velha, casada e com experiência de vida... – referiu Omura, também ela casada e mãe de dois filhos. – Que bem! Talvez eu pudesse fazer o mesmo e consolar o terno e solitário Tengo... Que tal? Apesar de não parecer, olha que ainda tenho um corpo jeitoso.

A enfermeira pegou na mão de Tengo e tentou apertá-la de encontro ao seu peito. As outras duas impediram-na de o fazer. Apesar de estarem com uns copos a mais, tinham a noção de que não podiam ultrapassar a linha que as separava, enquanto enfermeiras, dos familiares dos seus doentes. Pelo menos era o que deviam pensar – ou então estavam com medo de que houvesse alguém a presenciar a cena. Afinal, tratava-se de uma cidade pequena, onde os rumores se espalhavam depressa. Também existia a possibilidade de o marido de Omura ser um tipo ciumento. Tengo preferia manter-se longe de complicações, já tinha problemas de sobra.

– És realmente uma pessoa fora de série – elogiou Tamura para mudar de assunto. – Vir de tão longe só para fazer companhia ao teu pai e passar ali tantas horas a ler para ele em voz alta... Não deve haver muita gente capaz do mesmo.

A enfermeira Adachi inclinou ligeiramente a cabeça e pegou na palavra da outra.

– Sim, és realmente um caso à parte. Mereces todo o nosso respeito.

– Estamos sempre a elogiar-te – acrescentou Tamura.

Sem querer, Tengo corou. Não tinha ido até àquela cidade costeira para cuidar do pai, mas sim porque queria tornar a ver a crisálida de ar, emitindo a sua ténue claridade, abrigando a figura de Aomame a dormir no seu interior. Essa era basicamente a única razão por que Tengo ali permanecera. Tomar conta do pai que se encontrava inconsciente não passava de um pretexto, se bem que não pudesse confessá-lo. Primeiro, teria de lhes explicar o que era a crisálida de ar.

– A verdade é que, até à data, nunca fiz nada por ele – confessou Tengo, meio titubeante, encolhendo o corpanzil, que mal cabia na estreita cadeira de madeira. Aos olhos das enfermeiras, porém, a sua atitude significava apenas modéstia.

Tengo queria anunciar que lhe dera o sono e que estava na hora de se levantar e regressar à hospedaria, mas não conseguiu encontrar o momento oportuno. Forçar as coisas não estava no seu feitio, pelos vistos.

– Olha – disse a enfermeira Omura, e aclarou a garganta –, voltando ao tema de há bocado... Porque é que cortaste relações com essa mulher casada? As coisas corriam bem entre os dois, não é verdade? Foi o marido que descobriu, ou assim?

– Não sei porquê – respondeu Tengo. – A partir de uma dada altura, deixou de aparecer, e desde então nunca mais soube notícias dela.

– Hum... – murmurou Adachi, a enfermeira mais nova. – Será que estava farta de ti?

Omura, a enfermeira alta e espadaúda, mãe de dois filhos, abanou a cabeça. Apontando com o indicador para a sua colega mais nova, declarou:

– Tu não sabes nada do que se passa neste mundo! Não tens experiência nenhuma de vida. É impossível que uma mulher casada, de quarenta anos, ande com um homem mais novo, vigoroso e todo bem-parecido, brinque com ele a seu bel-prazer e depois lhe diga: «Obrigada por tudo. Foi bom enquanto durou. Adeusinho.» Se ainda fosse ao contrário...

– Pode ser que tenhas razão – admitiu Adachi, inclinando um nadinha a cabeça em sinal de dúvida. – Confesso que sou um bocadinho ingénua e não domino estas cenas.

– É assim que as coisas são – insistiu a enfermeira Omura, mãe de família. Olhou para Tengo por instantes, como se tomasse distância para examinar as palavras esculpidas na pedra de um monumento, e depois continuou na sua, assentindo. – Quando fores mais velha, logo compreenderás.

– Ora! Há séculos que eu não o faço! – comentou Tamura, afundando-se na cadeira.

Ato contínuo, as três enfermeiras embrenharam-se numa conversa sobre as escapadelas de alguém que Tengo não conhecia (talvez outra enfermeira, colega delas). Ao vê-las ali, cada uma com o seu copo de uísque com água lisa na mão, vieram-lhe à memória as bruxas de Macbeth. As três que recitam em conjunto «o claro é turvo, e o turvo, claro», enquanto infundiam em Macbeth aspirações maléficas. Naturalmente, Tengo não via aquelas três mulheres como criaturas perversas. Pelo contrário, eram três mulheres afáveis e honestas. Desempenhavam o seu trabalho com paixão e tomavam muito bem conta do pai dele. Sem mãos a medir, viam-se obrigadas a trabalhar muitas horas seguidas, e levavam uma vida pouco estimulante naquela cidadezinha à beira-mar plantada, cuja principal atividade económica girava em torno da pesca, e, uma vez por mês, deixavam escapar assim o stresse acumulado. Todavia, ao aperceber-se da energia que transmitiam aquelas três mulheres, cada uma pertencente a uma geração distinta, perfilou-se diante dele a paisagem selvagem dos pântanos escoceses. Viu distintamente o céu sombrio, encoberto de uma ponta à outra, pressentiu o vento frio que, à mistura com a chuva, soprava por entre as urzes.

Na universidade, durante as aulas de Inglês, tinha lido a peça Macbeth, e, por alguma razão, aprendera de cor três ou quatro versos.

By the pricking of my thumbs,

something wicked this way comes.

Open, locks, whoever knocks!

Pela comichão nos meus polegares

sinto que algo de nefasto está para chegar.

Abri-vos de par em par,

ferrolhos, chame quem chamar.

Porque ficara com aqueles versos, e logo aqueles, gravados na memória? Nem sequer se lembrava da personagem que os dizia na peça. Tal não impedia, no entanto, que as palavras fizessem Tengo pensar no persistente cobrador de taxas da NHK, que batia com insistência na porta do apartamento, em Koenji. Tengo observou os seus polegares. Não sentia comichão nenhuma. Ainda assim, pressentiu na engenhosa rima de Shakespeare um eco funesto.

Algo de nefasto está para chegar.

Tengo só esperava que Fuka-Eri não abrisse a porta.

8 Karen Christence von Blixen-Finecke (1885-1962) foi uma autora dinamarquesa que ocasionalmente escreveu sob o pseudónimo Isak Dinesen, tendo porém assinado grande parte da sua obra com o nome artístico Karen Blixen. (N. das T.)

9 Chama-se donburi este prato típico em que o arroz é coberto de diversos ingredientes, como carne, peixe, verduras ou tempura, por exemplo. (N. das T.)

10 Tiras de carne grelhada servidas com um molho típico da cozinha coreana. (N. das T.)

11 Na maioria das casas de karaoke existentes no Japão, os clientes cantam em cubículos para grupos particulares. (N. das T.)

12 Banda feminina japonesa muito popular nos anos setenta. (N. das T.)

13 Cantor pop. (N. das T.)

14 Sufixo utilizado para designar rapazes e homens, apesar de no presente ser também usado com o sexo feminino. O sufixo «san» exprime tradicionalmente respeito e usa-se com pessoas mais velhas, ou no tratamento com quem não se é íntimo, no sentido de «senhor», «senhora» ou «menina». (N. das T.)


7

USHIKAWA

Já vou a caminho

Durante uns tempos, Ushikawa teve de interromper a investigação sobre a velha senhora de Azabu. A segurança à volta dela era extremamente apertada, e ele compreendeu, fosse qual fosse a abordagem seguida, que estava condenado a embater contra um muro alto. Pretendia averiguar um pouco mais sobre a casa-abrigo, mas tornava-se perigoso continuar a rondar a zona. Havia câmaras de videovigilância instaladas e, atendendo à sua aparência, Ushikawa chamava demasiado as atenções. A partir do momento em que se apercebessem da sua presença, as coisas poderiam tornar-se um tanto problemáticas. Por isso, decidiu afastar-se durante algum tempo da Casa dos Salgueiros e tentar uma abordagem diferente.

A única «abordagem diferente» que lhe ocorreu foi tornar a passar a pente fino tudo o que dizia respeito a Aomame. Ainda recentemente, a mando da Vanguarda, solicitara uma investigação a uma agência com a qual costumava colaborar, e ele próprio encarregara-se de interrogar uma grande quantidade de pessoas por sua livre iniciativa. Após ter reunido um apreciável conjunto de elementos sobre a rapariga, havia chegado à conclusão de que ela não representava nenhuma ameaça. Na sua qualidade de professora de artes marciais no ginásio, era uma profissional competente. Em pequena, pertencera à Associação das Testemunhas, mas cedo rompera os elos que a prendiam à dita comunidade religiosa. Licenciara-se com as melhores notas no curso de Ciências do Desporto, trabalhara para uma empresa de produtos alimentares que comercializava suplementos e bebidas energéticas para desportistas e tinha sido a jogadora principal num clube de softbol. Os colegas de Aomame diziam que ela era brilhante, tanto como pessoa como profissionalmente. Empreendedora e despachada. Todos lhe davam valor, o que não impedia que fosse uma pessoa de poucas palavras e que tivesse um círculo restrito de amizades.

De um dia para o outro, anos atrás, abandonara o clube de softbol, pedira a demissão da empresa e arranjara emprego num ginásio de luxo, em Hiroo. A partir dessa altura, conseguira praticamente triplicar os seus rendimentos. Era solteira e vivia sozinha. Parecia que, de momento, não tinha namorado. Em todo o caso, não encontrou no seu passado nada de suspeito nem de pouco claro. Ushikawa franziu o sobrolho, deixou escapar um profundo suspiro e depositou os documentos da investigação em cima da mesa. Deve ter-me escapado alguma coisa, pensou ele. Tem de haver algo de extrema importância, um ponto fulcral qualquer que não me deveria ter passado despercebido.

Ushikawa tirou a agenda de dentro de uma gaveta da secretária e marcou um número de telefone. Ligava sempre para aí quando precisava de obter informações de maneira ilícita. O homem do outro lado da linha habitava num mundo ainda mais tenebroso do que o seu. Desde que lhe pagassem, era possível sacar qualquer informação. Naturalmente, quanto mais protegidos estivessem os elementos, mais caro sairia o trabalhinho.

Havia duas coisas que Ushikawa precisava de esclarecer. Por um lado, interessava-lhe tudo o que dissesse respeito aos pais de Aomame, que continuavam a ser devotos fervorosos das Testemunhas. Ushikawa sabia que a principal sede da Associação das Testemunhas centralizava a documentação sobre todos os membros. No Japão, o número de seguidores era grande, e a comunicação entre a organização-mãe e as distintas filiais caracterizava-se por uma grande fluidez. Se não armazenassem os dados, o sistema deixaria de funcionar de forma eficaz. Possuíam um magnífico edifício localizado num amplo terreno, às portas da cidade de Odawara, equipado com a sua própria tipografia para imprimir panfletos e dotado de auditórios e salas de reuniões, bem como instalações para os seguidores vindos de todos os pontos do país. Sem sombra de dúvida, congregava-se ali toda a informação.

Por outro lado, precisava de ter acesso à documentação do ginásio onde Aomame trabalhara. Queria saber ao certo que género de trabalho realizava e a quem e quando dava aulas particulares. Essa informação não deveria estar protegida a sete chaves, como acontecia no caso da Associação das Testemunhas. De qualquer modo, não ia entrar pelo ginásio e pôr-se cheio de salamaleques, com um discurso do género: «Desculpem, poderiam deixar-me consultar a ficha de inscrição da vossa funcionária Aomame, por especial favor?», à espera de que eles lha entregassem de bandeja.

Ushikawa deixou o nome e o número de telefone no atendedor de chamadas. Trinta minutos mais tarde, ligaram-lhe.

– Senhor Ushikawa? – A voz era rouca, um tanto áspera.

Ushikawa explicou ao seu interlocutor os pormenores relativos ao caso. Nunca se encontrara com aquele homem. Comunicavam por telefone. Quando havia novidades, o outro enviava-lhe o material por correio urgente. A voz do homem costumava estar rouca e, volta e meia, ele tinha o hábito de tossir. Se calhar era algum problema na garganta. Do outro lado da linha reinava sempre um silêncio absoluto, como se o indivíduo em questão estivesse a ligar de uma sala à prova de som. Tudo o que Ushikawa ouvia era a voz do homem e o som áspero, desagradável, da sua respiração ofegante, mais nada. E tanto a voz como a respiração lhe soavam aos ouvidos como que amplificadas. Que tipo mais lúgubre, pensava Ushikawa de todas as vezes que falava com ele. De facto, o mundo parece estar cheio de criaturas sinistras. Isto apesar de estar farto de saber que, falando bem e claro, para os outros, ele próprio devia ser um deles. Em segredo, dera-lhe o nome de «Morcego».

– Seja como for, trata-se de reunir toda a informação relacionada com uma jovem chamada Aomame, certo? – perguntou o Morcego na sua voz roufenha. Depois tossicou.

– Isso mesmo. É um nome pouco comum.

– Precisa de todas as informações que consiga encontrar, não é verdade?

– Desde que estejam relacionadas com ela, tanto faz. Interessa-me tudo. Também gostaria de obter uma fotografia, se for possível, que me permita ficar com uma ideia clara do rosto da mulher.

– A parte que diz respeito ao ginásio deverá ser fácil. Não creio que tenham em conta a possibilidade de alguém lhes roubar informações. No que toca à Associação das Testemunhas, porém, já a coisa fia mais fino. Trata-se de uma importante organização de grande capital, muito bem protegida. As comunidades religiosas são extraordinariamente difíceis de investigar. Não só porque exigem confidencialidade, a fim de proteger os dados dos seus membros, mas também por causa das questões fiscais.

– Reúne condições para fazer o trabalho?

– Fazer, posso sempre fazê-lo. Disponho de meios que me permitem abrir algumas portas. O mais difícil vai ser voltar a fechá-las... Se não o fizer, arrisco-me a ser surpreendido por algum míssil no nosso rasto...

– Como na guerra.

– Isto é uma guerra. Podem acontecer coisas horríveis – dramatizou o homem da voz rouca. Pelo tom, dir-se-ia que estava impaciente por entrar na refrega.

– Nesse caso, aceita?

O homem aclarou a garganta.

– Vou tentar. Mas aviso já que vai custar bom dinheiro.

A seguir, mencionou a quantia aproximada. Ushikawa engoliu em seco antes de aceitar. Pessoalmente, dispunha daquela soma e, se obtivesse resultados palpáveis, podia sempre ser reembolsado pelos seus clientes mais tarde.

– Vai demorar muito tempo?

– É urgente, calculo?

– Sim.

– Não posso dizer ao certo, porém, julgo que vou precisar de uma semana... No máximo, dez dias.

– Perfeito – disse Ushikawa. Não tinha outro remédio senão ajustar-se ao ritmo do outro.

– Assim que tiver o material todo reunido, telefono. Entrarei em contacto consigo dentro de dez dias, sem falta.

– Se um míssil não o apanhar – ironizou Ushikawa.

– Exato – afirmou o Morcego com indiferença.

Depois de ter desligado, Ushikawa endireitou as costas na cadeira e deixou-se ficar um bocado a remoer os pensamentos. Ignorava como é que o Morcego faria para obter os dados, mas desconfiava que devia ser por portas e travessas. Mesmo que lhe perguntasse, não obteria resposta. A única coisa que sabia era que o outro empregava métodos pouco ortodoxos. Começaria por subornar alguém no interior da organização. Se necessário fosse, iria ao extremo de se infiltrar ou de arranjar maneira de penetrar ilegalmente nas instalações. Caso o assunto metesse computadores e material informático, a situação tornar-se-ia mais complicada.

Havia ainda um número muito limitado de empresas e instituições governamentais informatizadas. Custava demasiado dinheiro e implicava um esforço desmedido. Porém, tratando-se de uma comunidade religiosa daquela envergadura, que operava à escala nacional, de certeza que devia ter recursos para tal. Apesar de Ushikawa não entender nada de computadores, sabia o suficiente para ter a noção de que essa tecnologia estava a converter-se numa ferramenta indispensável para proceder à armazenagem e ao processamento de informação. Já lá iam os tempos em que uma pessoa tinha de ir até à Biblioteca Nacional, sentar-se a uma secretária, diante de uma pilha de jornais antigos e anuários, e passar o dia à procura de informações... O mundo tendia a transformar-se num campo de batalha entre administradores de computadores e piratas informáticos, um campo de batalha que cheiraria a sangue. Bom, a expressão cheirar a sangue talvez não fizesse muito sentido. Tratando-se de uma guerra, era natural que o sangue corresse, mas não emitiria cheiro. Seria um mundo estrambólico. Ushikawa preferia os mundos onde os cheiros e o sofrimento existiam, mesmo considerando que esses odores e esse sofrimento se revelassem por vezes insuportáveis. Seja como for, homens da sua espécie estavam condenados a transformar-se em relíquias do passado.

Semelhante teoria não fazia de Ushikawa um pessimista. Contava com uma intuição quase animal e com um olfato apurado e único, capaz de distinguir toda a espécie de odores. Sentia na pele, fisicamente, as mais pequenas coisas que não podiam ser quantificadas, como qualquer mudança na direção do vento. Essas capacidades não pertenciam a uma categoria passível de sistematizar as coisas nem de as transformar em valores numéricos. Aceder com engenho a um computador bem protegido e daí extrair as informações era obra do pirata informático. Mas só um ser humano de carne e osso podia decidir qual a informação valiosa e qual o destino a dar-lhe.

Talvez eu não passe de um homenzinho de meia-idade, desagradável e antiquado, pensou Ushikawa. Não, talvez não! Sou um homem de meia-idade, desagradável e antiquado, isso é ponto assente. Possuo, no entanto, uma ou duas qualidades de que a maior parte das pessoas carece. A saber: um olfato prodigioso e uma tenacidade que me permite deitar a unha a uma coisa e não mais a largar da mão. Graças a isso, conseguirei sobreviver, tal como tem acontecido até à data, por mais estranho que o mundo se torne.

Acabarei por dar contigo, Aomame. És bastante inteligente, disso não restam dúvidas. Hábil e prudente, também. Mas juro que te encontrarei. Espera e verás. Sigo o teu rasto neste preciso momento. Ouves o ruído dos meus passos? Não, não creio que o oiças, porque caminho lentamente, como uma tartaruga. A verdade é que, pouco a pouco, me vou aproximando de ti.

No entanto, havia algo a pisar os calcanhares de Ushikawa. O tempo. Perseguir Aomame também significava lutar contra o tempo que apertava com ele. Tinha de encontrar o paradeiro dela quanto antes, esclarecer a trama e servir tudo de bandeja aos membros da organização: «Aqui têm, meus senhores.» Dispunha de pouco tempo. Se demorasse três meses a deslindar o caso, provavelmente seria tarde demais. Até então, Ushikawa tinha-lhes sido útil. Era competente e versátil, discreto e com conhecimentos legais. Possuía recursos que lhe permitiam mover-se à margem do sistema. Mas, no fundo, não passava de um homem dos sete instrumentos, devidamente remunerado pelos seus serviços. Não era um «deles», tão-pouco um membro da grande família. Era apenas um homem sem fé. Caso se tornasse uma ameaça para a comunidade, não hesitariam em eliminá-lo.

Enquanto aguardava a chamada do Morcego, Ushikawa foi até à biblioteca e investigou a fundo sobre a história e as atividades mais recentes das Testemunhas. Tomou notas e fotocopiou os documentos que lhe interessavam. Ir à biblioteca e documentar-se era uma coisa que lhe agradava. Gostava daquela sensação de ir armazenando conhecimentos no seu cérebro. Era um costume que tinha adquirido quando jovem.

Uma vez terminada a pesquisa, deslocou-se até Jiyugaoka, ao prédio de apartamentos onde vivia Aomame, e tornou a comprovar que se encontrava desocupado. Na caixa do correio ainda se via uma etiqueta com o nome dela, mas não havia qualquer indício de que a casa estivesse habitada. Em seguida, passou pela agência imobiliária e perguntou se podia alugar o apartamento, pois ouvira dizer que estava vazio.

– Estar vazio, está – confirmou o agente imobiliário –, mas até começo de fevereiro do ano que vem não podemos arrendá-lo. O contrato com o atual inquilino termina em janeiro, e até lá vão continuar a pagar religiosamente o estipulado, tal como têm feito no fim de cada mês. Foram-se embora, levaram os móveis todos e mandaram desligar a água, o gás e a eletricidade, ainda que o contrato de arrendamento permaneça válido.

– Ou seja, até ao fim de janeiro vão estar a pagar por um apartamento vazio?

– Isso mesmo – reiterou o agente imobiliário. – Foi-nos comunicado que pagariam o arrendamento por inteiro e que, como tal, gostariam que mantivéssemos o apartamento como está. Desde que nos paguem, não temos nada contra.

– Que curioso! Atirar assim dinheiro à rua, apesar de não viver ali ninguém...

– A nós também nos preocupava, de modo que tivemos o cuidado de entrar no apartamento, a fim de deitar uma vista de olhos ao interior, não fosse dar-se o caso de haver um cadáver mumificado, ou uma coisa assim. Mas não encontrámos nada do género. Estava tudo muito bem limpo e completamente vazio. Ignoro o que poderá ter acontecido.

Saltava à vista que Aomame já não morava ali. Mas, por qualquer motivo, haviam decidido que ela, ou o titular, continuasse a alugar o apartamento em seu nome. Por isso pagariam o aluguer correspondente a quatro meses. Fossem eles quem fossem, era gente cautelosa e sem problemas de dinheiro.

Precisamente dez dias mais tarde, o Morcego telefonou para o escritório de Ushikawa, no bairro de Kojimachi.

– Senhor Ushikawa? – disse ele com a sua voz rouca. Como de costume, em pano de fundo ouvia-se apenas o silêncio.

– Sou eu.

– Podemos falar agora?

– Podemos, claro que sim – respondeu Ushikawa.

– A Associação das Testemunhas está protegida ao mais alto nível. Mas isso já eu previra, confesso. Obtive as tais informações respeitantes a Aomame.

– E a história dos mísseis teleguiados?

– Por enquanto ainda não apareceu nenhum no horizonte.

– Tanto melhor.

– Senhor Ushikawa – disse o homem, pigarreando várias vezes –, desculpe, mas importava-se de apagar o cigarro?

– O cigarro? – Ushikawa olhou para o Seven Stars que segurava entre os dedos. O fumo subia lentamente em direção ao teto. – Ah, sim, estava a fumar quando me telefonou... Mas como é que sabe?

– Como é óbvio, o odor não chega até aqui. Porém, só de o ouvir através do auscultador, sempre a arquejar, já me custa respirar. Sou extremamente alérgico, não sei se está a ver...

– Compreendo. Nem me dera conta. Peço desculpa.

O homem tossiu umas quantas vezes para aclarar a garganta.

– Deixe estar, a culpa não é sua. É normal que não se tenha apercebido da situação.

Ushikawa apagou o cigarro no cinzeiro e, por cima, deitou o resto do chá que começara entretanto a beber. A seguir, levantou-se e abriu a janela de par em par.

– Já apaguei o cigarro e abri a janela para arejar a divisão. Apesar de o ar lá fora não ser tão puro quanto isso...

– Agradeço-lhe muito.

Fez-se um silêncio que durou cerca de dez segundos. Não se ouvia uma mosca.

– Com que então, sempre conseguiu as tais informações sobre as Testemunhas, não é verdade? – perguntou Ushikawa.

– Consegui, sim, senhor. Por sinal, um volume significativo de informações. Como a família de Aomame pertence à seita desde há muito, documentação é coisa que não falta. Talvez seja mais fácil se eu lhe passar o material todo para as mãos, a fim de o senhor separar o trigo do joio.

Ushikawa concordou. A proposta ia de encontro às suas pretensões.

– No que respeita ao ginásio, não houve qualquer problema. Bastou-me abrir a porta, entrar, fazer o trabalho que tinha a fazer, sair e tornar a fechá-la. Visto que o tempo de que dispunha era limitado, saquei tudo o que podia. Por isso, prepare-se: tem aqui informação para dar e vender. Em todo o caso, entrego-lhe tudo por atacado. A troco de dinheiro, como sempre.

Ushikawa anotou a quantia que o Morcego lhe indicou. Era o dobro da soma inicialmente apresentada, mas não tinha escolha.

– Desta vez, prefiro não utilizar o correio. Por isso, vou enviar o material amanhã a esta hora, por mensageiro. Peço-lhe que tenha o dinheiro à mão. Como sempre, não preciso de recibo.

Ushikawa manifestou a sua concordância.

– A propósito, creio já lhe ter dito isto em ocasiões anteriores, mas, pelo sim, pelo não, vou repeti-lo. Arrebanhei toda a informação disponível sobre o tópico que me pediu para investigar. Caso os dados que consegui não o satisfizerem ou não lhe servirem de alguma coisa, senhor Ushikawa, declino qualquer responsabilidade. Pela parte que me toca, e de um ponto de vista técnico, fiz tudo o que estava ao meu alcance. O senhor paga-me pelos meus serviços, não pelo resultado. Por isso, se não encontrar a informação de que anda à procura no meio do material que lhe arranjei, agradeço que não me venha pedir a devolução do dinheiro. Gostaria que este ponto ficasse bem claro.

Ushikawa respondeu que sim, que tinha ficado claro.

– Outra coisa. Não me foi possível obter nenhuma fotografia de Aomame – referiu o Morcego. – Alguém se deu ao trabalho de eliminar as fotos dela de todos os documentos.

– Compreendo. Tanto pior – disse Ushikawa.

– Além disso, é possível que tenha modificado as feições do rosto – acrescentou o Morcego.

– É possível – reiterou Ushikawa.

O Morcego deu mais uma tossidela.

– Nesse caso, estamos conversados – disse ele, antes de desligar.

Ushikawa colocou o auscultador no sítio, soltou um suspiro e levou mais um cigarro aos lábios. Acendeu-o com o tal isqueiro e expulsou lentamente uma nuvem de fumo para cima do telefone.

Nessa mesma tarde, uma rapariga nova apareceu no seu escritório. Ainda não devia ter completado vinte anos. Levava um vestido branco curto que revelava as curvas do seu corpo, calçava sapatos de salto brancos, a condizer, e exibia uns brincos de pérolas. Para uma jovem de constituição meã, tinha os lóbulos das orelhas bastante grandes. Devia medir pouco mais de um metro e cinquenta. Usava o cabelo comprido, liso, e os seus olhos eram grandes e claros. Parecia mesmo uma fada em ponto pequeno. A rapariga olhou para ele de frente e dirigiu-lhe um sorriso alegre e amistoso, como se estivesse a observar algo muito precioso e inesquecível. Por entre os seus lábios pequenos assomava uma fiada de bonitos dentes brancos, perfeitamente alinhados. Claro que podia tratar-se de um sorriso mecânico, com o seu quê de artificial. Ainda assim, era raro que alguém conseguisse olhar, à primeira vista, para a cara de Ushikawa sem esboçar um gesto de repulsa.

– Trouxe-lhe os documentos que solicitou – anunciou a rapariga. Dito aquilo, tirou dois volumosos sobrescritos do saco de tela que levava ao ombro. Então, levantando-os com ambas as mãos, como se fosse uma sacerdotisa que transportasse uma antiga pedra gravada, depositou-os sobre a secretária.

Ushikawa pegou num envelope que deixara preparado na gaveta e entregou-lho. A rapariga abriu-o, pegou no maço com as notas de dez mil ienes e contou-as ali mesmo, de pé. Contava o dinheiro com muito jeitinho: os seus dedos, finos e elegantes, moviam-se com destreza. Assim que acabou de fazer a contagem, voltou a guardar as notas e tratou de enfiar o envelope no bolso do casaco. Em seguida, virou-se para Ushikawa e esboçou um novo sorriso, ainda mais rasgado e cordial. Como se tivesse ficado encantada por ter-se cruzado com ele.

Ushikawa tentou imaginar que espécie de relação poderia haver entre aquela jovem e o Morcego, mas o assunto, naturalmente, não lhe dizia respeito. Ela não passava de uma espécie de emissária. Encarregada de entregar a documentação e de receber o pagamento. Esse era, porventura, o único papel que lhe estava destinado.

Assim que a rapariga abandonou o escritório, Ushikawa quedou-se durante um bom bocado a olhar para a porta por onde ela saíra, com ar meditabundo. Dentro do gabinete ainda perdurava um forte rasto da sua presença. A páginas tantas, em troca de haver deixado ficar para trás o traço da sua passagem, a jovem levara consigo uma parte da alma de Ushikawa. Este podia sentir no peito um vazio nunca antes experimentado. Como foi que isto aconteceu?, perguntou a si mesmo. E que demónio poderá significar?

Passados dez minutos, Ushikawa recuperou a sua presença de espírito e abriu o envelope. Estava selado, várias vezes reforçado com fita adesiva. Continha uma grande quantidade de documentos impressos, entre fotocópias e originais. Ushikawa perguntou a si mesmo como é que o Morcego havia conseguido reunir todo aquele material em tão pouco tempo. Para não variar, o homem fizera um trabalho impressionante. No entanto, ao ver-se confrontado com aquela montanha de papéis, apoderou-se de Ushikawa uma profunda sensação de impotência. E se remexer naquela papelada não o conduzisse a lado nenhum? Teria despendido uma pequena fortuna recebendo em troca um punhado de escritos sem valor? Tão intenso era o sentimento de impotência, que, por mais que ele esfregasse os olhos, não conseguia ver o fundo do poço. Tudo o que Ushikawa lograva alcançar encontrava-se envolto numa espécie de crepúsculo sombrio que se assemelhava a um presságio de morte. Se calhar, isto deve-se a qualquer coisa que aquela rapariga deixou ficar para trás, pensou. Ou talvez a qualquer coisa que tenha levado com ela.

Por fim, recobrou o ânimo. Encheu-se de paciência e passou o resto da tarde mergulhado na leitura, copiando para um canhenho os dados que interessavam. Só assim, concentrando os seus sentidos naquela tarefa, conseguiu afastar a misteriosa sensação de impotência. Ao anoitecer, quando escureceu e se viu obrigado a acender o candeeiro, é que se deu conta de que valera a pena ter despendido todo aquele dinheiro.

Primeiro, Ushikawa começou por ler o material que dizia respeito ao ginásio. Durante os quatro anos em que Aomame ali trabalhara, ocupara-se sobretudo dos programas de treino muscular e artes marciais. A par das aulas em grupo, elaborara vários esquemas em que funcionava como personal trainer. Com base na documentação, deduziu que ela era muito competente como professora, gozando de grande prestígio junto dos sócios do ginásio. Além disso, também dava aulas particulares. Eram caras, escusado será dizer, mas constituíam o sistema ideal para todos aqueles que não podiam assistir às sessões no horário estabelecido ou preferiam um ambiente mais resguardado. E não eram assim tão poucos quanto isso.

A julgar pelas fotocópias do programa de trabalho, Ushikawa ficou a saber quando, onde e como é que Aomame ensinava essa «clientela particular». Por vezes, trabalhava com alguns no ginásio, em privado, e outras vezes ia às suas casas. Entre os clientes contava-se uma série de artistas e políticos conhecidos. Shizue Ogata, a dona da Casa dos Salgueiros, era uma das clientes mais antigas.

A relação com Shizue Ogata tivera início pouco depois de Aomame começar a trabalhar no ginásio e prolongara-se até escassos dias antes do seu desaparecimento. Os indícios coincidiam com o período em que o edifício de dois andares, anexo à Casa dos Salgueiros, começara a funcionar como casa-abrigo para acolher as mulheres vítimas de violência doméstica. Podia ser uma coincidência... ou não. Em todo o caso, pela leitura dos documentos, parecia que a relação entre as duas se fora estreitando com o passar do tempo.

Provavelmente, entre Aomame e a anciã desenvolvera-se uma ligação mais pessoal. Dizia-lho a sua intuição. Ao princípio, a coisa começara como uma vulgar relação entre a instrutora do ginásio e a sua cliente, mas, a partir de um dado momento, a sua natureza evoluíra. Enquanto percorria com o olhar as páginas colocadas por ordem cronológica, que continham o programa das aulas, Ushikawa procurou determinar esse «momento». Alguma coisa acontecera para que, a partir de então, as duas deixassem de ter um simples relacionamento entre instrutora e cliente e desenvolvessem uma relação de amizade, capaz de transpor as barreiras impostas pela idade e pelo estatuto social. Poderiam muito bem, quem sabe?, estar unidas por uma cumplicidade espiritual. Uma espécie de pacto secreto que, aos poucos, teria seguido um determinado rumo e que acabara por culminar com o assassínio do Líder, perpetrado por Aomame no Hotel Okura. Cheirava-lhe que as coisas deveriam ter acontecido assim.

Agora, que rumo seria esse? E qual a natureza do entendimento secreto entre ambas?

A imaginação de Ushikawa não ia mais longe do que isso.

Era possível que a violência doméstica tivesse alguma coisa que ver com o assunto. Pelos vistos, tratava-se de uma questão particularmente sensível aos olhos da velha senhora. Os documentos provavam que Shizue Ogata entrara pela primeira vez em contacto com Aomame nas aulas de defesa pessoal que esta dava. Não se podia dizer que fosse muito vulgar uma mulher com mais de setenta anos ter aulas de defesa pessoal. Se calhar, existia algum fator relacionado com a violência que servia de elo de união entre as duas.

Ou, então, talvez a própria Aomame tivesse sido vítima de maus-tratos. E havia ainda a considerar a hipótese de o Líder ser um agressor. Talvez elas soubessem e tivessem decidido castigá-lo. Mas tudo isso era entrar no campo das hipóteses. Por outro lado, essa teoria não combinava com a imagem que Ushikawa fazia do Líder. Como é evidente, torna-se difícil conhecer o ser humano até ao fundo da alma, independentemente do tipo de pessoa que seja, e o Líder não deixava de ser uma figura mais enigmática do que a maioria. Por alguma razão estava à frente dos destinos de uma poderosa organização religiosa. Além de sagaz e inteligente, o homem possuía um lado misterioso. Contudo, imaginando que fosse realmente uma pessoa violenta, capaz de infligir maus-tratos, será que o que ele tinha feito era assim tão grave, ao ponto de implicar duas mulheres na elaboração de um meticuloso plano com o propósito de o matar – levando uma delas a renunciar à própria identidade e a outra a colocar em risco a sua posição social?

Uma coisa era certa: o Líder não tinha sido assassinado de maneira impulsiva nem ao sabor do improviso. Por detrás daquele ato notava-se uma vontade de ferro, uma motivação clara e explícita, um sistema elaborado que havia custado tempo e dinheiro e que implicara um planeamento meticuloso.

No entanto, verdade seja dita, não existia uma única prova concreta que pudesse sustentar aquelas conjeturas. O que Ushikawa tinha nas mãos não passava de um conjunto de provas circunstanciais baseadas em hipóteses. Uma série de elucubrações vagas que a navalha de Occam cortaria cerce sem grandes problemas. Naquela fase ainda não podia dar-se ao luxo de informar a Vanguarda. Contudo, Ushikawa sabia que estava na pista certa. Notava pelo cheiro. Percebia pela textura. Todos os elementos apontavam na mesma direção. Por algum motivo que se prendia com a violência exercida pelos homens sobre as mulheres, a velha senhora dera instruções a Aomame no sentido de assassinar o Líder e, depois, tudo fizera para a ajudar a esconder-se num lugar seguro. A documentação reunida pelo Morcego confirmava indiretamente a sua teoria.

Demorou algum tempo a pôr em ordem os documentos relacionados com a Associação das Testemunhas. Além de volumosa, a pasta continha uma quantidade de material que de pouco ou nada lhe servia. Na sua maioria, tratava-se de relatórios que davam conta das contribuições em dinheiro feitas pela família de Aomame e revertendo para a comunidade religiosa. Lendo o material, tornava-se evidente que aquele agregado familiar era composto de crentes fervorosos e abnegados. Haviam consagrado quase toda a sua vida à evangelização. Na realidade, os pais de Aomame residiam em Ichikawa, na prefeitura de Chiba. Mudaram-se duas vezes em trinta e cinco anos, mas sempre dentro da cidade de Ichikawa. O pai, Takayuki Aomame (de cinquenta e oito anos), trabalhava numa firma de engenharia; a mãe, Keiko Aomame (de cinquenta e seis anos), estava desempregada. O irmão mais velho, Keiichi Aomame (de trinta e quatro anos), entrara para uma pequena tipografia em Tóquio, após ter acabado o liceu em Ichikawa, mas abandonara o emprego três anos mais tarde e começara a trabalhar na sede da comunidade religiosa, em Odawara. Ali, participara na impressão de panfletos que funcionavam como propaganda religiosa, passando posteriormente a ocupar um cargo diretivo. Casara havia cinco anos com outra seguidora das Testemunhas, tiveram dois filhos e viviam num apartamento alugado em Odawara.

As referências à filha, Masami Aomame, terminavam quando ela atingira os onze anos. Com essa idade, a jovem renunciou à fé. E as Testemunhas pareciam perder todo o interesse em quem abandonasse a sua fé. Na perspetiva deles, era como se Aomame tivesse morrido aos onze anos. Depois dessa idade, não dedicavam uma única linha à descrição do que havia sido a sua existência. Nem sequer aparecia mencionado se ela estava viva ou morta.

Neste caso, a melhor coisa a fazer é ir visitar os pais ou o irmão e falar pessoalmente com um deles, pensou Ushikawa para consigo mesmo. Pode ser que me proporcionem alguma pista. Contudo, pela informação que recolhera nos documentos, não acreditava que eles fossem responder às suas perguntas de bom grado. Os membros do clã Aomame, para além de terem as vistas curtas e de praticarem a intolerância – do ponto de vista de Ushikawa, escusado será dizer –, eram pessoas plenamente convencidas de que, quanto mais inflexíveis fossem na sua maneira de pensar e de agir, mais perto do Céu ficariam. Para eles, quem abandonasse a fé, ainda que tratando-se de um familiar chegado, escolhia um caminho impuro e errado. Ou, se calhar, já nem a reconheciam como fazendo parte da família.

Teria Aomame sido vítima de maus-tratos na infância?

Talvez sim, talvez não. Mesmo que isso tivesse acontecido, o mais certo era os pais não o considerarem uma forma de abuso. Ushikawa estava ao corrente da situação e sabia que as Testemunhas educavam os seus filhos com mão de ferro. O que, em muitos casos, implicava castigos corporais.

Se assim acontecera, a ferida profunda que essa experiência vivida na infância lhe deixara na alma poderia ter conduzido alguém, na idade adulta, a cometer um homicídio. Impossível não era, à partida, se bem que Ushikawa achasse que a hipótese pecava por demasiado improvável. Matar alguém comportava riscos, a par de uma tremenda carga emocional. Se a pessoa fosse apanhada, o castigo seria terrível. Só tendo uma motivação muito poderosa.

Ushikawa pegou de novo nos documentos e tornou a ler com especial atenção a história de Masami Aomame até aos onze anos. Assim que a menina aprendera a andar, a mãe começara a levá-la consigo nas suas campanhas de evangelização. Iam de porta em porta entregar panfletos sobre a comunidade, anunciando às pessoas a marcha até ao final inevitável e convidando-as a participar nas reuniões. Abraçar a fé era meio caminho andado para sobreviver ao Apocalipse. Depois disso, chegaria o reino da felicidade celeste. Ushikawa, também ele, tinha recebido visitas desse género. Quem costumava ir bater-lhe à porta era uma mulher de meia-idade, que usava chapéu e andava sempre com um guarda-sol na mão. Quase todos os das Testemunhas tinham óculos e fitavam os inquilinos com olhos de peixe inteligente. Apareciam amiúde acompanhados de uma criancinha. Ushikawa imaginou a pequena Aomame percorrendo as ruas, de casa em casa, atrás da mãe.

Aomame entrara logo para a escola primária municipal do bairro onde viviam sem passar pelo jardim de infância. Foi então que, no quinto ano, abandonou a Associação das Testemunhas. Os motivos para tal permaneciam por esclarecer. A Associação não tinha por hábito registar as razões dos apóstatas. Aqueles que caíam nas mãos do demónio ficavam à sua mercê. Eles estavam ocupados a predicar sobre o Paraíso e sobre as vias que permitiam alcançá-lo. Os virtuosos tinham de levar por diante as suas ações, e o demónio, as suas. Tratava-se de uma espécie de divisão espiritual do trabalho.

Dentro da cabeça de Ushikawa, alguém batia com os nós dos dedos num tabique de contraplacado de má qualidade. «Senhor Ushikawa! Senhor Ushikawa!», ouvia chamar. Fechou os olhos e prestou atenção. Era uma voz baixa mas insistente. Devo ter deixado escapar alguma coisa, pensou ele. Deve haver um facto importante, registado no meio desta papelada, e eu não fui capaz de atinar com ele. As pancadinhas são um aviso.

Ushikawa voltou a passar os olhos pela volumosa pilha de papéis. Desta vez, não se limitou a ler. À medida que seguia com os olhos o que estava impresso nas folhas de papel, esforçou-se por visualizar as distintas cenas ali descritas. Com três anos, Aomame acompanhava a sua mãe nas missões em que se dedicavam a pregar o Evangelho. Quase sempre, apanhavam as duas com a porta na cara. Em seguida, a menina entra para a escola primária. Continua com o trabalho de propaganda evangélica, a que dedica os fins de semana inteirinhos. Não deve ter tempo para brincar com os seus amigos. O mais provável é nem sequer ter amigos. Na escola, metiam-se com os filhos dos das Testemunhas, maltratavam-nos e marginalizavam-nos. Ushikawa, que lera um livro sobre o assunto e estava documentado sobre a época, sabia disso. Então, ao chegar aos onze anos, a jovenzinha renunciou à sua fé. Essa atitude devia ter-lhe exigido uma força de vontade impressionante. Desde que nascera, haviam-lhe inculcado esse credo. A doutrina crescera com ela, penetrara em todas as suas fibras, até à medula. Uma pessoa não podia desfazer-se facilmente dela, como quem muda de roupa. Além disso, tal significava o ostracismo dentro de casa. Uma família extremamente religiosa não aceita de bom grado uma filha pagã. Renunciar à fé significava abandonar a família.

Que raio terá acontecido quando a Aomame tinha onze anos? O que poderá tê-la levado a tomar essa decisão?

Escola Primária Municipal de Ichikawa, na prefeitura de Chiba. Ushikawa experimentou dizer o nome em voz alta. Deve ter sido ali que aconteceu qualquer coisa. Só pode ter sido... Ushikawa engoliu em seco. Já ouvi esse nome em algum lado...

Mas onde? Ushikawa não tinha qualquer relação com a prefeitura de Chiba. Nascera em Urawa, na prefeitura de Saitama, e desde a altura em que entrara para a universidade de Tóquio nunca mais saíra da grande cidade, tirando uma temporada em Chuorinkan. Podia dizer-se que só uma vez ou outra é que pusera o pé em Chiba, quando fora certo dia a banhos, à praia de Futtsu. Nesse caso, porque continuava o nome daquela escola primária em Ichikawa a martelar-lhe a mona?

Tardou a lembrar-se. Pôs-se a esfregar a cabeça disforme com a palma da mão, para se concentrar. Mergulhou as mãos naquele lodo e remexeu bem nas profundezas da memória. Ainda não tinha passado muito tempo desde a última vez que ouvira esse nome. De facto, a recordação era bastante recente. Prefeitura de Chiba... Uma escola primária. Por fim, lá conseguiu encontrar a extremidade da fina corda.

Tengo Kawana, disse Ushikawa para consigo próprio. É isso, o Tengo Kawana nasceu em Ichikawa. De certeza que deve ter frequentado uma escola pública na cidade.

Ushikawa tirou o material de arquivo relacionado com Tengo Kawana da estante que tinha no seu gabinete. Era todo o material recolhido meses antes, por encomenda da Vanguarda. Com os documentos na mão, tornou a analisar a história de Tengo. Com efeito, os dedos anafados de Ushikawa deram com o nome. Masami Aomame frequentara a mesma escola municipal que Tengo Kawana. Pela idade, se calhar andariam no mesmo ano escolar. Se tinham estado juntos na mesma turma, isso seria preciso investigar melhor. Para começar, as probabilidades de eles se conhecerem eram grandes.

Ushikawa levou um Seven Stars à boca e acendeu-o com o isqueiro. As coisas começavam a encaixar, palpitava-lhe. Começava a desenhar-se uma linha que ia unindo os diversos pontos. Ainda não sabia que forma tomaria o desenho, mas, a pouco e pouco, deveria ser possível ver os contornos da coisa.

Aomame, ouves o ruído dos meus passos? Provavelmente não, porque caminho sem fazer barulho. Porém, passo a passo, vou-me aproximando de ti. Sou como uma tartaruga, lenta e pachorrenta, mas avanço com firmeza. A qualquer momento, espero ver a lebre aparecer diante de mim. Podes contar com isso.

Ushikawa arqueou as costas sobre o assento, levantou os olhos para o teto e expulsou o fumo devagar.


8

AOMAME

Esta porta não é má de todo

Tirando os indivíduos encarregados de abastecer a casa de provisões todas as terças-feiras à tarde, durante as duas semanas seguintes ninguém se aproximou do apartamento que Aomame habitava temporariamente. O suposto cobrador da taxa da NHK ameaçara regressar, sem falta. Na sua voz percebia-se a firme vontade de cumprir a promessa. Pelo menos, ela ficara com essa impressão. Desde aquela vez, porém, nunca mais dera sinal de vida nem tornara a bater à porta. Talvez o indivíduo em questão estivesse ocupado a percorrer outras rotas.

Seguiram-se dias tranquilos e aparentemente calmos; não aconteceu nada, ninguém apareceu. Nem sequer tocou o telefone. Por motivos de segurança, Tamaru esforçava-se por reduzir as chamadas que pretendia fazer-lhe. Aomame tinha sempre as cortinas fechadas e vivia de forma discreta, evitando atrair as atenções. Quando o Sol se punha, acendia apenas as luzes necessárias.

Procurava fazer os seus exercícios mais intensos em silêncio, limpava o chão todos os dias com um pano e levava o seu tempo a preparar as refeições. Praticava conversação em espanhol, repetindo vezes sem conta as frases que ouvia das cassetes (enviadas por Tamaru, a seu pedido, juntamente com as compras da semana). Quando se está muito tempo sem articular palavras, os músculos em redor da boca tendem a ficar atrofiados. Ela sentia necessidade de realizar movimentos amplos com a boca e de mexer os maxilares. Para esse efeito, nada melhor do que a aprendizagem de uma língua estrangeira. Por outro lado, Aomame forjara uma ideia um tanto romântica da América do Sul. Se pudesse escolher um destino com inteira liberdade, gostaria de viver num pequeno país latino-americano, um país pacífico como a Costa Rica. Alugaria uma casinha à beira-mar e passaria os dias a ler e a nadar. Com o dinheiro que tinha guardado na mala, poderia muito bem viver uns dez anos sem preocupações, desde que não se permitisse grandes luxos. Além do mais, dificilmente eles a seguiriam até à Costa Rica.

Enquanto aprendia frases em espanhol, úteis para se desenvencilhar no dia a dia, imaginava a existência aprazível que levaria nas praias da Costa Rica. Poderia Tengo fazer parte dessa vida? Ao fechar os olhos, via-se a si mesma e a Tengo, os dois a apanhar sol num areal das Caraíbas. Ela com um reduzido biquíni preto e óculos escuros, de mão dada com Tengo. A imagem, contudo, carecia de um sentido concreto de realidade, faltava-lhe qualquer coisa que tivesse o poder de fazer vibrar o seu coração. Não passava de uma fotografia banal, igual àquelas que servem para fins de propaganda turística.

Sempre que não sabia com que havia de se entreter, punha-se a limpar a pistola. Seguia à letra as instruções do manual: desmontava a Heckler & Koch em peças e, com a ajuda de um pano e de uma escova, procedia à limpeza, lubrificava-a e tornava a montá-la. Com a prática, verificou que conseguia realizar todas essas operações com desenvoltura. Já dominava o processo, por assim dizer. Era como se a pistola fosse uma parte integrante do seu corpo.

Costumava deitar-se por volta das dez; lia meia dúzia de páginas e adormecia logo. Desde miúda que Aomame nunca tivera dificuldade em adormecer. Conforme ia seguindo os carateres impressos no papel, o sono apoderava-se dela de uma forma natural. Apagava a luz da mesinha de cabeceira, pousava a cara na almofada e fechava os olhos. A não ser que acontecesse algum imprevisto, só tornava a abri-los na manhã seguinte.

Regra geral, não sonhava muito. Mesmo quando isso acontecia, ao acordar mal se recordava dos sonhos. Por vezes, havia fragmentos imprecisos que se desprendiam do sonho e ficavam presos na parede da sua consciência, e aí, então, lembrava-se. Mas era incapaz de seguir o fio da meada e de dar sentido à história vivida no sonho. Tudo o que restava eram pedaços de imagens que não se encaixavam. Aomame tinha um sono pesado, e o que sonhava permanecia nas profundezas. Tal como os peixes que habitam os abismos marinhos, também esses sonhos não podiam aceder à superfície. Ainda que conseguissem emergir, a diferença de pressão hidrostática faria com que perdessem a sua morfologia original.

E, no entanto, desde que passara a morar naquele esconderijo, sonhava todas as noites. Estamos a falar de sonhos extremamente precisos e realistas. Sonhava e despertava a meio. Aomame não se lembrava de alguma vez isso lhe ter acontecido. Durante um instante, era incapaz de dizer se o mundo onde se encontrava era o mundo real ou o mundo onírico. Travava-se de uma experiência sem precedentes. Ela olhava para o relógio digital à cabeceira. Umas vezes marcava 01:15, outras 02:37, ou 04:07. Aomame fechava os olhos e tentava voltar a adormecer, mas o sono teimava em não chegar. Aqueles dois mundos diferentes disputavam em silêncio a sua consciência, do mesmo modo que as correntes de água salgada e de água doce se confrontam na embocadura de um rio.

Não há nada a fazer, pensava Aomame. O próprio facto de viver num mundo com duas luas no céu leva-me a duvidar de que se trate da verdadeira realidade. Por isso, o que é que tem de estranho adormecer num mundo como este, sonhar e não ser capaz de distinguir o sonho da realidade? Para cúmulo, é bom não esquecer que assassinei homens com estas mãos, ando a ser perseguida por fanáticos que não desistem dos seus intentos e vivo escondida numa espécie de refúgio. É normal que sinta uma certa tensão, e até medo. Nas minhas mãos permanece ainda a sensação de ter matado. Pode muito bem acontecer que nunca mais volte a dormir uma noite descansada. Talvez esta seja a responsabilidade que devo assumir, o preço a pagar.

* * *

Os sonhos que tinha podiam dividir-se, de uma forma geral, em três categorias. Os sonhos de que ela se recordava, pelo menos, encaixavam nesse padrão.

O primeiro era um sonho em que entravam trovões. Ela encontra-se num quarto às escuras e, à sua volta, os trovões não param de cair. Porém, não se veem relâmpagos. Tal qual como na noite em que assassinou o Líder. No interior do quarto adivinha-se uma presença. Aomame está na cama, despida, e alguma coisa deambula por ali, com movimentos lentos e cautelosos. O pelo da alcatifa é espesso, e o ar está viciado e abafado. Os vidros da janela estremecem ao som dos trovões. A jovem sente-se aterrorizada. Desconhece o que se esconde naquele quarto. Pode ser uma pessoa. Pode ser um animal. Pode não ser uma coisa nem outra. Mas, às tantas, aquilo desaparece de vez. E não é pela janela que se escapa. Ainda assim, a presença vai-se diluindo a pouco e pouco, até acabar por desaparecer. Fora ela, não existe mais ninguém no quarto. Encontra-se sozinha.

Às apalpadelas, acende o candeeiro da mesa de cabeceira. Levanta-se da cama, nua, e passa revista ao quarto. Na parede em frente da cama há um buraco, um orifício suficientemente grande por onde uma pessoa consegue passar à justa. Porém, não se trata de um buraco fixo na parede. É um buraco que muda de forma e de posição. Treme, mexe-se, aumenta e diminui de tamanho – como se estivesse vivo. Alguma coisa deve ter saído por esse orifício. Aomame olha pelo buraco. Parece levar a alguma parte, embora esteja demasiado escuro para se ver ao certo onde. A obscuridade é tão densa, que dá a sensação de que se pode cortar à faca e agarrar com a mão. Sente curiosidade, mas, ao mesmo tempo, sente medo. O seu coração bate, produzindo um ruído seco, distante. O sonho acaba aí.

No outro sonho está parada na berma de uma autoestrada. Também aí se encontra totalmente despida. As pessoas que estão dentro dos automóveis, apanhadas num engarrafamento, observam descaradamente o seu corpo nu. Homens, quase todos. Também há uma mulher. Parecem contemplar os seus seios pouco volumosos e a estranha pelagem que lhe nasce no púbis. Uns franzem a testa, outros sorriem de forma sarcástica, alguns bocejam. Também há os que a olham fixamente, desprovidos de expressão. Aomame gostaria de cobrir o corpo – nem que fosse só o peito e as partes íntimas. Poderia ser com um bocado de pano ou com um jornal, tanto lhe faria. Contudo, não tem nada à sua volta que possa agarrar. E, por qualquer motivo (desconhece qual), mostra-se incapaz de mexer as mãos e os braços. Volta e meia, sopra uma rabanada de vento, excitando-lhe os mamilos, agitando-lhe os pelos púbicos.

Para mais – como se não bastasse –, está para lhe chegar a menstruação. Sente as ancas frouxas e pesadas, além de ter uma sensação de calor no baixo-ventre. E se, de repente, começasse a sangrar diante daquela gente toda?

Nesse momento, abre-se a porta do lado do condutor, e de dentro de um Mercedes-Benz coupé prateado sai uma mulher elegante, de meia-idade. Calça sapatos claros de salto alto, usa óculos de sol e brincos metalizados. É magra, mais ou menos da mesma altura que Aomame. Abre caminho por entre os carros parados na autoestrada e vem até junto dela, despe o casaco que traz vestido e tapa com ele o corpo de Aomame. É um casaco de primavera fininho, amarelo, cor de casca de ovo, que lhe chega aos joelhos. Leve como uma pena. De corte simples, tem todo o ar de ser caro. O corte, perfeito, assenta-lhe como se tivesse sido feito à medida. A mulher abotoa-lho até acima. «Não sei quando lho poderei devolver e, além disso, tenho medo de o manchar com o sangue das regras», diz Aomame.

Sem uma palavra, a mulher limita-se a abanar a cabeça, antes de regressar ao Mercedes-Benz prateado, caminhando de novo ao longo da fila de carros. Já ao volante, parece erguer a mão e fazer um breve adeus na direção de Aomame, mas, se calhar, não passou de uma ilusão. Envolta naquele casaco de meia-estação, ligeiro e macio, Aomame sente-se protegida. O seu corpo já não se encontra exposto aos olhares alheios. E então, como se aguardasse precisamente por esse momento, um fio de sangue começa a escorrer pela sua coxa. Sangue morno, espesso e abundante. Contudo, não é sangue. Vendo bem, trata-se de um líquido incolor.

O terceiro sonho é difícil de traduzir em palavras, por ser um sonho incoerente, sem um argumento definido num cenário concreto. Nele só existe a sensação de estar em movimento. Aomame desloca-se sem parar, no tempo e no espaço. Não interessa onde nem quando. O importante é o facto de atravessar esses espaços, o próprio movimento. Tudo é fluido, e o significado nasce dessa fluidez. Porém, à medida que se abandona a um tal estado, o seu corpo torna-se cada vez mais transparente, ao ponto de conseguir ver o outro lado através das palmas das mãos. Consegue reconhecer com os seus próprios olhos o interior do corpo: os ossos, os órgãos e até mesmo o útero. A continuar assim, corre o risco de deixar de existir. Aomame pergunta de si para si o que acontecerá, caso desapareça por completo. Não encontra resposta.

Eram duas da tarde quando o toque do telefone sobressaltou Aomame, que estava a dormir a sesta.

– Alguma novidade? – perguntou Tamaru.

– Nenhuma em especial – respondeu Aomame.

– E o cobrador da NHK?

– Não tornou a aparecer. Talvez não passasse de uma ameaça, quando disse que ia voltar.

– Talvez – disse Tamaru. – A taxa de televisão é automaticamente paga através de uma conta bancária, e há um autocolante na porta a dizer isso mesmo. O cobrador deve tê-lo visto. Telefonei para a NHK; foi a resposta que me deram. Que só podia ter sido um engano.

– Desde que eu não seja obrigada a falar com ele...

– É isso. Não queremos chamar a atenção dos vizinhos. Além do mais, esta história do engano cheira-me a esturro.

– O mundo está cheio de enganos desse tipo.

– O mundo é como é, e eu sou como sou – persistiu Tamaru na sua. – Se alguma coisa, por mais insignificante, despertar a tua atenção, quero que me avises.

– Há notícias relativamente à Vanguarda?

– Está tudo calmo. Como se não tivesse acontecido nada. Imagino que devam estar a maquinar alguma coisa nas profundezas, mas, para quem observa o comportamento deles à superfície, nada fora do vulgar salta à vista.

– Pensava que tinhas uma fonte de informação no interior da organização...

– Vão-nos fazendo chegar alguns relatórios, mas, depois de espremidos, não revelam mais do que meia dúzia de dados insignificantes. Tudo indica que estarão a aumentar o controlo interno. Fecharam a torneira.

– Mas não há dúvida de que andam atrás de mim?

– A seguir à morte do Líder, verificou-se um vazio enorme no interior da organização. Dá-me a impressão de que ainda não decidiram quem vai ser o sucessor, assim como não sabem que rumo tomará a organização. Porém, relativamente à tua perseguição, as opiniões coincidem e todos os dirigentes estão de acordo, sem hesitações. Isto foi o que consegui averiguar.

– Não se pode dizer que sejam notícias muito animadoras...

– O mais importante, no que respeita a qualquer informação, é o peso que tem, o seu rigor. O conforto vem depois...

– Seja como for – contrapôs Aomame –, se me apanhassem e a verdade viesse ao de cima, isso teria implicações, e vocês também apanhariam por tabela.

– Daí que estejamos a pensar enviar-te para um lugar onde essa gentalha não te consiga deitar a mão.

– Bem sei. Só preciso que esperem um pouco mais, por favor.

– Ela diz que está disposta a aguardar até ao final do ano. Logo, como é evidente, eu também aguardarei.

– Obrigada.

– Não é a mim que tens de agradecer.

– A propósito – acrescentou Aomame –, há uma coisa que gostaria de juntar à próxima lista de provisões. Se bem que me custe pedir isto a um homem...

– Eu sou como um muro de pedra – disse Tamaru. – Mais a mais, já sabes que sou homossexual, daqueles que estão na primeira linha.

– Preciso de um kit para fazer o teste de gravidez.

Seguiu-se um longo silêncio.

– Acreditas que há necessidade de fazer esse teste – disse Tamaru, por fim.

Não era uma pergunta, de maneira que Aomame não se dignou responder-lhe.

– Quer dizer que julgas poder estar grávida? – perguntou Tamaru.

– Não, não é bem isso.

O cérebro de Tamaru processava aquela informação a toda a velocidade. Se não se fizesse barulho, dava para ouvir o girar das rodas da engrenagem.

– Quer dizer que não há razões que te levam a suspeitar que possas estar grávida, mas consideras necessário fazer o teste.

– Isso mesmo.

– Soa-me a enigma...

– Lamento, mas, por enquanto, não te posso contar mais nada. Basta um desses testes vulgares, que se vendem nas farmácias. Se me puderes arranjar também um manual, uma obra prática sobre a fisiologia do corpo feminino, agradeço.

Tamaru voltou a ficar calado. Fez-se um silêncio denso, compacto.

– Creio que é melhor tornar a ligar-te – concluiu ele. – Não te importas?

– Claro que não.

Antes de desligar, Tamaru emitiu um barulhinho, que pareceu sair do fundo da garganta.

* * *

Quinze minutos mais tarde, o telefone voltou a tocar. Passara muito tempo desde a última vez que escutara a voz da velha senhora de Azabu. Aomame sentiu-se como se tivesse regressado à estufa que existia na mansão antiga, àquele espaço aquecido onde esvoaçavam borboletas exóticas e o tempo decorria com todo o vagar do mundo.

– Como é que te sentes? Bem?

Aomame contou-lhe que fizera os possíveis por impor um ritmo à sua vida de todos os dias. Como a anciã se mostrou interessada, falou-lhe por alto dos seus horários, do regime alimentar e dos exercícios que praticava.

A anciã tomou a palavra.

– Imagino que seja bastante duro não poder sair de casa, mas tu és uma rapariga com grande força de vontade, por isso não estou preocupada. Tenho a certeza de que serás capaz de levar a água ao teu moinho. Gostaria que abandonasses esse lugar quanto antes e que te mudasses para um outro mais seguro. Mas, já que insistes em permanecer aí, e apesar de desconhecer as razões que te assistem, respeitarei o teu desejo. Nesse sentido, tudo faremos para colaborar no que for possível.

– Agradeço muito.

– Não, sou eu que tenho de estar grata. Antes de mais, deixa-me que te diga que fizeste um trabalho impecável.

Seguiu-se uma breve pausa, após o que a anciã acrescentou:

– Disseram-me que precisas de um teste de gravidez.

– Estou com um atraso de quase três semanas no meu período.

– Costuma aparecer-te com regularidade?

– Desde que comecei a ser menstruada, tinha dez anos, aparece-me sempre aos vinte e nove dias de cada mês, sem falhar. Tão certo como as fases da Lua. Que me lembre, nunca me faltou o período.

– A situação em que vives agora não é normal. Em ocasiões semelhantes, o equilíbrio emocional e o ritmo físico a que uma pessoa está sujeita podem conhecer anomalias. É muito possível que o teu período tenha sido interrompido, ou que haja um transtorno qualquer...

– Nunca me tinha acontecido, apesar de saber que existe essa possibilidade.

– Diz o Tamaru que não há nenhum motivo para estares grávida.

– A última vez que tive relações sexuais com um homem foi em meados de julho. Depois dessa altura, nunca mais houve nada do género.

– E, apesar disso, admites a possibilidade de estar grávida. Tens alguma prova em concreto, tirando o facto de ainda não te ter aparecido o período?

– É só uma coisa que eu sinto.

– Sentes?

– É uma sensação que eu tenho, dentro de mim.

– Sentes que estás grávida, é isso que queres dizer?

– Uma vez, tivemos aquela conversa sobre os óvulos, lembra-se? Foi na tarde em que visitámos a Tsubasa. Disse-me que todas as mulheres nascem com um determinado número de óvulos.

– Sim, nós, mulheres, possuímos cerca de quatrocentos óvulos, e todos os meses expulsamos um. Recordo-me de termos falado acerca disso.

– Pois eu tenho a impressão de que um desses óvulos foi fecundado. Muito embora a palavra «impressão» talvez não seja a mais apropriada.

A anciã ficou a matutar no que acabava de escutar.

– Eu dei à luz dois filhos. Portanto, compreendo mais ou menos o que queres dizer quando falas na «impressão» que sentes. Agora, o que me estás a dizer é que ficaste grávida sem ter tido relações sexuais com nenhum homem. Esse aspeto já se torna um pouco mais difícil de aceitar, assim à primeira.

– Para mim também o é, acredite.

– Desculpa perguntar-te, mas não é possível que tenhas mantido relações sexuais com alguém sem estares consciente disso?

– Impossível. A minha mente esteve sempre lúcida.

A anciã mediu bem as palavras.

– Sempre te considerei uma pessoa muito calma e sensata, que tem uma maneira lógica de pensar.

– Pelo menos, procuro sê-lo – afirmou Aomame.

– No entanto, admites a hipótese de estar grávida sem teres feito sexo.

– Penso que essa possibilidade existe, para ser mais precisa – corrigiu Aomame. – Claro que o simples facto de contemplar a referida possibilidade pode não fazer qualquer sentido.

– Compreendo – acedeu a velha senhora. – Vamos esperar pelo resultado. Quanto ao kit para fazer o teste de gravidez, tratarei de tudo para que te seja entregue amanhã, à mesma hora de sempre. Vou providenciar para que te levem vários; mais vale prevenir do que remediar...

– Muito agradecida.

– E partindo do princípio de que estás grávida, quando é que poderá ter acontecido?

– Naquela noite em que me desloquei ao Hotel Okura, creio. A noite em que houve a trovoada.

A mulher deixou escapar um breve suspiro.

– Vejo que tens ideias claras acerca do assunto.

– Sim. Podia ser esse dia ou qualquer outro, mas, fazendo as contas, deve ter sido esse o meu dia mais fértil.

– O que significa que estás grávida de dois meses, mais coisa, menos coisa.

– Assim é – confirmou Aomame.

– Tens náuseas? Dizem que esta costuma ser a fase mais difícil da gravidez...

– Não sei porquê, não tenho sentido absolutamente nada.

A anciã demorou o tempo que foi preciso, escolhendo as palavras com cuidado.

– Como irás reagir se o teste der positivo e vier a confirmar-se que estás, de facto, grávida?

– Imagino que a minha primeira preocupação será apurar quem possa ser o pai biológico da criança. Logicamente, essa é a questão mais importante.

– Mas não fazes ideia de quem essa pessoa possa ser.

– Por enquanto, não.

– Muito bem – disse a anciã, com grande calma. – Em todo o caso, aconteça o que acontecer, lembra-te de que estarei sempre do teu lado. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para te proteger. Quero que fiques com esta certeza bem gravada no teu espírito.

– Lamento imenso ter-lhe arranjado mais este problema, ainda por cima numa altura tão crítica – desculpou-se Aomame.

– Não te preocupes, não é problema nenhum. Para uma mulher não existe nada mais importante. Vamos aguardar pelo resultado do teste de gravidez e logo decidiremos o que fazer. Descontrai-te.

Com aquelas palavras, a velha senhora desligou o telefone delicadamente.

Alguém bateu à porta. Aomame, que estava no quarto a fazer os seus exercícios de ioga, ficou quieta e apurou o ouvido. As pancadas eram fortes e insistentes. Ela lembrava-se bem daquele som.

Pegando na pistola automática guardada na gaveta da cómoda, Aomame tirou a patilha de segurança. Puxou a corrediça para trás e enviou uma bala para a câmara. A seguir, pôs a arma no cós das calças do fato de treino, atrás, e dirigiu-se à cozinha sem fazer ruído. Depois de agarrar no taco metálico de softbol com ambas as mãos, ficou ali de pé, de olhos cravados na porta.

– Senhora Takai – disse alguém que tinha uma voz áspera e grave. – Está aí, senhora Takai? Sou da NHK. Venho cobrar a taxa de emissão.

O punho do taco estava envolto em fita adesiva, para evitar que deslizasse das mãos.

– Escute, senhora Takai, mais uma vez lhe digo: sei que se encontra em casa. Por isso, vamos lá deixar-nos destes joguinhos; até parece que estamos a brincar às escondidas. A senhora está aí dentro e ouve-me perfeitamente.

O homem repetia, quase palavra por palavra, o que havia dito da vez anterior. Parecia uma cassete que tivesse sido rebobinada.

– Quando disse que voltaria, aposto que pensou que tudo não passava de uma simples ameaça. Pelos vistos, enganou-se, porque eu sou um homem de palavra: quando prometo, cumpro. E olhe que, se houver dinheiro da taxa para arrecadar, pode crer que me encarregarei disso, custe o que custar. Senhora Takai, calculo que esteja aí, a escutar com atenção as minhas palavras e a pensar com os seus botões: «Não me vou mexer nem dizer nada. Pode ser que assim o cobrador se dê por vencido e vá pregar para outra freguesia.»

O indivíduo voltou a martelar com força na porta. Umas quinze ou vinte vezes. Deve ter as mãos calejadas, este homem! Não se aleijará?, pensou Aomame. Há uma campainha; será que não poderia antes utilizá-la?

Sem querer, Aomame fez uma das suas caretas.

O cobrador prosseguiu na ladainha dele.

– Não, não quero tocar à campainha. Ao premir o botão, só se ouviria «ding-dong», o som da campainha. É sempre o mesmo toque, um som uniforme e inócuo, independentemente de quem toca. Agora, batendo à porta com a mão, a isso é que eu chamo ter personalidade. Porque, quando uma pessoa utiliza o seu corpo para bater à porta, transmite emoções reais e o gesto ganha em humanidade. Faz-me doer um pouco a mão, claro. Vendo bem, eu não sou propriamente o Super-Homem. Mas que se há de fazer? É o meu trabalho. E todas as profissões, sejam elas quais forem, devem ser respeitadas, sem distinção. Não é assim, senhora Takai?

De novo ressoaram as pancadas na porta. Vinte e sete, ao todo. Vinte e sete pancadas fortes, a um ritmo cadenciado. As palmas das suas mãos, que agarravam no taco, começavam a transpirar.

– Senhora Takai, a lei estipula que todo aquele que recebe o sinal de televisão deve pagar taxa à NHK. Não há volta a dar! São as regras que temos de cumprir. Porque é que não colabora e se dispõe a pagar-me? Eu não estou a bater à sua porta por gosto, e para si, senhora Takai, tão-pouco esta situação deverá ser agradável. De resto, calculo que esteja a perguntar-se por que carga-d’água lhe terá acontecido isto... Vamos, dê mostras de boa vontade e pague, vá lá! Se o fizer, já pode voltar para a sua vidinha tranquila de sempre.

A voz do homem ecoou no corredor. Este tipo gosta de se ouvir, gosta do som da sua própria voz, pensou Aomame. Tem prazer em insultar as pessoas que não pagam a quota de televisão, em expô-las ao ridículo, fazendo troça delas e caluniando-as. Nota-se na sua voz um certo prazer perverso.

– Senhora Takai, vejo que tenho pela frente uma mulher obstinada, caramba! Estou deveras impressionado. Teima em guardar silêncio, como uma ostra no fundo do mar. No entanto, eu sei que se encontra aí. Neste preciso momento, tem o olhar cravado na porta. Sente-se tão nervosa que transpira das axilas. Não é assim?

Recomeçaram as pancadas na porta. Mais trinta. A seguir, houve uma pausa. Aomame deu-se conta de que tinha as axilas alagadas em suor.

– Bem, por hoje já chega. Mas hei de voltar em breve. Dá-me a impressão de que começo a familiarizar-me com esta porta, sabe? Encontra-se todo o tipo de portas por esse mundo fora, e a verdade é que esta porta não é má de todo, não, senhora. Confesso que me dá um certo gozo bater a esta porta. Palpita-me que vou ter de aparecer por aqui mais vezes, senão começo a ficar com nervoso miudinho. E com esta me vou, senhora Takai. Até um dia destes!

A seguir, fez-se silêncio. Tudo apontava para que o cobrador tivesse partido, mas ela não ouviu passos de alguém a afastar-se. Se calhar, fingia que se tinha ido embora e permanecia especado diante da porta. Aomame apertou o taco com firmeza e quedou-se nessa postura durante dois ou três minutos.

– Ainda cá estou – anunciou o cobrador. – Ah, ah, ah! Com que então, pensava que eu tinha desandado... Pois continuo por estas bandas. Enganei-a. Desculpe lá, senhora Takai. Está na minha natureza.

Ouviu-se uma tossidela. Um som áspero, deliberadamente irritante.

– Já ando há muitos anos nisto. Com o tempo, aprendi a visualizar as pessoas que se encontram do outro lado. É a pura verdade. Garanto-lhe que não são poucos os que se escondem atrás da porta para não pagar taxa. Ando há séculos a lidar com esse tipo de gente. Sabe que mais, senhora Takai?

O sujeito bateu três vezes na porta, com mais vigor do que nunca.

– Até agora, conseguiu sempre manter-se escondida, mostrando-se exímia na arte de bem camuflar a sua presença, como fazem os linguados cobertos de areia no fundo do mar. Chama-se a isso mimetismo. Mas não pode passar a vida a fugir. Há de aparecer alguém que vai abrir esta porta. Pode crer. Garanto-lho eu, que sou veterano da NHK e sei do que falo. Pode usar de toda a argúcia para se esconder, mas isso pouco importa, porque o mimetismo não é mais do que uma fraude. Não resolve nada. A sério, senhora Takai. Bom, está na hora de partir. Não se preocupe, desta vez não é mentira. Vou desaparecer de verdade. Mas voltarei em breve. Quando ouvir bater à porta, já sabe que sou eu. Adeus, senhora Takai, passe bem.

Ela não ouviu passos, de novo. Esperou cinco minutos. Ao fim desse tempo, aproximou-se da porta e pôs-se à escuta. Espreitou pela vigia. Não havia ninguém. Pelos vistos, o homem devia ter-se ido realmente embora.

Aomame apoiou o taco de metal de encontro à bancada da cozinha. Extraiu a bala da câmara, travou a patilha de segurança e tornou a guardar a arma na gaveta da cómoda, embrulhada numas meias grossas. Em seguida, deixou-se cair no sofá e fechou os olhos. A voz do homem continuava a ecoar-lhe nos ouvidos.

Mas não pode passar a vida a fugir. Há de aparecer alguém que vai abrir esta porta. Pode crer.

Pelo menos, sabia que o homem não pertencia à Vanguarda. Eles tinham por hábito agir com maior cautela e sem fazer aquele estardalhaço todo. Nunca se aventurariam a desatar aos berros no meio do corredor de um prédio, a fazer insinuações a torto e a direito, correndo o risco de deixarem o adversário de sobreaviso. Não era o estilo deles. Aomame evocou a imagem do Bola-de-Bilhar e do Rabo-de-Cavalo. Ter-se-iam aproximado sem fazer o mínimo ruído. Quando ela se desse conta, já os teria atrás de si.

Aomame abanou a cabeça e respirou pausadamente.

Era possível que o indivíduo fosse, de facto, um cobrador da NHK. Ao mesmo tempo, porém, não deixava de ser estranho que não tivesse feito caso do tal autocolante que indicava que o pagamento era feito por débito direto. Ela mesma, ao inteirar-se da situação, verificara que o papel estava colado na porta. Podia dar-se o caso de o homem sofrer de algum distúrbio mental. Contudo, as suas palavras tinham o seu quê de realista. É como se o homem fosse capaz de perceber a minha presença do outro lado da porta, pensou ela. Parece ser dotado de uma espécie de faro que lhe permite, quanto mais não seja, cheirar o meu segredo, ou parte dele. No entanto, ele não tinha maneira de abrir a porta e entrar. A porta tem de ser aberta por dentro, e não está nas minhas intenções fazê-lo.

Não, não o devo afirmar categoricamente. Pode ser que algum dia tenha de abrir a porta. Se o Tengo aparecer de novo no parque infantil, abrirei a porta sem hesitar e desatarei a correr lá para fora. Independentemente do que estiver à minha espera.

Sentada na varanda, Aomame recostou-se na cadeira de jardim e, como sempre, dedicou a sua atenção a observar o parque infantil por entre as frestas do painel de plástico. No banco que ficava por baixo da zelcova encontravam-se dois estudantes liceais de uniforme a discutir um assunto qualquer: via-se pela expressão séria estampada no rosto deles. Duas jovens mães vigiavam os seus filhos, ainda demasiado pequenos para frequentarem o jardim de infância, enquanto estes brincavam na areia. As duas conversavam animadamente de pé, sem tirar os olhos das crianças. O cenário típico de um parque a meio da tarde. Aomame concentrou a sua atenção na parte de cima do escorrega, e assim permaneceu durante muito tempo.

Depois, pousando as mãos sobre o ventre, fechou os olhos e escutou atentamente, procurando ouvir uma voz. Sentia uma presença dentro dela, sem sombra de dúvida. Uma coisa pequena e com vida. Tinha a certeza.

– Nina – murmurou baixinho.

– Mã – respondeu-lhe aquela coisa.


9

TENGO

Antes que a saída se feche

Os quatro jantaram no yakiniku-ya, depois foram até outro bar com karaoke, onde esvaziaram uma garrafa de uísque. Eram quase dez da noite quando deram por terminada aquela pequena pândega, modesta mas bastante animada. Ao saírem do estaminé, Tengo fez questão de acompanhar Kumi Adachi, a mais nova, até à entrada do prédio onde ela vivia. A paragem do autocarro ficava perto da estação e as outras duas enfermeiras tinham-no impelido, como quem não quer a coisa, nesse sentido. Caminharam os dois pelas ruas desertas, lado a lado, durante uns bons quinze minutos.

– Tengo-kun, Tengo-kun, Tengo-kun – entoava Adachi. – É um bonito nome, Tengo! Tão fácil de pronunciar...

Adachi bebera além da sua conta, mas, como tinha sempre duas rosetas na cara, tornava-se difícil saber, só de olhar para o rosto dela, até que ponto estava realmente tocada. Articulava as palavras com clareza e não vacilava. Ninguém diria que estava embriagada. É bem verdade que cada um, quando se embebeda, o manifesta à sua maneira.

– Pois eu sempre estranhei o meu nome – confessou Tengo.

– De todo. Tengo-kun. Soa bem e fica na memória. Tens um nome fantástico, acredita em mim.

– A propósito, ainda não sei o teu primeiro nome. Toda a gente te chama Ku.

– Ku é um diminutivo. Chamo-me Kumi Adachi. Um nome que não diz nada, por sinal.

– Kumi Adachi – enunciou Tengo. – Não me parece mal. Compacto e sem floreados.

– Obrigadinha – disse Kumi Adachi. – Dito assim, até parece que estás a falar de um Honda Civic.

– Era um elogio.

– Sim, eu sei. Consumo pouco, também... – ironizou ela, e agarrou na mão de Tengo. – Importas-te? Andar de mão dada é mais divertido, descontrai-me.

– Não me importo nada – disse Tengo. Quando Kumi Adachi lhe pegou na mão, lembrou-se de Aomame na sala de aulas. O toque era diferente, mas sem dúvida que havia nos dois gestos algo em comum.

– Acho que estou um pouco bêbeda – disse Kumi Adachi.

– Palavra de honra?

– Palavra de honra.

Tengo voltou a olhar para a enfermeira, detendo-se no seu perfil.

– Pois olha que não parece.

– Pode não se notar... Está-me na massa do sangue. Mas sinto-me mais para lá do que para cá.

– A bem dizer, bebemos para além dos limites.

– Pois foi. Há muito tempo que não bebia tanto.

– De vez em quando, não faz mal – afirmou Tengo, repetindo as palavras que Tamaru lhe dissera nesse mesmo dia.

– Claro – concordou Kumi Adachi, anuindo com convicção. – Volta e meia, toda a gente precisa de uma farra: boa comida, tomar uns copos valentes, cantar até que a voz nos doa e falar de coisas que não lembram ao diabo. De quando em quando, convém. Se calhar é o teu caso; estavas a precisar. Não sentes necessidade, por vezes, de escapar à engrenagem e arejar o espírito? Pergunto isto porque te vejo sempre tão compostinho e com um ar tão sério...

Tengo ficou a pensar nas palavras de Kumi Adachi. Tinha feito alguma coisa para se distrair, nos últimos tempos? Se não se lembrava, queria dizer que não. Talvez o próprio conceito de escapar à engrenagem não fizesse sentido, aplicado a ele.

– Não muito, creio – reconheceu Tengo.

– As pessoas são todas diferentes.

– Cada um tem a sua maneira de pensar e de sentir.

– Assim como existem diversas maneiras de uma pessoa se embebedar – disse a enfermeira, soltando uma risada. – O certo é que todos precisamos disso, Tengo, e tu não és exceção.

– Se calhar tens razão.

Durante algum tempo, caminharam os dois em silêncio, a coberto da noite. Tengo estranhara a mudança de tom no discurso da jovem. Quando tinha o uniforme vestido, dirigia-se a ele com mais respeito. No entanto, com a roupa de todos os dias, e talvez por culpa do álcool, quem sabe?, adotara um tratamento mais descontraído. Aquele modo de falar fazia-lhe lembrar alguém. Conhecia uma pessoa que falava assim. Uma pessoa com quem se encontrara ainda não há muito tempo.

– Ouve uma coisa, Tengo: alguma vez experimentaste haxixe?

– Haxixe?

– Resina de canábis.

Tengo encheu os pulmões com o ar da noite e expulsou-o.

– Não, nunca.

– Porque é que não experimentas? – sugeriu-lhe Kumi Adachi. – Os dois juntos, que tal? Tenho um bocado no meu apartamento.

– Tens haxixe em casa?

– Tenho. Não esperavas isso de mim?

– Não, confesso que não – respondeu Tengo sem grande entusiasmo. Com que então, aquela jovem enfermeira de bochechas rosadas e ar sadio, que vivia numa cidadezinha costeira, na península de Boso, escondia haxixe no seu apartamento... E convidava-o para fumar.

– Onde é que o arranjaste? – quis saber Tengo.

– Uma amiga dos tempos do liceu ofereceu-mo no mês passado, quando fiz anos. Foi à Índia e trouxe-mo de presente – disse Kumi Adachi, desatando a balançar com força a mão de Tengo, como se quisesse formar um arco muito alargado.

– O contrabando de canábis é severamente punido pela lei. A polícia japonesa não brinca com essas coisas. Nos aeroportos até usam cães treinados para farejar droga.

– A minha amiga é daquelas pessoas que não pensa nas consequências – referiu Kumi Adachi. – Enfim, a verdade é que conseguiu passar pela alfândega sem problemas. Anda lá experimentar... Garanto-te que é puro e faz logo efeito. Estive a informar-me e, de um ponto de vista médico, não oferece qualquer perigo. Dificilmente se pode afirmar que não causa dependência, mas, em comparação, tanto o álcool como a cocaína são mais fortes. As autoridades alegam que é perigoso, porque cria dependência, o que não deixar de ser ridículo. Se formos ver, por essa ordem de ideias, o pachinko15 é bem mais prejudicial. Além de não dar ressaca, o haxixe sempre ajuda a libertar a tensão.

– Já experimentaste?

– Óbvio. É muito divertido.

– Divertido – repetiu Tengo.

– Quando experimentares, vais perceber – explicou Kumi Adachi, toda risinhos. – Sabias que a rainha Vitória de Inglaterra utilizava marijuana como analgésico, sempre que tinha dores menstruais muito fortes? E quem a receitava oficialmente era o seu médico particular...

– A sério?

– Não te estou a mentir. Vem nos livros.

Tengo ia perguntar-lhe que livros, mas, às tantas, teve preguiça e desistiu. Não lhe apetecia nada ouvir falar das dores menstruais da rainha Vitória.

– Quantos anos fizeste, no mês passado? – quis ele saber, para ver se mudava de assunto.

– Vinte e três. Já sou crescidinha.

– Claro que és – disse Tengo. Ele próprio tinha trinta, mas nunca se considerara um adulto. Queria simplesmente dizer que já andava há trinta anos naquele mundo.

– A minha irmã vai passar a noite com o namorado, hoje, e fico com o apartamento só para mim. Por isso, não te acanhes. Vem até lá a casa. Como amanhã estou de folga, nem sequer tenho de me levantar cedo.

Tengo ficou sem saber que resposta dar. Por um lado, gostava da jovem enfermeira. E ela, pelos vistos, também parecia simpatizar com ele. Porém, o convite para subir já era outra coisa. Olhou para o céu, mas este estava totalmente coberto de grossas nuvens cinzentas e não se via a Lua.

– No outro dia, quando estava com a minha amiga – começou Kumi a dizer –, fumei haxixe pela primeira vez e tive a sensação de que o corpo levitava. Não muito alto, a uns cinco ou seis centímetros. E estar assim a flutuar a essa altura foi uma sensação bestial. Como se essa fosse a altura certa.

– Além do mais, se caíres, não te magoas.

– Sim, é a altura ideal para uma pessoa se sentir segura. Senti-me como se tivesse uma crisálida de ar a envolver-me. Eu era a nina, envolta pela crisálida de ar, e do lado de fora via-se a figura da mã.

– A nina? – espantou-se Tengo. A sua voz soou surpreendentemente rígida e baixa. – A mã?

A enfermeira caminhava pelas ruas desertas agitando com vigor a mão dada com Tengo, enquanto trauteava uma cantiga. Embora a diferença de altura entre os dois fosse evidente, Kumi Adachi não parecia nada ralada com isso. De quando em quando, passava um carro ou outro.

– A mã e a nina. Aparecem no romance A Crisálida de Ar. Conheces? – perguntou ela.

– Conheço.

– Já o leste?

Tengo anuiu em silêncio.

– Boa. Assim é mais fácil explicar. Adoro esse livro. Comprei-o no verão e li-o três vezes, de uma ponta à outra. E olha que é raro eu ler um livro três vezes. Quanto experimentei haxixe, deu-me a sensação de estar no interior de uma crisálida de ar. Estava ali, coberta por uma substância qualquer, enquanto aguardava o meu nascimento. E a mã velava por mim.

– Conseguias ver a mã? – perguntou Tengo.

– Conseguia. De dentro da crisálida vê-se mais ou menos o exterior, mas de fora não se vê o interior. É assim que funciona, parece-me. Contudo, tornava-se difícil distinguir as feições da mã, reduzidas a um conjunto de traços mais ou menos vagos. Apesar disso, eu sabia que era ela. Sentia-o com grande nitidez. Aquela mulher era a minha mã.

– A crisálida de ar, resumindo, deve ser uma espécie de útero.

– Acho que se pode dizer isso. Mas, como não me lembro de nada quando estava no útero da minha mãe, é impossível comparar – respondeu Kumi Adachi, dando outra risada.

Kumi Adachi morava numa espécie de vivenda modesta de dois andares, dessas que é costume encontrar a pontapé nas imediações das cidades de província. Parecia ter sido construída há relativamente pouco tempo, mas já começavam a notar-se os sinais de degradação. As escadas exteriores rangiam e a porta principal não fechava bem. De cada vez que passava um camião pesado, os vidros das janelas estremeciam. À primeira vista, as paredes pareciam finas, de maneira que dava a impressão de que, se alguém se pusesse a tocar guitarra baixo no apartamento do piso inferior, todo o edifício se converteria numa enorme caixa de ressonância.

Tengo não estava muito interessado na cena do haxixe. Sendo um tipo lúcido, a ideia de viver num mundo com duas luas já era suficiente para lhe causar preocupações. Que necessidade tinha de distorcer ainda mais a realidade? Por outro lado, não sentia qualquer tipo de atração sexual por Kumi Adachi. Claro que achava a enfermeira de vinte e três anos uma jovem simpática. Mas a simpatia e o desejo sexual são coisas bem distintas. Pelo menos aos olhos de Tengo. Por isso, se as palavras «mã» e «nina» não tivessem saído da boca dela, o mais provável seria ter dado uma desculpa qualquer, recusando o convite. De caminho, apanharia um autocarro ou, em caso de não haver nenhum, chamaria um táxi que o levasse de volta ao ryokan. Afinal, encontrava-se na cidade dos gatos. Mais valia manter-se afastado dos locais perigosos. Porém, assim que ouviu falar em mã e nina, não foi capaz de rejeitar o convite. Era possível que a jovenzinha lhe explicasse o motivo pelo qual Aomame lhe aparecera em menina, naquele quarto de hospital, aconchegada na sua crisálida de ar.

Via-se logo que o apartamento era partilhado por duas irmãs de vinte e tal anos. Tinha dois pequenos quartos e uma cozinha, que também fazia as vezes de sala de jantar, colada à salinha de estar. O mobiliário era uma mistura de géneros, que carecia de estilo próprio ou de uma personalidade vincada. Por cima da mesa de fórmica, onde faziam as refeições, havia um candeeiro Tiffany, melhor dizendo, uma imitação: isso era uma coisa que entrava pelos olhos dentro. Quando se abria as cortinas com um padrão às florzinhas, distinguia-se um campo cultivado e, ao longe, aquilo que parecia ser uma zona de denso arvoredo. A paisagem era bonita, sem nada que estorvasse a vista, mas estava longe de se revelar especialmente reconfortante.

Kumi Adachi indicou a Tengo um sofá de dois lugares, na sala de estar, e convidou-o a sentar-se. A love chair era vermelha, vistosa, e ficava de frente para o televisor. Ela foi ao frigorífico buscar uma lata de cerveja Sapporo e pousou-a à frente dele, juntamente com um copo.

– Vou lá dentro vestir qualquer coisa mais confortável, já venho – anunciou.

Verdade seja dita que demorou uma eternidade. Volta e meia, do outro lado da porta que dava para o quarto, separado por um corredor estreito, ouvia-se barulho. Era o som das gavetas da cómoda, que não deslizavam bem, a abrir e a fechar. Também se escutou um estrondo, como se um objeto pesado tivesse caído ao chão. De todas as vezes que tal acontecia, Tengo não conseguia impedir-se de virar a cabeça para trás. Sem dúvida que devia estar mais bêbeda do que aparentava. Filtradas pelas finas paredes, chegavam-lhe ao ouvido vozes provenientes do apartamento ao lado. Não podia jurar, até porque não conseguia captar o que diziam, mas talvez fosse um programa de humor na televisão, porque de dez em dez ou de quinze em quinze segundos rebentavam as gargalhadas do público. Tengo arrependeu-se de não ter recusado o convite. Ao mesmo tempo, num cantinho do seu coração, sentia que fora arrastado até ali, sem apelo nem agravo.

O sofá em que estava sentado era de má qualidade e o tecido fazia-lhe comichão em contacto com a pele. Também devia ter um problema qualquer com o formato: por mais que se contorcesse no seu lugar, não havia maneira de arranjar posição. O seu mal-estar aumentava a olhos vistos. Bebeu um gole de cerveja e pegou no comando remoto que estava em cima da mesa. Ficou ali a olhar para o comando, como se este fosse um objeto estranho, até que, por fim, lá se decidiu e premiu o botão para ligar o televisor. Depois de fazer zapping durante algum tempo, decidiu-se por um documentário sobre os caminhos de ferro australianos que estava a passar na NHK. Comparado com o resto, ainda era o programa mais silencioso. Com uma música de oboé em pano de fundo, a apresentadora mostrava a luxuosa carruagem-cama de um comboio transcontinental que atravessava o país de lés a lés.

Sentado no assento pouco confortável, enquanto seguia as imagens sem deixar transparecer no seu olhar qualquer espécie de entusiasmo, Tengo deu por si a pensar n’A Crisálida de Ar. Kumi Adachi desconhecia até que ponto ele participara na redação do livro, mas isso não tinha importância. O problema era que ele mesmo, apesar de ter descrito a crisálida de ar com um pormenor considerável, não sabia quase nada acerca dela. Quando se pusera a reescrever o romance, não fazia a mínima ideia do que era a crisálida de ar, nem o que significavam «mã» e «nina», e continuava sem saber. Ainda assim, Kumi Adachi gostara do livro e tinha-o lido três vezes. Como era possível?

Kumi Adachi voltou à sala quando explicavam em que consistia a ementa na carruagem-restaurante e sentou-se ao lado de Tengo. O assento era tão estreito, que ficaram os dois apertadinhos, ombro com ombro. Ela vestira uma camisolona larga, de mangas compridas, e umas calças curtas num tecido de algodão em tons claros. A camisola tinha um grande smiley estampado na parte da frente. A última vez que Tengo se lembrava de ter visto um sorriso daqueles fora no início dos anos setenta, numa altura em que as canções ensurdecedoras dos Grand Funk Railroad faziam vibrar as jukeboxes. Aquela camisola, porém, não parecia assim tão velha. Para seu espanto, ainda devia haver quem fabricasse camisolas com smileys.

Kumi Adachi foi ao frigorífico buscar outra cerveja, abriu a lata puxando a argola ruidosamente para trás, deitou a bebida num copo e bebeu quase um terço. Semicerrou os olhos como uma gata satisfeita. A seguir, apontou para o pequeno ecrã. Um comboio percorria as linhas ferroviárias que se estendiam por entre as grandes montanhas rochosas de tons avermelhados a perder de vista.

– Onde é isto?

– Austrália – respondeu Tengo.

– Austrália – repetiu Kumi Adachi, como se andasse à procura no fundo da sua memória. – A Austrália que fica no hemisfério sul?

– Isso mesmo. A terra dos cangurus.

– Uma amiga minha esteve na Austrália – afirmou Kumi Adachi, esfregando o canto do olho com um dedo. – Foi durante a época de acasalamento dos cangurus; contou-me que, numa cidade, chegou mesmo a ver os cangurus a fazê-lo. No meio do parque, nas ruas, em tudo quanto era sítio.

Tengo considerou a possibilidade de dizer alguma coisa a esse respeito, mas não lhe ocorreu nada. Pegou então no comando e desligou a televisão. Fez-se automaticamente silêncio na sala. Quando se deu conta, o som do aparelho do apartamento ao lado também já não se ouvia. Tirando um ou outro veículo a passar na estrada, mesmo à frente da casa, estava uma noite calma. Prestando atenção, podia ouvir-se ao longe um som amortecido pela distância. Não sabia o que era, mas parecia obedecer a uma cadência regular. De vez em quando, parava, e, após uma breve pausa, recomeçava.

– É um mocho – elucidou-o a enfermeira. – Vive no bosque, no meio das árvores. À noite, pia.

– Um mocho – repetiu Tengo, meio confuso.

Kumi Adachi inclinou a cabeça, pousou-a sobre o ombro de Tengo e, sem dizer nada, agarrou-lhe na mão. O cabelo dela roçava-lhe no pescoço e fazia cócegas. O sofá continuava a provocar uma sensação de desconforto. O mocho piava sabiamente no meio do bosque. Aos ouvidos de Tengo, a mensagem soava como um canto de alento e como uma advertência. Ou então como um aviso que continha uma nota de coragem. A mensagem era muito ambígua.

– Diz-me, Tengo, achas que sou demasiado prà frentex? – quis saber Kumi Adachi.

Tengo não lhe respondeu.

– Tens namorado?

– É complicado – disse ela num tom sério. – Todos os rapazes que prestam para alguma coisa costumam ir para Tóquio mal acabam o secundário, visto que por estas bandas não existem boas universidades nem trabalhos decentes. Não há outra hipótese.

– Mas tu ficaste por cá.

– Sim, fiquei. O ordenado não é grande coisa, e, tendo em conta aquilo que nos pagam, trabalhamos no duro. No entanto, devo dizer que gosto desta vida. O único problema é a dificuldade em encontrar parceiro. Pela parte que me toca, estou disposta a sair com alguém, mas não tenho tido assim tantas ocasiões.

Os ponteiros do relógio de parede indicavam que faltava pouco para as onze. Depois dessa hora, já não poderia regressar ao ryokan. Acontecia, porém, que não lhe estava nada a apetecer levantar-se daquele incómodo sofá. Só de pensar nisso, faltavam-lhe as forças. Se calhar, a culpa era da forma que o sofá tinha. Ou talvez tivesse bebido mais do que pensava. Foi-se deixando ficar, de olhos fixos no candeeiro Tiffany que não passava de uma imitação, enquanto ouvia o mocho aos pios e sentia o cabelo de Kumi Adachi enroscar-se-lhe na nuca.

Kumi Adachi pôs-se a cantarolar uma alegre canção enquanto preparava o haxixe. Com uma navalha de barbear, cortou um bocado escuro de resina de canábis, como se fosse katsuobushi16, embutiu-o dentro de um pequeno cachimbo liso, especialmente reservado a esse uso, e, com uma expressão concentrada, acendeu um fósforo. O fumo, por sinal particularmente adocicado, espalhou-se pela sala. Kumi deu a primeira passa. Aspirou uma boa quantidade, aguentou-a nos pulmões e, a seguir, expulsou-a lentamente. Depois, fez sinal a Tengo para fazer o mesmo. Ele pegou no cachimbo e imitou-a. Manteve o fumo o máximo que pôde dentro dos pulmões. Em seguida, deixou-o sair devagar.

Estiveram os dois naquilo, a passar o cachimbo um ao outro, durante um bom bocado. Não trocaram uma única palavra. Os vizinhos do lado tinham voltado a ligar o televisor, e através da parede tornaram a ouvir-se as vozes do tal programa humorístico. Desta vez, o volume estava um bocadinho mais alto. O público no estúdio irrompia em alegres gargalhadas, que só paravam durante o intervalo para publicidade.

Enquanto estiveram entretidos a fumar o cachimbo à vez, durante cerca de cinco minutos, nada aconteceu. O mundo que os rodeava não deu mostras de ter conhecido nenhuma transformação. As cores, as formas, os cheiros eram os mesmos. O mocho continuou sempre a piar, escondido no meio do arvoredo, e, tal como anteriormente, o cabelo de Kumi Adachi fazia-lhe cócegas no pescoço. O sofá com dois lugares continuava desconfortável. Os ponteiros do relógio avançavam à mesma velocidade e, na televisão, os risos continuavam sempre que alguém dizia uma piada. O tipo de riso que não proporciona grande alegria, por mais que uma pessoa se ria.

– Não noto nada – observou Tengo. – Se calhar, não me faz efeito.

Kumi Adachi bateu-lhe duas vezes nos joelhos.

– Tem calma. A coisa demora o seu tempo.

Kumi tinha razão. Ao fim de algum tempo, aconteceu. Ouviu um clique, como se alguém tivesse acionado um interruptor secreto dentro dele, e, então, dentro da sua cabeça derramou-se uma substância mole. Era como se inclinassem uma malga com papas de arroz. Sinto os miolos a vibrar, pensou Tengo. Nunca tinha experimentado semelhante sensação: o cérebro funcionava como algo substancial, distante dele; captava a sua viscosidade. O profundo piar do mocho entrou-lhe pelos ouvidos, misturando-se com as papas, e tudo se fundiu lá dentro.

– Tenho um mocho dentro de mim – comentou Tengo. O mocho passara a fazer parte da sua consciência. Uma parte vital e difícil de separar do resto.

– O mocho é a divindade guardiã da floresta. Sabe tudo e oferece-nos a sabedoria da noite – filosofou Kumi Adachi.

Mas onde e como procurar essa sabedoria? O mocho estava em toda a parte e não estava em parte alguma.

– Não me ocorre nenhuma pergunta – disse Tengo.

Kumi Adachi pegou-lhe na mão.

– Não precisas de perguntas. Basta que entres de tua livre vontade na floresta. Tão simples quanto isso.

Tornaram a ouvir-se as gargalhadas do programa de televisão, vindas do outro lado da parede. A audiência irrompeu em aplausos. O mais certo era haver algures no estúdio, atrás das câmaras, um assistente da estação televisiva a mostrar ao público cartazes com instruções que diziam «risos» ou «aplausos». Tengo fechou os olhos e pensou na floresta. Viu-se embrenhado nela. As profundezas sombrias da floresta estavam sob domínio do Povo Pequeno, mas o mocho também se encontrava ali. O mocho, essa ave douta, capaz de nos oferecer a sabedoria da noite.

De súbito, todos os sons deixaram de se ouvir. Parecia que alguém aparecera sorrateiramente por trás dele e lhe enfiara um tampão nos ouvidos. Alguém colocara uma tampa, algures, enquanto uma segunda pessoa, num sítio distinto, destapara outra. A entrada e a saída haviam trocado de posição.

Numa questão de segundos, Tengo encontrou-se na sala de aulas, na velha escola primária.

Através das janelas abertas de par em par entravam as vozes das crianças que brincavam no pátio. Volta e meia, uma rabanada de vento fazia esvoaçar as cortinas brancas. Ao seu lado, Aomame agarrava-lhe na mão com força. Era a mesma cena de sempre, mas havia qualquer coisa diferente. Tudo o que os seus olhos captavam havia adquirido uma textura extraordinariamente clara e nítida, ao ponto de se tornar quase doloroso. Distinguia com precisão o contorno e a forma das coisas. Podia tocar em tudo, bastando para tal esticar um pouco o braço. E o odor daquela tarde do início de outono atingiu-o em cheio, penetrando-lhe com violência nas narinas, dando a impressão de que alguém tinha levantado o manto que até então o cobria. Os odores eram reais. Cheirava a uma estação que materializava as suas recordações: apagadores do quadro de ardósia, cera do chão, lixívia usada na limpeza, folhas secas caídas e queimadas no incinerador, num recanto do pátio – todos os cheiros se misturavam, fundindo-se num só. Ao aspirar aquele odor até encher os pulmões, sentia o coração dilatar-se e ganhar outra profundidade. A estrutura do seu corpo reorganizava-se em silêncio. Os batimentos do seu coração deixavam de ser meros batimentos.

Por um breve instante, as portas do tempo abriram-se no seu interior. A velha luz misturou-se com a nova luz e tornou-se uma só. O velho ar misturou-se com o novíssimo ar. É esta luz e é este ar, pensou Tengo. E foi então que tudo se encaixou. Ou quase tudo. Como é que não fui capaz de me lembrar destes cheiros, até hoje? Apesar de ser tão simples. E apesar de se encontrarem neste mundo...

– Queria ver-te – disse Tengo a Aomame. A voz soava distante, apagada, mas era, sem sombra de dúvida, a voz dele.

– Eu também te queria ver – disse a menina. A voz parecia a de Kumi Adachi. A fronteira entre a realidade e a imaginação desvanecera-se. Quando se esforçava por distinguir os limites, a tigela inclinava-se e o cérebro feito em papas agitava-se.

– Devia ter ido à tua procura muito antes. Mas não pude.

– Ainda vamos a tempo. Podes sempre encontrar-me – disse a jovem.

– Como posso eu encontrar-te?

Não houve réplica. A resposta não se traduzia por palavras.

– Sei que te posso encontrar – afirmou Tengo.

– Porque eu te encontrei uma vez.

– Encontraste-me?

– Anda, vem à minha procura – disse a menina. – Enquanto ainda há tempo.

Como a alma de alguém que não tivesse partido a tempo deste mundo, a cortina branca esvoaçou suavemente sem fazer barulho. Isso foi a última imagem que lhe ficou.

Ao recuperar os sentidos, Tengo encontrava-se deitado numa cama estreita. Tinham apagado a luz, mas a claridade dos candeeiros da rua, entrando por um intervalo entre as cortinas, alumiava tenuemente o quarto. Tinha a T-shirt e os boxers vestidos. Kumi Adachi só tinha a camisola do smiley. Por baixo da camisola, demasiado grande para ela, estava nua. Os seios, macios ao toque, tocavam-lhe no braço por baixo da camisola. Na sua mente, Tengo ainda ouvia o mocho piar. Até mesmo o arvoredo permanecia dentro da sua cabeça. A floresta noturna penetrara nele e ali se deixara ficar acoitada.

Apesar de se encontrar na cama ao lado da jovem enfermeira, Tengo não sentia desejo sexual. Kumi Adachi também não parecia ter grande vontade de fazer amor. Com os braços à roda do corpo dele, a única coisa que fazia era soltar risadas. A que acharia ela tanta graça? Tengo não fazia ideia. Se calhar, alguém, num sítio qualquer, sacara de um cartaz onde se podia ler: «risos».

Que horas seriam? Levantou a cabeça à procura do relógio, mas não o viu em lado nenhum. Kumi Adachi parou subitamente de rir e colocou os braços à roda do pescoço dele.

– Renasci – disse ela. O seu bafo morno acariciou-lhe as orelhas.

– Renasceste – repetiu Tengo.

– Porque em tempos morri.

– Morreste em tempos.

– Numa noite de chuva fria – explicou ela.

– E porque é que morreste?

– Para renascer desta maneira.

– Ressuscitaste – disse Tengo.

– Mais ou menos – sussurrou ela. – De maneiras diferentes.

Tengo ponderou as palavras que acabara de ouvir. Que diabo queria ela dizer com a frase «ressuscitar mais ou menos, de maneiras diferentes»? Os seus miolos, moles e pesados, transbordavam de vida, como um mar primordial. No entanto, nada disso o conduzia a lado nenhum.

– De onde vem a crisálida de ar, afinal?

– Pergunta errada – respondeu Kumi, rindo-se. – Oh, oh!

A enfermeira rebolou por cima do corpo de Tengo, e ele pôde sentir os pelos púbicos da rapariga de encontro aos músculos da sua coxa. Tinha uma mata púbica abundante e escura. Parecia uma parte mais do seu pensamento, também ele denso e sombrio.

– O que é preciso para se renascer? – perguntou Tengo.

– O principal problema, no que diz respeito ao voltar à vida – respondeu a pequena enfermeira, como se revelasse um segredo –, é que não podemos renascer por nós mesmos. Só se pode renascer por outra pessoa.

– É isso que significa «mais ou menos, de maneiras diferentes»?

– Deves sair daqui logo ao amanhecer, antes que a saída se feche.

– Devo sair daqui logo ao amanhecer, antes que a saída se feche. – Tengo repetiu as palavras da enfermeira, que tornou a esfregar o cabelo espesso do seu púbis contra a coxa de Tengo. Como se procurasse imprimir nele alguma espécie de sinal.

– A crisálida de ar não vem de parte alguma. Por mais que esperes por ela, não virá.

– Como é que sabes?

– Porque morri uma vez – continuou ela. – Morrer é doloroso. Dói mais do que tu pensas, Tengo-kun. Além de ser terrivelmente solitário. Tão solitário que parece impossível como alguém aguenta estar tão sozinho. Lembra-te disto. Mas sabes uma coisa, Tengo? Para renascer é preciso ter morrido antes.

– Para renascer é preciso ter morrido antes – confirmou Tengo.

– Contudo, é vivendo que caminhamos para a morte.

– Vivendo, caminhamos para a morte – repetiu Tengo, sem ter a certeza de saber o que pretendia Adachi dizer com aquilo.

A cortina branca continuava a ondular ao sabor da brisa. Dentro da sala de aulas cheirava ao apagador do quadro e a lixívia. Ao fumo produzido pelas folhas queimadas. Alguém tocava flauta de bisel. A menina segurava com força na sua mão. Sentia um doce latejar na metade inferior do corpo, mas não era uma ereção. Isso viria muito depois. As palavras «muito depois» continham a promessa de eternidade. A eternidade é uma longa linha que se estende até ao infinito. A tigela tornou a inclinar-se para um lado, e os miolos, espapaçados, agitaram-se.

Ao acordar, Tengo demorou um bocado a reconhecer o local onde estava e a organizar mentalmente os acontecimentos da véspera. O sol da manhã, resplandecente, penetrava por entre as cortinas de flores e, no exterior, os pássaros chilreavam alvoroçados. Passara a noite numa posição incómoda, todo encolhido naquela pequena cama. Era espantoso como fora capaz de pregar olho. Ao seu lado encontrava-se uma rapariga. Dormia profundamente com a cara enterrada na almofada. O cabelo cobria-lhe a outra face, fazendo lembrar a exuberante erva de verão ainda húmida de orvalho. Kumi Adachi, pensou Tengo. A jovem enfermeira acabara de fazer vinte e três anos. O relógio de pulso dele caíra ao chão. Os ponteiros marcavam sete e vinte. Sete e vinte da manhã.

Saiu da cama sem fazer barulho, para não acordar a enfermeira, e espreitou pelas cortinas. Lá fora via-se um campo plantado com couves. As hortaliças formavam fileiras sobre a terra negra. Um pouco mais adiante, estendia-se o arvoredo. Tengo recordou o canto do mocho. Passara a noite toda a piar. A sabedoria da noite. Tengo e a enfermeira tinham fumado haxixe enquanto escutavam o seu canto. Na coxa ainda sentia o toque rígido dos pelos púbicos.

Foi até à cozinha e bebeu água da torneira, fazendo uma concha com as mãos. Sentia tanta sede, que, por mais que bebesse, não havia maneira de ficar saciado. Mas, tirando isso, nada mudara. Não lhe doía a cabeça nem sentia o corpo mole. Tinha a mente desanuviada. A única coisa que sentia era uma impressão no corpo, como se estivesse por dentro demasiado bem ventilado. Melhor dizendo, como se a canalização tivesse sido submetida a uma limpeza feita por mãos profissionais. Dirigiu-se à casa de banho, apenas com a T-shirt e os boxers em cima do corpo, e urinou longamente. Não se reconheceu no rosto que viu no espelho. Ali e acolá via-se um tufo de cabelo despenteado. Além do mais, precisava de se barbear.

Regressou ao quarto de dormir e reuniu a sua roupa. As peças estavam espalhadas pelo chão, misturadas com as de Kumi Adachi. A imagem não acordava nele qualquer recordação de como nem de quando se despira. Encontrou as duas meias, enfiou as calças de ganga e vestiu a camisa. No meio da atrapalhação, tropeçou num enorme anel de fancaria. Apanhou-o do chão e deixou-o ficar sobre a mesinha de cabeceira. A seguir, verificou se tinha a carteira com ele e as chaves no bolso. A enfermeira dormia profundamente, aninhada no futon e tapada até às orelhas. Quase não se ouvia a sua respiração. Deveria acordá-la? Muito embora ele não acreditasse que tivessem feito alguma coisa, pelo menos haviam passado a noite juntos na mesma casa. Parecia falta de educação ir-se embora sem se despedir. A verdade, porém, é que a jovem dormia como uma pedra e tinha-lhe dito que naquele dia não trabalhava. Se a despertasse, que fariam depois?

Junto ao telefone encontrou papel e uma esferográfica. Escreveu um recadinho: «Obrigado pela noite de ontem. Diverti-me imenso. Volto para o ryokan. Tengo.» Acrescentou a hora. Deixou ficar o bilhete em cima da mesa de cabeceira e utilizou o anel que apanhara do chão como pisa-papéis. Em seguida, calçou os ténis gastos e encardidos; só então abandonou o apartamento.

Caminhou durante um grande bocado, até encontrar uma paragem de autocarro. Ao fim de cinco minutos, chegou um autocarro com destino à estação. Subiu, rodeado de um animado grupo de estudantes do secundário, tanto rapazes como raparigas, e seguiu viagem com eles até ao terminal. Ao vê-lo chegar às oito e picos da manhã, com a cara escurecida por uma barba rala, os funcionários da hospedaria não fizeram comentários. Aos olhos deles, não devia ser um cenário assim tão pouco frequente. Prepararam-lhe o pequeno-almoço num ápice, sem dizer água-vai.

Enquanto comia os pratos quentes e bebia o seu chá, pôs-se a recordar os acontecimentos da noite anterior. As três enfermeiras tinham-no convidado para ir com elas jantar yakiniku. Daí seguiram para um bar próximo e cantaram karaoke. Mais tarde, foi até ao apartamento de Kumi Adachi, onde estiveram os dois a fumar haxixe ao som do mocho. Sentira os miolos transformados em papas de arroz, quentes e amolecidas. Quando dera conta, estava na sala de aulas, num dos primeiros dias de inverno; ele podia cheirar tudo isso no ar, e trocou algumas palavras com Aomame. Depois, na cama, Kumi Adachi falara-lhe sobre a morte e o renascer. Fizera perguntas equívocas e recebera respostas ambíguas. O mocho continuou sempre a piar, refugiado no meio do arvoredo, e as pessoas partiam-se a rir num programa de televisão qualquer.

A sua memória era nebulosa e apresentava certas lacunas. Sobretudo no que dizia respeito à história da crisálida. Em compensação, recordava algumas partes com uma nitidez espantosa. Conseguia reproduzir cada palavrinha dita naquele contexto. Tengo lembrava-se da última coisa que Kumi lhe dissera. A frase funcionava ao mesmo tempo como um conselho e uma advertência.

Deves sair daqui logo ao amanhecer, antes que a saída se feche.

Se calhar, estava na hora de se ir embora. Tirara uns dias de folga ao trabalho e deslocara-se até àquela cidadezinha na esperança de ver de novo Aomame, a menina de dez anos dentro da crisálida de ar. E passara quase duas semanas enfiado na clínica onde o pai se encontrava, a ler-lhe livros em voz alta. Mas a crisálida de ar não aparecera. Em contrapartida, quando estava prestes a dar-se por vencido, Kumi Adachi tinha-lhe proporcionado uma visão de natureza diferente. Nessa visão, encontrou-se com a pequena Aomame, e teve oportunidade de trocar com ela meia dúzia de palavras. «Anda, vem à minha procura», dissera Aomame. «Enquanto ainda há tempo.» Pensando bem, se calhar, fora Kumi Adachi a dizer-lhe isso. Não era capaz de distinguir ao certo qual das duas havia proferido aquelas palavras. Para o caso, tanto fazia. Kumi tinha renascido depois de morrer. Não por si mesma, mas por outra pessoa. Tengo predispôs-se a acreditar em tudo o que ouvira da boca dela. Era importante. Pelo menos, ele acreditava nisso.

Encontrava-se na cidade dos gatos. Um lugar onde havia uma coisa específica, que só ali poderia encontrar. Movido por esse propósito, apanhara vários comboios e percorrera muitos quilómetros. Mas tudo o que se conseguia naquele lugar comportava riscos. A acreditar nas insinuações de Kumi Adachi, esses riscos poderiam revelar-se fatais. A comichão nos dedos queria dizer que algo de nefasto se aproximava.

Estava na altura de regressar a Tóquio. Antes que a saída ficasse bloqueada, enquanto os comboios ainda paravam na estação. Entretanto, devia regressar à clínica. Precisava de ver o pai e despedir-se dele. Havia uma ou duas coisas que ainda não tinham ficado esclarecidas.

15 Jogo de azar semelhante ao jogo eletrónico de flippers, em que várias bolas são impelidas ao longo de uma superfície inclinada, através de obstáculos, com o propósito de somar pontos. Joga-se nas grandes salas de jogo e é extremamente popular, uma espécie de vício coletivo. (N. das T.)

16 Lascas de atum seco, muito utilizadas na gastronomia japonesa. (N. das T.)


10

USHIKAWA

Reunir provas sólidas

Ushikawa pôs-se a caminho e foi até Ichikawa. Encarava a viagem como se fosse uma excursão, apesar de Ichikawa ficar a dois passos do centro de Tóquio, bastando atravessar o rio para entrar na prefeitura de Chiba. Diante da estação apanhou um táxi e indicou ao motorista o nome da escola primária. Já passava da uma da tarde quando chegou ao destino. O intervalo para o almoço terminara e as aulas da parte da tarde haviam começado. Ouvia-se um coro de vozes vindo da aula de Música e, no recreio, vários alunos de uma turma jogavam futebol durante a hora de educação física. A rapaziada corria atrás da bola no meio de enor-me gritaria.

Ushikawa não guardava boas recordações da escola primária. Dava-se mal com a prática de desporto, sobretudo quando havia uma bola metida ao barulho. Era baixinho e curto de pernas. Além disso, sentia dificuldade em coordenar os movimentos. As aulas de Educação Física constituíam para ele um verdadeiro suplício. Em compensação, podia orgulhar-se de obter excelentes notas no resto das disciplinas. Muitíssimo inteligente, revelara-se sempre um aluno aplicado (a prova era ter passado no difícil exame à Ordem com apenas vinte e cinco anos de idade). O certo, porém, é que não havia ao seu redor quem gostasse dele ou o respeitasse. Talvez a começar pelo facto de ele não ser bom em desporto. As suas feições, diga-se em abono da verdade, constituíam outro problema. Desde pequeno, sempre tivera a cara demasiado grande, feiosa, e uma cabeça disforme. Os lábios grossos pendiam-lhe até à extremidade da boca, dando a impressão de que, a qualquer momento, poderiam deixar escapar um fio de baba (se bem que tal nunca se tivesse verificado). O cabelo era crespo e indomável. O seu físico não o tornava simpático aos olhos dos companheiros.

Durante a primária, raramente abria a boca. Sabia que, querendo, poderia ser eloquente, mas o certo é que não tinha amigos de confiança com quem dialogar nem se lhe apresentavam ocasiões para exibir os dons de oratória. De modo que permanecia sempre calado. Habituara-se, isso sim, a prestar muita atenção ao que os outros diziam, na expectativa de aprender qualquer coisa. Esse hábito convertera-se numa valiosa ferramenta, que lhe proporcionara a descoberta de importantes verdades. Uma delas era que as pessoas, na sua maioria, não sabiam pensar pela própria cabeça. E são precisamente essas que não se mostram capazes de escutar os outros.

Em todo o caso, a época escolar representava, na vida de Ushikawa, uma página que ele não gostava especialmente de recordar. Bastava-lhe pensar que ia ter de visitar uma escola primária para ficar logo desmoralizado. Embora houvesse algumas diferenças entre as prefeituras de Saitama e Chiba, todas as escolas primárias do país eram semelhantes. Possuíam o mesmo tipo de instalações e funcionavam com base nos mesmíssimos princípios. Apesar disso, Ushikawa pôs de lado os seus receios e propôs-se seguir viagem para ir em pessoa visitar a tal escola de Ichikawa. O assunto era relevante; não o podia deixar nas mãos de mais ninguém. Primeiro que tudo, ligou para a secretaria do estabelecimento de ensino e marcou, para a uma da tarde, uma reunião com a pessoa responsável.

A vice-reitora era uma mulher de pequena estatura, aparentando ter cerca de quarenta e cinco anos. Elegante, atraente e com bom gosto na maneira de se vestir. Vice-reitora? Ushikawa inclinou a cabeça em sinal de estranheza. Nunca ouvira falar da existência de semelhante cargo numa escola primária. Mas, verdade seja dita, muita água correra por baixo das pontes desde que ele frequentara o primeiro ciclo. De certeza que as coisas haviam mudado muito. A mulher em questão devia estar habituada a lidar com todo o tipo de pessoas, porque ficou impassível ao ver Ushikawa, com a sua aparência pouco comum. Ou então, reagiu assim por uma questão de pura educação. A vice-reitora conduziu Ushikawa até uma sala de visitas imaculada e convidou-o a sentar-se. Ela escolheu ficar numa cadeira mesmo à frente e dirigiu-lhe um sorriso franco, como se quisesse sugerir que iam os dois ter uma conversa muito agradável.

A dita senhora fazia lembrar a Ushikawa uma menina que andara com ele na primária. Bonita, simpática, responsável, tinha sempre boas notas. Além de ser muito educada, sabia tocar bem piano. Era uma das meninas-bonitas dos professores. Durante as aulas, Ushikawa não tirava os olhos dela, sobretudo quando a apanhava de costas. Mas nunca chegaram a trocar mais de duas palavras.

– Julgo saber que deseja informações acerca de uma antiga aluna deste estabelecimento de ensino, não é verdade? – perguntou a vice-reitora.

– Desculpe, tinha-me esquecido – disse Ushikawa, entregando-lhe um cartão de visita. Era igual ao que entregara a Tengo. Tinha inscrito o cargo de diretor-geral da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão. Contou à mulher praticamente a mesma história que inventara quando falara com Tengo, meses atrás. Que o escritor Tengo Kawana, antigo aluno daquela escola, se encontrava nesse ano entre os candidatos para receber uma bolsa atribuída pela fundação a que pertencia. E que ele, Ushikawa, andava a recolher informações genéricas sobre o rapaz.

– São notícias fantásticas – afirmou a vice-reitora, toda entusiasmada. – Para a escola também é um grande motivo de orgulho. Escusado será dizer que estamos dispostos a colaborar em tudo o que estiver ao nosso alcance.

– Se for possível, gostaria de falar com o professor ou a professora do senhor Kawana, à época – sugeriu Ushikawa.

– Vou informar-me. Passaram mais de vinte anos e, como tal, pode ser que a pessoa em questão se tenha reformado entretanto.

– Agradeço muito – disse Ushikawa. – Já agora, há outra coisa que gostaria de saber, se possível.

– De que se trata?

– Creio que havia também uma menina chamada Masami Aomame matriculada nesse ano. Poderia averiguar se ela estava na mesma turma?

A vice-reitora esboçou uma expressão de perplexidade.

– Essa Aomame tem algo que ver com a bolsa destinada ao senhor Kawana?

– Não, não tem. Simplesmente, numa das obras de Tengo Kawana existe uma personagem que poderia ter sido inspirada na jovem Aomame, e, nessa medida, julgamos necessário clarificar algumas questões. Trata-se de uma mera formalidade.

– Compreendo. – Ao dizer aquilo, a vice-reitora ergueu um tudo-nada os bordos dos seus bonitos lábios. – Mas espero que entenda que, em certos casos, não podemos disponibilizar qualquer espécie de informação que comprometa a privacidade de uma pessoa. Refiro-me, por exemplo, às notas ou a dados sobre eventuais circunstâncias familiares.

– Tenho perfeita consciência disso. A única coisa que pretendemos saber é se ela andou ou não na mesma turma que Kawana. E, no caso de a resposta ser afirmativa, ficaria muito agradecido se me pudesse facultar o nome e a morada do professor ou da professora à época, a fim de podermos localizar a pessoa em questão.

– De acordo. Se é apenas isso, creio que não há qualquer problema. Aomame... foi o nome que me disse, não foi?

– Sim. Escreve-se com os ideogramas de «verde» e de «ervilha». É um apelido pouco vulgar.

Com a esferográfica, Ushikawa escreveu «Masami Aoma-me» num papelinho e entregou-o à vice-reitora. Ela aceitou-o, observou-o por segundos e depois guardou-o dentro da bolsinha interior de um dossiê pousado sobre a mesa.

– Poderia aguardar aqui durante alguns minutos? Vou procurar nos arquivos da secretaria e já volto. Pedirei ao funcionário que fotocopie toda a informação que puder ser disponibilizada ao público.

– Agradeço uma vez mais. Desculpe o incómodo que lhe estou a causar – disse Ushikawa.

Quando a vice-reitora abandonou a sala, a bainha da saia rodada ondulou com graciosidade. A mulher tinha um belo porte e movia-se com elegância. Até na forma como estava penteada se notava o bom gosto. Os anos tinham passado por ela de forma generosa. Ushikawa corrigiu a postura na cadeira e matou o tempo a ler um livro que levara consigo.

Quinze minutos mais tarde, a vice-reitora regressou trazendo um envelope castanho encostado ao peito.

– Parece que o Kawana foi um aluno brilhante. Tirava sempre as notas mais altas da turma e teve inclusivamente um elevado rendimento como atleta. Destacou-se na Matemática, sobretudo em Aritmética, e já na primária resolvia problemas destinados a alunos do secundário. Ganhou um concurso, razão pela qual o seu nome até apareceu no jornal. Foi então considerado um menino-prodígio.

– Extraordinário! – afirmou Ushikawa.

– Curioso, não lhe parece? Que um menino, considerado um prodígio das matemáticas, conquiste em adulto uma posição de destaque no mundo da literatura...

– Um grande talento pode manifestar-se de diferentes formas, tal como a água encontra mil e uma maneiras de brotar num abundante veio subterrâneo. Hoje em dia, dedica-se à escrita, ao mesmo tempo que dá aulas de Matemática.

– Estou a ver – disse a vice-reitora, formando um bonito ângulo com as sobrancelhas. – Pelo contrário, sobre a Masami não me foi possível encontrar muitos dados. Mudou de escola no quinto ano. Como um familiar seu vivia em Tóquio, no bairro de Adachi, foi transferida e matricularam-na na escola primária de lá. Ela e Tengo Kawana foram companheiros de turma no terceiro e no quarto ano.

Tal como eu suspeitava, pensou Ushikawa. Afinal, sempre havia uma ligação entre os dois.

– A professora deles era a senhora Ota; Toshie Ota de seu nome. Trabalha presentemente na escola primária municipal de Narashino.

– Acha que terei alguma hipótese de chegar à fala com ela, se entrar em contacto com a escola?

– Já tomei a liberdade de lhe telefonar – anunciou a vice-reitora com um leve sorriso. – Quando lhe expliquei a situação, disse-me que teria todo o gosto em falar consigo.

– Fico-lhe muito agradecido – replicou Ushikawa. Não só tem uma cara bonita, como é eficaz.

A mulher anotou o nome da professora e o endereço da escola primária de Tsudanuma, na cidade de Narashino, no verso do seu cartão de visita e entregou-o a Ushikawa. Este guardou-o na carteira com todo o cuidado.

– Ouvi dizer que a Masami Aomame cresceu num ambiente religioso – acrescentou ele, à laia de comentário. – A verdade é que esse tema nos causa uma certa preocupação...

Uma sombra passou pelo rosto da vice-reitora, e pequenas rugas formaram-se ao canto dos olhos. Daquelas rugas discretas, que lhe davam um encanto muito especial, e que só as mulheres de meia-idade com uma certa cultura se podem dar ao luxo de ter adquirido.

– Lamento, mas não é um assunto que eu me permita abordar aqui – referiu ela.

– Na medida em que se trata de questões que dizem apenas respeito à esfera privada de cada um, não é verdade? – acrescentou Ushikawa.

– Com efeito... Os assuntos que se prendem com a religião são especialmente delicados.

– Mas talvez possa abordar o tema quando me encontrar com a senhora O¯ t a, não lhe parece?

A vice-reitora inclinou o delicado queixo um nadinha para a esquerda e sorriu de forma sugestiva.

– Se a senhora O¯ t a quiser falar consigo a título particular, nós não temos nada que ver com isso.

Ushikawa levantou-se e agradeceu delicadamente à vice-reitora. Ela entregou-lhe o sobrescrito castanho com a documentação.

– Fotocopiei-lhe o material que consegui arranjar. Quase tudo relativo à pessoa do senhor Kawana, apesar de também haver uma informação ou outra sobre a menina Aomame. Espero que lhe sirva para alguma coisa.

– De certeza que me será útil. Agradeço imenso, foi muito gentil da sua parte.

– Quando tiver novidades acerca da bolsa, agradeço que me informe. Para a nossa escola seria uma honra enorme.

– Estou convencido de que o resultado vai ser positivo – referiu Ushikawa. – Tive oportunidade de conversar com ele em várias ocasiões, e o certo é que temos ali um rapaz cheio de talento e com um futuro promissor.

Ushikawa entrou num restaurante situado diante da estação e comeu uma refeição simples, enquanto aproveitava para passar os olhos pelo conteúdo do envelope. Este incluía um mero historial académico de Tengo e de Aomame, sem entrar em grandes pormenores, a que se juntavam os resultados académicos e desportivos obtidos por um e pelo outro. Tudo indicava que Tengo devia ter sido, com efeito, um aluno fora do comum. De certeza que, no caso dele, a escola nunca se revelara um pesadelo, ao contrário de muitos outros. Havia uma cópia de um artigo de quando ele ganhara o concurso de Aritmética. Era um jornal antigo e não dava para ler muito bem, mas nele vinha publicada uma fotografia de Tengo (um tanto esbatida, como seria de esperar) em criança.

Quando acabou de comer, ligou para a escola de Tsudanuma. Falou com a professora Toshie O¯ t a e combinaram encontrar-se no colégio às quatro. Ela confirmou-lhe que, a essa hora, poderiam conversar com calma.

Bem sei que é o meu trabalho, mas isto de visitar duas escolas primárias apenas num dia tem que se lhe diga, lamentou-se Ushikawa com um suspiro. Só de pensar nisso, já se sentia abatido. O certo, porém, é que, até aí, a viagem havia dado frutos. Descobrira que Tengo e Aomame tinham andado na mesma turma, durante os últimos dois anos da primária. Era um avanço significativo.

Tengo ajudara Eriko Fukada a transformar A Crisálida de Ar numa obra de arte literária, e essa obra convertera-se, por seu turno, num bestseller. Aomame assassinara em segredo o pai de Eriko Fukada, Tamotsu Fukada, num quarto do Hotel Okura. Ambos davam a ideia de perseguir o mesmo objetivo: atacar a comunidade religiosa Vanguarda. Era possível que estivessem a agir em conluio. Pelo menos seria lógico que as pessoas pensassem isso.

Todavia, pensou que o melhor seria nada revelar, por enquanto, aos dois camaradas da Vanguarda. Ushikawa não gostava de fornecer informação a conta-gotas. Preferia reunir o máximo de dados, verificar minuciosamente as informações recolhidas e, uma vez obtidas provas sólidas, apresentar os resultados: «Foi assim que as coisas se passaram...» Conservava esse hábito teatral dos seus tempos de advogado. Fingia-se modesto, fazia com que a outra pessoa confiasse nele, e então, quando se aproximava o momento do desenlace, sacava da verdade irrefutável, e a situação conhecia uma reviravolta de todo o tamanho.

Ao dirigir-se para Tsudanuma de comboio, Ushikawa experimentou formular mentalmente diversas hipóteses.

Se calhar, entre Tengo e Aomame existia uma relação amorosa. Era pouco provável que fossem namorados desde os dez anos, mas não se podia descartar a possibilidade de, mais tarde, terem voltado a encontrar-se, começando então a sair juntos. Nessa altura, devido a uma circunstância qualquer – ignorava qual pudesse ser –, haviam unido esforços com o propósito de esmagar a Vanguarda. Era uma hipótese.

No entanto, pelo que pudera observar, não existia nenhum indício de que Tengo e Aomame fossem amigos. O jovem mantinha relações sexuais com uma mulher casada, dez anos mais velha. Conhecendo a personalidade de Tengo, não acreditava que, estando ele tão ligado a Aomame, fosse capaz de ter um caso e ir regularmente para a cama com outra mulher. Antes disso, Ushikawa dera-se ao trabalho de investigar os padrões de comportamento de Tengo durante duas semanas a fio. Três dias por semana, ensinava Matemática numa escola que preparava os alunos do secundário para os exames de admissão à universidade, passando o resto do tempo fechado no seu apartamento. A escrever, quem sabe? A não ser para fazer compras ou dar um passeio, raramente saía de casa. Levava uma vida simples e monótona, para não dizer austera. Não havia ali mistério nenhum por explicar. Fossem quais fossem as circunstâncias, custava-lhe a acreditar que Tengo pudesse ter participado numa conspiração que levara ao assassínio de um homem.

Pessoalmente, Ushikawa tinha de confessar que nutria uma certa simpatia por Tengo. Era um jovem despretensioso, que ia direito ao assunto, com um grande sentido de autonomia e confiança nas suas capacidades. Talvez fosse um pouco desajeitado, havia que reconhecer, como acontece tantas vezes com as pessoas corpulentas, mas, em compensação, nada tinha de manhoso nem agia por meio de subterfúgios. Era daqueles tipos que, uma vez tomada uma decisão, vão sempre em frente e não se desviam do seu caminho. Nunca daria para advogado nem para corretor da bolsa de valores. O mais certo era passarem-lhe a perna, levando-o a tropeçar no momento crítico. Contudo, na qualidade de professor de Matemática e de escritor, devia safar-se bastante bem. Não se podia dizer que fosse sociável e faltava-lhe uma certa lábia, apesar de atrair um determinado tipo de mulheres. Resumindo, era feito de uma massa diferente, o oposto de Ushikawa.

Em compensação, ignorava quase tudo a respeito de Aomame. Apurara apenas que ela tinha nascido numa família de fervorosos seguidores da Associação das Testemunhas e que, desde que começara a andar pelo seu próprio pé, os pais levavam-na com eles nas suas missões de proselitismo. Quando andava no quinto ano, renunciara à fé e fora acolhida por uns parentes afastados que viviam nos arredores de Adachi. Se calhar, ao chegar àquela altura, não aguentara mais. Por sorte, fora abençoada com uma excelente forma física e, a partir do secundário, não só se tornara uma boa jogadora de softbol como integrara sempre a equipa do liceu, para além de chamar as atenções generalizadas. Graças a isso, obteve uma bolsa e pôde entrar numa faculdade, onde seguiu o curso de Educação Física. Eram esses os elementos de que Ushikawa dispunha. Acerca da sua personalidade, da maneira de pensar, das suas virtudes e dos seus defeitos, ou da vida que levava, nada sabia. O material que conseguira recolher não passava de uma simples enumeração de dados biográficos, daqueles que pouco ou nada dizem.

Porém, ao reunir na sua mente os dados relativos a Aomame e a Tengo, descobriu certos pontos em comum. Em primeiro lugar, a infância de ambos não tinha sido muito feliz. Aomame, como outras crianças nascidas de pais que pregavam a fé das Testemunhas, vira-se obrigada a percorrer os bairros da cidade na peugada da mãe, nas missões de evangelização. Iam de casa em casa, a tocar às campainhas. Quanto ao pai de Tengo, era cobrador da taxa da NHK, e o seu trabalho consistia em andar também de porta em porta. Arrastaria o filho nas suas caminhadas, tal como acontecia com as mães das Testemunhas? Era provável que sim. Se fosse ele, Ushikawa, o pai de Tengo, de certeza que o teria feito. Andar com o filho atrás aumentaria o valor da coleta e, de caminho, sempre ajudaria a poupar no dinheiro que teria de pagar a quem tomasse contasse dele. Seria o equivalente a matar dois coelhos de uma cajadada só. Para Tengo é que não deveria ter sido uma experiência muito agradável. No entanto, era de considerar a hipótese de as duas crianças se terem cruzado nas ruas de Ichikawa.

Assim que chegaram à idade da razão, Tengo e Aomame haviam-se esforçado por obter uma bolsa desportiva que lhes permitisse afastar-se o mais possível de casa, o que é o mesmo que dizer: afastar-se dos seus progenitores. E tanto um como o outro revelaram-se excelentes desportistas. Possuiriam um talento natural, por certo. Mas havia um elemento de natureza diferente que os obrigava a ser excelentes. Na prática, o facto de serem reconhecidos enquanto desportistas e terem boas notas era o único meio à sua disposição para conquistar a independência. Era, por assim dizer, uma espécie de «abre-te sésamo» que lhes permitiria sobreviver. A sua maneira de pensar nada tinha que ver com a maneira de pensar dos adolescentes normais. Encaravam o mundo com outros olhos.

Ao ponderar aquilo, Ushikawa apercebeu-se de que a situação apresentava algumas semelhanças com o seu próprio percurso. No meu caso, venho de uma família com posses, não precisei de recorrer a bolsas de estudo e sempre tive dinheiro para os meus gastos. No entanto, verdade seja dita que, para entrar numa universidade de primeira categoria e candidatar-me ao exame à Ordem, vi-me obrigado a torrar os miolos e a estudar que nem um louco. Igualzinho ao que aconteceu com o Tengo e a Aomame. Não soube o que era ter tempo para andar na boa-vai-ela, como muitos dos meus companheiros. Renunciei a todos os prazeres mundanos – ainda que, mesmo que andasse à procura deles, não devesse ter grande sorte – e entreguei-me única e exclusivamente aos estudos. Quase poderia afirmar que sou como Raskólnikov, com a diferença de nunca ter encontrado a Sonia.

Bom, chega de considerações acerca da minha pessoa. Nesta fase do campeonato, não vou conseguir mudar nada. Vamos lá regressar à vaca-fria. À história do Tengo e da Aomame.

Vamos imaginar que, passados vinte e tal anos, Tengo e Aomame voltavam a encontrar-se por acaso e, em conversa, descobriam uma quantidade de pontos em comum. Como é evidente, teriam muito que contar. E podia acontecer que se sentissem atraídos um pelo outro. Ushikawa visualizava a cena com grande nitidez. Um encontro marcado pelo destino. O culminar de uma história de amor romântica.

Teria esse encontro acontecido na prática? O romance nascera a partir daí? Quanto a isso, Ushikawa não podia saber, como é óbvio. No entanto, fazia todo o sentido pensar que os dois se haviam reencontrado. Talvez por esse motivo tivessem unido forças e houvessem colaborado juntos no ataque à Vanguarda. Cada um com as suas armas. Tengo usando a sua pena e Aomame, quem sabe?, alguma técnica especial. Porém, havia qualquer coisa naquela teoria que não convencia Ushikawa. Até certo ponto, fazia sentido, mas faltava-lhe verosimilhança.

Se Tengo e Aomame estivessem, de facto, unidos por uma relação profunda, seria impossível mantê-la em segredo. Os encontros marcados pelo destino acarretam consequências fatais, que não teriam por certo escapado ao olhar atento de Ushikawa. Aomame ainda poderia tê-lo iludido, mas Tengo não. Impossível.

De uma forma geral, Ushikawa era um homem que se guiava pela lógica. Nunca avançava sem ter provas. Ao mesmo tempo, também se deixava guiar pelo faro com que a natureza o dotara. E, diante da probabilidade de Tengo e Aomame terem conspirado juntos, o seu faro dizia-lhe que não com a cabeça. Não, não... com um movimento breve mas insistente. E se afinal os dois não soubessem nada um do outro? Não seria o envolvimento deles com a Vanguarda uma simples coincidência?

Mesmo que se tratasse de uma coincidência inesperada, aos olhos de Ushikawa, essa hipótese afigurava-se mais plausível. Ambos se tinham libertado da Vanguarda ao mesmo tempo, por mero acaso: cada um levado pelos seus motivos e perseguindo objetivos diferentes. Estava-se perante duas intrigas paralelas, que tinham origens distintas.

Faltava descobrir se os membros da Vanguarda aceitariam uma hipótese tão conveniente. Nem a brincar, considerou Ushikawa. Agarrar-se-iam logo à teoria da conspiração, sem pensar duas vezes. No fim de contas, eram tipos que adoravam tudo o que metesse conspirações pelo meio. Antes de lhes apresentar a informação em bruto, precisava de reunir provas mais consistentes. Caso contrário, acabaria por induzi-los em erro, e, no decorrer do processo, também ele sairia prejudicado.

Ushikawa matutava nessas questões enquanto seguia viagem no comboio que o transportava de Ichikawa até Tsudanuma. Sem se dar conta, devia ter franzido a cara, suspirado e olhado para o infinito, porque tinha à frente uma colegial que não tirava os olhos dele, fitando-o com estranheza. Para disfarçar o seu embaraço, esboçou um sorriso envergonhado e passou a mão pela calva disforme. O gesto, porém, teve o condão de assustar ainda mais a menininha, que, antes de chegarem à estação de Nishifunabashi, se levantou de supetão e mudou de lugar.

Ushikawa encontrou-se com a professora na sala dela, depois de mais um dia de aulas. Toshie O¯ t a devia ter perto de cinquenta e cinco anos. O seu aspeto era diametralmente oposto ao da requintada vice-reitora da escola de Ichikawa. Baixa e entroncada, tinha uma maneira peculiar de caminhar; vista de trás, fazia lembrar um crustáceo. Usava uns pequenos óculos com armação metálica, e o espaço entre as sobrancelhas, completamente plano, mostrava-se coberto de uma fina penugem. Ushikawa não saberia dizer quando fora confecionado o conjunto saia-casaco de lã que ela trazia vestido, apenas que devia estar fora de moda já nessa altura e que libertava um ligeiro odor a naftalina. Era cor-de-rosa, mas, estranhamente, parecia que aquele rosa estava mesclado com outra cor discordante. Se calhar tinham procurado criar uma tonalidade discreta e elegante; no entanto, longe do propósito inicial, o rosa afundara-se entre a insegurança, o retraimento e a resignação. Graças a isso, a novíssima blusa branca que espreitava pelo colarinho sugeria uma nota fora de tom, a fazer lembrar uma visita inesperada no meio de um velório. O cabelo, seco e grisalho, estava preso com uma pinça de plástico, provavelmente a primeira coisa que tinha à mão. As pernas eram roliças, e só com muita dificuldade conseguiria enfiar um anel naqueles dedos, curtos e rechonchudos. No pescoço formavam-se três pequenas rugas perfeitamente delineadas, que bem podiam simbolizar três marcas deixadas pela vida. Ou então três desejos tornados realidade, apesar de Ushikawa ter sérias dúvidas de que fosse esse o caso.

A senhora em questão fora professora de Tengo Kawana desde o terceiro ano da primária até que este abandonara o primeiro ciclo. Apesar de ela mudar de classe de dois em dois anos, calhara ter ficado com Tengo na sua turma durante quatro anos seguidos. De Aomame fora professora apenas na terceira e na quarta classe da primária.

– Lembro-me bem do jovem Kawana – declarou ela.

Em contraste com a sua aparência calma, a voz da mulher era jovial e clara. Com aquela voz, poderia facilmente chegar ao último recanto da sala, por mais barulho que os alunos fizessem. A profissão marca as pessoas, pensou Ushikawa, impressionado. De certeza que era uma professora muito competente.

– O Kawana era um aluno brilhante, em todos os sentidos. Durante mais de vinte e cinco anos, dei aulas em várias escolas, e confesso que nunca encontrei um aluno com as qualidades demonstradas por ele. Destacava-se em tudo o que fazia. Além de ter bom caráter, revelava uma capacidade natural de liderança. Já na altura dava mostras de vir a ser uma autoridade em qualquer área. Na infância, destacou-se na Aritmética e, em geral, na Matemática, mas não me surpreende nada que tivesse enveredado pela carreira literária.

– Pelo que sei, o pai trabalhava como cobrador da taxa ao serviço da NHK, não era?

– Sim, era – confirmou a professora.

– Foi ele mesmo que me contou que o pai era muito rígido – afirmou Ushikawa, colocando na sua boca palavras que traduziam o que não passava de uma mera conjetura.

– Isso mesmo – corroborou ela, sem vacilar. – Tinha um pai extremamente severo. Sentia-se orgulhoso da sua profissão, o que não deixa de ser uma coisa boa, mas, às vezes, isso parecia representar um peso para o Tengo.

Estabelecendo de forma ardilosa a ligação entre um tema e outro, Ushikawa lá conseguiu ir puxando pela língua à mulher. Era um dom que tinha: fazer o seu interlocutor falar abertamente sobre um determinado assunto, como quem não quer a coisa. A professora contou-lhe que Tengo odiava acompanhar o pai aos fins de semana, quando este se deslocava nas suas rondas, e que tinha fugido de casa no quinto ano.

– Mais do que fugir de casa, foi expulso – explicou ela. Ushikawa viu assim confirmadas as suas suspeitas. Com efeito, Tengo sempre tinha sido obrigado pelo pai a andar de casa em casa, nas cobranças. E isso constituíra um pesado fardo psicológico para o rapaz, tal como Ushikawa previra.

Na altura em que Tengo saíra de casa sem ter para onde ir, a professora acolhera-o durante a noite. Dera-lhe uma manta e, no dia seguinte, preparara-lhe o pequeno-almoço. À tardinha, procurara o pai do rapaz e usara de toda a sua eloquência para o convencer a aceitar de novo o filho em casa. A mulher contava aquilo como se estivesse diante de um dos episódios mais emocionantes da sua existência. Mais à frente, quando Tengo já andava no secundário, voltaram a encontrar-se, por mero acaso, num concerto de bandas. Falou-lhe então de como ele tocava maravilhosamente timbales.

– A Sinfonietta de Janácek. Não estamos a falar de uma peça fácil. Até poucas semanas antes, Tengo nunca tocara aquele instrumento. No entanto, subiu ao palco e, mesmo confiando em parte na sua capacidade de improviso, cumpriu na perfeição. Um verdadeiro milagre.

Esta mulher adora o Tengo, pensou Ushikawa, incapaz de esconder o seu espanto. Sente por ele uma ternura quase incondicional. Qual será a sensação de ser amado a este ponto por outra pessoa?

– Lembra-se de Masami Aomame? – quis saber Ushikawa.

– Também me recordo bem dela – respondeu a professora. A sua voz, porém, não denotava o mesmo contentamento como quando se referia a Tengo. O seu tom baixara dois graus na escala.

– Um apelido muito fora do vulgar, não lhe parece? – perguntou Ushikawa.

– Sim, bastante peculiar. Mas não é só por causa do nome que me lembro dela.

Fez-se um breve silêncio.

– Segundo parece, a família era muito devota da Associação das Testemunhas... – arriscou Ushikawa, para ver se conseguia tirar nabos da púcara.

– Se eu lhe contar uma coisa, a conversa fica entre nós? – perguntou a professora.

– Claro. O assunto fica entre nós, dou-lhe a minha palavra.

Toshie O¯ t a assentiu com a cabeça.

– Existe uma sede local das Testemunhas em Ichikawa, por isso tive sempre várias crianças da comunidade ao meu cuidado. De um ponto de vista profissional, surgiam por vezes pequenos problemas delicados e via-me obrigada a abordar o assunto com pinças. Posso afiançar-lhe que nunca encontrei devotos tão fervorosos como os pais da Aomame.

– Quer com isso dizer que eles eram intransigentes?

A mestra mordeu ligeiramente os lábios, como se as recordações daquela época lhe acudissem à memória.

– Sim. Era uma gente extremamente rigorosa na aplicação dos seus princípios e que exigia aos filhos a mesma estrita obediência. Uma situação que isolou a Aomame dentro da própria turma.

– De certo modo, a Aomame era uma menina especial, não era?

– Sim, era especial – admitiu a professora. – Ela não tinha culpa, claro. Se fosse preciso responsabilizar alguém, teríamos de começar pela intolerância que reina no coração das pessoas.

A professora contou em seguida mais coisas acerca de Aomame, a começar pelo modo como o resto dos alunos a ignorava. Tratavam-na quase sempre como se ela não existisse. Aos olhos dos restantes meninos, era um bicho raro que só servia para os aborrecer a todos com os seus extravagantes princípios. A turma inteira parecia estar de acordo nesse ponto. Confrontada com essa posição, Aomame protegia-se, procurando passar o mais despercebida possível na presença dos outros.

– Pela minha parte, procurei sempre fazer o que podia, mas uma turma inteira possui mais força do que se imagina... A Aomame acabou por se converter numa espécie de fantasma. Se fosse hoje, um problema desta natureza iria parar às mãos de um psicólogo, mas, naqueles tempos, não tínhamos esse tipo de recurso. Eu era muito novinha e preocupei-me apenas em trabalhar com a classe no seu conjunto. Se calhar, aos seus ouvidos isto soa como uma desculpa, mas...

Ushikawa compreendia onde a mulher queria chegar. O trabalho de professor primário era muito difícil. Em certa medida, não há outro remédio senão deixar que sejam as crianças a tratar das suas próprias coisas.

– A linha que separa a fé autêntica da intolerância foi sempre muito ténue – comentou Ushikawa. – Trata-se de um problema difícil de resolver.

– Tem toda a razão – corroborou a professora. – Contudo, no que estava ao meu alcance, senti que devia fazer algo para ajudar. Tentei falar com a Aomame por variadíssimas vezes, mas esbarrei sempre com um muro de silêncio. Ela mal abria a boca. Tinha uma vontade de ferro e, quando se lhe metia uma ideia na cabeça, ninguém a demovia. Também era muitíssimo inteligente. Possuía uma extraordinária capacidade de compreensão e muita vontade de aprender. O que acontecia era que se esforçava por não se manifestar, por esconder esses seus atributos. Não chamar a atenção, como se não estivesse ali, funcionava como um recurso para se proteger. Se tivesse crescido numa família e num ambiente normal, teria sido uma excelente aluna. Ainda hoje, quando olho para trás, penso que foi uma pena.

– Alguma vez chegou a falar com os pais dela?

A professora assentiu.

– Muitas vezes! Precisamente porque se queixaram aos responsáveis pela escola de existir alguma perseguição religiosa. Quando isso aconteceu, pedi-lhes que colaborassem comigo, no sentido de ajudarem a Aomame a sentir-se um pouco mais integrada no ambiente da turma. Perguntei-lhes se não poderiam abrir mão dos seus princípios, nem que fosse só um bocadinho. Foi o mesmo que nada. Para os pais dela, a prioridade máxima era cumprir à letra os princípios da fé que abraçavam. A felicidade, aos seus olhos, consistia em ir para o Céu, e a vida terrena não era mais do que uma passagem transitória. Mas estamos a falar da lógica que impera no mundo dos adultos. Infelizmente, nunca consegui fazê-los entender até que ponto era doloroso para uma criança em plena fase de crescimento, como a Aomame, ser ignorada e excluída pelos outros alunos da mesma classe, nem a ferida emocional que isso poderia deixar.

Ushikawa contou-lhe que Aomame se destacara enquanto jogadora principal nas equipas de softbol, na universidade e depois numa empresa, e que trabalhava, por aqueles dias, num ginásio de luxo, onde desempenhava com grande competência as funções de instrutora de artes marciais. Na realidade, o que ele deveria ter dito era «até há poucos dias», mas achou que não havia necessidade de ser tão rigoroso.

– Fico contente por ela – confessou a professora. Ao dizer aquilo, corou um nadinha. – Significa que conseguiu crescer normalmente e que se tornou uma rapariga independente, que tem a sua própria vida.

– A propósito, deixe-me fazer-lhe uma pergunta um tanto indiscreta – disse Ushikawa, exibindo um sorriso sem ponta de malícia no rosto. – É possível que, estando na primária, o Tengo e a Aomame tenham mantido uma relação pessoal mais ou menos estreita?

A professora entrelaçou os dedos e ponderou a resposta.

– Pode ter acontecido. Mas, se assim foi, nunca dei por nada. A única coisa que posso dizer é que me custa a acreditar que algum menino daquela turma fosse amigo dela. Se calhar, o Tengo estendeu-lhe a mão, numa ocasião qualquer, por ser um rapaz bondoso e com grande sentido de responsabilidade. Mesmo assim, não creio que a Aomame lhe abrisse o coração de forma espontânea. Era como uma ostra agarrada à rocha, daquelas que não se abrem com facilidade.

A professora deixou-se ficar calada durante um bocado, após o que acrescentou, em jeito de quem pede desculpa:

– Lamento não ser capaz de dizer isto de outro modo, mas não pude fazer nada, naquela época. Como lhe referi antes, era muito nova e tinha pouca experiência.

– Se o Kawana e a Aomame mantivessem um relacionamento mais estreito, calculo que isso causaria falatório na turma, e o rumor teria chegado aos seus ouvidos, não é verdade?

A professora anuiu com a cabeça.

– Havia intolerância de parte a parte.

Ushikawa agradeceu-lhe.

– Deu-me uma grande ajuda, minha senhora.

– Espero que o assunto relacionado com a Aomame não constitua um impedimento para a atribuição da bolsa – disse ela, preocupada. – Os problemas que se registaram na classe foram da minha inteira responsabilidade, uma vez que era eu a professora. Nem o Tengo-kun nem a Aomame tiveram culpa.

Ushikawa negou com um movimento de cabeça.

– Não se preocupe. A única coisa que faço é informar-me dos factos sobre os quais assenta a obra do Tengo. Como por certo saberá, tudo o que está relacionado com a religião é deveras complexo. O senhor Kawana possui um talento fora de série e estou certo de que, num futuro próximo, o seu nome se tornará famoso.

Ao ouvir dizer aquilo, a professora sorriu, cheia de satisfação. As meninas dos seus olhos encheram-se de luz e brilharam, como os glaciares que se veem ao longe, na superfície das montanhas. Está a recordar-se do Tengo quando ele era pequeno, calculou Ushikawa. Apesar de terem passado vinte anos, para ela é como se tivesse sido ontem.

Enquanto aguardava junto à entrada da escola pelo autocarro que o transportaria de volta à estação de Tsudanuma, Ushikawa recordou os seus professores da primária. Será que eles se lembram de mim? Mesmo que isso acontecesse, nos seus olhos nunca brilharia uma luz tão calorosa como aquela.

Os dados que recolhera aproximavam-se bastante das suas conjeturas. Tengo era o melhor da turma, um rapaz muito popular e estimado pelos demais alunos. Aomame não tinha amigos e era ignorada por todos. Quanto à hipótese de os dois terem feito amizade, não passava disso mesmo. Existiam demasiadas diferenças entre ambos. Além do mais, Aomame abandonara Ichikawa no quinto ano e passara a frequentar outra escola. Nessa altura, o vínculo entre os dois quebrou-se.

Se Ushikawa tivesse de procurar um denominador comum, durante essa época, seria o facto de ambos se terem visto obrigados a obedecer às ordens dos pais. Estes, fosse para conquistar fiéis, fosse para cobrar dinheiro – dois propósitos distintos –, haviam forçado os respetivos filhos a acompanhá-los, contrariados, como é bom de ver, nos seus périplos pela cidade. A posição de cada um, no interior da turma, era distinta. Porém, encontravam-se os dois igualmente sozinhos e andavam desesperadamente à procura de qualquer coisa. Qualquer coisa que os aceitasse e os abraçasse sem reservas. Ushikawa fazia uma ideia de como eles se deviam sentir, visto que, de certa maneira, também ele sabia o que isso era.

Muito bem, pensou Ushikawa, sentado de braços cruzados no comboio que saíra de Tsudanuma e o transportava de regresso a Tóquio. Vejamos: que passo é que vou dar a seguir? Descobri vários elos entre o Tengo e a Aomame. Ligações interessantes, por sinal. Mas, para mal dos meus pecados, não provam nada em concreto.

À minha frente ergue-se um muro alto de pedra, com três portas. Devo escolher uma. Cada uma das portas tem um letreiro: a primeira diz «Tengo», a segunda, «Aomame», e na terceira lê-se «Anciã de Azabu». Aomame evaporou-se, literalmente, sem deixar rasto. A Casa dos Salgueiros, em Azabu, encontra-se tão protegida como a caixa-forte de um banco; diante dela nem eu consigo fazer nada. Dadas as circunstâncias, só me resta uma porta.

A partir de agora, terei de me concentrar no Tengo, decidiu Ushikawa. Não há outra hipótese. Um exemplo perfeito do método de eliminação. De tal modo, que só me dá vontade de mandar imprimir panfletos e desatar a distribuí-los entre as pessoas que passam na rua. «Querem um? Que tal? É escolher, senhoras e senhores, o método de eliminação...»

Tengo, um bom rapaz por natureza. Escritor e matemático. Campeão de judo e menino-bonito da professora, na escola primária. De momento, não me resta outra alternativa senão começar por ele, e, a partir das pistas que ele me oferecer, ir à procura das pontas soltas, para ver se consigo desembaraçar a meada. Um imbróglio de todo o tamanho. Quanto mais penso no assunto, menos percebo. Tenho os miolos que mais parecem uma embalagem de tofu com o prazo de validade caducado.

Que será feito do Tengo? Conseguirá ver as coisas na sua globalidade? Não, provavelmente não. Por aquilo que julgo saber, o Tengo funciona com base no método da tentativa e do erro, seguindo por toda a espécie de atalhos sempre que acha necessário. De certeza que também ele deve sentir-se confuso e a explorar mentalmente várias hipóteses na sua cabeça. Mas, atenção, convém não esquecer que o Tengo é um matemático nato. Um mestre na arte de reunir as peças e dar forma aos quebra-cabeças. Por outro lado, contará sem dúvida com mais peças do que eu.

Nos tempos mais próximos, vou limitar-me a observar os movimentos do Tengo Kawana. Estou convencido de que me conduzirão a algum lado. Com sorte, até ao esconderijo da Aomame. Ushikawa era especialista em agarrar-se a uma coisa, como a rémora ao tubarão, para nunca mais a largar. Quando cismava numa coisa, ninguém o convencia do contrário.

Tomada a decisão, Ushikawa fechou os olhos e desligou. Era tempo de interromper a corrente dos seus pensamentos. Está na hora de dormir um bocado, decidiu ele. Não tinha sido um dia fácil. Visitara duas malfadadas escolas primárias, na prefeitura de Chiba, e entrevistara duas professoras de meia-idade: a bonita vice-reitora e a professora que caminhava como um caranguejo. Depois daquilo, qualquer pessoa precisaria de descansar a mioleira. Durante um bocado, a sua enorme cabeça deformada oscilou para cima e para baixo, ao sabor do andamento do comboio, como um boneco de feira à escala real, daqueles que cospem pela boca tiras de papel com presságios funestos.

Apesar de não se poder dizer que o comboio seguia vazio, nenhum dos outros passageiros quis sentar-se ao seu lado.


11

AOMAME

O mundo carece de lógica, além de boa vontade

Na terça-feira de manhã, Aomame redigiu um recado para Tamaru, dizendo-lhe que o homem que se dizia cobrador da taxa da NHK aparecera outra vez. Fartara-se de bater à porta e de vociferar, fazendo críticas a torto e a direito, ameaçando e pondo a ridículo Aomame (que é como quem diz, a tal senhora de apelido Takai, que, em princípio, morava ali). Tudo aquilo começava a passar das marcas, de tão esquisito que era. Se calhar, impunha-se tomar medidas.

Aomame guardou o bilhetinho dentro de um envelope, fechou-o e deixou-o ficar em cima da mesa da cozinha. No envelope escreveu a inicial T, para ter a certeza de que os homens encarregados das entregas fariam chegar a mensagem às mãos de Tamaru.

Antes da uma da tarde, Aomame meteu-se no quarto, fechou a porta à chave e enfiou-se na cama com um volume do romance de Proust. À uma em ponto soou a campainha. Depois de uma pequena pausa, a porta de casa foi aberta e entrou em campo a equipa encarregada do reabastecimento. Como de costume, encheram o frigorífico de provisões, recolheram o lixo e passaram revista aos armários num abrir e fechar de olhos. Em quinze minutos terminaram as operações, saíram do apartamento e fecharam a porta à chave por fora, após o que voltaram a tocar uma vez à campainha, conforme combinado. Era o ritual de sempre.

Por precaução, Aomame esperou que os ponteiros do relógio marcassem a uma e meia antes de abandonar o quarto, e só então se dirigiu à cozinha. O envelope destinado a Tamaru desaparecera e sobre a mesa havia uma bolsa de papel com o nome de uma farmácia. Também se via um volume grosso que Tamaru lhe conseguira arranjar, intitulado Enciclopédia Anatómica Feminina. No interior do pacotinho da farmácia encontravam-se três tipos de testes de gravidez, cada qual fabricado por um laboratório diferente. Abriu as caixas, leu os prospetos e comparou-os. As indicações eram muito parecidas: o teste podia ser realizado a partir do sétimo dia de atraso menstrual. Pelos vistos, o grau de precisão andava à roda dos noventa e cinco por cento, mas, a dar positivo, ou seja, se o resultado indicasse que a mulher estava grávida, devia ser examinada quanto antes por um especialista. Só com o resultado do teste não era possível tirar conclusões definitivas. O teste indicava apenas que «existia a possibilidade de estar grávida».

O teste não podia ser mais simples. Recolhia-se a urina num recipiente limpo e molhava-se nela uma tira de papel. Ou então mergulhava-se um pauzinho de plástico em contacto direto com a urina. A seguir, esperava-se uns minutos. Se a cor mudava para azul, a mulher estava grávida; se não mudava, era porque não estava. Numa versão diferente, quando apareciam duas linhas verticais num pequeno círculo, estava grávida. Caso aparecesse só uma linha, não estava. Ainda que divergissem nuns pormenorezinhos, o princípio era sempre o mesmo. A presença ou a ausência da hormona gonadotrófica coriónica humana determinava se uma mulher estava grávida ou não.

Hormona gonadotrófica coriónica humana? Aomame franziu o sobrolho. Em trinta anos de vida nunca ouvira semelhante vocábulo. Seria possível que, durante todo este tempo, as suas gónadas tivessem andado a ser estimuladas por aquela coisa estranhíssima?

Abriu a Enciclopédia Anatómica Feminina.

Dizia o seguinte: «A hormona gonadotrófica coriónica humana é segredada nas primeiras fases da gravidez, ajudando a preservar o corpo lúteo. Este segrega progesterona e estrogénio, prepara o endométrio e impede a menstruação. Dessa forma, a placenta vai-se formando gradualmente no interior do útero. Uma vez formada a placenta, processo que demora entre sete a nove semanas, o corpo lúteo finaliza a sua função, e o mesmo acontece no caso da gonadotrofina coriónica humana.»

Por outras palavras, a dita hormona era segregada desde a implantação do óvulo, durante um período que ia de sete a nove semanas. Na sua situação, seria difícil determinar, mas não impossível. O certo é que, se o resultado desse positivo, era porque estava grávida, com toda a certeza. Se fosse negativo, nesse caso já não poderia tirar conclusões tão facilmente. Existia a possibilidade de o período de segregação da tal hormona já ter terminado.

Aomame não tinha vontade de urinar. Foi ao frigorífico buscar uma garrafa de água e bebeu dois copos cheios. Mesmo assim, continuou sem lhe apetecer. Bom, não há pressa, disse de si para si. Procurou esquecer-se da existência do teste de gravidez e concentrou-se na leitura de Proust, repimpada no sofá.

Já passava das três da tarde quando lhe deu vontade. Recolheu a urina no primeiro recipiente ali à mão de semear e molhou a tira de papel. Ao observá-la, a tira foi mudando devagarinho de cor até ficar tingida de um azul-vivo. Por sinal, um bonito tom de azul, que poderia muito bem ser a cor de um automóvel. Um pequeno descapotável azul, daqueles com uma bela capota de pele. Seria um prazer conduzir um carro desse modelo por uma estrada costeira, num dos primeiros dias de verão, sentindo o vento na cara. Porém, o que uma tal tonalidade de azul anunciava, naquela tarde de um outono adiantado, na casa de banho de um apartamento de Tóquio, era o facto de ela estar grávida – ou, pelo menos, a elevadíssima probabilidade, com noventa e cinco por cento de exatidão, de estar grávida. Aomame ficou de pé, à frente do espelho, a olhar fixamente para a alongada e fina tira de papel colorida de azul. Contudo, por mais que olhasse, o tom não mudaria.

Para ficar com a certeza, experimentou fazer outro teste. Este indicava que uma pessoa devia «urinar diretamente sobre a extremidade do stick». Mas, como lhe palpitava que não ia ter vontade de fazer chichi durante os próximos tempos, decidiu molhá-lo no recipiente que utilizara anteriormente. Continha urina fresca, acabada de recolher. Que diferença fazia? Seguido o ritual, obteve o mesmo resultado. A janelinha circular de plástico mostrava claramente dois traços verticais. O que significava, uma vez mais, que existia uma fortíssima probabilidade de estar grávida.

Aomame puxou o autoclismo, despejando a urina pela sanita abaixo. A seguir, envolveu em papel higiénico a tira que mudara de cor, deitou-a no caixote do lixo e lavou o recipiente na banheira. Foi até à cozinha e bebeu outros dois copos de água. Vou esperar por amanhã e logo faço o terceiro teste, pensou. O três é um número conclusivo. Um strike, dois strikes. Aguardarei o último lançamento retendo a respiração.

Pôs água ao lume, preparou um chá e sentou-se no sofá, onde continuou a ler Proust. Enquanto tomava o seu chá, Aomame ia petiscando as bolachinhas de queijo que tinha ali num pratinho. Uma tarde tranquila, ideal para a leitura. A única coisa era que, apesar de os seus olhos acompanharem as letras, não conseguia fixar o que lia. Precisava de ler várias vezes a mesma passagem. Às tantas, desistiu, fechou os olhos e viu-se a conduzir o descapotável azul, com a capota aberta, por uma estradinha junto ao litoral. Transportando consigo o cheiro a maresia, a brisa acariciava-lhe os cabelos. Os letreiros colocados ao longo da estrada exibiam duas linhas verticais, anunciando-lhe: «Atenção: possível gravidez.» Aomame deixou escapar um suspiro e atirou o livro para cima do sofá.

Estava farta de saber que não precisava de fazer o terceiro teste. Podia fazer cem testes, que o resultado seria sempre o mesmo. Era uma perda de tempo. A minha gonadotrofina coriónica humana mantém a mesma postura diante do útero: preserva o corpo lúteo, impede que me apareça a menstruação e ajuda a formar a placenta. Estou grávida. A hormona gonadotrófica coriónica humana sabe isso perfeitamente. Eu também sei. Sinto este pequenino ser num ponto preciso do meu abdómen. Por enquanto, é ainda uma presença diminuta. Apenas uma espécie de sinal, por assim dizer. Mas não tardará a adquirir os nutrientes através da placenta e a crescer. Imerso nesse líquido escuro e denso, desenvolver-se-á lentamente, sem cessar.

Era a primeira vez na vida que Aomame estava grávida. Prudente por natureza, só acreditava naquilo que os seus olhos viam. Quando fazia amor, certificava-se de que o parceiro usava preservativo. Por mais perdida de bêbeda que estivesse, nunca deixava escapar esse pormenor. Tal como dissera à velha senhora de Azabu, desde que lhe começara a vir a menstruação, aos dez anos de idade, nunca lhe faltara. O período não se atrasava mais de dois dias, se tanto. As dores menstruais eram ligeiras. Sangrava durante alguns dias, o que nunca a impedira de fazer exercício físico nem de praticar desporto.

A primeira menstruação aparecera-lhe uns meses depois de apertar a mão de Tengo, na sala de aulas da escola primária. De certo modo, sentia que havia uma relação entre os dois acontecimentos. Se calhar, o contacto com a mão de Tengo tivera o condão de sacudir alguma coisa dentro do seu corpo. Quando contara à mãe que lhe tinha vindo o período pela primeira vez, esta fizera uma expressão de desagradado, como se aquilo fosse mais um fardo a juntar aos outros que já suportava. «Um pouco cedo, não?», comentara a mãe. Aomame não fez caso do comentário. Era um problema dela, nem a mãe nem ninguém tinham nada que ver com o assunto. Foi então que, sozinha, começou uma nova etapa da sua vida.

E agora estava grávida.

Pensou nos seus óvulos. Um dos quatrocentos óvulos de que disponho (um dos que se encontravam no meio, imagino eu) foi fecundado com êxito. Provavelmente, aconteceu em setembro, naquela noite de intensa tempestade. Nesse momento, num quarto mergulhado na escuridão, assassinei um homem. Cravei uma agulha afiada na sua nuca, atravessando-lhe a parte inferior do cérebro. Aquele homem, porém, era totalmente diferente dos outros homens que eu matara até aí. Tinha consciência de que ia ser morto; e mais, desejava que isso acontecesse. Vendo bem, dei-lhe o que ele queria. Não como castigo; antes como um gesto de misericórdia. Em troca, ele concedeu-me o que eu desejava. Foi uma negociação às escuras. A conceção ocorreu naquela noite. Sei que foi assim.

Tirei a vida a um homem com estas mãos e, quase ao mesmo tempo, uma nova vida começou a crescer dentro de mim. Fará isso parte do acordo?

Aomame fechou os olhos e procurou não pensar mais no assunto. Com a mente já vazia, algo afluiu em silêncio e tornou a enchê-la. Então, inconscientemente, pôs-se a rezar.
Jeová, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino. Perdoai as nossas ofensas e dai-nos a Vossa bênção enquanto prosseguimos o nosso humilde caminho.
Ámen.

Porque será que esta oração me vem à cabeça num momento destes? Não acredito nem no Reino, nem no Paraíso, nem em Jeová. E, no entanto, estas palavras estão gravadas a fogo na minha mente. Quanto tinha três ou quatro anos, obrigaram-me a memorizá-las e a recitá-las sem saber o que significavam. Ao mínimo engano, davam-me uma reguada valente nas costas da mão. A oração permanece oculta, mas vem à superfície quando acontece alguma coisa. Igualzinha a uma tatuagem secreta.

O que diria a minha mãe se lhe contasse que fiquei grávida sem ter mantido relações sexuais? O mais provável era considerar isso uma blasfémia contra a sua fé. Pensando bem, trata-se de uma espécie de conceção imaculada – descontando o facto de eu já não ser virgem, claro. Também podia acontecer que ela ignorasse a situação por completo. Ou que nem sequer quisesse ouvir o que tenho para lhe dizer. Porque, aos olhos dela, sou uma criatura defeituosa, alguém que caiu do pedestal que ocupava no mundo onde ela vive.

Aomame esforçou-se por equacionar a questão de outro modo. Vou deixar de querer justificar à força algo que não tem explicação e fazer um esforço para analisar o fenómeno de uma perspetiva diferente, como enigma que é.

Devo interpretar esta gravidez como uma coisa boa para mim e recebê-la de braços abertos? Ou devo considerá-la indesejável e pouco oportuna?

Por mais voltas que dê, não chego a conclusão nenhuma. Ainda me encontro em estado de choque. Sinto-me desorientada e perdida. De certa maneira, até mesmo dividida. E, como é normal, tenho dificuldade em aceitar esta nova realidade.

Contudo, Aomame não podia negar que encarava à partida aquela pequenina fonte de calor com um espírito muito positivo. Em todo o caso, tinha curiosidade por ver com os seus próprios olhos o que aconteceria àquela coisa que crescia no seu ventre. Também sentia medo e ansiedade, naturalmente. Aquilo superava em muito a sua imaginação. Podia ser que fosse um corpo estranho, hostil, que a devorasse por dentro. Ocorreram-lhe milhentas possibilidades, qual delas a mais tenebrosa. Apesar disso, apoderou-se de Aomame uma curiosidade sã, que dominava os outros sentimentos menos positivos. De repente, célere como um raio de luz que penetra na escuridão, uma ideia atravessou-lhe o espírito.

Pode ser que carregue dentro de mim o filho do Tengo.

Ao conceber mentalmente essa possibilidade, Aomame franziu ligeiramente o cenho. Por que raio iria eu ficar grávida de uma criança do Tengo?

Vamos lá analisar a questão de outro ângulo: na famigerada noite caótica em que aconteceram tantas coisas, produziu-se algo neste mundo que permitiu ao Tengo introduzir a sua semente no meu útero. Por um processo qualquer, cuja lógica me escapa, abriu-se uma brecha no meio dos trovões, do aguaceiro, da escuridão e do assassínio. Uma passagem especial, que não deve ter durado mais do que uns instantes, e coube-nos aproveitar. O meu corpo tirou partido dessa vantagem, acolheu ansiosamente o Tengo e fiquei grávida. O meu óvulo número 201 – ou seria o número 202? – agarrou-se a um dos milhões de espermatozoides do Tengo. Um espermatozoide sincero, inteligente e saudável, como o seu dono.

Não deixa de ser uma ideia disparatada, bem sei. Não faz sentido. Por muitas palavras que gaste e por mais explicações que dê, não há ninguém no mundo que me possa compreender. A própria noção de estar grávida representa, só por si, um absurdo. Além disso, estamos no ano de 1Q84. Um mundo estranho, onde tudo pode acontecer.

E se a criança for realmente do Tengo?...

Naquela manhã, na saída de emergência da Autoestrada Metropolitana 3, não apertei o gatilho da pistola. Fui até lá com a firme intenção de me matar e introduzi o cano da arma na boca. Não temia a morte, porque sabia que ia morrer para salvar o Tengo. Mas uma força estranha atuou sobre mim e decidi não me suicidar. Ouvi uma voz distante pronunciar o meu nome. Estaria a chamar-me por eu estar grávida? Estaria alguém a tentar alertar-me para o nascimento desta nova vida dentro de mim?

Aomame recordou-se então do sonho em que a elegante mulher utilizava um casaco para cobrir a sua nudez. Saiu do Mercedes-Benz prateado, ofereceu-me um casaco amarelo, cor de casca de ovo, leve e macio. Ela sabia. Sabia que eu estava grávida. E protegeu-me carinhosamente do vento frio, dos olhares alheios e de outros males.

Era um bom presságio.

Aomame distendeu os músculos da cara e voltou a recuperar a sua expressão habitual. Alguém observa os meus passos e protege-me, disse para si mesma. Não estou só, nem sequer quando me vejo neste mundo de 1Q84. Pelo menos é o que parece.

Aomame aproximou-se da janela com a chávena de chá, já frio, na mão. Saiu para a varanda, sentou-se na cadeira de jardim, de maneira a não ser vista por ninguém do exterior, e ali ficou a espreitar o parque infantil. Esforçou-se por pensar em Tengo. Precisamente nesse dia, vá lá saber-se porquê, custava-lhe pensar nele. Só conseguia ver à sua frente o rosto de Ayumi Nakano. Ayumi sorria-lhe alegremente, com um sorriso dos seus, muito natural e sem reservas. Estavam as duas sentadas à mesa de um restaurante, com um copo de vinho na mão. Qualquer delas já um pouco entornada. O excelente borgonha circulava pelo sangue, através das veias, e conferia ao mundo em redor um leve tom de púrpura.

– Sabes, Aomame – dissera Ayumi, afagando o copo com o dedo –, o mundo carece de lógica, além de boa vontade.

– Talvez – admitira Aomame, e depois acrescentara: – Vais ver que este mundo acabará quando menos esperarmos. E então há de chegar o Reino dos Céus.

– Mal posso esperar – rematou Ayumi.

Por que carga-d’água me lembrei de falar no Reino dos Céus naquela altura?, estranhou Aomame. Porque é que fui falar nessa história, quando nem sequer tenho fé? Não foi muito depois disso que a Ayumi morreu...

Quando pronunciei a expressão, devia ter em mente um «reino» diferente daquele em que acreditam as Testemunhas. Sim, muito provavelmente, tratava-se de um reino mais pessoal, daí que o termo tenha escapado da minha boca com tanta naturalidade. Afina, vendo bem, em que reino é que acredito? Que espécie de reino nos espera quando este mundo desaparecer?

Pousou as mãos sobre o ventre, suavemente, e apurou o ouvido. Por mais que prestasse atenção, não ouviu nada.

Em todo o caso, Ayumi Nakano foi desterrada deste mundo. Prenderam-lhe os pulsos com umas algemas frias e duras e estrangularam-na com o cinto do robe até ela morrer. (Que Aomame soubesse, o assassino ainda não fora encontrado.) Tinha sido feita uma autópsia, haviam-na cosido novamente, transportaram-na para um crematório e reduziram o seu corpo a cinzas. Aquele ser chamado Ayumi Nakano já não existia. A sua carne e o seu sangue tinham-se perdido para sempre. Existia apenas em documentos e nas recordações.

Não, talvez isso não seja inteiramente verdade. Talvez esteja viva e de boa saúde no ano de 1984. Se calhar, vai uma pessoa ver, e ela continua por aí a deixar multas nos para-brisas dos veículos mal estacionados, sempre a queixar-se de que não a deixam andar armada. Pode ser que continue a fazer a ronda pelas escolas secundárias de Tóquio, para ensinar métodos contracetivos às jovens alunas. «Sem preservativo, não há penetração!»

Aomame sentiu um desejo imenso de tornar a ver Ayumi. Se tivesse hipótese de voltar a subir pelas escadas de emergência da autoestrada metropolitana e regressar ao mundo de 1984, talvez se reencontrasse com a amiga. A Ayumi continua viva nesse lugar, e eu não sou perseguida por esses esbirros da Vanguarda. Poderíamos ir ao pequeno restaurante de Nogizaka beber um copo de borgonha juntas. Quem sabe?

Subir as escadas de emergência da autoestrada metropolitana?

Aomame voltou atrás nos seus pensamentos, como acontece quando se rebobina uma cassete. Porque será que não me lembrei disto antes? Quando tentei descer as escadas de emergência, não consegui atinar com a entrada.

As escadas que, em princípio, deveriam estar mesmo à frente do painel publicitário da Esso, tinham desaparecido. Mas talvez seja possível efetuar a operação no sentido contrário. Em vez de descer as escadas, há que subi-las. Meter-me de novo naquele depósito de materiais que havia por baixo da autoestrada e subir até à Autoestrada Metropolitana 3. Fazer o percurso inverso. Talvez seja essa a resposta.

Ao pensar naquilo, apeteceu-lhe sair dali disparada e ir a correr o caminho todo até Sangenjaya, só para provar que a sua teoria estava certa. A coisa tanto podia dar para o certo como para o torto. Mas valia a pena experimentar. Vestir o mesmo fato, calçar os mesmos sapatos de salto alto e subir aquela escada coberta de teias de aranha.

Aomame, porém, reprimiu o seu impulso.

Não, não vai funcionar. Graças a ter vindo parar ao ano de 1Q84 é que tornei a ver o Tengo. E fiquei à espera de uma criança que muito provavelmente é dele. Dê por onde der, tenho de me encontrar outra vez com o Tengo no mundo novo. Tenho de falar com ele. Até lá, não posso abandonar este mundo. Aconteça o que acontecer.

No dia seguinte, à tardinha, recebeu uma chamada de Tamaru.

– Antes de mais, temos de falar acerca do cobrador da NHK – disse Tamaru. – Voltei a ligar para o departamento comercial da empresa e fiz umas perguntas. O cobrador que tem a seu cargo o bairro de Koenji não se lembra de ter batido à porta do apartamento 303, no prédio em questão, quando fez a ronda pela zona. O sujeito afirma ter-se certificado de que na porta existe um autocolante a indicar que o pagamento se realiza por débito direto. Para começar, diz que nunca bate à porta a partir do momento em que existe uma campainha. Que isso só serviria para aleijar a mão. Mas há mais: no dia em que foste visitada pelo cobrador, este tal indivíduo andava a trabalhar num outro bairro. Não me parece que ele esteja a mentir. Estamos a falar de um veterano com quinze anos de trabalho no terreno, muito apreciado pela sua paciência e pela cordialidade de que tem dado provas.

– O que significa... – depreendeu Aomame.

– O que significa que é muito provável que o homem que foi aí a casa não fosse um cobrador, mas sim alguém a fazer-se passar por ele. Tudo aponta para a existência de um falso cobrador da NHK. O encarregado, com quem falei mais tarde, também me pareceu preocupado. Para a NHK, o facto de andarem por aí cobradores falsos constitui um problema. O responsável pela zona confidenciou-me que, se fosse possível, gostaria de se encontrar comigo para ficar a saber da história mais ao pormenor. Naturalmente, rejeitei a ideia. Afiancei-lhe que ninguém tinha saído prejudicado e que, além do mais, não era minha intenção ser alarmista.

– Quer então dizer que podemos estar perante uma pessoa perturbada? Ou alguém que anda a perseguir-me?

– Não creio que a pessoa que anda a perseguir-te, seja ela quem for, faça uma coisa dessas. Serviria apenas para te pôr em alerta...

– Partindo do princípio de que estamos a lidar com uma pessoa perturbada, não achas demasiada coincidência? Com tantas portas, porque é que havia de escolher logo esta? Tenho sempre cuidado para nunca deixar as luzes acesas, e faço menos barulho do que um rato. Procuro manter as cortinas corridas, nunca penduro roupa lá fora... No entanto, o homem escolheu precisamente este apartamento para vir cá bater. Sabe que eu me encontro aqui escondida. Ou, pelo menos, diz que sabe. E tenta, por todas as maneiras, convencer-me a abrir a porta.

– Achas que poderá voltar?

– Não sei. Mas se é intenção dele que eu abra, calculo que regressará até que me decida a fazê-lo.

– E isso deixa-te preocupada.

– Não me preocupa – disse Aomame. – Simplesmente, não me agrada.

– Claro, a mim também não me agrada. Nadinha. No caso de ele regressar, nem sequer podemos chamar a NHK ou a polícia. Mesmo que me ligasses e que eu fosse a correr ter contigo, quando chegasse, o mais provável era o homem já se ter ido embora.

– Julgo que conseguirei desenvencilhar-me sozinha – sossegou-o Aomame. – Só tenho de procurar não lhe abrir a porta, por mais que me provoque.

– Podes crer que ele tudo fará para te intimidar.

– É provável – admitiu a jovem.

Tamaru pigarreou ligeiramente e mudou de assunto.

– Recebeste os testes de gravidez, espero.

– Deu positivo – respondeu Aomame, lacónica.

– Quer dizer que acertaste em cheio.

– Exato. Experimentei com dois tipos diferentes de testes, e o resultado foi sempre o mesmo.

Seguiu-se um momento de silêncio. Um silêncio que fazia pensar numa litografia em que não havia nada gravado.

– Não há qualquer dúvida? – perguntou Tamaru.

– Já sabia desde o princípio. Os testes vieram apenas confirmá-lo.

Tamaru deixou-se ficar uns segundos a acariciar com a ponta dos dedos aquela litografia feita de silêncio.

– Tenho de te fazer uma pergunta muito concreta – disse ele. – Pensas ter a criança? Ou vais tomar medidas?

– Não vou tomar medidas.

– O que significa que vais até ao fim da gravidez?

– Se tudo correr bem, deverá nascer entre junho e julho do ano que vem.

Tamaru fez os cálculos de cabeça.

– Nesse caso, teremos de alterar os nossos planos.

– Lamento.

– Não tens de pedir desculpa – tranquilizou-a Tamaru. – Todas as mulheres estão no direito de dar à luz, seja em que circunstâncias se encontrem. Esse direito merece ser rigorosamente protegido.

– Já parece a Declaração dos Direitos do Homem – observou Aomame.

– Volto a insistir: não fazes ideia de quem possa ser o pai?

– Desde junho que não tive relações sexuais com ninguém.

– Nesse caso, é uma espécie de imaculada conceção?

– Ainda que essa designação possa ofender as pessoas que sejam religiosas...

– Quando acontece qualquer coisa fora do vulgar, há sempre alguém, em qualquer parte, que não está pelos ajustes e fica ofendido, isso é limpinho – afirmou Tamaru. – Por outro lado, uma vez que estás grávida, precisas de ser examinada quanto antes por um especialista. Não podes ficar fechada nesse apartamento até ao termo da gravidez.

Aomame suspirou.

– Por favor, deixa-me estar por cá até ao fim do ano. Não vos causarei qualquer espécie de problema.

Tamaru permaneceu em silêncio, antes de responder.

– Podes ficar aí até ao fim do ano, tal como ficou prometido. Mas, logo que entrarmos no ano novo, tens de te mudar para um lugar menos perigoso, onde possas receber assistência médica. Consegues entender isso, espero.

– Sim – murmurou Aomame. Diga-se em abono da verdade que não estava assim tão convencida. Se não conseguir ver o Tengo, pensou ela, poderei alguma vez abandonar este lugar?

– Uma vez, engravidei uma mulher – declarou Tamaru.

Por instantes, Aomame ficou sem saber o que dizer.

– Tu? Mas então tu não és...

– Sim, com efeito, sou homossexual. E daqueles incondicionais. Sempre fui e imagino que continuarei a ser toda a vida.

– O que não impediu que tivesses engravidado uma mulher.

– Todos cometemos erros – disse Tamaru. Pelo tom de voz, não parecia estar a brincar. – Prefiro omitir os pormenores, era muito novo. Aconteceu uma vez, e, pumba!, em cheio.

– E que é feito da mulher?

– Não sei – confessou Tamaru.

– Não sabes?

– Soube dela até ao sexto mês de gravidez. A partir daí, não faço a mais pequena ideia do que lhe terá acontecido.

– Aos seis meses já não é possível abortar.

– Bem sei.

– É muito provável que ela tenha dado à luz – disse Aomame.

– De certeza.

– E, partindo do princípio de que o teu filho nasceu, não gostarias de o conhecer?

– Não tenho grande interesse nisso – afirmou Tamaru sem hesitar. – Não encaixa na vida que levo. E tu? Vais querer conhecer e criar o teu filho?

A pergunta deu que pensar a Aomame.

– Tal como tu, também eu fui abandonada pelos meus pais quando era miúda, portanto, é-me difícil imaginar o que se sente ao ter um filho. Digamos que não tenho propriamente um modelo que me sirva de referência.

– Apesar disso, tencionas trazer uma criança a este mundo. Um mundo extremamente violento e eivado de contradições.

– Sabes... eu ando à procura do amor – afirmou Aomame. – Mas o amor de que falo não é aquele que me liga ao meu bebé. Ainda não cheguei a essa fase.

– Mas o teu filho faz parte desse amor.

– Possivelmente, de uma maneira ou de outra.

– Porém, se as coisas não correrem como previsto e o teu filho não tiver nada que ver com esse amor que tanto almejas, a criança acabará por sofrer. Tal como aconteceu connosco.

– É possível. Ao mesmo tempo, sinto que isso não vai acontecer. Chama-lhe intuição, se quiseres.

– Bem sabes que respeito a tua intuição – reiterou Tamaru. – No entanto, a partir da altura em que o ego nasce e passa a fazer parte deste mundo, não tem outro remédio senão ser portador de um sistema de orientação moral. Será bom que o tenhas presente.

– Quem disse isso?

– Wittgenstein.

– Terei isso presente – afirmou Aomame. – Se o teu filho tivesse nascido, que idade teria agora?

Tamaru fez as contas mentalmente.

– Dezassete anos.

– Dezassete anos. – Aomame pôs-se a imaginar um rapaz ou uma rapariga de dezassete anos, comportando-se como se tivesse uma moral.

– Vou dar conta desta nossa conversa à senhora – fez saber Tamaru. – Ela deseja falar contigo pessoalmente. No entanto, quero que saibas que, por razões de segurança, não o aconselho. Estou a tomar as medidas necessárias, mas falar ao telefone, por si só, já é perigoso.

– Bem sei.

– Pu-la a par de toda a situação; está realmente preocupada contigo.

– Também sei disso. E fico-lhe muito agradecida.

– O mais sensato da tua parte seria confiar nela e seguir os seus conselhos. É uma criatura muito sagaz.

– Podes crer – respondeu Aomame.

À margem disso, porém, disse Aomame para consigo, tenho de manter a minha consciência bem desperta e proteger-me. É certo que a anciã de Azabu não deixa de ser uma criatura cheia de sabedoria, para além de possuir uma influência considerável. Mas existem coisas que nem ela própria tem maneira de saber. Duvido, por exemplo, que conheça os princípios que regem o ano de 1Q84. E quase aposto que nunca deu pela existência de duas luas no céu...

Após ter desligado a chamada, Aomame deitou-se no sofá e fez uma sesta de meia hora. Foi um sono breve mas profundo. Sonhou, e nesse sonho encontrava-se no meio de um vazio. Dentro desse espaço via-se a escrever, com tinta invisível, num caderno em branco. Ao acordar, de repente, obteve uma imagem vaga e, ao mesmo tempo, extraordinariamente clara. Vou dar à luz esta criança. Ajudarei a trazer ao mundo esta pequenina vida, sã e salva. E, tal como Tamaru dissera, ela seria forçosamente portadora de uma moral.

Aomame pousou a palma da mão sobre o baixo-ventre e prestou atenção. Ainda não se ouvia nada. Por enquanto.


12

TENGO

As regras do mundo começam a afrouxar

Assim que acabou de almoçar, Tengo tomou um duche. Lavou o cabelo e barbeou-se. Vestiu a roupa que entretanto lavara e que já estava seca. A seguir, saiu do ryokan, comprou o jornal da manhã no quiosque da estação, entrou numa cafetaria próxima e bebeu um café quente.

Passou os olhos pelo jornal, mas não encontrou nada que despertasse a sua atenção. A julgar pelas notícias, o mundo era um lugar bastante triste e enfadonho. Apesar de ter nas mãos a edição do próprio dia, teve a sensação de estar a ler o exemplar com a data de uma semana atrás. Tengo dobrou-o e consultou o relógio de pulso. Eram nove e meia. A partir das dez começava o horário de visitas na clínica.

Não demorou quase nada a arranjar as coisas para regressar a Tóquio. Trouxera pouca bagagem, e isso ajudou. Algumas mudas de roupa, artigos de higiene, meia dúzia de livros e uma resma de papel, pouco mais. Enfiou tudo na sua mochila de lona, pendurou-a ao ombro, pagou a conta da hospedaria e apanhou o autocarro na paragem que ficava diante da estação. Estava-se no começo do inverno; àquela hora da manhã não se via quase ninguém a caminho da zona costeira. Foi ele o único passageiro que saiu na estação em frente da clínica.

Como de costume, à entrada anotou a data e o seu nome no livro de registo destinado às visitas. Junto à receção estava sentada uma enfermeira que ele nunca vira. Com os braços e as pernas extremamente longos e magros e um sorriso estampado no rosto, parecia uma aranha cheia de boas intenções, preparada para guiar as pessoas até ao coração da floresta. Quem costumava estar ali era Tamura, a enfermeira de meia-idade que usava óculos. Tengo ficou aliviado por não a encontrar. Receava que ela se pusesse a fazer comentários pelo facto de ele ter levado Kumi Adachi a casa, na noite anterior. Também não viu Omura, a enfermeira que andava sempre com o cabelo apanhado e uma esferográfica espetada lá no alto. Se calhar tinham sido tragadas pela terra, todas as três, sem deixar rasto. Como acontece com as três bruxas de Macbeth.

Mas, claro está, isso era impossível. Mesmo que Kumi Adachi folgasse nesse dia, as outras duas tinham-lhe dito que estariam a trabalhar, como de costume. Deviam estar ocupadas noutro sítio qualquer.

Tengo subiu as escadas e foi até ao quarto do pai, no primeiro andar. Bateu suavemente, duas vezes, antes de abrir a porta. Foi encontrar o pai deitado na cama, a dormir, na mesma posição de sempre. Recebia soro por via intravenosa no braço e tinha um cateter ligado à uretra. O cenário era igualzinho ao do dia anterior. A janela encontrava-se fechada e as cortinas corridas. O ar no interior do quarto estava pesado, abafado. Misturavam-se indistintamente naquele ambiente todos os cheiros que eram produto da vida humana – o odor dos medicamentos, o perfume das flores, o bafo dos doentes e o pivete das suas excreções. Apesar de inconsciente e com a energia vital por um fio, o pai não conhecera grandes alterações no seu metabolismo. Era caso para dizer que ainda se encontrava do lado de cá. Por outras palavras, estar vivo, no caso do pai, significava que do seu corpo ainda se desprendiam os mais variados odores.

A primeira coisa que Tengo fez, assim que entrou, foi dirigir-se ao fundo do quarto para afastar as cortinas e escancarar a janela. Estava uma manhã agradável, e o quarto precisava urgentemente de ser arejado. O ar lá fora era um bocadinho fresco, mas não chegava a ser frio. Os raios de sol invadiram a divisão e a brisa marítima fez ondular as cortinas. Com as patas delicadamente recolhidas, ao sabor do vento, uma gaivota pairava sobre o pinhal. Um bando de pardais estava pousado em aparente desordem nas linhas elétricas de alta tensão, passando o tempo a mudar de posição, como se as aves reescrevessem as notas de uma partitura. Do alto de um candeeiro de mercúrio, um corvo com um grande bico vigiava atentamente a paisagem em redor, planeando o seu próximo movimento. No céu, lá bem alto, flutuavam quatro fiapos de nuvem, tão distantes que mais pareciam pensamentos abstratos sem qualquer relação com a vida dos comuns mortais.

De costas para o doente, Tengo deixou-se ficar ali por momentos a contemplar aquele cenário. Coisas com vida e coisas sem vida. Coisas móveis e coisas imóveis. Do lado de lá da janela via-se a paisagem imutável de sempre. Nada de novo. O mundo avançava, porque tinha de ser. Limitava-se a desempenhar o seu papel, da mesma forma que um despertador barato cumpre a função para que foi criado. E Tengo observava aquela paisagem, aos seus olhos desprovida de interesse, apenas com o fito de adiar um pouco mais o encontro com o pai. Contudo, a verdade é que não podia adiar esse momento eternamente.

Por fim, encheu-se de coragem, deu meia-volta e foi sentar-se numa cadeira metálica, ao lado da cama. O pai estava deitado de barriga para cima, com o rosto virado para o teto e os olhos fechados. A colcha que cobria o seu corpo até ao pescoço estava impecável, sem uma ruga. Tinha os olhos afundados nos ossos do rosto. Parecia que alguma peça se desprendera e que as órbitas não conseguiam suster os globos oculares. Imaginando que abria os olhos naquele momento, seria como ver o mundo desde o fundo de um buraco.

– Meu pai – interpelou-o Tengo.

O pai não respondeu. Subitamente, a brisa deixou de se fazer sentir e as cortinas ficaram na vertical, fazendo lembrar aquelas pessoas que, a meio de uma tarefa, se lembram de um assunto importante que ficou por resolver. Pouco depois, como se tivesse recuperado o fôlego, o vento tornou a soprar, de mansinho.

– Volto para Tóquio – anunciou Tengo. – Não vou ficar aqui para sempre. Já não posso faltar mais ao trabalho. Ainda que não seja nada do outro mundo, tenho a minha própria vida.

Nas faces do pai crescia uma barba rala. Uma barba de dois ou três dias. A enfermeira costumava passar-lhe a máquina de barbear pelo rosto, mas não o fazia todos os dias. Na barba grisalha, os pelos brancos e os pretos distribuíam-se em partes iguais. Apesar de ter apenas sessenta e quatro anos, parecia muito mais velho. Dir-se-ia que alguém, por engano, fizera o filme da vida dele saltar para a frente.

– Ao longo de todo o tempo que estive aqui contigo, nunca acordaste. E, no entanto, o médico diz que a tua condição física nem sequer está assim tão deteriorada. Por estranho que pareça, a verdade é que te conservaste quase tão saudável como antes.

Tengo fez uma pausa e aguardou que as suas palavras calassem fundo no coração do pai.

– Não sei se me ouves ou não. Se calhar, mesmo que a minha voz faça vibrar os teus tímpanos, pode ser que o circuito seguinte esteja bloqueado. Ou então, também pode acontecer que as minhas palavras alcancem a tua mente e tu não sejas capaz de reagir. Confesso que não faço ideia. Apesar de tudo, tenho vindo a falar contigo e a ler para ti, partindo do princípio de que consegues ouvir-me. Falar-te sem acreditar nisso não teria sentido. Por outro lado, não sei explicar muito bem, mas, ao longo destes dias, notei qualquer coisa. Pareceu-me que, ainda que não tivesses apanhado tudo, pelo menos conseguiste captar o essencial das minhas palavras.

Não obteve reação.

– O que vou dizer a seguir pode parecer uma estupidez, mas preparo-me para regressar a Tóquio e não sei quando voltarei. Por isso, preciso de desabafar e contar-te aquilo que me vai na cabeça. Se achares que é tudo um absurdo, ri-te à vontade. Se é que consegues rir, claro.

Tengo soltou um suspiro e observou o rosto do pai, que, como seria de esperar, não reagiu.

– Estás em coma. Perdeste a consciência, perdeste a sensibilidade e manténs-te nesse estado graças a um sistema de suporte de vida. És «um cadáver vivo», ou uma coisa do género, nas palavras do médico. Uma expressão com o seu quê de eufemismo, claro. Se bem que, em termos médicos, pode ser que seja assim. Mas agora pergunto eu, não será apenas um disfarce? E se, na realidade, não estivesses inconsciente? Se, enquanto o teu corpo repousa nesse coma, a tua mente estiver viva noutro lugar? Há muito tempo que tenho esta impressão, ainda que não passe de uma teoria vaga e hipotética.

Silêncio.

– Sei perfeitamente que é uma ideia delirante. Se partilhasse isto com alguém, iriam pensar que eu estava com alucinações. Mas garanto-te que não estou a imaginar nada. Provavelmente, perdeste o interesse neste mundo. Sentias-te desapontado, desalentado, indiferente a tudo e a todos. Então, decidiste abandonar o teu corpo e viver num lugar diferente. Talvez no teu próprio mundo interior.

Novo silêncio.

– Pedi uns dias no meu trabalho, desloquei-me até esta cidade, aluguei um quarto num ryokan e tenho vindo visitar-te todos os dias. Isto de há duas semanas a esta parte. Verdade seja dita, porém, que o meu objetivo não era só ver-te e cuidar de ti. Trouxe-me até aqui, também, o desejo de conhecer as minhas origens, de saber de onde venho e com quem tenho laços de sangue. Escusado será dizer que, neste momento, já nada disso importa. Esteja ligado pelo sangue a quem esteja, sou quem sou. E tu és aquele que fez as vezes de meu pai. É quanto me basta. Não sei se podemos chamar a isto uma reconciliação. Talvez seja uma reconciliação comigo mesmo. Sim, parece-me que deve ser isso.

Tengo respirou fundo e baixou o tom de voz.

– No verão ainda estavas consciente. Desnorteado, é certo, mas conservavas as tuas faculdades. Mais ou menos por essa altura, reencontrei-me neste quarto com uma rapariga. Enquanto te encontravas na sala de observações, ela apareceu aqui. Talvez fosse um alter ego. Se voltei a esta terra e aqui permaneci durante tanto tempo, foi na esperança de a tornar a ver. Foi essa a verdadeira razão que me trouxe cá.

Tengo suspirou e juntou as palmas das mãos sobre os joelhos.

– Mas ela não apareceu. Chegou até aqui numa coisa chamada crisálida de ar, dentro de uma espécie de cápsula que a envolvia. Demoraria muito tempo a explicar ao pormenor; o que importa reter é que a crisálida de ar começou por ser um produto da imaginação, uma fantasia. E agora deixou de ser produto da imaginação. A fronteira entre o mundo real e o imaginário tornou-se imprecisa. No céu flutuam duas luas. Também elas tiveram origem num mundo fictício.

Tengo olhou o rosto do pai. Estaria a seguir o fio da meada?

– Nesse contexto, não seria uma hipótese assim tão descabida que a tua consciência se tivesse separado do teu corpo e se transferisse para outro mundo, onde agora deambula livremente. É, por assim dizer, como se as regras que governam o mundo à nossa volta começassem a afrouxar. E, como te disse antes, tenho a estranha perceção de que és tu quem, na realidade, está por trás de tudo isto. Entre outras coisas, por exemplo, andar a bater à porta do meu apartamento, em Koenji. Sabes a que me refiro, não é verdade? Afirmas ser o cobrador da NHK, bates na porta com insistência e proferes ameaças no meio do corredor. Tal como costumavas fazer quando percorríamos as ruas de Ichikawa arrecadando a taxa de televisão.

Algo indicava que a atmosfera no quarto mudara um tudo-nada. Apesar de a janela estar aberta, não lhe chegava aos ouvidos qualquer som do exterior. Tirando o chilrear esporádico de um ou outro pardal.

– No meu apartamento de Tóquio está agora a morar uma rapariga. Não é minha namorada, nem nada parecido. Simplesmente, aconteceu uma coisa, e ela encontra-se lá instalada por uns tempos. Foi ela que me contou ao telefone a história do cobrador da NHK, do tal homem que lhe apareceu há dias, as coisas que ele disse enquanto se fartava de bater à porta e o que fez. Não deixa de ser curioso que ele se tenha comportado tal qual tu fazias, noutros tempos. As palavras que a tal rapariga escutou, vindas da boca dele, são iguaizinhas às que me lembro de te ouvir dizer. Refiro-me a expressões que, por sinal, gostaria de apagar por completo da minha memória. E pergunto-me se, de facto, esse cobrador não serias tu? Engano-me?

Tengo guardou silêncio durante uns bons trinta segundos. O pai, contudo, nem sequer pestanejou.

– Só te peço uma coisa. Não voltes a bater à minha porta. Não tenho televisão em casa. Além disso, os dias em que percorríamos as ruas da cidade juntos, a cobrar a taxa, pertencem ao passado. Pensava que isso já tinha ficado claro quando discutimos o assunto na presença da professora... Não me lembro agora do nome dela, mas era aquela baixinha, de óculos, que me dava aulas na altura. Deves estar lembrado, não? Portanto, não tornes a bater à porta. E não me refiro apenas à porta da minha casa. A nenhuma porta. Deixa de andar por aí a martelar às portas. Já não és cobrador da NHK e, como tal, não te assiste o direito de assustar as pessoas dessa maneira.

Tengo levantou-se, aproximou-se da janela e olhou lá para fora. Um homem de idade com uma camisola grossa caminhava apoiado na sua bengala, mesmo à frente do pinhal que servia de proteção contra o vento. Devia estar a dar um passeio. Era alto, tinha cabelos brancos e excelente porte, mas andava de uma maneira atabalhoada, progredindo muito lentamente, como que esquecido de como se caminhava e procurando, a cada passo que dava, recuperar a memória do andar. Tengo deixou-se ficar durante muito tempo a observá-lo. O ancião demorou uma eternidade a atravessar o jardim, até que desapareceu num recanto, sem que, aparentemente, se tivesse conseguido recordar de como caminhar direito. Tengo virou-se de frente para o pai.

– Não te estou a acusar de nada. Tens o direito de fazer o que quiseres com a tua consciência. É a tua vida, e é a tua consciência. Calculo que haverá coisas que consideras corretas e que quererás pôr em prática. Se calhar, eu não tenho o direito de te criticar. Mas já não és cobrador da NHK. Portanto, não podes continuar a fingir e a passar por um deles. Isso não te conduzirá a lado nenhum.

Tengo sentou-se no peitoril da janela e procurou as palavras no espaço daquele quartinho.

– Não sei bem como foi a tua vida, que tristezas e que alegrias conheceste. Mas se, de certa maneira, houve algum aspeto que não pudeste satisfazer, não deverias andar a bater à porta das outras pessoas em busca dessa concretização. Mesmo que seja esse o lugar com o qual estejas mais familiarizado, mesmo que seja o que melhor sabes fazer.

Tengo contemplou em silêncio o rosto do pai.

– Não quero que voltes a bater à porta de ninguém. É só o que te peço, meu pai. Agora, tenho de ir à minha vida. Vim até aqui todos os dias, li para ti, falei contigo, estando tu em coma. Em certa medida, pelo menos reconciliámo-nos. E acredito que essa reconciliação aconteceu de verdade, no mundo real. Pode ser que não te agrade, mas o melhor será regressares aqui. Porque este é o lugar onde pertences.

Tengo pegou no saco e pendurou-o ao ombro.

– Bom, vou-me embora.

O pai não disse nada. Permaneceu de olhos fechados, imóvel, como de costume. Algo nele, porém, indicava que estava a pensar. Tengo conteve o fôlego e prestou atenção a esse sinal. Palpitava-lhe que o pai, a todo o momento, poderia abrir os olhos e sentar-se na cama. No entanto, nada disso se verificou.

A enfermeira dotada de longas pernas e braços compridos, que faziam lembrar um aranhiço, continuava no seu posto, sentada na receção. À altura do peito tinha uma placa de identificação onde se lia: «Tamaki».

– Regresso hoje a Tóquio – anunciou-lhe Tengo.

– É pena que o paizinho não tenha recuperado a consciência durante a sua estada – disse ela, acrescentando, em jeito de consolação: – Mas tenho a certeza de que ele estará contente por saber que o filho ficou por cá tanto tempo.

Tengo não se lembrou de nada para lhe responder à letra.

– Peço-lhe que transmita os meus cumprimentos às outras enfermeiras. Foram todas extremamente prestáveis.

Acabara por não encontrar Tamura, a enfermeira dos óculos. Nem Omura, a do peito generoso e que andava sempre com uma esferográfica no cabelo. Sentiu-se invadido por uma certa tristeza. Eram excelentes profissionais e tinham-no tratado sempre muito bem. Talvez fosse melhor assim. Afinal, estava prestes a abandonar sozinho a cidade dos gatos.

Quando o comboio partiu da estação de Chikura, recordou a noite que passara no apartamento de Kumi Adachi. Surpreendeu-o o facto de ter acontecido na véspera. O espampanante candeeiro Tiffany, o sofá tudo menos cómodo, o programa de humor na televisão que se ouvia a partir da casa do vizinho. O piar do mocho no arvoredo, o fumo do haxixe, a camisola com o smiley estampado, os exuberantes pelos púbicos pressionados de encontro à sua perna. Haviam decorrido apenas umas horas, mas dava a impressão de ter acontecido tudo num passado distante. Era como se não possuísse uma noção clara do tempo. O núcleo das suas recordações não havia meio de assentar, como uma balança mal calibrada.

De súbito, Tengo sentiu-se inseguro e olhou em volta. Seria aquela a verdadeira realidade? Ou teria embarcado uma vez mais na realidade errada? Dirigiu-se a um dos passageiros do lado e questionou-o, para ficar com a certeza de que aquele era o comboio que se dirigia para Tateyama. Está tudo bem, murmurou para dentro. Não te preocupes. Na estação de Tateyama podia apanhar o expresso que o conduziria direito a Tóquio. Estava a deixar para trás a cidade dos gatos.

Depois de mudar de linha e de encontrar o seu lugar no comboio, não conseguiu aguentar mais, e o sono apoderou-se dele. Um sono profundo, como se tivesse tropeçado e caído num buraco negro sem fim. Cerraram-se-lhe as pálpebras, com naturalidade, e, no instante seguinte, a consciência apagou-se. Quando acordou, o comboio já deixara Makuhari para trás. Apesar de não fazer muito calor dentro da carruagem, o suor acumulava-se-lhe nas axilas e no fundo das costas. Tinha um sabor desagradável na boca. Trazia-lhe à memória o ar estagnado que se respirava no quarto do pai. Tirou uma pastilha elástica do bolso e meteu-a na boca.

Nunca mais regressaria àquela cidade, isso sabia Tengo de ciência certa. Pelo menos enquanto o pai fosse vivo. Muito embora uma pessoa nunca pudesse afirmar uma coisa neste mundo com total segurança, ele sabia que nada podia fazer naquela cidadezinha à beira-mar plantada.

Ao chegar ao apartamento, verificou que Fuka-Eri não estava em casa. Bateu três vezes à porta, esperou uns segundos e voltou a bater mais duas vezes. Depois abriu a porta com a chave. Reinava um silêncio absoluto e encontrava-se tudo escrupulosamente limpo e arrumado. A loiça guardada no aparador, a mesa e a secretária em ordem, o balde do lixo despejado. Também se notava que ela tinha passado o aspirador pela casa. A cama estava feita e não havia um só livro nem um só disco fora de ordem. A roupa lavada e seca estava em cima da cama, dobrada na perfeição.

O grande saco que Fuka-Eri costumava usar a tiracolo desaparecera. Ao mesmo tempo, não dava a impressão de que a jovem se lembrara de qualquer coisa, ou que lhe acontecera algo de repente, e se precipitara porta fora. Também não parecia ter saído apenas para dar uma volta. Tudo apontava no sentido de ter decidido ir-se embora de vez. Antes de partir, dera-se ao trabalho de proceder à limpeza do apartamento. Tengo imaginou-a a passar com o aspirador e a limpar o pó, ali e acolá, munida de um paninho. Era uma coisa que não correspondia de todo à sua imagem.

Ao abrir a caixa do correio, encontrou o duplicado da chave. Pela quantidade de correspondência acumulada, tudo indicava que a rapariga devia ter ido à vida dela um ou dois dias antes. Telefonara-lhe pela última vez dois dias atrás, da parte da manhã, e na altura ainda se encontrava no apartamento. Na noite anterior, ele fora jantar com as enfermeiras e, depois, Kumi Adachi convidara-o a ir até casa dela. Entre uma coisa e outra, nem tivera tempo para ligar.

Regra geral, ela costumava deixar uma mensagem escrita com a sua letra miudinha, de aspeto cuneiforme. Mas, desta vez, não encontrou nada que se parecesse. Tinha-se ido embora, em silêncio, sem dizer água-vai. No entanto, isso não o surpreendeu nem o deixou particularmente dececionado. Fuka-Eri era imprevisível: ninguém podia saber em que pensava ou o que faria a seguir. Aparecia quando lhe dava na veneta e, chegando a hora de partir, desaparecia. Tal como uma gata caprichosa e com um forte sentido de independência. De estranhar era que ela tivesse permanecido tanto tempo no mesmo sítio.

Dentro do frigorífico foi encontrar mais comida do que estava à espera. Tudo indicava que Fuka-Eri tivesse ido às compras uns dias antes. Havia uma porção de couve-flor cozida a vapor; pelo aspeto, devia ter sido preparada recentemente. Saberia ela que Tengo ia regressar a Tóquio daí a um ou dois dias? Às tantas, começou a ficar com apetite, estrelou uns ovos e comeu-os a acompanhar a couve-flor. Depois, fez uma torrada, preparou café e bebeu duas chávenas.

A seguir, telefonou ao amigo que o tinha substituído na escola e comunicou-lhe que voltaria ao trabalho na semana seguinte. O amigo indicou-lhe até onde avançara na matéria.

– Agradeço-te imenso. Fico a dever-te uma – disse-lhe Tengo.

– Não me importo nada de ensinar. Em certos casos, chega mesmo a ser divertido. Mas, quando dás aulas durante muito tempo, a páginas tantas acabas por te transformar num perfeito estranho, até para ti mesmo.

Tengo também partilhava vagamente desse sentimento quando andava entregue à sua rotina.

– Houve alguma novidade durante a minha ausência?

– Nada de especial. Ah, sim, vieram entregar-te uma carta. Guardei-a na gaveta da tua secretária.

– Uma carta? – quis saber Tengo. – De quem?

– Quem a trouxe foi uma rapariga magra, com o cabelo liso, pelos ombros. Veio ter comigo e pediu-me que ta fizesse chegar. Tinha uma maneira de falar um tanto esquisita. Parecia estrangeira.

– Levava um saco grande ao ombro?

– Levava, sim. Um saco verde, a rebentar pelas costuras.

Fuka-Eri não devia ter querido deixar a carta no apartamento, com medo que a lessem. Ou então que alguém a levasse. Por isso dera-se ao trabalho de ir até à escola e confiara a missiva ao seu amigo.

Tengo voltou a agradecer e desligou. Entretanto escurecera e não lhe apetecia nada ter de apanhar o comboio para ir até Yoyogi buscar a carta. Deixaria isso para o dia seguinte.

Deu-se então conta de que se esquecera de perguntar ao amigo sobre a Lua. Pensou em telefonar outra vez, mas depois mudou de ideias. De certeza que o outro nem se lembrava do assunto. Afinal, era um problema que ele tinha de resolver sozinho.

Tengo saiu de casa e foi dar um passeio sem rumo pelas ruas envoltas no crepúsculo. Na ausência de Fuka-Eri, o seu apartamento tornara-se estranhamente silencioso e ele sentia-se inquieto. Quando vivia na companhia dela, Tengo quase nem dava pela sua presença. Ele fazia a vida de sempre, e Fuka-Eri, por seu turno, fazia a sua vida. Porém, agora que ela já ali não estava, Tengo apercebeu-se de um vazio com forma humana.

Isso não significava que se sentisse atraído por ela. Era uma rapariga bonita e tinha os seus encantos, mas Tengo nunca a desejara. Durante o tempo que partilharam aquele apartamento, o seu coração nunca pulsara desalmadamente por sabê-la junto a si. Porque será? Existirá alguma razão que me impeça de sentir desejo sexual pela Fuka-Eri? Verdade seja dita que, naquela noite tormentosa, haviam tido relações sexuais. Mas não tinha sido ele a querer; fora ela.

«Relações sexuais» ajustava-se na perfeição ao ato praticado. Ela subira para cima de Tengo, um Tengo paralisado e privado de liberdade de movimentos, e este introduzira o pénis ereto dentro dela. Fuka-Eri parecia encontrar-se num estado próximo do transe. Dir-se-ia uma fada possuída por um sonho lascivo.

E depois, como se nada se tivesse passado, ficaram os dois a viver naquele pequeno apartamento. Quando a tempestade amainou e finalmente amanheceu, Fuka-Eri comportou-se como se não fosse nada com ela. Tengo, por seu turno, também não aflorara o caso. Palpitava-lhe que, uma vez que ela se esquecera da história, mais valia deixar morrer o assunto. O que não impedia que, no seu íntimo, a dúvida persistisse – o que teria levado Fuka-Eri a fazer semelhante coisa? Teria algum propósito específico? Estaria possuída por algum espírito, na altura?

A única coisa que sabia era que não tinha sido um ato de amor. Ela sentia por ele um afeto natural, disso não restavam dúvidas. Mas não acreditava que sentisse ternura, desejo ou um sentimento profundo do género. Ela nunca sentiu desejo sexual por ninguém. Tengo não confiava a cem por cento na sua capacidade de análise quando se tratava de avaliar as pessoas, mas, ainda assim, não era capaz de imaginar Fuka-Eri a fazer amor apaixonadamente com um homem, partilhando com ele o seu hálito quente e ofegante. Não, nem sequer a via fazendo amor normalmente. Não era o seu género.

Tengo percorreu as ruas de Koenji, dando voltas a estes e a outros pensamentos que tais. Assim que o Sol se pôs, levantou-se um vento frio, mas isso não o preocupou. Gostava de caminhar entregue às suas reflexões, para depois regressar a casa, sentar-se à secretária e dar forma a esses pensamentos. Era um hábito que tinha. Por isso, passava o tempo a andar pela cidade, fizesse chuva ou estivesse um dia de vento. Sempre a caminhar, acabou por ir ter diante de um bar chamado Mugiatama17. Como não tinha nada melhor para fazer, entrou e pediu uma cerveja Carlsberg de pressão. O estaminé acabara de abrir as portas e era ele o único cliente. Interrompeu por breves momentos a meditação e bebeu a cerveja com calma.

A verdade, porém, é que, da mesma maneira que não existe a noção de vazio na Natureza, também ele não podia dar-se ao luxo de ficar com a mente em branco durante muito tempo. Não conseguia deixar de pensar em Fuka-Eri. Como um sonho fragmentado, a rapariga invadiu o seu espírito.

Pode estar aqui perto. Dá para ir a pé.

Isto foi o que a Fuka-Eri me disse. Por isso é que vim à procura dela. E entrei neste sítio. Que mais é que a Fuka-Eri me disse?

Não precisas de te preocupar. Ela vai encontrar-te.

Tal como Tengo andava à procura de Aomame, também Aomame andava à procura dele. Tengo ainda não percebera isso. Estava obcecado com a ideia de ser ele quem andava à procura dela. Nunca lhe passara pela cabeça que Aomame pudesse, também ela, andar à procura dele.

Eu apreendo e tu recebes.

Isto também fora dito por Fuka-Eri naquela mesma ocasião. Ela apreendia e ele recebia. Contudo, Fuka-Eri só dava a entender o que percebia quando lhe apetecia. Tengo ignorava se o fazia baseando-se para o efeito em determinados princípios ou teorias, ou se agia apenas por capricho.

Tengo evocou de novo a noite em que tinham mantido relações sexuais. A bonita jovem de dezassete anos montara-o e introduzira nela o pénis dele até à base. Os seus grandes seios oscilavam graciosamente no ar, como dois frutos maduros. Estava em êxtase, de olhos fechados, com as narinas frementes devido à excitação. Os seus lábios davam forma a algo que não chegava a converter-se em palavras. Viam-se-lhe os dentes brancos e, de vez em quando, entre eles assomava a ponta rosada da língua. Tengo recordava-se da cena com uma nitidez espantosa. Podia ter o corpo paralisado, mas a sua consciência estava mais do que desperta. E tinha uma ereção incrível.

Por mais que reproduzisse a cena com todo o pormenor, Tengo não conseguiu ficar excitado. Nem sequer desejava fazer amor com Fuka-Eri. Desde aquele encontro, tinham-se passado quase três meses sem que ele tivesse tido sexo. Mais do que isso, não ejaculara uma única vez, coisa pouco habitual nele. Como homem saudável e solteiro, já na casa dos trinta, possuía um apetite sexual completamente normal e dinâmico, o tipo de desejos que precisam de ser satisfeitos de uma maneira ou de outra.

Porém, quando se enfiara na cama com Kumi Adachi, em casa dela, e a jovem fizera pressão com o púbis de encontro à sua perna, Tengo não sentira a mínima excitação. O pénis permanecera flácido durante todo o tempo. Sob o efeito do haxixe, talvez. Mas palpitava-lhe que não era esse o caso. Ao copular com ele naquela noite de tormenta, Fuka-Eri levara alguma coisa importante de dentro dele, arrebatara-lhe algo do fundo do seu coração. Como se ele fosse uma casa e o tivessem esvaziado, tirando-lhe os móveis – era a sensação que tinha.

O quê, por exemplo?

Tengo abanou a cabeça.

Assim que acabou de beber a cerveja, pediu um Four Roses on the rocks e uma tacinha de frutos secos. A mesma coisa que da última vez.

Podia ser que a ereção daquela noite tivesse sido demasiado perfeita. O pénis estava bastante mais duro, mais teso do que era costume, e tanto assim que nem parecia o seu próprio órgão sexual. Túrgido e brilhante, mais do que um pénis verdadeiro, parecia o símbolo de um conceito qualquer. Já para não falar na ejaculação que se seguira, enérgica e viril. O esperma, abundante e espesso, de certeza que alcançara o útero, ou fora mais fundo. Na verdade, tinha sido o orgasmo perfeito.

Mas depois, como acontece com as coisas demasiado perfeitas, produz-se sempre uma reação. É a lei da vida. Quantas ereções tive desde então? Tengo não se lembrava. Nem uma. Visto que não se lembrava, se as tivera, deviam ter sido de segunda categoria, para esquecer. Fazendo uma analogia com o cinema, teriam sido, quando muito, o equivalente a uma dessas longas-metragens de orçamento reduzido que vão diretamente da sala de montagem para a edição em vídeo, sem passar pelas salas de cinema. Logo, não foram relevantes. Parecia-lhe uma hipótese provável.

E se tiver de passar o resto dos meus dias com ereções de segunda, como essa, ou até sem ereções? Certamente que será uma vida triste, à imagem e semelhança de um ocaso prolongado. Mas, pensando bem, talvez não haja outra saída. Pelo menos, chegara a ter uma ereção perfeita, seguida de uma ejaculação perfeita. Aconteceu o mesmo com a autora de E Tudo o Vento Levou. Quando uma pessoa consegue produzir uma obra maior na vida, deve contentar-se com isso.

Ao acabar de beber o seu bourbon com gelo, pagou a conta e voltou a deambular pelas ruas sem destino. Levantara-se vento e o ar estava ainda mais fresco. Tenho de encontrar a Aomame, pensou ele, antes que as regras que governam o mundo afrouxem demasiado e grande parte da razão desapareça. Praticamente, o seu único desejo nesse momento era tornar a vê-la. Se não a encontrar, de que vale a minha vida? Aomame estivera algures no bairro de Koenji, no mês de setembro. Com sorte, ainda continuaria por aquelas bandas. Não havia garantias, à partida, mas não tinha outro remédio senão agarrar-se a essa possibilidade. A Aomame encontra-se aqui, num sítio qualquer. E ela também anda à minha procura. Como duas metades de uma moeda, cada uma em busca da outra.

Olhou para o céu, mas a Lua não estava à vista. Tenho de procurar um lugar onde consiga ver a Lua, decidiu.

17 Cabeça de cereal. (N. das T.)


13

USHIKAWA

É isto que significa voltar à estaca zero?

A figura de Ushikawa chamava bastante as atenções. Não se podia dizer que ele fosse propriamente talhado para a tarefa de espiar ou de andar a perseguir uma pessoa. Por mais que tentasse passar despercebido no meio da multidão, a sua presença dava tanto nas vistas como uma centopeia dentro de uma embalagem de iogurte.

Mais ninguém da família era assim. Ushikawa tinha pais, dois irmãos – um mais velho, outro mais novo – e uma irmã, a benjamim do clã. O pai abrira uma clínica, de cuja contabilidade a mãe se ocupava. Os dois irmãos passaram pela faculdade de Medicina com notas excelentes e tornaram-se médicos. O irmão mais velho exercia num hospital de Tóquio e o mais novo era investigador na universidade. Quando o pai se reformou, o mais velho herdou a clínica que funcionava na cidade de Urawa. Ambos os irmãos eram casados e tinham filhos, concretamente um filho cada. A irmã mais nova fizera os seus estudos numa universidade norte-americana e regressara entretanto ao Japão, onde trabalhava como intérprete. Andava pelos trinta e tal anos, mas continuava solteira. Eram magros, altos, dotados de feições ovais e regulares.

Em quase todos os sentidos, especialmente no que respeitava à fisionomia, Ushikawa constituía uma exceção. Baixo, com a cabeça grande e disforme, o cabelo crespo e hirsuto, tinha as pernas curtas, arqueadas como pepinos. Os globos oculares projetavam-se para fora, num permanente esgar de surpresa, e em redor do pescoço pendia-lhe uma papada pronunciada. As sobrancelhas eram grandes e espessas, ao ponto de se unirem quase numa só linha. Pareciam duas lagartas enormes à procura uma da outra. De uma forma geral, obtivera boas notas na escola, mas apresentando sempre um certo desnivelamento em função das disciplinas, além de o desporto não ser o seu forte.

Naquela família de elite, acomodada e orgulhosa de si mesma, ele sempre fora «o elemento estranho». A nota dissonante que ameaçava destruir a harmonia e provocar uma certa desafinação. Vendo as fotografias de família, era ele o único que destoava. Dir-se-ia uma pessoa de fora, que, dando mostras de uma evidente falta de discernimento, se metera no meio do grupo, aparecendo na fotografia por mero acaso.

Os outros membros da família não conseguiam explicar como é que um dos seus podia ter uma aparência tão diferente. Porém, não havia dúvida de que era filho da mesma mãe, uma vez que ela o dera à luz (ainda se lembrava bem das contrações dolorosas no momento do parto). Ninguém o deixara ficar à porta de casa, metido num cesto. Um belo dia, alguém lembrou que, pela parte do pai, tinha existido em tempos um parente com uma cabeçorra malfeita. Uma cabeça à imagem dos fukusuke18. Tratava-se de um primo do avô de Ushikawa. Durante a guerra, trabalhara numa fábrica metalúrgica, no bairro de Koto , e morrera durante o bombardeamento de Tóquio, na primavera de 1945. O pai não chegara sequer a conhecê-lo, mas havia uma fotografia dele num velho álbum. Ao observar a foto, a família inteira fora unânime em reconhecer: «Faz todo o sentido!» Porque, de facto, a fotografia do dito cavalheiro apresentava uma semelhança impressionante com Ushikawa. Eram iguaizinhos, como duas gotas de água, tão parecidos que até daria para pensar se Ushikawa não seria uma reencarnação do outro. Às tantas, vá lá saber-se porquê, os traços genéticos do antepassado haviam-se manifestado de novo.

Se ele não existisse, os Ushikawa de Urawa, na prefeitura de Saitama, seriam a família perfeita, tanto na sua aparência como no que diz respeito ao historial académico e profissional. O género de família brilhante, fotogénica, invejada por todos. Bastava que Ushikawa se juntasse à fotografia para que as pessoas de fora desatassem a franzir o sobrolho e a abanar a cabeça. De uma maneira geral, tinham tendência para pensar que um brincalhão qualquer, com um sentido de humor muito especial, devia ter pregado uma partida à deusa da beleza. Os pais dele, pelo menos, estavam convencidos de que as outras pessoas pensavam isso. Daí que evitassem exibi-lo em público, ou, quando não tinham outro remédio, procuravam por todos os meios que ele não atraísse sobre si as atenções.

Diga-se de passagem que a Ushikawa não lhe desagradava propriamente ver-se nessa posição, nem lhe dava para se sentir triste ou só. Era ele o primeiro a querer ficar sozinho, da mesma forma que desejava que ninguém reparasse nele. Os irmãos e a irmã tratavam-no quase como se ele não existisse, mas isso tanto lhe fazia, visto que não sentia por eles nenhuma afinidade especial. Eram bonitos, tinham boas notas, destacavam-se em todos os desportos e viviam rodeados de amigos. Na perspetiva de Ushikawa, eram de uma superficialidade confrangedora. Criaturas de vistas curtas e desprovidas de imaginação, só se preocupavam com o que a sociedade pensava deles. Sobretudo, faltava-lhes essa saudável capacidade de duvidar, que dá pelo nome de espírito crítico, tão necessária quando se procura alcançar uma vasta sabedoria.

Considerado um especialista razoável em medicina interna, com consultório no próprio hospital, o pai de Ushikawa era um indivíduo aborrecido até dizer chega. Fazia lembrar o lendário rei que convertia em ouro tudo aquilo em que tocava, com a diferença de que este transformava todas as palavras que saíam da sua boca em insípidos grãos de areia. No entanto, pelo facto de ser um homem pouco falador – provavelmente sem querer –, o certo é que conseguia ocultar, de forma ardilosa, esse defeito tão deplorável. A mãe, em contraste, falava pelos cotovelos, para além de ser uma snobe incorrigível. Só pensava em dinheiro, era caprichosa e egocêntrica, gostava de tudo o que fosse de mau gosto e dizia sempre mal de toda a gente na sua irritante voz esganiçada. O irmão mais velho herdara a maneira de ser do progenitor; o mais novo, a da mãe. A irmã, ainda que demonstrasse um forte sentido de independência, era irresponsável e não tinha consideração pelos outros. Em pequena, sendo a mais nova, os pais deixavam-na fazer o que ela queria, estragando-a com mimo.

Por esse motivo, Ushikawa passara a infância praticamente sozinho. Ao chegar das aulas, fechava-se no quarto e entregava-se à leitura. Como não tinha amigos, tirando o cão lá de casa, ficava sem poder discutir o que aprendia na escola. Isso não o impedia, contudo, de ter plena consciência de que possuía uma lucidez e uma capacidade de raciocínio fora do vulgar, a juntar à eloquência. Então, munindo-se de uma grande dose de paciência, tratava de burilar esses seus dons. Por exemplo, escolhia um tema para discussão e debatia-o, defendendo ele próprio duas posições opostas. Por um lado, valendo-se da sua eloquência, brandia argumentos a favor de uma teoria, para logo a seguir, com igual loquacidade, a rebater. Defendia com ardor ambas as partes, sabia adaptar-se e interpretar – na medida do possível, com lealdade – o papel que cada posição lhe exigia e mergulhar nele a fundo. Aos poucos, sem se aperceber, adquiriu a capacidade de se mostrar cético até em relação a si mesmo. E foi compreendendo que, em muitos casos, as coisas tidas por verdadeiras eram relativas. Também aprendeu que o subjetivo e o objetivo não são tão fáceis de diferenciar, como muito boa gente acredita, e que, sendo a fronteira entre os dois pouco nítida, passar deliberadamente de um campo para o outro não se revela uma tarefa complicada.

Com o propósito de utilizar a lógica e a retórica de maneira mais lúcida e eficaz, encheu a cabeça com todos os conhecimentos possíveis e imagináveis. Aquilo que servia e aquilo que não era assim tão útil quanto isso. Aquilo com que estava de acordo e aquilo com que não podia concordar, naquela época. Não procurava apenas obter uma formação sólida; pretendia também arrecadar informações concretas, que pudesse, por assim dizer, sopesar e apalpar.

De modo que aquela sua cabeçorra disforme se transformou num recetáculo de valiosos conhecimentos. Não tinha boa aparência, mas era um manancial de informações. Graças a isso, adquiriu um saber enciclopédico que lhe permitiu tornar-se, de longe, mais erudito do que os seus companheiros. Se quisesse, podia com facilidade bater aos pontos qualquer pessoa – não apenas os seus irmãos e os camaradas de escola, mas também os professores e os pais. Ushikawa, porém, esforçava-se por não exibir essas qualidades diante dos outros. Preferia não chamar as atenções. O saber e as capacidades adquiridas eram simples ferramentas de trabalho, e não trunfos para se vangloriar.

Ushikawa considerava-se uma espécie de animal notívago, aguardando, escondido nas sombras da floresta, que a sua presa aparecesse. Esperava a ocasião oportuna, pacientemente, e então, chegado o momento, lançava-se sobre ela sem hesitar. Antes, porém, não dava qualquer indício da sua presença. O importante era ocultar todos os sinais de vida e levar a presa a confiar. Já quando andava na escola secundária pensava desse modo. Procurava nunca depender dos outros e não tinha por hábito exteriorizar os seus sentimentos.

Às vezes, punha-se a imaginar como teria sido a sua vida se tivesse nascido com um aspeto um pouco mais normal. Não precisava de ser especialmente bonito nem de ter uma aparência deslumbrante. Bastava que fosse vulgar e igual aos outros. Ou, pelo menos, que não fosse tão horripilante, ao ponto de levar as pessoas que se cruzavam no seu caminho a virarem-se para olhar para ele. Se tivesse nascido assim, como seria a minha vida?, interrogava-se. Mas aquela hipótese superava a sua imaginação. Ushikawa era Ushikawa, e não havia volta a dar. Ushikawa existia porque tinha aquela cabeça disforme, os olhos protuberantes e as pernas curtas e arqueadas. Foi isso que lhe permitiu ser aquele rapaz, incrédulo, é certo, mas ávido de aprender; um rapaz eloquente, pese embora a sua faceta taciturna.

* * *

À medida que os anos foram passando, o patinho feio cresceu e transformou-se num jovem feio, para depois se converter num homem de meia-idade feio. Em todas as fases da sua vida, as pessoas com quem se cruzava continuavam a virar a cabeça para olhar na sua direção. Os miúdos, esses, punham-se a fitar o rosto dele, descaradamente. Por vezes, Ushikawa pensava que, chegando a velho, talvez deixasse de chamar assim as atenções. De uma maneira geral, as pessoas idosas são todas repugnantes, e, como tal, a sua fealdade não sobressairia tanto. Mas isso ele só iria saber quando atingisse uma certa idade. Se calhar, estava condenado a acabar os seus dias transformado num velho horroroso, dono de uma hediondez nunca vista.

Em todo o caso, não dispunha de meios que lhe permitissem confundir-se com a paisagem à sua volta. Para cúmulo, Tengo já o conhecia. Caso o visse rondar as imediações da zona onde morava, toda a operação iria para o galheiro.

Em casos semelhantes, costumava contratar um investigador privado. Ushikawa recorria a organizações do género desde a altura em que trabalhara como advogado. Muitos dos investigadores ao serviço das ditas empresas eram antigos polícias e, nessa qualidade, dominavam as técnicas das escutas e da vigilância. Neste caso concreto, porém, preferia não recorrer a ninguém de fora. O problema era demasiado delicado e, ainda por cima, envolvia um homicídio – portanto, um delito grave. Além do mais, o próprio Ushikawa não sabia ao certo o que esperava encontrar ao colocar Tengo sob vigilância.

Naturalmente, o que Ushikawa pretendia era esclarecer a relação entre Tengo e Aomame, mas não fazia ideia de qual pudesse ser o aspeto da jovem. Tentara por todos os meios ao seu alcance, mas, infelizmente, não conseguira obter uma única fotografia atual. Nem sequer o camarada Morcego fora capaz de lhe arranjar uma foto dela. Tivera oportunidade de deitar uma espreitadela ao anuário da escola, porém, na fotografia de turma em tamanho diminuto, o rosto parecia pouco natural, como se tivesse uma máscara. Quanto à foto tirada juntamente com a equipa de softbol da empresa, apresentava a face ensombrada pela pala do boné. Por isso, mesmo que Aomame passasse a escassos metros dele, não teria maneira de a reconhecer. Sabia que ela media quase um metro e setenta e que tinha um porte atlético, a par de uma boa postura. Tanto os olhos como as maçãs do rosto eram particulares e usava o cabelo pelos ombros. Mas, vendo bem, quantas mulheres parecidas havia em todo o país?

De momento, a única coisa que Ushikawa podia fazer era encarregar-se ele da vigilância. Teria de manter os olhos bem abertos e esperar pacientemente que houvesse algum desenvolvimento. Então, chegado o momento, decidiria como agir. Não podia deixar uma tarefa tão delicada nas mãos de outra pessoa.

Tengo vivia no terceiro e último andar de um velho edifício de betão armado. Junto à entrada, no meio das caixas de correio de todos os inquilinos, via-se um pequeno cartão a dizer «Kawana». Algumas das caixas de correio estavam enferrujadas, com a pintura a descascar aqui e ali. Todas elas tinham fechadura, se bem que poucos vizinhos se dessem ao trabalho de fechar a sua. Acontecia o mesmo com a porta da frente: como não estava trancada, qualquer pessoa podia entrar no edifício.

Nos corredores escuros respirava-se esse cheiro característico dos edifícios antigos, quando já têm muitos anos. Um odor peculiar a humidade e a goteiras por consertar, velhas camisas lavadas com detergente barato, azeite rançoso com restos de tempura, estrelas-do-natal murchas e urina de gato proveniente de um pátio ajardinado, situado mesmo em frente à entrada, onde cresciam ervas daninhas, tudo isto à mistura com outros eflúvios que uma pessoa não saberia identificar. Quem ali vivia há muito tempo devia ter-se acostumado, mas isso não impedia que o cheiro fosse desagradável.

O apartamento de Tengo dava para a rua principal. A via não chegava a ser ruidosa, mas, ainda assim, tinha bastante movimento de peões. Existia uma escola primária nas redondezas, e, em função da hora, passavam por ali muitas crianças. Em frente ao edifício, do outro lado da rua, alinhavam-se, todas juntinhas, várias vivendas pequenas de dois andares e sem jardim. No fim da rua, ao virar da esquina, havia uma loja de bebidas e uma papelaria, em que os alunos da escola se abasteciam. Um pouco mais adiante, via-se um pequeno posto de polícia. Por mais que procurasse, ali à volta não encontraria nenhum sítio onde se esconder, e, se ficasse de pé no meio da rua a olhar para o apartamento, mesmo que tivesse a sorte de Tengo não dar por ele, de certeza que os vizinhos iriam achar aquilo suspeito. Tratando-se de alguém com a pinta pouco comum de Ushikawa, sem dúvida que o nível de alarme da vizinhança aumentaria dois ou três graus. Imaginariam logo tratar-se de um depravado, à espreita das criancinhas que saíam da escola, e não perderiam tempo a chamar a polícia.

Para vigiar alguém, a primeira coisa a fazer é encontrar um local adequado. Um sítio onde seja possível observar a pessoa em questão sem se ser visto e que facilite o abastecimento de água e mantimentos. O ideal seria conseguir um quarto particular com vista para o apartamento de Tengo. Então, trataria de instalar aí uma câmara dotada de teleobjetiva montada sobre um tripé, através da qual vigiaria o movimento de entradas e saídas no apartamento. Visto que trabalhava por sua conta e risco, era impossível manter-se no seu posto durante as vinte e quatro horas do dia, mas sempre podia garantir a vigilância durante umas boas dez horas. Obviamente, não seria fácil encontrar um sítio que reunisse as condições ideais.

Ainda assim, Ushikawa fez um périplo pelo bairro em busca desse lugar. Desistir não estava no seu feitio. Muito pelo contrário, a tenacidade era o seu lema. Pôr-se-ia em campo e passaria as redondezas a pente fino, por mais remota que fosse a possibilidade de atinar com o local. Dito e feito. Deu corda aos sapatos e meteu-se a caminho. No entanto, depois de passar metade do dia a percorrer o bairro até aos recantos mais obscuros, deu-se por vencido. Koenji era uma zona residencial plana e muito concentrada, sem prédios altos. Contavam-se pelos dedos da mão os pontos de onde se dominava o apartamento de Tengo. E na área não havia um único lugar onde Ushikawa pudesse instalar a sua base.

Quando lhe faltavam boas ideias, Ushikawa tinha por hábito tomar um longo banho quente. Por isso, a primeira coisa que fez, ao chegar a casa, foi pôr a água a correr. A seguir, meteu-se na banheira de plástico rígido e ali se deixou estar, a escutar o Concerto para violino e orquestra em Ré menor, de Sibelius, que estava a ser transmitido na rádio. Não se podia dizer que lhe apetecesse especialmente ouvir Sibelius. Por outro lado, os concertos de Sibelius não proporcionam a música mais adequada para se escutar quando uma pessoa chega a casa e mergulha na banheira, ao fim de um dia de trabalho. Se calhar, pôs-se ele a efabular, os finlandeses apreciam Sibelius metidos na sauna, durante as suas noites longas. Agora, numa banheira minúscula de uma casa de banho de um apartamento de três assoalhadas, situado em Kohinata, no bairro de Bunkyo , a música de Sibelius soa demasiado intensa e assaz arrebatadora. A questão, porém, não o perturbava. Bastava-lhe ter música como pano de fundo. Se estivesse a tocar um concerto de Rameau, escutá-lo-ia sem se queixar; se fosse o Carnaval, de Schumann, a mesma coisa. Acontecia que, naquele momento, a estação em FM transmitia o Concerto para violino, de Sibelius. Tão simples quanto isso.

Como era seu costume, Ushikawa esvaziou metade da cabeça e utilizou a outra metade para refletir. A música de Sibelius, interpretada por David Oistrakh, passava sobretudo através da região vazia. Como uma brisa, introduzia-se pela entrada escancarada e esgueirava-se pela saída, também toda aberta. Talvez não fosse a maneira ideal de apreciar a música. Se Sibelius soubesse que a sua música era tratada daquele modo, provavelmente franziria o cenho com força, enchendo de rugas a sua testa larga. Mas Sibelius tinha morrido há muito, e mesmo Oistrakh já fora desta para melhor. Como tal, Ushikawa podia abandonar-se aos seus pensamentos mais recônditos com a metade da sua mente que não estava vazia, enquanto permitia que a música lhe entrasse pelo ouvido direito e saísse pelo esquerdo.

Em alturas como aquela, Ushikawa gostava de matutar nas coisas sem se cingir a um assunto em concreto. Deixava os seus pensamentos fluir em liberdade, como cães à solta num imenso campo aberto. Dizia-lhes que podiam ir onde quisessem, fazer o que lhes apetecesse, e deixava a sua mente vaguear. Afundava-se na água quente até ao pescoço, cerrava os olhos e, absorto, assim se apartava de si mesmo, a escutar a música à sua maneira. Os cães brincavam à vontade, um pouco por toda a parte, rolavam pela encosta abaixo, corriam uns atrás dos outros sem descanso, perseguiam os esquilos em vão, sujavam-se de lama e erva, e, quando regressavam, cansados da brincadeira, Ushikawa fazia-lhes festas na cabeça e voltava a colocar-lhes as trelas. Nessa altura, chegava ao fim a peça musical. O concerto de Sibelius tinha cerca de meia hora. A duração perfeita. O locutor anunciou a peça seguinte: a Sinfonietta de Janácek. Parecia-lhe já ter ouvido o título da composição em qualquer lado, mas não se recordava ao certo onde. Quando procurou a todo o custo lembrar-se, por alguma razão uma espécie de neblina amarela velou-lhe os globos oculares. Devia ter passado demasiado tempo no banho. Resignado à sua sorte, desligou o rádio, envolveu uma toalha à volta da cintura depois de sair da banheira e foi ao frigorífico buscar uma cerveja.

Ushikawa vivia sozinho. Antes, tinha vivido com a mulher e as duas filhas pequenas. Moravam todos juntos numa casa que comprara no bairro de Chuorinkan, na cidade de Yamato, prefeitura de Kanagawa. Apesar de ser pequena, possuía um jardinzinho com relva, onde dava para um cão correr à vontade. A mulher tinha feições perfeitas, e das filhas do casal podia até dizer-se que eram bonitas. Nenhuma herdara qualquer traço de Ushikawa. Naturalmente, isso deixava-o francamente aliviado.

No entanto, as coisas conheceram uma reviravolta drástica e encontrara-se sozinho na vida. O facto de ter tido família e de em tempos haver convivido com ela parecia-lhe estranho. Às vezes, chegava mesmo a pensar se não seria tudo fruto da sua imaginação, lembranças por ele fabricadas, de forma inconsciente, para preencher as suas necessidades. Mas não, de certeza que não, tudo aquilo acontecera na realidade. Fora casado com uma mulher, partilhara com ela a cama de casal, e o seu sangue corria nas veias das filhas. Guardava uma fotografia dos quatro numa gaveta da secretária que tinha no escritório. Sorriam todos com ar feliz, incluindo o cão.

Não havia a menor hipótese de voltarem a ser uma família unida. A mulher e as filhas viviam em Nagoia. As raparigas tinham agora um padrasto, um homem de aspeto normalíssimo, que podia comparecer na escola, quando fossem os dias marcados para as visitas dos pais, sem que as jovens se sentissem envergonhadas. Havia cerca de quatro anos que as filhas não lhe punham a vista em cima, mas isso não parecia causar-lhes grande pena. Nem sequer lhe escreviam. Não se podia dizer que o próprio Ushikawa sentisse um desgosto imenso por não as ver mais amiúde. Como é óbvio, tal não significava que não gostasse delas. Simplesmente, precisava de garantir a sua segurança, primeiro que tudo, e para isso era imperioso que desligasse os circuitos emocionais e se concentrasse na tarefa que tinha em mãos.

Além do mais, sabia que, apesar da distância que os separava, o sangue dele circulava nas veias das filhas. Podiam esquecer-se do seu velho pai, mas aquele sangue nunca se desviaria do seu caminho. O sangue tem uma memória de elefante. Um dia, no futuro, a marca da cabeçorra ressurgiria, quando e onde menos se esperasse. Chegada a hora, toda a gente se lembraria da existência de Ushikawa.

Se calhar, ainda assistiria em vida a essa erupção. E, daí, talvez não. Ia dar ao mesmo. Só de pensar que poderia acontecer, Ushikawa já se dava por satisfeito. Não porque desejasse vingar-se; comprazia-se, isso sim, com a satisfação de se saber parte inevitável daquele mundo.

Ushikawa sentou-se no sofá, estendeu as suas curtas pernas por sobre a mesa e, enquanto bebia da lata de cerveja, ocorreu-lhe de repente uma ideia. Pode não funcionar, pensou, ainda meio aturdido, mas vale a pena tentar. Como é que não me lembrei disto antes? Por vezes, as coisas simples são as mais difíceis de descobrir. Como se costuma dizer, as pessoas nem sempre veem o que está debaixo do seu nariz.

Na manhã seguinte, Ushikawa regressou a Koenji, entrou numa imobiliária e perguntou se havia apartamentos para alugar no prédio onde Tengo morava. Pelos vistos, aquela agência em concreto não se ocupava do edifício no seu conjunto, mas indicaram-lhe outra imobiliária, situada defronte da estação de comboios.

– Duvido que haja algum apartamento para arrendar – afirmou o agente imobiliário. – Como são tudo casas de renda muito acessível e bem localizadas, os inquilinos não se vão embora.

– Em todo o caso, por via das dúvidas, vou até lá averiguar – disse Ushikawa.

Na agência imobiliária diante da estação foi atendido por um jovem que devia andar pelos vinte e poucos anos. Tinha o cabelo preto, cor de asa de corvo, forte e tão bem fixado com gel que mais parecia um ninho de pássaros. Trazia uma camisa branca e uma gravata acabada de estrear. Não devia trabalhar ali há muito tempo. Ainda se notavam as marcas de acne nas maçãs do rosto. Ao ver Ushikawa entrar, fez um movimento de recuo, mas logo se recompôs e esboçou um sorriso profissional.

– Está cheio de sorte, meu caro senhor – exclamou o jovem. – Um casal que vivia no rés do chão foi obrigado a mudar-se, de repente, por razões familiares, e o apartamento está vago de há uma semana a esta parte. Só ontem ficou limpo, por isso ainda não pusemos qualquer anúncio. Como fica no piso térreo, se calhar é um bocadinho barulhento, e não espere encontrar uma casa cheia de luz, mas, tirando isso, encontra-se muito bem situada. O único senão, devidamente assinalado no contrato, é que o dono do edifício está a pensar deitá-lo abaixo daqui a cinco ou seis anos, para reconstruir: seis meses antes, receberá uma notificação e terá de se mudar, fica já a saber. Devo ainda avisá-lo de que não dispõe de garagem.

Ushikawa respondeu-lhe que, por ele, não havia problema. Não estava nos seus planos ficar ali a morar durante muito tempo e não tinha carro.

– Perfeito. Se aceita estas condições, pode mudar-se a partir de amanhã. Imagino que queira ver o apartamento primeiro, não é verdade?

– Sim, claro – respondeu Ushikawa.

O jovem tirou da gaveta um conjunto de chaves e entregou-lhas.

– Vai desculpar-me, mas, neste momento, tenho um assunto pendente. Importa-se de ir sozinho? O apartamento está vazio, só tem de me devolver as chaves...

– Não me importo – concedeu Ushikawa –, mas pergunto-lhe que faria você se eu não fosse uma pessoa de bem e, em vez de devolver as chaves, aproveitasse para fazer um duplicado, a fim de mais tarde voltar a entrar em casa para roubar?

Perante aquele discurso, o jovem fitou Ushikawa por momentos, nitidamente descorçoado.

– Sim, lá isso é verdade... Tem razão. Bom, nesse caso, por uma questão de segurança, podia deixar-me um cartão com os seus dados?

Ushikawa tirou da carteira o cartão de visita da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão e entregou-lho.

– Senhor Ushikawa – leu o rapaz em voz alta e com uma expressão compenetrada. Depois sorriu, aliviado. – Devo confessar que não me parece má pessoa.

– Muito agradecido – disse Ushikawa. Pelos seus lábios passou o arremedo de um sorriso, tão desprovido de significado como o título que aparecia inscrito no cartão de visita.

Era a primeira vez que alguém lhe fazia uma observação do género. Talvez o outro tivesse querido dizer que, com o seu perfil físico, chamava demasiado a atenção para se pôr a fazer patifarias. Qualquer pessoa conseguiria muito facilmente descrevê-lo, e os seus traços serviriam para desenhar um retrato-robô sem dificuldade.

No caso de emitirem um mandado de captura, nem três dias demorariam a deitar-lhe a mão.

O apartamento estava em melhores condições do que ele pensava. Como Tengo morava dois andares acima, era impossível vigiá-lo diretamente. No entanto, da janela dava para alcançar a entrada, por isso sempre podia controlar as idas e vindas de Tengo e tomar nota das pessoas que o visitavam. Desde que camuflasse a máquina fotográfica, também podia captar imagens dos seus rostos com a teleobjetiva.

Para ficar com o apartamento, teve de pagar dois meses de caução, um mês de renda adiantado e mais um mês de reikin19. No total, representava uma boa maquia, ainda que a renda não fosse propriamente elevada e pudesse mais tarde recuperar parte do dinheiro da caução, quando o contrato chegasse ao fim. Depois de pagar ao Morcego, as suas poupanças tinham sofrido um severo rombo, mas, tendo em conta a situação em que se encontrava, não tinha outra alternativa senão fazer um esforço e arrendar o apartamento. Ushikawa voltou à imobiliária, tirou o dinheiro de dentro de um envelope que levava preparado de antemão e assinou o contrato em nome da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão. Disse ao rapaz que mais tarde lhe enviaria por correio uma cópia do registo da fundação. O funcionário não viu qualquer inconveniente. Assim que o contrato foi assinado, o jovem entregou-lhe de novo as chaves do apartamento.

– Senhor Ushikawa, com as chaves na sua mão, pode instalar-se a partir deste momento. Não demos baixa nem da eletricidade nem da água corrente, mas, no que diz respeito ao gás, vai ser preciso que o senhor esteja em casa quando forem restabelecer a ligação, por isso terá de entrar em contacto com a companhia. Como é que pretende fazer com o telefone?

– Desse assunto encarrego-me eu – esclareceu Ushikawa. Assinar um contrato com uma companhia telefónica representaria um esforço suplementar, tanto a nível financeiro como pelo tempo que demoraria a instalar o telefone, além de que os técnicos teriam de entrar dentro de casa. O mais prático seria recorrer às cabinas telefónicas do bairro.

Ushikawa regressou ao apartamento e fez uma lista de tudo o que precisava. Por sorte, o antigo inquilino tinha deixado cortinas nas janelas. Não passavam de umas velhas cortinas esfiapadas, às flores, mas sempre era melhor do que nada, uma vez que se tratava de um elemento imprescindível para a operação de vigilância em curso.

O rol não era longo. No essencial, bastava comprar alimentos e bebidas. Sem esquecer uma câmara com teleobjetiva e um tripé. O resto incluía papel higiénico, um saco-cama e um tatâmi, pequenos recipientes cheios de combustível, um fogão de campanha, uma faca pequena, um abre-latas, sacos do lixo, artigos básicos de higiene e uma máquina de barbear elétrica, meia dúzia de toalhas, uma lanterna e um rádio a pilhas. A mínima quantidade de roupa e um pacote de maços de tabaco. Só isso. Não precisava de frigorífico, de mesa para comer nem de futon. Dava-se por muito satisfeito desde que tivesse um sítio onde pudesse estar abrigado do vento e da chuva. Ushikawa regressou a casa, meteu a Reflex mais a objetiva extra na bolsa da máquina e preparou uma razoável quantidade de película. Em seguida, encheu uma mala de viagem com todos os artigos que faziam parte da lista. Podia sempre comprar o que faltasse numa grande superfície comercial, mesmo em frente à estação de Koenji.

Armou o tripé ao pé da janela que dava para a rua, e que tinha uns dez metros quadrados, e em cima dele instalou o último modelo da máquina automática da marca Minolta, montando-lhe a teleobjetiva. Depois, colocou no modo automático e apontou para um ponto onde podia captar o rosto das pessoas que entravam e saíam do prédio. Preparou tudo de maneira a poder disparar a máquina com o controlo remoto. Também instalou o motor que lhe permitia acionar o mecanismo. Com um pedaço de cartão, construiu um cone que tapava a extremidade da objetiva, para evitar que, ao receber a luz, ela não refletisse. Para terminar, levantou um tudo-nada a ponta da cortina; de fora, parecia uma espécie de tubo de papel, mas ninguém repararia naquilo. Ninguém imaginaria que do outro lado estivesse alguém à socapa, a tirar fotografias da entrada de um anódino prédio de apartamentos.

Para fazer uma experiência, Ushikawa fotografou umas quantas pessoas que por ali passavam na altura. Graças ao motor para avanço automático da película, podia disparar o obturador três vezes para cada pessoa. Envolveu a câmara com uma toalha, a fim de amortecer o ruído do obturador. Quando chegou ao fim do primeiro rolo, levo-o a uma loja de fotografias que ficava perto da estação. A coisa funcionava assim: o funcionário introduzia o rolo numa máquina, que não só revelava automaticamente como imprimia as fotos. Ninguém prestava atenção às imagens, visto que saíam disparadas a grande velocidade.

No que dizia respeito à qualidade das fotografias, era bastante razoável. Não se podia dizer que fossem artísticas, mas chegava e sobrava para o que ele pretendia. Captava o rosto das pessoas com nitidez suficiente para as distinguir umas das outras. De regresso a casa, Ushikawa abasteceu-se de água mineral e latas de conservas. Na tabacaria comprou um pacote de Seven Stars. Tendo o cuidado de ocultar o rosto com os sacos, voltou para o apartamento e sentou-se diante da máquina. Enquanto vigiava a entrada, bebeu água, comeu pêssegos de conserva e fumou vários cigarros. Eletricidade havia, mas, por alguma razão, a água não corria. Quando abria a torneira, ouvia-se apenas uma espécie de gorgolejar dentro da tubagem. Se calhar, era preciso esperar mais um pouco. Ainda pensou em avisar a imobiliária, mas não queria passar a vida a entrar e a sair do prédio, de modo que decidiu aguardar para ver o que aconteceria entretanto. Uma vez que estava impedido de utilizar a sanita, urinou para dentro de um balde já muito usado, que alguém dos serviços de limpeza devia ter deixado ali ficar por esquecimento.

Quando o entardecer impaciente dos primeiros dias de inverno se fez sentir de repente, lançando o quarto na escuridão, decidiu não acender a luz. Além do mais, preferia manter-se na sombra. E assim continuou a vigiar quem passava debaixo da luz amarela da entrada.

Ao cair da noite, a afluência de pessoas aumentou um pouco, apesar de o movimento continuar a não ser grande. Vendo bem, tratava-se de um edifício de reduzidas dimensões. Tengo não se encontrava entre elas. Também não viu nenhuma mulher que correspondesse à descrição de Aomame. Nesse dia, Tengo dava aulas na escola. Só regressava a casa de noite. Normalmente, Tengo não costumava parar pelo caminho, depois das aulas. Preferia preparar ele mesmo uma refeição, que depois comia enquanto lia um livro, a ir jantar fora. Ushikawa sabia tudo isso. Porém, a verdade é que estava a demorar-me mais do que era habitual. Se calhar, encontrara-se com alguém à saída da escola.

No edifício viviam pessoas de toda a espécie: desde jovens trabalhadores solteiros até velhos que moravam sozinhos, passando por universitários e por casais com filhos pequenos. Uns e outros atravessavam, indefesos, o campo de visão da teleobjetiva. Apesar das pequenas diferenças em função da idade e do meio social, todas elas pareciam cansadas e fartas da vida que levavam. Sem esperança no futuro, esquecidas das suas ambições e com a sensibilidade embotada, a resignação e a impassibilidade haviam-se instalado no vazio em que se convertera a sua existência. Os rostos mostravam-se sombrios e o seu andar era pesado, como se tivessem acabado de lhes arrancar um dente no consultório do dentista.

Claro que podia tratar-se apenas de uma impressão errada. Podia até ser que alguns deles desfrutassem da vida ao máximo. Portas adentro, quem sabe?, aguardavam-nos pequenos paraísos de tirar a respiração. Se calhar, fingiam levar uma vida austera para evitar inspeções fiscais. Tudo era possível. Contudo, ao passarem diante da teleobjetiva, davam a impressão de ser apenas moradores urbanos sem rumo certo, incapazes de escapar à mediocridade, vivendo num apartamento barato em vias de ser demolido.

Nessa noite, Tengo acabou por não aparecer, e Ushikawa não vislumbrou ninguém que pudesse de alguma forma estar ligado a ele. Quando o relógio assinalou as dez e meia, deu-se por vencido. Era o primeiro dia e ainda não estava treinado naquela rotina. Tinha muitas jornadas de vigilância pela frente; deixá-lo. Esticou-se todo, procurando distender os músculos lentamente, em diversos ângulos. Depois comeu um anpan3 e bebeu café que levara num termo, usando a própria tampa como copo. Ao abrir a torneira do lava-loiça, a água começou a jorrar de repente. Lavou a cara com sabonete, escovou os dentes e fez uma mija de todo o tamanho. A seguir, encostou-se à parede a fumar um cigarro. Apetecia-lhe um gole de uísque, mas tomara a decisão de não tocar numa gota de álcool enquanto ali estivesse.

O passo seguinte consistiu em despir-se até ficar só com a roupa interior, após o que se enfiou no saco-cama. Durante um bocado ressentiu-se por causa do frio e começou a tremer. Com a chegada da noite, a temperatura no apartamento baixava mais do que calculara. Pensou que talvez viesse a sentir necessidade de um pequeno aquecedor elétrico.

Metido dentro do saco-cama, sozinho, a tiritar de frio, Ushikawa recordou os dias em que vivia rodeado da família. Não o fez com especial saudade. Simplesmente, essa época veio-lhe à memória por absoluto contraste com a situação em que agora se encontrava. Até mesmo quando vivia com a sua família estava só. Não confiava em ninguém e considerava aquele estilo de vida banal uma mera fase transitória. No fundo, estava convencido de que um dia tudo haveria de se desmoronar. O trabalho sem descanso como advogado, os elevados rendimentos que recebia, a casa em Chu¯ o¯rinkan, a esposa engraçada, as filhas bonitinhas que andavam a estudar num colégio privado, o cão com pedigree. Por isso, quando as coisas se precipitaram e a sua existência, tal como a conhecia, foi por água abaixo, a modos que sentiu, acima de tudo, alívio. Livra, pensou ele, já não preciso de me preocupar com nada. Volto a começar de novo.

É isto que significa voltar à estaca zero?

Enfiado dentro do saco-cama, Ushikawa encolheu-se todo, como fazem as larvas das moscas varejeiras, e fitou o teto escuro. Doíam-lhe todos os músculos, por causa de ter passado tanto tempo na mesma posição. Tiritar de frio, trincar um anpan frio ao jantar, vigiar a entrada de um edifício velho e à beira de ser deitado abaixo, tirar fotografias a gente medíocre às escondidas, urinar para dentro de um balde de limpeza: era isso o que significava começar tudo de novo? Foi então que se deu conta de que deixara uma coisa por fazer. Arrastou-se para fora do saco-cama, despejou a urina que ficara no balde para a sanita e puxou o autoclismo. Estava quentinho dentro do saco-cama e hesitara até à última antes de sair de lá, mas, por outro lado, se tropeçasse no balde sem querer, às escuras, iria lamentar toda aquela confusão, já para não falar na porcaria. Depois voltou para o saco e ficou a tremer de frio mais um bocado.

É isto que significa voltar à estaca zero?

Se calhar. Não tinha nada a perder. Só a vida, como é bom de ver. No meio da escuridão, Ushikawa esboçou um sorriso fino e penetrante, semelhante a uma navalha de gume muito afiado.

18 Bonecos tradicionais, destinados a trazer sorte. Muito populares junto dos comerciantes japoneses, são feitos de loiça e veem-se nas montras, distinguindo-se pela sua cabeça desproporcionada. O álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, mostra um fukusuke na capa. (N. das T.)

19 Quantia não reembolsável que é paga ao proprietário da casa. (N. das T.)


14

AOMAME

Este pequenino que trago em mim

Aomame vivia tempos difíceis, mergulhada num profundo mar de dúvidas. Não podia prever o que ia acontecer à sua vida no ano de 1Q84, nesse mundo em que a lógica e o saber, tal como os conhecia, pouco ou nenhum valor tinham. Mesmo assim, acreditava que sobreviveria, nem que fosse durante meia dúzia de meses, até chegar a hora de dar à luz. Era apenas um pressentimento, mas um pressentimento bastante forte, que tinha a força de uma convicção. Tudo parecia avançar nesse sentido. Percebia que assim era.

Aomame recordava-se bem das últimas palavras do Líder da Vanguarda: «Vais ter de passar por uma dura prova. Uma vez que o tenhas feito, deverás ser capaz de ver as coisas como elas são.»

O Líder sabia alguma coisa. Algo extremamente importante. E procurou passar-me a mensagem, ainda que expressando-se de maneira vaga e um tanto ambígua. A prova do que ele afirmou talvez consista no facto de eu ter estado quase à beira da morte, quando me arrastei até junto do painel da Esso com a pistola na mão, apostada em tirar a minha própria vida. A verdade, porém, é que voltei viva à civilização para contar a história. E foi então que soube que estava grávida. Pode ser que tudo estivesse decidido à partida.

No começo de dezembro, sucederam-se várias noites ventosas. Na varanda, as folhas caídas das zelcovas batiam no painel de plástico, provocando um ruído seco e incisivo. O vento gélido assobiava por entre os ramos despidos das árvores, deixando no ar uma advertência. O grasnido dos corvos, em diálogo uns com os outros, começou também ele a tornar-se mais severo e agudo. Chegara o inverno.

A cada dia que passava, ganhava consistência no espírito de Aomame a ideia de que a criança que crescia no seu útero poderia ser o filho de Tengo, acabando por se tornar uma realidade incontornável. A teoria, no entanto, carecia de argumentos que lhe permitissem convencer os outros, apesar de aos olhos dela fazer todo o sentido. Era claro como água.

Se fiquei grávida sem ter mantido relações sexuais, quem, senão o Tengo, pode ser o pai?

Desde novembro, aumentara de peso. Embora continuasse sem sair do apartamento, começara a fazer exercício, seguindo um esquema diário à medida das suas necessidades, além de controlar rigorosamente a alimentação. Desde que completara vinte anos, nunca excedera os cinquenta e dois quilos. Um belo dia, porém, a agulha da balança apontou para os cinquenta e quatro quilos e, a partir daí, não voltou a baixar. Dava-lhe a sensação de que tinha a cara mais redonda. Sem dúvida que devia ser o pequenino, exigindo ao corpo da mãe um aumento de peso.

À noite, sempre na esperança de ver a figura corpulenta de um jovem sentado no alto do escorrega, continuava a vigiar o parque infantil, juntamente com a coisa pequenina que trazia dentro de si. Enquanto contemplava as duas luas, pairando uma ao lado da outra naquele céu dos primeiros dias de inverno, acariciava suavemente o baixo-ventre por cima da manta. Havia alturas em que lhe vinham as lágrimas aos olhos sem razão aparente. Quando se dava conta, uma lágrima rolava pela face e caía sobre a manta que lhe cobria as pernas. Talvez fosse por estar sozinha ou pela inquietude que sentia. A gravidez podia ter tocado uma corda mais sensível: essa era outra hipótese a considerar. Ou isso talvez se devesse simplesmente ao vento frio que estimulava as suas glândulas lacrimais, fazendo-a chorar. Em todo o caso, Aomame deixava correr as lágrimas sem se dar ao trabalho de as enxugar.

Chegando a um ponto, as lágrimas esgotaram-se. E Aomame prosseguia com a sua vigília solitária. Não, já não me sinto tão sozinha, pensou ela. Tenho esta coisa pequenina comigo. Somos dois. Olhamos juntos para as duas luas, enquanto esperamos que o Tengo apareça. Volta e meia, agarrava no binóculo e centrava a sua atenção no escorrega deserto. Outras vezes pegava na pistola e confirmava a sua existência, sopesando-a e apalpando-a. Proteger-me a mim mesma, procurar o Tengo e alimentar o pequenino. Por agora, são estas as minhas obrigações.

Certo dia em que soprava um vento frio, estando ela a vigiar o parque infantil, deu-se conta de que acreditava em Deus. Para Aomame, descobrir esse facto, assim sem mais nem menos, foi o mesmo que pisar o fundo de uma camada de lama mole e espapaçada e descobrir que caminhava sobre terreno sólido. Era uma sensação inexplicável, uma revelação imprevisível. Desde que começara a fazer uso da razão, sentira sempre ódio pela figura de Deus. Pondo a questão de uma forma mais precisa, rejeitava as pessoas e o sistema interpondo-se entre Deus e ela. Durante muitos anos, todas essas pessoas, bem como esse sistema, haviam sido, aos seus olhos, sinónimo de Deus. Odiá-los a todos era o mesmo que odiar Deus.

Eles tinham estado à sua volta desde que nascera. Invocando o nome de Deus, dominaram-na, deram-lhe ordens e encurralaram-na. Em nome de Deus, roubaram-lhe tempo e liberdade, mantendo o seu coração aprisionado com pesados grilhões. Pregavam a bondade de Deus, mas apregoavam, ainda mais alto, a sua raiva e a sua intolerância. Aos onze anos, Aomame tomara uma decisão, ousando por fim libertar-se desse mundo, ainda que para tal tivesse de fazer muitos sacrifícios.

Se Deus não existisse, de certeza que a minha vida seria infinitamente luminosa e mais rica, pensava ela muitas vezes. Poderia desenterrar uma mão-cheia de recordações maravilhosas, próprias da infância de uma rapariga normal, e não teria necessidade de viver com a alma permanentemente atormentada pela ira e pelo temor. E a minha vida, agora, seria mil vezes mais positiva, mais reconfortante e enriquecedora.

Apesar de tudo isto, enquanto contemplava por uma fresta o parque deserto, com as mãos pousadas na barriga, Aomame não pôde deixar de concluir que, no fundo, acreditava em Deus. De cada vez que se punha a rezar mecanicamente a oração, de cada vez que entrelaçava os dedos das mãos, realizava atos de fé, por mais que não tivesse consciência deles. Era uma sensação que não tinha que ver com a lógica nem com as emoções, uma sensação que penetrara até ao fundo da sua medula. O rancor e a raiva não conseguiam eliminá-la.

Mas este não é o Deus «deles». É o «meu» Deus. É o resultado de sacrificar a minha própria vida. Por Ele, cortaram-me a carne, esfolaram-me a pele, chuparam-me o sangue, arrancaram-me as unhas, usurparam o meu tempo e despojaram-me de todas as minhas esperanças e ilusões. Não me refiro a um Deus com forma humana. Não veste de branco nem usa barbas brancas. Este Deus não conhece doutrina, não tem um livro sagrado nem leis divinas. Não oferece recompensas nem castiga. Não concede, assim como não arrebata nada. Não existe um Céu a que se possa ascender, tão-pouco um Inferno a que descer. Faça frio ou faça calor, Deus está aí, simplesmente.

De quando em quando, vinham-lhe à memória as palavras que o Líder da Vanguarda pronunciara momentos antes de morrer. Nunca iria esquecer a sua poderosa voz de barítono. Da mesma forma que era incapaz de esquecer o que sentira quando lhe cravara a agulha na nuca.

«Onde há luz tem de haver sombra, e onde há sombra é forçoso que haja luz. Não existe sombra sem luz, nem luz sem sombra. Não sabemos se aqueles a que chamam o Povo Pequeno são bons ou maus. Em certo sentido, isto está para além do nosso entendimento e das nossas definições. Vivemos com eles desde tempos imemoriais, desde um tempo anterior à existência do bem e do mal, desde os alvores da consciência humana.»

Deus e o Povo Pequeno serão seres antagónicos? Ou duas faces diferentes da mesma moeda?

Aomame não sabia. A única coisa que sabia era que, acontecesse o que acontecesse, tinha de proteger o pequenino que carregava na barriga. E, para isso, precisava de acreditar em Deus. Ou então teria de admitir que, na realidade, acreditava em Deus.

Deu voltas à cabeça. Deus carecia de forma, mas, ao mesmo tempo, podia adotar qualquer forma. Imaginou-o como sendo um Mercedes-Benz, um modelo coupé de linhas aerodinâmicas. Um carro novo, acabado de chegar do concessionário. Uma mulher elegante de meia-idade sai lá de dentro. Em plena autoestrada metropolitana, oferece-se para cobrir a nudez de Aomame com o belo casaco primaveril que traz vestido. Protege-a do vento gelado e dos olhares indiscretos das outras pessoas. Depois, sem dizer nada, regressa ao coupé prateado. Ela sabe. Sabe que Aomame carrega um filho nas entranhas. Sabe que deve protegê-la.

De noite, Aomame começou a ter um sonho novo. Vê-se confinada a um quarto branco em forma de cubo. Sem janelas, só dispõe de uma porta. Há uma cama modesta, sem ornamentos, onde ela dorme de barriga para cima. Uma fonte de luz pendurada sobre a cama ilumina a sua barriga, inchada como uma montanha. Apesar de não parecer ela, é sem dúvida uma parte do seu corpo que ali está. Aproxima-se o momento de dar à luz.

O quarto é guardado pelo Bola-de-Bilhar e pelo Rabo-de-Cavalo. A parelha está apostada em não cometer mais erros. Os dois já tinham falhado uma vez; precisavam de emendar a mão. A tarefa que lhes foi encomendada consiste em não deixar sair Aomame do quarto e, ao mesmo tempo, não deixar que ninguém ali entre. Aguardam que o pequenino venha ao mundo. Têm nitidamente a intenção de lho tirar assim que nasça.

Aomame, desesperada, tenta gritar. Sem dúvida que está a pedir ajuda. Contudo, as paredes, o teto e o chão do quarto são feitos de um material próprio, especial, que amortece todos os ruídos. Nem sequer consegue ouvir os seus próprios berros. Aomame só tem um desejo: que a senhora do Mercedes coupé lhe apareça à frente e a salve. A ela e ao pequenino. Mas os seus gritos são abafados pelas paredes brancas do quarto.

O pequenino absorve os nutrientes através do cordão umbilical e cresce a cada instante. Na esperança de se libertar daquela obscuridade tépida, dá pontapés nas paredes do útero, desejoso de ver luz e ansiando pela liberdade.

Junto à porta, muito direito numa cadeira, encontra-se o Rabo-de-Cavalo. Com as mãos sobre os joelhos, contempla um ponto fixo no vazio. Talvez haja alguma pequena nuvem ali a flutuar. O Bola-de-Bilhar está de pé, ao lado da cama. Usa o mesmo fato escuro da outra vez. Volta e meia, o Bola-de-Bilhar levanta o braço para consultar o relógio, como se estivesse na estação à espera de um comboio importante.

Aomame não consegue mexer as extremidades. Muito embora não tenha a sensação de estar atada com cordas, o certo é que não consegue mexer nem os braços nem as pernas. Não tem qualquer sensibilidade na ponta dos dedos. As contrações tornam-se palpáveis, o parto está iminente, como um comboio que se aproxima da estação no horário previsto. Consegue ouvir o ligeiro vibrar dos carris.

E é nesse momento que desperta.

Toma um duche para se libertar do suor desagradável que a cobre e veste roupa limpa. Enfia a roupa húmida de suor na máquina de lavar. Longe dela ter sonhos daqueles, mas o sonho teimava em visitá-la enquanto dormia. Os pormenores variavam um nadinha, mas o lugar e o desenlace eram sempre os mesmos. Um quarto branco que parece um cubo. As contrações que se aproximam, aqueles dois de fato escuro e impessoal.

O duo sabia que Aomame estava grávida do pequenino. Ou então ia ficar a saber muito em breve. Ela estava mentalizada: se fosse necessário, não hesitaria em descarregar sobre o Rabo-de-Cavalo e o Bola-de-Bilhar todas as balas de nove milímetros que tinha consigo. O Deus que a protegia revelava-se, por vezes, um Deus sanguinário.

Alguém bateu à porta com força. Sentada na banqueta da cozinha, Aomame pegou na pistola automática, destravou a patilha de segurança e empunhou-a com a mão direita. Lá fora caía uma chuva fria desde manhãzinha. O mundo inteiro rescendia ao odor característico da chuva no inverno.

– Ora viva, senhora Takai! – saudou o homem quando deixou de bater na porta. – Sou o seu velho amigo, o homem da NHK, lembra-se? Desculpe incomodá-la, mas venho cobrar a taxazinha, como de costume. Senhora Takai, sei que está aí.

Sem articular uma palavra, Aomame dirigiu-se à porta e disse:

– Ligámos para a NHK e tivemos o cuidado de nos informar. Você é apenas alguém que se faz passar por cobrador da empresa. Quem é o senhor, que diabo? E o que pretende de mim?

– Toda a gente deve pagar pelo que recebe. São as normas por que se governa a nossa sociedade. A senhora recebe um sinal de televisão; portanto, tem de pagar a taxa correspondente. Não me parece justo que se limite a receber sem nada dar em troca. Isso é o mesmo que roubar.

A voz do homem ecoava por todo o corredor. Apesar de rouca, não deixava de ser penetrante.

– O que me leva a fazer isto não passa pelos meus sentimentos pessoais. Não sinto ódio por si, nem tenho intenção de a castigar. Acontece, porém, que não suporto injustiças; é uma coisa inata. As pessoas devem pagar por aquilo que recebem. Senhora Takai, enquanto não me atender, virei bater à porta da sua casa as vezes que for necessário. Sei que não deseja isso. Olhe que não sou um velho jarreta pouco razoável... Chegando à fala, tenho a certeza de que nos poderemos entender. Vá lá, senhora Takai, seja simpática e abra-me a porta, de uma vez por todas.

Posto aquilo, continuou a martelar na porta durante um bocado.

Aomame agarrou na arma com as duas mãos. Certamente que este homem sabe que estou grávida. Sentiu uma ligeira camada de suor formar-se nas axilas e debaixo do nariz. Não abrirei a porta, por nada deste mundo. No caso de alguém tentar abri-la com uma chave-mestra ou à força, valendo-se de outro instrumento ou de qualquer espécie de estratagemas, despejo-lhe no bucho todas as balas que há no carregador, seja ele o cobrador da NHK ou não.

No entanto, era pouco provável que tal viesse a suceder. E ela bem o sabia. Eles não podiam abrir a porta. A não ser que Aomame acionasse o mecanismo por dentro, a porta não se abriria. Por isso é que o indivíduo estava furibundo e gastava a sua verborreia daquele modo. Procura bulir com os meus nervos, usando todas as artimanhas que vêm nos manuais.

Passados dez minutos, o homem foi à sua vida. Antes de se ir embora, ainda tratou de a ameaçar e de a pôr a ridículo, sempre na sua voz ameaçadora, logo arrepiando caminho, cheio de manha, para a apaziguar, tornando depois a denegri-la brutalmente e a avisá-la de que regressaria para lhe fazer uma visita.

– Não tem escapatória, senhora Takai. Enquanto receber o sinal de televisão em sua casa, eu voltarei, pode tirar o cavalinho da chuva. Não sou homem de me render facilmente. É a minha maneira de ser. Por isso, até breve!

Não ouviu qualquer ruído de passos, mas de certeza que o homem já não se encontrava diante da porta. Aomame confirmou olhando pela vigia. Depois de verificar que a patilha de segurança da arma estava colocada, foi à casa de banho e passou a cara por água. Tinha as axilas alagadas em suor. Ao mudar de camisola, imobilizou-se em frente do espelho, nua. A barriga ainda não se notava muito, mas ela sabia que, no seu interior, se escondia um segredo importante.

* * *

Falou ao telefone com a anciã de Azabu. Nesse mesmo dia, após ter conversado uns minutos com Aomame, Tamaru passou o auscultador à velha senhora sem proferir uma palavra. Durante a conversa, as duas evitaram chamar as coisas pelos nomes, valendo-se de palavras ambíguas. Pelo menos de início.

– Já te conseguimos arranjar um novo poiso – anunciou a anciã. – Ali poderás levar por diante o «trabalho» planeado. É um local seguro e, periodicamente, serás examinada por um especialista. Podes mudar-te assim que quiseres.

Deveria contar à senhora que andavam atrás do pequenino? Que, no sonho, os tipos da Vanguarda tentavam apropriar-se do seu bebé? Que um falso cobrador da NHK usava muitas e variadas artimanhas para conseguir que ela lhe abrisse a porta, possivelmente pelo mesmo motivo? Aomame desistiu da ideia. Confiava na anciã, sentia por ela uma profunda estima. Mas o problema não residia aí. Em qual dos mundos é que estou a viver? A pergunta-chave era essa, naquele preciso instante.

– Como te tens sentido? – perguntou a velha senhora.

Aomame respondeu-lhe que, por enquanto, tudo parecia correr bem.

– Fico muito contente – regozijou-se a mulher. – Ao mesmo tempo, dá-me a impressão de que alguma coisa mudou na tua voz. Talvez seja imaginação minha, mas noto uma certa tensão, como se estivesses de pé atrás. Se tens algo que te preocupa, não hesites em partilhá-lo connosco, por mais insignificante que te pareça. Quem sabe se não poderemos ajudar-te?

– É inconsciente, devo ter os nervos à flor da pele... Depois de passar tanto tempo encafuada no mesmo sítio, não deixa de ser natural. Apesar disso, garanto-lhe que estou em boa forma. Afinal, essa é a minha especialidade – respondeu Aomame, prestando atenção ao seu tom de voz.

– Naturalmente – retorquiu a anciã. Fez uma pausa antes de prosseguir. – Há dias, andou por aqui a rondar um homem com um ar suspeito. Parecia sobretudo interessado na casa-abrigo. Pedi às três mulheres que lá se encontram para darem uma espreitadela às imagens captadas pelas câmaras de videovigilância, mas nenhuma delas o reconheceu. Pode tratar-se de alguém que ande atrás de ti.

Aomame franziu ligeiramente o cenho.

– Quer dizer que ataram as pontas e estabeleceram ligação entre nós?

– Não sabemos. Estamos numa fase em que não podemos descartar essa possibilidade. O sujeito é esquisito todos os dias, com uma cabeça disforme: está quase calvo e tem a testa lisa. É baixo, atarracado e de pernas curtas. Diz-te alguma coisa?

Uma cabeça disforme?

– Uma vez que passo muito tempo sentada à varanda desta casa, tenho por hábito reparar nas pessoas que passam na rua, mas nunca vi ninguém que se encaixasse em semelhante descrição. À partida, com uma figura dessas, atrairia as atenções, não é verdade?

– Sem dúvida. Faz lembrar um palhaço espalhafatoso, acabado de sair do circo. Se foram eles que o escolheram para nos espiar, devo dizer que fizeram uma opção um tanto bizarra.

Aomame não podia estar mais de acordo. Como é que a Vanguarda ia mandar um tipo que se destacava daquela maneira para fazer o reconhecimento da zona? Não acreditava que pudessem estar assim tão necessitados de pessoal decente. O que significava que o sujeito em questão talvez não fizesse parte dos quadros da comunidade religiosa, podendo mesmo, até certo ponto, ignorar os profundos laços que a uniam à velha senhora. Faltava descobrir quem era esse tal homem, se de facto não pertencia à Vanguarda, e que diabo andava ele a fazer, ao vigiar a casa-abrigo. Tratar-se-ia do mesmo falso cobrador que teimava em ir bater-lhe à porta? Não tinha qualquer prova que lhe permitisse associar os dois fulanos, claro. Acontecia, porém, que o modo excêntrico de o cobrador falar e se manifestar correspondia à descrição daqueloutro homem de aspeto singular.

– Se vires esse tal homem, avisa-me. Talvez seja necessário tomar medidas.

Aomame respondeu que avisaria sem falta, obviamente.

A anciã voltou a remeter-se ao silêncio. Era pouco habitual nela. Nas conversas ao telefone mostrava sempre a sua costela de mulher pragmática e procurava não perder tempo, indo direita ao assunto.

– E a senhora, como tem passado? – perguntou Aomame, com naturalidade.

– Continuo a mesma de sempre, não há mal que me aconteça – respondeu a anciã, mas a sua voz deixava transparecer umas certas reticências. Também isso era invulgar nela.

Aomame esperou que a velha senhora prosseguisse.

Pouco depois, como que conformada com a sua sorte, a anciã retomou o fio da meada.

– Sinto-me a envelhecer, a cada dia que passa. Sobretudo desde que tu deixaste de fazer parte da minha vida.

– Eu não desapareci. Estou aqui. – Aomame disse aquilo num tom jovial.

– Bem sei. Estás por aí e podemos sempre falar ao telefone. Mas, provavelmente, quando nos víamos com outra regularidade e fazíamos exercício juntas, deixava-me contagiar pela tua vitalidade.

– Para começar, a senhora possui vitalidade para dar e vender. A única coisa que eu fazia era ajudá-la a canalizar essa energia que tem dentro de si. Mesmo que eu não esteja presente, de certeza que conseguirá fazê-lo sozinha.

– Verdade seja dita que, até há bem pouco tempo, também eu pensava o mesmo – replicou a anciã, ao mesmo tempo que soltava uma risada breve e desprovida de alegria. – Pensava que era uma criatura especial. Contudo, a pouco e pouco, os anos vão-nos roubando a vida. As pessoas não se limitam a morrer quando chega a hora. Morremos lentamente por dentro, até que, por fim, somos chamados a ajustar contas. Ninguém consegue escapar. Todos temos de pagar; é o preço por termos vivido. E eu só agora me dei conta dessa realidade.

Todos temos de pagar; é o preço por termos vivido. Aomame franziu o sobrolho. Precisamente a mesma frase que o cobrador da NHK tinha dito.

– Dei-me conta disso de um dia para o outro, numa célebre noite de chuva, em setembro, quando se abateu aquela trovoada pavorosa – prosseguiu a velha senhora. – Encontrava-me sozinha em casa, na sala de estar, a escutar os trovões e a contemplar os relâmpagos, preocupada contigo. E foi então que a verdade me iluminou com a violência de um raio. Nessa noite, perdi-te e, ao mesmo tempo, perdi alguma coisa dentro de mim. Mais do que uma coisa, se calhar. Algo que até então ocupava o centro do meu ser e que constituía o cerne da minha existência.

Aomame atreveu-se a perguntar.

– A ira também?

Fez-se silêncio, como acontece quando a maré se retira. Por fim, a anciã voltou a falar.

– Queres saber se, entre as coisas que perdi naquele momento, estava incluída a ira?

– Sim.

A anciã inspirou o ar lentamente.

– A resposta a essa pergunta é «sim». Foi isso que aconteceu, sem tirar nem pôr. Dir-se-ia que a ira incandescente acumulada no meu peito se libertou no meio de tamanha tormenta, ou, pelo menos, se retirou para um lugar distante. O que ficou não se compara com o ódio que ardia dentro de mim, transformou-se numa espécie de mágoa cinzenta e apagada. Nunca julguei que uma cólera tão intensa pudesse alguma vez dissipar-se. Mas... como é que sabes?

– Porque aconteceu o mesmo comigo. Naquela noite em que trovejou a bom trovejar.

– Referes-te à tua própria raiva, não é verdade?

– Sim. A raiva pura e intensa que sentia desvaneceu-se. Não posso afirmar que tenha desaparecido por completo, mas, é como diz, parece que se retirou para longe. Esse sentimento de cólera dominou uma grande parte do meu coração. Durante anos, foi o que me deu ânimo.

– Como um cocheiro sem piedade que não sabe o que é dar descanso ao chicote – interrompeu-a a velha senhora. – Mas tudo isso perdeu força, agora que estás grávida. Quase me atrevo a dizer: em vez de sentires raiva.

Aomame fez um esforço para controlar a respiração.

– Exato. No lugar do ódio tenho agora dentro de mim este pequenino, que não tem qualquer relação com a ira. Além de crescer de dia para dia...

– Bem sei que não precisas que to diga, mas tens de o proteger com muito cuidado – referiu a anciã. – Mais uma razão para saíres quanto antes daí e te mudares para um lugar seguro.

– Tem toda a razão. Antes, porém, tenho de fazer uma coisa, sem falta.

Depois de desligar o telefone, Aomame foi até à varanda e ali se deixou ficar, observando, pelo meio das frestas, a rua e o parque infantil. A tarde caía rapidamente. Antes que o ano de 1Q84 chegue ao fim, pensou ela, antes que eles deem comigo, tenho de encontrar o Tengo. Custe o que custar.


15

TENGO

Não se pode falar no assunto

Depois de sair do bar Mugiatama, Tengo deambulou pelas ruas, imerso nos seus pensamentos. Por fim, tomou uma decisão e dirigiu-se para o parque infantil. Para o local onde, pela primeira vez, vira duas luas no céu.

Vou subir ao escorrega, como da última vez, e olhar de novo para o céu, pensou. Dali talvez conseguisse tornar a ver as duas luas. Talvez lhe dissessem qualquer coisa.

Quando foi a última vez que estive no parque?, perguntava-se, ao caminhar. Não se recordava. O fluxo do tempo perdera a sua uniformidade, as distâncias tornavam-se incertas. Provavelmente, fora no início do outono. Lembrava-se de levar vestida uma T-shirt de mangas compridas. E agora era dezembro.

Um vento gelado arrastava uma massa de nuvens para a baía de Tóquio. As nuvens, de formato irregular, pareciam tesas e duras, como se fossem feitas de betume. Ao fundo, escondendo-se de vez em quando por trás das nuvens, viam-se as duas luas. A lua habitual, amarela, e uma lua nova, mais pequena e verde, ambas em quarto minguante, mostrando apenas cerca de dois terços do seu tamanho. A lua mais pequena parecia uma criança escondendo-se por trás das saias da mãe. As luas estavam quase no sítio exato onde as vira pela primeira vez, como se tivessem estado pacientemente à espera do regresso de Tengo.

Não estava mais ninguém no parque infantil. Os candeeiros de mercúrio tinham adquirido uma tonalidade mais fria, mais crua. Os ramos despidos da zelcova traziam-lhe à ideia ossos velhos, esbranquiçados, por ação da chuva e do vento. Era o tipo de noite em que esperava ouvir o piar dos mochos. Todavia, não havia mochos nos parques da cidade. Tengo puxou o capuz da parca sobre a cabeça e enterrou as mãos nos bolsos do blusão de cabedal que trazia vestido por baixo. Trepou ao escorrega, encostou-se ao corrimão e ergueu o olhar para as duas luas que brincavam às escondidas entre as nuvens. Por trás, as estrelas cintilavam em silêncio. A informe mancha de poluição que costumava pairar sobre a cidade fora arrastada pelo vento, deixando o ar puro e limpo.

Neste preciso momento, quantas pessoas, além de mim, terão reparado nestas duas luas?, questionou-se. Fuka-Eri sabia da sua existência, claro, já que fora ela quem lhes dera origem. Quase de certeza. No entanto, além dela, ninguém das suas relações referira o aumento do número de luas. Ninguém tinha notado? Ou não se atreviam a trazer o assunto à baila? Seria do conhecimento geral? Fosse como fosse, com exceção do amigo que o substituiu na escola durante a sua ausência, Tengo não perguntara a ninguém se sabia das duas luas. Ou melhor, tivera o maior cuidado em não puxar esse assunto, como se fosse algo totalmente imoral.

Porquê?

Talvez as duas luas queiram que assim seja, pensou Tengo. Talvez as duas luas constituam uma mensagem especial só para mim e não me seja permitido partilhar esta informação com mais ninguém.

Que forma estranha de encarar a questão! Por que razão teriam as luas uma mensagem para ele? O que tentavam transmitir-lhe? Aos olhos de Tengo, parecia menos uma mensagem do que um intricado enigma. E se era um enigma, então, quem o teria arquitetado? Quem demónio não permitia que o contasse?

O vento soprava por entre os ramos da zelcova, produzindo um assobio. Parecia a respiração cruel, sibilada entre dentes, de alguém que perdera toda a esperança. Tengo olhou para as luas, sem prestar grande atenção ao uivar do vento, e quedou-se ali sentado até gelar dos pés à cabeça. Deviam ter passado cerca de quinze minutos... não, talvez mais. Perdera a noção do tempo. O seu corpo, aquecido pelo uísque, estava agora rígido e frio, como um pedregulho solitário no fundo do mar.

As nuvens continuavam a deslocar-se lentamente para sul. Por muitas nuvens que fossem arrastadas, havia sempre mais que tomavam o lugar das primeiras. Sem dúvida que, algures no norte, havia uma fonte inesgotável delas. Aí, gente de uniforme grosso e cinzento, determinada, com a atenção presa à sua tarefa, trabalhava em silêncio de manhã à noite, a fabricar nuvens. Como abelhas que produzem o mel, aranhas que tecem a teia, ou a guerra que faz viúvas.

Tengo olhou para o relógio. Eram quase oito. O parque infantil continuava deserto. Esporadicamente alguém passava com rapidez pela rua ali à frente. Todas as pessoas que regressam do trabalho, de volta a casa, caminham da mesma maneira. Havia luz em metade dos apartamentos do prédio novo de seis andares, do outro lado da rua. Em noites de inverno ventosas como aquela, as janelas iluminadas adquirem um calor suave, especial. O olhar de Tengo passou de uma janela iluminada para outra, por ordem, como se observasse um gigantesco navio de cruzeiros de luxo a partir de um barquinho de pesca, aos saltos no mar noturno. Como que obedecendo a um acordo prévio, todas as cortinas se encontravam corridas. Vistas de um escorrega gelado, num parque, a meio da noite, pareciam pertencer a um mundo completamente diferente. Um mundo com princípios diferentes, regido por normas diferentes. Por trás das cortinas devia haver pessoas a viver as suas vidas vulgares, pacíficas e satisfeitas.

Vidas vulgares?

Na mente de Tengo, a única imagem que se formava de uma vida vulgar era estereotipada, desprovida de profundidade e cor. Um casal, provavelmente com dois filhos. A mãe tem um avental posto. De uma panela borbulhante eleva-se vapor, há vozes em redor da mesa de jantar – nesse ponto, a sua imaginação esbarrava com um muro. De que falaria uma família vulgar reunida à volta da mesa de jantar? Ele mesmo não tinha qualquer recordação de ter conversado com o pai à mesa. Limitavam-se a enfiar a comida na boca, em silêncio, sempre que sentiam necessidade. E era difícil designar o que comiam como uma refeição a sério.

Depois de observar todas as janelas iluminadas do edifício, Tengo dirigiu de novo o olhar para o par de luas. Por mais que esperasse, contudo, nenhuma das luas lhe dizia o que quer que fosse. Mantinham as faces sem expressão, ali, flutuando no céu lado a lado, como uma casa a precisar de obras. Hoje não havia mensagem; era a única mensagem que tinham para Tengo.

As nuvens deslizavam para sul, interminavelmente. Nuvens de todos os tamanhos e feitios apareciam e desapareciam. Algumas ostentavam formas invulgares, como se cada uma delas tivesse os seus próprios pensamentos. Pensamentos breves, sólidos, de contornos bem definidos. Só que Tengo apenas queria saber o que pensavam as luas, não as nuvens.

Ao fim de um bocado, desistiu, levantou-se, esticou as pernas e os braços e desceu do escorrega. Não há nada a fazer, pensou. Já pude verificar que o número de luas não se alterou, e, por agora, deixo as coisas como estão. Com as mãos enterradas nos bolsos do blusão de cabedal, abandonou o parque infantil e caminhou de regresso ao seu apartamento. Enquanto caminhava, lembrou-se inesperadamente de Komatsu. Já era mais do que tempo de falarem. Tinha de perceber, mesmo que em termos gerais, o que se passara entre os dois. O próprio Komatsu parecia ter coisas a dizer-lhe. Tengo deixara o número de telefone da clínica de Chikura no gabinete de Komatsu, mas ele nunca dera notícias. No dia seguinte, telefonar-lhe-ia. Contudo, antes disso, tinha de ir até à escola para ler a carta que Fuka-Eri lhe deixara.

A carta de Fuka-Eri estava dentro da gaveta da sua secretária, ainda por abrir. Tendo em conta o envelope tão bem fechado, era uma missiva curta. Uma página e meia de um bloco de notas, escrita a tinta azul, na caligrafia dela, aquela letra cuneiforme do costume, que se casava melhor com uma placa de argila do que com um bloco de notas. Tengo estava consciente do muito tempo que ela demorara para escrever aquilo.

Leu a carta vezes sem conta. Ela tinha de sair de casa dele. Naquele preciso momento, escrevera, porque estavam a ser vigiados. Sublinhara aquelas três passagens com um lápis macio e grosso. Sublinhados de uma eloquência terrível.

Quem os vigiava e como o soubera – sobre isso nada dizia. Ao que parecia, no mundo em que Fuka-Eri vivia, os factos não eram transmitidos diretamente. Como um mapa do tesouro enterrado, as coisas tinham de ser ligadas por pistas e enigmas, elipses e variações. Tal como o manuscrito de A Crisálida de Ar.

Na realidade, Fuka-Eri não pretendia expressar-se de maneira dissimulada ou enigmática. Era apenas a maneira mais natural de se expressar. Só mediante aquele léxico e aquela gramática era capaz de transmitir as suas imagens e ideias. Para entender as suas mensagens, a pessoa tinha de se familiarizar com a sua sintaxe e necessitava de mobilizar todas as suas capacidades para reordenar devidamente as palavras e preencher as lacunas.

Contudo, Tengo habituara-se a esse estilo de Fuka-Eri, tão peculiar e direto. De momento e provisoriamente, aceitava o que Fuka-Eri lhe dissesse. Quando afirmara que estavam a ser vigiados, não lhe restavam dúvidas de que, de facto, estavam a ser vigiados. Quando ela sentia que tinha de sair, tal significava que chegara a hora de ela partir. A primeira coisa a fazer era aceitar todas aquelas afirmações como uma verdade global. Posteriormente, havia que fazer conjeturas ou tentar descobrir o contexto, os pormenores, as razões. Ou, pura e simplesmente, desistir logo à partida.

Estamos a ser vigiados.

Significaria que os membros da Vanguarda haviam dado com ela? Já sabiam da ligação entre ele e Fuka-Eri. Tinham descoberto que fora ele, a pedido de Komatsu, quem reescrevera A Crisálida de Ar, o que explicava a razão por que Ushikawa abordara Tengo. Com um estratagema muito intricado (se bem que não percebesse porquê), pretendiam deitar-lhe o laço para o controlarem. E, se isso fosse verdade, existia a distinta possibilidade de o seu apartamento estar sob vigilância.

A ser verdade, contudo, não tinham pressa. Fuka-Eri estivera instalada no seu apartamento durante quase três meses. Eles estavam bem organizados, eram gente com poder e influência reais. Se quisessem, poderiam ter deitado a mão a Fuka-Eri a qualquer altura. Não havia necessidade de se darem ao enorme trabalho de pôr o seu apartamento sob vigilância. E se, de facto, estavam a vigiá-la, não a deixariam ir-se embora sem mais. Todavia, depois de reunir as suas coisas e abandonar a casa, a rapariga tinha inclusivamente ido à academia de Yoyogi para confiar uma carta a um amigo de Tengo.

Quanto mais tentava perceber a lógica de tudo aquilo, mais confuso ficava. A única explicação que lhe ocorria era que eles não queriam realmente apanhar Fuka-Eri. Talvez, a dado momento, tivessem mudado de ideias e não quisessem a rapariga mas alguém ligado a ela. Por qualquer razão, já não encaravam Fuka-Eri como uma ameaça para a Vanguarda. A crer nisto, contudo, para quê darem-se ao trabalho de pôr o apartamento de Tengo sob vigilância?

Tengo usou o telefone público da escola onde ensinava para ligar para o gabinete de Komatsu na editora. Era domingo, mas Tengo sabia que ele gostava de ir até ao escritório, durante o fim de semana, para trabalhar. Costumava dizer que o escritório era um sítio agradável quando se encontrava deserto. Contudo, ninguém atendeu. Tengo olhou para o relógio. Eram onze da manhã, demasiado cedo para que Komatsu estivesse a trabalhar. O dia dele, e não importava que dia da semana era, começava depois de o Sol ter atingido o seu zénite. Tengo, numa cadeira da cantina da escola, bebericou o café deslavado e releu a carta de Fuka-Eri. Como era seu hábito, quase não utilizava ideogramas kanji, muito menos parágrafos ou pontuação.

* * *

«Tengo-san já voltaste da cidade dos gatos e estás a ler esta carta ainda bem mas estamos a ser vigiados por isso tenho de sair daqui neste preciso momento não te preocupes comigo mas não posso ficar mais tempo aqui como já te disse a pessoa que procuras está perto daqui podes ir a pé tem cuidado e não deixes que te vejam.»

Tengo leu três vezes a carta, que mais parecia um telegrama; depois dobrou-a e meteu-a no bolso. Tal como já lhe acontecera antes, quanto mais a lia, mais credíveis as palavras dela se tornavam. Alguém estava a vigiá-lo. Aceitava-o agora como uma certeza. Ergueu o olhar e perscrutou em volta, verificando todos os cantos da minúscula cantina da escola. Àquela hora decorriam aulas, pelo que aquele espaço se encontrava quase deserto. Havia apenas por ali meia dúzia de estudantes, a ler manuais ou a escrever nos seus cadernos. Mas não reparou em ninguém, escondido nas sombras, que pudesse estar a vigiá-lo.

Persistia uma questão básica: se não vigiavam Fuka-Eri, quem estariam eles a vigiar, c’os demónios? O interesse dessa gente recaía no próprio Tengo ou no seu apartamento? Tengo ponderou a questão. Mantinha-se tudo no campo das conjeturas. Não sabia bem porquê, mas tinha a impressão de que talvez fosse ele o objeto do interesse deles. Apenas se limitara a reescrever A Crisálida de Ar. O livro fora publicado e dera que falar, mas, pouco depois, desaparecera das listas dos mais vendidos. O seu papel há muito que estava terminado. Já não havia motivo para manterem o interesse por ele.

Fuka-Eri quase não dera um passo fora do seu apartamento, pelo que a sensação que tinha de que estava a ser vigiada significava que a casa dele estava sob vigilância. Mas de onde seria possível vigiá-la? O bairro onde Tengo morava tinha numerosos edifícios, mas dava-se a circunstância bizarra de o apartamento de Tengo, situado num terceiro andar, ficar quase por completo fora do alcance da vista, não sendo possível observar bem o seu interior de nenhum ângulo. Era uma das razões por que Tengo gostava dele e ali vivia há tanto tempo. Pela mesma razão, a sua amante casada também gostava do apartamento.

«Pondo de lado o aspeto da casa», dizia muitas vezes, «é espantosamente tranquila. Muito parecida com a pessoa que vive cá.»

Pouco antes do anoitecer, um grande corvo passou a voar à frente da sua janela. Tratava-se do corvo de que Fuka-Eri falara durante o telefonema. Pousou no estreito parapeito da janela, onde mal cabiam uns vasinhos, e esfregou as suas grandes asas negras e lustrosas no vidro. Fazia parte da rotina diária do corvo parar ali durante breves instantes para descansar antes de regressar ao ninho. O corvo parecia curioso quanto ao interior do apartamento de Tengo. Os grandes olhos negros, de cada lado da cabeça, moviam-se com rapidez, recolhendo a informação pelo espaço livre entre as duas cortinas. Os corvos são aves muitíssimo inteligentes e altamente curiosas. Fuka-Eri alegava ter conseguido conversar com este corvo. Mesmo assim, era ridículo pensar que o corvo podia ter sido enviado por alguém para fazer o reconhecimento do apartamento de Tengo.

Portanto, de onde o vigiariam?

De regresso a casa, ao sair da estação de comboios, Tengo parou num supermercado e comprou alguns legumes, ovos, leite e peixe. Com os sacos de papel nos braços, deteve-se junto à porta do prédio onde vivia e olhou em redor, só para ter a certeza de que não estava a ser vigiado. Não viu nada de suspeito; era a mesma paisagem de sempre. As linhas elétricas, quais vísceras escuras suspensas no ar, a relva ressequida pelo frio invernal no pequeno pátio da frente, as caixas do correio ferrugentas. Aguçou o ouvido, mas tudo o que conseguiu escutar foi o ruído de fundo da cidade, característico e persistente, parecido com um distante bater de asas.

Entrou em casa, guardou a comida, aproximou-se da janela, afastou as cortinas e inspecionou a paisagem que dali se via. Do outro lado da rua havia três casas antigas, com dois andares, construídas em minúsculos lotes de terreno. Os proprietários, todos anciãos, típicos residentes de longa data naquele local, de cara azeda, odiavam qualquer tipo de mudança, pelo que não acolheriam de bom grado uma pessoa que desejasse instalar-se no segundo andar. Além de que, se alguém estivesse no segundo andar e se inclinasse para fora da janela, tudo o que conseguiria ver seria o teto do seu apartamento.

Tengo fechou a janela, ferveu água e fez café. Sentado à mesa a bebê-lo, pôs-se a analisar as diferentes possibilidades que lhe tinham ocorrido. Alguém, ali próximo, pusera-se a vigiá-lo. E Aomame estava (ou estivera) por perto, num lugar aonde podia ir a pé. Haveria alguma relação entre os dois factos? Ou não passaria de uma simples coincidência? Por mais que matutasse naquilo, não foi capaz de chegar a uma conclusão. Os pensamentos andavam às voltas dentro da sua cabeça como um pobre rato preso num labirinto sem saída, que apenas pode cheirar o queijo.

Desistiu de pensar no assunto e deitou uma vista de olhos ao jornal que comprara no quiosque da estação. Ronald Reagan, recém-eleito pela segunda vez naquele outono, dera em chamar Yasu ao primeiro-ministro Yasuhiro Nakasone, que retribuía, chamando-lhe Ron. Podia ter sido a maneira como a fotografia fora tirada, mas os dois homens pareciam um par de construtores civis a discutir como iriam passar a utilizar materiais mais baratos e de menor qualidade. Continuavam os tumultos na Índia, que tinham começado a seguir à morte de Indira Ghandi, com os Sikhs a serem chacinados um pouco por todo o país. No Japão, a colheita de maçãs fora excelente, excecional. Mas não havia nada no jornal que despertasse o interesse de Tengo.

Esperou até o relógio marcar as duas horas e telefonou de novo para o escritório de Komatsu.

Como de costume, foram precisos doze toques antes de Komatsu atender. Tengo não sabia porquê, mas parecia que lhe era sempre difícil atender o telefone.

– Tengo-kun, há quanto tempo – saudou-o Komatsu. A voz parecia a do velho Komatsu. Suave, um pouco forçada, um tanto equívoca.

– Tirei duas semanas de férias e fui a Chiba. Regressei ontem à noite.

– Disseste que o teu pai não estava bem. Deve ter sido duro.

– Não muito. Ele está em coma profundo, pelo que me limitei a passar algum tempo junto dele, a olhar para o seu rosto adormecido. O resto do tempo, passei-o na estalagem, a escrever.

– Mesmo assim, estamos a falar de uma situação de vida ou de morte, o que não deve ser fácil.

Tengo mudou de assunto.

– Quando, há já algum tempo, falámos pela última vez, referiu que precisava de discutir comigo um assunto.

– Lembro-me – respondeu Komatsu. – Gostava de ter uma boa e longa conversa contigo. Estás livre?

– Se é uma coisa importante, quanto mais cedo, melhor, não?

– Iá, quanto mais cedo, melhor.

– Por mim, posso esta noite.

– Perfeito. Também estou livre esta noite. Digamos, às sete?

– Seja. Às sete – respondeu Tengo.

Komatsu combinou o encontro para um bar nas imediações da editora, um estabelecimento onde Tengo já fora muitas vezes.

– Está aberto ao domingo – acrescentou Komatsu –, mas quase não tem clientes. Por isso, podemos conversar com calma e tranquilidade.

– Vai ser uma longa história?

Komatsu pensou um pouco.

– Não tenho a certeza. Até ta contar, não faço a mínima ideia se será longa ou não.

– Muito bem. Terei todo o gosto em ouvir o que tem para dizer. Porque estamos no mesmo barco, não é? Ou já mudou para outro?

– Não, não, de todo – replicou Komatsu, num tom mais sério. – Ainda estamos no mesmo barco. Seja como for, vemo-nos às sete. Logo te contarei tudo.

* * *

Depois de desligar, Tengo sentou-se à secretária, ligou o computador e acedeu ao processador de texto, passando a história que tinha escrito à mão, a tinta permanente, na estalagem em Chikura. Enquanto relia a história, vieram-lhe à cabeça as imagens da cidade. A clínica, os rostos das três enfermeiras. A brisa marítima, soprando por entre as agulhas dos pinheiros, e as gaivotas de um branco puro, a voar lá no alto. Tengo pôs-se de pé, afastou as cortinas, abriu as janelas de correr e inspirou profundamente o ar frio.

Tengo-san já voltaste da cidade dos gatos e estás a ler esta carta ainda bem

Fora o que Fuka-Eri escrevera. Mas o apartamento ao qual regressara estava a ser vigiado. Podia existir uma câmara oculta ali mesmo, na sala. Ansioso, agora que pensara nisto, Tengo vasculhou todos os cantos do apartamento. Porém, não encontrou qualquer câmara oculta, nenhum microfone. Bem vistas as coisas, tratava-se de um apartamento velho, minúsculo, de uma assoalhada, onde seria praticamente impossível esconder o que quer que fosse.

Tengo continuou a datilografar o seu manuscrito até escurecer. Tomou-lhe muito mais tempo do que estava à espera, porque reescreveu partes do texto original à medida que o datilografava. Parou um instante para ligar o candeeiro e tomou consciência de que o corvo não aparecera. Percebia quando ele chegava por causa do ruído das grandes asas a roçarem no vidro da janela. Costumava deixar umas vagas marcas de sujidade no vidro, qual código à espera que alguém o decifrasse.

Às cinco e meia preparou um jantar simples. Não tinha muita fome, mas quase não comera nada ao almoço. Considerou que seria boa ideia ter qualquer coisa no estômago. Fez uma salada de tomate e wakame e comeu uma torrada. Às seis e um quarto enfiou uma camisola de gola alta preta, um blazer de bombazina verde-azeitona e abandonou o apartamento. Ao sair pela porta da rua, deteve-se e olhou de novo à sua volta. Mas nada lhe prendeu a atenção. Não havia nenhum homem escondido nas sombras de um poste telefónico; nenhum carro suspeito estacionado nas redondezas; nem mesmo o corvo andava por ali. O que só serviu para deixar Tengo ainda mais nervoso. Todas aquelas coisas aparentemente benignas pareciam estar a vigiá-lo. Quem poderia dizer se as pessoas que por ali andavam – a dona de casa com o seu cesto de compras, o velho silencioso que passeava o cão, os estudantes do secundário, com as raquetas de ténis penduradas ao ombro, passando de bicicleta e ignorando-o por completo – não faziam parte de uma equipa de vigilância da Vanguarda, habilmente disfarçada?

Estou a ficar paranoico, disse para si próprio. Tenho de ter cuidado, mas não há necessidade de me assustar por tudo e por nada. Avançou em passo estugado para a estação, olhando por cima do ombro de vez em quando para se assegurar de que não estava a ser seguido. Se houvesse alguém no seu encalço, de certeza que daria por isso. Além de a visão central estar excelente, a sua visão periférica era melhor do que a da maioria das pessoas. Depois de olhar por cima do ombro pela terceira vez, convenceu-se de que não estava a ser seguido.

Entrou no bar cinco minutos antes das sete. Komatsu ainda não chegara e Tengo era o primeiro cliente da noite. Em cima do balcão, uma grande jarra ostentava um ramo de flores de cores vivas; o aroma dos caules acabados de cortar espalhava-se em todas as direções. Tengo sentou-se numa das divisórias do fundo e pediu uma cerveja de pressão. Tirou um livro do bolso e pôs-se a ler. Komatsu chegou às sete e um quarto. Envergava um casaco de tweed, uma camisola fina de caxemira, um cachecol também de caxemira, calças de lã e sapatos de camurça. A mesma vestimenta de sempre. Roupas de excelente qualidade, de bom gosto, que lhe assentavam bem. Parecia ter nascido já com elas vestidas. Que se recordasse, Tengo nunca vira Komatsu estrear qualquer peça. Quando comprava alguma coisa nova, talvez dormisse com ela vestida ou se rebolasse no chão. Talvez a lavasse várias vezes e a pusesse a secar à sombra. Só quando a peça ganhava o aspeto usado e desbotado que queria é que a vestia, juntamente com o resto da sua roupa, e saía para a rua com cara de quem nunca em toda a sua vida se preocupara com coisas como a roupa que vestia. Fosse lá como fosse, dava-lhe um ar de editor veterano. A julgar pela forma como se vestia, era a única coisa que podia ser. Komatsu sentou-se à frente de Tengo e também pediu uma cerveja.

– Não mudaste nada – comentou Komatsu. – Como está a correr o novo romance?

– Avança; devagar, mas avança.

– Fico contente por saber isso. Se querem amadurecer, os escritores têm de continuar a escrever. Como lagartas a mastigar eternamente as suas folhas. É como te disse: aceitares reescrever A Crisálida de Ar ia ser bom para o teu trabalho. Tinha ou não tinha razão?

Tengo anuiu.

– Tinha. Reescrever aquele texto fez-me aprender imenso sobre como escrever ficção. Comecei a notar coisas em que nunca tinha reparado.

– Não é para me gabar, ou coisa parecida, mas sei exatamente do que estás a falar. Só precisavas da oportunidade certa.

– Mas, como bem sabe, também me fez meter-me em trabalhos.

A boca de Komatsu revirou-se num sorriso, até ficar parecida com uma lua em quarto crescente, no inverno. Um sorriso difícil de interpretar.

– Para se conseguir algo importante, há que pagar um preço. É a regra que faz funcionar o mundo.

– Pode ser que tenha razão. Mas custa-me a perceber a diferença entre o que é importante e o preço a pagar. Está tudo misturado.

– Sem dúvida. É como quando se está a falar ao telefone e as linhas se cruzam. Tens toda a razão – disse Komatsu, franzindo a testa. – A propósito, sabes onde anda a Fuka-Eri?

– Neste momento, não sei onde ela está, não – respondeu Tengo, escolhendo as palavras com todo o cuidado.

– Neste momento – repetiu Komatsu, num tom carregado de insinuações.

Tengo não disse nada.

– Mas, até há pouco tempo, esteve a viver no teu apartamento – declarou Komatsu. – Pelo menos, foi o que ouvi dizer.

Tengo anuiu.

– É verdade. Esteve em minha casa durante três meses.

– Três meses é muito tempo – retorquiu Komatsu. – E tu não disseste nada a ninguém.

– Ela pediu-me que não contasse, e eu não contei. Nem sequer a si.

– No entanto, já não está em tua casa.

– É verdade. Saiu durante a minha estada em Chikura e deixou-me uma carta. Não sei onde se encontra agora.

Komatsu puxou de um cigarro, enfiou-o na boca e acendeu um fósforo. Semicerrou os olhos e olhou para Tengo.

– Depois de ter abandonado o teu apartamento, a Fuka-Eri foi ter com o Professor Ebisuno. A casa dele fica no cume da montanha em Futamatao – disse. – O Professor Ebisuno contactou a polícia e retirou a participação de pessoa desaparecida, uma vez que ela se fora embora de livre vontade e não tinha sido raptada. A polícia deve ter ido falar com ela para saber o que aconteceu. Bem vistas as coisas, ela é menor. Não ficaria surpreendido se, dentro de pouco tempo, aparecer um artigo num jornal: «Jovem escritora, cujo paradeiro era desconhecido, aparece sã e salva.» Mas duvido que diga grande coisa. Uma vez que, aparentemente, não houve qualquer ação criminosa envolvida no caso.

– Acha que vai sair na imprensa que ela esteve em minha casa?

Komatsu abanou a cabeça.

– Não me parece que a Fuka-Eri mencione o teu nome. Sabes como ela é. Quer esteja a falar com a polícia, os militares, um comité revolucionário ou a Madre Teresa... uma vez que decida não dizer uma palavra, fica muda que nem uma pedra. Por isso, eu não me preocuparia com o assunto.

– Não estou preocupado. Só quero saber como é que as coisas se vão passar.

– Aconteça o que acontecer, o teu nome não será tornado público. Podes ficar tranquilo – asseverou-lhe Komatsu. Ficou sério. – Mas há uma coisa que tenho de te perguntar. É um assunto delicado, até me custa dizer...

– O que é?

– Bem, é muito... pessoal.

Tengo bebeu um pouco da cerveja e pousou o copo na mesa.

– Não há problema. Se puder responder, eu respondo.

– Tu e a Fuka-Eri tiveram relações sexuais? Quer dizer, enquanto ela esteve em tua casa. Basta-me um simples «sim» ou «não».

Tengo fez uma breve pausa e, lentamente, abanou a cabeça.

– A resposta é «não». Não tive esse tipo de relação com ela.

Tengo decidiu instintivamente que não deveria revelar o que ocorrera entre os dois naquela noite de tempestade. Além do mais, não fora bem o que se poderia designar como ato sexual. Não existira desejo, no sentido normal do termo. Por parte de nenhum deles.

– Então, não tiveram relações sexuais?

– Não – respondeu Tengo, num tom seco.

Komatsu franziu o nariz.

– Tengo, não é que duvide de ti, mas hesitaste antes de responder. Talvez tenha acontecido qualquer coisa que se assemelhasse a sexo? Não te quero repreender. Só estou a tentar verificar alguns factos.

Tengo encarou Komatsu olhos nos olhos.

– Não hesitei. A pergunta foi um tanto estranha. Perguntava-me por que carga-d’água estaria tão preocupado em saber se eu e a Fuka-Eri tivemos relações sexuais. O senhor não costuma ser daqueles que metem o nariz na vida privada das pessoas. Costuma evitá-lo.

– Acho que sim – respondeu Komatsu.

– Então, porque é que está a trazer isto à baila agora?

– Em princípio, não é da minha conta saber com quem dorme ou o que faz a Fuka-Eri. – Komatsu coçou a asa do nariz. – Como muito bem sublinhaste. Mas, tens consciência disto, ela não é uma rapariga vulgar. Como posso eu dizer?... Todas as suas ações têm um significado.

– Um significado – repetiu Tengo.

– Em termos lógicos, todas as ações que as pessoas empreendem têm um significado – explicou Komatsu. – Mas, no caso da Fuka-Eri, têm um significado mais profundo. Há qualquer coisa nela que torna as suas ações diferentes, insólitas. Portanto, temos de estar seguros de tudo quanto lhe diga respeito.

– Por «temos», está a referir-se a quem? – perguntou Tengo.

Komatsu arvorou um ar confuso, pouco habitual nele.

– Para ser franco, não sou eu quem quer saber se vocês tiveram relações sexuais, mas sim o Professor Ebisuno.

– Então, o Professor já sabe que a Fuka-Eri passou uns meses em minha casa?

– Claro. Soube-o logo no dia em que a Fuka-Eri pôs o pé em tua casa. A Fuka-Eri disse-lhe onde estava.

– Não fazia ideia – surpreendeu-se Tengo. Ela dissera-lhe que não revelara a ninguém onde estava. Não que agora fosse muito importante. – Há só uma coisa que não percebo. O Professor Ebisuno é o tutor dela, o guardião legal, pelo que é de esperar que se preocupe com tais coisas. Todavia, nesta situação sem pés nem cabeça em que nos encontramos, seria de esperar que a sua prioridade fosse saber se ela está em segurança, e não se se manteve casta.

Os cantos da boca de Komatsu reviraram-se.

– Não sei bem qual é o contexto. Ele só me pediu que tentasse saber. Pediu-me que falasse contigo e te perguntasse se tinham tido uma relação física. Foi por isso que te fiz a pergunta, e a resposta foi «não».

– Exato. Entre mim e a Fuka-Eri não existiu qualquer relação carnal – repetiu Tengo, com firmeza, mantendo o olhar fixo no de Komatsu. Tengo não sentia que estivesse a mentir.

– Muito bem, então – disse Komatsu. Pôs outro Marlboro entre os lábios e acendeu um fósforo. – É tudo quanto preciso de saber.

– Não há dúvida de que a Fuka-Eri é uma rapariga atraente – prosseguiu Tengo. – Mas, como muito bem sabe, vi-me envolvido em algo muito sério. A contragosto. Não quero tornar as coisas mais complicadas do que já são. Além do mais, eu andava com uma pessoa.

– Percebo-te perfeitamente – respondeu Komatsu. – Sei que, no que toca a assuntos deste género, és uma pessoa esperta, revelas bastante maturidade. Eu transmito o que me disseste ao Professor Ebisuno. Lamento ter feito a pergunta. Não fiques aborrecido.

– Não me aborrece especialmente. Só achei estranho que se levantasse o assunto nesta altura. – Tengo fez uma pausa. – E o que era que queria dizer-me?

Komatsu terminou a cerveja e pediu um uísque soda ao empregado do bar.

– Queres tomar o quê? – perguntou a Tengo.

– O mesmo – respondeu Tengo.

Dois uísques soda, em copos altos, vieram para a mesa.

– Bem, antes de mais nada – começou Komatsu, ao fim de um longo silêncio –, penso que, na medida do possível, devemos esclarecer algumas coisas acerca da situação em que nos vimos envolvidos. Afinal, estamos no mesmo barco. E, por «nós», eu refiro-me a nós os quatro: tu, eu, a Fuka-Eri e o Professor Ebisuno.

– Um grupo interessante – disse Tengo, mas o seu sarcasmo não pareceu afetar Komatsu. Estava concentrado nas suas próprias palavras. Komatsu prosseguiu: – Penso que cada um de nós tinha as suas expectativas quanto a este plano e que, desde o princípio, não estamos todos ao mesmo nível ou a mover-nos na mesma direção. Por outras palavras, não estávamos a remar ao mesmo ritmo nem tínhamos os remos no mesmo ângulo.

– Não é bem o tipo de grupo que se presta ao trabalho em equipa.

– Pode ser que tenhas razão.

– E o nosso barco foi arrastado pelos rápidos para uma catarata.

– O nosso barco foi arrastado pelos rápidos para uma catarata, é bem verdade – admitiu Komatsu. – Não estou a tentar arranjar desculpas, ou coisa parecida, mas desde o princípio que o plano era muitíssimo simples. Tu reescrevias A Crisálida de Ar e a obra ganhava o prémio. Vendiam-se uns quantos exemplares. Enganávamos toda a gente, ganhávamos umas massas. Em parte pelo gozo, em parte pelo lucro. Era o nosso objetivo. Mas, desde que o Professor Ebisuno se envolveu, as coisas complicaram-se. Por baixo da superfície da água enredaram-se vários planos diferentes, e a corrente tornou-se cada vez mais rápida. A tua versão do romance excedeu em muito as minhas expectativas e, graças a ela, o livro teve grandes críticas e vendas espantosas. Como resultado, o nosso barco acabou num local onde nunca pensaríamos que fosse dar. Um local um tanto perigoso.

Tengo abanou levemente a cabeça.

– Não é um local um tanto perigoso. É um local extremamente perigoso.

– Pode ser que tenhas razão.

– Não aja como se isto não lhe dissesse respeito. Foi o senhor quem teve esta ideia.

– Tens razão. Fui eu que tive a ideia e dei o tiro de partida. No início correu tudo bem, mas, infelizmente, à medida que as coisas foram evoluindo, perdi o controlo. Sinto-me responsável, acredita. Especialmente por causa do teu envolvimento, já que, bem vistas as coisas, eu te forcei a tanto. Mas chegou a hora de pararmos e corrigirmos a nossa posição. Soltar lastro e simplificar a rota ao máximo. Estudar bem o que temos e arranjar um plano de ação, decidir o nosso rumo.

Tendo despejado isto tudo, Komatsu respirou profundamente e bebeu o seu uísque soda. Agarrou no cinzeiro de vidro e, qual cego que tateia para perceber que objeto tem na mão, com os dedos longos percorreu cuidadosamente a sua superfície.

– Para te falar verdade – acabou por dizer –, durante dezassete ou dezoito dias, estive preso algures. Do final de agosto a meados de setembro. No dia em que tudo se passou, eu estava no meu bairro, ao início da tarde, a caminho do trabalho. Estava na estrada que vai ter à estação de Gotokuji. Um carro preto grande parou ao meu lado, abriram a janela e chamaram por mim. Aproximei-me, para ver quem poderia ser, e dois homens saltaram do carro e arrastaram-me lá para dentro. Eram ambos bastante possantes. Um deles prendeu-me os braços atrás das costas e o outro aplicou-me clorofórmio, ou coisa parecida, sobre o nariz. Parece um filme, hã? Mas aquela coisa resulta mesmo, acredita. Quando acordei, estava preso num quartinho sem janelas. As paredes eram brancas e aquilo parecia um cubo. Havia uma cama pequena e uma mesa também pequena de madeira, mas nada de cadeira. Estava deitado na cama.

– Foi raptado? – perguntou Tengo.

Komatsu terminou a inspeção ao cinzeiro, repô-lo sobre a mesa e olhou para Tengo.

– É verdade. Um rapto autêntico. Como naquele filme antigo, O Obcecado20. Não creio que haja muita gente no mundo a quem tenha passado pela cabeça que um dia seria raptada. Nunca se pensa nisso, certo? Mas, acredita, quando te raptam, fazem-no como mandam as regras. É como se... como hei de dizer?... é surreal. A pessoa tem dificuldade em acreditar que está realmente a ser raptada por alguém. Dá para acreditar?

Komatsu olhou para Tengo, à espera de uma resposta, mas tratava-se de uma pergunta de retórica. Tengo manteve-se em silêncio, para que ele prosseguisse. Ainda não tocara na sua bebida. Do lado de fora do copo haviam-se formado minúsculas gotas de água, que humedeciam a base que estava por baixo.

20 The Collector, no original. Filme realizado em 1965 por William Wyler, a partir do romance de John Fowles, em que um homem rapta uma mulher, mantendo-a refém pelo mero prazer de a ter junto de si. (N. das T.)


16

USHIKAWA

Uma máquina capaz, paciente e insensível

Na manhã seguinte, tal como no dia anterior, Ushikawa sentou-se no chão, perto da janela, e continuou a sua vigilância espiando pela fresta entre as cortinas. Praticamente os mesmos vizinhos que haviam entrado no edifício na noite anterior, ou pelo menos gente com a mesmíssima aparência, saíam agora de casa. Os seus rostos ainda tinham um ar sombrio, os ombros ainda estavam encurvados. Um novo dia despontara agora mesmo, e já todos mostravam um ar saturado e exausto. Tengo não se encontrava entre eles, mas Ushikawa continuou a fazer disparar a máquina fotográfica, registando todas as caras que lhe passavam pela frente. Tinha bastantes rolos e precisava de praticar para ganhar segurança e eficácia a tirar fotografias despercebido.

Terminada a hora de ponta e verificando que todos os que deviam sair o tinham feito, abandonou o apartamento e esgueirou-se para uma cabina telefónica ali perto. Marcou o número da escola particular de Yoyogi e pediu para falar com Tengo.

– O senhor Kawana tem estado de licença durante os últimos dez dias – informou a mulher que atendeu o telefone.

– Espero que não esteja doente?

– Não. Uma pessoa de família encontra-se mal, por isso, ele foi a Chiba.

– Sabe dizer-me quando regressa?

– Lamento, mas não lhe perguntei – respondeu a mulher.

Ushikawa agradeceu-lhe e desligou o telefone.

Tanto quanto sabia, a família de Tengo resumia-se ao pai, o homem que, em tempos, fora cobrador da NHK. Tengo ainda não sabia nada acerca da mãe. E a crer nas informações que Ushikawa reunira, Tengo e o pai sempre tinham tido uma relação difícil. Contudo, Tengo tirara uma licença de dez dias para estar perto do seu pai enfermo. Para Ushikawa, era algo difícil de engolir. Como seria possível que o antagonismo entre Tengo e o pai tivesse diminuído tão depressa? De que tipo de doença padeceria o pai, e em que clínica em Chiba estaria ele internado? Devia haver forma de o descobrir, se bem que levasse, no mínimo, meio dia a consegui-lo. E teria de suspender a sua vigilância enquanto o fazia.

Ushikawa sentia-se perdido. Se Tengo não estava em Tóquio, era inútil continuar a montar guarda ao edifício. Seria talvez mais inteligente fazer um intervalo naquela tarefa e dedicar-se a pesquisas noutra direção. Poderia descobrir em que clínica estava o pai ou avançar um pouco na investigação sobre Aomame. Deveria ir desencantar os colegas de turma, os conhecidos dos tempos da faculdade e da companhia para a qual ela trabalhara e reunir mais informações pessoais. Quem sabe se não conseguiria novas pistas.

Todavia, ao fim de algum tempo a matutar naquilo, decidiu ficar onde estava e prosseguir com a vigilância do prédio de apartamentos. Em primeiro lugar, se suspendesse o que estava a fazer, perderia o ritmo diário a que começava apenas a adaptar-se e teria de voltar à estaca zero. Em segundo, mesmo que localizasse o pai de Tengo e soubesse mais acerca das amizades de Aomame, os resultados poderiam não compensar o esforço. Bater mato numa investigação pode ser produtivo até certo ponto, mas, por estranho que pareça, uma vez ultrapassado esse ponto, os resultados tornam-se bastante escassos; sabia-o por experiência própria. Em terceiro lugar, a sua intuição dizia-lhe, sem margem para dúvidas, para ficar onde estava. Devia instalar-se e prestar muita atenção a cada cara que passasse, da primeira à última, sem deixar escapar nada.

Portanto, decidiu que, com ou sem Tengo, continuaria a vigiar o prédio. Se ficasse quieto, quando Tengo regressasse a casa já Ushikawa conheceria todas as caras, uma por uma. E uma vez conhecidos todos os residentes, saberia à primeira vista se surgisse alguém novo no edifício.

Sou um animal carnívoro, pensou. E os carnívoros têm de ser sempre pacientes. Têm de se confundir com a paisagem e saber tudo acerca da sua presa.

Um pouco antes do meio-dia, quando o tráfego a pé a sair e entrar no prédio estava no seu ponto mais baixo, Ushikawa abandonou o apartamento. Tentou disfarçar-se um pouco, enfiando um gorro de malha e enrolando um cachecol até ao nariz, mas, mesmo assim, não conseguiu evitar que as atenções se centrassem nele. O gorro de malha bege, enfiado no topo da sua grande cabeça, parecia o chapéu de um cogumelo. O cachecol verde fazia lembrar uma grande cobra enrolada à sua volta. A tentativa de disfarce não resultara. Além do mais, as cores do gorro e do cachecol chocavam horrivelmente.

Ushikawa parou junto do laboratório fotográfico perto da estação e entregou os dois rolos, pedindo que lhos revelassem. A seguir, foi até à loja que vendia massa soba21 e pediu uma taça a acompanhar com tempura. Já há algum tempo que não comia uma refeição quente. Ushikawa saboreou a massa soba e o tempura e bebeu o caldo até a última gota. Quando terminou, estava com tanto calor que começara a transpirar. Pôs o gorro de malha, enrolou de novo o cachecol à volta do pescoço e caminhou de regresso ao apartamento. Enquanto fumava um cigarro, alinhou no chão as fotografias que mandara revelar. Comparou as fotografias das pessoas que saíam de manhã com as das que regressavam à tarde e, se os rostos coincidiam, juntava-as. Para as poder distinguir facilmente, inventou nomes para todas as pessoas e escreveu-os nas fotografias a caneta de feltro.

Uma vez terminada a hora de ponta matinal, poucos residentes abandonavam o edifício. Por volta das dez da manhã, um rapaz com ar de estudante universitário saiu apressadamente, com uma mochila ao ombro. Uma mulher idosa, na casa dos setenta, e uma mulher com os seus trinta e tais saíram também, mas regressaram transportando sacos de compras de um supermercado das redondezas. Ushikawa também lhes fotografou os rostos. Antes do meio-dia chegou um carteiro, que distribuiu várias cartas pelas diferentes caixas de correio, e um homem de entregas com uma caixa de cartão, que entrou e saiu cinco minutos mais tarde, de mãos vazias. De hora a hora, Ushikawa afastava-se da máquina fotográfica e fazia cinco minutos de alongamentos. Durante esse intervalo, a vigilância era interrompida, mas desde o início que sabia que seria impossível fazer uma cobertura a cem por cento, uma vez que trabalhava sozinho. Era mais importante garantir que não ficava com o corpo entorpecido. Os seus músculos começariam a ficar atrofiados e deixaria de ser capaz de reagir com prontidão em caso de necessidade. Ushikawa moveu com destreza o seu corpo rotundo e disforme, qual Gregor Samsa22 depois de se transformar em escaravelho, e relaxou os músculos tanto quanto foi capaz.

Para espantar o tédio, escutava a rádio AM com auriculares. Os programas diurnos dirigiam-se sobretudo a domésticas e a idosos. Os locutores contavam anedotas sem piada, soltavam gargalhadas sem sentido, emitiam opiniões disparatadas e triviais e passavam uma música tão horrorosa, que só dava vontade de tapar os ouvidos. De vez em quando, anunciavam aos gritos produtos que era impossível alguém desejar ter. Pelo menos era assim que tudo aquilo soava aos ouvidos de Ushikawa. Apesar disso, precisava de escutar vozes de gente, fosse quem fosse, pelo que aguentava aqueles programas insanos. Ao mesmo tempo, interrogava-se quanto à razão que levaria alguém a produzir programas tão idiotas e a dar-se ao trabalho de usar as ondas hertzianas para os difundir.

Não que o próprio Ushikawa estivesse envolvido numa atividade especialmente requintada ou produtiva – escondido atrás de cortinas num apartamento barato de uma só divisão, a tirar fotografias às escondidas. Não tinha grande autoridade para criticar as ações de terceiros.

E não era só de agora. Nos velhos tempos, quando fora advogado, as coisas passavam-se de igual modo. Não se recordava de alguma vez ter feito algo proveitoso para a sociedade. Os seus clientes mais importantes geriam pequenas e médias empresas financeiras com ligações ao crime organizado. Ushikawa engendrava as maneiras mais eficazes de dispersar os seus lucros e cuidava de todo o processo. Basicamente, lidava com branqueamento de capitais. Também se encarregava de parte das operações de especulação imobiliária: quando os investidores demonstravam interesse por uma determinada zona, ele ajudava a afastar os inquilinos que há muito residiam nos edifícios, deixando-os livres para demolição e posterior venda dos terrenos aos construtores de condomínios. O dinheiro entrava a rodos. O resto dos seus clientes não era muito diferente disto. Ushikawa não se importava de defender pessoas acusadas de evasão fiscal. A maioria dos que solicitavam os seus serviços era gente suspeita, que um advogado vulgar hesitaria em aceitar como cliente. No entanto, a partir do momento em que um cliente o contratava para o defender – e desde que uma determinada quantia de dinheiro mudasse de mãos –, Ushikawa nunca hesitava. Era um advogado hábil, com um bom historial, e nunca lhe faltava trabalho. A sua relação com a Vanguarda começara assim. Por algum motivo, o Líder engraçara com ele.

Se tivesse seguido o percurso normal de um advogado como os outros, Ushikawa provavelmente teria tido dificuldades em ganhar a vida. Fez o exame à Ordem pouco tempo depois de concluir a universidade e tornou-se advogado, mas não tinha ligações ou apoios influentes. Dado o seu aspeto, nenhuma firma de prestígio o contrataria, pelo que, a manter-se no bom caminho, dentro da mais estrita legalidade, muito pouco trabalho conseguiria angariar. Não haverá muita gente no mundo que se disponha a contratar um advogado com um ar tão pouco atraente, como Ushikawa, e, ainda por cima, pagar-lhe honorários avultados. A responsabilidade por esta situação poderia assacar-se às séries de advogados da televisão, que condicionaram o público a esperar que um advogado seja ao mesmo tempo brilhante e atraente.

Portanto, à medida que o tempo foi correndo, Ushikawa viu-se ligado ao submundo do crime. Aí ninguém reparava no seu aspeto. A bem dizer, a sua aparência peculiar constituía um dos elementos que levava a que confiassem nele e o aceitassem, uma vez que nem ele nem os clientes seriam aceites no mundo normal. Era algo que tinham em comum. Apreciavam-lhe o espírito arguto, o pragmatismo, a eloquência. Encarregaram-no de movimentar avultadas quantias de dinheiro (tarefa de que não podiam encarregar-se às claras) e compensavam-no generosamente por isso. Ushikawa depressa aprendeu algumas manhas – como escapar às autoridades quando executava qualquer coisa nos limites da legalidade. Tinha bom olfato e era cauteloso. A sua intuição e a força de vontade eram uma grande ajuda. Infelizmente, também ele se tornou demasiado ganancioso, precipitou-se nos cálculos que fez e passou das marcas. Conseguiu evitar uma condenação quase certa, mas foi expulso da Ordem dos Advogados de Tóquio.

Ushikawa desligou o rádio e fumou um Seven Stars. Inalou profundamente o fumo, fazendo-o descer até aos pulmões; depois exalou-o com toda a calma. Por cinzeiro tinha uma lata de pêssegos vazia. A continuar assim, era provável que lhe estivesse destinada uma morte miserável. Um dia não muito distante, daria um passo em falso e acabaria estendido no chão, num qualquer canto escuro.

Se eu desaparecesse neste preciso instante, pensou, duvido que alguém desse por isso. Podia gritar na escuridão, mas ninguém me escutaria. Apesar de tudo, tenho de continuar a esforçar-me até morrer; é a única coisa que sei fazer. Não é uma maneira muito edificante de viver, mas é a única vida que conheço. E, no que tocava a coisas não muito edificantes, Ushikawa tinha capacidades que o distinguiam do comum dos mortais.

Às duas e meia saiu do edifício uma mulher com um boné de basebol. Não trazia sacos e atravessou o campo de visão de Ushikawa com rapidez. Ele agarrou no disparador apressadamente e tirou três fotografias de enfiada. Era a primeira vez que a via. Tratava-se de uma rapariga bonita, jovem, magra, com pernas compridas e uma postura maravilhosa; parecia uma bailarina. Aparentava ter cerca de dezasseis ou dezassete anos e vestia umas calças de ganga desbotadas, ténis brancos e um casaco de cabedal de homem. Tinha o cabelo enfiado por baixo da gola do casaco. Após ter abandonado o edifício, deu dois ou três passos, parou, franziu o sobrolho e olhou com atenção para o topo do poste de eletricidade que tinha à sua frente. A seguir, baixou os olhos para o chão e retomou a marcha. Virou à esquerda e desapareceu da vista de Ushikawa.

Aquela rapariga faz-me lembrar alguém, pensou. Alguém que ele conhecia, que vira pouco tempo antes. Com aquele aspeto, podia bem ser uma estrela de televisão. Ushikawa nunca via nada na televisão a não ser os noticiários e jamais sentira o menor interesse pelas bonitas raparigas que lá apareciam.

Ushikawa pisou a fundo o acelerador da sua memória e pôs o cérebro a trabalhar a todo o gás. Semicerrou os olhos e esforçou ao máximo as células cinzentas, como se estivesse a torcer um pano da loiça. Os nervos doíam-lhe do esforço. E, de súbito, percebeu: aquele alguém era nem mais nem menos do que Eriko Fukada. Nunca a vira em carne e osso, só a conhecia pela fotografia publicada nas colunas literárias dos jornais. Contudo, a sensação de transparência distante que a envolvia era idêntica à impressão que aquelas pequenas fotografias a preto-e-branco da rapariga tinham deixado nele. Ela e Tengo deviam ter-se encontrado durante a reescrita de A Crisálida de Ar. Era perfeitamente possível que ela se tivesse aproximado de Tengo e que estivesse a viver discretamente no apartamento dele.

Quase sem pensar, Ushikawa deitou a mão ao gorro de malha, enfiou à pressa o seu casaco azul-marinho e enrolou o cachecol à volta do pescoço. Saiu porta fora e lançou-se a correr atrás da rapariga.

Ela caminhava muito depressa. Se calhar é impossível apanhá-la, pensou. Mas ela não levava nada nas mãos, o que queria dizer que não iria longe. Em vez de a seguir e arriscar-se a chamar-lhe a atenção, não faria mais sentido ter paciência e aguardar o regresso dela? Ushikawa ainda ponderou esta hipótese, mas não podia deixar de ir atrás dela. Havia naquela rapariga algo de ilógico que o abalava. O mesmo que acontece quando, num determinado momento do crepúsculo, um raio de luz de cores misteriosas invoca uma recordação especial.

Avistou-a ao fim de um bocado. Fuka-Eri detivera-se à frente de uma minúscula papelaria e estava a olhar com todo o interesse lá para dentro, onde algo lhe atraíra a atenção. Com a maior naturalidade, Ushikawa deu-lhe as costas e postou-se à frente de uma máquina de venda automática. Tirou algumas moedas e comprou uma lata de café quente.

Por fim, a rapariga pôs-se de novo a caminho. Ushikawa pousou a lata meio vazia no chão, junto dos pés, e seguiu-a a uma distância segura. A rapariga parecia absolutamente concentrada no ato de caminhar, como se deslizasse pela superfície de um lago tranquilo. Se andares desta maneira especial, não vais afundar-te e os teus sapatos não ficarão molhados. Era como se ela dominasse aquela arte secreta.

Havia qualquer coisa de diferente nela. Era senhora de um não-sei-quê especial que as outras pessoas não tinham. Ushikawa não conhecia grande coisa acerca de Eriko Fukada. Tanto quanto sabia, era filha única do Líder, fugira da Vanguarda com dez anos, crescera em casa de um ilustre erudito chamado Professor Ebisuno, e escrevera um livro intitulado A Crisálida de Ar, que, com a ajuda de Tengo Kawana, que o reescrevera, se revelara um êxito de vendas. Contudo, segundo parecia, estava agora dada como desaparecida – fora feita uma participação à polícia, e, ainda não há muito tempo, a polícia fizera uma rusga nas instalações da Vanguarda.

Aparentemente, o conteúdo de A Crisálida de Ar representava um problema para a Vanguarda. Ushikawa comprara o livro e lera-o de uma ponta à outra com o maior cuidado, apesar de não fazer a mínima ideia de quais as passagens que representavam um problema e por que razão tal acontecia. Achara o romance interessante e bem escrito. A prosa era bem trabalhada, fácil de ler e, em parte, fascinante. Todavia, aos seus olhos, não passava de uma obra de fantasia e tinha a certeza de que o resto do mundo estaria de acordo consigo. Há um Povo Pequeno que sai da boca de uma cabra morta, cria uma crisálida de ar, a personagem principal divide-se em mã e nina e há duas luas. Em que passagens se ocultaria a informação passível de causar problemas à Vanguarda, se fosse descoberta? No entanto, os membros da organização, pelo menos em dado momento, pareciam determinados a impedir que essa informação transpirasse.

Apesar de tudo isso, os membros da Vanguarda consideraram ser demasiado perigoso aproximarem-se de Eriko Fukada quando as atenções convergiram sobre ela. Razão pela qual, imaginava Ushikawa, o tinham encarregado de estabelecer contacto com Tengo. Do ponto de vista de Ushikawa, Tengo não passava de um simples peão no esquema mais amplo das coisas. Ele ainda não percebia porque é que estavam tão obcecados com Tengo. Mas como Ushikawa não passava de um soldado raso nestas operações, via-se forçado a obedecer às ordens recebidas sem fazer perguntas. O problema era que Tengo rejeitara liminarmente a generosa proposta que Ushikawa se esforçara tanto por criar, e o plano que fizera para se aproximar dele deparara-se com uma interrupção forçada. No preciso momento em que estava a tentar congeminar uma outra abordagem, o Líder, pai de Eriko Fukada, morrera, e tudo ficara parado no ponto em que estava.

O que significava que Ushikawa estava às escuras no que tocava ao rumo que os membros da Vanguarda iriam tomar, agora que tinham perdido o seu Líder. Tão-pouco sabia quem estava agora à frente da comunidade. De momento, as suas instruções eram para descobrir Aomame e deslindar a trama que estaria por trás do assassínio do Líder. Sem dúvida que um castigo severo esperava o responsável, fosse ele quem fosse. Estavam determinados a não deixar que a justiça se envolvesse.

E o que se passaria com Eriko Fukada? Qual seria agora a opinião dos elementos da Vanguarda acerca d’A Crisálida de Ar? Ainda veriam o livro como uma ameaça?

* * *

Eriko Fukada caminhava em linha reta, sem abrandar o passo ou olhar para trás, qual pombo-correio que voa a direito para o seu destino. Depressa ele percebeu que esse destino era um supermercado não muito grande, o Marusho. De cesta de compras na mão, Fuka-Eri ia de um corredor para o outro, escolhendo vários alimentos enlatados ou frescos. A mera escolha de uma alface levava o seu tempo, já que ela a examinava de todos os ângulos possíveis e imagináveis. Isto vai demorar um bocado, pensou Ushikawa. Saiu do supermercado, atravessou a rua, foi para a paragem do autocarro e fingiu estar à espera do transporte, enquanto mantinha a entrada do supermercado debaixo de olho.

Todavia, por mais que esperasse, a rapariga não havia meio de sair da loja. Ushikawa começou a ficar preocupado. Talvez tivesse usado outra saída? No entanto, tanto quanto conseguia perceber, o supermercado só tinha uma porta, que dava para a rua principal. Provavelmente, ela levava tempo a fazer as suas compras. Recordou o olhar sério e estranhamente superficial da rapariga enquanto analisava as alfaces e decidiu armar-se de paciência e esperar. Passaram três autocarros. De todas as vezes, Ushikawa foi a única pessoa a ficar para trás. Lamentou não ter comprado um jornal. Poderia esconder-se por trás dele. Quando se está a seguir uma pessoa, é absolutamente fundamental ter-se à mão um jornal ou uma revista. Mas já não podia fazer nada – largara tudo e correra para fora do apartamento de mãos a abanar.

Quando, por fim, Fuka-Eri reapareceu, o seu relógio marcava as três e trinta e cinco. A rapariga não olhou uma vez sequer para o sítio onde ele estava e encaminhou-se em passo estugado na direção donde viera. Ushikawa deixou passar algum tempo e seguiu-a então. Os dois sacos de compras que ela transportava pareciam ser pesados, mas ela levava-os com aparente facilidade, caminhando com agilidade que nem um inseto alfaiate sobre a superfície de um charco.

Mas que rapariga peculiar, pensou outra vez Ushikawa, mantendo-a ao alcance da vista. Olhá-la é como observar uma rara borboleta exótica. Agradável à vista, mas não podemos tocar-lhe, pois, assim que o fazemos, perde a sua vitalidade e a frescura. O que poria um fim ao seu sonho exótico.

Rapidamente, Ushikawa considerou se deveria comunicar aos elementos da Vanguarda que descobrira o paradeiro de Fuka-Eri. Foi uma decisão difícil. Se lhes dissesse que a localizara, ganharia certamente alguns pontos de vantagem. No mínimo, não prejudicaria a sua posição junto deles – seria capaz de lhes mostrar que estava a fazer progressos decentes. Mas, a envolver-se demasiado com Fuka-Eri, era bem possível que perdesse a hipótese de encontrar Aomame, o verdadeiro alvo da sua investigação. O que seria um desastre e deitaria tudo a perder. Por isso, que deveria ele fazer? Enterrou as mãos nos bolsos do casaco, puxou o cachecol até cobrir o nariz e continuou a segui-la, mantendo uma distância maior do que antes.

Talvez só esteja a segui-la porque desejava vê-la. O pensamento ocorreu-lhe inesperadamente. Só o vê-la caminhar pela rua, com os sacos das compras junto ao corpo, oprimia-lhe o peito. Sentia-se incapaz de avançar ou retroceder, como uma pessoa esmagada entre duas paredes. A sua respiração tornou-se irregular e forçada, e sentiu grandes dificuldades em respirar, como se estivesse no meio de uma ventania tépida. Uma sensação muito estranha, que nunca experimentara.

Em todo o caso, decidiu, vou deixá-la em paz durante algum tempo. Vou ater-me ao plano original e manter-me focado na Aomame. A Aomame é uma assassina. Não importa os motivos que lhe assistem – merece ser castigada. Não o incomodava a ideia de a entregar à Vanguarda. Mas esta rapariga era uma criatura meiga e taciturna, que vivia no fundo do bosque. Tinha asas claras como a sombra de um espírito. Vou limitar-me a observá-la à distância, decidiu.

Ushikawa esperou algum tempo até que Fuka-Eri entrasse no apartamento, com os sacos de compras na mão, e só depois entrou também. Foi ao seu quarto, tirou o cachecol e o gorro e sentou-se de novo no chão, atrás da máquina. O vento deixara-lhe a cara gelada. Fumou um cigarro e bebeu água mineral. Sentia a garganta seca, como se tivesse comido qualquer coisa muito condimentada.

Chegou o crepúsculo, as luzes da rua acenderam-se e aproximava-se a hora em que as pessoas regressariam a casa. Ainda com o casaco vestido, Ushikawa agarrou no controlo remoto da máquina e fixou o olhar na entrada do prédio. À medida que a memória do sol da tarde se desvanecia, a divisão vazia foi arrefecendo. Parecia que a noite que se avizinhava iria ser bem mais fria do que a anterior. Ushikawa ainda pensou em ir à loja de eletrodomésticos que ficava à frente da estação para comprar um aquecedor ou um cobertor elétrico.

Eriko Fukada tornou a sair por volta das quatro e quarenta e cinco. Envergava a mesma camisola de gola alta e as mesmas calças, mas não trazia o blusão. A camisola justa revelava-lhe a curva dos seios. Por comparação com o corpo franzino, os seus seios eram generosos. Ushikawa observou aquela curva encantadora através da ocular e, enquanto o fazia, apercebeu-se de que estava outra vez com dificuldades em respirar.

Uma vez que não trazia casaco, não poderia ir longe. Tal como antes, deteve-se na entrada, semicerrou os olhos e fixou-os no topo do poste de eletricidade que tinha à sua frente. Começava a escurecer, mas ainda era possível distinguir o perfil das coisas. Ela ficou ali parada durante algum tempo, como se procurasse qualquer coisa. Aparentemente, não encontrou o que buscava. Desistiu de olhar para o poste e, como um pássaro, virou a cabeça e observou o espaço à sua volta. Ushikawa premiu o controlo remoto e tirou algumas fotografias.

Como se tivesse ouvido o estalido do obturador, Fuka-Eri desviou o olhar e virou-se diretamente para a câmara. Através da ocular, Ushikawa e Fuka-Eri estavam cara a cara. Ele conseguia ver o rosto dela com toda a nitidez. A bem dizer, estava a olhá-la por uma teleobjetiva. Do outro lado da lente, no entanto, Fuka-Eri olhava-o a direito, olhos nos olhos. Ela via-o mesmo lá no fundo da lente. O rosto do homem refletia-se com nitidez nas pupilas da rapariga, suaves e de um negro brilhante. Parecia que tinham estabelecido um contacto direto, o que, para o homem, constituía uma sensação estranha. Engoliu em seco. Isto não pode ser real, pensou. De onde está, ela não pode ver nada. A teleobjetiva está camuflada e o som do obturador foi abafado pela toalha que enrolei à volta, pelo que não é minimamente possível que tenha ouvido alguma coisa no sítio onde está. Mesmo assim, ela ficou na entrada, a olhar a direito para o sítio onde ele estava escondido. Aquele olhar inexpressivo dela manteve-se firme, cravado em Ushikawa, como o brilho das estrelas sobre um grande bloco de rocha sem nome.

Durante muito tempo – Ushikawa não fazia ideia de quão longo tinha sido esse momento –, os dois ficaram especados a olhar um para o outro. Subitamente, Fuka-Eri deu meia-volta e apressou-se em direção à entrada do prédio, como se já tivesse visto o que pretendia. Não a vendo mais, Ushikawa expulsou todo o ar que retinha nos pulmões, esperou um bocado, e inspirou profundamente ar fresco. Esse ar fresco tomou a forma de uma profusão de espinhos cravados nos seus pulmões.

As pessoas começavam a regressar a casa, tal como na noite anterior, passando por baixo da luz da entrada, uma atrás da outra. Todavia, Ushikawa já não as espreitava por trás da ocular da máquina. A sua mão já não empunhava o controlo remoto. O olhar aberto e sem reservas da rapariga privara-o de todas as suas forças. Que olhar era aquele? Era como se uma longa agulha de aço tivesse sido espetada no seu peito, tão profundamente que a sentia sair pelas costas.

A rapariga sabia que ele a observava em segredo, sabia que estava a ser fotografada por uma máquina escondida. Não era capaz de dizer porquê, mas Fuka-Eri sabia. Talvez dispusesse de um sentido tátil especial, que o captara.

Estava mesmo a precisar de uma bebida. De encher um copo de uísque até à borda e emborcá-lo de uma só vez. Ponderou a hipótese de sair para comprar uma garrafa. Havia uma garrafeira na esquina da rua. Mas desistiu – a bebida não iria alterar nada. Do outro lado da ocular, ela vira-o. Aquela rapariga bonita viu-me, viu a minha cabeça disforme e o meu espírito sujo, aqui escondido, a tirar fotografias em segredo. Nada iria mudar este facto.

Ushikawa largou a máquina, encostou-se à parede e pôs-se a olhar para o teto. Depressa tudo se lhe afigurou vão, fútil. Nunca se sentira tão absolutamente só, nunca sentira que a escuridão fosse tão intensa. Recordou a sua casa, em Chuorinkan, o seu relvado, o seu cão, a esposa e as duas filhas, o Sol a brilhar sobre tudo aquilo. Pensou no ADN que transmitira às filhas, os genes de uma cabeça disforme e uma alma retorcida.

Tudo o que fizera lhe parecia agora carecer de sentido. Usara todos os trunfos que lhe tinham sido atribuídos – não que fosse uma grande mão, logo de início. Todavia, esforçara-se, agarrara naquele lance desgraçado e usara-o o melhor que podia, fazendo mesmo algumas apostas inteligentes. Durante algum tempo, as coisas pareciam ter resultado, mas agora ficara sem cartas. A luz sobre a mesa fora desligada e os jogadores tinham abandonado a sala.

Naquela noite não tirou uma única fotografia. Encostado à parede, deixou-se ficar a fumar os seus Seven Stars, abriu outra lata de pêssegos em calda e comeu-os. Às nove foi à casa de banho, lavou os dentes, tirou a roupa, enfiou-se dentro do saco-cama e, a tiritar, tentou dormir. A noite estava fria, mas os seus tremores não se deviam apenas à temperatura. O frio parecia provir do seu interior. De que raio de sítio vim eu? Interrogou-se, no escuro. E para onde raio vou?

O olhar dela deixara-lhe uma dor lancinante no peito. Talvez nunca mais desaparecesse. Ou talvez tenha estado sempre aqui, pensou, e eu nunca dei por isso?

Na manhã seguinte, após um pequeno-almoço de queijo e bolachas de água e sal empurradas por café instantâneo, recobrou o ânimo e sentou-se de novo à frente da máquina fotográfica. Tal como no dia anterior, observou as idas e vindas das pessoas e tirou algumas fotografias. No entanto, Tengo e Fuka-Eri não se contavam entre elas. Só se viam pessoas curvadas, empurradas para o novo dia pela força do hábito. O tempo estava bom, havia um vento forte. O vapor que saía da boca das pessoas revoluteava no ar.

Não vou pensar em nada supérfluo, decidiu Ushikawa. Vou ser insensível, pôr uma armadura à volta do meu coração, viver um dia de cada vez, seguir as regras. Não passo de uma máquina. Uma máquina capaz, paciente e insensível. Uma máquina que engole o tempo novo por uma extremidade e expele o tempo velho pela outra. Existe só por existir. Precisava de regressar àquele ciclo puro, não conspurcado – àquele movimento perpétuo que, um dia, chegaria ao fim. Reuniu toda a força de vontade e pôs uma pedra sobre as suas emoções, tentando afastar da mente a imagem de Fuka-Eri. A dor que o penetrante olhar dela lhe deixara no peito estava agora mais atenuada, era pouco mais do que uma dorzinha surda e esporádica. Assim está bem, pensou Ushikawa. Não se pode pedir mais. Voltei a ser um sistema simples, um sistema simples com pormenores complexos, disse de si para si.

Antes do meio-dia foi até à loja de eletrodomésticos perto da estação e comprou um pequeno aquecedor. A seguir, dirigiu-se ao restaurante de massas onde estivera no dia anterior, abriu o jornal e comeu a soba com tempura quente que pedira. Antes de reentrar no apartamento, parou à entrada e olhou para o topo do poste elétrico, para o ponto que Fuka-Eri fitara com tanta atenção no dia anterior, mas não descobriu nada que lhe chamasse a atenção. Só lá havia um grande transformador preto e grossos fios elétricos, entrelaçados como cobras. O que poderia ela ter estado a ver? Ou estaria à procura de qualquer coisa?

De regresso ao seu quarto, ligou o aquecedor. Quando carregou no botão, surgiu uma luz alaranjada, e ele sentiu na pele aquele calor íntimo. Não que fosse o suficiente para aquecer o quarto todo, mas era muito melhor do que nada. Ushikawa encostou-se à parede, cruzou os braços e fez uma curta sesta numa minúscula mancha de sol. Um sono sem sonhos, um absoluto vazio no tempo.

Foi arrancado a este sono profundo e feliz pelo som de uma pancada. Alguém estava a bater-lhe à porta. Acordou sobressaltado e olhou em volta, momentaneamente confuso quanto ao local onde se encontrava. Avistou a máquina Minolta reflex instalada no tripé, a seu lado, e recordou-se de que estava num apartamento em Koenji. Alguém dava murros na porta. Ao mesmo tempo que tentava afastar rapidamente os restos do sono, Ushikawa pensava como era estranho que alguém lhe fosse dar murros na porta. Havia uma campainha – bastava carregar no botão. Bastante simples. Ainda assim, a pessoa insistia e continuava a dar pancadas na porta. A esmurrá-la como se a sua vida dependesse disso, já agora. Ushikawa franziu a testa e olhou para o relógio de pulso. Uma e quarenta e cinco. Uma e quarenta e cinco da tarde, obviamente. Ainda havia luz na rua.

Não foi abrir a porta. Ninguém sabia que ele estava ali e não esperava visitas. Devia ser um vendedor ou alguém a tentar vender assinaturas de um jornal. Quem quer que fosse podia precisar dele, mas com toda a certeza que ele não precisava dessa pessoa. Encostado à parede, deixou-se ficar de olhos fixos na porta e manteve-se em silêncio. De certeza que, ao fim de um bocado, a pessoa desistiria e ir-se-ia embora.

Mas não foi, não se rendeu. Parava e recomeçava a bater. Uma saraivada de pancadas, nada durante uns dez ou quinze segundos, depois um novo ataque. Eram pancadas firmes, sem nada de hesitante, numa sequência tão regular que parecia antinatural. Do início ao fim, exigiam uma resposta de Ushikawa. Começou a ficar inquieto. Talvez fosse Fuka-Eri, a pedir-lhe explicações por tê-la fotografado às escondidas, uma ação abjeta. O coração começou a bater-lhe com força. Passou a língua grossa pelos lábios. Mas as pancadas na porta de aço só podiam provir do punho de um homem adulto, nunca de uma rapariga.

Havia a hipótese de ela ter contado o caso a outra pessoa e ser essa pessoa que estava agora ali. Alguém da agência imobiliária, ou talvez a polícia? Não podia ser boa coisa. Também era verdade que nenhum deles bateria à porta assim: a imobiliária tinha um duplicado da chave e a polícia já se teria identificado. Limitar-se-iam a tocar à campainha.

– Senhor Kozu! – chamou uma voz de homem. – Senhor Kozu!

Ushikawa lembrou-se de que Kozu era o nome do anterior arrendatário do apartamento. O nome ainda estava na caixa de correio. Ushikawa preferira que lá se mantivesse. O homem no exterior parecia pensar que o Sr. Kozu ainda vivia ali.

– Senhor Kozu! – continuou o homem. – Sei que está em casa. Sinto que está aí encolhido, a tentar não fazer barulho.

Era a voz de um homem de meia-idade, não muito alta, mas, ainda assim, um tanto rouca. Uma voz que tinha, no seu âmago, uma certa dureza, a dureza de um tijolo cozido num forno, seco com todo o cuidado. Talvez por causa disto, a voz do homem ressoava por todo o edifício.

– Senhor Kozu, sou da NHK. Estou aqui para cobrar a sua taxa mensal da televisão. Portanto, agradecia que me abrisse a porta.

Ushikawa não fazia a mínima tenção de pagar uma taxa mensal da NHK. Talvez seja mais rápido, pensou, se abrir a porta ao homem e o deixar ver o apartamento. Dizer-lhe: veja, não tenho televisão, okay? Mas se ele pusesse os olhos em Ushikawa e nas suas estranhas feições, fechado a meio do dia dentro de casa, sem um único móvel, não poderia deixar de ficar cheio de suspeitas.

– Senhor Kozu, quem tem televisão é obrigado a pagar a taxa. É a lei. Há pessoas que dizem que nunca veem a NHK e que não vão pagar. Mas o argumento não colhe. Veja ou não a NHK, se tem televisão, tem de pagar a taxa.

Portanto, não passa de um cobrador, pensou Ushikawa. Ele que grite o que lhe vai na alma. Não respondas que ele vai-se embora. Mas como é que ele pode estar tão convencido de que está alguém dentro do apartamento? Depois de ter regressado, cerca de uma hora antes, Ushikawa não voltara a sair. Pouco ruído fizera e mantivera sempre as cortinas corridas.

– Senhor Kozu, sei perfeitamente que está em casa – disse o homem, como se tivesse lido os pensamentos de Ushikawa. – Deve achar estranho que o saiba. Mas sei... sei que está aí dentro. O senhor não quer pagar a taxa da NHK e está a tentar não fazer o mais pequeno ruído. Estou absolutamente consciente disso.

As pancadas homogéneas recomeçaram. Havia uma pausa breve, como quando um músico de um instrumento de sopro interrompe a frase para uma curta respiração e, logo de seguida, as pancadas retomavam o seu ritmo regular.

– Já percebi, senhor Kozu. Vejo que decidiu ignorar-me. Muito bem. Por hoje, vou-me embora. Tenho mais que fazer. Mas voltarei. Preste atenção. Se lhe digo que volto, é porque volto, pode contar com isso. Não sou um cobrador normal, nunca desisto até conseguir o que pretendo. Nunca falho. Sou como as fases da Lua, a vida e a morte. Não há como fugir de mim.

Fez-se um longo silêncio. No instante em que Ushikawa começava a pensar que ele se fora embora, o cobrador falou outra vez:

– Voltarei dentro em breve, senhor Kozu. Pode contar com isso. Quando menos esperar, ouvirá pancadas na porta. Pum, pum! Serei eu.

Não houve mais pancadas. Ushikawa pôs-se à escuta, com toda a atenção. Pareceu-lhe ouvir passos que se afastavam pelo corredor. Com grande rapidez, foi até junto da máquina e fixou o olhar na entrada do prédio. O cobrador da televisão depressa terminaria a sua ronda no edifício e sairia por ali. Tinha de ver que tipo de homem era. Os cobradores da NHK usavam farda, pelo que deveria conseguir identificá-lo de imediato. Mas talvez não fosse realmente um cobrador da NHK, talvez fingisse sê-lo para conseguir que Ushikawa abrisse a porta. Fosse como fosse, tinha de ser alguém que Ushikawa nunca antes vira. Com o controlo remoto do obturador na mão direita, esperou, ansioso, que alguém com essas características surgisse na entrada.

No entanto, durante cerca de trinta minutos, ninguém saiu ou entrou no prédio. Ao fim de um bocado, surgiu uma mulher idosa, que já vira várias vezes. Ela montou na bicicleta e afastou-se a pedalar. Ushikawa chamara-lhe «Dona Queixo» devido à ampla papada que oscilava por baixo do queixo dela. Meia hora mais tarde, a Dona Queixo regressou, trazendo um saco de compras no cesto da bicicleta. Guardou a bicicleta na zona de parqueamento de bicicletas e entrou no prédio, com o saco na mão. Depois dela entrou um rapaz vindo da escola. O nome que Ushikawa lhe atribuíra fora «Raposa», porque tinha os olhos oblíquos, inclinados para cima. Contudo, não saiu ninguém que pudesse ser o cobrador. Ushikawa estava atónito. O edifício só tinha uma porta, a mesma para a entrada e a saída, e ele mantivera o olhar colado a ela, sem o desviar, nem por um segundo. Se o cobrador não saíra, tal significava que ainda estava dentro do prédio.

Continuou a vigiar a entrada, sem vacilar. Não foi à casa de banho. O Sol pôs-se, escureceu e a luz da entrada acendeu-se. Porém, o cobrador continuava a não aparecer. Depois das seis, Ushikawa desistiu. Foi à casa de banho e soltou toda a urina que estivera a reter durante horas. Não restavam dúvidas de que o homem permanecia ainda no edifício. Por que razão, não sabia. Nada daquilo fazia o menor sentido. Mas o estranho cobrador decidira ficar por ali.

O vento, cada vez mais gelado, zunia nos fios elétricos. Ushikawa ligou o aquecedor e, enquanto fumava um cigarro, esforçou-se por perceber o que se passava. Porque falaria o enigmático cobrador num tom tão agressivo, desafiador? Como é que tinha tanta certeza de que estava alguém dentro do apartamento? E porque é que não abandonara o prédio? Se não se fora embora, onde estaria agora?

Ushikawa largou a máquina, encostou-se à parede e ficou a olhar durante muito tempo para os filamentos alaranjados do aquecedor.

21 Massa tradicional feita com uma mistura de farinha que contém trigo-sarraceno. (N. das T.)

22 Personagem do romance A Metamorfose, de Franz Kafka. (N. das T.)


17

AOMAME

Só tenho dois olhos

O telefone tocou num sábado de muito vento. Eram quase oito da noite. Aomame estava sentada na varanda, protegida por um blusão de penas, e tinha uma manta sobre os joelhos. Pelas frestas dos painéis de plástico da varanda ia espiando o escorrega, iluminado pelo candeeiro de mercúrio. Tinha as mãos enfiadas por baixo da manta para que não ficassem entorpecidas com o frio. O escorrega deserto parecia o esqueleto de um animal enorme, desaparecido durante a Idade do Gelo.

Passar tantas horas sentada no exterior com aquele frio poderia não ser muito bom para o bebé, mas Aomame decidiu que não era caso para preocupações. Por muito frio que estivesse na rua, o líquido amniótico mantinha-se à mesma temperatura do sangue. Havia no mundo sítios onde fazia muitíssimo mais frio e as mulheres também davam à luz nesses locais, concluiu. Acima de tudo, sentia que, se queria ver Tengo de novo, tinha de suportar este frio.

Como de costume, a grande lua amarela e a sua companheira verde e mais pequena flutuavam no céu invernoso, uma ao lado da outra. Nuvens de tamanhos e feitios variados cruzavam o céu com rapidez. As nuvens eram brancas e pesadas, recortavam-se nitidamente contra o céu e, aos seus olhos, pareciam blocos de gelo duro num rio resultante do degelo, a correr em direção ao mar. Enquanto observava as nuvens que surgiam, vindas não sabia de onde, e desapareciam de novo, Aomame sentiu-se transportada para um local nos confins do mundo. Cheguei ao Polo Norte da razão, pensou. Mais além não existia nada, era um caos vazio.

A porta de correr de vidro estava quase fechada, só com uma estreita abertura por onde passou o som fraco do telefone a tocar, que Aomame, apesar de imersa nos seus pensamentos, não deixou escapar. O telefone tocou três vezes, parou, e tocou de novo, vinte segundos mais tarde. Só podia ser Tamaru. Ela afastou a manta, fez deslizar a porta de vidro e entrou na sala. Estava às escuras e o calor era confortável. Pegou no telefone com os dedos ainda gelados.

– Ainda a ler Proust?

– Sem grandes avanços – retorquiu Aomame. Parecia uma troca de senhas.

– Não estás a gostar?

– Não se trata disso. Como hei de explicar?... é uma história sobre um mundo tão diferente do meu...

Tamaru ficou em silêncio, esperando que ela prosseguisse. Não tinha pressa.

– Por «mundo diferente» quero dizer que é como se estivesse a ler um relatório cheio de pormenores acerca de um pequeno planeta a anos-luz deste mundo em que vivo. Consigo visualizar as cenas descritas e compreendê-las. São descrições muito vívidas, minuciosas até. Mas não consigo ligar as cenas do livro com o sítio onde estou agora. Fisicamente, estamos demasiado distantes. Estou a lê-lo e dou comigo a ter de voltar atrás e reler a mesma passagem.

Aomame procurou as palavras que iria dizer a seguir. Tamaru esperou enquanto ela o fazia.

– Mas não é aborrecido – disse. – É tão pormenorizado e está tão bem escrito, que penso que sou capaz de apreender a estrutura daquele pequeno planeta solitário. Só que não consigo avançar. Parece que estou num barco, a remar contra a corrente. Remo durante um bocado, porém, quando paro para descansar e penso noutra coisa, dou comigo de regresso ao ponto de partida. Talvez esta forma de leitura me convenha mais neste momento, em vez daquela leitura em que queremos avançar para descobrir o que acontece a seguir. Não sei como exprimi-lo com rigor, mas, quando tento avançar na história, fico com a sensação de que o tempo corre de forma irregular. Como se não fosse importante que o que está à frente estivesse atrás e o que está atrás esteja à frente, não é? Seja como for, tanto faz.

Procurou uma forma mais precisa de explanar o seu raciocínio.

– É como se estivesse a sonhar o sonho de outra pessoa. Como se partilhássemos os mesmos sentimentos em simultâneo. Só que não consigo perceber exatamente o que significa essa simultaneidade. Os nossos sentimentos parecem estar extremamente próximos, mas, na realidade, existe uma considerável distância entre nós.

– Quem sabe se Proust não teria intenção de criar esse tipo de sensação?

Aomame não fazia a menor ideia.

– No entanto, por outro lado – disse Tamaru –, no mundo real, o tempo avança sempre em frente. Nunca se detém e nunca retrocede.

– Sim, claro. No mundo real, o tempo avança sempre.

Ao mesmo tempo que dizia isto, Aomame olhou para a porta de vidro. Seria mesmo verdade? Que o tempo avançava sempre?

– As estações mudaram e estamos a chegar ao fim de 1984 – disse Tamaru.

– Duvido que termine Em Busca do Tempo Perdido antes do final do ano.

– Não faz mal – retorquiu Tamaru. – Leva o tempo que precisares. Foi escrito há mais de cinquenta anos. Podemos dizer que não contém informações de última hora nem notícias escaldantes.

Pode ser que tenhas razão, pensou Aomame. Mas talvez não. Já não confiava no tempo.

– E isso que trazes dentro de ti está bem? – perguntou Tamaru.

– Até aqui, tudo bem.

– Fico contente por saber – respondeu Tamaru. – A propósito, já ouviste falar no tipo baixinho e careca que anda a rondar a Casa dos Salgueiros, certo?

– Já. Ainda anda por lá?

– Não. Nos últimos tempos, não. Andou por ali um ou dois dias e desapareceu. Mas foi às imobiliárias da zona, fingindo que estava à procura de um apartamento, a reunir informações acerca da casa-abrigo. Tem um aspeto muito peculiar, destaca-se. E como se não fosse já suficientemente mau, a roupa que veste é horrível. Por isso, toda a gente com quem falou lembra-se dele. Foi fácil seguir-lhe o rasto.

– Não parece ser o tipo certo para se pôr a fazer investigações ou reconhecimentos.

– Precisamente. Com um aspeto daqueles, não está nada talhado para aquele tipo de trabalho. Também tem uma cabeça enorme, como aqueles bonecos fukusuke que dão boa sorte. No entanto, ele parece ser bom naquilo que faz. Sabe como reconhecer o terreno, deslocar-se e descobrir o que quer saber. Parece bastante arguto. Não deixa escapar nada importante e ignora o que não o é.

– E conseguiu reunir uma certa quantidade de informações acerca da casa-abrigo.

– Sabe que é um refúgio para mulheres que fogem da violência doméstica e que a viúva a disponibiliza de forma gratuita. Penso que também deve ter descoberto que a senhora é sócia do ginásio onde davas aulas, e que tu ias muitas vezes à mansão para sessões de treino privadas. Se estivesse no lugar dele, era o que eu teria conseguido descobrir até aqui.

– Estás a dizer que ele é tão bom como tu?

– Partindo do princípio de que não importa o esforço necessário, é possível aprender a reunir informações e treinar para se adquirir um raciocínio lógico. Qualquer pessoa consegue fazer isto.

– Não creio que haja no mundo muitas pessoas que reúnam essas condições.

– Bem, mas há. Uns quantos profissionais.

Aomame sentou-se e levou a mão à ponta do nariz. Ainda estava fria, de ter estado no exterior.

– E o tal homem já não anda a rondar a mansão? – perguntou Aomame.

– Deve ter consciência de que atrai muitas atenções. E sabe da existência de câmaras de videovigilância. Portanto, reuniu tanta informação quanta pôde durante um curto espaço de tempo e desapareceu.

– Por outras palavras, sabe que existe uma ligação entre a senhora e eu. E que é mais do que uma simples relação entre uma instrutora de um ginásio e uma cliente abastada, e que a casa-abrigo também está envolvida. E que tínhamos um projeto comum em mãos.

– Muito provavelmente – concordou Tamaru. – Tanto quanto consigo perceber, o tipo está a aproximar-se do cerne da questão. Passo a passo.

– Pelo que dizes, contudo, antes parece que trabalha por conta própria, em vez de estar integrado numa organização mais vasta.

– Fiquei com essa impressão. A menos que tivesse um motivo que me escapa, uma organização maior nunca contrataria um tipo com um ar tão espalhafatoso para levar a cabo uma investigação secreta.

– Então... porque é que está a fazer essa investigação... e para quem?

– Vá-se lá saber... – retorquiu Tamaru. – A única coisa que sei é que é bom no que faz, além de ser perigoso. Tudo o resto não passa de mera especulação. Apesar de a minha modesta especulação me levar a crer que, de uma forma ou de outra, a Vanguarda está metida nisto.

Aomame analisou a hipótese.

– E o homem desapareceu.

– Sim. E não sei onde se meteu. Mas, se tivesse de fazer uma dedução lógica, diria que anda a tentar localizar-te.

– Disseste-me que era praticamente impossível localizar este sítio.

– Certo. Por mais que ele investigue a senhora, nunca será capaz de estabelecer uma ligação entre ela e esse apartamento. Toda e qualquer ligação foi apagada. Mas estou a falar em termos de curto prazo. Se pensarmos a longo prazo, vão surgir falhas na armadura, nos sítios onde menos esperarmos. Por exemplo, se saíres à rua, ele pode ver-te. É só uma das possibilidades.

– Mas eu não saio de casa – insistiu Aomame. O que não era absolutamente verdade. Abandonara o apartamento duas vezes. Uma quando correra para o parque infantil à procura de Tengo. A outra quando se metera no táxi para a levar à saída da Autoestrada Metropolitana 3, perto de Sangenjaya, à procura de uma saída. Contudo, não podia confessar isto a Tamaru. – Então, como é que ele vai localizar esta casa?

– Se eu estivesse no seu lugar, deitaria uma nova vista de olhos à tua informação pessoal. Pensaria no tipo de pessoa que és, de onde vens, que tipo de vida levaste até agora, em que é que pensas, o que esperas da vida, o que não esperas. Agarrava em toda a informação a que conseguisse deitar mão, organizava-a em cima de uma mesa, verificava-a e dissecava-a de uma ponta à outra.

– Por outras palavras, expunhas-me.

– Sim. Expunha-te a uma luz forte e fria. Analisava-te de uma ponta à outra com pinças e uma lupa, para descobrir os padrões do teu comportamento.

– Não estou a perceber. Como é que uma análise dessas pode revelar onde estou?

– Não sei – respondeu Tamaru. – Pode ou não pode. Depende. Só te estou a dizer o que é que eu faria. E isto porque não consigo pensar noutra hipótese qualquer. No que toca à forma de pensar e de agir, cada pessoa tem as suas rotinas, e onde existe uma rotina há um ponto fraco.

– Parece uma pesquisa científica.

– As pessoas precisam de rotinas. É como o tema de uma música. Mas isso também restringe pensamentos e ações e limita a nossa liberdade. Estrutura as prioridades que temos e, em certos casos, distorce a lógica. No caso presente, não queres sair do sítio onde estás. Recusaste mudar-te para um lugar mais seguro, pelo menos até ao final do ano... porque estás à procura de alguma coisa aí. E enquanto não encontrares essa coisa, não podes sair. Ou não queres sair.

Aomame ficou em silêncio.

– O que possa ser essa coisa, ou quanto a desejas, não o saberia dizer. E não faço tenções de to perguntar. Mas, do meu ponto de vista, essa coisa constitui o teu ponto fraco pessoal.

– Pode ser que tenhas razão – admitiu Aomame.

– E o Cabeça-de-Abóbora vai atrás disso. Sem a menor piedade, vai identificar esse elemento pessoal que te limita. Pensa que o conduzirá a uma descoberta... Se é tão bom quanto creio, com os dados de que dispõe, e por fragmentários que sejam, vai chegar a essa conclusão.

– Não creio que o consiga – disse Aomame. – Não vai conseguir encontrar um caminho. Porque é uma coisa que só se pode encontrar dentro do meu coração.

– Tens cem por cento de certeza?

Aomame pensou naquilo.

– Cem por cento não. Digamos que noventa e oito por cento.

– Bem, então é melhor que tenhas muito, muito cuidado com esses dois por cento. Como já disse, o tipo é um profissional. Muito esperto, muito persistente.

Aomame não lhe deu resposta.

– Um profissional é um cão de caça. Deteta odores que uma pessoa normal não sente, ouve o que não se consegue identificar. Se fizeres o que toda a gente faz, de maneira idêntica, não és uma profissional. E, mesmo que sejas, não vais sobreviver durante muito tempo. Por isso, deves manter-te alerta. Sei que és uma pessoa cautelosa, mas tens de ter muitíssimo mais cuidado do que tiveste até agora. As coisas realmente importantes não se decidem por percentagens.

– Quero perguntar-te uma coisa – disse Aomame.

– O que é?

– O que tencionas fazer, caso o Cabeça-de-Abóbora apareça aí outra vez?

Tamaru guardou silêncio durante uns instantes. A pergunta parecia tê-lo apanhado de surpresa.

– Provavelmente, não faço nada. Deixo-o em paz. Por estes lados, não há nada que ele possa fazer.

– E se ele começar a fazer alguma coisa que te aborreça?

– Por exemplo?

– Não sei. Qualquer coisa que constitua um transtorno.

Tamaru emitiu um som gutural.

– Acho que lhe enviava uma mensagem.

– Uma coisa entre colegas de profissão?

– Algo do género. Mas, antes de fazer o que quer que fosse, averiguaria se está a trabalhar para alguém. Se tiver apoios, as coisas mudam de figura, e eu teria de analisar os perigos a que iria ficar exposto. Só depois de tudo comprovado faria qualquer coisa.

– Como verificar a profundidade da água antes de saltares para dentro de uma piscina.

– É uma maneira de pôr as coisas.

– Mas tu achas que ele age por conta própria. Disseste que, provavelmente, não dispõe de apoios.

– Pois disse; às vezes, porém, a minha intuição falha – retorquiu Tamaru. – E, infelizmente, só tenho dois olhos. Seja como for, agradecia que te mantivesses vigilante, está bem? Vê se anda alguém suspeito por aí, se há alguma mudança na paisagem exterior, qualquer coisa fora do vulgar. Se reparares em qualquer coisa anormal, por ínfima que seja, avisa-me.

– Já percebi. Terei cuidado – respondeu Aomame. Não precisava que lho dissessem. Ando à procura do Tengo, pensou, por isso, não deixarei passar o pormenor mais insignificante. Contudo, tal como disse o Tamaru, eu só tenho dois olhos.

– E é tudo da minha parte – disse ele.

– Como está a senhora? – perguntou Aomame.

– Está bem – retorquiu Tamaru. E acrescentou: – Se bem que, nos dias que vão correndo, pareça bastante silenciosa.

– Nunca foi muito faladora.

Tamaru soltou um pequeno grunhido gutural. Parecia que o fundo da sua garganta estava equipado com um órgão destinado a expressar emoções especiais.

– Anda mais calada do que é costume.

Aomame imaginou a idosa senhora, sentada sozinha na sua cadeira de lona, com um grande regador aos pés, observando interminavelmente as borboletas que esvoaçavam em seu redor. Aomame sabia muito bem como ela conseguia respirar sem fazer ruído.

– Na próxima remessa de provisões mando-te uma caixa de madalenas – declarou Tamaru, pondo um fim à conversa. – Pode ser que exerçam um efeito positivo no fluir do tempo.

– Obrigada – respondeu Aomame.

Aomame ficou na cozinha a preparar um cacau quente. Antes de regressar à varanda para retomar a sua vigilância, precisava de aquecer. Ferveu o leite numa caçarola e dissolveu o cacau em pó. Despejou a mistura para dentro de uma chávena grande e cobriu-a de natas, que batera antes. Sentou-se à mesa e, devagar, foi bebendo o cacau enquanto ia relembrando a conversa que acabara de ter com Tamaru. O homem com a cabeça grande e deformada vai deitar-me numa mesa e despir-me, por baixo de uma luz forte e fria. É um profissional competente e perigoso.

Tornou a vestir o blusão de penas, enrolou o cachecol à sua volta e, com a chávena meio cheia na mão, dirigiu-se para a varanda. Sentou-se na cadeira de jardim e estendeu a manta sobre os joelhos. Como de costume, o escorrega estava vazio. Nesse momento, avistou uma criança que abandonava o parque infantil. Era estranho uma criança visitar o parque sozinha àquela hora. Tratava-se de uma criança corpulenta, com um gorro de malha. Aomame observava-a de um ângulo superior, por uma fresta no painel da varanda: a criança atravessou rapidamente o seu campo de visão e desapareceu, engolida pelas sombras do edifício. A cabeça parecia ser demasiado grande para uma criança, mas podia ter sido imaginação sua.

Com toda a certeza que não se tratava de Tengo, pelo que Aomame não pensou mais no caso e dirigiu de novo o seu olhar para o escorrega. Foi bebendo o seu cacau, aquecendo as mãos na chávena, e ficou a ver uma nuvem atrás da outra a atravessar o céu.

É claro que o que Aomame vira não fora criança nenhuma, mas sim Ushikawa em pessoa. Se houvesse mais luz, ou se ela o tivesse observado durante mais algum tempo, teria reparado que aquela cabeça grande não pertencia a uma criança. E teria percebido que aquele anão cabeçudo era, nem mais nem menos, o homem que Tamaru descrevera. Mas Aomame só o avistara durante uns poucos segundos e de um ângulo longe de ser o ideal. Por sorte, e pelas mesmas razões, Ushikawa não avistara Aomame na varanda.

Neste ponto, há uma série de «ses» que vêm à cabeça. Se Tamaru tivesse desligado um pouco antes, se Aomame não tivesse feito o cacau enquanto remoía as coisas que tinham dito, teria avistado Tengo no alto do escorrega, a olhar para o céu. Teria saído disparada de casa e, ao fim de vinte anos, ter-se-iam reunido.

Todavia, se tal tivesse acontecido, Ushikawa, que andava a seguir Tengo, teria reparado que ela era Aomame, teria percebido onde vivia e informaria imediatamente os dois tipos da Vanguarda.

Portanto, não se pode dizer que tenha sido um acaso infeliz – ou feliz – Aomame não ter visto Tengo naquele momento. Fosse como fosse, como já fizera antes, Tengo trepara para o topo do escorrega e pusera-se a olhar fixamente para as duas luas suspensas no céu e para as nuvens que iam passando pela frente delas. Ushikawa espiara Tengo, escondido entre as sombras, a uma certa distância. Entretanto, Aomame abandonara a varanda, falara ao telefone com Tamaru e bebera o seu cacau. A sua ausência durara uns vinte e cinco minutos. Em certo sentido, foram vinte e cinco minutos cruciais. Quando Aomame tornou a vestir o blusão de penas e regressou à varanda, já Tengo tinha abandonado o parque infantil. Ushikawa não o seguiu logo. Em vez disso, ficou no parque, pois havia algo que tinha de comprovar. Quando terminou, saiu dali a toda a velocidade. Fora durante esses poucos segundos que Aomame o avistara da varanda.

As nuvens continuavam a cruzar o céu, a correr para sul, passando por cima da baía de Tóquio em direção ao imenso oceano Pacífico. Depois disso, quem sabe que sorte as aguardava. Tal como ninguém sabe o que acontece à alma depois da morte.

Em todo o caso, o círculo apertava-se. Mas nem Aomame nem Tengo tinham consciência de que se fechava em torno dos dois a passos gigantescos. Ushikawa pressentia o que estava a acontecer, uma vez que dava passos para que tal ocorresse, mas nem mesmo ele era capaz de ter uma visão global da coisa. Não sabia o mais importante: que a distância entre si e Aomame não passava agora de umas dezenas de metros. E, coisa rara no que tocava a Ushikawa, quando saiu do parque estava incompreensivelmente confuso e era incapaz de ordenar os seus pensamentos.

Às dez horas, ficou demasiado frio para continuar ali fora, pelo que Aomame, relutante, tornou a entrar no apartamento aquecido. Despiu-se e enfiou-se num banho quente. Enquanto esteve dentro de água, deixando que o calor afastasse o que ainda restava do frio, descansou a mão sobre o ventre. Já conseguia notar ali uma ligeira protuberância. Fechou os olhos e tentou sentir a coisa pequenina que havia dentro de si. Não lhe restava muito tempo agora. Tinha de arranjar maneira de dar a notícia a Tengo: trazia com ela um filho dele. E lutaria desesperadamente para o proteger.

Vestiu-se, meteu-se na cama, deitou-se de lado, no escuro, e adormeceu. Antes de cair num sono profundo, teve um breve sonho com a viúva.

Aomame encontra-se na estufa da Casa dos Salgueiros e, juntas, ela e a velha senhora, observam as borboletas. A estufa está quente e sombria como um útero. Também ali se encontra a árvore-da-borracha que deixara ficar na sua antiga casa. Bem tratada, recuperara o viço e está tão verde que quase não a reconhece. Numa das suas folhas grossas pousou uma borboleta de um país do Sul, que nunca vira. A borboleta recolheu as suas asas de cores brilhantes e parece dormir tranquilamente. Aomame fica feliz com isto.

No sonho, a sua barriga está enorme. Parece prestes a dar à luz. Consegue sentir o bater do coração do pequenino. O bater do seu coração e o do pequenino misturam-se, num ritmo agradável, a dois.

A anciã, sentada ao lado de Aomame, tem a coluna vertebral tão direita como é seu hábito, os lábios fechados numa linha fina, e respira calmamente. As duas não falam, para não acordarem a borboleta adormecida. A velha senhora, numa atitude ausente, parece não se dar conta de ter Aomame a seu lado. Claro que Aomame tem consciência do quanto a senhora a protege. Mesmo assim, não consegue evitar uma certa inquietação. As mãos da idosa, cruzadas sobre o regaço, parecem-lhe demasiado esguias e frágeis. Inconscientemente, as mãos de Aomame procuram a pistola, mas não a encontram.

Apesar de imersa no sonho, Aomame tem, ao mesmo tempo, consciência de que se trata de um sonho. Por vezes, tem sonhos deste tipo, onde se encontra numa realidade vívida, muito nítida, sabendo contudo que não é real. Trata-se de cenas de um planeta pequeno, num local distante.

No sonho, alguém abre a porta da estufa. Por ela entra um vento gélido e agoirento. A grande borboleta desperta, estende as asas e voa para longe, afastando-se da árvore-da-borracha. Quem é? Vira a cabeça para olhar na direção da porta. Mas o sonho termina antes de conseguir visualizar a figura humana que chega.

Acordou encharcada em suor, um suor desagradável e frio. Despiu o pijama molhado, secou-se com uma toalha e vestiu uma T-shirt lavada. Durante um bocado, deixou-se ficar sentada na cama. Alguma coisa má está prestes a acontecer, pensou. Alguém pode estar a tentar chegar ao pequenino. E, quem quer que seja, está muito próximo. Tinha de encontrar Tengo – não havia um momento a perder. No entanto, para além de vigiar o parque todas as noites, não havia mais nada que pudesse fazer. Nada para além do que já fazia – manter os olhos abertos com cuidado, paciência, dedicação, fixos naquele bocadinho do mundo, naquele ponto único que era o topo do escorrega. Mesmo com tanta concentração, contudo, uma pessoa pode não ver certas coisas. Porque só tem dois olhos.

Aomame queria chorar, mas as lágrimas não saíam. Tornou a deitar-se na cama, pousou as palmas das mãos sobre o estômago, e, calmamente, aguardou que o sono chegasse.


18

TENGO

Quando se espeta alguém, sai sangue vermelho

– Depois daquilo, nada aconteceu durante três dias – continuou Komatsu. – Comia o que me davam, dormia à noite naquela cama estreita, acordava quando a manhã nascia e usava a pequena retrete num canto do quarto. Por razões de privacidade, a retrete tinha uma divisória, mas nada de fechadura. Naquela altura, ainda havia bastante calor de fim de verão, porém, as condutas de ventilação deviam estar ligadas a um ar condicionado, pelo que não sentia demasiado calor.

Tengo escutava a história de Komatsu sem fazer comentários.

– Três vezes por dia, traziam-me comida. Não sei a que horas. Tinham-me tirado o relógio e não havia janelas no quarto, pelo que nem sequer sabia se era dia ou noite. Mesmo prestando atenção, não conseguia ouvir nada. Com toda a certeza, também ninguém conseguiria ouvir qualquer ruído que eu produzisse. Não fazia ideia para onde me teriam levado, só tinha a noção de que deveria ser um local retirado, longe de caminhos mais calcorreados. Seja como for, durante os três dias em que ali estive, nada aconteceu. Para dizer a verdade, nem sequer tenho a certeza de que tenham sido três dias. Ao todo, trouxeram-me nove refeições e comi-as quando mas trouxeram. As luzes foram desligadas três vezes e eu dormi três vezes. Costumo ter um sono difícil, mas, não sei por que razão, dormi que nem uma pedra. O que é estranho, agora que penso no caso. Estás a seguir a minha história?

Em silêncio, Tengo assentiu.

– Durante esses três dias, não pronunciei uma única palavra. Quem me trazia as refeições era um rapaz magro, com um boné de basebol e uma máscara de hospital na cara. Usava uma espécie de camisola larga, calças de treino e uns ténis sujos. Trazia-me a comida num tabuleiro e levava tudo, depois de eu acabar de comer. Só havia pratos de papel e facas, garfos e colheres de plástico baratas. Davam-me comida pré-cozinhada, vulgar, em embalagens de alumínio: não era grande coisa, mas também não tão má que fosse incomestível. As porções não eram muito grandes e eu tinha fome, pelo que rapei sempre tudo até ao fim. O que também foi um tanto estranho. Normalmente, não tenho grande apetite e, se não tenho cuidado, acontece esquecer-me de comer. Davam-me a beber leite e água mineral. Não me deram chá ou café. Nem uísque de malte ou cerveja de pressão. Também nada de cigarros. Mas o que é que podia fazer! Não estava de férias num hotel simpático, ou coisa do género.

Como se a história lhe tivesse recordado que podia agora fumar à vontade, Komatsu puxou de um maço de Marlboro vermelho, prendeu um cigarro entre os lábios e acendeu-o com um fósforo. Inspirou o fumo profundamente, soltou-o e franziu o sobrolho.

– O homem que me trazia as refeições nunca proferiu uma única palavra. Deve ter recebido ordens dos superiores para não dizer nada. Tenho a certeza de que estava na base do totem, era uma espécie de pau para toda a obra. No entanto, penso que deve ter tido treino de artes marciais. No seu comportamento havia uma espécie de concentração focada.

– Não lhe perguntou nada?

– Sabia que, se falasse com ele, não iria obter resposta, pelo que me deixei estar quieto a ver as coisas acontecer. Comia quando me traziam comida, bebia o meu leite, ia para a cama quando apagavam as luzes, acordava quando as acendiam de novo. De manhã, o rapaz trazia-me uma máquina de barbear elétrica e uma escova de dentes, e eu barbeava-me e lavava os dentes. Depois de eu terminar, ele levava tudo de volta. Sem contar com o papel higiénico, não havia nada dentro do quarto. Não me deixaram tomar um duche ou mudar de roupa, mas nunca me apeteceu tomar duche ou trocar de roupa. Não havia espelho, o que não me incomodou. A pior coisa era, sem dúvida, o tédio. Melhor dizendo, desde que acordava até à hora em que adormecia, tinha de ficar ali sentado, sozinho, sem falar com ninguém, num quarto branco, perfeitamente quadrado, parecido com um dado de jogar. Sentia-me aborrecido de morte. Sou um viciado nas palavras impressas, preciso de ter sempre comigo alguma coisa para ler... a ementa do serviço de quartos, o que for. Mas não me deram livros, jornais ou revistas. Não havia televisão, rádio ou jogos. Ninguém com quem falar. A única coisa que podia fazer era deixar-me ficar sentado na cadeira, a olhar para o chão, para as paredes ou para o teto. Uma sensação totalmente absurda. Quer dizer, vai uma pessoa a caminhar pela rua abaixo e saltam uns tipos vindos não se sabe de onde, agarram-na, põem-lhe clorofórmio ou coisa do género sobre o nariz, arrastam-na para um sítio qualquer e mantêm-na prisioneira num quartinho estranho, sem janelas. Seja de que ângulo for que se veja a coisa, é uma situação bizarra. E a pessoa fica aborrecida a ponto de pensar que vai enlouquecer.

Komatsu olhou para o cigarro que tinha entre os dedos numa atitude de profunda reflexão: o fumo evolava-se em volutas e ele sacudiu as cinzas no cinzeiro.

– Penso que podem ter-me posto naquele quartinho durante três dias, sem nada que fazer, para tentarem vergar-me. No que tocava a vergar uma pessoa, a levá-la aos limites, pareciam saber bem o que estavam a fazer. No quarto dia, melhor dizendo, depois de ter comido o meu quarto pequeno-almoço, apareceram dois homens. Calculei que fosse o par que me tinha raptado. O ataque tinha sido tão repentino, que eu não conseguira ver bem as caras deles. No quarto dia, porém, quando os vi, comecei a lembrar-me de tudo. Como me tinham empurrado para dentro do carro com tanta força, que pensei que iam arrancar-me um braço. Como me tinham posto um pano ensopado com uma droga qualquer sobre o nariz e a boca. Não tinham proferido uma única palavra e tudo se passara num abrir e fechar de olhos.

Perante estas recordações, Komatsu franziu o sobrolho.

– Um deles não era muito alto, mas era corpulento e tinha a cabeça rapada, a pele bastante morena e as maçãs do rosto proeminentes. O outro, mais alto, tinha pernas e braços compridos, faces encovadas e o cabelo apanhado atrás. Postos lado a lado, pareciam uma parelha de comédia. Tens o alto, magrinho, e o baixo, entroncado, com uma barbicha. Todavia, saltava à vista que não eram comediantes. Tratava-se de um par perigoso. Nunca hesitaram em fazer o que era preciso, sem grandes alardes. Agiam de uma forma muito descontraída, o que os tornava ainda mais assustadores, e tinham olhos alarmantemente frios. Ambos vestiam calças pretas de algodão e camisas brancas de manga curta. Andariam pelos vinte e qualquer coisa, e o careca seria um pouco mais velho do que o companheiro. Nenhum dos dois trazia relógio.

Tengo permaneceu em silêncio, esperando que ele continuasse.

– O careca fez as despesas da conversa. O magro, com o rabo-de-cavalo, limitou-se a ficar ali, à frente da porta, direito que nem um fuso, sem mover um único músculo. Parecia estar a ouvir a nossa conversa, mas também podia não estar. O careca sentou-se à minha frente, numa cadeira desdobrável de metal que trouxera consigo, e falou. Não havia mais cadeiras, pelo que me sentei na cama. Na cara do tipo não passou o mais ínfimo vestígio de emoção. Quando falava, a boca dele movia-se, mas, para além disso, a cara estava rígida, como a de um boneco de ventríloquo.

Assim que se sentou à frente de Komatsu, a primeira coisa que o careca disse foi:

– É capaz de adivinhar quem somos e a razão por que o trouxemos para aqui?

– Não, não sou – respondeu Komatsu.

O careca olhou para Komatsu durante algum tempo, com aquele seu olhar inexpressivo.

– Imagine que lhe pediam para adivinhar – prosseguiu –, o que diria? – Eram palavras educadas, mas ditas num tom imperioso e numa voz tão fria e dura como uma régua de metal, há muito guardada num frigorífico.

Depois de titubear durante alguns segundos, Komatsu respondeu com franqueza que, se tivesse de adivinhar, talvez dissesse que se prendia com o caso de A Crisálida de Ar. Não lhe ocorria mais nada.

– O que significaria que, provavelmente, os senhores são membros da Vanguarda – continuou – e que estamos nas vossas instalações.

O careca não confirmou nem negou o que Komatsu acabara de dizer. Limitou-se a olhar para ele. Komatsu remeteu-se ao silêncio.

– Falemos, então, com base nessa hipótese – o careca começou, baixinho. – A partir de agora, tudo o que lhe dissermos será uma extensão dessa sua hipótese. Tudo assente no pressuposto de que, de facto, o caso é esse. Parece-lhe bem?

– Perfeito – retorquiu Komatsu. Preparavam-se para falar do assunto de uma forma tão ínvia quanto conseguissem. Nada mau sinal. Não se dariam a tanto trabalho se o plano fosse não o deixarem sair dali vivo.

– Enquanto responsável de uma casa editora, ficou encarregado da publicação de A Crisálida de Ar de Eriko Fukada. Estou certo?

– Absolutamente – admitiu Komatsu. Aquilo era do conhecimento público.

– Pelo que sabemos, houve uma certa conduta fraudulenta na publicação do livro. A Crisálida de Ar recebeu um prémio literário destinado a novos autores, promovido por uma revista literária. No entanto, antes de o manuscrito ser entregue ao júri, uma terceira pessoa fez, por sua indicação, um considerável trabalho de reescrita. Após essa revisão secreta, ganhou o prémio, foi publicado em livro e tornou-se um êxito de vendas. Estou enganado?

– Depende da maneira de encarar os factos – respondeu Komatsu. – Acontece com frequência os manuscritos serem revistos depois de entregues, por conselho do editor...

O careca levantou a mão para lhe cortar a palavra.

– Não há nada de desonesto no facto de o autor reescrever partes do seu romance sob indicação do editor. Tem toda a razão. Mas pedir a um terceiro que o faça às escondidas afigura-se pouco escrupuloso. Não só isso, como também criar uma empresa-fantasma para repartir os direitos... Não sei qual seria a interpretação de um ponto de vista estritamente legal, mas, em termos morais, tais ações seriam liminarmente condenadas. É indesculpável. Os jornais e as revistas iriam armar um enorme escarcéu e a reputação da sua empresa sofreria com isso. Estou certo de que compreende isto muito bem, senhor Komatsu. Sabemos os factos todos e temos provas irrefutáveis que podemos revelar ao mundo. Portanto, recomendo-lhe que deixe de usar subterfúgios. É uma perda de tempo para ambas as partes.

Komatsu assentiu com a cabeça.

– Se as coisas chegassem até esse ponto, é evidente que o senhor teria de pedir a demissão. Acresce que seria banido, como é óbvio, e pô-lo-iam na lista negra. Não teria onde trabalhar no mundo da edição, pelo menos de forma lícita.

– Calculo que não – disse Komatsu.

– Por agora, apenas um número limitado de pessoas sabe a verdade – afirmou o careca. – O senhor, a Eriko Fukada, o Professor Ebisuno e Tengo Kawana, que reescreveu o livro. E uma meia dúzia de outras pessoas.

Komatsu escolheu as palavras com cuidado.

– E se tomarmos a nossa hipótese inicial, essa meia dúzia de outras pessoas seriam membros da Vanguarda.

O careca fez um vago gesto com a cabeça.

– Sim. Segundo a nossa hipótese, seria esse o caso.

O careca fez uma pausa, permitindo-lhe absorver bem a ideia. Depois, continuou.

– E se essa hipótese for realmente verdadeira, então eles podem fazer-lhe o que quiserem. Podem mantê-lo aqui como hóspede deles enquanto lhes apetecer. Não há qualquer problema. Ou, se desejarem encurtar a sua estada, há toda uma gama de possibilidades à sua escolha. Incluindo algumas que se revelariam bastante desagradáveis para ambas as partes. Seja como for, têm o poder e os meios. Calculo que já se terá dado conta disso.

– Creio que sim – concordou Komatsu.

– Ótimo – disse o careca.

O careca levantou um dedo e o Rabo-de-Cavalo abandonou a divisão. Regressou, pouco tempo depois, trazendo um telefone. Ligou-o a uma ficha na parede e estendeu-o a Komatsu. O careca deu-lhe instruções para ligar para a editora.

– Apanhou uma gripe horrível e há uns dias que está de cama com febre. Não crê que consiga ir trabalhar nos próximos tempos. Diga-lhes isso e desligue.

Komatsu pediu para falar com um dos colegas, explicou-lhe em breves palavras o que era suposto dizer e desligou sem responder às perguntas do outro. O Bola-de-Bilhar fez um aceno com a cabeça e o Rabo-de-Cavalo tirou o telefone da ficha e levou-o de novo para fora do quarto. O Bola-de-Bilhar ficou um bocado a contemplar as costas das suas mãos, depois virou-se para Komatsu. A sua voz deixou transparecer um vago sentimento de afabilidade.

– Por hoje, é tudo – disse. – Falaremos outra vez, um dia destes. Até lá, por favor, pense bem em tudo o que dissemos.

E saiu. Komatsu passou os dez dias seguintes em silêncio, fechado naquele quarto. Três vezes por dia, o jovem com a máscara cirúrgica levava-lhe a comida, insípida e medíocre. No final do quarto dia, Komatsu recebeu uma muda de roupa – uma espécie de pijama de algodão –, mas, até ao fim, nunca o deixaram tomar duche. O máximo que podia fazer era lavar a cara no minúsculo lavatório junto da retrete. A sua consciência da passagem do tempo tornou-se cada vez mais incerta.

Komatsu pensava que o tinham levado para a sede do culto, na prefeitura de Yamanashi. Já a vira na televisão. Ficava numa montanha, rodeada por um muro alto, como se fora um reino independente. A fuga ou um pedido de ajuda estavam fora de questão. Se no final o matassem (o que deveria ser o que designavam como possibilidade desagradável), o seu corpo nunca seria encontrado. Nunca, em toda a sua vida, sentira a morte tão real ou tão próxima.

Dez dias depois de ter feito para a editora aquela chamada a que o tinham obrigado (quase de certeza tinham passado dez dias, se bem que ele não tivesse a certeza), o mesmo par surgiu de novo. O Bola-de-Bilhar parecia mais magro do que anteriormente, o que resultava numas maçãs do rosto mais proeminentes. Os seus olhos frios estavam agora raiados de sangue. Tal como da vez anterior, sentou-se numa cadeira desdobrável que trouxera consigo, à frente de Komatsu, do outro lado da mesa. Durante um longo bocado, não pronunciou uma única palavra. Limitou-se a olhar para Komatsu com aqueles seus olhos avermelhados.

O Rabo-de-Cavalo estava igual. Mais uma vez se deixou ficar de pé, direito como um fuso, à frente da porta, com os olhos inexpressivos fixos num ponto imaginário no espaço. De novo traziam calças pretas e camisas brancas, quase de certeza um qualquer tipo de uniforme.

– Vamos retomar a conversa no ponto onde a deixámos da última vez – disse, por fim, o Bola-de-Bilhar. – Estávamos a dizer que podíamos fazer de si o que muito bem quiséssemos.

Komatsu anuiu com a cabeça.

– Incluindo possibilidades que se revelariam bastante desagradáveis para ambas as partes.

– A sua memória é excelente, de facto – afirmou o Bola-de-Bilhar. – Tem razão. Há uma possibilidade desagradável que se avulta.

Komatsu permaneceu em silêncio. O Bola-de-Bilhar prosseguiu:

– Não se esqueça de que nos mantemos no campo das hipóteses. Em teoria, no caso. Em termos práticos, eles preferiam não se ver forçados a tomar decisões drásticas. Se, de repente, o senhor desaparecesse agora, poderiam surgir novos problemas, complicações indesejáveis. O que aconteceu quando a Eriko Fukada desapareceu. Não há muita gente que ficasse triste com o seu desaparecimento, senhor Komatsu, mas o senhor é um editor respeitado, proeminente no mundo editorial. Além disso, tenho a certeza de que, se falhar o pagamento da pensão à sua ex-mulher, ela teria uma palavra a dizer. Para eles não seria um desenvolvimento muito favorável.

Komatsu expeliu uma tosse seca e engoliu em seco.

– Não estamos a fazer-lhe críticas pessoais ou a tentar puni-lo. Eles têm consciência de que, quando publicou A Crisálida de Ar, o senhor não tinha a menor intenção de fazer um ataque a uma organização religiosa específica. No início, nem sequer sabia da ligação entre o romance e essa organização religiosa. Perpetrou esta fraude pelo gozo e por ambição. Claro que, à medida que as coisas foram acontecendo, o dinheiro também se tornou um fator importante. Para um mero empregado de uma firma torna-se muito difícil pagar pensões à ex-mulher e ao filho, certo? E foi buscar o Tengo Kawana, aspirante a escritor e professor numa escola particular, que não sabia nada das circunstâncias em que se estava a envolver, e meteu-o ao barulho. O plano em si mesmo era inteligente, mas a sua escolha do romance e do autor... Nem tanto. As coisas tornaram-se mais complicadas do que imaginou. Os senhores fizeram o papel de cidadãos vulgares que passeiam pelo campo, atravessam a linha da frente, e dão consigo num terreno minado. Não podem avançar nem retroceder. Não é assim, senhor Komatsu?

– Pode pôr-se o caso nesses termos, suponho – respondeu Komatsu.

– Aparentemente, ainda há coisas que o senhor não compreende na totalidade – declarou o Bola-de-Bilhar, semicerrando os olhos um pouco mais. – Se compreendesse, não iria fingir que não têm nada que ver consigo. Deixe-me que lhas torne absolutamente transparentes. Para falar com toda a franqueza, o senhor está no meio de um campo minado.

Komatsu assentiu em silêncio.

O Bola-de-Bilhar fechou os olhos e, dez segundos mais tarde, reabriu-os.

– A situação trouxe-lhe sarilhos, mas perceba que também lhes criou alguns problemas bem reais.

Komatsu decidiu-se a falar.

– Importa-se que lhe faça uma pergunta?

– Se puder responder-lhe...

– A publicação de A Crisálida de Ar criou alguns problemas à organização religiosa, é isso?

– Alguns problemas é dizer pouco – respondeu o Bola-de-Bilhar. Fez um pequeno trejeito. – A voz já não fala com eles. Faz alguma ideia do que isto significa?

– Não – grasnou Komatsu, com a garganta seca.

– Muito bem. Não posso explicar-lhe mais do que isto e, pela sua parte, é melhor não saber mais nada. A voz já não fala com eles. Por agora, é tudo o que lhe posso dizer. – O Bola-de-Bilhar fez uma pausa. – E esta situação infeliz foi provocada pela publicação de A Crisálida de Ar.

Komatsu fez mais uma pergunta:

– A Eriko Fukada e o Professor Ebisuno estavam a prever que a publicação de A Crisálida de Ar provocasse esta situação infeliz?

O Bola-de-Bilhar abanou a cabeça.

– Não, não me parece que o Professor Ebisuno previsse que as coisas aconteceriam como aconteceram. Não se sabe quais seriam as intenções da Eriko Fukada. Afirmar que não foi intencional é uma mera conjetura. Mas, se assumirmos que alguém teve tal intenção, não acredito que fosse ela.

– As pessoas leem A Crisálida de Ar como uma história de ficção – disse Komatsu. – Uma historiazinha inofensiva, fantasiosa, escrita por uma colegial. Na realidade, em muitas recensões afirmaram que a obra é demasiado surreal. Nunca ninguém suspeitou de algum grande segredo, ou informação concreta, que tivesse sido exposto nas páginas do livro.

– Imagino que tenha razão – concordou o Bola-de-Bilhar. – A maioria das pessoas nunca daria por tal. Mas o problema não é esse. Aqueles segredos nunca deveriam ter sido tornados públicos. Fosse sob que forma fosse.

O Rabo-de-Cavalo mantinha-se de pé, colado ao chão, em frente à porta, com os olhos postos na parede à sua frente, admirando uma paisagem que só ele via.

– O que eles pretendem é recuperar a voz – afirmou o Bola-de-Bilhar, escolhendo as palavras com cuidado. – O poço não secou. Só se escondeu mais e está mais fundo do que alguma vez esteve. Será difícil recuperá-lo, mas pode ser feito.

O Bola-de-Bilhar mergulhou o olhar no de Komatsu. Parecia estar a medir a profundidade de qualquer coisa, como quando se avalia uma sala a olho para perceber se a mobília cabe lá dentro.

– Já lhe disse: vocês entraram num campo de minas. Não conseguem avançar nem recuar. O que eles podem fazer é indicar-vos o caminho, para que saiam daí em segurança. Se o fizerem, vocês salvariam a vida e eles livrar-se-iam pacificamente de intrusos indesejados. Por isso lhe peço que aceite a nossa sugestão, sem mais.

O Bola-de-Bilhar cruzou os braços.

– Gostaríamos que, discretamente, se afastassem disto tudo. Não estão realmente preocupados que o senhor saia daqui inteiro, mas, se provocarmos uma explosão agora, teremos problemas. Portanto, senhor Komatsu, vou indicar-lhe um caminho de saída. Vou conduzi-lo de volta a um local seguro, e o que peço em troca é o seguinte: tem de impedir a reedição d’A Crisálida de Ar. Não imprimirá mais exemplares nem fará qualquer edição de bolso. Toda a publicidade ao livro tem de cessar, e cortará todas as ligações com a Eriko Fukada. O que me diz? Tem influência bastante para tratar disto.

– Não vai ser fácil, mas talvez consiga fazê-lo – respondeu Komatsu.

– Senhor Komatsu, não o trouxemos aqui para discutir cenários hipotéticos. – Os olhos do Bola-de-Bilhar ficaram ainda mais vermelhos e mais duros. – Não estamos a pedir-lhe que recolha todos os exemplares do livro que ainda estão na rua. Se o fizer, a imprensa cai em cima da história. E sabemos que a sua influência não vai tão longe. Desejamos apenas que, discretamente, deixe o assunto cair. Não se pode desfazer o que já foi feito: arruinada que esteja uma coisa, nunca tornará a ser o que foi. O que eles querem é que o senhor retire a obra da ribalta. Está a seguir o meu raciocínio?

Komatsu assentiu em silêncio.

– Senhor Komatsu, como já lhe expliquei, há vários factos que não podem vir a lume. Se tal acontecesse, haveria repercussões para todos os envolvidos. Por isso, gostaríamos de declarar uma trégua, a bem das duas partes envolvidas. A partir deste ponto, o senhor não será considerado responsável, a paz ficará garantida. Não terá mais nada que ver com A Crisálida de Ar. Não é um mau acordo, sabe?

Komatsu ponderou a proposta.

– Muito bem. Suspenderei a publicação e toda a publicidade da obra. Vai levar algum tempo, mas arranjarei forma de o fazer. E, falando por mim, será fácil esquecer-me deste assunto. Penso que o Tengo Kawana poderá fazer o mesmo. Nunca foi um grande entusiasta do projeto. Envolvi-o contra a sua vontade. E o papel dele há muito que terminou. Também não creio que a Eriko Fukada represente qualquer problema: ela já disse que não tem a menor intenção de escrever outro romance. A reação do Professor Ebisuno é a única que não posso prever. O seu objetivo último era perceber se o amigo, Tamotsu Fukada, estava bem. Quer saber onde é que ele está e o que faz. Seja o que for que eu lhe diga, ele vai continuar à procura de informações sobre o senhor Fukada.

– Tamotsu Fukada morreu – informou o Bola-de-Bilhar. A voz soou calma, sem inflexões, mas com uma nota de um peso terrível.

– Morreu?! – perguntou Komatsu.

– Aconteceu recentemente – disse o Bola-de-Bilhar. Inspirou profundamente e soltou o ar devagar. – Teve um ataque de coração e morreu. Foi fulminante e não sofreu. Dadas as circunstâncias, não participámos o óbito e fizemos-lhe um enterro na mais estrita intimidade, discreto, no seio da comunidade. Por razões religiosas, o corpo foi incinerado, os ossos esmagados, e espalhámos as cinzas nas montanhas perto das nossas instalações. Em termos legais, isto prefigura uma profanação de cadáver, mas seria difícil conseguir um caso formal contra nós. Todavia, a verdade é esta. No que toca a casos de vida ou de morte, nunca mentimos. Gostaria que informasse o Professor Ebisuno do que acabei de lhe contar.

– Uma morte natural.

O Bola-de-Bilhar assentiu com um profundo abanar de cabeça.

– O senhor Fukada era uma pessoa inestimável para nós. Não, o termo «inestimável» não lhe faz justiça. Era um gigante. A sua morte só foi comunicada a um número restrito de pessoas, que lamentaram profundamente a sua partida. A esposa, a mãe da Eriko Fukada, morreu há já muitos anos, de cancro no estômago. Recusou fazer quimioterapia e faleceu nas nossas instalações médicas. O marido, Tamotsu, prestou-lhe assistência até ao fim.

– Mesmo assim, não participaram a morte dela – perguntou Komatsu.

A negativa não surgiu.

– E Tamotsu Fukada faleceu há pouco tempo.

– Precisamente – concordou o Bola-de-Bilhar.

– Depois da publicação d’A Crisálida de Ar?

Por uma fração de segundo, o olhar do Bola-de-Bilhar desceu sobre a mesa. Depois, levantou a cabeça e encarou Komatsu.

– É verdade. O senhor Fukada morreu depois d’A Crisálida de Ar ter sido publicada.

– E há relação entre os dois factos? – ousou Komatsu inquirir.

Durante algum tempo, o Bola-de-Bilhar não proferiu uma única palavra, ponderando a resposta a dar. Por fim, como se tivesse tomado uma decisão, falou:

– Muito bem. Acho que talvez seja melhor que o Professor Ebisuno saiba todos os factos, para que perceba. O senhor Tamotsu Fukada era o verdadeiro Líder da comunidade, aquele que ouve a voz. Quando a filha, Eriko Fukada, publicou A Crisálida de Ar, a voz deixou de lhe falar e, nessa altura, o senhor Fukada pôs termo à sua própria vida. Foi uma morte natural. Ou, para dizer com maior rigor, provocou a sua morte de forma natural.

– A Eriko Fukada era filha do Líder – murmurou Komatsu.

O Bola-de-Bilhar concordou com um breve e conciso aceno de cabeça.

– E a Eriko Fukada acabou por levar o pai à morte – prosseguiu Komatsu.

O Bola-de-Bilhar tornou a assentir.

– Foi isso mesmo.

– Mas a religião permanece.

– Assim é – retorquiu o Bola-de-Bilhar e fitou Komatsu com uns olhos que faziam lembrar calhaus antigos, presos no fundo do gelo de um glaciar. – Senhor Komatsu, a publicação de A Crisálida de Ar provocou danos consideráveis à Vanguarda. Contudo, não estão a pensar puni-lo por isso. No ponto a que as coisas chegaram, não se ganha nada em puni-lo. Os membros da Vanguarda têm uma missão a cumprir e, para tal, precisam de isolamento absoluto.

– Por isso, o senhor quer que toda a gente recue um passo e esqueça o que aconteceu.

– Numa palavra: sim.

– E era absolutamente necessário sequestrarem-me para fazer passar a mensagem?

Pela primeira vez, o rosto do Bola-de-Bilhar foi atravessado por algo que poderia sugerir uma emoção, algo situado no interstício entre o humor e a empatia.

– Se nos demos ao trabalho de o trazer até aqui, foi porque eles queriam que percebesse a gravidade da situação. Não desejavam fazer nada de drástico, mas, se se revelasse necessário, não hesitariam em fazê-lo. Queriam que sentisse isto na sua própria pele. Se não cumprir a sua promessa, algo desagradável irá ocorrer. Está a perceber?

– Sim – retorquiu Komatsu.

– Para ser franco, é um homem de sorte, senhor Komatsu. Talvez não veja bem, porque há um nevoeiro muito cerrado, mas esteve a poucos centímetros da borda de um penhasco. Era bom que não esquecesse isto. Neste momento, eles não podem permitir-se o luxo de se ocuparem de si. Têm assuntos muito mais importantes. E nesse sentido também, o senhor é um homem de sorte. Portanto, enquanto esta boa sorte persistir...

Dito isto, virou as palmas das mãos para cima, como alguém que verifica se está a chover. Komatsu aguardou as palavras que diria a seguir, mas elas não surgiram. Agora que a conversa terminara, o Bola-de-Bilhar estava com um ar exausto. Devagar, levantou-se da cadeira, dobrou-a e, com ela debaixo do braço, abandonou o quarto quadrado, sem sequer olhar para trás. A pesada porta fechou-se, ouvindo-se o estalido da fechadura quando foi trancada. Komatsu ficou sozinho.

– Mantiveram-me ainda mais quatro dias fechado naquele quarto. Já tínhamos discutido tudo o que era relevante. Disseram-me o que queriam e chegámos a um acordo. Por isso, não via qual a vantagem de me manterem ali preso. Aquele par nunca mais apareceu e o jovem encarregado de tratar de mim nunca pronunciou uma única palavra. Comi a mesma comida sensaborona, barbeei-me com a máquina elétrica e passei o tempo a olhar para o teto e para as paredes. Dormia quando apagavam as luzes, acordava quando as acendiam. E pensei bastante no que o Bola-de-Bilhar me dissera. O que verdadeiramente mais me impressionou foi o facto de dizerem que eu era um homem de sorte. O Bola-de-Bilhar tinha razão. Se lhes desse na veneta, estes tipos podiam fazer o que quer que fosse. Podiam ser tão impiedosos quanto desejassem. Enquanto estive ali trancado, acabei mesmo por acreditar nisto. Penso que devem ter-me mantido ali trancado aqueles quatro dias mais sabendo qual seria o resultado. Não falham uma: são muito meticulosos.

Komatsu pegou no copo e bebeu um pouco do seu uísque.

– Tornaram a drogar-me com clorofórmio, ou o que quer que fosse, e, quando acordei, já era dia e estava estendido num banco no Jingu Gaien23. Foi no final de setembro e as manhãs já estavam frias. Graças a isto, acabei por apanhar mesmo uma gripe, tive febre e fiquei realmente de cama durante os três dias seguintes. Penso que posso dar-me por feliz por o pior que me aconteceu ter sido isto.

A história de Komatsu parecia ter acabado.

– E disse isso tudo ao Professor Ebisuno? – perguntou Tengo.

– Claro. Após ter sido libertado e uns dias depois de a febre ter passado, fui a casa dele, na montanha. E contei-lhe mais ou menos o mesmo que acabei de te dizer.

– Qual foi a reação dele?

Komatsu bebeu a última gota da sua bebida e pediu uma outra. Insistiu com Tengo para que fizesse o mesmo, mas Tengo recusou.

– O Professor Ebisuno fez-me repetir a história até à exaustão e quis saber imensos pormenores. Respondi a tudo o que podia. Repetiria a história tantas vezes quantas ele quisesse. Quer dizer, depois da conversa com o Bola-de-Bilhar, fiquei ali trancado durante quatro dias, sozinho. Não tinha com quem falar e dispunha de tempo de sobra. Por isso, passei e repassei o que me tinha dito e consegui recordar-me de todos os pormenores com grande clareza. Como se fosse um gravador humano.

– Mas a parte acerca dos pais da Fuka-Eri, só a sabe pelo que ele lhe contou, certo?

– Certo, e não há forma de comprovar se estão a mentir. Não participaram os óbitos. No entanto, e tendo em conta o tom de voz do Bola-de-Bilhar, não me pareceu que estivesse a inventar. Como ele disse, os seguidores da Vanguarda consideram sagradas a vida e a morte das pessoas. Após ter terminado a minha história, o Professor Ebisuno permaneceu em silêncio durante um bom bocado, a pensar naquilo tudo. Ele pensa realmente nas coisas com muita profundidade e durante bastante tempo. Sem uma única palavra, levantou-se, abandonou a sala e esteve ausente ao longo de um bom bocado. Penso que estava a tentar aceitar a morte dos amigos, tentando encará-las como inevitáveis. Talvez há algum tempo que suspeitasse do caso e se tenha resignado à morte do casal. Mesmo assim, dizerem-lhe que os amigos morreram tem de fazer mossa.

Tengo recordou a sala de estar nua, espartana, da casa do professor, o silêncio frio, profundo, o trinado de um ou outro pássaro no exterior.

– Então – acabou por perguntar – decidiram dar um passo atrás e retirar-se do campo de minas?

O empregado do bar trouxe-lhe um segundo uísque soda, e Komatsu molhou os lábios.

– Nesse dia, não chegámos a conclusão nenhuma. O Professor Ebisuno disse que precisava de mais tempo para pensar. Mas só nos resta fazer o que nos disseram; que alternativa temos? Pus logo as coisas a andar. Na editora fiz tudo o que pude para os impedir de imprimirem mais exemplares d’A Crisálida de Ar, pelo que, para todos os efeitos, é uma obra já fora de circulação. Também não vai haver edição de bolso. O livro já vendeu muitos exemplares e rendeu montes de dinheiro à editora, não vamos ter prejuízo. Numa empresa tão grande como aquela em que trabalho, é preciso fazer reuniões para tomar decisões destas, o presidente tem de assinar tudo... mas, quando lhes acenei com a perspetiva de um escândalo ligado a um escritor-fantasma, os mandachuvas ficaram aterrorizados e acabaram por fazer o que eu queria. Segundo parece, vou passar a sofrer o tratamento do silêncio, mas não é nada a que não esteja habituado. Não faz mal.

– O Professor Ebisuno aceitou o que eles disseram quanto à morte dos pais da Fuka-Eri?

– Acho que sim – respondeu Komatsu. – Mas imagino que vá precisar de algum tempo para digerir tudo e habituar-se à ideia. Até onde me foi dado ver, aqueles tipos estavam a falar muito a sério. Pareciam desejar evitar mais problemas, mesmo que tenham de fazer algumas concessões. Foi por isso que recorreram ao rapto. Queriam ter a certeza absoluta de que eu recebia a mensagem. E não precisavam de me explicar como fizeram a cremação secreta dos corpos do senhor e da senhora Fukada. Mesmo sendo de difícil prova, a profanação de cadáveres é um crime sério. Ainda assim, falaram no caso. Puseram as cartas na mesa. É por isso que penso que o que o Bola-de-Bilhar me contou é verdade. Talvez não todos os pormenores, mas pelo menos o cenário global.

Tengo tentou resumir o que Komatsu lhe contara:

– O pai da Fuka-Eri era aquele que ouve a voz. Por outras palavras, um profeta. Mas quando a filha publicou A Crisálida de Ar e o livro se tornou um êxito de vendas, a voz parou de falar com ele e, em resultado disso, o pai sofreu uma morte natural.

– Ou melhor, pôs um fim natural à sua existência – concluiu Komatsu.

– Portanto, para os devotos da Vanguarda é crucial arranjar um novo profeta. Se a voz deixar de se ouvir, a religião perde toda a sua razão de existir. Por isso, não se podem dar ao luxo de perderem um segundo que seja connosco. Eis, em resumo, a história, certo?

– Acho que sim.

– A Crisálida de Ar contém informação de suma importância para eles. Quando foi publicada e lida por muita gente, a voz remeteu-se ao silêncio. Mas que informação crítica poderá o livro ter?

– Durante aqueles quatro últimos dias da minha prisão, fartei-me de pensar nisso – disse Komatsu. – Não é um romance muito extenso. Na história, o mundo é habitado por muitos elementos do Povo Pequeno. A protagonista, uma rapariga de dez anos, vive numa comunidade isolada. O Povo Pequeno surge durante a noite, às escondidas, e fabrica uma crisálida de ar. Dentro dessa crisálida está o alter ego da rapariga e estabelece-se uma relação entre mãe e filha: a mã e a nina. Nesse mundo há duas luas, uma grande e uma pequena, símbolos prováveis da mã e da nina. No romance, a protagonista, penso que assente na própria Fuka-Eri, rejeita tornar-se uma mã e foge da comunidade. A nina fica para trás. O romance não nos diz o que acontece depois à nina.

Durante longos instantes, Tengo ficou a olhar para o gelo a derreter-se dentro do seu copo.

– Pergunto-me se aquela que ouve a voz precisará da nina como intermediária – disse Tengo. – Terá sido através dela que ele escutou a voz pela primeira vez. Ou talvez seja através dela que a voz se traduza em linguagem compreensível. É preciso que estejam ambos presentes para que a mensagem assuma a forma correta. Citando as palavras da Fuka-Eri, há um Recetor e um Apreensor. Para que existam, há que criar uma crisálida de ar, porque a nina só pode nascer através dela. Para criar uma nina é preciso uma mã adequada.

– Na tua opinião, Tengo.

Tengo abanou a cabeça.

– Não lhe chamaria opinião. Enquanto a ouvia resumir o enredo, ocorreu-me que era assim que as coisas se passavam.

Ao reescrever o romance e mesmo depois, Tengo pensara bastante no significado da mã e da nina, mas nunca fora capaz de abarcar o quadro geral. Todavia agora, enquanto falava com Komatsu, a pouco e pouco, as peças foram-se encaixando nas posições certas. Se bem que ainda lhe restassem algumas perguntas: porque é que uma crisálida de ar se materializara por cima da cama do pai, na clínica? E porque é que dentro estava uma Aomame menina?

– É um sistema fascinante – comentou Komatsu. – Mas não será um problema para a mã separar-se da nina?

– Sem a nina é difícil ver a mã enquanto ser completo. Como aprendemos com a Fuka-Eri, é difícil determinar qual o significado perfeito, mas há qualquer coisa que falta: é como uma pessoa que perdeu a sombra. Não faço ideia do que seja a nina sem a mã. Provavelmente serão as duas incompletas, porque, em última análise, a nina não passa de um alter ego. Mas, no caso da Fuka-Eri, mesmo sem ter a mã a seu lado, a nina pode ter sido capaz de desempenhar o seu papel enquanto uma espécie de sacerdotisa.

Os lábios de Komatsu estreitaram-se numa linha, e assim ficaram durante algum tempo; depois, reviraram-se ligeiramente.

– Diz-me, Tengo, estás convencido de que tudo o que está relatado n’A Crisálida de Ar aconteceu realmente?

– Não é isso que estou a dizer; limito-me a tecer uma hipótese. Para podermos avançar, parto do pressuposto de que é verdade.

– Muito bem – comentou Komatsu. – Portanto, mesmo que o alter ego da Fuka-Eri se afaste do seu corpo, ela ainda pode funcionar enquanto sacerdotisa.

– O que explica por que razão os membros da Vanguarda não estão a forçá-la a regressar, mesmo sabendo por onde anda. Porque, no caso dela, mesmo que a mã não esteja por perto, a nina consegue cumprir a sua função. Talvez a ligação entre as duas seja extremamente forte, mesmo que distantes uma da outra.

– Entendo...

Tengo prosseguiu:

– Imagino que tenham umas quantas ninas. O Povo Pequeno deve aproveitar as oportunidades para criar muitas crisálidas de ar. Ficariam ansiosos se se vissem reduzidos a um só Apreensor. Também é possível que o número de ninas que consegue funcionar sem problemas seja limitado. Talvez exista apenas uma única e poderosa nina principal e várias ninas auxiliares, mais fracas, que funcionem em grupo.

– Portanto, a nina que a Fuka-Eri deixou é a central, a que funciona corretamente?

– Parece ser uma possibilidade. A Fuka-Eri foi sempre o centro de tudo o que aconteceu. Como se fosse o olho de um furacão.

Komatsu estreitou os olhos e uniu as mãos por cima da mesa. Quando queria, era perfeitamente capaz de se concentrar num ponto focal. Era capaz de raciocinar a uma velocidade vertiginosa.

– Sabes, Tengo-kun, estava a pensar numa coisa. Estamos apenas no campo das hipóteses, mas não te parece que a Fuka-Eri que conhecemos é, na realidade, a nina, sendo, nesse caso, a que ficou para trás, com a Vanguarda, a mã?

Tengo mostrou-se desconcertado. A ideia nunca lhe tinha ocorrido. Para ele, Fuka-Eri era uma pessoa real, de carne e osso. Contudo, agora que pensava naquilo, não era assim tão descabido. Não tenho o período. Não vou ficar grávida. Fuka-Eri proclamara isto após terem tido relações sexuais, naquela noite. Se não passasse de um alter ego, a incapacidade de engravidar fazia todo o sentido. Um alter ego não pode reproduzir-se – só a mã pode fazê-lo. Mesmo assim, Tengo estava com dificuldades em aceitar que tivera relações com um alter ego e não com a verdadeira Fuka-Eri.

– A Fuka-Eri tem uma personalidade própria e os seus padrões de comportamento. Duvido que um alter ego tivesse outro tanto.

– Precisamente – concordou Komatsu. – Que outra coisa não tenha, a Fuka-Eri é senhora de uma personalidade própria e distinta, bem como de padrões de comportamento singulares. Nesse ponto, terei de concordar contigo.

Mesmo assim, Fuka-Eri guardava um segredo. Dentro daquela formosa rapariga estava gravado um código importante, um código que Tengo se sentia impelido a decifrar. Qual seria a pessoa real e qual o alter ego? Ou seria um erro insistir naquela noção de a classificar como «real» e «alter ego»? Talvez que, dependendo das situações, Fuka-Eri fosse capaz de manipular tanto o seu ser real como o seu alter ego?

– Há várias coisas que ainda não compreendo – disse Komatsu, descansando as mãos sobre a mesa. Contemplou-as. Para um homem de meia-idade, tinha uns dedos longos e esguios.

– A voz parou de falar, a água no poço secou, o profeta morreu. Depois disto tudo, o que vai acontecer à nina? Não vai segui-lo na morte, como fazem as viúvas na Índia.

– Uma vez que não haja um Recetor, deixa de existir necessidade de um Apreensor.

– Se levarmos a hipótese um passo mais à frente – contrapôs Komatsu. – Quando escreveu A Crisálida de Ar, a Fuka-Eri saberia quais iam ser as consequências? Aquele homem da Vanguarda disse-me que não foi intencional. Pelo menos, não fora intenção dela. Mas como é que ele sabia?

– Não faço ideia – respondeu Tengo. – Porém, não estou a ver a Fuka-Eri a levar o pai intencionalmente à morte. Penso que o pai enfrentava a morte por outras razões. Talvez tenha sido por essas razões que a Fuka-Eri se veio embora. Ou talvez tivesse esperança de que o pai se libertasse da voz. Estou apenas a especular, claro, e não tenho nada que apoie o que digo.

Komatsu meditou durante um bom bocado no que fora dito, enquanto se iam formando rugas dos lados do seu nariz. Por fim, suspirou e olhou à sua volta.

– Que mundo estranho! A cada dia que passa, mais difícil se torna distinguir o hipotético do real. Diz-me, Tengo, tu que és escritor, qual é a tua definição de realidade?

– Quando se espeta alguém, sai sangue vermelho... é o mundo real – retorquiu Tengo.

– Assim sendo, isto aqui, sem a menor dúvida, é o mundo real – afirmou Komatsu.

Esfregou a zona interior do antebraço. Veias pálidas surgiram na superfície da pele. Não eram veias com aspeto muito saudável – veias danificadas por anos consecutivos de bebida, tabaco, vida desregrada e muitas intrigas literárias. Komatsu acabou a bebida e fez o gelo chocalhar dentro do copo de vidro.

– Consegues desenvolver a tua hipótese? Está a ficar interessante.

– Andam à procura de um sucessor para aquele que ouve a voz – prosseguiu Tengo. – Mas também têm de descobrir uma nova nina, perfeitamente funcional. Um novo Recetor precisará de um novo Apreensor.

– Por outras palavras, também precisam de encontrar uma mã. Para o conseguir, têm de fazer uma nova crisálida de ar. Parece-me uma operação em grande escala.

– Razão pela qual levam este assunto terrivelmente a sério.

– Claro.

– Mas não podem estar a fazer isto às cegas – afirmou Tengo. – De certeza que têm alguém em mente.

Komatsu assentiu.

– Também fiquei com essa impressão. É por isso que quiseram ver-se livres de nós, tão depressa quanto possível. Para que não incomodemos mais. Penso que somos um empecilho no caminho deles.

– O que quer dizer com isso? Porque será que os incomodamos tanto?

Komatsu abanou a cabeça. Ele também não sabia. Tengo continuou:

– Que mensagem lhes terá transmitido a voz? Qual será a ligação entre a voz e o Povo Pequeno?

Em silêncio, Komatsu abanou a cabeça outra vez. Também isto estava para além do que algum dos dois era capaz de imaginar.

– Viste o filme 2001: Odisseia no Espaço?

– Vi – respondeu Tengo.

– Nós somos os macacos do filme – disse Komatsu. – Aqueles de pelo negro, a guinchar coisas sem sentido enquanto dão voltas em torno do monólito.

Um par de clientes entrou no bar, sentou-se ao balcão como se fossem clientes habituais e pediram cocktails.

– Uma coisa podemos dizer – começou Komatsu num tom de quem deseja concluir –, a tua hipótese é convincente e faz sentido. Gosto sempre de ter estas conversas contigo. Mas, em todo o caso, vamos ter de abandonar este assustador campo minado e, provavelmente, nunca mais pomos os olhos na Fuka-Eri e no Professor Ebisuno. A Crisálida de Ar não passa de uma obra fantasiosa e inofensiva sem a menor informação concreta, e o que quer que seja a tal voz ou que mensagem transmite são coisas que não nos dizem respeito. Temos de deixar as coisas como estão.

– Abandonamos o barco e retomamos a nossa vida em terra.

Komatsu assentiu com a cabeça.

– Isso mesmo. Eu vou regressar ao trabalho na editora, todos os dias, e receber manuscritos, que não adiantam nem atrasam, para os publicar num jornal literário. Tu vais ter de regressar à tua escola e ensinar matemática a jovens promissores, e, entre as aulas, vais escrever romances. Vamos os dois retomar as nossas vidas pacíficas e rotineiras. Sem rápidos nem cascatas. Vamos envelhecer tranquilamente. Alguma coisa contra?

– Não temos escolha, não é?

Com a ponta dos dedos, Komatsu alisou as rugas de ambos os lados do nariz.

– É. Não temos escolha. Não quero voltar a ser sequestrado, isso te garanto. Ser trancado naquele quarto uma vez é mais do que suficiente. À segunda, posso muito bem não tornar a ver a luz do dia. O meu coração dá um salto só à ideia de poder voltar a encarar aquele par. São capazes de nos fulminar só com o olhar.

Komatsu virou-se na direção do balcão e, com o copo, fez sinal para que lhe servissem uma terceira bebida. Pôs outro cigarro na boca.

– Mas porque é que esperou até agora para me contar isso tudo? O rapto já foi há bastante tempo, já passaram mais de dois meses. Devia ter-me contado isso mais cedo.

– Não sei – respondeu Komatsu, inclinando ligeiramente a cabeça. – Tens razão. Andava a pensar que devia contar-te, mas estava sempre a adiar. Não sei bem porquê. Talvez tivesse a consciência pesada.

– Consciência pesada? – exclamou Tengo, surpreendido. Nunca esperara ouvir aquelas palavras da boca de Komatsu.

– Até mesmo eu posso ter um peso na consciência – retorquiu Komatsu.

– Porquê?

Komatsu não respondeu. Semicerrou os olhos e fez rolar o cigarro por acender entre os lábios.

– A Fuka-Eri já sabe que os pais morreram? – perguntou Tengo.

– Provavelmente. Acho que sim. Calculo que, a dado momento, o Professor Ebisuno lho tenha dito.

Tengo assentiu com a cabeça. Há muito tempo que Fuka-Eri devia saber isto. Sabia por instinto que sim. Ele fora o único a quem ninguém dissera nada.

– Então, abandonamos o barco e retomamos a nossa vida em terra – repetiu Tengo.

– Isso mesmo. Vamos abandonar o terreno minado.

– Contudo, mesmo que o queiramos fazer, acha que nos será fácil regressar à vida que tínhamos antes?

– Não temos outro remédio; há que tentar – replicou Komatsu. Riscou um fósforo e acendeu o cigarro. – O que é que te preocupa, especificamente?

– Há muitas coisas à nossa volta que estão a ordenar-se em padrões estranhos. Há coisas que se transformaram, e pode não ser fácil que regressem ao que eram.

– Mesmo estando a nossa vida em risco?

Tengo abanou a cabeça num gesto ambíguo. Já há algum tempo que sentia que fora apanhado numa forte corrente, que nunca abrandava. E essa corrente poderosa estava a arrastá-lo para um destino desconhecido. Mas não sabia como explicar isto a Komatsu.

Tengo não revelou a Komatsu que o romance que estava a escrever retomava o mundo de A Crisálida de Ar. Suspeitava que o editor não ficaria muito satisfeito com a ideia. Com toda a certeza, os da Vanguarda ainda achariam menos graça. Se não tivesse cuidado, podia entrar num outro campo minado e implicar as pessoas à sua volta. Contudo, uma narrativa assume o seu próprio caminho e prossegue quase automaticamente, tem vida própria. Quer Tengo gostasse ou não, fazia parte desse mundo: para ele, deixara de ser um mundo fictício. Era o mundo real, onde o sangue jorra quando se faz um corte na pele com uma faca. No céu desse mundo havia duas luas, uma grande e uma pequena, ao lado uma da outra.

23 Famoso parque de Tóquio. (N. das T.)


19

USHIKAWA

Coisas que posso fazer e os outros não

Era quinta-feira e o dia amanhecera tranquilo, sem vento. Como era seu hábito, Ushikawa levantou-se antes das seis e lavou a cara com água fria. Escovou os dentes enquanto escutava as notícias da NHK na rádio e barbeou-se com uma máquina elétrica. Ferveu água numa panela, fez ramen24 instantânea e, após terminar de comer, bebeu uma chávena de café de saquetas. Enrolou o saco-cama, guardou-o no armário e sentou-se à janela, diante da máquina fotográfica. A oriente, o céu começava a clarear. Parecia que vinha aí um dia bonito e quente.

Tinha gravados na memória os rostos das pessoas que saíam de manhã para irem trabalhar. Não precisava de tirar mais fotografias. Entre as sete e as oito e meia saíam apressadas do prédio, a caminho da estação. Os suspeitos do costume. Ushikawa escutou as vozes animadas de um grupo de alunos da primária dirigindo-se para a escola. As vozes das crianças trouxeram-lhe à lembrança o tempo em que as filhas eram pequenas. Elas tinham gostado imenso de andar na escola primária: aprendiam piano e ballet e estavam integrados num grande grupo de amigos... Até ao fim, Ushikawa tivera grandes dificuldades em aceitar que era pai daquelas raparigas normais e felizes. Como era possível que uma pessoa como ele fosse pai de crianças como elas?

Após o fim da hora de ponta da manhã, quase ninguém entrou ou saiu do prédio. As vozes animadas das crianças tinham desaparecido. Ushikawa pôs de lado o controlo remoto do obturador, encostou-se à parede e fumou um cigarro enquanto, por entre a abertura das cortinas, mantinha um olho na porta da entrada. Como de costume, pouco passava das dez quando o carteiro chegou montado na sua motocicleta vermelha e, com destreza, distribuiu o correio pelas várias caixas. Tanto quanto Ushikawa conseguia ver, mais de metade consistia em publicidade, que os destinatários deitariam para o lixo sem abrir. À medida que o Sol se aproximava do zénite, a temperatura subiu e a maior parte das pessoas que passavam na rua tirou o casaco.

Já passava das onze quando Fuka-Eri surgiu à entrada do edifício. Vestia a mesma camisola de gola alta preta, um casaco curto cinzento, calças de ganga, ténis e óculos escuros. A tiracolo trazia um grande saco verde. O saco, volumoso e deformado, estava certamente cheio de todo o tipo de coisas. Ushikawa abandonou a sua posição junto à parede, aproximou-se da máquina montada no tripé e espreitou pelo visor.

A rapariga ia sair dali, percebeu. Tinha enfiado as suas coisas todas dentro daquele saco e estava de partida para outro sítio qualquer. Nunca mais regressaria àquele apartamento. Sentia-o. Talvez tenha decidido sair daqui, pensou, porque reparou que eu estou a vigiar a casa. O pensamento fez disparar o seu coração.

Assim que saiu, a rapariga deteve-se e olhou para o céu, como já fizera antes, à procura de qualquer coisa por entre o emaranhado de cabos elétricos e transformadores. O sol faiscou quando bateu nas lentes dos seus óculos. Por causa dos óculos, Ushikawa não foi capaz de perceber se tinha ou não encontrado o que queria. Ela deve ter ficado ali, imóvel, durante uns bons trinta segundos, a olhar para o céu. A seguir, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia, virou a cabeça e olhou diretamente para a janela atrás da qual Ushikawa se encontrava escondido. Tirou os óculos e enfiou-os no bolso do casaco. Franziu a testa e focou o olhar na teleobjetiva camuflada. Ela sabe, pensou Ushikawa de novo. A rapariga sabe que me escondo aqui, que está a ser observada em segredo. E ela olhava para ele do outro lado, observando Ushikawa através da lente e da ocular. Como água que sobe um cano curvo. Os braços de Ushikawa arrepiaram-se todos.

De vez em quando, Fuka-Eri piscava os olhos. Como criaturas independentes, vivas e silenciosas, as pálpebras fechavam-se e abriam de uma forma estudada. Mais nada se movia. Ficou ali, de pé, qual ave altiva, com o pescoço torcido, a olhar Ushikawa olhos nos olhos. Ele não conseguia desviar os olhos dela. Era como se o mundo se tivesse imobilizado. Não havia vento e os sons tinham deixado de vibrar no ar.

Por fim, Fuka-Eri desviou o olhar e ergueu-o para o céu, como fizera uns instantes antes. Desta vez, contudo, não olhou mais do que uns poucos segundos. A sua expressão, como de costume, não se alterou. Tirou os óculos escuros do bolso, pô-los de novo e dirigiu-se para a rua. Caminhava num passo ágil e decidido.

Devia sair e ir atrás dela, pensou Ushikawa. O Tengo ainda não regressou e tenho tempo de descobrir para onde é que ela vai. Não perco nada em tentar. Mas, por qualquer razão desconhecida, Ushikawa não foi capaz de se levantar do chão. Tinha o corpo entorpecido. O olhar penetrante que ela lhe dirigira através da ocular roubara-lhe a força de que necessitava para entrar em ação.

Muito bem, disse com os seus botões, ali sentado no chão. A pessoa que tenho de encontrar é a Aomame. A Eriko Fukada é uma rapariga fascinante, mas não é a minha prioridade, de momento. Não passa de uma atriz secundária. Se se vai embora, porque não deixá-la ir?

Uma vez na rua principal, Fuka-Eri apressou-se a caminho da estação. Não olhou para trás. Por entre a abertura das cortinas desbotadas pelo sol, Ushikawa observou-a ao afastar-se. Quando o saco verde, que baloiçava de um lado para o outro no ombro da rapariga, ficou fora de vista, ele afastou-se da máquina, quase rastejando pelo chão, e encostou-se de novo à parede, à espera de que as suas forças regressassem. Tirou um Seven Stars, acendeu-o e inalou o fumo profundamente. O cigarro não lhe soube a nada.

A sua força não regressou. Os braços e as pernas ainda se mantinham entorpecidos. E, de súbito, apercebeu-se de um estranho espaço que se criara dentro de si, uma espécie de nada absoluto. Esse espaço significava uma simples ausência, a falta de algo; talvez um vazio. Ushikawa ficou ali sentado nesse vazio desconhecido, incapaz de se levantar. Sentiu uma dor surda no peito. Não era bem uma dor, era mais a diferença de pressão atmosférica no ponto onde o material e o imaterial se tocavam.

Ali ficou durante bastante tempo, no fundo daquele vazio, encostado à parede, a fumar cigarros sem sabor. Quando aquela rapariga se foi, deixou ficar este vazio. Não, talvez não, pensou Ushikawa. Talvez se tenha limitado a mostrar-me algo que já cá estava dentro de mim.

Ushikawa sabia que Fuka-Eri o tinha abanado, literalmente, até ao tutano. O seu olhar firme e imóvel abalara-o não só fisicamente, mas de uma forma profunda, até ao mais fundo de si mesmo, como alguém que se apaixona perdidamente. Nunca em toda a sua vida se tinha sentido assim.

Não, não pode ser, pensou Ushikawa. Por que razão me havia de apaixonar por aquela rapariga? Devemos ser o par mais incompatível que alguma vez existiu. Não precisava de se ver ao espelho para o saber. Mas o caso não se prendia só com o aspeto exterior. Em todos os aspetos possíveis e imagináveis, concluiu, ninguém está mais longe dela do que eu. Em termos sexuais, não se sentia atraído por ela. No que tocava ao sexo, Ushikawa precisava de pouco: um par de vezes por mês, contratava uma prostituta sua conhecida, e era quanto lhe bastava. Telefonava-lhe, levava-a para um quarto de hotel e tinha sexo com ela. Era como ir ao barbeiro.

Tem de ser qualquer coisa mais a um nível espiritual, concluiu Ushikawa. Era difícil de aceitar, mas Ushikawa e aquela encantadora rapariga – enquanto olhavam um para outro por intermédio da teleobjetiva camuflada – tinham alcançado uma espécie de entendimento que emanava dos recessos mais profundos dos seus seres. Num brevíssimo lapso de tempo, tinham posto a nu as suas almas. E, a seguir, ela partira, abandonando Ushikawa, deixando-o sozinho naquele vazio.

A rapariga sabia que eu estava a espiá-la por esta teleobjetiva, pensou, e também deve ter notado que a segui até ao supermercado perto da estação. Nunca olhou para trás, nem uma vez sequer, mas com toda a certeza que sabia que eu estava lá. Todavia, não vira qualquer reprovação no olhar dela. Ushikawa sentia que, de alguma forma, num ponto distante e profundo, ela o compreendera.

A rapariga aparecera e fora-se. Chegámos, vindos de direções diferentes, os nossos caminhos cruzaram-se por acaso, os nossos olhos encontraram-se durante um breve instante, e prosseguimos, cada um no nosso rumo. Provavelmente, nunca mais verei a Eriko Fukada. Se tornasse a vê-la, que mais poderia pedir-lhe, além do que acabou de acontecer? Neste preciso momento, estamos em extremos opostos do mundo. Não há palavras capazes de cobrir essa distância.

Encostado à parede, Ushikawa olhava pelo intervalo entre as cortinas, observando as idas e vindas das pessoas. Talvez Fuka-Eri voltasse para trás. Talvez se lembrasse de algo importante que deixara ficar no apartamento. Mas não voltou. Tinha decidido mudar-se para outro local qualquer e nunca regressaria.

A tarde passou e Ushikawa manteve-se preso de uma sensação de profunda impotência. Uma sensação que carecia de forma e de peso. O sangue circulava-lhe lentamente nas veias, arrastando-se. A sua visão parecia enevoada por uma leve bruma e as articulações dos seus braços e das pernas estavam dormentes e estalavam. Quando fechava os olhos, sentia nas costelas a dor que o olhar dela ali prendera, a dor que crescia e minguava em vagas, como ondas pequenas numa praia. Aumentava e diminuía. Por vezes, a dor era tão intensa, que lhe arrancava uma careta de dor. Ao mesmo tempo, contudo, Ushikawa tomou consciência de que lhe trazia uma sensação de calor, desconhecida até àquele momento.

A sua mulher, as duas filhas e a casinha com relvado em Chuorinkan nunca lhe haviam proporcionado tal calor. Houvera sempre dentro de si, no seu coração, uma espécie de torrão de terra congelada, que nunca chegava a descongelar – um núcleo duro, muito frio, com que sempre vivera. Nunca o sentira como frio. Para ele, aquela era a temperatura normal. Mesmo assim, o olhar de Fuka-Eri tinha, ainda que por um breve instante, descongelado esse núcleo gelado. E então a dor surgira. Até esse momento, o frio do coração devia ter anestesiado essa sensação dolorosa. Era, por assim dizer, um mecanismo de defesa. Agora aceitava a dor e, em certo sentido, até a saudava. O calor que sentia fazia frente à dor. Vieram a par, e, a menos que aceitasse a dor, não sentiria o calor. Era uma espécie de troca.

Numa pequena mancha de sol vespertino, Ushikawa sentiu em simultâneo a dor e o calor. Sossegado, sem mover um músculo. Estava um dia de inverno calmo, pacífico. Os transeuntes cruzavam-se sob a delicada luz do Sol, mas este avançava para oeste, sem se deter, escondendo-se por trás da sombra dos edifícios, e a mancha de luz acabou por desaparecer. O calor da tarde desaparecera e o frio da noite começava a apoderar-se dele.

Ushikawa soltou um profundo suspiro e, relutante, descolou-se da parede. O seu corpo ainda retinha um resto de entorpecimento, mas não o suficiente que o impedisse de se levantar e deslocar-se dentro da sala. Por fim, pôs-se de pé, alongou os braços e as pernas e rodou o pescoço, curto e grosso, para desfazer as cãibras. Cerrou os punhos, estendeu os dedos, uma vez e outra. Depois, estendeu-se na esteira e fez os alongamentos do costume. Todas as articulações estalaram e, lentamente, os músculos recuperaram a sua flexibilidade habitual.

Era a hora a que as pessoas regressavam a casa, vindas do trabalho e da escola. Tenho de retomar a vigilância, disse com os seus botões. Não se trata de uma questão de querer ou não, ou mesmo de ser a coisa certa. Quando começo uma coisa, tenho de lhe ver o fim. O meu destino depende disso. Não posso ficar para sempre no fundo deste buraco, entregue a pensamentos que não levam a lado nenhum.

Ushikawa tornou a instalar-se atrás da máquina. Entretanto, a noite caíra e a luz da entrada estava acesa. Devia ter um temporizador, pensou. Quais pássaros sem nome que regressam a ninhos miseráveis, as pessoas iam passando pela porta de entrada. Tengo Kawana não se contava entre elas, mas Ushikawa calculou que não demorasse muito mais tempo a voltar. Não iria ficar eternamente a tratar do pai enfermo. De certeza que regressaria a Tóquio antes do final da semana, para poder regressar ao trabalho. Dentro de poucos dias – ou talvez mesmo hoje ou no dia seguinte.

Posso ser um inseto, triste e imundo, pensou Ushikawa, um verme daqueles que vivem por baixo das rochas, na terra húmida. Pois, que seja: sou o primeiro a admiti-lo. Mas sou um verme infatigável, talentoso, paciente e tenaz. Não desisto facilmente. Uma vez que deite a mão a uma pista, vou atrás dela até ao fim, custe o que custar. Trepo ao muro mais alto que imaginar se possa. Tenho de recuperar aquele núcleo gelado que havia dentro de mim. Neste momento, é exatamente disso que preciso.

Ushikawa esfregou as mãos uma na outra, à frente da máquina. E verificou que os seus dez dedos se moviam perfeitamente.

Há muitas coisas que as pessoas vulgares podem fazer e eu não, pensou, isso é certo. Coisas como jogar ténis, ou esquiar, por exemplo. Trabalhar numa empresa, ter uma família feliz. Por outro lado, há uma boa meia dúzia de coisas que eu faço e as outras pessoas não. E essas coisas, faço-as muito, muito bem. Não estou à espera de aplausos ou de que me cubram de ouro, mas tenho de mostrar ao mundo aquilo de que sou capaz.

Às nove e meia, Ushikawa deu a sua vigilância por terminada. Aqueceu uma lata de sopa de galinha num fogão portátil e, com cuidado, comeu-a com uma colher. Comeu ainda dois crepes frios e, a seguir, uma maçã, com casca e tudo. Depois, lavou os dentes, estendeu o saco-cama, despiu-se até ficar só em roupa interior e enfiou-se lá dentro. Puxou o fecho do saco até ao queixo e enrolou-se como uma larva.

Assim terminou mais um dia na vida de Ushikawa. Não fora um dia muito produtivo. Só conseguira ver Fuka-Eri sair do prédio com todos os seus pertences. Não sabia para onde se dirigira. Algures, mas onde? Dentro do saco-cama, abanou a cabeça. Fosse para onde fosse, isso não lhe dizia respeito. Ao fim de um bocado, o seu corpo gelado aqueceu, a sua mente apagou-se, e ele caiu num sono profundo. Pouco depois, o pequeno bloco gelado assentou firmemente na sua alma.

No dia seguinte também não aconteceu grande coisa. Dois dias depois, chegou o domingo, outro dia quente e tranquilo. A maioria das pessoas deixou-se ficar a dormir durante a maior parte da manhã. Todavia, Ushikawa sentou-se perto da janela, a ouvir rádio baixinho – notícias, informações de trânsito, boletim meteorológico.

Pouco antes das dez, um grande corvo aproximou-se a voar e pousou num dos degraus vazios à frente do prédio. O corvo olhou em volta meticulosamente e abanou a cabeça várias vezes, como se estivesse a dizer que sim. O seu grande e grosso bico subiu e baixou, e as penas negras e lustrosas brilharam ao sol. O carteiro parou a motocicleta vermelha e, relutante, o corvo estendeu as asas e voou para longe. Ao mesmo tempo, crocitou uma vez. Depois de o carteiro ter distribuído todo o correio pelas várias caixas e saído, um bando de andorinhas esvoaçou por ali. Bicaram perto da entrada, mas não encontraram ali nada que valesse a pena, e voaram para longe. A seguir, foi a vez de um gato listrado. Tinha uma coleira antipulgas e, provavelmente, pertencia a um dos vizinhos. Ushikawa nunca antes vira aquele gato. O bicho urinou no canteiro de flores secas, farejou o resultado – aparentemente algo não lhe agradou – e os seus bigodes estremeceram, como se tivesse ficado aborrecido. De cauda espetada no ar, desapareceu por trás do prédio.

Ao longo da manhã, vários residentes abandonaram o edifício. Pela forma como iam vestidos, era possível perceber que se preparavam para se divertir em algum lado, ou então iam fazer compras ali perto – uma coisa ou outra. Ushikawa já conhecia as caras de quase todos. Mas não tinha o menor interesse nas suas personalidades ou vidas privadas. Nem nunca tentara imaginá-las.

A vida de cada um têm importância para o próprio, é certo, pensou. É algo inestimável, percebo. Mas a mim não me interessa nada, seja o que for. Para mim, vocês não passam de finos bonecos de papel que atravessam o palco. Só uma coisa peço: fiquem como estão, meros bonecos de papel, e não interfiram no meu trabalho.

– Não é verdade, senhora Pera? – Atribuíra esta alcunha à mulher que ia a sair pela porta naquele momento, uma vez que tinha o corpo em forma de pera e um grande traseiro. – A senhora não passa de uma figura recortada do papel. Não é real. Está a perceber? Se bem que a senhora seja um tanto carnuda para uma boneca de papel.

Enquanto pensava nisto, contudo, a cena que se desenrolava à frente dos seus olhos começou a perder sentido, do género: não interessa que seja assim ou não. Talvez a cena que se desenrolava à sua frente nem sequer existisse. Talvez fosse ele o iludido por essas figuras recortadas de seres humanos que, na realidade, não existiam. Ushikawa começou a sentir-se desconfortável. Havia vários dias que estava fechado numa casa vazia, sem móveis, a espiar pessoas, e os seus nervos ressentiam-se. Era realmente de enervar qualquer pessoa. Decidiu verbalizar os seus pensamentos, para sacudir esse desconforto.

– B’dia, senhor Orelhudo – disse, espreitando pela ocular e dirigindo-se a um idoso alto e magro. As pontas das orelhas do homem espreitavam por entre o cabelo branco, como chifres. – Vai dar um passeio? Andar faz bem. Está um dia lindo, passe bem. Gostava imenso de ir dar um passeio para esticar as pernas, mas estou aqui amarrado a vigiar a maldita entrada deste prédio, dia após dia.

O idoso envergava um casaco de malha e umas calças de lã, e a sua postura era excelente. Ficaria perfeito com um fiel cão branco, que levaria a dar um passeio, mas no edifício não eram permitidos animais. Quando o homem idoso desapareceu, Ushikawa experimentou uma súbita sensação de impotência. Esta vigilância vai revelar-se uma absoluta perda de tempo, decidiu. A minha intuição é escusada e as horas que passei nesta sala vazia não vão levar-me a lado nenhum. Só consegui apanhar uma irritação e ficar com os nervos tão arrasados como a careca de uma estátua Jizo25, em que as crianças tocam ao passar. Depois do meio-dia, Ushikawa comeu uma maçã, queijo e bolachas de água e sal e uma bola de arroz, enrolada em nori e recheada com picles de ameixa. Depois, encostou-se à parede e deixou-se dormir. Foi uma sesta curta e sem sonhos, porém, quando acordou, não foi capaz de se lembrar de onde estava. A sua memória era um cubo perfeito, uma caixa absolutamente vazia. A única coisa que existia dentro da caixa era o espaço vazio. Ushikawa percorreu esse espaço com o olhar. Descobriu que não era um simples vácuo, mas uma sala sombria – vazia, fria, sem uma peça sequer de mobiliário. Não reconheceu o local. A seu lado estava o cascabulho de uma maçã, pousado num jornal dobrado. Ushikawa ficou aturdido. O que estou eu a fazer num local tão estranho?

Por fim, recordou-se: estava a vigiar a porta do edifício onde Tengo vivia. Isso mesmo, pensou. Daí ter esta Minolta reflex com uma teleobjetiva. Lembrou-se do idoso de cabelo branco e orelhas compridas na rua, a passear. Como pássaros que voam para o ninho ao final do dia, as suas recordações regressaram lentamente à caixa vazia. E surgiram dois factos concretos:

1) Eriko Fukada tinha-se ido embora.

2) Tengo Kawana ainda não regressara.

Não havia ninguém no apartamento de Tengo Kawana, no terceiro andar. As cortinas estavam corridas e o silêncio envolvia todo o espaço deserto. Para além do compressor do frigorífico, que se ligava e desligava de vez em quando, nada perturbava o silêncio. Ushikawa deixou a sua imaginação deambular pela cena. Imaginar uma sala deserta era como imaginar o mundo depois da morte. De súbito, recordou-se do estranho cobrador da NHK e das suas pancadas obsessivas na porta. Apesar de ter ficado atento, não vira o misterioso homem sair do edifício. Será que era um dos moradores do prédio? Ou seria alguém que vive aqui e que fingiu ser um cobrador para incomodar os vizinhos? Se foi o caso, que motivo poderia ter? Era uma teoria bastante retorcida, mas de que outra maneira se poderia explicar aquela extravagância? Ushikawa não fazia a mais pequena ideia.

Tengo Kawana apareceu à porta de entrada do apartamento naquela mesma tarde, pouco antes das quatro. Antes do pôr do Sol de sábado. Vestia um velho anoraque, com a gola levantada, um boné de basebol azul-marinho e trazia um saco de viagem ao ombro. Não se deteve à porta, não olhou em volta, e entrou logo.

A mente de Ushikawa ainda estava um tanto entorpecida, mas era impossível não reparar naquela figura corpulenta.

– Bem-vindo a casa, senhor Kawana – murmurou Ushikawa, em voz alta, ao mesmo tempo que tirava três fotografias seguidas com o disparador automático. – Como tem passado o seu pai? O senhor deve sentir-se exausto. Por favor, vá descansar. É bom regressar a casa, não é?, mesmo que seja neste sítio miserável. A propósito, enquanto o senhor esteve fora, a Eriko Fukada mudou-se e levou com ela tudo o que lhe pertencia.

A sua voz não chegou aos ouvidos de Tengo. Estava apenas a murmurar para si próprio. Ushikawa deitou uma olhadela ao relógio e escreveu um apontamento no seu bloco de notas: «3h56 da tarde, Tengo Kawana regressou de viagem.»

Ao mesmo tempo que Tengo surgiu na porta de entrada, algures uma outra porta se escancarou, e Ushikawa sentiu que a realidade regressava. Como o ar que percorre um aspirador, os seus nervos ficaram instantaneamente alerta e o corpo encheu-se de uma vitalidade nova. Tornava a ser uma peça útil do mundo exterior. Clique! Era o grato ruído que as coisas faziam quando regressavam ao normal. A circulação sanguínea dele acelerou e o corpo foi inundado pela quantidade certa de adrenalina. Ótimo, pensou, é assim que deve ser. É assim que me devo sentir, é assim que o mundo deve estar.

* * *

Já passava das sete da tarde quando Tengo surgiu de novo à porta. Depois do pôr do Sol, o vento aumentara e a temperatura descera. Tengo envergava uma camisola por baixo do anoraque e vestia calças de ganga desbotadas. Ao sair, deteve-se e olhou à sua volta, mas não viu nada. Olhou na direção do esconderijo de Ushikawa, mas não descobriu quem o observava. Ele não é a Eriko Fukada, é diferente, pensou Ushikawa. Ela é especial. Ela consegue ver o que os outros não veem. Mas tu, Tengo, para o melhor e para o pior, és uma pessoa vulgar. Não consegues ver-me aqui sentado.

Constatando que, no exterior, nada se tinha alterado, Tengo puxou o fecho do casaco até ao queixo, enterrou as mãos nos bolsos e caminhou na direção da rua principal. À pressa, Ushikawa enfiou o gorro de malha, enrolou o cachecol ao pescoço, calçou os sapatos e saiu no encalço de Tengo.

Como já pensava segui-lo quando surgisse, não demorou muito tempo a arranjar-se. Desde logo, a ação era arriscada: Tengo reconhecê-lo-ia no instante em que o visse. Mas a noite caíra e, se guardasse uma distância suficiente, não seria descoberto facilmente.

Tengo caminhava devagar, virando-se para trás de vez em quando, a fim de verificar se era seguido. Ushikawa foi cuidadoso e Tengo não o viu. Tanto quanto o detetive seria capaz de dizer, o corpulento escritor parecia preocupado com qualquer coisa. Talvez estivesse a pensar na partida de Fuka-Eri. Segundo parecia, dirigia-se para a estação. Iria apanhar um comboio? Se o fizesse, tornar-se-ia difícil segui-lo. A estação era bem iluminada e, num sábado à noite, não havia assim tantos passageiros. Ushikawa chamaria demasiado a atenção. Nesse caso, seria mais inteligente desistir.

Mas Tengo não se dirigia para a estação. Caminhou durante um bocado, virou para uma rua quase deserta e parou à frente de um bar chamado Mugiatama. Um poiso de gente jovem, pelos vistos. Tengo deitou uma olhadela ao relógio para ver as horas, ficou ali parado durante uns segundos a pensar e entrou. Mugiatama, pensou Ushikawa. Abanou a cabeça. Mas que nome mais estúpido para um bar.

Ushikawa ocultou-se na sombra de um poste telefónico e olhou à sua volta. Provavelmente, Tengo ia beber uns copos e comer qualquer coisa, pelo que demoraria, no mínimo, meia hora. Na pior das hipóteses, Ushikawa iria ter de ficar ali a secar durante uma hora. Com o olhar procurou um local onde matar o tempo enquanto vigiava quem entrava e saía do bar. Infelizmente, havia apenas uma leitaria fechada, uma pequena sala de reuniões dos Tenrikyo¯ 26 e um armazenista de arroz, todos eles fechados. Bolas, nunca tenho sorte, pensou. O forte vento de noroeste empurrava as nuvens, que passavam com grande rapidez. O calor que sentira durante o dia parecia agora um sonho. Ushikawa não estava muito feliz com a perspetiva de passar entre trinta minutos e uma hora ali, ao frio, sem nada para fazer.

Talvez seja melhor ir-me embora, pensou. O Tengo veio até aqui só para comer qualquer coisa. Não vale a pena dar-me ao trabalho de o seguir. Ushikawa pensou que também ele podia ir tomar qualquer coisa quente, antes de regressar a casa. Tengo regressaria pouco tempo depois. Era uma perspetiva bastante atraente. Imaginou-se num restaurantezinho aconchegado, a comer uma taça fumegante de oyakodon – arroz com frango e ovos. Nos últimos dias não comera uma única refeição digna desse nome. Um saqué quente também vinha mesmo a calhar. Com aquele frio, bastava-lhe chegar à rua para ficar instantaneamente sóbrio.

Mas considerou também outro panorama: Tengo podia ter-se ido encontrar com alguém no Mugiatama. Ao deixar o apartamento, dirigira-se diretamente para ali e verificara as horas mesmo antes de entrar. Era possível que lá estivesse alguém à sua espera, ou podia vir a caminho. Se fosse esse o caso, Ushikawa tinha de descobrir quem era essa pessoa. As orelhas poderiam cair-lhe de geladas, mas ele tinha de ficar de guarda e ver quem entrava no bar. Resignou-se à sua sorte, varrendo a imagem do oyakodon e do saqué quente da cabeça.

A pessoa com quem vinha encontrar-se podia ser Fuka-Eri. Ou Aomame. Ushikawa animou-se. A perseverança era, sem a menor sombra de dúvida, uma das suas qualidades. Se houvesse a mínima hipótese de sucesso, agarrava-se a ela como uma lapa, fizesse chuva e vento ou o sol estivesse abrasador. Podiam bater-lhe com um pau, mas não largava a presa. Uma vez largada a presa, nunca se sabe quando é que se vai tornar a apanhá-la. A experiência ensinara-lhe que, no mundo, havia coisas muitíssimo mais difíceis do que o sofrimento por que passava agora, o que o ajudou bastante.

Encostou-se à parede, escondido na sombra do poste telefónico e de uma tabuleta do Partido Comunista japonês, e manteve uma vigilância apertada sobre a porta da frente do Mugiatama. Enrolou o cachecol verde até ao nariz e enfiou as mãos nos bolsos do seu jaquetão. A não ser uma vez por outra, para tirar um lenço de papel e assoar-se, não se mexeu um milímetro. Ocasionalmente, chegavam-lhe aos ouvidos, trazidos pelo vento, os anúncios transmitidos pelo sistema sonoro da estação de Koenji. Alguns transeuntes, ao ver Ushikawa escondido nas sombras, ficavam nervosos e aceleravam o passo. No entanto, como já estava bastante escuro, não conseguiam ver-lhe as feições. A sua figura corpulenta, emergindo no escuro e fazendo lembrar um elemento decorativo de mau agoiro, bastava para os assustar.

O que estaria Tengo a comer e a beber? Quanto mais pensava nisso, mais esfomeado e mais gelado ficava. Mas não conseguia travar a sua imaginação. Seja o que for, é bom... não tem de ser saqué quente ou oyakodon. Só quero ir para um sítio com aquecimento e comer uma refeição normal. Mas, se for capaz de ficar aqui ao frio, serei capaz de aguentar qualquer coisa.

Ushikawa não tinha alternativa. Para si, só aquele caminho existia; tinha de ficar ali a gelar, ao vento, até Tengo terminar a sua refeição. Ushikawa pensou na sua casa em Chuorinkan e na mesa de jantar que lá tinha. Devia haver refeições quentes diárias naquela mesa, mas ele não conseguia recordá-las. Que raio comia eu naquela altura? Tudo aquilo parecia fazer parte da antiguidade. Há muito, muito tempo, a uns quinze minutos a pé da estação de Chuorinkan, na linha de Odakyu¯ , existira uma casa acabada de construir, que tinha uma mesa de jantar calorosa e acolhedora. Duas meninas tocavam piano e um cãozinho de raça andava aos saltos no pequeno relvado do jardim.

Trinta e cinco minutos mais tarde, Tengo saiu do bar. Nada mau. Podia ter sido muito pior, consolou-se Ushikawa. Os trinta e cinco minutos haviam sido horríveis, mas certamente bem melhores do que uma penosa hora e meia. O corpo dele estava gelado; felizmente, as orelhas não tinham congelado. Enquanto Tengo estivera no bar, ninguém entrara ou saíra do Mugiatama, pelo menos alguém que atraísse a atenção de Ushikawa. Apenas entrara um casal e ninguém saíra. Tengo devia ter tomado uma ou duas bebidas e comera talvez uma refeição ligeira. Mantendo a mesma distância Ushikawa seguiu-o. Tengo desceu a mesma rua e, quase de certeza, dirigia-se para o apartamento.

Todavia, Tengo desviou-se e enveredou por uma rua que o Ushikawa não conhecia. Afinal, parecia que Tengo não ia nada para casa. Ushikawa estava convencido de que ele ainda caminhava imerso nos seus pensamentos. Talvez mais do que antes. Desta vez, nem sequer olhou para trás. Ushikawa foi tomando nota dos sítios por onde iam passando, verificava as placas das ruas, tentando memorizar o caminho para poder voltar a fazê-lo mais tarde. Não estava familiarizado com a zona, mas, dado o aumento do ruído do tráfego, semelhante à corrente de um rio, inferiu que deviam estar a aproximar-se da Circular 7. Entretanto, Tengo estugou o passo. Talvez se aproximasse do seu destino.

Nada mau, pensou Ushikawa. Portanto, este tipo vai a qualquer sítio. No fim de contas, valeu a pena vir atrás dele.

No seu passo apressado, Tengo enfiou por uma rua residencial. Era sábado à noite e soprava um vento glacial, pelo que toda a gente se encontrava em casa, à frente da televisão, saboreando uma bebida quente. A rua encontrava-se praticamente deserta. Ushikawa seguiu Tengo, certificando-se de que mantinha uma distância razoável entre os dois. Era fácil segui-lo: alto, corpulento, destacava-se da multidão. Avançava a direito, não se desviava nem se distraía. Ia sempre com o olhar ligeiramente baixo, a pensar. Na sua essência, tratava-se de um tipo franco, honrado, nada do género de quem esconde qualquer coisa. Totalmente diferente de mim, pensou Ushikawa.

A esposa de Ushikawa também gostara de esconder coisas. Não, não era que gostasse de esconder coisas; não conseguia evitá-lo. Alguém lhe perguntasse as horas e ela seria incapaz de dizer as horas certas. Ushikawa não era assim. Ele só escondia coisas quando tal se verificava necessário, quando estava relacionado com o trabalho. Se alguém lhe perguntasse as horas e não existisse qualquer razão para ser desonesto, diria as horas certas. E seria amável. Nada como a mulher, que mentia compulsivamente em qualquer situação, a respeito do que quer que fosse. Ela até mentia acerca da idade, retirando-lhe sempre quatro anos. Ushikawa descobriu isto quando foram ao registo civil para averbar o casamento e viu os documentos, mas fingiu não ter dado conta e calou-se. Ushikawa não conseguia imaginar a razão por que ela mentia acerca de algo que, de qualquer maneira, acabaria por se saber. Quem é que se importava que a mulher fosse sete anos mais velha do que ele? Tinha coisas muito mais importantes com que se preocupar.

Quanto mais se afastavam da estação, menos pessoas se viam na rua. Tengo acabou por entrar num pequeno parque. Um parque infantil minúsculo num canto de um bairro residencial. O parque estava deserto. Claro que está, pensou Ushikawa. Quem é que tem vontade de vir passar tempo para um parque infantil numa noite fria e ventosa de dezembro? Tengo passou por baixo da luz fria do candeeiro com lâmpada de mercúrio e foi direito ao escorrega. Trepou por ele e sentou-se no topo.

Ushikawa escondeu-se atrás de uma cabina telefónica e não tirou os olhos de Tengo. Um escorrega?! Franziu o sobrolho. O que levará um homem adulto a trepar ao alto de um escorrega, numa noite gelada como aquela? Nem sequer estavam nas imediações do apartamento de Tengo. Devia haver alguma razão para ele se desviar do seu caminho e ir até ali. Não se tratava propriamente do parque infantil mais bonito da cidade. Era minúsculo e estava bastante maltratado. Para além do escorrega, havia dois baloiços, um balancé e uma caixa de areia. Um único candeeiro, que tinha uma lâmpada de mercúrio com o aspeto de ter iluminado já várias vezes o fim do mundo, uma zelcova isolada de ramos nus, sem folhas. Uma casa de banho pública fechada à chave, a tela perfeita para os graffiti. Não havia nada neste parque que aquecesse os corações ou estimulasse a imaginação de alguém. Talvez, isso sim, numa agradável tarde de maio. Mas numa noite de dezembro ventosa? Jamais!

Iria encontrar-se com alguém ali? Estaria à espera de que alguém aparecesse? Não lhe parecia. Tengo não mostrava qualquer indício de estar a aguardar alguém. Ao entrar no parque, ignorara todos os outros equipamentos. A única coisa que parecia ter na cabeça era o escorrega. O Tengo veio aqui para subir ao escorrega.

Talvez sempre tivesse gostado de se sentar no alto de escorregas quando precisava de pensar em qualquer coisa. Talvez o alto de um escorrega num parque, à noite, fosse o local perfeito para pensar na história do romance que estava a escrever, ou em fórmulas matemáticas. Talvez que, quanto mais escuro estivesse, mais frio fosse o vento que soprasse, mais miserável o parque, melhor ele pensasse. A forma de pensar de romancistas (ou de matemáticos) escapava por completo a Ushikawa. A sua mente pragmática dizia-lhe que ficasse quieto e, pacientemente, mantivesse Tengo debaixo de olho. O seu relógio indicava as oito da noite em ponto.

Tengo estava sentado no alto do escorrega; tivera de dobrar o seu grande corpo para caber. Olhava para o céu. Movia a cabeça para trás e para a frente, após o que se fixou num ponto e ficou a olhar para o alto, sem se mover.

Ushikawa recordou uma canção popular sentimental, de Kyu Sakamoto, ainda em voga ao fim de tantos anos. Começava com «Ergue os olhos ao céu / e olha as estrelinhas»27. Não sabia o resto da letra e, para dizer a verdade, não lhe importava. O sentimentalismo e o sentido de justiça eram os seus pontos fracos. Ali, no alto do escorrega, enquanto olhava as estrelas, será que Tengo se sentia sentimental?

Ushikawa tentou olhar para o céu também, mas não descortinou qualquer estrela. Dizer que Koenji, em Suginami, Tóquio, não seria o melhor ponto para observar o céu noturno era, no mínimo, um eufemismo. As luzes de néon e os candeeiros ao longo das ruas tingiam o céu de uma cor estranha. Algumas pessoas, se se esforçassem mesmo muito, poderiam ser capazes de descortinar algumas estrelas, mas isso exigiria uma visão e um poder de concentração extraordinários. Além do mais, nessa noite havia grandes nuvens por todo o céu. Apesar de tudo isto, Tengo continuava sentado, imóvel, no alto do escorrega, com os olhos fixos num determinado ponto.

Mas que chato que este tipo me saiu, decidiu Ushikawa. Que necessidade teria ele de estar ali sentado, no alto do escorrega, a olhar para o céu e a pensar na morte da bezerra numa noite de vento invernosa como aquela? Não que tivesse qualquer direito a criticar Tengo. Ushikawa decidira por si vigiar Tengo em segredo e segui-lo. Tengo era um cidadão livre e tinha todo o direito de olhar para o que queria e onde queria, o ano todo.

Mesmo assim, está um frio dos diabos, pensou Ushikawa. Já há algum tempo que precisava de urinar, mas contivera-se. Todavia, a casa de banho pública estava fechada à chave e, mesmo num local deserto como aquele, ele não podia ir mijar ao pé de uma cabina telefónica. Vá lá, pensou, batendo com os pés no chão,

não te podes levantar e pôr-te daqui para fora? Podes estar perdido nos teus pensamentos, tomado de emoção e concentrado nas tuas observações astronómicas, mas, Tengo... tu também deves estar gelado. São horas de voltar para casa e aquecer, não achas?

Nenhum de nós tem alguém à nossa espera, mas, mesmo assim, está-se muito melhor em casa do que aqui, a gelar até aos ossos.

Tengo, contudo, não parecia estar pronto para partir. Por fim, deixou de olhar para o céu e desviou a atenção, concentrando-se num prédio de apartamentos do outro lado da rua. Era um prédio novo, com seis andares, com luzes acesas em metade das janelas. Tengo tinha os olhos postos no edifício. Ushikawa imitou-o, mas não encontrou nada que lhe chamasse a atenção. Não passava de um prédio vulgar. Não era um condomínio exclusivo, porém, parecia bastante classe alta. Linhas de grande qualidade, revestimento exterior em azulejo caro. A entrada era bonita e estava muito bem iluminada. Nada como o velho edifício baratucho, bom para demolição, a que Tengo chamava lar.

Ali, a olhar para o edifício, estaria Tengo a sonhar com uma vida num prédio daqueles? Ushikawa pensava que não. Tanto quanto sabia, Tengo não era do tipo de se preocupar com o local onde vivia. Tal como não se importava grandemente com o que vestia. O mais provável era viver feliz no seu velho apartamento deteriorado. Um teto sobre a cabeça e um local onde se abrigasse do frio, era quanto lhe bastava. O que quer que estivesse a passar-lhe pela cabeça, ali no alto do escorrega, não era aquilo de certeza.

Depois de percorrer todas as janelas com o olhar, Tengo tornou a olhar para o céu. Ushikawa imitou-o. Do sítio onde estava escondido, a sua visão era obstruída pelos ramos da zelcova, os fios elétricos e os outros edifícios. Só conseguia ver metade do céu. E não era claro para que ponto preciso do céu estava Tengo a olhar. Havia incontáveis nuvens a cruzar incessantemente o céu, como um exército intimidante sobre as suas cabeças.

Tengo acabou por se levantar e, sem fazer ruído, desceu do escorrega, como um piloto que acaba de aterrar após um difícil voo noturno a solo. Atravessou o parque infantil e saiu. Ushikawa hesitou e, depois, decidiu não o seguir. Era provável que Tengo estivesse de regresso a casa. Além do mais, Ushikawa estava com uma vontade enorme de urinar. Depois de ver Tengo desaparecer, entrou no parque infantil, escondeu-se por trás da casa de banho pública e, no meio da escuridão, onde ninguém podia vê-lo, urinou para um arbusto. Tinha a bexiga quase a rebentar.

Acabou finalmente de urinar – a operação durara tanto tempo quanto um longo comboio de mercadorias leva a atravessar uma ponte –, puxou o fecho das calças, fechou os olhos e soltou um profundo suspiro de alívio. O seu relógio indicava as oito e dezassete. Tengo estivera sentado no topo do escorrega durante cerca de quinze minutos. Ushikawa olhou à sua volta para ter a certeza de que Tengo não se encontrava por perto e aproximou-se do escorrega. Com dificuldade, dadas a suas pernas curtas e arqueadas, trepou à escada, sentou-se no topo do escorrega gelado e olhou para o céu. Que poderia ter o outro estado a observar com tanta atenção?

A visão de Ushikawa era bastante boa. O grau de astigmatismo que o afligia era maior num olho do que no outro, mas não tinha problemas no quotidiano e safava-se sem óculos. Mesmo assim, por mais que se esforçasse, não conseguia ver uma única estrela. Em vez disso, o que lhe atraiu a atenção foi uma grande lua no céu, em quarto crescente, quase cheia. Por entre as nuvens, os seus contornos escuros e cheios de manchas recortavam-se com nitidez. A típica lua de inverno. Fria, pálida, plena de antigos mistérios e sugestões. Sem piscar, como os olhos de um morto, pairava, em silêncio, no céu.

Ushikawa engoliu em seco. Por um instante, esqueceu-se de respirar. Num intervalo nas nuvens estava outra lua, um pouco afastada da primeira. Era muito mais pequena do que a original, ligeiramente deformada, e verde – parecia que tinha musgo. Mas era, sem a menor sombra de dúvida, uma lua. Não havia estrela nenhuma tão grande. E não podia ser um satélite. Contudo, ali estava, presa ao céu da noite.

Ushikawa cerrou os olhos e, após uns segundos, abriu-os de novo. Só podia ser uma ilusão. Uma coisa daquelas não pode estar ali. Mas por mais vezes que abrisse e fechasse os olhos, a luazinha continuava no céu. De vez em quando, as nuvens que passavam escondiam-na, mas, assim que seguiam o seu caminho, lá estava ela, no mesmíssimo sítio.

Era para isto que o Tengo estava a olhar, pensou Ushikawa. Tengo Kawana viera até àquele parque infantil para observar esta cena, ou, quem sabe, para verificar se ainda existia. Já há algum tempo que devia saber da existência das duas luas. Disso não tinha dúvida. Não parecia ter ficado surpreendido com a visão. No alto do escorrega, Ushikawa soltou um profundo suspiro. Que loucura de mundo vem a ser este?, perguntou-se com os seus botões. Em que tipo de mundo é que me vim meter? Mas não obteve resposta. Varridas pelas incontáveis nuvens que continuavam a passar, as duas luas – a grande e a pequena – pairavam no céu como um enigma.

Uma coisa posso dizer, decidiu. Não foi deste mundo que vim. A Terra que conheço tem uma só lua. É inegável. E, agora, o número aumentou para duas.

Ushikawa começou a ter uma sensação de déjà-vu. Eu já vi isto algures, pensou. Concentrou-se, rebuscando desesperadamente na sua memória. Franziu o sobrolho, rangeu os dentes, dragou o fundo do oceano escuro da sua mente. E, por fim, a verdade surgiu-lhe. A Crisálida de Ar.

Olhou à sua volta, mas apenas viu o mesmo mundo do costume. As cortinas de renda brancas estavam corridas nas janelas do prédio do outro lado da rua, com luzes tranquilas por trás. Não havia nada fora do normal. Só o número de luas era diferente.

Com cuidado, desceu do escorrega e apressou-se a sair do parque, como se estivesse a fugir dos olhos das duas luas. Estarei doido?, pensou. Não, não pode ser. Não estou a enlouquecer. A minha mente está como um prego de aço novo em folha: rija, sóbria, direita. Pregada no ângulo certo, no âmago da realidade. Não há nada de errado em mim. Estou absolutamente lúcido. O mundo à minha volta é que enlouqueceu.

E eu tenho de descobrir porquê..

24 Alimento de origem chinesa que consiste numa mistura de massa comprida, com ervas e legumes mergulhados num caldo, a acompanhar com carne de porco ou peixe de água doce. (N. das T.)

25 Estatuetas de pedra que representam o Ksitigarbha Bodhisattva, que são colocadas em caminhos, cemitérios e templos. De acordo com a crença popular, protegem as almas das crianças mortas. (N. das T.)

26 Comunidade religiosa surgida no século XIX. É uma religião monoteísta, nascida das revelações feitas a uma mulher, Nakayama Miki. O propósito da religião é ensinar e promover a Vida Feliz, cultivada por atos de caridade e assistência. (N. das T.)

27 A canção «Olha as Estrelas da Noite», de 1960. Foi popularizada pelo cantor Kyu¯ Sakamoto, mais conhecido por outra canção: «Caminho a Olhar para Cima». (N. das T.)


20

AOMAME

Uma das facetas da minha transformação

No domingo, o vento cessara. Estava um dia quente e calmo, completamente diferente da noite anterior. As pessoas deixaram os casacos em casa e gozaram o sol. Aomame, todavia, não desfrutou os raios de sol e passou a manhã como de costume: dentro do apartamento, com as cortinas cerradas e alheia ao bom tempo no exterior.

Enquanto escutava a Sinfonietta de Janácek, com o volume baixo, dedicou-se aos alongamentos e trabalhou os músculos sem piedade, valendo-se de várias máquinas para fazer treino de resistência. Gradualmente, vinha acrescentando exercícios à sua rotina, que agora demorava duas horas a completar. No fim, cozinhou, limpou o apartamento e estendeu-se no sofá para ler Em Busca do Tempo Perdido. Começara finalmente o terceiro volume, O Lado de Guermantes. Esforçava-se por se manter o mais ocupada possível. Só via televisão duas vezes por dia: os noticiários da NHK, ao meio dia e às sete. Como de costume, não havia notícias dignas de nota. Ou melhor: havia, sim, havia. Na realidade, ocorriam muitos factos relevantes no mundo: várias pessoas tinham perdido a vida, muitas delas de forma trágica – em desastres de comboio, naufrágios de ferries ou quedas de aviões. Havia uma guerra civil que prosseguia sem fim à vista, um homicídio, um massacre terrível por razões étnicas. As alterações climáticas tinham provocado secas, cheias e fome. Aomame sentia uma profunda pena das pessoas apanhadas em todas aquelas tragédias e desastres, mas, ainda assim, não ocorrera nada que tivesse consequências diretamente para si.

As crianças da vizinhança andavam a brincar no parque do outro lado da rua, a gritar qualquer coisa. Também ouvia o crocitar dos corvos reunidos no telhado, numa incansável bisbilhotice. O ar tinha o aroma do início do inverno citadino.

De súbito, ocorreu-lhe que, desde que vivia ali, naquele prédio, ainda não sentira qualquer desejo sexual. Nem uma única vez tivera vontade de fazer sexo. Nem sequer se masturbara. Talvez isso se devesse à gravidez e às alterações hormonais do seu corpo. Mesmo assim, Aomame ficou aliviada. Não estava precisamente num local onde fosse fácil encontrar um parceiro sexual, caso desejasse dormir com alguém. Também se sentia satisfeita por não ter o período. A sua menstruação nunca fora muito abundante, porém, parecia que a tinham libertado de uma carga que há muito transportava às costas. Era menos uma coisa em que pensar.

Durante os três meses que ali passara, o seu cabelo crescera muito. Em setembro mal lhe chegava aos ombros, mas agora ia até quase ao meio das costas. Quando era pequena, a mãe cortara-lho sempre muito curto e, a partir da adolescência, uma vez que o desporto era a sua vida, nunca o deixara crescer muito. Agora, achava que estava demasiado comprido, mas não conseguia cortá-lo sozinha. Aparava a franja, mas era tudo. Durante o dia, andava com ele preso, e à noite soltava-o. Nessa altura, ao mesmo tempo que ouvia música, passava-lhe a escova cem vezes, uma coisa que só se pode fazer quando se tem muito tempo livre.

Por regra, quase não usava maquilhagem e agora, especialmente, não havia necessidade de tal. No entanto, estava determinada a manter uma rotina diária definida e cuidava da pele com todo o esmero. Massajava a pele com cremes e loções e punha máscaras antes de se deitar. Sempre tivera um corpo saudável e bastavam poucos cuidados extra para que a sua pele ficasse reluzente e bonita. Também seria, talvez, uma consequência da gravidez. Ouvira dizer que as grávidas ficavam com uma pele linda. Fosse como fosse, quando se sentava à frente do espelho, soltava o cabelo e examinava o rosto; sentia-se mais bonita do que antes. Ou, pelo menos, estava a ganhar a serenidade própria de uma mulher madura. Talvez fosse isso.

Aomame nunca se sentira bonita. Nunca ninguém lhe dissera que o era. A mãe sempre a tratara como uma rapariga feia.

«Quem dera que fosses mais bonita», costumava dizer. Com isto sugeria que, se ela fosse mais bonita, mais engraçada, seriam capazes de atrair mais crentes para a Associação das Testemunhas. Portanto, Aomame fugira sempre de se ver ao espelho. Quando era absolutamente necessário fazê-lo, verificava o seu reflexo de maneira rápida e eficiente.

Tamaki Otsuka confessara-lhe que gostava das suas feições. «Não são nada feias», dissera. «Na realidade, são até muito giras. Devias ter mais confiança em ti mesma.» Aomame ficara feliz com aquilo. Estava a entrar na puberdade e as palavras da amiga tinham-na acalmado. Começou a pensar que talvez não fosse tão feia quanto a mamã dizia que era. Todavia, nem mesmo Tamaki dissera que ela era bonita.

No entanto, pela primeira vez na vida, Aomame descortinava alguma beleza no seu rosto. Agora era capaz de ficar mais tempo sentada à frente do espelho, a observar a sua cara com grande cuidado. Não estava a ser narcisista. Analisou a cara de uma grande variedade de ângulos, como se pertencesse a outra pessoa. Tinha mesmo passado a ser bonita? Ou a forma como apreciava as coisas é que mudara, e não a sua cara? Aomame não conseguia chegar a conclusão nenhuma.

De vez em quando, franzia o sobrolho com toda a força à frente do espelho. A sua cara franzida mantinha o aspeto que sempre tivera. Os músculos faciais esticavam-se em todas as direções, de tal forma que as suas feições se distendiam de forma assombrosa, em expressões muito diferentes umas das outras. Todas as emoções do mundo saltavam da cara dela. Não era nem feia nem bonita. De um ângulo, tinha um ar demoníaco; de um outro, era cómico. E de outro ainda, a sua face era uma confusão caótica. Quando parava de os franzir, os músculos da cara relaxavam gradualmente, como pequenas ondinhas que desaparecem da superfície da água, e as suas feições normais reapareciam. Então, Aomame descobria uma nova e ligeiramente diferente versão de si própria.

«Devias sorrir com mais naturalidade», dissera-lhe Tamaki muitas vezes. «Tens umas feições doces quando sorris, e é uma pena que não o faças mais vezes.» Mas Aomame nunca tivera facilidade em sorrir, nunca se descontraía quando estava à frente de outras pessoas. Quando se forçava a fazê-lo, o sorriso transformava-se num esgar crispado que deixava os outros ainda mais tensos. Tamaki era diferente: tinha um sorriso natural e divertido. As pessoas que contactavam com ela pela primeira vez sentiam-se logo à vontade. Todavia, no final, a desilusão e o desespero tinham levado Tamaki ao suicídio. Deixando para trás Aomame, incapaz de sorrir devidamente.

Era um domingo calmo. O sol quente levara muita gente até ao parque, do outro lado da rua. Os pais passeavam por ali, enquanto as crianças brincavam na caixa de areia ou nos baloiços. Alguns miúdos entretinham-se no escorrega. Havia idosos sentados nos bancos, observando com atenção as crianças que brincavam. Aomame foi até à varanda, sentou-se na cadeira de jardim e observou-os, um tanto distraída, pela fresta no painel de plástico. Era uma cena pacífica. O mundo avançava sem incidentes. Ali não havia ninguém que estivesse ameaçado de morte, ninguém no encalço de um assassino. Ninguém tinha uma pistola automática de nove milímetros, carregada, embrulhada nas meias, na gaveta do toucador.

Alguma vez voltarei a fazer parte daquele mundo calmo e natural?, perguntou Aomame a si própria. Alguma vez chegará o dia em que possa ir ao parque, levando este pequenino pela mão, e deixá-lo brincar nos baloiços e no escorrega? Um tempo em que possa levar uma vida normal sem pensar em quem irei matar a seguir ou em quem me vai matar? Será possível um tempo assim neste mundo de 1Q84? Ou só num outro mundo diferente? E, mais importante do que tudo... o Tengo estará a meu lado?

Aomame afastou o olhar do parque e entrou em casa. Fechou a porta de vidro e correu as cortinas. As vozes das crianças deixaram de se ouvir, e ela foi assaltada pela tristeza. Estava afastada de tudo, fechada num sítio trancado por dentro. Vou deixar de observar o parque durante o dia, pensou. O Tengo nunca virá durante o dia. Ele andava à procura de ver as duas luas com toda a clareza.

Depois de um jantar simples e lavada a loiça, Aomame vestiu uma roupa quente e regressou à varanda. Pôs a manta sobre os joelhos e sentou-se na cadeira. Estava uma noite sem vento. No céu pairavam, ligeiras, nuvens que os aguarelistas gostariam de pintar, já que seriam um teste à delicadeza das suas pinceladas de artistas. A lua maior, em quarto crescente e já perto da lua cheia, não se encontrava velada pelas nuvens e projetava a sua luz distinta sobre a Terra. Naquele momento, e do sítio onde estava sentada, Aomame não conseguia ver a lua mais pequena, tapada por um edifício. Mas Aomame sabia que estava ali. Sentia a sua presença. Daquele ângulo não se via, mas sem dúvida que, dentro de pouco tempo, iria mostrar-se.

Desde que se escondera naquele apartamento, aprendera a abstrair-se de forma deliberada. Intencionalmente. Sobretudo quando, como agora, se encontrava na varanda, a olhar para o parque infantil, ela conseguia esvaziar a mente e não pensar em nada. Mantinha os olhos fixos no parque, muito especialmente no escorrega, mas não estava a pensar em nada. Não, o seu cérebro podia ter estado a pensar em qualquer coisa, mas a maior parte dos pensamentos mantinha-se latente, por baixo da superfície. Não tinha a menor ideia do que a sua consciência fazia por baixo da superfície. De vez em quando, a intervalos regulares, alguma coisa vinha à tona, flutuando, como tartarugas ou golfinhos, que espetam os focinhos para fora de água para respirar. Quando tal acontecia, ela sabia que tinha estado a pensar em qualquer coisa até esse momento. Depois, a sua consciência, com os pulmões cheios de oxigénio, mergulhava de novo. Desaparecia outra vez, e Aomame deixava de pensar no que quer que fosse. Transformava-se num aparelho de vigilância, embrulhada num casulo macio, com o olhar fixo no escorrega.

Olhava o parque, mas, ao mesmo tempo, vão via nada. Se surgisse alguma coisa nova no seu campo de visão, a sua mente reagiria de imediato. Contudo, de momento, não havia nada de novo. Não havia vento. Os ramos escuros da zelcova espetavam-se, direitos, imóveis, quais sondas apontadas para o céu. O mundo inteiro estava imóvel. Olhou para o relógio: já passava das oito. Aquele dia podia terminar como todos os outros, sem nada de invulgar. Uma noite de domingo, tão calma quanto é possível ser.

O mundo deixou de estar imóvel às oito e vinte e três em ponto.

De repente, reparou num homem no alto do escorrega. Estava sentado e tinha o olhar fixo num ponto do céu. O coração de Aomame apertou-se até ficar do tamanho do punho de uma criança, e manteve-se daquele tamanho durante tanto tempo, que ela chegou a recear que nunca mais bombeasse sangue. Com a mesma velocidade, inchou de novo, recuperou o tamanho e retomou a sua atividade. Com um ruído surdo, voltou a bombear sangue por todo o corpo dela, a uma velocidade endiabrada. A consciência de Aomame emergiu da água com rapidez, provocando-lhe um calafrio, e ficou pronta para agir.

É o Tengo, pensou instintivamente.

Mas, assim que a sua visão se tornou clara, percebeu logo que não era ele. O homem que estava ali sentado era baixo, tinha o tamanho de uma criança, uma cabeça grande e quadrada, e usava um gorro de malha. O gorro esticado estava deformado devido à estranha forma da cabeça dele. Trazia um cachecol verde enrolado à volta do pescoço e envergava um casaco azul-marinho. O cachecol era demasiado comprido e o casaco estava tão esticado sobre a barriga que parecia que os botões iam saltar. Aomame soube de imediato que se tratava da criança que vira sair do parque, na noite anterior. No entanto, não se tratava de uma criança; andava mais pela meia-idade. Era baixo, corpulento, tinha pernas e braços curtos. E a sua cabeça era anormalmente grande e deformada.

De repente, lembrou-se do que Tamaru dissera acerca do homem com uma cabeça tão grande como a dos bonecos fukusuke, a quem tinham posto a alcunha de Cabeça-de-Abóbora. O homem que andara a vaguear perto da Casa dos Salgueiros, em Azabu, e que investigara a casa-abrigo. O homem sentado no topo do escorrega encaixava na perfeição na descrição que Tamaru lhe fizera na noite anterior. Aquele homem estranho não desistira da sua investigação e agora aproximara-se dela. Tenho de ir buscar a pistola, pensou. Mas por que carga-d’água havia de a deixar no quarto, logo hoje? Aomame respirou profundamente, esperou que o caos que reinava no seu coração assentasse e os nervos acalmassem. Não posso entrar em pânico. De momento, não preciso da pistola.

Antes de mais, o homem não estava a vigiar o edifício onde ela vivia. Sentado no topo do escorrega, tinha os olhos postos no céu, tal como Tengo fizera, no mesmíssimo sítio. Parecia perdido nos seus pensamentos. Durante imenso tempo, não mexeu um só músculo, aparentemente esquecido de como se mexer. Não prestou atenção à casa de Aomame, o que a deixou confusa. Que demónio se passa? Este homem veio aqui à minha procura. Provavelmente, faz parte da seita Vanguarda. Trata-se de um perseguidor competente, não restam dúvidas. Quer dizer, conseguiu seguir o meu rasto desde a mansão de Azabu até aqui. E, depois disso tudo, está ali, indefeso, exposto, a olhar distraidamente para o céu noturno, sem pressa nenhuma.

Aomame pôs-se de pé, sem fazer ruído, abriu uma fresta da porta, esgueirou-se para o interior e sentou-se à frente do telefone. Com as mãos a tremer, começou a marcar o número de Tamaru. Tinha de lhe contar o que se passava – que, do sítio onde estava, via o Cabeça-de-Abóbora no alto de um escorrega, num parque do outro lado da rua. Tamaru decidiria o que fazer e, sem dúvida, lidaria com a situação da melhor forma. No entanto, depois de marcar os primeiros quatro números, deteve-se, com o auscultador na mão, e mordeu o lábio.

É demasiado cedo, pensou. Ainda há muita coisa que não sabemos acerca deste homem. Se o Tamaru o vir como um simples fator de risco e decidir tratar dele, todas as coisas que não sabemos a seu respeito manter-se-ão desconhecidas. E agora que pensava nisso, o homem estava a fazer exatamente o mesmo que Tengo fizera no dia anterior. O mesmo escorrega, a mesma atitude, o mesmo ponto no céu, como se estivesse a repetir os movimentos de Tengo. Também devia estar a ver as duas luas. Aomame chegou a essa conclusão. Talvez este homem e o Tengo estejam ligados, e talvez este homem ainda não tenha percebido que estou escondida num apartamento deste prédio, razão pela qual está ali sentado, indefeso, de costas para mim. Quanto mais pensava no caso, mais convincente achava a sua teoria. A ser verdade, então, se eu for atrás do homem, ele levar-me-á até ao Tengo. Em vez de me descobrir, vai servir-me de guia. A ideia fez o seu coração contrair-se ainda mais e, de seguida, começar a bater com redobrada rapidez. Pousou o telefone.

Depois conto ao Tamaru, decidiu. Há uma coisa que tenho de fazer primeiro. Uma coisa arriscada, porque implica perseguir o perseguidor. E este homem é, sem dúvida, um profissional. Mesmo assim, não posso deixar escapar esta oportunidade única. Pode ser a última que tenho. E, a julgar pelo aspeto dele, neste momento está um tanto atordoado.

Correu para o quarto, abriu a gaveta do toucador e tirou para fora a semiautomática Heckler & Koch. Destravou a patilha de segurança, pôs uma bala na câmara e fechou a arma. Enfiou a arma no cinto, na parte de trás das calças, e regressou à varanda. O Cabeça-de-Abóbora ainda lá estava a olhar para cima. A sua cabeçorra deformada continuava perfeitamente imóvel. Parecia fascinado pelo que via naquele canto do céu. Aomame sabia como ele se sentia. É realmente um espetáculo cativante. Aomame reentrou em casa, enfiou um casaco e pôs um boné de basebol. E um par de óculos não graduados, com uma armação preta, simples. Era o que bastava para lhe mudar a aparência. Enrolou uma écharpe cinzenta à volta do pescoço e pôs o porta-moedas e a chave de casa no bolso. Desceu as escadas a correr e saiu para a rua. As solas dos ténis não fizeram ruído quando pisou o asfalto. Havia muito tempo que não sentia aquele chão duro e sólido debaixo dos pés, e a sensação deu-lhe coragem.

Enquanto descia a rua, verificou que o Cabeça-de-Abóbora se mantinha no mesmo sítio. A temperatura sofrera uma descida significativa depois do pôr do Sol, mas continuava a não haver vento. Estava frio, porém, Aomame achou-o agradável. Enquanto o ar que exalava se transformava em nuvens de vapor brancas, ela passou pela entrada do parque, sem fazer ruído. O Cabeça-de-Abóbora continuava a não dar sinais de ter reparado nela: mantinha o olhar diretamente fixo no céu. De onde estava, Aomame não conseguia vê-las, mas sabia que na extremidade do olhar dele estavam as duas luas, a grande e a pequena. Com certeza estavam ali, ao lado uma da outra, no céu gelado e sem nuvens.

Passou pelo parque e, quando chegou à esquina seguinte, virou-se e regressou pelo mesmo caminho. Escondeu-se nas sombras e observou o homem sentado no escorrega. A pistola, encostada às suas costas, era tão dura e fria como a morte, e aquela sensação acalmou-a.

Aguardou cinco minutos. Devagar, o Cabeça-de-Abóbora pôs-se de pé, sacudiu o casaco com a mão e olhou mais uma vez para o céu. A seguir, como se tivesse tomado uma decisão, desceu os degraus do escorrega com um ar resoluto. Saiu do parque e afastou-se a caminho da estação. Não era especialmente difícil segui-lo. Naquela noite de domingo havia poucas pessoas no bairro residencial e, mesmo mantendo-se à distância, não o perderia de vista. Ele também não tinha a mínima suspeita de que havia alguém a segui-lo. Nunca olhou para trás, manteve o passo a um ritmo constante, o ritmo a que as pessoas que estão preocupadas caminham. Que ironia! pensou Aomame. O ponto fraco de quem segue alguém é nunca pensar que pode estar a ser seguido.

Ao fim de um bocado, tornou-se evidente que o Cabeça-de-Abóbora não se dirigia para a estação de Koenji. No seu apartamento, valendo-se de um mapa que mostrava os vinte e três distritos de Tóquio, ela memorizara toda aquela área até ter a geografia local de cor na cabeça, de modo a que, numa emergência, soubesse sempre que rumo tomar. Portanto, apesar de inicialmente ele ir a caminho da estação, quando dobrou uma esquina, ela soube que ele caminhava numa outra direção. Reparou que o Cabeça-de-Abóbora não conhecia o bairro. Por duas vezes parou numa esquina, olhou à sua volta como se não tivesse bem a certeza do caminho, e leu as placas com os nomes das ruas, afixadas nos postes telefónicos. Claramente, não era daquela zona.

Por fim, o Cabeça-de-Abóbora estugou o passo. Aomame inferiu que ele já se encontrava em território familiar. Passou por uma escola básica, desceu uma rua estreita e entrou num velho edifício com três andares.

Aomame esperou durante cinco minutos depois de o homem entrar. A última coisa que queria era esbarrar com ele na entrada. A porta tinha um beiral de betão, e uma lâmpada redonda projetava uma luz amarelada. Pelo que pôde comprovar, não havia nada parecido a uma placa ou letreiro identificando o edifício. Talvez não tivesse nome. De qualquer maneira, parecia já terem decorrido muitos anos desde que fora construído. Aomame memorizou o endereço marcado num poste de eletricidade.

Cinco minutos mais tarde, dirigiu-se à entrada. Passou rapidamente por baixo da luz amarelada e apressou-se a abrir a porta. Não se via ninguém no minúsculo átrio de entrada. Era um espaço vazio, desprovido de calor. Uma lâmpada fluorescente, a dar as últimas, zumbia por cima da sua cabeça. O som abafado de uma televisão chegava-lhe aos ouvidos, vindo não sabia de onde, o mesmo sucedendo ao guincho de uma criança a atazanar a mãe.

Aomame tirou a sua chave de casa do bolso do blusão acolchoado e brincou com ela para que, se alguém a visse, pensasse que morava ali. Leu os nomes nas caixas do correio. Uma delas decerto pertenceria ao Cabeça-de-Abóbora. Não tinha grandes esperanças, mas não podia deixar de tentar. Era um prédio pequeno, não tinha muitos residentes. Quando se deparou com o nome «Kawana» numa das caixas, todos os sons desapareceram.

Ficou ali, petrificada, à frente da caixa do correio. O ar que a rodeava rarefez-se, a ponto de ter dificuldade em respirar. A boca entreabriu-se-lhe ligeiramente, os lábios tremiam-lhe. Passou algum tempo. Tinha consciência de como era estúpido e perigoso o que estava a fazer. O Cabeça-de-Abóbora podia aparecer de um momento para o outro. Mas ela estava incapaz de sair dali. Um cartãozinho com o nome «Kawana» paralisara o seu cérebro, transformara o seu corpo num bloco de gelo.

Claro que nada deixava antever que aquele Kawana fosse Tengo Kawana. Não era um apelido muito comum, mas também não era tão raro como, por exemplo, Aomame. No entanto se, como pensava, o Cabeça-de-Abóbora tinha alguma ligação com Tengo, então havia uma forte possibilidade de este Kawana ser, nem mais nem menos, Tengo. O número do apartamento era o 303, por coincidência, o mesmo do apartamento em que ela estava.

Que hei de fazer? Aomame mordeu o lábio com toda a força. A sua mente continuava a andar em círculos, sem encontrar uma saída. Que hei de fazer? Bom, não podia ficar ali plantada à frente da caixa do correio para sempre. Encheu-se de coragem e subiu os pouco convidativos degraus de betão até ao terceiro andar. Aqui e ali, no chão sombrio viam-se rachas de anos e anos de uso e falta de cuidado. Ao andar, os seus ténis faziam um ruído áspero.

Aomame deteve-se à frente da porta do 303. Uma porta de aço vulgar, com um cartão impresso com o nome «Kawana» metido na ranhura do nome. Só o apelido. Aqueles dois carateres tinham um ar frio, inorgânico. Simultaneamente, pareciam conter um profundo mistério. Aomame ficou ali, de pé, escutando atentamente, com todos os sentidos aguçados. Mas não se ouvia nada do outro lado da porta. Tão-pouco se via luz. Havia ali uma campainha.

Estava confusa. Mordeu o lábio enquanto pensava no próximo passo a dar. Devo tocar a campainha? perguntou-se.

Ou tratar-se-ia de uma armadilha engenhosa? Talvez o Cabeça-de-Abóbora estivesse escondido atrás da porta, qual anão maléfico numa floresta escura, com um sorriso abominável estampado na cara enquanto esperava. Deixou-se ver de propósito no alto daquele escorrega para me atrair até aqui e fazer-me prisioneira. Perfeitamente consciente de que ando à procura do Tengo, está a usá-lo como isco. É um homem ruim e astuto, que sabe perfeitamente qual é o meu ponto fraco. Era a única maneira de me fazer abrir a porta do lado de dentro.

Olhou à sua volta para ver se não estava ninguém por perto e tirou a pistola do cós das calças. Soltou a patilha de segurança e enfiou a arma no bolso do blusão, de forma a poder sacar dela com facilidade. Apertou a coronha da pistola com a mão direita, dedo no gatilho, e com a mão esquerda carregou na campainha.

Ouviu o som no interior do apartamento. Um tilintar calmo, contrastando com o seu coração acelerado. Agarrou na pistola com força, à espera de a porta se abrir. Mas não abriu. E não parecia haver ninguém a espreitar pela vigia. Esperou durante uns instantes e tornou a tocar a campainha. Esta tinha um som suficientemente alto para fazer todos os habitantes do bairro de Suginami levantar a cabeça e prestar atenção. A mão direita de Aomame, sobre a pistola, começou a transpirar ligeiramente. Contudo, não houve resposta.

É melhor ir-me embora, decidiu. O Kawana que vive no 303, seja ele quem for, não está em casa. E o sinistro Cabeça-de-Abóbora ainda anda por aí, escondido, no prédio. É demasiado perigoso ficar aqui mais tempo. Desceu as escadas a correr, lançando um olhar à caixa de correio quando passou, e saiu do prédio. Baixou a cabeça, passou rapidamente por baixo da luz amarelada e saiu para a rua. Deitou uma rápida olhadela para trás e verificou que ninguém a seguia.

Precisava de pensar sobre muitas coisas e tinha de tomar um número equivalente de decisões. Tateando, repôs a patilha de segurança no sítio. Depois, longe de possíveis olhares indiscretos, tornou a enfiar a pistola no cós das calças, atrás das costas. Não devo ter grandes expectativas ou esperanças, disse para si mesma. O Kawana que vive aqui pode ser o Tengo, mas também pode não ser. Quando temos esperanças, o coração aproveita-se e começa a agir por conta própria. Depois, uma vez as esperanças defraudadas, vem o desespero, e o desespero chama o desalento. A pessoa descuida-se e baixa a guarda. E, neste momento, pensou, é um luxo a que não posso dar-me. Não faço a mínima ideia do quanto sabe o Cabeça-de-Abóbora. Mas a verdade é que ele está a aproximar-se de mim. Está quase suficientemente perto para poder estender a mão e tocar-me. Tenho de me precaver e manter-me alerta. Estou a lidar com uma pessoa extremamente perigosa: o mais ínfimo erro pode revelar-se fatal. Antes de mais nada, preciso de me manter longe daquele velho prédio de apartamentos. Ele está ali escondido, a congeminar estratagemas para me apanhar... como uma aranha venenosa, que se alimenta de sangue e que estendeu a sua teia no escuro.

Quando reentrou no seu apartamento, Aomame já tinha tomado uma decisão. Só havia um caminho a seguir.

Desta vez, marcou o número de Tamaru até ao fim. Deixou tocar doze vezes e desligou. Tirou o boné e o casaco, voltou a guardar a pistola dentro da gaveta e bebeu dois grandes copos de água. Encheu a chaleira e ferveu água para o chá. Espreitou pela abertura entre as cortinas e observou o parque, comprovando que não estava lá ninguém. Pôs-se de pé, à frente do lavatório, e escovou o cabelo. Mesmo depois disto, os seus dedos continuavam a não se mover com a segurança habitual. A tensão perdurava. Estava a despejar a água quente para o bule quando o telefone tocou. Era Tamaru, claro.

– Acabei de ver o Cabeça-de-Abóbora – disse ela.

Silêncio.

– Quando dizes que acabaste de o ver, queres dizer que ele já não está aí?

– Certo – retorquiu Aomame. – Ainda há uns instantes, ele estava no parque, do outro lado da rua, à frente do meu prédio. Mas já lá não está.

– Quanto tempo quer dizer «uns instantes»?

– Há cerca de quarenta minutos.

– E porque é que não me telefonaste há quarenta minutos?

– Tive de o seguir logo e não houve tempo.

Tamaru esvaziou os pulmões muito devagar, como se estivesse a espremer todo o ar que tinha dentro de si.

– Segui-lo?

– Não quis perdê-lo.

– Pensava que te tinha dito para nunca pores o pé fora da porta.

Aomame escolheu as palavras com cuidado.

– Não posso ficar sentada à espera quando o perigo se aproxima de mim. Mesmo que tivesse feito o telefonema, tu nunca terias conseguido pôr-te aqui logo. Não é verdade?

Tamaru emitiu um curto som gutural.

– Com que então, seguiste o Cabeça-de-Abóbora.

– Aparentemente, ele não fazia a mínima ideia de que estava a ser seguido.

– Um profissional sabe fingir – avisou Tamaru.

Tamaru tinha razão. Podia ter sido tudo uma cilada engenhosa. Mas não podia dar o braço a torcer a Tamaru.

– Tenho a certeza de que tu o sabes fazer, mas, tanto quanto posso dizer, o Cabeça-de-Abóbora não está ao teu nível. Terá certas capacidades, mas é muito diferente de ti.

– Podia ter um apoio de retaguarda.

– Não. Garanto que estava sozinho.

Tamaru fez uma breve pausa.

– Muito bem. Quer isso dizer que descobriste para onde foi?

Aomame deu-lhe a morada do edifício e descreveu-lhe o exterior. Não sabia em que apartamento ele estava. Tamaru tomou algumas notas. Fez umas perguntas e Aomame respondeu, com tanto rigor quanto foi capaz.

– Dizes que, quando o viste, ele estava no parque do outro lado da rua – confirmou Tamaru.

– Certo.

– O que é que estava lá a fazer?

Aomame contou-lhe – descreveu-lhe o homem sentado no alto do escorrega, a olhar para o céu. Não referiu as duas luas. O que era de esperar.

– A olhar para o céu? – espantou-se Tamaru. Aomame conseguia ouvir o cérebro dele a funcionar.

– Para o céu, ou a Lua, ou as estrelas. Uma das coisas.

– E deixou-se ficar assim, exposto, indefeso, no alto do escorrega.

– Precisamente.

– Não achas isso estranho? – perguntou Tamaru. A sua voz era dura e seca, fazendo lembrar uma planta do deserto, daquelas que sobrevivem um ano inteiro com um único dia de chuva. – Aquele tipo perseguiu-te. Estava a um passo de ti. Um trabalho impressionante. E, de repente, põe-se no alto de um escorrega, a olhar para o céu com toda a calma. Não presta atenção ao bloco de apartamentos onde vives. Não bate certo.

– Concordo... não faz muito sentido. De qualquer maneira, não podia deixá-lo escapar.

Tamaru suspirou.

– Mesmo assim, continuo a pensar que foi um perigo.

Aomame manteve o silêncio.

– Resolveste alguma coisa por o teres seguido? – perguntou.

– Não – respondeu Aomame. – Mas houve algo que me chamou a atenção.

– E que foi?

– Quando olhei para as caixas do correio, vi que mora uma pessoa chamada Kawana no terceiro andar.

– E então?

– Já ouviste falar d’A Crisálida de Ar? O romance que foi um êxito de vendas no verão passado?

– Até mesmo eu leio jornais, sabes? A autora, Eriko Fukada, era filha de um dos membros da Vanguarda. Desapareceu e suspeitam que foi sequestrada pela seita. A polícia investigou o caso. No entanto, ainda não li o livro.

– A Eriko Fukada não é filha de um membro vulgar da Vanguarda. O pai dela era o Líder do culto. Era a filha do homem que eu mandei para o outro lado. Tengo Kawana foi contratado pelo editor para fazer o trabalho de escritor-fantasma e reescreveu A Crisálida de Ar. Na realidade, o romance é um trabalho a quatro mãos.

Um longo silêncio caiu sobre os dois. Tempo suficiente para caminhar até ao outro extremo de uma sala comprida e estreita, procurar qualquer coisa num dicionário e regressar. Por fim, Tamaru quebrou o silêncio:

– Não tens provas de que o Kawana que vive nesse prédio seja o Tengo Kawana.

– Não, ainda não – admitiu Aomame. – Porém, se é a mesma pessoa, então tudo isto passa a fazer sentido.

– Há partes que se interligam, sim – disse Tamaru. – Mas como é que sabes que este Tengo Kawana foi o escritor-fantasma d’A Crisálida de Ar? Isso não pode ter sido admitido em público. Teria causado um escândalo gigantesco.

– Ouvi-o da boca do próprio Líder. Contou-mo mesmo antes de morrer.

A voz de Tamaru ficou ainda um pouco mais fria.

– Não achas que já me devias ter contado isso tudo?

– Na altura, não me pareceu importante.

Seguiu-se outro silêncio. Aomame não conseguia adivinhar em que estaria Tamaru a pensar, mas sabia que ele não gostava de desculpas nem de justificações.

– Okay – acabou por dizer. – Deixemos isso, por agora. Vamos ao que interessa. Resumindo, o que queres dizer é que o cabeçudo podia ter fixado a atenção no Tengo Kawana. Se puxasse esse fio, daria com o teu paradeiro.

– Sim, é o que penso.

– Não estou a perceber – disse Tamaru. – Porque é que o Tengo seria uma pista para te encontrar? Não existe nenhuma ligação entre ti e esse Kawana, pois não? Além de teres tratado do pai da Eriko Fukada e do Tengo ter sido o escritor-fantasma do romance dela.

– Há uma ligação – respondeu Aomame, numa voz sem inflexão.

– Existe uma relação direta entre ti e o Tengo Kawana, é o que estás a querer dizer-me?

– Ele e eu andámos na mesma turma, nos tempos da escola primária. E penso que é o pai do meu bebé. Mas não posso dar mais explicações. É muito... como dizê-lo?... pessoal.

Do outro lado do telefone chegou-lhe o som de uma esferográfica a tamborilar numa mesa. Era tudo o que conseguia ouvir.

– Pessoal – repetiu Tamaru, numa voz que soou como se ele tivesse descortinado uma estranha criatura no alto de uma rocha no jardim.

– Lamento – disse Aomame.

– Compreendo. É uma coisa muito pessoal. Não torno a fazer perguntas – respondeu Tamaru. – Então, o que queres de mim, mais especificamente?

– Bom, a primeira coisa que gostava de saber é se o Kawana que vive naquele prédio é, realmente, o Tengo Kawana. Se fosse possível, gostava de o verificar pelos meus próprios olhos, mas é demasiado arriscado voltar lá.

– Concedido.

– E o Cabeça-de-Abóbora deve estar encafuado algures naquele edifício, a engendrar um plano. Se está prestes a chegar a mim, vamos ter de fazer qualquer coisa.

– Ele já dispõe de alguma informação acerca da tua relação com a senhora. Está a seguir todas as pistas com um cuidado extremo e a atar as pontas soltas. Não podemos ignorá-lo.

– Tenho outra coisa a pedir-te – continuou Aomame.

– Força.

– Se é realmente o Tengo Kawana quem lá vive, não quero que lhe aconteça mal nenhum. Se for inevitável feri-lo, quero tomar o seu lugar.

De novo, Tamaru remeteu-se ao silêncio durante um bom bocado. Desta vez, a esferográfica não tamborilou na mesa. A bem dizer, não se ouviu o menor ruído. Ele estava a avaliar o caso num mundo desprovido de som.

– Penso que posso encarregar-me dos dois primeiros pedi-dos – afirmou Tamaru. – Fazem parte das minhas incumbências. Quanto ao terceiro pedido, não posso garantir-te nada. Envolve coisas muito pessoais e, aos meus olhos, há demasiadas incógnitas. Diz-me a experiência que não é tarefa fácil tratar de três coisas ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, acabamos por ter de estabelecer prioridades.

– Não me importo. Podes estabelecer as prioridades que quiseres. Só quero que mantenhas isto presente: tenho de me encontrar com o Tengo, enquanto ainda estou viva. Há uma coisa que preciso de lhe dizer.

– Não me vou esquecer disso – prometeu Tamaru. – Isto é, enquanto houver espaço livre na minha cabeça.

– Obrigada.

– Vou ter de contar à senhora tudo o que me disseste. É um caso muito sensível e não posso tomar decisões por mim. Para já, ficamos por aqui; vou desligar. Escuta, não tornes a sair. Tranca a porta e fica quieta. Se saíres, ainda arranjas problemas. Talvez já o tenhas feito.

– Mas ajudou-me a descobrir algumas coisas sobre ele.

– Muito bem – assentiu Tamaru, num tom resignado. – Tomando em conta o que me disseste, parece-me que fizeste um bom trabalho. Sou forçado a admitir. Mas não baixes a guarda. Ainda não sabemos que trunfos ele guarda na manga. Tendo em conta a situação, é mais do que provável que haja uma organização a apoiá-lo. Ainda conservas aquilo que eu te dei?

– Claro.

– É melhor tê-la sempre à mão.

– Vai estar.

Uma curta pausa, e a chamada foi cortada.

Aomame enfiou-se dentro da banheira, que enchera até à borda, e, enquanto sentia o corpo aquecer, foi pensando em Tengo. O Tengo que podia ou não viver num apartamento daquele prédio antigo. Visualizou a pouco convidativa porta de aço, a ranhura para o cartão com o nome, o apelido Kawana impresso no cartão. Que tipo de casa existirá por trás daquela porta? E que tipo de vida será a sua?

Mergulhada na água quente, levou as mãos aos seios e massajou-os. Os mamilos tinham-se modificado e estavam maiores e mais rijos do que antes. E mais sensíveis. Quem me dera que fossem as mãos do Tengo e não as minhas, pensou. Imaginou as mãos dele, grandes e calorosas. Fortes mas certamente gentis. A ideia de ter as mãos de Tengo a envolver-lhe os seios proporcionou-lhe um profundo prazer e uma enorme paz. Aomame também notou que os seus seios estavam um pouco maiores. Não era ilusão. Estavam claramente inchados, com curvas mais suaves. Provavelmente devido à gravidez. Ou talvez tenham só aumentado de tamanho, sem qualquer relação com a gravidez. É uma das facetas da minha transformação.

Pousou as mãos sobre o abdómen. Mal se arredondara e, por alguma razão, não tivera ainda enjoos matinais. Mas ali dentro, escondido, estava um pequenino. Ela sabia-o. Espera um instante, pensou. Talvez não andem atrás da minha vida, mas deste pequenino? Como vingança por eu ter matado o Líder, estão a tentar deitar-nos a mão, a ele e a mim? A ideia provocou-lhe um arrepio. Aomame sentiu-se duplamente determinada a encontrar-se com Tengo. Os dois juntos seriam capazes de proteger o pequenino. Já roubaram tantas coisas preciosas da minha vida, pensou. Mas vou agarrar-me a esta.

Foi para a cama e leu durante um bocado, mas o sono não veio. Fechou o livro e, com cuidado, enrolou-se sobre si própria, numa bola, para proteger o abdómen. Com a face encostada à almofada, pensou na lua de inverno no céu, sobre o parque, e na luazinha verde, ao seu lado. Mã e nina. A luz das duas luas misturava-se e banhava os ramos despidos da zelcova. Naquele preciso momento, Tamaru devia estar a congeminar um plano, com a cabeça a trabalhar a cem à hora. Imaginou-o de sobrancelhas franzidas, a tamborilar furiosamente na mesa com a ponta da esferográfica. Por fim, como que embalada por aquele ritmo monótono e incessante, o suave manto do sono enrolou-se à sua volta, envolvendo-a.


21

TENGO

Algures dentro da cabeça dele

O telefone estava a tocar. Os ponteiros do relógio marcavam duas horas e quatro minutos. Segunda-feira, duas e quatro da madrugada. Ainda estava escuro na rua e Tengo dormia profundamente. Um sono pacífico, sem sonhos.

Começou por pensar que era Fuka-Eri. Seria a única pessoa capaz de lhe telefonar a uma hora tão disparatada. Ao fim de um momento, o rosto de Komatsu veio-lhe à memória. Komatsu não era muito razoável no que tocava a horários. Contudo, não parecia ser o toque de Komatsu. Era mais insistente, mais pragmático. E, além do mais, estivera com Komatsu poucas horas antes.

Uma das opções, e a primeira escolha de Tengo, seria deixar o telefone tocar e retomar o sono. Mas os toques prosseguiram. Era possível que continuasse a tocar durante a noite toda. Saiu da cama, batendo com a canela contra qualquer coisa, e deitou a mão ao auscultador.

– Sim? – atendeu, com a voz ainda pesada de sono. Parecia-lhe ter a cabeça cheia de alface congelada. Há quem não saiba que não se pode congelar alface; uma vez descongelada, perde todo o seu viço. O que, no caso da alface, deve ser a sua melhor característica.

Quando aproximou o auscultador do ouvido, a única coisa que ouviu foi o vento. Um vento caprichoso a varrer uma vereda estreita, roçando na pelagem de um belo veado de cabeça baixa, a beber num riacho. Mas não era o som do vento. Era o som da respiração de alguém, amplificado pelo telefone.

– Sim? – repetiu. Seria uma brincadeira? Ou talvez a ligação estivesse má.

– Sim – disse a pessoa do outro lado. Uma voz de mulher que já ouvira. Não era Fuka-Eri. Nem a sua namorada mais velha.

– Sim – disse Tengo. – Fala Kawana.

– Tengo-kun – saudou-o a outra pessoa. Pareciam estar finalmente em sintonia, se bem que ele continuasse sem saber de quem se tratava.

– Quem fala?

– Kumi Adachi – respondeu a mulher.

– Oh, olá – retorquiu Tengo. Kumi Adachi, a jovem enfermeira que vivia no apartamento onde se ouvia o piar do mocho. – O que se passa?

– Estavas a dormir?

– Estava – respondeu Tengo. – E tu?

Pergunta sem sentido. Quem está a dormir não faz chamadas telefónicas. Porque fiz eu uma pergunta tão estúpida?, pensou. Talvez fosse a alface congelada que lhe enchia a cabeça.

– Estou de turno – respondeu ela. Pigarreou. – O senhor Kawana acabou de falecer.

– O senhor Kawana acabou de falecer – repetiu Tengo, sem compreender. Era possível que alguém lhe estivesse a dizer que morrera?

– O teu pai acabou de soltar o último suspiro – disse Kumi, refazendo a frase.

Sem motivo aparente, Tengo passou o auscultador da mão direita para a esquerda.

– Soltou o seu último suspiro – repetiu.

– Eu estava a dormitar no cubículo das enfermeiras, pouco passava da uma, quando a campainha tocou. Era a campainha do quarto do teu pai. Há tanto tempo que estava em coma e não podia tocar a campainha por si mesmo; eu achei estranho e fui ver o que se passava. Quando lá cheguei, a respiração tinha parado e o coração também. Acordei o médico de serviço e tentámos reanimá-lo, mas não conseguimos.

– Estás a dizer-me que o meu pai carregou no botão de chamada?

– Provavelmente. Mais ninguém podia tê-lo feito.

– Qual foi a causa da morte? – perguntou Tengo.

– Na realidade, não sei dizer. Aparentemente, ele não sofreu. Estava com uma expressão de grande tranquilidade. Parecia... uma folha caída de uma árvore, num dia sem vento, no final do outono. Mas talvez não seja a melhor maneira de descrever o que aconteceu.

– Não, está bem assim – disse Tengo. – É uma excelente maneira de o descrever.

– Tengo-kun, consegues vir cá hoje?

– Penso que sim. – As aulas na escola recomeçavam naquele dia, segunda-feira, mas, por uma razão daquelas, conseguiria que lhe dessem dispensa.

– Apanho o primeiro comboio expresso. Devo chegar aí antes das dez.

– Agradecia que o fizesses. Há muitas e variadas formalidades a cumprir.

– Formalidades – ecoou Tengo. – Há alguma coisa em particular que eu deva levar comigo?

– És o único parente do senhor Kawana?

– Sim, tenho a certeza.

– Então traz o teu selo registado28. Podes vir a precisar dele. Tens um certificado de registo do selo?

– Acho que tenho uma cópia a mais, sim.

– Trá-la também, por precaução. Não penso que seja preciso qualquer outra coisa. O teu pai tratou de tudo com antecedência.

– Tratou de tudo?

– Sim. Enquanto ainda estava consciente, deixou instruções pormenorizadas para tudo: o dinheiro para pagar o funeral, a roupa que levaria no caixão, onde enterrar as suas cinzas. Era uma pessoa muito cuidadosa a fazer planos. Muito pragmática, diria.

– Sim, era mesmo assim – disse Tengo, esfregando a têmpora.

– Acabo o turno às sete e vou para casa dormir. Mas as enfermeiras Tamura e Omura vão estar de serviço de manhã e podem explicar-te todos os pormenores.

– Muito obrigada por todo o teu cuidado – disse Tengo.

– De nada, foi um prazer – retorquiu Kumi Adachi. Logo de seguida, recordando-se das circunstâncias, mudou de tom. – As minhas condolências.

– Muito obrigado – agradeceu Tengo.

Sabia que não ia conseguir voltar a adormecer, pelo que foi ferver água e fazer um café. A bebida despertou-o um pouco. Sentiu fome e fez uma sanduíche com os tomates e o queijo que havia no frigorífico. Como só acontece quando se come às escuras, sentia a textura mas pouco sabor. Depois, pegou no horário dos comboios e consultou a hora de saída do próximo expresso para Tateyama. Apesar de ter regressado apenas dois dias antes da «cidade dos gatos», na tarde de sábado, tinha agora de voltar lá. Desta vez, contudo, era provável que a sua estada se resumisse a uma ou duas noites.

Às quatro da madrugada lavou a cara no lavatório e barbeou-se. Usou uma escova na tentativa de domar os seus cabelos espetados, porém, como de costume, o esforço teve um sucesso muito relativo. Deixá-lo, pensou. Antes do meio-dia já foram ao sítio.

A morte do pai não era especialmente chocante para Tengo. Passara duas semanas inteiras ao lado do pai inconsciente. Já nessa altura sentira que o progenitor aceitara a morte iminente. Os médicos não conseguiam determinar o que o tinha posto em coma, mas Tengo sabia. Pura e simplesmente, ele decidira morrer. Ou, por outras palavras, abandonara o desejo de continuar a viver. Para usar as palavras de Kumi, «como uma folha caída de uma árvore, num dia sem vento, no final do outono», desligara a luz da consciência, fechara a porta aos sentidos e aguardara a mudança de estação.

Na estação de Chikura apanhou um táxi e chegou à clínica à beira-mar às dez e meia. Tal como no dia anterior, domingo, estava um dia calmo, de início de inverno. A luz do Sol, quente, iluminava o relvado seco, como se o recompensasse, e um gato tricolor que Tengo nunca vira estava deitado ao sol, alisando a cauda com toda a calma. As enfermeiras Tamura e Omura vieram recebê-lo à porta. Em voz baixa, apresentaram os seus pêsames, e Tengo agradeceu-lhes.

O corpo do pai repousava numa salinha discreta, num canto igualmente discreto da clínica. A enfermeira Tamura conduziu Tengo até lá. O pai estava estendido de costas numa maca articulada, coberto por um lençol branco. No quartinho quadrado e sem janelas, a luz fluorescente do teto tornava as paredes ainda mais brancas. Em cima de um armário, que chegava à altura da cintura, havia uma jarra de vidro com três crisântemos brancos, que provavelmente alguém ali pusera naquela manhã. Na parede havia um relógio redondo. Era um relógio velho, cheio de pó, mas dava horas certas. Talvez desempenhasse o papel de testemunha. Para além disto, não havia mais qualquer peça de mobília ou adereços. Por ali já deviam ter passado inúmeros corpos de idosos. Entravam sem uma palavra, saíam sem uma palavra. Pairava no quartinho uma atmosfera prática mas solene, cheia de subentendidos.

O rosto do pai não mostrava traços muito diferentes de quando era vivo. Mesmo de perto, não parecia estar morto. Não estava com má cor, e talvez porque alguém tivera a amabilidade de o barbear, o queixo e o lábio superior revelavam-se estranhamente suaves. Tal como se encontrava naquele momento, era difícil ver as diferenças entre estar vivo e inconsciente e ter morrido, senão porque os tubos e os cateteres eram agora desnecessários. Se deixassem o corpo assim, contudo, dentro de poucos dias começaria a decompor-se e a diferença entre a vida e a morte seria então imensa. Contudo, o corpo seria cremado antes que isso ocorresse.

O médico com quem Tengo tantas vezes falara entrou, exprimiu os seus sentimentos e explicou o que provocara o falecimento do pai. Foi muito simpático, muito prolixo nas explicações que deu, mas, tudo somado, a conclusão era de que ignoravam a causa do óbito. Nunca nenhum exame tinha conseguido diagnosticar o mal de que padecia. O mais que o médico conseguia afirmar era que o pai de Tengo morrera de velhice – mas ele andava ainda na casa dos sessenta, sendo demasiado jovem para se lhe aplicar um diagnóstico destes.

– Enquanto médico assistente do seu pai, sou eu que preencho a certidão de óbito – continuou o médico, hesitante. – Estou a pensar escrever que o óbito se deveu a «falha cardíaca provocada por coma prolongado». Acha bem assim?

– Mas, de facto, a causa da morte não foi «falha cardíaca provocada por coma prolongado». É isso que me está a dizer?

O médico assumiu um ar um tanto embaraçado.

– A verdade é que nunca detetámos nada de errado no coração do seu pai.

– Mas também não encontraram nada de errado nos outros órgãos.

– É verdade – concordou o médico, relutante.

– E a certidão exige uma razão clara para o falecimento?

– Certo.

– Não é a minha área, mas, neste instante, o coração dele está parado, certo?

– Claro. O coração dele parou.

– O que é uma espécie de falha orgânica, não é?

O médico pensou naquilo.

– Se considerarmos que o normal é o coração bater, sim: como diz, é uma espécie de falha orgânica.

– Então, por favor, escreva isso. «Falha cardíaca provocada por coma prolongado», foi o que disse? Não tenho nada a opor.

O médico pareceu ter ficado aliviado.

– Tenho a certidão pronta dentro de meia hora – disse. Tengo agradeceu-lhe. O médico saiu, ficando apenas Tamura, a enfermeira de óculos.

– Queres que te deixe sozinho com o teu pai? – perguntou a enfermeira a Tengo. Uma vez que tinha de o fazer, sendo esse o procedimento protocolado, a pergunta pareceu-lhe pura formalidade.

– Não, não é necessário. Obrigado – disse Tengo. Mesmo que o deixassem a sós com o pai, não tinha nada de especial que quisesse dizer-lhe. Já quando era vivo acontecia o mesmo. Agora que estava morto, não lhe ocorreu inopinadamente toda uma série de tópicos que desejasse discutir com ele.

– Queres ir para outro sítio combinar todos os preparativos? Não te importas? – perguntou a enfermeira Tamura.

– Não me importo – retorquiu Tengo.

Antes de sair, a enfermeira Tamura virou-se para o corpo e uniu as mãos numa prece. Tengo imitou-a. As pessoas mostram respeito para com os mortos de maneira espontânea. Ao fim e ao cabo, o falecido acabava de realizar essa proeza pessoal e profunda que é morrer. A seguir, saíram os dois daquele quartinho sem janelas e dirigiram-se à cantina. Não estava lá ninguém. A luz brilhante do Sol entrava a jorros pela grande janela virada para o jardim. Tengo avançou na direção da luz e suspirou, aliviado. Ali não havia qualquer vestígio de morte. Aquele era o mundo dos vivos – por mais imperfeito e incerto que esse mundo pudesse ser.

A enfermeira Tamura encheu uma chávena com chá hojicha torrado2 e estendeu-lha. Sentaram-se a uma mesa, à frente um do outro, e beberam o seu chá em silêncio.

– Vais ficar por estes lados esta noite? – perguntou a enfermeira Tamura.

– Estou a pensar passar cá a noite, mas ainda não reservei quarto.

– Se não te faz diferença, que tal ficares no quarto do teu pai? Ninguém o vai usar e sempre poupas o dinheiro do hotel. Se não te incomoda.

– Não me incomoda nada – retorquiu Tengo, um tanto surpreendido. – Mas não há problema?

– A nós não nos faz diferença. Se tu não te importas, nós também não. Mais tarde, mando fazer a cama.

– E então – começou Tengo, indo direto ao assunto –, o que é que tenho de fazer agora?

– Quando receberes a certidão de óbito passada pelo médico assistente, vai à Câmara, arranja uma autorização de cremação e trata do que for necessário para anular o nome dele no koseki29. Têm de fazer o assento do óbito. Isso é o mais importante. Depois, haverá outras coisas a tratar: a pensão, alteração de titular na conta do banco... mas, para isso, é melhor falar com o advogado.

– Advogado? – Tengo foi apanhado de surpresa.

– O senhor Kawana, o teu pai, falou com um advogado sobre tudo o que haveria a fazer após a sua morte. Não te deixes assustar pela palavra «advogado». A nossa clínica recebe muitos idosos e nem sempre são legalmente responsáveis, por isso fizemos um acordo com um gabinete local e disponibilizamos apoio para evitar problemas legais ligados à partilha dos bens. Também fazem testamentos e arranjam as testemunhas. Não cobram por aí além.

– O meu pai fez testamento?

– Não posso dizer-te nada a esse respeito. Tens de falar com o advogado.

– Estou a ver. E podemos falar dentro de pouco tempo?

– Já nos pusemos em contacto com ele e pedimos-lhe que estivesse cá por volta das três. Está bem para ti? Parece que estamos a apressar as coisas, mas sei que estás ocupado, pelo que espero que não te aborreças por nos termos adiantado.

– Estou-te muito agradecido. – Tengo estava grato pela eficiência dela. Por qualquer razão, as mulheres de meia-idade que conhecia eram todas muito eficientes.

– Antes disso, vai à Câmara – insistiu a enfermeira Tamura –, trata de anular o nome no registo de família e arranja uma autorização de cremação. Não se pode fazer nada antes de ter isto tratado.

– Bom, então vou ter de ir a Ichikawa. A residência legal do meu pai deve ser na cidade de Ichikawa. Se for agora, não consigo estar cá antes das três.

A enfermeira abanou a cabeça.

– Não. Pouco depois de ter chegado, o teu pai mudou a residência legal dele de Ichikawa para Chikura. Disse que, quando a altura chegasse, facilitaria as coisas.

– Deixou tudo bem preparado – comentou Tengo, impressionado. Era como se, logo desde o princípio, soubesse que morreria ali.

– Pois deixou – anuiu a enfermeira. – Nunca ninguém tinha feito isto. Toda a gente pensa que vem só passar um tempo aqui. Mesmo assim... – começou a dizer, mas interrompeu-se e juntou as mãos em silêncio, como que a sugerir o que ia dizer de seguida. – Seja como for, não vais ter de te deslocar a Ichikawa.

Conduziram Tengo ao quarto do pai, o quarto onde passara os seus derradeiros meses. Os lençóis e as cobertas tinham sido retirados, deixando ficar apenas um colchão às riscas. Em cima da mesa de cabeceira havia um simples candeeiro e no armário estreito estavam cinco cabides vazios. Na prateleira não se via um único livro e todos os seus pertences tinham sido retirados. Se bem que Tengo não se recordasse de nenhum objeto pessoal específico que lá tivesse estado. Pousou o saco no chão e olhou à sua volta.

No quarto pairava um odor a remédios e ainda se detetava o hálito de uma pessoa doente. Tengo abriu a janela para deixar entrar ar fresco. A cortina, queimada do sol, ondulou com a brisa, qual saia de uma rapariguinha na brincadeira. Como seria maravilhoso se a Aomame aqui estivesse, pensou Tengo, só a segurar-me a mão, sem dizer absolutamente nada.

Apanhou o autocarro para a Câmara de Chikura, mostrou a certidão de óbito e recebeu a autorização de cremação. Assim que tivessem passado vinte e quatro horas sobre a morte, o corpo podia ser cremado. Também fez o pedido para a alteração do registo de família e recebeu um certificado em como o fizera. Todas estas diligências demoraram algum tempo, mas constituíram quase uma desilusão, de simples que se revelaram ser. Nada daquilo provocaria um acesso de introspeção. Quase igual à participação do furto de um carro. A enfermeira Tamura utilizou a fotocopiadora do escritório para fazer três cópias dos documentos que ele recebera.

– Às duas e meia, antes de o advogado chegar, vem cá uma pessoa da funerária Zenko-sha – informou-o a enfermeira. – Por favor, entrega-lhe uma cópia da autorização de cremação. O pessoal da agência funerária tratará do resto. Em vida, o teu pai falou com o responsável dos funerais e decidiu tudo. Também guardou o dinheiro suficiente para cobrir as despesas, pelo que não precisas de fazer nada. A menos que tenhas alguma objeção.

– Não, nenhuma – disse Tengo.

O pai pouco deixara para trás. Roupa velha, alguns livros – e era tudo.

– Queres ficar com alguma coisa como recordação? Só existe um despertador, um velho relógio automático e os óculos de ler – informou a enfermeira Tamura.

– Não quero nada – disse Tengo à enfermeira. – Dá-lhes o destino que achares melhor.

* * *

Às duas e meia em ponto chegou o responsável da funerária. Envergava um fato preto. Deslocava-se sem fazer barulho. Era um homem magro de cinquenta e poucos anos, tinha dedos compridos, olhos grandes e uma verruga negra de um dos lados do nariz. Parecia passar muito tempo ao ar livre, pois tinha a face muito bronzeada, até à ponta das orelhas. Tengo não saberia dizer porquê, mas nunca vira um cangalheiro gordo. O homem explicou-lhe mais ou menos no que consistia o funeral. Foi muito educado e falou deliberadamente devagar, como se sugerisse que podiam levar todo o tempo que se revelasse necessário.

– Em vida, o seu pai disse-me que desejava um funeral tão simples quanto possível. Queria um caixão vulgar e funcional, e desejava ser cremado. Não requisitou cerimónia alguma, nada de sutras30, de nome póstumo budista, nem flores, nem discursos. Também não queria um túmulo. Disse que preferia que depositasse as cinzas dele com maior discrição num qualquer espaço comunitário da zona. Isto se o senhor não levantar objeções...

Interrompeu-se e inquiriu com os seus grandes olhos o rosto de Tengo.

– Se é o que o meu pai queria, eu não tenho nada a opor – retorquiu Tengo, olhando a direito para aqueles olhos.

O responsável da funerária assentiu e baixou os olhos.

– Então, hoje levaremos o corpo até à funerária e, durante a noite, será feito o velório nas nossas instalações. Por isso, teremos de transportar o corpo para a nossa sede. A cremação terá lugar amanhã, à uma e meia da tarde, aqui perto. Espero que isto seja satisfatório?

– Por mim, tudo bem.

– Estará presente na cremação?

– Sim – respondeu Tengo.

– Há pessoas que não querem fazê-lo está perfeitamente à vontade.

– Vou lá estar – reafirmou Tengo.

– Muito bem – disse o homem, num tom de ligeiro alívio. – Lamento ter de o incomodar com isto agora, mas trata-se do mesmo valor que indiquei ao seu pai, em vida. Faz-me a gentileza de o aprovar?

Dito isto, o responsável da funerária, com uns dedos compridos a fazer lembrar patas de insetos, tirou da pasta um orçamento e estendeu-o a Tengo. Ele não sabia nada de funerais, mas percebeu que ficava bastante em conta. Não tinha objeções. Pediu uma esferográfica emprestada e assinou o contrato. O advogado chegou pouco antes das três e entabulou conversa com o responsável da funerária – frases curtas, uma troca de palavras entre profissionais. Tengo não foi capaz de seguir aquele diálogo. Os dois pareciam conhecer-se bem. Era uma cidade pequena; provavelmente, toda a gente se conhecia.

Perto da morgue havia uma portinha discreta e a carreta da funerária estava estacionada no exterior. Com exceção da janela do lado do condutor, todas as outras estavam tingidas de preto, e a carreta, cor de asa de corvo, não ostentava quaisquer sinais ou letras. O responsável magro e um assistente de cabelo branco passaram o pai de Tengo para uma padiola com rodas e empurraram-na na direção da carreta. O interior havia sido adaptado e o tejadilho era bastante alto. Tinha uns carris sobre os quais fizeram deslizar a padiola. Fecharam as portas de trás da carreta com uma pancada determinada, o responsável virou-se para Tengo, curvou-se e a carreta partiu. Tengo, o advogado, a enfermeira Tamura e a enfermeira Omura ficaram a olhar para a porta de trás da Toyota preta e uniram as mãos numa prece.

Tengo e o advogado sentaram-se a conversar numa ponta da cantina. O advogado aparentava ter uns quarenta e tal anos e era bastante obeso, num contraste absoluto com o responsável da funerária. O queixo quase lhe desaparecera e, não obstante o frio invernoso, tinha a testa coberta por uma leve camada de suor. No verão devia transpirar horrivelmente. O fato de lã cinzento cheirava a naftalina. Tinha uma testa estreita e, por cima dela, uma massa de cabelo preto, grosso e exuberante. A combinação do corpo obeso com o cabelo espesso não resultava bem. As pálpebras eram pesadas e salientes, os olhos estreitos, mas, vendo com atenção, tinham no fundo um brilho amistoso.

– O seu pai pediu-me que tratasse do seu testamento. A palavra «testamento» sugere algo de importante, mas não se trata de um desses testamentos de romance de detetives – começou o advogado e pigarreou. – Na realidade, está bastante mais próximo de uma simples lista. Permita-me que comece por lhe fazer um breve resumo. O testamento começa por definir os contornos do funeral. Imagino que o cavalheiro da Zenko¯ -sha lhe tenha explicado os pormenores?

– Sim, explicou. Vai ser um funeral simples.

– Muito bem – concordou o advogado. – A vontade do seu pai era a de que tudo fosse feito de forma tão discreta quanto possível. As despesas do funeral serão pagas por um fundo de reserva constituído por ele, e as despesas médicas e outras sairão de uma fiança que o seu pai depositou quando veio para esta instituição. Não terá de pagar nada do seu próprio bolso.

– Ele não queria ficar a dever nada a ninguém, pois não?

– Precisamente. Tudo foi pago adiantadamente. O seu pai também tinha algum dinheiro numa conta nos Correios de Chikura, que o senhor, como seu filho, herdará. Terá de se encarregar de o passar para seu nome. Para o fazer, precisa de um documento que prove que o nome do seu pai foi anulado no koseki, além de uma cópia do seu koseki e do certificado do seu selo. Com isso, deve dirigir-se diretamente ao posto dos Correios de Chikura e preencher pelo seu punho os documentos necessários. A tramitação pode demorar algum tempo. Como sabe, tanto os bancos como os correios japoneses são bastante minuciosos quanto ao preenchimento de todos os impressos necessários.

O advogado tirou um grande lenço branco do bolso do casaco e limpou o suor da testa.

– É tudo o que tenho a dizer-lhe quanto à herança. Ele não tinha mais bens para além do que deixou na conta dos correios: não tinha seguros, ações, propriedades, joias, objetos de arte, nada do género. Tudo muito claro, pode dizer-se, e sem complicações.

Tengo anuiu em silêncio. Aquilo era mesmo do pai. Mas a ideia de tomar posse da conta postal deixou Tengo um tanto deprimido. Parecia que lhe tinham passado para as mãos uma pilha de pesados cobertores húmidos. Se fosse possível, preferia não a receber. Mas não podia confessar tal coisa.

– O seu pai também confiou um envelope aos meus cuidados. Trouxe-o comigo e gostava de lho entregar agora.

O grosso envelope castanho estava bem selado com fita-cola. O obeso advogado tirou-o de dentro da pasta preta e colocou-o em cima da mesa.

– Encontrei-me com o senhor Kawana pouco tempo depois de ele se ter mudado para aqui, e, na altura, ele entregou-me isto. Ainda estava... consciente. Uma vez por outra, ficava desorientado, mas, em geral, funcionava perfeitamente. Disse-me que, quando morresse, queria que eu entregasse isto ao seu herdeiro legal.

– Herdeiro legal – repetiu Tengo, surpreendido.

– Sim, foi o termo que usou. O seu pai não referiu ninguém em particular, mas, em termos práticos, o senhor deverá ser o único herdeiro legal.

– Tanto quanto sei, sim.

– Então, e seguindo as instruções que recebi, aqui tem – disse o advogado, apontando para o envelope pousado na mesa. – Por favor, não se importa de me assinar um recibo?

Tengo assinou o recibo. O envelope castanho em cima da mesa tinha um ar anónimo e desinteressante. Não tinha nada escrito, nem de um lado nem de outro.

– Gostava de lhe fazer uma pergunta – disse Tengo ao advogado. – O meu pai alguma vez referiu o meu nome? Ou disse a palavra «filho»?

Enquanto pensava na pergunta, o advogado tornou a puxar do lenço e limpou a testa. Abanou ligeiramente a cabeça.

– Não, o senhor Kawana usou sempre a expressão «herdeiro legal». Nunca usou outros termos. Recordo-me porque achei aquilo estranho.

Tengo ficou silencioso. O advogado recompôs-se e prosseguiu:

– Mas tem de perceber que o senhor Kawana sabia que o senhor era o único herdeiro legal. Simplesmente, na conversa, não se mencionou o seu nome. Isso incomoda-o?

– Não, nada em particular – respondeu Tengo. – O meu pai foi sempre um tanto bizarro.

O advogado sorriu, como se tivesse ficado aliviado, e fez um ligeiro aceno com a cabeça. Estendeu-lhe uma nova cópia do koseki.

– Se não se importa, e dada a natureza da enfermidade, gostaria que verificasse o registo de modo a garantirmos que não existirá qualquer problema com os trâmites legais. Segundo o registo, é o único filho do senhor Kawana. A sua mãe faleceu um ano e meio depois de dar à luz. O seu pai não voltou a casar e criou-o sozinho. Os pais do seu pai e respetivos descendentes também já faleceram. Portanto, o senhor é claramente o único herdeiro legal do senhor Kawana.

Tendo dito isto, o advogado levantou-se, expressou-lhe as suas condolências e partiu, deixando Tengo ali sentado, a olhar para o envelope pousado na mesa. O seu pai era o seu pai verdadeiro e a sua mãe tinha morrido mesmo. O advogado afirmara-o e era também o que estava registado. Portanto, tinha de ser verdade – ou pelo menos, um facto em sentido legal. No entanto, parecia que, quantos mais factos eram revelados, mais a verdade se afastava. Como podia isto ser?

Tengo regressou ao quarto do pai, sentou-se à secretária e esforçou-se por abrir o envelope selado. Era possível que contivesse a chave para desvendar um mistério. Foi uma luta para o abrir. No quarto não havia nem tesouras nem canivetes, e ele teve de arrancar a fita-cola com as unhas. Quando, por fim, conseguiu abrir o envelope, o conteúdo estava dividido por outros envelopes, todos eles também fechados com fita-cola. Precisamente o tipo de coisa que esperaria do pai.

Um dos envelopes continha quinhentos mil ienes em notas. Rigorosamente cinquenta notas de dez mil ienes novinhas em folha, embrulhadas em folhas de papel fino. Junto havia um pedaço de papel onde estava escrito «dinheiro para emergências». Obviamente a letra do pai, miudinha, sem abreviaturas. Esse dinheiro deveria estar guardado para provir a despesas inesperadas. O pai previra que o seu herdeiro legal não iria dispor de fundos suficientes.

O envelope mais espesso estava cheio de recortes de jornais e vários diplomas de prémios, todos eles relacionados com Tengo. O diploma do concurso de matemática na escola básica e o artigo acerca do prémio, que saíra no jornal da zona. Uma fotografia de Tengo ao lado do troféu. O diploma com ar artístico que Tengo recebera por ter as melhores notas da turma. Tivera as melhores notas em todas as disciplinas. Havia vários outros artigos que mostravam a criança-prodígio que Tengo fora. Uma fotografia de Tengo num judogi31, na secundária, a sorrir, segurando o estandarte do segundo lugar. Tengo ficou verdadeiramente surpreendido por se deparar com aquilo tudo. Depois de se ter reformado da NHK, o pai saíra da casa em que habitava, pertença da empresa, e mudara-se para um apartamento em Ichikawa; por fim, instalara-se na clínica de Chikura. Provavelmente porque se mudara tantas vezes sozinho, não acumulara outros bens. Pai e filho mantiveram-se distantes um do outro durante muitos anos. Apesar disso, o pai guardara amorosamente todas estas recordações de Tengo, dos dias de menino-prodígio.

O envelope seguinte continha vários documentos ligados aos tempos em que o pai trabalhara como cobrador da NHK. Um registo dos tempos em que fora o empregado do ano. Vários certificados simples. Uma fotografia tirada, aparentemente, com um colega numa viagem da empresa. Um velho cartão de identificação. Vários exemplares da sua folha de salário, que Tengo desconhecia por que razão o pai os guardara. Registos de pagamentos do seu plano de reforma e seguro de saúde... Apesar de, durante mais de trinta anos, o seu pai ter trabalhado como um cão para a NHK, a quantidade de material que deixara era surpreendentemente escassa – quase nada quando comparada com as proezas de Tengo na escola básica. A sociedade poderia encarar a vida do pai como tendo sido nula, mas aos olhos de Tengo não era nula. Juntamente com uma caderneta de poupanças postal, o pai deixara-lhe na alma uma sombra grande e profunda.

No envelope não havia nada relativo à vida do pai antes de ter entrado para a NHK. Era como se a vida dele tivesse começado no instante em que se transformara em cobrador da NHK.

Abriu o último envelope, muito delgado, e encontrou uma única fotografia a preto-e-branco. Era tudo. Tratava-se de uma fotografia antiga e, apesar de o contraste ter diminuído e se encontrar desbotada, a fotografia estava coberta por uma fina membrana, como se tivesse apanhado água. Era a fotografia de uma família – um pai, uma mãe e um bebé pequeno. O bebé parecia ter menos de um ano. A mãe, envergando um quimono, tinha amorosamente o bebé ao colo. Ao fundo viam-se as portas torii32 de um templo xintoísta. Pelas roupas que envergavam, devia ser inverno. Uma vez que estavam a visitar um templo, certamente teria sido no dia de Ano Novo. A mãe tinha os olhos franzidos, como se a luz fosse demasiado intensa, e sorria. O pai, envergando um casaco escuro, ligeiramente grande para o seu tamanho, tinha rugas de expressão entre os olhos, como se quisesse dizer que não aceitava nada sem fazer perguntas. O bebé parecia perplexo com a imensidade e a frieza do mundo.

O jovem pai da fotografia tinha de ser o pai de Tengo. Com um ar muito mais jovem, se bem que já ostentasse uma surpreendente maturidade, e era magro, com os olhos encovados. Era o rosto de um camponês pobre, vindo de uma aldeola remota. Casmurro, cético. Tinha o cabelo cortado curto e os ombros um tanto curvados. Só podia ser o seu pai. O que significava que o bebé seria Tengo, e a mãe que o segurava ao colo tinha de ser a sua mãe. Ela era ligeiramente mais alta do que o pai e exibia uma postura elegante. O pai teria trinta e muitos anos, ao passo que a mãe parecia andar pelos vinte e quatro, vinte e cinco anos.

Tengo nunca vira aquela fotografia. Nunca vira nada a que se pudesse dar o nome de fotografia de família. E nunca vira uma fotografia de si próprio em criança. Uma vez, o pai explicara-lhe que não tinham dinheiro para comprar uma máquina fotográfica, e que ele nunca tivera oportunidade de mandar tirar fotografias à família. Tengo aceitara a explicação, mas agora sabia que era mentira. Eles tinham tirado uma fotografia juntos. E apesar de as suas roupas não serem exatamente luxuosas, eram, ainda assim, apresentáveis. Eles não tinham a aparência de serem tão pobres que nem se podiam dar ao luxo de ter uma máquina fotográfica. A fotografia fora tirada pouco tempo depois do nascimento de Tengo, entre 1954 e 1955. Virou a fotografia, mas esta não tinha data ou qualquer indicação do sítio onde fora tirada.

Tengo observou a mulher. Na fotografia, a cara era pequena e estava ligeiramente desfocada. Quem lhe dera ter ali uma lupa! Poderia distinguir mais pormenores. Ainda assim, conseguia ver a maior parte das suas feições. Tinha um rosto oval, um nariz pequeno e lábios cheios. Longe de se poder considerar uma beleza, não deixava de ser engraçada – era o tipo de cara que deixava uma boa impressão. Pelo menos, quando comparada com a face rústica do pai, ela tinha um ar de longe mais refinado e inteligente. Tengo ficou contente com isto. Ela tinha o cabelo bem arranjado, porém, uma vez que vestia um quimono, Tengo não pôde apreciar a sua figura.

Pela fotografia não era possível dizer se formavam um casal harmonioso, ou o contrário. Havia uma grande diferença de idade entre os dois. Tengo esforçou-se por imaginar os pais a encontrarem-se, apaixonarem-se um pelo outro, a tê-lo – mas não foi capaz. A fotografia não dava, de todo, a impressão de que as coisas tivessem corrido daquele modo. Portanto, se não existira um envolvimento emocional que os unisse, alguma outra circunstância devia ter havido. Não, talvez não tivesse sido algo de tão dramático quanto o termo circunstância levava a crer. A vida pode não ser mais do que uma cadeia de acontecimentos absurdos, mesmo rudes.

Tengo tentou perceber se a mulher nesta fotografia era a misteriosa mulher dos seus devaneios, ou a que surgia nas memórias obscuras da sua infância. Mas apercebeu-se de que não guardava qualquer recordação da face da mulher. A mulher que tinha na memória despia a blusa, fazia deslizar as alças do sutiã e deixava que um homem desconhecido lhe sugasse os seios. A respiração dela tornava-se mais pesada, como se estivesse a gemer. Era tudo o que recordava – um homem desconhecido a chupar o peito da sua mãe. Os seios que deviam ter sido só seus, roubados por uma outra pessoa. Sem dúvida que um bebé encararia isto como uma ameaça séria. Os olhos dele nunca se fixaram na cara do homem.

Tengo repôs a fotografia dentro do envelope e pensou no que significaria tudo aquilo. O pai tinha guardado aquela fotografia com cuidado até à morte, o que podia significar que ainda sentia ternura pela mãe dele. Tengo não se recordava da mãe, uma vez que morrera de doença quando ele era ainda demasiado jovem para guardar qualquer recordação. Segundo as investigações do advogado, Tengo era o único filho tanto da mãe como do pai, o cobrador da NHK, facto registado no koseki. Contudo, os documentos oficiais não eram garantia de que Tengo fosse filho biológico do homem a quem chamava pai.

– Não tenho filho nenhum – declarara o pai a Tengo, antes de entrar em coma.

– E onde é que isso me deixa? – perguntara ele.

– Tu não és nada – fora a resposta lacónica e perentória do pai.

O tom de voz do pai convencera Tengo de que não existiam laços de sangue entre os dois. E foi então que pensou ter-se libertado daqueles pesados grilhões. No entanto, à medida que o tempo ia passando, a certeza de que o que o pai lhe dissera era verdade foi-se esboroando.

Não sou nada, repetiu.

De repente, tomou consciência de que a jovem mãe daquela fotografia tão antiga lhe fazia lembrar a sua amante mais velha. Kyoko Yasuda, chamava-se. Para tentar acalmar-se, pressionou com força o centro da testa com os dedos. Retirou de novo a fotografia do envelope e olhou-a com cuidado. Um narizinho, lábios cheios, queixo um tanto arrebitado. O penteado era tão diferente, que, à primeira vista, não reparara naquilo, mas as suas feições eram vagamente parecidas com as de Kyoko. Que significado poderia ter aquilo?

Porque teria o pai querido legar-lhe a fotografia? Em vida, nunca dera a Tengo a mais pequena informação acerca da mãe. Chegara mesmo a esconder a existência daquela fotografia de família. De uma coisa tinha a certeza: o pai nunca tivera intenção de lhe explicar o que se passara. Nem enquanto vivo, nem agora, depois de morto. Olha, tens aqui esta fotografia, era o que o pai devia estar a dizer. Dou-ta. Cabe-te descobrires o que é.

Durante bastante tempo, Tengo deixou-se ficar estendido na cama sem lençóis, de costas, a olhar para o teto. Era um teto de contraplacado pintado de branco, liso, sem grão ou nós, apenas várias juntas direitas, nos sítios onde as placas se uniam. O mesmo cenário que os olhos encovados do pai deviam ter fitado nos últimos meses de vida. Ou talvez os seus olhos não vissem nada. Em todo o caso, o olhar dele estava virado para ali, para o teto, quer ele o visse, quer não.

Tengo fechou os olhos e tentou imaginar-se a si próprio avançando lentamente para a morte. No entanto, a morte era algo de muito distante para um jovem de trinta anos gozando de boa saúde. Estava fora do alcance da sua imaginação. Em vez disso, enquanto respirava com calma, observou as sombras do crepúsculo avançarem pela parede. Não penses em nada. Não pensar em nada não se revelava demasiado difícil. Estava demasiado cansado para se fixar numa ideia específica. Caso conseguisse, queria dormir um pouco, mas estava demasiado exausto e o sono não aparecia.

Minutos antes das seis da tarde, a enfermeira Omura veio dizer-lhe que o jantar estava servido. Tengo não tinha apetite, mas a enfermeira alta e de seios generosos não queria deixá-lo em paz. Tem de comer qualquer coisa, por pouco que seja, meter algo no estômago, disse-lhe. Foi quase uma ordem direta. Quando tocava dizer às pessoas como manter a saúde, ela era uma verdadeira profissional. E Tengo não era o tipo de pessoa – especialmente quando quem lhe dizia estas coisas era alguém mais velho – que oferecesse resistência.

Desceram as escadas até ao refeitório, onde encontraram Kumi Adachi à espera deles. Da enfermeira Tamura nem sinal. Tengo jantou na mesma mesa que Kumi e a enfermeira Omura. Comeu uma salada, vegetais cozidos e uma sopa de miso com amêijoas asari e chalotas, tudo empurrado com chá hojicha quente.

– Quando é a cremação? – perguntou-lhe Kumi.

– Amanhã à tarde, à uma hora – respondeu Tengo. – Depois de terminada, é provável que regresse diretamente a Tóquio. Tenho de voltar ao trabalho.

– Para além de ti, Tengo, vai estar mais alguém na cremação?

– Não, mais ninguém. Só eu.

– Importas-te que vá contigo? – perguntou Kumi.

– À cremação do meu pai? – Tengo ficou surpreendido.

– Sim. Para dizer a verdade, eu gostava bastante dele.

Sem se dar conta, Tengo pousou os pauzinhos e olhou para ela. Estaria mesmo a falar do seu pai?

– E o que é que gostavas nele? – perguntou.

– Era uma pessoa muito conscienciosa, nunca dizia mais do que precisava – respondeu-lhe. – Nesse sentido, era bastante parecido com o meu pai, que já faleceu.

– Hum – disse Tengo.

– O meu pai era pescador. Morreu antes de fazer cinquenta anos.

– Morreu no mar?

– Não, morreu de cancro do pulmão. Fumava muito. Não sei dizer-te a razão, mas os pescadores são, por regra, grandes fumadores. Parece que libertam fumo pelo corpo todo.

Tengo refletiu sobre aquilo.

– Talvez fosse melhor que o meu pai também tivesse sido pescador.

– E porquê?

– Não tenho bem a certeza – retorquiu Tengo. – A ideia veio-me à cabeça agora mesmo: que teria sido melhor para ele do que trabalhar como cobrador da NHK.

– Se o teu pai fosse pescador, ter-te-ia sido mais fácil aceitá-lo?

– Teria tornado as coisas mais fáceis, acho que sim.

Tengo imaginou-se enquanto criança, na madrugada de um dia em que não houvesse escola, a sair num barco de pesca com o pai. O áspero vento do Pacífico e os salpicos salgados a baterem-lhe no rosto. O ruído monótono do motor a diesel. O cheiro asfixiante das redes de pesca. Era uma profissão dura, arriscada. Um erro e podia perder-se a vida. Mas, comparada com ser arrastado por toda a cidade de Ichikawa para cobrar taxas de televisão, era uma vida muito mais natural e satisfatória.

– Ser cobrador da taxa da NHK não devia ser um trabalho fácil, pois não? – perguntou a enfermeira Omura, enquanto comia o seu peixe com tempero de soja.

– Provavelmente, não – respondeu Tengo. No que lhe dizia respeito, sabia que não era um trabalho feito para si.

– O teu pai era mesmo bom no que fazia, não era? – perguntou Kumi.

– Sim, acho que sim – concordou Tengo.

– Ele mostrou-me os diplomas dos prémios que recebeste – declarou Kumi.

– Ah! Bolas! – exclamou a enfermeira Omura, pousando os pauzinhos inopinadamente. – Esqueci-me por completo. Que cabeça a minha! Bolas! Como é que é possível que me tenha esquecido de uma coisa tão importante? Não te importas de esperar aqui um minuto? Tenho uma coisa para te dar, e tem de ser hoje, sem falta.

A enfermeira Omura limpou a boca com um lenço, levantou-se e correu para fora do refeitório, deixando a sua refeição por terminar.

– O que será assim tão importante? – interrogou-se Kumi, inclinando a cabeça.

Tengo não fazia a menor ideia.

Enquanto aguardava o regresso da enfermeira Omura, obediente, comeu a sua salada. No refeitório não havia muitos mais comensais. A uma mesa estavam sentados três homens idosos, que comiam sem trocarem uma palavra. Noutra mesa, um homem de bata branca, com um toque grisalho no cabelo, sentado sozinho, lia um jornal vespertino com uma expressão solene na cara.

Pouco depois, a enfermeira Omura regressou em passo apressado. Trazia na mão um saco de papel de uma loja. Lá de dentro retirou algumas peças de roupa, dobradas com esmero.

– Há cerca de um ano, quando ainda estava consciente, o senhor Kawana entregou-me isto – explicou a corpulenta enfermeira. – Disse-me que quando fosse para o caixão, gostava de levar isto vestido. Por isso, mandei-o limpar e guardei-o com bolas de naftalina.

Não havia engano possível: era o uniforme de cobrador da NHK. As calças, a condizer, tinham sido passadas a ferro com esmero. O odor da naftalina chegou ao nariz de Tengo. Por um instante, ficou sem fala.

– O senhor Kawana disse-me que queria ser cremado com este uniforme vestido – continuou a enfermeira Omura. Com todo o cuidado, tornou a dobrar o uniforme e repô-lo no saco de papel. – Por isso, aqui o tens. Amanhã, entrega-o aos homens da funerária e verifica que lho vestem.

– Não há problema em usá-lo? O uniforme era apenas emprestado e, quando se reformou, devia tê-lo devolvido à NHK – perguntou Tengo, numa voz débil.

– Eu não me preocuparia com isso – comentou Kumi. – Se não dissermos nada a ninguém, como é que vão saber? A NHK não se vai ralar por causa de um uniforme velho.

A enfermeira Omura concordou.

– Ao longo de mais de trinta anos, o senhor Kawana andou por todo o lado, de manhã à noite, ao serviço da NHK. Estou certa de que nem sempre foi agradável. Quem é que se vai importar com um uniforme? Não o vai usar para cometer um crime, ou coisa do género.

– Tem toda a razão. Eu ainda tenho o meu uniforme da escola secundária – confidenciou Kumi.

– Um uniforme de cobrador da NHK e um uniforme da secundária não são precisamente a mesma coisa – sublinhou Tengo, mas nenhuma das duas lhe prestou a mínima atenção.

– Agora que falamos nisso, o meu velho uniforme da escola ainda anda dentro de um dos meus armários, não sei bem onde – contou a enfermeira Omura.

– Estás a dizer que, de vez em quando, o vestes para o teu marido? Com meias brancas pela canela? – Kumi brincou com ela.

– Hum... ora aí está uma ideia. – A enfermeira Omura, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos na mesa, pôs um ar sério. – Provavelmente, excitava-o.

– Seja como for... – disse Kumi. Virou-se para Tengo. – Não há dúvida de que o senhor Kawana queria ser cremado com o uniforme da NHK. Acho que devemos fazer tudo para que o seu desejo se cumpra. Não achas?

Tengo agarrou no saco que continha o uniforme e regressou ao quarto. Kumi Adachi acompanhou-o e fez a cama. Havia lençóis lavados, ainda a cheirar a goma, e o cobertor, a colcha e a almofada eram novos. Uma vez tudo no sítio, a cama em que o pai dormira estava completamente diferente. Sem razão aparente, Tengo pensou nos exuberantes pelos púbicos de Kumi.

– O teu pai esteve em coma durante tanto tempo – comentou Kumi, ao mesmo tempo que alisava as rugas dos lençóis –, mas não penso que estivesse cem por cento inconsciente.

– O que te leva a dizer isso? – indagou Tengo.

– Bem, de vez em quando, ele conseguia enviar mensagens a alguém.

Tengo estava de pé, junto da janela, mas girou nos calcanhares e encarou Kumi.

– Mensagens?

– Batia na estrutura da cama. Deixava cair a mão para fora da roupa e batia na armação, como se estivesse a enviar uma mensagem em código Morse. Assim.

Com o punho, Kumi deu umas leves pancadas na armação de madeira da cama.

– Achas que é um sinal?

– Não é um sinal.

– Então, o que é?

– Está a bater a uma porta – explicou Tengo, numa voz átona. – À porta da frente de uma casa.

– Faz sentido, acho. Parece o som de alguém a bater a uma porta. – Os olhos dela semicerraram-se até se transformarem em duas frestas. – Então, o que estás a dizer é que, mesmo inconsciente, ele ainda andava a fazer a ronda para cobrar a taxa?

– Provavelmente – respondeu Tengo. – Algures dentro da cabeça dele.

– Parece aquela história do soldado que morreu sem largar a trombeta – disse Kumi, impressionada.

Não havia resposta para aquilo, pelo que Tengo ficou silencioso.

– O teu pai devia gostar mesmo muito do que fazia, de andar a receber a taxa da NHK.

– Não penso que fosse uma questão de gostar ou não – contrapôs Tengo.

– Então?

– Era o que sabia fazer melhor.

– Se calhar... Estou a ver – disse Kumi. Pensou no que lhe dissera. – Mas pode bem ser a melhor maneira de viver a vida.

– Talvez – respondeu Tengo, enquanto olhava para o pinhal, no exterior. Talvez fosse mesmo.

– E tu, o que melhor sabes fazer?

– Não faço ideia – respondeu Tengo, olhando-a olhos nos olhos. – Juro que não sei.

28 A maior parte dos japoneses tem um selo individual – hanko –, um carimbo que pode ser feito de vários materiais e está registado legalmente. Serve para formalizar documentos legais e tem o mesmo valor de uma assinatura. (N. das T.)

29 No Japão existe um sistema de registo de família que deve incluir necessariamente todos os acontecimentos relevantes na vida de um cidadão. Alguns deles, como casamentos ou divórcios, só se tornam efetivos depois de registados. Qualquer alteração ao registo pode ser feita pelo próprio ou por um familiar. (N. das T.)

30 No budismo, o termo sutra refere-se de forma geral às escrituras canónicas consideradas como registos dos ensinamentos de Buda. (N. das T.)

31 Quimono de judo. (N. das T.)

32 Portas de madeira ou pedra, formadas por dois postes e uma trave, que se encontram à entrada de recintos sagrados. (N. das T.)


22

USHIKAWA

Aqueles olhos pareciam cheios de piedade

Tengo surgiu à entrada do bloco de apartamentos no domingo, ao final da tarde, perto das seis e um quarto. Assim que saiu para a rua, parou e olhou à sua volta, como se procurasse alguma coisa. Primeiro, para a direita, depois para a esquerda. Depois, da esquerda para a direita. Levantou o olhar para o céu; a seguir, baixou-o sobre os pés. Tanto quanto conseguia ver, não parecia haver nada de invulgar. Sem mais, começou a andar em passo estugado. Ushikawa observou-o por trás das cortinas.

Nessa altura, Ushikawa não o seguiu. Tengo não levava nada nas mãos. Tinha-as enterradas nos bolsos das calças de sarja sem pinças. Usava uma camisola de gola alta, um casaco de bombazina verde-azeitona já muito usado e o cabelo revolto. Um grosso livro de capa mole espreitava de um dos bolsos do casaco. Ushikawa calculou que fosse jantar a um restaurante das redondezas. Excelente, pensou, deixá-lo ir onde quiser.

À segunda-feira, Tengo tinha muitas aulas. Ushikawa soubera isto quando telefonara para a escola onde ele ensinava.

– Sim – dissera-lhe a funcionária da secretaria que atendera o telefone –, o senhor Kawana regressará ao horário normal no início da semana.

Perfeito. Portanto, a partir do dia seguinte, Tengo retomaria finalmente a sua rotina diária. Conhecendo-o, era provável que naquela noite não se afastasse muito. (Se Ushikawa o tivesse seguido naquela noite, teria descoberto que Tengo ia a caminho do encontro com Komatsu, no bar em Yotsuya.)

Pouco antes das oito, Ushikawa enfiou o casaco, pôs o cachecol e o gorro de lã e, olhando em volta, saiu apressadamente do edifício. Àquela hora, Tengo ainda não regressara. Se estava, de facto, a jantar ali perto, demorava-se mais do que era habitual. Podia até dar de caras com ele, para cúmulo dos azares. Mas Ushikawa estava disposto a correr o risco, já que havia uma coisa que queria absolutamente fazer e que tinha de ser feita naquele momento, àquela hora da noite.

Confiando na sua memória para encontrar o caminho, dobrou várias esquinas, passou à frente de vários pontos de referência vagamente familiares e, apesar de ter hesitado algumas vezes, sem saber bem que caminho tomar, acabou por chegar ao parque infantil. O vento norte intenso do dia anterior desaparecera e estava quente para uma noite de dezembro; porém, como calculara, o parque encontrava-se deserto. Ushikawa olhou em redor para verificar com todo o cuidado que não havia ninguém por ali e, depois, trepou ao escorrega. Sentou-se no topo, inclinou-se para trás, encostando-se ao corrimão, e levantou o olhar para o céu. Lá estavam as luas, quase no mesmo sítio do dia anterior. Uma lua brilhante, quase cheia. Nem uma única nuvem por perto. E, ao seu lado, a pequena e deformada lua esverdeada acompanhava-a.

Portanto, não foi um engano, pensou Ushikawa. Soltou o ar dos pulmões e abanou a cabeça. Não estava a sonhar nem tinha alucinações. Duas luas, uma grande e uma pequena, viam-se claramente no céu, por cima da zelcova desprovida de folhas. Parecia que as duas luas tinham ficado ali, imóveis, desde a noite anterior, à espera de que ele tornasse a trepar ao escorrega. Sabiam que regressaria. Como se tivesse sido combinado, o silêncio que as envolvia era bastante sugestivo. E as luas queriam que Ushikawa partilhasse esse silêncio com elas. Não podes falar disto a ninguém, avisaram-no. Espetaram um indicador coberto por uma ténue camada de poeira e levaram-no à boca para terem a certeza de que ele não diria uma palavra.

Enquanto estava ali sentado, Ushikawa experimentou mover os músculos da cara em todas as direções, para ter a certeza de que não se passava algo de anormal, que estava tudo como de costume. Não encontrou nada de estranho. Para o bem e para o mal, era aquele o seu rosto.

Ushikawa sempre se considerara uma pessoa realista, e, de facto, era-o. A especulação metafísica não lhe dizia nada. Se uma coisa já existia, havia que aceitá-la como uma realidade, quer fizesse ou não sentido, quer fosse lógica ou não. Basicamente, era a sua forma de pensar. Os princípios e a lógica não geram realidades. A realidade vem primeiro, os princípios e a lógica seguem-na. Assim sendo, decidiu que tinha de começar por aceitar esta realidade: havia duas luas no céu.

Pensaria no resto mais tarde. Deixou-se ficar ali sentado, tentando não pensar, completamente absorto na contemplação das duas luas. Uma grande e amarela, outra mais pequena, verde e deformada. Tentou habituar-se àquela imagem. Tenho de as aceitar como são, disse para os seus botões. Não era capaz de explicar como é que uma coisa daquelas era possível, mas a questão não era prioritária e mais tarde lidaria com ela. A questão era o que fazer com aquilo. O problema residia nisso. Para o conseguir, havia primeiro que aceitar o que tinha diante dos olhos, sem pôr em causa a lógica do quadro todo.

Ushikawa deixou-se ficar naquele sítio durante cerca de quinze minutos. Sentado, encostado ao corrimão, não mexeu um músculo. Qual mergulhador cujo corpo, lentamente, se vai habituando às diferenças de pressão dentro de água, deixou-se banhar pela luz daquelas duas luas, permitiu que lhe penetrasse na pele. O instinto de Ushikawa dizia-lhe que aquilo era importante.

Ao fim de um bocado, aquele homenzinho com uma cabeça deformada ergueu-se, desceu do escorrega e, completamente absorto em pensamentos indescritíveis, caminhou de regresso ao apartamento. Tinha a sensação de que a paisagem que o rodeava sofrera algumas mudanças. Talvez seja do luar, disse para si mesmo. Graças a ele, talvez as coisas estivessem a mudar lentamente a forma como se deixavam ver, razão pela qual se enganou várias vezes e virou para o lado errado. Antes de entrar no edifício, ergueu o olhar para o terceiro piso e verificou que Tengo ainda tinha as luzes apagadas. Ainda não chegara. Não parecia que tivesse ido apenas comer qualquer coisa ali perto. Talvez tivesse ido encontrar-se com alguém? E talvez esse alguém fosse Aomame. Ou Fuka-Eri. Será que deixei escapar uma oportunidade excelente por entre os dedos?, perguntou-se. Contudo, era demasiado tarde para se preocupar com isso. Seria um risco demasiado grande seguir Tengo sempre que ele saísse de casa. O outro só precisava de o avistar uma única vez, e toda a operação iria por água abaixo.

Ushikawa regressou ao seu quarto e despiu o casaco, o cachecol e o gorro. Abriu uma lata de corned beef, espalhou parte dela num pãozinho e comeu-a de pé, na cozinha. Bebeu uma lata de café pronto morno. Nada daquilo tinha sabor. Sentia a textura da comida, mas não sentia o sabor. Quer fosse culpa da comida e da bebida, quer se devesse à sua falta de sentido do paladar, não o poderia dizer. Talvez a responsabilidade fosse das duas luas. Escutou ao longe o toque da campainha de uma porta. Uma pausa, depois soou de novo. Não se importou. Não era a sua campainha que tocava mas a de outra pessoa, noutro piso, muito longe.

Terminou a sanduíche, bebeu o café e, com toda a calma, fumou um cigarro, para o fazer regressar à realidade. Reconfirmou o que tinha de fazer ali e sentou-se atrás da máquina, perto da janela. Ligou o aquecedor elétrico e pôs as mãos à frente da luz alaranjada para as aquecer. Era domingo, à noite, ainda não passava das nove. O movimento de entradas e saídas do prédio tornara-se escasso, mas Ushikawa estava decidido a ver a que horas Tengo retornaria.

Uns instantes mais tarde, saiu uma mulher envergando um blusão acolchoado negro, uma mulher que nunca vira antes. Tinha uma écharpe cinzenta a cobrir-lhe a boca, óculos com armações escuras e um boné de basebol – a combinação perfeita para alguém que deseje esconder-se de indiscrições alheias. Vinha de mãos vazias e caminhava depressa, numa passada comprida. Por reflexo, Ushikawa ligou a máquina fotográfica e tirou três instantâneos rápidos. Tinha de descobrir para onde se dirigia, contudo, quando conseguiu pôr-se de pé, a mulher já chegara à estrada e fora engolida pela noite. Ushikawa franziu a testa e desistiu. À velocidade a que ia, quando ele conseguisse calçar os sapatos e desatasse correr atrás dela, seria demasiado tarde para a apanhar.

Mentalmente, rebobinou a cena a que acabara de assistir. A mulher media cerca de um metro e setenta e vestia calças de ganga azuis, justas, e ténis brancos. Toda a sua roupa tinha um ar estranho, parecia acabada de estrear. Teria entre vinte e cinco e trinta anos. Enfiara o cabelo por dentro da gola do blusão, pelo que não foi capaz de perceber o seu comprimento. O blusão acolchoado não lhe permitia perceber que tipo de figura era a dela, mas, a crer pelas pernas, devia ser bastante magra. A postura e a rapidez do passo indicavam tratar-se de uma jovem saudável. Devia praticar desporto. Todas estas características se enquadravam no que Ushikawa sabia acerca de Aomame, mas não podia jurar que fosse ela. Ainda assim, parecia muito cautelosa. A tensão do seu corpo era perfeitamente percetível; parecia uma atriz perseguida por paparazzi.

Imaginemos por um instante que era a Aomame, pensou.

Viera até ali para ver Tengo, porém, Tengo saíra, não se sabia para onde. As luzes do apartamento estavam apagadas. Ela viera visitá-lo, mas não obtivera resposta quando batera à porta, pelo que desistira e se fora embora. Talvez fosse ela a pessoa que estivera a tocar à campainha. No entanto, havia qualquer coisa que não batia certo. Aomame estava a ser perseguida e certamente se estaria a esforçar por se manter fora de vista. Se queria ver Tengo, porque é que não lhe telefonara com antecedência para ter a certeza de que estaria em casa? Assim, expusera-se inutilmente ao perigo.

Ushikawa foi remoendo aquele pensamento, ali sentado atrás da máquina, mas não foi capaz de arranjar uma teoria que fizesse sentido. As ações da mulher – disfarçando-se com aquele não-disfarce, abandonando o refúgio onde se escondia – não encaixavam no que Ushikawa sabia a seu respeito. Ela era bastante mais cautelosa e prudente. Tudo aquilo estava a deixá-lo confuso. Nem lhe passou pela cabeça que poderia ter sido ele a guiá-la até ali.

Em todo o caso, no dia seguinte iria à loja de fotografia perto da estação para mandar revelar o rolo que tirara. Esta mulher misteriosa devia estar nas fotografias.

Manteve a vigilância atrás da máquina até depois das dez, mas, a seguir à mulher, mais ninguém entrou ou saiu do prédio. A entrada estava silenciosa e deserta, como um palco abandonado a seguir a um espetáculo quase sem público. Ushikawa estava admirado com Tengo. Tanto quanto sabia, raras vezes ficava na rua até tão tarde e tinha aulas no dia seguinte. Se calhar, entrara em casa enquanto Ushikawa saíra e havia muito que estava na cama, a dormir.

Depois das dez, Ushikawa apercebeu-se do enorme cansaço que sentia. Mal conseguia manter os olhos abertos. Não era vulgar acontecer-lhe isto, já que só costumava deitar-se às tantas. Por regra, conseguia manter-se acordado até à hora que queria. Naquela noite, contudo, o sono estava a desabar-lhe em cima, como a tampa de pedra de um túmulo antigo.

Talvez me tenha deixado ficar a olhar para aquelas duas luas durante demasiado tempo, pensou, e a minha pele absorveu, por certo, demasiado luar. A sua retina ainda guardava a vaga imagem das duas luas. As suas silhuetas, recortando-se na escuridão, tinham paralisado a zona mais branda do seu cérebro, como uma abelha que pica e imobiliza uma lagarta, desovando depois sobre ela. As larvas de abelha usam o corpo paralisado da lagarta como fonte de alimento e devoram-na viva assim que eclodem. Ushikawa franziu o sobrolho e tentou afastar esta imagem sinistra da cabeça.

Muito bem, pensou. Não posso ficar aqui eternamente, à espera de que Tengo regresse. A hora a que regressa é assunto dele e irá dormir assim que chegar. Não tem mais para onde ir, além deste apartamento. Que eu saiba.

Sem forças, Ushikawa despiu as calças e a camisola, e, só de camisa de mangas compridas e ceroulas, deslizou para dentro do saco-cama. Enrolou-se sobre si próprio e depressa adormeceu. Caiu num sono profundo, quase um coma. Prestes a adormecer, pareceu-lhe ouvir alguém bater-lhe à porta. Mas, nessa altura, já a sua consciência se deslocara para um outro mundo e não estava capaz de distinguir uma coisa da outra. Quando tentou fazê-lo, o seu corpo rangeu. Por isso, manteve os olhos fechados, não se esforçou por perceber qual o significado daquele som e, mais uma vez, caiu no profundo lodaçal do sono.

Trinta minutos depois de Ushikawa adormecer que nem uma pedra, Tengo regressou a casa vindo do seu encontro com Komatsu. Lavou os dentes, pendurou o casaco – que tresandava a fumo de cigarro – vestiu o pijama e foi dormir. Até que às duas da manhã lhe telefonaram para o informar de que o pai tinha morrido.

Na segunda-feira de manhã, Ushikawa acordou depois das oito, já Tengo dormia profundamente no expresso a caminho de Tateyama, tentando compensar o sono perdido. Ushikawa instalou-se atrás da máquina fotográfica, à espera de apanhar Tengo de saída para a escola, mas claro que ele nunca apareceu. Ushikawa desistiu à uma da tarde. Deslocou-se a um telefone público ali perto e ligou para a escola, para saber se Tengo estava nas aulas, como de costume.

– O senhor Kawana teve uma emergência familiar e as suas aulas de hoje foram canceladas – informou-o a mulher que atendeu o telefonema. Ushikawa agradeceu e desligou o telefone.

Uma emergência familiar? A única família de Tengo era o pai, que fora cobrador da NHK. Estava internado numa clínica longe dali. Tengo ausentara-se de Tóquio durante algum tempo para cuidar dele e regressara há alguns dias. O senhor devia ter morrido. Se fosse o caso, Tengo estaria outra vez a sair de Tóquio. Talvez tenha saído enquanto eu estava a dormir, pensou Ushikawa. O que é que se passa? Dormi tanto que o perdi.

Seja como for, o Tengo está agora sozinho no mundo, pensou Ushikawa. Já de si um homem solitário, estava agora mais só do que nunca. Absolutamente só. Antes de ele fazer dois anos, a mãe fora estrangulada até à morte numa estância termal, na prefeitura de Nagano. Nunca apanharam o assassino. Ela tinha fugido com um homem mais novo, levando Tengo consigo, e apartara-se do marido. Apartar-se – um termo fora de moda. Já ninguém usava aquilo, mas, para um determinado tipo de ação, era a palavra perfeita. Não se percebera por que razão o homem a matara. Nem sequer se sabia se tinha sido ele o assassino. Fora estrangulada durante a noite, com o cinto do seu roupão, num quarto de um ryokan. O homem com quem estivera tinha fugido. Era difícil não suspeitar dele. Quando o pai de Tengo soubera da notícia, saíra de Ichikawa e fora buscar o filho.

Eu talvez devesse ter contado esta história ao Tengo, pensou Ushikawa. Ele tem o direito de saber. Mas como me disse que não queria escutar uma única palavra acerca da mãe vinda da boca de uma pessoa como eu, não disse nada. Bem, o que é que se há de fazer? O problema não é meu, é dele.

Seja lá como for, quer o Tengo esteja aqui ou não, tenho de manter a minha vigilância deste sítio, disse Ushikawa para si mesmo. Ontem à noite foi aquela mulher misteriosa que se parecia tanto com Aomame. Não posso provar que seja ela, mas há uma forte possibilidade de ser verdade. É o que a minha cabeça deformada me diz. E se aquela mulher for a Aomame, vai regressar para lhe fazer uma visita dentro de muito pouco tempo. Ela ainda não sabe que o pai dele morreu. Foram as conclusões a que Ushikawa chegou enquanto esteve a remoer a situação. Tengo devia ter recebido a notícia da morte do pai durante a noite e partira logo de manhã, bem cedo. Aparentemente, haveria uma razão por que os dois não podiam comunicar por telefone. O que queria dizer que ela teria de voltar, sem falta. Havia um assunto importante que a obrigava a ir até ali, apesar do perigo que corria. Da próxima vez, ele iria descobrir o destino dela. Ao fazê-lo poderia também começar a compreender a existência das duas luas. Era um enigma fascinante, e Ushikawa estava mortinho por resolvê-lo. Mas a verdade é que isso não era prioritário. A sua missão consistia em descobrir o esconderijo de Aomame e entregá-la, num bonito embrulho com um grande laçarote, ao sinistro par da Vanguarda.

Até fazer o que tenho a fazer, haja uma ou duas luas, decidiu, tenho de ser realista. Sempre foi o meu ponto forte. É o que me define.

Ushikawa dirigiu-se à loja de fotografia perto da estação e entregou cinco rolos de trinta e seis fotografias. Já reveladas e entregues na sua mão, entrou, ali próximo, num restaurante de uma cadeia frequentada sobretudo por famílias e viu as fotografias por ordem cronológica enquanto comia um prato de caril de frango. A maior parte delas era de gente que já conhecia bem. Havia três pessoas que lhe interessavam sobremaneira: Fuka-Eri, Tengo e a misteriosa mulher da noite anterior.

Os olhos de Fuka-Eri punham-no nervoso. Mesmo na fotografia, ela olhava para ele a direito, olhos nos olhos. Quanto a isso, não há a menor dúvida, pensou Ushikawa. Ela sabia que estava a ser observada. Era provável que também soubesse da existência da máquina escondida e das fotografias que estava a tirar. Aqueles olhos límpidos viam através de tudo e não gostavam nada do que ele estava a fazer. Aquele olhar firme trespassava-lhe o coração sem piedade. Não havia desculpa para as atividades a que se dedicava. No entanto, ao mesmo tempo, ela não o condenava nem o desprezava. Em certo sentido, aqueles olhos maravilhosos perdoavam-no. Não, perdão não, decidiu Ushikawa, tornando a pensar no assunto. Aqueles olhos tinham pena dele. Ela sabia que as ações de Ushikawa eram infames, e sentia piedade dele.

Acontecera num fugaz instante. Naquela manhã, Fuka-Eri tinha parado a observar o topo do poste de eletricidade, depois virara o pescoço e olhara para a janela onde Ushikawa se escondia. Olhara diretamente pela objetiva da máquina escondida e, pela ocular, fixara os olhos nos de Ushikawa. A seguir, fora-se embora. O tempo parara e, logo a seguir, pusera-se de novo em movimento. No total, não tinham decorrido mais de três minutos. Nesses três minutos, o olhar da rapariga perscrutara cada recanto da alma de Ushikawa e intuíra de forma rigorosa a sua imundície e a sua abjeção; transmitira-lhe uma compaixão muda e desaparecera, sem mais.

Os olhos dela, cravados nos seus, tinham-lhe provocado uma dor aguda, como se lhe tivessem espetado uma grossa agulha de tricotar entre as costelas. Sentira-se uma pessoa perversa e feia. E depois?, pensou. Eu sou mesmo perverso e feio. A piedade natural e transparente que matizava os olhos dela mergulhou fundo no coração dele. Teria preferido, de longe, ser abertamente acusado, desprezado, injuriado e condenado. Teria mesmo sido muito melhor se lhe tivesse batido com um taco de basebol até o deixar inconsciente. Isso ele conseguia suportar. Isto não.

Comparado com ela, Tengo era muito mais fácil de espiar. Na fotografia estava de pé à porta, a olhar também na sua direção. Tal como Fuka-Eri, também ele examinava cuidadosamente as redondezas. Mas não havia nada nos olhos dele. Olhos puros e ignorantes como os dele não eram capazes de localizar a máquina escondida por trás das cortinas, ou mesmo o próprio Ushikawa.

Dedicou-se às fotografias da mulher misteriosa. Tinha três. Boné de basebol, óculos de armações escuras, écharpe cinzenta a tapar-lhe a boca. Impossível distinguir-lhe as feições. A luz era má em todas as fotografias e o boné de basebol fazia-lhe sombra sobre o rosto. Ainda assim, esta mulher encaixava perfeitamente na imagem mental que criara de Aomame. Pegou nas fotografias e, como se estivesse a analisar uma mão de póquer, olhou-as por ordem, uma e outra vez. Quanto mais olhava para elas, mais se convencia de que só podia ser Aomame.

Chamou a empregada e perguntou-lhe o que era a sobremesa do dia. Tarte de pêssego, respondeu-lhe. Ushikawa pediu uma fatia de tarte de pêssego e um outro café.

Se não for a Aomame, pensou, enquanto aguardava pela tarte, talvez eu nunca chegue a vê-la, por muito que viva.

A tarte de pêssego era muito mais saborosa do que estava à espera. Pêssegos sumarentos numa massa estaladiça, crocante. Eram, sem dúvida, pêssegos em calda, mas, para aquele tipo de restaurante, aquilo não estava nada mau. Ushikawa comeu tudo até à última migalha, bebeu o café e abandonou o restaurante, satisfeito. Entrou num supermercado e comprou comida para três dias, regressando depois ao seu apartamento e à sua vigilância por trás da máquina fotográfica.

Enquanto mantinha a vigilância da entrada, encostou-se à parede, num sítio onde o sol batia, e foi passando pelas brasas. Não estava preocupado. Tinha a certeza de que não perdera nada de importante enquanto dormia. Tengo estava fora, no funeral do pai, e Fuka-Eri não iria regressar. Ela sabia que ele continuava ali. As hipóteses de a mulher misteriosa tornar a aparecer enquanto houvesse luz eram escassas. Seria cuidadosa e esperaria que escurecesse para entrar em ação.

Todavia, mesmo depois de escurecer, a mulher misteriosa não apareceu. A mesma fila de gente chegou e foi-se – de sacos de compras na mão, para um passeio noturno, os que regressavam do trabalho com um ar mais exausto e desgastado do que quando tinham saído de manhã. Ushikawa observou as suas idas e vindas, mas não tirou fotografias. Não era necessário. Estava concentrado naquelas três pessoas. Todos os outros não passavam de transeuntes anónimos. Para ajudar a passar o tempo, contudo, Ushikawa falava com eles, usando as alcunhas que lhes arranjara.

– Ei, camarada Mao. – O penteado do homem fazia lembrar o de Mao Zedong. – Tem ar de quem trabalhou bastante hoje.

»Está quente, hoje, não está, senhora Orelhas-Compridas... Tempo perfeito para um passeio.

»Boas, Sem-Queixo. Outra vez às compras? O que é o jantar?

Ushikawa continuou a vigiar a porta de entrada até às onze. Deu um grande bocejo e decidiu que terminava por ali. Depois de ter lavado os dentes, deitou a língua de fora e observou-a no espelho. Havia já algum tempo que não examinava a língua. Havia uma coisa esverdeada, que fazia lembrar musgo, a crescer nela. Por baixo do candeeiro, observou esse musgo com cuidado. Era perturbante. Estava agarrado a toda a superfície da língua e não tinha ar de se soltar com facilidade. Se continuar assim, pensou, vou acabar por me transformar num Monstro Musguento. A começar na língua, o musgo verde vai espalhar-se, aqui e ali, sobre a minha pele, como acontece com a carapaça das tartarugas que vivem nos pântanos. A simples ideia era desanimadora.

Suspirou e, numa voz muda, decidiu deixar de se preocupar com a língua. Apagou a luz, despiu-se no escuro, devagar, e aninhou-se dentro do seu saco-cama. Puxou o fecho do saco e enrolou-se como um bicho.

Quando acordou, estava escuro. Virou-se para ver as horas, mas o relógio não se encontrava onde devia. Ficou confuso. Há muito tempo que tinha o hábito de, antes de ir para a cama, verificar que o relógio estava no sítio. Portanto, porque é que não estava ali? Pela abertura entre as cortinas vinha uma luz pálida, que apenas iluminava um canto do quarto. Tudo o resto estava mergulhado na mais profunda escuridão noturna.

O coração de Ushikawa disparou, esforçando-se por fazer chegar a adrenalina a todo o corpo. As narinas incharam, e ele sentiu dificuldade em respirar, como se tivesse acordado a meio de um sonho vívido e excitante.

Mas não era um sonho. Alguma coisa real estava a acontecer. Havia alguém de pé, ao lado da sua cama. Ushikawa sentia-o. Uma sombra, mais escura do que a escuridão, pairava sobre ele, olhava para o seu rosto. As suas costas retesaram-se. Numa fração de segundo, a sua mente ficou desperta, e ele, instintivamente, tentou correr o fecho do saco.

Num ápice, a pessoa fez passar o braço em torno do pescoço de Ushikawa. Nem sequer lhe deu tempo de soltar o mais pequeno som. Ushikawa sentiu os músculos fortes e treinados de um homem à volta do seu pescoço. O braço apertou-lhe a garganta, pressionando-a sem dó nem piedade num abraço que parecia um torno. O homem nunca proferiu uma única palavra. Ushikawa nem sequer conseguia ouvir o som da respiração dele. Torceu-se e retorceu-se dentro do saco-cama, tentando rasgar o forro de nylon, debatendo-se e dando pontapés. Tentou gritar, mas, mesmo que conseguisse, não valeria de nada. De joelhos sobre o tatâmi, o homem não se moveu um milímetro, limitando-se a aumentar a pressão do braço gradualmente. Um movimento muito eficaz e económico. À medida que o fazia, a pressão sobre a traqueia de Ushikawa aumentou, e a sua respiração foi ficando cada vez mais fraca.

No meio daquela situação desesperada, uma pergunta cruzou a mente de Ushikawa: Como é que o homem entrou? A porta estava trancada, a corrente posta, as janelas fechadas a cadeado. Como é que ele entrou? Se forçou a fechadura, devia ter feito barulho.

O tipo é um verdadeiro profissional, pensou Ushikawa. Se a situação o exigisse, não hesitaria em tomar a vida de uma pessoa. Ele foi treinado para isto mesmo. Terá sido enviado pelos membros da Vanguarda? Será que decidiram finalmente ver-se livres de mim? Terão chegado à conclusão de que lhes sou inútil, um estorvo de que têm de se livrar? Se assim é, estão redondamente enganados. Estou a um passo de localizar a Aomame. Ushikawa esforçou-se por falar, para dizer isto ao homem. Antes do mais, ouça o que tenho a dizer, queria pedir. Mas a voz não saía. Não tinha ar suficiente para fazer vibrar as cordas vocais e, no fundo da boca, a língua parecia feita de rocha sólida.

A sua traqueia estava agora completamente bloqueada. Não entrava a mais ínfima quantidade de ar. Os pulmões procuravam desesperadamente por oxigénio, mas não havia nenhum, e ele sentiu o corpo separar-se da sua mente. O corpo continuou a contorcer-se dentro do saco-cama, porém, a sua mente foi arrastada para o ar pesado e espesso. De repente, deixou de sentir os braços e as pernas. Porquê? Interrogou-se a sua mente debilitada. Porque é que tenho de morrer num sítio tão feio, de uma forma tão feia? Não obteve resposta. Um manto de escuridão indefinida desceu do teto e envolveu tudo.

* * *

Quando voltou a si, já não estava dentro do saco-cama. Não sentia os braços nem as pernas. Só sabia que tinha uma venda sobre os olhos e o rosto encostado ao tatâmi. Já não estava a ser estrangulado. Os seus pulmões chiavam como foles, audivelmente, respirando ar fresco. Ar frio, de inverno. Com o oxigénio criava-se sangue novo, e o coração bombeava este líquido vermelho e quente a toda a velocidade, para todas as suas extremidades nervosas. Teve um forte ataque de tosse e concentrou-se na respiração. Gradualmente, as sensações regressavam às suas extremidades. O pulsar do seu coração batia-lhe, forte, aos ouvidos. Ainda estou vivo, disse Ushikawa para si mesmo, no meio da escuridão.

Estava deitado no tatâmi, de barriga para baixo. Tinha as mãos presas atrás das costas com o que parecia ser um pano macio. Os tornozelos também estavam amarrados. Não com tanta força, mas de uma forma hábil e eficaz. Conseguia rebolar para um lado e para outro, mas não mais que isso. Ushikawa pensou como era espantoso continuar vivo, respirar. Portanto, ainda não era a morte, pensou. Estivera terrivelmente próximo da morte, mas a morte ainda não chegara. Como um caroço, de cada lado da garganta persistia uma dor aguda. Tinha urinado nas calças e a sua roupa interior estava húmida e começava a arrefecer. Mas não era uma sensação desagradável. Na realidade, era até muito bem-vinda. A dor e o frio eram sinais de que continuava vivo.

– Não vais morrer tão facilmente – proferiu a voz do homem. Como se tivesse lido os pensamentos de Ushikawa.


23

AOMAME

A luz estava lá, sem sombra de dúvida

Passava já da meia-noite, domingo dera lugar a segunda-feira, mas, ainda assim, ela não conseguia dormir.

Aomame saiu do banho, pôs o pijama, meteu-se na cama e apagou a luz. Não lhe valia de nada ficar acordada até tarde. De momento, o assunto estava nas mãos de Tamaru. Disse para si mesma que deveria dormir alguma coisa e que, de manhã, acordaria capaz de pensar em tudo aquilo com muito mais clareza. Todavia, estava perfeitamente desperta e o seu corpo pedia-lhe que se levantasse e se mexesse. Não lhe parecia que o sono estivesse prestes a aparecer.

Desistiu, saiu da cama e enfiou um roupão por cima do pijama. Ferveu água, fez uma tisana e sentou-se à mesa, a bebê-la com todo o vagar. Um pensamento cruzou-lhe a cabeça, mas não foi capaz de precisar o que seria. Era informe, furtivo como nuvens distantes, carregadas de chuva. Sabia que forma tinha, mas não conseguia distinguir-lhe os contornos. Havia um desfasamento entre forma e contorno. Levando a caneca na mão, aproximou-se da janela e, pelo espaço entre as duas cortinas, espreitou para o parque infantil.

Claro que não estava lá ninguém. Já passava da uma da manhã e a caixa de areia, os baloiços e o escorrega encontravam-se desertos. A noite revelava-se invulgarmente silenciosa. O vento acalmara e não se via uma única nuvem no céu, apenas as duas luas pairando por cima dos ramos gelados das árvores. A posição das luas alterara-se devido à rotação da Terra, mas ainda continuavam visíveis.

Aomame ficou ali, de pé, a pensar no Cabeça-de-Abóbora a correr para o prédio de apartamentos e no cartão com o nome, enfiado na ranhura correspondente ao apartamento 303. Um cartão branco com os ideogramas do nome «Kawana» impressos. Não era novo, nem pouco mais ou menos. Tinha os cantos gastos e dobrados e umas vagas manchas de humidade. Já ali estava há bastante tempo.

Tamaru iria descobrir se o inquilino era mesmo Tengo Kawana, ou se se tratava de outra pessoa com o mesmo nome. Ele dir-lhe-ia qualquer coisa, o mais tardar, no dia seguinte. Tamaru nunca perdia tempo. Então saberia. Dependendo do que for a resposta, pensou, posso realmente ir ver o Tengo dentro de pouco tempo. A hipótese tornou-lhe a respiração difícil, parecia que o ar à sua volta se tinha inesperadamente rarefeito.

No entanto, as coisas podiam não ser assim tão fáceis. Mesmo que a pessoa que vivia no apartamento 303 fosse Tengo Kawana, a verdade é que o Cabeça-de-Abóbora estava escondido algures dentro do mesmo prédio. E tinha um plano qualquer – qual era, ela não sabia, mas não podia ser boa coisa. Com toda a certeza, estaria a urdir um plano engenhoso, colado aos calcanhares deles, a fazer o que podia para evitar que se encontrassem.

Não, não tenho com que me preocupar, disse para si própria. O Tamaru é de confiança, além de ser a pessoa mais cautelosa, competente e experiente que conheço. Se lhe deixar o campo livre, ele trata do Cabeça-de-Abóbora. Tornou-se um estorvo, um risco não só para mim como para o Tamaru, pelo que tem de ser eliminado.

Mas e se, por qualquer razão, o Tamaru chegar à conclusão de que não é aconselhável que eu e o Tengo nos encontremos, o que é que faço? Se tal acontecer, certamente o Tamaru inviabilizará todas as hipóteses de alguma vez nos vermos. O Tamaru e eu somos bons amigos, mas a prioridade dele são os interesses e a segurança da viúva. É o trabalho dele. Não está a fazer isto pelos meus lindos olhos.

A ideia deixou-a desconfortável. Não tinha forma de saber que lugar o seu reencontro com Tengo ocupava na lista de prioridades de Tamaru. Talvez tivesse sido um erro fatal revelar a existência de Tengo a Tamaru. Talvez devesse enfrentar aquela questão sozinha, quem sabe?

O que está feito está feito. Já contei tudo ao Tamaru, pensou. Não tive alternativa. O Cabeça-de-Abóbora deve estar à coca, à minha espera, e seria um suicídio meter-me nisto sozinha. O tempo está a correr, e eu não posso deter-me a fazer considerações nem pôr-me à espera de que algo aconteça. No ponto em que estão as coisas, o melhor que podia ter feito foi abrir o jogo com o Tamaru e pôr tudo nas mãos dele.

Aomame decidiu não pensar mais em Tengo. Claramente, quanto mais pensava nele, mais o fio do seu pensamento se enredava, ao ponto de ficar paralisada. Deixaria também de observar as luas. O luar estava a provocar o caos dentro da sua cabeça. Alterava as marés nas enseadas e agitava a vida nos bosques. Bebeu o que ainda restava da sua tisana, afastou-se da janela, foi até à cozinha e lavou a caneca. Apeteceu-lhe um gole de brandy, mas sabia que não podia tocar em álcool enquanto estivesse grávida.

Sentou-se no sofá, acendeu o candeeirinho que havia ao lado e recomeçou a ler A Crisálida de Ar. Lera o romance de fio a pavio umas boas dez vezes. Não era um livro muito extenso e já quase decorara a história até aos mais ínfimos pormenores. Contudo, decidiu lê-lo de novo, devagar, com toda a atenção. Ao fim e ao cabo, não tinha sono, podia ocupar o tempo com aquilo. Talvez lhe tivesse escapado alguma coisa.

A Crisálida de Ar era, vistas bem as coisas, um livro escrito em código, e Eriko Fukada devia ter contado a história para fazer passar uma mensagem qualquer. Tengo reescrevera-o, tornando-o mais polido, mais elaborado, mais eficaz. Tinham formado equipa para criar uma obra que atraísse o maior número de leitores. Como o Líder lhe dissera, fora um esforço de complementaridade. E, a crer no Líder, quando A Crisálida de Ar se tornara um êxito de vendas e os segredos que continham foram revelados, o Povo Pequeno perdera o seu poder e a voz nunca mais lhes falara. Por causa disso, o poço secara e o fluxo interrompera-se. A tanto chegava a influência do texto.

Concentrou-se em todas e cada uma das linhas que estava a ler.

Quando o relógio marcou as duas e meia, já ela lera cerca de dois terços do livro. Fechou-o e tentou pôr em palavras as fortes emoções que a assaltavam. Apesar de não chegar ao ponto de afirmar que tivera uma epifania, naquele momento, uma imagem claríssima perfilava-se na sua mente.

Não fui trazida a este mundo por acaso.

Era o que a imagem lhe dizia.

Estou aqui porque é aqui que devo estar.

Até agora, pensou, eu acreditava que tinha sido arrastada para este mundo de 1Q84 não por vontade própria. Que alguma coisa tinha acionado deliberadamente o interruptor que me fez desviar da linha principal e entrar neste estranho mundo novo. E, de repente, tomei consciência de que estava aqui: num mundo com duas luas, onde há um Povo Pequeno, que surge de vez em quando. Um mundo para onde há uma entrada, mas de onde não existe saída.

O Líder deu-me esta explicação, antes de morrer: o comboio é a história que o Tengo escreveu, e eu fui apanhada na ratoeira dessa história, o que explica a razão por que estou aqui e agora. De uma maneira totalmente passiva. Como uma atriz que só tem uma ponta e que, desconcertada, vagueia num nevoeiro espesso.

E o quadro ainda não está completo, disse Aomame para si própria. O quadro está longe de estar completo.

Não sou um simples ser passivo que se viu nesta embrulhada porque alguém assim o quis. Isso pode ser verdade, em parte. Mas, ao mesmo tempo, eu escolhi estar aqui.

Escolhi estar aqui de livre vontade.

Tinha a certeza disto.

E há um motivo muito claro para aqui estar. Uma única razão: para poder reencontrar o Tengo. Contudo, se olhar para o caso do ponto de vista inverso, posso dizer que é a única razão para este mundo estar dentro de mim. Talvez seja um paradoxo, como uma imagem que se reflete infinitamente num par de espelhos, uma à frente do outro. Faço parte deste mundo, e este mundo faz parte de mim.

Aomame não tinha maneira de saber o argumento da nova história que Tengo estava a escrever. Era bem provável que, nesse mundo, houvesse duas luas e que fosse frequentado pelo Povo Pequeno. As suas conjeturas não iam mais além. Pode ser a história do Tengo, pensou, mas é também a minha história. Até aí, compreendia.

Tomou consciência disto quando chegou à cena em que a rapariga, a protagonista, estava no armazém, com o Povo Pequeno, a trabalhar todas as noites para fazer uma crisálida de ar. Enquanto lia esta passagem pormenorizada e clara, sentiu no ventre um calor que, a pouco e pouco, se foi espalhando, um calor de uma estranha profundidade. Apesar de minúscula, havia ali uma fonte de calor intenso. Sabia bem o que era essa fonte de calor e o que significava – não precisava de pensar naquilo. O pequenino. Emitia calor como resposta à cena em que a protagonista e o Povo Pequeno, juntos, teciam a crisálida de ar.

Aomame pousou o livro na mesa que tinha ao seu lado, desapertou a parte de cima do pijama e pousou uma mão sobre a barriga. Sentia o calor espalhar-se e quase que se via uma ténue luz alaranjada. Apagou a luz do candeeiro e, no quarto às escuras, olhou para essa zona e viu uma luminescência quase demasiado ténue para ser visível. Mas estava lá, decididamente; não havia erro possível. Não estou sozinha, pensou Aomame. Estamos ligados por isto, vivemos ambos a mesma história, ao mesmo tempo.

E se, para além de ser a história do Tengo, for igualmente a minha história, considerou, então eu deveria ser capaz de a escrever também. Deveria poder comentar o que acontece, talvez até reescrever parte dela. Tenho de ser capaz. Acima de tudo, devia ser capaz de decidir o final. Não é verdade?

Ponderou a possibilidade.

Okay, mas como é que faço?

Aomame não sabia, apesar de ter consciência de isso poder ser forçosamente plausível. De momento, era apenas uma simples teoria. Na escuridão silenciosa, apertou os lábios e pensou. Estava num momento crucial e tinha de se concentrar.

Os dois formamos uma equipa. Tal como o Tengo e a Eriko Fukada formaram uma equipa brilhante quando criaram A Crisálida de Ar. O Tengo e eu somos uma equipa para esta nova história. As nossas vontades, ou talvez o que jaz no fundo inconsciente das nossas vontades, estão a fundir-se numa só, criando este enredo complexo e fazendo-o avançar. É provável que o processo se desenrole a um nível profundo e invisível. Mesmo não estando juntos fisicamente, estamos ligados e somos um. Criamos a história e, simultaneamente, é a história que nos põe em marcha. Certo?

Mas tenho uma pergunta. Uma pergunta muito importante.

Nesta história que estamos a escrever, qual poderá ser o significado do pequenino? Que tipo de papel desempenhará?

Dentro do meu útero existe um calor subtil mas tangível, que está a emitir uma ténue luz alaranjada, exatamente como se fora uma crisálida de ar. Será que o meu útero desempenha a função de crisálida de ar? Será que sou a mã e o pequenino é a minha nina? Será que a vontade do Povo Pequeno também se encontra envolvida nisto: no facto de estar grávida do Tengo, apesar de não termos tido relações sexuais? Foram astuciosos ao ponto de usurparem o meu útero para o usar como uma crisálida de ar? Usaram-me perante a possibilidade de conseguirem uma nova nina?

Não. Não pode ser, disse Aomame para si mesma, convicta. As coisas não são assim.

O Povo Pequeno tinha perdido a sua vitalidade. Fora o Líder que lho dissera. Basicamente, a grande popularidade de A Crisálida de Ar estava a bloquear o que costumavam fazer. Portanto, não deviam saber da sua gravidez. Mas quem – ou que poder – tornara possível esta gravidez? E porquê?

Aomame não fazia a menor ideia.

O que sabia era que este pequenino era uma vida preciosa e inestimável, que ela e Tengo tinham criado. Tornou a pousar as mãos sobre o abdómen, exercendo uma pressão suave sobre o contorno daquela ténue luz alaranjada. Deixou que o calor que sentia naquele ponto se espalhasse por todo o seu corpo. Tenho de proteger este pequenino, custe o que custar, disse para si própria. Nunca ninguém mo tirará ou lhe fará mal. Temos de o manter seguro, nós os dois. Mergulhada no escuro, tomou uma decisão.

Foi para o quarto, despiu o roupão e meteu-se na cama. Deitou-se de costas, com as mãos sobre o ventre, e tornou a sentir aquele calor. A sensação de desconforto desaparecera. Sabia o que havia a fazer. Tenho de ser forte, disse com os seus botões. A minha mente e o meu corpo têm de estar unidos, ser um só. Por fim, silencioso, como se fora fumo, o sono chegou, envolvendo-a no seu abraço. No céu, lado a lado, ainda pairavam duas luas.


24

TENGO

Abandonar a cidade dos gatos

Tinham vestido o cadáver do pai de Tengo com o uniforme de cobrador da NHK, muito bem engomado, e haviam-no colocado dentro de um caixão modesto. Seria provavelmente o caixão mais barato de que dispunham; um ataúde sombrio, apenas um pouco mais resistente do que uma caixa de bolo de castella33. Apesar da pequena estatura do falecido, não sobrava muito espaço. O caixão era feito de contraplacado e quase não tinha ornamentos. «O caixão está bem assim?», perguntara-lhe o responsável da funerária, para ter a certeza. «Está perfeito», respondera Tengo. Era o caixão que o pai escolhera no catálogo e que deixara já pago. Se o falecido não tinha problemas com aquilo, não era Tengo quem os iria criar.

Envergando o uniforme da NHK, deitado no caixão discreto, o pai não tinha ar de quem estava morto. Parecia estar a dormir uma sesta num intervalo do trabalho. Como se, dentro em pouco, se fosse levantar, pôr o boné na cabeça e sair para a sua volta, a cobrar o resto das taxas. O uniforme com o logótipo da NHK cosido parecia uma segunda pele. Aquele homem nascera já com o uniforme vestido e abandonaria este mundo da mesma forma, quando fosse consumido pelas chamas. Ao olhar para o pai assim trajado, Tengo percebeu que não era capaz de o conceber usando um outro fato. Tal como os guerreiros de Wagner que eram colocados nas suas piras funerárias envergando a armadura.

Na terça-feira de manhã, perante Tengo e Kumi Adachi, a tampa foi fechada e pregada, e o caixão colocado numa carreta. Não era uma carreta muito elegante: tratava-se da mesma carrinha Toyota utilitária onde tinham trazido o corpo do pai desde a clínica até à casa mortuária. Também devia ser a mais barata de todas. A solenidade brilhava pela ausência. E, claramente, não haveria excertos de Götterdämmerung34 a acompanhar o funeral. Contudo, Tengo não viu motivos para protestar, o mesmo acontecendo a Kumi, que também não pareceu importar-se. Não passava de um meio de transporte. Ali, o importante é que uma pessoa tinha desaparecido da face da Terra e os que ficavam tinham de compreender o que isso implicava. Meteram-se os dois num táxi e seguiram atrás da carrinha negra.

Deixaram a autoestrada costeira, percorreram uma curta distância até às montanhas e chegaram ao crematório. Tratava-se de um edifício relativamente recente, desprovido de toda a individualidade. Parecia mais uma espécie de fábrica ou edifício de escritórios do Governo do que um crematório. Tinha um jardim encantador e bem cuidado, se bem que a chaminé alta, que se erguia majestosa na direção do céu, sugerisse tratar-se de instalações com um fim especial. Naquele dia, o crematório não devia ter tido grande atividade, uma vez que levaram logo o caixão para dentro. Colocaram-no, com cuidado, dentro do incinerador, e depois a pesada tampa fechou-se, como a escotilha de um submarino. O encarregado, um homem de luvas, já de certa idade, virou-se, fez uma pequena reverência na direção de Tengo e carregou no interruptor de ignição. Kumi virou-se para a tampa fechada e uniu as mãos numa prece, e Tengo imitou-a.

Durante a hora que durou a cremação, Tengo e Kumi aguardaram numa sala preparada para esse fim. Kumi comprou duas latas de café quente na máquina de venda automática e, em silêncio, beberam-nas sentados lado a lado num banco, de frente para uma grande janela panorâmica. No exterior estendia-se um amplo relvado, agora crestado devido ao inverno, e algumas árvores sem folhas. Dois pássaros negros estavam pousados num dos ramos despidos. Tengo desconhecia que aves eram. Tinham caudas compridas e, apesar de serem pequenos, soltavam grasnidos estridentes e altos. Quando gorjeavam, levantavam a cauda. Por cima das árvores estendia-se o céu azul, sem nuvens, de inverno. Kumi Adachi vestia um casaco de lã creme, comprido, por cima de um vestido preto, curto. Tengo vestia uma camisola preta de gola rente ao pescoço por baixo de um casaco cinzento-escuro, espinhado. Calçava mocassins castanho-escuros. Era a indumentária mais formal que possuía.

– O meu pai também foi cremado aqui – disse Kumi. – As pessoas que vieram fumaram que nem doidas. Havia tanto fumo, que se formou uma nuvem junto ao teto. Talvez fosse de esperar, já que eram todos pescadores.

Tengo imaginou a cena. Um grupo de homens de pele tisnada do sol, desconfortáveis nos seus fatos escuros, a fumar, exprimindo o seu pesar pela morte de um homem que falecera de cancro nos pulmões. Todavia, naquele momento, Tengo e Kumi eram as duas únicas pessoas presentes na sala. Estava tudo muito calmo. Um ou outro chilreio dos pássaros nas árvores, mas nada quebrava o silêncio. Nada de música, nada de vozes. O Sol cobria a Terra de uma luz tranquila, que entrava pela janela e formava uma mancha taciturna junto dos pés dos dois. O tempo corria sem pressas, como um rio ao aproximar-se do seu estuário.

– Muito obrigado por teres vindo comigo – disse Tengo, após um longo silêncio. Kumi estendeu a mão e pousou-a sobre a dele.

– É duro passar por isto sozinho. Ainda bem que tens alguém por perto.

– Podes bem ter razão – respondeu Tengo.

– A morte de uma pessoa é uma coisa terrível, sejam quais forem as circunstâncias. Abre-se um buraco no mundo, e temos de mostrar o nosso respeito. Se o não fizermos, o buraco nunca mais se fecha.

Tengo assentiu em silêncio.

– O buraco não pode ficar aberto – prosseguiu Kumi –, para que ninguém caia lá dentro.

– Mas, por vezes, a pessoa que morre tem segredos – disse Tengo. – E, quando se enche o buraco, esses segredos perdem-se para sempre.

– Também nesses casos se deve tapar o buraco.

– Como assim?

– Há segredos que é melhor manterem-se como tal.

– E porquê?

Kumi largou-lhe a mão e encarou-o.

– Há coisas acerca desses segredos que só a pessoa que morreu sabe. Coisas que não se explicam, por mais que se tente. São o que a pessoa tem de levar consigo para o túmulo. Como uma peça de bagagem valiosa.

Em silêncio, contemplava a mancha de luz a seus pés. O chão de linóleo tinha um brilho baço. À frente dos seus olhos estavam os seus velhos mocassins e os simples sapatos de salto alto pretos de Kumi.

Estavam ali mesmo à sua frente, mas pareciam a muitos quilómetros de distância.

– Tu também, Tengo-kun, terás os teus segredos difíceis de explicar aos outros.

– Talvez – retorquiu Tengo.

Kumi não respondeu e cruzou as pernas, envoltas em meias negras.

– Disseste-me que já tinhas morrido uma vez, não é verdade? – perguntou Tengo.

– Ah, sim. Houve uma vez em que morri. Numa noite fria em que estava a chover.

– E lembras-te de como foi?

– Acho que sim. Durante muito tempo sonhei com aquilo. Um sonho muito vívido, sempre igual. Por isso, creio que aconteceu mesmo.

– Foi como uma reencarnação?

– Reencarnação?

– Quando uma pessoa nasce outra vez. Transmigração.

Kumi pensou na hipótese durante um bocado.

– Não sei. Talvez sim. Ou talvez não.

– Depois de morrer, também foste cremada assim?

Kumi abanou a cabeça.

– As minhas recordações não chegam aí. Uma vez que isso teria acontecido depois de eu morrer. O que recordo é o momento em que morri. Alguém estava a estrangular-me. Um homem que eu nunca tinha visto.

– Recordas-te da cara dele?

– Claro. Vi-o muitas vezes nos meus sonhos. Se der com ele na rua, vou reconhecê-lo de imediato.

– E o que é que vais fazer, se o encontrares na vida real?

Kumi esfregou o nariz, como se quisesse verificar que ainda estava no sítio.

– Pensei imenso nisso... o que faria se o encontrasse na rua. Talvez fuja. Ou talvez o siga sem que ele repare. A menos que me veja realmente em tal situação, não sei o que irei fazer.

– E se fores atrás dele, o que é que vais fazer?

– Não sei. Mas talvez esse homem saiba algum segredo vital a meu respeito. E se manobrar bem as coisas, pode ser que ele mo revele.

– Que tipo de segredo?

– Por exemplo, a razão por que estou aqui.

– Mas esse tipo pode matar-te outra vez.

– Pode – respondeu Kumi, apertando ligeiramente os lábios. – Sei que é perigoso. Talvez seja melhor fugir. Mesmo assim, o segredo atrai-me. Como quando há uma entrada escura e os gatos não conseguem evitar espreitar lá para dentro.

A cremação estava terminada e, seguindo a tradição, Tengo e Kumi escolheram alguns ossos de entre os restos do pai e colocaram-nos dentro de uma pequena urna. A urna foi entregue a Tengo. Ele não fazia a mínima ideia do destino a dar àquilo, apesar de saber que nunca seria capaz de o abandonar. Portanto, agarrou o vaso com ambas as mãos e, acompanhado de Kumi, apanhou um táxi para a estação.

– Eu trato do que ainda faltar fazer – disse-lhe Kumi, já dentro do táxi. Ao fim de um momento, acrescentou: – Se quiseres, também posso encarregar-me de enterrar os ossos.

Tengo espantou-se.

– Podes?

– Não vejo porque não – respondeu Kumi. – Há funerais a que nenhum membro da família comparece.

– Isso seria uma enorme ajuda – declarou Tengo. E estendeu-lhe a urna, com um leve sentimento de culpa, mas honestamente aliviado. Com toda a probabilidade, nunca mais torno a ver estes ossos, pensou. Só restarão as memórias e, mesmo essas, acabarão por desaparecer também, como pó.

– Sou daqui, portanto, penso que posso encarregar-me disto. É melhor que regresses a Tóquio de imediato. Nós gostamos imenso de ti, mas não é um local onde devas permanecer durante muito tempo.

Estou a abandonar a cidade dos gatos, pensou Tengo.

– Muito obrigado por tudo o que fizeste – agradeceu Tengo.

– Tengo-kun, importas-te que te dê um conselho? Sei que não tenho o direito de o fazer.

– Claro.

– O teu pai pode ter tido um segredo que levou consigo para o outro lado. Aparentemente, isso está a fazer-te confusão. Penso que compreendo o que sentes. Mas não devias espreitar mais pelo buraco escuro. Deixa isso para os gatos. Se continuares a fazê-lo, nunca irás a lado nenhum. Mais vale pensar no futuro.

– O buraco tem de ser fechado – disse Tengo.

– Precisamente – respondeu Kumi. – O mocho diz a mesma coisa. Recordas-te do mocho?

– Claro.

O mocho é a divindade guardiã da floresta. Sabe tudo e oferece-nos a sabedoria da noite.

– Continua a piar no meio do bosque?

– O mocho não vai a lado nenhum – retorquiu Kumi. – Ficará por ali durante muito tempo.

Kumi despediu-se dele junto do comboio para Tateyama – como se precisasse de ficar com a certeza, de ver com os seus próprios olhos, que ele subira para o comboio e abandonara a cidade. Ficou na plataforma a acenar-lhe, até ele a perder de vista.

Quando chegou ao seu apartamento em Koenji, eram sete da noite. Acendeu as luzes, sentou-se à mesa de jantar e olhou em volta, examinando a sala. Tudo parecia estar exatamente como o tinha deixado na véspera. As cortinas estavam bem fechadas e havia uma impressão da história em que estava a trabalhar em cima da secretária. Seis lápis bem afiados num porta-lápis, pratos limpos ainda no escorredor do lava-loiça. O relógio marcava a hora, silenciosamente; o calendário pendurado na parede indicava que se estava no último mês do ano. A sala parecia ainda mais silenciosa do que de costume. Um pouco silenciosa demais. Havia qualquer coisa de excessivo misturada naquele silêncio. Se bem que podia ser tudo fruto da sua imaginação. Talvez fosse porque acabara de assistir ao desaparecimento de um ser humano. O buraco no mundo podia ainda não estar completamente fechado.

Bebeu um copo de água e tomou um duche quente. Lavou o cabelo com champô, minuciosamente, limpou os ouvidos, cortou as unhas. Tirou um par de cuecas e uma T-shirt novas da gaveta e vestiu-as. Precisava de se libertar de todos os odores que se lhe tinham agarrado ao corpo, os odores da cidade dos gatos. Nós gostamos imenso de ti, mas não é um local onde devas permanecer durante muito tempo, dissera Kumi Adachi.

Não tinha fome. Não lhe apetecia trabalhar nem abrir um livro. A música também não o atraía. O seu corpo estava exausto, mas tinha os nervos à flor da pele, pelo que sabia que mesmo, que se deitasse, o sono não viria. Aquele silêncio tinha qualquer coisa de constrangedor.

Era bom que a Fuka-Eri aqui estivesse, pensou Tengo. Não importaria que dissesse coisas palermas e sem sentido. Aquela falta de entoação, a maneira como a voz dela sobe no fim das interrogações: estaria tudo muito bem. Há já algum tempo que não ouço a voz dela, e tenho saudades. Contudo, Tengo sabia que ela nunca regressaria ao apartamento dele. Não seria capaz de dizer com rigor como é que sabia isto. Mas tinha a certeza de que ela nunca mais tornaria a pôr ali os pés. Provavelmente.

Queria falar com alguém. Seja quem for. Desejou poder falar com Kyoko Yasuda, a sua namorada mais velha, mas não podia ligar-lhe. Além de não saber o número, o homem que lhe telefonara tinha-lhe dito que ela se perdera para sempre.

Marcou o número do escritório de Komatsu, a linha direta, mas ninguém atendeu. Ao fim de quinze toques, desistiu.

Tentou pensar em outras pessoas a quem pudesse telefonar, mas não havia ninguém. Pensou em Kumi, mas deu-se conta de que não tinha o número dela.

Lembrou-se do buraco escuro que se tinha aberto algures no mundo e que ainda não estava tapado. Não era um buraco muito grande, mas era muito fundo. Se espreitasse para dentro desse buraco e falasse bastante alto, pensou, conseguiria falar com o meu pai? Será que os mortos me dirão qual é a verdade?

«Se continuares a fazê-lo, nunca irás a lado nenhum», dissera-lhe Kumi. «Mais vale pensar no futuro.»

Não concordo, disse para si mesmo. Não é só isto que existe. Saber o segredo pode não me levar a lado nenhum, mas, apesar de tudo, tenho de saber a razão por que não é assim. Se perceber a razão, talvez eu seja capaz de ir a qualquer lado.

Já não importa se é ou não o meu verdadeiro pai, disse Tengo para o buraco escuro. Pela parte que me toca, está tudo bem. Seja como for, levou uma parte de mim consigo para o túmulo, e eu fiquei aqui com uma parte dele. Esse facto não vai alterar-se, quer sejamos do mesmo sangue quer não. Já passou tempo suficiente para que assim seja, e o mundo avançou.

Pensou ter ouvido um mocho piar na rua, mas eram apenas os seus ouvidos a pregar-lhe partidas.

33 O castella ou kasutera é um popular bolo japonês. Foi levado para o Japão pelos mercadores portugueses, durante o século xvi. É semelhante ao pão de ló e o seu nome poderá ter como origem o «pão de Castela». Outra teoria refere que o nome pode ter origem no facto de o bolo ser preparado com claras batidas em castelo. Por regra, é tradicionalmente apresentado numa caixa retangular, feita de madeira muito fina. (N. das T.)

34 A ópera O Crepúsculo dos Deuses, de Richard Wagner, é a quarta parte da tetralogia O Anel dos Nibelungos. (N. das T.)


25

USHIKAWA

Faça frio ou não, Deus está aqui

– Não vais morrer tão facilmente – proferiu a voz do homem, nas suas costas. Como se tivesse lido os pensamentos de Ushikawa. – Apenas perdeste momentaneamente a consciência. Se bem que tenhas estado mesmo à beira da morte.

Uma voz que nunca ouvira. Neutra, absolutamente inexpressiva. Nem demasiado aguda, nem demasiado grave, nem dura nem melíflua. O tipo de voz que anuncia as partidas dos aviões ou os resultados da bolsa.

Em que dia da semana estamos?, interrogou-se Ushikawa, aturdido. Deve ser segunda à noite. Não, tecnicamente pode já ser terça-feira.

– Ushikawa-san – disse o homem. – Não te importas que te trate por Ushikawa-san, pois não?

Ushikawa não lhe deu resposta. Fez-se silêncio durante uns bons vinte segundos. Depois, sem aviso prévio, o homem desferiu-lhe um murro seco e forte no rim esquerdo. Em silêncio, mas com força. O seu corpo foi atravessado por uma dor excruciante. Os seus órgãos internos contraíram-se e, até a dor desaparecer, ficou sem conseguir respirar. Por fim, lá foi capaz de ofegar.

– Fiz-te uma pergunta de forma educada e estou à espera de uma resposta. Se ainda não estás capaz de falar, acena com a cabeça. Isso basta. É o que significa ter boa educação – disse o homem. – Posso tratar-te por Ushikawa-san?

Ushikawa assentiu com a cabeça várias vezes.

– Ushikawa-san. Um nome fácil de reter. Tomei a liberdade de revistar a carteira que tens no bolso das calças. Tinhas lá a carta de condução e os cartões de visita. Presidente em exercício da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão. Um título todo catita, não dirias? O que é que um presidente em exercício da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão anda a fazer com uma máquina oculta, a tirar fotografias às escondidas num sítio destes?

Ushikawa guardou silêncio. Ainda não estava capaz de articular uma única palavra.

– Aconselho-te a responder – avisou o homem. – Toma isto como um aviso. Se o teu rim rebentar, vai doer-te como o diabo para o resto da tua vida.

– Estou a vigiar os residentes – por fim, Ushikawa foi capaz de dizer. A voz saiu-lhe pouco segura, com falhas. Até a ele, de olhos vendados, não lhe soou como sua.

– Vigias o Tengo Kawana, queres tu dizer.

Ushikawa anuiu com a cabeça.

– O Tengo Kawana que reescreveu, como escritor-fantasma, A Crisálida de Ar.

Ushikawa tornou a dizer que sim com a cabeça, ao que se seguiu um ataque de tosse. O homem já sabia tudo.

– Quem foi que te contratou? – perguntou o homem.

– A Vanguarda.

– Até aí, eu sabia, Ushikawa-san – disse o homem. – A pergunta é: porquê? Porque é que agora, tarde e a más horas, a Vanguarda quer que mantenhas os movimentos do Tengo Kawana debaixo de olho? O Tengo Kawana já não pode ter qualquer importância para eles.

A cabeça de Ushikawa funcionava a mil à hora, tentando desesperadamente perceber quem era aquele homem e que informações teria. Não o conhecia, mas afigurava-se óbvio que não fora a Vanguarda a enviá-lo. Se isto era ou não uma boa notícia, Ushikawa não o saberia dizer.

– Estou a fazer-te uma pergunta – continuou o homem. Espetou um dedo no rim esquerdo de Ushikawa. Com muita força.

– Há uma mulher que está relacionada com ele – gemeu Ushikawa.

– E essa mulher tem nome?

– Aomame.

– E porque é que andam atrás da Aomame? – indagou o homem.

– Porque ela fez algo muito grave ao Líder, o chefe dos da Vanguarda.

– Fez algo muito grave – repetiu o homem, como se estivesse a verificar a frase. – Queres dizer que o matou, certo? Para simplificar as coisas.

– Isso mesmo – respondeu Ushikawa. Já percebera que lhe seria impossível esconder qualquer coisa deste homem. Mais cedo ou mais tarde, acabaria por ter de falar.

– Mas isso não veio a público.

– Mantiveram-no em segredo, dentro da comunidade.

– Quantos membros dos da Vanguarda é que sabem esse segredo?

– Uma mão-cheia.

– Tu incluído.

Ushikawa assentiu.

– Portanto, deves ter uma posição muito importante.

– Não – disse Ushikawa e abanou a cabeça, cheio de dores no rim magoado. – Não passo de um mensageiro. Descobri por mero acaso.

– Encontravas-te no local errado à hora errada. É o que estás a dizer?

– Acho que sim.

– A propósito, Ushikawa-san, estás a trabalhar sozinho?

Ushikawa fez que sim com a cabeça.

– Que estranho. Normalmente, o trabalho de vigilância requer uma equipa. Para fazer um trabalho decente é preciso alguém que trate dos abastecimentos, pelo que, no mínimo, são precisas três pessoas. E tu já contas com o apoio da organização. Isso de trabalhares sozinho parece-me muito pouco vulgar. Por outras palavras, não me sinto muito satisfeito com a tua resposta.

– Não sou membro da Vanguarda – disse Ushikawa. A sua respiração acalmara e ele estava finalmente quase capaz de falar com normalidade. – Contrataram-me. Costumam chamar-me sempre que pensam que é mais conveniente contratar alguém de fora.

– Na qualidade de presidente em exercício da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão?

– Isso é apenas uma fachada. Essa organização não existe. Foi criada pela Vanguarda por causa dos impostos. Trabalho por conta própria, não tenho ligações à religião. Faço aquilo para que sou contratado.

– Uma espécie de mercenário.

– Não, não sou mercenário. Limito-me a recolher informações a pedido deles. Se é preciso uma intervenção mais dura, há outras pessoas que se encarregam disso.

– Portanto, Ushikawa-san, recebeste instruções da Vanguarda para vigiares aqui o Tengo e informares a comunidade quanto à sua ligação com a Aomame.

– Certo.

– Não – exclamou o homem. – Resposta errada. Se a Vanguarda tivesse a certeza de que existe uma ligação entre a Aomame e o Tengo Kawana, não te teriam mandado para aqui, sozinho, para o vigiares. Teriam organizado uma equipa com os seus próprios homens. Isso reduziria as hipóteses de cometerem erros, e, caso fosse necessário, poderiam recorrer à força.

– Estou a dizer a verdade. Limito-me a fazer o que aqueles que estão acima de mim me pediram. Não faço a mínima ideia da razão por que me meteram nisto sozinho. – A voz de Ushikawa ainda estava insegura e tinha falhas.

Se ele descobrir que a Vanguarda ainda não sabe da existência de uma ligação entre a Aomame e o Tengo, pensou Ushikawa, pode dar cabo de mim aqui e agora. Porque, se eu deixar de fazer parte do quadro, ninguém saberá da ligação entre os dois.

– Não sou grande apreciador de respostas incorretas – proferiu o homem, num tom gélido. – Penso que tu, de entre toda a gente, saberás isso. Não me importo nada de dar outro murro no teu rim, mas, se te bater com força, magoo a mão, e não foi para dar cabo do teu rim de forma permanente que eu aqui vim. Nada me move contra ti, não existe qualquer animosidade pessoal. Só tenho um objetivo, que é obter a resposta certa. Por isso, vou tentar uma abordagem diferente. Vou mandar-te para o fundo do mar.

O fundo do mar? pensou Ushikawa. De que é que este tipo está a falar?

O homem tirou qualquer coisa do bolso. Chegou-lhe aos ouvidos o som de plástico a enrugar-se e, depois, algo cobriu a cabeça de Ushikawa. Um saco de plástico, do tipo daqueles sacos de congelação, grossos. A seguir, sentiu que lhe enrolava um elástico largo à volta do pescoço. Este tipo quer asfixiar-me, apercebeu-se Ushikawa. Tentou respirar, mas, em vez de ar, foi plástico o que lhe entrou na boca. Também tinha o nariz bloqueado. Os seus pulmões reclamaram por ar, em vão. O plástico moldou-se-lhe à cara como se fosse uma máscara mortuária. Pouco depois, todos os seus músculos começaram a sofrer violentas convulsões. Tentou arrancar o saco com as mãos, mas não foi capaz de as mexer. Estavam amarradas com força por trás das costas. O seu cérebro inchou como um balão, quase a ponto de explodir. Tentou gritar. Tinha de conseguir ar. Mas não saiu nenhum som. A língua inchou e encheu-lhe a boca enquanto a consciência lhe fugia.

Ao fim de um bocado, o homem alargou o elástico em torno do seu pescoço e arrancou-lhe o saco da cabeça. Desesperado, Ushikawa inspirou todo o ar que conseguiu. Durante alguns minutos, ficou dobrado para a frente, arquejante, como um animal que se esforça por morder algo que está fora do seu alcance.

– Que tal o fundo do mar? – perguntou o homem, quando a respiração de Ushikawa acalmou. Tal como antes, a sua voz não revelou qualquer emoção. – Foste até muito fundo. Imagino que tenhas visto coisas que nunca tinhas visto. Uma experiência valiosa.

Ushikawa não foi capaz de responder. A voz não lhe saía.

– Ushikawa-san, como já te disse uma série de vezes, ando à procura da resposta certa. Por isso, volto a perguntar. Foi a Vanguarda que te deu ordem para investigares os movimentos do Tengo Kawana e procurares a ligação dele com a Aomame? Trata-se de um ponto fundamental. Há uma vida humana em jogo. Pensa bem e responde como deve ser. Se mentires, eu percebo.

– A Vanguarda não sabe disto – conseguiu Ushikawa gaguejar.

– Boa, é a resposta certa. A Vanguarda ainda não conhece a ligação entre a Aomame e o Tengo Kawana. Ainda não lhes disseste. É assim?

Ushikawa fez que sim com a cabeça.

– Se tivesses respondido como deve ser desde o princípio, não terias tido de visitar o fundo do mar. Foi horrível, não foi?

Ushikawa fez que sim com a cabeça.

– Eu sei. Em tempos, também passei por isso – disse o homem, num tom de voz tão calmo como se estivesse a ter uma conversa sobre banalidades. – Só as pessoas que já passaram por essa experiência sabem como pode ser atroz. Não é fácil fazer generalizações sobre a dor. Cada dor tem as suas características próprias. Reformulando a famosa frase de Tolstói: «Todas as felicidades se parecem umas com as outras; cada dor dói à sua maneira.»35 Contudo, não iria tão longe a ponto de afirmar que é possível apreciá-las. Estás de acordo?

Ushikawa fez que sim com a cabeça. Ainda estava ligeiramente ofegante.

O homem prosseguiu:

– Portanto, sejamos francos um com o outro, absolutamente honestos. Parece-te uma boa ideia, Ushikawa-san?

Ushikawa fez que sim com a cabeça.

– Mais respostas erradas e vais dar outra volta às profundezas do mar. Desta vez, será um passeio mais longo, com mais à-vontade. Levamos a coisa um pouco mais além. Se nos descuidarmos, podes não regressar. Não me parece que queiras tornar a fazer este passeio. O que me dizes, Ushikawa-san?

Ushikawa anuiu com a cabeça.

– Então, ao que parece, temos uma coisa em comum – disse o homem. – Ambos somos lobos solitários. Ou cães que se desgarraram da matilha? Párias que não encaixam na sociedade. Gente que, por instinto, abomina as organizações ou que, por outro lado, não é aceite por nenhuma. Tratamos de nós. Decidimos por nossa conta, agimos por nossa conta, assumimos as nossas responsabilidades sozinhos. Recebemos ordens superiores, mas não temos colegas ou subordinados. Dependemos exclusivamente dos nossos cérebros e das nossas capacidades. Estou certo?

Ushikawa fez que sim com a cabeça.

O homem prosseguiu:

– É o nosso forte e, ao mesmo tempo, o nosso ponto fraco. Por exemplo, no caso vertente, penso que foste um pouco longe demais na vontade de alcançar o sucesso. Quiseste tratar de tudo por ti, sem informar a Vanguarda. Quiseste resolver o assunto a contento e ficar com o mérito. Foi quando baixaste um pouco a guarda, não foi?

Mais uma vez, Ushikawa fez que sim com a cabeça.

– E porque é que levaste as coisas tão longe?

– Porque foi por minha culpa que o Líder morreu.

– Como assim?

– Fui eu quem ficou encarregado de investigar a Aomame. Fiz uma verificação muito completa antes de a deixar entrar em contacto com o Líder e não encontrei nada de suspeito.

– E ela aproximou-se do Líder com o intuito de o matar e acabou mesmo por desferir um golpe fatal. Meteste a pata na poça e reconheces que, um dia, vais ter de responder por isso. Feitas as contas, não passas de um elemento descartável. E sabes demasiado para o teu próprio bem. Para sobreviver a isto tudo, terias de lhes entregar a cabeça da Aomame. Estou certo?

Ushikawa assentiu.

– Lamento muito – disse o homem.

Lamento muito? Ushikawa deu várias voltas à sua cabeça deformada. E, de repente, percebeu.

– Foi o responsável pelo plano para assassinar o Líder? – perguntou Ushikawa.

O homem não lhe deu resposta. Ushikawa tomou o silêncio dele como não sendo uma negativa.

– O que vai fazer comigo? – perguntou Ushikawa.

– Aí está! O que vou eu fazer? Valha a verdade, ainda não decidi. Vou ter de pensar no assunto. Tudo depende da forma como te comportares – declarou Tamaru. – Ainda tenho algumas perguntas a que quero que respondas.

Ushikawa abanou a cabeça.

– Quero que me dês o número de telefone do teu contacto dentro da Vanguarda. Haverá alguém a quem tenhas de prestar contas.

Por um instante, Ushikawa hesitou, mas deu-lhe o número. Com a vida presa por um fio, não era altura de o esconder. Tamaru anotou-o.

– O nome?

– Não sei como se chama – mentiu Ushikawa. Tamaru não pareceu importar-se.

– Uns tipos duros de roer?

– Diria que sim.

– Mas nada de profissionais a sério.

– São competentes. Obedecem aos seus superiores sem perguntas nem hesitações. Mas não são profissionais.

– O que é que sabem acerca da Aomame? – perguntou Tamaru. – Sabem onde se esconde?

Ushikawa abanou a cabeça.

– Ainda não sabem, e é por isso que fiquei aqui a vigiar o Tengo Kawana. Se eu soubesse onde está a Aomame, já teria mudado esta operação para lá, há muito tempo.

– Faz sentido – retorquiu Tamaru. – E, a propósito, como é que descobriste que há uma ligação entre a Aomame e o Tengo Kawana?

– Trabalho de campo.

– Explica-te.

– Investiguei a vida dela de uma ponta à outra. Fui até à sua infância, quando andava na escola primária em Ichikawa. O Tengo também é de Ichikawa, pelo que me interroguei se não poderia existir uma ligação. Fui à escola fazer umas perguntas e fiquei com a certeza de que estiveram na mesma turma durante dois anos.

Tamaru soltou do fundo da garganta um pequeno grunhido, como o ronronar de um gato.

– Estou a ver. Uma investigação muito tenaz, há que dizê-lo, Ushikawa-san. Deve ter-te tomado muito tempo e energia. Estou impressionado.

Ushikawa não respondeu. Não fora uma pergunta.

– Repetindo a minha questão – disse Tamaru –, de momento, és a única pessoa que conhece essa ligação entre a Aomame e o Tengo Kawana?

– O senhor também.

– Sem contar comigo. Estou a falar dos teus associados.

Ushikawa assentiu.

– Sou a única pessoa envolvida que sabe, sim.

– Estás a dizer a verdade?

– Estou.

– Já agora, sabias que a Aomame está grávida?

– Grávida? – exclamou Ushikawa. A sua voz traiu a surpresa. – De quem?

Tamaru não respondeu à pergunta.

– Não sabias mesmo?

– Não, não sabia. Acredite.

Em silêncio, Tamaru considerou a resposta, e depois disse:

– Muito bem. Aparentemente, não sabias isto. Acredito em ti. Mudando de assunto: andaste a farejar nas redondezas da Casa dos Salgueiros, em Azabu, durante algum tempo. Certo?

Ushikawa assentiu.

– Porquê?

– A dona frequentava um ginásio local e a Aomame era a treinadora pessoal dela. Ao que parece, tinham uma relação estreita. Essa senhora também arranjou, na sua propriedade, uma casa para mulheres vítimas de violência. A segurança da casa é extremamente apertada. Na minha opinião, em demasia. Portanto, depreendi que a Aomame poderia estar lá escondida.

– O que aconteceu?

– Cheguei à conclusão de que não era o caso. A senhora dispõe de muito dinheiro e poder. Se quisesse esconder a Aomame, não o faria colocando-a tão perto de si. Arranjar-lhe-ia um esconderijo muito, muito longe. Portanto, desisti de vigiar a casa de Azabu e centrei-me no Tengo Kawana.

Tamaru tornou a soltar um pequeno grunhido.

– A tua intuição é excelente. És uma pessoa de grande lógica, para já não falar na tua paciência. Que desperdício ter-te como moço de recados. Fizeste sempre este tipo de trabalho?

– Fui advogado – respondeu Ushikawa.

– Estou a ver. Devias ser muito bom. Mas imagino que te tenhas entusiasmado, fizeste asneira e deste um tombo. Os tempos estão difíceis, e agora trabalhas quase de graça como moço de recados para esse novo movimento religioso. Tenho razão, não tenho?

Ushikawa assentiu.

– Sim, é mais ou menos isso.

– Nada a fazer – disse Tamaru. – Párias como nós têm grande dificuldade em levar vidas normais, semelhantes às das outras pessoas. Durante um tempo, pode parecer que está tudo bem, mas depois damos uma queda e vimos por aí abaixo. O mundo está feito assim. – Tamaru fez estalar os nós dos dedos com um som seco e sinistro. – Falaste da Casa dos Salgueiros aos membros da Vanguarda?

– Não disse nada a ninguém – respondeu Ushikawa, com toda a sinceridade. – Quando referi que há qualquer coisa naquela mansão que cheira a esturro, estava a falar de uma conjetura minha, nada mais. A segurança era demasiado apertada para que eu pudesse verificar fosse o que fosse.

– Excelente – disse Tamaru.

– A segurança estava a seu cargo, certo?

Tamaru não respondeu.

– Até ao momento, deste-me respostas verdadeiras – retomou Tamaru. – Pelo menos, em geral. Uma vez que se vá ao fundo do mar, perde-se a capacidade de mentir. Se tentasses mentir agora, a tua voz trair-te-ia. É assim que o medo funciona.

– Não estou a mentir – afirmou Ushikawa.

– Ainda bem – retorquiu Tamaru. – Ninguém quer sentir mais dor do que a estritamente necessária. De certeza que já ouviste falar de Carl Jung?

Sem querer, num gesto involuntário, Ushikawa franziu o sobrolho por baixo da venda. Carl Jung? Onde é que este tipo quer chegar?

– Carl Jung, o psicanalista?

– Precisamente.

– Sei qualquer coisa a respeito dele – começou, com cautela, Ushikawa. – Nasceu no final do século dezanove, na Suíça. Era discípulo de Freud, mas afastou-se dele. Foi ele quem criou a expressão «inconsciente coletivo». É mais ou menos tudo o que sei.

– E é bastante – respondeu Tamaru.

Ushikawa aguardou que prosseguisse.

– Carl Jung – começou Tamaru – tinha uma casa elegante numa zona residencial calma, junto do lago, em Zurique, e levava uma vida luxuosa com a família. Contudo, sentiu necessidade de um lugar onde se pudesse recolher para meditar em assuntos importantes. Descobriu um pequeno lote de terreno num canto do lago, numa área chamada Bollingen, e construiu aí uma pequena casa. Não era uma villa nem nada de grandioso. Ele mesmo empilhou as pedras, uma por uma, e construiu uma casa redonda com um teto alto. As pedras vieram de uma pedreira ali perto. Na Suíça, naquele tempo, era preciso ter uma licença de canteiro para construir qualquer coisa feita de pedra, pelo que Jung se deu ao trabalho de obter essa licença. Chegou mesmo a juntar-se a uma guilda de canteiros. Foi muito importante para ele construir essa casa e fazê-lo com as suas próprias mãos. A morte da mãe também parece ter sido um dos fatores mais importantes que o levaram a empreender a tarefa.

Tamaru fez uma curta pausa.

– A casa ficou conhecida como a «Torre». Ele concebeu-a parecida com as cabanas das aldeias que vira durante uma viagem a África. Dispunha de um espaço interior sem divisórias, onde tudo acontecia. Era uma residência muito simples. Considerava que não era preciso mais nada para viver. A casa não tinha eletricidade, gás ou água corrente. Ia buscar água a uma montanha ali perto. Mais tarde, contudo, veio a descobrir que isto era apenas um arquétipo. À medida que o tempo foi decorrendo, começou a sentir necessidade de levantar paredes, dividir a casa, construir um segundo piso e, por fim, acrescentar-lhe mais umas alas. Ele próprio fez pinturas nas paredes. Tudo aquilo ilustrava o desenvolvimento e a divisão da consciência individual. A casa, no seu conjunto, funcionava como uma espécie de mandala a três dimensões. Demorou doze anos a terminá-la. Aos olhos dos investigadores que trabalham sobre Jung, é uma casa extremamente interessante. Já tinhas ouvido falar disto?

Ushikawa abanou a cabeça.

– A casa continua lá, na margem do lago de Zurique. Os descendentes de Jung ainda a mantêm, mas, infelizmente, não está aberta ao público, pelo que não é possível visitar o interior. Diz-se que na entrada da Torre original está uma pedra onde, por sua própria mão, Jung gravou algumas palavras: «Faça frio ou não, Deus está aqui.» Foi o que gravou na pedra.

Tamaru fez uma nova pausa.

– «Faça frio ou não, Deus está aqui» – tornou a dizer, num tom sereno. – Percebes o que quer dizer?

Ushikawa abanou a cabeça.

– Não, não percebo.

– Verdade? Eu próprio não estou muito certo do significado. Há nisto uma espécie de metáfora complexa, difícil de interpretar. Mas pensa no seguinte: na casa que construiu pelas suas próprias mãos, empilhando uma pedra a seguir à outra, na entrada, ele sentiu necessidade de gravar, mais uma vez por suas próprias mãos, estas palavras. Não te saberia dizer porquê, mas há muito tempo que me sinto fascinado por elas. Tenho dificuldade em perceber o que significam, mas essa mesma dificuldade torna-as ainda mais profundas. Não sei grande coisa acerca de Deus. Fui criado num orfanato católico e passei ali por algumas experiências horríveis, pelo que não tenho uma boa impressão de Deus. No orfanato estava sempre frio, mesmo no verão. Tínhamos sempre uma de duas situações: ou fazia bastante frio, ou um frio de rachar. Se existe um Deus, não posso dizer que me tenha tratado muito bem. Apesar disto tudo, as palavras de Jung calaram fundo nos recantos da minha alma. Há alturas em que fecho os olhos, repito-as vezes sem conta, e, por alguma estranha razão, elas acalmam-me. «Faça frio ou não, Deus está aqui». Desculpa, mas não te importas de as dizer em voz alta?

– «Faça frio ou não, Deus está aqui» – repetiu Ushikawa, numa voz débil, sem ter bem a certeza do que estava a dizer.

– Não ouvi bem.

– «Faça frio ou não, Deus está aqui.» – Desta vez, Ushikawa disse a frase com a maior clareza de que foi capaz.

Tamaru cerrou os olhos, desfrutando da sonoridade das palavras. Ao fim de um bocado, como se tivesse tomado uma decisão acerca de qualquer coisa, inspirou profundamente e soltou o ar. Abriu os olhos e olhou para as mãos. Tinha posto luvas descartáveis para não deixar impressões digitais.

– Tenho muita pena – disse em voz baixa, onde se sentia uma certa solenidade. Tornou a pegar no saco de plástico, colocou-o sobre a cabeça de Ushikawa e enrolou-lhe o elástico grosso à volta do pescoço. Os seus movimentos eram rápidos e decididos. Ushikawa tentou protestar, mas as palavras não lhe saíram da boca e nunca chegaram aos ouvidos de ninguém. Porque é que ele está a fazer isto?, pensou Ushikawa, dentro do saco de plástico. Contei-lhe tudo o que sei. Porque é que tem de me matar?

Pouco antes de a sua mente explodir, recordou-se da casinha que tinha em Chuorinkan e das duas filhas. Lembrou-se do cão. O cão, baixo e raso ao chão, de que Ushikawa nunca gostara. O cão também não gostava dele. Não era um bicho muito esperto e ladrava incessantemente. Roía os tapetes, urinava no chão novo da entrada. Uma criatura em tudo diferente do inteligente rafeiro que tivera na infância. Apesar disso, os últimos pensamentos conscientes que Ushikawa teve na vida foram para o cãozito palerma, a correr no relvado, no jardim das traseiras.

Tamaru observou o corpo de Ushikawa, enrolado como uma bola, contorcendo-se no tatâmi como um grande peixe fora de água. Tinha os braços e as pernas atados atrás das costas, pelo que, por mais que se debatesse, nem mesmo os vizinhos da porta ao lado escutariam qualquer coisa. Tamaru sabia perfeitamente que era uma maneira horrível de morrer. Mas era o método mais eficaz e limpo de matar alguém. Nada de gritos nem sangue. Tamaru seguiu o ponteiro dos minutos do seu relógio de mergulhador Tag Heuer. Ao fim de três minutos, Ushikawa parou de se contorcer. O corpo teve um ligeiro espasmo, como que respondendo a uma certa ressonância, e, depois, o estremecimento parou. Tamaru ficou a olhar para o relógio durante outros três minutos. Pegou no pulso de Ushikawa e confirmou que todos os sinais de vida tinham desaparecido. Sentiu um ligeiro odor de urina. Ushikawa tornara a perder o controlo da bexiga, tendo-a esvaziado completamente desta vez. Compreensível, a julgar por tudo o que sofrera.

Tamaru removeu o elástico e tirou o saco de plástico. Uma parte do saco fora sugada para dentro da boca dele. Ushikawa tinha os olhos arregalados e a boca repuxada a um lado, num esgar de morte. Os dentes sujos e irregulares estavam à vista, a língua ostentava o musgo esverdeado. Era o tipo de expressão que Munch teria pintado. A cabeça de Ushikawa, já de si deformada, parecia ainda mais torta. Devia ter sofrido uma barbaridade.

– Lamento muito isto tudo – disse Tamaru. – Não foi por vontade minha.

Tamaru usou os dedos para descontrair os músculos do rosto de Ushikawa, endireitar o maxilar e tornar a sua cara um pouco mais apresentável. Usou um pano de cozinha para limpar a baba

que escorrera da boca de Ushikawa. Levou-lhe algum tempo, mas a sua face começou a ter um ar um pouco melhor. Pelo menos, uma pessoa que olhasse para ela não se veria forçada a desviar os olhos. No entanto, apesar de todos os seus esforços, não foi capaz de cerrar os olhos do homem.

– Shakespeare disse-o de forma lapidar – afirmou Tamaru baixinho, enquanto o seu olhar se demorava naquela cabeça disforme e pesada. – Uma coisa do género: o que morre hoje não terá de morrer amanhã. Vejamos então o lado bom de cada pessoa.

Seria de Henrique IV ou, talvez, de Ricardo III? Tamaru não se lembrava. Para ele, contudo, não era importante, e duvidava que Ushikawa quisesse saber a referência correta. Tamaru desamarrou-lhe os braços e as pernas. Usara uma corda macia, de turco, e uma maneira especial de fazer os nós, de forma a não deixar marcas no corpo. Pegou na corda, no saco de plástico e no forte elástico e enfiou tudo dentro de um saco que trouxera consigo para tal fim. Revistou os pertences de Ushikawa e reuniu todas as fotografias que ele tirara. Pôs também a máquina fotográfica e o tripé dentro do saco. Se viesse a lume que Ushikawa andava a vigiar alguém, surgiriam problemas. As pessoas iriam querer saber quem é que ele andava a vigiar e havia grandes hipóteses de irem dar ao nome de Tengo Kawana. Também guardou o caderno de apontamentos, cheio de notas meticulosas rabiscadas. Verificou que tinha tirado tudo o que era importante. Só deixou ficar o saco-cama, utensílios com que preparava comida, a roupa e o miserável cadáver de Ushikawa. No fim, retirou um dos cartões de visita dele, um daqueles que diziam que era «Presidente em Exercício da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão» e enfiou-o no bolso.

– Lamento mesmo muito – repetiu enquanto saía.

Tamaru dirigiu-se a uma cabina telefónica perto da estação, inseriu um cartão pré-pago na ranhura e marcou o número que Ushikawa lhe dera. Era um número local, de Tóquio, talvez no bairro de Shibuya. Ao sexto toque, alguém atendeu.

Esquecendo os preâmbulos, Tamaru foi direito ao assunto, dando-lhe a morada e o número do apartamento em Koenji.

– Anotou?

– Não se importa de repetir?

Tamaru repetiu-o. Do outro lado da linha, o homem tomou nota e releu-os.

– O senhor Ushikawa está lá – disse Tamaru. – Conhece o senhor Ushikawa?

– O senhor Ushikawa?

Tamaru ignorou-o e prosseguiu:

– O senhor Ushikawa está lá e, por infelicidade, já não respira. Não me parece que tenha sido uma morte natural. No porta-cartões dele há vários cartões com o título de presidente em exercício da Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão. Se a polícia os encontrar, mais cedo ou mais tarde, chega até vocês. O que, calculo, não vos traria grandes vantagens. Será melhor fazer desaparecer tudo o mais depressa possível. Vocês são bons nisso.

– Quem é o senhor? – perguntou o homem.

– Digamos que sou um informador simpático – respondeu Tamaru. – Tal como vocês, não sou grande apreciador da polícia.

– A morte não foi natural?

– Bom, não morreu de velhice ou de forma muito pacífica.

Durante uns instantes, o homem manteve-se em silêncio.

– E o que estava o senhor Ushikawa a fazer por lá?

– Não sei. Teria de lhe fazer a pergunta a ele, mas, como lhe disse, não está em posição de lhe responder.

Do outro lado da linha, o homem fez uma pausa.

– O senhor tem alguma ligação à jovem senhora que se deslocou ao Hotel Okura?

– Eu não esperaria pela resposta a essa pergunta.

– Sou uma das pessoas que falou com ela. Transmita-lhe esta informação, e ela compreendê-la-á. Tenho uma mensagem para ela.

– Estou a ouvir.

– Não tencionamos fazer-lhe mal – disse o homem.

– Tanto quanto me é dado a perceber, andam a tentar encontrá-la.

– É verdade. Temos andado à procura dela já há algum tempo.

– No entanto, está a dizer-me que não tencionam fazer-lhe mal – disse Tamaru. – Porquê?

Um curto silêncio antes da resposta.

– Digamos, para resumir, que, a partir de certa altura, a situação se modificou. Todos lamentámos profundamente a morte do Líder. Mas essa fase terminou, é assunto encerrado. Num certo sentido, o Líder estava doente e tinha esperança de pôr um fim ao seu sofrimento. Já não a procuramos por causa disso. Agora, apenas pretendemos falar com ela.

– Sobre quê?

– Temas de interesse comum.

– Isso é o que a vossa gente quer. Pode ser que desejem falar com ela, mas talvez ela não queira nada disso.

– Devia haver margem para negociações. Há coisas que podemos oferecer. Liberdade, por exemplo. E segurança. Saber e informação. Não será possível encontrarmos um local neutro para podermos conversar? Escolha o senhor. Nós vamos onde nos disser. Garanto-lhe a segurança dela a cem por cento. Não só a dela como a de todos os envolvidos. Já não é preciso andar a fugir. Penso que é um pedido razoável para ambas as partes.

– Isso é o que vocês dizem – declarou Tamaru. – Mas não tenho motivos para confiar em vocês.

– Seja como for, agradecia que informasse a Aomame-san – insistiu o homem, paciente. – O tempo é importante, e nós estamos dispostos a encontrarmo-nos convosco a meio caminho. Se quiserem provas mais concretas das nossas boas intenções, estamos dispostos a fornecê-las. Pode telefonar para cá a qualquer hora e falar connosco.

– Gostaria de saber mais alguns pormenores. Porque é que ela é tão importante para vocês? O que foi que aconteceu para provocar esta mudança?

O homem inspirou antes de responder.

– A comunidade precisa de voltar a ouvir a voz. Para nós é como um poço fecundo. Não podemos perder isso. De momento, é tudo quanto lhe posso dizer.

– E a Aomame é-vos útil para manter esse poço.

– É difícil explicar. Estão ligados, mas não posso dizer mais nada.

– E a Eriko Fukada? Já não precisam dela?

– Não, já não. Não queremos saber onde está nem o que faz. A missão dela está terminada.

– Que missão?

– Trata-se de informação confidencial – respondeu o homem, depois de uma breve hesitação. – Lamento, mas, de momento, não posso revelar mais nada.

– Sugiro-lhe que reveja a sua posição com bastante cuidado – aconselhou Tamaru. – Neste jogo que estamos a jogar, a próxima mão é minha. Podemos contactar-vos sempre e quando quisermos, mas vocês não podem contactar-nos. Nem sequer sabem quem somos. Certo?

– Tem razão. A vantagem está do vosso lado. Não sabemos quem vocês são. Contudo, acredite em mim quando lhe digo que não posso dar-lhe outras informações pelo telefone. Já disse mais do que aquilo a que estou autorizado.

Tamaru manteve-se em silêncio durante um bocado.

– Muito bem. Vamos considerar a vossa proposta. Temos de discutir as coisas deste lado. Talvez vos torne a telefonar.

– Fico à espera do seu contacto – disse o homem. – Como já lhe disse, pode haver vantagens para ambos os lados.

– E se nós ignorarmos ou rejeitarmos a vossa proposta?

– Trataremos as coisas à nossa maneira. Temos um poder considerável e, infelizmente, as coisas podem tornar-se feias e causar problemas a toda a gente. Ninguém sairia ileso, independentemente de quem fosse. Não vejo que possa ser um resultado desejável para nenhuma das partes.

– Talvez tenha razão. Contudo, penso que ainda levaria algum tempo até chegarmos a esse ponto. E, como disse, o tempo é importante.

O homem soltou uma tossezinha.

– Pode levar algum tempo. Ou talvez não muito.

– Sem tentar, não sabe.

– Precisamente – respondeu o homem. – Tenho ainda mais uma coisa importante a sublinhar. Para utilizar a sua metáfora, neste jogo a mão é sua. Todavia, não me parece que esteja bem a par das regras básicas.

– Aí está outra coisa que, sem experimentar, não vai saber.

– E se a experiência for um falhanço, será uma pena.

– Para os dois – concluiu Tamaru.

Seguiu-se um silêncio curto e carregado de implicações.

– Quais são os vossos planos quanto ao senhor Ushikawa? – perguntou Tamaru.

– Trataremos dele na primeira oportunidade. Já esta noite.

– O apartamento não está fechado à chave.

– Agradeço – respondeu o homem.

– Já agora, vão lamentar profundamente a morte do senhor Ushikawa?

– Lamentamos profundamente a morte de qualquer homem.

– Devem lamentá-lo. À sua maneira, era um homem bastante competente.

– Mas não o suficiente, é o que está a dizer?

– Ninguém, por mais competente que seja, vive para sempre.

– É a sua opinião – retorquiu o outro.

– Sim, pois é. Não concorda?

– Fico a aguardar a sua chamada – disse o homem, num tom frio e sem responder à pergunta.

Em silêncio, Tamaru desligou o telefone. Não precisava de dizer mais nada. Se precisasse de voltar a falar com eles, ligar-lhes-ia. Saiu da cabina telefónica e caminhou até ao sítio onde estacionara o carro – um velho Toyota azul-escuro, usado, absolutamente discreto. Guiou durante quinze minutos, enfiou para um parque vazio, verificou que ninguém o observava e deitou o saco de plástico com a corda e o elástico num caixote do lixo. Desfez-se também das luvas cirúrgicas.

– Lamentam profundamente a morte de qualquer pessoa – murmurou Tamaru numa voz grave enquanto punha o motor do carro a funcionar e apertava o cinto de segurança. Boa... é o mais importante, pensou. Todas as mortes devem ser lamentadas. Mesmo que seja por pouco tempo.

35 Citação adaptada de Anna Karénina. No original: «Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.» – tradução do russo de António Pescada, Relógio d’Água (2006). (N. das T.)


26

AOMAME

Muito romântico

Pouco passava do meio-dia quando o telefone tocou, na terça-feira. Aomame estava sentada na esteira de ioga, de pernas bem abertas, a alongar os músculos iliopsoas36. Um exercício bem mais exigente do que parecia à primeira vista. A camisa começava a revelar sinais de uma leve transpiração. Parou, limpou a cara com uma toalha e foi atender o telefone.

– O Cabeça-de-Abóbora já não está naquele apartamento – declarou Tamaru, omitindo, como sempre, qualquer coisa que se parecesse com uma saudação. Com ele nunca havia um olá.

– Já lá não está?

– Não, não está. Foi persuadido a sair.

– Persuadido – repetiu Aomame. Calculou que tal significava que Tamaru o tivesse removido, sabe-se lá se pela força.

– Além disso, a pessoa chamada Kawana que vive naquele prédio é o Tengo Kawana de que tens andado à procura.

Em torno de Aomame, o mundo expandiu-se, contraindo-se depois. Como se fosse o seu coração.

– Estás a ouvir? – indagou Tamaru.

– Estou.

– Neste momento, contudo, o Tengo Kawana não está no apartamento. Ausentou-se há já uns dias.

– Ele está bem?

– Não se encontra em Tóquio, mas, sim, está claramente bem. O Cabeça-de-Abóbora alugou um apartamento no prédio dele e estava à espera de que fosses visitar o Tengo. Instalou uma máquina fotográfica escondida, dirigida para a zona da entrada.

– E tirou-me alguma fotografia?

– Tirou três. Era de noite e tu tinhas um chapéu, óculos e uma écharpe, pelo que não se veem as feições. Mas és tu. Se tivesses lá ido mais uma vez, as coisas poderiam ter ficado feias.

– Portanto, acertei quando pus o caso nas tuas mãos?

– Se é que se pode acertar em qualquer coisa em toda esta história.

– Seja como for – continuou Aomame –, já não tenho de me preocupar com ele.

– Aquele tipo não torna a tentar fazer-te mal.

– Porque tu o persuadiste.

– Tive de ir fazendo alguns ajustamentos à medida que os factos se desenrolaram, mas sim – disse Tamaru. – Tenho as fotografias todas. A ideia do Cabeça-de-Abóbora era esperar até que aparecesses, e o Tengo Kawana não passava do isco que usou para te apanhar. Portanto, não vejo que ainda restem motivos para alguém fazer mal ao Tengo. Em princípio, está a salvo.

– Que alívio! – exclamou Aomame.

– O Tengo dá aulas de Matemática numa escola em Yoyogi. Aparentemente, é um excelente professor, mas só trabalha uns dias por semana, pelo que não ganha muito dinheiro. Ainda se mantém solteiro e vive com modéstia, num apartamento muito simples.

Quando fechou os olhos, Aomame escutou o bater do seu coração dentro dos ouvidos. A fronteira entre ela e o mundo parecia estar a esfumar-se.

– Para além de ensinar Matemática na escola, está a escrever um romance. Longo. Reescrever A Crisálida de Ar não passou de uma tarefa pontual. Tem ambições literárias pessoais, o que é bom. Uma certa dose de ambição ajuda uma pessoa a crescer.

– Como é que descobriste isso tudo?

– Ele está fora, pelo que consegui entrar no apartamento dele. Encontrava-se trancado, se bem que eu não chame fechadura àquilo. Sinto-me mal por ter invadido a privacidade dele, mas tinha de fazer uma revista sumária. Para um homem que vive sozinho, mantém tudo impecavelmente asseado. Até o fogão a gás foi areado. O interior do frigorífico estava muito limpo, não havia couves podres ou qualquer coisa enfiada para o fundo. Também vi que passa a ferro. Não será um mau companheiro para ti. Quer dizer, partindo do princípio de que não é gay.

– Que mais descobriste?

– Telefonei para a escola e pedi informações acerca do horário das aulas dele. A rapariga que me atendeu o telefone disse-me que o pai dele faleceu durante a noite de domingo, numa clínica qualquer na prefeitura de Chiba. Foi por isso que teve de sair de Tóquio: foi ao funeral e cancelou as aulas de segunda-feira. Ela não sabia quando ou onde seria o funeral. A próxima aula que tem é na quinta, pelo que deverá regressar até lá.

Aomame recordou-se de que o pai de Tengo era cobrador da taxa da NHK. Tengo costumava acompanhar o pai nas rondas, aos domingos. Ela e Tengo tinham-se cruzado muitas vezes nas ruas de Ichikawa. Não conseguia recordar-se muito bem da cara do pai. Era um homem pequeno, magro, que usava o uniforme da companhia. E não era nada parecido com Tengo.

– Agora que já não há Cabeça-de-Abóbora, posso ir visitar o Tengo?

– Não é lá muito boa ideia – disparou Tamaru. – Persuadi o Cabeça-de-Abóbora, mas tive de entrar em contacto com a Vanguarda para que eles tratassem de uma última diligência. Havia um item, em particular, que eu não queria que caísse nas mãos das autoridades. Se fosse descoberto, os residentes do prédio seriam passados a pente fino e o teu amigo também não teria escapatória. Ter-me-ia sido complicado tratar de tudo até ao fim sozinho. Se as autoridades me apanhassem a tirar aquele artigo dali sozinho, a meio da noite, e me interrogassem, não sei se conseguiria safar-me com explicações. A Vanguarda tem gente e recursos e trata-se do tipo de coisa a que estão habituados. Como daquela vez em que tiveram de transportar um artigo para fora do Hotel Okura. Percebes onde quero chegar?

Na sua mente, Aomame traduziu a terminologia de Tamaru num vocabulário muito mais direto.

– Então, pelo que percebo, a coisa complicou-se e foi mais difícil persuadi-lo.

Tamaru soltou um pequeno grunhido.

– Sinto-me mal com isto tudo, mas ele sabia demais.

– A Vanguarda sabia o que o Cabeça-de-Abóbora fazia naquele apartamento?

– Estava a trabalhar para eles, mas, naquele caso, estava por sua conta. Ainda não tinha relatado aos superiores o que andava a fazer. Felizmente para nós.

– Mas agora eles sabem que o Cabeça-de-Abóbora tinha descoberto qualquer coisa.

– Verdade. Portanto, é melhor não andares lá perto durante algum tempo. O nome e a morada do Tengo Kawana de certeza que constam da lista deles, por ter sido quem reescreveu A Crisálida de Ar. No entanto, duvido que já saibam da ligação pessoal entre ti e o Tengo. Porém, quando procurarem a razão por que o Cabeça-de-Abóbora estava naquele apartamento, o nome do Tengo vai aparecer. É uma questão de tempo.

– Se tivermos sorte, ainda pode passar um bocado antes de eles descobrirem. Podem não fazer logo a ligação entre a morte do Cabeça-de-Abóbora e o Tengo.

– Se tivermos sorte – retorquiu Tamaru. – Se não forem tão meticulosos quanto penso que são. Mas eu nunca conto com a sorte. Foi assim que sobrevivi estes anos todos.

– Portanto, não devo aproximar-me do prédio.

– Certo – disse Tamaru. – Escapámos por uma unha negra, e todo o cuidado é pouco.

– Será que o Cabeça-de-Abóbora descobriu que estou escondida neste apartamento?

– Se tivesse descoberto, estarias agora num sítio onde eu não poderia chegar.

– Mas esteve tão perto...

– Pois esteve. Foi uma simples coincidência. Nada mais.

– Por isso é que ele pôde sentar-se ali, no escorrega, à vista de todos.

– Verdade – disse Tamaru. – Não fazia ideia de que estavas a observá-lo. Nunca esperou isso. E foi o seu erro fatal. Eu já disse isto, não disse? Que há uma linha muito ténue entre a vida e a morte?

Sobre eles caiu um silêncio que durou alguns segundos. O silêncio pesado que a morte de uma pessoa – de qualquer pessoa – sempre acarreta.

– O Cabeça-de-Abóbora pode ter desaparecido, mas a Vanguarda ainda anda atrás de mim.

– Não tenho assim tanta certeza – respondeu Tamaru. – De início, eles queriam deitar-te a mão e perceber que organização planeou a morte do Líder. Sabem que não podias tê-lo feito sozinha. É óbvio que deves ter tido apoio. Planeavam apanhar-te e submeter-te a um interrogatório duro.

– Por isso, precisava da pistola – disse Aomame.

– O Cabeça-de-Abóbora – prosseguiu Tamaru – tinha a certeza de que, se te perseguiam, era para te interrogarem e castigarem. No entanto, não sei como nem porquê, a situação alterou-se dramaticamente. Como te disse, depois de o Cabeça-de-Abóbora ter saído de cena, falei com um dos membros do culto. Ele disse-me que não têm planos para te fazer mal. Pediu-me que te transmitisse essa mensagem. Pode ser uma armadilha, mas pareceu-me genuína. Explicou-me que, em certo sentido, o Líder desejava a sua própria morte. Na realidade, tratou-se de uma espécie de autodestruição, pelo que não há necessidade de punir ninguém.

– É verdade – disse Aomame, numa voz seca –, o Líder sabia desde o início que eu estava ali para o matar. E mais, queria que eu o fizesse.

– Os seguranças não foram capazes de te desmascarar, mas o Líder sim.

– Pois foi. Não sei porquê, mas ele já sabia tudo antes mesmo de me pôr a vista em cima – contou Aomame. – Estava ali à minha espera.

Tamaru fez uma breve pausa, depois perguntou:

– O que aconteceu?

– Fizemos um acordo.

– É a primeira vez que ouço falar nisso – comentou Tamaru, tenso.

– Não calhou.

– Conta-me que tipo de acordo fizeste.

– Massajei-lhe os músculos durante uma hora, mais ou menos, e durante esse tempo fomos falando. Ele sabia do Tengo. Não sei como, sabia da minha ligação ao Tengo. Pediu-me que o matasse, porque queria fugir às dores terríveis que sentia, o mais depressa possível. Também me disse que, se o matasse, em troca pouparia a vida do Tengo. Portanto, decidi-me e tirei-lhe a vida. Mesmo que não o tivesse feito, ele já estava com os pés para a cova e, quando pensei no tipo de coisas que tinha feito, quase me apeteceu deixá-lo naquela agonia.

– E nunca disseste nada à senhora acerca desse acordo.

– Fui lá para matar o Líder e cumpri a minha missão – retorquiu Aomame. – O assunto do Tengo era privado.

– Está bem – respondeu Tamaru, num tom de quase resignação. – É bem verdade que cumpriste a missão que te deram, há que o dizer.

O assunto do Tengo é, realmente, do foro íntimo. Mas algures, antes ou depois disso, ficaste grávida. O que não é algo que se possa ignorar com facilidade.

– Não foi antes ou depois. Fiquei grávida nessa mesma noite, na noite daquela enorme tempestade, com imensa chuva e relâmpagos, que desabou sobre a cidade. Na mesmíssima noite em que tratei do Líder. Como já te disse, não envolveu sexo.

Tamaru suspirou.

– Tendo em conta a natureza da questão, só tenho duas opções: acreditar em ti ou não acreditar em ti. Uma ou outra. Sempre te considerei uma pessoa de confiança e quero acreditar em ti, mas não consigo ver a lógica disto tudo. Tens de entender que sou uma pessoa que, em geral, raciocina de forma dedutiva.

Aomame manteve-se em silêncio.

Tamaru prosseguiu:

– Existe alguma relação de causa-efeito entre o assassínio do Líder e a tua gravidez?

– Não sei.

– É possível que o feto que tens dentro de ti seja filho do Líder? Que ele tenha usado um método qualquer, não fazendo eu a menor ideia de qual tenha sido, para te pôr grávida? Se for assim, isso explicaria porque é que estão a tentar deitar-te a mão. Precisam de um sucessor para o Líder.

Aomame apertou com força o auscultador e abanou a cabeça.

– Isso é impossível. O pai é o Tengo. Tenho a certeza.

– Aí está outro ponto em que vou ter de acreditar em ti... ou não.

– Não consigo explicar mais nada para além disto.

Tamaru soltou novo suspiro.

– Muito bem. Por agora, vou aceitar o que me dizes: que o bebé é teu e do Tengo. E que tu tens a certeza disso. Mesmo assim, continuo sem perceber o sentido disto tudo. Primeiro, queriam apanhar-te e castigar-te severamente, mas, a certa altura, alguma coisa aconteceu. Ou descobriram qualquer coisa. E agora precisam de ti. Afirmam que garantem a tua segurança e que têm qualquer coisa para te oferecer. E querem encontrar-se pessoalmente contigo para discutir o caso. O que poderá ter acontecido que provocou esta súbita reviravolta?

– Não lhes faço falta – respondeu Aomame. – Precisam do que está dentro do meu ventre. Algures ao longo do caminho, perceberam isso.

– Oh, oh – entoou um dos elementos do Povo Pequeno, não se sabe bem de onde.

– Está tudo a avançar demasiado depressa para o meu gosto – afirmou Tamaru. Tornou a emitir um pequeno grunhido do fundo da garganta. – Continuo sem perceber qual é a ligação lógica.

Bom, desde que as duas luas apareceram, nada tem lógica, pensou Aomame. Foi isso que tornou tudo incoerente. Não que tivesse dito isto em voz alta.

– Oh, oh – os outros seis membros do Povo Pequeno juntam-se em coro.

– Precisam de alguém que escute a voz. Foi o que me disse o tipo com quem falei ao telefone, e insistiu bastante nisto. Segundo parece, se a perdessem, a comunidade poderia desaparecer, seria o fim da sua religião. Não faço ideia do que significa escutar a voz, mas foi o que o tipo me disse. Será que essa criança que trazes dentro de ti é aquela que escuta a voz?

Aomame pousou uma mão sobre o abdómen, ao de leve. Mã e nina, pensou consigo própria. As luas não podiam ouvir aquelas palavras.

– Não tenho... bem a certeza – respondeu, escolhendo as palavras com cuidado. – Mas não me ocorre mais nenhuma razão para precisarem de mim.

– Por que razão tem essa vossa criança tal dom?

– Não sei.

Em troca da sua vida, talvez o Líder lhe tivesse confiado o seu sucessor, pensou. Para conseguir o que queria, naquela noite de tempestade, pode ter aberto temporariamente os circuitos que ligam os dois mundos para que eu e o Tengo nos uníssemos num só.

Tamaru prosseguiu:

– Seja quem for o pai, tenha a criança os dons que tiver quando nascer, não tens intenção de entrar em negociações com o culto, pois não? Não queres saber do que te possam oferecer em troca. Mesmo que te ofereçam a solução de todos os enigmas em que tens andado a pensar.

– Nunca – disse Aomame.

– Apesar das tuas intenções, eles podem vir buscar o que querem pela força. Por todos os meios – continuou Tamaru. – Além do mais, tu tens um ponto fraco: o Tengo Kawana. Pode ser o único, mas é grande. Assim que descobrirem isto, vão atacar por aí.

Tamaru tinha razão. Tengo era, a um tempo, a sua razão de viver e o seu calcanhar de Aquiles.

Ele prosseguiu:

– É demasiado perigoso continuares aí. Tens de te mudar para um sítio mais seguro antes de eles descobrirem a tua ligação ao Tengo.

– Não há lugar mais seguro neste mundo – retorquiu Ao-mame.

Tamaru ponderou o que ouvira.

– Diz-me o que é que estás a pensar – pediu baixinho.

– Primeiro, tenho de estar com o Tengo. Até o conseguir, não posso sair daqui. Por mais perigoso que seja.

– E o que é que vais fazer quando o vires?

– Saberei o que fazer.

Tamaru manteve-se em silêncio por um instante.

– Tens a certeza absoluta do que estás a dizer?

– Não sei se vai resultar, mas sei o que tenho de fazer. Quanto a isso, tenho a certeza absoluta, sim.

– Mas não estás a pensar contar-me nada, pois não?

– Lamento, mas não posso. Não é só a ti, é a toda a gente. Se o dissesse a alguém, seria revelado ao mundo inteiro nesse preciso momento.

As luas escutavam com toda a atenção. O Povo Pequeno também. E a própria sala em que se encontrava. Não podia deixar que saísse do seu coração, nem mesmo um centímetro que fosse. Tinha de erguer um muro espesso à sua volta para que nada se escapasse.

Na outra ponta da linha, Tamaru tamborilava numa mesa com a ponta da esferográfica. O ruído seco e ritmado chegava aos ouvidos de Aomame. Era um som solitário, desprovido de ressonância.

– Muito bem, vamos lá contactar o Tengo Kawana. Todavia, antes de o fazer, preciso do consentimento da senhora. A minha missão consistia em tirar-te daí o mais depressa possível e levar-te para outro sítio. Mas tu dizes que não podes abandonar o apartamento sem antes falares com o Tengo. Não me parece que vá ser fácil explicar-lhe porquê. Percebes, não percebes?

– É extremamente difícil explicar o que não tem lógica em termos lógicos.

– Certo. Tão difícil quanto encontrar uma pérola verdadeira num bar de ostras em Roppongi. Mas vou dar o meu melhor.

– Obrigada – agradeceu Aomame.

– Seja como for que olhe para isso, nada faz o menor sentido. Os teus argumentos parecem-me absolutamente incoerentes. No entanto, quanto mais falo contigo, mais sinto que talvez venha a aceitar o que propões. Não sei porquê.

Aomame manteve-se em silêncio.

– A senhora confia e crê em ti – afirmou Tamaru –, portanto, se insistes tanto, não estou a vê-la arranjar uma razão para não te deixar ver o Tengo. Tu e o Tengo parecem ter uma ligação inquebrantável.

– Mais do que tudo no mundo – retorquiu Aomame.

Mais do que tudo em qualquer mundo, repetiu para si mesma.

– Mesmo que te diga que é demasiado perigoso e me recuse a entrar em contacto com o Tengo, tu irás ao tal apartamento para o ver.

– Com toda a certeza que sim.

– E ninguém conseguirá impedir-te.

– Inútil tentar.

Tamaru fez uma breve pausa.

– Que mensagem queres que transmita ao Tengo?

– Ele que vá até ao escorrega, depois de escurecer. À hora que quiser, desde que seja depois de anoitecer. Estarei à espera dele. Se lhe disseres que foi a Aomame que disse isto, ele compreenderá.

– Okay, eu digo. «Vai até ao escorrega depois de escurecer.»

– E se tiver qualquer coisa de valor que não queira abandonar, ele que a traga. Mas diz-lhe que terá de conseguir manter as duas mãos livres.

– E para onde vão com essa bagagem?

– Para longe – retorquiu Aomame.

– Muito longe?

– Não sei – foi a resposta.

– Muito bem. Tão logo a senhora consinta, eu aviso o Tengo. E tentarei ao máximo manter-te em segurança. Mas por aqui o perigo ainda ronda. Estamos a lidar com homens desesperados. Tens de te proteger.

– Compreendo – respondeu Aomame, baixinho. A palma da sua mão mantinha-se pousada no abdómen. E não só a mim, pensou.

Depois de desligar, deixou-se cair no sofá. Fechou os olhos e pensou em Tengo. Não conseguia pensar em mais nada. Sentia o coração oprimido e doía-lhe, mas era uma dor boa. Era o tipo de dor que conseguia suportar. Tengo estava muito perto, quase ao alcance da mão. A menos de dez minutos de distância a pé. A simples ideia aqueceu-a até ao mais fundo de si mesma. O Tengo é solteiro e ensina Matemática numa escola em Yoyogi. Vive num apartamento modesto e bem arrumado. Cozinha, passa a ferro e está a escrever um romance longo. Aomame sentiu inveja de Tamaru. Ela também teria gostado de entrar no apartamento de Tengo, como Tamaru fizera quando ele estava fora. O apartamento «destengado» de Tengo. No silêncio deserto, queria tocar em todos e cada um dos objetos que ali havia. Queria verificar se os seus lápis estavam bem afiados, segurar na caneca de café dele, cheirar o odor da sua roupa. Queria dar esse passo primeiro, antes de se encontrar com ele cara a cara. Sem esse saber preliminar, quando se encontrassem inesperadamente, ela não saberia o que lhe dizer. A ideia cortou-lhe a respiração, e Aomame ficou desconcertada. Eram demasiadas coisas. Mesmo assim, chegando a esse ponto, talvez não fosse preciso dizer nada. As coisas que mais desejava dizer-lhe perderiam todo o sentido no instante em que fossem postas em palavras.

De momento, restava-lhe esperar. Esperar com calma, de olhos bem abertos. Preparou uma mala, de modo a poder correr para a rua no instante em que avistasse Tengo. Encheu um grande saco a tiracolo de cabedal preto com tudo o que lhe iria fazer falta, para não ter de voltar ali. Não eram assim tantas coisas. Algum dinheiro, umas mudas de roupa e a Heckler & Koch, carregada. Era tudo. Pôs o saco num sítio onde podia deitar-lhe a mão sem perder tempo. Tirou o fato Junko Shimada verde do cabide no armário e, após verificar que não tinha rugas, pendurou-o na parede da sala de estar. Também tirou para fora a blusa branca que fazia conjunto com o fato, meias e os sapatos de salto alto Charles Jourdan. E o casaco leve bege. O mesmo que vestia quando descera pela primeira vez as escadas de emergência da Autoestrada Metropolitana 3. O casaco era demasiado fino para uma noite de dezembro, mas não tinha escolha.

Depois de preparar tudo, sentou-se à varanda, na cadeira de jardim, e espreitou pela fresta, entre os painéis, para o escorrega do parque infantil. O pai de Tengo morrera a meio da noite do domingo anterior. Era necessário um intervalo mínimo de vinte e quatro horas após a declaração do óbito antes de ser possível cremar um corpo; a lei assim o determinava, tinha a certeza. Portanto, o mais cedo que poderiam levar a cabo a cremação seria na terça-feira. Era terça. Assim sendo, Tengo não regressaria de onde tivesse sido o funeral antes dessa noite. Só então Tamaru poderia transmitir-lhe a mensagem. O que significava que Tengo nunca iria até ao parque antes disso. Além do mais, ainda havia luz na rua. Quando morreu, o Líder colocou este pequenino no meu útero, pensou. Pelo menos, é a hipótese que ponho. Ou talvez deva chamar-lhe intuição. Será que significa que estou a ser manipulada pela vontade que deixou ficar no mundo, a ser conduzida para um destino que ele definiu?

Aomame fez uma careta. Não sei o que pensar. O Tamaru crê que, como resultado do plano do Líder, engravidei e tenho em mim aquele que ouve a voz, como se eu fosse uma espécie de crisálida de ar. Mas porque é que tenho de ser eu? E porque é que o meu parceiro tem de ser o Tengo? Aí está outra coisa que não sou capaz de explicar.

Seja como for, as coisas à minha volta avançam, disse para si própria, mesmo que eu não consiga ver o nexo que possam ter entre si, entender os princípios por detrás delas ou o rumo que estão a tomar. Dei comigo enredada nisto tudo. Até agora, pelo menos, disse com os seus botões.

Apertou os lábios e fez uma nova careta, ainda maior.

A partir de agora, as coisas vão ser diferentes. Ninguém vai tornar a controlar-me. A partir de agora, vou fazer tudo baseada num único princípio: a minha vontade. Vou proteger este pequenino, custe o que custar. É a minha vida, é o meu filho. Alguém pode tê-lo programado para servir os seus próprios fins, mas na minha cabeça não existe a menor dúvida de que o concebemos, o Tengo e eu. E nunca o entregarei a outra pessoa. Nunca. A partir de agora sou eu quem decide o que é bom e o que é mau, e o rumo que tomamos. Mais vale que se lembrem disto.

O telefone tocou no dia seguinte, quarta-feira, às duas da tarde.

– Transmiti-lhe a mensagem – disse Tamaru, seguindo o hábito de nunca começar com uma saudação. – Neste momento, está em casa. Falei com ele esta manhã, por telefone. Estará no escorrega esta noite, às sete em ponto.

– E lembrava-se de mim?

– Lembrava-se e bem. Segundo parece, andou à tua procura por todo o lado.

Tal como o Líder disse. O Tengo anda à minha procura. É só o que preciso de saber. O coração de Aomame foi inundado de uma alegria indescritível. Já nenhuma outra palavra no mundo significava o que quer que fosse para ela.

– Tal como disseste, ele levará consigo o que considerar importante. Calculo que isso inclua o romance que está a escrever.

– Estou certa de que sim – retorquiu Aomame.

– Andei a dar uma vista de olhos pelo prédio modesto onde mora. Parece-me que não há problemas. Não detetei nada nem ninguém suspeito por ali. E o apartamento do Cabeça-de-Abóbora foi esvaziado. Está tudo calmo, se bem que não demasiado calmo. Aqueles tipos trataram do tal item durante a noite e foram-se. É provável que tenham pensado que não seria grande ideia demorarem-se muito. Parece seguro e acho que não me escapou nada.

– Boa.

– Provável é a palavra fulcral aqui, pelo menos por agora. A situação muda a cada instante que passa. E, obviamente, eu não sou perfeito. Pode ter-me escapado qualquer coisa importante. É possível que venhamos a verificar que aqueles tipos andaram sempre um passo à minha frente.

– Razão pela qual eu tenho de me proteger.

– Como te disse.

– Muito obrigada por tudo. Estou-te muito grata.

– Não sei o que planeias fazer a partir daqui – disse Ta-maru –, mas, se te fores embora para muito longe e eu nunca mais te vir, sei que me vou sentir triste. És uma pessoa singular, nunca conheci ninguém como tu.

Aomame sorriu para o telefone.

– Era mais ou menos essa a impressão com que gostaria que ficasses.

– A senhora precisa de ti. Não pelo trabalho que fazes, mas a nível pessoal, enquanto companhia. Por isso, sei que se sente muitíssimo infeliz por ter de se despedir assim. De momento, não pode vir ao telefone. Espero que compreendas.

– Compreendo – respondeu Aomame. – Também para mim seria difícil falar com ela.

– Disseste que vais para longe – disse Tamaru. – A que distância tão longínqua nos estamos a referir?

– Trata-se de uma distância que não tem medida.

– Como a distância que vai do coração de uma pessoa ao de outra.

Aomame fechou os olhos e respirou profundamente. Estava à beira das lágrimas, mas foi capaz de se conter.

– Rezo para que tudo corra bem – disse Tamaru, baixinho.

– Lamento, mas vou ter de guardar a minha Heckler & Koch – declarou Aomame.

– Não há crise. É um presente meu. Se vieres a perceber que se transformou num problema, atira-a para a baía de Tóquio. E o mundo dará mais um pequeno passo na direção do desarmamento.

– Até pode ser que nunca venha a disparar a pistola. Infringirei o princípio de Tchékhov, mas o que hei de eu fazer.

– Também não há crise – disse Tamaru. – Se não tiveres de a disparar, tanto melhor. Estamos a chegar ao fim do século vinte, as coisas são muito diferentes do que eram no tempo de Tchékhov. Já não há carruagens puxadas a cavalo nem as mulheres usam espartilho. Não sei bem como, o mundo sobreviveu aos nazis, à bomba atómica, à música moderna. Até mesmo a forma dos romances se alterou drasticamente. Não tens de te preocupar. Mas tenho uma pergunta: tu e o Tengo vão encontrar-se no escorrega esta noite, às sete?

– Se tudo correr bem – retorquiu Aomame.

– Se os dois se encontrarem, o que vão lá fazer?

– Vamos olhar para a Lua.

– Muito romântico – comentou Tamaru, baixinho.

36 Músculo da região inferior do abdómen e da pelve que compreende os músculos psoas maior, psoas menor e ilíaco. (N. das T.)


27

TENGO

Talvez o mundo todo não seja suficiente

O telefone tocou na quarta-feira de manhã. Tengo estava a dormir. Só tinha conseguido adormecer quase de madrugada, e o uísque que bebera ainda se fazia sentir. Saiu da cama e ficou surpreendido por ver que, no exterior, já era dia claro.

– Tengo Kawana-san? – perguntou uma voz de homem. Uma voz que nunca ouvira.

– Sim – respondeu Tengo. A voz do homem soava baixinho e tinha um tom pragmático, e ele teve a certeza de que estaria relacionada com mais burocracias ligadas à morte do pai. O despertador mostrava que faltava pouco para as oito. Não eram horas para telefonemas de um serviço municipal ou da funerária.

– Peço desculpa por lhe telefonar tão cedo, mas tenho pressa.

Uma coisa urgente.

– O que se passa? – o cérebro de Tengo ainda estava enevoado.

– Recorda-se do nome Aomame-san? – perguntou o homem.

Aomame? A ressaca e o sono evaporaram-se. A sua mente pôs-se em funcionamento com grande rapidez, como acontece depois de um blackout rápido numa peça. Tengo agarrou o auscultador com mais força.

– Sim, recordo – respondeu.

– Trata-se de um nome bastante invulgar.

– Éramos da mesma turma na escola primária – disse Tengo, que, não sabia como, conseguiu que a voz lhe soasse normal.

O homem fez uma pausa.

– Kawana-san, neste momento, tem algum interesse em falar sobre a Aomame-san?

Tengo achou que o homem tinha uma forma de falar estranha. A dicção dele era peculiar, e Tengo teve a sensação de estar a escutar excertos traduzidos de uma peça de teatro vanguardista.

– Se não tiver interesse, tudo isto não passará de uma perda de tempo para nós os dois. Terminarei esta conversa de imediato.

– Estou interessado – apressou-se Tengo a dizer. – Peço desculpa, mas qual é o seu papel aqui?

– Tenho uma mensagem da parte dela – disse o homem, ignorando a pergunta. – A Aomame-san gostaria de o ver. E o senhor, Kawana-san? Também gostaria de a ver?

– Sim, claro – disse Tengo. Tossiu e aclarou a voz. – Há muito tempo que desejo vê-la.

– Excelente. Ela quer vê-lo. E o senhor também deseja encontrar-se com ela.

De súbito, Tengo tomou consciência do frio que estava no quarto. Deitou a mão a um casaco de malha e pô-la sobre o pijama.

– O que devo fazer? – perguntou Tengo.

– Não se importa de ir até ao escorrega depois de escure-cer? – perguntou o homem.

– O escorrega? – admirou-se Tengo. De que estaria o homem a falar?

– Ela disse-me que, se eu lhe transmitisse isto, o senhor perceberia. Ela quer que suba ao escorrega. Limito-me a comunicar o que a Aomame-san disse.

Tengo levou a mão ao cabelo: como acabara de se levantar, estava emaranhado e revolto. O escorrega. Onde vira as duas luas. Tinha de ser aquele escorrega.

– Penso que percebi, sim – retorquiu numa voz seca.

– Perfeito. Também disse que, se tiver alguma coisa de valor que não queira abandonar, leve-a consigo. Esteja preparado para viajar para muito, muito longe.

– Uma coisa de valor que não queira abandonar? – repetiu Tengo, surpreendido.

– Que não queira deixar para trás.

Tengo pensou no que acabara de lhe ser dito.

– Não tenho a certeza de estar a perceber bem, mas por viajar para muito longe está a referir-se a nunca mais regressar?

– Não sei dizer-lhe – respondeu o homem. – Como referi anteriormente, limito-me a transmitir a mensagem dela

Tengo passou os dedos pelo cabelo emaranhado e refletiu. Ir para longe?

– Sou capaz de ter uma quantidade razoável de papéis que quero levar comigo.

– Não deverá ser problema – disse o homem. – É livre de escolher o que quiser. No entanto, quanto à bagagem, foi-me pedido que lhe dissesse que terá de conseguir manter as duas mãos livres

– Manter as duas mãos livres – repetiu Tengo. – Portanto, uma mala não serve?

– Não me parece.

Era difícil adivinhar a idade, o aspeto ou a constituição do homem apenas com base na voz. Um tipo de voz que não proporcionava nenhuma pista concreta. Tengo sentiu que seria incapaz de se recordar dela a partir do momento em que o homem desligasse. A personalidade e as emoções – se existissem – estavam enterradas bem fundo, fora de vista.

– É tudo o que tenho a transmitir-lhe – disse o homem.

– A Aomame-san está bem? – perguntou Tengo.

– Fisicamente, está perfeita – respondeu o homem, escolhendo as palavras com o maior cuidado. – Se bem que, neste momento, tenha sido apanhada numa situação delicada, um tanto tensa. Tem de ter cuidado com todos os seus passos. Um passo em falso pode ser fatal.

– Fatal – repetiu Tengo, mecanicamente.

– Seria bom que não se atrasasse – disse o homem. – O tempo tornou-se um fator importante.

O tempo tornou-se um fator importante, repetiu Tengo para si próprio. O homem teria algum problema com a escolha das palavras? Ou serei eu que estou demasiado nervoso?

– Penso que conseguirei estar no escorrega mais logo, às sete horas – afirmou Tengo. – Mas se, por qualquer razão, não me for possível ir esta noite, estarei lá amanhã à mesma hora.

– Muito bem. E sabe de que escorrega falamos.

– Penso que sim.

Tengo deitou uma olhadela ao relógio. Ainda dispunha de onze horas.

– Já agora, soube que o seu pai faleceu no domingo. Os meus mais sentidos pêsames.

Tengo agradeceu-lhe, quase maquinalmente, mas logo a seguir perguntou-se como saberia ele do seu pai.

– Pode dizer-me mais alguma coisa acerca da Aomame-san? – pediu Tengo. – Por exemplo, onde está e o que faz?

– É solteira. Trabalha como instrutora de fitness num ginásio em Hiroo. É uma treinadora de primeira classe, mas as circunstâncias alteraram-se e ela teve de abandonar o emprego. Por mera coincidência, vive não muito longe de si. O resto é melhor que lho pergunte diretamente.

– Mesmo para saber em que tipo de situação um tanto tensa está metida?

O homem não lhe deu resposta. Ou não queria responder, ou sentiu que não era necessário. Por uma qualquer razão bizarra, nos últimos tempos, Tengo via-se rodeado de pessoas deste tipo.

– Então, hoje às sete, no alto do escorrega – disse o homem.

– Só um instante – apressou-se Tengo a dizer. – Quero perguntar-lhe uma coisa. Avisaram-me de que estou a ser vigiado e que devo ter cuidado. Peço desculpa pela pergunta, mas estavam a referir-se a si?

– Não, não estavam – respondeu de imediato o homem. – Provavelmente era outra pessoa. Mas, tal como lhe disseram, talvez seja boa ideia ter cuidado.

– E o facto de eu estar sob vigilância tem alguma relação com a situação invulgar de Aomame?

– Situação um tanto tensa – proferiu o homem, corrigindo-o. – Sim, quase de certeza que existe uma ligação.

– É perigoso?

O homem fez uma pausa e escolheu as palavras com cuidado, como se estivesse a separar diferentes tipos de feijão de um monte.

– Se considerar nunca mais conseguir encontrar-se com a Aomame-san perigoso, então, sim, há claramente um grande perigo em tudo isto.

Mentalmente, Tengo reordenou a frase arrevesada do homem organizando-a em algo mais fácil de perceber. Não tinha a menor pista quanto ao contexto ou às circunstâncias, mas era óbvio que as coisas envolviam um perigo evidente.

– Se as coisas não correrem bem, podemos nunca mais nos ver.

– Precisamente.

– Compreendo. Terei cuidado – afirmou Tengo.

– Peço desculpa por lhe ter ligado tão cedo. Pelos vistos, acordei-o.

E desligou de imediato. Tengo ficou a olhar para o auscultador que tinha na mão. Como previra, no instante em que o homem desligou, foi incapaz de se recordar da voz dele. Tornou a olhar para o relógio. Oito e dez. Como irei eu matar o tempo até às sete da tarde?, questionou-se.

Começou por tomar um duche, lavar o cabelo e desembaraçá-lo o melhor que pôde. A seguir, pôs-se à frente do espelho e barbeou-se, lavou os dentes e passou o fio dental. Bebeu um copo de sumo de tomate, que tirou do frigorífico, ferveu água, moeu os grãos, fez café e uma torrada. Ajustou o temporizador e preparou um ovo quente. Concentrou-se em todos os gestos, demorando-se mais do que o habitual. Mas só eram ainda nove e meia.

Esta noite vou estar com a Aomame no alto do escorrega.

A ideia lançou-lhe os sentidos num turbilhão. As suas mãos, as pernas e a cara queriam saltar em direções opostas, e ele não conseguia manter as emoções estáveis. Fizesse o que fizesse, a sua concentração fora-se. Não foi capaz de ler, de escrever. Não conseguiu ficar sentado quieto num sítio. Só se sentiu capaz de lavar a loiça, a roupa, arrumar as gavetas e fazer a cama. De cinco em cinco minutos, parava o que estava a fazer e olhava para o relógio. Estar sempre a pensar no tempo tinha como única consequência fazê-lo avançar mais devagar.

A Aomame sabe.

Estava de pé à frente do lava-loiça, a afiar um cutelo que não precisava realmente de ser afiado. Ela sabe que já estive várias vezes no escorrega daquele parque infantil. Deve ter-me visto ali sentado, a olhar para o céu. Não faz sentido de outra forma. Imaginou o seu aspeto sentado no alto do escorrega, iluminado pelos candeeiros de vapor de mercúrio. Não se sentira observado. Onde estaria ela a observá-lo?

Não importa, pensou Tengo. É irrelevante. Independentemente de onde me tenha visto, reconheceu-me. O pensamento encheu-o de alegria. Tal como tenho andado a pensar nela, ela pensou em mim. Tengo mal podia acreditar naquilo: que neste mundo frenético, labiríntico, o coração de duas pessoas – o de um rapaz e o de uma rapariga – pudessem estar ligados, imutavelmente, pese embora não se terem encontrado durante vinte anos.

Porque é que não me chamou quando me viu? Teria sido tudo tão mais simples se me tivesse chamado! E como é que sabe onde vivo? Como é que ela... ou aquele homem... descobriu o meu número de telefone? Não gostava de receber chamadas e tinha um número privado. Não era possível descobri-lo, mesmo que se ligasse para a companhia.

Muita coisa permanecia ignorada e misteriosa. Os fios de que se compunha a história eram complicados. Estava para além da sua compreensão perceber quais desses fios se uniam e que tipo de relação de causa-efeito existia entre eles. Pensando bem, desde que Fuka-Eri entrara na sua vida, sentia-se a viver num mundo em que a quantidade de perguntas ultrapassava a de respostas. Mas tinha a vaga sensação de que esse caos se aproximava, ainda que tenuemente, de um desenlace.

Pelo menos hoje, às sete da tarde, algumas coisas ficarão esclarecidas, pensou Tengo. Vamos encontrar-nos no alto do escorrega. Já não como indefesas crianças de dez anos, mas como homem e mulher adultos e independentes. Um professor de Matemática e uma instrutora num ginásio. Falaremos de quê? Não faço ideia. Mas falaremos... temos de preencher os espaços vazios que existem entre nós, trocar informações um sobre o outro. E, empregando as palavras do homem que telefonou, podemos vir depois a viajar para algum sítio. Portanto, tenho de ter a certeza de que levo comigo o que for importante, o que não quero deixar para trás... e arrumá-lo de forma a manter as duas mãos livres.

Não tenho pena de sair daqui, pensou. Vivi neste lugar durante sete anos, dei aulas três dias por semana na escola, mas nunca me senti propriamente em casa. Como se fosse uma ilha flutuante à mercê das correntes, não passou de um local de descanso temporário, mais nada. A minha amante já não vem cá. A Fuka-Eri, que partilhou este espaço comigo por um momento fugaz... foi-se. Tengo não fazia a menor ideia de onde estavam agora ou o que faziam essas duas mulheres. Tinham, simples e silenciosamente, saído da sua vida. Se abandonasse a escola, com toda a certeza que alguém tomaria o seu lugar. O mundo continuaria a girar, mesmo sem ele. Se Aomame quisesse viajar para algum sítio com ele, não havia nada que o prendesse e impedisse de ir.

O que poderia ser a coisa valiosa a levar consigo? Cinquenta mil ienes em dinheiro e um cartão de débito de plástico – era a totalidade dos recursos que tinha à mão. Havia também um milhão de ienes numa conta-poupança. Não, havia mais. A sua parte dos direitos de A Crisálida de Ar também lá estava. Era sua intenção devolver o dinheiro a Komatsu, mas ainda não tivera oportunidade de o fazer. Havia ainda as folhas impressas do romance que começara. Não podia deixá-las ficar para trás. Não tinham qualquer valor real para outras pessoas, mas eram preciosas para Tengo. Pôs o manuscrito dentro de um saco de papel e enfiou-o no saco a tiracolo rígido, de cor fulva, que costumava levar quando ia dar aulas. O saco ficou bastante pesado. Meteu ainda algumas disquetes dentro dos bolsos do blusão de cabedal. Não podia levar o processador de texto consigo, mas acrescentou os cadernos de apontamentos e a caneta de tinta permanente ao resto da bagagem. Que mais?, pensou.

Lembrou-se do envelope que o advogado de Chikura lhe entregara. Lá dentro estava a caderneta de poupanças e o selo do pai, uma cópia do koseki e a misteriosa fotografia de família (se, de facto, o era). Talvez fosse melhor levar aquilo consigo. As cadernetas escolares e os diplomas de mérito da NHK deixava ficar. Decidiu não levar uma muda de roupa e artigos de higiene. Não caberiam no saco, já volumoso, e podia comprá-los à medida que fossem sendo necessários.

Uma vez tudo metido no saco, ficou sem nada que fazer. Não havia loiça para lavar, nem camisas para passar a ferro. Tornou a olhar para o relógio de parede. Dez e meia. Pensou que devia telefonar ao amigo para lhe pedir que o substituísse nas aulas, mas recordou-se de que ele ficava sempre com um terrível mau humor quando lhe telefonavam antes do meio-dia.

Tengo estendeu-se na cama, completamente vestido, e deixou a sua mente vaguear por entre várias possibilidades. A última vez que vira Aomame, tinha dez anos. Agora, tinham ambos trinta. No intervalo, os dois viveram muitas experiências, umas boas, outras não tão boas assim (talvez estas em número ligeiramente superior). O nosso aspeto, a nossa personalidade, o ambiente em que vivemos sofreram mudanças, pensou. Já não somos um rapazinho e uma rapariguinha. Seria aquela Aomame a Aomame de que andava à procura? E seria ele o Tengo Kawana que ela procurava? Tengo imaginou-se com ela, no alto do escorrega nessa noite, a olharem um para o outro, desapontados com o que viam. Talvez não encontrassem assunto de conversa. Era uma distinta possibilidade. A bem dizer, seria até mesmo estranho que tal não acontecesse.

Talvez não seja desejável que nos tornemos a ver. Tengo tinha os olhos fixos no teto. Não seria melhor continuarmos separados até ao fim, mantendo sempre a esperança de nos encontrarmos? Viveríamos sempre com essa ilusão. A esperança seria uma pequena mas vital chama que nos aqueceria até ao mais profundo de nós mesmos. Uma pequena chama que protegeríamos do vento com as mãos, uma chama que as duras ventanias da realidade facilmente apagariam.

Deixou-se ficar a olhar para o teto durante cerca de uma hora, debatendo-se com emoções contraditórias. Queria ver Aomame mais do que tudo. Ao mesmo tempo, receava vê-la. A fria desilusão e o silêncio desconfortável que poderiam surgir paralisavam-no. Parecia que o seu corpo se ia partir em dois. Por mais robusto que fosse, Tengo sabia que bastava uma força aplicada numa determinada direção para revelar toda a sua fragilidade. Mas ele tinha de a ver. Desejara-o com o mais fundo empenhamento durante vinte anos. Mesmo que tudo terminasse numa desilusão, não ia virar as costas e fugir.

Cansado de olhar para o teto, acabou por adormecer na cama, ainda deitado de costas. Um sono calmo e sem sonhos, que durou uns quarenta e cinco minutos – o sono profundo e reparador que se tem depois de um grande esforço de concentração, do cansaço mental. Tomou consciência de que, nos últimos dias, se limitara a dormir aos bocados e não gozara uma única noite de sono decente. Antes de escurecer, precisava de se ver livre da fadiga acumulada. Tinha de estar descansado e descontraído quando saísse dali e se dirigisse para o parque infantil. Sabia-o por instinto.

Quando o sono começava a invadi-lo, ouviu a voz de Kumi Adachi – ou pensou ouvi-la, pelo menos. Deves sair daqui logo ao amanhecer, antes que a saída se feche.

Era a voz de Kumi, mas, ao mesmo tempo, era a voz do mocho, durante a noite. Na sua memória, as duas vozes encontravam-se misturadas e era difícil destrinçar uma da outra. Acima de tudo, Tengo precisava de sabedoria – a sabedoria da noite que lançara raízes na terra. Uma sabedoria só possível de encontrar no fundo mais fundo do sono.

Às seis e meia, Tengo passou a tira do saco pelo ombro, atravessada, e abandonou o apartamento. Tinha vestida a mesma roupa que usava da última vez que fora até ao escorrega: uma parca cinzenta e um velho blusão de cabedal, calças de ganga e botas de trabalho castanhas. Tudo já bastante usado mas confortável, como se fosse uma extensão do seu próprio corpo. Provavelmente, nunca mais cá ponho os pés, pensou. Por precaução, retirou da ranhura da porta e da caixa do correio os cartões com o seu nome. O que irá acontecer a tudo o resto? Decidiu não se preocupar com isso; mais tarde pensaria no assunto.

Parado à porta do prédio, olhou cuidadosamente à sua volta. A crer no que lhe dissera Fuka-Eri, estava a ser observado. Mas, tal como antes, não havia qualquer sinal de vigilância. Só via o mesmo panorama de sempre. Agora que o Sol se tinha posto, a rua que se estendia à sua frente encontrava-se deserta. Primeiro, dirigiu-se para a estação em passo lento. De vez em quando, virava-se para verificar que ninguém o seguia. Enveredou por várias ruas estreitas que não precisava de percorrer, depois parou e verificou de novo se alguém vinha atrás de si. «Talvez seja boa ideia ter cuidado», avisara-o o homem que lhe telefonara. Por si e por Aomame, que estava numa situação um tanto tensa.

Será que o homem que me telefonou conhece realmente a Aomame? De repente, Tengo foi assaltado pela dúvida. Não poderia isto ser uma armadilha bem urdida? Ao considerar a possibilidade, não foi capaz de sacudir um certo sentimento de desconforto. Se fosse realmente uma armadilha, então a Vanguarda teria de estar por trás daquilo. Enquanto escritor-fantasma d’A Crisálida de Ar, estaria provavelmente – não, definitivamente – na lista negra do grupo. Razão pela qual aquele tipo estranho, Ushikawa, viera ter com ele com aquela história mais do que suspeita acerca de uma bolsa. Acresce ainda que Tengo permitira que Fuka-Eri se escondesse no seu apartamento durante três meses. Havia razões mais do que suficientes para que o culto estivesse zangado com ele.

Mas, seja lá como for, pensou Tengo, inclinando a cabeça, porque é que se dariam ao trabalho de usar a Aomame como isco para me atrair para uma armadilha? Já sabem onde estou. Não estou em fuga ou escondido. Se têm alguma coisa a resolver comigo deviam abordar-me diretamente. Não têm necessidade de me atraírem para o parque infantil. As coisas seriam diferentes se a situação fosse ao contrário: se estivessem a usar-me como isco para apanharem a Aomame.

Mas por que razão quereriam atrair Aomame para o exterior?

Não percebia. Será que, por acaso, havia uma ligação entre Aomame e a Vanguarda? As suas deduções chegaram a um beco sem saída. Restava-lhe fazer a pergunta a Aomame – partindo do princípio de que se encontraria com ela.

Em todo o caso, como dissera o homem ao telefone, havia que ter cuidado. Escrupuloso, Tengo deu mais uma volta e verificou que, de facto, ninguém o seguia. Assim que ganhou essa certeza, encaminhou-se apressadamente na direção do parque infantil.

Entrou no parque sete minutos antes das sete. Já estava escuro e as lâmpadas de vapor de mercúrio emitiam a sua luz uniforme e artificial, iluminando todos os recantos do minúsculo parque. A tarde estivera agradável e quente, mas agora que o Sol se pusera, a temperatura caíra bruscamente e soprava um vento gelado. O agradável verão de S. Martinho de que haviam gozado nos últimos dias desaparecera, e o verdadeiro inverno, frio e duro, viera para ficar. As pontas dos ramos da zelcova estremeciam, como os dedos de algum ancião a acenar um aviso, com um ruído seco.

Viam-se luzes em muitas janelas dos edifícios vizinhos, mas o parque estava deserto. Por baixo do blusão de cabedal, o coração de Tengo batia num ritmo lento mas pesado. Esfregou as mãos várias vezes para verificar que mantinham a sensibilidade normal. Está tudo bem, disse com os seus botões. Estou pronto. Nada a temer. Decidiu-se e começou a trepar a escada do escorrega.

Uma vez no topo, sentou-se na mesma posição que antes. O alto do escorrega estava frio e ligeiramente húmido. Com as mãos enfiadas nos bolsos, encostou-se ao corrimão e levantou os olhos para o céu. Havia nuvens de todos os tamanhos e feitios – muitas grandes e muitas pequenas. Tengo semicerrou os olhos e procurou as duas luas, mas, naquela altura, não estavam visíveis, escondidas por trás das nuvens. Estas não eram pesadas nem escuras, antes claras e fofas. Mesmo assim, ainda eram suficientemente espessas e substanciais para esconderem as luas do seu olhar. Deslizavam devagar de norte para sul. O vento não parecia demasiado forte. Se calhar, as nuvens passavam mais alto do que faria supor? Fosse como fosse, não pareciam muito apressadas.

Tengo olhou para o relógio. Os ponteiros marcavam sete e três, indicando o tempo com uma precisão cada vez maior. Aomame ainda não chegara, e ele passou vários minutos a olhar para os ponteiros do relógio como se fossem algo de extraordinário. Depois fechou os olhos. Tal como as nuvens empurradas pelo vento, ele também não tinha pressa. Não se importava que as coisas levassem o seu tempo. Deixou de pensar e entregou-se ao fluir do tempo. Naquele instante, o mais importante era o fluir natural e regular do tempo.

De olhos fechados, escutou atentamente os ruídos à sua volta, como se tentasse encontrar frequências de rádio. Ouviu o zumbir incessante do trânsito na autoestrada. Recordou-lhe o rumor das ondas do Pacífico que se ouviam na clínica em Chikura. Teve inclusivamente a impressão de escutar, ao longe, os gritos das gaivotas. Ouviu o apito intermitente que acompanhou o recuar de um grande camião e o ladrar de um canzarrão, numa espécie de aviso curto e intenso. Ao longe, alguém gritava o nome de uma pessoa. Não seria capaz de dizer de onde provinham todos aqueles sons. Com os olhos fechados durante tanto tempo, cada um dos sons perdia o sentido de orientação e de distância. De vez em quando havia uma rabanada de vento gélido, mas ele não sentia o frio. Temporariamente, Tengo esquecera-se de sentir ou reagir ao frio... ou a qualquer outra sensação.

De súbito, tomou consciência da presença de alguém sentado a seu lado, segurando-lhe a mão direita. Como uma pequena criaturinha em busca de calor, aquela mão introduzira-se dentro do bolso do blusão de cabedal e agarrara a sua mãozorra. Quando, por fim, tomou consciência daquilo, já acontecera. Sem qualquer espécie de prefácio, a situação saltara já para o nível seguinte. Que estranho, pensou Tengo, de olhos ainda fechados. Porque é que isto aconteceu? Até àquele instante, o tempo fluíra com uma lentidão exasperante. Agora, sem aviso, dera um salto em frente, pulando por cima de tudo o que estava no meio.

A pessoa apertou a sua grande mão com ainda mais força, como se quisesse assegurar-se de que ele estava mesmo ali. Dedos longos e suaves, dotados de uma força subjacente.

Aomame. Contudo, não o disse em voz alta. Nem abriu os olhos. Limitou-se a devolver-lhe o aperto de mão. Lembrava-se daquela mão. Durante aqueles vinte anos, nunca se esquecera do seu toque. Claro que já não era a mãozinha de uma menina de dez anos. Ao longo de vinte anos, a mão dela tocara em muitas coisas. Agarrara quantidades indeterminadas de objetos de todos os tamanhos e feitios. A força que possuía aumentara. Contudo, Tengo soube-o de imediato: era a mesma mão. A maneira como apertava a sua e o sentimento que se esforçava por transmitir eram exatamente os mesmos.

Dentro dele, vinte anos fundiram-se e misturaram-se, formando um turbilhão. Tudo o que se acumulara ao longo do tempo – tudo o que vira, todas as palavras que proferira, todos os valores que defendera – uniu-se num pilar espesso e sólido dentro do seu coração, um turbilhão cujo centro girava como uma roda de oleiro. Sem proferir uma única palavra, Tengo observou a cena, como se assistisse à destruição e ao renascimento de um planeta.

Aomame também se manteve silenciosa. Ficaram ali, os dois, no alto do escorrega gelado, sem palavras, de mãos dadas. Eram outra vez um rapaz e uma rapariga com dez anos. Um rapaz solitário e uma rapariga solitária. Numa sala, logo a seguir ao fim das aulas, no início do inverno. Naquele instante, nenhum deles dispunha do poder ou do conhecimento para saber o que oferecer ao outro, o que procurar no outro. Nunca, em toda a sua vida, tinham amado alguém verdadeiramente, ou tinham sido amados de facto. Não haviam abraçado ninguém, ou sido abraçados. Nem sequer sabiam onde é que tudo aquilo os conduziria. Tinham entrado numa sala sem portas. Não conseguiam sair, mas também ninguém era capaz de entrar. Na altura, não o sabiam, mas estavam no único sítio verdadeiramente completo em todo o mundo. Um lugar que, apesar de totalmente isolado, era o único local não contaminado pela solidão.

Quanto tempo passara? Cinco minutos, talvez, uma hora? Ou um dia inteiro? Ou talvez o tempo tivesse parado. O que sabia Tengo do tempo? Sabia que era capaz de se deixar ficar assim para sempre, os dois sentados em silêncio no alto do escorrega, de mãos dadas. Já o sentira aos dez anos, e agora, vinte anos mais tarde, sentia-o de novo.

Sabia também que iria necessitar de tempo para se aclimatar a este novo mundo. Teria de ajustar toda a sua forma de pensar, de ver as coisas, de respirar, de mexer o seu corpo, e repensar os mais simples elementos da vida. E, para o fazer, precisava de reunir todo o tempo que existia no mundo. Não... talvez o mundo todo não seja suficiente.

– Tengo-kun – sussurrou Aomame, numa voz nem muito grave, nem muito aguda. Uma voz que encerrava uma promessa. – Abre os olhos.

Tengo abriu os olhos. E, no mundo, o tempo começou de novo a fluir.

– Ali está a Lua – disse Aomame.


28

USHIKAWA

E uma parte da sua alma

A lâmpada fluorescente no teto iluminava o corpo de Ushikawa. Com o aquecimento desligado e uma janela aberta, a sala estava tão gelada como uma câmara frigorífica. No centro, alguém juntara várias mesas de reuniões e sobre elas deitara Ushikawa, de barriga para cima. Tinha vestidas umas ceroulas de inverno e estava tapado com um cobertor. Por baixo do cobertor, o seu estômago inchado trazia à cabeça a imagem de um formigueiro no meio de um campo. Uma pequena tira de pano cobria os seus olhos desmesuradamente abertos, inquiridores – uns olhos que ninguém conseguira fechar. Dos lábios entreabertos não mais sairiam nem hálito nem palavras. A coroa no topo da sua cabeça parecia agora mais achatada e mais enigmática do que quando estava vivo. A rodeá-la, com um ar miserável, via-se todo aquele cabelo espesso, negro, frisado... fazendo lembrar pelos púbicos.

O Bola-de-Bilhar envergava um blusão acolchoado azul-marinho e o Rabo-de-Cavalo um casaco desportivo curto castanho, de camurça, com uma gola debruada a pele. A nenhum dos dois os casacos assentavam bem: pareciam ter sido escolhidos à pressa, num sortido limitado de peças de roupa. Apesar de se encontrarem dentro de casa, o seu hálito tornava-se branco devido ao frio. Era os três únicos ocupantes da sala. O Bola-de-Bilhar, o Rabo-de-Cavalo e Ushikawa. Numa das paredes, junto do teto, viam-se três janelas de guilhotina de alumínio. Uma delas estava aberta para trás no esforço de manter a temperatura baixa. Não havia outras peças de mobiliário para além das mesas com o corpo. Era uma sala totalmente impessoal e utilitária. Ali colocado, até mesmo um cadáver – o de Ushikawa, inclusive – parecia um objeto impessoal e utilitário.

Ninguém falava. Na sala reinava o mais absoluto silêncio. O Bola-de-Bilhar tinha muito em que pensar e, fosse como fosse, o Rabo-de-Cavalo por regra já não falava. Ushikawa, que fora sempre bastante falador, estava morto há duas noites. O Bola-de-Bilhar, imerso nos seus pensamentos, andava de um lado para o outro à frente da mesa que tinha o corpo de Ushikawa. A não ser no momento em que chegava à parede e se virava, o ritmo da sua passada não diminuía. Os seus sapatos de pele não produziam qualquer ruído ao pisar o tapete verde-claro, barato, que cobria o chão. Como era seu hábito, o Rabo-de-Cavalo escolhera um ponto junto da porta e aí se fixara, imóvel, com as pernas ligeiramente afastadas, de costas direitas, com os olhos fixos num ponto invisível do espaço. Não parecia minimamente cansado ou com frio. O único indício de que ainda se encontrava entre os vivos consistia num rápido pestanejar ocasional e no vapor que saía com regularidade da sua boca.

Nesse mesmo dia, mais cedo, uma série de pessoas havia-se reunido naquela sala para discutir a situação. Um dos membros de topo da hierarquia da Vanguarda estava em viagem e fora preciso um dia inteiro para se conseguir juntar toda a gente. Tratava-se de uma reunião secreta, pelo que todos falavam em tom abafado, de forma que ninguém os ouvisse do exterior. Durante todo aquele tempo, o corpo de Ushikawa mantivera-se estendido ali, sobre a mesa, como uma máquina exposta durante uma feira industrial. O rigor mortis já se instalara. Teriam de passar outros três dias antes de desaparecer e o corpo ganhar de novo flexibilidade. Todos os presentes foram deitando uma ou outra olhadela ao corpo enquanto se discutiam vários assuntos de natureza prática.

Durante a discussão, em nenhum momento se manifestou na sala – mesmo quando a conversa se centrava no falecido – qualquer sentimento de respeito ou dor para com o falecido. O corpo rígido e atarracado apenas lhes recordava algumas lições e reconfirmava certas reflexões sobre a vida. O que quer que uma pessoa fizesse, o passado nunca voltaria, nada havia a fazer. E se a morte traz consigo alguma resolução, ela apenas se aplica ao falecido. Este tipo de lições, este tipo de reflexões.

O que fazer com o corpo de Ushikawa? Já antes de começarem conheciam a resposta. Ushikawa morrera de causas não naturais, e, se o corpo fosse encontrado, a polícia lançar-se-ia numa investigação exaustiva que levaria à inevitável descoberta da sua ligação à Vanguarda. Não podiam arriscar-se a tal. Assim que o rigor mortis desaparecesse, transportariam em segredo o corpo até ao incinerador industrial que tinham dentro do complexo da Vanguarda e fá-lo-iam desaparecer. Pouco tempo depois, ficaria reduzido a fumo negro e cinzas brancas. O fumo dispersar-se-ia no céu e as cinzas seriam espalhadas nos campos, servindo de fertilizante para os legumes. Sob a supervisão do Bola-de-Bilhar, já várias vezes tinham efetuado aquela operação. O corpo do Líder era demasiado grande, pelo que tiveram de «tratar» dele com uma serra elétrica para o cortarem em pedaços. Desta vez não seria necessário repetir esse procedimento, já que Ushikawa estava longe de ter o mesmo tamanho. Para o Bola-de-Bilhar era um alívio. Não gostava de tarefas sangrentas. Fosse com vivos, fosse com mortos, preferia que os casos não envolvessem sangue.

Um superior interrogou o Bola-de-Bilhar: quem matara Ushikawa? Porquê? Com que fito se encerrara Ushikawa naquele andar em Koenji? Enquanto chefe da equipa de segurança, o Bola-de-Bilhar via-se forçado a dar respostas, se bem que não as soubesse.

Naquela terça-feira, antes do nascer do Sol, recebera uma chamada telefónica de um homem misterioso (que, claro, era Tamaru) e tinha sido informado de que o corpo de Ushikawa se encontrava naquele apartamento. A conversa fora, a um tempo, pragmática e indireta. Assim que desligara, o Bola-de-Bilhar ligara de imediato a um par de seguidores de Tóquio. Eles tinham vestido uniformes de trabalho, fingindo-se empregados de uma firma de mudanças, e dirigiram-se para o apartamento numa carrinha Toyota Hiace. Antes de entrarem, verificaram que não se tratava de uma armadilha. Estacionaram a uma certa distância, e um deles saíra para fazer um reconhecimento da zona mais perto do edifício. Tinham de ser extremamente cuidadosos. A polícia podia estar vigilante, à espera deles, pronta a prendê-los no instante em que pusessem um pé no apartamento, algo que era forçoso evitar a todo o custo.

Levaram com eles um contentor, do tipo dos que se usavam nas mudanças, e, fosse lá como fosse, conseguiram meter o corpo, já rígido, lá dentro. Transportaram o contentor aos ombros para fora do prédio e meteram-no na carrinha. Por sorte, como era de madrugada e graças ao frio intenso, não havia gente na rua. Levou-lhes algum tempo a revistarem o apartamento com todo o cuidado até ficarem com a certeza de que não ficava lá nada incriminatório. Usaram lanternas de mão e inspecionaram todos os cantos e recantos, mas não encontraram nada que lhes chamasse a atenção, só comida, um pequeno aquecedor elétrico, um saco-cama e meia dúzia de objetos de primeira necessidade. O caixote do lixo tinha sobretudo latas e garrafas de plástico vazias. Aparentemente, Ushikawa estivera ali encafuado durante o tempo em que espiara alguém. Ao olhar atento do Bola-de-Bilhar não escapou a pequena marca que o tripé de uma máquina fotográfica deixara no tatâmi, ao lado da janela, se bem que não houvesse nem máquina nem fotografias. A pessoa que tirara a vida a Ushikawa também deveria ter levado consigo a máquina e os rolos. Uma vez que Ushikawa vestia apenas roupa interior, fora decerto atacado durante o sono. O atacante devia ter-se introduzido no apartamento sem fazer o menor ruído. E dava a impressão de que Ushikawa sofrera horrores, já que tinha a roupa saturada de urina.

Na carrinha, de regresso a Yamanashi, iam apenas o Bola-de-Bilhar e o Rabo-de-Cavalo. Os outros dois ficaram em Tóquio a terminar o trabalho. O Rabo-de-Cavalo guiou o caminho todo. A Hiace saiu da autoestrada metropolitana, meteu pela autoestrada nacional de Chu¯ o¯ e dirigiu-se para oeste. Ainda estava escuro e não havia ninguém na autoestrada, mas mantiveram-se rigorosamente dentro dos limites de velocidade. Se a polícia os mandasse parar, seria o fim de tudo. As matrículas dianteira e traseira tinham sido trocadas e substituídas por umas roubadas, e dentro da carrinha levavam um cadáver num contentor. Tê-los-iam apanhado com a mão na massa e não haveria explicação plausível a dar. Os dois mantiveram-se calados durante todo o trajeto.

Quando, de madrugada, chegaram às instalações da Vanguarda, um médico examinou o corpo de Ushikawa e confirmou que morrera por asfixia. Todavia, não existiam marcas de estrangulamento à volta do pescoço. O médico concluiu que deviam ter enfiado um saco ou coisa parecida na cabeça da vítima, algo que não tinha deixado marcas. Assim como não havia marcas nos braços e nas pernas – nada que indicasse que tivessem estado amarrados. Não parecia ter sido espancado ou torturado. A sua expressão não mostrava qualquer sinal de agonia. Se fosse necessário descrever a expressão do seu rosto, dir-se-ia que refletia a mais genuína confusão, como se lhe tivessem acabado de fazer uma pergunta que sabia não ser capaz de responder. Era óbvio que fora assassinado, mas o corpo estava notavelmente pouco marcado, o que o médico estranhou. Era como se alguém lhe tivesse massajado o rosto depois da morte para lhe dar uma expressão mais calma e natural.

– Foi um trabalho de profissional – explicou o Bola-de-Bilhar ao seu superior. – Não deixou o menor rasto. Provavelmente, ele nem sequer conseguiu gritar. Passou-se tudo a altas horas da noite, e, se ele tivesse gritado de dor, todos os residentes do prédio o teriam ouvido. Foi trabalho de um assassino profissional.

Mas por que razão teria sido liquidado por um profissional?

O Bola-de-Bilhar escolheu as palavras com o maior cuidado:

– Acho que o senhor Ushikawa deve ter pisado os calos a alguém muito perigoso. Mesmo antes de se ter apercebido do que fizera.

Teria sido a mesma pessoa que liquidara o Líder?

– Não tenho provas, mas a probabilidade é grande – afirmou o Bola-de-Bilhar. – E penso que o senhor Ushikawa terá sido sujeito a algo próximo da tortura. Não poderei precisar com rigor o que lhe fizeram, mas é óbvio que foi impiedosamente interrogado.

O que poderiam ter-lhe sacado?

– Tenho a certeza de que contou tudo o que sabia – afirmou o Bola-de-Bilhar. – Não tenho a menor dúvida. Mas o Ushikawa-san só detinha uma parte da informação. Portanto, não me parece que o que quer que tenha dito possa prejudicar-nos por aí além.

O próprio Bola-de-Bilhar também não tinha grande acesso à informação. Apesar de tudo, sabia bastante mais do que um agente externo como Ushikawa.

– Quando te referes a um profissional, queres dizer que se trata de alguém ligado ao crime organizado? – perguntou-lhe o superior.

– Não se trata de um trabalho dos criminosos da yakuza ou de outra organização qualquer – respondeu o Bola-de-Bilhar, abanando a cabeça. – São bastante menos subtis e mais sangrentos. Não fariam um trabalho tão elaborado. Quem matou o Ushikawa-san queria enviar-nos uma mensagem. Está a dizer-nos que tem por trás um sistema sofisticado e que, se alguém tentar fazer qualquer coisa, haverá consequências. E que devemos manter-nos afastados do caso.

Caso?

O Bola-de-Bilhar abanou a cabeça

– Não sei ao certo a que caso se refere. Há já algum tempo que o Ushikawa estava a trabalhar por sua conta e risco. Várias vezes lhe pedimos que nos informasse dos progressos que ia fazendo, mas ele insistiu sempre, repetindo que ainda não dispunha de material suficiente. Penso que queria reunir todos os factos antes de falar connosco, razão pela qual só ele sabia o que se passava na altura em que foi assassinado. Foi o próprio Líder quem, pela primeira vez, quis contratar o senhor Ushikawa. Trabalhava como uma espécie de agente independente. Não gostava de organizações. E, tendo em consideração a cadeia de comando existente, eu não estava em posição de lhe dar ordens.

O Bola-de-Bilhar queria deixar absolutamente claro qual era o alcance da sua responsabilidade. A Vanguarda estava estruturada como um organismo complexo, e, como em todas as organizações em que existem regras, quebrá-las podia conduzir a penalizações. Não queria ser acusado de negligência neste assunto.

Quem estaria Ushikawa a vigiar naquele prédio de apartamentos?

– Ainda não sabemos. Pela lógica, deverá ser um dos residentes ou alguém que viva na vizinhança. Os homens que ficaram em Tóquio estão a investigar neste preciso momento, mas ainda não transmitiram informações nenhumas. Pode levar algum tempo. Talvez seja melhor eu regressar a Tóquio e ir ver por mim.

O Bola-de-Bilhar não tinha grande confiança nas capacidades dos homens que deixara no terreno. Eram dedicados, sim, mas, quando distribuíram a inteligência, eles estavam no fim da fila. Por outro lado, não lhes dera todos os pormenores da situação. Seria mais eficaz ser ele a tomar conta do caso. Também teriam de revistar a fundo o escritório de Ushikawa, se bem que o homem do telefone podia já ter-lhes ganhado a dianteira. Todavia, o seu superior não lhe permitiu regressar a Tóquio. Até as coisas estarem mais esclarecidas, ele e o Rabo-de-Cavalo ficavam na sede. Era uma ordem.

O superior perguntou-lhe se seria Aomame quem Ushikawa vigiava.

– Não, não podia ser a Aomame – respondeu-lhe o Bola-de-Bilhar. – Se a Aomame estivesse ali, ele tê-lo-ia comunicado imediatamente. Cumpria o seu dever e concluía a missão. Penso que a pessoa que ele vigiava estava... ou podia estar... ligada ao paradeiro de Aomame. É a única explicação possível.

E enquanto mantinha essa pessoa sob vigilância, outros tinham-no descoberto e tomaram medidas para o deterem?

– Sim, é o que penso – considerou o Bola-de-Bilhar. – Ele devia estar a aproximar-se de algo perigoso. Pode ter mesmo dado de caras com uma pista vital. Se a vigilância estivesse a ser feita por uma equipa de várias pessoas, podiam ter-se protegido umas às outras e o desfecho resultaria muito diferente.

Falaste pessoalmente com esse homem ao telefone. Parece-te que vamos conseguir encontrar-nos cara a cara com a Aomame?

– Não lho saberia dizer. No entanto, calculo que, se a Aomame não estiver na disposição de negociar connosco, as hipóteses de que haja um qualquer encontro serão ínfimas. É o que penso. Tudo depende de ela querer ou não alinhar.

Deviam ficar satisfeitos que estivessem dispostos a esquecer o que acontecera ao Líder e a garantir a segurança dela.

– Querem mais informações. Tal como, por exemplo, a razão por que nos queremos encontrar com a Aomame? Porque é que propomos tréguas? E o que é que desejamos, exatamente, negociar?

O facto de pedirem mais dados significava que lhes faltava informação concreta.

– Certo. Mas nós também não dispomos de informações concretas a respeito deles. Ainda não sabemos sequer a razão por que se deram ao enorme trabalho de engendrar um plano para assassinar o Líder.

Seja como for, enquanto esperamos pela resposta deles, temos de prosseguir com as buscas pela Aomame. Mesmo que tal signifique pisar os calos de alguém.

O Bola-de-Bilhar fez uma curta pausa; depois, falou:

– Estamos perante uma organização muito coesa. Podemos reunir uma equipa e pô-la em campo de imediato. Também temos os nossos objetivos e um alto sentido de ética. Se necessário for, as pessoas estão literalmente dispostas a deixar-se sacrificar. Mas, de um ponto de vista meramente técnico, não passamos de um grupo de amadores... Não tivemos qualquer treino especializado. Comparados connosco, os tipos do outro lado são profissionais dos pés à cabeça. Sabem o que estão a fazer, agem com calma e nunca hesitam. Parecem autênticos veteranos. Como bem sabe, o próprio senhor Ushikawa não era um tipo descuidado.

Então, em concreto, como pensas prosseguir a partir de agora?

– De momento, acho que o melhor é procurar a pista valiosa que o próprio senhor Ushikawa desenterrou. Seja ela qual for.

Quer isso dizer que não dispomos de outras pistas valiosas?

– Não – reconheceu o Bola-de-Bilhar.

Por mais perigoso que possa tornar-se, por mais sacrifícios que haja que fazer, temos de descobrir essa Aomame e entender-nos com ela. O mais depressa possível.

– Foi o que a voz nos disse para fazer? – perguntou o Bola-de-Bilhar. – Que devemos entender-nos com a Aomame o mais depressa possível? Sem olhar a meios?

Não obteve resposta do seu superior. Este tipo de informação estava para lá da posição do Bola-de-Bilhar na hierarquia. Não era um dos membros de topo, apenas um simples chefe dos soldados rasos. Mas o Bola-de-Bilhar sabia que se tratava da mensagem final deles, a última mensagem que as sacerdotisas haviam recebido da «voz».

Enquanto andava de um lado para o outro à frente do corpo de Ushikawa no meio daquela sala gelada, uma ideia ocorreu subitamente ao Bola-de-Bilhar. Parou de repente, de testa enrugada e sobrolho franzido, enquanto tentava apanhá-la. No instante em que o outro se deteve, o Rabo-de-Cavalo mexeu-se. Uma fração de movimento. Soltou um profundo suspiro e deslocou o peso de um pé para o outro.

Koenji, pensou o Bola-de-Bilhar. Franziu ligeiramente a testa, rebuscando os recessos mais recônditos da sua memória. Com o maior cuidado, agarrou na ponta de um fiozinho e puxou-o para si. Há uma outra pessoa metida nisto que vive em Koenji. Mas quem é?

Tirou do bolso um grosso bloco de apontamentos e folheou-o. Tengo Kawana. A morada era Pátio Suginami, Koenji. Precisamente na mesma rua, no mesmo endereço do apartamento em que Ushikawa morrera. Só o número dos apartamentos era diferente. No terceiro e primeiro andares. Estaria Ushikawa a vigiar os movimentos de Tengo? Não restavam dúvidas. O facto de viverem os dois no mesmo prédio era uma coincidência demasiado grande.

Mas por que carga-d’água teria Ushikawa decidido espiar Tengo no meio de uma situação tão delicada? O Bola-de-Bilhar não se lembrara do endereço de Tengo até àquele momento, porque já tinha perdido todo o interesse nele. Tengo não passava de um mero escritor-fantasma: tinha reescrito A Crisálida de Ar, a obra de Eriko Fukada. Na época em que o livro ganhara o prémio de novos autores da revista, fora publicado e se convertera num êxito de vendas, quiseram tê-lo sob vigilância. Suspeitavam ainda que guardava um segredo importante ou desempenhava um papel de relevo. Mas a sua missão estava terminada. A sua posição ficara esclarecida. Reescrevera a obra a mando de Komatsu e embolsara uns modestos proventos. Era tudo. Não havia mais nada que precisassem de saber. Agora, a comunidade queria averiguar o paradeiro de Aomame. Mas Ushikawa focara toda a sua atenção no professor de Matemática. Aproximara-se dele e vigiava-o, tendo montado um esquema complicado. E, no fim de tudo, perdera a vida. Porquê?

Não sabia. Estava claro que Ushikawa seguia uma pista qualquer. Devia ter pensado que manter-se perto de Tengo o conduziria a Aomame. Fora por isso que se dera ao trabalho de arrendar o apartamento, montar a máquina fotográfica num tripé e observar Tengo, provavelmente durante um certo tempo. Mas que ligação poderia existir entre Tengo e Aomame?

Sem uma palavra, o Bola-de-Bilhar abandonou a sala, foi para a sala ao lado – que estava aquecida – e telefonou para Tóquio, para um apartamento em Sakuragaoka, Shibuya. Ordenou a um dos seus subordinados que regressasse de imediato ao apartamento de Ushikawa em Koenji e vigiasse os movimentos do professor de Matemática.

– O Tengo é um homem corpulento, tem cabelo curto, pelo que é impossível não reparares nele – disse-lhe. – Se abandonar o prédio, sigam-no os dois, mas sem que ele se aperceba. Não o percam de vista. Descubram para onde vai. Custe o que custar, temos de o manter sob vigilância. Vamos ter convosco assim que for possível.

O Bola-de-Bilhar regressou à sala onde jazia o corpo de Ushikawa e comunicou ao Rabo-de-Cavalo que iam para Tóquio imediatamente. O Rabo-de-Cavalo limitou-se a fazer um leve aceno com a cabeça. Não precisava de explicações. Percebeu o que lhe estava a ser pedido e entrou imediatamente em ação. Depois de saírem da sala, o Bola-de-Bilhar trancou-a para que ninguém pudesse entrar. Abandonaram o edifício e, de uma fila de dez carros, escolheram um Nissan Gloria preto. Meteram-se lá dentro, o Rabo-de-Cavalo fez girar a chave, que já estava na ignição, e pôs o motor a funcionar. De acordo com as regras, o depósito estava cheio. Como de costume, o Rabo-de-Cavalo conduzia. As placas de matrícula do Gloria eram legais, o livrete do carro estava limpo, portanto, mesmo que excedessem um pouco o limite de velocidade, não haveria problemas.

Já iam na autoestrada há algum tempo quando o Bola-de-Bilhar se lembrou de que não pedira autorização aos seus superiores para regressar a Tóquio. Iria ter problemas com isso, mas já não havia nada a fazer. Não podia perder tempo. Teria de adiar a explicação para quando regressasse da capital. Franziu o sobrolho. Por vezes, as regras eram um transtorno. O número de regras aumentava, nunca diminuía. Mesmo assim, sabia que nunca conseguiria sobreviver fora do sistema. Não era um lobo solitário. Não passava de uma roda dentada no meio de muitas, recebendo ordens vindas de cima.

Ligou o rádio e escutou o habitual noticiário das oito. No final das notícias desligou o rádio, inclinou o banco para trás e dormiu uma curta sesta. Quando acordou, estava com fome (Há quanto tempo não como uma refeição decente?, perguntou-se), mas não havia tempo a perder e não podiam parar para comer numa área de serviço. Tinham demasiada pressa.

Mas, por esta altura, já Tengo se reunira a Aomame no alto do escorrega, no parque. O Bola-de-Bilhar e o Rabo-de-Cavalo não faziam a menor ideia do local para onde Tengo se dirigira. Por cima das cabeças de Tengo e Aomame, pairavam duas luas.

* * *

O corpo de Ushikawa ficou ali, no meio daquela escuridão gelada. Não havia mais ninguém na sala. As luzes estavam apagadas e a porta fora trancada pelo lado de fora. Pelas janelas junto ao teto entrava a pálida luz do luar. Dado o ângulo, era impossível que Ushikawa conseguisse ver a Lua. Portanto, não tinha maneira de saber se havia uma ou duas luas.

Naquela divisão não existiam relógios e era difícil saber as horas. Devia ter passado cerca de uma hora desde que o Bola-de-Bilhar e o Rabo-de-Cavalo tinham saído. Se alguém tivesse ficado na sala, veria que, de súbito, a boca de Ushikawa começara a mover-se. A pessoa teria apanhado um susto de morte. Tratava-se de um fenómeno aterrador e absolutamente inesperado. Há muito tempo que Ushikawa morrera e o seu corpo estava teso que nem uma tábua. Não obstante, a boca continuava ligeiramente fremente. De repente, com um estalo seco, abriu-se por completo.

Se alguém ali estivesse, de certeza que ficaria à espera de que Ushikawa dissesse qualquer coisa. Algumas pérolas de sabedoria daquelas que só os mortos sabem produzir. Aterrorizada, a pessoa aguardaria, retendo a respiração. Que segredo estaria prestes a ser revelado?

Contudo, nenhuma voz se ouviu. Não saíram palavras, tão-pouco um suspiro, antes seis indivíduos pequeninos. Cada um media cerca de seis centímetros. Os seus corpinhos envergavam roupas minúsculas, e eles caminharam ao longo da língua esverdeada, musgosa, transpuseram os dentes sujos e irregulares e foram saindo, um após o outro. Pareciam mineiros de carvão regressando à superfície ao final da tarde, uma vez terminada a jornada de trabalho. Mas, ao contrário dos mineiros, traziam a roupa impecavelmente limpa, sem o menor vestígio de sujidade. Estavam livres de toda a porcaria e sinais de uso.

Os seis elementos do Povo Pequeno saíram da boca de Ushikawa, desceram para a mesa de reuniões, onde se sacudiram, e, um a um, foram aumentando de tamanho. Sempre que tal se revelava necessário, tinham a capacidade de ajustar o seu tamanho, mas nunca cresciam mais do que noventa centímetros ou diminuíam abaixo dos três. Quando já tinham entre setenta e dois e oitenta e quatro centímetros, pararam de se sacudir e depois, por ordem, desceram da mesa para o chão. Os rostos dos elementos do Povo Pequeno não tinham expressão. O que não quer dizer que fossem máscaras. Tinham caras perfeitamente vulgares. Pequenas, mas iguais às de toda a gente. Simplesmente, naquele momento, não necessitavam de adotar nenhuma expressão.

Não pareciam ter pressa nem grande vagar. Tinham rigorosamente o tempo de que necessitavam para levar a cabo a sua tarefa. Nem tempo a mais, nem a menos. Sem obedecer a qualquer sinal visível, os seis sentaram-se no chão, em círculo. Um círculo perfeito, pequeno, com cerca de dois metros de diâmetro.

Sem uma única palavra, um deles estendeu a mão e tirou do ar um único fio delgado. O fio tinha cerca de dezoito centímetros, era branco cremoso, quase transparente. Pousou o fio no chão. O seguinte fez exatamente o mesmo. Um fio da mesma cor e com o mesmo comprimento. Os três seguintes imitaram-nos. Só o último fez um gesto diferente. Levantou-se, abandonou o círculo, trepou de novo para a mesa de reuniões, estendeu a mão e arrancou um dos cabelos frisados da cabeça de Ushikawa. O cabelo soltou-se com um ligeiro tac. Seria o seu fio. Com mãos hábeis, o primeiro elemento do Povo Pequeno entreteceu uns nos outros os cinco fios de ar e o cabelo de Ushikawa.

Foi assim que o Povo Pequeno criou uma nova crisálida de ar. Desta vez, ninguém cantou ou entoou um ritmo. Em silêncio, foram retirando os fios do ar, arrancando cabelos da cabeça de Ushikawa e – num ritmo constante e suave – teceram com destreza uma crisálida de ar. Pese embora a sala estar gelada, o seu hálito não se transformava em vapor branco. Se estivesse ali alguém a observar a cena, também estranharia. Ou talvez nem sequer tivesse reparado, dadas as outras coisas surpreendentes que estavam a acontecer.

Apesar de trabalharem determinados e sem descanso (na realidade, nunca paravam), estava fora de questão terminar uma crisálida de ar no espaço de uma única noite. Levaria, no mínimo, três dias. Mas eles não pareciam ter pressa. Ainda demoraria dois dias até o rigor mortis de Ushikawa desaparecer e o seu corpo poder ser transportado para o incinerador. Estavam bem cientes do facto. Se conseguissem completar a maior parte do trabalho em duas noites, tanto melhor. Tinham tempo suficiente para o que precisavam de fazer. E eles nunca se cansavam.

Ushikawa estava estendido na mesa, banhado pelo suave luar. Tinha a boca escancarada, tão aberta como os seus olhos, que nada lograra fechar, cobertos por um pano grosso. No seu derradeiro momento, aqueles olhos tinham visto uma casa e um cãozinho que esgravatava num pequeno relvado.

E uma parte da sua alma estava prestes a transformar-se numa crisálida de ar.


29

AOMAME

Nunca mais largaremos as mãos

– Tengo-kun, abre os olhos – sussurrou Aomame. Tengo abriu os olhos. E, no mundo, o tempo começou de novo a fluir.

– Ali está a Lua – disse Aomame.

Tengo levantou o rosto e olhou para o céu. As nuvens tinham-se afastado, e, por cima dos ramos despidos da zelcova, lá estavam as duas luas. Uma lua grande amarela, e uma outra mais pequena, verde e deformada. Mã e nina. O seu brilho coloria o rebordo das nuvens que passavam, como uma camisa comprida cuja bainha, por acidente, caiu dentro de uma lata de tinta.

Foi então que Tengo se virou e olhou para Aomame, sentada ao seu lado. Já não era uma miúda magricela, subnutrida, com dez anos, que vestia roupa herdada, com o cabelo cortado de qualquer maneira pela mãe. Já pouco restava da rapariguinha de então, mas Tengo reconheceu-a assim que olhou para ela. Era claramente Aomame, não havia engano. Os seus olhos, tão expressivos, eram os mesmos, apesar de passados vinte anos. Olhos fortes, límpidos, imaculados. Olhos bem cientes do que queriam. Olhos que sabiam com rigor o que deviam ver e que não deixariam nada nem ninguém atravessar-se no seu caminho. E aqueles olhos olhavam-no de frente. Iam direitos ao seu coração.

Aomame passara esses vinte anos em lugares que ele desconhecia e, ao longo desse tempo, transformara-se numa bonita mulher adulta. Instantaneamente e sem reservas, Tengo absorveu todos esses locais e todo esse tempo, convertendo-os na sua própria carne e no seu sangue. Agora eram também os seus lugares. E o seu tempo.

Devia dizer qualquer coisa, pensou Tengo, mas as palavras não lhe saíram. Mexeu os lábios, quase impercetivelmente, procurando no ar as palavras certas, mas elas não surgiram em sítio nenhum. A única coisa que saiu dos seus lábios entreabertos foi uma nuvem de vapor branco, qual ilha solitária à deriva. Enquanto mergulhava o seu olhar no dele, Aomame deu um pequeno abanão com a cabeça, um só. Tengo percebeu o que queria dizer. Não é preciso dizeres nada. Ela continuou a segurar-lhe a mão dentro do bolso dele; não a largou nem por um único instante.

– Estamos a ver a mesma coisa – disse Aomame baixinho, enquanto o olhava olhos nos olhos. Uma frase que foi, a um tempo, pergunta e facto confirmado.

– Há duas luas – afirmou Aomame.

Tengo fez que sim com a cabeça. Há duas luas. Não o disse em voz alta. Por uma qualquer estranha razão, a voz não lhe saía. Pensou-o, foi tudo.

Aomame fechou os olhos. Enrolou-se e encostou a face ao peito dele. O ouvido dela ficou mesmo por cima do seu coração. Escutava-lhe os pensamentos.

– Eu precisava de saber isto – disse Aomame. – Precisava de saber que estamos no mesmo mundo, que vemos as mesmas coisas.

De repente, Tengo tomou consciência de que o grande pilar que girava dentro do seu peito desaparecera. Estava apenas rodeado de uma silenciosa noite de inverno. Havia luzes em alguns dos apartamentos do prédio do outro lado da rua, sugerindo a existência de mais gente viva naquele mundo. Foi algo que pareceu extremamente bizarro aos dois. Até mesmo ilógico. Era esquisito que outras pessoas vivessem a sua vida naquele mesmo mundo.

Tengo inclinou-se um pouco para a frente e aspirou a fragrância do cabelo de Aomame. Um cabelo bonito, liso. De ambos os lados, como criaturinhas tímidas, espreitavam duas orelhinhas cor-de-rosa.

Foi há tanto tempo, pensou Aomame.

Foi há tanto tempo, pensou Tengo também. Ao mesmo tempo, apercebeu-se de que os vinte anos decorridos não eram substanciais. Tudo passara num abrir e fechar de olhos, e também num instante se preenchera.

Tengo tirou a mão do bolso e passou-a sobre os ombros dela. Através da palma da sua mão, sentia a plenitude do corpo de Aomame. Levantou a cara e tornou a olhar para as luas. Por entre as nuvens, o estranho par continuava a projetar a sua bizarra luz sobre o mundo. As nuvens cruzavam o céu devagar. Sob aquela luz, Tengo tornou a sentir a infinita capacidade da mente de relativizar o tempo. Vinte anos era muito tempo. Ao longo desse período, muitas coisas tinham surgido. Outras tantas tinham desaparecido. As que se mantinham haviam mudado, estavam diferentes. Era muito tempo, mas não tanto assim para um coração aberto. Tengo sabia que, se viesse a encontrar Aomame dali a vinte anos, sentiria a mesmíssima coisa que naquele instante. Mesmo tendo ambos mais de cinquenta anos, ele ainda sentiria a mesma mistura de excitação e confusão provocada pela sua presença. O seu coração seria inundado da mesma alegria e da certeza.

Guardou estes pensamentos para si próprio, sabendo, todavia, que Aomame escutava com toda a atenção as palavras por dizer. Tinha a orelhinha rosada encostada ao seu peito e escutava tudo o que se passava no coração dele. Como uma pessoa que é capaz de desenhar um mapa com a ponta do dedo e conjurar as paisagens vívidas por que vai passando.

– Gostava de ficar assim para sempre e esquecer o tempo – disse Aomame, numa voz sumida. – Mas há uma coisa que temos de fazer.

Temos de sair daqui, pensou Tengo.

– Sim, temos de sair daqui – declarou Aomame. – E quanto mais cedo, melhor. Não nos resta muito tempo. Se bem que não te possa dizer para onde vamos.

Não são precisas palavras, pensou Tengo.

– Não queres saber para onde vamos? – perguntou Aomame.

Tengo abanou a cabeça. Os ventos da realidade não tinham ainda extinguido a chama no seu coração. Não havia nada de tão importante.

– Nunca mais nos separaremos – afirmou Aomame. – Isso é uma certeza absoluta. Nunca mais largaremos as mãos.

Surgiu uma nova nuvem, que engoliu as luas. A sombra que envolvia o mundo tornou-se um pouco mais escura.

– Temos de nos despachar – sussurrou Aomame. E ambos se puseram de pé no alto do escorrega. De novo, as suas duas sombras uniram-se numa só. Como duas crianças pequenas que, às cegas, procuram o caminho para saírem do bosque, agarraram-se com toda a força à mão um do outro.

– Vamos sair da cidade dos gatos – disse Tengo, falando alto pela primeira vez. Aomame adorou a sua voz fresca, renascida.

– Cidade dos gatos?

– A cidade que durante o dia está à mercê de uma profunda solidão e, à noite, se torna domínio de grandes gatos. É atravessada por um rio bonito e há uma velha ponte de pedra que vai de uma margem à outra. Porém, não é o nosso lugar.

Damos a este mundo nomes diferentes, pensou Aomame. Eu chamo-lhe o ano de 1Q84, enquanto ele lhe chama a cidade dos gatos. Mas quer tudo dizer a mesma coisa. Aomame apertou a mão dele com mais força ainda.

– Tens razão, vamos sair da cidade dos gatos já. Os dois, juntos – disse. – Uma vez daqui para fora, nunca mais nos separaremos, seja de noite, seja de dia.

Enquanto, com passos rápidos, abandonavam o parque, as duas luas mantiveram-se escondidas por trás das nuvens vagarosas. As luas tinham os olhos tapados. E o rapaz e a rapariga, de mãos dadas, puseram-se a caminho e encontraram a saída da floresta.


30

TENGO

Se não estiver enganada

Depois de saírem do parque, caminharam até à rua principal e mandaram parar um táxi. Aomame pediu ao condutor que os levasse para Sangenjaya pela Estrada Nacional 246.

Foi então que Tengo reparou no que Aomame tinha vestido: um casaco claro de meia-estação, demasiado leve para o frio naquela época do ano, com um cinto a apertar à frente. Por baixo trazia um fato verde, de muito bom corte. A saia era curta e justa. Tinha meias de vidro e sapatos de salto alto brilhantes, e trazia um saco preto a tiracolo. O saco parecia cheio e pesado. Não tinha luvas nem cachecol. Como também não usava anéis, colar ou pulseiras. Nem sequer vestígios de perfume. Aos olhos de Tengo, o que ela tinha posto e o que escolhera não usar pareciam absolutamente naturais. Não lhe ocorria nada que faltasse ou que estivesse a mais.

O táxi avançava rapidamente pela Autoestrada Metropolitana 7, em direção à Estrada Nacional 246. O trânsito estava invulgarmente calmo. Depois de entrarem no táxi, mantiveram-se em silêncio durante um bom bocado. O rádio do táxi estava desligado e o motorista – um homem jovem – guiava em silêncio. Apenas ouviam o incessante e monótono ruído dos pneus sobre o asfalto. Aomame encostou-se a Tengo, ainda agarrada à grande mão dele. Se a largasse, talvez nunca mais a encontrasse. À sua volta, a cidade noturna fluía, como uma corrente marinha iluminada por uma maré fosforescente.

* * *

– Há várias coisas que devo contar-te – começou Aomame, ao fim de um bocado. – Penso que não vou conseguir explicar-te tudo antes de chegarmos lá. Não temos muito tempo, mas a verdade é que, mesmo que tivéssemos todo o tempo do mundo, talvez nunca conseguisse explicar-te tudo.

Tengo abanou ligeiramente a cabeça. Não era necessário explicar nada naquele momento. Mais tarde, com calma, podiam preencher os espaços em branco – se é que havia espaços em branco. Tengo tinha a sensação de que, enquanto tivessem coisas que partilhar – até mesmo um vazio que nunca conseguissem preencher ou um mistério que jamais lograssem decifrar –, ele seria capaz de retirar disso alguma alegria, um sentimento próximo do amor.

– Há alguma coisa importante a teu respeito que eu tenha de saber nesta altura? – perguntou Tengo.

– O que sabes tu a meu respeito? – Aomame devolveu-lhe a pergunta.

– Quase nada – respondeu Tengo. – És instrutora num ginásio. És solteira e vives em Koenji.

– Eu também não sei quase nada a teu respeito – retorquiu Aomame –, apesar de conhecer alguns pormenores. És professor de Matemática numa escola em Yoyogi e vives sozinho. E foste tu quem realmente escreveu A Crisálida de Ar.

Tengo fixou os olhos na cara dela, a boca aberta de espanto. Só muito poucas pessoas tinham conhecimento daquele facto. Ela teria alguma ligação à comunidade religiosa?

– Não te preocupes, estamos do mesmo lado – acalmou-o. – Levava muito tempo a contar-te como é que soube. Mas sei que escreveste A Crisálida de Ar a quatro mãos com a Eriko Fukada. E que tanto tu como eu entrámos num mundo que tem duas luas no céu. Há mais uma coisa: estou grávida. Creio que o bebé é teu. Por agora, são as coisas importantes que tens de saber.

– Estás grávida de mim? – O motorista podia ouvi-lo, mas, naquele momento, Tengo não estava nada preocupado com isso.

– Há vinte anos que não nos víamos – disse Aomame –, mas, sim, estou grávida de ti. Vou dar à luz um bebé teu. Sei que parece uma loucura completa.

Tengo manteve-se em silêncio, aguardando que ela prosseguisse.

– Lembras-te de ter havido uma grande tempestade, no início de setembro?

– Muito bem – retorquiu Tengo. – Esteve um tempo excelente durante o dia todo e, depois do pôr do Sol, estalou uma enorme tempestade, com imensos relâmpagos.

A água inundou a estação de Akasaka e tiveram de fechar o metropolitano durante umas horas. O Povo Pequeno está agitado, dissera Fuka-Eri.

– Fiquei grávida nessa noite, durante a trovoada – disse Aomame. – Mas não tive esse tipo de relações com homem nenhum nesse dia, ou mesmo durante vários meses antes e depois.

Calou-se, aguardando que aquela verdade penetrasse no espírito de Tengo. Depois prosseguiu:

– Mas não tenho a menor dúvida de que foi nessa noite que aconteceu. E estou convencida de que é teu o filho que trago em mim. Não posso explicar isto, mas sei que é verdade.

Veio-lhe à cabeça o estranho encontro sexual que tivera com Fuka-Eri durante essa noite. No exterior, os relâmpagos estralejavam e a janela era fustigada por grossas gotas de chuva. O Povo Pequeno estava realmente agitado. Estendido na cama, de costas, Tengo sentia o corpo entorpecido, e Fuka-Eri montara-o, introduzira dentro de si o pénis ereto dele e espremera-lhe o sémen. Ela parecia estar num transe profundo. Mantivera os olhos fechados do princípio ao fim, como que imersa numa profunda meditação. Os seus seios eram grandes e redondos, e ela não exibia pelos púbicos. Toda a cena lhe parecera surreal, mas sabia que tinha realmente acontecido.

Na manhã seguinte, Fuka-Eri agira como se não se recordasse do que ocorrera na noite anterior. Ou talvez estivesse a esforçar-se por dar essa impressão. Na opinião de Tengo, tratara-se mais de um encontro de negócios do que de um ato sexual. Naquela noite de tormenta, Fuka-Eri usara o corpo de Tengo para recolher dele o sémen, de forma eficaz, até à última gota. Ainda recordava a estranha sensação. Fuka-Eri parecera ter-se transformado numa pessoa completamente diferente.

– Lembro-me de uma coisa – disse Tengo, lacónico. – Uma coisa que me aconteceu nessa noite e que a lógica não explica.

Aomame mergulhou o seu olhar no dele.

– Nessa altura, não compreendi – continuou ele –, não percebi o significado. Mesmo agora, não tenho grandes certezas. Mas, se ficaste grávida nessa noite e não existe uma outra explicação possível, então, a criança que trazes no ventre tem de ser minha.

Fuka-Eri devia ter sido o canal. Era a missão que recebera: permitir que Tengo e Aomame se unissem através do seu corpo, ligando-os fisicamente durante um curto lapso de tempo. Tengo percebeu que devia ter sido assim.

– Um dia, explicar-te-ei em pormenor tudo o que aconteceu – afirmou Tengo –, porém, de momento, não disponho ainda das palavras necessárias para o descrever.

– Mas acreditas mesmo nisto, certo? Que o pequenino que trago em mim é teu?

– Do fundo do coração – retorquiu Tengo.

– Ótimo – disse Aomame. – Era o que eu queria saber. Desde que acredites nisso, eu não quero saber mais nada. Não preciso de explicações.

– Portanto, estás grávida – confirmou Tengo.

– De quatro meses – respondeu Aomame, levando a mão dele à sua barriga.

Tengo reteve a respiração e procurou um sinal de vida. Mas o bebé era ainda demasiado pequeno. Contudo, sentiu o calor na mão.

– Para onde vamos agora? Tu, eu e o pequenino.

– Para um lugar que não é este – retorquiu Aomame. – Para um mundo onde só existe uma lua. Para o lugar que é o nosso. Onde o Povo Pequeno não tem qualquer poder.

– O Povo Pequeno? – Tengo franziu o sobrolho.

– N’A Crisálida de Ar descreveste o Povo Pequeno com grande pormenor. Que aspeto têm, o que fazem...

Tengo assentiu.

– Eles existem mesmo neste mundo – explicou Aomame. – Tal como os descreveste.

Quando reescrevera o romance, ele pensara que o Povo Pequeno era um mero produto da imaginação de uma rapariguinha de dezassete anos. Ou, quando muito, seria uma metáfora ou um símbolo. No entanto, agora, Tengo estava capaz de acreditar que o Povo Pequeno existia, de facto, que dispunha de poderes bem reais.

– E não só o Povo Pequeno – continuou Aomame –, mas tudo o resto existe realmente neste mundo: as crisálidas de ar, a mã e a nina, as duas luas.

– E tu conheces o caminho para sair deste mundo?

– Vamos apanhar o caminho que tomei e que me fez vir até este mundo para sair daqui. É a única saída que me ocorre – disse Aomame, e acrescentou: – Tens contigo o manuscrito do romance que estás a escrever?

– Aqui mesmo – respondeu Tengo, dando uma palmadinha no saco a tiracolo de cor fulva que trazia ao ombro. Que estranho, ocorreu-lhe. Como é que ela sabe do romance?

Aomame esboçou um sorriso hesitante.

– Simplesmente sei.

– Tal como sabes muitas outras coisas – disse Tengo. Era a primeira vez que a via sorrir. Um esboço de sorriso, mas ele teve a sensação de que as marés tinham começado a mudar, um pouco por todo o mundo. Sabia-o.

– Não te desfaças dele – pediu Aomame. – É muito importante para nós.

– Não te preocupes. Não o largo.

– Viemos até este mundo para nos podermos encontrar. Não o percebemos, mas foi com esse fim. Enfrentámos toda a sorte de complicações: coisas que não faziam sentido, coisas difíceis de explicar. Estranhas, sangrentas e tristes. E, por vezes, até coisas belas. Foi-nos pedido que fizéssemos um juramento, e nós jurámos. Submeteram-nos a provas duras, e nós ultrapassámo-las. Conseguimos cumprir o propósito que nos trouxe aqui. Mas, agora, o perigo aproxima-se. Eles querem a nina que trago dentro de mim. Sabes o que significa a nina, calculo.

Tengo inspirou profundamente.

– Vais ter a nossa nina... tua e minha.

– Não conheço todos os pormenores do princípio que está na base disto tudo, mas vou dar à luz uma nina. Seja por intermédio de uma crisálida de ar, quer seja eu própria a crisálida. E eles estão a tentar deitar-nos a mão aos três. Para criarem um novo Sistema que lhes permita ouvir a voz.

– Que papel desempenho eu no meio de tudo isto? Assumindo que tenho um papel para além de ser o pai da nina.

– Tu és... – começou Aomame, e interrompeu-se. As palavras seguintes não surgiram. Havia ainda muitos espaços em branco, espaços que os dois tinham de preencher, em conjunto, ao longo do tempo.

– Eu estava determinado a encontrar-te – explicou Tengo –, mas não fui capaz. Tu encontraste-me. Na realidade, eu não fiz nada. Parece um tanto... como dizer?... injusto.

– Injusto?

– Devo-te muito. Porém, feitas as contas, eu não te dei uma grande ajuda.

– Não me deves nada – declarou Aomame, com firmeza. – Foste tu quem me guiou até aqui. De uma forma invisível. Nós dois somos um.

– Acho que vi essa nina – disse Tengo. – Ou, pelo menos, o que essa nina significa. Eras tu, com dez anos, a dormir no meio da luz ténue de uma crisálida de ar. Pude tocar nos seus dedos. Foi apenas uma vez.

Aomame inclinou a cabeça e pousou-a no ombro de Tengo.

– Não devemos nada um ao outro. Nada. Mas agora temos de pensar em proteger este pequenino. Estão a aproximar-se. Estão quase em cima de nós. Ouço os passos deles.

– Não vou deixar que ninguém vos apanhe aos dois: a ti ou ao pequenino. Agora que estamos juntos, encontrámos o que viemos procurar a este mundo. Estamos num lugar perigoso. E tu sabes por onde sair daqui.

– Penso que sim – disse Aomame. – Se não estiver enganada.


31

TENGO E AOMAME

Como uma ervilha na vagem

Aomame reconheceu o local assim que saíram do táxi. No cruzamento olhou à sua volta e encontrou o sombrio depósito de materiais, cercado por uma vedação de metal, mesmo por baixo da autoestrada. De mãos dadas com Tengo, atravessou na passadeira e dirigiu-se para lá.

Não se lembrava de qual era o painel que tinha os parafusos soltos, mas, após ter testado todos com grande paciência, descobriu uma fresta por onde cabia uma pessoa. Aomame dobrou-se para a frente e, com cuidado para não estragar a roupa, esgueirou-se por ali. Tengo, tão dobrado quanto o seu grande corpo permitia, seguiu-a. Dentro da zona de armazenamento, tudo se encontrava exatamente como em abril, quando Aomame ali estivera pela última vez. Sacos de cimento desbotados e abandonados, canos de metal enferrujados, ervas secas, bocados de papel velho espalhados, montes de excrementos brancos de pombos, endurecidos, um pouco por todo o lado. Em oito meses, nada mudara. Era possível que, durante esse tempo todo, ninguém tivesse posto ali os pés. Parecia uma ilhota em plena autoestrada no meio da cidade – um canto abandonado e completamente esquecido.

– É aqui? – perguntou Tengo, olhando em redor.

Aomame fez que sim com a cabeça.

– Se não houver uma saída aqui, não iremos a lado nenhum.

Naquela escuridão, Aomame procurou as escadas de emergência que descera, aquelas escadas estreitas que ligavam a autoestrada ao chão por baixo dela. A escada tem de estar aqui, disse com os seus botões. Tenho de acreditar que sim.

E encontrou-as. A bem dizer, mais pareciam um escadote do que umas escadas. Pareceram-lhe muito mais pequenas, arruinadas e instáveis do que se lembrava. Admirou-se por, na altura, ter conseguido descê-las. Em todo o caso, lá estavam elas. Agora só faltava subi-las, degrau a degrau, em vez de as descer. Descalçou os seus sapatos de salto alto Charles Jourdan, enfiou-os no saco que trazia e pô-lo a tiracolo, passando as tiras pela frente do peito. Só de meias, pousou o pé no primeiro degrau da escada.

– Segue-me – disse, virando-se para olhar para Tengo.

– Será melhor eu ir à frente? – perguntou Tengo, ansioso.

– Não. Vou eu. – Era o caminho que ela descera, e teria de ser ela a subi-lo em primeiro lugar.

A escada estava mais fria do que quando a descera. As mãos arrefeceram tanto que ficaram entorpecidas, e ela pensou ter perdido a sensibilidade. O vento soprava com força por entre os pilares da autoestrada e era também muito mais forte e gélido do que antes. A escada estendia-se à sua frente, inerte e pouco convidativa: não lhe fazia qualquer promessa.

No princípio de setembro, quando procurara por ela na autoestrada, tinha desaparecido. A passagem fora bloqueada. No entanto, agora, tal como previra, a passagem pela zona de armazenamento que os conduziria à saída estava desobstruída. Tivera a premonição de que, se começasse por ali, a encontraria. Se o pequenino que trago dentro de mim tem algum poder especial, pensou, então vai certamente proteger-me e mostrar-me o caminho certo.

A escada existia, porém, se ia ligar realmente à autoestrada, era coisa que não sabia. Podia estar tapada a meio, ser um beco sem saída. Neste mundo, tudo pode acontecer. A única coisa a fazer era trepar pelo seu próprio pé, agarrando-se bem, e descobrir o que havia – ou que não havia.

Degrau a degrau, com grande cuidado, lá foi subindo. Olhou para baixo e viu Tengo mesmo atrás de si. Soprava um vento agreste que fazia o seu casaco esvoaçar. Um vento cortante. A bainha da sua minissaia enrolara-se e subira até às coxas. O vento despenteara-lhe o cabelo, que se lhe colara à cara, tapando-lhe a visão. De tal maneira, que ela sentiu dificuldade em respirar. Aomame lamentou não ter tido a ideia de prender o cabelo. E também devia ter trazido luvas, pensou. Porque é que não me ocorreu? Mas não valia a pena chorar sobre leite derramado, não iria ajudá-la em nada. Apenas pensara em vestir precisamente a mesma coisa que usava da primeira vez. Tinha de se agarrar à escada e continuar a subir.

A tremer de frio, enquanto trepava pacientemente, olhou para as varandas do prédio que ficava do outro lado da estrada. Tinha cinco andares, em tijolo castanho; era o mesmo que observara no dia em que descera por ali. Havia luzes em cerca de metade das casas. Estava tão perto que, se estendesse a mão, quase lhe poderia tocar. Podia haver problemas se, por acaso, algum dos residentes espreitasse pela janela e os visse subir as escadas de emergência assim, a meio da noite. Os dois estavam bem iluminados pelas luzes da Estrada Nacional 246.

Felizmente, ninguém apareceu a nenhuma das janelas. Todas as cortinas estavam bem corridas. O que era de esperar, valha a verdade. Quem é que iria até à varanda a meio de uma noite gelada para observar as escadas de emergência de uma estrada nacional?

Numa das varandas, agachada e encolhida ao lado de uma cadeira de plástico, havia uma árvore-da-borracha num vaso. Em abril, quando descera por ali, vira a mesma planta. Uma plantinha muito mais patética do que a que abandonara no seu apartamento deJiyugaoka. Ao longo desses oito meses, aquela árvore-da-borracha devia ter permanecido ali, encolhida, na mesma posição. Estava murcha e estragada, atirada para o canto mais discreto do mundo, completamente esquecida de todos. Era provável que quase nem a regassem. Mesmo assim, aquela pequena planta transmitiu coragem e determinação a Aomame, enquanto esta trepava pela escada oscilante, com as mãos e as pernas geladas e a cabeça num turbilhão confuso e ansioso. Está tudo bem, disse para os seus botões, estou no caminho certo. Pelo menos, estou a seguir o mesmo percurso que fiz quando vim para aqui, mas na direção oposta. Para mim, esta pequena árvore-da-borracha serve-me de sinal. Um sinal discreto e solitário.

Naquele dia, quando desci as escadas, passei por umas teias de aranha. E pensei na Tamaki Otsuka. Lembrei-me da viagem que fizemos juntas na secundária, durante umas férias de verão, em que à noite nos despimos e explorámos o corpo uma da outra. Porque é que me fui lembrar de uma coisa dessas quando estava a descer umas escadas de emergência na autoestrada? Agora que avançava na direção oposta, Aomame tornou a pensar em Tamaki. Recordou a bonita curva dos seus seios macios. Tão diferentes do meu peito achatado, pensou. Mas aqueles seios bonitos tinham desaparecido para sempre.

Pensou em Ayumi Nakano. A solitária agente de polícia que, numa noite de agosto, aparecera num quarto de hotel em Shibuya, algemada e estrangulada com o cinto de um roupão. Uma jovem mulher perturbada, que caminhara para um abismo de destruição. Também tinha seios voluptuosos.

Aomame lamentava profundamente a morte das suas duas amigas. Entristecia-a pensar que aquelas mulheres já não existiam à face da Terra. E chorava aqueles dois pares de seios encantadores que tinham desaparecido sem deixar rasto.

Por favor, implorou. Protejam-me. Peço-vos: preciso da vossa ajuda. Acreditava que aquelas palavras mudas chegavam aos ouvidos das suas infortunadas amigas. Vão proteger-me. Eu sei.

Quando, por fim, alcançou o topo da escada, deu consigo à frente de uma passagem que fazia ligação para a berma da estrada. Tinha um corrimão baixo, e ela teve de se dobrar para conseguir passar sob ele. Ao fundo viam-se umas escadas em ziguezague. Não eram exatamente umas escadas, mas tratava-se certamente de um avanço em relação à que acabara de subir; pareciam um pouco mais estáveis. Tal como se recordava, a escada que subira dava para a escapatória da autoestrada. A passagem abanava devido às vibrações provocadas pelo estrépito dos camiões, como um pequeno bote sacudido pela forte ondulação do mar. O ruído do trânsito aumentara consideravelmente.

Comprovou que Tengo, que também chegara ao topo da escada, se encontrava mesmo atrás de si e estendeu a mão para agarrar a dele. Estava quente. Achou estranho que a mão dele se mantivesse tão quente numa noite tão fria, depois de ter estado em contacto com aquela escada gelada.

– Estamos quase a chegar – disse-lhe Aomame ao ouvido. Teve de falar alto para se fazer ouvir por cima do ruído do trânsito e do vento. – Subindo por essa escada, iremos dar à autoestrada.

Quer dizer, se as escadas não estiverem bloqueadas, pensou, mas não o disse.

– Desde o princípio que estavas a planear subir estas escadas? – perguntou Tengo.

– Sim. Desde que conseguisse localizá-las.

– E deste-te ao trabalho de te vestires dessa maneira. Saia justa, saltos altos. Não é exatamente o tipo de fato mais adequado para trepar a escadas íngremes.

Aomame sorriu de novo.

– Tinha de vestir esta roupa... Um dia, eu explico-te.

– Tens umas pernas lindas – disse Tengo.

– Gostas?

– Podes crer.

– Obrigada – respondeu. Já na passagem estreita, ela pôs-se em bicos dos pés e beijou-lhe uma orelha. Aquela orelha enrugada como uma couve-flor. Estava gelada.

Virou-se, avançou pela passagem e começou a subir os degraus estreitos e altos. Tinha os pés gelados e as pontas dos dedos entorpecidas. Tinha de caminhar com cuidado para não escorregar. Enquanto subia, ia passando os dedos pelo cabelo, tentando contrariar o efeito do vento, que, gelado, lhe fazia vir lágrimas aos olhos. Agarrando-se com força ao corrimão para não perder o equilíbrio devido ao vento, avançava com cuidado, passo a passo, pensando em Tengo, mesmo atrás de si. Nas suas grandes mãos e na orelha gelada, parecida com uma couve-flor. No pequenino que dormia no seu ventre. Na pistola automática preta dentro do saco que trazia ao ombro. E nas sete balas de nove milímetros com que a havia carregado.

Temos de sair deste mundo. Para o fazer, eu tenho de acreditar, do fundo do coração, que estas escadas conduzem à autoestrada. Eu acredito, disse de si para si. De repente, recordou-se de algo que o Líder lhe dissera naquela noite de tempestade, antes de morrer. A letra de uma canção. Ainda se lembrava das palavras:

É um mundo de fantasia,

ilusório do princípio ao fim,

mas tudo seria real

se acreditasses em mim.37

Aconteça o que acontecer, seja o que for que tenha de fazer, é preciso que o torne real, não ilusório. Não... devemos os dois, o Tengo e eu, juntos, conseguir que seja real. Temos de juntar as nossas forças, uni-las, fazê-las uma, com todas as fibras do nosso ser. Por nós e pelo pequenino.

Aomame deteve-se num patamar a meio caminho e virou-se. Tengo ainda ali estava. Ela estendeu a mão e Tengo agarrou-lha. Ela sentiu o mesmo calor que antes, o que lhe transmitiu uma certa força. Tornou a pôr-se em bicos dos pés e aproximou a boca do ouvido dele.

– Sabes, houve uma vez em que quase troquei a minha vida pela tua – disse. – Um pouco mais e eu teria morrido. Uns milímetros mais. Acreditas?

– Acredito – respondeu Tengo.

– Diz-me que acreditas do fundo do coração.

– Acredito do fundo do coração – anuiu Tengo.

Aomame assentiu com a cabeça e largou a mão dele. Tornou a virar-se para a frente e recomeçou a subir as escadas.

Minutos mais tarde, chegou ao topo e desembocou na Autoestrada Metropolitana 3. As escadas não estavam bloqueadas. Tinha tido um pressentimento e vira o seu esforço recompensado. Antes de transpor a vedação de ferro, levou as costas da mão aos olhos marejados e limpou as lágrimas frias.

Sem dizer uma única palavra, Tengo olhou à sua volta. Por fim, como se estivesse impressionado, declarou:

– É a Autoestrada Metropolitana 3. Estamos na saída deste mundo, não estamos?

– Sim – confirmou Aomame. – É a entrada e a saída.

Tengo ajudou-a por trás a passar por cima da vedação, com a saia enrolada até às ancas. Do outro lado havia um desvio para paragens de emergência com espaço para dois carros, à justa. Era a terceira vez que Aomame pisava aquele chão. À sua frente estava o grande painel publicitário da Esso. Meta um tigre no seu depósito. O mesmo slogan. O mesmo tigre. Ficou ali parada, descalça, sem dizer uma única palavra. Inspirou profundamente o vapor dos escapes. Era o ar mais refrescante que imaginar podia. Estou de volta, pensou Aomame. Estamos de volta.

Na autoestrada, o trânsito estava num para-arranca, tal como ela o deixara. O trânsito da direção de Shibuya pouco ou nada avançava. Ficou admirada e perguntou-se porque seria. Sempre que aqui venho, há um engarrafamento de trânsito. Porém, àquela hora do dia, era bastante estranho que as faixas de entrada na cidade da Autoestrada Metropolitana 3 estivessem naquele estado. Devia ter havido um acidente um pouco mais à frente. Nas faixas que iam nas outras direções o trânsito fluía sem problemas, mas as que iam para a cidade estavam um caos.

Tengo levantou um pé, saltou agilmente sobre a vedação de metal e foi colocar-se ao lado de Aomame. Ficaram ali os dois, em silêncio, a observar a fila de trânsito que se estendia ante os seus olhos, como duas pessoas que pela primeira vez contemplam o oceano Pacífico, pasmadas com as ondas desfazendo-se na praia.

Os ocupantes dos carros que estavam quase parados observavam-nos. Pareciam confusos, sem saber como reagir. O seu olhar espelhava não tanto curiosidade como desconfiança. O que fazia ali aquele par de jovens? Tinham surgido da escuridão sem aviso e estavam de pé, junto a uma saída de emergência da autoestrada. A mulher vestia um fato elegante, se bem que tivesse um casaco leve, de meia-estação, e estivesse só de meias, sem sapatos. O homem era entroncado e vestia um blusão de cabedal muito gasto. Ambos traziam sacos a tiracolo. Será que o seu carro se avariara? Ou teriam tido um acidente? Contudo, não se via nenhum carro perto deles. E não estavam a pedir ajuda.

Ao fim de um bocado, Aomame caiu em si e tirou os sapatos de salto alto do saco. Puxou a saia para baixo, pôs a alça do saco ao ombro e apertou o cinto do casaco. Passou a língua pelos lábios ressequidos, alisou o cabelo com os dedos, pegou num lenço e limpou as lágrimas. De novo se encostou a Tengo.

Tal como tinham feito vinte anos antes, naquele dia de dezembro, já fora de horas, numa sala de aulas, ali permaneceram uns minutos, encostados um ao outro, de mãos dadas. Eram as duas únicas pessoas em todo o mundo. Observaram o lento passar dos carros à frente dos seus olhos. Mas não viam nada. O que estavam a ver, o que escutavam – nada disso interessava. A paisagem que os envolvia – os sons, os odores – era desprovida de sentido.

– Com que então, estamos já num outro mundo? – disse Tengo, por fim.

– Quase de certeza – respondeu Aomame.

– Seria melhor certificarmo-nos.

Só havia uma maneira de verificar, e não foi preciso dizê-lo em voz alta. Em silêncio, Aomame levantou o rosto e olhou para o céu. Quase ao mesmo tempo, Tengo seguiu-lhe o exemplo. Procuravam a Lua. Dado o ângulo, a Lua devia encontrar-se algures por cima do painel publicitário da Esso, mas não foram capazes de a ver. Devia estar oculta por trás das nuvens, que, preguiçosamente, como que sedadas, avançavam para sul empurradas pelo vento. Esperaram – não tinham pressa. Dispunham de tempo suficiente para recuperarem o tempo perdido. Tempo partilhado a dois. Não havia que entrar em pânico. Com a mangueira da bomba numa mão e um sorriso de cumplicidade na cara, o tigre da Esso, de perfil, velava pelo casal de mãos dadas.

Subitamente, Aomame foi assaltada por uma ideia. Algo havia mudado, se bem que não conseguisse dizer o que seria. Semicerrou os olhos e concentrou-se. E, de repente, soube. O tigre da Esso oferecia-lhes o perfil esquerdo. Mas nas suas recordações era a face direita que estava virada para o mundo. O tigre estava ao contrário. Instintivamente, fez uma careta e o coração falhou-lhe uma ou duas batidas. Sentiu que dentro de si algo alterara o seu rumo e ia agora contra a corrente. Mas poderia afirmar de ciência certa que o tigre se tinha invertido? As suas recordações seriam rigorosas? Não tinha a certeza. Limitava-se a ter a sensação. Por vezes, a memória é traiçoeira, prega-nos partidas.

Aomame guardou as suas dúvidas para si. Fechou os olhos por um instante à espera de que a sua respiração e o seu pulso se acalmassem, aguardando a passagem das nuvens.

Das janelas dos carros, as pessoas continuavam a olhar para eles. Para onde estariam a olhar aqueles dois? E porque é que agarravam a mão um do outro com tanta força? Alguns deles viraram a cabeça e seguiram a direção do olhar do par, tentando perceber o que observavam, mas só conseguiram ver nuvens brancas e um painel publicitário da Esso. «Meta um tigre no seu depósito», proclamava o perfil do tigre, virado para a esquerda, incitando quem passava a gastar ainda mais combustível, com a sua cauda às riscas laranja apontada, com garbo, para o céu.

Por fim, as nuvens separaram-se e a Lua ficou à vista.

Era apenas uma lua. A lua familiar, amarela e solitária. A mesma lua que, em silêncio, pairava sobre os campos de susuki38, a lua que flutuava sobre a superfície calma dos lagos, transformada num pires branco e redondo, a lua tranquila que iluminava os telhados das casas quando todos dormiam. A mesma lua que empurrava a maré alta para a costa, que brilhava suavemente na pelagem dos animais e envolvia os viajantes, protegendo-os, durante a noite. A lua que, em quarto crescente, rasgava a pele das almas ou que, em plena lua nova, banhava a Terra com a sua própria solidão silenciosa. Essa lua. Estava presa no céu, mesmo por cima do painel da Esso, e não se via nenhuma lua pequena, esverdeada e torta a seu lado. Ali estava ela, pairando taciturna, sem obedecer a nada. Em simultâneo, os dois observaram a mesma cena. Sem uma palavra, Aomame agarrou na mão de Tengo. A sensação de refluxo interno desaparecera.

Estamos de volta a 1984, disse Aomame para si própria. Já não estamos em 1Q84. Este é o mundo de 1984, o mundo de onde vim.

Mas será? Será que é assim tão fácil tudo voltar ao que era? Não é verdade que o Líder, mesmo antes de morrer, afirmou não existirem caminhos de regresso ao velho mundo?

Teremos chegado a um lugar completamente diferente? Será que passámos de um mundo distinto para um terceiro, para um mundo onde o tigre nos olha sorridente e nos oferece o perfil esquerdo, não o direito? Onde nos aguardam novos enigmas e novas regras?

Pode bem ser que sim, pensou Aomame. Pelo menos, nesta altura, ainda não consigo jurar que o não seja. Uma coisa posso dizer com toda a segurança: por mais que se olhe para ele, não estamos no mundo em que há duas luas no céu. E tenho a mão do Tengo na minha. Entrámos os dois num local perigoso, onde a lógica não tinha validade, e conseguimos sobreviver a provas terríveis, encontrámo-nos e fugimos juntos. Quer este sítio onde estamos seja o mundo de onde partimos ou não, quer seja um outro mundo diferente, o que tenho eu a temer? Se à nossa frente nos aguardarem novos perigos, apenas temos de os ultrapassar, como já fizemos antes. É tudo. Pelo menos, já não estamos sozinhos.

Descontraiu-se e, acreditando no que tinha de acreditar, apoiou-se no amplo peito de Tengo. Encostou o ouvido ao corpo dele, escutou o bater do seu coração e entregou-se-lhe nos braços. Como uma ervilha na vagem.

– E agora, para onde vamos? – perguntou Tengo a Aomame, ao fim de um bocado. Não podiam ficar ali eternamente, isso era óbvio. Mas a Autoestrada Metropolitana não tinha bermas e, apesar de o desvio de Ikejiri ficar relativamente perto, por maior que fosse o engarrafamento, ainda assim, era demasiado perigoso para um peão caminhar ao longo da fila de carros. Também sabiam que não valia a pena levantar o polegar num pedido de boleia: dificilmente encontrariam um condutor que se oferecesse para os levar. Podiam usar o telefone de emergência e pedir ajuda à Empresa Nacional de Estradas do Japão, mas não tinham uma explicação plausível para ali estarem. Mesmo que conseguissem ir a pé até ao desvio de Ikejiri, de certeza que o portageiro lhes ia fazer perguntas. E regressar pelas escadas de onde tinham vindo estava fora de questão.

– Não sei – respondeu Aomame.

Ela não tinha, de facto, a menor ideia do que fazer a seguir, ou para onde se dirigir. O seu papel terminara no momento em que tinham acabado de subir as escadas de emergência. Estava demasiado exausta para tomar uma decisão ou pôr-se a pensar no que fazer. Não restava uma única gota de combustível no seu depósito. A única solução era deixar tudo nas mãos de outra força.

Jeová, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino. Perdoai as nossas ofensas e dai-nos a vossa bênção enquanto prosseguimos o nosso humilde caminho. Ámen.»

A oração saiu-lhe dos lábios com toda a naturalidade. Não teve de pensar. Só por si, cada palavra era desprovida de sentido. Para ela, naquele momento, as frases não passavam de sons, de uma lista de sinais e mais nada. Ainda assim, quando mecanicamente recitava a oração, foi assaltada por um estranho sentimento, algo que até poderia designar como reverência. Bem no fundo de si própria algo tocou o seu coração. Apesar de tudo o que aconteceu, eu nunca me perdi, pensou. Graças aos céus, posso estar aqui, sendo eu. Onde quer que este aqui seja.

Venha a nós o Vosso reino, recitou mais uma vez, como fizera na escola primária todos os dias antes do almoço, há tantos anos. Qualquer que fosse o significado disto, era o que do fundo do seu coração desejava. Venha a nós o Vosso reino.

Tengo passou-lhe a mão pelo cabelo, como se a penteasse.

Dez minutos mais tarde, Tengo fez parar um táxi que passava. Ao princípio, nenhum dos dois acreditou no que os seus olhos viam. Um único táxi, sem passageiros, avançava lentamente no meio do engarrafamento, na autoestrada. Cético, Tengo levantou uma mão, a porta de trás abriu-se e eles entraram, com rapidez, com medo de que aquele fantasma desaparecesse. O jovem motorista, que usava óculos, virou-se para eles.

– Por causa do engarrafamento, se não lhes causa transtorno, eu gostaria de virar no desvio de Ikejiri – disse. Tinha uma voz bastante aguda para homem. No entanto, não era irritante.

– Por nós, está excelente – retorquiu Aomame.

– Para dizer a verdade, apanhar passageiros na autoestrada é contra a lei.

– E que lei é essa? – perguntou Aomame. O seu rosto, refletido no espelho retrovisor, estava ligeiramente franzido.

O motorista não foi capaz de nomear a lei que proibia apanhar passageiros nas autoestradas. Além do mais, a cara de Aomame no retrovisor começava a assustá-lo.

– Bom, não tem importância – disse o motorista, abandonando o tópico. – Então, onde querem que os deixe?

– Pode deixar-nos perto da estação de Shibuya, se não se importa – declarou Aomame.

– Não pus o taxímetro a funcionar – afirmou o homem. – Cobro-lhes só a corrida a partir da saída da autoestrada.

– Porque é que andava na autoestrada sem passageiros? – perguntou-lhe Tengo.

– É uma história um tanto longa – respondeu o homem, numa voz marcada pela fatiga. – Querem ouvir?

– Quero – disse Aomame. Não se importava que fosse longa e aborrecida. Estava ansiosa por ouvir o que tinham a contar as pessoas deste novo mundo. Talvez descobrisse novos segredos, novas pistas.

– Perto do Parque de Kinuta apanhei um cliente, um homem de meia-idade, que me pediu que o levasse à Universidade Aoyama Gakuin e que fosse pela autoestrada. Queria que fosse por ali, por causa do trânsito na zona de Shibuya. Quando o apanhei, ainda não havia notícias acerca de qualquer engarrafamento na autoestrada. Era de supor que o trânsito estivesse a andar bem. Portanto, fiz o que me pediu e entrei na autoestrada em Yoga. Mas depois, ao que parece houve um acidente perto de Tani-cho , e estão a ver o resultado. Uma vez apanhados no engarrafamento, nem sequer conseguimos chegar perto do desvio de Ikejiri para sairmos da autoestrada. Entretanto, o passageiro descobriu uma amiga. Estávamos parados perto de Komazawa, sem avançar um milímetro, ao lado de um Mercedes-Benz coupé prateado, e acontece que a condutora era uma amiga dele. Baixaram os vidros das janelas para conversarem, e a mulher acabou por o convidar para o carro dela. O homem desculpou-se e perguntou-me se podia pagar e passar para o carro da amiga. Nunca se ouviu falar de alguém ter largado um passageiro na autoestrada, mas, uma vez que não estávamos a andar, não tive maneira de dizer que não. Por isso, o homem passou para o Mercedes. Ficou um tanto incomodado com aquilo e, para adoçar a coisa, acrescentou um bónus ao que me pagou. Mesmo assim, foi desagradável. Quer dizer, eu não conseguia andar. Seja como for, pouco a pouco fui avançando até aqui, e estou perto do desvio de Ikejiri. Foi então que o senhor levantou a mão. Inacreditável, não acham?

– Eu acredito – foi o curto comentário de Aomame.

Naquela noite ficaram alojados num hotel muito alto, em Akasaka. Apagaram as luzes, despiram-se, meteram-se na cama e abraçaram-se. Havia muito que contar, mas podiam esperar até de manhã. Tinham outras prioridades. Sem trocarem uma única palavra, com toda a calma, exploraram o corpo um do outro na escuridão. Com os dedos e as palmas da mão, apalparam e comprovaram, uma a uma, onde se encontrava cada parte do corpo do outro e a forma que tinha, excitados como dois miúdos pequenos numa caça ao tesouro dentro de uma sala secreta. Assim que descobriam algo, beijavam essa zona, conferindo-lhe um selo de aprovação.

Depois de, com todo o vagar, concluírem as suas explorações, Aomame segurou o pénis rígido de Tengo na mão. Tal como, muitos anos antes, agarrara a mão dele na sala, depois das aulas. Estava mais duro do que qualquer coisa que alguma vez conhecera, miraculosamente duro. Aomame afastou as pernas, aproximou-se e, devagar, introduziu-o dentro de si. A direito, profundamente. Na escuridão, ela fechou os olhos e inspirou uma grande golfada de ar. Depois, igualmente devagar, soltou o ar. Tengo sentiu o calor da respiração dela no seu peito.

Muito quieta, Aomame sussurrou-lhe ao ouvido:

– Toda a vida imaginei como seria ter-te assim.

– A fazer amor comigo?

– Sim.

– Desde os dez anos que imaginavas isto? – perguntou Tengo.

Aomame riu-se.

– Não. Começou era eu um pouco mais velha.

– Eu também imaginei como seria.

– Estar dentro de mim?

– Precisamente – disse Tengo.

– E é como imaginaste?

– Ainda me custa a crer que seja real – admitiu Tengo. – Sinto-me como se estivesse a viver uma fantasia.

– Mas é real.

– É demasiado bom para ser real.

Na escuridão, Aomame sorriu. E beijou-o. Exploraram a língua um do outro.

– Os meus seios são um bocado pequenos, não achas?

– Têm o tamanho certo – afirmou Tengo, envolvendo-os na concha das mãos.

– Achas mesmo?

– Claro – respondeu. – Se fossem maiores, não eras tu.

– Obrigada – disse Aomame, e acrescentou: – mas não são apenas pequenos: o esquerdo e o direito têm tamanhos diferentes.

– Estão bem assim – afirmou Tengo. – O direito é o direito, e o esquerdo é o esquerdo. Não é preciso alterar nada.

Aomame encostou a orelha ao peito dele.

– Há tanto tempo que me sinto solitária. Houve tantas coisas que me magoaram profundamente. Quem me dera ter-te encontrado há muitos anos: não teria sido preciso dar tantas voltas para chegar até aqui.

Tengo abanou a cabeça.

– Não concordo. Tal como está, é perfeito. Foi o tempo certo. Para ambos.

Aomame começou a chorar. As lágrimas que durante tanto tempo contivera escorriam-lhe agora pela cara abaixo, e ela não era capaz de as deter. Grandes lágrimas caíam sobre os lençóis com um baque, como chuva. Com Tengo enterrado no mais profundo do seu corpo, tremeu, sem deixar de chorar. Ele rodeou-a com os braços e abraçou-a. A partir de agora, segurá-la-ia sempre – pensamento que o deixou mais feliz do que era capaz de imaginar.

– Precisámos de todo este tempo para compreendermos como nos sentíamos sós.

– Mexe-te – murmurou-lhe Aomame, ao ouvido. – Demora o tempo que quiseres, vai com calma.

Tengo fez o que lhe era pedido e começou a mover-se devagar. Respirava em silêncio, atento aos batimentos do seu coração. Aomame agarrou-se a ele como se estivesse prestes a afogar-se. Parou de chorar, parou de pensar, afastou-se do passado, do futuro, e deixou que o seu coração acompanhasse os movimentos do corpo de Tengo.

* * *

Perto do nascer do Sol enfiaram os roupões do hotel, aproximaram-se da grande janela e bebericaram o vinho tinto que haviam encomendado ao serviço de quartos. Aomame bebeu um único golinho. Ainda não sentiam necessidade de dormir. Da janela do décimo sétimo andar podiam contemplar a Lua a seu bel-prazer. As nuvens tinham-se dispersado e nada impedia a visão. A lua da madrugada percorrera já um longo caminho, se bem que ainda pairasse sobre a linha do horizonte da cidade. Apresentava uma cor branco-cinza e parecia prestes a cair sobre a Terra, tendo completado a sua missão.

Na receção, Aomame tinha pedido um quarto num andar alto, de onde se pudesse ver bem a Lua, mesmo que fosse mais caro.

– É o mais importante de tudo, ter uma boa vista da Lua – dissera.

A rececionista fora simpática com este jovem casal, que aparecera sem reserva. O facto de o hotel não estar cheio também ajudou. E simpatizou com eles no preciso instante em que lhes pôs os olhos em cima. Pediu ao mandarete que subisse ao quarto para verificar que tinha a vista que eles queriam, e só depois entregou a Aomame a chave da suíte júnior. Também lhes fez um desconto especial.

– Por acaso, hoje é dia de lua cheia, ou coisa parecida? – perguntou, movida pela curiosidade. Ao longo dos anos atendera a todos os tipos de exigências, esperanças e desejos dos hóspedes, alguns quase inconcebíveis. Mas era a primeira vez que tinha hóspedes que lhe pediam um quarto com uma boa vista sobre a Lua.

– Não – respondeu Aomame. – A lua cheia já passou. Está em quarto minguante, a dois terços. Mas isso não importa, desde que seja possível vê-la.

– Gostam de olhar para a Lua?

– Para nós é muito importante – Aomame sorriu. – Mais do que possa imaginar.

Perto do amanhecer, o número de luas ainda não tinha aumentado. Era a mesma velha lua de sempre. O único satélite que, desde tempos imemoriais, fielmente girava em torno da Terra, sempre à mesma velocidade. Enquanto olhava para a Lua, Aomame acariciou ao de leve o seu ventre, verificando mais uma vez que o pequenino continuava ali, dentro dela. Estava capaz de jurar que a sua barriga crescera desde a noite anterior.

Continuo sem saber que tipo de mundo é este, pensou. Mas, seja qual for o mundo em que estamos, tenho a certeza de que é onde vou ficar. Onde vamos ficar. Este mundo também deve ter as suas ameaças, os seus perigos, e estar já cheio dos seus próprios enigmas e de contradições. Poderemos ter de percorrer muitos caminhos sombrios, que nos conduzirão sabe-se lá aonde. Mas não faz mal, não há problema. Aceitarei este mundo tal como é. Não irei a lado nenhum. Aconteça o que acontecer, é aqui que vou ficar, neste mundo com uma lua. O Tengo, eu e esta coisa pequenina.

«Meta um tigre no seu depósito», dissera o tigre da Esso, dando-lhes o perfil esquerdo. Não importava que perfil lhes mostrava, o grande sorriso com que brindava Aomame era caloroso e natural. Vou acreditar naquele sorriso, decidiu Aomame. É o mais importante. Desenhou a sua própria versão do sorriso do tigre. Com grande ternura e naturalidade.

Em silêncio, estendeu uma mão a Tengo, e Tengo tomou-lha. Ficaram ali os dois, lado a lado, unidos, observando em silêncio a Lua suspensa por cima dos edifícios. Até que o Sol acabado de nascer a iluminou, roubando-lhe o seu fulgor noturno. Até a Lua não passar de um mero recorte de papel cinzento colado ao céu.

 

37 «It’s Only a Paper Moon», uma canção escrita em 1933 por Harold Arlen (música) e Billy Rose e E. Y. Harburg (letra), escolhida por Haruki Murakami para figurarcomo epígrafe no Livro 1. (N. das T.)

38 Miscanthus sinensis, uma herbácea espontânea da Ásia Oriental. Não tem nome comum em português. (N. das T.)

 

 

                                                   Haruki Murakami         

 

 

 

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