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Series & Trilogias Literarias
Lisbeth Salander sobreviveu aos ferimentos de que foi vítima, mas não tem razões para sorrir: o seu estado de saúde inspira cuidados e terá de permanecer várias semanas no hospital, completamente impossibilitada de se movimentar e agir. As acusações que recaem sobre ela levaram a polícia a mantê-la incontactável. Lisbeth sente-se sitiada e, como se isto não bastasse, vê-se ainda confrontada com outro problema: o pai, que a odeia e que ela feriu à machadada, encontra-se no mesmo hospital com ferimentos menos graves e intenções mais maquiavélicas...
Entretanto, mantêm-se as movimentações secretas de alguns elementos da Sapo, a polícia de segurança sueca. Para se manter incógnita, esta gente que actua na sombra está determinada a eliminar todos os que se atravessam no seu caminho. Mas nem tudo podia ser mau: Lisbeth pode contar com Mikael Blomkvist que, para a ilibar, prepara um artigo sobre a conspiração que visa silenciá-la para sempre. E Mikael Blomkvist também não está sozinho nesta cruzada: Dragan Armanskij, o inspector Bublanski, Anika Giannini, entre outros, unem esforços para que se faça justiça. E Erika Berger? Será que Mikael pode contar com a sua ajuda, agora que também ela está a ser ameaçada? E quem é Rosa Figuerola, a bela mulher que seduz Mikael Blomkvist?
ESTIMA-SE EM SEISCENTAS O NÚMERO DE MULHERES QUE COMBATERAM NA GUERRA DA SECESSÃO. ALISTAVAM-SE DISFARÇADAS DE HOMENS.
TERÁ HOLLYWOOD DEIXADO ESCAPAR UMA GRANDE PARTE DA HISTÓRIA CULTURAL, OU SERÁ QUE ERA UMA MATÉRIA IDEOLOGICAMENTE INCÓMODA?
OS LIVROS DE HISTÓRIA DIFICILMENTE FAZEM REFERÊNCIA A MULHERES QUE NÃO SE ENQUADRAM NO ESTEREÓTIPO DOS SEXOS, E NUNCA ISSO É TÃO EVIDENTE COMO NO QUE SE REFERE À GUERRA E AO USO DE ARMAS.
E NO ENTANTO, DA ANTIGUIDADE AOS TEMPOS MODERNOS, NÃO FALTAM RELATOS QUE PÕEM EM CENA GUERREIRAS - AS CHAMADAS AMAZONAS. ENCONTRAMOS OS EXEMPLOS MAIS CONHECIDOS NOS EPISÓDIOS HISTÓRICOS EM QUE TAIS MULHERES FIGURAM COMO "RAINHAS", OU SEJA, REPRESENTANTES DA CLASSE NO PODER. PORQUE. EMBORA SEJA UMA VERDADE DESAGRADÁVEL DE OUVIR, AS CONTINGÊNCIAS DA SUCESSÃO POLÍTICA COLOCAM REGULARMENTE UMA MULHER NO TRONO. SENDO AS GUERRAS INDIFERENTES A QUESTÕES DE GÉNERO E DADO QUE TEIMAM EM ACONTECER MESMO QUANDO É UMA MULHER QUE GOVERNA, OS LIVROS DE HISTÓRIA VÊEM-SE NA OBRIGAÇÃO DE REPERTORIAR UM CERTO NÚMERO DE RAINHAS GUERREIRAS, LEVADAS PELAS CIRCUNSTÂNCIAS A COMPORTAREM-SE COMO UM QUALQUER CHURCHILL, ESTALINE OU ROOSEVELT.
SEMIRAMIS DE NÍNIVE, FUNDADORA DO IMPÉRIO ASSÍRIO, E BOADICEIA, QUE ENCABEÇOU UMA DAS REVOLTAS MAIS SANGRENTAS CONTRA OS ROMANOS, SÃO APENAS DOIS EXEMPLOS. A ÚLTIMA TEM, ALIÁS, UMA ESTÁTUA À BEIRA DO TAMISA, EM FRENTE DO BIG BEN. NÃO DEIXAREMOS DE A SAUDAR SE POR LÁ PASSARMOS.
EM CONTRAPARTIDA, OS LIVROS DE HISTÓRIA SÃO, NO SEU TODO, BASTANTE DISCRETOS NO QUE SE REFERE ÀS MULHERES QUE SERVIAM COMO SIMPLES SOLDADOS, SE ADESTRAVAM NO MANEJO DE ARMAS, FAZIAM PARTE DE REGIMENTOS E PARTICIPAVAM EM BATALHAS CONTRA EXÉRCITOS INIMIGOS NAS MESMAS CONDIÇÕES QUE OS HOMENS.
MAS ELAS SEMPRE EXISTIRAM. NÃO HOUVE PRATICAMENTE GUERRA QUE NÃO CONTASSE COM UMA PARTICIPAÇÃO FEMININA.
CAPÍTULO I
SEXTA-FEIRA. 8 DE ABRIL
Faltava pouco para a uma e meia quando Hanna Nicander, uma das enfermeiras, acordou o Dr. Anders Jonasson.
- Que se passa? - perguntou ele, ainda meio atordoado.
- Helicóptero a chegar. Dois pacientes. Um homem já de idade e uma rapariga; ela com ferimentos de bala.
-Já vou, já vou - resmungou Jonasson, cansado.
Sentia-se sonolento apesar de não ter verdadeiramente dormido, tinha apenas dormitado uma escassa meia hora. Estava de serviço no Hospital Sahlgrenska, em Gotemburgo. A noite fora esgotante. Logo às seis, quando entrara de turno, tinham recebido quatro vítimas de uma colisão frontal perto de Lindome. Uma delas em estado grave e outra declarada morta pouco depois da chegada. Também tratara da criada de um restaurante da Avenyn que escaldara as pernas na cozinha e logo a seguir salvara a vida a um garoto de quatro anos em paragem respiratória depois de ter engolido uma roda de um carrinho de brincar. Além disso, ainda tivera tempo de remendar uma adolescente que caíra num buraco com a bicicleta. A engenharia civil tinha, ardilosamente, colocado o dito buraco à saída de uma pista para ciclistas, e alguém tivera o cuidado de atirar lá para dentro as barreiras de protecção. A rapariga tivera direito a 14 pontos na cara e precisara de dois incisivos novos. Ah, e também cosera a ponta do polegar que um marceneiro de fim-de-semana com mais entusiasmo do que habilidade aplainara por engano.
Por volta das onze da noite, o número de pacientes nas urgências tinha diminuído. Fizera a ronda e controlara o estado dos hospitalizados,
após o que se retirara para uma sala de repouso com a intenção de relaxar um pouco. O turno só acabaria às seis da manhã. Era raro dormir quando estava de serviço, mesmo que não houvesse admissões, mas, precisamente naquela noite, caíra num ensonado torpor mal se instalara no cadeirão.
Hanna Nicander estendeu-lhe uma caneca de chá. Ainda não tinha pormenores sobre os recém-chegados.
Anders Jonasson olhou pela janela e viu os raios riscarem o céu por cima do mar. Ia ser mesmo no limite, para o helicóptero. De repente, começou a chover furiosamente. A tempestade tinha-se abatido sobre Gotemburgo.
Ainda estava à janela quando ouviu o barulho dos rotores e viu o helicóptero, açoitado pelas rajadas de vento, fazer-se à área de aterragem. Reteve a respiração por um instante, quando lhe pareceu que o piloto estava com dificuldade em controlar a aproximação. Depois, o aparelho saiu do seu campo de visão e o uivo da turbina desceu vários decibéis. Bebeu um golo de chá e pousou a caneca.
O Dr. Anders Jonasson foi receber os maqueiros à entrada das urgências. A colega de turno, a Dra. Katarina Holm, tomou conta do primeiro paciente a chegar, um homem já de idade, com um grave ferimento no rosto. Coube ao Dr. Jonasson ocupar-se da outra paciente, a mulher com ferimentos de bala. Um primeiro e rápido exame permitiu-lhe verificar que se tratava de uma adolescente, gravemente ferida e coberta de sangue e de terra. Levantou a manta em que os serviços de emergência a tinham embrulhado e descobriu que alguém tinha vedado os ferimentos na coxa e no ombro com tiras de fita adesiva prateada. Uma iniciativa que considerou particularmente inteligente: a fita impedia a entrada de bactérias e a saída do sangue. Uma das balas atingira-a no lado externo da anca e atravessara o músculo de um lado ao outro. Levantou o camisolão e localizou o orifício de entrada da segunda bala, nas costas. Não havia orifício de saída, o que significava que o projéctil continuava algures no ombro. Havia o perigo de ter perfurado o pulmão, mas como não viu sangue na boca da rapariga, concluiu que não.
- Raio x - disse à enfermeira que o assistia, e foi o bastante como indicação.
Para terminar, desenrolou a ligadura que os socorristas tinham atado à volta da cabeça da jovem ferida. Estremeceu quando tacteou com as pontas dos dedos o orifício de entrada e compreendeu que tinha sido atingida por uma terceira bala, desta vez na cabeça. Como no caso do ombro, não havia orifício de saída.
Anders Jonasson deteve-se por um instante e olhou para a jovem. Subitamente, sentiu-se invadir por uma vaga de pessimismo. Comparava muitas vezes o seu trabalho ao de um guarda-redes. Todos os dias chegavam às suas mãos pessoas nos mais variados e diversos estados, mas todas com uma única intenção: obter ajuda. Como a senhora de 74 anos que fizera uma paragem cardíaca no centro comercial de Nordstan e caíra redonda no chão, ou o rapaz de 14 anos que perfurara o pulmão esquerdo com uma chave de parafusos, ou a rapariga de 16 que se empanturrara de ecstasy e dançara durante 18 horas seguidas até cair para o lado com a cara azulada. Havia vítimas de acidentes de trabalho e vítimas de maus-tratos. Havia crianças atacadas na Praça Vasa por cães de luta e homens com jeito para a bricolage cuja intenção fora apenas cortar algumas tábuas com a serra eléctrica e que tinham acabado por cortar o pulso até ao osso.
Anders Jonasson era o guarda-redes entre os pacientes e o cangalheiro. O seu trabalho consistia em decidir que medidas eram apropriadas. Se tomasse a decisão errada, o paciente morria, ou talvez acordasse com uma invalidez permanente. A maior parte das vezes decidia correctamente, e isto porque a maioria dos pacientes tinha um problema específico e compreensível. Uma facada num pulmão ou um traumatismo decorrente de um acidente de viação eram ferimentos inteligíveis e claros. A sobrevivência do paciente dependia da natureza do ferimento e da habilidade dele.
Havia dois tipos de ferimentos que Anders Jonasson detestava acima de todos os outros. Certas queimaduras que, na maior parte dos casos, independentemente dos meios que utilizasse, conduziam a uma vida de sofrimento. E os ferimentos na cabeça.
Aquela rapariga que tinha à sua frente poderia viver com uma bala na anca e outra bala no ombro. Mas uma bala algures no cérebro era um problema de uma gravidade completamente diferente. Apercebeu-se subitamente de que a enfermeira dizia qualquer coisa.
- Perdão?
- É ela.
- Ela quem?
- A Lisbeth Salander. A rapariga que eles procuram há semanas por causa do triplo homicídio em Estocolmo.
Anders Jonasson examinou o rosto da paciente. Hanna tinha razão. Era a fotografia de passaporte daquela rapariga que, desde a Páscoa, ele e praticamente todos os suecos viam pespegada na montra de todos os quiosques de jornais. E agora a assassina tinha sido ferida, o que constituía sem dúvida uma forma de justiça imanente.
Era, porém, um problema que não lhe dizia respeito. O seu trabalho consistia em salvar a vida da paciente, fosse ela tripla homicida ou laureada com o Nobel da Paz. Ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Depois, foi essa espécie de caos controlado que caracteriza um Serviço de Urgências. O pessoal que trabalhava com Jonasson era experiente e sabia o que tinha de fazer. As roupas que Lisbeth Salander ainda vestia foram cortadas. Uma enfermeira mediu-lhe a pressão arterial - 100/70 - enquanto ele encostava o estetoscópio ao peito da paciente e auscultava o bater do coração, que parecia bastante regular, e a respiração, não tanto.
O Dr. Jonasson não hesitou em classificar imediatamente o estado de Lisbeth Salander como crítico. As feridas no ombro e na anca podiam esperar, de momento, aplicando compressas ou até deixando onde estavam as tiras de fita adesiva, que uma alma inspirada tinha aplicado. O principal era a cabeça. Mandou que a passassem pelo scanner em que o hospital investira o dinheiro dos contribuintes.
Anders Jonasson era um homem loiro de olhos azuis, originário do Norte da Suécia, mais precisamente de Umeâ, e havia mais de vinte anos que trabalhava nos hospitais Sahlgrenska/Òstra, alternando
as especialidades de investigador, patologista e médico das Urgências. Tinha uma particularidade que perturbava os colegas e envaidecia o pessoal que trabalhava com ele: mantinha, como questão de princípio, que nenhum paciente podia morrer durante os seus turnos, e, como que por milagre, conseguira, até ao momento, manter o seu score em zero. É certo que alguns tinham morrido, mas isso acontecera sempre no decurso de tratamentos posteriores e por razões que nada tinham tido que ver com a sua intervenção.
E, além disso, Jonasson tinha também uma visão pouco ortodoxa da medicina. Segundo ele, os médicos tendiam a tirar conclusões que não podiam justificar e, por isso, a desistir demasiado depressa, ou então a dedicar demasiado tempo à tentativa de definir exactamente o problema para poderem prescrever o tratamento apropriado. Era, sem dúvida, o método que os livros preconizavam, sendo o único óbice o facto de o paciente correr o risco de morrer enquanto o corpo clínico estava ainda entregue às suas reflexões. No pior dos cenários, o médico chegava à conclusão de que o caso era desesperado e interrompia o tratamento.
No entanto, nunca acontecera ao Dr. Anders Jonasson ter uma paciente com uma bala alojada na cabeça. Ia muito provavelmente ser necessária a intervenção de um neurocirurgião. Sentia-se... impotente, mas ocorreu-lhe, de repente, que talvez tivesse mais sorte do que merecia. Antes de lavar as mãos e enfiar a bata esterilizada, gritou a Hanna Nicander:
- Há um professor americano chamado Frank Ellis. Trabalha no Karolinska em Estocolmo, mas de momento encontra-se em Gotemburgo. É um neurologista célebre, e ainda por cima meu amigo. Está alojado no Hotel Radisson, na Avenyn. Veja se me consegue descobrir o número do telefone.
Enquanto Anders Jonasson aguardava ainda as radiografias, Hanna Nicander voltou com o número de telefone do Hotel Radisson. Jonasson lançou um olhar ao relógio - quase um quarto para as duas - e pegou no auscultador. O porteiro da noite do Radisson mostrou-se muito renitente à ideia de passar um telefonema àquela hora da noite, e o médico teve de recorrer a algumas expressões muito
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veementes para explicar a gravidade da situação antes que a ligação fosse estabelecida.
- Olá, Frank - disse Jonasson, quando finalmente alguém atendeu. - Sou eu, o Anders. Soube que estás em Gotemburgo. Que dizes a dar um salto aqui ao Sahlgrenska e ajudar-me numa operação ao cérebro?
- Are you bullshiting me? - respondeu uma voz incrédula, do outro lado.
Apesar de viver na Suécia havia longos anos e de falar fluentemente sueco - é certo que com sotaque americano -, Frank Ellis continuava a pensar, e a reagir, em inglês. Jonasson falou em sueco, Ellis respondeu em inglês.
- Frank, tenho muita pena de ter perdido a tua conferência, mas pensei que podias dar-me umas explicações particulares. Tenho aqui uma rapariga que levou um tiro na cabeça. Orifício de entrada por cima da orelha esquerda. Não te teria telefonado se não precisasse de uma segunda opinião. E não consegui lembrar-me de ninguém mais competente do que tu para este género de coisa.
- Não estás a brincar? - perguntou Ellis.
- Deve andar pelos vinte e cinco anos, a rapariga.
- E como se apresenta o ferimento?
- Orifício de entrada, nenhum de saída.
- E ela está viva?
- Pulso fraco mas regular, respiração menos regular, tensão 100/70. Tem outra bala alojada no ombro e um ferimento de bala na anca. Destes dois problemas posso tratar eu sozinho.
- É bom sinal.
- Bom sinal?
- Quando uma pessoa tem uma bala alojada na cabeça e continua viva, a situação tem de ser considerada promissora.
- Podes ajudar-me?
- Tenho de confessar-te que passei a noite com uns amigos. Deitei-me à uma da manhã e muito provavelmente o meu nível de alcoolemia é considerável...
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- Serei eu a tomar as decisões e a operar. Mas preciso de alguém para me assistir e para me dizer se estou a cometer algum erro. E um professor Ellis, mesmo completamente bêbedo, está de certeza mais abalizado do que eu para avaliar os danos causados ao cérebro.
- Tudo bem. Vou para aí. Mas ficas a dever-me uma.
- Tens um táxi à tua espera à porta do hotel.
O professor Frank Ellis empurrou os óculos para a testa e coçou a nuca. Olhou para o monitor que lhe mostrava todos os cantos e recantos do cérebro de Lisbeth Salander. Ellis tinha 53 anos, cabelos muito pretos - com uma ou outra branca aqui e além - e um resquício de barba escura que o fazia parecer uma personagem secundária de ER. Via-se, pelo físico, que passava várias horas por semana no ginásio.
Frank Ellis gostava da Suécia. Chegara no final da década de setenta como jovem investigador no âmbito de um programa de intercâmbio, e ficara dois anos. Posteriormente, voltara várias vezes até lhe terem oferecido um lugar de professor no Instituto Karolinska. Nessa altura, já o seu nome era respeitado no mundo inteiro.
Anders Jonasson conhecia Frank Ellis havia 14 anos. Tinham-se encontrado pela primeira vez aquando de um seminário, em Estocolmo, e descoberto uma paixão comum pela pesca com mosca. Anders convidara-o para uma pescaria na Noruega. Tinham mantido o contacto ao longo dos anos, e tinha havido outras pescarias. Nunca, no entanto, tinham trabalhado juntos.
- O cérebro é um mistério - disse o professor Ellis. - Há vinte anos que o investigo. Mais, até.
- Eu sei. Desculpa ter-te acordado, mas...
- Deixa. - Frank Ellis agitou uma mão, a desdramatizar a questão. - Vai custar-te uma garrafa de Cragganmore da próxima vez que formos pescar.
- De acordo. Não levas caro.
- O teu caso recorda-me um outro que tive aqui há anos, quando trabalhava em Boston... descrevi-o no New EnglandJournal of Medicine. Era uma rapariga da mesma idade que a tua paciente. Ia a
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caminho da universidade quando alguém lhe acertou um tiro de besta. O dardo entrou por cima do sobrolho esquerdo, atravessou toda a cabeça e foi sair a meio da nuca.
- E ela sobreviveu? - perguntou Jonasson, espantado.
- Ficámos todos de boca aberta quando chegou às Urgências. Cortámos a ponta do virote... acho que é assim que chamam às flechas disparadas com as bestas... e enfiámos-lhe a cabeça no scanner. Atravessava-lhe o cérebro de um lado ao outro. A lógica e o bom senso exigiriam que estivesse morta, ou pelo menos em coma, dada a extensão do traumatismo.
- E como é que estava?
- Manteve-se sempre consciente. Mas não só. Estava cheia de medo, claro, mas perfeitamente lúcida. O único problema era que tinha um dardo a atravessar-lhe o cérebro.
- E tu, que fizeste?
- Bem, peguei numa pinça, extraí o dardo e apliquei um penso.
Mais coisa menos coisa.
- E ela sobreviveu?
- Mantivemo-la em observação durante bastante tempo antes de lhe dar alta, mas, para ser franco, podíamos tê-la mandado para casa logo no dia em que chegou. Nunca tive uma paciente tão cheia de saúde. - Anders Jonasson perguntou a si mesmo se o professor Ellis estaria a brincar. - Por outro lado - continuou Ellis -, tive um paciente de quarenta e dois anos, em Estocolmo, há meia dúzia de anos, que tinha batido com a cabeça no peitoril da janela e feito um golpe-zinho de nada. Começou a sentir náuseas e levaram-no de ambulância para as Urgências. Estava inconsciente quando deu entrada. Apresentava um pequeno inchaço e uma hemorragia mínima. Mas nunca recuperou os sentidos e morreu ao cabo de nove horas de cuidados intensivos. Ainda hoje não sei por que morreu. No relatório da autópsia escrevemos "hemorragia cerebral em consequência de acidente", mas nenhum de nós estava satisfeito com a explicação. A hemorragia era extremamente pequena e situada de tal modo que não deveria ter prejudicado fosse o que fosse. E no entanto o fígado, os rins, o coração e os pulmões deixaram de funcionar, uns atrás dos outros.
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Quanto mais envelheço, mais me convenço de que isto é como uma lotaria. Pelo meu lado, acredito que nunca saberemos exactamente como funciona o cérebro. O que é que tencionas fazer?
Bateu com a ponta da esferográfica no monitor do TAC.
- Estava à espera de que fosses tu a dizer-me.
- Diz-me primeiro como é que vês a situação.
- Bom, em primeiro lugar, parece tratar-se de uma bala de pequeno calibre. Entrou pela têmpora e penetrou cerca de quatro centímetros no cérebro. Está encostada ao ventrículo lateral e há uma hemorragia.
- Medidas a tomar?
- Para usar a mesma linguagem que tu, pegar numa pinça e tirar a bala pelo mesmo sítio por onde entrou.
- Excelente proposta. Mas aconselho-te a usar a pinça mais fina que tiverem.
- Vai ser assim tão simples?
- Num caso destes, que mais se pode fazer? Podemos deixar a bala onde está, e a rapariga viverá provavelmente até aos cem anos, mas é uma lotaria. Pode tornar-se epiléptica, ter dores de cabeça terríveis e mais um sem-fim de chatices. E não vamos querer abrir-lhe a cabeça para a operar daqui a um ano, quando a ferida propriamente dita estiver cicatrizada. A bala está um pouco afastada das veias principais. O meu conselho é que a retires, mas...
- Mas o quê?
- Não é a bala que me preocupa mais. É o que os traumatismos cerebrais têm de fascinante: se a paciente sobreviveu à entrada da bala, é sinal de que sobreviverá também à saída. O problema situa-se mais aqui. - Frank Ellis pousou um dedo no monitor. - Tens uma porção de lascas de osso à volta do orifício de entrada. Estou a ver pelo menos uma dúzia de fragmentos com alguns milímetros de comprimento. Vários estão alojados no tecido cerebral. Se não tiveres cuidado, são eles que a vão matar.
- Essa parte do cérebro está associada à fala e à aptidão para os números.
Ellis encolheu os ombros.
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- Conversa fiada. Não faço a mínima ideia de para que serve essa massa cinzenta. E tudo o que tu podes fazer é dar o teu melhor. Tu operas. Eu assisto. Arranja-me uma bata e diz-me onde é que posso lavar as mãos.
Mikael Blomkvist deu uma olhadela ao relógio e verificou que passava pouco das três da manhã. Tinham-no algemado. Fechou os olhos por um segundo. Estava exausto, mas a adrenalina dava-lhe forças. Olhou furiosamente para o subcomissário Thomas Paulsson, que lhe devolvia um olhar enfadado. Estavam sentados à volta de uma mesa de cozinha numa quinta de uma parvónia qualquer chamada Gosseberg, algures perto de Nossebro, um sítio de que, até doze horas antes, Mikael nunca ouvira sequer falar em toda a sua vida. A catástrofe acabava de ser confirmada.
- Imbecil - rosnou Mikael. -Escute...
- Imbecil! Eu disse-lhe, seu sacana de merda, que o tipo era um perigo de morte ambulante. Disse-lhe que tinha de lidar com ele como com uma granada sem cavilha. O estupor assassinou pelo menos três pessoas, tem a constituição de um carro de combate e mata com as próprias mãos. E você, seu cretino, manda dois policiazecos buscá-lo, como se fosse um vulgar bêbedo a causar distúrbios na festa da aldeia.
Voltou a fechar os olhos, perguntou a si mesmo que mais poderia acontecer-lhe naquela noite.
Tinha encontrado Lisbeth Salander pouco depois da meia-noite, gravemente ferida. Chamara a polícia e conseguira convencer os Serviços de Emergência Médica a enviar um helicóptero que a evacuasse para Sahlgrenska. Descrevera em pormenor os ferimentos e o buraco que a bala deixara no crânio de Lisbeth, e tivera a sorte de encontrar uma pessoa suficientemente inteligente para compreender que eram necessários cuidados médicos imediatos.
Mesmo assim, o helicóptero tardara meia hora a chegar. Mikael tirara um dos carros do celeiro, que também fazia de garagem, e ligara os faróis iluminando o terreno em frente da casa para indicar uma zona de aterragem.
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O piloto do héli e os dois socorristas tinham agido como profissionais experientes. Um dos socorristas ministrara os cuidados de emergência a Lisbeth Salander, enquanto o outro se ocupava de Karl Axel Bodin, de seu verdadeiro nome Zalachenko, pai de Lisbeth e o seu pior inimigo. Mikael encontrara-o, gravemente ferido, numa arrecadação de lenha pertencente àquela quinta isolada, com uma grave machadada no rosto e um ferimento na perna.
Enquanto esperava pelo helicóptero, fizera o que pudera por Lisbeth. Fora buscar um lençol lavado ao armário da roupa, rasgara-o em tiras e servira-se dele para improvisar uma ligadura. Verificara que o sangue coagulado vedara o orifício que a bala abrira no crânio de Lisbeth e ficara sem saber muito bem se devia ou não aplicar um penso. Acabara por limitar-se a atar uma tira de lençol à volta da cabeça, sem apertar, sobretudo para impedir que a ferida ficasse exposta a bactérias e à sujidade. Em contrapartida, estancara as hemorragias na anca e no ombro da maneira mais simples possível. Depois de encontrar, num armário, um grande rolo de fita adesiva prateada, servira-se dela para tapar as feridas. Limpara-lhe o rosto com uma toalha húmida, removendo o melhor que pudera a terra e a sujidade.
Não fora à arrecadação da lenha prestar quaisquer cuidados a Zalachenko. A verdade era, e no seu íntimo tivera de o admitir, que se estava perfeitamente nas tintas para o que pudesse acontecer àquele bandalho.
Enquanto esperava por socorro, aproveitara para ligar a Erika Berger a explicar-lhe a situação.
- Estás bem? - perguntara Erika.
- Menos mal. A Lisbeth é que está gravemente ferida.
- Pobre rapariga. Esta tarde li o relatório do Bjõrk para a Sapo. Como é que vais gerir toda esta história?
- Não tenho sequer forças para pensar nisso.
Enquanto falava com Erika, sentado no chão ao lado do banco da cozinha, mantinha um olho atento fixado em Lisbeth. Tinha-lhe tirado as botas e as calças para poder estancar o ferimento na anca e, nesse instante, a sua mão encontrara a peça de roupa que deixara cair, e sentira um objecto duro num dos bolsos. Um Palm Tungsten T3.
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De cenho franzido, contemplara pensativamente o pequeno computador. Ao ouvir os rotores do helicóptero, enfiara-o no bolso interior do casaco. Em seguida, e enquanto ainda estava sozinho, revistara todos os bolsos de Lisbeth. Encontrara um porta-chaves com as chaves do apartamento em Mosebacke e um passaporte em nome de Irene Nesser. Sem hesitar, guardara-os na bolsa exterior da pasta do computador.
O primeiro carro-patrulha, com os agentes Fredrik Torstensson e Gunnar Andersson, da polícia de Trollháttan, chegara minutos depois de o helicóptero da Emergência Médica ter aterrado. Acompanhava-os o subcomissário Thomas Paulsson, que assumira de imediato o comando das operações. Mikael adiantara-se e começara a explicar o que se tinha passado. O subcomissário dera-lhe a impressão de ser um subalterno obtuso e cheio de auto-estima. Com a chegada de Paulsson, as coisas tinham começado imediatamente a dar
para o torto.
Manifestamente, Paulsson não compreendia nada do que Mikael explicava. Parecia curiosamente baralhado e o único dado que captara fora que a rapariga gravemente ferida estendida no chão junto ao banco da cozinha era Lisbeth Salander, suspeita de três homicídios, procurada pela polícia e que a sua captura era importante. Perguntara três vezes ao socorrista se a rapariga estava em condições de ser imediatamente detida, até que o homem, de cabeça perdida, se levantara e lhe gritara que ficasse calado e não se intrometesse.
Em seguida, Paulsson virara a sua atenção para Alexander Zala-chenko, que continuava na arrecadação da lenha, e Mikael ouvira-o anunciar pela rádio que, de acordo com os indícios encontrados no local, Lisbeth Salander tentara fazer uma quarta vítima.
Neste ponto, Mikael irritara-se com o subcomissário, que manifestamente não ouvira uma palavra do que ele tentara dizer e, subindo o tom de voz, aconselhara Paulsson a ligar sem mais demoras para o inspector Jan Bublanski, em Estocolmo. Tirara o telemóvel do bolso e oferecera-se para fazer ele próprio a ligação. Paulsson não se mostrara interessado.
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E fora então que Mikael cometera dois erros.
Declarara resolutamente que o verdadeiro autor dos três homicídios era um homem chamado Ronald Niedermann, parecido com um robô antitanque, que sofria de analgesia congénita e se encontrava, de momento, amarrado e atado a um poste na berma da estrada de Nossebro. Indicara o local exacto e recomendara a Paulsson que mobilizasse um batalhão de infantaria, com armamento pesado, antes de ir buscá-lo. Paulsson perguntara como fora Niedermann parar àquela sarjeta e Mikael reconhecera, de coração nas mãos, que fora ele que o ameaçara com uma arma e o deixara naquela situação.
- Ameaça com uma arma - frisara o subcomissário Paulsson.
Naquele momento, Mikael devia ter compreendido que Paulsson era um cretino. Devia ter pegado no telemóvel e ligado ele próprio para Jan Bublanski para lhe pedir que interviesse e dissipasse o nevoeiro no meio do qual Paulsson parecia navegar. Em vez disso, cometera o segundo erro ao decidir entregar ao subcomissário a arma que tinha no bolso - o Colt 1911 Government que encontrara no apartamento de Lisbeth Salander em Estocolmo e de que se servira para dominar Ronald Niedermann.
Gesto infeliz, que levara Paulsson a detê-lo imediatamente por posse ilegal de arma. Em seguida, o subcomissário ordenara aos agentes Torstensson e Andersson que se dirigissem ao local indicado por Mikael, na estrada de Nossebro, para determinar se havia alguma verdade na história que aquele indivíduo contava a respeito de um homem amarrado ao poste de um sinal indicativo da passagem de alces. Se fosse o caso, os agentes deveriam algemar a pessoa em causa e levá-la para a quinta de Gosseberga.
Mikael protestara, explicando que Ronald Niedermann não era alguém que se pudesse prender com um par de algemas e sim um temível assassino. Paulsson preferira ignorar estes protestos, e a fadiga acabara por se impor. Mikael chamara-lhe sacana incompetente e gritara a Torstensson e a Andersson que tivessem o cuidado de não soltar Niedermann antes de chamarem reforços.
O resultado fora ver-se algemado e empurrado para o banco traseiro do carro do subcomissário, de onde assistira à partida de
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Torstensson e Andersson no carro-patrulha. A única luz no meio daquela escuridão total era o facto de Lisbeth ter sido levada pelo helicóptero que desaparecia por cima das árvores a caminho do hospital. Mikael sentiu-se totalmente impotente e à margem do fluxo de informações. Restava-lhe esperar que Lisbeth fosse entregue em mãos competentes.
O Dr. Anders Jonasson fez duas profundas incisões até ao osso do crânio, dobrou a pele à volta do orifício de entrada e prendeu-a com pinças. Uma enfermeira inseriu um aspirador para remover o sangue. Depois, veio a parte desagradável em que o Dr. Jonasson usava um berbequim para alargar o buraco no osso. A intervenção progrediu "• com uma lentidão exasperante.
Quando obteve um orifício suficientemente largo para aceder ao cérebro de Lisbeth Salander, introduziu nele, com infinitos cuidados, uma sonda, e afastou as extremidades da ferida uns quantos milímetros. Em seguida, usando uma sonda mais fina, localizou a bala. Graças ao raio-X, pôde ver que a bala rodara até se colocar num ângulo de 45 graus relativamente à trajectória de entrada. Utilizou a sonda para lhe tocar muito ao de leve e, depois de várias tentativas falhadas, conseguiu levantá-la o suficiente para a colocar na posição inicial.
Por fim, introduziu no orifício uma pinça muito fina e comprida, agarrou a base do projéctil e apertou com força. A bala saiu quase sem oferecer resistência. O Dr. Jonasson segurou-a por um instante em contraluz, verificou que parecia intacta e deixou-a cair numa bacia.
- Esponja - disse, e a ordem foi instantaneamente obedecida. Lançou um olhar ao electrocardiograma, que continuava a registar uma actividade cardíaca regular.
- Pinça.
Puxou para si uma potente lupa suspensa de um braço articulado e examinou a área de trabalho.
Durante os três quartos de hora seguintes, Anders Jonasson retirou nada menos do que 32 fragmentos de osso espalhados à volta do orifício de entrada. O mais pequeno era invisível a olho nu.
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Enquanto, louco de frustração, Mikael Blomkvist tentava tirar o telemóvel do bolso interior do casaco - tarefa que se revelou impossível com as mãos algemadas -, vários veículos chegaram a Gosseberga. Transportavam polícias e pessoal técnico que, depois de instruídos pelo subcomissário Paulsson, foram encarregados de recolher provas irrefutáveis na arrecadação de lenha e revistar minuciosamente a casa onde tinham sido apreendidas várias armas de fogo. Resignado, Mikael acompanhou as manobras do seu posto de observação no banco traseiro do carro.
Só ao cabo de uma hora, Paulsson pareceu aperceber-se de que os agentes Torstensson e Andersson não tinham ainda regressado da sua missão de ir buscar Ronald Niedermann. Subitamente preocupado, mandou levar Mikael Blomkvist para a cozinha, onde lhe pediu que descrevesse uma vez mais o caminho.
Mikael fechou os olhos.
Ainda estava na cozinha com Paulsson quando os reforços enviados para socorrer os dois agentes regressaram. Gunnar Andersson fora encontrado morto, com o pescoço partido. O colega, Fredrik Torstensson, estava ainda vivo, mas gravemente ferido. Ambos tinham sido encontrados na valeta da berma da estrada, junto a um sinal que alertava para a passagem de alces. As armas de serviço e o carro-patrulha tinham desaparecido.
Se, à partida, o subcomissário tivera de gerir uma situação relativamente clara, via-se agora a braços com o assassínio de um polícia e a fuga de um perigosíssimo homicida armado.
- Imbecil - repetiu Mikael Blomkvist.
- Insultar a polícia não serve de nada.
- Nisso estamos de acordo. Mas tenciono acusá-lo de falta de profissionalismo, e vou fazer sangue. Quando acabar consigo, todos os jornais do país vão apontá-lo como o polícia mais estúpido da Suécia.
A ameaça de ser atirado aos lobos nos media era, aparentemente, a única coisa capaz de impressionar Thomas Paulsson. Fez um ar preocupado.
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- O que é que propõe?
- Exijo que ligue para o inspector Jan Bublanski, em Estocolmo.
Imediatamente.
A inspectora Sonja Modig acordou sobressaltada quando o telemóvel, que deixara a carregar no outro lado do quarto, começou a tocar. Virou os olhos para o despertador, em cima da mesa-de-cabeceira, e verificou, exasperada, que pouco passava das quatro da manhã. Olhou para o marido, que ressonava tranquilamente. Nem um bombardeamento de artilharia o faria acordar. Levantou-se da cama, atravessou o quarto aos tropeções e premiu a tecla de atender.
O Jan Bublanski, pensou. Quem havia de ser.
- É o caos total para os lados de Trollhãtan - anunciou o chefe, sem mais preâmbulos. - O X2000 para Gotemburgo parte às cinco
e dez.
- Que aconteceu?
- O Blomkvist encontrou a Salander, o Niedermann e o Zalachenko. Está detido por insultos à autoridade, resistência à detenção e posse ilegal de arma. A Salander foi transportada para o Hospital Sahlgrenska com uma bala na cabeça. O Niedermann pôs-se a milhas depois de ter matado um polícia.
Sonja Modig pestanejou duas vezes e sentiu a fadiga pesar-lhe nas pálpebras. O que lhe apetecia acima de tudo era voltar para a cama e tirar um mês de férias.
- X2000, às cinco e dez. De acordo. O que é que tenho de fazer?
- Apanha um táxi para a estação. O Jerker Holmberg vai lá ter contigo. Vão os dois contactar um tal Thomas Paulsson, subcomissário em TroUháttan que, aparentemente, é o responsável pela baralhada desta noite e, segundo o Blomkvist, um merdas de todo o tamanho,
fim de citação.
- Falaste com o Blomkvist?
- Tudo indica que o puseram a ferros. Consegui convencer o Paulsson a deixar-me falar com ele. Vou a caminho de Kungsholmen para, a partir do centro de operações, tentar saber o que se passa. Mantemo-nos em contacto via telemóvel.
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Sonja Modig voltou a olhar para as horas. Em seguida chamou um táxi e foi meter-se debaixo do chuveiro durante um minuto. Lavou os dentes, passou um pente pelos cabelos, vestiu umas calças pretas, uma T-shirt também preta e um casaco cinzento. Guardou a arma de serviço na mala e pegou num casaco de três quartos de couro vermelho-escuro. Em seguida, sacudiu o marido e explicou-lhe onde ia e que ia ter de ser ele a tratar dos filhos, de manhã. Saiu para a rua no mesmo instante em que o táxi parava diante da porta.
Não precisou de procurar Jerker Holmberg. Calculou que o encontraria na carruagem-restaurante e não se enganou. Holmberg já lhe tinha comprado uma sanduíche e um café. Não disseram uma palavra durante cinco minutos, enquanto tomavam o pequeno-almoço. Finalmente, Holmberg afastou a chávena de café e quebrou o silêncio:
- Talvez devêssemos mudar de emprego.
Às quatro horas, o inspector Marcus Ackerman, da Brigada Criminal de Gotemburgo, chegou a Gosseberga e assumiu a chefia das operações, libertando Thomas Paulsson de um peso para o qual não estava realmente preparado. Uma das suas primeiras medidas foi desembaraçar Mikael Blomkvist das algemas e oferecer-lhe pãezinhos e café de uma garrafa-termo que levara consigo. Instalaram-se os dois na sala de estar, para uma conversa a sós.
- Falei com o Bublanski, em Estocolmo - disse Ackerman. - Conhecemo-nos há anos. Ambos lamentamos o comportamento do Paulsson.
- Conseguiu que um polícia fosse assassinado, esta noite. Ackerman inclinou a cabeça.
- Conhecia pessoalmente o agente Gunnar Andersson. Serviu em Gotemburgo antes de se mudar para TroUháttan. Era pai de uma menina de três anos.
- Sinto muito. Tentei avisá-los...
- Eu sei. Falou demasiado grosso para o gosto do Paulsson, e foi por isso que ele o mandou algemar. Foi você que apanhou o Wen-nerstrõm. O Bublanski disse-me que é um maldito jornalista bisbilhoteiro e um detective privado completamente maluco, mas que
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provavelmente sabe do que está a falar. É capaz de me fazer um resumo, o mais completo possível?
- Estamos a falar da solução dos homicídios dos meus amigos Dag Svensson e Mia Johansson, em Enskede, e também do homicídio de uma pessoa que não era minha amiga... o advogado Nils Bjurman, tutor de Lisbeth Salander. - Ackerman assentiu com a cabeça. - Como sabe, desde a Páscoa que a Polícia procura Lisbeth Salander, suspeita de triplo homicídio. Antes de mais, é preciso que meta na cabeça que Lisbeth Salander não é a culpada desses assassínios. Se algum papel tem nesta história, é o de vítima.
- Não trabalhei no caso Salander, mas depois de tudo o que os media escreveram, tenho alguma dificuldade em digerir que ela esteja completamente inocente.
- Mas está. Completamente inocente. O verdadeiro assassino é o Ronald Niedermann, o homem que esta noite matou o seu colega Gunnar Andersson. O Niedermann trabalha para um homem que diz chamar-se Karl Axel Bodin.
- O Bodin que está internado em Sahlgrenska, com um machado cravado na cabeça.
- Calculo que tenha sido a Lisbeth a pô-lo lá; mas de um ponto de vista estritamente técnico, já não tem o machado cravado na cabeça. O verdadeiro nome desse homem é Alexander Zalachenko. É pai da Lisbeth, e um ex-agente dos serviços secretos militares russos. Desertou nos anos setenta e depois trabalhou para a Sapo até à queda da União Soviética. Desde então, funciona como gangster em regime defreelance.
Ackerman olhou, pensativo, para o indivíduo sentado na mesa, à sua frente. Mikael Blomkvist estava encharcado em suor e parecia simultaneamente gelado e exausto. Até ao momento, argumentara de uma forma racional e coerente, mas o subcomissário Thomas Paulsson - em quem Ackerman não depositava muita confiança -avisara-o de que Blomkvist delirava a respeito de espiões russos e assassinos alemães, coisas que não faziam parte da experiência quotidiana da Polícia sueca. Blomkvist chegara, aparentemente, à parte
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do relato que Paulsson preferira rejeitar. Mas havia um polícia morto e outro gravemente ferido na berma da estrada de Nossebro, e Ackerman estava disposto a ouvir. Não conseguiu, apesar de tudo, impedir que uma nota de incredulidade se lhe insinuasse na voz.
- Okay. Um agente russo.
- Um ex-agente russo. Posso provar tudo o que estou a dizer.
- Continue.
- Nos anos setenta, Zalachenko estava no auge da sua carreira como espião. Abandonou o barco e a Sapo ofereceu-lhe asilo. Tanto quanto compreendi, não foi caso único na esteira do desmantelamento da União Soviética.
- Não, não deve ter sido.
- Não sei exactamente o que aconteceu aqui esta noite, mas tudo indica que a Lisbeth encontrou o pai, que não via desde os quinze anos. Um pai que maltratou a mãe dela a ponto de lhe causar a morte. Tentou matar também a filha, e foi ele que, por intermédio do Ronald Niedermann, esteve por detrás dos homicídios do Dag Svensson e da Mia Johansson. Além disso, foi o responsável pelo rapto de Miriam Wu, a amiga da Lisbeth... foi o famoso combate pelo título que o Paolo Roberto disputou em Nykvarn.
- Se a Lisbeth Salander cravou um machado na cabeça do pai, não se pode dizer que esteja completamente inocente.
- A Lisbeth Salander foi, por sua vez, atingida a tiro, três vezes. Julgo que vamos conseguir fazer valer um certo grau de legítima defesa. Pergunto a mim mesmo...
-Sim?
- A Lisbeth estava de tal modo coberta de terra e de lama que a cabeça dela era uma crosta de argila endurecida. Tinha as roupas cheias de areia. Dir-se-ia que tinha estado enterrada. E o Niedermann tem uma clara tendência para enterrar pessoas. A polícia de Sõdertãlje encontrou duas sepulturas junto ao armazém que pertence ao Moto-Clube de Svavelsjõ, perto de Nykvarn.
- Mais exactamente, três. Descobriram outra, ontem à tarde. Mas se a Lisbeth Salander foi atingida a tiro e enterrada, que raio andava ela a fazer com um machado na mão?
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- Como disse, não sei o que se passou, mas a Lisbeth é uma rapariga cheia de recursos. Tentei convencer o Paulsson a mandar vir uma equipa com cães...
- Vem a caminho.
- Óptimo.
- O Paulsson deu-lhe voz de prisão por ter insultado um agente
da polícia.
- Chamei-lhe imbecil, sacana de merda incompetente e cretino. Neste caso, nenhum destes epítetos constitui insulto.
- Mas também foi detido por posse ilegal de arma.
- Cometi o erro de tentar entregar-lhe uma arma. Quanto ao resto, não presto declarações antes de falar com o meu advogado.
- Tudo bem, deixemos isso, por agora. Temos assuntos mais sérios para debater. O que é que sabe a respeito desse Niedermann?
- É um assassino. Tem mais de dois metros de altura e a constituição de um tanque. Pergunte ao Paolo Roberto, que o enfrentou. Sofre de analgesia congénita, o que significa que é insensível à dor. É alemão, nascido em Hamburgo, e foi skinhead nos seus tempos de rapaz. É extremamente perigoso e anda à solta.
- Faz alguma ideia de onde poderá ter-se refugiado?
- Não. Só sei que o tinha amarrado como deve ser e que era só ir até lá e pegar nele, até que aquele cretino de Trollhàttan começou a dar ordens.
Pouco antes das cinco horas, Anders Jonasson descalçou as ensanguentadas luvas cirúrgicas e atirou-as para o caixote do lixo. Uma enfermeira aplicou compressas sobre a ferida da anca. A operação tinha durado três horas. O médico olhou para a cabeça rapada e já envolvida em ligaduras de Lisbeth Salander.
Sentiu-se invadir por uma súbita ternura, a mesma que tantas vezes sentia pelos pacientes que operava. Segundo os jornais, aquela rapariga era uma assassina psicopata, mas, aos olhos dele, parecia sobretudo um pardal ferido. Abanou a cabeça e olhou para Frank Ellis que o observava com uma expressão divertida.
- És um excelente cirurgião - disse Ellis.
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- Ofereço-te o pequeno-almoço?
- Têm panquecas com geleia na cafetaria?
- Bolos de mel. Em minha casa. Vou avisar a minha mulher e depois apanhamos um táxi. - Fez uma pausa e olhou para o relógio. - Pensando bem, acho que é melhor não lhe telefonar.
Annika Giannini, advogada, acordou em sobressalto. Virou a cabeça para a direita e olhou para o relógio digital: 5h58. A primeira reunião do dia estava marcada para as oito da manhã. Virou a cabeça para a esquerda e olhou para o marido, Enrico Giannini, que dormia como um bebé e que, na melhor das hipóteses, acordaria por volta das oito. Piscou resolutamente os olhos várias vezes, saiu da cama e foi ligar a máquina de café antes de ir meter-se debaixo do chuveiro. Demorou o seu tempo na casa de banho e depois vestiu umas calças pretas, uma camisola branca de gola alta e um casaco encarnado. Fez duas torradas, que guarneceu com doce de laranja, queijo e pedaços de maçã, e levou o pequeno-almoço para a sala de estar mesmo a tempo do noticiário das seis e meia na TV. Bebeu um golo de café e preparava-se para dar uma dentada na torrada quando ouviu a notícia.
Um polícia morto e outro gravemente ferido. Noite dramática durante a captura de Lisbeth Salander, suspeita de um triplo homicídio.
Ao princípio, teve dificuldade em perceber a história, e a sua primeira impressão foi de que Lisbeth Salander tinha matado um polícia. As informações eram esporádicas, mas acabou por compreender que o assassino fora um homem. Acabava de ser lançado um alerta geral respeitante a um indivíduo do sexo masculino, de cerca de 37 anos, cuja identidade não podia ainda ser confirmada. Ao que parecia, Lisbeth Salander fora internada, gravemente ferida, no Hospital Sahlgrenska, em Gotemburgo.
Annika mudou para outro canal, mas não ficou a saber mais. Pegou no telemóvel e ligou para o irmão, Mikael Blomkvist. Uma mensagem gravada informou-a de que o número marcado estava desligado. Sentiu uma pontada de medo. Mikael telefonara-lhe na véspera,
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à noite, a caminho de Gotemburgo. Ia procurar Lisbeth Salander. E um assassino chamado Ronald Niedermann.
Quando o dia nasceu, um polícia mais observador reparou nos rastos de sangue no terreno por detrás da arrecadação da lenha. Um cão da equipa cinotécnica seguiu a pista até uma cova aberta numa clareira situada a cerca de 400 metros a nordeste da quinta de Gosseberga.
Mikael acompanhou o inspector Ackerman. Examinaram atentamente o local. Não tiveram a menor dificuldade em descobrir uma enorme quantidade de sangue dentro da cova e à sua volta.
Encontraram também a cigarreira que, manifestamente, tinha sido usada como pá. Ackerman guardou-a num saco de provas e etiquetou o achado. Recolheu igualmente amostras de terra manchada de sangue. Um polícia fardado chamou-lhe a atenção para uma beata de Pall Mall sem filtro caída a poucos metros do buraco. Também a ponta de cigarro foi guardada num saco de plástico e etiquetada. Mikael lembrou-se de ter visto um maço de Pall Mall em cima da bancada da cozinha em casa de Zalachenko.
Ackerman olhou para o céu e viu-o coberto de grandes e pesadas nuvens. A tempestade que se abatera sobre Gotemburgo durante a noite ia passar a sul da região de Nossebro e a chuva não tardaria a cair. Voltou-se para um dos agentes e mandou-o procurar uma lona com que pudessem tapar a cova.
-Julgo que tem razão - disse por fim, dirigindo-se a Mikael. -Uma análise ao sangue vai provavelmente confirmar que Lisbeth Salander foi aqui enterrada, e aposto que vamos encontrar as impressões digitais dela na cigarreira. Atingiram-na a tiro, enterraram-na, mas, sabe Deus como, conseguiu sobreviver, sair do túmulo e...
- .. .e voltar à quinta, pegar num machado e dar com ele na cabeça do Zalachenko - concluiu Mikael. - Típico dela.
- Mas como é que se terá livrado do Niedermann?
Mikael encolheu os ombros. Nesse ponto, estava tão às escuras como Ackerman.
CAPITULO 2
SEXTA-FEIRA. 8 DE ABRIL
Sonja Modig E Jerker Holmberg chegaram à Estação Central de Gotemburgo pouco depois das oito. Bublanski tinha telefonado a alterar os planos: eles que esquecessem Gosseberga e apanhassem um táxi para Nya Ullevi, onde se situava a sede da Polícia Criminal de Vástra Gõtland. Esperaram quase uma hora antes do inspector Ackerman chegar de Gosseberga acompanhado por Mikael Blomkvist. Mikael cumprimentou Modig, que já conhecia, e apertou a mão a Jerker Holmberg. Pouco depois, um colega de Ackerman juntou-se ao grupo para fazer o ponto de situação sobre a perseguição a Ronald Niedermann. O relatório era breve.
- Dispomos de um grupo de investigação que funciona sob a direcção da Criminal distrital. Foi lançado um alerta a nível nacional, claro. Encontrámos o carro-patrulha em Alingsâs, às seis da manhã. De momento, a pista acaba aí. Suspeitamos de que já trocou de veículo, mas não temos registo de qualquer viatura roubada.
- Os media? - perguntou Modig, lançando um olhar de desculpa a Mikael.
- Trata-se do assassínio de um polícia, e a mobilização é total. Vai haver uma conferência de imprensa às dez.
- Alguém tem informações sobre o estado de Lisbeth Salander? - perguntou Mikael. Estranhamente, não se sentia minimamente interessado na perseguição a Ronald Niedermann.
- Foi operada durante a noite. Tiraram-lhe uma bala da cabeça. Ainda não acordou.
- Prognóstico?
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- Ao que parece, não saberemos nada até ela recuperar a consciência. Mas o médico que a operou diz que tem boas possibilidades de sobreviver sem sequelas desagradáveis.
- E o Zalachenko?
- Quem? - perguntou o colega de Ackerman, que ainda não estava ao corrente de todas as intrincadas ramificações da história.
- O Karl Axel Bodin.
- Ah, sim. Também foi operado esta noite. Sofreu uma machadada na cara e outra logo abaixo da rótula. Está muito maltratado, mas os ferimentos não lhe ameaçam a vida.
Mikael inclinou a cabeça.
- Está com um ar cansado - disse Sonja Modig.
- Bem pode dizê-lo. Vou começar o terceiro dia praticamente sem dormir.
- Adormeceu no carro, quando vínhamos de Gosseberga - disse Ackerman.
- Sente-se com forças para nos contar toda a história desde o princípio? - perguntou Holmberg. - Dir-se-ia que os detectives privados estão a dar três a zero à polícia.
Mikael tentou sorrir.
- Ora aí está uma coisa que gostaria de ouvir da boca do inspector Bublanski - disse.
Instalaram-se na cafetaria da sede da Polícia, para tomarem o pequeno-almoço. Mikael passou a meia hora seguinte a explicar, passo a passo, como reconstituíra a complicada história de Zalachenko. Quando terminou, os polícias guardaram um silêncio pensativo.
- Há algumas lacunas na sua história - acabou Holmberg por dizer.
- É muito possível - admitiu Mikael.
- Não explica como conseguiu o relatório secreto da Sapo sobre o Zalachenko.
Mikael inclinou a cabeça.
- Encontrei-o ontem, em casa da Lisbeth Salander, depois de ter descoberto onde ela se escondia. E ela tinha-o, sem dúvida, encontrado na casa de campo do Nils Bjurman.
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- Descobriu então o esconderijo da Salander - disse Sonja Modig. Mikael assentiu.
-E?
- Terão de descobri-lo pelos vossos próprios meios. A Lisbeth não se poupou a esforços para conseguir uma morada secreta, e não serei eu a revelá-la.
As expressões de Modig e Holmberg fecharam-se um pouco.
- Mikael... estamos a falar de uma investigação de homicídio - disse Modig.
- E vocês ainda não perceberam que a Lisbeth Salander está inocente e que a polícia invadiu a vida privada dela de uma maneira que ultrapassa a compreensão. Lésbicas satânicas? Onde é que foram buscar uma barbaridade dessas? Se ela tiver vontade de lhes dizer onde mora, estou certo de que o fará.
- Mas há outra coisa que tenho dificuldade em compreender -insistiu Holmberg. - Qual é o papel do Bjurman nesta história? Diz-nos que foi ele que esteve na origem de tudo ao contactar o Zalachenko e ao pedir-lhe que matasse a Salander... Mas porque faria uma coisa dessas?
Mikael hesitou longamente antes de responder.
- O Bjurman contratou o Zalachenko para se ver livre da Lisbeth Salander. O objectivo era que ele a levasse para o armazém em Nykvarn.
- Mas porque havia ele de querer desembaraçar-se dela?
- É complicado.
- Explique-nos.
- Havia um excelente motivo. O Bjurman tinha feito qualquer coisa de que a Lisbeth tinha conhecimento. O que fazia dela uma ameaça para o futuro e a prosperidade dele.
- O que foi que ele fez?
-Julgo que é preferível ser a própria Lisbeth a esclarecer esse ponto - disse Mikael, e enfrentou o olhar de Holmberg.
- Deixe-me adivinhar - disse Sonja Modig. - O Bjurman tinha agido mal com a sua protegida. - Mikael inclinou a cabeça. - Devo
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subentender que a expôs a alguma forma de violência sexual? - Mikael encolheu os ombros e não respondeu. - Está ao corrente da tatuagem no ventre do Bjurman?
- Tatuagem?
- Uma tatuagem feita por um amador e que cobre toda a barriga do Bjurman: sou um porco sádico, um pervertido e um violador. Temo-nos interrogado sobre o significado dessas palavras. - Subitamente, Mikael soltou uma gargalhada. - O que foi?
- Há muito que me perguntava o que teria feito a Lisbeth para se vingar. Mas como lhes disse, pela mesma razão de há pouco não quero discutir esse assunto convosco. Trata-se da vida privada dela. Foi a Lisbeth que foi vítima de um crime. Será ela a decidir se lhes conta ou não. Lamento.
Tinha quase o ar de estar a pedir desculpa.
- É seu dever denunciar qualquer violação - fez notar Modig.
- É verdade. Mas a violação em causa aconteceu há mais de dois anos e a Lisbeth ainda não disse nada à polícia. O que indica que não tem a intenção de o fazer. Não quer dizer que partilhe a posição dela nesta questão, mas não me cabe a mim decidir. Além disso...
-Sim?
- A Lisbeth não tem razões para confiar na polícia. Da última vez que tentou explicar que o Zalachenko era um filho da puta, enfiaram-na num hospital psiquiátrico.
Richard Ekstrõm, o responsável pelo inquérito preliminar, era um homem nervoso quando, naquela manhã de sexta-feira, pouco antes das nove, pediu ao inspector Jan Bublanski, encarregado de dirigir a investigação, que se sentasse do outro lado da secretária. Ajustou os óculos na cara e passou uma mão pela barba impecavelmente aparada. Sentia que a situação era caótica e ameaçadora. Durante um mês fora responsável pelo inquérito preliminar, o homem que perseguira Lisbeth Salander. E, durante todo aquele tempo, descrevera-a sempre como psicopata, doente mental e perigosa para a população. Permitira fugas de informação das quais poderia beneficiar num futuro processo. Tudo parecia correr pelo melhor.
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Para ele, não havia a mínima dúvida de que Lisbeth Salander era realmente culpada do triplo homicídio e que o processo terminaria com uma vitória fácil, uma pura representação de propaganda com ele no papel principal. E então, de repente, fora tudo por água abaixo e ele via-se com um assassino diferente nas mãos e um caos que parecia não ter fim. Raios partissem Lisbeth Salander!
- Que grande porra nos caiu em cima - disse. - O que é que descobriste esta manhã?
- Foi lançado um alerta geral em relação ao Ronald Niedermann, mas ninguém sabe dele. Por enquanto, só é procurado pelo homicídio do agente da polícia Gunnar Andersson, mas penso que deveríamos incluir também os três assassínios aqui em Estocolmo. Podes convocar uma conferência de imprensa?
Bublanski tinha avançado com a proposta de uma conferência de imprensa só para chatear Ekstrõm, que as detestava.
- Acho que, quanto a isso, vamos esperar um pouco - respondeu Ekstrõm, apressadamente.
Bublanski fez um esforço para não sorrir.
- A polícia de Gotemburgo é que tem a primeira palavra a dizer - acrescentou Ekstrõm, como que para esclarecer a situação.
- Pois sim, mas temos a Sonja Modig e o Jerker Holmberg em Gotemburgo, e eles começaram a colaborar...
- Antes de convocarmos a conferência de imprensa, vamos esperar até dispormos de mais dados - interrompeu-o Ekstrõm, num tom autoritário. - O que gostaria de saber é até que ponto estás verdadeiramente convencido de que é o Niedermann que está envolvido nos homicídios aqui em Estocolmo.
- Enquanto polícia, estou absolutamente convencido. Mas é verdade que não estamos muito bem em matéria de provas. Não temos testemunhas dos crimes nem provas periciais incontestáveis. O Mag-ge Lundin e o Sonny Nieminen, do Moto-Clube de Svavelsjõ, recusam pronunciar-se e afirmam nunca ter ouvido falar do Niedermann. Em contrapartida, podemos ter a certeza de que vai ser condenado pelo homicídio do Gunnar Andersson.
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- É isso. É a morte do polícia que nos interessa, neste momento. Mas diz-me... há alguma coisa, seja o que for, que indique que, apesar de tudo, a Salander esteve envolvida nos homicídios? Será possível que ela e o Niedermann tenham sido cúmplices?
- Duvido. E, por mim, abster-me-ia de divulgar semelhante teoria.
- Mas qual é então o papel dela em tudo isto?
- É uma história extremamente complicada. Como o Mikael Blomkvist disse desde o início, trata-se do tal tipo, o Zala... o Ale-xander Zalachenko.
Ao ouvir o nome de Mikael Blomkvist, o procurador Ekstrõm foi visivelmente percorrido por um arrepio.
- O Zala é um espião russo reformado, manifestamente desprovido de escrúpulos, que operou no tempo da Guerra Fria - continuou Bublanski. - Chegou à Suécia no início da década de setenta e é o pai da Lisbeth Salander. Tinha a protecção de um sector da Sapo, que o cobria quando ele infringia a lei. Foi um agente da Sapo que conseguiu que a Lisbeth Salander fosse internada numa clínica pedopsiquiátrica aos treze anos, quando ameaçou revelar a verdade sobre o
Zalachenko.
- Tens de admitir que tudo isso é um pouco difícil de engolir. Não podemos tornar pública uma história dessas. Se bem entendi, tudo o que diz respeito ao Zalachenko cai sob a alçada do segredo nacional.
- E no entanto, é verdade. Tenho documentos que o provam.
- Posso vê-los?
Bublanski empurrou para ele a pasta que continha o relatório da polícia datado de 1991. Ekstrõm olhou pensativamente para o carimbo que classificava o documento como secreto, e o número de arquivo que identificou de imediato como proveniente da Sapo. Folheou rapidamente as cerca de cem páginas e leu algumas ao acaso. Acabou por pousar o relatório.
- Temos de tentar serenar os ânimos, para que a situação não nos fuja das mãos. A Lisbeth Salander foi, na altura, mandada para um manicómio por ter tentado matar o pai... o tal Zalachenko. E, desta vez,
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espetou-lhe um machado na cabeça. É, no mínimo, tentativa de homicídio. E temos de incriminá-la por ter disparado contra o Mag-ge Lundin, em Stallarholmen.
- Incrimina quem quiseres, mas, no teu lugar, eu veria bem onde punha os pés.
- Se esta história, a implicar a Sapo, for divulgada, vai haver um escândalo dos diabos.
Bublanski encolheu os ombros. A sua função era solucionar crimes, não gerir escândalos.
- Esse sacana da Sapo, o Gunnar Bjõrck. O que é que sabemos a respeito do papel que desempenhou?
- É um dos actores principais. De momento, está de baixa por doença, em Smâdalarõ. Uma hérnia discal.
- Okay.., por enquanto, não dizemos nada sobre a Sapo. Trata-se apenas de um polícia morto, nada mais. O nosso trabalho não é armar confusão.
- Penso que vai ser difícil abafar a história.
- Porquê?
- Mandei o Curt Andersson buscar o Bjõrck para ser interrogado. - Bublanski olha para o relógio. - Calculo que esteja a fazê-lo neste preciso instante.
- O quê?
- Na realidade, tinha planeado ter eu próprio o prazer de ir a Smâdalarõ, mas este homicídio do polícia cortou-me as vasas.
- Não emiti qualquer autorização para deter o Bjõrck.
- Exacto. Mas não se trata de uma detenção. Mandei-o vir para o interrogar.
- Não estou a gostar nada disso.
Bublanski inclinou-se para a frente e adoptou um ar confidencial.
- Richard... encara os factos. A Lisbeth Salander foi vítima de uma série de abusos judiciais que começaram quando ela era criança. Não tenho intenção de permitir que isso continue. Podes optar por afastar-me da investigação, mas nesse caso ver-me-ei obrigado a redigir um memorando muito incisivo sobre o assunto.
Richard Ekstrõm pareceu ter engolido um sapo.
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Gunnar Bjorck, afastado por uma baixa médica das suas funções de chefe-adjunto da Brigada de Estrangeiros da Sapo, abriu a porta da sua casa de campo em Smâdalarb e viu-se perante um homem robusto, de cabelos loiros cortados à escovinha e blusão de couro negro.
- Procuro Gunnar Bjõrck.
- Sou eu.
O homem exibiu um cartão - Curt Andersson, da Polícia Criminal.
-Sim?
- Peço-lhe que me acompanhe a Kungsholmen, a fim de ajudar a polícia na investigação relativa a Lisbeth Salander.
- Hã... deve haver um engano.
- Não há nenhum engano.
- Não está a perceber. Eu também sou polícia. Talvez seja melhor falar com o seu chefe.
- É o meu chefe que quer falar consigo.
- Tenho de fazer um telefonema, e...
- Pode telefonar de Kungsholmen.
Subitamente, Gunnar Bjõrck sentiu-se desalentado. Sacana do Blomkvist. Puta da Salander.
- Está a deter-me? - perguntou.
- Por enquanto, não. Mas se fizer questão, acho que se pode arranjar.
- Não... não, vou consigo, claro. É evidente que estou pronto a
ajudar os meus colegas.
- Ainda bem - disse Curt Andersson entrando na casa. Não tirou os olhos de Gunnar Bjõrck quando ele foi buscar o casaco e desligar a máquina de café.
Às onze horas, Mikael Blomkvist lembrou-se de que o carro que alugara continuava estacionado atrás de um celeiro à entrada de Gosseberga, mas, no estado de esgotamento em que se encontrava, não se sentia com forças para ir buscá-lo, e ainda menos para conduzi-lo sem representar um perigo para o trânsito. Pediu conselho ao inspector
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Marcus Ackerman, que se ofereceu generosamente para mandar um técnico da polícia de Gotemburgo buscar a viatura.
- Considere-o uma compensação pela maneira como foi tratado esta noite.
Mikael assentiu com a cabeça e apanhou um táxi para o City Hotel, na Lorensbergsgatan, perto da Avenyn. Reservou um quarto individual - 800 coroas por uma noite - e subiu imediatamente. Despiu-se, sentou-se na cama, nu, tirou o Palm Tungsten T3 de Lisbeth Salander do bolso interior do casaco e sopesou-o na mão. Ainda estava espantado por o computador de bolso não ter sido confiscado quando o subcomissário Thomas Paulsson o revistara, mas Paulsson partira do princípio que a máquina era dele, e a verdade era que nunca chegara a ser formalmente incriminado e despojado dos seus bens. Reflectiu um pouco e acabou por guardar o Palm na bolsa exterior da pasta do portátil, onde tinha também o DVD de Lisbeth com a palavra Bjurman escrita a marcador de álcool e que Paulsson deixara igualmente passar. Tinha perfeita consciência de que, de um ponto de vista legal, o que estava a fazer era sonegar provas, mas eram objectos que Lisbeth não queria de certeza ver ir parar às mãos erradas.
Levantou a tampa do telemóvel, viu que estava quase sem bateria e pô-lo a carregar. Ligou à irmã.
- Olá, mana.
- O que é que tens a ver com o homicídio do polícia, esta noite? - perguntou ela, imediatamente.
Mikael fez um curto relato do que se tinha passado.
- Bom. A Lisbeth está, então, nos cuidados intensivos.
- Exacto. Vamos ter de esperar que acorde para saber a verdadeira gravidade dos ferimentos, mas, seja como for, vai precisar de um advogado.
- E achas que me vai querer a mim?
- O mais provável é não querer nenhum. Pedir ajuda, não é o estilo dela.
- Tudo indica que vai precisar de um advogado criminal. Deixa-me dar uma vista de olhos à documentação de que dispões.
- Fala com a Erika Berger e pede-lhe que te dê cópias.
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Terminada a conversa com a irmã, Mikael ligou a Erika. Não obtendo resposta do telemóvel, marcou o número da redacção da Mil-lennium. Foi Henry Cortez que atendeu.
- A Erika saiu - disse Henry.
Mikael resumiu a situação e pediu a Henry que transmitisse a informação a Erika.
- Okay. O que é que fazemos, Mikael?
- Hoje, nada. Preciso de dormir. Se não acontecer nenhum imprevisto, volto amanhã a Estocolmo. A Millennium dará a sua versão da história no próximo número, o que quer dizer quase daqui a um mês.
Desligou, meteu-se na cama e adormeceu em menos de trinta segundos.
Monica Spângberg, adjunta do director da Polícia Distrital, bateu com a esferográfica no copo de água mineral para pedir silêncio. Dez pessoas - três mulheres e sete homens - estavam sentadas à volta da mesa de reuniões do seu gabinete. O grupo era composto pelo chefe da Brigada Criminal e o respectivo adjunto, os três inspectores distritais, entre os quais Marcus Ackerman, e o responsável pela comunicação da polícia de Gotemburgo. As outras três eram a responsável pelo inquérito preliminar, Agneta Jervas, do Ministério Público, e os inspectores Sonja Modig e Jerker Holmberg, de Estocolmo. Estes dois últimos estavam ali para provar a boa vontade que os colegas da capital tinham em colaborar, e talvez também para mostrar como se devia conduzir uma investigação.
Spângberg, frequentemente a única mulher num meio masculino, tinha a fama de não perder tempo com formalidades e conversas de circunstância. Explicou que o chefe se tinha deslocado em serviço - para assistir a uma conferência da Europol, em Madrid -, que interrompera a viagem ao ser informado do assassínio de um polícia, mas que só chegaria nessa tarde. Logo a seguir, voltou-se para o chefe da Brigada Criminal, Arne Pehrzon, e pediu-lhe que resumisse a situação.
- Há pouco mais de dez horas que o nosso colega Gunnar Andersson foi assassinado na estrada de Nossebro. Sabemos o nome do
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assassino, Ronald Niedermann, mas não temos nenhuma fotografia do indivíduo.
- Em Estocolmo temos uma fotografia dele, mas de há vinte anos - interveio Jerker Holmberg. - Foi o Paolo Roberto que no-la forneceu, mas é praticamente inútil.
- Bom. O carro-patrulha que o assassino levou foi encontrado em Alingsâs, esta manhã. Estacionado numa rua lateral, a cerca de cento e cinquenta metros da estação. Não temos, até ao momento, qualquer participação de roubo de veículo na zona.
- O que é que está a ser feito?
- Verificamos os comboios que chegam a Estocolmo e a Malmõ. Lançámos um alerta a nível nacional e informámos as polícias da Noruega e da Dinamarca. Temos, neste momento, cerca de trinta pessoas a trabalhar directamente no caso, e todos os nossos agentes foram alertados.
- Alguma pista?
- Nada, por enquanto. Mas não deve ser muito difícil detectar alguém com um físico tão especial como o de Niedermann.
- Alguém sabe alguma coisa sobre o Fredrik Torstensson? - perguntou um dos inspectores.
- Continua internado em Sahlgrenska. Está muito maltratado, quase como se tivesse saído de um acidente de viação. Custa a crer que um ser humano consiga causar tais ferimentos só com as mãos. Além das fracturas e das costelas partidas, tem uma vértebra esmagada que pode vir a provocar-lhe uma paralisia parcial.
Todos os presentes meditaram na situação do colega durante alguns segundos até Spângberg retomar a palavra.
- O que foi que aconteceu realmente em Gosseberga? - perguntou.
- Em Gosseberga? Aconteceu o Thomas Paulsson.
Um gemido, em uníssono, ergueu-se de vários dos participantes na reunião.
- Porque é que ninguém o manda para a reforma? Esse tipo é um desastre com pernas.
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- Conheço muito bem o Paulsson - disse Monica Spângberg, num tom cortante. - Mas ninguém se queixou dele nos... digamos, nos últimos dois anos.
- O chefe da polícia local é um velho amigo do Paulsson e protege-o. A intenção é boa, claro, e não estou a querer criticá-lo com isto. Mas, esta noite, o Paulsson teve um comportamento tão bizarro que vários colegas falaram do assunto.
- O que foi que ele fez?
Marcus Ackerman lançou um olhar de esguelha a Sonja Modig e a Jerker Holmberg, aparentemente incomodado pela ideia de pôr a nu os podres do departamento diante dos colegas de Estocolmo.
- O mais estranho de tudo é o facto de ter destacado um agente da secção técnica para fazer o inventário da arrecadação de lenha onde o Zalachenko foi encontrado.
- Um inventário da arrecadação de lenha? - espantou-se Spângberg.
- Sim... bem... queria saber quantos toros havia exactamente. Para que o relatório fosse preciso. - Fez-se um silêncio revelador à volta da mesa antes de Ackerman prosseguir: - Esta manhã, ficámos a saber que o Paulsson funciona à base de pelo menos dois psicotrópicos: Xanor e Efexor. Na realidade, devia estar de baixa por doença, mas escondeu o seu estado aos colegas.
- Que estado? - perguntou Spângberg, secamente.
- Claro que não sei exactamente do que é que ele sofre... o sigilo profissional dos médicos, e tudo isso, sabe como é... mas os psicotró-picos que toma um é um ansiolítico muito forte, e o outro um excitante. Estava pura e simplesmente carregado, a noite passada.
- Meu Deus - disse Spângberg, acentuando bem as palavras. Parecia a tempestade que se abatera sobre Gotemburgo na noite anterior. - Quero o Paulsson aqui para uma conversa. Agora.
- Vai ser difícil. Foi-se abaixo, esta manhã, e foi hospitalizado com um esgotamento. O nosso azar foi ele estar de serviço.
- Uma pergunta - disse o chefe da Brigada Criminal. - Durante a noite, o Paulsson pediu a inculpação do Mikael Blomkvist?
- Deixou um relatório em que fala de insulto, resistência violenta à detenção e posse ilegal de arma.
- O Blomkvist admite alguma dessas coisas?
- Admite o insulto, mas afirma que agiu em legítima defesa. Segundo ele, a resistência consistiu numa tentativa verbal mais veemente de impedir que o Torstensson e o Andersson fossem buscar o Niedermann sozinhos, sem reforços.
- Testemunhas?
- Só os agentes Torstensson e Andersson. Deixem-me dizer que não acredito por um instante sequer na história da resistência violenta. É evidentemente uma forma de defesa contra eventuais futuras queixas da parte do Blomkvist.
- Mas o Blomkvist conseguiu dominar o Niedermann sozinho? - perguntou a procuradora Agneta Jervas.
- Ameaçando-o com uma arma.
- Portanto, tinha uma arma. O que significa que a acusação era fundada. Onde arranjou ele essa arma?
- Recusa pronunciar-se a esse respeito antes de falar com um advogado. Mas o Paulsson acusou o Blomkvist quando ele tentava entregar-lhe a arma.
- Posso fazer uma proposta informal? - disse Sonja, cautelosamente. - Voltaram-se todos para ela. - Contactei várias vezes com o Mikael Blomkvist no decurso da investigação e considero-o uma pessoa bastante sensata, apesar de ser jornalista. Suponho que é a senhora que vai decidir sobre este caso... - Estava a olhar para Agneta Jervas, que assentiu com a cabeça. - Nesse caso, a acusação de insultos e resistência é pura parvoíce, e calculo que vai arquivá-la automaticamente.
- É provável. Mas a posse ilegal de arma já é mais grave.
- Proponho que espere um pouco antes de disparar. O Mikael Blomkvist reconstituiu toda esta história sozinho e leva um enorme avanço sobre a polícia. Faríamos muito melhor mantendo uma boa relação com ele e cooperando, em vez de lhe darmos pretextos para crucificar a polícia inteira nos meios de comunicação.
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Calou-se. Passados alguns segundos, Marcus Ackerman pigarreou para limpar a garganta. Se Sonja Modig tinha coragem para falar, ele não ia ficar atrás.
- Estou de acordo. Também eu vejo o Blomkvist como uma pessoa sensata. Apresentei-lhe as nossas desculpas pelo modo como foi tratado ontem à noite. Parece disposto a deixar as coisas por aqui. Além disso, é de uma integridade absoluta. Descobriu o domicílio da Lisbeth Salander, mas recusa revelá-lo. Não tem medo de enfrentar uma luta aberta com a polícia... e encontra-se numa posição em que a voz dele pesará muito mais nos media do que qualquer denúncia feita pelo Paulsson.
- Mas recusa dar à polícia informações a respeito da Salander?
- Diz que tudo o que temos de fazer é perguntar-lhe a ela.
- De que tipo de arma estamos a falar? - quis saber Jervas.
- É um Colt 1911 Government. Número de série desconhecido. Mandei-o para o laboratório e ainda não sabemos se foi usado num contexto criminal na Suécia. Se for esse o caso, teremos de reconsiderar a questão.
Monica Spângberg ergueu a esferográfica.
- Agneta, cabe-te a ti decidir se queres ou não abrir um inquérito preliminar a respeito do Blomkvist. Sugiro que esperes até termos o relatório pericial. Continuemos. Esse tipo, o Zalachenko... vocês que vêm de Estocolmo, o que é que podem dizer-nos sobre ele?
- Acontece que, até ao meio-dia de ontem, nunca tínhamos ouvido falar do Zalachenko nem do Niedermann - respondeu Modig.
- Pensava que em Estocolmo andavam atrás de um bando de lésbicas satânicas - disse um dos inspectores de Gotemburgo. Houve alguns sorrisos à volta da mesa. Jerker Holmberg pôs-se a examinar as unhas. Sonja Modig que respondesse àquela.
- Aqui entre nós, devo dizer-lhes que também temos o nosso Thomas Paulsson, e essa história do bando de lésbicas satânicas é mais uma das que lhe devemos.
Modig e Holmberg passaram a meia hora seguinte a fazer um resumo da sua própria investigação.
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Quando terminaram, fez-se um longo silêncio.
- Se a informação sobre o Gunnar Bjõrck é correcta, é a Sapo que vai ficar com as orelhas a arder - disse finalmente o chefe-adjunto da Brigada Criminal.
Foram todos da mesma opinião. Agneta Jervas ergueu uma mão.
- Se bem entendi, as vossas suspeitas assentam em grande parte em suposições e presunções. Como procuradora, preocupa-me a falta de provas tangíveis.
- Temos consciência disso - respondeu Holmberg. -Julgamos saber por alto o que se passou, mas ainda há muitas interrogações a esclarecer.
- Ao que sei, são vocês que estão a tratar das escavações em Nykvarn, perto de Sõdertãlje - disse Spângberg. - Quantos homicídios há ao todo, neste caso?
Holmberg fechou os olhos, cansado.
- Começámos com três mortes em Estocolmo... os três assassínios pelos quais a Lisbeth Salander estava a ser procurada: do advogado Bjurman, do jornalista Dag Svensson e da criminologista Mia Johansson. No armazém de Nykvarn, até ao momento, encontrámos três sepulturas. Uma delas continha o corpo, cortado aos pedaços, de um bandidozeco de primeira apanha, que identificámos. Na segunda, encontrámos o corpo de uma mulher não identificada. E ainda não tivemos tempo de escavar completamente a terceira. Parece ser mais antiga. Além disso, o Mikael Blomkvist estabeleceu a ligação com o assassínio de uma prostituta em Sõdertãlje, há alguns meses.
- De modo que, com a morte do agente Gunnar Andersson, em Gosseberga, temos pelo menos oito homicídios... o número é de arrepiar. O tal Niedermann é suspeito da autoria de todos eles? Isso significaria que se trata de um louco furioso e de um assassino em série.
Sonja Modig e Jerker Holmberg trocaram um olhar. Chegara o momento de decidir até onde estavam dispostos a ir nas suas afirmações. Foi Modig quem acabou por tomar a palavra.
- Apesar de nos faltarem as tais provas tangíveis, o meu chefe, o inspector Jan Bublanski, e eu própria, estamos convencidos de que
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o Mikael Blomkvist tem razão quando afirma que os três homicídios de Estocolmo foram obra do Niedermann. O que significaria a inocência da Lisbeth Salander. No que respeita às sepulturas de Nykvarn, o Niedermann está ligado ao local pelo rapto da amiga da Salander, a Miriam Wu. Tudo indica que seria a quarta da lista e que tinha também uma cova à sua espera. Mas o armazém em questão é propriedade de um familiar do presidente do Moto-Clube de Svavelsjb, e enquanto não identificarmos os restos mortais, teremos de esperar para tirar conclusões.
- E esse bandidozeco que identificaram...
- Kenneth Gustafsson, quarenta e quatro anos, receptador conhecido e delinquente desde a adolescência. Assim de repente, diria que se tratou de um ajuste de contas interno. O Moto-Clube de Svavelsjõ está associado a diversas formas de criminalidade, incluindo a distribuição de anfetaminas. O local pode, pois, ser considerado um cemitério privado para aqueles que se atravessaram no caminho do MC de Svavelsjõ. Mas...
-Sim?
- A prostituta que foi assassinada em Sõdertálje... Irina Petrova,
vinte e dois anos. -E?
- A autópsia revelou que foi vítima de uma violência extrema. O mesmo tipo de ferimentos que se encontraria em alguém morto com um taco de baseball ou qualquer outra coisa do mesmo tipo. Os traumatismos eram difíceis de interpretar e o médico legista não conseguiu identificar o instrumento usado. O Mikael Blomkvist fez-nos notar que os ferimentos da Irina Petrova podiam perfeitamente ter sido causados por mãos humanas.
- O Niedermann?
- É uma suposição plausível. Continuam a faltar-nos provas.
- O que é que fazemos agora? - perguntou Spângberg.
- Tenho de falar com o Bublanski, mas a próxima etapa lógica seria interrogar o Zalachenko. Pelo nosso lado, estamos interessados no que tenha a dizer sobre os homicídios de Estocolmo, e, do vosso, o importante é apanhar o Niedermann.
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Um dos inspectores de Gotemburgo levantou o indicador.
- Uma pergunta... O que é que foi encontrado naquela quinta de Gosseberga?
- Muito pouca coisa. Quatro pistolas. Uma Sig Sauer, desmontada e em vias de ser limpa, em cima da mesa da cozinha. Uma Wanad P-83 polaca, caída no chão ao pé do banco. Um Colt 1911 Government. .. é a arma que o Blomkvist tentou entregar ao Paulsson. E, para terminar, uma Browning calibre vinte e dois, que parece um brinquedo ao lado das outras. Suspeitamos de que foi esta a arma usada contra a Lisbeth Salander, uma vez que continua viva com uma bala no cérebro.
- Mais alguma coisa?
- Confiscámos um saco que continha um pouco mais de duzentas mil coroas. Encontrava-se no quarto utilizado pelo Niedermann.
- Como sabem que era o quarto dele?
- Pelo tamanho das roupas penduradas no armário, XXL.
- Há qualquer coisa que ligue o Zalachenko a uma actividade criminosa? - perguntou Holmberg.
Ackerman abanou a cabeça.
- Tudo depende da maneira como interpretarmos as armas encontradas. Mas além das armas, e do facto de o Zalachenko dispor de um sistema de vigilância topo de gama, não encontrámos nada que distinga a quinta de Gosseberga de qualquer outra casa rural. Há muito poucos móveis.
Pouco antes do meio-dia, um polícia fardado bateu à porta e entregou um papel a Monica Spângberg, que ergueu um dedo, a pedir atenção.
- Acabamos de receber um apelo referente a um desaparecimento em Alingsâs. Uma assistente de odontologia de vinte e sete anos, Anita Kaspersson, saiu de casa às sete e meia. Deixou o filho no jardim de infância e devia ter chegado ao trabalho às oito. Não apareceu. Trabalha para um dentista cujo consultório fica a cerca de cento e cinquenta metros do lugar onde foi encontrado o carro-patrulha roubado.
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Ackerman e Sonja Modig consultaram os relógios ao mesmo tempo.
- Leva quatro horas de avanço. Que carro tem a Kaspersson?
- Um velho Renault azul-escuro. Tenho aqui o número da matrícula.
- Lance imediatamente um alerta sobre o veículo. A esta hora, pode encontrar-se em qualquer lugar entre Oslo, Malmõ e Estocolmo.
Minutos mais tarde, puseram fim à reunião. Ficou decidido que Sonja Modig e Marcus Ackerman iriam juntos interrogar Zalachenko.
Henry Cortez, de sobrolho franzido, viu Erika Berger sair do gabinete, dirigir-se à kitchenette, reaparecer segundos mais tarde com uma" caneca de café, voltar ao gabinete e fechar a porta.
Havia ali qualquer coisa que não batia certo, mas ele não conseguia pôr o dedo na ferida. A redacção da Millennium era um espaço pequeno, onde todos acabavam por tornar-se muito próximos. Havia quatro anos que trabalhava na revista em tempo parcial e passara por várias tempestades fenomenais, sobretudo o período em que Mikael Blomkvist cumprira três meses de prisão por difamação e a publicação estivera à beira da falência. Vivera também os assassínios de Dag Svensson, um colaborador da casa, e da sua companheira, Mia Johansson.
Durante todas essas crises, Erika Berger fora um pilar que nada parecia capaz de abalar. Não ficara admirado quando ela lhes telefonara logo de manhã para os pôr a trabalhar, a ele e a Lotta Karim. O caso Salander tinha implodido e Mikael Blomkvist estava envolvido no homicídio de um polícia em Gotemburgo. Até aí, tudo claro. Lotta assentara arraiais na sede da Polícia Criminal para tentar obter informações que fizessem sentido. Quanto a ele, passara a manhã ao telefone, a esforçar-se por reconstituir os acontecimentos da noite. Blomkvist não atendia o telemóvel, mas, graças a diversas fontes, Henry ficara com uma imagem bastante boa do que se tinha passado. Erika Berger, pelo contrário, estivera mentalmente ausente toda a manhã. Era muito raro ela fechar a porta do gabinete. Quase só
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acontecia quando tinha visitas ou quando precisava de concentrar-se em qualquer coisa. Naquela manhã, não houvera visitas, e Erika não estava a trabalhar. Henry batera-lhe à porta duas ou três vezes para lhe levar novidades e encontrara-a sentada no cadeirão em frente da janela, embrenhada nos seus pensamentos e a olhar com uma expressão alheada para o rio de gente que passava lá em baixo, na Gõtgatan.
Não, havia ali qualquer coisa que não batia certo.
A campainha da porta interrompeu-lhe as reflexões. Foi abrir e deu por si a olhar para Anníka Giannini. Henry já se cruzara várias vezes com a irmã de Mikael Blomkvist, mas não a conhecia muito bem.
- Bom dia, Annika - disse. - O Mikael não está.
- Eu sei. É com a Erika que venho falar.
Sentada no seu cadeirão em frente da janela, Erika limitou-se a erguer os olhos quando Henry entrou, mas endireitou-se rapidamente ao ver Annika. Henry fechou a porta, deixando-as a sós.
- Bom dia - disse Erika. - Hoje o Mikael não vem ao escritório. Annika sorriu, mas apercebeu-se imediatamente do desconforto
de Erika.
- Sim, eu sei. Vim por causa do relatório do Bjõrck à Sapo. O Mi-cke pediu-me para lhe dar uma vista de olhos, na ideia de eu poder eventualmente vir a representar a Salander.
Erika assentiu. Pôs-se de pé e foi buscar uma pasta que tinha em cima da secretária.
Annika pegou-lhe e quando se preparava para sair, hesitou. Então, mudou de ideias e sentou-se em frente de Erika.
- Bem, tirando isto, qual é o problema?
- Vou deixar de trabalhar na Millennium. Ainda não tive ocasião de o dizer ao Mikael. Anda de tal maneira embrenhado nesta história da Salander que não consegui arranjar um momento oportuno para falarmos, e não posso contar aos outros antes de lhe contar a ele. Estou mesmo chateada.
Annika Giannini mordeu o lábio.
- De modo que em vez de falares com ele, falaste comigo. O que é que vais fazer?
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- Vou ser a directora editorial do Svenska Morgon-Posten.
- Não o fazes por menos! Neste caso, as felicitações parecem mais apropriadas do que os choros e as lamentações.
- Mas não era assim que eu tinha imaginado a minha saída da Millennium. No meio de todo este turbilhão. Caiu-me do céu, e eu não fui capaz de dizer não. Quer dizer, é uma oportunidade que aparece uma vez na vida. Mas fizeram-me a oferta pouco antes de o Dag e a Mia terem sido assassinados, e a balbúrdia aqui tem sido tão grande que não disse nada. E agora não imaginas como me pesa a consciência.
- Estou a perceber. E estás com medo de dizer ao Micke.
- Não disse a ninguém. Estava a contar ir para o SMP só depois do Verão, o que me dava mais do que tempo para o anunciar. Mas agora eles querem que comece o mais cedo possível. - Calou-se e olhou para Annika, à beira das lágrimas.--Mais precisamente, significa que esta é a minha última semana na Millennium. Para a próxima estou fora, e depois... preciso de uma semana de férias para recarregar baterias. Mas começo no SMP a 1 de Maio.
- E que aconteceria se fosses atropelada por um carro? Em menos de um minuto, a Millennium ficava sem directora editorial.
Erika ergueu os olhos.
- Mas não fui atropelada por um carro. Escondi deliberadamente a verdade durante semanas.
- Compreendo que se trata de uma situação difícil, mas estou certa de que o Micke e o Christer e os outros saberão enfrentá-la. Dito isto, acho que devias anunciá-lo imediatamente.
- Pois, mas o estafermo do teu irmão está em Gotemburgo. A dormir, e nem sequer atende o telefone.
- Eu sei. Poucas pessoas são tão dotadas como o Mikael para não atender o telefone. Mas isto não é um assunto que diga respeito apenas a ti e ao Micke. Eu sei que trabalham juntos há mais de vinte anos, e que dormem um com o outro, e tudo isso, mas tens de pensar no Christer e nos outros da redacção.
- Mas o Mikael vai...
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- O Mikael vai-se passar, claro. Mas se ele não é capaz de aceitar que tu, ao fim de vinte anos, queiras pegar nas rédeas da tua vida, então é porque não vale todo o tempo que lhe dedicaste.
Erika suspirou.
- Vamos, coragem. Pede ao Christer e aos outros para chegarem aqui. Agora.
Christer Malm ficou abalado segundos depois de Erika ter juntado todos os colaboradores na pequena sala de reuniões da Millennium. Tinham sido chamados uns a seguir aos outros no preciso instante em que ele se preparava para sair mais cedo, por ser sexta-feira. Trocou olhares com Henry Cortez e Lotta Karim, que estavam tão surpreendidos como ele. A assistente editorial, Malin Eriksson, também não compreendia muito bem o que se passava, tal como a jornalista Monika Nilsson e o responsável pela publicidade, Sonny Magnusson. O único que faltava no quadro era Mikael Blomkvist, ausente em Gotemburgo.
Meu Deus, o Mikael não sabe de nada, pensou Christer. Como irá ele reagir? Apercebeu-se então de que Erika parara de falar e de que se fizera um pesado silêncio. Pôs-se de pé, abraçou Erika, beijou-a na face e exclamou:
- Parabéns, Ricky! Directora editorial do SMP. Nada mal como promoção, depois do nosso barquinho.
Henry Cortez como que despertou e iniciou uma ovação espontânea. Erika ergueu as duas mãos.
- Parem - pediu. - Não mereço aplausos. - Fez uma pausa e observou os colaboradores da pequena redacção. - Ouçam... estou muito triste com o rumo que os acontecimentos tomaram. Tinha a intenção de lhes dizer há várias semanas, mas esta catástrofe dos assassínios sobrepôs-se a tudo. O Mikael e a Malin estavam a trabalhar como doidos e a ocasião pura e simplesmente nunca surgiu. Por isso teve de ser assim.
Malin Eriksson compreendeu com uma terrível lucidez a que ponto a redacção estava desfalcada de efectivos e a que ponto a saída de Erika ia deixar um vazio. Acontecesse o que acontecesse e por
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muito grande que fosse o caos à sua volta, Erika sempre fora o pilar em que ela, Malin, podia apoiar-se, inabalável no meio da tempestade. E sim... não a espantava que o prestigiado matutino a tivesse recrutado. Mas como iam eles safar-se agora? Erika sempre fora a figura-chave na Millennium.
- Há algumas pequenas coisas que temos de esclarecer. Compreendo perfeitamente que a minha saída possa criar um clima de instabilidade na redacção. Não era essa a minha intenção, mas as coisas são assim mesmo. Em primeiro lugar: não vou abandonar totalmente a Millennium. Continuo a ser sócia e participarei nas reuniões do CA. Em contrapartida, não terei, como é natural, qualquer influência na parte editorial... seria uma fonte de conflitos de interesse. - Christer Malm assentiu pensativamente com a cabeça. - Em segundo lugar: formalmente, cesso as minhas funções a 30 de Abril. Mas, na realidade, hoje é o meu último dia de trabalho. Vou para fora na semana que vem, como já sabiam, estava decidido há muito tempo. E não vou voltar ao comando só para assegurar alguns dias de transição. - Calou-se por um instante. - O próximo número está pronto. O que falta resolver são pormenores. Será o meu último número. Depois, será preciso que outra pessoa tome as rédeas. Vou limpar a minha secretária esta noite. - O silêncio era denso. - O melhor seria o conselho de administração decidir contratar um director editorial. Mas é uma coisa que tem de ser discutida também convosco, na redacção.
- O Mikael - disse Christer.
- Não. Nunca o Mikael. Ele é indiscutivelmente o pior director editorial que poderiam escolher. É perfeito como editor responsável pela publicação e é genial para rever e corrigir os textos que temos de publicar. Mas também se retrai. O director editorial tem de ser alguém que aposte na ofensiva. Além disso, o Mikael tem tendência para se embrenhar nas suas próprias histórias e para se ausentar por vezes semanas seguidas. É perfeito para períodos de fecho, mas uma nulidade total no que respeita ao trabalho rotineiro. Todos vocês o sabem.
Christer baixou a cabeça.
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- Se a Millennium funcionou bem, foi porque tu e o Mikael se completam.
- Mas não só. Lembrem-se de quando o Mikael passou quase um ano a hibernar em Hedestad. A Millennium funcionou sem ele, tal como agora vai ter de funcionar sem mim.
- Okay. Qual é o teu plano?
- Por mim, escolhia-te como director editorial, Christer...
- Nunca na vida! - Christer ergueu as duas mãos.
- .. .mas como já sabia que ias recusar, tenho outra solução. Malin. A partir de hoje, és a directora editorial interina.
- Eu?! - exclamou Malin.
- Sim, tu. Fizeste um excelente trabalho como assistente editorial. -Mas...
- Experimenta. Como disse, vou limpar a minha secretária esta noite. Podes mudar-te na segunda-feira de manhã. O número de Maio está quase pronto... é menos uma preocupação. Em Junho, fazemos um número duplo e depois vamos um mês de férias. Se a coisa não resultar, será preciso arranjar outra pessoa em Agosto. Tu, Hen-ry, passas a tempo inteiro e substituis a Malin como assistente de redacção. Vão ter de contratar mais uma pessoa. Mas serão vocês e o CA a escolher. - Fez nova pausa e olhou pensativamente para o grupo. - Mais uma coisa. Vou trabalhar para outra publicação. O SMP e a Millennium não são exactamente concorrentes, mas isso não significa que quero saber mais do que já sei sobre o conteúdo do próximo número. A partir de agora, falam com a Malin.
- O que é que fazemos no caso Salander? - perguntou Henry.
- Verás isso com o Mikael. Tenho informações sobre a Salander, mas considero-as confidenciais. Não serão transmitidas ao SMP. -Erika sentiu repentinamente um enorme alívio. - Muito bem, é tudo - disse, pondo fim à reunião. Levantou-se e foi para o seu gabinete sem mais comentários.
A redacção da Millennium ficou como que aturdida. Uma hora mais tarde, Malin foi bater à porta de Erika.
- Cucu.
- Sim?
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- O pessoal tem uma coisa para te dizer.
- O que é?
- Tens de vir até à kitchenette.
Erika pôs-se de pé e acompanhou-a. O café estava servido, com um grande bolo em cima da mesa.
- Pensei que ainda íamos ter de esperar mais algum tempo pela verdadeira festa de despedida - disse Christer. - Para já, ficamos com o bolo e o café.
Erika Berger sorriu pela primeira vez naquele dia.
CAPÍTULO 3
SEXTA-FEIRA, 8 DE ABRIL - SÁBADO, 9 DE ABRIL
Havia Já OITO HORAS que Alexander Zalachenko estava acordado quando Sonja Modig e Marcus Ackerman apareceram, por volta das sete da tarde. Fora submetido a uma operação relativamente complexa, que implicara o ajustamento do osso malar e a sua fixação com um parafuso de titânio. Tinha a cabeça de tal modo envolida em ligaduras que só o olho esquerdo era visível. Um médico explicara-lhe que a machadada partira o malar e danificara o frontal, fendera uma grande parte do lado direito da cara e deslocara a órbita. Os ferimentos eram muito dolorosos. Zalachenko encontrava-se sob o efeito de fortes analgésicos, mas estava, apesar disso, perfeitamente coerente e capaz de falar. A polícia não poderia, em todo o caso, fatigá-lo.
- Boa noite, Herr Zalachenko - cumprimentou Modig, apresentando-se a si e ao seu colega Ackerman.
- Chamo-me Karl Axel Bodin - disse Zalachenko penosamente por entre os dentes cerrados. A voz era muito calma.
- Sei muito bem quem é. Li o seu processo na Sapo.
O que não era exactamente verdade, uma vez que a Sapo não entregara um único papel sobre Zalachenko.
- Isso foi há muito tempo. Hoje, sou Karl Axel Bodin.
- Como se sente? - perguntou Modig. - Em condições de manter uma conversa?
- Quero apresentar queixa contra a minha filha. Tentou matar-me. -Já sabemos - interveio Ackerman. - O facto será objecto de
um inquérito, a devido tempo. Neste momento, temos assuntos mais urgentes a tratar.
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- O que é que pode ser mais urgente do que uma tentativa de assassínio?
- Gostaríamos de interrogá-lo a respeito de três homicídios em Estocolmo, pelo menos três outros em Nykvarn, e um rapto.
- Não sei nada disso. Quem foi assassinado?
- Herr Bodin, temos boas razões para suspeitar de que um seu associado, Ronald Niedermann, de trinta e sete anos, foi o responsável por esses crimes - disse Ackerman. - Além disso, a noite passada, o Niedermann matou um polícia de Trollháttan.
Sonja Modig ficou um pouco surpreendida por Ackerman ter cedido à vontade de Zalachenko e estar a tratá-lo por Bodin. Zalachenko voltou um pouco a cabeça, para ver Ackerman. Quando falou, foi num tom menos seco.
- Lamento muito... Não sei nada do que faz o Niedermann. Pelo meu lado, não matei nenhum polícia. Em contrapartida, tentaram matar-me a mim.
- O Ronald Niedermann está a ser procurado pela polícia. Faz alguma ideia de onde possa ter-se escondido?
- Ignoro em que círculos se move. Tenho... - Zalachenko hesitou uns segundos. Adoptou um tom confidencial: - Tenho de admitir... aqui entre nós... que, por vezes, o Niedermann me preocupou.
Ackerman inclinou-se um pouco para ele.
- Porquê?
- Descobri que podia ser muito violento. Sim, tenho medo dele.
- Está a dizer que se sentia ameaçado por ele?
- Exactamente. Sou um velho, não posso defender-me.
- Importa-se de nos explicar a sua relação com o Niedermann?
- Estou semi-inválido - disse Zalachenko, apontando para o pé. - É a segunda vez que a minha filha tenta matar-me. Contratei o Niedermann para me ajudar, há já muitos anos. Pensava que ele poderia proteger-me... mas, na realidade, apropriou-se da minha vida. Faz o que quer, eu não tenho voz activa.
- E em que é que ele o ajuda? - interrompeu Modig. - A fazer aquilo que não consegue fazer sozinho?
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Zalachenko olhou durante muito tempo para ela com o seu único olho visível.
-Julgo saber que a sua filha atirou uma bomba incendiária para dentro do seu carro, há mais de dez anos - continuou Modig. - Poderia explicar-me o que a levou a cometer um tal acto?
- Devia fazer essa pergunta à minha filha. É uma doente mental. A voz estava novamente cheia de hostilidade.
- Está a dizer que não vê qualquer razão para a Lisbeth Salander o ter atacado em 1991?
- A minha filha é uma doente mental.
Sonja Modig inclinou a cabeça. Reparara que Zalachenko respondia de uma forma muito mais agressiva e negativa quando era ela a questioná-lo. Percebeu que também Ackerman o tinha notado. Okay, o polícia bom e o polícia mau. Falou num tom um pouco mais duro.
- Não acha que o gesto da Lisbeth pode ter tido alguma relação com o facto de o senhor maltratar a mãe dela a ponto de causar-lhe lesões cerebrais irreversíveis?
Zalachenko olhou calmamente para ela.
- Parvoíces, tudo isso. A mãe dela era uma puta. Provavelmente era um dos clientes que lhe batia. Eu fui apenas mais um. Sonja Modig arqueou as sobrancelhas.
- Está então completamente inocente?
- Naturalmente.
- Zalachenko... vejamos se compreendi bem. Nega, portanto, ter maltratado a sua companheira na época, Agneta Sofia Salander, mãe de Lisbeth Salander, apesar de o facto ter sido objecto de um longo relatório redigido pelo seu mentor na Sapo, Gunnar Bjõrck.
- Nunca fui condenado pelo que quer que fosse. Nem sequer fui interrogado. Não sou responsável pelos delírios de um totó da polícia secreta. Se tivesse sido suspeito de alguma coisa, teria pelo menos tido direito a um interrogatório. - Sonja Modig ficou como que aturdida. Zalachenko tinha o ar de estar a sorrir por baixo das ligaduras. - Gostaria, repito, de apresentar queixa contra a minha filha, que tentou matar-me.
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Modig suspirou.
- Começo a compreender porque é que a Lisbeth Salander sentiu necessidade de lhe dar com um machado na cabeça.
Ackerman tossicou.
- Desculpe, Herr Bodin... Poderíamos talvez voltar ao que sabe das actividades de Ronald Niedermann.
Sonja Modig ligou para o inspector Jan Bublanski do corredor do hospital, em frente da porta do quarto de Zalachenko.
- Nada - disse.
- Nada? - repetiu Bublanski.
- Apresentou queixa contra a Lisbeth Salander por ofensas corporais agravadas e tentativa de homicídio. Afirma não ter nada que ver com os homicídios de Estocolmo.
- E como explica o tipo que a Lisbeth Salander tenha sido enterrada nos terrenos da casa dele em Gosseberga?
- Diz que estava constipado e dormiu quase todo o dia. Se alguém disparou contra a Salander em Gosseberga, deve ter sido o Ronald Niedermann.
- Okay. O que é que temos?
- A Salander foi atingida por uma Browning ponto vinte e dois. É só por isso que está viva. Encontrámos a arma. O Zalachenko admite que lhe pertence.
- Ah. O que quer dizer que sabia que íamos encontrar as impressões digitais dele.
- Exacto. Mas diz que da última vez que a viu, estava guardada
numa gaveta da secretária.
- Portanto, o digno Ronald Niedermann deve ter pegado na arma enquanto o Zalachenko dormia e disparado contra a Salander. Podemos provar o contrário?
Modig reflectiu alguns segundos antes de responder.
- Ele está provavelmente a par da legislação sueca e dos métodos da polícia. Não admite nada que seja importante e tem o Niedermann como bode expiatório. Não sei muito bem o que podemos provar. Pedi ao Ackerman que mandasse as roupas dele para o laboratório
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para ver se descobrem vestígios de pólvora, mas o mais certo é ele alegar que tinha estado a praticar com aquela arma precisamente dois dias antes.
Lisbeth Salander sentiu um cheiro a amêndoas e a etanol. Como se tivesse álcool na boca. Tentou engolir, mas tinha a língua entorpecida e paralisada. Tentou abrir os olhos, sem o conseguir. Ouviu uma voz longínqua que parecia estar a falar com ela, mas era incapaz de perceber as palavras. De repente, a voz tornou-se clara e nítida.
- Acho que está a acordar.
Sentiu alguém tocar-lhe na testa e quis afastar aquela mão importuna. No mesmo instante, uma dor aguda trespassou-lhe o ombro esquerdo. Descontraiu-se.
- Ouve-me? Vai-te lixar.
- Consegue abrir os olhos?
Quem será este sacana que me está a chatear?
Por fim, abriu os olhos. Ao princípio, só viu uns estranhos pontos luminosos. Depois, desenhou-se uma silhueta no seu campo de visão. Tentou firmar o olhar, mas a silhueta teimava em fugir-lhe. Tinha a impressão de estar com uma ressaca monumental e a cama não parava de inclinar-se para trás.
- Grmlml - disse ela.
- Como?
- Acana.
- Sou eu. Consegue abrir outra vez os olhos?
Mostrou duas finas frestas. Viu um rosto desconhecido e memorizou todos os pormenores. Um homem loiro com olhos azuis intensos e uma cara angulosa e oblíqua a poucas dezenas de centímetros da dela.
- Olá. Chamo-me Anders Jonasson. Sou médico. Está num hospital. Está gravemente ferida e a despertar da anestesia após uma operação. Sabe como se chama?
- Pschalandr.
- Muito bem. Gostaria que me fizesse um favor. Conte até dez.
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- Um dois quatro... não... três quatro cinco seis... E então voltou a adormecer.
O Dr. Anders Jonasson ficara, no entanto, satisfeito com a reacção que obtivera. A paciente dissera o nome e começara a contar. O que indicava que o intelecto estava mais ou menos intacto e que não ia acordar mentalmente transformada numa couve. Tomou nota da hora: 21h06. Pouco mais de 16 horas depois da operação. Quanto a ele, dormira a maior parte do dia e voltara ao hospital cerca das sete da tarde. Na realidade, estava de folga, mas tinha montes de papelada para pôr em ordem.
Não resistira à tentação de passar pelos cuidados intensivos e ver a paciente em cujo cérebro andara a remexer na madrugada anterior.
- Deixem-na dormir, mas vigiem o electroencefalograma. Há o risco de formação de edemas ou hemorragias no cérebro. Tive a impressão de que lhe doeu muito o ombro quando tentou mexer o braço. Se acordar, podem dar-lhe dois miligramas de morfina por hora.
O Dr. Jonasson sentia-se estranhamente optimista enquanto descia a escadaria principal de Sahlgrenska.
Pouco antes das duas, Lisbeth Salander voltou a acordar. Abriu lentamente os olhos e viu um cone de luz no tecto. Ao cabo de vários minutos, voltou a cabeça e apercebeu-se de que lhe tinham posto um colar cervical. Doía-lhe a cabeça, e doeu-lhe violentamente o ombro quando tentou mudar o peso do corpo. Fechou os olhos.
Hospital. Que raio estou eu aqui afazer?
Sentia-se completamente esgotada.
De início, teve dificuldade em focar os pensamentos. Depois, as recordações, ainda dispersas, começaram a voltar.
Pelo espaço de alguns segundos, à medida que os fragmentos de memória se juntavam, sentiu-se invadir pelo pânico, ao ver-se a escavar para sair do buraco. Cerrou com força os dentes e concentrou-se na respiração.
Comprovou que estava viva. Não saberia dizer se isso era bom ou mau.
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Não se lembrava muito bem do que acontecera, mas pairava-lhe na cabeça uma miscelânea de imagens da arrecadação de lenha. Via-se a erguer um machado, cheia de raiva, e a desferir um golpe no rosto do pai. Zalachenko. Não sabia se estava vivo ou morto.
Não conseguia lembrar-se do que se tinha passado com Nieder-mann. Tinha uma vaga impressão de ter ficado espantada ao vê-lo fugir e de não ter percebido porquê.
Subitamente, lembrou-se de ter visto o Super Sacana Blomkvist. Talvez tivesse sonhado, mas lembrava-se de uma cozinha - provavelmente, a cozinha de Gosseberga - e tinha a impressão de que o vira avançar para ela. Deve ter sido uma alucinação.
Os acontecimentos de Gosseberga pareciam já muito distantes, ou, mais exactamente, um sonho louco. Concentrou-se no presente. Estava ferida. Não precisava que lho dissessem. Levantou a mão direita e tacteou a cabeça, completamente envolvida em ligaduras. Então, de repente, lembrou-se. Niedermann. Zalachenko. O velho filho da puta também tinha uma pistola. Uma Browning .22. Que, em comparação com qualquer outra arma, podia ser considerada relativamente inofensiva. Por isso ainda estava viva.
Fui ferida na cabeça. Enfiei o dedo no buraco e toquei no meu cérebro. Ficou espantada por estar viva. Estranhamente, notou que não estava preocupada, que, na verdade, se estava nas tintas. Se a morte era o vazio negro de onde acabava de emergir, então não tinha nada de inquietante. Nunca daria pela diferença.
Com esta reflexão esotérica, fechou os olhos e adormeceu novamente.
Dormitara apenas alguns minutos quando sentiu um movimento e entreabriu as pálpebras, apenas uma nesga. Viu uma enfermeira vestida de branco inclinar-se para ela. Fechou os olhos e fingiu dormir.
- Eu sei que está acordada - disse a enfermeira.
- Mmm - disse Lisbeth.
- Olá. Chamo-me Marianne. Compreende o que digo? Lisbeth tentou assentir com a cabeça, mas apercebeu-se de que
tinha o pescoço imobilizado pelo colar cervical.
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- Não, não tente mexer-se. Não tem nada a temer. Foi ferida e operada.
- Quero água.
A enfermeira deu-lhe água por uma palhinha. Enquanto bebia, Lisbeth registou que aparecia outra pessoa do seu lado esquerdo.
- Olá, Lisbeth. Consegue ouvir-me?
- Mmm - respondeu Lisbeth.
- Sou a doutora Helena Endrin. Sabe onde está?
- Hospital.
- Está no Hospital Sahlgrenska, em Gotemburgo. Acaba de ser operada e encontra-se agora no serviço de cuidados intensivos.
- Mm.
- Não tenha medo.
- Fui atingida na cabeça.
A Dra. Endrin hesitou um segundo.
- É verdade. Lembra-se do que aconteceu?
- O filho da puta tinha uma pistola.
- Hã... sim, é verdade.
- Calibre vinte e dois.
- Ah. Isso não sabia.
- Estou muito mal?
- O seu prognóstico é positivo. Esteve muito mal, mas pensamos que tem boas possibilidades de recuperar completamente.
Lisbeth digeriu a informação. Fixou o olhar na Dra. Endrin. Notou que a visão era pouco nítida.
- Que é feito do Zalachenko?
- Quem?
- O velho sacana. Está vivo?
- Refere-se a Karl Axel Bodin.
- Não. Refiro-me a Alexander Zalachenko. É o verdadeiro nome dele.
- Não estou ao corrente. Mas o senhor de idade que deu entrada ao mesmo tempo está bastante maltratado, mas fora de perigo.
Lisbeth acalmou-se um pouco. Reflectiu nas palavras da médica.
- Onde está ele?
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- No quarto ao lado. Mas agora não se preocupe com ele. Tudo o que tem de fazer é concentrar-se no seu próprio restabelecimento.
Lisbeth fechou os olhos. Por um instante, perguntou a si mesma se teria forças para sair da cama, encontrar qualquer coisa que pudesse servir de arma e acabar o que tinha começado. Afastou estas ideias. Quase não tinha forças para manter os olhos abertos. Por outras palavras, tinha falhado na sua resolução de matar Zalachenko. Vai escapar-me outra vez.
- Agora, gostaria de examiná-la. Depois poderá voltar a dormir - disse a Dra. Endrin.
Mikael Blomkvist acordou subitamente e sem razão aparente. Durante alguns segundos não soube onde estava, e então lembrou-se de que alugara um quarto no City Hotel. Lá fora, era noite escura. Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e viu as horas. Duas e meia da madrugada. Tinha dormido 15 horas seguidas sem interrupção.
Levantou-se e foi à casa de banho urinar. Pensou um instante. Sabia que não ia conseguir voltar a adormecer, de modo que se meteu debaixo do chuveiro. Vestiu uns jeans e uma camisola de lã cor de vinho, ambos muito precisados de uma passagem pela máquina de lavar. Estava com uma fome de cão e ligou para a recepção a perguntar se era possível arranjar café e sanduíches àquela hora da madrugada. Era.
Calçou os sapatos, vestiu o casaco, desceu à recepção para ir comprar um café e uma sanduíche envolvida em película aderente e voltou ao quarto. Enquanto comia o pâté de foie com alface, iniciou o iBook e ligou-se à rede de cabo. Abriu a edição web do Aftonbladet. A captura de Lisbeth era, como seria de esperar, a grande notícia. Ronald Niedermann, de 37 anos, era procurado pelo homicídio de um agente da lei, e a polícia queria igualmente interrogá-lo sobre os homicídios de Estocolmo. A polícia ainda não se pronunciara sobre a situação de Lisbeth Salander, e Zalachenko não era referido pelo nome, mas apenas como um proprietário rural de 66 anos residente em Gosseberga. Aparentemente, os media consideravam-no ainda uma possível vítima.
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Quando acabou de ler, Mikael ligou o telemóvel e verificou que tinha vinte mensagens. Três eram a pedir que ligasse para Erika Berger. Duas eram de Annika Giannini. Catorze tinham sido enviadas por colegas de diferentes jornais. Uma era de Christer Malm, que lhe enviara um vigoroso SMS: É melhor voltares no primeiro comboio.
Mikael franziu o sobrolho. Era uma mensagem estranha, vinda de Christer. O SMS fora enviado às 19 horas do dia anterior. Reprimiu o impulso de telefonar e acordar alguém às três da manhã. Em vez disso, verificou na Net os horários dos comboios e viu que o primeiro para Estocolmo partia às 05h20.
Abriu um novo ficheiro Word. Depois, acendeu um cigarro e ficou imóvel durante três minutos, a fixar o visor em branco. Acabou por erguer as mãos e começar a escrever.
Chama-se Lisbeth Salander e a Suécia aprendeu a conhecê-la através das conferências de imprensa da polícia e dos títulos dos jornais da tarde. Tem vinte e sete anos e um metro e cinquenta e cinco de altura. Descreveram-na como psicopata, assassina e lésbica satânica. Não têm fim as elucubrações que se teceram à volta dela. Neste número, a Millennium conta a história de Lisbeth Salander, vítima das maquinações de funcionários do Estado que queriam proteger um assassino patológico.
Escreveu devagar e fez poucas correcções no seu primeiro texto. Trabalhou concentradamente durante 50 minutos, preenchendo duas páginas A4, no essencial com a descrição da noite em que encontrara Dag Svensson e Mia Johansson mortos e a explicação do motivo por que a polícia apontara de imediato Lisbeth Salander como sendo a possível assassina. Referia os cabeçalhos dos jornais vespertinos que falavam de lésbicas satânicas e as esperanças de tantos jornalistas de que aqueles homicídios tivessem um travo a sadomasoquismo.
Por fim, olhou para o relógio, desligou apressadamente o iBook, fez o saco e desceu à recepção. Pagou com cartão de crédito e apanhou um táxi para a Estação Central de Gotemburgo.
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Dirigiu-se de imediato à carruagem-restaurante e encomendou o pequeno-almoço. Depois, abriu novamente o iBook e reviu o texto que já tinha escrito durante as primeiras horas da madrugada. Estava de tal modo embrenhado na composição da história de Zalachenko que só reparou na inspectora Sonja Modig quando ela tossicou e perguntou se podia fazer-lhe companhia. Ergueu os olhos e fechou o portátil.
- Estás de regresso a casa? - perguntou Modig.
Assentiu com a cabeça. Tinha reparado no tratamento por tu, mas, àquela hora, não ia fazer disso um bicho de sete cabeças.
- Tu também, suponho. Ela assentiu.
- O meu colega fica mais um dia.
- Sabes alguma coisa sobre o estado da Lisbeth Salander? Estive a dormir desde que nos separámos.
- Só acordou ontem à tarde. Mas os médicos estão convencidos de que vai escapar e recuperar. Teve uma sorte incrível.
Mikael assentiu com a cabeça. Apercebeu-se, de súbito, de que nem sequer estivera preocupado. Partira do princípio que Lisbeth ia sobreviver e recuperar. Qualquer outra possibilidade era inimaginável.
- Há mais novidades? - perguntou.
Sonja Modig olhou para ele, hesitante. Perguntava a si mesma se poderia confiar no jornalista, que na realidade sabia mais sobre aquela história do que ela própria. Por outro lado, fora ela que se sentara à mesa dele, e havia uma boa centena de jornalistas que provavelmente já sabiam o que acontecera na sede da Polícia Distrital.
- Não quero ser citada - disse.
- Faço a pergunta por interesse pessoal.
Modig assentiu com a cabeça e explicou que a polícia desencadeara a perseguição a Ronald Niedermann em todo o país, mas particularmente na região de Malmõ.
- E o Zalachenko? Interrogaram-no?
- Sim, interrogámo-lo.
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- E?
- Não posso dizer.
- Comigo não, Sonja. Irei saber exactamente tudo o que disseram uma hora depois de ter aterrado na minha redacção, em Estocolmo. E não vou escrever uma palavra do que me contares.
Ela hesitou um longo momento antes de lhe enfrentar o olhar.
- Apresentou queixa contra a Lisbeth Salander por ter tentado matá-lo. O mais certo é ela ser acusada de ofensas corporais agravadas e homicídio na forma tentada.
- E ela invocará, muito verosimilmente, legítima defesa.
- Espero bem que sim - disse Sonja.
Mikael lançou-lhe um olhar desconfiado.
- Não é o género de resposta que se esperaria de um polícia -
disse, num tom neutro.
- O Bodin... O Zalachenko escapa-se-nos por entre os dedos, tem resposta para tudo. Estou absolutamente convencida de que o que nos contaste ontem é verdade, grosso modo. O que significa que desde os doze anos a Lisbeth Salander foi vítima de abusos judiciais
constantes.
Mikael assentiu com a cabeça.
- É essa a história que vou publicar - disse.
- E não vai cair bem em certos meios. - Voltou a hesitar. Mikael esperou. - Falei com o Bublanski, há coisa de meia hora. Não disse grande coisa, mas o inquérito preliminar contra a Salander pelo assassínio dos teus amigos parece ter sido abandonado. De momento, estão concentrados no Niedermann.
- O que significa... - Deixou a frase em suspenso. Modig encolheu os ombros. - Quem vai conduzir o inquérito relativo à Lisbeth?
- Não sei. O caso de Gosseberga cabe prioritariamente à polícia de Gotemburgo. Mas eu diria que alguém de Estocolmo vai ser encarregado de reunir todo o material tendo em vista uma investigação.
- Estou a ver. Queres apostar que o inquérito será transferido
para a Sapo?
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Modig abanou a cabeça.
Pouco antes de Alingsâs, Mikael inclinou-se para ela.
- Sonja... julgo que compreendes o que vai acontecer. Se a história do Zalachenko vem a público, vai ser um enorme escândalo. Agentes da Sapo colaboraram com um psiquiatra para mandar a Lisbeth para um manicómio. A única coisa que podem fazer é manter até ao fim que a Lisbeth é mesmo uma doente mental e que o internamento oficioso de 1991 foi justificado. - Modig aquiesceu. - Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para meter uns pauzinhos nas engrenagens dessas intenções. Quero eu dizer que a Lisbeth Salander é tão sã de espírito como qualquer de nós. Estranha, sem dúvida, mas não é possível questionar as suas faculdades intelectuais. -Sonja Modig voltou a assentir. Mikael fez uma pausa, para deixar as suas palavras assentar. - Vou precisar de alguém de confiança no interior - disse.
Ela enfrentou-lhe o olhar.
- Não sou competente para determinar se a Lisbeth Salander é ou não doente mental - respondeu.
- Pois não, mas és competente para determinar se foi ou não vítima de um abuso judiciário.
- O que é que propões?
- Não te peço que traias os teus colegas, mas gostaria que me avisasses se houver planos para expor a Lisbeth a novos abusos judiciários. - Sonja permaneceu calada. - Não quero que me reveles seja o que for dos pormenores técnicos do inquérito. Tu decidirás. Mas preciso de saber em que pé está a acção judicial contra a Lisbeth.
- Isso tem todo o ar de ser uma boa maneira de me tramar.
- És uma fonte. Nunca revelarei o teu nome e nunca te deixarei num aperto. - Tirou um bloco de notas do bolso e escreveu um endereço e-mail numa das folhas. - Toma, é um endereço hotmail, anónimo. Se tiveres qualquer coisa para me contar, poderás usá-lo. De preferência, nunca uses o teu endereço pessoal, que toda a gente conhece. Cria um temporário no hotmail.
Modig pegou no pedaço de papel e guardou-o no bolso interior do casaco. Não fez qualquer promessa.
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Às sete da manhã de sábado, o inspector Ackerman foi acordado pelo toque do telefone. Ouviu vozes na televisão e sentiu o cheiro do café na cozinha, onde a mulher já andava atarefada. Tinha regressado a casa, em Mõlndal, à uma da manhã, e dormira cinco horas. Antes disso, trabalhara em pleno durante quase 22 horas. Estava, pois, muito longe de ter tido a sua conta de sono quando se esticou para atender.
- Bom dia, fala Lundqvist, do gabinete de investigações, turno da noite. Estás acordado?
- Não - respondeu Ackerman. - Mal tive tempo de adormecer. O que é que se passa?
- Novidades. Encontrámos a Anita Kaspersson.
- Onde?
- Muito perto de Seglora, a sul de Borâs. Ackerman visualizou mentalmente o mapa.
- Para sul - disse. - Está a optar por estradas secundárias. Deve ter seguido a Nacional 180 para Borâs, e depois virou para sul. Alguém avisou Malmb?
- E Helsingborg, Landskrona e Trelleborg. E Karlskrona. Estou a pensar nos ferries do Báltico.
Ackerman endireitou-se na cama e massajou a nuca.
- Agora tem quase vinte e quatro horas de avanço. Se calhar, já saiu do país. Como foi que encontraram a Kaspersson?
- Foi bater à porta de uma vivenda à entrada de Seglora.
- O quê?
- Foi bater...
- Eu ouvi. Quer dizer que está viva?
- Peço desculpa. Estou cansado e sem dúvida incapaz de me expressar muito bem. A Anita Kaspersson conseguiu chegar a Seglora às três e dez. Acordou e deixou em pânico uma família com filhos pequenos desatando aos pontapés à porta. Estava descalça, em hipotermia avançada e tinha as mãos amarradas atrás das costas. Encontra-se neste momento no hospital de Borâs, onde o marido se lhe foi juntar.
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- E esta! Julgo que já ninguém imaginava que estivesse viva.
- Por vezes há surpresas.
- E boas, ainda por cima.
- Nesse caso, chegou o momento das más notícias. A adjunta do director da Polícia Distrital, Frõken Spângberg, está aqui desde as cinco. Pede-te que te levantes o mais depressa possível e vás a Borâs ouvir o depoimento da Kaspersson.
Mikael calculou que, sendo uma manhã de sábado, a redacção da Millennium estaria deserta. Ligou para Christer Malm quando o X2000 atravessava a ponte de Ársta e perguntou-lhe o que queria dizer o SMS.
-Já tomaste o pequeno-almoço? - perguntou Christer.
- No comboio.
- Okay. Vem a minha casa, e eu dou-te qualquer coisa mais consistente.
- Do que é que se trata?
- Conto-te quando chegares.
Mikael apanhou o metro até à Medborgarplatsen e fez a pé o resto do caminho até à Allhelgonagatan. O companheiro de Christer, Arnold Magnusson, abriu-lhe a porta. Por mais que se esforçasse, Mikael não conseguia desembaraçar-se da sensação de estar a olhar para um cartaz sempre que o via. Arnold Magnusson passara pelo teatro Dramaten e era um dos actores mais requisitados da Suécia.
- Bom dia, Micke - disse Arnold.
- Bom dia.
- Na cozinha - continuou Arnold, fazendo-lhe sinal para entrar. Christer serviu tvaffles com geleia de amoras amarelas e café.
Mikael já sentia água na boca antes mesmo de se sentar e se atirar ao prato. Christer perguntou-lhe o que se passara em Gosseberga e ele recapitulou os pormenores. Ia na terceira waffle quando perguntou o que se passava.
- Tivemos um pequeno problema na Millennium enquanto tu estavas em Gotemburgo - respondeu Christer.
Mikael arqueou as sobrancelhas.
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- O que foi?
- Nada de grave. Mas a Erika é a nova directora editorial do Svenska Morgon-Posten. Ontem foi o seu último dia de trabalho na
Millennium.
Mikael imobilizou-se, com uma waffle a vinte centímetros da boca aberta. Foram precisos alguns segundos para que o significado da mensagem fizesse o seu efeito.
- Porque é que não o disse mais cedo? - acabou por perguntar.
- Porque queria dizer-te a ti primeiro, e há várias semanas que tu andas a vadiar por aí e ninguém consegue falar contigo. Julgou, com certeza, que já tinhas problemas suficientes com a história da Salander. E como ela queria que fosses o primeiro a saber, não nos disse nada a nós, e os dias foram-se somando aos dias... E foi isso. Às tantas, estava cheia de remorsos e com o moral completamente em baixo. E nós sem sabermos de nada.
Mikael fechou os olhos.
- Merda - disse.
- Eu sei. No fim, és tu o último a saber. Quis ser eu a dizer-te, para explicar o que aconteceu, não fosses tu pensar que andámos a tramar alguma nas tuas costas.
- Não penso nada disso. Mas diz-me... é óptimo para ela ter conseguido o lugar, pelo menos se tem estômago para trabalhar no SMP... mas nós, como é que vamos descalçar a bota na redacção?
- Nomeámos a Malin directora editorial interina a partir do próximo número.
- A Malin?
- A menos que queiras ser tu o director editorial...
- Eu? Nem pensar!
- Foi o que calculei. Portanto, fica a Malin com o lugar.
- E quem será assistente editorial?
- O Henry Cortez. Há quatro anos que trabalha para nós e já não é propriamente um estagiário inexperiente.
Mikael considerou as propostas.
- Tenho voz activa em toda essa história? - perguntou.
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- Não.
- Okay. Fazemos como decidiram. A Malin não se encolhe, mas tem pouca confiança em si mesma. O Henry tem tendência para disparar contra tudo o que mexe. Vai ser preciso mantê-los debaixo de olho.
- É verdade.
Mikael calara-se. Pensava no vazio que Erika ia deixar e dizia a si mesmo que não sabia qual ia ser o futuro da revista.
- Tenho de telefonar à Erika e...
- Não, não é uma boa ideia.
- Porque não?
- Ela está a dormir na redacção. É melhor ires lá acordá-la.
Mikael encontrou Erika Berger a dormir profundamente no divã do gabinete. Passara a noite a tirar os seus objectos pessoais das prateleiras e das gavetas e a escolher os papéis que queria conservar. Enchera cinco caixas de cartão. Mikael contemplou-a por um longo momento, parado à porta, antes de entrar e ir sentar-se na beira do divã para a acordar.
- És capaz de me explicar porque é que não foste dormir a minha casa, que é mesmo aqui ao lado, já que achaste que tinhas de passar a noite a trabalhar? - disse.
- Olá, Mikael.
- O Christer contou-me.
Erika começou a dizer qualquer coisa, mas ele inclinou-se para a frente e beijou-a na face.
- Estás zangado?
- Muito - respondeu ele, secamente
- Lamento muito. Não podia pura e simplesmente ter declinado uma proposta destas. Mas não me parece justo, tenho a sensação de ir deixá-los num aperto de todo o tamanho, aqui na Millennium.
- Não serei eu a pessoa mais indicada para te censurar por abandonares o navio. Há dois anos, fui-me embora e deixei-te numa situação tão má ou pior do que esta.
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- São duas situações completamente diferentes. Tu fizeste uma pausa. Mas eu afasto-me definitivamente e não avisei ninguém. Lamento muito, a sério.
Mikael ficou em silêncio por uns instantes. E então esboçou um ténue sorriso.
- Quando tem de ser, tem de ser. Quando uma mulher tem uma missão, é preciso que a cumpra. Às suas ordens, meu coronel!
Erika sorriu. Mais coisa menos coisa, tinha-lhe dito o mesmo, quando ele fora viver para Hedeby. Mikael estendeu a mão e despenteou-a ternamente.
- Compreendo que queiras livrar-te desta casa de loucos, mas que queiras tornar-te directora editorial do jornal de velhadas mais bafiento da Suécia, é coisa que vou precisar de algum tempo para digerir.
- Trabalha lá muita gente nova.
- Tretas. Olha para os editoriais. Ultrapassado, tudo aquilo, mais do que ultrapassado. Tornaste-te masoquista? Vamos beber um café?
Erika sentou-se.
- Tens de me contar o que aconteceu em Gotemburgo, naquela noite.
- Estou a escrever a história. E vamos ter guerra quando a publicarmos.
- Quando vocês a publicarem.
- Eu sei. Vamos publicá-la na altura do julgamento. Suponho que não vais levar o tema para o SMP. A verdade é que gostava que escrevesses qualquer coisa sobre a história do Zalachenko antes de saíres da Millennium.
- Micke...
- O teu último editorial. Podes escrevê-lo quando quiseres. Não será publicado antes do julgamento, e sabe Deus quando isso será.
- Talvez não seja muito boa ideia. E seria a respeito de quê?
- Da moral. E do facto de um dos nossos colaboradores ter sido assassinado porque há quinze anos que o Estado não faz o seu trabalho.
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Não precisava de explicar mais. Erika Berger sabia exactamente o editorial que ele queria. Reflectiu um curto instante. Ao fim e ao cabo, era ela que estava aos comandos no dia em que Dag Svensson fora assassinado. De repente, sentiu-se muito melhor.
- De acordo - disse. - O último editorial.
CAPÍTULO 4
SÁBADO, 9 DE ABRIL - DOMINGO, 10 DE ABRIL
À uma HORA da TARDE DE SÁBADO, em Sõdertãlje, a procuradora Martina Fransson tinha terminado as suas reflexões. O cemitério clandestino de Nykvarn estava a tornar-se um sarilho de todo o tamanho e a brigada criminal fizera uma quantidade incrível de horas extraordinárias desde a quarta-feira em que Paolo Roberto travara o seu combate de boxe com Ronald Niedermann no armazém. Tinham em mãos pelo menos três homicídios de pessoas que tinham sido enterradas no terreno, um rapto com violência, agressão agravada contra a amiga de Lisbeth Salander, Miriam Wu, e, para compor o ramalhete, fogo posto. Iam ter de associar Nykvarn ao incidente de Stal-larholmen, que pertencia a outra jurisdição mas onde Carl Magnus Lundin, do Moto-Clube de Svavelsjõ, era o personagem-chave. De momento, Lundin estava no hospital, em Sõdertãlje, com um pé engessado e uma placa de aço no maxilar. E, fosse como fosse, todos aqueles crimes caíam sob a alçada da Polícia Departamental, o que significava que Estocolmo teria a última palavra.
Na sexta-feira, tinham-se decidido pela emissão de mandados de captura. Lundin estava indiscutivelmente ligado a Nykvarn. Embora com algum atraso, fora possível estabelecer que o armazém pertencia a uma tal Anneli Karlsson, de 52 anos, residente em Puerto Banus, Espanha. Era uma prima de Magge Lundin, que não tinha nada que ver com aquela história e parecia servir sobretudo como testa-de-ferro.
Martina Fransson fechou o dossier do inquérito preliminar. A Instrução ainda estava na fase inicial e seria completada com várias
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centenas de páginas antes de a poder levar a um julgamento. Mas Martina Fransson tinha ainda de tomar decisões sobre certos pontos. Olhou para os seus colegas.
- Temos material suficiente para iniciar uma acção judicial contra o Lundin por cumplicidade no rapto de Miriam Wu. O Paolo Roberto identificou-o como sendo o condutor da carrinha. Vou prendê-lo igualmente por cumplicidade provável num crime de fogo posto. Vamos manter suspensas as acusações de cumplicidade no assassínio das três pessoas que desenterrámos nos terrenos do armazém, pelo menos até que todas tenham sido identificadas.
Os polícias assentiram. Não esperavam outra coisa.
- O que é que fazemos em relação ao Sonny Nieminen? Martina Fransson folheou os papéis que tinha em cima da secretária até encontrar o que queria.
- Esse senhor tem um palmarés impressionante. Assalto à mão armada, posse ilegal de arma, ofensas corporais agravadas, homicídio e crimes ligados à droga. Foi detido ao mesmo tempo que o Lundin, em Stallarholmen. Estou absolutamente convencida de que está envolvido em tudo isto... o contrário seria inverosímil. Mas o problema é que não temos nada contra ele.
- Afirma que nunca pôs os pés no armazém de Nykvarn e que tinha simplesmente ido dar uma volta de moto com o Lundin - informou o inspector encarregado de Stallarholmen por conta de Sõdertãlje. - Diz que não sabia nada do que o Lundin ia fazer a Stallarholmen.
Martina Fransson perguntou a si mesma se haveria alguma maneira de passar todo aquele caso para as mãos do procurador Richard Ekstrõm, em Estocolmo.
- O Nieminen recusa contar o que se passou, mas nega veementemente ter sido cúmplice de um crime - acrescentou o mesmo inspector.
- Só falta dizer que ele e o Lundin foram as vítimas em Stallarholmen - observou Martina Fransson, tamborilando, irritada, com os dedos no tampo da secretária. - Lisbeth Salander - continuou, numa voz que deixava transparecer uma dúvida evidente. - Estamos a falar de uma rapariga que mal parece ter chegado à puberdade, que
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tem um metro e cinquenta e cinco de altura e, manifestamente, não tem força suficiente para dominar o Nieminen e o Lundin.
- A menos que estivesse armada. Com uma arma, pode compensar as falhas do seu físico de pardal.
- Mas isso não encaixa na reconstituição.
- Não. Usou gás pimenta e pontapeou o Lundin com tal violência que lhe esmagou um testículo e lhe partiu o maxilar. O tiro no pé foi posterior. Mas tenho dificuldade em acreditar que a arma lhe pertencesse.
- O laboratório identificou a arma que disparou contra o Lundin. Uma Wanad P-83 polaca, com munições Makarav. Foi encontrada em Gosseberga, perto de Gotemburgo, com as impressões digitais da Salander. É lícito supor que foi ela que a levou para Gosseberga.
- Sim, mas o número de série revela que foi roubada há quatro anos, durante um assalto a um armeiro de Orebro. O assaltante acabou por ser apanhado, mas já se tinha desfeito das armas. Tratava-se de um talento local com problemas de droga, que se movimentava em círculos próximos do Moto-Clube de Svavelsjõ. A minha tendência é para ligar a arma ao Lundin ou ao Nieminen.
- Pode simplesmente ter acontecido que o Lundin tivesse a pistola e que ela tenha disparado acidentalmente quando o desarmou, atingindo-o num pé. Quer dizer, a intenção dela não pode ter sido matá-lo, uma vez que ele está vivo.
- Ou então ela deu-lhe um tiro no pé por sadismo. Quem poderá dizê-lo? Mas como conseguiu ela dominar o Nieminen? O tipo não tem quaisquer ferimentos aparentes.
- Não, tem qualquer coisa. Duas pequenas queimaduras no peito. -E?
- Eu pensaria num taser.
- A Salander estaria então armada com um taser, uma lata de gas pimenta e uma pistola. Quanto é que tudo isso pesa? Não. Quanto a mim, ou era o Lundin ou o Nieminen quem tinha a pistola, e ela desarmou-os. Só saberemos exactamente como é que o Lundin levou o tiro quando um dos protagonistas resolver falar.
- Okay.
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- A situação é, pois, a seguinte: o Lundin fica em prisão preventiva com base nas acusações já referidas. Em contrapartida, não temos rigorosamente nada contra o Nieminen. Vou ser obrigada a pô-lo em liberdade, esta tarde.
Sonny Nieminen estava com um humor de cão quando saiu dos calabouços do edifício da Polícia de Estocolmo. E estava também cheio de sede, ao ponto de fazer uma primeira paragem numa tabacaria para comprar uma Pepsi, que bebeu directamente da lata. Comprou também um maço de Lucky Strike e uma caixa de rapé. Pegou no telemóvel, verificou a carga da bateria e marcou o número de Hans-Áke Waltari, de 32 anos, o terceiro na hierarquia interna do Moto-Clube de Svavelsjõ. Ouviu quatro toques antes de Waltari atender.
- Nieminen. Saí.
- Parabéns.
- Onde estás?
- Em Nykõping.
- Que porra estás a fazer em Nykõping?
- Quando tu e o Magge foram presos, resolvemos que era melhor não fazer ondas até ver em que paravam as modas.
- Bom, agora já sabes em que param as modas. Onde estão vocês?
Hans-Âke Waltari explicou onde se encontravam os outros cinco membros do Moto-Clube de Svavelsjõ. A explicação não foi suficiente para satisfazer nem para acalmar Sonny Nieminen.
- E quem trata das coisas enquanto vocês se escondem como umas meninas de merda?
- Isso não é justo. Tu e o Magge desaparecem para fazer a porra de um serviço de que ninguém sabe nada e, de repente, estão aos tiros com essa pega de merda que tem toda a polícia sueca a morder-lhe as canelas e o Magge apanha uma sova do caraças e tu és engavetado. E, como se fosse pouco, os chuis encontram uns sacanas quaisquer enterrados no armazém de Nykvarn.
- Sim, e então?
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- Então começámos a matutar se tu e o Magge não andariam a esconder-nos qualquer coisa.
- E que coisa seria essa, na tua opinião? Somos nós que fazemos
rolar a massa, não?
- Está bem, mas ninguém sabia nada sobre o armazém ser também a porra de um cemitério escondido no bosque. Quem são os
sacanas?
Sonny Nieminen tinha uma resposta afiada na ponta da língua, mas conteve-se. Hans-Âke Waltari era um filho da puta acabado, mas o momento não era o mais indicado para armar uma discussão. Era preciso agir depressa e consolidar forças. Depois de ter saído de cinco interrogatórios negando tudo e mais alguma coisa, não seria muito inteligente admitir que, afinal, sempre tinha algum conhecimento da matéria, falando por um telemóvel a 200 metros da sede
da Polícia.
- Não sei nada disso - disse. - Não te preocupes com os sacanas. Mas o Magge está na merda. Vai continuar na pildra ainda algum tempo, e enquanto ele estiver ausente, sou eu que mando.
- Tudo bem. Então, o que é que fazemos? - perguntou Waltari.
- Quem é que trata da segurança da sede, se vocês foram esconder-se todos no buraco?
- O Danny Karlsson ficou lá. Os chuis fizeram uma rusga no dia em que vocês foram presos. Não encontraram nada.
- O Danny K.! - exclamou Nieminen. - Mas é um sacana de um principiante, um puto ainda com ranho no nariz!
- Não te preocupes. Está com o loiro, tu sabes, o gajo com quem tu e o Magge costumavam aparecer.
Subitamente, Sonny Nieminen ficou gelado. Lançou um rápido olhar em redor e afastou-se alguns metros da porta da tabacaria.
- O que foi que disseste? - perguntou, em voz baixa.
- Tu sabes, aquele sacana loiro com quem tu e o Magge falavam, apareceu por lá e quis que o ajudássemos a arranjar um sítio para
ficar.
- Mas que porra de merda, Waltari! Esse gajo é procurado em
todo o país por ter morto um chui!
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- Sim... e por isso precisava de um sítio para se esconder. O que é que havíamos de fazer? O gajo é vosso amigo, teu e do Magge.
Sonny Nieminen fechou os olhos durante dez segundos. Ronald Niedermann tinha proporcionado ao Moto-Clube de Svavelsjõ muitos negócios e bons lucros durante vários anos. Mas não era um amigo. Era um filho da puta perigoso e um psicopata, e ainda por cima um psicopata que a polícia queria apanhar a todo o custo. Não confiava nem um bocadinho em Ronald Niedermann. O melhor seria ele aparecer com uma bala na nuca. Acalmaria um pouco o ardor dos chuis.
- E o que é que fizeram com ele?
- O Danny K. tratou disso. Levou-o ao Viktor.
Viktor Gõransson era o tesoureiro e contabilista do clube. Vivia para os lados de Jãrna. Tinha um bacharelato em economia e começara a sua carreira como consultor financeiro de um jugoslavo que controlara meia dúzia de clubes nocturnos, até todo o bando ser preso por criminalidade económica agravada. Conhecera Magge Lundin na prisão de Kumla, no início dos anos 90. Era o único membro do Moto-Clube de Svavelsjõ que continuava a usar gravata.
- Waltari, mete-te na tua caranguejola e vai ter comigo a Sõder-tálje. Diante da estação de comboios interurbanos, dentro de três quartos de hora.
- Está bem, está bem. Mas qual é a pressa?
- Porque é preciso deitar a mão à situação o mais rapidamente possível.
Hans-Âke Waltari observava disfarçadamente Sonny Nieminen, que mantinha um silêncio sombrio enquanto se aproximavam de Sõdertãlje. Ao contrário de Magge Lundin, Nieminen nunca era simpático. Era bem parecido, e parecia sossegado, mas na realidade explodia facilmente e podia ser muito, muito perigoso, sobretudo quando estava com os copos. De momento, estava sóbrio, mas Waltari sentia uma certa inquietação quando pensava que era ele que ia assumir a chefia. Magge conseguia sempre, de um modo ou de outro, acalmar o jogo de Nieminen. Interrogava-se sobre o que lhes reservaria o futuro com aquele tipo como presidente interino do clube.
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Danny K. não estava na sede. Nieminen tentou ligar-lhe para o telemóvel duas ou três vezes, mas não obteve resposta.
Chegaram a casa de Nieminen, a um bom quilómetro do clube. A polícia também lá fizera uma busca, mas não tinha encontrado nada de útil para o inquérito sobre Nykvarn.
Nieminen tomou um duche e mudou de roupa enquanto Wal-tari esperava pacientemente na cozinha. Em seguida, internaram-se 150 metros pelo bosque que ficava por detrás da casa e afastaram a terra que tapava um cofre enterrado a pouca profundidade. O cofre continha seis pistolas, entre as quais uma AK-5, uma grande quantidade de munições e cerca de dois quilos de explosivos. A pequena reserva pessoal de Nieminen. Duas das armas do cofre eram Wanad P-83 polacas. Provinham do mesmo lote da que Lisbeth Salander confiscara a Nieminen em Stallarholmen.
Nieminen afastou Lisbeth Salander do pensamento. O tema era sensível. Na cela da Judiciária, em Estocolmo, não parara de rever mentalmente a cena em que ele e Magge Lundin chegaram à casa de Nils Bjurman e encontraram Lisbeth à entrada.
O desenrolar dos acontecimentos fora completamente inesperado. Ele e Magge Lundin tinham ido até lá para pegar fogo à barraca. Obedecendo a ordens do sacana do gigante loiro. E tinham dado de caras com aquela pega de merda, sozinha, com pouco mais de metro e meio de altura e magra como um palito. Nieminen perguntava a si mesmo quanto pesaria ela. Em seguida, as coisas tinham dado para o torto e entrado numa espiral de violência para a qual nenhum dos dois estava preparado.
De um ponto de vista puramente técnico, sabia explicar o que acontecera. Salander despejara uma lata de gás pimenta na tromba de Magge Lundin. Magge deveria ter contado com aquilo, mas não contara. Depois, ela espetara-lhe duas patadas, e não era preciso ter uma força por aí além para partir um queixo. Apanhara-o de surpresa. Percebia-se.
Em seguida, porém, a gaja atacara-o também a ele, Sonny Nieminen, o homem com quem tipos bem treinados pensavam duas vezes antes de se meterem. Movera-se tão depressa. Ele mal tivera
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tempo de sacar a arma. A tipa esmagara-o com uma facilidade humilhante, quase como se tivesse enxotado um mosquito com a mão. Tinha um taser. Tinha...
Quando acordara, não se lembrava de quase nada. Magge Lundin tinha uma bala num pé e a polícia estava a chegar. Depois de conversações entre a polícia de Strãngnãs e a de Sõdertâije, fora dar com os costados na choça de Sõdertâije. E a gaja roubara a Harley Davidson de Magge Lundin. E cortara do blusão de couro dele o logo do Moto-Clube de Svavelsjõ - o símbolo que, nos bares, fazia afastar as pessoas e lhe conferia um prestígio que um sueco normal não podia compreender. Tinha-o humilhado.
Subitamente, Sonny Nieminen ficou a ferver por dentro. Não dissera uma palavra nos interrogatórios. Nunca poderia contar o que acontecera em Stallarholmen. Até àquele momento, Lisbeth Salander não significava nada para ele. Não passava de um pequeno projecto secundário de que Magge Lundin se ocupava - mais uma vez a pedido do sacana do loiro, o Niedermann. Agora, odiava-a com uma intensidade que o surpreendia. Habitualmente, mantinha-se frio e lúcido, mas agora sentia que um dia havia de ter a oportunidade de vingar-se e apagar a vergonha. Antes de mais nada, porém, tinha de pôr em ordem o caos em que Salander e Niedermann tinham lançado o Moto-Clube de Svavelsjõ.
Pegou nas duas pistolas polacas que restavam no cofre, armou-as e entregou uma a Waltari.
- Tens algum plano especial?
- Vamos conversar um pouco com o Niedermann. Não é um dos nossos e nunca foi preso. Não sei como vai reagir se o apanham, mas se fala, trama-nos a todos.
- Queres dizer que vamos...
Nieminen já tinha decidido que era preciso eliminar Niedermann, mas compreendeu que não era o momento de assustar Waltari.
- Não sei. Vamos ver. Se ele tiver um plano para se safar rapidamente para o estrangeiro, podemos dar-lhe uma ajuda. Mas enquanto correr o risco de ser apanhado pela polícia, constitui um perigo para todos nós.
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A casa de Viktor Gõransson, perto de Járna, estava às escuras quando, ao fim da tarde, Nieminen e Waltari chegaram ao pátio. Nada indicava que houvesse problemas. Esperaram um pouco no carro.
- Talvez tenham saído - sugeriu Waltari.
- Sim, claro. Foram à tasca beber um copo com o Niedermann - disse Nieminen, saindo do carro.
A porta da casa não estava fechada à chave. Nieminen acendeu a luz. Passaram de sala em sala. Estava tudo limpo e arrumado, provavelmente graças à mulher com quem Gõransson vivia.
Encontraram Gõransson e a companheira na cave, enfiados na lavandaria.
Nieminen inclinou-se e examinou os cadáveres. Esticou um dedo e tocou na mulher, cujo nome não recordava. Estava gelada e rígida. O que significava que estavam mortos havia talvez 24 horas.
Nieminen não precisava da opinião de um médico legista para saber como tinham morrido. O pescoço da mulher partira-se quando alguém lhe rodara a cabeça 180 graus. Vestia uma T-shirt tjeans, e aparentemente não tinha outros ferimentos.
Viktor Gõransson, em contrapartida, tinha apenas uns calções. Fora selvaticamente espancado e estava coberto de hematomas e feridas. Os dois braços, partidos, apontavam em direcções estranhas, como ramos de pinheiro torcidos. Fora sujeito a maus-tratos prolongados que só era possível classificar como tortura. Tanto quanto Nieminen pudesse avaliar, por fim fora assassinado com uma violenta pancada na garganta. A laringe estava profundamente enterrada no pescoço.
Sonny Nieminen endireitou-se, subiu a escada da cave e saiu para o pátio. Waltari seguiu-o. Nieminen atravessou o pátio até uma espécie de celeiro, situado a 50 metros mais adiante. Rebentou o cadeado e abriu a porta.
Encontrou um Renault azul-escuro.
- Que carro tinha o Gõransson? - perguntou.
- Um Saab.
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Nieminen assentiu com a cabeça. Tirou o porta-chaves do bolso e abriu uma porta ao fundo do celeiro. Um simples olhar disse-lhe que chegara demasiado tarde. Um pesado armário, concebido para guardar armas, tinha a porta escancarada.
Nieminen fez uma careta.
- Um pouco mais de oitocentas mil coroas - disse.
- O quê? - perguntou Waltari.
- Um pouco mais de oitocentas mil coroas. Era o que o Moto-Clube de Svavelsjõ tinha naquele armário. A nossa massa.
Só três pessoas sabiam onde o Moto-Clube de Svavelsjõ guardava o capital destinado a investimentos e a branqueamento. Viktor Gõransson, Magge Lundin e Sonny Nieminen. Niedermann estava em fuga. Precisava de dinheiro. Sabia que Gõransson se ocupava das finanças.
Nieminen fechou a porta e saiu lentamente do celeiro. Pensava furiosamente, ao mesmo tempo que tentava perceber o alcance da catástrofe. Uma parte dos recursos do Moto-Clube de Svavelsjõ fora convertida em títulos aos quais ele teria acesso e outra parte poderia ser reconstituída com a ajuda de Magge Lundin. Mas a parte maior dos investimentos só estava registada na cabeça de Gõransson, a menos que este tivesse dado indicações claras a Lundin. Coisa de que Nieminen duvidava muito: Magge nunca fora um ás em economia. Calculou, por alto, que, com a morte de Gõransson, o Moto-Clube de Svavelsjõ perdera cerca de 60% dos seus fundos. O golpe era terrível. Tratava-se sobretudo de dinheiro vivo de que necessitavam para as despesas do dia a dia.
- Que fazemos agora? - perguntou Waltari.
- Vamos informar a polícia do que se passou.
- Informar a polícia?
- Porra, sim. Há impressões digitais minhas por toda a casa. Quero que eles encontrem o Gõransson e a gaja dele o mais depressa possível, para que o médico legista possa confirmar que foram mortos quando eu estava detido.
- Compreendo.
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- Ainda bem. Encontra-me o Danny K. Quero falar com ele. Se ainda estiver vivo, claro. Depois, vamos procurar o Ronald Niedermann. Fala com os nossos contactos em todos os clubes espalhados pela Escandinávia e diz-lhes que estejam atentos. Quero a cabeça desse filho da puta. Muito provavelmente, desloca-se no Saab do Gõransson. Descobre-me a matrícula.
Quando Lisbeth Salander acordou na tarde de sábado, eram duas horas e estava a ser observada por um médico.
- Boa tarde - disse ele. - Chamo-me Sven Svantesson e sou médico. Tem dores?
- Sim.
- Vamos já dar-lhe um analgésico. Mas primeiro gostaria de examiná-la.
Examiná-la envolveu carregar, apertar e remexer no dorido corpo dela. Lisbeth estava a ficar francamente irritada, mas sentia-se demasiado exausta para começar a sua estada em Sahlgrenska com uma discussão, de modo que decidiu calar-se.
- Como é que estou? - perguntou.
- Acho que as coisas se vão compor - disse o médico, tomando algumas notas antes de se levantar.
Não era uma resposta entusiasmante.
Depois de ele sair, entrou uma enfermeira que a ajudou com a arrastadeira. Depois disso, Lisbeth pôde voltar a adormecer.
Alexander Zalachenko, também conhecido como Karl Axel Bodin, engolia um pequeno-almoço à base de líquidos. Até os mais pequenos movimentos dos músculos faciais causavam dores violentas na mandíbula e no malar, e mastigar estava totalmente fora de
questão.
No entanto, apesar de a dor ser terrível, ele sabia geri-la. Zalachenko estava habituado à dor. Nada podia comparar-se à dor que sentira durante semanas e meses há quinze anos, depois de ter ardido como um archote dentro de um carro estacionado na Lundagatan. Os tratamentos tinham sido uma interminável maratona de dor.
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Os médicos tinham-no declarado fora de perigo, mas dada a gravidade dos ferimentos e a sua idade ficaria nos cuidados intensivos mais alguns dias.
No sábado, teve quatro visitas.
Cerca das dez da manhã, o inspector Ackerman apareceu para falar com ele. Dessa vez, tinha deixado em casa aquela pegazita, Sonja Modig, e fazia-se acompanhar pelo inspector Jerker Holmberg, nitidamente mais simpático. Fizeram mais ou menos as mesmas perguntas sobre o Ronald Niedermann que já tinham feito na véspera. Zalachenko tinha preparado a sua história e não cometeu nenhum erro. Quando começaram a atacá-lo com perguntas a respeito da sua eventual participação no tráfico de mulheres e outras actividades criminosas, negou uma vez mais ter conhecimento do que quer que fosse. Vivia da sua pensão de invalidez e não sabia do que estavam a falar. Atirou tudo para cima de Ronald Niedermann e ofereceu-se para os ajudar a localizar o assassino em fuga.
Infelizmente, não podia ser-lhes de grande utilidade, em termos práticos. Ignorava totalmente os círculos onde Niedermann se movia e não fazia a mínima ideia de onde poderia o homem ter ido procurar asilo.
Por volta das onze, teve uma breve visita de um representante do Ministério Público, que o informou formalmente de que era suspeito de cumplicidade de ofensas corporais agravadas e, possivelmente, tentativa de homicídio na pessoa de Lisbeth Salander. Zalachenko respondeu pacientemente, explicando que a vítima era ele e que, na realidade, fora Lisbeth Salander que tentara matá-lo. O homem do Ministério Público ofereceu-se para lhe arranjar um advogado oficioso. Zalachenko disse que ia pensar.
O que não estava nas suas intenções. Já tinha advogado, e uma das primeiras coisas que fizera nessa manhã fora telefonar-lhe e pedir-lhe que fosse vê-lo o mais urgentemente possível. Martin Thomasson foi, pois, a terceira visita junto à sua cabeceira. Entrou com um ar descontraído, passou os dedos pela farta e desgrenhada cabeleira loira, ajustou os óculos e apertou a mão ao seu cliente. Era um falso magro e um verdadeiro sedutor. Suspeito, é certo, de ter servido de homem
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de mão à máfia jugoslava, um caso que continuava a ser investigado, mas tinha também fama de ganhar os processos em tribunal.
Um conhecido do mundo dos negócios encaminhara Zalachenko para Thomasson cinco anos antes, quando tivera necessidade de recolocar certos fundos ligados a uma pequena empresa de financiamento que tinha no Liechtenstein. Não estavam em causa somas prodigiosas, mas Thomasson agira com mão de mestre e Zalachenko poupara algum dinheiro. Posteriormente, voltara a recorrer ao advogado em diversas ocasiões. Thomasson sabia que o dinheiro provinha de uma actividade criminosa, o que não parecia perturbá-lo. Por fim, Zalachenko decidira converter todas as suas actividades numa nova empresa mantida por ele e por Niedermann. Procurara Thomasson e propusera-lhe que fosse seu sócio-sombra encarregado das finanças. Thomasson aceitara sem sequer reflectir.
- Então, Herr Bodin, acho-o com bastante mau aspecto.
- Fui vítima de ofensas corporais agravadas e tentativa de homicídio.
- Pelo que vejo. Uma tal Lisbeth Salander, se bem entendi.
Zalachenko baixou a voz.
- O nosso sócio Niedermann meteu-se no raio de uma embrulhada, como já deves saber.
- Foi o que me disseram.
- A polícia suspeita de que estou envolvido em toda esta história. ..
- O que, evidentemente, é mentira. És uma vítima, e é importante tratar imediatamente de que essa ideia fique bem arreigada nos meios de comunicação. Frõken Salander já teve uma boa dose de publicidade negativa... Eu trato disso.
- Obrigado.
- Mas deixa-me dizer-te desde já que não sou um penalista. Neste caso, vais precisar da ajuda de um especialista. Vou encontrar alguém em quem possas confiar.
A quarta visita apareceu por volta das onze da noite e conseguiu ultrapassar a barreira das enfermeiras mostrando o seu cartão
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profissional e afirmando tratar-se de um assunto urgente. Indicaram-lhe o quarto de Zalachenko. O paciente, que ainda não estava a dormir, parecia absorto em pensamentos.
- Chamo-me Jonas Sandberg - disse o visitante, estendendo uma mão que Zalachenko ignorou.
O homem devia ter à volta de 35 anos. Os cabelos eram cor de areia e vestia jeans, uma camisa aos quadrados e blusão de couro. Zalachenko contemplou-o em silêncio durante cerca de 15 segundos.
- Já perguntava a mim mesmo quando um de vocês ia aparecer.
- Trabalho para a Sapo - declarou Jonas Sandberg, mostrando o cartão.
- De certeza que não - disse Zalachenko.
- Perdão?
- Até podes trabalhar na Sapo, mas não trabalhas para eles. Jonas Sandberg olhou em redor, sem responder imediatamente.
Então, chegou a cadeira das visitas para a frente.
- Vim a esta hora para não atrair atenções. Discutimos a maneira de o ajudar e precisamos de definir o mais exactamente possível o que vai acontecer. Estou aqui apenas para ouvir a sua versão e saber das suas intenções, para que possamos elaborar uma estratégia comum.
- E que estratégia será essa?
Jonas Sandberg olhou pensativamente para o homem deitado na cama. Acabou por afastar as mãos.
- Herr Zalachenko... Receio que se tenha desencadeado um processo que envolve danos difíceis de avaliar. Discutimos a situação. As sepulturas de Gosseberga e a circunstância de a Lisbeth Salander ter sido atingida por três balas são factos difíceis de minimizar. Mas nem tudo está perdido. O conflito entre o senhor e a sua filha pode explicar por que motivo a receia tanto e por que motivo tomou medidas tão drásticas. Receio, no entanto, que tudo isto implique alguns meses de prisão.
Zalachenko sentiu-se repentinamente divertido, e teria rompido a gargalhada se isso não fosse totalmente impossível no estado em que estava. O único sinal visível foi um ligeiro tremor dos lábios.
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- É então essa a nossa estratégia comum?
- Herr Zalachenko, a noção de controlo de danos não lhe é estranha. É imperioso encontrarmos uma via comum. Vamos fazer tudo para o ajudar proporcionando-lhe um advogado e toda a assistência necessária, mas precisamos da sua colaboração e de certas garantias.
- Vou dar-te uma garantia. Vocês vão apagar toda esta história. - Fez um gesto com a mão. - O Niedermann é o vosso bode expiatório, e posso garantir-lhes que não será encontrado.
- Há provas formais que...
- Deixa lá as provas formais. O importante é como o caso é conduzido e como os factos são apresentados. Aqui tens a minha garantia. .. se vocês não usarem a vossa varinha mágica para fazer desaparecer tudo isto, convocarei uma conferência de imprensa. Sei nomes, datas, acontecimentos. Ou preciso de te recordar quem sou?
- Não está a compreender...
- Compreendo muito bem. Tu não passas de um moço de recados. Comunica ao teu chefe o que acabo de dizer. Ele compreenderá. Diz-lhe que tenho cópias de... de tudo.
- Temos de tentar chegar a um acordo.
- A conversa acabou. Põe-te a andar. E diz-lhes que, da próxima vez, mandem um homem, um adulto com quem eu possa discutir.
Zalachenko voltou a cabeça de modo a cortar o contacto visual com o seu visitante. Jonas Sandberg ficou a olhar para ele por um curto instante. Acabou por encolher os ombros e pôr-se de pé. Tinha quase chegado à porta quando ouviu novamente a voz de Zalachenko.
- Outra coisa. Sandberg voltou-se.
- A Salander.
- O que é que tem a Salander?
- Tem de desaparecer.
- Que quer dizer com isso?
Durante um segundo, Sandberg ficou com um ar tão preocupado que Zalachenko teve de sorrir, apesar da dor que lhe trespassou o maxilar.
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- Sei que nenhum de vocês tem tomates e que têm demasiados escrúpulos para a matar. Também sei que já não têm meios para o fazer. Quem se encarregaria do serviço? Tu? Mas ela tem de desaparecer. É preciso que o testemunho dela seja considerado nulo. Tem de voltar ao manicómio para o resto dos seus dias.
Lisbeth Salander ouvira os passos no corredor diante do seu quarto. Não apanhara o nome de Jonas Sandberg e era a primeira vez que ouvia aqueles passos.
A porta mantivera-se aberta durante toda a noite, uma vez que as enfermeiras entravam e saíam de dez em dez minutos. Ouvira o homem chegar e explicar a uma enfermeira, muito perto da porta do quarto, que precisava absolutamente de falar com Herr Karl Axel Bodin para tratar de um assunto urgente. Percebera que o homem mostrara um cartão, mas nada fora dito que fornecesse uma pista sobre o nome do visitante ou a natureza do cartão.
A enfermeira pedira ao visitante que esperasse enquanto ia ver se Herr Karl Axel Bodin estava acordado. Lisbeth Salander deduzira disto que o cartão devia ser muito convincente.
Verificou que a enfermeira voltara à esquerda no corredor e que dera 17 passos para chegar ao seu destino, e depois que o visitante percorrera a mesma distância em apenas 14 passos. O que dava uma média de 15 passos e meio. Calculou o comprimento dos passos em 60 centímetros, o que, multiplicado por 15 e meio, significava que Zalachenko se encontrava num quarto situado nove metros e trinta para a esquerda. Okay, dez metros. Calculou que o seu próprio quarto tinha cerca de cinco metros de largura, o que significava que Zalachenko estava a duas portas de distância.
De acordo com os algarismos verdes do despertador pousado em cima da mesa-de-cabeceira, a visita durara exactamente dez minutos.
Zalachenko continuou acordado durante muito tempo depois de Jonas Sandberg ter saído. Calculou que não fosse esse o verdadeiro nome do homem, pois a experiência ensinara-lhe que os espiões amadores suecos tinham uma fixação com os nomes de cobertura,
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mesmo quando não havia qualquer necessidade. Fosse como fosse, aquele Jonas (ou como raio se chamava) era a primeira indicação de que a Secção tomara nota da sua situação. Tendo em conta o escarcéu mediático, difícil seria isso não ter acontecido. Aquela visita viera, no entanto, também confirmar que essa situação era fonte de algumas inquietações. E com boas razões.
Sopesou as vantagens e os inconvenientes, alinhou possibilidades e rejeitou alternativas. Compreendera e aceitara que as coisas tinham corrido irremediavelmente mal. Num mundo perfeito, ele estaria naquele instante na sua casa em Gosseberga, Ronald Niedermann estaria em segurança no estrangeiro e Lisbeth Salander debaixo de metro e meio de terra. Não obstante, de um ponto de vista racional, compreender o que acontecera, tinha uma enorme dificuldade em perceber como conseguira ela sair da cova, voltar à quinta e destruir-lhe a vida com duas machadadas. A criatura era dotada de recursos
incríveis.
Em contrapartida, compreendia perfeitamente o que se passara com Ronald Niedermann e por que razão ele fugira em vez de acabar de uma vez por todas com Salander. Sabia que havia qualquer coisa que não batia certo na cabeça de Niedermann, que ele tinha visões, que via fantasmas. Mais de uma vez fora obrigado a intervir quando Niedermann agia de uma forma irracional e se enrolava
numa bola de terror.
Era uma coisa que o preocupava. Considerando que Ronald Niedermann ainda não fora capturado, Zalachenko estava convencido de que funcionara racionalmente nos dias seguintes à fuga de Gosseberga. Tentava muito provavelmente chegar a Tallinn, onde encontraria protecção entre os contactos do pai no mundo do crime. O que o preocupava era nunca se poder prever o momento em que Niedermann ia paralisar. Se acontecesse durante a fuga, cometeria erros, seria apanhado. Não se entregaria sem luta, e isso significaria a morte de alguns polícias e, verosimilmente, a morte do próprio Niedermann. Este pensamento preocupava Zalachenko. Não queria que Niedermann morresse. Niedermann era seu filho. Por outro lado, o facto, embora lamentável, era que Niedermann não podia ser capturado
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vivo. Niedermann nunca fora apanhado pela polícia e Zalachenko não sabia como reagiria a um interrogatório. Mas, infelizmente, calculava que não saberia manter-se calado. Seria, pois, vantajoso que Niedermann morresse durante a captura. Zalachenko choraria o filho, mas a alternativa era ainda pior. Significaria que ele próprio passaria o resto dos seus dias na prisão.
No entanto, tinham passado 48 horas desde a fuga de Niedermann, e ainda não tinham conseguido encurralá-lo. Era bom sinal. Significava que Niedermann estava a funcionar bem, e um Niedermann a funcionar bem era imbatível.
Mas a longo prazo, perfilava-se uma outra preocupação. Zalachenko perguntava a si mesmo como se arranjaria Niedermann sozinho, sem o pai para lhe guiar os passos. Ao longo dos anos, reparara que se deixasse de lhe dar instruções ou se lhe desse rédea solta para tomar as suas próprias iniciativas, ele deixava-se facilmente cair num estado de apática passividade.
Zalachenko pensou, não pela primeira vez, que era uma autêntica calamidade o filho ter aquelas peculiaridades. Ronald Niedermann era, sem dúvida, um indivíduo muito inteligente, dotado de qualidades físicas que faziam dele um homem temível e temido. Além disso, era um excelente organizador que sabia manter o sangue-frio. O seu único problema era a falta de capacidade de chefia. Tinha sempre necessidade de alguém para lhe dizer o que devia fazer.
Tudo isto estava, no entanto, e de momento, fora do seu controlo. Agora tinha de cuidar de si mesmo. A sua situação era precária, talvez mais precária do que nunca.
A visita de Thomasson, horas antes, não lhe parecera particularmente tranquilizadora. Thomasson sempre fora e seria um especialista em direito comercial, e toda a sua eficácia na matéria de pouca utilidade seria no actual contexto.
E depois, fora a visita de Jonas Sandberg. Sandberg constituía uma bóia de salvação bem mais sólida. Mas uma bóia que também podia revelar-se uma armadilha. Ia ter de jogar as suas cartas com muita habilidade e assumir o controlo da situação. O controlo era essencial.
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E, ao fim e ao cabo, podia confiar nos seus próprios recursos. De momento, tinha necessidade de cuidados médicos. Mas dentro de alguns dias, talvez uma semana, teria recuperado as forças. Se as coisas chegassem ao extremo, só poderia contar consigo mesmo. O que significava que tinha de desaparecer nas barbas de todos os polícias que o vigiavam. Ia precisar de um esconderijo, de um passaporte e de dinheiro. Thomasson fornecer-lhe-ia tudo isso. Mas, primeiro, tinha de recuperar o suficiente para ter forças para fugir.
À uma hora, a enfermeira da noite foi vê-lo. Fingiu estar a dormir. Quando ela fechou a porta, sentou-se laboriosamente na cama e rodou as pernas para fora. Ficou assim sentado, sem se mexer, alguns minutos, a testar o equilíbrio. Então, pousou com muito cuidado o pé esquerdo no chão. Por sorte, a machadada atingira-o na perna direita, que já estava estropiada. Estendeu a mão para pegar na prótese, guardada no armário ao lado da cama, e fixou-a no coto. Pôs-se de pé. Apoiou o peso do corpo na perna esquerda e tentou pousar a direita. Uma dor lancinante subiu-lhe pela coxa.
Cerrou os dentes e deu um passo. Iria precisar de canadianas, mas estava convencido de que o hospital não tardaria a propor-lhas. Apoiou-se à parede com uma mão e coxeou até à porta. Precisou de vários minutos para lá chegar e teve de parar a cada passo para dominar a dor.
Descansou o peso do corpo sobre a perna válida, entreabriu muito ligeiramente a porta e inspeccionou o corredor. Não viu ninguém, e atreveu-se a espreitar um pouco mais. Ouviu vozes fracas vindas da esquerda e olhou nessa direcção. A sala das enfermeiras do turno da noite ficava a cerca de vinte metros de distância, do lado oposto do
corredor.
Olhou para a direita e viu a porta ao fundo do corredor.
Durante a tarde, tentara informar-se sobre o estado de Lisbeth Salander. Ao fim e ao cabo, era sua filha. As enfermeiras tinham ordens expressas para não falar dos pacientes. Uma delas limitara-se a dizer, num tom neutro, que o estado de Lisbeth era estável. Mas, num gesto reflexo, olhara para o lado esquerdo, no corredor.
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Lisbeth Salander encontrava-se num dos quartos contíguos, entre o dele e a sala das enfermeiras.
Fechou a porta sem fazer ruído e voltou a coxear para a cama, onde retirou a prótese. Estava alagado em suor quando, finalmente, pôde enfiar-se debaixo do lençol.
O inspector Jerker Holmberg regressou a Estocolmo por volta do meio-dia de domingo. Estava cansado, cheio de fome e doíam-lhe as costas. Apanhou o metro até à estação da Câmara Municipal e fez a pé o resto do caminho até Kungsholmen, onde subiu directamente ao gabinete de Jan Bublanski. Sonja Modig e Curt Andersson já lá estavam. Bublanski convocara-os para aquela reunião em pleno domingo por saber que o encarregado do inquérito preliminar, o procurador Richard Ekstrõm, estava ocupado com outros compromissos.
- Obrigado por terem vindo - começou Bublanski. -Julgo que é tempo de termos uma conversa calma entre nós para tentar lançar alguma luz sobre esta baralhada. Jerker, trazes alguma novidade?
- Nada que não tenha já contado pelo telefone. O Zalachenko não cede um milímetro. Está completamente inocente e não pode ajudar-nos seja no que for. Por exemplo...
-Sim?
- Tinhas razão, Sonja. É um dos indivíduos mais sinistros que alguma vez conheci. Sinto-me um bocado parvo a dizer isto. Na polícia, não devíamos raciocinar nestes termos, mas há qualquer coisa que mete medo por baixo daquele verniz calculista.
- Okay - disse Bublanski, tossicando. - O que é que sabemos? Sonja
Modig esboçou um pequeno sorriso.
- Os detectives privados venceram este assalto. Não existe nenhum Zalachenko em nenhum registo oficial, mas há um Karl Axel Bodin que nasceu em 1939, em Uddevalla. Os pais chamavam-se Mananne e Georg Bodin. Existiram, mas morreram num acidente, em 1946. Karl Axel Bodin foi criado por um tio, na Noruega. Por isso não temos nada a respeito dele antes dos anos setenta, quando regressou
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à Suécia. A versão do Mikael Blomkvist, de que ele é um ex-agente do GRU, parece inverificável, mas inclino-me a pensar que é verdadeira. - E isso implicaria...?
- Que lhe tenha sido atribuída uma identidade falsa. O que só pode ter sido feito com a conivência das autoridades.
- Da Sapo, portanto?
- É o que afirma o Blomkvist. A forma como isso terá sido feito, não sei. Implica que a certidão de nascimento e um monte de outros documentos tenham sido falsificados e inseridos nos registos oficiais suecos. Não ouso pronunciar-me sobre os aspectos legais de uma tal acção. Tudo depende, provavelmente, de quem decidiu. Mas para ser legal, a decisão teve, quase de certeza, de ter sido tomada a nível governamental.
Fez-se silêncio no gabinete, enquanto os quatro inspectores consideravam as implicações.
- Okay - acabou Bublanski por dizer. - Somos quatro polícias de mãos atadas. Se o Governo está implicado, não serei com certeza eu a chamá-lo à pedra.
- Hum - resmungou Curt. - Poderia levar a uma crise constitucional. Nos Estados Unidos, é possível chamar um membro do governo a responder perante um tribunal ordinário. Na Suécia, tem de passar pela Comissão Constitucional.
- O que podemos fazer, por outro lado, é perguntar ao chefe -sugeriu Holmberg.
- Perguntar ao chefe? - espantou-se Bublanski.
- O Thorbjõrn Fãlldin.(1) Na altura, era ele o primeiro-ministro.
- Isso. Aparecemos em casa dele, não sei onde, e perguntamos ao antigo primeiro-ministro se arranjou documentos de identidade falsos para um espião soviético trânsfuga. Não me parece que seja boa ideia.
- O Fãlldin vive em Âs, na comuna de Hãrnõsand. Nasci para aqueles lados, a poucos quilómetros da casa dele. O meu pai é centrista e conhece-o muito bem. Eu próprio encontrei-o várias vezes,
(1) Thorbjõrn Fãlldin, primeiro-ministro centrista de um governo tripartido de direita de 1976 a 1978 e de 1979 a 1981. (N. do T.)
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quando era miúdo e também já em adulto. É uma pessoa muito acessível.
Três inspectores cravaram em Holmberg um olhar espantado.
- Conheces o Fálldin? - disse Bublanski, hesitante. Holmberg assentiu com a cabeça. Bublanski fez uma careta.
- A verdade - disse Holmberg - é que resolveríamos uma porção de problemas se conseguíssemos convencer o antigo primeiro-ministro a contar-nos o que se passou, de modo a ficarmos a saber a quantas andamos no meio desta alhada. Posso ir falar com ele. Se não disser nada, paciência. Se falar, poupa-nos uma quantidade de tempo.
Bublanski reflectiu na proposta. Acabou por abanar a cabeça. Viu, pelo canto do olho, que também Sonja Modig e Curt Andersson faziam o mesmo.
- Holmberg... a proposta é interessante, mas acho que vamos deixar isso para mais tarde. Passemos à frente. Sonja?
- Segundo o Blomkvist, o Zalachenko chegou à Suécia em 1976. Tanto quanto consigo entender, só há uma pessoa que lhe pode ter dado esta informação.
- O Gunnar Bjõrck - disse Curt Andersson.
- O que é que o Bjõrck nos conta? - perguntou Holmberg.
- Pouca coisa. Invoca o sigilo profissional e diz que não pode discutir nada sem autorização dos seus superiores.
- E quem são os superiores dele?
- Recusa-se a dizer.
- Que vai então acontecer-lhe?
- Acusei-o de pagar por serviços sexuais. Dispomos de uma excelente documentação, graças ao Dag Svensson. Fez saltar a tampa ao Ekstrõm, mas uma vez que eu estabeleci uma relação, arrisca-se a ter problemas se abandonar o inquérito - disse Andersson.
- Ah! Infracção à lei por pagamento de serviços sexuais. O que é que isso dá? Uma multa, suponho.
- Provavelmente. Mas temo-lo no sistema e podemos voltar a chamá-lo para interrogatório.
- Mas nesse caso andaremos a pisar os canteiros da Sapo, o que e capaz de provocar turbulências.
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- A questão é que nada do que se passou teria acontecido se a Sapo não estivesse implicada, de uma maneira ou de outra. É possível que o Zalachenko seja realmente um espião russo que passou para o lado de cá e pediu asilo político. E também possível que tenha trabalhado para a Sapo como agente ou como fonte, não sei como chamar-lhe, e que haja uma boa razão para lhe terem oferecido uma falsa identidade e o anonimato. Mas há aqui três problemas. Em primeiro lugar, o inquérito conduzido em 1991 e que resultou no internamento da Lisbeth Salander foi ilegal. Em segundo lugar, a actividade do Zalachenko a partir dessa data não teve estritamente nada que ver com a segurança do país. O Zalachenko é um vulgaríssimo gangster e muito provavelmente cúmplice de uma série de homicídios e outros crimes. E em terceiro lugar, não resta a mínima dúvida de que alguém disparou contra a Lisbeth Salander e a enterrou num terreno pertencente ao Zalachenko em Gosseberga.
- Por falar nisso, gostaria muito de ler esse famoso relatório -disse Holmberg.
A expressão de Bublanski ensombrou-se.
- O Ekstrõm deitou-lhe a mão, na sexta-feira, e quando eu lhe pedi que mo devolvesse, disse que ia fazer uma cópia, que não fez. Em vez disso, chamou-me para me dizer que tinha falado com o Ministério Público e que havia um problema. Segundo o procurador-geral, o documento está classificado como secreto, o que significa que não pode circular nem ser copiado. Exigiu que todas as cópias lhe fossem entregues até o caso estar esclarecido. A Sonja foi obrigada a entregar a que tinha.
- Quer isso dizer que já não dispomos do relatório?
- Sim.
- Merda - resmungou Holmberg. - Isso não augura nada de bom.
- Não - admitiu Bublanski. - Mas quer sobretudo dizer que alguém está a agir contra nós, e a agir rápida e eficazmente. Foi esse inquérito que nos pôs na boa pista.
- Nesse caso, temos é de descobrir quem está a agir contra nós - disse Holmberg.
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- Um momento - pediu Sonja Modig. - Temos também o Peter Teleborian. Contribuiu para a nossa investigação fornecendo-nos um perfil da Lisbeth Salander.
- Exactamente - disse Bublanski, num tom ainda mais sombrio. - E que foi que ele disse?
- Que estava muito preocupado com a segurança dela e só queria o seu bem. Mas no fim daquela conversa fiada disse que ela era muito perigosa e capaz de resistir à detenção. Baseámos uma grande parte do nosso raciocínio no que ele disse.
- E também deu a volta à cabeça do Hans Faste - disse Holmberg. - A propósito, que é feito dele?
- Está de licença - respondeu Bublanski, secamente. - A questão agora é saber o que fazer.
Passaram as duas horas seguintes a discutir diferentes possibilidades. A única decisão prática tomada foi que Sonja Modig regressaria a Gotemburgo no dia seguinte para ver se Lisbeth Salander tinha alguma coisa a dizer. Quando, finalmente, puseram fim à reunião, Sonja e Curt desceram juntos até à garagem.
- Estava a pensar numa coisa... - Curt não prosseguiu.
- Sim? - incitou-o Sonja.
- Quando falámos com o Teleborian, tu foste a única do grupo a fazer perguntas e a levantar objecções.
- E?
- E... bom instinto.
Curt Andersson não era famoso por distribuir elogios e era a primeira vez que dizia qualquer coisa de positivo ou de encorajador a Modig. Afastou-se, deixando-a junto ao carro, de boca aberta.
CAPÍTULO 5
DOMINGO, 10 DE ABRIL
Mikael Blomkvist tinha passado a noite de sábado para domingo na cama com Erika Berger. Não tinham feito amor, tinham-se limitado a falar. Uma grande parte da conversa fora dedicada aos pormenores da história de Zalachenko. A confiança entre os dois era tal que Mikael não dava a mínima importância ao facto de Erika ir começar a trabalhar para outra publicação. E Erika não tinha a mínima intenção de lhe roubar a história. O "furo" era da Millennium, e se alguma coisa sentia era uma certa frustração por não participar naquele número. Teria gostado de acabar os seus anos na revista a trabalhá-lo.
Falaram também do futuro e do que a nova situação implicaria. Erika estava firmemente decidida a conservar a sua quota na Millennium e o seu lugar no CA. Em contrapartida, ambos compreendiam que ela não poderia intervir no trabalho redactorial em curso.
- Dá-me alguns anos no SMP... e quem sabe? Talvez eu volte à Millennium quando estiver perto da reforma.
E discutiram a sua própria e complicada relação. Não tinham o mínimo desejo de mudar de hábitos, mas parecia evidente que não poderiam continuar a ver-se tão frequentemente como até ali. Ia ser como nos anos 80, antes do início da Millennium, quando ainda trabalhavam em sítios diferentes.
- A única solução será marcarmos encontros - disse Erika, com um pequeno sorriso.
No domingo de manhã separaram-se à pressa antes de Erika se ir juntar ao marido, Greger Beckman.
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- Não sei o que dizer - observou Erika, à porta -, mas reconheço todos os sinais que indicam que estás completamente absorvido por um assunto e que tudo o mais passou para segundo plano. Sabes que te comportas como um psicopata quando estás a trabalhar? Mikael sorriu e beijou-a na face.
Depois de Erika sair, dedicou a manhã a telefonar para o Hospital Sahlgrenska, a tentar obter informações sobre o estado de saúde de Lisbeth Salander. Ninguém quis dar-lhas, de modo que acabou por ligar para o inspector Marcus Ackerman, que teve pena dele e lhe disse que, dadas as circunstâncias, o estado de Lisbeth era satisfatório e que os médicos estavam relativamente optimistas. Perguntou se podia visitá-la. Ackerman respondeu que Lisbeth se encontrava preventivamente detida por ordem do procurador-geral e não estava autorizada a receber visitas, mas que, de momento, a questão era académica. Dado o seu estado, não fora sequer possível interrogá-la. Mikael conseguiu arrancar-lhe a promessa de que o avisaria se Lisbeth piorasse.
Abriu a lista de mensagens recebidas no telemóvel e verificou que tinha 42 chamadas e SMS de diferentes jornalistas que tentavam desesperadamente contactá-lo. A notícia de que fora ele que encontrara Lisbeth Salander e alertara os Serviços de Emergência Médica, e o facto de estar tão intimamente ligado ao desenrolar dos acontecimentos, tinha sido objecto das mais loucas especulações nos meios de comunicação social, no decurso das últimas 24 horas.
Apagou todas as mensagens dos jornalistas. Em seguida, ligou para a irmã e combinou um almoço para esse mesmo dia.
Feito isto, telefonou para Dragan Armanskij, CEO da Milton oecurity. Apanhou-o, pelo telemóvel, na casa que tinha em Lidingõ.
- Parece, meu caro, que tem o condão de criar títulos sensacionais - disse Armanskij, secamente.
- Peço desculpa por não ter ligado durante a semana. Vi a mensagem, mas não tive tempo...
- Conduzimos a nossa própria investigação, aqui na Milton. E o Rolger Palmgren deu-me a entender que você sabe qualquer coisa. Mas dir-se-ia que está quilómetros à nossa frente.
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Mikael hesitou um instante, sem saber muito bem como dizer aquilo.
- Posso confiar em si? - perguntou.
A pergunta pareceu surpreender Armanskij.
- De que ponto de vista?
- Está ou não do lado da Lisbeth? Posso ter a certeza de que quer
o bem dela?
- Considero-me amigo dela. Como bem sabe, isso não significa
que ela se considere minha amiga.
- Eu sei. Mas o que quero saber é se está disposto a estar ao lado dela no ringue a enfrentar as bestas que querem fazer-lhe mal. E vai haver muitos assaltos nesse combate.
Armanskij reflectiu.
- Estou do lado dela - acabou por responder.
- Posso dar-lhe informações e discutir assuntos consigo sem recear fugas para a polícia ou para quaisquer outros meios?
- Está fora de questão eu envolver-me em qualquer actividade criminosa.
- Não foi isso que perguntei.
- Pode confiar inteiramente em mim desde que não me revele que está envolvido numa actividade criminosa, ou qualquer coisa nessa linha.
- De acordo. Precisamos de nos encontrar.
- Regresso à cidade esta tarde. Jantamos?
- Não, não posso. Mas gostaria que nos encontrássemos amanhã à tarde. Nós os dois, e talvez mais algumas pessoas. Precisamos de falar com calma.
- Pode ser na Milton. Às seis?
- Combinado. Outra coisa... vou estar com a minha irmã, a Annika Giannini, dentro de duas horas. Ela está a considerar a possibilidade de representar a Lisbeth, mas não pode, evidentemente, trabalhar de borla. Eu posso pagar uma parte dos honorários do meu bolso. A Milton Security está disposta a contribuir?
- A Lisbeth vai ter necessidade de um advogado muito competente. Não me parece que a sua irmã seja a pessoa certa, salvo o
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devido respeito. Já falei com o nosso consultor jurídico e ele vai procurar o advogado de que precisamos. Estou a pensar no Peter Althin, ou alguém do género.
- Errado. A Lisbeth vai precisar de um tipo de advogado completamente diferente. Compreenderá o que quero dizer depois de falarmos. Mas pode injectar algum dinheiro para a defesa, se for preciso?
- Já tinha decidido que a Milton contrataria um advogado para a defender...
- Isso quer dizer sim ou não? Sei o que aconteceu à Lisbeth. Sei mais ou menos quem está por detrás disto. Sei porquê. Tenho um plano de ataque.
Armanskij riu-se.
- Está bem, vou ouvir a sua proposta. Se ela não me agradar, fico de fora.
- Pensaste na minha proposta de representar a Lisbeth Salander? - perguntou Mikael, depois de ter beijado a irmã e de o café e as sanduíches terem sido servidos.
- Pensei. E sou obrigada a recusar. Sabes que não exerço direito penal. Mesmo que seja absolvida dos homicídios, terá de enfrentar uma longa lista de acusações. Vai precisar de alguém com um tipo de experiência que eu não tenho.
- Enganas-te. És advogada e a tua competência é mais que reconhecida no que se refere aos direitos das mulheres. Digo que és exactamente a pessoa de que precisamos.
- Mikael... penso que não estás a ver bem o que isto significa. Trata-se de um processo criminal complexo, não de um simples caso de violência doméstica ou de assédio sexual. Se eu aceitar defendê-la, corremos o risco de uma catástrofe.
Mikael sorriu.
- Tenho a impressão de que não compreendeste aonde quero chegar. Se a Lisbeth fosse acusada dos homicídios do Dag e da Mia, contrataria um advogado do género Silbersky ou outro peso pesado dos casos criminais. Mas este julgamento vai ser sobre um assunto
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completamente diferente. E, para isso, tu és a advogada mais perfeita que consigo imaginar.
Annika Giannini suspirou.
- Nesse caso, é melhor explicares-te.
Falaram durante quase duas horas. Quando Mikael terminou, Annika estava convencida. Mikael pegou no telemóvel e ligou para Marcus Ackerman, em Gotemburgo.
- Olá. Sou outra vez eu, o Blomkvist.
- Não tenho novidades no que respeita à Salander - disse Ackerman, irritado.
- Não haver notícias é bom sinal, é o que se pode dizer nas presentes circunstâncias. Mas eu tenho novidades em relação a ela.
- Ah, bom.
- É verdade. Tem uma advogada chamada Annika Giannini. Está sentada à minha frente e vou passá-la.
Mikael entregou o portátil à irmã.
- Bom dia. Chamo-me Annika Giannini e foi-me pedido que representasse a Lisbeth Salander. Preciso, portanto, de entrar em contacto com a minha cliente para poder preparar a defesa. E preciso do número de telefone do procurador.
- Estou a ver - disse Ackerman. - Pensava que tinha sido nomeado um advogado oficioso.
- Hum, hum. Alguém perguntou alguma coisa à Lisbeth Salander?
Ackerman hesitou.
- Para dizer a verdade, ainda não tivemos possibilidade de comunicar com ela. Esperamos poder falar-lhe amanhã, se o seu estado de saúde o permitir.
- Tanto melhor. Nesse caso, e até que Frõken Salander me contradiga, considerar-me-ão sua advogada. Não poderão interrogá-la sem ser na minha presença. Poderão apenas falar com ela para lhe perguntar se me aceita ou não como sua advogada. Compreendeu?
- Sim - respondeu Ackerman, com um suspiro. Não sabia muito bem qual era a situação a nível jurídico. Pensou um pouco, e acrescentou: - Antes de mais nada, queríamos perguntar a Frõken Salander
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se faz alguma ideia de onde poderá estar Ronald Niedermann, o assassino do polícia. Podemos perguntar-lhe isso, mesmo sem ser na sua presença?
Annika Giannini hesitou.
- Tudo bem... perguntem-lhe, se isso ajudar a polícia a localizar o Niedermann. Mas nem uma palavra sobre eventuais acusações contra ela. Estamos de acordo?
- Acho que sim.
Marcus Ackerman saiu imediatamente do seu gabinete e subiu a escada para ir bater à porta de Agneta Jervas, que dirigia o inquérito preliminar. Deu-lhe conta da conversa que acabara de ter com Annika Giannini.
- Não sabia que a Lisbeth Salander tinha uma advogada.
- Nem eu. Mas a Giannini foi contratada pelo Mikael Blomkvist. E ele não tem a certeza de que a Salander esteja ao corrente.
- Mas a Giannini não exerce direito penal. Ocupa-se sobretudo de questões relacionadas com os direitos das mulheres. Assisti a uma conferência dela, uma vez. É boa, mas nada adequada a este caso.
- Bom, isso terá de ser a Salander a decidir.
- Nesse caso, é possível que me veja obrigada a contestar a escolha perante o tribunal. É importante para a Salander ter um verdadeiro defensor, e não uma estrela que faz cabeçalhos nos jornais. Hum. Além disso, a Salander foi declarada legalmente interdita. Não sei muito bem o que se aplica a estes casos.
- O que é que fazemos?
Agneta Jervas reflectiu um instante
- Mas que grande baralhada! Nem sequer sei quem vai ficar com este caso. O mais certo é ser transferido para o Ekstrõm, em Estocolmo. Mas ela tem de ter um advogado. Okay... pergunta-lhe se quer a Giannini.
Ao voltar a casa, por volta das cinco da tarde, Mikael ligou o ebook e retomou o fio do texto que tinha começado a escrever no hotel- Trabalhou sete horas seguidas, até identificar as grandes lacunas
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da história. Tinha ainda muita pesquisa a fazer. Uma das questões a que os documentos existentes não permitiam responder era que elementos da Sapo, além de Gunnar Bjõrck, tinham conspirado para internar Lisbeth numa instituição psiquiátrica. Também ainda não sabia qual a natureza da relação entre Bjõrck e o psiquiatra Peter
Teleborian.
Por volta da meia-noite, desligou o computador e foi para a cama. Pela primeira vez em várias semanas sentiu que podia descontrair e dormir tranquilamente. Tinha a sua história. Por muitos pontos de interrogação que restassem, tinha já material suficiente para desencadear uma avalancha de grandes cabeçalhos.
Foi repentinamente assaltado pelo desejo de telefonar a Erika e pô-la a par da situação. Lembrou-se então de que ela já não trabalhava na Millennium. A partir daí, dormir tornou-se mais difícil.
Na Estação Central de Estocolmo, o homem da pasta castanha apeou-se lentamente do comboio das 19h30, vindo de Gotemburgo, e permaneceu imóvel por alguns instantes, no meio da multidão, para se orientar. Iniciara a sua viagem em Laholm e fizera uma paragem em Gotemburgo, para almoçar com um velho conhecido, antes de retomar o caminho para Estocolmo, onde estivera pela última vez dois anos antes e aonde, até ao dia anterior, não tencionara voltar. Apesar de lá ter residido durante a maior parte da sua vida profissional, sempre se sentira na capital como um peixe fora de água, um sentimento que aumentava a cada visita desde que se reformara.
Atravessou lentamente o átrio da estação, comprou os jornais da tarde e duas bananas no Point-Presse, e contemplou pensativamente duas muçulmanas de lenço na cabeça que o ultrapassavam em passo acelerado. Não tinha nada contra as mulheres de lenço. Se as pessoas queriam disfarçar-se, o problema era delas. Em contrapartida, incomodava-o que quisessem a todo o custo fazê-lo em plena Estocolmo. Percorreu a pé os 300 metros até ao Hotel Frey, junto à antiga estação principal dos Correios, na Vasagatan. Ficava sempre ali nas suas raras visitas a Estocolmo. Central e decente. E além disso barato, uma necessidade, uma vez que pagava a viagem do seu próprio
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bolso. Reservara o quarto na véspera e apresentou-se sob o nome de Evert Gullberg.
Já no quarto, foi direito à casa de banho. Chegara a uma idade em que era obrigado a aliviar-se com muita frequência. Havia já vários anos que não sabia o que era dormir uma noite inteira sem se levantar para urinar.
Em seguida, tirou o chapéu de feltro azul-escuro, de aba estreita, e alargou o nó da gravata. Era magro, quase escanzelado, com um metro e 84 de altura e 68 quilos de peso. Vestia um casaco pied-de-poule e umas calças cinzento-escuro. Abriu a pasta castanha e tirou de lá duas camisas, uma gravata e alguma roupa interior, que guardou numa gaveta da cómoda. Pendurou o sobretudo e o casaco nos ganchos atrás da porta.
Era demasiado cedo para ir para a cama, e demasiado tarde para que tivesse coragem de ir dar um passeio, ocupação que, de todos os modos, não lhe daria prazer. Sentou-se na inevitável cadeira de hotel e olhou em redor. Ligou o televisor, mas baixou o som para não ser incomodado. Considerou a hipótese de ligar para a recepção e encomendar um café, mas acabou por decidir que a tarde já ia demasiado avançada. Em vez disso, abriu o minibar e verteu num copo o conteúdo de uma miniatura de johny Walker, a que juntou algumas gotas de água. Pegou nos jornais da tarde e leu atentamente tudo o que tinha sido escrito sobre a perseguição a Ronald Niedermann e sobre o caso Salander. Passado algum tempo, pegou num bloco com a capa de couro e começou a tomar notas.
O antigo chefe de gabinete da Sapo, Evert Gullberg, tinha 78 anos e estava oficialmente reformado havia 14. Mas tal como os velhos soldados, os velhos espiões nunca morrem, apenas desaparecem por entre as sombras.
Perto do fim da Guerra, quando Gullberg tinha 19 anos, quisera
fazer carreira na Armada. Cumprira o serviço militar como aspirante
a oficial de Marinha e fora aceite na Escola Naval. Mas ao contrário
do que seria expectável, em vez de o terem mandado para o mar,
tinham-no enviado para o Serviço de Informações. Compreendia a
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necessidade de controlar as transmissões do inimigo, na esperança de descobrir o que se tramava no outro lado do Báltico, mas achava o trabalho aborrecido e sem interesse. Os cursos de línguas do exército tinham-lhe, no entanto, permitido aprender russo e polaco. Fora esta aptidão que, em 1950, levara a Polícia de Segurança Nacional a recrutá-lo. Era a época em que Georg Rhulin, um homem de uma rectidão irrepreensível, dirigia a 3.a Brigada da Polícia do Estado. Quando entrara ao serviço, o orçamento total da polícia secreta ascendia a 2,7 milhões de coroas e os quadros de pessoal contavam exactamente com 96 pessoas.
Quando Evert Gullberg passara oficialmente à reforma, o orçamento da Sapo excedia os 350 milhões de coroas e ninguém saberia dizer ao certo quantos empregados havia.
Gullberg passara a vida a trabalhar para os serviços secretos, ou mais precisamente para o bom povo social-democrata. Ironia do destino, uma vez que, em todas as eleições, votara fielmente nos moderados, excepto em 1991, quando votara deliberadamente contra eles, por considerar Carl Bildt uma catástrofe da realpolitik. Nesse ano, resignara-se a apoiar com o seu sufrágio Ingvar Carlsson. Os quatro melhores anos de governo que a Suécia alguma vez tivera, encabeçado pelos moderados, tinham igualmente confirmado os seus piores receios. O governo moderado formara-se por altura do desmembramento da União Soviética, e, na opinião de Gullberg, nunca houvera um regime tão mal preparado para enfrentar e aproveitar as novas possibilidades políticas na arte da espionagem surgidas a Leste. O governo de Bildt tinha, pelo contrário, invocado razões económicas para reduzir a secção soviética, preferindo apostar em inépcias internacionais na Bósnia e na Sérvia... como se a Sérvia pudesse, algum dia, tornar-se uma ameaça para a Suécia! O resultado fora a impossibilidade de colocar em Moscovo informadores a longo prazo, e no dia em que o ambiente voltasse a endurecer - o que, considerava Gullberg, era inevitável -, iam voltar a fazer exigências políticas extravagantes à Sapo e ao Serviço de Informações Militares, como se pudessem fazer aparecer agentes por artes mágicas.
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Gullberg iniciara a sua carreira na secção russa da 3.a Brigada da Polícia do Estado e, ao fim de dois anos passados atrás de uma secretária, dera os seus primeiros e hesitantes passos no terreno como adido militar, com o posto de capitão, na embaixada sueca em Moscovo, de 1952 a 1953. Facto curioso: seguia as pisadas de um outro espião célebre. Anos antes, o seu posto fora ocupado por um oficial não totalmente desconhecido, o coronel Stig Wennerstrõm.
De regresso à Suécia, trabalhara na contra-espionagem e, dez anos mais tarde, era um dos membros mais jovens da equipa da Sapo que, em 1963, chefiada pelo director das Intervenções, Otto Danielsson, detivera Wennerstrõm, condenado a uma pena de prisão perpétua, e o levara para a Penitenciária de Lângholmen,
Quando, em 1964, a polícia secreta fora reestruturada sob a direcção de Per Gunnar Vinge, tornando-se o Departamento de Segurança da Direcção-Geral da Polícia Nacional, a DGPN/Sapo, o número de funcionários começara a crescer. Na altura, Gullberg trabalhava na Sapo havia 14 anos e tornara-se um dos veteranos de confiança.
Gullberg evitava usar a abreviatura Sapo, preferindo-lhe Polícia de Segurança. Com os colegas, acontecia-lhe falar da Empresa, ou da Firma, ou mais simplesmente do Departamento - mas nunca de Sapo. A razão era simples: a principal missão da Firma durante muitos anos fora o controlo do pessoal, ou seja, a investigação e registo de cidadãos suecos suspeitos de terem tendências comunistas e serem traidores à pátria. Na Firma, as expressões "tendências comunistas" e "traidores à pátria" eram usadas como sinónimos. A palavra "Sapo", finalmente adoptada por todos, fora originariamente criada pelo Claré, um jornal comunista traidor à pátria, como uma espécie de termo pejorativo que se aplicava aos caçadores de comunistas da polícia. E Gullberg tinha uma grande dificuldade em compreender o que levara o seu antigo chefe, P. G. Vinge, a intitular as suas memórias Fui Chefe da Sapo de 1962 a 1970.
A reestruturação de 1964 ia decidir a futura carreira de Gullberg.
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Ao transformar-se em DGPN/Sapo, a polícia secreta passava a ser aquilo que as notas do Ministério da Justiça qualificavam como uma organização policial moderna. Isto implicava novos recrutamentos e, logo, intermináveis problemas de adaptação, o que, numa organização em expansão, teve como consequência facilitar enorme-mente ao Inimigo a tarefa de infiltrar os seus agentes. O que, por sua vez, significou a necessidade de reforçar o controlo da segurança interna - a polícia secreta não podia continuar a ser um clube selecto constituído por antigos oficiais, onde todos se conheciam e onde, frequentemente, o mérito de um novo recruta era ter um pai oficial.
Em 1963, Gullberg fora transferido da contra-espionagem para o controlo do pessoal, reforçado na esteira do desmascaramento de Stig Wennerstrõm. Fora por essa altura que tinham sido lançadas as bases do registo de opiniões que, em finais dos anos 60, listava mais de 300 mil cidadãos suecos que defendiam posições políticas menos convenientes. Mas o controlo dos cidadãos suecos em geral era uma coisa - ali, tratava-se de saber como conceber o controlo da segurança no seio da própria DGPN/Sapo.
Wennerstrõm criara um sem-fim de embaraços à polícia secreta do Estado. Se fora possível um coronel do estado-maior da Defesa trabalhar para os russos - sendo, ainda por cima, conselheiro do governo em matérias relacionadas com o armamento nuclear e a política de segurança -, poderia alguém afirmar que os russos não tinham um agente igualmente bem colocado na polícia secreta? Quem podia garantir que os directores e outros responsáveis da Firma não estavam na verdade a soldo da União Soviética? Em suma, quem devia espiar os espiões?
Numa tarde de Agosto de 1964, Gullberg fora convocado para uma reunião no gabinete do director-adjunto da Sapo, o chefe de gabinete Hans Wilhelm Francke. Além dele, estavam presentes duas outras pessoas pertencentes às altas esferas da Firma: o secretário-geral e o responsável pelo orçamento. Antes do final do dia, a vida de Gullberg tinha mudado de rumo. Fora escolhido. Fora-lhe atribuída a chefia de uma brigada recém-criada com o nome provisório de Secção Especial, com a sigla SS. A primeira medida de Gullberg
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mudar-lhe o nome para Secção de Análise. Serviu durante alguns minutos, até o responsável pelo orçamento fazer notar que SA não era muito melhor do que SS. No final, ficaram-se por Secção de Análise Especial, SAS, no dia-a-dia denominada a Secção, em vez de Departamento ou Firma, que se aplicavam à Sapo no seu conjunto.
A Secção fora ideia de Francke, que lhe chamava última linha de defesa. Um grupo ultra-secreto com elementos colocados em pontos estratégicos no seio da Firma, mas que permanecia invisível, não era referido nas notas internas nem nas provisões orçamentais e que, por isso mesmo, não podia ser infiltrado. A sua missão: velar pela segurança da nação. Francke tinha poderes para tornar isso possível. Precisava do secretário-geral e do responsável pelo orçamento para criar uma estrutura secreta, mas esses eram ambos soldados da velha escola e amigos, depois de dezenas de escaramuças com o Inimigo.
No primeiro ano, a organização incluía apenas Gullberg e três colaboradores escolhidos à lupa. Ao longo dos anos seguintes, a Secção crescera até incluir dez pessoas, dois secretários administrativos e oito caçadores de espiões profissionais. Hierarquia ultra-simplificada: Gullberg era o chefe e todos os outros eram colaboradores que se encontravam com ele praticamente todos os dias. A eficácia era mais valorizada do que o prestígio e a burocracia.
Formalmente, Gullberg era subordinado de uma longa lista de nomes na hierarquia do secretariado-geral da Sapo, aos quais tinha de apresentar relatórios mensais, mas, na prática, encontrava-se numa posição única e detinha poderes extraordinários. Ele, e só ele, podia decidir dissecar ao microscópio as mais altas instâncias da Sapo. Podia, se quisesse, virar do avesso a vida do próprio Per Gunnar Vinge (como de facto fizera). Podia iniciar as suas próprias investigações ou ordenar escutas telefónicas sem ter de explicar os objectivos ou referir o facto a um superior. O seu modelo era o lendário espião americano James Jesus Angleton, que ocupava uma posição semelhante na CIA e que ele conhecia, aliás, pessoalmente.
Em suma, a Secção tornou-se uma microorganização no seio do apartamento, independente, acima e ao lado, de todo o resto da
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Polícia de Segurança. O que teve também consequências geográficas. A Secção tinha escritórios em Kungsholmen mas, por razões de segurança, fora transferida para um apartamento privado com onze divisões, em Õstermalm. O apartamento fora transformado numa fortaleza que nunca ficava sem guarnição, uma vez que a fiel secretária, Eleanor Badenbrink, fora instalada a título permanente nas duas divisões mais próximas da porta. Badenbrink era um recurso inestimável, em quem Gullberg depositara a mais absoluta confiança.
Em termos de funcionamento e organização, Gullberg e os seus colaboradores escapavam a qualquer espécie de notoriedade: eram financiados por um "fundo especial" e não existiam em parte alguma da burocracia formal da Polícia de Segurança que dependia da Direcção-Geral da Polícia Nacional ou do Ministério da Justiça. O próprio director da DGPN/Sápo ignorava a existência destes homens, os mais secretos entre os secretos, que tinham por missão gerir os casos mais secretos entre os secretos.
Com 40 anos, Gullberg encontrava-se, pois, numa situação em que não tinha de prestar contas fosse a quem fosse e em que podia investigar exactamente quem quisesse. Tinha compreendido, desde o início, que a Secção de Análise Especial corria o risco de tornar-se um grupo politicamente sensível. No mínimo, a sua missão era muito vaga e as instruções escritas quase inexistentes. Em Setembro de 1964, o primeiro-ministro Tage Erlander assinou uma directiva estipulando as somas que seriam alocadas à Secção de Análise Especial, cuja missão era gerir inquéritos particularmente sensíveis e importantes para a segurança da nação. Foi um dos 12 assuntos deste género que o director-adjunto da DGPN/Sapo, Hans Wilhelm Francke, expôs durante uma reunião da tarde. O assunto foi imediatamente classificado como secreto e arquivado no arquivo especial e igualmente secreto da DGPN/Sápo.
No entanto, a assinatura do primeiro-ministro implicava que a Secção fosse uma instituição juridicamente reconhecida. O primeiro orçamento anual da Secção ascendia a 52 mil coroas. Um orçamento muito pequeno, que o próprio Gullberg estimava ser um golpe de
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génio. Isto subentendia que a criação da Secção era um assunto como outro qualquer.
Num sentido mais lato, a assinatura do primeiro-ministro significava que ele tinha reconhecido a necessidade de criar um grupo que pudesse encarregar-se do "controlo interno do pessoal". Desta assinatura, havia quem pudesse também deduzir que o primeiro-ministro dera o aval à criação de um grupo que pudesse encarregar-se igualmente do controlo de "pessoas particularmente sensíveis" no exterior da Sapo, por exemplo, do próprio primeiro-ministro. Era esta última possibilidade que podia dar origem a graves problemas políticos.
Evert Gullberg deu-se conta de que já não havia johny Walker no copo. Não gostava particularmente de álcool, mas o dia tinha sido longo, a viagem também, e achava que se encontrava numa fase da vida em que pouco importava se decidia beber um ou dois whiskies. Não hesitava em encher o copo se lhe apetecesse. Abriu uma miniatura de Glenfiddich e serviu-se.
O dossiê mais sensível de todos era, evidentemente, o de Olof Palme.
Gullberg lembrava-se ao pormenor desse dia de eleições de 1976. Pela primeira vez na história moderna, a Suécia tinha um governo de direita. Infelizmente foi Thorbjõrn Fãlldin que ascendeu a primeiro-ministro e não Gosta Bohman, um homem da velha escola infinitamente mais adequado. Mas acima de tudo, Palme tinha sido derrotado e Evert Gullberg pudera respirar.
O interesse de ter Olof Palme como primeiro-ministro fora objecto de várias conversações nos mais secretos corredores da DGPN/Sapo. Em 1969, Per Gunnar Vinge foi demitido depois de ter dado a sua opinião, partilhada por várias pessoas do Departamento: a possibilidade de Palme poder ser um agente de informações a soldo do KGB russo. A convicção de Vinge não colheu nenhuma controvérsia no clima que reinava na Firma. Infelizmente, discutiu abertamente o assunto com o governador da província, Ragnar Lassinantti, durante uma visita a Norrbotten. Lassinantti ergueu as sobrancelhas por duas
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vezes informando de seguida o gabinete ministerial, tendo Vinge sido convocado para uma conversinha particular.
Para grande indignação de Evert Gullberg, a questão dos eventuais contactos russos de Palme nunca teve resposta. Apesar dos esforços constantes para encontrar a verdade e descobrir provas decisivas - a arma fumegante -, nunca a Secção conseguira provar que existissem. Aos olhos de Gullberg, longe de demonstrar a inocência de Palme, o facto indicava, pelo contrário, que ele era um espião particularmente hábil e inteligente, que tinha o cuidado de não cometer os erros que outros agentes a soldo da União Soviética tinham cometido. Palme continuava a escapar-se-lhes de ano para ano. Em 1982, o caso ganhara uma nova premência quando Palme fora eleito primeiro-ministro. Depois dos tiros disparados em Sveavãgen, a questão tornara-se definitivamente académica.
1976 foi um ano problemático para a Secção. Começaram a erguer-se vozes discretamente críticas no seio da DGPN/Sápo - evidentemente, só entre as raras pessoas que sabiam da sua existência. No decurso dos dez anos anteriores, 65 funcionários tinham sido afastados da organização por suposta falta de fiabilidade política. Na maior parte dos casos, porém, os documentos eram de uma natureza tal que nada se conseguira provar, o que levara certos chefes altamente colocados a insinuar que os membros da Secção eram paranóicos que viam conspirações e conspiradores por todo o lado.
Gullberg ainda fervia quando recordava um dos casos que a Secção tinha investigado. Tratava-se de uma pessoa que fora recrutada para a DGPN/Sapo em 1968 e que Gullberg tinha pessoalmente considerado particularmente pouco conveniente. O homem em questão chamava-se Stig Bergling, inspector criminal e tenente do exército, que mais tarde viria a revelar-se um coronel do GRU, o serviço de inteligência militar soviético. Por quatro vezes, nos anos seguintes, Gullberg tentara que Bergling fosse afastado, mas todas as suas tentativas tinham sido ignoradas. A situação só se alterara em 1977, quando Bergling despertara suspeitas até no exterior da Secção. Demasiado tarde. Bergling tornara-se o maior escândalo da Polícia de Segurança sueca.
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As críticas à Secção tinham subido de tom no início dos anos 70 e, por volta de meados da década, Gullberg ouvira várias vezes dizer que o orçamento seria reduzido e até insinuações de que aquela actividade não servia para nada. Globalmente, estas críticas significavam que o futuro da Secção estava em perigo. Naquele ano, a prioridade da DGPN/Sápo era as ameaças terroristas, uma história triste do ponto de vista da espionagem que envolvia principalmente jovens dissidentes ligados a árabes ou pró-palestinianos. A grande questão no interior da Sapo era saber se o controlo de pessoal devia tomar providências especiais para vigiar cidadãos estrangeiros residentes na Suécia, ou se isso devia continuar a ser um assunto da alçada exclusiva do Serviço de Estrangeiros.
A partir desta discussão burocrática um tanto ou quanto obscura, fizera-se sentir na Secção a necessidade de contratar os serviços de um colaborador de confiança que seria encarregado de reforçar o controlo dos funcionários da Divisão de Imigração. Sim, espiá-los.
A escolha recaíra num jovem funcionário que trabalhava na DGPN/Sápo desde 1970 e cujo passado e credibilidade política eram tais que era considerado digno de ter o seu lugar entre os membros da Secção. Na sua vida privada, era filiado numa organização denominada Aliança Democrática, que os media social-democratas qualificavam como de extrema-direita. Na Secção, isso não era um defeito. Três outros colaboradores eram igualmente membros dessa organização, em cuja criação a Secção desempenhara, aliás, um papel importante, continuando, ainda na altura, a garantir uma parte do financiamento. Tinha até sido por intermédio da Aliança Democrática que o novo colaborador fora referenciado e recrutado. Chamava-se Gunnar Bjõrck.
Para Evert Gullberg, fora uma sorte incrível o facto de no dia das eleições de 1976, quando Alexander Zalachenko se refugiara na Suécia e entrara na esquadra de polícia de Norrmalm para pedir asilo político, ter sido justamente o jovem Gunnar Bjõrck - infiltrado no Serviço de Estrangeiros e um agente já ligado aos casos mais secretos - a recebê-lo.
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Bjõrck era perspicaz. Compreendera imediatamente a importância de Zalachenko e interrompera o interrogatório, após o que enfiara o desertor num quarto do Hotel Continental. Fora, pois, a Evert Gullberg, e não ao seu chefe nominal na Divisão de Imigração que Gunnar Bjõrck telefonara para dar o alerta. O telefonema chegara a uma hora em que as secções de voto já tinham fechado e tudo apontava para uma derrota de Palme. Gullberg acabava de chegar a casa e acompanhava a noite eleitoral pela televisão. Começara por duvidar da informação que o sobreexcitado jovem lhe transmitia. Em seguida, dirigira-se ao Continental para assumir a direcção do caso Zalachenko.
Nesse dia, a vida de Evert Gullberg mudara radicalmente. A palavra "secreto" adquirira um novo significado e um novo peso. Compreendera a necessidade de criar uma estrutura em torno do desertor. Resolvera de imediato incluir Gunnar Bjõrck no grupo de Zalachenko. Era uma decisão sensata e justa, uma vez que Bjõrck já sabia da existência do renegado. Mais valia mantê-lo no interior da estrutura do que deixá-lo representar um perigo para a segurança no exterior. O que significara a transferência de Bjõrck do Serviço de Estrangeiros para um gabinete no apartamento de Ostermalm.
Na agitação que se seguira, Gullberg optara por informar uma única pessoa no seio da DGPN/Sápo, neste caso o secretário-geral, que já tinha acesso às actividades da Secção. O secretário-geral guardara a informação para si durante vários dias, até explicar a Gullberg que o peixe que mudara de campo era de tal modo graúdo que não havia outra alternativa senão informar o director da DGPN/Sápo, e que até o governo tinha de ser informado.
O director da DGPN/Sápo, que acabava de assumir o cargo, tinha, na época, conhecimento da existência da SAS, mas tinha uma ideia muito vaga das suas verdadeiras funções. Tinham-no nomeado para o lugar para restabelecer a ordem depois do caso IB, e estava ja a caminho de assumir um lugar importante na hierarquia policial No decurso de conversas confidenciais, ficara a saber que a Secção era um grupo secreto criado pelo governo, que evoluía fora da actividade
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normal da Sapo e sobre o qual convinha saber o mínimo possível. Sendo já de si um homem que evitava ao máximo fazer perguntas susceptíveis de gerar respostas desagradáveis, limitara-se a assentir com a cabeça e a aceitar que havia um assunto chamado SAS que não lhe dizia respeito.
Gullberg não ficara particularmente entusiasmado com a ideia de falar de Zalachenko ao director, mas aceitara a realidade. Sublinhara a importância da necessidade de segredo absoluto, que o seu interlocutor apoiara, e impusera condições tais que nem o próprio director da DGPN/Sapo poderia discutir o assunto no seu gabinete sem tomar medidas de segurança específicas. Ficara decidido que Zalachenko seria controlado pela Secção de Análise Especial.
Estava fora de questão informar o primeiro-ministro cessante. Com toda aquela agitação à volta da mudança, o novo chefe do governo andava muito atarefado a nomear ministros e a negociar com os outros partidos da direita. Só um mês depois de o novo gabinete entrar em funções, o director da DGPN/Sapo, acompanhado por Gullberg, se dirigira a Rosenbad, sede do Governo, para informar Fálldin, o primeiro-ministro recém-eleito. Gullberg opusera-se até ao fim, mas o director mantivera-se firme. Constitucionalmente, era indefensável não informar o primeiro-ministro. Durante a reunião, Gullberg usara toda a sua eloquência para persuadir Falldin a não referir sequer a existência de Zalachenko fora do seu gabinete: nem o ministro dos Negócios Estrangeiros, nem o ministro da Defesa, nem qualquer dos outros ministros deviam ter conhecimento.
Saber que um agente russo extremamente importante procurara asilo político na Suécia abalara Fálldin. O primeiro-ministro começara por evocar o seu dever, por razões constitucionais, de discutir o assunto pelo menos com os chefes dos outros dois partidos da coligação governamental. Gullberg, que já esperava esta objecção, jogara forte no seu trunfo. Respondera, explicando em voz baixa, que, se isso acontecesse, ver-se-ia obrigado a apresentar imediatamente a sua demissão. A ameaça fizera efeito. Implicava que se a história se tornasse conhecida e os russos mandassem um comando de assassinos Para liquidar Zalachenko, o primeiro-ministro seria pessoalmente
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responsável. E a revelação de que a pessoa que respondia pela segurança de Zalachenko se tinha visto obrigada a demitir-se seria uma catástrofe política e mediática para o primeiro-ministro.
Fâlldin, ainda fresco e hesitante no seu papel de chefe do Governo, cedera. Dera o seu aval a uma directiva, imediatamente consignada no registo secreto, que estipulava que a Secção respondia pela segurança e "exploração" de Zalachenko e que a informação sobre a existência do espião russo não devia sair do gabinete do primeiro-ministro. Assinara, pois, uma directiva que demonstrava claramente que tinha sido informado, mas não tinha o direito de falar no assunto. Em resumo, devia esquecer Zalachenko.
Insistira, no entanto, em que uma outra pessoa do seu gabinete fosse informada, um secretário de Estado cuidadosamente escolhido que funcionaria como contacto em todas as questões relacionadas com o desertor. Gullberg concordara. Não teria a mais pequena dificuldade em manipular um secretário de Estado.
O director da DGPN/Sápo ficara satisfeito. O caso Zalachenko ficava coberto do ponto de vista constitucional, o que significava que protegera a retaguarda. Também Gullberg ficara satisfeito. Conseguira impor um isolamento que lhe permitiria controlar o fluxo de informações.
De regresso ao seu escritório em Òstermalm, instalara-se à secretária e fizera uma lista manuscrita das pessoas que sabiam da existência de Zalachenko. Incluía, além dele próprio, Gunnar Bjõrck, Hans von Rottinger, chefe de Operações da Secção, Fredrik Clinton, director-adjunto, Eleanor Badenbrink, secretária da Secção, e outros dois colaboradores cuja missão era reunir e analisar todas as informações que Zalachenko viesse a fornecer. Ao todo, sete pessoas que, nos anos seguintes, iriam formar uma secção à parte dentro da Secção. Intimamente, chamara-lhe Grupo Interior.
Fora da Secção, o segredo era conhecido pelo director da DGPN/ /Sapo, pelo director-adjunto e pelo secretário-geral. Doze pessoas. Nunca antes um segredo de tanta importância fora do conhecimento exclusivo de um círculo tão restrito.
Fora então que a expressão de Gullberg se ensombrara. O segredo era conhecido por uma décima terceira pessoa. Bjõrck fizera-se acompanhar por um jurista, Nils Bjurman. Estava fora de questão fazer de Bjurman colaborador. Bjurman não era um verdadeiro agente da Secção - não passava de um simples estagiário - e não tinha os conhecimentos nem a competência exigidos. Gullberg considerara várias possibilidades, e acabara por decidir afastar Bjurman da história en douceur. Ameaçara-o com prisão perpétua por alta traição se dissesse uma palavra que fosse a respeito de Zalachenko, recorrera à corrupção sob a forma de promessas de missões futuras e à lisonja para aumentar o amor-próprio do homem. Empenhara-se para que Bjurman obtivesse um lugar num prestigiado escritório de advogados e ficasse encarregado de uma série de missões para o manter ocupado. O único problema era o facto de Bjurman ser tão medíocre e não saber utilizar as suas próprias capacidades. Ao fim de dez anos, abandonara o escritório de advogados e instalara-se por conta própria, em Odenplan.
Ao longo dos anos, Gullberg mantivera Bjurman sob vigilância discreta, mas constante. Só em finais da década de oitenta desistira de o vigiar, quando, devido à queda da União Soviética, Zalachenko deixara de ser um assunto prioritário.
Para a SAS, Zalachenko começara por representar a promessa de desvendar o enigma Palme, um caso que constituía para Gullberg uma preocupação constante. Palme fora, por isso, um dos primeiros assuntos que Gullberg abordara no decorrer de longas conversas.
Estas esperanças tinham sido completamente goradas, uma vez que Zalachenko nunca operara na Suécia e pouco sabia a respeito do país. Em contrapartida, ouvira falar de um "Corredor Vermelho", um político sueco, ou talvez escandinavo, altamente colocado que trabalhava para o KGB.
Gullberg preparara uma lista de nomes que associava a Palme. Dela faziam parte Carl Lidbom, Pierre Schori, Sten Andersson, Marita Ulvskog, e várias outras pessoas. Ao longo de toda a sua vida, Gullberg nunca deixaria de voltar àquela lista, e nunca obteria respostas.
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De repente, Gullberg passara a brincar no recreio dos crescidos. Cumprimentavam-no com respeito nesse clube exclusivo de guerreiros onde todos se conhecem e onde todos os contactos se estabelecem por intermédio de amigos pessoais e de confiança - nada de canais oficiais nem de intervenções burocráticas. Conhecera pessoalmente James Jesus Angleton e pôde beber whisky num discreto clube de Londres em companhia do chefe do MI6. Tornara-se um dos grandes.
O reverso da medalha era que nunca poderia falar dos seus êxitos, nem sequer nas suas memórias póstumas. E havia o receio permanente de que o Inimigo se apercebesse das suas viagens e o pusesse sob vigilância. O receio de, involuntariamente, levar os russos até Zalachenko.
Desse ponto de vista, Zalachenko era o pior dos seus inimigos.
No primeiro ano vivera num discreto apartamento propriedade da Secção. Não existia em qualquer registo ou documento oficial, e os membros do grupo encarregados de se ocuparem dele julgavam ter todo o tempo do mundo até se verem na necessidade de lhe planear o futuro. Só na Primavera de 1978 lhe fora fornecido um passaporte em nome de Karl Axel Bodin, bem como uma história cuidadosamente elaborada - um autêntico passado falso verificável nos registos suecos.
Já era, porém, demasiado tarde. Zalachenko fora enfiar-se na cama daquela puta de merda, Agneta Sofia Salander, ou Sjõlander, e apresentara-se tranquilamente com o seu verdadeiro nome. Gullberg achava que havia qualquer coisa que não batia certo na cabeça do seu protegido. Suspeitava de que o trânsfuga russo alimentava o secreto desejo de ser desmascarado. Dir-se-ia que tinha necessidade de aparecer sob a luz dos projectores. De que outra maneira se poderiam explicar as suas acções?
Havia as putas, havia os períodos de consumo imoderado de álcool, havia as discussões e as zaragatas com os porteiros dos bares. Fora preso três vezes por embriaguez e duas por comportamento violento. E, de todas essas vezes, a Secção tivera de intervir discretamente para o livrar de sarilhos e conseguir que a papelada fosse destruída
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e registos alterados. Gullberg nomeara Bjõrck para o vigiar. O papel dele consistiria em fazer de ama-seca do desertor quase 24 horas por dia. Não era simples, mas não havia muito mais que se pudesse fazer.
E podia ter corrido tudo tão bem. No início dos anos 80, Zalachenko acalmara e começara a adaptar-se. O único problema era a sua recusa de largar a puta da Salander. E, pior ainda, tornara-se pai de duas miúdas, Camilla e Lisbeth Salander.
Lisbeth Salander.
Gullberg pronunciou o nome com uma sensação de mal-estar.
Já quando as raparigas tinham nove anos, Gullberg sentia uma espécie de cãibra no estômago quando se falava de Lisbeth Salander. Não era preciso ser psiquiatra para perceber que a miúda não era normal. Bjõrck comunicara-lhe que era rebelde, que se mostrava violenta e agressiva com o pai e que, ainda por cima, parecia não ter medo dele. Raramente falava, mas manifestava de mil outras maneiras o seu descontentamento com o estado das coisas. Era um problema em gestação, mas nem mesmo nos seus maiores delírios poderia Gullberg ter previsto as proporções gigantescas que esse problema iria adquirir. O que receava acima de tudo era que a situação da família Salander levasse a uma investigação da Segurança Social que incidisse em Zalachenko. Estava constantemente a pedir-lhe que rompesse com a família e desaparecesse da vida da mãe e das filhas. Zalachenko prometia, mas nunca cumpria a sua promessa. Tinha outras putas. Tinha montes de outras putas. Mas, ao fim de alguns meses, acabava sempre por voltar para Agneta Sofia Salander.
Sacana de Zalachenko. Um espião que deixava a gaita governar-lhe a vida sentimental não podia, evidentemente, ser um bom espião. Mas era como se Zalachenko estivesse acima de todas as regras vigentes, ou julgasse estar acima das regras. E se ao menos pudesse saltar para cima daquela mulher sem lhe dar um enxerto de pancada cada vez que a via, ainda podia passar, mas o certo era que ele a maltratava sistematicamente. Dir-se-ia até que o fazia para desafiar o grupo que se ocupava dele, que a espancava para se divertir ou para lhes enfernizar a vida.
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Gullberg não duvidava de que Zalachenko fosse um estupor da pior espécie, mas não tinha por onde escolher. Os trânsfugas do GRU não caíam do céu. Só havia um, e esse tinha plena consciência da sua
importância.
Gullberg suspirou. O grupo de guarda a Zalachenko assumira o papel de equipa de limpeza. Era inegável. Zalachenko sabia que podia fazer o que quisesse, que alguém se ocuparia de resolver os problemas. E no que respeitava a Agneta Sofia Salander, usava dessa prerrogativa para lá de todos os limites.
É certo que não tinham faltado os sinais de alerta. Lisbeth Salander acabara de fazer 12 anos quando apunhalara o pai. Ferimentos superficiais, é certo, mas que tinham exigido uma ida ao Hospital Sankt Gõran, e a necessidade de um trabalho de limpeza considerável. Dessa vez, Gullberg tivera uma "Conversa Muito Séria" com Zalachenko. Dissera-lhe que não devia, em circunstância alguma, voltar a entrar em contacto com a família Salander, e Zalachenko prometera. Cumprira a sua promessa durante seis meses até voltar a casa de Agneta Sofia Salander e espancá-la tão violentamente que ela tivera de ser internada numa casa de saúde para o resto dos seus dias.
Gullberg não teria, no entanto, podido adivinhar que Lisbeth Salander era uma psicopata sedenta de sangue que sabia fabricar um cocktail molotov. Caos total, naquele dia. Seria de esperar uma infinidade de investigações, e toda a operação Zalachenko - talvez até toda a Secção - estava suspensa por um fio. Se Lisbeth falasse, Zalachenko corria o risco de ser desmascarado. Se Zalachenko fosse desmascarado, uma série de operações em curso na Europa, havia já 15 anos, corriam o risco de abortar, por um lado, e a Secção ser objecto de um inquérito oficial, por outro. O que era preciso evitar a todo o custo.
Gullberg inquietara-se. Um inquérito oficial faria com que o caso IB, em comparação com este, parecesse uma novela televisiva para toda a família. Se os arquivos da Secção fossem consultados, um certo número de situações não inteiramente conciliáveis com a Constituição viria a lume, sem falar da vigilância, que durara anos, a Palme e a outros sociais-democratas conhecidos. Isto resultaria em processos contra Gullberg e outros colaboradores da Secção.
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Pior ainda: certos meios de comunicação não hesitariam em lançar a teoria de que a Secção estivera por detrás do assassínio de Palme, o que por sua vez levaria a um outro labirinto de revelações e acusações. O pior era que a direcção da Sapo mudara tanto que nem sequer o seu chefe máximo sabia da existência da Secção. Naquele ano, todos os contactos com a DGPN/Sapo eram feitos para o gabinete do novo secretário-geral, que era, havia mais de dez anos, membro da Secção.
Entre os colaboradores do Grupo Zalachenko reinara então uma atmosfera de pânico e angústia. Fora Gunnar Bjõrck que encontrara a solução na pessoa de um psiquiatra chamado Peter Teleborian.
Teleborian começara a trabalhar para o Departamento de Contra-espionagem da DGPN/Sápo como consultor, no âmbito de um caso completamente diferente, quando o departamento resolvera debruçar-se sobre a personalidade de um possível espião industrial. Numa fase sensível do processo, tentara-se determinar como reagiria aquela pessoa se sujeitada a pressão. Teleborian era um jovem e promissor psiquiatra que, em vez de usar um jargão obscuro, dava conselhos concretos e sólidos. Esses conselhos tinham permitido à Sapo evitar um suicídio, e o espião em causa fora convertido em agente duplo, fornecedor de desinformação aos seus comanditários.
Na sequência da agressão de Salander a Zalachenko, Bjõrck agregara discretamente Teleborian à Secção, na qualidade de consultor. E tinham mais do que nunca tido necessidade dele.
A solução do problema fora muito simples. Podia-se fazer desaparecer Karl Axel Bodin algures a meio do processo de recuperação. Agneta Sofia Salander desapareceria nos cuidados continuados, com lesões cerebrais irreversíveis. Todas as investigações policiais foram teunidas na DGPN/Sápo e transmitidas à Secção via secretário-geral.
Peter Teleborian acabava de conseguir o lugar de director-adjunto na clínica pedopsiquiátrica de Sankt Stefan, em Uppsala. Só precisavam de uma perícia médico-legal, que Bjõrck e Teleborian redigiriam conjuntamente, seguida de uma sentença breve e não muito contestável de um tribunal de primeira instância. Era tudo uma questão de apresentação. A Constituição não tinha nada que ver com
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o assunto. Tratava-se, ao fim e ao cabo, da segurança nacional. Algo que as pessoas podiam com facilidade compreender.
Lisbeth Salander era manifestamente uma doente mental. Alguns anos de internamento numa instituição psiquiátrica só podiam fazer-lhe bem. Gullberg assentira e dera o seu aval à operação.
Todas as peças do puzzle tinham encaixado nos respectivos lugares e, de todos os modos, tudo aquilo acontecera numa altura em que o Grupo Zalachenko estava prestes a ser dissolvido. A União Soviética tinha deixado de existir e o período de glória de Zalachenko pertencia definitivamente ao passado. Já excedera em muito o prazo de
validade.
O Grupo Zalachenko conseguira garantir-lhe uma generosa compensação, paga por um dos fundos da Sapo. Tinham-lhe proporcionado os melhores cuidados de reabilitação disponíveis e, seis meses mais tarde e com um suspiro de alívio, tinham acompanhado Karl Axel Bodin até ao aeroporto de Arlanda, entregando-lhe um bilhete só de ida para Espanha. Tinham-lhe explicado com todas as letras que, a partir daquele momento, Zalachenko e a Secção, seguiam caminhos separados. Fora um dos últimos casos de que Gullberg se ocupara. Uma semana mais tarde, com a autoridade que os anos lhe conferiam, reformava-se, deixando o seu lugar ao delfim nomeado, Fredrik Clinton. Daí em diante, passara a ser solicitado como consultor e conselheiro apenas em casos sensíveis. Permanecera em Estocolmo ainda quase três anos e trabalhara diariamente na Secção, mas as missões eram cada vez mais raras e estava a "encerrar-se" lentamente a si mesmo. Regressara à sua cidade natal, Laholm, de onde executara alguns trabalhos à distância. Nos primeiros anos, viajava regularmente até Estocolmo, mas até essas viagens se tinham tornado cada vez mais episódicas.
Deixara de pensar em Zalachenko. Até à manhã em que acordara e encontrara a filha do russo nas primeiras páginas de todos os jornais, suspeita de um triplo homicídio.
Acompanhara as notícias com um sentimento de confusão. Sabia perfeitamente que não fora por acaso que Lisbeth tivera Bjurman como tutor, mas não lhe parecera que a velha história de Zalachenko
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estivesse na eminência de vir ao de cima. Salander era uma doente mental. Que se tivesse lançado numa orgia assassina era coisa que o não surpreendia. Em contrapartida, nunca lhe ocorrera que Zalachenko pudesse ter alguma coisa que ver com aquela história até os noticiários da manhã o terem posto ao corrente do que acontecera em Gosseberga. Fora então que começara a fazer telefonemas e acabara por comprar um bilhete de comboio para Estocolmo.
Zalachenko arrastou-se até à casa de banho para urinar. Desde que o hospital lhe fornecera canadianas, conseguia deslocar-se. Dedicara o domingo em curtas sessões de treino. Continuava a ter dores infernais na cara e só podia ingerir alimentos líquidos, mas agora conseguia levantar-se e percorrer alguns metros.
Depois de viver com uma prótese durante quase 15 anos, estava habituado às canadianas. Treinou-se a deslocar-se sem ruído, percorrendo o quarto em todos os sentidos. De cada vez que o seu pé direito roçava o chão, uma dor fulgurante trespassava-lhe a perna.
Cerrava os dentes. Pensava em Lisbeth Salander, que - se bem interpretara - se encontrava num dos quartos contíguos, para o lado esquerdo do corredor.
Por volta das duas da manhã, dez minutos depois da última visita da enfermeira, estava tudo calmo e silencioso. Zalachenko levantou-se penosamente da cama e, às apalpadelas, procurou as canadianas. Aproximou-se da porta e pôs-se à escuta. Nada. Saiu para o corredor. Foi até à porta do fundo, abriu-a e espreitou para as escadas. Havia dois elevadores. Voltou ao corredor. Ao passar diante da porta do quarto de Lisbeth Salander, deteve-se e descansou apoiado as canadianas durante trinta segundos.
Naquela noite, as enfermeiras tinham fechado a porta. Lisbeth abriu os olhos ao ouvir um ligeiro raspar no corredor. Não conseguia identificar o ruído. Dir-se-ia que alguém arrastava cuidadosamente qualquer coisa pelo chão. Logo a seguir, o silêncio voltou, e Lisbeth perguntou-se se não teria tido uma alucinação. Um minuto mais tarde, voltou a ouvir o ruído. Afastava-se.
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Zalachenko estava lá fora, no corredor.
Sentia-se presa naquela cama. O colar cervical arranhava-lhe o pescoço. Queria desesperadamente levantar-se. Acabou por conseguir sentar-se. Mas as forças não deram para mais. Deixou-se cair para trás e pousou a cabeça na almofada.
Momentos depois, encontrou as presilhas que fechavam o colar cervical. Soltou-as e desembaraçou-se daquela coisa, atirando-a para o chão. De repente, era muito mais fácil respirar.
Bem gostaria de ter uma arma ao alcance da mão ou forças suficientes para levantar-se e livrar-se dele de uma vez por todas.
Finalmente, apoiou-se nos cotovelos e soergueu o tronco. Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e olhou em redor. Não viu nada que pudesse servir de arma. Foi então que os seus olhos pousaram na mesa das enfermeiras, a três metros de distância. Alguém tinha lá deixado um lápis.
Esperou pela passagem da enfermeira que, naquela noite, estava a aparecer de meia em meia hora. Calculou que a diminuição da frequência das visitas significava que os médicos tinham decidido que o seu estado melhorara, pois costumava ir alguém vê-la a intervalos de um quarto de hora, por vezes menos. Pelo seu lado, não notava qualquer diferença.
Uma vez sozinha, reuniu todas as suas forças, sentou-se na cama e rodou as pernas para fora. Colados ao seu corpo, eléctrodos registavam os ritmos cardíaco e respiratório, mas os fios estendiam-se na direcção que lhe interessava. Pôs-se de pé, com muito cuidado, e de repente cambaleou, completamente desequilibrada. Por um segundo, pensou que ia desmaiar, mas apoiou-se à cama e concentrou o olhar na mesa à sua frente. Avançou três trôpegos passos, estendeu a mão e chegou ao lápis.
Recuou até à cama. Estava completamente esgotada.
Passado um momento, conseguiu reunir forças para puxar o lençol para cima. Ergueu o lápis e verificou a ponta. Era um vulgar lápis de madeira. Fora recentemente afiado e estava pontiagudo como uma agulha. Daria uma boa arma para espetar na cara ou nos olhos.
Deixou o lápis, facilmente acessível, junto da anca e adormeceu.
CAPÍTULO 6
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE ABRIL
Na SEGUNDA-feira, Mikael Blomkvist levantou-se um pouco depois das nove e ligou para Malin Eriksson, que acabara de chegar à redacção da Millennium.
- Bom dia, senhora directora editorial.
- Ainda estou em choque com a saída da Erika e por saber que me querem como directora editorial.
- Ah, sim?
- Ela foi-se embora. O gabinete está vazio.
- Nesse caso, seria boa ideia dedicares o dia a instalares-te no teu gabinete.
- Não sei o que fazer. Sinto-me muito pouco à vontade.
- Fazes mal. Estamos todos de acordo em que és a melhor alternativa, na actual situação. E podes sempre recorrer ao Christer ou a mim.
- Obrigada pela tua confiança.
- Ora. Continua a fazer o que sempre fizeste. Durante algum tempo, vamos enfrentar os problemas à medida que eles forem aparecendo.
- Okay. Como é que vais fazer?
Mikael explicou que tencionava ficar todo o dia em casa, a escrever. Subitamente, Malin tomou consciência de que ele ia informá-la, tal como costumava informar Erika, do que estava a fazer. Esperava um comentário dela. Ou estaria enganada?
- Tens instruções para nos dar?
- Niet. Pelo contrário, se tiveres alguma para mim, é só telefonar. Vou estar por aqui. O caso Salander continua por minha conta,
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como antes, e eu tomo as decisões, mas quanto aos outros assuntos da revista, a bola está do teu lado. Decide. Tu decides, eu apoio-te.
- E se eu decidir mal?
- Se eu sentir ou perceber qualquer coisa, digo-te. Mas teria de ser algo muito grave. Regra geral, não há decisões cem por cento boas ou cem por cento más. Tomarás as tuas, que não serão talvez as que a Erika tomaria. E se fosse eu a tomá-las, teríamos uma terceira variante. Mas agora são as tuas que contam.
- Compreendido.
- Se és uma boa chefe, vais discutir as questões com os outros. Primeiro com o Henry e o Christer, depois comigo e, para terminar, trataremos os problemas verdadeiramente espinhosos em conselho de redacção.
- Farei o melhor que puder.
- Óptimo.
Sentou-se no sofá da sala com o iBook em cima dos joelhos e trabalhou sem uma pausa durante metade da tarde. Quando acabou, tinha o primeiro rascunho de dois textos, num total de 21 páginas. Aquela parte do tema centrava-se nos homicídios de Dag Svensson e Mia Johansson: aquilo em que estavam a trabalhar, porque tinham sido assassinados e quem os matara. Calculou, por alto, que ainda ia ter de redigir aproximadamente mais 40 páginas para o número de Verão. E tinha de decidir como descrever Lisbeth Salander sem violar a privacidade dela. Sabia coisas que Lisbeth não ia, com toda a certeza, querer ver tornadas públicas.
Naquela segunda-feira, Evert Gullberg tomou um pequeno-almoço constituído por uma fatia de pão e uma chávena de café, na cafetaria do hotel. Em seguida, apanhou um táxi que o levou a Ar-tillerigatan, em Õstermalm. Às nove e um quarto, premiu o botão do intercomunicador, disse quem era e foi imediatamente admitido. Subiu ao quinto andar, onde foi recebido pelo novo director da Secção, Birger Wadensjõõ, de 54 anos.
Quando se reformara, Wadensjõõ era um dos recrutas mais jovens da Secção, e agora Gullberg não sabia muito bem o que pensar.
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Teria preferido que o enérgico Clinton ainda lá estivesse. Clin-ton sucedera-lhe no cargo e mantivera-se na chefia até 2002, altura em que a diabetes e problemas cardiovasculares o tinham mais ou menos obrigado a reformar-se. O facto era que não conseguia verdadeiramente determinar de que madeira Wadensjõõ era feito.
- Bom dia, Evert - disse Wadensjõõ, apertando a mão ao seu antigo chefe. - Obrigado por teres tirado um pouco do teu tempo para vir ver-nos.
- Tempo é a única coisa que não me falta.
- Sabes como é. Quase nunca temos ocasião de manter o contacto com os fiéis antigos servidores.
Evert Gullberg ignorou o comentário. Virou à esquerda, entrou no seu antigo gabinete e foi sentar-se a uma mesa redonda, perto da janela. Wadensjõõ (Gullberg calculou que tivesse sido ele) pendurara nas paredes reproduções de Chagall e Mondrian. No seu tempo, Gullberg tinha planos de navios históricos, como o Kronan ou o Wasa. Sempre sonhara com o mar e era, por formação, um oficial de Marinha, apesar de só ter andado embarcado alguns meses durante o serviço militar. Havia também computadores espalhados pela sala que, tirando isso, estava praticamente como ele a deixara ao reformar-se. , Wadensjõõ serviu café.
- Os outros não tardam aí - disse. - Pensei que primeiro podíamos conversar um pouco, a sós.
- Quantos do meu tempo ainda restam na Secção?
- Além de mim, só o Otto Hallberg e o Georg Nystrõm, aqui nos escritórios. O Hallberg reforma-se este ano e o Nystrõm vai fazer sessenta. O resto, é tudo gente nova. Penso que já deves conhecer alguns.
- Quantas pessoas trabalham agora para a Secção?
- Reorganizámo-nos um pouco.
- Ah.
- Temos sete pessoas, a tempo inteiro, aqui nos escritórios. Menos, portanto. Mas contamos com trinta e um colaboradores na DGPN/Sapo. A maior parte nunca vem cá. Desempenham as suas funções normais, e o trabalho para nós é mais um biscate discreto.
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- Trinta e um colaboradores.
- Mais sete. Por acaso, até foste tu que criaste este sistema. Nós limitámo-nos a afiná-lo, e hoje falamos de uma organização interna e de outra externa. Quando recrutamos alguém, essa pessoa é colocada à nossa disposição durante algum tempo, para fazer a sua aprendizagem connosco. É o Hallberg que se ocupa da formação. O estágio básico dura seis semanas. Estamos instalados na Escola Naval. Depois, o novo recruta retoma as suas funções normais na DGPN/Sápo, mas com uma ligação a nós.
- Ah, sim.
- O sistema é absolutamente extraordinário. A maior parte dos colaboradores ignora a existência dos outros, e nós, aqui na Secção, funcionamos sobretudo como receptores de relatórios. As mesmas regras que estavam em vigor no teu tempo. É suposto sermos uma organização horizontal.
- Unidade de intervenção?
Wadensjõõ franziu o sobrolho. No tempo de Gullberg, a Secção dispunha de uma pequena unidade de intervenção composta por quatro pessoas sob o comando de Hans von Rottinger, um tipo batido.
- Bem, não exactamente. O Rottinger morreu há cinco anos. Temos um jovem talento que faz algum trabalho no terreno, mas, de um modo geral, quando é preciso, recorremos a organizações externas. Sem contar que se tornou tecnicamente mais complicado organizar uma escuta telefónica, por exemplo, ou entrar num apartamento. Hoje, há alarmes e esse género de porcarias por todo o lado.
Gullberg assentiu com a cabeça.
- Orçamento? - perguntou.
- Um pouco mais de onze milhões por ano. Um terço para salários, um terço para manutenção, um terço para a actividade.
- O orçamento diminuiu, portanto.
- Mas temos menos pessoal, o que quer dizer que temos mais dinheiro para a actividade.
- Compreendo. Fala-me da nossa relação com a Sapo - pediu Gullberg, já sem querer saber se devia ou não usar o nome.
Wadensjõõ abanou a cabeça.
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- O secretário-geral e o chefe do orçamento são nossos. Formalmente, o secretário-geral é o único a ter acesso à nossa actividade. Como sempre, mantemos o secretismo ao ponto de quase não existirmos. Mas, na realidade, alguns chefes adjuntos sabem da nossa existência. Fazem todos os possíveis por não ouvir falar de nós.
- Estou a ver. O que quer dizer que se houver problemas, a actual direcção da Sapo vai ter uma desagradável surpresa. E quanto à direcção da Defesa e ao Governo?
- Há cerca de dez anos que afastámos a direcção da Defesa. E os governos, sabes como é, vão e vêm.
- O que significa que estamos completamente sozinhos se o vento soprar forte.
- É o inconveniente deste tipo de arranjo - admitiu Wadensjõõ. - A vantagem, em contrapartida, é evidente. Mas também as nossas missões mudaram. A realpolitik na Europa é diferente desde a queda da União Soviética. O nosso trabalho baseia-se menos na detecção de espiões. Agora, gira tudo à volta do terrorismo, e sobretudo da oportunidade de ter esta ou aquela pessoa em postos sensíveis.
- Foi sempre assim.
Uma pancada na porta. Gullberg viu um homem de cerca de 60 anos, bem vestido, e um outro mais novo, de casaco ejeans.
- Boas tardes - disse Wadensjõõ. E, voltando-se para Gullberg: - Apresento-te o Jonas Sandberg. Trabalha connosco há quatro anos especialmente na frente das intervenções. Já te falei dele. O Georg Nystrõm já tu conheces.
- Olá, Georg - disse Gullberg.
Trocaram um aperto de mão. Gullberg voltou-se para Jonas Sandberg.
- E você, de onde vem? - perguntou, mirando-o dos pés à cabeça.
- Presentemente, de Gotemburgo - brincou Sandberg. - Fui fazer-lhe uma visita.
- O Zalachenko... - disse Gullberg. Sandberg assentiu.
- Instalem-se, meus senhores - convidou Wadensjõõ.
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- O Bjõrck? - perguntou Gullberg, franzindo a testa enquanto Wadensjõõ acendia uma cigarrilha.
O chefe da Secção tinha despido o casaco e estava recostado no cadeirão diante da mesa de reuniões. Lançou um olhar a Gullberg e ficou impressionado pela extrema magreza do velho.
- Na sexta-feira passada foi acusado de infringir a lei por pagamento de serviços sexuais - explicou Georg Nystrõm. - Ainda não se deu início ao processo, mas, em princípio, ele confessou e voltou a casa, devidamente arrependido. Está a viver em Smâdalarõ, enquanto estiver de baixa. Os jornais ainda não pegaram na história.
- Houve um tempo em que o Bjõrck era dos melhores que tínhamos aqui na Secção - disse Gullberg. - Desempenhou um papel-chave no caso Zalachenko. Que lhe aconteceu desde que me reformei?
- Deve ser dos poucos colaboradores internos que saíram da Secção para voltar à actividade no exterior. Mas já no teu tempo ele se passeava bastante.
- Sim, precisava de descansar um pouco e queria alargar os horizontes. Esteve de licença sem vencimento, na Secção, durante dois anos, no início da década de oitenta, e trabalhou como adjunto nas informações. Desde 1976 que se esfalfava como um louco com o Zalachenko, praticamente vinte e quatro horas por dia, e achei que precisava verdadeiramente de fazer uma pausa. Esteve ausente de 1985 a 1987.
- Poder-se-ia dizer que deixou de trabalhar na Secção em 1994, quando passou para a organização externa. Em 1994, tornou-se chefe-adjunto da Divisão de Imigração, um posto difícil em que tinha muito trabalho. Como é evidente, manteve sempre o contacto com a Secção, e posso revelar-lhes também que falámos pelo telefone regularmente, cerca de uma vez por mês, até há muito pouco tempo.
- E agora está doente.
- Nada de grave, mas muito doloroso. Tem uma hérnia discal - Não é a primeira vez que lhe causa problemas. Há dois anos, esteve de baixa durante quatro meses. Em Agosto do ano passado voltou
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a adoecer. Era para voltar ao trabalho a 1 de Janeiro, mas a baixa foi prolongada e agora é sobretudo uma questão de esperar pela operação.
- Passou o tempo da baixa metido nas putas - disse Gullberg.
- Bem, ele é solteiro, e há muitos anos que frequenta as putas, se bem entendi - interveio Jonas Sandberg, que em meia hora não dissera uma palavra. - Li o manuscrito do Dag Svensson.
- Hum. Será que alguém sabe explicar-me o que realmente se passou?
- Ao que julgamos compreender, deve ter sido o Bjõrck que desencadeou toda esta salganhada. É a única maneira de explicar como foi o relatório de 1991 parar às mãos do Nils Bjurman.
- Que também passava o tempo metido nas putas? - perguntou Gullberg.
- Que seja do nosso conhecimento, não. Pelo menos, não aparece no material do Dag Svensson. Em contrapartida, era o tutor da Lisbeth Salander.
Wadensjõõ suspirou.
- Tenho de confessar que a culpa foi minha. Tu e o Bjõrck tinham arrumado a Salander, em 1991, quando a internaram na clínica. Todos pensámos que ficaria na sombra muito mais tempo, mas não
, contámos com o curador dela, o advogado Rolger Palmgren, que conseguiu pô-la cá fora. Foi colocada numa família de acolhimento. Nessa altura, já tu te tinhas reformado.
- E depois, que aconteceu?
- Mantivemo-la sob vigilância. A irmã tinha entretanto sido colocada numa outra família de acolhimento, em Uppsala. Quando tinham ambas dezassete anos, a Lisbeth começou de repente a vasculhar o passado. Procurava o Zalachenko e espiolhou todos os registos oficiais que conseguiu encontrar. De um modo ou de outro, não sabemos muito bem como, descobriu que a irmã sabia onde ele estava.
- E sabia mesmo? Wadensjõõ encolheu os ombros.
- A verdade é que não sei. As duas irmãs já não se viam há imenso tempo quando a Lisbeth procurou a Camilla para a obrigar
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a contar-lhe o que sabia. A conversa acabou com uma discussão enorme entre as duas.
- Ah.
- Durante esses meses mantivemos a Lisbeth sob uma vigilância muito apertada. Tínhamos também informado a Camilla de que a irmã era doente mental com instintos violentos. Foi ela que nos informou da inesperada visita da Lisbeth, o que levou a um reforço da
vigilância.
- Portanto, a tua informadora era a irmã?
- A Camilla tinha um medo de morte da irmã. Seja como for, a Lisbeth também se encarregou de atrair as atenções. Teve várias pegas com pessoas da Assistência Social e nós considerávamos que continuava a ser uma ameaça para o anonimato do Zalachenko. Depois, houve o incidente no metro.
- Quando ela atacou um pedófilo...
- Exacto. Tinha uma manifesta tendência para a violência e era psiquicamente desequilibrada. Pensámos que ficaria toda a gente mais tranquila se voltasse a desaparecer numa clínica, e aproveitámos a oportunidade. O Fredrik Clinton e o Rottinger é que trataram disso. Recorreram mais uma vez ao Peter Teleborian e levaram o caso, através de intermediários, ao tribunal de primeira instância. O Rolger Palmgren representava a Salander e, contra todas as expectativas, o tribunal decidiu a favor dele... na condição de ficar como tutor da
Lisbeth.
- E como é que o Bjurman aparece nesta história?
- O Palmgren teve um AVC no Outono de 2002. Sempre que a Salander aparece numa base de dados somos informados, e eu arranjei maneira de o Bjurman se tornar o seu novo tutor. Nota bem que ele não fazia a mínima ideia de que ela era filha do Zalachenko. Só queríamos que ele nos avisasse se ela se pusesse a delirar sobre o Zalachenko.
- O Bjurman era um cretino. Nunca devia ter tido nada que ver com o Zalachenko, e muito menos com a filha. - Gullberg olhou para Wadensjõõ. - Foi um erro grave.
- Eu sei. Mas, na altura, parecia ser a única coisa a fazer, e nunca eu imaginaria que...
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- Onde está a irmã? A Camilla Salander?
- Não sei. Tinha dezanove anos quando fez a mala e deixou a família de acolhimento. Não voltámos a ter notícias dela. Desapareceu.
- Okay. Continua.
- Tenho um informador na polícia que falou com o procurador Richard Ekstrõm - disse Sandberg. - O tipo que dirige a investigação, o inspector Bublanski, está convencido de que o Bjurman violou a Salander.
Gullberg olhou para Sandberg com uma surpresa genuína. Depois, coçou pensativamente o queixo.
- Violou? - disse.
- O Bjurman tinha na barriga uma tatuagem que dizia: sou UM PORCO SÁDICO, UM PERVERTIDO E UM VIOLADOR.
Sandberg pousou a fotografia a cores da autópsia em cima da mesa. Gullberg ficou a olhar para ela de olhos esbugalhados.
- E foi a filha do Zalachenko que lhe fez isto?
- A situação seria difícil de explicar de outro modo. Mas ela é tudo menos inofensiva. Deu uma sova de morte a dois rufiões do Moto-Clube de Svavelsjõ.
- A filha do Zalachenko - repetiu Gullberg. Voltou-se para Wadensjoõ. - Sabes uma coisa? Acho que devias recrutá-la.
Wadensjoõ fez um tal ar de surpresa que Gullberg foi obrigado a explicar que estava a brincar.
- Muito bem. Guardemos como hipótese de trabalho que o Bjurman a violou e ela se vingou. Que mais?
- A única pessoa que poderia dizer-nos exactamente o que se passou era o Bjurman, e isso é um pouco difícil, uma vez que ele está morto. Mas o facto é que, à partida, ele não sabia que ela era filha do Zalachenko. A informação não consta de qualquer registo oficial. No entanto, a dada altura do percurso, o Bjurman descobriu a ligação.
- Mas que raio, Wadensjoõ, ela sabia muito bem quem era o pai e pode tê-lo dito ao Bjurman a qualquer momento.
- Eu sei. Nós... ainda não reflecti muito bem neste caso.
- É de uma incompetência imperdoável - disse Gullberg.
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- Eu sei. Já apliquei a mim mesmo um par de bofetadas uma boa dúzia de vezes. Mas o Bjurman era uma das raras pessoas que sabiam da existência do Zalachenko, e a minha ideia foi que mais valia ser ele a descobrir de quem ela era filha do que qualquer outro tutor completamente desconhecido. A verdade é que ela podia contar a história a qualquer pessoa.
Gullberg beliscou o lobo da orelha.
- Bem... continua.
- São apenas hipóteses - interveio Georg Nystrõm, suavemente. - Mas estamos convencidos de que o Bjurman abusou da Salander e que ela se vingou com isto... - E apontou para a tatuagem que se via na foto.
- Tal pai, tal filha - disse Gullberg, e havia uma nota de admiração na voz dele.
- O resultado foi o Bjurman contactar o Zalachenko para que ele tratasse da filha. Sabem tão bem como eu que o Zalachenko tem excelentes razões para odiar a Lisbeth Salander. E, por sua vez, o Zalachenko atribuiu essa missão ao Moto-Clube de Svavelsjõ e ao tal Niedermann.
- Mas como foi que o Bjurman entrou em contacto... - Gullberg calou-se. A resposta era evidente.
- O Bjõrck - disse Wadensjõõ. - A única explicação para o Bjurman ter conseguido encontrar o Zalachenko é ter sido o Bjõrck a passar-lhe a informação.
Lisbeth Salander sentia um mal-estar crescente associado a uma forte irritação. Naquela manhã, duas enfermeiras tinham ido fazer-lhe a cama. E tinham encontrado imediatamente o lápis.
- Olá! Como veio este aqui parar? - perguntou uma delas, enfiando o lápis no bolso enquanto Lisbeth a fulminava com um olhar assassino.
Estava de novo sem armas, e além disso tão fraca que nem conseguia protestar.
Sentiu-se mal durante todo o fim-de-semana. Tinha dores de cabeça horríveis, aliviadas à força de potentes analgésicos. Tinha uma
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dor surda nas costas que podia transformar-se subitamente numa punhalada se ela se mexia sem cuidado ou deslocava o peso do corpo. Estava deitada de costas, com o colar cervical. Teria de usá-lo ainda mais alguns dias até que o ferimento na cabeça começasse a sarar. No domingo, teve um pico de febre de 38,7 graus, que levou a Dra. Helena Endrin a concluir que existia algures uma infecção. Por outras
palavras, não estava bem. Lisbeth não precisava de um termómetro
para se dar conta disso.
Verificou que se encontrava uma vez mais presa numa cama do
Estado, ainda que daquela vez não houvesse correias a amarrá-la.
O que teria sido supérfluo. Não tinha sequer forças para se sentar,
quanto mais para se pôr a passear.
Por volta do meio-dia de segunda-feira, o Dr. Anders foi vê-la. Pareceu-lhe familiar.
- Viva. Lembra-se de mim? - Lisbeth tentou abanar a cabeça. -Estava mais para lá do que para cá, mas fui eu que a acordei depois da operação. E fui eu que a operei. Só vim saber como se sente e ver se está tudo bem. - Lisbeth abriu muito os olhos. Qualquer pessoa poderia ver que não estava tudo bem. - Ouvi dizer que a noite passada tirou o colar cervical. - Ela tentou assentir com a cabeça. - Não foi para nos divertirmos que lhe pusemos aquela coisa, foi para lhe manter a cabeça imóvel enquanto não está curada. - Contemplou a jovem silenciosa. - Muito bem - acabou por dizer. - Vim só ver como estava.
O médico tinha chegado à porta quando ouviu a voz dela.
- Jonasson, não é?
Voltou-se e lançou-lhe um olhar espantado.
- Isso mesmo. Se se lembra do meu nome, é porque deve estar em melhor forma do que eu pensava.
- Foi o senhor que tirou a bala?
- É verdade.
- Pode dizer-me como estou? Não consigo que ninguém me dê resposta que faça sentido.
Jonasson voltou para junto da cama e olhou-a nos olhos.
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- Teve muita sorte. Foi ferida a tiro na cabeça, mas o projéctil parece não ter afectado qualquer zona vital. Neste momento, corre o risco de sofrer hemorragias cerebrais. É por isso que queremos que se mantenha sossegada. Tem uma infecção algures no corpo. Penso que por culpa do ferimento que tem no ombro. Se não conseguirmos combatê-la com antibióticos, podemos ser obrigados a operá-la de novo. Pode contar com um período doloroso durante o processo de cura. Mas tal como vejo as coisas neste momento, tenho a esperança de que consiga recuperar totalmente.
- Posso ficar com sequelas no cérebro? O médico hesitou antes de responder.
- Sim, o risco existe. Mas tudo indica que não. Depois, há ainda a possibilidade de se formarem no cérebro cicatrizes que causem problemas, por exemplo, que desenvolva epilepsia, ou esse género de coisa. Mas, muito francamente, estamos a falar de especulações. De momento, parece tudo perfeito. Está a sarar. E se aparecerem problemas, trataremos deles. A resposta foi suficientemente clara?
Lisbeth esboçou o gesto de assentir com a cabeça.
- Quanto tempo vou ficar assim?
- Aqui no hospital? Vai com certeza ter de nos aturar ainda algumas semanas.
- Não, queria dizer quanto tempo até que possa levantar-me e
começar a mexer-me.
- Não sei. Depende da cicatrização. Mas conte com pelo menos duas semanas até podermos dar início à reabilitação.
Ela contemplou-o com um ar muito sério durante um longo
momento.
- Por acaso, não tem um cigarro? - perguntou. Anders Jonasson riu-se e abanou a cabeça.
- Lamento, é proibido fumar. Mas posso conseguir que lhe dêem adesivos ou pastilhas elásticas com nicotina.
Lisbeth reflectiu um instante, e depois esboçou um gesto de assentimento. Voltou a olhar para o médico.
- Como está o velho sacana?
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- Quem? Está a referir-se a...
- Aquele que entrou ao mesmo tempo que eu.
- Não é um dos seus amigos, suponho. Bem, não está mal. Vai sobreviver, e já consegue pôr-se de pé e andar com as canadianas. Fisicamente está muito maltratado, e tem na cara uma ferida extremamente dolorosa. Se bem compreendi, deu-lhe com um machado na cabeça.
- Ele tentou matar-me - disse Lisbeth, em voz baixa.
- Muito feio, tudo isso. Bom, tenho de ir. Quer que venha vê-la outra vez?
Lisbeth hesitou, mas acabou por concordar. Depois de o médico fechar a porta, ficou a olhar pensativamente para o tecto. O Zalachenko tem canadianas. Foi esse o ruído que ouvi.
Mandaram Jonas Sandberg, o mais novo do grupo, buscar o almoço. Voltou com shushis e cervejas, que pousou em cima da mesa de reuniões. Evert Gullberg sentiu uma pontada de nostalgia. Exactamente como nos velhos tempos, quando uma operação entrava na fase crítica e eles trabalhavam dia e noite.
A diferença, pensou, era que no seu tempo ninguém teria a ideia bizarra de encomendar peixe cru para o almoço. Teria preferido almôndegas com puré de batata e arandos. Dito isto, não tinha fome, e pôde recusar o sushi sem se importar. Comeu um pouco de pão e bebeu água mineral.
Continuaram a falar enquanto comiam. Tinham chegado ao ponto em que era preciso resolver a situação e decidir as medidas que se impunham. Havia decisões a tomar.
- Não conheci o Zalachenko - disse Wadensjõo. - Como era ele?
- Exactamente como é hoje, calculo - respondeu Gullberg. - Notavelmente inteligente, e com uma memória quase fotográfica para os pormenores. Mas, em minha opinião, um patife de primeira, e um pouco louco, ainda por cima.
-Jonas, conheceste-o ontem. Qual é a tua conclusão? - perguntou Wadensjõo.
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Jonas Sandberg pousou os talheres.
- Mantém o controlo. Já lhes falei do ultimato que nos fez. Ou nós fazemos desaparecer tudo como que por magia, ou ele abre a boca a respeito da Secção.
- Como é que esse monte de merda pensa que poderíamos fazer desaparecer um assunto em que os media já ferraram o dente? - indignou-se Georg Nystrõm.
- Não se trata do que podemos ou não podemos fazer. Trata-se da necessidade que ele tem de nos controlar - disse Gullberg.
- E então, qual é a tua opinião? Achas que é capaz de o fazer? Falar com os media?. - perguntou Wadensjõõ.
Gullberg respondeu lentamente.
- É praticamente impossível responder a essa pergunta. O Zala-chenko nunca ameaça em vão e fará o que mais lhe convier. Desse ponto de vista, é previsível. Se for vantajoso para ele falar com os media... se isso lhe proporcionar uma amnistia ou uma redução da pena, fá-lo-á. Ou se se sentir traído e quiser lixar-nos.
- Sejam quais forem as consequências?
- Muito especialmente se houver consequências. Para ele, trata-se de mostrar que é mais forte do que nós.
- Mas mesmo que o Zalachenko fale, não é certo que o levem a sério. Precisa dos nossos arquivos para provar seja o que for. E não conhece esta morada.
- Queres correr o risco? Admitamos que o Zalachenko fala. O que é que acontece? Que fazemos se o Bjõrck confirmar a história dele? E o Clinton com a sua diálise... o que é que acontece se ele se tornar crente e amargo e começar a odiar o mundo inteiro? Se quiser confessar-se? Acreditem, se alguém começa a falar, é o fim da Secção.
- Então... o que é que fazemos?
Instalou-se o silêncio à volta da mesa. Foi Gullberg quem retomou a palavra.
- Há vários problemas. Para começar, podemos pôr-nos de acordo quanto às consequências se o Zalachenko falar. Caía-nos em cima toda essa merda da Suécia constitucional. Seríamos aniquilados. Calculo que vários colaboradores da Secção iriam parar ao calabouço.
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- A actividade é juridicamente legal. Não esqueças que trabalhamos sob as ordens do Governo.
- Não digas parvoíces - irritou-se Gullberg. - Sabes tão bem como eu que um papel cheio de frases nebulosas escrito em meados dos anos sessenta, hoje não vale um chavo. Diria que nenhum de nós tem vontade de saber exactamente o que aconteceria se o Zalachenko falasse.
Novamente silêncio.
- O ponto de partida é, portanto, convencer o Zalachenko a ficar calado - acabou Georg Nystrõm por dizer.
Gullberg assentiu com a cabeça.
- E para convencê-lo a ficar calado, temos de oferecer-lhe qualquer coisa de substancial. O problema é o facto de ele ser imprevisível. É perfeitamente capaz de nos lixar por pura maldade. Temos de pensar numa maneira de o manter na linha.
- E as exigências dele... - disse Jonas Sandberg. - Quer que façamos desaparecer esta história e que a Salander volte a ser internada.
- Da Salander trataremos a seu tempo. O problema aqui é o Zalachenko. Mas isto leva-nos à segunda parte... o controlo dos danos. O relatório de 1991, do Teleborian, tornou-se conhecido e constitui uma ameaça tão grande como o Zalachenko.
Georg Nystrõm tossicou para aclarar a garganta.
- Quando percebemos que o relatório estava nas mãos da polícia, tomei medidas. Falei com o advogado Forelius, da DGPN/Sápo, que contactou o Ministério Público. E o Ministério Público deu ordens para retirar o relatório à polícia. Proibição de divulgação ou cópia.
- O que é que eles sabem, no Ministério Público?
- Pevas. O procurador age a pedido oficial da DGPN/Sapo. O caso tem que ver com material classificado como segredo da Defesa e não
lhe resta outra alternativa.
- Okay. Quem leu o relatório, na polícia?
- Havia duas cópias que foram lidas pelo Bublanski e pela colega, a inspectora Sonja Modig, e também pelo responsável pelo inquérito
140 - 141
preliminar, o procurador Richard Ekstrõm. Podemos supor que outros dois polícias... - Nystrõm folheou as suas notas -, um tal Curt Andersson e um tal Jerker Holmberg, têm pelo menos conhecimento
do conteúdo.
- Portanto, quatro polícias e um procurador. O que é que sabemos a respeito deles.
- O procurador Ekstrõm tem quarenta e dois anos. É considerado uma estrela em ascensão. Foi investigador no Ministério da Justiça e dirigiu alguns casos de peso. Meticuloso. Ávido de publicidade.
Carreirista.
- Social-democrata? - perguntou Gullberg.
- Provavelmente. Mas não militante.
- É então o Bublanski que dirige a investigação. Já o vi numa conferência de imprensa, na televisão. Não me pareceu à vontade
diante das câmaras.
- Tem cinquenta e dois anos e um palmarés impressionante, mas também tem fama de ser quezilento. É judeu e bastante ortodoxo.
- E a mulher... a inspectora?
- Sonja Modig. Casada, trinta e nove anos, mãe de dois filhos. Fez uma carreira bastante rápida. Falei com o Peter Teleborian, que a qualificou como emocional. Estava sempre a questioná-lo.
- Okay.
- O Curt Andersson é um duro. Trinta e oito anos. Vem da anti-gangues de Sõderort e falou-se dele aqui há uns anos, quando atingiu a tiro um patifezeco qualquer. Totalmente ilibado no inquérito. Aliás, foi a ele que o Bublanski recorreu para ir prender o Bjõrck.
- Compreendo. Regista que matou um homem. Se for preciso lançar a dúvida sobre a equipa do Bublanski, poderemos sempre apontar um projector a um mau polícia. Suponho que ainda têm bons contactos nos media... e o último tipo?
-Jerker Holmberg. Cinquenta e cinco anos. Originário de Norr-land e especializado em examinar locais de crime. Propuseram-lhe formação para comissário, háanos, mas ele recusou. Parece gostar do
que faz.
- Algum deles tem actividade política?
- Não. O pai do Holmberg foi conselheiro municipal centrista nos anos setenta.
- Hum. Parece uma boa equipa. Podemos supor que são solidários entre si. Alguma possibilidade de os isolar uns dos outros?
- Há um quinto polícia no grupo - disse Nystrõm. - Hans Faste, quarenta e sete anos. Julguei perceber que havia uma querela qualquer entre ele e o Bublanski. Suficientemente grave para o Faste ter ficado de baixa.
- O que é que sabemos sobre ele?
- Obtenho reacções diferentes quando faço a pergunta. Tem uma boa folha de serviço e nada de grave no registo. Um profissional. Mas de trato difícil. Parece que a zanga com o Bublanski teve que ver com a Lisbeth Salander.
- Como assim?
- Parece que o Faste ficou obcecado com uma história sobre lésbicas satânicas que os jornais divulgaram. Não gosta da Salander e parece considerar a existência dela uma ofensa pessoal. Foi provavelmente ele que esteve na origem dos boatos. Um antigo colega confidenciou-me que tem dificuldade em colaborar com mulheres em geral.
- Interessante - disse Gullberg. Reflectiu por um instante. -. Uma vez que os jornais já falaram de um grupo de lésbicas, talvez
valha a pena insistir nesse ponto. Não contribui particularmente para reforçar a credibilidade da Salander.
- Os polícias que leram o relatório do Bjõrck constituem um problema. Vamos poder isolá-los? - perguntou Sandberg.
Wadensjõõ acendeu outra cigarrilha.
- É o Ekstrõm que dirige o inquérito preliminar...
- Mas é o Bublanski que governa o barco - notou Nystrõm.
- Sim, mas não pode ir contra as decisões administrativas. - Wadensjõõ ficou com um ar pensativo. Olhou para Gullberg. - Tens mais experiência do que eu, mas esta história tem tantos fios e ramificações. .. tenho a impressão de que seria sensato afastar o Bublanski e a Modig da Salander.
- Óptimo, Wadensjõõ - respondeu Gullberg. - É exactamente o que vamos fazer. O Bublanski dirige a investigação dos homicídios
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do Bjurman e daquele casal em Enskede. A Salander deixou de estar ligada a esse contexto. Agora, gira tudo à volta do tal alemão, o Niedermann. Portanto, o Bublanski e a sua equipa vão concentrar-se na caça ao Niedermann.
- Okay.
- A Salander deixou de ser um problema deles. Em seguida, temos a investigação de Nykvarn... trata-se de três homicídios já antigos. Há uma ligação ao Niedermann. O inquérito preliminar está, de momento, entregue a Sõdertãlje, mas deveria ser anexado ao outro. O que deixaria o Bublanski com as mãos bem ocupadas durante bastante tempo. Quem sabe... talvez ele consiga apanhar o Niedermann.
- Hum.
- Esse Faste... será possível convencê-lo a voltar ao trabalho? Tem todo o ar de ser a pessoa conveniente para investigar as suspeitas
contra a Salander.
- Compreendo aonde queres chegar - disse Wadensjõõ. - Trata-se de levar o Ekstrõm a separar os dois casos. Mas para isso precisaríamos de saber como controlar o Ekstrõm.
- Não deve ser grande problema - disse Gullberg, e olhou para Nystròm, que assentiu com a cabeça.
- Posso encarregar-me do Ekstrõm - disse Nystrõm. - Qualquer coisa me diz que ele preferiria nunca ter ouvido falar do Zalachenko. Entregou o relatório do Bjõrck mal a Sapo lho pediu e já fez saber que fará tudo para garantir os interesses da segurança nacional.
- O que é que estás a pensar fazer? - perguntou Wadensjõõ, desconfiado.
- Deixa-me imaginar um cenário - respondeu Nystrõm. - Vou ter com ele e explico-lhe de uma maneira muito elegante o que tem de fazer se quer evitar que a sua carreira acabe de repente.
- É o terceiro alvo que constitui o grande problema - continuou Gullberg. - Não foi a polícia que encontrou o relatório do Bjõrck..• foi um jornalista que lho passou. E, como todos sabemos, os media são um problema para nós. A Millennium.
Nystrõm abriu o seu bloco de notas.
- Mikael Blomkvist - disse.
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Todos os presentes tinham ouvido falar do caso Wennerstrõm e conheciam o nome de Mikael Blomkvist.
- O Dag Svensson, o jornalista que foi assassinado, trabalhava para a Millennium. Estava a preparar uma história sobre o tráfico de mulheres. Foi assim que chegou ao Zalachenko. Foi o Mikael Blomkvist que encontrou o corpo dele. Além disso, o Blomkvist conhece a Lisbeth Salander e acreditou sempre na inocência dela.
- Como é que ele conhece a filha do Zalachenko? É de mais para ter sido a merda do acaso.
- Não acreditamos que tenha sido por acaso - disse Wadensjõõ. - Estamos convencidos de que a Lisbeth Salander é, de certa maneira, o elo entre todos eles. Não sabemos muito bem explicar como, mas é a única hipótese plausível.
Gullberg estava calado e desenhava círculos concêntricos no seu bloco de notas. Por fim, ergueu os olhos.
- Tenho de pensar um pouco nisto. Vou dar um passeio. Voltamos a encontrar-nos dentro de uma hora.
O passeio de Gullberg durou quase quatro horas e não uma, como ele anunciara. Caminhou cerca de dez minutos até encontrar uma cafetaria com uma série de variedades de café mais ou menos bizarras. Pediu uma chávena de café normal e sentou-se a uma mesa de canto, perto da porta. Reflectiu profundamente, tentando destrinçar os diferentes aspectos do problema. De vez em quando, rabiscava uma nota no seu bloco.
Ao fim de hora e meia, um plano começara a ganhar forma.
Não era um bom plano, mas, depois de ter virado e revirado todas as possibilidades, compreendera que o problema exigia medidas drásticas.
Felizmente, os recursos humanos estavam disponíveis. Era exequível.
Pôs-se de pé, encontrou uma cabina telefónica e ligou a Wadensjõõ.
- Vamos ter de adiar a reunião - disse. - Preciso de fazer uma coisa. Podemos encontrar-nos às duas?
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Em seguida, desceu até à Stureplan e fez sinal a um táxi. Para dizer a verdade, a sua magra reforma de funcionário do Estado não lhe permitia tais luxos, mas também chegara a uma idade em que já não tinha grandes motivos para fazer economias. Indicou ao taxista um endereço em Bromma.
Quando chegou, dirigiu-se a pé a um bairro um pouco mais a sul e premiu o botão da campainha de uma pequena casa particular. A porta foi aberta por uma mulher de cerca de 40 anos.
- Bom dia. Procuro o Fredrik Clinton.
- Da parte de quem?
- Sou um antigo colega.
A mulher assentiu com a cabeça e mandou-o entrar para uma pequena sala, onde Fredrik Clinton se levantou lentamente de um sofá. Tinha apenas 68 anos, mas aparentava muitos mais. A diabetes e os problemas cardiovasculares tinham deixado as suas marcas.
- Gullberg! - exclamou, espantado.
Olharam-se por um longo momento. Então, os dois velhos espiões abraçaram-se com força.
- Nunca pensei voltar a ver-te - disse Clinton. - Suponho que foi isto que te fez sair do buraco.
Mostrou a primeira página de um jornal da tarde, que ostentava uma fotografia de Ronald Niedermann e o cabeçalho "Assassino de polícia procurado na Dinamarca".
- Como estás tu? - perguntou Gullberg.
- Doente.
- Bem vejo.
- Se não me derem um rim novo, morrerei em breve. E a probabilidade de me darem um rim novo não é muito grande.
Gullberg assentiu.
A mulher apareceu à porta da sala e perguntou a Gullberg se
queria beber alguma coisa.
- Aceito um café, obrigado - respondeu ele. Quando a mulher desapareceu, voltou-se para Clinton.
- Quem é?
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- A minha filha.
Gullberg abanou a cabeça. O mais estranho de tudo era que, apesar de todos aqueles anos de intimidade na Secção, muito poucos colaboradores se davam fora do trabalho. Gullberg conhecia todos os traços do carácter de cada um deles, as suas forças e fraquezas, mas não fazia a mínima ideia das respectivas situações familiares. Clinton fora um dos seus colaboradores mais chegados durante vinte anos. Sabia que era casado e que tinha filhos. Mas não sabia o nome da filha, ou como se chamava a ex-mulher, ou onde Clinton costumava passar as férias. Era como se tudo no exterior da Secção fosse sagrado e não devesse ser discutido.
- Do que é que precisas? - perguntou Clinton.
- Posso perguntar-te o que pensas do Wadensjõõ? Clinton abanou a cabeça.
- Não quero meter-me nisso.
- Nem é o que te peço. Tu conhece-lo. Trabalhou contigo durante dez anos.
Clinton voltou a abanar a cabeça.
- Agora é ele que dirige a Secção. O que eu penso não interessa.
- Safa-se?
- Não é estúpido. -Mas...?
- É um analista. Genial a resolver puzzles. Tem instinto. Um administrador brilhante que equilibrou o orçamento, e de uma maneira que ninguém julgava possível.
Gullberg assentiu com a cabeça. O importante era a qualidade que Clinton não referia.
- Estarias disposto a voltar ao serviço?
Clinton ergueu os olhos. Hesitou um longo momento.
- Evert... passo nove horas no hospital, de dois em dois dias, a fazer diálise. Não consigo subir dois degraus sem ficar a ofegar. Não tenho força. Nenhuma.
- Preciso de ti. Uma última operação.
- Não posso.
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- Podes. E poderás continuar a passar nove horas de dois em dois dias a fazer diálise. Subirás no elevador em vez de subires as escadas. Farei com que te levem de maca, se for preciso. Preciso de uma cabeça como a tua.
Clinton suspirou.
- Conta - respondeu ele.
- Neste momento, enfrentamos uma situação extremamente complicada que exige intervenção no terreno. O Wadensjõõ tem lá um jovem pretensioso, Jonas Sandberg, que constitui sozinho a força de intervenção, e não acredito que o Wadensjõõ tenha tomates para fazer o que tem de ser feito. Talvez seja um filho da mãe de um craque a fazer malabarismos com o orçamento, mas tem medo de tomar decisões de intervenção e tem medo de envolver a Secção em trabalho no terreno. E esse trabalho é necessário. - Clinton fez que sim com a cabeça. Esboçou um sorriso pálido. - Esta operação vai desenrolar-se em duas frentes. A primeira diz respeito ao Zalachenko. Tenho de o fazer ouvir a voz da razão e julgo saber como o conseguir. A outra frente será estabelecida aqui em Estocolmo. O problema é que não há na Secção ninguém para a conduzir. Preciso que assumas o comando. Uma última contribuição. Tenho um plano. O Jonas Sandberg e o Georg Nystrõm farão o trabalho no terreno. Tu dirigirás.
- Não compreendes o que me pedes.
- Compreendo, sim, compreendo até muito bem. Serás tu a decidir se participas ou não. Mas ou nós, os da velha guarda, nos mobilizamos e fazemos a nossa parte, ou dentro de algumas semanas a Secção terá deixado de existir.
Clinton apoiou o cotovelo no braço do sofá e a cara na palma da mão. Ficou a pensar durante dois minutos.
- Explica-me o teu plano - acabou por dizer.
Evert Gullberg e Fredrik Clinton falaram durante duas horas.
Faltavam três minutos para as seis quando Wadensjõõ esbugalhou os olhos de espanto ao ver Gullberg aparecer com Fredrik Clinton
a reboque. Clinton mais parecia um esqueleto. Tinha dificuldade em andar e em respirar, e apoiava-se no ombro de Gullberg.
- Que significa isto...? - perguntou Wadensjõõ.
- Retomemos a nossa reunião - disse Gullberg, num tom seco. Juntaram-se novamente à volta da mesa no gabinete de Wadensjõõ. Clinton deixou-se cair em silêncio na cadeira que lhe ofereceram.
- Já todos conhecem o Fredrik Clinton - disse Gullberg.
- Sim - respondeu Wadensjõõ. - A questão é saber o que faz ele aqui.
- O Clinton decidiu voltar ao serviço. Vai chefiar o Departamento de Intervenção até esta crise terminar. - Gullberg ergueu uma mão e interrompeu o protesto de Wadensjõõ antes mesmo de ele o ter formulado. - O Clinton está cansado. Vai precisar de ajuda. Tem de ir regularmente ao hospital fazer diálise. Wadensjõõ, vais contratar dois assistentes que o ajudarão em todas as questões práticas. Mas que isto fique perfeitamente claro: neste caso, é o Clinton que toma todas as decisões de intervenção no terreno. - Calou-se e aguardou. Não houve protestos. - Tenho um plano. Penso que chegaremos a bom porto se o seguirmos, mas temos de agir rapidamente para não perder oportunidades - continuou. - Depois, tudo dependerá do vosso empenhamento aqui na Secção.
Wadensjõõ sentiu um desafio nas palavras de Gullberg.
- Diz-nos tudo.
- Em primeiro lugar: já passámos em revista a questão da polícia. Faremos exactamente o que dissemos. Tentaremos isolá-los na investigação conduzindo-os a uma pista secundária, a perseguição ao Niedermann. Será o trabalho do Georg Nystrõm. Aconteça o que acontecer, o Niedermann não tem a mais pequena importância. Trataremos de que seja o Faste a investigar a Salander.
- Não deverá ser muito difícil - disse Nystrõm. - Vou muito simplesmente ter uma pequena conversa com o procurador Ekstrõm.
- E se ele refilar...
- Penso que não o fará. É um carreirista que zela pelos seus interesses. Mas se acontecer, saberei encontrar maneira de o convencer.
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A última coisa que o homem quer é ver-se envolvido num escândalo.
- Muito bem. O segundo ponto é a Millennium e o Mikael Blomkvist. Foi por isso que o Clinton voltou ao serviço. Este ponto exige medidas menos ortodoxas.
- Tenho o pressentimento de que não vou gostar - disse Wadensjõõ.
- Provavelmente, mas a Millennium não pode ser manipulada de uma forma simplista. Em contrapartida, a ameaça que representam assenta numa única coisa, neste caso, o relatório do Bjõrck de 1991. Tal como as coisas estão, penso que esse relatório existe em dois, talvez três lugares. Foi a Lisbeth Salander que o encontrou, mas, de uma forma ou de outra, chegou também às mãos do Mikael Blomkvist. O que significa que o Blomkvist e a Lisbeth se contactaram enquanto ela andava fugida.
Clinton ergueu um dedo e pronunciou as primeiras palavras desde que tinha chegado.
- O que nos diz muito sobre o carácter do nosso adversário. O Blomkvist não receia correr riscos. Lembrem-se do caso Wen-nerstrõm.
Gullberg assentiu com a cabeça.
- O Blomkvist entregou o relatório à directora editorial, a Erika Berger, que por sua vez o enviou ao Bublanski. Portanto, também ela o leu. É de supor que fizeram uma cópia, como medida de segurança. Eu diria que o Blomkvist tem uma cópia e que existe outra na redacção.
- Parece plausível - concordou Wadensjõõ.
- A Millennium é uma revista mensal, o que quer dizer que não vão publicar nada já amanhã. Temos muito tempo à nossa frente. Mas é preciso deitar a mão a esses dois exemplares do relatório. E para isso, não podemos passar pelo procurador-geral da nação.
- Compreendo.
- Vamos, pois, dar início a uma fase de intervenção e entrar ilegalmente em casa do Blomkvist e na redacção da Millennium. É capaz de organizar uma coisa destas, Jonas?
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Jonas Sandberg olhou para Wadensjõó.
- Evert, tens de compreender... já não fazemos esse género de coisas - disse Wadensjõõ. - Os tempos mudaram, agora ocupamo-nos de pirataria informática e de vigilância electrónica, percebes? Não temos recursos para manter um corpo de intervenção.
Gullberg inclinou-se para cima do tampo da mesa.
- Wadensjõõ, nesse caso, o que tens a fazer é arranjar os recursos, e depressa. Vai buscar gente ao exterior. Contrata um bando de rufias da mafia jugoslava para dar uma sova no Blomkvist, se necessário for, mas é preciso recolher essas duas cópias, custe o que custar. Sem elas, eles não terão documentos e não poderão provar seja o que for. Se não és capaz de resolver uma merda destas, deixo-te aqui com o dedo enfiado no cu à espera que a Comissão Constitucional venha bater-te à porta.
Os olhares de Gullberg e Wadensjõõ enfrentaram-se por um longo momento.
- Eu posso tratar disso - disse repentinamente Jonas Sandberg. Gullberg lançou-lhe um olhar de esguelha.
- Tem a certeza de ser capaz de organizar uma operação destas? - Sandberg assentiu. - Muito bem. A partir deste momento, o Clin- ton é o seu chefe. Recebe ordens dele.
Sandberg assentiu com a cabeça.
- Será em grande parte uma questão de vigilância - disse Nys-trõm. - O corpo de intervenção tem de ser reforçado. Tenho algumas propostas de nomes. Há um tipo na organização externa... trabalha na protecção a personalidades da Sapo e chama-se Mãrtensson. Não se encolhe e tem boas características. Há já algum tempo que ando a pensar em transferi-lo para a organização interna. Até cheguei a pensar que poderia ser o meu sucessor.
- Parece-me bem - disse Gullberg. - O Clinton decidirá.
- Tenho outra novidade - interveio Georg Nystrõm. - Receio que haja uma terceira cópia.
- Onde?
- Soube hoje, ao meio-dia, que a Lisbeth Salander passou a ter uma advogada. Chama-se Annika Giannini e é irmã do Blomkvist.
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Gullberg assentiu.
- Bem visto. O Blomkvist deve ter-lhe dado uma cópia. O contrário seria de estranhar. Por outras palavras, é preciso vigiá-los de perto aos três... a Berger, o Blomkvist e a Giannini... durante algum
tempo.
- Julgo que não teremos de nos preocupar muito com a Berger. Os jornais de hoje anunciam que é a nova directora editorial do Svens-ka Morgon-Posten. Já não tem nada que ver com a Millennium.
- Tudo bem. Mas, mesmo assim, mais vale mantê-la debaixo de olho. No que respeita à Millennium, temos de pô-los sob escuta telefónica. .. em casa de cada um deles e na redacção, evidentemente. E controlo do correio electrónico. Precisamos de saber com quem se encontram e com quem falam. E precisamos de saber, a todo o custo, o que se preparam para revelar. Mas, antes de mais nada, o relatório. Por outras palavras, temos muito que fazer.
Wadensjõõ pareceu hesitar.
- Evert, estás a pedir que conduzamos uma acção de intervenção contra a redacção de uma revista. Arriscamo-nos em terreno muito perigoso.
- Não tens por onde escolher. Ou arregaças as mangas, ou entregas o lugar de chefe a outro.
O desafio pairava como uma nuvem por cima da mesa. - Acho que posso ocupar-me da Millennium - acabou Jonas Sandberg por dizer. - Mas nada disto resolve o problema de base. O que fazer com o Zalachenko? Se ele fala, todos os nossos esforços serão inúteis.
Gullberg assentiu lentamente com a cabeça.
- Eu sei. Será aí que vou intervir. Penso ter um argumento capaz de convencer o Zalachenko a manter-se calado. Parto ainda hoje para Gotemburgo.
Calou-se, passou o olhar em redor e acabou por fixá-lo em Wadensjõõ.
- O Clinton tomará as decisões durante a minha ausência - determinou.
Ao cabo de um momento, Wadensjõõ baixou a cabeça num
gesto de assentimento.
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Foi preciso esperar pela tarde de segunda-feira para que a Dra. Helena Endrin, com o acordo do seu colega Anders Jonasson, decidisse que o estado de Lisbeth Salander era suficientemente estável para que pudesse receber visitas. Os primeiros a aproveitar esta benesse foram dois inspectores da polícia, aos quais a médica concedeu 15 minutos para fazerem perguntas. Lisbeth olhou-os em silêncio quando eles entraram no quarto e se sentaram.
- Bom dia. Sou o inspector Marcus Ackerman. Trabalho na Brigada Criminal, aqui em Gotemburgo. Esta é a minha colega Sonja Modig, da polícia de Estocolmo. - Lisbeth não disse uma palavra. Permaneceu perfeitamente impassível. Reconheceu Modig como um dos membros do grupo de Bublanski. Ackerman sorriu-lhe. -Já sei que não faz parte dos seus hábitos falar com as autoridades. Mas também não é preciso que diga seja o que for. Em contrapartida, ficarei agradecido se fizer o favor de nos ouvir. Temos vários assuntos a tratar e hoje não nos deram muito tempo. Haverá outras oportunidades, mais tarde. - Lisbeth continuou calada. - Então, para começar, gostaria de dizer-lhe que o seu amigo Mikael Blomkvist nos fez saber que uma advogada chamada Annika Giannini aceitou representá-la e está a par do caso. Diz que já lhe falou dela. Preciso de uma confirmação sua de que assim é, e preciso de saber se deseja que a doutora Giannini venha a Gotemburgo para a ajudar. - Lisbeth manteve o silêncio. Annika Giannini. A irmã de Mikael. Ele referira o nome numa mensagem. Lisbeth ainda não tinha reflectido no facto de precisar de um advogado. - Lamento, mas sou obrigado a pedir-lhe que responda à pergunta. Um sim ou um não serão o suficiente. Se disser sim, o procurador aqui de Gotemburgo entrará em contacto com a doutora Giannini. Se disser não, o tribunal nomeará um defensor oficioso. Qual dos dois prefere?
Lisbeth ponderou a proposta. Disse a si mesma que precisava efectivamente de um advogado, mas ter a irmã do Super Sacana Blomkvist como defensora era difícil de engolir. Ele ficaria encantado. Por outro
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lado, um defensor oficioso não seria melhor. Acabou por abrir a boca e balbuciar roucamente uma única palavra.
- Giannini.
- Muito bem. Obrigado. Sendo assim, tenho uma pergunta a fazer-lhe. Não é obrigada a dizer seja o que for sem a presença da sua advogada, mas esta pergunta não tem nada que ver consigo, directamente, nem afecta o seu bem-estar, tanto quando consigo julgar. A polícia procura o cidadão alemão Ronald Niedermann, de trinta e sete anos, suspeito de ter matado um agente. - Lisbeth franziu o sobrolho. Aquilo era novidade para ela. Não sabia nada do que se passara depois de ter cravado o machado na cabeça de Zalachenko. - Nós, aqui em Gotemburgo, gostaríamos de apanhá-lo o mais rapidamente possível. A minha colega de Estocolmo, aqui presente, gostaria igualmente de ouvi-lo a respeito dos três homicídios de que era inicialmente suspeita. Estamos a pedir a sua ajuda. Gostaríamos de saber se faz alguma ideia... se pode dar-nos alguma indicação que nos permita localizá-lo.
O olhar de Lisbeth passou, desconfiado, de Ackerman para Modig.
Não sabem que ele é meu irmão.
Em seguida, perguntou a si mesma se queria ou não Niedermann preso. O que queria sobretudo era levá-lo até junto de uma cova aberta em Gosseberga e enterrá-lo lá. Encolheu os ombros. Não devia tê-lo feito, pois uma dor lancinante trespassou-lhe no mesmo instante a omoplata esquerda.
- Que dia é hoje? - perguntou.
- Segunda-feira. Lisbeth reflectiu.
- A primeira vez que ouvi o nome de Ronald Niedermann foi na quinta-feira da semana passada. Segui-o até Gosseberga. Não faço a mínima ideia de onde se encontra ou de para onde poderá ter ido. Mas apostaria que vai tentar pôr-se a salvo no estrangeiro o mais depressa que puder.
- Porque acha que vai fugir para o estrangeiro?
- Porque depois de o Niedermann sair para abrir a cova onde me iam enterrar, o Zalachenko disse que já tivera demasiada publicidade
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e que tinham planeado ele ir para o estrangeiro durante algum tempo.
Desde os doze anos que Lisbeth Salander não trocava tantas palavras seguidas com um polícia.
- O Zalachenko... o seu pai, então. - Pelo menos, conseguiram descobrir isso. O Super Sacana Blomkvist, provavelmente. - Devo também informá-la que o seu pai apresentou queixa contra si por tentativa de homicídio. O processo encontra-se neste momento em poder do procurador, que decidirá a favor ou contra uma acção judicial. Em contrapartida, o que é desde já certo é que está a ser investigada por ofensas corporais agravadas. Cravou um machado na cabeça do Zalachenko.
Lisbeth não disse nada. O silêncio arrastou-se. Então, Sonja Modig inclinou-se para a frente e falou em voz baixa.
- Só queria acrescentar que nós, na polícia, não damos grande crédito à história do Zalachenko. Fale com a sua advogada, aprofundem bem o assunto. Pelo nosso lado, esperaremos.
Ackerman fez um aceno de cabeça. Os dois polícias puseram-se de pé.
- Obrigado por nos ter ajudado com o Niedermann.
Lisbeth ficou surpreendida ao verificar que os polícias tinham sido correctos e quase amáveis. As palavras de Sonja Modig tinham-na espantado. Devia haver qualquer coisa por detrás daquilo, pensou.
CAPÍTULO 7
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE ABRIL-TERÇA-FEIRA, 12 DE ABRIL
Faltava um QUARTO para as seis da tarde de segunda-feira quando Mikael Blomkvist baixou a tampa do iBook e se levantou da mesa da cozinha do seu apartamento em Bellmansgatan. Vestiu um casaco e dirigiu-se a pé aos escritórios da Milton Security, perto de Slussen. Subiu no elevador até à recepção, no segundo piso, e foi imediatamente acompanhado até à sala de reuniões.
- Viva, Dragan - disse, estendendo a mão. - Obrigado por me receber de uma maneira tão informal.
Olhou em redor. Além dele e de Dragan Armanskij estavam presentes Annika Giannini, Holger Palmgren e Malin Eriksson. O ex-detective Steve Bohmam, da Milton, que, por ordem de Armanskij, acompanhara a investigação sobre Lisbeth Salander desde o primeiro dia, participava igualmente na reunião.
Holger Palmgren fazia a sua primeira surtida ao fim de mais de dois anos. O médico que o tratava, o Dr. A. Sivarnandan, não ficara particularmente entusiasmado com a ideia de deixá-lo sair do Centro de Reabilitação de Ersta, mas Palmgren insistira. Fizera o trajecto num carro particular, acompanhado pela sua assistente e ergoterapeuta pessoal, Johanna Karolina Oskarsson, de 39 anos, cujo salário era pago por um fundo criado por um misterioso mecenas com o único objectivo de proporcionar-lhe os melhores cuidados possíveis. Karolina Oskarsson aguardava sentada no sofá de uma sala de espera, em frente da sala de reuniões. Tinha levado um livro. Mikael fechou a porta.
- Para os que não a conhecem: Malin Eriksson, a nova directora editorial da Millennium. Pedi-lhe que assistisse a esta reunião porque o que vamos discutir vai afectar o trabalho dela.
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- Muito bem - disse Armanskij. - Estamos todos. Ouçamos. Mikael aproximou-se do quadro branco e pegou num marcador.
Passou o olhar pelos presentes.
- Julgo que nunca vivi nada de mais delirante - começou. - Quando isto estiver acabado, poderei criar uma fundação de beneficência. Chamar-lhe-ei Os Cavaleiros da Távola Chanfrada e o seu objectivo será organizar um jantar anual para dizer mal de Lisbeth Salander. Todos vocês são membros. - Fez uma pausa. - Vejamos com o que se parece a realidade - prosseguiu, começando a desenhar colunas verticais no quadro. Falou durante cerca de meia hora. A discussão que se seguiu arrastou-se por três horas.
Depois da reunião ter oficialmente terminado, Evert Gullberg instalou-se para uma conversa a sós com Fredrik Clínton. Falaram em voz baixa durante alguns minutos até que Gullberg se pôs de pé. Os dois velhos camaradas de armas trocaram um aperto de mão.
Gullberg regressou de táxi ao Hotel Frey, pagou a conta e apanhou o comboio para Gotemburgo. Tinha comprado um bilhete de primeira classe e teve a carruagem inteira por sua conta. Passada a ponte de Ársta, tirou da pasta castanha uma esferográfica e um bloco . de papel de carta. Reflectiu um instante e começou a escrever. Preencheu meia página antes de a arrancar do bloco.
A falsificação de documentos nunca fizera parte das suas funções e não era especialista na matéria, mas, no caso vertente, a tarefa era facilitada pelo facto de as cartas que escrevia irem ser assinadas por ele. A única dificuldade era que nem uma palavra podia ser verdadeira.
À passagem por Nykõping, tinha já rejeitado uma boa quantidade de rascunhos, mas começava a ter uma ideia de como as cartas teriam de ser formuladas. Quando chegou a Gotemburgo, dispunha de doze missivas satisfatórias. Certificou-se cuidadosamente de que as suas impressões digitais ficavam bem claras e nítidas no papel.
Na estação de Gotemburgo conseguiu encontrar uma casa de fotocópias, e mandou fazer várias. Depois comprou sobrescritos e fechou as cartas e enfiou-as na caixa do correio.
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Depois, apanhou um táxi para o City Hotel, na Lorensbergsgatan, onde Clinton lhe tinha reservado um quarto. Instalou-se, por pura coincidência, no mesmo hotel onde Mikael Blomkvist passara a noite poucos dias antes. Subiu imediatamente ao quarto e deixou-se cair em cima da cama. Estava profundamente cansado e apercebeu-se de que quase não tinha comido durante todo o dia. Continuava sem fome. Despiu-se, enfiou-se na cama e adormeceu quase de imediato.
Lisbeth Salander acordou sobressaltada ao ouvir a porta abrir-se. Soube imediatamente que não era a enfermeira do turno da noite. Entreabriu os olhos, não mais que duas frestas, e viu no umbral uma silhueta que usava canadianas. Zalachenko, imóvel, contemplava-a à pálida claridade que vinha do corredor.
Sem se mexer, voltou os olhos para o despertador: 03h10. Desviou o olhar alguns milímetros e viu o copo de água na mesa-de-cabeceira. Conseguiria agarrá-lo sem deslocar o corpo.
Bastar-lhe-ia uma fracção de segundo para estender o braço e partir a parte de cima do copo contra a beira da mesa-de-cabeceira. E meio segundo para cravar o bordo cortante na garganta de Zalachenko, se ele se inclinasse para ela. Ponderou outras alternativas, mas acabou por perceber que aquela era a única arma possível. Descontraiu-se e esperou.
Zalachenko ficou ali parado durante dois minutos. Depois, fechou silenciosamente a porta. Lisbeth ouviu o ligeiro roçar das canadianas enquanto ele se afastava.
Passados cinco minutos, soergueu-se, apoiada nos cotovelos, pegou no copo e bebeu um longo golo de água. Passou as pernas por cima da beira da cama e desligou os eléctrodos do braço e do peito. Levantou-se e ficou de pé, a cambalear. Precisou de um longo minuto para assumir o controlo do seu próprio corpo. Coxeou até à porta, apoiou-se à parede e esperou até normalizar a respiração. Estava a transpirar. Então, a fúria dominou-a.
Grande filho da puta. Vamos acabar com isto! Ia precisar de uma arma.
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Nesse instante, ouviu passos rápidos no corredor. Merda. Os eléctrodos.
- Que está a fazer de pé? - exclamou a enfermeira.
- Preciso... de ir... à casa de banho - respondeu Lisbeth, ofegante.
- Volte imediatamente para a cama. - A enfermeira pegou-lhe na mão e ajudou-a a voltar à cama. Em seguida, foi buscar-lhe uma arrastadeira. - Quando precisar de ir à casa de banho, chame-nos. É para isso que serve aquele botão.
Lisbeth não respondeu. Concentrou-se na tentativa de fazer algumas gotas.
Na terça-feira, Mikael Blomkvist acordou às dez e meia, tomou um duche, ligou a máquina de café e sentou-se em frente do iBook. Depois da reunião na Milton Security, no dia anterior, trabalhara até às cinco da manhã. Sentia que o seu tema começava finalmente a ganhar forma. A biografia de Zalachenko continuava pouco consistente - só dispunha das informações que arrancara a Gunnar Bjõrck e os pormenores que Holger Palmgren acrescentara. A história de Lisbeth Salander estava praticamente acabada. Explicava em pormenor como um grupo da DGPN/Sapo conspirara para fechá-la numa clínica psiquiátrica e impedi-la de revelar o segredo que rodeava Zalachenko.
Estava satisfeito com o seu texto. Era uma história bombástica, que ia pôr em polvorosa os quiosques de jornais e criar sérios problemas à mais alta burocracia do Estado.
Acendeu um cigarro enquanto reflectia.
Ainda havia duas grandes lacunas para resolver. Uma era fácil. Ia atacar Peter Teleborian, uma tarefa que o enchia de prazer. Quando acabasse com ele, o célebre psiquiatra seria um dos homens mais odiados de toda a Suécia.
O outro era consideravelmente mais complicado.
A conspiração contra Lisbeth Salander - chamava aos conspiradores o Clube Zalachenko - nascera no seio da Sapo. Tinha um
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nome, Gunnar Bjõrck, mas Bjõrck não podia de modo algum ser o único responsável. Havia forçosamente chefes, responsáveis e um orçamento. O problema é que não fazia a mínima ideia de como identificar essas pessoas. Não sabia por onde começar. O conhecimento que tinha da organização da Sapo era muito rudimentar.
No dia anterior, iniciara as suas pesquisas mandando Henry Cortez às livrarias de Sõdermalm com a missão de comprar todos os livros que, de um modo ou de outro, falassem da Sapo. Henry chegara a casa dele às quatro da tarde, com seis livros. Mikael olhou para o monte em cima da mesa.
Espionagem na Suécia, de Mikael Rosquist (Tempus, 1988); Fui Chefe da Sapo de 1962 a 1970, de Per Gunar Vinge (W&W, 1988); Poderes Secretos, de Jan Otosson e Lars Magnusson (Tiden, 1991); Luta pelo Controlo da Sapo, de Erik Magnusson (Corona, 1989); Uma Missão, de Carl Lidbom (W&W, 1990), e, um pouco surpreendentemente, An Agent in Place, de Thomas Whiteside (Ballantine, 1966), que falava do caso Wennerstrõm. O dos anos 60, não o dele, no início do século XXI.
Passara a maior parte da noite a ler, ou pelo menos a folhear, os livros que Henry encontrara. No fim da leitura, chegara a uma série de conclusões. Em primeiro lugar, a maior parte dos livros sobre a Sapo parecia ter sido editada em finais da década de oitenta. Uma pesquisa na Net revelou que não havia literatura recente sobre a matéria.
Em segundo lugar, parecia não existir qualquer resumo compreensível da actividade da polícia secreta sueca nos últimos anos. O que podia, em rigor, explicar-se pelo número de casos considerados segredo de Estado e logo difíceis de tratar, mas não havia aparentemente qualquer instituição, qualquer investigador ou qualquer meio de comunicação que tivesse estudado a Sapo com um olhar crítico.
Notou também o estranho facto de não haver a mais pequena referência a outras obras nos livros que Henry lhe levara. As notas em pé de página remetiam quase sempre para artigos da imprensa ou para entrevistas pessoais com algum funcionário reformado da organização.
Poderes Secretos era fascinante, mas referia-se sobretudo ao período anterior e contemporâneo à Segunda Guerra Mundial. Blomkvist
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considerou as memórias de P. G. Vinge, mais uma obra de propaganda escrita em defesa própria por um director da Sapo duramente criticado e demitido do seu cargo. An Agent in Place continha tanta asneira sobre a Suécia logo no primeiro capítulo que Mikael o atirou pura e simplesmente para o caixote do lixo. Os únicos livros que pretendiam verdadeiramente descrever o trabalho da Sapo eram Luta pelo Controlo da Sapo e Espionagem na Suécia. Havia datas, nomes e organogramas. Achou o livro de Erik Magnusson particularmente interessante. Apesar de não responder às suas perguntas imediatas, proporcionava uma visão do que tinha sido e como funcionara a Sapo ao longo das últimas décadas.
A maior surpresa foi, no entanto, Uma Missão, de Carl Lidbom, que descrevia os problemas que o antigo embaixador sueco em Paris tivera de enfrentar quando, por ordem do Governo, investigara a Sapo na esteira do assassínio de Olof Palme e do caso Ebbe Carlsson. Mikael Blomkvist nunca lera nada de Carl Lidbom e foi surpreendido pela sua linguagem irónica e observações cáusticas. Mas a obra de Carl Lidbom, embora fascinante, não o aproximava mais das respostas que procurava. Começava, em todo o caso, a fazer uma pequena ideia do trabalho que tinha pela frente.
Depois de ter reflectido um instante, pegou no telemóvel e ligou para Henry Cortez.
- Olá, Henry. Obrigado por aquilo de ontem.
- Hum. Do que é que precisas?
- Tenho mais umas coisas que preciso que me faças.
- Micke, tenho trabalho. Sou assistente editorial.
- Uma bela progressão na tua carreira.
- Diz lá.
- Ao longo dos anos, houve um certo número de inquéritos públicos sobre a Sapo. O Carl Lidbom conduziu um. Deve haver muitos outros na mesma linha.
- Hum.
- Traz-me tudo o que conseguires encontrar referente ao Parlamento: os orçamentos, os inquéritos oficiais do Estado, os debates
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na sequência de interpelações à Assembleia e esse género de coisas. E requisita os anais da Sapo o mais para trás que conseguires.
- Às suas ordens, meu capitão.
- Okay. E... Henry... -Sim?
- Só preciso destas coisas amanhã.
Lisbeth Salander passou o dia a pensar em Zalachenko. Sabia que estava a dois quartos de distância do dela, que andava pelos corredores durante a noite e que estivera no seu quarto às três da madrugada. Descobrira-lhe o rasto até Gosseberga com a intenção de o matar. Falhara, e Zalachenko continuava vivo a menos de dez metros dela. Estava na merda. Exactamente até que ponto, não saberia dizer, mas calculava que ia ter de fugir e desaparecer discretamente no estrangeiro se não queria correr o risco de ver-se novamente encerrada num manicómio com Peter Teleborian como guardião.
O problema era, evidentemente, o facto de não ter sequer forças para se sentar na cama. Notava melhoras. As dores de cabeça continuavam lá, mas agora vinham por vagas, em vez de serem constantes. A dor no ombro era superficial e só a incomodava a sério quando tentava mexer-se.
Ouviu passos no corredor e viu uma enfermeira abrir a porta para deixar entrar uma mulher de calças pretas, camisa branca e casaco escuro. Uma mulher bonita, elegante, de cabelo curto e castanho. Toda ela respirava calma e autoconfiança. Trazia na mão uma pasta preta. Lisbeth reconheceu imediatamente os olhos de Mikael Blomkvist.
- Bom dia, Lisbeth. Chamo-me Annika Giannini - disse a mulher. - Posso entrar?
Lisbeth voltou para ela um rosto sem expressão. De repente, não tinha a menor vontade de conhecer a irmã de Mikael Blomkvist, e arrependeu-se de a ter aceitado como advogada.
Annika Giannini entrou, fechou a porta e puxou uma cadeira para junto da cama. Ficou sentada em silêncio durante alguns segundos, a observar a sua cliente.
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Lisbeth Salander parecia na verdade muito maltratada. A cabeça era um monte de ligaduras. Grandes hematomas violáceos rodeavam-lhe os olhos injectados de sangue.
- Antes de começarmos a discutir seja o que for, preciso de saber se quer realmente que eu seja sua advogada. Normalmente, trabalho no cível, ou represento vítimas de violações ou maus-tratos. Não sou uma penalista. Por outro lado, estou a par dos pormenores do seu caso e gostaria muito de representá-la, se estiver de acordo. Tenho também de dizer-lhe que o Mikael Blomkvist é meu irmão... julgo que já o sabia... e que ele e o Dragan Armanskij pagam os meus honorários. - Aguardou um instante, mas, não obtendo qualquer reacção da sua cliente, continuou. - Se me quiser como advogada, trabalharei para si. Quero com isto dizer que não trabalho para o meu irmão nem para o Armanskij. Serei igualmente assistida, em tudo o que diz respeito ao direito penal, pelo seu antigo tutor, Holger Palmgren. É verdadeiramente coriáceo, aquele homem. Deixou a sua cama no hospital para a ajudar.
- O Palmgren?
- Sim.
- Conheceu-o?
- Conheci. Vai ser meu conselheiro.
- Como está ele?
- Danado. Mas não me pareceu que estivesse particularmente receoso por si.
Lisbeth Salander esboçou um sorriso de esguelha. O primeiro desde que aterrara no Hospital Sahlgrenska.
- E a Lisbeth, como se sente? - perguntou Annika.
- Como um saco de merda.
- Hum, sim. Quer que a defenda? O Armanskij e o Mikael pagam os meus honorários e...
- Não.
- Como?
- Eu pago os seus honorários. Não aceito um ore do Armanskij ou do Super Blomkvist. Mas só poderei pagar-lhe quando tiver acesso à Internet.
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- Compreendo. Encontraremos uma solução para esse problema a devido tempo e, seja como for, será o Ministério Público a pagar a maior parte do meu salário. Está então de acordo que seja eu a representá-la? - Lisbeth assentiu uma vez com a cabeça. - Muito bem. Vou então começar por transmitir-lhe uma mensagem da parte do Mikael. Parece uma charada, mas disse-me que a Lisbeth compreenderia o que quer dizer.
-Ah.
- Salvo pequenas coisas, contou-me quase tudo. A primeira diz respeito às suas capacidades, que ele descobriu em Hedestad.
- O Mikael sabe que tenho uma memória fotográfica... e que sou uma hacker. Não contou a ninguém.
- Okay.
- A segunda é o DVD. Não sei do que se trata, mas ele diz que lhe cabe a si decidir se quer ou não falar disso. Compreende o que isto quer dizer?
- Sim.
Subitamente, Annika Giannini hesitou.
- Estou um pouco irritada com o meu irmão. Apesar de me ter contratado, só me conta o que lhe convém. Também tem intenção de me esconder essas coisas?
Lisbeth reflectiu um pouco.
- Não sei.
- Vamos ter muito que falar, nós as duas. Não posso demorar-me muito agora, tenho uma reunião com a procuradora Agneta Jervas daqui a quarenta e cinco minutos. Só precisava da sua confirmação de que me aceita como advogada. Tenho também uma instrução a dar-lhe.
- Ah, bom.
- É o seguinte: se eu não estiver presente, não diga uma palavra à polícia, seja o que for que eles perguntem. Mesmo que a provoquem e a acusem de tudo e mais alguma coisa. Promete?
- Não me vai exigir um grande esforço - respondeu Lisbetn Salander.
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Evert Gullberg tinha ficado esgotado pela tensão de segunda-feira e só acordou às nove da manhã de terça, quase quatro horas depois do seu despertar habitual. Foi à casa de banho, tomou duche e lavou os dentes. Contemplou longamente o seu próprio rosto no espelho antes de apagar a luz e ir vestir-se. Escolheu a única camisa lavada que lhe restava e pôs uma gravata com motivos castanhos.
Desceu ao restaurante do hotel, bebeu uma chávena de café e comeu uma torrada com queijo e um pouco de marmelada de laranja. Terminou o pequeno-almoço com um grande copo de água mineral.
Em seguida, saiu para o átrio do hotel, fechou-se numa cabina e ligou do telemóvel para Fredrik Clinton.
- Sou eu. Como está a situação?
- Bastante agitada.
- Fredrik, vais ser capaz de tratar disso tudo?
- Sim, como antigamente. Só é pena que o Hans von Rottinger já não esteja connosco. Sabia planear operações melhor do que eu.
- Estavam ao mesmo nível. Qualquer dos dois podia substituir o outro, em qualquer altura. Como aliás fizeram várias vezes.
- Havia uma pequena diferença entre nós, ínfima. Ele sempre foi um bocadinho melhor do que eu.
- Como estão agora?
- O Sandberg é mais esperto do que pensávamos. Chamámos o Mârtensson como reforço. É um miúdo, mas vai servir. Pusemos o Blomkvist sob escuta, o fixo de casa e o móvel. Durante o dia de hoje, vamos tratar dos telefones da Giannini e da Millennium. Estamos a estudar as plantas dos escritórios e dos apartamentos. Entraremos logo que for possível.
- Primeiro tens de saber onde se encontram todas as cópias...
- Está feito. Tivemos uma sorte incrível. A Annika Giannini telefonou ao Blomkvist esta manhã, às dez. Perguntou quantas cópias do relatório havia e a conversa revelou que é o Blomkvist que tem a única que resta. A Berger tinha feito uma cópia, mas deu-a ao Bublanski.
- Muito bem. Não há um segundo a perder.
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- Eu sei. Mas é preciso fazer tudo em simultâneo. Se não apanharmos todas as cópias do relatório do Bjõrck ao mesmo tempo, nunca o conseguiremos.
- Eu sei.
- A coisa complica-se um pouco, porque a Giannini foi a Gotemburgo esta manhã. Mandei uma equipa de colaboradores externos atrás dela. Neste momento, estão no avião.
- Óptimo.
Gullberg não tinha mais nada a acrescentar. Ficou calado por um longo momento.
- Obrigado, Fredrik - disse, por fim.
- Sou eu que te agradeço. Isto é muito mais divertido do que estar à espera de um rim que nunca mais chega.
Despediram-se. Gullberg pagou a conta do hotel e saiu para a rua. Os dados estavam lançados. Agora, só era preciso não errar na coreografia.
Foi a pé até ao Park Avenue Hotel, onde pediu para usar o fax. Não quisera fazê-lo no hotel onde tinha dormido. Enviou as cartas que tinha escrito no comboio, na noite anterior. Em seguida, saiu para a Avenyn e procurou um táxi. Deteve-se junto a um caixote de lixo e rasgou as fotocópias.
A conversa entre Annika Giannini e a procuradora Agneta Jervas durou 15 minutos. Annika queria saber que acusações tencionava a procuradora apresentar contra Lisbeth, mas depressa se apercebeu de que a magistrada não sabia muito bem o que ia acontecer.
- De momento, contentar-me-ei em abrir um inquérito por ofensas corporais agravadas e tentativa de homicídio. Não estou a falar da machadada que a Lisbeth Salander deu ao pai. Suponho que vai alegar legítima defesa.
- É possível.
- Mas, para ser franca, a minha prioridade neste momento é o Niedermann, o assassino do polícia.
- Compreendo.
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- Entrei em contacto com o procurador-geral. Estão a discutir a possibilidade de centralizar todas as acusações contra a sua cliente no procurador de Estocolmo e associá-las ao que lá se passou.
- Parto do princípio de que o caso passará para Estocolmo.
- Seja como for, preciso de ouvir a Lisbeth Salander. Quando será possível fazê-lo?
- Tenho uma declaração do médico, Anders Jonasson, segundo a qual a Lisbeth Salander não estará em condições de ser interrogada nos dias mais próximos. Além dos ferimentos, está fortemente sedada.
- Foi mais ou menos o que me disseram. Mas com certeza compreende que é frustrante para mim. Repito que a minha prioridade, de momento, é o Ronald Niedermann. A sua cliente afirma não saber onde ele se esconde.
- O que é verdade. Não conhece o Niedermann. Apenas conseguiu identificá-lo e segui-lo.
- Bem, seja - resignou-se a procuradora.
Evert Gullberg levava na mão um ramo de flores quando entrou no elevador do Hospital Sahlgrenska ao mesmo tempo que uma mulher de cabelos curtos e casaco escuro. Abriu-lhe delicadamente a porta e deixou-a dirigir-se primeiro ao balcão de recepção.
- Chamo-me Annika Giannini. Sou advogada e preciso de falar novamente com a minha cliente, Lisbeth Salander.
Evert Gullberg voltou a cabeça e olhou, espantado, para a mulher que lhe fizera companhia no elevador. Desviou o olhar para a pasta que ela transportava enquanto a enfermeira confirmava a identificação e consultava uma lista.
- Quarto doze - disse a enfermeira.
- Obrigada. Já cá estive, sei o caminho - respondeu Annika, e afastou-se, saindo do campo de visão de Gullberg.
- Posso ajudá-lo? - perguntou a enfermeira.
- Ah, sim. Gostaria de deixar estas flores para Karl Axel Bodin.
- Herr Bodin não pode receber visitas.
- Eu sei. Queria apenas deixar as flores.
- Encarrego-me de lhe as fazer chegar.
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Gullberg só levara as flores para ter um pretexto. Queria fazer uma ideia da configuração do serviço. Agradeceu à enfermeira e encaminhou-se para a porta. Pelo caminho, passou em frente do quarto de Zalachenko, o 14, segundo Jonas Sandberg.
Esperou no patamar. Através da porta envidraçada viu a enfermeira pegar no ramo e entrar no quarto. Quando a mulher voltou ao seu posto, empurrou a porta, dirigiu-se rapidamente ao quarto de Zalachenko e entrou.
- Viva, Zalachenko - disse.
Zalachenko olhou, surpreendido, para o inesperado visitante.
- Pensava que já tinhas morrido - disse.
- Ainda não.
- O que é que queres?
- O que é que achas?
Gullberg puxou a cadeira das visitas e sentou-se.
- Ver-me morto, provavelmente.
- Sim, seria simpático. Como pudeste ser tão estúpido? Ofereceram-te uma nova vida, e vieste parar aqui.
Se Zalachenko pudesse sorrir, sem dúvida tê-lo-ia feito. Para ele, a Segurança sueca era constituída por amadores. E entre eles incluía Evert Gullberg e Sven Jansson, também conhecido como Gunnar Bjõrck, e aquele traidor de merda, o advogado Nils Bjurman.
- E agora temos nós de tirar as castanhas do lume. Outra vez. Zalachenko recordou o que lhe acontecera, e não achou uma
graça especial à expressão.
- Deixa-te de pregar a moral. Tratem é de tirar-me daqui.
- É o que venho discutir contigo. - Pousou a pasta castanha em cima dos joelhos, tirou dela um bloco de notas virgem, abriu-o e perscrutou o rosto de Zalachenko. - Há uma coisa que me intriga - disse. - Serias capaz de nos trair depois de tudo o que fizemos por ti?
- O que é que achas? - foi a vez de Zalachenko perguntar.
- Depende da extensão da tua loucura.
- Não me chames louco. Sou um sobrevivente. Faço o que é preciso para sobreviver.
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Gullberg abanou a cabeça.
- Não, Alexander, fazes o que fazes porque és mau e desprezível. Querias saber a posição da Secção. Estou aqui para te a dar. Desta vez, não vamos mexer um dedo para te ajudar.
Zalachenko pareceu hesitar, pela primeira vez. ; - Não tens alternativa - disse.
- Há sempre uma alternativa.
- Vou...
- Não vais coisa nenhuma.
Gullberg inspirou fundo, levantou a tampa da pasta e tirou da bolsa interior uma Smitb & Wesson de 9 milímetros, com a coronha revestida a ouro. A arma fora uma oferta dos serviços de informações ingleses, 25 anos antes - contrapartida de uma informação preciosa que arrancara a Zalachenko e transformara em moeda de troca sob o nome de um estenógrafo do MI5 que, na velha tradição de Philby, trabalhava para os russos.
Zalachenko fez um ar surpreendido. Riu-se.
- Que vais fazer com isso? Matar-me? E passar o resto da tua miserável vida na prisão?
- Não me parece - disse Gullberg.
De repente, Zalachenko já não tinha tanto a certeza de Gullberg estar a fazer bluff.
- Vai ser um escândalo de proporções colossais.
- Também não me parece. Vai haver alguns cabeçalhos, mas, dentro de algumas semanas, já ninguém se lembrará do nome Zalachenko. - Zalachenko semicerrou os olhos. - Monte de merda -disse Gullberg, numa voz tão fria que Zalachenko ficou gelado.
Gullberg premiu o gatilho. A bala atingiu Zalachenko no meio da testa no preciso instante em que ele se preparava para lançar a prótese por cima da beira da cama. A cabeça foi projectada contra a almofada, o corpo sacudido por alguns movimentos espasmódicos até se imobilizar. Gullberg viu os salpicos de sangue formarem uma flor vermelha na parede atrás da cabeceira da cama. Ficara com os ouvidos a tinir por causa da detonação e massajou maquinalmente a orelha com o indicador da mão livre.
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Então pôs-se de pé, aproximou-se da cama, encostou o cano da pistola à têmpora de Zalachenko e disparou mais duas vezes. Não tencionava dar a mais pequena hipótese àquele velho bandalho.
O estrépito do primeiro tiro fez Lisbeth Salander sentar-se bruscamente na cama. Uma dor intensa trespassou-lhe o ombro. Estava a tentar passar as pernas por cima da beira do colchão quando soaram as duas outras detonações.
Annika Giannini estava a falar com Lisbeth havia apenas alguns minutos quando os tiros estilhaçaram o silêncio. De início, ficou como que paralisada, a tentar perceber de onde vinham aqueles estrondos. A reacção de Lisbeth fê-la compreender que alguma coisa se passava.
- Não se mexa - gritou. Apoiou maquinalmente a mão no peito da sua cliente e empurrou-a para baixo com tanta força que Lisbeth sufocou.
Em seguida, atravessou rapidamente o quarto e abriu a porta. Viu duas enfermeiras que corriam para um quarto duas portas mais adiante, no corredor. A primeira deteve-se diante da porta. Annika ouviu-a gritar, "Não faça isso!", e depois viu-a recuar um passo e chocar com a colega.
- Ele está armado! Foge!
As duas enfermeiras abriram a porta do quarto contíguo ao de Lisbeth e refugiaram-se lá dentro.
Instantes depois, Annika viu um homem magro, de cabelos grisalhos e com um casaco pied-de-poule sair para o corredor. Empunhava uma pistola. Identificou-o como o cavalheiro que subira com ela no elevador, momentos antes.
Os olhares dos dois cruzaram-se. O homem parecia confuso. Annika viu-o apontar a arma na direcção dela e dar um passo em frente. Recuou para dentro do quarto, bateu com a porta e olhou desesperadamente em redor. Havia uma marquesa mesmo ao lado dela. Puxou-a com um único movimento e entalou-a debaixo da maçaneta.
Ouviu um movimento, virou a cabeça e viu que Lisbeth Salander estava mais uma vez a tentar sair da cama. Chegou junto dela em
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três passadas, tomou-a nos braços e levantou-a. Arrancou os eléctrodos e a agulha intravenosa e levou-a para a casa de banho, onde a sentou na tampa da sanita. Voltou-se e fechou a porta à chave. Tirou o telemóvel do bolso do casaco e marcou o 112.
Evert Gullberg aproximou-se do quarto de Lisbeth Salander e tentou abrir a porta. Estava bloqueada. Não cedeu um milímetro.
Por um breve instante ficou indeciso. Sabia que Annika Giannini estava naquele quarto e perguntou a si mesmo se teria consigo uma cópia do relatório de Bjõrck. Não conseguia entrar no quarto e não tinha forças que lhe permitissem arrombar a porta.
De todos os modos, aquilo não fazia parte do plano. Teria de ser Clinton a tratar da ameaça que Annika Giannini representava. O trabalho dele só se prendia com Zalachenko.
Olhou em redor e apercebeu-se de que estava a ser observado por duas dúzias de enfermeiras, pacientes e visitantes que espreitavam pelas portas entreabertas. Ergueu a pistola e disparou um tiro para um quadro pendurado na parede no extremo oposto do corredor. O público desapareceu como que por magia.
Lançou um último olhar à porta fechada, voltou resolutamente ao quarto de Zalachenko e rodou a chave na fechadura. Sentou-se na cadeira dos visitantes e contemplou o trânsfuga russo que fizera tão intimamente parte da sua vida durante tantos anos.
Permaneceu imóvel durante dez minutos até a agitação no corredor lhe dizer que a polícia tinha chegado. Não pensava em nada de especial.
Ergueu a pistola uma última vez, encostou o cano à própria têmpora e premiu o gatilho.
A sequência dos acontecimentos provou a imprudência de tentar suicidar-se no Hospital Sahlgrenska. Evert Gullberg foi transportado de urgência para o Serviço de Traumatologia, onde o Dr. Anders Jonasson o recebeu e tomou de imediato uma série de medidas destinadas a manter-lhe as funções vitais.
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Pela segunda vez em menos de uma semana, Jonasson operava de urgência para extrair uma bala cravada em massa encefálica. Ao cabo de cinco horas de cirurgia, Gullberg continuava em estado crítico. Mas estava vivo.
O ferimento de Evert Gullberg era, no entanto, muito mais grave do que o infligido a Lisbeth Salander. Durante longos dias, ia oscilar entre a vida e a morte.
Mikael Blomkvist encontrava-se no Kaffebar, na Hornsgatan, quando ouviu na rádio a notícia de que um homem com cerca de 60 anos, cujo nome não tinha ainda sido revelado e que era suspeito de ter tentado assassinar Lisbeth Salander, fora morto a tiro no Hospital Sahlgrenska. Pousou a chávena, pegou na sacola com o portátil e correu para a redacção, na Gõtgatan. Atravessou a Mariatorget e estava a voltar para Sankt Paulsgatan quando o telemóvel tocou. Atendeu sem parar de andar.
- Blomkvist.
- Sou eu, a Malin.
- Acabo de ouvir a notícia. Sabe-se quem disparou?
- Ainda não. O Henry Cortez vai à caça.
- Vou a caminho. Estou aí dentro de cinco minutos.
A porta da Millennium, Mikael cruzou-se com Henry, que ia a sair.
- O Ekstrõm convocou uma conferência de imprensa para as três horas - disse Henry. - Vou para Kungsholmen.
- O que é que sabemos? - gritou Mikael, nas costas dele.
- A Malin - disse Henry, e desapareceu.
Mikael foi direito ao gabinete de Erika... bolas, de Malin, que estava ao telefone, a tomar notas febrilmente num post-it amarelo. Perante isto, avançou para a kitchenette e encheu de café duas canecas, uma com o logo da Juventude Cristã-Democrata e a outra com o logo da Juventude Social-Democrata. Quando voltou ao gabinete de Malin, estava ela a terminar a conversa. Estendeu-lhe a caneca JDC.
- O Zalachenko foi hoje assassinado, à uma e um quarto - disse Malin, olhando para ele. - Acabo de falar com uma enfermeira do
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Sahlgrenska. O assassino é um homem já de idade, na casa dos setenta, que tinha ido ao hospital deixar um ramo de flores ao Zalachenko minutos antes de o matar. Disparou várias vezes contra a cabeça do Zalachenko e depois disparou a arma contra si mesmo. O Zalachenko morreu. O assassino sobreviveu. Estão a operá-lo.
Mikael respirou fundo. Desde que ouvira a notícia no Kaffebar, que sentia o coração oprimido pelo pânico de ter sido Lisbeth a empunhar a arma. Isso sim, teria sido um grande revés no seu plano. - Temos um nome para o assassino? - perguntou. Malin abanava a cabeça quando o telefone voltou a tocar. Pegou no auscultador e, pela conversa, Mikael percebeu que era umfreelance que ela enviara a Sahlgrenska. Fez-lhe um sinal com a mão e foi instalar-se no seu próprio gabinete.
Tinha a impressão de que era a primeira vez em muitas semanas que se encontrava no seu posto de trabalho. Afastou resolutamente a pilha de correspondência por abrir e ligou para a irmã.
- Giannini.
- Olá. Sou eu, o Mikael. Sabes alguma coisa do que aconteceu em Sahlgrenska?
- Pode-se dizer que sim. -Onde estás?
- Em Sahlgrenska. O filho da mãe apontou-me a arma. Mikael ficou sem palavras durante vários segundos até conseguir
compreender o que a irmã acabava de dizer.
- Mas que... Estavas lá?
- Estava. Foi o pior momento de toda a minha vida.
- Estás ferida?
- Não. Mas ele tentou entrar no quarto da Lisbeth. Bloqueei a porta e fechei-nos às duas na casa de banho.
Mikael sentiu de repente que o seu mundo vacilava. A irmã podia ter...
- Como está a Lisbeth?
- Bem. Quer dizer, não está pior do que já estava. Mikael respirou de alívio.
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- Annika, sabes alguma coisa sobre o assassino?
- Nada. Ouvi três tiros e, pelo que apanhei de passagem, foram os três disparados na cabeça do Zalachenko. Mas isto está o caos total, com polícias por todo o lado e a evacuação de todo um serviço cheio de pessoas gravemente feridas ou doentes que não deviam ser deslocadas. Quando a polícia chegou, houve um que quis interrogar a Lisbeth, e foi o diabo para os convencer de que está demasiado doente. Tive de me impor.
O inspector Marcus Ackerman viu Annika Giannini no quarto de Lisbeth Salander pela porta entreaberta. A advogada tinha o telemóvel colado à orelha, e ele esperou que terminasse a conversa.
Duas horas depois do homicídio, ainda reinava no corredor uma espécie de caos organizado. O quarto de Zalachenko estava selado e guardado por um agente uniformizado. Os médicos tinham tentado intervir logo a seguir aos tiros, mas depressa se haviam convencido da inutilidade dos seus esforços. Zalachenko já não precisava de ajuda. O cadáver fora removido para a morgue e os peritos forenses faziam o seu trabalho.
O telemóvel de Ackerman tocou. Era Frank Malmberg, da equipa de investigação.
- Temos uma identificação segura do assassino - disse Malmberg. - Chama-se Evert Gullberg e tem setenta e oito anos. Velho, para assassino.
- E quem é esse sacana desse Evert Gullberg?
- Reformado. Vive em Laholm. Advogado de negócios. Recebi um telefonema da DGPN/Sápo a dizer que abriram recentemente um inquérito preliminar contra ele.
- Quando e porquê?
- Não sei quando. Porquê? Bem, porque tinha o mau hábito de enviar cartas completamente loucas a ameaçar personalidades públicas.
- Quem, por exemplo?
- O ministro da Justiça.
Marcus Ackerman suspirou. Um louco, portanto. Um justiceiro.
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- A Sapo recebeu esta manhã vários telefonemas de jornais para onde o Gullberg enviou cartas. Também ligaram do Ministério da Justiça, depois de o Gullberg ter expressamente ameaçado matar o Karl Axel Bodin.
- Quero cópias das cartas.
- Da Sapo?
- Sim, grande porra! Vai a Estocolmo buscá-las pessoalmente, se for preciso. Quero-as na minha secretária quando voltar à sede. Ou seja, dentro de aproximadamente uma hora. - Pensou um instante, e acrescentou: - Foi a Sapo que te telefonou?
- Foi o que eu disse.
- Quer dizer, foram eles que te ligaram, e não o contrário?
- Sim, exactamente.
- Okay - disse Marcus Ackerman, e desligou o telemóvel. Perguntou a si mesmo que mosca teria mordido os tipos da Sapo
para se lembrarem, assim de repente, de contactar a polícia por sua própria iniciativa. Normalmente, era quase impossível obter qualquer sinal de vida da parte deles.
Wadensjõõ abriu com um gesto brusco a porta do quarto onde Fredrik Clinton costumava descansar quando estava na Secção. Clinton soergueu-se cautelosamente da cama.
- Gostaria de saber que merda é esta! - gritou Wadensjõõ. -O Gullberg matou o Zalachenko e em seguida deu um tiro na cabeça.
- Eu sei - disse Clinton.
- Sabes? - Estava escarlate, parecia à beira da apoplexia. - Percebeste que o sacana deu um tiro nos miolos? Tentou suicidar-se! Enlouqueceu, ou quê?
- Então ainda está vivo?
- Por enquanto, sim. Mas sofreu lesões cerebrais graves. Clinton suspirou.
- É lamentável - disse num tom repassado de desgosto.
- Lamentável? - gritou Wadensjõõ. - O Gullberg é completa-mente doido. Não compreendes que...
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Clinton interrompeu-o com um gesto.
- O Gullberg tem cancro, no estômago, no cólon e na bexiga. Há muito tempo que está condenado e restam-lhe na melhor das hipóteses dois meses de vida.
- Cancro?
- Há seis meses que traz aquela arma com ele, decidido a usá-la quando a dor se tornasse intolerável e antes de ficar num humilhante estado vegetativo numa unidade de cuidados intensivos. Agora, viu uma oportunidade de prestar um último serviço à Secção. Sai em glória.
Wadensjõõ estava estupefacto.
- Tu sabias que ele tinha a intenção de matar o Zalachenko.
- Evidentemente. A missão dele era certificar-se de que aquele bandalho nunca tivesse a possibilidade de falar. E sabes muito bem que não era possível ameaçá-lo, e muito menos argumentar com ele.
- Mas será que não compreendes o escândalo que isto vai causar? És tão chanfrado como ele?
Clinton pôs-se laboriosamente de pé. Fixou os olhos nos de Wadensjõõ e entregou-lhe um monte de faxes.
- A decisão cabe ao departamento de intervenção. Choro o meu amigo, mas muito provavelmente não tardarei a segui-lo. Quanto a essa história do cancro... um antigo especialista em fiscalidade escreveu cartas manifestamente paranóicas e saídas de um cérebro doente, que em seguida dirigiu aos jornais, à polícia e ao Ministério da Justiça. Aqui tens uma. O Gullberg acusa o Zalachenko de tudo e mais alguma coisa, desde a morte do Palme à tentativa de envenenar com cloro toda a população sueca. As cartas são claramente escritas por um doente mental, há pontos onde a escrita é ilegível, com maiúsculas, sublinhados e pontos de exclamação. Adorei a ideia de escrever nas margens.
Wadensjõõ leu as cartas com um espanto crescente. Passou uma mão pela testa. Clinton observava-o.
- Aconteça o que acontecer, a morte do Zalachenko não terá nada que ver com a Secção. Foi um reformado desorientado e demente
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que disparou os tiros. - Fez uma pausa. - O mais importante, agora, é que tu te acalmes. Não balouces o barco, não vá ele voltar-se! - Fixou os olhos em Wadensjõõ. De repente, havia aço no olhar do homem doente. - É preciso que compreendas que a Secção é a ponta de lança do conjunto da Defesa sueca. Nós somos a última linha de defesa. O nosso trabalho é velar pela segurança do país. Nada mais tem importância. - Wadensjõõ devolveu-lhe o olhar, com uma expressão de dúvida. - Nós somos os que não existem. Somos aqueles a quem ninguém agradece. Somos aqueles que têm de tomar as decisões que mais ninguém tem coragem de tomar... sobretudo os políticos. - Esta última palavra foi dita com uma voz carregada de desprezo. - Faz o que te digo, e talvez a Secção sobreviva. Mas para que isso aconteça, vamos precisar de determinação e não de fraqueza. Wadensjõõ sentiu o pânico invadi-lo.
Henry Cortez anotava febrilmente tudo o que se dizia do púlpito na conferência de imprensa convocada para a sede da Polícia Criminal, em Kungsholmen. O primeiro a falar foi Richard Ekstrõm. Explicou que, naquela manhã, decidira confiar a um procurador da jurisdição de Gotemburgo a instrução do caso da morte de um polícia em Gosseberga, crime pelo qual Ronald Niedermann era procurado, mas que todas as outras investigações que envolviam o mesmo Niedermann seriam dirigidas por ele próprio. Niedermann era, pois, suspeito das mortes de Dag Svensson e Mia Johansson. Nada foi dito a respeito de Nils Bjurman. Ekstrõm ia igualmente investigar Lisbeth Salander e acusá-la em tribunal de uma longa série de infracções.
Explicou também que decidira tornar pública aquela informação na sequência dos recentes acontecimentos em Gotemburgo, onde o pai de Lisbeth Salander, Karl Axel Bodin, fora morto a tiro. A razão directa daquela conferência de imprensa era desmentir certos dados já referidos nos media e a respeito dos quais recebera vários telefonemas.
- Baseando-me nas informações de que dispomos actualmente, posso dizer que a filha de Karl Axel Bodin, neste momento detida
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por tentativa de homicídio contra a pessoa do pai, não teve nada que ver com os acontecimentos desta manhã.
- Quem é o assassino? - gritou um jornalista do Dagens Eko.
- O homem que, às treze e quinze de hoje, disparou mortalmente contra Karl Axel Bodin e tentou depois suicidar-se foi identificado. Trata-se de um reformado de setenta e oito anos, que sofria há já algum tempo de uma doença terminal e com problemas psíquicos resultantes dessa doença.
- Alguma relação com a Lisbeth Salander?
- Nenhuma. Podemos desmentir essa hipótese com certeza absoluta. Essas duas pessoas nunca se encontraram e não se conhecem. O homem de setenta e oito anos é uma personagem trágica que agiu sozinha movida pelas suas fantasias, manifestamente paranóicas. A Sapo tinha iniciado recentemente uma investigação devido ao grande número de cartas confusas por ele enviadas a certos políticos e aos media. Ainda esta manhã, chegaram aos jornais e às mãos das autoridades cartas em que profere ameaças de morte contra Karl Axel Bodin.
- Porque é que a polícia não colocou Bodin sob protecção?
- As cartas em que o nome dele é referido foram enviadas ontem, e em princípio chegaram aos destinatários no momento em que o crime era cometido. Não houve a mais pequena margem de manobra.
- Como se chama esse homem?
- Não daremos essa informação até a família ter sido avisada.
- Sabe-se alguma coisa do seu passado?
- Tanto quanto compreendi, foi advogado comercial e perito em fiscalidade. Reformou-se há quinze anos. As investigações prosseguem, mas, como as cartas demonstram, esta tragédia poderia ter sido evitada se a sociedade tivesse sido mais vigilante.
- Houve outras pessoas ameaçadas?
- Segundo a informação que me foi dada, sim, mas não tenho pormenores.
- Quais são as implicações para o processo contra a Lisbeth Salander?
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- Para já, nenhumas. Dispomos do depoimento que o próprio Karl Axel Bodin prestou aos polícias que o interrogaram e temos provas técnicas consideráveis contra ela.
- E as informações segundo as quais o Bodin terá tentado matar a filha?
- A ocorrência está a ser objecto de investigação, mas há fortes indícios de que seja verdade. Tudo parece indicar que estamos perante poderosos antagonismos no seio de uma família tragicamente desfeita.
Henry Cortez estava com um ar pensativo. Coçou a orelha. Notou que os seus colegas tomavam notas tão febrilmente como ele próprio.
Gunnar Bjõrck foi dominado pelo pânico ao saber dos tiros em Sahlgrenska. Tinha dores terríveis nas costas.
Durante uma hora ficou parado sem saber o que fazer. Depois, pegou no telefone e tentou ligar para o seu velho protector, Evert Gullberg, em Laholm. Ninguém atendeu.
Ouviu os noticiários e ficou com um resumo do que fora dito na conferência de imprensa. Zalachenko morto por um justiceiro. Que diabo. Setenta e oito anos!
Tentou mais uma vez ligar para Gullberg, sem êxito. Finalmente, o medo e a angústia dominaram-no. Não podia continuar na casa emprestada de Smádalarõ. Sentia-se encurralado e exposto. Precisava de tempo para pensar. Enfiou num saco roupas, analgésicos, a escova de dentes e um pente. Não quis utilizar o telefone de casa, de modo que se dirigiu à cabina pública diante da mercearia local, ligou para Landsort e reservou um quarto no velho farol transformado em pousada. Landsort ficava no fim do mundo e poucas pessoas se lembrariam de ir lá procurá-lo. Fez a reserva para duas semanas.
Olhou para o relógio. Se queria apanhar o último ferry, tinha de se despachar, de modo que voltou a casa o mais depressa que as costas lhe permitiram. Passou pela cozinha, para se certificar de que a cafeteira eléctrica estava desligada. Depois foi ao vestíbulo buscar o Saco. Lançou um último olhar à sala de estar e deteve-se, estupefacto.
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De início, não compreendeu o que estava a ver.
O candeeiro de tecto tinha, de alguma forma misteriosa, sido retirado do gancho que o suspendia e colocado em cima da mesa. No lugar dele havia uma corda, e por baixo dessa corda o banco que normalmente se encontrava na cozinha.
Bjõrck olhou para a corda, sem compreender.
Então, ouviu um movimento nas suas costas e sentiu as pernas fraquejarem.
Voltou-se, lentamente.
Eram dois homens com cerca de 35 anos. Reparou que pareciam mediterrânicos. Não teve tempo para reagir quando cada um deles lhe pegou gentilmente num braço e o arrastaram de costas até ao banco. Quando tentou resistir, a dor trespassou-lhe as costas como uma facada. Estava quase paralisado quando sentiu que o içavam para cima do banco.
Jonas Sandberg estava acompanhado por um homem de 49 anos chamado Falun que, na sua juventude, fora gatuno profissional, mas que depois se convertera em serralheiro. Hans von Rottinger, da Secção, contratara Falun em 1986 para uma operação que consistira em arrombar a porta do líder de uma organização anarquista. Depois disto, a Secção recorrera regularmente aos talentos de Falun até meados dos anos 90, altura em que aquele género de acções deixara de ser praticado. Naquela manhã, Fredrik Clinton restabelecera o contacto com Falun para lhe atribuir uma missão. Falun ia ganhar 10 mil coroas líquidas por cerca de dez minutos de trabalho. Em contrapartida, comprometia-se a não roubar fosse o que fosse no apartamento-alvo: ao fim e ao cabo, a Secção não se dedicava a actividades criminosas.
Falun não sabia exactamente quem Clinton representava, mas supunha que tinha qualquer coisa que ver com o exército. Tinha lido Jan Guillou. Não fazia perguntas. Em contrapartida, estava contente por voltar à acção, ao cabo de tantos anos de silêncio da parte do seu comanditário.
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O que tinha de fazer era abrir uma porta. Era perito em arrombamentos e usava uma gazua eléctrica. Mesmo assim, precisou de cinco minutos para forçar as duas fechaduras do apartamento de Mikael Blomkvist. Feito o serviço, aguardou no patamar, enquanto Jonas Sandberg entrava.
- Estou no interior - disse Sandberg para o micro do seu mãos-livres.
- Muito bem - disse a voz de Fredrik Clinton no auricular. - Mantém a calma e sê prudente. Descreve-me o que vês.
- Estou no vestíbulo, com um bengaleiro e chapeleira do lado direito e uma casa de banho do lado esquerdo. O resto do apartamento é uma grande sala com cerca de cinquenta metros quadrados. Há uma pequena cozinha americana à direita.
- Há alguma mesa de trabalho ou...
- Tenho a impressão de que ele trabalha na mesa da cozinha ou sentado no sofá... espere. - Clinton esperou. - Sim. Há uma pasta em cima da mesa da cozinha com o relatório do Bjõrck. Parece ser o original.
- Óptimo. Mais alguma coisa interessante em cima da mesa?
- Livros. As memórias de P. G. Vinge. Luta pelo Controlo da Sapo, de Erik Magnusson. Mais meia dúzia de livros do mesmo género.
- Algum computador? -Não.
- Armário fechado ou cofre?
- Não... que eu veja.
- Okay. Não te apresses. Revista cada palmo desse apartamento. O Mârtensson diz-me que o Blomkvist continua na redacção. Calçaste luvas?
- Evidentemente.
Marcus Ackerman esperou que Annika Giannini terminasse a sua conversa telefónica antes de entrar no quarto de Lisbeth Salander. estendeu a mão a Annika e apresentou-se. Cumprimentou Lisbeth e Perguntou-lhe como se sentia. Lisbeth não respondeu. Ackerman voltou-se para Annika.
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- Gostaria de fazer-lhe umas perguntas.
- Muito bem.
- Pode contar-me o que se passou?
Annika contou o que tinha acontecido e o que tinha feito até ao momento em que se barricara na casa de banho com Lisbeth. Acker-man fez um ar pensativo. Olhou para Lisbeth Salander, e depois para a advogada.
- Está então convencida de que ele queria entrar neste quarto.
- Ouvi-o. Tentou abrir a porta.
- Acha que queria matá-la também a si?
- Não sei. Recuei para dentro do quarto e bloqueei a porta.
- Fez muito bem. E ainda melhor ao esconder a sua cliente na casa de banho. Estas portas são tão finas que as balas as teriam atravessado com toda a facilidade se ele disparasse. O que estou a tentar perceber é se ele a visava intencionalmente ou se apenas reagiu porque estava a olhar. Estava muito perto dele, no corredor.
- É verdade.
- Acha que ele a conhecia, ou que a terá reconhecido? -Não.
- Tê-la-á reconhecido dos jornais? O seu nome apareceu ligado a vários casos importantes.
- É possível. Não faço ideia.
- E nunca o tinha visto?
- Vi-o no elevador, quando cheguei.
- Ah, não sabia. Falaram um com o outro?
- Não. Olhei para ele talvez durante meio segundo. Tinha um ramo de flores numa mão e uma pasta na outra.
- Trocaram algum olhar?
- Não. Ele olhou sempre em frente.
- Foi ele o primeiro a entrar no elevador, ou entrou atrás de si? Annika pensou um pouco.
- Acho que entrámos mais ou menos ao mesmo tempo.
- Ele pareceu-lhe perturbado, ou...
- Não. Ficou muito quieto, com as suas flores.
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- Que aconteceu a seguir?
- Saí do elevador. Ele saiu ao mesmo tempo e eu vim ter com a minha cliente.
- Veio directamente para este quarto?
- Sim... não. Quer dizer, primeiro fui à recepção identificar-me. A procuradora proibiu as visitas à minha cliente.
- Onde se encontrava o homem, nessa altura?
- Não tenho bem a certeza. Seguiu-me, suponho. Sim, espere. Foi o primeiro a sair do elevador, mas parou para segurar a porta. Não posso jurar, mas diria que também ele se dirigiu à recepção. Eu fui apenas mais rápida.
Um assassino reformado muito cortês, pensou Ackerman.
- Sim, é verdade, foi à recepção - confirmou ele. - Falou com a enfermeira e entregou-lhe as flores. Mas então, já não viu nada disto?
- Não, acho que não.
Marcus Ackerman reflectiu um instante, mas não encontrou mais nada que perguntar. Tinha uma sensação de frustração a roê-lo por dentro. Não era a primeira vez que a experimentava e aprendera a reconhecê-la como um alerta do seu instinto.
O assassino tinha sido identificado como Evert Gullberg, antigo advogado comercial, consultor de uma empresa durante algum tempo e perito em fiscalidade. Um homem contra quem a Sapo abrira recentemente um inquérito preliminar porque era um chanfrado que enviava cartas ameaçadoras a celebridades.
A sua experiência como polícia dizia-lhe que não faltavam tarados por aí, pessoas obcecadas que assediavam os famosos em busca de amor. E quando esse amor não encontrava eco, podia com muita facilidade transformar-se em ódio cego. Havia perseguidores que viajavam da Alemanha ou de Itália para declararem a sua paixão a uma jovem vocalista de um grupopop célebre e ficavam ressentidos quando ela não iniciava de imediato uma relação íntima com eles. Havia justiceiros que vingavam ofensas reais ou imaginárias e que podiam dar provas de um comportamento razoavelmente ameaçador. Havia os puros psicopatas e os maníacos das conspirações capazes de
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ver mensagens escondidas que passavam despercebidas ao resto do mundo.
Também não faltavam os exemplos de chanfrados que passavam da fantasia à acção. Não resultara o assassínio de Anna Lindh justamente de um impulso de um desses doentes? Talvez sim, talvez não.
Em todo o caso, o inspector Marcus Ackerman não achava graça nenhuma à ideia de um antigo especialista em fiscalidade, ou fosse lá o que fosse, com problemas mentais ou sem eles, poder chegar ao Hospital Sahlgrenska levando um ramo de flores numa mão e uma pistola na outra e executar um homem que estava a ser objecto de uma investigação policial - a sua investigação. Um homem que nos registos oficiais vigorava como Karl Axel Bodin mas que, segundo Mikael Blomkvist, se chamava na realidade Zalachenko e era uma porra de um agente russo assassino e trânsfuga.
Zalachenko era, na melhor das hipóteses, testemunha e, na pior, cúmplice de uma série de assassínios. Ackerman tivera ocasião de interrogá-lo duas vezes e nem por um segundo acreditara nos seus protestos de inocência.
E o homem que o matara mostrara interesse em Lisbeth Salander, ou pelo menos na sua advogada. Tinha tentado entrar no quarto dela.
E em seguida tentara suicidar-se com um tiro na cabeça. Segundo os médicos, estava tão mal que ia provavelmente ser bem-sucedido na tentativa, ainda que o seu corpo não tivesse ainda compreendido que chegara a hora de embalar a trouxa e zarpar. Tudo levava a crer que Evert Gullberg nunca seria presente a um juiz.
Não, a situação não agradava a Marcus Ackerman. Nem um bocadinho. Mas nada provava que os tiros disparados por Gullberg tivessem outra motivação que não a que pareciam ter. Fosse como fosse, decidiu não deixar nada ao acaso. Olhou para Annika Giannini.
- Decidi que a sua cliente fosse transferida para outro quarto. Há um, no corredor à direita da recepção, que, do ponto de vista da segurança, é muito melhor do que este. Vê-se da recepção e da sala das enfermeiras noite e dia. Proibição de visitas para toda a gente exceptuando a senhora. Ninguém entrará no quarto sem autorização
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sem ser um médico ou uma enfermeira conhecidos aqui em Sahlgrenska. E vou colocar um guarda diante da porta vinte e quatro horas por dia.
- Acha que existe uma ameaça contra ela?
- Não há nada que o indique. Mas não quero correr riscos.
Lisbeth Salander escutou atentamente a conversa entre a sua advogada e o homem que considerava seu adversário, o polícia. Ficara impressionada ao ouvir Annika Giannini responder com tanta exactidão e clareza, e com tanto pormenor. E ficara ainda mais impressionada pelo modo lúcido como Annika reagira num momento de tensão.
O único contra era ter ficado com uma horrível dor de cabeça desde que Annika a arrancara da cama e a levara para a casa de banho. Instintivamente, queria ter o menos contacto possível com o pessoal. Não gostava de ser obrigada a pedir ajuda nem de mostrar sinais de fraqueza. Mas a dor de cabeça era tão violenta que nem conseguia pensar. Estendeu a mão e premiu o botão de chamada.
Annika Giannini tinha planeado a estada em Gotemburgo como o prólogo de um trabalho de longa duração. Previra travar conhecimento com Lisbeth Salander, informar-se sobre o seu verdadeiro estado de saúde e traçar um primeiro esboço da estratégia que ela e Mikael tinham concebido tendo em vista o inevitável julgamento. Inicialmente tivera a intenção de regressar a Estocolmo naquela mesma tarde, mas os dramáticos acontecimentos em Sahlgrenska tinham-na impedido de conversar com Lisbeth Salander. A situação da sua cliente era consideravelmente pior do que julgara perceber quando os médicos a tinham qualificado como estável. Lisbeth continuava atormentada por terríveis dores de cabeça e tinha muita febre, o que levara uma médica chamada Helena Endrin a receitar-lhe fortes analgésicos, antibióticos e repouso. Uma vez Lisbeth instalada no novo quarto e com um polícia colocado à porta, Annika fora delicada mas firmemente posta na rua.
Rosnou uma praga entre dentes e olhou para o relógio, que marcava 16h30. Hesitou. Podia regressar a Estocolmo e ver-se obrigada a voltar a Gotemburgo no dia seguinte. Ou podia passar ali a noite
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e correr o risco de, na manhã seguinte, a sua cliente continuar ainda demasiado fraca para falar. Não tinha reservado quarto num hotel e, de todos os modos, era uma advogada de parcos honorários, que representava mulheres sujeitas a violência e sem recursos, pelo que, como regra, evitava sobrecarregar a factura com dispendiosas contas de hotel. Telefonou primeiro para casa, e depois para Lilian Josefsson, membro da Rede de Protecção à Mulher e antiga colega da universidade. Havia dois anos que não se viam, de modo que tagarelaram um pouco antes de Annika anunciar a razão do telefonema.
- Estou em Gotemburgo - disse. - Tinha pensado partir esta tarde, mas aconteceram contratempos que me obrigam a ficar cá esta noite. Pensei que talvez pudesse abancar em tua casa.
- Óptimo. Adoro parasitas. Há séculos que não nos vemos.
- Não vou incomodar?
- Claro que não. Mudei de casa. Agora vivo para os lados da Lin-négatan. Até tenho um quarto de hóspedes e tudo. Podemos dar uma volta pelos bares, esta noite.
- Se tiver forças para tanto - respondeu Annika. - A que horas posso ir?
Combinaram que apareceria por volta das seis.
Annika apanhou um autocarro para a Linnégatan e passou a hora seguinte num restaurante grego. Estava cheia de fome e pediu uma espetada com salada. Enquanto comia, pensou longamente no que tinha acontecido. As mãos tremiam-lhe um pouco, agora que o efeito da adrenalina se dissipara, mas estava satisfeita consigo mesma. Face ao perigo, agira sem hesitar, com calma e eficácia. E fizera as escolhas certas sem sequer pensar nisso. Era reconfortante ter aquela certeza sobre as suas próprias capacidades.
Acabou por tirar o Filofax da pasta e folheou a parte das notas. Leu com uma grande concentração. O que o irmão lhe tinha explicado deixava-a agora profundamente perplexa. Na altura, parecera-lhe lógico, mas a verdade é que o plano tinha falhas gritantes. Fosse como fosse, não fazia tenção de recuar.
Às seis, pagou a conta, fez a pé o percurso até ao prédio de Lillian Josefsson, na Olivedalsgatan, e digitou o código de entrada
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a amiga lhe tinha fornecido. Entrou no átrio, e estava a procurar o elevador com os olhos quando foi atacada. Não se apercebera do mínimo sinal de que alguma coisa ia acontecer quando, bruscamente e com uma enorme violência, foi projectada contra a parede de tijoleira. Bateu com a testa e sentiu uma dor fulgurante.
No instante seguinte, ouviu passos que se afastavam rapidamente, e depois a porta a abrir-se e voltar a fechar-se. Pôs-se de pé, levou a mão à cabeça e viu a palma suja de sangue. Mas que raio! Olhou em redor, confusa, e saiu para a rua. Viu, de relance, um homem dobrar a esquina da Sveaplan a correr. Ficou petrificada, ali plantada sem se mover durante um bom minuto.
Só então percebeu que já não tinha a sua pasta e que acabava de ser roubada. Foram precisos alguns segundos para o cérebro perceber as implicações. Não! O dossier Zalachenko! Sentiu o choque alastrar-se a partir do estômago e deu alguns passos hesitantes atrás do homem em fuga. Não serviria de nada. Ele já tinha desaparecido. Sentou-se lentamente na beira do passeio. Então, levantou-se de um salto e procurou no bolso do casaco. O Filofax. Graças a Deus! Tinha-o enfiado no bolso ao sair do restaurante. Continha o primeiro rascunho da sua estratégia no caso de Lisbeth Salander. Ponto por ponto.
Correu para a porta, reintroduziu o código e subiu as escadas até ao terceiro andar, onde começou a socar com os punhos a porta de lillian Josefsson.
Já passava das seis e meia quando Annika se sentiu suficientemente recomposta para telefonar ao irmão. Tinha um olho negro e um golpe no sobrolho que Lillian limpara com álcool antes de aplicar um penso. Não, não queria ir ao hospital. Sim, agradeceria uma chávena de chá. Só então recomeçou a pensar racionalmente. A sua primeira medida foi ligar a Mikael.
Mikael Blomkvist ainda estava na redacção da Millennium, a respegar informações sobre o assassino de Zalachenko na companhia de
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Henry Cortez e Malin Eriksson. Escutou o relato que Annika fazia dos acontecimentos com uma estupefacção crescente.
- Estás bem? - perguntou.
- Um olho negro. Estarei operacional logo que me tiver acalmado.
- Merda, roubo com violência?
- Levaram a minha pasta com a cópia do dossier Zalachenko que me tinhas dado. Desapareceu.
- Não é grave. Posso fazer-te outra.
Interrompeu-se e sentiu de súbito os cabelos eriçarem-se-lhe na cabeça. Primeiro Zalachenko. Depois Annika.
- Annika... eu já te ligo.
Fechou o iBook, enfiou-o no saco e saiu da redacção sem uma palavra. Correu até casa, na Bellmansgatan, e subiu os degraus a quatro e quatro.
A porta estava fechada à chave.
Mal entrou no apartamento, viu que a pasta verde que ficara em cima da mesa da cozinha tinha desaparecido. Nem se deu ao trabalho de a procurar. Sabia muito bem onde a tinha deixado antes de sair. Deixou-se cair lentamente numa cadeira diante da mesa enquanto os pensamentos lhe rodopiavam na cabeça.
Entrara alguém no apartamento. Alguém que queria apagar todos os traços de Zalachenko.
A sua cópia e a de Annika tinham desaparecido.
Bublanski continuava a ter o relatório.
Ou não?
Levantou-se e pegou no telefone, mas deteve-se com o auscultador na mão. Alguém tinha entrado no apartamento. De repente, olhou para o telefone cheio de desconfiança. Voltou a pousá-lo e tac-teou o bolso do casaco, onde tinha o telemóvel.
Será possível pôr um telemóvel sob escuta?
Pousou o telemóvel ao lado do fixo e olhou em redor.
Estou a lidar com profissionais. Será possível pôr todo um apartamento sob escuta?
Voltou a sentar-se em frente da mesa da cozinha.
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Olhou para o saco do portátil.
É fácil interceptar um e-mail. A Lisbeth não demora mais de cinco minutos.
Reflectiu um longo momento antes de voltar ao telefone e ligar para a irmã, em Gotemburgo. Ia ter muito cuidado com o que dizia.
- Então... como estás?
- Bem, Micke.
- Conta-me o que aconteceu desde que saíste de Sahlgrenska até que foste assaltada.
Annika precisou de dez minutos para fazer o relato do dia. Mikael não discutiu o alcance do que ela contava, mas fez perguntas até ficar satisfeito. Parecia apenas um irmão preocupado, mas o seu cérebro trabalhava num plano muito diferente enquanto reconstruía os pontos de referência.
Annika decidira ficar em Gotemburgo às quatro e meia e telefonara do telemóvel a uma amiga que lhe dera o código de acesso ao prédio onde morava. O assaltante atacara-a às seis em ponto, dentro do átrio.
O telemóvel da irmã estava sob escuta. Era a única explicação possível.
O que implicava que também o dele estava sob escuta.
Caso contrário, não faria qualquer sentido.
- Mas levaram o dossier Zalachenko - repetiu Annika. Mikael hesitou um segundo. Quem entrara em sua casa e levara a pasta já sabia que a cópia de Annika também tinha sido roubada. Não fazia diferença dizê-lo pelo telefone.
- O meu também.
- O quê?
Mikael explicou que tinha corrido para casa e que a pasta que deixara em cima da mesa da cozinha tinha desaparecido.
- Okay - disse, num tom sombrio. - É uma catástrofe. O dossier Zalachenko foi-se. Era o peso pesado da nossa argumentação.
- Micke... estou desolada.
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- Também eu. Mas a culpa não foi tua. Devia ter tornado o relatório público no dia em que o encontrei.
- O que é que fazemos agora?
- Não sei. Era o pior que podia acontecer-nos. Todo o nosso plano foi por água abaixo. Não temos a mínima prova contra o Bjõrck e o Teleborian.
Falaram ainda durante dois minutos até Mikael pôr fim à conversa.
- Gostaria que regressasses a Estocolmo amanhã - disse.
- Não posso. Tenho de falar com a Lisbeth.
- Fala com ela de manhã. Regressa da parte da tarde. Temos de nos encontrar para decidir o que vamos fazer.
Depois de desligar, Mikael ficou sentado e imóvel, a olhar em frente. Então, um sorriso espalhou-se-lhe pelo rosto. Quem estivera a escutar a conversa sabia agora que a Millennium perdera o relatório de 1991, bem como a correspondência entre Bjõrck e Peter Teleborian, o psiquiatra. Sabia que Mikael e Annika estavam desesperados.
A desinformação é a alma da espionagem. Era algo que Mikael ficara a saber ao estudar a história da Sapo, na noite anterior. Acabava de plantar uma falsa informação que, a longo prazo, poderia vir a revelar-se inestimável.
Abriu o saco do portátil e tirou de lá a cópia que fizera para Dra-gan Armanskij, mas que ainda não tivera tempo de lhe entregar. Era o último exemplar que restava. E não tencionava perdê-lo. Pelo contrário, ia fazer imediatamente quatro ou cinco cópias e espalhá-las pelos lugares apropriados.
Lançou um olhar ao relógio e ligou para a redacção da Millennium. Malin Eriksson ainda lá estava, mas a preparar-se para fechar.
- Porque saíste a correr daquela maneira?
- Podes aguentar um pouco? Vou voltar aí, e há uma coisa que quero que vejas antes de ires para casa.
Havia semanas que não tinha tempo para lavar a roupa. Todas as suas camisas se encontravam no cesto da roupa suja. Levou a navalha de barbear e o livro Luta pelo Controlo da Sapo, além do único
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exemplar que restava do relatório de Bjõrck. Foi a pé até à Dressman e comprou quatro camisas, dois pares de calças e dez cuecas, e levou tudo para a redacção. Malin esperou enquanto ele tomava um duche rápido. Perguntou-lhe o que se passava.
- Alguém arrombou a porta de minha casa para entrar e roubar o relatório Zalachenko. E alguém atacou a minha irmã, em Gotemburgo, e roubou-lhe o exemplar dela. Sei que o telemóvel dela está sob escuta, o que quer dizer que também o meu, talvez o teu e todos os telefones da Millennium. E suponho que se alguém se deu ao trabalho de arrombar a porta lá de casa, só se fosse muito estúpido é que não punha sob escuta todo o apartamento, já que estava com a mão na massa.
- Ah - disse Malin, numa vozinha apagada. Olhou para o telemóvel que tinha pousado na secretária à sua frente.
- Continua a agir como se nada fosse. Usa o teu telemóvel, mas não passes nenhuma informação. Amanhã explicamos a situação ao Henry Cortez.
- De acordo. Saiu há uma hora. Deixou um monte de inquéritos do Estado em cima da tua secretária. Mas que fazes tu aqui...?
- Vou dormir na Millennium, esta noite. Se eles mataram o Zalachenko, roubaram os relatórios e puseram o meu apartamento sob vigilância hoje, tudo indica que estão a começar e ainda não tiveram tempo de tratar da Millennium. Há cá gente durante todo o dia. Não quero que a redacção fique vazia à noite.
- Achas que o assassínio do Zalachenko... mas o assassino era um velho louco de setenta e oito anos.
- Não acredito nem por um segundo nesse género de acaso. Alguém está a tentar apagar todas as pistas que conduzem ao Zalachenko. Não quero saber de quem possa ser esse velho nem do número de cartas malucas que escreveu aos ministros. É com certeza uma espécie de assassino a soldo. Foi ao hospital com a intenção de matar o Zalachenko... e talvez a Lisbeth também.
- Mas depois suicidou-se, ou pelo menos tentou. Achas que um assassino a soldo faria uma coisa dessas?
Mikael reflectiu um instante. Os seus olhos encontraram os de Malin.
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- Se tem setenta e oito anos e, quem sabe, nada a perder, sim. Está envolvido em toda esta história, e quando acabarmos de cavar, poderemos prová-lo. - Malin observou atentamente o rosto de Mikael. Nunca lhe vira um ar tão friamente decidido. De repente, sentiu um arrepio. Mikael notou-lhe a reacção. - Outra coisa. A partir de agora, a guerra já não é contra um bando de criminosos, mas contra uma autoridade do Estado. Vai ser a sério. - Malin assentiu com a cabeça. - Nunca pensei que as coisas fossem tão longe - continuou Mikael. - Malin, se não queres ir a jogo, basta dizeres.
Malin hesitou um instante. Interrogou-se sobre o que diria Erika naquela situação. E então abanou desafiadoramente a cabeça.
2.a PARTE
A REPÚBLICA HACKER
1 a 22 de Maio
UMA LEI IRLANDESA DE 1697 PROÍBE ÀS MULHERES O EXERCÍCIO DA MILÍCIA - o QUE SIGNIFICA QUE, ANTES, ESSE EXERCÍCIO lhes ERA AUTORIZADO. COMO EXEMPLOS DE POVOS QUE, EM DIFERENTES MOMENTOS DA HISTÓRIA, TIVERAM
MULHERES-SOLDADOS, PODEMOS REFERIR OS ÁRABES, OS BERBERES, OS CURDOS, OS RAJPUT, OS CHINESES, OS FILIPINOS, OS MAORIS, OS PAPUAS, OS ABORÍGENES DA AUSTRÁLIA, OS MICRONÉSIOS E OS ÍNDIOS AMERICANOS. NA GRÉCIA ANTIGA, ABUNDAVAM AS LENDAS SOBRE TEMÍVEIS GUERREIRAS. ESSAS HISTÓRIAS FALAM DE MULHERES QUE, DESDE A INFÂNCIA, ERAM TREINADAS NA ARTE DA GUERRA E NO USO DE ARMAS, SE HABITUAVAM ÀS PRIVAÇÕES FÍSICAS. VIVIAM SEPARADAS DOS HOMENS E COMBATIAM INTEGRADAS NOS SEUS PRÓPRIOS REGIMENTOS. E SÃO MUITAS AS PASSAGENS
QUE REFEREM VITÓRIAS SOBRE OS HOMENS NO CAMPO DE BATALHA. NA LITERATURA GREGA, AS AMAZONAS SÃO REFERIDAS, POR EXEMPLO, NA ILÍADA
DE HOMERO, ESCRITA SETECENTOS ANOS ANTES DO NASCIMENTO DE CRISTO.
É TAMBÉM AOS GREGOS QUE DEVEMOS O TERMO "AMAZONAS". LITERALMENTE,
A PALAVRA SIGNIFICA "SEM PEITO". A EXPLICAÇÃO GERALMENTE DADA É QUE SE
SUJEITAVAM À ABLAÇÃO DO SEIO DIREITO PARA MAIS FACILMENTE MANEJAREM O
ARCO. APESAR DE DOIS DOS MÉDICOS GREGOS MAIS IMPORTANTES DA HISTÓRIA,
HIPÓCRATES E GALIANO, AFIRMAREM QUE UMA TAL OPERAÇÃO AUMENTAVA
DE FACTO A CAPACIDADE DE USAR ARMAS, NÃO SE SABE MUITO BEM SE
ERA REALMENTE PRATICADA. É QUE SE ESCONDE AQUI UMA DÚVIDA LINGUÍSTICA:
NÃO HÁ A CERTEZA DE O PREFIXO A- EM "AMAZONA" SIGNIFICAR "SEM", E HÁ ATÉ QUEM OPINE QUE SIGNIFICARIA O CONTRÁRIO E QUE UMA AMAZONA SERIA UMA MULHER COM SEIOS PARTICULARMENTE GRANDES. NÃO ENCONTRAMOS
EM MUSEU ALGUM UMA IMAGEM, UM AMULETO OU UMA ESTÁTUA
QUE REPRESENTE UMA MULHER SEM O SEIO DIREITO, UM MOTIVO QUE DEVERIA
SER FREQUENTE SE A LENDA FOSSE VERDADEIRA.
CAPÍTULO 8
DOMINGO, 1 DE MAIO - SEGUNDA-FEIRA, 2 DE MAIO
Erika Berger respirou fundo antes de abrir a porta do elevador e entrar na redacção do Svenska Morgon-Posten. Eram dez e um quarto. Escolhera uma roupa discreta: umas calças pretas, camisola vermelha e casaco escuro. O tempo, naquele primeiro dia de Maio, estava magnífico e, ao atravessar a cidade, verificara que o movimento operário estava a reunir as suas tropas. Pensara então que, pela primeira vez em vinte anos, não participaria no desfile do 1º de Maio.
Por um curto instante, manteve-se imóvel, e invisível, diante da porta do elevador. O primeiro dia no seu novo emprego. De onde estava, via uma grande parte da redacção central, com o pólo Actualidades no meio. Ergueu um pouco o olhar e viu as portas envidraçadas do gabinete do director editorial, que ia passar a ser o seu.
Não estava cem por cento convencida de ser a pessoa certa para dirigir a monstruosa organização que era o Svenska Morgon-Posten. Era um passo gigantesco, da minúscula Millennium, com os seus cinco colaboradores, para um diário que empregava 80 jornalistas e 90 outras pessoas, entre administração, pessoal técnico, designers, fotógrafos, comerciais, distribuidores e tudo o que gira à volta da produção de um diário. A tudo isto, havia que acrescentar uma editora, uma gráfica, e uma sociedade de administração. Ao todo, mais de 230 pessoas.
Naquele momento, interrogou-se se não teria cometido um erro de todo o tamanho.
Então, a mais velha das recepcionistas viu quem acabava de chegar à redacção e deixou o seu balcão para se aproximar dela, de mão estendida.
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- Fru Berger. Bem-vinda ao SMP.
- Obrigada. Bom dia. Chamo-me Erika.
- Beatrice. Bem-vinda. Venha, vou levá-la ao gabinete do director editorial, Herr Morander... quero dizer, o director editorial demissionário.
- Obrigada, mas estou a vê-lo lá ao fundo, na sua gaiola de vidro - disse Erika, sorrindo. - Acho que consigo encontrar o caminho. Obrigada, de todos os modos.
Atravessou a redacção com passos rápidos e notou que o ruído ambiente diminuía um pouco. De repente, sentiu todos os olhares postos em si. Deteve-se diante do pólo Actualidades, semideserto, e acenou amistosamente com a cabeça.
- Já vamos ter a oportunidade de nos conhecer - disse, e foi bater à porta de vidro.
Aos 59 anos, Hâkan Morander, director editorial demissionário, tinha passado 12 naquela gaiola de vidro, à cabeça da redacção do SMP. Tal como Erika Berger, viera de fora, cuidadosamente escolhido a dedo. Também ele fizera, portanto, a mesma caminhada que ela acabava de fazer para ali chegar. Olhou para ela, perturbado, lançou um olhar ao relógio e pôs-se de pé.
- Bom dia, Erika. Pensei que só começava na segunda.
- Não aguentava mais um dia em casa. Por isso aqui estou. Morander estendeu-lhe a mão.
- Bem-vinda. Pode crer que estou muito contente por passar o
testemunho.
- Como vai essa saúde? - perguntou Erika.
Morander encolheu os ombros. Beatrice, a recepcionista, apareceu com café e leite.
- Tenho a impressão de já estar a funcionar a meio gás. A verdade é que prefiro não falar disso. Uma pessoa passa uma vida a sentir-se imortal e, de repente, o tempo que nos resta é muito pouco. E uma coisa é certa: não tenciono desperdiçá-lo nesta gaiola.
Ao dizer isto, esfregou o peito, num gesto inconsciente. Os problemas cardíacos de que sofria eram a razão da sua súbita demissão
e de Erika ter de começar vários meses mais cedo do que a data inicialmente prevista. Erika voltou-se e contemplou a panorâmica da redacção que se avistava através das paredes de vidro, semideserta naquele dia feriado. Um jornalista e um fotógrafo dirigiam-se para o elevador, sem dúvida para irem cobrir o desfile do 1º de Maio, pensou.
- Se incomodo, ou se hoje está ocupado, ponho-me a andar - disse.
- O meu trabalho para hoje é escrever um editorial de quatro mil e quinhentos caracteres sobre as marchas do primeiro de Maio. Já escrevi tantos que consigo fazê-lo a dormir. Se os sociais-democratas quiserem declarar guerra à Dinamarca, tenho de explicar por que é que estão enganados.
- A Dinamarca? - perguntou Erika, surpreendida.
- Claro. Uma parte da mensagem do primeiro de Maio aborda o conflito na questão da integração. E os sociais-democratas estão enganados, digam o que disserem - respondeu Morander, e soltou uma gargalhada.
- Estou a ver que é um cínico - disse Erika.
- Bem-vinda ao Svenska Morgon-Posten!
Erika nunca tivera uma opinião formada a respeito de Hâkan Morander. O homem era detentor de um misterioso poder entre a elite dos directores editoriais. Quando lia o que ele escrevia, via-o como um chato, conservador e porta-voz das queixas contra os impostos, um liberal típico que militava a favor da liberdade de expressão, mas nunca tivera ocasião de o conhecer nem de estar em contacto com ele.
- Fale-me do trabalho - pediu.
- Paro no final de Junho. Vamos trabalhar juntos durante dois meses, de modo que me permito passar já ao tratamento por tu, que é o normal na casa. Vais encontrar coisas positivas e coisas negativas. Tens razão, sou um cínico, embora veja sobretudo os aspectos negativos. - Foi juntar-se a ela diante do vidro. - Vais aperceber-te de que, fora desta gaiola, tens um certo número de adversários: os chefes de redacção de turno e os redactores veteranos que criaram os seus
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imperiozinhos, ou os seus clubes particulares, aos quais não poderás pertencer. Vão tentar forçar os limites e impor os seus cabeçalhos e pontos de vista pessoais. Vais ter de ser draconiana para lhes resistir. - Erika assentiu com a cabeça. - Tens os chefes de redacção da noite, o Billinger e o Karlsson... um capítulo à parte só para eles. Detestam-se e felizmente não formam equipa, mas comportam-se como se fossem simultaneamente responsáveis pela publicação e directores editoriais. Tens o Lukas Holm, das Actualidades, com quem forçosamente terás um contacto regular. Tenho a certeza de que vão arranhar-se mais do que uma vez. Na realidade, é ele que fabrica o SMP todos os dias. Tens alguns jornalistas que são primas donas e outros que já deviam estar na reforma há muito tempo.
- Algum colaborador de jeito, no meio de tudo isso? Morander riu-se.
- Sim, mas terás de ser tu a decidir com quem te vais entender. Temos alguns jornalistas que são verdadeiramente bons.
- E do lado da administração?
- O Magnus Borgsjõ é o presidente do CA. Foi ele que te recrutou. Um tipo cheio de encanto, meio velha escola meio renovador, mas é, acima de tudo, aquele que decide. Acrescenta alguns membros do conselho, vários deles pertencentes à família proprietária, que parecem fazer o papel de figurantes, e outros que se agitam como se fossem profissionais do CA.
- Não me pareces muito satisfeito com o conselho de administração.
- Cada macaco no seu galho. Tu fazes o jornal. Eles ocupam-se das finanças. Não é suposto imiscuírem-se no conteúdo editorial, mas ha sempre questões problemáticas. Muito francamente, Erika, vais suar.
- Porquê?
- A tiragem caiu quase cento e cinquenta mil exemplares desde os tempos áureos dos anos sessenta, e o SMP começa a aproximar-se da linha vermelha. Racionalizámos e suprimimos mais de cento e oitenta postos de trabalho desde 1980. Passámos para o formato tabloi-de... coisa que deveríamos ter feito há vinte anos. O SMP sempre
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pertenceu ao grupo dos grandes jornais, mas não falta muito para que as pessoas comecem a classificar-nos na categoria B. Se é que já não começaram.
- Nesse caso, porque me escolheram a mim?
- Porque a idade média dos que lêem o SMP é de cinquenta anos e a adesão de leitores jovens é praticamente nula. O SMP tem de ser renovado. E o raciocínio da administração foi ir buscar o director editorial mais improvável que conseguissem encontrar.
- Uma mulher?
- Mas não uma mulher qualquer. A mulher que deitou abaixo o império do Wennerstrõm, que é reconhecida como a rainha do jornalismo de investigação e que tem fama de ser um osso duro de roer. Põe-te no lugar deles. É irresistível. Se tu não conseguires renovar este jornal, é porque ninguém o conseguirá. O SMP não está a contratar apenas a Erika Berger, mas principalmente a reputação de Erika Berger.
Mikael Blomkvist saiu do café Copacabana, ao lado do cinema Kvartersbion, em Hornstull, um pouco depois das duas da tarde. Pôs os óculos de sol, e tinha chegado à Alameda de Bergsund, a caminho da estação do metro, quando viu o Volvo cinzento estacionado na esquina. Continuou a andar no mesmo passo e verificou que a matrícula era a mesma e que o carro estava vazio.
Era a sétima vez em quatro dias que via aquele Volvo] Não saberia dizer se já o andava a rondar há mais tempo sem que se tivesse apercebido. Da primeira vez que o vira, estava estacionado perto do seu prédio, na Bellmansgatan, na quarta-feira de manhã, quando se dirigia para a redacção da Millennium. Reparara na matrícula, que começava com as letras KAB, e reagira, porque era o nome da empresa "adormecida" de Alexander Zalachenko, a Karl Axel Bodin SA. Não teria provavelmente pensado mais nisso se não tivesse voltado a ver o mesmo carro, com a mesma matrícula, algumas horas mais farde, quando almoçava com Henry Cortez e Malin Eriksson na Medborgarplats. Dessa vez, estava estacionado numa rua transversal, Junto à Millennium.
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Perguntara-se vagamente se estaria a tornar-se paranóico, mas quando, nessa mesma tarde, fora visitar Holger Palmgren ao Centro de Reabilitação de Ersta, vira o carro parado no parque de estacionamento. Não podia ser fruto do acaso. Começara a olhar com mais atenção à sua volta. E não ficara surpreendido quando, na manhã seguinte, voltara a ver o raio do Volvo.
Em momento algum avistara o condutor. Mas um simples telefonema para o Registo Automóvel permitira-lhe ficar a saber que o veículo pertencia a um tal Gõran Mârtensson, de 40 anos, com residência na Vittangigatan, em Vãllingby. Uma breve pesquisa informara-o de que Gõran Mârtensson era consultor de empresas e que tinha a sua própria sociedade cujo endereço era uma caixa postal na Fleminggatan, em Kungsholmen. Em 1983, com 18 anos, prestara serviço militar numa unidade especial da defesa costeira, após o que entrara para a Defesa. Chegara a tenente antes de se demitir, em 1989, e inscrever-se na Academia de Polícia, em Solna. Entre 1991 e 1996, trabalhara em Estocolmo. Em 1997, abandonara o serviço e em 1999 registara a sua empresa.
Conclusão: Sapo.
Mikael mordeu o lábio. Um jornalista de investigação consciencioso podia tornar-se paranóico por muito menos do que aquilo. Chegou à conclusão de que se encontrava sob vigilância discreta, mas que o trabalho era tão mal feito que dera por isso.
Mas seria verdadeiramente mal feito? A única razão por que reparara no carro fora o facto de ter uma matrícula que, por acaso, lhe dizia qualquer coisa. Se não fosse aquele KAB, nem sequer teria olhado duas vezes para o Volvo.
Na sexta-feira, o KAB primara pela ausência. Mikael não podia afirmá-lo com certeza, mas nesse dia pensava ter tido a companhia de um Audi encarnado, mas não conseguira ver a matrícula. No sábado, o Volvo estava de regresso.
Exactamente vinte segundos depois de Mikael Blomkvist ter saído do Copacabana, Christer Malm levantou a sua Nikon e, do lugar onde se encontrava, na sombra do terraço do café Rossos, do outro
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lado da rua, fez uma série de 12 fotografias. Fotografou os dois homens que saíram do café logo atrás de Mikael e começaram a segui-lo.
Um deles era um sujeito de idade dificilmente determinável, mais novo do que velho, de cabelos loiros. O outro parecia mais idoso. Tinha cabelos finos, de um loiro flamejante, e usava óculos de sol com lentes muito escuras. Ambos vestiam jeans e blusões de couro.
Separaram-se junto do Volvo cinzento. O mais velho entrou para o carro, enquanto o outro seguia Mikael a pé até à estação do metro.
Christer baixou a máquina e suspirou. Não sabia por que razão Mikael o chamara à parte e lhe pedira que contornasse o quarteirão do Copacabana, naquela tarde de domingo, e procurasse um Volvo cinzento com uma matrícula começada por KAB. Devia colocar-se de modo a poder fotografar a pessoa que ia, quase de certeza, abrir a porta do carro pouco depois das três da tarde. Além disso, deveria manter-se atento e tentar descobrir se alguém o seguia.
Cheirava-lhe que tudo isto era o início de um novo episódio das aventuras de Super Blomkvist. Christer não sabia muito bem se Mikael era paranóico por natureza ou se tinha poderes extra-sensoriais. Desde os acontecimentos em Gosseberga, tornara-se extremamente fechado e hermético a comunicar. O que não tinha nada de estranho, claro, uma vez que estava a trabalhar num caso complexo - Christer conhecera-lhe exactamente a mesma obsessão e o mesmo secretismo durante a história Wennerstrõm, mas desta vez estava a ser pior do que nunca.
Em contrapartida, Christer não tivera o mais pequeno problema em confirmar que Mikael estava efectivamente a ser seguido. Perguntou-se que novo sarilho se estaria a preparar.e que ia provavelmente exigir o tempo, as forças e os recursos da Millennium. Christer Malm achava que Mikael escolhera o pior momento possível para razer de Super Blomkvist, uma altura em que a directora editorial da revista desertara para o Grande Dragão e a estabilidade da Millennium, laboriosamente construída, estava ameaçada.
Por outro lado, não tinha a mínima intenção de ir desfilar - tirando a Gay Pride, havia pelo menos dez anos que não participava numa manifestação - e não lhe ocorria nada de melhor para fazer
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naquele domingo 1º de Maio do que agradar a Mikael. Pôs-se de pé e seguiu com passo tranquilo o homem que seguia Mikael Blomkvist. O que não fazia parte das suas instruções. Mas perdeu-o de vista quando chegaram à Lângholmsgatan.
Quando se apercebera de que o seu telefone estava quase de certeza sob escuta, uma das primeiras coisas que Mikael Blomkvist fizera fora mandar Henry Cortez comprar uns quantos telemóveis baratos. Cortez encontrara um belo stock de Ericssons TIO, que tinham custado tuta-e-meia. Mikael comprou cartões pré-pagos Comviq e distribuiu os aparelhos por ele próprio, Malin, Henry, Annika, Chris-ter e Dragan Armanskij. Deveriam utilizá-los exclusivamente para as conversas que quisessem a todo o custo manter secretas. As chamadas correntes passariam pelos números habituais. O que significava que toda a gente passava a ter de carregar dois telemóveis.
Depois de sair do Copacabana, Mikael Blomkvist dirigiu-se à Millennium, onde Henry Cortez assegurava o turno do fim-de-semana. Depois do homicídio de Zalachenko, Mikael estabelecera um plantão de serviço de modo a haver sempre alguém na redacção, mesmo durante a noite. A lista incluía-o a ele, Henry, Malin e Christer. Lotta Karim, Monika Nilsson e Sonny Magnusson, o responsável pela publicidade, não faziam parte. Não lhes fora sequer pedido. Lotta não escondera que tinha medo do escuro e que nunca aceitaria dormir sozinha na redacção. Monika Nilsson não tinha esse género de problema, mas trabalhava como uma louca nos seus artigos e pertencia ao grupo de pessoas que depois de um dia de trabalho vão para casa. E Sonny Magnusson tinha 61 anos, não tinha nada que ver com o trabalho redactorial e em breve iria de férias.
- Novidades? - perguntou Mikael.
- Nada de especial - respondeu Henry. - As notícias do dia giram, naturalmente, à volta do primeiro de Maio.
Mikael assentiu com a cabeça.
- Vou ficar aqui algumas horas. Aproveita a tarde e volta quando forem nove.
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Depois de Henry sair, Mikael pegou no novo telemóvel e ligou para Daniel Olofsson, um jornalista, freelancer de Gotemburgo. Ao longo dos anos, a Millennium publicara vários textos de Olofsson, em quem Mikael depositava uma grande confiança para recolher material de base.
- Viva, Daniel. Fala Mikael Blomkvist. Estás livre?
- Estou.
- Tenho um trabalho de pesquisa para ti. Podes facturar cinco dias e não vais precisar de escrever qualquer texto. Ou mais exactamente, se quiseres escrever qualquer coisa, estaremos dispostos a publicar, mas é a pesquisa que nos interessa verdadeiramente.
- Conta.
- É um pouco delicado. Não poderás falar do assunto seja a quem for e utilizarás exclusivamente o hotmail para comunicar comigo. Não quero sequer que digas que estás a fazer uma pesquisa para
a Millennium.
-Jeitoso. O que é que procuras?
- Quero que vás ao Hospital Sahlgrenska fazer uma reportagem sobre um local de trabalho. Chamaremos a essa reportagem "ER" e a ideia será reflectir as diferenças entre a realidade e a série da televisão. Quero que acompanhes o trabalho nas urgências e nos cuidados intensivos durante alguns dias. Que fales com os médicos, as enfermeiras, o pessoal da manutenção e de todos os que lá trabalham. Que condições têm, que funções desempenham, coisas nesta linha. E fotos, evidentemente.
- Os cuidados intensivos? - estranhou Olofsson.
- Exacto. Quero que te concentres nos cuidados prestados aos pacientes internados no serviço 11C, que apresentam ferimentos graves. Quero um plano dos serviços, saber quem lá trabalha, como são e de onde vêm.
- Hum - fez Olofsson. - Se não me engano, uma certa Lisbeth Salander está internada no 11C.
Olofsson não era parvo.
- Ah, sim? - disse Mikael. - Interessante. Descobre em que quarto a puseram, quem está nos quartos contíguos e quais são os hábitos
do serviço.
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- Suponho que esta reportagem se refere a um assunto muito diferente.
- Como disse... só me interessa a pesquisa que vais fazer. Trocaram endereços hotmail.
Lisbeth Salander estava deitada de costas no chão do quarto quando Marianne, a enfermeira, abriu a porta.
- Hum - resmungou Marianne, para exprimir as suas reservas sobre a pertinência de Lisbeth estar deitada no chão num serviço de cuidados intensivos. Mas admitiu que era o único lugar possível para fazer um pouco de exercício físico. Lisbeth estava alagada em suor depois de ter passado trinta minutos a tentar fazer elevações, estiramentos e abdominais de acordo com as instruções do terapeuta. Tinha um esquema de exercícios que devia executar diariamente para fortalecer os músculos do ombro e da anca na sequência da operação a que fora submetida, três semanas antes. Respirava pesadamente e sentia que perdera grande parte da forma física. Cansava-se facilmente e o ombro doía-lhe ao mais pequeno esforço. Mas estava incontestavelmente a caminho de recuperar. As dores de cabeça que a tinham atormentado durante os primeiros dias depois da operação eram agora muito menos intensas e mais espaçadas.
Considerava-se suficientemente forte para sair do hospital ou, pelo menos, dar um pequeno passeio, se fosse possível. Mas não era. Por um lado, os médicos não a tinham ainda declarado curada, e, por outro, a porta do quarto estava sempre fechada à chave e vigiada por um estupor de um esbirro da Securitas, plantado numa cadeira, no corredor.
Em contrapartida, estava já suficientemente bem para ser transferida para um serviço normal. Depois de muita discussão, a polícia e a direcção do hospital tinham, no entanto, acabado por decidir que continuaria no quarto 18 até nova ordem. A razão invocada fora a facilidade de vigilância, o facto de ali haver sempre alguém por perto e de o quarto ficar isolado no troço mais curto do corredor em L - Parecera, pois, mais fácil mantê-la no serviço 11C, onde o pessoal
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assimilara as regras de segurança depois do assassínio de Zalachenko e conhecia a problemática que o rodeava, do que transferi-la para um novo serviço, com tudo o que isso implicava de mudança de hábitos. A sua estada em Sahlgrenska era, em todo o caso, uma questão de mais algumas semanas. Quando os médicos lhe dessem alta, seria levada para o estabelecimento prisional de Kronoberg, em Estocolmo, enquanto decorresse a instrução do processo. E era o Dr. Anders Jonasson que iria decidir quando isso ia acontecer.
Tinham decorrido dez dias desde os tiros disparados em Gosseberga antes que o Dr. Jonasson autorizasse a polícia a levar a cabo um verdadeiro interrogatório, o que, aos olhos de Annika Giannini, era excelente.
Depois do caos provocado pelo assassínio de Zalachenko, o médico avaliara o estado de Lisbeth. Em sua opinião, e considerando que fora suspeita de um triplo homicídio, ela estivera forçosamente exposta a uma enorme tensão. Anders Jonasson ignorava tudo o que dizia respeito à sua eventual culpabilidade ou inocência, e, enquanto médico, não estava minimamente interessado na resposta. Limitava-se a confirmar que Lisbeth Salander estivera sob stress. Fora atingida por três balas, uma das quais por pouco a não matara. Tinha uma febre persistente e fortes dores de cabeça.
Optara pela prudência. Suspeita ou não de homicídio, era sua paciente, e a sua obrigação era velar por que se restabelecesse o mais rapidamente possível. Por isso decretara a proibição absoluta de visitas, independentemente da proibição imposta pela procuradora, esta por motivos legais. Receitara tratamento médico e repouso absoluto.
Anders Jonasson era de opinião que o isolamento total constituía uma forma de castigo desumana, comparável à tortura, e que ninguém podia sentir-se bem completamente separado dos amigos. Em consequência, decidira que Annika Giannini, a advogada de Lisbeth Salander, faria as vezes de amiga por procuração. Tivera uma conversa particular com Giannini e explicara-lhe que poderia ver Lis-beth uma hora por dia. Durante a visita, poderia falar com ela ou simplesmente fazer-lhe companhia, sem nada dizer. Tanto quanto
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possível, as conversas entre as duas não deveriam aflorar os problemas concretos de Lisbeth nem as batalhas jurídicas que teria de enfrentar.
- A Lisbeth Salander foi atingida por uma bala na cabeça e está gravemente ferida - explicara. - Julgo que está fora de perigo, mas existe sempre o risco de hemorragia ou de outras complicações. Tem necessidade de repouso e precisa de tempo para sarar. Só depois poderá começar a pensar em problemas jurídicos.
Annika Giannini compreendera a lógica do raciocínio. Tivera algumas conversas de ordem geral com Lisbeth e explicara por alto a estratégia que delineara com Mikael, mas, durante os primeiros dias, não tivera ocasião de entrar em pormenores. Lisbeth estava de tal modo estupidificada pelos medicamentos e tão esgotada que muitas vezes adormecia a meio da conversa.
Dragan Armanskij examinou as fotografias que Christer fizera dos dois homens que tinham seguido Mikael. As imagens estavam muito nítidas.
- Não - disse. - Nunca os vi.
Mikael assentiu com um movimento de cabeça. Estavam no gabinete de Armanskij na Milton Security, naquela manhã de segun-da-feira. Mikael tinha entrado no edifício pela garagem.
- O mais velho é Gõran Mârtensson, o proprietário do Volvo. Seguiu-me como uma má consciência durante pelo menos uma semana, mas possivelmente há muito mais tempo.
- E, em sua opinião, trabalha para a Sapo.
Mikael evocou a carreira de Mârtensson, que reconstituíra. Era eloquente. Armanskij hesitou. A revelação deixava-o sem saber muito bem como reagir.
Sem dúvida que os agentes secretos do Estado metiam muitas vezes a pata na poça. Era a ordem natural das coisas, não só na Sapo, mas provavelmente em todos os serviços de informações do mundo. A polícia secreta francesa enviara uma equipa de mergulhadores a Nova Zelândia para afundarem o Rainbow Warrior, da Greenpeace. Sem dúvida a operação de espionagem mais imbecil da história,
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exceptuando, talvez, a intrusão dos homens de Nixon no edifício Watergate. Com uma chefia tão fraca, não admirava que houvesse escândalos. Os êxitos nunca eram revelados, mas, em compensação, os media atiravam-se literalmente à polícia secreta quando esta fazia qualquer coisa ilícita ou estúpida, ou quando falhava, e sempre com a atitude "eu-bem-lhes-disse", tão fácil de adoptar a posteriori.
Armanskij nunca compreendera a relação dos media suecos com a Sapo.
Por um lado, consideravam-na uma excelente fonte, e praticamente qualquer boato político fazia grandes cabeçalhos. A Sapo suspeita. .. Uma declaração da Sapo tinha sempre direito a honras de primeira página.
Por outro lado, nem os meios de comunicação nem os políticos de todos os quadrantes hesitavam em executar implacavelmente os agentes implicados em actos de espionagem contra cidadãos suecos quando estes eram desmascarados. Era de tal forma paradoxal que Armanskij dissera muitas vezes a si mesmo que tanto os media como os políticos perdiam completamente a cabeça quando isto acontecia. Armanskij não tinha nada contra a existência da Sapo. Ao fim e ao cabo, era preciso que alguém assumisse a responsabilidade de impedir que iluminados nacional-bolcheviques, depois de lerem até à indigestão Bakunine ou qualquer guia espiritual igualmente chalado, se pusessem a fabricar bombas caseiras com adubos químicos e petróleo, as carregassem numa furgoneta e as fizessem explodir diante de Rosenbad, com o nobre objectivo de eliminar o Governo do país. Na opinião de Armanskij, a Sapo era indispensável e um pouco de espionagem anódina não fazia grande mal, desde que visasse garantir a segurança total dos cidadãos.
O problema era, evidentemente, que uma organização que tinha como objectivo espiar os cidadãos devia de ser obrigatoriamente sujeita aos mais rígidos controlos, e que a Constituição devia garantir O acesso às informações. Ora, era quase impossível os políticos ou os deputados verem a Sapo desta maneira, mesmo quando o primeiro-ministro nomeava um investigador especial que, no papel, devia ter acesso a tudo. Armanskij pedira emprestado Uma Missão,
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de Lidbom, e lera o livro com um espanto crescente. Nos Estados Unidos, uma dúzia de chefes da Sapo teriam sido imediatamente presos por obstrução e chamados a comparecer perante uma Comissão especial do Congresso. Na Suécia, eram aparentemente intocáveis.
O caso de Lisbeth Salander provava que havia qualquer coisa de podre no seio da organização, mas quando Mikael lhe fora entregar o telemóvel "seguro", a primeira reacção de Armanskij fora pensar que ele era paranóico. No entanto, depois de ter estudado os pormenores e examinado as fotos de Christer Malm, tivera de admitir, ainda que a contragosto, que as suspeitas eram fundadas. E isso não augurava nada de bom; pelo contrário, indicava que a maquinação de que Lisbeth tinha sido vítima quinze anos antes não fora um acaso.
Havia demasiadas coincidências para que fosse um acaso. Em última análise, era admissível pensar que Zalachenko fora vítima de um justiceiro solitário. Mas deixava de ser possível acreditar nessa possibilidade quando tanto a Mikael como a Annika Giannini tinha sido roubado um documento fundamental para a sua argumentação. Era uma verdadeira calamidade. E, para cúmulo, a principal testemunha resolvera enforcar-se.
- Bom - disse Armanskij, reunindo a documentação de Mikael. - Estamos de acordo em que eu transmita isto ao meu contacto?
- Se afirma que é uma pessoa de absoluta confiança.
- Sei que é uma pessoa íntegra e com um comportamento perfeitamente democrático.
- Na Sapo - disse Mikael, com uma clara nota de dúvida na voz.
- É preciso que estejamos de acordo. Tanto o Holger Palmgren como eu próprio aceitámos o seu plano e colaborámos consigo. Mas digo-lhe que não chegaremos a parte nenhuma contando apenas com os nossos próprios meios. Se não queremos que isto acabe mal, precisamos de encontrar aliados na administração.
- Tudo bem - disse Mikael, de má vontade. - Estou demasiado habituado a esperar que a Millennium seja publicada para poder falar. Nunca, até agora, tinha dado informações sobre um artigo antes de ser publicado.
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- Mas acaba de fazê-lo num caso que nos preocupa. Falou comigo, com a sua irmã e com o Palmgren. - Mikael assentiu. - E se o fez, foi porque compreendeu que este caso ultrapassa largamente um título na sua revista. Aqui, não é um jornalista neutro, mas um actor que participa no desenrolar do caso. - Mikael voltou a assentir. -E enquanto actor precisa de ajuda para atingir os seus objectivos.
Mais uma vez, Mikael assentiu. Sabia muito bem que não tinha contado toda a verdade a Armanskij nem à irmã. Ainda tinha segredos que só partilhava com Lisbeth Salander. Apertou a mão a Armanskij.
CAPÍTULO 9
QUARTA-FEIRA, 4 DE MAIO
Por volta do meio-dia de quarta-feira, três dias depois de Erika Berger ter assumido interinamente o cargo de co-directora editorial do SMP, Hâkan Morander, o director editorial titular, morreu. Tinha passado a manhã na gaiola de vidro enquanto Erika, acompanhada pelo assistente editorial Peter Fredriksson, reunia com a equipa do Desporto para conhecer os colaboradores e saber como funcionavam. Fredriksson tinha 45 anos e, como Erika, era relativamente novo no SMP. Trabalhava no jornal havia apenas quatro anos. Era um indivíduo de poucas palavras, globalmente competente e agradável, e Erika já decidira que ia apoiar-se no conhecimento que ele tinha da casa quando assumisse o comando do navio. Dedicava uma grande parte do seu tempo a tentar perceber quem podia merecer a sua confiança, quem poderia integrar à partida no seu novo modo de funcionar. Fredriksson era definitivamente um dos candidatos. Regressavam ao espaço central quando viram Hâkan Morander pôr-se de pé, dentro da gaiola de vidro, e aproximar-se da porta.
Parecia espantado.
Então, dobrou-se pela cintura e agarrou-se por instantes ao espaldar de uma cadeira de escritório antes de cair no chão.
Quando a ambulância chegou, já estava morto.
O ambiente que reinou na redacção durante a tarde foi confuso-O presidente do CA, Magnus Borgsjõ, chegou por volta das duas e reuniu todos os colaboradores para uma breve homenagem. Falou de Morander, que tinha dedicado os últimos 15 anos da sua vida ao jornal, e do preço que o jornalismo por vezes cobra. Cumpriu um
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minuto de silêncio. Quando terminou, olhou em redor com uma expressão hesitante, como se não soubesse muito bem como continuar. Morrer no local de trabalho não é habitual... é até bastante raro. De um modo geral, considera-se de bom-tom a pessoa retirar-se para morrer. Desaparecer na reforma ou ficar de baixa e subitamente, um dia, ser tema de conversa na cantina da empresa: "A propósito, já sabes que o velho Karlsson morreu na sexta-feira? O sindicato decidiu enviar uma coroa para o funeral." Morrer no local de trabalho e à frente dos colegas é muito mais perturbador. Erika reparou no choque que pairava sobre a redacção. O SMP estava sem timoneiro. Apercebeu-se, de repente, que alguns empregados olhavam para ela. A carta desconhecida.
Sem ter sido convidada, e sem saber verdadeiramente o que ia dizer, aclarou a garganta, deu um passo em frente e falou numa voz clara e calma.
- Conheci o Hâkan Morander, ao todo, durante três dias. É pouco tempo, mas do pouco tempo que estive com ele, posso dizer com toda a sinceridade que gostaria de ter tido a oportunidade de conhecê-lo melhor. - Fez uma pausa quando, pelo canto do olho, viu que Borgsjõ a observava. Parecia espantado por ela ter tomado a palavra. Avançou mais um passo. Não sorrias. Não podes sorrir. Parecerias pouco segura de ti mesma. Elevou um pouco o tom da voz. - A morte súbita do Morander vai criar problemas aqui na redacção. Eu devia suceder-lhe daqui a dois meses, e a ideia de tirar partido da experiência dele agradava-me. - Reparou que Borgsjõ abria a boca, como que a preparar-se para falar. - Não estava destinado a acontecer, e vamos passar por mudanças durante algum tempo. Mas acontece que o Morander era director editorial de um diário, e amanhã este jornal também tem de ser publicado. Restam-nos nove horas até à impressão e quatro até à aprovação da página editorial. Permitam que lhes pergunte... qual de vocês era o melhor amigo do Morander e seu confidente?
Fez-se um curto silêncio, enquanto todos se entreolhavam. Finalmente, Erika ouviu uma voz à sua esquerda.
-Julgo que era eu. Gunder Storman, sessenta e um anos, assistente de redacção para a página editorial e no SMP há trinta e quatro anos.
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- Alguém tem de escrever o obituário do Morander. Não posso ser eu a fazê-lo, seria presunção da minha parte... Sentes-te capaz de escrever esse texto?
Storman hesitou um instante, e então assentiu.
- Eu trato disso.
- Vamos usar toda a página. Tiramos tudo o mais. - Storman voltou a assentir. - Precisamos de fotos... - Erika olhou para a direita e viu o director de fotografia, Lennart Torkelsson. Que fez um sinal afirmativo. - Temos de trabalhar. Provavelmente, nos próximos dias, as coisas vão ser um pouco confusas. Quando precisar de ajuda para tomar decisões, falarei convosco e confiarei na vossa competência e na vossa experiência. Vocês sabem como se faz este jornal, enquanto eu ainda vou precisar de algum tempo para aprender. - Voltou-se para Peter Fredriksson, o assistente editorial. - Peter, o Morander deu-me a entender que depositava a maior confiança em ti. Serás o meu mentor nos próximos dias e vais andar um pouco mais sobrecarregado do que é costume. Vou pedir-te que sejas o meu conselheiro. Tudo bem, pelo teu lado? - Fredriksson assentiu. Que outra coisa podia ele fazer? Erika voltou-se novamente para o pólo Editorial. - Mais uma coisa... esta manhã, o Morander estava a escrever o editorial. Gundar, importas-te de ver no computador dele se já o terminou? Publicá-lo-emos, mesmo que não esteja acabado. É o último editorial de Hâkan Morander e seria uma vergonha não o publicar. O jornal em que vamos trabalhar hoje ainda é o jornal dele. - Fez-se silêncio. - Se alguém sentir necessidade de uma pausa para recordá-lo, faça-o sem problemas de consciência. Todos conhecemos os nossos prazos. - Silêncio. Erika notou que alguns assentiam, numa semi-aprovação. - Muito bem. Vamos trabalhar - disse em voz baixa.
Jerker Holmberg abriu as mãos num gesto de impotência. Jan Bublanski e Sonja Modig arvoravam expressões cépticas, Curt Andersson uma expressão neutra. Estavam os três a olhar para o resultado do inquérito preliminar que Holmberg terminara naquela mesma manhã.
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- Nada? - perguntou Sonja, parecendo espantada.
- Nada - disse Holmberg, abanando a cabeça. - O relatório do médico legista chegou esta manhã. Não há nada que indique outra coisa senão suicídio por enforcamento.
Passaram os olhos pelas fotos tiradas na sala de estar da casa de campo de Smádalarõ. Tudo indicava que Gunnar Bjõrck, chefe-adjunto da Divisão de Imigração da Sapo, subira a um banco, amarrara uma corda ao gancho do candeeiro do tecto, passara a corda à volta do pescoço e, com grande determinação, dera um pontapé no banco, que fora parar a vários metros de distância. O médico legista hesitava sobre o momento exacto da morte, mas acabara por fixar-se na tarde do dia 12 de Abril. Bjõrck fora encontrado a 17 de Abril, por Curt Andersson. Bublanski tentara várias vezes entrar em contacto com o homem da Sapo e acabara por mandar Andersson buscá-lo.
A dada altura entre estas duas datas, o gancho do tecto cedera e o corpo tombara por terra. Andersson vira Bjõrck pela janela e dera o alerta. Bublanski e os outros tinham-se deslocado a Smádalarõ e tinham, de início, considerado a casa como um local de crime, convencidos que estavam de que Bjõrck fora estrangulado por alguém. Então, a equipa técnica encontrara o gancho do tecto. Jerker Holmberg ficara encarregado de descobrir como tinha Bjõrck morrido.
- Nada indica que se trate de um crime, nem que o Bjõrck não estivesse sozinho - disse Holmberg.
- O candeeiro...
- O candeeiro apresenta as impressões digitais do proprietário da casa... que o instalou há dois anos... e as do Bjõrck. O que indica que foi ele que o tirou.
- De onde veio a corda?
- Do mastro da bandeira, nas traseiras da casa. Alguém cortou um pedaço com mais de dois metros. Havia uma faca pousada no peitoril da janela, junto à porta do terraço. Segundo o proprietário, a faca era dele. Costumava guardá-la numa caixa de ferramentas, no telheiro. As impressões digitais do Bjõrck aparecem no cabo, na lâmina da faca, e na caixa.
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- Hum - resmungou Sonja Modig.
- Como eram os nós? - perguntou Curt.
- Vulgares. O nó corrediço propriamente dito é um simples laço. É talvez a única coisa um pouco estranha. O Bjõrck praticava vela i sabia fazer nós a sério. Mas vá-se lá saber se um homem que está prestes a suicidar-se se dá ao trabalho de pensar em nós.
- Drogas?
- Segundo o relatório da toxicologia, havia vestígios de analgésicos muito fortes no sangue. Trata-se de medicamentos receitados pelo médico. Havia também vestígios de álcool, mas em quantidade mínima. Por outras palavras, estava praticamente sóbrio.
- O médico-legista escreve que havia arranhões.
- Um com três centímetros de comprimento na face externa do joelho esquerdo. Uma esfoladela. Pensei um pouco nisso, mas pode ter acontecido de uma dúzia de maneiras diferentes... Pode, por exemplo, ter batido na esquina de uma cadeira, ou qualquer coisa assim.
Sonja Modig pegou numa foto que mostrava o rosto deformado de Bjõrck. O nó corrediço penetrara tão profundamente na pele que não se via a corda. A cara estava grotescamente inchada.
- Provavelmente ficou ali pendurado várias horas, de certeza não menos de vinte e quatro, antes que o gancho cedesse. O sangue centrou-se em parte na cabeça, de onde o nó o impediu de passar para o resto do corpo, e em parte nas extremidades inferiores. Quando o gancho cedeu, bateu com a caixa torácica na beira da mesa. Há uma contusão profunda. Mas essa lesão aconteceu muito tempo depois da morte.
- Que raio de maneira de morrer - disse Curt Andersson.
- Olha que não sei. A corda era tão fina que penetrou profundamente na pele e impediu o fluxo de sangue. Deve ter ficado inconsciente poucos segundos depois e morrido um ou dois minutos mais tarde.
Bublanski fechou o inquérito preliminar com uma expressão irritada. Nada daquilo lhe agradava. Não lhe agradava o facto de Zalachenko e Bjõrck terem aparentemente morrido no mesmo dia.
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Um abatido por um justiceiro demente e o outro pela sua própria mão. Mas nem todas as especulações do mundo podiam levar a que o exame do local do crime apoiasse a tese de que alguém ajudara Bjõrck a morrer.
- O tipo vivia numa tensão enorme - disse. - Sabia que o caso Zalachenko estava prestes a ser desmantelado, que ele próprio corria o risco de ser acusado de infracção à lei por pagamento de serviços sexuais e que iria ser comido vivo pelos media. Estava doente e vivia com uma dor crónica há algum tempo... Não sei. Ficaria mais contente se tivesse deixado uma carta, ou qualquer coisa.
- Há muitos candidatos ao suicídio que nunca chegam a escrever a carta de despedida.
- Eu sei. Okay. Não podemos fazer outra coisa. Arquivamos o Bjõrck.
Erika Berger não foi capaz de instalar-se imediatamente na cadeira de Morander na gaiola de vidro e arrumar os objectos pessoais dele. Storman foi encarregado de falar com a viúva e pedir-lhe que fosse, quando lhe desse mais jeito, recolher as coisas que tinham pertencido ao marido.
De momento, limitou-se a desocupar, no oceano da redacção, um pequeno espaço de trabalho onde pousou o seu portátil e que transformou em posto de comando. Foi caótico. Mas, três horas mais tarde, tinha assumido o leme do SMP e a página editorial estava pronta para impressão. Gunder Storman escrevera quatro colunas sobre a vida e a obra de Hâkan Morander. O texto estava paginado à volta de uma foto do falecido director editorial, no centro, com o editorial inacabado à esquerda e uma série de fotografias em baixo. O layout era um pouco tosco, mas tinha um toque emocional que tornava aceitáveis as imperfeições.
Pouco antes das seis da tarde, Erika lia os títulos da primeira página e discutia os textos com o chefe de redacção quando Borgsjõ chegou e lhe tocou no ombro. Ergueu os olhos.
- Gostaria de falar consigo. - Foram para junto da máquina de café, na sala do pessoal. - Só queria dizer-lhe que apreciei muito
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a maneira como assumiu o comando, esta tarde. Julgo que nos surpreendeu a todos.
- Não tinha grande liberdade de manobra. Mas vai ser um tem-te e não caias até lhe apanhar o jeito.
- Todos nós temos consciência disso.
- Nós?
- Estou a referir-me ao pessoal e à administração. Sobretudo à administração. Mas depois dos acontecimentos de hoje, estou mais convencido do que nunca de que é a pessoa de que precisamos. Chegou na altura certa e tomou as rédeas de uma situação muito difícil. - Erika quase corou. Uma coisa que não lhe acontecia desde os catorze anos. - Posso dar-lhe um conselho?
- Naturalmente.
- Ouvi dizer que existem certas divergências entre si e o Lukas Holm, chefe das Actualidades.
- Não estávamos de acordo quanto à orientação do texto respeitante à proposta fiscal do Governo. Ele tinha incluído a sua opinião nas páginas das Actualidades. E nós temos o dever de permanecer neutros em matéria de informação. As opiniões são para o editorial. E já que estamos a falar nisto: tenciono escrever eu própria um editorial de vez em quando, mas não pertenço a nenhum partido político e temos de definir quem é o responsável pelo editorial.
- O Storman pode encarregar-se disso, até nova ordem. Erika encolheu os ombros.
- A vossa escolha é-me indiferente. Mas terá de ser alguém que, à partida, se apresente claramente como porta-voz das posições do jornal.
- Estou a ver. O que queria dizer era que seria boa ideia dar um pouco de margem de manobra ao Holm. Há muito tempo que trabalha no SMP e é chefe das Actualidades há quinze anos. Sabe o que faz. Pode mostrar-se casmurro, mas é praticamente indispensável.
- Eu sei. O Morander disse-mo. Mas relativamente à nossa política noticiosa, receio que tenha de fazer o que lhe digo. Ao fim e ao cabo, fui contratada para renovar o jornal.
Borgsjõ assentiu pensativamente com a cabeça.
- Entendido. Vamos ter de resolver os problemas à medida que eles forem aparecendo.
Annika Giannini estava exausta e irritada quando, ao fim da tarde de quarta-feira, embarcou no X2000, na Estação Central de Gotemburgo, para a viagem de regresso a Estocolmo. Tinha a sensação de, naquele último mês, ter feito do comboio a sua casa. A família fora relegada para segundo plano. Foi beber um café à carruagem-restaurante, voltou ao seu lugar e abriu a pasta que continha as notas da última conversa com Lisbeth Salander. Que era também a razão do seu cansaço e da sua irritação.
Esconde-me coisas, pensou. Aquela idiotazinha não me diz a verdade. E o Micke também me esconde qualquer coisa. Só Deus sabe o que andam os dois a tramar.
Uma vez que Mikael e Lisbeth não tinham comunicado entre si, as manobras dos dois - se de manobras efectivamente se tratava - deviam resultar de um acordo tácito e natural. Não sabia qual pudesse ser, mas não duvidava de que era qualquer coisa que Mikael Blomkvist considerava importante esconder.
Receava que fosse uma questão de moral, o ponto fraco do irmão. Mikael era amigo de Lisbeth Salander. Annika conhecia-o bem e sabia que ele era leal, para lá dos limites da estupidez, para com aqueles que tivesse definitivamente definido como amigos, mesmo que esses "amigos" fossem os últimos dos estupores e estivessem completamente errados. Sabia também que Mikael era capaz de aceitar muitas parvoíces, mas que havia uma fronteira a não ultrapassar. Essa fronteira variava consoante as pessoas, mas sabia que, em duas ou três ocasiões, Mikael rompera com amigos chegados por terem tido atitudes que ele considerara imorais ou inaceitáveis. Nesses casos, tornava-se inflexível. A ruptura era total, definitiva e irrevogável. Mikael não atendia sequer o telefone, mesmo que a pessoa em questão estivesse a ligar para se prostrar de joelhos e pedir perdão.
Annika sabia muito bem o que se passava no íntimo do irmão. Em contrapartida, não fazia a mínima ideia do que se passava na cabeça
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de Lisbeth Salander. Havia momentos em que tinha a impressão de que não se passava coisa nenhuma.
Mikael explicara-lhe que Lisbeth podia mostrar-se intratável e extremamente reservada em relação aos que a rodeavam. Antes de a ter conhecido, Annika pensara que seria um estado passageiro e que era tudo uma questão de confiança. Mas acabara por verificar que um mês depois de a ter conhecido - e apesar de as duas primeiras semanas se terem perdido devido à extrema fraqueza de Lisbeth, que impedia conversas prolongadas - o diálogo continuava frequentemente a resultar num monólogo.
Notara também que Lisbeth parecia por vezes mergulhada numa profunda depressão e não manifestava o mais pequeno interesse em resolver a sua situação e o seu futuro. Dir-se-ia que simplesmente não compreendia, ou se compreendia não queria saber, que a única possibilidade de ela lhe proporcionar uma defesa eficaz era ter acesso aos factos. Não podia trabalhar no escuro.
Lisbeth Salander era teimosa e reservada. Fazia longas pausas para pensar e em seguida formulava com exactidão o pouco que dizia. Muitas vezes nem sequer respondia, ou respondia repentinamente a uma pergunta que Annika fizera vários dias antes. Durante os interrogatórios da polícia, permanecera sentada na cama sem dizer uma palavra, a olhar fixamente em frente. Exceptuando uma vez, não trocara uma palavra com a polícia. A excepção fora quando o inspector Marcus Ackerman lhe perguntara o que sabia a respeito de Ronald Niedermann; nessa altura, olhara para ele e respondera muito exactamente às perguntas. No momento em que ele mudara de assunto, desinteressara-se completamente e recomeçara a olhar em frente.
Annika já contava que Lisbeth não dissesse nada à polícia. Sabia que, por princípio, não falava com as autoridades. O que, no caso presente, era uma boa táctica. Apesar de a encorajar regularmente a responder às perguntas da polícia, no fundo aquele silêncio obstinado deixava-a muito satisfeita. Por uma razão muito simples, aquele silêncio era coerente. Ninguém podia acusá-la de mentir ou de fazer afirmações contraditórias que a prejudicariam em tribunal.
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No entanto, mesmo preparada para aquele silêncio, ficara perturbada por não haver progressos. Certa vez, quando estavam sozinhas, perguntara a Lisbeth porque recusava tão ostensivamente falar com a polícia.
- Vão viciar o que eu disser e usá-lo contra mim.
- Mas se não se explicar, será condenada.
- Tanto pior, seja. Não tenho nada que ver com esta trapalhada. Se querem condenar-me por isso, o problema não é meu.
Lisbeth acabara por contar-lhe tudo o que se passara em Stallar-holmen, apesar de ter sido quase necessário arrancar-lhe as palavras a saca-rolhas. Tudo, menos uma coisa. Não explicara como fora Mag-ge Lundin ferido a tiro num pé. Por mais que Annika perguntasse e suplicasse, Lisbeth limitara-se a olhar descaradamente para ela e a esboçar um sorriso irónico.
Contara também o que acontecera em Gosseberga. Mas sem explicar por que razão perseguira o pai. Tinha ido à quinta para o matar - como a procuradora subentendia - ou para tentar fazê-lo ouvir a voz da razão? Do ponto de vista jurídico, a diferença era de peso.
Quando Annika abordava o assunto do seu falecido tutor, o advogado Nils Bjurman, Lisbeth tornava-se ainda mais lacónica. A sua resposta habitual era que não fora ela que o matara e que já não era acusada desse crime.
E quando Annika chegava ao cerne do desenrolar de todos aqueles acontecimentos, o papel do Dr. Peter Teleborian em 1991, Lisbeth transformava-se num muro compacto de silêncio.
Não vai resultar, pensou Annika. Se a Lisbeth não confiar em mim, vamos perder o processo. Tenho de falar com o Mikael.
Lisbeth Salander estava sentada na beira da cama e olhava lá para fora, pela janela. Via a fachada do edifício do outro lado do parque de estacionamento. Permanecera imóvel e sem ser incomodada durante mais de uma hora depois de Annika Giannini se ter posto de pé e saído, batendo colericamente com a porta. As dores de cabeça tinham voltado, mas fracas e menos frequentes. Em contrapartida, sentia-se mal.
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Irritara-se com Annika Giannini. De um ponto de vista pragmático, conseguia compreender por que motivo a advogada insistia em querer saber pormenores do seu passado. Racionalmente, compreendia por que razão Annika precisava de saber todos os factos. Mas não tinha a mínima vontade de falar dos seus pensamentos nem das suas acções. Considerava que a sua vida só a ela dizia respeito. Não tinha culpa de que o pai fosse um sádico patológico e um assassino. Não tinha culpa de que o irmão fosse um autêntico açougueiro. E, graças a Deus, ninguém sabia que ele era seu irmão, o que de outro modo pesaria provavelmente contra ela quando fizessem a inevitável perícia psiquiátrica. Não fora ela que matara Dag Svensson e Mia Johansson. Não fora ela que nomeara um tutor que se revelara um porco e que a tinha violado.
No entanto, era a sua vida que iam espiolhar e era a ela que iam exigir que se explicasse e pedisse perdão por se ter defendido.
Queria que a deixassem em paz. Ao fim e ao cabo, era ela que tinha de viver consigo mesma. Não acreditava que alguém fosse seu amigo. Aquela Annika Parva Giannini estava provavelmente do seu lado, mas era uma amizade profissional, uma vez que lhe pagava para isso. E o Super Sacana Blomkvist andava algures lá fora - Annika falava pouco do irmão e Lisbeth nunca fazia perguntas. Não estava a contar que se esforçasse muito por ela, agora que o homicídio de Dag Svensson estava esclarecido e ele tinha o seu artigo.
Perguntava-se o que Dragan Armanskij pensaria dela, depois de tudo o que acontecera.
Perguntava-se como veria Holger Palmgren a situação.
Segundo Annika, estavam os dois do seu lado, mas isso era conversa. Não podiam ajudá-la a resolver os seus problemas pessoais.
Perguntava-se o que sentiria Miriam Wu por ela.
Interrogava-se sobre o que sentia ela própria por Lisbeth Salander e chegava à conclusão de que a sua vida lhe inspirava sobretudo indiferença.
Subitamente, foi interrompida nestes pensamentos pelo guarda da Securitas, que abriu a porta para deixar entrar o Dr. Anders Jonasson.
- Bom dia, Frõken Salander. Como se sente hoje?
- Bem - respondeu ela.
Jonasson estudou a papeleta e verificou que a febre passara. Lisbeth habituara-se àquelas visitas, que aconteciam duas ou três vezes por semana. De todas as pessoas que lhe mexiam e lhe tocavam, ele era o único em quem confiava um pouco. Em momento algum tivera a impressão de que a olhava de soslaio. Entrava no quarto, tagarelava um pouco e examinava-a. Nunca fazia perguntas a respeito de Ronald Niedermann nem de Alexander Zalachenko, nem sobre a sua suposta loucura, e não perguntava por que razão a polícia a mantinha fechada à chave. Parecia exclusivamente interessado no estado dos seus músculos, no progresso das suas melhoras e na sua saúde em geral.
Além disso, andara literalmente a mexericar no cérebro dela. Alguém que fizera uma coisa daquelas merecia ser tratado com respeito. Lisbeth apercebeu-se, para sua enorme surpresa, que achava as visitas de Anders Jonasson agradáveis, apesar de ele lhe tocar e analisar as suas curvas de temperatura.
- Posso verificar?
Procedeu ao exame habitual, estudou-lhe as pupilas, auscultou-lhe a respiração, mediu-lhe o ritmo cardíaco e a tensão arterial.
- Como estou? - perguntou ela?
- A caminho da cura, isso sem a mínima dúvida. Mas precisa de esforçar-se mais no ginásio. E continua a arrancar a crosta da cabeça. Tem de acabar com isso. - Fez uma pausa. - Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
Lisbeth olhou-o por baixo das pestanas. Jonasson esperou que ela assentisse.
- Essa tatuagem, com o dragão... não a vi inteira, mas verifico que é enorme e cobre uma grande parte das costas. Porque a mandou fazer?
- Não a viu? Subitamente, ele sorriu.
- Quer dizer, claro que a vi, mas quando estava nua à minha frente, eu estava ocupado a estancar hemorragias e a tirar-lhe balas do corpo e coisas nesse género.
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- Porque pergunta?
- Pura curiosidade.
Lisbeth Salander reflectiu por um longo momento. Acabou por olhar para ele.
- Mandei-a fazer por motivos pessoais de que não quero falar. Anders Jonasson considerou a resposta, e assentiu pensativamente com a cabeça.
- Tudo bem. Desculpe ter perguntado.
- Quer vê-la?
Ele pareceu surpreendido.
- Sim, porque não?
Ela voltou-lhe as costas e puxou a camisa por cima da cabeça. Colocou-se de maneira a que a luz que entrava pela janela lhe iluminasse as costas. Anders Jonasson verificou que a tatuagem cobria toda a metade direita do corpo. Começava na omoplata, ao nível do ombro, e terminava numa cauda por baixo da anca. Era bela, executada pela mão de um profissional. Uma verdadeira obra-prima.
Ao fim de alguns instantes, Lisbeth voltou a cabeça.
- Satisfeito?
- É muito bonita. Mas deve ter doído como tudo.
- Sim - reconheceu ela. - Doeu.
Anders Jonasson saiu do quarto de Lisbeth Salander ligeiramente desconcertado. Estava satisfeito com os progressos da recuperação, mas não conseguia compreender aquela estranha rapariga. Não era preciso um mestrado em psicologia para chegar à conclusão de que, mentalmente, havia qualquer coisa que não estava bem. A maneira como lhe falava era delicada, mas cheia de uma áspera desconfiança. Sabia que era igualmente delicada com o resto do pessoal, mas que se fechava como uma ostra quando a polícia aparecia. Escondia-se atrás da sua carapaça e mantinha constantemente à distância tudo o
que a rodeava.
A polícia colocara-a sob detenção e uma procuradora planeava acusá-la de tentativa de homicídio e ofensas corporais agravadas.
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Duvidava muito de que uma rapariga tão pequena e de constituição tão frágil tivesse a força física indispensável a esse género de actos de violência, tanto mais que as agressões teriam sido praticadas contra homens adultos.
Interrogara-a a respeito do dragão como pretexto para abordar um assunto pessoal. Na realidade, não estava minimamente interessado em saber porque se decorara de uma forma tão exagerada, mas supunha que se tinha escolhido marcar o corpo com uma tatuagem tão grande era porque isso tinha para ela uma importância especial. Conclusão: era um bom pretexto para iniciar uma conversa.
Ganhara o hábito de ir vê-la várias vezes por semana. Aquelas visitas situavam-se, na realidade, fora da sua competência, uma vez que a médica que a assistia era a Dra. Helena Endrin. Mas Anders Jonasson era o chefe do Serviço de Traumatologia e estava imensamente satisfeito com a sua própria contribuição na noite em que Lisbeth Salander chegara às Urgências. Tomara a decisão certa ao optar por extrair a bala e, tanto quanto pudesse julgar, não havia sequelas como falhas de memória, funções corporais diminuídas ou outras deficiências provocadas pelo ferimento. Se o processo de cura continuasse como até ali, Lisbeth Salander ia sair do hospital com uma cicatriz no couro cabeludo mas sem qualquer outra complicação. Quanto à cicatriz que lhe ficara na alma, nada podia dizer.
Voltou ao seu gabinete e viu um homem de fato escuro que o esperava apoiado à parede ao lado da porta. Tinha cabelos encaracolados e uma barba bem cuidada.
- Doutor Jonasson?
- Sim.
- Boa tarde. Chamo-me Peter Teleborian. Sou chefe de serviço na Clínica Psiquiátrica de Sankt Stefan, em Uppsala.
- Sim, sei quem é.
- Óptimo. Gostaria de falar-lhe a sós por um instante, se tiver tempo.
Anders Jonasson abriu a porta do gabinete.
- Que posso fazer por si? - perguntou.
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- Trata-se de uma das suas pacientes. Lisbeth Salander. Preciso de a ver.
- Hum. Nesse caso, terá de pedir autorização à procuradora. Frõken Salander está sob detenção com proibição de receber visitas. Todas as visitas terão de ser comunicadas à advogada de Frõken Salander...
- Sim, sim, sei tudo isso. Tinha pensado que poderíamos dispensar a burocracia. Sou médico, pode sem problema deixar-me vê-la por razões médicas.
- Sim, poderia talvez justificar-se. Mas tenho alguma dificuldade em ver a ligação.
- Durante vários anos fui o psiquiatra de Lisbeth Salander enquanto ela esteve internada em Sankt Stefan. Acompanhei-a até aos dezoito anos, quando o tribunal a devolveu à sociedade, ainda que sob tutela. Devo talvez sublinhar que, naturalmente, me opus a essa decisão. Depois, deixaram-na à deriva, e os resultados estão à vista.
- Compreendo.
- Continuo a sentir uma enorme responsabilidade em relação a ela e gostaria de fazer uma avaliação do agravamento do seu estado no decurso dos dez últimos anos.
- Agravamento?
- Relativamente à altura em que recebia cuidados especializados, na adolescência. Pensei que poderíamos encontrar uma solução conveniente, entre médicos.
- A propósito, enquanto penso nisso... Vai talvez poder esclarecer um ponto que não consigo compreender, isto entre médicos. Quando Frõken Salander foi admitida aqui em Sahlgrenska, mandei fazer um exame muito completo da paciente. Um colega pediu-me para ver o inquérito médico-legal. Estava assinado por um tal doutor Jesper H. Lõderman.
- É exacto. Eu era o orientador da tese de doutoramento do Jesper.
- Compreendo. Mas apercebi-me de que o dito inquérito era extremamente vago.
- Ah, bom.
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- Não apresenta um diagnóstico e parece mais uma análise convencional de um paciente que se recusa a falar.
Peter Teleborian riu-se.
- Sim, a Lisbeth Salander não é de convívio fácil. Como o inquérito mostra, recusava-se terminantemente a dialogar com o Lõderman. Por isso ele foi obrigado a exprimir-se de uma forma tão vaga. Agiu correctamente.
- Compreendo. Mas, apesar disso, a recomendação era o internamento.
- Baseada no seu passado. Temos um historial médico que cobre vários anos.
- Sim, foi isso que tive dificuldade em compreender. Quando ela foi admitida aqui, tentámos que Sankt Stefan nos enviasse o processo. Mas ainda não conseguimos.
- Lamento imenso. Está classificado como secreto, por ordem do tribunal de recurso.
- Estou a ver. E como podemos nós, aqui em Sahlgrenska, proporcionar-lhe os cuidados adequados se não temos acesso ao processo dela? Acontece que, de momento, somos nós que temos a responsabilidade clínica.
- Tratei-a desde que ela tinha doze anos e não acredito que haja em toda a Suécia outro médico que conheça tão bem como eu a doença de Lisbeth Salander.
-Que é...?
- Lisbeth Salander sofre de um grave desequilíbrio psíquico. Como bem sabe, a psiquiatria não é uma ciência exacta. Não quero acantonar-me num diagnóstico preciso. Mas ela tem verdadeiras alucinações, com características esquizofrénicas-paranóicas muito claras. E a esse quadro podemos acrescentar períodos maníaco-depressivos e total falta de empatia.
Anders Jonasson perscrutou o rosto do Dr. Peter Teleborian durante dez segundos antes de abrir as mãos.
- Não vou contestar o seu diagnóstico, doutor Teleborian, mas alguma vez considerou um outro bem mais simples?
- Como assim?
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- Por exemplo, a Síndrome de Asperger? É certo que não lhe fiz um exame psiquiátrico, mas se tivesse de pronunciar-me espontaneamente, sugeriria uma forma de autismo. Explicaria a incapacidade que tem em adaptar-se às convenções sociais.
- Lamento contrariá-lo, mas os doentes de Asperger não pegam habitualmente fogo aos pais. Acredite, nunca encontrei um sociopata tão claramente definido.
- Admito que é uma pessoa muito fechada, mas não uma sociopata paranóica.
- Lisbeth Salander é extremamente manipuladora. Comporta-se como pensa que os outros gostariam de vê-la comportar-se.
Anders Jonasson franziu imperceptivelmente o sobrolho. Peter Teleborian acabava de contradizer o seu próprio julgamento sobre Lisbeth Salander. Se havia coisa que não lhe notara, era tendência para a manipulação. Pelo contrário, era alguém que mantinha sempre à distância os que a rodeavam e não demonstrava qualquer emoção. Tentou conciliar o quadro que Teleborian pintava com a ideia que ele próprio tinha de Lisbeth Salander.
- E o colega viu-a muito pouco tempo depois de os ferimentos a terem condenado à inacção. Eu assisti às suas crises de violência e ao seu ódio excessivo. Dediquei muitos anos a tentar ajudar a Lisbeth Salander. É por isso que estou aqui. Proponho uma colaboração entre Sahlgrenska e Sankt Stefan.
- Em que género de colaboração está a pensar?
- Vocês ocupam-se dos problemas físicos, e estou certo de que terá os melhores cuidados possíveis. Mas a condição psíquica dela preocupa-me e gostaria de intervir o mais cedo possível. Venho oferecer toda a ajuda que estou em condições de proporcionar.
- Compreendo.
- Preciso, antes de mais nada, de vê-la para avaliar o seu estado.
- Compreendo. Infelizmente, não posso ajudá-lo.
- Perdão?
- Como disse, Lisbeth Salander está sob detenção. Se deseja iniciar um tratamento psiquiátrico, vai precisar de contactar a procuradora Jervas, que toma as decisões nessa área, e a coisa terá de ser feita
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de acordo com a doutora Annika Giannini, que é a advogada da paciente. Tratando-se de uma perícia de psiquiatria legal, terá de ser mandatada pelo tribunal.
- Era precisamente toda essa burocracia que eu pretendia evitar.
- Sim, mas o responsável sou eu, e uma vez que ela vai ter de responder em tribunal num futuro próximo, é essencial que possamos justificar todas as medidas tomadas. Não nos resta alternativa senão seguir a via burocrática.
- Compreendo. Permita-me então que lhe diga que já tenho um pedido do procurador Richard Ekstrõm, de Estocolmo, para proceder a uma perícia de psiquiatria legal, que ocorrerá na altura do julgamento.
- Ainda bem. Nessa altura terá autorização de visita sem necessidade de infringir o regulamento.
- Mas enquanto esperamos pela burocracia, há o risco de o estado dela piorar. A única coisa que me interessa é a saúde da Lisbeth.
- Também a mim. E, entre nós, digo-lhe que não detecto o mais pequeno sinal de doença psíquica. Está muito fraca fisicamente e encontra-se numa situação de grande stress. Mas não acredito que seja esquizofrénica ou que sofra de fobias paranóicas.
O Dr. Peter Teleborian dedicou ainda alguns minutos a tentar fazer Anders Jonasson mudar de opinião. Quando percebeu que estava a perder tempo, pôs-se bruscamente de pé e despediu-se.
Jonasson ficou um longo momento a olhar para a cadeira onde Teleborian estivera sentado. Não era invulgar, claro, outros médicos contactarem-no a pedir um conselho ou uma opinião sobre um tratamento. Mas tratava-se quase sempre de casos em curso, pelos quais esses médicos eram responsáveis. Nunca vira um psiquiatra aterrar assim de pára-quedas e insistir, contra o regulamento, em ter acesso a uma paciente que não tratava havia aparentemente muitos anos. Olhou para o relógio e verificou que eram quase sete horas. Pegou no telefone e ligou para Martina Karlgren, a psicóloga do hospital.
- Viva. Calculo que já acabaste, por hoje. Incomodo?
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- Nem pensar. Estou em casa, sem nada de especial que fazer.
- Há duas coisas que me preocupam. Falaste com a nossa paciente, Lisbeth Salander. Posso perguntar-te com que impressão ficaste?
- Bem, visitei-a três vezes para lhe propor que conversássemos um pouco. Declinou a oferta, delicada mas firmemente.
- O que foi que achaste dela?
- Em que sentido?
- Martina, eu sei que não és psiquiatra, mas és uma pessoa sensata e razoável. O que foi que achaste dela?
Martina Karlgren hesitou por um instante.
- Não sei muito bem como responder-te. Vi-a duas vezes depois de ter sido hospitalizada. Estava tão mal que não tive verdadeiramente qualquer contacto com ela. Depois fui vê-la há uma semana, a pedido da Helena Endrin.
- Porque te pediu a Helena que fosses vê-la?
- A Lisbeth Salander está quase curada. Passa a maior parte do tempo deitada de costas, a olhar para o tecto. A Endrin queria que eu lhe desse uma vista de olhos.
-E?
- Apresentei-me. Falámos durante alguns minutos. Perguntei-lhe como estava e se sentia necessidade de ter alguém com quem falar. Respondeu-me que não. Perguntei-lhe se podia ajudá-la fosse de que maneira fosse. Pediu-me que lhe fizesse chegar um maço de cigarros.
- Estava irritada ou hostil?
Martina Karlgren pensou por um instante.
- Não, não posso dizer que estivesse. Estava calma, mas muito distante. Entendi aquilo de lhe fazer chegar um maço de cigarros mais como uma brincadeira do que um pedido a sério. Perguntei-lhe se queria ler qualquer coisa, se podia arranjar-lhe livros. Ao princípio não quis, mas depois perguntou se tinha revistas científicas sobre genética e investigação sobre o cérebro.
- De quê?
- De genética.
- Genética?
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- Sim. Disse-lhe que havia na nossa biblioteca alguns livros de divulgação sobre o tema, mas não estava interessada. Disse-me que já tinha lido sobre a matéria e referiu algumas obras de que eu nunca tinha ouvido falar. Era mais a investigação científica nessa área que lhe interessava.
- Ah - disse Jonasson, estupefacto.
- Respondi-lhe que não havia de certeza livros assim tão específicos na biblioteca do hospital... que tínhamos mais Philip Marlowe do que literatura científica... mas que ia ver se conseguia descobrir qualquer coisa.
- E descobriste.
- Pedi emprestados alguns exemplares da Nature e da New En-glandJournal of Medicine. Ficou satisfeita e agradeceu-me.
- Mas são revistas bastante específicas, que contêm sobretudo artigos científicos e sobre investigação pura.
- Leu-as com grande interesse.
Anders Jonasson ficou sem palavras por um breve instante.
- Como é que avalias o estado psíquico dela?
- É introvertida. Não discutiu comigo o que quer que fosse de pessoal.
- Ficaste com a impressão de que está psiquicamente doente, maníaco-depressiva ou paranóica?
- De modo algum. Nesse caso, teria dado o alerta. É estranha, sem dúvida, tem problemas graves e está em stress. Mas mantém-se calma e objectiva e parece capaz de gerir a sua própria situação.
- Muito bem.
- Porque perguntas tudo isto? Aconteceu alguma coisa?
- Não, não aconteceu nada. Só não consigo enquadrá-la.
CAPÍTULO 10
SÁBADO, 7 DE MAIO - QUINTA-FEIRA, 12 DE MAIO
MIKAEL Blomkvist pousou a pasta com os resultados da pesquisa que lhe tinham sido enviados de Gotemburgo por Daniel Olofsson. Olhou pensativamente pela janela, a ver o rio de gente que passava pela Gõtgatan. Sempre gostara da localização do seu gabinete. A Gõt-gatan era uma rua cheia de vida a qualquer hora do dia ou da noite, e quando se sentava diante da janela, nunca se sentia verdadeiramente sozinho ou isolado.
Estava tenso, apesar de não ter nada de urgente em curso. Teimara em continuar a trabalhar nos textos que tencionava publicar no número de Verão, mas acabara por aperceber-se de que o material era tão vasto que nem mesmo um número temático bastaria. Confrontado com a mesma situação que no caso Wennerstrõm, decidira publicar os textos sob a forma de livro. Já tinha material suficiente para mais de 150 páginas, e estava a contar com 300 a 350 páginas para a obra toda.
O mais simples estava feito. Descrevera os assassínios de Dag Svensson e de Mia Johansson e contara como acontecera ter sido ele a encontrar os corpos. Explicara por que motivo Lisbeth Salander fora considerada suspeita. Dedicara um capítulo inteiro, de 37 páginas, a contestar por um lado tudo o que os media tinham escrito sobre Lisbeth Salander e, por outro, o procurador Richard Ekstrõm e, indirectamente, toda a investigação policial. Acabara, no entanto, por amenizar as críticas a Bublanski e aos colegas. Tomara a decisão depois de visionar uma gravação da conferência de imprensa de Ekstrõm, na qual se via claramente que Bublanski estava muito pouco
à vontade e visivelmente descontente com as conclusões precipitadas do procurador.
Após os dramáticos acontecimentos iniciais, recuava um pouco para descrever a chegada de Zalachenko à Suécia, a juventude de Lisbeth Salander e as circunstâncias que a tinham levado a ser internada em Sankt Stefan. Punha um cuidado muito especial em demolir completamente o Dr. Peter Teleborian e o falecido Gunnar Bjõrck. Referia a perícia psiquiátrica legal de 1991 e explicava por que motivo Lisbeth se tornara uma ameaça para os anónimos funcionários do Estado que tinham chamado a si a missão de proteger o trânsfuga russo. Reproduzia largos excertos da correspondência entre Teleborian e Bjõrck.
Revelava a nova identidade de Zalachenko e a sua área de actividade como gangster a tempo inteiro. Descrevia Ronald Niedermann, o raptor de Miriam Wu e a intervenção de Paolo Roberto. Para terminar, fazia um resumo do que se passara em Gosseberga, onde Lisbeth Salander fora enterrada viva depois de ter sido atingida a tiro na cabeça, e explicava por que razão um polícia fora inutilmente assassinado quando Niedermann já estava dominado.
A partir deste ponto, a história deixara de ser tão fácil de desenvolver. O problema era que havia ainda muitas lacunas. Gunnar Bjõrck não agira sozinho. Por detrás dos elementos no terreno havia forçosamente um grupo importante, influente e com recursos. De outro modo, teria sido impossível. Concluíra sobretudo que a maneira como Lisbeth Salander fora tratada, privando-a dos direitos mais elementares, só podia ter sido autorizada pelo Governo ou pela direcção da Sapo. Não era uma crença cega no poder do Estado que o levava a esta conclusão, mas o conhecimento da natureza humana. Nunca uma operação daquela amplitude poderia ter sido mantida em segredo sem uma âncora política. Se alguém tivesse tido contas a ajustar com um terceiro e houvesse falado, os media teriam metido o nariz no caso Zalachenko muitos anos antes.
Imaginava o Clube Zalachenko como um pequeno grupo de activistas anónimos. O problema era não conseguir identificá-los, com excepção talvez de Gõran Mârtensson, de 42 anos, agente da polícia
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em missão secreta que parecia dedicar o seu tempo a seguir Mikael Blomkvist.
A ideia era que o livro estivesse impresso e pronto para ser distribuído no dia em que o julgamento de Lisbeth Salander começasse. Projectou, com Christer Malm, uma edição de bolso a distribuir como suplemento do número de Verão da Millennium, que nesse mês teria um preço mais elevado. Distribuíra as tarefas entre Henry Cortez e Malin Eriksson, que teriam a seu cargo a redacção dos textos sobre a história da Sapo, sobre o caso do IB - o serviço de informações militares secreto cuja existência fora revelada, em 1973, por dois colegas da revista Folket i Bild/Kulturfront - e outros casos semelhantes.
Porque tinha agora a certeza de que ia ser aberto um processo contra Lisbeth Salander.
O procurador Richard Ekstrõm iniciara um inquérito por ofensas corporais agravadas no caso de Magge Lundin e ofensas corporais agravadas e tentativa de homicídio no caso de Karl Axel Bodin, aliás, Alexander Zalachenko.
Não fora ainda marcada a data do julgamento, mas Mikael Blomkvist apanhara de passagem afirmações de alguns colegas. Aparentemente, Richard Ekstrõm estava a prever levar o caso a tribunal em Julho, tudo dependendo do estado de saúde de Lisbeth Salander. Mikael compreendeu a intenção. Um julgamento em pleno Verão atraía sempre menos atenções do que em qualquer outra época do ano.
Franziu a testa e continuou a olhar pela janela do seu gabinete na redacção da Millennium.
Ainda não acabou. A conspiração contra a Lisbeth continua. É a única explicação para os telefones sob escuta, a agressão à Annika e o roubo do relatório de 1991. E talvez o assassínio do Zalachenko.
Só que não tinha provas.
De acordo com Malin e Christer, decidira que as Edições Millennium iam publicar também o livro de Dag Svensson sobre o tráfico de mulheres na altura do julgamento. Mais valia apresentar o pacote inteiro de uma só vez, e não havia qualquer razão para adiar a publicação. Pelo contrário, em nenhum outro momento poderia o livro despertar tanto interesse. Malin ficara com a responsabilidade
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da redacção final do trabalho de Dag, enquanto Henry assistia Mikael na preparação do livro sobre o caso Salander. Lotta Karim e Christer Malm (este de muito má vontade) passavam assim a assistentes editoriais na Millennium, deixando Monika Nilsson como única jornalista disponível. O resultado desta sobrecarga de trabalho foi deixar a redacção inteira de rastos e obrigar Malin a contratar vários colaboradores externos para produzirem textos. Ia ficar mais caro, mas não tinham alternativa.
Mikael anotou num post-it que ia ter de resolver o problema dos direitos de autor com a família de Dag Svensson. Informara-se, e ficara a saber que os pais de Dag viviam em Õrebro e eram os únicos herdeiros. Em princípio, não precisava de autorização para publicar o livro com a assinatura de Dag Svensson, mas tencionava mesmo assim deslocar-se a Õrebro para obter o aval dos pais. Tinha vindo a adiar essa deslocação, a pretexto de andar muito ocupado, mas estava na altura de resolver o assunto.
Resolvido este assunto, havia ainda dezenas de outros pormenores a tratar! Um deles tinha que ver com a maneira de tratar Lisbeth nos textos. Para decidir isso de uma vez por todas, seria obrigado a ter uma conversa em privado com ela e pedir-lhe autorização para dizer a verdade, ou pelo menos uma parte da verdade. E essa conversa em privado era impossível, uma vez que Lisbeth estava sob detenção e proibida de receber visitas.
Naquele ponto, Annika não poderia ajudá-lo. Seguia escrupulosamente o regulamento em vigor e não tinha a mais pequena intenção de transmitir mensagens secretas do irmão. Também não falava sobre o que ela e a sua cliente conversavam, exceptuando os episódios respeitantes à maquinação contra Lisbeth e nos quais precisava de ajuda. Era frustrante, mas correcto. Mikael ignorava, portanto, se Lisbeth revelara a Annika que o seu antigo tutor a tinha violado e que ela se vingara tatuando-lhe no ventre uma mensagem retumbante. Enquanto Annika não abordasse o tema, Mikael também não poderia fazê-lo.
O isolamento de Lisbeth Salander constituía, antes de mais nada, um autêntico quebra-cabeças. Lisbeth era perita em informática
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e uma hacker excepcional. Mikael sabia disto, mas Annika não, e ele prometera a Lisbeth nunca revelar o segredo, e cumprira a sua promessa. O problema era que, naquele momento, tinha grande necessidade da competência dela na matéria.
Tinha, portanto, de entrar em contacto com Lisbeth, fosse de que maneira fosse.
Suspirou, voltou a abrir a pasta que Daniel Olofsson lhe enviara e retirou duas folhas de papel. Uma era um extracto do registo de passaportes em nome de Idris Ghidi, nascido em 1950. A foto mostrava um homem de bigode, pele trigueira e cabelos negros já grisalhos nas têmporas. A outra continha o resumo que Olofsson fizera do passado de Idris Ghidi.
Ghidi era um refugiado curdo vindo do Iraque. Olofsson reunira mais dados decisivos sobre Idris Ghidi do que sobre qualquer outro funcionário do hospital. A explicação deste desequilíbrio era o facto de, durante algum tempo, o curdo ter conhecido uma certa notoriedade mediática e figurar nos arquivos dos media.
Nascido em Mossul, no Norte do Iraque, Idris Ghidi formara-se em engenharia e participara no grande salto económico dos anos 70. Em 1984, começara a trabalhar como professor na Escola Técnica de Mossul. Não se lhe conhecia qualquer actividade política. Infelizmente para ele, era curdo, e, logo, um potencial criminoso no Iraque de Saddam Hussein. Em Outubro de 1987, o pai fora preso, por suspeita de activismo curdo. Não fora dada qualquer indicação sobre a natureza do seu crime. Acabara por ser executado como traidor à pátria, provavelmente em Janeiro de 1988. Dois meses mais tarde, a polícia secreta iraquiana fora buscar Idris Ghidi numa altura em que ele iniciava um curso sobre resistência de materiais aplicada à construção de pontes. Tinham-no levado para uma prisão nos arredores de Mossul, onde fora torturado durante onze meses com o objectivo de o fazer confessar. Como Idris Ghidi não sabia muito bem o que era suposto confessar, a tortura continuara.
Em Março de 1989, um tio de Idris Ghidi pagara ao chefe local do partido Baas uma quantia equivalente a 50 mil coroas suecas, o que fora sem dúvida considerado compensação suficiente para os
danos que o sobrinho causara ao Estado iraquiano. Dois dias mais tarde, Ghidi fora libertado e entregue ao tio. Na altura da libertação, pesava 39 quilos e estava incapaz de andar. Antes de o deixarem, os carcereiros tinham-lhe partido a anca esquerda a golpes de maça, isto com o intuito de o impedir de andar a vadiar e a fazer mais disparates.
Idris Ghidi estivera várias semanas entre a vida e a morte. Quando ficara um pouco melhor, o tio mandara-o para uma quinta a 600 quilómetros de Mossul, onde, durante o Verão, ganhara novas forças e se tornara suficientemente robusto para reaprender a andar com a ajuda de muletas. Sabia perfeitamente que nunca recuperaria por completo. A questão que se punha era o que ia fazer no futuro. Em Agosto, os seus dois irmãos foram presos pela polícia secreta. Não voltaria a vê-los. Em Setembro, o tio soubera que a polícia secreta de Saddam Hussein andava uma vez mais à procura de Idris Ghidi. Tomara então a decisão de contactar um passador anónimo que, a troco do equivalente a 30 mil coroas, o levara para o outro lado da fronteira turca e daí o fizera chegar à Europa com um passaporte falso.
Idris Ghidi aterrara no Aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, a 19 de Outubro de 1989. Não falava uma palavra de sueco, mas tinham-lhe explicado que devia apresentar-se imediatamente à polícia aduaneira e pedir asilo político, o que fizera num inglês elementar. Fora transferido para um centro de refugiados em Upplands-Vãsby, onde passara os dois anos seguintes, até os Serviços de Imigração decidirem que não havia razões suficientemente sólidas para lhe conceder uma autorização de residência na Suécia.
Por esta altura, Ghidi aprendera sueco e recebera tratamento médico para a anca destroçada. Fora submetido a duas operações e conseguia deslocar-se sem muletas. Entretanto, houvera o repúdio dos habitantes de Sjõbo aos imigrantes, alguns centros de refugiados tinham sido alvo de atentados e Bert Karlsson fundara o Partido da Nova Democracia.
A razão porque Idris Ghidi figurava nos arquivos dos media era o facto de, no último instante, ter arranjado um novo advogado que
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se dirigira aos meios de comunicação para explicar a situação. Outros curdos residentes na Suécia tinham-se mobilizado em favor de Idris Ghídi, entre eles os membros da combativa família Baksi. Houvera manifestações de protesto e petições enviadas à ministra da Imigração, Birggit Friggebo. A mediatização fora tal que o ministério revogara a sua anterior decisão. Ghidi obtivera uma autorização de residência e de trabalho no reino da Suécia. Em Janeiro de 1992, deixara o centro de refugiados de Upplands-Vásby como um homem livre.
A saída do centro de refugiados, começara para Idris Ghidi um novo processo. Tinha de arranjar emprego e ao mesmo tempo fazer terapia por causa da anca. Idris Ghidi não tardaria a descobrir que ter uma sólida formação em engenharia com vários anos de experiência e diplomas válidos não significava absolutamente nada. Durante os anos seguintes, trabalhara como distribuidor de jornais, mergulhador, cantoneiro e motorista de táxi. Fora obrigado a abandonar o emprego de distribuidor de jornais. Não conseguia pura e simplesmente subir as escadas ao ritmo exigido. Gostara bastante de trabalhar como motorista de táxi, mas houvera dois problemas. Não tinha o menor conhecimento da rede viária da área de Estocolmo e não podia ficar imóvel durante mais de uma hora sem que as dores na anca se tornassem insuportáveis.
Em Maio de 1998, mudara-se para Gotemburgo. Um parente afastado apiedara-se dele e oferecera-lhe um emprego fixo numa empresa de limpezas. Idris Ghidi não podia ocupar um posto a tempo inteiro, de modo que lhe tinham arranjado um lugar em part-time como chefe de uma equipa de "técnicos de limpeza" no Hospital Sahlgrenska, que subcontratara a empresa do tal parente. Tinha um trabalho fácil e metódico, que consistia em lavar o chão de um certo número de serviços, entre os quais o 11C, seis dias por semana.
Mikael leu o resumo de Olofsson e examinou o retrato de Idris Ghidi. Em seguida, abriu o site dos arquivos dos media e seleccionou vários dos artigos que tinham servido de base ao relatório. Leu-os atentamente, e em seguida reflectiu por um longo momento. Acendeu um cigarro. A proibição de fumar na redacção tinha sido rapidamente
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revogada depois da partida de Erika Berger. Henry Cortez tinha inclusivamente um cinzeiro em cima da secretária, à vista de todos.
Mikael Blomkvist não via o Volvo com a matrícula KAB e não tinha a sensação de estar a ser vigiado, mas preferiu não deixar nada ao acaso quando, na segunda-feira, entrou na livraria universitária junto à porta lateral do NK para voltar imediatamente a sair pela porta principal. Só um super-homem conseguiria manter alguém sob vigilância no interior de um grande centro comercial. Desligou os dois telemóveis e dirigiu-se à Praça Gustav Adolf, percorrendo a Galeria, passou diante do edifício do Parlamento e entrou na cidade velha. Tanto quanto pudesse perceber, ninguém o seguia. Fez uma série de desvios por pequenas ruelas até chegar à morada que lhe interessava. Bateu à porta das Edições Svartvitt.
Eram duas e meia da tarde. Não avisara ninguém da sua visita, mas Kurdo Baksi estava lá, e o rosto iluminou-se-lhe ao vê-lo.
- Viva, viva - exclamou, cordialmente. - Porque é que já não vens ver-nos?
- Estou aqui agora - disse Mikael.
- Sim, mas a última vez foi há pelo menos três anos. Trocaram um aperto de mão.
Mikael conhecia Kurdo Baksi desde os anos 80. Fora um dos que o tinham ajudado a lançar o Svartvitt, ainda clandestinamente impresso durante a noite na Federação dos Sindicatos. Kurdo fora lá apanhado em flagrante por Per-Erik Astrõm, o futuro caçador de pedófilos de Rãdda Barnen. Uma noite, Astrõm entrara na gráfica da Federação e encontrara resmas de páginas do primeiro número do Svartvitt e um Kurdo Baksi muito atrapalhado. Astrõm olhara para o layout pavoroso da primeira página e dissera que aquilo era uma merda de uma maneira de fazer um jornal. Em seguida, desenhara o logotipo que ia figurar no cabeçalho do Svartvitt durante 15 anos até a publicação ter sido encerrada e as Edições Svartvitt terem pegado no testemunho. Na época, Mikael chegava ao fim de um abominável período como responsável pelas Actualidades na Federação - a sua primeira e última passagem pelo ramo. Per-Erik Astrõm convencera-o a rever
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as provas do Svartvitt e a dar uma ajuda na redacção dos textos. Kurdo e Mikael tinham ficado amigos desde essa altura.
Mikael instalou-se num sofá enquanto Kurdo ia buscar café à máquina no corredor. Tagarelaram um pouco, como costumam fazer as pessoas que não se vêem há algum tempo, mas eram constante-mente interrompidos pelo toque do telemóvel de Kurdo. Baksi tinha curtas conversas em curdo, ou talvez em turco, ou em árabe, ou saberia Deus em que outra língua que Mikael não compreendia. Sempre que ia às Edições Svartvitt, era a mesma coisa. As pessoas ligavam do mundo inteiro para falar com Kurdo.
- Meu caro Mikael, estás com um ar preocupado. O que é que te traz por cá? - acabou Kurdo por perguntar.
- Podes desligar o telemóvel durante cinco minutos, para podermos falar em paz? - Kurdo desligou o telemóvel. - Até que enfim... preciso de um favor. Um favor dos grandes, que além disso tem de ser feito de imediato e não pode ser discutido fora desta sala.
- Conta.
- Em 1989, chegou à Suécia, vindo do Iraque, um refugiado curdo chamado Idris Ghidi. Quando foi ameaçado de expulsão, a tua família ajudou-o, e graças a isso acabou por conseguir uma autorização de residência. Não sei se foi o teu pai ou outro membro da família que o ajudou.
- Foi o meu tio, Mahmut Baksi. Conheço o Idris. Que se passa com ele?
- Trabalha actualmente em Gotemburgo. Preciso da ajuda dele para um trabalho simples. Pagar-lhe-ei.
- E que trabalho é esse?
- Confias em mim, Kurdo?
- Evidentemente. Sempre fomos amigos.
- O trabalho em questão é especial. Muito especial. Não quero dizer-te em que consiste, mas garanto-te que não tem nada de ilegal e que não te causará qualquer problema nem a ti nem ao Idris Ghidi.
Kurdo Baksi olhou atentamente para Mikael.
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- Compreendo. E não queres dizer do que se trata.
- Quanto menos souberes, melhor para ti. Mas preciso que me recomendes ao Idris para que ele ouça o que tenho para lhe dizer.
Kurdo pensou um instante. Depois dirigiu-se à secretária e abriu uma agenda. Procurou e encontrou o número de Idris Ghidi. Pegou no telefone. A conversa foi em curdo. Mikael compreendeu, pela expressão de Baksi, que ele começou com palavras de delicadeza antes de introduzir o assunto. Depois ficou sério e explicou o que queria. Ao cabo de um momento, voltou-se para Mikael.
- Quando queres encontrar-te com ele?
- Sexta-feira à tarde, se possível. Pergunta-lhe se posso ir a casa dele.
Kurdo disse mais meia dúzia de palavras antes de pôr fim à conversa.
- O Idris Ghidi vive em Angered - disse. - Tens a morada dele? - Mikael fez que sim com a cabeça. - Estará à tua espera na sexta-feira, às cinco da tarde.
- Obrigado, Kurdo.
- Trabalha no Hospital Sahlgrenska, no serviço de limpeza.
- Eu sei.
- Não pude evitar ler nos jornais que estás envolvido nessa história da Salander.
- É verdade.
- Foi atingida a tiro. - Mikael voltou a assentir. - Segundo julgo, está justamente em Sahlgrenska.
- Também é verdade.
Kurdo Baksi tinha tão pouco de parvo como Olofsson.
Percebeu que Mikael Blomkvist estava a tramar qualquer coisa menos clara. O que era, aliás, a sua especialidade. Conhecia-o desde os anos 80. Nunca tinham sido muito chegados, mas Mikael estivera sempre pronto a ajudar quando fora preciso. Naqueles últimos anos tinham bebido uma ou duas cervejas juntos quando se encontravam numa festa ou num bar.
- Será que vou estar metido em qualquer coisa de que deva ter conhecimento? - perguntou Kurdo.
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- Não vais estar metido em coisa nenhuma. O teu papel resumiu-se ao favor de me apresentar a um dos teus conhecidos. E repito... o que vou pedir ao Idris Ghidi não é ilegal.
Kurdo assentiu. Aquela garantia bastava-lhe. Mikael pôs-se de pé.
- Fico a dever-te um favor.
- Hoje tu, amanhã eu, todos devemos favores uns aos outros -disse Kurdo Baksi.
Henry Cortez pousou o telefone e tamborilou com os dedos na beira do tampo da secretária. Monika Nilsson arqueou uma sobrancelha e lançou-lhe um olhar furibundo, mas percebeu que ele estava absorto nos seus pensamentos. Estava irritada contra tudo e contra todos, e decidiu que não ia descarregar no colega.
Monika sabia que Mikael andava envolvido com Henry, Malin e Christer naquela história da Salander, deixando-lhe a ela e a Lotta o trabalho de preparar o próximo número da revista, que não tinha verdadeiramente uma direcção editorial desde a saída de Erika. Não que tivesse alguma coisa contra Malin, mas a verdade é que ela não tinha a experiência nem o peso de Erika. E Henry não passava de um garoto.
A irritação de Monika Nilsson não vinha do facto de se sentir posta de parte ou de querer o lugar de qualquer deles... era até a última coisa que quereria. O seu trabalho consistia em vigiar o Governo, o Parlamento e as administrações por conta da Millennium. Um trabalho de que gostava e de que conhecia todos os cordelinhos. Tinha, além disso, várias outras tarefas para lhe ocuparem o tempo, como escrever todas as semanas uma coluna numa revista sindical e o voluntariado na Amnistia Internacional, entre outras. Tudo isto era inconciliável com o cargo de directora editorial da Millennium, que a faria trabalhar pelo menos 12 horas por dia e sacrificar fins-de-semana e feriados.
Não conseguia, no entanto, evitar a sensação de que alguma coisa mudara na Millennium. Não reconhecia a revista. E não era capaz de pôr o dedo na ferida, apontar o que estava errado.
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Mikael Blomkvist continuava a ser o irresponsável do costume. Desaparecia sem aviso para as suas misteriosas viagens e entrava e saía conforme lhe dava na gana. É verdade que era co-proprietário da Millennium e tinha o direito de decidir o que fazia e quando, mas, que diabo, podia-se exigir um mínimo de responsabilidade.
Christer Malm era o outro co-proprietário, mas não ajudava grande coisa. Era sem dúvida muito dotado, e exercera as funções de director editorial quando Erika estava de férias ou tinha de sair de Estocolmo, mas, globalmente, limitava-se a concluir o que outros tinham já decidido. Era brilhante em tudo o que respeitasse à criação gráfica e à paginação, mas completamente inábil em se tratando de planear uma revista.
Monika Nilsson franziu o sobrolho.
Não, estava a ser injusta. O que a irritava era o que se passava na redacção. Mikael trabalhava com Malin e Henry, e todos os outros tinham de certo modo sido excluídos desse trabalho. Tinham formado um círculo fechado e metiam-se no gabinete de Erika... de Malin, e saíam de lá sem dizer uma palavra. Sob a direcção de Erika, trabalhavam todos em conjunto. Monika não compreendia o que estava a acontecer, mas sentia que a tinham deixado à margem.
Mikael trabalhava na história de Salander e não deixava escapar uma palavra sobre o assunto. Não que isso fosse invulgar. Também não revelara nada da história Wennerstrõm - a própria Erika não sabia de nada -, mas, desta vez, tinha Henry e Malin como confidentes. Em resumo, Monika estava irritada. Estava a precisar de férias. Estava a precisar de distanciar-se. Viu Henry vestir o casaco de bombazina.
- Vou dar uma volta - disse ele. - Importas-te de dizer à Malin que vou estar fora cerca de duas horas?
- O que é que se passa?
- Penso que talvez tenha descoberto uma coisa. Um superfuro. Sobre sanitas. Preciso de verificar umas coisas, mas se bater tudo certo, vamos ter um artigo em grande para o número de Junho.
- Sanitas? - espantou-se Monika Nilsson, enquanto o via sair.
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Erika Berger cerrou os dentes e pousou lentamente o texto sobre o iminente julgamento de Lisbeth Salander. Não era muito longo - tinha apenas duas colunas - e destinava-se à página 5, com as actualidades nacionais. Ficou a olhar para o papel durante um minuto, de lábios cerrados. Eram três e meia da tarde de quinta-feira. Havia 12 dias que trabalhava no SMP. Pegou no telefone e ligou para o chefe das Actualidades, Lukas Holm.
- Boas. Fala Berger. Importas-te de procurar o jornalista Johannes Frisk e trazê-lo imediatamente ao meu gabinete? - Desligou e aguardou pacientemente que Holm chegasse à gaiola de vidro levando Johannes Frisk colado aos calcanhares. Olhou para o relógio. - Vinte e dois - disse.
- O quê? - perguntou Holm.
- Vinte e dois minutos. Precisaste de vinte e dois minutos para te levantares da tua secretária, percorrer os quinze metros que a separam da secretária do Johannes Frisk e dignares-te trazê-lo até aqui.
- Não disseste que era urgente. Estou relativamente ocupado.
- Não disse que era urgente. Disse-te que procurasses o Johannes Frisk e o trouxesses ao meu gabinete. Disse "imediatamente", e queria mesmo dizer imediatamente, não para a semana nem quando te desse na gana levantar o cu da cadeira.
- Olha lá, acho que...
- Fecha a porta.
Esperou que Lukas Holm fechasse a porta. Observou-o em silêncio. Era, sem dúvida, um chefe das Actualidades particularmente competente, cujo trabalho consistia em velar por que as páginas do SMP estivessem todos os dias preenchidas com bons textos, compreensíveis e apresentados com ordem e no espaço decidido durante a reunião matinal. A verdade é que Lukas Holm fazia diariamente malabarismos com uma quantidade enorme de tarefas. E fazia-o sem deixar cair uma única bola.
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O problema é que ignorava sistematicamente as decisões de Erika Berger. Durante quase duas semanas, ela procurara encontrar uma fórmula que lhe permitisse trabalhar com ele. Argumentara amavelmente, tentara as ordens directas, encorajara-o a pensar de um modo diferente e, no geral, fizera tudo para que ele compreendesse como ela concebia o jornal. Nada funcionara.
O texto que rejeitava de manhã acabava por ser incluído no jornal depois de ela ir para casa. "Tirámos um texto e ficámos com um buraco que tínhamos absolutamente de preencher", dizia ele.
O cabeçalho que Erika decidira que iam usar era subitamente rejeitado e substituído por outra coisa qualquer. Nem sempre era uma má escolha, mas fazia-o sem a consultar. Fazia-o até de uma forma ostensiva e provocadora.
Eram sempre pequenas coisas. As reuniões de redacção, previstas para as duas da tarde, eram antecipadas dez minutos sem que ela fosse informada, e a maior parte das decisões tinha já sido tomada quando ela chegava. "Oh, desculpa... esqueci-me completamente de te dizer,"
Erika Berger tinha uma enorme dificuldade em perceber por que razão Lukas Holm adoptara aquela atitude em relação a ela, mas chegara à conclusão de que as conversas cordiais e as reprimendas veladas não resultavam. Até então, preferira não discutir o problema na presença de outros colaboradores da redacção e tentara limitar a sua irritação às conversas pessoais e confidenciais. Não dera resultado, e por isso chegara a hora de exprimir-se mais claramente, e desta vez na presença de Johannes Frisk, garantia de que a conversa chegaria ao conhecimento de toda a redacção.
- A primeira coisa que fiz quando comecei a trabalhar aqui foi dizer que tenho um interesse especial em tudo o que diga respeito à Lisbeth Salander. Expliquei que queria ser informada de todos os artigos previstos e que queria ver e aprovar tudo o que estivesse destinado a publicação. Disse-te isto uma dúzia de vezes, a última das quais durante a reunião de redacção de sexta-feira passada. O que é que há nessas instruções que não consegues compreender?
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- Todos os textos previstos ou em preparação estão nos menus diários da Intranet. São sistematicamente enviados para o teu computador. Estás permanentemente informada.
- Tretas. Quando recebi o SMP na minha caixa de correio, esta manhã, tínhamos três colunas sobre a Salander e a evolução do caso Stallarholmen em destaque nas páginas das Actualidades.
- É o texto da Margareta Orring. É uma colaboradora externa e só entregou o texto ontem, depois das sete.
- A Margareta Orring telefonou a propor o seu artigo ontem às onze da manhã. Validaste-o e confiaste-lhe o trabalho às onze e meia. Não disseste uma palavra sobre o assunto na reunião das duas.
- Está no menu do dia.
- Ah, bom. Vejamos o que diz o menu do dia: "Margareta Orring: entrevista com a procuradora Martina Fransson. Ref. apreensão de estupefacientes em Sõdertâlje."
- O tema base era uma entrevista com Martina Fransson a respeito de uma apreensão de esteróides anabolizantes e que resultou na detenção de um membro do Moto-Clube de Svavelsjõ.
- Exacto. E nem uma palavra no menu do dia a respeito do Moto-Clube de Svavelsjõ nem sobre o facto de o artigo ir ser trabalhado à volta do Magge Lundin e de Stallarholmen, e consequente-mente à volta da investigação a Lisbeth Salander.
- Suponho que terá vindo a propósito durante a entrevista...
- Lukas, não consigo compreender porquê, mas estás a mentir-me enquanto me olhas nos olhos. Falei com a Margareta Orring, que escreveu o texto. E ela explicou-te muito claramente qual ia ser o
foco da entrevista.
- Lamento, não devo ter percebido que ia concentrar-se na Salander. Já era muito tarde quando recebi o texto. O que é que havia de fazer, anular tudo? É um bom texto.
- Nisso estamos de acordo. É um excelente texto. E temos a tua terceira mentira em praticamente outros tantos minutos. Porque a Orring entregou o texto às três e vinte, muito antes de eu ter saído,
às seis.
- Berger, não estou a gostar do teu tom.
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- Muito bem. Nesse caso, posso dizer-te que também não gosto do teu, nem das tuas artimanhas nem das tuas mentiras.
- Quem te ouvir, diria que acreditas que chefio uma conspiração contra ti.
- Continuas a não responder à minha pergunta. E agora isto: acaba de me chegar à secretária este texto assinado por Johannes Frisk. Não me lembro de termos discutido nada disto na reunião das duas horas. Como é que um dos nossos jornalistas passa o dia a trabalhar num tema relacionado com a Lisbeth Salander sem que eu seja informada?
Johannes Frisk agitou-se. Teve a sensatez de ficar calado.
- Bom... editamos um jornal. Deve haver centenas de textos de que não tens conhecimento. Temos os nossos hábitos aqui no SMP, e tencionamos mantê-los. Não tenho nem o tempo nem a possibilidade de me concentrar em certos textos em especial.
- Não te pedi que te concentrasses em certos textos em especial. Exigi, primeiro, ser informada de tudo o que dissesse respeito ao caso Salander, e, segundo, aprovar o que viesse a ser publicado. Portanto, volto a perguntar, que parte destas instruções não conseguiste compreender? - Lukas Holm suspirou e fez um ar atormentado. - Muito bem - continuou Erika. - Nesse caso, vou ser ainda mais clara. Não tenciono discutir contigo. Vejamos se compreendes esta mensagem. Se isto se repetir, demito-te de chefe das Actualidades. Vai ser um escândalo de todo o tamanho, e em seguida vais dar por ti a escrever a página da Família, ou os Tempos Livres, ou qualquer coisa nesse género. Não posso manter um chefe das Actualidades em quem não tenha confiança, com o qual não posso trabalhar e que passa a vida a minar as minhas decisões. Compreendeste? - Lukas Holm abriu as mãos num gesto que significava que achava completamente descabidas as acusações de Erika. - Compreendeste? Sim ou não?
- Ouço o que dizes.
- Perguntei-te se compreendias. Sim ou não?
- Acreditas verdadeiramente que te vais safar com uma dessas? Este jornal sai por causa de mim e de meia dúzia de outros como eu, que nos esfalfamos a trabalhar. O CA vai...
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- O CA vai fazer o que eu lhe disser. Estou aqui para renovar o jornal. Tenho uma missão perfeitamente definida que foi negociada em conjunto e que significa que posso fazer as alterações que entender ao nível de quadros. Posso desembaraçar-me do supérfluo e ir buscar sangue novo lá fora, se quiser. E tu, Holm, começas a parecer-me cada vez mais supérfluo. - Calou-se. Lukas Holm enfrentou-lhe o olhar. Tinha uma expressão furiosa. - É tudo - disse Erika. - Proponho que reflictas seriamente no que acabámos de discutir.
- Não tenciono...
- Não depende de ti. É tudo. Podes ir.
Holm rodou sobre os calcanhares e saiu da gaiola de vidro. Erika viu-o atravessar a redacção e desaparecer na sala do pessoal. Johannes Frisk preparou-se para o seguir.
- Tu não, Johannes. Senta-te - disse Erika. Voltou a passar os olhos pelo texto. - Se bem entendi, estás aqui a substituir alguém.
- Sim. Há cinco meses. É a minha última semana.
- Lamento ter-te envolvido na minha batalha com o Holm. Fala-me do teu artigo.
- Deram-me a dica esta manhã, e eu passei-a ao Holm. Ele disse-me que a explorasse.
- Certo. Portanto, a polícia trabalha actualmente numa hipótese segundo a qual a Lisbeth Salander estaria envolvida no comércio de esteróides anabolizantes. Este teu artigo tem alguma coisa que ver com o texto de ontem sobre Sbdertálje, que também falava de anabolizantes?
- Não sei, é possível. Essa história dos anabolizantes vem da ligação dela com o pugilista. O Paolo Roberto e os seus amigos.
- Porque o Paolo Roberto funciona à base de anabolizantes?
- O quê? Não, claro que não. Tem mais que ver com o mundo do boxe. A Salander treina com uns tipos esquisitos num clube do Sõder. Mas essa é a perspectiva da polícia. Não a minha. Foi algures por aí que nasceu a ideia de ela estar envolvida na venda de anabolizantes.
- O artigo baseia-se, então, apenas em boatos?
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- Não é boato que a polícia analisa uma hipótese. Se têm ou não razão, já não sei.
- Perfeito, Johannes. Quero que saibas que o que estou a discutir contigo agora não tem nada que ver com a minha relação com o Lukas Holm. Acho que és um excelente jornalista. Escreves bem e tens olho para o pormenor. Em resumo, escreveste um bom artigo. O meu único problema é que não acredito numa palavra do que ele diz.
- Posso garantir-te que é cem por cento exacto.
- E eu vou explicar-te porque é que o teu artigo enferma de um erro fundamental. De onde recebeste a dica?
- De uma fonte policial.
- Quem?
Johannes Frisk hesitou. A reticência era instintiva. Como qualquer jornalista do mundo hesitava em revelar o nome de uma fonte. Por outro lado, Erika Berger era a directora editorial e uma das raras pessoas que podiam exigir que ele fornecesse essa informação.
- Um inspector da Criminal chamado Hans Faste.
- Foste tu que lhe ligaste, ou foi ele que te ligou a ti?
- Foi ele que me ligou. Erika Berger suspirou.
- E porque é que achas que te ligou?
- Entrevistei-o várias vezes durante a perseguição à Salander. Ele sabe quem eu sou.
- Sabe que tens vinte e sete anos, que estás a substituir alguém e que podes ser usado quando quer colocar informações que o procurador está interessado em difundir.
- Sim, compreendo bem tudo isso. Mas é assim, recebo uma dica de um investigador e vou beber um café com o Faste e é o que ele me conta. Reproduzo exactamente o que ele me disse. Que mais posso fazer?
- Estou convencida de que o citaste correctamente. Mas o correcto era teres levado a informação ao Lukas Holm, que deveria ter vindo bater à minha porta a explicar a situação, para que pudéssemos decidir em conjunto que seguimento lhe dar.
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- Compreendo. Mas...
- Entregaste o material ao Holm, que é o chefe das Actualidades. Fizeste bem. Foi o Holm que meteu o pé na poça. Mas analisemos o teu texto. Em primeiro lugar, porque é que o Faste quer que esta informação seja tornada pública? - Johannes Frisk encolheu os ombros. - Isso significa que não sabes, ou que não queres saber?
- Não sei.
- Muito bem. Se eu te disser que o teu artigo é uma falsidade e que a Lisbeth Salander não tem nada que ver com a venda de esteróides anabolizantes, o que é que respondes?
- Que não posso provar o contrário.
- Exactamente. O que significa que, em tua opinião, não faz mal publicar um artigo que pode ser uma mentira apenas porque não sabemos nada em contrário.
- Não, temos responsabilidade jornalística. Mas temos de procurar constantemente o equilíbrio. Não podemos renunciar a publicar quando há uma fonte que afirmou expressamente qualquer coisa.
- É uma filosofia. Podemos também pôr a questão de saber porque é que a fonte quer divulgar a informação. Deixa-me explicar-te porque foi que dei ordens para que tudo o que diga respeito à Lisbeth Salander passe pela minha secretária. Tenho conhecimentos privilegiados nesta matéria que mais ninguém tem no SMP. O departamento legal foi informado de que tenho esses conhecimentos e que não posso falar deles. A Millennium vai publicar um trabalho e eu estou obrigada por contrato a não o revelar ao SMP, apesar de trabalhar aqui. Obtive essa informação quando era directora editorial da Millennium e, neste momento, estou sentada entre duas cadeiras. Compreendes o que quero dizer?
- Sim.
- Aquilo que sei permite-me afirmar, sem qualquer hesitação, que este artigo é uma falsidade e tem como objectivo prejudicar a Lisbeth Salander antes do julgamento.
- Parece-me difícil prejudicar a Lisbeth Salander, tendo em conta todas as revelações que já houve a respeito dela...
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- Revelações que, na sua maioria, são falsas. Hans Faste é uma das principais fontes de tudo o que tem sido dito a respeito de a Lisbeth Salander ser uma lésbica paranóica e violenta com ligações ao satanismo e ao sadomasoquismo. E os media engoliram a história do Faste simplesmente porque ele é uma fonte aparentemente fidedigna e é sempre divertido escrever sobre sexo. E agora ele volta à carga com uma nova calúnia que vai denegrir a Lisbeth Salander aos olhos do público, e quer servir-se do SMP para a divulgar. Lamento, mas enquanto eu mandar, não.
- Compreendo.
- Tens a certeza? Bem. Nesse caso, vou poder resumir toda esta nossa conversa numa só frase. A tua missão, como jornalista, é questionar e ter uma visão crítica... não repetir estupidamente afirmações, mesmo quando elas vêm de fontes altamente situadas na administração. És um super-redactor, mas trata-se de um talento que não servirá de nada se esqueceres a tua missão logo à partida.
- Sim.
- Vou cancelar este artigo.
- De acordo.
- Não corresponde à verdade. Não acredito no seu conteúdo.
- Compreendo.
- O que não quer dizer que não tenha confiança em ti.
- Obrigado.
- É por isso que te vou mandar ir para a tua secretária com uma proposta para outro artigo.
- Ah.
- Está ligado ao meu contrato com a Millennium. Por isso não posso dizer-te o que sei sobre a história da Lisbeth Salander. Ao mesmo tempo, sou directora editorial de um jornal que se arrisca a uma derrapagem de todo o tamanho porque a redacção não dispõe da mesma informação que eu.
- Hum.
- E isso não é bom. Estamos numa situação única, no que respeita à Lisbeth Salander. Por isso resolvi escolher um jornalista que
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vou orientar na direcção certa para não fazermos figura de parvos quando a Millennium publicar.
- E pensas que a Millennium vai publicar alguma coisa de relevante a respeito da Salander?
- Não penso. Sei. A Millennium prepara um furo que vai revolucionar completamente o caso, e o facto de não poder publicar a história põe-me doida. Mas é impossível.
- Mas dizes que rejeitas o meu texto porque sabes que não corresponde à verdade... O que equivale a dizer que há qualquer coisa neste caso que certos jornalistas descobriram, mas mais ninguém sabe.
- Exacto.
- Peço desculpa, mas custa-me acreditar que toda a imprensa
sueca tenha caído numa armadilha.
- A Lisbeth Salander foi vítima de uma conspiração mediática. Nestes casos, deixa de haver regras, e torna-se possível publicar o que se quiser na primeira página.
- Dizes então que a Lisbeth Salander não é aquilo que parece ser.
- Tenta convencer-te de que ela está inocente daquilo que a acusam, que a sua imagem foi construída por títulos sensacionalistas sem qualquer valor jornalístico e que estão em jogo outras forças além daquelas que toda a gente vê.
- E afirmas que é esse o caso? - Erika Berger assentiu com a cabeça. - O que quer dizer que o que eu queria publicar faz parte de uma campanha organizada contra ela.
- Exactamente.
- Mas cujo objectivo não podes revelar.
- Não.
Johannes Frisk coçou a cabeça. Erika esperou que ele acabasse de
pensar.
- Muito bem... O que é que queres que faça?
- Volta à tua secretária e começa a pensar noutro artigo. Não entres em stress, mas antes de o julgamento começar, gostaria de poder publicar um longo texto, talvez de duas páginas, que verifique o grau de veracidade de todas as afirmações que foram feitas contra a Lisbeth
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Salander. Começa por ler todos os recortes de imprensa e faz uma lista do que foi dito sobre ela e atira-te as informações, uma a uma.
- Hum.
- Pensa como jornalista. Descobre quem espalha a história, porque é espalhada e quem tem a ganhar com isso.
- O problema é que duvido de que ainda esteja no SMP quando o julgamento começar. Como disse, estou na minha última semana.
Erika tirou uma folha de papel de uma das gavetas da secretária e colocou-a diante de Johannes Frisk.
- Já prorroguei o teu contrato por mais três meses. Durante esta semana continuas a fazer o teu trabalho, e voltas a apresentar-te na segunda-feira.
- Hum...
- Isto, claro, se estiveres interessado em ficar mais três meses no jornal.
- Claro que estou.
- És contratado para um projecto de pesquisa à margem do trabalho normal da redacção. Trabalharás directamente sob as minhas ordens. Serás o nosso correspondente especial para o caso Salander.
- O chefe das Actualidades vai dizer...
- Não te preocupes com o Holm. Já falei com o chefe do Departamento Jurídico, para não haver problemas com eles. Mas tu vais trabalhar nos bastidores, não na informação. Convém-te?
- É óptimo.
- Bom, nesse caso... acabámos. Até segunda.
Fez-lhe sinal para sair. Quando ergueu os olhos, viu Lukas Holm a olhar para ela do meio da redacção. Voltou a dedicar a sua atenção aos papéis que tinha em cima da secretária, fingindo não ter reparado.
CAPÍTULO 11
SEXTA-FEIRA, 13 DE MAIO - SÁBADO, 14 DE MAIO
Mikael Blomkvist teve o cuidado de certificar-se de que não estava a ser vigiado quando, na sexta-feira, de manhã cedo, se dirigiu a pé da redacção da Millennium à antiga morada de Lisbeth, na Lun-dagatan. Precisava de ir a Gotemburgo, encontrar-se com Idris Ghidi. O problema era encontrar um meio de transporte seguro, em que não corresse o risco de ser detectado e que não deixasse rasto. Depois de muita reflexão, rejeitara o comboio, porque não queria servir-se do cartão de crédito. Normalmente, usava o carro de Erika Berger, mas isso deixara de ser possível. Considerara a hipótese de pedir a Henry Cortez ou a qualquer dos outros que lhe alugassem um carro, mas também essa solução deixaria forçosamente um rasto de papelada.
Acabou por encontrar a solução mais viável. Levantou uma soma considerável de uma caixa automática na Gõtgatan. Usou as chaves de Lisbeth para abrir a porta do Honda que estava abandonado junto ao passeio desde Março. Ajustou o banco e verificou que o depósito estava meio cheio. Arrancou e dirigiu-se à E4, atravessando a ponte de Liljeholmen.
Chegou a Gotemburgo um pouco antes das três e estacionou numa rua transversal à Avenyn. Encomendou um almoço tardio no primeiro bar que encontrou. Às quatro e dez, apanhou o suburbano para Angered e apeou-se no centro. Demorou vinte minutos a encontrar a morada de Ghidi. Estava dez minutos atrasado.
Idris Ghidi coxeava. Abriu a porta, apertou a mão a Mikael. Convidou-o a entrar numa sala agradavelmente espartana. Em cima
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de uma cómoda, ao lado da mesa à volta da qual se sentaram, havia uma dúzia de fotografias emolduradas, que Mikael observou.
- É a minha família - explicou Ghidi.
Falava com um sotaque cerrado. Mikael pensou que não sobreviveria ao teste linguístico proposto pelos moderados.
- Seus irmãos?
- Os meus dois irmãos, na ponta, à esquerda, foram assassinados pelo Saddam, nos anos oitenta. A minha mãe morreu em 2000. As minhas três irmãs estão vivas. Vivem no estrangeiro. Duas na Síria e a mais nova em Madrid.
Mikael assentiu. Ghidi serviu café turco.
- O Kurdo Baksi manda cumprimentos.
Idris Ghidi baixou a cabeça, num gesto de agradecimento.
- Explicou-lhe o que pretendo?
- Disse que queria contratar-me para um serviço, mas mais nada. Deixe-me dizer-lhe, desde já, que não aceito fazer seja o que for de ilegal. Não posso permitir-me meter-me nesse género de coisas.
Mikael voltou a assentir.
- Não há nada de ilegal no que vou pedir-lhe para fazer, mas é um pouco invulgar. O nosso contrato prolongar-se-á por várias semanas e o serviço propriamente dito terá de ser feito todos os dias. Em contrapartida, não exigirá mais do que uns poucos minutos. Estou disposto a pagar mil coroas por semana. Receberá o dinheiro directamente da minha mão e eu não vou declarar nada ao fisco.
- Compreendo. O que é que tenho de fazer?
- Trabalha no serviço de manutenção no Hospital Sahlgrenska. - Ghidi fez sinal que sim. - Uma das suas missões quotidianas... ou seis vezes por semana... consiste em fazer a limpeza no serviço 11C, ou seja, os cuidados intensivos. - Ghidi repetiu o gesto. - O que quero que faça é o seguinte.
Mikael Blomkvist inclinou-se para a frente e explicou a sua proposta.
O procurador Richard Ekstrõm olhou pensativamente para o seu visitante. Era a terceira vez que se encontrava com o comissário
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Georg Nystrõm. Viu um rosto sulcado de rugas e enquadrado por cabelos grisalhos. Georg Nystrõm aparecera pela primeira vez nos dias que se tinham seguido ao assassínio de Zalachenko. Mostrara um cartão da DGPN/Sápo. Tinham mantido uma longa conversa em
voz baixa.
- É preciso que compreenda que não estou a tentar de maneira alguma influenciar a sua maneira de agir ou de fazer o seu trabalho - disse Nystrõm. - Ekstrõm assentiu. - Gostaria também de sublinhar que em caso algum deverá tornar pública a informação que lhe vou dar.
- Compreendo - disse Ekstrõm.
Para ser franco, Ekstrõm teria de admitir que não percebia nada de nada, mas não queria passar por idiota fazendo demasiadas perguntas. Tinha compreendido que o caso Zalachenko era uma história que devia ser tratada com a maior prudência. Compreendera também que as visitas de Nystrõm eram totalmente informais, apesar de o homem ter uma ligação ao patrão da Segurança.
- Trata-se de vidas humanas - dissera Nystrõm, quando do primeiro encontro. - Pelo nosso lado, na Sapo, tudo o que respeita à verdade sobre o caso Zalachenko está classificado como top secret. Posso confirmar que é um ex-agente que desertou da espionagem militar soviética e uma das personagens-chave na ofensiva dos russos contra a Europa ocidental nos anos setenta.
- Hã... sim. É, aparentemente, o que o Mikael Blomkvist afirma.
- Neste caso, o Blomkvist está cem por cento certo. É jornalista e tropeçou por pura casualidade num dos casos mais secretos da defesa sueca de todos os tempos.
- E vai publicá-lo.
- Claro. Representa os meios de comunicação, com todas as suas vantagens e inconvenientes. Vivemos em democracia e não temos qualquer influência sobre o que os media escrevem. O problema, neste caso, é que o Blomkvist sabe apenas uma ínfima parte da verdade a respeito do Zalachenko, e muito do que sabe é errado.
- Compreendo.
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- O que o Blomkvist não compreendeu é que se a verdade a respeito do Zalachenko vier a ser conhecida, os russos poderão identificar os nossos informadores e as nossas fontes entre eles. O que significa que pessoas que arriscam a vida pela democracia podem ser mortas.
- Mas a Rússia, hoje, também é uma democracia, não é? Quero eu dizer, se tudo isso se passou no tempo dos comunistas, então...
- Ilusões! Estamos a falar de pessoas que se tornaram culpadas de espionagem contra a Rússia... nenhum regime do mundo aceitaria uma coisa dessas, mesmo depois de passados muitos anos. E algumas das nossas fontes estão ainda em actividade...
Era mentira, mas o procurador Ekstrõm não tinha modo de o saber. Era obrigado a engolir o que Nystrõm lhe dizia. E, ainda que a contragosto, sentia-se lisonjeado por partilhar, de uma maneira informal, informações classificadas como top secret. Estava vagamente surpreendido pelo facto de a Segurança sueca ter conseguido infiltrar a Defesa russa ao ponto que Nystrõm dava a entender, e compreendia que informação daquele género não podia, evidentemente, ser divulgada.
- Quando me confiaram a missão de o contactar, procedemos a uma avaliação completa da sua pessoa - dissera Nystrõm.
Para seduzir alguém, é sempre preciso detectar-lhe os pontos fracos. O ponto fraco do procurador Ekstrõm era a convicção de que tinha a sua importância e, como toda a gente, era sensível à lisonja. O objectivo era convencê-lo de que fora escolhido.
- E verificámos que é alguém que goza de uma enorme confiança no seio da polícia... e, claro, também nos meios governamentais - acrescentara Nystrõm.
Ekstrõm ficara nas nuvens. O facto de pessoas dos círculos governamentais, cujos nomes não se podiam pronunciar, terem confiança nele era uma informação indicadora de que, sem que isso fosse dito, podia contar com um certo reconhecimento se jogasse bem as suas cartas. Um bom augúrio para a sua carreira futura.
- Estou a ver... e que pretendem, então?
- Para simplificar, a minha missão é fornecer-lhe elementos o mais discretamente possível. Compreende, claro, a que ponto esta
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história é incrivelmente complicada. Por um lado, está a ser correcta e devidamente conduzido um inquérito preliminar, de que o senhor é o principal responsável. Ninguém... nem no Governo, nem na Segurança, nem seja onde for, pode imiscuir-se no modo como conduz esse inquérito. O seu trabalho consiste em apurar a verdade e acusar os culpados. É uma das funções mais importantes num Estado de direito. - Ekstrõm aquiescera com a cabeça. - Por outro lado, se toda a verdade a respeito de Zalachenko viesse a ser revelada seria uma catástrofe nacional de proporções quase incalculáveis.
- Consequentemente, o objectivo da sua visita é...?
- Em primeiro lugar, devo chamar a sua atenção para esta situação delicada. Julgo que nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, a Suécia se viu numa posição mais exposta. Poder-se-ia dizer que a sorte do país se encontra, em certa medida, nas suas mãos.
- Quem é o seu chefe?
- Lamento, mas não posso revelar os nomes das pessoas que trabalham neste caso. Deixe-me apenas deixar claro que as minhas instruções vêm do mais alto nível que possa imaginar.
Santo Deus! Trata-se de uma ordem do Governo. Mas ele não pode dizê-lo, porque isso provocaria uma catástrofe política, pensou Ekstrõm. Nystrõm reparou que Ekstrõm mordia o anzol.
- O que posso fazer, em contrapartida, é ajudá-lo fornecendo-lhe informações. Estou em larga medida autorizado a pô-lo ao corrente, conforme considere pertinente, de material que se conta entre o que de mais secreto temos neste país.
- Estou a ver.
- Significa isto que quando tiver perguntas a fazer, sejam elas quais forem, é a mim que deve dirigir-se. Não deverá falar com mais ninguém, seja quem for, dentro da Segurança, só comigo. A minha missão é guiá-lo neste labirinto, e se houver o risco de colisões entre os vários interesses, seremos nós os dois a encontrar as soluções.
- Compreendo. Nesse caso, permita que lhe diga que agradeço, a si e aos seus colegas, por estarem dispostos a facilitar-me as coisas desta maneira.
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- Fazemos questão de que o processo judicial siga o seu curso, ainda que a situação seja delicada.
- Tanto melhor. Podem contar com a minha discrição absoluta. Não é a primeira vez que trabalho com dados classificados como secretos.
- Sim, nós sabemos.
Ekstrõm fizera então uma dúzia de perguntas que Nystrõm anotara com meticuloso cuidado, para tentar responder-lhes o mais cabalmente possível.
Agora, naquela terceira visita, Ekstrõm ia ver respondidas algumas das suas perguntas. A mais importante era saber que parte de verdade havia no relatório de Bjõrck, de 1991.
- É um ponto que nos tem criado problemas - disse Nystrõm, parecendo aborrecido. - Devo começar por explicar que, desde que esse relatório reapareceu, temos tido uma equipa de análise a trabalhar praticamente vinte e quatro horas por dia para tentar descobrir exactamente o que se passou. E chegámos agora a um ponto em que é possível tirar algumas conclusões. Essas conclusões são muito desagradáveis.
- Calculo, uma vez que o relatório prova que a Sapo e o psiquiatra Peter Teleborian conspiraram para internar a Lisbeth Salander numa clínica psiquiátrica.
- Se ao menos tivesse sido isso - disse Nystrõm, com um pequeno sorriso.
- Que quer dizer?
- Se tivesse sido isso, seria tudo muito simples. Teria havido infracção à lei e o caso seria devidamente investigado. O problema é que esse relatório não coincide com o que se encontra nos nossos arquivos.
- Como assim?
Nystrõm tirou da pasta um dossier de capa azul e abriu-o.
- O que aqui tenho, é o verdadeiro relatório que o Gunnar Bjõrck redigiu em 1991. Há ainda os originais da correspondência entre ele e o Teleborian, que temos também nos nossos arquivos. A questão é que as duas versões não coincidem.
256 - 257
- Explique-me.
- O Bjõrck enforcou-se. Suponho que o fez porque as suas escapadelas sexuais iam ser reveladas em breve. A Millennium tinha a intenção de o denunciar. Levaram-no a um desespero tão profundo que ele preferiu a morte.
- Sim...
- O relatório original é uma investigação sobre a tentativa de Lisbeth Salander matar o pai, Alexander Zalachenko, com um cocktail molotov. As trinta primeiras páginas que o Blomkvist encontrou correspondem ao original. Essas páginas não revelam nada de notável. É na página trinta e três, onde o Bjõrck tira conclusões e faz recomendações, que começam as divergências.
- Que divergências?
- Na versão original, o Bjõrck faz cinco recomendações muito claras. Não escondo que uma delas é fazer desaparecer o Zalachenko dos media. Propõe que a reabilitação do Zalachenko... que tinha ficado gravemente queimado... se fizesse no estrangeiro. E outras coisas nessa linha. Propõe igualmente os melhores cuidados psiquiátricos possíveis para a Lisbeth Salander.
-Ah...
- O problema é que certas frases foram alteradas de uma maneira muito subtil. Na página trinta e quatro há uma passagem em que o Bjõrck parece propor que a Salander seja declarada psicótica, para a descredibilizar no caso de alguém começar a fazer perguntas sobre o Zalachenko.
- E essa proposta não consta do relatório original?
- Exactamente. O Gunnar Bjõrck nunca propôs semelhante coisa. Já para não dizer que seria contrária à lei. Propunha que ela recebesse os cuidados de que tinha efectivamente necessidade. Na versão do Blomkvist, isto é transformado numa maquinação.
- Posso ler o original?
- Com certeza. Mas vou ter de o levar comigo quando sair daqui. Antes de o ler, permita que lhe chame a atenção para o anexo com a correspondência que, na altura, foi trocada entre o Bjõrck e o
Teleborian. Foi falsificada praticamente de uma ponta à outra. Neste caso, não são alterações subtis, mas falsificações grosseiras.
- Falsificações?
- Julgo que é a única coisa que se lhes pode chamar. Os originais mostram que o doutor Teleborian foi mandatado pelo tribunal para proceder a uma perícia psiquiátrica à Lisbeth Salander. O que era perfeitamente normal. A Lisbeth tinha doze anos e tinha tentado matar o pai com um cocktail molotov. Estranho seria não haver exame psiquiátrico.
- Certamente.
- Se o senhor fosse o procurador na época, calculo que teria ordenado não só uma investigação do foro social, como uma perícia psiquiátrica.
- Sem a mínima dúvida.
- Na altura, já o doutor Teleborian era um pedopsiquiatra reconhecido e respeitado, que tinha, além disso, trabalhado em medicina legal. Foi mandatado, fez um exame perfeitamente normal e chegou à conclusão de que a Lisbeth Salander era uma doente mental... permita que me abstenha dos termos técnicos.
- Sim sim...
- O Teleborian declara-o num relatório que enviou ao Bjõrck e que foi em seguida apresentado ao tribunal, que decidiu internar a Salander em Sankt Stefan.
- Estou a ver.
- Na versão do Blomkvist, a perícia levada a cabo pelo Teleborian não é sequer referida. Há apenas uma troca de correspondência entre o Bjõrck e o Teleborian que dá a entender que é o próprio Bjõrck que lhe ordena que apresente um exame clínico falso.
- E que, segundo me diz, são falsificações.
- Sem a mínima dúvida.
- E quem teria interesse em fazer tais falsificações? Nystrõm pousou o relatório e franziu o sobrolho.
- É aqui que chegamos ao cerne da questão.
- E a resposta é...
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- Não sabemos. É justamente a resposta a essa pergunta que o nosso grupo de análise tanto se esforça por encontrar.
- Será concebível que tenha sido o Blomkvist a montar toda esta maquinação?
Nystrõm riu-se.
- Ao princípio, foi o que pensámos. Mas não é verosímil. Estamos convencidos de que as falsificações foram feitas há muito tempo, provavelmente na mesma altura em que o relatório original foi escrito.
-Ah...
- O que nos leva a conclusões desagradáveis. Quem fez as falsificações estava perfeitamente ao corrente do caso. E, além disso, o falsário tinha acesso à mesma máquina de escrever que o Gunnar Bjõrck.
- Quer dizer que...
- Não sabemos onde é que o Bjõrck redigiu o relatório. Pode ter sido numa máquina de escrever que tivesse em casa, no serviço ou noutro sítio qualquer. Consideramos duas alternativas: ou o falsário era alguém pertencente aos meios psiquiátricos ou médico-legais que, por qualquer razão, queria desacreditar o Teleborian, ou as falsificações foram feitas, com objectivos completamente diferentes, por alguém da Sapo.
- Porquê?
- Tudo isto se passou em 1991. Podia ser um agente russo infiltrado na DGPN/Sapo que soubesse do caso Zalachenko. Esta possibilidade faz com que estejamos actualmente a investigar uma grande quantidade de processos individuais.
- Mas se o KGB tivesse sabido... o caso teria vindo a lume há muitos anos.
- Bem pensado. Mas não se esqueça de que foi precisamente nessa época que a União Soviética entrou em colapso e que o KGB foi dissolvido. Não sabemos o que correu mal. Talvez uma operação planeada que tenha sido anulada. O KGB tinha autênticos artistas em falsificação de documentos e em desinformação.
- Mas porque faria o KGB uma coisa...
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- Também não sabemos. Mas um objectivo plausível seria evidentemente lançar o opróbrio sobre o Governo sueco.
Ekstrõm beliscou o lábio inferior.
- Diz então que a avaliação médica da Lisbeth Salander é correcta?
- Oh, sim. Sem a mais pequena hesitação. A Salander é doida varrida, se me perdoa a expressão. Não tenha a mínima dúvida a esse respeito. A decisão de interná-la foi mais do que justificada.
- Sanitas! - exclamou, incrédula, Malin Eriksson, directora editorial interina da Millennium. Quem a ouvisse, julgá-la-ia convencida de que Henry Cortez estava a querer passar-lhe a perna.
- Sanitas - confirmou Henry, assentindo com a cabeça.
- Queres publicar na Millennium um artigo sobre sanitas?
Monika Nilsson soltou um risinho súbito e deslocado. Tinha reparado no entusiasmo mal disfarçado de Henry quando ele chegara para a reunião das sextas-feiras e reconhecera todos os sintomas de um jornalista que traz na manga um bom tema para um artigo.
- Okay, explica-te.
- É muito simples - disse Henry. - A maior indústria sueca, todas as categorias incluídas, é a construção civil. É uma indústria que, na prática, não pode ser deslocada, ainda que a Skanska finja ter escritórios em Londres, e tretas desse género. As casas continuam a ter de ser construídas na Suécia.
- Sim, mas isso não é novidade.
- Pois não. Mas o que já é meio novidade é que a construção civil está a anos-luz de todas as outras indústrias suecas em matéria de concorrência e eficácia. Se a Volvo fabricasse os seus carros da mesma maneira, o último modelo custaria um ou dois milhões de coroas. Para todas as indústrias normais, o objectivo é baixar os custos. Para a indústria da construção civil é o contrário. Estão-se nas tintas para os custos, e isso faz subir o preço por metro quadrado, e o Estado tem de atribuir subsídios, com dinheiro dos contribuintes, para que a coisa não se torne insustentável.
- E isso dá para um artigo?
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- Espera. É complicado. Se a evolução do preço dos hambúrgueres tivesse seguido o mesmo padrão desde 1970, um Big Mac custaria hoje cento e cinquenta coroas, ou talvez mais. E prefiro nem pensar no que custaria se acrescentares as batatas fritas e uma Cola. O meu ordenado na Millennium não chegaria. Quantos de vocês aceitariam pagar cem coroas por um hambúrguer? - Ninguém respondeu. -Têm toda a razão. Mas quando a NCC monta à pressa alguns contentores de cartão a que chamam apartamentos em Gâshaga, permitem-se pedir dez ou doze mil coroas mensais pelo aluguer de um T3. Quantos de vocês podem pagar isso?
- Pelo menos eu, não - disse Monika.
- Não. E tu vives num de duas assoalhadas em Danvikstull que o teu pai te comprou há vinte anos e que poderias vender hoje por, digamos, um milhão e meio. Mas que faz um jovem de vinte anos que quer deixar o ninho familiar? Não tem dinheiro que chegue. Então, aceita uma sublocação, quando não uma sub-sublocação, a menos que continue a morar em casa da mamã até se reformar.
- E as sanitas? Onde é que as incluis neste contexto? - perguntou Christer Malm.
- Já lá vou. Temos, pois, de perguntar porque é que os apartamentos são tão caros. Pois bem, porque quem manda construir não sabe como fazê-lo. Para simplificar, vejamos um exemplo: um promotor camarário chama uma empresa de construção tipo Skanska, diz-lhes que gostaria de encomendar cem apartamentos e pede um orçamento. E a Skanska faz os seus cálculos e diz que vai custar, digamos, quinhentos milhões de coroas. O que significa que o preço por metro quadrado é xis e que tu vais ter de pagar uma pipa de massa todos os meses se quiseres viver lá. Porque ao contrário do que acontece com os hambúrgueres, não podes decidir não ter casa para viver. Por isso és obrigado a pagar o que te pedem.
- Por favor, Henry... vamos a factos.
- Mas são estes os factos! Porque é que custa uma pipa de massa viver naquelas casernas de merda em Hammarbyhamnen? Eu digo-lhes. Porque as empresas de construção se estão nas tintas para os preços. O cliente paga o que for preciso. Um dos principais factores
para o preço final é o material de construção. O comércio dos materiais de construção passa por grossistas que fixam os seus próprios preços. Como não há verdadeira concorrência, na Suécia uma banheira custa cinco mil coroas. A mesma banheira, produzida pelo mesmo fabricante, na Alemanha custa duas mil coroas. Não vejo nada que possa explicar esta diferença de preço.
- Okay.
- Uma grande parte do que acabo de dizer pode ser lido no relatório de uma comissão do Governo sobre os preços da construção que foi elaborado nos anos noventa. De então para cá, não se avançou muito. Ninguém negoceia com os construtores para denunciar a aberração dos preços. Os clientes pagam docilmente o que lhes pedem e, no fim, são os locatários ou os contribuintes que pagam.
- Henry, as sanitas?
- Os poucos progressos que houve desde os tempos da tal comissão verificaram-se a nível local, sobretudo na periferia de Estocolmo. Alguns clientes fartaram-se dos preços exorbitantes. Um exemplo é a Karlskronahem, que consegue construir mais barato do que qualquer outra empresa simplesmente comprando directamente os materiais. Além disso, a Federação Sueca do Comércio meteu-se ao barulho. Acham os preços dos materiais de construção absolutamente delirantes e tentam facilitar a vida às pessoas importando produtos equivalentes mais baratos. O que levou a uma pequena confrontação no Salão da Construção em Alvjõ, há um ano. A Federação tinha mandado vir um tipo da Tailândia que vendia sanitas por um pouco mais de quinhentas coroas a peça.
- Ah. E então?
- O concorrente directo era um grossista sueco chamado Vitavara SA que vende autênticas sanitas suecas a mil e setecentas coroas cada. E os clientes inteligentes em todos os municípios começaram a coçar a cabeça e a perguntar por que raio é que haviam de desembolsar mil e setecentas coroas quando podiam comprar uma cagadeira igual made in Thailand por menos de um terço.
- Por ser de melhor qualidade, talvez - aventou Lotta Karim.
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- Não. Produto equivalente.
- A Tailândia - disse Christer. - Isso cheira logo a trabalho infantil clandestino, e esse género de coisa. Talvez isso explique o preço mais baixo.
- Não. Na Tailândia, o trabalho infantil é usado principalmente nos têxteis e na indústria dos souvenirs. E no comércio pedófilo, claro. Estou a falar de verdadeira indústria. A ONU anda de olho no trabalho infantil e eu fui pesquisar. Nada a dizer. Trata-se de uma grande empresa, moderna e respeitável, na área dos sanitários.
- Bom... falamos de um país onde os salários são baixos, o que significa que nos arriscamos a escrever um artigo a propor o fim da indústria sueca pela concorrência da indústria tailandesa. Despeçam os operários suecos, fechem as fábricas e passem a importar da Tailândia. Não queres mesmo subir na estima dos operários suecos, pois não?
Um sorriso iluminou o rosto de Henry Cortez. Inclinou-se para trás e fez um ar de puro gozo.
- Ná, ná, ná - disse. - Adivinhem onde é que a Vitavara, SA fabrica as suas sanitas a mil e setecentas coroas cada.
Fez-se silêncio na sala.
- No Vietname - disse Henry.
- Não é verdade! - exclamou Malin.
- É, sim, minha cara - disse Henry. - Há pelo menos dez anos que fabricam lá as sanitas que vendem aqui. Os operários suecos foram todos despedidos nos anos noventa.
- Oh, merda!
- Mas ainda falta a cereja em cima do bolo. Se importássemos directamente do Vietname, o preço seria pouco mais de trezentos e noventa euros por unidade. Adivinhem como se explica a diferença de preço entre a Tailândia e o Vietname.
- Não me digas que...
Henry assentiu com a cabeça, com um sorriso de orelha a orelha.
- A Vitavara, SA confia a produção a uma coisa chamada Fong Soo Industries. Figuram na lista da ONU como uma das empresas
que, pelo menos aquando de uma inspecção em 2001, empregavam crianças. Mas a maior parte dos operários são prisioneiros. De repente, Malin estava a sorrir.
- Isso é bom - disse. - É mesmo muito bom. Quando fores grande ainda vais ser jornalista. Quando é que podes ter o artigo pronto?
- Dentro de duas semanas. Tenho de verificar uma porção de coisas no comércio internacional. E depois vamos precisar de um "mau" da fita, o que quer dizer que vou ter de me informar sobre os proprietários da Vitavara, SA.
- Podemos publicá-lo no número de Junho? - perguntou esperançosamente Malin.
- No problem.
O inspector Jan Bublanski cravou um olhar inexpressivo no procurador Richard Ekstrõm. A reunião tinha durado 40 minutos e Bublanski sentia uma vontade louca de pegar no exemplar de A Lei do Reino que estava em cima da secretária e enfiá-lo pelo gasganete do procurador. Perguntou-se o que aconteceria se o fizesse. Haveria de certeza grandes títulos nos tablóides e provavelmente um processo por ofensas corporais. Afastou a ideia. O interesse de ser um homem civilizado era não ceder àquele género de impulsos, qualquer que fosse a provocação do adversário. Regra geral, era precisamente quando alguém cedia àquele género de impulsos que ele era chamado a fazer o seu trabalho.
- Muito bem - disse Ekstrõm. -Julgo que estamos de acordo, então.
- Não, não estamos de acordo - respondeu Bublanski, pondo-se de pé. - Mas tu é que diriges o inquérito preliminar.
Ia a resmungar entre dentes enquanto dobrava a esquina do corredor e entrava no seu gabinete, de onde convocou os inspectores Curt Andersson e Sonja Modig, que constituíam a totalidade do pessoal da brigada naquela tarde. Jerker Holmberg tivera a péssima ideia de meter duas semanas de férias.
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- No meu gabinete, e tragam café.
Quando os dois se instalaram, Bublanski abriu o bloco onde anotara os pontos mais importantes da reunião com Elcstrõm.
- A situação, neste momento, é que o director do inquérito preliminar abandonou todas as acusações contra Lisbeth Salander relativamente aos crimes pelos quais era procurada. O que significa que, no que nos diz respeito, a Lisbeth Salander deixou de fazer parte da investigação.
- Sempre é um passo em frente - disse Sonja Modig. Curt Andersson não disse nada, como de costume.
- Não estou assim tão certo - respondeu Bublanski. - A Salander continua a ser suspeita de infracções graves em Stallarholmen e em Gosseberga. Mas isso não faz parte da nossa investigação. A nós cabe-nos concentrar a nossa atenção no Niedermann, que é preciso encontrar, e esclarecer a história do cemitério clandestino em Nykvarn.
- Estou a ver.
- Mas é agora certo que é o Ekstrõm que vai inculpar a Salander. O caso foi transferido para Estocolmo e foram abertos inquéritos totalmente separados.
- Ah.
- E adivinha quem vai investigar a Salander.
- Receio o pior.
- O Hans Faste voltou ao serviço. Vai assistir o Ekstrõm.
- Como? O Faste é a pessoa menos indicada para essa investigação.
- Eu sei. Mas o Ekstrõm tem bons argumentos. O Faste está de baixa desde o seu... hã... esgotamento, em Abril, e por isso confiam-lhe uma investigaçãozinha muito simples. - Fez-se silêncio. - Vamos, portanto, passar-lhe todo o nosso material sobre a Salander, esta tarde.
- E essa história do Gunnar Bjõrck e da Sapo e do relatório de
1991...
- Será tratada pelo Faste e pelo Ekstrõm.
- Não gosto nada disso - disse Sonja.
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- Nem eu. Mas quem manda é o Ekstrõm, e ele tem contactos altamente colocados. Dito por outras palavras, o nosso trabalho continua a ser procurar um assassino. Curt, como é que estamos?
Curt Andersson abanou a cabeça.
- O Niedermann sumiu-se, desapareceu. Tenho de confessar que em todos os meus anos de serviço, nunca vi um caso assim. Não temos a mais pequena indicação de alguém que o conheça ou possa saber onde ele se encontra.
- Estranho - observou Sonja. - Mas ele é procurado pelo assassínio do polícia em Gosseberga, por ofensas corporais agravadas a outro agente da polícia, por tentativa de homicídio de Lisbeth Salander e por rapto com violência de Anita Kaspersson, a assistente de dentista. E ainda pelos homicídios do Dag Svensson e da Mia Johansson. Em todos os casos, as provas técnicas são satisfatórias.
- Deveria bastar. Como é que estamos na investigação sobre o perito financeiro do Moto-Clube de Svavelsjõ?
- Viktor Gõransson e a sua companheira Lena Nygren. Temos provas técnicas que situam o Niedermann no local. Impressões digitais e ADN no corpo do Gõransson. O Niedermann esfolou as costas das mãos durante o espancamento.
- Okay. Novidades quanto ao Moto-Clube de Svavelsjõ?
- O Sonny Nieminen assumiu a chefia enquanto o Magge Lundin está preventivamente detido durante a investigação do rapto da Miriam Wu. Diz-se que o Nieminen oferece uma recompensa choruda a quem lhe fornecer indicações sobre o paradeiro do Niedermann.
- O que torna ainda mais estranho que o tipo não tenha ainda sido encontrado. O que é que se passa com o carro do Gõransson?
- Uma vez que encontrámos o carro da Anita Kaspersson em casa do Gõransson, presumimos que o Niedermann mudou de veículo. Não temos nenhuma pista quanto a essa viatura.
- É caso para nos perguntarmos se o Niedermann continua escondido num buraco algures na Suécia... e se sim, onde e com quem... ou se já teve tempo de se pôr em segurança no estrangeiro. O que é que achamos?
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- Não há nada que nos indique que tenha ido para o estrangeiro, mas é a única hipótese lógica.
- Nesse caso, onde abandonou ele o carro?
Sonja e Curt abanaram a cabeça, no mesmo gesto de impotência. O trabalho policial era, nove casos em cada dez, relativamente simples quando se tratava de encontrar um indivíduo cujo nome se conhecia. O segredo consistia em criar uma cadeia lógica e começar a puxar pelos fios. Quem eram os amigos? Com quem partilhara a cela na prisão? Onde mora a namorada? Com quem tinha o hábito de ir para os copos? Em que área usou recentemente o telemóvel? Onde está o carro? No final desta cadeia encontrava-se normalmente o indivíduo procurado.
O problema com Ronald Niedermann é que ele não tinha amigos, não tinha namorada, nunca estivera preso e não tinha, que se soubesse, um telemóvel.
Uma grande parte do trabalho concentrara-se, pois, na procura do carro de Viktor Gõransson, que provavelmente Niedermann conduzia. Se o descobrissem, teriam uma indicação do lugar a partir de onde continuar a investigação. De início, tinham calculado que o carro acabaria por aparecer passados alguns dias, provavelmente num parque de estacionamento de Estocolmo. Mas, não obstante o alerta lançado a nível nacional, o veículo continuava a primar pela ausência.
- Se ele estivesse no estrangeiro... onde estaria?
- É cidadão alemão. O mais natural seria tentar chegar à Alemanha.
- É procurado na Alemanha. Aparentemente, não manteve o contacto com os velhos amigos de Hamburgo.
Curt Andersson agitou a mão.
- Se o plano dele era ir para a Alemanha... nesse caso para quê passar por Estocolmo? O objectivo mais lógico seria Malmõ e a ponte de Oresund, ou um dos ferries.
- Eu sei. E o Marcus Ackerman, de Gotemburgo, apontou a investigação nesse sentido logo no primeiro dia. A polícia dinamarquêsa está informada sobre o carro do Gõransson, e podemos assegurar que não apanhou nenhum dos ferries.
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- Mas foi a Estocolmo e ao Moto-Clube de Svavelsjõ, onde trucidou o tesoureiro e onde... é de supor... roubou uma importância em dinheiro cujo montante ignoramos. Qual seria o passo seguinte?
- Sair da Suécia - disse Bublanski. - O mais natural seria apanhar um dos ferries para os países bálticos. O Gõransson e a companheira foram assassinados na noite de nove de Abril. O que quer dizer que o Niedermann pode ter apanhado um ferry logo de manhã. O alerta só foi dado dezasseis horas depois dos crimes e só então começámos a procurar o carro.
- Se ele apanhou o ferry da manhã, o carro deveria ter ficado estacionado perto de um dos portos - fez notar Sonja Modig.
Curt Andersson assentiu com a cabeça.
- Se calhar, é tudo muito mais simples. Talvez não tenhamos encontrado o carro do Gõransson por o Niedermann ter saído do país pelo norte, via Haparanda. Um grande desvio para contornar o golfo da Bótnia, mas em dezasseis horas teve mais do que tempo para passar a fronteira da Finlândia.
- Sim, mas depois tinha de abandonar o carro algures na Finlândia e, por esta altura, já os nossos colegas finlandeses o tinham encontrado.
Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, Bublanski pôs-se de pé e foi colocar-se em frente da janela.
- Isto desafia tanto a lógica como as probabilidades, mas o facto é que o carro do Gõransson continua desaparecido. Deve ter encontrado um buraco onde se escondeu enquanto aguarda por uma oportunidade, uma casa de campo ou...
- Dificilmente poderá ser uma casa de campo. Nesta altura do ano, todos os proprietários estão a preparar as casas para o Verão.
- E nada que tenha qualquer relação com o Moto-Clube de Svavelsjõ. Penso que são as últimas pessoas que ele está com vontade de encontrar.
- Sim, devemos poder excluir esses e o meio das drogas... haverá alguma namorada de que não temos conhecimento?
As especulações eram muitas, mas não dispunham de um único facto concreto.
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Depois de Curt Andersson ter saído, Sonja Modig voltou ao gabinete de Bublanski e bateu no umbral da porta. Bublanski fez-lhe sinal para entrar.
- Tens dois minutos?
- Que se passa?
- A Salander. -Diz.
- Não gosto nada deste novo planeamento com o Ekstrõm e o Faste e um novo processo. Leste o relatório do Bjõrck. A Salander foi vítima de uma conspiração em 1991, e o Ekstrõm sabe-o muito bem. O que é que se passa agora?
Bublanski tirou os óculos e enfiou-os no bolso do casaco.
- Não sei.
- Não fazes nenhuma ideia?
- O Ekstrõm afirma que o relatório do Bjõrck e a correspondência com o Teleborian são falsificações.
- Tretas. Se fossem falsificações, o Bjõrck tê-lo-ia dito quando foi interrogado.
- O Ekstrõm diz que o Bjõrck se recusou a falar porque se tratava de um assunto ultra-secreto relacionado com a defesa. Criticou-me por me ter adiantado e mandado interrogá-lo.
- Começo a detestar cada vez mais esse tipo.
- Está a ser apertado de todos os lados.
- Não é desculpa.
- Não temos o monopólio da verdade. O Ekstrõm afirma que lhe foram apresentadas provas de que o relatório é falso... não existe nenhum inquérito com esse número. Diz também que a falsificação é hábil e que mistura verdade e invenção.
- Que parte é verdade e que parte é invenção?
- O enquadramento geral está mais ou menos certo. O Zalachenko é o pai da Lisbeth Salander, um sacana que espancava a mãe da rapariga. O problema do costume: a mulher nunca quis apresentar queixa, e a coisa arrastou-se durante anos. A missão do Bjõrck era
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esclarecer o que se tinha passado quando a Lisbeth tentou matar o pai com um cocktail molotov. Trocou correspondência com o Teleborian. .. mas o conjunto da correspondência que vimos é uma falsificação. O Teleborian fez um exame psiquiátrico normal à Salander e verificou que ela era louca, e um procurador decidiu desistir das acusações. A Lisbeth tinha necessidade de cuidados médicos e recebeu-os em Sankt Stefan.
- Se agora são falsificações, quem as fez e com que objectivo? - Bublanski abriu os braços. - Deves estar a gozar comigo - disse Sonja.
- Tal como compreendi a coisa, o Ekstrõm vai exigir que a Salander seja submetida a um novo exame psiquiátrico.
- Não posso aceitar isso.
- Já não nos diz respeito. Fomos afastados do caso Salander.
- E o Hans Faste foi ligado... Jan, tenciono alertar os media se esses filhos da mãe voltarem a atacar a Salander...
- Não, Sonja. Não farás nada disso. Em primeiro lugar, deixámos de ter acesso à investigação, o que significa que não poderás provar nada do que afirmares. Passarás por paranóica e a tua carreira ficará lixada.
- Ainda tenho o relatório - disse Sonja, numa voz débil. - Fiz uma cópia para o Curt e ainda não lha tinha dado quando o Ministério Público as recolheu.
- Se entregares esse relatório seja a quem for, não só serás despedida como cometerás um erro profissional grave ao colocar nas mãos dos media um relatório classificado como secreto. - Sonja Modig ficou calada por um segundo, a olhar para o chefe. - Sonja, não vais fazer nada disso. Promete.
Ela hesitou.
- Não, Jan. Não posso prometer. Há qualquer coisa de podre em toda esta história.
Bublanski assentiu com a cabeça.
- Sim. Muito podre. Mas, neste momento, não sabemos quem são os nossos inimigos.
Sonja inclinou a cabeça.
- E tu, tencionas fazer alguma coisa?
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- Não vou discutir isso contigo. Confia em mim. É sexta-feira. Aproveita o teu fim-de-semana. Vai para casa. Esta conversa nunca aconteceu.
Eram 13h30 de sábado quando o funcionário da Securitas Niklas Adamsson desviou os olhos do calhamaço de Economia Política que estava a estudar para o exame que ia ter daí a três semanas. Tinha ouvido o zumbido discreto das escovas rotativas do carrinho da limpeza e viu que era o imigrante coxo. O sujeito cumprimentava-o sempre delicadamente, mas não era muito falador e nem sequer sorrira das poucas vezes que Adamsson tentara brincar com ele. Viu-o pegar num frasco, vaporizar com um pouco de líquido o balcão da recepção e em seguida limpá-lo com um pano. Por fim, pegou na esfregona e passou-a pelos cantos aonde as escovas do carrinho não conseguiam chegar. Niklas Adamsson voltou a enfiar o nariz no livro e continuou a ler.
O "técnico de limpeza" demorou dez minutos a chegar à cadeira de Adamsson, ao fim do corredor. Trocaram um aceno de cabeça. Adamsson levantou-se e deixou-o limpar o chão à volta da cadeira diante da porta do quarto de Lisbeth Salander. Vira aquele homem praticamente todos os dias em que estivera de guarda diante daquele quarto, mas era incapaz de lembrar-se do nome dele. Fosse como fosse, era um nome de preto. Não achava minimamente necessário verificar-lhe a identidade. Por um lado, o imigrante não ia fazer a limpeza no quarto da prisioneira - havia duas mulheres que tratavam disso, logo de manhã - e, por outro, o coxo não lhe parecia particularmente ameaçador.
Quando acabou de limpar o corredor, o homem abriu a porta contígua à do quarto de Lisbeth Salander. Adamsson olhou-o pelo canto do olho, mas também não considerou que se tratasse de uma alteração aos seus hábitos quotidianos. Era ali que ficava a arrecadação das vassouras. Passou os cinco minutos seguintes a despejar o balde, a limpar as escovas e a abastecer-se de sacos de plástico para os caixotes de lixo. Feito isto, empurrou o carrinho para dentro da arrecadação.
Idris Ghidi estava consciente da presença do funcionário da Securitas no corredor. Era um rapaz loiro, com cerca de 25 anos, que, regra geral, estava de serviço duas ou três vezes por semana e lia livros de Economia Política. Ghidi concluíra que trabalhava em part-time para a Securitas enquanto estudava e que estava tão atento ao que o rodeava como um tijolo numa parede.
Perguntava-se sobre o que faria Adamsson se alguém tentasse efectivamente entrar no quarto de Lisbeth Salander.
E questionava-se também sobre qual seria a ideia de Mikael Blomkvist. Estava confuso. Tinha, evidentemente, lido os jornais, e sabia muito bem quem era aquela Lisbeth Salander que estava no 11C, e esperara que o jornalista lhe pedisse que introduzisse clandestinamente qualquer coisa no quarto dela. Nesse caso, teria sido obrigado a recusar, uma vez que não tinha acesso ao quarto dela e nunca a vira. No entanto, a proposta que lhe fora feita não tinha qualquer relação com tudo o que tivesse podido pensar.
Não via nada de ilegal na missão. Espreitou pela porta entreaberta e viu que Adamsson voltara a sentar-se na cadeira diante da porta, a ler o seu livro. Tinha quase a certeza de que não havia mais ninguém por perto, como aliás quase nunca havia, porque a arrecadação era na realidade um pequeno cubículo ao fundo do corredor. Meteu a mão no bolso do fato-macaco e tirou de lá um telemóvel novo, um Sony Eriksson Z600. Tinha visto aquele modelo numa revista e sabia que custava 3500 coroas e que dispunha de todos os truques possíveis e imaginários.
Estudou o visor e notou que o telemóvel estava a funcionar, mas que o som estava desligado, tanto o toque como o vibrador. Em seguida, pôs-se em bicos dos pés e soltou a grelha redonda da conduta de ventilação que fazia a ligação com o quarto de Lisbeth Salander. Colocou o telemóvel fora das vistas dentro da conduta, tal como Mikael Blomkvist lhe pedira que fizesse.
A manobra ocupou-lhe cerca de trinta segundos. No dia seguinte, ocuparia dez. A sua missão seria tirar o aparelho, substituir
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a bateria e voltar a colocar o telemóvel na conduta. Levaria a bateria antiga para casa e recarregá-la-ia durante a noite.
Era tudo o que Idris Ghidi tinha de fazer.
Nada daquilo iria ajudar Lisbeth Salander. Do lado dela, a grelha estava aparafusada à parede. Nunca conseguiria chegar ao telemóvel, a menos que arranjasse uma chave Philips e um escadote.
- Eu sei - dissera Mikael -, mas ela não vai ter necessidade de tocar no telemóvel.
Idris Ghidi teria de fazer aquilo todos os dias até que Mikael Blomkvist lhe dissesse que deixara de ser necessário.
E, por este trabalho, Idris Ghidi receberia mil coroas semanais, entregues em mão. Além disso, poderia ficar com o telemóvel uma vez terminado o trabalho.
Abanou a cabeça. Claro que sabia que Mikael Blomkvist maquinava qualquer coisa, mas não compreendia o quê. Colocar um telemóvel na conduta de ventilação de um cubículo fechado à chave, ligado mas não conectado, era uma ideia tão bizarra que Ghidi tinha dificuldade em perceber para o que poderia servir. Se Blomkvist pretendia entrar em contacto com Lisbeth, seria muito mais inteligente subornar uma enfermeira para que ela lhe passasse o telefone. Aquela operação não tinha lógica nenhuma.
Ghidi voltou a abanar a cabeça. Por outro lado, não tinha dúvidas em fazer aquele favor a Mikael Blomkvist, desde que ele lhe pagasse 1000 coroas por semana. E não tencionava fazer perguntas.
O Dr. Anders Jonasson abrandou o passo ao ver um homem de cerca de 40 anos encostado ao gradeamento em frente da porta do prédio onde morava, na Hagagatan. O sujeito, que lhe pareceu vagamente familiar, cumprimentou-o com um aceno de cabeça.
- Doutor Jonasson?
- Sim, sou eu.
- Peço desculpa por incomodá-lo assim na rua, em frente de sua casa. Mas não queria procurá-lo no serviço e preciso de falar consigo.
- De que se trata e quem é o senhor?
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- Chamo-me Mikael Blomkvist. Sou jornalista na revista Millen-nium. Trata-se de Lisbeth Salander.
- Ah, sim, estou a reconhecê-lo. Foi você que chamou a Emergência Médica quando a encontraram... Foi também você que pôs a fita adesiva em cima das feridas?
- Fui.
- Um gesto muito oportuno. Mas lamento, não posso falar dos meus pacientes com jornalistas. Vai ter de fazer como toda a gente e tratar do assunto com o serviço de atendimento ao público de Sahlgrenska.
- Não me fiz entender. Não procuro informações e estou aqui a título pessoal. Não precisa de me dizer seja o que for. Na realidade, é exactamente o contrário. Sou eu que vou fornecer-lhe informações. - Anders Jonasson franziu a testa. - Por favor - pediu Mikael. - Não tenho o hábito de assediar cirurgiões em plena rua, mas é extremamente importante que eu fale consigo. Há um café um pouco mais adiante, na esquina da rua. Posso oferecer-lhe uma bebida?
- Do que é que vamos falar?
- Do futuro e do bem-estar da Lisbeth. Sou amigo dela. Anders Jonasson hesitou um longo instante. Sabia que se fosse
qualquer outra pessoa que não Mikael Blomkvist, se um desconhecido o tivesse abordado assim na rua, teria recusado. Mas Blomkvist era uma figura conhecida, e Jonasson convenceu-se imediatamente de que não se tratava de uma brincadeira de mau gosto.
- Não quero, em caso algum, ser entrevistado e não falarei a respeito da minha paciente.
- De acordo - disse Mikael.
Anders Jonasson acabou por assentir brevemente com a cabeça e acompanhar Mikael até ao café da esquina.
- De que se trata? - perguntou num tom neutro, depois de terem sido servidos. - Estou disposto a ouvi-lo, mas não tenciono fazer comentários.
- Receia que eu o cite ou que o exponha aos media. Que fique perfeitamente claro, desde já, que pode ficar descansado quanto a isso. No que me diz respeito, esta conversa nunca terá acontecido.
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- Muito bem.
- Tenciono pedir-lhe um favor. Mas, antes disso, preciso de explicar-lhe exactamente porquê, para que possa julgar se é moralmente aceitável fazer o que lhe vou pedir.
- Não estou a gostar muito do caminho que isto está a levar.
- Tudo o que lhe peço é que me ouça. Enquanto médico da Lis-beth, cabe-lhe velar pelo seu bem-estar físico e mental. Enquanto amigo dela, cabe-me a mim fazer o mesmo. Não sou médico e não sei tirar-lhe balas da cabeça, por exemplo. Mas tenho outros conhecimentos que são igualmente importantes para o bem-estar dela.
- Hum.
- Sou jornalista, e, escavando, descobri a verdade sobre o que aconteceu.
- Okay.
- Posso traçar-lhe a história em linhas gerais. Julgará por si mesmo.
- Hum.
- Devo talvez começar por dizer-lhe quem é a Annika Gianni-ni, a advogada da Lisbeth. Já a conhece. - Anders Jonasson assentiu.
- A Annika é minha irmã, e sou eu que pago os seus honorários.
-Ah.
- Será fácil confirmar o que digo. Não posso pedir à Annika o favor que lhe quero pedir a si. Ela nunca fala comigo sobre a Lisbeth. Está igualmente limitada pelo segredo profissional e por um monte de outras regras.
- Hum.
- Suponho que leu o que os jornais escreveram sobre a Lisbeth.
- Jonasson voltou a assentir. - Descreveram-na como uma assassina em série, lésbica e doente mental. É tudo mentira. A Lisbeth não é psicótica e é provavelmente tão sã de espírito como o senhor ou eu. E quanto às suas preferências sexuais, ninguém tem nada com isso.
- Se bem compreendi, houve uma certa reviravolta. Agora, a polícia suspeita que foi um alemão que cometeu esses crimes.
- E com excelentes motivos. Ronald Niedermann é o verdadeiro culpado, um assassino que mata sem hesitar. Mas a Lisbeth tem
inimigos. Grandes e perigosos inimigos. Alguns deles pertencem à Sapo. -Jonasson arqueou as sobrancelhas, céptico. - Quando a Lisbeth tinha doze anos foi internada numa clínica pedopsiquiátrica, em Uppsala, porque tinha descoberto um segredo que a Sapo queria a todo o custo esconder. O pai, Alexander Zalachenko, que foi assassinado no hospital, era um antigo espião russo transfuga, uma relíquia da Guerra Fria. Era também um homem extremamente violento para com as mulheres que, durante anos, maltratou a mãe da Lisbeth. Quando tinha doze anos, a Lisbeth ripostou e tentou matá-lo com um cocktail molotov. Foi por isso que a internaram.
- Não estou a compreender muito bem. Se ela tentou matar o pai, havia talvez boas razões para lhe ministrar cuidados psiquiátricos.
- A minha teoria... que tenciono publicar... é que a Sapo sabia o que se tinha passado, mas optou por proteger o Zalachenko porque ele era uma importante fonte de informações. Arranjaram um diagnóstico falso e conseguiram que a Lisbeth fosse internada. - Anders Jonasson estava com um ar de dúvida tão flagrante que Mikael teve de sorrir. - Tenho provas de tudo o que afirmo. Vou publicar um texto pormenorizado mesmo a tempo do julgamento da Lisbeth. Acredito. .. vai fazer um fogacho de todo o tamanho.
- Estou a ver.
- Vou denunciar e arrastar pela lama dois médicos que funcionaram como lacaios da Sapo e contribuíram para enterrar a Lisbeth entre os loucos. Vou atacá-los sem piedade. Um desses médicos é uma figura pública e respeitada. E, insisto, disponho de todas as provas necessárias.
- Compreendo. Se um médico participou em acções como as que descreve, é uma vergonha para toda a classe.
- Não, não acredito na culpa colectiva. É uma vergonha para aqueles que participaram. E o mesmo se aplica à Sapo. Há com certeza pessoas decentes que trabalham na Sapo. Mas aqui estamos a falar de um grupo paralelo. Quando a Lisbeth tinha dezoito anos, tentaram novamente interná-la. Dessa vez falharam, mas ela ficou sob tutela. Durante o julgamento vão atacá-la o mais que puderem.
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Eu e a minha irmã vamo-nos bater para que a Lisbeth seja ilibada e a tutela retirada.
- Okay.
- Mas ela precisa de munições. São essas as regras do jogo. Devo também dizer que há alguns polícias que apoiam a Lisbeth nesta luta. Contrariamente à pessoa que dirige o inquérito preliminar e que a mandou investigar.
-Ah!
- A Lisbeth precisa de ajuda para o julgamento.
- Compreendo. Mas eu não sou advogado.
- Pois não. Mas é médico, e tem acesso a ela. - Anders Jonasson semicerrou os olhos. - O que vou pedir-lhe não é ético e talvez possa até ser considerado uma infracção à lei.
- Ai.
- Mas, moralmente, é a forma correcta de agir. Os direitos da Lisbeth estão a ser espezinhados por aqueles que têm a obrigação de protegê-la.
- Ah!
- Vou dar-lhe um exemplo. Como sabe, a Lisbeth não pode receber visitas nem ler os jornais ou comunicar seja com quem for. Além disso, o procurador impôs silêncio à advogada dela ao abrigo do segredo de justiça. Que a Annika tem respeitado estritamente. Em contrapartida, o procurador é a principal fonte de fugas de informação para os jornalistas, que continuam a escrever parvoíces a respeito da Lisbeth.
- A sério?
- Como este artigo, por exemplo. - Mikael brandiu um tablóide da semana anterior. - Uma fonte ligada à investigação afirma que a Lisbeth é irresponsável, e com base nisto o jornal constrói uma série de especulações sobre o seu estado mental.
- Li esse artigo. Baboseiras.
- Não considera então que a Lisbeth seja louca?
- Não me pronuncio a esse respeito. Em contrapartida, sei que não foi feito qualquer exame psiquiátrico. Portanto, esse artigo não vale nada.
- De acordo. Mas eu tenho provas de que essas informações foram fornecidas por um inspector da polícia chamado Hans Faste, que trabalha para o procurador.
-Ah!
- O Ekstrõm vai exigir que o julgamento decorra à porta fechada, o que significa que ninguém alheio ao processo poderá verificar e avaliar as provas contra ela. Mas o que é ainda pior é que... a partir do momento em que o procurador isolou a Lisbeth, ficámos impossibilitados de fazer as pesquisas necessárias à sua defesa.
- Julguei que era a advogada que se encarregava disso.
- Como já se deve ter apercebido, a Lisbeth é uma pessoa muito especial. Tem segredos que eu conheço, mas que não posso revelar à minha irmã. Mas a Lisbeth pode decidir se quer ou não utilizá-los em sua defesa durante o julgamento.
- Ah!
- E para o fazer, a Lisbeth precisa disto. - Mikael pousou em cima da mesa, entre os dois, um Palm Tungsten T3, o computador de bolso de Lisbeth, e um carregador de baterias. - Esta é a arma mais importante do arsenal da Lisbeth. É essencial que a tenha.
Anders Jonasson lançou um olhar desconfiado ao aparelho.
- Porque não o entrega à advogada dela?
- Porque só a Lisbeth sabe aceder àquilo de que precisa. - Anders Jonasson ficou silencioso durante um longo momento, sem tocar no computador de bolso. - Deixe-me falar-lhe do doutor Peter Teleborian - disse Mikael, tirando da sacola a pasta onde tinha reunido todo o material pertinente.
Passaram as duas horas seguintes a falar em voz baixa.
Passava muito pouco das oito da noite de sábado quando Dragan Armanskij deixou o seu gabinete na Milton Security e se dirigiu, a pé, à sinagoga de Sõder, na Sankt Paulsgatan. Bateu à porta, apresentou-se e foi recebido pelo rabino em pessoa.
- Tenho um encontro marcado aqui - disse Armanskij.
- No primeiro andar. Eu indico-lhe o caminho.
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O rabino ofereceu-lhe um kippa, que, depois de uma breve hesitação, Armanskij pôs na cabeça. Tinha sido criado no seio de uma família muçulmana, onde o uso do kippa e a visita à sinagoga não faziam exactamente parte dos hábitos quotidianos. Sentia-se pouco à vontade com aquela coisa na cabeça.
Também Jan Bublanski usava um kippa.
- Boa noite, Dragan. Obrigado por ter vindo. Pedi ao rabino que nos cedesse uma sala, para que pudéssemos falar sem sermos incomodados.
Armanskij instalou-se em frente de Bublanski.
- Suponho que tem boas razões para todo este segredo.
- Não vou estar com rodeios. Sei que é amigo da Lisbeth Salander. - Armanskij assentiu. - Quero saber o que é que vocês os dois, você e o Blomkvist, andam a cozinhar para ajudá-la.
- Porque é que acha que andamos a cozinhar alguma coisa?
- Porque o procurador Richard Ekstrom me perguntou à vontade uma dúzia de vezes qual é o verdadeiro acesso da Milton Security à investigação. E é o medo de que vocês façam qualquer coisa que venha a ter repercussões mediáticas que o leva a fazer essa pergunta.
-Hum!
- E se o Ekstrom está preocupado, é porque sabe que vocês têm alguma preparada, ou receia que tenham. Ou... e quanto a mim foi o que aconteceu... falou com alguém que o receia.
- Alguém?
- Dragan, não vamos jogar às escondidas. Sabe muito bem que a Lisbeth Salander foi vítima de um abuso de poder, em 1991, e receio que seja vítima de um novo abuso quando o julgamento começar.
- É polícia numa democracia. Se possui informação, tem de agir em conformidade.
Bublanski assentiu.
- E tenciono agir. A questão é saber como.
- Vamos aos factos.
- Quero saber o que é que você e o Blomkvist andam a preparar. Suponho que não vão ficar de braços cruzados.
- É complicado. Como é que posso saber se posso confiar em si?
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- Há o relatório de 1991, que o Mikael Blomkvist tinha encontrado. ..
- Estou ao corrente.
- Não tive acesso a esse relatório.
- Eu também não. Os dois exemplares que estavam em poder do Mikael Blomkvist e da irmã perderam-se.
- Perderam-se? - espantou-se Bublanski.
- O do Mikael Blomkvist foi roubado por alguém que lhe assaltou a casa, e o da Annika Giannini desapareceu quando ela foi atacada e roubada em Gotemburgo. Os dois roubos aconteceram no mesmo dia em que o Zalachenko foi assassinado.
Bublanski ficou silencioso por um longo momento.
- Porque foi que não ouvimos falar de nada?
- Como diz o Mikael Blomkvist, só há um momento oportuno para publicar, e uma infinidade de momentos inoportunos.
- Tencionam então... ele tenciona publicar isso? Armanskij assentiu secamente com a cabeça.
- Um roubo com agressão em Gotemburgo e um assalto por arrombamento aqui em Estocolmo. No mesmo dia. O que significa que os nossos adversários estão bem organizados, Bublanski. Além disso, posso dizer-lhe que temos provas de que o telefone da Giannini estava sob escuta.
- Há aqui alguém que está a cometer um grande número de infracções à lei.
- A questão é saber quem são os nossos adversários - disse Armanskij.
- É também o que eu penso. A primeira vista, é a Sapo que tem interesse em abafar o relatório do Bjõrck. Mas, Dragan... estamos a ralar da Polícia de Segurança Nacional. É uma autoridade do Estado. Custa-me acreditar que este caso tenha a aprovação da Sapo. Não acredito sequer que tenham competência para organizar uma coisa destas.
- Eu sei. Também a mim me custa a engolir. Sem falar do facto de alguém ter entrado em Sahlgrenska e enfiado uma bala na cabeça do Zalachenko.
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Bublanski calou-se e Armanskij cravou a última farpa.
- E depois temos o suicídio do Bjõrck.
- Acha então que foram homicídios planeados? Conheço o Mar-cus Ackerman, que foi encarregado da investigação em Gotemburgo. Não encontrou nada que aponte para outra coisa que não um gesto impulsivo de um indivíduo doente. E investigámos minuciosamente a morte do Bjõrck. Tudo indica que se tratou de suicídio.
Armanskij assentiu.
- Evert Gullberg, de setenta e oito anos e canceroso, tratado a uma depressão poucos meses antes do crime. Pedi ao Frâklund que procurasse nos arquivos oficiais tudo o que lá houvesse referente ao Gullberg.
-E?
- Fez o serviço militar em Karlskrona, nos anos quarenta, e depois estudou Direito e tornou-se consultor fiscal na privada. Teve um gabinete aqui em Estocolmo durante mais de trinta anos, discreto, clientes particulares... não se sabe quais. Reformado em 1991 Regressou à sua cidade natal, Laholm, em 1994... Nada de extraordinário.
-Mas?
- Exceptuando alguns pormenores confusos, o Frâklund não conseguiu descobrir uma única referência a Gullberg, fosse em que contexto fosse. Nunca foi referido nos jornais e ninguém sabe quem eram os seus clientes. É como se nunca tivesse existido na vida profissional.
- O que é que está a querer dizer?
- A Sapo é a ligação evidente. O Zalachenko era um desertor russo, e quem se teria encarregado dele senão a Sapo? Depois, há a capacidade de organizar o internamento da Lisbeth Salander numa clínica psiquiátrica, em 1991. Sem falar de assaltos a residências, agressões e escutas telefónicas ilegais quinze anos mais tarde... Mas também não acredito que seja a Sapo que está por detrás de tudo isto. O Mikael Blomkvist chama-lhes o Clube Zalachenko... um pequeno grupo de sectários composto por combatentes da Guerra Fria que saíram da hibernação e se escondem num qualquer corredor escuro dentro da Sapo.
Bublanski assentiu com a cabeça.
- Nesse caso, o que é que podemos fazer?
CAPÍTULO 12
DOMINGO, 15 DE MAIO - SEGUNDA-FEIRA, 16 DE MAIO
O COMISSÁRIO Torsten Edkxinth, chefe do Serviço de Defesa da Constituição da DGPN/Sápo, beliscou o lóbulo da orelha e contemplou pensativamente o CEO da respeitável empresa privada de segurança Milton Security que, sem mais nem menos, lhe telefonara e insistira em convidá-lo para jantar na sua casa de Lindingõ, no domingo. Ritva, a mulher de Armanskij, servira um sauté de boeuf delicioso. Tinham comido e conversado delicadamente. Edklinth perguntara a si mesmo qual seria a verdadeira intenção de Armanskij. Depois do jantar, Ritva retirara-se para ver televisão e deixara-os aos dois sentados à mesa. Armanskij começara a contar a história de Lisbeth Salander.
Edklinth fazia rodar lentamente o seu copo de vinho tinto.
Dragan Armanskij não era nenhum paranóico, e ele bem o sabia.
Conheciam-se havia 12 anos, desde que uma deputada da esquerda recebera uma série de ameaças de morte anónimas. Comunicara o facto ao chefe do seu grupo parlamentar, que por sua vez informara a Secção de Segurança do Parlamento. Eram ameaças escritas, vulgares, contendo elementos reveladores de que o autor anónimo estava ao corrente de certos factos pessoais respeitantes à deputada. A Sapo debruçara-se sobre o assunto e, durante a investigação, a mulher fora colocada sob protecção.
A Protecção a Individualidades era, já na altura, a secção com o orçamento mais magro de toda a instituição, dispondo de recursos muito limitados. Esta secção tem a seu cargo a protecção da família feal e do primeiro-ministro, e também, em caso de necessidade,
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dos ministros e chefes dos partidos políticos. Regra geral, as solicitações ultrapassam os recursos, pelo que a maior parte dos políticos suecos não pode contar com qualquer forma de protecção pessoal digna desse nome. Na ocasião, a deputada vítima das ameaças beneficiara de vigilância aquando de algumas aparições oficiais, mas essa vigilância terminava no final do dia de trabalho, ou seja, precisamente na altura em que era mais provável que um tarado qualquer passasse das palavras aos actos. A desconfiança da visada quanto à capacidade que a Sapo tinha de protegê-la era crescente.
E com razão. Certa tarde, ao regressar a casa - uma vivenda em Nacka - depois de um debate na Comissão das Finanças, descobrira que alguém forçara as portas do terraço e entrara na sala, onde decorara as paredes com epítetos sexualmente degradantes, e depois no quarto, onde se masturbara. Pegara imediatamente no telefone para pedir à Milton Security que assegurasse a sua protecção pessoal. Não informara a Sapo desta sua decisão e, na manhã seguinte, enquanto fazia uma intervenção numa escola em Táby, surgiram conflitos entre os esbirros do Estado e os privados.
Na época, Torsten Edklinth era subchefe interino da Secção de Protecção a Individualidades e detestava instintivamente as situações em que rufiões privados eram contratados para executar missões que deveriam ser da competência dos rufiões pagos pelo Estado. Compreendia, no entanto, que a deputada tinha todas as razões para estar descontente - os lençóis sujos da sua cama eram prova mais do que suficiente da falta de eficácia do Estado. Em vez de se pôr a comparar as capacidades respectivas dos dois tipos de serviço, tratara de acalmar-se e combinara um almoço com o patrão da Milton Security, Dragan Armanskij. Entre os dois, tinham chegado à conclusão de que a situação era, sem dúvida, mais séria do que a Sapo pensara de início e que havia motivos para reforçar a segurança da deputada. Edklinth fora suficientemente sensato para perceber que não só os homens de Armanskij possuíam as competências necessárias ao trabalho, como também tinham uma formação no mínimo equivalente e equipamento técnico provavelmente melhor. Tinham resolvido o problema confiando aos homens de Armanskij a responsabilidade
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da protecção da visada, enquanto a polícia de segurança se encarregava da investigação propriamente dita e pagava a factura.
Os dois homens tinham igualmente manifestado uma certa estima mútua e funcionavam bem em conjunto. Ao longo dos anos, tinham-se encontrado para outras colaborações. Edklinth tinha, consequentemente, um grande respeito pela competência profissional de Armanskij, e quando este o convidara para jantar e lhe pedira uma conversa confidencial e a sós, não hesitara em aceitar.
Em contrapartida, não estava à espera de que Armanskij lhe atirasse para o colo uma bomba com o rastilho aceso.
- Se bem entendi, afirmas que a Polícia de Segurança Nacional se dedica a uma actividade claramente criminosa.
- Não - disse Armanskij. - Se é isso que pensas, é porque não compreendeste nada do que eu disse. O que afirmo é que algumas pessoas que trabalham na Polícia de Segurança Nacional se dedicam a uma actividade claramente criminosa. Não acredito nem por um segundo que essa actividade seja autorizada pela direcção da Sapo ou que tenha qualquer espécie de aval da parte do Estado.
Edklinth olhou para as fotografias, tiradas por Christer Malm, do homem que entrava para um carro cuja matrícula começava pelas letras KAB.
- Dragan... tens a certeza, de que não estás a gozar comigo? Armanskij suspirou.
- Quem me dera que fosse uma brincadeira. Edklinth reflectiu por um instante.
- E como é que imaginas que me vou safar desta?
Na manhã seguinte, Torsten Edklinth limpava meticulosamente os óculos enquanto pensava. Tinha cabelos grisalhos, grandes orelhas e um rosto enérgico. Naquele momento, a sua expressão reflectia mais perplexidade do que energia. Estava no seu gabinete, na sede Nacional da Polícia, em Kungsholmen, e passara uma boa parte da noite a ruminar as ilações a tirar da informação que Dragan Armanskij lhe fornecera.
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Pensamentos pouco agradáveis. A Sapo era a única instituição em toda a Suécia que, salvo raras excepções, todos os partidos políticos consideravam de um valor inestimável, apesar de ao mesmo tempo todos parecerem desconfiar dela e atribuir-lhe os mais delirantes projectos de conspiração. Os escândalos tinham inegavelmente sido numerosos, sobretudo nos anos 70, com os radicais de esquerda, quando certos... lapsos constitucionais tinham de facto ocorrido. Mas depois de cinco inquéritos públicos à Sapo, duramente criticada, aparecera uma nova geração de funcionários. Elementos trabalhadores, recrutados nas brigadas de luta contra o crime financeiro, o tráfico de armas e a fraude, da polícia comum. Homens e mulheres habituados a investigar verdadeiros crimes, e não fantasias políticas.
A Sapo fora modernizada e a tónica posta na defesa da Constituição. A sua missão, tal como aparecia definida no despacho do governo, era prevenir e combater as ameaças contra a segurança interna do país. Ou seja, "combater toda a actividade ilegal que recorra à violência, à ameaça ou à extorsão e que tenha como objectivo modificar a nossa Constituição levando órgãos políticos ou autoridades decisórias a tomar resoluções condicionadas ou a impedir o cidadão anónimo de usufruir das liberdades e garantias consagradas na Constituição".
A missão da Defesa da Constituição era, portanto, defender a democracia sueca das conjuras antidemocráticas reais ou supostas. Conjuras que eram sobretudo de esperar da parte dos anarquistas e dos nazis. Os anarquistas, porque teimavam em praticar a desobediência civil incendiando armazéns de peles. Os nazis, porque eram nazis e, por definição, inimigos da democracia.
Com uma formação base de jurista, Torsten Edklinth iniciara a sua carreira como procurador, após o que trabalhara para a Sapo durante 21 anos. Inicialmente no terreno como responsável da Protecção de Individualidades, e depois na Defesa da Constituição, onde as suas tarefas tinham evoluído entre a análise e a direcção administrativa para finalmente o levarem a um cadeirão de chefe de gabinete. Por outras palavras, era o chefe supremo da vertente policial da defesa da democracia sueca. O comissário Torsten Edklinth considerava-se um democrata. Nesse sentido, a definição era simples.
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A Constituição era votada no Parlamento, e a ele cabia-lhe velar por que fosse respeitada.
A democracia sueca baseia-se numa só lei e pode resumir-se em três letras: YGL - yttrandefnhetsgrundlagen, a lei fundamental sobre a liberdade de expressão. A YGL estabelece o direito imprescritível de dizer, ter como opinião, pensar e acreditar seja no que for. Esta lei é extensiva a todos os cidadãos suecos, do nazi atrasado mental ao anarquista atirador de pedras, passando por todos os graus intermédios. Todas as outras leis fundamentais, como a Constituição, por exemplo, mais não são do que elaborações práticas à volta da liberdade de expressão. A YGL é, por conseguinte, a lei que garante a sobrevivência da democracia. Edklinth considerava que a sua missão primordial era defender o direito inalienável dos cidadãos suecos de dizerem e pensarem exactamente o que quisessem, mesmo que não partilhasse, por um instante sequer, o teor do que diziam ou pensavam.
Este direito não significa, no entanto, que tudo seja autorizado, posição que certos fundamentalistas da liberdade de expressão, sobretudo os pedófilos e os grupos racistas, tentam impor no debate sobre a política cultural. Toda a democracia tem os seus limites, e os limites da YGL estão definidos na lei sobre a liberdade de imprensa, tryckfrihetsforordningen, ou TF. Esta lei estabelece em princípio quatro restrições: é proibido publicar pornografia que envolva crianças e determinadas cenas de violência sexual, seja qual for o grau artístico que o autor reivindique; é proibido exortar à revolta ou incitar ao crime; é proibido difamar ou caluniar um concidadão; e é proibido incitar ao ódio racial.
A liberdade de imprensa é também ela ratificada pelo Parlamento e constitui uma restrição à democracia social e democraticamente aceitável, ou seja, ao contrato social que define o enquadramento de uma sociedade civilizada. O cerne da civilização significa que ninguém tem o direito de perseguir ou caluniar outro ser humano.
Uma vez que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são leis, tornava-se necessária a existência de uma autoridade para garantir a obediência a essas leis. Na Suécia, esta função é partilhada por duas instituições, uma das quais, ajustitiekanslern, ou JK,
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tem por missão levar perante a justiça os infractores à liberdade de imprensa.
Neste aspecto, Torsten Edklinth estava longe de se considerar satisfeito. Para ele, a JK era demasiado laxista a dar continuidade na justiça às infracções directas à Constituição sueca. A JK respondia, regra geral, que o princípio da democracia era tão importante que só devia intervir e intentar um processo em casos extremos. Esta atitude tinha, no entanto, começado a ser cada vez mais contestada, especialmente desde que o secretário-geral da Comissão de Helsínquia da Suécia, Robert Hârdh, desenterrara um relatório que analisava a falta de iniciativa da JK num certo número de anos. O relatório comprovava que era praticamente impossível processar judicialmente, e muito menos condenar, quem quer que fosse por incitamento ao ódio racial.
A segunda instituição era o departamento da Sapo para a Defesa da Constituição, e o comissário Torsten levava o seu papel muito a sério. Considerava que era o posto mais digno, e o mais importante, que um polícia sueco podia ocupar, e não o trocaria por nenhum outro em todo o universo judiciário ou policial sueco. Era, muito simplesmente, o único polícia em toda a Suécia que tinha como missão oficial fazer as vezes de polícia político. Tarefa delicada, que exigia uma enorme sensatez e um sentido de justiça afinado ao milímetro, uma vez que a experiência de demasiados países demonstrava que uma polícia política podia facilmente transformar-se na maior das ameaças à democracia.
Os media e a população em geral pensavam que a Defesa da Constituição tinha como principal missão controlar os nazis e os militantes vegetalianos. Era certo que esses militantes mereciam o interesse da Defesa da Constituição, mas, além deles, havia toda uma série de instituições e fenómenos em que incidiam igualmente as missões do departamento. Se, por exemplo, o rei ou o comandante-em-chefe das Forças Armadas metessem na cabeça que o sistema parlamentar estava ultrapassado e que o Parlamento devia ser substituído por uma ditadura militar, o rei ou o comandante-em-chefe ficariam rapidamente na mira da Defesa da Constituição. E se um grupo de polícias metesse na cabeça interpretar livremente a lei ao ponto de infringir
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os direitos constitucionais de um indivíduo, competiria igualmente à Defesa da Constituição reagir. Em casos de tal gravidade, a investigação era, além disso, colocada sob a direcção do procurador-geral.
O problema que se punha era, evidentemente, que a Defesa da Constituição tinha uma função quase exclusivamente de análise e verificação, e nenhuma actividade interventiva. Daí o facto de serem, regra geral, a polícia ordinária ou outras secções da Sapo a efectuar a detenção de elementos nazis.
Torsten Edklinth considerava esta realidade profundamente insatisfatória. Regra geral, os países considerados normais têm, de uma forma ou de outra, um Tribunal Constitucional cuja missão básica é certificar-se de que as autoridades não violam os preceitos da democracia. Na Suécia, essa missão é confiada ao procurador-geral da coroa ou ao justitieombudsman, uma pessoa nomeada pelo Parlamento para garantir que os funcionários do Estado respeitam a lei no exercício das suas funções, mas que deve, em todo o caso, conformar-se às decisões de outras pessoas. Se a Suécia tivesse um Tribunal Constitucional, a advogada de Lisbeth Salander poderia ter intentado de imediato um processo contra o Estado sueco por violação dos seus direitos constitucionais. O tribunal poderia exigir que todos os documentos fossem apresentados e poderia intimar qualquer pessoa a comparecer, incluindo o primeiro-ministro, até que o caso ficasse completamente esclarecido. Na situação actual, a advogada podia, em rigor, alertar o justitieombudsman, que, no entanto, não teria autoridade para se apresentar na Sapo e começar a exigir que lhe mostrassem documentos.
Durante muitos anos, Torsten Edklinth fora um fervoroso defensor da criação de um Tribunal Constitucional. Poderia, então, tratar de uma maneira muito simples a informação que Dragan Armanskij lhe dera, fazendo um depoimento na polícia e entregando os elementos ao tribunal. E assim se desencadearia um processo inexorável.
No estado actual das coisas, Torsten Edklinth não tinha competência jurídica para iniciar um inquérito preliminar. Suspirou e tirou uma porção de tabaco de mascar. Se as informações de Dragan Armanskij correspondiam à verdade, isso significava que um grupo de entidades altamente colocados
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da Sapo tinham fechado os olhos a uma série de delitos graves cometidos contra uma mulher sueca, que em seguida, e usando de falsos pretextos, tinham conseguido internar a filha dessa mulher numa clínica psiquiátrica e, finalmente, tinham dado a um ex-espião russo liberdade para se dedicar ao tráfico de armas, de drogas e de mulheres. Torsten Edklinth fez uma careta. Não queria sequer começar a contar quantas infracções à lei haviam sido cometidas ao longo daqueles anos. Já para não falar do assalto a casa de Mikael Blomkvist, da agressão à advogada de Lisbeth Salander e talvez - coisa em que Edklinth se recusava acreditar - de cumplicidade no assassínio de Alexander Zalachenko.
Torsten Edklinth não tinha o menor desejo de ver-se envolvido numa trapalhada daquelas. Infelizmente, fora o que lhe acontecera a partir do momento em que Armanskij o convidara para jantar.
Tratava-se agora de saber como gerir aquela situação. Formalmente, a resposta era simples. Se o relato de Armanskij era verídico, Lisbeth Salander fora grosseiramente privada de exercer as suas liberdades e direitos constitucionais. E havia a situação potencialmente explosiva de certos órgãos políticos e autoridades do Estado poderem ter sido influenciados nas suas decisões, algo que tinha que ver com o verdadeiro cerne das funções da Defesa da Constituição. Torsten Edklinth era um polícia que tinha conhecimento de um crime e o seu dever era alertar o procurador. De uma maneira mais informal, a resposta deixava de ser tão simples. Era até muito complicada.
A inspectora Rosa Figuerola tinha, apesar do seu nome pouco comum, nascido na Dalecárlia, no seio de uma família que vivia na Suécia desde os tempos de Gustavo Vasa. Era uma dessas mulheres em que as pessoas reparam, e isto por várias razões. Tinha 36 anos, olhos azuis e um metro e oitenta e quatro de altura. Usava os cabelos loiros e encaracolados cortados curtos. Era bonita, e a maneira como se vestia tornava-a ainda mais atraente.
E estava numa forma física excepcional.
Na adolescência, praticara atletismo de alta competição e, com 17 anos, falhara por pouco a qualificação para a equipa olímpica sueca.
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Depois disso, deixara o atletismo, mas continuara a treinar no ginásio cinco vezes por semana. Treinava com tanto empenho que as endorfinas funcionavam como uma droga que a deixava em estado de carência quando interrompia as sessões. Fazia jogging e musculação, jogava ténis, praticava karaté e, durante dez anos, dedicara-se ao body-building. Tinha, no entanto, reduzido muito essa variante extrema de glorificação do corpo, havia já dois anos, altura em que dedicava já duas horas diárias ao levantamento de pesos. Actualmente, ficava-se pela meia hora quotidiana, mas o seu corpo era tão musculoso que alguns colegas menos simpáticos lhe chamavam Herr Figuerola. Quando ela usava tops ou vestidos de Verão, ninguém conseguia deixar de reparar nos seus bíceps e nos seus deltóides.
Tinha, no entanto, outra característica que intimidava certos colegas tanto quanto a sua excepcional condição física: o facto de não ser apenas um belo ornamento. Saída do liceu com as melhores notas possíveis, entrara para a Academia de Polícia com vinte anos e servira durante nove anos em Uppsala, enquanto tirava o curso de Direito. E, como que em ar de brincadeira, passara também num exame de Ciências Políticas. Não tinha o mais pequeno problema em memorizar e analisar conhecimentos. Raramente lia policiais ou outra literatura de entretenimento. Em contrapartida, deixava-se absorver pelos mais variados temas, do Direito Internacional à História da Antiguidade.
Na polícia, fora promovida de agente de patrulha - o que representara uma grande perda para a segurança das ruas de Uppsala - a inspectora, primeiro na Criminal, depois na brigada especializada no combate ao crime económico. Em 2000, passara pela Polícia de Segurança Nacional, em Uppsala, e, em 2001, fora transferida para Estocolmo. Começara por trabalhar na contra-espionagem, mas fora quase de imediato recrutada para a Defesa da Constituição por Torsten Edklinth, que conhecia o pai dela e lhe acompanhara a carreira passo a passo.
Quando Edklinth acabara por decidir que tinha obrigatoriamente de dar seguimento à informação de Dragan Armanskij, pegara no telefone e chamara Rosa Figuerola ao seu gabinete. Havia menos
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de três anos que ela trabalhava na Defesa da Constituição, o que significava que tinha ainda mais de verdadeiro polícia do que de burocrata. Naquele dia, Rosa usava uns jeans bastante justos, sandálias turquesa com saltos baixos e casaco azul-marinho.
- O que é que tens entre mãos, de momento? - perguntou em jeito de saudação, fazendo-lhe sinal para se sentar.
- Estamos a investigar o assalto à mercearia aqui perto, em Sunne, há duas semanas.
Não era certamente incumbência da Sapo investigar assaltos a mercearias. Esse género de trabalho de rotina competia em exclusivo à polícia comum. Rosa Figuerola chefiava, no departamento da Defesa da Constituição, uma secção de cinco elementos que se dedicavam à análise da criminalidade política. Uma das ferramentas mais importantes que usavam era um conjunto de computadores ligados em rede ao ficheiro de incidentes comunicados à polícia comum. Praticamente todos os depoimentos prestados à polícia em qualquer ponto da Suécia passavam pelos computadores que Rosa Figuerola controlava. Aqueles computadores estavam dotados de um programa que passava a pente fino os relatórios e reagia a 310 palavras e expressões específicas, do género: preto, skinhead, cruz gamada, imigrante, anarquista, heil, nacional-democrata, traidor à pátria, puta judia ou muçulmano. Quando detectava esse género de vocabulário, o computador dava o alerta, e o relatório em questão era mais cuidadosamente examinado. Se o contexto parecesse exigi-lo, podiam pedir acesso ao inquérito preliminar e levar mais longe a investigação.
Uma das tarefas da Defesa da Constituição consiste em publicar todos os anos um relatório intitulado Ameaças Contra a Segurança do Estado, que constitui a única estatística fiável da criminalidade política. Esta estatística baseia-se exclusivamente nos depoimentos feitos nas esquadras locais. No caso da mercearia em Sunne, o programa reagira a três palavras-chave: imigrante, platinas e preto. Dois jovens encapuzados tinham assaltado uma mercearia cujo proprietário era um imigrante, ameaçando-o com uma pistola. Tinham levado 2780 coroas em dinheiro e um pacote de cigarros. Um dos malfeitores usava um blusão com dragonas em que figurava a bandeira sueca. O outro
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gritara várias vezes "preto de merda" ao proprietário e obrigara-o a deitar-se no chão.
Isso bastara para que os colaboradores de Figuerola pedissem o inquérito preliminar e tentassem descobrir se os assaltantes tinham alguma relação com os bandos locais de neonazis e determinar se, nesse caso, o assalto devia ser classificado como crime racista, uma vez que um dos malfeitores exprimira opiniões de carácter xenófobo. Se isto se confirmasse, o assalto poderia vir a ser incluído nas estatísticas a publicar, as quais seriam posteriormente analisadas e inseridas na estatística europeia estabelecida anualmente pelo Gabinete da UE em Viena. Mas também podia acontecer que os assaltantes fossem vulgares rufiões que tivessem comprado ou roubado um blusão com a bandeira sueca e que só por puro acaso o proprietário da mercearia fosse um imigrante e a palavra "preto" tivesse sido pronunciada. Se assim fosse, a secção de Figuerola eliminaria o assalto das estatísticas.
- Tenho um trabalho de merda para ti - disse Torsten Edklinth.
- Ah, bom - respondeu Rosa Figuerola.
- Um trabalho que pode fazer-te cair totalmente em desgraça, ou acabar mesmo com a tua carreira.
- Compreendo.
- Se, pelo contrário, fores bem-sucedida na tua missão e as coisas correrem bem, pode significar um enorme passo em frente. Vou transferir-te para a unidade de intervenção da Defesa da Constituição.
- Lamento ter de ser eu a informar-te, mas a Defesa da Constituição não tem nenhuma unidade de intervenção.
- Tem, pois. A partir de agora. Criei-a esta manhã. Por enquanto, é constituída apenas por uma pessoa. Tu. - Rosa Figuerola pareceu hesitar. - A missão da DC é proteger a Constituição das ameaças internas, o que, por grosso, significa os nazis e os anarquistas - continuou Edklinth. - Mas que medidas devemos tomar quando verificamos que a ameaça parte da nossa própria organização?
Passou a meia hora seguinte a relatar em pormenor a história que Dragan Armanskij lhe tinha contado na noite anterior.
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- Quem é a fonte dessas afirmações?
- Não importa, para já. Concentra-te na informação de que dispomos.
- O que quero saber é: consideras essa fonte credível?
- Conheço-a há muitos anos e considero-a extremamente credível.
- Tudo isso é... não sei. Inverosímil é pouco. Edklinth assentiu.
- Como um livro de espionagem - disse.
- O que esperas então de mim?
- A partir deste momento ficas desligada de todas as tuas outras missões. Tens apenas uma: verificar o grau de veracidade desta história. Ou confirmas ou rejeitas as afirmações. Falas directamente comigo e com mais ninguém.
- Senhores! - exclamou Rosa Figuerola. - Agora compreendo o que querias dizer há pouco, com aquilo de acabar com a minha carreira.
- Sim. Mas se a história for verdadeira... se só uma ínfima parte destas afirmações for verdadeira, vemo-nos confrontados com uma crise constitucional que vai ser preciso gerir.
- Por onde começo? O que é que faço?
- Começa pelo mais simples. Começa por este relatório que o Gunnar Bjõrck escreveu em 1991. Depois, identificas todos os que, ao que parece, vigiam o Mikael Blomkvist. Segundo a minha fonte, o proprietário da viatura é um tal Gõran Mârtensson, de quarenta anos, polícia e com residência na Vittangigatan, em Vãllingby. Depois, identificas o outro tipo que aparece nas fotos tiradas pelo fotógrafo do Blomkvist. Este aqui, o loiro mais novo.
- Okay.
- Depois, verificas o passado do Evert Gullberg. Nunca ouvi falar do sujeito, mas, segundo a minha fonte, há seguramente uma ligação à Polícia de Segurança.
- Isso significaria que alguém daqui teria mandado um velho de setenta e oito anos matar um antigo espião. Não acredito.
- Verifica, mesmo assim. E tudo isto vai ter de ser feito no maior segredo. Quero ser previamente informado de quaisquer medidas que tenciones tomar, sejam elas quais forem. Não quero a mais pequena onda.
- É uma investigação enorme. Como é que vou fazer tudo sozinha?
- Não vais fazer tudo sozinha. Vais apenas encarregar-te desta primeira investigação. Se vieres ter comigo e me disseres que, depois de teres procurado, não encontraste nada, acabou-se. Se descobrires alguma coisa de suspeito, veremos como prosseguir.
Rosa Figuerola passou a hora do almoço a levantar pesos no ginásio da sede da Polícia. O almoço propriamente dito consistiu de um café e uma sanduíche de carne com rodelas de beterraba, que levou para o gabinete. Fechou a porta, desocupou o tampo da secretária e começou a ler o relatório de Gunnar Bjõrck enquanto comia a sua sanduíche.
Leu também o anexo, com a correspondência entre Bjõrck e o Dr. Peter Teleborian. Anotou num caderno todos os nomes e todos os acontecimentos que ia ter de verificar. Ao fim de duas horas, pôs-se de pé e foi à máquina buscar outro café. Ao sair do gabinete, fechou a porta à chave, o que fazia parte do procedimento normal na Sapo.
Começou por controlar o número do processo. Ligou para o arquivista, que lhe confirmou que não havia nenhum relatório com aquele número. A sua segunda medida foi verificar os arquivos dos media. Desta vez, a busca foi mais frutuosa. Os dois vespertinos e um jornal da manhã tinham falado de uma pessoa gravemente ferida no incêndio de um carro na Lundagatan, naquele dia de 1991. A vítima fora um homem de meia-idade, cujo nome não era referido. Um dos vespertinos relatava que o incêndio fora deliberadamente ateado por uma jovem. Tratar-se-ia, pois, do famoso cocktail molotov que Lisbeth Salander lançara contra um agente russo chamado Zalachenko. Em todo o caso, o incidente parecia ter de facto acontecido.
Gunnar Bjõrck, que escrevera o relatório, era um indivíduo real, um quadro conhecido e altamente colocado na Divisão de Imigração, de baixa médica por causa de uma hérnia discal e que, infelizmente, se tinha suicidado.
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O Serviço de Pessoal não podia, no entanto, informar sobre o que Gunnar Bjõrck fazia em 1991- A informação era considerada secreta, mesmo para os colaboradores da Sapo. Nada de anormal.
Foi fácil comprovar que Lisbeth Salander vivia na Lundagatan em 1991 e que passara os dois anos seguintes na clínica de pedopsiquiatria de Sankt Stefan. Quanto a estes aspectos, pelo menos, a realidade não parecia contradizer o conteúdo do relatório.
Peter Teleborian era um psiquiatra conhecido, que aparecia com frequência na televisão. Em 1991, trabalhava em Sankt Stefan, onde era agora director clínico.
Rosa Figuerola reflectiu longamente no significado daquele relatório. Em seguida, ligou para o chefe-adjunto do Serviço de Pessoal.
- Tenho uma pergunta complicada a fazer - anunciou.
- Diga.
- Estamos a fazer uma análise, aqui na Defesa da Constituição. Trata-se de avaliar a credibilidade de uma pessoa e a sua saúde psíquica em geral. Preciso de consultar um psiquiatra ou qualquer outro especialista que esteja habilitado a ouvir informações classificadas como secretas. Falaram-me do doutor Teleborian, e o que quero saber é se posso falar com ele.
A resposta tardou um nadinha.
- O doutor Peter Teleborian funcionou como consultor externo da Sapo em diversas ocasiões. Tem autorização de segurança e, em termos gerais, pode discutir com ele material classificado. Mas, antes de o contactar, vai ser preciso seguir o procedimento administrativo. Tem de apresentar um pedido formal, avalizado pelo seu chefe.
O coração de Rosa Figuerola começou a bater um pouco mais depressa. Acabava de obter confirmação de algo que muito poucas pessoas deviam saber. Peter Teleborian mantivera uma relação com a Sapo. O que reforçava a credibilidade do relatório.
Ficou por ali naquele capítulo e passou a outras secções do processo que Torsten Edklinth lhe tinha fornecido. Examinou os dois homens que apareciam nas fotos de Christer Malm e que tinham seguido Mikael Blomkvist a partir do Café Copacabana, no 1º de Maio.
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Consultou o Registo Automóvel e verificou que Gõran Mârtensson existia realmente e era o proprietário de um Volvo cinzento com a matrícula em questão. Em seguida, o Serviço de Pessoal da Sapo confirmou-lhe que se tratava de um funcionário da organização. Era o controlo mais elementar que podia fazer, e também esta informação lhe pareceu correcta. O coração bateu-lhe ainda um pouco mais depressa.
Gõran Mártensson trabalhava no Serviço de Protecção a Individualidades. Era guarda-costas. Fazia parte da equipa que fora em várias ocasiões responsável pela segurança do primeiro-ministro. Semanas antes, no entanto, tinha sido temporariamente cedido à contra-espionagem. A transferência provisória tivera início a 10 de Abril, poucos dias depois de Alexander Zalachenko e Lisbeth Salander terem dado entrada no Hospital Sahlgrenska, mas aquelas deslocações não tinham nada de invulgar e aconteciam sempre que havia falta de pessoal para um assunto urgente.
Em seguida, Rosa Figuerola ligou para o chefe-adjunto da contra-espionagem, um homem que conhecia pessoalmente e para quem tinha trabalhado durante a sua breve passagem pelo departamento. Perguntou se Gõran Mártensson estava a trabalhar em qualquer coisa importante ou se podia ser temporariamente posto à disposição da Defesa da Constituição.
O chefe-adjunto da contra-espionagem ficou perplexo. Deviam tê-la informado mal. Gõran Mártensson, da Protecção a Individualidades, não estava e, tanto quanto sabia, nunca estivera colocado no seu departamento.
Rosa Figuerola pousou o telefone e ficou a olhar para ele durante dois minutos. Na Protecção a Individualidades pensavam que Mártensson tinha sido posto à disposição da contra-espionagem. Na contra-espionagem, ninguém tinha solicitado os seus serviços. Aquelas transferências eram autorizadas e geridas pelo secretário-geral. Estendeu a mão para pegar no telefone e ligar para o secretário-geral, mas pensou melhor. Se a Protecção a Individualidades tinha emprestado Mârtensson, o secretário-geral dera forçosamente o seu aval a essa decisão. Mas Mártensson não estava a trabalhar na contra-espionagem.
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Coisa que o secretário-geral devia saber. E se Mârtensson fora posto à disposição de um departamento que seguia Mikael Blomkvist, o secretário-geral devia igualmente sabê-lo.
Torsten Edklinth dissera-lhe expressamente que não fizesse ondas. Fazer a pergunta ao secretário-geral seria como atirar uma grande pedra para um charco muito pequeno.
Um pouco depois das dez e meia da manhã de segunda-feira, Erika Berger instalou-se atrás da sua secretária na gaiola de vidro e suspirou profundamente. Estava mesmo a precisar da chávena de café que acabava de trazer da sala do pessoal. Passara as primeiras horas do dia de trabalho a despachar reuniões. A primeira durara 15 minutos e o assistente editorial Peter Fredriksson apresentara as grandes linhas do trabalho do dia. Tendo em conta a sua crescente desconfiança relativamente a Lukas Holm, era cada vez mais obrigada a confiar no julgamento de Fredriksson.
A segunda fora uma reunião de uma hora com o presidente do CA, Magnus Borgsjõ, o director financeiro do SMP, Christer Sellberg, e o responsável pelo orçamento, Ulf Flodin. Tinham passado em revista a curva do mercado de publicidade e a quebra de vendas. O director do orçamento e o director financeiro exigiam medidas para reduzir o défice.
- Passámos a rasar o primeiro trimestre deste ano graças a uma ligeira subida do mercado de publicidade e à reforma de dois empregados no final do ano. São dois postos que continuam vagos - dissera Ulf Flodin. - Vamos talvez conseguir passar o trimestre em curso com um défice mínimo. Mas os gratuitos Metro e Stockolm City continuam a corroer o mercado da publicidade. O único prognóstico que temos é que o terceiro trimestre do ano apresentará um défice acentuado.
- E qual vai ser a nossa resposta? - perguntara Borgsjõ.
- A única alternativa é cortar nos custos. Não fazemos despedimentos desde 2002. Calculo que, até ao fim do ano, tenham de ser eliminados pelo menos dez postos de trabalho.
- Quais? - indagara Erika.
- Vamos ter de usar o princípio da rasoura e escolher um aqui e outro acolá. A secção de Desporto tem, neste momento, seis postos e meio. Aí, devemos poder conseguir chegar a cinco a tempo inteiro.
- Se bem compreendi, o Desporto já está de rastos. Isso significaria que teríamos de reduzir a cobertura dos acontecimentos desportivos no seu conjunto.
Flodin encolhera os ombros.
- Se tem uma ideia melhor, sou todo ouvidos.
- Não tenho uma ideia melhor, mas o princípio é que se eliminarmos pessoal, teremos de fazer um jornal mais magro, e se fizermos um jornal mais magro, o número de leitores vai descer, e se o número de leitores descer, desce também o número de anunciantes.
- O eterno ciclo vicioso - dissera o director financeiro, Sellberg.
- Fui contratada para inverter essa situação. Isso significa que vou apostar tudo na ofensiva para modificar o jornal e torná-lo mais atraente para os leitores. Mas não conseguirei fazê-lo se me deixarem sem pessoas. - Voltara-se para Borgsjõ. - Durante quanto tempo pode este jornal sangrar? Qual é o défice que pode aguentar antes de chegar ao ponto de no-return?
Borgsjõ fizera uma careta.
- Desde o início dos anos noventa que o SPM tem vindo a mordiscar os seus capitais próprios. Temos uma carteira de acções que perdeu quase um terço do valor nos últimos dez anos. Muitos desses fundos foram utilizados para investimentos em informática. Trata-se de despesas verdadeiramente vultuosas.
- Reparei que o SMP desenvolveu o seu próprio sistema de tratamento de texto, essa coisa a que chamam AXT. Quanto custou?
- Cerca de cinco milhões de coroas.
- Tenho dificuldade em compreender a lógica. Há no mercado imensos programas muito mais baratos. Por que razão decidiu o SMP desenvolver a sua própria programação?
- Bem, Erika... aí está uma coisa que muito gostaria que alguém me explicasse. Mas foi o antigo chefe de informática que nos convenceu. Afirmava que, a prazo, seria rentável, e que poderíamos vender o nosso programa a outros jornais.
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- Alguém o comprou?
- Bem, sim. Um jornal local, na Noruega.
- Ah, óptimo! - exclamara Erika, num voz seca. - Próxima pergunta. Temos, actualmente, computadores com cinco ou seis anos...
- Está totalmente posta de parte a hipótese de investir em novos computadores este ano - dissera Flodin.
A discussão prosseguira. Erika apercebera-se de que Flodin e Sellberg ignoravam pura e simplesmente as suas observações. A única coisa em que estavam interessados em falar era de restrições, o que se compreendia da parte de um responsável pelo orçamento e de um director financeiro, mas era inaceitável segundo a perspectiva de uma directora editorial recém-nomeada. O que mais a irritara fora o facto de eles arrasarem os seus argumentos com sorrisos amáveis que a faziam sentir-se uma colegial quando chamada ao quadro. Sem que uma única palavra inconveniente tivesse sido dita, a atitude dos dois era tão clássica que se tornava quase cómica. Não canses a cabecinha com coisas tão complicadas, minha querida.
Borgsjõ não fora de grande ajuda. Mantinha-se na expectativa e deixava os outros participantes falar até ao fim, mas Erika não sentira a mesma atitude vexatória da parte dele.
Voltou a suspirar, iniciou o portátil e abriu o correio electrónico. Tinha recebido 19 e-mails. Quatro eram lixo de alguém que queria: 1) que ela comprasse Viagra; 2) propor-lhe cibersexo com The Sexiest Lolitas on the Net a troco de apenas quatro dólares por minuto; 3) fazer-lhe uma oferta um pouco mais ousada de Animal Sex, the juicest Horse Fuck in the Universe; e 4) propor-lhe uma assinatura da newsletter electrónica Mode nu editada por uma empresa pirata que inundava o mercado com ofertas promocionais e não desistia de enviar-lhe aquelas merdas, não obstante os seus reiterados pedidos para que cessassem. Sete eram pretensas cartas da Nigéria, enviadas pela viúva do antigo director do Banco Nacional do Abu Dhabi que lhe faria chegar somas fantásticas desde que ela estivesse disposta a contribuir com um pequeno capital destinado a estabelecer uma confiança recíproca, e outras fantasias na mesma linha.
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Os restantes eram o menu da manhã, o menu do meio-dia, três mensagens de Peter Fredriksson, que lhe dava nota das correcções da página editorial, uma mensagem do seu contabilista pessoal que marcava encontro para fazer o ponto da situação depois da alteração de salário resultante da mudança da Millennium para o SMP e uma mensagem do dentista a recordar-lhe que se aproximava a data da consulta trimestral. Marcou a consulta na agenda electrónica e apercebeu-se no mesmo instante de que ia ter de alterá-la uma vez que, nesse dia, tinha uma reunião de redacção importante.
Finalmente, abriu a última mensagem, enviada por central-red@smpost.se e dirigida à directora editorial. Pousou lentamente a chávena de café.
PUTA DE MERDA.1 QUEM PENSAS TU QUE ÉS, GRANDE VACA, PARA ACREDITAR QUE PODES CHEGAR ASSIM COM OS TEUS ARES DE SUPERIORIDADE? VAI MAS É ENFIAR UMA CHAVE DE PARAFUSOS NO CU. FARIAS MELHOR EM PÔR-TE A ANDAR, E DEPRESSA.
Erika ergueu os olhos e procurou o chefe das Actualidades, Lukas Holm. Não estava no seu lugar e não o viu em parte alguma na redacção. Verificou o remetente, pegou no telefone e ligou para Peter Fleming, o chefe de Informática do SMP.
- Viva. Quem utiliza o endereço centralred@smpost.se?
- Ninguém. Esse endereço não existe.
- Acabo de receber um e-mail precisamente desse endereço.
- É truque. Tem algum vírus?
- Não. Pelo menos, o antivírus não reagiu.
- Okay. O endereço não existe, mas é fácil fabricar um que pareça autêntico. Há sítios na Net que transmitem esse género de e-mail.
- Consegue-se localizá-lo?
- É praticamente impossível, mesmo que a pessoa seja suficientemente estúpida para enviá-lo do seu computador pessoal. Eventualmente podemos seguir o número IP até um servidor, mas se a pessoa utilizar uma conta aberta em hotmail, por exemplo, o rasto acaba aí.
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Erika agradeceu a informação, e depois reflectiu por um instante. Não era a primeira vez que recebia uma mensagem ameaçadora ou um e-mail de um chanfrado. Aquele fazia manifestamente referência ao seu novo cargo de directora editorial do SMP. Perguntou-se se o expedidor seria alguém que a vira no funeral de Morander ou se trabalhava na casa.
Rosa Figuerola tinha reflectido longamente sobre a melhor maneira de chegar a Evert Gullberg. Uma das vantagens de trabalhar para a Defesa da Constituição era o facto de poder consultar praticamente qualquer investigação policial a decorrer na Suécia que tivesse qualquer coisa a ver com criminalidade racista ou política. Verificou que Alexander Zalachenko era um imigrante, e cabia-lhe a ela, entre muitas outras coisas, examinar qualquer acto de violência exercido contra pessoas nascidas no estrangeiro e decidir se esses actos tinham ou não motivações racistas. Tinha, pois, o direito legal de ler o inquérito sobre a morte de Zalachenko para tentar determinar se Evert Gullberg estava ligado a alguma organização racista ou se exprimira opiniões racistas no momento do crime. Requisitou uma cópia do inquérito e leu-a atentamente. Junto com o inquérito encontrou as cartas enviadas ao ministro da Justiça e verificou que, exceptuando um certo número de ataques pessoais degradantes e de tipo revanchista, comportavam também as expressões "lacaios de pretos" e "traidor à pátria".
E com isto eram cinco horas. Rosa Figuerola fechou todo o material no cofre do gabinete, pegou na caneca de café, desligou o computador e saiu, picando o ponto. Dirigiu-se a passo rápido ao ginásio, na Praça de Sankt Erik, e passou a hora seguinte a fazer uma série de exercícios moderados.
Em seguida, voltou, também a pé, ao seu Tl na Pontonjârgatan, tomou um duche e comeu um almoço tardio mas dieteticamente correcto. Ainda considerou a hipótese de ligar a Daniel Mogren, que vivia três prédios mais adiante, na mesma rua. Daniel era marceneiro e bodybuilder e, havia três anos, seu companheiro de treino. Nos últimos meses tinham-se igualmente encontrado para alguns momentos eróticos, entre amigos.
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Fazer amor era quase tão satisfatório como uma sessão de treino no gmásio, mas agora que passara largamente os trinta anos e se aproximava dos quarenta, Rosa Figuerola começava a pensar que devia interessar-se por uma companhia permanente e procurar uma situação mais estável. Talvez até ter filhos. Mas não com Daniel Mogren
Depois de ter hesitado um instante, decidiu que, na realidade não lhe apetecia ver quem quer que fosse. Foi para a cama, com um livro de História da Antiguidade. Adormeceu pouco antes da meia-noite.
CAPÍTULO 13
TERÇA-FEIRA, 17 DE MAIO
ROSA Figuerola acordou as 06h10 de terça-feira, fez um jogging puxado, ao longo de Norr Mãlarstrand, tomou um duche e picou o ponto na sede da Polícia às 08h10. Passou a primeira hora da manhã a fazer um resumo das conclusões a que tinha chegado na véspera.
Às nove, Torsten Edklinth chegou. Rosa deu-lhe vinte minutos para despachar o eventual correio matinal e foi bater-lhe à porta. Aguardou dez minutos enquanto o chefe lia o resumo que preparara. Edklinth leu as duas folhas A4 duas vezes, de uma ponta à outra, e por fim olhou para ela.
- O secretário-geral - disse, pensativamente. Rosa assentiu.
- Teve forçosamente de aprovar a transferência temporária do Mârtensson. Consequentemente, sabe que o Mârtensson não está na contra-espionagem, onde, segundo a Protecção a Individualidades deveria estar.
Torsten Edklinth tirou os óculos, pegou num lenço de papel e limpou-os meticulosamente. Estava a pensar. Tinha encontrado o secretário-geral, Albert Shenke, um número incalculável de vezes, em reuniões e conferências internas, mas não podia dizer que, pessoalmente, o conhecesse muito bem. Era um indivíduo relativamente baixo, de cabelos finos de um loiro arruivado e cujo perímetro abdominal fora aumentando com o decorrer dos anos. Tinha no mínimo 55 anos e estava na Sapo havia pelo menos 25, se não mais. Era secretário-geral havia dez, e antes disso fora secretário-geral-adjunto ou ocupara outros postos administrativos no seio da organização.
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Torsten via Shenke como um indivíduo taciturno que não hesitava em recorrer à força. Não fazia a mínima ideia de como ocupava os seus tempos livres, mas lembrava-se de o ter visto certa manhã na garagem da sede, informalmente vestido e com um saco de tacos de golfe ao ombro. Uma outra vez, muitos anos antes, cruzara-se com ele na ópera.
- Há uma coisa que me chamou a atenção - disse Rosa Figuerola. -Diz.
- O Evert Gullberg. Fez o serviço militar nos anos quarenta, depois tornou-se advogado especializado em fiscalidade e nos anos cinquenta esfumou-se.
- Sim?
- Quando se faz menção a isso, é como se ele tivesse sido um assassino a soldo.
- Eu sei que pode parecer um pouco rebuscado, mas...
- O que me chamou a atenção é que há tão pouco sobre o seu passado nos documentos, que quase parece fabricado. Nos anos cinquenta e sessenta, a Sapo, tal como os serviços secretos do exército, montou empresas fora da casa mãe.
Torsten Edklinth assentiu.
- Perguntava a mim mesmo quando ias pensar nessa possibilidade.
- Preciso de uma autorização para entrar nos ficheiros de pessoal dos anos cinquenta.
- Não - disse Torsten, abanando a cabeça. - Não podemos entrar nos arquivos sem autorização do secretário-geral e não queremos atrair atenções até termos mais qualquer coisa para mostrar.
- Então como é que fazemos?
- O Mârtensson - disse Edklinth. - Descobre o que anda ele a fazer.
Lisbeth Salander examinava cuidadosamente o sistema de ventilação do seu quarto fechado à chave quando ouviu a porta abrir-se e viu o Dr. Anders Jonasson entrar. Já passava das dez da noite de terça-feira. Jonasson acabava de interrompê-la no planeamento do projecto de evasão.
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Tinha medido a parte da janela dedicada à ventilação e verificara que conseguiria passar a cabeça e que não deveria ter grandes dificuldades em fazer sair o resto do corpo. Havia três pisos a separá-la do chão, mas uma combinação de lençóis rasgados e a extensão eléctrica do candeeiro, com três metros de comprimento, deveria bastar para resolver essa parte do problema.
Em pensamento, tinha planeado a fuga até ao mais pequeno pormenor. O problema era a roupa. Tinha umas cuecas, uma camisa de noite e umas sandálias de plástico que o hospital lhe fornecera. Tinha 200 coroas em dinheiro, que Annika Giannini lhe dera para que pudesse encomendar alguma guloseima da cafetaria. Chegaria para uns jeans e uma T-shirt numa loja de roupa usada, se soubesse como encontrar um desses estabelecimentos em Gotemburgo. E ainda ficaria com o suficiente para telefonar a Peste. Depois disso, as coisas entrariam na ordem. Tencionava aterrar em Gibraltar poucos dias depois da sua evasão, para depois construir uma nova identidade algures no mundo.
Anders Jonasson abanou a cabeça e sentou-se na cadeira das visitas. Ela fez o mesmo na beira da cama.
- Viva. Peço desculpa por não ter tido tempo para aparecer nestes últimos dias, mas fazem-me a vida negra nas Urgências, e ainda por cima tenho de servir de orientador a dois jovens médicos daqui.
Lisbeth assentiu. Não estava à espera que Anders Jonasson lhe fizesse visitas particulares.
O médico pegou na papeleta e examinou atentamente a curva de temperaturas e a medicação. Notou que ela se mantinha estável entre os 37 e os 37,2°C e que durante a semana não tivera necessidade de analgésicos para as dores de cabeça.
- A doutora Endrin é que é a sua médica. Entende-se bem com ela?
- Tudo bem - respondeu Lisbeth, sem grande entusiasmo.
- Posso examiná-la?
Lisbeth voltou a assentir. Jonasson tirou do bolso uma fina lanterna eléctrica e iluminou-lhe os olhos, para verificar a contracção
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das pupilas. Pediu-lhe que abrisse a boca e examinou-lhe a garganta. Em seguida, pôs suavemente as mãos à volta do pescoço dela e moveu-lhe a cabeça para a frente e para trás, e depois de um lado para o outro, várias vezes.
- Algum problema com a nuca? - perguntou. - Lisbeth abanou a cabeça. - E a dor na cabeça?
- De vez em quando. Mas passa.
- O processo de cicatrização está ainda em curso. As dores de cabeça vão desaparecer progressivamente.
Os cabelos dela estavam ainda tão curtos que lhe bastou afastar uma pequena madeixa para tactear a cicatriz por cima da orelha. Não apresentava qualquer problema, mas conservava uma pequena crosta.
- Continua a coçar a ferida. Pare com isso, está a ouvir? - Lisbeth assentiu. Ele pegou-lhe no cotovelo esquerdo e levantou-lhe o braço. - Consegue levantar o braço sozinha? - Lisbeth levantou o braço. - Sente alguma dor ou incómodo no ombro? - Lisbeth abanou a cabeça. - Está perro?
- Um pouco.
- Acho que devia trabalhar um pouco mais os músculos do ombro.
- É difícil, quando se está fechada à chave. Ele sorriu.
- Isso não vai durar eternamente. Faz os exercícios que a terapeuta receitou?
Lisbeth assentiu.
Ele pegou no estetoscópio e encostou-o ao próprio peito, para o aquecer. Depois, sentou-se na beira da cama, desabotoou a camisa de Lisbeth e auscultou-lhe o coração. Pediu-lhe que se inclinasse para a frente e pousou-lhe o estetoscópio nas costas, para lhe auscultar os pulmões.
- Tussa. - Ela tossiu. - Okay. Pode abotoar a camisa. Clinicamente falando, está mais ou menos restabelecida.
Lisbeth assentiu com a cabeça. Estava à espera de que ele se levantasse prometendo voltar a vê-la dentro de alguns dias, mas Anders
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Jonasson continuou sentado na beira da cama. Durante um longo momento, não disse nada. Parecia estar a reflectir. Lisbeth aguardou pacientemente.
- Sabe porque é que me tornei médico? - perguntou, de repente. - Lisbeth abanou a cabeça. - Venho de uma família de operários. Sempre quis ser médico. Na verdade, queria ser psiquiatra, quando era adolescente. Era muito intelectual. - Lisbeth observou-o com uma súbita atenção quando ele disse a palavra "psiquiatra". - Mas não tinha a certeza de conseguir acabar os estudos. Então, depois do liceu, fiz um curso de soldador, e exerci essa profissão durante alguns anos. - Fez um gesto de cabeça, como que a confirmar que o que dizia era verdade. - Achava que era boa ideia ter uma profissão alternativa, se falhasse os estudos de medicina. Não há uma diferença assim tão grande entre um soldador e um médico. Em ambos os casos, fazemos uma espécie de bricolage. E agora trabalho aqui em Sahl-grenska, onde conserto pessoas como a Lisbeth.
Lisbeth franziu o sobrolho, a perguntar a si mesma, desconfiada, se ele estaria a troçar. Mas Jonasson mantinha um ar muito sério.
- Lisbeth... estava a pensar... - Ficou calado durante tanto tempo que ela teve quase vontade de perguntar em que estava ele a pensar. Mas controlou-se e esperou. - Estava a pensar se ficaria muito zangada comigo se eu lhe fizesse uma pergunta privada e pessoal. Gostaria de a fazer como pessoa. Quero dizer, não como médico. Não vou anotar a sua resposta nem vou discuti-la seja com quem for. Não precisa de responder, se não quiser.
- O que é?
- É uma pergunta indiscreta e pessoal. Ela enfrentou-lhe o olhar.
- Desde que a internaram em Sankt Stefan, quando tinha doze anos, sempre recusou responder a perguntas de psiquiatras. Porquê?
O rosto de Lisbeth Salander como que escureceu. Cravou no médico um olhar completamente despido de expressão. Ficou silenciosa durante dois minutos.
- Porque é que pergunta? - acabou por dizer.
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- Para ser sincero, não sei muito bem. Penso que estou a tentar compreender o que se passa.
Lisbeth crispou muito ligeiramente os lábios.
- Não falo com os médicos dos doidos porque eles nunca ouvem o que eu digo.
Anders Jonasson assentiu com a cabeça e então, de repente, desatou a rir.
- Okay. Diga-me... o que é que pensa do doutor Peter Teleborian? Tinha lançado o nome de uma forma tão inesperada que Lisbeth
quase se sobressaltou. Os olhos dela reduziram-se a duas frestas.
- Que merda de jogo é este? O dobro ou nada? De que é que anda à procura?
A voz soou como lixa. Anders Jonasson inclinou-se tanto sobre ela que quase invadiu a sua intimidade.
- Porque um... como há pouco disse... médico de doidos chamado Peter Teleborian, que não é totalmente desconhecido no meu ramo, me abordou duas vezes nestes últimos dias para tentar conseguir uma oportunidade de examiná-la.
Lisbeth sentiu um súbito arrepio gelado descer-lhe pelas costas.
- O tribunal de instrução vai nomeá-lo para lhe fazer uma avaliação psiquiátrica legal.
- E?
- Não gosto do Peter Teleborian. Recusei-lhe o acesso. Da segunda vez, apareceu inesperadamente e tentou entrar enganando uma enfermeira. - Lisbeth cerrou os lábios. - O comportamento dele pareceu-me um pouco bizarro e excessivamente insistente para ser normal. Daí querer saber o que pensa dele.
Foi a vez de Anders Jonasson esperar pacientemente pela resposta de Lisbeth.
- O Teleborian é um filho da puta - disse ela, por fim.
- Há uma questão pessoal entre os dois?
- Pode-se dizer que sim.
- Tive também uma conversa com um representante da autoridade que, por assim dizer, queria que eu deixasse o Teleborian examiná-la.
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- E?
- Perguntei-lhe se ele tinha competência médica para avaliar o seu estado, e depois disse-lhe que se fosse lixar. Em termos um pouco mais diplomáticos.
- Okay.
- Uma última pergunta. Por que razão me contou tudo isto?
- Porque me pediu.
- Sim. Mas eu sou médico e estudei psiquiatria. Assim sendo, porque é que fala comigo? Devo entender que é porque tem uma certa confiança em mim? - Lisbeth não respondeu. - Nesse caso, vou pensar que sim. Quero que saiba que é minha paciente. Isto significa que trabalho para si, e para mais ninguém.
Ela olhou-o com desconfiança. Ele observou-a em silêncio por um instante. Depois, falou num tom mais descontraído.
- De um ponto de vista médico, está quase restabelecida. Precisa de mais algumas semanas suplementares de convalescença. Mas, infelizmente, está demasiado bem.
- Infelizmente?
- Sim. - Jonasson dirigiu-lhe um breve sorriso. - Está muito melhor do que convinha.
- Que quer dizer com isso?
- Quero dizer que já não tenho uma razão justificável para a manter aqui isolada e que o procurador vai em breve poder pedir a sua transferência para um estabelecimento prisional em Estocolmo enquanto aguarda pelo julgamento, que será dentro de seis semanas. Em minha opinião, esse pedido vai cair-nos em cima na próxima semana. E isso significa que o Peter Teleborian vai ter ocasião de a examinar.
Lisbeth ficou perfeitamente imóvel, sentada na cama. Anders Jonasson, com um ar atrapalhado, inclinou-se para a frente, para arranjar a almofada, e falou como se estivesse a pensar em voz alta.
- Não tem dores de cabeça e não tem febre, é provável que a doutora Endrin lhe dê alta. - De repente, pôs-se de pé. - Obrigado por ter falado comigo. Voltarei a vê-la antes de ser transferida.
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Tinha chegado à porta quando ela falou.
- Doutor Jonasson. O médico voltou-se.
- Obrigada.
Ele assentiu brevemente com a cabeça antes de sair e fechar a porta à chave.
Lisbeth Salander ficou muito tempo com os olhos fixados na porta fechada. Finalmente, estendeu-se na cama a olhar para o tecto.
Foi então que descobriu que havia qualquer coisa dura debaixo da almofada. Levantou-a e teve a surpresa de ver um saco de pano que, de certeza absoluta, não estava lá antes. Abriu-o e viu, sem nada compreender, um computador de bolso Palm Tungsten T3 com um carregador de baterias. Examinou então o aparelho com mais atenção e notou um risco no bordo superior. O coração deu-lhe um salto no peito. É o meu Palm. Mas como... Estupefacta, desviou o olhar para a porta fechada à chave. Anders Jonasson era um homem cheio de surpresas. Ligou a máquina e descobriu imediatamente que estava protegida por uma password.
Ficou a olhar, frustrada, para o visor que piscava com impaciência. Como é que esses cretinos imaginam que vou... Espreitou então para o fundo do saco de pano e viu um pequeno pedaço de papel dobrado. Tirou-o de lá, desdobrou-o e leu uma linha escrita numa letra cuidada:
Não és tu a rainha das hackers? Só tens de descobrir! Super B.
Lisbeth riu pela primeira vez em muitas semanas. Mikael pagava-lhe na mesma moeda! Reflectiu uns instantes. Então, pegou no estilete e marcou a combinação 9277, correspondente às letras W-A-S-P no teclado alfanumérico. Era o código que o Super Sacana Blomkvist fora obrigado a descobrir quando entrara no apartamento dela na Fis-kargatan e fizera disparar o alarme.
Não resultou.
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Tentou 78737, correspondente às letras S-U-P-E-R.
Também não. Se o Super Sacana Blomkvist queria que ela usasse a merda do computador, devia ter escolhido uma password relativamente simples. Tinha assinado Super Blomkvist, alcunha que habitualmente detestava. Lisbeth fez as suas associações, pensou por um instante. Pressentiu a vingança no ar. Teclou 3434, para P-I-P-I.
O Palm começou docilmente a funcionar.
Teve direito a um sorridente emoticon, com um balão de banda desenhada, onde estava escrito:
[Como vês, não era muito complicado. Proponho que cliques em Os Meus Documentos.]
Encontrou imediatamente o documento <Olá Sally> no alto da lista. Fez um duplo-clique e leu:
[Para começar, isto é só entre nós os dois. A tua advogada, a minha irmã Annika, não sabe que tens acesso a este computador, e é preciso que assim continue.
Não faço ideia de até que ponto estás ao corrente do que se passa fora do teu quarto, mas fica sabendo que, por mais estranho que pareça, e apesar do teu mau feitio, há uns quantos cretinos leais a trabalhar para ti. Quando tudo isto estiver acabado, vou fundar uma associação de beneficência, a que vou chamar Os Cavaleiros da Távola Chanfrada e cujo único objectivo será organizar um jantar anual para dizer mal de ti. (Não, não estás convidada.)
Bom, vamos ao que interessa. A Annika está a preparar-se para o julgamento. O problema, neste contexto, é evidentemente o facto de trabalhar para ti e ser adepta de todas essas merdices da integridade. Quero com isto dizer que nem sequer a mim, seu irmão, fala daquilo que vocês as duas discutem, o que é um bocado limitador. Felizmente, aceita receber informações.
Temos de nos coordenar, tu e eu.
Não uses o meu endereço de e-mail.
Talvez esteja paranóico, mas tenho boas razões para acreditar que não és tu a única a consultá-lo. Se tiveres alguma coisa a comunicar,
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entra no grupo Yahoo [Távola-Chanfrada]. Identidade Pipi e password f9i2f7i7. Mikael.J
Lisbeth leu o texto duas vezes e ficou a olhar para o computador de bolso, perplexa. Após um período de abstinência informática total, estava num indescritível estado de ciberprivação. Disse para si mesma que Super Blomkvist pensara com os pés, como de costume, ao fazer-lhe chegar um computador, esquecendo completamente que tinha necessidade de um telemóvel para aceder à rede.
Estava neste ponto das suas reflexões quando ouviu passos no corredor. Fechou imediatamente a tampa do Palm e enfiou-o debaixo da almofada. A chave já rodava na fechadura quando se apercebeu de que o saco de pano e o carregador continuavam em cima da mesa de cabeceira. Estendeu a mão e escondeu o saco debaixo do lençol, e o carregador e o cabo de alimentação entre as pernas. Estava ajuizadamente deitada de costas, a olhar para o tecto, quando a enfermeira entrou e a cumprimentou delicadamente, perguntando-lhe se estava bem e se precisava de alguma coisa.
Lisbeth respondeu que estava tudo bem e que a única coisa de que precisava era de um maço de cigarros. O pedido foi gentil, mas firmemente recusado. Mas teve direito a uma caixa de pastilhas-elás-ticas com nicotina. Quando a enfermeira fechou a porta, Lisbeth viu o homem da Securitas sentado na sua cadeira, no corredor. Esperou até ouvir os passos afastarem-se antes de tirar o Palm de baixo da almofada.
Ligou-o e procurou rede.
A sensação foi próxima do choque quando o computador indicou subitamente que tinha encontrado a rede e o sinal era excelente. Contacto com a rede. Não épossível.
Saltou da cama tão depressa que uma dor aguda trespassou-lhe a anca ferida. Olhou em redor, confusa. Como? Deu lentamente a volta ao quarto, examinando os mais pequenos recantos... Não, não há aqui nenhum telemóvel. E no entanto tinha rede. Então, um sorriso irónico espalhou-se-lhe pelo rosto. Tinha forçosamente de ser uma rede sem fios e a ligação feita através de um telemóvel equipado com
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Bluetooth, que funcionava sem problemas num raio de dez a doze metros. Dirigiu o olhar para a grelha de ventilação, quase junto ao tecto.
Super Blomkvist tinha conseguido colocar um telemóvel mesmo ao lado do quarto dela. Era a única explicação.
Mas porque não mandar-lhe o telefone directamente para o quarto... A bateria. Claro!
O Palm tinha de ser recarregado de três em três dias, aproximadamente. Um telemóvel que ela submetesse a uma rude prova surfando continuamente depressa ficaria descarregado. Mikael, ou melhor, a pessoa que ele recrutara e se encontrava lá fora, devia substituir regularmente a bateria.
Em contrapartida, fornecera-lhe o carregador do Palm. Porque ela precisava de tê-lo à mão. Era mais fácil esconder e utilizar um objecto do que dois. Afinal, o Super Blomkvist não étão estúpido como isso.
Começou por perguntar a si mesma onde ia esconder o computador. Tinha de encontrar um sítio. Além da tomada ao lado da porta havia outra no painel atrás da cama, a que estavam ligados o candeeiro da mesa de cabeceira e o despertador digital. Alguém tivera o cuidado de retirar o rádio do dito painel, o que deixara um espaço escondido pela mesa de cabeceira. Tanto o Palm como o carregador cabiam lá perfeitamente. Podia utilizar a tomada do candeeiro para deixar o computador a carregar durante o dia.
Lisbeth Salander estava feliz. O coração batia-lhe loucamente no peito quando, pela primeira vez em dois meses, ligou o computador de bolso e partiu para a Net.
Surfar num Palm com um visor minúsculo e um estilete era muito mais complicado do que fazê-lo num PowerBook com um visor de 17 polegadas. Mas estava conectada. Da sua cama em Sahl-grenska podia chegar ao mundo inteiro.
Para começar, entrou num site privado que fazia publicidade às fotografias relativamente desinteressantes de um fotógrafo amador
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chamado Bill Bates, em Jobsville, Pensilvânia. Certa vez, Lisbeth verificara e ficara a saber que Jobsville não existia. Apesar disso, Bates fizera mais de 200 fotografias da localidade e pusera-as no seu site, em formatos minúsculos. Lisbeth fez correr o menu até à foto número 167 e clicou na lupa. A fotografia mostrava a igreja de Jobsville. Apontou o cursor para a cimalha do campanário e clicou. Obteve imediatamente uma janela que lhe pedia a identidade e uma pas-sword. Pegou no estilete e picou Remarkable na caixa Identidade e A(89)Cx#magnolia comopassword.
Abriu-se uma janela [ERROR - You have the wrong password], e um botão {OK - Try again]. Lisbeth sabia que se clicasse em [OK -Try again] e tentasse outra password, obteria a mesma janela - ano após ano, poderia tentar até ao infinito. Em vez disso, clicou no O da palavra ERROR.
O visor ficou negro. Em seguida, abriu-se uma porta em desenho animado e apareceu uma personagem que fazia lembrar Lara Croft. Materializou-se um balão de banda desenhada, com o texto [WHO GÓES THERE?]
Lisbeth clicou no balão e escreveu a palavra Wasp. A resposta foi imediata: [prove IT - OR ELSE...], enquanto o boneco de Lara Croft baixava a patilha de segurança de uma pistola. Lisbeth sabia que a ameaça não era totalmente fictícia. Se escrevesse a password errada três vezes seguidas, a página apagar-se-ia e o nome Wasp seria riscado da lista de membros. Escreveu cuidadosamente a password Monkey-Business.
O visor voltou a mudar, apresentando um fundo azul com o seguinnte texto em inglês:
[Bem-vinda à República Hacker, cidadã Vespa, passaram 56 dias desde a sua última visita. Há 10 cidadãos online. Deseja (a) Visitar o Fórum (b) Enviar uma Mensagem (c) Consultar o Arquivo (d) Conversar (e) Ir para a cama com alguém?}
Lisbeth clicou em (d) Conversar, passou em seguida para o menu [Who's Online?] e recebeu uma lista de nomes: Andy, Bambi, Dakota,
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Jabba, BuckRogers, Mandrake, Pred, Slip, Sisterjen, Sixofone e Trinity.
[Olá, malta], escreveu Vespa.
[Vespa. És mesmo tu?], escreveu imediatamente Sixofone.
[Vejam quem está em casa.]
[Onde te meteste?], perguntou Trinity.
[O Peste diz que estás com problemas], escreveu Dakota.
Lisbeth não tinha a certeza, mas desconfiava que Dakota era uma mulher. Todos os outros membros online, incluindo o que se dizia chamar Sisterjen, eram homens. Havia ao todo na República Hacker, da última vez que contara, 62 membros, quatro dos quais raparigas.
[Olá Trinity], escreveu Lisbeth. [Olá a todos.]
[Porque é que só cumprimentas o Trin? Somos alguns pestíferos?], protestou Dakota.
[Já saímos juntos], esclareceu Trinity. [A Vespa só se dá com pessoas inteligentes.]
Recebeu no mesmo instante cinco vai-te...
Dos 62 cidadãos, Vespa conhecera apenas dois na vida real. Peste, que, excepcionalmente, não estava online, era um deles. Trinity o outro. Era inglês e vivia em Londres. Tinham estado juntos algumas horas, dois anos antes, quando ele a ajudara, e a Mikael Blomkvist, a descobrir Harriet Vanger, estabelecendo uma escuta telefónica clandestina no pacífico arrabalde de St. Albans. Lisbeth fazia o que podia com o incómodo estilete, desejando poder dispor de um teclado.
[Ainda aí estás?], perguntou Mandrake. Ela picou as letras uma a uma.
[Peço desculpa. Só tenho um Palm. E muito lento.] [Que aconteceu ao teu computador?], indagou Pred.
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[O meu computador está bem. Sou eu que tenho problemas.] [Conta lá ao mano mais velho], escreveu Slip.
[O Estado tem-me presa.]
[O quê? Porquê?]
A pergunta surgiu, imediata, de três lados diferentes. Lisbeth resumiu a situação em cinco linhas, que foram acolhidas com o que pareceu um murmúrio de consternação.
[Como estás tu?], perguntou Trinity.
[Tenho um buraco na cabeça.]
[Noto alguma diferença], observou Bambi.
[A Vespa sempre teve ar nos miolos], afirmou Sisterjen, antes de iniciar uma série de invectivas pejorativas sobre as capacidades intelectuais de Vespa.
Lisbeth sorriu. A conversa foi relançada por uma réplica de Dakota.
[Esperem. Estamos em presença de um ataque a uma cidadã da República Hacker. Qual vai ser a nossa resposta?]
[Ataque nuclear contra Estocolmo?], propôs Sixofone.
[Não, isso seria exagerado], escreveu Vespa.
[Uma bomba pequenina?]
[Vai dar uma curva, Sixofo.]
[Podíamos apagar Estocolmo], sugeriu Mandrake.
[Um vírus que apague o governo?]
Regra geral, os cidadãos da República Hacker não espalhavam vírus. Pelo contrário, eram hackers, e consequentemente adversários ferozes dos cretinos que criam vírus informáticos com o único objectivo de sabotar a Rede e destruir computadores. Eram autênticos viciados em informação que precisavam de uma Rede a funcionar bem para poderem pirateá-la.
Em contrapartida, a proposta de apagar o governo sueco não era uma ameaça vã. A República Hacker era um clube muito restrito
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que entre os seus membros contava com os melhores dos melhores, uma força de elite a quem a Defesa nacional de qualquer país do mundo pagaria somas colossais para ter ao seu serviço com objectivos cibermilitares, se fosse possível incitar the citizens e sentir esse género de lealdade para com um estado. O que não era nada provável.
Ao mesmo tempo, porém, eram génios informáticos, que dominavam perfeitamente a arte de produzir vírus. E não era muito difícil convencê-los a participar em campanhas especiais, quando a situação o exigia. Alguns anos antes, um citizen da República Hacker, criador de programas freelancer na Califórnia, vira uma patente sua ser-lhe roubada por uma empresa, que ainda por cima tivera o descaramento de levá-lo a tribunal. O gesto motivara os activistas da República a dedicar, durante seis meses, uma considerável energia a piratear e destruir todos os computadores da dita empresa. Todos os negócios confidenciais e todos os e-mails - bem como alguns documentos fabricados que podiam dar a entender que a empresa praticava fraude fiscal - tinham sido alegremente expostos na Net, juntamente com informações sobre a amante secreta do CEO e fotos de uma festa em Hollywood onde o mesmo CEO era visto a snifar coca. A empresa abrira falência ao fim de seis meses e, apesar de entretanto terem decorrido vários anos, alguns membros mais rancorosos da República continuavam a perseguir o antigo CEO.
Se meia centena dos mais destacados hackers a nível mundial resolvessem unir-se para lançar um ataque concertado contra um Estado, esse Estado conseguiria provavelmente sobreviver, mas não sem problemas consideráveis. Os custos elevar-se-iam sem dúvida aos milhares de milhão, se Lisbeth dissesse que sim. Foi isso que a fez reflectir.
[Para já, não. Mas se as coisas não correrem como quero, talvez venha a pedir a vossa ajuda.]
[É só dizer], respondeu Dakota.
(Há muito tempo que não chateamos um governo], acrescentou Mandrake.
{Tenho uma proposta. A ideia geral é inverter o sistema de pagamento de impostos. Um programa que seria feito à medida para um pequeno país como a Noruega], escreveu Bambi.
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[Tudo muito bonito, só que Estocolmo é na Suécia], argumentou Trinity.
[Que se lixe. Tudo o que precisamos de fazer é...]
Lisbeth Salander recostou-se na almofada e seguiu a discussão com um pequeno sorriso nos lábios. Perguntou-se porque seria que, tendo tanta dificuldade em falar de si mesma às pessoas com quem se dava, revelava sem quaisquer problemas os seus segredos mais íntimos a um bando de tarados completamente desconhecidos na Internet. Mas a verdade era que se Lisbeth Salander tinha uma família e um grupo a que pertencesse era precisamente aquele bando de tarados. Nenhum deles tinha realmente a possibilidade de ajudá-la nas suas atribulações com o Estado sueco, mas sabia que, se fosse preciso, dedicariam esforço e tempo consideráveis em demonstrações de força apropriadas. Graças à Rede, poderia também encontrar refúgio no estrangeiro. Fora Peste que a ajudara a conseguir o passaporte norueguês em nome de Irene Nesser.
Nada sabia do aspecto físico dos cidadãos da República Hacker e tinha apenas uma ideia muito vaga do que faziam fora da Net - os cidadãos eram particularmente evasivos no que dizia respeito às suas identidades. Sixofone, por exemplo, afirmava ser americano, negro, do sexo masculino, de origem católica e residente em Toronto, no Canadá. Mas também podia ser branco, do sexo feminino, luterano e viver em Skõvde, na Suécia.
O que conhecia melhor era Peste - fora ele que a apresentara à família, e ninguém se tornava membro daquela sociedade exclusiva sem uma recomendação muito forte. E quem se tornava membro tinha, além disso, de conhecer pessoalmente outro cidadão. No caso de Lisbeth, Peste.
Na Net, Peste era um cidadão inteligente e socialmente dotado. Na realidade, era um trintão obeso e associal que vivia de uma pensão de invalidez e morava em Sundbyberg. Só muito raramente tomava banho e o apartamento dele fedia ao ponto de Lisbeth limitar ao máximo as suas visitas. Conviver com ele na Net era mais do que suficiente.
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Enquanto a conversa prosseguia, Lisbeth descarregou os e-mails chegados à sua caixa postal privada na República. Uma mensagem de Poison continha uma versão melhorada do seu programa Asphy-xia 1.3, agora posta à disposição de todos os cidadãos. O programa Asphyxia permitia controlar os computadores de outras pessoas através da Internet. Poison explicava que tinha utilizado o programa com êxito e que a sua versão melhorada cobria os mais recentes sistemas operativos da Unix, da Apple e da Windows. Lisbeth enviou-lhe uma curta resposta, a agradecer a actualização.
Durante a hora seguinte, enquanto a tarde caía nos Estados Unidos, meia dúzia de outros cidadãos tinham-se conectado, desejado as boas-vindas a Vespa e entrado na conversa. Quando, finalmente, Lisbeth desligou, o debate incidia na possibilidade de levar o computador do primeiro-ministro sueco a enviar mensagens atenciosas mas totalmente desconexas a outros chefes de governo do mundo. Fora criado um grupo de trabalho para aprofundar a questão. Lisbeth terminou picando uma curta contribuição com a ponta do seu estilete.
[Continuem a falar, mas não façam nada sem o meu acordo. Volto quando puder conectar-me.]
Todos enviaram "beijinhos" e aconselharam-na a ter cuidado com o buraco na cabeça.
Logo que desligou da República Hacker, Lisbeth entrou em www.yahoo.com e procurou o newsgroup Távola-Chanfrada. Descobriu que o fórum tinha dois membros, ela própria e Mikael Blomkvist. A caixa postal continha um único e-mail, enviado dois dias antes. O assunto era Lê primeiro isto.
[Olá, Sally. Ponto de situação:
A polícia ainda não descobriu a tua morada e não teve acesso ao DVD da violação do Bjurman. O DVD constitui uma prova muito forte, mas não quero dá-lo à Annika sem a tua autorização. Também
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tenho as chaves do apartamento e o passaporte em nome de Irene
Nesser.
Em contrapartida, têm o saco que tu tinhas em Gosseberga. Não sei se contém alguma coisa comprometedora.]
Lisbeth reflectiu um instante. Bah! Uma garrafa-termo meio cheia de café, algumas maçãs e uma muda de roupa. Tudo bem.
[Vais ser acusada de ofensas corporais agravadas e ferimentos, e ainda de tentativa de homicídio, na pessoa de Alexander Zalachenko, bem como de ofensas corporais agravadas e ferimentos na pessoa de Carl-Magnus Lundin, do Moto-Clube de Svavelsjõ, em Stallarholmen: consideram que o feriste a tiro num pé e lhe deste um pontapé que lhe partiu o queixo. Uma fonte fiável na polícia informa-nos, no entanto, de que, em ambos os casos, as provas são fracas. O importante é o seguinte:
(1) Antes de ser assassinado, o Zalachenko negou tudo e afirmou que tinho sido o Niedermann a disparar contra ti e a enterrar-te na floresta. Fez um depoimento acusando-te de tentativa de homicídio. O procurador vai insistir em que foi a segunda vez que tentaste matar o Zalachenko.
(2) Nem o Magge Lundin nem o Sonny Nieminen disseram uma palavra sobre o que se passou em Stallarholmen. O Lundin está preso pelo rapto da Miriam Wu. O Nieminen foi libertado.]
Lisbeth sopesou estas palavras e encolheu os ombros. Já tinha discutido tudo aquilo com Annika Giannini. Era uma situação merdosa, mas sem novidade. Contara, de coração nas mãos, tudo o que acontecera em Gosseberga, mas abstivera-se de revelar pormenores sobre Bjurman.
[Durante quinze anos, o Zala foi protegido, fizesse ele o que fizesse. Construíram-se carreiras à sombra da sua importância. Em várias ocasiões, ajudaram-no a desaparecer depois de algumas das suas patifarias. Tudo isto é criminoso. Por outras palavras, as autoridades suecas ajudaram a encobrir vários dos seus crimes.
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Se isto se viesse a saber, haveria um escândalo político que afectaria tanto os governos de direita como os sociais-democratas. O que significaria, sobretudo, que um certo número de altos responsáveis da Sapo seriam lançados aos lobos e acusados de terem mantido actividades criminosas e imorais. Mesmo que os ditos crimes tenham prescrito, o escândalo será enorme. Trata-se de pesos pesados que estão actualmente na reforma, ou perto disso.
Vão fazer tudo para minimizar os estragos, e é aqui que tu voltas a entrar no jogo. Porém, desta vez não se trata de sacrificar um peão, mas de limitar os estragos de que eles próprios podem ser vítimas. O que quer dizer que vão apertar a sério contigo.]
Lisbeth mordeu pensativamente o lábio.
{É assim que a coisa funciona: eles sabem que não vão poder guardar segredo a respeito do Zalachenko durante muito mais tempo. Eu conheço a história e sou jornalista. Sabem que, mais cedo ou mais tarde, vou publicá-la. Já não tem muita importância, uma vez que ele está morto. Agora, é para salvar a própria pele que lutam. Os seguintes pontos ocupam, consequentemente, os primeiros lugares da lista de prioridades dessa gente:
(1) Têm de convencer o tribunal de primeira instância (ou seja, a opinião pública) de que a decisão de internar-te em Sankt Stefan, em 1991, foi legítima: que tu estavas efectivamente doente.
(2) Têm de separar o "caso Lisbeth Salander" do "caso Zalachenko". Preparam-se para dizer que "é verdade, o Zalachenko era um patife, mas isso não teve nada que ver com a decisão de internar a filha. A rapariga foi internada porque era uma doente mental, tudo o mais não passa de afirmações mal-intencionadas de jornalistas ressabiados. Não, não ajudámos o Zalachenko a cometer nenhum crime. Isso são afirmações ridículas de uma adolescente doente mental."
(3) O problema é pois que, se fores ilibada no julgamento que aí vem, isso significará que o tribunal irá declarar que não és louca,
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uma prova, portanto, de que houve algo de ilícito no teu internamento em 1991• O que quer dizer que eles precisam, custe o que custar, de condenar-te ao internamento para receberes tratamento psiquiátrico. Se o tribunal decidir que estás psiquicamente doente, os media terão muito menos interesse em continuar a espiolhar o caso Salander. É assim que funcionam. Estás a acompanhar-me?}
Lisbeth assentiu para consigo mesma. Havia já muito tempo que chegara às mesmas conclusões. O problema era não saber muito bem que solução lhes dar.
[Lisbeth, a sério, esta partida vai jogar-se nos meios de comunicação e não na sala do tribunal. Infelizmente, por "razões de integridade", o julgamento irá decorrer à porta fechada.
No dia em que mataram o Zalachenko, o meu apartamento foi assaltado. Não forçaram a entrada e nada foi roubado ou mudado de sítio... excepto uma coisa: a pasta que encontrei na casa de campo do Bjurman com o relatório do Gunnar Bjõrck, de 1991, desapareceu. Simultaneamente, a minha irmã foi atacada e a cópia que ela tinha em seu poder roubada. Essa pasta é a peça mais importante da acusação.
Fingi que tínhamos ficado sem os documentos do Zalachenko. Na realidade, tenho em meu poder uma terceira cópia que tencionava entregar ao Armanskij. Agora fiz várias, que espalhei por diversos lugares.
Os nossos adversários, onde estão incluídos certos responsáveis e certos psiquiatras, tratam, evidentemente, de preparar o julgamento, com a ajuda do procurador Richard Ekstrõm. Tenho uma fonte que me dá algumas informações sobre o que estão a tramar, mas penso que tu estás em melhores condições de encontrar informações adequadas... No caso presente, é urgente.
O procurador vai tentar que te condenem a um internamento psiquiátrico. Para isso, conta com a ajuda do teu velho amigo, Peter Teleborian.
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A Annika não vai poder lançar-se numa campanha mediática da mesma forma que o Ministério Público, que pode sempre recorrer às "fugas" de informação. Ou seja, está de mãos atadas.
Eu, pelo contrário, não estou amarrado a esse género de restrições. Posso escrever exactamente o que vejo, e, mais do que isso, tenho uma revista à minha disposição.
Faltam dois pormenores importantes:
(1) Em primeiro lugar, gostaria de ter qualquer informação que prove que o procurador Ekstrõm colabora deliberadamente com o Teleborian com a firme intenção de te internar numa clínica psiquiátrica. Gostaria de poder aparecer no horário nobre da televisão e apresentar documentos que aniquilassem os argumentos dele.
(2) Para poder levar a cabo uma guerra mediática contra a Sapo, tenho de poder discutir em público coisas que tu consideras provavelmente do teu foro privado. Aspirar ao anonimato é, a partir de agora, uma ilusão perigosa, considerando tudo o que foi dito a teu respeito nos jornais desde a Páscoa. Tenho de conseguir passar nos media uma imagem completamente diferente de ti - mesmo que tu aches que isso ofende a tua intimidade - e de preferência com o teu acordo. Compreendes o que quero dizer?]
Lisbeth abriu os arquivos de [Távola-Chanfrada}. Continham vinte e seis documentos de tamanho variável.
CAPÍTULO 14
QUARTA-FEIRA, 18 DE MAIO
Rosa Figuerola levantou-se às cinco da manhã e fez uma pequena corrida antes de tomar duche, vestir unsjeans, um top branco e um casaco de linho cinzento. Preparou sanduíches e deitou café numa garrafa-termo. Pôs o coldre à cintura e tirou a Sig Sauer do cofre das armas. Pouco depois das seis, meteu-se no seu Saab 9-5 e dirigiu-se à Vittangigatan, em Vãllingby.
Gõran Mârtensson vivia no segundo e último piso de um pequeno edifício suburbano. Durante o dia anterior, Figuerola sacara dos arquivos públicos tudo o que conseguira encontrar a respeito dele. Era solteiro, o que não significava que não vivesse com alguém. A primeira vista, não havia nada de especial: não tinha fortuna e o seu estilo de vida era perfeitamente vulgar. Raramente metia baixa por doença. O único ponto que podia merecer algum reparo era o facto de ter licenças para 16 armas de fogo. Três eram armas de caça, as restantes pistolas dos mais variados tipos. Desde que devidamente licenciadas, ter armas de fogo não constituía crime, mas Rosa Figuerola alimentava uma justificada desconfiança contra as pessoas que exageravam nesse capítulo.
Parou o Saab a cerca de 40 metros do parque onde o Volvo com a matrícula começada pelas letras KAB estava estacionado e dispôs-se a esperar. Encheu até meio um copo de cartão com café tirado do termo e comeu uma sanduíche de queijo e alface. Em seguida, descascou uma laranja, partiu-a em quartos e comeu-a lentamente.
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Aquando da visita da manhã, Lisbeth Salander não estava nada bem. Tinha uma terrível dor de cabeça. Pediu um analgésico, que lhe foi dado sem discussão.
Uma hora mais tarde, as dores de cabeça tinham piorado. Tocou a chamar a enfermeira e pediu outro comprimido, que não fez qualquer efeito. Por volta do meio-dia, as dores de cabeça tinham-se tornado tão intensas que a enfermeira chamou a Dra. Endrin. Após um breve exame, a médica receitou um analgésico mais forte.
Lisbeth escondeu os comprimidos debaixo da língua e cuspiu-os mal se apanhou sozinha.
Por volta das duas da tarde começou a vomitar. Os vómitos recomeçaram às três.
Cerca das quatro horas, o Dr. Anders Jonasson entrou ao serviço, pouco antes de a Dra. Endrin terminar o seu turno. Trocaram umas breves palavras.
- Tem náuseas e dores de cabeça muito intensas. Dei-lhe Dexo-fen. Não percebo muito bem o que se passa... Estava a evoluir tão bem nos últimos tempos. Pode ser uma espécie de gripe...
- Tem febre? - perguntou o Dr. Jonasson.
- Não. Trinta e sete e dois, há uma hora. A tensão está normal.
- Okay. Vou mantê-la debaixo de olho, esta noite.
- O problema é que vou estar de férias nas próximas três semanas - disse Endrin. - Vais ter de ser tu ou o Svantesson a tratar dela. Mas o Svantesson mal a viu...
- Tudo bem. Inscrevo-me como médico assistente dela durante a tua ausência.
- Óptimo. Se houver alguma crise e precisares de ajuda, não hesites em telefonar.
Foram ver Lisbeth juntos. Estava deitada na cama, com o lençol puxado até ao nariz e um ar miserável. Anders Jonasson pôs-lhe a mão na testa e verificou que estava húmida.
- Acho que vou precisar de examiná-la. Agradeceu à Dra. Endrin e despediu-se dela.
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Às cinco da tarde, o Dr. Jonasson reparou que a temperatura de Lisbeth tinha subido rapidamente para os 37,8°C, que foram registados na papeleta. Foi vê-la mais três vezes durante o resto da tarde e anotou que a febre se mantinha estável, por volta dos 38°C - demasiado alta para ser normal, mas não o bastante para constituir um problema. Por volta das oito da noite mandou fazer um raio-X ao crânio.
Quando recebeu as radiografias, examinou-as cuidadosamente. Não conseguia notar nada de especial, mas verificou que havia uma parte mais escura, quase imperceptível, imediatamente à volta do orifício de entrada da bala. Anotou na papeleta uma observação anódina, que em nada o comprometia:
"O raio-X não permite qualquer conclusão definitiva, mas o estado da paciente piorou manifestamente ao longo do dia. Não é de excluir uma pequena hemorragia, não visível nas imagens radiológicas. A paciente deve permanecer em repouso e sob estreita vigilância médica durante os próximos dias."
Erika Berger encontrou 23 mensagens na sua caixa de correio quando chegou ao SMP, às seis e meia da manhã de quarta-feira.
Uma delas tinha como remetente redaktio-sr@sverigesradio.com. O texto era curto. Apenas três palavras:
[puta de merda]
Suspirou e preparou-se para apagar a mensagem. No mesmo instante, mudou de opinião. Subiu na lista das mensagens recebidas e abriu a que tinha chegado dois dias antes. O remetente era central-red@smpost.se. Hum. Duas mensagens com as palavras "puta de merda" com dois remetentes falsos. Abriu uma nova pasta, a que chamou [MALUcodosmedia] e guardou lá os dois e-mails. Feito isto, passou ao menu de actividades da manhã.
Gõran Mârtensson saiu de casa às vinte para as oito. Meteu-se no Volvo e dirigiu-se ao centro da cidade, onde bifurcou, por Stora
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Essingen e Grõndal, para Sõdermalm. Meteu pela Hornsgatan e chegou à Bellmansgatan pela Brânnkyrkagatan. Virou à esquerda na Tavastgatan, próximo àopub Bishop's Arms, e estacionou junto à esquina.
Rosa Figuerola teve uma sorte louca. No preciso instante em que chegava diante do Bishop's Arms, uma carrinha arrancou e deixou-lhe um lugar para estacionar na Bellmansgatan, exactamente no cruzamento com a Tavastgatan. Do lugar onde estava tinha uma vista magnífica. Via um canto do vidro traseiro do Volvo de Mârtensson na Tavastgatan. Mesmo em frente dela, na íngreme descida para Prys-sgrànd, tinha o número 1 da Bellmansgatan. Do ângulo em que se encontrava não conseguia ver a porta de entrada, mas veria de certeza quem saísse ou entrasse. Não duvidou nem por um segundo que era aquela porta a razão da visita de Mârtensson ao bairro. Era ali que morava Mikael Blomkvist.
A primeira coisa de que se apercebeu foi de que a área à volta do número 1 da Bellmansgatan era um pesadelo em termos de vigilância. Os únicos lugares de onde podia ver directamente a porta, na parte baixa da rua, eram o troço sobrelevado e a passarela ao nível dos ascensores públicos e da Casa Laurin. Não havia lugar onde estacionar lá em cima, e um observador que se fosse plantar na passarela pareceria tão exposto como uma andorinha empoleirada num velho fio telefónico. O sítio onde tinha estacionado era, em princípio, o único onde podia ficar dentro do carro tendo a possibilidade de observar toda a área. Mas era também um mau lugar, porque uma pessoa atenta não deixaria de reparar nela dentro do carro.
Voltou a cabeça. Não queria sair do carro e pôr-se a deambular pelo bairro: sabia que seria facilmente notada. Não tinha o físico ideal para aquele género de trabalho.
Mikael Blomkvist saiu de casa às nove e dez. Rosa Figuerola tomou nota da hora. Viu-o olhar para a passarela que galgava a Bellmansgatan e começar a subir a ladeira em direcção a ela.
Abriu o porta-luvas e tirou de lá um mapa de Estocolmo, que colocou em cima do banco do passageiro. Depois abriu a agenda, tirou uma esferográfica do bolso, pegou no telemóvel e fingiu estar a
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falar. Mantinha a cabeça baixa, de modo que a mão que segurava o telefone lhe tapava uma parte da cara.
Viu Blomkvist lançar um rápido olhar à Tavastgatan. Sabia que estava a ser vigiado e tinha inevitavelmente visto o carro de Mârtensson, mas continuou a andar sem mostrar qualquer interesse no veículo. Age calma e friamente. Outro qualquer abriria a porta do carro e desataria à estalada ao condutor.
No instante seguinte, Blomkvist passou pelo carro dela. Rosa Figuerola estava muito ocupada a procurar uma rua no mapa de Estocolmo ao mesmo tempo que falava ao telefone, mas sentiu que ele a olhava de passagem. Desconfia de tudo. Viu-o, pelo retrovisor do lado do passageiro, continuar em direcção à Hornsgatan. Já o tinha visto várias vezes na televisão, mas era a primeira vez que o via em pessoa. Vestia jeans, uma T-shirt e um casaco cinzento. Levava uma sacola ao ombro e caminhava com um passo descontraído. Muito giro, o tipo.
Gõran Mârtensson apareceu na esquina do Bishops Arms e seguiu Blomkvist com o olhar. Levava ao ombro um saco de desporto bastante volumoso e estava a acabar uma conversa no telemóvel. Figuerola estava à espera de vê-lo seguir Blomkvist, mas, para sua surpresa, Mârtensson atravessou a rua à frente do carro dela e começou a descer a ladeira em direcção ao prédio do jornalista. Um segundo mais tarde, um homem de fato-macaco azul passou também pelo carro e foi atrás dele. Oláf De onde vens tu?
Detiveram-se diante da porta do prédio. Mârtensson teclou um código e desapareceram os dois no interior. Vão revistar o apartamento. É a festa dos amadores. Aquele deve pensar que tudo lhe é permitido.
Então, Rosa Figuerola ergueu os olhos para o retrovisor e sobressaltou-se ao ver Mikael Blomkvist reaparecer subitamente. Tinha voltado para trás e estava parado a cerca de dez metros atrás dela, suficientemente perto para poder ver Mârtensson e o cúmplice do alto da rua. Estudou-lhe o rosto. Não estava a olhar para ela. Em contrapartida, vira Gõran Mârtensson entrar no prédio. Instantes mais tarde, rodou sobre os calcanhares e retomou o caminho da Hornsgatan.
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Rosa Figuerola ficou imóvel durante trinta segundos. Ele sabe que está a ser seguido. Vigia tudo o que se passa à sua volta. Mas porque é que não faz nada? Uma pessoa normal teria removido céu e terra... Tem uma ideia qualquer na cabeça.
Mikael Blomkvist desligou o telefone e contemplou pensativamente o bloco de notas que tinha em cima da secretária. O Registo Automóvel acabava de informá-lo de que o carro conduzido por uma mulher loira que vira estacionado no alto da Bellmansgatan pertencia a uma Rosa Figuerola, nascida em 1969 e com residência na Ponton-a járgatan, em Kungsholmen. Como fora uma mulher que vira dentro do carro, Mikael supôs que seria a própria Figuerola.
Estava a falar ao telemóvel e a consultar um mapa da cidade aberto em cima do banco do passageiro. Mikael não tinha qualquer razão para pensar que tivesse alguma coisa a ver com o Clube Zalachenko, mas ganhara o hábito de registar todos os acontecimentos insólitos à sua volta, sobretudo nas proximidades da casa onde vivia.
Ergueu a voz e chamou Lotta Karim.
- Quem será esta? Arranja-me uma foto e tudo o que conseguires descobrir sobre o passado dela.
- Sim, patrão - disse Lotta, antes de voltar ao seu gabinete.
O director financeiro do SMP, Christer Sellberg, estava com um ar perfeitamente aturdido. Afastou a folha A4 com os nove curtos pontos que Erika Berger tinha apresentado na reunião quinzenal da comissão orçamental. O director do orçamento, Ulf Flodin, parecia preocupado. Borgsjõ, o presidente do CA, mantinha a sua habitual expressão neutra.
- É impossível - declarou Sellberg, com um sorriso delicado.
- Porquê? - perguntou Erika.
- O CA nunca vai aceitar. É contrário a todo o bom senso.
- Recomecemos pelo princípio - propôs Erika. - Fui contratada para fazer do SMP um jornal que volte a dar lucro. Para o conseguir, preciso de ter meios. Não é verdade?
- Sim, mas...
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- Não é com boas intenções e boa vontade, fechada numa gaiola de vidro, que vou, como que por magia, fazer aparecer todos os dias o conteúdo de um grande jornal.
- A senhora não sabe nada das realidades económicas.
- É possível. Mas sei como se faz um jornal. E a realidade é que, nestes últimos quinze anos, o SMP sofreu uma redução de cento e dezoito pessoas. Admito que metade foram gráficos, substituídos pelos progressos técnicos, etc, mas também perdemos quarenta e oito jornalistas redactores de textos.
- Foram cortes necessários. Se não o tivéssemos feito, o jornal teria deixado de existir há muito tempo.
- Já vamos ver o que é necessário e o que não é necessário. Nos últimos três anos foram extintos dezoito postos de jornalistas. A situação actual é que temos nove vagas no corpo redactorial, parcialmente preenchidas por colaboradores externos. A secção de Desporto tem um enorme défice em pessoal. Deviam ser nove e, desde há mais de um ano, dois lugares continuam por ocupar.
- Trata-se de poupar dinheiro. É tão simples como isso.
- Na Cultura, há três vagas por ocupar. Na Economia, uma. A secção de Direito na prática não existe, mas... temos um chefe que vai buscar jornalistas aos Casos de Polícia para cada trabalho. E já não falo de mais e melhor. O SMP não faz qualquer cobertura jornalística digna desse nome das administrações e das autoridades há pelo menos oito anos. Nessa área, dependemos totalmente de freelancers e dos comunicados da TT... e, como todos sabem, há séculos que a TT desmantelou a sua secção Administração. Por outras palavras, não há uma única redacção em toda a Suécia que esteja em condições de vigiar as administrações e as autoridades do Estado.
- A imprensa escrita encontra-se numa situação muito delicada. ..
- A realidade é que ou o SMP toma de imediato a iniciativa de passar à ofensiva, ou mais vale fechar. Temos hoje menos empregados, que produzem mais texto todos os dias. Os textos são medíocres, superficiais, falta-lhes credibilidade. Consequência: as pessoas deixam de ler o SMP.
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- Parece não compreender...
- Estou farta de o ouvir dizer que não compreendo. Não sou nenhuma colegial em estágio que veio para aqui para se divertir.
- Mas a sua proposta é insensata.
- Ah, sim? Porquê?
- Propõe que o jornal não produza receitas.
- Diga-me, Sellberg, no decurso deste ano vai distribuir uma grande quantia em dividendos aos vinte e três accionistas do jornal. A isso, há que acrescentar os bónus delirantes, que vão custar dez milhões de coroas, pagos às nove pessoas com assento no CA. Concedeu a si mesmo um bónus de quatrocentas mil coroas como recompensa por ter administrado os despedimentos no SMP. Estamos longe, é certo, dos bónus que certos directores da Skandia se atribuíram, mas, em minha opinião, você não merece um ore. É justo pagar um bónus a alguém que fez qualquer coisa para reforçar o SMP. Na realidade, os seus despedimentos enfraqueceram o jornal e cavaram ainda mais o buraco.
- O que acaba de dizer é muito injusto. O CA ratificou todas as
medidas que tomei.
- O CA ratificou as suas medidas porque você garantiu distribuições de dividendos todos os anos. Isso tem de acabar imediatamente.
- Propõe então que o CA decida suprimir a distribuição de dividendos e os pagamentos de bónus. Como é que acha que os accionistas vão aceitar isso?
- Proponho um sistema de lucro zero para este ano. O que significaria uma economia de quase vinte e um milhões de coroas e a possibilidade de reforçar o pessoal e a tesouraria do SMP. Proponho igualmente uma redução de salários para os directores. Pagam-me um salário mensal de oitenta e oito mil coroas, o que é pura loucura para uma jornalista que não tem sequer condições para preencher as vagas na secção de Desporto.
- Quer baixar o seu próprio salário? É uma espécie de comunismo salarial que preconiza?
- Não diga parvoíces. Recebe cento e doze mil coroas por mês, contando com o bónus anual. Se o jornal estivesse bem e os lucros
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fossem bons, poderia atribuir a si mesmo os bónus que quisesse. Mas este ano não está para aumentos. Proponho reduzir para metade os ordenados de todos os directores.
- O que não compreende é que os nossos accionistas só o são porque querem ganhar dinheiro. Chama-se a isto capitalismo. Se lhes propuser perderem dinheiro, não vão querer continuar como accionistas.
- Não estou a propor que percam dinheiro, mas é bem possível que lá cheguemos. Ser proprietário implica uma responsabilidade. Acaba agora mesmo de dizer que aqui é o capitalismo que prevalece. Os proprietários do SMP querem lucros. Mas as regras são tais que é o mercado que decide se há lucros ou prejuízos. Segundo o seu raciocínio, quer que as regras do capitalismo sejam selectivamente válidas para os trabalhadores do SMP, mas que os accionistas, e o senhor, claro, não lhes estejam sujeitas.
Sellberg suspirou e ergueu os olhos para o céu. Desesperado, procurou Borgsjõ com o olhar. Borgsjõ estava a estudar pensativamente os nove pontos do programa de Erika Berger.
Rosa Figuerola teve de esperar 49 minutos antes que Gõran Mârtensson e o indivíduo desconhecido voltassem a sair do prédio na Bellmansgatan. Quando os dois começaram a subir a rua na sua direcção, pegou na Nikon com a teleobjectiva de 300 mm e fez duas fotos. Devolveu a máquina ao porta-luvas e estava de novo a fingir-se atarefada com o mapa de Estocolmo quando lançou um olhar aos ascensores públicos. Não queria acreditar no que via. Do cimo da Bellmansgatan, mesmo ao lado das portas dos ascensores, uma mulher morena filmava Mârtensson e o cúmplice com uma antiquada máquina analógica. Mas que merda é esta? Um congresso de espionagem na Bellmansgatan?
Mârtensson e o desconhecido separaram-se ao cimo da rua, sem trocarem uma palavra. Mârtensson dirigiu-se ao carro na Tavastgatan. Ligou o motor, arrancou e desapareceu do campo de visão de Figuerola.
Rosa olhou para o retrovisor, onde viu as costas do homem de macacão azul. Erguendo o olhar, verificou que a mulher da máquina acabara de filmar e avançava na sua direcção.
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Cara ou coroa? Já sabia quem era Gõran Mârtensson e o que fazia. Já o homem do fato-macaco azul e a mulher da máquina de filmar eram caras desconhecidas. Mas se saísse do carro, corria o risco de ser vista pela cineasta.
Não se mexeu. Viu, pelo retrovisor, o homem do fato-macaco azul virar para a Brânnkyrkagatan. Esperou que a mulher da máquina de filmar chegasse ao cruzamento à sua frente. No entanto, em vez de seguir o tipo do fato-macaco azul, a mulher deu uma volta de 180 graus e desceu em direcção ao número 1 da Bellmansgatan. Rosa Figuerola calculou que andaria por volta dos 35 anos. Tinha cabelos castanhos, cortados curtos, e vestia jeans escuros e um casaco preto. Mal ela se afastou um pouco, Figuerola abriu precipitadamente a porta do carro e correu para a Brânnkyrkagatan. Não viu em parte alguma o homem do fato-macaco azul. No instante seguinte, uma carrinha Toyota estacionada junto ao passeio arrancou. O homem do macacão azul ia ao volante. Figuerola fixou a matrícula. E mesmo que não o tivesse feito, ser-lhe-ia fácil reencontrar o veículo, que ostentava nos lados a marca Casa das Chaves Lars Faulsson, e um número de telefone.
Não tentou correr para o carro e seguir a furgoneta. Regressou calmamente e chegou mesmo a tempo de ver a mulher da máquina entrar no prédio de Mikael Blomkvist.
Sentou-se ao volante do Saab e anotou no bloco a matrícula da carrinha e o número de telefone da Casa das Chaves Lars Faulsson. Feito isto, coçou a cabeça. Havia um misterioso movimento à volta da residência de Mikael Blomkvist! Ergueu os olhos para o telhado do número 1 da Bellmansgatan. Sabia que Blomkvist tinha um apartamento no sótão, mas, depois de consultar os planos dos serviços municipais, ficara a saber que se situava do lado oposto, com janelas que davam para a baía de Riddardjãrden e a cidade antiga. Uma morada chique num bairro histórico. Perguntou a si mesma se a usaria para impressionar.
Passados nove minutos, a mulher da máquina de filmar saiu do prédio. Em vez de subir a ladeira em direcção à Tavastgatan, continuou a descê-la e virou à direita na esquina de Pryssgránd. Hum.
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Se tivesse um carro estacionado lá em baixo, perdê-la-ia irremediavelmente. Mas se estivesse a pé, só teria uma saída: voltar à Brânnkyrkagatan por Pustegrãnd, mais perto de Slussen.
Rosa Figuerola apeou-se do carro e começou a percorrer a Brânnkyrkagatan em direcção a Slussen. Tinha quase chegado a Pustegrãnd quando a mulher da máquina de filmar apareceu à sua frente. Bingo! Sempre atrás dela, passou pelo Hilton, na praça de Sõdermalm, e pelo Museu da Cidade, em Slussen. A mulher caminhava com um passo rápido e resoluto, sem olhar em redor. Figuerola deu-lhe cerca de trinta metros de avanço. Viu-a desaparecer na estação de metro de Slussen e acelerou o passo, mas deteve-se quando ela parou no Point-Presse em vez de dirigir-se ao torniquete.
Ficou a observar a mulher que esperava a sua vez na fila. Teria cerca de um metro e setenta de altura e um ar bastante desportivo, com as suas sapatilhas de jogging. Vendo-a ali, com os dois pés solidamente assentes no chão diante do quiosque de jornais, Rosa Figuerola teve subitamente o pressentimento de que era da polícia. A mulher comprou qualquer coisa que parecia ser uma caixa de pastilhas antes de voltar a Sõdermalm e virar à direita na Katarinavãgen.
Continuou a segui-la. Tinha praticamente a certeza de que a mulher não reparara nela. Viu-a dobrar a esquina a seguir ao MacDonalds, mas manteve a mesma distância, cerca de quarenta metros.
Quando dobrou por sua vez a esquina, a mulher tinha desaparecido. Deteve-se, surpreendida. Merda! Passou lentamente em frente das portas. E foi então que viu o painel: Milton Security.
Assentiu com a cabeça e voltou à Bellmansgatan. Foi de carro até à Gõtgatan, onde se situava a redacção da Millennium, e passou a meia hora seguinte a percorrer as ruas à volta da redacção. Não viu o Volvo de Mârtensson. Pouco antes do meio-dia, voltou a Kungsholmen e foi para o ginásio levantar pesos durante uma hora.
- Temos um problema - disse Henry Cortez. Malin Eriksson e Mikael Blomkvist ergueram os olhos do manuscrito do futuro livro sobre Zalachenko. Era uma e meia.
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- Senta-te - disse Malin.
- Trata-se da Vitavara, SA, a empresa que fabrica no Vietname as sanitas que vendem aqui a mil e setecentas coroas cada.
- Hum. E qual é o problema? - perguntou Mikael.
- A Vitavara, SA é integralmente detida por uma empresa-mãe, a SveaBygg, SA.
- Ah. Um peso pesado.
- Sim. O presidente do CA chama-se Magnus Borgsjõ, um profissional dos CA. E, entre outras coisas, presidente do CA do Svenska Morgon-Posten e dono de quase dez por cento do jornal.
Mikael lançou-lhe um olhar acerado.
- Tens a certeza?
- Absoluta. O patrão da Erika é um filho da puta que explora crianças no Vietname.
- Ups! - disse Malin Eriksson.
O assistente editorial Peter Fredriksson parecia muito pouco à vontade quando, por volta das duas da tarde, bateu delicadamente à porta da gaiola de vidro de Erika Berger.
- Sim?
- Bem, é um pouco delicado, mas alguém, aqui da redacção recebeu um e-mail teu.
- Meu?
- Sim. - Suspirou.
- Do que é que se trata?
Fredriksson entregou-lhe várias folhas A4 com e-mails dirigidos a Eva Carlsson, uma estagiária de 26 anos que trabalhava na Cultura. O remetente era, de acordo com o cabeçalho, erika.berger@smpost.se.
[Minha adorada Eva. Quero acariciar-te e beijar-te os seios. Ardo de desejo e tenho dificuldade em dominar-me. Suplico-te que respondas aos meus sentimentos. Podemos encontrar-nos? Erika.]
Eva Carlsson não respondera a esta abordagem, o que tivera como resultado dois outros e-mails, nos dias seguintes.
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[Eva, minha querida adorada. Suplico-te que não me afastes. Estou louca de desejo. Quero-te nua. Quero-te custe o que custar. Ficarás bem comigo. Nunca te arrependerás. Vou beijar cada centímetro da tua pele nua, os teus seios magníficos e a tua doce gruta. Erika]
[Eva, porque não respondes? Não tenhas medo de mim. Não me digas que não. Também não és nenhuma santa. Sabes do que estou a falar. Quero fazer amor contigo e serás ricamente recompensada. Se fores boazinha para mim, eu serei boazinha para ti. Pediste um prolongamento do teu estágio. Está ao meu alcance fazê-lo, e até passar-te a efectiva. Vai ter comigo às nove horas ao meu carro, na garagem. Tua, Erika.]
- Ah, bom - disse Erika. - E agora certamente ela interroga-se se fui eu que lhe enviei estas propostas.
- Não exactamente... quer dizer... hã...
- Peter, não fales para dentro.
- Talvez tenha quase acreditado no primeiro e-mail, ou pelo menos ficou muito espantada. Mas depois compreendeu que isto era completamente idiota e absolutamente nada o teu género, e então...
- Então?
- Bem, está muito atrapalhada e não sabe muito bem o que fazer. Devo dizer que a impressionas e que ela gosta de ti... como chefe, quero dizer. Por isso veio pedir-me conselho.
- Estou a ver. E que foi que lhe disseste?
- Disse-lhe que alguém falsificou o teu endereço para a assediar. Ou assediá-las às duas. E depois prometi-lhe falar-te do assunto.
- Obrigada. Podes pedir-lhe que venha falar comigo dentro de dez minutos?
Erika utilizou este tempo para escrever um e-mail bem à sua maneira:
[Vejo-me na obrigação de informar todos os colaboradores de que uma das nossas colegas recebeu correio electrónico de alguém que se faz passar por mim. Estas mensagens contêm alusões sexuais extremamente
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grosseiras. Pelo meu lado, recebi e-mails de conteúdo obsceno de um remetente que se diz "centralred" no SMP. Este endereço não existe no jornal, como todos sabem.
Consultei o director informático, que me disse ser muito fácil criar um falso endereço expedidor. Não sei como se faz, mas há aparentemente na Internet sites que oferecem esses serviços. Tenho de chegar à triste conclusão de que há entre nós um maníaco que se diverte com este género de coisas.
Gostaria de saber se mais alguém recebeu e-mails estranhos. Nesse caso, gostaria que entrassem imediatamente em contacto com o assistente editorial Peter Fredriksson. Se esta ignomínia continuar, teremos de considerar a hipótese de apresentar queixa na polícia.
Erika Berger, directora editorial.]
Imprimiu uma cópia do e-mail e clicou em Enviar, para que a mensagem chegasse a todos os empregados do SMP. Nesse instante, Eva Carlsson bateu-lhe à porta.
- Bom dia, senta-te - disse-lhe Erika. - Disseram-me que recebeste e-mails enviados por mim.
- Bah! Não acreditei nem por um segundo que pudessem ser teus.
- Mas no momento em que aqui entraste, recebeste um e-mail meu. Um e-mail que escrevi de facto e enviei a todos os empregados.
Estendeu a Carlsson a cópia impressa.
- Okay. Compreendo - disse a jovem.
- Lamento que te tenham escolhido como alvo nesta campanha nojenta.
- Não tens culpa nenhuma do que um maluco qualquer possa inventar.
- Queria apenas ter a certeza de que não te resta a mínima suspeita a meu respeito nesta história dos e-mails.
- Nunca acreditei que pudessem vir de ti.
- Óptimo, obrigada - disse Erika, e sorriu.
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Rosa Figuerola passou a parte da tarde a reunir informações. Começou por pedir uma fotografia de Lars Faulsson, para se certificar de que era de facto a mesma pessoa que tinha visto na companhia de Gõran Mârtensson. Em seguida, teclou o nome nos registos judiciários e obteve imediatamente um resultado.
Lars Faulsson, de 47 anos e conhecido pela alcunha de Falun, iniciara a sua carreira aos 17 anos, a roubar automóveis. Nos anos 70 e 80 fora investigado duas vezes por suspeita de roubo com arrombamento, furto agravado e receptação. Fora condenado da primeira vez a uma pequena pena de prisão e da segunda a três anos de cárcere. Na época, era considerado um indivíduo com futuro no meio criminal e fora interrogado como suspeito em pelo menos outros três assaltos, um dos quais à caixa-forte de um grande armazém em Vãterás, um caso muito mediatizado. Depois de cumprida a pena, entrara na linha... ou pelo menos não cometera qualquer crime pelo qual tivesse sido preso e julgado. Em contrapartida, tornara-se serralheiro - como que por acaso - e, em 1987, criara a sua própria empresa, Casa das Chaves Lars Faulsson, com uma morada em Norrtull. A identificação da mulher desconhecida que filmara Mârtensson e Faulsson acabara por revelar-se mais fácil do que Figuerola imaginara. Bastara-lhe ligar para a Milton Security e explicar que procurava uma das empregadas que conhecera havia algum tempo mas de cujo nome não se lembrava. Podia, no entanto, fornecer uma boa descrição da pessoa em causa. A recepcionista dissera-lhe que se tratava de Susanne Linder e passara-lhe a chamada. Quando Susanne Linder atendera, Figuerola desculpara-se dizendo que se tinha enganado no número.
Entrou nos arquivos do Registo Civil e verificou que havia 18 pessoas com o nome de Susanne Linder no distrito de Estocolmo. Três delas andavam à volta dos 35 anos. Uma morava em Norrtálje, outra em Estocolmo e a terceira em Nacka. Pediu as fotos e identificou imediatamente a mulher que seguira naquela manhã como sendo a Susanne Linder que vivia em Nacka.
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Preparou um resumo escrito dos acontecimentos do dia e passou pelo gabinete de Torsten Edklinth.
Por volta das cinco da tarde, Mikael Blomkvist fechou o dossier da pesquisa levada a cabo por Henry Cortez. Christer Malm pousou o texto de Henry, que já lera quatro vezes. Henry estava sentado no sofá do gabinete de Malin Eriksson, com um ar culpado.
- Café? - perguntou Malin, pondo-se de pé. Voltou pouco depois, com quatro canecas e a cafeteira.
Mikael suspirou.
- É um raio de uma boa história - disse. - Pesquisa impecável. Documentada de uma ponta à outra. Perfeitamente dramatizada com um filho da mãe que rouba os suecos servindo-se do sistema... o que é perfeitamente legal... mas que é suficientemente ganancioso e mau para recorrer a uma empresa que explora crianças no Vietname.
- Muito bem escrito, além disso - acrescentou Christer. - Depois de isto ser publicado, o Borgsjõ vai ser persona non grata na vida económica sueca. A televisão vai reagir a este texto. E ele vai ver-se no mesmo banho que os directores da Skandia e outros tubarões. Um autêntico furo da Millennium. Bom trabalho, Henry.
Mikael concordou com um gesto de cabeça.
- Exceptuando este problema com a Erika, que vem estragar a festa - disse.
Christer assentiu.
- Mas porque é que isso há-de ser um problema? - perguntou Malin. - Não é a Erika que é o escroque. Temos o direito de investigar qualquer presidente de um CA, mesmo que seja o patrão da Erika.
- De todos os modos, é um raio de um problema - disse Mikael.
- A Erika não deixou totalmente a Millennium - explicou Christer. - Tem trinta por cento da revista e lugar no nosso conselho de administração. É inclusivamente a presidente, até que possamos eleger a Harriet Vanger na próxima reunião, que será só em Agosto. E a Erika trabalha no SMP, também tem lugar no CA deles, e nós vamos denunciar o presidente.
Silêncio sombrio.
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- Bom, nesse caso, o que é que fazemos? - perguntou Henry. - Abafamos a notícia?
Mikael olhou-o bem de frente nos olhos.
- Não, Henry. Não vamos abafar o artigo. Não é a nossa maneira de trabalhar aqui na Millennium. Mas vai exigir um raio de um trabalho ingrato. Não podemos simplesmente despejar isto em cima da Erika sem a avisar.
Christer Malm assentiu com a cabeça e agitou um dedo.
- Vamos pôr a Erika num aperto dos diabos. Vai ter de vender imediatamente a sua quota e demitir-se do CA da Millennium, ou, no pior dos casos, despedir-se do SMP. Seja como for, vai ver-se envolvida num terrível conflito de interesses. Muito francamente, Henry. .. estou de acordo com o Mikael, temos de publicar o artigo, mas é possível que sejamos obrigados a adiá-lo por um mês.
Mikael confirmou com um aceno de cabeça.
- Porque também nós estamos envolvidos num conflito de lealdades - disse.
- Queres que seja eu a telefonar-lhe? - ofereceu-se Christer.
- Não - disse Mikael. - Vou ligar-lhe para marcar um encontro. Por exemplo, esta noite.
Torsten Edklinth escutou atentamente o relato que Rosa Figuerola lhe fez do corrupio à volta do prédio de Mikael Blomkvist na Bellmansgatan. Havia ali qualquer coisa que parecia não bater certo.
- Dizes então que um funcionário da Sapo entrou no prédio onde mora o Mikael Blomkvist acompanhado por um ex-arrombador de cofres convertido em serralheiro.
- Exactamente.
- Em tua opinião, o que foi que fizeram uma vez a porta aberta?
- Não sei. Mas demoraram-se por lá quarenta e nove minutos. Parece lícito supor que o Faulsson abriu a porta e o Mârtensson entrou no apartamento do Blomkvist.
- Para fazer o quê?
- Não pode ter sido para instalar equipamento de escuta, porque isso não demora mais de um minuto. O Mârtensson deve ter
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andado a espiolhar os papéis do Blomkvist, ou o que quer que fosse que ele tinha lá em casa.
- Mas o Blomkvist está de sobreaviso... Já roubaram o relatório do Bjõrck de casa dele.
- Exacto. Sabe que está a ser vigiado, e vigia aqueles que o vigiam. Mantém-se impassível.
- Como assim?
- Ele tem um plano. Está a reunir provas e tenciona denunciar o Gõran Mârtensson. É a única possibilidade.
- E então aparece a tal mulher, a Linder.
- Susanne Linder, trinta e quatro anos, residente em Nacka. Ex-polícia.
- Polícia?
- Frequentou a Academia de Polícia e trabalhou seis anos nas brigadas de intervenção em Sõdermalm. Então, de repente, pediu a demissão. Não há nada nos papéis que explique porquê. Esteve alguns meses desempregada antes de ser contratada pela Milton Security.
- O Dragan Armanskij - disse Edklinth, pensativamente. -Quanto tempo ficou ela no prédio?
- Nove minutos.
- Que ocupou como?
- Diria... uma vez que estava a filmar o Mârtensson e o Fauls-son na rua... que reúne provas das actividades dos dois. O que significa que a Milton Security está a trabalhar com o Mikael Blomkvist e colocou câmaras de vigilância no apartamento dele, ou nas escadas. Provavelmente, entrou para recolher a informação dessas câmaras.
Edklinth suspirou. A história de Zalachenko começava a tornar-se imensamente complicada.
- Bom. Obrigado. Vai para casa. Preciso de pensar em tudo isto. Rosa Figuerola foi para o ginásio na Praça Sankt Erik e fez uma
sessão de cardiofitness.
Mikael Blomkvist usou o seu novo telemóvel Ericsson TIO azul para ligar a Erika, no SMP. Interrompeu-a a meio de uma discussão
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com os redactores sobre a orientação a dar a um texto sobre terrorismo internacional.
- Ora viva! Estás bem?... Espera um segundo. Erika tapou o telefone com a mão e olhou em redor.
-Julgo que acabámos - disse, e então distribuiu algumas últimas instruções.
Quando ficou sozinha na gaiola de vidro, voltou a levantar o telefone.
- Olá, Mikael. Desculpa não ter dado notícias. Estou cheia de trabalho e há mil coisas a assimilar.
- Eu também não tenho parado - respondeu Mikael.
- Como vai o caso Salander?
- Bem. Mas não foi por isso que te telefonei. Preciso de falar contigo. Esta tarde.
- Gostaria muito. Mas tenho de ficar aqui até às oito. E estou estourada. Ainda não parei desde as seis da manhã.
- Ricky... não estou a falar de animar a tua vida sexual. Preciso de falar contigo. É importante.
Erika ficou calada por um segundo.
- E a propósito de quê?
- Digo-te quando nos virmos. Mas não é nada divertido.
- Okay. Vou a tua casa às oito e meia.
- Não, em minha casa não. É uma longa história, mas o meu apartamento vai estar off limits durante algum tempo. Encontramo-nos no Samirs Gryta e bebemos uma cerveja.
- Eu vou conduzir.
- Então bebemos uma cerveja sem álcool.
Erika Berger estava ligeiramente irritada quando chegou ao Samirs Gryta, por volta das oito e meia. Pesava-lhe na consciência não ter dado notícias a Mikael desde o dia em que pusera os pés no SMP. Mas nunca tivera tanto trabalho como naquele momento.
Mikael fez-lhe sinal de uma mesa de canto, em frente da janela. Ela demorou-se à porta. Por um segundo, Mikael pareceu-lhe uma pessoa completamente desconhecida, e sentiu que o via com novos
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olhos. Quem é aquele? Meu Deus, estou tão cansada. Então, ele pôs-se de pé e beijou-a na face, e ela apercebeu-se, consternada, de que não pensava nele havia semanas, e tinha umas saudades horríveis. Foi como se o tempo no SMP tivesse sido um sonho e de repente ela fosse acordar no sofá do seu gabinete na Millennium. Parecia irreal.
- Olá, Mikael.
- Olá, senhora directora editorial. Já comeste?
- São oito e meia. Não tenho os teus detestáveis horários de refeição.
E só então descobriu que estava com uma fome canina. Samir apareceu com a ementa e ela pediu um miniprato de lulas e batatas salteadas e uma cerveja sem álcool. Mikael encomendou cuscus e uma cerveja.
- Como tens passado? - perguntou ela.
- Vivemos uma época interessante. Tenho com que me entreter.
- Como está a Lisbeth?
- Faz parte do que é interessante.
- Micke, não faço a mais pequena tenção de te roubar a história.
- Desculpa... é que estou sempre a tentar evitar responder. Neste momento, as coisas estão um pouco embrulhadas. Eu quero contar, mas demorava metade da noite. Como é isso de ser chefe do SMP?
- Não exactamente como na Millennium. - Erika ficou calada por um instante. - Apago-me como uma vela quando caio na cama e de manhã, quando acordo, só vejo números à minha frente. Tenho saudades de ti. Queria ir dormir para tua casa. Estou demasiado cansada para fazer amor, mas gostava de me aninhar e dormir a teu lado.
- Lamento, Ricky. Neste momento, o meu apartamento não é convidativo.
- Porquê? Aconteceu alguma coisa?
- Bem... um bando de palhaços pôs lá um monte de aparelhos de escuta e agora ouvem tudo o que digo. Pelo meu lado, montei câmaras de vigilância que mostram o que se passa quando não estou lá. Acho que devemos poupar ao mundo a visão das tuas nádegas.
- Estás a brincar?
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.? Mikael abanou a cabeça.
- Não. Mas não era por causa disso que precisava absolutamente de falar contigo.
- Que aconteceu? Estás com um ar esquisito.
- Bem... tu começaste no SMP. E nós, na Millennium, tropeçámos numa história que vai afundar o presidente do teu CA. Está envolvido num caso de exploração de crianças e de prisioneiros políticos no Vietname. Acho que temos aqui um conflito de interesses. - Erika pousou o garfo e olhou fixamente para Mikael. Percebeu que ele não estava a brincar. - Eu faço-te um resumo - disse ele. - O Borgsjõ é presidente do CA e accionista maioritário de uma empresa chamada SveaBygg, que por sua vez detém uma filial chamada Vitavara, SA. Mandam fabricar sanitas numa empresa vietnamita que está referenciada pela ONU por usar trabalho infantil.
- Importas-te de repetir tudo isso?
Mikael deu-lhe os pormenores da história que Henry Cortez tinha reconstituído. Abriu a sacola e tirou de lá as cópias da documentação. Erika leu lentamente o artigo de Cortez. Quando acabou, ergueu os olhos e encontrou os de Mikael. Sentia um pânico irracional, a que se somava desconfiança.
- Como é que a primeira coisa que a Millennium faz, mal eu saio, é passar pelo crivo os membros do CA do SMP?
- Não foi nada disso, Ricky - respondeu Mikael, e explicou-lhe como nascera o artigo.
- E desde quando sabes disto?
- Desde esta tarde. Não gosto nada do aspecto que isto está a tomar.
- O que é que vão fazer?
- Não sei. Temos de publicar. Não podemos abrir uma excepção só porque ele é teu patrão. Mas nenhum de nós quer o teu mal. - Retirou a mão que tinha pousado na dela. - Estamos desesperados. Sobretudo o Henry.
- Continuo a fazer parte do CA da Millennium. Sou accionista... As pessoas vão forçosamente pensar que...
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- Sei muito bem o que as pessoas vão pensar. Vais ficar numa situação bastante difícil, no SMP.
Erika sentiu o cansaço invadi-la. Cerrou os dentes e reprimiu o impulso de pedir a Mikael que abafasse a história.
- Mas que merda! - disse ela. - Têm a certeza de que a notícia é sólida...?
Mikael assentiu lentamente com a cabeça.
- Passei a tarde inteira a verificar a documentação do Henry. Temos o Borgsjb pronto para o matadouro.
- O que é que vão fazer?
- Que farias tu se tivéssemos tropeçado nesta história há dois meses?
Erika Berger observou atentamente o amigo e amante de mais de vinte anos. Depois, baixou os olhos.
- Tu sabes o que eu faria.
- Tudo isto aconteceu por puro acaso. Não é nada dirigido contra ti. Lamento muito. Foi por isso que quis falar de imediato contigo. Temos de tomar uma decisão sobre o caminho a seguir.
- Temos?
- Digamos... este artigo estava destinado ao número de Junho. Adiei-o. Só sairá em Agosto, e pode ser empurrado mais para diante, se te der jeito.
- Estou a ver.
A voz dela adquirira uma nota de amargura.
- Proponho que não decidamos nada esta noite. Levas a documentação para casa e pensas no assunto. Não faças nada até podermos elaborar uma estratégia comum. Temos muito tempo.
- Uma estratégia comum?
- Ou te demites do CA da Millennium muito antes de publicarmos, ou te demites do SMP. Não podes ficar sentada no meio das duas cadeiras.
Ela assentiu com a cabeça.
- Estou de tal maneira associada à Millennium que ninguém vai acreditar que não tive nada que ver com o assunto, mesmo que me demita.
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- Há uma alternativa. Podes ficar com o artigo para o SMP, encurralar o Borgsjõ e exigir a saída dele. Estou convencido de que o Henry aceitará. Mas, sobretudo, não faças nada até estarmos todos de acordo.
- E eu inicio as minhas novas funções fazendo com que a pessoa que me contratou seja afastada.
- Lamento.
- Ele não é má pessoa. Mikael assentiu.
- Acredito. Mas é um ganancioso. Erika pôs-se de pé.
- Vou para casa. -Ricky...
Ela cortou-lhe a palavra.
- É só porque estou exausta. Obrigada por me teres avisado. Preciso de pensar nas consequências de tudo isto.
Saiu sem o beijar e deixou-lhe a conta para pagar.
Erika Berger estacionara o carro a 200 metros do Samirs Gryta e tinha chegado a meio caminho quando sentiu o coração bater com tal violência que foi obrigada a parar e apoiar-se à parede.
Ficou assim muito tempo, a respirar o ar fresco da noite. De repente, apercebeu-se de que, desde o 1º de Maio, trabalhava uma média de 15 horas diárias. Ia fazer em breve três semanas. Como se sentiria ao fim de três anos? Como se teria sentido Morander quando caíra morto no seu posto de trabalho?
Passados dez minutos, voltou ao restaurante e encontrou Mikael no instante em que ele saía do estabelecimento.
- Erika! - exclamou ele, espantado.
- Não digas nada, Mikael. Somos amigos há tanto tempo que nada pode estragar isso. Tu és o meu melhor amigo, e o que se passa agora é exactamente o mesmo que quando foste enterrar-te em He-destad, há dois anos, mas ao contrário. Sinto-me stressada e infeliz.
Ele assentiu com a cabeça e abraçou-a. Erika sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos.
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- Três semanas no SMP bastaram para me quebrar - disse, com um riso amargo.
- Calma. Acho que é preciso muito mais do que isso para quebrar Erika Berger.
- O teu apartamento não serve, e eu estou demasiado cansada para fazer o trajecto até casa. Vou adormecer ao volante e matar-me. Acabo de tomar uma decisão. Vou a pé até ao Scandic Crown e alugo um quarto. Vem comigo.
- Agora chama-se Hilton.
- Que se lixe.
Fizeram juntos o curto trajecto. Nenhum dos dois falou. Mikael rodeava os ombros de Erika com um braço. Erika olhou-o disfarçadamente e compreendeu que estava tão cansado como ela.
Foram direitos à recepção, pediram um quarto duplo e pagaram com o cartão de crédito de Erika. Subiram ao quarto, despiram-se e enfiaram-se na cama. Erika estava tão cansada como se tivesse acabado de correr a maratona de Estocolmo. Beijaram-se na face e mergulharam imediatamente num sono profundo.
Nenhum dos dois se apercebera de que estavam a ser vigiados. Não tinham visto o homem que os observava da entrada do hotel.
CAPÍTULO 15
QUINTA-FEIRA, 19 DE MAIO - DOMINGO, 22 DE MAIO
LiSBETH SALANDER passou a maior parte da noite de quinta-feira a ler os artigos de Mikael Blomkvist e os capítulos do livro que estavam mais ou menos acabados. Uma vez que o procurador Ekstrõm apostava num julgamento em Julho, Mikael apontara 20 de Junho como data limite para a impressão. O que significava que Super Blomkvist dispunha de um mês para terminar a redacção e tapar os buracos do texto.
Lisbeth não estava a ver como ia ter tempo, mas isso era problema dele, não dela. O seu problema era decidir que atitude tomar relativamente às perguntas que ele fizera.
Pegou no Palm, entrou em [Távola-Chanfrada] e verificou se havia alguma coisa de novo desde a véspera. Não havi.a Em seguida, abriu o documento que ele intitulara <Questões Centrais>. Já sabia o texto de cor, mas mesmo assim leu-o mais uma vez.
Mikael esboçava a estratégia que Annika lhe tinha já explicado. Quando Annika lhe falara, ouvira-a sem grande interesse, um pouco como se aquilo não lhe dissesse respeito. Mas Mikael conhecia segredos dela que Annika ignorava. Por isso conseguia apresentar a estratégia de um modo mais substancial. Procurou o quarto parágrafo.
[A única pessoa que pode determinar o teu futuro és tu mesma. Pouco importam os esforços que a Annika possa fazer para te ajudar, ou eu e o Armanskij e o Palmgren, e outros para te apoiar. Não vou tentar convencer-te a agir. Cabe-te a ti decidir o que fazer. Ou voltas o julgamento a teu favor, ou deixas-te condenar. Mas se quiseres vencer, vais ter de lutar.]
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Desligou o computador e ficou a olhar para o tecto. Mikael pedia-lhe autorização para contar a verdade no seu livro. Tencionava ocultar a parte sobre a violação. O capítulo já estava escrito e Mikael fazia a ligação estabelecendo que Bjurman iniciara uma relação com Zalachenko, que essa relação dera para o torto, que o advogado perdera a cabeça e Niedermann fora obrigado a matá-lo. Nem uma palavra sobre os motivos de Bjurman.
Super Sacana Blomkvist a complicar a vida a Lisbeth Salander.
Meditou longamente no assunto.
Às duas da manhã voltou a ligar o Palm e abriu o programa de tratamento de texto. Clicou em Novo Documento, pegou no estilete electrónico e começou a picar letras no teclado digital.
[Chamo-me Lisbeth Salander. Nasci a 30 de Abril de 1978. A minha mãe chamava-se Agneta Sofia Salander. Tinha dezassete anos quando eu nasci. O meu pai era Alexander Zalachenko, um psicopata, um assassino e um agressor de mulheres. Trabalhava como agente ilegal na Europa Ocidental por conta do GRU, o serviço de informações militares soviético.]
Escrever era um processo lento, uma vez que tinha de picar as letras uma a uma. Formava as frases na cabeça antes de as escrever. Não fez uma única correcção ao que tinha escrito. Trabalhou até às quatro da manhã, hora a que desligou o Palm e o escondeu na cavidade do painel por detrás da mesa de cabeceira. Tinha produzido o equivalente a duas páginas A4, com entrelinha um.
Erika Berger acordou às sete da manhã. Sentia-se longe de ter recuperado as forças, mas mesmo assim dormira oito horas sem interrupção. Lançou um olhar a Mikael Blomkvist, que continuava profundamente adormecido.
Para começar, ligou o telemóvel, para ver se tinha mensagens. O visor disse-lhe que o marido, Greger Beckman, lhe telefonara onze vezes. Merda. Esqueci-me de o avisar. Marcou o número e explicou onde estava e por que razão não voltara a casa na noite anterior. Greger estava zangado.
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- Erika, não voltes a fazer isto. Sabes muito bem que não tem nada que ver com o Mikael, mas passei a noite inteira consumido com medo de que tivesse acontecido alguma coisa. Tens de me avisar sempre que não vieres a casa. Nunca mais te esqueças de o fazer.
Greger Beckman sabia perfeitamente que Mikael Blomkvist era amante dela. A relação entre os dois tinha o aval e o consentimento dele. Mas, até então, sempre que decidira passar a noite em casa de Mikael, nunca deixara de lhe telefonar a explicar a situação. Daquela vez, fora para um hotel sem outra ideia na cabeça que não fosse dormir.
- Desculpa. Ontem à noite fui-me completamente abaixo. - Ele ainda resmungou um pouco. - Não te zangues, Greger. Neste momento, não estou com forças para isso. Ralhas comigo logo à tarde.
Greger conteve-se e prometeu dar-lhe uma valente descompostura quando a apanhasse a jeito.
- Bom. Como está o Blomkvist?
- A dormir. - Soltou uma pequena gargalhada. - Não te obrigo a acreditar, mas adormecemos cinco minutos depois de termos caído na cama. É a primeira vez que isto me acontece.
- Erika, o caso não é para brincar. Talvez devesses ir ao médico. Terminada a conversa com o marido, Erika ligou para a central
do SMP e deixou uma mensagem para o assistente editorial, Peter Fredriksson. Explicou que surgira um imprevisto e que ia chegar um pouco mais tarde do que o habitual. Pedia-lhe que desmarcasse a reunião prevista com os colaboradores da Cultura.
Em seguida, procurou a mala, tirou de lá uma escova de dentes e dirigiu-se à casa de banho. Finalmente, voltou à cama e acordou Mikael.
- Olá - murmurou ele.
- Olá. Vai depressa à casa de banho e lava-te à gato. Não te esqueças dos dentes.
- O quê... o que foi?
Mikael sentou-se na cama e olhou em redor com um ar tão surpreendido que ela teve de recordar-lhe que se encontrava no hotel Hilton de Slussen. Ele assentiu com a cabeça.
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- Vá lá. Vai à casa de banho.
- Porquê?
- Porque quando voltares vou fazer amor contigo. - Consultou o relógio. - E vê se te despachas. Tenho uma reunião às onze e preciso de pelo menos uma hora para me arranjar. E depois ainda tenho de comprar uma camisa decente a caminho do escritório. O que nos deixa duas horas para recuperar um monte de tempo perdido.
Mikael correu para a casa de banho.
Jerker Holmberg estacionou o Ford do pai no pátio da casa do antigo primeiro-ministro Thorbjõrn Fãlldin, em Âs, perto de Ramvik, na comuna de Hârnõsand. Apeou-se e olhou em redor. Era quinta-feira de manhã. Caía uma chuva miudinha e os campos estavam muito verdes. Com 79 anos, Fálldin já não era um agricultor activo, e Holmberg perguntou a si mesmo quem se encarregaria de semear e ceifar. Sabia que estava a ser observado da janela da cozinha. No campo, era assim. Ele também crescera em Hálledal, perto de Ramvik, a meia dúzia de passos de Sandõbron, um dos lugares mais bonitos do mundo. Na opinião de Jerker Holmberg.
Subiu os degraus do patamar e bateu à porta.
O antigo líder dos centristas estava com um ar envelhecido, mas parecia ainda cheio de vigor.
- Bom dia. Chamo-me Jerker Holmberg. Já nos encontrámos, mas a última vez foi há alguns anos. O meu pai é Gustav Holmberg, que foi eleito para a comuna, pelos centristas, nos anos setenta e oitenta.
- Viva. Claro que me lembro de ti, Jerker. És polícia em Estocolmo, se não estou enganado. Deve haver dez, quinze anos que nos vimos pela última vez.
- Acho que talvez até um pouco mais. Posso entrar? Sentou-se à mesa da cozinha, e Thorbjõrn Fãlldin serviu café.
- Espero que o teu pai esteja bem. Mas não foi por isso que vieste cá?
- Não. O meu pai vai bem, obrigado. Está a restaurar o telhado da casa de campo.
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- Que idade tem ele agora?
- Fez setenta e um há dois meses.
- Ah - disse Fálldin, sentando-se. - Então, a que devo a honra? Holmberg olhou pela janela e viu uma pega pousar junto ao
carro e pôr-se a examinar o chão. Voltou-se para Fálldin.
- Venho sem ser convidado e com um enorme problema. É possível que quando esta conversa acabar, eu tenha perdido o emprego. Estou aqui em trabalho, mas o meu chefe, o inspector Jan Bublanski, da Polícia Criminal de Estocolmo, não sabe que vim.
- Parece coisa séria.
- Ficarei em muito maus lençóis se os meus superiores souberem desta visita.
- Compreendo.
- Mas receio que, se não agir, possa haver um terrível erro judiciário, e pela segunda vez.
- É melhor explicares-te.
- Tem que ver com um homem chamado Alexander Zalachenko. Era um espião por conta do GRU soviético que pediu asilo político na Suécia no dia das eleições de 1976. Foi-lhe concedido e ele começou a trabalhar para a Sapo. Tenho motivos para acreditar que está ao corrente desta história. - Thorbjõrn Fálldin olhava atentamente para Holmberg. - É uma longa história - continuou Holmberg, e começou a falar da investigação que o mantivera ocupado durante os últimos meses.
Erika Berger rolou até ficar deitada de costas e cruzou as mãos debaixo da nuca. De repente, sorriu.
- Mikael, nunca pensaste que nós os dois somos completamente chanfrados?
- Como assim?
- Eu, pelo menos, sou. Desejo-te incrivelmente. Sinto-me como uma adolescente apatetada.
- Ah, bom.
- E logo a seguir, apetece-me ir para casa fazer amor com o meu marido.
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Mikael riu-se.
- Deixa, conheço um bom terapeuta.
Ela bateu-lhe na barriga com um dedo esticado.
- Mikael, tenho a impressão de que esta coisa do SMP foi um erro de todo o tamanho.
- Disparate! É uma oportunidade colossal para ti. Se há alguém capaz de reanimar aquele velho cadáver, és tu.
- Sim, talvez. Mas é precisamente esse o problema. O SMP é um cadáver. E tu deste-lhe o golpe de misericórdia, com aquela história do Magnus Borgsjõ, ontem à noite. Já não compreendo muito bem o que estou lá a fazer.
- Deixa assentar o pó.
- Sim. Mas essa história do Borgsjõ não tem graça nenhuma. Não faço a mínima ideia de que como gerir isto.
- Eu também não. Mas alguma coisa se há-de arranjar. Ela ficou calada por alguns instantes.
- Tenho saudades tuas.
Mikael assentiu com a cabeça e olhou para ela.
- E eu também tenho saudades tuas - disse.
- O que seria preciso fazer para te passares para o SMP e te tornares chefe das Actualidades?
- Nunca na vida. O chefe das Actualidades não é um tal Holm?
- Sim. Mas é um cretino.
- Estou de acordo contigo.
- Conhece-lo?
- Claro. Em meados dos anos oitenta, fui substituir uma pessoa durante três meses e estive sob as ordens dele. É um sacana que atira as pessoas umas contra as outras. Além disso...
- Além disso o quê?
- Nada. Não quero espalhar boatos.
- Diz-me.
- Uma miúda que se chamava Ulla qualquer coisa, também com contrato a prazo, como eu, jurava que ele a assediava sexualmente. Não sei se é verdade ou mentira, mas o sindicato não interveio e ela não conseguiu a renovação do contrato como lhe tinha sido prometido.
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Erika Berger olhou para as horas e suspirou, balouçou as pernas para fora da cama e desapareceu na casa de banho. Mikael não se tinha mexido até ela voltar, a secar-se antes de se vestir.
- Vou ficar mais um bocadinho - disse ele.
Ela beijou-o na face, acenou e saiu a correr.
Rosa Figuerola estacionou a vinte metros do carro de Gõran Mârtensson na Luntmakaregatan, mesmo ao lado da Olof Palme Gata. Viu Mârtensson percorrer a pé os 60 metros que o separavam do parquímetro e encaminhar-se para a Sveavãgen.
Dispensou o pagamento. Perdê-lo-ia de vista se passasse primeiro pela máquina. Seguiu-o até à Kunsgatan, onde ele virou à esquerda. Viu-o empurrar a porta do Kungstornet. Praguejou entre dentes, mas esperou três minutos antes de o seguir até ao interior do café. Estava sentado a uma mesa do piso térreo, a falar com um homem loiro com cerca de 35 anos e bem constituído. Um polícia, pensou Rosa Figuerola. Identificou-o como sendo o mesmo homem que Christer Malm fotografara em frente do Copacabana, no 1º de Maio.
Pediu um café, foi instalar-se no extremo oposto do balcão e abriu o Dagens Nyheter. Mârtensson e o parceiro falavam em voz baixa. Não conseguia distinguir uma palavra. Pegou no telemóvel e fingiu ligar para alguém - o que era inútil, porque nenhum dos dois homens estava a olhar para ela. Tirou uma foto com o telefone, sabendo perfeitamente que seria em 72 dpi, e portanto de qualidade demasiado medíocre para ser publicável. Em contrapartida, poderia servir de prova de que o encontro acontecera de facto.
Ao fim de pouco mais de 15 minutos, o homem loiro pôs-se de pé e saiu. Figuerola voltou a praguejar. Por que raio não se deixara ficar lá fora? Tê-lo-ia reconhecido quando ele saísse do café. A vontade dela era levantar-se e retomar a perseguição. Mas Mârtensson continuava tranquilamente sentado a acabar o seu café. Não queria despertar-lhe a atenção saindo atrás do amigo não identificado.
Um minuto mais tarde, Mârtensson levantou-se e foi aos lavabos. Mal a porta se fechou, Rosa Figuerola saltou do banco e saiu
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para a Kungsgatan. Olhou nos dois sentidos, mas o homem loiro tivera mais do que tempo para desaparecer. Decidiu arriscar tudo por tudo e correu para o cruzamento da Sveavágen. Não o viu em parte alguma e desceu para a estação do metro. Nada.
Voltou ao Kunsgtornet. Também Mârtensson tinha desaparecido.
Erika Berger praguejou furiosamente quando chegou ao lugar, perto do Samirs Gryta, onde, na noite anterior, deixara o BMW.
O carro continuava lá, mas, durante a noite, alguém furara os quatro pneus.
Não lhe restavam muitas alternativas. Ligou para o serviço de reboque e explicou a situação. Sem tempo para esperar, enfiou a chave no tubo de escape, para que os homens pudessem abrir a porta, e apanhou um táxi.
Lisbeth Salander entrou no site da República Hacker e verificou que Peste estava online. Contactou-o.
[Olá, Vespa. Como vai isso por aí, em Sahlgrenska?]
[Calmante. Preciso da tua ajuda.]
[Ena, pá!}
[Não estava à espera de precisar de pedir.]
[Deve ser coisa séria.]
[Gõran Mârtensson, residente em Vãllingby. Preciso de aceder ao computador dele.}
[OK.]
[Todo o material deve ser transferido para Mikael Blomkvist, na Millennium.]
[Eu trato disso.]
[O Big Brother vigia o telefone do Super Blomkvist e quase de certeza os e-mails. Tens de enviar tudo para um endereço hotmail.]
[OK.]
[Se eu não estiver disponível, o Blomkvist vai ter necessidade da tua ajuda. É preciso que ele possa contactar-te.}
[Hum.]
[É um pouco quadrado, mas podes confiar nele.}
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[Hum.] [Quanto queres?}
Peste não escreveu nada durante vários segundos.
[Tem alguma coisa a ver com a tua situação?] .., [Sim.] ," [Vai-te ajudar?] " [Sim.]
[Nesse caso, é por minha conta.]
[Obrigada, mas pago sempre as minhas dívidas. Vou precisar da tua ajuda até ao julgamento. Pago 30 mil.]
[Está dentro das minhas capacidades?]
[Está dentro das tuas capacidades.]
[OK.]
[Penso que vamos precisar do Trinity. Achas que consegues fazê-lo vir à Suécia?]
[Para fazer o quê?]
[O que ele faz melhor. Pago-lhe os honorários base +despesas.]
[OK. Quem?}
Lisbeth explicou-lhe o que queria que ele fizesse.
Na sexta-feira de manhã, o Dr. Anders Jonasson parecia preocupado enquanto olhava para um razoavelmente irritado inspector Hans Faste, sentado do outro lado da secretária.
- Lamento - disse.
- Não compreendo. Pensava que a Salander estava restabelecida. Vim a Gotemburgo em parte para interrogá-la, em parte para tratar dos preparativos da transferência dela para uma cela em Estocolmo, que é o seu lugar.
- Lamento - repetiu Anders Jonasson. - Gostaria muito de livrar-me dela, porque não estamos exactamente com excesso de camas, mas...
- Não será possível ela estar a fingir? Anders Jonasson riu-se.
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- Não me parece que seja provável. Compreenda o seguinte. A Lisbeth Salander foi ferida a tiro na cabeça. Tirei-lhe uma bala do cérebro, uma situação que é uma perfeita lotaria no que toca a probabilidades de sobrevivência. Ela sobreviveu e o prognóstico era particularmente satisfatório... tão satisfatório que eu e os meus colegas estávamos prontos a assinar a alta. Ontem, porém, houve uma nítida recaída. Queixa-se de violentas dores de cabeça e desenvolveu uma febre intermitente. Estava com trinta e oito graus, e teve vómitos em duas ocasiões. Durante a noite a febre baixou, a temperatura voltou quase ao normal, e eu acreditei ter-se tratado de uma indisposição temporária. Mas quando a examinei esta manhã estava quase com trinta e nove, o que é grave. Agora, a temperatura voltou a baixar.
- Afinal, o que é que ela tem?
- Não sei. Mas o facto de a temperatura subir e descer mostra que não se trata de uma gripe, ou de qualquer outra afecção desse género. Não sei dizer-lhe exactamente o que é, mas pode ser uma coisa tão simples como uma alergia a um medicamento ou a qualquer outra coisa em que tenha tocado. - Rodou o monitor do computador e mostrou o ecrã ao polícia. - Pedi um raio-X ao crânio. Como pode ver, há uma parte mais escura aqui, precisamente no lugar da lesão. Não consigo determinar o que é. Pode ser a ferida a cicatrizar, mas também pode ser uma pequena hemorragia. Enquanto não soubermos o que se passa, não vou deixá-la sair, seja qual for a urgência.
Hans Faste baixou a cabeça, resignado. Não ia pôr-se a discutir com um médico, uma pessoa que tem o poder de vida e de morte e que é o mais próximo de um representante de Deus que se pode encontrar na Terra. Exceptuando os polícias. Fosse como fosse, não tinha competência nem saber para determinar até que ponto Lisbeth Salander estava mal.
- O que é que se vai passar a seguir? - perguntou.
- Ordenei repouso completo e uma interrupção da fisioterapia... de que ela precisa por causa dos ferimentos no ombro e na anca.
- Okay... tenho de contactar o procurador Ekstrõm, em Estocolmo. Tudo isto acontece um pouco de surpresa. O que é que posso dizer-lhe?
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- Há dois dias, estava preparado para lhe dar alta no final desta semana. Na situação actual, vamos ter de esperar mais algum tempo. Diga-lhe que esta semana não vou tomar qualquer decisão e que será necessário aguardar talvez mais duas até que possam transferi-la para a prisão de Estocolmo. Tudo depende da evolução.
- O julgamento está marcado para Julho...
- Se não acontecer nada de imprevisto, ela deverá estar a pé muito antes disso.
O inspector Jan Bublanski observava com desconfiança a musculosa mulher sentada do outro lado da mesa do café. Tinham-se instalado numa esplanada, em Norr Mãlarstrand. Estava-se a 20 de Maio e sentia-se no ar o cheiro a Verão. A mulher abordara-o pouco depois das cinco da tarde, quando ele se preparava para regressar a casa, mostrara-lhe um cartão que a identificava como Rosa Figuerola, da Segurança, e propusera-lhe uma conversa particular enquanto bebiam um café.
Ao princípio, Bublanski mostrara-se recalcitrante e aborrecido. Então, ela olhara-o bem de frente nos olhos e dissera-lhe que não estava ali em missão oficial para o interrogar e que ele não era obrigado a falar, se não quisesse. Ele perguntara-lhe o que pretendia e ela explicara, muito francamente, que o seu chefe a encarregara de fazer uma avaliação do que era verdadeiro ou falso no pretenso caso Zalachenko, por vezes referido como caso Salander. Explicara também que nem sequer sabia muito bem se tinha o direito de fazer-lhe perguntas e que teria de ser ele a decidir se queria ou não responder.
- O que é que quer saber? - acabou Bublanski por perguntar.
- Conte-me o que sabe sobre a Lisbeth Salander, o Mikael Blomkvist, o Gunnar Bjõrck e o Alexander Zalachenko. Como é que as peças encaixam?
Falaram durante mais de duas horas.
Torsten Edklinth reflectiu longamente, tentando decidir o que fazer. Depois de cinco dias de investigação, Rosa Figuerola fornecera-lhe informações muito claras de que algo terrivelmente grave se
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passava na Sapo. Compreendia a necessidade de agir com discrição, pelo menos até dispor de provas suficientes para apoiar as suas afirmações. Na situação presente, encontrava-se numa espécie de impropriedade constitucional, uma vez que não tinha competência para conduzir inquéritos de intervenção em segredo, sobretudo dirigidos contra os seus próprios colaboradores.
Precisava, consequentemente, de encontrar uma fórmula que legitimasse as suas medidas. Numa situação de crise, podia sempre apelar à sua condição de polícia e ao dever de qualquer autoridade de resolver crimes - mas o crime em questão era de natureza constitucional e tão sensível que o mais certo era ser despedido se desse um passo em falso. Passou toda a sexta-feira entregue a estas ruminações, no seu gabinete.
A conclusão a que chegou foi que Dragan Armanskij tinha razão, por muito inverosímil que parecesse. Havia uma conspiração no seio da Sapo e um certo número de pessoas agia fora ou à margem da sua actividade regular. Como essa actividade se prolongara por muitos anos - pelo menos desde 1976, altura em que Zalachenko chegara à Suécia -, isso significava que era organizada e beneficiava do aval de uma hierarquia. Ignorava até que nível a conspiração chegava.
Anotou três nomes num bloco de notas:
Gõran Martensson Protecção de individualidades, Inspector Criminal.
Gunnar Bjõrck, Subchefe da Divisão-de'Imigração, falecido-. (Suicídio?)
Albert Shenke, Secretário-geral da DGPN/Sapo.
Rosa Figuerola chegara à conclusão de que pelo menos o secretário-geral devia ter participado na dança quando Martensson, da Protecção de Individualidades, fora temporariamente transferido para a contra-espionagem sem na realidade o ser. Martensson dedicava o seu tempo a vigiar o jornalista Mikael Blomkvist, o que não tinha nada que ver com actividades de contra-espionagem.
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A esta lista havia ainda que acrescentar outros nomes exteriores à Sapo:
Peter Teleborian, psiquiatra,
Laryfaulaon, Serralheiro.
Teleborian fora várias vezes contratado pela Sapo como perito psiquiatra no final da década de oitenta e início da de noventa. Isto acontecera precisamente em três ocasiões, e Edklinth examinara os relatórios dos arquivos. A primeira fora uma situação invulgar: a contra-espionagem identificara um informador russo no seio da indústria telefónica sueca, e o passado desse espião fizera temer que recorresse ao suicídio se fosse desmascarado. Teleborian fizera-lhe um exame, notado pela sua exactidão, em que sugeria a passagem do informador a agente duplo. As duas outras ocasiões em que a Sapo requisitara os seus serviços foram por questões menores, uma por causa de um funcionário que tinha problemas com o álcool, a outra relacionada com o bizarro comportamento sexual de um diplomata africano.
No entanto, nem Teleborian nem Faulsson - sobretudo Faulsson - tinham alguma vez sido funcionários da Sapo. Mas, a julgar pelo género de missões que lhes confiavam, estavam ligados a... a quê?
A conspiração estava intimamente associada ao falecido Alexander Zalachenko, agente russo desertor do GRU que, de acordo com as fontes, chegara à Suécia no dia das eleições de 1976. E de que ninguém tinha ouvido falar. Como épossível?
Tentou imaginar o que poderia ter acontecido se ele fizesse parte dos quadros da Sapo em 1976, quando Zalachenko desertara. Como teria agido? Discrição absoluta. Forçosamente. A deserção só poderia ser conhecida de um grupo muito restrito, se não quisessem correr o risco de que a informação chegasse aos ouvidos dos russos... Um espécie de círculo restrito? Uma secção de intervenção? Uma secção de intervenção desconhecida?
Pela ordem natural das coisas, Zalachenko deveria ter sido entregue à contra-espionagem. No melhor dos casos, o serviço de
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informações militares ocupar-se-ia dele. Só que não tinham recursos nem competência para levar a cabo uma intervenção desse tipo. Fora, portanto, a Sapo.
E a contra-espionagem nunca soubera de nada. Bjorck era a chave; fizera manifestamente parte do grupo que tratara de Zalachenko. Mas Bjorck nunca tivera nada que ver com a contra-espionagem. Bjorck era um mistério. Oficialmente, tinha um cargo no Serviço de Estrangeiros desde os anos 70, mas na realidade ninguém se lembrava de tê-lo visto no Departamento antes da década de noventa, quando fora inesperadamente nomeado subchefe de Divisão.
No entanto, Bjorck era a principal fonte das informações de Blomkvist. Como conseguira Blomkvist que o homem lhe revelasse aquelas autênticas bombas? A um jornalista?
As prostitutas. Bjorck frequentava prostitutas adolescentes e a Millennium tencionava denunciá-lo. Blomkvist exercera chantagem sobre ele.
Depois, Lisbeth Salander entrara em cena.
O falecido Nils Bjurman trabalhara na Divisão de Imigração ao mesmo tempo que Bjorck. Tinham sido eles a tomar conta de Zalachenko. Mas que teriam feito dele?
Alguém tinha forçosamente de tomar as decisões. Com um desertor daquele nível, a ordem tinha de vir do topo.
Do governo. Tinha de haver uma ligação. Senão, era impensável.
Impensável?
O mal-estar provocava-lhe suores frios. Tudo aquilo era formalmente compreensível. Um desertor da importância de Zalachenko tinha de ser tratado com a maior discrição. Era como ele próprio teria decidido. E era o que o governo de Fálldin certamente havia decidido. Fazia sentido.
Em contrapartida, o que acontecera depois de 1991 não tinha nada de normal. Bjorck recrutara Peter Teleborian para conseguir que Lisbeth Salander fosse internada numa instituição de pedopsiquiatria a pretexto de que era psiquicamente perturbada. Tratava-se de um crime. De um crime de uma tal magnitude que Edklinth, cada vez menos à-vontade, voltou a cobrir-se de suores frios.
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Alguém tomara as decisões. Nesse caso, não podia ter sido o Governo. .. Ingvar Carlsson era, na altura, primeiro-ministro, e depois dele fora Carl Bildt. Mas nenhum político ousaria tomar uma decisão tão completamente contrária à lei e à justiça e que resultaria num escândalo catastrófico se fosse revelada.
Se o Governo tivesse estado envolvido naquele escândalo, então a Suécia não valia mais do que a pior das ditaduras do mundo.
O que não era possível.
E depois, os acontecimentos de 12 de Abril em Sahlgrenska. Zalachenko convenientemente abatido por um justiceiro louco, enquanto a casa de Mikael Blomkvist era assaltada e Annika Giannini agredida. Em ambos os casos, o estranho relatório de Gunnar Bjorck, de 1991, fora roubado. Neste ponto, tratava-se de uma informação que Dragan Armanskij lhe fornecera confidencialmente. Porque não fora apresentada qualquer queixa.
Ao mesmo tempo, Gunnar Bjorck resolvia enforcar-se. Precisamente ele, com quem Edklinth tanto gostaria de ter uma conversa a sério.
Torsten Edklinth não acreditava no acaso quando ele assumia proporções daquelas. O inspector Jan Bublanski também não acreditava num tal acaso. Mikael Blomkvist também não. Edklinth voltou a pegar no marcador.
Evert Gullberg, 78 anos. Especialista em fiscalidade?
Quem era o estupor do Evert Gullberg?
Pensou em ligar para o director da Sapo, mas.absteve-se pela excelente razão de ignorar até que escalão da hierarquia a conspiração chegava. Em suma, não sabia em quem confiar.
Depois de ter eliminado a possibilidade de se virar para alguém no interior da Sapo, ponderou por um instante recorrer à polícia comum. Jan Bublanski chefiava as investigações sobre Ronald Nieder-mann e estaria evidentemente interessado em qualquer informação complementar. Mas de um ponto de vista político, isso era impossível.
Sentia que um fardo imenso lhe pesava sobre os ombros.
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No fim, só lhe restava uma solução que era constitucionalmente correcta e podia talvez significar um escudo se, no futuro, visse a sua carreira ameaçada. Tinha de falar com o chefe e procurar junto dele apoio político para as suas acções.
Consultou o relógio. Quase quatro. Pegou no telefone e ligou para o ministro da Justiça, que conhecia havia vários anos e que encontrara em inúmeras reuniões no ministério. Não chegou a esperar cinco minutos.
- Viva, Torsten - disse o ministro da Justiça. - Há quanto tempo. A que devo o telefonema?
- Muito francamente, acho que estou a telefonar para verificar que espécie de credibilidade me atribuis.
- Que credibilidade? Mas que pergunta. Atribuo-te toda a credibilidade. Porquê uma pergunta tão estranha?
- Porque precede um pedido sério e invulgar... Preciso de falar contigo e com o primeiro-ministro, e é urgente.
- Só isso?
- Posso explicar-te, mas não pelo telefone. Tenho em cima da minha secretária um caso tão espantoso que gostaria de te informar a ti e ao primeiro-ministro.
- Parece grave.
- É grave.
- Tem alguma coisa a ver com terroristas ou ameaças...
- Não. É mais grave do que isso. Arrisco a minha reputação e a minha carreira ao telefonar-te para fazer este pedido. Não teria esta conversa se não pensasse que a situação é extremamente séria.
- Compreendo. Daí a pergunta sobre a credibilidade... Quando é que queres falar com o primeiro-ministro?
- Esta tarde, se possível.
- Homem, deixas-me preocupado.
- Receio que tenhas bons motivos para ficares preocupado.
- Quanto tempo durará o encontro? Edklinth reflectiu.
- Julgo que vou precisar de uma hora para resumir todos os pormenores.
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- Já volto a ligar.
O ministro da Justiça voltou a ligar passado um quarto de hora e explicou que o primeiro-ministro tinha a possibilidade de receber Torsten Edklinth no seu domicílio nessa mesma noite, às 21h30. Quando desligou, Edklinth tinha as mãos húmidas. Bem, épossível que amanhã de manhã a minha carreira tenha terminado.
Voltou a pegar no telefone e ligou para Rosa Figuerola.
- Olá, Rosa. Apresenta-te ao serviço às vinte e uma. Vestida como deve ser.
- Estou sempre vestida como deve ser - respondeu ela.
O primeiro-ministro contemplou o director da Defesa da Constituição com um olhar que só se poderia qualificar como céptico. Edklinth imaginou as rodinhas a girar a toda a velocidade por detrás dos óculos do homem.
O primeiro-ministro desviou o olhar para Rosa Figuerola, que não dissera uma palavra durante os sessenta minutos que durara a exposição. Viu uma mulher muito alta e musculosa, que lhe devolvia o olhar com uma delicadeza cheia de expectativa. Voltou-se em seguida para o ministro da Justiça, que tinha empalidecido ligeiramente.
Por fim, inspirou fundo, tirou os óculos e deixou o olhar perder-se na distância.
- Acho que vamos precisar de mais um pouco de café - acabou por dizer.
- Sim, obrigada - disse Rosa Figuerola.
Edklinth assentiu com a cabeça e o ministro da Justiça pegou no termo.
- Deixe-me sintetizar, para ter a certeza de que compreendi tudo bem - disse o primeiro-ministro. - Suspeita que há no interior da Sapo um grupo que actua à margem das suas missões constitucionais e que, ao longo dos anos, levou a cabo uma actividade que só é possível qualificar como criminosa. - Edklinth confirmou com um aceno de cabeça. - E dirige-se a mim porque não confia no director da Sapo.
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- Sim e não - disse Edklinth. - Decidi falar directamente com o senhor primeiro-ministro porque este tipo de actividade infringe a Constituição, mas não sei qual é o objectivo da conspiração e não sei se terei interpretado mal algum elemento. A actividade em causa pode até ser legítima e ter o aval do governo. Nesse caso, estaria a agir com base em informações erróneas ou mal interpretadas e correria o risco de fazer gorar uma operação secreta em curso.
O primeiro-ministro olhou para o ministro da Justiça. Ambos compreendiam que Edklinth se precavia.
- Nunca ouvi falar de semelhante coisa. Sabes de alguma coisa?
- Nada, absolutamente nada. Nunca vi qualquer relatório da Segurança que tenha seja o que for a ver com este caso.
- O Mikael Blomkvist pensa que se trata de um grupo no seio da Sapo. Chama-lhe O Clube Zalachenko.
- Nunca ouvi falar disso. A Suécia teria acolhido e utilizado um trânsfuga russo desse calibre... Foi, portanto, durante o governo do Fãlldin...
- Custa-me acreditar que o Fálldin ocultasse uma coisa dessas -disse o ministro da Justiça. - Uma deserção dessa envergadura teria de ser transmitida, com prioridade absoluta, ao governo seguinte. -Edklinth tossicou. - O governo de direita deixou a batata quente ao Olof Palme. Não é segredo para ninguém que alguns dos meus antecessores na Sapo tinham uma opinião muito especial a respeito do Palme...
- Está a querer dizer que alguém se teria esquecido de informar o governo social-democrata... - Edklinth assentiu. - Gostaria de recordar que o Fálldin cumpriu dois mandatos. E que de ambas as vezes o governo caiu. Da primeira, cedeu o lugar a Ola Ullsten, cujo governo era minoritário em 1979. Depois, o governo voltou a cair quando os moderados saíram e o Fálldin ficou a governar com os liberais. A minha opinião é que houve um certo caos durante todas estas transmissões de poder. É até possível que um caso como o de Zalachenko tenha sido mantido num círculo de tal modo restrito que o primeiro-ministro Fálldin nunca tenha verdadeiramente chegado a ter conhecimento dele, e por isso não o tenha participado ao Palme.
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- Nesse caso, quem é o responsável? - perguntou o primeiro-ministro.
Todos, menos Rosa Figuerola, abanaram a cabeça.
- Calculo que é inevitável que os media acabem por saber disto - continuou o primeiro-ministro.
- O Mikael Blomkvist e a Millennium vão publicar a história. Por outras palavras, estamos numa situação de aperto.
Edklinth tivera o cuidado de usar a primeira pessoa do plural. O primeiro-ministro assentiu com a cabeça. Compreendia a gravidade da situação.
- Bom, antes de mais nada, gostaria de agradecer-lhe a prontidão com que trouxe este caso ao meu conhecimento. Por princípio, não aceito este género de visitas sem aviso prévio, mas o ministro da Justiça garantiu-me que o senhor é um homem sensato e que tinha forçosamente de ter acontecido algo de extraordinário, uma vez que fazia questão de falar comigo ultrapassando todos os trâmites habituais. - Edklinth respirou um pouco. Acontecesse o que acontecesse, a cólera do primeiro-ministro não o fulminaria a ele. - Agora, falta-nos decidir como gerir tudo isto. Tem alguma proposta?
- Talvez - respondeu Edklinth, hesitante.
Ficou calado tanto tempo que Rosa Figuerola acabou por tossicar.
- Posso falar?
- Faça favor - respondeu o primeiro-ministro.
- Se é verdade que o governo não está ao corrente desta operação, então ela é ilegal. O criminoso, nestes casos, é o responsável, ou os funcionários do Estado que ultrapassaram as suas competências. Se conseguirmos provar todas as afirmações do Mikael Blomkvist, isso significará que um grupo de funcionários da Segurança levou a cabo uma actividade criminosa. A partir daqui, existem dois problemas.
- Que quer dizer com isso?
- Em primeiro lugar, é preciso responder às seguintes perguntas: como foi isto possível? Quem tem a responsabilidade? Como pôde
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uma tal conspiração desenvolver-se no seio de um organismo policial perfeitamente estabelecido? Permitam-me que recorde que eu própria trabalho na DGPN/Sâpo, e orgulho-me disso. Como foi possível que durasse tanto tempo? Como foi possível esconder e financiar esta actividade? - O primeiro-ministro fez um gesto de assentimento. - Sobre este aspecto, muito vai ser escrito e publicado - continuou Figuerola. - Mas uma coisa é certa: há forçosamente um financiamento que deve andar na casa dos milhões de coroas anuais. Examinei o orçamento da Segurança e não encontrei nada a que se pudesse chamar O Clube Zalachenko. No entanto, como todos sabem, há um certo número de fundos secretos a que o secretário-geral e o director do orçamento têm acesso, mas eu não. - O primeiro-ministro assentiu tristemente com a cabeça. Porque seria que a gestão da Sapo se revelava sempre um pesadelo? - O outro problema tem que ver com os protagonistas. Ou mais exactamente, com as pessoas que é preciso prender. - O primeiro-ministro fez uma careta. - Da minha perspectiva, as respostas a estas perguntas dependem das decisões que vai tomar dentro de minutos.
Torsten Edklinth conteve a respiração. Se pudesse dar-lhe um pontapé na perna, tê-lo-ia feito. Rosa Figuerola tinha cortado a direito ao afirmar que o primeiro-ministro era pessoalmente responsável. Ele próprio tinha pensado fazer a conversa chegar a essa conclusão, mas só depois de uma longa digressão diplomática.
- E que decisão pensa que devo tomar? - perguntou o primeiro-ministro.
- Pelo nosso lado, temos interesses em comum. Há três anos que trabalho na Defesa da Constituição e considero que se trata de uma missão de uma importância capital para a democracia sueca. Nos últimos anos, a Segurança sempre se comportou correctamente no âmbito dos enquadramentos constitucionais. Para nós, é importante destacar que se trata de uma actividade criminosa praticada por um grupo isolado de indivíduos.
- Esse género de actividades não tem definitivamente o aval do governo - afirmou o ministro da Justiça.
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Rosa Figuerola assentiu e pareceu reflectir por alguns instantes.
- Pelo vosso lado, calculo que não têm interesse em que o escândalo atinja o governo... o que aconteceria se houvesse alguma tentativa de abafar o caso - acabou por dizer.
- O governo não tem por hábito ocultar actividades criminosas - disse o ministro da Justiça.
- Não, mas admitamos a hipótese de que queria fazê-lo. Nesse caso, o escândalo seria inimaginável.
- Continue - pediu o primeiro-ministro.
- A presente situação é complicada porque nós, na Defesa da Constituição, somos obrigados a quebrar as regras para termos a mais pequena possibilidade de esclarecer esta história. Gostaríamos que tudo se fizesse de uma forma jurídica e constitucionalmente correcta.
- Todos nós o desejamos - disse o primeiro-ministro.
- Nesse caso, proponho que o senhor... na sua qualidade de primeiro-ministro. .. ordene à Defesa da Constituição que tire a limpo esta embrulhada, o mais rapidamente possível. Conceda-nos uma procuração e todas as autorizações necessárias.
- Não estou certo de que aquilo que propõe seja legal - objectou o ministro da Justiça.
- É legal, sim. O governo tem poderes para tomar as medidas necessárias em caso de ameaça à Constituição. Se um grupo de militares ou de polícias começasse a conduzir uma política externa independente, isso significaria a ocorrência de facto de um golpe de Estado no nosso país.
- Política externa? - espantou-se o ministro da Justiça. O primeiro-ministro assentiu bruscamente com a cabeça.
- O Zalachenko era um desertor de uma potência estrangeira -continuou Rosa Figuerola. - Passava as suas informações, segundo o Mikael Blomkvist, a serviços secretos estrangeiros. Se o governo não estava ao corrente, houve golpe de Estado.
- Compreendo aonde quer chegar - disse o primeiro-ministro. - Permita-me agora que exprima o meu pensamento.
O primeiro-ministro pôs-se de pé e contornou a mesa. Deteve -se diante de Edklinth.
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- Tem uma colaboradora inteligente. E que, ainda por cima, vai direita ao que interessa.
Edklinth engoliu em seco e assentiu. O primeiro-ministro voltou-se para o ministro da Justiça.
- Chama o teu secretário de Estado e o director do departamento jurídico. Quero, amanhã de manhã, um documento que dê à Defesa da Constituição poderes extraordinários para agir neste caso. A missão consiste em estabelecer que parte de verdade há nas afirmações que nos preocupam, reunir a documentação necessária e identificar as pessoas responsáveis ou implicadas. - Edklinth assentiu com a cabeça. - Esse documento não deverá autorizá-los a conduzir um inquérito preliminar. Posso estar enganado, mas julgo que, nesta fase só o procurador-geral tem poderes para o fazer. Em contrapartida, posso atribuir-lhes a missão de fazer um simples inquérito para descobrir a verdade. Será, portanto, um inquérito oficial do Estado. Fiz-me entender?
- Sim. Mas devo assinalar que eu próprio sou um ex-procurador?
- Hum. Vamos pedir ao director jurídico que estude o assunto e determine o que é formalmente correcto. Seja como for, será você o único responsável por este inquérito. Designará os colaboradores de que tiver necessidade. Se encontrar provas de actividade criminosa deverá comunicá-las ao Ministério Público, que decidirá as medidas judiciais a tomar.
- Vou ter de verificar na legislação o que está exactamente em vigor, mas julgo que é obrigado a informar o porta-voz do governo e a Comissão Constitucional... Tudo isto vai saber-se muito rapidamente - disse o ministro da Justiça.
- Por outras palavras, temos de agir depressa - corroborou o primeiro-ministro.
- Hum - disse Rosa Figuerola.
- Sim? - perguntou o primeiro-ministro.
- Restam dois problemas... Em primeiro lugar, a publicação da Millennium pode entrar em conflito com o nosso inquérito e, em segundo lugar, o julgamento da Lisbeth Salander vai começar dentro de poucas semanas.
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- Temos maneira de saber quando é que a Millennium tenciona publicar?
- Podemos sempre perguntar - respondeu Edklinth. - A última coisa que queremos é interferir com a actividade dos media.
- No que respeita a essa Salander... - continuou o ministro da Justiça. Reflectiu por um instante. - Seria terrível se ela tivesse sido realmente vítima dos abusos de que fala a Millennium... Será que é possível?
- Receio que sim - disse Edklinth.
- Nesse caso, é essencial que seja indemnizada e, sobretudo, que não seja vítima de um novo abuso de poder - declarou o primeiro-ministro.
- E como vamos nós consegui-lo? - perguntou o ministro da Justiça. - O governo não pode de modo algum intervir numa acção judicial em curso. Seria contrário à lei.
- Não podemos falar com o procurador...
- Não - interrompeu-o Edklinth. - Enquanto primeiro-ministro, não deve influenciar o processo judiciário seja de que maneira for.
- Por outras palavras, a Salander terá de travar o seu combate no tribunal - disse o ministro da Justiça. - Só se ela perder o processo e recorrer poderá o governo intervir para agraciá-la ou ordenar ao Ministério Público que verifique se há motivos para a reabertura do processo. - E então acrescentou - Mas isto só é válido se ela for condenada a uma pena de prisão. Porque se for condenada ao internamento psiquiátrico, o governo nada poderá fazer. Tratar-se-á de uma questão clínica, e o primeiro-ministro não tem a competência exigida para determinar se ela é ou não sã de espírito.
As dez da noite de sexta-feira, Lisbeth Salander ouviu a chave na fechadura. Desligou imediatamente o Palm e enfiou-o debaixo da almofada. Quando ergueu os olhos, viu Anders Jonasson fechar a porta.
- Boa noite, Frõken Salander - disse ele. - Como se sente.
- Tenho umas dores de cabeça horríveis e sinto-me febril - respondeu Lisbeth.
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- Ah, isso não é nada bom.
Lisbeth não tinha ar de estar particularmente atormentada pela febre ou por dores de cabeça. O Dr. Jonasson dedicou dez minutos a examiná-la. Verificou que, durante a tarde, a febre tinha voltado a subir.
- É realmente uma pena isto ter acontecido, agora que parecia estar a recuperar. Receio ter de mantê-la por cá pelo menos mais duas semanas.
- Duas semanas devem chegar. Ele olhou-a longamente.
A distância entre Londres e Estocolmo, por estrada, é, grosso modo, de 1800 quilómetros. O que significa teoricamente cerca de 24 horas de condução. Na realidade, tinham sido necessárias quase vinte horas só para chegar à fronteira entre a Alemanha e a Dinamarca. O céu estava coberto de plúmbeas nuvens de tempestade e quando, na segunda-feira, o homem que se dizia chamar Trinity chegou à ponte do Oresund, começou a chover torrencialmente. O homem abrandou e ligou o limpa-pára-brisas.
Trinity achava um pesadelo conduzir na Europa, com aquele continente inteiro a teimar em circular do lado errado da estrada. Preparara a carrinha no sábado de manhã e apanhara oferry de Dover para Calais, depois atravessara a Bélgica, passando por Liège. Atravessara a fronteira em Aachen e subira pela auto-estrada em direcção a Hamburgo e à Dinamarca.
O seu associado, Bob the Dog, dormitava no banco traseiro. Tinham feito turnos ao volante e, exceptuando algumas paragens de uma hora para comer, tinham mantido uma velocidade regular de 90 quilómetros por hora. Com os seus 18 anos, a carrinha não estava em condições de andar mais depressa.
Havia maneiras mais simples de ir de Londres a Estocolmo, mas era infelizmente pouco provável conseguir introduzir 30 quilos de equipamento electrónico na Suécia usando um voo regular. Apesar de terem atravessado seis fronteiras ao longo do percurso, não tinham parado numa única alfândega nem sido interpelados por um único
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polícia. Trinity era um fervoroso partidário da União Europeia, cujas regras simplificavam as visitas ao continente.
Tinha 32 anos e nascera em Bradford, mas desde criança que vivia na zona norte de Londres. Após uma breve e medíocre formação académica, um curso profissional fornecera-lhe um diploma de técnico qualificado de telecomunicações, e durante três anos, depois dos 19, trabalhara efectivamente para a British Telecom.
Na realidade, tinha conhecimentos teóricos de electrónica e informática que lhe permitiam, sem problemas, manter discussões em que superava qualquer diplomado na matéria. Vivera no meio de computadores a partir dos dez anos, e a primeira vez que pirateara um tinha treze. Ganhara gosto por aquilo e, aos 16 anos, evoluíra ao ponto de medir forças com os melhores do mundo. Durante uns tempos, passara todos os minutos em que estava acordado diante de um monitor, a criar os seus próprios programas e a explorar a Net. Conseguira infiltrar-se na BBC, no Ministério de Defesa britânico e na Scotland Yard. Conseguira até, temporariamente, assumir o comando de um submarino nuclear inglês em patrulha no mar do Norte. Felizmente, Trinity fazia parte do grupo dos curiosos, e não do grupo dos vândalos informáticos. O seu fascínio cessava a partir do momento em que entrava num computador e descobria uma maneira de aceder aos seus segredos. Quando muito, permitia-se uma brincadeira inofensiva, do género de programar um computador do submarino para convidar o comandante a ir limpar o cu quando ele pedia uma posição. Este último incidente desencadeara uma série de reuniões de crise no Ministério da Defesa, e Trinity acabara por compreender que talvez não fosse muito inteligente gabar-se dos seus conhecimentos numa época em que os governos levavam muito a sério a ameaça de condenar os hackers a pesadas penas de prisão.
Fizera a formação de técnico em telecomunicações porque já sabia como funcionava a rede telefónica. Depressa se apercebera do desesperante arcaísmo do sistema e tornara-se consultor de segurança, com a missão de instalar sistemas de alarme e verificar protecções contra roubo. Podia também, a certos clientes cuidadosamente escolhidos, garantir exclusividades como vigilância e escutas telefónicas.
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Fora um dos fundadores da República Hacker, de que Vespa era cidadã.
Eram sete e meia da tarde de domingo quando Trinity e Bob the Dog chegaram aos arredores de Estocolmo. Estavam a passar pelo Kungens Kurvam, em Skârholmen, quando Trinity abriu o telemóvel e marcou o número que tinha memorizado.
- Peste - disse Trinity.
- Onde é que vocês estão?
- Disseste-me para ligar quando passássemos a Ikea.
Peste descreveu o caminho para a pousada de juventude de Lâng-holmen, onde reservara lugar para os seus colegas ingleses. Como Peste praticamente nunca saía de casa, foi lá que combinaram encontrar-se às dez da manhã de segunda-feira.
Depois de um momento de reflexão, Peste decidiu, com grande esforço, lavar a louça e limpar e arejar o local antes da chegada dos seus convidados.
3ª PARTE
Disc Crash
27 de Maio a 6 de Junho
O HISTORIADOR DIODORO SICULO, QUE VIVEU NO SÉCULO I A. C. [E QUE CERTOS AUTORES CONSIDERAM UMA FONTE POUCO FIÁVEL), FALA DE AMAZONAS NA LÍBIA, DESIGNAÇÃO QUE, NA ÉPOCA, ENGLOBAVA TODO o NORTE DE ÁFRICA A OESTE DO EGIPTO. ESTE IMPÉRIO DE AMAZONAS ERA UMA GINECOCRACIA, OU SEJA, UM ESTADO ONDE APENAS AS MULHERES PODIAM DESEMPENHAR FUNÇÕES
OFICIAIS, INCLUINDO AS MILITARES. SEGUNDO A LENDA, o PAÍS ERA GOVERNADO POR UMA RAINHA, MIRINA, QUE, COM 30 MIL INFANTES E TRÊS MIL CAVALEIRAS, ATRAVESSOU o EGIPTO E A SÍRIA E CHEGOU ATÉ AO MAR EGEU, DERROTANDO PELO CAMINHO VÁRIOS EXÉRCITOS MASCULINOS. QUANDO FOI FINALMENTE VENCIDA, O SEU EXÉRCITO DISPERSOU-SE.
NÃO, PORÉM, SEM DEIXAR MARCAS NA REGIÃO. AS MULHERES DA ANATÓLIA
PEGARAM EM ARMAS PARA ESMAGAR UMA INVASÃO VINDA DO CÁUCASO, DEPOIS
DE OS HOMENS TEREM SIDO ANIQUILADOS NUM IMENSO GENOCÍDIO. AQUELAS
MULHERES ERAM HÁBEIS A MANEJAR TODO O GÉNERO DE ARMAS, INCLUINDO
O ARCO, A ESPADA, o MACHADO E A LANÇA. COPIARAM AS COTAS DE MALHA
DE BRONZE E AS ARMADURAS DOS GREGOS.
REJEITAVAM O CASAMENTO, QUE CONSIDERAVAM UMA SUBMISSÃO. PARA A PROCRIAÇÃO, ERAM-LHES CONCEDIDAS LICENÇAS ESPECIAIS.
DURANTE AS QUAIS PRATICAVAM O COITO COM HOMENS DESCONHECIDOS
ESCOLHIDOS AO ACASO NAS ALDEIAS EM REDOR. SÓ UMA MULHER QUE TIVESSE
MATADO UM HOMEM EM COMBATE TINHA O DIREITO DE RENUNCIAR À VIRGINDADE.
CAPÍTULO 16
SEXTA-FEIRA, 27 DE MAIO -TERÇA-FEIRA, 31 DE MAIO
MiKAEL Blomkvist deixou a redacção da Millennium às dez e meia da noite de sexta-feira. Desceu até ao rés-do-chão, mas em vez de sair para a rua virou à esquerda no vestíbulo e atravessou a cave para voltar a subir para o pátio interior e sair na Hõkens Gata, passando pelo prédio vizinho. Cruzou-se com um grupo de jovens que vinha de Mosebacke, mas ninguém lhe prestou atenção. Quem estivesse a vigiá-lo, não o vendo sair, pensaria que ia passar a noite na redacção, como de costume. Tinha estabelecido aquele esquema em Abril. Na realidade, era Christer Malm que estava de serviço de guarda naquela noite.
Durante um quarto de hora deambulou pelas pequenas ruas e ruelas à volta de Mosebacke até rumar ao número 9 da Fiskargatan. Usou o código de acesso para entrar, subiu a pé até ao apartamento no último piso e serviu-se das chaves de Lisbeth para abrir a porta. Desligou o alarme. Continuava a sentir-se pouco à-vontade naquele apartamento, com as suas 21 divisões, das quais apenas três estavam mobiladas.
Começou por preparar café e sanduíches antes de se dirigir ao gabinete de Lisbeth e ligar o PowerBook.
Desde aquele dia de meados de Abril em que o relatório do Bjõrck fora roubado e ele se dera conta de que estava a ser vigiado, estabelecera o seu quartel-general privado no apartamento de Lisbeth, para onde transferira toda a documentação importante. Passava várias noites por semana naquele apartamento, dormia na cama de Lisbeth e trabalhava no computador dela. Lisbeth limpara completamente o
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disco rígido antes de se dirigir a Gosseberga para o seu ajuste de contas com Zalachenko. Mikael compreendia que não fazia provavelmente tenção de voltar. Servira-se dos discos de sistema para repor o computador em funcionamento.
Desde Abril que não ligava o seu próprio computador à ADSL. Usava a ligação de Lisbeth, abria o ICQ e manifestava-se sob o número que ela criara para ele e lhe comunicara através do grupo Yahoo [Távola-Chanfrada]
[Olá, Sally.]
[Conta.]
[Refiz os dois capítulos que discutimos durante a semana. Encontrarás a nova versão no Yahoo. E tu, tens avançado?}
[Completei dezassete páginas. Estou neste momento a enviar-tas para Távola-Chanfrada.]
Pling.
[OK. Já as tenho. Deixa-me lê-las e depois falamos.]
[Há outra coisa.]
[O que é?}
[Criei outro grupo Yahoo com o nome Os-Cavaleiros.]
Mikael sorriu
[OK. Os Cavaleiros da Távola Chanfrada.] [Password yacaracal 12.] [OK.]
[Quatro membros. Tu, eu, o Peste e o Trinity.]
[Os teus misteriosos amigos da Net.]
[Estou a proteger-me.]
[OK.]
[O Peste sacou informação do computador do Ekstrõm. Pirateámo-lo em Abril.]
[OK.]
[Se eu ficar sem o meu Palm, ele manter-te-á informado.]
[Certo. Obrigado.]
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Mikael saiu do ICQ e entrou no novo grupo Yahoo [Os-Cavaleiros). Tudo o que encontrou foi um link do Peste para um endereço http anónimo composto apenas por algarismos. Copiou o endereço para o Explorer, premiu a tecla de retrocesso e entrou imediatamente num site de 16 gigas, algures na Internet, que patenteava o disco rígido do procurador Richard Ekstrõm.
Aparentemente, Peste resolvera poupar trabalho copiando todo o disco. Mikael passou uma hora a examiná-lo. Rejeitou as pastas de sistema, os programas e um sem-número de inquéritos preliminares que pareciam ter já vários anos. No fim, descarregou quatro pastas. Três tinham nomes: [inquprelim/salander]; [lixo/salander]; e [inquprelim/niedermann]. A quarta continha uma cópia dos mails do procurador Ekstrõm recebidos até às 14 horas do dia anterior.
- Obrigado, Peste! - disse Mikael em voz alta, no apartamento vazio.
Durante três horas, leu o inquérito preliminar e a estratégia que Ekstrõm estava a preparar tendo em vista o processo contra Lisbeth Salander. Tal como esperava, tinha muito que ver com o estado mental dela. Ekstrõm pedia um aprofundado exame psiquiátrico e enviara vários mails com o objectivo de a transferir o mais rapidamente possível para o estabelecimento prisional de Kronoberg.
Verificou também que as investigações para encontrar Niedermann pareciam marcar passo. Era Bublanski que as chefiava. Ekstrõm conseguira reunir uma série de provas técnicas para acusar Niedermann dos assassínios de Dag Svensson, Mia Johansson e Nils Bjurman. Ele mesmo contribuíra com grande parte daquelas provas durante os três longos interrogatórios a que fora submetido em Abril e teria de testemunhar caso Niedermann fosse capturado. O ADN detectado em algumas gotas de suor e dois cabelos recolhidos no apartamento de Bjurman foram finalmente comparados com os recolhidos no quarto de Niedermann em Gosseberga, com resultados positivos. O mesmo ADN fora encontrado no corpo do tesoureiro do Moto-Clube de Svavelsjõ, Viktor Gõransson.
Em contrapartida, a informação que Ekstrõm tinha sobre Zalachenko era surpreendentemente escassa.
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Mikael acendeu um cigarro e, enquanto o fumava, voltou-se para a janela para desfrutar da vista sobre o Djurgârden.
Ekstrõm dirigia actualmente dois inquéritos preliminares que tinham sido separados. O inspector Hans Faste era a autoridade responsável pelas investigações em todos os casos que envolviam Lisbeth Salander. Bublanski ocupava-se unicamente de Niedermann.
O mais natural para Ekstrõm, quando o nome de Zalachenko surgira no seu inquérito preliminar, teria sido contactar o director-geral da Sapo para lhe fazer perguntas sobre a verdadeira identidade do homem. Mikael não encontrara nenhum contacto desse tipo nos mails do procurador, nem no seu diário ou notas. Apesar disso, tudo indicava que dispunha de alguma informação, ainda que pouca, sobre o russo. Descobrira, entre as notas, algumas bem misteriosas.
O relatório sobre Lisbeth Salander é falso. O original de Bjorck não coincide com a versão de Blomkvist. Classificado como confidencial.
Hum. Em seguida, uma série de notas que mantinham que Lisbeth Salander sofria de esquizofrenia paranóide.
Correcto internar Salander em 1991.
Na pasta [lixo/salander], encontrara elementos de ligação entre os dois inquéritos, ou seja, informações acessórias que o procurador considerara não terem que ver com o inquérito preliminar e consequentemente não iriam ser utilizadas no julgamento nem fariam parte das provas contra ela. Este grupo compreendia praticamente tudo o que dizia respeito ao passado de Zalachenko.
Mikael estava a olhar para um inquérito deplorável.
Perguntou a si mesmo que parte de tudo aquilo era fruto do acaso e que parte fora deliberado. Onde se encontrava a linha divisória? Teria Ekstrõm consciência de que havia uma linha divisória?
Ou poder-se-ia pensar que alguém fornecia deliberadamente ao procurador informações verosímeis, mas falsas?
Para terminar, abriu o hotmail e dedicou os dez minutos seguintes a consultar a meia dúzia de contas anónimas que tinha criado. Todos os dias, sem falhar, verificava o endereço hotmail que dera à inspectora Sonja Modig. Mas não tinha grande esperança de que ela se manifestasse. Por isso ficou agradavelmente surpreendido quando abriu
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a caixa de entrada e encontrou uma mensagem de viagemcomboio-9abril@hotmail.com. Tinha apenas uma linha:
{Café Madeleine, primeiro andar, sábado, 11 horas.]
Mikael Blomkvist assentiu pensativamente com a cabeça.
Peste contactou Lisbeth Salander por volta da meia-noite, interrompendo-a quando ela estava a descrever como fora a sua vida com Holger Palmgren como tutor. Olhou para o visor, irritada.
{O que é que queres?]
[Olá, Vespa, também eu estou encantado por ter notícias tuas.]
[Bem, bem. O que é?]
[Teleborian.]
Lisbeth endireitou-se na cama e olhou muito excitada para o visor do Palm.
{Conta.]
{O Trinity resolveu a questão num tempo recorde.]
[Como?]
[O senhor doutor dos maluquinhos não pára quieto. Passa a vida a , correr entre Uppsala e Estocolmo, o que torna impossível fazer uma opa hostil.]
[Eu sei. Como foi que ele fez?]
[O Teleborian joga ténis duas vezes por semana. Duas horas seguidas. Deixou o computador no carro, no parque de estacionamento coberto.] [Ah.]
[O Trinity não teve o mais pequeno problema em neutralizar o alarme do carro e sacar o computador. Meia hora bastou-lhe para copiar tudo via Firewire e instalar o Asphyxia.]
[Onde é que procuro?]
Peste deu-lhe o endereço http do servidor onde guardara o disco do Dr. Peter Teleborian.
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[Como o Trinity diz... This is some nasty sbit.]
[?]
[Vai ver o disco rígido dele.]
Lisbeth cortou a ligação para procurar na Net o servidor que Peste lhe indicara. Dedicou as três horas seguintes a passar em revista, uma a uma, as pastas do computador de Teleborian.
Encontrou correspondência entre o médico e alguém com um endereço hotmail que lhe enviava mensagens cifradas. Como dispunha da chave PGP de Teleborian, pôde lê-las descodificadas. O correspondente do médico chamava-se Jonas. Sem apelido. Jonas e Teleborian manifestavam um mórbido interesse na falta de saúde de Lisbeth Salander.
Yes!... Vamos poder provar que há uma conspiração.
O que mais a interessou, no entanto, foram as 47 pastas que continham 8756 fotografias pornográficas com crianças. Uma após outra, abriu as fotografias que mostravam crianças com cerca de 15 anos ou menos. Algumas eram mesmo muito jovens. A maior parte, raparigas. Várias das imagens apresentavam práticas sadistas.
Encontrou links para pelo menos uma dúzia de pessoas em vários países que trocavam pornografia infantil.
Mordeu o lábio inferior. Tirando isso, a expressão dela não se alterou.
Recordou as noites, quando tinha 12 anos, que passara amarrada a uma cama num quarto despojado de quaisquer estímulos sensoriais na clínica pedopsiquiátrica de Sankt Stefan. Teleborian ia contemplá-la todas as noites, enquanto ela ficava vagamente iluminada pela luz que vinha do corredor.
Ela sabia. Ele nunca lhe tocara, mas ela sempre soubera.
Amaldiçoou-se a si mesma. Havia muito que devia ter-se ocupado de Teleborian. Mas atirara-o para o subconsciente, tentara ignorar a existência dele.
Deixara-o à solta.
No momento seguinte contactou Mikael no ICQ.
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Mikael Blomkvist passou a noite no apartamento de Lisbeth na Fiskargatan. Já eram seis e meia da manhã quando desligou o computador. Adormeceu com as fotos pornográficas de crianças na retina e acordou às dez e um quarto. Saltou da cama, tomou um duche e chamou um táxi, que o deixou diante do Sõdra Teatern. Chegou à Bir-ger Jarlsgatan às cinco para as onze e foi a pé até ao Café Madeleine.
Sonja Modig esperava-o, com uma chávena de café à frente.
- Viva - disse Mikael.
- Corro um risco enorme ao fazer isto - disse ela, sem mais preâmbulos. - Serei despedida e levada a tribunal se alguém souber que me encontrei consigo.
- Não será de certeza por mim que alguém ficará a saber. Sonja Modig parecia tensa.
- Recentemente, um dos meus colegas foi falar com o antigo primeiro-ministro Thorbjõrn Fâlldin. Foi a título particular, e também ele arrisca muito.
- Compreendo.
- Por tudo isto, exijo que o nosso anonimato seja protegido.
- Nem sequer sei de que colega está a falar.
- Eu digo-lhe. Quero que me prometa que o vai proteger enquanto fonte.
- Tem a minha palavra. Sonja olhou para o relógio.
- Está com pressa?
- Estou. Tenho de encontrar-me com o meu marido e os meus filhos na galeria Sture daqui a dez minutos. O meu marido pensa que estou no serviço.
- E o Bublanski não está ao corrente.
- Não.
- Okay. Você e o seu colega são fontes cem por cento protegidas. Os dois. E isto é válido até à cova.
- O meu colega é o Jerker Holmberg, que já conheceu em Gotemburgo. O pai dele foi militante centrista e o Jerker conhece o
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Fálldin desde miúdo. Foi visitá-lo a título pessoal para falar do Zalachenco.
- Estou a ver.
O coração de Mikael batia loucamente.
- O Fálldin parece ser um homem decente. O Jerker falou-lhe do Zalachenko e perguntou-lhe o que sabia a respeito da deserção. O Fálldin não disse nada, e então o Jerker disse-lhe que estamos convencidos de que a Lisbeth Salander foi internada numa clínica psiquiátrica pelos que protegiam o Zalachenko. O Fálldin ficou muito revoltado.
- Compreendo.
- Disse que na época o director da Sapo e um dos seus colegas o tinham procurado pouco depois de ele ter sido nomeado primeiro-ministro. Contaram-lhe uma história esquisitíssima a respeito de um espião russo que tinha desertado e procurado refúgio na Suécia. Ficara a saber, naquele dia, que se tratava do segredo militar mais delicado do país... que nada em toda a Defesa lhe chegava aos calcanhares em matéria de importância.
- Hum.
- Disse-lhes que não sabia como gerir aquele caso. Acabava de ser nomeado primeiro-ministro e o seu governo não tinha qualquer espécie de experiência. Havia mais de quarenta anos que os socialistas estavam no poder. Os tipos responderam-lhe que a decisão lhe cabia a ele pessoalmente e que a Sapo declinaria qualquer responsabilidade se resolvesse consultar os seus colegas de governo. Tudo aquilo foi muito desagradável para ele. Não sabia pura e simplesmente o que fazer.
- Okay.
- No fim, acabou por sentir-se obrigado a agir como aqueles senhores da Sapo aconselhavam. Redigiu uma directiva que concedia à Sapo a guarda exclusiva do Zalachenko. Comprometeu-se a nunca discutir o assunto com quem quer que fosse. Nunca chegou a saber o nome do trânsfuga.
- Compreendo.
- Depois disto, durante os seus dois mandatos, não voltou praticamente a ouvir falar do espião russo. Em contrapartida, tinha feito
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uma coisa muito sensata. Insistira em que um secretário de Estado fosse posto ao corrente do assunto para poder funcionar como intermediário entre o governo e os que protegiam o Zalachenko.
- Ah.
- Escolheram um homem chamado Bertil K. Janeryd. Hoje tem sessenta e três anos e é embaixador da Suécia em Haia.
- Irra, nada menos?!
- Quando o Fálldin se apercebeu da gravidade deste inquérito preliminar, escreveu ao Janeryd.
Sonja Modig empurrou um sobrescrito na direcção de Mikael, que tirou dele uma folha de papel e leu:
Caro Bertil,
O segredo que ambos guardámos durante o meu mandato como primeiro-ministro está seriamente ameaçado. O indivíduo envolvido no caso morreu e já não pode ser comprometido. Mas há outras pessoas que podem.
É de uma importância capital que tenhamos respostas para certas perguntas. O portador desta carta age oficiosamente e tem toda a minha confiança. Peço-te que ouças a história dele e respondas ao que te perguntar.
Faz uso do teu incontestável bom discernimento.
- A pessoa de que fala esta carta é o Jerker Holmberg.
- Não. O Jerker pediu ao Fálldin que não referisse qualquer nome. Disse que não sabia quem iria a Haia.
- Quer dizer...
- Tivemos uma conversa, eu e o Jerker. Estamos de tal maneira molhados que precisamos é de um salva-vidas, não de uma simples bóia. Não estamos, pura e simplesmente, preparados para ir à Holanda interrogar o embaixador. Mas o Mikael pode fazê-lo.
Mikael dobrou a carta e começava a enfiá-la no bolso do casaco quando Sonja Modíg lhe agarrou a mão.
- Informação por informação - disse. - Vamos querer saber o
que o Janeryd lhe contar.
Mikael assentiu. Sonja pôs-se de pé. Ele deteve-a.
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- Espere. Disse que o Fálldin foi visitado por dois homens da Sapo. Um era o director. Quem era o outro?
- O Fálldin só o viu dessa vez e não se lembra do nome. Não foram tomadas notas. Lembra-se de um homem magro, com um bigode fino. Foi-lhe apresentado como chefe da Secção de Análise Especial, ou qualquer coisa nesse género. Mais tarde, consultou o organograma da Sapo e não encontrou nenhuma secção com esse nome.
O Clube Zalachenko, pensou Mikael.
Sonja Modig voltou a sentar-se. Pareceu pesar as palavras.
- Okay - acabou por dizer. - Correndo o risco de ser fuzilada. Há uma coisa de que nem o Fálldin nem os outros dois se lembraram.
- O quê?
- O registo dos visitantes do primeiro-ministro em Rosenbad.
- E?
- O Jerker pediu para ver esse registo. É um documento oficial, conservado na sede do governo.
- E?
Sonja Modig voltou a hesitar.
- O registo indica apenas que o primeiro-ministro recebeu o director da Sapo e um colega para discutir assuntos de natureza geral.
- Há um nome?
- Há. E. Gullberg.
Mikael sentiu o sangue afluir à cabeça.
- Evert Gullberg - disse.
Sonja Modig tinha os dentes cerrados. Assentiu com a cabeça. Pôs-se de pé e saiu.
Mikael Blomkvist ainda estava no Café Madeleine quando pegou no telemóvel para reservar lugar num voo para Haia. O avião partia de Arlanda às 14h50. Dirigiu-se à Dressman da Kungsgatan onde comprou uma camisa e uma muda de roupa interior, e em seguida à farmácia de Klara, onde adquiriu uma escova de dentes e alguns artigos de higiene pessoal. Teve o cuidado de certificar-se de que não estava a ser seguido quando correu a apanhar a carrinha para o aeroporto. Chegou com dez minutos de margem.
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Às seis e meia da tarde alugou um quarto num velho hotel, em Haia, que ficava a dez minutos a pé da Estação Central.
Passou duas horas a tentar localizar o embaixador da Suécia e conseguiu apanhá-lo ao telefone por volta das nove. Recorreu a todos os seus dotes de persuasão e sublinhou que o assunto que o levava ali era da mais alta importância e tinha de ser discutido sem tardar. O embaixador acabou por aceder e aceitou recebê-lo às dez horas de domingo.
Mikael foi jantar a um pequeno restaurante perto do hotel e às onze da noite estava na cama a dormir.
O embaixador Bertil K. Janeryd não se mostrou muito falador enquanto servia café no seu domicílio.
- Então... o que é assim tão urgente?
- Alexander Zalachenko. O desertor russo que chegou à Suécia em 1976 - disse Mikael, estendendo-lhe a carta de Fálldin.
Janeryd pareceu confuso. Leu a carta e pousou-a muito devagar. Mikael passou a meia hora seguinte a explicar-lhe o cerne do problema e a razão que levara Fálldin a escrever aquela carta.
- Eu... não posso falar desse assunto - acabou Janeryd por dizer.
- Claro que pode.
- Não. Só perante uma Comissão Constitucional.
- É muito provável que venha a ter ocasião de o fazer, também. Mas a carta pede-lhe que faça uso do seu discernimento.
- O Fálldin é um homem honesto.
- Não duvido nem por um segundo. E a minha intenção não é comprometê-lo, nem a si nem a ele. Não vou pedir-lhe que me revele qualquer segredo militar que o Zalachenko tenha eventualmente desvendado.
- Não conheço nenhum segredo. Nem sequer sabia que se chamava Zalachenko... Só o conhecia pelo nome de código.
- Que era?
- Chamavam-lhe Ruben.
- Ah.
- Não posso falar disso.
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- Claro que pode - repetiu Mikael, e instalou-se mais confortavelmente. - Acontece que, dentro de muito pouco tempo, toda esta história vai ser tornada pública. E quando isso acontecer, os media ou vão arrastá-lo pelas ruas da amargura, ou descrevê-lo como um honesto funcionário do Estado que fez tudo o que estava ao seu alcance para emendar uma situação execrável. Foi a si que o Fálldin escolheu para servir de intermediário entre ele e os que se ocupavam do Zalachenko. Isso já eu sei.
Janeryd baixou a cabeça.
- Conte.
O embaixador manteve-se silencioso durante quase um minuto.
- Não me informaram de nada. Eu era muito novo... não sabia como gerir a situação. Encontrei-me com eles talvez duas vezes durante todos os anos em causa. Diziam-me que o Ruben... o Zalachenko, estava de boa saúde, que colaborava e que a informação que fornecia era inestimável. Nunca soube os pormenores. Não precisava de saber. - Mikael aguardou. - O desertor tinha operado noutros países e nada sabia a respeito da Suécia. Por isso nunca foi uma grande prioridade na nossa política de segurança. Informei o primeiro-ministro em duas ou três ocasiões, mas, de um modo geral, não havia nada para dizer.
- Okay.
- Eles diziam-me sempre que ele estava a ser tratado de acordo com os regulamentos e que as informações que fornecia eram processadas segundo as normas habituais, seguindo os trâmites normais. Que podia eu dizer? Quando perguntava o que queria aquilo dizer, sorriam e diziam que essa parte estava acima do meu nível de competência. Sentia-me um idiota.
- Nunca achou que havia qualquer coisa que não batia certo em toda aquela história?
- Não. Nem sequer me ocorreu. Partia do princípio de que a Sapo sabia o que estava a fazer e tinha toda a experiência necessária. Mas não posso falar disso.
Por esta altura, havia já vários minutos que Janeryd não fazia outra coisa.
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- Nada disso é muito importante. Neste momento, apenas uma coisa importa.
- Qual?
- Os nomes das pessoas com quem falava. - Janeryd lançou-lhe um olhar inquiridor. - Aqueles que se ocupavam do Zalachenko excederam muito largamente as suas competências. Levaram a cabo uma actividade criminosa agravada e vão ser objecto de um inquérito preliminar. Foi por isso que o Fãlldin me mandou cá. Não sabe os nomes. Era o senhor que falava com eles. -Janeryd piscou nervosamente os olhos e cerrou os lábios. - Encontrou-se com Evert Gullberg... era ele o chefe. - Janeryd fez um gesto de confirmação. - Quantas vezes falou com ele?
- Participou em todos os nossos encontros, excepto um. Houve uma dezena de encontros durante o tempo em que o Fálldin foi primeiro-ministro.
- E onde tinham lugar esses encontros?
- No átrio de um hotel. Quase sempre o Sheraton. Uma vez o Amaranten, em Kungsholmen, e alguns no bar do Continental.
- Quem mais participava neles?
Janeryd voltou a piscar os olhos com um ar resignado.
- Foi há tanto tempo... Já não me lembro.
- Tente.
- Havia um... Clinton. Como o presidente americano.
- Nome próprio?
- Fredrik Clinton. Só o vi quatro ou cinco vezes.
- Okay... Outros?
- Hans von Rottinger. Conhecia-o por intermédio da minha mãe.
- Da sua mãe?
- Sim, a minha mãe conhecia a família von Rottinger. Hans von Rottinger era um homem simpático. Antes de o ver aparecer de repente numa reunião com o Gullberg, ignorava completamente que ele trabalhava para a Sapo.
- Não trabalhava para a Sapo - disse Mikael. Janeryd empalideceu.
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- Trabalhava para uma coisa chamada Secção de Análise Especial. O que foi que lhe disseram sobre esse grupo?
- Nada... quer dizer, eram eles que se ocupavam do desertor.
- Sim. Mas confesse que é estranho não figurarem em parte alguma no organograma da Sapo.
- É absurdo...
- É, não é? Como é que faziam para marcar os encontros? Eram eles que o contactavam, ou era ao contrário?
- Não... a data e o local do encontro seguinte eram decididos durante cada reunião.
- Como fazia quando precisava de os contactar? Por exemplo, para alterar o dia do encontro?
- Tinha um número de telefone.
- Que número?
- Sinceramente, já não me lembro.
- Era o número de quem?
- Não sei. Nunca o utilizei.
- Okay. Próxima pergunta... quem lhe sucedeu?
- Como?
- Quando o Falldin se demitiu. Quem ocupou o seu lugar?
- Não faço ideia.
- Fazia relatórios?
- Não, era tudo confidencial. Não tinha sequer o direito de tomar notas.
- E nunca falou com o seu sucessor? -Não.
- Que se passou, então?
- Bem... o Falldin demitiu-se e passou o testemunho à Ola Ullsten. Informaram-nos de que devíamos manter-nos à margem até às eleições seguintes. Então o Falldin foi eleito e os encontros recomeçaram. Depois, houve as eleições de 1985 e os socialistas ganharam. E suponho que o Palme designou alguém para me substituir. Pelo meu lado, iniciei a minha carreira diplomática no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fui colocado no Egipto, e depois na índia.
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Mikael continuou a fazer perguntas durante mais alguns minutos, mas estava convencido de que já sabia tudo o que Janeryd tinha para contar. Três nomes:
Fredrik Clinton.
Hans von Rottinger.
E Evert Gullberg... o homem que matara Zalachenko. O Clube Zalachenko.
Agradeceu a Janeryd e apanhou um táxi para a estação. Foi só quando já estava instalado no táxi que enfiou a mão no bolso para desligar o gravador.
Às 19h30 de domingo aterrava no aeroporto de Estocolmo.
Erika Berger contemplou pensativamente a foto que aparecia no ecrã. Ergueu os olhos e observou a redacção meio vazia do outro lado da gaiola de vidro. Tanto quanto se apercebesse, ninguém mostrava o mais pequeno interesse nela, nem abertamente, nem às escondidas. Também não tinha motivos para acreditar que alguém da redacção lhe quisesse mal.
O e-mail chegara um minuto antes. O remetente era redax@af tonbladet.com. Porquê precisamente Aftonbladet? Mais um endereço falso.
A mensagem não continha texto. Apenas uma imagem JPEG, que ela abriu no Photoshop.
Era uma foto pornográfica em que aparecia uma mulher nua, com uns seios excepcionalmente grandes e uma coleira de cão à volta do pescoço. De gatas, no chão, estava a ser sodomizada.
A cara da mulher tinha sido alterada. O retoque não fora bem feito, mas também não era com certeza esse o objectivo. O rosto de Erika Berger fora colado em cima do original. Era uma fotografia vulgar, que qualquer pessoa podia ter descarregado da Net. Por baixo, tinham sido escritas três palavras, com a função aerógrafo do Photoshop. Puta de merda.
Era a nona mensagem anónima que recebia a chamar-lhe "puta de merda" e que parecia enviada de um grande grupo de comunicação social sueco. Tinha, manifestamente, um ciber-assediador entre mãos.
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As escutas telefónicas eram mais complicadas de montar do que a vigilância informática. Trinity não tivera a mínima dificuldade em localizar o cabo do telefone fixo do procurador Ekstrõm; o problema era que Ekstrõm nunca, ou só muito raramente, o usava para telefonemas relacionados com o serviço. Trinity não se deu sequer ao trabalho de tentar armadilhar o telefone de Ekstrõm em Kungsholmen. Para isso, precisaria de acesso à rede de cabo sueca. E não o tinha.
Em contrapartida, ele e Bob the Dog passaram quase uma semana inteira a identificar e distinguir o telemóvel do procurador no meio do ruído de fundo de quase duzentos mil outros telemóveis em serviço num raio de um quilómetro à volta da sede da Polícia.
Trinity e Bob the Dog utilizaram uma técnica chamada Random Frequency Tracking System, RFTS. Uma técnica conhecida, criada pela National Security Agency americana, a NSA, e que estava integrada num número indeterminado de satélites encarregados de vigiar sem interrupção focos de crise particularmente interessantes, e capitais de todo o mundo.
A NSA dispunha de imensos recursos e usava uma espécie de rede para captar uma grande quantidade de chamadas de telemóveis feitas em simultâneo num determinado perímetro. Cada chamada era individualizada e convertida em analógico por programas feitos para reagir a certas palavras, como "terrorista" ou "kalachnikov". Se uma destas palavras aparecia, o computador enviava automaticamente um sinal, e um operador intervinha manualmente e ouvia a conversa para decidir se tinha ou não algum interesse.
A coisa complicava-se quando se pretendia identificar um telemóvel específico. Cada telemóvel tem a sua própria assinatura - como que uma impressão digital - sob a forma do número de telefone. Usando aparelhos extraordinariamente sensíveis, a NSA conseguia focalizar uma determinada zona para distinguir e ouvir chamadas de telemóveis. A técnica era simples, mas não cem por cento segura. As chamadas realizadas eram mais difíceis de identificar, enquanto as recebidas se identificavam mais facilmente, uma vez que começavam
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precisamente com a impressão digital destinada ao telefone-alvo para que ele captasse o sinal.
A diferença entre as ambições em matéria de escuta telefónica de Trinity e da NSA era de ordem financeira. A NSA tinha um orçamento anual de vários milhões de dólares, cerca de 12 mil agentes a tempo inteiro e acesso a uma tecnologia de ponta absoluta em informática e telecomunicações. Trinity tinha na sua carrinha o equivalente a cerca de trinta quilos de equipamento electrónico, em larga medida feito em casa por Bob the Dog. Graças à sua vigilância global por satélite, a NSA podia apontar antenas extremamente sensíveis para um dado edifício em qualquer parte do mundo. Trinity dispunha apenas de uma antena que Bob the Dog fabricara e cujo alcance efectivo não ultrapassava cerca de 500 metros.
A técnica de que Trinity dispunha obrigava-o a estacionar a carrinha na Bergsgatan ou numa das ruas próximas e calibrar laboriosamente o seu equipamento até que ele identificasse a impressão digital constituída pelo número do telemóvel do procurador Ekstrõm. Como não falava sueco, tinha de reorientar as chamadas, servindo-se de outro telemóvel, para Peste, que se encarregava da escuta propriamente dita.
Durante cinco dias e quatro noites, um Peste com umas olheiras cada vez mais fundas ouvira até ao esgotamento um número assustador de chamadas com destino ou origem na sede da Polícia e edifícios circundantes. Ouvira fragmentos de inquéritos em curso, descobrira encontros amorosos, gravara um sem-número de conversas sem a mais pequena ponta de interesse. Ao fim da tarde do quinto dia, Trinity enviou-lhe um sinal que um painel digital identificou de imediato como sendo o número do telemóvel do procurador Ekstrõm. Peste calibrou a antena parabólica para a frequência exacta.
A técnica funcionava melhor nas chamadas recebidas por Ekstrõm. A parabólica de Trinity limitava-se a captar o sinal do número do telemóvel do procurador emitido do espaço sobre toda a Suécia. A partir do instante em que pôde começar a gravar os telefonemas de Ekstrõm, Trinity obteve também a "impressão digital" da v"z, a partir da qual Peste podia trabalhar.
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Peste introduziu a voz digitalizada de Ekstrõm num programa chamado VPRS (Voiceprint Recognitiom System). Precisou de uma dúzia de palavras frequentemente utilizadas, como "de acordo", ou "Salander". Quando dispôs de cinco exemplos diferentes de uma palavra, esta foi repertoriada em função do tempo necessário para pronunciá-la, da altura e frequência do som, da tónica no final e de uma dúzia de outros marcadores. Depois de ter obtido, deste modo, uma representação gráfica, Peste passou a poder escutar de igual modo as chamadas efectuadas por Ekstrõm. A parabólica detectava ininterruptamente qualquer telefonema em que figurasse o esquema gráfico de uma das palavras frequentemente utilizadas, ao todo uma dúzia. A técnica estava longe de ser perfeita. Mas os dois calculavam que 50 por cento de todas as chamadas feitas ou recebidas por Ekstrõm, usando o telemóvel, do interior do edifício da Polícia ou de um local próximo eram escutadas e gravadas. Infelizmente, a técnica tinha um grande inconveniente. Quando Ekstrõm saía da sede da Polícia, cessava a possibilidade de escuta, a menos que Trinity, sabendo aonde ele se dirigia, pudesse estacionar a carrinha nas proximidades imediatas.
Na posse de uma ordem vinda de cima, Torsten Edklinth podia finalmente criar uma unidade de intervenção, pequena, sem dúvida, mas legítima. Escolheu quatro colaboradores, optando deliberadamente por jovens talentos vindos da polícia comum e recentemente recrutados pela Sapo. Dois tinham passado pela brigada antifraude, um pelos assuntos financeiros e um pela brigada criminal. Foram chamados ao gabinete de Edklinth e postos ao corrente da natureza da missão e da necessidade absoluta de confidencialidade. Sublinhou que o inquérito se fazia a pedido expresso do primeiro-ministro. Rosa Figuerola era a responsável e dirigia o inquérito com uma determinação à medida do seu físico.
Apesar disso, os progressos eram lentos, sobretudo porque nenhum deles sabia ao certo quem era o alvo das suas investigações. Edklinth e Figuerola ponderaram diversas vezes a possibilidade de deter
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pura e simplesmente Mârtensson e interrogá-lo, mas acabaram sempre por decidir esperar. Uma detenção teria como resultado tornar público todo o inquérito.
Na terça-feira, porém, 11 dias depois da conversa com o primeiro-ministro, Rosa Figuerola bateu à porta do gabinete de Edklinth.
- Acho que tenho qualquer coisa.
- Senta-te.
- Evert Gullberg.
- Sim?
- Um dos nossos investigadores falou com Marcus Ackerman, que chefia a investigação do assassínio do Zalachenko. Segundo o Ackerman, a Sapo não levou mais de duas horas após o assassínio a contactar a polícia de Gotemburgo para os informar sobre as cartas de ameaça do Gullberg.
- Andaram depressa.
- Sim. Demasiado depressa, até. A Sapo enviou por faxe, à polícia de Gotemburgo, nove cartas de que Gullberg seria o autor. Só que há um problema.
- Qual?
- Duas das cartas eram dirigidas ao Ministério da Justiça: uma ao ministro da Justiça e a outra ao ministro da Democracia.
- Sim. Já sabia.
- Pois, mas a carta dirigida ao ministro da Democracia só deu entrada no Ministério no dia seguinte. Fazia parte de uma outra distribuição.
Edklinth olhou fixamente para Rosa Figuerola. Pela primeira vez, teve verdadeiramente medo de que as suas suspeitas fossem fundadas. Inflexível, Rosa continuou:
- Por outras palavras, a Sapo enviou um faxe de uma carta que ainda não tinha chegado ao seu destinatário.
- Meu Deus! - murmurou Edklinth.
- Foi um funcionário da Protecção de Individualidades que enviou os faxes das cartas.
- Quem?
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- Não acredito que tenha alguma coisa a ver com tudo isto. Recebeu as cartas de manhã e, pouco depois do assassínio, alguém lhe ordenou que contactasse a polícia de Gotemburgo.
- Quem lhe deu essa ordem?
- O secretário do secretário-geral.
- Meu Deus, Rosa... Compreendes o que isto significa?
- Sim.
- Significa que a Sapo está envolvida no assassínio do Zalachenko.
- Significa, isso sim, que certas pessoas dentro da Sapo tinham conhecimento do assassínio antes de ele ser cometido. A questão é saber quem.
- O secretário-geral...
- Sim. Mas começo a convencer-me de que o Clube Zalachenko se encontra no exterior.
- Que queres dizer com isso?
- O Mârtensson. Foi transferido do serviço de Protecção a Individualidades e trabalha sozinho. Tivemo-lo sob vigilância a tempo inteiro durante toda a semana. Não teve, que saibamos, contactos com ninguém da casa. Recebe chamadas num telemóvel que não conseguimos escutar. Não sabemos o número desse telemóvel, mas em todo o caso não é o dele. Encontrou-se com um homem loiro que ainda não conseguimos identificar.
Edklinth franziu a testa. Naquele momento, Niklas Berglund bateu à porta. Era o colaborador recrutado para a nova secção de intervenção que anteriormente trabalhara nos casos financeiros.
- Acho que encontrei o Evert Gullberg - disse Berglund.
- Entre - convidou Edklinth.
Berglund pousou em cima da secretária uma velha fotografia com os cantos já a desfazerem-se. Edklinth e Figuerola estudaram-na. Representava um homem que ambos reconheceram de imediato como sendo o lendário coronel espião Stig Wennerstrõm. Dois robustos agentes da polícia, vestidos à civil, obrigavam-no a passar por uma porta.
- Esta fotografia pertence à editora Ahlén & Âkerlund e foi publicada na revista Se na Primavera de 1964. Foi tirada aquando
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do julgamento em que o Wennerstrõm foi condenado a prisão perpétua..
- Hum.
- Em segundo plano, vêem-se três pessoas. À direita, o comissário da Polícia Criminal, Oto Danielsson, que foi quem deteve o Wennerstrõm.
- Sim...
- Reparem no homem à esquerda, atrás do Danielsson. Edklinth e Figuerola viram um homem alto, com um fino
bigode e de chapéu. Tinha uma vaga semelhança com o escritor Dashiell Hammett.
- Comparem o rosto com esta foto do Gullberg. Tinha setenta anos quando foi tirada.
Edklinth voltou a franzir o sobrolho.
- Era incapaz de jurar que é a mesma pessoa.
- Mas eu sim - disse Berglund. - Volte a fotografia.
No verso, um carimbo indicava que a foto era propriedade de Áhlén & Âkerlund e que fora tirada por Julius Estholm. Havia um texto escrito a lápis. Stig Wennerstrõm, acompanhado por dois agentes da polícia, entra no Tribunal da Relação de Estocolmo. Em segundo plano, O. Danielsson, E. Gullberg e H. W. Francke.
- Evert Gullberg - disse Figuerola. - Da Sapo.
- Não - emendou Berglund. - De um ponto de vista puramente técnico, não pertencia à Sapo. Pelo menos, quando esta foto foi tirada.
- Porquê?
- A Sapo só foi criada quatro meses mais tarde. Nesta foto, pertencia ainda à polícia secreta do Estado.
- Quem é este H. W. Francke? - perguntou Rosa Figuerola.
- Hans Wilhelm Francke - respondeu Edklinth. - Morreu nos anos noventa, mas, no fim da década de cinquenta e início da de sessenta, foi director-adjunto da polícia secreta do Estado. Era uma espécie de lenda, como o Otto Danielsson. Encontrámo-nos um par de vezes.
- Ah - disse Rosa Figuerola.
- Deixou a Sapo em finais dos anos sessenta. O Francke e o P. G. Vinge nunca se entenderam e, pelas minhas contas, terá sido afastado
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quando tinha cinquenta ou cinquenta e cinco anos. Montou o seu próprio negócio.
- O seu próprio negócio?
- Sim, tornou-se consultor de segurança na indústria privada. Tinha um escritório em Stureplan, mas também fazia conferências de vez em quando, em acções de formação internas da Sapo. Foi assim que o conheci.
- Compreendo. Qual era o motivo da guerra entre o Vinge e o Francke?
- Não se suportavam. O Francke era do género cowboy, via agentes do KGB por todo o lado, e o Vinge um burocrata da velha escola. É verdade que também ele foi afastado pouco depois. Uma coisa ridícula, porque estava convencido de que o Palme trabalhava para o KGB.
- Hum - fez Rosa Figuerola, examinando a foto em que Gull-berg e Francke apareciam lado a lado.
- Penso que chegou o momento de termos outra conversa com o Ministério da Justiça - disse Edklinth.
- A Millennium saiu hoje - anunciou Figuerola. - Edklinth lançou-lhe um olhar penetrante. - Nem uma palavra sobre o caso Zalachenko - disse ela.
- O que significa que temos provavelmente um mês à nossa frente antes do próximo número. É bom sabê-lo. Mas temos de tratar do Blomkvist. O homem é como uma granada sem cavilha no meio de toda esta baralhada.
CAPÍTULO 17
QUARTA-FEIRA, 1 DE JUNHO
Nada alertara Mikael Blomkvist para a presença no vão da escada quando virou no último patamar e se deteve diante da porta do seu apartamento no número 1 de Bellmansgatan. Eram sete da tarde. Deteve-se ao ver uma mulher loira, de cabelos curtos e encaracolados, sentada no último degrau. Reconheceu imediatamente Rosa Figuerola, da Sapo, e lembrava-se muito bem da fotografia que Lotta Karim tinha encontrado.
- Olá, Blomkvist - disse ela prazenteiramente, fechando o livro que estivera a ler.
Mikael espreitou o título e viu que se tratava de uma obra em inglês sobre a percepção dos deuses na Antiguidade. Desviou os olhos para observar a sua inesperada visitante. A mulher pôs-se de pé. Usava um vestido de verão branco, de mangas curtas, e pousara um casaco de couro vermelho-tijolo no corrimão da escada.
- Precisamos de falar consigo - continuou a mulher.
Mikael observou-a. Era alta, mais alta do que ele, uma impressão reforçada pelo facto de se encontrar dois degraus mais acima. Estudou-lhe os braços, viu-lhe as pernas, e verificou que era também muito mais musculosa do que ele.
- Deve passar várias horas por semana no ginásio - comentou. Ela sorriu e tirou da bolsa o cartão profissional.
- Chamo-me...
- Chama-se Rosa Figuerola, nasceu em 1969 e mora na Pontonjárgatan, em Kungsholmen. Originária de Borlãnge, trabalhou como agente da polícia em Uppsala. Desde há três anos, trabalha na
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Sapo, Defesa da Constituição. Fanática da musculação, foi durante algum tempo atleta de alta competição e falhou por pouco a qualificação para a equipa olímpica sueca. O que é que quer de mim?
Figuerola ficou surpreendida, mas assentiu com um gesto de cabeça e recompôs-se rapidamente.
- Tanto melhor - disse, num tom descontraído. - Se já sabe tudo a meu respeito, sabe que não tem nada a temer da minha parte.
- Não?
- Há certas pessoas que precisam de falar tranquilamente consigo. Mas como tanto o seu apartamento como o seu telemóvel têm todo o ar de estar sob escuta e há razões para discrição, mandaram-me a mim fazer-lhe o convite.
- E porque iria eu aonde quer que fosse com alguém que trabalha para a Sapo?
Ela reflectiu por um instante.
- Bem... pode seguir-me aceitando este convite pessoal e amistoso, ou, se preferir, posso pôr-lhe umas algemas e levá-lo à força. - Fez um sorriso encantador, a que Mikael correspondeu. - Ouça, Blomkvist... compreendo que não tem muitas razões para confiar em alguém que vem da Sapo. Mas acontece que nem todos os que lá trabalham são seus inimigos, e há muito boas razões para que aceite uma conversa amigável com os meus chefes.
Mikael ficou calado.
- Então, o que é que escolhe? As algemas ou a boa vontade? -Já fui algemado pela polícia uma vez este ano. Tenho a minha
conta. Aonde é que vamos?
A loira alta conduzia um Saab 9-5 novo que deixara estacionado junto à esquina de Pryssgrãnd. Ao entrar para o carro, abriu o telemóvel e ligou para um número pré-marcado.
- Estamos aí dentro de um quarto de hora - disse.
Pediu a Mikael que pusesse o cinto de segurança e seguiu por Slussen até Õstermalm, onde estacionou numa rua lateral à Artillerigatan. Ficou imóvel por um instante, a observá-lo.
- Blomkvist... trata-se de uma operação amigável. Não arrisca nada.
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Mikael não respondeu. Esperava para ver antes de fazer um julgamento. A loira teclou um código no painel da porta. Subiram ao terceiro piso no elevador e detiveram-se diante de uma porta cuja placa ostentava o nome de Walhõf.
- É um apartamento que pedimos emprestado para a reunião desta tarde - disse Rosa Figuerola, abrindo a porta. - A sala de estar é à direita.
A primeira pessoa que Mikael viu foi Torsten Edklinth, o que não constituiu exactamente uma surpresa, uma vez que a Sapo estava metida até aos cabelos naquela história e Edklinth era o chefe de Rosa Figuerola. O facto de o director da Defesa da Constituição se ter dado ao trabalho de o mandar chamar significava que alguém estava muito preocupado.
Em seguida viu, diante da janela, uma personagem que se voltou para ele: o ministro da Justiça. Isso sim, era uma surpresa.
Ouviu então um ruído vindo da sua direita e viu uma pessoa extremamente conhecida levantar-se de um cadeirão. Nunca lhe teria passado pela cabeça que Rosa Figuerola o levasse a uma reunião de conspiradores de que fazia parte o primeiro-ministro!
- Boa tarde, Herr Blomkvist - cumprimentou o primeiro-ministro. - Desculpe tê-lo feito vir a esta reunião tão precipitadamente, mas discutimos a situação entre nós e estamos todos de acordo quanto à necessidade de falar consigo. Posso oferecer-lhe um café, ou qualquer outra coisa?
Mikael olhou em redor. Viu uma grande mesa de madeira escura coberta de copos, chávenas de café vazias e os restos de uma tarte salgada. Deviam estar ali havia já várias horas.
- Uma Ramlosa - disse Blomkvist.
Rosa Figuerola serviu-lhe a água mineral. Instalaram-se em sofás à volta de uma mesa baixa, enquanto ela se mantinha um pouco afastada.
- Reconheceu-me e sabia como me chamo, onde moro, onde trabalho e que sou praticante de musculação - disse Rosa Figuerola.
O primeiro-ministro olhou rapidamente para Torsten Edklinth e depois para Mikael Blomkvist. Mikael apercebeu-se, de repente,
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de que estava numa posição de força para falar. O primeiro-ministro precisava dele para qualquer coisa e ignorava por completo até que ponto ele estava ou não bem informado.
- Tento não me baralhar no meio dos actores desta trapalhada -disse num tom descontraído.
- E o que fez para saber o nome de Frõken Figuerola? - perguntou Edklinth.
Mikael olhou para o director da Defesa da Constituição. Não fazia a mínima ideia do que levara o primeiro-ministro a organizar uma reunião secreta com ele num apartamento emprestado em Õs-termalm, mas sentia-se inspirado. O facto era que não havia muitas explicações possíveis. Fora, com certeza, Dragan Armanskij que desencadeara tudo aquilo ao fornecer informações a uma pessoa em quem confiava. Forçosamente Edklinth, ou alguém próximo dele. Resolveu arriscar.
- Um conhecimento comum informou-o - disse, dirigindo-se a Edklinth. - O senhor encarregou Frõken Figuerola de investigar o que se estava a tramar e ela descobriu que há no interior da Sapo um grupo de activistas que fazem escutas telefónicas ilegais, assaltam o meu apartamento, e outras coisas nessa linha. O que significa que teve a confirmação da existência do Clube Zalachenko. Ficou de tal maneira perturbado que sentiu a necessidade de levar as coisas mais longe, mas ficou algum tempo sentado à sua secretária sem saber muito bem para quem se voltar. E então voltou-se para o ministro da Justiça, que por sua vez falou com o primeiro-ministro. E aqui estamos nós. O que é que esperam de mim? - Mikael falava num tom que dava a entender que dispunha de uma fonte bem colocada e que acompanhara passo a passo os movimentos de Edklinth. Viu, pela expressão espantada do director da Defesa da Constituição, que o seu bluff tinha resultado e continuou: - O Clube Zalachenko vigia-me, eu vigio-os a eles e vocês vigiam o Clube Zalachenko, e, nesta fase, o primeiro-ministro está tão furioso como preocupado. Sabe que no fim desta conversa há um escândalo a que o governo não conseguirá talvez sobreviver.
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Rosa Figuerola sorriu, mas escondeu o sorriso erguendo o copo. Tinha compreendido que Blomkvist estava a fazer bluff, e adivinhava como conseguira surpreendê-la sabendo o seu nome e até que número calçava.
Viu-me no carro na Bellmansgatan. É terrivelmente atento. Tirou o número da matrícula e identificou-me. Mas o resto não passa de suposições. Não disse nada.
O primeiro-ministro estava com um ar cada vez mais preocupado.
- É isso que nos espera? - perguntou. - Um escândalo que vai derrubar o governo?
- O governo não é problema meu - respondeu Mikael Blomkvist. - A minha missão consiste em denunciar merdas como o Clube Zalachenko.
O primeiro-ministro assentiu.
- E a minha consiste em governar o país de acordo com a Constituição.
- O que significa que o meu problema é antes de mais o problema do Governo. Ao passo que o contrário não se aplica.
- Podemos parar de falar sem dizer nada de concreto? Porque pensa que organizei esta reunião?
- Para descobrir o que eu sei e o que tenciono fazer.
- Em parte, sim. Mas seria mais correcto dizer que nos confrontamos com uma crise constitucional. Deixe-me começar por explicar que o governo não tem nada que ver com isto. Fomos apanhados completamente de surpresa. Nunca tinha ouvido falar de... daquilo a que chama o Clube Zalachenko. O ministro da Justiça nunca tinha ouvido falar do Clube Zalachenko. O Torsten Edklinth, que ocupa um alto cargo na Sapo há vários anos, também não.
- Continua a não ser problema meu.
- Eu sei. O que gostaríamos de saber é quando tenciona publicar o seu texto, e também gostaríamos de saber o que tenciona publicar. É uma pergunta que lhe faço. Não tem nada que ver com o controlo de eventuais estragos.
- Não?
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- Blomkvist, a pior coisa que eu podia fazer nesta situação seria tentar influenciar o conteúdo do seu artigo. Mas gostaria de propor-lhe uma colaboração.
- Explique-se, por favor.
- Agora que temos a confirmação da existência de uma conspiração no seio de um ramo excepcionalmente sensível da administração do Estado, ordenei a instauração de um inquérito. - O primeiro-ministro voltou-se para o ministro da Justiça. - Importas-te de explicar em que consiste exactamente a ordem do governo?
- É muito simples. O director Torsten Edklinth foi encarregado de determinar se é possível provar tudo isto. A missão dele consiste em reunir elementos de prova que serão transmitidos ao procurador-geral, que por sua vez deverá avaliar se há bases para uma acção judicial. Trata-se, portanto, de uma instrução muito clara e precisa. - Mikael assentiu. - Esta tarde, o director Edklinth informou-nos sobre os progressos do inquérito. Tivemos uma longa discussão em que debatemos os aspectos constitucionais... Queremos, evidentemente, que tudo se passe na mais estrita legalidade.
- Naturalmente - disse Mikael, num tom que dava a entender que não depositava a mínima confiança no empenhamento do primeiro-ministro.
- O inquérito encontra-se, neste momento, numa fase sensível. Ainda não estabelecemos exactamente quem são as pessoas envolvidas nesta história. Precisamos de tempo para o descobrir. Por isso mandámos Frõken Figuerola convidá-lo para esta reunião.
- O que ela fez muito bem. Não me deixou muito por onde escolher. - O primeiro-ministro franziu o sobrolho e lançou um olhar na direcção de Figuerola. - Esqueça o que eu disse - pediu Mikael. - Frõken Figuerola teve um comportamento exemplar. Mas o que é que pretendem?
- Queremos saber quando tenciona publicar. De momento, o inquérito está a ser conduzido no maior segredo, e se você intervém antes de o Edklinth ter terminado, pode deitar tudo a perder.
- Hum. E quando lhes dá jeito que eu publique? Depois das eleições?
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- Cabe a si decidir. Não posso influenciá-lo seja de que maneira for. Tudo o que lhe peço é que nos diga quando vai publicar, para sabermos exactamente qual é a data limite para o inquérito.
- Compreendo. Falava de uma colaboração... O primeiro-ministro assentiu.
- Gostaria de começar por dizer que, em circunstâncias normais, nunca me teria passado pela cabeça chamar um jornalista para uma reunião deste género.
- Em circunstâncias normais, muito provavelmente teria feito tudo ao seu alcance para manter os jornalistas afastados de uma reunião deste género.
- É verdade. Mas compreendi que há vários factores que o movem. Enquanto jornalista, tem fama de não ter a mão leve em se tratando de corrupção. Nesse aspecto, não há diferença entre nós.
- Não?
- Não. Nenhuma. Ou mais exactamente, há diferenças de carácter jurídico, mas não no que respeita ao objectivo. Se este Clube Zalachenko existe, trata-se não só de um grupo totalmente criminoso, mas também de uma ameaça à segurança do país. É imperioso travar-lhe o passo e os responsáveis terão de responder pelos seus actos. Sobre este ponto, deveríamos estar de acordo. - Mikael fez um gesto de concordância. - Segundo entendi, sabe mais a respeito desta história do que qualquer outra pessoa. Propomos-lhe que partilhe os seus conhecimentos connosco. Se estivéssemos a falar de uma investigação da polícia comum sobre um crime vulgar, o responsável pelo inquérito preliminar poderia decidir convocá-lo para prestar declarações. Mas nós estamos numa situação extrema, como bem compreendeu.
Mikael guardou silêncio e avaliou a situação durante um curto instante.
- E qual é a contrapartida, se cooperar?
- Nenhuma. Não vou regatear consigo. Se quiser publicar amanhã, publique. Não quero envolver-me num regateio que poderia ser duvidoso do ponto de vista constitucional. Peço-lhe que coopere tendo em vista o bem do país.
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- O bem pode revestir numerosos aspectos - respondeu Mikael. - Deixe-me explicar-lhe uma coisa... estou furioso. Estou furioso com o Estado e com o governo e com a Sapo e com os sacanas que sem qualquer razão internaram uma miúda de doze anos numa clínica psiquiátrica e depois se aplicaram para que fosse declarada interdita.
- A Lisbeth Salander tornou-se um assunto de Estado - disse o primeiro-ministro, e foi ao ponto de sorrir. - Mikael, estou pessoalmente revoltado com o que lhe aconteceu. E pode acreditar em mim quando lhe digo que os responsáveis vão ter de explicar-se. Mas, antes que isso aconteça, temos de saber quem são os responsáveis.
- Vocês têm os vossos problemas. O meu, é que quero ver a Lisbeth Salander ilibada e quero que recupere os seus direitos civis.
- Nesse aspecto, não posso ajudá-lo. Não estou acima da lei e não posso condicionar as decisões do procurador e dos tribunais. A absolvição de Lisbeth Salander terá de ser pronunciada em julgamento.
- Muito bem. Querem a minha colaboração. Então, dêem-me acesso ao inquérito do director Edklinth, e eu dir-lhes-ei quando vou publicar e o quê.
- Não posso dar-lhe o que me pede. Seria estabelecer consigo a mesma relação que o predecessor do ministro da Justiça tinha com um tal Ebbe Carlsson, antes de ter rebentado o escândalo das revelações sobre o assassínio de Olof Palme.
- Eu não sou Ebbe Carlsson - disse Mikael, calmamente.
- Foi o que compreendi. Em contrapartida, o director Torsten Edklinth pode, evidentemente, decidir o que deseja partilhar consigo dentro dos limites da missão que lhe foi confiada.
- Muito bem. Quero saber quem era Evert Gullberg. Fez-se silêncio à volta da mesa.
- Evert Gullberg foi provavelmente, durante muitos anos, chefe da secção da Sapo a que chama o Clube Zalachenko - disse Edklinth.
O primeiro-ministro lançou um olhar severo ao director da Defesa da Constituição.
- Acho que ele já sabia - justificou-se Edklinth.
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- É verdade - disse Mikael. - Começou a trabalhar na Sapo nos anos cinquenta e tornou-se chefe de uma treta chamada Secção de Análise Especial. Foi ele que criou todo o caso Zalachenko. O primeiro-ministro abanou a cabeça, com um suspiro.
- Sabe mais do que devia. Muito gostaria de saber como o descobriu. Mas não vou perguntar.
- Há lacunas no meu artigo - disse Mikael. - Quero colmatá-las. Dê-me as informações de que preciso, e eu prometo não lhe passar nenhuma rasteira.
- Enquanto primeiro-ministro, não posso dar-lhe essas informações. E o Torsten Edklinth ficará na corda bamba se lhe as der.
- Não diga asneiras. Eu sei o que vocês querem. Vocês sabem o que eu quero. Se me derem essa informação, tratá-los-ei como fontes, com todo o anonimato que isso implica. Não me entenda mal, na minha reportagem vou contar a verdade tal como a vejo. Se estiver envolvido nesta história, vou denunciá-lo e fazer de modo a que nunca mais seja reeleito. Mas no estado em que as coisas estão de momento, não tenho qualquer razão para acreditar que seja o caso.
O primeiro-ministro lançou um olhar a Edklinth, e ao cabo de um curto instante assentiu com a cabeça. Mikael interpretou isto como um sinal de que o chefe do Governo acabava de cometer uma infracção à lei - ainda que extremamente teórica - e de dar o seu consentimento tácito à transmissão de informações confidenciais a um jornalista.
- Podemos resolver isto de uma maneira muito simples - disse Edklinth. - Eu sou o único responsável e decido sozinho que colaboradores recruto para o meu inquérito. Não posso contratá-lo formalmente como investigador, uma vez que isso o obrigaria a assinar um compromisso de sigilo. Mas posso contratá-lo como consultor externo.
Desde que substituíra o falecido Hâkan Morander e vestira a camisola de directora editorial, Erika Berger vira a sua vida transformada num inferno de reuniões e de sessões de trabalho constantes, de dia e de noite. Sentia-se permanentemente impreparada, incapaz e intrusa.
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Só na tarde de quarta-feira, quase duas semanas depois de Micael lhe ter dado a pasta com o resultado da pesquisa de Henry Cortez sobre Magnus Borgsjõ, presidente do CA do SMP, conseguiu arranjar tempo para atacar o problema. Ao abrir o dossier, apercebeu-se de que a demora tivera também muito a ver com a sua falta de vontade de o encarar. Já sabia que, fizesse o que fizesse, o resultado seria uma catástrofe.
Regressou a casa, em Saltsjõbaden, bastante cedo, por volta das sete da tarde, desligou o alarme da entrada e verificou, com surpresa, que o marido não estava. Precisou de alguns instantes para se lembrar de que ele a beijara naquela manhã com um cuidado muito especial, uma vez que estava de partida para Paris, onde daria uma série de conferências, e não regressaria antes do fim-de-semana. Apercebeu-se de que não fazia a mínima ideia de qual era o tema das conferências nem de quando fora a viagem decidida.
Oh, sim, meu Deus, peço desculpa, mas acho que perdi o meu marido! Sentia-se como uma personagem de um livro do Dr. Richard Schwarts, e perguntou-se se não estaria a precisar de terapia matrimonial.
Subiu ao andar de cima, pôs a água a correr na banheira e despiu-se. Levou a pasta consigo e passou a meia hora seguinte a ler a história. Terminada a leitura, não pôde impedir-se de sorrir. Henry Cortez ia tornar-se um jornalista formidável. Tinha 26 anos e trabalhava na Millennium desde que saíra da Faculdade de Jornalismo, há quatro anos. Sentiu um certo orgulho. Todo o artigo sobre as sanitas e Borgsjõ tinha a assinatura da Millennium do princípio ao fim, e cada linha estava perfeitamente documentada e apoiada em factos.
Mas sentiu-se também um pouco triste. Magnus Borgsjõ era um homem correcto de quem ela gostava. Não fazia muito barulho, sabia ouvir, tinha charme e parecia ser uma pessoa simples. Além disso, era o chefe e o patrão dela. Borgsjõ, seu sacana. Como pudeste ser tão estúpido?
Reflectiu por um instante, a tentar encontrar outras abordagens ou circunstâncias atenuantes, mas já sabia que seria impossível negar a evidência.
Pousou a pasta no parapeito da janela e recostou-se na banheira, para pensar.
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A Millennium ia publicar a história, era inevitável. Se ainda fosse a directora editorial da revista não hesitaria um segundo, e o facto de Mikael lhe ter facultado a informação antecipadamente mais não fora do que um gesto pessoal para deixar claro que todos queriam minimizar o mais possível os prejuízos para ela. Se a situação fosse inversa, se o SMP tivesse desenterrado qualquer trampa comparável a respeito do presidente do CA da Millennium - que por acaso até era ela, Erika Berger! -, também não hesitaria em publicar.
A publicação ia atingir duramente Magnus Borgsjõ. O que era grave, no fundo, não era o facto de a Vitavara, SA encomendar sanitas a uma empresa vietnamita, que constava da lista negra da ONU, que explorava o trabalho infantil - e, no caso vertente, também o trabalho de prisioneiros que na realidade funcionavam como escravos, sem esquecer que alguns deles podiam, por certo, ser classificados como presos políticos. O mais grave era o facto de Magnus Borgsjõ saber de tudo isto e ter optado por continuar a encomendar sanitas à Fong Soo Industries. Era uma atitude gananciosa que, na esteira das acções de outros gangsters capitalistas, como o antigo CEO da Skandia, ia cair muito mal junto do povo sueco.
Magnus Borgsjõ ia evidentemente alegar que não tinha sido informado do que se passava na Fong Soo Industries, mas Henry Cortez tinha provas em contrário, e no instante em que Borgsjõ tentasse vir com balelas, seria ainda por cima acusado de mentiroso. Porque, em Junho de 1997, Magnus Borgsjõ viajara até ao Vietname para assinar os primeiros contratos. Na altura, passara dez dias no país e visitara, entre outras, as fábricas da empresa. Se tentasse alegar que não se apercebera de que vários dos trabalhadores dessas fábricas não tinham mais de 12 ou 13 anos, passaria por um perfeito idiota.
A questão da eventual ignorância de Borgsjõ seria logo a seguir definitivamente arrumada pelo facto de Henry Cortez provar que, em 1999, a comissão da ONU incluía a Fong Soo na lista das empresas que exploravam o trabalho infantil. O caso fora objecto de artigos na imprensa escrita e levara duas ONG que lutavam por esta causa - uma das quais a prestigiada International Effort Against Child Labour, de Londres - a escrever às empresas que faziam encomendas
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à Fong Soo. Só a Vitavara, SA recebera nada mais, nada menos que nove cartas, duas delas dirigidas pessoalmente a Magnus Borgsjõ. A organização londrina tivera muito gosto em fornecer a respectiva documentação a Henry Cortez, sublinhando que em momento algum a Vitavara, SA respondera às suas missivas.
Por outro lado, Magnus Borgsjõ visitara o Vietname mais duas vezes, em 2001 e 2004, para renovar os contratos. Era o golpe de misericórdia. Qualquer possibilidade que Borgsjõ tivesse de fingir que não sabia de nada morria ali.
A atenção que os media iam dar ao assunto só podia conduzir a uma coisa: se Borgsjõ tivesse algum bom senso, faria mea culpa e demitir-se-ia dos vários CA a que presidia. Se tentasse resistir, deixaria a pele na refrega.
O facto de Borgsjõ ser o presidente do CA da Vitavara, SA era o que menos preocupava Erika Berger. Grave, para ela, era ele ser também o presidente do CA do SMP. A revelação significaria que seria obrigado a demitir-se. Numa altura em que o jornal tentava equilibrar-se à beira do abismo e em que se iniciava um trabalho de renovação, o SMP não podia permitir-se o luxo de ter um presidente de costumes duvidosos. As consequências seriam terríveis. Era, pois, imperioso que ele saísse.
Para Erika, só havia duas linhas de acção possíveis.
Podia ir ter com Borgsjõ, pôr as cartas na mesa, mostrar a documentação e levá-lo assim a chegar por si mesmo à inevitável conclusão de que tinha de demitir-se antes que a história fosse publicada.
Ou então, se ele recalcitrasse, podia convocar uma reunião urgente e extraordinária do CA, informar os membros da situação e forçá-los a demiti-lo. Mas se o CA não quisesse seguir essa linha, seria ela própria obrigada a demitir-se de imediato do seu cargo de directora editorial.
Enquanto estava entregue às suas reflexões, a água do banho ficou fria. Tomou um duche quente, secou-se e passou ao quarto para vestir um roupão. Em seguida, pegou no telemóvel e ligou para Mikael. Não obtendo resposta, desceu ao rés-do-chão para preparar um café e,
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pela primeira vez desde que começara a trabalhar no SMP, ligou a televisão para ver se passava algum filme que a pudesse relaxar.
Ao passar em frente da porta da sala sentiu uma dor aguda no pé, baixou os olhos e descobriu que estava a sangrar abundantemente. Deu outro passo, e a dor trespassou-lhe o pé todo. Saltitando ao pé-coxinho, chegou a uma cadeira e sentou-se. Levantou o pé e descobriu, horrorizada, um pedaço de vidro espetado por baixo do calcanhar. Num primeiro momento, julgou ir desmaiar, mas recompôs-se, pegou no vidro e puxou-o. Doeu-lhe horrivelmente, e o sangue jorrou da ferida.
Abriu precipitadamente uma gaveta da cómoda do vestíbulo onde guardava lenços, luvas e bonés. Encontrou uma faixa de seda com que atou o pé e apertou com força. Mas não era o suficiente, e reforçou com uma outra ligadura improvisada. A hemorragia abrandou um pouco.
Olhou, confusa, para o pedaço de vidro ensanguentado. Como teria ido ali parar? Foi então que descobriu outros espalhados pelo chão do vestíbulo. Mas que merda... Olhou para a sala e viu que a grande janela panorâmica com vista para a bacia de Saltsjon estava estilhaçada e o chão juncado de cacos de vidro.
Recuou até à porta principal e calçou os sapatos que tinha largado ao entrar. Ou melhor, calçou um sapato e enfiou no outro os dedos do pé ferido, e saltitou mais ou menos sobre uma perna até à sala para comprovar o desastre.
E foi então que descobriu o tijolo em cima da mesa. Coxeou até ao terraço e saiu para o quintal das traseiras. Alguém pintara três palavras na fachada da casa, com letras de um metro de altura.
PUTA De MERDA.
Passava um pouco das nove da noite quando Rosa Figuerola abriu a porta do carro para Mikael entrar. Depois, contornou o veículo pela frente e foi sentar-se ao volante.
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- Quer que o leve a casa, ou prefere ficar noutro sítio? O olhar de Mikael estava como que vazio.
- Para ser franco... nem sei muito bem onde estou. É a primeira vez que faço chantagem com um primeiro-ministro.
Rosa Figuerola desatou a rir.
- Jogou muito bem as suas cartas - disse. - Não sabia que era tão dotado para o bluffpóquer.
- Todas as minhas palavras foram sinceras.
- Sim, o que quis dizer é que fingiu saber muito mais do que na realidade sabe. Apercebi-me disso no momento em que compreendi como me tinha identificado. - Mikael voltou a cabeça e olhou para ela. - Decorou a matrícula do meu carro quando eu estava estacionada no cimo da ladeira, em frente da sua casa. - Ele confirmou com um gesto de cabeça. - Conseguiu dar a entender que sabia o que tinha sido discutido no gabinete do primeiro-ministro.
- Porque é que não disse nada?
Ela lançou-lhe um rápido olhar antes de virar na Grev Turegatan.
- É a regra do jogo. Não devia ter parado ali. Mas era o único sítio onde podia estacionar. E se nos tratássemos por tu?
- Claro.
- Estás sempre supervigilante ao que te rodeia, ou estou enganada?
- Tinhas um mapa aberto no banco ao lado do teu e falavas ao telemóvel. Decorei o número da matrícula e investiguei, por descargo de consciência. Verifico todos os carros que me fazem desconfiar. Regra geral, não dá em nada. No teu caso, descobri que trabalhavas para a Sapo.
- Estava a vigiar o Mârtensson. Depois descobri que tu também o vigiavas por intermédio da Susanne Linder, da Milton Security.
- O Armanskij destacou-a para controlar tudo o que se passa à volta do meu apartamento.
- E como a vi entrar no teu prédio, suponho que também mandou instalar uma qualquer forma de vigilância escondida em tua casa.
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- Exacto. Temos um excelente vídeo dos dois a entrar no apartamento e a revistar a minha papelada. O Mârtensson levava uma fotocopiadora portátil. Conseguiram identificar o cúmplice dele?
- Não tem a mínima importância. É um serralheiro com antecedentes criminais que provavelmente se faz pagar para abrir a tua porta.
- E chama-se?
- Fonte protegida?
- Evidentemente.
- Lars Paulsson. Quarenta e sete anos. Conhecido pelo nome de Falun. Foi condenado por arrombar um cofre, nos anos oitenta, e outros pequenos delitos. Tem uma loja em Norrtull.
- Obrigado.
- Mas deixemos os segredos para amanhã.
A reunião terminara com um acordo segundo o qual Mikael Blomkvist faria, na manhã seguinte, uma visita à Defesa da Constituição, para iniciar uma troca de informações. Mikael reflectia. Naquele preciso instante, estavam a passar por Sergels Torg.
- Sabes uma coisa? Estou cheio de fome. Almocei às duas e preparava-me para fazer umas sanduíches quando me apanhaste. Já comeste?
- Há já algum tempo.
- És capaz de nos levar a um restaurante onde a comida seja comestível?
- Toda a comida é comestível. Ele olhou-a de soslaio.
- Pensei que fosses fanática da dietética.
- Sou fanática da musculação. Quando se faz exercício, pode-se comer o que se quiser. Dentro de limites razoáveis, claro.
Rosa Figuerola meteu pelo viaduto de Klaraberg e considerou as opções disponíveis. Em vez de virar para Sõdermalm, seguiu em frente para Kungsholmen.
- Não sei como são os restaurantes em Sõder, mas conheço um bósnio em Fridhemsplan. Os borek deles são fabulosos.
- Óptimo, vamos a isso - respondeu Mikael.
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Letra a letra, Lisbeth Salander escrevia o seu relato. Trabalhava em média cinco horas por dia. Usava formulações muito precisas. Tinha também o cuidado de ocultar todos os pormenores susceptíveis de serem utilizados contra ela.
O facto de estar fechada à chave tornara-se um trunfo. Podia trabalhar quando estava sozinha no quarto, e o tilintar do chaveiro ou a introdução da chave na fechadura alertava-a sempre que era preciso esconder o Palm.
[Estava a fechar à chave a porta da casa de Bjurman em Stallarholmen quando Carl-Magnus Lundin e Sonny Nieminen apareceram nas suas motos. Como me procuravam havia já algum tempo, por ordem de Zalachenko/Niedermann, ficaram surpreendidos ao encontrar-me ali. Magge Lundin apeou-se da moto e disse: "Acho que a fufa está a pedir pica, Sonny." Lundin e Nieminen foram de tal modo ameaçadores que fui obrigada a recorrer à legítima defesa. Deixei o local na moto de Lundin, que mais tarde abandonei perto do Parque de Exposições de Àlvsjõ.]
Releu a passagem e assentiu em sinal de aprovação. Não havia razão nenhuma para acrescentar que Magge Lundin lhe chamara puta de merda e que então ela apanhara do chão a Wanad P-83 de Sonny Nieminen e o castigara enfiando-lhe uma bala num pé. Os chuis poderiam provavelmente imaginar o que se passara, mas imaginar era uma coisa e provar, outra muito diferente. Não tencionava facilitar-lhes o trabalho admitindo fosse o que fosse que pudesse levá-la à prisão por ofensas corporais agravadas.
O texto comportava agora o equivalente a 33 páginas e aproximava-se do fim. Em certas passagens, era particularmente parcimoniosa em matéria de pormenores e tinha muito cuidado em nunca tentar apresentar provas a suportar as muitas afirmações que fazia. Chegava, pelo contrário, a ocultar algumas provas evidentes, passando directamente para o acontecimento seguinte.
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Reflectiu um instante, voltou atrás e releu a passagem em que relatava a violação sádica e violenta de que fora vítima por parte de Nils Bjurman. Era a parte a que dedicara mais tempo e uma das poucas que refizera várias vezes até ficar satisfeita com o resultado. Ocupava 19 linhas de texto. Contava de uma maneira objectiva como fora agredida, estendida de barriga para baixo em cima da cama, algemada e amordaçada com fita adesiva. Depois, precisava que, durante a noite, ele a submetera a violentas sevícias sexuais, incluindo penetrações anais e orais. Contava que, a um dado momento da violação, ele lhe pusera uma peça de roupa à volta do pescoço - a sua própria T-shirt - e a estrangulara tão longamente que tinha, por um instante, ficado inconsciente. Seguiam-se algumas linhas em que identificava os instrumentos que Bjurman usara durante a violação, incluindo um chicote curto, um tampão anal, um enorme vibrador e pinças que lhe aplicara nos mamilos.
Franziu a testa e estudou o texto. Então, pegou no estilete e acrescentou mais algumas linhas:
{A dada altura, quando tinha ainda a boca tapada com fita adesiva, Bjurman comentou o facto de eu ter um certo número de tatuagens e de piercings, entre os quais um anel no mamilo esquerdo. Perguntou-me se gostava de ser picada, e então saiu do quarto por um instante. Voltou com uma agulha que me espetou no mamilo direito.]
Depois de ter lido este novo parágrafo, assentiu com a cabeça. O tom burocrático dava ao texto uma entoação de tal modo surrealista que o fazia parecer uma efabulação absurda. A história não era pura e simplesmente credível. E era exactamente essa a intenção de Lisbeth Salander. Nesse instante, ouviu o tilintar das chaves do homem da Securitas. Fechou imediatamente o Palm e enfiou-o no nicho atrás da cabeceira. Era Annika Giannini. Franziu a testa. Já passava das nove e, como regra, Annika nunca aparecia tão tarde. - Olá, Lisbeth. -Olá.
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- Como vai?
- Ainda não estou pronta. Annika Giannini suspirou.
- Lisbeth... marcaram a data do julgamento para 13 de Julho.
- Tudo bem.
- Não, não está tudo bem. O tempo foge e a Lisbeth continua a não confiar em mim. Começo a recear ter cometido um enorme erro ao aceitar ser sua advogada. Se queremos ter a mais pequena hipótese de ganhar, tem de confiar em mim. Tem de colaborar.
Lisbeth ficou a observá-la durante um longo instante. Por fim, inclinou a cabeça para trás e fixou os olhos no tecto.
- Agora já sei como vamos fazer - disse. - Compreendi o plano do Mikael. E ele tem razão.
- Não tenho assim tanta certeza - disse Annika.
- Mas tenho eu.
- A polícia quer interrogá-la outra vez. Um tal Hans Faste, de Estocolmo.
- Deixe-o interrogar. Não direi uma palavra.
- Tem de dar uma explicação qualquer. Lisbeth lançou-lhe um olhar acerado.
- Repito. Não dizemos uma palavra à polícia. Quando chegarmos a tribunal, o procurador não deverá ter uma sílaba que seja de um qualquer interrogatório em que se apoiar. Tudo o que vão ter é o relato que estou a preparar neste momento e que vai em grande parte parecer exagerado. E vão tê-lo poucos dias antes do julgamento.
- E quando é que vai começar a redigir esse texto?
- Recebê-lo-á em breve. Mas só o entregará ao procurador a poucos dias do julgamento.
Annika Giannini fez um ar céptico. Lisbeth sorriu-lhe inesperadamente, de soslaio.
- Fala de confiança. Será que posso confiar em si?
- Naturalmente.
- Pode fazer-me chegar às mãos um computador de bolso para que eu possa entrar em contacto com determinadas pessoas via Internet?
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- Não. Claro que não. Se fosse descoberta, seria levada a tribunal e expulsa da Ordem.
- Mas se outra pessoa qualquer me fizesse chegar um computador, revelá-lo-ia à polícia?
Annika arqueou as sobrancelhas...
- Se não soubesse de nada...
- Mas se soubesse. Que faria? Annika reflectiu por um longo instante.
- Fecharia os olhos. Porquê?
- Esse hipotético computador vai em breve enviar-lhe um hipotético e-mail. Quando o receber, venha falar comigo.
- Lisbeth...
- Espere. Veja se compreende o que se passa. O procurador faz jogo sujo, e eu encontro-me numa posição de inferioridade, faça eu o que fizer. A intenção deste julgamento é internar-me numa clínica psiquiátrica.
- Eu sei.
- Se quero sobreviver, também eu tenho de deitar mão a métodos ilícitos.
Annika Giannini acabou por assentir com a cabeça.
- Quando me procurou pela primeira vez, trouxe-me uma mensagem do Mikael Blomkvist. Dizia ele que lhe tinha contado tudo, com algumas excepções. Uma das excepções era um certo talento que descobriu em mim quando estávamos em Hedestad.
- Sim.
- Referia-se ao facto de eu ser uma barra em informática. Sou tão boa que consigo ler e copiar tudo o que está no computador do procurador Richard Ekstrõm. - Annika Giannini empalideceu. - Não pode estar envolvida numa coisa destas - continuou Lisbeth. - O que significa que não pode usar esse material durante o julgamento.
- Claro que não.
- Logo, não sabe sequer que ele existe.
- De acordo.
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- Em contrapartida, outra pessoa, digamos o seu irmão, pode publicar determinadas partes desse material. Terá de tê-lo em conta quando preparar a nossa estratégia para o julgamento.
- Compreendo.
- Annika, este julgamento será ganho por aquele que usar os métodos mais duros.
- Eu sei.
- Estou contente por tê-la como minha advogada. Confio em si e preciso da sua ajuda.
- Hum.
- Mas se eu não puder usar as mesmas cartas que eles, vamos perder.
- É verdade.
- Nesse caso, preciso de saber a sua opinião, imediatamente. Caso contrário, vou ter de lhe agradecer e procurar outro advogado.
- Lisbeth, não posso ir contra a lei.
- Não é uma questão de ir contra a lei, mas de fechar os olhos quando eu o faço. É capaz disso?
Lisbeth esperou pacientemente durante um minuto, até que Annika assentiu com a cabeça.
- Óptimo. Deixe-me contar-lhe por alto o que estou a fazer. Falaram durante duas horas.
Rosa Figuerola tinha razão. Os borek do restaurante bósnio eram óptimos. Mikael Blomkvist lançou-lhe um olhar de soslaio quando ela voltou dos lavabos. Mexia-se com a graça de uma bailarina clássica, mas tinha um corpo que... Mikael não conseguia impedir-se de ficar fascinado. Reprimiu o impulso de estender a mão e apalpar-lhe os músculos das pernas.
- Há muito tempo que fazes musculação? - perguntou.
- Desde a adolescência.
- E quantas horas por semana?
- Duas por dia, às vezes três.
- Porquê? Quer dizer, eu sei que muita gente faz exercício, mas...
- Achas exagerado.
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- Não sei muito bem o que acho.
Ela sorriu, aparentemente nada irritada com tanta pergunta.
- Só te enerva ver uma mulher com músculos e achas que não é muito feminino nem muito erótico?
- Não, nada disso. Acho até que te fica bem. És terrivelmente
sexy.
Ela voltou a rir.
- Tenho andado a diminuir o ritmo. Há dez anos, fazia bodybuilding puro e duro. Era agradável. Mas agora preciso de ter cuidado, para que os meus músculos não se transformem em gordura e não ficar flácida. Por isso, limito-me a fazer um pouco de levantamento de pesos uma vez por semana e passo o resto do tempo a fazer jogging, badmínton, natação, e esse género de coisas. Trata-se mais de exercício físico do que de treino a sério.
-Já não é mau!
- Faço-o porque me sinto bem. É um fenómeno muito comum entre os que se empenham a fundo. O corpo produz uma substância analgésica que se torna viciante. Ao fim de algum tempo, começamos a ter sintomas de privação se não corremos todos os dias. É como uma injecção de bem-estar quando nos empenhamos a fundo. É quase tão bom como fazer amor. Mikael riu.
- Devias experimentar - disse ela. - Começas a engordar na cintura.
- Eu sei. A culpa é de ter parado. Por vezes, dá-me para recomeçar a correr. Livro-me de um par de quilos, e depois meto-me noutra coisa qualquer e deixo de ter tempo durante um ou dois meses.
- Há que reconhecer que tens andado bastante ocupado nestes últimos tempos. - Ele ficou repentinamente sério. Acabou por assentuar: - Li uma porção de coisas a teu respeito nas duas últimas semanas. Foste mais rápido do que a polícia a encontrar o Zalachenko e a identificar o Niedermann.
- A Lisbeth Salander foi ainda mais rápida.
- Como é que chegaste a Gosseberga?
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Mikael encolheu os ombros.
- Trabalho de pesquisa normal, como mandam as regras. Não fui eu que localizei o Niedermann, foi a nossa assistente editorial, a Malin Eriksson, que entretanto passou a directora editorial. Chegou até ele através do registo comercial. Fazia parte do CA da empresa do Zalachenko, chamada KAB.
- Estou a ver.
- O que foi que te levou a entrar para a Sapo?
- Podes não acreditar, mas estou tão fora de moda que sou democrata. Penso que a polícia é necessária e que uma democracia tem necessidade de uma muralha política. Por isso orgulho-me de trabalhar na Defesa da Constituição.
- Hum - fez Mikael.
- Não gostas muito da Segurança, pois não?
- Não gosto muito das instituições que se julgam acima de um controlo parlamentar normal. É um incentivo aos abusos de poder, mesmo quando as intenções são as melhores. Porque é que te interessas pelas mitologias antigas?
Ela arqueou as sobrancelhas.
- Estavas a ler um livro sobre o assunto, na minha escada.
- Ah, sim, é verdade. O tema fascina-me. -Ah.
- Interesso-me por muitas coisas. Estudei Direito e Ciências Políticas nos meus tempos na polícia. Antes disso, estudei História das Mentalidades e Filosofia.
- Não tens pontos fracos?
- Não leio literatura e nunca vou ao cinema. Na televisão só vejo os noticiários. E tu? Porque foi que te tornaste jornalista?
- Porque existem instituições como a Sapo a que o Parlamento não tem acesso e que têm de ser denunciadas regularmente.
Mikael sorriu, e continuou:
- Para ser franco, não sei muito bem. Mas, no fundo, a resposta é a mesma que a tua. Acredito na democracia constitucional e, de vez em quando, é preciso defendê-la.
- Como foi no caso do financeiro Hans-Erik Wennerstrõm?
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- Qualquer coisa nesse género.
- És solteiro. Andas com a Erika Berger?
- A Erika Berger é casada.
- Bom, nesse caso, todos os rumores a respeito dos dois são al-drabices. Tens namorada?
- Nenhuma permanente.
- Nesse caso, também esses rumores são verdadeiros. Mikael encolheu os ombros e voltou a sorrir.
A directora editorial Malin Eriksson passou a noite até de madrugada sentada à mesa da cozinha da sua casa em Arsta. Estava a estudar o orçamento da Millennium, e tão absorta que o seu amigo Anton acabou por desistir de tentar manter uma conversa normal com ela. Lavou a louça e fez uma sanduíche, para a noite, e café. Em seguida deixou-a em paz e instalou-se em frente da TV, a ver uma reposição de Experts.
Em toda a sua vida, nunca Malin Eriksson gerira qualquer coisa de mais sofisticado do que um orçamento familiar, mas tinha trabalhado com Erika Berger em balanços mensais e compreendia os princípios. Agora, tornara-se directora editorial, e isso implicava uma responsabilidade orçamental. A dada altura, já passava da meia-noite, decidiu que, acontecesse o que acontecesse, ia ser obrigada a admitir um assistente para a ajudar naqueles malabarismos. Ingela Oscarsson, que tratava da contabilidade um dia por semana, não tinha competência em matéria orçamental e não podia ajudá-la quando se tratava de decidir quanto podiam pagar por um artigo ou se tinham dinheiro para comprar uma impressora nova à margem da verba consagrada aos melhoramentos técnicos. Na prática, era uma situação ridícula: a Millennium era largamente excedentária, mas isso fora graças a Erika, que soubera fazer malabarismos com um orçamento nulo. Uma coisa tão elementar como uma impressora a cores de 45 mil coroas ver-se reduzida a uma simples impressora a preto e branco de 8 mil coroas.
Durante um segundo, invejou Erika. No SMP, dispunha de um orçamento onde uma tal despesa seria considerada uma verba para o café.
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Durante a última assembleia geral da Millennium tinha sido anunciado que a situação económica era boa, mas o excedente do orçamento provinha sobretudo das vendas do livro de Mikael Blomkvist sobre o caso Wennerstrõm. E esse excedente, integralmente aplicado em investimento, diminuía a uma velocidade inquietante. Uma das razões prendia-se com as despesas de Mikael com o caso Salander. A Millennium não dispunha de recursos para manter o orçamento corrente de um colaborador, e muito menos ainda se ele acrescentava facturas de aluguer de automóveis, quartos de hotel, táxis, compra de material tecnológico de ponta, telemóveis e várias outras coisas!
Malin assinou uma factura do freelancer Daniel Olofsson, de Gotemburgo. Mikael Blomkvist aprovara uma soma de 14 mil coroas por uma semana de pesquisa sobre um tema que não seria sequer publicado. O pagamento a um certo Idris Ghidi, também de Gotemburgo, sairia da conta de honorários das fontes anónimas, por definição sem qualquer outra indicação sobre a identidade, o que significava que o técnico de contas ia criticar a inexistência de facturas e tudo aquilo se transformaria numa caso a resolver no CA. A Millennium pagava ainda os honorários a Annika Giannini, que ia, era verdade, receber dinheiros públicos, mas que no imediato tinha necessidade de pagar as suas viagens de comboio, etc.
Pousou a caneta e olhou para os totais. Mikael Blomkvist gastara sem pestanejar 150 mil coroas com a história da Salander. Completamente fora do orçamento. Aquilo não podia continuar.
Compreendeu que ia ser obrigada a ter uma conversa com ele.
Erika Berger passou o resto da tarde nas Urgências do Hospital de Nacka, em vez de estar sentada no sofá em frente da televisão a relaxar. O pedaço de vidro penetrara tão profundamente que a hemorragia não parava, e um exame revelou que uma aguçada lasca continuava cravada no calcanhar e tinha de ser extraída. Teve de submeter-se a uma anestesia local e a três pontos de sutura.
Durante todo o tempo que passou no hospital chispou interiormente de raiva e de dez em dez minutos tentou ligar para o marido ou para Mikael. De nenhum dos dois obteve resposta. Por volta das
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dez da noite, tinha o pé envolvido numa enorme ligadura. Emprestaram-lhe umas canadianas e apanhou um táxi de regresso a casa.
Apoiando-se num pé e nas pontas dos dedos do outro passou alguns minutos a varrer os cacos de vidro do chão da sala e a ligar para a Gasakluten para encomendar uma nova vidraça. Teve sorte. A noite fora calma e o montador chegou passados vinte minutos. Mas então a sorte mudou. Não tinham em stock um vidro que desse para uma janela tão grande. O homem propôs-lhe tapar provisoriamente a janela com uma chapa de contraplacado, solução que Erika aceitou, agradecida.
Enquanto o funcionário da Gasakluten colocava o contraplacado, Erika ligou para a empresa de segurança privada de que era cliente e perguntou por que raio de merda o sofisticado alarme que mandara instalar não disparara quando alguém lhe atirara um tijolo para a sala pela maior das janelas da sua moradia de 250 metros quadrados.
A empresa enviou de imediato um piquete, e verificou-se que o técnico que fizera a instalação vários anos antes se esquecera manifestamente de ligar os fios da janela da sala. Erika Berger ficou sem fala.
A empresa ofereceu-se para remediar a situação logo na manhã seguinte, mas Erika disse-lhes que não se dessem ao incómodo. Em vez disso, ligou para as urgências da Milton Security, explicou a situação e pediu um sistema de alarme completo logo que fosse possível. Sim, eu sei que épreciso assinar um contrato, mas informem o Dragan Armanskij que Erika Berger telefonou, e arranjem maneira de instalar o alarme amanhã de manhã.
Para terminar, ligou também para a polícia. Responderam-lhe que não havia nenhuma viatura disponível para ir tomar nota do seu depoimento. Aconselharam-na a contactar a esquadra da zona, na manhã seguinte. Obrigada. Vão-se lixar.
Depois ficou um bom pedaço a ferver por dentro até a adrenalina começar a baixar e ela tomar consciência de que ia dormir sozinha numa casa sem protecção quando alguém que lhe chamava puta de merda e dava mostras claras de tendências agressivas lhe rondava a porta.
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Por um instante, ainda se questionou se não seria melhor regressar à cidade e passar a noite num hotel, mas Erika Berger era daquelas pessoas que não gostam de ser vítimas de ameaças e gostam ainda menos de lhes ceder. Até o diabo se ria se um maluco de merda conseguisse expulsar-me de minha casa.
Em contrapartida, tomou algumas medidas de segurança elementares.
Mikael tinha-lhe contado como Lisbeth Salander tratara do assassino em série, Martin Vanger, com um taco de golfe. Foi à garagem e passou dez minutos a revistar-lhe os cantos à procura do seu saco de golfe, em que não punha os olhos havia mais de 15 anos. Escolheu um ferro e pô-lo bem à mão, junto à cabeceira da cama. Deixou um outro no vestíbulo e outro ferro na cozinha. Foi buscar um martelo à caixa de ferramentas e levou-o para a casa de banho contígua ao quarto.
Tirou a lata de gás pimenta do saco e pousou-a em cima da mesa de cabeceira. Por fim, encontrou uma cunha de borracha e usou-a para travar a porta do quarto. Estava quase a desejar que o sacana que lhe chamava puta e lhe partira o vidro da janela fosse suficientemente estúpido para voltar naquela noite.
Quando se sentiu minimamente protegida, era uma hora da manhã. E tinha de estar no SMP às oito. Consultou a agenda e verificou que tinha quatro reuniões previstas a partir das dez. Doía-lhe o pé e sentia-se incapaz de andar normalmente. Despiu-se e enfiou-se na cama. Não tinha camisas de noite e pensou se não seria melhor vestir uma T-shirt, ou qualquer outra coisa, mas como dormia nua desde a adolescência, decidiu que não seria um tijolo atirado pela janela da sala que ia modificar-lhe os hábitos.
Muito naturalmente, não conseguiu adormecer e pôs-se a ruminar.
Puta de merda.
Recebera nove e-mails e todos continham estas palavras, embora parecessem proceder de diferentes redacções. O primeiro fora inclusivamente enviado da que ela chefiava, mas o remetente era falso.
Levantou-se da cama e foi buscar o seu novo portátil Dell, que recebera ao assumir funções no SMP.
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O primeiro e-mail - o mais ordinário e mais ameaçador, que a convidava a enfiar uma chave de parafusos no traseiro - chegara a 16 de Maio, dez dias antes, portanto.
O segundo chegara dois dias mais tarde, a 18 de Maio.
Depois, uma semana de tréguas antes que os e-mails continuassem a chegar, agora a intervalos de cerca de 24 horas. Finalmente, o ataque contra a sua própria casa. Puta de merda.
Entretanto, Eva Carlsson, da Cultura, recebera mails bizarros com a sua assinatura, ou seja, assinados por Erika Berger. E se Eva Carlsson recebera e-mails bizarros, era muito possível que o verdadeiro autor das mensagens andasse a divertir-se por outros lados, que outras pessoas tivessem também recebido mensagens "dela".
Era um pensamento desagradável.
O mais inquietante era, no entanto, o ataque à sua casa.
Implicava que alguém se dera ao trabalho de ir até Saltsjõbaden, localizar a casa e atirar um tijolo através da vidraça. O ataque fora planeado, uma vez que o agressor levara consigo um spray de tinta. No instante seguinte, sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha ao aperceber-se de que tinha provavelmente de acrescentar mais uma agressão à lista. Alguém lhe furara os quatro pneus do carro na noite que passara com Mikael no Hilton de Slussen.
A conclusão era tão desagradável como evidente. Tinha um doente perigoso a persegui-la.
Algures, lá fora, passeava-se um tipo que, por qualquer razão desconhecida, dedicava o seu tempo a assediar Erika Berger.
Que a casa tivesse sido atacada percebia-se: não se podia deslocá-la nem escondê-la. Mas se o seu carro fora atacado depois de ela o ter estacionado ao acaso numa rua de Sõdermalm, isso queria dizer que o doente se encontrava permanentemente atrás dela.
CAPÍTULO 18
QUINTA-FEIRA, 2 DE JUNHO
Erika Berger foi despertada pelo toque do telemóvel, às nove e cinco.
- Bom dia, Frõken Berger. Fala Dragan Armanskij. Julgo saber que teve problemas esta noite.
Erika explicou o que se passara e perguntou se a Milton Security podia substituir a Nacka Integrated Protection, a empresa de que até então fora cliente.
- Podemos, pelo menos, instalar um alarme que funcione - disse Armanskij, num tom ligeiramente sarcástico. - O problema é que a viatura mais próxima que temos durante a noite se encontra no centro de Nacka. O que significa que demora trinta minutos a chegar aí. Se fecharmos o negócio, serei obrigado a subcontratar outros serviços para sua casa. Temos um acordo de colaboração com uma empresa local, a Adam Sãkerhet, em Fisksátra, que, se tudo funcionar bem, demora dez minutos a chegar ao local.
- É melhor do que a NIP, que não chega de todo.
- Devo-lhe dizer que se trata de uma sociedade familiar. É o pai, dois filhos e alguns primos. Gregos, gente honesta, conheço o pai há muitos anos. Oferecem uma cobertura de trezentos e vinte dias por ano. Os dias em que não prestam serviço, feriados, férias e coisas desse género, estão estipulados no contrato, e nessas alturas é a nossa viatura em Nacka que toma conta da ocorrência.
- Convém-me.
- Vou mandar-lhe uma pessoa durante a manhã. Chama-se David Rosin e já vai a caminho. A função dele é fazer uma análise de segurança. Vai precisar das chaves, se não estiver em casa, e de uma
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autorização sua para percorrer a casa da cave ao sótão. Vai fotografar a casa, o terreno e o que o circunda.
- Compreendo.
- O Rosin é uma pessoa muito experiente. Depois, com base no relatório dele, serão apresentadas propostas com várias medidas de segurança. Teremos um projecto escrito dentro de dias. Incluirá o alarme contra agressão e o alarme de incêndio, a evacuação e uma protecção contra intrusão.
- Perfeito.
- Queremos também que, em caso de necessidade, saiba o que fazer durante os dez minutos que a viatura de Fisksãtra vai precisar para chegar a sua casa.
- Sim.
- O sistema será instalado esta tarde. Depois, será preciso assinar um contrato.
Logo a seguir ao telefonema de Dragan Armanskij, Erika apercebeu-se de que tinha acordado tarde. Pegou no telemóvel e ligou para Peter Fredriksson, o assistente editorial, e explicou que se tinha ferido e pediu-lhe que desmarcasse as reuniões da manhã.
- Estás bem? - perguntou ele.
- Fiz um belo golpe no pé. Vou para aí a coxear logo que possa. Depois de uma passagem pela casa de banho do quarto, vestiu
umas calças pretas e pegou numa pantufa do marido onde conseguia enfiar o pé entrapado. Escolheu uma camisa preta e foi buscar o casaco. Antes de retirar a cunha de borracha que tinha enfiado debaixo da porta, armou-se com a lata de gás pimenta.
Avançou pela casa, com todos os sentidos em alerta, e ligou a máquina de café. Tomou o pequeno-almoço sentada à mesa da cozinha, atenta aos mais pequenos ruídos. Acabava de encher a segunda chávena de café quando David Rosin, da Milton Security, bateu à porta.
Rosa Figuerola chegou a pé à Bergsgatan e reuniu os seus quatro colaboradores para uma conversa matinal.
- Temos agora uma data limite - disse. - O nosso trabalho tem de estar terminado a 13 de Julho, data em que começa o julgamento
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de Lisbeth Salander. O que significa que temos pouco mais de um mês à nossa frente. Vamos fazer o ponto da situação e decidir o que, de momento, é mais urgente. Quem quer começar? Berglung pigarreou para aclarar a garganta.
- O loiro que se encontra com o Mârtensson. Quem é? Todos os outros assentiram. A conversa arrancou.
- Temos fotografias dele, mas nenhuma ideia de como encontrá-lo. Não podemos lançar um alerta.
- E que há com o Gullberg? Devíamos ser capazes de encontrar uma história. Temo-lo na polícia secreta do Estado desde o início dos anos cinquenta até 1964, data em que a Sapo foi criada. Depois disso, desapareceu da paisagem.
Figuerola assentiu com a cabeça.
- Devemos deduzir daí que o Clube Zalachenko foi criado em 1964. Muito antes, portanto, de o Zalachenko ter chegado à Suécia?
- Se é esse o caso, o objectivo devia ser muito diferente... uma organização secreta no seio da organização.
- Foi depois do caso Stig Wennerstrõm. Andava toda a gente paranóica.
- Uma espécie de segurança secreta da Segurança?
- Há casos semelhantes no estrangeiro. Nos Estados Unidos, foi criado dentro da CIA, nos anos sessenta, um grupo de caçadores de espiões que funcionava à parte. Era dirigido por um tal James Jesus Angleton, e pouco faltou para dar cabo da CIA. O bando do Angle-ton era constituído por fanáticos paranóicos... suspeitavam de que toda a gente na Agência espiava a favor dos russos. O resultado foi que grande parte da actividade da CIA ficou paralisada.
- Mas neste caso são apenas especulações...
- Onde é que são arquivados os antigos processos individuais do pessoal?
- O Gullberg não está lá. Já verifiquei.
- E o orçamento, onde está? Uma operação daquelas tinha necessariamente de ser financiada...
A discussão continuou até à hora de almoço, quando Rosa Figuerola a interrompeu e se dirigiu ao ginásio para poder reflectir em paz.
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Erika Berger chegou, a coxear, à redacção do SMP por volta do meio-dia. O pé doía-lhe tanto que não conseguia sequer pousá-lo no chão. Saltitou até à gaiola de vidro e deixou-se cair, aliviada, na cadeira da secretária. Peter Fredriksson viu-a do seu posto na redacção. Erika chamou-o com um gesto.
- Que aconteceu?
- Pisei um pedaço de vidro partido e espetei-o no calcanhar.
- Ui! Isso é mau!
- Sim, bastante. Diz-me, Peter, mais alguém recebeu e-mails esquisitos?
- Que eu saiba, não.
- Okay. Mantém esses ouvidos bem abertos. Quero saber se está a acontecer alguma coisa de estranho no SMP.
- Que queres dizer com isso?
- Receio que haja por aí um chalado que se entretém a mandar e-mails foleiros e me escolheu para alvo. Por isso quero ser informada se souberes que se passa alguma coisa.
- O género de e-mails que a Eva Carlsson recebeu?
- Tudo o que saia do normal. Pelo meu lado, recebi um monte de mensagens maradas que me acusam de ser tudo e mais alguma coisa e me propõem uma série de brincadeiras perversas.
A expressão de Fredriksson tornou-se sombria.
- Há quanto tempo é que isso dura?
- Umas semanas. Agora conta. O que é que vai aparecer no jornal de amanhã?
- Hum.
- Hum. O que é que isso quer dizer?
- O Holm e o chefe da Justiça estão em pé de guerra.
- Ah. E porquê?
- Por causa do Johannes Frisk. Prolongaste-lhe o tempo de trabalho e deste-lhe uma reportagem para fazer, e ele não quer dizer qual é o tema.
- Não pode dizer qual é o tema. Foram essas as minhas ordens.
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- É o que ele diz. O que significa que o Holm e a Justiça estão furiosos contigo.
- Compreendo. Marca uma reunião com a redacção do Direito para as três. Eu explico-lhes a situação.
- O Holm está danado...
- Também eu estou danada com ele, de modo que estamos quites.
- Está tão danado que se queixou ao CA.
Erika ergueu os olhos. Merda. Tenho de tratar do Borgsjb.
- O Borgsjõ vai passar por cá esta tarde. Quer falar contigo. Suspeito que é o Holm que está por detrás da coisa.
- Okay. A que horas?
- Às duas - respondeu Fredriksson.
E começou a expor o menu do meio-dia.
À hora de almoço, o Dr. Anders Jonasson passou para ver Lisbeth Salander, que afastou para o lado a bandeja com o sautéde legumes. Como sempre, o médico examinou-a rapidamente, mas, notou ela, sem se empenhar muito no exame.
- Está curada - declarou.
- Hum. Vai ter de fazer qualquer coisa em relação às refeições.
- As refeições?
- Não seria possível arranjar uma pizza, ou qualquer coisa nesse género?
- Lamento. Restrições orçamentais.
- Foi o que pensei.
- Lisbeth. Amanhã, vamos proceder a uma avaliação geral do seu estado de saúde...
- Compreendo. E eu estou curada.
- Está suficientemente curada para poder ser transferida para o estabelecimento prisional de Kronoberg, em Estocolmo. - Ela assentiu. - Poderia provavelmente adiar a transferência mais uma semana, ou à volta disso, mas os meus colegas começam a fazer perguntas.
- Não faça isso.
- Tem a certeza?
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Ela assentiu com a cabeça.
- Bom, nesse caso, amanhã vou dar luz verde para que tenha alta. O que significa que provavelmente será transferida muito em breve. - Lisbeth voltou a assentir. - É possível que aconteça no fim-de-semana. A direcção do hospital não está interessada em mantê-la aqui.
- Compreendo.
- Hã... consequentemente, o seu brinquedo...
- Estará no recanto atrás da mesa de cabeceira - disse ela, e mostrou-lhe o lugar.
- Okay.
Ficaram silenciosos por um curto instante antes de Jonasson se pôr de pé.
- Preciso de ir ver outros doentes que têm mais necessidade dos meus serviços.
- Obrigada por tudo. Fico a dever-lhe um favor.
- Fiz apenas o meu trabalho.
- Não. Fez muito mais do que isso. Não o esquecerei.
Mikael Blomkvist entrou no edifício da sede da Polícia em Kungsholmen pela porta da Polhemsgatan. Rosa Figuerola recebeu-o e acompanhou-o até aos gabinetes do Departamento de Defesa da Constituição. Olharam-se disfarçadamente e em silêncio, no elevador.
- Será sensato eu aparecer aqui, na sede da Polícia? - perguntou Mikael. - Alguém pode ver-me e começar a fazer perguntas.
Rosa Figuerola assentiu.
- Será só desta vez. De futuro, encontrar-nos-emos num pequeno escritório que alugámos na Fridhemsplan. Fica à nossa disposição a partir de amanhã. Mas desta vez não há problema. A Defesa da Constituição é uma pequena unidade praticamente autónoma e ninguém nos dá atenção. Além disso, nem sequer estamos no mesmo piso que o resto da Sapo.
Mikael cumprimentou Torsten Edklinth com um gesto de cabeça, sem lhe apertar a mão, e, em seguida, dois colaboradores que
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manifestamente trabalhavam na investigação e que se apresentaram como Stefan e Niklas. Reparou que não referiam os apelidos.
- Por onde começamos? - perguntou.
- Podíamos começar por um cafezinho... Rosa?
- Sim, obrigada - disse Rosa Figuerola.
Mikael viu o chefe da Defesa da Constituição hesitar um segundo antes de pôr-se de pé e ir ele próprio buscar a cafeteira, que pousou em cima da mesa de reuniões, onde já havia chávenas preparadas. Torsten Edklinth quisera, sem dúvida, pedir a Rosa Figuerola que servisse o café. Mikael verificou também que Edklinth sorria para si mesmo, o que interpretou como sendo um bom sinal. Logo a seguir, Edklinth ficou sério.
- Para falar com toda a franqueza, não sei como gerir esta situação. Ter um jornalista presente numa reunião de trabalho da Sapo é provavelmente caso único. A maior parte dos assuntos de que vamos falar estão classificados como secretos.
- Os segredos militares não me interessam. Só quero saber do Clube Zalachenko.
- Temos de encontrar um equilíbrio. Em primeiro lugar, nos textos os colaboradores não serão referidos pelos nomes.
- Evidentemente - disse Mikael. Edklinth lançou-lhe um olhar surpreendido.
- Em segundo lugar, falará exclusivamente comigo ou com a Rosa Figuerola. Seremos nós a decidir o que podemos dizer.
- Se tinha tantas exigências, devia ter-me falado delas ontem.
- Ontem, ainda não tinha tido tempo para reflectir devidamente em tudo isto.
- Nesse caso, digo-lhe o seguinte: é seguramente a primeira e a última vez na minha carreira profissional que vou revelar a um polícia o conteúdo de um artigo não publicado. Portanto, e passo a citar... para falar com toda a franqueza, não sei como gerir esta situação.
Fez-se um breve silêncio à volta da mesa.
- Poderíamos talvez...
- Que diria...
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Edklinth e Rosa Figuerola tinham começado a falar ao mesmo tempo, e calaram-se ambos.
- Eu quero desmascarar o Clube Zalachenko. Vocês querem incriminar o Clube Zalachenko. É melhor não irmos mais longe do que isto - disse Mikael.
Edklinth assentiu.
- O que é que vocês têm?
Edklinth explicou o que Rosa Figuerola e a sua equipa tinham descoberto. Mostrou a foto de Evert Gullberg na companhia do coronel espião Stig Wennerstrõm.
- Bom. Gostaria de ter uma cópia dessa foto.
- Podemos procurá-la nos arquivos da Áhlén & Akerlund - sugeriu Figuerola.
- Está em cima da mesa à minha frente, com um texto no verso - disse Mikael.
- Okay, dá-lhe uma cópia - decidiu Edklinth.
- Isto significa que o Zalachenko foi liquidado pela Secção.
- Assassinado por um homem que ia morrer de cancro e que se suicidou a seguir. O Gullberg ainda está vivo, mas os médicos não lhe dão mais do que algumas semanas. Ficou com tais lesões no cérebro, depois da tentativa de suicídio, que está reduzido a um vegetal.
- Foi o Gullberg o principal responsável pelo Zalachenko quando ele desertou.
- Como sabe?
- Encontrou-se com o primeiro-ministro Thorbjõrn Fâlldin seis semanas depois da deserção.
- Pode provar isso?
- Posso. O registo de visitas da chancelaria do governo. O Gullberg acompanhou o director da Sapo na altura.
- Que entretanto morreu.
- Mas o Fãlldin está vivo e disposto a falar.
- Falou...
- Não, não falei com o Fãlldin. Mas houve quem o tivesse feito. Não posso revelar o nome. Protecção de fontes.
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Mikael explicou como tinha Thorbjõrn Fãlldin reagido à informação sobre Zalachenko e como ele próprio viajara até à Holanda para interrogar Janeryd.
- Conclusão: o Clube Zalachenko faz parte da casa e encontra-se algures aqui dentro.
- Em parte. Estamos convencidos de que se trata de uma organização no seio da organização. O Clube Zalachenko não pode existir sem a ajuda de pessoas-chave dentro desta casa. Mas suspeitamos de que a pretensa Secção de Análise Especial foi instalada algures lá fora.
- Se bem entendi o funcionamento, uma pessoa pode ser funcionária da Sapo, ser paga pela Sapo, e depois apresentar os seus relatórios a outro patrão.
- É mais ou menos isso.
- Quem, então, dentro da Sapo, ajuda o Clube Zalachenko?
- Ainda não sabemos. Mas temos suspeitos.
- O Mârtensson - sugeriu Mikael. Edklinth assentiu com a cabeça.
- O Mârtensson trabalha para a Sapo e, quando precisam dele no Clube Zalachenko, é destacado do seu posto habitual - disse Rosa Figuerola.
- Como é isso possível, na prática?
- Uma boa pergunta - disse Edklinth, com um sorrisinho. - Por acaso não está interessado em vir trabalhar para nós?
- Nunca na vida - respondeu Mikael.
- Estava a brincar. Mas é de facto a pergunta que se impõe. Temos um suspeito, mas nada nos permite passar das suspeitas às provas.
- Vejamos... é forçosamente alguém que goza de autoridade administrativa.
- Suspeitamos do secretário-geral, Albert Shenke - disse Rosa.
- O que nos leva ao primeiro escolho - continuou Edklinth. -Demos-lhe um nome, mas a informação não é suportada por provas. Como conta utilizá-la?
- Não posso publicar um nome sem ter provas para me defender. Se o Shenke estiver inocente, apresentará queixa contra a Millennium por difamação.
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- Muito bem. Então estamos de acordo. Esta colaboração deve basear-se numa confiança recíproca. É a sua vez. O que é que tem?
- Três nomes - respondeu Mikael. - Os dois primeiros eram membros do Clube Zalachenko nos anos oitenta. - Edklinth e Figuerola apuraram instantaneamente o ouvido. - Hans von Rottinger e Fredrik Clinton. O Rottinger morreu, o Clinton está reformado. Mas faziam ambos parte do círculo mais íntimo do Zalachenko.
- E o terceiro nome? - perguntou Edklinth.
- O Teleborian tem ligações com um tal Jonas. Ainda não sabemos o apelido, mas sabemos que faz parte da classe de 2005 do Clube Zalachenko... Tudo indica que é ele que aparece na companhia do Mârtensson nas fotografias diante do Copacabana.
- E em que contexto surgiu o nome de Jonas?
- A Lisbeth Salander entrou no computador do Peter Teleborian, o que nos permitiu acompanhar a troca de correspondência que demonstra que o Teleborian conspira com o Jonas da mesma maneira que conspirava com o Bjõrck em 1991. O Jonas dá instruções ao Teleborian. O que nos leva ao segundo escolho. - Mikael sorriu a Edklinth. - Posso provar as minhas afirmações', mas não posso dar-lhes essas provas sem revelar a minha fonte. Vão ter de aceitar a minha palavra.
Edklinth fez um ar pensativo.
- Um colega do Teleborian em Uppsala, talvez - disse. - Okay, vamos começar pelo Rottinger e pelo Clinton. Conte-nos o que sabe.
Magnus Borgsjõ, presidente do CA do SMP, recebeu Erika Berger no seu gabinete, ao lado da sala de reuniões da administração. Parecia preocupado.
- Disseram-me que se feriu - disse, apontando para o pé dela.
- Há-de passar - respondeu Erika. Apoiou as canadianas na secretária e sentou-se no cadeirão das visitas.
- Ainda bem. Erika, há um mês que está connosco, e gostaria de fazer o ponto da situação. As suas impressões?
Tenho de discutir a Vitavara com ele. Mas como? Quando?
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- Começo a apanhar-lhe o jeito. Há dois aspectos. Por um lado, o SMP tem problemas financeiros e o orçamento está a estrangular o jornal. Por outro, há uma quantidade incrível de pesos mortos na redacção.
- Não há aspectos positivos?
- Sim. Uma porção de profissionais bem rodados que sabem fazer o seu trabalho. O problema é que temos outros que gostam de enfiar pauzinhos na engrenagem.
- O Holm falou-me...
- Eu sei.
Borgsjõ arqueou as sobrancelhas.
- Tinha um monte de coisas a dizer a seu respeito. Praticamente todas negativas.
- Não faz mal. Eu também tenho um monte de coisas a dizer a respeito dele.
- Negativas? Não é nada bom se não conseguirem trabalhar juntos...
- Não tenho problema nenhum em trabalhar com ele. Ele é que parece ter problemas em trabalhar comigo. - Suspirou. - Dá comigo em doida. Tem tarimba, é sem dúvida um dos melhores chefes de Actualidades que conheço. Mas, ao mesmo tempo, é um sacana. E intri-guista e joga as pessoas umas contra as outras. Há vinte e cinco anos que trabalho nos media e nunca encontrei um homem como ele num lugar de chefia.
- Tem de ter mão de ferro para levar a cabo o seu trabalho. É pressionado de todos os lados.
- Mão de ferro... sim. Mas isso não quer dizer que tenha de ser um idiota. Infelizmente, o Holm é um desastre, e é o principal responsável pelo pessoal não trabalhar em equipa. Parece convencido de que o seu trabalho consiste em dividir para reinar.
- Vejo que não tem papas na língua.
- Dou-lhe um mês para entrar nos eixos. Depois disso, substituo-o como chefe das Actualidades.
- Não pode fazer isso. A sua função não é revolucionar a organização do jornal.
Erika calou-se e olhou para o presidente do CA.
- Desculpe relembrá-lo, mas foi exactamente para isso que me contratou. Até assinámos um contrato que me dá carta branca para fazer as mudanças que considere necessárias. A minha missão consiste em renovar o jornal, e só posso fazê-lo alterando a organização e os hábitos.
- O Holm dedicou a vida inteira ao SMP.
- Sim. Tem cinquenta e oito anos, vai reformar-se daqui a seis e eu não posso dar-me ao luxo de mantê-lo como um fardo esse tempo todo. Não me interprete mal, Magnus. A partir do momento em que me instalei na caixa de vidro, lá em baixo, a minha missão passou a ser elevar a qualidade do SMP e aumentar a tiragem. O Holm pode escolher entre fazer as coisas à minha maneira ou fazer outra coisa qualquer. Faço tenção de passar por cima de todos os que se me atravessarem no caminho ou que de qualquer outra maneira prejudiquem o SMP.
Merda... tenho de abordar esta história da Vitavara. O Borgsjo vai cair da cadeira.
De repente, Borgsjo sorriu.
- Está-me a parecer que também a Erika tem uma mão de ferro.
- Sim, é verdade, e o caso que nos ocupa é lamentável, porque não deveria ter de passar-se necessariamente assim. O meu trabalho é fazer um bom jornal e só posso fazê-lo se tiver uma chefia que funcione e colaboradores que gostem do que fazem.
Depois da conversa com Borgsjo, Erika voltou, a coxear, à caixa de vidro. Sentia-se constrangida. Falara com Borgsjo durante três quartos de hora sem ter dito uma única palavra a respeito da Vitavara. Ou seja, não fora particularmente franca nem sincera com ele.
Quando ligou o computador, tinha recebido um e-mail de Mik-Blom@millenium.nu. Sabendo perfeitamente que aquele endereço não existia na Millennium, não teve a mínima dificuldade em deduzir que era mais um sinal de vida do seu ciber-assediador. Abriu a mensagem.
(imaginas que o borgsjo vai poder salvar-te, putazinha de merda? como vai o teu pé?]
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Ergueu a cabeça e olhou instintivamente para a redacção. O seu olhar pousou em Holm. Que estava a olhar para ela. E então ele fez-lhe um aceno de cabeça e sorriu-lhe.
É alguém do SMP que escreve estes e-mails.
Quando a reunião na Defesa da Constituição acabou, já eram cinco da tarde. Marcaram novo encontro para a semana seguinte e ficou estabelecido que Mikael se dirigiria a Rosa Figuerola se, entretanto, tivesse necessidade de contactar a Sapo. Mikael pegou na sacola com o portátil e pôs-se de pé.
- Como é que encontro o caminho para sair daqui? - perguntou.
- Acho que é melhor não andar a passear sozinho por aí - disse Edklinth.
- Eu acompanho-o - ofereceu-se Rosa Figuerola. - Espera só um pouco enquanto vou buscar as minhas coisas ao gabinete.
Saíram juntos pelo parque de Kronoberg, em direcção a Frid-hemsplan.
- O que é que se vai passar a seguir? - perguntou Mikael.
- Mantemo-nos em contacto - respondeu Rosa.
- Começo a apreciar o contacto com a Sapo - disse Mikael, sorrindo.
- Que tal jantarmos juntos, mais logo?
- Outra vez o restaurante bósnio?
- Não, não tenho dinheiro para jantar fora todos os dias. Estava a pensar numa coisa simples, em minha casa. - Rosa deteve-se e sorriu-lhe. - Sabes o que me apetece verdadeiramente fazer, neste momento?
- Não.
- Apetece-me levar-te para minha casa e despir-te.
- Corre o risco de tornar-se complicado.
- Eu sei. Não estou exactamente a pensar ir a correr contar tudo ao meu chefe.
- Não faço a mínima ideia de como esta história vai evoluir. É possível que venhamos a encontrar-nos em lados opostos da barricada.
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- Estou disposta a correr o risco. Vens a bem, ou vou ser obrigada a algemar-te?
Mikael baixou a cabeça. Ela pegou-lhe no braço e guiou-o em direcção à Pontonjárgatan. Trinta segundos depois de terem fechado a porta do apartamento, estavam nus.
Quando chegou a casa, por volta das sete da tarde, Erika encontrou David Rosin, consultor de segurança da Milton Security, à sua espera. O pé doía-lhe horrivelmente. Arrastou-se até à cozinha e deixou-se cair na primeira cadeira. Ele tinha feito café e serviu-lhe uma chávena.
- Obrigada. Servir café faz parte dos serviços da Milton Security? Ele sorriu delicadamente. David Rosin era um homem rechonchudo, com cerca de 50 anos.
- Obrigado por me ter emprestado a cozinha durante todo o dia.
- Era o mínimo que podia fazer. Como estão as coisas?
- Durante o dia, os nossos técnicos vieram instalar um alarme decente. Já lhe mostro como funciona. Passei a pente fino a sua casa, da cave ao sótão, e examinei os arredores. A seguir vou falar da sua situação com os colegas da Milton e, dentro de dias, teremos uma análise que poderemos discutir consigo. Mas, entretanto, há pequenas coisas que precisamos de ver juntos.
- Diga.
- Em primeiro lugar, temos alguns papéis para assinar. Formularemos o contrato definitivo mais tarde... dependerá dos serviços que escolher... mas tenho aqui um formulário que encarrega a Milton de instalar o alarme que já instalámos hoje. É um contrato-tipo recíproco, o que significa que a Milton faz certas exigências e, em contrapartida, se compromete a outras tantas, como o sigilo profissional e esse género de histórias.
- Fazem-me exigências?
- Sim. Um alarme não passa de um alarme, e não serve de nada se aparecer na sua sala um maluco furioso com uma espingarda-metralhadora. Para que sirva, será necessário que a senhora e o seu marido
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reflictam sobre certos pontos e aceitem certas medidas. Vamos ver esses pontos em conjunto.
- Vamos lá, então.
- Não quero antecipar-me à análise definitiva, mas é assim que vejo a situação neste momento: a senhora e o seu marido vivem numa moradia. Há uma praia atrás da casa e algumas outras grandes moradias na vizinhança. Tanto quanto pude aperceber-me, nenhum dos vossos vizinhos consegue avistar a vossa casa, que é relativamente isolada.
- É verdade.
- Significa isso que um intruso poderia facilmente aproximar-se da sua casa sem ser visto.
- Os vizinhos do lado direito passam a maior parte do ano a viajar, e os do lado esquerdo são um casal idoso que se deita bastante cedo.
- Exactamente. Além disso, as casas dão umas para as outras pela lateral, onde há poucas janelas. Se um intruso entrasse no vosso terreno. .. bastam cinco segundos para sair da estrada e chegar às traseiras... ninguém conseguiria vê-lo. O jardim das traseiras é delimitado por uma sebe alta, uma garagem e por uma construção isolada.
- É o atelier do meu marido.
- O seu marido é artista, se bem entendi?
- Exacto. E que mais?
- O intruso que partiu a vidraça e pintou a fachada pôde fazê-lo com toda a tranquilidade. Em rigor, o único risco que correu foi alguém ouvir o barulho do vidro a estilhaçar-se e reagir, mas a casa é em L e a fachada absorveu o ruído.
-Ah.
- O outro ponto é que tem uma casa grande, com duzentos e cinquenta metros quadrados, a que há que acrescentar a cave e o sótão. São onze divisões distribuídas por dois pisos.
- Eu sei, é monstruosa. É a casa da infância do Greger, que a herdou dos pais.
- E onde se pode entrar de uma infinidade de maneiras diferentes. Pela porta principal, pelo terraço das traseiras, pela varanda do
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primeiro piso e pela garagem. Além disso, há as janelas do rés-do-chão e seis janelas na cave sem a mínima protecção. Para terminar, temos a escada de incêndio nas traseiras e a clarabóia do tecto, que está fechada por um simples trinco.
- Sim, as portas desta casa não têm nada de hermético. O que é que se pode fazer?
- O alarme que instalámos esta tarde é apenas provisório. Voltaremos para a semana para fazer uma instalação como deve ser, com alarmes em todas as janelas do rés-do-chão e da cave. Será a protecção anti-intrusão, para o caso de irem os dois de férias.
- Hum.
- Mas a actual situação apresentou-se porque foi vítima de uma ameaça directa da parte de um indivíduo específico. O que é muito mais grave. Não sabemos de quem se trata, quais são as suas intenções e até onde está disposto a ir, mas podemos tirar algumas conclusões. Se estivéssemos a falar de um simples envio de mensagens anónimas ameaçadoras, faríamos uma estimativa do grau de ameaça, mas, no caso presente, trata-se de alguém que se deu ao trabalho de vir até sua casa... e Saltsjõbaden não fica precisamente ao virar da esquina... para praticar um acto de vandalismo. O que não augura nada de bom.
- Estou inteiramente de acordo.
- Falei com o Armanskij e pensamos ambos que a ameaça é bem real e clara.
-Ah.
- Até que saibamos mais alguma coisa a respeito da pessoa que a ameaça, é preciso não deixar nada ao acaso.
- O que significa...
- Em primeiro lugar, o alarme que instalámos hoje é constituído por duas componentes. Por um lado, é um vulgar alarme anti-intrusão, que fica ligado quando não está ninguém em casa, por outro é um detector de movimentos que deve deixar ligado quando estiver no primeiro piso, durante a noite.
- De acordo.
- Não é muito cómodo, porque será obrigada a desligá-lo sempre que descer ao rés-do-chão.
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- Compreendo.
- Em segundo lugar, substituímos a porta do seu quarto.
- Substituíram a porta do meu quarto?
- Exacto. Instalámos uma porta de segurança, de aço. Não se preocupe, está pintada de branco e parece uma porta vulgar. A diferença é que tranca automaticamente quando a fecha. Para abri-la do lado de dentro basta baixar a pega, como noutra porta qualquer. Mas para a abrir do exterior, é preciso introduzir um código de três dígitos numa placa integrada na pega.
- Certo.
- Se for atacada aqui, terá uma divisão segura onde poderá barricar-se. As paredes são sólidas, e será preciso algum tempo para arrombar aquela porta, mesmo com ferramentas adequadas. Em terceiro lugar, vamos instalar um sistema de videovigilância que lhe permitirá ver o que se passa nas traseiras da casa e no piso térreo quando estiver no seu quarto. Trataremos disso mais para diante, quando instalarmos os detectores de movimentos no exterior da casa.
Erika suspirou profundamente.
- Diria que o meu quarto vai deixar de ser um lugar muito romântico.
- É um monitor muito pequeno. Podemos colocá-lo num armário ou no guarda-fatos. Desse modo, não terá de estar constante-mente a vê-lo.
- Óptimo.
- Para a semana, gostaria também de mudar as portas do gabinete e de uma outra divisão do piso térreo. É preciso que, se acontecer alguma coisa, tenha um sítio onde possa refugiar-se e fechar a porta enquanto espera por socorro.
- Okay.
- Se accionar acidentalmente o alarme anti-intrusão, deverá telefonar de imediato para a central da Milton e anular a intervenção. Para anular, terá de indicar um código que estará registado na nossa central. Se não se lembrar do código, a intervenção prosseguirá e será debitada na sua conta uma quantia fixa.
- Estou a ver.
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- Em quarto lugar, há neste momento alarmes anti-agressão em quatro pontos da casa. Aqui na cozinha, no vestíbulo, no seu escritório lá em cima e no seu quarto. O alarme antiagressão é composto por dois botões que deverá premir ao mesmo tempo, mantendo a pressão durante três segundos. Pode fazê-lo com uma mão, mas não pode fazê-lo por engano. -Ah.
- Se o alarme antiagressão for accionado, acontecem três coisas. Primeira: a Milton Security envia viaturas para aqui. A mais próxima vem da Adam Sãkerhet, em Fisksãtra. Dois sujeitos muito robustos chegarão aqui no espaço de dez a doze minutos. Segunda: uma viatura da Milton vem de Nacka. Vai precisar de pelo menos vinte minutos, mais provavelmente vinte e cinco. Terceira: a polícia é automaticamente alertada. Ou seja, várias viaturas chegam aqui com alguns minutos de intervalo.
- Irra!
- Não se pode anular um alarme antiagressão como se anula o anti-intrusão. Não vai, portanto, poder telefonar a dizer que foi engano. Poderá receber-nos à porta de sua casa e dizer que foi um acidente, mas a polícia entrará de todos os modos. Para ter a certeza de que ninguém tem uma pistola apontada à cabeça do seu marido, ou qualquer coisa assim. Só deve accionar o alarme antiagressão se houver verdadeiro perigo.
- Compreendo.
- E não estou necessariamente a falar de uma agressão física. Pode ser alguém a tentar entrar por arrombamento ou que apareça no jardim das traseiras, por exemplo. Se se sentir ameaçada, use-o. Cabe-lhe a si fazê-lo com discernimento.
- Prometo.
- Reparei nos tacos de golfe espalhados um pouco por toda a casa.
- Sim. Dormi aqui sozinha, esta noite.
- Pessoalmente, eu teria ido para um hotel. Não me incomoda, tome as suas próprias precauções, mas espero que compreenda
, com um taco de golfe, pode facilmente matar um agressor.
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- Se o fizer, será sempre acusada de homicídio. E se disser que espalhou os tacos de golfe de propósito para ter uma arma à mão, a acusação poderá ser de homicídio premeditado.
- Devo então...
- Não diga nada. Sei o que vai dizer.
- Se alguém me atacar, pode ter a certeza de que vou tentar rachar-lhe a cabeça.
- Compreendo. Mas, em termos gerais, se recorreu à Milton Security foi para ter uma alternativa. O que significa que passa a poder pedir ajuda, e sobretudo que não deverá encontrar-se em situação de rachar a cabeça seja a quem for.
- De acordo.
- Além disso, de que lhe servirão os tacos de golfe se ele tiver uma arma de fogo? Quando falamos de segurança, falamos de estar um passo à frente da pessoa que nos quer fazer mal.
- Como reagir se tenho um tipo que me persegue constante-mente?
- Arranja as coisas de maneira a que ele nunca tenha a oportunidade de aproximar-se de si. Na situação presente, só conseguiremos terminar a instalação dentro de alguns dias, e em seguida teremos de falar também com o seu marido. É preciso que ele tenha o mesmo desejo de segurança que a senhora.
- Hum.
- Até lá, preferia que não ficasse aqui.
- Não tenho outro sítio para onde ir. O meu marido estará de regresso dentro de dias. Mas viajamos muito, tanto ele como eu, e, por vezes, ambos ficamos sozinhos.
- Compreendo. Mas estou a falar de apenas alguns dias, até que tenhamos terminado as instalações. Não tem um amigo com quem ficar?
Erika pensou por um instante no apartamento de Mikael, mas lembrou-se logo a seguir de que não era boa ideia.
- Obrigada... mas prefiro ficar em minha casa.
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- Era o que eu receava. Nesse caso, alguém terá de ficar consigo durante o resto da semana.
-Hum.
- Conhece alguém que possa vir dormir aqui?
- Sem dúvida. Mas não às sete e meia da tarde e com um louco assassino a rondar-me o quintal das traseiras.
David Rosin reflectiu por um instante.
- Bom. Incomodá-la-ia ter a companhia de uma colaboradora da Milton? Posso ligar para uma jovem chamada Susanne Linder e perguntar-lhe se está disponível esta noite. Penso que ela não se importará de ganhar umas notas suplementares.
- Quanto me custaria isso?
- Teríamos de o combinar directamente com ela. Não faz parte dos acordos formais, entendamo-nos. Mas a verdade é que não quero que fique aqui sozinha.
- Não tenho medo do escuro.
- Não duvido. Se tivesse, não teria ficado a dormir aqui a noite passada. Mas a Susanne Linder foi polícia. E seria por muito poucos dias. Se tivéssemos de organizar uma protecção de proximidade, seria uma coisa completamente diferente... e muito mais onerosa.
O tom sério de David Rosin começava a afectá-la. Erika apercebeu-se, de repente, de que ele estava, com aquele seu ar tranquilo, a falar da possível existência de uma ameaça contra a vida dela? Estaria a exagerar? Deveria encarar a preocupação daquele homem como puramente profissional? Nesse caso, porque teria ligado à Milton Security para lhes pedir que instalassem um alarme?
- Muito bem, telefone-lhe. Vou preparar o quarto de hóspedes.
Rosa Figuerola e Mikael Blomkvist só saíram do quarto, enrolados em lençóis, por volta das dez da noite, para irem à cozinha improvisar uma salada de atum, bacon e outros restos sortidos que
encontraram no frigorífico. Beberam água. De repente, Rosa desatou a rir.
- O que foi?
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- Estava a pensar na cara do Edklinth se nos visse agora. Não creio que estivesse a encorajar-me a ir para a cama contigo quando me disse para manter o contacto.
- Tu é que desencadeaste tudo isto. Eu só podia escolher entre as algemas e vir a bem.
- Eu sei. Mas não foste muito difícil de convencer.
- É possível que não tenhas consciência, embora eu desconfie que sim, mas tudo em ti é um apelo ao sexo. Acreditas que haja homens capazes de resistir a isso?
- Obrigada. Mas não sou assim tão sexy. E não faço amor assim tantas vezes como isso.
- Hum
- É verdade. É muito raro ir para a cama com um homem. Andei mais ou menos com um tipo, na Primavera, mas depois acabou.
- Porquê?
- Ele até era bastante querido, mas a relação acabou por se tornar um braço-de-ferro esgotante. Eu era mais forte, e foi uma coisa que ele não suportou.
-Ah.
- Tu também és assim, a querer jogar ao braço-de-ferro comigo?
- Estás a perguntar se me incomoda que tu estejas mais em forma e tenhas mais força do que eu? Não.
- Sê franco. Reparei que muitos homens estão interessados, mas depois entram numa de desafio e procuram todos a melhor forma de me dominar. Sobretudo quando descobrem que sou polícia.
- Não tenciono medir forças contigo. Sei fazer o que faço melhor do que tu. E tu sabes fazer o que fazes melhor do que eu.
- Ora aí está uma atitude que me agrada.
- Porque foi que me engataste?
- Regra geral, cedo aos meus impulsos. E tu foste um desses impulsos.
- Okay. Mas tu és uma agente da Sapo, o que não é pouco, e por acaso envolvida numa investigação em que eu sou um dos actores..•
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- Queres dizer que não fui profissional. Tens razão. Não devia tê-lo feito. Teria muitos problemas se a coisa se soubesse. O Edklinth ia ficar furioso.
- É por isso que vou ficar calado.
- Obrigada.
Não disseram nada durante um momento.
- Eu sei como é que isto vai acabar. És um tipo que gosta de aventuras, se bem entendi. A descrição ajusta-se?
- Sim, infelizmente. Acho que não ando à procura de uma namorada fixa.
- Okay. Estou avisada. Acho que também não ando à procura de um namorado fixo. Estás de acordo em que nos fiquemos pela amizade?
- Prefiro. Rosa, não vou contar a ninguém que tivemos uma aventura, mas se a coisa der para o torto, posso vir a encontrar-me num raio de um conflito com os teus colegas.
- Não acredito. O Edklinth é um tipo decente. E estamos cem por cento empenhados em apanhar esse tal Clube Zalachenko. Parece uma coisa de loucos, se as tuas teorias estão correctas.
- Veremos.
- Mas também tiveste uma aventura com a Lisbeth Salander. Mikael ergueu os olhos para ela.
- Escuta... não sou nenhum diário íntimo que toda a gente pode ler. Ninguém tem nada que ver com a minha relação com a Lisbeth.
- Ela é filha do Zalachenko.
- Sim. E tem de viver com isso. Mas não é o Zalachenko. A diferença é enorme.
- Não era isso que queria dizer. Estava a interrogar-me sobre o teu empenhamento nesta história.
- A Lisbeth é minha amiga. Que isso baste como explicação.
Susanne Linder, da Milton Security, usava jeans, blusão de couro preto e ténis de jogging. Chegou a Saltsjõbaden por volta das nove, ouviu as explicações de David Rosin e deu uma volta à casa com ele. estava armada com um computador portátil, um bastão da polícia, Uma lata de gás pimenta, algemas e uma escova de dentes, tudo
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enfiado numa mochila militar que despejou em cima da cama do quarto de hóspedes de Erika Berger. Em seguida, Erika ofereceu-lhe café.
- Agradeço-lhe. Deve pensar que eu sou uma convidada que tem de receber da melhor maneira possível. Mas não. Sou um mal necessário que surgiu repentinamente na sua vida, mesmo que seja apenas por poucos dias. Trabalhei como polícia durante seis anos e trabalho para a Milton Security há quatro. Sou guarda-costas diplomada.
-Ah.
- Existe uma ameaça contra si e eu estou aqui como barreira, para que possa dormir tranquila, trabalhar, ler um livro ou fazer o que lhe apetecer. Se quiser falar, estou pronta a ouvi-la. Se não, trouxe um livro para me fazer companhia.
- Estou a ver.
- O que quero dizer é que pode continuar a fazer a sua vida sem se sentir obrigada a tratar de mim. Caso contrário, não tardará a ver-me como uma intrusa no seu quotidiano. O melhor seria ver-me como uma colega ocasional.
- Devo dizer-lhe que não estou habituada a este tipo de situação. Já recebi ameaças quando era directora editorial da Millennium, mas estavam relacionadas com o meu trabalho. Ao passo que agora é um filho da mãe qualquer...
- Que a visa a si pessoalmente.
- Qualquer coisa nesse género, sim.
- Se for montado um verdadeiro sistema de protecção, vai custar-lhe os olhos da cara, e será preciso falar com o Dragan Armanskij. E para que isso valha a pena, tem de haver uma ameaça real e precisa. Para mim, é apenas uma oportunidade de ganhar algum dinheiro extra. Peço quinhentas coroas por noite para dormir aqui em vez de em minha casa, até ao fim-de-semana. Não é caro, é muito menos do que lhe pediria se fizesse o serviço por intermédio da Milton. Convém-lhe?
- Convém-me muito bem.
- Se acontecer alguma coisa, quero que se feche no seu quarto e me deixe tomar conta da situação. Caber-lhe-á a si accionar o alarme antiagressão.
- Compreendo.
- Falo a sério. Não posso estar preocupada consigo se houver barulho.
Erika Berger deitou-se às onze. Ouviu o clique da fechadura quando fechou a porta do quarto. Despiu-se, pensativa, e enfiou-se na cama.
Apesar de a sua convidada a ter encorajado a não se ocupar dela, tinham passado duas horas a conversar sentadas à mesa da cozinha. Descobrira que se entendiam muito bem e que a conversa fluía facilmente. Tinham abordado o tema da psicologia e das tendências de certos homens para perseguirem mulheres. Susanne Linder declarara que se estava nas tintas para a conversa de chacha psicológica. Dizia que era importante prender esses loucos e que apreciava muito o seu trabalho na Milton Security, onde a sua missão era em grande parte servir de medida preventiva contra os tarados.
- Porque deixou a polícia? - perguntou Erika.
- Deveria talvez perguntar por que entrei para a polícia.
- Okay. Porque é que entrou para a polícia?
- Porque, quando tinha dezassete anos, uma amiga minha foi agredida e violada por três filhos da mãe, dentro de um carro. Tornei-me polícia porque tinha uma imagem romântica da polícia, pensava que ela existia para impedir esse género de crime.
- Sim...
- Não consegui impedir coisa nenhuma. Como polícia, chegava sempre ao local depois de o crime ter sido cometido. Não suportava ser a fraca que fazia perguntas parvas. E depressa aprendi que muitos crimes nunca chegam a ser esclarecidos. O seu caso é um exemplo típico. Tentou avisar a polícia do que se passou?
- Sim.
- E a polícia precipitou-se para aqui?
- Não exactamente. Aconselharam-me a fazer um depoimento na esquadra da zona.
- Bom. Então já percebe. Agora, trabalho para o Armanskij, e entro em cena antes de o crime ser cometido.
- Ameaças contra mulheres?
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- Trabalho em diferentes cenários. Análises de segurança, protecção de proximidade, vigilância, etc. Mas a maior parte das vezes trata-se de pessoas que receberam ameaças, e aí o trabalho é muito mais gratificante do que na polícia.
- Hum.
- Mas admito que também há um inconveniente.
- Sim? Qual?
- Só ajudamos os que podem pagar.
Deitada na cama, Erika pensava no que Susanne Linder tinha dito. Nem toda a gente tinha meios para garantir a própria segurança. Pelo seu lado, aceitara sem pestanejar a proposta de David Rosin de substituir várias portas, chamar técnicos para instalar sistemas de alarme duplos e tudo o mais. A quantia a pagar por todas aquelas medidas devia ascender às 50 mil coroas. Podia permitir-se esse luxo.
Pensou por um instante na sua suspeição de que quem a ameaçava tinha qualquer coisa a ver com o SMP. A pessoa em questão sabia que ela se tinha ferido no pé. Pensou em Lukas Holm. Não gostava dele, o que contribuía para orientar-lhe as suspeitas, mas a verdade era que a notícia de que se ferira no pé se espalhara muito rapidamente pela redacção a partir do momento em que aparecera de canadianas.
E tinha de atacar o problema de Borgsjõ.
De repente, sentou-se na cama, franziu a testa e olhou em redor. Perguntava a si mesma onde teria posto a pasta que Henry Cortez preparara sobre Borgsjõ e a Vitavara, SA.
Pôs-se de pé, vestiu o roupão e apoiou-se numa canadiana. Em seguida abriu a porta do quarto, dirigiu-se ao escritório e acendeu a luz. Não, não tinha entrado no escritório depois de... depois de ter lido o dossier estendida na banheira, na noite anterior. Tinha-o pousado no parapeito da janela.
Entrou na casa de banho. O dossier não estava em cima do parapeito.
Ficou imóvel por um longo momento, com uma funda ruga a vincar-lhe a testa.
Saí da banheira, fui ligar a máquina de café e pisei o caco de vidro, e a partir daí tive mais em que pensar.
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Não se lembrava de ter visto o dossier naquela manhã. Não o tinha posto noutro lado.
De repente, sentiu um frio glacial invadi-la. Passou os cinco minutos seguintes a revistar insistentemente a casa de banho e depois a revirar montes de papéis e de jornais na cozinha e no quarto. Por fim, teve de admitir que o dossier tinha desaparecido.
A um dado momento, depois de ela ter pisado o vidro e antes de David Rosin ter chegado, alguém entrara na casa de banho e levara os documentos da Millennium sobre a Vitavara, SA.
Então, assaltou-a o pensamento de que tinha outros segredos escondidos em casa. Voltou ao quarto, a coxear, e abriu a última gaveta da cómoda perto da cama. O coração afundou-se-lhe no peito. Toda a gente tem segredos. Erika Berger guardava os seus na cómoda do quarto. Não mantinha regularmente um diário, mas houvera períodos em que o fizera. Na gaveta, havia também cartas de amor da sua adolescência.
E havia um sobrescrito com fotos que tinham parecido divertidas na altura em que tinham sido tiradas, mas que não eram publicáveis. Quando tinha 25 anos, Erika fora membro de um clube que organizava festas privadas para apreciadores de couro e de borracha. Havia fotografias dela tiradas em festas onde, do ponto de vista da sobriedade, não poderia exactamente servir de modelo.
E, catástrofe, havia um vídeo feito durante umas férias no início dos anos noventa, quando ela e o marido tinham sido convidados do artista vidreiro Torkel Bollinger para a sua casa na Costa do Sol. Durante essas férias, Erika descobrira que o marido tinha claras tendências bissexuais, e tinham acabado os dois na cama de Torkel. Tinham sido umas férias maravilhosas. Na altura, as câmaras de vídeo eram um fenómeno ainda relativamente raro, e o filme que se tinham entretido a produzir não era do género de poder ser visto por crianças. A gaveta estava vazia. Meu Deus, como pude ser tão estúpida.
No fundo da gaveta, alguém desenhara as três palavras que se lhe tinham tornado muito familiares.
CAPÍTULO 19
SEXTA-FEIRA, 3 DE JUNHO - SÁBADO, 4 DE JUNHO
LiSBETH Salander acabou a sua autobiografia por volta das quatro da madrugada de sexta-feira e enviou uma cópia para Mikael Blomk-vist através do fórum Yahoo [Távola-Chanfrada]. Depois disto, deixou-se ficar estendida na cama, com os olhos fixados no tecto.
Verificou que no dia 30 de Abril tinha feito 27 anos, mas que nem sequer se lembrara de que era o seu aniversário. Estava na prisão. Já vivera a mesma situação quando se encontrava na clínica de pedopsiquiatria de Sankt Stefan, e se as coisas não corressem a seu favor, arriscava-se a passar muitos mais aniversários noutro asilo qualquer.
O que não tinha a intenção de aceitar.
Da última vez que estivera enclausurada, não era ainda uma adolescente. Agora, era uma mulher adulta e tinha outros conhecimentos e outras competências. Perguntou-se de quanto tempo iria precisar para se evadir, ficar em segurança no estrangeiro e encontrar uma nova identidade e uma nova vida.
Saiu da cama e foi à casa de banho ver-se ao espelho. Já não coxeava. Tacteou a anca, onde o ferimento da bala deixara uma cicatriz. Virou o braço e esticou o ombro. Ainda lhe doía, mas estava praticamente restabelecida. Bateu com os dedos na cabeça. Calculou que o seu cérebro não sofrera grandes estragos por ter sido perfurado por uma bala.
Ficara com um galo enorme.
Até ao momento em que tivera acesso ao seu computador de bolso, matara o tempo a pensar numa maneira de se evadir daquele quarto fechado do Hospital Sahlgrenska.
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Então, Anders Jonasson e Mikael Blomkvist tinham-lhe alterado os planos ao fazerem-lhe chegar o Palm. Lera os textos de Blomkvist e pensara muito. Fizera uma análise das consequências, reflectira no plano de Mikael e sopesara as possibilidades. Tinha decidido que, uma vez sem exemplo, ia seguir a proposta dele. Ia testar o sistema. Mikael convencera-a de que não tinha verdadeiramente nada a perder, e oferecia-lhe a oportunidade de se evadir de uma maneira completamente diferente. E se o plano falhasse, restar-lhe-ia pensar num modo de fugir de Sankt Stefan ou de qualquer outra casa de malucos para onde a mandassem.
O que a convencera a tomar a decisão de entrar no jogo de Mikael fora a sede de vingança.
Não perdoava ninguém.
Zalachenko, Bjõrck e Bjurman estavam mortos.
Mas Teleborian continuava vivo.
Tal como Ronald Niedermann, seu irmão. Ainda que, em princípio, ele não fosse problema dela. Sim, de acordo, tentara matá-la e enterrá-la, mas mesmo assim considerava-o uma peça secundária. Se tropeçarnele, no futuro, veremos. Mas, até lá, o problema é da polícia.
Mikael tinha razão. Por detrás da conspiração havia forçosamente outros rostos desconhecidos que tinham contribuído para lhe condicionar a vida. Tinha de saber os nomes e o passado desses rostos anónimos.
Por isso decidira seguir o plano de Mikael. Escrevera uma autobiografia seca e fria, de 40 páginas, com a verdade nua e crua sobre a sua vida. Tivera um enorme cuidado com a maneira como a formulara. Todas as frases correspondiam à verdade. Aceitara o raciocínio de Mikael de que os media suecos tinham já falado dela de uma maneira tão grotesca e rude que uma dose de demência verídica não !ria prejudicar muito a sua reputação.
Por outro lado, a biografia era falsa, na medida em que não contava realmente toda a verdade a respeito dela nem da sua vida. Não tinha qualquer razão para o fazer.
Voltou à cama e enfiou-se debaixo do lençol. Sentia uma irritação que não conseguia definir. Esticou-se para pegar no bloco de notas
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que Annika Giannini lhe dera e que praticamente não utilizara. Abriu-o na primeira página, onde escrevera uma única linha.
x3 y3 = z3
Tinha passado várias semanas nas Caraíbas, no Inverno anterior, a dar voltas à cabeça para tentar resolver o teorema de Fermat. Ao regressar, à Suécia e antes de ser arrastada na perseguição a Zalachenko, continuara a brincar com as equações. O seu problema era agora a irritante sensação de ter entrevisto uma solução... de ter vivido uma solução.
Só que não conseguia lembrar-se.
Não se lembrar de qualquer coisa era um fenómeno desconhecido para Lisbeth Salander. Fizera um autoteste entrando na Net e picando ao acaso alguns códigos HTML que lera de passagem e memorizara e que reconstituíra correctamente.
Não tinha perdido a sua memória fotográfica, que encarava como uma maldição.
Continuava tudo na mesma, dentro da sua cabeça. Excepto aquela coisa: julgava lembrar-se de ter descoberto uma solução para o teorema de Fermat, mas não conseguia recordar onde, como e quando.
O pior de tudo era que não sentia o mínimo interesse pelo enigma. O teorema de Fermat deixara de lhe interessar. Era um mau sinal. Porque era assim que ela funcionava. Deixava-se fascinar por um enigma, mas a partir do instante em que o resolvia, perdia todo o interesse.
Era exactamente assim que se sentia em relação a Fermat. Deixara de ser o diabinho empoleirado no ombro dela a reclamar-lhe atenção e a provocar-lhe a inteligência. Passara a ser apenas uma fórmula insípida, uns gatafunhos num papel que já não lhe apetecia tentar desvendar.
Aquilo inquietava-a. Pousou o bloco de notas.
Precisava de dormir.
No entanto, voltou a tirar o Palm do seu esconderijo e ligou-se à Net. Depois de pensar um instante, entrou no disco rígido de Dragan
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Armanskij, que não visitava desde que o computador de bolso lhe chegara às mãos. Armanskij colaborava com Mikael Blomkvist, mas ela não sentira grande necessidade de saber em que estava ele a trabalhar.
Leu distraidamente o correio electrónico.
E então descobriu o relatório de segurança que David Rosin fizera em casa de Erika Berger. Arqueou as sobrancelhas.
A Erika Berger tem um ciber-assediador à perna.
Encontrou o relatório de uma colaboradora chamada Susanne Linder, que passara aparentemente a noite em casa de Erika. Olhou para a indicação da hora. A mensagem fora enviada por volta das três da madrugada e comunicava que Erika tinha descoberto que alguns diários íntimos, cartas e fotografias, bem como um vídeo de natureza verdadeiramente íntima, tinham sido roubados de uma gaveta do seu quarto.
[Depois de termos discutido o incidente, chegámos à conclusão de que o roubo deve ter acontecido quando Fru Berger se encontrava ainda no Hospital de Nacka, depois de ter pisado o pedaço de vidro. Um lapso de tempo de cerca de duas horas e meia durante o qual a casa ficou sem vigilância e o alarme deficiente da NIP sem funcionar. Exceptuando esse período, Fru Berger e David Rose estiveram sempre presentes até o roubo ser descoberto.
Pode-se concluir que o assediador de Fru Berger se encontrava nas proximidades e a viu sair de táxi, e também que coxeava e tinha o pé ferido. Aproveitou a ocasião para entrar na casa.]
Lisbeth saiu do disco rígido de Armanskij e desligou pensativamente o Palm. Sentia-se dominada por sentimentos contraditórios.
Não tinha qualquer razão para gostar de Erika Berger. Ainda se lembrava da humilhação que sentira ao vê-la desaparecer com Mikael olomkvist na Hornsgatan, a 30 de Dezembro, ano e meio antes.
Aquilo representara o momenro mais cretino da sua vida, e nunca mais ela se permitiria esse género de sentimentos.
Lembrava-se do ódio irracional que a invadira e do desejo de ir atrás deles e magoar Erika Berger.
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Fora penoso.
Estava curada.
Bom. Não tinha, portanto, qualquer razão para gostar de Erika Berger.
No instante seguinte, estava a questionar-se sobre o que conteria o vídeo de natureza verdadeiramente íntima que fora roubado. Também ela tinha um vídeo de natureza verdadeiramente íntima que mostrava como o filho da puta do Bjurman abusara dela. E esse vídeo encontrava-se, de momento, em poder de Mikael Blomkvist. Como reagiria ela se alguém lhe tivesse entrado em casa e roubado o vídeo? Que fora, aliás, o que Mikael Blomkvist fizera, embora o seu objectivo não fosse prejudicá-la.
Hum.
Era complicado.
Erika Berger não conseguira adormecer na noite de sexta-feira. Coxeara incansavelmente de um lado para o outro, enquanto Susanne Linder a mantinha debaixo de olho. A angústia dela pairava na casa como uma névoa.
Às duas e meia, Linder conseguira convencê-la a deitar-se para repousar um pouco, mesmo que não dormisse. Deixara escapar um suspiro de alívio quando Erika fechara a porta do quarto. Ligara o portátil e resumira o que tinha acontecido numa mensagem para Dragan Armanskij. Mal tivera tempo de enviar o e-mail quando percebeu que Erika Berger estava novamente de pé.
Por volta das sete, persuadira Erika a ligar para o SMP a avisar de que não iria trabalhar naquele dia. Erika admitira, de má vontade, que não seria de grande utilidade no jornal, a cair de sono como estava. Em seguida, adormecera no sofá da sala, diante da janela entai-pada pela placa de contraplacado. Susanne Linder fora procurar uma manta. Depois telefonara para Dragan Armanskij, a explicar a sua presença no local e como fora requisitada por David Rosin.
- Também não dormi nada esta noite - disse.
- Okay. Fica com a Berger. Vai-te deitar e vê se dormes um pouco.
- Não sei como facturar isto...
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- Depois pensamos numa solução.
Erika Berger dormiu até às duas e meia. Quando acordou, encontrou Susanne Linder adormecida num cadeirão, do outro lado da sala.
Rosa Figuerola não acordou a horas na sexta-feira de manhã e não teve tempo de fazer a corrida habitual antes de ir para o trabalho. Imputou a responsabilidade de tudo aquilo a Mikael, tomou um duche e expulsou-o da cama a pontapé.
Mikael Blomkvist foi para a Millennium, onde ficaram todos muito surpreendidos ao vê-lo aparecer tão cedo. Resmungou uma espécie de explicação, foi buscar café e chamou Malin Eriksson e Henry Cortez ao seu gabinete. Durante três horas, passaram em revista os textos para o número temático seguinte e fizeram o ponto da situação relativamente aos livros.
- O livro do Dag Svensson foi ontem para impressão - disse Malin. - Fizemo-lo em formato de bolso.
- Okay.
- A revista vai ter como título A História de Lisbeth Salander -acrescentou Henry. - Estão a tentar mudar a data, mas, por enquanto, o julgamento está marcado para 13 de Julho. A revista será impressa antes disso, mas esperaremos pelo meio da semana para a distribuição. Tu decidirás a data em que vai para as bancas.
- Óptimo. Nesse caso, só falta o livro sobre o Zalachenko, que, neste momento, é um verdadeiro pesadelo. Título: A Secção. A primeira metade será a mesma que vamos publicar na Millennium. Os homicídios do Dag Svensson e da Mia Johansson servem de ponto de partida, e em seguida há a caça à Lisbeth Salander, ao Zalachenko e ao Niedermann. A segunda metade do livro será o que sabemos sobre a Secção.
- Mikael, mesmo que a gráfica faça tudo o que puder por nós, vamos ter de entregar o material pronto para imprimir o mais tardar a 30 de Junho - disse Malin. - O Christer precisa de dois ou três dias para a paginação. Restam-nos pouco mais de duas semanas. Não estou a ver como é que vamos ter tempo.
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- Não vamos ter tempo de desenterrar a história completa - admitiu Mikael. - Mas penso que não conseguiríamos fazê-lo mesmo com um ano inteiro à nossa frente. O que vamos fazer neste livro é denunciar o que se passou. Se fizermos alguma afirmação que não veio de uma fonte, di-lo-ei. Se fizermos especulações, isso será dito de forma muito clara. Por um lado, escrevemos o que aconteceu e podemos provar, e por outro, escrevemos o que acreditamos que aconteceu.
- É um bocado coxo, não é? - disse Cortez. Mikael abanou a cabeça.
- Se eu digo que um membro da Sapo se introduziu no meu apartamento e posso prová-lo com um vídeo, está provado. Se digo que foi enviado pela Secção, trata-se de uma especulação mas, à luz de todas as revelações que fazemos, é uma especulação plausível. Compreendes?
- Hum... sim.
- Eu não vou ter tempo para escrever todos os textos. Henry, tenho uma lista deles para ti. Correspondem a cinquenta páginas do livro. Malin, tu ajudas o Henry, como fizemos com o livro do Dag. Os nomes dos três aparecem na capa. De acordo?
- Claro - respondeu Malin. - Mas temos mais alguns problemas.
- Quais?
- Enquanto tu andavas entretido com a história do Zalachenko, nós aqui tivemos um raio de um trabalhão...
- E queres dizer com isso que não estive disponível? - Malin assentiu. - Tens razão. Peço desculpa.
- Não peças. Todos sabemos que quando te deixas obcecar por um caso, tudo o mais deixa de existir. Mas para nós não funciona. A Erika tinha-me a mim para a ajudar. Eu tenho o Henry, que é óptimo, mas tem trabalhado na tua história quase tanto como tu. Mesmo contando contigo, faltam-nos duas pessoas na redacção.
- Okay.
- E eu não sou a Erika. Ela tinha uma experiência que eu não tenho. Ainda estou a aprender. A Monika mata-se a trabalhar. E a Lotta também. Mas ninguém tem tempo para parar e pensar.
- É uma fase. Quando o julgamento começar...
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- Não, Mikael. Não mudará nada. Quando o julgamento começar, vai ser um inferno. Lembra-te do que aconteceu com o caso Wennerstrõm. Quer dizer que não vamos pôr os olhos em cima de ti durante dois meses, enquanto tu fazes de estrela no horário nobre da televisão.
Mikael suspirou. Assentiu lentamente com a cabeça.
- O que é que propões?
- Se queremos chegar à Millennium do Outono, vamos ter de contratar pessoal. Pelo menos duas pessoas, talvez mais. Não temos capacidade para o que tentamos fazer e...
-E?
- E eu não tenho a certeza de querer fazê-lo.
- Compreendo.
- Estou a falar a sério. Não passo de um raio de uma boa assistente editorial, e tudo se passava às mil maravilhas com a Erika como chefe. Dissemos que íamos experimentar durante o Verão... muito bem, experimentámos. Não sou uma boa directora editorial.
- Estás a dizer parvoíces - disse Henry. Malin abanou a cabeça.
- De acordo - disse Mikael. - Compreendi-te. Mas tens de ter em conta que foi uma situação extrema.
Malin sorriu.
- Encara isto como reclamações do pessoal - disse.
A unidade de intervenção da brigada de Defesa da Constituição dedicou a sexta-feira a tentar tirar a limpo a informação que Mikael Blomkvist lhes fornecera. Dois dos colaboradores tinham-se instalado num gabinete provisório na Fridhemsplan, onde foi reunida toda a documentação. Não era prático, uma vez que o sistema informático interno se encontrava no edifício da sede da Polícia, o que significava que tinham de fazer uma série de idas e vindas todos os dias. Mesmo tratando-se de um trajecto de apenas dez minutos, era incómodo. Ao meio-dia, dispunham de uma vasta documentação que provava que tanto Fredrik Clinton, como Hans von Rottinger tinham estado ligados à Sapo na década de sessenta e início da de setenta.
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Rottinger, oriundo do serviço de informações militares, trabalhara durante vários anos na agência que coordenava a Defesa e a Segurança. Fredrik Clinton passara pela Força Aérea e começara a trabalhar no controlo de pessoal da Sapo em 1967.
Ambos tinham saído da Sapo no início dos anos 70; Clinton em 1971, Rottinger em 1973- Clinton voltara ao sector privado como consultor e Rottinger fora contratado para fazer inquéritos por conta da Agência Internacional de Energia Atómica. Mudara-se para Londres.
A tarde ia já avançada quando Rosa Figuerola bateu à porta de Edklinth para lhe explicar que as carreiras de Clinton e Rottinger, depois de terem saído da Sapo, eram, muito provavelmente, falsas. A de Clinton era difícil de seguir. Ser consultor no sector industrial privado podia significar praticamente tudo. O homem não tinha a mais pequena obrigação de prestar contas ao Estado sobre a sua actividade. As suas declarações de rendimento mostravam que ganhava muito dinheiro; infelizmente, a sua clientela parecia consistir sobretudo em empresas anónimas sediadas na Suíça ou em países semelhantes. Não era, por isso, muito fácil provar que tudo aquilo não passava de conversa fiada.
Rottinger, em contrapartida, nunca pusera os pés no escritório de Londres onde era suposto trabalhar. Em 1973, aliás, o edifício onde o escritório alegadamente se situava fora demolido e substituído por uma extensão da King's Cross Station. A história era manifestamente falsa. Durante o dia, a equipa de Figuerola conversara com vários colaboradores entretanto reformados da AIEA e nenhum deles se lembrava de ter alguma vez ouvido falar de Rottinger.
- Estamos informados - disse Edklinth. - Agora só nos falta descobrir as verdadeiras ocupações desses senhores.
Rosa Figuerola assentiu.
- O que é que dizemos ao Blomkvist?
- Como?
- Tínhamos prometido mantê-lo ao corrente do que descobríssemos sobre o Clinton e o Rottinger.
Edklinth pensou um pouco.
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- De acordo. Vai acabar por descobri-lo sozinho, se der importância suficiente ao assunto. É preferível mantermos uma boa relação com ele. Okay, diz-lhe. Mas usa a cabecinha.
Rosa Figuerola prometeu. Discutiram durante alguns minutos o planeamento do fim-de-semana. Dois dos colaboradores de Rosa iam continuar a trabalhar. Ela aproveitaria para descansar.
Picou o ponto à saída e dirigiu-se ao ginásio na praça Sankt Erik, onde passou duas horas a tentar esforçadamente recuperar todo o tempo de treino perdido. De regresso a casa, por volta das sete, tomou um duche e ligou a televisão para ouvir o noticiário. Às sete e trinta, já não conseguia estar quieta e vestiu o fato de jogging. Deteve-se diante da porta para pensar. Estupor de Blomkvist! Pegou no telemóvel e ligou para o TIO de Mikael.
- Descobrimos duas ou três coisas a respeito do Clinton e do Rottinger.
- Conta.
- Se passares cá por casa, poderei contar-te.
- Hum - fez Mikael.
- Acabo de vestir o fato de jogging para me ir libertar de todo este excesso de energia. Vou, ou espero por ti?
- Dá-te jeito se eu for depois das nove?
- Dá-me muito jeito.
Por volta das oito da noite de sexta-feira, Lisbeth Salander recebeu a visita do Dr. Anders Jonasson, que se sentou na cadeira das visitas e se inclinou para a frente.
- Não vai examinar-me? - perguntou ela.
- Não. Esta noite, não.
- Óptimo!
- Fizemos uma avaliação do seu estado, esta tarde, e informámos o procurador de que estamos preparados para a deixar ir.
- Compreendo.
- Querem transferi-la para a prisão de Gotemburgo ainda hoje.
- Tão depressa? Ele assentiu.
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- Aparentemente, Estocolmo está a apertar com eles. Disse-lhes que ainda queria fazer-lhe alguns testes amanhã e que só a deixaria ir no domingo.
- Porquê?
- Não sei. Irrita-me o facto de terem tanta pressa.
Lisbeth Salander sorriu com gosto. Teve a certeza de que, se lhe dessem alguns anos, poderia fazer do Dr. Anders Jonasson um bom anarquista. Era evidente que o médico tinha, no mínimo, algumas tendências para a desobediência civil.
- Fredrik Clinton - disse Mikael, com os olhos fixados no tecto do quarto por cima da cama de Rosa Figuerola.
- Acende essa porcaria, e eu apago-a no teu umbigo - disse Rosa. Mikael olhou, surpreendido, para o cigarro que acabava de tirar
do bolso do casaco.
- Desculpa. Emprestas-me a tua varanda?
- Só se depois lavares os dentes.
Ele assentiu e embrulhou-se no lençol. Ela seguiu-o até à cozinha e encheu um grande copo de água fria. Apoiou-se à ombreira da porta da varanda.
- Fredrik Clinton?
- Ainda está vivo. É ele o elo de ligação com o passado.
- Está a morrer. Precisa de um rim novo e passa a maior parte do tempo a fazer diálise e outros tratamentos.
- Mas está vivo. Podíamos contactá-lo e fazer-lhe directamente a pergunta. Talvez queira falar.
- Não - disse Rosa. - Em primeiro lugar, trata-se de um inquérito preliminar que está a cargo da polícia. Nesse sentido, não há "nós" nesta história. Em segundo lugar, recebes informações, nos termos do acordo que fizeste com o Edklinth, mas comprometes-te a agir de maneira a não perturbar o inquérito.
Mikael olhou para ela e sorriu. Apagou o cigarro.
- Ui! - disse. - A Sapo a puxar a trela. De repente, ela pareceu preocupada.
- Mikael, não brinques com isto.
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No sábado de manhã, Erika Berger dirigiu-se ao Svenska Morgon-Posten com uma espécie de bola no estômago. Sentia que começava a controlar a maneira de fazer o jornal e a verdade era que tinha planeado oferecer-se para trabalhar no fim-de-semana - o primeiro desde que assumira o seu cargo no SMP -, mas a descoberta de que as suas recordações mais pessoais e íntimas tinham desaparecido ao mesmo tempo que o relatório sobre Borgsjõ impedia-a de relaxar.
Durante a noite em claro, em grande parte passada na cozinha na companhia de Susanne Linder, pensara que Caneta Porca voltaria a atacar, e que muito em breve imagens dela, que eram tudo menos lisonjeiras, apareceriam por todo o lado. A Internet era a ferramenta perfeita para os filhos da puta. Meu Deus, um vídeo que me mostra na cama com o meu marido e outro homem... Vou aparecer em todos os tablóides do mundo. O que há de mais privado.
O pânico e a angústia tinham-na torturado ao longo de toda a noite.
Susanne Linder acabara por obrigá-la a ir-se deitar.
Acordara às oito da manhã e saíra para o SMP. Não conseguia manter-se afastada. Se a aguardava uma tempestade, queria ser a primeira a enfrentá-la.
Mas como era sábado, na redacção, com uma equipa reduzida, estava tudo normal. O pessoal cumprimentou-a amigavelmente quando ela atravessou o grande espaço central. Lukas Holm não estava. Peter Fredriksson chefiava as Actualidades.
- Viva. Pensava que hoje não vinhas.
- Também eu. Mas ontem não estava em forma e tenho umas coisas que fazer. Alguma novidade?
- Nada. Esta manhã está fraca em matéria de notícias. O que temos de mais quente é um anúncio de uma melhoria no sector das madeiras na Dalecárlia e um assalto em Norrkõping, com um ferido.
- Okay. Vou trabalhar um pouco para a minha gaiola. Sentou-se, encostou as canadianas à estante e entrou na Net. Começou por abrir o correio. Recebera várias mensagens, mas nenhuma
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de Caneta Porca. Franziu a testa. Havia já dois dias que o roubo acontecera e ele ainda não reagira ao que devia ser uma verdadeira mina de possibilidades. Porque não? Estará a pensar em mudar de táctica? Será que quer fazer-me sofrer?
Não havia nada de específico para fazer em termos de trabalho, de modo que abriu o documento sobre estratégia para o SMP que estava a escrever. Ficou um quarto de hora a olhar para o monitor, sem ver as letras.
Tentara ligar a Greger, mas não conseguira apanhá-lo. Nem sequer sabia se o telemóvel dele funcionava no estrangeiro. Teria, claro, conseguido encontrá-lo se tivesse feito um esforço, mas sentia-se completamente apática. Não, sentia-se desesperada e paralisada.
Tentou ligar para Mikael, para o avisar de que o dossier Borgsjõ fora roubado. Ele não atendeu.
Às dez da manhã, ainda não tinha feito nada, e decidiu voltar a casa. Ia estender a mão para desligar o computador quando o ICQ se abriu. Olhou para o menu, estupefacta. Sabia o que era o ICQ, mas raramente conversava fosse com quem fosse e não voltara a usar o programa desde que entrara para o SMP.
Muito hesitantemente, clicou em Responder.
{Olá, Erika.]
[Olá. Quem é?]
[É privado. Está sozinha?]
Um truque? Caneta Porca?
[Estou? Quem é?]
[Conhecemo-nos no apartamento de Super Blomkvist quando ele voltou de Sandhamm.]
Erika ficou a olhar para o visor. Precisou de alguns segundos para fazer a ligação. Lisbeth Salander. Impossível.
[Ainda aí está?]
[Nada de nomes. Sabe quem eu sou?]
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[Como é que sei que não é um truque?]
[Sei como é que o Mikael ficou com uma cicatriz no pescoço.]
Erika engoliu em seco. Apenas quatro pessoas em todo o mundo sabiam como arranjara Mikael aquela cicatriz. Lisbeth Salander era uma delas.
[OK. Mas como é que conseguiu falar comigo?] [Tenho jeito para a informática.]
A Lisbeth Salander é uma barra em informática. Mas alguém que me explique como é que consegue comunicar de Sahlgrenska, onde está isolada desde Abril.
[OK.]
[Posso confiar em si?]
[Em que sentido?]
[Esta conversa tem de ficar entre nós.]
Não quer que a polícia saiba que tem acesso à Net. Evidentemente. Épor isso que se põe a conversar com a directora editorial de um dos maiores jornais da Suécia.
[Nenhum problema. O que é que quer?]
[Pagar.]
[Que quer dizer com isso?]
[A Millennium apoiou-me.]
[Fizemos o nosso trabalho.]
[Ao contrário de outros jornais.]
[Não é culpada dos crimes de que a acusam.]
[Há um filho da puta que a persegue.]
Erika Berger sentiu o coração começar a bater loucamente.
[O que é que sabe a respeito disso?]
[Vídeo roubado. Casa assaltada.]
[Sim. Pode fazer alguma coisa?]
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Erika teve dificuldade em acreditar que acabava de escrever aquela pergunta. Não fazia ponta de sentido. Lisbeth Salander estava hospitalizada em Sahlgrenska e atascada em problemas até à ponta dos cabelos. Era a pessoa de quem provavelmente menos podia esperar qualquer espécie de ajuda.
[Não sei. Deixe-me tentar.]
[Como?]
[Pergunta. Acredita que o sacana trabalha no SMP?]
[Não posso prová-lo.]
[Porque é que acha que sim?]
Erika reflectiu longamente antes de responder.
[Um pressentimento. Tudo começou quando eu entrei para o SMP. Outras pessoas do jornal receberam mensagens desagradáveis do Caneta Porca que pareciam enviadas por mim.]
[Caneta Porca?]
[É como chamo ao sacana.]
[Ok. Porque a teria, o Caneta Porca, escolhido a si como alvo e não outra pessoa qualquer?]
[Não sei.]
[Há alguma coisa que indique que é pessoal?}
[Como?]
[Quantos empregados há no SMP?]
[Cerca de 230, contando com a editora.]
[Quantos conhece pessoalmente?]
[Não sei ao certo. Conheci muitos jornalistas e colaboradores ao longo dos anos, em diferentes contextos.]
[Alguém com quem já tenha tido um conflito?]
[Não. Nada de específico.]
[Alguém que queira vingar-se?]
[Vingar-se? De quê?]
[A vingança é uma força poderosa.]
Erika olhou para o visor, a tentar compreender a que estava Lisbeth Salander a fazer alusão.
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[Ainda aí está?]
[Sim. Porque falou de vingança?]
[Li a lista do David Rosin de todos os incidentes que associa ao Caneta Porca.}
Porque será que não estou surpreendida?
[OK???]
[Não parece um assediador.]
[Que quer dizer com isso?]
[Um assediador é alguém que é movido por uma obsessão sexual. Neste caso, dir-se-ia que imita o género. Chave de parafusos no cu... Não acredito, é pura paródia.]
[Ah.]
(Já vi exemplos de verdadeiros assediadores. São muito mais perversos, vulgares e grotescos. Exprimem amor e ódio ao mesmo tempo. Essa história está mal contada.]
[Acha que não é suficientemente ordinária.]
[Não. E o e-mail para a Eva Carlsson também não cola. É alguém que quer arranjar-lhe problemas a si.]
[Compreendo. Não tinha visto as coisas por esse lado.] [Não é um tarado sexual. E pessoal, é contra si.]
[O que é que sugere?] [Confia em mim?]
[Talvez.]
[Preciso de ter acesso à rede do SMP.]
[Eh, calma aí!]
[Não tardarei a ser transferida, e vou ficar sem Net.]. Erika hesitou durante dez segundos. Entregar o SMP a... a quem? Uma louca? Sem dúvida que Lisbeth estava inocente dos crimes que lhe eram atribuídos, mas não era, definitivamente, como as pessoas normais. Mas que tinha ela a perder?
[Como?]
[Preciso de introduzir um programa no seu computador]
[Temos firewalls]
[Vai ajudar-me. Ligue a internet.]
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[Já está.]
[Explorer?]
[Sim.]
[Vou escrever um endereço. Copie-o e cole-o no Explorer.]
[Feito.]
[Agora está a ver uma lista com um certo número de programas. Clique em Asphyxia Server e descarregue.]
Erika seguiu a instrução.
[Pronto.]
[Abra Asphyxia. Clique em Instal e escolha Explorer.]
Demorou três minutos.
[OK. Agora, tem de reiniciar o computador. Vamos perder o contacto durante algum tempo.]
[OK.]
[Quando voltarmos, vou transferir o seu disco rígido para um servidor da Net.]
[OK.]
[Reinicie. Até já.]
Erika Berger ficou a olhar para o visor, fascinada, enquanto o computador se reiniciava lentamente. Perguntou a si mesma se estaria boa da cabeça. Nesse instante, o ICQ deu sinal.
[Olá, outra vez.]
[Olá.]
[Será mais rápido se for a Erika a fazê-lo. Abra a Internet e copie o endereço que vou enviar-lhe.]
[OK.]
[Vai aparecer uma janela. Clique em Start.]
[OK.]
[Agora, o servidor está a pedir-lhe que dê um nome ao disco rígido. Chame-lhe SMP-2.]
[OK.]
[Vá buscar café. Isso vai demorar um bocadinho.]
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Rosa Figuerola acordou às oito da manhã de sábado, quase duas horas depois da hora habitual. Sentou-se na cama e olhou para Mikael Blomkvist. Que estava a ressonar. Bem, ninguém é perfeito.
Perguntou a si mesma aonde iria levá-la aquela história com Mikael Blomkvist. Ele não era do género fiel, com quem se pudesse estabelecer uma relação a longo prazo. Compreendera-o ao estudar-lhe a biografia. Por outro lado, ela não tinha muito a certeza de querer procurar uma relação estável, com marido, frigorífico e filhos. Ao cabo de uma dúzia de tentativas falhadas desde a adolescência, convencia-se cada vez mais de que as relações estáveis eram muito sobrevalorizadas. A mais longa que alguma vez tivera durara dois anos, com um colega de Uppsala.
Mas também não era o género de mulher de se entregar a aventuras de uma noite, apesar de achar que as pessoas tinham tendência para esquecer que o sexo era um excelente remédio para praticamente tudo. E o sexo com Mikael Blomkvist era bom. Mais do que bom, aliás. Era um tipo decente, daqueles a quem apetecia voltar. Aventura de férias? Paixoneta? Estaria apaixonada? Foi à casa de banho, lavou a cara e os dentes, vestiu uns calções e uma camisola de jogging e saiu do apartamento sem fazer barulho. Fez um pouco de stretching e correu 45 minutos à volta do hospital de Rálambshov, pela Fredháll e a Smedsudden. Às nove estava de regresso a casa e verificou que Mikael ainda dormia. Inclinou-se e mordiscou-lhe a orelha até ele abrir os olhos ensonados.
- Bom dia, meu querido. Preciso de alguém para me esfregar as costas.
Ele olhou-a fixamente e murmurou qualquer coisa.
- Que foi que disseste?
- Não precisas de tomar duche. Já estás bastante encharcada.
- Fui correr. Devias ter ido comigo.
- Se tento manter o mesmo ritmo que tu, receio bem que sejas obrigada a chamar a ambulância. Paragem cardíaca, na Norr Málarstrand.
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- Não digas asneiras. Anda, vem. Precisas de acordar.
Ele esfregou-lhe as costas e ensaboou-lhe os ombros. E as ancas. E o ventre. E os seios. E, passados alguns instantes, Rosa Figuerola tinha perdido todo o interesse no duche e voltou a arrastá-lo para a cama. Só saíram por volta das onze, para ir tomar um café na Norr Málarstrand.
- Tens tudo para te tornares um mau hábito - disse Rosa. - Não chega a meia dúzia de dias que nos conhecemos.
- Sinto-me terrivelmente atraído por ti. Mas julgo que isso já tu sabes.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- E porquê?
- Lamento muito, mas não sei responder. Nunca percebi porque é que uma mulher me atrai de imediato enquanto outra me deixa completamente indiferente.
Ela sorriu, pensativa.
- Hoje não vou trabalhar - disse.
- Mas vou eu. Tenho que fazer um monte de coisas até ao início do julgamento e passei as três últimas noites contigo em vez de avançar.
- É pena.
Ele assentiu, levantou-se e beijou-a na face. Ela agarrou-o pela manga da camisa.
- Blomkvist, quero muito continuar a ver-te.
- Eu também. Mas vai haver altos e baixos até que consigamos levar esta coisa a bom termo - disse ele
E desapareceu na direcção da Hantverkargatan.
Erika Berger tinha voltado com o café e estava a olhar para o ecrã. Durante 3 minutos não acontecera absolutamente nada, excepto o protector do ecrã se ter activado de vez em quando. Então, o ICQ voltou a chamar.
{Já está. Há um monte de merdas no seu disco rígido, incluindo dois vírus.]
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[Peço desculpa. E agora, o que é que se vai passar?}
[Quem é o administrador da rede do SMP?}
[Não faço ideia. Provavelmente o Peter Fleming, que é o chefe de informática.}
[OK.}
[O que é que devo fazer?}
[Nada. Vá para casa.}
[Só isso?}
[Depois contacto-a.}
[Devo deixar o computador ligado?}
Lisbeth Salander já tinha, porém, deixado o ICQ. Erika ficou a olhar para o ecrã, frustrada. Acabou por desligar o computador e sair
em busca de um café onde pudesse sentar-se a pensar sem ser incomodada.
CAPÍTULO 20
SÁBADO, 4 DE JUNHO
MiKAEL Blomkvist apeou-se do autocarro em Slussen, apanhou o ascensor de Katrina para subir até Mosebacke, dirigiu-se ao número 9 da Fiskargatan e abriu a porta do apartamento. Tinha comprado pão, leite e queijo numa pequena mercearia ali perto, e a primeira coisa que fez foi arrumar as compras no frigorífico. Em seguida, ligou o computador de Lisbeth.
Depois de ter pensado um pouco, ligou também o seu Ericsson TIO. Deixou o telemóvel normal desligado, uma vez que não tencionava falar com ninguém exterior à história de Zalachenko. Verificou que tinha recebido seis chamadas no decurso das últimas 24 horas, sendo três de Henry Cortez, duas de Malin Eriksson e uma de Erika Berger.
Começou por ligar a Henry Cortez, que se encontrava num café da Vasastan e tinha meia dúzia de perguntas a fazer-lhe, mas nada de urgente.
Malin Eriksson telefonara só para dizer olá.
Tentou ligar para Erika, mas verificou que a linha estava ocupada.
Abriu o grupo Yahoo [Távola-Chanfrada] e encontrou a versão final da biografia de Lisbeth Salander. Assentiu, sorridente, imprimiu o documento e começou imediatamente a lê-lo.
Lisbeth Salander escrevia no teclado digital do seu Palm Tungsten T3. Tinha passado uma hora a invadir e explorar a rede informática do SMP servindo-se da conta de utilizador Erika Berger. Não acedera à conta de Peter Fleming porque não tinha necessidade de
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poderes de administrador. O que lhe interessava era aceder à base de dados do SMP e aos ficheiros do pessoal. E Erika Berger já tinha esse direito.
Lamentava amargamente o facto de Mikael Blomkvist não ter tido a simpatia de lhe fazer chegar o seu PowerBook com um teclado a sério e um monitor de 17 polegadas em vez do computador de bolso. Descarregou a lista de todos os trabalhadores do jornal e meteu mãos à obra. Havia 223 pessoas, 82 das quais eram mulheres.
Começou por eliminar todas as mulheres. Não por excluir a possibilidade de serem loucas, mas porque as estatísticas mostravam que a esmagadora maioria dos que assediavam mulheres eram homens. Restavam, portanto, 141 nomes.
As estatísticas indicavam também que os Canetas Porcas eram maioritariamente adolescentes ou homens de meia-idade. Não havendo qualquer adolescente a trabalhar no SMP, fez uma curva de idades e suprimiu todos os que tinham mais de 55 ou menos de 25 anos. Restavam 103 pessoas.
Reflectiu pòr um instante. Não dispunha de muito tempo. Provavelmente, menos de 24 horas. Tomou uma decisão. De uma assentada, eliminou todos os empregados da distribuição, da publicidade, do design, da manutenção e da informática. Concentrou-se no grupo "jornalistas e pessoal da redacção" e obteve uma lista de 48 homens entre os 26 e os 54 anos.
Ao ouvir o tilintar do chaveiro, desligou rapidamente o Palm e escondeu-o debaixo do lençol, entre as pernas. O seu último almoço de sábado em Sahlgrenska acabava de chegar. Contemplou, resignada, o guisado de legumes. Sabia que, depois do almoço, haveria um período em que não poderia trabalhar sem ser incomodada. Enfiou o Palm no esconderijo atrás da mesa de cabeceira e encheu-se de paciência enquanto duas eritreias aspiravam o quarto e faziam a cama. Uma das raparigas, chamada Sara, deu-lhe dois cigarros. Ao longo do mês, Sara fornecera-lhe clandestinamente alguns maços de marlboro Light, e também um isqueiro, que Lisbeth escondia no mesmo sítio que o computador de bolso. Estava-lhe grata por poder
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fumar diante da grelha de ventilação, durante a noite, quando não havia risco de intrusão.
A calma só voltou às duas da tarde. Tirou o Palm do esconderijo e entrou na rede. Pensara inicialmente voltar às pastas do SMP, mas apercebeu-se de que tinha também os seus próprios problemas a gerir. Fez a inspecção diária, começando pelo grupo Yahoo [Távola-Chanfrada]. Verificou que Mikael não dava notícias havia três dias e perguntou-se que raio andaria ele a fazer. Não me espantava nada que esse tarado andasse enrolado com uma bimba qualquer de mamas grandes.
Passou em seguida ao grupo Yahoo [Os-Cavaleiros] para ver se Peste tinha deixado alguma contribuição. Não tinha.
Em seguida, controlou os discos rígidos do procurador Richard Ekstrõm (uma correspondência pouco interessante relacionada com o julgamento que se aproximava) e do Dr. Peter Teleborian.
De cada vez que entrava no disco rígido de Teleborian, tinha a sensação de que a sua temperatura baixava alguns graus.
Encontrou o relatório de psiquiatria legal sobre ela e que já se encontrava pronto mas que, como era evidente, só seria oficialmente redigido depois de ele ter tido ocasião de examiná-la. Tinha apurado um pouco o estilo literário, mas, tirando isso, nada de novo. Descarregou o relatório e enviou-o para {Távola-Chanfrada}. Verificou um a um os e-mails de Teleborian nas últimas 24 horas. Houve um, de enorme importância, que por pouco lhe passava despercebido.
(Sábado. 15 horas. Poço da Estação Central. Jonas.]
Merda. Jonas tem aparecido em montes de e-mails do Teleborian. Usa uma conta hotmail. Não identificada.
Olhou para o despertador digital em cima da mesa de cabeceira. 14h28. Chamou logo a seguir Mikael Blomkvist no ICQ. Não obteve resposta.
Mikael Blomkvist tinha imprimido as 120 páginas do documento que estavam prontas. Em seguida, desligara o computador e sentara-se à mesa da cozinha de Lisbeth Salander, para corrigir as provas.
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Estava satisfeito com o resultado. Só que continuava a haver um buraco enorme. O que fazer para encontrar o resto da Secção? Malin Eriksson tinha razão. Era impossível. Faltava-lhe tempo.
Frustrada, Lisbeth Salander rosnou uma praga e tentou apanhar Peste no ICQ. Também ele não respondia. Voltou a olhar para o relógio: 14h30.
Sentou-se na beira da cama e tentou lembrar-se de contas ICQ. Experimentou primeiro Henry Cortez, e depois Malin Eriksson. Nenhum deles respondeu. É sábado. Não estão a trabalhar. Olhou para as horas: 14h32.
Tentou então Erika Berger. Sem êxito. Eu disse-lhe para ir para casa. Merda. 14h33.
Podia enviar um SMS para o telemóvel de Mikael... mas o aparelho estava sob escuta. Mordeu o lábio inferior.
Acabou por voltar-se, em desespero, para a mesa de cabeceira e chamar a enfermeira. O despertador marcava 14h35 quando ouviu a chave girar na fechadura. Uma enfermeira com cerca de 50 anos, Ag-neta, abriu a porta.
- Olá. Precisa de alguma coisa?
- O doutor Anders Jonasson está de serviço?
- Sente-se mal?
- Estou bem. Mas precisava de falar com ele. Se for possível.
- Ainda há pouco o vi. Qual é o assunto?
- Preciso de falar com ele.
Agneta franziu o sobrolho. A paciente Lisbeth Salander raramente chamava as enfermeiras, a menos que tivesse muitas dores de cabeça ou qualquer outro problema grave. Nunca fazia fitas e nunca antes pedira para falar com um médico específico. Agneta notara, no entanto, que Anders Jonasson dedicava bastante tempo à paciente que estava ali detida e que, regra geral, se mostrava insensível a tudo o que a rodeava. Talvez ele tivesse conseguido estabelecer uma espécie de contacto. - Está bem, vou ver se está disponível - disse, gentilmente, e fechou a porta à chave. O despertador marcava 14h36, e nesse instante Passou para as 14h37.
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Lisbeth levantou-se da cama e aproximou-se da janela. Quase não desviava os olhos do relógio. 14h39- 14h40.
Às 14h44, ouviu passos no corredor e o tilintar do chaveiro do homem da Securitas. Anders Jonasson lançou-lhe um olhar interrogador e deteve-se ao ver a expressão desesperada de Lisbeth.
- Aconteceu alguma coisa?
- Está a acontecer alguma coisa neste preciso instante. Tem um telemóvel consigo?
- O quê?
- Um telemóvel. Preciso de fazer um telefonema. Anders Jonasson olhou para a porta, hesitante.
- Por favor... preciso de um telemóvel. Agora!
Jonasson sentiu o desespero na voz dela, enfiou a mão no bolso e estendeu-lhe um Motorola. Ela arrancou-o praticamente das suas mãos. Não podia ligar a Mikael, porque segundo parecia ele tinha sido posto sob escuta pelo inimigo. O problema é que ele nunca lhe dera o número do Ericsson confidencial, o TIO azul. Nunca tivera ocasião de fazê-lo, porque não se colocava a questão de ela lhe ligar do quarto onde se encontrava fechada à chave. Hesitou uma fracção de segundo, e então marcou o número de Erika Berger. Ouviu três toques antes que Erika atendesse.
Erika Berger estava no seu BMW, a um quilómetro de Saltsjo baden, quando recebeu o inesperado telefonema.
- Berger.
- Salander. Não tenho tempo para explicar. Tem o número do telefone confidencial do Mikael? O que não está sob escuta?
- Tenho.
- Ligue-lhe. Já! O Teleborian vai encontrar-se com o Jonas às três horas no poço da Estação Central. Sabe o que é, a grande praça a céu aberto.
- O que é que...
- Despache-se. Teleborian. Jonas. Poço da Estação Central. Três horas. Resta-lhe um quarto de hora.
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Desligou, para que Erika não fosse tentada a desperdiçar preciosos segundos em perguntas inúteis. Olhou para o relógio, que acabava de passar para as 14h46.
Erika travou e parou na berma da estrada. Inclinou-se para procurar a agenda no saco e folheou-a em busca do número que Mikael lhe dera na noite em que se tinham encontrado no Samirs Gryta.
Mikael Blomkvist ouviu o toque do telemóvel. Levantou-se da mesa da cozinha, voltou ao escritório e pegou no aparelho que deixara em cima da secretária.
- Sim?
- Erika.
- Viva.
- O Teleborian vai encontrar-se com o Jonas no poço da Estação Central, às três horas. Restam-te poucos minutos para lá chegares.
- O quê? O quê?
- O Teleborian...
- Eu ouvi. Como é que sabes disso?
- Pára de discutir e despacha-te. Mikael olhou para o relógio. 14h47.
- Obrigado. Ciao.
Pegou na sacola com o portátil e desceu pelas escadas em vez de esperar pelo elevador. Enquanto corria, marcou o número do T-10 de Henry Cortez.
- Cortez.
- Onde estás?
- Na biblioteca da universidade.
- O Teleborian vai encontrar-se com o Jonas no poço da Estação Central, às três horas. Vou a caminho, mas tu estás mais perto.
- Oh, merda! Vou já.
Mikael correu até à Gõtgatan e acelerou em direcção a Slussen. Olhou para o relógio quando chegou, sem fôlego, a Sussplan. Rosa Figuerola tinha razão quando lhe dizia que devia voltar ao jogging.
14h56. Não ia chegar a tempo. Olhou em redor, à procura de um táxi.
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Lisbeth Salander devolveu o telemóvel ao Dr. Jonasson. - Obrigada - disse.
- O Teleborian? - perguntou o médico. Não podia ter evitado ouvir o nome.
Ela assentiu e enfrentou-lhe o olhar.
- O Teleborian é um patife do pior. Nem imagina até que ponto.
- Não. Mas verifico que se passa qualquer coisa que a deixou mais excitada do que esteve durante todo o tempo que tratei de si. Espero que saiba o que está a fazer.
Lisbeth dirigiu-lhe um pequeno sorriso de soslaio.
- Vai ter a resposta a essa pergunta num futuro muito próximo - disse.
Henry Cortez saiu da biblioteca da universidade a correr como um louco. Atravessou Sveavágen pela ponte de Máster Samuelsgatan e continuou a direito para Klara Norra, de onde subiu para Klaraberg e depois para a Vasgatan. Atravessou a Klarabergsgatan, passando entre um autocarro e dois automóveis que buzinaram furiosamente, e atravessou as portas da Estação Central às três horas em ponto.
Desceu pela escada rolante até ao átrio central, galgando três degraus de cada vez, e continuou a correr até ao Point-Express, onde abrandou para não chamar a atenção. Perscrutou com cuidado os rostos das pessoas próximas do poço.
Não viu Teleborian nem o homem que Christer Malm fotografara diante do Copacabana e que pensavam ser Jonas. Olhou para o relógio: 15h01. Ofegava como se acabasse de correr a maratona.
Contou com a sorte e atravessou a galope o átrio para sair na Vasagatan. Deteve-se e olhou novamente em redor. Nada de Peter Teleborian. Nem de Jonas.
Rodou sobre os calcanhares e voltou à estação: 15h03. Não havia ninguém para os lados do poço.
Então ergueu os olhos e avistou, numa fracção de segundos, o perfil esgrouviado e a barbicha de Peter Teleborian no momento em que saía
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do Point-Express, no outro lado do átrio. No instante seguinte, o tipo das fotografias de Christer Malm apareceu ao lado do psiquiatra. Jonas! Os dois homens atravessaram o átrio e desapareceram na Vasagatan pela porta do lado norte.
Henry respirou fundo. Limpou o suor da testa com a palma da mão e começou a segui-los.
Mikael Blomkvist chegou à Estação Central de Estocolmo, de táxi, às 15h07. Entrou imediatamente no átrio central, mas não viu Teleborian nem Jonas. Nem Henry Cortez.
Pegou no telemóvel, disposto a ligar para Henry, quando o aparelho começou a tocar.
- Apanhei-os. Estão no bar As Três Canecas, na Vasagatan, perto da descida para a linha de Akalla.
- Óptimo, Henry. E tu, onde estás?
- Sentado ao balcão, a beber uma cerveja. Bem a mereci.
- Okay. Eles conhecem-me, de modo que não vou entrar. Não consegues ouvir o que dizem, imagino.
- Nem a mais pequena hipótese. Vejo as costas do Jonas e o sacana do Teleborian fala em surdina. Nem sequer o vejo mexer os lábios.
- Compreendo.
- Mas é possível que tenhamos um problema.
- O que é?
- O Jonas pousou a carteira e o telemóvel em cima da mesa. E ao lado tem as chaves de um carro.
- Bom. Eu trato disso.
O telemóvel emitiu as notas sintéticas do tema de Era Uma Vez no Oeste. Rosa Figuerola pousou o livro sobre a percepção dos deuses na Antiguidade, que aparentemente nunca ia conseguir acabar. - Viva. Mikael. O que é que estás a fazer?
- Estou em casa a fazer uma limpeza às fotografias dos meus antigos amantes. O último abandonou-me cobardemente esta manhã.
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- Peço desculpa. Tens o teu carro aí perto?
- A última vez que verifiquei, estava lá em baixo, no parque de estacionamento.
- Óptimo. Apetece-te dar uma volta pela cidade?
- Não particularmente. O que é que se passa?
- Neste preciso instante, o Peter Teleborian está a beber uma cerveja com o Jonas, na Vasagatan. E como eu trabalho em colaboração com a Sapo e com a sua burocracia género Stasi, pensei que talvez te interessasse vir...
Rosa já se tinha levantado de um salto e pegado nas chaves do carro.
- Não me estás a enganar?
- Não, palavra. E o Jonas pousou as chaves de um carro em cima da mesa.
- Já vou a caminho.
Malin Eriksson não atendia o telefone, mas Mikael teve sorte e conseguiu apanhar Lotta, que estava na Âhléns a comprar um presente de aniversário para o marido. Mikael impôs-lhe horas extraordinárias e pediu-lhe que se dirigisse urgentemente ao bar para apoiar Henry Cortez. Em seguida, voltou a ligar para Henry.
- O plano é o seguinte. Vou ter aqui um carro dentro de cinco minutos. Vamos estacionar na Járvágsgatan, abaixo do bar.
- Certo.
- A Lotta chega aí para te ajudar dentro de minutos.
- Óptimo.
- Quando eles saírem, tu encarregas-te do Jonas. Segue-lo a pé e dizes-me pelo telemóvel onde estão. Se o vires aproximar-se de um carro, é preciso que o saibamos. A Lotta segue o Teleborian. Se não conseguirmos chegar a tempo, anotas a matrícula.
- Okay.
Rosa Figuerola estacionou diante do Nordic Light Hotel. Mikael abriu a porta do lado do condutor um minuto depois de ela ter parado.
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- Em que bar é que eles estão? - Mikael indicou-lho. - Vou pedir reforços.
- Não te preocupes. Temo-los debaixo de olho. Demasiados cozinheiros podem estragar o molho.
Rosa olhou para ele, desconfiada.
- Como soubeste deste encontro?
- Lamento muito. Fontes protegidas.
- Na Millennium têm um serviço de informações particular, ou quê? - exclamou ela.
Mikael sorriu, satisfeito. Era sempre agradável bater a Sapo no seu próprio terreno.
Na realidade, não fazia a mínima ideia de como fora possível Erika ter-lhe telefonado, assim de repente, para lhe anunciar que Teleborian e Jonas iam encontrar-se. Desde 10 de Abril que Erika não tinha nada que ver com o trabalho jornalístico da Millennium. Claro que conhecia Teleborian, mas Jonas só entrara em cena em Maio e portanto, que ele soubesse, Erika não tinha sequer conhecimento da sua existência, e menos ainda que se interrogavam sobre aquele tipo tanto na Millennium como na Sapo.
Ia precisar de ter, e urgentemente, uma conversa muito séria com Erika Berger.
Lisbeth Salander fez uma careta e olhou para o visor do Palm. Depois da conversa pelo telemóvel do Dr. Jonasson, deixara de pensar na Secção e concentrara-se nos problemas de Erika Berger. Depois de uma profunda reflexão, eliminara todos os homens do gfupo dos 26 aos 54 anos que eram casados. Sabia que trabalhava com um pincel muito grosso e que não tinha qualquer argumento lógico, estatístico ou científico a apoiar aquela decisão. O Caneta Porca podia Perfeitamente ser um homem casado com cinco filhos e um cão. Podia ser um empregado da limpeza. Podia até ser uma mulher, se bem que ela não acreditasse nisso.
Queria apenas reduzir o número de nomes da lista e, com aquela última decisão, a sua lista passara de 48 indivíduos para 18. Verificou
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que a amostragem era em grande parte constituída por jornalistas importantes, por chefes e subchefes com mais de 35 anos. Se não encontrasse nada de interessante entre eles, poderia facilmente alargar a lista. Às quatro da tarde, entrou na República Hacker e comunicou a lista a Peste. Que deu sinais de vida alguns minutos mais tarde.
[18 nomes. O que é?]
[Um pequeno projecto secundário. Considera-o um exercício.]
[Sim?]
[Um desses nomes é o de um sacana. Encontra-o.]
[Algum critério?]
[Despacha-te. Amanhã desligam-me. Preciso da resposta antes disso.]
Resumiu a história de Caneta Porca e de Erika Berger.
[OK. Há alguma coisa a ganhar com isto?] Lisbeth Salander reflectiu um segundo.
[Há. Não irei a Sundbyberg pegar fogo à tua pocilga.] [Serias capaz de uma coisa dessas?]
[Pago-te sempre que te peço para fazer qualquer coisa para mim. Desta vez, não é para mim. Vê a coisa como uma dedução ao imposto.) [Começas a dar sinais de alguma competência social.] [Então?] [De acordo.]
Lisbeth enviou-lhe os códigos de acesso à redacção do SMP e saiu do ICQ.
Henry Cortez só voltou a ligar às quatro e vinte.
- Parece que eles se preparam para sair.
- Okay. Estamos prontos. Silêncio.
- Separam-se à porta. O Jonas segue para norte. A Lotta vai atrás do Teleborian, para sul.
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Mikael ergueu um dedo e apontou para Jonas, que passava pela Vasagatan. Rosa Figuerola assentiu com um gesto de cabeça. Alguns segundos mais tarde, Henry Cortez surgiu também à vista. Rosa ligou o motor.
- Atravessa a Vasagatan e continua na direcção da Kungsgatan - disse a voz de Henry, no telemóvel.
- Mantém-te à distância. Não queremos que ele te descubra.
- Não te preocupes. Há imensa gente na rua. Silêncio.
- Está a subir a Kungsgatan, em direcção a norte.
- Kungsgatan, norte - disse Mikael.
Rosa Figuerola engatou a primeira e entrou na Vasagatan. Ficaram retidos por um instante, num semáforo.
- Onde estão agora? - perguntou Mikael, quando entraram na Kungsgatan.
- A passar pelos armazéns PUB. Anda depressa, o tipo. Atenção, virou na Drottninggatan, direcção norte.
- Drottninggatan, norte - disse Mikael.
- Okay - disse Rosa, fazendo uma inversão de marcha ilegal para passar para Klara Norra e chegar à Olof Palmes Gatan. Parou diante do edifício da SIF. Jonas atravessava a Olof Palmes Gatã e dirigia-se para Sveavãgen. Henry seguia-o do outro lado da rua.
- Voltou para leste...
- Tudo bem, estamos a vê-los, aos dois.
- Virou para a Hollãndaregatan... Estou? Estás a ouvir? Carro. Audi vermelho.
- Carro - disse Mikael, e anotou a matrícula, que Henry ditou a toda a pressa.
- Em que direcção está estacionado? - perguntou Rosa.
Apontado para sul. Vai aparecer à vossa frente na Olof Palmes .. agora.
Rosa Figuerola já estava em movimento e a passar pela Drottninggatan. Buzinou e fez sinal a alguns peões que tentavam passar com o encarnado para se afastarem.
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- Obrigado, Henry. Ficamos com ele a partir daqui.
O Audi vermelho descia Sveavãgen em direcção a sul. Rosa Figuerola seguiu-o enquanto abria o telemóvel e marcava um número com a mão esquerda.
- Preciso de uma pesquisa por matrícula, Audi vermelho - disse, e repetiu o número que Henry Cortez lhes dera. - Sim, estou a ouvir. Jonas Sandberg, nascido em 1981. O que foi que disseste... Helsingõrsgatan, em Sollentuna. Obrigada.
Mikael tomou nota dos dados que Rosa tinha obtido.
Seguiram o Audi vermelho pela Hamngatan e pela Stranvágen e depois pela Artillerigatan. Jonas Sandberg estacionou a um quarteirão de distância do Museu do Exército. Atravessou a rua e desapareceu na porta de um prédio de 1900.
- Hum - fez Rosa Figuerola, olhando para Mikael com um ar entendido.
Mikael assentiu. Jonas Sandberg acabava de entrar numa casa situada a poucas ruas do prédio onde o primeiro-ministro usara um apartamento emprestado para uma reunião privada.
- Belo serviço - disse Rosa.
Nesse momento, Lotta Karim telefonou a dizer que o Dr. Peter Teleborian tinha subido até à Klaragatan usando os ascensores da Estação Central e depois se dirigira à sede da Polícia, em Kungs-holmen.
- À sede da Polícia? Às cinco horas de sábado? - espantou-se Mikael.
Ele e Rosa entreolharam-se, cépticos. Rosa reflectiu intensamente durante alguns segundos. Depois, pegou no telemóvel e ligou para o inspector Jan Bublanski.
- Olá. Fala Rosa, da Segurança. Conhecemo-nos em Norr Mâlarstrand, aqui há uns tempos.
- Precisa de alguma coisa?
- Têm alguém de prevenção no fim-de-semana?
- A Sonja Modig.
- Preciso de um favor. Sabe se ela está no escritório?
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- Duvido. Está um tempo magnífico, e é sábado.
- Okay. Será que pode tentar contactá-la, ou contactar algum outro investigador do inquérito, que estivesse disposto a dar uma volta pelo corredor do procurador Richard Ekstrõm? Pergunto a mim mesma se ele não estará em reunião.
- Em reunião?
- Não tenho tempo para explicar. Mas preciso de saber se ele está com alguém neste preciso instante, e se sim, com quem.
- Está a pedir-me que espie o procurador, que é meu superior? Rosa Figuerola franziu o sobrolho. Então, encolheu os ombros.
- Estou - disse.
- Okay - respondeu ele, e desligou.
Sonja Modig encontrava-se mais perto do edifício da Polícia do que Bublanski julgara. Ela e o marido bebiam café na varanda de uma amiga, na Vasastan. Iam estar sem os filhos durante uma semana, uma vez que os avós os tinham levado de férias, e planeavam fazer qualquer coisa tão antiquada como ir jantar a um restaurante e depois ao teatro.
Bublanski explicou o que queria.
- E que pretexto é que vou usar para aparecer no gabinete do Ekstrõm?
- Que eu lhe tinha prometido para ontem uma actualização sobre o caso Niedermann, mas que me esqueci de lha entregar antes de sair. O relatório está em cima da minha secretária.
- Okay - disse Sonja. Olhou para o amigo e para a amiga. - Preciso de ir à sede. Levo o carro. Com um pouco de sorte, estou de volta dentro de uma hora.
O marido suspirou. A amiga suspirou.
- Ao fim e ao cabo, estou de prevenção - justificou-se Sonja.
Estacionou na Bergsgatan, subiu ao gabinete de Bublanski e pegou nas três folhas A4 que constituíam o magro resultado das investigações para encontrar Ronald Niedermann, o assassino de polícias. Não é brilhante, pensou.
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Foi até à escada e subiu um andar. Deteve-se diante da porta do corredor. O edifício estava praticamente deserto naquele fim-de-semana de bom tempo. Não tentou disfarçar. Limitou-se a andar sem fazer barulho. Parou diante da porta fechada de Ekstrõm. Ouviu vozes dentro do gabinete, e mordeu o lábio.
De repente, a coragem abandonou-a e sentiu-se quase estúpida. Numa situação normal teria batido à porta, tê-la-ia aberto e teria exclamado, "Ah, ainda cá está", e teria entrado. Naquele momento, parecia-lhe impossível fazê-lo.
Olhou em redor.
Porque lhe teria Bublanski ligado? Que reunião era aquela?
Olhou para a pequena sala de reuniões em frente do gabinete de Ekstrõm, prevista para dez pessoas. Estivera lá diversas vezes, no decurso de exposições.
Entrou e fechou a porta sem fazer ruído. As persianas estavam baixadas e os cortinados da divisória de vidro que dava para o corredor fechados. A divisão estava mergulhada na penumbra. Puxou uma cadeira, sentou-se e abriu os cortinados de modo a ficar com uma estreita fenda através da qual podia ver o corredor.
Sentia-se muito pouco à vontade. Se alguém abrisse a porta, teria a maior das dificuldades em explicar o que estava ali a fazer. Pegou no telemóvel e viu as horas no visor. Faltava muito pouco para as seis. Desligou a função de toque, recostou-se no espaldar da cadeira e ficou a olhar para a porta fechada do gabinete de Ekstrõm.
Às sete da tarde, Peste contactou Lisbeth Salander.
{Já está. Sou o administrador do SMP]
[Onde?}
Ele enviou-lhe um endereço http.
[Não vamos ter tempo, em 24 horas. Mesmo que tenhamos todos os e-mails dos 18, vão ser precisos dias para entrar em todos os computadores pessoais. Provavelmente, a maior parte nem sequer está ligada num sábado à tarde.]
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[Peste, concentra-te nos computadores pessoais, que eu trato dos computadores deles no SMP]
[Foi o que pensei. O teu Palm é um pouco limitado. Queres que me concentre em alguém em especial?} [Não. Um qualquer.} [Está bem.} [Peste.} [Sim.}
[Se não encontrarmos nada até amanhã, quero que continues.} [Está bem.}
[Nesse caso, pagar-te-ei.}
[Bah! Até estou a achar divertido.}
Lisbeth saiu do ICQ e procurou o endereço http onde Peste tinha descarregado todos os privilégios de administrador do SMP. Começou por verificar se Peter Fleming estava conectado e presente na redacção. Não estava. Serviu-se então do seu código de utilizador para entrar no servidor de correio electrónico do jornal. Teve deste modo acesso a um longo histórico, incluindo e-mails havia muito apagados das contas de utilizadores particulares. Começou por Ernst Teodor Billing, de 43 anos, um dos chefes do turno da noite. Abriu a caixa de correio dele e foi recuando no tempo. Dedicou cerca de dois segundos a cada mensagem, apenas o tempo necessário para ter uma ideia do expedidor e do conteúdo. Ao cabo de poucos minutos, tinha um monte de correio de rotina sob a forma de menus, planeamentos e outras coisas sem interesse. Passou adiante.
Recuou três meses, mensagem a mensagem. Em seguida, saltou de mês em mês, lendo apenas o assunto e só abrindo a mensagem se alguma coisa lhe despertava o interesse. Ficou assim a saber que Ernst Billing conhecia uma certa Sofia, a quem se dirigia num tom desagradável. Verificou que isto não tinha nada de estranho, uma vez que Billing usava um tom desagradável com a maior parte das pessoas com que comunicava: jornalistas, gráficos e outros. Nem por isso deixou de achar incrível que um homem pudesse com tanta naturalidade dirigir-se à namorada tratando-a por gorda, calhau e Parvalhona.
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Depois de ter recuado um ano, parou. Entrou então no Explorer de Billing e avaliou a sua maneira de surfar na Net. Notou que, como a maior parte dos homens do seu grupo etário, passava regularmente por páginas porno, mas que a maior parte da navegação parecia relacionada com o trabalho. Descobriu também que se interessava por carros e visitava com frequência sites que apresentavam novos modelos.
Ao cabo de quase uma hora de exploração largou Billing e riscou-o da lista. Passou a Lars Õrjan Wollberg, de 51 anos, jornalista veterano da secção de Direito.
Torsten Edklinth chegou ao edifício da sede da Polícia em Kungsholmen às sete e meia da tarde de sábado. Rosa Figuerola e Mikael Blomkvist esperavam-no. Tinham-se instalado à volta da mesa de reuniões que Mikael conhecia desde a véspera.
Edklinth dizia para si mesmo que estava a pisar gelo muito fino e que um número considerável de regras internas fora infringida quando autorizara Blomkvist a entrar naquele corredor. Rosa Figuerola excedera largamente os seus poderes ao tomar a iniciativa de convidá-lo. Por norma, nem sequer os cônjuges eram autorizados a visitar os corredores secretos da Sapo: tinham de aguardar no vestíbulo pelos respectivos parceiros. E, ainda por cima, Blomkvist era um jornalista! De futuro, só seria autorizado a entrar nos escritórios temporários, na Fridhemsplan.
Por outro lado, acontecia com alguma regularidade pessoas não autorizadas circularem por aqueles corredores, a convite especial. Colegas estrangeiros, investigadores, universitários, consultores ocasionais..• podia incluir Blomkvist na categoria dos "consultores ocasionais". Toda aquela conversa fiada a respeito de classificações de segurança não passava, ao fim e ao cabo... disso mesmo, conversa fiada. Havia sempre alguém que decidia que esta ou aquela pessoa seria classificada como "autorizada". E Edklinth decidira que, se houvesse críticas, afirmaria solenemente ter incluído Blomkvist no grupo das "pessoas autorizadas".
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Pelo menos, se a coisa não degenerasse em confrontação. Sentou-se e olhou para Rosa Figuerola.
- Como soubeste desse encontro?
- O Blomkvist telefonou-me por volta das dezasseis horas - respondeu ela, com um sorriso.
- E você, como soube?
- Dica de uma fonte - respondeu Mikael.
- Devo concluir que colocou o Teleborian sob uma qualquer espécie de vigilância?
Rosa Figuerola abanou a cabeça.
- Foi também o que eu pensei - disse, num tom satisfeito, como se Mikael não estivesse ali presente para responder. - Mas não cola. Mesmo que alguém andasse a seguir o Teleborian por ordem do Blomkvist, essa pessoa nunca poderia saber adiantadamente que era com o Jonas Sandberg que ele ia se encontrar. Edklinth assentiu lentamente com a cabeça.
- Nesse caso... o que é que nos resta? Escuta ilegal?
- Posso garantir-lhe que não estou a conduzir nenhuma escuta ilegal e nem sequer ouvi dizer que esse género de coisa estivesse em curso - disse Mikael, como que para fazer lembrar que também ali estava. - Seja realista. As escutas ilegais são do domínio do Estado.
Edklinth fez uma careta.
- Não quer então dizer-me como soube desse encontro?
- Mas é claro que sim. Já lhe disse. Recebi uma dica de uma fonte. A fonte está protegida. E se nos concentrássemos nas consequências da dica?
- Não gosto do género artístico - resmungou Edklinth. - Mas está bem. O que é que temos?
- O tipo chama-se Jonas Sandberg - disse Rosa. - Mergulhador de combate diplomado. Frequentou a Academia de Polícia no início dos anos noventa. Trabalhou primeiro em Uppsala, depois em Sõdertàlje.
- Tu também estiveste em Uppsala.
- Sim, mas com uma diferença de um ou dois anos. Eu comecei quando ele partiu para Sõdertalje.
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- Okay.
- Foi recrutado para a contra-espionagem da Sapo em 1998. Colocado num posto secreto no estrangeiro, em 2000. De acordo com os nossos próprios papéis, encontra-se oficialmente na embaixada de Madrid. Verifiquei com o embaixador. Nunca ninguém ouviu falar de Jonas Sandberg.
- Tal como o Mártensson. Oficialmente transferido para um lugar onde não está.
- Só o secretário-geral da administração tem a possibilidade de fazer sistematicamente este género de coisa e de conseguir que funcione.
- Em circunstâncias normais, passaria facilmente por confusão na papelada. Nós damos por isso porque estamos a procurar. E se alguém insistir demasiado, eles dirão simplesmente: Secreto. Ou que tem que ver com terrorismo.
- Há, mesmo assim, um monte de contabilidade envolvida.
- O director do orçamento?
- Talvez.
- Okay. Quem mais?
- O Jonas Sandberg mora em Sollentuna. Não é casado, mas tem um filho com uma professora de Sõdertâlje. Nenhuma mancha no cadastro. Licença para duas armas de fogo. É calmo e não toca em álcool. A única coisa que destoa um pouco é o facto de ser religioso. Foi membro da Palavra da Vida nos anos noventa.
- Onde foste tu buscar tudo isso?
- Falei com o meu antigo chefe em Uppsala. Lembra-se muito bem do Sandberg.
- Muito bem. Um mergulhador de combate cristão com duas armas e um filho em Sõdertâlje. Que mais?
- Há apenas três horas que o identificámos. Até acho que trabalhámos bastante depressa.
- Peço desculpa. O que é que sabemos sobre o prédio na Artillerigatan?
- Pouca coisa, por enquanto. O Stefan foi obrigado a incomodar uma pessoa da câmara para conseguir os planos do edifício.
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Foi construído por uma cooperativa em 1900. Cinco andares com um total de vinte e dois apartamentos, mais oito numa construção anexa, no pátio. Fiz uma pesquisa sobre os moradores, mas não encontrei nada de verdadeiramente sensacional. Dois deles têm cadastro.
- Quem?
- Um Lindstrõm, no rés-do-chão. Sessenta e três anos. Condenado por fraude de seguros nos anos setenta. Um Witfelt, no segundo. Quarenta e sete anos. Condenado duas vezes por violência contra a ex-mulher.
-Hum.
- Tudo gente género classe média bem instalada. Há só um apartamento que nos intriga.
- Qual?
- O do último andar. Onze divisões. Tem tudo de um apartamento de luxo. O proprietário é uma empresa chamada Bellona, SA.
- Que faz o quê?
- Sabe Deus. Fazem análises de mercado e têm um volume de negócios anual de mais de trinta milhões de coroas. Todos os proprietários da empresa são residentes no estrangeiro.
-Ah.
- Como, ah?
- Apenas ah. Continua.
Nesse instante, o funcionário que Mikael conhecia apenas pelo nome de Stefan entrou na sala e dirigiu-se directamente a Torsten Edklinth.
- Viva, chefe. Tenho aqui uma coisa engraçada. Descobri o que é que está por detrás do apartamento da Bellona.
- E? - disse Rosa Figuerola.
- A sociedade Bellona foi fundada nos anos setenta, e comprou o apartamento à herança da antiga proprietária, uma tal Kristina Cederholm, nascida em 1917.
-Sim?
- Estava casada com Hans Wilhelm Rancke, o cowboy que fazia a vida negra ao P. G. Vinge quando a Sapo foi criada.
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- Bem - disse Edklinth. - Muito bem. Rosa, quero esse prédio vigiado dia e noite. Descobre os números de todos os telefones. Quero saber quem entra e quem sai, as matrículas dos carros de quem visita. A rotina, em suma.
Edklinth olhou para Mikael Blomkvist. Pareceu querer dizer qualquer coisa, mas mudou de ideias. Mikael arqueou as sobrancelhas.
- Satisfeito com o afluxo de informações? - acabou Edklinth por perguntar.
- Nada a dizer. E do seu lado, satisfeito com a colaboração da Millennium}
Edklinth assentiu lentamente com a cabeça.
- Tem consciência de que posso ver-me metido em grandes sarilhos por causa disto? - disse.
- Por minha culpa não será. Considero a informação que obtenho aqui como protegida. Vou revelar os factos, mas sem dizer como os consegui. Antes de imprimir, vou entrevistá-lo em boa e devida forma. Se não quiser responder, bastará dizer: "Sem comentários". Ou poderá denegrir tanto quanto quiser a Secção de Análise Especial. A escolha é sua.
Edklinth voltou a assentir.
Mikael estava satisfeito. Em meia dúzia de horas, a Secção tinha adquirido contornos concretos. Era um verdadeiro progresso.
Sonja Modig constatara, com frustração, que a reunião no gabinete de Ekstrõm se arrastava. Tinha encontrado uma garrafa de água mineral que alguém abandonara em cima da mesa. Telefonara duas vezes ao marido, a avisar que estava atrasada, e prometera redimir-se com uma noite inesquecível quando regressasse. Começava a perder a paciência e a sentir-se como a espia de serviço.
O encontro só terminou por volta das sete e meia. Sonja foi apanhada de surpresa quando a porta se abriu e Hans Faste saiu para o corredor. Imediatamente a seguir, apareceu o Dr. Peter Teleborian, e depois um homem já de idade, de cabelos grisalhos, que Sonja não
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conhecia. O último a sair foi Richard Ekstrõm, que acabou de vestir o casaco antes de apagar a luz e fechar a porta à chave.
Sonja Modig apontou o telemóvel para a fresta entre os cortinados e tirou duas fotos de baixa resolução do grupo reunido em frente da porta de Ekstrõm. Demoraram-se alguns segundos antes de se afastarem pelo corredor.
Sonja reteve a respiração enquanto eles passavam. Quando, finalmente, ouviu a porta do corredor fechar-se, apercebeu-se de que estava coberta de suores frios. Pôs-se de pé com as pernas a tremer.
Jan Bublanski ligou a Rosa Figuerola pouco depois das oito.
- Queria saber se o Ekstrõm se encontrou com alguém.
- Queria.
- A reunião acabou há pouco. O Ekstrõm reuniu-se com o doutor Peter Teleborian e com um meu ex-colaborador, o inspector Hans Faste, e também com um homem idoso que não conhecemos.
- Um instante - pediu Rosa, tapando com a mão o micro do telemóvel e voltando-se para os outros. - Tínhamos razão. O Teleborian foi direito ao gabinete do procurador Ekstrõm.
- Ainda aí está?
- Peço desculpa. Temos alguma coisa que permita identificar o desconhecido, o terceiro homem?
- Melhor do que isso. Vou enviar-lhe uma fotografia dele.
- Uma fotografia? Óptimo. Fico a dever-lhe um grande favor.
- Ficaria mais feliz se soubesse o que se está a tramar.
- Eu volto a ligar.
Por um instante, fez-se silêncio à volta da mesa de reuniões.
- Muito bem - disse finalmente Edklinth. - O Teleborian encontra-se com a Secção e logo a seguir vai ter com o procurador Ekstróm. Pagaria bom dinheiro para saber o que foi dito.
- Pode perguntar-me - disse Mikael. Edklinth e Figuerola olharam para ele.
- Reuniram-se para afinar os pormenores da estratégia para atirar abaixo a Lisbeth durante o julgamento, no próximo mês.
Rosa Figuerola assentiu pensativamente com a cabeça.
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- É uma suposição - disse Edklinth. - A menos que tenha poderes paranormais.
- Não é uma suposição - respondeu Mikael. - Reuniram-se para passar em revista os pormenores da perícia psiquiátrica da Lisbeth Salander. O Teleborian já a acabou.
- Isso é absurdo. A Salander ainda nem sequer foi examinada. Mikael Blomkvist encolheu os ombros e abriu a sacola do portátil.
- Esse género de ninharias nunca foi obstáculo para o Teleborian. Aqui tem a última versão da perícia psiquiátrica legal do nosso amigo. Como pode ver, tem a data da semana em que o processo vai começar.
Edklinth e Rosa Figuerola ficaram a olhar para os papéis que tinham à frente. Em seguida olharam um para o outro, e finalmente para Mikael Blomkvist.
- Como foi que isto veio parar às suas mãos? - perguntou Edklinth.
- Lamento. Protejo as minhas fontes - respondeu Mikael.
- Blomkvist... tem de haver confiança entre nós. Está a reter informações. Tem mais alguma bomba deste género?
- Sim, é evidente que tenho segredos. Tal como estou convencido de que vocês não me deixam ver tudo o que têm aqui na Sapo. Não é verdade?
- Não é a mesma coisa.
- É exactamente a mesma coisa. Este arranjo implica uma colaboração. Como acaba de dizer, tem de haver confiança entre nós. Não escondo nada que possa ajudar o seu inquérito a respeito da Secção ou a identificar os diferentes crimes que foram cometidos. Já entreguei material que prova que o Teleborian cometeu crimes com o Bjorck em 1991 e avisei-os de que vai ser recrutado para fazer a mesma coisa agora. Esse documento prova que é verdade.
- Mas guarda os seus segredos.
- Evidentemente. Pode escolher entre acabar com a nossa colaboração ou aceitá-la tal como está.
Rosa Figuerola ergueu diplomaticamente um dedo.
- Perdão, mas isso significa que o procurador Ekstrõm trabalha para a Secção?
Mikael franziu a testa.
- Não sei. Tenho mais a impressão de que é um imbecil útil que a Secção explora. É um carreirista, mas julgo-o honesto e um pouco tapado. Por outro lado, uma fonte disse-me que ele engoliu praticamente tudo o que o Teleborian contou sobre a Lisbeth Salander, quando ainda andavam à procura dela.
- Não é preciso muito para manipulá-lo, é isso que queres dizer?
- Exactamente. E o Hans Faste é um cretino que acredita que a Lisbeth Salander é uma lésbica satânica.
Erika Berger estava sozinha na sua casa de Saltsjõbaden. Sentia-se paralisada e incapaz de concentrar-se num trabalho sério. Estava à espera de que, a qualquer momento, alguém lhe telefonasse a dizer que as suas fotos tinham aparecido num site algures na Internet.
Por diversas vezes deu por si a pensar em Lisbeth Salander, e apercebeu-se de que depositava demasiadas esperanças na estranha rapariga. Lisbeth continuava detida em Sahlgrenska. Não podia receber visitas e não tinha sequer o direito de ler os jornais. Mas, espantosamente, era uma jovem cheia de recursos. Apesar do isolamento, conseguira contactá-la através do ICQ e depois pelo telefone. E, dois anos antes, conseguira, praticamente sozinha, arruinar o império de Wennerstrõm e salvar a Millennium.
Às oito da noite, Susanne Linder bateu à porta. Erika sobressaltou-se, como se alguém tivesse disparado um tiro dentro da sala.
- Olá, Berger. Parece uma coruja, assim às escuras. Erika acendeu a luz.
- Olá. Vou fazer um café...
- Não. Eu trato disso. Há novidades?
Sem dúvida. A Lisbeth Salander deu notícias e assumiu o controlo do meu computador. E telefonou a dizer que o Teleborian e alguém chamado Jonas iam encontrar-se na Estação Central às três da tarde.
- Não, nada de novo - respondeu. - Mas há uma coisa que gostaria de testar consigo.
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- Tudo bem.
- O que é que acha da hipótese de não ser um assediador e sim alguém próximo de mim que quer chatear-me?
- Qual é a diferença?
- Um assediador é alguém que eu não conheço e que desenvolve uma fixação em relação a mim. A outra variante é uma pessoa que quer vingar-se de mim ou sabotar a minha vida por razões pessoais.
- É uma ideia interessante. E onde foi buscá-la?
- Hum... discuti o assunto com uma pessoa, esta tarde. Não posso dizer-lhe quem é, mas essa pessoa afirma que as ameaças de um verdadeiro tarado sexual teriam outros contornos. E sobretudo que um tipo desse género nunca teria enviado uma mensagem à Eva Carlsson. É um acto completamente fora de contexto.
Susanne Linder assentiu lentamente com a cabeça.
- O que diz faz sentido. Nunca li os e-mails em questão. Posso vê-los?
Erika pegou no portátil e instalou-o em cima da mesa da cozinha.
Rosa Figuerola acompanhou Mikael Blomkvist quando ambos saíram do edifício da sede da Polícia, por volta das dez da noite. Detiveram-se no mesmo lugar do parque de Kronoberg onde tinham parado na noite anterior.
- Cá estamos nós no mesmo sítio. Tencionas desaparecer para ir trabalhar, ou queres ir para minha casa fazer amor?
-Bem...
- Mikael, não tens de sentir-te pressionado por mim. Se precisas de ir trabalhar, vai.
- És um bocado viciada, não és, Rosa?
- E tu não queres depender seja de quem for. É isso que estás a querer dizer?
- Não. Não é isso. Mas hoje preciso de falar com uma pessoa e vai demorar algum tempo. Antes que eu acabe, já tu vais estar a dormir.
Ela assentiu.
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- Até depois.
Mikael beijou-a na face e dirigiu-se à paragem de autocarro de
Fridhemsplan.
- Blomkvist - chamou ela.
- O que é?
- Amanhã também não trabalho. Vem tomar o pequeno-almoço,
se tiveres tempo.
CAPÍTULO 21
SÁBADO, 4 DE JUNHO - SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JUNHO
LISBETH Salander sentiu uma série de más vibrações logo que atacou o disco rígido de Lukas Holm, chefe da secção de Actualidades no SMP. O homem tinha 58 anos e saía do enquadramento predefinido, mas resolvera incluí-lo devido aos conflitos que ele e Erika tinham tido. Era um intriguista, do género de enviar e-mails para aqui e para ali a denunciar que este ou aquele tinham feito um trabalho miserável.
Verificou que Holm não gostava de Erika Berger e ocupava um espaço considerável com comentários a respeito daquela mulherzinha que fizera isto ou aquilo. Quanto à Net, surfava exclusivamente páginas relacionadas com o trabalho. Se tinha outros interesses, ocupava-se deles nos tempos livres ou usando outro computador.
Conservou-o como candidato ao papel de Caneta Porca, mas parecia demasiado bom para ser verdade. Perguntou-se por que razão não acreditava verdadeiramente que fosse ele, e chegou à conclusão de que Holm era de tal modo autoconfiante que não sentia necessidade de enveredar por e-mails anónimos. Se quisesse chamar puta de merda a Erika Berger, fá-lo-ia abertamente. E não parecia do género de arrombar a casa fosse de quem fosse, a meio da noite.
Por volta das dez horas, fez uma pausa e entrou em [Távola-Chanfrada] para verificar que Mikael Blomkvist ainda não tinha lá voltado. Sentiu uma vaga irritação e interrogou-se o que andaria ele a fazer e se chegara a tempo ao encontro de Teleborian.
Voltou ao servidor do SMP.
Pegou no nome seguinte: o assistente editorial da página de Desporto, Claes Lundin, 29 anos. Acabava de abrir a caixa-postal quando
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se deteve e mordeu o lábio inferior. Largou Lundin e preferiu abrir o correio de Erika Berger.
Recuou no tempo, mas o arquivo de ficheiros era relativamente curto, uma vez que a conta só fora aberta a 2 de Maio. A primeira mensagem era um menu da manhã enviado pelo assistente editorial Peter Fredriksson. Durante o primeiro dia, várias pessoas tinham enviado mensagens a dar-lhe as boas-vindas.
Leu atentamente todos os e-mails que Erika recebera. Notou o tom hostil, logo a partir do primeiro dia, da correspondência com o chefe das Actualidades, Lukas Holm. Pareciam não se entender a respeito do que quer que fosse, e reparou que Holm complicava as coisas enviando dois ou três e-mails a propósito de ninharias.
Saltou a publicidade, os spams e os menus das notícias. Concentrou-se em todas as formas de correspondência que tivessem uma nota pessoal. Leu cálculos de orçamentos internos, resultados de anúncios e de campanhas de marketing, uma troca de mensagens com o director financeiro Christer Sellberg que se arrastara por uma semana e que quase podia ser qualificada como uma megadisputa a respeito de cortes de pessoal. Havia e-mails irritados do chefe da secção de Direito a respeito de um substituto chamado Johannes Frisk, que Erika pusera a trabalhar numa história que não era manifestamente apreciada. Depois das primeiras mensagens de boas-vindas, dava a ideia de que nenhum colaborador numa posição de chefia encontrava algo de positivo nos argumentos ou nas posições de Erika Berger.
Pouco depois, voltou ao início da lista e fez um cálculo estatístico. Verificou que, de todos os quadros superiores que Erika tinha à sua volta, só quatro pessoas não tinham tentado minar-lhe a posição. Eram elas Borgsjõ, presidente do CA, Peter Fredriksson, assistente editorial, Gunder Stormab, responsável pela página editorial, e Sebastian Strandlund, chefe da secção de Cultura.
Será que nunca ouviram falar de mulheres, no SMP? Todos os chefes são homens.
A pessoa com quem Erika Berger menos contactava era o chefe da secção de Cultura. Desde que trabalhava no jornal, só trocara dois
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e-mails com Sebastian Strandlund. As mensagens mais amistosas e claramente mais simpáticas vinham do redactor editorial, Storman. Borgsjõ era sucinto e ácido. Todos os outros chefes praticavam a guerrilha descaradamente.
Porque terão aqueles sacanas contratado a Erika Berger se a única ocupação deles é atirá-la abaixo?
A pessoa com quem ela parecia ter mais contacto era o assistente editorial, Peter Fredriksson. Era sempre ele que fazia as actas das reuniões. Estabelecia ligações, informava Erika sobre diferentes textos e problemas, mantinha as coisas em movimento.
Todos os dias, ele e Erika trocavam cerca de uma dúzia de e-mails.
Lisbeth juntou todas as mensagens de Peter Fredriksson para Erika e leu-as uma a uma. Em duas ou três ocasiões, ele opusera-se a uma decisão dela. E explicava as razões exactas por que o fazia. Erika parecia confiar nele, porque alterava as suas decisões ou aceitava os argumentos. Fredriksson nunca era hostil. Por outro lado, não havia a mais pequena indicação de uma relação pessoal.
Lisbeth fechou a caixa de correio de Erika e reflectiu por um instante.
Abriu a conta de Peter Fredriksson.
Peste tinha passado a noite a espiolhar, sem êxito, os computadores pessoais de diversos empregados do SMP. Conseguira entrar no do chefe das Actualidades, Lukas Holm, porque o homem mantinha uma ligação permanentemente aberta com o seu posto de trabalho na redacção, a fim de poder intervir a todo o momento, de dia ou de noite, e orientar as coisas. O computador de Holm contava-se indiscutivelmente entre os mais aborrecidos que Peste tinha alguma vez pirateado. Em contrapartida, fracassara com todos os outros 18 nomes da lista de Lisbeth Salander. Uma das razões era o facto de nenhum dos visados estar online num sábado à noite. Começava a ficar mais ou menos farto daquela missão impossível quando Lisbeth o contactou, por volta das dez e meia.
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[O que é?]
[Peter Fredriksson.]
[Como?]
[Deixa os outros. Concentra-te nele.]
[Porquê?]
[Um pressentimento.]
[Vai demorar.]
[Há um atalho. O Fredriksson é assistente editorial e trabalha com um programa chamado Integrator, para poder saber em casa o que se passa no computador dele no SMP.]
[Não sei nada do Integrator.]
[É um programazito que apareceu há uns anos. Completamente ultrapassado. O Integrator tem um bug. Encontra-se nos arquivos da República. Teoricamente, podes inverter o programa e entrar no computador pessoal dele a partir do SMP.]
Peste deixou escapar um suspiro profundo. Aquela miúda, que em tempos fora sua aluna, estava mais actualizada do que ele.
[OK. Vou tratar disso.]
[Se encontrares alguma coisa, caso eu não esteja online, passa-a ao Super Blomkvist.}
Mikael Blomkvist chegou ao apartamento de Lisbeth, em Mosebacke, pouco antes da meia-noite. Estava cansado, e começou por tomar um duche e ligar a máquina de café. Depois, ligou o computador de Lisbeth e chamou-a no ICQ.
{Já era tempo.]
[Peço desculpa.]
[Onde te meteste nestes últimos dias?]
[Na cama, com uma agente secreta. Apanhei o Jonas.]
[Chegaste a tempo ao encontro?]
[Cheguei. Foste tu que avisaste a Erika???]
[Foi a única maneira de te apanhar.]
[Menina esperta.]
[Amanhã vou ser transferida para a prisão.]
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[Eu sei.]
[O Peste vai ajudar-te, pela Net.]
{Óptimo.}
[Agora só falta o final.]
Mikael assentiu para si mesmo.
[Sally... faremos o que tem de ser feito.]
[Eu sei. És um tipo previsível.]
[E tu és encantadora, como sempre.]
[Alguma coisa que eu deva saber?]
[Não.]
[Nesse caso, tenho muito que fazer na Net.]
[OK. Porta-te bem.]
O pipilar debaixo da almofada acordou Susanne Linder em sobressalto. Alguém accionara o sensor de movimento que instalara no vestíbulo da moradia de Erika Berger. Apoiou-se num cotovelo para olhar para o relógio e viu que eram O5h23 da madrugada de domingo. Levantou-se silenciosamente da cama, vestiu os jeans e a T-shirt e calçou os ténis. Enfiou a lata de gás pimenta no bolso de trás e pegou no bastão extensível.
Passou sem ruído em frente da porta do quarto de Erika e verificou que estava fechada, e portanto trancada.
Em seguida, deteve-se no alto das escadas e escutou. Ouviu um débil tilintar e o som de movimento no rés-do-chão. Desceu lentamente a escada e voltou a deter-se no vestíbulo, à escuta.
O som de uma cadeira a arrastar, na cozinha. Empunhou o bastão com uma mão firme e avançou para a porta, de onde viu um indivíduo careca e com a barba por fazer sentado à mesa, com um copo de sumo de laranja à frente e a ler o SMP. O homem sentiu a presença dela e ergueu os olhos.
- E a senhora quem é? - perguntou ele. Susanne Linder relaxou e apoiou-se à ombreira.
- Greger Beckman, suponho. Como está? Chamo-me Susanne Linder.
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- Ah, bom. Vai abrir-me a cabeça com esse bastão, ou prefere um copo de sumo de laranja?
- Com prazer - respondeu Susanne, pousando o bastão. - O sumo de laranja, quero dizer.
Greger Beckman esticou-se para tirar um copo do escorredouro e encheu-o com sumo de uma embalagem de cartão.
- Trabalho para a Milton Security - explicou Susanne Linder. - Julgo que será preferível ser a sua mulher a explicar-lhe por que estou aqui.
Greger Beckman pôs-se de pé.
- Aconteceu alguma coisa à Erika?
- A sua mulher está bem, mas houve uns problemas. Tentámos contactá-lo em Paris.
- Em Paris? Mas eu estava em Helsínquia, raios!
- Ah. A sua mulher pensava que estava em Paris.
- Isso é para o mês que vem. Beckman dirigiu-se para a porta.
- A porta do quarto está fechada à chave. Precisa do código para a abrir - disse Linder.
- Do código?
Ela deu-lhe os três algarismos a introduzir para abrir a porta. Beckman subiu as escadas galgando os degraus a quatro e quatro. Susanne Linder estendeu a mão e pegou no jornal que ele tinha largado.
As dez da manhã de domingo, o Dr. Anders Jonasson entrou no quarto de Lisbeth Salander. - Viva, Lisbeth. -Viva.
- Queria só avisá-la de que a polícia vai chegar por volta do meio-dia.
- Okay.
- Não parece muito preocupada.
- Não estou.
- Tenho um presente para si.
- Um presente? Porquê?
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- Foi a paciente mais divertida que tive em muito tempo.
- Ah, bom - disse Lisbeth, desconfiada.
- Julgo saber que se interessa pelo ADN e pela genética.
- Quem lhe disse isso?... A psicóloga, aposto. Anders Jonasson assentiu.
- Para o caso de se aborrecer na prisão... aqui tem o último grito em matéria de investigação sobre ADN.
Estendeu-lhe um calhamaço intitulado Spirals - Mysteries of DNA, escrito pelo professor Yoshito Takamura, da Universidade de Tóquio. Lisbeth abriu o livro e passou os olhos pelo índice.
- Bonito - disse.
- Um dia, seria interessante saber como é que consegue ler artigos de investigadores dos quais nem mesmo eu percebo patavina.
Quando o médico saiu do quarto, Lisbeth tirou o Palm do seu esconderijo. Recta final. Através dos Recursos Humanos, ficara a saber que Peter Fredriksson trabalhava no jornal havia seis anos. Durante esse tempo, estivera duas vezes de baixa por doença, por períodos bastante prolongados. O processo individual permitira-lhe também ficar a saber que, das duas vezes, fora por se ter passado dos carretos. A dada altura, o antecessor de Erika Berger, Morander, chegara até a questionar as capacidades reais de Fredriksson para continuar como assistente editorial.
Palavras, palavras, palavras. Nada de concreto a que se agarrar.
As onze e quarenta e cinco, Peste contactou-a pelo ICQ.
[O que há?]
{Continuas em Sahlgrenska?]
[Adivinha.]
[É ele.]
[Tens a certeza?]
[Entrou num computador que tem em casa, para trabalhar, há coisa de meia hora. Aproveitei para fazer uma visita. Tem fotos da Erika Berger digitalizadas no disco rígido.]
[Obrigada.]
[A tipa é uma brasa.]
[Peste.]
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[Eu sei. O que é que faço?]
[Ele pôs algumas fotos na Net?]
[Que eu veja, não.]
[Podes minar-lhe o computador?]
[Está feito. Se ele tentar enviar as fotos ou carregar na Net qualquer coisa que exija mais de 20 KB, o disco rígido vai à viola.] [Óptimo.]
[Agora vou dormir. Consegues desenrascar-te sozinha?]
[Como sempre.]
Lisbeth saiu do ICQ. Olhou para o relógio e viu que era quase meio-dia. Compôs rapidamente uma mensagem, que endereçou ao grupo Yahoo [Távola-Chanfrada].
[Mikael. Importante. Liga já para a Erika Berger e diz-lhe que o Caneta Porca é o Peter Fredriksson.]
No instante em que enviava a mensagem, ouviu passos no corredor. Ergueu o Palm Tungsten T3 e beijou o visor. Em seguida, desligou-o e escondeu-o no buraco atrás da mesa de cabeceira.
- Olá, Lisbeth - disse Annika Giannini, da porta.
- Olá.
- A polícia vem buscá-la daqui a pouco. Trouxe-lhe roupas. Espero que lhe sirvam.
Lisbeth olhou com desconfiança para um sortido de calças escuras e camisas claras.
Foram duas agentes uniformizadas, da polícia de Gotemburgo, que apareceram para levar Lisbeth Salander. A advogada acompanhou-a até à prisão.
Quando saíram do quarto para o corredor, Lisbeth notou que vários membros do pessoal a olhavam com curiosidade. Fez-lhes simpaticamente um aceno de cabeça, e houve alguém que respondeu agitando a mão. Como que por acaso, Anders Jonasson encontrava-se na recepção. Olharam-se e trocaram acenos de cabeça. Antes que
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chegassem à esquina, Lisbeth notou que Anders Jonasson começava a dirigir-se para o seu quarto.
Durante todo o processo que a levaria a uma cela do estabelecimento prisional, Lisbeth Salander não disse uma palavra aos polícias.
Mikael Blomkvist tinha fechado o iBook e parado de trabalhar às sete da manhã de domingo. Ficou por um instante de pé diante da secretária de Lisbeth Salander, a olhar para o vazio.
Em seguida, foi até ao quarto e contemplou a enorme cama de casal. Um instante depois, voltou ao escritório, abriu o telemóvel e ligou para Rosa Figuerola.
- Olá. Sou eu, Mikael.
- Olá para ti também. Já a pé?
- Acabei agora mesmo de trabalhar e vou para a cama. Queria só dizer olá.
- Os homens que telefonam só para dizer olá têm uma qualquer encasquetada.
Ele riu-se.
- Blomkvist, podes vir dormir para aqui, se quiseres.
- Não vou ser uma companhia muito divertida.
- Hei-de habituar-me.
Mikael apanhou um táxi para a Pontonjárgatan.
Erika Berger passou a manhã de domingo na cama com o marido, ora a conversar, ora a dormitar. Da parte da tarde, vestiram-se e deram um longo passeio até ao cais do vapor, e depois uma volta pela vila.
- O SMP foi um erro - disse Erika, quando regressaram a casa.
- Não digas isso. Está a ser duro, mas isso já tu sabias. Vai acalmar, quando apanhares o ritmo.
- Não é o trabalho. Por esse lado não tenho problemas. É a atitude.
- Hum.
- Não me sinto bem. Mas não posso demitir-me ao fim de meia dúzia de semanas.
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Sentou-se tristemente à mesa da cozinha e ficou a olhar em frente, sem energia. Greger Beckman nunca vira a sua mulher tão desalentada.
O inspector Hans Faste encontrou Lisbeth Salander pela primeira vez ao meio-dia e meia de domingo, quando uma agente da polícia de Gotemburgo a levou ao gabinete de Marcus Ackerman. - Foi um trabalhão do caraças, apanhar-te - disse Hans Faste. Lisbeth Salander examinou-o longamente, e então decidiu que ele era um bruto e que não tinha a intenção de dedicar muitos segundos a tomar nota da sua existência.
- A inspectora Gunilla Wàring vai acompanhá-los durante o transporte até Estocolmo - anunciou Ackerman.
- Ah, bom - disse Faste. - Nesse caso, podemos ir andando. É que há uma porção de gente que quer conversar contigo, Salander.
Ackerman despediu-se de Lisbeth. Ela ignorou-o. Fora decidido que seria mais simples transportar a detida de carro até Estocolmo. Gunilla Wãring conduzia. No início da viagem, Hans Faste ocupou o banco da frente, com a cabeça voltada para trás enquanto tentava falar com Lisbeth. Por altura de Alingsás, começou a ficar com um torcicolo e desistiu.
Lisbeth Salander contemplava a paisagem pela janela do carro. Dir-se-ia que Faste não existia no seu mundo.
O Teleborian tem razão, a gaja é completamente atrasada mental, pensou Faste. Já vamos tratar disso em Estocolmo.
De vez em quando, olhava para Lisbeth Salander e tentava formar uma opinião sobre a mulher que perseguira durante tanto tempo. E o próprio Hans Faste tinha dúvidas ao ver a fragilidade daquela miúda. Perguntou-se quanto poderia ela pesar. Recordou que era lésbica, e portanto não verdadeiramente uma mulher.
Em contrapartida, não era impossível que a história do satanismo fosse exagerada. A rapariga não tinha um ar nada satânico.
ironia do destino, apercebia-se de que teria de longe preferido prendê-la pelos três homicídios de que fora inicialmente suspeita, mas a realidade acabara por determinar a investigação. Até uma miúda
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magricela podia usar uma pistola. Agora, estava a ser detida por ofensas corporais agravadas contra o líder do Moto-Clube de Svavelsjõ, crime de que era sem a mínima dúvida culpada, e para o qual havia também provas técnicas, não fosse ela ter a intenção de o negar.
Rosa Figuerola acordou Mikael Blomkvist por volta da uma da tarde. Tinha ficado na varanda, a acabar de ler o livro sobre a percepção dos deuses na Antiguidade enquanto o ouvia ressonar. Um momento de paz. Quando entrou no quarto e olhou para Mikael, apercebeu-se de que se sentia mais atraída por ele do que por qualquer outro homem que tivesse conhecido em muitos, muitos anos.
Uma sensação agradável, mas inquietante. Mikael Blomkvist não aparecia como um elemento estável na sua existência.
Quando ele finalmente acordou, foram a Norr Málarstrand beber café. Depois, Rosa arrastou-o de novo para casa para fazerem amor durante o resto da tarde. Mikael deixou-a por volta das sete. Ainda mal ele acabara de fechar a porta depois de se despedir com um beijo na face, e já ela estava cheia de saudades.
Por volta das oito da noite de domingo, Susanne Linder bateu à porta de Erika Berger. Não passaria ali a noite, uma vez que Greger Beckman tinha regressado a casa, e aquela visita nada tinha de profissional. As poucas noites que passara em casa de Erika tinham-lhes permitido tornarem-se muito chegadas durante as longas conversas na cozinha. Descobrira que gostava muito de Erika Berger, e via nela uma mulher desesperada que punha a máscara e ia para o trabalho como se nada fosse, mas que, na realidade, era um poço de angústia ambulante.
Susanne Linder suspeitava de que aquela angústia não se devia apenas a Caneta Porca. Mas não era assistente social, e a vida e os problemas de Erika Berger não lhe diziam respeito. Foi, portanto, a casa dos Berger apenas para os cumprimentar e perguntar se estava tudo bem. Encontrou Erika e o marido na cozinha, envoltos num ambiente sombrio e pesado. Aparentemente, tinham passado o domingo a discutir assuntos graves.
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Greger Beckman fez café. Susanne Linder estava com eles havia apenas alguns minutos quando o telemóvel de Erika tocou.
Erika Berger atendera todos os telefonemas que lhe tinham sido feitos durante o dia com uma sensação de naufrágio iminente.
- Berger.
- Olá Ricky.
Mikael Blomkvist. Merda, não lhe contei que o dossier Borgsjo desapareceu.
- Olá Micke.
- A Lisbeth Salander foi transferida para a prisão de Gotemburgo esta tarde, enquanto espera por transporte para Estocolmo, amanhã.
- Estou a ver.
- Deixou-me uma mensagem... para ti.
- Para mim?
- Sim. É muito misteriosa.
- O que é que diz?
- Que o Caneta Porca é o Peter Fredriksson.
Erika ficou em silêncio durante dez segundos, enquanto os pensamentos se atropelavam na cabeça. Impossível. O Peter não é assim. A Lisbeth deve-se ter enganado.
- Mais alguma coisa?
- Não. Só isto. Sabes do que é que ela está a falar? -Sei.
- Ricky, o que é que vocês as duas andam a magicar? Foi a ti que ela telefonou para dar a dica a respeito do Teleborian, e...
- Obrigada, Micke. Falamos mais tarde.
Desligou o telemóvel e olhou para Susanne Linder com uma expressão desnorteada.
- Conta - disse Susanne Linder.
Susanne Linder sentiu-se dominada por sentimentos contraditórios. Erika Berger acabava de receber uma mensagem que lhe revelava que o seu assistente editorial, Peter Fredriksson, era o homem a quem chamava Caneta Porca. As palavras tinham jorrado como uma
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torrente quando ela começara a contar. Então, Linder perguntara-lhe como sabia ela que era Fredriksson o tipo que a perseguia.
E Erika Berger ficara repentinamente muda. Susanne observara-lhe os olhos e vira que alguma coisa mudara na atitude dela. De um momento para o outro, Erika Berger sentia-se atrapalhada.
- Não posso falar...
- Que queres dizer com isso?
- Susanne, sei que o Caneta Porca é o Fredriksson. Mas não posso revelar como obtive essa informação. Que devo fazer?
- Tens de dizer-me, se queres que te ajude.
- Eu.. .não posso. Tu não compreendes.
Erika levantara-se e fora pôr-se em frente da janela da cozinha, de costas para Susanne. Finalmente, voltara-se.
- Vou a casa desse sacana.
- Nem sequer penses nisso. Não vais a parte nenhuma, e muito menos a casa de um tipo que temos todas as razões para acreditar que te tem um ódio de morte.
Erika hesitara.
- Senta-te. Conta o que se passou. Era o Mikael Blomkvist ao telefone, não era?
Erika assentira.
- Eu... hoje pedi a um hacker que entrasse nos computadores privados do pessoal.
- Ah. O que significa que te tornaste culpada de delito informático agravado. E não queres dizer quem é o hacker.
- Prometi nunca o dizer... Não são as mesmas pessoas. Estão ligadas a um caso em que o Mikael está a trabalhar.
- O Blomkvist sabe desta história do Caneta Porca?
- Não, limitou-se a transmitir a mensagem.
Susanne Linder pusera a cabeça de lado e observara Erika Berger. De repente, estabelecera-se no seu espírito uma cadeia de associações.
Erika Berger. Mikael Blomkvist. Millennium. Polícias desonestos assaltam o apartamento de Blomkvist e colocam lá microfones. Eu vigiei os vigilantes. O Blomkvist trabalha como um doido num artigo sobre a Lisbeth Salander.
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Toda a gente na Milton Security sabia que Lisbeth Salander era uma barra em informática. Ninguém sabia onde e como obtivera esses conhecimentos e Susanne nunca ouvira dizer que Lisbeth fosse uma hacker. Mas Dragan Armanskij referira certa vez que Lisbeth entregava relatórios absolutamente espantosos quando investigava pessoas. Uma hacker...
Não pode ser, porra! A Salander está isolada em Gotemburgo! Era de loucos.
- Estamos a falar da Salander? - perguntara.
Fora como se Erika tivesse sido atingida por um raio.
- Não posso discutir a origem da informação. Nem uma palavra a esse respeito.
De repente, Susanne começara a rir à gargalhada. É a Salander. A confirmação da Erika não podia ser mais clara. Está completamente azamboada.
Só que há uma séria impossibilidade. Mas que raio de merda se passa aqui?
Encontrando-se detida, Lisbeth Salander teria então sido encarregada de descobrir quem era Caneta Porca. Possibilidade zero. Susanne Linder pensara furiosamente.
Não tinha uma ideia precisa a respeito de Lisbeth Salander, ou do que se dizia dela. Encontrara-a talvez umas cinco vezes durante os anos em que ela trabalhara na Milton Security e nunca tinham tido qualquer espécie de conversa pessoal. A imagem que guardava de Salander era a de uma pessoa estranha, uma associal com uma carapaça de tal modo dura que nem um martelo-pneumático conseguiria perfurá-la. E apercebera-se também de que Dragan Armanskij a protegia. Como respeitava Armanskij, sempre supusera que ele tinha boas razões para ter aquela atitude para com aquela rapariga tão complicada.
Caneta Porca éPeter Fredriksson.
Seria possível que tivesse razão? Haveria provas?
Passara a hora seguinte a sacar de Erika tudo o que ela sabia a respeito de Peter Fredriksson, qual era o papel dele no SMP e qual era a relação profissional entre os dois.
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Erika hesitara até à exaustão, oscilando entre a vontade de ir a casa dele e pedir-lhe explicações e a dúvida de que aquilo fosse verdade. No fim, Susanne conseguira convencê-la de que não podia correr para casa de Fredriksson com acusações - se ele estivesse inocente, faria figura de idiota chapada.
Prometera ocupar-se do assunto. Promessa de que se arrependera no preciso instante em que a fizera, porque não imaginava sequer como ia cumpri-la.
Fosse como fosse, acabava de estacionar o seu Fiat Strada o mais perto possível do apartamento de Fredriksson, em Fisksâtra. Trancou com a chave a porta do carro e olhou em redor. Não sabia muito bem o que ia fazer, mas reconheceu que seria obrigada a bater-lhe à porta e, de uma maneira ou de outra, levá-lo a responder a uma série de perguntas. Tinha perfeita consciência de que tudo aquilo estava completamente fora do âmbito do trabalho que fazia para a Milton Security e que Dragan Armanskij iria ficar furioso se soubesse no que se metera.
Não era um bom plano. E, de todos os modos, fracassou antes mesmo de ela ter tempo de o pôr em prática.
No preciso instante em que se aproximava do prédio de Peter Fredriksson, a porta da rua abriu-se. Susanne reconheceu-o de imediato, pela fotografia do processo pessoal que vira no computador de Erika Berger. Continuou em frente e os dois cruzaram-se. Susanne deteve-se, hesitante, voltou-se e viu-o desaparecer na direcção da garagem. Apercebeu-se então de que eram quase 11 da noite e que Peter Fredriksson se dirigia a algum lado. Perguntou-se para onde iria ele e voltou a correr para o carro.
Mikael Blomkvist ficou muito tempo a olhar para o telemóvel depois de Erika ter cortado tão abruptamente a conversa. Que se passaria? Lançou um olhar frustrado ao computador de Lisbeth Salander, mas, àquela hora, já ela fora transferida para a prisão de Gotemburgo e não havia maneira de contactá-la.
Abriu o TIO azul e ligou para Idris Ghidi.
- Boa noite - disse.
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- Boa noite - respondeu Idris.
- Queria só dizer-lhe que pode acabar com o trabalho que estava a fazer para mim.
Idris Ghidi assentiu com a cabeça, em silêncio. Sabia que Mikael Blomkvist ia ligar-lhe, uma vez que Lisbeth Salander fora transferida para a prisão de Gotemburgo.
- Compreendo - disse, finalmente.
- Pode ficar com o telemóvel, tal como combinámos. Mando-lhe o dinheiro para a semana.
- Obrigado.
- Eu é que lhe agradeço a sua ajuda.
Abriu o iBook e começou a trabalhar. Os acontecimentos dos últimos dias implicavam que uma grande parte do manuscrito ia ter de ser alterada e toda uma nova história introduzida.
Suspirou.
Às 23h15, Peter Fredriksson estacionou o carro a três quarteirões de distância da moradia de Erika Berger. Assim que percebeu aonde ele se dirigia, Susanne Linder deixou-se ficar para trás, para não lhe chamar a atenção. Depois de ter passado pelo carro dele e verificado que estava vazio, continuou em frente mais uns 500 metros. Passou pela casa de Erika Berger e foi estacionar onde ele não a pudesse ver. Tinha as mãos encharcadas em suor.
Pegou numa caixa de Catch Dry e enfiou na boca uma dose de tabaco de mascar.
Apeou-se e olhou em redor. A partir do momento em que percebeu que Fredriksson ia a caminho de Saltsjõbaden, teve a certeza de que a dica de Lisbeth Salander estava correcta. Ignorava como se arranjara Salander para o saber, mas não restava a mínima dúvida de que Peter Fredriksson era o Caneta Porca. Não era certamente por acaso que ia a Saltsjõbaden àquela hora da noite. Andava a tramar alguma.
O que era perfeito, se queria apanhá-lo em flagrante delito.
Tirou um bastão extensível da bolsa da porta do carro e sopesou-o por um instante. Premiu a mola do punho e libertou o pesado cabo de aço flexível. Cerrou os dentes.
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Fora exactamente aquilo que a levara a deixar o serviço de patrulha em Sõdermalm.
Certo dia, deixara-se dominar por uma raiva louca quando fora pela terceira vez consecutiva a uma morada em Hágersten, de onde uma mulher, sempre a mesma, chamara a polícia a gritar por socorro porque o marido lhe batera. E, tal como nas duas primeiras vezes, a situação acalmara antes de o carro-patrulha ter tido tempo de chegar.
Por uma questão de rotina, tinham levado o homem para o patamar enquanto interrogavam a mulher. Não, não queria apresentar queixa. Não, fora um engano. Não, ele era um homem bom... na realidade, a culpa era dela, tinha-o provocado...
E, durante todo aquele tempo, o sacana calara-se, a olhar para ela, olhos nos olhos.
Susanne Linder não sabia explicar o que a levara a tomar aquela atitude. Mas, de repente, perdera as estribeiras, pegara no bastão e batera-lhe com ele na cara. O primeiro golpe fora fraco. Ele esquivara-se e ficara apenas com um lábio rachado. Durante os dez segundos seguintes - até que os colegas a agarrassem e a levassem à força para a rua -, fizera chover bastonadas sobre as costas, os ombros, os rins e as ancas do filho da mãe.
Não chegara a haver inquérito. Susanne demitira-se nessa mesma noite e fora para casa chorar durante uma semana. Depois, conseguira recompor-se e fora bater à porta de Dragan Armanskij. Contara o que tinha feito e por que motivo deixara a polícia. Procurava trabalho. Armanskij hesitara e pedira-lhe um prazo para reflectir. Já ela perdera a esperança quando ele lhe telefonara, passadas seis semanas, para lhe dizer que estava disposto a contratá-la, à experiência.
Susanne Linder sorriu duramente e enfiou o bastão no cós das calças. Verificou que tinha a lata de gás pimenta no bolso direito do casaco e que os atacadores dos ténis estavam bem apertados. Dirigiu-se à casa de Erika Berger e entrou no jardim.
Sabia que o detector de movimentos das traseiras não fora ainda instalado e atravessou silenciosamente o relvado até à sebe que delimitava o terreno. Não o viu. Contornou a casa e imobilizou-se. De repente, avistou-o, uma sombra no escuro perto do atelier de Lars Beckman.
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O tipo nem se apercebe de como é estúpido voltar aqui. Não consegue conter-se.
Fredriksson estava acocorado, a tentar espreitar por uma abertura entre os cortinados de uma saleta contígua à sala de estar. Em seguida, subiu ao terraço e espreitou pelas frestas das persianas ao lado da janela panorâmica ainda tapada com a placa de contraplacado. Subitamente, Susanne Linder sorriu.
Atravessou o jardim das traseiras até à esquina da casa, aproveitando um momento em que ele lhe voltava as costas. Escondeu-se atrás das groselheiras e esperou. Via-o por entre os ramos. De onde estava, Fredriksson devia ver o vestíbulo e uma boa parte da cozinha. Tinha descoberto qualquer coisa interessante para observar, e passaram dez minutos até que voltasse a mexer-se. Aproximava-se do sítio onde ela estava.
No instante em que ele dobrava a esquina e passava em frente dela, Susanne Linder pôs-se de pé e falou em voz baixa: - Viva, Fredriksson. Ele deteve-se e voltou-se para ela.
Susanne viu os olhos dele a brilhar no escuro. Não lhe distinguia a cara, mas percebeu que o choque o deixara sem respiração.
- Há duas maneiras de fazer isto, uma simples, e outra complicada - disse ela. - Vamos até ao teu carro...
Fredriksson rodou sobre si mesmo e começou a correr. Susanne Linder levantou o bastão extensível e desferiu-lhe uma violenta e dolorosa pancada no joelho esquerdo. Fredriksson caiu com um som abafado.
Susanne ergueu o bastão para voltar a bater, mas conteve-se. Sentia os olhos de Dragan Armanskij cravados na nuca. Inclinou-se, fê-lo rolar até ficar de barriga para baixo e cravou-lhe um joelho no fundo das costas. Depois, pegou-lhe na mão direita, torceu o braço para trás e algemou-o. Fredriksson não ofereceu a menor resistência.
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Erika Berger apagou a luz da sala e subiu a escada a coxear. Já não precisava de canadianas, mas a planta do pé continuava a doer-lhe quando apoiava nela todo o peso do corpo. Greger Beckman apagou a luz da cozinha e seguiu a mulher. Nunca vira Erika tão infeliz. Nada que lhe dissesse conseguia acalmá-la ou atenuar a angústia que sentia.
Erika despiu-se e enfiou-se na cama, voltando-lhe as costas.
- Não é nada contigo, Greger - disse, ao ouvi-lo deitar-se.
- Isso não está nada bem - respondeu ele. - Quero que fiques em casa durante uns dias.
Passou-lhe um braço pelos ombros. Ela tentou não o repelir, mas não se mexeu. Ele inclinou-se, beijou-a ternamente no pescoço e apertou-a contra o peito.
- Não há nada que possas dizer ou fazer para melhorar a situação. Eu sei que preciso de fazer uma pausa. Sinto-me como se estivesse num comboio expresso e acabasse de aperceber-me de que vamos descarrilar.
- Podemos ir dar uma volta de barco, por uns dias. Deixar tudo e fazer uma pausa.
- Não, não posso deixar isto. - Erika voltou-se para ele. - A pior coisa que podia fazer agora era precisamente fugir. Vou resolver o problema. Depois vamos.
- Tudo bem. Receio não poder servir-te de grande ajuda. Ela quase sorriu.
- Pois não, é verdade. Mas obrigada por estares aqui. Amo-te para lá do razoável. Tu sabes.
Ele assentiu com a cabeça.
- Não consigo acreditar que é o Peter Fredriksson - continuou Erika. - Nunca senti a menor hostilidade da parte dele.
Susanne Linder perguntava a si mesma se devia bater à porta de Erika Berger quando viu as luzes do rés-do-chão apagarem-se. Olhou
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para Peter Fredriksson, que não dissera uma palavra, mantendo-se totalmente passivo. Reflectiu uns segundos antes de se decidir.
Inclinou-se, agarrou as algemas e obrigou-o a pôr-se de pé contra a parede da casa.
- Aguentas-te de pé? - perguntou. - Ele não respondeu. - Bom, então vamos simplificar as coisas. Se ofereceres a mais pequena resistência, aplico-te exactamente o mesmo tratamento na perna direita. E se insistires, rebento-te o braço. Compreendes o que estou a dizer?
Sentiu que ele respirava muito depressa. Medo?
Empurrou-o à sua frente até à rua e na direcção do carro que ele deixara três quarteirões mais atrás. Fredriksson coxeava. Ela apoiava-o. Quando chegaram perto do carro, cruzaram-se com um passeante nocturno que dava uma volta com o cão e que ficou a olhar para as algemas.
- Polícia - disse Susanne, num tom firme. - Vá para casa.
Instalou-o no banco traseiro e conduziu até Fisksátra. Era meia-noite e meia e não encontrara ninguém diante do prédio. Susanne tirou-lhe as chaves do bolso e obrigou-o a subir até ao apartamento, no segundo andar.
- Não pode entrar em minha casa - disse Peter Fredriksson. -Eram as suas primeiras palavras desde que ela o tinha algemado. -Não tem esse direito. É preciso um mandado...
- Não sou polícia - disse ela, em voz baixa. Ele olhou-a, incrédulo.
Susanne agarrou-o pelos colarinhos e empurrou-o para a sala, onde o atirou para cima de um sofá. Era um T2 limpo e bem arranjado. O quarto à direita da sala, a cozinha do outro lado do vestíbulo, um pequeno escritório contíguo à sala.
Susanne olhou para cima da secretária e deixou escapar um suspiro de alívio. A arma do crime! Viu imediatamente as fotos de Erika Berger espalhadas em cima da secretária ao lado de um computador. fredriksson tinha colocado cerca de trinta fotografias na parede. Susanne Linder observou a exposição com as sobrancelhas arqueadas.
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Erika Berger era muito bonita. E a sua vida sexual parecia ser muito mais interessante do que a dela.
Ouviu Peter Fredriksson mexer-se e voltou à sala. Aplicou-lhe uma bastonada, arrastou-o para o escritório e sentou-o no chão.
- Não te mexas - disse ela.
Foi à cozinha buscar um saco de papel. Depois tirou as fotos da parede, uma a uma. Encontrou o álbum e os diários íntimos de Erika.
- Onde está o vídeo? - perguntou.
Peter Fredriksson não respondeu. Susanne voltou à sala e ligou a televisão. Havia uma cassete introduzida no leitor, mas ela demorou algum tempo a encontrar o canal certo no telecomando.
Ejectou a cassete e dedicou longos minutos a confirmar que Fredriksson não fizera cópias.
Encontrou as cartas de amor de Erika adolescente e o relatório a respeito de Borgsjõ. Depois, voltou a sua atenção para o computador de Peter Fredriksson. Verificou que ele tinha um scanner Microtek ligado a um IBM PC. Levantou a tampa do scanner e encontrou uma fotografia que lá ficara esquecida e que mostrava Erika numa festa do Clube Xtreme na Passagem de Ano de 1986, a julgar por uma faixa atravessada numa parede.
Ligou o computador e descobriu que estava protegido por um código de acesso.
- Qual é o código? - perguntou Susanne.
Peter Fredriksson continuou sentado no chão, teimosamente imóvel e calado.
Susanne Linder sentiu-se repentinamente muito calma. Sabia que, tecnicamente falando, estivera a acumular infracções durante a noite toda, incluindo agressões físicas e rapto com violência. Não queria saber. Pelo contrário, estava contente.
Ao cabo de um momento, acabou por encolher os ombros, procurou no bolso e tirou de lá um canivete suíço. Desligou todos os cabos do computador, voltou a parte traseira para si e serviu-se da chave de parafusos para o abrir. Bastou-lhe um curto quarto de hora para desmontar o computador e retirar o disco rígido.
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Olhou em redor. Tinha tudo, mas, por precaução, passou em revista as gavetas da secretária, os montes de papéis e as prateleiras. De repente, o olhar dela pousou num velho livro de curso pousado no parapeito da janela. Verificou que era do liceu de Djursholm, de 1978. Não foi lá que a Erika estudou...? Pegou no livro e começou a folheá-lo página a página. Encontrou Erika Berger, aos 18 anos, com o chapéu de finalista e um radioso sorriso cheio de covinhas encantadoras. Vestia um leve vestido de algodão branco e tinha um ramalhete de flores na mão. A imagem perfeita da adolescente feliz e inocente.
Susanne esteve quase a deixar escapar a ligação, mas estava na página seguinte. Nunca o teria reconhecido pela fotografia, mas a legenda não deixava lugar para dúvidas. Peter Fredriksson. Pertencia a outra turma, do mesmo ano que Erika. Viu um rapaz esgalgado, de rosto sério, que olhava directamente para a objectiva por baixo da pala do boné.
Ergueu os olhos e encontrou os de Peter Fredriksson.
- Já nessa altura era uma puta de merda.
- Fascinante - disse Susanne.
- Ia para a cama com toda a malta da escola.
- Muito me espantaria.
- Era uma...
- Não o digas. O que foi que aconteceu? Não te deixou saltar-lhe para a cueca?
- Tratava-me como se eu não existisse. Ria-se de mim nas minhas costas. E quando começou a trabalhar no SMP nem sequer me reconheceu.
- Sim, sim - disse Susanne Linder, fatigada. - Acredito que tiveste uma infância difícil. Vamos falar a sério só por um instante?
- O que é que quer?
- Não sou polícia. Faço parte das pessoas que se ocupam dos da tua espécie. - Calou-se, deixando a imaginação de Fredriksson fazer o seu trabalho. - Só quero saber se puseste as fotografias em algum sítio da Net. - Ele abanou a cabeça. - Verdade verdadinha? Ele assentiu. - Será a Erika Berger a decidir se quer apresentar queixa
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contra ti por assédio, ameaças e invasão de domicílio, ou se prefere resolver as coisas amistosamente. - Fredriksson não disse nada. - Se ela decidir ignorar-te... e, quanto a mim, é toda a atenção que mereces... serei eu a manter-te debaixo de olho. - Agitou significativamente o bastão extensível. - Se te passa pela cabeça voltares a aproximar-te da casa da Erika Berger, ou se lhe envias e-mails ou a incomodas seja de que maneira for, virei fazer-te uma visita. E depois nem a tua própria mãe te reconhecerá. Compreendes o que estou a dizer? - Fredriksson continuou calado. - Por outras palavras, tens a possibilidade de influenciar o fim desta história. Interessado? - Fredriksson assentiu lentamente com a cabeça. - Nesse caso, vou recomendar à Erika Berger que te deixe andar. E, a partir de agora, não vale a pena apareceres no trabalho. Estás despedido, com efeitos imediatos. - Fredriksson assentiu. - Vais desaparecer da vida dela e de Estocolmo. Não quero saber o que fazes ou para onde vais. Arranja trabalho em Gotemburgo ou em Malmõ. Arranja mais uma baixa por doença. Faz o que quiseres. Mas deixa a Erika Berger em paz. -Fredriksson assentiu. - Estamos de acordo?
Inesperadamente, Peter Fredriksson desfez-se em lágrimas.
- Não queria fazer-lhe mal - disse. - Só queria...
- Querias transformar a vida dela num inferno, e conseguiste. Tenho a tua palavra?
Fredriksson assentiu.
Susanne inclinou-se para ele, voltou-o de barriga para baixo e tirou-lhe as algemas. Levou consigo o saco de papel que continha a vida de Erika Berger e deixou o desgraçado estendido no chão.
Eram duas e meia da madrugada de segunda-feira quando Susanne Linder saiu do prédio de Fredriksson. Ainda pensou em esperar pelo nascer do dia, mas decidiu que se fosse ela a interessada havia de querer saber o mais cedo possível. Além disso, deixara o carro em Saltsjõbaden. Apanhou um táxi.
Greger Beckman abriu a porta antes que ela tivesse tido tempo de tocar à campainha. Vestia uns jeans e não parecia nem um pouco ensonado.
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- A Erika está acordada? - perguntou Susanne. Ele assentiu.
- Há novidades? - perguntou. - Susanne fez que sim com a cabeça e sorriu. - Entre. Estávamos a conversar, na cozinha.
Entraram os dois.
- Viva, Erika - disse Susanne. - Tens de aprender a dormir, de vez em quando. - Susanne estendeu-lhe o saco. - O Peter Fredriksson promete deixar-te em paz, a partir de agora. Não sei se se pode confiar nele, mas se cumprir, será mais indolor do que apresentar queixa e passar por um julgamento. Tu decidirás.
- Então era mesmo ele?
Susanne assentiu. Greger Beckman ofereceu-lhe café, mas Susanne não aceitou. Tinha bebido demasiado café naqueles últimos dias. Sentou-se numa cadeira e contou o que tinha acontecido diante da casa deles, naquela noite.
Erika Berger ficou em silêncio por um longo momento. Então, levantou-se da cadeira, subiu ao quarto e voltou com o seu próprio exemplar do livro de curso. Examinou atentamente o rosto de Peter Fredriksson.
- Lembro-me dele - acabou por dizer. - Mas estava longe de pensar que era o mesmo Peter Fredriksson que trabalhava no SMP. Nem sequer me lembrava do nome, até olhar para este livro de curso.
- O que foi que se passou entre os dois? - perguntou Susanne.
- Nada. Absolutamente nada. Ele era um rapaz taciturno e sem interesse, de outra turma. Julgo que só tínhamos uma disciplina em comum. Francês, parece-me.
- Disse que o tratavas como se ele não existisse.
- Provavelmente, é verdade. Não o conhecia e ele não fazia parte do nosso grupo.
- Usavam-no como bombo da festa ou coisa assim?
- Deus, não! Eu não achava graça a esse género de coisas. Fazíamos campanhas antiperseguição, no liceu, e eu era a presidente do conselho de alunos. Não consigo lembrar-me se alguma vez lhe dirigi a palavra, ou se alguma vez tive qualquer diálogo com ele.
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- Okay - disse Susanne Linder. - Em todo o caso, o certo é que ele tinha qualquer coisa contra ti. Esteve de baixa por doença, duas vezes, baixas longas. Por stress. Foi-se completamente abaixo. Houve talvez outras razões que não conhecemos. - Pôs-se de pé e vestiu o casaco de couro. - Fico com o disco rígido. Tecnicamente, é um objecto roubado que não deve ser encontrado em tua casa. Não te preocupes, vou destruí-lo assim que chegar a casa.
- Espera, Susanne... Como é que vou poder agradecer-te?
- Bem, vais poder apoiar-me quando a cólera do Armanskij me atingir como um raio caído do céu.
Erika olhou para ela com um ar sério.
- Vais ficar em maus lençóis por causa disto?
- Não sei... A verdade é que não sei.
- Podemos pagar-te para...
- Não. Mas o Armanskij vai talvez facturar esta noite. Espero que o faça, pois será sinal de que aprova o que fiz e assim dificilmente poderá pôr-me na rua.
- Vou certificar-me de que factura. - Erika pôs-se de pé e apertou Susanne num longo abraço. - Obrigada, Susanne. Se algum dia precisares de ajuda, sabes que sou tua amiga. Seja para o que for.
- Obrigada. Não deixes essas fotos espalhadas por aí. A propósito, a Milton Security tem uns cofres muito jeitosos.
Erika Berger sorriu.
CAPÍTULO 22
SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JUNHO
ERIKA Berger acordou às seis da manhã de segunda-feira. Apesar de não ter dormido mais do que uma hora, sentia-se curiosamente repousada. Supôs que era uma espécie de reacção física. Pela primeira vez em muitos meses vestiu o fato de treino e fez uma corrida a sério até ao cais do vapor. Ou melhor, a sério durante uma centena de metros, até que o pé ferido começou a doer-lhe tanto que a obrigou a abrandar o passo e a continuar a um ritmo mais moderado. A cada passada, a dor no calcanhar era quase um prazer.
Sentia-se literalmente ressuscitada. Era como se a Ceifeira tivesse parado diante da sua porta, e então tivesse mudado de ideias no último instante e entrado em casa dos vizinhos. Não conseguia sequer compreender como pudera ter a incrível sorte de Peter Fredriksson ter conservado as fotos em seu poder durante quatro dias sem fazer nada. O facto de as ter digitalizado indicava que tinha uma ideia qualquer em mente, mas que demorara a tomar a iniciativa.
Fosse como fosse, naquele ano ia comprar um presente de Natal caro e fazer uma surpresa a Susanne Linder. Ia arranjar-lhe qualquer coisa de verdadeiramente original.
Às sete e meia, deixou Greger a dormir, meteu-se no BMW e dirigiu-se à redacção do SMP, em Norrtull. Deixou o carro na garagem, apanhou o elevador para a recepção e instalou-se na sua gaiola de vidro. A primeira coisa que fez foi chamar um técnico de limpeza.
- O Peter Fredriksson demitiu-se do SMP com efeitos imediatos - disse. - É preciso arranjar uma caixa grande, recolher os objectos Pessoais dele e fazer-lhos chegar às mãos ainda esta manhã.
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Olhou para o pólo Actualidades. Lukas Holm acabava de chegar. Os olhares de ambos encontraram-se e ele fez-lhe um aceno de cabeça.
Ela retribuiu.
Holm era um estupor, mas depois da última confrontação deixara de fazer cenas. Se continuasse a mostrar a mesma atitude positiva, talvez sobrevivesse como chefe das Actualidades. Talvez.
Pela primeira vez, sentiu que ia conseguir inverter a maré.
Às oito e quarenta e cinco, viu Borgsjõ sair do elevador e desaparecer na escada interior em direcção ao seu gabinete, no piso de cima. Tenho mesmo de falar com ele. Não pode passar de hoje.
Foi buscar café e dedicou alguns momentos ao planeamento da manhã. Aliás, uma manhã pobre em notícias. O único texto com interesse era uma caixa a anunciar, de forma neutra, que Lisbeth Salander fora transferida para o estabelecimento prisional de Gotemburgo, no domingo. Deu luz verde ao artigo e enviou-o por e-mail a Lukas Holm.
Faltava um minuto para as nove quando Borgsjõ telefonou.
- Berger. Venha imediatamente ao meu gabinete. E desligou.
Magnus Borgsjõ estava de pé quando Erika abriu a porta. Voltou-se para ela, lívido, e atirou um monte de papéis para cima da secretária.
- Que porra de merda é esta? - rugiu.
O coração de Erika afundou-se-lhe no peito. Um simples olhar à capa bastou-lhe para saber o que Borgsjõ encontrara no correio da manhã.
Fredriksson não tivera tempo para ocupar-se das fotografias. Mas tivera tempo para enviar a Borgsjõ o material do artigo de Henry Cortez.
Sentou-se calmamente à frente dele.
- É um texto que o jornalista Henry Cortez escreveu e que a revista Millennium planeava publicar no número que saiu a semana passada.
Borgsjõ estava fora de si.
- Mas que porra de maneira de agir é esta? Fiz-te entrar para o SMP, e a primeira coisa que fazes é manobrar nas minhas costas. Quem és tu, afinal, uma espécie de puta dos media? - Erika Berger
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semicerrou os olhos e ficou gelada. Estava farta da palavra "puta". -Achas verdadeiramente que alguém vai ligar a isso? Pensas que podes fazer-me cair contando balelas? E por que razão me enviaste esta merda de maneira anónima, raios te partam?
- Não foi isso que se passou.
- Então conta lá como foi.
- Quem te enviou esse texto anonimamente foi o Peter Fredriksson. Despedi-o do SMP, ontem à noite.
- O que é que estás para aí a dizer?
- É uma longa história. Mas há mais de duas semanas que tenho esse texto comigo sem saber como abordar o problema.
- Foste tu que escreveste o texto.
- Não, não fui. O Henry Cortez fez a pesquisa e escreveu o artigo. Eu não sabia de nada.
- E queres que acredite nisso?
- Quando os meus colegas na Millennium se aperceberam de que o teu nome estava envolvido, o Mikael Blomkvist travou a publicação. Telefonou-me e deu-me uma cópia do artigo. Essa cópia foi-me roubada e chegou agora à tua secretária. A Millennium fazia questão de que eu falasse contigo antes de o publicar. Coisa que tencionam fazer no número de Agosto.
- Nunca conheci um jornalista tão desprovido de escrúpulos. Levas a palma a todos.
- Bom. Agora que leste a reportagem, talvez tenhas percorrido também o índice de referências. A história do Cortez é sólida. Como muito bem sabes.
- O que é que isso é suposto querer dizer?
- Se ainda fores presidente do CA do SMP quando a história for publicada, vais prejudicar o jornal. Dei voltas à cabeça à procura de uma solução, mas não encontrei nenhuma.
- Que queres dizer com isso?
- Tens de demitir-te.
- Estás a brincar? Não cometi absolutamente nenhuma ilegalidade.
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- Magnus, não estás a ver o verdadeiro alcance desta revelação. Não me obrigues a convocar o Conselho de Administração. Seria demasiado penoso.
- Não vais convocar coisa nenhuma. O teu tempo no SMP chegou ao fim.
- Lamento, mas só o Conselho de Administração pode despedir-me. Acho que devias convocar um conselho extraordinário. Proporia esta tarde.
Borgsjõ contornou a secretária e foi-se pôr diante de Erika, tão perto que ela lhe sentia o hálito.
- Berger... só te resta uma hipótese de sobreviver a isto. Vais encontrar-te com a merda dos teus amigos da Millennium e arranjar as coisas de maneira a que este artigo nunca seja publicado. Se conduzires as coisas como deve ser, talvez eu considere a hipótese de esquecer o que fizeste.
Erika Berger suspirou.
- Magnus, continuas a não perceber a gravidade disto. Eu não tenho a mais pequena influência sobre o que a Millennium publica. Esta história vai ser tornada pública diga eu o que disser. A única coisa que me interessa é saber que efeito terá no SMP. É por isso que tens de demitir-te.
Borgsjõ apoiou as mãos no espaldar da cadeira e inclinou-se para ela.
- Talvez os teus amigalhaços da Millennium pensem duas vezes se souberem que serás despedida no preciso instante em que publicarem estas merdas. - Endireitou-se. - Tenho de ir a uma reunião em Norrkõping. - Olhou para ela e acrescentou uma palavra, destacando-a - "SveaBygg".
- Ah.
- Quando voltar, amanhã, quero ver em cima da minha mesa um relatório a dizer que o assunto está resolvido. Compreendido?
Vestiu o casaco. Erika Berger olhava para ele com as pálpebras semicerradas.
- Conduz bem este assunto e talvez sobrevivas no SMP. E agora, sai imediatamente do meu gabinete.
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Erika pôs-se de pé e voltou à gaiola de vidro, onde ficou totalmente imóvel, sentada na cadeira, durante vinte minutos. Então, pegou no telefone e pediu a Lukas Holm que fosse falar com ela. O chefe das Actualidades tinha aprendido com os erros do passado e, um minuto mais tarde, batia-lhe à porta.
- Senta-te.
Lukas Holm arqueou uma sobrancelha e sentou-se.
- O que foi que fiz agora? - perguntou, ironicamente.
- Lukas, este é o meu último dia de trabalho no SMP. Vou apresentar a minha demissão e convocar o vice-presidente e os outros membros do CA para uma reunião à hora do almoço. - Holm olhou para ela, genuinamente espantado. - Tenciono recomendar-te para o lugar de director editorial interino.
-O quê?
- Estás de acordo?
Ele recostou-se na cadeira e contemplou Erika Berger.
- Se há coisa que nunca quis, foi ser director editorial.
- Eu sei. Mas tens pulso. E és capaz de passar por cima de qualquer cadáver para publicar um bom artigo. Só teria preferido que tivesses um pouco mais de bom senso nessa cabeça.
- Que aconteceu?
- Eu tenho um estilo diferente. Passámos a vida às turras por causa da orientação a dar aos temas e nunca conseguimos entender-nos.
- Não, é verdade que nunca conseguimos entender-nos. Mas é possível que o meu estilo esteja um pouco ultrapassado.
- Não sei se "ultrapassado" é a palavra indicada. És um craque nas Actualidades, mas portas-te como um idiota. É totalmente inútil. O que mais nos dividiu, por outro lado, foi o facto de sempre teres afirmado que, como chefe das Actualidades, não podias permitir que considerações de ordem pessoal afectassem a avaliação das notícias.
De súbito, Erika sorriu maldosamente. Abriu a sacola e tirou de lá o original do artigo sobre o Borgsjõ.
- Façamos um teste às tuas aptidões para avaliar as notícias. Tenho aqui um artigo que recebemos de Henry Cortez, um colaborador
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da revista Millennium. Decidi que vamos usar este texto como principal história do dia. - E atirou o dossier para os joelhos de Holm. - És o chefe das Actualidades. Será interessante ver se concordas com a minha avaliação.
Lukas Holm abriu o dossier e começou a ler. Logo na introdução, os olhos abriram-se-lhe. Endireitou-se na cadeira e fixou Erika Berger. Em seguida, voltou a baixar o olhar para o texto e leu-o até ao fim. Abriu a parte "Referências" e leu-a atentamente. Tudo isto em dez minutos. Finalmente, pousou o dossier, devagar.
- Vai ser um raio de um escândalo.
- Eu sei. É por isso que este é o meu último dia de trabalho aqui. A Millennium tinha a intenção de passar a história no número de Junho, mas o Mikael Blomkvist travou a coisa. Deu-me o texto para que eu pudesse falar com o Borgsjõ antes de eles o publicarem.
-E?
- O Borgsjõ mandou-me abafar a história.
- Compreendo. E agora tu queres publicá-la no SMP por despeito.
- Não, não é por despeito. É a única saída. Se o SMP publicar o artigo, temos uma hipótese de sair desta embrulhada com a honra intacta. O Borgsjõ tem de sair. Mas isso significa também que eu não posso ficar.
Holm manteve-se silencioso durante dois minutos.
- Merda, Berger... nunca pensei que tivesses tomates, e nunca pensei vir um dia a dizer isto, mas acho que vou ter pena de que te vás embora.
- Podes impedir a publicação, mas se a aprovarmos os dois, tu e eu... Tencionas ir em frente?
- Sim, claro que vamos publicar o artigo. De todos os modos, vai acabar por saber-se, mais cedo ou mais tarde.
- Exacto.
Lukas Holm pôs-se de pé e ficou hesitante diante da secretária de Erika Berger.
- Vai trabalhar - disse ela.
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Esperou cinco minutos depois de Holm ter saído para pegar no telefone e ligar para Malin Eriksson, na Millennium.
- Viva, Malin. O Henry Cortez está por aí?
- Está, no gabinete dele.
- Importas-te de o chamar ao teu telefone e ligar o sistema de mãos livres? Precisamos de conferenciar.
Henry Cortez estava em linha quinze segundos mais tarde.
- O que é que há?
- Henry, hoje tomei uma atitude muito pouco ética. -Sim?
- Dei o teu artigo sobre a Vitavara ao Lukas Holm, chefe das Actualidades aqui no SMP.
- Sim...
- Dei-lhe ordens para publicá-lo amanhã, no SMP. Com a tua assinatura. E, evidentemente, serás pago. Fixa o preço.
- Erika... que trampa é esta?
Erika resumiu o que se passara nas últimas semanas e contou como Peter Fredriksson estivera perto de destruí-la.
- Merda! - disse Cortez.
- Eu sei que o artigo é teu, Henry. Simplesmente, não tenho por onde escolher. Podes estar connosco nisto?
Henry Cortez ficou calado durante vários segundos.
- Obrigado por teres telefonado, Erika. Podes publicar o artigo com a minha assinatura. Se a Malin estiver de acordo, quero dizer.
- Por mim tudo bem - disse Malin.
- Óptimo - continuou Erika. - Importam-se de informar o Mikael? Suponho que ainda não chegou.
- Eu falo com o Mikael - disse Malin. - Mas, Erika, isto não significa que a partir de hoje estás desempregada?
Erika soltou uma gargalhada.
- Decidi tirar umas férias até ao fim do ano. Acredita, estas poucas semanas no SMP foram largamente suficientes.
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- Talvez não seja boa ideia começares a fazer projectos de férias.
- Porquê?
- Podes dar um salto aqui à Millennium, da parte da tarde?
- Para quê?
- Preciso de ajuda. Se quiseres ser directora editorial da Millennium, podes começar amanhã de manhã.
- Malin, tu és a directora editorial da Millennium. A questão nem sequer se põe.
- Está bem, está bem. Então podes começar como assistente editorial - disse Malin, a rir.
- Estás a falar a sério?
- Merda, Erika, tenho saudades tuas ao ponto de estar a apagar-me em lume brando. Aceitei o lugar na Millennium, entre outras coisas, para poder trabalhar contigo. E tu passas-te para outro jornal.
Erika Berger ficou sem dizer nada durante um minuto. Não tinha tido tempo para pensar sequer na possibilidade de voltar à Millennium.
- E seria bem-vinda? - perguntou, lentamente.
- O que é que achas? Imagina que começaríamos por uma megafesta, que eu organizaria. E voltarias no momento exacto em que vamos publicar tu sabes o quê.
Erika olhou para o relógio em cima da secretária. Marcava 9h55. Numa hora, todo o seu mundo dera uma volta. De repente, sentiu até que ponto desejava voltar a subir as escadas da Millennium.
- Tenho duas ou três coisas a fazer aqui no SMP nas próximas horas. Dá jeito se passar por aí por volta das quatro?
Susanne Linder olhava Dragan Armanskij bem de frente enquanto lhe contava exactamente o que se passara na noite anterior. A única coisa que omitiu foi a sua súbita convicção de que a intrusão no computador de Peter Fredriksson fora obra de Lisbeth Salander. E fê-lo por duas razões. Por um lado, achava tudo aquilo demasiado irreal. E, por outro, sabia que Armanskij estava intimamente ligado ao caso Salander, como Mikael Blomkvist.
Armanskij escutou-a com atenção. Terminado o relato, Susanne aguardou em silêncio a reacção do chefe.
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- O Greger Beckman telefonou há cerca de uma hora - disse ele. -Ah.
- Ele e a mulher vão passar por cá para a semana, para assinar os contratos. Querem agradecer à Milton Security a sua intervenção, e muito particularmente a tua.
- Compreendo. É bom quando os clientes ficam satisfeitos.
- Quer também encomendar um cofre para a moradia. Vamos organizar um pacote de alarmes e instalar durante a semana.
- Óptimo.
- Faz questão de que facturemos a tua intervenção deste fim-de-semana.
- Hum.
- Dito por outras palavras, vai sair-lhes caro.
- Ah.
Armanskij suspirou.
- Susanne, tens consciência de que o Fredriksson pode ir à polícia e apresentar queixa de ti por uma série de confusões? - Ela assentiu em silêncio. - É certo que também se tramaria, e de que maneira, mas pode achar que vale a pena.
- Não acredito que ele tenha tomates para ir à polícia.
- Seja, mas tu agiste ao arrepio de todas as instruções que te dei.
- Eu sei.
- Nesse caso, e na tua opinião, como devo eu reagir?
- Só o chefe pode decidir.
- Mas como achas que devia reagir?
- O que eu acho não tem importância. Pode sempre despedir-me.
- Dificilmente. Não posso dar-me ao luxo de perder uma colaboradora do teu calibre.
- Obrigada.
- Se voltas a fazer-me uma coisa destas, vou ficar muito, muito zangado.
Susanne Linder assentiu.
- O que foi que fizeste ao disco rígido?
- Destruí-o. Meti-o num torno, esta manhã, e fi-lo em pedaços.
- Okay. Agora traça um risco sobre este caso.
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Erika Berger passou a manhã a telefonar aos membros do CA do SMP. Encontrou o vice-presidente na sua casa de campo, em Vax-holm, e conseguiu convencê-lo a meter-se no carro e a dirigir-se ao jornal o mais depressa possível. Depois do almoço, reuniu-se um CA fortemente reduzido. Erika dedicou uma hora a explicar a origem do dossier Cortez e as consequências que tinha tido.
Como seria de esperar, quando ela acabou surgiram as propostas para uma solução alternativa que talvez fosse possível encontrar. Erika anunciou que tencionava publicar o artigo na edição do dia seguinte. Anunciou também que aquele era o seu último dia de trabalho e que a sua decisão era irrevogável.
No fim, conseguiu que o CA aprovasse duas resoluções: primeira, seria pedido a Magnus Borgsjõ que se demitisse imediatamente do seu posto; e segunda, Lukas Holm seria nomeado director editorial interino. Em seguida, pediu licença e deixou os membros do conselho de administração a discutir entre si.
Às duas da tarde, desceu ao serviço de pessoal para dar instruções sobre um contrato, após o que voltou à redacção e chamou o chefe de secção da Cultura, Sebastian Strandlund, e a jornalista Eva Carlsson.
- Julgo saber que, na Cultura, consideram a Eva Carlsson uma jornalista competente e dotada.
- É verdade - respondeu Strandlund.
- E nos pedidos de orçamento dos últimos dois anos pediram que a secção fosse reforçada com, pelo menos, mais duas pessoas.
- Também é verdade.
- Eva, tendo em conta a correspondência de que foste vítima, talvez comecem a surgir rumores desagradáveis se eu te garantir um lugar no quadro. Continuas interessada?
- Evidentemente.
- Nesse caso, a minha última medida como directora editorial do SMP será assinar este contrato.
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- Última?
- É uma longa história. Saio hoje. Vou pedir-lhes que não digam a ninguém durante a próxima hora.
- O que foi...
- Vai haver uma conferência daqui a pouco.
Erika Berger assinou o contrato e empurrou-o na direcção de Eva Carlsson, sentada do outro lado da mesa.
- Boa sorte - disse, sorrindo.
- O desconhecido de uma certa idade que no sábado participou na reunião com o Ekstrõm chama-se Georg Nystrõm, e é comissário - disse Rosa Figuerola, pousando um monte de fotografias em cima da secretária à frente de Torsten Edklinth.
- Comissário - murmurou Edklinth.
- O Stefan identificou-o ontem à tarde. Chegou de carro ao apartamento na Artillerigatan.
- O que é que sabemos a respeito dele?
- Vem da polícia comum e trabalha na Sapo desde 1983. Em 1996, foi nomeado investigador especial. Faz controlos internos e verificações dos casos já arquivados pela Sapo.
- Bom.
- Desde sábado, ao todo seis pessoas com interesse para nós estiveram no apartamento. O Fredrik Clinton, que foi esta manhã fazer hemodiálise, de ambulância, o Jonas Sandberg e o Georg Nystrõm.
- Quem são os outros três?
- Um tal Otto Hallberg. Trabalhou para a Sapo nos anos oitenta, mas pertence de facto ao estado-maior da Defesa. Está na Marinha e nas informações militares.
- Ah. Porque será que não estou surpreendido? Rosa Figuerola apontou para outra fotografia.
- Ainda não conseguimos identificar este. Almoçou com o Hallberg. Vamos ver se conseguimos identificá-lo quando ele voltar a casa, esta tarde.
- Okay.
- Mas este aqui é o mais interessante.
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- Estou a reconhecê-lo.
- Chama-se Wadensjõõ.
- É isso. Trabalhava para a brigada antiterrorista, aqui há uns quinze anos. General de secretária. Era um dos candidatos a chefe supremo, aqui na Firma. Não sei o que foi feito dele.
- Demitiu-se em 1991. Adivinha com quem almoçou há uma hora.
Rosa Figuerola apontou para a última fotografia.
- Com o secretário-geral Albert Shenke e com o director do orçamento Gustav Atterbom. Quero estes indivíduos vigiados noite e dia. Quero saber exactamente com quem falam.
- Não é possível. Tenho apenas quatro homens à minha disposição. E alguém tem de trabalhar na documentação.
Edklinth assentiu e beliscou pensativamente o lábio inferior. Um instante depois voltou a erguer os olhos para Rosa Figuerola.
- Precisamos de mais pessoal - disse. - Achas que consegues contactar discretamente o inspector Bublanski e perguntar-lhe se estaria disposto a jantar comigo hoje, depois do trabalho? Digamos, por volta das sete.
Pegou no telefone e marcou um número de memória.
- Armanskij? Fala Edklinth. Gostaria de retribuir aquele simpático jantar que me ofereceste aqui há dias... não, não, insisto. Dá-te jeito às sete?
Lisbeth Salander passara a noite no estabelecimento prisional de Kronoberg numa cela que media aproximadamente dois metros por quatro. O mobiliário era dos mais modestos. Adormecera cinco minutos depois de ter sido encarcerada e acordara cedo na segunda-feira de manhã para fazer os exercícios de estiramento prescritos pelo terapeuta de Sahlgrenska. Em seguida, tivera direito ao pequeno-almoço, e depois disso ficara sentada na cama, em silêncio, a olhar em frente.
As nove e meia, levaram-na para uma sala de interrogatório, no extremo oposto do corredor. O guarda era um homem de idade, baixo e careca, com uma cara redonda e óculos de aros de tartaruga. Tratou-a correctamente e sem aspereza.
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Annika Giannini cumprimentou-a amavelmente. Lisbeth ignorou Hans Faste. Em seguida, encontrou pela primeira vez o procurador Richard Ekstrõm e passou a meia hora seguinte sentada numa cadeira a olhar teimosamente para um ponto na parede um pouco acima da cabeça dele. Não disse uma palavra e não mexeu um músculo. Às dez horas, Ekstrõm interrompeu o interrogatório falhado. Estava irritado por não ter conseguido obter a mais pequena resposta. Pela primeira vez, foi assaltado pela dúvida ao observar Lisbeth Salander. Como podia aquela rapariga mínima, que mais parecia uma boneca, ter deixado Magge Lundin e Sonny Nieminen tão maltratados em Stallarholm? Estaria o tribunal disposto a aceitar aquela história, mesmo que houvesse provas convincentes?
Ao meio-dia, Lisbeth comeu um almoço ligeiro e aproveitou a hora seguinte para resolver equações de cabeça. Concentrou-se no capítulo "Astronomia Esférica" que tinha lido há dois anos.
Às duas e meia, voltaram a levá-la para a sala de interrogatórios. Dessa vez, a guarda era uma mulher bastante jovem. A sala estava vazia. Lisbeth sentou-se numa cadeira e continuou a reflectir numa equação particularmente difícil.
Passados dez minutos, a porta abriu-se.
- Boa tarde, Lisbeth - cumprimentou amigavelmente Peter Teleborian, com um sorriso.
Lisbeth ficou gelada. Os termos da equação que tinha construído no ar à sua frente caíram por terra. Ouviu os algarismos e os sinais ressaltarem e rolarem como se fossem objectos concretos.
Peter Teleborian ficou imóvel por um minuto, a observá-la, antes de se sentar em frente dela. Lisbeth continuou a fixar a parede. Um instante depois, desviou os olhos e enfrentou os dele. - Estou desolado por te encontrares nesta situação - disse Teleborian. - Vou tentar ajudar-te o mais que puder. Espero que consigamos estabelecer uma confiança mútua.
Lisbeth examinava cada centímetro do homem que estava sentado à sua frente. Os cabelos desgrenhados. A barba. O pequeno interstício entre os dentes da frente. Os lábios finos. O casaco castanho. A camisa de colarinho aberto. Ouvia a voz melosa e perfidamente amável.
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- Espero também poder ajudar-te melhor do que da última vez que nos encontrámos.
Teleborian colocou um pequeno bloco de notas e uma esferográfica em cima da mesa à sua frente. Lisbeth baixou os olhos para a esferográfica. Um comprido cilindro prateado e pontiagudo.
Análise das consequências.
Reprimiu o impulso de estender a mão e apoderar-se da esferográfica.
Olhou para o dedo mindinho da mão esquerda do psiquiatra. Viu um fino risco branco no lugar onde, 15 anos antes, cravara os dentes e mordera com tanta força que quase lhe decepara o dedo. Tinham sido precisos três auxiliares para a agarrar e obrigá-la a abrir a boca.
Dessa vez, eu era uma miúda aterrorizada que ainda mal entrara na adolescência. Agora sou adulta. Posso matar-te quando quiser.
Voltou a fixar os olhos no ponto da parede atrás de Teleborian, apanhou do chão os algarismos e os símbolos matemáticos que tinham caído e recomeçou calmamente a reconstruir a equação.
O Dr. Peter Teleborian contemplou Lisbeth Salander com uma expressão neutra. Não se tornara um psiquiatra internacionalmente respeitado por lhe faltarem conhecimentos sobre o ser humano. Tinha uma particular capacidade para adivinhar os sentimentos e os estados de alma. Sentiu que uma sombra fria atravessava a sala, mas interpretou isso como um sinal de medo e de vergonha da paciente sob uma aparência apática. E como um sinal positivo de que ela reagia, apesar de tudo, à sua presença. Também estava satisfeito por Lisbeth não ter alterado o seu comportamento. Vai afundar-se sozinha no tribunal.
A última coisa que Erika Berger fez no SMP foi sentar-se na sua gaiola de vidro e redigir um comunicado a todos os colaboradores. Estava bastante irritada ao começar e, contra a sua vontade, isso reflectia-se nos cerca de três mil caracteres em que explicava por que se demitia do SMP e dava a sua opinião sobre certas pessoas. No fim, apagou tudo e recomeçou num tom mais neutro.
Não fez qualquer referência a Peter Fredriksson. Fazê-lo implicaria o risco de chamar as atenções para ele e os verdadeiros motivos
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desapareceriam na enxurrada de grandes cabeçalhos a falar de assédio sexual.
Deu duas razões. A primeira era o facto de ter encontrado uma resistência cerrada da parte da direcção à sua proposta de que os chefes e os accionistas reduzissem os seus próprios salários e dividendos. Por outro lado, teria sido obrigada a iniciar o seu trabalho no jornal fazendo cortes no pessoal. O que considerava não só uma violação das perspectivas que lhe tinham anunciado quando aceitara o cargo, mas também uma medida que tornava inviável qualquer tentativa de mudança a longo prazo e de recuperação do jornal.
A segunda razão era a revelação sobre o Borgsjõ. Explicava que lhe fora ordenado que abafasse a história e que isso não se enquadrava na sua missão. Implicava, em todo o caso, que não tinha alternativa senão abandonar a redacção. Terminava afirmando que o problema do SMP não residia no pessoal, e sim na direcção.
Reviu o que escrevera, emendou um erro ortográfico e enviou o documento, por e-mail, a todos os colaboradores do grupo. Fez cópias que enviou à Pressens tidning e ao órgão sindical, Journalisten. Finalmente, guardou o portátil na sacola e foi procurar Lukas Holm.
- Bem, ciao - disse.
- Ciao, Berger. Foi uma seca do caraças trabalhar contigo. Trocaram um sorriso.
- Tenho um último pedido - disse ela.
- O que é?
- O Johannes Frisk está a trabalhar numa história que eu lhe encomendei.
- E que ninguém sabe o que é.
- Apoia-o. Já vai bem avançado, e eu vou manter o contacto com ele. Deixa-o acabar o trabalho. Garanto-te que vais ficar a ganhar.
Ele pareceu hesitar. Depois assentiu.
Não apertaram as mãos. Erika deixou o passe da redacção em cima da secretária de Holm e foi à garagem buscar o BMW. Pouco depois das quatro da tarde, estacionava perto da redacção da Millennium.
4.a PARTE
REINICIAR O SISTEMA
1 de Julho a 7 de Outubro
APESAR DO RICO FLORILÉGIO DE LENDAS SOBRE AS AMAZONAS DA GRÉCIA
ANTIGA, DA AMÉRICA DO SUL E DE OUTROS LUGARES, HÁ UM ÚNICO EXEMPLO
HISTÓRICO PROVADO DE MULHERES GUERREIRAS: O EXÉRCITO DE MULHERES
DOS FONS, UMA ETNIA DO DAOMÉ, O ACTUAL BENIN, NA ÁFRICA OCIDENTAL.
ESTAS MULHERES GUERREIRAS NÃO SÃO REFERIDAS UMA ÚNICA VEZ NA HISTÓRIA
MILITAR OFICIAL, NÃO FOI RODADO NENHUM FILME QUE FIZESSE DELAS HEROÍNAS E HOJE SÓ SUBSISTEM EM NOTAS HISTÓRICAS DE PÉ DE PÁGINA. EXISTE UMA ÚNICA OBRA CIENTÍFICA A RESPEITO DESTAS MULHERES, "AMAZONS OF BLACK SPARTA", DO HISTORIADOR STANLEY B. ALPERN [HURST & CO LTD, LONDRES, 1998).
ERA, NO ENTANTO, UM EXÉRCITO CAPAZ DE FAZER FRENTE A QUALQUER
FORÇA ARMADA DE ELITE CONSTITUÍDA POR HOMENS, DAS VÁRIAS QUE,
NA ÉPOCA, AMEAÇAVAM O PAÍS.
NÃO SE SABE QUANDO FOI CRIADO O EXÉRCITO DE MULHERES DOS FONS, MAS
CERTAS FONTES SITUAM O ACONTECIMENTO NO SÉCULO XVII. ORIGINALMENTE
UMA SIMPLES GUARDA REAL TERIA CRESCIDO ATÉ ATINGIR UM EFECTIVO DE SEIS MIL GUERREIRAS QUE GOZAVAM DE UM "STATUS" QUASE DIVINO. A SUA FUNÇÃO NÃO ERA, DE MODO ALGUM, DECORATIVA. DURANTE DOIS SÉCULOS FORAM PONTA DE LANÇA DOS FONS NA LUTA CONTRA OS COLONOS EUROPEUS INVASORES.
ERAM TEMIDAS PELO EXÉRCITO FRANCÊS, QUE DERROTARAM EM VÁRIAS BATALHAS. SÓ FORAM BATIDAS EM 1892, QUANDO A FRANÇA ENVIOU POR BARCO REFORÇOS MAIS BEM EQUIPADOS, COM ARTILHARIA, SOLDADOS DA LEGIÃO
ESTRANGEIRA, UM REGIMENTO DE FUZILEIROS E CAVALARIA.
IGNORAMOS QUANTAS GUERREIRAS TOMBARAM. AS SOBREVIVENTES
CONTINUARAM A CONDUZIR UMA GUERRA DE GUERRILHA E ALGUMAS VETERANAS
DESSE EXÉRCITO ESTAVAM AINDA VIVAS, E FORAM FOTOGRAFADAS
E ENTREVISTADAS, NOS ANOS QUARENTA.
CAPÍTULO 23
SEXTA-FEIRA, 1 DE JULHO - DOMINGO, 10 DE JULHO
Duas semanas antes do início do julgamento de Lisbeth Salander, Christer Malm terminou o layout do livro de 364 páginas muito sobriamente intitulado A Secção. A capa tinha as cores da bandeira sueca, texto a amarelo sobre fundo azul. Em baixo, Christer alinhara sete retratos, do tamanho de selos, de primeiros-ministros suecos. Por cima deles, pairava uma foto de Zalachenko (feita a partir da fotografia do passaporte, ampliada em alto contraste de tal modo que só as partes mais escuras apareciam, como uma espécie de sombra, a ocupar a capa toda). Não era uma concepção muito sofisticada, mas era eficaz. Os autores referidos eram Mikael Blomkvist, Henry Cortez e Malin Eriksson.
Eram cinco e meia da madrugada e Christer Malm passara a noite inteira a trabalhar. Sentia-se vagamente agoniado e com uma necessidade desesperada de ir para casa dormir. Malin fizera-lhe companhia, propondo aqui e ali algumas correcções de última hora que ele aprovara e introduzira antes de fazer uma impressão a laser. Depois disso, Malin adormecera no sofá da recepção.
Christer Malm reuniu as páginas de texto, as fotos e as matrizes numa pasta. Iniciou o programa Toast e gravou dois CD. Guardou um no cofre da redacção. O segundo foi levado por um Mikael Blomkvist a cair de sono que chegou um pouco antes das sete.
- Vai para a cama - disse Mikael.
- Podes apostar - respondeu Christer.
Deixaram Malin Eriksson a dormir onde estava e ligaram o alarme. Henry Cortez chegaria às oito para fazer o seu turno de guarda. Trocaram um aperto de mão e separaram-se à porta do prédio.
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Mikael Blomkvist dirigiu-se a pé à Lundagatan, onde voltou a usar o Honda de Lisbeth Salander clandestinamente emprestado. Foi entregar pessoalmente o CD a Jan Kõbin, patrão da Hallvigsv Reklam, uma gráfica instalada num modesto edifício de tijolos ao lado da via férrea, em Morgongâva, perto de Sala. Aquela entrega era uma missão que de modo algum quereria confiar aos correios.
Conduziu devagar e, quando chegou, esperou pacientemente que Kõbin verificasse que os ficheiros estavam em ordem. Certificou-se de que o livro ia estar realmente pronto no dia em que o processo começasse. A impressão do miolo era menos problemática do que a da capa, que poderia demorar algum tempo. Mas Kobin prometeu que pelo menos quinhentos exemplares, de uma primeira tiragem de dez mil, em formato de bolso, seriam entregues na data combinada.
Mikael certificou-se também de que todos os empregados da gráfica tinham compreendido bem a absoluta necessidade do maior sigilo. O que nem sequer era novidade. Dois anos antes, a Hallvigsv Reklam imprimira o livro de Mikael sobre o financeiro Hans-Erik Wennerstrõm em condições semelhantes. Todos sabiam que os livros lançados pela pequena editora Millennium eram particularmente promissores.
Em seguida, Mikael regressou a Estocolmo. Estacionou na Bell-mansgatan e deu um salto ao apartamento para ir buscar roupas, uma lâmina de barbear e uma escova de dentes, que enfiou num saco. Continuou até ao pontão de Stavsnàs, onde deixou o Honda e apanhou o ferry para Sandhamn.
Era a primeira vez, desde o Natal, que lá ia. Abriu todas as janelas, para arejar a cabana, e bebeu uma garrafa de água mineral. Como sempre quando terminava um trabalho, quando o texto entrava na máquina e já nada podia ser alterado, sentia-se vazio.
Passou uma hora a varrer, a limpar o pó, a arear o chuveiro, a ligar o frigorífico, a comprovar que tinha água e a mudar a roupa de cama no mezanino. Foi à mercearia comprar tudo o que lhe faria falta para o fim-de-semana. Ligou a cafeteira eléctrica e foi sentar-se lá fora no pontão, a pensar em coisa nenhuma.
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Pouco antes das cinco, desceu até ao cais do vapor para ir receber Rosa Figuerola.
- Pensei que não ias conseguir safar-te - disse, beijando-a na face.
- Também eu. Mas limitei-me a explicar a situação ao Edklinth. Trabalhei todos os minutos que passei acordada nestas últimas semanas e começo a ficar ineficaz. Preciso de dois dias de folga para recarregar as baterias.
- Em Sandhamn?
- Não lhe disse aonde ia - respondeu Rosa, com um sorriso. Rosa passou alguns instantes a vasculhar todos os recantos dos
25 metros quadrados da cabana de Mikael. Examinou com especial cuidado a kitchenette, a casa de banho e o mezanino antes de assentir com a cabeça, satisfeita. Fez uma rápida toilette e enfiou um vestido leve de Verão enquanto Mikael preparava costeletas de carneiro com molho de vinho e punha a mesa no pontão. Comeram em silêncio, observando os muitos veleiros que entravam ou saíam do porto de recreio. Partilharam uma garrafa de vinho.
- A tua cabana é magnífica. É para aqui que trazes todas as tuas namoradas? - perguntou subitamente Rosa Figuerola.
- Todas, não. Só as mais importantes.
- A Erika Berger já cá esteve?
- Várias vezes.
- E a Lisbeth Salander?
- Passou cá algumas semanas, enquanto eu escrevia o livro sobre o Wennerstrõm. E passámos cá as festas de Natal, há dois anos.
- Conclusão, a Berger e a Salander são importantes na tua vida?
- A Erika é a minha melhor amiga. Há mais de vinte e cinco anos que somos amigos. A Lisbeth é outra história. É muito especial. É a pessoa mais associal que alguma vez encontrei. Mas admito que fiquei impressionado quando comecei a conhecê-la melhor. Gosto muito dela. É uma amiga.
- Tens pena dela?
- Não. É a principal culpada da maior parte dos sarilhos em que se encontra. Mas tenho uma grande simpatia por ela, e compreensão.
- Mas não estás apaixonado por ela, nem pela Berger?
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Ele encolheu os ombros. Rosa seguiu com os olhos o Amigo 23 que regressava tarde ao porto, com as luzes acesas e o motor a ronronar.
- Se amar significa gostar imensamente de alguém, então estou apaixonado por várias pessoas - disse ele.
- E por mim, agora?
Mikael fez que sim com a cabeça. Rosa franziu o sobrolho e estudou-o.
- Isso chateia-te? - perguntou ele.
- Que tenha havido mulheres na tua vida? Não. Mas incomoda-me não saber muito bem o que está a acontecer entre nós. E não me julgo capaz de ter uma relação com um tipo que vai para a cama com uma e com outra, conforme lhe apetece.
- Não tenciono pedir desculpa pela minha vida.
- E suponho que tenho uma espécie de fraco por ti por seres assim. É bom fazer amor contigo, porque acontece sem complicações, e eu sinto-me segura contigo. Mas tudo isto começou porque eu cedi a um impulso. Não me acontece muitas vezes, e não foi planeado. E agora estamos na fase em que eu faço parte do grupo das namoradas que convidas para aqui.
Mikael ficou calado por um instante.
- Não eras obrigada a vir.
- Era, sim. Enfim, merda, Mikael...
- Eu sei.
- Estou infeliz. Não queria apaixonar-me por ti. Vai doer como tudo, quando acabar.
- Herdei esta cabana quando o meu pai morreu e a minha mãe se mudou para o Norrland. Fizemos partilhas, eu e a minha irmã: feia ficou com o apartamento, eu com a cabana. Vai fazer vinte e cinco anos que a tenho.
- Ah.
- Tirando alguns conhecimentos ocasionais, no princípio dos anos oitenta, houve exactamente cinco mulheres que estiveram aqui antes de ti. A Erika, a Lisbeth e a minha ex-, a mulher com quem vivia no final dos anos oitenta. Uma rapariga com quem tive um namoro muito sério, no fim dos anos noventa, e uma mulher mais velha
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do que eu, que conheci há dois anos e que encontro de tempos a tempos. As circunstâncias são um pouco especiais...
- Ah.
- Tenho esta cabana para fugir da cidade e estar em paz. Venho quase sempre sozinho. Leio, escrevo e descontraio-me, deixo-me ficar no pontão a ver os barcos. Não é o sexódromo secreto de um celibatário.
Pôs-se de pé e foi buscar a garrafa de vinho que deixara à sombra, ao lado da porta.
- Não vou fazer promessas - continuou. - O meu casamento estourou porque eu e a Erika não fomos capazes de acabar. Onde estiveste? Que andaste a fazer? De onde veio esta T-shirt? - Encheu os copos. - Mas tu és a pessoa mais interessante que conheço desde há muitos anos. É como se a nossa relação funcionasse em pleno a partir do primeiro dia. Acho que sucumbi no instante em que foste buscar-me à escada do meu prédio. Nas poucas vezes em que dormi sozinho em minha casa, desde então, acordei a meio da noite a desejar-te. Não sei se é uma relação estável que quero, mas tenho um medo enorme de te perder. - Olhou para ela. - Então, o que é que achas que devemos fazer?
- Não há muito que pensar - respondeu Rosa. - Também eu me sinto muito atraída por ti.
- Começa a tornar-se sério, tudo isto - disse Mikael.
Ela assentiu, repentinamente triste. Ficaram em silêncio durante muito tempo. Quando a noite começou a cair, levantaram a mesa, voltaram à cabana e fecharam a porta.
Na sexta-feira da semana anterior ao início do julgamento, Mikael Blomkvist passou pelo gabinete de imprensa de Slussen e olhou Para os cabeçalhos. O CEO e presidente do CA do Svenska Morgon-Posten, Magnus Borgsjõ, capitulara e anunciara a sua demissão. Comprou Os jornais e foi a pé até ao Java, na Hornsgatan, para um pequeno-almoço tardio. Borgsjõ invocava razões familiares para tão repentina decisão. Não queria comentar os rumores que a atribuíam ao facto de
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Erika Berger ter sido obrigada a demitir-se depois de ele lhe ter ordenado que abafasse a história do seu envolvimento na Vitavara, SA. Mas uma caixa anunciava que, com o objectivo de esclarecer a posição da indústria, o presidente da Svensk Náringsliv tinha decidido constituir uma comissão de ética para examinar as relações das empresas suecas com as empresas do Extremo Oriente que recorriam ao trabalho infantil.
De repente, Mikael Blomkvist desatou a rir.
Dobrou o jornal da manhã, pegou no Ericsson TIO e ligou para a Rapariga da TV4.
- Olá, querida. Suponho que continuas a não querer sair comigo uma noite destas.
- Olá, Mikael - respondeu a Rapariga da TV4, rindo. - Lamento, mas tu não fazes o meu género. Mas admito que mesmo assim és divertido.
- Poderias ao menos considerar a hipótese de jantar comigo esta noite, para falarmos de trabalho?
- O que é que andas a preparar desta vez?
- A Erika Berger fez um negócio contigo aqui há dois anos, a propósito do caso Wennerstrõm. A coisa funcionou bem. Gostaria de fazer um negócio semelhante.
- Conta.
- Não sem antes chegarmos a acordo quanto às condições. Exactamente como no caso Wennerstrõm, vamos publicar um livro em simultâneo com um número temático. E é uma história que vai dar que falar. Proponho-te o material todo em exclusividade, e em troca tu não deixas passar seja o que for antes de publicarmos. A publicação é, neste caso, particularmente complicada, porque tem de acontecer num dia específico.
- Vai dar que falar como, a tua história?
- Mais do que a do Wennerstrõm. Estás interessada?
- Brincas? Onde é que nos encontramos?
- Conheces o Samirs Gryta? A Erika Berger vai lá ter connosco.
- Que história é essa com a Berger? Voltou à Millennium depois de ter sido despedida do SMP?
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- Não foi despedida. Demitiu-se depois de divergências com o Borgsjõ.
- Tenho a impressão de que esse tipo é um bom sacana.
- Podes apostar - disse Mikael.
Fredrik Clinton, de auscultadores nas orelhas, ouvia Verdi. A música era a única coisa que era capaz de levá-lo para longe dos aparelhos de hemodiálise e para longe de uma dor cada vez mais intensa na região lombar. Não cantarolava. Fechava os olhos e seguia as melodias com uma mão que flutuava no ar e parecia ter uma vida própria, independente do corpo em plena degradação.
É assim, a vida. Nasce-se. Vive-se. Envelhece-se. Morre-se. Cumprira o seu tempo. Tudo o que restava era a desagregação. Sentia-se estranhamente satisfeito com a vida. "Tocava" para o seu amigo Evert Gullberg. Era sábado, 9 de Julho. Faltava menos de uma semana para o julgamento começar e a Secção poder arquivar de vez aquela infeliz história. Tinham-no avisado, naquela manhã. Gullberg revelara-se particularmente coriáceo. Quando alguém enfia na cabeça uma bala blindada de 9 milímetros, espera morrer. No entanto, tinham passado mais de três meses antes que o corpo de Gullberg desistisse da partida, o que se devera talvez mais ao acaso do que à teimosia com que o Dr. Anders Jonasson recusara dar-se por vencido. No fim, fora o cancro, e não a bala, que acabara por resolver a questão.
Fora, no entanto, uma morte dolorosa, o que entristecia Clinton. Gullberg ficara incapaz de comunicar com os que o rodeavam, mas, por momentos, recuperara uma espécie de consciência. Conseguia sentir presenças à sua volta. O pessoal do hospital notara que sorria quando alguém lhe acariciava a face e resmungava quando parecia sentir qualquer coisa desagradável. Em certos momentos, tentara comunicar com os que cuidavam dele, emitindo sons que ninguém conseguia compreender.
Não tinha família, e nenhum dos seus amigos fora vê-lo ao hospital. A sua última percepção da vida fora uma enfermeira do turno
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da noite, nascida na Eritreia, chamada Sara Kitama, que velava junto à sua cabeceira e lhe pegou na mão quando ele partiu.
Fredrik Clinton pressentia que não tardaria a seguir o seu irmão de armas. Não tinha a mais pequena ilusão quanto a isso. O transplante renal de que tão desesperadamente necessitava parecia mais hipotético a cada dia que passava, e a desagregação do seu corpo continuava. O fígado e os intestinos pareciam mais degradados a cada exame.
Esperava viver até ao Natal.
Mas estava satisfeito. Sentia uma satisfação quase sobrenatural e excitante por ter voltado ao serviço naqueles últimos meses, e de uma forma tão inesperada.
Fora um favor com que não contava.
As últimas notas de Verdi extinguiram-se no preciso instante em que Birger Wadensjõõ abriu a porta da pequena sala de repouso de Clinton no QG da Secção, na Artillerigatan. Clinton abriu os olhos.
Acabara por aperceber-se de que Wadensjbõ era um fardo, totalmente inadequado como chefe do mais importante ramo da Defesa sueca. Não conseguia compreender como ele próprio e Hans von Rottinger tinham podido fazer uma avaliação tão completamente errada, ao ponto de considerarem Wadensjõõ o sucessor mais evidente.
Wadensjõõ era um guerreiro que precisava de ter o vento pelas costas. Em tempos de crise, era fraco e incapaz de tomar decisões. Um comandante para tempos de calmaria. Um peso morto e temeroso, sem fibra, que, se o tivessem deixado decidir, teria ficado paralisado deixando a Secção afundar-se. Tão simples como isso.
Uns tinham o dom. Outros traíam sempre no momento da verdade.
- Querias falar comigo? - perguntou Wadensjõõ.
- Senta-te - disse Clinton. Wadensjõõ sentou-se.
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- Estou numa idade em que já não posso permitir-me perder tempo com rodeios. Por isso vou direito ao assunto. Quando tudo isto acabar, quero que abandones a direcção da Secção.
- Hã?
Clinton suavizou o tom.
- És um homem de bem, Wadensjõõ, mas, infelizmente, não serves para carregar esta responsabilidade depois do Gullberg. Nunca te devia ter sido confiada. Eu e o Rottinger cometemos um erro grave quando não encarámos a sucessão com mais seriedade quando eu adoeci.
- Nunca gostaste de mim.
- Estás enganado. Eras um excelente administrador quando eu e o Rottinger dirigíamos a Secção. Teríamos ficado desamparados sem ti, e nunca duvidei do teu patriotismo. É na tua capacidade de tomar decisões que não tenho confiança.
De repente, Wadensjõõ esboçou um sorriso amargo.
- Assim sendo, não sei se quero continuar na Secção.
- Desde que o Gullberg e o Rottinger nos deixaram, tenho de ser eu a tomar sozinho as decisões. Contrariaste sistematicamente todas as decisões que tomei nestes últimos meses.
- E eu reafirmo que todas as tuas decisões foram insensatas. Tudo isto vai acabar numa catástrofe.
- É possível. Mas a tua falta de firmeza ter-nos-ia levado ao naufrágio. Agora, temos pelo menos uma hipótese, e parece estar a resultar. A Millennium não tem a mais pequena margem de manobra. Talvez suspeitem da nossa existência, mas não têm provas nem a mínima possibilidade de as encontrar, nem de nos encontrar a nós. Controlamos firmemente tudo o que eles fazem.
Wadensjõõ olhou pela janela. Contemplou os telhados de alguns prédios da vizinhança.
- A única coisa que falta, é a filha do Zalachenko. Se alguém se põe a vasculhar na história dela e a ouvir o que tem para dizer, tudo pode acontecer. Dito isto, o julgamento começa dentro de dias, e depois estará tudo acabado. Desta vez, vai ser preciso enterrá-la tão fundo que nunca mais volte para nos assombrar.
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Wadensjõõ abanou a cabeça.
- Não compreendo a tua atitude - disse Clinton.
- Pois não. E até percebo que não a compreendas. Acabas de fazer setenta e oito anos. Estás a morrer. As tuas decisões não são racionais, e no entanto pareces ter conseguido enfeitiçar o Georg Nystrõm e o Jonas Sandberg, que te obedecem como se fosses Deus Pai.
- Eu sou Deus Pai em tudo o que diz respeito à Secção. Trabalhamos de acordo com um plano. A nossa determinação deu-nos uma chance. E estou intimamente convicto quando digo que a Secção nunca mais se encontrará numa posição tão exposta. Depois de resolvermos este assunto, vamos fazer uma revisão total da nossa actividade.
- Compreendo.
- O Georg Nystrõm será o novo chefe. É verdade que está demasiado velho, mas é o único que podemos seriamente considerar, e prometeu ficar pelo menos mais seis anos. O Sandberg é demasiado jovem e, devido à tua maneira de dirigir, demasiado inexperiente. Nesta altura, já devia ter terminado a sua aprendizagem.
- Clinton, não te dás conta do que estás a fazer. Assassinaste um homem. O Bjõrck trabalhou para a Secção durante trinta e cinco anos e tu mandaste-o matar. Não compreendes que...
- Sabes muito bem que era necessário. Tinha-nos traído e nunca aguentaria a pressão quando a polícia começasse a apertar a sério. -Wadensjõõ pôs-se de pé. - Ainda não acabei.
- Então vai ter de ficar para mais tarde. Tenho trabalho para fazer, enquanto tu ficas aqui a dormir com as tuas fantasias de omnipotência divina.
Wadensjõõ encaminhou-se para a porta.
- Se estás assim tão moralmente indignado, porque é que não vais ter com o Bublanski e lhe confessas os teus crimes?
Wadensjõõ voltou-se.
- A ideia já me passou pela cabeça. Mas, penses tu o que pensares, eu protejo a Secção com todas as minhas forças.
Ao abrir a porta, quase chocou com Georg Nystrõm e Jonas Sandberg.
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- Olá, Clinton - disse Nystrõm. - Precisamos de falar de umas quantas coisas.
- Entrem. O Wadensjõõ já ia a sair. Nystrõm esperou que a porta se fechasse.
- Fredrik, começo a ficar seriamente preocupado - disse.
- Porquê?
- Eu e o Sandberg temos estado a pensar. Estão a acontecer certas coisas que não compreendemos. Esta manhã, a advogada da Salander entregou a autobiografia dela ao procurador.
- O quê?!
O inspector Hans Faste observava Annika Giannini enquanto o procurador Richard Ekstrõm servia café de um termo. Ekstrõm estava estupefacto pelo documento que lhe fora entregue quando chegara ao seu gabinete naquela manhã. Ele e Faste tinham lido as 40 páginas que compunham o relato de Lisbeth Salander. Tinham discutido longamente aquele estranho documento. Finalmente, sentira-se obrigado a pedir a Annika Giannini uma conversa informal.
Instalaram-se à volta de uma pequena mesa no gabinete do procurador.
- Obrigado por ter aceitado vir - começou Ekstrõm. - Li o... hum... relato que me enviou esta manhã e sinto necessidade de esclarecer alguns pontos.
- Sim? - disse Annika Giannini, prestimosamente.
- A verdade é que não sei por que ponta lhe pegar. Talvez deva começar por dizer que tanto eu como o inspector Faste estamos profundamente desconcertados.
- Sim?
- Tento compreender as suas intenções.
- Como assim?
- Esta autobiografia, se assim se lhe pode chamar, que objectivo tem?
- Parece-me evidente. A minha cliente quer expor a sua versão do que se passou.
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Ekstrõm riu com bonomia. Passou a mão pela barbicha, num gesto habitual que, por qualquer razão, começava a irritar Annika.
- Sim, mas a sua cliente dispôs de vários meses para se explicar. Não disse uma palavra durante todos os interrogatórios que o inspector Faste tentou fazer-lhe.
- Que eu saiba, não existe qualquer lei que a obrigue a falar quando isso convém ao inspector Faste.
- Não, mas, quero dizer... o julgamento começa dentro de dois dias, e é no último minuto que ela entrega isto. O que me leva a sentir uma espécie de responsabilidade que se situa um pouco para lá do meu dever como procurador.
-Ah.
- Não queria, sob pretexto nenhum, expressar-me de uma maneira que pudesse considerar ofensiva. Não é a minha intenção. As formas processuais existem no nosso país e são para ser respeitadas. Mas, Fru Giannini, a senhora é especializada em direitos da mulher e nunca até agora representou um cliente num caso criminal. Não acusei a Lisbeth Salander por ela ser mulher, mas por ser culpada de ofensas corporais agravadas. Estou convencido de que teve ocasião de aperceber-se de que a sua constituinte está gravemente afectada no plano psíquico e precisa de cuidados e ajuda da parte da sociedade.
- Vou ajudá-lo - disse Annika Giannini, amavelmente. - Tem receio de que eu não garanta à Lisbeth Salander uma defesa satisfatória.
- Não há nada de pejorativo nas minhas palavras - defendeu-se Ekstrõm. - Não ponho em dúvida a sua competência. Faço apenas notar que lhe falta experiência neste tipo de casos.
- Estou a ver. Deixe-me então dizer-lhe que estou plenamente de acordo. Falta-me experiência em casos criminais.
- E no entanto declinou sistematicamente a ajuda que lhe foi oferecida por advogados muito mais experientes...
- Em conformidade com o desejo da minha cliente. Lisbeth Salander quer-me como sua advogada e eu tenho a intenção de representá-la em tribunal dentro de dois dias - declarou Annika, e sorriu delicadamente.
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- Muito bem. Mas posso perguntar-lhe se tenciona apresentar o conteúdo desta redacção perante o tribunal?
- Evidentemente. É a história de Lisbeth Salander.
Ekstrõm e Faste trocaram um olhar. Faste arqueou as sobrancelhas. Não compreendia por que motivo Ekstrõm insistia tanto. Se Giannini não reconhecia que ia afundar irremediavelmente a sua constituinte, que tinha o procurador que ver com isso? Tinha era de aceitar, agradecer e arquivar o assunto.
Não duvidava nem por um instante de que Lisbeth Salander era completamente doida. Usara todos os seus talentos para levá-la a dizer ao menos onde morava. Mas, durante todos os interrogatórios, o estupor da rapariga permanecera muda como uma carpa, a olhar para a parede atrás dele. Não se mexera um milímetro. Recusara os cigarros que ele lhe oferecera, bem como os cafés e as bebidas frescas. Não reagira quando ele lhe suplicara, nem nos momentos de grande irritação, em que ele levantara a voz.
Tinham sido provavelmente os interrogatórios mais frustrantes que o inspector Hans Faste alguma vez conduzira.
Suspirou.
- Doutora Giannini - acabou Ekstrõm por dizer. - Em minha opinião, a sua cliente devia ser dispensada deste julgamento. Está doente. Para o afirmar, baseio-me num exame psiquiátrico extremamente qualificado. Merecia receber por fim os cuidados psiquiátricos de que tem tido necessidade ao longo de todos estes anos.
- Nesse caso, sugiro que informe o tribunal dessa sua opinião.
- Vou fazê-lo. Não me cabe a mim dizer-lhe como conduzir a defesa. Mas se é essa a linha que tenciona verdadeiramente seguir, a situação é totalmente absurda. Esta biografia contém acusações insensatas e sem o mínimo fundamento contra várias pessoas... sobretudo contra o antigo tutor da Salander, o doutor Bjurman, e contra o doutor Peter Teleborian. Espero que não acredite seriamente que o tribunal aceite afirmações que, sem a mínima prova, põem em causa o doutor Teleborian. Este documento vai cravar o último prego no caixão da sua cliente, se me perdoa a expressão.
- Compreendo.
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- No decurso do julgamento pode negar que ela esteja doente e exigir uma perícia psiquiátrica complementar, e o caso será provavelmente entregue à Direcção de Medicina Legal para apreciação. Mas, francamente, com este relato restam poucas dúvidas de que qualquer outro psiquiatra chegará à mesma conclusão que o doutor Teleborian. Este documento só serve para reforçar as provas de que Lisbeth Salander sofre de esquizofrenia paranóide.
Annika Giannini voltou a sorrir delicadamente.
- Há, no entanto, uma outra possibilidade - disse ela.
- E qual seria?
- O relato corresponder à verdade e o tribunal decidir acreditar nele.
O procurador Ekstrõm fez um ar surpreendido. Depois sorriu e acariciou a barbicha.
Fredrik Clinton tinha-se sentado diante da janela da sala de repouso. Escutava atentamente o que Georg Nystrõm e Jonas Sandberg lhe contavam. Os olhos, atentos e concentrados, brilhavam no rosto sulcado de rugas.
- Desde Abril que temos sob vigilância as chamadas telefónicas e o correio electrónico dos principais funcionários da Millennium -disse, por fim. - Verificámos que o Mikael Blomkvist, a Malin Eriksson e o Cortez estão praticamente resignados. Lemos a sinopse do próximo número da revista. Parece que o próprio Blomkvist retrocedeu para uma posição em que considera que a Lisbeth Salander é, ao fim e ao cabo, louca. Se continua a defendê-la, é no plano social... argumenta que ela não teve o apoio que devia ter tido da sociedade e que, de certo modo, isso faz com que não tenha tido culpa de ter tentado matar o pai. Mas é uma opinião que não significa absolutamente nada. Nem uma palavra sobre o assalto ao apartamento dele, nem da agressão à irmã em Gotemburgo, nem sobre o desaparecimento dos relatórios. Ele sabe que não pode provar coisa nenhuma.
- É esse o problema - disse Jonas Sandberg. - O Blomkvist devia saber, pela lógica, que há qualquer coisa que não bate certo. Mas ignora sistematicamente todos estes pontos de interrogação. Peço
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desculpa, mas não me parece nada o estilo da Millennium. Além disso, a Eríka Berger voltou à redacção. O próximo número é de tal modo vazio e sem interesse que tem todo o ar de ser falso.
- Queres então dizer... que é uma manobra para nos enganar? Jonas Sandberg assentiu.
- O número de Verão da Millennium devia ter saído na última semana de Junho. Segundo as nossas interpretações dos e-mails trocados entre a Malin Eriksson e o Blomkvist, vai ser impresso numa gráfica de Sõdertálje. Mas hoje telefonei para a gráfica., e ainda não receberam a maqueta. Tudo o que têm é um pedido de orçamento datado de há um mês.
- Hum - fez Fredrik Clinton.
- Onde é que costumam imprimir?
- Numa gráfica chamada Hallvigs Reklam, em Morgongáva. Telefonei para lá a perguntar em que ponto estava a impressão... fiz-me passar por um funcionário da Millennium. O chefe da gráfica não quis dizer uma palavra. Pensei passar por lá esta tarde, para dar uma vista de olhos.
- Compreendo. Georg?
- Examinei todos os telefonemas desta semana - disse Nystrõm. - É estranho, mas nenhum dos empregados da Millennium discute seja o que for que tenha que ver com o julgamento ou com o caso Zalachenko.
- Nada?
- Nada. As únicas referências aparecem quando um dos colaboradores da revista fala com alguém do exterior. Ouça isto, por exemplo: o Mikael Blomkvist recebe um telefonema de um jornalista do Aftonbladet que lhe pergunta se tem algum comentário a fazer a respeito do julgamento.
Georg tirou do bolso um pequeno gravador.
- Lamento, mas não faço comentários.
- Participas nesta história desde o início. Foste tu que encontraste a Lisbeth Salander em Gosseberga. E ainda não publicaste uma palavra. Quando éque tencionas fazê-lo?
- No momento oportuno. Desde que tenha alguma coisa para publicar.
554 - 555
- E não tens?
- Acho que vais ter de comprar a Millennium para ficar a saber. Parou a cassete.
- É verdade que não tínhamos pensado nisso, mas voltei um pouco atrás e ouvi umas passagens ao acaso. É sempre assim, sem falhas. O Blomkvist pouco discute o caso Zalachenko, a não ser em termos muito gerais. Nem sequer fala com a irmã, que é a advogada da Salander.
- Talvez não tenha nada para lhe dizer.
- Recusa sistematicamente especular sobre o que quer que seja. Parece viver na redacção vinte e quatro horas por dia e raramente vai ao apartamento na Bellmansgatan. Se trabalha noite e dia, tinha a obrigação de produzir qualquer coisa melhor do que o que está previsto para o próximo número da Millennium.
- E continuamos a não arranjar maneira de pôr a redacção sob escuta.
- Não - interveio Jonas Sandberg. - Está sempre alguém presente, de dia e de noite. O que também é revelador.
- Hum.
- Desde o dia em que assaltámos o apartamento do Blomkvist, está sempre alguém na redacção. O Blomkvist passa a vida a correr para lá, e a luz do gabinete dele está sempre acesa. E se não é ele, é o Cortez ou a Malin Eriksson, ou o pane..., o Christer Malm.
Clinton coçou o queixo. Reflectiu por um momento.
- Muito bem. As vossas conclusões? Georg Nystrõm hesitou um instante.
- Bem... se ninguém me der outra explicação, diria que estão a representar uma comédia.
Clinton sentiu um arrepio percorrer-lhe a nuca.
- E como foi que não nos apercebemos disso mais cedo?
- Ouvimos o que eles dizem, não o que não dizem. Contentámo-nos em ouvir o desalento deles, ou em verificá-lo nos e-mails. O Blomkvist sabe que lhe roubaram o relatório de 1991, e o da irmã também, mas que raio pode ele fazer?
- Não participaram a agressão à polícia?
Nystrõm abanou a cabeça.
- A Giannini esteve presente nos interrogatórios da Salander. É bem educada, mas não diz nada de interessante. E a Salander não abre a boca.
- Mas isso funciona a nosso favor. Quanto mais ela calar a boca, melhor. Que diz o Ekstrõm?
- Estive com ele há coisa de duas horas. Acabava de receber o relato da Salander.
Apontou para a cópia que Clinton tinha pousada nos joelhos.
- O Ekstrõm está perturbado. Para os inexperientes, esse relato mais parece uma teoria da conspiração totalmente demente com uns toques de pornografia. Mas a verdade é que ela acerta muito perto do alvo. Conta exactamente o que aconteceu quando a mandaram para Sankt Stefan, afirma que o Zalachenko trabalhava para a Sapo, e coisas desse género. Diz que se trata provavelmente de um pequeno grupo no seio da Sapo, o que indica que suspeita da existência de qualquer coisa como a Secção. No todo, é uma descrição muito exacta. Mas, como eu dizia, não é crível. O Ekstrõm está perturbado pelo que parece ser a defesa que a Giannini vai apresentar em tribunal.
- Merda! - exclamou Clinton. - Inclinou-se para a frente e pensou intensamente durante vários minutos. Por fim, endireitou a cabeça. -Jonas, vai a Morgongâva esta tarde ver se está alguma coisa em preparação. Se estiverem a imprimir a Millennium, quero um exemplar.
- Levo o Falun comigo.
- Óptimo. Georg, quero que vás tomar o pulso ao Ekstrõm. Até agora, tem corrido tudo sobre rodas, mas não posso deixar de ter em conta o que acabam de me dizer.
- Pois não.
Clinton voltou a calar-se por instantes.
- O melhor, seria não haver julgamento - acabou por dizer. Ergueu a cabeça e olhou para Nystrõm bem de frente nos olhos.
Nystrõm assentiu com a cabeça. Sandberg assentiu com a cabeça. Compreendiam-se perfeitamente.
- Nystrõm, verifica as possibilidades.
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Jonas Sandberg e o serralheiro Lars Faulsson, mais conhecido pelo nome de Falun, deixaram o carro um pouco antes da via férrea e atravessaram Morgongâva a pé. Eram oito e meia da noite. Ainda havia demasiada luz e era demasiado cedo para tentar fosse o que fosse, mas queriam fazer um reconhecimento do terreno e ter uma visão de conjunto.
- Se houver alarme, não faço nada - avisou Falun. Sandberg assentiu.
- Nesse caso, o melhor é espreitar pelas janelas. Se houver alguma coisa à vista, atiras uma pedra à vidraça, deitas a mão ao que te interessa e sais a correr como um doido.
- Okay - concordou Sandberg.
- Se só precisas de um exemplar da revista, podemos ver se há caixotes do lixo nas traseiras. Têm de certeza provas, e coisas desse género.
A gráfica Hallvigs estava instalada num edifício baixo, de tijolo. Aproximaram-se vindos de sul, pelo outro lado da rua. Sandberg preparava-se para atravessar a rua quando Falun o agarrou por um braço.
- Continua em frente - disse-lhe.
- O que foi?
- Continua em frente, como se andássemos a passear. Passaram em frente da gráfica e deram uma volta pelo quarteirão.
- O que é que se passa? - perguntou Sandberg.
- Tens de aprender a abrir os olhos. O sítio não só tem alarme, como um carro estacionado junto à parede lateral.
- Queres dizer que está alguém lá dentro?
- Era um carro da Milton Security. Porra! A gráfica está vigiada e bem vigiada.
- A Milton Security! - exclamou Fredrik Clinton. A notícia atingiu-o como um soco no estômago.
- Se não fosse o Falun, tinha-me metido na boca do lobo - disse Jonas Sandberg.
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- Passa-se qualquer coisa de muito estranho, digo-lhes eu - declarou Georg Nystrõm. - Não há qualquer razão lógica para que uma pequena gráfica no cu do mundo contrate a Milton Security para uma vigilância permanente.
Clinton concordou com um gesto de cabeça. Tinha os lábios cerrados numa linha rígida. Eram onze da noite e precisava de ir descansar.
- O que quer dizer que a Millennium tem qualquer coisa ao lume - acrescentou Sandberg.
- Até aí já eu cheguei - resmungou Clinton. - Muito bem, analisemos a situação. Qual é o pior cenário possível? O que é que eles podem saber?
Voltou-se para Nystrõm, incitando-o com os olhos a responder.
- Deve estar relacionado com o relatório de 1991 - disse Nystrõm. - Aumentaram a segurança depois de lhes termos roubado as cópias. Devem ter percebido que estavam a ser vigiados. Na pior das hipóteses, têm outra cópia do relatório.
- Mas o Blomkvist ficou desesperado por tê-lo perdido.
- Eu sei. Mas pode ter sido para nos enganar. Não podemos ignorar essa possibilidade.
- Partamos daí - concordou Clinton. - Sandberg?
- Temos a vantagem de conhecer a defesa da Salander. Conta a verdade tal como a viveu. Li duas vezes a pretensa autobiografia. Na realidade, até nos faz jeito. Contém acusações de violação e abuso de poder judiciário de tal modo graves que tudo aquilo vai parecer fantasias de uma mitómana.
Nystrõm assentiu com a cabeça.
- Além disso, não pode provar nenhuma das acusações. O Eks-trõm vai voltar o relatório contra ela. Vai aniquilar-lhe a credibilidade.
- Okay. O novo relatório do Teleborian é excelente. Claro que há a possibilidade de a Giannini aparecer com o seu próprio perito a afirmar que a Lisbeth não é doida, e nesse caso o assunto vai parar à Direcção de Medicina Legal. Mas volto a dizer: se a Salander não mudar de táctica, vai recusar falar com eles, e então toda a gente chegará à conclusão de que o Teleborian tem razão e que ela é mesmo chalada. Digamos que ela é o seu pior inimigo.
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- Continuo a pensar que seria muito melhor se não houvesse julgamento - disse Clinton.
- Isso é praticamente impossível - respondeu Nystrõm. - Está trancada na prisão de Kronoberg e não tem contacto com os outros prisioneiros. Tem direito a uma hora de exercício físico no pátio, mas não temos maneira de lá chegar. E não temos nenhum contacto entre o pessoal da prisão.
- Compreendo.
- Se queríamos agir contra ela, já o devíamos ter feito quando estava em Sahlgrenska. Agora, teria de ser à vista de todos. O assassino não escaparia, isso é praticamente cem por cento certo. E onde encontramos um atirador que aceite o caso? Em tão pouco tempo, é impossível organizar um suicídio ou um acidente.
- Foi o que disse a mim mesmo. Sem contar que as mortes inesperadas têm tendência para suscitar perguntas. Okay, veremos o que acontece em tribunal. Concretamente, nada mudou. Sempre estivemos à espera de um contra-ataque da parte deles, e tudo indica que é essa pretensa autobiografia.
- O problema é a Millennium - disse Jonas Sandberg. Três acenos de concordância.
- A Millennium e a Milton Security - disse Clinton, pensativamente. - A Salander trabalhou para o Armanskij e o Blomkvist teve um caso com ela. Deveremos concluir que defendem agora uma causa comum?
- É verosímil, uma vez que a Milton Security vigia a gráfica onde a Millennium vai ser impressa. Não pode ser por acaso.
- Muito bem. Quando é que tencionam publicar? Sandberg, dizias que já estão quase duas semanas atrasados. Se considerarmos que a Milton Security vigia a gráfica para impedir que alguém deite a mão à revista antes da hora, é por um lado porque têm a intenção de revelar qualquer coisa que não querem que se saiba antes de tempo, e por outro que a revista já está provavelmente impressa.
- Em simultâneo com o julgamento - disse Sandberg. - É a única hipótese que faz sentido.
Clinton concordou com um gesto de cabeça.
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- O que é que estará na revista? Qual é o pior cenário possível? Ficaram os três silenciosos durante um longo momento. Foi
Nystrõm que quebrou o silêncio.
- Na pior das hipóteses, têm outra cópia do relatório de 1991. Clinton e Sandberg tinham chegado à mesma conclusão.
- A questão é saber o que podem fazer com ela - disse Sandberg. - O relatório põe em causa o Bjõrck e o Teleborian. O Bjõrck está morto. Vão fritar o Teleborian, mas ele pode alegar que se limitou a fazer uma perícia médica absolutamente normal. Será a palavra dele contra a da Millennium, e saberá sem dúvida mostrar-se devidamente consternado face a semelhantes acusações.
- O que é que fazemos se eles publicarem o relatório? - perguntou Nystrõm.
- Penso que temos um trunfo - respondeu Clinton. - Se o relatório fizer ondas, o centro das atenções será a Sapo, não a Secção. E quando os jornalistas começarem a fazer perguntas, a Sapo irá buscar o relatório aos arquivos...
- Só que não será o mesmo relatório - completou Sandberg.
- O Shenke pôs a versão modificada nos arquivos, ou seja, a versão que o procurador Ekstrõm leu. Podemos fazer passar muito rapidamente a falsa informação para os media... Temos o original que o Bjurman tinha em seu poder, e a Millennium tem apenas uma cópia. Podemos até insinuar que o Blomkvist falsificou o original.
- Acho que sim. Que mais é que eles sabem, na Millennium}
- Não podem saber da existência da Secção. É impossível. Vão concentrar-se na Sapo, o que vai fazer com que o Blomkvist pareça um maníaco da teoria da conspiração, e a Sapo vai afirmar que o homem é louco.
- É bastante conhecido - disse Clinton, lentamente. - Desde o caso Wennerstróm, goza de uma grande credibilidade.
Nystrõm concordou com um aceno de cabeça.
- Há alguma maneira de abalar essa credibilidade? - perguntou Sandberg.
Nystrõm e Clinton trocaram um olhar. Depois, ambos assentiram. Clinton olhou para Nystrõm.
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- Achas que consegues arranjar... digamos, cinquenta gramas de coca?
- Talvez os jugoslavos.
- Okay. Tenta. Mas é urgente. O julgamento começa dentro de dois dias.
- Não compreendo... - começou Jonas Sandberg.
- É uma artimanha tão velha como o nosso ofício. Mas sempre muito eficaz.
- Morgongâva? - perguntou Edklinth, franzindo o sobrolho. Estava de roupão, sentado no sofá da sala, a ler pela terceira vez a autobiografia de Lisbeth Salander quando Rosa Figuerola lhe telefonou. Como já passava largamente da meia-noite, percebeu de imediato que algo de extraordinário acontecera.
- Morgongâva - repetiu Rosa Figuerola. - O Sandberg e o Lars Paulsson foram até lá, por volta das sete. O Curt Andersson e a malta do Bublanski não os largaram o caminho todo, até porque pusemos um localizador no carro do Sandberg. Deixaram o carro perto da antiga estação, depois passearam-se um pouco pelo bairro, voltaram ao carro e vieram-se embora.
- Estou a ver. Encontraram-se com alguém, ou...?
- Não. E é isso que é estranho. Saíram do carro, deram uma volta e regressaram a Estocolmo.
- Ah, bom. E porque é que me telefonas à meia-noite e meia para me contar isso?
- Demorámos algum tempo a perceber. Passaram diante da gráfica Hallvigs Reklam. Falei com o Mikael Blomkvist. É lá que a Millennium está a ser impressa.
Edklinth compreendeu imediatamente as implicações.
- Oh, raios! - exclamou.
- Como o Falun fazia parte da excursão, suponho que tinham a intenção de fazer uma visitinha à gráfica, mas desistiram.
- Porquê?
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- Porque o Mikael Blomkvist pediu ao Dragan Armanskij que lá pusesse alguém de sentinela até à distribuição da revista. Provavelmente, viram o carro da Milton Security. Pensei que havias de gostar de saber esta informação imediatamente.
- E não te enganaste. Isto quer dizer que começam a desconfiar de qualquer coisa...
- Em todo o caso, as campainhas de alarme devem ter começado a soar quando viram a viatura da Milton. O Sandberg deixou o Falun no centro e foi directo ao prédio na Artillerigatan. Sabemos que o Fredrik Clinton está lá. O Georg Nystrõm chegou quase ao mesmo tempo. A questão é saber o que vão fazer.
- O julgamento começa na quarta-feira... Telefona ao Blomkvist e diz-lhe que reforce a segurança na Millennium. Para cobrir todas as eventualidades.
- Já têm uma segurança bastante sólida. E a maneira como lançam fumo através dos telefones sob escuta não fica nada a dever aos profissionais. O facto é que o Blomkvist é de tal modo paranóico que desenvolveu alguns métodos capazes de desviar a atenção que poderiam servir-nos.
- Está bem. Mas telefona-lhe, de todos os modos.
Rosa Figuerola desligou o telemóvel e pousou-o em cima da mesa de cabeceira. Ergueu os olhos e viu Mikael Blomkvist meio deitado, encostado aos pés da cama, completamente nu.
- Quer que te telefone para mandares reforçar a segurança na Millennium - disse.
- Obrigado pela dica - respondeu ele, laconicamente.
- Estou a falar a sério. Se eles começam a desconfiar de alguma coisa, há o risco de agirem precipitadamente. E um assalto depressa acontece.
- O Henry Cortez está a dormir lá esta noite. E temos um alarme anti-agressão directamente ligado à Milton Security, que fica a três minutos de distância. - Ficou silencioso por um instante. - Com que então paranóico... - resmungou.
CAPÍTULO 24
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE JULHO
Eram seis da manhã de segunda-feira quando Susanne Linder, da Milton Security, ligou para o TIO azul de Mikael Blomkvist. ",.
- Será que nunca dormes? - perguntou Mikael, ainda estremunhado.
Olhou para Rosa Figuerola, que já estava a pé e tinha enfiado uns calções de ginástica, mas não tivera ainda tempo de vestir a T-shirt.
- Claro que durmo, mas fui acordada pelo guarda-nocturno. Alguém accionou o alarme silencioso que montámos no teu apartamento, às três da manhã.
- Ah, bom.
- Por isso fui lá ver o que se passava. Podes passar pela Milton Security esta manhã? De imediato, para ser mais exacta.
- As coisas começam a tornar-se graves - disse Dragan Armanskij.
Eram quase oito da manhã e encontravam-se numa das salas de reuniões da Milton Security. Estavam presentes, além de Armanskij, Mikael Blomkvist e Susanne Linder, Johan Fráklund, de 62 anos, antigo inspector criminal da polícia de Solna e chefe da unidade de intervenção da Milton, e o ex-inspector criminal Steve Bohman, de 48 anos, que tinha seguido o caso Salander desde o início. Olhavam todos para o vídeo que Susanne Linder lhes mostrava.
- É Jonas Sandberg quem abre a porta, às três e dezassete. Tem as chaves... Devem estar lembrados que Faulsson, que é serralheiro, fez os moldes das chaves do apartamento quando, há algumas
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semanas, ele e Gõran Mârtensson arrombaram a porta e entraram lá. - Armanskij assentiu, com uma expressão severa. - O Sandberg demora-se no apartamento pouco mais de oito minutos. Enquanto lá está, vai à cozinha buscar um saco de plástico, que enche com um pó. Em seguida, desparafusa a parte de trás de uma coluna de som da sala e é lá que esconde o saco.
- Hum - disse Mikael Blomkvist.
- O facto de ter ido buscar o saco à cozinha é muito revelador.
- É um saco de pãezinhos do Konsum - explicou Mikael. - Guardo-os para o queijo, e coisas assim.
- Eu faço o mesmo em minha casa. O importante é que, como é evidente, o saco tem as tuas impressões digitais. Em seguida, vai buscar um exemplar antigo do SMP à cesta de jornais que tens no vestíbulo. Usa uma folha do jornal para embrulhar um objecto que coloca em cima do roupeiro da entrada..
- Hum - repetiu Mikael.
- O mesmo caso. O jornal tem as tuas impressões digitais.
- Compreendo - disse Mikael.
- Entrei no teu apartamento às cinco da manhã. Encontrei isto. Na coluna de som da tua sala há, neste momento, cento e oitenta gramas de cocaína. Retirei uma amostra de um grama, que tenho aqui.
Susanne pousou o pequeno saco de plástico em cima da mesa.
- E o que é que está em cima do roupeiro.
- Cerca de cento e vinte mil coroas, em notas.
Armanskij fez sinal a Susanne Linder para que parasse a gravação. Olhou para Fráklund.
- Mikael Blomkvist está, portanto, envolvido no tráfico de cocaína - disse Franklund, num tom divertido. - Aparentemente, começam a preocupar-se com o que ele anda a fazer.
- É um contra-ataque - disse Mikael.
- Contra-ataque?
- Descobriram os seguranças da Milton em Morgongâva, ontem à tarde.
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Contou o que Rosa Figuerola lhe tinha dito sobre a expedição de Sandberg a Morgongâva.
- O reles patifezeco - resmoneou Steve Bohman.
- Mas porquê agora?
- Estão com medo dos estragos que a Millennium pode provocar, agora que o julgamento vai começar - disse Frãklund. - Se o Blomk-vist for preso por tráfico de droga, perde toda a credibilidade.
Susanne Linder confirmou com um aceno de cabeça. Mikael parecia hesitante.
- Como é que vamos gerir isto? - perguntou Armanskij.
- Não fazemos nada, para já - propôs Frãklund. - Dispomos de vários trunfos. Temos uma excelente documentação que mostra como o Sandberg semeou as provas no seu apartamento. Deixemos a armadilha funcionar. Poderemos provar logo a seguir a sua inocência, e teremos mais uma prova do comportamento criminoso da Secção. Bem gostaria de ser procurador quando esses malandros passarem pelo banco dos réus.
- Não sei - disse Mikael Blomkvist, lentamente. - O julgamento começa depois de amanhã. A Millennium sai na sexta, no terceiro dia de audiências. Se a intenção deles é conseguir que eu seja acusado de tráfico de droga, vai acontecer antes... e eu não vou poder explicar-me antes de a revista sair. O que quer dizer que corro o risco de ser preso e perder o início do julgamento.
- Por outras palavras, tem boas razões para permanecer invisível esta semana - propôs Armanskij.
- Bom... tenho um trabalho a fazer para a TV4, e alguns outros preparativos em curso. Não é o momento mais conveniente...
- Porquê precisamente agora? - perguntou de repente Susanne Linder.
- Que queres dizer com isso? - surpreendeu-se Armanskij.
- Tiveram três meses para arrastar o Blomkvist pela lama. Porque é que agem precisamente agora? Façam o que fizerem, não vão conseguir impedir a publicação.
Fez-se silêncio à volta da mesa.
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- Talvez por não saberem o que vai publicar, Mikael - disse Armanskij. - Sabem que anda a tramar qualquer coisa... mas talvez pensem que só tem o relatório do Bjõrck, de 1991.
Mikael assentiu lentamente com a cabeça.
- Não compreenderam que a sua intenção é desmascarar a Secção inteira. Tratando-se apenas do relatório, basta criar um ambiente de desconfiança à sua volta. As suas eventuais revelações vão perder-se no burburinho da sua detenção e interrogatório. Grande escândalo. O célebre jornalista Mikael Blomkvist detido por tráfico de droga. Seis a oito anos de prisão.
- Arranjam-me cópias do filme da câmara de vigilância? - pediu Mikael.
- O que é que tenciona fazer?
- Uma cópia para o Edklinth. Depois, tenho um encontro na TV4 daqui a três horas. Penso que seria bom estarmos preparados para usar a televisão quando a tempestade rebentar.
Rosa Figuerola parou o leitor de DVD e pousou o telecomando em cima da mesa. Estavam no escritório temporário, em Fridhemsplan.
- Cocaína - disse Edklinth. - Resolveram jogar forte! Rosa Figuerola parecia hesitante. Olhou para Mikael.
- Não gosto disto - acabou por dizer. - Revela uma precipitação irreflectida. Tinham a obrigação de compreender que não te vais deixar levar sem protestar se te acusarem de tráfico de droga.
- É verdade - admitiu Mikael.
- Mesmo que fosses condenado, havia, para eles, um risco demasiado grande de as pessoas acreditarem em ti. Os teus colegas da Millennium não iam ficar calados.
- Além disso, a coisa não lhes saiu barata. Pelo que vimos, têm então um orçamento que lhes permite largar sem pestanejar cento e vinte mil coroas, além do preço da coca.
- Eu sei - concordou Mikael. - Mas, mesmo assim, o plano continua a ser bom. Estão convencidos de que a Lisbeth Salander vai para um hospital psiquiátrico e eu vou desaparecer no meio de uma nuvem de acusações. Além disso, imaginam que todas as eventuais
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atenções vão centrar-se na Sapo... não na Secção. Nada mal, como ponto de partida.
- Mas como vão eles convencer a brigada de estupefacientes a fazer uma busca em tua casa? Quer dizer, não basta uma denúncia anónima para que a polícia corra a arrombar a porta de um jornalista famoso. E para que resulte, terias de ser considerado suspeito nestes próximos dias.
- Bem, a verdade é que não sabemos quais são os planos deles -disse Mikael.
Estava cansado, e o que mais desejava era ver aquilo tudo acabado. Pôs-se de pé.
- Aonde vais agora? - perguntou Rosa Figuerola. - Gostaria de saber onde vais estar, nos próximos dias.
- Passo pela TV4, ao princípio da tarde. Depois, às seis, encontro-me com a Erika Berger para um sauté d'agneau no Samirs Gryta. Durante o resto da tarde estarei na redacção, suponho.
Os olhos de Rosa semicerraram-se um pouco quando ouviu o nome de Erika Berger.
- Quero que te mantenhas em contacto durante o dia. De preferência, gostaria que te mantivesses em contacto permanente até o julgamento arrancar.
- Okay, posso instalar-me em tua casa, durante uns dias - disse Mikael, sorrindo como se estivesse a brincar.
O rosto de Rosa Figuerola ensombrou-se. Lançou um rápido olhar a Edklinth.
- A Rosa tem razão - disse o chefe da Defesa da Constituição. -Penso que seria preferível manter-se na sombra até que isto acabe. Se for apanhado pela brigada antidroga, não diga uma palavra enquanto o julgamento não começar.
- Calma - disse Mikael. - Não tenciono entrar em pânico e comprometer seja o que for. Tratem da vossa parte, que eu trato da minha.
A jornalista da TV4 mal conseguia disfarçar a excitação perante o material gravado no vídeo que Mikael Blomkvist lhe entregava.
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Mikael sorriu a tanto entusiasmo. Durante uma semana tinham trabalhado como cães a reunir material sobre a Secção que pudesse ser usado na televisão. Tanto o produtor com quem ela trabalhava como o chefe das Actualidades da TV4 tinham percebido de imediato o verdadeiro furo que aquilo ia ser. A emissão seria produzida no maior segredo, com o apoio de um número reduzido de estagiários. Tinham aceitado a exigência de Mikael de só difundir a história na tarde do terceiro dia do julgamento. Ficara decidido dedicar-lhe uma edição especial do telejornal.
Mikael fornecera-lhe um grande número de imagens estáticas para ela brincar, mas, em televisão, não há nada que se compare às imagens em movimento. E aquele vídeo, de uma nitidez perfeita, que mostrava um polícia claramente reconhecível a "plantar" droga no apartamento de Blomkvist fazia-a pular de felicidade.
- Isto é televisão de primeira - exclamou. - Em vinheta: "Aqui, a Sapo esconde cocaína no apartamento do jornalista."
- A Sapo, não... a Secção - rectificou Mikael. Não cometas o erro de confundir as duas.
- Mas o Sandberg trabalha para a Sapo - protestou ela.
- Sim, mas devemos considerá-lo como um agente infiltrado. Tens de manter-te dentro dos limites mais estritos da verdade.
- Okay. É a Secção que está aqui em causa, não a Sapo. Mikael, és capaz de me explicar como é que apareces sempre envolvido neste género de broncas? Tens razão, isto vai fazer mais barulho do que o caso Wennerstrõm.
- É um talento inato, suponho. Por ironia do destino, esta história começa também com o caso Wennerstrõm. Estou a referir-me ao caso de espionagem, nos anos sessenta.
Às quatro da tarde, Erika Berger telefonou. Estava numa reunião da Tidningsutgivarna para comunicar aos patrões da imprensa a sua visão sobre os despedimentos previstos na SMP, operação que levara a um grave conflito sindical depois de ela se ter demitido. Explicou que ia chegar atrasada ao encontro do Samirs Gryta. Talvez lá para as seis e meia.
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Jonas Sandberg ajudou Fredrik Clinton a passar do cadeirão com rodas para a pequena cama montada na sala de repouso que se tornara o centro de comando do QG, da Secção na Artillerigatan. Clinton acabava de voltar da sessão de diálise, que durara toda a tarde. Sentia-se centenário e indizivelmente cansado. Pouco ou nada dormira naqueles últimos dias e desejava que tudo aquilo terminasse em breve. Acabava de instalar-se no leito quando Georg Nystrõm se lhes juntou.
Clinton fez um apelo às forças que lhes restavam.
- Está tudo pronto? - perguntou
- Acabo de falar com os irmãos Nikoliç - respondeu Nystrõm.
- Vai custar cinquenta mil coroas.
- Podemos pagar-lhes. Raios, se eu fosse novo...
Voltou a cabeça e olhou alternadamente para Georg Nystrom e Jonas Sandberg.
- Nenhuma reticência? - perguntou. - Ambos abanaram a cabeça. - Quando?
- Nas próximas vinte e quatro horas - disse Nystrõm. - É muito difícil descobrir onde o Blomkvist se esconde, mas, em último caso, seria em frente da redacção.
Clinton fez um gesto de concordância.
- Temos uma possível abertura esta tarde, dentro de duas horas
- anunciou Jonas Sandberg. - A Erika Berger telefonou-lhe há pouco. Vão jantar juntos ao Samirs Gryta. É um restaurante para os lados da Bellmansgatan.
- Ber-ger... - disse Clinton, arrastando o nome.
- Espero que ela... - começou Georg Nystrõm.
- Não seria forçosamente um mal - interrompeu-o Sandberg.
- Estamos de acordo: é o Blomkvist que representa a maior ameaça para nós, e tudo indica que vai publicar qualquer coisa no próximo número da Millennium. Não podemos impedir a publicação. Resta-nos, portanto, destruir-lhe a credibilidade. Se ele for morto
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num aparente ajuste de contas e em seguida a polícia encontrar a droga e o dinheiro em casa dele, o inquérito tirará daí conclusões.
Clinton concordou com um gesto de cabeça.
- A Erika Berger é a amante do Blomkvist - continuou Sandberg, destacando bem as palavras. - É casada e infiel. Se também ela for brutalmente assassinada, a coisa vai dar origem a mais um monte de especulações.
Clinton e Nystrõm entreolharam-se. Sandberg tinha um génio inato para criar cortinas de fumo. Aprendia depressa. Mas ambos tiveram um instante de hesitação. Sandberg era sempre assim despreocupado quando tinha de decidir sobre a vida ou a morte de alguém. E isso não era correcto. O assassínio era um acto extremo que só devia ser aplicado quando as circunstâncias o exigissem em absoluto. Não era uma solução pronta-a-usar, mas um recurso a utilizar exclusivamente quando não havia alternativa. Clinton abanou a cabeça.
Danos colaterais, pensou. E, de repente, a gestão de tudo aquilo enojou-o.
Depois de uma vida ao serviço da nação, eis-nos agora reduzidos a vulgares assassinos. Zalachenko fora necessário. Bjõrck fora... lamentável, mas Gullberg tivera razão. Bjõrck teria quebrado. Blomkvist era... provavelmente necessário. Mas Erika Berger era apenas uma testemunha inocente.
Olhou para Jonas Sandberg. Esperava que o jovem não acabasse por se tornar um psicopata.
- O que é que os irmãos Nikoliç sabem, exactamente?
- Nada. A nosso respeito, quero dizer. Só falaram comigo, usei uma outra identidade e não têm maneira de chegar até mim. Pensam que o serviço tem qualquer coisa que ver com o tráfico de mulheres.
- Que acontece aos irmãos Nikoliç depois de matarem o Blomkvist?
- Saem imediatamente da Suécia - respondeu Nystrõm. - Exactamente como depois do Bjõrck. Se o inquérito da polícia não der em nada, poderão voltar discretamente passadas algumas semanas.
- E o plano?
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- Modelo siciliano. Aproximam-se simplesmente do Blomkvist, despejam o carregador e desaparecem.
- Arma?
- Têm uma automática. Não sei de que tipo.
- Espero que não tenham a intenção de metralhar o restaurante.
- Não há perigo. São do género contido e sabem o que têm de fazer. Mas se a Berger estiver sentada à mesma mesa que o Blomkvist...
Danos colaterais.
- Escutem - disse Clinton. - É importante que o Wadensjõõ não tenha conhecimento de que estamos metidos nisto. Sobretudo se a Erika Berger for uma das vítimas. Já está muito perto do ponto de rotura. Receio que sejamos obrigados a mandá-lo para a reforma quando isto estiver acabado.
Nystrõm confirmou com um aceno de cabeça.
- O que significa que quando recebermos a notícia de que o Blomkvist foi assassinado, vamos ter de representar. Convocamos uma reunião de emergência e pareceremos absolutamente siderados pelos acontecimentos. Especulamos sobre quem poderá estar por detrás do assassínio, mas não adiantamos uma única palavra sobre a droga e o resto até a polícia encontrar as provas.
Mikael Blomkvist deixou a Rapariga da TV4 pouco antes das cinco. Tinham dedicado a tarde inteira a passar em revista os pontos menos claros do material, depois fora maquilhado e filmado a dar uma longa entrevista.
Tinham-lhe feito uma pergunta à qual tivera dificuldade em responder de uma forma coerente, e tinham insistido várias vezes.
Como épossível que funcionários do Estado tenham chegado ao ponto de cometer assassínios?
Era uma pergunta que Mikael fizera a si mesmo várias vezes, muito antes de a Rapariga da TV4 lhe a fazer. A Secção devia ter considerado Zalachenko como uma enorme ameaça, mas continuava, mesmo assim, a não ser uma resposta satisfatória. Como não era satisfatória a resposta que acabara por dar.
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- Penso que a única explicação plausível é que, ao longo dos anos, a Secção evoluiu até se tornar uma seita, no verdadeiro sentido da palavra. Como a seita de Knutsby, ou a do pastor Jimjones, ou outras do mesmo género. Ditam as suas próprias leis, nas quais o conceito de bem e de mal deixa de ser pertinente, parecem completamente isolados da sociedade.
- Dir-se-ia uma espécie de doença mental?
- Não é uma descrição totalmente descabida.
Apanhou o metro para Slussen e verificou que era demasiado cedo para o Samirs Gryta. Deambulou um pouco pela praça de Sõdermalm. Estava preocupado, mas, por outro lado, a vida voltara a fazer sentido. Só depois de Erika Berger ter regressado à Millennium se apercebera de como tivera saudades dela. E o facto de ela ter voltado a pegar no leme não levara a um conflito interno, bem pelo contrário. Malin ficara encantada por regressar ao seu posto de assistente editorial, transbordava de alegria por a vida (como ela dizia) ter retomado o seu curso normal.
O regresso de Erika trouxera igualmente a lume os efeitos do défice de pessoal nos últimos três meses. Obrigada a meter mãos à obra sem mais perdas de tempo, conseguira, com a ajuda de Malin, controlar uma boa parte do trabalho de organização mais ou menos planeado e deixado por fazer. De uma profícua reunião de redacção, saíra a decisão de que a Millennium tinha de crescer e contratar, pelo menos, um ou provavelmente dois novos colaboradores. O que ainda não sabiam era onde ir arranjar os fundos necessários.
Finalmente, Mikael comprou os jornais da tarde e entrou no Java da Hornsgatan para beber um café e fazer tempo até serem horas de ir ter com Erika.
A procuradora Ragnhild Gustavsson, do Ministério Público, pousou os óculos e contemplou as pessoas sentadas à volta da mesa de reuniões. Tinha 58 anos e uns cabelos grisalhos cortados curtos, que lhe emolduravam um rosto bochechudo e sulcado de rugas. Era procuradora havia 25 anos e trabalhava no Ministério Público desde Os anos 90.
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Tinham passado apenas três semanas desde que fora subitamente chamada ao gabinete oficial do procurador da nação para conhecer Torsten Edklinth. Nesse dia, terminara várias questões rotineiras e preparava-se para iniciar seis semanas de férias na sua casa de campo em Husarõ. Em vez disso, recebera a missão de conduzir o inquérito sobre um grupo de funcionários do Estado que ocupava postos cimeiros e eram, de momento, globalmente designados pelo termo "a Secção". Todos os seus projectos de férias tinham sido rapidamente abandonados. Ficara a saber que aquela ia ser a sua tarefa principal durante um tempo indeterminado, e tinham-lhe dado praticamente carta-branca para organizar o trabalho e tomar as decisões necessárias.
- Este caso vai ser uma das investigações criminais mais sensacionais da história sueca - dissera o procurador da nação.
Não podia estar mais de acordo.
Depois, fora de surpresa em surpresa enquanto ouvia o resumo que Torsten Edklinth fazia do caso e do inquérito que levara a cabo por ordem do primeiro-ministro. Apesar de não estar concluído, Edklinth considerava que chegara a um ponto em que era preciso apresentá-lo a um procurador.
Começara por fazer uma ideia geral do material que Edklinth lhe entregara. Mas quando percebera a dimensão dos crimes cometidos, chegara à conclusão de que tudo o que fizesse e todas as decisões que tomasse iam ser passadas pelo crivo nos livros de história futuros. A partir desse momento, dedicara cada um dos seus minutos de vigília a tentar reconstituir, de modo coerente, a quase inconcebível lista de crimes que teria de tratar. O caso era único na história do Direito sueco, e uma vez que se tratava de investigar actos criminosos que eram cometidos havia pelo menos trinta anos, tornava fundamental uma organização muito estrita do trabalho. Os seus pensamentos iam para os investigadores antimáfia italianos, que tinham trabalhado quase clandestinamente para poderem sobreviver nas décadas de setenta e oitenta. Compreendia por que motivo fora Edklinth obrigado a trabalhar em segredo. Não sabia em quem podia ou não confiar.
A primeira medida de Ragnhild Gustavsson fora chamar para junto de si três colaboradores do Ministério Público. Escolhera pessoas
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que conhecia havia muitos anos. Em seguida, contratara um historiador ligado ao Conselho de Prevenção da Criminalidade para que a esclarecesse com os seus conhecimentos sobre a emergência das polícias de segurança ao longo das décadas. Por fim, designara formalmente Rosa Figuerola para liderar as investigações.
O inquérito sobre a Secção adquirira, deste modo, uma forma constitucionalmente legal. Podia agora ser encarado como qualquer outro inquérito policial, apesar de ter sido decretada a proibição total de divulgação.
No decurso das duas últimas semanas, a procuradora Gustavsson convocara um grande número de pessoas para interrogatórios formais, ainda que discretos. Para além de Edklinth e de Rosa Figuerola, começara pelos inspectores Bublanski, Sonja Modig, Curt Andersson e Jerker Holmberg. Em seguida, conhecera Mikael Blomkvist, Malin Eriksson, Henry Cortez, Christer Malm, Annika Giannini, Dragan Armanskij, Susanne Linder e Holger Palmgren. Salvo os representantes da Millennium, que por princípio não respondiam a perguntas susceptíveis de permitir a identificação das fontes, todos tinham feito depoimentos pormenorizados, e fornecido provas.
Ragnhild Gustavsson não achara graça nenhuma ao facto de lhe terem apresentado um calendário estabelecido pela Millennium, e que implicava que teria de decidir a detenção de um certo número de pessoas até uma determinada data. Em sua opinião, seriam precisos vários meses de preparativos antes que o inquérito chegasse a essa fase. Todavia, neste caso não tinha por onde escolher. Mikael Blomkvist, da revista Millennium, fora irredutível. Não estava sujeito a qualquer decreto ou regulamento oficial e tinha a intenção de publicar o artigo no terceiro dia do julgamento de Lisbeth Salander. Gustavsson fora, pois, obrigada a conformar-se e a atacar em várias frentes ao mesmo tempo para se certificar de que os suspeitos, e eventualmente as provas, não tinham oportunidade de desaparecer. Blomkvist beneficiava, além disso, do surpreendente apoio de Edklinth e de Figuerola, e, pouco a pouco, apercebera-se de que o modelo blomkvistiano tinha algumas vantagens evidentes. Como procuradora, poderia contar com o empurrãozinho mediático bem ajustado de que teria necessidade
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para conduzir a acusação. Por outro lado, todo o processo iria ser tão rápido que as questões sensíveis do inquérito não teriam tempo de transpirar para os corredores da administração e chegar aos ouvidos da Secção.
- Para o Blomkvist, trata-se sobretudo de fazer justiça à Lisbeth Salander. Liquidar a Secção é apenas uma consequência - explicara Rosa Figuerola.
O julgamento de Lisbeth Salander ia começar na quarta-feira, daí a dois dias, e aquela reunião tivera por objectivo passar em revista todo o material disponível e distribuir tarefas.
Treze pessoas participavam da conferência. Ragnhild Gustavsson levara, do Ministério Público, os seus dois colaboradores mais directos. Da Defesa da Constituição, estava presente Rosa Figuerola, a chefe das investigações, com os seus colegas Stefan Bladh e Niklas Berglund. O director da Defesa da Constituição, Torsten Edklinth, participava na qualidade de observador.
Ragnhild Gustavsson decidira, no entanto, que, por uma questão de credibilidade, um assunto daquela importância dão devia limitar-se à Sapo. Por isso chamara o inspector Jan Bublanski e a sua equipa, Sonja Modig, Jerker Holmberg e Curt Andersson, da polícia comum. Todos eles tinham trabalhado no caso Salander desde a Páscoa e conheciam perfeitamente a história. Além disso, requerera a presença da procuradora Agneta Járvas e do inspector Marcus Ackerman, de Gotemburgo. O inquérito à Secção estava necessariamente ligado ao assassínio de Alexander Zalachenko.
Quando Rosa Figuerola sugerira que talvez o antigo primeiro-ministro, Thorbjõrn Fálldin, devesse ser chamado como testemunha, Jerker Holmberg e Sonja Modig agitaram-se nas cadeiras, pouco à vontade.
Durante cinco horas tinham examinado, uns atrás dos outros, os nomes das pessoas identificadas como membros activos da Secção, o que permitira comprovar que a lei fora infringida e que era necessário proceder a detenções. Ao todo, tinham sido identificadas e relacionadas com o apartamento na Artillerigatan sete pessoas. Em seguida, tinham sido identificadas nove pessoas que se supunha terem laços
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com a Secção mas que nunca apareciam na Artillerigatan. Trabalhavam principalmente na Sapo, em Kungsholmen, mas conheciam um ou outro dos activos da Secção.
- É impossível, de momento, dizer até onde se estende a conspiração. Não sabemos em que circunstâncias estas pessoas se encontram com o Wadensjõõ ou com qualquer um dos outros. Podem ser informadores, ou podem estar convencidas de que estão a colaborar em inquéritos internos, ou qualquer coisa nesta linha. Existe, pois, uma dúvida quanto às suas implicações que só poderá ser dissipada depois de ter tido ocasião de as ouvir. Além disso, estamos apenas a falar das pessoas que referenciámos no decurso das semanas em que houve vigilância. Pode haver outros implicados que ainda não conhecemos.
- Mas o secretário-geral e o director do orçamento...
- Podemos afirmar com toda a certeza que trabalham para a Secção.
Eram seis da tarde de segunda-feira quando Ragnhild Gustavsson decidiu fazer uma pausa de uma hora antes de retomar os trabalhos.
Foi no momento em que toda a gente se punha de pé e começava a mover-se que o colaborador de Rosa Figuerola na unidade de intervenção da Defesa da Constituição, Jesper Thoms, pediu para falar com a chefe para pô-la a par do que tinha acontecido nas últimas horas.
- O Clinton esteve a fazer diálise durante a maior parte do dia e voltou a Artillerigatan por volta das três. O único que fez alguma coisa especial foi o Georg Nystrõm, só que não sabemos muito bem o quê.
- Ah, bom - disse Rosa.
- A uma e meia da tarde, o Nystrõm dirigiu-se à Estação Central, onde se encontrou com dois indivíduos. Foram a pé até ao hotel jheraton e beberam um café ao balcão. O encontro durou um pouco mais de vinte minutos, após o que o Nystrõm voltou à Artillerigatan.
- Hum. Com quem foi que se encontrou?
- Não sabemos. São duas caras novas. Dois homens na casa dos trinta e cinco, com aspecto de serem originários da Europa de Leste. Mas, infelizmente, o nosso investigador perdeu-os quando apanharam o metropolitano.
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- Ah - disse Rosa Figuerola, cansada.
- Tenho aqui as fotografias - disse Jesper Thoms, entregando-lhe uma série de fotografias vulgares.
- Okay, obrigada - disse Rosa, pousando as fotos em cima da mesa e levantando-se para ir buscar qualquer coisa que comer. Curt Andersson, que estava junto dela, baixou os olhos para as fotografias.
- Oh, merda! - exclamou. - Os irmãos Nikoliç estão metidos nisto?
Rosa Figuerola deteve-se.
- Quem?
- Estes dois, uns patifes do pior - explicou Curt. - Tomi e Miro Nikoliç.
- Conhece-los?
- Conheço. Dois irmãos de Huddinge. Sérvios. Tivemo-los debaixo de olho várias vezes quando eles andavam na casa dos vinte. Nessa altura, eu estava na brigada antigangues. O Miro Nikoliç é o mais perigoso dos dois. Aliás, é procurado desde há um ano por agressão física agravada. Julgava que tinham voltado à Sérvia, para serem políticos, ou qualquer coisa desse género.
- Políticos?
- Sim. Foram à Jugoslávia no início dos anos noventa, para darem uma ajuda à limpeza étnica. Trabalham para um patrão da máfia chamado Arkan, que mantém uma espécie de milícia fascista privada. Tinham fama de ser shooters.
- Shooters?
- Sim. Assassinos a soldo. Iam e vinham entre Belgrado e Estocolmo. Um tio deles tem um restaurante em Norrmalm, onde trabalham oficialmente de vez em quando. Temos recebido várias indicações de que participaram em pelo menos dois assassínios ligados a ajustes de contas entre jugos, mas nunca conseguimos provas suficientes.
Rosa Figuerola ficou a olhar para as fotografias, silenciosa. De repente, ficou lívida. Olhou fixamente para Torsten Edklinth.
- O Blomkvist! - gritou, em pânico. - Não vão limitar-se a destruir-lhe a reputação. Vão matá-lo e deixar a polícia encontrar a cocaína durante o inquérito e tirar as suas próprias conclusões. Ele ia
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encontrar-se com a Erika Berger no Samirs Gryta. - Tocou no ombro de Curt Andersson. - Estás armado?
- Estou...
- Anda comigo.
Rosa Figuerola saiu a correr da sala de reuniões. O seu gabinete ficava, três portas mais adiante, no corredor. Abriu a porta e tirou a arma de serviço da gaveta da secretária. Contrariando todos os regulamentos, deixou a porta escancarada e voou para os elevadores. Curt Andersson ficou indeciso por um instante.
- Vai - disse-lhe Bublanski. - Sonja... vai com ele.
Mikael Blomkvist chegou ao Samirs Gryta às seis e vinte. Erika Berger acabava de instalar-se numa mesa livre ao lado do bar, perto das portas. Cumprimentou-a com um beijo na face. Pediram sauté d'agneau e uma caneca de cerveja para cada, que foi servida de imediato.
- Como estava a tua Menina da TV4? - perguntou Erika.
- Jeitosa, como sempre. Erika riu-se.
- Se não tens cuidado, vai acabar por tornar-se uma obsessão. Estás a imaginar, uma rapariga que resiste ao encanto de Mikael Blomkvist!
- Por acaso, até houve montes de raparigas que resistiram, ao longo dos anos - respondeu Mikael. - E o teu dia?
- Desperdiçado. Mas aceitei participar num debate sobre o SMP no Clube dos Publicitários. Será a minha última contribuição para esta história.
- Óptimo.
Não podes imaginar como é maravilhoso estar de volta à Millenium.
- E tu não podes imaginar como eu acho maravilhoso tu estares de volta. Ainda nem acredito.
- Voltou a ser agradável ir para o trabalho.
- Hum!
- Estou feliz.
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- E eu tenho de ir à casa de banho - disse Mikael, pondo-se de pé.
Afastou-se alguns passos e quase chocou com um homem de cerca de trinta anos que acabava de entrar no restaurante. Reparou que tinha ar de ser da Europa de Leste e que estava a olhar para ele. E foi então que viu a pistola-metralhadora.
Estavam a passar por Riddarholmen quando Torsten Edklinth lhes ligou a dizer que nem Mikael Blomkvist nem Erika Berger atendiam os respectivos telemóveis. Tinham-nos sem dúvida desligado, para jantarem em paz.
Rosa Figuerola praguejou furiosamente e atravessou a praça de Sõdermalm quase a 80 à hora, com a mão colada à buzina. Quando virou abruptamente para a Hornsgatan, Curt Andersson foi obrigado a agarrar-se à porta com a mão. Tinha tirado a arma de serviço do coldre e estava a verificá-la. Sonja Modig fazia o mesmo no banco de trás.
- Temos de pedir reforços - disse Curt. - Os irmãos Nikoliç não são para brincadeiras.
Rosa Figuerola assentiu.
- Vamos fazer o seguinte. Eu e a Sonja entramos directamente no Samirs Gryta, na esperança de que eles lá estejam. Tu, Curt, que conheces os irmãos, ficas cá fora e manténs os olhos bem abertos.
- Okay.
- Se estiver tudo calmo, metemos o Blomkvist e a Berger no carro e levamo-los para Kungsholmen. Se nos cheirar a esturro, ficamos no restaurante e pedimos reforços.
- Okay - disse Sonja.
Ainda se encontravam na Hornsgatan quando o rádio do pain de bordo começou a crepitar.
A todas as unidades. Tiros de arma automática disparados em Tavasgatan, no Sõdermalm. Restaurante Samirs Gryta.
Rosa Figuerola sentiu uma cãibra contrair-lhe o ventre.
Erika Berger viu Mikael chocar com um indivíduo com cerca de 35 anos quando se dirigia para as casas de banho, a seguir à entrada. Franziu o sobrolho, sem saber verdadeiramente porquê. Teve
a impressão de que o desconhecido fixava Mikael com uma expressão de surpresa. Perguntou a si mesma se seria algum conhecido.
Então, viu o homem recuar um passo e deixar cair um saco no chão. Num primeiro instante, não percebeu o que estava a acontecer. Ficou paralisada quando o viu erguer uma arma automática e apontá-la a Mikael.
Mikael Blomkvist reagiu sem pensar. Estendeu a mão esquerda, agarrou o cano da arma e torceu-o para cima. Numa fracção de um microssegundo, a morte passou-lhe diante da cara.
O matraquear da pistola-metralhadora foi ensurdecedor naquele espaço exíguo. Uma chuva de gesso e vidro do plaffonier pulverizado caiu sobre Mikael, quando Miro Nikoliç disparou uma rajada de cerca de dez balas. Por um breve instante, Mikael Blomkvist fixou os olhos do homem que queria tirar-lhe a vida.
Então, Miro Nikoliç deu um passo atrás. Arrancou a arma das mãos de Mikael que, apanhado de surpresa largou o cano, mas percebeu instantaneamente que corria perigo de vida. Sem pensar, em vez de fugir, saltou para o seu agressor. Mais tarde, compreenderia que se tivesse reagido de maneira diferente, se se tivesse baixado ou recuado, teria morrido. Conseguiu mais uma vez agarrar o cano da arma. Serviu-se do seu peso para empurrar o homem contra a parede. Ouviu ainda seis ou sete tiros e torceu desesperadamente a pistola-metralhadora, apontando-a para o chão.
Erika Berger tinha-se baixado instintivamente quando ouviu a segunda rajada de tiros. Caiu e bateu com a cabeça na esquina de uma cadeira. Depois estendeu-se no chão, ergueu os olhos e viu os três buracos que as balas tinham deixado na parede no lugar exacto onde estivera sentada instantes antes.
Chocada, voltou a cabeça e viu Mikael Blomkvist lutar com o homem, junto às portas. De joelhos no chão, agarrava o cano da pistola-metralhadora com ambas as mãos e tentava apoderar-se dela. Viu o agressor lutar para libertar-se. Com a mão livre, esmurrava sem parar a cara e a cabeça de Mikael.
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Rosa Figuerola travou bruscamente diante do Samirs Gryta, quase arrancando a porta quando a abriu, e precipitou-se para o restaurante. Tinha a Sig Sauer na mão quando reparou no carro estacionado junto ao passeio.
Viu Tomi Nikoliç atrás do volante e apontou-lhe a pistola ao rosto, do outro lado do vidro.
- Polícia! Mãos ao alto! - gritou. - Tomi Nikoliç ergueu as mãos. - Sai do carro e deita-te no chão - gritou Rosa, com a raiva a embargar-lhe a voz. Voltou a cabeça e lançou um breve olhar a Curt Andersson. - O restaurante - disse.
Curt Andersson e Sonja Modig atravessaram a rua a correr. Sonja Modig pensou nos filhos. Ia contra tudo o que aprendera, entrar assim num edifício, de arma na mão, sem haver reforços no local, sem colete à prova de bala e sem fazer verdadeiramente ideia da situação... Então, ouviu o estrépito de um tiro disparado no interior do restaurante.
Mikael Blomkvist tinha conseguido introduzir o dedo médio entre o gatilho e o guarda-mato quando Miro Nikoliç recomeçou a disparar. Ouviu o ruído de vidros estilhaçados nas suas costas. Sentiu uma dor terrível no dedo quando o assassino puxou várias vezes seguidas o gatilho, mas enquanto o dedo dele ali estivesse, a arma não se podia disparar. Os murros continuavam a chover-lhe na cara e, de repente, sentiu que tinha quarenta e cinco anos e estava verdadeiramente em muito má forma física.
Assim não me vou safar. Tenho de acabar com isto.
Foi o seu primeiro pensamento racional desde que vira o homem da pistola-metralhadora.
Cerrou os dentes e enfiou ainda mais o dedo atrás do gatilho.
Depois retesou as pernas, apoiou o ombro no corpo do assassino e fez força para cima. Tirou a mão direita do cano da arma e levantou o cotovelo para se proteger da chuva de murros. Então, Miro Nikolis
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começou a bater-lhe na axila e nas costelas. Durante um segundo, ficaram de novo face a face.
No instante seguinte, Mikael sentiu que o assassino era arrastado para longe dele. Uma última e lancinante dor trespassou-lhe o dedo e foi então que viu a enorme estatura de Curt Andersson. Andersson levantou literalmente Miro Nikoliç pelo pescoço e atirou-o contra a parede. Miro Nikoliç caiu como um saco de batatas.
- Deita-te! - ouviu Sonja Modig gritar. - Polícia! Continua deitado!
Andersson ergueu a cabeça e viu-a de pé, as pernas afastadas, empunhando a arma com ambas as mãos, enquanto tentava formular uma ideia da caótica situação. Por fim, apontou a arma para o tecto e olhou para Mikael.
- Estás ferido? - perguntou.
Mikael olhou para ela, espantado. Estava a sangrar abundantemente dos sobrolhos e do nariz.
- Acho que tenho um dedo partido - disse, enquanto se sentava no chão.
Rosa Figuerola contou com a ajuda da esquadra de Sõdermalm menos de um minuto depois de ter obrigado Tomi Nikoliç a deitar-se de bruços no passeio. Identificou-se e deixou aos polícias a tarefa de se ocuparem do detido enquanto corria para o restaurante. Deteve-se à porta para avaliar a situação.
Mikael Blomkvist e Erika Berger estavam sentados no chão. Mikael tinha sangue na cara e parecia encontrar-se em estado de choque. Rosa deixou escapar um suspiro de alívio. Estava vivo. Logo a seguir, porém, franziu o sobrolho quando viu Erika Berger passar-lhe um braço pelos ombros.
Sonja Modig estava acocorada, a examinar a mão de Mikael. Curt Andersson algemava Miro Nikoliç, que mais parecia ter sido atropelado por um comboio rápido. Viu uma PM do exército sueco Caída no chão.
Ergueu os olhos e viu o pessoal do restaurante em estado de choque, clientes assustados e um cenário de louça partida, cadeiras e mesas
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caídas e outros estragos causados por um violento tiroteio. Cheirava a cordite. Mas não viu mortos nem feridos. Os agentes da carrinha de reforço irromperam porta adentro, de armas em punho. Estendeu a mão e tocou no ombro de Curt Andersson, que se pôs de pé.
- Não disseste que o Miro Nikoliç estava a ser procurado?
- Exacto. Violência física agravada, há cerca de um ano. Uma zaragata em Hallunda.
- Okay. Vamos fazer o seguinte. Eu desapareço daqui, com o Blomkvist e a Berger. Tu ficas. Versão oficial: tu e a Sonja vieram aqui para jantar, tu reconheceste o Nikoliç da tua passagem pela antigangues. Quando tentaste interpelá-lo, ele sacou da arma e começou a disparar como um louco. Tu prendeste-o.
Curt fez um ar espantado.
- Não vai pegar... Há testemunhas.
- As testemunhas vão contar que umas pessoas se puseram a lutar e que houve tiros. O importante é que a minha história aguente até aos jornais da tarde de amanhã. A versão é que os irmãos Nikoliç foram detidos por acaso porque tu os reconheceste.
Curt Andersson olhou para o caos à sua volta. E então assentiu brevemente com a cabeça.
Rosa Figuerola abriu caminho por entre a multidão de polícias que enchia a rua e instalou Erika Berger e Mikael Blomkvist no banco traseiro do seu carro. Procurou o comandante da força policial e falou-lhe em voz baixa durante cerca de trinta segundos. Fez um sinal de cabeça na direcção do carro onde Mikael e Erika esperavam. O comandante pareceu perturbado, mas acabou por aquiescer. Rosa sentou-se ao volante, conduziu até Zinkensdamn, parou o carro e olhou para trás.
- Estás muito amachucado?
- Levei umas sapatadas. Os dentes continuam todos no sítio. Acho que dei cabo de um dedo.
- Vamos às urgências de Sankt Gõran.
- Que aconteceu? - perguntou Erika Berger. - E quem é você?
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- Peço desculpa - disse Mikael. - Erika, apresento-te a Rosa Figuerola, da Sapo. Rosa, apresento-te a Erika Berger.
- Já tinha adivinhado - disse Rosa numa voz neutra, sem olhar para Erika.
- Eu e a Rosa conhecemo-nos durante o inquérito. Ela é o meu contacto na Sapo.
- Compreendo - disse Erika, que começou repentinamente a tremer, sob o efeito do choque.
Rosa Figuerola mirou Erika de alto a baixo.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Mikael.
- Interpretámos erradamente o objectivo da cocaína - disse Rosa. - Pensámos que te queriam montar uma armadilha para te comprometer. Na realidade, a ideia era matar-te e deixar que a polícia encontrasse a cocaína quando revistasse o apartamento.
- Que cocaína? - perguntou Erika. Mikael fechou os olhos por um instante.
- Leva-me a Sankt Gõran - pediu.
- Presos? - exclamou Fredrik Clinton. Sentiu uma ligeira pressão, como um torniquete, à altura do coração.
- Consideramos que não há perigo - disse Nystrõm. - Foi uma questão de puro acaso.
- Puro acaso?
- O Miro Nikoliç era procurado por uma velha história de agressões físicas. Um polícia reconheceu-o e deteve-o quando ele entrou no Samirs Gryta. O Nikoliç descontrolou-se e tentou abrir caminho a tiro.
- E o Blomkvist?
- Não esteve envolvido no acidente. Nem sequer sabemos se estava no Samirs no momento da detenção.
- Não acredito, grande merda! - exclamou Fredrik Clinton. - Esses irmãos Nikoliç, o que é que sabem?
- De nós? Nada. Para eles, o Bjõrck e o Blomkvist eram serviços relacionados com o tráfico de mulheres.
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- Mas sabem que o alvo era o Blomkvist.
- É verdade, mas não vão de certeza contar a ninguém que tinham aceitado um contrato. Vão manter-se calados até ao julgamento. Calculo que sejam condenados por porte ilegal de arma e tentativa de agressão a um representante da autoridade.
- Autênticos principiantes - disse Clinton.
- Sim, desta vez lixaram-se. Para já, vamos deixar andar o Blomkvist. Ainda nada está perdido.
Eram onze da noite quando Susanne Linder e dois sujeitos muito, muito corpulentos da Divisão de Protecção Próxima da Milton Security foram buscar Erika Berger e Mikael Blomkvist a Kungsholmen.
- Pode-se dizer que não perdes uma - disse Susanne, dirigindo-se a Erika.
- Desculpa - respondeu Erika, numa voz apagada.
O choque abatera-se sobre Erika Berger no carro, a caminho do Hospital de Sankt Gõran. De repente, compreendera que tanto ela como Mikael Blomkvist tinham estado à beira da morte.
Mikael ficou uma hora nas urgências, o tempo necessário para tratar as escoriações do rosto, passar pelo raio-X e engessar o dedo médio da mão esquerda. Tinha contusões graves na ponta do dedo e ia provavelmente perder a unha. O ferimento mais grave ocorrera, por ironia do destino, em consequência da intervenção de Curt Andersson, quando o inspector puxara Miro Nikoliç para trás. O dedo, preso entre o gatilho e o guarda-mato, partira-se como um palito. Doía infernalmente, mas não lhe punha a vida em perigo.
Mikael só se ressentiu do choque duas horas mais tarde, depois de já ter chegado à Defesa da Constituição, na Sapo, e quando estava a contar a sua versão dos factos ao inspector Bublanski e à procuradora Ragnhild Gustavsson. Subitamente, começou a tremer dos pés à cabeça e sentiu-se tão cansado que quase adormecia entre as perguntas. Seguiu-se um momento de debate.
- Não sabemos o que eles projectam fazer - disse Rosa Figuerola. - Não sabemos se queriam matar apenas o Blomkvist, ou se a Berger também devia morrer. Não sabemos se vão tentar de novo nem se ha
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mais alguém da Millennium igualmente ameaçado... E porque não matar a Salander, que representa a verdadeira ameaça séria contra a Secção?
-Já telefonei aos colaboradores da Millennium para os avisar, enquanto o Mikael estava a ser tratado - disse Erika. - Vão sair de cena até a revista aparecer nas bancas. A redacção vai ficar deserta.
A primeira reacção de Torsten Edklinth fora providenciar medidas de protecção máxima a Mikael Blomkvist e a Erika Berger. Mas, logo a seguir, tanto ele como Rosa Figuerola tinham chegado à conclusão de que talvez não fosse muito inteligente atrair atenções contactando a Brigada de Protecção de Personalidades da Sapo.
Erika Berger resolveu o problema explicando que não queria protecção policial. Pegou no telefone, ligou para Dragan Armanskij e explicou a situação. Foi assim que Susanne Linder entrou imediatamente de serviço.
Mikael Blomkvist e Erika Berger foram instalados numa safe house situada logo a seguir a Drottningholm, na estrada para Ekerõ. Era uma grande vivenda dos anos 30, com vista para o mar, anexos e terrenos. A propriedade pertencia à Milton Security, mas quem lá vivia era Martina Sjõgren, de 68 anos, viúva de Hans Sjõgren, um colaborador de longa data que tinha morrido num acidente quinze anos atrás: durante uma missão, caíra através do soalho apodrecido de uma casa abandonada para os lados de Sala. Depois do funeral, Dragan Armanskij falara com Martina e contratara-a como intendente e gerente da casa e da propriedade. Martina ocupava gratuitamente um anexo ao piso térreo e mantinha o primeiro piso em condições de receber, como acontecia algumas vezes por ano, pessoas que, por razões reais ou imaginárias, temiam pela sua segurança e a Milton Security queria esconder.
Rosa Figuerola acompanhou-os. Deixou-se cair numa cadeira da cozinha e deixou Martina Sjõgren servir-lhe um café enquanto Erika e Mikael se instalavam no andar de cima e Susanne Linder verificava Os alarmes e o equipamento de vigilância à volta da propriedade.
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- Há escovas de dentes e artigos de higiene na cómoda em frente da casa de banho - gritou Martina Sjõgren, da escada.
Susanne Linder e os dois guarda-costas da Milton Security instalaram-se numa sala do rés-do-chão.
- Não paro desde que me chamaram, às quatro da manhã - disse Susanne. - Podem marcar-me um turno de guarda, mas deixem-me dormir pelo menos uma hora.
- Podes dormir descansada - respondeu um dos homens. - Nós tratamos disto.
- Obrigada - disse Susanne, e foi-se deitar.
Rosa Figuerola olhava distraidamente enquanto os dois guardas ligavam os detectores de movimento no jardim e tiravam à sorte quem ia fazer o primeiro turno. O que perdeu preparou uma sanduíche e foi instalar-se na sala ao lado da cozinha. Rosa Figuerola fitou as chávenas de café, decoradas com motivos florais. Também ela estava a pé desde muito cedo e também ela se sentia exausta. Preparava-se para ir para casa quando Erika Berger desceu, encheu uma chávena de café e foi sentar-se do outro lado da mesa.
- O Mikael adormeceu como uma pedra mal pousou a cabeça na almofada.
- Uma reacção à adrenalina - explicou Rosa Figuerola.
- O que é que vai acontecer agora?
- Vocês os dois vão fazer-se pequeninos durante uns dias. Dentro de uma semana estará tudo terminado para um lado ou para o outro. Como se sente?
- Ainda um pouco abalada. Não é todos os dias que acontecem coisas destas. Acabo de telefonar ao meu marido para lhe explicar por que não volto a casa esta noite.
- Hum.
- Sou casada com...
- Eu sei com quem é casada. - Fez-se silêncio. Rosa Figuerola esfregou os olhos e bocejou. - Preciso de ir para a cama - disse.
- Por favor, deixa-te de parvoíces e vai-te deitar com o Mikael - disse Erika.
Rosa Figuerola olhou para ela.
- Nota-se assim tanto? Erika assentiu com a cabeça.
- O Mikael disse qualquer coisa...
- Nem uma palavra. Regra geral, é muito discreto no respeitante às namoradas. Mas, por vezes, é como um livro aberto. E quanto a ti, a tua maneira de olhar para mim é francamente hostil. Tentam os dois esconder qualquer coisa.
- É o meu chefe.
- O teu chefe?
- O Torsten Edklinth ficaria furioso se soubesse que eu e o Mikael...
- Compreendo. - Silêncio. - Não sei o que se passa entre os dois, mas não sou uma rival - declarou Erika.
- Não?
- O Mikael é meu amante de vez em quando. Mas não estou casada com ele.
-Já tinha ouvido dizer que tinham uma relação especial. Falou-me de ti quando estivemos em Sandhamn.
- Levou-te a Sandhamn? Então a coisa é séria.
- Não gozes comigo.
- Rosa... espero que tu e o Mikael... vou tentar manter-me no meu lugar.
- E se não conseguires?
Erika Berger encolheu os ombros.
- A ex-mulher do Mikael passava-se completamente quando ele lhe era infiel comigo. Pô-lo na rua. A culpa foi minha. Enquanto o Mikael for solteiro e disponível, não tenciono ter escrúpulos. Mas prometi a mim mesma que se ele andasse a sério com alguém, me manteria afastada.
- Não sei se me atrevo a empenhar-me.
- O Mikael é especial. Tu estás apaixonada por ele.
- Acho que sim.
- Nesse caso, não o ponhas já entre a espada e a parede. Agora vai-te deitar.
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Rosa hesitou um instante. Depois subiu a escada, despiu-se e enfiou-se na cama muito chegada a Mikael. Ele murmurou qualquer coisa e passou-lhe o braço pela cintura.
Erika Berger ficou sozinha com as suas reflexões por um longo momento. Subitamente, sentia-se profundamente infeliz.
CAPÍTULO 25
QUARTA-FEIRA, 13 DE JULHO - QUINTA-FEIRA, 14 DE JULHO
MIKAEL Blomkvist sempre se perguntara porque seria o som dos altifalantes dos tribunais de primeira instância tão baixo e discreto. Teve dificuldade em distinguir as palavras que anunciavam que o julgamento de Lisbeth Salander teria início na Sala 5, às dez horas. De todos os modos, chegara cedo e fora postar-se diante das portas da sala de audiências, e por isso fora um dos primeiros a entrar. Instalou-se na galeria destinada à assistência, do lado esquerdo da sala, de onde teria uma melhor vista para a mesa da defesa. O resto da galeria encheu-se rapidamente. O interesse dos media crescera com a aproximação do julgamento, e o procurador Ekstrõm fora entrevistado todos os dias.
Ekstrõm não se poupara.
Lisbeth Salander era acusada de violência e de violência agravada contra Carl-Magnus Lundin; de ameaça, tentativa de homicídio e violência agravada contra o entretanto falecido Karl Axel Bodin, aliás Alexander Zalachenko; de duas entradas por arrombamento, uma na casa de campo do falecido Nils Bjurman, advogado, e outra no apartamento do mesmo Bjurman em Odenplan; de roubo de veículo motorizado - uma Harley Davidson pertencente a um tal Sonny Nieminen, membro do Moto-Clube de Svavelsjõ; de posse ilegal de três armas - uma lata de gás pimenta, um taser e uma Wanad P-83 polaca - encontrada em Gosseberga; de roubo e ocultação de provas - a formulação era vaga, mas visava a documentação que encontrara na casa de campo de Bjurman - e ainda de um certo número de delitos menores. No total, 16 acusações.
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Ekstrõm deixara igualmente transpirar insinuações sobre o estado mental de Lisbeth Salander, que deixava muito a desejar. Baseava-se, em parte, na perícia psiquiátrica do Dr. Jesper H. Lõderman, feita por ocasião da maioridade da acusada, e por outra numa nova perícia que, por decisão do tribunal de primeira instância aquando de uma audiência preparatória, tinha sido feita pelo Dr. Peter Teleborian. Uma vez que a doente mental, fiel ao seu hábito, recusara categoricamente falar com os psiquiatras, a análise fora feita a partir de "observações" levadas a cabo durante a sua detenção no estabelecimento prisional de Kronoberg, em Estocolmo, no mês anterior ao julgamento. Teleborian, que tinha muitos anos de experiência com aquela paciente, defendia que Lisbeth Salander sofria de uma grave perturbação psíquica, e usava palavras como psicopatia, narcisismo patológico e esquizofrenia paranóide.
Os media tinham relatado que, interrogada sete vezes pela polícia, a acusada recusara dizer nem que fosse bom-dia aos que a questionavam. Os primeiros interrogatórios tinham sido conduzidos pela polícia de Gotemburgo, e os últimos no edifício da sede da Polícia em Estocolmo. As gravações do processo-verbal davam nota de tentativas simpáticas de comunicação, de persuasão e de perguntas constantemente repetidas, mas de nenhuma resposta.
Nem sequer um pigarrear.
Em diversas ocasiões, ouvia-se também a voz de Annika Gianni-ni nas fitas magnéticas, quando verificava que a sua cliente não tinha manifestamente a intenção de responder. A acusação contra Lisbeth Salander assentava, pois, exclusivamente em provas técnicas e nos factos que a investigação policial conseguira estabelecer.
O silêncio de Lisbeth colocara por vezes a sua advogada em situações embaraçosas, uma vez que a obrigava a mostrar-se praticamente tão taciturna como a cliente. Aquilo que Annika Giannini e Lisbeth Salander discutiam em particular era, bem entendido, confidencial.
Ekstrõm não fez qualquer segredo da sua intenção de pedir, em primeiro lugar, o internamento psiquiátrico de Lisbeth Salander e, em segundo, a pena de prisão consequente. Normalmente, estes pedidos eram formulados na ordem inversa, mas o procurador considerava
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que no caso de Lisbeth Salander havia perturbações psíquicas de tal modo evidentes que não tinha alternativa. Era extremamente invulgar um tribunal contrariar uma opinião médico-legal.
Considerava igualmente que não se devia levantar a tutela de Lisbeth Salander. Numa entrevista declarara, com um ar preocupado, que havia na Suécia um certo número de pessoas sociopatas cujas perturbações psíquicas eram tão graves que constituíam um perigo para elas próprias e para os outros e que, cientificamente, a única coisa que se podia fazer era mantê-las fechadas à chave. Referia o caso de Anette, uma jovem violenta cuja vida, nos anos 70, fora transformada numa espécie de folhetim pelos media e que, passados trinta anos, continuava fechada numa instituição a ser tratada. Todas as tentativas de aligeirar as restrições tinham resultado em ataques violentos e dementes contra os pais e o pessoal encarregado de tratar dela, tendo inclusivamente chegado à automutilação. Ekstrõm afirmava que Lisbeth Salander sofria de uma forma semelhante de perturbação psíquica.
O interesse dos media fora também exacerbado pelo simples facto de a advogada de Lisbeth Salander não se ter pronunciado. Recusara sistematicamente as entrevistas que lhe ofereciam a possibilidade de expor os pontos de vista da parte contrária. Os meios de comunicação encontravam-se, pois, numa situação complicada: por um lado, a acusação inundava-os de informação e por outro, a defesa, facto invulgar, não dava a menor indicação sobre a atitude de Salander nem da estratégia que se propunha seguir.
Este estado de coisas era comentado pelo especialista jurídico contratado para acompanhar o julgamento por conta de um vespertino. Numa das suas crónicas, este especialista reconhecia que Annika Giannini era uma advogada respeitada na área dos direitos da mulher, mas que não tinha qualquer experiência fora dessa área específica, e concluía que estava mal preparada para defender Lisbeth Salander. Mikael Blomkvist soubera, pela irmã, que vários advogados célebres a tinham contactado para oferecer os seus serviços. Seguindo instruções da sua cliente, Annika Giannini declinara delicadamente todas estas ofertas.
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Enquanto aguardava o início do julgamento, Mikael Blomkvist olhou para a assistência. De repente, descobriu Dragan Armanskij no banco ao pé da porta.
Os olhares de ambos cruzaram-se por um breve instante.
Ekstrõm tinha um enorme monte de papéis em cima da mesa. Acenava com a cabeça, em sinal de reconhecimento, a diversos jornalistas.
Annika Giannini ocupava a mesa em frente. Arrumava os seus papéis e não olhava para ninguém. Mikael teve a sensação de que a irmã estava ligeiramente nervosa. Talvez pela novidade.
Em seguida, o juiz presidente, o assessor e os jurados fizeram a sua entrada na sala. O juiz presidente, Jõrgen Iversen, era um homem de 57 anos, rosto magro e porte atlético. Mikael investigara-lhe o passado e descobrira que era considerado um magistrado muito experiente e correcto, que tinha já presidido a um certo número de casos muito mediatizados.
Finalmente, Lisbeth Salander foi introduzida na sala.
Por mais habituado que estivesse à forma chocante como Lisbeth se vestia, Mikael ficou estupefacto ao ver que Annika Giannini lhe tinha permitido apresentar-se na sala de audiências envergando uma saia curta de couro preto, com a bainha esfiapada, e um top preto que ostentava a inscrição "I am irritated" e pouco ou nada escondia as suas várias tatuagens. Usava botas militares, um cinto cheio de tachas metálicas e meias altas às riscas pretas e lilases. Tinha uma dezena de piercings nas orelhas e aros no lábio e nos sobrolhos. Os cabelos, que tinham voltado a crescer depois da operação ao crânio, pareciam uma juba negra e hirsuta. Além disso, estava extravagantemente maquilhada. O bâton era cinzento, as sobrancelhas estavam exageradamente realçadas e tinha mais rímel do que Mikael alguma vez a vira utilizar. Na época em que andavam juntos, nunca ela se mostrara particularmente interessada em maquilhagem.
Para ser diplomático, tinha um ar ligeiramente ordinário. Gótico. Fazia lembrar um vampiro de um filme da série B dos anos 60. Mikael
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reparou que muitos dos jornalistas presentes, surpreendidos, tinham contido a respiração e afixado um sorriso divertido quando ela fizera a sua aparição na sala. Agora que tinham finalmente ocasião de ver aquela rapariga afundada em escândalos, sobre a qual tanto tinham escrito, verificavam que ela correspondia amplamente às suas expectativas.
Só então se apercebeu de que Lisbeth Salander se mascarara. Em circunstâncias normais, ela vestia-se de qualquer maneira e sem o menor gosto. Mikael sempre acreditara que não se ataviava assim para seguir uma moda, e sim para afirmar uma identidade. Lisbeth Salander marcava o seu território privado como sendo um território hostil. Sempre vira as tachas do blusão de couro dela como os espinhos de um ouriço: um mecanismo de defesa. Eram um sinal dirigido aos que a rodeavam. Não tentes acariciar-me. Vais-te magoar.
Para a sua entrada no tribunal realçara de tal modo o seu estilo que o transformara quase numa paródia, tão exagerado era.
De súbito, Mikael apercebeu-se também de que não era obra do acaso. Aquilo fazia parte da estratégia de defesa de Annika.
Se Lisbeth Salander tivesse aparecido no tribunal cuidadosamente penteada, de saia e blusa e sapatinhos rasos, teria aparentado o ar de um aldrabão a tentar vender ao tribunal gato por lebre. Era uma questão de credibilidade. Apresentava-se tal como era, diferente. Talvez com um pouco de exagero, para que tudo ficasse bem claro. Não pretendia ser o que não era. A mensagem que passava ao tribunal era de que não havia qualquer razão para se envergonhar nem para fazer pose. Se o tribunal tinha problemas com o seu aspecto físico, o problema não era dela. A sociedade acusava-a de uma série de crimes e o procurador arrastava-a perante a justiça. Pelo modo como se apresentou já indiciara que tencionava tratar os argumentos do procurador como imbecilidades sem consistência.
Avançou com passo seguro e sentou-se no lugar que lhe estava designado, junto da sua advogada. Passou os olhos pela galeria da assistência. Não denotavam qualquer curiosidade. Dir-se-ia antes que aparava e registava as pessoas que já a tinham condenado nas páginas dos media.
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Era a primeira vez que Mikael a via desde que a encontrara como uma boneca de trapos ensanguentada num banco de cozinha em Gosseberga, e mais de ano e meio se tinha passado desde que a vira em circunstâncias normais. Isto se a expressão "circunstâncias normais" podia alguma vez aplicar-se tratando-se de Lisbeth Salander. Durante alguns segundos, os olhares dos dois encontraram-se. Ela deteve-se um curto momento à sua frente, mas não deu qualquer sinal de o ter reconhecido. Em contrapartida, reparou nas nódoas negras que cobriam o rosto de Mikael e o adesivo cirúrgico no sobrolho direito. Por uma fracção de segundo, Mikael teve a impressão de ver nos olhos dela o brilho de um sorriso. Não saberia dizer se o tinha ou não imaginado. Então, o juiz Iversen bateu com o martelo e a audiência
começou.
Ao todo, a assistência permaneceu exactamente meia hora na sala do tribunal. Ouviu o procurador Ekstrõm apresentar os factos e expor os termos da acusação.
Todos os jornalistas, com excepção de Mikael Blomkvist, tomaram febrilmente notas, apesar de já estarem fartos de saber de que crimes tencionava Richard Ekstrom acusar Lisbeth Salander. Quanto a Mikael, já escrevera o seu artigo e fora ao tribunal exclusivamente para marcar presença e ver Lisbeth. A exposição introdutória de Ekstrom durou 22 minutos. A réplica de Annika Giannini durou trinta segundos. A voz dela soou firme e calma.
- A defesa recusa todos os pontos da acusação excepto um. A minha constituinte considera-se culpada da posse ilegal de armas, na ocorrência uma lata de gás pimenta. Em relação a todos os outros pontos, a minha constituinte nega qualquer responsabilidade ou intenção criminosa. Vamos demonstrar que as afirmações do procurador são falsas e que a minha constituinte foi vítima de abuso judicial agravado. Vou exigir que a minha constituinte seja considerada inocente, que a tutela a que está sujeita seja anulada e que seja colocada
em liberdade.
Ouvia-se o rabiscar das esferográficas dos jornalistas nos blocos de notas. A estratégia da Dra. Giannini fora finalmente revelada, e era muito diferente daquela de que todos estavam à espera. A maior parte
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dos jornalistas pensou que a advogada ia invocar a doença mental da cliente e usá-la em seu favor. Mikael não pôde deixar de sorrir.
- Hum - disse o juiz Iversen, anotando qualquer coisa. Olhou para Annika Giannini. - Terminou?
- Não tenho mais nada a acrescentar.
- A acusação tem alguma coisa a acrescentar? - Perguntou o juiz Iversen.
Foi neste ponto que o procurador pediu que as deliberações prosseguissem à porta fechada, argumentando que estava em causa o estado psíquico e o bem-estar de uma pessoa que já sofrera muito, bem como os pormenores que poderiam afectar a segurança nacional.
- Suponho que se está a referir ao pretenso caso Zalachenko? -perguntou Iversen.
- Exactamente. Alexander Zalachenko chegou à Suécia como refugiado político, tentando fugir de uma terrível ditadura. Certos aspectos do modo como o caso foi tratado, ligações entre pessoas e outros elementos desse género são ainda considerados segredos de Estado, apesar de Herr Zalachenko já ter falecido. Por isso, peço que a audiência prossiga à porta fechada e que seja imposto o sigilo profissional no caso de as deliberações se vierem a revelar particularmente sensíveis.
- Compreendo - disse Iversen, franzindo a testa.
- Além disso, uma grande parte das deliberações vai ter que ver com a tutela da acusada. O que, naturalmente, aborda questões por norma consideradas confidenciais, e é por sentir simpatia pela acusada que peço que o julgamento decorra à porta fechada.
- Qual é a posição da defesa em relação ao pedido do procurador?
- No que nos diz respeito, é indiferente.
O juiz Iversen reflectiu um instante. Consultou o seu assessor e em seguida declarou, para grande irritação dos jornalistas presentes, que acedia ao pedido do procurador. Mikael Blomkvist teve de deixar a sala.
Dragan Armanskij esperava-o ao fundo da escadaria do Palácio da Justiça. Naquele dia de Julho estava um calor tórrido e Mikael
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sentiu que duas manchas de suor se formavam por debaixo das axilas. Os dois guarda-costas seguiram-no até ao passeio, cumprimentaram Armanskij com um aceno de cabeça e examinaram os arredores.
- Faz-me confusão andar por aí com guarda-costas - queixou-se Mikael. - Quanto é que custa esta brincadeira?
- É por conta da casa. Tenho um interesse especial em mantê-lo vivo. Mas gastámos o equivalente a duzentas e cinquenta mil coroas, nos últimos meses.
Mikael assentiu com a cabeça.
- Um café? - propôs, mostrando a cafetaria italiana na Bergsgatan. Armanskij aceitou. Mikael pediu um caffe latte e Armanskij um
espresso duplo com um pouco de leite. Instalaram-se à sombra, na esplanada. Os guarda-costas ocuparam uma mesa ao lado, com um copo de coca-cola à frente de cada um.
- Porta fechada - disse Armanskij.
-Já era de esperar. Para nós, é preferível. Controlamos melhor o fluxo de informação.
- Sim, não faz grande diferença. Mas cada vez gosto menos desse Richard Ekstrõm.
Mikael concordou. Beberam os respectivos cafés enquanto contemplavam a fachada do Palácio da Justiça, onde se decidiria a sorte de Lisbeth Salander.
- O contra-ataque está lançado - disse Mikael.
- E foi muito bem preparado - respondeu Armanskij. - Devo dizer que a sua irmã me impressionou. Quando começou a expor a estratégia que tinha preparado, julguei que estava a brincar, mas quanto mais penso no assunto, mais acertada me parece.
- Este julgamento não vai resolver-se ali dentro - disse Mikael. Havia vários meses que repetia estas palavras, como um mantra.
- Vai ser chamado como testemunha - avisou Armanskij.
- Eu sei. Estou preparado. Mas será só depois de amanhã. Pelo menos, estamos a contar com isso.
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O procurador Richard Ekstrõm tinha esquecido em casa os óculos de lentes progressivas, de modo que teve de empurrar para a testa os de ver ao longe e semicerrar os olhos para ler as suas próprias notas, escritas numa letra miudinha. Passou rapidamente a mão pela barbicha antes de repor os óculos no devido lugar e olhar em redor. Lisbeth Salander, sentada com as costas muito direitas, olhava para ele com uma expressão insondável. O rosto e os olhos permaneciam imóveis. Parecia completamente ausente. Fosse como fosse, chegara o momento de iniciar o interrogatório.
- Gostaria de recordar-lhe, Frõken Salander, que se encontra sob juramento - acabou Ekstrõm por dizer. - Lisbeth Salander não se mexeu. Ekstrõm parecia estar à espera de uma reacção qualquer, e aguardou alguns segundos. Ergueu os olhos. - Encontra-se, portanto, sob juramento - repetiu.
Lisbeth Salander inclinou quase imperceptivelmente a cabeça. Annika Giannini estava ocupada a ler qualquer coisa no relatório do inquérito preliminar e não parecia interessada no que o procurador dizia. Ekstrõm remexeu nos seus papéis. Após um instante de desconfortável silêncio, pigarreou para limpar a garganta.
- Muito bem - disse, num tom que se pretendia razoável. - Vamos então directamente aos acontecimentos que tiveram lugar na casa de campo do falecido Nils Bjurman, em Stallarholmen, a 6 de Abril deste ano, acontecimentos que serão o ponto de partida da minha apresentação dos factos esta manhã. Vamos tentar esclarecer as razões que a levaram a dirigir-se a Stallarholmen e atingir a tiro Carl-Magnus Lundin.
Ekstrõm incitava Lisbeth com o olhar. Ela permaneceu imóvel. O procurador pareceu subitamente exasperado. Abriu as mãos e voltou-se para o juiz presidente, com uma expressão de impotência. O juiz Iversen hesitou. Olhou para Annika Giannini, que continuava Embrenhada na leitura de um documento, totalmente alheia ao que a rodeava.
O juiz tossicou. Pousou os olhos em Lisbeth Salander.
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- Devemos interpretar o seu silêncio como uma recusa de responder às perguntas? - indagou.
Lisbeth Salander rodou a cabeça e enfrentou-lhe o olhar.
- Quero responder às perguntas - declarou. O juiz Iversen assentiu com a cabeça.
- Pode então responder à pergunta - disse o procurador Ekstrõm. Lisbeth Salander voltou-se de novo para ele. E não disse uma palavra.
- Fará o favor de responder à pergunta? - interveio severamente o juiz Iversen.
Lisbeth Salander voltou-se uma vez mais para olhar para ele e arqueou as sobrancelhas. A sua voz soou nítida e clara.
- Que pergunta? Até ao momento, este senhor - fez um gesto de cabeça na direcção de Ekstrõm - fez um certo número de afirmações sem qualquer prova. Não ouvi nenhuma pergunta.
Annika Giannini ergueu os olhos. Pousou os cotovelos na mesa e
o queixo na palma da mão, com um súbito brilho de interesse nos olhos.
Durante alguns segundos, o procurador Ekstrõm pareceu perdido.
- Importa-se de repetir a pergunta? - pediu o juiz Iversen.
- Perguntei... foi à casa de campo de Nils Bjurman em Stallarholmen com a intenção de disparar contra Carl-Magnus Lundin?
- Não, o que disse foi: "Vamos tentar esclarecer as razões que a levaram a dirigir-se a Stallarholmen e atingir a tiro Carl-Magnus Lundin." Não foi uma pergunta. Foi uma afirmação que antecipava a minha resposta. Não sou responsável pelas suas afirmações.
- Não seja impertinente. Responda à pergunta.
- Não.
Silêncio.
- Como não?
- É a resposta à pergunta.
O procurador Ekstrõm suspirou. Ia ser um longo dia. Lisbeth Salander olhava para ele, à espera da continuação.
- Talvez seja preferível recomeçar do princípio - disse Ekstrõm. - Encontrava-se na casa de campo do falecido Nils Bjurman, em Stallarholmen, na tarde de 6 de Abril deste ano?
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- Sim.
- Como chegou lá?
- Apanhei o comboio para Sõdertálje e depois o autocarro de Strãngnãs.
- Por que razão foi a Stallarholmen? Tinha combinado encontrar-se lá com Carl-Magnus Lundin e Sonny Nieminen?
- Não.
- Como é que eles apareceram lá?
- Terá de perguntar-lhes.
- Neste momento, pergunto-lhe a si.
Lisbeth Salander não respondeu.
O juiz Iversen tossicou.
- Penso que Frõken Salander não responde porque, semanticamente, voltou a fazer uma afirmação - disse o juiz, cheio de boa vontade.
Annika Giannini abafou repentinamente um ataque de riso, mas não tão bem que não fosse ouvida. Calou-se no mesmo instante e voltou a embrenhar-se nos seus papéis. Ekstrõm lançou-lhe um olhar irritado.
- Em sua opinião, o que foram fazer o Lundin e o Nieminen à casa de campo de Nils Bjurman?
- Não sei. Calculo que para lhe pegar fogo. O Lundin tinha um litro de gasolina numa garrafa de plástico dentro do alforge da Harley Davidson.
Ekstrõm fez uma careta.
- E a menina, Frõken Salander, que foi fazer à casa de campo de Nils Bjurman?
- Procurava informações.
- Que espécie de informações?
- As informações que, suponho eu, o Lundin e o Nieminen queriam destruir, e que podiam ajudar a esclarecer quem tinha matado o outro monte de esterco.
- Considera que Nils Bjurman era um "monte de esterco"? Compreendi bem?
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- Sim.
- Porquê essa avaliação da sua parte?
- Aquele homem era um porco sádico, um sacana e um violador, portanto um monte de esterco.
Citara, aproximadamente, o texto que tinha sido tatuado no ventre do falecido Dr. Bjurman e, ao fazê-lo, reconhecia indirectamente que fora a autora desse texto. Mas o facto não fazia parte das acusações contra ela. Bjurman nunca denunciara aquela violência à polícia e era impossível determinar se se deixara tatuar voluntariamente ou se fora obrigado.
- Alega, então, que o seu tutor terá abusado de si. Pode dizer-nos quando aconteceram esses abusos?
- Aconteceram na quarta-feira, 18 de Fevereiro de 2003, e de novo na sexta-feira, 7 de Março, do mesmo ano.
- Recusou responder a todas as perguntas dos inspectores da polícia que tentaram comunicar consigo durante os interrogatórios. Porquê?
- Não tinha nada a dizer-lhes.
- Li a pretensa autobiografia que, aqui há dias, a sua advogada apresentou repentinamente. Devo dizer-lhe que se trata de um documento estranho, ao qual voltaremos mais à frente. Mas, nele, afirma que, na primeira ocasião, o doutor Bjurman a obrigou a fazer-lhe sexo oral, e que, na segunda, a violou várias vezes, recorrendo à tortura durante uma noite inteira. - Lisbeth não respondeu. - Isto é verdade?
- É.
- Denunciou essas violações à polícia?
- Não.
- Porque não?
- Porque noutras ocasiões a polícia nunca me quis ouvir. Não fazia sentido denunciar-lhes fosse o que fosse.
- Falou desses abusos a alguém? A uma amiga?
- Não.
- Porque não?
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- Porque ninguém tinha nada com isso.
- Muito bem. Mas consultou um advogado?
- Não.
- E procurou um médico para tratar dos ferimentos que lhe teriam sido infligidos?
-Não.
- E não procurou a ajuda da SOS-Mulheres.
- Está outra vez a fazer afirmações.
- Peço perdão. Procurou a ajuda da SOS-Mulheres?
- Não.
Ekstrõm voltou-se para o juiz presidente.
- Gostaria de chamar a atenção do tribunal para o facto de a acusada ter declarado ter sido vítima de dois abusos sexuais, o segundo dos quais deve ser considerado extremamente grave. Afirma que o autor dessas violações foi o seu tutor, o falecido Nils Bjurman. Paralelamente, há que ter em consideração os factos seguintes. - Remexeu nos papéis que tinha em cima da mesa. - A investigação policial não encontrou nada no passado do doutor Bjurman que apoie a veracidade das afirmações de Lisbeth Salander. Nils Bjurman nunca foi condenado. Nunca foi objecto de qualquer denúncia ou de qualquer investigação policial. Já tinha sido tutor ou curador legal de várias outras jovens e nenhuma delas admite ter sido vítima de qualquer espécie de abuso. Pelo contrário, todas afirmam e insistem que o doutor Bjurman sempre teve para com elas um comportamento irrepreensível. - Voltou uma página. - É também meu dever recordar que foi diagnosticada a Lisbeth Salander uma esquizofrenia paranóide. Vários documentos atestam que esta jovem apresenta uma acentuada propensão para a violência e que sempre teve, desde a infância, problemas no seu relacionamento com a sociedade. Passou vários anos internada numa instituição pedopsiquiátrica e encontra-se sob tutela desde os dezoito anos. Apesar de lamentável, há razões para que assim seja. A minha convicção é de que não precisa de prisão, mas de cuidados médicos. - Fez uma pausa, por uma questão de efeito oratório. - Discutir o estado mental de uma pessoa tão jovem
é um exercício repugnante. São muitas adversidades que têm que ver
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com a sua vida privada, e todo o seu comportamento se torna objecto de interpretações. No caso presente podemos, no entanto, basear-nos no confuso mundo da própria Lisbeth Salander. Uma imagem que surge com a mais límpida evidência na sua pretensa autobiografia. Em parte alguma a ausência da sua ligação à realidade surge tão claramente como aqui. Não há aqui necessidade de testemunhas ou de interpretações que joguem com as palavras. Temos as palavras dela. Podemos julgar por nós mesmos a credibilidade das suas afirmações. Voltou-se para Lisbeth Salander. Os olhos de ambos encontraram-se. Lisbeth sorriu. Tinha um ar malévolo. Ekstrõm franziu a testa.
- Doutora Giannini, tem alguma coisa a declarar? - perguntou
o juiz Iversen.
- Nada - respondeu Annika Giannini. - A não ser que as conclusões do procurador Ekstrõm não passam de puras fantasias.
A audiência da tarde começou com a audição de uma testemunha, Ulrika von Liebenstaahl, da Comissão de Tutelas, que Ekstrõm tinha convocado para tentar esclarecer se alguma vez fora feita alguma queixa do Dr. Bjurman. A eventualidade foi veementemente negada pela testemunha, que considerou a afirmação ofensiva.
- É feito um controlo rigoroso de todos os casos de tutela. O doutor Bjurman encarregava-se de alguns casos por conta da Comissão de Tutelas havia já mais de vinte anos quando foi vergonhosamente assassinado. - Lançou um olhar venenoso a Lisbeth, apesar de ela não ser acusada desse crime e estar já dado como provado que Bjurman fora assassinado por Ronald Niedermann. - Durante todos esses anos, nunca foi feita uma única queixa contra o doutor Bjurman. Era um homem consciencioso, que muitas vezes deu provas de um profundo empenhamento junto dos seus tutelados.
- Não considera, portanto, verosímil que ele tenha sujeitado Lisbeth Salander a uma agressão sexual agravada?
- Considero essa afirmação absurda. Temos os relatórios mensais enviados pelo doutor Bjurman e eu encontrei-me pessoalmente com ele em diversas ocasiões para discutir este caso.
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- A doutora Giannini apresentou um requerimento no sentido de a tutela de Lisbeth Salander ser anulada com efeitos imediatos.
- Ninguém fica mais feliz do que nós, na Comissão, quando uma tutela pode ser anulada. Infelizmente, temos uma responsabilidade que nos obriga a seguir as regras em vigor. De acordo com as normas, a comissão exigiu que Frõken Salander fosse submetida a uma perícia psiquiátrica e só se for considerada curada a situação pode ser alterada.
- Compreendo.
- O que significa que tem de ser submetida a exames psiquiátricos. Coisa que, como sabe, ela recusa fazer.
O depoimento de Ulrika von Liebenstaahl arrastou-se por mais 40 minutos, durante os quais os relatórios de Bjurman foram examinados.
Annika Giannini levantou uma única questão, antes de encerrar este ponto.
- Na noite de 7 para 8 de Março de 2003, estava no quarto do doutor Nils Bjurman?
- Com certeza que não.
- Por outras palavras, ignora totalmente se as afirmações da minha constituinte são verdadeiras ou falsas?
- A acusação feita ao doutor Bjurman é insensata.
- Continua a ser apenas a sua opinião. Tem conhecimento de algum álibi que prove que ele não abusou da minha constituinte?
- Como é evidente, isso é impossível. Mas a verosimilhança...
- Obrigada. É tudo - disse Annika Giannini, cortando-lhe a palavra.
Mikael Blomkvist encontrou-se com a irmã nos escritórios da Milton Security, perto de Slussen, por volta das sete da tarde, para fazer o balanço do dia.
- Correu mais ou menos como previsto - disse Annika. - O Ekstrom engoliu a biografia da Lisbeth.
- Óptimo. Como se está ela a portar? Annika desatou a rir.
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- Às mil maravilhas, parece uma verdadeira psicopata. Com toda a naturalidade.
- Hum.
- Hoje, falou-se sobretudo de Stallarholmen. Amanhã, será Gosseberga, com depoimentos do pessoal da brigada técnica, e coisas assim. O Ekstrõm vai tentar provar que a Lisbeth foi até lá com a intenção de matar o pai.
- Okay.
- Mas somos capazes de ter um problema técnico. Esta tarde, o Ekstrõm convocou uma tal Ulrika von Liebenstaahl, da Comissão de Tutelas, que declarou que eu não tenho o direito de representar a Lisbeth.
- Como assim?
- Segundo ela, a Lisbeth encontra-se sob tutela e não tem o direito de escolher advogado.
-Ah.
- Portanto, tecnicamente, não posso ser advogada dela, uma vez que a Comissão de Tutelas não me aprovou.
- E?
- O juiz Iversen pronunciar-se-á sobre a questão amanhã de manhã. Falei à pressa com ele, depois da audiência. Julgo que vai decidir que eu continue a representá-la. O meu argumento foi que a Comissão de Tutelas teve três meses para protestar e parece um pouco descabido vir com esta história depois de o julgamento já ter
começado.
- O Teleborian vai depor na sexta-feira. É essencial que sejas tu
a interrogá-lo.
Depois de ter passado o dia inteiro de quinta-feira a estudar mapas e fotografias e a ouvir verbosas conclusões técnicas sobre o que se tinha passado em Gosseberga, o procurador Ekstrõm declarara que todas as provas indicavam que Lisbeth Salander fora a casa do pai com o objectivo de o matar. Das várias provas, a mais forte prendia-se com o facto de ter levado consigo uma arma de fogo, uma Wanad P-83 polaca.
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O facto de Alexander Zalachenko (de acordo com o relato de Lisbeth Salander) ou, para ser mais rigoroso, Ronald Niedermann (de acordo com o depoimento que Zalachenko fizera antes de ser assassinado no Hospital Sahlgrenska) ter tentado matar Lisbeth Salander e a ter enterrado numa cova aberta no bosque em nada alterava o facto de ela ter seguido o pai até Gosseberga com a intenção de o matar. E quase o conseguira, atingindo-o no rosto com uma machadada. Ekstrõm exigia que Lisbeth Salander fosse condenada por tentativa de assassínio, com premeditação, sem prejuízo da acusação por ofensas corporais agravadas.
A versão de Lisbeth Salander era que fora a Gosseberga para confrontar o pai e obrigá-lo a confessar os homicídios de Dag Svensson e Mia Johansson. Este dado era de uma importância capital para a questão da premeditação.
Quando Ekstrõm terminou o interrogatório da testemunha Melker Hansson, da brigada técnica de Gotemburgo, a Dra. Annika Giannini fez algumas perguntas breves.
- Diga-me, Herr Hansson, há, em toda a investigação e em toda a documentação técnica que reuniu, alguma coisa que permita concluir que Lisbeth Salander mente quanto ao motivo que a levou a Gosseberga? Pode provar que foi até lá com o objectivo de matar o pai?
Melker Hansson reflectiu por um instante.
- Não - acabou por responder.
- Não pode, portanto, afirmar que foi premeditado?
-Não.
- A conclusão do procurador Ekstrõm, apesar de eloquente e loquaz, não passa, pois, de especulação?
- Não, julgo que não.
- No conjunto das provas técnicas, há algum facto que contradiga Lisbeth Salander quando ela afirma ter levado a pistola polaca, uma Wanad F'-83, por puro acaso, simplesmente porque a arma se encontrava no seu saco e não sabia o que fazer com ela depois de, na véspera, a ter tirado a Sonny Nieminen, em Stallarholmen?
-Não.
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- Obrigada - disse Annika Giannini, e voltou a sentar-se. Foram as suas únicas palavras durante o depoimento de Hansson, que tinha durado uma hora.
Birger Wadensjõõ saiu do prédio da Secção na Artillerigatan por volta das seis da tarde de quinta-feira com a sensação de estar rodeado de nuvens ameaçadoras e de avançar para um naufrágio iminente. Tinha compreendido, havia já várias semanas, que o seu título de director, logo chefe, da Secção de Análise Especial não passava de um rótulo desprovido de sentido. As suas opiniões, os seus protestos e as suas súplicas não tinham qualquer peso. Fredrik Clinton retomara todos os comandos. Se a Secção fosse uma instituição aberta e oficial, o facto não teria a mais pequena importância: bastar-lhe-ia voltar-se para o seu superior directo e apresentar as suas reclamações.
Nesta situação, porém, não havia ninguém a quem pudesse queixar-se. Estava sozinho e dependente das boas graças de um homem que considerava um doente mental. E o pior era o facto de a autoridade de Clinton ser absoluta. Fedelhos do género Jonas Sandberg ou fiéis como Georg Nystrõm, todos pareciam conformar-se e obedecer cegamente ao velho moribundo.
Admitia que Clinton era uma autoridade discreta, que não procurava benefícios nem vantagens próprias. Admitia também que ele trabalhava tendo exclusivamente em mente o bem da Secção. Mas era como se toda a organização se encontrasse em queda livre, num estado de ilusão colectiva em que colaboradores experientes recusavam compreender que cada movimento que faziam, cada decisão tomada e concretizada, só servia para os aproximar mais do abismo.
Wadensjõõ sentia um peso no peito quando virou a esquina para a Linnégatan, onde arranjara um lugar para estacionar o carro. Desligou o alarme, tirou as chaves do bolso, e preparava-se para abrir a porta quando ouviu um movimento atrás de si e se voltou. O facto de estar de frente para o sol impedia-o de ver bem. Demorou alguns segundos a reconhecer o homem de elevada estatura que estava no passeio.
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- Boa tarde, Herr Wadensjõõ - disse Torsten Edklinth, director da Defesa da Constituição. - Há dez anos que não desço a terreiro, mas hoje senti que a minha presença se impunha.
Wadensjõõ olhou, perturbado, para os dois polícias à paisana que acompanhavam Edklinth. Eram Jan Bublanski e Marcus Ackerman. Subitamente, compreendeu o que ia acontecer.
- Tenho o triste dever de lhe comunicar que, por decisão do Ministério Público, está detido por uma série tão longa de infracções e delitos que seriam precisas semanas para fazer o catálogo completo.
- Que quer dizer com isso? - perguntou Wadensjõõ, fora de si.
- Significa que está preso por suspeita de cumplicidade num homicídio. E igualmente suspeito de chantagem, corrupção, prática de escutas ilegais, de vários casos de falsificação de documentos e de desfalque agravado, de cumplicidade em intrusão ilegal em domicílio, de abuso de autoridade, de espionagem e de outras ninharias. De momento, vamos dirigir-nos os dois a Kungsholmen e ter tranquilamente uma conversa muito séria.
- Nunca cometi nenhum assassínio - disse Wadensjõõ, num sopro.
- O inquérito tirará as conclusões.
- Foi o Clinton. Foi sempre o Clinton - murmurou Wadensjõõ. Torsten Edklinth assentiu com a cabeça, satisfeito.
Qualquer polícia sabe perfeitamente que há duas maneiras clássicas de conduzir um interrogatório. O polícia mau e o polícia bom. O polícia mau ameaça, pragueja, dá murros na mesa e comporta-se de um modo geral como uma besta com o objectivo de assustar o suspeito, de dominá-lo e levá-lo à confissão. O polícia bom, de preferência um velhote de cabelos grisalhos, oferece cigarros e café, acena simpaticamente com a cabeça e usa um tom razoável.
A maior parte dos polícias - mas não todos - sabe também que a técnica do polícia bom é a mais eficaz para obter resultados. O criminoso reincidente e empedernido não se sente minimamente impressionado pelo polícia mau. E o amador pouco seguro de si, que se
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deixa assustar pelo polícia mau, teria provavelmente confessado fosse qual fosse a técnica utilizada.
Mikael Blomkvist acompanhou o interrogatório de Wadensjõõ sem ser visto, numa sala contígua. A presença de um estranho fora objecto de algumas discussões internas, até que Edklinth decidira que poderia ser proveitoso ouvir as suas observações. Torsten Edklinth utilizava, verificou Mikael, uma terceira variante de interrogatório policial, o polícia indiferente, que, no caso vertente, parecia funcionar ainda melhor. Edklinth entrou na sala, encheu duas canecas de café, ligou o gravador e recostou-se na cadeira.
- Acontece que temos já todas as provas forenses necessárias contra si. Não temos, de um modo geral, o mais pequeno interesse em ouvir a sua história, a não ser para confirmar o que já sabemos. Mas gostaríamos de ter a resposta a uma pergunta: porquê? Como puderam ser tão loucos até ao ponto de liquidar pessoas, aqui na Suécia, como se estivéssemos no Chile de Pinochet? E o gravador está ligado. Se tem alguma coisa a dizer, é este o momento. Se não quiser falar, desligo o gravador, tiramos-lhe a gravata e os atacadores e arranjamos-lhe uma cela onde poderá esperar pelo seu advogado, pelo julgamento e pela condenação. - Edklinth bebeu um golo de café e não disse mais nada. Dois minutos depois, sem que nada fosse dito, estendeu a mão e desligou o gravador. Pôs-se de pé. - Alguém virá buscá-lo dentro de minutos. Boa tarde.
- Não matei ninguém - disse Wadensjõõ, quando Edklinth já tinha aberto a porta. Edklinth deteve-se.
- Não estou interessado em conversa fiada. Se quer explicar-se, sento-me e volto a ligar o gravador. Todas as autoridades suecas... e sobretudo o primeiro-ministro... estão impacientes por ouvir o que tem a dizer. Se falar, poderei encontrar-me com o primeiro-ministro, ainda esta tarde, e dar-lhe a sua versão do que aconteceu. Se não falar, será de todos os modos presente a tribunal e condenado.
- Sente-se, por favor - pediu Wadensjõõ.
O tom de resignação não escapou a ninguém. Mikael respirou mais à vontade. Estava acompanhado por Rosa Figuerola, pela procuradora Ragnhild Gustavsson, por Stefan, o colaborador anónimo da Sapo,
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e por duas outras pessoas que não conhecia. Calculou que pelo menos uma delas representasse o Ministério da Justiça.
- Não tive nada que ver com essas mortes - disse Wadensjõõ, depois de Edklinth ter voltado a ligar o gravador.
- Essas mortes - disse Mikael a Rosa Figuerola.
- Cchiiu! - respondeu-lhe ela.
- Foram o Clinton e o Gullberg. Eu não sabia nada do que eles iam fazer. Juro. Fiquei em estado de choque quando soube que o Gullberg tinha matado o Zalachenko. Nem queria acreditar que fosse verdade... nem queria acreditar. E quando soube o que tinha acontecido ao Bjõrck, ia tendo um ataque cardíaco.
- Fale-me do assassínio do Bjõrck - disse Edklinth, sem alterar o tom da voz.
- O Clinton contratou alguém. Nem sequer sei como o fez, mas eram dois jugoslavos. Sérvios, creio. Foi o Georg Nystrõm que lhes deu as instruções e lhes pagou. Quando soube, compreendi que íamos a caminho da catástrofe.
- E se começássemos pelo princípio? - sugeriu Edklinth. -Quando começou a trabalhar para a Secção?
Depois de Wadensjõõ ter começado a falar, foi impossível pará-lo. O interrogatório durou perto de cinco horas.
CAPÍTULO 26
SEXTA-FEIRA, 15 DE JULHO
Naquela manhã de sexta-feira, no estrado das testemunhas, o Dr. Peter Teleborian mostrou-se um homem que respirava confiança. Foi interrogado pelo procurador Richard Ekstrõm durante mais de 90 minutos, e respondeu com calma e autoridade a todas as perguntas. Por vezes, o seu rosto adoptava uma expressão preocupada. Outras, parecia divertido.
- Para resumir - disse Ekstrom, folheando as suas notas -, a sua convicção, como psiquiatra com muitos anos de experiência, é que Lisbeth Salander sofre de esquizofrenia paranóide?
- Sempre disse que era extremamente difícil fazer uma avaliação exacta do seu estado. A paciente, como sabe, deve ser considerada praticamente autista nas suas relações com os médicos e as autoridades. Em minha opinião, sofre de uma doença psíquica grave, mas, de momento, não posso fazer um diagnóstico exacto. Tal como não posso determinar o estado de psicose em que se encontra sem proceder a exames consideravelmente mais prolongados.
- Considera, em todo o caso, que não goza de uma boa saúde psíquica.
- Toda a história pessoal desta paciente constitui uma prova muito eloquente de que assim é.
- Teve ocasião de ler a pretensa autobiografia que Lisbeth Salander escreveu e fez chegar ao tribunal para se explicar. Como poderia comentá-la? - Peter Teleborian abriu as mãos e encolheu os ombros, mas permaneceu silencioso. - Por outras palavras, que credibilidade atribui a esse relato?
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- Nenhuma. Não passa de uma série de afirmações respeitantes a diferentes pessoas com histórias mais fantasistas do que outras. Globalmente, esta explicação escrita reforça as suspeitas de que sofre de esquizofrenia paranóide.
- Poderia dar-nos alguns exemplos?
- A mais flagrante é a pretensa violação de que acusa o seu tutor, Nils Bjurman.
- Importa-se de desenvolver um pouco?
- Todo o relato é extremamente pormenorizado. Trata-se de um exemplo clássico do tipo de imaginação delirante de que as crianças podem dar provas. Há uma infinidade de situações semelhantes em casos de incesto, em que a criança faz revelações que têm de ser refutadas pela sua própria inverosimilhança e falta de provas. Trata-se, digamos, de fantasias eróticas que até crianças muito novas podem desenvolver... Um pouco como se vissem um filme de terror na televisão.
- Actualmente, Lisbeth Salander não é exactamente uma criança, é uma mulher adulta - disse Ekstrõm.
- Sim, mas está por determinar exactamente a que nível mental se encontra. Mas, no fundo, tem razão. Lisbeth Salander é uma adulta e acredita provavelmente no relato que faz.
- Em sua opinião, são mentiras.
- Não, se ela acredita no que diz, não são mentiras. É uma história que demonstra que não é capaz de fazer a distinção entre a imaginação e a realidade.
- Não foi, portanto, violada e abusada pelo doutor Bjurman?
- Não. A probabilidade é quase nula. Lisbeth Salander tem necessidade de cuidados especializados.
- O senhor, doutor Teleborian, é pessoalmente visado no relato de Lisbeth Salander...
- É verdade, e o pormenor tem o seu picante. Mas, mais uma Vez, é a imaginação dela a funcionar. Se déssemos crédito a essa pobre rapariga, eu seria quase um pedófilo... - Fez uma pausa e sorriu, antes de continuar: - Mas ela exprime precisamente aquilo que não
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me canso de dizer. Na sua biografia, Lisbeth Salander diz-nos que foi maltratada por ter ficado isolada a maior parte do tempo que passou em Sankt Stefan, e que, à noite, eu ia visitá-la ao seu quarto. É um exemplo quase clássico da sua incapacidade de interpretar a realidade. Ou, mais exactamente, é assim que ela interpreta a realidade.
- Obrigado. Passo a palavra à defesa, caso a doutora Giannini tenha alguma pergunta...
Annika Giannini não tinha praticamente feito perguntas ou levantado objecções durante os dois primeiros dias do julgamento, pelo que havia a expectativa de que fizesse duas ou três perguntas por descargo de consciência antes de abandonar a sessão. A prestação da defesa étão lamentável que começa a tornar-se penosa, pensou Ekstrõm.
- Tenho, sim - respondeu Annika Giannini. - Tenho várias perguntas, que são capazes de ocupar algum tempo. São agora onze e meia. Proponho que façamos uma pausa para que eu possa conduzir o interrogatório a esta testemunha, sem interrupções, da parte da
tarde.
O juiz Iversen decidiu encerrar a sessão para almoço.
Curt Andersson estava acompanhado por dois agentes uniformizados quando, ao meio-dia em ponto, pousou a enorme mão no ombro do comissário Georg Nystrõm em frente à porta do restaurante Máster Anders, na Hantverkargatan.
- Bom dia. Está detido por cumplicidade em homicídio e tentativa de homicídio. As acusações formais ser-lhe-ão comunicadas pelo procurador da nação, esta mesma tarde. Aconselho-o a seguir-nos sem oferecer resistência - disse.
Georg Nystrõm pareceu não compreender a língua que Curt Andersson falava. Mas apercebeu-se de que Curt Andersson era alguém que devia seguir sem protestar.
O inspector Jan Bublanski estava acompanhado por Sonja Modig e por sete polícias uniformizados quando Stefan Bladh, da Defesa da Constituição, os deixou entrar, ao meio-dia em ponto, na área
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privada criada para os domínios da Sapo em Kungsholmen. Percorreram vários corredores até que Stefan se deteve e indicou uma porta. A secretária do secretário-geral fez um ar totalmente estupefacto quando Bublanski exibiu o seu crachá.
- Permaneça sentada, por favor - pediu Bublanski. - Isto é uma operação policial.
Avançou até à porta do gabinete interior e interrompeu o secretário-geral Albert Shenke a meio de uma conversa telefónica.
- O que é que se passa? - exigiu Shenke saber.
- Sou o inspector Jan Bublanski. Encontra-se detido por infracção à Constituição sueca. As várias acusações ser-lhe-ão formalmente comunicadas ao longo da tarde.
- Isto passa todos os limites - protestou Shenke.
- Sim, efectivamente - respondeu Bublanski.
Mandou selar o gabinete de Shenke e deixou dois polícias de guarda diante da porta, com ordens para não deixarem entrar fosse quem fosse. Estavam autorizados a usar o bastão, e até a arma de serviço, se alguém tentasse forçar a entrada.
Continuaram a procissão ao longo dos corredores até que Stefan apontou outra porta, e repetiram o processo com o director do orçamento, Gustav Atterbom.
Jerker Holmberg tinha o apoio da brigada de intervenção de Sõdermalm quando, ao meio-dia em ponto, bateu à porta de um escritório provisoriamente alugado no segundo piso de um prédio situado mesmo em frente à redacção da Millennium, na Gtítgatan.
Como ninguém respondia, Jerker Holmberg ordenou que arrombassem a porta, mas, antes que fosse necessário usar o ariete, a porta entreabriu-se.
- Polícia - disse Jerker Holmberg. - Mantém as mãos onde eu possa vê-las.
- Mas eu sou da polícia! - protestou o inspector Gõran Mârtensson.
- Eu sei. E tens licença para um monte de armas de fogo.
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- É verdade, mas sou polícia e estou de serviço.
- Pois, conta-me dessas! - atirou-lhe Holmberg. Ajudaram-no a encostar Mârtensson à parede e a tirar-lhe a arma
de serviço.
- Estás detido por praticares escutas ilegais, falta profissional grave, várias violações de domicílio em casa do jornalista Mikael Blomkvist, na Bellmansgatan, e provavelmente muitas outras coisas. Ponham-lhe as algemas.
Jerker Holmberg procedeu a uma rápida inspecção do escritório e verificou que havia ali material electrónico suficiente para montar um estúdio de gravação. Destacou um agente uniformizado para guardar o local, com instruções para ficar sentado numa cadeira e não deixar impressões digitais em coisa nenhuma.
Assim que saíram com Mârtensson pela porta principal do prédio, Henry Cortez pegou na sua Nikon e fez uma série de 22 fotografias. Não era um fotógrafo profissional e as suas fotografias deixavam muito a desejar em termos de qualidade. Mesmo assim, as imagens foram vendidas a um tablóide, no dia seguinte, por uma soma verdadeiramente indecorosa.
Rosa Figuerola foi, dos encarregados das detenções, a única que teve de fazer frente a um imprevisto. Era acompanhada pela brigada de intervenção de Norrmalm e por três colegas da Sapo quando, ao meio-dia em ponto, entrou no edifício da Artillerigatan e subiu as escadas até ao apartamento do último piso, propriedade da empresa
Bellona.
A operação fora montada num espaço de tempo muito curto. Logo que a força de intervenção ficou reunida diante do apartamento, Rosa deu a luz verde. Dois robustos polícias uniformizados da brigada de Norrmalm ergueram um ariete de aço com quarenta quilos e abriram a porta com duas pancadas bem aplicadas. Dez segundos mais tarde, a força de intervenção, equipada com coletes à prova de bala e armas automáticas, controlava o apartamento.
A equipa de vigilância, que ocupara os seus postos de madrugada, indicara que cinco indivíduos identificados como colaboradores
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da Secção tinham entrado no edifício durante a manhã. Em poucos segundos, todos foram encontrados e algemados.
Rosa Figuerola usava um colete à prova de bala. Atravessou o apartamento que servia de QG à Secção desde os anos 60 e abriu violentamente as portas, umas atrás das outras. Apercebeu-se de que ia precisar de um arqueólogo para ajudar a inventariar a quantidade de pastas que enchiam as várias divisões.
Segundos depois de ter entrado no apartamento, abriu a porta de uma pequena divisão, mais para o fundo do corredor, que fazia as vezes de quarto de dormir. E subitamente encontrou-se frente a frente com Jonas Sandberg. Aquando da distribuição de tarefas, naquela manhã, aquele indivíduo despertara alguma perplexidade. Na tarde do dia anterior, o investigador encarregado de o vigiar tinha-o perdido de vista. O carro ficara estacionado em Kungsholmen e Sandberg não passara a noite em casa. De manhã, ninguém sabia como localizá-lo e detê-lo.
Têm uma equipa de noite por razões de segurança. Evidentemente. E o Sandberg ficou a dormir aqui, depois de terminar o seu turno.
Jonas Sandberg vestia apenas umas cuecas e parecia estremunhado. Voltou-se para agarrar na arma de serviço que deixara em cima da mesa de cabeceira. Rosa Figuerola inclinou-se para a frente e, com um gesto atirou a arma para longe.
- Jonas Sandberg, estás preso por cumplicidade nos homicídios de Gunnar Bjõrck e de Alexander Zalachenko, bem como por cumplicidade na tentativa de assassínio de Mikael Blomkvist e de Erika Berger. Veste as calças.
Sandberg disparou o punho na direcção de Rosa Figuerola. Ela desviou-se do golpe por reflexo, num centésimo de segundo.
- Deves estar a brincar - disse, e, agarrando-o pelo pulso, torceu-lhe o braço para trás tão violentamente que Sandberg caiu de costas no chão. Rosa fê-lo rolar até ficar de bruços e espetou-lhe um joelho nas costas. Algemou-o ela própria. Era a primeira vez, desde que trabalhava na Sapo, que usava as algemas em serviço.
Deixou Sandberg entregue aos cuidados de um agente da polícia e continuou. Para terminar, abriu a última porta, mesmo ao fundo
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do apartamento. Segundo os planos cedidos pelos serviços municipalizados, tratava-se de um pequeno reduto cuja janela dava para o pátio. Deteve-se no umbral e contemplou o fantasma mais descarnado que alguma vez vira. Percebeu imediatamente que se encontrava na presença de um moribundo.
- Fredrik Clinton, está detido por cumplicidade de homicídio, tentativa de homicídio e toda uma série de outros crimes - disse. -Não se levante da cama. Vamos chamar uma ambulância para o levar a Kungsholmen.
Christer Malm tinha ido colocar-se mesmo junto à porta do prédio da Artillerigatan. Ao contrário de Henry Cortez, Christer sabia manejar a sua Nikon. Usou uma pequena teleobjectiva e as fotos foram muito profissionais. Mostravam os membros da Secção a sair do edifício, flanqueados por agentes da polícia, um a um, e a serem enfiados nos bancos traseiros dos carros-patrulha, e, por fim, a ambulância que tinha ido buscar Fredrik Clinton. Os olhos do velho enfrentaram a objectiva da máquina no preciso instante em que Christer carregava no botão. Tinham uma expressão inquieta e perturbada.
Mais tarde, aquela fotografia viria a ser escolhida como a "foto do ano".
CAPÍTULO 27
SEXTA-FEIRA, 15 DE JULHO
O JUIZ Iversen bateu com o martelo na pequena base de madeira às 12h30 e declarou "aberta a sessão" no tribunal correccional de primeira instância. Reparou imediatamente na terceira pessoa que aparecera junto à mesa de Annika Giannini. Holger Palmgren, sentado numa cadeira de rodas.
- Viva, Holger - saudou o juiz Iversen. - Há uma porção de tempo que não te via numa sala de audiência.
- Boa tarde, meritíssimo. Sabes, há casos tão complicados que os mais novos precisam de um pouco de assistência.
- Pensava que tinhas abandonado a actividade profissional.
- Estive doente. Mas a doutora Giannini pediu-me que fosse seu assessor neste caso.
- Compreendo. Annika Giannini tossicou.
- Permita-me acrescentar que Holger Palmgren representou Lis-beth Salander durante muitos anos.
- Bom, deixemos isso agora - disse o juiz Iversen e, com um sinal de cabeça, indicou que Annika Giannini podia começar. Annika pôs-se de pé. Nunca apreciara o mau hábito sueco de conduzir os julgamentos num tom informal, quase como um grupo de amigos sentados à volta de uma mesa para jantar. Sentia-se muito melhor quando podia falar de pé. Por isso, levantou-se.
- Penso que poderíamos começar pelos comentários que encerraram a sessão desta manhã. Doutor Teleborian, porque refuta sistematicamente qualquer afirmação que venha da parte de Lisbeth Salander?
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- Porque são manifestamente inexactas - respondeu Peter Teleborian.
Estava calmo e descontraído. Annika Giannini assentiu e voltou-se para o juiz Iversen.
- Senhor doutor juiz, Peter Teleborian afirma que Lisbeth Salander mente e fantasia. A defesa vai agora demonstrar que todas as palavras da autobiografia de Lisbeth Salander são verdadeiras. Vamos apresentar provas, escritas e procedentes de testemunhos. Chegámos à fase do julgamento em que o procurador já apresentou as grandes linhas do seu requisitório. Ouvimos, e sabemos agora, quais são as acusações que recaem sobre Lisbeth Salander.
Annika Giannini sentiu subitamente a boca seca e as mãos trémulas. Inspirou fundo e bebeu um golo de água mineral. Em seguida, agarrou com força o espaldar da cadeira, para que o tremor das mãos não lhe traísse o nervosismo.
- Do requisitório do procurador, podemos tirar a conclusão de que dispõe de muitas opiniões, mas de muito poucas provas. Acredita que Lisbeth Salander disparou contra Carl-Magnus Lundin em Stallarholmen. Afirma que ela foi a Gosseberga para matar o pai. Supõe que a minha constituinte sofre de esquizofrenia paranóide e que é uma doente mental de todas as maneiras possíveis e imaginárias. E constrói esta suposição com base nos dados de uma só fonte: o doutor Peter Teleborian. - Fez uma pausa, para normalizar a respiração. Forçou-se a falar lentamente. - A situação das provas é agora tal, que a opinião do procurador assenta exclusivamente em Peter Teleborian. Se Teleborian tem razão, tudo bem, e o melhor que pode acontecer à minha constituinte é receber a ajuda psiquiátrica adequada que ele próprio e o procurador exigem. - Pausa. - Mas se o doutor Teleborian está enganado, o caso ganha contornos completamente diferentes. Se, além disso, ele mente deliberadamente, estamos em presença de uma situação em que a minha constituinte é vítima de um abuso judiciário, um abuso que vem desde há longos anos. - Olhou para Ekstrõm. - No decurso desta tarde, vamos demonstrar que a sua testemunha está enganada e que o senhor, enquanto procurador, foi enganado e levado a aceitar essas falsas conclusões.
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Peter Teleborian arvorava um sorriso divertido. Afastou as mãos e fez um aceno de cabeça a Annika Giannini, convidando-a a começar. Annika voltou-se novamente para o juiz.
- Meritíssimo, vou demonstrar que a pretensa perícia psiquiátrica médico-legal de Peter Teleborian é um bluff do princípio ao fim. Vou demonstrar que ele mente deliberadamente a respeito de Lisbeth Salander. Vou demonstrar que a minha constituinte foi vítima de abuso de poder judicial agravado. E vou demonstrar que ela é tão inteligente e sã de espírito como qualquer outra pessoa presente nesta sala.
- Perdão, mas... - começou Ekstrõm.
- Um momento. - Annika ergueu um dedo. - Deixei-o falar sem o interromper durante dois dias. Agora é a minha vez. - Voltou-se novamente para o juiz. - Não faria acusações tão graves perante este tribunal se não dispusesse de provas irrefutáveis.
- Continue, por favor - disse Iversen. - Mas não quero ouvir histórias de grandes conspirações. Não esqueça que pode ser processada por difamação mesmo por afirmações feitas perante o tribunal.
- Não esquecerei, obrigada. - Olhou para Teleborian, que continuava a parecer divertido com a situação. - A defesa pediu várias vezes para consultar o processo de Lisbeth Salander do tempo em que, jovem adolescente, foi internada na sua clínica de Sankt Stefan. Por que razão nunca conseguimos esse processo?
- Porque o tribunal de primeira instância decidiu que era confidencial. Foi uma decisão tomada por consideração para com Lisbeth Salander, mas se um tribunal superior a tivesse anulado, ter-lhe-ia evidentemente entregado o processo.
- Obrigada. Durante os dois anos que Lisbeth Salander passou em Sankt Stefan, quantas noites foi mantida em isolamento?
- Não posso recordar o número exacto, assim do pé para a mão.
- Segundo ela, foram trezentas e oitenta das setecentas e oitenta e seis noites que passou em Sankt Stefan.
- Como digo, não sei dar-lhe um número exacto. Mas esse número é manifestamente exagerado. De onde vem?
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- Da autobiografia de Lisbeth Salander.
- E está a querer dizer que ela se recordaria hoje de cada noite passada em isolamento? Isso é impossível.
- Ah, bom. Nesse caso, se tivesse de arriscar um número, qual seria?
- Lisbeth Salander era uma paciente muito agressiva e propensa à violência, e foi sem dúvida necessário colocá-la numa sala de privação sensorial um certo número de vezes. Talvez devesse explicar o objectivo destas salas...
- Obrigada, mas não será preciso. É uma sala onde o paciente não recebe qualquer estímulo sensorial que, supostamente, possa perturbá-lo. Quantos dias e noites passou Lisbeth Salander nessa situação quando tinha treze anos?
- Estamos a falar de... aproximadamente, talvez, umas trinta vezes no decurso do internamento.
- Trinta. Uma ínfima parte das trezentas e oitenta de que ela fala.
- Inegavelmente.
- Dez por cento menos do que o número que ela dá.
- Sim.
- O processo dela poderia informar-nos de uma maneira mais exacta?
- É possível.
- Excelente - disse Annika Giannini, e tirou da pasta um grosso maço de papéis. - Nesse caso, gostaria de entregar ao tribunal uma cópia do processo de Lisbeth Salander em Sankt Stefan. Contei as anotações relativas à sua passagem pela sala de isolamento e encontrei trezentas e oitenta e uma, mais uma, portanto, do que a minha cliente afirma.
Os olhos de Peter Teleborian quase lhe saltaram das órbitas.
- Eh lá... Isso são informações confidenciais. Onde as conseguiu?
- Deu-mas um jornalista da revista Millennium. Não são, pois, assim tão confidenciais como isso, uma vez que andam pelas redacções dos jornais, à mistura com muitos outros processos. Penso que o tribunal deveria ter oportunidade de dar-lhes uma vista de olhos.
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- Tudo isto é ilegal...
- Não. Lisbeth Salander autorizou a publicação destes excertos. Porque a minha constituinte não tem nada que esconder.
- A sua cliente foi declarada interdita e não tem o direito de tomar sozinha esse género de decisões.
- Voltaremos mais adiante à declaração de interdição de Lisbeth Salander. Primeiro, vamos analisar o que lhe aconteceu em Sankt Stefan. - O juiz Iversen franziu o sobrolho e pegou no processo que Annika Giannini lhe estendia. - Não fiz uma cópia para o procurador Ekstrõm. De todos os modos, ele já recebeu estes documentos, que violam a integridade da minha cliente, há mais de um mês.
- Como disse? - perguntou o juiz.
- O procurador Ekstrõm recebeu uma cópia deste processo confidencial das mãos do doutor Teleborian aquando de um encontro que ambos tiveram no seu gabinete, às cinco da tarde de sábado, dia quatro de Junho deste ano.
- Isto é verdade? - indagou Iversen.
O primeiro impulso de Ekstrõm foi negar. Mas pensou que Annika Giannini era bem capaz de ter provas.
- Pedi-lhe para ler algumas partes do processo, sob sigilo profissional - admitiu. - Tinha de me assegurar de que a história de Lisbeth Salander correspondia de facto ao que ela conta.
- Obrigada - disse Annika Giannini. - Isto significa que temos a confirmação não só de que o doutor Teleborian mente com a mesma facilidade com que respira, mas também que infringiu a lei ao entregar um processo que ele próprio afirma estar classificado como secreto.
- Tomamos a devida nota - disse Iversen.
O juiz Iversen estava agora completamente alerta. De repente, Annika Giannini tinha atacado uma testemunha e já reduzira a cacos um dado importante do depoimento de Teleborian. E afirma poder provar tudo o que diz. Iversen ajustou os óculos no nariz.
- Doutor Teleborian, com base nesse processo que o senhor mesmo redigiu, poderá dizer-me agora quantas noites Lisbeth Salander Passou em isolamento?
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- Não tenho a mais pequena ideia de uma tal frequência, mas se é o que o processo diz, sou obrigado a acreditar.
- Trezentas e oitenta e uma noites. Não é uma frequência invulgar?
- Muito, efectivamente.
- Como reagiria o senhor se tivesse treze anos e o prendessem com correias de couro, durante mais de um ano, à sua cama? Como tortura?
- É preciso compreender que a paciente representava um perigo para si mesma e para os outros...
- De acordo. Um perigo para si mesma... Alguma vez Lisbeth Salander se automutilou?
- Havia motivos para recear...
- Repito a pergunta: alguma vez Lisbeth Salander se automutilou? Sim ou não?
- Enquanto psiquiatras, temos de aprender a interpretar os sinais no seu conjunto. No que respeita a Lisbeth Salander, é possível, por exemplo, observar-lhe no corpo um certo número de tatuagens e de piercings, que são também um comportamento autodestruidor e uma forma de automutilação. Podemos interpretar isso como uma manifestação de ódio para consigo mesma.
Annika Giannini voltou-se para Lisbeth Salander.
- As suas tatuagens são uma manifestação de ódio para consigo mesma?
- Não - respondeu Lisbeth Salander. Annika olhou para Teleborian.
- Quer então dizer que eu, que uso brincos nas orelhas e tenho, aliás, uma tatuagem num sítio verdadeiramente íntimo, represento um perigo para mim mesma?
Holger Palmgren engasgou-se, mas conseguiu disfarçar o riso num ataque de tosse.
- Não, não se trata disso... as tatuagens podem também fazer parte de um ritual social.
- Ah! Então, em sua opinião, Lisbeth Salander não se enquadra nesse ritual social?
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- É fácil verificar que as tatuagens de Lisbeth Salander são grotescas e cobrem uma grande área do seu corpo. Não é uma opção estética normal nem uma decoração corporal.
- Que percentagem?
- Perdão?
- A partir de que percentagem uma superfície tatuada deixa de ser uma opção estética para se tornar uma doença mental?
- Está a desvirtuar as minhas palavras.
- Ah, estou? Como é que então, a seu ver, um ritual social perfeitamente aceitável, no meu caso ou no de inúmeros jovens, se transforma no motivo de acusação à minha constituinte, quando se trata de avaliar o seu estado psíquico?
- Como psiquiatra, tenho o dever, como disse, de ver a situação no seu conjunto. As tatuagens são apenas um indício, um dos muitos sinais que tenho de ter em conta quando avalio o estado dela.
Annika Giannini calou-se durante alguns segundos e cravou os olhos em Peter Teleborian. Falou lentamente.
- Mas, doutor Teleborian, começou a acompanhar a minha constituinte quando ela tinha apenas treze anos. E, nessa época, ela não tinha uma única tatuagem, não é verdade? - Peter Teleborian hesitou. E Annika voltou à carga. - Penso que não a mandava amarrar à cama por prever que um dia, no futuro, ela ia tatuar-se, pois não?
- Não, claro que não. As tatuagens não têm nada que ver com o estado dela em 1991.
- O que nos traz de volta à minha pergunta inicial. Alguma vez Lisbeth Salander se automutilou de uma maneira que pudesse justificar o facto de a ter mantido amarrada a uma cama durante um ano? Alguma vez se cortou com uma navalha ou a lâmina de uma faca, ou coisa no género?
Durante um segundo, Peter Teleborian pareceu muito pouco seguro de si mesmo.
- Não, mas tínhamos todas as razões para acreditar que constituía um perigo para si mesma.
- Razões para acreditar. Quer então dizer que a amarrava porque supunha qualquer coisa...
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- Fazemos avaliações.
- Há pelo menos cinco minutos que faço a mesma pergunta. O senhor afirma que o comportamento autodestruidor da minha constituinte foi uma das razões por que a manteve amarrada a uma cama, no total, mais de um ano dos dois em que ela esteve a seu cargo. Teria a gentileza de me dar finalmente alguns exemplos do comportamento autodestruidor que ela apresentava aos doze anos?
- Era, por exemplo, extremamente subalimentada. O que se devia, entre outras coisas, ao facto de se recusar a comer. Suspeitámos de anorexia. Fomos várias vezes obrigados a alimentá-la à força.
- Por que razão?
- Porque ela se recusava a comer, evidentemente. Annika Giannini voltou-se para a sua constituinte.
- Lisbeth, é verdade que se recusava a comer, em Sankt Stefan?
- É.
- Porquê?
- Porque esse sacana misturava psicotrópicos na minha comida.
- Ah! O doutor Teleborian queria então ministrar-lhe medicamentos. Por que razão não os queria tomar?
- Não queria aqueles medicamentos. Deixavam-me apática. Não conseguia pensar e ficava tonta a maior parte do tempo que passava acordada. Era desagradável. E esse sacana recusava-se a dizer-me o que havia naqueles remédios.
- E por isso recusava-se a tomá-los?
- Sim. E então, ele começou a misturar aquela porcaria na minha comida. E eu deixei de comer. De cada vez que havia qualquer coisa na minha comida, recusava-me a comer durante cinco dias.
- Então, passou fome.
- Nem sempre. Alguns dos auxiliares levavam-me sanduíches às escondidas. Havia um, em especial, que me dava de comer ao fim da noite. Aconteceu várias vezes.
- Quer dizer que o pessoal de Sankt Stefan compreendia que tinha fome e lhe dava de comer?
- Foi durante o período em que eu lutei contra esse sacana por causa dos medicamentos.
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- Havia, portanto, uma razão perfeitamente racional para a sua recusa em comer?
-Sim.
- Não era por rejeitar a comida?
- Não. Tinha muitas vezes fome.
- Será correcto afirmar que havia um conflito entre si e o doutor Teleborian?
- Pode apostar que sim.
- Estava em Sankt Stefan por ter despejado gasolina em cima do seu pai e ter-lhe pegado fogo.
- Sim.
- Porque fez uma coisa dessas?
- Porque ele maltratava a minha mãe.
- E explicou isso a alguém?
- Sim.
- A quem?
- Disse-o aos polícias que me interrogaram, aos Serviços Sociais, à Comissão de Protecção à Infância, aos médicos, a um pastor e a esse sacana.
- Quando diz esse sacana, refere-se a...?
- A esse tipo.
E apontou para Peter Teleborian.
- Porque é que lhe chama sacana?
- Quando cheguei a Sankt Stefan, tentei explicar-lhe o que tinha acontecido.
- E o que lhe disse o doutor Teleborian?
- Não quis ouvir-me. Dizia que eu estava a fantasiar. E, como castigo, ia ficar presa até parar de inventar aquelas mentiras. E em seguida tentou empanturrar-me de psicotrópicos.
- Patetices - resmungou Peter Teleborian.
- É por isso que não lhe fala? - perguntou Annika Giannini.
- Não voltei a dirigir-lhe uma única palavra desde a noite em que fiz treze anos. Também estava amarrada, nessa noite. Foi o presente de aniversário que ofereci a mim mesma.
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Annika Giannini voltou-se de novo para Teleborian.
- Doutor Teleborian, dir-se-ia que a recusa de comer da minha constituinte tinha que ver com o facto de ela não aceitar que lhe ministrasse psicotrópicos.
- É possível que seja assim que ela vê as coisas.
- E o senhor, como as vê?
- Tinha uma paciente extremamente difícil. A meu ver, o seu comportamento mostrava que constituía um perigo para si mesma, mas é possível que isso seja uma questão de interpretação. De todos os modos, era violenta e tinha um comportamento psicótico. Não havia a mínima dúvida de que constituía um perigo para os outros. Não se esqueça de que foi internada por ter tentado matar o pai.
- Já vamos a essa parte. Foi responsável pelo tratamento dela durante dois anos. Durante trezentas e oitenta e uma noites, manteve-a amarrada a uma cama. Será possível que usasse esse método como castigo por a minha constituinte não obedecer às suas ordens?
- Isso não faz ponta de sentido.
- Não? Noto, no entanto, que, de acordo com o processo que constituiu sobre a sua paciente, a maior parte dos episódios de isolamento ocorreu durante o primeiro ano... trezentas e vinte vezes em trezentas e oitenta e uma. Por que razão interrompeu o isolamento?
- A paciente evoluiu e tornou-se mais equilibrada.
- Não terá sido por as suas medidas terem sido consideradas invulgarmente brutais pelo resto do pessoal?
- Que quer dizer com isso?
- Não terá sido por o pessoal se ter queixado, entre outras coisas, da alimentação forçada a que sujeitou a Lisbeth Salander?
- Como é evidente, pode sempre haver divergências no modo de ver as coisas. Não tem nada de invulgar. Mas era preciso alimentá-la à força porque, tendo em conta a sua violenta resistência...
- Porque ela recusava tomar psicotrópicos que a embruteciam e a tornavam passiva. Não tinha problemas em comer quando não estava sob a influência dos medicamentos. Não teria sido mais razoável, no quadro de um método de tratamento, não ter adoptado medidas coercivas?
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- Salvo o devido respeito, doutora Giannini, acontece que eu sou médico. A minha competência clínica é com certeza superior à sua. É a mim que cabe julgar da oportunidade dos tratamentos médicos a aplicar.
- É verdade que não sou médica, doutor Teleborian. Mas também não sou totalmente desprovida de competência nessa área. Além de advogada, sou psicóloga licenciada pela Universidade de Estocolmo. É uma competência indispensável na minha profissão de jurista. - Ter-se-ia ouvido um alfinete cair na sala de audiências. Ekstrõm e Teleborian olhavam para Annika Giannini, siderados. - Não é verdade que os métodos de tratamento que aplicou à minha constituinte acabaram por levar a fortes discussões entre o senhor e o seu superior hierárquico na altura, o doutor Johannes Caldin? - prosseguiu ela, implacável.
- Não... não é verdade.
- Johannes Caldin morreu há vários anos e não pode testemunhar neste tribunal. Mas temos hoje na sala de audiência alguém que o conheceu muito bem. Falo do meu assessor, o doutor Holger Palmgren. - Voltou-se para ele. - Poderia esclarecer-nos sobre este ponto?
Holger Palmgren tossicou para aclarar a garganta. Sofria as sequelas do seu AVC e era obrigado a concentrar-se para articular as palavras sem as entaramelar.
- Tornei-me tutor legal de Lisbeth Salander depois de a mãe dela, na sequência dos maus tratos infligidos pelo companheiro, que a deixaram inválida, ter ficado incapaz de ocupar-se da filha. Sofria de lesões cerebrais persistentes e hemorragias constantes.
- Está a falar de Alexander Zalachenko?
O procurador Ekstrõm inclinou-se para a frente, atento.
- Exactamente - disse Palmgren. Ekstrõm pigarreou.
- Gostaria de fazer notar que estamos a entrar numa matéria classificada como ultra-secreta.
- Não é grande segredo o facto de Alexander Zalachenko ter Maltratado a mãe de Lisbeth Salander durante anos seguidos.
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Peter Teleborian ergueu uma mão.
- Duvido de que o assunto seja tão evidente como a doutora Giannini o apresenta.
- Como assim?
- Não há a mínima dúvida de que Lisbeth Salander foi testemunha de uma tragédia familiar, que houve qualquer desavença que provocou uma agressão de extrema violência, em 1991- Mas não existe qualquer documentação que apoie a premissa de que essa situação se tenha prolongado por vários anos, como a doutora Giannini sugere. Pode ter-se tratado de um caso isolado, ou de uma discussão que degenerou. Para dizer a verdade, nem sequer há provas de que era Herr Zalachenko quem maltratava a mãe de Lisbeth Salander. Temos informações de que ela se prostituía. Pode haver outros culpados.
Annika Giannini olhou para Peter Teleborian, espantada. Pareceu ter ficado sem voz durante um curto instante. Então, o olhar dela endureceu.
- Importa-se de especificar, por favor - pediu.
- O que quero dizer é que, na prática, temos apenas a afirmação de Lisbeth Salander como base.
-E?
- Em primeiro lugar, há duas irmãs. Camilla, a irmã de Lisbeth, nunca fez esse tipo de acusações. Negou que tais coisas tenham acontecido. Em segundo lugar, é preciso ter em consideração que, se tivesse efectivamente havido maus-tratos da dimensão referida pela sua constituinte, o facto constaria, sem dúvida, dos inquéritos da Assistência Social.
- Há algum interrogatório a Camilla Salander que possamos consultar?
- Interrogatório?
- Tem algum documento que prove que Camilla Salander foi interrogada sobre o que se passava em casa delas?
Lisbeth Salander contorceu-se na cadeira quando o nome da irmã foi pronunciado. Olhou para Annika Giannini.
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- Parto do princípio que a Assistência Social fez um inquérito...
- Ainda agora afirmou que Camilla Salander nunca tinha feito quaisquer acusações contra Alexander Zalachenko, que, muito pelo contrário, negava que ele maltratasse a mãe. A sua declaração foi categórica. De onde recebeu essa informação?
Peter Teleborian permaneceu silencioso alguns segundos. Annika Giannini viu a expressão dele mudar quando se apercebeu de que tinha cometido um erro. Sabia o que se iria passar a seguir, mas não tinha modo de evitá-lo.
- Julgo que foi através do inquérito da polícia - acabou por dizer.
- Julga... Quanto a mim, procurei em todo o lado um inquérito da polícia sobre os acontecimentos na Lundagatan, quando Alexander Zalachenko foi gravemente queimado. Tudo o que encontrei foram os magros relatórios dos agentes enviados ao local.
- É possível...
- Gostaria então de saber como é que leu um relatório da polícia que não está disponível para a defesa.
- Não posso responder a essa pergunta - disse Teleborian. - Tive ocasião de consultar esse relatório quando, em 1991, fiz uma perícia médico-legal a Lisbeth Salander, após a tentativa de assassínio do pai.
- O procurador Ekstrõm teve acesso a esse relatório?
Ekstrõm agitou-se e passou a mão pela barbicha. Já compreendera que tinha subestimado Annika Giannini. Em todo o caso, não havia qualquer razão para mentir.
- Sim, consultei-o.
- Porque é que a defesa não teve acesso a esse material?
- Não o considerei de interesse para o julgamento.
- Importa-se de dizer-me como teve acesso a esse relatório? Sempre que me dirigi à polícia, foi-me dito que não existia.
- O inquérito foi conduzido pela Sapo. É um documento confidencial.
- A Sapo investigou então um caso de agressões físicas agravadas contra uma mulher e decidiu classificá-lo como ultra-secreto?
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- Por causa do autor... Alexander Zalachenko. Era um refugiado político.
- Quem conduziu o inquérito? - Silêncio. - Não ouvi nada. Que nome aparecia na primeira página?
- O inquérito foi conduzido por Gunnar Bjõrck, chefe dos Serviços de Estrangeiros da Sapo.
- Obrigada. Estamos a falar do mesmo Gunnar Bjõrck que a minha constituinte acusa de ter colaborado com o doutor Peter Teleborian para falsificar o relatório médico-legal de 1991, a respeito dela?
- Suponho que sim.
Annika Giannini voltou novamente a sua atenção para Peter Teleborian.
- Em 1991, um tribunal de primeira instância tomou a decisão de internar Lisbeth Salander numa clínica de pedopsiquiatria. Porque tomou o tribunal essa decisão?
- O tribunal fez uma avaliação cuidadosa dos actos e do estado psíquico da sua cliente... que, ao fim e ao cabo, tinha tentado matar o pai com um cocktail molotov. Não é uma acção praticada por adolescentes normais, tatuados ou não.
Peter Teleborian sorriu delicadamente.
- E em que baseou o tribunal a sua avaliação? Se bem entendi, tinha apenas a opinião médico-legal para se orientar. Uma opinião redigida por si e por um polícia chamado Gunnar Bjõrck.
- Doutora Giannini, caímos em cheio na teoria da conspiração que a sua constituinte quer fazer valer. Devo...
- Descanse que não me vou pôr a divagar. - Annika Giannini voltou-se para Holger Palmgren. - Holger, disse há pouco que conheceu o superior hierárquico do doutor Teleborian, o médico-chefe Caldin.
- Sim. Eu acabava de ser nomeado tutor legal de Lisbeth Salander e, na altura, nem sequer a conhecia, quando muito, tinha-me cruzado com ela uma vez. Tinha, como toda a gente, a impressão de que
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ela estava gravemente afectada a nível psíquico. No entanto, uma vez que fazia parte do meu trabalho, informei-me sobre o estado geral da sua saúde.
- E que disse o médico-chefe Caldin?
- Ela era paciente do doutor Teleborian, e o doutor Caldin não se interessara demasiado pelo caso, exceptuando o que é habitual durante uma perícia. Só um ano mais tarde comecei a questionar de que maneira seria possível reintegrá-la na sociedade. Propus uma família de acolhimento. Não sei exactamente o que se passou por detrás dos muros de Sankt Stefan, mas a dada altura, quando a Lisbeth já lá estava havia mais de um ano, o doutor Caldin começou a interessar-se por ela.
- Interesse que se manifestou de que maneira?
- Fiquei com a impressão de que ele tinha feito uma avaliação diferente da do doutor Teleborian. Um dia, disse-me que tinha decidido alterar certas coisas no tratamento dela. Só mais tarde percebi que estava a falar do isolamento. O doutor Caldin tinha, pura e simplesmente, decidido que ela não voltaria a ser amarrada. Dizia que nada o justificava.
- Contrariava, nesse aspecto, o doutor Teleborian?
- Peço desculpa, mas não estaremos a falar de boatos? - protestou Ekstrõm.
- Não - respondeu Holger Palmgren. - Pelo menos, em parte. Pedi-lhe a opinião sobre as diversas maneiras de reintegrar Lisbeth Salander na sociedade. O doutor Caldin enviou-me um parecer. Ainda o tenho.
Estendeu um papel a Annika Giannini.
- Pode dizer-nos o que está aqui escrito?
- É uma carta que o doutor Caldin me dirigiu. Está datada de Outubro de 1992, portanto quando a Lisbeth se encontrava em Sankt Stefan havia vinte meses. O doutor Caldin diz, e passo a citar: "A minha decisão de a paciente não voltar a ser colocada em isolamento ou alimentada à força teve o notável resultado de a tornar mais calma. Não são necessários psicotrópicos. A paciente é, no entanto,
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extremamente introvertida e pouco comunicativa, e tem necessidade de um apoio continuado." Fim de citação.
- Afirma, pois, expressamente, que a decisão partiu dele.
- Exacto. Foi também o doutor Caldin que tomou pessoalmente a decisão de que a Lisbeth seria reinserida na sociedade através de uma família de acolhimento.
Lisbeth assentiu com a cabeça. Lembrava-se do Dr. Caldin, como também se lembrava de todos os pormenores da sua estada em Sankt Stefan. Recusara falar com o Dr. Caldin, era um médico de malucos, mais um daqueles batas brancas que queriam à viva força remexer-lhe nos sentimentos. Mas ele fora amável e bondoso. Lisbeth ouvira-o quando, no seu gabinete, ele lhe explicara como avaliava o seu caso.
Parecera magoado por ela não querer falar. No fim, ela olhara-o bem de frente e revelara-lhe a sua decisão: "Nunca vou falar consigo ou com qualquer outro psiquiatra. Vocês não ouvem o que eu digo. Podem manter-me aqui fechada até que eu morra. Não mudará nada. Nunca falarei com vocês." Ele olhara para ela com uma expressão espantada, e então assentira com a cabeça, como se compreendesse o que se passava.
- Doutor Teleborian... verifiquei que foi o senhor que determinou o internamento de Lisbeth Salander numa clínica psiquiátrica. Foi o senhor que forneceu ao tribunal de primeira instância o relatório que está na base da decisão que veio a ser tomada. É correcto?
- É correcto, em parte. Mas considero...
- Vai ter muito tempo para me dizer o que considera. Depois de Lisbeth Salander atingir a maioridade, interferiu uma vez mais na vida dela e tentou que fosse de novo internada.
- Dessa vez, não fui eu que fiz a perícia médico-legal...
- Não, foi feita por um tal doutor Jesper H. Lõderman. Que, por acaso, preparava o doutorado sob a sua orientação. Foram, portanto, as suas avaliações que prevaleceram para que a perícia fosse aceite.
- Não há nada de incorrecto ou que contrarie a ética nessas perícias. Foram feitas de acordo com todas as regras.
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- Neste momento, Lisbeth Salander tem vinte e sete anos e, pela terceira vez, encontramo-nos na situação em que o senhor tenta persuadir um tribunal de que ela é uma doente mental que deve ser internada.
O Dr. Peter Teleborian respirou fundo. Annika Giannini estava bem preparada. Surpreendera-o com algumas perguntas pérfidas que o tinham obrigado a deformar as suas respostas. Era impermeável ao seu charme e ignorava totalmente a sua autoridade. E Teleborian estava habituado a que as pessoas assentissem quando ele falava.
O que sabe ela ao certo?
Lançou um olhar ao procurador Ekstrõm, mas percebeu que não podia esperar ajuda daquele lado. Ia ter de se safar sozinho.
Recordou que, apesar de tudo, era um tipo com muita autoridade.
Não importa o que ela diz. É a minha avaliação que conta.
Annika Giannini ajeitou em cima da mesa as folhas da perícia psiquiátrica.
- Examinemos um pouco mais de perto a sua última perícia. Dedica muito tempo a analisar a vida espiritual de Lisbeth Salander. Uma boa parte refere-se às interpretações que faz da pessoa dela, do seu comportamento e dos seus hábitos sexuais.
- Neste inquérito, tentei dar uma imagem completa.
- Muito bem. Partindo dessa imagem completa, chega à conclusão de que Lisbeth Salander sofre de esquizofrenia paranóide.
- Prefiro não me limitar a um diagnóstico preciso.
- Mas não chegou a esta conclusão falando com a Lisbeth Salander, pois não?
- Sabe perfeitamente que a sua constituinte recusa sistematicamente responder às perguntas quando eu ou outra pessoa detentora de autoridade tentamos falar-lhe. Só este comportamento já é eloquente. Uma interpretação possível é que as tendências paranóides da paciente se manifestam de uma forma tão intensa que ela fica literalmente incapaz de conduzir uma conversa com uma pessoa que tenha autoridade. Acredita que toda a gente quer fazer-lhe mal e sente-se
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de tal modo ameaçada que se esconde atrás de uma carapaça impenetrável e fica muda.
- Noto que se exprime com uma grande prudência. Disse "uma interpretação possível"...
- Sim, é verdade. Exprimo-me com prudência. A psiquiatria não é uma ciência exacta e tenho de ser prudente nas minhas conclusões. Acontece também que nós, os psiquiatras, não gostamos de atirar suposições para o ar.
- Tem muito cuidado em proteger-se. Na realidade, não trocou uma única palavra com a minha constituinte desde a noite em que ela fez treze anos, uma vez que ela sempre se recusou a falar consigo.
- Não só comigo. Não está em condições de conduzir uma conversa com um psiquiatra, seja ele quem for.
- O que significa que, como aqui escreve, as conclusões a que chega baseiam-se na sua experiência e nas suas observações à minha constituinte.
- É exacto.
- O que é que se pode aprender ao olhar para uma rapariga que permanece sentada de braços cruzados e não diz uma palavra?
Peter Teleborian suspirou e fez um ar de quem acha cansativo ter de explicar o evidente. Sorriu.
- Com um paciente que não diz uma palavra, pode-se aprender que é algo que ele sabe fazer muito bem: não dizer uma palavra. Em si mesmo, isso representa já um comportamento perturbado, mas não é nisso que baseio as minhas conclusões.
- Ainda esta tarde, vou chamar um outro psiquiatra a testemunhar. Chama-se Svante Brandén, é médico-chefe na Direcção de Medicina Legal e especialista em psiquiatria legal. Conhece-o?
Peter Teleborian sentiu-se tranquilizado. Sorriu. Tinha previsto que Annika Giannini recorresse a outro psiquiatra do mesmo nível que ele para tentar pôr em causa as suas conclusões. Tinha-se preparado para a situação e saberia fazer frente a cada objecção, palavra a palavra. Seria muito mais simples manipular um colega universitário numa conversa entre amigos do que aquela Giannini, que não tinha
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maneiras e parecia sempre pronta a pegar em cada uma das suas palavras e dar-lhes a volta.
- Conheço. É um especialista em medicina legal, conhecido e competente. Mas deve compreender, doutora Giannini, que fazer uma perícia deste género é um processo académico e científico: pode estar em desacordo comigo no respeitante às minhas conclusões e um outro psiquiatra interpretar comportamentos ou um acontecimento de uma maneira diferente da minha. São maneiras diferentes de ver as coisas, e talvez até do conhecimento que o médico tem do seu paciente. O doutor Brandén chegará talvez a uma conclusão diferente no que respeita a Lisbeth Salander. É perfeitamente normal em psiquiatria.
- Não é para isso que o vou chamar. O doutor Brandén não conhece nem examinou Lisbeth Salander e não vai tirar qualquer conclusão sobre o seu estado psíquico.
-Ah!...
- Pedi-lhe para ler o seu relatório e toda a documentação que produziu sobre a minha constituinte e que examinasse o processo dos anos que ela passou em Sankt Stefan. Pedi-lhe que fizesse uma avaliação... não do estado de saúde mental de Lisbeth Salander, mas para ver se existe, de um ponto de vista científico, uma base sólida para as suas conclusões, tais como as apresenta na avaliação que fez. Peter Teleborian encolheu os ombros.
- Com todo o respeito... julgo conhecer Lisbeth Salander melhor do que qualquer outro psiquiatra deste país. Sigo a sua evolução desde que ela tinha doze anos e, infelizmente, sou obrigado a verificar que o comportamento dela tem vindo a confirmar as minhas conclusões.
- Ainda bem. Vamos então examinar as suas conclusões. Nos seus relatórios, diz que o tratamento foi interrompido quando ela fez quinze anos e foi colocada numa família de acolhimento.
- É exacto. Foi um erro grave. Se tivéssemos levado o tratamento até ao fim, talvez hoje não estivéssemos aqui.
- Quer dizer que se a tivesse mantido amarrada à cama durante mais um ano provavelmente ela seria mais dócil?
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- Considero o comentário bastante gratuito.
- Peço desculpa. Doutor Teleborian, no seu relatório, refere frequentemente a perícia feita pelo seu discípulo Jesper H. Lõderman, pouco tempo antes de Lisbeth Salander atingir a maioridade. Escreve que "o seu comportamento autodestruidor e anti-social é confirmado pelos abusos e o deboche de que dá provas desde que saiu de Sankt Stefan". Refere-se exactamente a quê?
Peter Teleborian manteve-se em silêncio durante alguns segundos.
- Bem... preciso de voltar um pouco atrás. Depois de sair de Sankt Stefan, Lisbeth Salander teve... como eu previra... problemas de abuso de álcool e de drogas. Foi várias vezes detida pela polícia. Um inquérito da Assistência Social estabeleceu igualmente que tinha relações sexuais não protegidas com homens mais velhos e que se prostituía.
- Tentemos esclarecer tudo isso. Diz que Lisbeth Salander se tornou alcoólica. Com que frequência se embriagava?
- Perdão?
- Embriagava-se todos os dias desde que saiu até completar dezoito anos? Uma vez por semana?
- Não posso, evidentemente, responder a essa pergunta.
- Mas pode afirmar que ela abusava do álcool?
- Era menor e foi várias vezes detida pela polícia em estado de embriaguez.
- É a segunda vez que utiliza a expressão "várias vezes detida". Isso quer dizer com que frequência? Uma vez por semana? Uma vez de duas em duas semanas?
- Não, não era assim tão frequente...
- Lisbeth Salander foi detida por embriaguez na via pública duas vezes, quando tinha dezasseis e dezassete anos. Numa dessas ocasiões, estava de tal modo alcoolizada que a mandaram para o hospital. Aí estão as várias vezes de que fala. Tem conhecimento de outras ocasiões em que ela estivesse embriagada?
- Não sei, mas é de temer que, pelo seu comportamento...
- Desculpe, terei ouvido bem? Não sabe se ela se embriagou mais de duas vezes durante a adolescência, mas receia que isso tenha
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acontecido. E isso leva-o a concluir que Lisbeth Salander entrou num círculo vicioso de álcool e de drogas?
- Compete à Assistência Social gerir essas questões. Não a mim. Tratava-se da situação global de Lisbeth Salander. Como seria de esperar, e de acordo com o prognóstico pessimista feito após a interrupção do tratamento, toda a vida dela se tornou um círculo de álcool, de intervenções da polícia e de deboche descontrolado.
- Usou a expressão "deboche descontrolado".
- Sim... é uma expressão que indica que ela não controlava a sua própria vida. Tinha relações sexuais com homens muito mais velhos.
- O que não é contrário à lei.
- Não, mas é um comportamento anormal para uma rapariga de dezasseis anos. Levanta-se aqui a questão de saber se o fazia de sua livre vontade ou se por se encontrar numa situação de necessidade.
- Mas acaba de afirmar que ela se prostituía.
- Talvez fosse a consequência natural da sua falta de formação, da sua incapacidade de continuar na escola e de prosseguir os estudos, e do desemprego que daí resultou. Talvez procurasse um pai nesses homens mais velhos e a compensação económica por serviços sexuais funcionava como um bónus. Seja como for, para mim, trata-se de um comportamento nevrótico.
- Quer dizer que uma rapariga de dezasseis anos que faz amor é nevrótica?
- Está a desvirtuar as minhas palavras.
- Mas não sabe se ela foi alguma vez paga por serviços sexuais?
- Nunca foi presa por prostituição.
- O que dificilmente poderia acontecer-lhe, uma vez que a prostituição não é proibida por lei.
- Hum, pois não. No caso de Lisbeth Salander, trata-se de um comportamento nevrótico compulsivo.
- E o senhor não hesitou em chegar à conclusão de que Lisbeth Salander é uma doente mental a partir desse descabido pressuposto. Quando eu tinha dezasseis anos, embebedei-me, até cair, com meia garrafa de vodca que roubei ao meu pai. Diria que sou uma doente mental?
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- Não, claro que não.
- Não é verdade que o senhor, doutor Teleborian, quando tinha dezassete anos, participou numa festa durante a qual se embebedou ao ponto de ter ido com um grupo de amigos partir montras no centro de Uppsala? Foi detido pela polícia, metido numa cela de recuperação e pagou uma multa. - Peter Teleborian fez um ar estupefacto. - É ou não é verdade?
- Sim... fazemos muitas parvoíces, quando temos dezassete anos. Mas...
- Mas isso não o levou a chegar à conclusão de que sofria de uma doença psíquica grave?
Peter Teleborian estava irritado. O estupor daquela advogada insistia em deformar tudo o que ele dizia e concentrava-se em pormenores. Recusava ver o cenário no seu conjunto. E, totalmente a despropósito, revelava diante de toda a gente que também ele se tinha uma vez embriagado... como diabo terá descoberto?
Tossicou para aclarar a garganta e levantou a voz.
- Os relatórios da Assistência Social eram inequívocos e confirmavam que Lisbeth Salander levava uma vida em que imperava o álcool, as drogas e o deboche. A Assistência Social estabeleceu igualmente que Lisbeth Salander se prostituía.
- Não. A Assistência Social nunca disse que ela se prostituía.
- Foi detida em...
- Não. Não foi detida. Foi interpelada no parque de Tantolunden quando tinha dezassete anos e se encontrava na companhia de um homem muito mais velho. Nesse mesmo ano, foi controlada por embriaguez, também na companhia de um homem mais velho. A Assistência Social receava que ela se prostituísse. Mas nunca houve provas que o confirmassem.
- A vida sexual dela era muito intensa e mantinha relações sexuais com um grande número de pessoas, tanto rapazes como raparigas.
- Refiro-me à página quatro do seu relatório, na qual analisa detidamente os hábitos sexuais de Lisbeth Salander. Afirma que a relação
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dela com uma amiga, Míriam Wu, confirma os receios de uma psicopatia sexual. Importa-se de nos explicar? - De repente, Peter Teleborian ficou mudo. - Espero sinceramente que não tenha a intenção de alegar que a homossexualidade é uma doença. Esse género de afirmação pode levar a um procedimento legal.
- Não, claro que não. Refiro-me aos indícios de sadismo sexual existentes na relação.
- Está a dizer que a minha constituinte é uma sádica?
- Gostaria...
- Dispomos dos depoimentos que Miriam Wu prestou à polícia. Não havia qualquer violência envolvida na relação entre as duas.
- Praticavam o bondage, o sadomasoquismo, e...
- Prefiro pensar que o senhor, doutor Teleborian, lê demasiados tablóides. Lisbeth Salander e a sua amiga, Miriam Wu, praticavam por vezes jogos eróticos em que Miriam Wu prendia os pulsos da minha constituinte e lhe proporcionava satisfação sexual. Não é nada de particularmente invulgar, e muito menos proibido. É por isso que quer internar Lisbeth Salander numa instituição? - Peter Teleborian agitou a mão, para negar. - Permita-me algumas confidências. Quando tinha dezasseis anos, apanhei uma bebedeira de caixão à cova. Embriaguei-me várias vezes durante o tempo de liceu. Experimentei drogas. Fumei erva e cheguei inclusivamente a experimentar cocaína, há vinte anos. Fiz a minha iniciação sexual quando tinha quinze anos com um colega de turma e tinha cerca de vinte anos quando mantive uma relação com um rapaz que me amarrava as mãos à cabeceira da cama. Com vinte e dois anos, mantive, durante vários meses, uma relação com um homem de quarenta e sete anos. Por outras palavras... sou uma doente mental?
- Doutora Giannini... está a jogar com as palavras, mas as suas experiências sexuais não têm nada que ver com o caso que aqui nos traz.
- Porque não? Quando leio a sua pretensa perícia a Lisbeth Salander, encontro muitos pontos que, se os retirarmos do contexto, podem aplicar-se-me. Porque é que eu sou sã de espírito e Lisbeth Salander é uma perigosa sádica?
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- Não são esses pormenores que determinam os factos. A senhora não tentou matar o seu pai por duas vezes...
- Doutor Teleborian, a verdade é que ninguém tem nada que ver com os parceiros sexuais de Lisbeth Salander. Nem de que sexo os prefere nem como conduz a sua vida sexual. E no entanto, o senhor vai buscar aí pormenores que usa para apoiar a sua tese de que ela é uma doente.
- Toda a vida de Lisbeth Salander, desde os tempos de escola, se traduz numa série de registos em processos médicos e sociais que falam de acessos de raiva violenta contra professores e colegas.
- Um momento... - A voz de Annika Giannini soou subitamente como uma saraivada de granizo no pára-brisas gelado de um carro. - Olhe para a minha constituinte. - Todos os presentes na sala olharam para Lisbeth Salander. - Cresceu numa situação familiar execrável, com um pai que, sistematicamente e durante muitos anos, sujeitou a mãe a maus-tratos físicos indescritíveis.
- Isso...
- Deixe-me acabar. A mãe de Lisbeth Salander tinha um medo de morte de Alexander Zalachenko. Não ousava protestar. Não ousava consultar um médico. Não ousava contactar os grupos de assistência às vítimas de violência doméstica. Foi molestada e, por fim, espancada de tal maneira que ficou com lesões cerebrais irreversíveis. Quem assumiu a responsabilidade pela família, a única pessoa que tentou assumir essa responsabilidade, ainda antes de atingir a adolescência, foi Lisbeth Salander. Um fardo que teve de carregar sozinha, porque o espião Zalachenko era mais importante do que a mãe de Lisbeth.
- Não posso...
- Estamos confrontados com uma situação em que a sociedade abandonou a mãe de Lisbeth e as filhas. Não será portanto de espantar que Lisbeth tenha tido problemas na escola! Mas olhe para ela. É baixa e magra. Sempre foi a mais pequena da turma. Era reservada e diferente, não tinha amigas. Sabe como as crianças, de um modo geral, tratam os que são diferentes?
Peter Teleborian inclinou a cabeça.
- Posso pegar nos processos escolares e apontar, uma após outra, as situações em que Lisbeth Salander se mostrou violenta. Houve, sempre, provocações anteriores. Reconheço perfeitamente os sinais de perseguição. Quer que lhe diga uma coisa?
- O que?
- Admiro a Lisbeth Salander. Tem muito mais fibra do que eu. Se me tivessem amarrado a uma cama com correias de couro, quando apenas tinha treze anos, ter-me-ia, quase de certeza, afundado totalmente. Ela respondeu com a única arma de que dispunha. Na ocorrência, o seu desprezo por si.
De repente, a voz de Annika Giannini elevou-se, encheu todos os recantos da sala. Havia muito que o nervosismo desaparecera. Sentia que tinha o controlo.
- No início do seu testemunho falou muito de fantasias e invenções. Afirmou, por exemplo, que a descrição da violação de que foi vítima por parte do doutor Bjurman é uma invenção.
- É exacto.
- Em que baseia essa conclusão?
- Na minha experiência do hábito que ela tem de inventar.
- A sua experiência do hábito que ela tem de inventar... Como é que determina que ela inventa? Quando ela diz que esteve amarrada a uma cama durante trezentos e oitenta noites, trata-se, diz-nos o senhor, de uma invenção, apesar de o seu processo provar que é verdade.
- Trata-se, aqui, de uma coisa completamente diferente. Não há o mais pequeno indício de que Nils Bjurman tenha violado Lisbeth Salander. Quer dizer, agulhas nos mamilos e agressões tais que obrigariam a levá-la de ambulância a um hospital... É evidente que tais coisas não podem ter acontecido.
Annika Giannini dirigiu-se ao juiz Iversen.
- Pedi para ter na sala um videoprojector para apresentar um DVD...
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- Está preparado - disse Iversen.
- Podemos correr os cortinados? - Annika Giannini abriu o seu iBook e ligou os cabos. Voltou-se para Lisbeth. - Lisbeth. Vamos ver um filme. Está preparada para isso?
- Já o vivi - respondeu Lisbeth Salander, secamente.
- Tenho então a sua autorização para passar o filme?
Lisbeth assentiu com a cabeça. Durante todo este diálogo, não desviou por um instante os olhos do rosto de Peter Teleborian.
- Pode dizer-nos quando foi feita esta gravação?
- A7 de Março de 2003.
- Quem fez esta gravação?
- Eu. Usei uma câmara escondida que faz parte do equipamento-padrão da Milton Security.
- Um momento - protestou o procurador Ekstrom. - Isto começa a parecer um autêntico circo.
- O que é que vamos ver? - perguntou o juiz Iversen, com uma
voz acerada.
- Peter Teleborian alega que o relato de Lisbeth é uma invenção. Vou apresentar a prova de que é verdadeiro, palavra por palavra. O filme dura noventa minutos. Vou mostrar apenas algumas passagens. Aviso todos os presentes de que contém cenas desagradáveis.
- Trata-se de uma espécie de armadilha? - perguntou Ekstrom.
- Só há uma maneira de o saber - respondeu Annika Giannini,
e iniciou a projecção.
- Nem sequer sabes ver as horas? - perguntou Nils Bjurman, num tom carregado de desprezo. A câmara entrou no apartamento.
Ao cabo de nove minutos, o juiz Iversen bateu furiosamente com o martelo no tampo da mesa, no instante em que o Dr. Nils Bjurman era imortalizado a enfiar à força um tampão anal no ânus de Lisbeth Salander. Annika Giannini tinha posto o volume de som muito alto. Os gritos de Lisbeth Salander, abafados pela fita adesiva que lhe tapava a boca, ecoavam por toda a sala.
- Pare o filme! - ordenou o juiz Iversen, num tom de dura firmeza.
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Annika Giannini clicou no Stop. A iluminação da sala foi restabelecida. O juiz Iversen estava vermelho. O procurador Ekstrom estava petrificado. Peter Teleborian estava lívido.
- Doutora Giannini, quanto tempo disse que durava esse filme? - perguntou Iversen.
- Noventa minutos. A violação propriamente dita desenrolou-se em várias fases durante cerca de seis horas, mas a minha constituinte tem apenas uma ideia muito vaga da violência das últimas horas. - Annika Giannini voltou-se para Peter Teleborian. - Em contrapartida, ficou gravada a parte em que Bjurman espeta uma agulha no mamilo da minha constituinte, o que, segundo o doutor Teleborian, é uma expressão da imaginação desenfreada de Lisbeth Salander. Passa-se ao septuagésimo segundo minuto, e proponho mostrar o episódio aqui e agora.
- Obrigado, não será necessário - interveio o juiz Iversen. - Frõken Salander... - Perdeu por um instante o fio ao que ia dizer e não soube como continuar. - Frõken Salander, por que razão gravou este filme?
- O Bjurman já me tinha violado uma vez, e queria mais. Na primeira violação fui obrigada a chupar esse porco. Pensei que ia querer repetir a cena, e o filme dar-me-ia provas suficientemente boas para o obrigar a manter-se longe de mim. Subestimei-o.
- Mas porque não apresentou queixa por violação agravada a partir do momento em que teve provas tão... convincentes?
- Não falo com polícias - respondeu Lisbeth Salander, num tom monocórdico.
Então, Holger Palmgren ergueu-se inesperadamente da sua cadeira de rodas e apoiou-se à beira da mesa. A voz dele soou muito clara.
- Por princípio, a nossa cliente não fala com polícias nem com quaisquer outras pessoas que representem a autoridade, e menos ainda com psiquiatras. E a razão disto é muito simples. Durante a infância, tentou constantemente falar com a polícia, com assistentes sociais e com as autoridades, para explicar como a mãe era martirizada
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por Alexander Zalachenko. O resultado foi, sempre, ser castigada porque os funcionários do Estado tinham decidido que Zalachenko era mais importante do que Salander. - Tossicou para aclarar a garganta e continuou: - E quando finalmente percebeu que ninguém a ouvia, a única saída foi tentar salvar a mãe usando de violência contra Alexander Zalachenko. E então esse malandro que se diz médico - apontou para Teleborian - redigiu um falso diagnóstico psiquiátrico que permitiu declará-la doente mental e mantê-la amarrada a uma cama em Sankt Stefan durante trezentas e oitenta noites. Merda! É o que tenho a dizer!
Sentou-se. Iversen pareceu ligeiramente surpreendido por esta explosão. Dirigiu-se a Lisbeth Salander.
- Deseja que façamos uma pausa...
- Porquê? -perguntou Lisbeth.
- Muito bem, nesse caso continuamos. Doutora Giannini, esse vídeo será examinado. Quero um parecer técnico sobre a sua autenticidade. Mas prossigamos com a audiência.
- Muito bem. Também eu acho tudo isto extremamente desagradável. Mas a verdade é que a minha constituinte foi vítima de abusos físicos, psíquicos e judiciários. E a pessoa responsável por esta deplorável situação é Peter Teleborian. Traiu o seu juramento como médico e traiu a sua paciente. Em conluio com Gunnar Bjõrck, colaborador de um grupo marginal no seio da Polícia de Segurança, fabricou uma perícia psiquiátrica para calar uma testemunha incómoda. Julgo que se deve tratar de um caso único na história da justiça sueca.
- A doutora Giannini faz acusações absolutamente inaceitáveis - declarou Teleborian. - Fiz tudo o que estava ao meu alcance para ajudar Lisbeth Salander. E ela tentou matar o pai. É evidente que havia qualquer coisa...
Annika Giannini interrompeu-o:
- Gostaria agora de chamar a atenção do tribunal para mais uma perícia psiquiátrica forense à minha constituinte levada a cabo pelo doutor Teleborian. Falo da que foi referida hoje durante a audiência. Afirmo que é falsa, tão falsa como a de 1991.
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- Fracamente, isto é...
- Meritíssimo, importa-se de pedir à testemunha que pare de me interromper?
- Doutor Teleborian...
- Eu calo-me. Mas são acusações inaceitáveis. É natural que me insurja...
- Doutor Teleborian, mantenha-se em silêncio, até que lhe seja dirigida uma pergunta. Prossiga, doutora Giannini.
- Tenho aqui o relatório da perícia psiquiátrica que o doutor Teleborian apresentou ao tribunal. Baseia-se em pretensas observações da minha cliente que teriam ocorrido depois da sua transferência para o estabelecimento prisional de Kronoberg, a 6 de Junho, mais concretamente entre essa data e 5 de Julho.
- Foi o que entendi - disse o juiz Iversen.
- Doutor Teleborian, é verdade que não teve ocasião de fazer quaisquer testes ou observações à minha constituinte antes de 6 de Junho? Até essa data, Lisbeth Salander estava, como todos sabemos, isolada num quarto do Hospital Sahlgrenska.
- Sim.
- Tentou, por duas vezes, ter acesso à minha constituinte em Sahlgrenska. De ambas, esse acesso foi-lhe recusado. É verdade?
- Sim.
Annika Giannini abriu novamente a pasta e tirou de lá um documento. Contornou a mesa e foi entregá-lo ao juiz Iversen.
- Bom - disse Iversen -, é uma cópia da perícia do doutor Teleborian. O que pretende provar com isto?
- Gostaria de chamar duas testemunhas que aguardam lá fora.
- Quem são essas testemunhas?
- São Mikael Blomkvist, da revista Millennium, e o comissário Torsten Edklinth, director da divisão da Defesa da Constituição da Polícia de Segurança, também conhecida como Sapo.
- Estão à espera lá fora?
- Sim.
- Mandem-nos entrar - ordenou o juiz Iversen.
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- Nada disto está de acordo com a lei - protestou o procurador Ekstrõm, que havia muito tempo não dizia uma palavra.
Quase em estado de choque, Ekstrõm apercebera-se de que Annika Giannini estava a esfrangalhar a sua principal testemunha. O filme era esmagador. Iversen ignorou-o e fez sinal ao meirinho para que abrisse a porta. Mikael Blomkvist e Torsten Edklinth entraram.
- Gostaria de começar por chamar Mikael Blomkvist.
- Peço ao doutor Peter Teleborian que se retire por um instante.
- Já não vai precisar mais de mim? - perguntou Teleborian.
- Oh, vou com toda a certeza - respondeu Annika Giannini. Mikael Blomkvist substituiu Teleborian como testemunha.
O juiz Iversen passou rapidamente pelas formalidades e Mikael jurou dizer a verdade.
Annika Giannini aproximou-se do juiz e pediu-lhe que lhe devolvesse por um instante o relatório da perícia psiquiátrica que acabava de entregar-lhe. Mostrou o documento a Mikael.
- Já tinhas visto este documento?
- Sim, com efeito. Tenho três versões em meu poder. Recebi a primeira por volta de 12 de Maio, a segunda a 19 de Maio e a terceira... essa que aí tens... a 3 de Junho.
- Podes dizer-nos como ficaste na posse deste documento?
- Recebi-o, na minha qualidade de jornalista, de uma fonte que me recuso a identificar.
Lisbeth Salander tinha os olhos fixados em Peter Teleborian, que subitamente ficou lívido.
- Que fizeste com ele?
- Entreguei-o a Torsten Edklinth, da Defesa da Constituição.
- Obrigada, Mikael. Chamo agora o comissário Torsten Edklinth - disse Annika Giannini, recuperando o relatório.
Também Edklinth jurou dizer a verdade.
- Senhor comissário Edklinth, é verdade que recebeu das mãos de Mikael Blomkvist um relatório médico-legal respeitante a Lisbeth Salander?
- Sim.
- Quando o recebeu?
- Foi registado na DGPN/Sápo a 4 de Junho.
- É a mesma perícia que acabo de entregar ao juiz Iversen?
- Se a minha assinatura figurar no verso do documento, é a mesma perícia.
Iversen virou o papel e verificou que tinha no verso a assinatura de Torsten Edklinth.
- Senhor comissário Edklinth, pode explicar-nos como recebeu uma perícia psiquiátrica forense respeitante a uma pessoa que se encontrava em isolamento no Hospital Sahlgrenska?
- Sem dúvida.
- Faça favor.
- A perícia médico-legal de Peter Teleborian é uma falsificação que ele redigiu em conluio com uma pessoa chamada Jonas Sandberg, tal como em 1991 tinha produzido uma falsificação semelhante com a cumplicidade de Gunnar Bjõrck.
- É mentira - gemeu Teleborian, debilmente.
- É mentira? - perguntou Annika Giannini ao comissário Edklinth.
- De modo nenhum. Devo talvez referir que Jonas Sandberg foi uma das cerca de dez pessoas que hoje foram detidas por ordem do procurador da nação. Foi preso por cumplicidade no homicídio de Gunnar Bjõrck. Fazia parte de um grupo marginal que operava no seio da Polícia de Segurança e que protegeu Alexander Zalachenko a partir dos anos setenta. Foi o mesmo grupo que esteve por detrás da decisão de internar Lisbeth Salander, em 1991. Temos inúmeras provas, bem como a confissão do líder desse grupo.
Um silêncio de morte abateu-se sobre a sala.
- Peter Teleborian, deseja comentar o que acaba de ser dito? - perguntou o juiz Iversen. - Teleborian abanou a cabeça. - Nesse caso, devo avisá-lo de que pode vir a ser acusado de perjúrio e, eventualmente, de outros delitos - continuou Iversen.
- Se o meritíssimo juiz me dá licença... - disse Mikael Blomkvist.
- Sim? - disse Iversen.
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- Peter Teleborian tem problemas muito mais graves. Atrás daquela porta encontram-se dois inspectores que gostariam de interrogá-lo.
- Quer dizer que devo mandá-los entrar?
- Seria, sem dúvida, uma boa ideia.
Iversen fez sinal ao meirinho, que deixou entrar a inspectora Sonja Modig e uma mulher que o procurador Ekstrõm reconheceu de imediato. Chamava-se Lisa Collsjõ e era inspectora da brigada de Protecção de Menores, a unidade da polícia nacional que, entre outras coisas, tinha como missão tratar os casos de abusos sexuais de crianças e os respeitantes à pornografia infantil.
- Qual é o motivo da vossa presença aqui? - perguntou Iversen.
- Viemos deter Peter Teleborian, desde que a nossa intervenção não perturbe as deliberações do tribunal.
Iversen olhou para Annika Giannini.
- Ainda não tinha acabado com ele, mas, enfim, tudo bem.
- Podem prosseguir - disse Iversen.
Lisa Collsjõ aproximou-se de Peter Teleborian.
- Peter Teleborian, considere-se detido por violação agravada da legislação sobre pedopornografia. - Teleborian já nem conseguia respirar. Annika Giannini verificou que todo o brilho parecia ter-lhe fugido dos olhos. - Mais concretamente, pela existência de mais de oito mil fotografias pornográficas de crianças no disco rígido do seu computador.
Inclinou-se e levantou do chão a sacola que Teleborian levara consigo e onde transportava o seu portátil.
- O computador está confiscado - acrescentou.
Enquanto o levavam para fora da sala do tribunal, o olhar de Lisbeth Salander não parou de queimar, como um ferro em brasa, as costas de Peter Teleborian.
CAPÍTULO 28
SEXTA-FEIRA, 15 DE JULHO - SÁBADO, 16 DE JULHO
O JUIZ Iversen bateu com a caneta na beira da secretária para fazer calar o murmúrio que se erguera na sequência da detenção de Peter Teleborian. Depois, permaneceu silencioso por um longo momento, manifestamente sem saber muito bem como prosseguir. Dirigiu-se ao procurador Ekstrõm.
- Tem alguma coisa a acrescentar ao que aconteceu nesta última hora?
Richard Ekstrõm não fazia a mínima ideia do que podia dizer. Pôs-se de pé e olhou para Iversen e depois para Torsten Edklinth, antes de encontrar o olhar implacável de Lisbeth Salander. Compreendeu que a batalha estava perdida. Voltou os olhos na direcção de Mikael Blomkvist e apercebeu-se, aterrorizado, de que corria até o risco de aparecer na Millennium... O que constituiria uma catástrofe terrível. Em contrapartida, não compreendia nada do que se passara. Quando chegara ao julgamento estava seguro de conhecer todos os pormenores do caso.
Compreendera o delicado equilíbrio necessário à segurança da nação depois das muitas e sinceras conversas com o comissário Georg Nystrõm. Fora-lhe garantido que o relatório de 1991 sobre a Salander era falso. Recebera toda a informação confidencial de que tinha necessidade. Fizera perguntas... dezenas de perguntas... e para todas elas obtivera respostas. Puro logro. E agora, a acreditar no que dizia aquela Giannini, estava reduzido a pó. Confiara em Peter Teleborian, que parecia tão... tão competente e tão sensato. Tão convincente.
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Meu Deus. No que me meti?
E depois:
Como é que vou sair deste atoleiro?
Passou a mão pela barbicha. Tossicou. Tirou lentamente os óculos.
- Lamento, mas tudo indica que fui mal informado sobre vários pontos da instrução deste caso.
Perguntou a si mesmo se poderia atirar as culpas para cima dos investigadores, e subitamente veio-lhe ao pensamento o inspector Bublanski. Bublanski nunca o apoiaria. Se ele pisasse o risco, Bu-blanski convocaria de imediato uma conferência de imprensa. E afundá-lo-ia.
Cruzou o olhar com o de Lisbeth Salander. Que esperava pacientemente, com uma expressão que era tanto de curiosidade, como de sede de vingança.
Nenhum compromisso possível.
Ainda podia apanhá-la por aquela história das agressões físicas agravadas em Stallarholmen. Poderia provavelmente apanhá-la pela tentativa de assassínio do pai em Gosseberga. Para isso, teria de alterar toda a sua estratégia do pé para a mão e largar tudo o que tivesse alguma coisa a ver com Peter Teleborian. Isso significava que todos os argumentos que a faziam passar por psicopata cairiam por terra, e significava também que a versão de Lisbeth até 1991 sairia reforçada. As razões invocadas para a manter sob tutela desmoronar-se-iam e além disso... E ela tinha aquele maldito filme que...
E foi então que a verdade o atingiu como um raio.
Meu Deus! Ela está inocente!
- Meritíssimo... não sei o que se passou, mas apercebo-me de que deixei de poder confiar na documentação que tenho em meu poder.
- Efectivamente - disse Iversen, num tom seco.
- Julgo que vou ter de pedir uma pausa ou a interrupção do julgamento para poder esclarecer exactamente o que aconteceu.
- Doutora Giannini? - disse Iversen.
- Exijo que a minha constituinte seja absolvida de todas as acusações e devolvida imediatamente à liberdade. Exijo igualmente que
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o tribunal se pronuncie sobre a tutela imposta a Frõken Salander. E considero ainda que deve ser indemnizada por todas as violações de que foi vítima.
Lisbeth Salander voltou os olhos para o juiz Iversen. Nenhum compromisso.
O juiz Iversen olhou para a autobiografia de Lisbeth Salander. Desviou o olhar para o procurador Ekstrõm.
- Também eu estou convencido de que será uma boa ideia esclarecer exactamente o que aconteceu. Mas receio que não seja o senhor a pessoa indicada para levar a cabo essa investigação.
Ficou pensativamente calado por um instante.
- Ao longo de toda a minha carreira como magistrado e juiz, nunca vivi nada que se assemelhasse, nem de longe nem de perto, a este caso. Tenho de reconhecer que me sinto encurralado. Nunca ouvi falar que uma testemunha principal de acusação tenha sido presa em pleno julgamento. Nunca vi provas tão convincentes revelarem-se tão falsas. Muito francamente, nesta situação não sei o que resta da acusação apresentada pelo procurador. - Holger Palmgren tossicou. - Sim? - disse Iversen.
- Enquanto representante da defesa, não posso deixar de partilhar os seus sentimentos. Por vezes, somos obrigados a dar um passo atrás para deixar o bom senso assumir o comando. Gostaria de sublinhar que aquilo que aqui presenciámos é apenas o início de um caso que vai abalar a Suécia até às mais altas instituições. Ao longo deste dia, foi detida uma dezena de membros da Sapo. Vão ser acusados de homicídio e de uma lista de crimes tão longa que vai com certeza ser necessário um tempo considerável para fazer a respectiva instrução.
- Suponho que o melhor será optar pela interrupção do julgamento.
- Salvo o devido respeito, penso que seria uma má decisão.
- Estou a ouvir.
Holger Palmgren tinha manifesta dificuldade em articular as palavras, mas, falando lentamente, conseguia não as entaramelar.
- Lisbeth Salander está inocente. A sua autobiografia fantasista, como dizia Herr Ekstrõm com tanto desprezo, é afinal verdadeira.
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E isso pode ser provado. Foi vítima de um escandaloso abuso de poder judiciário. Enquanto tribunal, podemos cingir-nos à forma e prosseguir com este julgamento durante algum tempo, até chegarmos à inevitável absolvição, ou optar pela alternativa evidente: esperar que seja instruído um novo processo em tudo o que diz respeito a Lisbeth Salander. Essa investigação já está em curso, no meio do lamaçal que o procurador da nação vai agora ter de limpar.
- Compreendo.
- Como juiz, pode escolher. O mais sensato, neste caso, seria rejeitar em bloco o inquérito preliminar do procurador e exortá-lo a refazer o trabalho de casa.
O juiz Iversen olhou pensativamente para Ekstrõm.
- A justiça mais elementar exige que a nossa constituinte seja imediatamente posta em liberdade. São-lhe, sem dúvida, devidas desculpas, mas a sua reabilitação pública definitiva vai demorar algum tempo e depender do fim do inquérito.
- Compreendo os seus pontos de vista, doutor Palmgren. Mas antes de declarar inocente a vossa constituinte, preciso de compreender toda esta história. O que vai de certeza exigir algum tempo... -Depois de uma curta hesitação, olhou para Annika Giannini. - Se eu decidir suspender o julgamento até segunda-feira e aceder aos vossos pedidos decretando que deixou de haver motivos para manter a vossa constituinte sob custódia, o que significa que poderão ter a esperança de que não será condenada a uma pena de prisão, podem garantir-me que ela comparecerá em tribunal quando for chamada?
- Evidentemente - disse Palmgren, sem hesitar.
- Não - disse Lisbeth, num tom cortante.
Todos os olhares se voltaram para a personagem central daquele drama.
- Que quer dizer com isso? - surpreendeu-se o juiz Iversen.
- No preciso instante em que me libertar, partirei em viagem. Não tenciono dedicar nem mais um minuto do meu tempo a este julgamento.
O juiz Iversen olhava para ela, estupefacto.
- Recusa apresentar-se?
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- Exactamente. Se quer que eu responda a mais perguntas, terá de me manter presa. No instante em que me libertar, tudo isto passará a ser história para mim. E isso não inclui ficar à sua disposição por um tempo indeterminado, nem à do Ekstrõm ou da polícia.
O juiz Iversen suspirou. Holger Palmgren estava com um ar abalado.
- Estou de acordo com a minha constituinte - declarou Annika Giannini. - O Estado e as autoridades é que agiram mal para com Lisbeth Salander, não o inverso. Ela merece sair desta sala com a absolvição para poder esquecer toda esta história.
Nenhum compromisso.
O juiz Iversen consultou o relógio.
- São quase três horas. O que significa que me obriga a manter a sua cliente detida.
- Se é essa a sua decisão, aceitamo-la. Enquanto representante de Lisbeth Salander, peço que seja absolvida das acusações que o procurador Ekstrõm apresentou contra ela. Peço que liberte a minha constituinte com efeitos imediatos. E peço que a tutela a que está sujeita seja anulada e que lhe sejam imediatamente devolvidos todos os seus direitos civis.
- A questão da tutela é um processo consideravelmente mais demorado. Tenho de recolher pareceres de especialistas em psiquiatria. Não posso estatuir sem bases.
- Não - disse Annika Giannini. - Não aceitamos essa proposição.
- Como assim?
- Lisbeth Salander tem os mesmos direitos civis que qualquer outro cidadão sueco. Foi vítima de um crime. Foi declarada interdita com base em documentação falsa. Essa falsificação pode ser provada. A decisão de colocá-la sob tutela foi, portanto, tomada sem qualquer base jurídica e pode ser anulada sem restrições. Não há qualquer razão para que a minha cliente se submeta a um exame psiquiátrico forense. Ninguém é obrigado a provar que não é louco quando foi vítima de um crime.
O juiz reflectiu por um curto instante.
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- Doutora Giannini - acabou por dizer -, apercebo-me de que estamos em presença de uma situação excepcional. O tribunal vai fazer uma breve pausa de quinze minutos para que possamos esticar as pernas e recompormo-nos um pouco. Não tenho o mínimo desejo de manter a sua constituinte detida se está inocente, mas isso significa que esta audiência vai continuar até que tenhamos terminado.
- Parece-me perfeito - respondeu Annika Giannini.
Mikael Blomkvist beijou a irmã na face.
- Como correu o caso?
- Mikael, acho que fui brilhante face ao Teleborian. Aniquilei-o completamente.
- Eu bem te tinha dito que ias ser imbatível neste julgamento. Vistas bem as coisas, o tema desta história não são espiões nem segredos de Estado, mas a violência exercida contra as mulheres, e os homens que a tornam possível. Do pouco que vi, deu para perceber que estiveste fantástica. A Lisbeth vai ser absolvida.
- Sim, sobre isso não tenho a mais pequena dúvida.
Terminada a pausa, o juiz Iversen voltou a bater com o martelo na base de madeira.
- Doutora Giannini, vou-lhe pedir que me conte a história do princípio ao fim, para que eu possa formar uma opinião sobre o que verdadeiramente aconteceu.
- Com todo o prazer - respondeu Annika. - Começo pela espantosa história de um grupo de agentes da Sapo que atribui a si mesmo o nome de A Secção, e que, em meados dos anos setenta, foi encarregado de se ocupar de um trânsfuga russo. A história completa encontra-se num livro que saiu hoje, publicado pela Millennium. Aposto que vai ser a primeira notícia de todos os noticiários da tarde.
Por volta das seis da tarde, o juiz Iversen decidiu pôr Lisbeth Salander em liberdade e anular a tutela.
Impôs, no entanto, uma condição: Lisbeth teria de se submeter a um interrogatório e prestar oficialmente declarações sobre tudo
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o que sabia sobre o caso Zalachenko. Lisbeth começou por recusar, o que levou a uma troca de palavras mais exaltadas, até que Iversen acabou por perder a paciência. Inclinou-se para a frente e olhou-a severamente.
- Frõken Salander, se anulo a sua tutela, isso significa que passa a ter exactamente os mesmos direitos que todos os outros cidadãos suecos. Mas também os mesmos deveres. É seu dever gerir o seu orçamento, pagar os seus impostos, obedecer à lei e ajudar a polícia na investigação de crimes graves. Será, portanto, convocada e interrogada como qualquer outro cidadão que tenha informações a dar no âmbito de uma investigação.
A lógica do raciocínio pareceu surtir efeito em Lisbeth. Projectou para a frente o lábio inferior e fez um ar descontente, mas deixou de argumentar.
- Depois de a polícia ter ouvido o seu testemunho, o director do inquérito preliminar... no caso vertente, o procurador da nação... decidirá se será necessário chamá-la a testemunhar num eventual futuro julgamento. Como qualquer outro cidadão sueco, poderá recusar obedecer a uma tal convocação. O que fizer não me diz respeito, mas haverá uma factura a pagar. Se recusar comparecer, poderá, como qualquer outra pessoa maior de idade, ser condenada por obstrução ao bom funcionamento da justiça, ou por perjúrio. Não há excepções. - Lisbeth Salander fez um ar ainda mais sombrio. - Qual é a sua decisão? - perguntou Iversen.
Depois de um minuto de reflexão, ela assentiu secamente com a cabeça.
Tudo bem. Um pequeno compromisso.
Durante o resto da sessão, ao passar em revista o caso Zalachenko, Annika Giannini arrasou completamente Richard Ekstrom. Pouco a pouco, o procurador acabou por admitir que as coisas se tinham passado mais ou menos como Annika Giannini as descrevera. Tivera a ajuda do comissário Georg Nystrõm durante o inquérito preliminar e aceitara informações de Peter Teleborian. Pela parte dele, não houvera qualquer conspiração. Se fizera o jogo da Secção, fora de boa fé e na qualidade de chefe do inquérito preliminar. Quando
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a verdadeira extensão do que se tinha passado se lhe tornou evidente, retirou todas as acusações a Lisbeth Salander. Esta decisão significava que muitas formalidades administrativas podiam ser ultrapassadas. Iversen pareceu aliviado.
No final do seu primeiro dia em tribunal depois de muitos anos, Holger Palmgren estava extenuado. Foi obrigado a regressar ao seu quarto no centro de reabilitação de Ersta. Um segurança com o uniforme da Milton Security recebeu a missão de o levar. Antes de sair, pousou a mão no ombro de Lisbeth Salander. Olharam-se. Depois de um instante, ela baixou a cabeça e sorriu levemente.
Às sete da tarde, Annika Giannini marcou rapidamente o número do irmão para lhe dizer que Lisbeth Salander tinha sido ilibada de todas as acusações, mas que permaneceria ainda algumas horas na sede da Polícia para ser interrogada.
A notícia chegou quando todos os colaboradores da Millennium se encontravam na redacção. Os telefones não paravam de tocar desde que os primeiros exemplares tinham começado a chegar a outras redacções de Estocolmo. Durante a tarde, a TV4 difundira as primeiras emissões especiais sobre Zalachenko e a Secção. O caso estava a tornar-se um autêntico carnaval mediático.
Mikael foi-se pôr no meio da sala, levou dois dedos à boca e assobiou como um louco.
- Acabo de saber que a Lisbeth foi ilibada de todas as acusações. A ovação foi espontânea, e logo a seguir, cada um continuou a
falar ao telefone, como se nada tivesse acontecido.
Mikael ergueu os olhos e observou o televisor ligado no meio da redacção. Na TV4 estava a começar o jornal da noite. As primeiras imagens eram um pequeno excerto do filme que mostrava Jonas Sandberg a esconder cocaína no apartamento da Bellmansgatan. Uma voz off comentava: "Um funcionário da Sapo esconde cocaína na casa do jornalista Mikael Blomkvist."
A partir daqui, o telejornal arrancou.
- "Cerca de dez funcionários da Polícia de Segurança foram hoje colocados sob prisão acusados de criminalidade agravada, incluindo
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dois homicídios. Seja bem-vindo ao programa desta noite, uma longa sessão especial."
Mikael cortou o som quando a Rapariga da TV4 apareceu no ecrã e ele se viu a si mesmo sentado num cadeirão do estúdio. Já sabia o que tinha dito. Voltou os olhos para a secretária que Dag Svensson usara para trabalhar. Os vestígios da sua reportagem sobre o tráfico de mulheres tinham desaparecido e a secretária voltara a transformar-se num depósito de jornais velhos e um montão de papéis em que já ninguém estava interessado.
Fora naquela secretária que o caso Zalachenko começara para ele. Teria gostado muito que Dag Svensson lhe tivesse visto o fim. Alguns exemplares do livro sobre o tráfico de mulheres, acabados de sair da gráfica, faziam companhia, em cima da secretária, ao livro sobre a Secção.
Havias de ter gostado, Dag.
Ouviu o telefone tocar no gabinete, mas não teve coragem para atender. Em vez disso, fechou a porta e foi refugiar-se no de Erika Berger, onde se deixou cair num dos confortáveis cadeirões em frente da janela. Erika falava ao telefone. Mikael olhou em redor. Havia mais de um mês que ela regressara, mas ainda não tivera tempo para voltar a atafulhar a divisão com todos os objectos pessoais que de lá tirara em Abril. As prateleiras da estante estavam vazias e não havia quadros nas paredes.
- Então, como vai isso? - perguntou ela, depois de desligar.
- Acho que estou feliz - disse Mikael. Erika sorriu.
- A Secção vai fazer furor. Está tudo superexcitado, nas redacções. Que dizes se passarmos pelo Aktuellt, às nove.
- Não.
- Foi o que pensei.
- Vamos ter de falar de tudo isto durante alguns meses. Não há pressa.
Ela assentiu.
- O que é que fazes esta noite?
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- Não sei.
Mikael mordeu o lábio inferior.
- Erika...
- Figuerola - disse ela, a sorrir. Ele inclinou a cabeça.
- É sério?
- Não sei.
- Ela está loucamente apaixonada por ti.
- E eu acho que também estou apaixonado por ela.
- Vou manter-me à distância até que tenhas a certeza. - Ele voltou a baixar a cabeça. - É bem capaz - disse ela.
Às oito da noite, Dragan Armanskij e Susanne Linder bateram à porta da redacção. Achavam que a ocasião exigia champanhe e levavam um saco cheio de garrafas. Erika abraçou Susanne e foi mostrar-lhe a redacção, enquanto Armanskij se instalava no gabinete de Mikael.
Beberam. Durante um minuto, ninguém falou. Foi Armanskij que quebrou o silêncio.
- Sabe uma coisa, Blomkvist? Quando nos conhecemos, por causa daquela história de Hedestad, detestei-o cordialmente.
- Ah.
- Foi quando apareceu para contratar a Lisbeth para as suas pesquisas.
- Lembro-me.
- Acho que tive ciúmes. Conheciam-se havia meia dúzia de horas, e ela estava a rir-se para si. Tentei ser amigo da Lisbeth durante muitos anos, e nunca consegui arrancar-lhe um sorriso.
- Bom... eu também não consegui muito mais do que isso. Ficaram em silêncio por um momento.
- Ainda bem que acabou - disse Armanskij.
- Ámen - disse Mikael.
O interrogatório formal a Lisbeth Salander foi conduzido pelos inspectores Jan Bublanski e Sonja Modig. Ambos acabavam de reencontrar as respectivas famílias ao cabo de um longo dia de trabalho, quando tinham sido chamados a Kungsholmen.
Lisbeth contava com o apoio de Annika Giannini, mas a advogada praticamente não precisou de intervir. Lisbeth Salander respondeu em termos muito exactos e precisos a todas as perguntas que Bublanski e Modig lhe fizeram.
Fiel a si mesma, mentiu em dois pontos centrais. Na sua descrição do que acontecera durante o confronto em Stallarholmen, manteve que fora Sonny Nieminen quem ferira acidentalmente Carl-Magnus Lundin num pé quando ela lhe tocara com o taser. Onde arranjara o taser? Tinha-o tirado a Magge Lundin.
Nem Bublanski nem Modig tentaram sequer esconder o seu cepticismo. Mas não havia provas nem nenhuma testemunha que contrariasse aquela versão. Sonny Nieminen poderia ter protestado, mas continuava a recusar falar do incidente. Na verdade, ignorava tudo o que acontecera nos segundos subsequentes à descarga eléctrica do taser por ter perdido os sentidos.
Relativamente à viagem a Gosseberga, Lisbeth explicou que o seu objectivo fora encontrar o pai e persuadi-lo a entregar-se à polícia. E disse isto com o ar mais cândido deste mundo. Ninguém podia provar se ela mentia ou não. A própria Annika Giannini não tinha qualquer opinião formada sobre o assunto.
A única pessoa que sabia que Lisbeth Salander fora a Gosseberga com a firme intenção de pôr um fim às suas relações com o pai era Mikael Blomkvist. Mas Mikael Blomkvist fora excluído da sala de audiência pouco depois de ter recomeçado o julgamento. Ninguém sabia que ele e Lisbeth Salander tinham tido longas conversas nocturnas, via Internet, durante o tempo que ela passara em Sahlgrenska.
Os media não conseguiram captar o momento da libertação. Se tivessem sabido a hora, teria havido um ajuntamento anómalo diante
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da sede da Polícia. Mas os jornalistas estavam exaustos depois do caos que rebentara com a publicação da Millennium, um dia que vira agentes da Sapo prenderem outros agentes da Sapo.
A Rapariga da TV4 era a única jornalista que, como sempre, estava por dentro do que se passava. O seu programa de uma hora tornou-se um clássico que, meses mais tarde, seria galardoado com o prémio de melhor reportagem de informação televisiva.
Sonja Modig fez Lisbeth Salander sair da sede da Polícia descendo muito simplesmente com ela e com Annika Giannini até à garagem do edifício e levando-as de carro até ao escritório da advogada em Kungsholms Kyrkoplan, onde as duas trocaram o carro da inspectora pelo de Annika. Annika esperou que Modig arrancasse e só depois ligou o motor. Dirigiu-se a Sõdermalm. Só quebrou o silêncio quando já iam a passar em frente do edifício do Parlamento.
- Para onde vai? - perguntou.
Lisbeth reflectiu durante alguns segundos.
- Pode deixar-me num sítio qualquer, na Lundagatan.
- A Miriam Wu não está lá. - Lisbeth lançou-lhe um olhar de soslaio. - Foi para França pouco depois de ter saído do hospital. Está a viver com os pais, se quiser contactá-la.
- Porque não me disse nada?
- Porque não me perguntou.
- Hum.
- Estava a precisar de afastar-se. O Mikael deixou-me isto para si, esta manhã. Disse que de certeza ia querer recuperá-las.
Estava a estender-lhe um porta-chaves. Lisbeth pegou-lhe sem dizer uma palavra.
- Obrigada. Nesse caso, pode deixar-me na Folkungatan.
- Não quer dizer onde mora, nem sequer a mim?
- Mais tarde. Agora, quero que me deixem em paz.
- Okay.
Annika ligara o telemóvel depois de terem saído de Kungsholmen, logo que terminara o interrogatório. Ouviram-no tocar quando iam em Slussen. Olhou para o visor.
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- É o Mikael. Tem ligado praticamente de dez em dez minutos, nestas últimas horas.
- Não quero falar com ele.
- Tudo bem. Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- Que pergunta?
- O que foi que o Mikael lhe fez para o odiar assim tanto? Devo dizer-lhe que, se não fosse ele, o mais certo era estar internada esta noite num hospital psiquiátrico.
- Não odeio o Mikael. Ele não me fez nada. Só não quero falar com ele, por enquanto.
Annika Giannini olhou para a sua cliente pelo canto do olho.
- Não quero meter-me na sua vida, mas sucumbiu ao encanto dele, não foi?
Lisbeth olhou para a janela, sem responder.
- O meu irmão é totalmente irresponsável no que respeita a relações. Passa a vida a levar mulheres para a cama sem compreender que isso pode magoar aquelas que vêem nele algo mais do que um simples encontro de circunstância.
Lisbeth enfrentou-lhe o olhar.
- Não quero falar do Mikael consigo.
- Okay - disse Annika. Parou junto ao passeio, um pouco antes da Erstagatan. - Dá-lhe jeito aqui?
- Sim.
Ficaram caladas. Lisbeth não fez qualquer gesto para abrir a porta. Um momento depois, Annika desligou o motor.
- O que é que vai acontecer agora? - acabou Lisbeth por perguntar.
- O que vai acontecer é que, a partir de agora, deixa de estar sob tutela. Pode fazer o que quiser. Apesar de termos sido muito firmes hoje, no tribunal, há ainda muita papelada a tratar. A Comissão de Tutelas vai abrir um inquérito para apurar responsabilidades, e ainda falta tratar da questão da indemnização e coisas desse género. E a instrução vai seguir o seu caminho.
- Não quero indemnizações. Só quero que me deixem em paz.
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- Compreendo. Mas o que quer não tem aqui muita importância. Este processo não depende de si. Proponho que procure um advogado que possa defender os seus interesses.
- Não quer continuar a ser minha advogada?
Annika esfregou os olhos. Depois da adrenalina do dia, sentia-se vazia. Queria ir para casa, tomar um duche e deixar o marido massajar-lhe as costas.
- Não sei. Não confia em mim. E eu não confio em si. Não me agrada ser arrastada para um longo processo em que tudo o que recebo é um silêncio frustrante de cada vez que lhe apresento uma proposta ou pretendo discutir qualquer assunto consigo.
Lisbeth ficou calada por um longo momento.
- Não... não sou muito boa em relacionamentos. Mas confio em si.
Aquilo mais parecia uma desculpa.
- É possível. Mas se tem dificuldades de relacionamento, o problema não é meu, mas passará a ser, se eu aceitar representá-la. - Silêncio. - Quer que continue a ser sua advogada?
Lisbeth assentiu com a cabeça. Annika suspirou.
- Moro na Fiskargatan, no número nove. Podes levar-me até lá? Annika olhou para ela pelo canto do olho. Acabou por ligar o
motor. Seguiu as indicações de Lisbeth e, pouco depois, estacionavam a alguma distância do prédio.
- Bem - disse Annika. - Vamos fazer uma experiência, e as minhas condições são estas. Vou representar-te. Quando precisar de falar contigo, quero que me respondas. Quando tiver necessidade de saber como queres que proceda, quero respostas claras. Se te telefonar a dizer que é preciso que fales com a polícia ou o procurador, ou seja quem for ligado ao inquérito, é porque o considero necessário. Nesses casos, exijo que te apresentes à hora e no lugar combinados, sem fazer cenas. Consegues viver com isto?
- Tudo bem.
- E se começares a fazer cenas, deixo de ser tua advogada. Compreendeste? - Lisbeth fez que sim com a cabeça. - Outra coisa. Não quero envolver-me nos dramas que se passam entre ti e o meu irmão.
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Se tens problemas com ele, resolve-os. Mas fica sabendo que ele não é teu inimigo.
- Eu sei. Vou resolver essa questão. Mas preciso de tempo.
- O que é que tencionas fazer agora?
- Não sei. Podes contactar-me via e-mail. Prometo responder logo que puder, mas talvez não os veja todos os dias...
- O facto de teres uma advogada não faz de ti uma escrava. Para já, contentamo-nos assim. Agora sai. Estou estourada e quero ir para casa dormir. - Lisbeth abriu a porta e apeou-se. Deteve-se no momento de fechar a porta. Parecia querer dizer qualquer coisa, mas não encontrou as palavras. Por um instante, pareceu a Annika quase vulnerável. - Tudo bem - disse Annika. - Vai dormir. E vê se consegues não te meter em sarilhos durante as próximas semanas.
Lisbeth Salander ficou parada no passeio até as luzes traseiras do carro de Annika Giannini terem desaparecido para lá da esquina. - Obrigada - disse, por fim.
CAPÍTULO 29
SÁBADO, 16 DE JULHO - SEXTA-FEIRA, 7 DE OUTUBRO
Encontrou o Palm em cima da cómoda da entrada. Juntamente com as chaves do carro e o saco que perdera na noite em que Magge Lundin a atacara diante do prédio da Lundagatan. Havia correio aberto e por abrir que alguém fora buscar à caixa postal na Hornsgatan. Mikael Blomkvist.
Percorreu lentamente as divisões mobiladas do apartamento. Encontrou sinais de Mikael por todo o lado. Tinha dormido na cama dela e trabalhado no escritório. Tinha utilizado a impressora dela e, no cesto de papéis, encontrou rascunhos de textos do livro sobre a Secção e notas e rabiscos rejeitados.
Comprou um litro de leite, pão, queijo, pasta de peixe e dez embalagens de Billys Pan Pizza, que deixou no frigorífico.
Em cima da mesa da cozinha encontrou um pequeno sobrescrito branco com o seu nome. Uma nota dele. A mensagem era breve. Um número de telemóvel. Nada mais.
Lisbeth Salander compreendeu de súbito que a bola estava do lado dela. Ele não tinha a intenção de contactá-la. Terminara o artigo, devolvera-lhe as chaves e não tencionava voltar a dar-lhe notícias. Merda! É mesmo lixado, aquele tipo!
Ligou a cafeteira e preparou quatro sanduíches. Depois, foi instalar-se no recanto da janela, a olhar para o Djurgârden. Acendeu um cigarro e ficou pensativa.
Estava tudo acabado e, no entanto, a sua vida parecia-lhe ainda mais vazia do que nunca. ,
Miriam Wu partira para França. Quase morreste por minha culpa. Receara o momento em que ia ter de encontrar-se com Miriam
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e decidira que seria a primeira coisa que havia de fazer quando estivesse livre. E a Miriam não está em casa, está em França. Merda!
Sentia-se subitamente em dívida para com uma porção de gente.
Holger Palmgren. Dragan Armanskij. Tinha de contactá-los, para lhes agradecer. Paolo Roberto. E Peste e Trinity. E até o raio dos inspectores, Bublanski e Modig, tinham ficado do lado dela, se quisesse ser totalmente objectiva. Não gostava de estar em dívida fosse com quem fosse. Sentia-se como um pião num jogo no qual não tinha nenhum controlo.
Super Sacana Blomkvist. E talvez também Erika Sacana Berger, com as suas bonitas covinhas nas faces, e os seus belos vestidos, e a sua segurança.
Acabou-se, dissera Annika Giannini quando saíram da sede da Polícia. Sim. O julgamento tinha acabado. Tinha acabado para Annika Giannini. Tinha acabado para Mikael Blomkvist, que tinha publicado o seu texto e que ia aparecer na televisão e que ia de certeza ganhar, de passagem, um ou dois prémios.
Mas não tinha acabado para Lisbeth Salander. Aquele era apenas o primeiro dia do resto da sua vida.
Às quatro da madrugada, parou de reflectir. Despiu a roupa punk no chão do quarto, foi para a casa de banho e meteu-se debaixo do chuveiro. Desembaraçou-se da maquilhagem que usara durante o julgamento e vestiu umas calças de linho escuro, um top branco e um casaco ligeiro. Enfiou algumas mudas de roupa interior e dois ou três tops num saco de viagem e escolheu uns simples sapatos rasos.
Finalmente, guardou o Palm no bolso do casaco e chamou um táxi. Dirigiu-se ao aeroporto de Arlanda, onde chegou um pouco antes das seis. Examinou o painel de partidas e comprou um bilhete para o primeiro destino em que pousou o olhar. Usou o seu próprio passaporte, com o seu nome verdadeiro. Ficou espantada por ninguém, nas reservas nem no check-in, parecer reconhecê-la ou reagir ao seu nome. Tinha arranjado lugar num voo da manhã para Málaga, onde aterrou por volta do meio-dia sob um sol escaldante. Ficou um instante no terminal, hesitante. Finalmente, decidiu consultar um mapa.
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perguntando a si mesma o que poderia fazer em Espanha. Um minuto mais tarde, tinha tomado uma decisão. Não estava com vontade nenhuma de perder tempo a pensar em autocarros ou outros meios de transporte. Comprou uns óculos de sol numa loja do aeroporto, saiu do terminal e sentou-se no banco traseiro do primeiro táxi livre.
- Gibraltar. Pago com cartão de crédito.
O trajecto demorou três horas, seguindo a nova auto-estrada que corre ao longo da costa sul. O táxi deixou-a no posto fronteiriço do território britânico. Dirigiu-se a pé à Europa Road e ao Rock Hotel, situado na base do Rochedo, e perguntou se tinham algum quarto livre. Tinham um quarto duplo. Reservou-o por duas semanas e apresentou o seu cartão de crédito.
Tomou um duche e foi sentar-se, embrulhada no toalhão de banho, na varanda, de onde avistava o estreito de Gibraltar. Distinguia vagamente Marrocos, do outro lado. Uma paisagem tranquila.
Um momento depois, voltou para dentro, deitou-se e adormeceu.
Acordou às cinco e meia da manhã do dia seguinte. Levantou-se, tomou um duche e bebeu um café no bar do hotel, no piso térreo. Às sete horas, saiu do hotel, comprou mangas e maçãs, apanhou um táxi para The Peak e foi ver os macacos. Chegou cedo, havia muito poucos turistas, de modo que deu por si quase sozinha com os animais.
Gostava de Gibraltar. Era a sua terceira visita ao estranho rochedo debruçado sobre o Mediterrâneo, com a sua cidade inglesa absurdamente populosa. Gibraltar era diferente de tudo. A cidade estivera isolada durante décadas, uma colónia que teimava em recusar ser anexada à Espanha. Os espanhóis protestavam, evidentemente, contra a ocupação. Lisbeth considerava, no entanto, que melhor seria ficarem calados enquanto ocupassem o enclave de Ceuta, em território marroquino, do outro lado do estreito. Era um lugar estranho, separado do resto do mundo, uma cidade com pouco mais de dois quilómetros quadrados, constituída por um rochedo de forma bizarra e com um aeroporto conquistado ao mar. A colónia era tão pequena que não havia um centímetro quadrado de terreno por utilizar, e a expansão
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fazia-se forçosamente para o lado do mar. Para entrar na cidade, os visitantes tinham de atravessar a pista do aeroporto.
Gibraltar era o exemplo perfeito da noção de compact living. Viu um grande macaco macho trepar para o murete junto ao caminho. Estava a vigiá-la pelo canto do olho. Um Barbary ape. Lisbeth sabia que não era aconselhável tentar fazer-lhe festas. - Olá, companheiro - disse. - Sou eu, voltei. Antes da sua primeira passagem por Gibraltar, nunca ouvira falar daqueles macacos. Subira ao cume do Rochedo apenas para admirar a vista e fora apanhada completamente de surpresa quando, ao seguir um grupo de turistas, dera por si no meio de um ruidoso bando de macacos que trepavam por tudo o que era sítio de um e do outro lado da passagem.
Fora estranho, ir por um caminho e ter de repente duas dúzias de macacos à sua volta. Olhara-os com a maior desconfiança. Não eram perigosos nem agressivos, mas podiam causar ferimentos graves com os dentes caso se sentissem enervados ou ameaçados.
Encontrou um dos guardas, mostrou o saco e perguntou se podia dar os frutos aos animais. O homem não levantou objecções.
Lisbeth pegou numa manga e colocou-a sobre o murete, a alguma distância do macho.
- Pequeno-almoço - disse, e encostou-se ao murete para mordiscar uma maçã.
O macaco olhou para ela, mostrou os dentes e depois apoderou-se da manga, todo contente.
Por volta das quatro da tarde do seu quinto dia em Gibraltar, Lisbeth Salander caiu de um tamborete do Harry's Bar, numa transversal à Main Street, a dois quarteirões do hotel onde estava hospedada. Tinha-se mantido consistentemente embriagada desde que descera do monte dos macacos, e a maior parte do que bebera fora consumida no estabelecimento de Harry O'Connell, que falava com um sotaque irlandês esforçadamente adquirido, uma vez que nunca em toda a sua vida pusera os pés na Irlanda. Harry observara-a com um ar preocupado.
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Quando ela pedira a primeira bebida, quatro dias antes, ainda o sol ia alto no céu, ele, tomando-a por uma garota, exigira ver o passaporte. Sabia que ela se chamava Lisbeth, e tratava-a por Liz. Aparecia, regra geral, por volta da hora do almoço, sentava-se num tamborete ao fundo do bar e encostava-se à parede. Em seguida, dedicava-se aplicadamente a ingerir um número considerável de cervejas ou de whiskies.
Quando bebia cerveja, não queria saber da marca; bebia o que ele lhe servia. Quando pedia whisky, escolhia sempre Tullamore Deu, excepto uma vez, em que escrutinara as garrafas alinhadas nas prateleiras atrás do balcão e quisera experimentar Lagavulin. Cheirara o copo, arqueara as sobrancelhas e bebera um pequeno golo. Então pousara o copo e continuara a olhar fixamente para ele durante cerca de um minuto, com uma expressão que dava a entender que considerava o conteúdo um inimigo perigoso.
Acabara por afastá-lo e pedira a Harry que lhe desse outra coisa qualquer que não servisse para calafetar barcos. Ele voltara ao Tullamore Dew e ela recomeçara a beber. Naqueles quatro dias, despejara, sozinha, uma garrafa. Harry nem contabilizara as cervejas. Espantava-o imenso o facto de uma rapariga com uma massa corporal tão modesta ser capaz de absorver tais quantidades de álcool, mas dizia para si mesmo que se ela queria beber, beberia no seu bar ou noutro qualquer.
E ela bebia lentamente, não falava com ninguém e não fazia cenas. A sua única ocupação, além do consumo de álcool, parecia ser brincar com um computador de bolso, que de vez em quando ligava ao telemóvel. Harry fizera várias tentativas de meter conversa com ela, mas chocara sempre com uma parede de silêncio. A rapariga parecia fugir a todo o género de companhia. Por vezes, quando havia demasiada gente no interior do bar, retirava-se para a esplanada, e, noutras ocasiões, ia comer a um restaurante italiano duas portas mais adiante, após o que regressava ao Harry's para beber mais Tullamore Dew. Regra geral, deixava o bar por volta das nove, e seguia para norte.
Naquele dia, tinha bebido muito mais depressa do que era costume, e Harry começara a vigiá-la. Já tinha despachado sete copos de
Tullamore Dew, em duas horas, quando ele se recusara servir-lhe mais. Mas não chegara a ter tempo de levar à prática a sua decisão: um grande estrépito anunciou-lhe que ela tinha caído do banco.
Harry pousou o copo que estava a limpar, passou para o outro lado do balcão e ajudou-a a pôr-se de pé. A rapariga tinha um ar ofendido.
- Acho que já teve a sua conta - disse ele. - Ela olhou para ele com um olhar vago e agarrou-se ao balcão com uma mão, remexeu no bolso do casaco, tirou de lá algumas notas e cambaleou em direcção à saída. Ele segurou-a gentilmente por um ombro. - Espere. É melhor ir à casa de banho vomitar os últimos copos e depois descansar um pouco no bar. Não posso deixá-la sair nesse estado.
Ela não protestou quando ele a acompanhou à casa de banho. Enfiou dois dedos na garganta e fez o que ele lhe tinha dito. Quando voltou ao bar, ele serviu-lhe um grande copo de água mineral. Ela bebeu-o até ao fim e arrotou. Ele serviu-lhe outro.
- Amanhã vai estar com uma ressaca daquelas - profetizou Harry. - Ela assentiu com a cabeça. - Não tenho nada com isso - continuou ele -, mas, se fosse a si, mantinha-me a seco nos próximos dias. Ela assentiu com a cabeça e voltou à casa de banho, para vomitar. Ficou no Harry's ainda mais uma hora, até que o seu olhar se tornasse suficientemente límpido para que ele ousasse deixá-la sair. Saiu com passo incerto, caminhou em direcção ao aeroporto, e depois pela marginal, bordejando a marina. Continuou a passear até às oito e meia, quando sentiu que o chão parara finalmente de balouçar. Só então voltou ao hotel. Subiu directamente para o quarto, lavou a cara e os dentes, mudou de roupa e desceu ao bar, onde pediu uma chávena grande de café e uma garrafa de água mineral.
Sentada em silêncio e sem dar nas vistas ao lado de uma coluna, estudava os outros clientes. Reparou num casal na casa dos trinta que falava em voz baixa. A mulher vestia um vestido ligeiro de Verão. O homem segurava-lhe a mão por baixo da mesa. Estavam a beber cerveja. Viu um grupo de reformados que eram inequivocamente turistas americanos. Os homens usavam bonés de baseball, pólos e calças largas. As mulheres jeans de marca, camisolas vermelhas e óculos
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de sol com cordões. Viu um homem de casaco de linho claro, camisa cinzenta e gravata escura entrar na recepção e procurar as chaves no bolso antes de rumar ao bar e pedir uma cerveja. Estava sentada a três metros dele e examinou-o com mais atenção quando ele pegou no telemóvel e começou a falar em alemão.
- Sim, sou eu... está tudo bem?... Tudo bem, a próxima reunião é amanhã à tarde... não, acho que vai resultar... fico ainda mais cinco ou seis dias e depois vou a Madrid... Não, só volto para o fim da semana que vem... também eu... amo-te... claro... volto a ligar para a semana... Beijos.
Tinha cerca de um metro e oitenta e cinco de altura, devia andar pelos 50, 55 anos, cabelos sal-e-pimenta um pouco para o comprido, um queixo fugidio e demasiado peso à volta da cintura. Mas relativamente bem conservado. Lia o Financial Times. Quando acabou a cerveja e se dirigiu ao elevador, Lisbeth Salander pôs-se de pé e seguiu-o.
O homem premiu o botão do quinto andar. Lisbeth pôs-se ao lado dele e encostou a cabeça à parede do fundo.
- Estou bêbeda - disse. Ele olhou para ela.
- A sério?
- Sim. Não parei a semana toda. Deixa-me adivinhar. És uma espécie de homem de negócios, vives em Hanôver ou algures no Norte da Alemanha. És casado. Amas a tua mulher. E vais ter de ficar em Gibraltar ainda mais alguns dias. Foi o que percebi da tua conversa ao telefone, no bar. - Ele fez um ar espantado. Ela continuou. - Eu venho da Suécia. Tenho uma vontade louca de fazer amor com alguém. Não me importo que sejas casado nem quero o teu número de telefone. Ele arqueou as sobrancelhas. - Estou no 711, dois andares acima do teu. Vou para o meu quarto, despir-me, tomar um banho e meter-me na cama. Se quiseres fazer-me companhia, podes bater-me à porta dentro de meia hora. Se não, vou dormir.
- É uma brincadeira, não é? - perguntou ele, quando o elevador se deteve.
- Não. Não tenho pachorra para andar pelos bares, no engate. Ou vais bater à minha porta, ou não vais.
Vinte e cinco minutos mais tarde, alguém bateu à porta do quarto de Lisbeth. Ela foi abrir, embrulhada no lençol de banho.
- Entra - disse. Ele entrou e lançou um olhar desconfiado ao quarto. - Só cá estou eu - disse ela.
- Que idade tens tu, ao certo? - Ela estendeu a mão para pegar no passaporte que estava em cima da cómoda e mostrou-lho. - Pareces mais nova.
- Eu sei - disse ela. Desembaraçou-se do lençol de banho, que atirou para cima de uma cadeira. Voltou à cama e puxou a colcha para baixo. Ele estava a olhar para as tatuagens. - Não é nenhuma armadilha - disse ela, por cima do ombro. - Sou uma rapariga, sou solteira e vou ficar por cá alguns dias. Há meses que não faço amor.
- Porque é que me escolheste a mim, precisamente?
1 - Porque eras o único no bar que parecia não estar acompanhado.
- Sou casado...
- E eu não quero saber quem ela é, e nem sequer quem tu és. E não quero discutir sociologia. Quero foder. Despe-te ou volta para o teu quarto.
- Assim, sem mais?
- Porque não? Eu sou adulta, e tu sabes o que é suposto fazer.
Ele reflectiu durante trinta segundos. Pareceu estar mesmo à beira de se ir embora. Lisbeth sentou-se na cama e esperou. Ele mordeu o lábio inferior. Depois despiu as calças e a camisa. E ficou de cuecas, ainda a hesitar.
- Tudo - disse Lisbeth. - Não me apetece foder com um homem de cuecas. E vais ter de usar preservativo. Eu sei o que fiz, mas não sei o que tu fizeste.
Ele despiu as cuecas, aproximou-se dela e pousou-lhe uma mão no ombro. Lisbeth fechou os olhos quando ele se inclinou para a frente e a beijou. Sabia-lhe bem. Deixou-o deitá-la de costas na cama. O corpo dele pesava em cima do dela.
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Jeremy Stuart MacMillan, advogado, sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe na nuca no instante em que abriu a porta do seu escritório na Buchanan House, em Queensway Quay, sobre a marina. Detectou o cheiro a tabaco e ouviu uma cadeira ranger. Ainda não eram sete da manhã e o seu primeiro pensamento foi que acabava de surpreender um ladrão.
Então, notou o cheiro a café que vinha da kitchenette. Alguns segundos depois, entrou prudentemente, atravessou o vestíbulo e espreitou para dentro do amplo e elegante escritório. Lisbeth Salander estava sentada na cadeira giratória da secretária, de costas para ele, os calcanhares pousados no peitoril da janela. Ligara o computador e não tivera, aparentemente, qualquer problema em descobrir a password. Tal como não tivera problema em abrir o cofre. Tinha aberta em cima das coxas uma pasta onde ele guardava a sua correspondência privada e a sua contabilidade.
- Bom dia, Miss Salander - acabou ele por dizer.
- Hum - respondeu ela. - Há café quente e croissants na kitchenette.
- Obrigado - disse ele, com um suspiro resignado.
Era certo que comprara o escritório com o dinheiro de Lisbeth Salander e a pedido dela, mas não esperara vê-la aparecer assim de repente, sem avisar. Além disso, ela encontrara, e claramente folheara, uma revista pornográfica que ele guardava numa gaveta da secretária.
Muito embaraçoso.
Ou talvez não.
Ficara com a impressão de que Lisbeth Salander era a pessoa mais severa que alguma vez conhecera em relação aos que a enervavam, mas totalmente permissiva em matéria das fraquezas pessoais de cada um. Lisbeth sabia que, oficialmente, ele era heterossexual, mas que no seu íntimo se sentia atraído por homens e que, desde que se divorciara, havia já 15 anos, se dedicara a realizar as suas fantasias mais pessoais.
Estranho. Sinto-me seguro com ela.
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Já que estava em Gibraltar, Lisbeth Salander decidira fazer uma visita ao Dr. Jeremy MacMillan, que se ocupava das suas finanças. Não tivera qualquer contacto com ele desde o Ano Novo e queria averiguar se o advogado aproveitara a sua ausência para a arruinar.
Claro que não havia nenhuma pressa especial, e não fora essa a razão que a levara a ir directamente para Gibraltar depois de ter sido libertada. Fizera-o porque sentira uma necessidade imperiosa de mudar de ares e, para isso, Gibraltar era excelente. Passara alguns dias em estado de embriaguez, depois mais alguns a fazer amor com o homem de negócios alemão que acabara por revelar chamar-se Dieter. Duvidava de que fosse o verdadeiro nome dele, mas também não lhe interessava. Dieter passava os dias em reuniões e as noites a jantar com ela antes de se retirarem para um dos quartos, conforme calhasse.
Não era mau na cama, descobrira Lisbeth. Talvez a precisar de um pouco mais de exercício, e, por vezes, inutilmente brutal.
Parecera ter ficado sinceramente surpreendido por ela ter engatado, por puro prazer, um homem de negócios alemão com peso a mais e que não andava sequer à procura de uma aventura. Era casado e não tinha o hábito de ser infiel ou de procurar companhia feminina aquando das suas viagens de negócios. Mas quando a possibilidade lhe fora oferecida de bandeja, sob a forma de uma rapariguinha frágil e coberta de tatuagens, não fora capaz de resistir à tentação. Era o que dizia.
Lisbeth Salander estava-se nas tintas para o que ele dizia. Tudo o que pretendia era alguns bons momentos de sexo, mas não deixara de ficar surpreendida ao ver que ele se esforçava verdadeiramente por a satisfazer. Durante a quarta noite, a última que tinham passado juntos, Dieter fora subitamente dominado por um ataque de angustiado pânico e pusera-se a perguntar o que diria a mulher. Para Lisbeth, o que o tipo tinha de fazer era calar a boca e não dizer nada à mulher.
Mas não dissera o que pensava.
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O homem era adulto e podia perfeitamente ter recusado a oferta dela. Queria lá saber se ficava a remoer a culpa ou resolvia contar tudo à cara-metade. Voltara-lhe as costas e ouvira-o, cheia de paciência, durante um quarto de hora até que, farta, erguera os olhos ao céu, voltara-se e sentara-se em cima dele.
- Será que podes fazer uma pausa na tua angústia e satisfazer-me mais uma vez? - perguntara.
Jeremy MacMillan era uma história completamente diferente. Não a atraía fosse de que maneira fosse. Era um escroque. Curiosamente, um pouco parecido com Dieter. Tinha 48 anos, charme, também ele com um ligeiro excesso de peso. Penteava os cabelos, alguns já grisalhos, para trás. Usava uns óculos estreitos, com armação de metal amarelo.
Em tempos, fora jurista empresarial, diplomado por Oxbridge e baseado em Londres. Com um futuro promissor, trabalhava como associado num gabinete de advogados que oferecia consultoria a grandes empresas e a yuppies cheios de massa que faziam malabarismos no imobiliário e na fiscalidade. Passara os alegres anos oitenta na companhia de novos-ricos e a brincar às estrelas. Bebera e snifara coca com muitas pessoas que na realidade teria preferido não encontrar na sua cama ao acordar na manhã seguinte. Nunca fora acusado e muito menos condenado, mas perdera a mulher e os dois filhos, e acabara despedido por ter gerido mal os negócios e ter aparecido embriagado numa reunião de conciliação.
Quando lhe passara a bebedeira, e quase sem pensar, fugira de Londres, coberto de vergonha. Não saberia dizer por que escolhera precisamente Gibraltar, mas, em 1991, associara-se a um jurista local e abrira um modesto gabinete de segunda linha que, oficialmente, se ocupava de heranças e testamentos sem grande importância. Mais oficiosamente, o gabinete MacMillan & Marks criava também empresas fictícias e servia de testa-de-ferro a diversos "empresários" europeus que preferiam manter-se na sombra. A sociedade lá se fora mantendo, melhor ou pior, até ao dia em que Lisbeth Salander escolhera Jeremy MacMillan para gerir os 2,5 mil milhões de coroas que roubara ao império em ruínas do financeiro Hans-Erik Wennerstrõm.
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MacMillan era, sem dúvida, um vigarista. Mas Lisbeth considerava-o o seu vigarista, e ele surpreendera-se a si mesmo mantendo-se irrepreensivelmente honesto em tudo o que lhe dizia respeito. A primeira tarefa para que Lisbeth o contratara fora uma acção muito simples: criar, a troco de uma modesta soma, um certo numero de empresas fictícias que ela podia utilizar e nas quais colocara um milhão de dólares. Contactara-o pelo telefone e, nessa altura, não passava ainda de uma voz longínqua. Ele nunca perguntara de onde vinha o dinheiro. Limitara-se a agir de acordo com as instruções recebidas, reservando para si uma comissão de 5%. Pouco depois, ela injectara uma quantia mais importante, que ele devia utilizar para criar uma sociedade, a Wasp Enterprise, com o objectivo de comprar um condomínio em Estocolmo. A relação com Lisbeth Salander tornara-se deste modo lucrativa, apesar de, para ele, continuar a tratar-se de pequenos montantes.
Dois meses mais tarde, ela fora inesperadamente visitá-lo a Gibraltar. Telefonara-lhe a propor um jantar a dois no seu quarto no Rock, que, se não era o maior, era pelo menos o hotel mais distinto do Rochedo. MacMillan não soubera muito bem o que esperar, mas não fora, com certeza, que a sua cliente fosse uma rapariguinha com ar de boneca, a quem ninguém daria quinze anos. Por um momento, pensara estar a ser alvo de uma brincadeira bizarra.
Depressa mudara de opinião. A estranha rapariga falava despreocupadamente, sem nunca sorrir ou mostrar a mais pequena ponta de calor humano. Nem, aliás, de distanciamento. Ficara paralisado quando, em poucos minutos, ela deitara abaixo a fachada de respeitabilidade profissional que ele tanto se esforçava por manter.
- O que é que pretende? - perguntara.
- Roubei uns dinheiros - respondera ela, num tom perfeitamente sério -, e preciso de um vigarista para os gerir.
MacMillan interrogara-se se ela teria os parafusos todos no lugar, mas optara por entrar delicadamente no jogo. Tinha ali o potencial alvo de uns truques de prestidigitação que poderiam proporcionar-lhe algum rendimento. Em seguida, ficara como que fulminado por
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um raio quando ela lhe explicara a quem roubara o dinheiro, como o fizera e o montante envolvido. O caso Wennerstrõm era o tema de conversa mais candente no mundo da finança internacional.
- Estou a ver.
As possibilidades atropelavam-se na cabeça dele.
- É um bom jurista empresarial e um bom investidor. Se fosse um imbecil, nunca lhe teriam confiado determinadas missões nos anos oitenta. Em contrapartida, comportou-se como um imbecil, ao ponto de ser despedido. - Ele arqueara as sobrancelhas. - De futuro, serei eu a sua única cliente. - Dissera isto, e olhara-o com os olhos mais inocentes que ele jamais vira em toda a sua vida. - Tenho duas exigências. A primeira, é que nunca cometa um crime ou se envolva no que quer que seja que possa criar-nos problemas e chamar a atenção das autoridades para as minhas empresas e as minhas contas. A segunda, é que nunca me minta. Nunca, ouviu bem? Nem uma vez. Seja por que razão for. Se me mentir, a nossa relação de negócios cessa imediatamente e, se me irritar o suficiente, arruiná-lo-ei. - Servira-lhe um copo de vinho e continuara: - Não há qualquer razão para me mentir. Já sei tudo o que há a saber sobre a sua vida. Sei quanto ganha nos meses bons e nos meses maus. Sei quanto gasta. Sei que tem muitas vezes falta de dinheiro. Sei que tem cento e vinte mil libras de dívidas, a longo e a curto prazo, e que é constante-mente obrigado a correr riscos e a fazer malabarismos para pagar as amortizações. Safa-se com elegância e tenta manter as aparências, mas está à beira de afogar-se e há meses que não compra um fato novo. Antigamente, coleccionava livros raros, que tem vindo a vender pouco a pouco. No mês passado, vendeu uma edição antiga de Oliver Twist por setecentas e sessenta libras. - Calara-se e olhara para ele. MacMillan engolira em seco. - Na semana passada, conseguiu finalmente acertar num bilhete de lotaria. Uma vigarice bastante astuciosa contra a viúva que representa. Sacou-lhe seis mil libras que, sem dúvida, não vão fazer-lhe grande falta.
- Merda, como é que pode saber uma coisa dessas?
- Sei que é casado, que tem em Inglaterra dois filhos que não querem saber de si para nada e sei que mudou de vida depois do
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divórcio, de tal modo que hoje as suas relações são sobretudo homossexuais. Coisa de que provavelmente se envergonha, uma vez que evita os bares gay, evita ser visto com os seus namorados e atravessa frequentemente a fronteira espanhola para se encontrar com homens. - O choque deixara Jeremy MacMillan sem voz. Subitamente, sentira-se dominado pelo terror. Não fazia a mínima ideia de como conseguira ela descobrir tudo aquilo, mas a verdade é que tinha informações suficientes para o aniquilar. - Vou dizer isto apenas uma vez. Estou-me perfeitamente nas tintas para com quem vai para a cama. Não me diz respeito. Quero saber quem você é, mas nunca tirarei proveito desse conhecimento. Não tenciono ameaçá-lo nem fazer chantagem. MacMillan não era um imbecil. Compreendera, como era evidente, que o conhecimento que ela tinha dele representava uma ameaça. Ela tinha o controlo. Por um instante, considerara a hipótese de pôr-se de pé, agarrar nela e atirá-la por cima da balaustrada da varanda, mas dominara-se. Nunca sentira tanto medo.
- O que é que pretende? - conseguira perguntar.
- Quero-me associar a si. Vai pôr fim a todos os casos que tem em curso e trabalhar exclusivamente para mim. Vai ganhar mais dinheiro do que alguma vez sonhou poder ganhar. - E então explicara o que queria que ele fizesse e como via as grandes linhas do projecto. - Quero permanecer invisível - dissera. - Você gere os meus assuntos. Será tudo legítimo. Aquilo que eu faço, pelo meu lado, nunca o afectará a si e nunca será relacionado com os nossos negócios.
- Compreendo.
- Serei, portanto, a sua única cliente. Tem uma semana para liquidar todos os outros assuntos e acabar com todas as suas aldrabicezinhas.
MacMillan compreendera que acabava de lhe ser feita uma oferta daquelas que aparecem uma vez na vida. Reflectira sessenta segundos, e aceitara. Tinha apenas uma pergunta.
- Como é que sabe que não vou enganá-la?
- Faça-o, e vai arrepender-se durante o resto da sua miserável vida.
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Não tinha qualquer razão para a enganar. Lisbeth Salander propunha-lhe uma situação tão vantajosa que seria absurdo pô-la em risco por uma ninharia. Enquanto se mantivesse na linha e não fizesse asneiras, o seu futuro estava garantido.
Não tinha a mais pequena intenção de enganar Lisbeth Salander.
E assim se tornara honesto, ou pelo menos tão honesto quanto pode ser um advogado encarregado de gerir o produto de um roubo de proporções astronómicas.
Lisbeth não estava minimamente interessada em gerir as suas próprias finanças. A tarefa de MacMillan era investir o seu dinheiro e certificar-se de que as contas dos cartões de crédito que utilizava tinham sempre provisão. Tinham discutido durante várias horas. Ela explicara-lhe como queria ver administradas as suas finanças. O trabalho dele seria controlar essa gestão.
Uma grande parte do dinheiro roubado tinha sido colocada em fundos estáveis que a tornavam financeiramente independente para o resto dos seus dias, mesmo que lhe desse para a loucura e começasse a fazer uma vida de despesas escandalosas. Esses fundos serviriam para prover as contas dos cartões de crédito.
Com o restante, poderia jogar e investir à vontade, desde que não lhe trouxesse problemas com a polícia. Ficavam-lhe proibidas as pequenas aldrabices ou as vigarices de trazer por casa que, em caso de azar, poderiam colocá-la na mira das autoridades.
Faltava definir quanto ganharia ele com tudo aquilo.
- Pago-lhe quinhentas mil libras a título de honorários, à cabeça. Poderá liquidar as suas dívidas e ficar ainda com uma soma jeitosa. A partir daí, ganhará o seu próprio dinheiro. Vai criar uma sociedade em que seremos ambos sócios. Terá vinte por cento de todos os lucros. Quero que seja suficientemente rico para não se sentir tentado a fazer disparates, mas não o suficiente para ficar de braços cruzados.
MacMillan começara a trabalhar no seu novo emprego a 1 de Fevereiro. No final de Março, tinha pago todas as dívidas e estabilizado a tesouraria. Lisbeth insistira na importância de ele regularizar as finanças dele, por uma questão de credibilidade. Em Maio, desfizera
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a associação com o seu alcoolizado confrade George Marks, a outra metade da MacMillan & Marks. Ficara com a consciência um pouco pesada por romper assim com o seu antigo parceiro, mas misturar Marks nos assuntos de Lisbeth Salander estava totalmente fora de questão.
Voltara a discutir o assunto com Lisbeth quando ela aparecera em Gibraltar para uma visita surpresa no início de Julho e descobrira que ele estava a trabalhar em casa e não no pequeno escritório numa rua afastada que até então ocupara com o sócio.
- O meu parceiro é alcoólico e teria muita dificuldade em perceber os nossos negócios. Seria até um enorme factor de risco. Mas há quinze anos, quando cheguei a Gibraltar, salvou-me a vida ao aceitar-me como associado.
Lisbeth pensara no assunto durante dois minutos sem desviar os olhos do rosto de MacMillan.
- Compreendo, é um vigarista leal. Uma qualidade louvável, sem dúvida. Proponho que lhe abra uma pequena conta para que ele se possa entreter à vontade. Faça com que ganhe algumas notas de mil por mês, o suficiente para viver.
- Tenho luz verde?
Ela confirmara com um movimento de cabeça, enquanto examinava o apartamento de solteiro onde ele vivia e trabalhava. Um estúdio com kitchenette, numa das ruelas perto do hospital. A única coisa agradável era a vista. Dito isto, era difícil evitar aquela vista em Gibraltar.
- Precisa de um escritório e de outro apartamento - decretara.
- Ainda não tive tempo.
- Okay - dissera ela.
E levara-o às compras para lhe arranjar um escritório de 130 metros quadrados com uma pequena varanda sobre o mar, na Buchanan House, em Queensway Quay, a localização mais selecta de Gibraltar. Contratara um arquitecto de interiores para remodelar e decorar o espaço.
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MacMillan lembrava-se de que enquanto ele tratava da papelada, Lisbeth supervisionara pessoalmente a instalação do sistema de alarmes, do equipamento informático e do cofre, o mesmo que tinha aberto e revistado quando ele chegara ao escritório naquela manhã.
- Caí em desgraça? - perguntou.
Lisbeth fechou a pasta que estivera a examinar.
- Não, Jeremy, não caiu em desgraça.
- Ainda bem - disse ele, e foi buscar o café. - Tem verdadeiramente o dom de aparecer quando menos se espera.
- Tenho estado ocupada nestes últimos tempos. Só queria pôr-me ao corrente das últimas novidades.
- Se bem compreendi a história toda, foi procurada por um triplo homicídio, levou um tiro na cabeça e foi acusada de um monte de crimes. A certa altura, cheguei a ficar seriamente preocupado. Pensei que ainda estava atrás das grades. Evadiu-se?
- Não. Fui ilibada de todas as acusações e posta em liberdade. O que foi que ouviu, exactamente?
Ele hesitou um segundo.
- Okay, não vou mentir. Quando soube que estava na merda, contratei os serviços de uma agência de tradução que espiolhou todos os jornais suecos e me foi informando. Sei mais ou menos o que se
passou.
- Se baseia as suas informações no que os jornais diziam, não sabe de certeza o que se passou. Mas suponho que descobriu alguns segredos a meu respeito.
Ele assentiu.
- Que vai acontecer agora? Lisbeth olhou para ele, surpreendida.
- Nada. Continuamos como até agora. A nossa relação não tem nada que ver com os meus problemas na Suécia. Conte-me o que aconteceu durante a minha ausência. Como vão as coisas?
- Deixei de beber, se é isso que está a perguntar.
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- Não. A sua vida privada não é da minha conta, desde que não interfira com os negócios. O que estou a perguntar é se estou mais ou menos rica do que há um ano.
Ele puxou a cadeira das visitas e sentou-se. O facto de ela ter ocupado o lugar dele não tinha qualquer importância. Não havia qualquer motivo para entrar em lutas de prestígio.
- Entregou-me duzentos e sessenta milhões de dólares. Investimos duzentos milhões em fundos para si. Deu-me o resto para brincar.
- É verdade.
- Os seus fundos pessoais só variaram em função dos juros. Posso aumentar o lucro se...
- Não estou interessada em aumentar o lucro.
- Okay. As suas despesas foram ridículas. As rubricas mais importantes foram o apartamento que lhe comprei e o fundo a favor do tal advogado, Palmgren. Quanto ao resto, é uma consumidora normal, talvez até um pouco abaixo da média. Os juros foram vantajosos. Neste momento, os seus fundos voltaram praticamente ao nível inicial.
- Óptimo.
- Investi o resto. No ano passado, não conseguimos grandes lucros. Eu estava um pouco enferrujado e tive de reavaliar o mercado. Só neste ano começámos a gerar receitas a sério. Enquanto esteve en-gaiolada, ganhámos um pouco mais de sete milhões. Estou a falar de dólares.
- Dos quais vinte por cento são seus.
- Dos quais vinte por cento são meus.
- Está satisfeito?
- Ganhei mais de um milhão de dólares em seis meses. Sim, estou satisfeito.
- Bom... não seja demasiado guloso. Poderá retirar-se quando estiver satisfeito. Mas continue a dedicar algumas horas aos meus negócios, de vez em quando.
- Dez milhões de dólares - disse ele.
- Como?
- Quando tiver juntado dez milhões de dólares, paro. Ainda bem que apareceu. Temos assuntos a discutir.
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- Força.
Ele abriu as mãos.
- Tudo isto representa tanto dinheiro que me sinto apreensivo. Não sei o que fazer. Não sei qual é o objectivo das operações, além de ganhar mais. Para que vai servir todo este dinheiro?
- Não sei.
- Nem eu. Mas o dinheiro pode tornar-se o objectivo em si. E isso não é bom. Foi por isso que resolvi parar quando atingisse dez milhões de dólares. Não quero continuar a ter esta responsabilidade.
- Okay.
- Antes de me retirar, gostaria de saber como quer que esta fortuna seja gerida no futuro. Tem de haver um objectivo e linhas directrizes, e uma organização a quem confiar a responsabilidade.
- Hum.
- É impossível uma pessoa sozinha gerir negócios desta maneira. Dividi o dinheiro, por um lado em investimentos fixos a longo prazo... imobiliário, títulos, e esse género de coisas. Tem uma lista completa no computador.
- Já a li.
- O restante tenho utilizado em especulação, mas é tanto dinheiro para gerir que não me sinto capaz. Por isso fundei uma sociedade de investimentos em Jersey. Neste momento, tem seis empregados em Londres. Dois jovens investidores competentes e pessoal administrativo.
- A Yellow Ballroom, Ltd? Estava precisamente a perguntar-me o que raio seria.
- É a nossa empresa. Aqui em Gibraltar, contratei uma secretária e um jovem jurista muito promissor... aliás, devem chegar dentro de meia hora.
- Ah! Molly Flint, quarenta e um anos, e Brian Delaney, vinte e seis.
- Quer conhecê-los?
- Não. O Brian é seu amante? MacMillan pareceu chocado.
- O quê? Não! Não misturo...
- Está bem.
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- Além disso... não me interesso por rapazinhos... quero dizer, tipos inexperientes.
- Eu sei, prefere-os do tipo mais musculoso. Mas continuo a não ter nada com isso. Dito isto, Jeremy...
- Sim?
- Tenha cuidado.
Lisbeth tinha verdadeira intenção de não ficar em Gibraltar mais de duas semanas, até dar uma nova orientação à sua vida. Descobriu, de repente, que não tinha a mínima ideia do que fazer nem de que direcção seguir. Ficou doze semanas. Verificava o correio electrónico uma vez por dia e respondia docilmente aos e-mails de Annika Giannini, das raras vezes que ela dava notícias. Não dizia onde estava. Não respondia a mais nenhum e-mail.
Continuava a frequentar o Harrys Bar, mas agora só para beber uma cerveja, à noite. Passava a maior parte dos seus dias no Rock, na varanda ou na cama. Teve outra relação ocasional, esta com um oficial da Marinha Britânica, mas não passou de uma one night stand e foi, globalmente, uma experiência sem interesse. Compreendeu que se aborrecia.
No início de Outubro, jantou com Jeremy MacMillan. Quase não tinham voltado a ver-se. A noite caíra e eles bebiam um vinho branco frutado e discutiam o que fazer com os milhões dela. Subitamente, Jeremy surpreendeu-a perguntando-lhe o que a preocupava. Ela olhou para ele, a pensar. E então, de uma forma igualmente surpreendente, falou-lhe da sua relação com Miriam Wu, de como a amiga fora espancada e quase morta por Ronald Niedermann. Por culpa dela. Além de uma saudação transmitida por Annika Giannini, não voltara a saber dela. A não ser que estava a viver em França. Jeremy MacMillan ficou calado por um longo instante.
- Está apaixonada por ela? - perguntou, de repente.
Lisbeth pensou antes de responder. Acabou por abanar a cabeça.
- Não. Acho que não sou do género de me apaixonar. Era minha amiga. E sabia fazer amor.
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- Ninguém consegue evitar apaixonar-se. Podemos ter vontade de o negar, mas a amizade é sem dúvida a forma mais frequente de amor.
- Ela olhou para ele, espantada. - Ficaria zangada se eu lhe desse um conselho pessoal?
- Não.
- Vá para Paris, raios - disse ele.
Lisbeth Salander aterrou no Charles-de-Gaulle às 14h30, apanhou o autocarro para o Arco do Triunfo e dedicou duas horas a percorrer os arredores à procura de um quarto de hotel. Passou para o lado sul do Sena e, muito mais tarde, encontrou por fim um, no pequeno Hotel Victor-Hugo, na Rue Copernic.
Tomou um duche e ligou a Miriam Wu. Encontraram-se por volta das nove, num bar perto de Notre-Dame. Miriam usava uma camisa branca e um casaco. Estava sublime. Lisbeth sentiu-se imediatamente pouco à vontade. Beijaram-se na face.
- Desculpa não ter dado notícias e não ter estado no julgamento
- disse Miriam.
- Não tem importância. O julgamento foi à porta fechada, de todos os modos.
- Passei três semanas no hospital, e depois estava tudo num caos quando voltei à Lundagatan. Não conseguia dormir. Tinha pesadelos com aquele sacana do Niedermann. Telefonei à minha mãe e disse-lhe que queria vir viver com eles. - Lisbeth baixou a cabeça. - Desculpas-me? - perguntou Miriam.
- Não sejas parva. Eu é que vim para pedir desculpa.
- Porquê?
- Por ter sido tão estúpida. Devia ter pensado que te estava a fazer correr um grande perigo quando te entreguei o apartamento mantendo-o como minha morada. Quase morreste por minha culpa. Compreendo que me odeies.
Miriam fez um ar estupefacto.
- A ideia nem sequer me passou pela cabeça. Foi o Ronald Niedermann que tentou matar-me, não foste tu.
Ficaram caladas por um instante.
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- Bem - acabou Lisbeth por dizer.
- Sim - disse Miriam.
- Não te segui até aqui por estar apaixonada por ti - disse Lisbeth. - Miriam assentiu. - És muito boa na cama, mas não estou apaixonada por ti - sublinhou Lisbeth.
- Lisbeth... acho...
- O que queria dizer é que espero que... merda.
- O que é?
- Não tenho muitos amigos...
- Vou ficar algum tempo em Paris - disse Miriam. - Na Suécia não estava a conseguir estudar e inscrevi-me aqui na universidade. Vou ficar pelo menos um ano. - Lisbeth assentiu com a cabeça. - Depois, não sei. Mas voltarei a Estocolmo. Pagarei os encargos na Lundagatan e gostaria de conservar o apartamento. Se não te importares.
- O apartamento é teu. Faz com ele o que quiseres.
- Lisbeth, és verdadeiramente especial. Quero mesmo continuar a ser tua amiga.
Falaram durante duas horas. Lisbeth não tinha qualquer razão para esconder o seu passado. O caso Zalachenko era conhecido de todos os que tinham acesso aos jornais suecos, e Miriam Wu acompanhara-o com grande interesse. Contou em pormenor o que se passara em Nykvarn na noite em que Paolo Roberto lhe salvara a vida.
Em seguida, foram para o quarto de estudante de Miriam, perto da universidade.
EPÍLOGO
INVENTÁRIO DA HERANÇA
SEXTA-FEIRA, 2 DE DEZEMBRO - DOMINGO, 18 DE DEZEMBRO
Annika Giannini encontrou-se com Lisbeth Salander no bar do Sõdra Teatern por volta das nove da noite. Lisbeth bebia cerveja e estava a acabar o seu segundo copo.
- Desculpa o atraso - disse, olhando para o relógio. - Tive um problema com outra cliente.
-Ah.
- O que é que estás a celebrar?
- Nada. Só me apeteceu apanhar uma bebedeira. Annika observou-a com um ar céptico e instalou-se.
- Dá-te muitas vezes, essa vontade?
- Apanhei uma de caixão à cova quando me libertaram, mas não tenho propensão para o alcoolismo, se é isso que te preocupa. Só que, pela primeira vez na vida, tomei consciência de que sou maior e tenho o direito legal de me emborrachar aqui, na Suécia.
Annika pediu um Campari.
- Bom - disse. - Queres beber sozinha, ou queres companhia?
- Sozinha, de preferência. Mas se não falares demasiado, podes ficar comigo. Suponho que não estás com vontade de ir a minha casa curtir um pouco?
- Perdão?
- Não. Foi o que pensei. Fazes parte do grupo dos heteros inveterados.
De repente, Annika pareceu divertida.
- É a primeira vez que uma cliente me convida para a cama.
- Estás interessada?
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- Nem um bocadinho. Mas obrigada pela proposta.
- O que era então que me queria, senhora advogada?
- Duas coisas. Ou começas a atender o telefone quando eu te ligo, ou deixo de ser tua advogada aqui e agora. Já tivemos esta conversa no dia em que saíste em liberdade.
Lisbeth Salander olhou para Annika Giannini.
- Há uma semana que tento contactar-te. Telefonei-te, escrevi-te e enviei-te e-mails.
- Andei por fora.
- Estiveste incontactável durante a maior parte do Outono. Não é possível trabalhar desta maneira. Aceitei ser a tua representante legal para tudo o que diga respeito aos teus litígios com o Estado. Isso implica burocracia e documentos. Papéis para assinar. Perguntas a que é preciso responder. Preciso de falar contigo, e não me agrada ficar com cara de parva sem saber onde estás.
- Compreendo. Estive no estrangeiro durante duas semanas. Voltei ontem e liguei-te assim que percebi que querias falar comigo.
- Não chega. Tens de manter-me ao corrente de por onde andas e dar notícias pelo menos uma vez por semana, até que todas as questões relacionadas com as indemnizações, e esse género de coisas, estejam resolvidas.
- Já disse que não quero indemnização nenhuma. Só quero que o Estado me deixe em paz.
- Mas o Estado não vai deixar-te em paz, não é um assunto que dependa de ti. A tua absolvição em tribunal implica uma longa cadeia de consequências. Não és tu a única envolvida. O Peter Teleborian será julgado por aquilo que te fez. O que significa que vais ter de testemunhar. O procurador Ekstrõm está a ser alvo de um inquérito por erro profissional e poderá também ser investigado se se provar que negligenciou conscientemente o seu dever de funcionário a pedido da Secção. - Lisbeth arqueou as sobrancelhas. Durante um segundo, pareceu quase interessada. - Não acredito que o caso chegue a uma investigação. Deixou-se enrolar, mas a verdade é que não tem nada que ver com a Secção. Mas o mais tardar na próxima semana,
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o Ministério Público vai abrir um inquérito sobre a Comissão de Tutelas. Foram apresentadas várias queixas ao provedor de Justiça e uma ao mediador.
- Eu não apresentei queixa contra ninguém.
- Pois não, mas é evidente que foram cometidos graves erros profissionais, e tudo isso vai ter de ser investigado. Não és a única pessoa que a Comissão tem à sua responsabilidade.
Lisbeth encolheu os ombros.
- Não me sinto afectada. Mas prometo manter um contacto mais constante contigo. Estas duas semanas foram uma excepção. Estive a
trabalhar.
Annika Giannini olhou para ela, desconfiada.
- A trabalhar em quê?
- Serviço de consultoria.
- Okay - acabou Annika por dizer. - O segundo ponto é que o inventário da herança está concluído.
- Que inventário?
- O inventário dos bens do teu pai. O advogado do Estado contactou-me, uma vez que aparentemente ninguém sabia onde te encontrar. Tu e a tua irmã são as únicas herdeiras.
Lisbeth Salander olhou para Annika sem pestanejar. Depois chamou a empregada do bar e apontou para o copo vazio.
- Não quero a herança do meu pai. Podes fazer dela o que quiseres.
- Errado. Tu podes fazer dessa herança o que quiseres. O meu trabalho consiste em garantir que tens a oportunidade de o fazer.
- Não quero nem um ore desse porco.
- Okay. Doa o dinheiro à Greenpeace, ou a quem quiseres.
- Quero que as baleias se lixem.
A voz de Annika tornou-se repentinamente autoritária.
- Lisbeth, se fazes tanta questão de ser adulta, é tempo de começares a portar-te como tal. Estou-me nas tintas para o que fazes com o teu dinheiro. Assina aqui a dizer que o recebeste, e depois podes embebedar-te à vontade.
Lisbeth olhou para Annika por baixo das sobrancelhas, e em seguida baixou o olhar para a mesa. Annika supôs que se tratava de uma espécie de gesto de arrependimento que, no limitado registo de mímica de Lisbeth Salander, correspondia eventualmente a um pedido de desculpa.
- Okay. Quanto é que isso representa?
- Melhor assim. O teu pai tinha um pouco mais de trezentas mil coroas em títulos. A propriedade de Gosseberga... incluiu alguns hectares de floresta... foi avaliada em milhão e meio de coroas. Além disso, era proprietário de três outros bens imobiliários.
- Bens imobiliários?
- Sim. Parece que investiu algum dinheiro. Não são propriedades de um valor extraordinário. Tinha um pequeno prédio de arrendamento em Uddevalla, ao todo seis apartamentos, que proporcionam algum rendimento em rendas. Mas o imóvel está em mau estado, a manutenção foi negligenciada. O facto chegou a ser alegado pela comissão de inquilinos. Não vai tornar-te rica, mas a venda renderá algum dinheiro. E tinha uma casa de campo em Smâland, avaliada em duzentas e cinquenta mil coroas.
-Ah.
- Além disso, tinha um complexo industrial muito degradado, para os lados de Norrtálje.
- Para que queria ele toda essa merda?
- Não faço a mínima ideia. Grosso modo, feitas as contas, a herança poderá chegar aos quatro milhões e qualquer coisa, descontados os impostos e tudo o mais, mas...
- Sim?
- Será preciso dividi-la em partes iguais entre ti e a tua irmã. O problema é que ninguém parece saber onde está a tua irmã.
Lisbeth ficou a olhar para Annika Giannini, num silêncio inexpressivo.
- Então?
- Então o quê?
- Onde está a tua irmã?
- Sei lá. Há mais de dez anos que não a vejo.
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- Ela tem informações que estão abrangidas pelo segredo de Estado, mas mesmo assim consegui saber que não figura como residente no país.
- Ah - disse Lisbeth, com fingido interesse. Annika suspirou, resignada.
- Muito bem. Nesse caso, proponho que liquidemos todos os activos e depositemos metade da quantia num banco, até que a tua irmã seja encontrada. Posso tratar disso, se me deres luz verde.
Lisbeth encolheu os ombros.
- Não quero o dinheiro dele.
- Consigo compreender o que sentes. Mas é preciso fazer o balanço, seja como for. Faz parte das tuas responsabilidades, enquanto
emancipada.
- Então, vende essa merda toda. Deposita metade da massa no banco e faz o que quiseres do resto.
Annika Giannini arqueou uma sobrancelha. Já percebera que Lisbeth Salander tinha algum dinheiro de lado, mas nunca lhe passara pela cabeça que fosse o suficiente para lhe permitir recusar uma herança de mais de dois milhões de coroas. Não fazia a mínima ideia de onde vinha o dinheiro de Lisbeth nem qual o montante. Por outro lado, gostaria de arrumar de vez aquele procedimento administrativo.
- Por favor, Lisbeth... Lê o inventário da herança e dá-me luz verde para resolver este assunto.
Lisbeth resmungou qualquer coisa, mas acabou por ceder e enfiou o dossier na sacola. Prometeu lê-lo e dar instruções a Annika Giannini para agir em seu nome. Em seguida, dedicou toda a sua atenção à cerveja. Annika Giannini fez-lhe companhia durante uma hora, ficando-se pela água mineral.
Só alguns dias mais tarde, depois de Annika lhe ter telefonado a lembrar-lhe a questão do inventário, Lisbeth Salander tirou os amarrotados papéis de dentro da sacola, os alisou em cima da mesa da cozinha no seu apartamento, na Fiskargatan, e se sentou para os ler.
O inventário da herança compreendia várias páginas e continha uma grande quantidade de dados heteróclitos: o serviço de mesa
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que havia no aparador da cozinha em Gosseberga, roupas, máquinas fotográficas e outros objectos pessoais. Alexander Zalachenko pouco deixara que valesse grande coisa em termos de dinheiro, e nada que tivesse qualquer espécie de valor afectivo para ela. Reflectiu por um instante e concluiu que não tinha mudado de atitude desde o seu encontro com Annika Giannini, no bar. Vende a tralha e queima a massa. Nessa linha. Tinha a certeza de não querer um ore que fosse do pai, mas tinha também boas razões para pensar que os verdadeiros bens de Zalachenko estavam enterrados num sítio onde nenhum oficial de diligências os iria procurar.
Em seguida, abriu o descritivo do complexo industrial em Norrtãlje.
Era uma propriedade distribuída por três edifícios, totalizando 2400 metros quadrados, perto de Skederid, entre Norrtálje e Rimbo. O oficial de diligências encarregado do inventário fizera uma rápida visita ao local e verificara tratar-se de uma fábrica de tijolos desactivada, deixada mais ou menos ao abandono desde o seu encerramento e que servira de depósito de madeira nos anos 70. Verificara também que as instalações se encontravam em muito mau estado e não poderiam ser reconvertidas para outra actividade. Por mau estado entendia o facto de aquilo a que chamava "o edifício norte" ter sido destruído por um incêndio e se ter desmoronado. Tinham, no entanto, sido feitas algumas reparações no "edifício principal".
O que intrigou Lisbeth Salander foi a história da propriedade. Alexander Zalachenko adquirira aquele bem imobiliário por uma ninharia, a 12 de Março de 1984, mas era Agneta Sofia Salander que figurava como compradora.
A mãe de Lisbeth Salander fora, portanto, proprietária. A sua participação no negócio cessara, no entanto, em 1987. Zalachenko comprara o conjunto por 2000 coroas. Depois disso, os edifícios tinham ficado aparentemente ao abandono durante mais de 15 anos. O inventário da herança indicava que, a 17 de Setembro de 2004, a sociedade KAB contratara a empresa de construção NorrBygg, SA para executar trabalhos de recuperação que incluíam a reparação
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dos soalhos e do telhado, bem como melhoramentos nas redes de água e electricidade. As reparações tinham durado cerca de dois meses, até 30 de Novembro de 2004, data em que tinham sido interrompidas. A NorrBygg apresentara uma factura, que fora liquidada.
Aquela propriedade que o pai deixara era intrigante. Lisbeth Salander franziu a testa. Seria compreensível que o pai fosse dono de uma fábrica se quisesse dar a entender que a sua empresa legal, a KAB, tinha uma actividade qualquer, ou determinados bens. Era igualmente compreensível que tivesse usado a mãe dela como testa-de-ferro aquando da compra, para depois se apoderar do contrato de venda.
Mas por que raio teria pagado, em 2004, perto de 440 mil coroas para renovar um barracão à beira da ruína que, segundo o redactor do inventário, um ano mais tarde, em 2005, continuava a não ser utilizado.
Lisbeth Salander estava intrigada, mas não mais do que isso. Fechou a pasta e ligou a Annika Giannini.
- Li o inventário. A minha decisão continua a ser a mesma. Vende tudo e faz o que quiseres com o dinheiro. Não quero nada dele.
- Entendido. Nesse caso, certificar-me-ei de que metade do valor obtido é depositado numa conta em nome da tua irmã. Depois apresentar-te-ei algumas propostas de donativos.
- Ah - disse Lisbeth, e desligou sem acrescentar mais uma palavra.
Sentou-se no recanto da janela, acendeu um cigarro e ficou a contemplar a bacia de Saltsjõn.
Lisbeth Salander passou a semana seguinte a ajudar Dragan Armanskij num caso urgente. Tratava-se de encontrar e identificar uma pessoa suspeita de ter sido contratada para raptar uma criança, no âmbito de uma disputa de custódia resultante do divórcio de uma sueca e um cidadão libanês. A contribuição de Lisbeth limitara-se ao controlo dos e-mails da pessoa que se julgava ser a comanditária. A missão terminara quando as duas partes, reconciliadas, optaram por aceitar a regulação judicial da questão.
A 18 de Dezembro, o domingo anterior ao Natal, Lisbeth acordou às seis e meia da manhã e decidiu que tinha de ir comprar um presente para Holger Palmgren. Considerou por instantes a possibilidade de fazer outras compras... talvez para Annika Giannini. Levantou-se sem pressas, tomou um duche e comeu tranquilamente um pequeno-almoço composto por café e torradas com queijo e marmelada de laranja.
Não tinha projectos especiais para o dia e passou algum tempo a desembaraçar a secretária de um monte de papéis e jornais. Foi então que pousou os olhos na pasta do inventário. Abriu-a e releu a descrição da instalação industrial em Norrtãlje. Acabou por deixar escapar um suspiro. Bom, está bem. Tenho de saber o que éque o sacana andava a tramar.
Vestiu roupas quentes e calçou botas altas. Eram oito e meia quando saiu da garagem do prédio no seu Honda cor de vinho. Estava um frio glacial, mas o Sol brilhava num céu azul pastel. Passou por Slussen e Klaraberg e meteu pela E18 em direcção a Norrtálje. Não tinha pressa. Às dez horas, parou numa estação de serviço a poucos quilómetros de Skederid, para perguntar o caminho para a antiga fábrica de tijolos. No instante em que parou, percebeu que não teria necessidade de perguntar.
Encontrava-se numa pequena elevação sobranceira a um vale. A esquerda, do lado da estrada de Norrtãlje, havia uma empresa de pintura e material de construção, bem como uma área de estacionamento para máquinas de terraplanagem. A direita, no limite da zona industrial, a cerca de 400 metros da estrada principal, erguia-se um triste edifício de tijolo cuja chaminé se desmoronara. A fábrica parecia a última sentinela da zona industrial, um pouco isolada do outro lado de um caminho e de um pequeno riacho. Lisbeth contemplou pensativamente a ruína e perguntou-se o que a teria levado a dedicar uma parte do seu domingo a fazer uma visita à comuna de Norrtálje. Voltou a cabeça e olhou para o lado da estação de serviço, onde acabava de parar um pesado com chapas TIR. E, subitamente, apercebeu-se de que estava na principal artéria do porto mercantil de
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Kapellskãr, por onde passava uma grande parte do tráfico de mercadorias entre a Suécia e os países bálticos.
Arrancou e voltou à estrada, virando logo a seguir para a fábrica de tijolos abandonada. Estacionou no meio do pátio e apeou-se. A temperatura, vários graus abaixo de zero, convenceu-a a enfiar um barrete de lã preto e a calçar luvas de couro.
O edifício principal tinha dois pisos. No piso térreo, todas as janelas tinham sido entaipadas com contraplacado. No piso de cima, notou um grande número de vidros partidos. A fábrica era muito maior do que imaginara e parecia terrivelmente degradada. Não conseguia distinguir o mais pequeno vestígio de obras. Não se via vivalma, mas reparou que alguém deixara um velho capote caído no pátio e que uma parte da fachada fora alvo de ataques dos artistas do graffiti. Porque quereria o Zalachenko ser proprietário daquela pocilga? Contornou o edifício e descobriu a ala desmoronada nas traseiras. Verificou que todas as portas da construção principal estavam fechadas com correntes e cadeados. Finalmente, examinou, frustrada, uma porta num dos lados mais estreitos. Em todas as outras, os cadeados estavam fixos com sólidos parafusos e chapas metálicas. O daquela porta parecia menos resistente e estava preso apenas por um grande prego. Que se lixe, ao fim e ao cabo, sou eu a proprietária. Olhou em redor, descobriu um pedaço de tubo metálico em cima de um monte de entulho e serviu-se dele como alavanca para partir o fecho do cadeado. Entrou num poço de escada com passagem para o interior do piso térreo. Estando todas as janelas entaipadas, reinava ali uma escuridão quase total, com excepção de algumas estrias de luz dispersas que se filtravam pelos bordos das chapas de contraplacado. Ficou imóvel durante vários minutos, até que os olhos se habituassem à escuridão, e começou progressivamente a distinguir um monte de velharias, bancos abandonados, peças de máquinas e traves de madeira num espaço que mediria qualquer coisa como 45 metros de comprimento por vinte de largura e cujo tecto era suportado por grossos pilares. Os velhos fornos da fábrica de tijolos pareciam ter sido desmontados e levados para outro lugar. As bases tinham-se transformado em bacias cheias de água e grandes manchas de humidade cobriam o soalho.
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De tudo aquilo emanava um cheiro a mofo e a podridão. Lisbeth franziu o nariz.
Deu meia-volta e subiu as escadas. O primeiro piso estava seco e era composto por duas divisões contíguas com mais de vinte metros por vinte e pelo menos oito metros de pé-direito. As janelas eram todas inacessíveis, muito perto do tecto. Não permitiam, pois, ver para fora, mas proporcionavam uma iluminação agradável. Também ali reinava a mais incrível desarrumação. Passou por dúzias de caixotes com um metro de altura empilhados uns em cima dos outros. Tentou levantar um. O caixote não se moveu. Leu a indicação "Machine parts 0-A77" gravada na madeira. Por baixo, havia o mesmo texto em russo. Reparou num monta-cargas parado a meio da primeira divisão.
Um stock de máquinas que não geraria, de certeza, qualquer fortuna enquanto estivesse a enferrujar ali na velha fábrica de tijolos.
Passou à segunda divisão e compreendeu que se encontrava no sítio onde tinham sido feitas as obras. O espaço estava cheio de velharias, caixas e velhos móveis de escritório dispostos segundo uma espécie de ordem labiríntica. Uma parte do soalho fora desimpedido e as tábuas substituídas. Lisbeth notou que os trabalhos de reparação tinham sido bruscamente interrompidos. As ferramentas ainda ali se encontravam, espalhadas um pouco por todo o lado. Franziu a testa. Mesmo que o trabalho tivesse sido interrompido, a empresa devia ter levado o seu material. Mas também esta pergunta obteve resposta quando pegou numa chave de parafusos e verificou que a inscrição no cabo estava escrita em russo. Zalachenko importara as ferramentas, e talvez também os trabalhadores.
Aproximou-se de uma serra circular e premiu o botão de arranque. Acendeu-se uma luz verde. Havia electricidade. Desligou a máquina.
Ao fundo da grande divisão, três portas davam manifestamente para outras tantas divisões mais pequenas, talvez os antigos escritórios. Experimentou a da direita: fechada à chave. Olhou em redor, voltou ao monte de ferramentas e pegou num pé-de-cabra. Bastou-lhe um momento para arrombar a porta.
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A divisão estava às escuras e cheirava a bafio. Lisbeth tacteou com a mão e encontrou um interruptor que acendeu uma lâmpada suspensa do tecto. Ficou estupefacta.
Na divisão havia três camas com colchões sujíssimos e outros três colchões estendidos no chão. Um monte de lençóis sujos. À direita, um pequeno fogão eléctrico e alguns tachos, ao lado de uma torneira enferrujada. Num canto, um balde de chapa e um rolo de papel higiénico.
Alguém vivera ali. Várias pessoas.
Subitamente, reparou que a porta não tinha maçaneta do lado de dentro. Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha.
Viu, encostado à parede do fundo, um armário relativamente grande. Abriu a porta e descobriu duas malas. Pegou na de cima e abriu-a. Continha roupas. Remexeu no interior e tirou uma saia. A etiqueta estava escrita em russo. Encontrou um saco de mão e despejou-o em cima de uma das camas. Continha, além de caixas de maquilhagem e outras bugigangas, um passaporte russo pertencente a uma mulher de cabelos negros, com vinte e poucos anos. Conseguiu decifrar o apelido: Valentina.
Saiu lentamente do quarto. Tinha a sensação de déjà vu. Fizera o mesmo exame ao local de um crime em Hedestad, dois anos e meio antes. Roupas de mulher. Uma prisão. Ficou imóvel um longo momento, a reflectir. O facto de as roupas e o passaporte ainda ali estarem inquietava-a. Era mau sinal.
Voltou às ferramentas e procurou até encontrar uma potente lanterna eléctrica. Verificou as pilhas, desceu ao piso térreo e entrou na grande divisão. A água das poças infiltrava-se-lhe pelas solas das botas. Quanto mais avançava para o interior, mais insuportável se tornava o cheiro a putrefacção. O fedor parecia atingir o auge no meio da nave. Deteve-se junto à base de um dos antigos fornos. A água enchia a caixa quase até à borda. Apontou o feixe da lanterna para o líquido negro, mas não conseguiu distinguir nada. A superfície estava, em parte, coberta por limos que formavam uma capa verde. Olhou em redor e descobriu uma vara para betão armado com cerca de três metros de comprimento. Enfiou-a na bacia, que não tinha mais de
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50 centímetros de fundo, e moveu-a de um lado para o outro. Encontrou quase de imediato resistência. Forçou alguns segundos, até o corpo subir à superfície, primeiro, o rosto, uma máscara hedionda de morte e decomposição. Lisbeth respirou pela boca e ficou a olhar para aquele rosto à luz da lanterna. Era uma mulher, talvez a do passaporte que encontrara no primeiro piso. Não fazia ideia de qual seria a rapidez da decomposição em água fria e estagnada, mas o corpo parecia encontrar-se ali havia já algum tempo.
De repente, viu alguma coisa mexer-se à superfície da água: larvas.
Deixou o corpo afundar-se de novo e continuou a procurar com a vara. Mais perto da beira da bacia, tocou no que parecia ser outro corpo. Deixou-o, tirou a vara metálica de dentro de água, largou-a no chão e ficou imóvel, absorta nos seus pensamentos.
Lisbeth Salander voltou ao primeiro piso. Usou o pé-de-cabra para abrir a porta do meio. A divisão estava vazia e parecia não ter sido utilizada.
Aproximou-se da última porta e entalou a ponta do pé-de-cabra à altura da fechadura, mas, antes de fazer força, a porta entreabriu-se. Não estava fechada à chave. Abriu-a completamente, usando o pé-de-cabra, e olhou em redor.
A divisão tinha cerca de 30 metros quadrados. As janelas situavam-se à altura usual, com vista para o pátio diante da fábrica. Avistou a estação de serviço no alto da pequena elevação, do outro lado da estrada. Havia uma cama, uma mesa e uma cesta com louça. Então, viu o saco de lona pousado no chão, aberto. Cheio de notas. Perplexa, avançou dois passos até se aperceber de que estava calor. Viu o irradiador eléctrico no meio da divisão. Viu uma cafeteira eléctrica. Com a luzinha vermelha acesa.
Mora aqui alguém. Não estou sozinha.
Voltou para trás e correu para a saída. Travou a cinco passos do poço da escada, ao ver que a porta estava fechada a cadeado. Estava encurralada. Voltou-se lentamente e olhou em redor. Não viu nada.
- Olá, mana - disse uma voz, vinda de um dos lados.
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Virou-se e viu a figura colossal de Ronald Niederman materializar-se junto a um monte de caixotes. Empunhava uma baioneta.
- Tinha esperança de voltar a ver-te - continuou Niedermann. - Foi demasiado rápido, da última vez. - Lisbeth olhou em redor. - Não vale a pena. Só aqui estamos tu e eu, e a única saída é a porta trancada atrás de ti.
Lisbeth voltou o olhar para o meio-irmão.
- Como vai a tua mão? - perguntou.
Niedermann continuava a sorrir. Levantou a mão direita e mostrou-a. O dedo mindinho tinha desaparecido.
- Infectou. Tive de amputá-lo.
Ronald Niedermann sofria de analgesia congénita e não sentia a dor. Lisbeth rasgara-lhe a mão com o gume de uma pá, em Gosseberga, segundos antes de Zalachenko lhe ter enfiado uma bala na cabeça.
- Devia ter feito pontaria à cabeça - disse Lisbeth, numa voz neutra. - Que estás aqui a fazer? Pensei que tinhas fugido para o estrangeiro, há meses.
Ele sorriu.
Ronald Niedermann não poderia ter respondido à pergunta de Lisbeth Salander, mesmo que quisesse. Ele próprio não sabia o que fazia naquela fábrica de tijolos abandonada.
Deixara Gosseberga para trás com uma sensação de libertação. Convencido de que Zalachenko tinha morrido, preparara-se para assumir as rédeas do negócio. Sabia que era um excelente organizador.
Mudara de carro em Alingsâs, onde enfiara Anita Kaspersson, a aterrorizada assistente de dentista, na bagageira, e seguira para Borâs. Não tinha qualquer plano. Ia improvisando pelo caminho. Não tivera um pensamento sequer pela sorte de Anita Kaspersson. Tanto se lhe dava que estivesse morta, como viva, e ocorrera-lhe que ia ter de desembaraçar-se de uma testemunha incómoda. Algures perto de Borâs, apercebera-se subitamente de que podia usá-la de uma maneira
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diferente. Continuara para sul e encontrara uma área florestal isolada perto de Seglora. Amarrara a mulher dentro de um celeiro e deixara-a lá. Calculara que ela conseguiria libertar-se num par de horas e em seguida orientar para sul as investigações da polícia. E se não conseguisse libertar-se e acabasse por morrer de fome ou de frio, o problema não era dele.
Regressara a Borâs e seguira para leste, em direcção a Estocolmo. Fora direito ao Moto-Clube de Svavelsjõ, evitando cuidadosamente a sede. O facto de Magge Lundin estar preso fora um incómodo. Na falta dele, procurara Hans-Áke Waltari, o terceiro na hierarquia do clube, e pedira-lhe ajuda e um lugar onde se esconder. Waltari levara-o a casa do tesoureiro e responsável pelas finanças do clube, Viktor Gõransson. Mas só lá se demorara algumas horas.
Teoricamente, Ronald Niedermann não tinha grandes problemas de dinheiro. Era verdade que deixara 200 mil coroas em Gosseberga, mas dispunha de somas bem mais consideráveis colocadas em fundos no estrangeiro. O problema era que lhe faltava dinheiro vivo. Gõransson tratava das finanças do Moto-Clube de Svavelsjõ, e Niedermann apercebera-se da feliz oportunidade que acabava de apresentar-se-lhe. Convencer Gõransson a revelar-lhe o segredo do cofre escondido no celeiro e conseguir as 800 mil coroas em notas fora uma brincadeira de crianças.
Julgava recordar-se de que houvera também uma mulher, mas não tinha bem a certeza do que fizera com ela.
Gõransson era igualmente o proprietário de uma viatura que a polícia ainda não procurava. Niedermann partira para norte. A ideia era embarcar num dos ferries que partiam de Kapellskãr para Tallinn.
Chegara a Kapellskãr e desligara o motor no parque de estacionamento. Ficara trinta minutos a observar os arredores. Havia polícias por todo o lado.
Voltara a arrancar e conduzira ao acaso durante algum tempo. Precisava de um sítio onde pudesse esconder-se. Fora então que se lembrara da velha fábrica de tijolos, para os lados de Norrtãlje. Havia mais de um ano que não pensava sequer no lugar. Os irmãos Harry e Atho Ranta utilizavam-no como entreposto para as mercadorias
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em circulação de e para os países bálticos, mas os irmãos Ranta encontravam-se no estrangeiro havia várias semanas, desde que o jornalista Dag Svensson, da Millennium, começara a meter o nariz no negócio das putas. A fábrica estava deserta.
Escondera o Saab de Goransson num barracão, nas traseiras, e introduzira-se na fábrica, para o que tivera de forçar uma das portas do piso térreo. Depois disso, uma das suas primeiras medidas fora arranjar uma saída de emergência, uma chapa de contraplacado amovível num dos extremos do edifício. Mais tarde, substituíra o cadeado arrombado. Instalara-se numa das divisões do primeiro piso.
Passara uma tarde inteira até ouvir o barulho nas paredes. De início, pensara que eram os seus fantasmas habituais. Ficara à escuta, muito tenso, durante uma hora, e então levantara-se e fora à divisão grande. Esperara pacientemente uma hora até ouvir o ruído de qualquer coisa a raspar.
Encontrara a chave na cesta da louça.
Ronald Niedermann ficara deveras surpreendido quando, ao abrir a porta, descobrira as duas prostitutas russas. Estavam emaciadas por falta de alimento depois de, como percebera, terem acabado o último pacote de arroz. Tinham sobrevivido a chá e água.
Uma das mulheres estava tão fraca que não tivera sequer forças para se levantar da cama. A outra parecia um pouco melhor. Só falava russo, mas ele sabia o suficiente da língua para compreender que estava a agradecer a Deus tê-lo enviado para as salvar. Repelira-a, estupefacto, recuara e voltara a fechar a porta à chave.
Não sabia o que fazer com elas. Preparara uma sopa, com os enlatados que encontrara na cozinha, e dera-lhes de comer, enquanto pensava. A mulher estendida na cama parecera recuperar um pouco. Niedermann passara a tarde a interrogá-las. Demorara algum tempo a perceber que não eram prostitutas e sim estudantes que tinham pagado aos irmãos Ranta para as fazer entrar na Suécia. Tinham-lhes sido prometidas autorizações, de residência e de trabalho. Tinham chegado a Kapellskâr em Fevereiro e sido levadas directamente para aquele entreposto, onde tinham ficado fechadas.
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A expressão de Niedermann endurecera. Os sacanas dos irmãos Ranta tinham, portanto, um negócio à margem sobre o qual Zalachenko nada sabia. Em seguida, tinham pura e simplesmente esquecido as mulheres, ou tinham-nas abandonado à sua sorte ao verem-se obrigados a fugir da Suécia a toda a pressa.
A questão era saber o que fazer com aquelas duas. Não tinha qualquer motivo para lhes fazer mal. Mas também não podia dar-se ao luxo de libertá-las, porque não deixariam de conduzir a polícia até à velha fábrica de tijolos. E também não podia recambiá-las para a Rússia, uma vez que isso o obrigaria a levá-las até Kapellskâr. O que era demasiado arriscado. A morena, chamada Valentina, oferecera-lhe o corpo em troca de ajuda. Niedermann não tinha o mínimo desejo de fazer sexo nem com uma nem com outra, mas a oferta transformara a rapariga numa puta. Todas as mulheres eram putas. Era tão simples como isso.
Ao cabo de três dias, fartara-se das súplicas constantes, dos apelos e das pancadas na parede. Não via outra solução. Pelo seu lado, só queria paz e sossego. Por isso, abrira a porta uma última vez e pusera rapidamente fim ao problema. Pedira perdão a Valentina antes de estender as mãos e com um único gesto torcer-lhe o pescoço entre a segunda e a terceira vértebras. Depois, tratara da loura estendida na cama, de que não sabia sequer o nome. Ela deixara-se ficar deitada, passiva e sem resistir. Levara os corpos para o piso térreo e escondera-os numa bacia cheia de água. Finalmente, pudera gozar de uma espécie de paz.
A sua intenção não fora ficar na velha fábrica de tijolos. Pensara esperar apenas que o primeiro ímpeto da mobilização policial acalmasse. Rapara a cabeça e deixara a barba crescer um centímetro. Fora o bastante para lhe alterar o aspecto. Encontrara um fato-macaco que pertencera a um dos operários da NorrBygg e que era quase do seu tamanho. Vestira-o, cobrira a cabeça com um capacete esquecido da Beckers Fãrg, enfiara um metro de marceneiro no bolso e fora fazer compras à estação de serviço, na pequena colina sobranceira à estrada. Tinha todo aquele dinheiro que roubara ao Moto-Clube de Svavelsjõ.
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Costumava passar por lá ao fim da tarde. Parecia um vulgar operário de regresso a casa terminado mais um dia de trabalho. Ninguém reparava nele. Adquirira o hábito de fazer compras uma ou duas vezes por semana. Na estação de serviço, todos o conheciam e cumprimentavam cordialmente.
Dedicara, desde o princípio, muito tempo a proteger-se dos seres que habitavam o edifício. Escondiam-se nas paredes e saíam durante a noite. Ouvia-os deambular pela grande divisão.
Barricava-se no seu quarto. Ao cabo de alguns dias, perdera a paciência. Armara-se com uma baioneta que encontrara numa gaveta e saíra para confrontar os seus monstros. Chegara a hora do ajuste de contas.
De repente, apercebera-se de que eles recuavam. Pela primeira vez na sua vida, tinha poder de decisão sobre a presença deles. As criaturas fugiam quando ele se aproximava. Via-lhes as caudas e os corpos deformados escapulirem-se por entre os caixotes. Gritava-lhes. E eles fugiam.
Estupefacto, voltara ao seu quarto, e ficara acordado toda a noite, à espera de que os monstros voltassem. Tinham repetido o ataque ao nascer do dia, e ele fora obrigado a enfrentá-los de novo. E, mais uma vez, eles tinham fugido.
Sentira-se balançar entre o pânico e a euforia.
Durante toda a sua vida fora perseguido por aquelas criaturas das trevas e, pela primeira vez, sentia que dominava a situação. Não fazia nada. Comia. Dormia. Pensava. Uma vida tranquila.
Os dias tornaram-se semanas e o Verão chegara. Acompanhava, pela rádio e pelos jornais da tarde, o esmorecer da perseguição a Ronald Niedermann. Lera com interesse os relatos do homicídio de Alexander Zalachenko. Não deixa de ser irónico. É um velho chalado que acaba por pôr fim à vida do Zalachenko. Em Julho, o seu interesse reanimara-se com o julgamento de Lisbeth Salander. Ficara espantado por a terem absolvido. Havia ali qualquer coisa que não batia certo. Ela estava livre enquanto ele era obrigado a esconder-se.
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Comprara a Millennium na estação de serviço e lera o número temático a respeito de Lisbeth Salander, Alexander Zalachenko e Ronald Niedermann. Um jornalista chamado Mikael Blomkvist traçava o retrato de Niedermann: um assassino doente mental e psicopata. Niedermann franzira o sobrolho.
De repente, era Outono, e ele ainda ali estava. Com a chegada do frio comprara um irradiador eléctrico na estação de serviço. Não conseguia explicar a si mesmo por que motivo não se ia embora.
De longe em longe, apareciam jovens que estacionavam os carros no pátio da velha fábrica de tijolos, mas ninguém perturbara a sua existência nem tentara entrar no edifício. Em Setembro, aparecera um homem deparka azul, que estacionara o carro no pátio e experimentara as maçanetas das portas e andara a farejar pelos terrenos. Niedermann observara-o da janela do primeiro piso. De vez em quando, o homem rabiscava qualquer coisa num bloco de notas. Demorara-se vinte minutos, lançara um último olhar ao local, metera-se no carro e desaparecera. Niedermann respirara, aliviado. Não fazia a mais pequena ideia de quem era o sujeito nem do que queria, mas dera a impressão de estar a fazer uma espécie de avaliação das instalações. Niedermann não estabelecera a ligação entre a morte de Zalachenko e a necessidade de fazer um inventário da herança.
Pensava muito em Lisbeth Salander. Não estava a contar que os seus caminhos voltassem a cruzar-se, mas ela fascinava-o e assustava-o. Ronald Niedermann não tinha medo dos vivos. Mas a irmã - meia-irmã - causara-lhe uma impressão extraordinária. Nunca ninguém o vencera como ela fizera. Voltara ao mundo dos vivos, apesar de ele a ter enterrado. Voltara e perseguira-o. Sonhava todas as noites com ela. Acordava encharcado em suores frios, e depreendia que ela viera ocupar o lugar dos seus antigos fantasmas.
Em Outubro, decidira-se. Só sairia da Suécia depois de ter encontrado a irmã e de ter acabado com ela de uma vez por todas. Não tinha qualquer plano, mas a sua vida reencontrara um objectivo. Não sabia onde ela se encontrava nem como procurá-la. Ficava sentado no quarto do primeiro piso da fábrica de tijolos, a olhar pela janela, dia após dia, mês após mês.
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Até que o Honda cor de vinho parara inesperadamente diante do edifício e, para sua enorme surpresa, vira Lisbeth Salander apear-se. Deus é misericordioso, pensara. Lisbeth Salander ia ter o mesmo fim que as duas mulheres, cujos nomes esquecera, na bacia do piso térreo. A longa espera terminara e ia poder continuar com a sua vida.
Lisbeth Salander avaliou a situação e chegou à conclusão de que não estava sob controlo. O cérebro dela trabalhava à pressão. Clic, clic, clic. Continuava a empunhar o pé-de-cabra, mas compreendeu que era uma fraca arma contra um homem que não sentia a dor. Estava fechada num espaço com cerca de mil metros quadrados com um robô assassino saído directamente do inferno.
Quando Niedermann começou a avançar para ela, atirou-lhe o pé-de-cabra, que ele evitou sem esforço. Lisbeth pôs-se em movimento. Apoiou um pé num banco, saltou para cima de um caixote e continuou a trepar como uma aranha por mais dois. Deteve-se e olhou para Niedermann, cerca de quatro metros mais abaixo.
- Desce daí - disse ele, calmamente. - Não podes fugir. O fim é inevitável.
Lisbeth perguntou-se se ele teria uma arma de fogo. Seria inegavelmente um problema.
Niedermann inclinou-se para a frente, pegou numa caixa e atirou-lha. Ela baixou-se.
Subitamente, ele pareceu irritado. Subiu para o banco e começou a trepar na direcção dela. Lisbeth esperou que estivesse quase à sua altura antes de tomar impulso com duas rápidas passadas, transpor a coxia central e ir aterrar em cima de um caixote alguns metros mais adiante. Desceu rapidamente e apanhou do chão o pé-de-cabra.
Niedermann não era estúpido. Sabia que não podia saltar do cimo dos caixotes sem correr o risco de partir um pé. Ia ter de descer até ao chão. O seu peso obrigava-o a mover-se lenta e metodicamente, e dedicara a vida inteira a dominar o corpo. Tinha quase chegado ao chão quando ouviu passos atrás de si, e mal teve tempo de rodar o corpo para parar o golpe do pé-de-cabra com o ombro. Perdeu a baioneta.
Lisbeth largou o pé-de-cabra no preciso instante em que desferiu o golpe. Não teve tempo de apanhar a baioneta. Empurrou-a com o pé para debaixo da fila de bancos, esquivou-se do punho enorme que descrevia um círculo na direcção da sua cabeça e bateu em retirada para cima dos caixotes do outro lado da coxia. Viu, pelo canto do olho, Niedermann esticar-se para a agarrar. Encolheu rapidamente as pernas. Os caixotes formavam duas filas duplas de ambos os lados de uma coxia central, empilhados a três do lado da coxia e a dois do lado de fora. Saltou para a fila mais baixa, fincou os pés, apoiou as costas no terceiro caixote da fila mais alta e fez força. O caixote devia pesar pelo menos duzentos quilos. Lisbeth sentiu-o oscilar, e depois cair com estrépito na coxia central.
Niedermann viu o caixote cair e mal teve tempo de atirar-se para o lado. Um canto do caixote bateu-lhe no peito, mas sem provocar verdadeiros estragos. Deteve-se. Não desiste, a puta! Recomeçou a trepar. Mal assomou a cabeça acima do rebordo do terceiro caixote, ela disparou-lhe um pontapé. A grossa biqueira da bota acertou-lhe na testa. Niedermann grunhiu e içou-se para cima dos caixotes. Lisbeth fugiu, voltando a saltar para o outro lado da coxia. Repentinamente, deixou-se cair e desapareceu do campo de visão dele. Niedermann ouviu-lhe os passos e percebeu que tinha passado para a segunda divisão.
Lisbeth Salander olhou em redor. Clic clic. Sabia que não tinha a mais pequena hipótese. Enquanto conseguisse evitar as enormes manápulas de Niedermann e manter-se à distância, sobreviveria, mas mal cometesse um erro - e ia acontecer mais cedo ou mais tarde -morreria. Tinha de evitá-lo custasse o que custasse. Se ele lhe pusesse a mão em cima, seria só uma vez, o combate chegaria ao fim.
Precisava de uma arma.
Uma pistola. Uma metralhadora. Um obus. Uma mina antipessoal.
A porra de uma arma qualquer, merda!
Mas ali não havia armas.
Olhou em redor.
Nenhuma arma.
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Apenas ferramentas. Clic clic. Os olhos dela detiveram-se na serra de fita, mas seria precisa muita persuasão para convencê-lo a deitar-se em cima da prancha. Clic. Viu uma barra de ferro de ponta aguçada que poderia servir de lança, mas era demasiado pesada para que pudesse usá-la com eficácia. Clic. Olhou para a porta e viu que Niedermann tinha descido dos caixotes, a 15 metros de distância. Estava novamente a avançar para ela. Começou a recuar. Restavam-lhe talvez cinco segundos antes que ele chegasse. Lançou um último olhar às ferramentas.
Uma arma... ou um esconderijo. Repentinamente, deteve-se.
Ronald Niedermann não tinha pressa. Sabia que não havia saída e que, mais cedo ou mais tarde, apanharia a irmã. Mas ela era inegavelmente perigosa. Era filha de Zalachenko, ao fim e ao cabo. Não queria ser ferido. Mais valia deixá-la esgotar as forças.
Deteve-se à porta que dava para a segunda divisão e examinou a confusão de ferramentas, tábuas de soalho meio instaladas e móveis. Lisbeth desaparecera.
- Sei que estás aqui. Vou encontrar-te.
Ficou imóvel, à escuta. A única coisa que ouviu foi o som da sua própria respiração. Ela escondera-se. Sorriu. Estava a desafiá-lo. A visita transformara-se de repente num jogo entre irmão e irmã.
Então, ouviu um roçagar imprudente vindo de um ponto indeterminado no meio da divisão. Rodou a cabeça mas, de início, não conseguiu determinar de onde vinha o ruído. Voltou a sorrir. No meio da divisão, um pouco isolada do resto da tralha, havia uma espécie de bancada de trabalho com cerca de cinco metros de comprimento e uma série de gavetas e portas de correr por baixo.
Aproximou-se de lado e espreitou para trás da bancada, para se certificar de que ela não tentava enganá-lo. Nada.
Escondeu-se lá dentro. Que estúpida.
Arrancou a primeira porta do lado esquerdo.
Ouviu imediatamente o ruído de alguém a deslocar-se no interior do móvel. O barulho vinha da secção do meio. Avançou rapidamente dois passos e abriu a porta com um sorriso triunfante.
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Vazio.
Foi então que ouviu uma série de detonações secas, que pareciam tiros de pistola. Foi tão rápido que teve dificuldade em perceber de onde vinha o som. Voltou a cabeça. Sentiu uma estranha pressão no pé esquerdo, mas nenhuma dor. Baixou os olhos a tempo de ver a mão de Lisbeth Salander deslocar a pistola de pregos pneumática para o seu pé direito.
Ficou como que paralisado durante os segundos de que Lisbeth Salander precisou para fazer pontaria à ponta do sapato dele e disparar-lhe cinco grandes pregos pelo pé. Tentou mexer-se.
Precisou de alguns segundos preciosos para compreender que tinha os pés pregados ao soalho recentemente instalado. A mão de Lisbeth deslocou a máquina para o pé esquerdo. Dir-se-ia uma arma automática que cuspia os seus projécteis uns atrás dos outros. Lisbeth teve tempo para disparar mais quatro pregos de reforço antes que ele recuperasse a presença de espírito necessária para agir.
Niedermann começou a inclinar-se para a frente, numa tentativa de agarrar a mão dela, mas perdeu imediatamente o equilíbrio. Conseguiu aguentar-se apoiando-se com ambas as mãos ao tampo da bancada, enquanto ouvia a máquina disparar pregos, da-blam, da-blam, da-blam. Outra vez o pé direito. Viu que ela apontava os pregos na diagonal, de modo a atravessarem-lhe o calcanhar até às tábuas.
Ronald Niederman urrou, subitamente louco de raiva. Tentou uma vez mais agarrar a mão de Lisbeth.
Do seu esconderijo debaixo do móvel, Lisbeth viu as pernas das calças subirem e percebeu que ele estava a inclinar-se. Largou a pistola de pregos. Ronald Niedermann viu a mão dela desaparecer debaixo do móvel, rápida como um lagarto.
Avançou a mão para pegar na máquina, mas, quando estava quase a chegar-lhe com a ponta dos dedos, Lisbeth puxou-a pelo fio eléctrico.
O espaço entre o chão e o fundo do móvel tinha pouco mais de vinte centímetros. Com toda a força de que era capaz, Niedermann agarrou o rebordo da bancada e derrubou-a. Do chão, Lisbeth Salander
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ergueu para ele uns olhos muito abertos e uma expressão ofendida. Fez rodar a máquina e disparou de uma distância de meio metro. O prego cravou-se no meio da tíbia.
No instante seguinte, largou a máquina e rolou rapidamente para fora do alcance dele. Recuou dois metros e parou.
Ronald Niedermann tentou mover-se e perdeu novamente o equilíbrio, balouçando para a frente e para trás, a agitar os braços como as pás de um moinho. Conseguiu endireitar-se e inclinou-se para a frente, louco de fúria.
Dessa vez, apanhou a máquina de espetar pregos. Ergueu-a e virou-a para Lisbeth Salander. Premiu o botão.
Mas nada aconteceu. Olhou para o aparelho, confuso. E depois para Lisbeth Salander, que, com uma expressão neutra, apontou para a tomada. Cheio de raiva, ele atirou-lhe a máquina. Lisbeth evitou-a.
Então, voltou a ligá-la à ficha e puxou a máquina para si.
Ronald Niedermann enfrentou o olhar inexpressivo de Lisbeth Salander e sentiu um espanto súbito. Já sabia que ela o tinha vencido. É sobrenatural. Tentou instintivamente levantar um pé do chão. É um monstro. Teve força para erguê-lo alguns milímetros antes que as cabeças dos pregos o travassem. Os pregos estavam cravados em ângulos diferentes e, para se libertar, seria obrigado a dilacerar literalmente os pés. Mesmo mobilizando toda a sua força, quase sobre-humana, não conseguia despregar-se do chão. Ficou a cambalear durante alguns segundos, como que à beira de perder os sentidos. Estava imobilizado. Viu uma poça de sangue formar-se lentamente entre os sapatos.
Lisbeth Salander sentou-se diante dele numa cadeira a que faltava o espaldar enquanto tentava distinguir sinais reveladores de que ele seria capaz de arrancar os pés do chão. Como não sentia dor, era apenas uma questão de ter força suficiente para fazer passar as cabeças dos pregos pelos ossos dos pés. Ficou sentada, sem mexer um músculo, a assistir à luta dele durante dez minutos. Nem por um instante os seus olhos mostraram a mais pequena emoção.
Finalmente, foi colocar-se atrás de Niedermann, ergueu a máquina e apontou-a à coluna vertebral, logo abaixo da nuca.
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Lisbeth Salander pensava furiosamente. O homem que tinha à sua frente traficara, drogara, maltratara e vendera mulheres por grosso e a retalho. Matara pelo menos oito pessoas, incluindo um polícia em Gosseberga e um membro do Moto-Clube de Svavelsjõ. Não sabia quantas mais vidas o meio-irmão tinha a pesar-lhe na consciência, mas sabia que, por causa dele, fora perseguida por todo o país como um cão raivoso, acusada de três dos homicídios que ele cometera. Pousou o dedo no botão de disparo. E tinha matado Dag Svensson e Mia Johansson. Com Zalachenko, tinha-a matado também a ela, e tinha-a enterrado, em Gosseberga. E agora tentara novamente matá-la. Tinha mais do que motivos para estar zangada. Não via qualquer razão para o deixar viver. Ele odiava-a com uma intensidade que não compreendia. Que aconteceria se o entregasse à polícia? Um julgamento? Prisão perpétua? E se ele beneficiasse de um indulto? E se conseguisse evadir-se? Agora que o pai desaparecera para sempre, durante quantos anos teria de olhar por cima do ombro à espera do dia em que o irmão iria reaparecer? Sentiu o peso da pistola de pregos. Podia pôr um fim definitivo em tudo aquilo. Análise das consequências. Mordeu o lábio inferior.
Lisbeth Salander não tinha medo de pessoas nem do acaso. Sabia que lhe faltava a imaginação necessária para isso - uma prova como outra qualquer de que o seu cérebro era perfeitamente normal.
Ronald Niedermann odiava-a e ela correspondia-lhe com um ódio igualmente imoderado. Era mais um desses homens como Mag-ge Lundin e Martin Vanger e Alexander Zalachenko e uma dúzia de outros filhos da puta que, na opinião dela, não tinham qualquer desculpa para se encontrarem entre os vivos. Se pudesse juntá-los a todos numa ilha deserta e atirar-lhes uma bomba atómica para cima, não hesitaria um segundo.
Mas um assassínio? Valeria a pena? Que lhe aconteceria, a ela, se o matasse? Quais eram as suas probabilidades de não ser apanhada?
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Que preço estava disposta a pagar pelo prazer de disparar a máquina uma última vez?
Poderia alegar legítima defesa?... Não, claro que não, estando ele com os pés pregados ao chão.
De repente, pensou em Harriet Vanger, que fora igualmente martirizada pelo pai e pelo irmão. Lembrou-se da conversa que tivera com Mikael Blomkvist e em que condenara Harriet em termos muito duros. Fora por culpa dela que o irmão, Martin, pudera continuar a matar durante tantos anos.
"Que terias feito tu?", perguntara Mikael
"Matava o sacana", respondera ela, com uma convicção nascida da sua alma glacial.
E agora encontrava-se exactamente na mesma situação que Harriet Vanger. Quantas mulheres mais iria Ronald Niedermann matar se ela o deixasse viver? Era maior e socialmente responsável pelos seus actos. Quantos anos da sua vida estava disposta a sacrificar? Quantos anos teria Harriet Vanger sacrificado?
Então, a pistola de pregos tornou-se demasiado pesada para que ela conseguisse mantê-la apontada à nuca de Niedermann, mesmo com as duas mãos.
Baixou-a e teve a sensação de regressar à realidade. Notou que Ronald Niedermann murmurava algumas palavras incoerentes em alemão. Falava do diabo que viera para o levar.
Apercebeu-se de que não era com ela que estava a falar. Parecia ver alguém no outro extremo da nave. Voltou a cabeça e seguiu a direcção do olhar dele. Não havia ali nada. Sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe.
Deu meia-volta, pegou na barra de ferro e voltou à primeira divisão para ir procurar a sacola. Ao inclinar-se para a apanhar, viu a baioneta caída no chão. Agarrou-a com a mão enluvada.
Hesitou um instante, e então colocou-a bem à vista no meio da coxia entre as filas de caixotes. Serviu-se da barra de ferro para rebentar o cadeado que trancava a porta.
Ficou imóvel no carro, a reflectir, durante muito tempo. Por fim, pegou no telemóvel. Bastaram-lhe dois minutos para descobrir o número da sede do Moto-Clube de Svavelsjõ.
- Sim - disse uma voz.
- Nieminen - disse ela.
- Espere.
Esperou três minutos até que Sonny Nieminen, presidente em exercício do Moto-Clube de Svavelsjõ, atendesse.
- Quem fala?
- Isso não interessa - disse Lisbeth, numa voz tão baixa que ele teve dificuldade em distinguir as palavras. Não saberia dizer se era um homem ou uma mulher que falava.
- Ah. E o que queres?
- Acho que gostarias de ter uma dica sobre o paradeiro do Ronald Niedermann.
- Ah, sim?
- Deixa-te de merdas. Queres saber onde está ou não?
- Estou a ouvir.
Lisbeth explicou o caminho a seguir para chegar à fábrica de tijolos abandonada perto de Norrtálje. Disse que Niedermann se demoraria por lá o tempo suficiente para ele chegar, desde que se despachasse.
Desligou o telefone, ligou o motor do carro e foi até à estação de serviço do outro lado da estrada. Estacionou de modo a ter uma boa vista da fábrica de tijolos.
Teve de esperar mais de duas horas. Passava um pouco da uma e meia quando viu uma carrinha avançar lentamente pela estrada, deter-se cinco minutos num espaço de estacionamento, fazer uma inversão de marcha e meter pelo caminho de acesso à fábrica de tijolos. O dia começava a declinar, o céu cinzento tinha um ar pesado e invernal.
Abriu o porta-luvas, tirou de lá os binóculos Minolta 2 x 8 e viu a carrinha estacionar no pátio da fábrica. Viu Sonny Nieminen
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e Hans-Âke Waltari apearem-se, seguidos por outros três tipos que não reconheceu. Reestruturação. Foram obrigados a substituir pessoal.
Quando Nieminen e os seus acólitos descobriram a porta aberta na parte lateral do edifício, Lisbeth voltou a pegar no telemóvel. Compôs uma mensagem que enviou por e-mail ao Centro de Operações da Polícia de Norrtálje.
[O ASSASSINO DE POLÍCIAS R. NIEDERMANN ENCONTRA-SE NA ANTIGA FÁBRICA DE TIJOLOS PERTO DA ESTAÇÃO DE SERVIÇO DE SKEDERIB. NESTE MOMENTO, S. NIEMINEN E OUTROS MEMBROS DO M-C DE SVAVELSJõ ESTÃO A ASSASSINÁ-LO.
MULHER MORTA NA BACIA DO PISO TÉRREO.}
Do lado da fábrica, nada mexia.
Aguardou.
Enquanto esperava, tirou o cartão SIM do telemóvel e destruiu-o cortando-o em minúsculos pedaços com a tesoura de unhas. Abriu a janela e lançou os pedaços ao vento. Em seguida, tirou da carteira outro cartão SIM e inseriu-o no telemóvel. Usava cartões recarregáveis Comviq que eram praticamente impossíveis de localizar. Ligou para a Comviq e carregou o novo cartão com 500 coroas.
Passaram onze minutos até que uma carrinha da polícia, com a sirene desligada, mas as luzes do tejadilho a rodopiar, chegasse à fábrica vinda de Norrtálje. Parou no caminho de acesso. Um minuto mais tarde, apareceram dois carros-patrulha. Os polícias organizaram-se e avançaram em grupo para a fábrica, detendo-se junto à carrinha de Nieminen. Lisbeth ergueu os binóculos. Viu um dos polícias falar pelo microfone de um rádio-telefone enquanto olhava para a chapa de matrícula. Os polícias olharam em redor, mas não se mexeram. Dois minutos mais tarde, uma outra carrinha aproximou-se a toda a velocidade.
Subitamente, Lisbeth compreendeu que tudo tinha, finalmente, chegado ao fim.
A história que começara no dia em que ela nascera acabava naquela fábrica de tijolos.
Estava livre.
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Quando os polícias tiraram da segunda carrinha um arsenal considerável, vestiram coletes à prova de bala e começaram a tomar posição à volta da fábrica, Lisbeth Salander entrou na estação de serviço e comprou um café para levar e uma sanduíche embrulhada em película aderente. Comeu de pé, diante de uma mesa alta.
Já era noite quando regressou ao carro. Enquanto abria a porta, ouviu duas detonações distantes, dois tiros de pistola, certamente, do outro lado da estrada. Viu várias figuras escuras encostadas à parede de um e do outro lado da porta. Ouviu a sirene de uma outra carrinha da polícia que chegava com os reforços, vinda dos lados de Uppsala. Alguns carros particulares tinham parado na berma da estrada, para ver o que se passava.
Meteu pela E18 e regressou a casa, em Estocolmo.
Eram sete da tarde quando Lisbeth Salander, muito irritada, ouviu a campainha da porta. Estava na banheira, cheia de água ainda a fumegar. Sabia que só havia uma pessoa que podia ter uma razão para lhe ir bater à porta.
Ainda pensou em ignorar a campainha, mas, ao terceiro toque, suspirou e embrulhou-se num lençol de banho. Projectou o lábio inferior para a frente enquanto ia deixando um rasto de pegadas pelo chão do vestíbulo.
- Olá - disse Mikael Blomkvist, quando ela abriu a porta. - Lisbeth não respondeu. - Não ouviste as notícias?
Ela abanou a cabeça.
- Pensei que gostarias de saber que o Ronald Niedermann morreu. Foi morto por um bando do Moto-Clube de Svavelsjõ, hoje à tarde.
- Quem diria - disse Lisbeth, numa voz controlada.
- Falei com um polícia de Norrtálje. Teve todo o ar de um ajuste de contas. Parece que o Niedermann foi torturado e esventrado com uma baioneta. Tinha um saco com várias centenas de milhar de coroas.
- Ah.
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- O bando de Svavelsjõ foi apanhado em flagrante. Houve tiroteio e a polícia de Norrtálje teve de pedir reforços à polícia nacional. Svavelsjõ capitulou por volta das seis da tarde.
- Ah.
- O teu velho amigo de Stallarholmen, o Sonny Nieminen, tombou em combate. Passou-se completamente e pôs-se a disparar como um louco.
- Ainda bem.
Mikael Blomkvist guardou silêncio durante alguns segundos. Estava a falar através da porta entreaberta.
- Incomodo? - perguntou. Ela encolheu os ombros.
- Estava a tomar banho.
- Bem vejo. Queres companhia? - Ela lançou-lhe um olhar acerado. - Não estava a falar da banheira. Trouxe uns pãezinhos - disse ele, mostrando um saco. - Também comprei café especial para espresso. Já que tens uma Jura Impressa X7 na cozinha, podias ao menos aprender a usá-la.
Lisbeth arqueou as sobrancelhas. Não sabia se devia sentir-se desiludida ou aliviada.
- Só companhia? - perguntou.
- Só companhia - confirmou ele. - Sou um bom amigo que vem visitar uma boa amiga. Isto é, se for bem-vindo.
Ela hesitou alguns segundos. Durante dois anos, mantivera-se o mais longe possível de Mikael Blomkvist. Mas ele parecia estar constantemente a colar-se à sua vida, como uma pastilha-elástica à sola do sapato, fosse na Net, fosse na vida real. Na Net, ainda escapava. Aí, era apenas um conjunto de electrões e letras. À sua porta, na vida real, continuava a ser aquele raio de homem atraente. E conhecia todos os segredos dela, como ela conhecia todos os segredos dele.
Observou-o e verificou que já não sentia nada por ele. Pelo menos, daquela maneira.
E ele tinha verdadeiramente sido um bom amigo ao longo de todo aquele ano.
Confiava nele. Talvez. Irritava-a o facto de passar o tempo a evitar uma das poucas pessoas em que confiava.
De repente, decidiu-se. Era idiota fingir que ele não existia. Já não a magoava vê-lo.
Abriu a porta e admitiu-o de novo na sua vida.
Stieg Larsson
O melhor da literatura para todos os gostos e idades