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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


4 3 2 1 / Paul Auster
4 3 2 1 / Paul Auster

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Segundo a lenda da família, o avô de Ferguson partiu a pé de sua cidade natal, Minsk, com cem rublos costurados no forro do paletó, viajou para o oeste, rumo a Hamburgo, passando por Varsóvia e Berlim, e depois comprou uma passagem num navio chamado Imperatriz da China, que atravessou o Atlântico debaixo de brutais tempestades de inverno e chegou ao porto de Nova York no primeiro dia do século XX. Enquanto esperava para ser entrevistado por um funcionário do serviço de imigração na ilha Ellis, entabulou conversa com um colega judeu russo. O homem lhe disse: Esqueça o nome Reznikoff. Não vai servir de nada para você aqui. Você precisa de um nome americano para a sua vida nova nos Estados Unidos, alguma coisa com um bom toque americano. Como, em 1900, o inglês ainda era uma língua estranha para Isaac Reznikoff, ele pediu uma sugestão a seu compatriota, mais velho e mais experiente. Diga a eles que você é Rockefeller, disse o homem. Assim, não pode dar errado. Passou uma hora, depois mais uma hora e, quando Reznikoff, de dezenove anos, sentou-se para ser interrogado pelo funcionário do serviço de imigração, tinha esquecido o nome que o homem havia sugerido. Qual seu nome?, perguntou o funcionário. Depois de dar um tapa de frustração na cabeça, o esgotado imigrante exclamou em iídiche: Ikh hob fargessen! (Eu esqueci!) E foi assim que Isaac Reznikoff começou sua vida nova nos Estados Unidos como Ichabod Ferguson.
Ele passou maus bocados, sobretudo no início, mas mesmo depois, quando já não era mais o início, nada corria do jeito que tinha imaginado em seu país adotivo. É verdade que conseguiu arranjar uma esposa assim que completou vinte e seis anos, e também é verdade que essa esposa, Fanny, cujo sobrenome de solteira era Grossman, lhe deu três filhos vigorosos e saudáveis, mas a vida nos Estados Unidos continuou a ser uma luta para o avô de Ferguson, desde o dia em que desembarcou do navio até a noite de 7 de março de 1923, quando encontrou uma morte prematura e inesperada, aos quarenta e dois anos de idade — morto por um tiro, num assalto, no depósito de artigos de couro em Chicago, onde estava empregado como vigia noturno.
Nenhuma foto dele sobreviveu, mas, segundo todos os relatos, era um homem grande, de costas fortes e mãos enormes, sem instrução, sem qualificação, o mais completo exemplo do simplório ignorante. Em sua primeira tarde em Nova York, esbarrou com um vendedor ambulante que apregoava as maçãs mais vermelhas, redondas e perfeitas que ele já tinha visto. Incapaz de resistir, comprou uma e mordeu com sofreguidão. Em vez da doçura que esperava, o gosto era amargo e esquisito. Pior ainda, a maçã era enjoativamente mole e, depois que os dentes atravessaram a pele, o interior da fruta se derramou pela frente de seu casaco, no esguicho de um líquido vermelho claro, pontilhado por uma porção de caroços iguais a bolinhas. Esse foi seu primeiro gosto de Nova York, seu primeiro encontro, para nunca mais esquecer, com um tomate de Jersey.
Portanto, não um Rockefeller, mas um trabalhador braçal de ombros largos, um gigante judeu com um nome absurdo e um par de pés indóceis, que tentou a sorte em Manhattan e no Brooklyn, em Baltimore e em Charleston, em Duluth e em Chicago, que arranjou diversos empregos: estivador, marinheiro num navio-petroleiro dos Grandes Lagos, treinador de animais num circo itinerante, operário de uma linha de montagem numa fábrica de latinhas, motorista de caminhão, cavador de valas, vigia noturno. Apesar de todo seu esforço, nunca recebeu mais do que tostões e mixarias e, assim, as únicas coisas que o pobre Ike Ferguson deixou de herança para a esposa e os três filhos foram as histórias que contava para eles, das aventuras errantes de sua juventude. Ao longo da vida, as histórias não valem menos do que o dinheiro, mas no calor da hora elas têm limitações decisivas.

 


 


A empresa de artigos de couro fez um pequeno acordo com Fanny para compensar a perda do marido e, depois, ela foi embora de Chicago com os filhos, mudou-se para Newark, em Nova Jersey, a convite de parentes de Ike, que lhe deram um apartamento no último andar da casa deles, em Central Ward, em troca de um aluguel mensal simbólico. Os filhos tinham catorze, doze e nove anos. Louis, o mais velho, desde muito tempo, tinha passado a se chamar Lew. Aaron, o do meio, passara a se chamar Arnold, depois de uma das muitas surras que levava no pátio da escola, em Chicago, e Stanley, de nove anos, era conhecido como Sonny. Para conseguir se sustentar, a mãe lavava e remendava roupa para fora, mas em pouco tempo os meninos já estavam contribuindo também para as finanças de casa, todos tinham um trabalho depois da escola, todos entregavam para a mãe cada centavo que ganhavam. Os tempos eram difíceis e a ameaça da privação enchia os cômodos do apartamento como uma neblina densa e ofuscante. Não havia escapatória para o medo e, pouco a pouco, os três meninos assimilaram as sombrias conclusões ontológicas da mãe sobre o sentido da vida. Trabalhe ou morra de fome. Trabalhe ou fique sem teto. Trabalhe ou morra. Para os Ferguson, a ideia imbecil de “todos por um e um por todos” não existia. Em seu mundinho, era “todos por todos ou nada”.

Ferguson não tinha nem dois anos quando sua avó morreu, o que significa que não guardou nenhuma lembrança consciente dela, porém, segundo a lenda da família, Fanny era uma mulher difícil e volúvel, dada a violentos ataques de gritos e a desvairados acessos de choro incontrolável, batia nos filhos com vassouradas, sempre que se portavam mal, e era impedida de entrar em certas lojas do bairro por causa de suas reclamações escandalosas sobre os preços. Ninguém sabia onde tinha nascido, mas diziam que ela havia chegado a Nova York aos catorze anos, órfã, e passara alguns anos num sótão sem janelas no Lower East Side, confeccionando chapéus. O pai de Ferguson, Stanley, raramente falava dos pais para o filho; respondia às perguntas do menino com as mais vagas e curtas palavras de discrição, e quaisquer migalhas de informação que o jovem Ferguson conseguia obter sobre seus avós paternos vinham quase exclusivamente de sua mãe, Rose, durante muitos anos, a mais jovem das três cunhadas de Ferguson, da segunda geração, que, por sua vez, havia recebido a maioria de suas informações de Millie, esposa de Lew, mulher com um fraco pela fofoca, casada com um homem muito menos discreto e muito mais falante do que Stanley ou Arnold. Quando Ferguson tinha dezoito anos, sua mãe contou para ele uma das histórias de Millie, apresentada como nada mais do que um boato, mera conjectura destituída de fundamento, que talvez pudesse ser verdade — mas também poderia não ser. Segundo Lew havia contado para Millie, ou Millie dizia que Lew havia contado, existia um quarto filho de Ferguson, uma menina nascida três ou quatro anos depois de Stanley, no período em que a família morava em Duluth e Ike procurava emprego como marinheiro num navio dos Grandes Lagos, um período em que a família viveu numa pobreza extrema, e como Ike estava embarcado quando Fanny deu à luz, e como estavam em Minnesota e a estação era o inverno, um inverno especialmente gélido, num lugar especialmente frio, e como a casa em que moravam era aquecida por uma única estufa à lenha, e como, na ocasião, havia tão pouco dinheiro que Fanny e os meninos se viram reduzidos a viver com só uma refeição por dia, a ideia de ter de cuidar de mais uma criança encheu Fanny de tamanho pavor que ela afogou na banheira a filha recém-nascida.

Se Stanley contava para o filho muito pouco sobre os pais, pouco dizia também sobre si mesmo. Assim, era difícil para Ferguson formar uma imagem clara de como tinha sido seu pai, quando criança, quando adolescente, quando jovem ou quando qualquer coisa, até se casar com Rose, dois meses antes de completar trinta anos. No entanto, a partir de comentários de passagem que às vezes escapavam dos lábios do pai, Ferguson conseguiu entender pelo menos isto: Stanley, muitas vezes, sofria provocações e maus-tratos na mão dos irmãos mais velhos; como era o caçula e, portanto, aquele que havia passado a menor parte da infância com o pai vivo, Stanley era o mais ligado a Fanny; ele foi um estudante aplicado e, de longe, o melhor atleta entre os três irmãos; jogou de ponta no time de futebol americano e correu os quatrocentos metros rasos na equipe de corrida do colégio Central High; seu talento para a eletrônica o levou a abrir uma oficinazinha de conserto de rádios, no verão seguinte à sua formatura no ensino médio, em 1932 (um buraco no muro na Academy Street, no centro de Newark, era como ele descrevia a oficina, do tamanho de uma bancada de engraxate); seu olho direito sofreu uma lesão durante um dos acessos de vassouradas da mãe, quando ele tinha onze anos (ficou parcialmente cego e, assim, foi rejeitado para o serviço militar, na Segunda Guerra Mundial); desprezava o apelido Sonny e o abandonou no instante em que saiu do colégio; adorava dançar e jogar tênis; nunca disse nenhuma palavra contra os irmãos, por mais que o tratassem de forma estúpida ou desdenhosa; seu trabalho infantil depois do horário da escola era entregar jornais; pensou seriamente em estudar direito, mas abandonou a ideia por falta de recursos; aos vinte e poucos anos, tinha fama de conquistador e namorou uma porção de judias jovens, sem a menor intenção de se casar; fez várias excursões a Cuba na década de 30, quando Havana era a capital do pecado do Hemisfério Ocidental; sua maior ambição na vida era ser milionário, um homem tão tico quanto Rockefeller.

Lew e Arnold casaram-se com vinte e poucos anos, ambos decididos a se desvencilhar, o mais depressa possível, do desmiolado ambiente doméstico de Fanny, fugir da monarca esbravejante que havia reinado sobre os Ferguson desde a morte do pai deles, em 1923, mas Stanley, ainda adolescente quando os irmãos saíram de campo, não teve escolha a não ser ficar. Afinal, ele mal havia acabado o ensino médio, mas depois os anos passaram, um depois do outro, durante onze anos, e ele continuou em casa, compartilhando com Fanny, mas sem nenhuma responsabilidade, o mesmo apartamento no último andar, durante o período da Depressão e da primeira metade da guerra, talvez cravado ali por força da inércia ou da preguiça, talvez motivado por um sentimento de dever ou de culpa em relação à mãe, ou talvez levado por todas essas coisas, o que tornava impossível, para ele, imaginar-se morando em outro lugar. Lew e Arnold tiveram filhos, mas Stanley parecia contente em ficar namorando à vontade, consumindo o estoque de suas energias na transformação de seu pequeno negócio num negócio maior, e como não demonstrava a menor inclinação para casar, mesmo quando, de baile em baile, passou dos vinte e poucos aos vinte e muitos e se aproximou da casa dos trinta anos, parecia haver pouca dúvida de que ia continuar solteiro pelo resto da vida. Então, em outubro de 1943, menos de uma semana depois de o Quinto Exército Americano resgatar Nápoles dos alemães, no meio daquele período esperançoso em que a guerra estava, finalmente, começando a virar a favor dos aliados, Stanley conheceu Rose Adler, de vinte e um anos, em Nova York, num encontro às cegas, e todo o encanto de uma longa vida de solteiro morreu, de morte rápida e permanente.

Ela era tão bonita, a mãe de Ferguson, tão fascinante com seus olhos verde-acinzentados e com seu cabelo castanho e comprido, tão espontânea e viva, e de sorriso fácil, tão deliciosamente desenhada ao longo da altura de um metro e setenta destinada à sua pessoa, que Stanley, ao apertar a mão dela pela primeira vez, o distante e normalmente desapegado Stanley, o Stanley de vinte e nove anos que nunca tinha sido chamuscado pelo fogo do amor, sentiu-se desintegrar na presença de Rose, como se todo o ar tivesse sido sugado dos pulmões e ele nunca mais fosse capaz de respirar.

Ela também era filha de imigrantes, o pai tinha nascido em Varsóvia e a mãe, em Odessa, os dois vieram para os Estados Unidos com menos de três anos de idade. Portanto, os Adler eram uma família mais integrada do que os Ferguson, e o jeito de falar dos pais de Rose nunca apresentou o menor sinal de sotaque estrangeiro. Eles foram criados em Detroit e em Hudson, no estado de Nova York, e o iídiche, o polonês e o russo dos pais deles deram lugar a um inglês fluente e idiomático, ao passo que o pai de Stanley havia brigado muito para dominar sua segunda língua, até o dia em que morreu, e ainda naquela altura, em 1943, depois de quase meio século de afastamento de suas origens na Europa Oriental, sua mãe ainda lia o jornal Jewish Daily Forward, em vez dos jornais americanos, e se exprimia num linguajar esquisito e embaralhado, que os filhos chamavam de inglídiche, um patoá quase incompreensível, que misturava inglês e iídiche em quase todas as frases que escapa­vam de sua boca. Essa era uma diferença fundamental entre Rose e os pais de Stanley. Porém, até mais importante do que o fato de seus pais terem se adaptado muito ou pouco à vida americana, havia a questão da sorte. Os pais e os avós de Rose conseguiram escapar às brutais reviravoltas que se abateram sobre os desafortunados Ferguson e por isso sua história não incluía nenhum assassinato num assalto a um depósito, nenhuma pobreza que beirasse o desespero ou a morte por inanição, nenhum bebê afogado na banheira. O avô de Detroit foi alfaiate, o avô de Hudson foi barbeiro e, ainda que cortar cabelo e cortar roupas não fossem o tipo de trabalho que conduzisse alguém por um caminho que leva à riqueza e ao sucesso mundano, forneciam uma renda estável o suficiente para pôr comida na mesa e roupa para proteger os filhos.

O pai de Rose, Benjamin, conhecido ora por Ben ora por Benjy, partiu de Detroit um dia depois de se formar no ensino médio, em 1911, e foi para Nova York; um parente distante havia lhe garantido um emprego de vendedor numa loja de roupas no centro da cidade, porém o jovem Adler desistiu do emprego duas semanas depois, ciente de que o destino reservado para ele não era dissipar seu curto tempo na Terra vendendo meias e cuecas masculinas e, trinta e dois anos mais tarde, depois de uma série de ocupações avulsas, como vendedor de produtos de limpeza de porta em porta, distribuidor de discos para gramofone, soldado na Primeira Guerra Mundial, vendedor de carros e coproprietário de uma revenda de carros usados no Brooklyn, agora ele ganhava a vida como um dos três sócios minoritários de uma empresa imobiliária em Manhattan, com uma receita grande o suficiente para que a família mudasse de Crown Heights, no Brooklyn, para um prédio novo na rua 58 Oeste, em 1941, seis meses antes de os Estados Unidos entrarem na Guerra.

Segundo o que foi contado para Rose, os pais dela se conheceram num piquenique de domingo, no norte do estado de Nova York, num local não distante da casa de sua mãe, em Hudson, e após meio ano (novembro de 1919), os dois se casaram. E, como Rose confessou para o filho mais tarde, o casamento sempre a deixara intrigada, pois poucas vezes na vida tinha visto duas pessoas menos compatíveis do que seus pais, e o fato de o casamento ter perdurado por mais de quatro décadas era, sem a menor dúvida, um dos maiores mistérios nos anais da vida conjugal da humanidade. Benjy Adler era um sabichão elegante e de fala ligeira, um malandro cheio de esquemas, com cem planos no bolso, bom contador de anedotas, sempre a fim de se dar bem e sempre no centro das atenções, e lá estava ele naquela tarde de domingo, no interior do estado de Nova York, se apaixonando por uma tímida mocinha que ninguém convidava para dançar, chamada Emma Bromowitz, uma garota redonda, de peito grande, vinte e três anos, com a pele branca mais pálida do mundo e uma volumosa coroa de cabelo vermelho, tão virginal, tão inexperiente, de ar tão vitoriano que bastava olhar para ela para logo concluir que seus lábios nunca tinham sido tocados por um homem. Não fazia nenhum sentido que os dois se casassem, todos os sinais indicavam que estavam fadados a uma vida de conflito e desentendimento, mas se casaram de fato e, embora Benjy tenha tido dificuldades para se manter fiel a Emma depois que suas filhas nasceram (Mildred em 1920, Rose em 1922), ele permaneceu unido a ela afetivamente, e Emma, embora enganada muitas vezes, nunca foi capaz de se voltar contra o marido.

Rose adorava a irmã mais velha, mas não se podia dizer que o contrário era verdade, pois a primogênita Mildred aceitara naturalmente o lugar que Deus lhe dera de princesa do lar, e a pequena rival que havia entrado em cena teria de aprender — muitas vezes repetidas, se necessário — que só existia um trono no apartamento de Adler, na Franklin Avenue, um trono e uma princesa, e qualquer tentativa de usurpar esse lugar seria recebida com uma declaração de guerra. Isso não quer dizer que Mildred fosse explicitamente hostil a Rose, mas suas bondades eram medidas em conta-gotas, não mais do que uma dose de bondade por minuto, hora ou mês, e sempre na condição de conter um toque de condescendência arrogante, como convinha a uma pessoa de seu gabarito real. A fria e circunspecta Mildred; a afetuosa e sentimental Rose. Quando as meninas tinham doze e dez anos, já estava claro que Mildred tinha uma inteligência excepcional, que seu sucesso na escola era resultado não só de aplicação nos estudos como de talentos intelectuais superiores e, ainda que Rose fosse bastante inteligente e tirasse notas perfeitamente dignas, não passava de uma aluna qualquer, em comparação com a irmã. Sem compreender seus motivos, sem pensar conscientemente nenhuma vez sobre isso ou formular um plano, Rose, aos poucos, parou de competir nos termos de Mildred, pois sabia instintivamente que tentar emular a irmã só poderia terminar em fracasso e que, portanto, se houvesse alguma esperança para ela, estaria em travar luta num terreno diferente.

Descobriu a solução no trabalho, na tentativa de consolidar um lugar para si ganhando seu próprio dinheiro e, quando fez catorze anos e tinha idade suficiente para tirar os documentos que lhe permitissem trabalhar, arranjou seu primeiro emprego, que rapidamente a levou a uma série de outros empregos e, quando fez dezesseis anos, tinha emprego fixo de dia e frequentava o ensino médio à noite. Não importava que Mildred se recolhesse ao claustro do seu cérebro entupido de livros, não importava que partisse a todo vapor para a faculdade e lesse todos os livros escritos nos últimos dois mil anos, o que Rose queria, aquilo que mais fazia sentido para Rose, era o mundo real, o corre-corre e o barulho das ruas de Nova York, a sensação de se manter de pé sozinha e de abrir seu próprio caminho. Como as heroínas atrevidas, de raciocínio rápido, nos filmes que via duas ou três vezes por semana, o interminável batalhão de filmes de estúdio estrelados por Claudette Colbert, Barbara Stanwyck, Ginger Rogers, Joan Blondell, Rosalind Russell e Jean Arthur, ela representava a figura da jovem e determinada profissional, e abraçava o papel como se estivesse vivendo um filme estrelado por ela mesma, A história de Rose Adler, um filme comprido, infinitamente complexo, que ainda estava em seu primeiro rolo, mas que prometia coisas tremendas nos anos vindouros.

Quando conheceu Stanley, em outubro de 1943, havia dois anos que ela trabalhava com um fotógrafo retratista chamado Emanuel Schneiderman, cujo estúdio ficava na rua 27 Oeste, perto da Sexta Avenida. Rose começou como recepcionista-secretária-contadora, mas quando o assistente fotográfico de Schneiderman entrou no Exército, em junho de 1942, Rose ocupou seu lugar. Na época, o velho Schneiderman tinha sessenta e poucos anos, era um imigrante judeu alemão que viera para Nova York, com esposa e dois filhos, depois da Primeira Guerra Mundial, homem taciturno, dado a ataques de irritação e a palavras francamente ofensivas, mas com o tempo ele adquiriu um carinho ciumento pela linda Rose e, como tinha consciência de que ela observava atentamente seu modo de trabalhar desde os primeiros dias no estúdio, resolveu adotá-la como aprendiz-assistente e ensinar o que sabia sobre câmeras, iluminação e revelação de filmes — toda a arte e a técnica de seu ofício. Para Rose, que até então nunca soubera em que direção estava indo, que havia trabalhado em diversos serviços de escritório apenas por causa do salário, ou pouco mais do que isso, ou seja, sem nenhuma esperança de encontrar satisfação interior, veio a impressão de que, de repente, havia encontrado uma vocação — aquele não era apenas mais um emprego, e sim uma nova maneira de estar no mundo: olhar no rosto dos outros, mais rostos todos os dias, rostos diferentes todas as manhãs e tardes, cada rosto diferente de todos os outros, e em pouco tempo Rose entendeu que adorava aquele trabalho de olhar para os outros e que ela nunca, nunca iria se cansar de fazer aquilo.

Stanley, agora, trabalhava em colaboração com os irmãos, os dois tinham sido dispensados do serviço militar (pé chato e visão ruim) e, depois de algumas reinvenções e ampliações, a pequena oficina de conserto de rádios começou a crescer, em 1932, para se tornar uma espaçosa loja de móveis e utilidades domésticas na Springfield Avenue, que oferecia todas as iscas e truques do varejo contemporâneo americano: planos de prestações de longo prazo, ofertas de compre dois e leve três, vendas de arromba semestrais, serviço de atendimento a recém-casados e vendas especiais do Dia da Bandeira. O primeiro a se juntar a ele foi Arnold, o desastrado irmão do meio, não muito inteligente, que tinha perdido alguns empregos de vendedor e estava passando maus bocados para sustentar a esposa, Joan, e os três filhos. Alguns anos depois disso, Lew também se juntou a eles, não porque tivesse interesse em móveis ou utilidades domésticas, mas porque Stanley tinha saldado as dívidas do mais velho no jogo, pela segunda vez em cinco anos, e o obrigou a fazer parte do negócio como prova de boa-fé e arrependimento, deixando claro que, a qualquer sinal de relutância da parte de Lew, ele nunca mais na vida veria nenhum centavo do irmão. Assim nasceu a empresa conhecida como Mundo do Lar Três Irmãos, no fundo, sob a direção de apenas um irmão, Stanley, o mais jovem e mais ambicioso dos filhos de Fanny, o qual, por força de alguma convicção perversa, porém inatacável, de que a lealdade familiar superava todos os outros atributos humanos, havia de bom grado assumido o fardo de apoiar os dois irmãos fracassados, que exprimiam sua gratidão chegando sempre atrasados para o trabalho, surrupiando notas de dez e vinte do caixa toda vez que seus bolsos estavam vazios e, nos meses quentes, escapulindo depois do almoço para jogar golfe. Se Stanley ficava aborrecido com o comportamento dos irmãos, nunca reclamava, pois as leis do universo proibiam reclamar de irmãos e, ainda que os lucros do Mundo do Lar fossem um tanto inferiores ao que seriam sem o ônus dos salários de Lew e Arnold, o negócio andava de vento em popa e, depois que a guerra terminasse, dali a um ou dois anos, o cenário ficaria ainda mais formidável, pois nessa altura chegaria a televisão e os irmãos seriam os primeiros do bairro a vender televisores. Não, Stanley não era ainda um homem rico, mas sua renda vinha crescendo de maneira contínua já fazia algum tempo e, quando conheceu Rose naquela noite de outubro de 1943, ele tinha certeza de que tempos melhores ainda estavam por vir.

Ao contrário de Stanley, Rose já havia sido queimada pela chama de um amor apaixonado. Se não fosse a guerra, que havia tomado dela esse amor, os dois jamais teriam se conhecido, pois Rose já teria se casado com outro, muito tempo antes daquela noite de outubro. Mas o jovem de quem ela era noiva, David Raskin, estudante de medicina nascido no Brooklyn, que havia entrado na vida de Rose quando ela ainda tinha dezessete anos, morreu numa explosão acidental durante um treinamento elementar em Forte Benning, na Geórgia. A notícia chegou em agosto de 1942 e, por muitos meses, Rose ficou de luto, entorpecida e ressentida, vazia, sem esperança, meio enlouquecida pela dor, rogando pragas contra a guerra, gritando com a boca enfiada no travesseiro, de noite, incapaz de se reconciliar com o fato de que David nunca mais tocaria nela. A única coisa que a mantinha de pé durante aqueles meses era seu trabalho com Schneiderman, que trazia algum consolo, algum prazer, alguma razão para sair da cama de manhã; no entanto Rose não tinha apetite nenhum para a vida social e nenhum interesse em encontrar outros homens, o que reduzia sua vida à mera rotina de trabalho e casa, além de idas ao cinema com a amiga Nancy Fein. Pouco a pouco, porém, sobretudo nos últimos dois ou três meses, começou gradualmente a ser como era antes, redescobriu que a comida tinha sabor quando a colocava na boca, por exemplo, e que quando a chuva caía na cidade, não caía só para ela, que todo homem, mulher e criança tinha de pular por cima das mesmas poças. Não, ela nunca se recuperaria da morte de David, ele seria para sempre o fantasma secreto que andava a seu lado enquanto Rose avançava aos trambolhões para o futuro, mas, aos vinte e um anos, ela ainda era jovem demais para dar as costas ao mundo e, a menos que fizesse um esforço para entrar de novo naquele mundo, sabia que ia definhar e morrer.

Quem marcou o encontro entre Rose e Stanley, dois desconhecidos, foi Nancy Fein, a cáustica, mordaz Nancy, de dentes grandes e braços magricelos, a melhor amiga de Rose desde os tempos de infância, em Crown Heights. Nancy conheceu Stanley num baile de fim de semana em Catskills, uma daquelas festas entupidas de gente no Brown’s Hotel para os jovens judeus desimpedidos da cidade em busca de namorados, o mercado de carne kasher, como dizia Nancy, e embora a própria Nancy não estivesse em busca de namorado nenhum (era noiva de um soldado que fora para o Pacífico e que, até onde se sabia, continuava entre os vivos), tinha ido lá com uma amiga só para se distrair e acabou dançando duas ou três vezes com um cara de Newark chamado Stanley. Ele queria vê-la de novo, disse Nancy, mas depois que ela contou que já havia prometido sua virgindade a outra pessoa, ele sorriu, fez uma pequena reverência cômica com a cabeça e já estava prestes a ir embora quando Nancy começou a falar de sua amiga Rose, Rose Adler, a garota mais linda deste lado do rio Danúbio e a pessoa mais gentil de qualquer lado de qualquer rio. Eram esses os sentimentos sinceros de Nancy em relação a Rose e, quando Stanley entendeu que ela estava falando sério, respondeu que gostaria de conhecer sua amiga. Nancy pediu desculpas à amiga por ter mencionado seu nome, mas Rose apenas deu de ombros, ciente de que Nancy não tinha feito por mal, e depois perguntou: Bem, mas que tal é ele? Nas palavras de Nancy, Stanley Ferguson tinha mais ou menos um metro e oitenta de altura, boa aparência, um pouquinho velho (pois ter quase trinta já era ser velho aos seus olhos de vinte e um anos de idade), era dono de seu próprio negócio e parecia estar indo bem, charmoso, educado e muito bom dançarino. Depois de assimilar essas informações, Rose ficou em silêncio por alguns momentos, ponderando se estava disposta a encarar o desafio de encontrar um desconhecido, e então, no meio dessas reflexões, de repente lhe ocorreu que David tinha morrido fazia mais de um ano. Gostasse disso ou não, tinha chegado a hora de entrar em campo outra vez. Olhou para Nancy e disse: Acho que eu devia dar uma olhada nesse Stanley Ferguson, não acha?

Anos depois, quando Rose contou para o filho os acontecimentos daquela noite, omitiu o nome do restaurante onde ela e Stanley se encontraram para jantar. Todavia, se a memória não o enganava, Ferguson achava que tinha sido em algum lugar no centro de Manhattan, não sabia se no East Side ou no West Side, mas era um restaurante chique, com toalhas de mesa e garçons de gravata-borboleta e paletó preto e curto, o que significava que Stanley havia decidido, de forma consciente, impressionar Rose, provar que tinha dinheiro para pagar extravagâncias como aquela sempre que quisesse e, sim, ela achou Stanley fisicamente atraente, ficou impressionada com a leveza com que se postava de pé, com a graça e a fluidez de seu corpo em movimento, mas também com suas mãos — ela notou isso logo de saída —, sem falar dos olhos serenos e sem agressividade que nunca paravam de olhar para ela, olhos castanhos, nem grandes nem pequenos e, por cima deles, as sobrancelhas espessas e negras. Sem consciência do impacto monumental que ela havia produzido em seu companheiro de jantar, o aperto de mão que acarretou a completa desintegração do ser interior de Stanley, Rose ficou um pouquinho chocada de ver como ele falou pouco durante a primeira parte do jantar e, portanto, o tomou por uma pessoa extraordinariamente tímida, o que, estritamente falando, não era o caso. Como ela mesma estava nervosa e como Stanley continuava ali, parado e em silêncio a maior parte do tempo, Rose acabou falando pelos dois, o que vale dizer que falou demais e, à medida que os minutos passavam lentamente, ela foi ficando cada vez mais apavorada consigo mesma, por tagarelar como uma linguaruda de miolo mole, contando vantagem sobre a irmã, por exemplo, dizendo para ele que Mildred era uma aluna brilhante, summa cum laude no Hunter College no mês de junho anterior, e agora estava matriculada na pós-graduação em Columbia, a única mulher no Departamento de Inglês, um dos três únicos judeus, imagine como a família está orgulhosa, e bastou mencionar a família para que, dali a pouco, Rose começasse a falar de seu tio Archie, irmão caçula de seu pai, Archie Adler, o pianista do Downtown Quintet, que naquela altura estava tocando no Moe’s Hideout, na rua 52, e como era estimulante ter um músico na família, um artista, um renegado que pensava em outras coisas além de ganhar dinheiro, sim, ela adorava seu tio Archie, era de longe seu parente predileto, e depois, de forma inevitável, Rose passou a falar de seu trabalho com Schneiderman, enumerou todas as coisas que ele havia ensinado para ela no ano e meio anterior, o raivoso, o desbocado Schneiderman, que a levava ao Bowery nas tardes de domingo para catar velhos bêbados e vagabundos, criaturas destroçadas, com suas barbas brancas e cabelo branco e comprido, cabeças majestosas, cabeças de profetas e reis ancestrais, e Schneiderman dava dinheiro para eles irem ao estúdio e posarem para sua câmera, em geral com fantasias; os velhos vestiam turbantes, mantos e túnicas de veludo, da mesma forma que Rembrandt vestia os pés-rapados da Amsterdam do século XVII, e era essa a luz que usavam com aqueles homens, a luz de Rembrandt, claro e escuro ao mesmo tempo, sombra profunda, tudo sombra, com o mais ligeiro toque de luz, e agora Schneiderman tinha confiança nela o bastante para deixar que cuidasse sozinha da iluminação. Rose tinha feito sozinha dúzias daquelas fotografias, e então usou a palavra “chiaroscuro” e percebeu que Stanley não tinha a menor ideia do que ela estava falando, que poderia muito bem estar falando japonês que, para Stanley, não fazia a menor diferença, no entanto ele não parava de olhar para ela, de escutar o que dizia, extasiado e mudo, fulminado por um raio.

Foi um desempenho deplorável, ela achou, e constrangedor. Felizmente o monólogo foi interrompido pela chegada do prato principal, que lhe deu alguns momentos para organizar as ideias e, na hora em que eles começaram a comer (pratos desconhecidos), Rose estava calma o bastante para se dar conta de que seu falatório fora do comum tinha servido de proteção para impedir que ela falasse de David, pois aquele era o único assunto de que não queria falar, não admitiria falar, e portanto tinha enveredado por longas e ridículas digressões só para não expor sua ferida. Stanley Ferguson não tinha nada a ver com aquilo. Parecia um homem decente, e não era sua culpa ter sido recusado pelo Exército, estar sentado naquele restaurante em trajes civis muito bem cortados, em vez de se arrastar no meio da lama em algum campo de batalha distante ou ser feito em pedacinhos por uma bomba durante um treinamento elementar. Não, não era sua culpa, e Rose teria de ser uma pessoa sem nenhum coração para condená-lo por ter sido poupado e, no entanto, como não fazer a comparação, como não se indagar por que aquele homem tinha de estar vivo e David tinha de estar morto?

Apesar de tudo, o jantar correu razoavelmente bem. Depois que Stanley se recuperou do choque inicial e foi capaz de respirar outra vez, provou ser um tipo amável, não cheio de si, como eram tantos homens, mas atencioso e de boas maneiras, com uma sagacidade que não chegava a ser fulgurante, talvez, mas, mesmo assim, alguém receptivo ao humor, que ria quando ela dizia algo ainda que remotamente engraçado, e, quando ele falou de seu trabalho e de seus planos para o futuro, ficou claro para Rose que havia nele algo consistente, confiável. Pena que fosse um homem de negócios sem nenhum interesse por Rembrandt ou por fotografia, mas pelo menos Stanley era a favor de Franklin Delano Roosevelt (essencial) e parecia honesto o bastante para admitir que sabia pouco ou nada sobre muitas coisas, inclusive a pintura do século XVII e a arte de tirar retratos. Rose gostou dele. Achou agradável estar em sua companhia, mas, embora ele tivesse todas ou a maioria das qualidades do que chamavam de um bom partido, Rose entendeu que nunca ia conseguir se apaixonar por ele da maneira como Nancy achou que iria. Depois do jantar, os dois vagaram pelas calçadas do centro da cidade por meia hora, pararam para tomar um drinque no Moe’s Hideout, onde cumprimentaram com a mão o tio Archie, enquanto este dedilhava as teclas do piano (ele respondeu com um sorriso gordo e um piscar de olhos), e então Stanley levou-a de volta, a pé, até o apartamento de seus pais, na rua 58 Oeste. Subiu de elevador com ela, mas Rose não o convidou para entrar. Ao estender o braço para um aperto de mão de boa-noite (habilmente se esquivando de qualquer chance de um beijo prematuro), Rose agradeceu pela noite adorável e depois deu meia-volta, abriu a fechadura da porta e entrou no apartamento, quase certa de que nunca mais o veria.

Para Stanley, foi muito diferente, é claro, com ele tinha sido muito diferente desde o primeiro momento daquele primeiro encontro e, como não sabia nada a respeito de David Raskin e do coração ferido de Rose, imaginou que teria de agir depressa, pois uma garota como Rose não ficaria sozinha por muito tempo, sem dúvida os homens voavam em enxames à sua volta, ela era irresistível, cada partícula da moça era um clamor de graça, beleza e bondade, e pela primeira vez na vida Stanley decidiu fazer o impossível para derrotar a horda crescente dos pretendentes de Rose e conquistá-la para si, uma vez que era aquela a mulher com quem ele tinha decidido se casar, e, se Rose não fosse sua esposa, ninguém mais seria.

Nos quatro meses seguintes, ele a viu com frequência, não a ponto de se transformar num chato, mas de maneira regular, persistente, com foco e determinação inabaláveis, levando a melhor sobre seus imaginados rivais com o que ele imaginava ser uma sagacidade estratégica, mas a verdade é que não havia nenhum rival sério à vista, só dois ou três rapazes que Rose tinha conhecido depois de sair com Stanley, em outubro, porém, esses outros, um a um, ela julgou insatisfatórios, recusou outros convites para vê-los e continuou a dar tempo ao tempo, o que queria dizer que Stanley era um cavaleiro que fazia sua investida num território desimpedido, embora ele visse inimigos fantasmas em toda parte. Os sentimentos de Rose por ele não tinham mudado, mas ela preferia a companhia de Stanley à solidão de seu quarto ou a ficar ouvindo o rádio com os pais, depois do jantar, e assim ela raramente recusava quando ele a convidava para sair de noite, aceitava convites para patinar no gelo, jogar boliche, dançar (sim, ele era um tremendo dançarino), ver um concerto de Beethoven no Carnegie Hall, dois musicais da Broadway e vários filmes. Rapidamente, Rose aprendeu que dramas não produziam nenhum efeito em Stanley (ele cochilou durante A canção de Bernadette e Por quem os sinos dobram), mas seus olhos invariavelmente permaneciam abertos para as comédias, Original pecado, por exemplo, uma anedotazinha saborosa sobre a escassez de moradias no tempo da guerra, em Washington, que fez os dois rirem, estrelado por Joel McCrea (tão bonito) e Jean Arthur (uma das prediletas de Rose), mas foi algo dito por um dos outros atores que causou a mais forte impressão sobre ela, uma fala de Charles Coburn, no papel de uma espécie de Cupido, sob o disfarce de um velho americano gordo, que ele repetiu várias vezes ao longo do filme: um tipo alto, distinto, um rapaz bonito — como se fosse uma fórmula encantatória para exaltar as virtudes do tipo de marido que toda mulher devia querer. Stanley Ferguson era distinto, bonito e ainda relativamente jovem, e se um tipo alto significava gracioso, ereto e obediente às leis, Stanley era tudo isso também, porém Rose não estava, de maneira nenhuma, segura de que aquelas eram as virtudes que procurava, não depois do amor que havia compartilhado com o intenso e inconstante David Raskin, que às vezes tinha sido um amor exaustivo, mas vivaz e sempre inesperado em suas formas continuamente mutáveis, ao passo que Stanley parecia tão manso e previsível, tão seguro, que Rose se perguntava se tal firmeza de caráter seria mesmo uma virtude ou um defeito.

Por outro lado, ele não a pressionava, não cobrava beijos que sabia que Rose não estava disposta a dar, muito embora, a essa altura, estivesse nitidamente claro que estava apaixonado por ela e que, toda vez que estavam juntos, ele tinha de lutar para não tocá-la, não beijá-la ou apalpá-la.

Por outro lado, houve aquele dia frio no fim de novembro em que ele apareceu sem avisar no estúdio de Schneiderman e disse que queria seu próprio retrato — feito não por Schneiderman, mas por ela.

Por outro lado, os pais de Rose o aprovaram, Schneiderman o aprovou e até Mildred, a Duquesa do Salão Esnobe, expressou sua opinião favorável ao declarar que poderia ser algo bem pior.

Por outro lado, ele tinha de fato seus momentos inspirados, inexplicáveis intervalos de turbulência, quando algo dentro dele se libertava, temporariamente, e Stanley se transformava num gozador e brincalhão atrevido, como, por exemplo, na noite em que se exibiu para ela, na cozinha do apartamento dos pais de Rose, fazendo malabarismo com três ovos crus, e fez os ovos girar no ar, com velocidade e precisão atordoantes, durante uns bons dois minutos, antes que um deles se esborrachasse no chão, momento em que ele, de propósito, deixou os outros dois se esborracharem também, e pediu desculpas pela sujeira com um mudo encolher de ombros, digno de um comediante, e com uma declaração de uma palavra só: Ops.

Os dois se viam uma ou duas vezes por semana durante aqueles quatro meses e, ainda que Rose não conseguisse entregar seu coração para Stanley da maneira como ele entregava seu coração para ela, Rose era grata a ele por tê-la levantado do chão e tê-la colocado, novamente, sobre os próprios pés. Se não houvesse nada de novo, Rose ficaria contente de prosseguir assim por um tempo; no entanto, na hora em que começava a se sentir à vontade com ele, a apreciar o jogo em que os dois se entretinham, Stanley, abruptamente, mudou as regras.

Era o fim de janeiro de 1944. Na Rússia, o sítio de novecentos dias de Leningrado tinha terminado havia pouco tempo; na Itália, os aliados estavam bloqueados pelos alemães em Monte Cassino; no Pacífico, as tropas americanas estavam prestes a desencadear um ataque nas Ilhas Marshall; e no front doméstico, na beira do Central Park, na cidade de Nova York, Stanley pediu Rose em casamento. Um radiante sol de inverno ardia no alto, o céu sem nuvens era uma profunda e cintilante lâmina azul, o azul cristalino que engole Nova York só em certos dias de janeiro, e naquela tarde ensolarada de domingo, a milhares de quilômetros da matança e do banho de sangue da guerra interminável, Stanley disse para Rose que o casamento ou nada, que ele a adorava, que nunca havia sentido aquilo por ninguém, que toda a forma de seu futuro dependia dela e, se ela o rejeitasse, ele nunca mais a veria, a ideia de voltar a vê-la seria simplesmente demais para ele e, portanto, ele desapareceria de sua vida para sempre.

Rose pediu uma semana. Foi tudo tão repentino, disse, tão inesperado, ela precisava de um tempo para pensar. Claro, disse Stanley, tire uma semana para pensar, ele iria procurá-la no domingo seguinte, dali a uma semana, e depois, na hora em que se despediram, parados na entrada do parque na rua 59, os dois se beijaram pela primeira vez e, pela primeira vez desde que se conheceram, Rose viu lágrimas brilharem nos olhos de Stanley.

O resultado, é claro, foi escrito muito tempo atrás. Não só aparece num verbete da edição autorizada e abrangente do Livro da vida terrestre, como também pode ser visto no Arquivo Público de Manhattan, onde os livros de registro nos informam que Rose Adler e Stanley Ferguson se casaram no dia 6 de abril de 1944, exatamente dois meses antes de os Aliados invadirem a Normandia. Sabemos o que Rose decidiu, portanto, mas como e por que che­gou à sua decisão foi uma questão complicada. Estão envolvidos numerosos elementos, todos trabalhavam em acordo e em oposição uns com os outros, e, como ela estava em dúvida quanto a todos eles, aquela foi uma atormentada semana de provações para a futura mãe de Ferguson. Primeiro: ciente de que Stanley era um homem de palavra, Rose rechaçava a ideia de nunca mais voltar a vê-lo. Bem ou mal, depois de Nancy, agora ele era seu melhor amigo. Segundo: Rose já tinha vinte e um anos, ainda jovem o bastante para de fato ser considerada jovem, mas não tão jovem quanto a maioria das noivas daquele tempo, pois não era raro que as meninas pusessem o vestido de noiva aos dezoito ou dezenove anos, e a última coisa que Rose desejava era ficar para tia. Terceiro: Não, ela não amava Stanley, mas era um fato comprovado que nem todos os casamentos por amor eram bem-sucedidos e, segundo o que ela havia lido em algum lugar, os casamentos arranjados, predominantes em culturas tradicionais estrangeiras, não eram nem mais nem menos felizes do que os casamentos no Ocidente. Quarto: Não, ela não amava Stanley, mas a verdade era que não conseguia amar ninguém, não depois do Grande Amor que havia sentido por David, pois o Grande Amor só acontece uma vez na vida e, portanto, ela teria de aceitar algo abaixo do ideal se não quisesse passar o resto da vida sozinha. Quinto: Não havia nada em Stanley que a incomodasse ou que lhe causasse aversão. A ideia de fazer sexo com ele não a repelia. Sexto: Ele a amava loucamente e a tratava com bondade e respeito. Sétimo: Numa conversa hipotética entre ambos sobre o casamento, duas semanas antes, Stanley disse que as mulheres deviam ser livres para perseguir seus próprios interesses, que a vida delas não devia girar exclusivamente em torno dos maridos. Será que ele estava falando de trabalho?, perguntou Rose. Sim, de trabalho, respondeu — entre outras coisas. O que significava que casar com Stanley não acarretaria abandonar Schneiderman, que ela poderia continuar no emprego e aprender como ser fotógrafa. Oitavo: Não, ela não amava Stanley. Nono: Havia nele muitas coisas que Rose admirava, não havia dúvida de que, nele, o bom ultrapassava em muito o não tão bom, mas por que ele vivia dormindo durante os filmes? Estaria cansado das longas horas de trabalho em sua loja ou aquelas pálpebras pesadas sugeriam alguma falta de vínculo com o mundo dos sentimentos? Décimo: Newark! Seria possível morar lá? Décimo primeiro: Decididamente, Newark era um problema. Décimo segundo: Estava na hora de sair da casa dos pais. Ela estava velha demais para ficar naquele apartamento, agora, e por mais que se importasse com o pai e a mãe, desprezava ambos por sua hipocrisia — o pai, por ser um paquerador impenitente, e a mãe, por fingir ignorar aquilo. Outro dia mesmo, por puro acaso, quando Rose estava indo pegar um lanche na máquina de snacks perto do estúdio de Schneiderman, viu o pai andando de braços dados com uma mulher que ela nunca tinha visto, uma mulher quinze ou vinte anos mais jovem que ele, e Rose sentiu-se tão enojada e furiosa que teve vontade de correr até o pai e lhe dar um murro na cara. Décimo terceiro: Se casasse com Stanley, ela conseguiria, finalmente, superar Mildred em alguma coisa, ainda que não estivesse claro se Mildred tinha algum interesse por casamento. Por enquanto, a irmã parecia bem feliz pulando de um namoro curto para outro. Ótimo para Mildred, só que Rose não tinha o menor interesse em viver daquele jeito. Décimo quarto: Stanley ganhava dinheiro e, ao que parecia, agora ele ganharia mais dinheiro à medida que o tempo passasse. Havia consolo naquele pensamento, mas também alguma inquietação. Para manter os ganhos, era preciso pensar em dinheiro o tempo todo. Seria possível viver com um homem cuja única preocupação era a conta bancária? Décimo quinto: Stanley achava que ela era a mulher mais linda de Nova York. Rose sabia que não era verdade, mas não tinha dúvida de que Stanley acreditava naquilo honestamente. Décimo sexto: Não havia mais ninguém no horizonte. Ainda que Stanley jamais pudesse ser outro David, era amplamente superior ao bando de bebês chorões que Nancy tinha posto em seu caminho. Pelo menos Stanley era maduro. Pelo menos Stanley nunca reclamava. Décimo sétimo: Stanley era judeu, da mesma forma que ela era judia, um membro leal da tribo, mas sem nenhum interesse em praticar a religião nem jurar obediência a Deus, o que significaria uma vida livre do estorvo do ritual e da superstição, nada mais do que os presentes no Chanuká, matsá, e as quatro perguntas uma vez por ano, na primavera, a circuncisão para um menino, se tiverem um filho menino, mas nada de preces, nada de sinagogas, nada de fingir acreditar naquilo em que ela não acreditava, naquilo em que eles não acreditavam. Décimo oitavo: Não, ela não amava Stanley, mas Stanley a amava. Talvez aquilo fosse o bastante para começar, um primeiro passo. Daí para a frente, quem poderia saber?

Passaram a lua de mel num resort na beira de um lago nos Adirondacks, uma semana de iniciação nos segredos da vida conjugal, curta mas interminável, pois cada momento parecia ter ganhado o peso de uma hora ou um dia, pela simples novidade de tudo que eles estavam vivendo, um período de nervos e de ajustes caprichosos, de pequenas vitórias e de revelações íntimas, durante o qual Stanley deu para Rose as primeiras aulas de direção e ensinou rudimentos de tênis, e depois voltaram para Newark e se instalaram no apartamento onde passariam os primeiros anos da vida em comum, um apartamento de dois quartos em Van Velsor Place, no setor Weequahic da cidade. O presente de casamento de Schneiderman para Rose foi um mês de férias pagas e, nas três semanas que precederam seu regresso ao trabalho, Rose aprendeu freneticamente a cozinhar, confiando exclusivamente no velho e encorpado manual de arte culinária americana que sua mãe lhe dera de presente de aniversário, O livro de culinária do lar, que tinha por subtítulo O caminho para o coração de um homem, um volume de seiscentas e vinte e três páginas compilado por Mrs. Simon Kander, que incluía “Receitas testadas pelas Cozinhas das Escolas Públicas de Milwaukee e por donas de casa experientes”. No início, os desastres foram numerosos, mas Rose sempre aprendeu depressa e, toda vez que decidia levar alguma coisa até o fim, em geral acabava conseguindo fazer isso com uma boa dose de sucesso, porém, mesmo naqueles primeiros dias de tentativa e erro, de carnes bem passadas demais e legumes moles, de tortas grudentas e purês de batatas embolotados, Stanley nunca lhe fizera nenhuma crítica. Por mais infame que fosse a refeição que Rose servia, ele mergulhava calmamente cada garfada na boca, mascava com aparente prazer e depois, toda noite, toda noite sem nenhuma falta, erguia os olhos e dizia que estava uma delícia. Às vezes, Rose se perguntava se Stanley não estava caçoando dela ou se ele não estava distraído demais para notar a comida que ela havia servido, no entanto, assim como era com a comida que ela fazia, era também com tudo que dizia respeito à vida comum dos dois, e, quando Rose começou a prestar atenção, ou seja, a computar todas as circunstâncias de potencial discórdia entre ambos, ela chegou à conclusão chocante, absolutamente inimaginável, de que Stanley nunca a criticava. Para ele, Rose era uma criatura perfeita, uma mulher perfeita, uma esposa perfeita e, portanto, como numa proposição teológica que afirmava a inevitável existência de Deus, tudo que ela fazia, dizia e pensava era necessariamente perfeito, necessariamente tinha de ser perfeito. Depois de ter dividido um quarto com Mildred durante quase toda a vida, a mesma Mildred que pôs trancas nas suas gavetas da cômoda para impedir que a irmã caçula pegasse suas roupas emprestadas, a mesma Mildred que a chamava de cabeça-oca por ir ao cinema tantas vezes, Rose agora tinha de dividir o quarto com um homem que achava que ela era perfeita, e aquele homem, ainda por cima, naquele mesmo quarto, estava aprendendo rapidamente como apalpar seu corpo de todas as maneiras de que ela mais gostava.

Newark era um tédio, mas o apartamento era mais espaçoso e mais claro do que a casa dos pais, do outro lado do rio, e toda a mobília era nova (o melhor que a loja Mundo do Lar Três Irmãos tinha para oferecer, o que podia não ser o máximo, talvez, mas estava bom de sobra, por enquanto), e quando ela voltou a trabalhar com Schneiderman, a cidade continuou a ser uma parte fundamental de sua vida, a querida, suja e devoradora Nova York, a capital dos rostos humanos, a Babel horizontal das línguas humanas. A viagem diária para o trabalho consistia num ônibus vagaroso até o trem, um trajeto de vinte minutos de uma Penn Station até a outra, e depois uma breve caminhada até o estúdio de Schneiderman, mas ela não se importava de viajar, não quando havia tanta gente para observar, e ela gostava especialmente da hora em que o trem chegava a Nova York e parava, o que era sempre seguido por uma pausa breve, como se o mundo prendesse a respiração, numa expectativa muda, e depois as portas abriam e todo mundo saía depressa, vagão após vagão vomitava os passageiros para a plataforma, repentinamente lotada, e Rose se deliciava com a velocidade e a obstinação daquela multidão, todos em disparada na mesma direção, e ela era uma parte daquilo, estava no meio daquilo, em seu trajeto para o trabalho, junto com todo mundo. Aquilo fazia Rose se sentir independente, vinculada a Stanley, mas, ao mesmo tempo, por sua própria conta, o que vinha a ser um sentimento novo, um sentimento bom, e quando ela subia a rampa e se juntava a outra multidão ao ar livre, tomava a direção da rua 27 Oeste, imaginando as pessoas diferentes que iriam ao estúdio fotográfico naquele dia, as mães e os pais com seus filhos recém-nascidos, os menininhos em uniformes de beisebol, os casais de idosos sentados lado a lado para o retrato de quarenta ou cinquenta anos de casamento, as meninas sorridentes com seus chapéus e vestidos, as mulheres dos clubes de mulheres, os homens dos clubes de homens, o policial novato em seu uniforme azul, e os soldados, é claro, sempre mais e mais soldados, às vezes com as esposas, as namoradas ou os pais, mas sobretudo sozinhos, soldados solitários que iam embora de Nova York, ou voltavam do front, ou estavam prestes a ir a algum lugar para matar ou serem mortos, e Rose rezava por todos eles, rezava para que todos voltassem com braços e pernas ainda presos a um corpo que ainda respirasse, rezava, toda manhã quando andava da Penn Station até a rua 27, para a guerra terminar logo.

Não havia nenhum grave arrependimento, então, nenhum remorso punitivo por ter aceitado o pedido de casamento de Stanley, mas o casamento, no entanto, veio acompanhado de algumas desvantagens, nenhuma das quais podia ser atribuída diretamente ao marido, porém, mesmo assim, ao se casar com ele, Rose tinha também se tornado parte da família dele e, toda vez que ela se via junto daquele trio de desajustados imaturos, Rose se perguntava como Stanley tinha conseguido sobreviver à sua infância sem ficar doido como eles. Antes de tudo, a mãe de Stanley, a ainda vigorosa Fanny Ferguson, então beirando os setenta anos, que tinha não mais do que um metro e cinquenta e sete ou cinquenta e oito de altura, uma criatura azeda, de cabelo branco, cara de rancor e nervosamente vigilante, que resmungava para si mesma quando ficava sentada sozinha no sofá, nas reuniões da família, sozinha porque ninguém se atrevia a se aproximar, sobretudo os cinco netos, com idades entre seis e onze anos, que pareciam francamente sentir um pavor mortal da avó, pois Fanny achava a coisa mais natural do mundo dar cascudos na cabeça deles toda vez que saíam da linha (se é que infrações como rir, gritar, pular, esbarrar nos móveis e dar arrotos podem ser consideradas sair da linha), e quando ela não conseguia chegar perto o bastante para disparar um cascudo, berrava com eles numa voz alta o suficiente para fazer trepidar o quebra-luz das luminárias. Na primeira vez em que Rose a viu, Fanny deu um beliscão na sua bochecha (forte o bastante para doer) e declarou que ela era uma menina de cara bonita. Depois, tratou de ignorar Rose durante o resto da visita, o que continuou a fazer em todas as ocasiões daí em diante, sem mais nenhuma interação entre as duas, além das formalidades vazias de dizer alô e até logo, mas como Fanny demonstrava a mesma indiferença com as outras duas noras, Millie e Joan, Rose não tomava aquilo de forma pessoal. Fanny só dava atenção a seus filhos, os filhos que a amparavam e, de modo obediente, compareciam à sua casa toda noite de sexta-feira para jantar, mas as mulheres que se casaram com seus filhos não eram mais do que sombras para ela, e na maior parte do tempo tinha dificuldade de lembrar seus nomes. Nada disso incomodava muito Rose, cujas relações com Fanny eram esparsas e irregulares, mas os irmãos de Stanley eram outra história, pois trabalhavam para ele, e ele os encontrava todo dia, e depois que Rose assimilou o fato chocante de que eram dois dos homens mais bonitos que jamais tinha visto na vida, deuses masculinos que pareciam Errol Flynn (Lew) e Cary Grant (Arnold), ela passou a desenvolver uma forte antipatia por ambos. Rose tinha a impressão de que eram superficiais e desonestos; o mais velho, Lew, além de não ser inteligente, era ainda mais prejudicado por seu costume de apostar no resultado das partidas de beisebol e de futebol americano, e o caçula, Arnold, um semirretardado, um depravado com olhos insensíveis, que bebia demais e nunca perdia uma chance de tocar os braços e os ombros de Rose, de lhe apertar os braços e os ombros, que a chamava de boneca, dondoca e belezura, e que a enchia de uma repulsa que só fazia aumentar. Rose detestava a ideia de que Stanley tinha dado um emprego na loja para eles e detestava a maneira como os dois zombavam de Stanley pelas costas, ou mesmo na sua cara, o bom Stan­ley, que era cem vezes melhor do que eles, e mesmo assim o marido fingia não perceber, tolerava a baixeza, a preguiça e o escárnio dos irmãos, sem nenhuma palavra de protesto, mostrava tamanha indulgência que Rose chegava a se perguntar se não tinha, sem querer, se casado com um santo, uma dessas almas raras que nunca pensava nada de ruim de ninguém, e depois, de novo, ela raciocinava que talvez ele não fosse mais do que um frouxo, alguém que nunca aprendeu a se defender sozinho e a lutar. Com pouca ou nenhuma ajuda dos irmãos, ele havia construído o Mundo do Lar Três Irmãos como uma firma lucrativa, um grande e bem iluminado empório de poltronas e rádios, mesas de jantar e geladeiras, jogos de dormitório e liquidificadores, um negócio de grandes volumes, de qualidade mediana, que atendia uma clientela de renda mediana e baixa, uma esplêndida ágora do século XX, à sua maneira, mas depois de algumas visitas nas semanas que seguiram a lua de mel, Rose parou de ir à loja — não só porque voltara ao trabalho, como também porque, ali, entre os irmãos de Stanley, sentia-se incomodada, infeliz, inteiramente deslocada.

No entanto, sua decepção com a família era um pouco atenuada pelas esposas e pelos filhos dos irmãos, os Ferguson que não eram exatamente Ferguson, aqueles que não tinham vivido as calamidades que se abateram sobre Ike e Fanny e sua prole, e rapidamente Rose descobriu que tinha duas novas amigas, Millie e Joan. As duas eram mais velhas do que ela (trinta e quatro e trinta e dois), mas lhe deram as boas-vindas na tribo, como um membro em igualdade de condições, com seu status plenamente reconhecido a partir do dia do casamento, o que queria dizer, entre outras coisas, que ela ganhou livre acesso a todos os segredos das cunhadas. Rose ficou especialmente impressionada com Millie, que falava depressa e fumava sem parar, uma mulher tão magra que parecia ter arames, e não ossos, por baixo da pele, uma pessoa sagaz e cheia de opiniões, que compreendia com que tipo de homem tinha se casado, Lew, no entanto, por mais que permanecesse fiel a seu marido libertino e intrigante, isso não a impedia de despejar uma torrente contínua de tiradas irônicas sobre ele, apartes acerbos e tão mordazes que Rose, às vezes, era obrigada a sair da sala, com medo de rir alto demais. Ao lado de Millie, Joan era uma espécie simplória, mas de coração tão afetuoso e generoso que ainda não havia ocorrido a ela que tinha se casado com um asno e, no entanto, que boa mãe era ela, Rose sentia, tão meiga, paciente e cuidadosa, ao passo que a língua afiada de Millie muitas vezes a levava a brigas com os filhos, que eram menos comportados do que os de Joan. Os dois filhos de Millie eram Andrew, de onze anos, e Alice, de nove; os três filhos de Joan eram Jack, de dez anos, Francie, de oito, e Ruth, de seis. Todos despertavam a simpatia de Rose, de maneiras diferentes, exceto Andrew, talvez, que parecia ter um lado beligerante e bruto, o que acarretava frequentes broncas de Millie por causa dos socos que ele dava em sua irmãzinha, mas aquela de quem Rose mais gostava era Francie, sem nenhuma dúvida era Francie, Rose não conseguia evitar, a criança era tão linda, tão extraordinariamente viva, e quando elas se conheceram foi como se tivessem se apaixonado à primeira vista; Francie, alta, de cabelo castanho, correu para os braços de Rose e disse tia Rose, minha nova tia Rose, você é tão bonita, tão, tão bonita, e agora a gente vai ser amiga para sempre. Então começou, e depois continuou, o fascínio de uma pela outra, e havia no mundo poucas coisas melhores, Rose sentia, do que Francie subir no seu colo, quando estavam todas sentadas ao redor da mesa, e começar a conversar com Francie sobre a escola ou sobre o último livro que tinha lido ou sobre o amiguinho que tinha dito algo feio para ela ou sobre a roupa que sua mãe ia comprar de presente de aniversário. A menininha relaxava na maciez de almofada do corpo de Rose, e, enquanto ela falava, Rose lhe acariciava a cabeça ou a bochecha ou as costas e, dali a pouco, Rose tinha a sensação de que estava flutuando, de que as duas tinham deixado a sala, a casa, a rua, e estavam flutuando juntas pelo céu. Sim, aquelas reuniões de família podiam ser medonhas, porém havia compensações, também, pequenos milagres inesperados que ocorriam nos momentos mais improváveis, pois os deuses eram irracionais, concluiu Rose, e distribuíam seus dons entre os humanos onde e quando bem entendessem.

Rose queria ser mãe, dar à luz uma criança, engravidar de uma criança, ter dentro de si outro coração batendo. Nada era mais importante do que isso nem mesmo seu trabalho com Schneiderman nem mesmo seu projeto de longo prazo, e ainda mal definido, de um dia se lançar como fotógrafa por conta própria, de abrir um estúdio com seu nome no letreiro acima da porta da frente. Essas ambições não significavam nada quando ela as comparava com o mero desejo de trazer ao mundo uma pessoa nova, seu próprio filho, ou filha, seu próprio bebê, e ser mãe para essa pessoa, pelo resto da vida. Stanley fez sua parte, fazia amor com ela sem proteção e a engravidou três vezes nos primeiros dezoito meses do casamento, mas nas três vezes Rose abortou, nas três vezes no terceiro mês de gravidez, e, quando comemoraram o segundo aniversário de casamento, em abril de 1946, continuavam sem filhos.

Os médicos diziam que não havia nada de errado com ela, que Rose tinha boa saúde e, mais cedo ou mais tarde, levaria a gravidez até o fim, mas aquelas perdas eram um grande peso para Rose, e, enquanto cada bebê não nascido sucedia outro, enquanto um fracasso levava a outro, ela começou a ter a sensação de que estava sendo despojada da própria condição de mulher. Chorava durante dias, após cada debacle, chorava como não havia chorado desde os meses seguintes à morte de David, e a normalmente otimista Rose, a resistente e sagaz Rose, tombava numa depressão de amargura e autopiedade. Se não fosse Stanley, era impossível prever até que ponto teria se afundado, mas ele continuava firme e controlado, não se abalava com as lágrimas da esposa e, após cada bebê perdido, garantia a ela que era só um revés temporário e que, no final, tudo ia dar certo. Rose se sentia tão próxima dele quando Stanley lhe falava desse modo, tão agradecida por sua bondade, tão imensamente amada. Ela não acreditava em nenhuma palavra que ele dizia, é claro — como poderia acreditar, quando todos os indícios mostravam que ele estava errado? —, mas ouvir aquelas mentiras consoladoras a tranquilizava. No entanto, ficava intrigada com a calma com que ele aceitava o anúncio de cada aborto, com a maneira como se mantinha imperturbável com as brutais e sangrentas expulsões de seus filhos não nascidos do corpo de Rose. Será possível, ela se perguntava, que Stanley não compartilhasse seu desejo de ter filhos? Talvez ele nem mesmo soubesse que sentia isso, mas e se ele, em segredo, desejava que as coisas se passassem daquela forma para que pudesse ter Rose toda só para si, uma esposa sem lealdades divididas, sem nenhuma divisão entre pai e filho em seus afetos? Ela nunca se atreveu a expressar tais pensamentos para Stanley, nunca sonharia em ofender o marido com tais suspeitas sem fundamento, mas a dúvida persistia dentro dela e Rose se perguntava se ele não era bom até demais no desempenho de suas funções de filho, irmão e marido e que, se fosse mesmo esse o caso, talvez não houvesse mais espaço para desempenhar o papel de pai.

No dia 5 de maio de 1945, três dias antes de a guerra na Europa terminar, tio Archie morreu de ataque do coração. Tinha quarenta e nove anos, uma idade grotescamente jovem para qualquer pessoa morrer e, para tornar as circunstâncias ainda mais grotescas, o enterro ocorreu no Dia da Vitória, o que significa que, depois que a atordoada família Adler saiu do cemitério e voltou para o apartamento de Archie na avenida Flatbush, no Brooklyn, as pessoas estavam dançando nas ruas do bairro, tocando as buzinas dos carros e gritando numa felicidade rouca para celebrar o fim de metade da guerra. O barulho prosseguiu durante horas, enquanto a esposa de Archie, Pearl, e suas filhas gêmeas de dezenove anos, Betty e Charlotte, e os pais e as irmãs de Rose, e Rose e Stanley, e os quatro membros sobreviventes do Downtown Quintet, e mais uma dúzia de amigos, parentes e vizinhos se mantinham sentados ou de pé no apartamento silencioso, com as persianas abaixadas. A boa notícia que eles tanto haviam esperado parecia zombar do horror da morte de Archie, e as vozes que cantavam em júbilo lá fora davam a sensação de um sacrilégio sem compaixão, como se todo o distrito do Brooklyn dançasse em cima da sepultura de Archie. Foi uma tarde que Rose nunca mais esqueceu. Não só por causa de sua própria dor, que já era marcante de sobra, como também porque Mildred ficou tão perturbada que bebeu sete uísques e apagou no sofá, e também porque foi a primeira vez na vida que ela viu o pai perder o controle e chorar. Foi também a tarde em que Rose disse para si mesma que, se um dia tivesse a sorte de ter um filho, daria a ele o nome de Archie.

As grandes bombas caíram em Hiroshima e Nagasaki em agosto, a outra metade da guerra terminou e, em meados de 1946, dois meses depois do segundo aniversário de casamento de Rose, Schneiderman disse que pretendia se aposentar em breve e procurava alguém para comprar seu estúdio fotográfico. Como ela havia feito muitos progressos nos anos em que os dois trabalharam juntos, disse ele, como havia se transformado numa fotógrafa hábil e competente, àquela altura, Schneiderman pensou se ela não teria interesse em tomar seu lugar. Era o maior elogio que tinha ouvido dele. No entanto, apesar de lisonjeada, Rose sabia que era o momento errado, pois ela e Stanley, havia um ano, vinham economizando todo dinheiro extra para comprar uma casa nos subúrbios, uma casa para uma família, com quintal, árvores e uma garagem para dois carros, e não podiam se dar ao luxo de comprar a casa e também o estúdio. Disse para Schneiderman que teria de conversar com o marido, o que ela fez prontamente, naquela noite, depois do jantar, esperando com certeza que Stanley lhe dissesse que era uma coisa fora de questão, mas ele a pegou de surpresa, dizendo que a escolha era dela, que se quisesse abandonar a ideia da casa, podia ter o estúdio, contanto que o preço fosse algo que pudessem pagar. Rose ficou espantada. Sabia que Stanley queria, de todo coração, comprar a casa e, de repente, ele dizia que o apartamento estava ótimo, que ele não se importava de morar ali por mais alguns anos, e tudo isso não era verdade, e como ele estava mentindo para ela desse jeito, mentindo porque adorava Rose e queria que ela realizasse o seu desejo, algo mudou dentro de Rose naquela noite e ela compreendeu que estava começando a amar Stanley, amar de verdade, e se a vida continuasse daquele jeito por muito tempo, talvez fosse até possível que se apaixonasse por ele, que fosse abatida por um impossível segundo Grande Amor.

Não vamos ser imprudentes, disse ela. Eu também tenho sonhado com essa casa e pular de assistente para patrão é um passo muito grande. Não tenho certeza de que conseguiria dar conta do recado. Será que podemos refletir por um tempo?

Stanley concordou em refletir por um tempo. Quando Rose encontrou Schneiderman no trabalho, na manhã seguinte, ele também concordou em dar um tempo para ela refletir e, dez dias depois que começou a refletir, Rose descobriu que estava grávida de novo.

Durante os meses anteriores, Rose estava consultando um médico novo, um homem em quem ela confiava, chamado Seymour Jacobs, um médico bom e inteligente, ela achou, que a escutava com cuidado e não se apressava a tirar conclusões, e, por causa do histórico de três abortos espontâneos, Jacobs fez questão de que ela parasse de ir para Nova York todo dia para seu emprego, exigiu que não trabalhasse durante a gravidez e que se confinasse no apartamento e ficasse na cama pelo maior tempo que pudesse. Ele entendia que essas medidas pareciam drásticas e que tinham um toque de coisa antiquada, mas estava preocupado com Rose, e aquela podia ser a última boa chance para ela ter um filho. Minha última chance, pensou Rose, enquanto ouvia o médico de quarenta e dois anos, de nariz grande e olhos castanhos e afetuosos, explicar como ela devia fazer para conseguir ser mãe. Nada de fumar nem beber, acrescentou. Uma dieta rigorosa, de muita proteína, suplementos de vitamina todos os dias e uma rotina de exercícios especiais. Ele iria visitá-la em casa uma vez por semana e, assim que ela sentisse a mais leve pontada de dor, pegaria o telefone e discaria seu número. Estava tudo claro?

Sim, estava tudo claro. E assim terminou o dilema de comprar uma casa ou comprar o estúdio, o que, por sua vez, pôs um fim a seus dias com Schneiderman, sem falar que interrompeu seu trabalho de fotógrafa e virou sua vida de pernas para o ar.

Rose ficou exultante e confusa. Exultante de saber que ainda tinha uma chance; confusa porque não sabia como ia encarar o que redundava em sete meses de prisão domiciliar. Seria preciso fazer um número infinito de adaptações, não só por ela, mas também por Stanley, pois agora ele teria de fazer as compras e cuidar da parte principal da cozinha, pobre Stanley, que trabalhava tanto e já gastava tantas longas horas e agora teria a despesa adicional de contratar uma faxineira para limpar o apartamento e lavar as roupas, uma ou duas vezes por semana; quase todos os aspectos da vida cotidiana seriam modificados, o horário de Rose despertar seria controlado, dali para a frente, por uma infinidade de restrições e proibições, nada de levantar objetos pesados, nada de empurrar móveis, nada de fazer força para abrir uma janela emperrada durante uma onda de calor no verão, Rose teria de manter uma vigilância atenta sobre si mesma, tornar-se consciente de milhares de coisas pequenas e grandes que ela sempre fez de maneira automática e, é claro, não haveria mais tênis (que ela passou a adorar) nem natação (que ela adorava desde a infância). Em outras palavras, a Rose atlética, vigorosa, sempre em movimento, que se sentia mais plenamente identificada consigo mesma quando empenhada em alguma atividade intensa, veloz, que consumia suas energias, teria de aprender a ficar parada.

Entre todas as pessoas, foi Mildred que a livrou da perspectiva do tédio terminal, que interveio e transformou aqueles meses de imobilidade no que Rose, mais tarde, descreveria para seu filho como uma grande aventura.

Você não pode ficar sentada no apartamento o dia inteiro escutando o rádio e vendo essa maluquice de televisão, disse Mildred. Por que não pôr esse seu cérebro para trabalhar, para variar, e recuperar o tempo perdido?

Recuperar o tempo perdido?, disse Rose, sem entender o que Mildred estava dizendo.

Talvez você não perceba, disse a irmã, mas seu médico lhe deu um dom extraordinário. Ele transformou você numa prisioneira, e a única coisa que os prisioneiros têm e as outras pessoas não têm é tempo, uma quantidade interminável de tempo. Leia livros, Rose. Comece a se educar. Esta é sua chance e, se quiser minha ajuda, darei de muito bom grado.

A ajuda de Mildred veio na forma de uma lista de leitura, de várias listas de leitura durante os meses que seguiram e, com os cinemas temporariamente fora de alcance, pela primeira vez na vida Rose satisfez sua fome de histórias com romances, bons romances, não romances policiais e best-sellers que ela poderia ter encontrado sozinha, mas os livros que Mildred recomendava, clássicos, é claro, mas sempre escolhidos com Rose em mente, livros que Mildred achava que a irmã ia apreciar, o que significava que Moby Dick e Ulysses e A montanha mágica nunca estavam em nenhuma das listas, pois esses seriam intimidadores demais para a pouco experiente Rose, mas havia muitos outros para escolher e, à medida que os meses avançavam e o bebê dentro dela crescia, Rose passava seus dias nadando nas páginas dos livros, e, embora houvesse algumas poucas decepções entre as dúzias de livros lidos (O sol também se levanta, por exemplo, que lhe pareceu falso e raso), quase todos os outros a seduziram e a mantiveram entretida, do início ao fim, entre eles Suave é a noite, Orgulho e preconceito, A casa da felicidade, Moll Flanders, Feira das vaidades, O Morro dos Ventos Uivantes, Madame Bovary, A cartuxa de Parma, Primeiro amor, Dublinenses, Luz em agosto, David Copperfield, Middlemarch, Washington Square, A letra escarlate, Rua principal, Jane Eyre e inúmeros outros, mas de todos os escritores que ela descobriu durante seu confinamento, foi Tolstói que lhe disse mais, o demônio Tolstói, que compreendia tudo da vida, era o que lhe parecia, tudo o que havia para saber sobre o coração humano e a mente humana, pouco importava se o coração ou a mente fosse de um homem ou de uma mulher, e como era possível, ela se perguntava, que um homem soubesse o que Tolstói sabia sobre mulheres, não fazia nenhum sentido que um homem pudesse ser todos os homens e todas as mulheres, e assim ela percorreu a maior parte do que Tolstói havia escrito, não só os grandes romances Guerra e paz, Anna Kariênina e Ressurreição, mas as obras mais curtas também, as novelas e os contos, nenhum mais poderoso para ela do que Felicidade conjugal, de cem páginas, a história de uma jovem noiva e sua gradual desilusão, uma obra que a tocou tão de perto que Rose chorou no final e, quando Stanley voltou para o apartamento naquela noite, ficou alarmado de ver a esposa naquele estado, pois, embora tivesse terminado de ler o livro às três da tarde, seus olhos continuavam cheios de lágrimas.

O bebê era esperado para o dia 16 de março de 1947, mas às dez da manhã do dia 2 de março, umas duas horas depois de Stanley sair para o trabalho, Rose, ainda de roupão e recostada na cabeceira da cama com Um conto de duas cidades apoiado na vertente norte da sua barriga enorme, sentiu uma súbita pressão na bexiga. Achando que tinha de urinar, lentamente se desvencilhou do lençol e do cobertor, moveu devagar sua massa montanhosa até a beira da cama, colocou os pés no chão e se levantou. Antes que pudesse dar um passo na direção do banheiro, sentiu o jorro de um líquido quente descer pelas faces internas das coxas. Rose não se mexeu. Estava de frente para a janela e, quando olhou para fora, viu que uma neve fina e enevoada caía do céu. Como tudo pareceu parado, naquele momento, disse para si mesma, era como se nada no mundo se movesse, a não ser a neve. Sentou-se na cama outra vez e ligou para o Mundo do Lar Três Irmãos, mas a pessoa que atendeu disse que Stanley estava na rua a trabalho e só ia voltar depois do almoço. Então ligou para o dr. Jacobs, cuja secretária informou que ele tinha acabado de sair para um atendimento domiciliar. Agora, com certo pânico, Rose disse para a secretária para avisar o médico que ela estava a caminho do hospital, e então discou para o número de Millie. Sua cunhada atendeu no terceiro toque da campainha e assim foi Millie quem veio pegá-la. Durante o breve percurso até a maternidade Beth Israel, Rose disse que ela e Stanley já tinham escolhido os nomes para a criança que ia nascer. Se fosse menina, se chamaria Esther Ann Ferguson. Se fosse menino, ele ia atravessar a vida como Archibald Isaac Ferguson.

Millie olhou pelo espelho retrovisor e examinou Rose, que estava esparramada no banco traseiro. Archibald, disse ela. Tem certeza desse nome?

Temos, sim, respondeu Rose. Por causa do meu tio Archie. E Isaac, por causa do pai de Stanley.

Vamos torcer para que seja uma criança forte, disse Millie. Estava prestes a falar mais alguma coisa, porém, antes que pudesse tirar qualquer outra palavra da boca, chegaram à entrada do hospital.

Millie cumpriu as formalidades da internação e, quando Rose deu à luz seu filho, às duas horas e sete minutos da manhã seguinte, todos estavam no hospital: Stanley e os pais dela, Mildred e Joan, e até a mãe de Stanley. Assim nasceu Ferguson e, durante alguns segundos, depois que ele emergiu do corpo da mãe, foi o ser humano mais jovem na face da Terra.


1.1

O nome de sua mãe era Rose e, quando ele estivesse grande o bastante para amarrar o cadarço do sapato sozinho e parasse de fazer xixi na cama, ia se casar com ela. Ferguson sabia que Rose já era casada com seu pai, mas seu pai era um velho, e dali a pouco tempo ele ia morrer. Quando acontecesse, Ferguson ia se casar com a mãe e, dali em diante, o nome de seu marido ia ser Archie, e não Stanley. Ele ia ficar triste quando o pai morresse, mas não triste demais, não ia ficar triste a ponto de chorar. Lágrimas eram para os bebezinhos, e ele não era mais nenhum bebezinho. Havia momentos em que as lágrimas ainda saíam de seus olhos, é claro, mas só quando caía e se machucava, e se machucar não contava.

As melhores coisas do mundo eram sorvete de baunilha e ficar pulando em cima da cama dos pais. As piores coisas do mundo eram dor de barriga e febre.

Agora ele sabia que balinhas azedas eram perigosas. Por mais que gostasse de chupar, entendeu que nunca mais devia colocar essas balinhas na boca. Eram muito escorregadias e ele não conseguia deixar de engolir, e, como eram grandes demais para descer até o fundo, ficavam agarradas na traqueia e a respiração se tornava difícil. Ele jamais ia esquecer como se sentiu mal no dia em que começou a sufocar, mas aí sua mãe entrou correndo no quarto, suspendeu-o do chão, virou seu corpo de pernas para o ar e, segurando-o no alto pelos pés, bateu com a outra mão nas suas costas até a balinha azeda pular pela sua boca e quicar no chão. Sua mãe disse: Nunca mais você vai chupar balinha azeda, Archie, acabou-se. São muito perigosas. Depois disso, pediu que ele a ajudasse a levar o pote de balinhas para a cozinha e, uma a uma, os dois se revezaram na tarefa de jogar no lixo as balas vermelhas, amarelas e verdes. Então, a mãe disse: Adios, balinhas azedas. Que palavra mais engraçada: adios.

Isso aconteceu em Newark, nos tempos muito antigos em que moravam no apartamento no terceiro andar. Agora, moravam numa casa num lugar chamado Montclair. A casa era maior do que o apartamento, mas a verdade era que, agora, ele tinha dificuldade para lembrar muita coisa do apartamento. Exceto as balinhas azedas. Exceto as venezianas no seu quarto, que trepidavam toda vez que a janela era aberta. Exceto o dia em que a mãe dobrou seu berço e ele, pela primeira vez, dormiu sozinho numa cama.

Seu pai saía de casa de manhã cedo, muitas vezes antes de Ferguson acordar. Às vezes, o pai vinha jantar em casa e outras, só voltava depois que Ferguson já estava na cama. Seu pai trabalhava. Era o que homens adultos faziam. Saíam de casa todo dia e trabalhavam e, como trabalhavam, ganhavam dinheiro, e como ganhavam dinheiro, podiam comprar coisas para a esposa e os filhos. Foi assim que sua mãe explicou para ele, certa manhã, quando ele viu o carro azul do pai se afastar da casa. Parecia bem coerente, pensou Ferguson, mas a parte relativa ao dinheiro era um pouquinho confusa. O dinheiro era tão pequeno e sujo, e como é que aqueles pedaços de papel sujos e pequenos podiam conseguir coisas grandes como um carro ou uma casa?

Seus pais tinham dois carros, o pai tinha um DeSoto azul e a mãe, um Chevrolet verde, mas Ferguson tinha trinta e seis carros e, nos dias chuvosos em que tudo ficava molhado demais para sair de casa, ele tirava os carros da caixa e formava uma fila no chão da sala, com sua frota de miniaturas. Havia carros de duas e de quatro portas, conversíveis, caminhões basculantes e caminhonetes, Fords e Chryslers, Pontiacs e Studebakers, Buicks e Nash Ramblers, cada um diferente dos outros, nenhum sequer remotamente parecido com os outros e, toda vez que Ferguson começava a empurrar um deles pelo chão, se abaixava e olhava para dentro, para o banco do motorista e, como todo carro precisava de um motorista a fim de se mover, ele imaginava que era ele mesmo a pessoa sentada ao volante, uma pessoa minúscula, um homem tão diminuto como a pontinha do seu dedo polegar.

A mãe fumava cigarros, mas o pai não fumava nada, nem mesmo cachimbo ou charuto. Old Gold. Que nome bonito, pensava Ferguson, e como ele ria alto quando a mãe soprava anéis de fumaça para ele. Às vezes, o pai dizia: Rose, você fuma demais, e a mãe fazia que sim com a cabeça e concordava com ele, mas continuava a fumar tanto quanto antes. Toda vez que ele e a mãe entravam no carro verde para dar uma volta, iam almoçar num restaurantezinho chamado Al’s Diner e, assim que ele terminava seu leite com chocolate e o sanduíche de queijo grelhado, a mãe lhe dava uma moeda de vinte e cinco centavos e pedia que fosse comprar um maço de Old Gold na máquina de vender cigarro. Aquilo lhe dava a sensação de ser adulto, receber aquela moeda, o que era quase a melhor sensação que existia no mundo, e lá ia ele até os fundos do restaurante onde a máquina ficava encostada na parede entre os dois banheiros. Quando chegava lá, ele ficava na ponta dos pés para enfiar a moeda no buraquinho, apertar o botão embaixo da coluna de maços de Old Gold e, depois, ouvia o barulho do maço que desabava da volumosa máquina e pousava na canaleta prateada, abaixo dos botões. Naquele tempo, os cigarros não custavam vinte e cinco centavos, mas sim vinte e três, e cada maço vinha com dois centavos recém-cunhados enfiados por dentro do papel celofane do invólucro. A mãe de Ferguson sempre deixava que ele ficasse com aqueles dois centavos, e, enquanto ela fumava seu cigarro de depois do almoço e terminava de beber seu café, ele segurava as moedinhas na palma da mão aberta e examinava o perfil em relevo do homem na frente das duas moedas. Abraham Lincoln. Ou, como a mãe às vezes dizia: Abe Honesto.

Além da pequena família de Ferguson e seus pais, havia duas outras famílias para ter em mente, a família do pai e a da mãe, os Ferguson de Nova Jersey e os Adler de Nova York, a família grande com duas tias, dois tios, cinco primos e a família pequena com seus avós e tia Mildred, que às vezes incluía sua tia-avó Pearl e suas duas primas adultas, Betty e Charlotte. O tio Lew tinha um bigode fino e usava óculos de armação fina de metal, o tio Arnold fumava cigarros Camel e tinha o cabelo avermelhado, a tia Joan era baixa e redonda, a tia Millie era um pouco mais alta, mas muito magra, e os primos o ignoravam, mais que tudo, porque ele era muito mais jovem do que eles, exceto a Francie, que às vezes lhe servia de babá quando os pais saíam para ir ao cinema ou a uma festa na casa de alguém. Francie era, de longe, a sua predileta na família de Nova Jersey. Francie fazia para ele uns desenhos lindos e complicados, de castelos, cavaleiros e cavalos, deixava que ele comesse todo sorvete de baunilha que quisesse, contava piadas engraçadas e era sempre muito bonita de se olhar, com um cabelo comprido que parecia ao mesmo tempo castanho e vermelho. A tia Mildred também era bonita, mas tinha o cabelo louro, diferente do da mãe, que era castanho-escuro, e muito embora sua mãe vivesse dizendo que Mildred era irmã dela, às vezes ele esquecia, porque as duas eram muito diferentes. Ele chamava o avô de Papa e a avó de Nana. Papa fumava Chesterfield e tinha perdido quase todo o cabelo. Nana era do time das gordas e ria de um jeito muito interessante, como se tivesse pássaros presos dentro da garganta. Era melhor visitar o apartamento dos Adler em Nova York do que as casas dos Ferguson, em Union e Maplewood, principalmente porque a travessia do túnel Holland era uma delícia para ele, a sensação curiosa de viajar através de um tubo por baixo da água, revestido por milhões de azulejos quadrados idênticos, e toda vez que fazia aquela viagem subaquática, ele se maravilhava de ver como os azulejos se encaixavam com exatidão e imaginava quantos homens tinham sido necessários para concluir uma tarefa tão colossal. O apartamento era menor do que as casas em Nova Jersey, mas tinha a vantagem de ser alto, no sexto andar do edifício, e Ferguson nunca se cansava de olhar pela janela da sala e ver o trânsito em movimento em volta de Columbus Circle, e depois, no Dia de Ação de Graças, tinha a vantagem adi­cional de dar para ver a parada anual que passava bem na frente daquela janela, com o enorme balão do Mickey Mouse, que quase beijava seu rosto. Outra coisa boa que havia em ir para Nova York era que, quando eles chegavam lá, sempre havia presentes, caixas de balas de sua avó, livros e discos da tia Mildred e todo tipo de coisas especiais do seu avô: aeroplanos de madeira, um jogo chamado Parcheesi (outra palavra ótima), baralhos de cartas, truques de mágico, um chapéu vermelho de caubói, um par de revólveres de seis balas, em coldres de couro de verdade. As casas de Nova Jersey não ofereciam nem sombra dessa fartura e, portanto, Ferguson decidiu que Nova York era o lugar certo para ir. Quando perguntou para a mãe por que não podiam morar lá o tempo todo, ela abriu um grande sorriso e disse: Pergunte para seu pai. Quando perguntou para o pai, ele disse: Pergunte para sua mãe. Pelo visto, existiam certas perguntas que não tinham resposta.

Ele queria um irmão, de preferência um irmão mais velho, porém, como isso não era mais possível, ele se contentaria com um irmão mais novo, e se não pudesse ter um irmão, ele até aceitaria uma irmã, ainda que fosse uma irmã mais nova. Muitas vezes, era solitário não ter ninguém para brincar ou conversar, e a experiência ensinou a ele que toda criança tinha um irmão ou uma irmã, ou vários irmãos e irmãs e, até onde sabia, ele era a única exceção a essa regra em qualquer lugar do mundo. Francie tinha Jack e Ruth, Andrew e Alice tinham um ao outro, seu amigo Bobby, no fim da rua, tinha um irmão e duas irmãs, e até seus pais passaram a infância na companhia de outras crianças, dois irmãos para o pai e uma irmã para a mãe, e não parecia nada justo que ele fosse a única pessoa, entre os bilhões de pessoas no mundo, que tivesse de passar a vida sozinho. Ele não tinha nenhuma noção clara de como os bebês eram gerados, mas aprendera o bastante para saber que eles começavam dentro do corpo da mãe e, portanto, as mães eram essenciais àquele processo, o que significava que ele teria de falar com a mãe sobre a mudança de sua condição de filho único para irmão. Na manhã seguinte, levantou a questão, perguntando a ela bruscamente se não podia fazer a gentileza de começar a trabalhar para fabricar um bebê novo para ele. Sua mãe ficou parada, em silêncio, durante alguns segundos, depois se ajoelhou, fitou-o nos olhos e começou a lhe acariciar a cabeça. Foi estranho, pensou ele, nem de longe o que estava esperando e, por um ou dois momentos, o olhar da mãe pareceu triste, tão triste que, na mesma hora, Ferguson se arrependeu de ter feito a pergunta. Ah, Archie, disse ela. É claro que você quer um irmão ou uma irmã, e eu adoraria que você tivesse, mas parece que não vou mais fazer outros bebês e que não posso mais ter filhos. Tive pena de você, quando o médico me disse isso, mas depois pensei: talvez não seja tão ruim, afinal de contas. E quer saber por quê? (Ferguson balançou a cabeça.) Porque eu amo o meu pequeno Archie tanto, tanto, como é que eu poderia amar outro filho, quando todo amor que tenho em mim é só para você?

Não era só um problema temporário, ele se deu conta, mas um problema eterno. Nenhum irmão ou irmã, nunca, e já que isso pareceu a Ferguson uma situação intolerável, ele logo tratou de contornar o impasse, inventando um irmão imaginário para si. Foi um gesto de desespero, talvez, mas, sem dúvida, qualquer coisa era melhor do que nada, e, ainda que não pudesse ver nem tocar nem cheirar essa qualquer coisa, que escolha ele tinha? Deu a seu irmão recém-nascido o nome de John. Como, no caso, as leis da realidade não se aplicavam, John era mais velho do que ele, quatro anos mais velho, o que queria dizer que era mais alto e mais forte e mais sabido do que Ferguson e, diferente de Bobby George, que morava no fim da rua, o gorducho e comprido Bobby, que respirava pela boca porque o nariz vivia entupido de meleca verde, John sabia ler e escrever e era campeão de beisebol e jogador de futebol americano. Ferguson tomava cuidado para nunca falar com ele em voz alta, quando havia outras pessoas por perto, pois John era seu segredo, e ele não queria que ninguém soubesse dele, nem seu pai nem sua mãe. Só uma vez deixou escapar, mas acabou tudo bem, porque a mancada aconteceu quando ele estava com Francie. Ela veio ser sua babá naquela noite, e, quando ela saiu para o quintal e ouviu que ele estava contando para John a respeito do cavalo que queria ganhar no aniversário, Francie perguntou com quem estava falando. Ferguson gostava tanto de Francie que contou a verdade. Achou que ela ia rir dele, mas Francie apenas fez que sim com a cabeça, como se expressasse sua aprovação à ideia de irmãos imaginários, e assim Ferguson deixou que ela falasse também com John. Depois disso, durante meses, toda vez que via Francie, primeiro ela dizia alô para ele, com sua voz normal, e depois se abaixava, colocava a boca na sua orelha e sussurrava: Alô, John. Ferguson ainda não tinha cinco anos, mas já entendia que o mundo era formado por dois reinos, o visível e o invisível, e que as coisas que ele não podia ver eram, muitas vezes, mais reais do que as coisas que ele podia ver.

Dois dos melhores lugares para visitar eram o escritório do avô, em Nova York, e a loja do pai, em Newark. O escritório ficava na rua 57 Oeste, a um quarteirão de onde seus avós moravam, e a primeira coisa boa que tinha era que ficava no décimo primeiro andar, ainda mais alto do que o apartamento, o que tornava ainda mais interessante olhar pela janela ali do que na rua 58 Oeste, pois seu olhar podia viajar muito mais fundo na distância ao redor e abranger muito mais edifícios, sem falar da maior parte do Central Park, e lá embaixo, na rua, os carros e os táxis eram tão miúdos que pareciam os carrinhos de brinquedo com que ele brincava sozinho em casa. A outra coisa boa no escritório eram as escrivaninhas grandes, com máquinas de escrever e máquinas de calcular. O barulho das máquinas de escrever às vezes o fazia pensar numa música, sobretudo quando a campainha tocava, no fim de cada linha, mas também fazia pensar na chuva forte que batia no telhado da casa em Montclair e no barulho de pedrinhas jogadas de encontro ao vidro da janela. A secretária do avô era uma mulher magrela chamada Doris, que tinha cabelo preto no antebraço e cheiro de balinhas de menta, mas ele gostava quan­do ela o chamava de sr. Ferguson e o deixava usar a máquina de escrever, que ela chamava de Sir Underwood, e agora que ele estava começando a aprender as letras do alfabeto, havia a satisfação de ser capaz de pôr os dedos nas teclas daquele instrumento pesado e datilografar uma linha inteira de a e de y, por exemplo, ou, se Doris não estivesse muito ocupada, pedir a ela que o ajudasse a escrever seu nome. A loja em Newark era muito maior do que o escritório em Nova York e tinha muito mais coisas dentro, não era só uma máquina de escrever e três máquinas de calcular na sala dos fundos, e sim fileiras e mais fileiras de pequenos aparelhos e utensílios grandes, além de uma área inteira no segundo andar para camas, mesas e cadeiras, um número incalculável de camas, mesas e cadeiras. Ferguson não devia nem tocar naquilo, mas quando o pai e os tios estavam longe, ou de costas para ele, de vez em quando, sorrateiramente, ele abria a porta de uma geladeira para sentir o cheiro diferente que vinha lá de dentro, ou subia numa cama para experimentar as molas do colchão, e mesmo quando era apanhado fazendo isso, ninguém ficava terrivelmente zangado, a não ser, às vezes, o tio Arnold, que dava uma bronca e rosnava: Tire as mãos da mercadoria, filho. Ele não gostava de que falassem assim com ele, e não gostou, especialmente, quando o tio deu uma palmada na sua nuca, numa tarde de sábado, porque a pancada doeu tanto que ele gritou, mas agora que tinha entreouvido a mãe dizer para o pai que o tio Arnold era um palerma, Ferguson não se importava mais, na verdade. Em todo caso, as camas e as geladeiras nunca prendiam sua atenção por muito tempo, não quando havia televisores para olhar, os aparelhos Philco e Emerson, recém-fabricados, que reinavam acima de todos os outros produtos expostos: doze ou quinze modelos, lado a lado, contra a parede à esquerda da porta da frente, todos ligados e sem som, e do que Ferguson mais gostava era mudar os canais nos aparelhos de modo que sete programas diferentes ficassem passando ao mesmo tempo, que turbilhão delirante de caos entrava em funcionamento, com um desenho animado na primeira tela e um filme de caubói na segunda, uma novela na terceira e uma missa na quarta e um anúncio na quinta e um locutor de notícias na sexta e um jogo de futebol americano na sétima. Ferguson corria para lá e para cá, de uma tela para outra, depois rodopiava em círculos até ficar quase tonto, se afastando aos poucos das telas, enquanto girava, de forma que, quando parava, estava numa posição em que podia ver as sete de uma vez só, e ver tantas coisas diferentes ao mesmo tempo nunca deixava de provocar uma risada. Era engraçado, era muito engraçado, e seu pai deixava que ele fizesse isso, porque também achava engraçado.

Na maior parte do tempo, seu pai não era engraçado. Trabalhava por longas horas, seis dias por semana, os dias mais compridos eram quarta e sexta-feira, quando a loja só fechava às nove da noite, e no domingo ele dormia até dez e meia da manhã e jogava tênis à tarde. Sua ordem predileta era: Obedeça à sua mãe. Sua pergunta predileta era: Você foi um bom menino? Ferguson tentava ser um bom menino e obedecer, mas sua sorte era que o pai parecia nunca perceber seus fracassos. Na certa, estava ocupado demais para isso e Ferguson dava graças a Deus, pois a mãe raramente o castigava, mesmo quando ele se esquecia de obedecer ou de ser um bom menino, e como seu pai nunca berrava com ele do jeito que a tia Millie berrava com seus filhos, e nunca dava palmadas do jeito que o tio Arnold, às vezes, dava palmadas no seu primo Jack, Ferguson concluiu que seu ramo da família Ferguson era melhor, apesar de ser tão pequeno. Mesmo assim, havia ocasiões em que o pai o fazia rir e, como essas ocasiões eram poucas e bem espaçadas, Ferguson ria ainda mais forte do que teria rido se acontecessem com mais frequência. Uma coisa engraçada era ser jogado para o alto e, como seu pai era muito forte e tinha músculos tão duros e volumosos, Ferguson voava quase até o teto, quando estavam dentro de casa, e ainda mais alto quando estavam no quintal, e nenhuma vez passou pela sua cabeça a ideia de que o pai ia deixar que ele caísse, o que significava que ele se sentia seguro o bastante para abrir a boca o mais que podia e encher o ar com enormes gargalhadas que vinham do fundo da barriga. Outra coisa engraçada era ver o pai fazer malabarismo com laranjas, na cozinha, e a terceira coisa engraçada era ouvir o pai soltar puns, não só porque os puns eram engraçados em si mesmos, como porque, toda vez que o pai soltava um pum na sua presença, dizia: Upa, lá vai o Hoppy — o que queria dizer Hopalong Cassidy, o caubói na televisão, de que Ferguson gostava muito. Por que o pai dizia isso depois de soltar um pum era um dos maiores mistérios do mundo, mas Ferguson adorava, de todo jeito, e sempre ria quando o pai falava aquelas palavras. Que ideia mais interessante: transformar um pum num caubói chamado Hopalong Cassidy.

Pouco depois do quinto aniversário de Ferguson, sua tia Mildred casou-se com Henry Ross, um homem alto e com pouco cabelo, que era professor de faculdade, como Mildred, que tinha terminado seus estudos de literatura inglesa quatro anos antes e lecionava numa faculdade chamada Vassar. O novo tio de Ferguson fumava Pall Malls (Excelentes, e são suaves) e parecia extremamente nervoso, pois numa só tarde fumava mais cigarros do que sua mãe num dia inteiro, mas o que mais intrigava Ferguson no marido de Mildred era que ele falava muito depressa e usava palavras tão compridas e complicadas que era impossível entender mais do que uma fração do que estava dizendo. Mesmo assim, Ferguson achou que era um sujeito de bom coração, com uma explosão alegre na risada e um brilho claro nos olhos e, para ele, estava claro que sua mãe sentia-se contente com a escolha de Mildred. Pois ela nunca se referia ao tio Henry sem usar a palavra “inteligente” e dizia, repetidas vezes, que ele lembrava alguém chamado Rex Harrison. Ferguson esperava que sua tia e seu tio não demorassem a resolver a questão do bebê e tratassem logo de mandar um priminho para ele. Irmãos imaginários podiam ser legais só até certo ponto, no final das contas, e talvez um primo Adler pudesse acabar virando uma espécie de quase irmão ou, em último caso, uma quase irmã. Durante alguns meses, ele esperou o anúncio, toda manhã achava que a mãe ia entrar no seu quarto e contar que a tia Mildred ia ter um filho, mas aí aconteceu alguma coisa, uma calamidade imprevista que virou de pernas para o ar todos os planos de Ferguson, tão cuidadosamente elaborados. Sua tia e seu tio iam se mudar para Berkeley, na Califórnia. Iam lecionar lá e morar lá e nunca mais iam voltar, o que significava que, mesmo se fabricassem um primo para ele, esse primo nunca poderia virar um quase irmão, pois irmãos e quase irmãos tinham de morar perto, de preferência na mesma casa. Quando a mãe pegou um mapa dos Estados Unidos e mostrou para ele onde ficava a Califórnia, Ferguson ficou tão desanimado que bateu com o punho sobre Ohio, Kansas, Utah e todos os outros estados entre Nova Jersey e o oceano Pacífico. Cinco mil quilômetros. Uma distância impossível, tão longe que era a mesma coisa que morar num outro país, outro mundo.

Era uma das lembranças mais fortes que levou da infância: a viagem até o aeroporto, no Chevrolet verde, com a mãe e tia Mildred, no dia em que a tia partiu para a Califórnia. O tio Henry tinha ido para lá duas semanas antes, assim era só a tia Mildred que estava com eles naquele dia quente e úmido de meados de agosto, Ferguson no banco de trás do carro, de calça curta, o couro cabeludo molhado de suor e as pernas nuas colando na forração do banco, que imitava couro, e apesar de ser a primeira vez que ele via um aeroporto, a primeira vez que via aviões tão de perto e podia saborear a vastidão e a beleza daquelas máquinas, a manhã permaneceu dentro dele porque as duas mulheres, sua mãe e a irmã dela, uma morena e a outra loura, uma de cabelo comprido e a outra de cabelo curto, as duas tão diferentes uma da outra que era preciso examinar bem seus rostos por um tempo para entender que tinham vindo dos mesmos pais, sua mãe que era tão afetuosa e carinhosa, que sempre tocava e abraçava a gente, e Mildred, que era tão reservada e contida, raramente tocava em alguém, e no entanto lá estavam as duas juntas no portão do voo da Pan Am para San Francisco, e quando o número do voo foi anunciado no alto-falante e chegou a hora de dar adeus, de repente, como se atendessem a um sinal oculto e predeterminado, as duas começaram a chorar, lágrimas caíram em cascata de seus olhos e pingaram no chão, e então seus braços envolveram uma à outra e as duas se apertaram num abraço, choraram e se abraçaram ao mesmo tempo. Sua mãe nunca tinha chorado na frente dele e, até ele ver com os próprios olhos, não sabia que Mildred era capaz de chorar, mas lá estavam as duas chorando na frente dele, enquanto davam adeus uma à outra, as duas cientes de que passariam meses ou anos antes que voltassem a se ver, e Ferguson assistiu àquilo parado, de pé, abaixo delas, em seu corpo de cinco anos de idade, olhando para cima, para a mãe e a tia, atordoado com o excesso de emoção que se derramava delas, e a imagem viajou para um lugar tão fundo dentro dele que Ferguson nunca mais esqueceu.

Em novembro do ano seguinte, dois meses depois que Ferguson entrou na primeira série, sua mãe abriu um estúdio de fotografia no centro de Montclair. O letreiro em cima da porta da frente dizia Foto Roseland, e a vida entre os Ferguson, de repente, ganhou um ritmo novo e acelerado, a começar pelo corre-corre matinal para levar um para a escola a tempo e os outros dois, em carros separados, irem para o trabalho, e agora com a mãe fora de casa cinco dias por semana (de terça a sábado), havia uma mulher chamada Cassie que fazia os trabalhos domésticos, limpava a casa, arrumava as camas e fazia as compras de comida e às vezes até fazia o jantar para Ferguson, quando os pais trabalhavam até tarde. Agora, ele via a mãe muito menos, mas a verdade é que precisava menos dela, também. Sabia amarrar o cadarço dos sapatos sozinho, afinal, e toda vez que pensava na pessoa com quem queria casar, hesitava entre duas candidatas potenciais: Cathy Gold, a menina baixinha de olhos azuis e rabo de cavalo comprido e louro, e Margie Fitzpatrick, a ruiva muito alta que era forte e destemida, capaz de levantar dois meninos do chão ao mesmo tempo.

A primeira pessoa que sentou para ser fotografada no estúdio Foto Roseland foi o filho da proprietária. A mãe de Ferguson apontava uma câmera para ele desde quando sua memória era capaz de lembrar, só que aqueles primeiros retratos eram instantâneos e a câmera que ela usava era pequena, leve e portátil, ao passo que a câmera no estúdio era muito maior e tinha de ser montada sobre uma estrutura de três pernas, chamada tripé. Ele gostava da palavra “tripé”, que o fazia pensar em uma criatura de três pés, e ele também se impressionava de ver com quanto cuidado a mãe ajustava as luzes, antes de começar a tirar os retratos, o que parecia indicar que ela estava com pleno controle do que estava fazendo, e ver a mãe trabalhar com tanta perícia e segurança dava em Ferguson uma sensação boa a respeito dela, que de repente não era só sua mãe, mas alguém que fazia coisas importantes no mundo. A mãe o fez vestir roupas bonitas para o retrato, o que significava pôr o paletó esporte de tweed e a camisa branca de colarinho largo sem nenhum botão em cima, e como Ferguson achou muito gostoso ficar ali sentado, enquanto a mãe cuidava de tudo para que a pose ficasse bem exata, ele não teve nenhuma dificuldade de sorrir quando ela lhe pediu. A amiga da mãe, do Brooklyn, estava com eles nesse dia, Nancy Solomon, que antes tinha sido Nancy Fein e agora morava em West Orange, a engraçada Nancy, com os dentes acavalados e os dois filhos pequenos, a amiga do peito de sua mãe e, portanto, uma pessoa que ele tinha conhecido a vida toda. A mãe explicou que, depois que as fotos fossem reveladas, uma delas seria ampliada num tamanho bem grande e transportada para uma tela, que Nancy iria pintar, transformando a fotografia num retrato colorido com tinta a óleo. Era um dos serviços que o estúdio Foto Roseland planejava oferecer aos clientes: não apenas retratos em preto e branco, mas também pinturas a óleo. Ferguson teve dificuldade para imaginar como aquilo seria feito, mas calculou que Nancy devia ser uma pintora tremendamente capaz, a ponto de conseguir realizar uma transformação tão difícil. Dois sábados depois, ele e a mãe saíram de casa às oito horas da manhã e foram de carro até o centro de Montclair. A rua estava quase deserta, o que significava que havia uma vaga para estacionar bem na frente do estúdio Foto Roseland, mas vinte ou trinta metros antes de pararem o carro, a mãe disse para Ferguson fechar os olhos. Ele quis perguntar por quê, mas na hora em que ia abria a boca para falar, ela disse: Sem perguntas, Archie. E assim ele ficou de olhos fechados e, quando estacionaram na frente do estúdio, ela ajudou o filho a sair do carro e o levou pela mão até o lugar onde queria que ele ficasse. Muito bem, disse ela, pode abrir os olhos agora. Ferguson abriu os olhos e se viu olhando para a vitrine do novo estúdio da mãe, e o que ele viu ali foram duas imagens grandes dele mesmo, cada uma com mais ou menos sessenta por noventa centímetros, a primeira era uma fotografia em preto e branco e a segunda, uma réplica exata da primeira, só que em cores, com seu cabelo cor de areia e seus olhos verde-acinzentados e o paletó marrom com pintas vermelhas, com um aspecto muito parecido com o que tinha na vida real. As pinceladas de Nancy eram tão exatas, de execução tão perfeita, que ele não conseguia saber se estava olhando para uma fotografia ou para uma pintura. Passaram algumas semanas e, com as fotos agora em exposição permanente, desconhecidos começaram a reconhecer Ferguson, o paravam na rua para perguntar se não era o menino na vitrine do estúdio Foto Roseland. Ele se tornou o menino de seis anos mais famoso em Montclair, o garoto do pôster do estúdio de sua mãe, uma lenda.

No dia 29 de setembro de 1954, Ferguson ficou em casa e não foi para a escola. Teve febre de quarenta graus e passou a noite anterior vomitando numa bacia de alumínio que a mãe colocou no chão, ao lado da cama. Quando ela saiu para trabalhar, de manhã, disse para ele ficar de pijama e dormir o mais que pudesse. Se não conseguisse dormir, devia ficar na cama com suas revistas em quadrinhos e, toda vez que tivesse de ir ao banheiro, devia se lembrar de calçar os chinelos. Só que por volta de uma hora da tarde a febre caiu para trinta e sete e ele já estava se sentindo bem o suficiente para descer para o térreo e perguntar para Cassie se não podia comer alguma coisa. Ela fez ovos mexidos com torradas, que desceram sem perturbar seu estômago, e en­tão, em vez de subir para o primeiro andar e voltar para a cama, ele andou devagar até a saleta vizinha à cozinha, a que seus pais se referiam como gabinete ou salinha, e ligou a televisão. Cassie foi atrás dele, sentou-se no sofá a seu lado e anunciou que a primeira partida da série final do campeonato nacional de beisebol ia começar em poucos minutos. A série final do campeonato nacional de beisebol. Ele sabia o que era, mas nunca tinha visto nenhuma partida da série final do campeonato nacional de beisebol, e só uma ou duas vezes tinha visto uma partida da temporada normal, não porque não gostasse de beisebol, na verdade ele adorava jogar, mas simplesmente porque estava sempre brincando com os amigos e, na hora em que começavam as partidas noturnas, ele já tinha sido levado para a cama. Conhecia os nomes de alguns jogadores importantes — Williams, Musial, Feller, Robinson, Berra —, mas não torcia por nenhum time em especial, não lia as páginas de esporte no Newark Star-Ledger nem no Newark Evening News, e não tinha a menor ideia do que significava ser um torcedor. Em contraste, Cassie Burton, de trinta e oito anos, era torcedora fanática do time Brooklyn Dodgers, sobretudo porque Jackie Robinson jogava nesse time, o número 42, o jogador da segunda base que ela sempre chamava de o meu Jackie, a primeira pessoa de pele escura que vestiu um uniforme de um time da liga principal, fato que Ferguson aprendeu com a mãe e também com Cassie, mas Cassie tinha mais a dizer sobre o assunto, porque era também uma pessoa de pele escura, uma mulher que havia passado os primeiros dezoito anos de vida na Geórgia e falava com forte sotaque sulista, que Ferguson achava estranho e maravilhoso, tão lânguido em sua musicalidade que ele nunca se cansava de ouvi-la falar. Os Dodgers não estavam disputando a série final do campeonato nesse ano, explicou ela, tinham sido eliminados pelos Giants, mas os Giants também eram um time local e, portanto, ela torcia para eles ganharem a série final do campeonato. Eles tinham uns bons jogadores de cor, disse ela (era essa a expressão que usava, “de cor”, muito embora a mãe de Ferguson o tivesse ensinado a usar a palavra “negro”, quando falasse de pessoas de pele preta ou marrom, e como era estranho, pensou ele, que um negro não dissesse “negro” mas sim “de cor”, o que demonstrava — mais uma vez — como o mundo po­dia ser confuso), mas, apesar da presença de Willie Mays, Hank Thompson e Monte Irvin no banco de reservas dos Giants, ninguém lhes dava uma oportunidade contra o time dos Cleveland Indians, que tinha batido o recorde do maior número de vitórias de um time da Liga Americana. Vamos ver como é que fica, disse Cassie, que não queria fazer nenhuma concessão aos bancos de aposta, e então ela e Ferguson começaram a assistir à transmissão da partida no estádio Polo Grounds, que começou mal, quando o Cleveland marcou duas vezes no primeiro tempo, mas os Giants se recuperaram no final do ter­ceiro tempo e depois a partida se transformou numa dessas brigas tensas e muito disputadas (Maglie contra Lemon) em que ninguém consegue fazer grande coisa e tudo pode depender de uma única rebatida, o que aumenta a importância e a dramaticidade de cada arremesso, à medida que o jogo vai chegando ao fim. Quatro tempos consecutivos sem que nenhum dos times abrisse vantagem e então, de repente, no auge do oitavo tempo, os Indians puseram dois corredores na base e lá subiu Vic Wertz, um rebatedor canhoto vigoroso, que rebateu uma bola rápida do lançador Don Liddle, dos Giants, e mandou a bola voando até o centro do campo, tão longe que Ferguson achou que devia resultar numa corrida por todo o campo, mas ele ainda era inexperiente, nessa altura, e não sabia que o Polo Grounds era um campo de jogo com um desenho diferente, com o centro mais afastado do que acontece em todos os campos de beisebol, cento e quarenta e sete metros da base do rebatedor até o alambrado, o que significava que a monumental bola rápida de Wertz, que em qualquer outro estádio bastaria para resultar numa corrida por todo o campo, não ia chegar às arquibancadas, mas mesmo assim era um arremesso tremendo e havia uma boa dose de certeza de que a bola ia passar voando por cima da cabeça do jogador de meio de campo dos Giants e sair quicando até o muro, o que já seria bom o bastante para um triplo, talvez até para uma corrida por todo o campo sem que a bola saísse para fora do campo, o que daria aos Indians pelo menos mais dois ou até três lances de vantagem, mas aí Ferguson viu algo que desafiava todas as probabilidades, uma proeza de bravura atlética que reduzia a mera ninharia quaisquer outras realizações humanas que ele havia testemunhado em sua curta vida, pois lá estava o jovem Willie Mays correndo atrás da bola com as costas viradas para o meio do campo, correndo de um jeito que Ferguson nunca tinha visto ninguém correr, disparando desde o segundo em que a bola partiu do taco de Wertz, como se o barulho da bola ao colidir com a madeira tivesse dito para ele exatamente onde a bola ia cair, Willie Mays, sem olhar para cima nem para trás, disparou na direção da bola, ciente de onde ela estava ao longo de toda sua trajetória, embora não pudesse vê-la, como se tivesse olhos na nuca, e então a bola alcançou o auge de seu arco e começou a descer até um ponto a cento e trinta e quatro metros da base do rebatedor, e lá estava Willie Mays esticando os braços na sua frente, e lá veio a bola descendo por cima de seu ombro esquerdo e pousando bem no meio da sua luva espalmada. No momento em que Mays pegou a bola, Cassie pulou do sofá e começou a berrar: Demais! Demais! Demais!, só que a história não acabou com ele pegando a bola, pois no instante em que os homens na base a viram partir do taco de Wertz, começaram a correr, e correram com a convicção de que iam marcar o ponto, de que tinham de marcar o ponto, porque nenhum jogador de meio de campo podia, de jeito nenhum, pegar uma bola como aquela, e assim, logo depois que Mays pegou a bola, ele girou o corpo e jogou-a para o meio do campo, um arremesso incrivelmente longo e com um impulso tão forte do braço que ele perdeu o boné e caiu no chão depois que a bola partiu de sua mão, e não só Wertz ficou fora, como o corredor principal foi impedido de marcar o ponto com a queda da bola. O ponto ainda estava em disputa. Parecia inevitável que os Giants ganhassem no meio do oitavo ou nono tempo, mas não aconteceu isso. A partida entrou na prorrogação. Marv Grissom, o novo lançador substituto dos Giants, manteve os Indians sem pontuação no auge do décimo tempo e depois os Giants puseram dois homens no final do tempo, o que permitiu que o treinador Leo Durocher mandasse Dusty Rhodes como substituto temporário. Que nome bonito de se ouvir, disse Ferguson para si mesmo, Dusty Rhodes, quer dizer, estradas poeirentas, o que era quase a mesma coisa que chamar alguém de Calçadas Molhadas ou Ruas Nevadas, mas quando Cassie viu aquele nativo do Alabama, de sobrancelhas grossas, fazer seu aquecimento rodando o braço, disse: Olhe só para esse velho branquelo com esses pelinhos no queixo. Se ele não estiver embriagado, Archie, eu sou a rainha da Inglaterra. Bêbado ou não, os olhos de Rhodes estavam em excelente forma naquele dia, e uma fração de segundo depois que o braço cansado de Bob Lemon disparou uma bola não muito rápida por cima do meio da base, Rhodes partiu para cima dela e jogou-a por cima do muro da direita do campo. Fim de jogo. Giants 5, Indians 2. Cassie urrou. Ferguson urrou. Os dois se abraçaram, pularam, dançaram juntos em volta da sala e, a partir daquele dia, o beisebol se tornou o jogo de Ferguson.

Os Giants continuaram, depois, a dar um baile nos Indians, vencendo a segunda, a terceira e a quarta partida também, um resultado milagroso, que trouxe muita felicidade para o Ferguson de sete anos de idade, mas ninguém ficou mais feliz com os resultados do campeonato de 1954 do que o tio Lew. O irmão mais velho de seu pai tinha sofrido seus altos e baixos como apostador ao longo dos anos, perdia de maneira constante mais do que ganhava, mas ganhava apenas o suficiente para não afundar de vez, e agora com as apostas todas indo para os Cleveland, faria todo sentido para ele seguir o rebanho, mas os Giants eram o seu time, ele torcia pelos Giants havia várias temporadas, boas e ruins, desde o início dos anos 20, e dessa vez ele resolveu ignorar as bolsas de apostas e jogou mais com o coração do que com o cérebro. Não só apostou seu dinheiro no azarão como apostou que seu time ganharia quatro vezes seguidas, um chute tão maluco e delirante que seu agente de apostas lhe deu uma vantagem de 300 para 1, o que significava que, em troca da soma modesta de duzentos dólares que ele apostou, o bem-vestido Lew Ferguson saiu com um pote de moedas de ouro, sessenta mil dólares, uma quantia enorme naquele tempo, uma fortuna. A bolada foi tão espetacular, tão assombrosa em suas ramificações, que o tio Lew e a tia Millie convidaram todo mundo para uma festa em sua casa, uma festança de arromba, com champanhe, lagosta e grossas fatias de bisteca porterhouse, que incluía uma exibição do novo casaco de pele de Millie e uma volta no quarteirão no novo Cadillac de Lew. Naquele dia, Ferguson ficou emburrado (Francie não estava lá, ele tinha dor de barriga e seus outros primos mal falavam com ele), mas achou que todo mundo estava se divertindo. Quando as festividades terminaram, porém, e ele e seus pais estavam a caminho de casa no carro azul, ele arregalou os olhos quando a mãe começou a falar mal do tio Lew com o pai. Ele não conseguiu acompanhar tudo que ela disse, mas a raiva na voz da mãe tinha uma agressividade fora do comum, uma ladainha azeda que parecia ter alguma coisa a ver com o fato de o tio dever dinheiro para seu pai, e como Lew tinha coragem de sair andando por aí num Cadillac e comprar casacos de pele, antes de pagar o que devia a seu pai? O pai reagiu com calma, no início, mas depois ergueu a voz, uma coisa que quase nunca acontecia, e de repente ele gritou para que a mãe de Ferguson parasse com aquilo, disse que Lew não lhe devia nada, que aquilo era dinheiro do irmão e ele podia fazer o que bem entendesse com o dinheiro. Ferguson sabia que os pais às vezes brigavam (dava para ouvir as vozes através da parede do quarto), mas aquela era a primeira vez que travavam uma batalha na sua frente e, como era a primeira vez, ele não pôde deixar de sentir que alguma coisa fundamental no mundo tinha mudado.

Logo depois do Dia de Ação de Graças no ano seguinte, o depósito da loja do pai foi esvaziado num assalto noturno. O depósito era um prédio de um só andar, feito de blocos de concreto, que ficava atrás da loja Mundo do Lar Três Irmãos, e Ferguson tinha visitado o lugar várias vezes ao longo dos anos, um salão amplo, com cheiro de umidade, com fileiras e mais fileiras de caixas de papelão que continham televisores, geladeiras, máquinas de lavar e todas as outras coisas que os irmãos vendiam na loja. A mercadoria em exposição nos mostruários era apenas para os fregueses olharem, mas toda vez que alguém queria comprar alguma coisa, a mercadoria era retirada do depósito por um homem chamado Ed, um sujeito grandão com uma sereia tatuada no antebraço direito, que tinha servido num avião de carga durante a guerra. Se fosse algo pequeno como uma torradeira, um abajur ou uma cafeteira, Ed entregava para o freguês ou freguesa, que podia levar a mercadoria para casa no próprio carro, mas se fosse algo grande como uma máquina de lavar roupa ou uma geladeira, Ed e outro veterano musculoso chamado Phil colocavam a mercadoria na traseira do caminhão de entregas e levavam até a casa do freguês. Era assim que o negócio funcionava no Mundo do Lar Três Irmãos, e Ferguson conhecia bem o sistema, já tinha idade para entender que o depósito era o coração da operação toda, e assim, quando a mãe o acordou no domingo de manhã, depois do Dia de Ação de Graças, e disse que o depósito tinha sido roubado, ele imediatamente percebeu o significado terrível do crime. Um depósito vazio significava nenhum negócio; nenhum negócio significava nenhum dinheiro; nenhum dinheiro significava problema: o asilo dos pobres! Fome! Morte! A mãe explicou que a situação não era tão desesperadora assim, porque todas as mercadorias roubadas estavam no seguro, mas, sim, era um golpe muito duro, ainda mais com a temporada de compras do Natal à beira de começar, e como certamente a companhia seguradora ia demorar semanas ou meses para pagar, a loja não poderia sobreviver sem um empréstimo de emergência do banco. Enquanto isso, o pai estava em Newark, falando com a polícia, disse ela, e como cada produto tinha um número de série, talvez houvesse uma chance, uma pequena chance, de que os ladrões fossem localizados e presos.

O tempo passou e nenhum ladrão foi achado, mas o pai conseguiu obter o empréstimo no banco, o que quer dizer que Ferguson e sua família foram poupados da humilhação de ter de se mudar para o asilo de pobres. A vida foi em frente, portanto, mais ou menos como tinha sido nos anos anteriores, mas Ferguson sentia uma atmosfera nova na casa, algo amargo, triste e misterioso que pairava à sua volta. Levou um tempo antes de ele conseguir identificar a origem daquela perturbação barométrica, mas, observando o pai e a mãe toda vez que estava com eles, isoladamente ou em conjunto, concluiu que a mãe era essencialmente a mesma de antes, ainda contava muitas histórias sobre seu trabalho no estúdio, ainda produzia seu cociente cotidiano de sorrisos e risadas, ainda olhava para Ferguson direto nos olhos toda vez que falava com ele, ainda estava pronta para as ferozes partidas de pingue-pongue na varanda dos fundos aclimatada para o inverno, ainda escutava com toda atenção o que ele dizia, toda vez que ele vinha lhe contar algum problema. O pai é que estava diferente, seu pai, normalmente de poucas palavras, e que agora não falava praticamente nada no café da manhã, que parecia alheio e quase ausente, como se seu pensamento estivesse concentrado em alguma coisa sombria, dolorosa, que ele não queria dividir com ninguém. Em algum momento depois do Ano-Novo, quando 1955 virou 1956, Ferguson tomou coragem de chegar perto da mãe e perguntar qual era o problema, pedir que ela explicasse por que o pai parecia tão triste e distante. Foi o roubo, disse ela, o roubo estava corroendo ele por dentro, e quanto mais pensava no assunto, menos conseguia pensar em qualquer outra coisa. Ferguson não entendeu. O depósito tinha sido arrombado seis ou sete semanas antes, a companhia de seguros ia pagar o prejuízo dos produtos perdidos, o banco tinha dado o empréstimo e a loja continuava de pé. Por que o pai estava preocupado, quando não havia nada com que se preocupar? Ele viu a mãe hesitar, como se lutasse por dentro para resolver se devia lhe contar um segredo, sem saber se ele estava crescido o suficiente para encarar os fatos daquela história, a dúvida piscou em seus olhos apenas por um instante, mas era bastante palpável, e então, enquanto afagava sua cabeça e examinava seu rosto de nove anos incompletos, ela se decidiu, se abriu para ele de uma forma como nunca havia feito antes e o deixou a par do segredo que estava dilacerando seu pai. A polícia e a companhia de seguros continuavam trabalhando no caso, disse ela, e os dois chegaram à conclusão de que era gente de dentro, o que queria dizer que o roubo não tinha sido cometido por estranhos, mas por alguém que trabalhava na loja. Ferguson, que conhecia todo mundo na equipe do Mundo do Lar Três Irmãos, desde os funcionários do depósito Ed e Phil até a contadora Adelle Rosen, o agente de reparos Charlie Sykes e o zelador Bob Dawkins, sentiu os músculos do estômago se contraírem na forma de um pequeno punho cerrado de dor. Não era possível que alguma daquelas pessoas boas fosse capaz de fazer algo tão ruim com seu pai, nenhum deles era capaz de tamanha traição e, portanto, a polícia e a companhia de seguros deviam estar enganados. Não, Archie, disse a mãe, não acho que estejam errados. Mas a pessoa que fez isso não foi nenhuma das que você mencionou.

O que ela queria dizer?, se perguntou Ferguson. As únicas pessoas, além dessas, ligadas à loja eram o tio Lew e o tio Arnold, os irmãos do seu pai, e irmãos não roubavam um ao outro, não é? Essas coisas não podiam acontecer.

O pai tinha uma decisão horrível para tomar, disse a mãe. Ou retirar a queixa na polícia e desistir da indenização do seguro ou mandar Arnold para a prisão. O que você acha que ele fez?

Retirou a queixa e não mandou Arnold para a prisão.

Claro. Ele nem sonhou em fazer isso. Mas agora você compreende por que ele anda tão perturbado.

Uma semana depois de Ferguson ter essa conversa com a mãe, ela contou para ele que o tio Arnold e a tia Joan estavam se mudando para Los Angeles. Ela ia sentir saudades de Joan, disse a mãe, mas provavelmente era melhor assim, pois o dano causado não podia ser reparado. Dois meses depois de Arnold e Joan partirem para a Califórnia, o tio Lew bateu com seu Cadillac na Garden State Parkway e morreu na ambulância a caminho do hospital, e antes que qualquer pessoa entendesse como os deuses, quando não tinham nada melhor para fazer, levavam a cabo rapidamente seu trabalho, o clã Ferguson tinha sido feito em pedacinhos.


1.2

Quando Ferguson tinha seis anos, a mãe contou a história de como ela quase o perdeu. Perdeu não no sentido de não saber onde ele estava, mas no sentido de morrer, de abandonar este mundo e flutuar para o céu, como um espírito sem corpo. Ele ainda não tinha um ano e meio de idade, disse ela, e certa noite começou a ter febre, uma febre baixa que rapidamente disparou para uma febre alta, pouco acima de quarenta e um graus, uma temperatura alarmante, mesmo para uma criança pequena, e assim ela e seu pai o embrulharam todo e o levaram para o hospital, onde ele começou a ter convulsões, que poderiam facilmente ter acabado com ele, pois até o médico que retirou suas amígdalas naquela noite disse que ele estava por um fio, querendo dizer que não podia garantir que Ferguson iria viver ou morrer, que agora tudo estava nas mãos de Deus, e sua mãe ficou tão assustada, contou ela, tão horrivelmente apavorada com a ideia de perder seu menino que quase ficou louca.

Esse foi o pior momento, disse ela, a hora em que acreditou que o mundo podia, de fato, chegar ao fim, mas houve também outras horas difíceis, uma lista completa de contratempos e incidentes imprevistos, e então ela começou a enumerar os vários acidentes que tinham se abatido sobre ele quando criança, muitos dos quais poderiam tê-lo matado ou mutilado, quando, por exemplo, Ferguson engasgou com uma lasca de bife mal mastigada, furou a sola do pé com um caco de vidro, quando teve de levar catorze pontos, sem falar da vez em que tropeçou e caiu em cima de uma pedra, o que abriu sua bochecha esquerda e ele teve de levar onze pontos, ou a picada de abelha que fez seus olhos incharem e ficarem fechados, ou o dia em que estava aprendendo a na­dar, no verão anterior, e quase se afogou, quando seu primo Andrew o empurrou para debaixo da água, e sempre e cada vez que sua mãe recontava algum desses incidentes, fazia uma pausa e perguntava para Ferguson se ele tinha lembrança daquilo tudo, e a verdade era que se lembrava, sim, se lembrava de quase tudo como se tivesse sido ontem.

Eram meados de junho quando os dois tiveram essa conversa, três dias depois de Ferguson cair do carvalho no quintal e quebrar a perna esquerda, e o que a mãe estava tentando mostrar, com toda aquela ladainha de pequenas catástrofes, era que, toda vez que ele se machucara no passado, acabou ficando bom, que seu corpo doía por um tempo e depois parava de doer, e que era exatamente isso que ia acontecer com sua perna. Era uma pena que tivesse de ficar engessado, é claro, mas dali a pouco iam tirar o gesso e ele ia ficar novinho em folha. Ferguson queria saber quanto tempo ia levar até isso acontecer, e sua mãe disse que um mês, mais ou menos, o que era uma resposta vaga e extremamente insatisfatória, sentiu ele, um mês era um ciclo da lua, o que podia ser tolerável, se o tempo não esquentasse demais, só que mais ou menos queria dizer um tempo ainda mais longo, uma extensão de tempo indefinida e, portanto, insuportável. Porém, antes que pudesse se dar conta inteiramente da injustiça daquilo tudo, a mãe lhe fez uma pergunta, uma pergunta estranha, talvez a pergunta mais estranha que alguém já tinha feito para ele.

Você está zangado consigo mesmo, Archie, ou está zangado com a árvore?

Que coisa mais desconcertante para se jogar em cima de um garoto que nem tinha terminado o jardim de infância. Zangado? Por que ele devia estar zangado com alguma coisa? Por que não podia estar só triste e mais nada?

A mãe sorriu. Ela ficou feliz por ele não pôr a culpa na árvore, disse, por­que ela adorava aquela árvore, ela e seu pai adoravam a árvore e tinham comprado a casa em West Orange sobretudo por causa do quintal grande, e o melhor e o mais bonito daquele quintal era o carvalho muito alto plantado bem no centro. Três anos e meio antes, quando ela e o pai resolveram deixar o apartamento em Newark e comprar uma casa nos subúrbios, procuraram em vários municípios, Montclair e Maplewood, Millburn e South Orange, mas nenhum desses lugares tinha a casa certa para eles, que ficaram desanimados e cansados de visitar tantas casas erradas, e então toparam com aquela casa e logo entenderam que era feita para eles. A mãe estava contente pelo filho não ficar zangado com a árvore, disse, porque, se estivesse zangado, ela seria obrigada a derrubá-la. Mas derrubar por quê?, perguntou Ferguson, agora já começando a rir da ideia da mãe de cortar uma árvore tão grande, sua linda mãe vestida em roupas de trabalho, golpeando o carvalho com um machado enorme e cintilante. Porque eu estou do seu lado, Archie, disse ela, e qualquer inimigo seu é meu inimigo.

No dia seguinte, o pai voltou do Mundo do Lar Três Irmãos com um aparelho de ar-condicionado para pôr no quarto de Ferguson. Está ficando muito quente, disse o pai, querendo dizer que desejava que seu filho se sentisse confortável, enquanto ficava à toa na cama, engessado, e aquilo também ajudaria a tratar sua rinite, continuou o pai, impedindo que o pólen entrasse no quarto, pois o nariz de Ferguson era extremamente sensível a fatores alérgicos trazidos pelo ar e que emanavam do capim, da poeira e das flores, e quanto menos espirrasse durante a convalescência, menos dor sentiria na perna quebrada, pois um espirro era uma força tremenda, e um espirro muito grande podia reverberar pelo corpo inteiro, do topo da cabeça dolorida até a pontinha dos dedos dos pés. O Ferguson de seis anos de idade observou o pai cuidar da instalação do ar-condicionado na janela à direita da escrivaninha, uma operação muito mais complicada do que ele havia imaginado e que começou com a retirada da tela da janela e demandou o uso de coisas como uma fita métrica, um lápis, uma broca, uma pistola de calafetagem, duas tiras de madeira sem pintura, uma chave de fenda e alguns parafusos, e Ferguson ficou impressionado de ver como o pai trabalhava depressa e com cuidado, como se suas mãos entendessem o que tinham de fazer sem receber nenhuma instrução da cabeça, mãos autônomas, por assim dizer, dotadas de um conhecimento próprio e especial, e então veio a hora de içar o grande cubo metálico do chão e instalar na janela, um objeto pesado demais para levantar, pensou Ferguson, mas o pai conseguiu fazer aquilo sem nenhum esforço aparente e, enquanto estava terminando o serviço com a chave de fenda e a pistola de calafetagem, o pai cantarolava de lábios fechados a canção que ele sempre cantarolava quando consertava coisas pela casa, uma velha música de Al Jolson, chamada “Sonny Boy” — “Não tem como saber/ Não tem como mostrar/ O que você é para mim, filho”. O pai se abaixou para pegar uma chave de fenda que tinha caído no chão e, quando se ergueu, de repente apertou a parte de baixo das costas com a mão direita. Och un vai, disse ele, acho que distendi um músculo. A cura para músculos distendidos era ficar deitado de costas por alguns minutos, disse o pai, de preferência sobre uma superfície dura e, como a superfície mais dura no quarto era o chão, o pai prontamente se estirou no chão ao lado da cama de Ferguson. Que oportunidade fora do comum foi aquela, olhar de cima para o pai estirado no chão bem ao lado dele, e enquanto Ferguson estava debruçado na beirada da cama e examinava a careta no rosto do pai, resolveu fazer uma pergunta, uma pergunta em que havia pensado algumas vezes no mês anterior, mas nunca achou o momento adequado: O que seu pai tinha feito antes de ser o dono do Mundo do Lar Três Irmãos? Viu os olhos do pai vagarem pelo teto, como se procurassem uma resposta, e então Ferguson percebeu que os músculos em volta da boca do pai se curvavam para baixo, um gesto familiar para ele, a indicação de que o pai estava lutando para apagar um sorriso, o que por sua vez significava que algo inesperado estava prestes a acontecer. Eu era caçador de animais grandes, disse o pai, em tom calmo e direto, sem trair nenhum sinal de que estava prestes a despejar a mais clamorosa montanha de absurdos que já havia dividido com o filho e, durante os vinte ou trinta minutos seguintes, desfiou memórias sobre leões, tigres e elefantes, o sufocante calor da África, ter de abrir caminho no meio da floresta cerrada, atravessar o deserto do Saara a pé, escalar o Monte Kilimanjaro, a vez em que ele quase foi engolido de uma vez só por uma cobra gigante, e a vez em que foi capturado por canibais e esteve à beira de ser jogado num caldeirão de água fervente, mas no último minuto conseguiu de­sembaraçar os cipós que prendiam seus pulsos e seus tornozelos, fugiu de seus raptores e desapareceu no meio da selva, e a vez em que estava em seu último safári, antes de voltar para casa e se casar com a mãe de Ferguson, e acabou se perdendo no mais negro coração da África, que era conhecida como o Continente Negro, e vagou sem rumo por uma savana vasta e sem fim, onde viu um rebanho de dinossauros pastando, os últimos dinossauros que restaram na face da Terra. Ferguson era crescido o suficiente para saber que os dinossauros estavam extintos havia milhões de anos, mas as outras histórias pa­re­ceram plausíveis para ele, não necessariamente verdadeiras, e portanto dignas de crédito — talvez. Aí a mãe entrou no quarto e, quando viu o pai de Fer­gu­son estirado no chão, perguntou se estava com algum problema nas costas. Não, não, disse ele, estou só descansando, e então se levantou como se as cos­tas estivessem mesmo boas, andou até a janela e ligou o ar-condicionado.

Sim, o ar-condicionado refrescou o quarto e acabou com os espirros e, por estar mais frio, sua perna não coçava tanto por baixo do gesso, mas também havia desvantagens em viver num quarto refrigerado, primeiro o barulho, que era um barulho esquisito e desnorteante, pois havia ocasiões em que ele ouvia o barulho e outras em que não ouvia, mas quando ouvia, achava monótono e desagradável, mas pior do que isso era o problema das janelas, que tinham de ficar fechadas para manter o ar frio do lado de dentro, e como elas ficavam sempre fechadas e o motor ficava sempre ligado, ele não podia ouvir os passarinhos que cantavam lá fora, e a única coisa boa de ficar engaiolado no quarto com um gesso na perna era poder ouvir os passarinhos nas árvores bem na frente da janela, os passarinhos que cantavam, piavam, trinavam e faziam o que Ferguson achava que eram os sons mais bonitos que havia no mundo. Assim, o ar-condicionado tinha seus prós e contras, seus benefícios e suas desvantagens e, assim como tantas outras coisas que o mundo deu de presente para ele durante a vida, aquilo era, como dizia a mãe muitas vezes, uma bênção misturada.

O que mais o incomodava no fato de ter caído da árvore era que não precisava ter acontecido. Ferguson podia aceitar a dor e o sofrimento quando pareciam necessários, como vomitar quando estava enjoado ou deixar que o dr. Guston enfiasse uma agulha no seu braço para dar uma injeção de penicilina, mas a dor desnecessária violava os princípios do bom senso, o que tornava aquilo estúpido e intolerável. Uma parte dele tinha a tentação de culpar Chuckie Brower pelo acidente, mas no fim Ferguson se deu conta de que aquilo não passava de uma desculpa muito frouxa, pois que diferença fazia o fato de Chuckie o ter desafiado a subir na árvore? Ferguson tinha aceitado o desafio, o que queria dizer que ele quis subir na árvore, escolheu subir na árvore, e portanto ele próprio era o responsável pelo que tinha acontecido. Pouco importava se Chuckie tenha prometido ir atrás de Ferguson, se ele subisse primeiro, e depois quebrou a promessa, dizendo que estava com medo, que os galhos ficavam muito longe uns dos outros e que ele não era alto o suficiente para alcançar os galhos, mas o fato de Chuckie não ter ido atrás era imaterial, pois, mesmo se tivesse chegado lá, como poderia evitar a queda de Ferguson? E assim Ferguson caiu, perdeu a pegada da mão, quando esticou o braço para um galho que estava no máximo meio centímetro além do ponto em que poderia ter sido agarrado com segurança, perdeu a pegada e caiu, e agora estava deitado na cama com a perna esquerda aprisionada num gesso que continuaria a ser parte de seu corpo por mais ou menos um mês, o que significava mais de um mês, e não havia ninguém para culpar por aquele infortúnio, a não ser ele mesmo.

Ele aceitou a culpa, entendeu que sua condição atual era completamente culpa sua, mas daí a dizer que o acidente poderia ter sido evitado ia uma grande diferença. Burrice, foi só isso, foi a mais pura burrice fingir que ia conseguir alcançar o galho, quando era impossível segurar o galho direito, mas se o galho estivesse uma fração de centímetro mais perto dele, não seria burrice. Se Chuckie não tivesse tocado a campainha da sua porta naquela manhã e chamado Ferguson para sair de casa e brincar, não seria burrice. Se seus pais tivessem se mudado para uma das outras cidades onde procuraram a casa certa para morar, ele não teria nem conhecido Chuckie Brower, nem saberia que Chuckie Brower existia, e não seria burrice, pois a árvore que ele subiu não estaria no quintal de sua casa. Que ideia mais interessante, disse Ferguson para si mesmo: imaginar como as coisas podiam ser diferentes para ele, ainda que ele fosse a mesma pessoa. O mesmo menino numa casa diferente com uma árvore diferente. O mesmo menino com pais diferentes. O mesmo menino com os mesmos pais que não faziam as mesmas coisas que faziam agora. E se seu pai ainda fosse caçador de animais grandes, por exemplo, e todos eles morassem na África? E se sua mãe fosse uma famosa atriz de cinema e todos eles morassem em Hollywood? E se ele tivesse um irmão ou uma irmã? E se seu tio-avô Archie não tivesse morrido e seu nome, então, não fosse Archie? E se ele tivesse caído da mesma árvore e tivesse quebrado as duas pernas em vez de uma só? E se ele tivesse quebrado os dois braços e as duas pernas? E se ele tivesse morrido? Sim, tudo era possível, e só porque as coisas aconteciam de um jeito não queria dizer que não podiam acontecer de outro. Tudo podia ser diferente. O mundo podia ser o mesmo mundo e, ainda assim, se ele não tivesse caído da árvore, o mundo seria diferente para ele, e se ele tivesse caído da árvore e não tivesse quebrado só a perna e acabasse morrendo, não só o mundo seria diferente para ele, como não haveria mais mundo nenhum para ele viver, e como sua mãe e seu pai ficariam tristes quando o levassem para o cemitério e enterrassem seu corpo no solo, tão tristes que ficariam chorando sem parar por quarenta dias e quarenta noites, por quarenta meses, por quatro mil e quarenta anos.

Faltava uma semana e meia para terminar o ano letivo e começarem as férias de verão, o que queria dizer que ele não ia perder tantas aulas a ponto de ser reprovado por faltas no jardim de infância. Isso era uma coisa pela qual ele devia se sentir agradecido, disse a mãe, e com certeza tinha razão, mas Ferguson não estava num estado de espírito de sentir muita gratidão naqueles primeiros dias após o acidente, período em que não tinha amigos para conversar, a não ser no fim da tarde, quando Chuckie Brower dava uma passadinha com seu irmão caçula para ver o gesso, período em que o pai estava fora de casa, desde a manhã até a noite, porque vivia no trabalho, em que a mãe tinha de dirigir o carro por várias horas todos os dias em busca de uma loja vazia para instalar o estúdio fotográfico que ela planejava abrir no outono, em que a empregada doméstica Wanda vivia ocupada na maior parte do tempo lavando roupa e fazendo faxina, exceto quando trazia o almoço para Ferguson, no quarto, ao meio-dia, e o ajudava a esvaziar a bexiga, segurando a garrafa de leite dentro da qual ele devia urinar, em vez de resolver suas coisas no banheiro, eram essas as indignidades que ele tinha de suportar, e tudo por causa do erro idiota de cair de uma árvore, e para aumentar ainda mais sua frustração, havia o fato de que ele ainda não tinha aprendido a ler, o que teria sido um bom jeito de passar o tempo, e com a televisão inacessível na sala do térreo, temporariamente fora de alcance, Ferguson passava os dias remoendo as questões imponderáveis do universo, fazia desenhos de aviões e caubóis, aprendia a escrever copiando a lista de letras que sua mãe tinha preparado para ele.

Então, de certo modo, as coisas começaram a melhorar. Sua prima Francie terminou o primeiro ano do ensino médio e, por alguns dias antes de ir trabalhar como monitora numa colônia de férias de verão em Berkshires, ela ia à casa de Ferguson para fazer-lhe companhia, às vezes ficava só uma hora, e o tempo que ele passava com ela era sempre a parte mais gostosa do dia, sem dúvida a única parte gostosa, pois Francie era a prima de que ele mais gostava, gostava mais do que qualquer pessoa em suas duas famílias, e como ela estava crescida, agora, pensou Ferguson, com peitos e curvas e um corpo parecido com o da mãe e, assim como a mãe, tinha um jeito de falar com ele que o deixava calmo e confortável, como se nada pudesse dar errado quando estava com ela, e às vezes estar com Francie era ainda melhor do que estar com a mãe, pois não importava o que dissesse ou fizesse, ela jamais ficava zan­gada com ele, nem mesmo quando se descontrolava e ficava turbulento. Foi a inteligente Francie quem veio com a ideia de decorar seu gesso, um trabalho que levou três horas e meia, com pinceladas muito cuidadosas, enquanto ela cobria o gesso branco com uma profusão de cintilantes azuis, vermelhos e amarelos, um desenho abstrato e cheio de redemoinhos que faziam Ferguson pensar num carrossel que girava em altíssima velocidade e, enquanto ela passava a tinta acrílica na sua parte do corpo nova e detestada, ficava falando sobre seu namorado, Gary, o grande Gary, que jogava na posição de zagueiro no time de futebol americano do colégio, mas que agora estava na faculdade, o Williams College, em Berkshires, não longe da colônia de férias onde os dois iam trabalhar juntos naquele verão, Francie não via a hora de ir para lá, disse ela, e aí declarou que estava alfinetada, uma expressão com a qual Ferguson não estava familiarizado, na época, por isso Francie explicou que Gary tinha dado para ela seu alfinete da fraternidade, mas “fraternidade” era uma palavra que também escapava ao entendimento de Ferguson, por isso Francie explicou de novo, e aí ela abriu um grande sorriso e disse deixa para lá, o importante era que estar alfinetada era o primeiro passo para ficar noiva, e o plano era que ela e Gary anunciassem o noivado no outono e, no verão seguinte, depois que fizesse dezoito anos e terminasse o ensino médio, ela e Gary se casariam. A razão por que ela contava tudo isso para ele era que tinha uma missão importante para Ferguson e queria saber se ele estava disposto a fazer aquilo. Fazer o quê?, perguntou ele. Ser a pessoa que segura o anel na hora do casamento, respondeu Francie. Mais uma vez, Ferguson não tinha a menor ideia do que ela estava falando, por isso Francie explicou de novo, e, quando a escutou contar que ele ia caminhar pelo meio das fileiras de bancos com o anel em cima de uma almofadinha de veludo azul e que Gary ia pegar o anel e depois colocar no quarto dedo da mão esquerda dela para concluir a cerimônia de casamento, Ferguson concordou que se tratava de uma missão importante, talvez a mais importante que ele já havia recebido. Com um solene meneio da cabeça, prometeu que faria aquilo. Na certa, ficaria nervoso ao caminhar entre as fileiras de bancos com tanta gente olhando para ele, é claro, e sempre haveria a possibilidade de suas mãos tremerem e o anel cair no chão, mas ele tinha de fazer aquilo, porque Francie tinha pedido, porque Francie era a única pessoa que ele não podia desapontar.

Quando a prima chegou em casa na tarde seguinte, Ferguson imediatamente compreendeu que ela havia chorado. Nariz vermelho, linhas enevoadas e rosadas em volta das íris direita e esquerda, um lenço embolado na mão fechada — mesmo um menino de seis anos de idade podia adivinhar a verdade, a partir desses sinais. Ferguson imaginou que ela tinha brigado com Gary, que talvez, de repente, não estivesse mais alfinetada, o que queria dizer que o casamento tinha ido pelo ralo e que ele não seria mais chamado para levar o anel em cima de uma almofadinha de veludo azul. Perguntou para ela por que estava tão abatida, mas em vez de pronunciar o nome Gary, como ele imaginava, Francie começou a falar de um homem e uma mulher chamados Rosenberg, que tinham sido executados na véspera, fritados na cadeira elétrica, disse ela, falando aquelas palavras com o que parecia ser horror e nojo, e aquilo estava errado, errado, errado, ela prosseguiu, porque provavelmente eram inocentes, sempre disseram que eram inocentes, e por que eles se deixaram ser executados, quando podiam poupar suas vidas dizendo que eram culpados? Dois filhos, disse Francie, dois meninos pequenos, e que pais aceitariam transformar seus filhos em órfãos, recusando-se a se declarar culpados, se fossem mesmo culpados, o que significava que deviam ser inocentes e haviam morrido por nada. Ferguson nunca tinha ouvido tanta indignação na voz de Francie, nunca tinha conhecido ninguém que tivesse ficado tão arrasado com uma injustiça cometida contra pessoas classificadas como estranhas, pois estava claro para ele que Francie nunca tinha visto os Rosenberg em pessoa e, portanto, era uma coisa tremendamente grave e importante o que ela estava contando, tão grave que aquelas pessoas foram fritadas por causa disso, que pensamento aterrador era aquele, ser fritado como um pedaço de galinha submerso numa frigideira de óleo quente e borbulhante. Ele perguntou à prima o que os Rosenberg supostamente tinham feito para merecer tal castigo, e Francie explicou que foram acusados de transmitir segredos para os russos, segredos vitais relativos à construção de bombas atômicas, e como os russos eram comunistas, o que fazia deles inimigos mortais, os Rosenberg tinham de ser condenados por traição, um crime medonho que significava que você havia traído seu país e tinha de ser condenado à morte, mas nesse caso o crime tinha sido cometido pelos Estados Unidos, o governo americano tinha massacrado duas pessoas inocentes, e então, citando as palavras de seu namorado e futuro marido, Francie disse: Gary acha que os Estados Unidos enlouqueceram.

Essa conversa atingiu Ferguson como um soco na barriga, e ele se sentiu perdido e assustado como na hora em que seus dedos escorregaram do galho e ele começou a cair da árvore, aquela sensação apavorante de desamparo, nada senão ar em volta e embaixo, nem mãe nem pai nem Deus nem nada a não ser o vazio do puro nada, e seu corpo a caminho do chão, sem nada dentro da cabeça a não ser o medo do que ia acontecer quando chegasse lá. Seus pais nunca falavam com ele sobre coisas como a execução dos Rosenberg, eles o protegiam de bombas atômicas, inimigos mortais, falsos veredictos, filhos órfãos, adultos fritados, e ouvir Francie contar tudo isso num grande jorro de emoção e indignação pegou Ferguson de surpresa, não como um soco na barriga, exatamente; parecia antes uma cena retirada de algum desenho animado que ele via na televisão: um cofre de ferro que despenca de uma janela do décimo andar e cai bem em cima da sua cabeça. Bum! Uma conversa de cinco minutos com a prima Francie e tudo ficou arrasado. Lá fora, havia um mundo vasto, um mundo de bombas e guerras e cadeiras elétricas, e ele sabia pouco ou nada sobre isso. Era um bobo, tão completamente bobo e desamparado que achava embaraçoso ser ele mesmo, uma criança idiota, presente, porém não responsável, um corpo que ocupava um espaço do mesmo modo que uma cadeira ou uma cama ocupava um espaço, nada mais do que um zero à esquerda e, se ele quisesse modificar aquilo, teria de começar agora. A srta. Lundquist contou para sua turma do jardim de infância que eles iam aprender a ler e escrever na primeira série, que não fazia sentido apressar as coisas, e que eles estariam mentalmente prontos para começar no ano seguinte, mas Ferguson não podia esperar até o ano seguinte, tinha de começar agora ou então se condenar a mais um verão de ignorância, pois ler e escrever eram o primeiro passo, concluiu, o único passo que ele estava em condições de dar, como uma pessoa sem qualquer responsabilidade, e se existia no mundo alguma justiça, do que ele começava a duvidar seriamente, então algo ia aparecer no seu caminho e lhe ajudar.

No fim da semana, a ajuda apareceu na forma de sua avó, que veio de carro com o avô de West Orange, no domingo, e se instalou no quarto ao lado do seu, para uma visita que se estendeu até quase o fim de julho. Ele tinha arranjado um par de muletas um dia antes de a avó aparecer, o que lhe permitia se movimentar com liberdade pelo primeiro andar da casa e eliminava as humilhações da garrafa de leite, mas descer ao térreo sozinho ainda estava fora de questão, a viagem pela escada era perigosa demais e, assim, ele tinha de ser carregado por alguém, mais uma ofensa que tinha de suportar em silêncio e com um rancor latente, e como a avó era fraca demais e Wanda era pequena demais, eram seu pai e sua mãe que tinham de carregá-lo, o que tornava necessário descer de manhã bem cedo, pois o pai saía para trabalhar um pouco depois das sete horas e a mãe continuava a procurar o lugar certo para instalar seu estúdio, mas azar, ele não se importava de dormir tarde, e era preferível passar as manhãs e as tardes na varanda fechada com tela a apodrecer no túmulo gelado no primeiro andar, e, já que o tempo estava em geral quente e úmido, os pássaros estavam voltando ao cenário agora, e eles compensavam de sobra qualquer desconforto. A varanda foi onde ele, afinal, venceu os mistérios das letras, palavras e sinais de pontuação, onde lutou, sob a tutela da avó, para dominar coisas esquisitas como where e wear, wheter e weather, rough e stuff, ocean e motion,* quebra-cabeças assombrosos como to, too e two. Até então, ele nunca tinha se sentido particularmente próximo da mulher a quem o destino havia escolhido para servir como sua avó, sua nebulosa Nana, do centro de Manhattan, pessoa benévola e afetuosa, ele supunha, mas tão calada e contida que era difícil estabelecer um vínculo com ela, e toda vez que estava com os avós, seu turbulento avô, sempre cheio de distrações, parecia tomar todo o espaço e deixava a avó na sombra, quase inteiramente apagada. Com seu corpo redondo e atarracado, as pernas grossas, as roupas antiquadas e em desalinho, os sapatos pesados com saltos grossos e baixos, ela deixou em Ferguson a impressão de ser uma pessoa que pertencia a outro mundo, uma habitante de outro tempo e lugar e, em consequência, ela jamais conseguia, neste mundo, se sentir em casa, só conseguia viver no presente como uma espécie de turista, como se estivesse só de passagem, ansiosa para voltar para o lugar de onde tinha vindo. No entanto, ela sabia tudo que havia para saber sobre ler e escrever e, quando Ferguson lhe perguntou se não gostaria de ensiná-lo a ler e escrever, ela deu uma palmadinha no seu ombro e disse que era claro que ia ajudar, seria uma honra. Emma Adler, esposa de Benjy, mãe de Mildred e Rose, revelou-se uma professora paciente, embora lenta, e se atirou à tarefa de ensinar o neto com um rigor sistemático, começando com um exame para avaliar os conhecimentos de Ferguson, no primeiro dia, pois precisava saber exatamente quanto ele havia aprendido até então, antes de traçar um plano de ação adequado. Ela ficou animada com o fato de ele já conseguir reconhecer as letras do alfabeto, todas as vinte e seis letras, a maioria das letras minúsculas e todas as maiúsculas e, como ele já estava tão adiantado, disse ela, seu trabalho seria muito menos complicado do que pensara. As aulas que deu para ele, em seguida, foram divididas em três partes, escrever por noventa minutos, pela manhã, seguidas por uma pausa para o almoço, ler por noventa minutos, de tarde, e então, depois de mais uma pausa (para limonada, ameixas e biscoitos), quarenta e cinco minutos de leitura em voz alta, enquanto os dois ficavam sentados no sofá da varanda e ela ia apontando para as palavras que achasse que seriam difíceis para ele entender, e o dedo indicador gorducho da avó ia batendo na página, embaixo da caligrafia traiçoeira de palavras como “intrigue”, “melancholy” e “thorough” e, enquanto Ferguson ficava sentado a seu lado, sentindo os aromas da loção de mão e do perfume de água de rosas da avó, imaginava o dia em que tudo aquilo se tornaria automático para ele, quando seria capaz de ler e também escrever como qualquer outra pessoa que tivesse vivido. Ferguson não era uma criança hábil, como sua queda do carvalho havia comprovado, sem falar dos outros tombos e trambolhões que assombraram o início de sua vida, e a parte da escrita lhe trouxe mais dificuldade do que a parte da leitura. A avó dizia: Olhe só como eu faço, Archie, e então ela escrevia devagar uma letra seis ou sete vezes seguidas, o “B” maiúsculo, por exemplo, ou “f” minúsculo, e depois disso Ferguson tentava imitar, às vezes com sucesso logo de primeira, outras vezes sem conseguir acertar, e toda vez que ele continuava a não conseguir depois da quinta ou sexta tentativa, sua avó colocava a mão em cima da mão dele, embrulhava seus dedos nos dedos dela e, então, guiava o lápis por cima da página, enquanto as duas mãos executavam a letra da maneira correta. Essa técnica de pele com pele ajudou a acelerar seu progresso, pois retirou o exercício do reino das formas abstratas e as tornou táteis e concretas, como se os músculos em sua mão estivessem sendo treinados a executar a tarefa particular exigida pelo contorno de cada letra e, ao repetir o exercício muitas vezes, todo dia repassando as letras que já havia aprendido e acrescentando mais quatro ou cinco novas, Ferguson acabou assumindo o controle da situação e parou de cometer erros. Com a parte da leitura, as aulas avançavam com tranquilidade, pois não havia nenhum lápis envolvido e ele podia voar à vontade, encontrando poucos obstáculos, enquanto passava de frases com três ou quatro palavras para frases de dez ou quinze palavras, no decorrer de duas semanas, e era enorme sua determinação de se tornar um leitor habilitado antes da estadia da avó terminar, era quase como se estivesse se obrigando a entender, forçando sua mente a entrar num estado de tamanha receptividade que, uma vez que aprendia um fato novo, ele se fixava e não era mais esquecido. Uma a uma, a avó listava frases para ele e, uma a uma, ele lia para ela, começando com Meu nome é Archie e seguindo para Olhe Ted correr e para Está muito quente esta manhã e para Quando vão tirar seu gesso? e para Acho que amanhã vai chover e para Os passarinhos cantam mais bonito do que os pássaros grandes, que interessante! e para Estou velha e não consigo lembrar como aprendi a ler, mas duvido que tenha aprendido tão depressa como você, e depois ele completou seu primeiro livro, O conto dos dois ratos malvados, uma história sobre dois roedores, Tom Polegar e Hunca Munca, que ficavam confinados e faziam o maior estrago na casinha de boneca de uma menina, porque a comida que tem lá dentro não é de verdade, mas feita de gesso, e Ferguson se deliciou a valer com a violência da fúria destrutiva dos ratinhos, com o rebuliço por causa do choque de sua fome frustrada, insatisfeita, e, quando estava lendo o livro em voz alta para a avó, só pulou umas poucas palavras, palavras difíceis cujo significado lhe escapava, como “perambular”, “encerado”, “capacho” e “queijeiro”. Uma história boa, disse ele para a avó depois que terminou, e bem engraçada também. É, ela concordou, uma história extremamente divertida, e depois, quando beijou o neto no topo da cabeça, acrescentou: nem eu seria capaz de ler tão bem.

No dia seguinte, a avó o ajudou a escrever uma carta para tia Mildred, que ele não via já fazia quase um ano. Agora ela estava morando em Chicago, onde era professora e dava aula para estudantes de faculdade já crescidos, como Gary, embora Gary estudasse numa faculdade diferente da dela, o Williams College em Massachusetts, ao passo que a faculdade da tia se chamava Universidade de Não Sei o Quê. Quando pensou em Gary, naturalmente ele começou a pensar também em Francie e lhe pareceu peculiar que a prima já andasse falando em casamento aos dezessete anos de idade, quando a tia Mildred, que era dois anos mais velha do que sua mãe — o que fazia dela uma pessoa muitos anos mais velha do que a Francie —, ainda não estivesse casada com ninguém. Ele perguntou à avó por que a tia Mildred não tinha marido, mas pelo visto não existia nenhuma resposta para a pergunta, pois a avó balançou a cabeça e confessou que não sabia, imaginando que talvez fosse porque Mildred vivia ocupada demais com o trabalho, ou então porque simplesmente ainda não tinha encontrado o homem certo. Então a avó lhe deu um lápis e uma folhinha de papel pautado, explicando que aquele era o melhor tipo de papel para escrever letras, mas, antes de começar, ele tinha de pensar com cuidado no que queria dizer para a tia e, além disso, tinha de lembrar que devia manter as frases curtas, não porque ele não fosse capaz de ler frases compridas, agora, mas escrever já era outra história, e como traçar as letras era um processo vagaroso, a avó não queria que ele perdesse o impulso e parasse antes do fim.

Querida tia Mildred, escreveu Ferguson, enquanto a avó soletrava as palavras para ele, na sua voz aguda e ondulante, marcando bem o som de cada letra como se fosse uma cançãozinha, a melodia subia e descia enquanto a mão de Ferguson avançava pouco a pouco sobre a página. Eu caí de uma árvore e quebrei a perna. Nana está aqui. Ela está me ensinando a ler e escrever. Francie pintou meu gesso de azul, vermelho e amarelo. Ela está de cabeça virada por causa daquelas pessoas que fritaram. Os passarinhos estão cantando no quintal. Hoje, contei onze tipos de passarinhos. Meus favoritos são os tentilhões amarelos. Li o Conto dos Dois Ratos Malvados e Pewee, o Cachorro do Circo. Qual você prefere, sorvete de baunilha ou de chocolate? Tomara que você venha nos visitar logo. Amor, Archie.

Houve certa discórdia sobre o uso da palavra “fritaram”, que a avó considerou uma forma demasiado vulgar de falar de um fato trágico, mas Ferguson fez questão de que fosse daquele jeito, a expressão não podia ser mudada, porque foi assim que Francie apresentou o assunto para ele, e ele achava que era uma palavra boa, exatamente porque era viva e nojenta. De todo jeito, a carta era dele, não era?, e ele podia escrever o que quisesse. Mais uma vez, a avó balançou a cabeça. Você nunca dá o braço a torcer, não é, Archie? Ao que o neto respondeu: Por que devia dar o braço a torcer, se eu estou certo?

Pouco tempo depois de terem selado a carta, a mãe de Ferguson chegou em casa de maneira inesperada, fazendo barulho na rua com seu novo Pontiac vermelho de duas portas que ela dirigia desde que a família se mudara para West Orange, três anos antes, o carro a que Ferguson e seus pais se referiam como o Tomate de Jersey, e quando ela terminou de guardar o carro na garagem, avançou pelo gramado em passadas largas, na direção da varanda, movendo-se num passo mais ligeiro do que o normal, um ritmo acelerado que parecia ficar entre andar e correr, e quando já estava perto o suficiente para que Ferguson distinguisse suas feições, viu que ela estava sorrindo, um sorriso aberto, um sorriso extraordinariamente radiante e aberto, e então levantou o braço e acenou para a mãe e o filho, uma saudação calorosa, sinal de que estava num excelente estado de humor, e mesmo antes de subir a escadinha e se unir a eles na varanda, Ferguson já sabia exatamente o que ela ia dizer, pois, pelo seu regresso tão cedo e pela expressão animada no rosto, estava claro que sua longa busca tinha, afinal, chegado ao fim, que o local para seu estúdio fotográfico tinha sido encontrado.

Ficava em Montclair, disse ela, só um pulo de West Orange até lá, e o lugar não era só amplo o bastante para acomodar tudo de que ela ia precisar, como também ficava plantado bem no meio da zona mais movimentada. Havia obras a serem feitas, é claro, mas, primeiro, o aluguel só ia começar a ser cobrado em setembro, o que daria a ela tempo bastante para desenhar o projeto e começar a construção logo no primeiro dia. Que alívio, disse ela, boas notícias finalmente, só que ainda havia um problema. Tinha de dar um nome ao estúdio, mas ainda não havia gostado de nenhuma de suas ideias até então. Foto Ferguson não era bom, por causa do som de dois efes. Foto Montclair era insosso demais. Retratos de Rose era muito pretensioso. Foto Rose não funcionava, por causa do duplo som da letra O. Retratos do Subúrbio fazia pensar num manual de sociologia. Imagem Moderna não era ruim, mas fazia pensar numa revista sobre fotografia, e não num estúdio fotográfico de carne e osso. Retratista Ferguson. Câmera Central. F-Stop Photo. Vila da Câmera Escura. Ponto do Farol. Foto Rembrandt. Foto Vermeer. Foto Rubens. Foto Essex. Não dava, disse ela, todos eles a faziam torcer o nariz, e seu cérebro ficou entorpecido.

Ferguson interrompeu com uma pergunta. Qual era mesmo o nome do lugar onde seu pai tinha levado sua mãe para dançar, perguntou, alguma coisa com a palavra “rose” no meio, o lugar aonde eles iam antes de se casarem? Ele lembrava que a mãe tinha contado, certa vez, porque os dois se divertiam muito lá, eles dançavam até a cabeça rodar.

Roseland, disse a mãe.

Então a mãe de Ferguson virou-se para sua mãe e perguntou o que ela achava de Foto Roseland.

Eu gosto, disse a mãe dela.

E você, Archie?, perguntou a mãe. O que você acha?

Eu também gosto, respondeu.

Então, está feito, disse a mãe. Pode não ser o melhor nome que já inventaram, mas bate bem no ouvido. Vamos pensar nisso, durante a noite. Se amanhã de manhã a gente ainda gostar, talvez o problema esteja resolvido.

Naquela noite, enquanto Ferguson, seus pais e sua avó dormiam em suas camas no primeiro andar da casa, o Mundo do Lar Três Irmãos era totalmente destruído por um incêndio. O telefone tocou às quinze para as cinco da manhã e, minutos depois, o pai de Ferguson estava em seu Plymouth verde-garrafa, seguindo para Newark a fim de inspecionar os danos. Como o ar-condicionado funcionava a todo vapor no quarto de Ferguson, ele continuou dormindo durante o telefonema e durante a comoção da partida afobada do pai, antes do raiar do dia, e só quando acordou, às sete horas, descobriu o que tinha acontecido. Sua mãe parecia agitada, tão confusa e perturbada como nunca Ferguson a tinha visto; já não se comportava como a rocha de autocontrole e sabedoria que ele sempre achou que ela fosse, mas como alguém igualzinho a ele mesmo, um ser frágil, vítima da tristeza, das lágrimas e da desespe­rança e, quando ela pôs os braços em volta dele, Ferguson se sentiu assustado, não só porque a loja do pai tinha pegado fogo e virado cinzas e não haveria mais dinheiro para eles viverem, o que queria dizer que teriam de se mudar pa­ra o asilo de pobres e viver à base de mingau e pedaços de pão seco pelo resto da vida, não, isso já era muito ruim, mas o que era realmente assustador era descobrir que a mãe não era mais forte do que ele, que os golpes do mundo a faziam sofrer tanto quanto ele sofria e que, a não ser pelo fato de ser mais velha, não existia nenhuma diferença entre os dois.

Coitado do seu pai, disse a mãe. Passou a vida toda construindo aquela loja, trabalhou e trabalhou e trabalhou, e agora tudo virou pó. Alguém acende um fósforo, um fio de eletricidade entra em curto na parede, e vinte anos de trabalho duro se transformam num monte de cinzas. Deus é cruel, Archie. Ele devia proteger as pessoas boas deste mundo, mas não protege. Ele faz essas pessoas sofrerem tanto quanto as pessoas malvadas. Ele mata David Raskin, ele queima a loja do seu pai, deixa pessoas inocentes morrerem em campos de concentração, e ainda dizem que Deus é misericordioso e bom. Que piada.

A mãe fez uma pausa. Lágrimas pequenas cintilavam em seus olhos, Ferguson percebeu, e ela estava mordendo o lábio inferior, como se estivesse impedindo que mais palavras saíssem da boca, como se entendesse que já tinha ido longe demais, que ela não tinha nenhum direito de expressar tamanha amargura na frente do filho de seis anos de idade.

Não se preocupe, disse ela. Estou só abalada, só isso. Seu pai fez seguro contra incêndio e nada vai acontecer conosco. Um lance ruim de má sorte, só isso, mas é apenas temporário, e no fim todos nós vamos ficar bem.

Você sabe disso, não sabe, Archie?

Ferguson fez que sim com a cabeça, mas só porque não queria que a mãe continuasse aflita. Sim, talvez eles ficassem bem, pensou, porém, mais uma vez, se Deus era cruel como ela disse que era, talvez eles não ficassem bem. Não havia segurança de nada. Pela primeira vez desde que veio ao mundo, dois mil trezentos e vinte e cinco dias antes, tudo era possível.

E não só isso — quem diabo era esse tal de David Raskin?

* Palavras do inglês, em geral, com pronúncia semelhante, mas grafia distinta. (N. T.)


1.3

Seu primo Andrew morreu. Alvejado em combate, foi como o pai de Ferguson explicou para ele, e o combate em questão era uma patrulha noturna nas montanhas gélidas entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, uma única bala disparada por um soldado chinês comunista, disse o pai, que acertou o coração de Andrew e o matou, aos dezenove anos de idade. Foi em 1952, e Ferguson, aos cinco anos, achou que devia se sentir tão arrasado como todo mundo na sala, tia Millie e a prima Alice, para começar, que não conseguiam suportar mais de dez minutos sem perder o controle e começar a chorar mais uma vez, e o triste tio Lew, que fumava um cigarro depois do outro e não parava de olhar para o chão, mas Ferguson não conseguia sentir a dor que ele achava que esperavam dele, havia algo de falso e artificial em tentar ficar triste, quando ele não estava triste, pois a verdade era que nunca tinha gostado de Andrew, que o primo o chamava de traste, nanico e cabeça-oca, que ficava dando ordens para ele nas festas da família e, certa vez, trancou Ferguson dentro de um armário para ver se ele era homem para aguentar, e mesmo quando deixava Ferguson em paz, havia as coisas que ele dizia para sua irmã Alice, os epítetos cortantes como cara de porca e cérebro de cachorro e pernas de lápis, que faziam Ferguson se contrair de nojo, sem falar do prazer que Andrew parecia ter em dar rasteiras e socos no primo Jack, que era só um ano mais jovem do que Andrew, porém meia cabeça mais baixo que ele. Até os pais de Ferguson admitiam que Andrew era um menino-problema, e, desde quando Ferguson se entendia por gente, vivia ouvindo histórias das encrencas do seu primo na escola, respondendo aos professores, pondo fogo nas latas de lixo, quebrando janelas, sendo reprovado, eram tantos desmandos que o diretor, afinal, o expulsou do colégio no meio do terceiro ano do ensino médio e aí, depois que foi apanhado roubando um carro, o juiz lhe ofereceu uma escolha, a cadeia ou o Exército, e então Andrew entrou no Exército e, seis semanas depois de ser embarcado para a Coreia, morreu.

Passariam anos, antes de Ferguson entender todo o impacto daquela morte em sua família, pois na época ele era pequeno demais para alcançar qualquer outra coisa que não o efeito final daquilo sobre ele mesmo, que não se tornou manifesto senão quando ele tinha sete anos e meio e, portanto, os dois anos entre o enterro de Andrew e o acontecimento que fez seu pequeno mundo em pedaços passaram numa névoa de infância, sempre conjugada no presente, as questões mundanas da escola, dos esportes e dos jogos, amizades, programas de televisão, revistas em quadrinhos, livros, doenças, joelhos esfolados e braços e pernas machucados, uma ou outra briga, dilemas morais e inúmeras questões sobre a natureza da realidade, e, ao longo de tudo isso, ele continuava a amar seus pais e, em troca, sentia-se amado por eles, sobretudo por sua mãe, Rose Ferguson, carinhosa e bem-humorada, que era dona do estúdio Foto Roseland, onde ela mesma trabalhava, na rua principal em Mill­burn, a cidade onde eles moravam e, num grau menor e mais precário, por seu pai, o enigmático Stanley Ferguson, que falava pouco e, muitas vezes, parecia apenas ligeiramente consciente da existência do filho, mas Ferguson compreendia que o pai tinha muita coisa na cabeça, compreendia que tomar conta da loja Mundo do Lar Três Irmãos era um trabalho em tempo integral, o que necessariamente significava que ele vivia distraído, mas nos raros momentos em que não estava distraído e conseguia concentrar os olhos no filho, Ferguson sentia-se confiante de que o pai sabia quem era ele, de que não o confundia com ninguém mais. Em outras palavras, Ferguson sentia-se seguro, suas necessidades materiais eram atendidas de maneira coerente e conscienciosa, um teto sobre a cabeça, três refeições por dia, roupas lavadas, nenhum sofrimento físico para suportar, nenhum tormento emocional para barrar seu progresso e, naqueles anos, entre os cinco anos e meio e os sete anos e meio de idade, ele estava se tornando aquilo que os educadores chamariam de uma criança saudável e normal, de inteligência acima da média, um belo exemplar da infância americana de meados do século XX. Mas estava envolvido demais no tumulto de sua própria vida para prestar atenção no que acontecia fora do círculo de suas preocupações imediatas, e, como os pais não eram do tipo de gente que dividia suas inquietações com filhos pequenos, não havia como ele se preparar para a calamidade que desabou em cima dele, no dia 3 de novembro de 1954, que o expulsou de seu paraíso infantil e transformou sua vida numa vida completamente diferente.

Entre as muitas coisas sobre as quais Ferguson não sabia nada, antes daquele momento fatídico, figuravam as seguintes:

1) A extensão da dor de Lew e Millie por causa da morte do filho, misturada com o fato de que eles se viam como pais fracassados, tendo criado o que consideravam ser uma pessoa nociva, um delinquente infantil sem consciência nem base moral, um debochador das regras e da autoridade, que adorava criar confusão sempre que podia, um mentiroso, um vigarista de ponta a ponta, uma ovelha negra, e Lew e Millie se torturavam com aquele fracasso, se perguntavam se não teriam sido rigorosos demais com ele, ou brandos demais, se perguntavam o que poderiam ter feito de diferente para evitar que ele roubasse aquele carro, o que acabou sendo sua sentença de morte, e como os dois se sentiam dilacerados por terem incentivado o filho a entrar no Exército, o que acharam que poderia ajudar a colocar Andrew na linha, mas, em vez disso, eles o colocaram dentro de um caixão de madeira debaixo da terra e, portanto, sentiam-se responsáveis também por sua morte, não só por sua vida briguenta, furiosa, desperdiçada, mas também por sua morte naquela montanha gelada na desolada Coreia.

2) Lew e Millie tinham um fraco por álcool. Eram um desses casais que bebem como esporte e também por compulsão, um par descuidado e bom de copo, dois sedutores teatrais, toda vez que eram estimulados dentro do raio de alcance de suas aptidões, que eram consideráveis, mas, por incrível que pareça, era a magérrima Millie que parecia a mais resistente dos dois, raramente cambaleava ou gaguejava, por pouco que fosse, ao passo que o marido, muito maior, às vezes até perdia as estribeiras e, antes mesmo da morte de Andrew, Ferguson se lembrava de uma vez em que viu o tio apagado no sofá e roncando, no meio de uma festa barulhenta da família, o que todo mundo achou muito engraçado na ocasião, mas agora, na esteira da morte, o fraco pela bebida aumentou em Lew, se alastrou para além das festas, dos coquetéis, dos drinques pós-jantar, passando para doses generosas na hora do almoço e goladas secretas sorvidas da garrafa que ele carregava escondida no bolso de dentro do paletó, o que sem dúvida ajudava a entorpecer a dor que se contorcia dentro de seu coração atravessado e devastado pela culpa. Mas a bebedeira começou a afetar seu trabalho na loja, às vezes o fazia ficar falando asneiras, quando conversava com fregueses sobre os méritos relativos das máquinas de lavar Whirlpool e Maytag e, quando não estava apalermado, às vezes se tornava irritadiço e, quando estava irritadiço, muitas vezes ele sentia prazer em insultar pessoas, o que não era, de jeito nenhum, maneira de conduzir os negócios na loja Mundo do Lar Três Irmãos, e assim o pai de Ferguson tinha de se meter, puxar Lew para o lado e afastá-lo do freguês ofendido, e dizer para ele ir para casa e se curar do porre.

3) Um fato conhecido a respeito de Lew era seu fraco pelo jogo. Se não fosse o emprego de Millie como compradora da loja de departamentos Bamberger no centro de Newark, a família teria ido à falência muitos anos antes, pois a maior parte do que Lew ganhava no Mundo do Lar Três Irmãos tendia a acabar no bolso do seu agente de apostas. Agora, assim como seu fraco pela bebida estava se expandindo e saindo do controle, o mesmo acontecia com seu gosto por palpites com pouquíssimas chances de acerto, o sonho do lance espetacular, que só acontece uma vez na vida, o tipo de aposta lendária sobre a qual os apostadores vão ficar falando durante décadas, e quanto mais excêntricos seus palpites se tornavam, maiores eram seus prejuízos. Em agosto de 1954, sua dívida era de trinta e seis mil dólares, e Ira Bernstein, o homem que cuidava de suas apostas já havia doze anos, estava começando a perder a paciência. Lew precisava de dinheiro, não menos de doze mil dólares, uma bolada de peso para provar suas boas intenções, senão os rapazes com tacos de beisebol e soco inglês iam acabar dando as caras para fazer uma visitinha, e, como ele não podia pedir dinheiro ao Stanley, ciente de que o irmão tinha falado sério quando disse que nunca mais ia tirá-lo de um apuro, acabou roubando aquele dinheiro de Stanley, bloqueando um cheque da loja Três Irmãos para o fornecedor da G.E. e transferindo o dinheiro para si mesmo. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria descoberto, mas levaria certo tempo para que a discrepância nas contas aparecesse, pois o fluxo de caixa para os produtos entre a loja e seus fornecedores se dava num sistema de confiança mútua, e a contabilidade tinha uma defasagem de meses em relação aos negócios presentes, e aqueles meses lhe dariam o tempo necessário para pôr suas contas nos eixos outra vez. No fim de setembro, a chance do tio de Ferguson apareceu. Tratava-se de bloquear outro cheque, mas, se tudo corresse bem, os nove mil dólares do desfalque se transformariam numa bolada dez vezes maior, o que seria mais do que o suficiente para repor os dois cheques bloqueados, pagar toda a dívida com Bernstein e ainda sair com uma bela grana na mão, só para si. A série final do campeonato nacional de beisebol estava prestes a começar, com os Indians muito mais favoritos do que os Giants, a certeza era tamanha que mal valia a pena o esforço de apostar no time de Cleveland, mas aí Lew pensou: se os Indians foram um clube tão forte, o que impedia que ganhassem quatro partidas seguidas? Os ganhos possíveis numa aposta como essa eram mais do que sedutores. Dez por um, de uma só vez, ao passo que apostar seu dinheiro no time de Cleveland, uma partida de cada vez, renderia meros centavos de lucro. Por isso, Lew arranjou outro agente de apostas, ou seja, alguém cujo nome não era Bernstein, e apostou nos Indians os nove mil e duzentos dólares que tinha roubado do irmão, achando que eles iam completar toda a série de partidas sem sofrer uma derrota sequer para os Giants. Ninguém soube onde o tio de Ferguson assistiu à primeira partida, mas, enquanto Stanley e Arnold e o resto da equipe de funcionários do Mundo do Lar Três Irmãos se juntaram em torno dos televisores na loja para acompanhar a partida, junto com cinquenta ou sessenta fregueses que tinham entrado de fininho e que, na verdade, nem eram fregueses, e sim torcedores dos Giants que não tinham televisor em casa, Lew escapuliu sorrateiramente para ver o jogo sozinho, na certa em algum bar próximo ou em outro lugar qualquer, um ponto ignorado onde ninguém o viu sofrer os horrores de ter de assistir à maneira como Mays apanhou a bola rebatida por Wertz no auge do oitavo tempo e depois, mais horrível ainda, à devastadora calamidade que sucedeu alguns minutos depois, quando ele viu Rhodes rebater o arremesso de Lemon e mandar a bola nas arquibancadas da direita. Uma bola foi rebatida pelo taco de um jogador e a vida de outro homem se fez em ruínas.

4) Em meados de outubro, o fornecedor da G.E. comunicou a Stanley que não tinham registro do pagamento de um caminhão de congeladores, aparelhos de ar-condicionado, ventiladores e geladeiras que haviam sido entregues no início de agosto. Desconcertado, Stanley foi falar com a contadora da Três Irmãos, Adelle Rosen, uma viúva gorducha de cinquenta e seis anos que ficava com um lápis amarelo enfiado no cabelo e acreditava nas virtudes da caligrafia precisa e das colunas rigorosamente alinhadas, e quando Stanley explicou o problema, a sra. Rosen puxou o livro de registro dos cheques da empresa, que ficava na gaveta da sua escrivaninha, e achou o canhoto do cheque do dia 10 de agosto, que mostrava que o pagamento fora feito na íntegra, na quantia que era devida, 14 237,16 dólares. Stanley deu de ombros. O cheque devia ter se perdido no correio, disse ele, e então pediu à sra. Rosen para bloquear o pagamento do cheque de agosto e fazer um novo para o fornecedor da G.E. No dia seguinte, a sra. Rosen, muito intrigada, comunicou a Stanley que um pedido de bloqueio daquele mesmo cheque já tinha sido feito desde o dia 11 de agosto. O que aquilo podia significar? Por um brevíssimo instante, Stanley se perguntou se a sra. Rosen o teria enganado, se a sua funcionária, leal até aquele dia, amplamente conhecida por estar secretamente apaixonada por ele ao longo dos últimos onze anos, não era culpada de maquiar os livros de contabilidade, mas então fitou bem nos olhos da sra. Rosen, perturbados, cheios de adoração, e descartou aquela ideia como absurda. Chamou Arnold no escritório dos fundos e perguntou o que sabia sobre os catorze mil dólares sumidos, mas Arnold, que pareceu tão chocado e confuso quanto a sra. Rosen se mostrara em face do mesmo mistério, disse que ele não conseguia nem começar a imaginar o que estava acontecendo, e Stanley acreditou no irmão. Depois, chamou Lew. O membro mais velho do clã negou tudo, a princípio, mas Stanley não gostou da maneira como o irmão desviava os olhos dele, mirava a parede atrás de seus ombros, enquanto conversavam, por isso aumentou a pressão, apertou Lew com a questão do cheque bloqueado em agosto, deixou bem claro que ele era o único que poderia ter feito aquilo, o único candidato possível, pois a sra. Rosen era inocente, bem como Arnold e o próprio Stanley, e portanto só podia ser Lew, e então Stanley começou a martelar a questão das recentes atividade de Lew no terreno das apostas, quis saber as quantias exatas que ele havia jogado, a extensão total de suas perdas, que partidas de beisebol, que partidas de futebol americano, que lutas de boxe, e quanto mais Stanley pressionava, mais Lew parecia fraquejar, como se os dois estivessem trocando socos num ringue e cada palavra fosse mais um golpe, um direto na barriga, na cabeça e, pouco a pouco, Lew começou a vacilar, como se os joelhos estivessem prestes a se dobrar e, de repente, ele sentou na cadeira e afundou o rosto nas mãos, soluçando uma confissão entrecortada e quase inaudível. Stanley ficou estupefato com o que ouviu, pois a dura realidade era que Lew não lamentava nem um pouco o que havia feito e, se lamentava alguma coisa, era só o fato de que seu plano não tinha dado certo, seu plano lindo e impecável, mas os Indians o deixaram na mão e perderam a primeira partida da série, o desgraçado do Willie Mays, o desgraçado do Dusty Rhodes, e Stanley finalmente entendeu que o irmão era um caso perdido, que quando um homem adulto apontava o dedo para dois jogadores e achava que eles eram a causa de seus problemas, isso queria dizer que sua mente não era mais desenvolvida do que a mente de uma criança, uma criança meio idiota, aliás, alguém tão limitado e incapacitado como o próprio filho de Lew, o soldado raso Andrew Ferguson, morto e enterrado. Stanley teve a tentação de dizer ao irmão que fosse embora da loja e nunca mais voltasse, mas não podia fazer isso, seria algo muito súbito, muito drástico, e enquanto ponderava sobre o que ia dizer, ciente de que não podia falar nada antes que sua raiva amainasse de algum jeito, ou pelo menos não baixasse o nível a ponto de depois se arrepender de suas palavras, Lew começou a falar de novo e o que disse para Stanley foi que eles todos estavam atolados naquilo até o pescoço e que a loja tinha chegado ao fim. O pai de Ferguson não tinha a menor ideia do que Lew estava falando, por isso conteve a língua mais um pouco, começando a achar que o irmão talvez tivesse, de fato, enlouquecido, e então Lew começou a falar sobre Bernstein e sobre quanto dinheiro devia para ele, mais de vinte e cinco mil dólares agora, mas aquilo era só a ponta do iceberg, pois Bernstein estava cobrando juros, e todo dia a quantia subia, subia, subia, e nas duas semanas anteriores tinha recebido um punhado de telefonemas, uma voz do outro lado da linha o ameaçava, exigia que pagasse o que devia, senão ia sofrer as consequências, o que, de várias formas, significava que um bando de homens ia pular em cima dele no escuro e quebrar todos os ossos de seu corpo, ou então cegar seus olhos com ácido, ou cortar a cara de Millie, ou raptar Alice, ou matar Millie e Alice, e ele estava apavorado, disse Lew para o irmão, tão apavorado que nem conseguia mais dormir, e como é que ia conseguir arranjar dinheiro, afinal sua casa já estava hipotecada duas vezes e ele já tinha tomado emprestado da loja vinte e três mil dólares? Agora, os joelhos de Stanley também começaram a dobrar, sentiu-se desorientado e tonto, um pouco fora de si, já não estava mais contido na própria pele, e então sentou numa cadeira do outro lado da escrivaninha, de frente para Lew, imaginando como catorze mil dólares, de repente, tinham se transformado em vinte e três mil dólares, e enquanto os dois irmãos olhavam um para o outro por cima da mesa cinzenta de metal, Lew contou para Stanley que Bernstein tinha apresentado uma proposta e, até onde ele sabia, era o único jeito de sair da encrenca, a única solução possível e, gostasse Stanley ou não, aquilo tinha de ser feito. Do que você está falando?, perguntou Stanley, falando pela primeira vez depois de sete minutos. Eles vão incendiar a loja para nós, disse Lew, e depois que a gente receber o seguro, todo mundo pega uma parte. Stanley não disse nada. Não disse nada, porque não tinha de dizer nada, porque o único pensamento em sua cabeça naquele momento era a vontade que tinha de matar o irmão e, caso se atrevesse a falar aquelas palavras em voz alta e dizer para Lew como tinha vontade de pôr as mãos em volta da sua garganta e estrangulá-lo até a morte, sua mãe o amaldiçoaria do fundo da sepultura e o torturaria pelo resto da vida. Por fim, Stanley se levantou e começou a andar na direção da porta e, depois que a abriu, fez uma pausa na soleira e disse: Não acredito em você. E saiu da sala e, de costas para o irmão, ouviu Lew dizer: Acredite em mim, Stanley. Tem de ser feito.

5) O primeiro impulso de Stanley foi falar com Rose, aliviar aquele fardo com a esposa e pedir sua ajuda para conter Lew, mas lutou repetidas vezes para fazer as palavras saírem de sua boca e, repetidas vezes, fracassou, sempre recuava no último minuto, porque não conseguia suportar a ideia de ouvir o que ela ia dizer, o que ele sabia que ela ia dizer. Ele não podia procurar a polícia. Nenhum crime tinha sido cometido ainda e que tipo de homem acusaria o próprio irmão de tramar um crime potencial, quando não tinha nenhum indício capaz de materializar a prova de uma conspiração? Por outro lado, mesmo se Bernstein e seu irmão acabassem levando aquilo a cabo, seria Stanley capaz de ir à polícia e mandar o irmão para a cadeia? Lew estava em perigo. Havia a ameaça de ser cegado com ácido, de matarem a esposa e a filha, e se Stanley se intrometesse agora, seria responsável por aquela mutilação, por aquelas mortes, o que significava que ele também fazia parte daquilo, um conspirador involuntário e a contragosto e, se desse tudo errado e Lew e Bernstei fossem apanhados, ele não tinha dúvida de que o irmão não hesitaria em acusá-lo como cúmplice. Sim, ele desprezava Lew, sentia enjoo só de pensar nele e, no entanto, como desprezava profundamente a si mesmo por sentir aquele ódio, que era pecaminoso e grotesco e só servia para aumentar sua incapacidade de agir, pois, ao não conseguir falar com Rose, ele entendeu que tinha escolhido o passado em lugar do presente, tinha renunciado a seu lugar de marido e pai para voltar ao mundo sombrio de filho e irmão, um lugar onde ele não tinha mais o menor desejo de estar, só que não tinha como escapar, havia sido sugado de volta para lá e, durante as duas semanas seguintes, ele andou para lá e para cá num desvairado estado de horror e de fúria, isolado de todos por seu silêncio inabalável, fervendo de frustração e se perguntando quando, afinal, a bomba armada dentro de sua cabeça iria explodir.

6) Da forma como via a situação, não havia alternativa, a não ser concordar — ou fingir que concordava. Ele precisava saber o que Bernstein e companhia estavam planejando, precisava ficar a par dos detalhes e, a fim de tomar conhecimento dessas coisas, tinha de iludir Lew e dar a entender que estava do lado dele e assim, na manhã seguinte, apenas vinte e quatro horas depois da sua última conversa, o aterrador diálogo que havia terminado com as palavras “Tem de ser feito”, Stanley disse para Lew que tinha mudado de ideia; que, contra seus próprios princípios e com repugnância infinita no coração, compreendia que não havia outra saída. Aquela falsidade produziu os resultados desejados. Achando que Stanley, agora, estava no mesmo barco que ele, um Lew agradecido, trêmulo, à beira da insanidade, começou a tratar o irmão como um aliado querido e seu confidente mais leal, e nem de longe desconfiou que Stanley estava servindo como um agente duplo, cuja única intenção era barrar aquele projeto e impedir que o incêndio acontecesse.

7) Seriam dois homens, informou Lew, um incendiário experiente e sem ficha criminal ia trabalhar em dupla com um vigia, e a data estava marcada para a próxima terça-feira, do dia 2 para o dia 3 de novembro, contanto que fosse uma noite seca, sem previsão de chuva. O trabalho de Lew era desligar o alarme antifurto e dar a eles as chaves da loja. Ia passar a noite em casa e sugeria que Stanley fizesse o mesmo, mas Stanley tinha outros planos para aquela noite, ou só um plano, que era ficar plantado na loja sem luz nenhuma e expulsar o incendiário, antes que ele pudesse começar seu trabalho. Stanley quis saber se os homens viriam armados, mas Lew não tinha certeza, Bernstein se negou a tratar do assunto com ele, mas que diferença fazia, perguntou, por que se preocupar com algo que não dizia respeito a eles? Porque alguém poderia escolher a hora errada para passar pela loja, disse Stanley, um guarda, um homem com seu cachorro, uma mulher a caminho de casa depois de uma festa, e ele não queria que alguém se machucasse. Incendiar uma empresa por causa dos trezentos mil dólares do seguro já era bastante ruim, mas se algum inocente de passagem levasse um tiro e morresse, eles podiam ficar na cadeia pelo resto da vida. Lew não tinha pensado nisso. Talvez devesse levantar a questão para Bernstein, disse, mas Stanley respondeu que ele não precisava se dar a esse trabalho, pois os homens de Bernstein iriam fazer exatamente o que bem entendessem, a despeito do que Lew quisesse. Isso pôs fim à discussão, e, quando Stanley deixou o irmão e entrou na sala do mostruário do térreo, se deu conta de que aquela questão de haver ou não haver armas era a grande variável ignorada, o único fator capaz de destruir todo o plano. Fazia sentido comprar uma arma para si antes de terça-feira, pensou ele, mas algo dentro de Stanley hesitava diante da ideia, uma vida inteira de repulsa a armas, tanto que ele nunca na vida tinha dado nem um tiro sequer e nem mesmo havia segurado uma arma na mão. Seu pai tinha sido morto com um tiro, e de que tinha adiantado para ele estar com seu pró­prio revólver naquele armazém de Chicago, trinta e um anos antes, e quem sabe se ele não foi morto justamente por ter sacado sua arma primeiro, o que não deixou a seu assassino outra opção senão atirar contra ele para salvar a própria vida? Não, armas eram um negócio complicado, e depois que você aponta uma contra alguém, sobretudo alguém que esteja armado, aquilo que você achava que era sua proteção pode transformá-lo num cadáver. Além do mais, o homem que Bernstein desencavou para incendiar o Mundo do Lar Três Irmãos não era um assassino de aluguel, mas um incendiário, um ex-bombeiro, segundo a informação de Lew, essa era muito boa, um homem que no passado ganhou a vida apagando incêndios agora produzia incêndios para se divertir e ganhar dinheiro, mas para que ele ia precisar de uma arma para fazer aquilo? O vigia já era outra história, sem dúvida, um brutamontes de peito largo que ia chegar à loja armado até os dentes, mas Stanley calculou que ele ia ficar esperando do lado de fora, enquanto o ex-bombeiro fazia seu trabalho e, como Stanley já estaria dentro da loja antes que os dois aparecessem, ele concluiu que uma arma não seria necessária. Isso não significava que ficaria ali de mãos vazias, mas um taco de beisebol já serviria perfeitamente para seus propósitos, ele achava, um taco Louisville Slugger de noventa centímetros já assustaria o incendiário com tanta eficiência quanto uma pistola calibre trinta e dois e, em razão do estado mental de Stanley nas duas semanas anteriores ao dia 2 de novembro, o clamor demoníaco, semilouco e descontrolado dos pensamentos que devastavam sua cabeça desde a manhã da confissão de Lew, ele achou a ideia do taco de beisebol profunda e maldosamente divertida, tão divertida que chegou a rir alto quando teve a ideia, uma risada curta feito um latido que subiu lá do fundo dos pulmões e irrompeu de dentro dele como um jorro de chumbo grosso, usado em armas de caça, que espirra de encontro a uma parede, pois toda aquela comédia sinistra começou com um taco de beisebol, o taco usado por Dusty Rhodes no estádio Polo Grounds, no dia 29 de setembro, e quem poderia imaginar um jeito melhor de terminar aquela farsa do que empunhar outro taco de beisebol e ameaçar bater com força na cabeça do homem que queria incendiar sua loja?

8) Na tarde do dia 2, Stanley ligou para Rose para dizer que não podia jantar em casa naquela noite. Ia trabalhar até tarde com Adelle, explicou, revendo os livros de contabilidade para se preparar para uma auditoria, marcada para sexta-feira, e era provável que ficasse ocupado até meia-noite, por isso Rose não precisava esperar por ele. A loja fechava às cinco horas nas terças-feiras e, às cinco e meia, todo mundo, menos Stanley, já tinha ido embora — Arnold, a sra. Rosen, Ed e Phil, Charlie Sykes, Bob Dawkins e o ausente Lew, que ficou assustado demais para ir trabalhar naquela manhã e passou o dia em casa, com uma falsa febre. Os homens de Bernstein só apareceriam depois de uma ou duas da madrugada e, com várias horas vagas à sua frente, Stanley decidiu sair para jantar e se permitiu uma visita a seu restaurante predileto em Newark, o Moishe’s, especializado em cozinha judaica do Leste Europeu, a mesma comida que a mãe de Stanley fazia para ele, nos velhos tempos, carne cozida com raiz-forte, piergi de batata, guefilte fish e sopa de bolas de matsá, as iguarias camponesas de outros tempos, de outro mundo, e Stanley tinha só de entrar na sala de jantar do Moishe’s para se ver lançado de volta à sua infância desaparecida, pois o próprio restaurante era um mergulho no passado, deselegante, com toalhas de mesa baratas, de plástico impermeável, luminárias empoeiradas, pendentes do teto, mas todas as mesas eram enfeitadas com uma garrafa de água mineral gasosa tingida de azul ou de verde, uma visão que, por alguma razão, jamais deixou de provocar um pequeno surto de felicidade dentro dele, e, quando ouvia os garçons mal-educados, emburrados, falando em suas vozes com sotaque iídiche, aquilo lhe trazia consolo também, mas ficaria em grandes apuros se tivesse de explicar o motivo. Portanto, naquela noite, Stanley jantou os pratos de sua mocidade, começando com borsht e uma colheirada de creme azedo, seguido por um prato de arenque em conserva e depois pelo prato principal, bife de costela (bem passado) com pepinos e panquecas de batata para acompanhar, e, enquanto despejava jatos de água mineral gasosa no seu copo transparente e abria caminho pela refeição adentro, pensava nos pais mortos e em seus dois irmãos impossíveis, que tinham lhe causado tanta dor de cabeça ao longo dos anos, e também na sua linda Rose, a pessoa que ele mais amava no mundo, mas não amava o bastante, nunca amava bem o bastante, fato que já havia compreendido fazia algum tempo agora, e era doloroso para ele admitir que existia algo bloqueado e reprimido dentro dele, uma falha em sua formação que o impedia de dar a ela tanto de si mesmo quanto ela merecia, e também havia o menino, Archie, um puro enigma, esse daí, sem dúvida uma criatura cheia de vida, de raciocínio rápido, um garoto acima dos demais garotos, mas desde o início foi o queridinho da mamãe, tão ligado a ela que Stanley jamais conseguiu encontrar um meio de se aproximar, e, depois de sete anos e meio, ele ainda se sentia desorientado pela incapacidade de entender o que o menino estava pensando, ao passo que Rose sempre parecia saber, como se fosse por um conhecimento inato, algum poder inexplicável que vibrava nas mulheres, mas raramente se oferecia aos homens. Era incomum que Stanley se detivesse nesse tipo de assunto, levasse os pensamentos para dentro de si e procurasse suas falhas e suas dores, os fios rompidos de sua vida de retalhos remendados, mas aquele não era um momento comum para ele, e, depois de duas longas semanas de silêncio e conflito interior, ele estava exausto, quase incapaz de se manter de pé e, mesmo quando conseguia se manter de pé, ficava instável demais para conseguir caminhar em linha reta, e, depois que pagou a conta do jantar e estava dirigindo o carro de volta para o Mundo do Lar Três Irmãos, se perguntou se aquele seu plano fazia algum sentido, se afinal ele não tinha se iludido ao pensar que ia ter sucesso, simplesmente porque ele estava certo e Lew e os outros estavam errados e, se o caso fosse mesmo esse, talvez o melhor fosse ir para casa e deixar que a loja pegasse fogo até o fim.

9) Ele voltou para a loja um pouco depois das oito horas. Tudo escuro, tudo parado — o vazio do nada dos televisores mudos e das geladeiras Frigidaire adormecidas, um cemitério de sombras. Ele tinha pouca dúvida de que iria se arrepender pelo resto da vida daquilo que ia fazer, que seus cálculos estavam condenados a dar errado, só que não tinha nenhuma outra ideia e, agora, já era tarde demais para pensar em outra coisa. Tinha começado a empresa aos dezoito anos de idade e, nos últimos vinte e dois anos, aquilo foi sua vida, sua única vida, e ele não podia deixar que Lew e seu bando de vigaristas conseguissem destruir tudo, porque havia mais coisas naquele lugar do que um mero negócio, era a vida de um homem, e a vida desse homem era a loja, a loja e o homem eram uma coisa só e, se pusessem fogo na loja, poriam fogo no homem também. Tinham passado alguns minutos das oito horas. Quantas horas faltavam? Pelo menos quatro, talvez até cinco ou seis, um tempo longo para ficar sentado ali sem fazer nada, esperando numa sala completamente escura por um homem que ia aparecer com suas latas de gasolina e sua cartela de fósforos assassinos, mas não havia opção, exceto esperar ali em silêncio e torcer para que o taco de beisebol fosse tão forte quanto parecia. Instalou-se numa cadeira no escritório dos fundos, na cadeira da sra. Rosen, aquela que pertencia à escrivaninha no canto mais recuado, de onde Stanley tinha a melhor visão, através da janela retangular e estreita, situada na parede entre o escritório e a sala do mostruário, e assim, de onde estava sentado, ele podia ver todo o caminho até a entrada, ou poderia ver, se a loja não estivesse numa escuridão total, mas o homem da gasolina, certamente, viria com uma lanterna no bolso e, quando Stanley ouvisse a porta abrir, a luz seria acesa, mesmo que só por um ou dois segundos, e aí ele saberia onde o homem estava. Imediatamente depois disso: acender as luzes do teto, partir da sala dos fundos com o taco de beisebol em punho, erguido acima da cabeça, e ordenar que o homem fosse embora. Esse era o plano. Cruze os dedos, Stanley, disse consigo, e se a sorte não estiver do seu lado, faça o sinal da cruz e torça para morrer. Enquanto isso, continuava sentado na cadeira da sra. Rosen, que tinha rodinhas e podia girar para um lado e para o outro, além de inclinar para trás e para a frente, uma cadeira de escritório padrão, confortável o bastante para a pessoa ficar sentada por um tempo, mas dificilmente um bom lugar para longos períodos, ou seja, as quatro ou cinco horas que ainda tinha pela frente e, mesmo assim, quanto mais desconfortável, melhor, raciocinou Stanley, pois um estado mental de desconforto o ajudaria a se manter alerta. Pelo menos era o que ele pensava, mas, enquanto estava ali sentado, diante de uma escrivaninha cinzenta de metal, se balançando para trás e para a frente na cadeira da sra. Rosen, dizendo a si mesmo que aquele era o pior momento de sua vida, que nunca tinha se sentido mais infeliz ou mais solitário do que então, que mesmo se conseguisse escapar a salvo daquela noite, tudo o mais seria destruído, seria transformado em pó, pela traição de Lew e, depois daquela noite, nada mais seria igual, pois agora que ele estava traindo Lew, Bernstein iria retomar suas antigas ameaças, o que colocaria Lew e Millie em perigo outra vez, e se alguma coisa acontecesse com eles, a culpa seria de Stanley, ele teria de viver com aquela culpa e morrer com ela e, no entanto, como ele poderia deixar de fazer o que estava fazendo, como poderia permitir ser apanhado numa fraude contra a companhia de seguros e correr o risco de ir para a cadeia, não, ele não podia deixar que pusessem fogo na loja, eles tinham de ser impedidos, e, enquanto Stanley continuava a pensar essas coisas, que eram as mesmas coisas que vinha pensando e pensando sem parar nas últimas duas semanas, entendeu que não conseguia mais aguentar, que tinha chegado ao limite do que era possível para ele, que estava esgotado, exaurido além de todas as medidas, tão cansado que não conseguia suportar sua própria presença neste mundo e, pouco a pouco, seus olhos começaram a fechar e, em pouco tempo, parou de lutar para manter os olhos abertos e baixou a cabeça sobre os braços cruzados, na mesa à sua frente e, dois ou três minutos depois, dormiu.

10) Ele dormia durante o arrombamento da loja e o subsequente derramamento de quarenta e cinco litros de gasolina, e, como o homem que tinha vindo fazer o serviço não fazia a menor ideia de que Stanley estava dormindo no escritório dos fundos, riscou o fósforo que incendiou o Mundo do Lar Três Irmãos sem peso na consciência, ciente de que estava cometendo um crime de incêndio proposital, mas não de que seria também acusado de homicídio. Quanto ao pai de Ferguson, não teve como escapar. Quando abriu os olhos, estava apenas semiconsciente, incapaz de se mexer, por causa das grandes nuvens de fumaça que já havia inalado, e, quando se esforçou para erguer a cabeça e inspirar um pouco de ar nos pulmões escaldados, o fogo ardia pela porta do escritório adentro, tomou a sala e correu para a escrivaninha onde Stanley estava sentado, devorando-o vivo.

Essas eram as coisas que Ferguson ignorava, as coisas que não poderia saber, durante os dois anos que separavam a morte do primo na Guerra da Coreia da morte do pai, no incêndio em Newark. Na primavera do ano seguinte, seu tio Lew já estava na prisão, junto com o homem da gasolina, Eddie Schultz, seu cúmplice, o vigia George Ionello, e o mentor de toda a operação, Ira Bernstein, mas nessa altura Ferguson e a mãe tinham deixado o subúrbio de Nova Jersey e moravam em Nova York, num apartamento de três quartos em Central Park Oeste, entre as ruas 83 e 84. O estúdio fotográfico em Millburn tinha sido vendido, e, como o seguro de vida do pai havia rendido à mãe duzentos mil dólares livres de impostos, não havia nenhum fardo financeiro, o que significava que, mesmo na morte, o leal, pragmático, sempre responsável Stanley Ferguson continuava a sustentá-los.

Primeiro, o choque do dia 3 de novembro e, com ele, o espetáculo das lágrimas da mãe, o assalto de abraços dramáticos, sufocantes, o corpo soluçante e trêmulo da mãe apertado contra o seu e, depois, algumas horas mais tarde, a chegada dos avós de Nova York e, no dia seguinte, o aparecimento de tia Mildred e seu marido, Paul Sandler, e, durante tudo isso, o entra e sai de inúmeros Ferguson, as duas tias chorosas, Millie e Joan, o tio Arnold, de cara de pedra, e até mesmo o traiçoeiro tio Lew, ainda não desmascarado, muito caos e barulho, uma casa com gente demais, e Ferguson ficava sentado num canto e observava, sem saber o que pensar e o que dizer, ainda atônito demais para chorar. Era inconcebível que seu pai tivesse morrido. Estava vivo de manhã, sentado à mesa do café da manhã com um exemplar do jornal New­ark Star-Ledger nas mãos, dizendo para Ferguson que ia fazer um dia frio e que ele não devia esquecer de pôr o cachecol quando fosse à escola, e não fazia nenhum sentido que aquelas fossem as últimas palavras que o pai diria para ele. Os dias passaram. Ele ficou de pé, debaixo da chuva, ao lado da mãe, enquanto baixavam o pai na terra e o rabino entoava um canto fúnebre num hebraico incompreensível, palavras com uma sonoridade tão horrível que Ferguson teve vontade de tapar os ouvidos, e, dois dias depois, ele voltou à escola, para a gorda sra. Costello e sua turma da segunda série, mas todo mundo parecia ter medo dele, todos pareciam constrangidos demais para voltar a falar com ele, como se um X tivesse sido inscrito em sua testa para avisar que não deviam chegar perto e, apesar de a senhora Costello gentilmente permitir que ele não participasse dos trabalhos em grupo e ficasse sentado em sua carteira lendo o livro que quisesse, isso só serviu para piorar ainda mais a situação, pois achava difícil se concentrar nos livros, que normalmente lhe proporcionavam tanto prazer, porque seus pensamentos acabavam sempre fugindo das palavras na página e indo para o pai, não o pai sepultado debaixo da terra, mas o pai que tinha ido para o céu, se existisse um lugar como o céu, e, se o pai estivesse mesmo lá, seria de fato possível que estivesse olhando ago­ra para ele, aqui embaixo, sentado em sua carteira escolar, fingindo que lia? Seria bonito pensar assim, dizia Ferguson consigo, mas, ao mesmo tempo, de que ia adiantar? O pai ficaria feliz em vê-lo, é verdade, o que provavelmente tornaria o fato de estar morto um pouco menos insuportável, mas de que adiantava Ferguson ser visto se ele mesmo não conseguia ver a pessoa que olhava para ele? Acima de tudo, ele queria ouvir a voz do pai. Era disso que sentia mais falta e, embora o pai tivesse sido uma pessoa de poucas palavras, um mestre na arte de dar respostas curtas para perguntas compridas, Ferguson sempre gostou do som de sua voz, que era melodiosa, delicada, e a ideia de que nunca mais ia ouvir aquela voz o fazia sentir uma tristeza imensa, uma dor tão profunda e tão vasta que poderia abarcar o oceano Pacífico, o maior oceano do mundo. Vai fazer um dia frio, Archie. Não esqueça de pôr o cachecol para ir à escola.

O mundo não era mais real. Tudo nele era uma cópia fraudulenta do que deveria ser, e tudo que tinha acontecido no mundo não devia acontecer. Por muito tempo, depois disso, Ferguson viveu sob o feitiço dessa ilusão, dormia acordado durante o dia e lutava para pegar no sono à noite, enjoado de um mundo em que ele tinha parado de acreditar, duvidava de tudo que se apresentava diante dos olhos. A sra. Costello pedia para ele prestar atenção, mas agora ele não tinha mais de escutar a voz dela, pois não passava de uma atriz que tentava personificar sua professora, e, quando seu amigo Jeff Balsoni fez o sacrifício incrível, voluntário, de dar para Ferguson sua figurinha de beisebol com o jogador Ted Williams, a figurinha mais rara entre as centenas do álbum Topps, Ferguson agradeceu o presente, guardou a figurinha no bolso e depois, em casa, rasgou-a. Agora era possível fazer essas coisas. Antes do dia 3 de novembro, isso seria inconcebível, para ele, mas um mundo irreal era muito maior do que um mundo real e, nele, havia espaço mais do que o suficiente para uma pessoa ser, ao mesmo tempo, quem ela era e quem não era.

Segundo o que a mãe contou para ele, mais tarde, ela não tinha planos de sair de Nova Jersey tão cedo, mas o escândalo explodiu e, de repente, não havia outra escolha senão ir embora. Onze dias antes do Natal, a polícia de Newark declarou que tinha esclarecido o caso da loja Mundo do Lar Três Irmãos e, na manhã seguinte, os detalhes feios estavam na primeira página de todos os jornais dos condados de Essex e de Union Counties. “Fratricídio.” “Chefão do jogo clandestino.” “Ex-bombeiro que virou incendiário preso sem direito a fiança.” “Louis Ferguson indiciado com várias acusações.” Naquele dia, a mãe não deixou que ele fosse à escola, no dia seguinte também, no terceiro dia também, e assim em todos os dias até a escola fechar para as férias de Natal. É para seu próprio bem, Archie, disse ela, e, como deixar de ir à escola não tinha mesmo nenhuma importância para ele, nem se deu ao trabalho de perguntar o motivo. Muito depois, quando já estava crescido o suficiente para entender todo o horror da palavra “fratricídio”, compreendeu que a mãe tentava protegê-lo das conversas maldosas que circulavam pela cidade, pois seu nome agora era um nome infame, e ser um Ferguson significava pertencer a uma família amaldiçoada. Portanto, o filho Ferguson, à beira de completar oito anos, ficou em casa com a avó, enquanto a mãe saía para tratar de pôr a casa da família à venda e procurar um fotógrafo disposto a comprar seu estúdio, e, como os jornais não paravam de telefonar, perguntar, suplicar, pressionar sua mãe para se abrir e contar o seu lado da história, ou seja, aquele drama tardio da era do rei Jaime I, agora conhecido como O Caso Ferguson, sua mãe decidiu que já era o bastante, chega, e dois dias depois do Natal ela fez as malas, colocou-as no porta-malas de seu Chevy azul e os três partiram para Nova York.

Durante os dois meses seguintes, ele e a mãe moraram no apartamento dos avós, na rua 58 Oeste, a mãe voltou para seu antigo quarto de solteira, que, no passado, dividia com a irmã Mildred, e Ferguson acampou na sala, numa cama pequena de dobrar. A parte mais interessante desse arranjo temporário foi que ele não tinha de ir para a escola, uma liberação inesperada, causada por sua falta de endereço fixo, e até que encontrassem um lugar para morar, ele seria um homem livre. A tia Mildred foi contra a ideia de ele não ir à escola, mas a mãe de Ferguson, calmamente, descartou sua opinião. Não se preocupe, disse ela. Archie é um garoto inteligente e um pouco de tempo sem ir à escola não vai fazer tanto mal a ele. Assim que soubermos onde vamos morar, procuraremos uma escola. Uma coisa de cada vez, Mildred.

Foi um tempo estranho, aquele, sem relação com nada que ele havia conhecido no passado, completamente distinto da maneira como as coisas seriam, depois que mudaram para seu apartamento, um interregno curioso, como disse seu avô, um breve período de tempo oco, em que ele passou todos os momentos de vigília junto da mãe, os dois camaradas combalidos, que batiam perna para lá e para cá pelo West Side, olhando apartamentos juntos, verificando as vantagens e as desvantagens de cada um, decidindo juntos que aquele em Central Park Oeste seria o ideal para eles, e depois a surpreendente declaração da mãe, de que a casa em Millburn estava sendo vendida com os móveis, todos os móveis, e que eles iam recomeçar do zero, só os dois, por isso, depois que encontraram o apartamento, passavam os dias comprando os móveis, procurando camas, mesas, luminárias e tapetes, nunca compravam nada a menos que os dois concordassem e, certa tarde, quando estavam examinando cadeiras e sofás na loja Macy’s, o vendedor de gravata-borboleta olhou para Ferguson do alto e disse para sua mãe: Por que esse menino não está na escola?, ao que a mãe retrucou, com um olhar duro para a cara daquele homem narigudo: Não é da sua conta. Foi o melhor momento daqueles dois meses estranhos, ou um dos melhores momentos, inesquecível por causa do repentino sentimento de felicidade que subiu dentro dele, quando a mãe falou aquelas palavras, mais feliz do que qualquer outro momento em várias semanas, e a sensação de solidariedade que aquelas palavras despertaram, os dois juntos contra o mundo, lutando para se reerguerem outra vez, e não é da sua conta era a profissão de fé daquele esforço em dupla, um sinal de como dependiam um do outro agora. Depois de comprarem móveis, iam ao cinema, fugiam das ruas frias do inverno por umas duas horas, no escuro, assistiam ao filme que estivesse passando naquele momento, sempre no balcão, porque lá a mãe podia fumar, Chesterfield, um Chesterfield depois do outro, enquanto ficavam sentados diante dos filmes com Alan Ladd, Marilyn Monroe, Kirk Douglas, Gary Cooper, Grace Kelly e William Holden, westerns, musicais, ficção científica, não importava o que estivesse passando, eles entravam às cegas no cinema e torciam para que o filme fosse dos bons, Rajadas de ódio, Vera Cruz, O mundo da fantasia, Vinte mil léguas submarinas, Conspiração do silêncio, As pontes de Toko-Ri e Corações enamorados, e certa vez, pouco antes daqueles dois meses estranhos chegarem ao fim, a mulher na cabine de vidro da bilheteria que lhes vendeu os ingressos perguntou para a mãe por que o menino não estava na escola, e sua mãe respondeu: Vá cuidar da sua vida, senhora, e me dê logo meu troco.


1.4

Primeiro houve o apartamento em Newark, do qual ele não lembrava nada, e depois houve a casa em Maplewood, que seus pais compraram quando ele tinha três anos, e agora, seis anos depois, eles estavam de mudança outra vez, para uma casa muito maior, do outro lado da cidade. Ferguson não conseguiu entender. A casa onde moravam era perfeitamente boa, mais do que conveniente para uma família de só três pessoas e, então, por que seus pais estavam dispostos a ter aquela trabalheira de retirar todas suas coisas para se mudar para um local a uma distância tão pequena — ainda mais quando não tinham nenhuma necessidade de fazer isso? Até faria sentido se fossem para outra cidade ou para outro estado, como o tio Lew e a tia Millie tinham feito quatro anos antes, quando se mudaram para Los Angeles, ou como o tio Arnold e a tia Joan fizeram no ano seguinte, quando também se mudaram para a Califórnia, mas para que se dar ao trabalho de mudar de casa quando não estavam indo nem mesmo para outro município?

É porque temos dinheiro, disse a mãe. Os negócios do pai iam bem e eles agora estavam em condições de desfrutar de um padrão de vida mais nobre. As palavras “padrão de vida mais nobre” fizeram Ferguson pensar num palácio europeu do século XVIII, um salão de mármore cheio de duques e duquesas com perucas brancas empoadas, duas dúzias de damas e cavalheiros vestidos em opulentos trajes de seda, postados ao redor do salão, com lencinhos bordados, rindo das piadas uns dos outros. Então, enquanto adornava aquela cena mais um pouco, ele tentou imaginar seus pais naquela multidão, mas as roupas lhes davam um aspecto ridículo, cômico, grotesco. Ele disse: Só porque a gente pode pagar uma coisa não quer dizer que a gente tem de comprar essa coisa. Eu gosto da nossa casa e acho que a gente devia ficar. Se a gente tem mais dinheiro do que precisa, então a gente devia dar para alguém que precisa mais do que a gente. Uma pessoa que passa fome, um ve­lho inválido, alguém que não tem dinheiro nenhum. Gastar tudo só com a gente não está correto. É egoísmo.

Não seja turrão, Archie, retrucou a mãe. Seu pai trabalha mais do que dois homens desta cidade juntos. Ele merece cada centavo que ganhou, e, se ele quer ostentar um pouco e comprar uma casa nova, é da conta dele.

Eu não gosto de ostentação, disse Ferguson. Não é um jeito bom de se comportar.

Bem, goste você ou não, mocinho, nós vamos nos mudar e tenho certeza de que você vai ficar contente depois que se instalar. Um quarto maior, um quintal maior e um porão perfeito. Vamos pôr uma mesa de pingue-pongue lá embaixo e aí vamos ver se você, finalmente, aprende a jogar melhor e consegue me vencer.

Mas a gente já joga pingue-pongue no quintal.

Só quando não está frio demais lá fora. E, pense só, Archie, na casa nova, o vento não vai nos atrapalhar.

Ele sabia que uma parte do dinheiro da família vinha do trabalho da mãe como retratista, mas uma parcela muito maior, na verdade quase tudo, provinha dos negócios do pai, uma cadeia de três lojas de utilidades domésticas chamada Ferguson’s, uma delas em Union, outra em Westfield e a terceira em Livingston. Muito tempo antes, tinha havido uma loja em Newark chamada Mundo do Lar Três Irmãos, mas agora não existia mais, foi vendida quando Ferguson tinha três anos e meio ou quatro, e, a não ser pela fotografia em preto e branco emoldurada que estava pendurada numa parede na saleta, o instantâneo de 1941 mostrando seu pai sorridente entre seus dois tios sorridentes na frente do Mundo do Lar Três Irmãos no dia da inauguração, todas as lembranças daquela loja tinham sido expurgadas de sua mente para sempre. Para ele, não estava claro por que o pai não trabalhava mais com os irmãos e, além disso, havia o enigma cada vez maior do motivo pelo qual o tio Lew e o tio Arnold tinham ambos partido de Nova Jersey para começar uma vida nova na Califórnia (nas palavras do pai). Seis ou sete manhãs antes, num ataque de saudades de sua ausente prima Francie, ele pediu para a mãe explicar as razões de os tios se mudarem para tão longe, só que a mãe simplesmente disse: Seu pai comprou a parte deles, o que não chegava a ser uma resposta, pelo menos não uma resposta que ele pudesse entender. Agora, com esse desdobramento desagradável em torno de uma casa nova e maior, Ferguson começava a compreender algo que antes escapava à sua atenção. Seu pai estava rico. Tinha mais dinheiro do que sabia como usar, e, a julgar pela maneira como as coisas pareciam estar andando, isso só podia significar que ele ia ficar cada vez mais rico a cada dia.

Isso era bom e ruim ao mesmo tempo, concluiu Ferguson. Bom, porque dinheiro era um mal necessário, como um dia lhe disse sua avó, e já que todo mundo precisava de dinheiro para viver, era certamente melhor ter muito do que ter pouco. Por outro lado, a fim de ganhar muito, a pessoa tinha de dedicar uma quantidade excessiva de tempo para ir atrás do dinheiro, muito mais tempo do que era necessário ou razoável, o que era o caso de seu pai, que trabalhava tanto na direção de seu império de lojas de utilidades domésticas que as horas que passava em casa foram diminuindo continuamente durante os anos, a tal ponto de Ferguson raramente o ver agora, pois o pai tinha pe­gado o costume de sair de casa às seis e meia da manhã, tão cedo que saía sempre antes que o filho acordasse, e, como todas as lojas ficavam abertas até tar­de duas noites por semana, segundas e quintas em Union, terças e sextas em Westfield, quartas e sábados em Livingston, havia muitas noites em que o pai não podia vir jantar em casa e só chegava às dez ou dez e meia, uma hora depois de Ferguson ir para a cama. Portanto, o único dia em que ele podia contar que ia mesmo ver o pai era o domingo, mas os domingos também eram complicados, com algumas horas no fim da manhã e no início da tarde consagradas ao tênis, e isso significava acompanhar os pais às quadras de tênis municipais e ficar esperando até que a mãe e o pai terminassem de jogar juntos, para ter uma chance de trocar umas raquetadas com a mãe, enquanto o pai jogava sua partida semanal com Sam Brownstein, seu parceiro de tênis desde a adolescência. Ferguson não desprezava o tênis, mas achava um esporte enjoado, comparado com beisebol e futebol, que eram os melhores jogos para ele, e até o pingue-pongue ganhava do tênis, no que dizia respeito a esportes com rede e bolas que quicam, portanto era sempre com sentimentos ambíguos que Ferguson se arrastava para as quadras de tênis ao ar livre na primavera, no verão e no outono, e toda noite de sábado ele ia para cama torcendo para que chovesse na manhã de domingo.

Quando não chovia, o tênis era seguido por um passeio de carro até South Orange Village e um almoço no Gruning’s, onde Ferguson devorava um hambúrguer um pouco malpassado e uma tigela de sorvete de flocos de menta, um banquete dominical bastante aguardado, não só porque o Gruning’s fazia os melhores hambúrgueres num raio de quilômetros e fabricava seu próprio sorvete, como também porque o cheiro lá dentro era muito bom, uma mistura de café quente e carne grelhada, além das emanações açucaradas das sobremesas diversas, cheiros tão bons que Ferguson se dissolvia numa espécie de contentamento delirante, enquanto inspirava os aromas para os pulmões e, depois, os três voltavam para o sedã Oldsmobile de duas cores (cinza e branco) do pai e iam para casa em Maplewood, para tomar banho e trocar de roupa. Num domingo típico, depois disso, acontecia uma entre as quatro opções seguintes. Ficavam em casa e zanzavam à toa, como dizia sua mãe, o que em geral significava que Ferguson andava atrás do pai de um cômodo para outro, enquanto ele consertava coisas que precisavam de reparos, descargas de banheiro quebradas, ligações elétricas defeituosas, portas que guinchavam, ao mesmo tempo que a mãe ficava no sofá lendo a revista Life ou descia para sua câmara escura no porão e revelava fotografias. Uma segunda opção era ir ao cinema, algo que ele e a mãe apreciavam mais do que todos os outros passatempos dominicais, porém o pai muitas vezes relutava em acatar o fervor cinematográfico deles dois, pois os filmes tinham um interesse escasso para ele, bem como todas as outras formas do que ele chamava de entretenimento sentado (peças, concertos, musicais), como se ficar aprisionado numa cadeira por um par de horas e, passivamente, assimilar uma porção de bobagens inventadas fosse uma das piores torturas da vida, mas, em geral, a mãe ganhava a discussão com a ameaça de ir sozinha, e então os três Ferguson entravam de novo no carro e iam ver o mais recente western de Jimmy Stewart ou a mais recente comédia de Martin e Lewis (o próprio Jerry Lewis de Newark!), e Ferguson nunca deixava de ficar espantado de ver como o pai adormecia rapidamente no escuro do cinema, a inconsciência que o engolia já quando os créditos de abertura rolavam pela tela, a cabeça inclinada para trás, os lábios levemente abertos, afogado no sono mais profundo do mundo, enquanto as armas disparavam, a música trovejava e cem pratos de louça se espatifavam no chão. Como Ferguson sempre sentava entre os pais, dava uma palmadinha no braço da mãe sempre que o pai pegava no sono daquele jeito e, quando captava a atenção dela, apontava para o pai sacudindo o polegar, como se quisesse dizer: Olhe só, ele dormiu de novo, e dependendo do estado de ânimo da mãe, ela fazia que sim com a cabeça e sorria, ou balançava a cabeça e franzia a testa, às vezes emitindo um riso curto e abafado, e às vezes exalava um mmmmm sem palavras. Quando Ferguson tinha oito anos, os desmaios do pai na sala escura tinham se tornado tão comuns que a mãe passou a se referir a suas excursões dominicais para o cinema como as duas horas do repouso terapêutico. Ela parou de perguntar ao marido se ele queria ir ao cinema. Em vez disso, dizia: Que tal uma pílula para apagar, Stanley, assim você pode pôr seu sono em dia. Essa tirada da mãe sempre arrancava risos de Ferguson. Às vezes, o pai ria junto, mas, em geral, não.

Quando não ficavam zanzando à toa nem iam ao cinema, as tardes de domingo eram consumidas fazendo visitas ou recebendo visitas. Agora, com o resto dos Ferguson do outro lado do país, não havia mais reuniões de família em Nova Jersey, mas havia alguns amigos que moravam perto, ou seja, amigos dos pais de Ferguson, em especial a amiga de infância da mãe, dos tempos do Brooklyn, Nancy Solomon, que morava em West Orange e fazia as pinturas a óleo do estúdio Foto Roseland, e o amigo de infância do pai, de Newark, Sam Brownstein, que morava em Maplewood e jogava tênis com o pai todo domingo de manhã; então, nas tardes de domingo, Ferguson e os pais às vezes visitavam Brownstein e sua esposa, Peggy, que tinham três filhos, uma menina e dois meninos, todos eles quatro anos mais velhos que Ferguson, no mínimo, e às vezes os Brownstein vinham visitar a casa deles, que em breve deixaria de ser a casa deles, e, quando não eram os Brownstein, costumava ser os Solomon, Nancy e o marido, Max, que tinham dois meninos, Stewie e Ralph, ambos três anos mais jovens que Ferguson, no mínimo, o que tornava esse vaivém de visitas com os Brownstein e os Solomon uma espécie de provação para Ferguson, que era velho demais para gostar de brincar com os filhos dos Solomon e jovem demais para gostar de brincar com os filhos dos Brown­stein, que na verdade já eram crescidos demais para ainda serem considerados crianças e, assim, Ferguson muitas vezes se via perdido no meio de todas aquelas reuniões, sem saber para onde ir nem o que fazer, pois rapidamente perdia a paciência com as travessuras de Stewie e Ralph, de três e cinco anos, e não tinha condição de entender a conversa entre os garotos Brownstein, de quinze e dezessete anos, o que o deixava sem opção, a não ser passar o tempo das visitas à casa dos Brownstein na companhia de Anna Brownstein, de treze anos, que o ensinava a jogar Buraco com o baralho e um jogo de tabuleiro chamado Carreiras, mas ela já era provida de seios e tinha uma oficina metalúrgica fixada nos dentes, o que tornava difícil para ele olhar para Anna, pois sempre havia vestígios de comida alojados na malha prateada de seu aparelho dentário, minúsculas partículas de tomates não mastigados, migalhas de pão empapado, bolinhas de carne picada em desintegração, e, toda vez que Anna sorria, o que era frequente, Ferguson era tomado por um ataque de constrangimento e tinha de olhar para outra coisa.

No entanto, agora que estavam prestes a se mudar, o que havia trazido à tona novas e importantes informações sobre o pai (o problema de ter dinheiro demais, o tempo excessivo gasto em ganhar dinheiro; tanto tempo que o pai tinha se tornado quase invisível para ele, seis dias por semana, o que Ferguson agora compreendia que era algo de que ele se ressentia, ou pelo menos algo com que se sentia mal, ou que o deixava frustrado, ou zangado, ou alguma outra palavra em que ele ainda não tinha pensado), e com a questão do pai ago­ra na cabeça, Ferguson achou instrutivo recapitular aquelas visitas enfa­donhas com os Brownstein e os Solomon como uma forma de estudar a vida mas­culina em ação, de comparar o comportamento do pai com o de Sam Brown­stein e de Max Solomon. Se o tamanho das casas onde moravam correspondia, em alguma medida, à quantidade de dinheiro que ganhavam, então seu pai era mais rico do que os dois, pois mesmo sua casa, a casa dos Ferguson, aquela que supostamente era pequena demais e tinha de ser subs­tituída por outra melhor, era maior e mais atraente do que as casas de Brownstein e de Solomon. O pai andava num carro Oldsmobile 1955 e estava falando em trocar por um Cadillac novo, em setembro, ao passo que Sam Brownstein andava num Rambler 1952 e Max Solomon, num Chevrolet 1950. Solomon era perito de sinistros numa companhia de seguros (seja lá o que isso queria dizer, já que Ferguson não tinha a menor ideia do que fazia um perito de sinistros) e Brownstein era dono de uma loja de artigos esportivos no centro de Newark, não de três lojas como o pai de Ferguson, mas de uma só, o que, no entanto, rendia dinheiro bastante para ele sustentar a esposa e os três filhos, ao passo que as três lojas do pai de Ferguson sustentavam um filho só e uma esposa, que por acaso também trabalhava, o que Peggy Brownstein não fazia. Como o pai de Ferguson, Brownstein e Solomon saíam para trabalhar todos os dias a fim de ganhar dinheiro, mas nenhum deles saía às seis e meia da manhã nem trabalhava até tão tarde da noite que seus filhos já estivessem na cama quando eles voltavam. O tranquilo e impassível Solomon, que, quando soldado, tinha sido ferido no Pacífico e mancava um pouco, e o expansivo e espalhafatoso Sam Brownstein, transbordante de anedotas e de simpatia, com tapinha nas costas, os dois tão diferentes um do outro em sua atitude exterior e, no entanto, no fundo, diferentes do pai de Ferguson de maneiras incrivelmente parecidas, pois ambos trabalhavam para viver, ao passo que o pai parecia viver para trabalhar, o que significava que os amigos de seus pais eram mais definidos por seus entusiasmos do que pelo fardo de suas responsabilidades, Solomon por sua paixão por música clássica (vasta coleção de discos, sistema de som de alta fidelidade montado à mão), Brownstein por seu amor pelo esporte em todas as suas variadas encarnações, desde o basquete até a corrida de cavalos, desde o atletismo até a luta de boxe, mas a única coisa com que o pai de Ferguson se importava, além do trabalho, era o tênis, que era uma espécie de passatempo escasso e restritivo, era o que Ferguson sentia, e toda vez que Brownstein ligava a televisão para ver um jogo de futebol americano numa de suas visitas dominicais, os meninos e os homens de ambas as famílias se juntavam na sala para assistir e, nove em onze vezes, como acontecia nos filmes, seu pai lutava para manter os olhos abertos, lutava por cinco, dez ou quinze minutos, e depois perdia a luta e pegava no sono.

Em outros domingos, havia as visitas familiares trocadas entre eles e os Adler, em Nova York e em Maplewood, o que fornecia objetos adicionais para as observações de Ferguson, em seu laboratório do comportamento masculino, em especial seu avô e o marido da tia Mildred, Donald Marx, embora talvez seu avô não contasse, pois vinha de uma geração mais velha e era tão diferente do pai de Ferguson que até parecia estranho unir os dois nomes numa mesma frase. Sessenta e seis anos de idade e ainda forte, ainda trabalhava na sua corretora de imóveis, ainda ganhava dinheiro, mas não tanto quanto seu pai, pensava Ferguson, pois o apartamento na rua 58 Oeste era bastante espremido, com uma cozinha minúscula e uma sala com só metade do tamanho da casa deles em Maplewood, e o carro do avô, um velho Plymouth roxo, com o câmbio controlado por teclas no painel, parecia um carro de circo, comparado com o reluzente sedã Oldsmobile do pai. Sim, havia algo de bufão em Benjy Adler, achava Ferguson, com seus truques com cartas de baralho, seus aparelhinhos de dar choque elétrico na hora de apertar as mãos e suas risadas altas e ofegantes, mas seu neto o amava mesmo assim, o amava pela maneira como parecia adorar o fato de estar vivo, e, toda vez que se encontrava no estado de espírito de contar histórias, as narrativas eram apresentadas com tamanha velocidade e tanta contundência que o mundo parecia desmoronar numa pura torrente de linguagem, histórias engraçadas, em geral, histórias sobre os Adler do passado, diversos parentes distante e próximos, a prima da mãe do seu avô, por exemplo, mulher que tinha o nome delicioso de Fagela Flegelman, que pelo visto era tão inteligente que chegou a dominar nove línguas estrangeiras antes dos vinte anos de idade e, quando a família dela saiu da Polônia e chegou a Nova York em 1891, os funcionários na ilha Ellis ficaram tão impressionados com suas habilidades linguísticas que a contrataram na mesma hora e, durante os trinta e poucos anos seguintes, Fagela Flegelman trabalhou como intérprete no Departamento de Imigração, entrevistando milhares e milhares de futuros americanos recém-desembarcados, até aquele departamento fechar, em 1924. Uma pausa demorada, seguida por um dos sorrisos enigmáticos do avô, e depois mais uma história sobre os quatro maridos de Fagela Flegelman, como ela sobreviveu a todos eles e terminou como uma viúva rica em Paris, com um apartamento na Champs-Élysées. Seriam mesmo verdade aquelas histórias? Tinha alguma importância serem ou não verdade?

Não, seu avô não contava, era uma carta fora do baralho, desqualificado por falta de seriedade, como diria o velho, em uma de suas tiradas terríveis, mas o tio Don era só uns poucos anos mais velho do que o pai de Ferguson e, portanto, era um candidato perfeito para o seu escrutínio, talvez até um pouco melhor do que Sam Brownstein ou Max Solomon, pois, a exemplo do pai, aqueles dois homens moravam nos subúrbios de Nova Jersey e eram membros da classe média laboriosa, um comerciante e um colarinho-branco, mas Don Marx era uma criatura da cidade, nascido e criado em Nova York, educado em Columbia e, por algum milagre, não tinha emprego, pelo menos não com um empregador e um salário mensal; passava seus dias em casa com uma datilógrafa e produzia livros e artigos de revistas, um homem que vivia por conta própria, o primeiro que Ferguson viu na vida. Tinha ido morar junto com a tia Mildred três anos antes, deixou a esposa e o filho em seu antigo apartamento no Upper West Side, o que também era uma novidade absoluta para Ferguson, um homem divorciado, um homem que tinha começado um segundo casamento um ano antes, depois de viver em pecado com a tia de Ferguson nos primeiros dois anos de sua coabitação (algo que seu pai, seus avós e sua tia-avó não viram com bons olhos, mas que fez sua mãe rir), e o pequeno apartamento que Don dividia com a tia Mildred na Perry Street, em Greenwich Village, estava entupido com mais livros do que Ferguson jamais tinha visto num só lugar, que não fosse uma livraria ou uma biblioteca, livros por todo lado, em prateleiras ao longo das paredes dos três cômodos, em cima de mesas e de cadeiras, no chão, em cima de armários, e Ferguson não só ficava fascinado com aquela bagunça fantástica, como o mero fato de existir um apartamento assim servia para demonstrar que havia outras maneiras de viver neste mundo, além daquela que ele conhecia, que a maneira de seus pais não era a única. Tia Mildred era professora assistente de inglês no Brooklyn College, tio Don era escritor, e, embora devessem ganhar dinheiro com aqueles trabalhos, pelo menos dinheiro suficiente para viver, estava claro para Ferguson que eles viviam para outras coisas, além de ganhar dinheiro.

Infelizmente, ele não tinha oportunidade de ir muitas vezes àquele apartamento, só três visitas naqueles três anos, até então, uma vez para um jantar com seus pais e duas vezes sozinho, com a mãe, para visitas à tarde. Ferguson tinha carinho por sua tia e seu novo tio, mas por alguma razão sua mãe e a irmã não eram muito ligadas, e a verdade triste, mas cada vez mais visível, era que seu pai e Don Marx não tinham nada a dizer um ao outro. Ele sempre achou que o pai e a tia se davam bem, e agora que a tia já não era mais solteira, ele estava convencido de que a mesma coisa era verdade para sua mãe e seu tio. O problema era a relação mulher-mulher e a relação homem-homem, pois sua mãe, como irmã caçula, sempre teve admiração por Mildred, e Mildred, como irmã mais velha, sempre tratou sua mãe com desdém, e entre os homens havia a absoluta indiferença que cada um sentia pelo trabalho do outro e pela sua forma de encarar a vida, dólares de um lado, palavras do outro, talvez misturado também com o fato de o tio Don ter lutado na Europa durante a guerra e seu pai ter ficado em casa, mas isso era, provavelmente, uma suposição sem fundamento, pois Max Solomon também foi soldado, e ele e o pai sempre tinham o que conversar, pelo menos até onde o pai era capaz de conversar com alguém.

No entanto, havia as visitas mútuas ao apartamento dos avós no Dia de Ação de Graças, da Páscoa e as eventuais reuniões de domingo, além de outros domingos em que a tia Mildred e o tio Don sentavam no banco de trás do Plymouth roxo e acompanhavam os avós em viagens para Nova Jersey, onde passavam o dia. Portanto, Ferguson tinha vastas oportunidades de observar o tio Don, e a conclusão chocante a que chegou foi que, apesar da grande diferença entre o pai e o tio em relação à sua formação, sua educação, seu trabalho e sua forma de viver, os dois eram mais iguais do que desiguais, mais semelhantes um ao outro do que o pai e Sam Brownstein ou Max Solomon, pois, estivessem ganhando dólares nos negócios ou escrevendo palavras, ambos, por força de seu trabalho, eram levados a excluir todas as outras coisas, o que deixava os dois tensos e alheios quando não estavam trabalhando, obtusos e fechados em si mesmos, semicegos. Não havia a menor dúvida de que o tio Don podia ser mais loquaz do que seu pai, mais engraçado do que seu pai, mais interessante do que seu pai, mas só quando queria, e agora que Ferguson passou a conhecer seu tio melhor, reparava quantas vezes ele parecia examinar a fundo a tia Mildred, quando ela falava com ele, como se procurasse algo por trás dela, incapaz de escutar sua tia, porque estava pensando em outra coisa, o que não era diferente da maneira como seu pai muitas vezes, agora, olhava para sua mãe, e cada vez mais, agora, o olhar vítreo de um homem incapaz de enxergar outra coisa que não os pensamentos dentro da própria cabeça, um homem que estava ali sem estar ali, que estava longe.

Essa era a diferença real, concluiu Ferguson. Não o fato de ter dinheiro de menos ou dinheiro demais, não o que a pessoa fazia ou deixava de fazer, não o fato de comprar uma casa maior ou um carro caro, mas a ambição. Isso explicava por que Brownstein e Solomon conseguiam atravessar suas vidas numa relativa paz — porque não eram atormentados pela maldição da ambição. Em contraste, o pai e o tio Don eram consumidos por suas ambições, o que, paradoxalmente, tornava seus mundos menores e menos confortáveis do que os mundos de quem não era afetado por essa maldição, pois a ambição significava nunca estar satisfeito, estar sempre faminto de algo mais, querendo avançar o tempo todo, pois nenhum sucesso poderia ser grande o suficiente para saciar a necessidade de sucessos novos e ainda maiores, a compulsão de transformar uma loja em duas, duas lojas em três, falar agora em construir uma quarta loja e até uma quinta, assim como um livro era apenas um passo no caminho de outro livro, uma vida inteira de livros e mais livros, o que demandava a mesma concentração e unidade de propósito de que um negociante precisava a fim de se tornar rico. Alexandre, o Grande, conquista o mundo, e depois? Constrói um foguete e invade Marte.

Ferguson estava na primeira década de sua vida, o que significava que os livros que lia ainda estavam confinados ao reino da literatura infantil, os mistérios dos Hardy Boys, romances sobre jogadores de futebol americano no ensino médio e viajantes intergalácticos, coleções de histórias de aventura, biografias simplificadas de homens e mulheres famosos, como Abraham Lincoln e Joana d’Arc, mas agora que tinha começado suas investigações sobre o funcionamento da alma do tio Don, achava que podia ser uma boa ideia ler algo que ele tinha escrito ou tentar ler alguma coisa dele, e assim, um dia, perguntou à mãe se eles tinham em casa algum dos livros do tio Don. Sim, respondeu ela, tinham os dois livros dele.

F: Os dois? Quer dizer que ele só escreveu dois?

Mãe de F: São livros grandes, Archie. Cada um levou anos para ser escrito.

F: São sobre o quê?

Mãe de F: São biografias.

F: Legal. Eu gosto de biografias. Quem são as pessoas?

Mãe de F: Pessoas que viveram há muito tempo. Um escritor alemão do início do século XIX, chamado Kleist. E um filósofo e cientista francês do século XVII, chamado Pascal.

F: Nunca ouvi falar deles.

Mãe de F: Para dizer a verdade, eu também não.

F: São livros bons?

Mãe de F: Acho que são. As pessoas dizem que são muito bons.

F: Quer dizer que você não leu?

Mãe de F: Algumas páginas aqui e ali, mas não tudo, não de ponta a ponta. Acho que não fazem o meu gênero.

F: Mas as pessoas acham que são bons. Isso deve querer dizer que o tio Don ganha muito dinheiro.

Mãe de F: Na verdade, não. São livros para intelectuais e não têm um grande público. É por isso que o tio Don escreve tantos artigos e resenhas. Para reforçar sua receita, enquanto faz as pesquisas para escrever seus livros.

F: Acho que eu devia ler um.

Mãe de F (sorrindo): Se quiser, leia, Archie. Mas não vá ficar decepcionado se achar difícil.

Então, a mãe de Ferguson lhe deu os dois livros, cada um de quatrocentas páginas, dois volumes pesados, com letras miúdas e sem nenhuma ilustração, publicados pela editora Oxford University Press, e como Ferguson gostou mais da capa do livro sobre Pascal do que da capa do livro sobre Kleist, com a austera fotografia da máscara mortuária do francês flutuando contra o puro fundo preto, decidiu encarar aquele primeiro. Um parágrafo depois, se deu conta de que não era só difícil de ler, simplesmente não dava para ler. Não estou pronto para isso, disse consigo. Vou ter de esperar até ficar mais velho.

Se Ferguson não pôde ler os livros de seu tio, pôde, no entanto, estudar como ele se comportava com o filho, tema de grande interesse para Ferguson, sem dúvida um tema essencial, aquele que deu impulso a seus estudos sistemáticos sobre a masculinidade americana contemporânea, pois sua crescente desilusão com o próprio pai o deixara mais atento à maneira como os outros pais tratavam seus filhos, e ele tinha de reunir indícios a fim de julgar se seu problema era um caso único ou um problema universal, comum a todos os meninos. Com Brownstein e Solomon, ele estava exposto a duas diferentes expressões da conduta paterna. Brownstein era jocoso e amigável com seu rebento, Solomon era sério e afetuoso; Brownstein batia papo e elogiava, Solomon escutava com atenção e enxugava as lágrimas; Brownstein podia perder a calma e dar broncas em público, Solomon guardava seus pensamentos para si e deixava que Nancy castigasse seus meninos. Duas maneiras, duas filosofias, duas personalidades, uma totalmente distinta da de seu pai, a outra um pouco parecida, mas com esta diferença fundamental: Solomon nunca pegava no sono de repente.

O tio Don não podia pegar no sono, porque já não morava mais com o filho e só o via raramente, um fim de semana por mês, duas semanas no verão, só trinta e oito dias por ano, mas, quando Ferguson fez os cálculos de cabeça, se deu conta de que, embora ele próprio visse o pai mais vezes — cinquenta e dois domingos por ano, para começar, e mais os jantares de família nas noites em que o pai não chegava do trabalho muito tarde, mais ou menos metade das noites da semana, o que somava cerca de cento e cinquenta jantares por ano, entre segunda e sábado, ou seja, muito mais contato do que o filho do tio Don tinha com seu pai —, havia, no entanto, um problema, pois o novo primo por afinidade de Ferguson sempre ficava sozinho com o pai naqueles trinta e oito encontros anuais, ao passo que Ferguson nunca ficava sozinho com o seu, e, quando procurou na memória a última vez que os dois ficaram juntos sem mais ninguém na sala ou no carro, teve de recuar mais de um ano e meio, para uma manhã de domingo muito chuvosa que tinha arrastado por água abaixo o ritual semanal do jogo de tênis e o almoço no Gruning’s, quando ele e o pai entraram no velho automóvel Buick e saíram para comprar os ingredientes do almoço, ficaram na fila do Tabachnik’s, com seu cartão numerado, enquanto esperavam sua vez naquela loja lotada e cheirosa, para refazer seus estoques de peixe-branco, arenque, salmão defumado, roscas e uma bisnaga de requeijão. Uma lembrança diferente, radiante — mas essa foi a última vez, outubro de 1954, um sexto de sua vida atrás, e quando se subtraía os primeiros três anos de sua vida, dos quais ele já não conseguia mais se lembrar direito, isso significava quase um quarto de sua vida, o equivalente a dez anos para um velho de quarenta e três anos, pois nesse ponto da história Ferguson tinha nove anos.

O nome do menino era Noah e ele era três meses e meio mais jovem do que Ferguson. Para grande pesar de Ferguson, os dois foram mantidos distantes durante os anos de coabitação pecaminosa, pois a ex-esposa do tio Don, justamente zangada por ter sido relegada em favor da tia Mildred, se recusava a deixar seu filho se contaminar pela destruidora de lares e sua família, o que abarcava, além dos Adler, também os Ferguson. Quando o tio Don e a tia Mildred decidiram se casar, porém, a interdição foi suspensa, pois agora tudo estava legalizado e a ex-esposa não estava mais em condições de fazer exigências ao ex-marido. Ferguson e Noah Marx, portanto, se encontraram no casamento, que ocorreu em dezembro de 1954, uma festa pequena no apartamento dos avós de Ferguson, com não mais de vinte convidados, membros da família dos dois lados, além de uns poucos amigos íntimos. Ferguson e Noah eram as únicas crianças presentes e os dois se deram bem logo de cara, ambos eram filhos únicos que sempre tiveram muita vontade de ter um irmão ou irmã, e o fato de terem a mesma idade e serem, dali para a frente, primos, primos por afinidade, talvez, mas mesmo assim unidos pela mesma família, transformou aquele encontro inicial no casamento numa espécie de casamento secundário, ou cerimônia de união, ou iniciação de irmãos de sangue, pois os dois sabiam que iam ficar conectados pelo resto da vida.

Eles se encontravam raramente, é claro, já que um morava em Nova York e o outro, em Nova Jersey, e como Noah estava potencialmente acessível apenas trinta e oito dias por ano, os dois só estiveram juntos seis ou sete vezes nos dezoito meses seguintes ao casamento. Ferguson gostaria que fossem mais vezes, mas aquilo já foi o bastante para chegar a certas conclusões sobre o desempenho do tio Don como pai, que era muito diferente do de seu pai, e também diferente do desempenho de Brownstein e de Solomon. Então, mais uma vez, Noah era um caso especial, um malandro magricelo de dentes acavalados, nada parecido com os filhos daqueles outros homens, e lidar com ele exigia um toque especial. Noah foi o primeiro cínico que Ferguson viu na vida, brincalhão, subversivo e tagarela, metido a sabichão, esperto, esperto até demais, esperto e também engraçado ao mesmo tempo, um pensador muito mais sagaz e sofisticado do que Ferguson, naquela altura, e por isso uma companhia deliciosa, se você fosse amigo dele, o que Ferguson era, sem dúvida nenhuma, nesse ponto, só que Noah morava com a mãe e só via o pai trinta e oito dias por ano, e, no tempo em que os dois estavam juntos, vivia pondo à prova a paciência do pai e, afinal, por que razão ele não deveria estar contra o pai, pensava Ferguson, já que o tio Don havia, no fundo, abandonado Noah com cinco anos e meio de idade. Ferguson adquiriu um carinho por Noah, mas também sabia que seu primo podia ser impossível, brigão, um pestinha irritante, e assim seus afetos eram um tanto divididos entre o pai e o filho, solidariedade com o menino abandonado, mas também alguma simpatia pelo pai maltratado, e em pouco tempo Ferguson compreendeu que o tio Don queria que ele estivesse junto em seus passeios com Noah para servir de para-choque entre os dois, uma presença moderadora, uma distração. Então, lá iam os três ao estádio Ebbets Field ver os Dodgers jogarem contra os Phillies, lá iam eles ao Museu de História Natural ver esqueletos de dinossauros, lá iam eles a uma sessão dupla de filmes dos Irmãos Marx, num cinema de reprises perto do Carnegie Hall, e Noah sempre começava a tarde com uma série de tiradas mordazes, zombava do pai por arrastá-lo para o Brooklyn, porque era isso que os pais tinham de fazer, não era?, enfiar os filhos em vagões de metrô quentes e levá-los para ver partidas de beisebol, mesmo que o pai não tivesse o menor interesse por beisebol, ou para ver o homem das cavernas no diorama, não é, pai? No início, achei que eu estava olhando para você, ou então: E os Irmãos Marx! Você acha que eles são nossos parentes? Talvez eu deva escrever para o Groucho e perguntar se ele não é meu verdadeiro pai. A verdade era que Noah adorava beisebol e, embora fosse horrivelmente inapto para jogar, sabia a média de pontuação de todos os jogadores dos Dodgers e andava com um autógrafo (que o pai dera para ele) de Jackie Robinson no bolso da frente. A verdade era que Noah ficava fascinado com todas as vitrines de exposição do Museu de História Natural e, quando o pai dizia que estava na hora de ir embora, ele não queria sair do prédio. A verdade era que Noah ria até estourar ao ver os filmes Duck Soup e Monkey Business, e saía do cinema aos berros: Que família! Karl Marx! Groucho Marx! Noah Marx! Os Marx governam o mundo!

No meio de todas aquelas tempestades e confrontos, aquelas repentinas tréguas e rompantes de júbilo maluco, aquela alternância entre ataques de riso e agressão, o pai de Noah persistia com uma calma estranha e constante, nunca reagia aos insultos do filho, não aceitava as provocações, suportava cada ataque em silêncio, até o vento mudar de direção outra vez. Uma forma misteriosa e sem precedentes de conduta paterna, sentia Ferguson, tinha menos a ver com um homem que controlava seus nervos do que com deixar que seu filho o castigasse por crimes que ele havia cometido, sujeitar-se àquelas flagelações como uma forma de penitência. Que par curioso eles formavam — um menino ferido que gritava amor em cada gesto de hostilidade com relação ao pai, e um pai ferido que exalava amor ao não dar tapas no filho, ao deixar que ele o esmurrasse. Quando a maré estava mais calma, no entanto, quando o combate havia temporariamente cessado e pai e filho flutuavam juntos à deriva no mesmo barco, havia uma coisa notável que Ferguson reparou: o tio Don falava com Noah como se ele fosse um adulto. Nenhuma condescendência, nenhuma palmadinha paternal na cabeça, nenhum estabelecimento de regras. Quando o menino falava, o pai escutava. Quando o menino fazia uma pergunta, o pai respondia como se fosse um colega de trabalho e, quando Ferguson ouvia os dois conversando, não podia deixar de sentir certa inveja, pois em nenhum momento seu pai havia falado com ele daquele jeito, com aquele respeito, aquela curiosidade, aquela expressão de prazer nos olhos. No geral, portanto, ele concluiu que o tio Don era um bom pai — um pai com falhas, talvez, até mesmo um pai fracassado — mas, mesmo assim, um bom pai. E o primo Noah era um amigo mais do que ótimo, apesar de ser meio doido às vezes.

Numa segunda-feira de manhã, em meados de junho, a mãe de Ferguson comunicou, no café da manhã, que eles iam mudar para a casa nova no final do verão. Ela e o pai iam lavrar a escritura na semana seguinte, e, quando Ferguson perguntou o que aquilo queria dizer, ela explicou que era um jargão do ramo dos imóveis que significava comprar uma casa e, quando entregassem o dinheiro e assinassem os documentos, a casa nova seria deles. Aquilo já era cruel de sobra, mas a mãe foi adiante e disse mais uma coisa que chocou Ferguson, parecendo-lhe um insulto e um erro. E, como se a sorte quisesse nos ajudar, prosseguiu a mãe, nós arranjamos também um comprador para a casa velha. Casa velha! Do que ela estava falando? Estavam tomando o café da manhã naquela casa velha agora, estavam morando naquela casa agora, e até fazerem as malas e partirem para o outro lado da cidade, ela não tinha nenhum direito de falar disso com os verbos no passado.

Por que está tão triste, Archie?, disse a mãe. São boas notícias, e não más notícias. Parece até que você vai ter de ir para a guerra.

Ele não podia dizer que estava torcendo para que ninguém comprasse a casa, que achava que ninguém ia querer a casa, porque iam ver que ela combinava com os Ferguson melhor do que com qualquer outra pessoa, e, se a mãe e o pai não fossem capazes de vender a casa, então também não seriam capazes de comprar a nova, o que os obrigaria a ficar onde já estavam. Ele não podia dizer isso para ela, porque a mãe parecia tão contente, mais contente do que ele a tinha visto em muito, muito tempo, e poucas coisas eram melhores do que ver a mãe feliz e, no entanto, no entanto, sua última esperança tinha se acabado agora, e tudo tinha sido feito pelas suas costas. Um comprador! Quem era esse desconhecido e de onde tinha saído? Ninguém nunca dividia as novidades com ele, a não ser quando já tinham acontecido, havia sempre coisas sendo feitas pelas suas costas e ele nunca podia dar nenhum palpite. Ele queria votar! Estava de saco cheio de ser criança, cheio de ser castigado e de ter de obedecer. Os Estados Unidos eram uma democracia, mas ele vivia numa ditadura, e estava cheio, cheio, cheio daquilo.

Quando foi que isso aconteceu?, perguntou Ferguson.

Foi ontem mesmo, disse a mãe. Quando você estava em Nova York com o tio Don e o Noah. É uma história incrível.

Como assim?

Lembra-se do sr. Schneiderman, o fotógrafo com quem eu trabalhava quando era nova?

Ferguson fez que sim com a cabeça. Claro que se lembrava do sr. Schnei­derman, aquele velho ranzinza e esquisito que vinha jantar com eles uma vez por ano, o que tinha um cavanhaque branco de bode, sorvia a sopa fazendo barulho e, uma vez, soltou um pum na mesa e todo mundo notou.

Pois é, disse a mãe, o sr. Schneiderman tem dois filhos já crescidos, Daniel e Gilbert, os dois mais ou menos da idade do seu pai, e ontem o Daniel e a esposa vieram aqui almoçar, e aí, adivinhe só.

Nem precisa contar.

É incrível, não acha?

Acho.

Eles têm dois filhos, um menino de treze e uma menina de nove, e essa menina, Amy, é a menina mais bonita que eu já vi. Conquista o coração de qualquer um, Archie.

Sorte dela.

Certo, seu rabugento, mas o que acontece se ela acabar morando no seu quarto? Você se importa?

Aí já vai ser o quarto dela e não o meu, por que eu deveria me importar?

O ano escolar terminou e, no fim de semana seguinte, Ferguson foi enviado para uma colônia de férias de vários dias, no estado de Nova York. Foi a primeira vez que saiu de casa, mas foi sem medo nem remorso, porque Noah foi junto, e a verdade era que, nessa altura, ele estava cheio de ficar em casa, cansado de toda aquela conversa sobre casas velhas que não eram velhas e garotas bonitas que iam roubar seu quarto, e oito semanas no campo com certeza serviriam para afastar seu pensamento daqueles aborrecimentos. O Acampamento Paraíso ficava no quadrante nordeste do condado de Columbia, não muito distante da divisa com Massachusetts e da encosta ao pé das montanhas Berkshires, e seus pais resolveram mandar Ferguson para lá porque Nancy Solomon conhecia alguém que conhecia alguém cujos filhos iam para aquela colônia de férias havia anos e só tinham coisas boas para dizer a respeito, e, depois que Ferguson se inscreveu, a mãe falou com a irmã, a qual, depois, falou com o marido, e então Noah também foi inscrito. Ferguson e seu primo partiram da estação Grand Central com um grande contingente de colegas de acampamento, cerca de duzentos meninos e meninas de idade entre sete e quinze anos e, alguns minutos antes de embarcar no trem, o tio Don chamou Ferguson para um canto e pediu para ele tomar conta de Noah, cuidar para que não se metesse em confusão e não fosse perseguido pelos outros meninos, e, como o tio Don tinha toda aquela confiança nele, o que significava que via algo de forte e de confiável em Ferguson, ele prometeu que ia fazer tudo o que pudesse para garantir a proteção de Noah.

Felizmente, o Acampamento Paraíso não era um lugar do tipo bruto e não demorou muito para que Ferguson compreendesse que podia ficar de guarda baixa. A disciplina era frouxa e, diferente dos acampamentos de escoteiros ou das colônias de férias do tipo religioso, cujo objetivo era formar o caráter do jovem, os diretores do Acampamento Paraíso tinham o objetivo bem menos elevado de tornar a vida a mais prazerosa possível. Em seus primeiros dias ali, enquanto Ferguson começava a se adaptar ao novo ambiente, ele fez algumas descobertas interessantes, entre elas o fato de que era o único menino em seu grupo que morava no subúrbio. Todos os outros vinham de Nova York, e ele estava cercado por uma multidão de crianças da cidade grande, que tinham crescido em bairros como Flatbush, Midwood, Boro Park, Washington Heights, Forest Hills e Grand Concourse, meninos do Brooklyn, de Manhattan, do Queens, do Bronx, filhos de professores, contadores, funcionários públicos, garçons e caixeiros-viajantes, de classe média e de classe média baixa. Até então, Ferguson supunha que colônias de férias de verão eram exclusivamente para filhos de banqueiros e advogados ricos, mas pelo visto estava enganado, e então, à medida que os dias iam passando e ele aprendia os nomes de uma porção de meninos e meninas, os nomes e os sobrenomes, compreendia que todo mundo no acampamento era judeu, desde os donos, marido e esposa (Irving e Edna Katz), até o orientador geral (Jack Feldman), o orientador e o orientador assistente, em sua cabana particular (Harvey Rabinowitz e Bob Greenberg), até o último dos duzentos e vinte e quatro inscritos naquele verão. A escola pública que ele frequentava em Maplewood era povoada por uma mistura de protestantes, católicos e judeus, mas agora eram todos judeus, e só judeus, e, pela primeira vez na vida, Ferguson se via lançado num enclave étnico, uma espécie de gueto, só que nesse caso era um gueto de ar fresco, com árvores, grama e passarinhos que cruzavam em velocidade o céu azul, no alto, e quando ele assimilou a novidade daquela situação, a questão deixou de ter importância para ele.

O que mais contava era que seus dias eram passados numa roda de atividades prazerosas, não só aquelas que ele já conhecia, como beisebol, natação e pingue-pongue, como também novidades variadas, que incluíam arco e flecha, voleibol, cabo de guerra, remo, salto em distância e, o melhor de todos, a sensação miraculosa de remar uma canoa. Era um menino vigoroso, atlético, que se encaminhava naturalmente para essas atividades físicas, mas o que tinha de bom no Acampamento Paraíso era que a pessoa podia escolher a atividade e, para quem não tivesse inclinação atlética, havia a arte, a cerâmica, a música e o teatro, em vez da competição bruta com tacos e bolas. A única atividade obrigatória era a natação, duas sessões de trinta minutos por dia, uma antes do almoço e outra antes do jantar, mas todo mundo gostava do frio da água, e, se a pessoa não fosse um nadador capacitado, podia ficar brincando na água rasa da ponta do lago. Portanto, enquanto Ferguson batia com o taco na bola de beisebol numa ponta do acampamento, Noah ficava desenhando na barraca de arte, na outra ponta, e enquanto Ferguson deslizava na água em sua adorada canoa, Noah estava ocupado ensaiando uma peça. O baixote e esquisitão Noah tinha se agarrado em Ferguson na primeira semana, nervoso e inseguro, sem dúvida à espera de que alguém lhe desse uma rasteira ou lhe dissesse uns palavrões, mas o ataque nunca se realizou e logo ele começou a ficar à vontade, fez amizade com outros meninos, arrancou risadas de seus colegas de alojamento com sua imitação de Alfred E. Neuman e, nesse meio-tempo (Ferguson ficou pasmo), chegou até a ganhar um bronzeado.

É claro que houve discussões, conflitos e uma ou outra briga, pois aquilo era o Acampamento Paraíso e não o Paraíso propriamente dito, mas nada de extraordinário, até onde Ferguson podia avaliar, e na única vez em que chegou perto de trocar socos com outro menino, a causa da discórdia era tão ridícula que ele não conseguiu encontrar entusiasmo para brigar de fato. Era 1956, um ano do ciclo em que Nova York foi o centro do universo do beisebol, com três times que dominaram o esporte durante uma década, de ponta a ponta, os Yankees, os Dodgers e os Giants, e exceto em 1948, pelo menos um desses três times, e não raro dois deles, jogaram a série final do campeonato nacional todos os anos, desde o primeiro ano de vida de Ferguson. Ninguém era neutro. Todo homem, mulher ou criança em Nova York e em seus subúrbios torcia por um time, na maioria das vezes com forte devoção, e os torcedores dos Yankees, Dodgers e Giants se desprezavam reciprocamente, o que acarretava muitas discussões inúteis, um ou outro soco na cara e, certa vez, vergonhosamente, uma pessoa morreu num bar, com um tiro. Para os meninos e as meninas da geração de Ferguson, a polêmica mais duradoura girava em torno da questão de que time possuía o melhor meio de campo, pois os três tinham jogadores excelentes, os melhores naquela posição em qualquer equipe de beisebol, entre os melhores na história do esporte, e muitas horas eram desperdiçadas por esses jovens no debate sobre as virtudes de Duke Snider (Dodgers), Mickey Mantle (Yankee) e Willie Mays (Giants), e os torcedores de cada time eram tão fervorosos que a maioria defendia cegamente o meio de campo do seu time de beisebol por pura e inabalável fidelidade. Ferguson era torcedor dos Dodgers porque a mãe tinha sido criada no Brook­lyn como torcedora dos Dodgers e havia inculcado no filho o amor das causas dos azarões e desesperados, pois os Dodgers do tempo da infância de sua mãe eram um time fraco e muitas vezes patético, só que agora eram uma usina de força, os campeões do mundo, pau a pau com os todo-poderosos Yankees, e entre os oito meninos que dormiam nos beliches de sua cabana naquele verão, três eram torcedores dos Yankees, dois eram dos Giants e três eram dos Dodgers, entre eles Ferguson, Noah e um menino chamado Mark Dubinsky. Certa tarde, durante o repouso de quarenta e cinco minutos depois do almoço, em geral consumido em leituras de revistas em quadrinhos do Super-Homem, na redação de cartas e no estudo das tabelas das partidas de beisebol de dois dias antes no New York Post, Dubinsky, cuja cama ficava à esquerda da de Ferguson (a de Noah era à direita), levantou mais uma vez a velha questão e contou para Ferguson como ele tinha defendido ferrenhamente Snider contra Mantle, numa discussão com dois torcedores dos Yankees naquela manhã, cheio de esperança de que Ferguson, torcedor dos Dodgers, tomasse seu partido, mas Ferguson não fez isso, por mais que cultuasse o Duke, disse ele, Mantle era um jogador melhor e, acima de tudo, Mays era ainda melhor do que Mantle, só por um triz melhor, talvez, mas nitidamente melhor, e por que Dubinsky insistia em se iludir diante dos fatos? A resposta de Ferguson foi tão inesperada, tão tranquila em sua certeza, tão cabal em sua demolição da crença de Dubinsky no poder da fé contra a razão, que Dubinsky ficou ofendido, violentamente ofendido, e num instante se pôs de pé na frente da cama de Ferguson, berrando a plenos pulmões, chamou Ferguson de traidor, ateu, comunista, traíra de duas caras, e que talvez fosse melhor dar um murro na sua barriga para ele aprender uma lição. Quando Dubinsky cerrou os punhos, se preparando para esmurrá-lo, Ferguson se pôs sentado e lhe disse para se acalmar. Pode pensar o que quiser, Mark, disse ele, mas também tenho direito à minha opinião. Não, não tem, não, respondeu Dubinsky, ainda fora de si, não, se for mesmo um torcedor dos Dodgers, aí não tem, não. Ferguson não tinha o menor interesse em brigar com Dubinsky, que em geral não era dado a esse tipo de comportamento destemperado, mas naquela tarde ele parecia estar muito a fim de brigar, parecia que alguma coisa em Ferguson tinha deixado Dubinsky furioso e ele queria fazer em pedacinhos sua amizade, e, como Ferguson continuou sentado na cama, refletindo se ia conseguir se desvencilhar daquilo na base da conversa ou se teria, de fato, de levantar e brigar, Noah de repente se meteu. Pessoal, pessoal, disse ele, falando com uma voz grave e misteriosamente engraçada de papai-sabe-tudo, vamos parar já com essa discussão absurda. Todo mundo sabe quem é o melhor jogador de meio de campo, não é? Ferguson e Dubinsky viraram para Noah, que estava deitado na cama com o cotovelo fincado no travesseiro e a cabeça apoiada na mão. Dubinsky disse: Tudo bem, Harpo, vamos ver qual é a resposta — mas é melhor que seja a resposta certa. Agora que já tinha a atenção deles, Noah fez uma pausa e sorriu, um sorriso pateta, mas exageradamente beatífico, que ficou guardado na memória de Ferguson e nunca mais se apagou, relembrado muitas e muitas vezes, enquanto ele passava da infância para a adolescência e para a idade adulta, um raio luminoso de puro humor desarvorado, que revelou o verdadeiro coração do Noah Marx de nove anos de idade, durante um ou dois segundos, tempo que durou, e depois Noah pôs fim ao confronto, dizendo: Sou eu.

No primeiro mês, Ferguson nunca parou para pensar em como era feliz naquele lugar. Andava mergulhado demais no que fazia para parar e refletir sobre seus sentimentos, envolvido demais no aqui e agora para poder ver para além disso, viver o momento, como disse Harvey, seu orientador, sobre como se sair bem nos esportes, o que era, talvez, a verdadeira definição de felicidade, ignorar que você era feliz, não se importar com nada, senão com estar vivo no aqui e agora, mas então o dia da visita dos pais, de repente, se aproximou, o domingo que marcava o ponto intermediário das oito semanas da temporada e, nos dias anteriores ao domingo, Ferguson ficou espantado ao descobrir que não estava ansioso para rever os pais, nem mesmo a mãe, de quem ele tinha achado que ia sentir saudades terríveis, mas não sentiu, só em alguns lampejos intermitentes e dolorosos, e sobretudo não sentiu saudades do pai, que tinha sido apagado de sua cabeça durante um mês e que já parecia não ter importância para ele. O acampamento era melhor do que sua casa, ele se deu conta. A vida entre amigos era mais rica e mais satisfatória do que a vida com os pais, o que significava que os pais eram menos importantes do que ele havia imaginado, uma ideia herética, até revolucionária, que deu para Ferguson muito em que pensar, deitado na cama, de noite, e então o dia da visita já estava em cima e, quando ele viu a mãe sair do carro e começar a andar em sua direção, inesperadamente, ele se viu refreando as lágrimas. Que ridículo. Que coisa mais constrangedora, comportar-se desse jeito, pensou, e, no entanto, o que ele poderia fazer, senão correr para os braços da mãe e deixar que ela o beijasse?

Porém alguma coisa estava errada. Era para o tio Don ter vindo de carro para o acampamento junto com os pais de Ferguson, mas não estava com eles, e, quando Ferguson perguntou para a mãe por que o pai de Noah não tinha vindo, ela dirigiu para ele um olhar tenso e disse que ia explicar mais tarde. Mais tarde foi mais ou menos uma hora depois, quando os pais o levaram para o outro lado da divisa com Massachusetts, para almoçar num restaurante Friendly’s em Great Barrington. Como de costume, foi a mãe quem falou, mas dessa vez o pai pareceu atento e interessado, acompanhou suas palavras com a mesma atenção que Ferguson e, em vista do que a mãe tinha para dizer, o que as circunstâncias exigiam que dissesse, Ferguson não ficou surpreso que a mãe parecesse mais abalada do que em qualquer outra situação de que ele podia se lembrar, sua voz vacilava ao falar, querendo poupar o filho do pior, mas, ao mesmo tempo, incapaz de atenuar o golpe sem distorcer a verdade, pois a verdade era o que importava agora, e ainda que Ferguson tivesse apenas nove anos de idade, era imprescindível que ouvisse a história toda, sem deixar nada de fora.

Pois é, Archie, disse ela, acendendo um Chesterfield sem filtro e soprando uma nuvem de fumaça cinza-azulada por cima da mesa de fórmica. Don e Mildred se separaram. O casamento deles acabou. Eu gostaria de poder dizer qual a razão, mas Mildred não quer me contar. Está tão desolada que não parou de chorar nos últimos dez dias. Não sei se Don se apaixonou por outra pessoa ou se a coisa simplesmente acabou sozinha, mas agora Don está fora de questão e não existe nenhuma chance de voltarem a viver juntos. Falei com ele algumas vezes, mas ele também não quer me contar nada. Só diz que ele e Mildred terminaram, que ele nunca devia ter se casado com ela, que tudo foi um erro, desde o início. Não, ele não vai voltar para a mãe de Noah. O que ele planeja é se mudar para Paris. Já tirou todas as suas coisas do apartamento da Perry Street e vai partir antes do fim do mês. E é aí que entra o Noah. Don quer passar um tempo com ele antes de ir embora, por isso sua ex-esposa, e com isso me refiro à primeira ex-esposa, a ex-esposa Gwendolyn, veio ao acampamento hoje para pegar Noah e levá-lo de volta para Nova York. É isso mesmo, Archie, Noah vai embora. Sei que vocês dois ficaram muito ligados, sei que agora são ótimos amigos, mas não há nada que eu possa fazer. Telefonei para essa mulher, Gwendolyn Marx, e disse que, a despeito do que acontecesse entre Don e Mildred, eu queria que nossos filhos continuassem em contato, que seria uma pena se a amizade de vocês fosse atingida por causa disso, mas ela é uma pessoa difícil, essa mulher, Archie, amarga e zangada, tem um coração de gelo, e respondeu que não ia aceitar isso. E aí eu perguntei se, depois que Don partisse para Paris, Noah ia voltar para o acampamento. Isso está fora de questão, ela respondeu. Bem, pelo menos dê uma chance para os meninos se despedirem no domingo, eu disse, e ela disse, veja só, ela disse: Para quê? Nessa altura, eu já estava louca, nunca na vida fiquei tão zangada, e berrei: Como pode fazer uma pergunta dessa? E ela respondeu, calmamente: Tenho de proteger Noah de cenas emocionais; a vida dele já é difícil demais do jeito que está. Nem sei o que dizer para você, Archie. A mulher está enlouquecida. E minha irmã está lá, dopada com tranquilizantes, chorando sem parar, sem sair da cama. E Don abandonou a minha irmã, Noah foi tirado de você e, francamente, meu bem, essa é mesmo uma confusão dos diabos, não é?

O segundo mês no Acampamento Paraíso foi o mês da cama vazia. O colchão sem roupa de cama sobre as molas de metal, à direita do lugar onde Ferguson continuou a dormir, a cama do agora ausente Noah, e todo dia Ferguson se perguntava se os dois, algum dia, voltariam a se ver. Primos por um ano e meio e agora não eram mais primos. Uma tia que tinha se casado com um tio e agora não estava mais casada, o tio ia morar do outro lado do oceano Atlântico, onde não poderia mais estar com seu filho. Tudo sólido por um tempo, e então o sol se levanta num dia de manhã e o mundo começa a derreter.

Ferguson foi para casa em Maplewood no fim de agosto, deu adeus a seu quarto, deu adeus à mesa de pingue-pongue no quintal, deu adeus à porta de tela quebrada na cozinha e, na semana seguinte, ele e os pais se mudaram para a casa nova, no outro lado da cidade. Teve início a era de um padrão de vida mais nobre.


2.1

Até onde sua memória alcançava, Ferguson tinha sempre diante dos olhos o desenho da garota no rótulo da garrafa de White Rock. Era a marca de água mineral gasosa que a mãe comprava em suas viagens quinzenais ao acampamento, e, como o pai era um crente convicto nas virtudes da água mineral gasosa, havia sempre uma garrafa de White Rock sobre a mesa, na hora do jantar. Portanto, Ferguson tinha estudado a garota centenas de vezes, cuidava para que a garrafa ficasse perto dele a fim de olhar para a imagem em preto e branco do seu corpo seminu, no rótulo, aquela garota sedutora, serenamente elegante, com os pequenos seios nus e a tanga branca envolta no quadril, com uma abertura que deixava à mostra toda a extensão da perna direita, a perna em primeiro plano, que estava dobrada por baixo dela, enquanto ela se debruçava para a frente, apoiada nas mãos e nos joelhos, e olhava para a água de um poço, de seu posto de observação em cima de uma rocha saliente, que trazia devidamente inscritas as palavras “White Rock”, e a coisa curiosa, completamente improvável naquela garota, era que duas asas transparentes brotavam de suas costas, o que significava que ela era mais do que humana, uma deusa ou algum tipo de criatura encantada, e, como seus braços e pernas eram tão esbeltos e ela dava a impressão de ser tão pequena, ainda se enquadrava na categoria de garota e não na de mulher-feita, apesar dos seios, que eram apenas os seios pequenos, em botão, de uma menina de doze ou treze anos, e com os cabelos lindamente presos no alto da cabeça, deixando exposta a pele nua e luminosa do pescoço e dos ombros, ela era o tipo exato de garota com quem um garoto podia entreter seus compenetrados pensamentos, e, quando o garoto ficava só um pouco mais velho, digamos com doze ou treze anos, a garota da garrafa de White Rock podia facilmente desenvolver um charme erótico completo, um convite para um mundo de paixão carnal e de desejos plenamente despertos, e quando isso por fim aconteceu com Ferguson, ele tomava cuidado para que os pais não o vissem, nas horas em que ele estava olhando para a garrafa.

Também havia a garota indígena de joelhos na caixa de manteiga Land O’Lakes, a beldade adolescente de compridas tranças negras e com duas penas coloridas que despontavam da fita enfeitada com contas, em volta da testa, mas o problema com essa rival em potencial da ninfa da garrafa de White Rock era que estava completamente vestida, o que diminuía demais sua atração, sem falar do problema adicional de seus cotovelos, severamente apontados para fora, nos flancos do corpo, pois ela estava segurando e erguendo uma caixa de manteiga Land O’Lakes, idêntica à caixa que estava na frente de Ferguson, a mesma caixa, porém menor, com a mesma imagem da garota indígena, que segurava e erguia outra caixa menor de manteiga Land O’Lakes, o que era uma ideia intrigante ou até mesmo desconcertante, Ferguson sentia, uma regressão ao infinito de garotas indígenas cada vez menores, que seguravam caixas de manteiga cada vez menores, efeito semelhante àquele produzido pela caixa de aveia Quaker, com o Quaker sorridente embaixo do chapéu preto que ia recuando até algum remoto ponto de desaparecimento, fora do alcance da visão humana, um mundo dentro de um mundo, que estava dentro de outro mundo, que estava dentro de outro mundo, que estava dentro de outro mundo, até o mundo se reduzir ao tamanho de um único átomo, que, no entanto, ainda era capaz de se tornar menor. Era interessante, à sua maneira, mas dificilmente o tipo de coisa capaz de inspirar sonhos, por isso a donzela indígena da manteiga continuava classificada num distante segundo lugar em relação à princesa da garrafa de White Rock. No entanto, pouco tempo depois de completar doze anos, Ferguson pôde conhecer um segredo. Ele foi até o fim do quarteirão para visitar seu amigo Bobby George e os dois meninos sentaram na cozinha para comer sanduíches de atum, quando apareceu Carl, o irmão de catorze anos de Bobby, um rapaz alto, corpulento, com a cabeça boa para matemática e o rosto salpicado de sardas, que às vezes encarnava no irmão mais novo e às vezes falava com ele quase como um igual, mas naquela tarde chuvosa de sábado, em meados de março, o imprevisível Carl se encontrava num estado de espírito generoso, e, enquanto os meninos continuaram sentados à mesa mastigando seus sanduíches e tomando leite, contou para eles que tinha feito uma descoberta assombrosa. Sem mencionar qual era a descoberta, abriu a geladeira e pegou uma caixa de manteiga Land O’Lakes, tirou da gaveta da pia uma tesoura e um rolo de fita adesiva e então levou as três coisas para a mesa. Olhem só isso, disse ele, e os dois meninos ficaram observando, enquanto ele abria e cortava a caixa de seis faces e separava os dois pedaços grandes com a imagem da garota indígena. Cortou uma das imagens, removendo os joelhos da garota e a pele nua logo acima dos joelhos, que despontavam por baixo da bainha da saia, e depois colou os joelhos com a fita adesiva por cima do outro pedaço da caixa de manteiga com a imagem da garota indígena e aí, imaginem só, os joelhos se transformaram em seios, um par de seios grandes e nus, cada um com um pontinho vermelho bem no meio, o que poderia perfeitamente, para todo mundo, passar por um mamilo muito bem desenhado. A caprichada índia lakota foi transformada numa gata provocante, e, enquanto Carl sorria e Bobby gargalhava esganiçado, Ferguson continuou olhando sem emitir nenhum som. Que sacada mais esperta, pensou. Umas poucas tesouradas, um pedaço de fita adesiva transparente, e a garota da manteiga foi despida.

Havia fotos de mulheres nuas na National Geographic, revista que os pais de Bobby assinavam e, por alguma razão, nunca jogavam fora, e assim, de vez em quando, na primavera de 1959, Ferguson e Bobby chegavam em casa, vindo da escola, e partiam direto para a garagem de George, onde vasculhavam pilhas de revistas amarelas, à cata de imagens de mulheres com peitos de fora, exemplares antropológicos de tribos primitivas na África e na América do Sul, mulheres de pele negra e marrom de locais quentes, que andavam com pouca roupa ou sem roupa nenhuma sobre o corpo e não tinham vergonha de serem vistas assim, que mostravam os seios com a mesma indiferença que uma mulher americana sentia em deixar as mãos e as orelhas à mostra. As fotos eram claramente isentas de qualquer apelo erótico e, a não ser por alguma rara beldade jovem que aparecia de repente em cada sete ou dez revistas, a maioria delas não tinha atrativos aos olhos de Ferguson, mas, mesmo assim, era excitante e instrutivo olhar aquelas fotografias, que na pior das hipóteses demonstravam a variedade infinita da forma feminina, em particular as diferenças inumeráveis que podiam ser encontradas no formato e no tamanho dos seios, desde o grande até o pequeno, e tudo o que havia entre um e outro, desde os seios flutuantes e ondulantes até os achatados e caídos, dos orgulhosos aos derrotados, dos simétricos aos estranhamente descasados, desde os seios risonhos até os chorosos, desde os seios emurchecidos de velhas encarquilhadas até as enormidades proeminentes das mães que estavam amamentando. Bobby dava muitos risos abafados durante aquelas incursões exploratórias pelas páginas da National Geographic, ria para disfarçar o constrangimento que sentia por querer ver o que chamava de fotografias obscenas, mas Ferguson nunca pensava nas fotografias como obscenas e nunca se sentia constrangido por seu desejo de olhar para elas. Os seios eram importantes porque eram o traço mais proeminente e visível que distinguia a mulher do homem, e as mulheres eram um assunto de grande interesse para ele agora, pois ainda que fosse apenas um menino pré-púbere de doze anos, havia dentro dele coisas de sobra em ebulição para Ferguson perceber que seus dias de infância já estavam contados.

As circunstâncias tinham mudado. O roubo no depósito em novembro de 1955, seguido pelo acidente de carro em fevereiro de 1956, tinha removido do círculo familiar os dois tios de Ferguson. O desafortunado tio Arnold morava na distante Califórnia, o falecido tio Lew tinha abandonado este mundo para sempre, e o Mundo do Lar Três Irmãos já não existia mais. Durante a maior parte de um ano, seu pai lutou para manter o negócio de pé, mas a polícia jamais conseguiu recuperar os produtos roubados, e, como ele tinha perdido sua demanda do dinheiro do seguro quando se recusou a dar queixa na polícia contra o irmão, os prejuízos acarretados por esse ato de misericórdia foram grandes demais para serem superados. Em vez de ficar ainda mais endividado, ele pagou o empréstimo emergencial no banco, com a ajuda do avô de Ferguson, e liquidou o negócio, retirando das costas o fardo do prédio, do depósito e de todo o estoque que havia sobrado, desvencilhando-se dos fantasmas dos irmãos e da empresa arruinada, que tinha sido sua vida por mais de vinte anos. O prédio continuava a existir, é claro, de pé em seu velho endereço na Springfield Avenue, mas agora se chamava Móveis Baratos Newman’s.

O pai de Ferguson pagou o empréstimo do sogro com a receita da venda e depois abriu uma loja nova, bastante menor, em Montclair, TV & Rádio Stanley. Do ponto de vista de Ferguson, era uma situação muito melhor do que a anterior, pois o novo negócio do pai calhou de ficar no mesmo quarteirão do estúdio Foto Roseland, e agora ele podia dar um pulo no trabalho do pai ou da mãe a qualquer hora que quisesse. A loja TV & Rádio Stanley era meio apertada, é verdade, mas dava uma sensação gostosa e aconchegante, e Ferguson gostava de visitar o pai na loja depois da escola, sentar-se ao seu lado em sua bancada de trabalho na sala dos fundos enquanto o pai consertava televisores, rádios e toda sorte de outros aparelhos menores, desmontando e depois montando de novo torradeiras quebradas, ventiladores, aparelhos de ar-condicionado, abajures, toca-discos, liquidificadores, centrífugas e aspiradores de pó, pois logo se espalhou a notícia de que o pai de Ferguson era um homem capaz de consertar qualquer coisa, e, enquanto o jovem empregado Mike Antonelli ficava na sala da frente da loja vendendo rádios e televisores para os moradores de Montclair, Stanley Ferguson passava a maior parte do tempo nos fundos, em silêncio, remendando e dissecando pacientemente máquinas quebradas, para que voltassem a funcionar. Ferguson compreendeu que algo dentro de seu pai tinha sido quebrado pela traição de Arnold, que aquela encarnação reduzida de seu negócio anterior representava, para ele, uma profunda derrota pessoal e, no entanto, algo dentro dele também havia mudado para melhor, e os beneficiários principais dessa mudança eram a esposa e o filho. Os pais de Ferguson brigavam muito menos do que antes. A tensão em casa tinha se dissipado, na verdade, muitas vezes parecia ter desaparecido por completo, e Ferguson achava tranquilizador o fato de, agora, o pai e a mãe almoçarem juntos todo dia, só os dois, na mesa do canto no restaurante Al’s Diner, e vezes e mais vezes seguidas, de várias maneiras diferentes e, contudo, sempre da mesma forma, a mãe de Ferguson lhe fazia comentários que, em essência, significavam isto: Seu pai é um homem bom, Archie, o melhor homem que já existiu. Um homem bom e, no entanto, um homem muito calado, mas agora que havia abandonado seu antigo sonho de se transformar num novo Rockefeller, Ferguson se sentia mais confortável na presença do pai. Agora, podiam conversar um pouco e, na maior parte do tempo, Ferguson se sentia razoavelmente seguro de que o pai o escutava. E mesmo quando estavam em silêncio, Ferguson tinha prazer de ficar sentado ao lado do pai, junto à bancada de trabalho, depois da escola, fazendo seu dever de casa numa ponta da mesa, enquanto o pai continuava trabalhando na outra ponta, desmontando lentamente mais um aparelho danificado, para em seguida remontá-lo.

O dinheiro era menos abundante do que nos tempos do Mundo do Lar Três Irmãos. Em vez de dois carros, os pais de Ferguson, agora, tinham um carro só — o Pontiac 1954 azul-claro da mãe — e uma van de entregas Chevrolet vermelha com o nome do negócio do pai pintado nas duas portas laterais. No passado, seus pais às vezes saíam juntos em passeios de final de semana, sobretudo para as montanhas Catskills, para jogar tênis por dois ou três dias e dançar no Grossinger’s ou no Concord, mas tinham parado de fazer isso quando a TV & Rádio Stanley foi inaugurada, em 1957. Em 1958, quando Ferguson precisou de uma luva de beisebol nova, o pai o levou de carro até a loja de Sam Brownstein no centro de Newark para comprar uma a preço de custo, em vez de lhe dar o dinheiro para comprar a mesma luva na Gallagher’s, a loja de artigos esportivos em Montclair. A diferença chegava a doze dólares e meio, e embora fossem apenas vinte dólares em oposição a trinta e dois e meio, uma diferença bem pouco volumosa quando se pensava em grande escala, já representava uma economia decisiva, o bastante para Ferguson ficar alerta para o fato de que a vida tinha mudado e de que, de agora em diante, ele teria de pensar bem antes de pedir aos pais qualquer coisa além do estritamente necessário. Pouco depois disso, Cassie Burton parou de trabalhar para eles e, mais ou menos do mesmo jeito que sua mãe e a tia Mildred tinham chorado nos braços uma da outra no aeroporto em 1952, Cassie e Rose choraram na manhã em que Cassie recebeu a notícia de que a família não poderia mais pagar por sua presença. Ontem, foram bifes, hoje, hambúrgueres. A família tinha baixado um ou dois graus na escala, mas quem, em sã consciência, perderia um minuto de sono por causa de um pequeno aperto do cinto? Um livro emprestado da biblioteca pública era o mesmo livro comprado numa livraria, o tênis continuava a ser o tênis, jogado nas quadras municipais ou num clube particular, e bifes e hambúrgueres eram feitos da carne da mesma vaca, e ainda que os bifes representassem o auge da boa vida, a verdade era que Ferguson sempre havia adorado hambúrgueres, sobretudo com ketchup — que era o mesmo ketchup que, no passado, ele lambuzava o lombo roliço e malpassado de que o pai tanto gostava.

Domingo ainda era o melhor dia da semana, em especial quando se tratava de um domingo que não incluía visitas, para fazer ou receber, um dia que Ferguson podia passar sozinho com os pais, e agora que ele era maior e mais forte e tinha se tornado um ágil garoto de doze anos, louco por esporte, ele se deliciava com as partidas matinais de tênis, as partidas só com o pai, as partidas de dois contra um, entre mãe e filho de um lado e o pai e marido do outro, as partidas de duplas em que ele e o pai enfrentavam Sam Brownstein e seu filho caçula, e depois do tênis havia o almoço no Al’s Diner, junto com o inevitável milk-shake de chocolate, e depois do almoço havia o cinema, e depois do cinema havia a comida chinesa no Green Dragon em Gle Ridge, ou as batatas fritas no Little House em Millburn, ou sanduíches quentes e abertos de peru no Pal’s Cabin em West Orange, ou bife de panela e panquecas de queijo no Claremont Diner em Montclair, os restaurantes lotados e baratos dos subúrbios de Nova Jersey, barulhentos e sem sofisticação, talvez, mas a comida era boa, e era noite de domingo, e os três estavam juntos, e ainda que, nessa altura, Ferguson estivesse começando a se afastar dos pais, aquele único dia por semana ajudava a manter a ilusão de que os deuses podiam ser misericordiosos, quando queriam.

Tia Mildred e tio Henry não conseguiram produzir o primo Adler que ele havia desejado, quando criança. As razões eram desconhecidas para ele, fosse a esterilidade, a infertilidade ou uma recusa consciente de aumentar a população do mundo, mas, apesar da frustração de Ferguson, o vácuo sem primo na Costa Oeste acabou agindo em seu benefício. Tia Mildred podia não ser muito ligada à irmã, mas, sem nenhum filho e sem nenhum outro sobrinho ou sobrinha até onde a vista alcançava, todos os impulsos maternais que tinha foram despejados em cima de seu único e exclusivo Archie. Depois de sua mudança para a Califórnia, quando Ferguson tinha cinco anos, ela e tio Henry voltaram a Nova York algumas vezes para longas visitas de verão, e, mesmo quando ela ficava em Berkeley durante o resto do ano, se mantinha em contato com o sobrinho, escrevendo cartas e telefonando para ele de vez em quando. Ferguson compreendeu que havia algo de glacial em sua tia, que ela podia ser ríspida e obstinada e até rude com os outros, mas com ele, seu único e exclusivo Archie, ela era outra pessoa, cheia de elogios, bom humor e curiosidade sobre o que seu menino andava fazendo, pensando e lendo. Desde o início de sua infância, ela teve o hábito de lhe comprar presentes, uma abundância de presentes que, em geral, vinham na forma de livros e discos e, agora que ele estava mais velho e suas faculdades mentais tinham se desenvolvido, o número de livros e discos que ela lhe enviava da Califórnia também tinha aumentado. Talvez ela não confiasse no pai e na mãe de Ferguson para lhe fornecer a devida orientação intelectual, talvez achasse que seus pais eram um casal de nulidades burguesas sem instrução, talvez acreditasse que era seu dever resgatar Ferguson do deserto de ignorância em que habitava, achando que ela, e só ela, podia oferecer a ajuda necessária para escalar as sublimes cordilheiras do esclarecimento. Não havia dúvida de que era possível que ela fosse (como ele tinha entreouvido o pai dizer para a mãe) uma intelectual esnobe, mas também não havia como negar o fato de que, esnobe ou não, ela era uma intelectual autêntica, uma pessoa de erudição vasta que ganhava a vida como professora universitária, e as obras a que expunha seu sobrinho eram, de fato, uma grande felicidade para ele.

Nenhum outro menino em seu círculo de conhecidos tinha lido o que ele tinha lido e, como tia Mildred escolhia os livros cuidadosamente para ele, assim como havia escolhido cuidadosamente para a irmã, em seu período de confinamento, treze anos antes, Ferguson lia os livros que ela mandava com uma avidez que parecia fome física, pois sua tia compreendia quais livros iam satisfazer as ânsias de um menino que se desenvolvia rapidamente, ao passar dos seis para os oito anos de idade, dos oito para os dez, dos dez para os doze — e daí até o fim do ensino médio. Contos de fadas, para começar, os Irmãos Grimm e os livros muito coloridos compilados pelo escocês Lang, depois os fantásticos e assombrosos romances de Lewis Carroll, George MacDonald e Edith Nesbit, seguidos pelas versões de mitos gregos e romanos escritas por Bulfinch, uma adaptação infantil de Odisseia, A teia de Charlotte, uma adaptação de As mil e uma noites, remontadas com o título de As sete viagens de Simbad, o Marujo, e mais adiante, uma seleção de seiscentas páginas de As mil e uma noites originais, e no ano seguinte O médico e o monstro, contos de horror e mistério de Poe, O príncipe e o mendigo, Raptado, Um conto de Natal, Tom Sawyer e Um estudo em vermelho, e a reação de Ferguson foi tão forte ao livro de Conan Doyle que o presente que ele ganhou da tia Mildred em seu décimo primeiro aniversário foi uma edição imensamente gorda, abundantemente ilustrada, de Histórias completas de Sherlock Holmes. Foram esses alguns dos livros, mas havia também os discos, que para Ferguson eram tão importantes quanto os livros, especialmente agora, nos últimos dois ou três anos, a partir de quando tinha nove ou dez anos, eles chegavam em intervalos regulares de três ou quatro meses. Jazz, música clássica, música folclórica, rhythm and blues e até um ou outro rock and roll. De novo, assim como nos livros, o tratamento de tia Mildred era estritamente pedagógico, e ela conduzia Ferguson em etapas, ciente de que Louis Armstrong tinha de vir antes de Charlie Parker, que tinha de vir antes de Miles Davis, e que Tchaikovsky, Ravel e Gershwin tinham de anteceder Beethoven, Mozart e Bach, que os Weavers tinham de ser ouvidos antes de Lead Belly, que Ella Fitzger­ald cantando Cole Porter era um primeiro passo necessário antes de estar pronto para ouvir Billie Holiday cantando “Strange Fruit”. Para seu grande desgosto, Ferguson descobriu que não tinha um pingo de talento para tocar música. Experimentou o piano aos sete anos e abandonou o instrumento, frustrado, um ano depois; experimentou o pistom aos nove anos e abandonou; experimentou a bateria aos dez e abandonou também. Por algum motivo, ele tinha dificuldade para ouvir música, não conseguia assimilar plenamente os símbolos na página, os círculos vazios ou cheios pousados sobre as linhas ou aninhados entre elas, os sustenidos e os bemóis, as armaduras das claves, a clave de sol e a clave de fá, as notações se recusavam a entrar na sua cabeça e se tornar imediatamente identificáveis, como antes tinha acontecido com as letras e os números, e assim ele era obrigado a pensar em cada nota antes de tocar, o que retardava seu progresso de um compasso para outro, atrasava o andamento de qualquer composição e, a rigor, tornava impossível que ele tocasse qualquer coisa. Foi uma derrota triste. Sua mente, em geral rápida e eficiente, tinha uma deficiência quando se tratava de decodificar aqueles sinais recalcitrantes e, em vez de insistir e ficar dando murro em ponta de faca, ele abandonou a luta. Uma derrota triste, porque seu amor pela música era muito forte e ele era capaz de ouvir muito bem quando os outros tocavam, pois tinha um ouvido sensível e muito bem afinado com as sutilezas da composição e da execução, mas era um caso perdido como músico, um fracasso completo, o que significava que, agora, ele estava resignado a ser um ouvinte, um ouvinte fervoroso e devotado, e sua tia Mildred era sagaz o bastante para saber como alimentar sua devoção, o que, sem dúvida, contava como uma das razões essenciais para se estar vivo.

Naquele verão, numa de suas visitas ao leste com tio Henry, tia Mildred ajudou Ferguson a esclarecer outra questão de grande importância para ele, algo que não tinha relação com livros nem música, mas igualmente relevante para seus pensamentos, ou até mais. Ela veio para Montclair a fim de passar alguns dias com o seu predileto e seus pais, e, quando os dois sentaram à mesa para almoçar na primeira tarde (a mãe e o pai estavam no trabalho, o que significava que Ferguson e a tia estavam sozinhos na casa), ele apontou para a garrafa de água mineral gasosa White Rock sobre a mesa e perguntou por que a garota tinha asas nas costas. Ele não conseguia entender, explicou. Não eram asas de anjo nem asas de pássaro, os tipos de asa que a gente esperava ver nas costas de uma criatura mitológica, mas sim frágeis asas de insetos, as asas de uma libélula ou borboleta, e ele achava isso profundamente desconcertante.

Mas você não sabe quem é ela, Archie?, disse a tia.

Não, respondeu. Claro que não. Se eu soubesse, por que ia ficar perguntando?

Pensei que você tinha lido o livro de Bulfinch que lhe dei há uns dois anos.

Mas eu li.

Todo?

Acho que sim. Posso ter pulado um ou outro capítulo. Não lembro mais.

Não importa. Você pode verificar mais tarde. (Erguendo a garrafa da mesa e batendo com o dedo no desenho da garota.) Não é um desenho muito bom, mas deve ser a Psiquê. E agora, está lembrando?

Cupido e Psiquê. Eu tinha lido esse capítulo, sim, mas em nenhum momento diziam que Psiquê tinha asas. Cupido tinha asas, asas e uma aljava com flechas, mas Cupido era um deus e Psiquê era só uma mortal. Uma garota linda, de fato, mas apenas um ser humano, uma pessoa como nós. Não, espere. Agora estou lembrando. Depois que ela se casa com Cupido, também vira imortal. Não é isso? Mas ainda não entendo por que ela tem essas asas.

A palavra “psiquê” significa duas coisas em grego, disse a tia. Duas coisas muito diferentes, mas interessantes. Borboleta e alma. Mas quando a gente para para pensar no assunto com cuidado, borboleta e alma não são tão diferentes assim, são? Uma borboleta começa como lagarta, um verme feio, sem graça, que rasteja na terra, e aí, um dia, a lagarta constrói um casulo e, depois de algum tempo, o casulo se abre e, de dentro dele, sai a borboleta, a criatura mais bonita do mundo. Também é isso que acontece com as almas, Archie. Elas lutam nas profundezas das trevas e da ignorância, padecem provações e infortúnios e, pouco a pouco, se purificam por meio desses sofrimentos, se fortalecem por meio das duras experiências que tiveram e, um dia, se a alma em questão for uma alma de valor, vai romper seu casulo e sair voando pelo ar, como uma borboleta majestosa.

Portanto, nenhum talento para música, nenhum talento para pintura ou desenho e uma horrível incapacidade para o canto, a dança e a representação teatral, mas uma coisa para a qual ele tinha talento era jogar, jogos físicos, esportes em todas suas variedades sazonais, beisebol no tempo quente, futebol americano no tempo fresco, basquete no tempo frio e, quando tinha doze anos, ele participava de equipes em todos esses esportes e jogava o ano inteiro, sem interrupção. Desde aquele fim de tarde em setembro de 1954, a tarde inesquecível que ele passou com Cassie vendo Mays e Rhodes derrotarem os Indians, o beisebol se tornou uma obsessão crucial e, no ano seguinte, quando começou a jogar a sério, provou que era um jogador surpreendentemente bom, tão bom quanto os melhores à sua volta, forte no campo, forte no taco, dotado de um sentido nato para as nuances de qualquer situação específica no transcorrer de uma partida, e, quando uma pessoa descobre que é capaz de fazer algo bem, em geral quer continuar fazendo isso, e fazer isso com a maior frequência possível. Incontáveis manhãs de final de semana, incontáveis tardes de dias de semana, incontáveis inícios de noite ao longo da semana, jogando partidas improvisadas com os amigos em parques públicos, sem falar dos múltiplos derivados domésticos do beisebol, entre eles o stickball, o wiffleball, o stoopball, o punch ball, o wall ball, o kickball e o roofball, e depois, aos nove anos de idade, a liga infantil, e com isso a chance de pertencer a uma equipe organizada e usar um uniforme com um número nas costas, número 9, ele era sempre o número 9 naquele time e em todos os outros que se seguiram, 9 para os nove jogadores e os nove turnos da partida, 9 como a pura essência numérica do próprio jogo e, na sua cabeça, o boné azul-escuro com a letra G branca dos Artigos Esportivos Gallagher’s, o patrocinador da equipe, um time com um treinador voluntário em tempo integral, o sr. Baldassari, que treinava os jogadores nos fundamentos do jogo durante as sessões semanais de treinamento e batia palmas e berrava insultos, ordens e incentivos durante as partidas disputadas duas vezes por semana, uma no sábado de manhã e a outra na terça ou na quinta, ao anoitecer, e lá estava Ferguson, de pé, em sua posição no campo de jogo, se agigantando, de um palito fracote para um rapaz robusto, ao longo dos quatro anos que jogou nesse time, segunda base e rebatedor número oito em nove, interbases e rebatedor número dois em dez, interbases e rebatedor final em onze e doze, e o prazer adicional de jogar diante da multidão, de cinquenta a cem pessoas, em média, pais e irmãos dos jogadores, amigos variados, primos, avós e observadores ocasionais, aplausos e vaias, gritos, palmas e batidas de pés nas arquibancadas, que começavam no primeiro arremesso e duravam até o final da partida, e durante aqueles quatro anos sua mãe raramente perdia uma partida, ele procurava por ela enquanto fazia o aquecimento com seus companheiros de time, e de repente lá estava ela, acenava para ele no meio da arquibancada e ele sempre conseguia ouvir sua voz, que abria caminho no meio das outras, quando ele entrava para rebater, Vamos lá, Archie! Capricha, Archie! Manda a bola para o meio da rua, Archie!, e então, depois da liquidação da loja Mundo do Lar Três Irmãos e do nascimento da TV & Rádio Stanley, seu pai passou a assistir às partidas também, e, embora ele não gritasse como a mãe, pelo menos não com tanta força para ser ouvido por cima da multidão, era ele quem calculava a média de rebatidas de Ferguson, que foi aumentando continuamente à medida que os anos passavam, terminando num nível absurdamente elevado, 532 na última temporada, cuja última partida foi disputada duas semanas antes de Ferguson e tia Mildred terem aquela conversa sobre Psiquê, mas na ocasião ele era o melhor jogador do time, um dos dois ou três melhores jogadores da liga, e era esse o tipo de aproveitamento médio que se esperava de um jogador de doze anos de primeira linha.

Nos anos 50, crianças menores não jogavam basquete porque eram consideradas ainda muito pequenas, fracas demais para jogar a bola em aros a três metros de altura, por isso a educação de Ferguson na ciência dos arcos só teve início no ano em que completou doze, mas ele já andava jogando futebol americano desde os seis, equipado com capacete e ombreiras, em geral no meio de campo, uma vez que era um corredor determinado ou mesmo especialmente veloz, mas quando suas mãos ficaram grandes o bastante para poder segurar a bola com firmeza, sua posição mudou, pois Ferguson e seus amigos descobriram que ele tinha um talento doido para passes e lançamentos, que as espirais que ele disparava com a mão direita tinham mais velocidade, mais precisão e chegavam muito mais longe do que a de qualquer outro, cinquenta, cinquenta e cinco metros, no campo, quando ele tinha catorze anos, e embora Ferguson não adorasse o jogo com a mesma tenacidade e ardor com que amava o beisebol, vibrava ao jogar de zagueiro, pois poucas sensações eram melhores do que conseguir acertar um lançamento longo para um corredor em disparada total rumo à zona final, a trinta ou quarenta metros da linha de scrimmage entre os jogadores, a incrível sensação de uma ligação invisível através do espaço vazio era semelhante à experiência de acertar a bola no cesto de basquete, com um pulo, num arremesso de seis metros de distância, mas de certo modo era até mais divertido, a ligação com outra pessoa em oposição a um objeto inanimado, feito de aço e rede, e assim ele suportava os aspectos menos atraentes do esporte (o equipamento bruto do futebol americano, os bloqueios assassinos, os choques que machucavam) a fim de repetir a sensação, que nunca era menos do que eletrizante, de lançar a bola para seus companheiros de equipe. Então, em novembro de 1961, aos catorze anos, aluno da nona série, ele foi atropelado por um jogador de defesa de noventa e sete quilos chamado Dennis Murphy e acabou no hospital com o braço esquerdo fraturado. Ele tinha planos de entrar no time do ensino médio no outono seguinte, mas o problema com o futebol americano era que exigiam a autorização dos pais para poder jogar e, quando ele chegou em casa depois do primeiro dia de aula no ensino médio e apresentou o formulário para a mãe, ela não quis assinar. Ele argumentou, acusou, amaldiçoou a mãe por se comportar como uma mãe histérica e superprotetora, mas Rose não cedeu, e esse foi o fim da carreira de Ferguson como jogador de futebol americano.

Sei que você acha que sou uma idiota, disse a mãe, mas um dia você vai me agradecer por isso, Archie. Você é um garoto forte, mas nunca será forte o bastante nem grande o suficiente para virar um grandalhão, e a pessoa tem de ser assim para jogar futebol americano — um grandalhão boçal, um cabeça-oca que tem prazer em esmagar os outros, um animal humano. Seu pai e eu ficamos muito preocupados quando você quebrou o braço no ano passado, mas agora eu até acho que foi uma bênção disfarçada, um aviso, e eu não vou, de jeito nenhum, deixar meu filho fazer picadinho do próprio corpo no colégio e passar o resto da vida capengando por aí em cima de um par de joelhos estragados. Fique no beisebol, Archie. É um esporte lindo e você é tão bom jogador, a gente se emociona tanto assistindo, e para que correr o risco de perder o beisebol se machucando numa partida de futebol americano sem graça nenhuma? Se quer continuar a fazer esses seus passes longos, vá jogar rúgbi. Sabe, olhe só para os Kennedy. É o que eles fazem, não é? A família toda lá em Cape Cod, correndo pelo gramado, jogando a bola para a direita e para a esquerda, rindo até estourar. Para mim, parece a coisa mais divertida do mundo.

Os Kennedy. Mesmo agora, na condição de um garoto de quinze anos, de pensamento livre, de vez em quando rebelde, ele ficava encantado de ver como a mãe continuava a compreendê-lo, como tinha aquela capacidade de enxergar por dentro do seu coração, quando a situação exigia, seu coração sempre conflituoso e desastrado, pois mesmo que não estivesse disposto a admitir, nem para ela nem para ninguém, ele sabia que a mãe tinha razão quanto ao futebol americano, que ele era, por temperamento, inapto para os protocolos do combate sangrento e estaria mais bem servido se concentrando em seu adorado beisebol, mas a mãe apertou mais um pouco o parafuso e falou dos Kennedy, que ela sabia que era um assunto de importância real para ele, muito mais importante do que a questão efêmera do futebol americano e, ao desviar a conversa dos esportes estudantis para o presidente americano, a conversa se tornou completamente distinta e, de repente, não havia mais nada a ser discutido.

Ferguson, nessa altura, tinha acompanhado Kennedy durante mais de dois anos e meio, desde o anúncio de sua candidatura para as prévias do partido democrático, no dia 3 de janeiro de 1960, exatamente dois meses antes de seu aniversário de treze anos, e três dias depois do início da nova década, que, por alguma razão, Ferguson esperava com ansiedade como um sinal de uma renovação empolgante, já que toda sua vida consciente tinha transcorrido nos anos 50, com um velho como presidente, o ex-general que jogava golfe e estava sujeito a um ataque do coração, e Kennedy lhe parecia algo novo e completamente notável, um jovem vigoroso que vinha para mudar o mundo, o mundo injusto da opressão racial, o mundo idiota da Guerra Fria, o mundo perigoso da corrida de armas nucleares, o mundo complacente do insensível materialismo americano, e como nenhum outro candidato encarava esses problemas de modo satisfatório para ele, Ferguson decidiu que Kennedy era o homem do futuro. Nessa altura, ele ainda era muito novo para compreender que a política é sempre a política, mas ao mesmo tempo já era grande o suficiente para entender que alguma coisa tinha de acontecer, pois aqueles primeiros dias de 1960 andavam cheios de notícias sobre o protesto passivo de quatro estudantes negros que ocuparam uma lanchonete na Carolina do Norte como forma de se manifestar contra a segregação, sobre a conferência de desarmamento em Genebra, sobre a derrubada de um avião U-2 de espionagem em território soviético e a prisão do piloto Gary Powers, que levou Khruschóv a se retirar de uma reunião de cúpula em Paris e por fim às conversações sobre desarmamento em Genebra, que assim não obteve nenhum progresso em conter a escalada das armas nucleares, eventos seguidos pela crescente hostilidade entre Castro e os Estados Unidos, que cortaram em noventa e cinco por cento sua importação de açúcar cubano, e então, sete dias depois disso, na noite de 13 de julho, Kennedy foi indicado candidato, em primeira votação, na convenção do partido democrático em Los Angeles. Aquele foi o primeiro de três verões consecutivos que Ferguson passou em casa, em Nova Jersey, jogando beisebol na Legião Americana com os Montclair Mudhens, quatro partidas por semana como primeiro rebatedor e jogador da segunda base, naquele primeiro ano, pois era o jogador mais jovem no time agora, e estava começando de baixo, outra vez, o único menino de treze anos num time de garotos de catorze e quinze, e durante os meses quentes de julho e agosto, enquanto Ferguson lia jornais e livros como A revolução dos bichos, 1984 e Cândido, ou O otimismo, escutava atentamente a terceira, a quinta e a sétima sinfonias de Beethoven pela primeira vez, acompanhava fielmente cada novo número da revista Mad e tocava na vitrola repetidas vezes o disco Porgy and Bess de Miles Davis, continuava a passar pelo estúdio da mãe e pela loja do pai para fazer visitas de improviso e, depois daqueles breves alôs, ele caminhava até o quartel-general local do partido democrático, a um quarteirão e meio dali, descendo a rua, onde ajudava os voluntários adultos a lamber os selos e os envelopes em troca de um suprimento interminável de broches de campanha, adesivos para para-choques de carro e cartazes, que ele pregava com fita adesiva Scotch em todo espaço vazio que houvesse nas quatro paredes de seu quarto, e assim, no fim do verão, seu quarto tinha sido transformado num santuário dedicado a Kennedy.

Anos mais tarde, quando já estava velho o suficiente para saber das coisas, recordava aquele período de culto juvenil do herói com repulsa, mas era nesse pé que estavam as coisas para ele em 1960, e como poderia Ferguson ter uma ideia melhor da situação, se estava vivendo nesta terra havia apenas treze anos? Portanto, Ferguson torceu pela vitória de Kennedy, da mesma forma como havia torcido pela vitória dos Giants na série final do campeonato nacional, pois uma campanha política nada tinha de diferente — ele se deu conta disso — de uma disputa esportiva, palavras em vez de golpes, talvez, mas as contusões não eram em nada menos brutais do que na mais sangrenta luta de boxe, e, quando se tratava do cargo de presidente, o combate era travado numa escala tão colossal e tão espetacular que não havia espetáculo melhor em qualquer outro lugar dos Estados Unidos. O glamoroso Kennedy contra o sorumbático Nixon, o Rei Artur contra o Carrancudo, charme contra ressentimento, esperança contra amargura, dia contra noite. Quatro vezes, os dois homens se enfrentaram na televisão; quatro vezes, Ferguson e os pais assistiram ao debate na pequena sala de estar, e quatro vezes se convenceram de que Kennedy tinha levado a melhor contra Nixon, ainda que as pessoas dissessem que Nixon havia dado uma surra em Kennedy nos debates do rádio, mas agora a televisão era a única coisa que contava, a televisão estava em toda parte e, em breve, seria tudo, tal como o pai de Ferguson tinha previsto durante a guerra, e o primeiro presidente televisivo tinha, nitidamente, vencido a batalha na tela doméstica.

A vitória do dia 8 de novembro foi uma vitória apertada, por cem mil votos populares, uma das menores margens da história, e uma vitória mais larga no colégio eleitoral, por oitenta e quatro votos, e quando Ferguson foi para a escola no dia seguinte, de manhã, e comemorou com os amigos favoráveis a Kennedy, alguns desses números ainda não eram conhecidos e já circulavam boatos sobre o motivo por que não chegava nenhuma notícia de Illinois, havia rumores de que o prefeito de Chicago, Daley, tinha roubado máquinas de votar dos distritos republicanos e jogado no lago Michigan, e quando essa acusação chegou aos ouvidos de Ferguson, ele teve dificuldade em aceitar, a ideia era repreensível demais, nauseante demais, pois uma trapaça como essa transformaria toda a eleição numa piada de mau gosto, uma caricatura de mentiras e manipulações tortuosas, mas aí, na hora em que Ferguson estava prestes a dar vazão a sua indignação, ele inverteu abruptamente o rumo de seus pensamentos, se dando conta de que tinha de parar com aquela história de escoteiro e admitir que tudo era possível. Havia homens corruptos em toda parte e, quanto mais poderoso o homem, maior o potencial para a corrupção, mas ainda que a história fosse verdadeira, não havia nada que sugerisse que Kennedy tinha algo a ver com o caso. Daley e seu bando de trapaceiros do condado de Cook, talvez. Mas Kennedy, não, Kennedy, nunca.

Porém, apesar de sua confiança inabalável no homem do futuro, Ferguson passou o resto do dia andando com uma imagem na cabeça, a imagem daquelas máquinas de votar submersas no fundo do lago Michigan, e mesmo depois que os números finais comprovaram que Kennedy ganharia a eleição com ou sem Illinois, Ferguson continuou a pensar nas máquinas, continuou a pensar nelas durante anos.

Na manhã do dia 20 de janeiro de 1961, ele contou para os pais que não estava se sentindo bem e perguntou se podia ficar em casa, em vez de ir à escola. Como Ferguson era um garoto consciencioso e não tinha nenhum histórico de inventar doenças, seu desejo foi atendido. Foi assim que ele pôde assistir ao discurso de posse de Kennedy, sentado diante do televisor, enquanto a mãe e o pai estavam em seus locais de trabalho, no centro da cidade; ele, sozinho na pequena sala de estar, ao lado da cozinha, vendo a cerimônia realizada sob o clima frio e tempestuoso de Washington, tão gélido e varrido pelo vento que, quando o idoso Robert Frost, de olhos remelentos, se pôs de pé para ler o poema que lhe pediram que escrevesse para aquela ocasião, o mesmo Robert Frost que era responsável pelo único verso que Ferguson sabia de cor, Duas estradas bifurcavam num bosque amarelo, o vento disparou uma rajada feroz e repentina logo depois que ele chegou ao leitoril e arrancou o manuscrito de suas mãos e o carregou para o alto, no ar, o que deixou o bardo frágil, de cabelo branco, sem nada para ler, mas ele se recompôs com admirável equilíbrio e vivacidade, Ferguson sentiu, e enquanto seu poema novo saía voando por cima da multidão, Frost recitou um poema antigo, de memória, transformando o que poderia ser um desastre numa espécie rara de triunfo, impressionante, mas, de certo modo, cômico também, ou, como Ferguson disse para os pais naquela noite, engraçado e sério ao mesmo tempo.

Então veio o presidente que tinha acabado de prestar o juramento e, no instante em que começou a fazer seu discurso, as notas que emanaram daquele instrumento retórico afinado com esmero soaram tão naturais para Ferguson, tão confortavelmente encaixadas nas suas expectativas mais íntimas, que ele se viu escutando o discurso da mesma forma como ouvia uma peça musical. O homem se sustenta com suas mãos mortais. Que o mundo avance. Pagar qualquer preço, suportar qualquer peso. A força de abolir toda forma de pobreza humana de toda forma de vida humana. Que todas as nações saibam. A tocha foi passada. Encarar todas as dificuldades, apoiar todos os amigos, opor-se a todo inimigo. Uma nova geração de americanos. O equilíbrio incerto do terror que está nas mãos da guerra final da humanidade. Agora as trombetas nos convocam outra vez. Um chamado para suportar o fardo de uma longa luta ao crepúsculo. Mas vamos começar. Nascido neste século, temperado pela guerra, disciplinado por uma paz dura e amarga. Vamos explorar as estrelas. Peça. Não peça. Uma luta contra os inimigos comuns do homem: tiranias, pobreza, doença e a própria guerra. Uma geração nova. Peça. Não peça. Mas vamos começar.

Durante os vinte meses seguintes, Ferguson observou atentamente como o homem do futuro avançava aos trambolhões, iniciava seu governo com o nascimento dos Corpos da Paz e depois quase o destruía com a debacle na Baía dos Porcos, no dia 17 de abril. Três semanas depois, uma bola de futebol de tamanho humano chamada Alan Shepard foi chutada para o espaço pela Nasa e Kennedy declarou que um americano ia caminhar na lua antes do fim da década de 1960, o que Ferguson achou difícil de acreditar, mas torcia para que acontecesse, pois queria que o seu homem tivesse razão, e então Jack e Jackie partiram para Paris para um encontro com De Gaulle, seguido por dois dias de conversações com Khruschóv em Viena e, um piscar de olhos mais tarde, quando Ferguson estava lendo seu primeiro livro sobre política americana contemporânea, The Making of the President, 1960, o muro de Berlim foi levantado e o julgamento de Eichmann em Jerusalém começou, aquele espetáculo doloroso do assassino meio careca, de rosto contraído, sentado sozinho dentro de uma caixa de vidro, que Ferguson via todos os dias na televisão, depois do colégio, sentindo-se envolvido pelo horror de tudo aquilo, e, mesmo mantendo os olhos fixos na tela, sem conseguir parar de olhar, quando o julgamento terminou, ele já tinha vencido as 1245 páginas de Ascensão e queda do Terceiro Reich, o imenso volume escrito pelo ex-jornalista William Shirer, que figurava na lista negra, que ganhou o National Book Award em 1961 e era o livro mais comprido que Ferguson tinha lido. O ano seguinte começou com mais uma exploração extraterrestre: John Glenn foi catapultado para além dos limites da troposfera e deu três voltas ao redor da Terra em fevereiro, o que Scott Carpenter repetiu na primavera, e então, só dois dias depois de James Meredith se tornar o primeiro estudante negro aceito na Universidade do Mississippi (outro espetáculo a que Ferguson assistiu pela televisão, rezando para que o pobre homem não fosse apedrejado até a morte), Wally Schirra superou Glenn e Carpenter dando seis voltas ao redor da Terra no início de outubro. Ferguson estava no primeiro ano do colegial, nessa altura, seu primeiro ano na Montclair High School. E como a mãe tinha se negado a assinar o formulário de inscrição em setembro, a temporada do futebol americano começou sem ele. Ferguson já havia superado amplamente essa frustração na época da viagem de Schirra, no entanto, pois havia encontrado um novo interesse na pessoa de Anne-Marie Dumartin, uma colega do segundo ano que tinha vindo da Bélgica para os Estados Unidos dois anos antes e frequentava as aulas de geometria e história com ele, e Ferguson ficou tão absorvido por esse objeto de suas afeições, em acelerada expansão, que já sobrava pouco tempo para pensar no homem do futuro, e então, na noite de 22 de outubro, quando Kennedy fez um discurso para o povo americano e falou sobre as bases de mísseis russos em Cuba e sobre o bloqueio naval que ele estava prestes a impor, Ferguson não estava com os pais vendo a transmissão em cadeia. Em vez disso, estava no banco de um parque público com Anne-Marie Dumartin, com os braços enrolados no corpo dela, e a beijava pela primeira vez. Nessa ocasião, o normalmente atento Ferguson estava com a atenção dispersa, e a maior crise internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial e a ameaça de um conflito nuclear e do possível fim da espécie humana não deixaram nenhum registro nele, senão na manhã seguinte, depois do que ele começou a prestar atenção, de novo, mas uma semana depois, o seu homem Kennedy havia conseguido fazer uma manobra com os russos e a crise terminou. Parecia que o mundo estava à beira de terminar... e então, não terminou.

No Dia de Ação de Graças, não havia em sua cabeça a menor dúvida de que estava apaixonado. Tinha vivido muitas paixões passageiras no passado, desde as fantasias no jardim de infância com Cathy Gold e Margie Fitzpatrick, aos seis anos, seguidas por um furioso turbilhão de paqueras com Carol, Jane, Nancy, Susan, Mimi, Linda e Connie, aos doze e treze anos, os bailes no fim de semana, as sessões de beijos ao luar no quintal e em recantos no porão, as primeiras investidas tateantes rumo ao conhecimento sexual, os mistérios da pele e das línguas envolvidas em saliva, o gosto do batom, o cheiro de perfume, o som das meias de náilon esfregando uma na outra, e depois a derrubada das comportas, aos catorze anos, o repentino pulo da infância para a adolescência, e com isso uma vida nova num corpo estranho e até mutante, ereções espontâneas, ejaculações durante o sono, masturbação, anseios eróticos, dramas libidinosos noturnos encenados por sombras no teatro do sexo que se instalou dentro do seu crânio, os cataclismos somáticos da juventude, mas, deixando de lado todas essas transformações e motins do corpo, a busca fundamental, tanto antes como depois do começo de sua vida nova, sempre tinha sido uma busca espiritual, o sonho de uma ligação duradoura, um amor recíproco entre almas compatíveis, almas dotadas de corpos, é claro, misericordiosamente dotadas de corpos, mas a alma vinha primeiro, sempre viria primeiro, e a despeito de seus flertes com Carol, Jane, Nancy, Susan, Mimi, Linda e Connie, logo ele aprendeu que nenhuma dessas garotas tinha a alma que estava procurando e, uma a uma, foram deixando de interessá-lo e desaparecendo aos olhos de seu coração.

Com Anne-Marie Dumartin, a história estava sendo contada ao contrário. As outras sempre começaram por uma intensa atração física, mas quanto melhor ele conhecia as garotas, mais desencantado se sentia, ao passo que, no início, mal se deu conta da presença de Anne-Marie, não trocou mais do que umas poucas palavras com ela durante o mês de setembro, mas aí o professor de história europeia, arbitrariamente, juntou os dois para um trabalho em dupla e, quando Ferguson passou a conhecê-la um pouco mais, descobriu que queria conhecê-la melhor, e quanto mais a conhecia, mais elevada se tornava sua estima e, depois de três semanas de encontros diários em torno do declínio e da queda de Napoleão (o tema de seu trabalho em dupla), a antes sem graça garota belga com leve sotaque francês se transformou numa beldade exótica, e o coração de Ferguson ficou totalmente tomado por ela, explodindo por ela, e ele queria mantê-la por perto o maior tempo possível. Uma conquista repentina, imprevista. Um garoto de quinze anos apanhado de guarda baixa e então Cupido perdeu o caminho e, por acidente, foi parar em Montclair, na Nova Jersey, e antes que o marido de Psiquê pudesse comprar outra passagem e voltar para Nova York ou Atenas ou fosse lá para onde estava indo, disparou uma flecha só para se distrair, e assim começou a aventura angustiante do primeiro grande amor de Ferguson.

Baixa, mas não extraordinariamente baixa, um nadinha abaixo de um metro e sessenta e sete, descalça, cabelo escuro, de comprimento médio, rosto redondo com feições simétricas e nariz vigoroso e atrevido, lábios carnudos, pescoço esguio, sobrancelhas castanhas coroando olhos azul-acinzentados, olhos vivos, olhos iluminados, braços e dedos esguios, seios mais fartos do que era de esperar, quadris estreitos, pernas finas e tornozelos delicados, uma beldade que não se declarava à primeira vista, ou nem mesmo à segunda vista, mas que emergia com familiaridade crescente, que aos poucos se impunha ao olhar e, daí em diante, se tornava indelével, um rosto do qual era difícil desviar os olhos, um rosto para sonhar. Uma garota esperta e séria, uma garota muitas vezes melancólica, pouco dada a explosões de riso, parcimoniosa com os sorrisos, mas quando sorria de fato, seu corpo todo virava uma lâmina resplandecente, uma espada fulgurante. Uma recém-chegada, portanto sem amigos, com pouca vontade de agradar ou de se enturmar, um autocontrole obstinado que atraía Ferguson e a tornava diferente de qualquer outra garota que ele havia conhecido, as adolescentes risonhas do norte de Nova Jersey, em toda sua esplêndida frivolidade, pois Anne-Marie estava decidida a continuar sendo uma forasteira, uma garota extirpada de suas raízes em Bruxelas e forçada a morar num país vulgar e obcecado por dinheiro, e ela apegada ao seu estilo europeu de se vestir, a eterna boina preta, a capa de chuva com cinto, o vestido xadrez sem mangas, a blusa branca com gravata masculina, e embora às vezes ela admitisse que a Bélgica era um país tristonho, um pedaço de terra cinzento e desolado, espremido entre franceses e alemães, ela defendia o país toda vez que alguém a desafiava, argumentando que a pequena e quase invisível Bélgica tinha a melhor cerveja, o melhor chocolate e as melhores batatas fritas do mundo inteiro. Bem no início, em um de seus primeiros encontros, antes do marido de Psiquê se perder em Montclair e disparar sua flecha numa vítima inocente, Ferguson levantou a questão do Congo e da responsabilidade da Bélgica na matança de centenas de milhares de negros oprimidos, e Anne-Marie cravou os olhos nele e fez que sim com a cabeça. Você é um garoto inteligente, Archie, disse ela. Sabe cem vezes mais do que dez desses idiotas americanos somados. Quando comecei a frequentar este colégio no mês passado, resolvi que ia ficar na minha e não ia fazer nenhum amigo. Agora, acho que eu estava errada. Todo mundo precisa de um amigo, e você pode ser esse amigo, se quiser.

Na noite do primeiro beijo dos dois, em 22 de outubro, Ferguson sabia apenas uns poucos fatos avulsos sobre a família de Anne-Marie. Sabia que o pai dela era economista na delegação da Bélgica na ONU, que a mãe havia morrido quando Anne-Marie tinha onze anos, que o pai tinha se casado de novo quando Anne-Marie tinha doze anos e que seus dois irmãos mais velhos, Georges e Patrice, eram estudantes universitários em Bruxelas, mas isso era tudo, além do minúsculo detalhe de ter morado em Londres entre os sete e os nove anos de idade, o que explicava sua fluência no inglês. Antes daquela noite, porém, nenhuma palavra sobre a madrasta, nenhuma palavra sobre o motivo da morte da mãe, nenhuma palavra sobre o pai, senão o emprego dele, que era a causa da vinda dos Dumartin para os Estados Unidos, e como Ferguson compreendia a relutância de Anne-Martin em falar sobre esses assuntos, ele não a pressionou para que se abrisse, mas pouco a pouco, ao longo das semanas e dos meses que seguiram, vieram mais informações, a história terrível do câncer da mãe, para começar, câncer cervical com níveis de metástase tão dolorosos e desesperadores que a mãe, para todos os efeitos, acabou se matando com uma superdose de pílulas, o que era a história oficial, em todo caso, mas Anne-Marie desconfiava que o pai tinha começado seu caso com a então futura madrasta meses antes da morte da mãe, e quem sabe se a viúva Fabienne Corday, chamada amiga da família de longa data, e agora, já fazia três anos, segunda esposa do cego e enfeitiçado pai de Anne-Marie, a mulher pérfida que agora era sua madrasta, não havia empurrado à força aquelas pílulas mortais na garganta da mãe a fim de acelerar a transição de um caso clandestino para um casamento santificado pela Igreja católica? Uma calúnia escandalosa, sem dúvida absolutamente falsa, mas Anne-Marie não conseguia evitar, a possibilidade continuava a devorar seus pensamentos, e, ainda que Fabienne fosse inocente, isso não a tornaria nem um pouco menos abjeta, nem um pouco menos digna do ódio e do desprezo que Anne-Marie sentia por ela. Ferguson escutava essas revelações com crescente solidariedade à sua amada. O destino a havia ferido e agora ela estava presa num lar conturbado, em guerra com a odiosa madrasta, decepcionada com um pai egoísta e desatento, continuava em luto pela mãe, desolada por estar exilada nos Estados Unidos, um país rude e pouco acolhedor, indignada, indignada com tudo, mas em vez de deixar Ferguson assustado, a escala operística das dificuldades de Anne-Marie apenas o trazia mais para perto dela, pois agora ela havia se transformado, aos olhos dele, numa figura trágica, um personagem nobre e sofrido, atacado por golpes do destino, e com todo o fervor de um garoto inexperiente de quinze anos, sua nova missão na vida era salvá-la das garras da infelicidade.

Nunca lhe ocorreu que ela podia estar exagerando, que a dor que sentia pela perda da mãe havia distorcido sua maneira de ver as coisas, que ela havia rechaçado a madrasta sem lhe dar nenhuma chance, transformando-a num inimigo pelo simples fato de não ser sua mãe e de nunca poder ser sua mãe, que seu pai, sobrecarregado de trabalho, fazia o melhor que podia para a filha enfurecida e obstinada, que havia, como sempre há, o outro lado da história. A adolescência se alimenta do drama, é mais feliz quando se vive in extremis, e Ferguson não era em nada menos vulnerável ao apelo da alta emoção e do desvario extravagante do que qualquer garoto de sua idade, o que significava que o apelo de uma garota como Anne-Marie era alimentado exatamente por sua infelicidade e, quanto maiores as tempestades para as quais ela o arrastava, mais intensamente ele a desejava.

Conseguir ficar a sós com ela era difícil, pois ambos eram jovens demais para andar de carro e tinham de contar com os pés como meio de transporte, o que forçosamente limitava o alcance de seus movimentos, mas um expediente confiável era a casa vazia de Ferguson, depois da aula, as duas horas antes de seus pais voltarem do trabalho, período em que ele e Anne-Marie podiam subir ao primeiro andar, para o quarto dele, e fechar a porta. Ferguson bem que gostaria de ir até o fim da linha com ela, mas sabia que Anne-Marie não estava preparada, e assim a questão da perda da virgindade nunca era abertamente discutida, e era mesmo assim que se agia em tais assuntos, em 1962, pelo menos entre jovens de quinze anos da classe média e média alta, criados de forma correta, em Montclair e em Bruxelas, mas se nem um nem outro tinha coragem de desafiar as convenções da época, isso não significava que eles não admitiam usar a cama, que por sorte era uma cama de casal, com amplo espaço em sua superfície para que os dois se esticassem lado a lado e tomassem parte de um sexo que não era plenamente sexo, mas que, no entanto, tinha o gosto e o tato do amor.

Até então, tudo não passava de beijos, prolongadas excursões de línguas que vagavam pelo interior da boca, lábios molhados, nuca e a parte de trás das orelhas, mãos que seguravam rostos, mãos que viajavam por cabeças de cabelos, braços que envolviam torsos, ombros, cinturas, braços em volta de braços, e depois com Connie, na primavera anterior, o primeiro movimento hesitante de colocar as mãos nos peitos, peitos bem protegidos, é claro, seguramente cobertos por blusa e sutiã, mas ele não foi repelido ou empurrado para trás, o que representava mais um progresso em sua educação, e agora, com Anne-Marie, a blusa foi removida e, um mês depois disso, o sutiã foi removido, o que coincidiu com o fato de ele tirar a camisa, e mesmo essa nudez parcial era um prazer inconcebível, que ultrapassava todos os outros prazeres, e à medida que as semanas passavam, era apenas por mera força de vontade que Ferguson se continha para não apanhar a mão dela e colocar sobre o volume por dentro de sua calça. Tardes lembradas com nitidez, não só por causa do que faziam juntos naquela cama, mas porque tudo acontecia em plena luz do dia e era visível, em oposição ao tatear às cegas no escuro, com Connie, Linda e as outras, o sol estava no quarto junto com eles e ele podia ver o corpo dela, os corpos dos dois, o que significa que cada gesto de tocar era também uma imagem desse toque e, além disso, havia no quarto um constante fluxo de medo subjacente, o temor de perderem a noção da hora e o pai ou a mãe de Ferguson bater na porta enquanto os dois estavam abraçados, ou até, pior ainda, entrar no quarto de supetão, sem se lembrar de bater na porta, e enquanto nem uma coisa nem outra acontecia, havia sempre a possibilidade de eles chegarem, o que enchia aquelas horas da tarde de uma sensação de urgência, perigo e audácia fora da lei.

Ela foi a primeira pessoa que Ferguson admitiu receber nos recônditos mais íntimos de seu palácio secreto da música, e, quando não estavam rolando na cama ou falando de suas vidas (sobretudo da vida de Anne-Marie), ficavam ouvindo discos no pequeno toca-discos de dois alto-falantes que ficava em cima da mesa no canto sul do quarto, um presente de aniversário dos pais de Ferguson, quando ele fez doze anos. Agora, três anos depois, 1962 tornou-se o ano de J. S. Bach, o ano em que Ferguson ouviu mais Bach do que qualquer outro compositor, em especial o Bach de Glenn Gould, com ênfase nos Prelúdios e Fugas e nas Variações Goldberg, e o Bach de Pau Casals, que incluía repetições intermináveis das seis peças para solo de violoncelo, e Hermann Scherchen regendo as Suítes para orquestra e a Paixão de São Mateus, que Ferguson concluiu ser a melhor peça que Bach jamais compôs e, portanto, a melhor peça musical jamais composta por qualquer pessoa, mas ele e Anne-Marie também ouviam Mozart (a Missa em dó menor), Schubert (obras para piano executadas por Sviatoslav Richter), Beethoven (sinfonias, quartetos, sonatas) e muito outros também, e quase todos eram presentes da tia Mildred, sem falar de Muddy Waters, Fats Waller, Bessie Smith e John Coltrane, para não falar também de todo tipo de outros habitantes do século XX, vivos ou mortos, e a melhor parte de ouvir música com Anne-Marie era olhar seu rosto, examinar seus olhos e observar sua boca, enquanto as lágrimas se juntavam e os sorrisos se formavam, como ela sentia a fundo as ressonâncias emocionais de qualquer peça musical, pois, à diferença de Ferguson, desde o início da infância, Anne-Marie havia estudado música, sabia tocar bem piano e tinha uma excelente voz de soprano, tão excelente que acabou quebrando a promessa de não participar das atividades do colégio e se juntou ao coral em meados do primeiro semestre, e esse era, talvez, o maior vínculo entre os dois, a necessidade de música que percorria seus corpos, o que nessa altura de suas vidas não era em nada diferente da necessidade de encontrar um meio de existir no mundo.

Havia muito a admirar nela, era o que ele achava, muito para amar nela, mas Ferguson nunca se iludiu acreditando que seria capaz de se manter preso a ela, pelo menos não mais do que alguns meses ou semanas ou dias. Desde o início, nos primeiros momentos de sua paixão em botão, ele já pôde perceber que os sentimentos dela não eram tão fortes quanto os seus, e por mais que ela parecesse gostar dele, por mais que parecesse apreciar o corpo dele e seus discos e seu jeito de falar com ela, Ferguson estava destinado a amar mais do que era amado em troca, e um mês depois de seu primeiro beijo, ele compreendeu que teria de jogar com as regras de Anne-Marie ou se arriscar a nem sequer poder ficar com ela. Mais que tudo, o que o deixava louco era a incoerência de Anne-Marie, quantas vezes ela quebrava suas promessas, quantas vezes se esquecia de coisas que ele lhe dizia, quantas vezes desmarcava os en­contros no último minuto, dizendo que não estava se sentindo bem ou que havia problemas em casa ou que pensou que os dois iam se encontrar no sábado e não na sexta. Às vezes, Ferguson pensava se não haveria outro garoto, ou outros garotos, ou algum garoto lá na Bélgica, mas era impossível saber com base na observação, pois a primeira regra que ela exigiu que ele seguisse foi a proibição de qualquer exibição pública de afeto, o que significava que o colégio Montclair High School estava fora de seu alcance, que mesmo quando os dois se cruzavam nas salas de aula, corredores e cantina, tinham de fingir que não estavam envolvidos, eles não podiam nem trocar um alô, tinham de falar como se fossem conhecidos de passagem, mas em nenhuma hipótese tinham permissão de se beijar ou segurar as mãos, o que era o comportamento normal para todos os casais firmes no colégio, e, se era esse o jogo que ela queria jogar com ele, quem sabe se ela não estaria jogando também com outra pessoa? Ferguson tinha a sensação de que foi uma bobagem aceitar um acordo tão absurdo, mas estava vivendo, na ocasião, sob uma espécie de fascínio perturbador e achava que perder Anne-Marie era, de longe, muito pior do que a humilhação de fingir ser alguém que ele não era. No entanto, os dois continuaram se encontrando, e o tempo que passavam juntos sempre parecia correr fácil, ele sempre se sentia mais feliz e mais plenamente vivo quando estava com ela, e todos os conflitos e desentendimentos que tinham pareciam ocorrer, invariavelmente, pelo telefone, esse estranho instrumento de vozes desencarnadas, cada um invisível para o outro enquanto falavam através dos fios que corriam da casa dele até a casa dela, e, se e quando Ferguson a apanhava num momento ruim, muitas vezes ele se via ouvindo um tipo de pessoa raivosa, turrona, alguém completamente diferente da Anne-Marie que ele pensava conhecer. A mais triste e mais desmoralizante dessas conversas ocorreu no meio de março. Depois de um mês de testes para o time de beisebol do colégio, depois de encarar as listas semanais de nomes afixadas ao quadro de avisos do vestiário, a busca ansiosa pelo seu nome na lista, que ia encolhendo lentamente, com os jogadores que tinham sobrevivido ao último corte, ele telefonou para ela para contar que a lista final tinha saído e que ele era um dos dois alunos do segundo ano que tinham entrado no time principal. Um demorado silêncio do outro lado da linha, que Ferguson rompeu, dizendo: eu só queria dividir a boa notícia com você. Outra pausa. E então a reação dela, pronunciada numa voz fria e rasa: Boa notícia? Por que eu tenho de achar que é uma boa notícia? Detesto esporte. Sobretudo beisebol, que deve ser o jogo mais bobo que já inventaram. É vazio, infantil, maçante, e por que uma pessoa inteligente feito você quer gastar seu tempo correndo por um campo junto com um bando de retardados? Cresça, Archie. Você já não é mais criança.

O que Ferguson não sabia era que Anne-Marie estava embriagada quando falou essas palavras, como estava em diversas outras ocasiões durante suas conversas recentes ao telefone, que havia alguns meses que ela vinha escondendo garrafas de vodca no seu quarto e bebendo quando os pais saíam de casa, longos porres solitários que liberavam os demônios de dentro dela e transformavam sua língua numa arma de crueldade. A garota sóbria, de boas maneiras das horas diurnas desaparecia quando ficava sozinha em seu quarto, à noite, e como Ferguson nunca punha os olhos nessa outra pessoa, só falava com ela e escutava suas declarações furiosas e mal alinhavadas, não tinha a menor ideia do que estava acontecendo, a menor ideia de que o primeiro amor de sua vida estava destinado a surtar.

Aquela última conversa ocorreu numa quinta-feira, e Ferguson ficou tão exasperado e desconcertado com suas declarações hostis que se sentiu quase feliz quando ela não apareceu no colégio na manhã seguinte. Ele precisava de tempo para refletir melhor, foi o que disse para si mesmo, e não ter de ver Anne-Marie nesse dia tornava menos difícil se recuperar da mágoa que ela causara. Lutando contra o impulso de telefonar para ela depois do colégio, na sexta-feira, ele saiu de casa logo depois de largar os livros e desceu o quarteirão para ver o Bobby George, que era o outro aluno do segundo ano que tinha sido selecionado para o time principal, o corpulento e pescoçudo Bobby, agora um receptor de primeira categoria e campeão dos cabeças de bagre, um dos retardados do bando de retardados com quem Ferguson, em breve, estaria jogando. Ele e Bobby acabaram passando o fim de tarde com outros retardados do beisebol, colegas do segundo ano que tinham entrado no time B, e quando Ferguson entrou em casa, poucos minutos antes da meia-noite, era tarde demais para telefonar para Anne-Marie. Ele se conteve no sábado e também no domingo, lutando contra a tentação de discar o número do telefone, mantendo-se longe dos telefones, determinado a não ceder, louco para ceder, desesperado para ouvir a voz dela de novo. Na segunda-feira de manhã, acordou completamente curado, o rancor expurgado do coração, preparado para perdoar Anne-Marie pela inexplicável explosão de quinta-feira, mas aí foi para o colégio e, mais uma vez, Anne-Marie estava ausente. Ferguson imaginou que fosse o frio ou o resfriado, nada de grave, mas agora ele já havia conquistado o direito de falar com ela, ligou para a casa dela na hora do almoço, do telefone público que ficava junto à entrada da lanchonete. Ninguém atendeu. Tocou dez vezes e ninguém atendeu. Na esperança de que tivesse discado um número errado, pôs o fone no gancho e tentou de novo. Tocou vinte vezes, mas ninguém atendeu.

Ligou com insistência por dois dias, enquanto o pânico ia aumentando a cada tentativa frustrada de fazer contato com ela, e ficou ainda mais confuso com o que parecia ser uma casa inexplicavelmente vazia, um telefone que tocava e tocava e nunca era atendido, o que diabo estava acontecendo, ele se perguntava, para onde tinha ido todo mundo, e na quinta-feira bem cedinho, uma boa hora e meia antes de tocar a primeira sineta do colégio, ele foi a pé até a casa dos Dumartin, no outro lado da cidade, uma casa grande com telhado triangular, um enorme gramado na frente, numa das ruas mais chiques de Montclair, a Rua das Mansões, como Ferguson chamava quando era pequeno, e muito embora Anne-Marie fizesse questão de que ele se mantivesse longe de sua casa porque não queria que ele visse seus pais, agora Ferguson não tinha opção, senão ir até lá a fim de solucionar o mistério do telefone que ninguém atendia, o que em troca podia ajudá-lo a solucionar o mistério do que tinha acontecido com ela.

Tocou a campainha da porta e esperou, esperou por um tempo suficiente para chegar à conclusão de que não havia ninguém em casa, depois tocou a campainha da porta de novo e, já na hora em que ele estava prestes a dar meia-volta e ir embora, a porta se abriu. Um homem estava parado na frente dele, um homem que obviamente era o pai de Anne-Marie — a mesma cara redonda, o mesmo queixo, os mesmos olhos azul-acinzentados — e muito embora fossem apenas sete e meia da manhã, ele já estava todo vestido, muito bem-arrumado em seu terno azul-escuro de diplomata, em sua camisa branca engomada e gravata vermelha listrada, as faces lisas da barba matinal, um toque de água-de-colônia pairando em volta da cabeça, que era uma cabeça bastante bonita, pensou Ferguson, porém um tanto abatida em torno dos olhos, talvez, ou mesmo dentro dos olhos, uma espécie de olhar irritadiço, confuso, melancólico, que Ferguson achou, de certo modo, comovente, não, não exatamente comovente, mas cativante, sem dúvida porque aquele era o rosto que pertencia ao pai de Anne-Marie.

Sim?

Desculpe, disse Ferguson, sei que é muito cedo, mas sou amigo de Anne-Marie, do colégio, e estou telefonando para cá faz alguns dias, querendo saber se ela está bem, mas ninguém atende, aí fiquei preocupado e vim até aqui para saber.

E você é?

Archie. Archie Ferguson.

Há uma explicação simples, sr. Ferguson. O telefone está quebrado. Um inconveniente terrível para todos nós, mas me garantiram que o técnico vi­rá hoje.

E a Anne-Marie?

Ela não anda passando bem.

Nada de grave, espero.

Não, tenho certeza de que tudo vai ficar bem, por enquanto ela precisa de repouso.

Eu poderia visitá-la?

Desculpe. Se me der seu telefone, vou pedir para ela ligar assim que estiver se sentindo um pouco melhor.

Obrigado. Ela já tem meu telefone.

Está certo. Vou dizer para ela entrar em contato com você. (Uma breve pausa.) Diga seu nome outra vez. Acho que me fugiu da memória.

Ferguson. Archie Ferguson.

Ferguson.

Isso mesmo. Por favor, diga para Anne-Marie que estou pensando nela.

Assim terminou o único encontro de Ferguson com o pai de Anne-Marie, e, quando a porta se fechou de novo e ele começou a andar na direção da rua, se perguntou se o sr. Dumartin não ia esquecer seu nome outra vez, ou se não ia simplesmente se esquecer de dizer para Anne-Marie telefonar para ele, ou se ele, de propósito, não ia dizer para ela telefonar, ainda que lembrasse seu nome, já que essa era a missão de todos os pais, em toda parte do mundo — proteger as filhas dos garotos que estavam pensando nelas.

Depois disso, silêncio, e quatro longos dias de nada. Ferguson tinha a sensação de que alguém o havia amarrado, levado para um lago num bote, jogado na água, e depois de baixar até o fundo do lago, que era necessariamente um lago grande, tão vasto e profundo quanto o lago Michigan, a sensação era de prender o fôlego debaixo d’água, quatro longos dias entre ca­dáveres e máquinas de votar enferrujadas, sem respirar nenhuma vez, e no domingo à noite, seus pulmões à beira de estourar, sua cabeça à beira de explodir, ele finalmente tomou coragem de pegar o telefone e, um segundo depois de discar o número da casa dos Dumartin, lá estava ela. Como estava contente, disse ela, contente por ele ter ligado, e parecia falar com sinceridade, explicou que tinha telefonado para ele três vezes naquela manhã (o que podia ser verdade, pois Ferguson tinha saído com os pais para jogar tênis), e então ela começou a contar sobre a vodca, os meses de bebedeiras em segredo em seu quarto, que culminaram com o porre fatal na quinta-feira à noite, a última noite em que os dois conversaram pelo telefone, que terminou com ela caída no chão, desmaiada, e quando o pai e a madrasta voltaram de uma festa em Nova York, às onze e meia, viram que a porta do seu quarto estava aber­ta e a luz acesa, e aí entraram e encontraram Anne-Marie, e como não conseguiram acordá-la, e como a garrafa estava vazia, chamaram uma ambulância para levá-la para o hospital, onde lhe fizeram uma lavagem estomacal e ela recobrou a consciência, mas em vez de mandá-la para casa na manhã seguinte, a transferiram para uma ala psiquiátrica, onde ela fez exames e foi entrevistada por médicos durante três dias, e agora que tinha o diagnóstico de maníaco-depressiva, e de que precisava de psicoterapia de longo prazo, o pai resolveu que ela devia voltar para a Bélgica o mais cedo possível, que era o que ela sempre desejou, uma chance de escapar de sua horrível madrasta, de pôr um fim a seu exílio nos horríveis Estados Unidos, o que sem dúvida nenhuma tinha levado Anne-Marie a beber, desde o início, e agora que ficaria morando com a irmã de sua mãe em Bruxelas, sua querida tia Christine, o que significava que ia ficar de novo com os irmãos e os primos e os velhos amigos, ela estava se sentindo feliz, feliz como havia muito tempo não se sentia.

Depois disso, ele só a viu uma vez, um encontro de despedida na quarta-feira, um excepcional passeio noturno com uma colega do colégio, que a mãe dele autorizou porque sabia que era muito importante para Ferguson, chegou até a lhe dar um dinheiro extra para pagar o táxi (a primeira e única vez que aconteceu), pois assim ele e sua garota belga não teriam de suportar a humilhação de serem conduzidos de carro por algum de seus pais, o que só serviria para enfatizar como ele era jovem, e desde quando alguém tão jovem assim pode ficar tão seriamente apaixonado? Sim, a mãe de Ferguson continuava a compreendê-lo, pelo menos muitas das coisas importantes sobre ele, e Ferguson se sentia agradecido a ela por isso e, no entanto, aquela última noite com Anne-Marie acabou sendo um negócio deprimente e desastrado para Ferguson, um exercício fútil de tentar manter sua dignidade, dominar sua dor para não suplicar nem chorar nem dizer alguma coisa dura para ela, só por amargura ou frustração; no entanto, como não lembrar, no decorrer da noite, que aquilo era o fim, a última vez que a veria e, para piorar ainda mais as coisas, naquela noite ela estava no auge de sua forma, tão afetuosa, tão efusiva nas coisas que dizia sobre ele: meu maravilhoso Archie, meu lindo Archie, meu inteligente Archie, e cada palavra gentil parecia descrever alguém que não existia, um morto, eram palavras de um discurso fúnebre, e ainda pior do que isso era a alegria fora do comum de Anne-Marie, o júbilo que Ferguson podia enxergar nos olhos dela, quando falava em partir, sem parar nem uma vez para pensar que partir significava deixá-lo para trás dali a dois dias, mas de repente ela deu uma risada e disse para ele não se preocupar, os dois voltariam a se ver em breve, ele podia ir a Bruxelas e passar o verão com ela, como se os pais dele tivessem dinheiro para pagar uma viagem de avião para a Europa, logo eles, que nem uma vez tinham ido à Califórnia para visitar a tia Mildred e o tio Henry durante todos os anos em que moravam ali, e então ela disse algo ainda mais incompreensível e doloroso para ele, sentada no banco do parque onde se beijaram pela primeira vez, em outubro, e onde agora se beijavam de novo, em sua última noite juntos, em março, quando falou que talvez até fosse sorte dele o fato de ela partir, que ela era tão enrolada, e ele tão normal, e que ele merecia ficar com uma garota normal e saudável, e não com uma garota doente feito ela, e daquele momento até a hora em que a deixou em casa, vinte minutos depois, Ferguson se sentiu mais triste do que nunca antes em toda sua vida nojentamente normal.

Uma semana depois, ele escreveu uma carta de nove páginas para ela e mandou para o endereço da tia de Anne-Marie, em Bruxelas. Uma semana depois, uma carta de seis páginas. Três semanas depois, uma carta de duas páginas. Um mês depois, um cartão-postal. Ela não respondeu nenhuma delas, e, quando chegaram as férias escolares de verão, ele compreendeu que nunca mais ia escrever para Anne-Marie.

A verdade era que garotas saudáveis e normais não despertavam seu interesse. A vida nos subúrbios era maçante demais e o problema com garotas saudáveis e normais era que faziam lembrar os subúrbios, o que tinha se tornado previsível demais para seu gosto, e a última coisa que ele desejava era estar com uma garota previsível. Quaisquer que fossem os defeitos dela, por mais angústia que tivesse causado a Ferguson, Anne-Marie pelo menos era cheia de surpresas, pelo menos mantinha o coração dele palpitando, em estado de suspense prolongado, e agora que tinha ido embora, tudo havia se tornado maçante e previsível outra vez, ainda mais opressivo do que era antes de ela ter entrado em sua vida. Ele sabia que não era culpa de Anne-Marie, mas não podia deixar de se sentir traído. Ela o havia abandonado e, dali em diante, a alternativa era se contentar com os idiotas ou viver num confinamento solitário, durante os dois anos seguintes, momento em que ia fugir daquele lugar para nunca mais voltar.

Agora, tinha dezesseis anos e passou o verão trabalhando para o pai e jogando beisebol à noite, sempre o beisebol, ainda e sempre o beisebol, o que sem dúvida era uma busca insensata, mas que continuava a lhe dar prazer demais para que pensasse em abandonar, dessa vez numa liga de jogadores do ensino médio e da faculdade de todo o país, uma liga forte e competitiva, mas ele tinha se saído bem no seu primeiro ano no time colegial principal de Montclair, começou como jogador da terceira base e rebatedor número cinco, uma média de trezentas e doze rebatidas para um bom time, o melhor time na Grande Conferência dos Dez, e agora ele rebatia com mais força, pois continuava a crescer, um metro e noventa e três na última vez em que mediu sua altura, setenta e nove quilos na última vez em que subiu na balança, e assim ele jogou naquele verão a fim de manter a forma, e passava as manhãs e as tardes trabalhando para o pai, em geral saía com a van para fazer entregas e instalar aparelhos de ar-condicionado com um cara chamado Ed, e quando não havia o que entregar, ajudava Mike Antonelli nas vendas, na frente da loja, ou cobria Mike enquanto ele tirava uma de suas frequentes folguinhas para tomar café no Al’s Diner, e quando não havia nenhum freguês para atender, ia para os fundos da loja e sentava ao lado do pai, até aparecer alguém, seu pai de quase cinquenta e cinco anos, ainda magro e elegante, ainda ancorado à sua mesa de trabalho, consertando aparelhos quebrados, seu pai calado e isolado, quase sereno agora, depois de seis anos no silêncio daquela sala nos fundos, e enquanto Ferguson se oferecia com persistência para ajudar nos reparos, apesar de ser desajeitado e inábil em tudo que dizia respeito a máquinas, seu pai sempre fazia pouco de sua ajuda, dizia que o filho não devia desperdiçar seu tempo com torradeiras quebradas, ele estava viajando por estradas que o levariam a coisas muito maiores, e que se ele queria ser útil, devia trazer algum daqueles livros de poesia que tinha em casa e ler em voz alta, enquanto seu velho cuidava das torradeiras quebradas, e foi assim que Ferguson, que vinha ingerindo vastas quantidades de poesia no ano e meio anterior, passou uma parte do verão lendo para o pai na sala dos fundos da loja TV & Rádio Stanley, Dickinson, Hopkins, Poe, Whitmann, Frost, Eliot, Cummings, Pound, Stevens, Williams e outros, mas o poema que o pai parecia preferir, o poema que pareceu causar a impressão mais forte sobre ele, foi “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”, o que deixou Ferguson espantado, e como não estava preparado para essa reação, entendeu que tinha deixado escapar alguma coisa, vinha deixando escapar alguma coisa já fazia um bom tempo, o que significava que ele teria de repensar tudo o que havia previsto até então sobre o pai, pois quando terminou de ler o último verso, Até sermos acordados por vozes humanas/ E nos afogarmos, o pai virou-se para ele e olhou dentro de seus olhos, olhou para ele com uma intensidade que Ferguson nunca tinha visto em todos os anos em que conviveu com o pai, e depois de um longo silêncio, disse: Ah, Archie. Que coisa maravilhosa. Obrigado. Muito obrigado mesmo. E seu pai balançou a cabeça para a frente e para trás três vezes e falou de novo as últimas palavras: Até sermos acordados por vozes humanas/ E nos afogarmos.

A última semana do verão. Vinte e oito de agosto, e a passeata em Wash­ington, os discursos no Mall, as enormes multidões, dezenas de milhares, centenas de milhares, e depois o discurso que, mais tarde, os alunos do pri­mário teriam de aprender de cor, o discurso dos discursos, tão importante naquele dia quanto o Discurso de Gettysburg foi em seu tempo, um grande momento dos Estados Unidos, um momento público para todos verem e ouvi­rem, mais importante até do que as palavras ditas por Kennedy em seu discurso de posse, trinta e dois meses antes, e todo mundo na loja TV & Rádio Stanley ficou de pé na sala da frente e assistiu à transmissão pela tevê, Ferguson e o pai, o barrigudo Mike e o tampinha Ed, e aí a mãe de Ferguson veio também, junto com cinco ou seis pedestres que estavam passando na hora, por acaso, mas antes do grande discurso houve vários discursos, entre eles um proferido por um morador de Nova Jersey, o rabino Joachim Prinz, o judeu mais admirado pelos Ferguson em todo o mundo, um herói para seus pais, ainda que não praticassem sua religião nem pertencessem a qualquer sinagoga, mas todos os Ferguson tinham visto e ouvido aquele homem falar em casamentos, enterros e bar mitsvás no templo que ele presidia em Newark, o famoso Joachim Prinz, que como jovem rabino em Berlim havia denunciado Hitler antes mesmo de os nazistas tomarem o poder em 1933, que enxergava o futuro com mais clareza do que qualquer outra pessoa e alertou os judeus de que deviam sair da Alemanha, o que lhe acarretou repetidas prisões pela Gestapo e sua expulsão, em 1937, e é claro que era atuante no movimento ame­ricano pelos direitos civis, e é claro que tinha sido escolhido para representar os judeus naquele dia, por causa de sua eloquência e de sua comprovada coragem, e é claro que os pais de Ferguson tinham orgulho dele, os dois tinham apertado sua mão e falado com ele, a pessoa que agora estava diante das câmeras fazendo um discurso para a nação, o mundo inteiro, e depois King subiu no palanque e, trinta e quatro segundos depois, o discurso começou; Ferguson olhou para a mãe e viu que seus olhos brilhavam com lágrimas, o que o deixou muito admirado, não porque achasse inadequado que ela reagisse assim, mas exatamente porque ele não reagia assim, porque aquele era mais um exemplo de como ela se envolvia com o mundo, sua excessiva, e muitas vezes sentimental, leitura dos fatos, os arroubos de emoção que a tornavam tão suscetível a ponto de chorar em filmes ruins de Hollywood, o otimismo de bom coração que às vezes a levava a pensamentos embaralhados e a frustrações esmagadoras, e então olhou para o pai, um homem quase inteiramente indiferente à política, que parecia exigir tão menos coisas da vida do que a mãe exigia, e o que ele viu nos olhos do pai foi uma mistura de vaga curiosidade e tédio, o mesmo homem que ficou tão comovido com a resignação desolada do poema de Eliot estava passando maus bocados para engolir o idealismo esperançoso de Martin Luther King, e, enquanto Ferguson ouvia a emoção crescente na voz do pastor, as repetições em rufo de tambor da palavra “sonho”, se perguntava como duas almas tão incompatíveis podiam ter se casado e continuado casadas durante tantos anos, e como ele mesmo podia ter nascido de um casal como Rose Adler e Stanley Ferguson, e como era estranho, como era profundamente estranho estar vivo.

No Dia do Trabalho, cerca de vinte pessoas vieram à casa deles para um churrasco de fim de verão. Raramente seus pais organizavam essas festas grandes, porém, duas semanas antes, sua mãe tinha ganhado uma competição de fotografia patrocinada pelo novo conselho de arte do governo, em Trenton. O prêmio veio acompanhado da encomenda para produzir um livro de retratos de cem cidadãos destacados de Nova Jersey, um projeto que levaria sua mãe a viajar pelo estado para fotografar prefeitos, reitores de universidades, cientistas, homens de negócio, artistas, escritores, músicos e atletas, e como o trabalho seria bem remunerado e os pais de Ferguson se sentiam empolgados pela primeira vez em muitos anos, resolveram comemorar com uma festa de carne na grelha, no quintal de casa. O bando de costume compareceu — os Solomon, os Brownstein, os George, do fim do quarteirão, os avôs de Ferguson e sua tia-avó Pearl —, mas também apareceram outras pessoas, entre elas uma família de Nova York chamada Schneiderman, formada por um artista comercial de quarenta e cinco anos chamado Daniel, filho caçula do antigo patrão da mãe de Ferguson, Emmanuel Schneiderman, que agora estava morando num asilo de idosos no Bronx, e a esposa de Daniel, Liz, além de sua filha de dezesseis anos, Amy. Na manhã da festança, no Dia do Trabalho, enquanto Ferguson e seus pais picavam os legumes e preparavam o molho do churrasco na cozinha, a mãe contou para Ferguson que ele e Amy se conheceram quando pequenos e brincaram juntos algumas vezes, mas de um jeito ou de outro Rose havia perdido o contato com os Schneiderman, doze anos foram arrancados do calendário, e então, apenas duas semanas antes, numa visita que ela fez aos pais em Nova York, esbarrou com Dan e Liz em Central Park Sul. Por isso o convite. Por isso a primeira visita dos Schneiderman a Montclair, em toda a vida.

A mãe continuou: Pela expressão em seus olhos, Archie, vejo que se esqueceu de Amy, mas quando tinha três ou quatro anos, você bem que teve uma queda por ela. Uma vez, quando todos nós fomos ao apartamento de Schneiderman para um jantar no domingo, você e Amy foram para o quarto dela, fecharam a porta, tiraram toda a roupa. Você nem se lembra disso, não é? Os adultos continuaram sentados à mesa, mas aí ouvimos você rindo lá dentro, rindo aos berros, fazendo aqueles barulhos loucos, descontrolados, que só as crianças conseguem fazer, e então todos levantamos para ver por que tamanha comoção. Dan abriu a porta e lá estavam vocês, os dois, só três anos e meio, ou quatro, pulando em cima da cama, nus em pelo, berrando até estourar os miolos, feito um par de malucos. Liz ficou arrasada, mas eu achei hilariante. Aquela expressão eufórica na cara de vocês, Archie, a imagem dos dois corpinhos quicando para cima e para baixo, a alegria desvairada que enchia o quarto, criancinhas alucinadas agindo como chimpanzés — era impossível não dar gargalhadas. Seu pai e Daniel também riram, eu lembro, mas Liz entrou furiosa no quarto e mandou você e Amy se vestirem. Já. E você conhece essa ordem zangada de mãe: Já! Mas antes que você pudesse pôr suas roupas, Amy disse uma das coisas mais engraçadas que já ouvi na vida. Mamãe, perguntou ela, muito séria agora, e muito pensativa, apontando o dedo direto para as suas partes íntimas e depois para as dela mesma, mamãe, por que o Archie é tão engraçado e eu sou tão sem graça?

A mãe de Ferguson riu, riu com força e demoradamente, ao recordar aquelas palavras, mas Ferguson apenas sorriu, um fraco sorriso de desculpa que rapidamente se dissipou de seu rosto, pois poucas coisas lhe davam menos prazer do que ouvir falar das bobeiras idiotas do início de sua infância. Ele disse para a mãe, que ainda ria: Você gosta de me provocar, não é?

Só às vezes, disse ela. Não é tanto assim, Archie, mas às vezes eu não consigo resistir.

Uma hora depois, Ferguson foi para o quintal com seu livro do momento, Viagem ao fim da noite, e sentou-se em uma das cadeiras de ripas de madeira que ele e o pai tinham pintado mais cedo, naquele verão, de verde-escuro, verde bem, bem escuro mesmo, mas em vez de abrir o livro e conhecer mais coisas sobre as aventuras de Ferdinand na fábrica de motores Ford em Detroit, ele se limitou a ficar sentado e a pensar, enquanto aguardava a chegada dos primeiros convidados, admirado com o fato de, um dia, ter feito travessuras em cima de uma cama com uma menina nua, de ele mesmo ter ficado nu enquanto fazia travessuras com a menina nua, e como era absolutamente cômica a circunstância de ele não ter nenhuma lembrança de ter feito isso, ao passo que agora daria quase tudo para estar com uma garota nua, estar nu em cima da cama com uma garota nua era a única e mais importante aspiração em sua vida solitária e sem amor, nenhum beijo ou abraço em mais de cinco meses, disse ele para si mesmo, uma primavera inteira e quase um verão inteiro de luto pela ausente e seminua Anne-Marie Dumartin, e agora estava prestes a encontrar a menina nua de seu passado distante, que não deixou nenhuma lembrança, Amy Schneiderman, que certamente tinha crescido e virado uma garota saudável, normal, maçante e previsível como era a maioria das garotas, como era a maioria dos garotos, como era a maioria dos homens e das mulheres, mas isso não tinha remédio, e, uma vez que ele nem sequer havia se encontrado com ela ainda, só lhe restava ver o que ia ver.

O que viu naquela tarde foi a pessoa que se transformou na próxima, a sucessora da coroa de seus desejos, uma garota que não era nem normal nem anormal, mas ardente, destemida, consciente da personalidade excepcional com que tinha nascido, e algumas semanas depois de seu primeiro encontro, à medida que o verão se desfazia no outono e o mundo à volta deles escurecia de repente, ela se tornou também a primeira, o que significa que a nua Amy Schneiderman e o nu Archie Ferguson já não ficaram mais pulando em cima da cama, mas deitados na cama, rolando juntos embaixo das cobertas, e durante anos depois disso ela continuou a trazer para ele as maiores alegrias e os maiores tormentos de sua vida de jovem, continuou a ser o outro indispensável que habitava por baixo de sua pele.

Mas de volta àquela tarde de segunda-feira, em setembro de 1963, o churrasco do Dia do Trabalho no quintal da casa dos Ferguson, e à primeira imagem que teve dela, quando Amy pôs o pé para fora do Chevrolet azul de seus pais, a cabeça de cabelos louro-escuros que emergiu do banco traseiro, e depois o fato surpreendente de que ela era muito alta, pelo menos um e setenta e três ou setenta e quatro de altura, uma garota grande com um rosto de charme impressionante, não lindo nem bonito, mas charmoso, nariz sólido, queixo reto, olhos grandes de cor ainda indefinida, de constituição nem pesada nem frágil, seios pequeninos embaixo da blusa azul de mangas curtas, pernas compridas, bunda redonda encaixotada num par de calças justas de cor bege, e um curioso jeito saltitante de andar, o torso inclinado muito de leve para a frente, como se estivesse ansiosa para correr adiante, um jeito de andar de menina levada, imaginou Ferguson, mas fascinante e fora do comum, assinalando que ela era uma pessoa digna de ser enfrentada, uma garota diferente da maioria das garotas de dezesseis anos, porque se portava sem o menor traço de inibição. A mãe de Ferguson presidiu as apresentações, um aperto de mão com a mãe (ligeiramente tenso, um breve sorriso), um aperto de mão com o pai (relaxado, afável), e antes mesmo de Ferguson apertar a mão de Amy, ele pôde sentir que Liz Schneiderman não gostava da mãe dele, porque desconfiava que o marido estava meio apaixonado por ela, o que podia ser verdade, levando em conta o demorado abraço de saudação que Schneiderman deu na ainda linda Rose de quarenta e um anos, e então Ferguson apertou a mão de Amy, a mão comprida e notavelmente delgada de Amy, con­cluindo que os olhos dela eram verde-escuros com alguns sinaizinhos marrons por dentro, e observou que os dentes dela, quando sorria, eram um pouco grandes demais para a boca, uma fração a mais do que era devido, e, portanto, eram cativantes, e quando ouviu sua voz pela primeira vez, Alô, Archie, naquele mesmo instante ele soube, para além de qualquer dúvida, que os dois estavam destinados a serem amigos, o que era uma suposição ridícula, é claro, pois como ele poderia saber de alguma coisa naquela altura, só que lá estava, uma sensação, uma intuição, uma certeza de que algo importante estava acontecendo e que ele e Amy Schneiderman estavam prestes a partirem juntos numa longa jornada.

Bobby George também estava lá naquele dia, junto com seu irmão Carl, que logo iria começar seu segundo ano no ensino médio em Dartmouth, mas Ferguson não tinha a menor vontade de conversar com nenhum dos dois, nem com o Carl de raciocínio rápido nem com o Bobby cabeça-oca, o eterno piadista Bobby. O que ele queria era ficar com Amy, a única outra pessoa jovem na festa, e assim, ainda durante os quarenta e cinco segundos que durou seu aperto de mão, como uma estratégia para não ter de dividir Amy com os outros, ele a convidou para subir ao seu quarto. Foi uma coisa um tanto impetuosa de se fazer, talvez, mas ela aceitou com um movimento positivo da cabeça e disse: Boa ideia, vamos lá, e subiram ao refúgio de Ferguson no primeiro andar, que já não era mais um santuário devotado a Kennedy, mas um lugar coalhado de livros e discos, tantos livros e discos que as prateleiras lotadas já não podiam mais comportar a coleção, que continuava a crescer em pilhas encostadas à parede perto da cama, e Ferguson gostou de ver Amy fazer que sim com a cabeça outra vez, quando entrou no quarto, como se estivesse dizendo que aprovava o que via, o monte de nomes santificados e obras consagradas, que ela, em seguida, tratou de examinar mais detidamente, apontando para um livro e dizendo: Este aqui é bom pra caramba, apontando para outro e dizendo: Ainda não li este aqui, apontando para um terceiro e dizendo: Nunca ouvi falar dele, mas dali a pouco ela se sentou no chão ao pé da cama, o que convidou Ferguson a se sentar no chão também, de frente para ela a uma distância de um metro, com as costas apoiadas nas gavetas da escrivaninha, e durante uma hora e meia os dois ficaram conversando, só pararam quando alguém bateu na porta e anunciou que a comida estava servida no quintal, o que os fez descer para se juntar aos outros por um tempo, enquanto comiam hambúrgueres e bebiam a cerveja proibida na frente dos pais, os quatro não conseguiram torcer o nariz para essa transgressão da lei, e então Amy enfiou a mão na sua bolsa, tirou um maço de Lucky Strike e acendeu na frente dos pais — que, mais uma vez, não conseguiram torcer o nariz —, explicando que não fumava muito, mas adorava sentir o sabor do tabaco depois de comer, e depois de cuidar da comida e do cigarro, Amy e Ferguson pediram desculpas e foram dar uma vagarosa volta a pé pelo bairro, enquanto o sol começava a baixar, e acabaram parando num banco no mesmo pequeno parque onde ele tinha beijado Anne-Marie pela última vez, antes de ela sumir, e pouco depois de Ferguson e Amy terem combinado de se encontrar outra vez em Nova York num sábado, mais tarde, naquele mesmo mês, os dois começaram a se beijar, um salto não planejado e espontâneo, enquanto uma boca se colava na outra, um delicioso beijo molhado de línguas que se revolviam e dentes que se entrechocavam, a excitação instantânea nas turbulentas partes baixas de seus corpos pós-pubescentes, se beijavam com tanto ímpeto que poderiam ter devorado um ao outro se Amy não tivesse de repente se desvencilhado dele e começado a rir, o jorro de um riso ofegante e desconcertado, que logo fez Ferguson rir também. Puxa vida, Archie, disse ela. Se a gente não parar agora, daqui a pouco vamos rasgar nossa roupa toda. Ela se levantou e estendeu o braço direito para ele. Venha, seu maluco, vamos voltar para a casa.

Tinham a mesma idade, ou quase a mesma idade, duzentos meses de idade em oposição a cento e noventa e oito meses, mas como Amy nasceu no fim de 1946 (29 de dezembro) e Ferguson no começo de 1947 (3 de março), ela estava um ano inteiro na frente dele, o que significava que ela ia começar seu último ano no colégio Hunter, enquanto ele ia continuar atolado na modesta penúltima série. Nessa altura, a faculdade não passava de uma vaga imagem nebulosa para ele, um destino remoto para o qual ainda era preciso arranjar um nome, ao passo que ela vinha estudando mapas havia quase um ano e estava quase pronta para começar a fazer as malas. Ia se candidatar para diversos cursos, disse ela. Todo mundo lhe disse que ia precisar de opções, segunda e terceira opções, mas Barnard era sua primeira escolha, sua única escolha, na verdade, porque era a melhor faculdade em Nova York; o que Columbia era para os rapazes, Barnard era para as moças, e a opção objetiva número um era ficar em Nova York.

Mas você passou sua vida toda em Nova York, disse Ferguson. Não gostaria de experimentar outro lugar?

Já estive em outros lugares, respondeu, uma porção de lugares, e todos eles se chamam Cidade do Bocejo. Você já esteve em Boston ou em Chicago?

Não.

Cidade do Bocejo Um e Cidade do Bocejo Dois. Los Angeles?

Não.

Cidade do Bocejo Três.

Está bem. Mas e que tal uma faculdade no interior? Cornell, Smith, algum desses lugares. Gramados verdes e pátios que fazem eco, a busca do conhecimento em um ambiente rústico.

Joseph Cornell é um gênio, os Smith Brothers fazem excelentes pastilhas para tosse, mas congelar minha bunda durante quatro anos na Universidade da Roça não é minha ideia de um tempo divertido. Não, Archie, o negócio é Nova York. Não tem outro lugar.

Ele a conhecia fazia mais ou menos dez minutos, quando trocaram essas palavras e, quando Ferguson ouviu Amy defender Nova York, declarar seu amor por Nova York, lhe ocorreu que ela mesma, de certo modo, era uma personificação da sua cidade, não só na sua confiança e rapidez de raciocínio, mas também e especialmente em sua voz, que era a voz das garotas judias espertas do Brooklyn, Queens e do Upper West Side, a terceira geração da voz judia de Nova York, o que significava a segunda geração de judeus nascidos nos Estados Unidos, que tinha uma música ligeiramente distinta do sotaque irlandês de Nova York, por exemplo, ou do sotaque italiano de Nova York, uma fala ao mesmo tempo simples, sofisticada e insolente, com uma aversão semelhante ao r duro, porém mais precisa e enfática nas articulações, e quanto mais ele se habituava àquelas articulações, mais desejava continuar ouvindo, pois o sotaque dos Schneiderman representava tudo o que não eram os subúrbios, tudo o que não era sua vida tal como existia agora e, portanto, era a promessa de uma fuga para um futuro possível, ou pelo menos um presente habitado por aquele futuro possível, e enquanto estava sentado no quarto com Amy e, mais tarde, caminhava pelas ruas com ela, conversaram sobre tudo quanto era assunto, mas principalmente sobre o verão turbulento que havia começado com o assassinato de Medgar Evers e terminado com o discurso de Martin Luther King, o interminável emaranhado de horror e esperança que parecia definir o panorama americano, e também sobre os livros e os discos nas prateleiras e no chão do quarto de Ferguson, para não mencionar o dever de casa, a prova de seleção para entrar na faculdade e até o beisebol, mas a única pergunta que ele não fez para ela, que estava resolvido a refrear a todo custo e não perguntar, foi se Amy tinha namorado, pois ele já havia resolvido que ia fazer tudo que estivesse a seu alcance para que ela fosse a próxima, e ele não tinha o menor interesse em saber quantos rivais estavam em seu caminho.

No dia 15 de setembro, menos de duas semanas depois do churrasco do Dia do Trabalho, o que significava exatamente seis dias antes do dia em que tinham combinado de se encontrar outra vez em Nova York, ela telefonou para ele, e, como foi para ele que Amy ligou e não para qualquer outro, ele compreendeu que não havia nenhum namorado no horizonte, nenhum rival para temer, e que ela agora estava com ele da mesma forma como ele estava com ela. Ferguson sabia que, como ele foi a pessoa que ela escolheu para telefonar quando soube da notícia da explosão de uma bomba numa igreja de negros em Birmingham, no Alabama, com o assassinato de quatro meninas pequenas lá dentro, mais um horror americano, mais uma batalha na guerra de raças que se espalhava pelo sul, como se a passeata em Washington duas semanas e meia antes tivesse de ser vingada com bombas e assassinatos, e Amy estava chorando ao telefone, lutando para não chorar enquanto lhe contava as notícias e, pouco a pouco, enquanto ela se recompunha lentamente, começou a falar sobre o que podia ser feito, sobre o que achava que tinha de ser feito, não apenas leis aprovadas por políticos, mas um exército de gente que fosse até lá e combatesse os fanáticos, e ela seria a primeira a se alistar, um dia depois de se formar no ensino médio ela ia partir a pé até o Alabama e trabalhar pela causa, sangrar pela causa, tornar a causa o propósito central de sua vida. É o nosso país, disse ela, e a gente não pode deixar que os sacanas roubem ele de nós.

Os dois se encontraram no sábado seguinte e em todos os outros sábados, no outono, Ferguson pegava o ônibus de Nova Jersey até o terminal de Port Authority e depois pegava o metrô expresso para a rua 72 Oeste, onde desembarcava e seguia a pé três quarteirões para o norte e dois quarteirões para o oeste, até o apartamento dos Schneiderman, na Riverside Drive com a rua 75, apartamento 4B, agora o endereço mais importante em Nova York. Passeios de vários tipos, quase sempre os dois juntos, sozinhos, às vezes com alguma amiga de Amy, filmes estrangeiros no Thalia, na Broadway e na rua 95, Godard, Kurosawa, Fellini, visitas ao Met, ao Frick, ao MoMA, os Knicks no Garden, Bach no Carnegie Hall, Beckett, Pinter e Ionesco em pequenos teatros do Village, tudo tão perto e tão acessível, e Amy sempre sabia aonde ir e o que fazer, a princesa guerreira de Manhattan estava ensinando Ferguson a encontrar seu caminho pela cidade, que rapidamente se tornou sua cidade também. No entanto, apesar de todas as coisas que viam e de todas as coisas que faziam, a melhor parte daqueles sábados era ficar sentado nas lanchonetes e conversar, as primeiras sessões do diálogo contínuo que iria prosseguir por anos, conversas que às vezes se transformavam em discussões ásperas, quando suas opiniões diferiam, o filme bom ou ruim que tinham acabado de ver, a ideia política boa ou ruim que tinham acabado de expressar, mas Ferguson não se importava de discutir com ela, não tinha nenhum interesse em adversários frouxos, as garotas birrentas, bobas, que só queriam saber do que imaginavam ser as formalidades do amor, aquilo é que era o amor de verdade, complexo, profundo e maleável o bastante para admitir a discórdia fervorosa, e como ele poderia não amar essa garota, com seu olhar implacável e penetrante, sua risada imensa e explosiva, a destemida Amy Schneiderman de pavio curto, que um dia ia ser correspondente de guerra ou revolucionária ou médica que atendia os pobres. Tinha dezesseis anos, beirava os dezessete. A tábula rasa já não estava mais inteiramente rasa, mas Amy ainda era jovem o suficiente para saber que podia apagar as palavras que havia escrito, esfregar e apagar e começar outra vez, a qualquer momento que o espírito mandasse.

Beijos, é claro. Abraços, é claro. Junto com o fato irritante de que os pais de Amy costumavam ficar em casa nas tardes e nas noites de sábado, o que limitava as oportunidades para ficarem sozinhos no apartamento e acarretava muitos amassos debaixo da friagem, em bancos do Riverside Park, alguns amassos e agarramentos furtivos em quartos dos fundos nas festas promovidas pelos amigos de Amy, e duas vezes, só duas vezes, nas duas ocasiões em que seus pais caseiros deram uma saída no fim da tarde, uma chance para se atreverem, mais a sério, a tombarem seminus na cama, no quarto de Amy, ocasiões marcadas pelo velho medo de que a porta se abrisse de repente, no pior momento possível. As frustrações de não terem pleno controle de suas vidas, os frenesis hormonais cerceados mil vezes por força das circunstâncias, os dois cada vez mais desesperados, à medida que as semanas passavam. Então, numa terça-feira à noite, em meados de novembro, Amy telefonou com uma boa notícia. Seus pais iam ficar fora da cidade dali a dois fins de semana, três dias inteiros na distante Chicago para visitar a mãe enferma de sua mãe, e, como seu irmão mais velho, Jim, só ia chegar de Boston um dia antes do Dia de Ação de Graças, Amy ia ficar sozinha no apartamento enquanto os pais estivessem fora. Um fim de semana inteiro, disse ela. Já pensou, Archie? Um fim de semana inteiro, sem ninguém no apartamento, a não ser nós dois.

Ferguson contou para os pais que ele e uns amigos tinham sido convidados para ficarem na casa de outro amigo na praia de Jersey, uma mentira tão forçada e absurda que nenhum dos dois percebeu, e, quando ele saiu de casa para o colégio na sexta-feira em questão, pareceu completamente natural que levasse uma bolsa com material para passar a noite fora. O plano era partir para Nova York assim que saísse do colégio e, se tivesse sorte bastante para pegar o primeiro ônibus, chegaria ao apartamento de Amy lá pelas quatro e meia ou quinze para as cinco, e se perdesse o primeiro ônibus e tivesse de pegar o segundo, chegaria lá pelas cinco e meia ou quinze para as seis. Mais um dia maçante nos corredores e nas salas de aula na Montclair High School, concentrando-se no relógio como se pudesse fazer o tempo andar mais depressa pela mera força do pensamento, contava os minutos, contava as horas, e então, no início da tarde, o anúncio pelo sistema de alto-falantes de que o presidente tinha sido baleado em Dallas, seguido pelo anúncio, pouco tempo depois, de que o presidente Kennedy estava morto.

Minutos depois, todas as atividades do colégio cessaram. Lenços e panos apareceram em milhares de pares de mãos, a maquiagem escorria pela bochecha de garotas soluçantes, garotos andavam sem rumo, balançando a cabeça ou dando socos no ar, garotas se abraçavam, garotas e garotos se abra­çavam, professores soluçavam e se abraçavam, enquanto outros olhavam atô­nitos para a parede ou para a maçaneta, e em pouco tempo os estudantes começaram a se juntar no ginásio ou na cantina, ninguém tinha ideia do que fazer, ninguém estava no comando, todas as rixas e animosidades tinham cessado, não existiam mais inimigos, e então a voz do diretor soou no sistema de alto-falantes outra vez e anunciou que as aulas estavam suspensas e que todos podiam ir para casa.

O homem do futuro estava morto.

Cidade irreal.

Todo mundo estava indo para casa, mas Ferguson carregava sua bolsa com o material para passar a noite fora e caminhou na direção do ponto de ônibus de Montclair para esperar o ônibus para Nova York. Mais tarde, ia telefonar para os pais, porém não ia para casa. Precisava ficar sozinho por um tempo e depois precisava ficar com Amy, e ficaria com ela durante o fim de semana, conforme o planejado.

Duas estradas se bifurcaram numa cidade irreal e o futuro estava morto.

À espera do ônibus, depois subindo a escada do ônibus e procurando uma poltrona, sentou-se na quinta fileira e depois ouviu a mudança de marcha quando o ônibus arrancou e tomou o rumo de Nova York, depois atravessou o túnel, enquanto uma mulher soluçava na poltrona atrás dele e o motorista falou para um passageiro, mais à frente: Não consigo acreditar, não consigo acreditar de jeito nenhum, mas Ferguson acreditou, muito embora se sentisse completamente arrancado para fora de si mesmo, flutuando em algum local fora do corpo, mas ao mesmo tempo com a mente clara, completamente lúcida, sem nenhuma inclinação para se desesperar ou chorar, não, tudo aquilo era grande demais para fazer isso, deixou a mulher atrás de si soluçando até estourar o coração, na certa isso a faria se sentir melhor, mas ele nunca iria se sentir melhor e, portanto, não tinha o direito de chorar, só tinha o direito de pensar, de tentar compreender o que estava acontecendo, aquela coisa grande que não se parecia com nada que já tinha acontecido com ele. O homem que falava com o motorista disse: Isso me faz lembrar de Pearl Harbor. Sabe, tudo estava calmo e tranquilo, uma preguiçosa manhã de sábado, as pessoas andando à toa, em casa, de pijama, e aí BUM, o mundo explode, e de repente estamos em guerra. Não é uma comparação ruim, pensou Ferguson. O evento enorme que rompe o coração das coisas e transforma a vida de todo mundo, o momento inesquecível em que algo termina e outra coisa começa. Será que é isso, ele se perguntou, um momento semelhante à eclosão de uma guerra? Não, não exatamente. A guerra anuncia o início de uma realidade, mas nada começou hoje, uma realidade terminou, só isso, algo foi subtraído do mundo e agora havia um buraco, um nada onde antes havia algo, como se toda árvore no mundo tivesse desaparecido, como se a própria noção de árvore ou montanha ou lua tivesse sido apagada da mente humana.

Um céu sem lua.

Um mundo sem árvores.

O ônibus entrou no terminal da rua 40 com a Oitava Avenida. Em vez de caminhar pelas passagens subterrâneas até a Sétima Avenida, como fazia normalmente em suas viagens para Nova York, Ferguson subiu a escada e saiu ao encontro do tardio crepúsculo de novembro, caminhou para o leste pela rua 42, enquanto tomava o rumo de sua parada do metrô em Times Square, mais um corpo na multidão no início da hora do rush, os rostos mortos das pessoas que cuidavam de suas vidas, tudo igual, tudo diferente, e então ele se viu abrindo caminho no meio de amontoados de pedestres que se juntavam na calçada, todos olhavam para o fluxo de letras luminosas que rodeavam o edifício alto à frente deles, JFK ALVEJADO E MORTO EM DALLAS. JOHNSON NOMEADO PRESIDENTE, e pouco antes de Ferguson chegar à escada que ia levá-lo à plataforma subterrânea do metrô, ouviu uma mulher dizer para outra mulher: Não consigo acreditar, Dorothy, simplesmente não consigo acreditar no que meus olhos estão vendo.

Irreal.

Uma cidade sem árvores. Um mundo sem árvores.

Ele não tinha telefonado para Amy para saber se ela havia ido do colégio para casa. Era possível que ainda estivesse com seus amigos, arrebatada pela confusão do momento, perturbada, abalada demais para lembrar que ele estava vindo, e assim, quando Ferguson tocou o interfone do apartamento 4B, não tinha certeza de que alguém fosse atender. Cinco segundos de dúvida e então ouviu a voz dela pelo interfone: Archie, é você, Archie?, e um segundo depois ela fez zunir o mecanismo que abriu a tranca da porta e o deixou entrar.

Os dois passaram horas vendo a cobertura do assassinato pela tevê, e então, envolvidos nos braços um do outro, num abraço apertado, rolaram para o quarto de Amy, deitaram na cama e fizeram amor pela primeira vez.


2.2

O primeiro exemplar de O Cruzado da Rua de Paralelepípedos apareceu no dia 13 de janeiro de 1958. A. Ferguson, criador e editor da revista infantil, declarava num editorial de primeira página que O Cruzado ia “relatar os fatos da melhor maneira que formos capazes, contando a verdade a qualquer preço”. A impressão dos cinquenta exemplares da edição inaugural foi supervisionada pela diretora de produção Rose Ferguson, que pegou o manuscrito original e levou para a gráfica Myerson’s Print Shop, em West Orange, cuja tarefa foi reproduzir os dois lados da folha de sessenta e um centímetros por sessenta e seis e produzir fac-símiles num papel fino suficiente para ser do­brado ao meio, e, por causa dessa dobra, O Cruzado entrou no mundo mais parecido com um autêntico órgão de notícias (quase) do que com um jornal­zinho datilografado e mimeografado de forma caseira. Cinco centavos o exem­plar. Sem fotos nem desenhos, algum espaço para respirar, no alto, para pôr o cabeçalho feito a estêncil, mas, fora isso, nada, a não ser dois retângulos grandes preenchidos por oito colunas de palavras desenhadas à mão densamente espremidas, a caligrafia de um menino de quase onze anos que sempre lutou para traçar as letras com clareza, mas a despeito de alguns tropeços e desalinhamentos, o resultado era bastante legível, com um aspecto geral que dava a impressão de uma versão sincera, se bem que um pouco desmiolada, de um jornal do século XVIII, impresso em folha única.

As vinte e uma matérias iam desde piadinhas de quatro linhas até duas matérias de três colunas; a primeira era a matéria principal da primeira página, com o título UMA TRAGÉDIA HUMANA, DODGERS E GIANTS DEIXAM NOVA YORK E VÃO PARA A COSTA OESTE, e incluía trechos de entrevistas que Ferguson tinha feito com vários membros da família e amigos. A reação mais dramática veio de seu colega da quinta série Tommy Fuchs: “Tenho vontade de me matar. O único time que sobrou é o dos Yankees, e eu detesto os Yankees. O que é que vou fazer?”. A matéria no verso tratava de um escândalo em andamento na escola fundamental de Ferguson. Por quatro vezes nas últimas seis semanas, alunos tinham se chocado com força numa das duas paredes de tijolos do ginásio durante partidas de queimada, provocando uma profusão de olhos roxos, contusões e cortes na cabeça e na testa, e Ferguson estava promovendo uma campanha para que instalassem almofadas a fim de prevenir futuros ferimentos. Depois de obter comentários de vítimas recentes (“Eu estava indo atrás da bola”, disse um, “e antes de perceber o que estava acontecendo, já tinha me esborrachado de cara nos tijolos e aí quebrei a cabeça”), Ferguson falou com o diretor, o sr. Jameson, que concordou que a situação estava fora de controle. “Falei com o Conselho de Educação”, disse, “e eles prometeram pôr almofadas nas paredes no fim do mês. Até lá, nada de jogar queimada.”

Havia lá o desaparecimento de times de beisebol e os ferimentos na cabeça que podiam ser evitados, mas também histórias de animais de estimação perdidos, postes de luz danificados pela tempestade, acidentes de trânsito, competições de bolinhas de papel sopradas através de canudinhos, o Sputnik, e o estado de saúde do presidente, bem como breves notícias sobre os acontecimentos atuais nos clãs Ferguson e Adler, como CEGONHA CHEGA NA ÚLTIMA HORA!: “Pela primeira vez na história humana, um bebê nasceu na data prevista. Às 11h53 da noite, em 29 de dezembro, apenas sete minutos antes de o relógio assinalar o fim do prazo, a sra. Frances Hollander, vinte e dois anos, da cidade de Nova York, deu à luz seu primeiro filho, um menino de três quilos e duzentos e sessenta gramas chamado Stephen. Parabéns, prima Francie!”. Ou: UM GRANDE PASSO À FRENTE: “Mildred Adler foi recentemente promovida de professora adjunta para professora plena no Departamento de Inglês da Universidade de Chicago. Ela é uma das maiores autoridades mundiais sobre o romance vitoriano e publicou livros sobre George Eliot e Charles Dickens”. E depois, o que não pode ser menosprezado, havia um retângulo no quadrante inferior direito do verso da folha com o título Cantinho da piada dos Adler, que Ferguson planejava manter como uma seção fixa em todos os exemplares de O Cruzado, pois como poderia desdenhar uma fonte tão preciosa como seu avô, o rei das piadas sem graça, que tinha contado tantas piadas sem graça para Ferguson ao longo dos anos, que o jovem editor-chefe se sentiria em falta se não utilizasse algumas delas. O primeiro exemplo foi o seguinte: “O sr. e a sra. Hooper estavam a caminho do Havaí. Pouco antes de o avião pousar, o sr. Hooper perguntou para a esposa se a pronúncia correta da palavra ‘Havaí’ era Hauaí, com u, ou Havaí, com v. ‘Não sei’, respondeu a sra. Hooper. ‘Vamos perguntar quando chegarmos lá.’ No aeroporto, avistaram um velhinho andando de camisa havaiana. ‘Desculpe, meu senhor’, disse o sr. Hooper. ‘Pode nos dizer se estamos no Hauaí ou no Havaí?’ Sem nem piscar, o velho disse: ‘Havaí’. ‘Obrigado’, disseram o sr. e a sra. Hooper. A que o homem respondeu: ‘Não querem tomar um vísque?’”.

Os números seguintes foram lançados em abril e em setembro daquele ano, cada um com melhorias em relação ao número anterior, ou pelo menos foi o que os pais de Ferguson e seus parentes disseram, mas com os colegas de escola a história foi diferente, pois depois do sucesso do primeiro número, que deixou sua turma em polvorosa, vários ressentimentos e animosidades começaram a vir à tona. O mundo sufocante da vida da quinta e da sexta séries estava tolhido por um rigoroso conjunto de regras e hierarquias sociais e, ao tomar a iniciativa de lançar O Cruzado da Rua de Paralelepípedos, ou seja, ao ter a audácia de criar algo do nada, Ferguson, inadvertidamente, ultrapassou os limites daquelas regras. Dentro desses limites, os meninos podiam adquirir status de duas maneiras: destacando-se nos esportes ou provando serem mestres em travessuras. Tirar boas notas na escola tinha pouca importância, e mesmo um talento excepcional na arte ou na música não valia quase nada, pois aqueles talentos eram encarados como dons natos, traços biológicos semelhantes à cor do cabelo ou ao tamanho dos pés e, portanto, não tinham plena relação com a pessoa que os possuía, meros fatos da natureza que não dependiam da vontade humana. Ferguson sempre foi razoavelmente bom na parte esportiva, o que lhe permitiu se enturmar com os outros meninos e evitar o temido destino dos proscritos. Achava chato fazer travessuras, mas seu senso de humor anárquico ajudou a consolidar a reputação de um cara decente, ainda que ele mantivesse certa distância em relação aos meninos encrenqueiros e metidos, que passavam o fim de semana jogando bombinhas nas caixas de correio, arrebentando a lâmpada dos postes e dando telefonemas obscenos para as garotas mais bonitas da turma da série acima da deles. Em outras palavras, até então Ferguson tinha navegado de vento em popa, sem enfrentar maiores dificuldades, suas boas notas não contavam nem a favor nem contra, seu trato sem agressividade nas relações interpessoais o protegeu da raiva dos outros meninos, o que significava que ele tinha se metido em poucas brigas de socos e parecia não ter feito nenhum inimigo permanente, mas aí, nos meses que precederam seu décimo primeiro aniversário, ele resolveu que queria causar sensação, o que se exprimiu na forma de um jornalzinho de uma folha só, editado por ele mesmo, e de repente seus colegas de classe entenderam que Ferguson tinha mais coisas do que eles imaginavam, que ele era mesmo um rapazinho inteligente pra valer, um garoto fora de série com uma força mental capaz de pôr no mundo uma proeza tão complicada quanto O Cruzado e, portanto, todos os vinte e dois colegas da sua turma da quinta série cataram no bolso suas moedinhas para comprar um exemplar do primeiro número, deram parabéns a ele pelo belo trabalho, riram dos jogos de palavras que pipocavam em suas matérias e depois veio o fim de semana, e, na manhã de segunda-feira, ninguém mais falava no assunto. Se O Cruzado tivesse terminado depois daquele primeiro número, Ferguson teria se poupado do desgosto que acabou por desabar em cima de sua cabeça, mas como ele poderia saber que havia uma diferença entre ser inteligente e ser inteligente demais, que um segundo número do jornalzinho na primavera faria com que alguns colegas de sala se virassem contra ele, porque aquilo comprovava que ele estava trabalhando duro demais, em oposição ao trabalho menos árduo da parte dos outros, o que significava que Ferguson era um realizador laborioso, ao passo que eles eram pouco mais do que uns desajeitados preguiçosos e imprestáveis? As garotas ainda estavam do seu lado, todas as garotas, só que as garotas não estavam competindo com ele, eram os garotos que começavam a sentir a pressão da dedicação de Ferguson, três ou quatro deles, pelo menos, mas Ferguson estava tomado demais pela própria felicidade para perceber, entusiasmado demais com o triunfo de conseguir realizar mais um número do jornalzinho, para se perguntar por que Ronny Krolik e seu bando de valentões se recusaram a comprar a nova edição do Cruzado, quando ele a levou para a escola, em abril, pensando, se é que chegava a pensar no assunto, que aquilo era simplesmente porque eles não tinham dinheiro.

Na opinião de Ferguson, os jornais eram uma das maiores invenções da humanidade e ele adorava jornais desde quando aprendeu a ler. De manhã cedo, sete dias por semana, um exemplar do Newark Star-Ledger aparecia na escadinha na frente de sua casa, fazia um barulhinho agradável de se ouvir quando era arremessado, bem na hora em que ele estava saindo da cama, jogado ali por alguma pessoa invisível e sem nome, que nunca errava a pontaria, e, quando tinha seis anos e meio de idade, Ferguson já havia começado a tomar parte do ritual matinal de ler o jornal enquanto tomavam o café da manhã, ele, que tinha querido tanto ler durante o verão da perna quebrada, que tinha feito tanta força para sair da prisão de sua burrice infantil e se transformar num cidadão do mundo, agora tinha avançado o suficiente para entender tudo, ou quase tudo, exceto assuntos embaralhados de política econômica e a ideia de que construir mais armas nucleares iria garantir uma paz duradoura, e toda manhã ele se sentava à mesa do café da manhã com os pais, enquanto cada um deles agarrava uma seção do jornal, lendo em silêncio, porque falar era muito difícil de manhã tão cedo, e depois passavam as seções do jornal de um para outro, numa cozinha invadida pelo cheiro de café, de ovos mexidos, de pão aquecido e escurecido na torradeira, da manteiga que derretia nas fatias quentes de torrada. Para Ferguson, eram sempre os esportes e os quadrinhos para começar, a estranhamente sedutora Nancy e seu amigo Sluggo, Jiggs e sua esposa Maggie, Blondie e Dagwood, Beetle Bailey, seguido pelas últimas de Mantle e Ford, de Conerly e Gifford, e depois as notícias locais, as notícias nacionais e internacionais, matérias sobre filmes e peças, casos ditos de interesse humano, sobre alunos de faculdade de dezessete anos que se amontoavam espremidos dentro de uma cabine telefônica ou sobre os trinta e seis cachorros-quentes consumidos pelo vencedor do concurso de comilança do condado de Essex, e quando tudo isso tinha sido esgotado e ainda restavam alguns minutos antes de ter de sair para a escola, os classificados e os anúncios pessoais. Querida, eu amo você. Por favor, volte para casa.

O atrativo dos jornais era completamente distinto do atrativo dos livros. Livros eram sólidos e permanentes, e jornais eram frágeis, efêmeros, descartáveis, jogados fora logo depois de lidos, para serem substituídos por outro na manhã seguinte, toda manhã um jornal fresco para o novo dia. Livros se moviam para a frente em linha reta, do início ao fim, ao passo que jornais estavam sempre em vários lugares ao mesmo tempo, uma mixórdia de simultaneidade e contradições, com várias histórias que coexistiam na mesma página, cada uma expunha um aspecto diferente do mundo, cada uma afirmando uma ideia ou um fato que nada tinha a ver com o que estava a seu lado, uma guerra à direita e, à esquerda, uma corrida de pessoas que equilibravam um ovo numa colher presa pela boca, um edifício em chamas no alto, uma reunião de meninas escoteiras embaixo, coisas grandes e coisas pequenas misturadas e juntas, coisas trágicas na página 1 e coisas frívolas na página 4, inundações de inverno e investigações policiais, descobertas científicas e receitas de sobremesas, mortes e nascimentos, conselhos para apaixonados, palavras cruzadas, gols do futebol americano, debates no Congresso, ciclones e sinfonias, greves de trabalhadores e viagens transatlânticas feitas em balão, o jornal da manhã tinha necessariamente de incluir todos esses eventos em suas colunas de tinta preta borrada e, toda manhã, Ferguson exultava com toda aquela bagunça, pois o mundo era isso, ele sentia, uma enorme e chacoalhante bagunça, com milhões de coisas diferentes acontecendo ao mesmo tempo.

Era isso que O Cruzado representava para ele: uma chance de criar seu próprio mundo de bagunça em algo que tivesse o aspecto de um jornal autêntico. Não autêntico de verdade, é claro, nada mais do que uma grosseira imitação, no máximo, mas a sua versão amadora, de menino, de um jornal verdadeiro era, em espírito, parecida o bastante para causar certa impressão nos amigos. Ferguson estava torcendo para obter esse tipo de reação, queria que as cabeças se virassem para ele e que sua turma de escola prestasse atenção nele, e agora que seu desejo tinha se cumprido, ele se atirou de cabeça no segundo número com uma sensação de confiança crescente, uma fé renovada no poder de sua figura briosa e tão cega, que nem o boicote parcial de Krolik e seus camaradas poderia fazê-lo ver o que estava acontecendo. Isso foi até a manhã seguinte, quando seus olhos começaram a ficar mais atentos. Michael Timmerman era um de seus amigos mais próximos, um garoto esperto e popular, cujas notas eram ainda melhores que as de Ferguson, uma figura quase heroica, que se erguia muito acima de nanicos malévolos como Ronny Krolik, assim como um carvalho se erguia muito mais alto do que uma moita de ervas daninhas, e, quando Michael Timmerman te puxava para um canto do pátio antes da aula, dizendo que queria te falar uma coisa, você ficava mais do que feliz de ouvir o que ele ia dizer. Suas primeiras palavras foram todas sobre como ele achava bom O Cruzado, o que agradou a Ferguson imensamente, uma vez que a opinião do maior atleta e melhor aluno da sala tinha mais peso do que a opinião de qualquer pessoa, só que Timmerman continuou e disse que gostaria de trabalhar com Ferguson, queria fazer parte da equipe de O Cruzado e contribuir com matérias próprias, o que tornaria o jornal, que já era bom, ainda melhor, ele achava, pois quem já tinha ouvido falar de um jornal feito só por uma pessoa?, havia algo esquisito e indigente no fato de um mesmo repórter escrever todas as matérias, e se Ferguson lhe desse uma chance e as coisas andassem bem, quem sabe um dia poderiam trabalhar com três ou cinco repórteres, e se todo mundo entrasse com algum dinheiro para ajudar nos custos de impressão, talvez O Cruzado pudesse se ampliar para quatro ou oito páginas, com tudo datilografado em máquina de escrever, em vez de depender apenas da caligrafia atroz do Ferguson, e então, de uma hora para outra, ele começaria a parecer um jornal de verdade.

Ferguson não estava preparado para nada disso. O Cruzado sempre foi planejado como um espetáculo de um só artista, o seu espetáculo, para o bem ou para o mal, seu espetáculo e o de mais ninguém, e a ideia de dividir o palco com outro garoto, muito menos com vários outros garotos, deixava Ferguson cheio de infelicidade. Timmerman estava sufocando Ferguson com seus comentários e sugestões, tentando vencê-lo numa queda de braço para que cedesse o controle de seu farrapo tosco, com suas atrozes letrinhas manuscritas, mas será que Timmerman não se dava conta de que Ferguson já havia pensado nisso, que mesmo que ele soubesse como datilografar, não usaria uma máquina de escrever, porque não era esse o aspecto que desejava, e como ele também não tinha dinheiro para comprar uma máquina de escrever, afinal, com onze anos de idade, e por isso havia optado pelo manuscrito mesmo e, de resto, além do mais, o que Timmerman sabia sobre o negócio de sua mãe com Myerson, em que dava desconto nos retratos que ia fazer dos três filhos dele, em troca do uso de sua gráfica para imprimir os fac-símiles? Era assim que as coisas funcionavam, ele queria contar para Timmerman, a gente negociava permutas para cortar custos e fazia o melhor com o que tinha, e esqueça a ideia de fazer uma vaquinha para produzir um suposto jornal de verdade, cinco garotos não podiam de jeito nenhum levantar o dinheiro necessário para cobrir tamanha despesa, e se Timmerman fosse outra pessoa que não seu amigo mais admirado, Ferguson teria lhe dito para cair fora do seu negócio e abrir seu próprio jornal, se ele tinha mesmo tantas ideias brilhantes, só que Ferguson respeitava Timmerman demais para falar com tanta franqueza, não queria correr o risco de insultar o amigo e, assim, adotou a saída dos covardes e deixou tudo em banho-maria, dizendo: Me dê um tempo para pensar, em vez de dizer um claro sim ou não, na esperança de que o tempo fosse esmorecer a paixão recém-descoberta de Timmerman pelo jornalismo e que a questão acabaria esquecida dali a alguns dias.

A exemplo da maioria dos garotos que se dão bem, no entanto, Timmerman não era do tipo que desiste ou esquece facilmente. Durante o resto da semana, todos os dias de manhã, ele pegava Ferguson no pátio e perguntava se ele tinha tomado uma decisão, e todo dia de manhã Ferguson tentava enrolar o amigo. Quem sabe, disse ele, quem sabe seja uma boa ideia, mas a gente está na primavera e não há tempo suficiente para editar mais um número antes do fim do ano escolar. Nós dois estamos ocupados com a liga infantil agora, e você não pode imaginar como dá trabalho fazer o jornal. Semanas de trabalho, meses de trabalho. Tanto trabalho que eu nem tenho certeza de que quero fazer isso de novo. Vamos dar um tempo, quem sabe a gente volta a falar do assunto no verão?

Só que Timmerman, no verão, estaria fora, na colônia de férias, e ele queria resolver a questão agora. Ainda que o próximo número só fosse sair no outono, ele precisava saber se podia contar com isso ou não, e por que diabo Ferguson estava com tanta dificuldade para decidir o que fazer? Qual era o grande problema, afinal?

Ferguson compreendeu que estava numa sinuca. Quatro dias seguidos de pressão e ele sabia que Timmerman não ia parar, a não ser que ele desse uma resposta. Mas qual era a resposta certa? Se dissesse para Timmerman que não queria sua ajuda, provavelmente perderia um amigo. Se aceitasse a participação de Timmerman no jornal, ele iria desprezar a si mesmo por ter se curvado. Uma parte dele estava lisonjeada pelo entusiasmo de Timmerman com O Cruzado e outra parte começava a não gostar mais do amigo, que já não estava mais agindo como amigo, e sim como um chato cheio de conversa mole. Não, não como um chato, mas um manipulador, e como o manipulador era a pessoa mais poderosa e influente na turma, Ferguson era avesso a fazer algo que o ofendesse, pois se Timmerman se sentisse enganado por Ferguson, poderia virar a turma inteira contra ele e a vida de Ferguson se transformaria numa desgraça irremediável pelo resto do ano escolar. E, no entanto, ele não podia deixar que O Cruzado fosse destruído só para manter a paz. Não importava o que acontecesse, ele continuaria a ser a mesma pessoa, e era melhor virar um pária do que perder todo o respeito por si mesmo. Por outro lado, era melhor não virar um pária, se fosse possível evitar.

Tanto o sim como o não estavam fora de questão. O que Ferguson precisava era de um talvez que oferecesse alguma esperança, sem prendê-lo a um compromisso definitivo, uma tática protelatória disfarçada de um passo à frente, que na verdade seria um passo atrás e uma chance de ganhar mais tempo. Ele propôs que Timmerman fizesse um teste para ver se gostava do trabalho e, depois que tivesse escrito a matéria, os dois examinariam juntos e resolveriam se ela combinava com O Cruzado. No início, Timmerman pareceu recusar a proposta, não se mostrou nada satisfeito com a ideia de ter que ser avaliado por Ferguson, mas isso já era de esperar num aluno que só tirava nota máxima e que tinha confiança absoluta em seus dons intelectuais, e assim Ferguson foi obrigado a explicar que o teste era necessário, porque O Cruzado era uma coisa dele e não do Timmerman, e, se Timmerman queria fazer parte disso, teria de provar que seu trabalho combinava com o espírito da empresa, que era rápido, divertido e ágil. Não importava se ele era muito inteligente, disse Ferguson, ainda não tinha escrito nenhum texto para jornal, não tinha nenhuma experiência, e como eles poderiam unir suas forças se não sabiam como sairia seu texto? É justo, disse Timmerman. Ele ia escrever uma matéria para servir de amostra e provar que ele era bom, e assim a questão estaria resolvida.

O que estou pensando é o seguinte, disse Ferguson. Quem é sua atriz de cinema predileta e por quê? Fale com todo mundo na sala, todas as garotas e todos os garotos, e faça a todos a mesma pergunta: quem é sua atriz de cinema predileta e por quê? Anote direitinho tudo que eles disserem, palavra por palavra, as respostas exatas que derem, e depois vá para casa e transforme os resultados numa matéria de uma coluna que faça as pessoas rirem quando lerem, e se você não puder fazer rir, pelo menos faça sorrir. Está bem?

Está bem, disse Timmerman. Mas por que não o ator predileto também?

Porque concursos com um só vencedor são melhores do que com dois vencedores. Os atores podem esperar até o próximo número.

Assim, Ferguson ganhou mais um tempo despachando Timmerman em sua missão inútil, e tudo ficou tranquilo durante os dez dias seguintes, enquanto o repórter principiante reunia seus dados e começava a escrever sua matéria. Como Ferguson já desconfiava, Marilyn Monroe recebeu a maioria dos votos dos garotos, seis em onze, os outros cinco foram para Elizabeth Taylor (dois), Grace Kelly (dois) e Audrey Hepburn (um), mas as garotas deram para Monroe só dois dos doze votos, os outros dez se distribuíram entre Hepburn (três), Taylor (três) e um para Kelly, Leslie Caron, Cyd Charisse e Deborah Kerr. O próprio Ferguson não foi capaz de escolher entre Taylor e Kelly, por isso jogou uma moeda para o alto para decidir no cara ou coroa e acabou dando seu voto para Taylor, enquanto Timmerman, diante de um dilema semelhante entre Kelly e Hepburn, jogou a mesma moeda e acabou dando seu voto para Kelly. Um completo absurdo, é claro, mas também havia nisso algo divertido, e Ferguson notou como Timmerman tratou de modo consciencioso a tarefa de entrevistar a garotada e tomar nota de seus comentários num caderninho espiral de repórter. Nota máxima nos quesitos trabalho de campo e dedicação, portanto, mas aquilo era só o princípio, os alicerces da casa, por assim dizer, e ainda não estava claro que tipo de estrutura Timmerman seria capaz de construir. Não havia dúvida de que o garoto tinha a cabeça boa, mas isso não significava que sabia escrever direito.

Durante o período de dez dias de observação e espera, Ferguson caiu num estranho estado de ambivalência, cada vez menos seguro de como se sentia em relação a Timmerman, sem saber com certeza se devia continuar a se sentir incomodado com ele ou começar a mostrar alguma gratidão por seu trabalho duro, numa hora torcia para que ele não conseguisse escrever a matéria e noutra hora torcia para que desse certo, se perguntava se, afinal, não seria mesmo uma boa ideia ter outro repórter para dividir o fardo do trabalho, agora se dava conta de que havia certo prazer em determinar tarefas para os outros, que ser o chefe não deixava de ter suas satisfações, pois Timmerman tinha obedecido às suas ordens sem reclamar, e essa era uma sensação nova, a sensação de estar no comando e, se tudo desse certo com a matéria do Timmerman, talvez ele considerasse a ideia de aceitá-lo, não como sócio, é claro, não, isso não, isso nunca, mas como um colaborador, o primeiro daquilo que poderia vir a ser uma equipe de escritores colaboradores, o que poderia terminar permitindo expandir O Cruzado de duas páginas para quatro. Talvez. E então, de novo, talvez não, pois Timmerman ainda tinha de entregar a matéria, muito embora ele tivesse concluído as entrevistas em cinco dias e agora que mais cinco dias tinham se passado, Ferguson só podia concluir que ele estava se empenhando, e, se Timmerman estava enfrentando dificuldades, provavelmente isso queria dizer que o texto não estava nada bom, e qualquer coisa abaixo de bom seria inaceitável. Ele teria de dizer isso para Timmerman, sem rodeios. Imagine só olhar bem nos olhos do figurão da turma, Michael Timmerman, disse Ferguson para si mesmo, a única pessoa que nunca havia fracassado em nada, e lhe dizer que não tinha conseguido. Na manhã do décimo dia, as esperanças de Ferguson se desmancharam todas num único desejo: que Timmerman estivesse escrevendo uma obra-prima.

Como se viu, a matéria não ficou ruim. Não ficou horrivelmente ruim, pelo menos, mas não tinha aquela veia que Ferguson esperava, o toque de humor que transformaria o tema trivial em algo digno de ser lido. Se havia algum consolo naquela decepção, vinha do fato de que Timmerman também parecia achar que estava ruim, ou pelo menos foi o que Ferguson deduziu do dar de ombros autodepreciativo do autor, quando ele entregou o manuscrito terminado, no pátio naquela manhã, acompanhado de um pedido de desculpa por ter demorado tanto tempo, mas é que não tinha sido fácil como ele havia imaginado, disse Timmerman, ele reescreveu o texto quatro vezes e, se aprendeu alguma coisa com aquela experiência, foi que escrever era um trabalho difícil pra burro.

Muito bem, disse Ferguson para si mesmo. Um pouco de humildade do sr. Perfeito. Uma admissão de dúvida, talvez até uma admissão de derrota e, portanto, o confronto que ele vinha temendo muito provavelmente não ia ocorrer, o que era uma coisa boa, uma coisa ótima e tranquilizadora demais, pois Ferguson tinha passado os últimos dias sonhando com punhos cerrados que voavam de encontro à sua barriga e com banimentos sumários para as terras distantes dos desprezados. Contudo, ele se deu conta, se queria manter intacta a amizade entre ambos, teria de caminhar com cautela em torno de Timmerman e ter certeza de que não ia pisar em seus calos. Eram dedos grandes e a pessoa a quem aqueles dedos pertenciam era um grandalhão e, por mais amável que ele fosse, tinha sangue nas veias, fato que Ferguson havia testemunhado várias vezes ao longo dos anos, mais recentemente quando Timmerman deu uns murros em Tommy Fuchs por chamá-lo de merdinha metido à besta, o mesmo Tommy Fuchs conhecido por seus detratores como Tommy Chatão, e Ferguson não tinha a menor disposição de ser achatado por Timmerman como foi Tommy Fuchs.

Pediu para Timmerman lhe dar alguns minutos e então se recolheu a um canto do pátio para ler o texto sozinho:

“A pergunta foi: Quem é sua atriz de cinema predileta, e por quê? Uma pesquisa de opinião com os vinte e três alunos na turma da quinta série da srta. Van Horn nos deu a seguinte resposta: Marilyn Monroe, que angariou oito votos, venceu Elizabeth Taylor, que veio em segundo, com cinco votos...”

Timmerman fez um trabalho louvável ao relatar os fatos, mas sua linguagem era sem graça, seca a ponto da ausência de vida, e tinha se concentrado na parte menos interessante da história, os números, que eram profundamente maçantes, quando comparados com o que os alunos tinham dito sobre suas escolhas, comentários que Timmerman havia compartilhado com Ferguson e, depois, em grande parte, deixou de lado, sem aproveitá-los no texto, e agora, quando Ferguson lembrou alguns daqueles comentários, se viu reescrevendo a matéria mentalmente:

“‘Borogodó’, disse Kevin Lassiter, que precisou de apenas quatro sílabas para explicar por que Marilyn Monroe era sua atriz de cinema favorita.

“‘Ela parece uma pessoa tão legal e inteligente, eu gostaria muito de conhecê-la e de ser amiga dela’, disse Peggy Goldstein, em defesa de sua opção por Deborah Kerr.

“‘Tão elegante, tão linda! Eu não consigo desgrudar os olhos dela’, disse Gloria Dolan sobre a sua número um, Grace Kelly.

“‘Que banquete’, disse Alex Botello, referindo-se à sua top star, Elizabeth Taylor. ‘Quer dizer, já pensou pegar só uma fatiazinha daquele corpão dela? Isso faz um garoto querer ficar adulto rapidinho.’”

Era impossível pedir que Timmerman voltasse ao início e escrevesse o texto pela quinta vez. Era inútil lhe dizer que seu trabalho não havia produzido nem risos nem sorrisos e que ele teria se saído melhor se focalizasse o por quê em vez do quem. Era tarde demais para fazer essas coisas agora, e a última coisa que Ferguson queria era bancar o chefão de Timmerman e começar a dar lições para ele sobre o que devia ou não devia escrever. Ferguson voltou para onde estava o sr. Não-Me-Toques e devolveu o texto.

E então?, perguntou Timmerman.

Não está ruim, disse Ferguson.

Quer dizer que não ficou bom.

Não, não é isso. Não ficou ruim. O que significa que está bastante bom.

E quanto ao próximo número?

Não sei. Nem pensei nisso ainda.

Mas você está com planos de fazer, não é?

Talvez. Talvez não. É cedo demais para dizer.

Não desista. Você começou uma coisa legal, Archie, e tem de continuar.

Se eu não estiver mais a fim, não continuo. De todo modo, por que você se importa tanto? Ainda não entendi por que O Cruzado, de repente, virou uma coisa tão importante para você.

Porque empolga a gente, é por isso, e eu quero fazer parte de uma coisa que empolga a gente. Acho que ia ser muito divertido.

Certo. Vou lhe dizer uma coisa. Se eu decidir fazer outro número do jornal, te aviso.

E vai me dar a chance de escrever alguma coisa?

Claro, por que não?

Promete?

Dar uma chance para você? Claro, prometo.

Na mesma hora em que falou essas palavras, Ferguson percebeu que sua promessa não significava nada, pois já tinha decidido fechar O Cruzado em definitivo. A batalha de catorze dias com Timmerman o havia esgotado, ele se sentia vazio e sem inspiração, com nojo de si mesmo por suas mudanças de sentimento, típicas de quem tem a cabeça fraca, sentia-se desmoralizado pela própria relutância em fazer pé firme e lutar por sua posição, que era a de um jornal feito só por ele ou então nada, e agora que tinha caído na água e feito aquela onda toda, e havia cumprido o que tinha resolvido fazer, talvez fosse melhor sair da piscina, se enxugar e pedir o boné. Além do mais, agora, estavam na temporada do beisebol e ele andava ocupado, jogando no time West Orange Chamber of Commerce Pirates, e quando não estava jogando beisebol, estava ocupado lendo O Conde de Monte Cristo, o livro enorme que a tia Mildred tinha mandado para ele no mês anterior, no dia de seu décimo primeiro aniversário, e que ele tinha finalmente começado a ler, depois da publicação do segundo número de O Cruzado, e agora que tinha pegado embalo na leitura do livro, estava embalado demais, pois era, sem dúvida nenhuma, o romance mais absorvente que já havia caído em suas mãos, e que delícia acompanhar as aventuras de Edmond Dantès toda noite depois do jantar, em vez de contar as palavras em suas matérias a fim de encaixar os textos nas três colunas estreitas de sua folha única, tanto trabalho, tantas noites até tarde com o olho ardendo embaixo do abajur de uma lâmpada só, quebrando a cabeça na quase escuridão, enquanto os pais achavam que ele estava dormindo, tantos começos frustrados e tantas correções, tanta gratidão muda ao homem que tinha inventado a borracha, ciente agora de que o trabalho de escrever era tanto de retirar palavras quanto de acrescentá-las, e depois o trabalho maçante de recobrir com tinta todas as letras desenhadas a lápis, para garantir que as palavras ficassem escuras o suficiente para serem legíveis nos fac-símiles, cansativo, sim, essa era a palavra, e depois de seu prolongado e angustiante impasse com Timmerman, ele estava exausto e, como qualquer médico lhe diria, o único remédio para o esgotamento era o repouso.

Repousou por um mês, terminou de ler o livro de Dumas com um peso no coração, com medo de que pudessem passar anos antes de encontrar outro romance tão bom, e então, nos três dias seguintes ao término da leitura do livro, aconteceram três coisas que mudaram sua maneira de pensar e o fizeram sair do repouso. Ele simplesmente não conseguiu evitar. As palavras de uma nova manchete estouraram em seu pensamento e aquelas palavras eram tão deliciosas, era tão viva a rima estridente de suas consoantes estaladas, tão jocosa a forma como sua aparente falta de sentido era, a rigor, não falta de sentido, mas muito sentido, que ele morreu de vontade de ver aquelas palavras impressas, e assim, quebrando a própria promessa de abandonar o jornal, começou a fazer planos de um terceiro número de O Cruzado, que traria na primeira página, em letras grandes, aquela sua manchete que mais parecia uma saraivada de socos de boxe: QUIPROQUÓ EM CARACAS.

Começou no dia 13 de maio, quando Richard Nixon foi atacado por uma multidão de manifestantes venezuelanos na última parada de uma viagem de boa vontade pela América do Sul. O vice-presidente tinha acabado de pousar no aeroporto e seu comboio de automóveis seguia pelas ruas do centro de Caracas, a multidão perfilada nas calçadas entoava Morte a Nixon! Nixon Go Home!, e dali a pouco o carro de Nixon foi cercado por um bando de gente, em geral homens jovens, que começaram a cuspir no carro e bater com as mãos nos vidros e, poucos momentos depois, começaram a sacudir o carro para lá e para cá, empurravam para a frente e para trás com tanta fúria que dava a impressão de que o carro estava prestes a virar, e se não fosse a repentina chegada de soldados venezuelanos que dispersaram a multidão e abriram caminho para o carro de Nixon passar, as coisas poderiam ter acabado mal, muito mal mesmo para todo mundo envolvido, especialmente para o quase assassinado Nixon e sua esposa.

Ferguson leu sobre os fatos no jornal da manhã, viu os filmes do incidente no noticiário noturno da tevê e, no fim da tarde do dia seguinte, a prima Francie, seu marido Gary e seu bebê de cinco meses deram um pulo em sua casa para uma visita. Agora estavam morando em Nova York, onde Gary ia terminar seu primeiro ano na faculdade de direito em Columbia, e desde o desempenho de Ferguson como portador do anel na cerimônia de casamento, quatro anos antes, Gary tratava seu jovem primo por afinidade como uma espécie de protegido e promissor companheiro de viagem no mundo das ideias e das atividades viris, o que tinha acarretado algumas longas conversas sobre livros e esportes, mas também sobre política, que era uma espécie de obsessão para Gary (que era assinante das revistas Dissent, I. F. Stone’s Weekly e Partisan Review), e como o marido de Francie era um jovem inteligente, com certeza o melhor pensador que Ferguson conhecia, além de sua tia Mildred, era apenas natural que perguntasse para Gary o que ele achava do conflito de Nixon com a multidão na Venezuela. Os dois estavam do lado de fora, no quintal, embaixo do carvalho do qual Ferguson tinha caído aos seis anos de idade, o alto e corpulento Gary, que soltava baforadas de um cigarro Parliament, enquanto a mãe de Ferguson e Francie estavam sentadas na varanda com o bebê Stephen, aquela balofa criaturazinha humana novata, tão nova em relação a Ferguson quanto Ferguson foi, um dia, em relação a Francie, e, enquanto as duas mulheres riam juntas e se revezavam para segurar o bebê, o didático, sempre solene Gary Hollander falava com ele sobre a Guerra Fria, a lista negra, a Ameaça Vermelha e o alucinado anticomunismo que guiava a política externa americana, que levou o Departamento de Estado a apoiar cruéis ditaduras de direita em todo o mundo, sobretudo na América Central e do Sul, e foi por isso que Nixon foi atacado, disse ele, não porque fosse Nixon, mas porque representava o governo dos Estados Unidos, e esse governo era desprezado por vastas populações naqueles países, justamente desprezados por dar apoio a tiranos que as oprimiam.

Gary fez uma pausa para acender mais um cigarro Parliament. Depois, disse: Entendeu o que eu disse, Archie?

Ferguson fez que sim com a cabeça. Entendi, respondeu. Estamos tão apavorados com o comunismo que faremos qualquer coisa para detê-lo. Mesmo que isso signifique dar apoio a pessoas piores do que os comunistas.

Na manhã seguinte, enquanto lia as páginas de esporte no café da manhã, Ferguson esbarrou na palavra “quiproquó” pela primeira vez. Um lançador de Detroit jogou a bola na cabeça de um rebatedor de Chicago, o rebatedor tirou o boné, desceu do seu montinho e deu um soco no lançador, e aí os jogadores dos dois times começaram a brigar no campo, trocaram murros entre si durante vinte minutos. Quando o quiproquó amainou, escreveu o repórter, seis jogadores foram expulsos da partida.

Ferguson olhou para a mãe e disse: O que quer dizer a palavra “quiproquó”?

Uma grande briga, respondeu. Uma comoção.

Foi o que eu pensei, disse ele. Só queria ter certeza.

Meses se passaram. O ano escolar terminou sem mais problemas da parte de Krolik, Timmerman ou de qualquer outro, e então os vinte e três ex-alunos da srta. Van Horn se separaram durante as férias de verão. Ferguson foi para seu segundo período de seis semanas no Acampamento Paraíso e, embora ele tenha passado a maior parte desse tempo correndo em campos de beisebol e mergulhando no lago, havia horas livres de sobra durante o repouso após o almoço e a trégua depois do jantar para ele escrever as matérias e delinear o projeto do terceiro número de O Cruzado. Terminou o trabalho em casa, durante a folga de duas semanas entre o fim da colônia de férias e o co­meço das aulas, trabalhava todas as manhãs, de tarde e na maior parte das noites, a fim de cumprir o prazo que ele mesmo se impôs, de 1o de setembro, o que daria à sua mãe tempo bastante para imprimir os fac-símiles na gráfica de Myerson para que o número estivesse pronto no primeiro dia de aula. Era uma boa maneira de começar o ano, ele achava, um empurrãozinho para que as coisas dessem uma boa arrancada e, depois disso, ele ia ver o que desejava fazer, ia decidir se haveria mais números de O Cruzado ou se aquele seria, de fato, o último.

Tinha prometido a Timmerman que o avisaria se fosse lançar outro número do jornal, mas todas as matérias tinham sido escritas antes que pudesse entrar em contato com ele. Ligou para a casa de Timmerman um dia depois de chegar da colônia de férias, mas a empregada disse que Michael, os pais e os dois irmãos tinham viajado para pescar nas Adirondacks e só iam voltar um dia antes do começo das aulas. Mais cedo, naquele verão, Ferguson pensou em escrever uma versão engraçada, com borogodó e tudo, da tal matéria sobre a atriz de cinema predileta e incluir no número do jornal, mas descartou a ideia em consideração aos sentimentos de Timmerman, entendendo como seria cruel fazer isso, como Timmerman ia ficar magoado com tal demolição espirituosa de todo seu esforço maçante. Se Ferguson tivesse guardado a versão de Timmerman, talvez pensasse na possibilidade de publicar do jeito que estava, como uma cortesia, mas havia devolvido o texto para ele, no pátio, em abril, e, portanto, isso não era possível. Um novo número de O Cruzado da Rua de Paralelepípedos estava prestes a estourar nos ginásios e nas salas de aula da escola fundamental de Ferguson, e Michael Timmerman não sabia de nada.

Esse foi seu primeiro erro.

Seu segundo erro foi lembrar em excesso sua conversa com Gary, no quintal.

O quiproquó em Caracas já era uma notícia velha agora, mas Ferguson não podia perder a expressão, que tinha chacoalhado durante meses dentro de sua cabeça, portanto, em vez de usar a manchete para uma reportagem sobre o que havia acontecido com Nixon, ele transformou a matéria num editorial cercado por uma linha retangular, no meio da primeira página, com QUIPROQUÓ EM CARACAS aparecendo logo acima da dobra da folha, e o resto do artigo, embaixo. Inspirado por aquela conversa com Gary, ele argumentava que os Estados Unidos tinham de parar de se preocupar tanto com o comunismo e ouvir o que as pessoas nos outros países tinham a dizer. “Foi errado tentar virar o carro do vice-presidente”, escreveu, “mas os homens que fizeram isso estavam revoltados, e estavam revoltados por alguma razão. Não gostam dos Estados Unidos porque acham que os Estados Unidos estão contra eles. Isso não significa que sejam comunistas. Só significa que querem ser livres.”

Primeiro veio o soco, o soco furioso em sua barriga, enquanto Timmerman berrava a palavra “mentiroso”, e o jogou no chão. Os últimos vinte e um exemplares de O Cruzado foram puxados das mãos de Ferguson, e então começaram a se espalhar pelo pátio da escola, levados pelo vento forte da manhã, disparando na frente das outras crianças como um exército de pipas sem linha. Ferguson levantou-se e tentou dar um soco também, mas Timmerman, que parecia ter crescido uns oito ou dez centímetros durante o verão, se defendeu e contra-atacou com mais um murro na barriga, que afundou com uma força muito maior do que o primeiro, não só jogando Ferguson por terra, mais uma vez, como o deixando também sem fôlego nenhum. Nessa altura, Krolik, Tommy Chatão e vários outros meninos estavam de pé em volta de Ferguson e riam dele, escarneciam dele com palavras que pareciam ser “balde de pus”, “mariquinha” e “cabeça de boceta”, e quando Ferguson conseguiu se levantar de novo, Timmerman o jogou no chão pela terceira vez, o empurrou com força, o que fez Ferguson desabar em cima do cotovelo esquerdo e, em segundos, a horrível dor no osso do cotovelo o deixou quase imobilizado, o que deu a Krolik e a Chatão tempo de sobra para começarem a chutar terra na sua cara. Ele fechou os olhos. Em algum ponto distante, uma garota estava gritando.

Depois vieram as reprimendas e os castigos, a retenção depois da escola, a tarefa idiota de escrever duzentas vezes as palavras “Não vou mais brigar na escola”, a cerimônia de paz do aperto de mão com Timmerman, que se recusou a olhar nos olhos de Ferguson, que nunca mais ia olhar nos olhos dele outra vez, que ia continuar odiando Ferguson pelo resto da vida, e então, na hora em que estava prestes a serem dispensados pelo seu novo professor da sexta série, o sr. Blasi, a secretária do diretor entrou na sala e avisou para Ferguson que ele estava sendo aguardado no térreo, no gabinete do sr. Jameson. E o Michael?, perguntou o sr. Blasi. Não, o Michael não, respondeu a srta. O’Hara. Só o Archie.

Ferguson encontrou o sr. Jameson sentado atrás de sua escrivaninha com um exemplar de O Cruzado da Rua de Paralelepípedos nas mãos. Estava na direção da escola fazia cinco anos e, a cada ano, parecia ficar mais baixo e mais redondo e ter um pouco menos de cabelo na cabeça. No início, o cabelo era castanho, Ferguson se lembrava, mas os fiapos que sobraram, agora, tinham ficado grisalhos. O diretor não convidou Ferguson para se sentar, por isso ele continuou de pé.

Você sabe que está em sérios apuros, não é?, disse o sr. Jameson.

Apuros?, disse Ferguson. Acabei de ser castigado. Como é que posso ainda estar em apuros?

Você e Timmerman foram castigados por brigarem. Estou falando disto aqui.

O sr. Jameson jogou O Cruzado em cima da escrivaninha.

Diga-me, Ferguson, prosseguiu o diretor, você é o responsável por todas as matérias neste número?

Sim, senhor. Todas as palavras de todas as matérias.

Ninguém ajudou você a escrever nada?

Ninguém.

E sua mãe e seu pai? Eles leram antes de ser publicado?

Minha mãe leu. Ela me ajuda na impressão, por isso ela pode ver antes de todo mundo. Meu pai só leu ontem.

E o que foi que eles disseram sobre isso?

Nada de mais. Bom trabalho, Archie. Continue assim. Coisas desse tipo.

Então, está me dizendo que o editorial na primeira página foi ideia sua.

Quiproquó em Caracas. Foi sim, ideia minha.

Diga a verdade, Ferguson. Quem é que está envenenando sua mente com propaganda comunista?

O quê?

Diga-me, senão vou ter de suspender você por imprimir essas mentiras.

Eu não menti.

Você acabou de começar a sexta série. Isso quer dizer que você tem onze anos, não é?

Onze anos e meio.

E quer que eu acredite que um menino da sua idade pode apresentar uma argumentação política como essa? Você é novo demais para ser um traidor, Ferguson. Simplesmente, não é possível. Alguém mais velho deve estar inoculando esse lixo em você, e eu acho que é sua mãe ou seu pai.

Eles não são traidores, sr. Jameson. Eles amam seu país.

Então quem é que anda falando com você?

Ninguém.

Quando você começou seu jornal no ano passado, eu dei apoio, não foi? Até deixei você me entrevistar para uma matéria. Achei encantador, exatamente o tipo de coisa que um menino inteligente deve fazer. Nada de controvérsia, nada de política, e aí você viaja no verão e volta um vermelho. O que é que devo fazer com você?

Se é O Cruzado que está causando o problema, sr. Jameson, o senhor não precisa mais se preocupar. Só havia cinquenta exemplares do número da volta às aulas e metade deles foi levada pelo vento, quando a briga começou. Eu estava em dúvida se devia continuar a fazer o jornal, mas depois da briga desta manhã, já tomei a decisão. O Cruzado da Rua de Paralelepípedos acabou.

É uma promessa, Ferguson?

Juro por Deus.

Mantenha sua promessa e talvez eu tente esquecer que você merece uma suspensão.

Não, não esqueça. Eu quero ser suspenso. Todos os meninos na sexta série estão contra mim agora, e a escola é o último lugar do mundo onde eu gostaria de estar. Me dê uma suspensão por muito tempo, sr. Jameson.

Não fique de brincadeira, Ferguson.

Não estou brincando. Sou aquela pessoa de quem ninguém quer ser amigo, e quanto mais tempo eu puder ficar longe daqui, melhor para mim.

Seu pai, agora, estava num ramo de trabalho diferente. Não era mais o Mundo do Lar Três Irmãos, mas uma vasta bolha à prova de intempéries, que ficava no limite de West Orange Sul e se chamava Centro de Tênis Montanha do Sul, seis quadras em ambiente fechado, que permitiam que os entusiastas do tênis da região se entregassem à sua paixão pelo esporte doze meses por ano, podiam jogar durante tempestades e nevascas, jogar à noite, jogar antes do nascer do sol, nas manhãs de inverno, meia dúzia de quadras verdes, de piso duro, um par de vestiários com armários equipados com pias, privadas e chuveiros, e uma loja profissional que vendia raquetes, bolas, tênis e uniformes brancos de tênis para homens e mulheres. O incêndio de 1953 foi considerado um acidente, a companhia de seguro pagou toda a indenização e, em vez de reconstruir a loja ou abrir uma nova em outro endereço, o pai de Ferguson, generosamente, deu a seus irmãos empregados uma parte do dinheiro (seis mil dólares, cada) e usou o restante, cento e oitenta mil dólares, para pôr de pé seu projeto de tênis. Lew e Millie partiram para a Flórida, no sul, onde Lew virou empresário de corridas de cachorros e de partidas de jai alai, e Arnold abriu uma loja em Morristown, especializada em festas de aniversário infantis, abarrotando suas prateleiras com sacos de balões de encher, fitas de papel crepe, velinhas, brinquedos para fazer barulho, chapéus engraçados e painéis para brincar de colocar o rabinho no burro, mas Nova Jersey não estava pronta para tamanha novidade e, quando a loja fechou, dois anos e meio depois, Arnold procurou Stanley em busca de ajuda e ganhou um emprego na loja de artigos profissionais de tênis no Centro de Tênis. Quanto ao pai de Ferguson, todos os dias daqueles dois anos e meio que Arnold levou para enterrar sua loja foram consumidos em levantar capital para multiplicar o dinheiro que ele tinha investido por conta própria, procurando e depois comprando um terreno, consultando arquitetos e empreiteiros e depois, por último, construindo o Centro de Tênis Montanha do Sul, que foi inaugurado em março de 1956, uma semana depois do nono aniversário do seu filho.

Ferguson gostava da bolha à prova de intempéries e dos barulhos sinistros e ecoantes das bolas de tênis voando para lá e para cá naquele espaço cavernoso, a miscelânea de pop-pop-pop das raquetes batendo nas bolas quan­do várias quadras estavam em uso ao mesmo tempo, os guinchos intermitentes das solas de borracha roçando no piso duro, os bufos e grunhidos, os longos períodos em que ninguém pronunciava nenhuma palavra, a solenidade silenciosa de pessoas de roupa branca que jogavam as bolas brancas por cima de redes brancas, um mundo pequeno e fechado em si mesmo, que não se parecia com nenhum outro lugar do vasto mundo exterior àquela redoma. Ele achava que seu pai tinha agido bem em trocar de ramo, que aparelhos de televisão, geladeiras e colchões de molas podem ter algum apelo durante um tempo, até longo, mas aí chega a hora em que é melhor a gente pular fora do barco e tentar outra coisa, e, como seu pai adorava jogar tênis, por que não ganhar a vida com o jogo que ele tanto amava? No remoto ano de 1953, nos dias fantasmagóricos depois do incêndio que transformou em cinzas a loja Mundo do Lar Três Irmãos, quando o pai apenas começava a formular o plano do Centro de Tênis Montanha do Sul, a mãe o advertiu dos riscos envolvidos em tamanha aventura, a enorme aposta que o pai ia fazer, e, de fato, houve muitos altos e baixos ao longo do caminho e, mesmo depois que o centro foi construído, levou um tempo até que o contingente de associados crescesse o suficiente para que a receita superasse o custo mensal da manutenção de uma empresa tão vasta, o que significava que, na maior parte dos três anos e tanto entre 1953 e meados de 1957, a família Ferguson dependia das receitas do estúdio Foto Roseland para dar conta das despesas de casa. A partir daí, as coisas melhoraram, o centro e o estúdio estavam indo bem, com saldo positivo, geravam uma renda suficiente para custear extravagâncias como um Buick novo para o pai, uma pintura nova para a casa, uma estola de pele de marta para a mãe e dois verões consecutivos numa colônia de férias, com dormitório, para Ferguson, mas embora suas circunstâncias estivessem mais confortáveis agora, Ferguson entendia como os pais tinham se esforçado para sustentar aquele conforto, sabia como seus trabalhos eram absorventes e como tinham pouco tempo para qualquer outra coisa, sobretudo o pai, que mantinha o centro de tênis aberto sete dias por semana, de seis da manhã até as dez da noite, e embora tivesse uma equipe de empregados para ajudar, Chuck O’Shea e Bill Abramavitz, por exemplo, que sabiam, mais ou menos, cuidar de tudo por conta própria, e John Robinson, um ex-cabineiro de vagão dormitório de trem Pullman, que tomava conta das quadras e dos vestiários, e o endividado tio Arnold, que matava o tempo na loja de artigos esportivos profissionais fumando cigarros Camel, folheando jornais e tabelas de corrida, e três jovens assistentes, Roger Nyles, Ned Fortunato e Richie Siegel, que se revezavam em turnos de seis e sete horas, além de meia dúzia de estudantes do ensino médio que trabalhavam em regime de meio expediente, o pai de Ferguson raramente tirava dias de folga durante os meses frios, e bem poucos dias, também, durante os meses quentes.

Como os pais viviam tão preocupados, Ferguson tendia a guardar seus problemas para si. No caso de uma emergência grave, ele sabia que podia contar com a mãe para ficar do seu lado, mas o fato era que não houvera nenhuma emergência nos dois ou três anos anteriores, pelo menos nada de tão ruim que o obrigasse a correr para pedir socorro, e agora que ele tinha onze anos e meio, a maior parte das situações que antes pareciam graves para ele tinha se reduzido a um pequeno punhado de problemas que ele podia resolver sozinho. Levar uma surra no pátio da escola antes mesmo do primeiro dia de aula, sem dúvida nenhuma, era um problema grande. Ser acusado pelo diretor de espalhar propaganda comunista era, incontestavelmente, um problema grande também. Mas será que qualquer desses problemas era sério o suficiente para ser considerado grave? Esqueça que ele esteve à beira das lá­grimas depois da humilhação no gabinete do sr. Jameson, esqueça que continuou lutando para conter aquelas lágrimas durante todo o caminho de volta para casa. Tinha sido um dia funesto, provavelmente o pior de sua vida, desde o dia em que caiu da árvore e fraturou a perna, e havia todas as razões do mundo para ele querer relaxar e desatar o choro. Esmurrado pelo amigo, insultado pelos outros amigos, sem nada para esperar do futuro a não ser mais murros e mais insultos, e depois a indignidade final de ser chamado de traidor por aquele covardão cabeça de bagre do diretor, que não teve sequer a coragem de lhe dar uma suspensão. Sim, Ferguson estava deprimido, Fer­guson fazia força para não chorar, Ferguson estava encrencado, mas de que adiantaria contar aquilo para os pais? A mãe seria toda solidariedade, é claro, ia querer abraçá-lo, segurá-lo entre os braços, ficaria feliz de poder transformá-lo, de novo, num menininho pequeno e colocá-lo no colo, enquanto ele berrava seus lamentos, e depois se mostraria indignada com o que fizeram com ele, ia ameaçar telefonar para o sr. Jameson e lhe dizer poucas e boas, ia marcar uma reunião, os adultos iam discutir sobre ele, todo mundo ia gritar sobre aquele subversivo esquerdista e seus pais esquerdistas, e de que adiantaria fazer isso, como qualquer coisa que a mãe falasse para ele ou fizesse por ele poderia evitar o murro seguinte? Seu pai ia se mostrar mais prático. Ia pe­gar as luvas de boxe e daria para Ferguson mais uma lição na arte dos socos, a doce ciência, como o pai gostava de chamar, sem dúvida o nome mais mal dado para alguma coisa em toda a história da humanidade, e, por vinte minutos, ele ia demonstrar como ficar de guarda levantada e defender-se contra um oponente mais alto, mas de que adiantavam luvas de boxe num pátio de escola onde as pessoas brigavam de mãos nuas e não obedeciam a nenhuma regra, onde nem sempre era um contra um, mas, muitas vezes, dois contra um ou três contra um, e até quatro contra um? Grave. Sim, talvez fosse grave, mas o pai não saberia o que fazer, a mãe não saberia o que fazer e, portanto, ele tinha de guardar aquilo tudo consigo mesmo. Nada de gritos de socorro. Nenhuma palavra para nenhum dos dois. Só restava aguentar firme, ficar sempre longe do pátio e torcer para que ninguém o matasse antes do Natal.

Ele viveu no inferno durante todo o ano escolar, mas a natureza daquele inferno e as leis que o governavam continuavam mudando de mês a mês. Ele supôs que fosse, acima de tudo, uma questão de socos, de ser esmurrado e depois responder com socos, com toda força que tinha, mas batalhas grandes ao ar livre estavam fora dos planos, e, embora ele tenha levado muitos socos durante as primeiras semanas de aula, nunca teve oportunidade de revidar, pois os murros que levava vinham sem aviso — um garoto aparecia do nada, correndo em sua direção, e batia no seu braço ou nas costas ou no ombro, e depois fugia correndo, antes que Ferguson pudesse reagir. Murros que doíam, ataques traiçoeiros de um só golpe, quando ninguém estava olhando, cada vez um garoto diferente, nove garotos diferentes, entre os outros onze garotos de sua sala, como se todos tivessem combinado entre si e organizado sua estratégia de antemão, e, depois que Ferguson recebeu aqueles nove murros dos nove garotos diferentes, os murros cessaram. Depois disso, foi colocado na geladeira, os mesmos nove garotos se recusavam a falar com ele, fingiam não ouvir Ferguson quando ele abria a boca e dizia alguma coisa, olhavam para ele com rostos vazios, indiferentes, agiam como se fosse invisível, uma gota de nada dissolvida no ar vazio. Depois, veio a fase de ser jogado no chão, o velho truque de um garoto ficar de quatro atrás dele, enquanto outro o empurrava pela frente, um empurrão rápido para que perdesse o equilíbrio, e depois Ferguson caía de repente para trás, por cima das costas do garoto agachado, e mais de uma vez sua cabeça bateu no chão primeiro, e não era só a humilhação de ser apanhado mais uma vez de guarda baixa, havia também a dor. Tanta diversão, tantas risadas à custa dele, e os meninos eram tão espertos e eficientes que o sr. Blasi nunca parecia notar nada. Os desenhos apagados, os deveres de matemática rabiscados, a bolsa da merenda que sumia, o lixo no seu escaninho, a manga do casaco cortada, a neve dentro das galochas, merda de cachorro em sua carteira. O inverno era a temporada das brincadeiras, a amarga estação das maldades em recinto fechado e do desespero cada vez mais profundo, e depois o gelo derreteu por algumas semanas, após seu aniversário de doze anos, e teve início uma nova rodada de murros.

Se não fossem as meninas, com certeza Ferguson teria sucumbido, mas nenhuma das doze meninas da sala se voltou contra ele e, além disso, havia os dois garotos que não aceitaram tomar parte na selvageria, o gordo e ligeiramente debiloide Anthony DeLucca, conhecido também por diversos nomes, Banha, Bolão, Gosma, que sempre tinha respeitado Ferguson e que muitas vezes fora vitimizado por Krolik e seu bando no passado, e também o aluno novo, Howard Small, garoto sossegado, inteligente, que tinha se mudado de Manhattan para West Orange no verão e ainda estava tateando seu caminho, como um novato no sertão dos subúrbios. A rigor, a maioria dos alunos estava do lado de Ferguson e, como ele não estava sozinho, pelo menos não completamente sozinho, conseguiu resistir se aferrando a seus três princípios centrais: nunca deixe ninguém ver você chorar, nunca contra-ataque com raiva ou frustração, e nunca diga nenhuma palavra sobre isso para ninguém que exerça posição de autoridade, sobretudo para os pais. Era um negócio brutal e desmoralizante, é claro, com incontáveis lágrimas derramadas em seu travesseiro à noite, sonhos de vingança ferozes e cada vez mais aprimorados, prolongadas descidas nos abismos rochosos da melancolia, uma grotesca fuga mental em que ele via a si mesmo pulando do alto do edifício Empire State, arengas mudas contra a injustiça do que estava acontecendo com ele, acompanhadas por um espasmódico e frenético toque de tambor de autodesprezo, a secreta convicção de que ele merecia ser punido, porque tinha provocado aquele horror contra si mesmo. Mas isso era em particular. Em público, ele se obrigava a ser duro, a tomar os murros sem soltar um ai de dor, ignorava os murros da maneira como ignoramos as formigas no chão ou o tempo que está fazendo na China, saía de cada humilhação como se fosse o vencedor de algum combate cósmico entre o bem e o mal, mantinha sob controle toda e qualquer expressão de dor ou derrota, porque sabia que as meninas estavam vendo e, quanto mais corajosamente ele encarava seus agressores, mais as garotas ficariam do seu lado.

Era tudo muito complicado. Agora, eles tinham doze anos, ou estavam prestes a completar doze, e alguns dos meninos e das meninas começavam a formar pares, a velha separação entre os sexos tinha se estreitado a tal ponto que homens e mulheres conviviam quase num território comum, de repente surgiram conversas sobre namorados e namoradas, sobre namorar firme, quase todo fim de semana havia festas com dança e brincadeiras da roleta da garrafa, na qual a garrafa rodava no chão e apontava quem ia beijar quem, e os mesmos garotos que apenas um ano antes atormentavam as meninas puxando seu cabelo e dando beliscões em seus braços agora estavam dispostos a beijá-las. Só que o garoto número um tinha forjado uma aliança romântica com a garota número um, Susie Krauss, e os dois reinavam sobre a turma como uma espécie de casal real, o sr. e a sra. Popularidade 1959. O que ajudou Ferguson foi o fato de ele e Susie terem sido amigos desde o jardim de infância e de ela ser a líder das forças antiperseguição. Quando ela e Timmerman viraram um par, no fim de março, a atmosfera começou a mudar um pouco e não demorou para Ferguson perceber que estava sofrendo menos agressões e que um número menor de meninos o agredia. Nada jamais foi dito. Ferguson desconfiava que Susie tinha apresentado um ultimato a seu namorado — pare de torturar o Archie, senão vou embora —, e, como Timmerman tinha mais interesse em namorar Susie do que em odiar Ferguson, recuou. Continuava a tratar Ferguson com desprezo, mas parou de usar os punhos contra ele e já não danificava seus pertences, e quando Timmerman se retirou da Gangue dos Nove, vários outros garotos também se afastaram, pois Timmerman era seu líder e eles o seguiam em tudo, por isso, durante os últimos dois meses e meio da escola, só restaram quatro torturadores, Krolik e seu bando de imbecis, e, embora não tivesse graça nenhuma ser maltratado por aqueles quatro, era bem melhor do que ser espancado por nove. Susie não ia contar para Ferguson se tinha falado com Timmerman ou não (o protocolo exigia que ela mantivesse silêncio sobre o assunto, por lealdade a seu amor), mas Ferguson estava quase certo disso, e era tão grato a Susie Krauss e a seu nobre coração lutador que começou a esperar com ansiedade o dia em que ela acabaria largando Timmerman e o terreno ficaria livre para ele tentar a sorte com ela. Ferguson pensava nisso o tempo todo, nas primeiras semanas da primavera, e decidiu que, provavelmente, para começar, o melhor seria chamar Susie para passar uma tarde de sábado com ele, no centro de tênis do pai, onde ele poderia lhe mostrar tudo e exibir seus conhecimentos abalizados sobre o funcionamento interno do lugar, o que certamente a deixaria impressionada e a levaria ao estado de espírito propício para um beijo, ou talvez vários beijos, e se não fosse um beijo, pelo menos ficariam de mãos dadas. Em vista da volatilidade dos romances pré-adolescentes naquele recanto dos subúrbios de Nova Jersey, onde um vínculo, em média, durava só duas ou três semanas, e dois meses andando juntos era o equivalente a dez anos de casamento, não era nada insensato que Ferguson tivesse esperança de que sua oportunidade fosse surgir antes das férias escolares do verão.

Nesse meio-tempo, ele ficou de olho em Gloria Dolan, que era mais bonita do que Susie Krauss, mas não tão estimulante como companhia, uma alma meiga, vagarosa, quando comparada com a elétrica e explosiva Susie, e mesmo assim Ferguson ficou de olho nela porque tinha descoberto que Gloria estava de olho nele, para ser bastante exato, ela estava de olho nele quando achava que ele não estava de olho nela, e quantas vezes no mês anterior Ferguson a surpreendeu olhando fixo para ele, na sala, sentada em sua carteira, enquanto o sr. Blasi virava as costas para os alunos e elaborava mais um problema de matemática no quadro-negro, já sem prestar atenção nos numerais riscados a giz, mas, em vez disso, examinando bem Ferguson, como se Ferguson tivesse se transformado num objeto de intenso interesse para ela, e agora que ele havia adquirido consciência daquele interesse, também começou a desviar os olhos do quadro-negro e virar a cabeça para olhar para ela e, agora, muitas e muitas vezes seus olhos se encontravam, e toda vez que isso acontecia os dois sorriam um para o outro. Nessa altura de sua jornada pela vida, Ferguson ainda estava à espera do primeiro beijo, o primeiro beijo de uma garota, um beijo de verdade, em oposição aos beijos fraudulentos de mães, avós e primas, um beijo ardente, um beijo erótico, um beijo que iria além do mero contato dos lábios e o mandaria voando para um território até então inexplorado. Ferguson estava pronto para esse beijo, vinha pensando nisso desde antes de seu aniversário; nos últimos meses ele e Howard Small tinham discutido o assunto repetidamente e em minúcias, e agora que ele e Gloria Dolan estavam trocando sorrisos em segredo na sala de aula, Ferguson resolveu que ela seria a primeira, pois todos os sinais apontavam para a inevitabilidade de ela ser a primeira, e foi assim que, numa sexta-feira à noite, no fim de abril, durante uma reunião na casa de Peggy Goldstein, em Merrywood Drive, Ferguson levou Gloria para o quintal e lhe deu um beijo e, como ela o beijou também, os dois continuaram a se beijar durante um bom tempo, muito mais tempo do que ele havia imaginado, talvez dez ou doze minutos, e quando Gloria introduziu a língua na boca dele, depois do quarto ou quinto minuto, de repente tudo mudou e Ferguson entendeu que estava vivendo um mundo novo e nunca mais poria os pés no mundo antigo.

Além daqueles beijos com Gloria Dolan, que mudaram sua vida, a outra coisa boa naquele ano funesto foi o aprofundamento de sua amizade com o aluno novo, Howard Small. Para isso, ajudou o fato de Howard ter vindo de outro lugar, ter entrado em cena na fatídica primeira manhã do ano novo escolar sem preconceitos ou ideias prévias sobre quem era quem ou quem devia ser o quê, o fato de que ele tinha comprado o terceiro número de O Cruzado da Rua de Paralelepípedos minutos depois de chegar ao pátio e de que estava vasculhando alegremente suas matérias, quando viu o menino que tinha acabado de lhe vender o jornalzinho ser agredido por Timmerman e pelos outros, e como ele era uma pessoa que sabia distinguir o certo do errado, imediatamente tomou o lado de Ferguson e, depois, desse dia em diante, andou sempre com Ferguson, e como de vez em quando ele também sofria agressões pelo crime de ser amigo de Ferguson, os dois garotos se aproximaram muito, pois, não fosse a existência do outro, cada um deles ficaria inteiramente só. Párias da sexta série — e, portanto, amigos, em um mês, os melhores amigos um do outro.

Howard, e não Howie, enfaticamente, Howie não. Small, ou seja, pequeno, no sentido do nome, mas não no tamanho real, só uma fração de centímetro mais baixo do que Ferguson, e já começava a ganhar corpo, não era mais uma criança franzina, mas sim um pré-adolescente cada vez mais robusto, sólido e forte, fisicamente destemido, um esportista camicase que compensava suas habilidades medíocres com um entusiasmo e um esforço implacáveis. Senso de humor e bondade, facilidade para aprender, talento para ter bom desempenho sob pressão, até ultrapassava Timmerman na quantidade de provas em que tirava a nota máxima, leitor de livros, como Ferguson, estudioso de política em crescimento, como Ferguson, e um menino com um dom maravilhoso para o desenho. O lápis que levava sempre no bolso fazia surgir paisagens, retratos e naturezas-mortas de precisão quase fotográfica, mas também cartuns e quadrinhos, que fazia brotar seu humor, em grande parte, de trocadilhos improváveis, palavras arrancadas de suas funções familiares, porque seus sons se harmonizavam com os sons de outras palavras, que nada tinha a ver com elas, como o caso do desenho intitulado O maior Ás dos céus, que mostrava um menino impelido pelo céu com duas letras A maiúsculas, uma em cada mão, enquanto outros meninos ao fundo brigavam uns com os outros em torno de alguns as minúsculos. Ou então, o favorito de Ferguson, o desenho em que Howard transformou a palavra “seringal” num tipo novo de plantação, num desenho que tinha o nome de Fazenda de Frutos da Enfermaria, com uma série de cerejeiras no alto, com a palavra “cerejal” muito bem desenhada, uma série de laranjeiras no meio, com a palavra “laranjal” muito bem desenhada e, embaixo, uma série de árvores com seringas de farmácia penduradas nos galhos, com a palavra “seringal” muito bem desenhada. Que ideia mais divertida, pensou Ferguson, e que bom ouvido para o duplo sentido das palavras, porém mais importante do que o ouvido era o olho, o olho em combinação com a mão, pois o resultado não teria nem metade do efeito se as seringas penduradas nos galhos não estivessem tão bem desenhadas, eram nada menos do que sublimes, as mais fiéis e mais bem desenhadas seringas que Ferguson tinha visto.

O pai de Howard era um professor de matemática que tinha mudado para Nova Jersey com a família Small porque recebeu a proposta de trabalhar como decano dos estudantes na escola de professores Montclair State Teacher’s College. A mãe de Howard era editora de uma revista feminina chamada Hearth & Home, o que significava que ela ia trabalhar em Nova York cinco dias por semana e raramente voltava para West Orange antes do anoitecer, e, como Howard tinha um irmão de vinte anos e uma irmã de dezoito (ambos fazendo faculdade fora da cidade), suas circunstâncias eram notavelmente semelhantes às de Ferguson — um filho único de facto que, depois da escola, chegava a uma casa vazia. Em 1959, poucas mulheres no subúrbio tinham emprego, mas Ferguson e seu amigo tinham mães que eram mais do que donas de casa e, consequentemente, foram obrigados a ser mais independentes e autoconfiantes do que a maioria de seus colegas de escola, e agora que tinham doze anos e começavam a curva que levava ao portão da adolescência, o fato de terem largos intervalos de tempo só para eles, sem a supervisão de ninguém, estava se revelando uma vantagem, pois nessa etapa da vida os pais são, seguramente, as pessoas menos interessantes do mundo, e quanto menos tivermos de ficar com eles, melhor. Portanto, os dois podiam ir à casa de Ferguson depois da escola e ligar a televisão para ver American Bandstand ou Million Dollar Movie sem medo de serem repreendidos por desperdiçar as últimas horas preciosas da luz do dia sentados dentro de casa numa tarde tão linda. Por duas vezes naquela primavera, eles conseguiram convencer Gloria Dolan e Peggy Goldstein a irem para a casa com eles, para bailes a quatro, na sala, e como nessa altura Ferguson e Gloria já eram veteranos em beijar, seu exemplo inspirou Howard e Peggy a experimentarem sua própria iniciação na complexa arte do beijo de língua. Em outras tardes, os dois iam para a casa de Small, cientes e seguros de que não seriam interrompidos nem espionados enquanto abriam a primeira gaveta da escrivaninha do irmão de Howard e puxavam a pilha de revistas de mulheres nuas que ele guardava espremidas lá dentro, embaixo do inócuo disfarce de um livro de química do ensino médio. Seguiam-se longas conversas sobre qual mulher nua tinha o rosto mais bonito ou o corpo mais atraente, comparações eram feitas entre as modelos da Playboy e as de Gent e Swank, as excelentes fotografias, muito bem iluminadas, das mulheres de aspecto quase irreal da Playboy em oposição às imagens mais brutas, granuladas, das revistas mais baratas, as brilhosas beldades jovens americanas puras e as prostitutas mais velhas, mais lascivas, com seus rostos duros e seu cabelo pintado de louro, a questão principal era sempre qual delas era a mais excitante e com qual mulher eles mais gostariam de transar quando seu corpo estivesse pronto para se envolver em sexo de verdade, algo que por enquanto ainda não era possível para nenhum dos dois, mas agora já faltava pouco, talvez mais seis meses, talvez um ano, e por fim eles iriam dormir, certa noite, e quando acordassem, iam descobrir que tinham virado homens.

Ferguson vinha acompanhando com atenção as mudanças em seu corpo, desde que o primeiro sinal da iminente virilidade apareceu, na forma de um fio de pelo que nasceu embaixo do sovaco esquerdo, quando tinha dez anos e meio. Sabia o que aquilo significava e ficou surpreso, pois pareceu ter vindo cedo demais, e nessa altura ele não estava preparado para dizer adeus ao menino que tinha feito parte dele desde o nascimento. Achou o pelo feio e ridículo, um invasor enviado por alguma força alienígena para desfigurar sua pessoa até então imaculada, e portanto o arrancou. Dias depois, porém, o pelo voltou, junto com um irmão gêmeo idêntico, que chegou na semana seguinte, e então o sovaco direito também entrou em ação e, em pouco tempo, já não dava para distinguir os fios isolados, os pelos se transformavam em ninhos de pelo, e, quando ele tinha doze anos, os pelos se tornaram um fato permanente em sua vida. Ferguson observou com horror e fascínio como outras áreas do corpo também se transformavam, os pelinhos alourados quase invisíveis nas pernas e nos antebraços foram ficando mais escuros, mais grossos e mais abundantes, a emergência do pelo pubiano em seu baixo-ventre, antes liso, e mais tarde, logo depois de completar treze anos, as detestáveis penugens que começaram a brotar entre o nariz e o lábio superior, tão nojentas e deformadoras que um dia, de manhã, ele raspou tudo aquilo com o barbeador elétrico do pai e, quando voltaram a crescer algumas semanas depois, ele raspou de novo. O horror consistia em não ter controle do que estava acontecendo com ele, de sentir que o próprio corpo tinha se transformado num campo de experiências realizadas por algum cientista louco e brincalhão, e, enquanto pelos novos continuavam a proliferar sobre áreas cada vez mais vastas da pele, Ferguson não podia deixar de pensar no Lobisomem, o herói daquele filme horripilante que tinha visto com Howard na televisão, certa noite, no outono, a metamorfose de um homem normal num monstro de cara peluda, que Ferguson então compreendeu se tratar de uma parábola da impotência que a pessoa experimenta durante a puberdade, pois a gente é condenado a se tornar aquilo que os genes decidiram que a gente vai ser e, até a conclusão do processo, não temos a menor ideia do que o dia seguinte nos reserva. Esse era o horror daquilo tudo. No entanto, junto com o horror, havia o fascínio, o conhecimento de que, por mais longa e difícil que fosse a jornada, acabaria por levar ao reino do êxtase erótico.

O problema era que Ferguson ainda não sabia nada sobre a natureza daquele êxtase e, por mais que se esforçasse para imaginar o que seu corpo ia sentir nos espasmos do orgasmo, a imaginação de Ferguson o traía repetidamente. Seus primeiros anos na faixa de idade de dois dígitos foram repletos de rumores e boatos, mas sem nenhum fato concreto, histórias misteriosas e sem confirmação de meninos que tinham irmãos mais velhos, adolescentes, que aludiam aos espasmos inverossímeis associados ao êxtase erótico, os jatos pulsantes de fluido branco e leitoso que esguichavam do pênis, por exemplo, que às vezes voavam muitos centímetros e até metros pelo ar, a chamada ejaculação, sempre acompanhada e seguida por aquele tão almejado sentimento de êxtase, que Tom, o irmão de Howard, definia como a melhor a sensação do mundo, mas quando Ferguson o pressionou para que ele fosse mais específico e descrevesse como era a sensação, Tom disse que não sabia como começar, era muito difícil pôr aquilo em palavras, e Ferguson teria simplesmente de esperar que chegasse a hora de sentir aquilo por si mesmo, uma resposta frustrante que não servia de nada para aliviar sua ignorância, e, embora alguns dos termos técnicos já fossem agora familiares para ele, como a palavra “sêmen”, que era aquela coisa pegajosa que esguichava de dentro da gente e levava o esperma, elemento essencial para criar os bebês, toda vez que alguém usava essa palavra na sua frente, Ferguson invariavelmente pensava num navio cheio de marinheiros, marinheiros da marinha mercante vestidos em uniformes brancos leitosos, que desembarcavam e corriam para os bares pé-sujo à beira do cais para flertar com mulheres seminuas e se juntar aos marujos da velha guarda nas cantorias embriagadas dos homens do mar, enquanto um homem perneta, de camisa listrada, detonava uma melodia em sua sanfona velhíssima. Pobre Ferguson. Sua cabeça era uma mixórdia, e, como ele ainda não conseguia imaginar o que nenhuma daquelas palavras significava de verdade, seus pensamentos tendiam a disparar em várias direções ao mesmo tempo. Marujos viravam piratas de um olho só, que viravam cegos, e ele imaginava que ele mesmo era um cego que entrava num bar barulhento tateando o chão com sua bengalinha branca.

Estava claro que o ator central de seu drama se encontrava em sua virilha. Ou, para retomar a terminologia dos antigos hebreus, em seu baixo-ventre. Quer dizer, suas partes íntimas, que na literatura médica são referidas comumente como genitália. Desde quando ele se entendia por gente, sempre teve uma sensação boa ao se tocar ali, mexer no pênis quando ninguém estava olhando, na cama de noite ou de manhã cedo, por exemplo, manipular aquela protuberância de carne até que ela se levantasse dura no ar, duplicando ou até triplicando de tamanho e, com essa mutação espantosa, um tipo incipiente de prazer começava a se espalhar pelo corpo, em especial na metade inferior do corpo, a sensação de um impulso sem forma que ainda não era o êxtase, mas sugeria que o êxtase, um dia, seria alcançado por um tipo semelhante de fricção. Agora Ferguson estava crescendo sem parar, toda manhã seu corpo parecia ficar um pouco maior do que na véspera e o crescimento do seu pênis seguia o mesmo ritmo, já não era mais o pintinho enrugado da infância pré-pelos, e sim um apêndice cada vez mais substancial, que agora parecia possuir uma mente própria, que se alongava e endurecia à menor provocação, sobretudo naquelas tardes em que ele e Howard examinavam as revistas de mulheres nuas de Tom. Estavam, agora, no segundo ano da escola secundária e, um dia, Howard contou uma piada que tinha ouvido do irmão:

Um professor de ciências pergunta aos alunos: Qual é parte do corpo que é capaz de se expandir até seis vezes seu tamanho normal? Aponta o dedo para a srta. McGillacuddy, mas, em vez de responder a pergunta, a menina começa a ficar vermelha e cobre o rosto com as mãos. O professor, então, se vira para o sr. MacDonald, que responde logo: As pupilas dos olhos. Correto, diz o professor, e então vira-se para a corada srta. McGillacuddy e se dirige a ela com uma irritação que beira o desprezo. Tenho três coisas para lhe dizer, jovem senhorita, diz ele. Um: você não tem feito seu dever de casa. Dois: você tem uma cabeça suja e obscena. E três: você vai ter muitas decepções na vida.

Então não eram seis vezes, mesmo depois de atingir o crescimento máximo. Havia limites para o que ele podia esperar no futuro, mas quaisquer que fossem as medidas exatas, quaisquer que fossem as proporções entre o repouso relaxado e a prontidão rija, o aumento seria suficiente para o dia, a noite desse dia, e todas as noites e dias que estavam por vir.

A escola secundária era indiscutivelmente superior à escola primária que o mantivera prisioneiro durante os últimos sete anos, e com mais de mil alunos em disparada pelos corredores no fim de cada tempo de aula de cinquenta minutos, ele não tinha mais de suportar a sufocante intimidade de ficar enjaulado numa sala junto com as mesmas vinte e três ou vinte e quatro pessoas a semana toda, de segunda a sexta, desde o início de setembro até o fim de junho. A Gangue dos Nove era coisa do passado, e mesmo Krolik e seus três puxa-sacos tinham simplesmente sumido de vista, pois os caminhos de Ferguson raramente se cruzavam com os deles. Timmerman continuava presente, um colega de classe de Ferguson em quatro matérias, mas os dois garotos coexistiam desviando-se um do outro para se ignorarem mutuamente, um esfriamento que não chegava a ser feliz, mas também não era intolerável. Melhor ainda, Timmerman e Susie Krauss tinham se separado, como Ferguson tanto havia desejado, e como o próprio Ferguson tinha perdido contato com Gloria Dolan no verão, pois sua primeira parceira de beijos andava agora de olho no bonito Mark Connelly, o que decepcionou Ferguson, mas nem por isso o deixou completamente arrasado, pois um caminho novo tinha se aberto para ele ir atrás de Susie Krauss, a garota dos sonhos da sexta série, e ele correu para agarrar sua oportunidade, telefonou para ela num fim de tarde, durante a primeira semana de aula, o que levou a uma visita ao centro de tênis de seu pai, num sábado à tarde, o que por sua vez levou ao primeiro beijo dos dois no sábado seguinte e a muitos outros beijos nas sextas e nos sábados subsequentes, nos meses seguintes, e depois os dois também se separaram e Susan caiu nos braços do já mencionado Mark Connelly, que tinha perdido Gloria Dolan para um garoto chamado Rick Bassini, enquanto Ferguson partiu atrás da ainda mais atraente Peggy Goldstein, que tinha rompido com Howard fazia algum tempo, mas o melhor amigo de Ferguson tinha se recuperado, estava com o coração intacto, e agora oferecia aquele mesmo coração à inteligente e esfuziante Edie Cantor.

E assim foi ao longo daquele ano de namoros efêmeros e de cirandas de amores, que também foi o ano em que cada vez mais colegas seus apareceram no colégio com aparelhos nos dentes, e o ano em que todo mundo começou a ficar preocupado com as erupções na pele ruim. Ferguson sentia-se um sortudo. Até então, seu rosto só tinha sido atacado por três ou quatro modestos vulcões, que ele estourou na primeira oportunidade, e seus pais concluíram que seus dentes estavam alinhados o suficiente para poupá-lo das provações da ortodontia. Mais que isso, eles insistiram que ele passasse mais um verão no Acampamento Paraíso. Ferguson achou que treze anos talvez fosse uma idade um pouquinho avançada demais para ficar na colônia de férias, e assim, nas férias de Natal, perguntou ao pai se não podia passar julho e agosto trabalhando no centro de tênis, mas o pai riu e disse que, no futuro, haveria tempo de sobra para ele trabalhar. Você precisa ficar ao ar livre, Archie, disse o pai, precisa andar junto com garotos da sua idade. Além do mais, você só pode tirar documentos para trabalhar depois dos catorze anos. Em Nova Jersey, ninguém pode trabalhar com treze anos, e você não vai querer que eu me meta numa confusão por violar a lei, não é?

Ferguson estava feliz no acampamento. Sempre foi feliz ali, e foi bom encontrar seus amigos de verão de Nova York, a meia dúzia de garotos da cidade que continuava voltando para lá ano após ano, como ele. Ele se divertia com o sarcasmo e o humor de suas personalidades falantes e espirituosas, que muitas vezes o faziam lembrar o jeito como os soldados americanos conversavam entre si nos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, a caçoada jocosa e mordaz, a compulsão para nunca levar nada a sério, para transformar qualquer situação num pretexto para mais uma piada ou zombaria à parte. Sem dúvida, havia algo de admirável em afrontar a vida com tamanho espírito e irreverência, mas também podia se tornar cansativo às vezes, e sempre que Ferguson já estava farto dos gracejos verbais de seus colegas de alojamento, ele sentia saudades de Howard, seu melhor amigo dos últimos dois anos, o melhor amigo que ele já tivera e, com Howard longe, na fazenda de gado leiteiro do tio e da tia em Vermont, onde passava os verões, Ferguson começou a escrever cartas para ele durante o período de repouso de uma hora que eles tinham depois do almoço, cartas numerosas, compridas e curtas, nas quais registrava tudo em que estivesse pensando no momento, pois Howard era a única pessoa no mundo com quem ele podia aliviar seu fardo, a única pessoa em quem confiava sem medo nenhum, o amigo singular e irrepreensível com quem podia dividir tudo, desde críticas aos outros a comentários sobre os livros que tinha lido, desde reflexões sobre a dificuldade de reprimir os peidos em público a pensamentos sobre Deus.

Ao todo, foram dezesseis cartas, e Howard guardou-as numa caixa de madeira quadrada e as conservou consigo, mesmo depois de ter crescido e começado sua vida de adulto, porque o Ferguson dos treze anos de idade, seu amigo de dentes direitos e semblante radioso, o fundador do Cruzado da Rua de Paralelepípedos, falecido de longa data, mas jamais esquecido, o menino que quebrou a perna aos seis anos e teve um corte no pé aos três anos, e que quase se afogou aos cinco, que enfrentou as agressões da Gangue dos Nove e do Bando dos Quatro, que beijou Gloria Dolan, Susie Krauss e Peggy Gold­stein, que contava os dias que faltavam para entrar no reino do êxtase erótico, que supunha, esperava e tinha como líquido e certo que ainda havia muitos anos de vida à sua frente, não viveu até o fim do verão. Foi por isso que How­ard Small guardou aquelas dezesseis cartas — porque foram os últimos vestígios da presença de Ferguson neste mundo.

“Não acredito mais em Deus”, escreveu numa delas. “Pelo menos, não no Deus do judaísmo, do cristianismo ou de nenhuma religião. A Bíblia diz que Deus criou o homem à sua própria imagem, mas foram os homens que escreveram a Bíblia, não é? O que significa que foi o homem que criou Deus à sua imagem. O que também significa que Deus não toma conta de nós e com certeza não dá a mínima para o que os homens pensam ou sentem. Se ligasse para nós, por pouco que fosse, não teria feito um mundo com tantas coisas terríveis. Os homens não lutariam em guerras nem se matariam uns aos outros nem construiriam campos de concentração. Não mentiriam, não enganariam, não roubariam. Não estou dizendo que Deus não criou o mundo (não foi nenhum homem que fez isso!), mas, terminado o trabalho, ele desapareceu nos átomos e nas moléculas do universo e nos deixou de lado, para a gente se virar sozinho.”

“Estou feliz que Kennedy tenha sido escolhido candidato para presidente”, escreveu em outra carta. “Prefiro Kennedy aos outros, e tenho certeza de que ele vai vencer Nixon no outono. Não sei por que tenho essa certeza, mas é difícil imaginar que os americanos queiram que um homem a quem chamam de Tricky Dick* seja seu presidente.”

“Na minha barraca, tem mais seis garotos”, escreveu em outra carta, “e três deles já são crescidos o suficiente para ‘fazer aquilo’ agora. Eles se masturbam na cama, de noite, e contam para os outros como a sensação é boa. Dois dias atrás, fizeram o que chamam de roda de masturbação e deixaram a gente ver, por isso eu finalmente vi como é o tal negócio e como esguicha longe. Não é branco leitoso, mas branco cremoso, parece um pouco com maionese ou xampu. Aí, um dos três reis da masturbação, um cara grande chamado Andy, ficou com o pau duro de novo e fez uma coisa que deixou a mim e a todo mundo espantado. Ele se curvou e chupou o próprio peru! Eu não sabia que isso era humanamente possível. Quer dizer, como alguém pode ser tão flexível a ponto de dobrar o corpo e ficar nessa posição? Tentei fazer isso no banheiro, ontem de manhã, mas não consegui chegar com a boca nem perto do meu. Tanto melhor, eu acho. Eu não ia querer andar por aí pensando que fazia um troço desses, não é? Mesmo assim, foi uma coisa muito estranha de ver.”

“Li três livros desde que cheguei aqui”, escreveu na última carta, com data de 9 de agosto, “e achei todos eles incríveis. Dois deles, foi a minha tia Mildred quem me mandou, um pequeno do Franz Kafka, chamado A metamorfose, e um maior de J. D. Salinger, chamado O apanhador no campo de centeio. O outro quem me deu foi o marido da minha prima Francie, o Gary — Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire. O livro do Kafka é de longe o mais bizarro e o mais difícil de ler, mas adorei. Um homem acorda, de manhã, e descobre que virou um inseto enorme! Dito assim, parece ficção científica ou uma história de horror, mas não é. É sobre a alma do homem. O apanhador no campo de centeio é sobre um aluno do ensino secundário que fica vagando por Nova York. Não acontece nada demais nele, mas a maneira como o Holden fala (é o nome do herói) é muito realista e verdadeira, e a gente não consegue deixar de gostar dele e querer ser seu amigo. Cândido é um livro antigo, do século XVIII, mas é bárbaro e divertido, eu ria alto quase em todas as páginas. Gary disse que é uma sátira política. Eu digo que é legal demais! Você tem de ler — e os outros dois também. Agora que terminei todos eles, o que me impressiona é como esses livros são diferentes. Cada um foi escrito à sua maneira e são todos muito bons, o que significa que não existe só um jeito de escrever um livro bom. Ano passado, o sr. Dempsey ficou o tempo todo dizendo para a gente que havia um jeito certo e um jeito errado — lembra? Pode ser que na matemática e na ciência seja assim, mas não com os livros. Cada um faz um livro do seu jeito e, se o seu jeito for bom, você pode escrever um livro bom. O interessante é que não consigo decidir de qual dos três eu gostei mais. Você vai dizer que eu não sei, mas não é isso. Adorei todos. O que significa, eu acho, que qualquer jeito bom é o jeito certo. Me deixa feliz pensar em todos os livros que ainda não li — centenas de livros, milhares. Quanta coisa legal para conhecer!”

O último dia da vida de Ferguson, 10 de agosto de 1960, começou com uma rápida chuvarada logo depois do nascer do sol, mas quando tocou o sinal de despertar, às sete e meia, as nuvens tinham sido varridas para o leste e o céu estava azul. Ferguson e seus seis colegas de barraca foram para o refeitório com seu monitor, Bill Kaufman, que tinha terminado o segundo ano de faculdade no Brooklyn College, em junho, e durante os trinta ou quarenta minutos que eles levaram para comer seu mingau de aveia e os ovos mexidos, as nuvens retornaram e, quando os garotos voltaram para a barraca para a limpeza e a inspeção, a chuva estava caindo de novo, uma chuva tão fina e tão inofensiva que parecia não ter a menor importância o fato de ninguém estar de poncho ou de guarda-chuva. As camisetas ficaram cobertas por pontos de umidade, mas nada além disso — uns respingos sem a menor consequência, água em quantidade tão ínfima que eles nem chegaram a ficar molhados. No entanto, quando começaram o ritual matutino de arrumar a cama e varrer o chão, o céu continuou a escurecer e dali a pouco a chuva começou a cair mais pesada, batia no telhado da barraca em gotas cada vez maiores e mais rápidas. Durante um ou dois minutos, houve naquele ruído uma espécie encantadora de síncope dissonante, Ferguson sentiu, mas depois a intensidade da chuva aumentou e o efeito se perdeu. A chuva já não estava mais fazendo música. Tinha se convertido numa densa massa, um som indiferenciado, um borrão percussivo. Bill disse para eles que um novo sistema de baixa pressão atmosférica estava vindo do sul, e, com uma frente fria que, ao mesmo tempo, vinha chegando do norte, eles podiam contar com um temporal forte e demorado. Acomodem-se, garotos, disse ele. Vai ser uma tempestade das grandes e vamos ficar dentro da barraca a maior parte do dia.

O céu escuro se tornou ainda mais escuro e estava ficando difícil de enxergar dentro da barraca. Bill acendeu a luz do teto, mas, mesmo depois de acender a luz, a escuridão permanecia lá dentro, pois a lâmpada de setenta e cinco watts ficava muito alta, nas vigas, para iluminar direito qualquer coisa embaixo. Ferguson estava na cama, folheando um número antigo da revista Mad que estava circulando pela barraca, lia com a ajuda da sua lanterna e imaginava se já tinha havido no mundo outra manhã tão escura. Agora a chuva metralhava o telhado, um ataque em larga escala, espancava as telhas como se as gotas líquidas tivessem virado pedras, milhões de pedras caíam do céu e martelavam em cima deles, e então, ao longe, Ferguson ouviu um estrondo surdo e grave, um barulho espesso, congestionado, que o fez pensar em alguém pigarreando, um trovão que devia ter estourado a muitos quilômetros dali, em algum ponto nas montanhas, talvez, e isso pareceu estranho para Ferguson, pois, em sua experiência, o trovão e o raio das tempestades elétricas sempre vinham antes da chuva, mas naquele caso já estava chovendo, e chovendo o máximo que era possível chover, e o trovão ainda estava muito longe deles, o que levou Ferguson a especular que talvez houvesse duas tempestades ao mesmo tempo, não só uma tempestade e uma frente fria, como Bill tinha dito, mas duas tempestades separadas, uma bem em cima deles e outra que vinha se aproximando pelo norte, e, se a primeira tempestade não saísse de cena antes da chegada da segunda, as duas iam se chocar uma contra a outra e se fundir, e isso ia criar uma tempestade forte como o diabo, foi o que Ferguson pensou, uma tempestade monumental, uma tempestade para acabar com todas as tempestades.

A cama à direita da de Ferguson estava ocupada por um garoto chamado Hal Krasner. Desde o início do verão, os dois repetiam uma brincadeira em que ambos representavam os papéis de George o esperto e Lennie o burro, os andarilhos do livro Ratos e homens, de John Steinbeck, que os dois tinham lido naquele mesmo ano e tinham achado cheio de possibilidades cômicas. Ferguson era George, e Krasner, Lennie, e quase todo dia passavam alguns minutos improvisando diálogos malucos para seus personagens escolhidos, uma rodada completa de nonsense que começava com Lennie pedindo que George contasse como ia ser quando eles fossem para o céu, por exemplo, ou George chamava a atenção de Lennie para não ficar pondo o dedo no nariz em público, conversas doidas que provavelmente deviam mais aos filmes de O Gordo e o Magro do que a Steinbeck, mas os garotos se divertiam entregando-se àquelas bobagens, e, com a chuva que agora desabava em cima do acampamento, com todo mundo enfiado na barraca, Krasner estava a fim de brincar daquilo mais uma vez.

Por favor, George, disse ele. Por favor, faça parar. Não estou aguentando mais.

Fazer parar o quê, Lennie?, perguntou Ferguson.

A chuva, George. O barulho da chuva. Está alto demais e está começando a me deixar louco.

Mas você sempre foi louco, Lennie. Você sabe disso.

Louco, não, George. Só burro.

Burro, sim. Mas louco também.

Não tenho culpa, George. Nasci desse jeito.

Ninguém disse que a culpa é sua, Lennie.

E então?

Então o quê?

Você vai fazer a chuva parar para mim?

Só o chefe pode fazer isso.

Mas o chefe é você, George. Você sempre foi o chefe.

Estou falando do grande chefe. O único, o número um.

Não conheço nenhum número um e único. Só conheço você, George.

Para conseguir um troço desses, eu teria de fazer um milagre.

É isso mesmo. Você é capaz de tudo.

Posso?

O barulho está me deixando doente, George. Acho que vou morrer, se você não fizer isso parar.

Krasner pôs as mãos nos ouvidos e gemeu. Ele era Lennie, que dizia para George que tinha chegado ao limite de suas forças, e Ferguson, no papel de George, fez que sim com a cabeça, com triste compaixão, ciente de que nenhum homem era capaz de impedir que a chuva caísse, que milagres estavam fora do alcance do poder da humanidade, mas Ferguson, no papel de Fer­guson, estava com dificuldade para representar sua parte naquela cena, os gemidos de vaca doente de Krasner eram simplesmente engraçados demais e, depois de ouvir aquilo por mais alguns segundos, Ferguson soltou uma gargalhada e sentiu que isso fez quebrar o encanto da brincadeira, se bem que não para Krasner, que achou que Ferguson estava rindo no papel de George e, portanto, ainda fingindo ser Lennie, Krasner tirou as mãos dos ouvidos e disse:

Não é bonito rir de um homem desse jeito, George. Posso não ser o cara mais esperto do país, mas tenho uma alma, como você e todo mundo, e, se você não tirar esse riso da cara, vou partir seu pescoço ao meio, como fiz com aqueles coelhos.

Agora que Krasner, no papel de Lennie, tinha proferido um discurso tão sério e contundente, Ferguson sentiu-se obrigado a voltar ao seu personagem, a tornar-se George de novo, em honra a Krasner e aos outros garotos que estavam acompanhando o diálogo, mas na hora em que ia abrir os pulmões e berrar com toda força uma ordem para a chuva parar — Chega desse aguaceiro, chefe! —, o céu detonou o estrondo dilacerante de um trovão, um barulho tão forte e tão explosivo que sacudiu o chão da barraca e fez trepidar as esquadrias das janelas, que ficaram zunindo e vibrando até o estouro do trovão seguinte fazer que trepidassem de novo. Metade dos garotos ficou de pé, eles deram um pulo para a frente e se retorceram de modo involuntário em reação ao barulho, enquanto outros gritaram por puro reflexo, o ar disparou para fora de seus pulmões em exclamações curtas, espantadas, que pareciam palavras, mas, na verdade, eram grunhidos instintivos em forma de palavras — ai, opa, uau. A chuva continuava a cair com força, batia em rajadas nas janelas e era difícil enxergar qualquer coisa através dos vidros — nada além de uma escuridão ondulada, encharcada, iluminada por repentinos riscos de relâmpagos, tudo preto durante dez ou vinte batidas do coração, e depois, um ou dois momentos de uma luz branca ofuscante. A tempestade que Ferguson tinha imaginado, a vasta tempestade dupla que ia se fundir em uma só, quando o ar do norte e o ar do sul colidissem, estava agora bem em cima deles e era ainda maior e melhor do que Ferguson havia desejado. Uma enorme tormenta. Um machado de fúria que rompia os céus ao meio. Uma euforia.

Não se preocupe, Lennie, disse para Krasner. Não precisa ficar assustado. Vou pôr um fim nessa barulhada agora mesmo.

Sem parar para dizer a ninguém o que ia fazer, Ferguson pulou da cama e correu para a porta, puxou-a com as duas mãos e abriu-a de um só golpe, e mesmo tendo ouvido a voz de Bill gritando atrás dele — O que é isso, Archie? Está maluco? —, ele não parou. Entendia que era realmente uma coisa maluca para se fazer, mas o fato é que queria mesmo ser louco naquela hora e queria sair e ficar no meio da tempestade, sentir o gosto da tempestade, ser parte da tempestade, ficar dentro da tempestade pelo tempo necessário para que a tempestade também ficasse dentro dele.

A chuva estava soberba. Quando Ferguson cruzou a soleira e pisou na terra, se deu conta de que nunca havia caído uma chuva tão forte, que os pingos daquela chuva eram mais duros e viajavam mais depressa do que quaisquer pingos que tinha visto, que eles disparavam do céu para a terra com a força de bolinhas de chumbo, e eram pesadas o bastante para machucar a pele e talvez até para afundar o crânio. Uma chuva majestosa, uma chuva todo-poderosa, mas, a fim de saborear a chuva plenamente, achou que tinha de correr para o bosque de carvalhos que se erguia a uns vinte metros na sua frente, pois as folhas e os galhos iriam proteger seu corpo daqueles projéteis que caíam, e por isso Ferguson deu uma corrida até lá, atravessando a terra encharcada, escorregadia, na direção das árvores, os pés espirravam água para os lados em poças fundas, que batiam nas canelas, enquanto a trovoada roncava em cima e em volta dele e riscos de raios disparavam a metros de seus pés. Ele estava completamente ensopado na hora em que chegou lá, mas sentia uma coisa boa, estar ensopado, era a melhor sensação do mundo estar ensopado daquele jeito, e Ferguson sentiu-se feliz, mais feliz do que em qualquer outro momento naquele verão ou em qualquer outro verão ou em qualquer outro momento da vida, pois com certeza aquilo era a coisa mais importante que já tinha feito.

O vento era pouco ou nenhum. A tempestade não era um tufão nem um furacão, era um aguaceiro gigantesco, com trovões sacudindo seus ossos e relâmpagos que ofuscavam os seus olhos, e Ferguson não sentia o menor me­do daqueles relâmpagos, já que estava de tênis e não levava consigo nenhum objeto de metal, nem mesmo um relógio de pulso ou um cinto com fivela prateada, e portanto se sentia em segurança e exultante debaixo do abrigo das árvores, olhando para o paredão cinzento de água que se erguia entre ele e a barraca, olhava para a figura vaga, quase completamente encoberta de seu monitor Bill, que estava parado na porta aberta e parecia gritar por ele, ou gritar e acenar para Ferguson voltar para a barraca, mas Ferguson não conseguia ouvir nenhuma palavra do que ele estava dizendo, não com todo aquele barulho da chuva e das trovoadas, e sobretudo não quando o próprio Ferguson começou a uivar, e já não era mais George em sua missão de salvar Lennie, mas apenas o próprio Ferguson, um garoto de treze anos que gritava de euforia diante da ideia de que estava vivo num mundo como aquele que era oferecido para ele, naquela manhã, e mesmo quando a ponta de um raio se fincou no galho mais alto de uma das árvores, Ferguson não deu a menor atenção para isso, pois sabia que estava a salvo, e então viu que Bill tinha saído da barraca e corria na sua direção, mas por que diabo ele foi fazer uma coisa dessas, Ferguson se perguntou, porém, antes que pudesse responder a pergunta, o galho se desprendeu da árvore e caiu na direção da cabeça de Ferguson. Ele sentiu o impacto, sentiu a madeira se quebrar em cima de si, como se alguém tivesse batido nele com um sarrafo, pelas costas, e aí não sentiu mais nada, absolutamente nada, e nada nunca mais, e, enquanto seu corpo inerte jazia sobre a terra encharcada, a chuva continuou a se derramar em cima dele e o trovão continuou a romper, e, de uma ponta do mundo até a outra, os deuses ficaram em silêncio.

* “Dick”: apelido de Richard. “Tricky”: trapaceiro. (N. T.)


2.3

Seu avô chamou aquilo de um interregno curioso, referindo-se a um tempo entre dois outros tempos, um tempo fora do tempo, quando todas as regras de como a gente devia viver foram jogadas pela janela, e muito embora o menino órfão entendesse que aquilo não poderia durar para sempre, ele gostaria que durasse mais do que os dois meses que lhe foram concedidos, talvez mais dois meses além dos dois primeiros, ou mais seis meses, ou talvez até um ano. Foi bom viver naquele tempo sem escola, aquela curiosa lacuna entre uma vida e a vida seguinte, em que sua mãe ficava com ele desde o instante em que abria os olhos, de manhã, até o instante em que os fechava, à noite, pois ela era a única pessoa que lhe parecia real agora, a única pessoa real que tinha sobrado no mundo, e como tinha sido bom compartilhar aqueles dias e aquelas semanas com ela, aqueles dois meses estranhos, comendo fora, em restaurantes, visitando apartamentos vazios e indo ao cinema quase toda tarde, tantos filmes vistos pelos dois juntos, no escuro do balcão, onde podiam chorar toda vez que quisessem, sem ter de dar explicações para si mesmos nem para ninguém. Sua mãe chamava aquilo de rolar na lama, e com isso Ferguson achava que ela se referia à lama da infelicidade deles, mas afundar naquela infelicidade podia ser sinistramente prazeroso, ele descobriu, contanto que a gente afundasse naquilo o mais que podia e não tivesse medo de se afogar, e, como as lágrimas não paravam de empurrar os dois para o passado, elas os protegiam, impedindo que tivessem de pensar no futuro, mas aí, um dia, a mãe disse que estava na hora de começar a pensar no futuro, e o choro chegou ao fim.

Infelizmente, a escola era inevitável. Por mais que Ferguson tivesse gostado de prolongar sua liberdade, não estava em seu poder controlar esse tipo de coisa e, uma vez que ele e a mãe decidiram alugar o apartamento em Central Park Oeste, a próxima questão para resolver era ser matriculado numa boa escola particular. Uma escola pública estava fora de questão. A tia Mildred foi enfática nesse ponto e, num caso raro de concordância entre as duas irmãs, a mãe de Ferguson seguiu seu conselho, ciente de que Mildred estava mais bem informada do que ela em questões de educação, e por que atirar Archie no asfalto áspero do pátio de uma escola pública, quando podiam pagar os custos do ensino numa escola particular? Ela só queria o melhor para seu menino, e Nova York tinha se tornado uma cidade mais bruta, mais perigosa do que a que ela havia deixado para trás, em 1944, com gangues de jovens circulando pelas ruas de Upper West Side, armados com canivetes e com mortíferas pistolas feitas em casa, a apenas vinte e cinco quarteirões ao norte de onde seus pais moravam, e, no entanto, um universo diferente, um bairro que tinha se transformado nos últimos anos com o influxo de imigrantes porto-riquenhos, um lugar mais sujo, mais pobre, mais colorido do que era no tempo da guerra, o ar agora carregado de cheiros e sons estranhos, um tipo diferente de energia animava as calçadas das avenidas Columbus e Amsterdam, bastava pôr os pés para fora de casa para sentir uma corrente invisível de ameaça e confusão, e a mãe de Ferguson, que sempre se sentira tão confortável em Nova York, quando criança e quando jovem, estava preocupada com a segurança de seu filho. A segunda metade do curioso interregno foi, de forma coerente, dedicada a mais do que apenas comprar móveis e ir ao cinema; houve também a meia dúzia de escolas particulares da lista da tia Mildred que foram visitadas e discutidas, a inspeção pelas salas de aula e pelas instalações, as entrevistas com diretores e supervisores de admissão, os testes de Q.I. e os exames de ingresso, e quando Ferguson foi aceito pe­­la escola número um da lista da tia Mildred, a Hilliard School para meninos, houve tamanho regozijo na família, ele foi envolvido por tamanha onda de afeição e entusiasmo vinda dos avós, da mãe, da tia, do tio e da tia-avó Pearl, que o menino de quase oito anos de idade, sem pai, achou até que a escola talvez não fosse um jeito tão ruim de passar o tempo, afinal. Não ia ser fácil se adaptar, é claro, não quando já se estava no fim de fevereiro e o ano escolar já tinha quase dois terços completos, e também não ia ter graça nenhuma ter de usar paletó e gravata todo dia, mas talvez isso não fosse um problema, talvez ele fosse se acostumar com as roupas, mas mesmo que fosse um problema e ele não se acostumasse com as roupas, não ia fazer nenhuma diferença, pois, gostasse ou não, ele estava a caminho da Hilliard School para meninos.

Ele foi para lá porque a tia tinha convencido sua mãe de que Hilliard era uma das melhores escolas da cidade, com uma extensa reputação de excelência acadêmica, mas ninguém contou para Ferguson que seus colegas estariam entre as crianças mais ricas dos Estados Unidos, a prole dos privilegiados, as velhas fortunas de Nova York, ou que ele seria o único menino em sua sala que morava no West Side, e um dos apenas onze não cristãos numa escola com quase seiscentos alunos matriculados no ensino primário e secundário. De início, ninguém desconfiou que ele fosse algo diferente de um presbiteriano escocês, um engano compreensível à luz do nome que seu avô tinha recebido, depois do rolo com o nome Rockefeller, em 1900, mas aí um dos professores percebeu que os lábios de Ferguson não se mexiam na hora em que tinha de falar Jesus Cristo, nosso Senhor, na reza matinal na capela, e aca­bou se espalhando a notícia de que ele era um dos onze, e não um dos quinhentos e setenta e seis. Acrescente-se o fato de que ele entrou na escola já no meio do ano letivo, um menino muito calado, sem nenhum vínculo com ninguém em sua sala, e parecia que a permanência de Ferguson na Hilliard School estava condenada desde o início, condenada antes mesmo de ele pôr os pés no prédio, no primeiro dia de aula.

Não que alguém fosse indelicado com ele, ou que alguém o perseguisse, ou que o fizessem sentir que não era bem-vindo. Como em qualquer outra escola, havia meninos amistosos, meninos neutros e meninos maldosos, mas nem mesmo o mais maldoso deles pegava no pé de Ferguson por ele ser judeu. Hilliard podia ser um lugar asfixiante, tipo paletó e gravata, mas também preconizava a tolerância e as virtudes da cortesia e do autocontrole, e qualquer gesto de franco preconceito seria tratado com severidade pela direção. De modo mais sutil, e mais desorientador, o que Ferguson teve de enfrentar foi um tipo ingênuo de ignorância, que parecia ter sido injetado em seus colegas de sala de aula desde o nascimento. Mesmo Doug Hayes, o sempre amável e bondoso Dougie Hayes, que tinha feito questão de ficar amigo de Ferguson desde o instante em que ele chegou à Hilliard, que foi o primeiro menino a convidá-lo para uma festa de aniversário e, logo depois, chamou-o para ir à casa dos pais, na rua 78 Leste, não menos de doze vezes, ainda foi capaz de perguntar, depois de conhecer Ferguson havia já nove meses, o que ele planejava fazer no Dia de Ação de Graças.

Comer peru assado, disse Ferguson. É o que a gente faz todos os anos. Minha mãe e eu vamos ao apartamento de meus avós e comemos peru recheado e molho de carne.

Ah, disse Dougie. Eu não tinha ideia.

Por que não?, respondeu Ferguson. Não é o que você faz?

Claro. É que eu não sabia que o seu povo também comemorava o Dia de Ação de Graças.

O meu povo?

Você sabe. O povo judeu.

E por que a gente não ia comemorar o Dia de Ação de Graças?

Porque é um tipo de coisa americana, eu acho. Os peregrinos. Plymouth Rock. Todos aqueles caras ingleses com aqueles chapéus pretos gozados que vieram no navio Mayflower.

Ferguson ficou tão espantado com o comentário de Dougie que nem soube o que dizer. Até aquele momento, nunca tinha passado pela sua cabeça que ele pudesse não ser americano, ou, mais exatamente, que seu jeito de ser americano era, de alguma forma, menos autêntico do que o jeito como Dougie e os outros meninos eram americanos, mas era isso que seu amigo parecia estar afirmando: que existia uma diferença entre eles, algum traço esquivo, indefinível, que tinha a ver com os ancestrais ingleses de chapéu preto, com a extensão do tempo de permanência do lado de cá do oceano e com o dinheiro necessário para morar em prédios de quatro andares no Upper East Side, que tornava algumas famílias mais americanas do que outras, e no final a diferença acabava sendo tão grande que as famílias menos americanas mal podiam ser consideradas americanas, propriamente.

Sem dúvida, a mãe de Ferguson tinha escolhido a escola errada, mas apesar daquela conversa desconcertante sobre os hábitos do jantar dos judeus nos feriados nacionais, sem falar de outros momentos desconcertantes ocorridos antes e depois daquela conversa com Dougie H., Ferguson nunca sentiu o menor desejo de sair da Hilliard School. Mesmo que ele não conseguisse entender os costumes e as crenças peculiares do mundo em que havia entrado, fazia o melhor possível para estar de acordo com eles, e nem uma vez condenou a mãe ou a tia Mildred por o terem mandado para lá. Afinal de contas, tinha de ficar em algum lugar. A lei dizia que toda criança com menos de dezesseis anos tinha de ir para a escola e, quanto a ele, Hilliard não era melhor nem pior do que qualquer outra penitenciária para jovens. Não era culpa da escola se ele se dava tão mal nas notas. Nos dias desolados que vieram logo depois da morte de Stanley Ferguson, o jovem Ferguson concluiu que estava vivendo num universo de cabeça para baixo, de proposições infinitamente reversíveis (dia = noite, esperança = desespero, força = fraqueza), o que significava que, no quesito escola, ele agora era obrigado a ir mais mal do que bem e, já que dava uma sensação muito boa não ter mais de se importar com isso, cortejar o fracasso como uma questão de princípio e se entregar aos braços consoladores da humilhação e da derrota, ele tinha quase certeza de que teria se dado mal nos estudos em qualquer outro lugar, e da mesma forma gloriosa.

Os professores achavam Ferguson preguiçoso e desmotivado, indiferente à autoridade, distraído, teimoso, terrivelmente indisciplinado, um enigma humano. O menino que tinha respondido de forma correta a todas as perguntas do exame de admissão, que tinha conquistado o diretor de admissão com sua natureza doce e seu discernimento precoce, o aluno tardio que entrou na escola no fim do ano e que todos contavam que fosse levar para casa notas máximas em todas as matérias recebeu apenas um “Excelente” em seu primeiro boletim, que foi entregue em abril, na segunda série. A matéria era educação física. Um “Bom”, para leitura, escrita e caligrafia (ele tentou se sair pior, mas ainda era um iniciante na arte de mascarar seus talentos), “Satisfatório”, em música (ele não conseguiu resistir à tentação de cantar aos berros os spiritual negros e as canções folclóricas irlandesas que o sr. Bowles ensinou para eles, embora tenha feito força para cantar afinado), e “Fraco” em tudo o mais, o que incluía matemática, ciências, arte, estudos sociais, comportamento, cidadania e atitude. O boletim seguinte, o último, que foi entregue em junho, foi quase idêntico ao primeiro, a única diferença foi a nota de matemática, que baixou de “Fraco” para “Péssimo” (ele tinha aprimorado a arte de dar respostas erradas para as questões de aritmética, nessa altura, três em cada cinco, em média, mas ainda não era capaz de escrever errado mais do que um décimo das palavras). Em circunstâncias normais, Ferguson não teria sido aceito no ano seguinte. Seu aproveitamento foi tão medonhamente abaixo da média que até sugeria a presença de problemas psicológicos, e uma escola como Hilliard não estava acostumada a carregar peso morto, pelo menos não quando o aluno reprovado não provinha de uma família tradicional, e tradicional aí significava um menino de terceira ou quarta ou quinta geração cujo pai preenchia um cheque todo ano ou tinha um assento cativo no Conselho de Curadores. No entanto, estavam dispostos a dar outra chance para Ferguson, pois entendiam que as circunstâncias do menino nada tinham de normais. O sr. Ferguson havia morrido no meio do ano escolar, uma morte violenta, repentina, que tinha atirado o menino, em parafuso, para as regiões abissais da dor e da desintegração, e certamente ele merecia um pouco mais de tempo para se recuperar. Ferguson tinha potencial demais para desistirem dele depois de apenas três meses e meio e, assim, comunicaram à mãe de Ferguson que seu filho teria mais um ano para mostrar sua capacidade. Se no fim desse prazo ele conseguisse mudar, já não estaria mais em período probatório. Do contrário, bem, não tinha jeito, boa sorte para ele, aonde quer que fosse parar.

Ferguson sentiu ódio de si mesmo por ter frustrado a mãe, cuja vida já era dura de sobra sem ter de se chatear ainda por cima com a porcaria do seu desempenho ruim na escola, mas estavam em jogo questões mais importantes do que tentar agradar à mãe ou se matar de estudar para impressionar a família com um boletim cheio de notas altas e médias. Ferguson sabia que a vida seria mais simples, para ele e para todo mundo, se andasse na linha e fizesse aquilo que esperavam dele. Seria fácil e sem complicação nenhuma parar de dar respostas erradas de propósito, começar a prestar atenção de novo e deixar todo mundo orgulhoso dele por ser um menino tão consciencioso, mas Ferguson tinha embarcado numa importante experiência, uma investigação secreta sobre as questões mais fundamentais relativas à vida e à morte, e agora ele não podia voltar atrás, estava descendo por uma estrada difícil e perigosa, sozinho entre os rochedos e as trilhas sinuosas na montanha, em risco de tombar no precipício a cada momento, mas até que fosse reunida uma quantidade de informações suficiente para lhe proporcionar resultados conclusivos, ele teria de continuar a se arriscar — mesmo que isso significasse que ia ser expulso da Hilliard School para meninos, mesmo que isso significasse transformá-lo num vexame.

A questão era: por que Deus tinha parado de falar com ele? E se Deus estava em silêncio, será que isso queria dizer que Ele ia ficar em silêncio para sempre ou eventualmente ia começar a falar com ele de novo? E se Ele nunca mais falasse, será que isso queria dizer que Ferguson tinha se iludido e que Deus, pura e simplesmente, nunca havia existido?

Até onde ele conseguia lembrar, a voz estivera dentro de sua cabeça, falava com ele toda vez que ficava sozinho, uma voz serena, comedida, que era, ao mesmo tempo, reconfortante e imperativa, um murmúrio em tom de barítono que trazia consigo as emanações verbais do grande espírito invisível que governava o mundo, e Ferguson sempre tinha se sentido consolado por aquela voz, protegido por aquela voz, que lhe dizia que, enquanto ele mantivesse sua parte no trato, tudo andaria bem para ele, e sua parte no trato era a eterna promessa de ser bom, tratar os outros com gentileza e generosidade e obedecer aos mandamentos sagrados, o que significava nunca mentir nem sucumbir à inveja, o que significava amar os pais, ser bom aluno e não se meter em confusão, e Ferguson acreditava na voz e fazia o melhor que podia para seguir suas instruções em todos os momentos e, como Deus parecia estar mantendo sua parte no trato, fazendo com que as coisas corressem bem para ele, Ferguson sentia-se amado e feliz, seguro na ideia de que Deus acreditava nele tanto quanto ele acreditava em Deus. E assim correram as coisas até os sete anos e meio de idade, e aí, certa manhã, no início de novembro, manhã que parecia não ter nada de diferente de qualquer outra manhã, sua mãe entrou no seu quarto e lhe disse que o pai tinha morrido, e de repente tudo se transformou. Deus tinha mentido para ele. O grande espírito invisível já não merecia mais confiança, e, embora continuasse falando com Ferguson durante alguns dias depois disso, pedindo mais uma chance para provar quem era, implorando ao menino sem pai para continuar com Ele através desse tempo sombrio de morte e luto, Ferguson estava tão indignado com Ele que se recusou a ouvir. Então, quatro dias após o enterro, abruptamente, a voz silenciou e desse dia em diante não falou mais.

O desafio agora era este: imaginar se Deus ainda estava dentro dele, no silêncio, ou se tinha desaparecido de sua vida para sempre. Ferguson não teve coragem de praticar um ato consciente de crueldade, não conseguiu se obrigar a mentir ou enganar ou roubar, não tinha nenhuma inclinação para machucar ou ofender sua mãe, mas, no âmbito estreito das maldades de que era capaz, entendeu que o único jeito de responder aquela pergunta era romper sua parte do trato o maior número de vezes que pudesse, para contestar a imposição de obediência aos mandamentos sagrados, e depois esperar para ver se Deus ia fazer alguma coisa ruim com ele, algo torpe e pessoal, que serviria como um claro sinal de retaliação deliberada — um braço quebrado, um ataque de furúnculos na cara, um cachorro raivoso que arranca um bife da sua perna com uma mordida. Se Deus não o castigasse, isso comprovaria que Ele tinha, de fato, desaparecido quando a voz parou de falar, e como Deus, supostamente, estava em toda parte, em toda árvore e folha de capim, em toda rajada de vento e sentimento humano, não fazia sentido que Ele pudesse desaparecer de um lugar e continuar presente em todos os outros. Obrigatoriamente, Ele tinha de estar com Ferguson, porque Ele estava em todos os lugares ao mesmo tempo, e, se Ele estava ausente do lugar onde Ferguson por acaso se encontrava, isso só podia significar que Ele não estava em lugar nenhum, nunca tinha estado em lugar nenhum, que na verdade Ele nunca tinha existido e a voz que Ferguson havia tomado pela voz de Deus não era outra a não ser sua própria voz, que falava para ele numa conversa interior consigo mesmo.

O primeiro gesto de revolta foi rasgar a figurinha de Ted Williams do álbum de beisebol, a figurinha valiosa que Jeff Balsoni tinha enfiado em sua mão alguns dias depois de ele voltar para a escola, um gesto de amizade e compaixão infinitas. Como deu raiva destruir aquele presente e como deu vergonha desviar os olhos da sra. Costello e fingir que ela não estava lá, e agora que ele estava na Hilliard, como foi condenável, de sua parte, levar em frente sua campanha de autossabotagem voluntária, concentrar seus esforços no primeiro ano para estabelecer um novo padrão de resultados desvairadamente incoerentes, uma estratégia muito mais eficaz do que a busca do fracasso puro, decidiu ele, cem por cento em duas provas de matemática seguidas, por exemplo, e aí vinte e cinco por cento na próxima, quarenta por cento na seguinte e, depois, noventa por cento, seguido por um mortal e definitivo zero, e como todos ficaram assombrados com ele, os professores e os colegas de sala, igualmente, sem falar de sua pobre mãe e do resto da família, e no entanto, por mais que Ferguson continuasse a cuspir nas regras do comportamento humano responsável, nenhum cachorro pulou para morder sua perna, nenhum pedregulho caiu em cima do seu pé, nenhuma porta bateu de repente na sua cara para quebrar seu nariz, e parecia que Deus não tinha nenhum interesse em castigá-lo, pois, nessa altura, já fazia quase um ano que Ferguson tinha se envolvido numa vida de crimes e ainda não havia sofrido o menor arranhão.

Isso deveria ter liquidado a questão de uma vez por todas, mas não foi assim. Se Deus não o castigava, isso queria dizer que não podia castigá-lo, portanto Ele não existia. Ou foi o que Ferguson supôs, mas agora que Deus estava à beira de se perder para sempre para ele, Ferguson perguntou a si mesmo: e se ele já tivesse sido bastante castigado? E se a morte do pai tivesse sido um castigo numa escala tão grande, uma tragédia com efeitos tão monstruosos e duradouros, que Deus tinha decidido poupá-lo de qualquer outro castigo no futuro? Isso lhe parecia possível, não certo e garantido, de jeito nenhum, mas possível, e porém, como a voz ainda continuava muda depois de tantos meses, Ferguson não tinha meios de confirmar sua intuição. Deus o havia enganado e agora Ele estava lutando para fazer as pazes com Ferguson, tratando-o com bondade e misericórdia divinas. Se a voz já não podia mais lhe dizer aquilo de que ele precisava saber, talvez Deus pudesse se comunicar com ele de alguma outra forma, por meio de um sinal inaudível que provaria que Ele continuava a escutar seus pensamentos, e assim teve início o estágio final da longa investigação teológica de Ferguson, os meses de prece muda em que implorava a Deus que Se revelasse para ele, ou perderia o direito de levar o nome de Deus. Ferguson não estava pedindo nenhuma revelação grandiosa, bíblica, um pujante estrondo do trovão ou uma repentina abertura das águas do mar, não, ele ficaria bem contente com algo pequeno, um milagre infinitesimal do qual só ele próprio teria consciência: que o vento soprasse com força bastante para empurrar um pedaço de papel desgarrado até o outro lado da rua antes da luz do semáforo mudar de cor, que seu relógio de pulso parasse de andar por dez segundos e depois recomeçasse, que caísse um único pingo de chuva do céu sem nuvens e batesse em cheio no seu dedo, que sua mãe dissesse a palavra “misterioso” nos próximos trinta segundos, que o rádio ligasse sozinho, que dezessete pessoas passassem na frente da janela no próximo minuto e meio, que o sabiá ali na grama do Central Park ciscasse uma minhoca da terra antes que o avião seguinte passasse no céu, que três carros buzinassem ao mesmo tempo, que o livro na mão dele caísse aberto na página 97, que aparecesse a data errada na primeira página do jornal da manhã, que uma moeda de vinte e cinco centavos estivesse ao lado do seu pé quando ele baixasse os olhos para a calçada, que os Dodgers fizessem três pontos no final do nono turno e vencessem a partida, que o gato da tia-avó Pearl piscasse o olho para ele, que todo mundo na sala bocejasse ao mesmo tempo, que todo mundo na sala risse ao mesmo tempo, que ninguém na sala fizesse nenhum barulho durante trinta e três segundos e um terço. Uma por uma, Ferguson quis que essas coisas acontecessem, essas e muitas outras também e, quando nenhuma delas aconteceu ao longo de seis meses de súplicas mudas, ele parou de desejar qualquer coisa e afastou seus pensamentos de Deus.

Anos mais tarde, sua mãe lhe confessou que, para ela, o começo também foi menos difícil do que o que veio depois. O interregno curioso tinha sido quase suportável, disse ela, com tantas decisões práticas urgentes para tomar, o problema de vender a casa e seu estúdio fotográfico em Nova Jersey, de encontrar um lugar em Nova York para morar, de mobiliar essa casa ao mesmo tempo que cuidava da questão de matricular Ferguson numa escola decente, o repentino bombardeio de obrigações que desabou em cima dela durante os primeiros dias de sua viuvez não foi um fardo pesado, mas sim uma distração muito bem-vinda, um modo de não ter de pensar no incêndio em Newark a cada minuto de sua vida em vigília, e graças a Deus que havia todos aqueles filmes, acrescentou, e a escuridão das salas de cinema naqueles dias frios de inverno, e a chance de sumir no faz de conta daquelas histórias bobas, e graças a Deus que havia você também, Archie, disse ela, meu homenzinho corajoso, minha rocha, minha âncora, pois durante um tempo enorme você foi a única pessoa real que restou no mundo para mim, e sem você o que eu teria feito, Archie, para que eu iria viver e, afinal de contas, como é que eu teria conseguido continuar a viver?

Sem dúvida, ela teria ficado quase doida durante aqueles meses, disse ela, uma louca movida a cigarros, café e constantes jatos de adrenalina, mas, uma vez sanadas as questões da casa e da escola, o redemoinho amainou e depois cessou de todo, e ela afundou num longo período de pensamento e reflexão, dias horríveis, noites horríveis, um tempo de torpor e indecisão em que pesava as possibilidades, umas contra as outras, e lutava para imaginar para onde gostaria que o futuro a levasse. Tinha sorte, nesse aspecto, sorte de estar em posição de escolher entre alternativas, mas o fato era que agora tinha dinheiro, mais dinheiro do que jamais havia sonhado, duzentos mil dólares só do seguro de vida, sem falar do dinheiro que havia ganhado com a venda da casa em Millburn e do estúdio Foto Roseland, que incluía as somas adicionais que havia ganhado com a venda da mobília da casa e dos equipamentos do estúdio, e, mesmo depois de deduzir os milhares de dólares que tinha gastado com a mobília nova, com o custo anual de manter Ferguson numa escola particular e com o custo mensal de pagar o aluguel do apartamento, tinha sobrado mais do que o suficiente para não fazer nada durante doze ou quinze anos, continuar vivendo do que seu marido morto tinha deixado, até o dia em que o filho se formasse na faculdade — e ainda por muito mais tempo do que isso, se ela encontrasse um corretor da bolsa de valores esperto e investisse no mercado. Tinha trinta e três anos de idade. Já não era mais uma iniciante na vida, mas nem de longe era aquilo que se podia chamar de uma carta fora do baralho e, embora a consolasse refletir sobre os benefícios de sua boa sorte, saber que estava a seu alcance levar uma vida de lazer até a velhice, se estivesse a fim de fazer isso, à medida que os meses passavam e ela continuava a refletir e a não fazer nada, seu tempo quase todo dedicado a cruzar o Central Park quatro vezes por dia no ônibus circular, levando Ferguson para a escola de manhã e depois voltando para casa, indo pegar Ferguson de tarde e, mais uma vez, voltando para casa, e nas manhãs em que ela não se sentia capaz de tomar de novo o ônibus e voltar para o West Side, ela passava as seis horas e meia em que Ferguson ficava na escola vagando pelo East Side, olhando as mercadorias nas lojas, almoçando sozinha nos restaurantes, indo ao cinema sozinha, indo a museus sozinha, e depois de três meses e meio dessa rotina, seguidos por um verão estranho e vazio, entrincheirada com o filho numa casa alugada na praia de Jersey, onde os dois passavam a maior parte do tempo dentro de casa vendo televisão juntos, ela descobriu que estava ficando inquieta, com uma comichão de voltar a trabalhar. Levou quase um ano para chegar a esse ponto, mas, quando chegou lá, a Leica e a Rolleiflex finalmente saíram do armário e, em pouco tempo, a mãe de Ferguson estava a bordo de um navio que navegava de volta à terra da fotografia.

Dessa vez, tomou um caminho diferente, ela se jogou para dentro do mundo em vez de convidar o mundo a vir até ela, já não estava mais interessada em ter um estúdio num endereço fixo, algo que agora lhe parecia uma forma ultrapassada de fazer fotografia, desnecessariamente morosa em um tempo de transformações rápidas, com novos filmes de alta velocidade e câmeras cada vez mais leves e eficientes que transformavam a fotografia, tornavam possível repensar suas antigas ideias sobre luz e composição, reinventar a si mesma e se mover para além dos limites do retrato clássico, e, na hora em que Ferguson começou seu segundo ano na Hilliard School, a mãe já estava à caça de trabalho, esbarrou com seu primeiro serviço no fim de setembro, quando o homem contratado para tirar fotos no casamento de sua prima Charlotte levou um tombo numa escadaria e quebrou a perna, e, como só faltava uma semana para o dia do casamento, ela se apresentou como voluntária para cobrir a falta do fotógrafo, e sem cobrar nada. A sinagoga ficava lá na zona de Flatbush, no Brooklyn, o antigo bairro do primeiro Archie e da tia-avó Pearl e, entre a cerimônia de casamento e o deslocamento para o local da festa de casamento, um salão de bufê dois quarteirões ao sul, a mãe de Ferguson usou seu tripé para tirar retratos formais em preto e branco de todos os membros da família presentes, a noiva e o noivo, para começar, a Charlotte de vinte e nove anos de idade, que parecia destinada e não se casar nunca, depois que seu noivo morreu na Guerra da Coreia, e o dentista viúvo de trinta e seis anos Nathan Birnbaum, seguidos pela tia-avó Pearl, a avó e o avô de Ferguson, a irmã gêmea de Charlotte, Betty, e seu marido contador Seymour Graf, tia Mildred (que agora dava aulas no Sarah Lawrence College) e seu marido Paul Sandler (que trabalhava como editor na Random House), e por fim o próprio Ferguson, num retrato junto de seus dois primos em segundo grau (filhos de Betty e Seymour), Eric, de cinco anos, e Judy, de três. Quando a festa começou no salão de bufê, a mãe de Ferguson abandonou seu tripé e passou as três horas e meia seguintes andando no meio dos convidados, tirando centenas de fotos das noventa e seis pessoas que estavam lá, sem fazer pose, fotos espontâneas de velhos que conversavam tranquilos uns com os outros, de mulheres jovens que riam enquanto bebiam vinho e levavam garfadas de comida para dentro da boca, de crianças que dançavam com adultos e de adultos que dançavam entre si, depois da refeição encerrada, todos os rostos de todas essas pessoas capturados na luz natural daquele cenário despojado e sem glamour, os músicos empoleirados em seu palco pequeno, enquanto faziam ressoar suas canções cansadas e cafonas, a tia-avó Pearl sorrindo ao beijar a bochecha da neta, Benjy Adler se acabando de dançar na pista com uma prima distante do Canadá, de apenas vinte anos de idade, uma garota de nove anos e de testa franzida sentada sozinha diante de uma mesa com um pedaço de bolo comido até a metade na sua frente e, a certo ponto, durante as festividades, o tio Paul veio até sua cunhada e comentou que ela parecia estar se divertindo, que ele não a via tão contente e animada desde que se mudara para Nova York, e a mãe de Ferguson simplesmente disse: Eu tenho de fazer isso, Paul, vou acabar ficando maluca se não começar a trabalhar de novo, ao que o marido de Mildred retrucou: Acho que pos­so ajudar você, Rose.

A ajuda veio na forma de uma encomenda para ir a New Orleans para fotografar Henry Wilmot para a foto de orelha de seu futuro romance, uma obra muito aguardada do autor que ganhara o prêmio Pulitzer no inverno anterior, e, quando Wilmot, de sessenta e dois anos, disse ao seu editor como tinha ficado satisfeito com o resultado das fotos, ou seja, ligou para Paul Sandler e informou que, dali em diante, ninguém a não ser aquela mulher linda poderia fotografá-lo, mais encomendas de fotos de escritores chegaram da editora Random House, o que a levou também a trabalhar para outras editoras de Nova York, o que consequentemente levou a pedidos para fotos para matérias de capa sobre escritores, diretores de cinema, atores da Broadway, músicos e artistas em Town & Country, Vogue, Look, Ladies Home Journal, The New York Magazine e outras publicações semanais e mensais, nos meses seguintes. A mãe de Ferguson sempre fotografava seus temas em seu ambiente original, viajava para o lugar onde moravam e trabalhavam, com seu equipamento de iluminação portátil, telas de fundo dobráveis e guarda-chuvas retráteis, fotografava escritores em seus gabinetes repletos de livros ou sentados atrás de suas escrivaninhas, pintores no tumulto e nos respingos de seus ateliês, pianistas sentados diante de seus reluzentes pianos de cauda Steinways pretos ou de pé atrás deles, atores que olhavam para o espelho de seu camarim ou sentados sozinhos no palco vazio, e por algum motivo seus retratos em preto e branco pareciam apreender mais sobre a vida interior daquela gente do que a maioria dos fotógrafos eram capazes de extrair ao fotografar os mesmos personagens tão conhecidos, uma virtude que tinha menos a ver com perícia técnica, talvez, do que com algo que estava na própria mãe de Ferguson, a qual sempre se preparava para seus trabalhos lendo os livros, ouvindo os discos e vendo as pinturas de seus temas, o que lhe dava algum assunto para conversar com eles durante as demoradas sessões em que ficavam juntos, e, como tinha facilidade para falar e era sempre tão charmosa e atraente, como não era nem de longe uma pessoa que gostava de ficar falando de si mesma, aqueles artistas vaidosos e difíceis se viam relaxados em sua presença, sentiam que ela estava autenticamente interessada em quem eram e no que eram, o que de fato era verdade, ou era verdade na maioria das vezes, e quando a sedução produzia seu efeito e a guarda deles baixava, as máscaras que traziam nos rostos, gradualmente, baixavam também e um tipo diferente de luz começava a emergir de seus olhos.

Além desse trabalho comercial para revistas e editoras de livros, a mãe de Ferguson se mantinha atarefada com projetos próprios, o que ela chamava de explorações de um olho itinerante, algo que deixava de lado o controle meticuloso indispensável para produzir retratos de primeira linha, em troca de uma disponibilidade para o que der e vier e encontros casuais com o inesperado. Ela havia descoberto dentro de si aquele impulso contrário no dia do casamento de sua prima Charlotte, naquele serviço de graça que fez em 1955 e que se transformou num exuberante festim maníaco de três horas e meia de fotografia, enquanto ela abria caminho rodando no meio da multidão, livre das restrições da preparação laboriosa e mergulhada num redemoinho de composições em sequência acelerada, um retrato depois do outro, instantes efêmeros que tinham de ser captados exatamente naquele instante, ou nunca mais, uma pausa de meio segundo e a foto estaria perdida, e a ferocidade da concentração exigida pelas circunstâncias a havia projetado numa espécie de febre emocional, como se todos os rostos e todos os corpos na sala surgissem na sua frente de supetão e ao mesmo tempo, como se cada pessoa ali estivesse respirando dentro dos olhos dela, não mais diante da câmera, e sim dentro dela, uma parte inseparável de quem ela era.

De forma bastante previsível, Charlotte e seu marido detestaram aquelas fotos. Não as outras, disseram, não os retratos tirados na sinagoga, depois da cerimônia do casamento, que eram realmente maravilhosos, retratos que eles dois iam guardar com carinho durante anos, mas as fotos da festa do casamento eram incompreensíveis, tão escuras e brutas, tão desagradáveis, todo mundo parecia tão sinistro e infeliz, mesmo as pessoas que riam pareciam vagamente demoníacas, e por que as fotos eram tão extravagantes, por que tudo estava iluminado por uma luz tão severa? Melindrada com a reprovação, a mãe de Ferguson enviou a cópia dos retratos dos recém-casados acompanhada por um breve bilhete, que dizia: Que bom que vocês gostaram destas aqui, enviou outra série de cópias para a tia Pearl, outra para seus pais e uma última para Mildred e Paul. Depois de receber sua leva, o cunhado telefonou para perguntar por que ela não havia incluído nada da festa. Porque aquelas fotos são desprezíveis, respondeu ela. Todos os artistas ficam revoltados com o próprio trabalho, retrucou seu novo defensor e apoiador, e a mãe de Ferguson acabou sendo convencida a fazer trinta cópias das mais de quinhentas imagens que ela havia fotografado naquela tarde e mandar para o escritório de Paul pelo correio, na editora Random House. Três dias depois, ele telefonou para dizer que as fotos não só não eram desprezíveis como ele as achava excelentes. Se ela permitisse, ele iria mandar as fotos para Minor White, da revista Aperture. As fotografias mereciam ser publicadas, disse ele, serem vistas por pessoas que gostavam de fotografia, e, como ele conhecia um pouco Minor White, por que não começar logo por cima? A mãe de Ferguson não tinha certeza de que Paul estava falando sério ou só estava com pena dela. Pensou assim: Homem gentil toma a iniciativa de ajudar parente sem rumo e de luto, em seu momento de apuro, homem com conhecimentos procura abrir caminho para fotógrafa viúva começar uma vida nova. Então pensou: Fosse por pena ou não, foi Paul quem a mandou para New Orleans e, embora ele pudesse estar agindo por capricho, ou por uma intuição cega, ou por algum palpite que era um tiro no escuro, agora que o alcoólatra raivoso Wilmot tinha enaltecido seu trabalho por ter feito um serviço bom pra cacete, talvez seu cunhado achasse que ele tinha apostado no cavalo certo.

Tivesse Paul influenciado a decisão deles ou não, o fato é que a comissão de redação da Aperture aceitou suas fotos para publicação, um portfólio de vinte e uma chapas que foram publicadas seis meses depois, sob o título Casamento judeu, Brooklyn. Esse triunfo e a vibração de entusiasmo que disparou por dentro dela, quando a carta da revista Aperture chegou pelo correio, foram logo temperados, no entanto, pela frustração e depois quase destruídos pela fúria, pois ela não podia publicar as fotografias sem garantir a autorização das pessoas que apareciam nelas, e a mãe de Ferguson cometeu o erro de fazer contato primeiro com Charlotte, que obstinadamente não quis dar permissão para que aquelas fotografias grotescas dela e de Nathan fossem publicadas na revista Aperture nem em nenhuma revista desprezível. Nos três dias seguintes, a mãe de Ferguson falou com todos os outros participantes, entre eles a mãe de Charlotte e sua irmã gêmea, Betty, e como nenhuma das duas fez nenhuma objeção, ela ligou de novo para Charlotte e pediu para ela pensar melhor. Está fora de questão. Vá para o inferno. Quem você pensa que é? Tia Pearl tentou argumentar com ela, o avô de Ferguson censurou-a pelo que chamou de uma falta de consideração egoísta com os outros, Betty chamou-a de tapada e metida, mas a nova sra. Birnbaum não cedeu. As três fotos com Charlotte e Nathan foram, portanto, apagadas, escolheram outras três para ficar em seu lugar, e uma história fotográfica do casamento foi publicada sem noiva nem noivo, em nenhum lugar.

No entanto, foi um início, um primeiro passo rumo à vida no único futuro que fazia sentido para ela, e a mãe de Ferguson persistiu, encorajada pela publicação daquelas fotografias, saiu em busca de outros trabalhos não encomendados, seu próprio trabalho, como ela chamava, que continuou a ser publicado nas páginas da Aperture e, à vezes, nas capas e contracapas de livros ou nas paredes de galerias, e o elemento mais importante daquela transformação foi, talvez, a decisão de última hora que ela tomou, antes da publicação de Casamento judeu, lá na primavera de 1956, quando ficou de joelhos diante da cama e pediu a Stanley que a perdoasse pelo que ela estava à beira de fazer, mas tinha de ser assim, disse para ele, qualquer outra maneira significaria obrigá-la a continuar vivendo nas cinzas do incêndio de Newark, até que tam­bém queimasse e virasse nada, e foi assim, e continuou a ser assim, durante todos os anos em seu futuro, que ela assinou sua obra como Rose Adler.

No começo, o Ferguson de oito anos de idade só estava vagamente consciente do que sua mãe queria fazer. Entendia que ela andava mais ocupada do que antes, atarefada na maior parte dos dias com vários trabalhos de fotografia, quando não estava trancada no que antes tinha sido o quarto de hóspedes e que ela havia transformado numa sala para revelar filmes fotográficos, e que vivia trancada por causa das emanações dos produtos químicos, e, embora fosse bom ver que ela andava sorrindo e rindo mais do que durante a primavera e o verão, o resto do que estava acontecendo não era bom, e não era nada bom no que dizia respeito a ele. O quarto de hóspedes tinha sido seu quarto por mais de oito meses, seu local particular de isolamento, onde podia selecionar suas figurinhas de jogadores de beisebol, bater em pinos de plástico com sua bola de boliche de plástico, brincar de jogar saquinhos de feijão no buraco de um tabuleiro de madeira e atirar dardos na mosca do pequeno alvo vermelho, e agora tudo tinha acabado, o que jamais se poderia dizer que era uma coisa boa, e então, em algum momento no fim de outubro, pouco depois de seu quarto claro ter sido transformado numa câmara escura fora de seu alcance, aconteceu outra coisa que nada tinha de bom, quando sua mãe lhe disse que não seria mais possível ir buscá-lo na escola. Ia continuar a levá-lo, de manhã, mas não podia mais garantir que estaria sempre livre à tarde e, por isso, era sua avó quem iria encontrá-lo na porta da escola e trazê-lo de volta para o apartamento. Ferguson não gostou, pois era contra toda e qualquer mudança, e isso era uma questão de doutrina moral rigorosa, só que ele não estava em posição de protestar, tinha de fazer o que mandavam, e, o que antes tinha sido a melhor parte do dia — ver a mãe de novo, depois de seis horas e meia de tédio, repreensões e brigas amargas contra o todo-poderoso —, se transformou numa jornada maçante rumo ao oeste com sua avó gorda e capengante, uma velha tão tímida e tão reprimida que nunca sabia o que dizer para ele, o que significava que, na maioria das vezes, eles voltavam para casa em silêncio.

Não havia nada que ele pudesse fazer. Sua mãe era a única pessoa com quem se importava de fato e com quem se sentia à vontade e, fora ela, todo mundo irritava seus nervos. As pessoas da sua família tinham seus pontos positivos, ele admitia, todas elas pareciam gostar dele, mas seu avô falava alto demais, sua avó era calada demais, tia Mildred era muito mandona, tio Paul gostava demais de ouvir a própria voz, a tia-avó Pearl era sufocante demais em suas afeições, a prima Betty era abusada demais, a prima Charlotte era burra demais, o priminho Eric era agitado demais, a priminha Judy era chorona demais, e o único parente por quem ele daria qualquer coisa para ver de novo, sua prima Francie, era estudante universitária na distante Califórnia. Quanto a seus colegas de sala em Hilliard, ele não tinha amigos de verdade, só conhecidos, e mesmo Dougie Hayes, o menino que ele via mais vezes do que qualquer outra pessoa, ria de coisas que não tinham a menor graça e nunca entendia as piadas que contavam para ele. A não ser sua mãe, era difícil para Ferguson se ligar a qualquer pessoa que conhecia, pois sempre se sentia sozinho quando estava com elas, se bem que estar sozinho com os outros era, provavelmente, um pouco menos horrível do que ficar sozinho consigo mesmo, o que invariavelmente parecia empurrar seus pensamentos de volta para as mesmas e antigas obsessões, como sua constante súplica a Deus para fazer um milagre que finalmente pusesse sua mente em repouso ou, o que acontecia de forma ainda mais insistente, com a fotografia no jornal Newark Star-Ledger que ele não deveria ver, mas viu, e examinou-a por três ou quatro minutos, enquanto a mãe saía da sala para pegar um maço de cigarro, a foto cuja legenda dizia: Os restos mortais carbonizados de Stanley Ferguson, e lá estava seu pai morto dentro do prédio incendiado e desmoronado que antes tinha sido a loja Mundo do Lar Três Irmãos, seu cadáver duro e preto e já sem nada de humano, como se o fogo tivesse transformado seu pai numa múmia, um homem sem rosto e sem olhos, e a boca escancarada como se tivesse travado no meio de um grito, e aquele cadáver calcinado, mumificado, tinha sido colocado dentro de um caixão e enterrado, e, toda vez que Ferguson pensava em seu pai agora, era essa a primeira coisa que ele via em seu pensamento, os restos mortais queimados do corpo preto semi-incinerado, com a boca aberta ainda gritando, nas entranhas da terra.

Vai ser um dia frio, Archie. Não se esqueça de levar o cachecol para a escola.

Ruminações mórbidas estavam entre as coisas nada boas que fizeram parte daquele ano árduo em que ele passou dos oito para os nove anos de idade, mas também havia algumas coisas boas, e até coisas que aconteciam todos os dias, como o programa de televisão depois da escola que passava das quatro às cinco e meia no canal 11, noventa minutos diretos (com intervalos comerciais) dos velhos filmes de O Gordo e o Magro, que acabaram se revelando como os melhores e mais satisfatórios filmes que já tinham sido feitos. Era um programa novo que tinha começado a passar no outono e, até o momento em que Ferguson, por acaso, sintonizou aquele canal numa tarde de outubro, ele não tinha a menor ideia de que aquela comédia antiga existia, pois Laurel e Hardy estavam praticamente esquecidos em 1955, seus filmes das décadas de 20 e 30 nunca eram exibidos nos cinemas, e foi só por causa da televisão que eles começaram a renascer entre as crianças das grandes regiões metropolitanas. Como Ferguson passou a adorar aqueles dois idiotas, aqueles adultos com cabeças de crianças de seis anos de idade, transbordantes de entusiasmo e boa vontade e, no entanto, sempre discutindo e se atormentando um ao outro, sempre indo parar nas circunstâncias mais improváveis e perigosas, quase se afogavam, quase se faziam em pedacinhos numa explosão, quebravam a cabeça até quase perder a noção de tudo, e mesmo assim, apesar dos pesares, conseguiam sobreviver, maridos infelizes, conspiradores desastrados, perdedores até o fim e, no entanto, apesar de todos seus murros, beliscões e pontapés, que bons amigos eram os dois, unidos de modo mais estreito do que qualquer outra dupla no Livro da vida terrestre, cada um era uma metade inseparável de um único organismo humano formado de duas partes. O sr. Laurel e o sr. Hardy. Ferguson adorava imensamente o fato de serem esses os nomes reais dos homens que faziam o papel dos personagens fictícios chamados Laurel e Hardy nos filmes, pois Laurel e Hardy eram sempre Laurel e Hardy, quaisquer que fossem as circunstâncias em que eles se encontrassem, podiam morar nos Estados Unidos ou em outro país, podiam viver no passado ou no presente, podiam ser empregados de uma empresa de mudanças ou pescadores ou vendedores de árvores de Natal ou soldados ou marinheiros ou presidiários ou carpinteiros ou músicos de rua ou tratadores de cavalos ou garimpeiros do Velho Oeste, e o fato de que eram sempre os mesmos quando eram diferentes parecia torná-los mais reais do que qualquer outro personagem no cinema, pois se Laurel e Hardy eram sempre Laurel e Hardy, refletia Ferguson, isso devia significar que eles eram eternos.

Foram seus companheiros mais firmes, mais confiáveis, durante todo aquele ano e por boa parte do ano seguinte, Stanley e Oliver, também chamados de Stan e Ollie, o magro e o gordo, o inocente cabeça-oca e o tolo cheio de si, que no final era tão cabeça-oca quanto o outro, e, embora para Ferguson tivesse alguma importância o fato de o primeiro nome de Laurel ser o mesmo nome do seu pai, isso não chegava a ser tão importante assim e, sem dúvida, tinha pouco ou nada a ver com sua crescente afeição pelos novos amigos, que em muito pouco tempo se transformaram em seus melhores amigos, ou mesmo em seus únicos amigos. O que ele mais gostava naqueles dois eram os elementos básicos que nunca variavam de um filme para outro, começando com o tema musical da canção “Cuckoos” nos créditos da abertura, que anunciava que os meninos estavam de volta a mais uma aventura e O que será que eles vão fazer agora?, as reviravoltas familiares que nunca pareciam maçantes para ele, o revirar de dedos de Ollie e os olhares irritados para a câmera, o espantado piscar de olhos e as lágrimas repentinas, as brincadeiras em torno de seus chapéus-coco, o chapéu grande demais na cabeça de Laurel, o chapéu pequeno demais na cabeça de Hardy, os chapéus esmagados e os chapéus queimados, os chapéus enterrados com força por cima das orelhas e os chapéus pisoteados, a propensão dos dois para caírem dentro de bueiros e desabarem através de tábuas de assoalho quebradas, para meterem o pé em lamaçais e em poças fundas que batiam no pescoço, seu azar com automóveis, escadas, fogões a gás e tomadas elétricas, a cortesia presunçosa de Ollie quando falava com estranhos, Este é meu amigo, sr. Laurel, o absurdo dom de Stan para queimar o dedo polegar e soprar em flautas que não existiam, mas funcionavam, seus ataques de riso incontroláveis, seu fraco para desencadear espontâneas rotinas de dança (os dois tão leves com os pés), sua concordância proposital assim que entravam em confronto com os adversários e todas as desavenças e discórdias entre eles eram esquecidas, quando os dois se uniam para detruir a casa de um homem ou destroçar o carro de um homem, mas também as variações sobre quem eram e a maneira como suas identidades, às vezes, se sobrepunham e até se fundiam, como quando Ollie coçou o pé de Hardy achando que era o seu, e dava suspiros de prazer e de alívio, ou as maneiras ingênuas como, às vezes, eles se duplicavam, como quando o grande Stanley e o grande Oliver bancavam a babá de seus filhos bebês, o pequeno Stan e o pequeno Ollie, que eram réplicas em miniatura de seus pais, pois Laurel e Hardy representavam todos os papéis, ou quando Stan casou com uma Ollie fêmea e Ollie com uma Stan fêmea, ou quando eles encontraram seus irmãos gêmeos, que fazia muito tempo que não viam, amigos íntimos cujos nomes eram, é claro, Laurel e Hardy, ou, o melhor de tudo, quando uma transfusão de sangue deu errado, no final de um filme, e Stan acabou ficando com o bigode e a voz do Ollie e o Hardy de cara sempre tranquila foi acometido por um dos ataques de choro do Laurel.

Sim, eles eram sempre tão gozados e inventivos e, sim, a barriga de Ferguson às vezes chegava a doer de tanto rir com suas palhaçadas, mas por que ele achava os dois risíveis e por que seu amor por eles começou a florescer para além de tudo que é razoável tinha menos a ver com suas farsas de palhaço do que com sua persistência, com o fato de que eles faziam Ferguson lembrar de si mesmo. Subtraindo os exageros cômicos e a violência de comédia pastelão, as lutas de Laurel e Hardy não tinham diferença em relação às dele próprio. Quebrando a cara seguidas vezes, passando de um plano malfeito para outro, eles dois também sofriam com inúmeros revezes e frustrações e, sempre que o azar os levava a um ponto crítico, as raivas de Hardy se transformavam nas raivas dele mesmo, as perplexidades de Laurel espelhavam as suas perplexidades, e o melhor nos estragos que eles causavam a si mesmos era que Stan e Ollie eram ainda mais incompetentes do que ele, mais burros, mais idiotas, mais incorrigíveis, e isso era gozado, tão gozado que Ferguson não conseguia parar de rir deles, mesmo quando tinha pena deles e os abraçava como irmãos, espíritos afins, sempre derrubados a socos pelo mundo e que sempre se levantam para tentar mais uma vez — incubando mais um de seus planos desmiolados, que, inevitavelmente, acabaria, mais uma vez, levando ambos para o buraco.

A maior parte do tempo, ele via os filmes sozinho, sentado no chão da sala a mais ou menos um metro do televisor, o que a mãe e a avó consideravam uma distância curta demais, pois os raios emitidos pelo tubo catódico iriam destruir seus olhos, e toda vez que uma delas o apanhava nessa posição, ele era obrigado a se deslocar para o sofá, que ficava mais afastado. Nos dias em que a mãe ainda estava fora de casa, trabalhando, quando ele chegava da escola, a avó ficava com ele no apartamento até a mãe voltar de suas obrigações cotidianas (como a babá disse no filme Caixa de Música, queixando-se com um guarda, depois que Stan tinha metido seu sapato no traseiro dela: Ele me chutou bem no meio de minhas obrigações cotidianas), mas a avó de Ferguson não tinha o menor interesse em Laurel e Hardy, sua paixão era pela limpeza e pela ordem doméstica e, depois que dava para o neto seu lanche de depois da escola, em geral dois biscoitos de chocolate e um copo de leite, mas às vezes uma ameixa ou uma laranja ou um punhado de bolachas salgadas, que Ferguson lambuzava com um pouquinho de geleia de uva, ele ia para a sala para ligar a televisão no seu programa e ela se ocupava esfregando as bancadas da cozinha ou escovando a crosta que ficava nos queimadores do fogão ou limpando as pias e as privadas dos dois banheiros, uma zelosa destruidora das impurezas e dos germes, que nunca resmungava para reclamar dos defeitos da filha como dona de casa, mas suspirava muitas vezes enquanto cumpria essas tarefas, sem dúvida desgostosa porque sua própria carne e sangue não havia aderido a seu rigoroso padrão de vida sanitário. Nos dias em que a mãe de Ferguson já estava em casa quando ele chegava da escola, a avó se limitava a deixá-lo ali e ir embora, trocando um beijo e algumas poucas palavras com a filha, mas raramente ficando por tempo suficiente para se dar ao trabalho de tirar o casaco, e quando a mãe não estava revelando filmes na câmara escura ou preparando o jantar na cozinha, às vezes ela se juntava ao filho no sofá e via Laurel e Hardy com ele, e então ria tanto quanto ele (da fala das obrigações domésticas no filme Caixa de música, por exemplo, o que se converteu numa piadinha particular entre ambos, uma expressão que acabou por substituir as antigas palavras que eles usavam para se referir à parte posterior do ser humano, uma lista comprida que incluía expressões tão confiáveis como traseiro, tuchas,* fundilhos, bunda, porta-malas e garupa, como na pergunta que a mãe às vezes fazia, quando eles estavam em cômodos diferentes, e gritava: O que você está aprontando, Archie?, como se ele não estivesse parado ou andando ou deitado em algum canto do apartamento, e ele respondia: Estou sentado em cima das minhas obrigações cotidianas, mãe), mas na maioria das vezes ela apenas dava risadinhas das brincadeiras e dos tombos de bunda no chão de Stan e Ollie, ou dava um sorrisinho, e quando as coisas começavam a sair do controle, com pancadas, sarrafadas e cacetadas dolorosas, ela torcia o nariz ou balançava a cabeça e dizia: Oh, Archie, mas isso é horrível, sem querer dizer que o filme era horrível, mas que o quebra-quebra era excessivo para ela. Ferguson não concordava, é claro, mas já era crescido o bastante para entender que era possível que alguém não gostasse de Laurel e Hardy tanto quanto ele, e achava que a mãe já estava sendo bem legal de ficar ali sentada com ele, pois sabia que Stan e Ollie eram bobos e infantis demais para ela e que, mesmo se ela visse seus filmes todos os dias durante um ano, nunca se tornaria uma fã.

Na família, só uma pessoa compartilhava seu entusiasmo, só um adulto tinha a perspicácia de reconhecer o gênio de seus adorados imbecis, e essa pessoa era seu avô, o evasivo Benjy Adler, que sempre foi uma espécie de mistério para Ferguson, um homem que parecia possuir duas ou três personalidades diferentes, efusivo e generoso em certos dias, fechado e distante em outros, às vezes nervoso, até irritado e de pavio curto, às vezes calmo e expansivo, alternadamente se mostrava carinhoso e atento com o neto ou quase indiferente, mas em seus bons dias, dias em que estava de bom humor e as piadas voavam de sua boca, ele era um companheiro excelente, um parceiro de conspiração naquilo que Ferguson pensava como a Guerra Contra o Tédio (sua encarnação com letras embaralhadas da mal ouvida e mal entendida Guerra do Oriente Médio), que ele supôs se tratar de um ataque contra a vida maçante. No fim de novembro, tio Paul mandou a mãe de Ferguson fazer mais uma viagem, dessa vez até o Novo México para fotografar Millicent Cunningham, uma poeta de oitenta anos que estava prestes a publicar os seus Ensaios reunidos na editora Random House e, durante sua ausência, Ferguson se entrincheirou no apartamento dos avós, perto de Columbus Circle. Nessa altura, fazia mais de um mês que convivia com Laurel e Hardy, inteiramente dominado por sua nova paixão e quase desolado agora, quando os fins de semana chegavam, pois o programa não ia ao ar aos sábados e domingos, mas a primeira noite que passou na rua 58 Oeste calhou de ser numa segunda-feira, o que lhe deu cinco tardes seguidas de Sr. Gordo e Sr. Magro, e quando o avô chegou em casa cedo, de volta do trabalho, na primeira tarde, explicando que o dia foi meio parado no escritório, desabou com um baque no sofá, ao lado de Ferguson, para ver o programa, que pareceu afetar sua cabeça de sessenta e dois anos de idade da mesma forma como afetava a cabeça de oito anos de Ferguson e, em pouco tempo, ele já estava se sacudindo de tanto rir, a certa altura riu de modo tão excessivo que começou a ofegar e tossir e sua cara ficou vermelha, e sua delícia foi tão completa que ele chegou em casa cedo todos os dias da semana para ainda dar tempo de pegar o programa, junto com o neto.

Então veio a surpresa, a visita de domingo no início de dezembro, quando os avós de Ferguson entraram no apartamento no Central Park Oeste carregados de embrulhos, alguns tão pesados que Arthur, o porteiro do prédio, teve de levá-los num carrinho de bagagem, o que lhe rendeu uma gorjeta de cinco dólares do avô de Ferguson (cinco dólares!), e outro pacote, uma caixa de papelão comprida que o avô e a avó carregaram juntos, cada um segurando uma ponta com as duas mãos, e a caixa era tão comprida que quase não deu para entrar no apartamento, e, quando ele viu o sorriso da avó (como era raro ela sorrir!) e ouviu a gargalhada do avô e sentiu a mão da mãe pousar no seu ombro direito, entendeu que algo excepcional estava prestes a acontecer, só que ele não tinha a menor ideia do que poderia ser, até que os embrulhos foram abertos e ele descobriu que agora possuía um projetor de cinema de dezesseis milímetros, uma tela de cinema de enrolar com uma base de tripé retrátil, além de cópias de dez curtas-metragens de O Gordo e o Magro: O toque final, Dois marujos, Apenas um ligeiro engano, O grande negócio, Um dia perfeito, Noites de farra, Abaixo de zero, Outra encrenca, Um amigo trapalhão e Pescando no seco.

Pouco importava que o projetor tivesse sido comprado de segunda mão — funcionava. Pouco importava que as cópias estivessem arranhadas e que o som, às vezes, parecesse vir de dentro de uma banheira — os filmes eram assistíveis. E junto com os filmes veio toda uma série de palavras novas para ele dominar — roda dentada, por exemplo, que acabava sendo uma expressão muito melhor para se pensar do que loja queimada.

Nos fins de semana em que a mãe não estava fora de casa a trabalho — e em que o tempo não estava frio demais ou chuvoso demais ou ventoso demais —, a maior parte das manhãs e das tardes de sábado era dedicada a vagar pelas ruas à caça de boas fotografias, Ferguson trotava ao lado da mãe enquanto ela percorria em passadas largas as calçadas de Manhattan ou subia as escadas dos prédios municipais ou escalava pedras ou cruzava pontes no Central Park, e então, sempre sem nenhum motivo aparente para ele, a mãe parava de supetão, apontava a câmera para alguma coisa, apertava o botão do obturador e clique-clique, clique-clique-clique, o que não era a atividade mais absorvente do mundo, talvez, mas fazia parte do prazer de estar ao lado da mãe, de ter a mãe toda para ele outra vez, e como não desfrutar os almoços que os dois tinham juntos em cafeterias ao longo da Broadway e na Sexta Avenida no Village, onde ele sempre, sem falta, pedia hambúrguer e milk-shake de chocolate, sempre a mesma refeição no momento central daquelas excursões de sábado, um hambúrguer, por favor, sim, um hambúrguer, por favor, como se fosse parte de um ritual sagrado, o que significava que aquilo nunca variava em nenhum aspecto, até o mais ínfimo detalhe, e então as noites de sábado e/ou as tardes de domingo em que os dois iam ao cinema juntos, sentavam-se ao balcão, onde a mãe podia fumar seus Chesterfield, filmes que nunca eram de O Gordo e o Magro, mas produções novas de Holly­wood, como Dançando nas nuvens, Nas garras da ambição, Garotos e garotas, Artistas e modelos, O bobo da corte, Vampiros de almas, Rastros de ódio, O planeta proibido, O homem do terno cinzento, Our Miss Brooks, A encruzilhada dos destinos, Trapézio, Moby Dick, Cinderela em Paris, O incrível homem que encolheu, Vencendo o medo e Doze homens e uma sentença, os filmes bons e ruins de 1955, 1956 e 1957, que os carregavam através do tempo em que ele cursou a Hilliard School e em seu primeiro ano da escola seguinte para onde foi, a Riverside Academy, na West End Avenue, entre as ruas 84 e 85, uma instituição mista, de tendências ditas progressistas, fundada vinte e nove anos antes, exatamente cem anos depois da fundação da Hilliard School.

Nada de paletó e gravata, nada de capela de manhã, nada de viagens de ônibus através do Central Park, nada de passar o dia enjaulado num prédio sem meninas, tudo isso eram avanços indiscutíveis, mas a maior diferença de todas, entre a terceira e a quarta séries, não foi tanto o pulo para outra escola, mas o fim do duelo de Ferguson com Deus. Deus tinha sido derrotado, desmascarado como uma entidade nula e sem poder, que não era mais capaz de castigar nem de inspirar temor, e com o feitor celestial agora eliminado de cena, Ferguson podia largar o velho jogo do Incompetente Intencional ou, como às vezes ele vinha chamando aquilo nos últimos anos, Medroso Ontológico. Ele tinha conseguido tamanho sucesso em ser um fracasso que acabou cansado do seu talento para o subterfúgio e a autoimolação. Ninguém em Hilliard jamais desconfiou do que ele vinha fazendo, tinha enganado todo mundo, não só os professores e os colegas, como a mãe e a tia Mildred também, nenhum deles nunca imaginou que ele fazia aquilo de propósito, que seu desempenho desvairadamente instável na terceira série não passava de uma encenação, um esforço engenhosamente calculado para provar que nada que fazia poderia ter nenhuma importância, se nenhuma força divina estivesse vigiando seus atos. Ferguson ganhou a discussão contra si mesmo quando foi posto para fora da Hilliard — não foi expulso, exatamente, já que deixaram que ficasse até o fim do ano, mas já o tinham observado de sobra para querer continuar com ele depois daquilo. O diretor disse para sua mãe que Archie era o enigma mais desconcertante que já havia aparecido na escola durante todos os anos em que ele trabalhara ali. Ao mesmo tempo, era o melhor aluno e o pior aluno da sala, disse, às vezes brilhante e outras vezes absolutamente retardado, e já não sabiam mais o que fazer com ele. Será que estamos diante de um esquizofrênico latente, perguntou, ou Archie não passava de mais um menino perdido que, mais cedo ou mais tarde, acabaria se encontrando? Como a mãe de Ferguson sabia que o filho não era retardado nem havia indicação de um futuro caso de doença mental, agradeceu ao diretor por sua atenção e foi em busca de outra escola.

Ferguson recebeu seu primeiro boletim na Riverside Academy numa sexta-feira, em meados de novembro. Depois de um ano inteiro de “Fraco” e “Péssimo” em Hilliard, a mãe de Ferguson esperava resultados melhores na escola nova, mas nada parecido com os sete “Excelentes” e os dois “Muito Bons” que Ferguson levou para casa naquele dia. Espantada com a magnitude da inversão, ela entrou na sala às cinco e meia, bem na hora em que The Laurel and Hardy Show estava terminando, e sentou-se no chão ao lado do filho.

Bom trabalho, Archie, disse ela, segurando o papel com as notas na mão direita, enquanto batia no boletim com a mão esquerda. Estou muito orgulhosa de você.

Obrigado, mãe, respondeu Ferguson.

Você deve estar gostando da escola nova.

É muito boa. Apesar de tudo.

O que isso quer dizer?

Escola é escola, quer dizer, não é uma coisa de que alguém goste tanto assim. A gente vai porque tem de ir.

Mas há umas escolas melhores do que outras, não é?

Acho que sim.

Por exemplo, Riverside é melhor do que Hilliard.

Hilliard não era ruim. Para uma escola, entende?

Mas você prefere não ter de viajar tanto, todos os dias, não é? E não ter de usar uniforme. E ter garotas e garotos juntos, em vez de só meninos. Faz a vida ficar um pouco melhor, não é?

Muito melhor. Mas a escola mesmo não é lá tão diferente. Leitura, escrita, aritmética, estudos sociais, educação física, artes, música e ciências. Em Riverside, faço as mesmas coisas que fazia em Hilliard.

E quanto aos professores?

Mais ou menos a mesma coisa.

Pensei que fossem menos severos em Riverside.

Na verdade, não. A srta. Donne, a professora de música, às vezes berra com a gente. Mas o sr. Bowles, o professor de música em Hilliard, nunca levantava a voz. Ele é o melhor professor que eu já tive, em qualquer lugar — e o mais legal.

Mas você tem mais amigos em Riverside. Tommy Snyder, Peter Baskin, Mike Goldman e Alan Lewis — todos meninos muito bons — e aquela fofura de menina, Isabel Kraft, e a prima dela, Alice Abrams, crianças lindas, verdadeiras vencedoras. Em dois meses, você fez mais amigos do que tinha em Nova Jersey.

É divertido ficar com eles. Com alguns dos outros garotos, nem tanto. Billy Nathanson deve ser o maior chato e o maior sacana que já vi — muito pior do que qualquer aluno em Hilliard.

Mas você não tinha nenhum amigo em Hilliard, Archie. O doce Doug Hayes, acho, mas eu não soube de nenhum outro.

Era culpa minha. Eu não queria nenhum amigo lá.

Ah, é? E por quê?

É complicado de explicar. Eu não queria e pronto.

Nenhum amigo e notas ruins numa escola. Uma porção de amigos e notas boas na outra. Tem de haver uma razão para isso. Você não tem nenhuma ideia do que pode ser?

Tenho.

E o que é?

Não posso contar.

Não seja ridículo, Archie.

Você vai ficar muito zangada comigo, se eu contar.

E por que é que eu ia ficar zangada com você? Agora, Hilliard é passado. Não faz mais nenhuma diferença.

Talvez não. Mas mesmo assim você vai ficar zangada comigo.

E se eu prometer que não vou ficar zangada?

Não vai adiantar nada.

Ferguson estava olhando para o chão agora, fingindo que examinava um fio solto no tapete como forma de evitar os olhos da mãe, pois sabia que estaria perdido caso se atrevesse a olhar dentro deles agora, os olhos da mãe sempre foram fortes demais para ele, impregnados de um poder capaz de decifrar seus pensamentos, extrair dele confissões e sobrepujar sua vontade débil, mesmo quando ele lutava para resistir, e agora, de forma horrível e inevitável, ela esticou a mão e tocou seu queixo com a ponta dos dedos, erguendo seu rosto delicadamente e mirando dentro de seus olhos outra vez e, na hora em que sentiu a mão dela fazer contato com sua pele, entendeu que não havia mais a menor esperança, lágrimas se juntaram em seus olhos, as primeiras lágrimas que apareceram ali em meses, e que humilhação foi sentir a torneira invisível se abrir de novo sem aviso, nem um pouco melhor do que o burro e chorão do Stan, pensou Ferguson, um bebê de nove anos de idade com uma rede hidráulica defeituosa no cérebro, e, na hora em que tomou coragem para fixar os olhos nos olhos da mãe, duas cachoeiras estavam escorrendo pelas bochechas e sua boca se movia, palavras despencavam de dentro dela, a história da Hilliard estava sendo contada, a batalha contra Deus e o motivo das notas ruins, a voz silenciada e o assassinato de seu pai, violar as regras a fim de ser castigado e assim detestar Deus por não o castigar, detestar Deus por não ser Deus, e Ferguson não tinha a menor ideia de que a mãe estivesse ou não compreendendo o que ele lhe contava, os olhos dela pareciam aflitos e confusos e quase lacrimosos, e depois de falar por dois ou três minutos, ela se inclinou para baixo, pôs os braços em volta dele e disse para ele parar. Chega, Archie, disse, deixe pra lá, e depois os dois choraram juntos, uma maratona e um festival de choradeira que duraram mais ou menos dez minutos, o que foi a última vez que ambos perderam o controle na frente um do outro, quase dois anos depois do dia em que o corpo de Stanley Ferguson foi enterrado, e, quando o choro lentamente chegou ao fim, eles lavaram o rosto, vestiram os casacos e foram ao cinema, onde se empanturraram de cachorro-quente no balcão, em vez de jantar, e depois dividiram uma caixa grande de pipoca, que lavaram com uma coca-cola sem gás e aguada. O título do filme que viram naquela noite foi: O homem que sabia demais.

Passaram-se anos. Ferguson fez dez, onze e doze anos, fez treze e catorze e, entre os fatos ocorridos na família ao longo daqueles cinco anos, o mais importante, sem dúvida nenhuma, foi o casamento da mãe com um homem chamado Gilbert Schneiderman, que aconteceu quando Ferguson tinha doze anos e meio. Um ano antes, o clã Adler tinha passado pelo seu primeiro divórcio, a inexplicável separação entre a tia Mildred e o tio Paul, duas pessoas que sempre pareciam estar tão bem um com o outro, dois devoradores de livros muito falantes que ficaram casados por nove anos sem nenhum conflito ou nenhuma traição aparente, e de repente acabou-se, tia Mildred ia se mudar para a Califórnia para ingressar no Departamento de Inglês da Universidade de Stanford e tio Paul já não era mais o tio Paul de Ferguson. Aí, seu avô desapareceu — um ataque do coração em 1960 — e pouco depois sua avó também se foi — um derrame em 1961 —, e, um mês depois daquele segundo enterro, a tia-avó Pearl recebeu um diagnóstico de câncer terminal. Os Adler estavam minguando. Estavam começando a parecer uma daquelas famílias em que ninguém chegava a ficar muito velho.

Schneiderman era o filho mais velho do antigo patrão da sua mãe, o homem com sotaque alemão que tinha ensinado a ela como fotografar, nos primeiros dias da guerra, e, como Ferguson compreendia que sua mãe estava fadada a casar algum dia, não se opôs à sua escolha, que até lhe pareceu a melhor opção entre as várias disponíveis para ela. Schneiderman tinha quarenta e cinco anos, oito anos mais velho do que a mãe de Ferguson, e os caminhos dos dois se cruzaram na manhã em que ela começou a trabalhar no estúdio do pai dele, em novembro de 1941, o que, de certa forma, consolava Ferguson, ciente de que a mãe tinha conhecido seu padrasto antes mesmo de conhecer seu pai, 1941 em contraposição a 1943, uma data que, anteriormente, havia marcado o começo do mundo para ele, mas agora o mundo tinha ficado ainda mais velho do que isso e era tranquilizador saber que já havia um passado acumulado entre eles e, portanto, ela não estava correndo às cegas para um casamento, o que sempre tinha sido o grande temor de Ferguson, ver a mãe perdidamente apaixonada por algum palhaço de fala mansa e depois acordar um dia de manhã para descobrir que tinha cometido o maior erro da vida. Não, Schneiderman parecia ser do tipo consistente, alguém em quem a gente podia confiar. Casado por dezessete anos, pai de dois filhos, e então o telefonema de um guarda o convocou para ir a um necrotério no condado de Dutchess, para identificar o cadáver de uma mulher, o cadáver de sua esposa, morta num acidente de carro, seguido por quatro anos sozinho, quase o mesmo tempo que a mãe de Ferguson viveu sozinha, desde a morte de seu pai. Seus avós ainda estavam vivos em setembro de 1959 e o casamento foi realizado no apartamento deles, na rua 58 Oeste, ocasião em que Ferguson, de um metro e cinquenta e sete de altura, foi o padrinho. Entre os convidados, estavam suas novas meias-irmãs, Margaret, de vinte e um anos, e Ella, de dezenove anos, ambas estudantes universitárias, e o claudicante Emanuel Schneiderman, o velho indecente que falava muitos palavrões, a quem Ferguson tinha encontrado três ou quatro vezes e que jamais considerou como um avô, nem mesmo depois que o avô de verdade morreu, o irmão de Gil, Daniel, sua cunhada Liz, seu sobrinho Jim, de dezesseis anos, e a sobrinha Amy, de doze anos (toda agitada, aquela menina, com aparelho nos dentes e um monte de espinhas na testa), e Paul Sandler, o ex-tio de Ferguson, que continuou a ser o incentivador de sua mãe, apesar do divórcio de Mildred, o editor de seus dois primeiros livros, a edição completa de Casamento judeu e o recém-publicado Valentões, noventa retratos em preto e branco de membros de gangues de porto-riquenhos e suas namoradas, mas a tia Mildred não compareceu, tinha escrito para explicar que andava ocupada demais com seus cursos em Stanford, o que a impedia de fazer a viagem, e, quando Ferguson viu seu ex-tio Paul olhando para sua mãe, se perguntou se ele também não tinha sido um candidato à mão da mãe e havia perdido o posto para Gil Schneiderman, o que significaria que sua separação da tia Mildred tinha algo a ver com sua percepção tardia de que havia se apaixonado pela irmã errada. Impossível saber, mas talvez aquilo explicasse por que, naquela tarde, Mildred estava na Califórnia e não em Nova York, o que também poderia explicar por que ela parecia ter rompido o contato com a mãe de Ferguson, pois ninguém disse nenhuma palavra sobre sua ausência na festa de casamento, pelo menos até onde Ferguson pôde ouvir, e como ele não conseguiu tomar coragem de perguntar ao ex-tio Paul ou a seus avós por que ninguém havia mencionado o assunto, as perguntas que se formaram em sua cabeça naquela tarde continuaram sem resposta. Mais uma história que nunca seria contada, pensou Ferguson, e depois tirou o anel do bolso e entregou para o homem parrudo, de testa alta e orelhas grandes que estava prestes a se tornar seu padrasto.

Sua mãe chamou aquilo de um novo começo e, no começo daquele começo, havia muitas coisas para serem ajustadas, uma multidão de coisas grandes e pequenas que, de repente e para sempre, seriam diferentes agora, iniciando pelo grande acontecimento de morar num lar formado por três pessoas, em vez de duas, e a novidade que era o fato de que essa nova pessoa passava todas as noites na cama de sua mãe, um homem de um metro e setenta e sete de altura, de cabelo no peito, que andava pela casa, de manhã, vestindo antiquadas cuecas samba-canção, mijava ruidosamente na privada e abraçava e beijava sua mãe toda vez que ela olhava para ele, um novo gênero de masculinidade com que Ferguson tinha de competir, de ombros largos, mas sem ser atlético, elegante de maneira antiquada e desatenta, com seus ternos de tweed e coletes pesados, seus sapatos robustos e o cabelo mais comprido do que a média, uma sociabilidade um pouco desajeitada, sem queda para piadas ou conversa fiada, chá de manhã em vez de café, schnaps, conhaque e um charuto à noite, um modo firme e impassível de tratar os assuntos do dia a dia, com eventuais escorregões para acessos de irritação e de destempero (sem dúvida, um traço genético herdado do pai), mas no geral gentil, muitas vezes gentil em excesso, um padrasto que nunca demonstrava a menor ambição de se tornar um substituto do pai e estava contente de ser tratado por Gil em vez de papai. Nos primeiros seis meses, os três moraram juntos no apartamento em Central Park Oeste, mas depois se mudaram para uma casa maior, em Riverside Drive, entre as ruas 88 e 89, com mais um quarto que se transformou num escritório para Gil, uma mudança que Ferguson recebeu muito bem, porque agora morava mais perto da escola e podia dormir até um pouco mais tarde, de manhã, e apesar de ter saudades da antiga paisagem do Central Park que via das janelas do apartamento do terceiro andar, agora ele tinha uma vista do rio Hudson do sétimo andar, que acabou se revelando mais estimulante, por causa das constantes procissões de barcos e navios que iam e vinham sobre a água, e, para além da água, havia a terra do outro lado, o lado de Nova Jersey, e, toda vez que Ferguson olhava para lá, pensava na sua antiga vida, lá daquele lado, e tentava se lembrar de si mesmo quando menino, bem pequeno, só que aquele tempo estava ficando muito distante agora, estava quase se apagando.

Schneiderman era o principal crítico musical do jornal The New York Herald Tribune, um cargo que exigia muito e o obrigava a sair na maioria das noites para ver concertos, recitais e óperas, e depois era aquela correria para cumprir o prazo, para datilografar a resenha e entregá-la ao editor de arte na mesma noite, o que parecia uma tarefa quase impossível para Ferguson, apenas duas horas ou duas horas e meia para organizar seus pensamentos sobre a apresentação que tinha acabado de ver e ouvir e ainda por cima escrever algo coerente sobre isso, mas Schneiderman era um veterano no que dizia respeito a trabalhar sob pressão, na maioria das noites ele terminava seus artigos sem afastar nem uma vez as mãos do teclado da máquina de escrever e, quando Ferguson perguntou como ele conseguia despachar as palavras tão depressa, respondeu ao enteado, dizendo: Na verdade, sou um cara bem preguiçoso, Archie, e se eu não tivesse prazos me pressionando, jamais conseguiria terminar nada, e Ferguson ficou impressionado de ver como seu padrasto podia fazer pouco de si mesmo, pois estava bem claro para ele que o homem podia ser qualquer coisa, menos preguiçoso.

Schneiderman tinha histórias para contar, ao contrário do pai de Ferguson, que raramente contava histórias, exceto umas histórias inventadas sobre a prospecção de ouro nos Andes ou caçadas de elefantes na África, só que essas agora eram histórias verdadeiras e, à medida que o período de ajuste gradualmente se transformou em algo semelhante à vida cotidiana, Ferguson começou a se sentir à vontade o bastante para insistir com o marido de sua mãe para que ele conversasse sobre seu passado, pois a cabeça de Ferguson já não era mais, estritamente falando, a cabeça de uma criança, e ele gostava de escutar o padrasto contar como foi ser criado em Berlim, ouvir alguém que passou os primeiros sete anos de vida naquela cidade distante, que na imaginação de Ferguson era, antes de tudo, a capital do Inferno de Hitler, a cidade mais maligna da face da Terra, mas não naquele tempo, informou Schneiderman, não para alguém que saiu de lá em 1921, e embora a vida dele tenha começado logo depois da Primeira Guerra Mundial, aquilo que as pessoas chamavam, antigamente, de Grande Guerra, ele não se lembrava de nada da guerra, todo o cataclismo era um vazio para ele, e o primeiro acontecimento em sua vida que era capaz de se lembrar com alguma certeza era estar sentado à mesa da cozinha no apartamento de sua família em Charlottenburg, com um pedaço de pão na sua frente, e cobrir o pão com colheradas de geleia de groselha preta, enquanto olhava o irmão bebê Daniel, sentado em sua cadeirinha alta, o irmão que na época tinha no máximo seis ou oito meses de vida, o que significava que a guerra estava perto de terminar, ou já tinha terminado, e o motivo por que essa cena perdurou tão nítida em sua memória talvez fosse porque Daniel estava vomitando um bolo de leite coalhado em cima de todo seu babador, sem sequer perceber, e sorria durante a golfada, ao mesmo tempo que batia as mãos com força contra a mesa, e Schneiderman ficou assombrado com o fato de alguém poder ser tão desmiolado e incompetente a ponto de vomitar em cima de si mesmo, sem ter a menor noção do que estava fazendo. Nada de Hitler, nessa época, mas foi um tempo importan­te para tudo aquilo, as sementes do desastre já estavam plantadas em Versailles, o conflito armado em Berlim, quando a revolta espartaquista irrompeu por um breve tempo e foi esmagada, seguida pelas prisões de Rosa Luxem­burgo e Karl Liebknecht, cujos corpos assassinados foram encontrados, mais tarde, no Canal Landwehr, sem falar na irrupção da Guerra Civil Russa, os Vermelhos contra os Brancos, os bolcheviques contra o mundo, e como a Rús­sia era tão próxima da Alemanha, o repentino afluxo de refugiados e emigrados que desaguou em Berlim, a instável e claudicante Berlim, coração da estraçalhada República de Weimar, na qual uma fatia de pão, no final, chegou a custar vinte milhões de marcos. Foi fundamental que Schneiderman desse ao menino essa aula elementar de história para que ele entendesse por que a família havia partido para os Estados Unidos, por que o pai de Schneiderman tinha concluído que a Alemanha era um beco sem saída e tirou todos eles de lá o mais depressa possível, o que acabou se revelando uma decisão bem oportuna, pois os Estados Unidos puseram fim à imigração em 1924 e fecharam os portões daí em diante, mas agora era 1921, fim do verão, com Schneiderman à beira de completar sete anos, e o irmão com três anos e um mês de vida, e lá foram eles com os pais, de navio, e mais uma mala cheia de livros alemães, partiram de Hamburgo num navio chamado S.S. Passagem para a Índia, rumo ao montanhoso território de Washington Heights, pelo menos era o que Schneiderman supunha, só que seu inglês era bastante fraco naquela altura, quase inexistente, na verdade, e também o que um menino de sete anos sabia da vida, a não ser aquilo que os pais lhe contavam? O idioma foi o obstáculo mais árduo, disse seu padrasto, a dificuldade de falar inglês sem o sotaque alemão, que logo o denunciava como estrangeiro e acarretava zombarias e frequentes murros dos meninos na escola, pois ele não era um mero estrangeiro, mas um alemão, a forma de humanidade mais baixa e mais deplorável naqueles anos pós-guerra, um imprestável Kraut ou Hun ou Boche ou Heinie, pode escolher qualquer um, e mesmo quando sua compreensão do inglês cresceu a ponto de alcançar a mais profunda familiaridade, mesmo quando seu vocabulário se expandiu e ele conquistou as nuanças da sintaxe e da gramática inglesa, ele ainda levava seus cascudos por causa daquele sotaque incon­veniente, Nóch famos nadarr no verraun, naun é, Archie?, disse Schnei­derman, a título de uma demonstração, e, como Schneiderman raramente tentava ser engraçado, Ferguson gostou daquela pequena tirada humorística, que na verdade foi bastante engraçada, e ele riu, e um instante depois ambos estavam rindo.

A verdade, disse Schneiderman, é que saber alemão, provavelmente, foi o que salvou minha vida.

Quando Ferguson pediu que ele explicasse melhor, o padrasto começou a falar sobre a guerra, sobre ter se alistado no Exército depois de Pearl Harbor, porque ele queria voltar para a Europa e matar nazistas, porém, como era um pouco mais velho do que a maioria dos rapazes, e como tinha frequentado a faculdade e era fluente em alemão e francês, foi mantido longe de combate e, em vez disso, foi encaminhado para a unidade de inteligência. Portanto, nenhuma missão na linha de frente. E, por esse motivo, nada de balas ou bombas que podiam colocá-lo precocemente dentro de uma cova. Claro que Ferguson ficou ansioso para saber o que ele tinha feito na unidade de inte­ligência, mas, a exemplo da maioria dos homens que voltaram da guerra, Schneiderman não queria falar sobre isso. Limitou-se a dizer: interrogar prisioneiros alemães, entrevistar oficiais nazistas, dar um bom uso para o meu alemão. Quando Ferguson pediu que entrasse em detalhes, Schneiderman sorriu, deu palmadinhas no ombro do enteado e disse: Em outra ocasião, Archie.

Se havia alguma desvantagem naquele novo sistema, era o fato de que Schneiderman não tinha o menor interesse por esporte — nem futebol americano nem beisebol, nem basquete nem tênis, nem golfe nem boliche nem badminton. A questão não era apenas que ele não jogava nenhum desses esportes, mas que nem sequer chegava a pôr os olhos nas páginas de esporte dos jornais, o que significava que não prestava a menor atenção nos altos e baixos dos times profissionais locais, sem falar dos times universitários e dos colégios do ensino médio, e ignorava as façanhas de todos os velocistas, lançadores de pesos, saltadores de altura, saltadores de distância, corredores de longa distância, jogadores de golfe, esquiadores, jogadores de boliche e tenistas do mundo. Um dos motivos pelos quais Ferguson não se opôs à ideia de a mãe se casar de novo foi imaginar que o segundo marido, necessariamente, seria um adepto dos esportes, já que ele mesmo adorava natação, tênis, pingue-pongue e até boliche, e morria de vontade de poder contar, em casa, com um adulto que compartilhasse com ele algumas atividades esportivas, tanto fazia se era para jogar beisebol ou futebol americano ou basquete ou tênis (não importava qual fosse o esporte), e se esse padrasto hipotético acabasse não sendo um tipo de pessoa atlética, havia uma grande possibilidade de que fosse torcedor de pelo menos um esporte, pois a maioria dos homens era assim, como seu avô tinha sido, por exemplo, no caso do beisebol, e quando os dois, ele e o avô, não estavam falando sobre O Gordo e o Magro e discutindo se os curtas eram melhores do que os longas, ou vice-versa, a maior parte de suas conversas tratava de analisar os méritos relativos de Mantle, Snider e Mays, dissecar o talento de Alvin Dark para rebater a bola para a meia-direita quando o time estava no ataque, discutir quem tinha o braço mais forte, Furillo ou Clemente, ou se havia alguma verdade na história de que Yogi Berra levava uma navalha escondida na caneleira direita a fim de dar um talho na bola antes de devolvê-la para Whitey Ford. Todos os anos, entre os seis e os dez anos de idade, Ferguson ia assistir a pelo menos três partidas com seu avô, era seu pas­seio anual aos estádios de beisebol da cidade de Nova York, o Polo Grounds, em Manhattan, o Yankee Stadium, no Bronx, e Ebbets Field, no Brooklyn, onde os dois assistiram juntos à série final do campeonato de beisebol em 1955, mas três vezes era o mínimo, e, depois que o pai de Ferguson morreu e os Dodgers e os Giants saíram da cidade, o total por temporada era, em geral, de seis ou sete viagens ao Yankee Stadium, a casa que Ruth construiu,** e como Ferguson saboreava aqueles passeios nas tardes ensolaradas e causticantes de julho e agosto, os olhos cravados no campo com seu imaculado gramado verde e sua terra lisa e marrom, um jardim planejado embutido no meio da grande cidade de pedra, prazeres pastorais em meio aos gritos roucos e assovios da multidão, trinta mil vozes vaiando em uníssono, que barulhada que fazia, e no meio de tudo aquilo seu avô controlava o placar com paciência e, com seu toco de lápis, previa se o rebatedor ia alcançar a base ou não, segundo o que ele chamava de lei das médias, um rebatedor em queda estava fadado a fazer um ponto, porque tinha de ser, e não importava quantas vezes ele se enganava, seu avô nunca abandonava a fé em sua lei, sua lei furada de palpites sem nenhum sentido. Todos aqueles jogos com seu bizarro e incompreensível Vovô, que nos dias mais acalorados se protegia do sol abrindo um lenço branco por cima da careca, porque estava muito quente para chapéus, e agora que ele tinha ido embora, Ferguson entendia que ninguém poderia tomar seu lugar, muito menos Schneiderman, que provavelmente era o único nova-iorquino nos cinco distritos cujo coração não tinha ficado partido quando os Dodgers e os Giants levantaram acampamento e foram para a Califórnia, depois da temporada de 1957.

Foi um revés, então, talvez até uma decepção, ter em sua casa um homem sem o menor sentimento pelos dramas e pelas delícias da competição física, mas, justiça seja feita a Schneiderman, o contrário também era verdade, sem nenhuma dúvida, pois a incapacidade de Ferguson para tocar qualquer instrumento musical deve ter batido como uma frustração para seu padrasto, que era capaz de tocar piano e também violino, não no nível profissional mais elevado, talvez, mas, para os ouvidos mal adestrados de Ferguson, suas execuções de Bach, Mozart, Beethoven e Schubert eram puras maravilhas de beleza e precisão, tão boas quanto qualquer coisa que se podia ouvir nas centenas de LPs que Schneiderman tinha trazido consigo para Central Park Oeste. Não que Ferguson não tivesse tentado, mas sua luta para dominar os rudimentos da competência do teclado tinham terminado em fracasso, pelo menos segundo sua professora, a velha srta. Muggeridge, de cabelo encaracolado, que provavelmente fazia uns bicos de bruxa nas horas vagas, quando não estava massacrando o moral de crianças que eram forçadas a estudar piano. Depois de nove meses de aula de música, quando estava na primeira série, a mãe de Ferguson foi avisada de que ele era um menino cabeçudo e de mão pesada, o que a levou a concluir que tinha iniciado o filho cedo demais (esqueça o caso de Mozart, que compôs sinfonias aos seis e sete anos de idade — Mozart não contava!), e quando a mãe sugeriu a seu pianista fracassado esperar mais um ano antes de começar mais uma vez com outro professor, Ferguson ficou aliviado por nunca mais ter de olhar para a cara da srta. Muggeridge. O ano livre foi, é claro, o ano do incêndio em Newark e, depois que eles se mudaram para Nova York e o interregno curioso passou, o pequeno estava em Hilliard, a grande estava sem rumo e o piano foi esquecido.

Portanto, Schneiderman frustrou Ferguson e Ferguson frustrou Schneiderman, mas como nem um nem outro nunca falavam do assunto entre si, cada um continuou sem saber da frustração do outro. Com o tempo, quando Ferguson se tornou um atacante de destaque em sua equipe de basquete de aspirantes, Schneiderman começou a demonstrar algum interesse por esporte, pelo menos a ponto de ir a algumas partidas com a mãe de Ferguson, nas quais incentivava o enteado, da arquibancada, mas Ferguson nunca aprendeu a tocar qualquer instrumento musical. Apesar dos pesares, pode-se dizer com segurança que Ferguson lucrou mais com o envolvimento do padrasto com a música do que Schneiderman com o talento do enteado para lançar a bola no cesto e para trocar empurrões com os adversários na hora de disputar os rebotes. Aos doze anos e meio, Ferguson não sabia nada sobre nenhum tipo de música, a não ser rock and roll, que ele e os amigos adoravam de forma unânime. Sua cabeça estava cheia das letras e melodias de Chuck Berry, Buddy Holly, Del Shannon, Fats Domino e dúzias de outros cantores populares, porém, no que dizia respeito à música clássica, ele era virgem, para não falar do jazz, blues e do recente renascimento da música folk, sobre a qual ele era o mais completo ignorante, exceto por algumas baladas cômicas do Kingston Trio, que estava no seu momento de sucesso então. E o culto Schneiderman mudou tudo isso. Para um menino que só tinha ido a dois concertos na vida (uma apresentação do Messias de Händel no Carnegie Hall, com a tia Mildred e o tio Paul; uma matinê de Pedro e o lobo, que viu com seus colegas da escola primária em seu primeiro mês em Hilliard), um menino que não tinha nenhum disco de música clássica, cuja mãe não tinha nenhum disco de nenhum tipo de música e só ouvia canções óbvias antigas e big band no rádio, para um menino assim, que não tinha nem a menor migalha de conhecimento dos quartetos de cordas ou sinfonias ou cantatas, só ouvir o padrasto tocar piano ou violino já era uma revelação e, além disso, houve a revelação adicional de ouvir a coleção de discos do padrasto e descobrir que a música podia, de fato, reconfigurar os átomos no cérebro de uma pessoa, e além do que acontecia nos apartamentos na Central Park Oeste e em Riverside Drive, havia as excursões com a mãe e Schneiderman ao Carnegie Hall, ao Town Hall e ao Metropolitan Opera House, que começaram poucas semanas depois de os três terem passado a morar juntos. Schneiderman não estava em missão pedagógica, não existia nenhum plano de dar ao menino nem à sua mãe uma educação formal sobre música, ele apenas queria expor os dois às obras que achava que podiam interessar a eles, o que significava não começar com Mahler ou Schoenberg ou Webern, mas com obras barulhentas e festivas como a Abertura 1812 (Ferguson perdeu o fôlego quando ouviu o canhão pela primeira vez) ou peças histriônicas como a Symphonie Fantastique ou a vibrante música de programa de Quadros numa exposição, mas pouco a pouco ele os seduziu e, em curto espaço de tempo, ambos já o acompanhavam nas óperas de Mozart e nos recitais de violoncelo de Bach e, para o Ferguson de doze e treze anos, que continuava a adorar o rock and roll que sempre tinha adorado, aquelas noites em salas de concerto não eram nada menos do que uma revelação sobre os movimentos de seu próprio coração, pois a música estava no coração, ele se deu conta, a mais completa expressão do coração humano, e agora que ele tinha ouvido o que tinha ouvido, estava começando a ouvir melhor e, quanto mais ouvia, mais profundamente sentia — às vezes tão profundamente que seu corpo chegava a sacudir.

Os Adler estavam encolhendo. Um após o outro, eles morriam suas mortes muito prematuras e desapareciam do mundo, e com a mudança de tia Mildred para a Califórnia e a expulsão do ex-tio Paul da família, combinadas com a transferência da prima Betty e do marido Seymour para o sul da Flórida (junto com Judy e Eric, dois primos em segundo grau de Ferguson), e o fato de que Charlotte, a prima da Betty, continuava sem falar com sua prima Rose por causa da Guerra da Fotografia do Casamento de 1955 e 1956, Ferguson e a mãe eram os únicos Adler que restaram em Nova York, os únicos sobre a terra que ainda não tinham ou se evadido ou cortado seus laços com o clã. Apesar dessas perdas, porém, sangue novo tinha entrado em suas vidas, na forma de vários Schneiderman, uma coleção de meias-irmãs e meios-primos, além de uma meia-tia, um meio-tio e um meio-avô para Ferguson, o que, para sua mãe, se traduzia como duas enteadas, uma meia-sobrinha, um meio-sobrinho, uma cunhada, um cunhado e um sogro, e agora aqueles Schnei­derman constituíam o grosso da família a que eles pertenciam, porque um escrivão do cartório tinha assinado e carimbado a certidão de casamento que declarava que Gil e a mãe de Ferguson estavam legalmente casados, como marido e esposa. Era uma mudança estranha, como o avô de Ferguson tinha dito numa de suas últimas conversas com o neto, e de fato era estranho ganhar duas irmãs por causa de um casamento, duas mulheres desconhecidas que, de repente, se tornaram seus parentes mais próximos, porque um homem, que era igualmente desconhecido para ele, tinha assinado seu nome numa folha de papel. Nada disso teria importância se Ferguson gostasse de Margaret e Ella Schneiderman, mas, depois de alguns encontros com suas meias-irmãs, ele concluiu que aquelas garotas gordas, feias, convencidas não mereciam que gostassem delas, pois logo ficou claro que as duas guardavam rancor de Rose por ter se casado com o pai delas e estavam desgostosas com o pai por ter traído a memória da mãe delas, a qual se tornara uma criatura santificada após sua morte terrível num acidente de carro na estrada Taconic State Parkway. Bem, o pai de Ferguson também havia tido uma morte horrível, o que, teoricamente, poria todos eles no mesmo barco, mas as irmãs Schneiderman não estavam interessadas em seu novo meio-irmão, nem se dignavam a falar com aquela nulidade de doze anos, as crescidas moças universitárias, da Universidade de Boston, não sabiam o que fazer com o filho zé-mané de uma mulher que tinha roubado delas o pai, e embora Ferguson tenha ficado intrigado com o comportamento das duas no casamento — se mantiveram à parte e não conversaram com ninguém senão uma com a outra, e quase sempre em sussurros, em geral de costas para a noiva e o noivo —, só duas semanas depois, quando foram convidadas para jantar no apartamento em Nova York, Ferguson entendeu como eram maldosas e egoístas, em especial Margaret, a mais velha, embora a mais nova, a menos insolente Ella, seguisse invariavelmente a liderança da irmã, o que provavelmente era ainda pior, e lá estavam os cinco juntos naquele jantar que nunca mais foi esquecido e cujo preparo tomou tantas horas da mãe, que queria provar sua solidariedade com Gil e que fez de tudo para agradar as filhas dele, aquelas garotas cruéis, esnobes, que fingiam não ouvir a mãe dele quando lhes dirigia perguntas sobre sua vida em Boston e sobre o que planejavam fazer depois da faculdade, e que a provocavam sarcasticamente por causa de sua cultura musical, que era quase zero, é claro, como se quisessem provar para o pai que ele tinha casado com uma imbecil ignorante, e, quando Margaret perguntou à sua nova madrasta se ela preferia ouvir as peças para teclado de Bach executadas no cravo, como tocava Wanda Landowska, por exemplo, ou no piano-forte, por alguém como Glenn Gould (não piano, mas piano-forte), Gil afinal explodiu e disse para ela calar a boca. A palma da mão aberta bateu com força na mesa de jantar, fez trepidar os talheres e derrubou um copo, e então veio o silêncio, silêncio não só de Margaret, mas de todos na sala.

Chega desses seus comentários mordazes e maliciosos, disse Schneiderman para a filha. Eu não sabia que você era capaz dessa crueldade malévola e torpe, Margaret. Que vergonha. Que vergonha. Que vergonha. Rose é uma grande e magnífica artista, e, se você conseguir realizar, na sua vida, um décimo do que ela fez, vai ultrapassar tremendamente as expectativas que tenho em relação a você. Só que a pessoa tem de ter alma para realizar mesmo as coisas mais ínfimas neste mundo, minha cara, e a julgar pela maneira como você está se comportando nesta noite, começo a ter dúvidas de que você tenha alguma alma.

Foi a primeira vez que Ferguson presenciou a indignação do padrasto, que era um tipo de indignação esbravejante e apoplética, uma ira de tamanha grandeza e força destrutiva que ele só podia torcer para que nunca se voltasse na sua direção, mas como era bom ver, naquela noite, que ela se voltou contra Margaret, que fez por merecer completamente aquela bronca brutal do pai, e como Ferguson se sentiu contente por saber que Schneiderman estava disposto a defender a nova esposa contra os ataques da própria filha, uma grande e magnífica artista, o que augurava um bom futuro para o casamento, ele sentiu, e quando Margaret, inevitavelmente, se desfez em lágrimas e uma chorosa Ella protestou que ele não tinha direito de atacar sua irmã daquele modo, Ferguson ouviu a mãe pronunciar uma expressão, pronunciar pela primeira vez a expressão que ela usaria sempre, toda vez que Schneiderman perdia o controle, durante os meses e os anos que se seguiram, tenha calma, Gil, que, de certo modo, conseguia conter em si o peso duplo de um afago e de uma advertência, e logo depois que ele ouviu a mãe dizer aquelas palavras pela primeira vez, ela se levantou e se aproximou do marido, um homem com quem estava casada havia dezesseis dias, se pôs de pé atrás da cadeira dele, na cabeceira da mesa, colocou as mãos em seus ombros e depois se inclinou para a frente e o beijou na nuca. Ferguson ficou impressionado com a coragem e a atitude da mãe, que o fez pensar numa pessoa que entra na jaula de um leão, mas aparentemente sua mãe sabia o que estava fazendo, pois em vez de afastá-la, Schneiderman ergueu a mão e envolveu a mão dela na sua e, com a mão de Rose firmemente segura, levou-a até a boca e a beijou. Os dois nem olharam um para o outro, mas a explosão de raiva tinha sido suprimida, ou quase, pois ainda faltava resolver a questão de um pedido de desculpa, que Schneiderman, de voz severa, acabou arrancando da relutante e chorosa Margaret, que mal conseguia erguer os olhos para a madrasta, mas ela disse as palavras, disse desculpe, e como a explosão se deu na hora da sobremesa (morangos com creme!), o jantar estava praticamente encerrado, o que permitiu que as irmãs executassem uma retirada rápida, que manteve as aparências, com a desculpa de que tinham um encontro marcado com colegas do ensino médio às nove horas, a qual Ferguson logo viu que era falsa, pois as moças tinham combinado passar a noite ali no apartamento, dormindo no seu quarto, enquanto ele iria fazer sua cama no sofá da sala, um sofá-cama especial que a mãe tinha comprado especificamente com aquele fim, mas isso nunca aconteceu, nem naquela noite nem em nenhuma outra, pois em todas as futuras visitas a Nova York, as irmãs ficaram com o tio, o irmão da mãe delas, e sua esposa, em Riverside, e se Schneiderman quisesse vê-las, teria de ir àquele apartamento ou encontrá-las em lugares públicos, mas nunca mais voltaram ao apartamento em Central Park Oeste, e anos se passaram antes de as duas porem os pés de novo no apartamento que dava para o rio.

Ferguson não se importou. Ele não queria ter nada a ver com nenhuma daquelas moças, assim como também não queria ter nada a ver com o pai de Schneiderman, que infelizmente ia jantar com eles uma vez por mês, cuspindo toda sorte de bobagem sobre a política americana, a Guerra Fria, os trabalhadores do setor de saneamento de Nova York, física quântica e até sobre Ferguson, Cuide desse seu garoto, liebchen — ele tem sexo na cabeça e ainda nem sabe o que é isso, mas Ferguson fazia tudo o que podia para evitá-lo, tratava sempre de devorar o prato principal em tempo recorde, e em seguida se desculpava, dizendo que estava de barriga cheia demais para comer a sobremesa, hora em que se recolhia a seu quarto para estudar para a prova de história, no dia seguinte, prova que, na verdade, ele já havia feito naquela tarde. Seu novo não avô era um pouco menos horrível do que Margaret e Ella, talvez, mas nem tanto assim, não o bastante para que Ferguson tivesse vontade de ficar perto e ouvir aquele tagarelar doido sobre os campos de concentração secretos de J. Edgar Hoover no Arizona ou a aliança entre a John Birch Society e o Partido Comunista para envenenar os reservatórios do sistema de abastecimento de água da cidade de Nova York, o que até poderia ser engraçado, de um jeito meio esquisito, se o velho não berrasse tanto, mas vinte ou trinta minutos na companhia dele era o máximo que o estômago de Ferguson conseguia suportar. Portanto, somados, já eram três os parentes que ele não conseguia suportar, eram três os Schneiderman que ele ficaria contente de não ver, só que havia outros Schneiderman, os que moravam a apenas treze quadras e meia descendo a rua 55 Oeste e, embora ele achasse difícil ter carinho pela meia-tia Liz, que lhe parecia uma mulher de maus bofes, uma pessoa do tipo nervosa, impaciente demais com as minúcias do dia a dia para entender que a vida podia escapar correndo antes que a gente sequer começasse a viver, Ferguson imediatamente se apegou ao irmão de Schneiderman, Daniel, e os dois filhos de Schneiderman, os meios-primos Jim e Amy, que desde o início fizeram Ferguson se sentir bem-vindo e acharam que seu tio Gil era um sortudo filho da mãe (palavras de Jim) por ter casado com uma mulher como a mãe de Ferguson, que (nas palavras de Amy) era praticamente perfeita.

Daniel era artista comercial e, às vezes, ilustrador de livros infantis, um trabalhador autônomo que fazia serviços avulsos e passava de oito a dez horas num quartinho nos fundos do apartamento da família, que tinha sido transformado num escritório, um ateliê atulhado e mal iluminado onde ele produzia freneticamente desenhos e pinturas para cartões de felicitação, anúncios, calendários, folhetos empresariais e aquarelas do ursinho Tommy para suas colaborações com o escritor Phil Costanza, ganhando assim dinheiro suficiente para alimentar, vestir e abrigar uma família de quatro pessoas, mas sem sobrar nada para extravagâncias, como longas férias de verão e escola particular para os filhos. Seu trabalho era hábil e profissional, trazia as marcas da mão experiente e da imaginação caprichosa e, apesar de não haver nada de tremendamente original no que fazia, nunca era menos do que encantador, palavra que era usada com frequência para definir o próprio Daniel Schneiderman, que se revelou uma das pessoas mais despretensiosas e joviais que Ferguson tinha visto na vida, uma pessoa que gostava de rir e, em consequência, ria muito, um tipo de criatura em tudo diferente de seu irmão mais velho, o caçula que nunca teve de lutar contra o sotaque alemão, o bonito, o jocoso, o que gostava de esportes, como o meio-primo Jim, o magro Jim que jogava basquete e tinha começado a terceira série na Bronx High School of Science quando Gil e a mãe de Ferguson se casaram, e, quando o contingente masculino dos outros Schneiderman ficou sabendo que o novo sobrinho primo era tão ligado em basquete quanto eles, o duo virou um trio e, toda vez que Dan e Jim iam assistir a uma partida no Garden, Ferguson era convidado para ir junto. Era o antigo Garden, o hoje demolido Madison Square Garden que, antigamente, ficava na Oitava Avenida, entre as ruas 49 e 50, e foi assim que Ferguson foi levado para ver suas primeiras partidas de basquete ao vivo naquela temporada de 1959-60, séries de três partidas seguidas no sábado à tarde, entre equipes universitárias, exibições do Harlem Globetrotter e o fajuto e medíocre time do Knicks de Richie Guerin, Willie Naulls e Jumpin Johnny Green, mas naquele tempo só havia oito equipes da liga NBA, o que significava que o Boston Celtics jogava no Garden pelo menos uma dúzia de vezes por temporada, e eram essas as partidas que o trio fazia questão de ver, pois ninguém jogava melhor do que aquele time de Cousy, Heinsohn, Russell e os rapazes de Jones, eles formavam um único cérebro de cinco partes em movimentação constante, uma única consciência, jogadores absolutamente destituídos de egoísmo, que só pensavam na equipe e não em si mesmos, o basquete como devia ser jogado, como o tio Dan não cansava de repetir, enquanto via a partida e, sim, era espantoso observar como eles eram melhores do que o Knicks, que ao lado deles pareciam uns preguiçosos e desajeitados, no entanto, por mais que Ferguson admirasse a equipe como um todo, só havia um jogador que se destacava para ele, e captava o grosso de sua atenção, o musculoso e magricela Bill Russell, que parecia estar sempre no coração do que os jogadores do Celtics faziam, aquele cujo cérebro parecia comportar os outros quatro cérebros dentro da cabeça, ou um homem que, de algum modo, tinha dissolvido seu cérebro nas cabeças de seus companheiros de equipe, pois Russell se movimentava de um jeito estranho e não parecia um atleta, era um jogador limitado que raramente arremessava a bola no cesto ou fazia pontos, que raramente driblava quicando a bola e, no entanto, lá estava ele bloqueando mais um rebote decisivo, dando mais um incrível passe com a bola quicando na quadra, bloqueando mais um arremesso e, por causa dele, o Celtics não parava de vencer partida após partida, temporada após temporada, campeões ou disputando o título de campeão todos os anos, e quando Ferguson perguntou para Jim o que fazia Russell ser um jogador tão extraordinário, quando em tantos aspectos ele nem chegava a ser bom, Jim parou um instante para pensar, balançou a cabeça e respondeu: Não sei, Archie. Talvez seja apenas mais esperto do que todos os outros, ou talvez seja porque ele enxerga mais do que os outros e sempre sabe o que vai acontecer no momento seguinte.

O magrelo Jim foi a resposta às antigas preces de Ferguson, o desejo de ter um irmão mais velho, ou pelo menos um primo-amigo mais velho, que ele pudesse olhar com respeito e que lhe transmitisse força, e Ferguson ficou exultante com a ligação entre ambos, com a forma como o Jim, de dezesseis anos, parecia não ter nenhum menosprezo de abraçar seu meio-primo mais novo como seu camarada, sem que Ferguson nem de longe desconfiasse que Jim, que tinha uma irmã e duas primas, sem dúvida nenhuma, também vinha sonhando com um irmão, tanto quanto Ferguson. Nos dois anos anteriores à formatura de Jim no ensino médio e à sua mudança para estudar no MIT, ele acabou se constituindo numa figura central para Ferguson, muitas vezes confuso e revoltado, que estava indo bem nas aulas na Riverside Academy, mas continuava a ter um problema de atitude (respondia aos professores, se exaltava facilmente quando provocado por brigões como Billy Nathanson), e lá estava o Jim, pura curiosidade e bom humor, um rapaz de bom coração, dedicado à matemática e às ciências, que adorava falar sobre os números irracionais, buracos negros, inteligência artificial e dilema de Pitágoras, sem a menor raiva, nunca uma palavra grosseira nem qualquer gesto agressivo dirigido a quem quer que fosse e, certamente, seu exemplo ajudou a refrear certo excesso presente no comportamento de Ferguson, e lá estava Jim apresentando para Ferguson a anatomia feminina das partes baixas e explicando o que fazer com o problema, cada vez mais insistente, do sexo no cérebro (banhos frios, cubos de gelo no peru, correr cinco quilômetros dando voltas na pista), e o melhor de tudo era ter Jim a seu lado na quadra de basquete, o aluno da penúltima série do ensino médio, de um metro e setenta e nove de altura, o aluno da última série, de um metro e oitenta e três, que encontrava Ferguson aos sábados pela manhã a meio caminho entre seus dois apartamentos e descia caminhando com ele pelo Riverside Park, onde encontravam uma quadra vazia e treinavam juntos durante três horas, às sete horas em ponto todos os sábados, contanto que os deuses do clima estivessem do lado deles, uma garoa até que era aceitável, mas não os pés-d’água, uma nevezinha rala podia ser, mas não granizo ou neve pesada, e não se fazia nada quando a temperatura caía abaixo de quatro graus negativos (os dedos congelavam) ou subia acima de trinta e cinco (prostração por efeito do calor), o que significava que eles estavam lá na quadra na maior parte dos sábados, até que Jim fez as malas e foi embora para a universidade. Não havia mais as caminhadas ao lado da mãe, naquelas excursões fotográficas de fim de semana, para o jovem sr. Ferguson, aqueles dias estavam encerrados para sempre e, de agora em diante, era o basquete, que ele tinha descoberto aos doze anos, quando a bola deixou de ser grande e pesada demais para ser controlada e, quando tinha doze anos e meio, o basquete tinha se tornado uma nova paixão em sua vida, a melhor coisa para fazer depois de ir ao cinema e beijar as garotas, e que grande sorte o Jim ter entrado em cena bem naquele momento e estar disposto a abrir mão de três horas todo fim de semana para ensinar Ferguson a jogar basquete, que reviravolta milagrosa foi aquela, a pessoa certa na hora certa — quantas vezes aquilo acontecia? —, e como Jim era um jogador bom e consciencioso, bom até de sobra para entrar no time do seu colégio, se quisesse, era um bom professor dos fundamentos e, um a um, levou Ferguson a perfazer os treinamentos básicos de como executar uma cesta de bandeja, como movimentar os pés na hora de defender, como cortar um rebote, como fazer um passe com um quique da bola no chão, como fazer arremessos livres, como fazer uma cesta de tabela, como lançar a bola no ponto mais alto de um pulo, eram tantas coisas para aprender, driblar com a mão esquerda, dar piques com a bola quicando, manter os braços erguidos no bloqueio, e depois as disputas de arremessos livres, chamadas de O-U-T e H-O-R-S-E,*** no fim de cada sessão, que se transformaram em partidas de um contra um no segundo ano, quando Ferguson desabrochou para a altura de um e sessenta e dois, um e sessenta e sete, um e sessenta e nove, sempre perdendo para o Jim, mais alto e mais experiente do que ele, mas Ferguson começou a progredir bastante depois de completar catorze anos, às vezes de forma respeitável o suficiente para acertar cinco ou seis arremessos no meio de um salto e lançar a bola em cheio através do aro sem redes do Riverside Park, os mesmos aros nus que havia em todos os parques públicos da cidade, e como eles jogavam seguindo a regra de Nova York de winners-out,**** toda vez que Ferguson desandava a acertar arremessos seguidos, ele chegava perigosamente perto de não perder o jogo. Como disse Jim, depois de uma das últimas partidas que disputaram: Dê mais um ano, Archie, cresça mais cinco ou sete centímetros que você vai me dar um olé na quadra. Falou essas palavras com a satisfação orgulhosa de um professor que instruiu bem seu discípulo. E depois foi para Boston e adeus, e se abriu mais um buraco no coração de Ferguson.

Um ano e meio depois do casamento de sua mãe com Gil, Ferguson tinha reunido informações suficientes sobre os Schneiderman para chegar a algumas conclusões definitivas sobre sua nova família. Na coluna da esquerda de seu livro de contabilidade mental, ele pôs os nomes de três porcarias e uma semiporcaria: as feias inomináveis (2), o patriarca demente (1) e a bem-intencionada, mas inconstante e irascível tia Liz (1/2). Na coluna da direita, estavam os nomes dos outros quatro: o admirável Gil, o amável Dan, o entusiasmado Jim e a cada vez mais atraente Amy. No todo, ele contou três e meio negativos contra quatro positivos, o que matematicamente provava que havia mais para ser grato do que para ficar se lamentando, e, como os Adler tinham praticamente desaparecido da terra dos vivos e os Ferguson, agora, se mostravam inteiramente ausentes (o tio Lew na prisão, a tia Millie em algum lugar da Flórida, o tio Arnold e a tia Joan em Los Angeles, a prima Francie em Santa Barbara — casada, mãe de dois filhos — e os outros primos espalhados pelo país e já fora de contato), os quatro Schneiderman bons eram, no fundo, tudo o que tinha restado para Ferguson, e, como um daqueles Schneiderman estava casado com sua mãe e os outros três moravam a apenas alguns minutos de sua casa, na mesma Riverside Drive em que ele morava, Ferguson foi ficando cada vez mais apegado a eles, pois os positivos no livro de contabilidade de sua família eram muito mais positivos do que os negativos eram negativos, e, muito embora sua vida tivesse se reduzido em certos aspectos, tinha também se ampliado imensamente em outros.

Amy era o bônus dos Schneiderman, o presente de aniversário escondido embaixo de um monte de papel de presente embolado, que a gente só vai encontrar depois que a festa acabou e todos os convidados já foram embora. Foi um erro de Ferguson não ter prestado mais atenção nela, mas tinha tantas coisas para ajustar no início, e ele também não sabia o que fazer com a criatura risonha e desajeitada que se balançava e abria os braços quando falava e não conseguia ficar quieta, uma garota de aspecto tão incomum, com aquele aparelho nos dentes e a cabeça de cabelo louro-encardido e embolado, mas aí o aparelho foi removido dos dentes, o cabelo foi cortado, e, quando Ferguson completou treze anos, percebeu que os seios começavam a crescer dentro do sutiã de Amy, até então sem serventia nenhuma, e que sua meia-prima, já com treze anos, não parecia mais a garota que era aos doze. Uma semana depois da mudança de Central Park Oeste para a Riverside Drive, Amy telefonou para ele, um dia, depois da escola, e corajosamente avisou que ia lhe fazer uma visita. Quando Ferguson perguntou por que ela queria vê-lo, respondeu: Porque a gente se conhece há seis meses e, durante todo esse tempo, você não me disse mais do que três palavras. Agora nós temos de ser primos, Archie, e quero saber se vale a pena fazer amizade com você ou não.

A mãe e o padrasto estavam fora de casa naquela tarde e, sem nada no armário da cozinha para beliscar, a não ser uma caixa, já comida até a metade, de biscoitinhos meio murchos recheados com doce de figo, Ferguson sentiu-se em apuros, sem saber como se comportar diante daquela invasão repentina. Depois que Amy desligou o telefone no apartamento dela, passaram apenas dezoito minutos para ela apertar a campainha na portaria do prédio de Ferguson, mas nesse intervalo ele cogitou e descartou pelo menos meia dúzia de ideias sobre o que poderia fazer para entreter Amy (Ver televisão? Ver o álbum de fotografias da família? Mostrar os trinta e sete volumes da coleção completa das peças e poemas de Shakespeare que Gil lhe dera de presente de aniversário?), e então decidiu tirar do armário o projetor de cinema e a tela portátil e montar tudo para assistirem a um de seus filmes de O Gordo e o Magro, o que provavelmente era um erro terrível, Ferguson se deu conta, pois as meninas não gostavam de Laurel e Hardy, pelo menos nenhuma garota que ele tinha conhecido, a começar pela linda Isabel Kraft, dois ou três anos antes, que torceu o nariz quando ele perguntou o que achava deles, um sentimento ecoado havia pouco tempo pela sua atual número um, Rachel Minetta, que os chamou de infantis e idiotas, mas aí apareceu a Amy, naquela fria tarde de março de 1960, vestida num suéter branco, saia cinzenta pregueada, sapatos bicolores e meias brancas de algodão — as onipresentes meias que subiam até as panturrilhas, tão em voga no momento —, e quando Ferguson anunciou sua intenção de lhe mostrar Blotto, um filme de O Gordo e o Magro de dois rolos feito em 1930, ela sorriu e disse: Que legal. Adoro O Gordo e o Magro. Depois dos Irmãos Marx, são os melhores. Esqueça Os Três Patetas, esqueça Abbott e Costello: Stan e Ollie são o máximo.

Não, Amy não era como nenhuma das meninas que ele conhecia, e, quando Ferguson a viu rindo do filme, a ouviu dando risadas do filme por bons catorze minutos, do total de vinte e seis que durava, concluiu que, sem dúvida, valia a pena tentar fazer amizade com ela, pois sua risada não era aquele guincho descontrolado de uma criança, ele percebeu, mas uma sucessão de gargalhadas ressoantes, que vinham do fundo da barriga — latidos alegres, de fato, mas ao mesmo tempo pensativos, como se ela entendesse por que estava rindo, o que tornava sua risada um riso inteligente, um riso que ria de si mesmo, ainda quando ria daquilo de que estava rindo. Era uma pena que ela estivesse na escola pública e não na Riverside Academy, o que eliminava a possibilidade do contato diário, mas apesar do envolvimento dos dois com seus amigos distintos, e apesar de seus diversos afazeres depois da escola (piano e aula de balé, para Amy, esportes, para Ferguson), conseguiam se encontrar de dez em dez dias, mais ou menos, depois da visita improvisada de Amy, em março, o que ocorria três ou quatro vezes por mês, sem contar as ocasiões adicionais em que os dois se encontravam nos passeios em família, jantares festivos, idas ao Carnegie Hall com Gil e eventos especiais (a festa de formatura de Jim no ensino médio, a festança de aniversário de oitenta anos do velho caduco), mas no geral os dois se viam a sós, caminhavam pelo Riverside Park quando o tempo estava bom, ficavam no apartamento de um ou do outro quando o tempo estava ruim, de vez em quando iam juntos ao cinema ou faziam as tarefas da escola juntos, na mesma mesa, ou ficavam à toa, juntos, num dos dois apartamentos nas noites de sexta-feira, para ver o novo programa de televisão de que ambos gostavam tanto (Além da Imaginação), mas, em geral, quando estavam juntos, conversavam, ou Amy falava e Ferguson escutava, pois ele não conhecia ninguém mais que tivesse tanto a dizer sobre o mundo quanto Amy Schneiderman, que parecia ter uma opinião formada sobre todos os assuntos e sabia muito mais coisas do que ele a respeito de quase tudo. A inteligente e estrepitosa Amy, que provocava o pai, fazia piadas com o irmão e evitava as eternas tempestades em copo d’água da mãe com tiradas cortantes e sarcásticas que, de algum jeito, ela conseguia disparar sem ser repreendida ou castigada, muito provavelmente porque era uma menina que dizia o que pensava com toda franqueza e havia treinado as pessoas da família a respeitá-la por isso, e agora até Ferguson, que rapidamente se tornara seu novo melhor amigo, estava completamente imune aos insultos e às críticas de Amy. Por mais que ela declarasse, aos brados, que gostava dele e o admirava, muitas vezes Amy achava que Ferguson tinha uma cabeça preguiçosa e ficava sempre espantada com sua falta de interesse por política, com a pouca atenção que ele dava para a campanha presidencial de Kennedy e o movimento dos direitos civis, mas Ferguson não podia se incomodar com isso, disse ele, até desejava que Kennedy ganhasse, porém, mesmo que se tornasse presidente, as coisas não melhorariam além do que estavam agora, apenas não ficariam muito piores, e quanto ao movimento dos direitos civis, é claro que ele era a favor, como é que alguém poderia ser contra a justiça e a igualdade para todos, mas ele só tinha treze anos, puxa vida, não passava de um insignificante grão de poeira, e que diabo podia fazer um mero cisco para mudar o mundo?

Isso não é desculpa, disse Amy. Você não vai ter treze anos para sempre — e aí, o que vai acontecer com você? Não pode passar a vida pensando só em si mesmo, Archie. Tem de deixar alguma coisa entrar em você, senão vai acabar virando uma dessas pessoas ocas que você tanto detesta — você sabe, um dos mortos-vivos da Terra dos Zumbis, os Estados Unidos da América.

A gente vai superar isso, disse Ferguson.

Não, meu engraçadinho homem-cisco. Você é que vai superar.

Era estranho estar tão ligado a uma menina, descobriu Ferguson, sobretudo uma menina que ele não tinha a menor vontade de beijar, o que era uma forma de amizade sem precedentes na sua experiência, tão intensa quanto todas as amizades que tivera com meninos e, no entanto, por causa da circunstância de Amy ser menina, havia uma tonalidade diferente nas relações entre ambos, uma palpitação de menino-menina logo abaixo da superfície, que era, contudo, diferente da palpitação que ele sentia com Rachel Minetta ou Alice Abrams ou com qualquer das outras meninas que ele havia namorado e beijado aos treze anos de idade, uma palpitação forte, em contraste com a palpitação branda que sentia com Amy, pois ela, afinal, era sua prima, um membro da família, o que significava que ele não tinha nenhum direito de beijá-la e nem mesmo de pensar em beijar, e a interdição era tão grande que nem uma vez passou pela cabeça de Ferguson ir contra aquilo, ciente de que tal ato teria sido altamente incorreto, ou mesmo profundamente chocante, e no entanto Amy estava se tornando cada vez mais atraente para ele, enquanto via seu corpo desabrochar na plena florescência da sua feminilidade adolescente, não era bonita do mesmo jeito que Isabel Kraft era bonita, talvez, mas cativante, de olhos vivos, como nenhuma garota jamais tinha sido para ele, e apesar disso Ferguson continuava a resistir à pressão para romper o código da honra familiar. Então, fizeram catorze anos, primeiro Amy, em dezembro, depois Ferguson, em março, e de repente ele se viu habitando um corpo novo, que já não estava mais sob seu controle, um corpo que produzia ereções espontâneas e encurtamentos do fôlego, a primeira fase de masturbação, na qual nenhum pensamento que não fosse erótico conseguia se fixar no seu crânio, o delírio de se tornar homem sem o privilégio de ser homem, tumulto, consternação, o caos inexorável, por dentro, e agora, toda vez que olhava para Amy, seu primeiro e único pensamento era a vontade que sentia de beijá-la, o que ele sentia que começava a ser verdade também para ela, toda vez que olhava para ele. Num fim de tarde de sexta-feira, em abril, em que sua mãe e Gil estavam fora de casa, em algum jantar com amigos no centro da cidade, ele e Amy estavam sozinhos no apartamento do sétimo andar, discutindo sobre a expressão “primos que se beijam”, expressão que Ferguson confessava que não entendia inteiramente, pois parecia evocar uma imagem de primos que se beijam educadamente na bochecha, o que não parecia correto, de certo modo, pois esse tipo de beijo não se habilitava como um beijo autêntico e, portanto, por que primos que se beijam, quando as pessoas na cabeça dele eram apenas primos normais, e nesse ponto Amy deu uma risada e disse: Não, bobinho, primos que se beijam significa isto aqui, e sem dizer mais nenhuma palavra, inclinou-se para Ferguson, no sofá, pôs os braços em volta dele e lhe deu um beijo na boca, que logo se converteu num beijo que viajou por dentro da boca, e a partir daquele momento Ferguson de­cidiu que, afinal, eles não eram primos de verdade.

* Gíria iídiche para “traseiro”. (N. T.)

** Apelido do estádio. Referência a Babe Ruth, astro dos primórdios do beisebol. (N. T.)

*** Cada arremesso errado corresponde a uma letra dessas palavras. Concluída a palavra, o jogador está fora do jogo. (N. T.)

**** Quando a posse de bola é de quem fez o ponto, e não de quem perdeu. (N. T.)


2.4

Amy Schneiderman vinha dormindo no antigo quarto dele nos últimos quatro anos, Noah Marx desapareceu por um tempo e depois voltou à superfície, e o Ferguson de treze anos, que tinha acabado de entrar na oitava série, queria cair fora. Como não estava em condições de ir embora de casa (para onde podia ir e como poderia viver, sem dinheiro?), pediu aos pais a segunda opção da sua lista: será que eles não podiam fazer o favor de mandá-lo para um colégio interno no mês de setembro e deixar que ele cursasse os quatro anos do ensino médio num lugar bem longe da cidade de Maplewood, Nova Jersey?

Ele não pediria isso se não soubesse que eles podiam pagar as despesas, pois o padrão de vida mais alto continuou a prosperar em altitudes ainda mais sublimes desde que a família se mudou para a casa nova em 1956. Mais duas lojas tinham sido adicionadas ao crescente império do pai (uma em Short Hills, a outra em Parsippany), e com os consumidores locais gastando a rodo e comprando dois ou três aparelhos de televisão para cada casa, só por ostentação, sem falar das máquinas de lavar louça, de lavar roupa e das secadoras de roupa, que eram consideradas agora um equipamento padrão em qualquer lar de classe média, e com a metade da população torrando seu dinheiro em volumosos receptáculos de congelamento profundo a fim de estocar os alimentos congelados que eles agora preferiam comer, o pai de Ferguson se tornou um homem abastado — ainda não era um Rockefeller, talvez, mas um rei do varejo suburbano, o renomado profeta dos lucros, cujos preços davam cabo da concorrência em sete condados.

Os despojos dessa renda em expansão incluíam, agora, um Eldorado verde-pistache de quatro portas para o pai de Ferguson, um Pontiac conversível vermelho cheguei para a mãe, um título de sócio do Blue Valley Coun­try Club e o fim do estúdio Foto Roseland, que marcou o final da breve carreira da mãe como arrimo do lar e artista independente (a voga de fotografias pintadas tinha passado, o estúdio mal conseguia se sustentar, portanto para que se dar ao trabalho de insistir, quando as vendas nas cinco lojas estavam mais fortes do que nunca?), e com todo esse movimento de dinheiro, esse compra e vende, toda essa opulência efervescente, Ferguson não conseguia enxergar como um colégio interno poderia representar um fardo para os pais. E se eles, por acaso, objetassem alguma coisa contra seu projeto (ou seja, se o pai fizesse alguma objeção, pois era ele quem tinha a última palavra em questões de dinheiro), Ferguson reagiria propondo abrir mão da colônia de férias no Acampamento Paraíso e, em vez disso, trabalharia no verão, o que ajudaria a reduzir o peso das despesas do internato.

Ferguson vinha pesquisando o assunto havia meses, contou para os pais, e os melhores colégios internos pareciam ficar na Nova Inglaterra, em especial em Massachusetts e em New Hampshire, mas também em Vermont e Connecticut, fora alguns bons, também, no norte do estado de Nova York e na Pensilvânia, e até havia alguns em Nova Jersey. Ainda estavam em setembro apenas, ele se deu conta, doze meses inteiros antes do começo do próximo ano letivo, mas os pedidos de matrícula tinham de ser enviados em meados de janeiro, e, a menos que agora eles começassem a estreitar a lista de internatos potenciais, não haveria tempo viável para tomar uma decisão abalizada.

Ferguson podia ouvir o tremor da própria voz enquanto falava com os pais, ele e sua presunção, os pais insondáveis sentados em torno da mesa de jantar numa noite de terça-feira, durante o outono da campanha de Nixon-Kennedy, um jantar de família, para variar, algo que acontecia cada vez menos agora, por causa do horário tardio do fechamento das lojas e da recém-descoberta paixão da mãe pelo bridge, que a mantinha fora de casa duas ou três noites por semana, e lá estavam eles na sala de jantar, enquanto Angie Bly ia e vinha sem parar, da cozinha para a mesa, trazia os pratos para cada nova seção do jantar e retirava os sujos, sopa de legumes para começar, seguida por grossas fatias de rosbife com purê de batata e um monte de vagem na manteiga, uma comida excelente feita pela rápida e competente Angie Bly, que havia quatro anos fazia a faxina e cozinhava para eles, e agora que Ferguson tinha engolido seu último bocado de rosbife, finalmente começou a falar, finalmente tomou coragem para falar do assunto que fazia meses vinha queimando dentro dele.

Observava os pais com cuidado, enquanto as palavras saíam da boca, analisava seus rostos em busca de sinais que revelassem o que estavam achando do seu plano, mas no geral pareciam vazios, pensou, como se não conseguissem assimilar absolutamente o que ele estava dizendo, pois por que ele iria querer abandonar o mundo perfeito em que vivia, ele, que estava se saindo tão bem na escola, que tinha tamanho prazer de jogar em seus times de basquete e beisebol, que tinha tantos amigos e era convidado para todas as festas nos fins de semana, o que mais um menino de treze anos poderia desejar, e como Ferguson era avesso a insultar os pais confessando que eram eles a razão pela qual desejava ir embora, que morar com eles, sob o mesmo teto, tinha se tornado quase intolerável, mentiu e disse que estava louco de vontade de uma mudança, que se sentia inquieto, sufocado com a pequenez de sua cidade diminuta e desejava muito enfrentar novos desafios, pôr-se à prova num local que não fosse a sua casa.

Entendia que aquilo devia soar ridículo para os pais, tentar explicar seus motivos e formular argumentos sofisticados e persuasivos com sua voz imprevisível e fora de controle, sua traqueia de pós-menino-pré-homem que ainda oscilava do agudo ao grave e vice-versa, enquanto ele procurava seu registro definitivo, um instrumento vocal carente de toda autoridade e comando, e como Ferguson devia parecer ridículo para os pais também, com suas unhas roídas e a recente espinha de pus que estava brotando juntinho da narina esquerda, um pequeno zé-ninguém contemplado com todas as vantagens materiais possíveis na vida, casa e comida e mil confortos, e Ferguson era crescido o suficiente para saber quanta sorte tinha de habitar no mais elevado escalão da riqueza, já era crescido o suficiente para saber que nove décimos da humanidade passavam frio e fome, eram ameaçados pela necessidade e pelo temor perpétuo, e quem era ele para reclamar de seu destino, como podia se atrever a exprimir a mais ínfima nota de insatisfação, e, já que sabia qual era sua posição no quadro geral da luta humana, sentia vergonha da própria infelicidade, se revoltava com sua incapacidade de aceitar as vantagens que tinha recebido, mas sentimentos são sentimentos e ele não conseguia deixar de se sentir indignado e frustrado, pois nenhum ato de vontade era capaz de mudar o que uma pessoa sentia.

Os problemas eram os mesmos que ele tinha identificado anos antes, só que agora estavam piores, tão piores que Ferguson chegou à conclusão de que não podiam mais ser resolvidos. O absurdo Cadillac verde-pistache, o terreno sem vida e imaculadamente bem cuidado em torno do Blue Valley Country Club, as conversas sobre votar em Nixon em novembro — tudo aquilo eram sintomas de uma enfermidade que infectava o pai fazia muito tempo, mas o pai era mesmo uma causa perdida desde o início e Ferguson viu sua ascensão para as fileiras dos novos-ricos vulgares com uma espécie de resignação entorpecida. Então veio a morte do estúdio Foto Roseland, que atirou Ferguson num pânico que durou meses, pois ele sabia que o estúdio representava mais do que uma mera questão de dólares e centavos. Fechar o estúdio era uma derrota, uma declaração de que a mãe tinha desistido de si mesma, e agora que ela havia se rendido e passado para o outro lado, como era triste vê-la se transformar numa daquelas mulheres, mais uma esposa do Country Club que jogava golfe e baralho e bebia de um só gole drinques demais na hora do coquetel. Ferguson sentia que a mãe estava tão infeliz quanto ele, só que não podia falar com ela sobre o assunto, era jovem demais para se imiscuir em seus assuntos particulares e, no entanto, estava claro para ele que o casamento dos pais, que sempre o fizera pensar numa banheira de água morna e sem graça, agora tinha esfriado, degenerando numa coabitação entediada e sem amor de duas pessoas que cuidavam de seus assuntos particulares e só se cruzavam quando precisavam ou queriam, o que quase nunca acontecia.

Não havia mais partidas de tênis nas quadras públicas, não havia mais almoços de domingo no restaurante Gruning’s, não havia mais tardes de sábado no cinema. O dia nacional de descanso, agora, eles passavam no Country Club, um Valhalla de gramados verdes de golfe, esguichos de irrigadores, além de crianças que berravam, fazendo bagunça na piscina aquecida, mas Ferguson raramente acompanhava os pais naquelas viagens de quarenta minutos até Blue Valley, pois domingo era o dia em que ele ia treinar com suas equipes de basquete, futebol americano e beisebol — mesmo nos domingos em que não havia treino nenhum. Visto de longe, não havia nada intrinsecamente errado com o golfe, supunha Ferguson, e sem dúvida era possível defender os benefícios de almoçar coquetéis de camarão e sanduíches de três camadas, mas ele sentia falta dos seus hambúrgueres e de suas taças de sorvete de menta com pedacinhos de chocolate, e, quanto mais próximo ele ficava do mundo que o golfe representava, mais aprendia a desprezar o golfe — não tanto o esporte em si, talvez, mas com certeza as pessoas que jogavam.

O presumido e puritano Ferguson. O inimigo dos costumes e das maneiras da classe média alta, o sabe-tudo e a palmatória do mundo, que desprezava a classe americana dos caçadores de status e dos consumidores ostensivos — o menino que queria cair fora.

Sua única esperança era de que seu pai achasse que mandar o filho para um colégio interno de boa reputação aumentaria seu prestígio no clube. Pois é, nosso menino está em Andover agora. Muito melhor do que estudar numa escola pública, não concorda? Quanto às despesas, dane-se. O melhor presente que um pai pode dar ao filho é uma boa educação.

Um tiro no escuro, sem dúvida, uma esperança vã, nascida do otimismo ilusório de uma cabeça de treze anos de idade, pois na realidade não havia motivo para ter esperança. Sentado à sua frente, na mesa, naquela noite amena de setembro, o pai baixou o garfo e disse: Você está falando como uma criança, Archie. O que está me pedindo para fazer é pagar duas vezes pela mesma coisa, e ninguém que tenha a cabeça no lugar vai cair numa conversa fiada como essa. Pense bem. Pagamos impostos nesta casa, não é? Impostos muito altos, um dos impostos sobre bens imobiliários mais altos do estado. Eu não gosto disso, mas até estou disposto a abrir mão do dinheiro, porque recebo alguma coisa em troca. Escolas boas, algumas das melhores escolas públicas do país. Foi por isso que mudamos para esta cidade, antes de tudo. Porque sua mãe sabia que você ia receber uma boa educação aqui, tão boa quanto a que podem oferecer em qualquer dessas suas escolas particulares metidas a besta. Portanto, sem chance, garoto. Não vou pagar duas vezes por uma coisa que já tenho. Farshtaist?*

Aparentemente, os internatos não figuravam na lista de gastos exibicionistas do seu pai, e como a mãe, então, interveio e disse que ia partir seu coração se ele saísse de casa numa idade tão prematura, Ferguson nem se deu ao trabalho de mencionar sua ideia de trabalhar no verão a fim de ajudar a custear os estudos. Agora ele estava encurralado. Não só pelo restante daquele ano, como também pelos quatro anos adicionais que levaria para se formar no ensino médio — cinco anos, ao todo, o que era mais tempo do que muita gente ficava na cadeia, condenada por roubo ou homicídio culposo.

Angie entrou na sala de jantar com a sobremesa, e, quando Ferguson baixou os olhos para a taça com pudim de chocolate, perguntou-se por que não existia uma lei que permitisse que as crianças se divorciassem dos pais.

Como nada tinha mudado nem ia mudar, porque o antigo sistema da governança familiar ainda continuava intacto, depois que os esforços de Ferguson para emendar sua constituição foram rechaçados na votação, o ancien régime que não caiu continuou a reinar por reflexo e por um capricho arraigado e, assim, ficou decretado que o descontente derrotado devia ser recompensado com mais um verão no seu adorado Acampamento Paraíso, seu sexto ano consecutivo naquele paraíso, longe dos pais, feito de campos de beisebol, de expedições em canoas e da companhia turbulenta de seus amigos de Nova York. Não só Ferguson estava prestes a deixar a mãe e o pai para desfrutar dois longos meses de repouso e liberdade, como quem estava de pé a seu lado na plataforma da estação Grand Central na manhã de sua partida era Noah Marx, que partiria rumo ao norte também, para mais um verão, pois Noah estava de volta e, depois de perder a segunda metade da temporada de 1956 e todas as oito semanas da temporada de 1957, ele tinha retomado seu vínculo com o Acampamento Paraíso e estava prestes a embarcar para lá, em sua terceira temporada seguida, em companhia do sobrinho de sua madrasta, também conhecido como seu meio-primo e amigo, Ferguson, agora com catorze anos, que, com um metro e setenta de altura, era meia cabeça mais alto do que Noah, que, no acampamento de férias, ainda atendia pelo nome de Harpo.

Era uma história curiosa. A tia de Ferguson, Mildred, continuou a ser a madrasta de Noah, porque ela e o tio Don nunca se deram ao trabalho de se divorciar, e, quando o pai de Noah voltou de sua temporada de dezoito meses em Paris, onde tinha começado a escrever uma biografia de Montaigne, mudou-se para seu antigo endereço, a Perry Street. Mas não para o apartamen­to no terceiro andar que, antes, tinha dividido com a tia Mildred, e sim para um menor, do segundo andar, um apartamento de sala e quarto que tinha vagado durante sua ausência e que Mildred alugou para ele, antes de seu regresso. Aquela era uma organização nova. Depois de um ano e meio de tumulto e indecisão, interrompidos por três viagens a Paris, quando Mildred estava de folga de suas aulas no Brooklyn College, eles concluíram que não podiam viver separados. Por outro lado, compreenderam também que eram in­ca­pazes de morar juntos — pelo menos o tempo todo, pelo menos não da maneira convencional como faziam as pessoas casadas e, a menos que se per­mitissem interrupções esporádicas da rotina doméstica, acabariam se entredevorando num banho de sangue de fúria canibal. Daí veio o acordo de morarem em dois apartamentos, a chamada Conciliação pela Saída de Emergência, pois o amor deles era um desses amores impossíveis, uma mistura carregada de paixão e incompatibilidade, uma tempestade elétrica de íons com carga negativa e positiva ao mesmo tempo, e como Don e Mildred eram ambos egoístas, volúveis e absolutamente dedicados um ao outro, as guerras que travavam era intermináveis — exceto nos momentos em que Don se mudava para o andar de baixo, onde ficava seu apartamento no segundo andar, e tinha início uma nova era de paz.

Na opinião de Ferguson, aquilo era uma tremenda bagunça, mas que ele não habitava, de maneira nenhuma, pois, na sua experiência, todos os casamentos eram fracassados, de um jeito ou de outro, os conflitos selvagens de Don e Mildred, de um lado, e a indiferença cansada de seus pais, do outro, ambos casamentos fracassados, no final das contas, sem falar dos avós, que mal trocaram cinquenta palavras entre si ao longo dos últimos dez anos, e, até onde ele sabia, o único adulto, homem ou mulher, que parecia ter prazer no mero fato de estar vivo era sua tia-avó Pearl, que já não tinha mais marido e nunca mais teria outro. Apesar de tudo, Ferguson estava contente por Don e Mildred terem voltado a viver juntos, se não pelo bem deles mesmos, ao menos pelo bem do próprio Ferguson, pois o regresso de Don trouxe consigo a volta de Noah para sua vida e, depois de um intervalo de dezoito meses, durante o qual os dois foram impedidos de desfrutar a companhia um do outro por causa daquela meio doida, a mãe de Noah, Ferguson ficou espantado ao ver como os dois ficaram amigos de novo tão depressa, como se a longa separação tivesse durado não mais do que alguns dias.

Noah ainda era só fúria e agitação, a mesma língua afiada e veloz de antes, só que com muito menos combustível aos onze anos do que tinha aos nove, e enquanto os meninos atravessavam cambaleantes o fim da infância e entravam no início da adolescência, encontravam apoio no que percebiam ser a força do outro. Para Noah, Ferguson era o príncipe bonito que brilhava em tudo que punha a mão, a fera do beisebol que alcançava as mais altas pontuações com o taco, que tirava notas maravilhosas nas provas na escola, aquele que as garotas adoravam, que os outros meninos invejavam, e ser primo, amigo e confidente de uma pessoa assim era uma força enobrecedora em sua vida, que de outro modo seria uma vida de tormentos, a vida de transição de um garoto de catorze anos que vivia o tempo todo preocupado com sua cabeça de cabelinhos crespos, sua cara de bobo, os feiosos aneizinhos de metal amarrados nos dentes havia um ano, sua apavorante falta de encanto físico. Ferguson sabia como Noah o admirava, mas também sabia que aquela admiração era fruto de um mal-entendido e não se justificava; Noah o havia transformado num ser heroico e idealizado que, na verdade, não existia, ao passo que ele, Ferguson, no escuro reduto interior onde de fato vivia, compreendia que Noah possuía uma cabeça de primeira e que, quando se tratava de coisas realmente importantes, o jovem sr. Marx era mais avançado do que ele, pelo menos um passo à sua frente em todos os momentos, muitas vezes até dois passos, e de vez em quando quatro passos ou até dez. Noah era um desbravador, o batedor rápido que explorava as matas para Ferguson e lhe dizia onde era melhor caçar — livros para ler, músicas para ouvir, piadas para rir, filmes aos quais assistir, ideias para pensar —, e agora que Ferguson tinha digerido Cândido e Bartleby, J. S. Bach e Muddy Waters, Tempos modernos e A grande ilusão, os monólogos de Jean Shepherd, tarde da noite, e o homem de dois mil anos de Mel Brooks, Filho nativo e Manifesto Comunista (não, Karl Marx não era um parente — tampouco Groucho, infelizmente), ele não podia deixar de imaginar como sua vida teria sido pobre sem Noah. Indignação e decepção podiam levar a gente bem longe, ele se deu conta, mas sem curiosidade estamos perdidos.

Portanto, lá estavam eles, em julho de 1961, prestes a partirem para o Acampamento Paraíso, no início daquele movimentado verão em que todas as notícias que chegavam do mundo exterior pareciam ser sempre ruins: ergueram um muro em Berlim, Ernest Hemingway meteu uma bala na cabeça nas montanhas de Idaho, bandos de racistas brancos agrediam os Cavaleiros da Liberdade que viajavam de ônibus pelo sul do país. Ameaça, desânimo e ódio, provas abundantes de que não eram homens racionais que estavam incumbidos de governar o universo, e, quando Ferguson se instalou na confusão familiar e agradável da vida da colônia de férias, com dribles de basquete e tomadas de base de beisebol, de manhã e de tarde, ouvir os palavrões e as besteiras dos garotos na barraca, empolgar-se com a oportunidade de poder estar de novo na companhia de Noah, o que, acima de tudo, significava poder participar de uma ininterrupta conversa de dois meses com ele, dançar à noite com as garotas de Nova York de que ele tanto gostava, a espirituosa e peituda Carol Thalberg, a esguia e pensativa Ann Brodsky e, finalmente, Denise Levinson, coberta de espinhas, mas extraordinariamente linda, e que estava sempre a fim de dar uma fugida da “social” que acontecia depois do jantar, em troca de intensos exercícios de boca e língua no pasto que ficava nos fundos, eram tantas coisas boas para ele se sentir grato, e no entanto, agora que tinha catorze anos e sua cabeça estava cheia de pensamentos que nunca teriam lhe ocorrido apenas seis meses antes, Ferguson vivia olhando para si, em relação a outros, distantes, desconhecidos, e se perguntava, por exemplo, se ele não estava beijando Denise no exato momento em que Hemingway estourava os miolos em Idaho, ou se, na hora em que estava marcando um ponto duplo na partida entre o time do Acampamento Paraíso e o time do Acampamento Greylock, na quinta-feira anterior, um homem da Ku Klux Klan não estava dando um soco na cara de um Cavaleiro da Liberdade, magro e de cabelo curto, vindo de Boston. Uma pessoa beijada, outra, esmurrada, ou então uma pessoa indo ao enterro da mãe às onze horas da manhã do dia 10 de junho de 1857 e, ao mesmo tempo, no mesmo quarteirão, na mesma cidade, outra pessoa segura nos braços pela primeira vez seu filho recém-nascido, a dor de um ocorre simultaneamente à alegria do outro, e a menos que você seja Deus, que supostamente está em toda parte e pode ver tudo que acontece em determinado momento, ninguém pode saber que os dois fatos estão ocorrendo ao mesmo tempo, muito menos o filho amargurado e a mãe em regozijo. Será que foi para isso que Deus inventou o homem?, perguntou-se Ferguson. A fim de ultrapassar os limites da percepção humana, afirmando a existência de uma inteligência divina todo-poderosa e que abarca tudo?

Pense numa situação assim, disse ele para Noah, um dia à tarde, enquanto caminhavam rumo ao refeitório. Você tem de ir de carro para algum lugar. É um compromisso importante e você não pode se atrasar. Há dois caminhos para chegar lá — a estrada principal ou a estrada secundária. Por acaso, está na hora do rush e, normalmente, a estrada principal fica bastante engarrafada nesse horário, mas, a menos que haja um acidente ou um veículo quebrado, o trânsito tende a seguir devagar e constante, e é bem possível que a viagem dure uns vinte minutos, o que permite que você chegue ao seu compromisso bem na hora — em ponto, sem um segundo de folga. A estrada secundária é um pouco mais comprida, na distância, mas tem menos carros para você se preocupar e, se tudo correr bem, pode contar que a viagem vai durar quinze minutos, mais ou menos. Em princípio, a estrada secundária é melhor do que a principal, mas há também um obstáculo: só tem uma faixa em cada sentido e, se acontecer um acidente ou houver um veículo avariado, você pode acabar ficando parado no trânsito por muito tempo, o que vai levar você a chegar atrasado ao seu compromisso.

Espere aí, disse Noah. Preciso saber mais a respeito desse compromisso. Para onde estou indo e por que é tão importante para mim?

Isso não tem importância, respondeu Ferguson. A viagem de carro é só um exemplo, uma proposição, um modo de falar sobre o assunto que eu quero discutir com você — o que não tem nada a ver com estradas ou compromissos.

Mas tem importância sim, Archie. Tudo tem importância.

Ferguson deu um suspiro comprido e disse: Tudo bem. Você está indo para uma entrevista de emprego. É o emprego com que você sonhou a vida toda — correspondente em Paris para o Daily Planet. Se conseguir o emprego, vai ser o homem mais feliz do mundo. Se não, vai para casa e se enforca.

Se tem tanta importância assim para mim, por que eu tenho de sair de casa em cima da hora? Por que não começar a viagem uma hora antes e garantir que não vou chegar atrasado?

Porque... porque você não pode. Sua avó morreu e você tem de ir ao enterro.

É justo. É o que a gente chama de um dia importante. Acabei de passar seis horas chorando a morte da minha avó e agora estou no meu carro, rumo a uma entrevista de emprego. Que estrada você quer que eu pegue?

De novo, não é isso o que importa. Só há duas opções, a estrada principal e a secundária, e tanto uma quanto outra têm pontos positivos e pontos negativos. Digamos que você escolha a estrada principal para chegar ao seu compromisso na hora certa. Você não vai ficar pensando mais na sua opção, não é? E se você for pela estrada secundária e chegar lá no horário, de novo, tudo bem, nunca mais, em toda sua vida, você vai pensar no assunto. Mas aqui é que a história fica interessante. Você vai pela estrada principal, há um engavetamento de três carros, o trânsito fica parado por mais de uma hora e, enquanto você espera sentado dentro do carro, a única coisa na sua cabeça vai ser a estrada secundária e por que você não foi por lá. Você vai se xingar de tudo quanto é nome por ter feito a opção errada e, no entanto, como é que você pode saber, na verdade, que foi uma opção errada? Por acaso, você pode ver a estrada secundária? Por acaso, você sabe o que está acontecendo na estrada secundária? Será que alguém contou para você que uma sequoia enorme caiu atravessada na estrada e esmagou um carro que passava, matou o motorista e travou o trânsito por três horas e meia? Por acaso, alguém olhou para o relógio de pulso e disse para você que, se tivesse ido pela estrada secundária, o seu carro é que teria sido esmagado e você é que teria morrido? Ou então: não caiu nenhuma árvore, e ir pela estrada principal foi a opção errada. Ou então: você vai pela estrada secundária e a árvore caiu em cima do motorista bem na sua frente e, enquanto você está sentado dentro do seu carro lamentando não ter ido pela estrada principal, não tem a menor ideia de que houve um engavetamento de três carros que, de todo jeito, teria feito você perder o horário do seu compromisso. Ou então: não houve nenhum engavetamento de três carros e ir pela estrada secundária foi a opção errada.

E qual é o sentido de tudo isso, Archie?

O que estou dizendo é que a gente nunca sabe se fez a opção errada ou não. Seria preciso saber de todos os fatos antes de decidir, e a única maneira de obter todos os fatos é estar em dois lugares ao mesmo tempo — o que é impossível.

E daí?

E daí que é por isso que as pessoas acreditam em Deus.

O senhor deve estar brincando, Monsieur Voltaire.

Só Deus é capaz de ver a estrada principal e a estrada secundária ao mesmo tempo — o que significa que só Deus pode saber se você fez a opção certa ou a opção errada.

Como você sabe que ele sabe?

Não sei. Mas é essa a suposição que as pessoas fazem. Infelizmente, Deus nunca nos diz o que ele está pensando.

Você pode muito bem escrever uma carta para ele.

É verdade. Mas não ia adiantar nada.

Qual o problema? Não tem dinheiro para pagar o correio?

Não tenho o endereço do destinatário.

Naquele ano, havia um garoto novo na barraca, o único novato entre os velhos camaradas de Ferguson dos verões anteriores, um garoto que não era da cidade, que morava num distrito de Westchester chamado New Rochelle, o que fazia dele o único residente dos subúrbios, além de Ferguson, no círculo de seus conhecidos, era menos turbulento e menos agressivo com as palavras do que os garotos de Nova York, sossegado da maneira como Ferguson era sossegado, só que ainda mais, um garoto que não falava quase nada e, no entanto, quando falava, as pessoas que estavam por perto acabavam prestando toda atenção nas suas palavras. Seu nome era Federman, Art Federman, universalmente conhecido como Artie, e, como Artie Federman era muito parecido com o som do nome Archie Ferguson, os garotos na barraca gostavam de fazer piada dizendo que os dois eram irmãos que tinham se perdido um do outro muitos anos antes, gêmeos idênticos que foram separados quando nasceram. O que tornava a piada engraçada era que ela não chegava a ser uma piada de verdade, mas sim uma antipiada, uma piada que só fazia sentido se a pessoa a entendesse como uma piada sobre a própria piada, pois, embora Ferguson e Federman tivessem algumas características físicas comuns — parecidos no tamanho e no porte, os dois tinham mãos grandes e finas, os corpos musculosos de jovens jogadores de beisebol —, havia entre os dois poucas semelhanças além das iniciais dos nomes. Ferguson era moreno, e Federman, alourado, os olhos de Ferguson eram verde-acinzentados, e os de Federman eram castanhos, os narizes, as orelhas e as bocas tinham formatos diferentes e ninguém que os visse pela primeira vez jamais pensaria que os dois eram irmãos — nem mesmo primos distantes, no que diz respeito ao parentesco. Por outro lado, os garotos da barraca já não estavam mais vendo os dois juntos pela primeira vez e, à medida que os dias passavam e eles continuavam a observar os dois A. Fs. em ação, talvez estivessem começando a entender que a piada que não era piada era algo mais do que uma piada, pois ainda que não se tratasse de dois irmãos de sangue, tratava-se de amigos, dois amigos de sangue que, rapidamente, se tornaram íntimos como irmãos.

Uma das coisas esquisitas de ser ele mesmo, Ferguson tinha descoberto, era que pareciam existir vários Ferguson, que ele não era uma pessoa só, e sim uma coleção de personalidades contraditórias e, cada vez que estava diante de uma pessoa diferente, ele também se tornava diferente. Com um extrovertido e falador como Noah, ele se sentia calado e fechado em si mesmo. Com uma pessoa tímida e reservada como Ann Brodsky, ele se sentia bruto e vulgar, sempre falava demais a fim de vencer o constrangimento causado pelos prolongados silêncios da menina. Pessoas sem humor costumavam trans­formá-lo num piadista. Palhaços de raciocínio rápido o deixavam embotado e vagaroso. No entanto, outras pessoas tinham a capacidade de atrair Ferguson para sua órbita e levá-lo a agir da mesma forma que elas. O combativo Mark Dubinsky, com suas opiniões intermináveis sobre política e esporte, despertava em Ferguson o combatente verbal. O sonhador Bob Kramer fazia Ferguson se sentir frágil e inseguro. Por outro lado, Artie Federman o deixava calmo, e calmo de um modo como nenhuma pessoa o deixava, pois estar na companhia daquele garoto novo dava a mesma sensação de individualidade que Ferguson sentia quando estava sozinho.

Se cada um dos dois A. Fs. fosse uma pessoa ligeiramente distinta, eles facilmente poderiam ter se tornado inimigos. Ferguson, em especial, tinha todas as justificativas para se sentir magoado com a entrada em cena do recém-chegado, pois se verificou que Federman era melhor do que ele nos esportes e, nos cinco anos anteriores, Ferguson tinha sido o melhor, sobretudo no beisebol, o que significava que ele sempre jogava na posição de interbases e rebatia a quarta bola para o time visitante, mas quando Federman apareceu para um treino, no primeiro dia, logo se tornou evidente que ele tinha mais alcance e um braço mais forte do que Ferguson, que seu taco era mais rápido e mais poderoso e, no dia seguinte, quando completou dois homeruns e fez um ponto duplo numa partida disputada apenas entre os jogadores da própria equipe, o que eliminou qualquer dúvida possível de que seu desempenho no primeiro dia fosse apenas um lance de sorte, Bill Rappaport, o treinador de vinte e quatro anos, puxou Ferguson para o lado e anunciou sua decisão: Federman era o novo jogador de interbases e o rebatedor principal, e Ferguson ia ser transferido para a terceira base e ia rebater as sobras. Você entende por que estou fazendo isso, não é?, disse Bill. Ferguson fez que sim com a cabeça. Em função da força da evidência, o que mais podia fazer, senão balançar a cabeça? Não tenho nada contra você, Archie, continuou Bill, mas esse menino novo é fantástico.

Por qualquer ângulo que se encarasse aquilo, a nova escalação de Bill representava um rebaixamento, uma pequena queda na hierarquia, e magoou Ferguson perder sua posição de comandante supremo das tropas do beisebol do Acampamento Paraíso, porém, assim como sentimentos são sempre sentimentos, subjetivamente verdadeiros em cem por cento das vezes, fatos também são fatos e, naquele caso objetivo, um fato indiscutível era que Bill tinha tomado a decisão correta. Agora, Ferguson era o número dois. O velho sonho de infância de, um dia, chegar às ligas principais de beisebol lentamente se dissolveu num resíduo gosmento depositado no fundo do estômago. Ficou um gosto amargo, por um tempo, mas depois ele superou aquilo. Federman era simplesmente bom demais para querer competir com ele. Em face de tamanho talento, a única reação adequada era ser grato por ele estar do seu lado.

O que tornava aquele talento algo tão fora do comum, Ferguson percebia, era o fato de que Federman quase não tinha noção daquilo. Por mais que jogasse com seriedade, por mais partidas que vencesse com rebatidas no último período ou com incríveis mergulhos para apanhar a bola rente ao chão, ele parecia nunca ter noção de que era muito melhor do que todos os outros. Brilhar no beisebol era apenas algo que ele podia fazer, e Federman aceitava aquilo da mesma forma como aceitava a cor do céu ou o fato de a Terra ser redonda. Uma paixão de fazer bem as coisas, sim, mas ao mesmo tempo uma indiferença, até um toque de tédio, e toda vez que alguém do time comentava que ele devia pensar em se tornar jogador profissional quando terminasse o colégio, Federman balançava a cabeça e ria. O beisebol era uma coisa divertida, dizia ele, mas era intrinsecamente insignificante, não passava de coisa de criança, e quando ele se formasse no ensino médio, seu plano era entrar na faculdade e estudar para se tornar cientista — ou físico ou matemático, ainda não tinha certeza.

Naquela reação, pensava Ferguson, havia algo ao mesmo tempo estúpido e irresistível que o impressionava como um exemplo típico daquilo que definia o seu quase homônimo e o destacava de todos os outros, pois havia uma conclusão preestabelecida que determinava que todos os garotos acabariam indo para a faculdade, aquele era o mundo em que eles viviam, o mundo da terceira geração de judeus americanos, na qual todos, menos os de cabeça fraca, tinham de obter um diploma universitário, ou mesmo um título profissional ou uma pós-graduação, mas Federman não compreendia as nuances do que os outros lhe diziam, ele não conseguia se dar conta de que não estavam lhe dizendo que ele não devia ir para a faculdade, mas sim que ele não precisava ir, se não quisesse, o que significava que achavam que Federman estava numa posição acima deles, tinha mais controle sobre o próprio destino, e como ele era de fato um excelente aluno de matemática e de ciências e tinha a firme intenção de entrar na faculdade (naquele verão, estava estudando cálculo, onde já se viu?, quantos garotos de catorze anos conseguiam apreender os princípios do cálculo?), ele tinha ignorado aquele elogio e deu para isso uma resposta dura, que vinha direta do coração, e que era tão óbvia e fora de discussão (todo mundo sabia que ele estava estudando cálculo e que estava fatalmente destinado a entrar na faculdade) que ele nem precisava ter dito nada.

Mas isso era uma das coisas de que Ferguson gostava no outro A. F. — sua inocência, seu desinteressado distanciamento das ironias e das contradições da sociedade a que pertencia. Todo mundo parecia preso aos espasmos de uma agitação perpétua, um caos de impulsos em choque e de incoerências turbulentas, mas Federman era quieto, pensativo e aparentemente em paz consigo mesmo, tão fechado nos próprios pensamentos e na própria maneira de fazer as coisas que prestava pouca atenção no barulho à sua volta. Um ser não contaminado, pensava Ferguson, às vezes, tão puro e rigorosamente ele mesmo que, não raro, era difícil até entendê-lo, motivo pelo qual, sem dúvida nenhuma, ele e Noah formaram impressões tão distintas do seu novo colega de barraca. Noah estava disposto a garantir que Federman era, ao mesmo tempo, extremamente inteligente e um grande jogador de beisebol, só que Federman era sincero demais para seu gosto, muito carente no quesito humor para ser classificado como uma boa companhia, e a serenidade que emanava dele, e que produzia um efeito tão tranquilizador sobre Ferguson, era absolutamente irritante para Noah, que achava que Federman não chegava a ser plenamente humano, um sinistro menino-fantasma, como ele disse certa vez, um espectro que nasceu com pedaços do cérebro faltando. Ferguson entendia o que Noah estava tentando exprimir com aqueles comentários, mas não estava de acordo. Federman era diferente, só isso, uma pessoa que vivia num plano à parte dos demais, e aquilo que Noah enxergava como fraqueza de caráter — a timidez de Federman com as garotas, sua incapacidade para contar uma piada, sua relutância em discutir com qualquer pessoa — Ferguson preferia interpretar como força, pois ele passava mais tempo com Federman do que Noah, e compreendia que aquilo que Noah percebia como raso ou até vazio era, a rigor, profundidade, uma largueza de espírito que não estava presente em mais ninguém que ele conhecia. O problema era que Federman não se dava bem em grupos, ao passo que sozinho, com um único parceiro, era uma pessoa diferente, e agora que tinham se passado três semanas e os dois A. Fs. tinham ido e vindo juntos dúzias de vezes pelo caminho que levava ao campo de beisebol, Ferguson já havia chegado a conhecer aquela pessoa, ou pelo menos estava começando a conhecer, e o que mais o impressionava em Federman era como era um grande observador, como seus sentidos eram incrivelmente afinados com o mundo à sua volta, e toda vez que apontava para uma nuvem que passava no alto, ou para uma abelha que pousava no estame de uma flor, ou identificava o pio de um pássaro invisível que chamava na mata, Ferguson tinha a sensação de que estava vendo e ouvindo aquelas coisas pela primeira vez, que sem o amigo para lhe alertar sobre a presença daquelas coisas, ele nunca saberia que elas existiam, pois caminhar com Federman era, acima de tudo, um exercício na arte de prestar atenção, e prestar atenção, descobriu Ferguson, era o primeiro passo no aprendizado de como viver.

Então veio aquela tarde de quinta-feira extraordinariamente acalorada, perto do fim do mês, mais ou menos no meio do verão, só dois dias antes do início do fim de semana dos pais, com uma rodada dupla de basquete e beisebol programada para a manhã e a tarde de sábado, contra o rival Acampamento Scatico, muito temido e muito detestado, cujos times viriam visitar o Acampamento Paraíso naquele dia, partidas que seriam vistas por mães e pais dos garotos do Acampamento Paraíso, as mulheres-rocambole com seus vestidos de algodão sem mangas, os homens corpulentos de bermudas, as mulheres esguias, ou que tinham sido esguias, de calças três-quartos e sapatos de salto alto, os homens de cabelo já escasso, camisas sociais brancas de manga arregaçada até o cotovelo, aquele era o principal dia esportivo do verão, que seria seguido, à noite, por uma apresentação da antiga peça dos Irmãos Marx The Cocoanuts, que foi adaptada para se tornar seu primeiro filme em 1929, Hotel da fuzarca, e, de forma bizarra, e no entanto absolutamente adequada, Noah, que era amplamente conhecido no acampamento inteiro pelo apelido de Harpo, tinha sido escalado para o papel de Groucho, para o qual seu talento se adaptava muito melhor, e Ferguson estava ansioso não apenas por causa das partidas de que tomaria parte dali a dois dias, pois ele mal podia esperar a hora de ver seu primo caminhar com aqueles passos gozados de Groucho, enquanto se pavoneava pelo palco, com o charuto preso na cunha formada pelos dedos indicador e médio da mão direita, e com um bigode pintado com graxa, lambuzado na pele entre o nariz e o lábio superior. Era tamanha a expectativa para os acontecimentos daquele dia e, como era quase certo que o Acampamento Paraíso ia perder a partida de basquete (dez dias antes, em sua visita ao Acampamento Scatico, eles tinham sido massacrados), Bill Rappaport estava decidido a repetir a vitória que tinham conseguido no beisebol e, com essa finalidade, havia submetido os garotos a vários treinamentos fatigantes nos últimos dias, com intermináveis exercícios de precisão nos fundamentos (bater na bola de raspão, bloquear o jogador que faz o corte, segurar os corredores na base), além de exaustivos exercícios físicos para manter vocês em forma (flexão de braço, flexão de perna, corridas, voltas ao redor do campo), e naquela quinta-feira em particular, no fim de julho, que foi o dia mais quente e mais úmido que tinha baixado sobre o acampamento em todo o verão, o corpo de Ferguson ficou banhado de suor durante o treinamento inteiro, e agora que as duas horas de exercícios tinham terminado e Federman e ele estavam caminhando de volta para a barraca, onde iam trocar de roupa e vestir os trajes de banho para a natação obrigatória de antes do jantar, ele se sentia exausto por causa de seu empenho no campo, com a energia drenada, como ele disse para Federman, parecia que cada perna pesava cinquenta quilos, e mesmo o normalmente incansável garoto do cálculo de New Rochelle confessava que também estava no maior prego. Mais ou menos na metade do caminho para a barraca, Ferguson começou a falar sobre o livro que tinha acabado de ler no horário de repouso que tinham depois do almoço, Miss Corações Solitários, um pequeno romance de Nathanael West que sua tia Mildred havia incluído no pacote anual de livros de verão para ele, e, na hora em que estava começando a explicar que a Miss Corações Solitários, na verdade, era um homem, um jornalista que escrevia como se fosse uma mulher para uma coluna de consultório sentimental destinada aos apaixonados rejeitados, ouviu Federman emitir um som baixo e abafado, algo que pareceu a palavra “oh”, e quando Ferguson girou a cabeça para a direita e olhou para o amigo, viu que Federman estava cambaleando, como se tivesse sofrido um ataque de tonteira e, antes que Ferguson pudesse perguntar qual era o problema, os joelhos de Federman dobraram e ele tombou no chão, lentamente.

Ferguson achou que era uma brincadeira, que depois de todo aquele papo sobre como os dois estavam esgotados, Federman tinha metido na cabeça a ideia de fazer uma encenação cômica do que acontece com um corpo depois de exercícios excessivos num dia quente e úmido de verão, mas a risada que Ferguson esperava ouvir não veio, pois a verdade era que Artie não era uma pessoa que fizesse tráfico de piadas, e, quando Ferguson se curvou para examinar o rosto do amigo, ficou chocado de ver que seus olhos não estavam nem abertos nem fechados, mas semiabertos, semifechados, só a parte branca estava visível, como se os olhos tivessem girado para dentro da cabeça, o que parecia sugerir que ele tinha desmaiado, por isso Ferguson começou a bater em seu rosto com os dedos, primeiro umas palmadinhas, depois beliscões nas bochechas, enquanto dizia para ele acordar, como se tapinhas e beliscões fossem o suficiente para fazer o amigo voltar à consciência, mas quando Federman não reagiu, quando sua cabeça rolou para um lado e para outro na hora em que Ferguson sacudiu seus ombros, e suas pálpebras inertes se recusaram a abrir ou fechar ou sequer piscar com o menor sinal de vida, Ferguson começou a ficar com medo e então apertou o ouvido no peito de Federman para escutar as batidas do coração, para sentir suas costelas subirem e descerem, enquanto o ar entrava e saía dos pulmões, só que não havia nenhuma batida do coração, não havia respiração nenhuma, e logo depois Ferguson se pôs de pé e começou a berrar: Socorro! Socorro! Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude!

Aneurisma cerebral. Foi essa a causa oficial da morte, disse alguém, e como o perito médico do Condado de Columbia fez a autópsia pessoalmente, foram essas as palavras que escreveu no atestado de óbito de Federman: aneurisma cerebral.

Ferguson sabia o que era um cérebro, mas era a primeira vez que topava com a palavra aneurisma, por isso foi até o escritório do coordenador-geral e verificou no dicionário Webster’s Collegiate que ficava na prateleira de cima da estante: Dilatação permanente e anormal de uma artéria entupida por sangue, em razão de uma doença da parede do vaso sanguíneo.

As partidas contra os times do Acampamento Scatico foram canceladas, até segunda ordem. A comédia dos Irmãos Marx foi adiada até alguma data no mês seguinte. O festival familiar de música, programado para a manhã de domingo, foi apagado do calendário.

Na reunião geral do acampamento, no Grande Celeiro, na quinta-feira depois do jantar, metade das crianças chorou, muitas delas nem conheciam Federman. Jack Feldman, o coordenador geral, disse aos garotos e às garotas que os caminhos de Deus são incompreensíveis, estão fora do alcance da compreensão humana.

Bill Rappaport se considerou culpado pelo colapso de Federman. Tinha forçado demais o treinamento da equipe, disse para Ferguson, havia posto todo mundo em perigo com aqueles exercícios punitivos, debaixo daquele calor e daquela umidade insuportáveis. O que deu na cabeça dele? Ferguson recordou as palavras do dicionário: “permanente”, “anormal”, “doença”, “entupida por sangue”. Não, Bill, ia acontecer fatalmente, mais cedo ou mais tar­de. Artie tinha uma bomba-relógio dentro da cabeça. A questão é que ninguém sabia — nem ele nem os pais nem nenhum médico que o havia examinado. Ele ia acabar morrendo antes que alguém descobrisse que a bomba-relógio já estava lá dentro, a vida toda.

No horário de repouso, na sexta-feira à tarde, seu nome foi chamado pelo alto-falante. Archie Ferguson, disse a voz da secretária do acampamento, Archie Ferguson, por favor, compareça ao escritório principal. Telefonema para você.

Era sua mãe. Mas que coisa terrível, Archie, disse ela. Lamento muito por aquele menino, por você, por todo mundo.

Não foi só uma coisa terrível, respondeu Ferguson. Foi a pior coisa, a pior coisa que jamais aconteceu.

Do outro lado da linha, seguiu-se um silêncio demorado, e então sua mãe disse que tinha acabado de receber um telefonema da mãe de Artie. Uma ligação inesperada, é claro, uma ligação pungente, é claro, mas unicamente para convidar Ferguson para o enterro, no domingo, em New Rochelle — contanto que obtivesse autorização para sair do acampamento e contanto que ele tivesse vontade de ir.

Não entendi, disse Ferguson. Ninguém mais foi convidado. Por que eu?

A mãe explicou que a sra. Federman ficara lendo e relendo as cartas que o filho tinha enviado do acampamento para casa, e em quase todas Ferguson era mencionado, não raro muitas vezes no espaço de três ou quatro parágrafos. Archie é meu melhor amigo, disse a mãe, citando um trecho que foi lido para ela pelo telefone, o melhor amigo que eu já tive. E de novo: Archie é uma pessoa tão legal que só de ficar perto dele eu me sinto feliz. E de novo: Archie é a coisa mais parecida com um irmão que eu já tive.

Outra pausa demorada e então Ferguson falou com uma voz tão baixa que ele mal conseguiu ouvir as próprias palavras: É o que eu sentia pelo Artie.

Então, ficou acertado. Não haveria nenhum fim de semana de visita para seus pais. Em vez disso, Ferguson ia pegar o trem para Nova York de manhã, a mãe ia encontrá-lo na estação Grand Central, eles iam passar a noite no apartamento dos pais dela, na cidade, e na manhã seguinte iriam juntos, de carro, até New Rochelle. Como a mãe não era do tipo que ignora as exigências das ocasiões públicas, prometeu levar roupas para ele vestir no enterro — a camisa branca, o paletó e a gravata, os sapatos pretos, meias pretas e calças cinza-escuras.

Ela disse: Você cresceu muito, depois que foi para lá, Archie?

Não sei, respondeu Ferguson. Talvez um pouco.

Queria saber se essas roupas ainda vão caber em você.

E isso tem importância?

Talvez sim, talvez não. Se os botões saltarem da camisa, ainda dá para comprar alguma roupa amanhã.

Os botões não saltaram, mas agora a camisa estava pequena demais para ele, assim como toda sua roupa, menos a gravata. Que absurdo fazer compras numa temperatura de trinta e cinco graus, pensou Ferguson, enquanto se arrastava pelas ruas da cidade causticante, só porque tinha crescido seis centímetros desde a primavera, mas ele não podia ir para New Rochelle com os jeans e os tênis do acampamento e, portanto, lá foi ele com a mãe para a loja Macy’s, vagando pelo departamento de roupa masculina durante mais de uma hora, em busca de algo decente para vestir, sem dúvida nenhuma, a atividade mais maçante na face da Terra, mesmo nos melhores momentos, o que aqueles momentos estavam, seguramente, muito longe de ser, e seu coração estava tão pouco empenhado no que estava fazendo que ele deixou a mãe tomar todas as decisões, escolher a camisa, o paletó e o par de calças para ele, e no entanto, como ele havia de aprender em breve, o tédio da loja era mil vezes preferível ao desamparo abominável de ficar sentado na sinagoga no dia seguinte, o santuário quente e entupido por mais de duas mil pessoas, a mãe e o pai de Artie, a irmã de doze anos, os quatro avós, as tias e os tios, seus primos e primas, seus colegas de escola e os diversos treinadores das equipes esportivas, desde os tempos do jardim de infância, os amigos e os treinadores dos times em que jogou, os amigos da família, os amigos dos amigos da família, uma multidão de gente assando dentro da sala sufocante, enquanto lágrimas jorravam dos olhos contraídos e homens e mulheres soluçavam, meninos e meninas soluçavam, e lá estava o rabino no púlpito recitando orações em hebraico e em inglês, nada da conversa fiada cristã sobre ir para um lugar melhor, nenhum conto de fadas sobre a vida após a morte para Ferguson e seu povo, aqueles eram judeus, os dementes, os renitentes judeus, e para eles só existia uma vida e um lugar, esta vida e esta terra, e a única maneira de encarar a morte era louvar a Deus, louvar o poder de Deus, mesmo quando a morte era a de um menino de catorze anos, louvar aquele Deus sacana até que os olhos deles pulassem para fora da cabeça e os colhões caíssem do corpo e o coração murchasse todo dentro deles.

No cemitério, quando o caixão foi baixado na terra, o pai de Artie tentou se jogar na cova do filho. Foram precisos quatro homens para puxá-lo para trás, e, quando tentou se desvencilhar deles e pular de novo, o maior dos quatro, que vinha a ser seu irmão mais novo, lhe deu uma gravata e o jogou no chão.

Em casa, depois do enterro, a mãe de Artie, mulher alta, de pernas grossas e quadris largos, abraçou Ferguson e disse que ele passaria a fazer parte da família, para sempre.

Durante as duas horas seguintes, Ferguson ficou sentado no sofá da sala, conversando com a irmãzinha de Artie, cujo nome era Celia. Queria dizer para ela que, agora, ele seria seu irmão, que continuaria a ser seu irmão enquanto vivesse, mas não conseguiu tomar coragem para forçar as palavras a saírem da boca.

O verão chegou ao fim, começou mais um ano letivo e, em meados de setembro, Ferguson começou a escrever um conto, que aos poucos se tornou um conto bastante comprido, quando terminou, dias antes do Dia de Ação de Graças. Ele desconfiava que tinha sido inspirado pela piada que não era uma piada sobre os dois A. Fs., mas não tinha lá muita certeza, pois o conto havia baixado nele do nada, com uma ideia pronta e, no entanto, de um jeito ou de outro, Federman devia estar ali também, uma vez que agora Federman estava sempre com ele, sempre estaria com ele, dali em diante. Não Archie e Artie, como se sentiu tentado a escrever no início, mas Hank e Frank, eram esses os nomes dos personagens principais, um par com uma rima, em vez de um par com uma assonância, mas um par para a vida inteira, apesar de tudo, nesse caso, um par de sapatos, que foi de onde o conto tirou seu título: Par perfeito.

Hank e Frank, o pé esquerdo e o pé direito, se conheceram na fábrica de sapatos onde foram feitos, unidos num lance do acaso, quando a última pessoa na linha de montagem colocou os dois dentro da mesma caixa. Era um par robusto e bem-acabado de calçados de couro marrom, com cadarço, conhecidos também como botinas brogan, e, embora suas personalidades fossem ligeiramente distintas (Hank tende a ser ansioso e introspectivo, ao passo que Frank é mais bruto e destemido), eles não são diferentes da mesma forma como Laurel e Hardy são diferentes, por exemplo, ou Heckle e Jeckle, ou Abbott e Costello, mas diferentes, talvez, da maneira como aqueles Ferguson e Federman tinham sido diferentes — duas ervilhas do mesmo saco, se bem que nada tivessem de idênticas.

Nenhum dos dois se sente feliz dentro da caixa. Ainda são estranhos a esse ponto, e ali dentro não é só escuro e abafado, os dois ficam espremidos um contra o outro de um jeito íntimo e comprometedor demais, o que acarreta algumas disputas inamistosas, no início, mas depois Frank diz para Hank aguentar um pouco e se acalmar, os dois estão presos um ao outro, queiram ou não, e Hank, entendendo que não tem opção a não ser contornar, da melhor forma possível, uma situação ruim, pede desculpas por terem começado com o pé esquerdo, a que Frank respondeu: Está tentando ser engraçado?, querendo dizer que ele não achava graça nenhuma no comentário, e então Hank voltou para ele, baixando a voz e falando com um forte sotaque sulista: Penchei que era engraxado, a gente tem de pachar graxa necha botina. Não dá para viver sem fazer piada, dá?

A caixa com Frank e Hank é colocada num caminhão e transportada para a cidade de Nova York, onde vai terminar nos fundos de uma sapataria Florsheim, na Madison Avenue, mais uma caixa no meio de centenas de caixas empilhadas nas prateleiras, à espera da hora de serem vendidas. Aquele é o destino dos dois — serem vendidos, serem retirados da caixa por um homem com pés de tamanho quarenta e quatro e meio e removidos para sempre dos fundos daquela sapataria —, e Hank e Frank estão impacientes para começarem suas vidas ao ar livre, caminhar com seu mestre. Frank está confiante em suas chances de serem logo vendidos. São um par do tipo que se usa todos os dias, explica para Hank, e não alguma peça mais ou menos excêntrica, como sapatos sociais de verniz ou chinelos de Papai Noel ou botas de neve com bordas de lã, e, como os calçados de uso diário são aqueles que têm maior demanda, não vai passar muito tempo antes que possam dar adeus àquela sua caixa medonha e fedorenta. Talvez, disse Hank, mas se Frank quiser falar de chances e estatística, é melhor pensar no número quarenta e quatro e meio. O tamanho quarenta e quatro e meio o deixa preocupado. É muito maior do que a média, e quem sabe quanto tempo vão ter de esperar antes que o sr. Pés Grandes entre na sapataria e peça para experimentar o par deles? Eu ficaria muito mais contente com o número quarenta ou quarenta e um, diz Hank. É o que maioria dos homens calça, e quanto mais homens calçarem um número, mais rápido os calçados desse número serão vendidos. Quanto maior o pé, maior o tempo de espera, e o tamanho quarenta e quatro e meio é um pé grande feito o diabo.

Fique feliz porque não somos do número quarenta e seis ou quarenta e sete, diz Frank.

Eu fico mesmo, responde Hank. Também fico feliz porque não somos do tamanho trinta e oito. Mas nem por isso fico feliz, porque somos do tamanho quarenta e quatro e meio.

Depois de três dias e três noites na estante, um período de desolação que apenas prolonga suas dúvidas e seus cálculos febris sobre quando e como serão resgatados, se é que serão resgatados algum dia, um vendedor, afinal, entra no depósito na manhã seguinte, puxa a caixa deles da torre de caixas em que estão empilhados e a leva para o salão de vendas, na frente da loja. Um freguês está interessado! O vendedor tira a tampa da caixa e, naquele primeiro momento em que a luz do mundo brilha acima deles, Hank e Frank começam a formigar de alegria, uma alegria tão vasta e intoxicante que se espalha até a pontinha de seus cadarços. Podem enxergar de novo, podem enxergar pela primeira vez, desde o momento em o que operário da fábrica os guardou dentro da caixa, e agora que o vendedor está retirando os dois da caixa e colocando no chão na frente do freguês sentado, Frank diz para Hank: Acho que vamos tirar o pé da lama, parceiro, a que Hank responde: Passo a passo, a gente chega lá.

(Nota: Em nenhum momento, o conto leva Ferguson a formular a pergunta sobre como os sapatos conseguem falar, apesar de todos os sapatos de cadarços serem providos de línguas. Se isso é um problema, ele resolve a questão se recusando a pensar no assunto. Entretanto, a língua falada por Hank e Frank é, ao que parece, inaudível para seres humanos, pois os dois travam suas conversas em qualquer lugar e em qualquer momento, a seu gosto, sem o menor temor de serem ouvidos — pelo menos, por pessoas vivas. Na presença de outros sapatos, porém, precisam ser mais circunspectos, pois todos os sapatos do conto falam o sapatês. Por acaso, nenhum dos primeiros leitores de Ferguson fez objeção a seu emprego daquela língua absurda e fantasiosa. Todos pareciam aceitar aquilo como um caso genuíno de licença poética, mas algumas pessoas acharam que ele foi longe demais quando deu a Hank e Frank a faculdade de ver. Sapatos são cegos, disse alguém, todo mundo sabe disso. Como é que um sapato pode enxergar? O autor de catorze anos fez uma pausa, encolheu os ombros e disse: Com aqueles olhinhos por onde passa o cadarço, ué. De que outro modo poderia ser?)

O freguês é um homem grande, um sujeito parrudo e corpulento, de cintura larga, um par de canelas inchadas e a pele úmida e pálida de alguém que pode, ou não, sofrer de diabetes ou de alguma doença cardíaca. Não era um mestre ideal, talvez, mas, como Hank e Frank disseram um para o outro, inúmeras vezes nos três últimos dias, um sapato não escolhe onde pisa. Eles precisam se submeter à vontade da pessoa que paga por eles, não importa quem seja essa pessoa, pois a missão dos calçados é proteger os pés, todo e qualquer pé, em toda e qualquer circunstância, quer os pés pertençam a um louco, quer pertençam a um santo, os sapatos têm de cumprir sua tarefa com total submissão aos desejos de seu mestre. Todavia, é um momento importante para as botinas brogan recém-fabricadas, tão jovens e reluzentes em sua cobertura de couro de vaca e em suas solas sem ranhuras, pois esse é o momento em que eles irão, enfim, começar suas vidas como calçados em pleno exercício de suas funções, e, quando o vendedor da sapataria encaixa Hank no pé esquerdo do freguês e depois encaixa Frank no pé direito, os dois gemem de prazer, espantados com a sensação boa que dá ter um pé dentro deles e depois, milagrosamente, o prazer só aumenta, quando os cadarços são amarrados e as duas pontas são presas por um nó, num laço ligeiro e firme.

Parece que o tamanho está bom, diz o vendedor para o freguês. Gostaria de olhar no espelho?

E assim acontece de Hank e Frank poderem ver a si mesmos juntos, pela primeira vez, ao olharem no espelho, enquanto o homem gordo também se olha no espelho. Que par bonito nós formamos, diz Frank, e pelo menos dessa vez Hank está de acordo com ele. As mais belas botinas brogan que jamais fabricaram, diz ele. Ou, como o bardo inglês poderia ter expressado: Os genuínos reis da Sapaterra.

Enquanto Hank e Frank estão admirando a si mesmos no espelho, porém, o gordo começa a balançar a cabeça. Não sei, diz ele ao vendedor, parecem um pouquinho deselegantes para mim.

Um homem com seu corpo precisa de um calçado resistente, retruca o vendedor, que enuncia suas palavras no tom de quem diz a coisa mais natural do mundo, de modo a não ofender o freguês.

Claro, murmura o gordo, isso nem é preciso dizer, não é? Mas também não significa que eu tenho de andar por aí metido nesses tamancões, não é?

São clássicos, senhor, diz o vendedor, em tom seco.

Verdadeiros coturnos. É isso que eles me parecem, diz o gordo. Sapatos ideais para o uniforme de um policial.

Depois de uma pausa considerável, o vendedor pigarreia e diz: Posso sugerir para experimentar outra coisa? Um par de sapatos estilo wingtip, com desenho em forma de W no couro do bico, talvez?

Sim, pode ser, responde o freguês, fazendo que sim com a cabeça. Era essa a palavra que eu queria lembrar: “wingtips” e não “brogans”.

Hank e Frank são recolocados dentro da caixa e, momentos depois, são levantados do chão por um par de mãos invisíveis e levados de volta para o depósito nos fundos, onde mais uma vez se juntam às fileiras dos que não foram vendidos. Hank está queimando de indignação. Os comentários do gordo o deixaram inflamado e, enquanto vai cuspindo as palavras “deselegantes” e “tamancões” pela quadragésima terceira vez em uma hora, Frank finalmente consegue falar e implora que ele pare. Não percebe como temos sorte?, diz ele. Aquele sujeito não era apenas um cabeça-oca, era além do mais um obeso cabeça-oca e a última coisa que nós queremos é ficar com excesso de peso em nossas costas. Se o sr. Peso-Pesado não tiver cento e quarenta quilos, deve ter pelo menos uns bons cento e quinze ou cento e vinte, e imagine só o massacre diário que ia ser andar para lá e para cá com uma montanha dessas em cima da gente. Pouco a pouco, nós íamos acabar esmagados, gastos e estropiados precocemente, jogados no lixo antes mesmo de ter uma chance de curtir a vida. Pode ser que não existam mesmo muitos pesos-pena que calcem o tamanho quarenta e quatro e meio, mas pelo menos a gente pode torcer para que apareça alguém magro e em boa forma, um homem com passadas leves e regulares. Nada de gente de passos cambaleantes ou arrastados, para nós, Hank. Merecemos o melhor, porque somos clássicos.

Há mais duas tentativas frustradas nos três dias seguintes, uma delas não dá certo por muito pouco (um homem se apaixona por eles dois, mas descobre que precisa do tamanho quarenta e quatro) e o outro é uma furada desde o primeiro segundo (um adolescente gigante, de cara feia, que avacalha a mãe por obrigá-lo a experimentar aquelas lanchas horrendas), e a espera prossegue, tão desoladora em sua monotonia entorpecedora que Hank e Frank começam a se perguntar se não estarão fadados a permanecer para sempre na estante — indesejados, fora de moda, esquecidos. Então, três dias completos depois de ouvirem o insulto das lanchas, quando toda esperança tinha desaparecido de seus corações, um freguês entra na loja, um homem de trinta anos chamado Abner Quine, de um metro e oitenta e dois de altura, bem-disposto, setenta e sete quilos, com pés de tamanho quarenta e quatro e meio, que não só está procurando um par de botinas brogan, como também não vai aceitar outra coisa que não um par de botinas brogan, e assim Frank e Hank são retirados da estante pela quarta vez, que acaba sendo a última, o fim de sua semana de ansiedade no limbo da caixa de sapato, pois quando Abner Quine enfia os pés neles e caminha pela loja para experimentá-los, diz para o vendedor. Excelente, é exatamente o que eu desejava, e o par perfeito finalmente encontra seu mestre.

Faz alguma diferença o fato de Quine, no final, ser um policial? Na verdade, não, a longo prazo, não faz diferença, mas depois que Frank e Hank foram rejeitados pelo freguês gordo por achar que eles pareciam coturnos de uniforme de polícia, aquilo se tornou um ponto sensível para eles, e em vez de rirem da coincidência, sentiram-se magoados e perplexos, pois se botinas brogan são a quintessência dos calçados da polícia, parece que eles estavam destinados o tempo todo a serem calçados por um cana, um personagem de grande carga ridícula no imaginário popular, e ser o calçado de preferência para os canas deste mundo, ou seja, a própria personificação daquela figura caricata, significa que deve haver, também neles, algo de ridículo.

Vamos encarar os fatos, diz Hank. Não fomos feitos para combinar com smokings ou noites de gala, no centro da cidade.

Talvez não, responde Frank, mas somos resistentes e confiáveis.

Como dois tanques de guerra.

Bem, e quem é que quer ser um carro esporte, afinal?

Coturnos de polícia, Frank. É o que nós somos. O degrau mais baixo do escalão inferior.

Mas olhe só para o nosso policial, Hank. Que bela figura de homem ele é. E ele nos quer bem. Escalão inferior ou não, ele nos quer bem e, para mim, isso já é o bastante.

De passos duros e acelerados, Abner Quine tinha sido promovido, pouco antes, ao cargo de detetive. Havia trocado seu cassetete e seu uniforme de patrulha por dois ternos sociais, um de lã para o inverno e um leve, de um tecido que não precisa passar, para o verão, e resolveu até ostentar, comprando um par de sapatos caros na loja Florsheim (Hank e Frank!), que ele pretendia usar no seu trabalho diário de detetive o ano inteiro, a despeito do tempo que fizesse. Quine mora sozinho num apartamento pequeno, de quarto e sala, em Hell’s Kitchen, um bairro que não era dos melhores em 1961, mas o aluguel é baixo e seu distrito policial fica apenas a quatro quarteirões, e muito embora o apartamento, diversas vezes, não esteja lá muito limpo (o detetive tem pouca queda pelo trabalho doméstico), Hank e Frank ficam impressionados de ver como Quine cuida bem deles. Embora jovem, seu mestre é um homem de estilo antigo e trata seus sapatos com respeito, desamarra os cadarços metodicamente à noite, e os deixa no chão, ao lado da cama, em vez de chutar os sapatos para fora dos pés, sem desamarrar, e deixá-los jogados dentro do armário fechado, pois os sapatos gostam de ficar perto de seu mestre o tempo todo, mesmo quando não estão trabalhando, e chutar os sapatos para fora dos pés sem desamarrar os cadarços pode causar graves danos estruturais com o tempo. Quine costuma ficar distraído, ocupado com seus problemas, quando está trabalhando em seus casos (roubos, em geral), mas basta cair qualquer coisa em algum de seus sapatos, seja um cocô branco de pombo ou um respingo vermelho de ketchup, que ele irá remover rapidamente a substância transgressora com um dos lencinhos Kleenex que leva sempre consigo no bolso direito da frente. O melhor de tudo são suas breves e frequentes caminhadas até a estação Penn para consultar seu olheiro principal, um negro idoso chamado Moss, que cuida da cadeira de engraxate no salão principal da estação, e, quando Quine se deixa cair pesadamente na cadeira a fim de se inteirar da última novidade de Moss, na maioria das vezes ele pede que Moss passe uma graxa no sapato, a fim de disfarçar o verdadeiro propósito de sua visita, e assim mata dois coelhos com uma cajadada só, por assim dizer, faz seu trabalho e cuida do par de brogans, e Hank e Frank são os felizes beneficiários daquela malandragem, pois Moss é um especialista, tem as mãos mais ágeis e mais rápidas no ramo dos engraxates, e serem esfregados por sua flanelas e massageados por suas escovas constitui um prazer inigualável para calçados de uso diário, como Hank e Frank, um mergulho extasiante nas profundezas da sensualidade dos sapatos, e uma vez polidos e depurados pelas mãos certeiras de Moss, eles terminam categoricamente limpos, além de impermeabilizados, vencedores em todas as frentes de luta.

Portanto, é uma vida boa, pode-se dizer que era a melhor vida que os dois poderiam esperar, mas boa não deve ser confundido com fácil, pois o destino dos sapatos é dar duro, mesmo sob as circunstâncias mais positivas, em especial num lugar como Nova York, onde uma sola pode passar meses sem pisar num único tufo de grama nem no mais minúsculo quadrilátero de terra fofa, um lugar onde os extremos de calor e frio podem, a longo prazo, provocar uma devastação na saúde das coisas feitas de couro, sem falar dos danos causados pelos aguaceiros e nevascas, pelos passos em falso para dentro de poças e correntes de água, pelos repetidos encharcamentos e submersões, por todas as indignidades que acometem aos dois, quando o tempo vira, fica feio e chuvoso, muitas das quais podiam ser evitadas se seu mestre consciencioso fosse ainda mais consciencioso, porém Quine não é do tipo que acredita em galochas e botas de borracha, e, mesmo nas nevascas mais severas ele não recorre a botas de neve, prefere sempre a companhia de suas acossadas botinas brogan, que se sentem honradas por sua confiança e, ao mesmo tempo, exasperadas com sua falta de consideração.

Bater perna pela calçada: entra dia e sai dia, é isso o que Quine faz e, portanto, também é isso o que Hank e Frank fazem. Se existe algum consolo em gastar a sola e o salto por efeito das abrasivas e constantes interações entre couro e asfalto, esse consolo se encontra no fato de os dois estarem sempre juntos, irmãos que compartilham seu destino como se fosse um só. A exemplo da maioria dos irmãos, eles têm seus momentos de discórdia e de impertinência, suas rixas com ataques de maus bofes, pois ainda que estejam presos ao corpo de um homem, eles mesmos são dois, e a relação de cada um deles com aquele corpo é ligeiramente distinta, porquanto o pé esquerdo e o pé direito de Quine não estão sempre fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo. Por exemplo, quando está sentado, como ele é uma pessoa canhota, tende a cruzar a perna esquerda, por cima da direita muito mais do que a direita por cima da esquerda, e poucas sensações são mais agradáveis do que se sentir erguido no ar, desprender-se do chão por um tempo e ter a sola posta a nu, para o mundo, e como Hank é o pé esquerdo e, em consequência, pode desfrutar essa experiência mais vezes do que Frank, Frank nutre certo ciúme de Hank, ciúme que em geral Frank se empenha em eliminar, mas às vezes a decolagem deixa Hank num estado de espírito tão radiante que ele não consegue deixar de se vangloriar, ri do alto de seu pedestal, enquanto balança para lá e para cá, apoiado no joelho direito do mestre, e grita para Frank: Como é que está o tempo aí embaixo, meu velho Frank?, o que faz Frank, inevitavelmente, perder a compostura e dizer para Hank fechar o bico e cuidar da sua vida. Ao mesmo tempo, muitas vezes Frank tem pena de Hank por ser o pé esquerdo de um homem canhoto, pois Quine, em geral, escolhe o pé esquerdo para dar seu primeiro passo e, toda vez que fazem uma pausa diante de um semáforo fechado nos dias de chuva ou de neve, o primeiro passo para atravessar a rua é sempre o mais perigoso, muitas vezes é uma pisada catastrófica, em cheio, num charco junto à sarjeta, e quantas vezes Hank afundou o pé em poças e se atolou em pequenos lamaçais emporcalhados, enquanto ele permanecia seco? Eram vezes demais para contar. Frank raramente ri das humilhações e dos quase afogamentos de seu irmão, mas às vezes, quando ele se encontra num estado de espírito especialmente azedo, simplesmente não con­segue se conter.

Apesar de tudo, a despeito de suas esporádicas rixas e desavenças, os dois se tornaram os melhores amigos que existem, e, toda vez que olham para as botinas brogan usadas pelo parceiro de seu mestre, um par de mulambos par­dacentos chamados Ed e Fred (todos os pares de sapato no conto de Ferguson têm nomes que rimam), Hank e Frank compreendiam como eram sortudos por terem caído nas mãos, ou nos pés, de um tipo virtuoso como Abner Quine, em vez daquele brutamontes desleixado com quem ele trabalha, Walter Benton, que parece mais feliz com seu serviço quando está dando socos nos suspeitos na sala de interrogatório ou dando pontapés nas costas deles, com seus sapatos. Ed e Fred, ao longo dos anos, fizeram aquele trabalho sujo para ele com frequência suficiente para ficarem embrutecidos e, assim, acabaram se tornando um intratável par de grosseirões da escória da sociedade, tão sarcásticos e de saco cheio do mundo que já faz quase um ano que nem falam um com o outro — não porque já não se entendam bem, mas simplesmente porque não se incomodam mais com isso. Além do mais, Ed e Fred estão começando a se desmanchar, pois Benton, além de burro, é um mestre displicente, e deixou que os saltos de seus sapatos ficassem gastos e não os substituiu, não fez nada a respeito do buraco que se formou no fundo de Ed nem a respeito do couro rachado no bico de Fred, onde o dedão pressiona por dentro, e durante todo o tempo em que Hank e Frank travaram contato com aquelas ratazanas pés de chinelo (expressão que Hank usava para Ed e Fred), eles não foram engraxados nem uma vez. Em contraste, Hank e Frank são engraxados duas vezes por semana e, nos dois anos em que estão servindo seu mestre, ambos ganharam quatro saltos novos e duas solas novas. Ainda se sentem jovens, ao passo que Ed e Fred, que entraram em serviço apenas seis meses antes deles, estão velhos, tão velhos que estão quase acabados e prontos para ir para o lixo.

Como são calçados de trabalho, Hank e Frank raramente acompanham seu mestre quando ele sai com as damas. A busca de amor requer algo menos caseiro e trivial do que as botinas brogan, por isso Hank e Frank são postos de lado em favor dos sapatos sociais com três pares de furos para os cadarços, ou em favor do mocassim preto de pele de jacaré, o que sempre deixa os dois bem frustrados, não só porque detestam ficar sozinhos no escuro, mas também porque acompanharam Quine em algumas de suas excursões amorosas (nas vezes em que ele estava com o horário muito apertado e não tinha tempo de ir para casa e trocar de roupa) e sabem como aqueles passeios podem ser divertidos, sobretudo quando o mestre passa a noite na cama da mulher, o que significa que Hank e Frank têm de passar a noite no chão, ao lado da cama, e como se trata do apartamento da mulher, os sapatos da mulher também estão ali, a maioria bem perto deles, e como foi alegre e agitado na primeira vez, quando ficaram batendo papo, rindo e cantando com Flora e Nora, um adorável par de sapatos de cetim vermelho e de salto alto, e todas as outras vezes, depois, no apartamento de outra mulher, uma loura grande que o mestre chama de Alice ou de Querida, quando Hank e Frank fizeram estripulias pela casa dela toda, na Greenwich Street, junto com um par de sandálias pretas chamadas Leah e Mia e com um par de mocassins baratos chamados Molly e Dolly, e como aquelas garotas faziam escândalo e riam quando viam o mestre tirar a roupa e ficar todo nu, e como elas olhavam boquiabertas quando viam os seios vastos de sua mestre balançando para cima e para baixo nos espasmos do amor. Eram tempos tão maravilhosos, tão radiantes, quando comparados com o mundo sórdido dos criminosos suados e dos juízes de toga preta, e eram ainda mais preciosos para Hank e Frank por serem raros.

Passam os meses e se torna cada vez visível que Alice é a eleita. O mestre não só parou de se encontrar com outras mulheres como, agora, passa a maior parte de seu tempo livre na companhia dela, sua adorada Querida, que rapidamente adquiriu também vários outros nomes, entre eles Anjo, Benzinho, Maravilhosa e Carinha de Macaco, sinais de uma crescente intimidade, e conduz ao momento inevitável, no fim de maio, quando, sentado num banco no Central Park, com Alice, Quine faz, enfim, o grande pedido. Como é um dia útil, Hank e Frank estão presentes para testemunhar o pedido e ficam mais do que animados com a reação carinhosa de Alice, farei tudo para que você seja feliz, meu amor, o que parece sugerir que eles serão felizes também, tão felizes com aquela nova ordem das coisas como eram com a velha.

O que Hank e Frank não conseguiram entender, porém, é que o casamento muda tudo. Não é apenas uma questão de duas pessoas resolverem morar juntas, é o início de uma longa luta que contrapõe a vontade de um parceiro à vontade do outro e, embora muitas vezes pareça que é o marido que fala mais alto, em última instância, é a esposa quem está no comando. Os recém-casados deixam seus respectivos apartamentos em Hell’s Kitchen e em Greenwich Street e vão morar num apartamento mais amplo e confortável na rua 26 Oeste. Como Alice deixou seu emprego de secretária no gabinete do promotor público, é ela quem cuida dos afazeres domésticos e, embora peça, rotineiramente, a opinião do marido sobre as cortinas novas que ela quer comprar, o tapete novo que planeja colocar na sala, as cadeiras novas que sonha ter na mesa de jantar, a resposta de Quine é sempre a mesma — Tudo o que você quiser, meu bem, você é quem sabe —, o que significa, na prática, que é Alice quem toma todas as decisões. Mas não importa, pensam Hank e Frank. Alice pode ser o chefe do galinheiro agora, mas eles dois vão continuar a passar seus dias com seu mestre, palmilhando as calçadas em busca de trambiqueiros, fazendo churrasquinho dos suspeitos na sala de interrogatório, comparecendo ao tribunal para prestar testemunhos em julgamentos, seguir pistas obtidas pelo telefone, datilografar relatórios, correr pelos becos toda vez que um malfeitor faz a tolice de tentar escapulir, ir à Penn Station duas vezes por semana para receber as engraxadas de Moss, e agora que Benton deu o velho bilhete azul para Ed e Fred, eles tinham um novo par de sócios para lhes fazer companhia no serviço, Ned e Ted, dois sujeitos azedos, é verdade, mas nem de longe tão ruins quanto aquelas ratazanas pés de chinelo recém-demitidas, o que sugere que, embora haja muitas coisas diferentes, agora as coisas essenciais são as mesmas, talvez até estejam ligeiramente melhores do que antes. Pelo menos é o que Hank e Frank dizem um para o outro, mas o que eles ignoram, e o que sua complacência os impede de perceber, é que a Alice de voz doce está em campanha, e seus esforços para aprimorar a vida do mestre não vão se deter nas cortinas e nos tapetes. Três meses depois do casamento, ela começa a investir no reino das roupas do marido, em especial nas roupas que ele usa no trabalho, que ela afirma serem sem graça e surradas demais para um homem destinado, algum dia, a se tornar capitão, e embora Quine reagisse de forma um tanto defensiva, no início, dizendo que seus ternos estão ótimos, mais do que convenientes para seu tipo de emprego, Alice termina por vencer sua resistência, dizendo como ele é bonito e como faria uma excelente figura em trajes elegantes e de primeira linha. Ao mesmo tempo lisonjeado e aborrecido com os elogios da esposa, o mestre se sai com uma tirada idiota, diz que o dinheiro não nasce em árvores, mas sabe que já perdeu a batalha, e, em seu próximo dia de folga, acompanha relutante a esposa a uma loja de roupas masculinas na Madison Avenue, onde seu guarda-roupa é renovado com um par de ternos novos, quatro camisas brancas e seis dessas gravatas fininhas que andam na moda. Três manhãs depois, quando o mestre veste um dos ternos novos antes de sair para o trabalho, Alice abre um largo sorriso e diz que ele está um espetáculo, mas aí, antes que Quine consiga fazer sair da boca uma palavra sequer, ela baixa os olhos para os pés e diz: Acho que vamos ter de fazer alguma coisa a respeito dos sapatos.

Qual é o problema com eles?, pergunta Quine, começando a dar sinais de alguma irritação.

Nada demais, na verdade, diz ela. São velhos, só isso... e não combinam com o terno.

Isso é ridículo. É o melhor par de sapatos que já tive. Comprei na sapataria Florsheim no dia em que fui promovido e, desde então, não parei de usar. São meus sapatos da sorte, Anjo. Três anos de serviço e, em todo esse tempo, nunca um tiro me atingiu, nenhum soco acertou minha cara, não sofri nenhum arranhão em nenhum ponto do corpo.

Mas a questão é apenas essa, Abner. Três anos é muito tempo.

Não para um par de brogans como este. Eles nem sequer têm rachaduras.

Alice contrai o lábio, inclina a cabeça e coça o queixo com ar jocoso, como se tentasse avaliar os sapatos com a solene isenção de um filósofo. Por fim, diz:

São muito deselegantes. O terno faz você parecer um homem importante, mas os sapatos deixam você igual a um policial de rua.

Mas é isso que eu sou. Um policial de rua. Um desgraçado de um cana.

Só porque é policial, não significa que tenha de parecer um policial. Os sapatos denunciam você, Abner. Você entra numa sala e todo mundo pensa: Olha aí um policial. Com o par de sapatos adequado, eles nunca vão adivinhar.

Hank e Frank esperam que o mestre fale em defesa deles, diga mais algumas palavras em seu favor, mas Quine não diz nada, responde ao último comentário de Alice com um rosnado inescrutável e, um momento depois, eles dois estão viajando com seu mestre, enquanto ele caminha para a porta da frente do apartamento e sai para o trabalho. O dia nada tem de diferente em comparação com qualquer outro, o dia seguinte também não é diferente do dia anterior, e Hank e Frank começam a ter esperança de que a conversa com Alice não passou de um alarme falso, que as opiniões cruéis da esposa sobre o valor deles dois para o mestre não são compartilhadas pelo próprio Quine, que toda aquela história desagradável vai se dissolver como uma rarefeita nuvem passageira. Então vem o sábado, mais um dia de folga do trabalho na polícia, e lá vai o Quine junto com sua nova inimiga, a intrometida e mandona Alice, calçando seus mocassins de fim de semana, enquanto eles dois ficam ao lado da cama, esperando que o casal retorne, sem desconfiar nem por um momento que estão prestes a serem traídos pelo homem a quem serviram tão fielmente durante três anos, e, quando o mestre volta, depois, à tarde, e experimenta seu novo par de sapatos oxford, Hank e Frank compreendem, de repente, que eles foram chutados para escanteio e demitidos, expurgados pelo regime que ascendeu subitamente ao poder doméstico, e, como eles não têm ninguém a quem recorrer, nenhum tribunal onde possam apresentar um recurso ou uma queixa ou expor seu lado da questão, suas vidas estão acabadas e liquidadas, foram pisoteados pelo golpe palaciano que normalmente atende pelo nome de casamento.

O que você acha?, pergunta Quine para Alice, quando termina de amarrar o nó dos cadarços dos sapatos oxford e se levanta da cama.

Lindos, diz ela. Os melhores que existem, Abner.

Enquanto Quine caminha pelo quarto, acomodando os pés à elasticidade e à textura de seus novos companheiros cotidianos de trabalho, Alice aponta para Hank e Frank e diz: O que devo fazer com esses velhos caretas?

Não sei. Guarde no armário.

Não acha melhor jogar fora?

Não, guarde no armário. Nunca se sabe, pode ser que precise deles de novo.

Então, Alice coloca Hank e Frank dentro do armário, e, embora as palavras do mestre pareçam oferecer alguma esperança de que vão ser reconvocados para o serviço algum dia, os meses passam sem nenhuma mudança e, pouco a pouco, eles se conformam com o fato de que o mestre nunca mais vai enfiar seus pés dentro deles. Os dois se sentem amargurados com sua aposentadoria forçada e, durante as primeiras semanas dentro do armário, conversam sobre a maneira cruel como foram tratados, lamentam-se de seus desgostos em longas e desbocadas diatribes contra o mestre e sua esposa. Não que seus lamentos e choradeiras tragam algum benefício para eles, é claro, e à medida que a poeira começa a baixar e os dois começam a compreender que, agora, o armário é o seu mundo, que eles nunca mais vão sair dali, até o dia em que forem jogados no lixo, desistem de suas queixas e começam a conversar sobre o passado, preferem reviver os velhos tempos, em vez de se deter nas infelicidades do presente, e como é bom recordar suas aventuras com o mestre quando eram jovens e vigorosos e tinham seu lugar no mundo, como é agradável recordar o clima que fazia quando caminhavam na rua, a imensa variedade de sensações que vinham ao caminhar ao ar livre, sob os ares instáveis do planeta Terra, o sentimento de que havia um propósito reservado para eles, quando faziam parte da grandeza da vida humana. Passam mais alguns meses e suas reminiscências lentamente chegam ao fim, pois agora está ficando difícil falar, é difícil até lembrar, não porque Hank e Frank estejam afundando na velhice, mas porque foram deixados de lado, e sapatos que não recebem mais cuidados de conservação acabam rapidamente descendo ladeira abaixo, sua cobertura externa resseca e racha, quando deixam de ser engraxados e polidos, seu interior se enrijece quando os pés humanos já não entram mais neles para prover os óleos e a transpiração necessários para que se mantenham macios e maleáveis, e lentamente, mas de modo inexorável, sapatos deixados de lado começam a se assemelhar a tocos de pau, e a madeira é uma substância incapaz de pensar ou falar ou recordar, e agora que Hank e Frank começaram a ficar iguais a dois tocos de pau, estão quase em coma, vivem num mundo de sombras, de vácuos negros entre chamas de vela que cintilam a custo, e seus corpos se tornaram tão insensíveis durante sua longa encarnação que eles não sentem nada quando Timothy, o filho de Quine, de três anos de idade, enfia os pés dentro deles, numa tarde, e sai claudicando pelo apartamento e rindo, e quando a mãe vê seus pés dentro daqueles sapatos enormes e comatosos, começa a rir também. O que você está fazendo, Timothy?, pergunta. Estou fingindo que sou o papai, responde, e aí a mãe balança a cabeça e franze a testa, diz ao menino que vai lhe dar um par de sapatos grandes mais bonito do que aquele para brincar, aquelas botinas são tão nojentas e surradas que está na hora de se livrar delas. Que sorte que Hank e Frank não são mais capazes de ouvir nem sentir nada, pois quando Alice entrega para o filho o par de sapatos sociais que o pai tem usado naquela ocasião, apanha Hank e Frank com a mão esquerda, coloca a mão direita sobre a cabeça de Timmy e, depois, leva o menino para o corredor onde fica a portinha do duto do incinerador, situada num quartinho mínimo, atrás de uma porta sem fechadura. Eu tinha me esquecido completamente dessas velhas ratazanas pés de chinelo, diz ela, enquanto empurra para baixo a maçaneta da portinha do duto do incinerador e permite que o filho preste as últimas homenagens, o que significa que ele pode executar a tarefa de jogar fora os sapatos, e assim o pequeno Timothy Quine segura o Hank e, quando o atira sete andares para baixo, rumo à fornalha no porão, diz até logo, sapato, e depois apanha o Frank e repete a operação, dizendo até logo, sapato, quando Frank segue o irmão rumo ao fogo, lá embaixo, e antes que mais um dia nasça na ilha de Manhattan, o par perfeito se transformou numa indiferenciada massa de cinzas vermelhas e brilhantes.

Agora Ferguson estava na nona série, tecnicamente o primeiro ano do ensino médio, mas, no seu caso, o último ano do ensino fundamental e, entre as matérias que ele estudou no primeiro semestre, estava a datilografia, um curso eletivo que acabou se revelando mais valioso para ele do que qualquer outro naquele ano. Ficou tão empolgado com sua maestria naquela habilidade nova que chegou para o pai e pediu dinheiro para comprar uma máquina de escrever só para si, conseguiu persuadir o profeta dos lucros a soltar a grana com o argumento de que ia precisar da máquina, mais cedo ou mais tarde, e que os preços nunca ficariam mais baixos do que estavam então, e assim Ferguson garantiu para si um brinquedo novo para brincar, uma Smith-Corona portátil, resistente, com desenho elegante, que na mesma hora adquiriu o status do bem mais precioso de todos. Como ele amava aquela máquina e como era boa a sensação de apertar os dedos nas teclas redondas e côncavas e ver as letras voarem na ponta das hastes de aço e estalarem no papel, as letras que avançavam para a direita, enquanto o carro se deslocava para a esquerda, e depois o tilintar da campainha e o som dos dentes da engrenagem engatando, para levá-lo para baixo, para a linha seguinte, enquanto as palavras pretas seguiam-se umas às outras, no fundo da página. Era um instrumento muito adulto, um instrumento muito sério, e Ferguson deu as boas-vindas às responsabilidades que a máquina exigia dele, pois a vida agora era séria e, como Artie Federman nunca ficava a mais do que um centímetro de distância dele, Ferguson sabia que estava na hora de começar a ficar adulto.

Quando Ferguson completou o primeiro rascunho manuscrito do conto “Par perfeito”, no início de novembro, tinha feito progressos suficientes no cur­so de datilografia para elaborar o segundo rascunho na Smith-Corona. Depois que corrigiu essa versão e datilografou o conto outra vez, o original pronto deu cinquenta e duas páginas em espaço duplo. Pareceu incompreensível, para ele, que tivesse escrito tanto, que tivesse, de um jeito ou de outro, conseguido amontoar mais de quinze mil palavras sobre um par de sapatos idiotas, mas depois que lhe veio a ideia, uma coisa acabou se juntando com outra, sua cabeça vivia cheia de situações novas para escrever, aspectos novos dos personagens para explorar e desenvolver e, na hora em que terminou, mais de dois meses de sua vida tinham sido dedicados ao projeto. Ele sentiu certa satisfação de ter feito aquilo, é claro, o mero fato de ter composto uma obra tão longa já era algo de que qualquer garoto de catorze anos sentiria orgulho, mas quando leu tudo de novo, pela quinta vez, e fez as últimas correções finais, ainda não sabia se estava bom ou não. Como nem o pai nem a mãe eram capazes de julgar aquele conto, muito menos qualquer conto escrito na história da humanidade, e como a tia Mildred e o tio Don estavam em Londres para passar o semestre do outono (Mildred tinha ganhado meio ano sabático) — o que significava que Noah estava morando o tempo todo com a mãe e, portanto, estava inacessível até janeiro —, e como Ferguson estava assustado demais para mostrar o conto para qualquer colega de escola em cuja opinião ele pudesse confiar, acabou, com relutância, mostrando para a professora de inglês, a sra. Baldwin, que lecionava para as turmas da nona série desde a década de 1920 e estava a apenas um ou dois anos da aposentadoria. Ferguson sabia que estava correndo um risco. A sra. Baldwin tinha um gosto especial em submeter os alunos a testes de vocabulário e ditados, era mestre em explicar como analisar os períodos por meio de diagramas, e era tremendamente boa para esclarecer pontos obscuros da gramática e da dicção, mas seu gosto em literatura pertencia à escola careta dos tesouros mofados, como dava provas seu entusiasmo por Bryant, Whittier e Longfellow, aqueles cafonas insípidos e bombásticos que dominavam o currículo quando ela dava as aulas sobre as maravilhas do verso americano do século XIX, e embora o carrancudo E. A. Poe de Ferguson estivesse lá, como seu indefectível pássaro preto, não havia nem sombra de Walt Whitman — profano demais! — nem de Emily Dickinson — obscura demais! Em favor da professora, porém, é preciso reconhecer que a sra. Baldwin também tinha pedido a leitura de Um conto de duas cidades, que foi a primeira experiência de Ferguson com Dickens no papel (tinha visto um filme baseado em Conto de Natal, na televisão), e embora Ferguson tivesse se unido aos colegas na antiquíssima tradição de se referir ao romance como Um tonto de duas cidades, a verdade é que ele adorou o livro, achou as frases ferozmente vigorosas e surpreendentes, uma inventividade inesgotável, que misturava horror e humor de várias formas que ele nunca havia encontrado em nenhum outro livro, e ele era grato à sra. Baldwin por tê-lo apresentado àquilo que, agora, considerava o melhor romance que já tinha lido. Foi por isso que resolveu mostrar seu conto para ela — por causa de Dickens. Era uma pena que não soubesse escrever tão bem quanto o velho Dickens, mas estava só começando, era um autor amador com apenas uma obra em seu nome até então, e tinha esperança de que ela levasse aquilo em consideração.

Até que não foi tão ruim quanto achou que seria, mas, de certa forma, foi ainda muito pior. A sra. Baldwin corrigiu seus erros de datilografia, de ortografia e suas trapalhadas gramaticais, o que não só foi uma ajuda para ele como também comprovou que ela havia lido o conto com certo cuidado, e, quando os dois se sentaram para uma reunião depois do horário das aulas, seis dias depois de Ferguson ter entregado a ela o original do conto, a professora o elogiou pela perseverança e pela riqueza da imaginação e, para ser absolutamente franca, acrescentou, estava espantada de ver que um menino aparentemente normal e bem ajustado pudesse ter pensamentos tão sombrios e perturbadores sobre o mundo. Quanto ao conto em si, bem, era engraçado, é claro, um exemplo flagrante da falácia patética fracassada, mas ainda que se possa admitir que um par de sapatos seja capaz de pensar, sentir e travar convers­as, o que é que Ferguson estava tentando realizar quando inventou aquele seu mundo de história em quadrinhos? Era incontestável que havia momentos comoventes e divertidos, alguns lampejos de autêntico talento literário, mas boa parte do conto a havia deixado ofendida, e a sra. Baldwin se perguntava por que Ferguson tinha escolhido logo a ela para ser sua primeira leitora, já que ele devia saber que ela ficaria chocada com seu emprego de palavrões (merda de pombo, na página 17, que merda, na página 30 — que ela apontou para Ferguson, batendo com o dedo nas linhas em que as palavras apareciam), sem falar da maneira como zombava da polícia em toda parte, a começar pelos termos depreciativos “cana” e “coturnos de polícia”, e depois o insulto se aprofundava, no retrato do capitão Benton como um sádico bêbado e violento — será que Ferguson não sabia que o pai dela foi o chefe de Polícia de Maplewood quando ela era menina, será que ela já não havia contado para sua turma histórias suficientes sobre o pai para deixar aquilo bem claro? — mas o pior de tudo, disse ela, o pior do que qualquer outra coisa era o tom indecente do conto, não era só o fato de que Quine subia e descia da cama de várias mulheres repulsivas, antes de pedir Alice em casamento, mas também que a própria Alice aceitasse ir para a cama com ele antes do casamento — uma instituição, aliás, pela qual Ferguson parecia nutrir absoluto desprezo —, e então, ainda pior do que o pior de tudo, o fato de que as alusões sexuais não se limitavam aos seres humanos, mas alcançavam até os sapatos, que ideia mais despropositada era aquela, a vida erótica dos sapatos, pelo amor de Deus, e como Ferguson podia olhar para si mesmo no espelho depois de escrever sobre o prazer que um sapato sente quando um pé pisa dentro dele, ou sobre o êxtase que o sapato experimenta ao ser engraxado e escovado, e como diabos ele foi inventar a orgia de sapatos com Flora e Nora, isso era realmente o limite, e será que Ferguson não sentia a menor vergonha de si mesmo por perder seu tempo com tamanha imundície?

Ele não soube o que responder. Até a sra. Baldwin começar a martelar sua cabeça com as críticas, Ferguson supôs que iam conversar sobre os mecanismos da escrita de ficção, questões técnicas como estrutura, ritmo e diálogo, a importância de usar uma palavra em vez de três ou quatro, como evitar digressões desnecessárias e conduzir o conto para a frente, as coisas pequenas, mas essenciais, que ele ainda tentava entender por conta própria, porém nunca lhe passou pela cabeça que a sra. Baldwin fosse atacá-lo no que parecia ser o terreno da moralidade, pondo em questão a própria substância do que ele tinha escrito e condenando tudo como indecência. Ela podia aprovar ou desaprovar o conto, mas a obra era dele, e ele tinha a liberdade de escrever o que quisesse, usar a palavra “merda” se achasse necessário, por exemplo, pois as pessoas no mundo real falavam aquela palavra cem vezes por dia, e apesar de ele ainda ser virgem, tinha aprendido bastante coisa sobre sexo para saber que ninguém precisa estar casado para fazer isso, que o desejo humano dava pouca ou nenhuma atenção às leis do matrimônio, e, quanto à vida sexual dos sapatos, como é que ela podia não perceber como aquilo era engraçado, e engraçado de um jeito tão absurdo e inocente que qualquer um que lesse aqueles trechos teria de ser um morto-vivo para não abrir um sorriso, e ela que se foda, disse Ferguson para si mesmo, ela não tinha nenhum direito de recriminá-lo daquele jeito e, no entanto, apesar da contrariedade de Ferguson, as palavras da sra. Baldwin estavam produzindo o efeito que ela pretendia, estavam escaldando suas entranhas, esfolando sua pele, e Ferguson ficou tão zonzo com aquele ataque que não teve forças para se defender e, quando, afinal, sentiu-se capaz de falar, não conseguiu tirar mais do que duas palavras da boca, duas palavras balbuciadas que, certamente, figuravam como as palavras mais patéticas que ele falou na vida:

Me desculpe.

Me desculpe, também, disse a sra. Baldwin. Sei que você acha que estou sendo severa com você, mas é para seu bem, Archie. Não estou dizendo que seu conto é obsceno, não quando a gente o compara com alguns livros que andam publicando nos últimos anos, mas é vulgar e de mau gosto, e eu só queria saber no que você estava pensando quando escreveu o conto. Tinha alguma coisa em mente ou estava apenas querendo chocar as pessoas com um bando de piadas picantes?

Ferguson não queria mais ficar ali. Queria levantar-se e ir embora da sala e nunca mais ter de olhar para a cara enrugada da sra. Baldwin e para seus olhos azuis e aguados. Queria ir embora da escola, fugir de casa e se pendurar nos vagões de trem como um desempregado do tempo da Depressão, pedir comida na porta das cozinhas e, nas horas vagas, escrever livros de sacanagem, um homem que não deve nada a ninguém, que dá risadas enquanto cospe na cara do mundo.

Estou esperando, Archie, disse a sra. Baldwin. Não tem nada para me dizer?

A senhora quer saber o que eu tinha na cabeça, é isso?

Sim, no que você estava pensando.

Eu estava pensando na escravidão, disse Ferguson. Em como certas pessoas, na verdade, pertencem a outras e têm de fazer o que mandam, desde o minuto em que nascem até o minuto em que morrem. Hank e Frank são escravos, sra. Baldwin. Eles vêm da África — a fábrica de sapatos —, depois são acorrentados e embarcados para o continente americano num navio — a caixa, a viagem de caminhão até a Madison Avenue —, e depois são vendidos para seu senhor, num leilão de escravos.

Mas os sapatos no seu conto gostam de ser sapatos. Não vai me dizer que os escravos gostavam de ser escravos, não é?

Não, claro que não. Mas a escravidão durou centenas de anos e quantas vezes os escravos se revoltaram, quantas vezes os escravos mataram seus senhores? Quase nunca. Os escravos fizeram o melhor possível em condições ruins. Chegavam até a fazer piadas e cantar músicas, quando tinham condições. Essa é a história de Hank e Frank. Eles têm de obedecer à vontade do senhor, mas isso não significa que não tentem extrair o máximo daquilo que eles têm.

Nada disso transparece no texto, Archie.

Eu não queria que ficasse óbvio demais. Talvez seja esse o problema, ou talvez a senhora tenha apenas deixado escapar, não sei. No meu caso, é isso que eu tinha na cabeça.

Fico feliz por você ter me contado. Não muda minha opinião sobre o conto, mas pelo menos sei que você está tentando fazer alguma coisa séria. Não gosto do conto, no fundo do coração, você entende, e me desagrada mais ainda porque uma parte dele é muito boa, e como agora sou uma mulher muito velha, acho que nunca vou gostar do que você fizer — mas continue escrevendo, Archie, e não escute o que eu digo. Você não precisa de conselhos, só precisa insistir. Como o seu querido amigo Edgar Allan Poe escreveu certa vez para um escritor aspirante: Seja arrojado, leia muito, escreva muito, publique pouco, fique longe dos truques ligeiros e não tenha medo de nada.

Ferguson não falou para ela sobre as últimas páginas do conto nem do que ele estava pensando, quando Alice coloca Hank e Frank dentro do armário. Se a sra. Baldwin não tinha percebido as referências secretas à escravidão, como poderia entender que o armário é um campo de concentração e que Hank e Frank, nessa altura, não são mais americanos negros, mas judeus europeus na Segunda Guerra Mundial, definhando no cativeiro até, finalmente, morrerem queimados no crematório-incinerador? Não adiantaria nada contar isso para ela, tampouco havia razão para falar sobre amizade, que era o verdadeiro tema do conto, no que dizia respeito a ele, porque isso significaria ter de falar sobre Artie Federman, e ele não tinha nenhuma vontade de dividir seu desgosto com a sra. Baldwin. Ela podia ter razão sobre não deixar essas coisas visíveis o bastante para que o leitor pudesse detectá-las, porém, mais uma vez, ela podia estar cega, portanto, em vez de jogar o conto fora e parar de pensar no assunto, ele corrigiu os erros que a sra. Baldwin circulou no original e datilografou outra versão, dessa vez usando papel-carbono a fim de obter uma segunda cópia, que ele mandou pelo correio aéreo para a tia Mildred e o tio Don na tarde seguinte. Doze dias depois, recebeu uma carta de Londres, que na verdade eram duas cartas no mesmo envelope, uma resposta separada de cada um dos dois, ambas favoráveis e entusiasmadas, nenhuma delas cega para as coisas que a professora não conseguiu perceber. Que enigma, disse Ferguson para si mesmo, enquanto uma grande onda de felicidade o varria por dentro, pois embora a tia e o tio dissessem que “Par perfeito” era um conto bom, o veredicto deles não alterava em nada o fato de que a sra. Baldwin continuava a achar que o conto era ruim. O mesmo original percebido de modo diferente por pares de olhos diferentes, corações diferentes, cérebros diferentes. Já não era mais uma questão de uma pessoa levar um soco enquanto outra ganhava um beijo, era a mesma pessoa que levava um soco e um beijo ao mesmo tempo, pois era assim que o jogo funcionava, se deu conta Ferguson, e se ele quisesse continuar mostrando o conto para outras pessoas no futuro, teria de se preparar para levar tanto socos quanto beijos, ou levar dez socos para cada beijo, ou cem socos e nenhum beijo.

Em vez de mandar o conto pelo correio direto para Ferguson, o tio Don mandou para Noah, com instruções para que devolvesse o original para o primo quando terminasse de ler. Num sábado de manhã, bem cedo, mais ou menos uma semana depois que as cartas chegaram de Londres, o telefone tocou na cozinha enquanto Ferguson raspava seu prato de ovos mexidos com torrada no café da manhã, e lá na outra ponta da ligação telefônica estava Noah, disparando suas palavras como balas de uma minimetralhadora, dizendo que tinha de falar depressa, porque a mãe tinha saído só um instante para fazer compras e na certa ia arrancar seu couro se entrasse e o apanhasse fazendo uma ligação interurbana, ainda mais uma ligação para Ferguson, com quem ele não devia entrar em contato sob nenhuma circunstância, no santuário do seu apartamento, não só porque não era primo de verdade de Noah, como também porque tinha um laço de sangue com a puta dos demônios (sim, disse Noah, ela estava louca, todo mundo sabia disso, mas era ele que tinha de morar com ela) e, no entanto, quando chegou ao fim daquele prólogo ofegante, Noah imediatamente começou a desacelerar o ritmo de sua fala e, dali a pouco, estava falando na velocidade normal, ou seja, depressa, mas não escandalosamente depressa, e já parecia uma pessoa que tinha todo o tempo do mundo para bater um bom papo prolongado.

Muito bem, seu maluco, começou ele. Dessa vez você conseguiu, não foi?

Consegui o quê?, retrucou Ferguson, fingindo ignorar, já que estava mais ou menos seguro de que Noah estava se referindo a seu conto.

Uma coisinha curiosa chamada “Par perfeito”.

Você leu?

Palavra por palavra. Três vezes.

E aí?

Fantástico, Archie. Muito foda, simplesmente incrível. Para dizer a verdade, eu não sabia que você tinha essa capacidade.

Para dizer a verdade, eu também não.

Acho que devia transformar num filme.

Muito engraçado. E como é que vamos fazer isso sem uma câmera?

Um detalhe insignificante. Vamos remediar esse problema no devido momento. De todo modo, agora não temos tempo para trabalhar nisso. Por causa da escola, em primeiro lugar, e também por causa da distância entre Nova York e Nova Jersey, além de diversos obstáculos materiais que não vou detalhar agora. Mas sempre existe o verão. Quer dizer, nós já terminamos com essa história de ir para a colônia de férias, não é? Estamos velhos demais para isso e, depois do que aconteceu com o Artie, bem, acho que eu nunca mais vou ser capaz de ir para lá.

Concordo. Chega de colônia de férias.

Então, vamos passar o verão fazendo o filme. Agora que você virou escritor, imagino que vai largar todas essas bobagens de esportes.

Só o beisebol. Mas ainda jogo basquete. Faço parte de uma equipe, você sabe, um time da nona série, patrocinado pela Associação Cristã de Moços de West Orange. Jogamos com outros times da ACM no condado de Essex duas vezes por semana, uma vez na quarta e uma vez no sábado de manhã.

Não entendo. Se você quer continuar a ser atleta, para que largar o beisebol? É o esporte em que você se sai melhor.

Por causa do Artie.

E o que o Artie tem a ver com isso?

Ele foi o melhor jogador que nós já vimos, não foi? E também era meu amigo. Não era tão seu amigo assim, mas era meu amigo, meu bom amigo. Agora, Artie morreu e eu quero continuar pensando nele, para mim é importante ter o Artie em meus pensamentos o mais possível, e a melhor maneira de conseguir isso, eu entendi, era abrindo mão de alguma coisa em homenagem a ele, uma coisa de que eu gosto muito, uma coisa importante para mim, portanto escolhi o beisebol, porque o beisebol era o melhor esporte do Artie também, e de agora em diante, toda vez que eu vir alguém jogando beisebol ou toda vez que pensar por que não estou jogando beisebol, vou pensar no Artie.

Você é um sujeito estranho, sabia?

Acho que sim. Mas, mesmo que eu seja, o que é que eu posso fazer?

Nada.

Isso mesmo. Nada.

Então, jogue basquete. Entre numa liga de verão, se quiser, porque se você se restringir a um esporte só, ainda vai ter tempo de sobra para trabalhar no filme.

Concordo. Supondo que a gente consiga arranjar uma câmera.

Vou dar um jeito, não se preocupe. O importante é que você escreveu sua primeira obra-prima. A porta foi aberta, Archie, e muitas obras vão surgir — uma vida inteira de obras-primas.

Não vamos ficar tão empolgados. Escrevi uma coisa, só isso, e vá saber se vou ter ou não outra ideia? Além do mais, ainda tenho meu plano.

Aquilo não. Achei que você tinha largado isso há séculos.

Na verdade, não larguei.

Escute aqui, seu maluco. Você nunca vai ser médico — e eu nunca vou ser um Hércules no circo. Você não tem cabeça para matemática e ciências e eu não tenho nenhum músculo no corpo. Portanto, nada de dr. Ferguson e nada de Noah, o Magnífico.

Como pode ter tanta certeza?

É porque essa ideia entrou na sua cabeça por meio de um livro, é por isso. Um romance cretino que você leu quando tinha doze anos e que eu tive a infelicidade de ler também, porque você insistiu dizendo que era muito bom, o que não era o caso, e se você puser os olhos no livro de novo, tenho certeza de que vai perceber logo, afinal, que não é nada daquilo que você pensava, que o livro não tem mesmo nada de bom. Jovem médico idealista explode cano de esgoto contaminado a fim de livrar a cidade de uma doença, jovem médico idealista perde seus ideais em troca de dinheiro e uma casa de luxo, médico nem tão jovem e ex-idealista recupera seus ideais e assim salva sua alma. Besteiras, Archie. É bem o tipo de lixo que move um garoto idealista que nem você, mas você já não é mais um garoto, é um sujeito robusto, com uma pica de homem uivando no meio das pernas e uma cabeça capaz de produzir obras-primas literárias e Deus sabe o que mais, e agora você vem me dizer que ainda está escravo daquele raio de livro abominável cujo título me escapa, agora, porque fiz tudo que estava ao meu alcance para esquecer?

A cidadela.

Isso mesmo. E agora que você me fez lembrar, nunca mais diga esse título na minha presença. Não, Archie, uma pessoa não vira médico porque leu um livro. Vira médico porque precisa virar médico, e você não precisa virar médico, precisa ser escritor.

Pensei que ia ser um telefonema curto. Esqueceu da sua mãe, é?

Inferno. Claro que esqueci. Tenho de desligar, Arch.

Seu pai vai voltar daqui a algumas semanas. Aí a gente vai se ver, tá legal?

Não tem erro. Vamos falar em sapatês um com o outro, com os pés calçados em brogans... e enquanto isso vá imaginando como roubar uma câmera.

No dia 19 de dezembro, três dias depois da conversa entre Ferguson e Noah, o New York Times publicou a notícia de que os recrutas americanos tinham entrado na zona de guerra no Vietnã do Sul e agora participavam de operações táticas com instruções para revidar se atirassem contra eles. Junto com uma carga de quarenta helicópteros, quatrocentos soldados de combate chegaram ao Vietnã do Sul uma semana antes. Mais aeronaves, veículos terrestres e anfíbios também estavam a caminho. Ao todo, havia agora dois mil americanos uniformizados no Vietnã do Sul, em vez dos oficialmente informados 685 membros do grupo de consultores militares.

Quatro dias antes disso, no dia 23 de dezembro, o pai de Ferguson partiu numa viagem de duas semanas para o sul da Califórnia para visitar os irmãos e suas famílias. Foi a primeira folga que tirou do trabalho em muitos anos, a última tinha sido em dezembro de 1954, quando ele e a mãe de Ferguson foram para Miami Beach passar dez dias de férias de inverno. Dessa vez, a mãe de Ferguson não foi com ele. Tampouco acompanhou o pai de Ferguson ao aeroporto para se despedir no dia em que ele partiu. Ferguson tinha ouvido a mãe xingar os cunhados vezes de sobra para entender que ela não tinha o menor interesse em ver nenhum dos dois, mesmo assim devia haver ali outra coisa além disso, pois, quando o pai partiu, ela se mostrou mais agitada do que de costume, mais preocupada, rabugenta e — pela primeira vez, até onde Ferguson lembrava — incapaz de se concentrar no que Ferguson dizia para ela, e sua distração era tão profunda que Ferguson se perguntava se ela não estaria remoendo em pensamento a situação atual de seu casamento, que parecia ter dado uma guinada definitiva com a partida solitária do pai para Los Angeles. Talvez a água da banheira não estivesse mais apenas fria. Talvez, agora, estivesse gelada, à beira do congelamento e de se converter num bloco de gelo.

A cópia carbono de seu conto foi devolvida por Noah, conforme o prometido, e como ela chegou a Maplewood antes da partida do pai para a Califórnia, Ferguson entregou-a para ele para a eventualidade improvável de ele ter tempo de ler durante a viagem. A mãe tinha lido o conto semanas antes, é claro, no sábado anterior ao Dia de Ação de Graças, enrolada no sofá da sala, descalça, fumando meio maço de Chesterfield, enquanto abria caminho por aquelas cinquenta e duas páginas, e depois disse para ele que achava o conto uma verdadeira maravilha, uma das melhores coisas que já li, o que já era o esperado, Ferguson imaginava, pois ela teria proferido o mesmo veredicto se ele tivesse copiado a lista de compras do mês anterior e mostrado para ela como se fosse um poema experimental, porém era sempre muito melhor ter a mãe do seu lado do que o contrário, sobretudo com um pai que parecia não estar de lado nenhum. Agora que “Par perfeito” tinha passado pelas mãos da tia Mildred, do tio Don e de Noah, ele achou que estava na hora de sair da toca (expressão de que gostava por suas alusões animais) e mostrar o conto para Amy Schneiderman, a única pessoa em Maplewood cuja opinião lhe inspirava confiança — e, portanto, a pessoa a quem ele mais tinha pavor de mostrar, pois Amy era honesta demais para amaciar os golpes, e um soco dela deixaria Ferguson arrasado.

De certa maneira, ou mesmo de muitas maneiras, Ferguson achava que Amy Schneiderman era uma versão feminina de Noah Marx. Uma versão mais atraente, é claro, pois era uma garota, e não um garoto sem músculos e de olhos esbugalhados, mas ela era esperta do mesmo jeito que Noah era esperto, o mesmo tipo de pessoa cheia de vivacidade, sempre ligada e com a cabeça em ebulição, e ao longo dos anos Ferguson se deu conta de que ele dependia muito de ambos, como se os dois fossem um par de asas de borboleta que ele usava nas costas a fim de se manter no alto, ele que, às vezes, podia se tornar bastante pesado, preso ao chão, e no entanto, no caso da mais atraente Amy, a atração física não era tão grande que chegasse a incutir pensamentos amorosos na cabeça de Ferguson e, portanto, ela continuava a ser só uma amiga, se bem que uma amiga essencial, sua camarada mais importante na sempre crescente guerra contra a chatice e a mediocridade da vida suburbana, e que sorte que fosse logo ela, entre tanta gente neste mundo, que tinha de morar no antigo quarto dele, um capricho narrativo na história de suas vidas, talvez, mas aquilo havia formado um vínculo entre ambos, um tipo peculiar de intimidade que os dois encaravam como natural agora, pois Amy não só respirava o mesmo ar que ele havia respirado naquela casa, como passava as noites na mesma cama em que ele havia dormido quando morava lá, uma cama que sua mãe tinha achado pequena demais para o quarto de Ferguson na casa nova e, em consequência, tinha dado de presente para os pais de Amy, que não tinham nada de ricos, antes de se mudarem. Aquilo tinha acontecido mais de cinco anos antes, no fim do verão de 1956, e embora Amy devesse ter começado a quinta série em setembro, dois dias antes do começo do ano letivo, ela caiu de um cavalo num passeio na South Mountain Reservation e quebrou a bacia, e, quando ficou curada, já estava no meio de outubro e então os pais resolveram que ela devia repetir a quarta série em vez de entrar numa escola nova com seis semanas de atraso em relação às outras crianças da sua turma. Foi assim que ela e Ferguson foram parar na mesma sala, os dois nascidos com apenas três meses de diferença, só que destinados a trajetórias ligeiramente distintas na escola, mas aí a bacia quebrada interveio e suas trajetórias se tornaram idênticas, começando naquele primeiro ano em que foram colegas de curso nas aulas da quarta série da srta. Mancini e continuando até seus dois últimos anos na Jefferson Elementary School, e depois todos os três anos no Maplewood Junior High — sempre juntos na mesma turma, sempre competindo entre si, e, como nunca houve nenhum embaraço romântico para afastá-los um do outro, com os inevitáveis mal-entendidos e mágoas que todo romance acarreta, continuaram sempre amigos.

Na manhã seguinte à partida do pai para a Califórnia, um domingo, dia 24 de dezembro, véspera do feriado que nenhuma das duas famílias comemorava, Ferguson telefonou para Amy às dez e meia e perguntou se não podia ir à casa dela. Tinha uma coisa para lhe dar, explicou, e se ela não estivesse muito ocupada, ele gostaria de lhe entregar já. Não, respondeu, ela, não estava ocupada, estava só deitada à toa de pijama, lendo o jornal, tentando não pensar no trabalho de escola que eles tinham de fazer nas férias de inverno. Até a casa de Amy, era uma caminhada de quinze minutos, trajeto que ele tinha percorrido a pé muitas vezes no passado, mas naquela manhã o tempo estava horroroso, um chuvisco fino e uma temperatura de zero grau ou um grau negativo, um clima de neve sem sombra de neve, mas enevoado, ventoso e úmido, por isso Ferguson disse que ia pedir à mãe que o levasse de carro até lá. Nesse caso, respondeu Amy, por que os dois não ficam para almoçar? Jim tinha caído fora dez minutos antes e ia ficar lá em Nova York com amigos, mas a comida estava toda comprada, havia mantimentos para alimentar dez pessoas esfomeadas e seria uma pena desperdiçar. Espere só um minuto, disse ela, baixou o fone e gritou para os pais, perguntando se Archie e a sra. Ferguson podiam vir e dividir nossa gororoba com a gente (Amy tinha uma queda por expressões gozadas) e, vinte segundos depois, pegou o fone de novo e disse: Tudo bem. Venham entre meio-dia e meia e uma hora.

Assim, o original de “Par perfeito” foi finalmente entregue às mãos de Amy, e, enquanto Ferguson estava sentado em seu antigo quarto com a garota que passava as noites dormindo na antiga cama dele, os dois conversaram por um tempo, enquanto os adultos preparavam a comida na cozinha, bem embaixo deles, primeiro falaram de seus dramas amorosos do momento (Ferguson morria de amores por uma garota chamada Linda Flagg, que tinha dado um fora nele quando a convidou para ir ao cinema na sexta-feira, e Amy consumia suas esperança num garoto chamado Roger Saslow, que ainda não havia ligado para ela, mas tinha dado a entender que ia ligar, na hipótese de Amy ter entendido direito), depois falaram sobre Jim, o irmão mais velho, calouro no MIT e torcedor ferrenho do time de basquete da Columbia High School, nos dois últimos anos do ensino médio, e Amy contou como ele ficou indignado com o escândalo de Jack Molinas e da compra de resultados no time de basquete da universidade, dúzias de partidas com resultados comprados nas últimas temporadas, jogadores subornados com poucas centenas de dólares, enquanto Molinas e seus colegas de apostas embolsavam dezenas de milhares de dólares por semana. Tudo neste país está comprado, disse Amy. Os programas de testes de conhecimento da televisão, as partidas de basquetebol dos times universitários, o mercado de ações, as eleições políticas, mas o Jim era ingênuo demais para entender isso. Pode ser, disse Ferguson, mas Jim só era ingênuo porque via o melhor nas pessoas, o que era uma boa qualidade, ele achava, uma das coisas que mais admirava no irmão de Amy, e tão logo pronunciou a palavra “admirar”, a conversa tomou uma direção nova — o ensaio que eles tinham de redigir para a competição de janeiro, entre todos os alunos da escola. O tema era A pessoa que eu mais admiro, e todo mundo tinha de participar, todos os alunos da sétima, oitava e nona séries. Ferguson perguntou para Amy se ela já havia escolhido alguém.

Claro que já. O tempo está passando, entende? A gente tem de entregar o trabalho no dia 3 de janeiro.

Não me peça para adivinhar quem é. Posso dar um fora.

Emma Goldman.

Já ouvi falar, mas não sei grande coisa sobre ela. Quase nada, na verdade.

Eu também não, mas o meu tio Gil me deu a autobiografia dela de presente e agora me apaixonei. É uma das maiores mulheres que já existiram. (Uma breve pausa.) E você, sr. Ferguson? Já tem alguma ideia?

Jackie Robinson.

Ah, disse Amy, o jogador de beisebol. Mas não é um jogador qualquer, não é?

O homem que transformou os Estados Unidos.

Não é uma escolha ruim, Archie. Vai fundo.

E por acaso eu preciso da sua autorização?

Claro que precisa, seu bobo.

Os dois riram e então Amy ficou de pé num salto: Venha, vamos lá embaixo. Estou morta de fome.

Na terça-feira, Ferguson saiu para pegar a correspondência e encontrou uma carta manuscrita na caixa de correio — sem selo, sem endereço, só seu nome escrito na frente. A mensagem era sucinta:

Querido Archie,

Odeio você.

Amor, Amy

P.S.: Amanhã devolvo o original. Preciso dar mais uma volta com Hank e Frank antes de devolver.

O pai de Ferguson voltou para Maplewood no dia 5 de janeiro. Ferguson esperava que ele dissesse alguma coisa sobre o conto, pelo menos para se desculpar por não ter lido, mas ele não disse nada e, quando os dias passaram e ele continuou sem dizer nada, Ferguson achou que o pai tinha perdido o conto. Como, nessa altura, Amy havia devolvido o original datilografado, a perda da cópia não era muito grave. O que contava era como o pai dava pouca importância ao assunto, e, já que Ferguson resolveu nunca falar com ele sobre o conto, a menos que o pai tomasse a iniciativa, a questão cresceu e se transformou num assunto de grande importância, de importância cada vez maior, à medida que o tempo passava.

* Iídiche: “Entende?”. (N. T.)


3.1

Havia dor. Havia medo. Havia confusão. Duas criaturas virgens se deflorando mutuamente, com a compreensão mais vaga do mundo sobre o que estavam fazendo, preparadas apenas no sentido de que Ferguson conseguiu arranjar uma caixa de preservativos e Amy, prevendo o sangue que iria inevitavelmente sair dela, colocou uma toalha de banho marrom por cima do lençol, na cama — uma precaução inspirada pela força duradoura das lendas antigas e que, a rigor, revelou-se desnecessária. O contentamento no início, a sensação extasiante de estar inteiramente nu na frente um do outro pela primeira vez desde aquela antiga travessura sobre o colchão quando eram criancinhas, já esquecida havia muito tempo, a chance de tocar cada centímetro quadrado do corpo do outro, o delírio da pele nua apertada contra a pele nua, mas quando estavam plenamente excitados, a dificuldade para dar o passo seguinte, a ânsia de entrar no corpo de outra pessoa pela primeira vez, de ser penetrada por outra pessoa pela primeira vez, Amy tensa naqueles primeiros momentos, porque doía muito, Ferguson se sentindo arrasado por causar aquela dor e, portanto, reduziu o ritmo e, por fim, recuou por completo; depois disso houve um intervalo de três minutos e então Amy agarrou Ferguson e deu instruções para ele começar outra vez, dizendo: Faça isso e pronto, Archie, não se preocupe comigo, faça, e então Ferguson fez, ciente de que não podia se preocupar com ela, mas também ciente de que a fronteira tinha de ser atravessada, que aquele era o momento que coube a eles, e, apesar da ferida interior que aquilo devia causar nela, como se fosse rasgada, Amy riu quando acabou, riu com sua grande risada e disse: Estou tão feliz que acho que vou morrer.

Que fim de semana estranho foi aquele, sem sair do apartamento nem uma vez, sentados no sofá, enquanto viam Johnson ser nomeado presidente, viam Oswald ser levado para a prisão, na sua camiseta ensanguentada, protestando para as câmeras, dizendo que ele não passava de um bode expiatório, expressão que Ferguson associaria, para sempre, com o jovem frágil que matou ou não matou Kennedy sozinho, enquanto viam um breve intervalo do noticiário em que uma orquestra tocou a música fúnebre da sinfonia Eroica de Beethoven, viam a procissão fúnebre pelas ruas de Washington, no domingo, enquanto Amy engasgava com a imagem do cavalo sem cavaleiro, e viam Jack Ruby se infiltrar na delegacia de Dallas e dar um tiro na barriga de Oswald. Cidade irreal. O verso de Eliot não parava de explodir dentro da cabeça de Ferguson ao longo daqueles três dias, enquanto ele e Amy, pouco a pouco, davam cabo das comidas que havia na cozinha, os ovos, as fatias de carne de cordeiro, o peru fatiado, as embalagens de queijo, as latas de atum, as caixas de cereais matinais e de biscoitos, enquanto Amy fumava mais do que ele jamais tinha visto e Ferguson fumava junto com ela, pela primeira vez desde que os dois se conheceram, os dois sentados juntos no sofá e apagando suas guimbas de Lucky em uníssono, depois jogando os braços um em volta do outro e se beijando, incapazes de parar de cometer o sacrilégio de se beijar num momento como aquele, de sair do sofá a cada três ou quatro horas para mais uma visita ao quarto, tirando as roupas e subindo na cama de novo, os dois agora machucados, não só Amy, mas Ferguson também, só que eles não conseguiam parar, o prazer era sempre mais forte do que a dor, e, por mais cruel que fosse ficar ali naquele fim de semana trágico, era, no entanto, o maior e mais importante fim de semana de suas jovens vidas.

O que deu pena é que, nos dois meses seguintes, mais nenhuma oportunidade como aquela cruzou o caminho deles. Ferguson continuava indo para Nova York todo sábado, só que o apartamento de Amy nunca estava vazio por tempo suficiente para que eles fossem de novo para o quarto. Um dos pais estava sempre por perto, não raro o pai e a mãe, e, sem ter outro lugar para ir, a única solução era os Schneiderman saírem da cidade de novo — o que não acontecia. Foi por isso que Ferguson aceitou o convite da prima para ir esquiar em Vermont no fim de janeiro. Não que ele tivesse qualquer interesse em esquiar, algo que já havia experimentado uma vez e não tinha nenhuma vontade de repetir, mas quando Francie lhe disse que a única casa que eles poderiam alugar para o fim de semana era uma construção velha e espaçosa, com cinco quartos, Ferguson achou que podia haver alguma esperança. Tem muito espaço, disse Francie, o que explicava por que ela pensou em telefonar para ele, e, se ele quisesse trazer um amigo, também haveria espaço para essa pessoa. Namoradas contam como amigos?, perguntou Ferguson. É claro que sim!, respondeu Francie e, pelo modo como respondeu sua pergunta, pelo entusiasmo espontâneo daquela exclamação, é claro que sim, Ferguson naturalmente supôs que ela entendia que ele estava dizendo que ele e Amy, agora, eram um casal e queriam dormir no mesmo quarto, pois Francie tinha casado aos dezoito anos, afinal, só um ano mais velha do que Amy agora, e se alguém sabia o que era o desejo adolescente frustrado tinha de ser sua prima de vinte e sete anos de idade, sua prima predileta desde o tempo em que ele usava fraldas. Amy ficou em dúvida sobre a interpretação otimista do é claro que sim de Francie, ciente de que os dois tinham se desgarrado bastante das regras aceitas da conduta sexual, que não só não permitia o intercurso entre adolescentes que não fossem casados como considerava isso um verdadeiro escândalo, e além disso, disse Amy, ela nunca tinha ido a Vermont, nunca calçara esquis e, afinal, o que poderia ser melhor do que um fim de semana na neve com o Archie? Quanto à outra questão, eles teriam de ver quem estava certo e quem estava errado e, se acontecesse de ela estar certa, isso também não significava que não poderia haver alguma escapulida do quarto de madrugada para subir sorrateiramente na cama de outra pessoa. Partiram numa tarde fria de sexta-feira, com Amy e Ferguson espremidos numa caminhonete azul lotada, junto com Francie, seu marido Gary e os dois filhos Hollander, Rosa, de seis anos, e David, de quatro, e para os mais velhos foi uma sorte as crianças terem dormido durante a maior parte das cinco horas da viagem até Stowe.

Francie tinha escolhido o nome da filha por causa da mãe de Ferguson, embora os nomes não fossem idênticos. A proibição de dar aos filhos os nomes de pais ou avós ou parentes vivos era uma lei que mesmo os judeus não praticantes ainda seguiam, o que explicava a diferença de uma letra entre os nomes Rose e Rosa, um detalhe sutil que Gary, o advogado, inventou a fim de contornar os tradicionalistas da sua família, no entanto o nome estava lá para todo mundo ver, Rosa em homenagem a Rose, e, com esse gesto, Francie e Gary estavam dizendo ao mundo que tinham dado as costas para Arnold Ferguson, que havia se separado da família por causa do crime que tinha cometido contra o irmão, por isso a lealdade deles passaria para aquele irmão, Stanley, a vítima, e sua esposa Rose, a quem Francie amava desde a primeira vez que pôs os olhos nela quando menina. Para Francie, não foi fácil dar esse passo, denunciar o pai quando ela ainda se sentia muito próxima da mãe, do irmão e da irmã, mas o desprezo de Gary pelo sogro era tão forte, sua repulsa pela fraqueza moral do homem e por sua desonestidade era tão absoluta que Francie não teve opção a não ser concordar com o marido. Já estavam casados havia dois anos quando ocorreu o roubo, moravam no noroeste de Massachusetts quando Gary terminou seu curso de graduação no Williams College, um dos três “casais bebê” na sua turma da faculdade, e Francie, de vinte anos de idade, já estava grávida do primeiro filho, que nasceu alguns meses depois que veio à luz o envolvimento do pai dela no assalto ao depósito. Todo o resto da família mudou-se para a Califórnia, nessa ocasião, não só os pais, mas também a jovem e dócil Ruth, que havia acabado de concluir o ensino médio e se matriculou num curso de secretariado em Los Angeles, e até Jack, que largou a Universidade Rutgers no último ano para se juntar a eles, decisão que Francie e Gary pediram muito que não tomasse, o que levou Jack a dizer para eles dois caírem fora, e quando Rosa nasceu, só a mãe e a irmã de Francie viajaram para a Califórnia para segurar a criança nos braços. Jack disse que estava ocupado demais para viajar, e o execrado Arnold Ferguson não pôde vir, porque nunca mais voltaria do leste.

Na ocasião, Francie sofreu tanto quanto qualquer pessoa da família, talvez, mas cada um sofreu da sua maneira, e, até onde Ferguson podia perceber, o sofrimento de Francie a havia transformado numa pessoa mais quieta, menos entusiasmada do que era no passado, uma versão mais apagada de sua antiga personalidade. Por outro lado, estava ficando mais velha, já havia ultrapassado o ponto que Ferguson gostava de chamar de plenamente adulto e, embora seu casamento parecesse ser bom, não havia nenhuma dúvida de que Gary, às vezes, podia ser pretensioso e autoritário, cada vez mais propenso a monólogos demorados e pedantes a respeito do declínio e da queda da civilização ocidental, sobretudo agora, nos últimos anos, quando ele estava trabalhando na firma do pai e começava a ganhar os honorários de um advogado sério, o que, em certa medida, devia ter esgotado Francie, sem falar da vida de mãe, que esgotava qualquer um, mesmo uma mãe carinhosa e dedicada como Francie, que vivia para os filhos, da mesma forma que a tia Joan, no passado, tinha vivido também para os filhos. Não, disse Ferguson para si mesmo, enquanto a caminhonete seguia para o norte pela escuridão que se acumulava, ele também não devia exagerar. Apesar de a vida ter dado seus pontapés em Francie, ela ainda era a mesma velha Francie, a mesma prima mágica de seus tempos de infância, um tanto claudicante agora, ele supunha, sob o fardo da memória da traição do pai, porém como ela pareceu feliz quando Ferguson aceitou seu convite para passar o fim de semana com eles, e que generosidade da parte dela aceitar Amy com o surpreendente é claro que sim!, e agora que eles estavam todos juntos no carro, Ferguson no banco de trás com duas crianças adormecidas e Francie no banco da frente, entre Gary e Amy, ele podia ver o rosto de sua prima, ainda lindo, no espelho retrovisor, toda vez que a luz do farol de um carro de passagem incidia nele, e, numa dessas vezes, mais ou menos na metade da viagem, quando Francie ergueu os olhos e viu que Ferguson estava olhando para ela, virou para trás, estendeu o braço esquerdo e segurou a mão dele, na qual deu, então, um aperto demorado e forte. Tudo certo?, perguntou ela. Você está muito calado aí atrás.

Era verdade que já fazia uma hora que ele não falava grande coisa, mas isso era só porque não queria acordar as crianças e, portanto, sua cabeça ficou vagando, rodando em torno de antigas questões de família, enquanto parava de escutar o que Amy e Gary estavam falando na frente, o corpo de Ferguson sentia-se embalado pelo rolar dos pneus embaixo dele, a velha sensação de um embaçamento na cabeça, que ele experimentava quando andava de carro, a cem quilômetros por hora, mas agora que Francie apertou sua mão e ele começou a prestar mais atenção, se deu conta de que o assunto em pauta era a política, sobretudo o assassinato que tinha ocorrido apenas dois meses antes e ainda era o assunto sobre o qual ninguém conseguia deixar de falar, as conversas obsessivas sobre quem e por quê e como; já parecia muito pouco crível que Oswald tivesse feito aquilo sozinho e numerosas teorias alternativas já começavam a circular, Castro, a máfia, a CIA e até o próprio Johnson, o texano de nariz grande que havia sucedido o homem do futuro, ainda um enigma, até onde Amy podia avaliar, mas Gary, que foi bem rápido em tomar uma posição, chamou Johnson de personagem escorregadio, um político de bastidores no velho estilo, que não estava à altura da função, e Amy, embora admitisse que ele pudesse ter razão, mesmo assim argumentou mencionando o discurso de Johnson no início daquele mês, o início da guerra contra a pobreza, que foi o melhor discurso presidencial que ela ouviu na vida, disse Amy, e ele teve de admitir que ninguém jamais tinha levantado a voz para dizer alguma coisa parecida desde o tempo de Roosevelt, nem mesmo Kennedy. Ferguson sorriu quando ouviu Gary aceitar o argumento, e depois sua cabeça divagou de novo, quando começou a pensar em Amy, a notável Amy, que estava agradando em cheio aos Hollander, que tinha conquistado os dois logo no primeiro aperto de mão, no primeiro alô, assim como havia conquistado o próprio Ferguson no churrasco do Dia do Trabalho, e agora que estavam chegando à divisa com Vermont, tudo que ele podia fazer era rezar para que tudo corresse como planejado, para que em breve os dois estivessem nus embaixo do cobertor, outra vez num quarto estranho, numa casa estranha, no meio de um fim de mundo na Nova Inglaterra.

A casa era tão grande como tinha sido anunciada, e o fim de mundo era o topo de um morro situado a dezessete quilômetros da estação de esqui. Três andares, em vez dos dois de costume, seu abrigo de fim de semana tinha sido construído no início do século XIX, e, naquela estrutura de madeira atravessada por correntes de ar, todas as tábuas do piso rangiam. O rangido era um problema potencial, pois se constatou que a interpretação de Amy do é claro que sim dito por Francie estava correta, algo que Ferguson se viu obrigado a reconhecer, quando o grupo de seis pessoas deu sua primeira volta pela casa, compreendendo que seus anfitriões nunca pensaram em permitir que os dois dormissem juntos no mesmo quarto e, portanto, eles teriam de recorrer ao seu plano de reserva, ao qual Ferguson se referia como a solução da farsa francesa, a comédia de portas que abrem e fecham à meia-noite, com as dobradiças enferrujadas, de amantes que se esgueiram por corredores escuros e estranhos, de corpos que rastejam para cima de leitos onde não deveriam estar, e as tábuas do assoalho que gemiam não ajudavam nem um pouco a disfarçar seus estratagemas. Felizmente, Gary e Francie sugeriram que as crianças maiores dormissem nos dois quartos do sótão, para que as crianças pequenas pudessem passar a noite no mesmo andar que os pais, que estariam por perto, no caso de um pesadelo (Rosa) ou de algum incidente urinário (David). Isso vai ajudar, pensou Ferguson. As tábuas rangentes estariam bem em cima dos outros, é claro, ressoando através do teto, logo abaixo, porém as pessoas às vezes saem da cama já tarde da noite para irem tateando até o banheiro e, numa casa velha como aquela, quem é que podia impedir que o piso emitisse seus horríveis sons de trilha sonora de filme de terror? Com um pouco de sorte, eles conseguiriam alcançar o que desejavam. E se não tivessem sorte nenhuma, o que poderia acontecer de pior? Nada demais, disse Ferguson para si mesmo, talvez absolutamente nada mesmo.

Nos primeiros momentos, tudo correu tranquilamente. Tinham combinado o encontro para as onze e meia, uns bons noventa minutos depois de as crianças terem ido para a cama e de seus pais terem dado boa-noite, e, no horário marcado, tudo na casa estava em silêncio, exceto por alguma rajada de vento ocasional que atravessava as fissuras das paredes e fazia chocalhar o cata-vento no telhado. Ferguson se pôs de pé, saindo da cama de ferro, e deu início à vagarosa jornada rumo ao quarto de Amy, andando cautelosamente na pontinha dos pés sobre as pranchas frouxas, se detendo após todo e qualquer guincho que a madeira emitisse, em seguida contava até cinco, antes de se aventurar a mais um passo. Tinha deixado a porta entreaberta para não ter de girar a maçaneta, o que eliminava o risco de produzir um som repentino e alto demais com a tranca, e, embora as dobradiças estivessem, de fato, um pouco enferrujadas, revelaram-se mais silenciosas do que o vento. Depois, o corredor, com os catorze passos adicionais que aquela etapa da viagem requeria, e depois o empurrão delicado na porta de Amy, que também tinha ficado entreaberta e, enfim, ele estava lá.

A cama era extremamente estreita, mas Amy estava nua nela e, depois que ele tirou a cueca samba-canção e se enfiou na cama a seu lado, Ferguson também estava nu, e tudo dava nele uma sensação tão boa, tão perfeitamente de acordo com a maneira como ele imaginava que ia se sentir que, por uma vez na vida, o imaginário e o real foram idênticos, uma coisa só, absolutamente e como nunca antes, o que havia por força de transformar aquilo no momento mais feliz de sua vida até então, ele acreditava, pois Ferguson não era uma pessoa que apoiasse a tese de que um desejo satisfeito era um desejo frustrado, pelo menos não naquele caso, uma situação em que desejar Amy agora não tinha graça nenhuma sem ter Amy, não tinha graça sem que Amy o desejasse, e o milagre era que ela o desejava de verdade e, portanto, um desejo satisfeito era, de fato, um desejo satisfeito, a chance de passar alguns momentos no reino efêmero da graça terrena.

Eles tinham aprendido muita coisa naquele tumultuado fim de semana, dois meses antes, primeiro às cegas, porque não conheciam quase nada sobre a maioria das coisas, mas aos poucos alcançaram certo conhecimento acerca do que estavam tentando fazer, não era um conhecimento avançado, talvez, mas pelo menos os rudimentos de como funcionava o outro corpo, pois sem aquele conhecimento não existiria nenhum prazer verdadeiro, sobretudo para Amy, que tinha de ensinar ao ignorante Ferguson as várias formas como as mulheres diferem dos homens, e agora que Ferguson estava começando a pegar o jeito, sentia-se mais calmo e mais confiante do que em Nova York, o que tornou tudo melhor dessa vez, e tão melhor que, depois de alguns minutos na escuridão cerrada daquele quarto em Vermont, eles deixaram de pensar onde estavam.

O leito era uma velha cama de ferro com um colchão fino estendido sobre duas dúzias de molas espiraladas e, a exemplo do chão que apoiava a cama, rangia. Rangia sob o peso de um corpo, mas quando dois corpos começaram a se movimentar juntos, para lá e para cá, em cima daquele colchão, o som que fez foi um estrondo. O barulho levou Ferguson a pensar numa locomotiva a vapor que andava a cento e dez quilômetros por hora, enquanto Amy achou o barulho semelhante a uma gráfica industrial imprimindo em velocidade um milhão de exemplares da edição matinal de um jornal tabloide. De um jeito ou de outro, o barulho era alto demais para a refinada farsa francesa que eles tinham escrito em pensamento, e agora que tinham começado a ouvir o barulho, já não havia mais nada em suas cabeças a não ser o barulho, os guinchos infernais de seu acasalamento frenético e, no entanto, como podiam se deter, quando estavam à beira, cambaleantes bem na beiradinha do precipício de seu desejo satisfeito? Não podiam e, portanto, os dois foram em frente até que ambos tivessem desabado pela borda do abismo, e, quando a locomotiva parou de se mover e os dois puderam ouvir algo além do barulho, ouviram outro barulho que vinha do quarto embaixo, o choro de uma criança espantada, assustada, sem dúvida o menorzinho, David, que tinha sido arrancado do sono pelo tumulto que tinham feito no andar de cima e, um momento depois, ouviram o som de passos, sem dúvida de Francie, a mãe Francie, que ia consolar seu menino, enquanto o pai roncava à vontade, e nesse momento o horrorizado e constrangido Ferguson saltou da cama de Amy e voltou correndo para seu quarto, e assim, com um baque, baixou a cortina na frente do palco do seu entretenimento de Grand Boulevard.

Às sete e meia da manhã, Ferguson entrou na cozinha e encontrou Rosa e David sentados à mesa, na qual batiam com garfos e facas, enquanto gritavam em uníssono: Queremos panquecas! Queremos panquecas! Gary estava sentado na frente deles, bebia sossegadamente uma xícara de café e fumava seu primeiro Parliament do dia. Francie, de pé junto ao fogão, disparou um olhar irritado para seu primo e depois voltou à faina de preparar os ovos mexidos. Amy não estava em lugar nenhum que ele pudesse ver, o que provavelmente significava que ela ainda estava dormindo em sua pequenina cama, no andar de cima.

Gary baixou seu café e disse: Ontem nós prometemos panquecas para eles, só que nos esquecemos de trazer os ingredientes. Como pode ver, eles não estão muito contentes com a ideia dos ovos mexidos.

Rosa, de cara vermelha, e David, de cabelo louro, continuaram a atacar a mesa com suas facas e seus garfos, ritmando as pancadas segundo os tempos fortes de seu refrão predileto: QuerEmos panquEcas!

Deve haver alguma loja por aqui, disse Ferguson.

Descendo o morro e depois mais cinco ou seis quilômetros à esquerda, respondeu Gary, e soprou uma enorme baforada, que parecia sugerir que ele não tinha a menor intenção de dirigir o carro até lá.

Eu vou, disse Francie, enquanto transferia os ovos mexidos, agora prontos, da frigideira para uma tigela branca e grande. Archie e eu iremos juntos, não é, Archie?

Você é que manda, respondeu Ferguson, um pouco espantado com a veemência da pergunta de Francie, que soava menos como uma pergunta do que como uma ordem. Estava zangada com ele. Primeiro, o olhar hostil quando ele entrou na cozinha, e agora o tom agressivo da voz, que só podia significar que ela continuava pensando na comoção no sótão, na noite anterior, a maldita cama locomotiva que arrancou o menorzinho do sono no segundo andar, uma ofensa imperdoável que ele esperava que Francie fosse, educadamente, fingir que tinha esquecido, e, embora Ferguson soubesse que devia pedir desculpas ali mesmo, sem mais demora, estava constrangido demais para conseguir falar uma palavra sequer. Sair para comprar ingredientes para fazer panqueca e xarope de bordo não tinha nada a ver com satisfazer os filhos. Aquilo era um pretexto de Francie, mas a razão verdadeira era ficar sozinha com ele por um tempinho a fim de lhe dar uma bronca, acertar as contas com Ferguson.

Enquanto isso, as crianças batiam palmas e davam vivas, comemoravam sua vitória mandando beijos para sua brava mamãe, que estava prestes a encarar o frio e a neve pelo bem deles. Gary, que parecia alheio ao que se passava, ou pelo menos indiferente, apagou seu cigarro e afundou o garfo nos ovos mexidos. Depois de levar uma garfada à boca, encheu o garfo de novo e estendeu-o para David, que esticou a mão e levou o garfo à boca. Depois, uma garfada para Rosa, seguida por outra garfada para si. Muito gostoso, disse ele, vocês não acham? Inham-inham, disse Rosa. Mas não é inhame!, disse David, que riu da própria piada e depois abriu a boca para uma garfada. Vendo aquela cena enquanto amarrava os cadarços de suas botas e vestia o casaco de inverno, Ferguson pensou em dois filhotes de passarinho na hora de comer. Minhocas ou ovos mexidos, disse para si mesmo, a fome era a mesma fome e as bocas abertas eram as mesmas bocas abertas, escancaradas o mais possível. Panquecas, sim, mas primeiro uma coisinha qualquer para que a manhã começasse bem.

Havia passarinhos de verdade lá fora, um pardal marrom com pintinhas, a fêmea de um cardeal verde-oliva com uma crista de cor vermelha desbotada, um melro de asa vermelha — repentinos borrões coloridos que disparavam pelo céu cinzento e branco, alguns toques de vida ofegante na austera manhã de inverno —, e enquanto Ferguson e a prima atravessavam o pátio coberto de neve e entravam na caminhonete azul, ele achou que era uma pena que o fim de semana estivesse prestes a ser estragado por uma discussão absurda. Ele e Francie nunca tinham discutido durante todos os anos em que se conheciam, nenhuma palavra indelicada jamais surgiu entre ambos, sua devoção mútua foi constante e inflexível, a amizade mais profunda que ele formou com algum parente daquele ramo da família, o clã fraturado dos Ferguson loucos e destrutivos, só ele e Francie, entre todos os primos, irmãos, irmãs, tias e tios, conseguiram evitar aquelas animosidades estúpidas, e Ferguson sofria ao pensar que, agora, ela podia se voltar contra ele.

Era uma manhã fria, mas não excepcionalmente fria para aquela época do ano, quatro ou cinco graus abaixo do nível de congelamento, e o motor deu um solavanco no primeiro giro da chave. Enquanto os dois esperavam sentados que o carro esquentasse, Ferguson perguntou se ela não preferia que ele dirigisse. Ele só ia tirar sua carteira de motorista quando completasse dezessete anos, dali a seis semanas, mais ou menos, mas já tinha uma licença de aprendiz e, como Francie era motorista com licença plena para dirigir e estava no carro com ele, era perfeitamente legal que os dois trocassem de lugar. Ferguson acrescentou que ele dirigia bem e já fazia meses que os pais o deixavam cumprir as funções de motorista toda vez que tinha de ir a algum lugar com eles, tanto separadamente como com os dois juntos, e nem a mãe nem o pai jamais reclamaram dos resultados. Francie sorriu com um sorriso tenso e disse que tinha certeza de que ele era um excelente motorista, provavelmente melhor do que ela, mas agora ela já estava ao volante e estavam prestes a partir, e a descida do morro podia ser um trajeto um pouco traiçoeiro para quem nunca havia dirigido numa estrada de terra e, por isso, ela ia dirigir, muito obrigada, e depois que chegassem ao mercado e comprassem os ingredientes de que precisavam, talvez pudessem trocar de lugar, para o caminho de volta.

E aconteceu que nunca voltaram. Não puderam voltar do mercado Miller’s General Store porque nunca conseguiram chegar lá, e, naquela manhã, que Ferguson sempre chamaria de a manhã das manhãs, os dois primos pagaram um preço por aquela viagem interrompida nas montanhas de Vermont, sobretudo Ferguson, que continuaria a pagar por aquilo durante muito tempo, no futuro, e embora ninguém o julgasse responsável pelo acidente (como poderia ser responsável, se não estava dirigindo o carro?), todavia ele se culpava por ter levado Francie a desviar os olhos da estrada, pois se ela não tivesse virado para olhar para ele, nunca teria derrapado naquele trecho de gelo e batido de encontro à árvore.

A questão era que ele sabia que não valia a pena se deixar levar para uma discussão. Francie tinha todo direito do mundo de se sentir aborrecida com ele, e Ferguson resolveu que a melhor linha de ação seria falar o mínimo possível, fazer que sim com a cabeça e concordar com todo e qualquer juízo severo que ela formulasse contra ele, resistir à tentação de se defender. Deixe que fique zangada, pensou, porém, contanto que conseguisse evitar que aquela raiva incitasse a raiva dele, talvez o confronto fosse breve e pequeno e logo seria esquecido.

Ou pelo menos era o que Ferguson pensava. Seu erro foi supor que a questão central era o barulho, a indiscrição do barulho e o egoísmo que ele havia demonstrado ao infligir aquilo aos outros, mas o barulho era apenas uma parte do problema, a parte menos importante, e quando ele entendeu que o ataque era muito maior do que aquele para o qual havia se preparado, Ferguson foi apanhado de guarda baixa, e, quando Francie partiu para cima dele, Ferguson contra-atacou na mesma moeda.

Francie conseguiu conduzir o carro sem problema no quilômetro e meio de estrada que descia o morro, mas quando chegou lá embaixo, parou, virou para a direita em vez da esquerda, e, como Gary tinha dito que o mercado ficava à esquerda, Ferguson mencionou aquilo, mas Francie limitou-se a batucar o volante com a ponta dos dedos e disse para ele não se preocupar, Gary não tinha o menor senso de direção, vivia confundindo tudo e, se ele disse que tinha de ir para a esquerda, isso devia significar que eles tinham de ir para a direita. Era uma coisa engraçada de dizer, pensou Ferguson, só que as palavras não soaram nada engraçadas na boca de Francie, soaram amargas e um pouco desdenhosas, como se Francie estivesse chateada com Gary por alguma coisa, ou chateada com alguma outra pessoa por alguma outra coisa, o irmão Jack, por exemplo, que agora raramente entrava em contato com ela, ou aquele seu pai que era um verdadeiro pé no saco, tinha acabado de perder mais um emprego e andava desempregado de novo, ou talvez os três homens ao mesmo tempo, o que faria de Ferguson o quarto daqueles homens com os quais Francie estava pê da vida naquela manhã, e o fato de que ela, na verdade, tinha feito a curva na direção errada e estava se afastando cada vez mais do mercado não ajudou a suavizar seu estado de ânimo quando descobriu o erro, o que levou a segunda metade daquela viagem interrompida a acabar se consumindo numa série de estradinhas secundárias sinuosas, na busca de um caminho de volta para a rodovia rural onde tinham começado, e, no esgotamento da irritação e da frustração que baixou sobre o primo, que normalmente não se mostrava nada combativo, Francie finalmente entrou no assunto que os levou a sair de casa e lhe passou uma descompostura.

Que triste, disse ela, que triste e decepcionante descobrir que seu menino querido tinha virado um mentiroso safado, que ele não passava de mais um sem-vergonha de uma comprida fila de sem-vergonhas, e como ele se atreveu a usá-la daquela maneira, arrastando a namorada até Vermont a fim de trepar com ela pelas costas de todo mundo, era nojento, dois moleques cheios de tesão bancando os simpáticos com todo mundo na viagem para depois rastejarem sorrateiros pelo sótão de noite, ficarem trepando em cima da cabeça de duas crianças, e como é que ele foi capaz de fazer aquilo com ela, logo ela que o amava tanto desde o dia em que ele nasceu, ela que tinha dado banho nele e cuidado dele e que tinha visto Ferguson crescer, e o que é que ela ia dizer agora para a mãe dele, que deixou Ferguson ir para Vermont porque sabia que o filho estaria seguro com a prima, havia confiança envolvida naquilo tudo, disse ela, e como ele foi capaz de quebrar aquela confiança debaixo do mesmo teto que ela, um adolescente fora de controle que nem conseguia se segurar dentro das calças por uma noite sequer, e a verdade era que ela não queria mais Ferguson com eles, ela ia embarcar o primo e sua namorada piranha no ônibus e mandá-los de volta para Nova York naquela tarde mesmo, e adeus e já vão tarde.

Isso foi o começo. Cinco minutos depois, ela continuava falando, e, quan­do Ferguson afinal lhe disse para calar a boca e parar o carro, gritando que ele já estava cheio e que ia voltar a pé para casa para pegar suas coisas, Francie virou-se para ele e disse, com algo semelhante à loucura nos olhos: Não seja ridículo, Archie, você vai morrer congelado lá fora, o que o convenceu de que havia algo errado com ela, que a cabeça de Francie estava cambaleante, à beira de estourar, e como ela continuou a olhar para ele como se já não lembrasse o que tinha acabado de falar, ele sorriu para ela, e, quando ela sorriu para ele em resposta, Ferguson se deu conta de que ela havia parado de olhar para a estrada e, logo depois, o carro bateu de encontro à árvore.

Não havia cintos de segurança, era 1964, e por isso os dois se feriram na batida, embora o carro estivesse andando em velocidade moderada, algo entre cinquenta e sessenta quilômetros por hora. Francie: concussão, clavícula esquerda quebrada pelo impacto, ao ser projetada para a frente, contra o volante, e, depois de liberada pelo hospital de Vermont, foi transferida para um hospital em Nova Jersey para se recuperar do que os médicos disseram para Gary que era um colapso nervoso. Ferguson: inconsciente e com sangramentos na cabeça, nos braços e na mão esquerda, que atravessou o para-brisa e, apesar de não haver fraturas (um acaso de sorte muito raro que acabou confundindo a equipe médica e levou as enfermeiras a chamar o caso de um milagre médico), dois dedos da mão esquerda foram cortados pelo vidro do para-brisa, as duas articulações do polegar e as duas articulações superiores do dedo indicador, e como os dedos ficaram enterrados na neve e só foram recuperados na primavera, Ferguson foi condenado, pelo resto da vida, a ser um homem de oito dedos.

Ele ficou muito abalado. Sabia que devia ser grato por não ter morrido, mas sua sobrevivência era um fato, algo que não tinha de ser mais questionado, e a questão que ele tinha agora à sua frente era menos uma pergunta do que um grito de desespero: O que ia acontecer com ele? Estava deformado, e, quando removeram as ataduras e mostraram para ele como tinha ficado sua mão, como ela iria ficar para sempre agora, até o fim da vida, Ferguson ficou revoltado com o que viu. Sua mão já não era mais sua mão. Pertencia a outra pessoa, e, enquanto observava as superfícies fechadas por pontos cicatrizados no local onde antes ficavam o seu polegar e o indicador, sentiu náusea e virou a cabeça para o lado. Tão feio, tão medonho de ver — a mão de um monstro. Ele tinha entrado para a brigada dos desgraçados, disse para si mesmo e, dali para a frente, seria encarado como mais um daqueles aleijados, deformados, que não contavam mais como membros da raça humana com plenos direitos. E depois, para aumentar ainda mais a agonia daquelas humilhações traiçoeiras, haveria a provação de ter de reaprender cem coisas que ele dominava desde menino, a infinidade de manipulações que uma pessoa de dois polegares executava todos os dias sem ter consciência disso, como amarrar os sapatos, abotoar a camisa, cortar a comida no prato, usar a máquina de escrever, e até que essas tarefas se tornassem automáticas para ele outra vez, o que poderia levar meses, talvez até anos, ele sempre lembraria como tinha sido rebaixado. Não, Ferguson não estava morto, não era um defunto, mas, nos dias seguintes ao acidente, muitas outras palavras iniciadas pela letra D grudaram-se nele como um bando de crianças famintas, e Ferguson se viu incapaz de se libertar do feitiço daquelas emoções: desmoralizado, deprimido, desnorteado, desanimado, desalentado, derrotado, desesperado, defensivo, desconsolado, desacor­çoado, desamparado, despeitado, desapontado, desditoso, desacreditado.

Seu maior temor era que Amy deixasse de amá-lo. Não que ela quisesse, não que ela sequer compreendesse seus próprios sentimentos, mas como alguém poderia gostar de ser tocada por aquela mão desfigurada e mutilada, era de virar o estômago de qualquer um, era de matar qualquer desejo, e pouco a pouco a repulsa ia aumentar, até que ela começaria a evitá-lo e, mais dia, menos dia, daria o fora nele, e se Ferguson perdesse Amy, não só seu coração iria se partir como sua vida seria arruinada para sempre, pois que mulher, em sã consciência, poderia se sentir atraída por um homem assim, uma criatura lamentável, amputada, que andava por aí com uma garra na ponta do braço esquerdo, em vez de uma mão normal? Dor interminável, solidão interminável, frustração interminável — esse seria seu fardo —, e embora Amy tenha ficado com ele no hospital durante todo o fim de semana e depois faltasse à escola para ficar a seu lado na segunda, terça e quarta, afagando seu rosto e dizendo que tudo seria exatamente como antes, que perder dois dedos era um golpe tremendo, mas estava bem longe de ser o fim do mundo, que milhões de pessoas viviam em situação muito pior e encaravam as dificuldades com toda coragem, sem parar para pensar no assunto, e embora Ferguson escutasse o que Amy dizia e observasse seu rosto enquanto falava, ele se perguntava se não estaria olhando para uma aparição, uma Amy substituta que se fazia passar pela Amy real, e ele se perguntava se, caso ele fechasse os olhos por alguns segundos, ela não iria desaparecer antes que ele tivesse tempo de abrir os olhos de novo.

Seus pais também tinham vindo de Montclair para ficar com ele e foram maravilhosamente gentis, assim como Amy também foi maravilhosamente gentil, assim como os médicos e as enfermeiras foram maravilhosamente gentis com ele, e, no entanto, como qualquer um deles poderia saber o que ele estava sentindo, como poderiam entender que, ao contrário do que todos não paravam de dizer, era de fato o fim do mundo, pelo menos da pequena parte do mundo que pertencia a ele, e como Ferguson poderia confessar para eles a devastação que sentia toda vez que pensava no beisebol, o jogo mais idiota que já inventaram, segundo Anne-Marie Dumartin, que havia muito tempo tinha ido embora, mas como ele ainda amava profundamente aquele esporte, e com que ansiedade ele aguardava a hora em que teriam início as atividades esportivas em ambiente fechado, programadas para o começo de fevereiro, e agora a parte do seu mundo relativa ao beisebol também tinha terminado, pois nunca mais poderia segurar um taco, com aqueles dedos a menos na mão esquerda, não poderia segurar do jeito correto, do jeito que precisava se­gurar para girar com força, e como ele poderia controlar uma luva projetada para cinco dedos se tinha apenas três; ele seria rebaixado para a mediocridade se tentasse jogar com aquela limitação, e para ele aquilo seria inaceitável, sobretudo agora, quando estava se preparando para a grande temporada de sua vida, uma temporada que abrangia toda a federação, todo o condado, todo o estado, que despertava tamanha excitação que os olheiros dos times profissionais começariam a observar o mágico da terceira base que tinha uma média de quatrocentas rebatidas, o que acarretaria um possível contrato com um time da liga principal, o que faria dele o primeiro jogador de beisebol poeta nos anais do esporte dos Estados Unidos, vencedor do Prêmio Pulitzer e também do Prêmio do Jogador Mais Valioso, e como ele nunca teve coragem de confessar para ninguém aquele sonho fantástico, não podia fazer isso agora, quando se via à beira das lágrimas toda vez que pensava em voltar para Montclair e contar para seu treinador que não podia mais jogar na equipe, e levantaria a desgraçada mão esquerda para mostrar por que sua carreira estava encerrada, e nesse momento o contido e reservado Sal Martino faria que sim com a cabeça, em sinal de comiseração, balbuciaria algumas palavras curtas que soariam mais ou menos assim: É duro, garoto. Vamos sentir sua falta.

Amy e o pai de Ferguson partiram na quinta de manhã, mas a mãe ficou com ele até ter alta do hospital, ela dormia num motel situado nos arredores e viajava até lá num pequeno carro alugado. Os extremos da compaixão da mãe eram quase excessivos para ele, os olhos maternais solidários que não paravam de observá-lo e de lhe dizer como seus sofrimentos tinham se tornado os sofrimentos dela e, no entanto, como compreendia que desagradava ao filho que ela o mimasse e protegesse, Ferguson era grato à mãe por não se deter em seus ferimentos, por não lhe dar nenhum conselho, por não incentivá-lo a se animar, por não ficar chorando. Ele sabia que desastre apavorante ele era agora, e como devia ser doloroso para a mãe olhar para ele, não só para as suturas que ainda não tinham cicatrizado na mão esquerda, ainda vermelha, esfolada e inchada, mas também as ataduras enroladas nos antebraços, que mascaravam temporariamente os sessenta e dois pontos que tinham fechado sua carne retalhada, e os sinistros trechos de cabelo tosquiado que salpicavam seu crânio, onde ele tinha levado mais pontos nos cortes e talhos mais graves. Mas nenhuma daquelas futuras cicatrizes parecia perturbar a mãe, a única coisa que importava era que ele tinha escapado do acidente com o rosto intacto, o que ela não parava de chamar de bênção, o único lance de sorte em toda aquela história desastrada, e, embora Ferguson não estivesse com o menor ânimo de contar seus ferimentos naquela hora, entendia as razões da mãe, já que havia uma hierarquia da destruição a ser considerada, e viver com a mão destruída era muito menos terrível do que viver com o rosto destruído.

Era difícil admitir para si mesmo que ele desejava muito que a mãe ficasse com ele, ali. Toda vez que ela sentava na cadeira ao lado da cama, as coisas pareciam um pouco melhores do que quando ficava sozinho, muitas vezes muitíssimo melhores e, no entanto, ele ainda relutava em confiar na mãe, não conseguia de jeito nenhum se persuadir a contar para ela como sentia medo quando parava para pensar no seu futuro atrofiado, abismal, nos longos anos de desolação sem amor que se estendiam à sua frente, todos os temores infantis, cheios de autocomiseração, que soariam tão loucos caso ele os de­clarasse em voz alta, e assim ele continuava sem dizer quase nada sobre si mesmo, e sua mãe não fazia pressão para que ele falasse mais. A longo prazo, provavelmente não faria nenhuma diferença se ele falasse ou não, uma vez que era praticamente certo que ela já sabia o que ele estava pensando, afinal, ela sempre soubera, de algum jeito, mesmo quando ele ainda era um menino bem pequeno, a mãe já sabia, e por que haveria de ser diferente agora, quando ele estava no ensino médio? Entretanto, havia outros assuntos para conversar, além de si próprio, sobretudo Francie e o mistério de seu colapso nervoso, que eles continuaram a debater durante seus últimos dias em Vermont, e agora que Francie tinha deixado o hospital e tinha sido internada em outro hospital em Nova Jersey, o que ia acontecer com ela? A mãe de Ferguson não tinha certeza. Só sabia o que Gary lhe havia contado, e ela não conseguia entender aquilo, nada estava claro, a não ser que seus problemas vinham, aparentemente, crescendo já havia algum tempo. O desgosto com o pai — talvez. Problemas no casamento — talvez. Remorsos por ter se casado tão jovem — talvez. Todas as opções acima — ou nenhuma delas. O intrigante era que Francie sempre parecia saudável e estável. Um diamante de exuberância alegre, à luz dos olhos de todo mundo. E agora, aquilo.

Pobre Francie, disse a mãe de Ferguson. Minha querida menina está doente. Sua família está a cinco mil quilômetros de distância e aqui não há ninguém para cuidar dela. Eu tenho de fazer isso, Archie. Daqui a alguns dias, estaremos em casa, e, quando estivermos lá, esse vai ser meu novo trabalho. Cuidar para que Francie fique boa.

Ferguson se perguntava se alguém além da sua mãe seria capaz de fazer uma declaração tão chocante, ignorando obstinadamente a possibilidade de que os psiquiatras pudessem ter algum papel na recuperação de Francie, como se amor e persistência de amor fossem a única cura confiável para um coração em pedaços. Era um negócio tão maluco e ignorante para se dizer que Ferguson não podia deixar de rir, e, depois que o riso saiu de sua garganta, ele se deu conta de que era a primeira vez que ria desde o acidente. Bom para ele, pensou. E, pensou ainda, bom para a mãe também, cuja afirmação merecia uma risada, muito embora fosse errado, da parte dele, rir, pois a beleza nas palavras da mãe consistia em que ela acreditava no que dizia, acreditava com todos os ossos do corpo que ela era forte o bastante para carregar o mundo nas costas.

A pior parte de ir para casa era ter de voltar à escola. O hospital já tinha sido uma grande tortura, mas lá, pelo menos, ele se sentia protegido, isolado pelas paredes do refúgio do seu quarto, mas agora tinha de voltar para seu velho mundo e deixar que todos o vissem — e a última coisa que ele queria era ser visto.

Era fevereiro e, nos preparativos para seu regresso ao colégio Montclair High, a mãe tricotou para ele um par de luvas especiais, uma luva normal e a outra com três dedos e um terço de dedo, desenhada para encaixar no contorno de sua mão esquerda, recentemente reduzida, e eram duas luvas extremamente confortáveis, feitas da caxemira importada, da mais macia que existe, de uma cor marrom-clara e inofensiva, uma tonalidade branda que não feria os olhos e não chamava atenção como faria uma cor brilhante e, portanto, as luvas eram quase imperceptíveis. Durante o resto do mês e até a metade do mês seguinte, Ferguson usou a luva esquerda mesmo em ambientes fechados, dizendo que tinha de fazer isso por ordem médica — a fim de proteger a mão até ela ficar curada. Isso ajudou um pouco, assim como o gorro que ele usava para esconder a colcha de retalhos que trazia agora na cabeça, gorro que, por ordem médica, ele também tinha de usar ao ar livre ou em ambiente fechado. Quando o cabelo crescesse de novo e os trechos calvos sumissem, ele abandonaria o gorro, mas foi bastante útil para ele nos primeiros estágios de seu regresso, assim como as camisas de manga comprida e os suéteres que usava na escola todos os dias, roupa típica de fevereiro, mas também um jeito de encobrir as cicatrizes entrecruzadas nos antebraços, que ainda eram um horrível borrão vermelho, e como ele foi liberado das aulas de educação física até o médico declarar que estava plenamente remendado, Ferguson não tinha de tirar a roupa e tomar banho na frente de seus companheiros, o que significou que ninguém viu as cicatrizes, até que tivessem ficado brancas e quase invisíveis.

Essas foram algumas das manobras que Ferguson usou para tornar a provação menos difícil para si mesmo, porém ainda assim era difícil, era difícil voltar como uma mercadoria estragada (expressão que Ferguson ouviu um de seus ex-colegas de beisebol dizer quando não estava olhando), e, embora todos seus amigos e professores lamentassem por ele e tentassem não olhar muito para a mão esquerda coberta pela luva, nem todos na escola eram seus amigos, e aqueles que ostensivamente desgostavam de Ferguson não ficaram nem um pouco abatidos ao ver o presunçoso, reservado Ferguson receber sua merecida punição. Sentia-se culpado pelo fato de que tanta gente tivesse se voltado contra ele nos últimos meses, já que Ferguson tinha, mais ou menos, abandonado aquelas pessoas quando começou a sair com Amy, recusando todos os convites de sábado e se tornando uma figura rara aos domingos, e o garotinho popular cujo retrato duplo ainda figurava na vitrine do estúdio Foto Roseland havia se convertido num estranho. Talvez a única coisa que ainda o mantinha ligado ao colégio fosse o time de beisebol, e agora que o beisebol tinha acabado, ele começava a se sentir acabado também. Continuava a comparecer ao colégio todo dia, mas cada dia era uma parte um pouco menor dele que se fazia presente.

Apesar de seu distanciamento, ainda havia alguns amigos, ainda havia pessoas com quem ele se importava, mas afora o tolo Bobby George, seu colega de beisebol e ex-parceiro de leitura da National Geographic, não havia ninguém com quem ele se importasse a fundo, e o motivo que fazia Ferguson se importar com Bobby era inexplicável para ele — até a noite em que, na volta de Vermont, Bobby foi a sua casa para lhe dar as boas-vindas, e, quando o jovem George viu o jovem Ferguson sem luvas, sem gorro, sem suéter, começou a falar algo e depois desatou a chorar, e, enquanto Ferguson via o amigo ceder àquele fluxo espontâneo de lágrimas infantis, compreendeu que Bobby o amava mais do que qualquer outra pessoa na cidade de Montclair. Todos seus outros amigos tinham pena dele, mas Bobby foi o único que chorou.

Por causa de Bobby, ele foi a um dos treinos em ambiente fechado, depois do horário de aula, para ver os exercícios dos lançadores e receptores. Para ele, era difícil permanecer naquele ginásio ecoante enquanto as bolas disparavam para lá e para cá na direção das luvas e quicavam no assoalho de madeira, mas Bobby estava começando a jogar atrás da base naquela temporada e tinha pedido que Ferguson fosse ver se o seu arremesso havia melhorado de um ano para cá e, se não tivesse melhorado, que Ferguson lhe indicasse o que estava fazendo de errado. Só jogadores tinham autorização para ficar no ginásio naquelas sessões de duas horas de treinamento, mas, apesar de Ferguson não fazer mais parte da equipe, ainda mantinha certos privilégios, garantidos a ele a pedido do treinador Martino, cuja reação a seus ferimentos foi muito menos comedida do que Ferguson tinha imaginado que seria, pois ele não se conteve, como fazia em geral, mas sim rasgou uns palavrões em voz alta contra a puta sacanagem que tinha acontecido, dizendo para Ferguson que ele era um dos melhores jogadores que já havia treinado e que esperava grandes feitos da parte dele em seus dois últimos anos no ensino médio. Então, quase imediatamente, começou a falar em transformá-lo num lançador. Com um braço que nem o dele, provavelmente conseguiria dar conta do recado, disse o sr. Martino, e aí todo mundo ia cagar baldes para sua média de acertos com o taco ou para quantos homeruns ele conseguia finalizar. Se agora ainda era muito cedo para começar, por que não pensar no assunto para o ano seguinte? Nesse meio-tempo, para o ano ainda em curso, Ferguson podia ficar junto com o time como uma espécie de auxiliar técnico informal, para não enferrujar, comandando os jogadores nos exercícios e na ginástica, discutindo sobre estratégia com o treinador, no banco, durante as partidas. Mas só se ele quisesse, é claro, e embora Ferguson tivesse se sentido tentado a aceitar sua proposta, sabia que não podia, sabia que fazer parte da equipe sem jogar no time iria matá-lo, um mascote ferido animando os outros, e por isso agradeceu ao sr. Martino e, educadamente, disse que não, explicou que não estava pronto, e o velho primeiro-sargento da Segunda Guerra Mundial, que tinha lutado na Batalha do Bulge e pertencera à unidade que havia liberado Dachau, deu uma palmadinha no ombro de Ferguson e lhe desejou sorte. Depois, como uma conclusão, quando estendeu a mão para cumprimentar Ferguson pela última vez, o treinador Martino disse: A única constante neste mundo é a merda, meu garoto. Todo dia, a gente está atolado na merda até as canelas, mas às vezes, quando ela chega aos joelhos ou à cintura, a gente precisa sair de dentro dela e ir em frente. Você está indo em frente, Archie, e eu respeito você por isso, mas se acontecer de mudar de ideia, lembre-se que a porta está sempre aberta.

As lágrimas de Bobby George e a porta sempre aberta de Sal Martino. Duas coisas boas num mundo só de coisas ruins e, sim, Ferguson agora estava indo em frente, já havia avançado desde o dia em que ele e o treinador se despediram e, estivesse ou não no rumo certo, a melhor coisa que havia naquela segunda coisa boa era que, não importava aonde fosse parar no futuro, nunca mais esqueceria as palavras eloquentes do sr. Martino sobre o poder difundido e duradouro da merda.

Ferguson viveu no seu canto até o fim do inverno, todo dia ia direto para casa depois da aula, às vezes pegava carona com os alunos da última série que tinham carro, às vezes fazia a pé o caminho de vinte minutos. Nessa época, a casa estava sempre vazia, o que significava que estava em silêncio, e o silêncio era o que ele desejava com mais ansiedade depois de seis horas e meia no colégio, um silêncio amplo, envolvente, que lhe permitia recuperar-se da provação de arrastar seu corpo coberto por luvas e gorro na frente de dois mil outros corpos que enchiam os corredores e as salas de aula durante aquelas seis horas e meia, e nada era melhor do que se recolher dentro de si mesmo outra vez e desaparecer. Os pais geralmente voltavam para casa depois das seis horas, o que lhe deixava, mais ou menos, duas horas e meia para ficar à toa em sua fortaleza deserta, na maior parte do tempo no primeiro andar, em seu quarto, de porta fechada, onde podia abrir um pouquinho a janela e fumar um ou dois dos cigarros proibidos de sua mãe, saboreando a ironia de como o novo relatório do cirurgião geral sobre os perigos do fumo coincidiam com seu interesse crescente pelos prazeres do tabaco, e, enquanto fumava os Chesterfield da mãe, que eram uma ameaça à vida, Ferguson caminhava devagar pelo quarto, ouvindo discos, alternando grandes obras corais (o Requiem de Verdi, a Missa Solemnis de Beethoven) e composições para solistas de Bach (Pau Casals, Glenn Gould), ou ficava deitado na cama e lia livros, devorava o recente monte de volumes de capa mole que a tia Mildred tinha mandado para ele, a incansável guia turística da sua educação literária, que tinha acabado de traçar minuciosamente a segunda visita de Ferguson à França nos últimos nove meses, e assim Ferguson passava aquelas horas do fim de tarde lendo Genet (Diário de um ladrão), Gide (Os moedeiros falsos), Sarraute (Tropismos), Breton (Nadja) e Beckett (Molloy), e quando não estava es­cutando música nem lendo livros, Ferguson se sentia perdido, tão profun­damente em conflito consigo mesmo que, às vezes, tinha a sensação de que estava arrebentando por dentro. Queria recomeçar a escrever poemas, mas não conseguia se concentrar, e toda ideia que lhe vinha à cabeça parecia sem valor. O primeiro poeta jogador de beisebol na história já não podia mais jogar beisebol e, de repente, o poeta dentro dele também estava morrendo. Ajude-me, escreveu ele, um dia. Por que devo ajudar você?, continuou a mensagem para si mesmo. Porque preciso de sua ajuda, anunciou a primeira voz. Desculpe, disse a segunda voz. Você precisa é parar de dizer que precisa de ajuda, é disso que você precisa. Para variar, comece a pensar no que eu preciso.

E quem é você?

Sou você, é claro. Quem mais você acha que eu sou?

Além da merda, a única coisa constante em seu mundo eram suas conversas com Amy, ao telefone, tarde da noite. A primeira pergunta de Amy era sempre: Como é que vai, Archie?, e toda noite ele dava a mesma resposta: Melhor. Um pouco melhor do que ontem — o que, de fato, era verdade, não só porque sua condição física melhorava pouco a pouco à medida que o tempo passava, como também porque falar com Amy sempre parecia lhe trazer de volta sua antiga personalidade, como se a voz dela fosse o estalar de dedos de um hipnotizador que ordenava que ele acordasse de seu transe e voltasse a si. Ninguém mais tinha esse poder sobre ele e, à medida que as semanas passavam e Ferguson continuava a se recuperar, ele começou a desconfiar que aquilo tinha algo a ver com a interpretação de Amy sobre o acidente, que era diferente da interpretação de todo mundo, pois ela não admitia encarar o caso como uma tragédia e, portanto, entre as pessoas que amavam Ferguson, era Amy quem sentia menos pena dele. Na visão de mundo de Amy, as tragédias estavam reservadas para a morte e para as deficiências devastadoras — paralisia, danos cerebrais, desfiguração brutal —, mas a perda de dois dedos não passava de uma questão trivial e, como a batida de um carro de encontro a uma árvore poderia acarretar morte ou desfiguração brutal, era antes para se comemorar o fato de que Ferguson tinha sobrevivido ao acidente sem nenhuma consequência trágica. Era muito ruim a questão do beisebol, é claro, mas representava um preço baixo a ser pago em troca do privilégio de estar vivo, apenas com dois dedos a menos, e se ele estava com dificuldade para escrever poemas agora, que deixasse a poesia de lado por um tempo e parasse de se preocupar com o assunto, e se acontecesse de ele nunca mais conseguir escrever um poema, isso só poderia significar, que, desde o início, não estava mesmo talhado para escrever poesia.

Você está começando a parecer o dr. Pangloss, disse Ferguson para Amy, certa noite. Tudo sempre acontece para o melhor, este é o melhor de todos os mundos possíveis.

Não, nada disso, respondeu Amy. Pangloss é um otimista idiota e eu sou uma pessimista inteligente, quer dizer, uma pessimista que tem lampejos ocasionais de otimismo. Quase tudo acontece para o pior, mas nem sempre, veja, nada nunca é sempre, mas eu estou sempre contando com o pior e, quando o pior não ocorre, fico tão entusiasmada que começo a falar como uma otimista. Eu podia ter perdido você, Archie, mas não perdi. E é só nisso que sou capaz de pensar: como sou feliz por não ter perdido você.

Durante as primeiras semanas, depois que voltou de Vermont, Ferguson não tinha forças suficientes para viajar para Nova York aos sábados. Ir ao colégio e voltar, todos os dias, de segunda à sexta, já chegava ao limite de suas possibilidades, mas ir a Manhattan teria sido árduo demais para seu corpo dolorido e remendado por pontos cirúrgicos, o ônibus sacolejante, para começo de conversa, mas também a longa subida pelas escadas do metrô, a multidão esbarrando nele nas passagens subterrâneas de pedestres e, depois, a impossibilidade de caminhar, durante qualquer extensão de tempo, pelas ruas geladas no inverno, ao lado de Amy, por isso eles inverteram o processo durante todo o mês de fevereiro e metade de março, e, durante cinco sábados seguidos, Amy é que foi visitar Ferguson em Montclair. O novo sistema era carente de estímulos externos, mas também tinha algumas vantagens sobre a antiga rotina de ficar vagando por livrarias e museus, sentar em cafés, ver filmes e peças, ir a festas, e a primeira vantagem era que os pais de Ferguson trabalhavam no sábado e, como trabalhavam, a casa ficava vazia e, como a casa ficava vazia, ele e Amy podiam subir para seu quarto, fechar a porta e deitar na cama sem medo de que alguém descobrisse o que estavam fazendo. Mesmo assim, havia um temor, pelo menos para Ferguson, que tinha se convencido de que Amy não ia mais desejar nenhuma parte dele, e, na primeira vez em que entraram em seu quarto na casa em Montclair, seu medo não era menor do que foi na primeira vez em que entraram no quarto de Amy, no apartamento de Nova York, mas depois que foram para a cama e as roupas começaram a ser tiradas, Amy deixou Ferguson surpreso ao segurar sua mão ferida e beijá-la, e beijá-la lentamente, vinte ou trinta vezes, e depois encostou a boca na atadura do antebraço esquerdo e a beijou doze vezes, seguidas por mais doze beijos no antebraço direito, e então ela o puxou para baixo, até a altura do peito, e começou a beijar as pequenas ataduras na sua cabeça, uma por uma, seis vezes cada uma, sete vezes, oito vezes. Quando Ferguson perguntou por que estava fazendo aquilo, ela respondeu que era porque aquelas eram as partes dele que ela mais amava agora. Como ela podia dizer aquilo?, retrucou Ferguson, eram nojentas, como alguém podia amar o que era nojento? Porque, disse Amy, essas feridas eram uma lembrança do que tinha acontecido com ele, e como ele estava vivo, como agora estava com ela, o que aconteceu com ele também era o que não tinha acontecido com ele, o que significava que as marcas em seu corpo eram sinais de vida e, por causa disso, para ela, não eram nojentas, eram lindas. Ferguson riu. Ele queria dizer: Pangloss vem me socorrer, de novo!, mas não falou nada e, quando olhou dentro dos olhos de Amy, ele se perguntou se ela estava mesmo dizendo a verdade. Será que podia acreditar no que Amy tinha acabado de lhe dizer, ou ela estaria apenas fingindo acreditar, pelo bem dele? E se ela mesma não acreditava, como é que ele poderia acreditar nela? Acontece que ele tinha de acreditar em Amy, Ferguson decidiu, porque acreditar nela era sua única opção, e a verdade, a chamada verdade todo-poderosa, não significava nada quando Ferguson pensava no que aconteceria com ele se não acreditasse nela.

Sexo por cinco sábados seguidos, sexo no início da tarde, enquanto a luz rarefeita de fevereiro se enrolava nas beiradas das cortinas e vazava pelo ar em volta de seus corpos, e então o prazer de ver Amy se enfiar de novo em suas roupas, ciente de que seu corpo nu estava dentro daquelas roupas, o que, de algum modo, prolongava a intimidade do sexo, mesmo quando não estavam fazendo sexo, o corpo que ele carregava consigo em pensamento enquanto desciam para o térreo a fim de preparar o almoço ou escutavam discos ou viam algum filme antigo na televisão ou faziam uma breve caminhada pelos arredores ou Ferguson lia em voz alta para ela Quadros de Brueghel, de William Carlos Williams, o novo poeta ungido predileto de Ferguson, que tinha destronado Eliot após uma batalha sangrenta com Wallace Stevens.

Sexo por cinco sábados seguidos, mas também a oportunidade de conversarem cara a cara, depois das conversas em telefonemas interurbanos durante a semana de aulas, e, em três daqueles sábados, Amy ficou em sua casa por tempo suficiente para ainda estar lá quando os pais de Ferguson chegaram do trabalho, o que acarretou três jantares com os quatro juntos, sentados à mesa da cozinha, a mãe tão feliz, agora que ele estava com Amy e não com aquela garota belga beberrona, e o pai de Ferguson encantado com o espírito eloquente e os comentários nada convencionais de Amy, como quando, para citar um exemplo do fim de fevereiro, que foi o mês em que os Beatles conquistaram os Estados Unidos e em que Cassius Clay venceu Sonny Liston, os dois grandes assuntos sobre os quais todo mundo andava falando, Amy fez o comentário muito doido, mas sagaz, de que John Lennon e o novo campeão peso pesado eram a mesma pessoa dividida em dois corpos distintos, jovens de vinte e poucos anos que tinham atraído a atenção do mundo exatamente da mesma forma, por não se levarem a sério, por terem um talento para falar as coisas mais estapafúrdias com uma audácia e um jeito teatral que fazia as pessoas rirem, Eu sou o maior, Somos mais populares do que Jesus Cristo, e quando Amy repetiu aquelas afirmações ridículas, mas inesquecíveis, o pai de Ferguson subitamente desatou a rir, não só porque Amy tinha feito imitações certeiras do sotaque gutural de Liverpool de Lennon e da fala arrastada do Kentucky de Clay, mas também porque ela havia imitado suas expressões faciais, e, quando o pai de Ferguson parou de rir, disse: Você acertou em cheio, Amy. Caras espertos com a língua afiada e o pensamento mais afiado ainda. Eu gosto disso.

Ferguson não tinha a menor ideia de que seus pais sabiam como ele e Amy passavam aquelas manhãs e tardes de sábado, sozinhos, em sua casa. Até desconfiava que a mãe podia estar sabendo do caso deles (no segundo sábado, a mãe chegou de surpresa para apanhar um suéter e pegou os dois alisando a colcha, por cima do colchão), o que podia significar que, depois, ela havia conversado sobre o assunto com o pai, porém, mesmo que soubessem, nenhum dos dois disse nenhuma palavra sobre isso, uma vez que estava bastante claro, nessa altura, que Amy Schneiderman era uma força positiva na vida do seu garoto, uma equipe de emergência formada por uma só garota que estava prestando socorro a ele, sozinha, na torturante readaptação de Ferguson a seu mundo pós-acidente e, portanto, os pais incentivaram os dois a ficarem juntos com a maior frequência possível, e, embora o dinheiro andasse especialmente curto na ocasião, nunca fizeram nenhuma objeção ao custo elevado dos telefonemas interurbanos, que tinha mais do que quadruplicado o valor mensal da conta telefônica. Essa garota é muito boa, Archie, disse a mãe, certo dia, e enquanto via a neta de seu ex-patrão prestar ajuda a seu filho, ela mesmo prestava ajuda à sua sobrinha Francie, indo ao hospital toda tarde, às quatro horas, para uma visita de uma hora, onde dava continuidade a seu tratamento, que era feito de puro amor e nada além de amor. Ferguson prestava toda atenção nos relatórios que a mãe fazia, toda noite, sobre os progressos de Francie, mas vivia preocupado com a possibilidade de a prima contar para a mãe algo sobre a cama rangente e como ela ficou zangada com ele na manhã do acidente, o que poderia acarretar algumas perguntas desagradáveis por parte da mãe, que ele seria obrigado a responder com mentiras, a fim de encobrir seu constrangimento, mas quando Ferguson, afinal, tomou coragem de levantar o assunto por conta própria e perguntou para a mãe o que Francie tinha contado sobre o acidente, a mãe respondeu que Francie nunca tinha falado do assunto. Seria mesmo verdade?, Ferguson se perguntava. Será que Francie tinha apagado o acidente da memória ou a mãe estava apenas se fazendo de boba a respeito da discussão entre os dois, porque não queria causar preocupação ao filho?

E quanto à minha mão?, perguntou Ferguson. Ela sabe disso?

Sim, respondeu a mãe. Gary contou a ela.

E por que ele fez isso? Parece uma coisa desalmada, não acha?

É porque ela precisava saber. Francie vai sair do hospital em breve e ninguém quer que ela fique chocada quando revir você.

Depois de três semanas de repouso e terapia, ela teve alta e, embora ainda fosse sofrer outros surtos e passar por outras internações durante os anos seguintes, Francie agora estava recuperada, de tipoia no braço esquerdo, porque a clavícula demorou a consolidar, mas totalmente radiante, como disse a mãe de Ferguson depois da última visita ao hospital, e, quando a tipoia foi removida, uma semana depois, e Francie convidou Ferguson e seus pais para o almoço de domingo em sua casa em West Orange, ele também achou que Francie parecia radiante, plenamente recuperada, já não era mais a mulher perturbada, desarvorada que tinha sido naquele catastrófico fim de semana em Vermont. Era um momento pesado para ambos, cara a cara pela primeira vez desde o acidente, e, quando Francie olhou para a mão dele e viu o que o acidente tinha causado, se comoveu e enlaçou-o com os braços, soluçou um pedido de desculpas que fez Ferguson compreender, pela primeira vez desde o acidente, a que ponto, em segredo, ele culpava Francie pelo que tinha acontecido com ele, que mesmo que não fosse culpa de Francie, mesmo que o último olhar de Francie para ele, no carro, tivesse sido o olhar de uma louca, de alguém que já não tem mais controle sobre os próprios pensamentos, foi ela quem arrebentou o carro de encontro à árvore e, embora quisesse perdoá-la por tudo, ele não conseguia fazer isso, não conseguia, lá na parte mais fun­da do seu ser, e embora sua boca falasse todas as palavras certas, garantindo para Francie que não estava ressentido e que tudo estava perdoado, Ferguson sabia que estava mentindo e que levaria sempre aquela mágoa contra Francie, que o acidente sempre ficaria entre os dois, pelo resto da vida.

No dia 3 de março, ele fez dezessete anos. Alguns dias depois, foi à filial local do departamento de Veículos Motorizados e fez a prova de direção para tirar sua habilitação de motorista de Nova Jersey, demonstrou sua competência ao volante, com curvas executadas com suavidade, a pressão firme que aplicava ao pedal do acelerador (como se estivesse colocando o pé em cima de um ovo cru, disse o pai), sua perícia em frear e dar ré e, por último, sua compreensão das manobras necessárias para estacionar nas balizas, a operação apertada e estreita que derrubava tantos candidatos a motorista. Ferguson tinha feito centenas de provas ao longo dos anos, mas passar naquela foi, para ele, muito mais importante do que qualquer coisa que tivesse feito no colégio. Daquela vez, era para valer, e ter a habilitação no bolso traria um poder capaz de abrir portas e retirá-lo de sua gaiola.

Ferguson sabia que os pais estavam lutando muito, que os negócios não iam nada bem para ambos e que os recursos da família andavam curtos — talvez ainda não fossem tempos difíceis, mas algo perto disso, e cada vez mais perto, mês a mês. O seguro de saúde Blue Cross/Blue Shield tinha coberto o grosso das despesas de sua internação no hospital de Vermont, porém houve também algumas despesas pagas à vista, franquias pagas à vista e várias contas de telefonemas interurbanos, junto com o dinheiro pago pelo quarto no motel e pelo carro alugado pela mãe, o que não podia ser nada leve para o bolso deles, um apuro difícil que os apanhou de surpresa e no pior momento, e então, quando chegou o dia 3 de março e o único presente de aniversário que Ferguson ganhou dos pais foi um carro de brinquedo — uma réplica em miniatura de um Chevrolet Impala modelo 1958 —, ele interpretou aquilo como uma espécie de piada, ou mesmo um talismã de boa sorte para a prova de motorista que ele ia fazer dali a alguns dias, e uma confissão, da parte dos pais, de que não tinham condições de comprar nada melhor. Ah, está bem, pensou ele, era mesmo bastante engraçado, e como o pai e a mãe estavam sorrindo, ele sorriu em resposta e disse: Muito obrigado, distraído demais para dar atenção ao que a mãe falou em seguida: Não tenha medo, Archie. É das pequenas sementes que nascem os carvalhos enormes.

Seis dias depois, um carvalho apareceu na frente da casa, na forma de um carro em tamanho natural, uma réplica gigante da semente que agora estava em cima da escrivaninha de Ferguson e servia de peso de papel, ou quase uma réplica, pois o Chevrolet Impala estacionado na frente da casa tinha sido fabricado em 1960 e não em 1958, com duas portas, em vez de quatro, como seu modelo, e os pais de Ferguson estavam sentados dentro do carro e tocavam a buzina juntos, buzinavam sem parar, até que o filho desceu do seu quarto para ver que bagunça era aquela.

A mãe explicou que tinham planejado dar o carro para ele no dia 3, mas o carro precisou de uns reparos e isso tomou um pouco mais de tempo do que o esperado. Ela torcia para que ele gostasse, disse. Tinham pensado em deixar que Ferguson escolhesse sozinho, mas aí já não seria mais uma surpresa, e a graça de dar um presente como aquele estava exatamente na surpresa.

Ferguson não disse nada.

O pai franziu as sobrancelhas e perguntou: E então, Archie, o que acha? Gosta ou não gosta?

Gosto, sim, respondeu. Claro que tinha gostado. Como poderia não gostar? Gostava tanto do carro que tinha vontade de ficar de joelhos e beijá-lo.

Mas como foi que vocês arranjaram o dinheiro?, perguntou, afinal. Deve ter custado muito caro.

Menos do que você imagina, respondeu o pai. Só seiscentos e cinquenta.

Antes ou depois dos reparos?

Antes. Oitocentos redondos, depois.

É um bocado, disse Ferguson. Caro demais. Vocês não deviam ter feito isso.

Não seja ridículo, disse a mãe. Tirei cem retratos nos últimos seis meses e, agora que o livro está pronto, o que você acha que está pendurado nas paredes dos meus homens e mulheres famosos?

Ah, entendi, disse Ferguson. Não são só os honorários, tem um bônus extra também. E quando você cobra deles pelo prazer de olharem para si mesmos?

Cento e cinquenta cada foto, respondeu a mãe.

Ferguson deu um curto assobio e balançou a cabeça em sinal de admiração.

Uns bons quinze mil, acrescentou o pai, para o caso de Ferguson estar com dificuldades na aritmética.

Está vendo?, disse a mãe. Não vamos para o asilo dos indigentes, Archie, pelo menos não hoje, e provavelmente nem amanhã. Portanto, deixe de conversa, entre no seu carro e nos leve para dar uma volta, está bem?

Assim começou a Temporada do Carro. Pela primeira vez na vida, Ferguson foi o senhor dos próprios deslocamentos, o governante soberano dos espaços que o rodeavam, sem nenhum deus em seu caminho, além de um motor de combustão interna de seis cilindros, o qual não exigia nada dele, a não ser um tanque cheio de gasolina e uma troca de óleo a cada cinco mil quilômetros. Durante toda a primavera e nos primeiros dias do verão, ele ia de carro para o colégio todas as manhãs, na maioria das vezes ao lado de Bobby George, no banco da frente, e às vezes com um terceiro passageiro no banco de trás, e, quando o colégio soltava os alunos às três e quinze da tarde, Ferguson não ia mais direto para casa para ficar no cativeiro de seu quartinho, mas entrava de novo no carro e dirigia, dirigia por uma ou duas horas sem nenhum destino ou propósito, dirigia pela pura satisfação de dirigir, e, depois de não saber aonde queria ir, nos primeiros minutos ou nos primeiros quartos de horas daqueles passeios, muitas vezes Ferguson se via rodando pela estrada sinuosa que subia para a South Mountain Reservation, a única área de mata em todo o condado de Essex, acres e mais acres de floresta e de trilhas para caminhar, uma reserva que abrigava corujas, beija-flores e gaviões, um lugar com um milhão de borboletas, e, quando ele chegava ao topo da montanha, saía do carro e olhava lá para baixo, para o vale imenso, cidade após cidade cheias de casas, fábricas, escolas, igrejas e parques, uma paisagem que abarcava mais de vinte milhões de pessoas, um décimo da população dos Estados Unidos, pois ia até o rio Hudson, atravessava a cidade e, no limite mais remoto da área que Ferguson conseguia avistar do topo da montanha, havia os prédios altos de Nova York, os arranha-céus de Manhattan que sobressaíam no horizonte como pés de capim e, uma vez, quando olhou para a cidade de Amy, Ferguson meteu na cabeça a ideia de que tinha de visitar Amy e, de repente, ele estava no carro outra vez, dirigindo de forma impulsiva para Nova York no meio do tráfego crescente do horário do rush, e, uma hora e vinte minutos depois, quando chegou ao apartamento dos Schneiderman, Amy, que estava no meio do seu dever de casa, ficou tão surpresa de ver Ferguson quando abriu a porta que até deu um grito.

Archie!, disse ela. O que está fazendo aqui?

Estou aqui para dar um beijo em você, respondeu. Só um beijo e depois vou embora.

Só um?, disse ela.

Só um.

Então Amy abriu os braços e deixou que ele a beijasse, e, quando estavam no meio de seu único beijo, a mãe de Amy entrou na saleta da entrada e disse: Meu Deus, Amy, o que você está fazendo?

O que é que você acha, mãe?, respondeu, arrancando os lábios da boca de Ferguson e olhando para a mãe. Estou beijando o cara mais bacana que existe no mundo.

Foi o momento mais bonito de Ferguson, o cume supremo de suas aspirações adolescentes, o gesto grandioso e tolo com que havia sonhado tantas vezes, mas nunca tivera coragem de tentar, e, como não queria estragar tudo desmentindo o que tinha dito, cumprimentou Amy e sua mãe com uma inclinação da cabeça e depois desceu pela escada. Lá fora, na rua, Ferguson disse para si mesmo: Sem o carro, isso jamais teria acontecido. Um carro quase o matou em janeiro e agora, apenas dois meses depois, um carro estava devolvendo a vida a ele.

No domingo, 23 de março, resolveu não usar o gorro no colégio e, como o cabelo tinha crescido de novo e sua cabeça parecia mais ou menos como sempre tinha sido antes de ser escalpelado em Vermont, ninguém comentou a ausência do gorro, exceto três ou quatro meninas na aula de francês, entre elas Margaret O’Mara, que uma vez lhe mandou um bilhete de amor em segredo, quando estavam na sexta série. Na quinta-feira de manhã, o tempo estava tão quente para aquela época do ano que ele resolveu dispensar a luva também. Mais uma vez, ninguém falou quase nada e, entre todas as pessoas em seu círculo de amigos cada vez mais reduzido, só Bobby George pediu para dar uma olhada mais de perto, o que Ferguson permitiu com relutância — estendendo o braço esquerdo para a frente e deixando que Bobby segurasse sua mão, que ele então ergueu até dez centímetros do rosto e examinou com o concentrado escrutínio de um cirurgião veterano, ou talvez de uma criança pequena e desmiolada — era difícil dizer qual dos dois, no caso de Bobby —, enquanto virava a mão para um lado e para outro e, delicadamente, deslizava os dedos nos pontos afetados, e, quando finalmente soltou a mão e Ferguson baixou o braço, de novo encostado ao lado do corpo, Bobby disse: Parece que está bom mesmo, Archie. Tudo curado e de volta à cor normal.

Desde o acidente, as pessoas ficavam contando para ele histórias de personalidades famosas que também tinham perdido dois dedos da mão e depois abriram caminho para o sucesso na vida, entre elas o lançador de beisebol Mordecai Brown, mais conhecido como Três Dedos Brown, que venceu 239 partidas numa carreira de catorze anos e foi eleito para a Galeria da Fama, e o comediante do cinema mudo Harold Lloyd, que perdeu o polegar e o indicador da mão direita na explosão de uma bomba cenográfica e, mesmo assim, conseguiu se pendurar nos ponteiros daquele relógio gigantesco e executar mil outras proezas incríveis. Ferguson tentava criar coragem com aquelas histórias incentivadoras, ver a si mesmo como membro orgulhoso de uma fraternidade de homens de oito dedos, mas aquele papo tipo “levanta a cabeça e bola pra frente” o deixava frio, ou constrangido, ou lhe causava repulsa, com seu otimismo meloso, e no entanto, de um jeito ou de outro, com ou sem os exemplos daqueles homens para guiá-lo, ele estava, aos poucos, fazendo as pazes com a forma de sua mão, começando a se acostumar, e quando ele finalmente tirou a luva no dia 26 de março, imaginou que o pior tinha ficado para trás. No entanto, o que deixou de levar em conta foi como a luva era um conforto para ele, a que ponto ele dependia da luva como um escudo contra os horrores torturantes da timidez, e agora que a mão estava nua outra vez, agora que tentava agir como se tudo tivesse voltado ao normal, Ferguson pegou o hábito de enfiar a mão esquerda no bolso toda vez que estava com alguém, o que, no colégio, significava que ficava assim quase o tempo todo, e o desmoralizante naquele novo hábito era que ele nem tinha consciência do que fazia, o gesto era executado por puro reflexo, de forma completamente alheia à sua vontade, e só quando, por uma razão qualquer, tinha de tirar a mão do bolso, Ferguson compreendia que a mão estava metida no bolso. Ninguém fora do colégio tinha consciência daquele tique, nem Amy nem a mãe nem o pai nem os avós, pois não era difícil ser corajoso com pessoas que gostavam dele, mas Ferguson tinha virado um covarde no colégio, e começava a se desprezar por causa disso. Entretanto, como poderia evitar uma coisa da qual nem sequer tinha consciência? Parecia que não existia solução para o problema, o que constituía mais um exemplo do antigo e intratável problema mente-corpo, nesse caso um corpo fora do controle da mente e que agia como se tivesse uma mente própria, porém mais tarde, depois de um mês de pesquisas infrutíferas, finalmente lhe veio uma solução, uma solução absolutamente prática e, uma a uma, ele juntou as quatro calças que usava para ir ao colégio, entregou para a mãe e pediu para ela costurar o bolso esquerdo, da frente e de trás, de todas elas.

No dia 11 de abril, Amy recebeu uma carta anunciando que seu pedido de ingresso na Universidade Barnard tinha sido aceito. Ninguém que a conhecia ficou surpreso, mas, durante alguns meses, ela andou aflita com a nota 81 que tirou em álgebra e trigonometria II, no ano anterior, o que tinha empurrado para baixo sua média geral de 95 para 93, e ela se perguntava se sua pontuação na prova geral de seleção para a universidade não teria sido um pouquinho abaixo do que deveria, 1375 em vez de 1450, como era sua meta, e toda vez que Ferguson tentava tranquilizá-la naqueles ansiosos meses de espera, ela respondia dizendo que nada era certo nesta vida, que o mundo distribuía frustrações com a mesma rapidez e fartura com que um político distribuía apertos de mão, e, como não queria se sentir frustrada, já estava se preparando para a frustração e, portanto, quando a boa notícia chegou, afinal, ela ficou mais aliviada do que feliz. Mas Ferguson ficou feliz, não só por Amy, como também por si mesmo, acima de tudo por si mesmo, pois havia uma série de opções alternativas, para o caso de Barnard recusar o pedido de Amy, todas situadas em cidades cujo nome não era Nova York, e Ferguson andava apavorado com a possibilidade de Amy ir parar em lugares distantes, como Boston ou Chicago ou Madison, no Wisconsin, o que acabaria tornando tudo tão complicado e solitário para ele que teria de se encontrar com ela apenas poucas vezes por ano, com os afobados regressos para a rua 75 Oeste nos feriados, para depois ir embora de novo, para mais nove longos meses com pouco ou nenhum contato, escrevendo cartas que Amy andaria ocupada demais para responder e, de forma lenta e inevitável, os dois iriam se afastando, sem nada capaz de impedir que Amy conhecesse outra pessoa, os rapazes da faculdade andariam o tempo todo em volta dela e, mais dia menos dia, Amy acabaria se apaixonando por algum deles, um ativista dos direitos civis de vinte ou vinte e um anos, estudante de história, que faria Amy esquecer por completo o pobre Ferguson, que nem havia terminado o ensino médio, e aí chegou a carta de Barnard e ele não teve mais de pensar nos detalhes sinistros do que poderia acontecer. Ferguson ainda era jovem, mas tinha idade suficiente para aprender que os piores pesadelos às vezes se tornavam realidade — irmãos que roubavam irmãos, presidentes baleados por assassinos, carros que se chocam de frente contra árvores — e outras vezes, não, como na crise de dois anos antes, quando o mundo esteve à beira de acabar, mas não acabou, ou quando chegou a hora de Amy ir para a universidade, o que poderia tê-la levado para longe de Nova York, mas não levou, e agora que ela ia passar os quatro anos seguintes em Nova York, Ferguson entendeu que, quando chegasse a hora de ele também ir para a universidade, também teria de estudar em Nova York.

Nessa altura, a temporada do beisebol tinha começado, mas Ferguson fazia tudo que podia para não pensar nisso. Evitava ir ver as partidas, e tudo que sabia sobre os times vinha das conversas com Bobby George, no carro, a caminho do colégio, de manhã. Andy Malone, que havia entrado no lugar de Ferguson na terceira base do time, aparentemente estava com dificuldade para se adaptar à nova posição, o que havia custado ao time algumas derrotas, por conta de erros cometidos no finalzinho dos períodos. Ferguson tinha pena dele e de todos no time, mas não era muita pena, não sentia pena suficiente para impedi-lo de sentir também uma espécie de alegria, pois, por mais que fosse penoso para Ferguson admitir, existia uma satisfação cruel em saber que o time estava pior sem ele. Quanto a Bobby — não havia motivo para se preocupar, como de costume. Ele sempre foi bom, só que agora era o melhor jogador do elenco, um receptor com uma batida forte e que sabia lançar tão bem quanto sabia rebater, e, quando afinal ele convenceu Ferguson a participar de uma partida contra a Columbia High School, disputada na casa do adversário, na segunda semana de maio, Ferguson ficou admirado de ver como Bobby havia melhorado imensamente. Um jogador capaz de fazer homeruns simples, duplos e triplos — além de dois corredores derrubados, na tentativa de tomar a segunda base. O garotinho de nariz sempre entupido, que respirava pela boca e que chupava o polegar era agora um adolescente de um metro e oitenta e oito, uma massa musculosa de pernas ligeiras, com mais de noventa quilos, que, no campo, parecia um homem adulto e jogava com uma inteligência que inspirava em Ferguson nada menos do que espanto, pois Bobby George era um cabeça-oca em todas as áreas que não o beisebol, o futebol americano ou as piadas de sacanagem, e a única razão pela qual não estava se ferrando em metade das matérias do colégio era porque os pais tinham contratado um professor particular de Montclair State para impedir que sua média geral ficasse abaixo de C, que era o aproveitamento mínimo necessário para participar das atividades esportivas interescolares. No entanto, bastava pôr Bobby num campo de jogo que ele logo se mostrava sagaz, e, agora que Ferguson tinha visto como ele aprendera a jogar bem, não havia mais necessidade de se torturar, indo assistir a outra partida naquela primavera. Talvez no ano que vem, pensou, mas por enquanto ainda magoa muito.

O verão se aproximava e, com a questão da faculdade enfim resolvida para ela, Amy voltou a falar de política, despejava suas ideias em cima de Ferguson, em longas conversas sobre o Comitê Coordenador dos Estudantes Não Violentos (SNCC), o Congresso pela Igualdade Racial e a direção do movimento, amargamente frustrada por ser jovem demais para ir até o sul a fim de participar do Projeto de Verão do Mississippi, que vinha sendo organizado nos últimos meses do ano letivo, no colégio, a iniciativa trilateral desencadeada pelo SNCC que envolvia o recrutamento de um pequeno exército de universitários do norte, mil pares de mãos extras para ajudar com: 1) uma caravana para registrar eleitores entre os negros sem voto no estado; 2) a administração das Escolas da Liberdade, montadas para crianças negras, em dúzias de cidadezinhas e povoados; 3) a fundação do Partido Democrático da Liberdade do Mississippi, que iria escolher uma chapa de delegados alternativos para a convenção em Atlantic City, no fim de agosto, para desalojar a delegação racista, só de brancos, dos democráticos rotineiros. Amy daria qualquer coisa para ir até aquela zona de perigo, de violência e intolerância, para se colocar na linha de frente pela causa, mas dezenove anos era a idade de corte, e ela não estava apta para a missão, o que para Ferguson foi ótimo, pois, por mais que também acreditasse na causa, um verão sem Amy seria intolerável para ele.

Muitas coisas intoleráveis aconteceram nos meses que se seguiram, mas não para eles, não diretamente para eles, e apesar de seus empregos de verão, como vendedora na livraria da rua 8 (Amy) e como funcionário da loja TV & Radio Stanley (Ferguson), eles conseguiam se ver muitas vezes, não apenas nos fins de semana, como também em muitos dias de semana, pois Ferguson dirigia seu carro até a cidade assim que saía do trabalho, pegava Amy na livraria e depois os dois iam comer hambúrgueres no Joe Junior’s e ver um filme no Bleecker Street Cinema, ou caminhavam pela Washington Square ou se embolavam nus no apartamento de alguma amiga de Amy que estivesse ausente, livres para irem aonde quisessem agora, por causa do carro de Ferguson, o Carro da Liberdade naquele Verão da Liberdade, os sábados e domingos em que eles iam juntos até Jones Beach ou subiam para o norte, para o campo, ou desciam para a praia de Jersey, um verão de grandes pensamentos e amor furioso e dor imensa, que começou de forma tão encorajadora quando a Lei dos Direitos Civis foi aprovada pelo Senado, no dia 19 de junho, e depois, imediatamente em seguida, apenas setenta e duas horas depois, coisas intoleráveis começaram a ocorrer. No dia 22 de junho, três jovens que se uniram ao Projeto de Verão do Mississippi foram dados como desaparecidos. Andrew Goodman, Mickey Schwerner e James Chaney saíram do centro de treinamento do projeto antes dos demais alunos a fim de investigar a explosão de uma bomba numa igreja e, desde então, ninguém mais teve notícias de seu paradeiro. Não havia dúvida de que tinham sido assassinados, espancados, torturados e mortos por segregacionistas brancos, para atemorizar a horda de nortistas radicais e invasores que planejavam destruir a forma de vida deles, mas ninguém sabia onde estavam os corpos e nenhum branco no estado do Mississippi parecia se importar com o caso. Amy chorou quando ouviu a notícia. No dia 16 de junho, o dia em que Barry Goldwater foi eleito candidato para a presidência do Partido Republicano em San Francisco, um policial branco matou a tiros um adolescente negro no Harlem e Amy chorou de novo, quando a morte de James Powell foi respondida com seis noites seguidas de revolta e saques no Harlem e em Bedford-Stuyvesant, e a polícia de Nova York disparou cinco tiros acima da cabeça das pessoas que estavam nos telhados das casas, de onde atiravam pedras e lixo em cima dos policiais, na rua; não foram mangueiras de água ou cães que usaram para dispersar os motins de negros no sul, mas balas de verdade, e Amy chorou, não porque finalmente entendeu que o racismo era tão forte no norte quanto no sul, e tão forte na sua própria cidade, mas porque entendeu também que seu idealismo inocente estava morto, que seus sonhos dos Estados Unidos sem olhos para a cor das pessoas, em que brancos e negros ficariam juntos, não passava de otimismo tolo, e nem mesmo Bayard Rustin, o homem que tinha organizado a Marcha em Washington havia apenas onze meses, exercia agora menor influência, e, quando ele se pôs de pé na frente da multidão do Harlem e suplicou que parassem com a violência para que ninguém fosse ferido ou morto, a multidão o afastou aos gritos e o chamou de Pai Tomás. A resistência pacífica tinha perdido seu sentido, Martin Luther King era uma notícia velha e o Black Power tinha se tornado o evangelho supremo, e seu poder era tão grande que, em questão de meses, a palavra Negro foi apagada do léxico dos Estados Unidos. No dia 4 de agosto, os cadáveres de Goodman, Schwerner e Chaney foram descobertos num açude perto de Filadélfia, no Mississippi, e as fotos de seus corpos semienterrados, estirados sobre a lama no fundo da represa, eram tão horríveis e perturbadoras que Ferguson virou a cabeça e deu um gemido. No dia seguinte, chegou a notícia de que navios contratorpedeiros que patrulhavam o Golfo de Tonkin foram atacados por embarcações torpedeiras norte-vietnamitas, ou pelo menos assim declarou um relatório oficial do governo, e no dia 7 de agosto o Congresso aprovou a Resolução do Golfo de Tonkin, que dava a Johnson o poder de “tomar todas as medidas necessárias para repelir qualquer ataque armado contra as forças dos Estados Unidos e evitar outras agressões”. A guerra estava começando e Amy não estava mais chorando. Agora tinha definido sua posição sobre Johnson e estava furiosa, tão exaltada em sua fúria que Ferguson ficou quase tentado a fazer uma piada para ver se ela ainda era capaz de sorrir.

Vai ser muito grande, Archie, maior do que a da Coreia, maior do que qualquer coisa desde a Segunda Guerra Mundial, e é sorte sua que você não vai tomar parte.

E por que é assim, dr. Pangloss?, perguntou Ferguson.

Porque homens com um só polegar não são convocados para o Exército. Graças a Deus.


3.2


3.3

Amy não gostava mais dele, pelo menos não da maneira como Ferguson queria que ela gostasse, e, depois dos dias esplêndidos da última primavera e do último verão, quando os primos que se beijavam tinham deixado para trás sua condição de primos para embarcarem numa aventura de amor de verdade, eles tinham voltado a ser, mais uma vez, primos comuns. Foi Amy quem pôs fim ao romance, e não havia nada que Ferguson pudesse fazer para que ela mudasse de ideia, pois quando um Schneiderman tomava uma decisão, não tinha mais conversa. As queixas principais de Amy em relação a Ferguson eram de que ele era envolvido demais consigo mesmo, insistente demais em seus abraços (os ataques persistentes a seus peitos, que ela não estava pronta para despir para ele, aos catorze anos), de que ele era passivo demais em todos os assuntos que não os peitos de Amy, imaturo demais, carente demais de consciência social para que os dois pudessem ter algo de significativo para conversar. Não que ela não sentisse um carinho grande e duradouro por ele, disse Amy, ou que não gostasse de ter Ferguson, o doido por filmes, o jogador de basquete, o molengão, como membro de sua nova família ampliada, só que, como namorado, ele não tinha futuro.

O caso terminou mais ou menos duas semanas antes do fim do verão (1961), e, quando as aulas recomeçaram depois do Dia do Trabalho, Ferguson sentiu-se espoliado. Não só não haveria mais as explosões de beijos com Amy, como a camaradagem entre os dois, anterior ao namoro, também acabou se extinguindo. Não havia mais visitas entre ambos para fazer o dever de casa juntos, não havia mais os episódios da série Além da Imaginação na televisão, não havia mais partidas de buraco, eles não ouviam mais discos juntos, não havia mais aquelas idas ao cinema, não havia mais caminhadas pelo Riverside Park. Ele ainda via Amy em reuniões de família, que costumavam acontecer duas ou três vezes por mês, os jantares e os almoços de domingo nos apartamentos dos dois Schneiderman, as excursões ao Szechuan Palace, na Broadway, e ao Stage Deli, na Sétima Avenida, mas ele achava doloroso olhar para ela agora, doloroso ficar perto dela, depois de ser descartado, rejeitado, porque não satisfazia seus critérios do que ela considerava um ser humano de valor e confiável, e, em vez de se sentar ao lado de Amy naquelas refeições familiares, como sempre tinha feito no passado, agora ele se instalava na outra extremidade da mesa e tentava agir como se Amy nem estivesse presente. Na última semana de setembro, no meio de um jantar na casa do tio Dan e da tia Liz, quando o bode velho desandou a tagarelar sobre a radiação venenosa que os alemães orientais tinham escondido no Muro de Berlim, Ferguson não aguentou e se levantou com nojo, balbuciou uma desculpa qualquer, sobre a necessidade de ir ao banheiro, e saiu da mesa. Foi de fato ao banheiro, mas só para se esconder, pois aquilo tudo estava se tornando excessivo para ele, a obrigação de manter uma máscara de cortesia diante de Amy naqueles eventos em família, e a ferida ainda fresca era reaberta toda vez que ele a reencontrava, e então ficava sem saber o que fazer e o que dizer na sua presença, e por isso ele abriu a torneira da pia e deu a descarga da privada uma ou duas vezes para que os outros acreditassem que ele tinha ido ao banheiro para esvaziar a bexiga, e não para curtir o prazer deprimente de sentir pena de si mesmo. Quando abriu a porta, três ou quatro minutos depois, Amy estava parada no corredor, com as mãos nos quadris, uma atitude de desafio, de combate, que parecia demonstrar que ela também já estava farta.

Que diabo está acontecendo?, perguntou ela. Você não olha mais para mim. Não fala mais comigo. Tudo o que você faz é ficar emburrado, e isso está me irritando.

Ferguson baixou os olhos na direção dos pés e disse: Meu coração está partido.

Deixe disso, Archie. Você está frustrado, mais nada. E eu também estou frustrada. Mas pelo menos a gente pode tentar ser amigo. Nós sempre fomos amigos, não fomos?

Ferguson ainda não conseguia mirar nos olhos dela. Não se pode voltar no tempo, disse ele. O que está feito está feito.

Você está de brincadeira, não é? Quer dizer, se acha mesmo isso, pior para você, mas nada está feito. Nada nem mesmo chegou a começar. A gente tem só catorze anos, seu cabeça-oca.

Já tenho idade suficiente para ficar de coração partido.

Seja mais forte, Archie. Está falando que nem uma criancinha patética, e eu detesto isso. Detesto demais. Vamos ser primos por muito, muito tempo, e eu preciso que você seja meu amigo, por isso faça o favor de não me obrigar a detestar você.

Ferguson tentou ser mais forte. Por mais duro que fosse ouvir Amy cravar bem fundo nele aquelas palavras de censura, Ferguson entendeu que tinha deixado que sua cabeça frouxa e seus impulsos de autopiedade tomassem conta dele e, a menos que pusesse um freio naquilo, ia acabar igual ao Gregor Samsa e acordar numa manhã, de sonhos inquietos, para descobrir que tinha se transformado num inseto gigantesco. Agora ele estava na nona série, o primeiro ano do ensino médio, e, apesar de seu desempenho acadêmico na Riverside Academy sempre ter sido respeitável, suas notas tinham caído um pouco na sétima e na oitava séries, talvez por tédio, talvez por uma confiança excessiva em que seus talentos naturais iriam dar conta do recado sozinhos, sem nenhum grande esforço adicional, mas agora o estudo estava mais exigente e não seria possível responder as questões das provas sobre como conjugar verbos franceses irregulares no passé simple ou dizer as datas de coisas como a Defenestração de Praga e a Dieta de Worms (uma dieta de minhocas!) se ele não dedicasse algum tempo ao estudo, a fim de dominar aqueles pormenores obscuros. Ferguson resolveu melhorar suas notas até o nível mais alto que podia imaginar para si — nada menos do que A em inglês, francês e história, e nada menos do que B+ em biologia e matemática —, um plano de ação árduo, mas realista, pois lutar por uma nota A nas duas últimas matérias demandaria tanto trabalho extra que o basquete acabaria empurrado para fora de cena, e, quando começaram os testes para selecionar os jogadores da equipe, depois das férias do Dia de Ação de Graças, Ferguson estava decidido a entrar para o time dos calouros. Ele conseguiu ser escalado (na posição de atacante) e seu plano de estudos também alcançou suas expectativas, se bem que não com a precisão que havia planejado, pois a nota A em francês acabou sendo um frustrante B?, e o B? em biologia evoluiu para um miraculoso A?. Mas não tinha importância. Ferguson ficou entre os primeiros colocados no primeiro semestre, e, se Amy fosse aluna na Riverside Academy, teria visto como ele estava se saindo bem. Só que ela não era aluna e, portanto, não viu nada, e já que seu primo revoltado e magoado era orgulhoso demais para contar para ela que tinha ficado mais forte, Amy nunca soube a que ponto deixara Ferguson profundamente envergonhado e como agora ele tentava provar que ela estava errada a seu respeito.

Apesar de tudo isso, nem é preciso dizer que ele continuava a querer Amy, que faria qualquer coisa para ter Amy de volta, porém, ainda que conseguisse, no final, fazê-la a querer ficar com ele outra vez, aquilo ia levar tempo, talvez muito tempo, e no intervalo entre nunca mais ficar com ela e talvez ter Amy de volta, ele achou que a melhor estratégia para que a situação virasse a seu favor seria arranjar outra namorada. Isso não só mostraria que ele tinha perdido o interesse por ela e havia deixado o rompimento para trás (o que era essencial), como também serviria para distrair seus pensamentos e não ter de ficar com ela o tempo todo na cabeça, e quanto menos pensasse nela, menos triste ficaria, e quanto menos ficasse triste, mais atraente pareceria aos olhos de Amy. Uma namorada nova deixaria Ferguson mais feliz, e, encorajado por sua felicidade recém-encontrada, certamente ele ficaria mais bonito para Amy nas reuniões em família, mais charmoso, com mais controle dos próprios sentimentos, e, toda vez que se apresentasse a situação, ele falaria com ela sobre os fatos do momento. Essa era uma das principais queixas de Amy contra ele — sua indiferença por política, sua falta de preocupação com o que estava acontecendo no mundo das questões nacionais e internacionais — e, para remediar essa deficiência, Ferguson decidiu acompanhar o noticiário com mais atenção dali em diante. Toda manhã, dois jornais eram entregues na porta do apartamento, o Times e também o Herald Tribune, apesar de Gil trabalhar para este jornal, pois a piada na família era que o Herald Tribune era pró-republicano demais para ser levado a sério por qualquer pessoa que morasse no Upper West Side. Todavia, as resenhas e os artigos de Gil saíam, mais ou menos, dia sim dia não, naquele órgão da Park Avenue, do dinheiro de Wall Street e do poder americano, e o trabalho matinal de Ferguson era recortar as matérias que traziam a assinatura de Gil e colocar os recortes numa caixa para a mãe, que planejava, um dia, reunir um livro de artigos de Gil, e Gil vivia dizendo para Ferguson não se preocupar com aquele lixo, mas Ferguson, que achava que Gil apenas ficava sem graça com a atenção e, em segredo, apreciava aquilo, se limitava a encolher os ombros e dizer: Desculpe, são ordens da chefia, e chefia era outro nome para a mãe, que já tivera dois nomes, Rose Adler e Rose Schneiderman, e Gil fazia que sim com a cabeça, com uma resignação fingida, e respondia: Natürlich, mein Hauptmann, você não deve se meter em confusão por desobedecer ordens. Portanto, o Times e o Herald Tribune estavam lá para ele ler de manhã, e, quando a tarde passava e ele chegava do colégio, um exemplar do New York Post também era encontrado no caminho para seu apartamento e, além dos jornais diários, havia as revistas Newsweek, Life e Look (na qual sua mãe, às vezes, publicava alguma fotografia), I. F. Stone’s Weekly, New Republic, Nation e outras revistas variadas, e Ferguson agora abria caminho laboriosamente por suas páginas, em vez de passar direto para as seções de cinema e de livros, no fim da revista; agora lia as matérias de política para ter uma ideia do que estava acontecendo lá fora e, assim, ter uma ideia de como mostrar que tinha uma posição pessoal numa conversa com Amy. Tais eram os sacrifícios que ele estava disposto a fazer em nome do amor, pois mesmo que se tornasse um cidadão mais informado, um observador mais atento das batalhas entre democratas e republicanos, das relações dos Estados Unidos com governos estrangeiros amistosos ou hostis, ele continuava a achar a política o assunto mais chato, mais insuportável, mais sem graça que se podia imaginar. A Guerra Fria, a Lei Taft-Hartley, os testes nucleares subterrâneos, Kennedy e Khruschóv, Dean Rusk e Robert McNamara — nada disso tinha importância para ele e, em sua opinião, todos os políticos ou eram burros ou corruptos, ou as duas coisas, e mesmo o simpático Kennedy, o novo presidente tão admirado, não passava de mais um políti­co burro e corrupto, para Ferguson, que achava muito mais estimulante admirar homens como Bill Russell e Pau Casals do que desperdiçar os sentimentos com pomposos, vazios e metidos a besta que mendigavam votos. As únicas três coisas de lá de fora que realmente atraíam sua atenção nos últimos meses de 1961 e nos primeiros meses de 1962 eram o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, a crise em Berlim — porque Gil e o tio Dan andavam muito envolvidos com aquilo — e o movimento pelos direitos civis, na esfera local — porque o povo era tão corajoso e as injustiças que tinham sido reveladas eram tão obscenas, em sua opinião, que faziam os Estados Unidos parecerem um dos países mais atrasados da face da Terra.

A busca de uma substituta para Amy, no entanto, não era isenta de problemas. Não que Ferguson contasse descobrir alguém parecido com ela, pois Amy não era o tipo de garota projetada para a produção em massa, mas ele relutava em aceitar qualquer alternativa que ficasse abaixo do topo da escala — nada de comparável a Amy, talvez, mas uma pessoa brilhante, que o deixasse impressionado e fizesse seu coração bater mais rápido. Infelizmente, as candidatas mais promissoras já haviam entregado seu coração a outros, entre elas a cada vez mais linda Isabel Kraft, a Hedy Lamarr da turma dos calouros, que estava de namoro com um garoto do segundo ano, bem como a linda prima dela, Alice Abrams, e também a antiga paixão de Ferguson, Rachel Minetta, de voz de mel. Aquele era um dos fatos principais da vida da nona série: a maioria das garotas era mais desenvolvida do que a maioria dos garotos, o que significava que as garotas mais impressionantes deixavam de lado os garotos da sua série em favor de garotos mais desenvolvidos, da série seguinte, ou mesmo de duas séries à frente. Apesar de sua esperança de obter um resultado rápido, em meados de outubro, no máximo, ou seja, três semanas depois de Amy dizer para ele ser mais forte, Ferguson continuava em sua busca já no meio de novembro, e não era por falta de esforço de sua parte (foi ao cinema quatro vezes com quatro garotas em quatro sábados consecutivos), mas apenas porque nenhuma das garotas com quem saiu era a garota certa. Quando o colégio entrou em recesso para as férias do Dia de Ação de Graças, ele já começava a pensar que talvez nenhuma garota da Riverside Academy fosse servir.

O basquete ajudava a distrair Ferguson de suas frustrações amorosas, pelo menos cinco dias por semana, com os finais de semana sem amor que tinham de ser aturados com a ajuda de outras distrações, como partidas de basquete com seus amigos, eventuais festas no sábado à noite, filmes com qualquer pessoa que aparecesse (muitas vezes, sua mãe), e concertos com Gil, ou com Gil e sua mãe, mas não havia dúvida de que jogar basquete durante as onze semanas da temporada ajudou Ferguson a não cair em tantas depressões, a começar pelo período de uma semana dos testes para selecionar os jogadores e a grande satisfação de passar na última peneira, seguida por uma semana exaustiva de treinamentos, depois do horário das aulas, enquanto o time ia se entrosando sob o comando do treinador Nimm, muitas vezes chamado de treinador Soneca, por causa de sua disposição tranquilona, e depois de nove semanas de partidas, dezoito partidas ao todo, uma terça-feira à tarde e a outra sexta-feira à noitinha, metade das partidas em casa e a outra metade nas quadras de outros colégios particulares espalhados pela cidade, primeiro vinha a partida preliminar disputada pelos times dos calouros, antes que a cortina subisse para a partida principal dos times principais, e lá estava Ferguson, o esquisitão que tinha pedido para jogar com a camisa de número 13, que entrava correndo na quadra junto com os outros cinco titulares que iam começar a partida, e tomava sua posição para a bola ao alto no centro da quadra, o que assinalava o início da partida.

Todas aquelas manhãs de sábado no Riverside Park com o primo Jim tinham ajudado a transformar o cru, o iniciante de doze anos num jogador consistente, mas nada de espetacular, do time Riverside Rebels, aos catorze anos e nove meses. Ferguson sabia que seus talentos eram limitados, que não tinha a velocidade excepcional necessária para a excelência do basquete e, como era menos ágil com a mão esquerda do que com a direita, ele nunca seria mais do que um controlador de bola duvidoso quando estivesse sob a pressão de adversários rápidos e agressivos. Nada de movimentos relâmpago, guinadas bruscas, fintas e dribles com passagens de surpresa entre dois adversários, em compensação havia no jogo de Ferguson pontos fortes o suficiente para mantê-lo no time titular como uma peça indispensável da equipe, sobretudo a mola que tinha nas pernas, que lhe permitia saltar mais alto do que qualquer outro, e, quando essa capacidade era combinada com o entusiasmo destemido de seu estilo de jogo — uma forma doida de investir contra o adversário que o fez merecer o apelido de Comandante em Chefe —, o resultado era um talento incomum para rebotes impetuosos, ágeis e limpos, em que ele entrava firme para disputar a bola com jogadores mais altos que ele. Ferguson raramente perdia bolas de bandeja e seu arremesso de longe era bom, com potencial para se tornar ótimo, mas a precisão que ele demonstrava nos treinos raramente correspondia a seu desempenho nas partidas, pois tendia a se afobar nos arremessos, no calor da competição, o que o tornou, naquele primeiro ano, um atacante instável, alguém capaz de fazer dez ou doze pontos, quando arremessava bolas de dois pontos, e não fazer nenhum ponto, quando arremessava de longe. Daí se entendem os sete pontos que fez na primeira partida, o que acabou por se tornar sua média de pontuação na temporada, mas também com as partidas com apenas trinta e dois minutos de duração e o total de pontos entre os trinta e cinco e os quarenta e cinco para cada equipe, sete pontos por jogo não era uma média ruim. Podia não ser nada de empolgante, mas não era ruim.

Rah-rah-sis-koom-bah! Rebels! Rebels! Yah-yah-yah!

Entretanto, os números tinham pouco significado para ele e, contanto que a equipe vencesse, ele não se importava com o número de pontos que fizesse, porém mais importante do que ganhar ou perder era o mero fato de que, antes de tudo, estava no time. Adorava vestir o uniforme amarelo e vermelho dos Rebels com o número 13, adorava os outros nove garotos com quem jogava, adorava as preleções preguiçosas, mas sagazes, do treinador Nimm no vestiário, no intervalo das partidas, adorava pegar o ônibus a caminho das partidas junto com os companheiros de equipe e os dez garotos do time principal e as seis animadoras de torcida do time principal e as quatro animadoras de torcida do time dos calouros, ele adorava o caos de alegria e de piadas em voz alta dentro do ônibus e, sobretudo, adorou quando o espalhafatoso Yiggy Gold­berg, da penúltima série, foi suspenso por duas partidas, porque baixou as calças e mostrou a bunda pelada na janela, para o espanto das pessoas nos carros que passavam, Ferguson adorava tanto jogar basquete que nem tinha mais consciência de estar no próprio corpo, não tinha mais consciência de quem ele era, adorava se desmanchar em suor nos treinamentos e depois sentir a água quente do chuveiro varrer o suor da sua pele, adorava o fato de que o time tinha começado meio devagar e foi melhorando à medida que a temporada avançava, perdia a maioria das partidas na primeira metade e depois vencia a maioria no segundo tempo e acabava com um índice de empates de 8 ou 10, e ele adorou que uma das vitórias tenha sido contra o time da Hilliard, em casa, quando ele fez só três pontos, mas foi o líder dos rebotes da equipe.

Ho-ho-tic-tac-toe! Rebels! Rebels! Go-go-go!

A melhor parte era que as pessoas vinham assistir, havia sempre uma multidão no pequeno ginásio em Riverside para ver as duas partidas, não eram milhares nem mesmo centenas, mas o suficiente para dar a sensação de um espetáculo, com Chuckie Showalter batendo o surdo para incentivar a equipe, e quase todo mundo da família de Ferguson vinha para ver, de vez em quando, para torcer pelo Comandante em Chefe, o tio Dan, sobretudo, que não perdia nenhuma partida disputada em casa, e depois sua mãe, que só faltava quando estava fora da cidade, a trabalho, e várias vezes aparecia também o sr. Nada-de-Esporte, ou seja, o Gil, e uma vez apareceu o primo Jim, que veio lá de Boston na sua folga de meados de inverno na faculdade, e uma vez, para a partida contra o time da Hilliard, apareceu a própria srta. Amy Schneiderman, que viu Ferguson levar um tombo violento, na tentativa de evitar que a bola saísse de campo, que viu Ferguson dar uma ombrada num jogador do time da Hilliard e jogá-lo no chão, quando disputavam a bola de um passe errado, que viu Ferguson evitar que a bola de um arremesso de bandeja entrasse na cesta no último quarto da partida, para manter a equipe de Riverside na frente do placar por uma diferença de três pontos, e depois que a partida terminou ela veio lhe dizer: Bonito espetáculo, Archie. Um pouco assustador, às vezes, mas divertido de ver.

Assustador?, perguntou ele. Como assim?

Não sei. Intenso, talvez. Superintenso. Eu não sabia que o basquete era um esporte de contato.

Nem sempre. Mas, debaixo da cesta, a gente tem de entrar forte.

E é isso o que você é agora, Archie? Forte?

Você não se lembra?

Do que está falando?

Seja mais forte. Não se lembra?

Amy sorriu e balançou a cabeça. Ferguson achou Amy tão insuportavelmente linda naquele momento que sua vontade era tomá-la entre os braços e bombardear sua boca de beijos, porém, antes que pudesse fazer qualquer coisa tão idiota e desastrosa, o tio Dan veio para perto dele e disse: Excelente partida, Archie. O arremesso com salto talvez esteja um pouco ruim, mas acho que esse foi seu melhor desempenho numa partida até hoje.

Aí terminou a temporada do basquete e ele voltou ao vazio sem namorada, sem Amy e sem ninguém. A única garota que ele via com alguma regularidade era a Miss Abril do ano anterior no exemplar da revista Playboy que Jim tinha deixado com ele, antes de partir para a faculdade, mas Wanda Pow­ers de Spokane, Washington, uma sorridente garota de vinte e dois anos com peitos de melão que desafiavam a gravidade e um corpo que parecia manufaturado a partir de um modelo de borracha da verdadeira Wanda Powers, tinha começado a perder o encanto para a imaginação de Ferguson.

Inquieto e desmoralizado, ainda mais frustrado pela sua condição de en­calhado no mundo, puxado para baixo por suas esperanças embotadas e pelos sonhos ardentes que haviam suplantado aquelas esperanças, as jornadas mentais incessantes e inúteis rumo ao reino da felicidade voluptuosa, onde tudo que ele desejava se tornava realidade, Ferguson resolveu fazer uma última tentativa de acertar os ponteiros com Amy e recomeçar seu romance, mas quando telefonou para ela, cinco dias depois do fim da temporada de basquete, e pediu que ela o acompanhasse à festa da equipe que ia acontecer na casa de Alex Nordstrom no sábado à noite, Amy respondeu que já tinha um compromisso. Bem, disse ele, e no dia seguinte? Não, respondeu, tinha um compromisso no sábado e no domingo também, e então Ferguson ficou sabendo que ela ia continuar compromissada enquanto aquilo durasse, e aquilo era o amor recíproco que ela havia estabelecido com uma pessoa cujo nome ela se recusava a dizer, e pronto, fim de papo, disse Ferguson para si mesmo, Amy tinha um namorado, Amy já era, e os verdes campos da esperança se transformaram em lama.

Diversos incidentes desagradáveis ocorreram na esteira daquele telefonema desolador. Um: embriagar-se pela primeira vez na vida, na noite da festa, quando ele e um colega do time de basquete, Brian Mischevski, arrombaram o armário de bebidas dos Nordstrom e roubaram uma garrafa fechada de Cutty Sark, que esconderam no bolso interno do casacão de inverno de Ferguson e depois levaram para o apartamento de Brian, quando a festa na casa dos Nordstrom chegou ao fim. Felizmente, os pais de Brian tinham ido passar o fim de semana fora (o que explicava por que escolheram o apartamento dele como bar), e felizmente Brian se lembrou de dizer para Ferguson ligar para os pais e pedir permissão para passar a noite fora antes de abrirem a garrafa e entornarem dois terços de seu conteúdo, dois terços daqueles dois terços desceram queimando por dentro da garganta de Ferguson e foram aterrissar no seu estômago, onde, lamentavelmente, não permaneceram por muito tempo, pois, antes daquela noite, Ferguson só havia bebido uma lata de cerveja e duas taças de vinho, e não tivera nenhuma experiência com os poderes intoxicantes do uísque destilado com teor alcoólico de quarenta e três por cento, e, pouco antes de passar para o sofá da sala, ele vomitou tudo em cima do tapete oriental dos Mischevski. Dois: Apenas dez dias depois daquela farra de bebedeira lacrimosa e semissuicida, ele se embolou com Bill Nathanson, antigamente chamado de Billy, o Sapão, que vinha aporrinhando Ferguson desde seu primeiro ano na Riverside Academy, até que afinal ele disparou uma bateria de murros contra a barrigona gorda do Nathanson e a sua cara espinhenta, quando o palhaço apareceu na cantina e chamou Ferguson de merdinha babaca, e embora Ferguson tenha sido punido com três dias de retenção depois do horário da aula, além de levar uma bronca tremenda de Gil e da mãe e o aviso de que tinha de tomar jeito, Ferguson não se arrependeu de ter perdido a cabeça e, no que lhe dizia respeito, a satisfação de esmurrar Nathanson compensou de sobra o preço que ele teve de pagar. Três:

Numa terça-feira à tarde, no fim de março, menos de um mês depois do seu aniversário de quinze anos, Ferguson escapuliu do colégio logo depois do almoço, andou da West End Avenue até a Broadway e foi ao cinema. Ia ser uma exceção, um acontecimento único, ele disse para si mesmo, mas as regras tinham de ser violadas naquele dia, porque o filme que ele queria ver não ia passar no dia seguinte nem em nenhum outro dia no futuro previsível, e o primo Jim, que tinha visto O bulevar do crime no Brattle Theatre, em Cambridge, disse para Ferguson que ele tinha de ver o filme na próxima vez que passasse num cinema de Nova York, ou então ia perder o direito de ser chamado de ser humano. O filme estava programado para começar à uma hora, e Ferguson percorreu o mais depressa que pôde os dez quarteirões até a rua 95 Oeste e até o Thalia Theatre, enquanto ia dizendo para si mesmo que, se fosse só um pouquinho mais velho, não teria de matar aula, pois havia outra sessão do filme, às oito horas, mas Gil e sua mãe jamais lhe dariam permissão para ir a uma sessão à noite, ainda mais para ver um filme com três horas de duração. Haveria o problema de inventar uma desculpa para eles, supôs Ferguson, mas até ali não tinha conseguido imaginar nada, e a melhor e a mais simples desculpa — de que tinha se sentido mal depois do almoço e tinha ido para casa descansar — não ia dar certo, naquele caso, porque Gil e sua mãe, com toda certeza, estariam no apartamento, Gil, no seu escritório, trabalhando em seu livro sobre Beethoven, e a mãe, em sua câmara escura, revelando fotografias, e ainda que a mãe por acaso estivesse na rua, havia noventa por cento de chance de Gil estar em casa. Não ter uma desculpa era um problema, porém, como a maioria dos problemas que Ferguson criava para si mesmo, ele preferia primeiro meter a cara, para só depois se preocupar com as consequências, pois era um jovem que queria o que queria e exatamente na hora em que queria, e pobre da pessoa que ficasse em seu caminho. Por outro lado — raciocinou Ferguson enquanto andava meio que trotando pela calçada lotada, no gélido ar de março —, não estava perdendo grande coisa ao matar as aulas da tarde de terça-feira, que consistiam em ginástica e sala de estudos, e como o sr. McNulty e a sra. Wohlers raramente se davam ao trabalho de fazer a chamada, ele podia muito bem sair daquela travessura sem nenhum castigo. E se não acontecesse, e se ele não conseguisse mesmo inventar uma explicação falsa na hora em que estivesse com Gil e a mãe outra vez, ele simplesmente diria a verdade. Não estava cometendo nenhum crime ou ato imoral, afinal de contas. Foi ao cinema e poucas coisas no mundo eram melhores do que ir ao cinema.

O cinema Thalia era pequeno, de formato diferente, mal chegava a duzentos lugares, com umas colunas grossas que atrapalhavam a visão e um chão inclinado que colava na sola dos sapatos por causa dos refrigerantes derramados ao longo de muitos anos. Apertado e sujo, quase ridículo pela fartura de seus desconfortos, com as molas velhas no assento das poltronas que pinicavam a bunda e o cheiro de pipoca queimada que bufava por dentro do nariz, era também o melhor lugar no Upper West Side para ver filmes antigos, que o cinema Thalia passava num índice de dois por dia, todo dia uma sessão dupla diferente, dois filmes franceses hoje, dois filmes russos amanhã, dois filmes japoneses depois, o que explicava por que O bulevar do crime estava passando no Thalia naquela tarde e não ia mais passar em nenhum outro cinema da cidade, talvez em mais nenhum outro cinema do país inteiro. Ferguson tinha ido lá uma porção de vezes, a essa altura, com Gil e a mãe, com Amy, com Jim e Amy juntos, com amigos do colégio, mas quando mostrou sua carteirinha do colégio e pagou os quarenta centavos do ingresso com desconto de estudante, se deu conta de que nunca tinha ido lá sozinho, e então, quando escolheu uma poltrona no meio da quinta fileira, se deu conta de que nunca tinha ido ver um filme sozinho, não só no Thalia, mas em qualquer outro lugar, nenhuma vez na vida tinha sentado sozinho num cinema, pois ir ao cinema sempre foi uma questão de estar na companhia de outras pessoas, tanto quanto de ver o próprio filme, e, embora muitas vezes ele tenha visto sozinho seus filmes de O Gordo e o Magro quando era criança, isso acontecia porque estava sozinho no quarto onde via filme, mas agora havia outras pessoas no cinema com ele, pelo menos vinte e cinco ou trinta pessoas, e mesmo assim ele estava sozinho. Não sabia se aquilo dava uma sensação boa ou ruim — ou simplesmente uma sensação nova.

Então o filme começou e já não importava mais se estava sozinho ou não. Jim tinha razão sobre aquele filme, disse Ferguson para si mesmo, e durante as três horas e dez minutos da projeção de O bulevar do crime na tela à sua frente, ele não parava de pensar que tinha valido bastante a pena correr o risco de uma punição a fim de ver aquele filme, que era exatamente o tipo de filme com grande apelo para um garoto de quinze anos do temperamento de Ferguson, uma saga de amor estilizada, altamente romântica, salpicada por pitadas de humor, violência e perversidade astuta, uma história com diversos protagonistas, em que todos os personagens são fundamentais para a história, a linda e enigmática Garance (Arletty) e os quatro homens que a ama­vam, o mímico representado por Jean-Louis Barrault, um sonhador passi­vo, sentimental, destinado a avançar, claudicante, por uma vida de nostalgia e desgostos, o ator exuberante, bombástico, incrivelmente divertido, represen­tado por Pierre Brasseur, o conde de coração frio e supersolene, representado por Louis Salou, e o monstro sorrateiro representado por Marcel Herrand, no papel de Lacenaire, o assassino-poeta que apunhala o conde até a morte, e quando o filme terminou com Garance sumindo no meio da vasta multidão parisiense, enquanto o mímico de coração partido sai à sua procura, as palavras de Jim voltaram de súbito à lembrança de Ferguson (O melhor filme francês que já fizeram, Archie, é ... E o vento levou da França, só que dez vezes melhor), e embora Ferguson tivesse visto apenas uns poucos filmes franceses naquela altura da vida, concordou que O bulevar do crime era muito melhor do que ... E o vento levou, tão melhor que chegava a ser inútil fazer qualquer comparação.

As luzes se acenderam e, quando Ferguson ficou de pé e esticou os braços, percebeu alguém na terceira poltrona à sua esquerda, um garoto alto, de cabelo escuro, que devia ser uns dois anos mais velho do que ele, muito provavelmente mais um cinéfilo matador de aula, e quando olhou para seu companheiro desertor, o garoto sorriu para ele.

Que filme, disse o desconhecido.

Que filme, repetiu Ferguson. Adorei.

O garoto se apresentou como Andy Cohen, e, enquanto ele e Ferguson saíam juntos do cinema, Andy contou que era a terceira vez que via O bulevar do crime e perguntou se Ferguson sabia que o criminoso Lacenaire, o mímico Duburau e o ator Lemaître foram pessoas reais na França na década de 1820. Não, confessou Ferguson, ele não sabia. Também não sabia que o filme tinha sido feito em Paris durante a ocupação alemã, nem que Arletty se metera em um bocado de confusão, no fim da guerra, por ter um caso com um oficial alemão, nem que o escritor Jacques Prévert e o diretor Marcel Carné tinham trabalhado juntos em vários filmes nas décadas de 30 e 40 e eram os inventores daquilo que os críticos chamavam de realismo poético. Esse Andy Cohen é mesmo um rapaz bem informado, pensou Ferguson, e embora ele devesse estar querendo se exibir um pouco, tentando impressionar o jovem neófito desinformado, com seu conhecimento superior da história do filme, fazia isso de um jeito amigável, antes por um excesso de entusiasmo do que por algum tipo de arrogância ou condescendência.

Já estavam na rua agora, caminhavam rumo ao sul pela Broadway e, no espaço de quatro quarteirões, Ferguson ficou sabendo que Andy Cohen tinha dezoito anos, e não dezessete, e que não tinha matado aula nenhuma para ir ao cinema, porque era calouro do City College e não tinha aula naquela tarde. Seu pai tinha morrido (um ataque do coração, seis anos antes) e Andy e a mãe moravam num apartamento na Amsterdam Avenue, esquina com a rua 107, e como ele não tinha nada planejado para o resto do dia, talvez ele e Ferguson pudessem ir a uma cafeteria e comer alguma coisa, que tal? Não, respondeu Ferguson, ele tinha de estar em casa às quatro e meia, não tinha jeito, mas talvez eles pudessem se encontrar em outro dia, no sábado à tarde, por exemplo, quando Ferguson sabia que estaria livre, e no momento em que Ferguson falou a palavra “sábado”, Andy enfiou a mão no bolso do casaco e pegou a programação de filmes do cinema Thalia para o mês de março. O encouraçado Potemkin, disse ele. Vai passar à uma hora.

No cinema Thalia à uma da tarde no sábado, respondeu Ferguson. A gente se vê lá.

Estendeu o braço direito, apertou a mão de Andy Cohen e os dois se separaram, um prosseguiu pela Riverside Drive rumo ao sul, entre as ruas 88 e 89, e o outro deu meia-volta e tomou a direção norte, rumo ao que podia ser, ou não, sua casa.

Conforme já esperava, Gil e a mãe estavam no apartamento quando Ferguson chegou, mas o que ele não esperava era que o colégio já havia telefonado para comunicar sua saída sem autorização. Gil e a mãe estavam com aquela cara de preocupação que sempre deixava Ferguson triste e o fazia entender como era desagradável, para os dois, serem os adultos responsáveis por alguém como ele, pois o telefonema do colégio significava que seu paradeiro era desconhecido entre meio-dia e meia e quatro e meia, tempo mais do que suficiente para que pais conscienciosos começassem a ficar preocupados com seu adolescente desaparecido. Foi por isso que mãe instituiu a regra das quatro e meia: esteja em casa nesse horário ou então telefone para explicar onde está. O limite tinha sido estendido para as seis horas durante a temporada de basquetebol, por causa dos treinamentos depois das aulas, só que agora a temporada de basquete havia terminado e o prazo das quatro e meia tinha voltado a vigorar. Ferguson entrou no apartamento às quatro e vinte e sete, o que, em qualquer outro dia, teria evitado qualquer problema para ele, só que ele não contava que o colégio fosse telefonar tão depressa, e ele lamentava amargamente aquele equívoco, não só por causa do medo que provocara em Gil e na mãe, mas também porque aquilo o fazia se sentir um idiota.

Metade de sua mesada da semana seguinte foi cortada e, nos três dias de aula que restavam da semana em curso, ele foi retido após as aulas para trabalhar no refeitório, passando o esfregão no piso, lavando panelas e polindo o grande fogão de oito bocas. A Riverside Academy era uma instituição esclarecida e de espírito avançado, mas ainda acreditava nas virtudes punitivas da patrulha da cozinha, como nas Forças Armadas.

No sábado, dia de toques de recolher mais relaxados e de relativa liberdade, Ferguson avisou, na hora do café da manhã, que ele ia ao cinema com um amigo naquela tarde, e, como Gil e a mãe, em geral, não eram de ficar fazendo muitas perguntas sem importância (por mais que desejassem saber as respostas), Ferguson não deu o nome do amigo nem do filme e saiu do apartamento a tempo de chegar ao cinema Thalia às dez para uma. Não esperava que Andy Cohen fosse aparecer, pois parecia improvável demais que ele se lembrasse do encontro combinado às pressas, na porta do cinema, mas agora que Ferguson tinha descoberto os prazeres de ver um filme sem companhia alguma, a perspectiva de ficar sozinho de novo não o incomodava. Contudo, Andy Cohen lembrou-se e os dois apertaram as mãos e compraram seus ingressos de quarenta e cinco centavos, o rapaz da faculdade já estava começando uma breve palestra sobre Eisenstein e os princípios da montage, a técnica que supostamente revolucionou a arte da cinematografia. Ferguson ouviu a recomendação de que prestasse especial atenção na cena da Escadaria de Odessa, uma das sequências mais famosas da história do cinema, e Ferguson disse que ia prestar atenção, embora a palavra “Odessa” produzisse um efeito um tanto perturbador sobre ele, porque a avó tinha nascido em Odessa e morrera em Nova York fazia apenas sete meses, e Ferguson lamentava ter dedicado tão pouca atenção a ela quando viva, sem dúvida supondo que ela fosse imortal e que haveria tempo de sobra para conhecer melhor a avó no futuro, o que, é claro, nunca aconteceu, e pensar na avó o levou a pensar no avô, de quem ainda sentia uma saudade tremenda, e quando Ferguson e Andy Cohen sentaram em suas poltronas na quinta fileira — que os dois achavam ser a melhor fileira da sala de cinema —, a expressão no rosto de Ferguson tinha mudado de forma tão radical que Andy perguntou se havia algum problema.

Estou pensando nos meus avós, respondeu. E no meu pai e em todas as pessoas que conheci e que já morreram. (Apontando para a têmpora esquerda.) Às vezes, fica bem escuro aqui dentro.

Eu sei, disse Andy. Não consigo parar de pensar no meu pai — e ele morreu há seis anos.

O fato de o pai de Andy também ter morrido ajudava, pensou Ferguson, o fato de ambos serem filhos de homens que não existiam e passarem seus dias na companhia de fantasmas, pelo menos os dias ruins, os dias piores, e como a claridade do mundo era sempre mais forte nos dias ruins, talvez isso explicasse por que eles procuravam o escuro das salas de cinema, por que se sentiam mais felizes quando estavam sentados no escuro.

Andy disse algo sobre as centenas de cortes empregados na edição da grande cena, mas antes que pudesse contar para Ferguson exatamente quantos foram os cortes (número que ele, sem dúvida, sabia de cor), as luzes se apagaram, o projetor começou a rodar e Ferguson voltou a atenção para a tela, curioso para descobrir o porquê de toda aquela empolgação.

O povo de Odessa acena para os marinheiros em greve, do alto da escadaria. Uma mulher rica abre sua sombrinha branca, um garoto sem perna tira o gorro e então a palavra DE REPENTE, e o rosto de uma mulher apavorada enche a tela. Uma multidão descendo a escadaria em disparada, no meio dela o menino sem perna, enquanto a sombrinha passa correndo para o primeiro plano. Música acelerada, música frenética, música mais rápida do que o coração mais acelerado. O menino sem perna no centro, enquanto a multidão desce em torrentes dos dois lados dele. Uma tomada em contraplano dos soldados de branco, no encalço das pessoas que descem a escada. Um close da mulher que se levanta do chão. Os joelhos de um homem se dobram. Outro homem cai. Mais um homem cai. Uma tomada frenética da multidão em disparada, enquanto os soldados descem a escadaria no seu encalço. Close das pessoas que se escondem nas sombras. Os soldados fazem pontaria com seus fuzis. Mais pessoas que se agacham. Tomadas laterais da multidão, tomadas frontais da multidão, e depois a câmera começa a se mover, dispara pelo lado da multidão, em correria. Fuzis atiram do alto. Uma mulher corre com seu filho pequeno, até que o menino de camisa branca tomba de cara no chão. A mãe continua a correr, a multidão continua a correr. O menino de camisa branca chora, sai sangue de sua cabeça, a camisa branca está respingada de sangue. A multidão continua a correr, mas então a mãe se dá conta de que o filho já não está mais com ela e se detém. A mãe dá meia-volta, procura o menino com os olhos. Um close do rosto aflito. O menino que chora de camisa ensanguentada perde os sentidos. A mãe abre a boca de horror e agarra os próprios cabelos. Uma tomada de perto do menino inconsciente, enquanto pernas e mais pernas passam correndo a seu lado. A música continua a pulsar. Um close do rosto horrorizado da mãe. A multidão interminável continua a se derramar escada abaixo. Uma bota pisa na mão estendida do menino. Uma tomada mais de perto da multidão que desce a escadaria em torrentes. Outra bota pisa no menino. O menino ensanguentado rola e seu corpo fica deitado de barriga para cima. Um close extremo dos olhos horrorizados da mãe. Ela começa a avançar, boca aberta, mãos erguidas. A multidão desce em torrentes. A mãe se aproxima do filho caído. Se abaixa para pegá-lo. Uma tomada frenética da multidão em disparada feroz. Uma tomada em contraplano da mãe levando o menino de volta para a escadaria, na direção dos soldados. Sua boca está se mexendo, palavras de revolta saem dela. Uma tomada em plano geral da multidão cerrada. Uma tomada de perto de algumas pessoas agachadas atrás de um muro de pedras, entre elas a Mulher de Pincenê...

Foi assim que começou, e, enquanto Ferguson via a sequência se desdobrar, achou a matança tão medonha que seus olhos acabaram cheios de lágrimas. Era insuportável ver a mãe ser fuzilada pelos soldados do tsar, era insuportável ver a morte da segunda mulher e a viagem horrível do carrinho de bebê descendo pelos degraus da escada, era insuportável ver a Mulher de Pincenê urrando de boca escancarada e uma lente do pincenê espatifada e o sangue jorrando do olho direito, insuportável ver os cossacos sacarem suas espadas para fazer em pedaços o bebê que estava no carrinho — imagens inesquecíveis e, portanto, imagens que continuariam a produzir pesadelos durante cinquenta anos — e, no entanto, ainda que Ferguson se retraísse diante do que estava vendo, ficou empolgado, espantado de ver que tinham conseguido realizar, em forma de filme, algo tão complexo e tão vasto como aquela sequência, a grandeza pura da energia desencadeada por aqueles minutos de filme quase partiu Ferguson ao meio e, quando o filme chegou ao fim, ele estava tão esmagado, tão exaurido, tão envolvido numa confusão de dor e de entusiasmo que até se perguntou se algum outro filme seria capaz de afetá-lo daquele modo, algum dia.

Havia um segundo filme de Eisenstein na programação — Outubro, também conhecido pelo título Os dez dias que abalaram o mundo —, mas quando Andy perguntou se Ferguson queria ver, ele balançou a cabeça e disse que estava esgotado e que precisava de um pouco de ar. Por isso foram para a rua sem saber direito o que iam fazer. Andy sugeriu que voltassem para o apartamento dele para que pudesse emprestar para Ferguson seu exemplar do livro A forma do filme e o sentido do filme, de Eisenstein, e talvez também arranjar alguma coisa para comer, e Ferguson, que não tinha planos para o resto do dia, pensou por que não? Durante a caminhada pela rua 107 Oeste e pela Amsterdam Avenue, o misterioso Andy Cohen divulgou alguns fatos sobre sua vida, antes de tudo o fato de que sua mãe era enfermeira formada, trabalhava no Hospital St. Luke e, naquele dia, estava trabalhando no turno de doze às oito e (felizmente) não estaria em casa quando eles chegassem lá, e também o fato de que ele tinha sido admitido pela Universidade Columbia, mas decidira ir para o City College, porque o ensino era gratuito e sua mãe não podia dar conta das despesas necessárias para mandar o filho estudar em Columbia (e, apesar disso, que sensação mais gostosa saber que ele tinha capacidade para entrar numa universidade da Ivy League), e o fato de que, por mais que adorasse filmes, gostava ainda mais de livros e, se tudo corresse segundo seus planos, ele faria o ph.D. e acabaria como professor de literatura em algum lugar, talvez até — ah! — em Columbia. Enquanto Andy falava e Ferguson ouvia, Ferguson ficou espantado com a enorme distância que os separava intelectualmente, como se a diferença de três anos na idade deles representasse uma viagem de milhares de quilômetros que Ferguson ainda estava por começar, e como se sentia tão ignorante em comparação com o estudante universitário cheio de ideias que andava a seu lado, Ferguson se perguntava por que Andy Cohen parecia se esforçar tanto para fazer amizade com ele. Seria Andy uma daquelas pessoas solitárias que não tinham com quem conversar, pensou Ferguson, uma pessoa tão faminta de companhia que aceitaria qualquer um que aparecesse na sua frente, mesmo que viesse na forma de um aluno do ensino médio que não sabia nada de nada? Se era assim, não fazia muito sentido. Algumas pessoas têm falhas, falhas de caráter ou falhas físicas ou falhas mentais que tendem a isolá-las dos demais, mas Andy não parecia ser uma delas. Era amável e tinha uma aparência relativamente boa, não era destituído de senso de humor e era generoso (por exemplo, a proposta para emprestar o livro para Ferguson) — em suma, alguém que entrava na mesma categoria de gente que seu primo Jim, que era só um ano mais velho do que Andy e tinha muitos amigos, mais amigos do que ele podia contar nos dedos de doze mãos. De fato, agora que Ferguson parou para pensar, o efeito de estar com Andy não era diferente do que sentia quando estava com Jim — a sensação confortável de não ser desdenhado por uma pessoa mais velha do que ele, de andarem juntos pela rua, no mesmo passo, mesmo um sendo mais velho e o outro, mais jovem. Só que Jim era seu primo, e era normal ser tratado assim por uma pessoa da família, ao passo que Andy Cohen, pelo menos por enquanto, era pouco mais do que um estranho.

O futuro professor universitário morava num apartamento pequeno, de dois quartos, no terceiro andar de um prédio de onze andares, em mau estado de conservação, uma das muitas torres residenciais do Upper West Side que tinham entrado em decadência a partir do fim da guerra, antes um modesto local de moradia para membros da classe média, agora ocupado por uma variedade de pessoas que lutavam para ganhar a vida e falavam vários idiomas por trás das portas trancadas de seus apartamentos. E enquanto Andy mostrava para Ferguson os cômodos escassamente mobiliados e bem-arrumados, explicou que ele e a mãe moravam ali desde o terceiro e último ataque do coração do pai, e Ferguson compreendeu que aquele era bem o tipo de lugar que ele e a mãe teriam alugado se não houvesse o dinheiro do seguro de vida para sustentá-los nos anos difíceis que se seguiram à morte do pai. Agora que a mãe tinha se casado de novo e ganhava um dinheiro razoável como fotógrafa, assim como Gil ganhava um dinheiro razoável escrevendo sobre música, eles viviam tão melhor do que Andy e sua pobre mãe enfermeira que Ferguson sentiu vergonha de sua sorte, para a qual nada tinha contribuído, assim como Andy nada contribuíra para sua condição atual, que não se podia dizer que era boa. Não que os Cohen fossem pobres exatamente (a geladeira estava bem abastecida de comida, o quarto de Andy estava lotado de livros em formato de brochura), mas quando Ferguson sentou na pequena cozinha para comer um dos sanduíches de salame que Andy preparou para eles, percebeu que aquela era uma casa onde juntavam Green Stamps* e recortavam cupons de descontos do Journal-American e do Daily News. Gil e sua mãe contavam dólares e tentavam não gastar demais, porém Andy e a mãe dele contavam os centavos e gastavam tudo o que tinham.

Depois do lanche na cozinha, foram para a sala e conversaram um pouco sobre Madame Bovary (que Ferguson não tinha lido), Os sete samurais (que Ferguson não tinha visto) e outros filmes que constavam da programação do cinema Thalia para o mês seguinte. Então aconteceu uma coisa estranha, ou uma coisa interessante, ou uma coisa estranhamente interessante, que em todo caso foi inesperada, ou pelo menos assim pareceu, a princípio, mas depois, quando Ferguson se pôs a pensar um pouco mais sobre aquilo, não foi tão inesperado assim, pois depois que Andy fez a pergunta, Ferguson finalmente entendeu por que ele estava ali.

Estava sentado no sofá de frente para Andy, que estava sentado numa poltrona junto à janela e, depois de uma breve trégua na conversa, Andy se inclinou para a frente, em sua cadeira, olhou para Ferguson por um momento prolongado, e aí, do nada, perguntou: Você já se masturbou, Archie?

Ferguson, que era um onanista dedicado já fazia quase um ano e meio, respondeu prontamente. Claro, disse. Não é assim com todo mundo?

Talvez não com todo mundo, respondeu Andy, mas quase todo mundo. É perfeitamente natural, n’est-ce pas?

Se você for jovem demais para o sexo de verdade, o que mais se pode fazer?

E no que é que você pensa, Archie? Quer dizer, o que é que passa pela sua cabeça quando está se masturbando?

Penso em mulheres nuas e em como seria bom estar com uma mulher nua, em vez de ficar me masturbando no banheiro.

É triste.

Pois é, é um pouco triste. Mas é melhor do que nada.

E alguém já masturbou você? Talvez uma de suas namoradas no colégio?

Não, eu não posso dizer que tive esse prazer.

Eu tive... poucas vezes.

Bem, você é mais velho do que eu. Faz sentido que tenha tido mais experiências.

Não muitas experiências. Só três, na verdade. Mas posso garantir a você que é muito melhor quando outra pessoa faz com a gente do que quando você faz em si mesmo.

Aposto que sim. Sobretudo se a garota sabe o que está fazendo.

Não precisa ser uma garota, Archie.

Mas o que isso quer dizer? Está me dizendo que não gosta de garotas?

Gosto muito de garotas, mas parece que elas não gostam de mim. Não sei por quê, mas nunca tive sorte com elas.

Então, são garotos que masturbam você?

Só um. George, meu amigo em Stuyvesant, que também nunca teve sorte com as garotas. Então, no ano passado, ele resolveu experimentar... só para ver qual era a sensação.

E aí?

Foi ótimo. Nós masturbamos um ao outro três vezes e os dois resolvemos que não importava quem fazia isso com a gente. Garota ou garoto, a sensação é a mesma, e quem é que está ligando se é a mão de um garoto ou de uma garota que segura o pau da gente?

Nunca pensei nisso dessa forma.

Não, eu também não tinha pensado. É o que eu chamaria de uma descoberta crucial.

Mas, então, por que só três vezes? Se você e o George gostaram tanto, por que pararam?

Porque George foi para a Universidade de Chicago e acabou arranjando uma namorada.

Que pena para você.

Acho que sim, mas George não é a única pessoa no mundo. Tem você, Archie, e se você gostar que eu faça isso, eu teria muito prazer de masturbar você. Só para você entender o que estou dizendo.

Mas e se eu não quiser masturbar você? O George podia gostar de fazer isso, mas acho que eu não tenho interesse. Nada contra você, Andy, mas gosto mesmo de garotas.

Eu jamais pediria para você fazer uma coisa que não queira. Seria errado, e não acho legal ficar pressionando os outros. É só que você é um garoto tão bonito, Archie. Eu gosto de ficar com você, gosto de olhar para você e gostaria muito de poder tocar em você.

Ferguson disse para ele ir em frente. Estava curioso, explicou, e Andy podia masturbá-lo, se quisesse, mas só dessa vez, acrescentou, e só se apagassem a luz e baixassem as persianas, pois uma coisa assim tinha de ser feita no escuro, portanto Andy levantou-se e, uma a uma, apagou as luzes e baixou as persianas, e, cumpridas aquelas tarefas, sentou-se no sofá ao lado de Ferguson, ansioso e um pouco em pânico, abriu o zíper da calça do jovem e meteu a mão.

A sensação foi tão boa que Ferguson começou a gemer, em segundos seu pênis mole e nervoso começou a enrijecer e a se tornar gradualmente mais comprido a cada toque da mão do garoto mais velho, que era hábil e profundamente versada no assunto, pensou Ferguson, uma mão que parecia saber exatamente do que uma pica precisava e queria em sua jornada do sono para o despertar e para mais além, o refinado vaivém entre manipulações bruscas e delicadas, é muito bom, disse ele, quando Andy perguntou como se sentia, e então Ferguson abriu a fivela do cinto, baixou a calça e a cueca até o joelho, oferecendo à mão prodigiosa mais espaço para operar, e de repente a outra mão também estava nele, mexendo em seus colhões, enquanto a primeira mão trabalhava no que agora era uma ereção em escala completa, a pica de quinze anos de Ferguson no limite máximo que podia alcançar, e, mais uma vez, Andy perguntou como ele se sentia, mas dessa vez Ferguson só conseguiu gemer uma resposta sem palavras, enquanto o prazer se espalhou pelas coxas e pela virilha e a jornada para o além tinha terminado.

Agora você já sabe, disse Andy.

É, agora Ferguson sabia.

Só dois minutos e meio, disse Andy.

Os melhores dois minutos e meio da vida, pensou Ferguson, e então olhou para baixo, para sua camisa, visível agora que seus olhos tinham se adaptado à escuridão, e viu que ela estava salpicada de manchas de sua ejaculação.

Droga, disse. Olhe só minha camisa.

Andy sorriu, deu uma palmadinha na cabeça de Ferguson, e depois se abaixou e sussurrou em seu ouvido: D. H. Lawrence goza torrencialmente quando seu Balzac está no ponto.**

Ferguson, que nunca tinha ouvido aquela antiga piada do mundo dos universitários, deu uma risada comprida e estridente. Em seguida, Andy recitou outro jogo de palavras sobre o jovem de Kent, outro clássico que ainda não era conhecido por Ferguson, e o jovem inocente, que estava rapidamente perdendo sua inocência, soltou mais uma gargalhada.

Quando a calma voltou, Ferguson levantou as calças e se ergueu do sofá. Bem, disse ele, acho que é melhor passar uma água nessa camisa, e, quando começou a caminhar da sala para a cozinha, desabotoando a camisa, e Andy se levantou para ir atrás dele, Ferguson explicou que a camisa era nova, um presente de aniversário da mãe e do padrasto, e ele tinha de tirar as manchas, senão ia se ver na situação desagradável de ter de responder perguntas que preferia não responder. Agir depressa, disse ele, remover as manchas antes que entranhassem no pano, e destruir as provas.

Quando os dois estavam diante da pia da cozinha, Andy perguntou para Ferguson se ele era do tipo uma-só-e-chega ou tinha energia de reserva para mais uma ou duas rodadas. Ferguson, que tinha esquecido tudo sobre a condição de só uma vez, perguntou o que ele tinha em mente. Uma coisa boa, disse Andy, sem querer revelar o segredo, mas garantiu a Ferguson que iria suplantar os prazeres do sofá da sala e fazer com que ele se sentisse ainda melhor do que estava agora.

As manchas estavam concentradas na parte de baixo da camisa, da metade das abas até uma faixa entre o segundo e o terceiro botão, e Andy lavou as manchas para Ferguson, bem depressa, como se verificou, nem foi preciso esfregar muito, e, quando o trabalho terminou, Andy levou a camisa molhada para seu quarto e a colocou num cabide, que pendurou na maçaneta da porta do armário. Pronto, aí está, disse ele. Novinha em folha.

Ferguson ficou comovido com a doçura daquele pequeno gesto, que mostrava como Andy era dedicado e zeloso, e Ferguson gostou de ser mimado daquela forma, receber a atenção de alguém bondoso o bastante para lavar sua camisa e pendurá-la num cabide para ele, sem falar na bondade de masturbá-lo, sem pedir que ele o masturbasse em troca. Quaisquer escrúpulos ou hesitações que Ferguson pudesse ter sentido no início agora tinham sumido, e, quando Andy sugeriu tirar sua roupa e se deitar na cama, Ferguson, com alegria, tirou a roupa e se deitou na cama, prevendo a próxima coisa boa que estava prestes a ser feita com ele. Compreendia que a maioria das pessoas faria cara feia para o que estava fazendo, que ele havia entrado no perigoso ter­ri­tório dos impulsos proibidos, desviantes, a Terra das Bichas em toda sua gló­ria corruptora e lasciva, e que se alguém soubesse que ele tinha viajado para aquele país pervertido, seria avacalhado e odiado e possivelmente até espancado por causa disso, mas ninguém jamais descobriria, porque ninguém ia contar, e ainda que tivesse de permanecer em segredo, não seria um segredo sujo para ele, e o que ele sentia era a única coisa que importava.

Sua pica cresceu e endureceu outra vez quando Andy passou a mão na pele nua de Ferguson, e, quando Andy pôs a pica na boca e fez o primeiro boquete da vida de Ferguson, ele já tinha deixado muito para trás o interesse de saber se era uma garota ou um garoto que estava fazendo aquilo nele.

Ele não sabia muito bem o que pensar. Inegavelmente, os dois orgasmos que tinham varrido Ferguson de ponta a ponta no apartamento de Andy naquele dia foram os prazeres físicos mais fortes e mais gratificantes que já havia experimentado, mas ao mesmo tempo os meios para aquele fim tinham sido meramente mecânicos, uma operação unilateral em que Andy fez para ele o que ele não tinha nenhum desejo de fazer para Andy. O que tinham feito, portanto, nada tinha a ver com sexo, no sentido estrito da palavra, pelo menos não como Ferguson entendia o sexo, pois para ele o sexo sempre tinha sido uma questão de dois, e não de um só, a expressão física de um estado emocional extremo, o desejo por outra pessoa, e naquele caso não houve nenhum desejo, nenhuma emoção, nada senão os desejos de sua pica, o que significava que aquilo que tinha acontecido com Andy não era sexo, e sim uma forma mais elevada, mais prazerosa, de masturbação.

Será que ele sentia atração por garotos? Até então nunca havia feito a pergunta para si mesmo, mas agora que tinha deixado Andy masturbá-lo e chupá-lo e passar as mãos pelo seu corpo nu, começou a prestar mais atenção nos garotos em seu colégio, sobretudo nos garotos que conhecia melhor e de que gostava mais, o que abrangia todo mundo no time de basquete dos calouros, todos que ele tinha visto pelados nos chuveiros e no vestiário, uma porção de vezes, sem dar ao assunto a menor atenção, mas agora que começava a pensar nisso, tentava imaginar qual seria a sensação de beijar na boca o elegante Alex Nordstrom, um beijo de verdade, com línguas que entram na boca um do outro, ou masturbar o musculoso Brian Mischevski até ele gozar por cima da sua barriga nua, mas nenhuma dessas cenas imaginárias produzia grande reação em Ferguson, não que tivesse nojo ou que ficasse assustado com a ideia de se envolver num sexo de verdade com outro garoto, pois se ficasse claro que ele era mesmo bicha e apenas não soubesse disso até agora, então ele queria saber de uma vez e com segurança, para além de toda dúvida ou possibilidade de engano, mas o fato é que a ideia de abraçar outros garotos não o deixava excitado, não fazia sua pica endurecer, não o enchia de pensamentos sensuais que jorrassem das fontes dos desejos mais profundos. Mas Amy o deixava excitado, e mesmo agora o pensamento no seu primeiro amor perdido, que-nunca-mais-seria-tocado-nem-beijado, continuava a encher Ferguson com o desejo mais profundo, e Isabel Kraft o excitava, sobretudo depois que a viu andando de biquíni vermelho no dia 28 de junho, no passeio de um grupo de dez pessoas para Far Rockaway, e quando pensava nos corpos nus de seus amigos e os comparava com o corpo quase nu de Isabel Kraft, compreendia que as garotas o deixavam excitado e os garotos não.

Mas talvez estivesse se iludindo, pensou, talvez estivesse errado ao pensar que as emoções eram uma parte essencial do sexo, talvez ele devesse considerar as várias formas de sexo sem amor que proporcionavam relaxamento físico, mas nenhuma emoção, de nenhum tipo, a masturbação, por exemplo, ou homens trepando com putas, e em que medida isso era parecido com o que pareceu acontecer naquele momento em que ele esteve com o Andy, sexo sem beijos ou sentimentos, sexo com a exclusiva finalidade de atingir o prazer físico, e talvez o amor não tivesse nada a ver com isso, talvez o amor fosse só uma palavra metida a besta para encobrir as exigências escuras, incontroláveis, da volúpia animal, e se você está no escuro e não pode ver a pessoa que está tocando em você, que diferença faz a maneira como você consegue ter tesão?

Uma pergunta impossível de responder. Impossível de responder porque Ferguson ainda tinha quinze anos de idade, e, se o tempo ia transformá-lo num homem que procuraria a companhia de mulheres ou num homem que procuraria a companhia de homens ou num homem que procuraria a companhia de homens e também de mulheres, ainda era cedo demais para saber quem era ou o que queria no que dizia respeito a sexo, pois nessa altura da vida, que era também aquele determinado ponto da história, aquele momento particular naquele local particular, os Estados Unidos, na primeira metade de 1962, ele estava impedido de fazer sexo com membros do que ele acreditava ser o sexo certo, pois mesmo que conseguisse recuperar as afeições de Amy Schneiderman ou conquistasse, de surpresa, Isabel Kraft, nenhuma das duas garotas admitiria fazer com ele aquilo que Andy Cohen já tinha feito, e agora que seu corpo tinha se transformado no corpo de um homem, ele ainda se via aprisionado em seu mundo de menino ou de virgindade compulsória, mesmo quando já havia chegado ao estágio em que começara a desejar sexo com um fervor que não se equiparava a nenhum outro momento de sua vida, e como o único sexo viável para ele, naquele momento de desejo contrariado, era o sexo com um membro do sexo errado, ele foi ao cinema Thalia no sábado seguinte à tarde para ver Rashomon com Andy Cohen, não porque tivesse estabelecido um vínculo especial com o rapaz do City College que morava com a mãe na Amsterdam Avenue, esquina com a rua 107 Oeste, mas porque as coisas que aquele rapaz fez com ele lhe deram uma sensação tão boa, tão excessiva e extraordinariamente boa, que o sentimento era simplesmente irresistível.

Dessa segunda vez, foram mais depressa para o que interessava, dispensaram as preliminares no sofá da sala e seguiram direto para o quarto de Andy, onde os dois tiraram a roupa, e, embora Ferguson não conseguisse tomar coragem de tocar Andy onde ele queria ser tocado, e de masturbá-lo da mesma forma como Andy o masturbava, ele olhou Andy fazer aquilo consigo mesmo e não se importou quando o esporro foi pousar no seu peito, o que lhe deu uma sensação muito boa, na verdade, o calor, a surpresa e depois o langor da mão de Andy, que se movia lentamente ao esfregar a ejaculação sobre a pele de Ferguson. Agora já era mais algo a dois, era menos uma coisa de um só, tinha mais a ver com deixar para trás a boa e gloriosa punheta em favor de algo mais parecido com sexo de verdade, e, nos três sábados seguintes àquela segunda vez que ficaram juntos, os sábados dos filmes O anjo azul, Tempos modernos e La Notte, Ferguson, pouco a pouco, foi se rendendo às seduções de Andy, cada vez mais arrojadas, já não hesitava mais quando se sujeitava aos estímulos da língua que deslizava para cima e para baixo pelo seu corpo, não tinha mais medo de ser beijado ou de beijar em resposta, não hesitava mais ao segurar o pau de Andy e colocá-lo na boca, pois a reciprocidade era fundamental, Ferguson se deu conta, com dois era infinitamente mais satisfatório do que com um só, e apenas seduzindo o sedutor ele poderia mostrar sua gratidão pelo prazer de ser seduzido.

Andy era mais mole e mais flácido do que Ferguson, era magro e alto, mas sem músculos, um corpo de quem nunca tinha praticado esporte ou feito exercícios, e ele estava fascinado com a rigidez dos músculos de Ferguson, o corpo de basquete que tinha sido construído para si mesmo, levantando pesos e fazendo cem flexões de braço e cem abdominais toda noite, e Andy dizia mil vezes como ele era lindo, enquanto corria a mão pela barriga dura de Ferguson e se maravilhava com sua linha reta, dizia que sua pica era linda, que suas pernas eram lindas, eram tantos lindos que, no segundo dos três últimos sábados que ficaram juntos, Ferguson começou a se sentir oprimido com aquilo, como se Andy falasse dele da maneira como ele (Ferguson) falaria sobre uma garota, que era outro assunto sobre o qual Ferguson começava a ter certas dúvidas, a questão das garotas, pois toda vez que ele mencionava a aparência incrível de Isabel Kraft ou dizia algo sobre como ainda amava Amy Schneiderman, Andy fazia uma careta e depois saía com alguma tirada insultuosa sobre as garotas em geral, dizia que seus cérebros eram geneticamente inferiores ao cérebro dos homens, por exemplo, ou que suas bocetas eram verdadeiras fossas de infecções e doenças, afirmações ridículas e falsas que pareciam sugerir que Andy não tinha dito a verdade, em março, quando declarou que gostava de garotas, pois nem mesmo a própria mãe estava livre de suas censuras amargas, e quando Ferguson ouviu Andy chamar a mãe de vaca triste e burra, e outra vez de nojenta banheira cheia de merda, ele retrucou dizendo que amava sua mãe mais do que qualquer pessoa no mundo, ao que Andy retrucou: Não é possível, menino, não há a menor possibilidade.

Mais tarde, Ferguson percebeu a que ponto havia compreendido mal a situação, desde o início. Achou que Andy não passava de mais um garoto vidrado por sexo, feito ele, sem sorte com garotas e, portanto, disposto a experimentar alguma coisa com outro garoto, dois garotos brincando um com o outro por pura diversão, sacanagem e curtição de adolescentes virgens, mas nem por uma vez passou pela sua cabeça que alguma coisa séria pudesse sair dali. Então, no último sábado que ficaram juntos, minutos antes de Ferguson ter de ir embora, quando os dois estavam lado a lado na cama, ainda nus, ainda suados e sem fôlego, ambos esgotados pelo esforço dos últimos quinze minutos, Andy abraçou Ferguson e disse que o amava, que Ferguson era o amor de sua vida e que nunca ia deixar de amá-lo, nem mesmo depois de morrer.

Ferguson não disse nada. Qualquer palavra seria inconveniente naquele momento, por isso freou a língua e não falou nada. É triste, pensou, muito triste e desmoralizante ter criado essa confusão, mas ele não queria magoar os sentimentos de Andy, revelando a ele os próprios sentimentos, ou seja, que ele não o amava e nunca o amaria enquanto vivesse, e que aquilo era a despedida, e que era uma pena que tivesse de terminar assim, porque a diversão foi muito grande, mas, que diabo, ele não devia ter dito aquilo, e como ele pôde ser tão burro?

Deu um beijo na bochecha de Andy e sorriu. Tenho de ir, disse.

Ferguson pulou do colchão e começou a catar suas roupas no chão.

Andy disse: Mesmo dia, na semana que vem?

O que vai passar?, perguntou Ferguson, enquanto se enfiava nas calças e afivelava o cinto.

Dois filmes do Bergman. Morangos silvestres e O sétimo selo.

Ih!

Ih? Como assim?

Acabei de lembrar. Tenho de ir a Rhinebeck com meus pais no sábado que vem.

Mas você ainda não viu nenhum filme do Bergman. Isso é mais importante do que um dia com papai e mamãe, não é?

É possível. Mas tenho de ir com eles.

Na outra semana, então?

Ferguson, que nessa altura estava calçando os sapatos, murmurou um an-han quase inaudível.

Você não vai vir, não é?

Andy levantou o tronco, em posição sentada, e repetiu as palavras com a voz bem alta: Você não vai vir, não é?

Do que é que você está falando?

Seu puto!, berrou Andy. Porra, eu abro meu coração para você e você não diz nenhuma palavra!

O que quer que eu diga?

Ferguson fechou o zíper de seu agasalho de primavera e partiu em direção à porta.

Cai fora daqui, Archie. Foda-se. Tomara que despenque da escada e morra de uma vez.

Ferguson saiu do apartamento e desceu a escada.

Não morreu.

Em vez disso, foi para casa, entrou no seu quarto e deitou na cama, onde passou as duas horas seguintes olhando para o teto.

* Selos que os fregueses ganhavam em suas compras e depois podiam ser trocados por certos produtos. (N. T.)

** Trocadilho em que o nome do escritor Balzac remete à palavra “ball”, colhão. (N. T.)


3.4

No primeiro sábado de 1962, três dias depois de Ferguson entregar seu ensaio de novecentas palavras sobre Jackie Robinson, ele e os outros seis jogadores do seu time de basquete da Associação Hebraica de Moços viajaram de casa, em West Orange, até um ginásio em Newark para uma partida matinal contra um time da Associação Cristã de Moços, de Central Ward. Havia mais duas partidas programadas naquela quadra, logo depois, e as arquibancadas estavam lotadas por membros daquelas quatro equipes, junto com amigos e parentes dos jogadores daquelas equipes, sem falar do time contra o qual Ferguson e seus companheiros iam encarar na primeira parte da rodada tripla, o que redundou numa multidão de umas oitenta ou noventa pessoas. Exceto os sete garotos brancos do time dos judeus e seu treinador, um professor de matemática chamado Lenny Millstein, todo mundo no ginásio, naquela manhã, era negro. Não era nada fora do comum, pois os garotos de West Orange muitas vezes jogavam contra times só de negros na sua Liga Juvenil do Condado de Essex, mas o que havia de fora do comum naquela manhã em New­ark era o tamanho da plateia, quase cem pessoas, em vez dos dez ou doze de costume. No início, ninguém pareceu prestar muita atenção no que estava acontecendo na quadra, mas quando a partida terminou empatada e teve de ir para a prorrogação, as pessoas que tinham ido para ver as duas outras partidas começaram a ficar inquietas. Até onde Ferguson conseguia perceber, a multidão da plateia não se importava com quem ia ganhar ou perder, eles só queriam que a partida acabasse de uma vez, para que as outras partidas pudessem começar, mas os cinco minutos da prorrogação terminaram com outro empate e o ânimo da plateia subiu da ansiedade para a agitação. Tirem logo esses palhaços da quadra, é isso mesmo, mas se um dos times tinha de ganhar o jogo, então os espectadores iam torcer pelos garotos de Newark, contra os garotos do subúrbio, a favor dos garotos cristãos e contra os garotos judeus, a favor dos garotos pretos e contra os brancos. É muito justo, pensou Ferguson, quando começou a segunda prorrogação, era perfeitamente natural que a plateia torcesse pelo time da casa, era perfeitamente natural que a plateia gritasse das arquibancadas numa partida muito disputada, era perfeitamente natural que a plateia xingasse os jogadores do time visitante, mas a segunda prorrogação terminou em mais um empate e, de repente, tudo pareceu pegar fogo: o ginásio pequeno e caindo aos pedaços, no centro de Newark, estava incendiado por gritos, e uma partida de basquete que não valia nada entre times de garotos de catorze anos se transformou numa competição sangrenta entre nós e eles.

Os dois times estavam jogando mal, os dois times erraram noventa por cento dos arremessos e desperdiçaram um terço dos passes, os dois times estavam cansados e distraídos com a barulheira da plateia, os dois times faziam o melhor que podiam para vencer e, no entanto, jogavam como se quisessem perder. A plateia era unânime em seu apoio a um time contra o outro, eles batiam os pés e urravam em sinal de aprovação toda vez que um jogador de Newark disputava um rebote corpo a corpo e vencia ou interceptava um passe, vaiavam com desdém toda vez que um jogador de West Orange errava um arremesso com salto ou se enrolava com o quique da bola, berravam em êxtase turbulento toda vez que o time de Newark acertava uma cesta, vaiavam e xingavam em prolongados acessos de raiva e desprezo toda vez que o time de West Orange respondia com mais uma cesta. Quando faltavam dez segundos para terminar, Newark vencia por um ponto. Lenny Millstein pediu tempo e, quando os jogadores de West Orange se reuniram em volta de seu treinador, o clamor das arquibancadas era tão alto que ele teve de gritar para ser ouvido, o sábio Lenny Millstein, que não só era um excelente homem do basquete como também uma excelente pessoa, que sabia como lidar com garotos de catorze anos, porque entendia que catorze era a pior idade possível no calendário da vida humana e, portanto, todos que tinham catorze anos eram seres divididos e confusos, nenhum deles era mais criança e nenhum deles ainda era adulto, eles nada tinham de definido na cabeça nem em casa, em seus corpos inacabados, e, na fornalha daquela arena claustrofóbica de guerrilheiros beligerantes, esbravejantes, o homem astuto de cabelo louro e crespo, com sua maneira jocosa e sem disciplina de dirigir uma equipe, estava dando ordens aos gritos e lembrando como eles tinham de agir para vencer a pressão de um ginásio lotado e, antes que os garotos amontoassem as mãos em cima da mão direita de Lenny para o último Vamos lá!, o marido de trinta e quatro anos e pai de dois filhos apontou para uma porta de saída na parede lateral do ginásio e disse para os garotos que, acontecesse o que acontecesse nos próximos dez segundos, ganhassem ou perdessem a partida, no instante em que soasse a campainha do final do tempo do jogo, todos tinham de correr por aquela porta e pular para dentro da caminhonete dele, estacionada na beira da calçada, porque, como ele disse, a situação por aqui está ficando meio doida, e ele não queria que ninguém se machucasse ou morresse no tumulto geral que, com certeza, ia começar no fim da partida. Então as cinco mãos e mais a do treinador se juntaram, Lenny berrou o último Vamos lá!, e Ferguson e os outros aspirantes voltaram correndo para a quadra.

Foram os dez segundos mais demorados da vida de Ferguson, um balé absurdo e em alta velocidade que parecia se desenrolar em câmara lenta, porque ele era o único jogador que não se movia na quadra, plantado em sua posição no alto do garrafão para receber um passe longo e desesperado, se tudo o mais desse errado, a última opção entre várias opções desesperadas, e por essa razão ele pôde ver tudo do local onde estava parado, toda a dança gravada no espaço em linhas fortes, vivas e indeléveis, que voltou à sua memória mil vezes ao longo dos meses e anos seguintes, que nunca deixou de ser lembrada em nenhum momento da vida, o passe de Mike Nadler para Mitch Goodman, numa diagonal para dentro, depois de enganar um defensor de Newark, que pulou e ergueu os braços, o passe cruzado de Goodman para Alan Schaeffer no meio da quadra e, depois, o arremesso de Schaeffer pelo alto, de longe, com a visão encoberta, enquanto o tempo do cronômetro ia expirando, três segundos, dois segundos, um segundo, seguido pelo espanto no rosto balofo de Schaeffer, enquanto a bola traçava sua improvável jornada pelo ar e atravessava direto pela rede, sem sequer tocar no aro, o mais demorado arremesso ao cesto no último segundo de uma partida em toda a história da Liga Juvenil do Condado de Essex, um final para arrasar com todos os outros finais de partida, por todos os tempos.

Ele viu Lenny pulando na direção da porta lateral. Como era o jogador de West Orange mais distante daquela porta, Ferguson saiu correndo antes de todos os outros, começou a correr no instante em que viu a bola atravessar a cesta, não parou nem para congratular Schaeffer ou comemorar a vitória, pois Lenny estava certo quando desconfiou que ia haver encrenca, e agora que Newark tinha sido privada de sua vitória, as pessoas no ginásio estavam enraivecidas. Um urro de choque coletivo para começar, oitenta ou noventa cérebros arrasados pela imagem daquela cesta simples, sortuda, e logo depois metade da multidão estava invadindo a quadra, esbravejando enfurecida e incrédula, uma tropa de garotos de treze, catorze e quinze anos, quatro dúzias de garotos negros prestes a fazer em pedaços meia dúzia de garotos brancos, pela injustiça que tinha sido cometida contra eles e, por alguns poucos instantes, enquanto cruzava a quadra em disparada, Ferguson sentiu-se em perigo real, com medo de que a turba o apanhasse e o jogasse no chão, mas ele conseguiu correr no meio do fervilhante labirinto de corpos, com apenas um murro avulso que atingiu seu braço direito, um murro que doeu e continuou a doer durante as duas horas seguintes, e depois Ferguson estava do lado de fora, correndo na direção da caminhonete de Lenny, debaixo do ar frio daquela manhã lúgubre de janeiro.

Assim terminou a miniatura de conflito racial, que quase aconteceu, mas não chegou a acontecer. Durante todo o percurso de volta para casa, os outros garotos davam vivas, num acesso de alegria maluca, de elevada octanagem, e mil vezes seguidas, aliviando a tensão dos últimos dez segundos da partida, se congratulavam mutuamente por terem escapado da ira da turba vingativa, simulavam entrevistas com Schaeffer, ainda incrédulo e que não parava de rir e rir, era tanto riso que o próprio ar ficou carregado de júbilo, mas Ferguson não tomava parte daquilo, não conseguia participar daquilo, porque não tinha vontade nenhuma de rir, apesar do arremesso de Schaeffer no último segundo ser uma das coisas mais engraçadas e das mais improváveis que ele tinha visto na vida, a questão era que o jogo tinha sido estragado, para ele, pelo que aconteceu depois da partida, e o murro no braço ainda estava doendo, e a razão por que o murro foi dado doía ainda mais do que a dor que até agora palpitava em seu braço.

Além dele, Lenny era a única pessoa no carro que não estava rindo, a única pessoa, além dele, que parecia entender as sombrias implicações do que tinha acontecido no ginásio, e, pela primeira vez em toda a temporada, o treinador repreendeu os garotos por sua partida incompetente e desatenta, desdenhou o arremesso de quinze metros de Schaeffer como um acidente e perguntou por que eles não derrotaram aquele time medíocre por uma diferença de vinte pontos. Os outros tomaram aquelas palavras como um sinal de raiva, mas Ferguson se deu conta de que Lenny não estava zangado, mas preocupado, ou assustado, ou desolado, ou as três coisas ao mesmo tempo, e que a partida não tinha mais nenhuma importância à luz da cena feia que ocorreu após o fim do jogo.

Foi a primeira vez que Ferguson testemunhou a transformação de um grupo de pessoas numa turba enlouquecida e, por mais duro que fosse admitir, a lição irrefutável que tinha aprendido naquela manhã era que uma turba, às vezes, podia exprimir uma verdade oculta que ninguém no mundo se atrevia a expressar por sua conta, naquele caso, a verdade sobre o ressentimento e mesmo o ódio que muitos negros sentiam contra os brancos, que não era menos forte do que o ressentimento e mesmo o ódio que muitos brancos sentiam contra os negros, e Ferguson, que tinha acabado de passar os últimos dias das férias de fim de ano escrevendo um ensaio sobre a coragem de Jackie Robinson e a necessidade da integração total da vida, em todos os aspectos, nos Estados Unidos, não pôde deixar de se sentir preocupado, assustado e desolado diante do que tinha acabado de ocorrer em Newark, naquela manhã, quinze anos depois de Jackie Robinson ter jogado sua primeira partida pelo time de beisebol Brooklyn Dodgers.

Duas segundas-feiras depois daquele sábado em Newark, a sra. Baldwin se apresentou na frente da turma da nona série, na aula de inglês, e anunciou que Ferguson tinha vencido o concurso do melhor ensaio. O segundo lugar foi dado para Amy Schneiderman, por seu impressionante elogio à vida de Emma Goldman, e, céus, como ela estava orgulhosa de ambos, disse a sra. Baldwin, pois os dois premiados tinham saído da mesma turma, a turma dela, uma das treze turmas de inglês da nona série no colégio, e nenhuma vez em todos aqueles anos em que lecionava na Maplewood Junior High School ela tivera o privilégio de ter dois vencedores no concurso anual de redação.

Que bom para a sra. Baldwin, pensou Ferguson, enquanto olhava sua nêmese literária se regozijar com o triunfo duplo, diante do quadro-negro, como se fosse ela quem tivesse escrito os ensaios, e, por mais feliz que Ferguson estivesse por ser o vencedor entre os trezentos e cinquenta alunos da sua série, compreendia que a vitória não tinha importância, não só porque aquilo que a sra. Baldwin julgava ser bom tinha necessariamente de ser ruim, mas também porque ele mesmo tinha se voltado contra seu próprio ensaio desde a debacle no ginásio de Newark, ciente de que aquilo que tinha escrito era otimista e ingênuo demais para fazer qualquer sentido no mundo real, que, embora Jackie Robinson merecesse todos os elogios que Ferguson tinha feito a ele, desmontar a segregação no beisebol não passava de um passo minúsculo numa luta muito mais vasta, que teria de perdurar por muitos anos mais, sem dúvida por mais anos do que o próprio Ferguson iria viver, talvez por mais um ou dois séculos, e que, ao lado do seu retrato oco e idealizado dos Estados Unidos transformados, o trabalho de Amy sobre Emma Goldman tinha ficado muito melhor, não era só mais bem escrito e mais bem pensado, como também mais sutil e, ao mesmo tempo, mais apaixonado, e o único motivo por que ela não ganhou o primeiro lugar era porque o colégio não podia conceder a fita azul a um ensaio sobre uma anarquista revolucionária, que por definição tinha de ser encarada como uma americana completamente antiamericana, uma pessoa tão radical e perigosa para o modo de vida americano que foi deportada para seu país de origem.

A sra. Baldwin continuava sua lenga-lenga na frente da turma, explicava que os três vencedores de cada série leriam seus ensaios em voz alta num auditório diante de todo o colégio, numa sessão programada para sexta-feira à tarde, e quando Ferguson procurou Amy com o olhar — ela estava sentada na primeira fila na sua frente e duas carteiras à direita — ficou admirado ao ver que, quando seus olhos pousaram nas costas dela, exatamente no centro, entre as duas escápulas, imediatamente ela se virou para trás e olhou para ele, como se tivesse sentido seus olhos tocarem sua pele e, mais surpreendente ainda, quando seus olhos se encontraram, ela contraiu o rosto e pôs a língua para fora, para ele, como se quisesse dizer: aqui ó para você, Archie Ferguson, eu é que deveria ter ganhado, e você sabe disso, e quando Ferguson sorriu para ela e enconlheu os ombros, como se dissesse: você tem razão, mas o que é que eu posso fazer?, a careta de Amy se transformou num sorriso e, um momento depois, incapaz de suprimir o riso que se avolumava na garganta, ela soltou um de seus roncos bizarros, um barulho alto e inesperado que forçou a sra. Baldwin a interromper o que estava falando e perguntar: Está tudo bem, Amy?

Tudo certo, sra. Baldwin, respondeu Amy. Foi um arroto. Sei que não é uma coisa bonita para uma moça, mas não consegui evitar. Desculpe.

Todo mundo sempre disse a Ferguson que a vida parecia um livro, uma história que começava na página 1 e avançava ligeiro, até o herói morrer, na página 204 ou 926, mas agora que o futuro que ele tinha imaginado para si estava mudando, sua noção de tempo também estava mudando. O tempo se movia para trás e para a frente, ele se deu conta, e como as histórias nos livros só podiam ir para a frente, a metáfora do livro não fazia nenhum sentido. No máximo, a vida tinha mais afinidade com a estrutura de um jornal tabloide, com grandes acontecimentos, como a irrupção de uma guerra ou um massacre entre gangues de criminosos, na primeira página, e notícias menos importantes nas páginas seguintes, mas a página de trás também trazia uma manchete, a matéria principal do dia no mundo trivial, mas fascinante, dos esportes, e as matérias sobre esportes, quase sempre, eram lidas de trás para a frente, enquanto o leitor virava as páginas da esquerda para a direita, em vez da direita para a esquerda, como fazia com as matérias na parte da frente do jornal, andava ao contrário, como se lesse um texto em hebraico ou em japonês, abrindo caminho com determinação rumo ao meio do jornal, e, uma vez que o leitor chegava à terra de ninguém, onde ficam os anúncios classificados, que não valia a pena ler, a menos que a pessoa quisesse ter aulas de trombone ou comprar uma bicicleta, pulava aquelas páginas até chegar ao território central dos anúncios dos filmes, das resenhas de teatro, da coluna de conselhos de Ann Landers e dos editoriais, a partir de onde, caso o leitor tivesse começado de trás (como em geral fazia Ferguson, o entusiasta dos esportes), poderia seguir adiante até chegar à primeira página. O tempo se movia em duas direções, porque cada passo para o futuro trazia uma lembrança, do passado, e, apesar de Ferguson ainda não ter feito quinze anos, tinha acumulado memórias suficientes para saber que o mundo à sua volta era continuamente moldado pelo seu mundo interior, assim como a experiência que todos tinham do mundo era moldada por suas próprias memórias e, embora todas as pessoas estivessem unidas pelo espaço comum que compartilhavam, suas jornadas através do tempo eram todas diversas, o que significava que cada pessoa vivia num mundo ligeiramente distinto do de todos os demais. A questão era: Que mundo Ferguson habitava agora, e como aquele mundo tinha mudado para ele?

Antes de tudo, ele não ia mais ser médico. Tinha passado dois anos vivendo num futuro remoto, feito de autossacrifício e boas ações imaculadas, um homem completamente distinto de seu pai, que trabalhava não por dinheiro e para a aquisição de automóveis Cadillac de cor verde-limão, mas sim pelo bem da humanidade, um médico que trataria dos pobres e oprimidos criando ambulatórios gratuitos nas piores favelas urbanas, que viajaria para a África para trabalhar em hospitais improvisados em barracas durante epidemias de cólera e guerras civis sangrentas, um personagem heroico para as numerosas pessoas que precisavam dele, um homem de honra, um santo de compaixão e coragem, mas então o perspicaz Noah Marx chegou para rasgar o cenário daquelas alucinações grotescas, que na verdade eram coisa de filmes cretinos de Hollywood sobre médicos e de romances burros e sentimentais sobre médicos, uma visão emprestada de uma vocação futura, que Ferguson não sentia dentro de si, mas sempre tinha visto no mundo exterior, como se estivesse vendo um ator num filme em preto e branco da década de 1930, com uma graciosa enfermeira-companheira-esposa que pairava na beira do quadro, e música emotiva tocando ao fundo, nunca o verdadeiro Ferguson com sua vida interior complexa e angustiante, mas um herói mecânico e de brinquedo, nascido de um desejo de forjar um destino heroico para si, o que provaria que ele, o primeiro e único, era melhor do que qualquer outro homem na face da Terra, e agora que Noah mostrou para ele como estava terrivelmente iludido, Ferguson sentiu-se envergonhado de ter desperdiçado tanta energia com tais sonhos infantis.

Ao mesmo tempo, Noah estava errado ao pensar que Ferguson tinha algum interesse em ser escritor. Era verdade que ler romances era um dos prazeres fundamentais que a vida tinha a oferecer, e também era verdade que alguém tinha de escrever os romances a fim de proporcionar às pessoas a chance de experimentar aquele prazer, mas, no que dizia respeito a Ferguson, nem ler nem escrever podiam ser concebidos como uma atividade heroica e, nesse ponto de sua jornada rumo à vida adulta, a única ambição de Ferguson para o futuro era, nas palavras de seu autor predileto, tornar-se o herói de sua própria vida. Ferguson, nessa altura, tinha lido seu segundo romance de Dickens, todas as 814 páginas daquela jornada árdua, comprida e tortuosa através da vida ficcional do filho predileto do autor, um livro consumido em sua totalidade durante as duas semanas das férias de fim de ano, e agora que sua maratona de leitura tinha chegado ao fim, Ferguson se via em desacordo com seu companheiro fantasma do ano anterior, Holden Caulfield, que, logo na primeira página do livro O apanhador no campo de centeio, tinha espinafrado Dickens quando falou de toda essa porcaria do tipo David Copperfield, pois agora os livros começavam a conversar com livros, na cabeça de Ferguson, e por melhor que J. D. Salinger fosse, não conseguia nem engraxar os sapatos de Charles Dickens, muito menos se o velho mestre estivesse adornado por um par de botinas chamadas Hank e Frank. Não, não podia haver a menor dúvida sobre isso: ler ficção era muito divertido e escrever ficção era muito divertido também (diversão misturada com angústia, luta e frustração, mas diversão, a despeito de tudo isso, pois o prazer de escrever uma frase boa — sobretudo quando começava como uma frase ruim e, pouco a pouco, ia melhorando, depois de ser reescrita quatro vezes — era algo insuperável nos anais das realizações humanas), e qualquer coisa que seja tão divertida e proporcione tanto prazer não podia, por definição, ser considerada heroica. Esqueça a rotina do médico santo, mas havia inúmeras alternativas heroicas que Ferguson podia imaginar para si, entre elas uma carreira de advogado, por exemplo, e já que sonhar acordado era o talento em que nele continuava a suplantar todos os demais, sobretudo sonhar com o futuro, Ferguson passou as várias semanas seguintes imaginando a si mesmo em tribunais onde sua eloquência salvaria da cadeira elétrica homens acusados injustamente e levaria todas as pessoas do júri a sucumbir e cair em prantos depois de cada uma de suas alegações finais.

Então ele fez quinze anos, e, no jantar de aniversário em sua homenagem no Waverly Inn, em Manhattan, uma comemoração que incluiu os pais, os avós, tia Mildred, tio Don e Noah, Ferguson ganhou o presente dos presentes de cada uma das famílias que formavam a sua família, um cheque de cem dólares da mãe e do pai, outro cheque de cem dólares da avó e do avô, e três embrulhos separados do clã Marx, uma caixa com os últimos quartetos de Beethoven da tia Mildred, um livro de capa dura de Noah, intitulado As piadas mais engraçadas do mundo, e quatro livros em brochura de autores russos do século XIX, do tio Don, obras que Ferguson conhecia de ouvir falar, mas ainda não tinha se dado ao trabalho de ler: Pais e filhos, de Turguêniev, Almas mortas, de Gógol, Três novelas, de Tolstói (O patrão e o trabalhador, Sonata a Kreutzer, A morte de Ivan Ilitch), e Crime e castigo, de Dostoiévski. Foi este último título que pôs fim às toscas fantasias de Ferguson sobre se tornar um novo Clarence Darrow, pois ler Crime e castigo o transformou, Crime e castigo foi o raio que caiu do céu e o fez em mil pedaços, e quando ele juntou de novo seus pedaços, Ferguson já não tinha mais dúvidas sobre o futuro, pois se era isso o que um livro podia ser, se isso era o que um romance podia fazer com o coração, a mente e os sentimentos mais profundos de uma pessoa a respeito do mundo, então escrever romances era certamente a melhor coisa que uma pessoa poderia fazer na vida, pois Dostoiévski lhe ensinou que histórias inventadas podiam ir muito além do divertimento e da distração, podiam virar você pelo avesso e abrir o tampo de sua cabeça, podiam ferver e congelar você, deixar você nu em pelo e entregá-lo às rajadas de vento do universo, e desse dia em diante, depois de ter vagado sem rumo durante toda a adolescência, perdido numa neblina de perplexidade cada vez mais densa, Ferguson finalmente sabia para onde estava indo, ou pelo menos sabia aonde queria ir, e nem uma vez em todos os anos seguintes ele recuou em sua decisão, nem mesmo nos anos mais difíceis, quando parecia que podia despencar pela beirada do mundo. Tinha só quinze anos, mas já havia desposado uma ideia e, para o bem ou para o mal, na riqueza e na pobreza, na doença e na saúde, o jovem Ferguson queria mesmo jurar fidelidade àquela ideia, até o fim de seus dias.

O projeto do filme do verão foi cancelado. A avó materna de Noah morreu em novembro, e, agora que tinha ganhado um pouco de dinheiro extra, a mãe dele resolveu gastar uma parcela daquilo no aprimoramento da educação do filho. Sem consultar Noah, matriculou-o num longo programa de verão para alunos estrangeiros do ensino médio, em Montpellier, na França — oito semanas de imersão total na língua francesa, no fim das quais, se o livreto promocional sobre o programa estivesse dizendo a verdade, ele voltaria para Nova York falando com a fluência de um nativo francês, capaz de comer caracóis. Três dias depois que Ferguson terminou de ler Crime e castigo, Noah ligou para anunciar a mudança de planos, rogou pragas contra a mãe, que tinha dado uma rasteira nele, mas o que ele podia fazer, disse, era pequeno demais para ser o senhor da própria vida, e por ora a rainha louca era quem dava as ordens. Ferguson encobriu sua frustração dizendo a Noah que ele era um sortudo, que se estivesse no lugar dele daria pulos de alegria com aquela oportunidade de viajar e, quanto à sua história, bem, era uma pena, mas a realidade era que ainda não tinham nenhuma câmera para filmar e nem tinham começado a rascunhar um roteiro, portanto, não era nada demais, e pense só no que estava à espera dele na França — garotas holandesas, garotas dinamarquesas, garotas italianas, todo um harém de beldades do ensino médio só para ele, já que eram poucos os garotos que procuravam aqueles programas, e, com uma competição reduzida no seu caminho, ele com certeza viveria a grande temporada de sua vida.

Ferguson ia sentir falta de Noah, é claro, uma falta tremenda, pois o verão sempre foi a estação em que os dois podiam ficar juntos o dia inteiro e todos os dias durante oito semanas completas, e um verão sem o seu amigo-primo harpista nervoso já não era mais um verão de verdade — não passava de um comprido intervalo de tempo marcado por temperatura alta e um tipo novo de solidão.

Felizmente, o cheque de cem dólares não era o único presente que seus pais deram para ele em seu aniversário de quinze anos. Também ganhara o direito de viajar para Nova York sozinho, uma liberdade nova que ele pretendia exercer com a maior frequência possível, pois a bela, mas desoladora, cidade de Maplewood tinha sido construída com o propósito exclusivo de levar as pessoas a querer ir embora, e com outro mundo, mais amplo, subitamente acessível, Ferguson caía fora quase todo sábado naquela primavera. De onde ele morava, havia duas maneiras de viajar para Manhattan: pelo ônibus 107, que partia de hora em hora da rodoviária em Irvington e deixava os passageiros no prédio da Port Authority, na esquina da Oitava Avenida com a rua 40, ou pelo trem de quatro vagões da companhia ferroviária Erie Lackawanna Railroad, que partia da estação de Maplewood e parava no terminal de Hoboken, onde havia duas opções para terminar a viagem: metrô pela linha de Hudson ou pelas barcas no rio Hudson. Ferguson preferia a solução trem-barca, não só porque podia caminhar até a estação em cerca de dez minutos (ao passo que ir à rodoviária em Irvington exigia que alguém lhe desse carona), mas também porque ele adorava andar no trem, uma das mais antigas composições ainda em funcionamento nos Estados Unidos, com vagões fabricados em 1908, cascos de metal verde-escuros que evocavam os primórdios da revolução industrial, e dentro do vagão as antigas poltronas de palhinha e espaldares que podiam ser virados para os dois lados, o antiexpresso de baixa velocidade que chocalhava, sacudia e entoava uma torrente de gritos enquanto as rodas trepidavam sobre os trilhos enferrujados, e que felicidade era ficar sentado sozinho num daqueles vagões, olhando pela janela para a paisagem medonha e degradada do norte de Nova Jersey, pântanos, rios, pontes de ferro levadiças, contra o pano de fundo de prédios de tijolo caindo aos pedaços, vestígios do velho capitalismo, uma parte deles ainda em funcionamento, outra parte em ruínas, tão feios que Ferguson achava aquilo inspirador, da mesma forma como os poetas do século XIX achavam inspiração nas ruínas dos montes gregos e romanos, e, quando não estava olhando pela janela para o mundo desmoronado à sua volta, lia seu livro do momento, os romances russos que não foram escritos por Dostoiévski, Kafka pela primeira vez, Joyce pela primeira vez, Fitzgerald pela primeira vez, e depois ficava de pé na varanda da barca, se o tempo estivesse pelo menos próximo do suportável, o vento no rosto, o motor vibrando na sola dos pés, as gaivotas rodando acima dele, uma viagem tão comum, no final das contas, uma viagem feita por milhares de pessoas que iam para o trabalho toda manhã, de segunda à sexta-feira, só que era sábado e, para o Ferguson de quinze anos, era um verdadeiro romance viajar rumo à parte baixa de Manhattan daquela maneira, a melhor coisa que ele poderia estar fazendo — não era só que estava deixando sua casa para trás, mas estava indo para aquilo, para tudo aquilo.

Ver Noah. Falar com Noah. Discutir com Noah. Rir com Noah. Ir ao cinema com Noah. Os sábados na Perry Street, almoçar no apartamento com tia Mildred e tio Don, depois sair com Noah e ir para onde quisessem, o que muitas vezes era para lugar nenhum, os dois ficavam perambulando pelas ruas de West Village, enquanto olhavam boquiabertos para as garotas bonitas e discutiam sobre o destino do universo. Agora, tudo estava decidido. Ferguson ia escrever livros, Noah ia dirigir filmes, e assim os dois falavam sobretudo a respeito de livros e filmes e dos numerosos projetos em que iam trabalhar juntos ao longo dos anos. Noah era um Noah diferente daquele que Ferguson conhecera quando pequeno, mas ainda tinha aquele lado irritante que Ferguson encarava como seu lado inteligente-tapado, tipo Irmãos Marx, suas turbulentas exibições de anarquismo exuberante, que desembocavam em conversas nonsense com verdureiros (Ei, meu camaradinha, o que é que há com a sua berinjela, não está nem um pouco gelada) ou com garçonetes em cafeterias (Meu anjo, antes de nos trazer a conta, por gentileza, rasgue e jogue no lixo para que a gente não precise pagar, está bem?) ou com bilheteiras de cinema em suas cabines de vidro (Diga-me alguma coisa de bom sobre o filme que está passando, senão vou tirar você do meu testamento), tagarelice provocativa, que só servia para mostrar que ele podia ser uma verdadeira praga, mas aquele era o preço a se pagar por ser amigo de Noah, ficar ao mesmo tempo admirado e sem graça por causa dele, era como andar na companhia de um menininho pentelho, e então, sem avisar, ele fazia uma repentina cara séria e começava a falar de Reflexões sobre a guilhotina, de Albert Camus, e quando você dizia que não tinha lido nada de Albert Camus, Noah corria para uma livraria e roubava um romance de Camus para você, que você, é claro, não aceitava, e consequentemente se via na posição embaraçosa de ter de dizer para ele entrar na loja de novo e recolocar o livro na estante, o que, é claro, fazia você se sentir um santinho hipócrita, mas afinal ele era seu amigo, o melhor amigo que você já teve, e você o adorava.

No entanto, nem todo sábado era um sábado de ir a Perry Street. Nos finais de semana que Noah ficava com a mãe, no Upper West Side, nem sempre era possível, para Ferguson, encontrar-se com ele, por isso arranjava outros programas para aqueles sábados de apagão, duas vezes viajou para Nova York com um amigo de Maplewood chamado Bob Smith (sim, existia uma pessoa chamada Bob Smith), uma vez foi sozinho visitar os avós e, várias vezes, foi com Amy, na condição de Amy Ruth Schneiderman, que tinha um gosto especial de ver exposições de arte, e como Ferguson recentemente tinha descoberto que gostava muito de ver exposições de arte, os dois passavam aqueles sábados andando por museus e galerias, não só os grandes aonde todo mundo ia, o Met, o Modern, o Guggenheim, mas os menores, como a galeria Frick (a predileta de Ferguson) e o centro de fotografias, na parte central da cidade, e tudo isso, mais tarde, levava os dois a ficarem falando por horas, Giotto, Michelangelo, Rembrandt, Vermeer, Chardin, Manet, Kandinsky, Duchamp, tanta coisa para assimilar e refletir, ver quase tudo pela primeira vez, por vezes seguidas, o choque perturbador da primeira vez, mas a experiência mais memorável que os dois compartilharam não ocorreu num museu, mas no espaço mais confinado de uma galeria, a Galeria Pierre Matisse no Fuller Building na rua 57 Leste, onde viram uma exposição de esculturas recentes e desenhos de Alberto Giacometti, e ficaram tão fascinados com aquelas obras misteriosas, táteis e solitárias que permaneceram ali por duas horas e, quando as salas começaram a esvaziar, o próprio Pierre Matisse (o filho de Henri Matisse!) reparou nos dois jovens na sua galeria e se aproximou deles, todo sorridente e cheio de bom humor, feliz de ver que dois novos convertidos tinham surgido naquela tarde, e, para grande surpresa de Ferguson, ficou ao lado deles e conversou durante quinze minutos, contou histórias de Giacometti e do seu ateliê em Paris, sobre sua própria transplantação para os Estados Unidos, em 1924, e a fundação de sua galeria em 1931, sobre os anos difíceis da guerra, quando tantos artistas europeus ficaram sem recursos, grandes artistas como Miró e tantos outros, e como não teriam conseguido sobreviver sem a ajuda de seus amigos nos Estados Unidos, e depois, num impulso, Pierre Matisse os levou para uma sala nos fundos da galeria, um escritório com escrivaninhas, máquinas de escrever e armários de livros e, um por um, retirou das prateleiras daqueles armários mais ou menos uma dúzia de catálogos das exposições anteriores de Giacometti, Miró, Chagall, Balthus e Dubuffet e entregou para os dois adolescentes perplexos, dizendo: Vocês dois são o futuro e quem sabe isto aqui vai ajudar na sua educação?

Saíram de lá boquiabertos e sem palavras, levando os presentes do filho de Henri Matisse, enquanto forçavam as pernas a andar pela rua 57, caminhando depressa, porque eles eram o futuro, porque seus corpos pediam que andassem ligeiro depois de tal encontro, depois de serem brindados por um gesto de tão inesperada bondade, e assim foram caminhando no meio da rua ensolarada e lotada de gente, tão depressa quanto dois pedestres podiam andar sem começar a correr, e, depois de algumas centenas de metros, Amy finalmente interrompeu o silêncio e declarou que estava com fome, esfomeada foi a palavra que usou, como fazia muitas vezes, pois Amy não podia ficar simplesmente com fome, como as outras pessoas, ela ficava morta de fome, com um apetite voraz, podia comer um elefante ou um bando de pinguins, e agora que ela falava em encher a barriga com alguma coisinha gostosa, Ferguson se deu conta de que ele também queria comer e, como estavam andando pela rua 57, sugeriu que fossem ao restaurante de máquinas automáticas Horn & Hardart, entre a Sexta e a Sétima Avenidas, não só porque ficava perto, mas também porque, numa viagem anterior à cidade, ele e Amy tinham concluído que o Horn & Hardart era o melhor lugar para comer em Nova York.

Não que a comida barata e comum servida ali pudesse ser classificada como esplêndida, as tigelas de sopa de feijão Yankee, os bifes de Salisbury com purê de batata mergulhado em molho de carne, as fatias grossas de torta de morango, não, o que os atraía era o lugar em si mesmo, a atmosfera de parque de diversões daquele vasto empório de vidro e metal cromado, a novidade de comer comida automática, a eficiência americana do século XX em sua encarnação mais louca e mais deliciosa, cozinha saudável e higiênica para as massas famintas, e como era gostoso ir ao caixa, carregar uma pilha de moedas e depois percorrer o balcão olhando para dúzias de ofertas em seus recipientes de vidro, vitrines que entrincheiravam diminutos compartimentos de comida, cada um com uma porção individual feita especialmente para você, e depois de escolher seu sanduíche de presunto com queijo ou sua fatia de bolo inglês, você introduzia na fenda o número adequado de moedas e a janelinha abria, e pronto, o sanduíche era seu, um sanduíche consistente, confiável, fresquinho, mas antes de sair para procurar uma mesa para comer, havia o prazer adicional de ver a presteza com que o compartimento era preenchido de novo por mais um sanduíche, um sanduíche idêntico ao que você tinha acabado de comprar, pois havia pessoas ali atrás, homens e mulheres de uniforme branco que tomavam conta das moedas e reabasteciam com mais comida os espaços vazios, que trabalho devia ser aquele, pensava Ferguson, e depois a caçada de uma mesa vaga, carregar sua refeição ou seu lanche para lá e para cá, no meio do bando de nova-iorquinos os mais diversos, comendo e bebendo suas comidas e bebidas automáticas, muitos deles já velhos, que ficavam ali sentados durante horas, todo dia, tomando xícaras e mais xícaras de café, bebido muito lentamente, os velhos da esquerda varrida do mapa que, depois de quarenta anos, ainda discutiam sobre onde a revolução tinha dado errado, a revolução natimorta que, antes, parecia iminente e agora não passava de uma memória do que nunca tinha acontecido.

Então Ferguson e Amy entraram no restaurante automático Horn & Hardart perto do fim daquela tarde esplendorosa para beliscar alguma coisa, para folhear os catálogos finos e ricamente ilustrados das exposições anteriores da Galeria Pierre Matisse e discutir o que os dois sentiam que tinha sido um bom dia, e na verdade um dia muito bom. Precisava de mais dias como aquele, Ferguson disse para si mesmo, mais dias bons, para contrabalançar o efeito de tantos dias duros, nos meses anteriores, os dias sem basquete, para começar, uma decisão que tinha confundido a tal ponto seus amigos que ele até parou de tentar explicar, pois a experiência de autonegação estava se revelando muito mais difícil do que ele havia imaginado, abrir mão de algo que ele amara tão completamente durante tantos anos, uma coisa que fazia parte dele de forma tão completa que seu corpo, às vezes, doía só de segurar um bastão nas mãos, só de pôr as luvas e brincar de beisebol com alguém, sentir os cravos da chuteira se fincarem na terra, quando ele corria para a primeira base, mas agora não podia voltar atrás, teria de manter a promessa que tinha feito, ou então admitir para si mesmo que a morte de Artie não tinha significado nada, não tinha ensinado nada para ele, o que transformaria Ferguson numa pessoa tão fraca e tão sem heroísmo que podia muito bem pedir para ser transformado num cachorro, num vira-lata rastejante que mendigava migalhas e lambia o próprio vômito no chão, e se não fossem suas escapadas semanais para a cidade, que o mantinham longe dos campos onde os amigos jogavam todo sábado, quem sabe se ele não desistiria e se deixaria transformar naquele cachorro?

Pior ainda, a primavera sem basquete era também a primavera sem amor. Ferguson achou que estava enamorado de Linda Flagg, mas depois de persegui-la durante o outono e o inverno, decidido a conquistar a afeição da mais enigmática e fascinante destruidora de corações de Maplewood, que ora o encorajava, ora o rechaçava, ora o deixava beijá-la, ora não o deixava beijá-la, ora lhe dava esperança, ora tomava de volta essa esperança, Ferguson chegou à conclusão de que não apenas Linda Flagg não o amava como ele também não a amava. O momento da revelação ocorreu num sábado, no início de abril. Depois de semanas de esforço, finalmente persuadiu Linda Flagg a acompanhá-lo em uma de suas viagens para Manhattan. O plano era simples: almoço no restaurante automático, uma caminhada pela cidade até a Terceira Avenida, e depois uma ou duas horas no escuro, vendo A solidão de uma corrida sem fim, filme que Jim Schneiderman vinha insistindo para ele ver, e, se, durante a projeção do filme, Ferguson conseguisse segurar a mão de Linda, ou beijar sua boca, ou passar a mão na sua perna, tanto melhor. Acabou que foi um dia triste, encharcado por chuviscos e por chuvaradas intermitentes, mais frio do que gostariam, mais escuro do que o normal, naquela época do ano, mas no início da primavera nada era mesmo normal, disse Ferguson, enquanto andavam para a estação debaixo dos guarda-chuvas abertos e se esquivavam das poças que se formavam na calçada, e ele lamentava pela chuva, prosseguiu Ferguson, mas não era culpa sua, na verdade, pois tinha escrito uma carta para Zeus na semana anterior pedindo um dia ensolarado, e como ele poderia saber que, no Monte Olimpo, estavam no meio de uma greve dos correios que já durava um mês? Linda riu do comentário frívolo, ou riu porque estava se sentindo tão inquieta e esperançosa quanto ele, o que parecia sugerir que estavam indo ao encontro de um começo promissor, mas depois embarcaram no trem da Erie Lackawanna para Hoboken e Ferguson compreendeu que nada ia dar certo naquele dia. O trem estava sujo e desconfortável, disse Linda, a paisagem era deprimente, o dia estava chuvoso demais para pegar a barca (embora o céu estivesse começando a limpar), o metrô de Hudson estava ainda mais sujo e mais desconfortável do que o trem, o restaurante automático era interessante, mas dava medo, ainda mais com todos os párias sociais que entravam e saíam arrastando os pés, a mulher negra de cento e trinta quilos sentada sozinha naquela mesa ali na frente falando sozinha sobre o menino Jesus e o fim do mundo, o velho meio cego e de barba arrepiada que lia um jornal amarrotado de três dias antes, e com lupa, o casal de velhos, logo ao lado deles, que mergulhava saquinhos de chá velhos e usados em xícaras cheias de água quente, todo mundo que entrava ali ou era pobre ou estava doido, e que tipo de cidade era aquela que permitia que gente doida andasse solta pelas ruas, disse ela, e você, Archie, o que faz você pensar que Nova York seja tão melhor do que qualquer outro lugar, quando na verdade é tão nojenta?

Não era culpa dela, pensou Ferguson. Era uma garota encantadora, inteligente, que foi criada numa redoma hermeticamente lacrada, feita de confortos e refinamentos de classe média alta, um mundo incolor e racional de gramados arrumadinhos na frente de casa e de quartos com ar-condicionado, e se ver, de repente, cara a cara com a sordidez e o tumulto da vida de uma cidade grande encheu Linda Flagg de uma repulsa instintiva, uma reação física que ela não era capaz de controlar, como se estivesse respirando um cheiro ruim e, de repente, sentisse um enjoo na barriga. Ela não podia evitar, Ferguson repetiu para si mesmo e, portanto, não era culpa dela, mas que decepção descobrir que ela era tão pouco disposta a aventuras, e como era suscetível, como se deixava abalar por aquilo que não lhe era familiar. Difícil. Era essa a palavra que ele usava, muitas vezes, para defini-la para si mesmo e, sem dúvida, a Linda Flagg vai-não-vai tinha tornado difícil a vida de Ferguson nos últimos seis meses, mas ela não tinha nada de burra nem de vazia — estava só assustada, era só isso, com medo da irracionalidade de cidades vastas e repulsivas e, sem dúvida, também com medo de garotos, muito embora aquele seu rosto bonito fosse uma isca a que poucos garotos podiam resistir. Mas não era insípida, não deixava de ter sua sagacidade e sua reflexão, pois tinha a cabeça boa e sempre falava com inteligência sobre os livros que lia nas aulas de inglês, e agora que Ferguson tinha envolvido o cotovelo dela com sua mão e a guiava na direção leste pela rua 57, ele se perguntava se o estado de espírito de Linda não ia começar a melhorar quando entrassem no cinema e sentassem para ver o filme. O cinema ficava do outro lado da Park Avenue, num dos bairros mais ricos, menos sujos, de Manhattan, e o cinema era considerado bom, e, como Linda tinha gosto para bons livros e faro para boa arte, talvez um bom filme a deixasse num estado de espírito melhor e, quem sabe, alguma coisa boa ainda pudesse ser arrancada daquele dia podre que, até ali, estavam vivendo.

Sem dúvida, o filme era bom, tão bom e tão absorvente que Ferguson logo esqueceu a ideia de passar a mão na perna de Linda ou de tentar beijar sua boca, mas A solidão de uma corrida sem fim era a história de um rapaz, e não de uma moça, o que significava que tinha muito mais apelo para Ferguson do que para Linda, e muito embora ela afirmasse que era um filme excelente, não ficou tão empolgada quanto Ferguson, que achou que era um dos melhores filmes já feitos, uma obra-prima. Quando as luzes acenderam, os dois caminharam para uma lanchonete Bickford’s na Lexington Avenue e pediram café e rosquinhas no balcão (o café era um prazer novo na vida de Ferguson e ele bebia café toda vez que podia, não só porque gostava do sabor, mas também porque beber café lhe dava a sensação de ser mais adulto — como se cada gole que tomava daquela bebida quente e marrom-escura o levasse mais para longe da prisão da infância), e ali sentados no meio de pessoas menos gordas, menos pobres, menos loucas do que aquelas que frequentavam o Horn & Hardart’s, continuaram a conversar sobre o filme, em particular a sequência final, a corrida de longa distância no reformatório onde o herói (representado por um jovem ator britânico chamado Tom Courtenay) deveria vencer o troféu para seu pomposo diretor (representado por Michael Redgrave), mas acaba mudando de ideia no último minuto e para na pista, deixando que o bonitão rico da escola chique (representado por James Fox) vença. Para Ferguson, a decisão de perder de propósito era um magnífico gesto de desafio, um emocionante gesto de revolta contra a autoridade, e seu coração frio e indignado se sentiu aquecido ao ver aquele descarado Foda-se retratado na tela, pois, ao insultar o diretor daquela forma, o herói disse não para o mundo corrupto e envelhecido que o diretor do reformatório representava, o decadente sistema britânico de recompensas vazias, punições arbitrárias e injustas barreiras de classe, e ao fazer isso, o herói encontrou sua honra, sua força, sua humanidade. Linda voltou os olhos para o alto. Que absurdo, disse ela. Em sua opinião, perder a corrida de propósito foi um passo tolo, a pior coisa que o herói podia fazer, pois a corrida de longa distância era o passaporte para sair do inferno que era aquele reformatório, e agora ele seria castigado de novo, iam arrancar seu couro, e teria de recomeçar tudo desde o início, e qual era o sentido, perguntou Linda, ele obteve uma vitória moral, mas ao mesmo tempo arruinou sua vida, e como alguém podia chamar isso de magnífico?

Não que Linda estivesse errada, disse Ferguson para si mesmo, mas ela estava defendendo a conveniência contra o valor, e ele detestava discussões desse tipo, a abordagem prática da vida, usar o sistema para derrotar o sistema, jogar obedecendo a um bando de regras podres, porque não havia outras regras em uso, ao passo que tais regras precisam ser destruídas e reinventadas, e como Linda acreditava nas regras do mundo deles, seu mundinho suburbano de ir em frente e tocar a vida e arranjar um bom emprego e casar com alguém que pensava da mesma forma que você e aparar a grama e dirigir o carro novo e pagar os impostos e ter 2,4 filhos e não acreditar em nada a não ser no poder do dinheiro, Ferguson compreendeu que seria inútil prolongar a discussão. Linda tinha razão, é claro, mas ele também tinha razão, e de repente Ferguson já não a queria mais.

Dali em diante, Linda foi expurgada da lista de possibilidades, e, sem nenhuma outra possibilidade à vista, Ferguson se preparou para o que prometia ser o final triste e solitário de um ano triste e solitário. Muitos anos depois daquele ano, quando já era bem adulto, Ferguson recordava aquela fase de sua adolescência e pensava: Exílio dentro de casa.

Sua mãe ficou preocupada com ele. Não só por causa da crescente hostilidade de Ferguson com relação ao pai (com quem raramente falava, se recusava a entabular qualquer conversa, e só reagia às perguntas de Stanley com respostas emburradas, de uma ou duas palavras), não só porque o filho persistisse em penosas jornadas bimestrais até New Rochelle para jantar com os Federman (sobre quem ele nada contava quando voltava para casa, alegando que era apenas sinistro demais falar sobre aquelas pessoas destruídas e angustiadas), não só porque ele havia largado o beisebol de modo abrupto e inesperado (alegando que agora o basquete já era o suficiente para ele, e que o beisebol tinha se tornado chato, o que não podia ser verdade, Rose sentia, pois, depois do começo da temporada em abril, ela via como Ferguson lia com cuidado as tabelas nos jornais da manhã, examinava os números com a mesma sofreguidão que sempre havia demonstrado no passado), e não só porque o filho, antes tão popular, parecia não ter namorada nenhuma naquele momento e cada vez ia a menos festinhas no fim de semana, mas sim por causa de todas essas coisas juntas e, sobretudo, porque havia algo novo nos olhos de Ferguson, um olhar voltado para dentro e um distanciamento que nunca antes tinha aparecido em seus olhos, desde que ela o conhecia, e além de todas essas preocupações sobre a condição da saúde emocional do filho, havia algumas novidades que ela precisava compartilhar com ele, notícias nada boas, e portanto era necessário que os dois sentassem frente a frente e conversassem.

Ela deu um jeito para que fosse numa quinta-feira, que era o dia de folga de Angie Bly, e como o pai de Ferguson não devia voltar para casa antes de dez ou dez e meia, haveria tempo de sobra para que os dois jantassem a sós e, depois, travassem uma longa conversa. Cautelosa para dar o primeiro passo na conversa cara a cara com Ferguson depois do jantar e com receio de fazer perguntas invasivas, o que provavelmente o levaria a se fechar numa concha e sair da sala, Rose o segurou ali à mesa, dando, primeiro, as más notícias sobre Liz, a mãe de Amy, que tinha descoberto que estava com câncer, uma forma de câncer especialmente agressiva que iria dar cabo de sua vida em questão de meses, talvez até de semanas, câncer no pâncreas, sem esperança, sem cura, nada pela frente, a não ser dor e morte certa, e a princípio foi difícil para Ferguson assimilar o que a mãe estava dizendo, pois Amy não tinha deixado escapar nem uma sílaba sobre o estado de saúde da mãe, o que era completamente bizarro, pois Amy era sua amiga íntima e confidenciava a ele toda sorte de preocupação, temor e incerteza aflitiva, por isso, antes que Ferguson pudesse começar a se aprofundar nas palavras “câncer no pâncreas”, te­ve de descobrir como a mãe havia obtido, em caráter particular, aquela informação, a qual a própria filha da sra. Schneiderman parecia desconhecer por completo. Dan me contou, disse a mãe, o que serviu apenas para aumentar a confusão do filho, pois por que um homem dividiria uma notícia como aquela com uma amiga, antes de falar com a própria filha, mas aí a mãe de Ferguson explicou que Dan queria que os filhos soubessem ao mesmo tempo, sentindo que Amy e Jim juntos conseguiriam encarar a notícia melhor do que separadamente e, portanto, ele estava esperando que Jim viesse de Boston no dia seguinte, à tarde, para falar com os dois ao mesmo tempo. Liz tinha ficado no hospital vários dias, acrescentou Rose, mas os dois filhos achavam que ela estava em Chicago, visitando a mãe.

Pobre Amy, pensou Ferguson. Estava em conflito com a mãe havia anos e agora a mãe ia morrer, a questão não resolvida entre as duas jamais teria solução. Como seria difícil para ela, muito mais difícil do que ter de enfrentar a morte de alguém com quem você sempre se deu bem, alguém que você adorou sem reservas, pois nesse caso pelo menos você podia levar dentro de si a memória daquela pessoa com uma ternura duradoura, até com felicidade, uma espécie dolorosa e terrível de felicidade, ao passo que Amy jamais seria capaz de pensar na mãe sem sentir remorsos. Uma mulher tão desconcertante, a sra. Schneiderman, uma presença tão estranha para Ferguson desde o dia em que a conheceu, quando garoto; um bolo contraditório de forças e fraquezas que abrangia as virtudes de um bom cérebro, gestão habilidosa dos assuntos domésticos, opiniões esclarecedoras sobre questões políticas (tinha se especializado em história, em Pembroke) e uma inabalável devoção ao marido e aos dois filhos, mas ao mesmo tempo havia algo de nervoso e frustrado nela, a sensação de que havia deixado de fazer algo que deveria ter feito na vida (algum tipo de carreira, talvez, um emprego que teria sido importante o suficiente para transformá-la numa pessoa influente), e como ela havia se conformado com o emprego menos prestigioso de dona de casa, parecia determinada a provar para o mundo que era mais capaz do que todo mundo, sabia mais do que todo mundo, não só sobre algumas coisas, mas sobre tudo, e a verdade era que ela, de fato, sabia uma assombrosa quantidade de coisas, que abrangiam um enorme espectro de assuntos, e era, sem sombra de dúvida, o ser humano mais bem informado que Ferguson tinha visto na vida, mas o problema em ser um sabe-tudo do tipo nervoso e frustrado é que a pessoa acha impossível ficar sem corrigir os outros quando dizem alguma coisa que você sabe que está errado, algo que não parava de acontecer, no caso da sra. Schneiderman, pois ela era a única pessoa na sala que sabia quantos miligramas de vitamina A havia numa cenoura de tamanho médio, era a única pessoa que sabia quantos votos Roosevelt tinha recebido na eleição presidencial de 1936, era a única pessoa que sabia qual a diferença, em cavalos-vapor, entre um Chevy e um Impala 1960 e um Buick Skylark 1961, e ainda que ela tivesse sempre razão, era de deixar qualquer um maluco ficar a seu lado por muito tempo, pois um dos defeitos da sra. Schneiderman era falar demais, e Ferguson muitas vezes se perguntava como o marido e os dois filhos conseguiam suportar viver debaixo do bombardeio daquelas palavras todas, aquela lenga-lenga incessante que não conseguia fazer nenhuma distinção entre coisas importantes e coisas sem importância, uma conversa que era capaz de impressionar pela inteligência e perspicácia ou então matar os outros de tédio, com sua completa falta de relevância, como quando Amy e Ferguson estavam no banco de trás do carro dos Schneiderman, certa noite, a caminho do cinema, e a sra. Schneiderman passou meia hora descrevendo para o marido como ela havia arrumado de novo as roupas nas gavetas do armário do quarto, conduzindo o marido, pacientemente, passo a passo, por todas as decisões que ela havia tomado para chegar ao novo sistema, por que as camisas de manga comprida tinham de ficar num determinado lugar e as de manga curta, em outro, por que as meias pretas tinham de ficar separadas das azuis, que, por sua vez, tinham de ficar separadas das meias brancas que ele usava para jogar tênis, por que suas camisetas sem manga, mais numerosas, tinham de ficar guardadas em cima e não embaixo das camisetas com gola em V, por que as cuecas samba-canção tinham de ficar à direita das cuecas comuns, e não à esquerda etc. etc., cada detalhe irrelevante empilhado sobre outro detalhe irrelevante, e na hora em que chegaram ao cinema, depois de viverem dentro das gavetas daquele armário por meia hora, metade de uma das preciosas vinte e quatro horas que constituem um dia, Amy estava apertando os dedos com força no braço de Ferguson — sem poder gritar e, portanto, gritando em código, com os dedos cravados bem fundo. Não que a mãe dela fosse inconveniente ou descuidada, Ferguson dizia para si mesmo. No máximo, se podia dizer que ela cuidava até demais, amava demais, tinha fé demais no futuro dourado da filha, e o efeito curioso daqueles demais, Ferguson se deu conta, era que podiam gerar os mesmos ressentimentos que um não basta, sobretudo quando o demais era tão forte que apagava as fronteiras entre pais e filhos e se tornava um pretexto para interferência invasiva, e como o que Amy queria acima de qualquer outra coisa era espaço para respirar, ela se retraía com força toda vez que começava a se sentir sufocada pelo insistente envolvimento da mãe nos mínimos aspectos de sua vida — desde perguntas sobre os deveres de casa até preleções sobre o método correto de escovar os dentes, desde perguntas exploratórias sobre os namoricos de suas colegas de escola até críticas à maneira como ela penteava o cabelo, desde advertências sobre os perigos do álcool até sermões monótonos e ponderados sobre a inconveniência de provocar os rapazes passando batom demais. Ela está me levando direto para o manicômio, Amy dizia para Ferguson, ou: Ela acha que é o chefe da polícia mental e tem o direito de entrar na minha cabeça, ou: Talvez fosse melhor eu ficar logo grávida para que ela tivesse, afinal, alguma coisa de real para se preocupar. E Amy retaliava acusando a mãe de má-fé, de ter implicância com ela, enquanto fingia estar do seu lado, e por que a mãe não podia deixá-la em paz da mesma forma como a filha a deixava em paz, e assim as duas viviam em choque o tempo todo, e se não fosse o pai sempre gentil e controlado — seu pai que gostava de diversão —, que vivia tentando estabelecer a paz entre elas, os veementes atritos entre Amy e a mãe teriam progredido até se converterem numa guerra permanente. Pobre sra. Schneiderman. Tinha perdido o amor da filha porque a amara de forma insensata. Depois, levando essa ideia um passo à frente, Ferguson disse para si mesmo: Pobre destino o dos pais que não são amados, depois que forem enterrados — e pobre de seus filhos, também.

No entanto, para Ferguson, era difícil entender por que sua mãe estava lhe dando a notícia da doença da sra. Schneiderman, a doença fatal de que nem Jim nem Amy tinha a menor ideia, naquela altura, e depois que disse todas as coisas que se diz em tais momentos, que horrível, que injustiça, que crueldade ser privado da vida ainda tão cedo, Ferguson perguntou para a mãe por que ela estava lhe dando a notícia primeiro. Havia naquilo algo de presunçoso e furtivo, disse ele, dava a sensação de que os dois estavam falando em sussurros, pelas costas dos Schneiderman, mas não, a mãe respondeu, não é nada disso, ela estava contando agora para que ele não ficasse chocado quando Amy lhe desse a notícia, assim ele já estaria preparado para o golpe e poderia receber a notícia com mais calma, o que o ajudaria a ser um amigo mais útil para Amy, que agora ia precisar de sua amizade mais do que nunca, e não só agora, mas, com quase toda certeza, por muito e muito tempo. Isso fazia algum sentido, supôs Ferguson, mas nem tanto assim, estava longe de ser uma explicação suficiente, e como sua mãe era invulgarmente sensata quando falava sobre situações complicadas como aquela, ele se perguntou se ela não estaria escondendo alguma coisa, retendo uma parte da história, enquanto divulgava partes dela, sobretudo uma explicação plausível que desse conta das palavras “Dan me contou”, pois, em primeiro lugar, por que Dan escolheria Rose para confidenciar a notícia do câncer da esposa? Eram velhos amigos, sim, se conheciam havia mais de vinte anos, mas não eram amigos íntimos, da maneira como ele e Amy se tornaram, e ainda assim o pai de Amy procurou a mãe de Ferguson em seu momento de maior angústia e tinha se sentido aliviado ao contar a ela, o que era um ato que, antes de tudo, requeria um nível profundo de confiança mútua, mas também um tipo de intimidade que só podia existir entre os amigos mais íntimos.

Continuaram a conversar sobre a sra. Schneiderman por mais alguns minutos, sem querer falar nada de indelicado sobre ela, mas ambos concordavam que ela nunca foi capaz de construir a maneira correta de se relacionar com a filha e que seu maior problema era não saber quando recuar (palavras de Rose) ou tirar o time de campo (palavras de Ferguson), e então, de modo quase imperceptível, as relações complicadas entre Amy e a mãe se converteram numa discussão sobre as dificuldades entre Ferguson e o pai, e uma vez que haviam chegado a esse assunto, que era para onde Rose vinha sutilmente conduzindo a conversa, desde o início, ela deixou o filho espantado quando lhe fez uma pergunta inesperada, mas sem contundência: Diga-me, Archie, por que foi que você se voltou contra seu pai? — o que deixou Ferguson tão desconcertado que ele não foi capaz de pensar depressa o suficiente para inventar alguma resposta falsa. Exposto e indefeso, sem mais nenhuma vontade de se esquivar da verdade, ele deixou escapar toda aquela bobagem sobre a có­pia desaparecida do conto “Par perfeito” e como ficou furioso por terem pas­sado quase seis meses sem que o pai dissesse nenhuma palavra sobre o conto.

Ele está muito constrangido, disse a mãe.

Constrangido? Mas que tipo de desculpa é essa? Ele é um homem, não é? Tudo que tem de fazer é falar e me contar o que aconteceu.

Por que você mesmo não pergunta a ele?

Não cabe a mim perguntar. Ele é que tem de me contar.

Você está sendo horrivelmente duro, não acha?

Duro é ele, não eu. Ele é tão duro e vive tão envolvido consigo mesmo que transformou sua família num pesadelo.

Archie...

Tudo bem, pesadelo pode não ser. Uma área de desastre. E esta casa... é que nem viver dentro de um dos congeladores que ele vende na loja.

É assim que você se sente?

Frio, mãe, muito frio, sobretudo entre você e ele, e eu gostaria muito mesmo que você não tivesse deixado que ele a convencesse a fechar o seu estúdio. Você devia estar tirando fotografias, e não jogando seu tempo fora com partidas de bridge.

Quaisquer problemas que possam existir entre mim e seu pai estão há léguas de distância do que está acontecendo entre você e seu pai. Você precisa dar mais uma chance a ele, Archie.

Não acho.

Bem, eu sei disso, e se você subir agora comigo para o quarto, vou lhe mostrar por quê.

Com aquele pedido misterioso, Ferguson e a mãe se levantaram da mesa, saíram da sala, e, como Ferguson não tinha a menor ideia do lugar aonde a mãe pretendia ir, seguiu-a pela escada até o primeiro andar, onde viraram à esquerda e entraram no quarto dos pais, cômodo onde Ferguson entrava raramente, e depois viu a mãe abrir a porta do closet onde o pai guardava suas roupas, entrar ali e retornar momentos depois com uma grande caixa de papelão nos braços, que a mãe levou até o meio do quarto e colocou sobre a cama.

Abra, ordenou ela.

Ferguson ergueu as abas da caixa e, quando pôde ver o que estava lá dentro, ficou tão confuso que não sabia se dava uma gargalhada ou rastejava para debaixo da cama, de tanta vergonha.

Dentro, havia três pilhas de livretos bem arrumadas, sessenta ou setenta ao todo, livretos grampeados, de quarenta e oito páginas cada um, com capa branca e as seguintes palavras estampadas na frente, em letras em negrito:

PAR PREFEITO,

DE ARCHIE FERGUSON

Quando Ferguson pegou um dos livretos e começou a folhear, espantado de ver as palavras do seu conto olhando para ele em caracteres tamanho 11, a mãe disse: Ele queria fazer uma surpresa para você, mas a gráfica estragou tudo, errando logo no título, e seu pai se sentiu tão mal com isso, tão tolo por não ter conferido antes para verificar se tudo tinha sido bem-feito, que não conseguiu tomar coragem de contar o que aconteceu.

Ele devia ter me contado, disse Ferguson, falando em voz tão baixa que a mãe mal conseguiu ouvir. Quem é que se importa com o título?

Ele está tão orgulhoso de você, Archie, disse a mãe. Ele simplesmente ficou sem saber o que dizer. É um homem que nunca aprendeu como dizer as coisas.

O que Ferguson ignorava na época, e que continuou a ignorar, até a mãe lhe contar, sete anos mais tarde, era que havia dezoito meses que ela e Dan Schneiderman tinham um caso clandestino. As duas ou três noites de bridge semanais eram, na verdade, uma noite só, e as noites de pôquer e de boliche de Dan já não eram mais usadas para pôquer nem boliche, e o casamento dos pais de Ferguson não era apenas o enigma gelado e sem paixão que aparentava, era um defunto, estava mais morto do que o mais morto dos cadáveres no necrotério do condado, e se os dois continuavam a viver juntos naquela união sem sentido era só porque o divórcio era considerado escandaloso naquela parte do mundo, e eles precisavam proteger seu menino do estigma de ser oriundo de um lar destruído, o que, de várias maneiras, chegava a ser pior do que ser filho de um estelionatário ou de um vendedor de aspiradores de pó de porta em porta. O divórcio era coisa para estrelas do cinema e gente rica que morava em mansões em Nova York e passava o verão no sul da França, mas nos subúrbios de Nova Jersey nos anos 1950 e início dos 60, os casais infelizes deviam ficar juntos, o que os pais de Ferguson tinham intenção de fazer até seu rebento terminar o ensino médio e ir embora de Maplewood para sempre, ocasião em que eles se considerariam quites e seguiriam seus caminhos separados, de preferência em cidades diferentes, o mais distante possível de Maplewood, em ambos os casos. Enquanto isso, o pai começara a passar as noites no quarto de hóspedes, supostamente porque seus roncos se tornaram tão altos que a mãe de Ferguson tinha dificuldade de dormir, e nem uma vez o filho desconfiou que os pais pudessem não estar dizendo a verdade.

O pai de Ferguson era a única pessoa que sabia do caso de Rose com Dan Schneiderman, e a mãe era a única pessoa que sabia que Stanley, recentemente, tinha se ligado a uma viúva de Livingston, chamada Ethel Blumenthal. Os adultos andavam aprontando por aí, com o mesmo ímpeto e a mesma sofreguidão dos adolescentes de quinze anos, só que faziam aquilo com tanta discrição e reserva que ninguém em Maplewood ou em nenhum lugar tinha a mínima ideia do que estavam fazendo. Nem Liz Schneiderman nem Amy ou Jim nem os avós de Ferguson nem tia Mildred ou o tio Don nem o próprio Ferguson — embora as palavras que a mãe dissera a ele naquela noite, depois do jantar, “Dan me contou”, tenham aberto a porta dois ou três centímetros, mas não o suficiente para que ele visse qualquer coisa dentro do quarto atrás da porta, pois ainda estava escuro demais lá dentro e Ferguson não sabia onde poderia estar o interruptor.

Seus pais não eram amargurados e não se detestavam mutuamente, nenhum dos dois desejava o mal para o outro. Simplesmente não queriam mais ficar casados e, por enquanto, faziam o melhor possível em seu esforço para manter as aparências. Dezoito anos tinham se transformado num punhadinho de pó, um resíduo poeirento que não pesava mais do que as cinzas de um cigarro queimado e, no entanto, uma coisa permanecia, uma solidariedade inabalável quanto ao bem-estar do filho, e por essa razão Rose fazia tudo o que podia para soldar a fissura que se formara entre Stanley e Archie, pois apesar de Stanley ser um pai nada satisfatório, tampouco era o vilão que Archie tinha feito dele, e, muito tempo depois de sua pequena família ter se desmanchado, Stanley continuava a ser o pai dele e não faria bem nenhum percorrer o resto da vida carregando um rancor contra o pai. Por sorte, houve aqueles livretos malfeitos. Uma tentativa patética de agradar ao filho e ganhar sua simpatia, é claro, um filho que ele não compreendia em quase nada, e como Stanley pôde ficar passivo quando os livretos deram errado (por que não voltou para a gráfica e mandou imprimir de novo?), mas pelo menos já era alguma coisa, pelo menos os livretos provavam algo, e Archie teria de levar aquilo em conta toda vez que pensasse no pai, nos meses e anos pela frente.

Parece que Daniel Schneiderman era apaixonado por Rose desde 1941, no tempo em que ela começou a trabalhar no estúdio do pai, na rua 27 Oeste, mas Rose, na época, estava noiva de David Raskin, e, quando Raskin foi morto em Fort Benning no mês de agosto seguinte, Schneiderman já estava noivo de Elizabeth Michaels e prestes a ir para o Exército também. Como confessou para Rose, anos mais tarde, ele romperia seu noivado se soubesse que havia pelo menos a mais ínfima possibilidade de que ficassem juntos, mas ela estava de luto na ocasião, isolada do mundo, dentro de um armário escuro, de morte e desespero, sem saber se queria viver ou morrer, e a coisa mais afastada de seus pensamentos era entrar de novo em circulação, pois não tinha nenhum interesse em ver outros homens ou se apaixonar por outro, muito menos por um que estava prestes a se casar, e assim não aconteceu nada, o que significa que Dan se casou com Liz, Rose se casou com Stanley, e Rose nunca soube que Dan, em segredo, desejava que ela se casasse com ele.

Ferguson soube do caso amoroso da mãe, mas nunca lhe contaram nada de mais específico — como foi que começou, onde os dois se encontravam nas noites em que ficavam juntos, o que planejavam fazer, ou não, no futuro —, a única coisa que ele soube é que a história tinha começado dois dias depois da posse de Kennedy e que sua mãe entrou naquilo com a consciência limpa, porque seu casamento com o pai de Ferguson já estava encerrado, uma decisão mútua, estabelecida seis meses antes, que havia liberado ambos dos votos de fidelidade feitos em 1944, sem que restasse mais nada para discutir, a não ser as formalidades de um eventual divórcio e o que deviam contar para Archie sobre a mudança de Stanley para outra cama. Dan, porém, estava numa situação muito mais encrencada, pois ele e Liz não tiveram esse tipo de conversa em que se põe tudo em pratos limpos e continuavam casados, sempre continuariam casados, Dan receava, porque ele não tinha coragem de deixá-la depois de duas décadas de matrimônio árduo, conflituoso, mas não completamente infeliz, e, ao contrário da mãe de Ferguson, o pai de Jim e Amy sofria com a culpa de suas infidelidades. Depois, a culpa aumentou, a culpa de ambos agora, a culpa corrosiva, que devastava as entranhas, a culpa do câncer de Liz, pois quantas vezes cada um deles pensou na vida feliz que teriam juntos se Dan não estivesse mais casado com Liz, e agora os deuses estavam prestes a tirar Liz de cena, e a coisa boa que ambos haviam sonhado em seus devaneios, sem nunca se atreverem a exprimir em voz alta, tornara-se algo demasiado ruim, a pior coisa que qualquer um dos dois poderia imaginar, pois como não sentir que seus pensamentos estavam arrastando aquela mulher desafortunada e agonizante para a sepultura?

Isso era tudo o que Ferguson sabia, naquela ocasião, aos quinze anos de idade — que a sra. Schneiderman ia morrer —, e quando Amy telefonou para ele, no domingo à noite, bem tarde, três dias depois de a mãe ter avisado do desastre que estava à beira de desabar sobre os filhos dos Schneiderman, Ferguson estava preparado para as lágrimas de Amy e foi capaz de balbuciar frases mais ou menos coerentes, em resposta às coisas grotescas que Amy lhe dizia ao telefone, as visitas no sábado e no domingo ao hospital onde a mãe estava morrendo no meio de um nevoeiro mental induzido por morfina, feito de dissociação e pânico, dor e depois menos dor, depois mais dor e um vagaroso e entorpecido recuo para o interior do sono, seu rosto tão magro e cinzento agora, como se ela já não fosse ela mesma, deitada sozinha na cama, enquanto os órgãos internos, já degradados e queimados, cuidavam da missão de matá-la, e por que o pai tinha mentido a respeito daquilo, gemia Amy, por que havia escondido tudo dela e de Jim, com aquela história boba de ir para Chicago para ficar com a vovó Lil, como ele agiu mal ao fazer aquilo, e que horrível que ela tenha pensado em comprar batom preto só para chocar a mãe, justamente na hora em que a mãe estava sendo levada para o hospital, Amy se sentia tão mal com isso agora, se sentia tão mal com tantas coisas, e Ferguson fez o que pôde para acalmar Amy, disse que o pai tinha agido da forma correta quando esperou que Jim chegasse da faculdade para dar a notícia para os dois juntos, e lembre que ele, Ferguson, estaria sempre ao seu lado, e toda vez que ela precisasse de um ombro amigo para chorar, ele queria que ela pensasse em usar primeiro o seu ombro.

A sra. Schneiderman aguentou mais quatro semanas e, no fim de junho, na hora em que o ano escolar estava chegando ao fim, Ferguson foi ao segundo enterro em onze meses, uma cerimônia menor e mais tranquila do que as exéquias muito concorridas de Artie Federman, nada de explosões de choro incontroláveis, de berros e soluços dessa vez, mas sim imobilidade e choque, a despedida em voz baixa de uma mulher que morreu na manhã do seu aniversário de quarenta e dois anos, e, enquanto Ferguson escutava o rabino Prinz recitar as orações de costume e dizer as palavras de costume, olhou em volta e viu que só as poucas pessoas que não eram parentes dos Schneiderman tinham lágrimas nos olhos, entre elas sua mãe, que chorou durante toda a cerimônia, mas nem mesmo Jim estava chorando, se limitava a ficar sentado, segurando a mão de Amy e olhando para o chão, e depois, no intervalo entre a cerimônia e o trajeto até o cemitério, Ferguson ficou emocionado ao ver a mãe chorosa enlaçar nos braços o choroso Dan Schneiderman e ficar entrelaçada a ele num abraço demorado e forte, sem compreender o pleno significado daquele abraço ou por que os dois se mantiveram presos um ao outro por tanto tempo, e então foi ele quem enlaçou nos braços a chorosa Amy, de olhos inchados, que tinha chorado em seus ombros inúmeras vezes durante o último mês, e como ele sentia pena dela, e como se sentia bem em ter seu corpo nos braços, Ferguson decidiu que devia, precisava e, sem mais demora, iria se apaixonar por ela. A situação de Amy, agora, era tão precária que exigia de Ferguson algo mais do que amizade, algo mais do que a antiga rotina de Amy-e-Archie que os dois tinham aprimorado ao longo dos anos, mas Ferguson nunca teve a oportunidade de falar com ela sobre essa repentina mudança de atitude em seu coração, porque depois disso ele passou dois meses sem ver Amy. Após o dia do enterro da mãe, o pai de Amy deixou que ela faltasse os últimos quatro dias de aula do semestre, e no quinto dia, que era o dia da formatura deles na Maplewood Junior High, os três Schneiderman partiram numa longa viagem de verão para a Inglaterra, França e Itália, o que a mãe de Ferguson achou que era uma ideia brilhante, o melhor remédio possível para uma família que já havia sofrido tanto.

O pai de Ferguson teve de trabalhar na manhã da formatura do filho, por isso a mãe foi sozinha à cerimônia. Depois, foram de carro para South Orange Village e pararam para almoçar no Gruning’s, local de tantos hambúrgueres deliciosos nos anos anteriores ao Blue Valley Country Club, que destruiu o antigo ritual de domingo, e nos primeiros minutos, depois que acharam uma mesa vaga no fundo, discutiram sobre os planos de Ferguson para o verão, que incluía trabalhar na filial da loja do pai em Livingston (um emprego de variadas funções e salário mínimo, que o levaria a cumprir tarefas como esfregar o chão, limpar as telas dos televisores do mostruário, lavar as geladeiras e outros aparelhos do mostruário e instalar condicionadores de ar junto com o entregador, Joe Bentley), duas partidas de basquete ao ar livre por semana, na Liga de Basquete Twilight de Maplewood-South Orange, e o maior número possível de horas em sua escrivaninha: ele tinha algumas ideias para uns contos novos e tinha esperança de terminar de escrevê-los antes do reinício das aulas. Sem falar dos livros, é claro, as dúzias de livros que ele queria ler, e depois, com o tempo que por acaso ainda sobrasse, escreveria para Amy o maior número possível de cartas e cruzaria os dedos para que ela estivesse no endereço para o qual ele mandaria os envelopes.

A mãe escutou tudo, a mãe fez que sim com a cabeça, a mãe sorriu, com um sorriso distante e pensativo, e antes que Ferguson pudesse pensar no que ia dizer em seguida, ela interrompeu e disse: Seu pai e eu vamos nos separar, Archie.

Ferguson queria conferir se tinha entendido direito, por isso repetiu as palavras para ela: Separar. Que nem um divórcio?

Isso mesmo. Do tipo Adeus, foi bom conhecer você.

E quando vocês decidiram isso?

Faz séculos. Nosso plano era esperar que você partisse para a faculdade ou para onde quer que fosse, depois de terminar o ensino médio, mas três anos é muito tempo, e de que adianta esperar mais? Contanto que você aprove, é claro.

Eu? O que eu tenho a ver com isso?

As pessoas vão falar. As pessoas vão apontar o dedo para nós. Não quero que você se sinta incomodado.

Não ligo para o que as pessoas vão pensar. Não é da conta delas.

E então?

Claro. Nem se discute. No que me diz respeito, é a melhor notícia que ouço em muito tempo.

Está falando sério?

Claro que estou. Chega de mentiras, chega de fingimento. A era da verdade vai começar!

Passou o tempo, e, muitas e muitas vezes ao longo dos meses que se seguiram, Ferguson parava, olhava bem para as coisas à sua volta e dizia para si mesmo que a vida estava melhorando. Não só tinha terminado o colégio, o que significava que nada mais que escrevesse seria julgado pela sra. Baldwin, como o fim do casamento dos pais parecia pôr abaixo muitas outras coisas também, e, sem a pressão das antigas e previsíveis rotinas, era cada vez mais difícil saber o que ia acontecer de um dia para outro. Ferguson desfrutava aquela sensação de instabilidade. As coisas podiam estar se movendo num fluxo às vezes vertiginoso, em absoluta confusão, mas pelo menos não era chato.

Por enquanto, ele e a mãe continuariam morando na casa grande de Maplewood. O pai tinha alugado uma casa menor em Livingston, perto da casa da sua namorada, Ethel Blumenthal, que naquela altura ainda era um segredo e, portanto, era desconhecida por Ferguson, mas o plano de longo prazo era vender a casa grande, alguns meses depois do divórcio estar finalizado, e mudarem-se, tanto o pai como a mãe, para qualquer outro lugar. Nem é preciso dizer que Ferguson continuaria a morar com a mãe. Poderia ver o pai sempre que quisesse, mas se acontecesse de não querer ver o pai, o pai teria o direito de jantar com ele duas vezes por mês. Isso era o mínimo. Não havia um máximo. Parecia um acerto justo, e todos aceitaram e apertaram as mãos.

O pai mandava para a mãe um cheque mensal, para aquilo que era chamado de despesas diversas e essenciais para a vida, cada um dos dois tinha um advogado e a separação amigável que se esperava estar encerrada em poucas semanas acabou se arrastando por meses de disputas nada amistosas em torno de pagamentos da pensão alimentícia, da divisão do patrimônio comum e do prazo para pôr a casa à venda. Do ponto de vista de Ferguson, parecia que era o pai quem estava melando as transações, que alguma coisa dentro dele resistia ao divórcio, de forma inconsciente mas ativa, e embora Ferguson se sentisse frustrado por causa da mãe (que desejava ver aquilo tudo resolvido o mais depressa possível), nos primeiros dias da desavença entre os pais, Ferguson sentiu-se estranhamente reconfortado com as ações obstrutivas do pai, pois aquilo parecia sugerir que o profeta dos lucros era capaz de sentimentos humanos normais afinal, algo que havia muitos anos não era visível para o filho, e fosse porque Stanley Ferguson ainda nutrisse um amor persistente pela mulher com quem havia se casado quase duas décadas antes (a razão sentimental), fosse porque a ignomínia do divórcio representava fracasso e humilhação aos olhos dos outros (a razão social), fosse simplesmente porque relutasse em ver a mãe de Ferguson ir embora com a metade do dinheiro resultante da venda da casa grande (a razão financeira), o motivo em si era menos importante do que o fato de que o pai sentia alguma coisa, e muito embora, no final, ele tenha cedido e assinado o acordo de divórcio em dezembro, depois que a mãe de Ferguson disse que aceitaria abrir mão da sua parte da casa, aquilo não significava que era o dinheiro quem tinha a última palavra, pois Ferguson sentia que a razão sentimental e a social eram o verdadeiro motivo do conflito, e que se aferrar ao dinheiro era meramente uma tentativa de salvar as aparências.

Ao mesmo tempo, usar o dinheiro como um instrumento nas negociações deixou Ferguson chocado e lhe pareceu um gesto imperdoável. O maior bem que os pais possuíam em comum era a casa, a casa grande que o filho sempre detestou, a vistosa mansão em estilo Tudor para onde, desde o início, ele não queria se mudar, e ao privar sua futura ex-esposa da parte que lhe cabia daquele bem valioso, o pai de Ferguson, na prática, estava empobrecendo Rose, tornando quase impossível que ela comprasse uma casa nova e, assim, condenava a mãe e seu próprio filho a uma vida rebaixada, num apartamento apertado, barato, em algum lugar perto dos trilhos do trem. Ele a estava punindo porque ela não o amava mais, e o fato de a mãe de Ferguson ter aceitado termos tão duros apenas comprovava como ela desejava desesperadamente se libertar do casamento, ainda que aquilo a arruinasse financeiramente, e assim o pai fincou pé em sua exigência cruel e não cedeu um palmo. Se havia alguma esperança no texto final do acordo, residia no fato de que a casa não teria de ser posta à venda antes de passarem dois anos, após a conclusão do divórcio, o que cobriria mais ou menos os três anos de Ferguson no ensino médio, mas mesmo assim, depois de ter tentado conceder ao pai o benefício da dúvida desde o contratempo do perfeito-prefeito, depois de fazer o melhor de que era capaz para tratar o pai de forma amistosa e educada durante todo o longo e tedioso verão em que trabalhou na loja em Livingston, agora Ferguson se voltou contra ele com algo próximo do ódio e decidiu que nunca mais ia aceitar nenhum centavo do pai, pelo resto da vida, nem para as despesas comuns nem para as roupas nem para um carro de segunda mão nem para pagar as mensalidades da faculdade nem para mais nada, nunca mais, e mesmo depois, quando Ferguson já fosse adulto e não tivesse conseguido publicar seus livros e vivesse como um pária beberrão nos quarteirões mais degradados de Bowery, continuaria a manter a mão fechada com toda força quando o pai tentasse enfiar uma moeda de cinquenta centavos entre seus dedos, e quando o velho finalmente deixasse este mundo e Ferguson herdasse oitenta milhões de dólares e a propriedade de quatrocentos e setenta e três lojas de aparelhos eletrodomésticos, ele fecharia as lojas e distribuiria o dinheiro igualmente entre os vagabundos que tinha conhecido no tempo em que vivia como um homem esquecido, nas calçadas da periferia miserável.

Apesar dos pesares, a vida estava melhorando e, quando o pai saiu de casa no dia 2 de julho, Ferguson ficou impressionado de ver como a mãe se adaptou rapidamente às novas circunstâncias. De súbito, tudo ficou diferente, e as limitações da pensão mensal obrigaram a mãe a abandonar a maioria dos confortos e todos os luxos oriundos do fato de ser casada com um homem que tinha dinheiro: os serviços de Angie Bly, para começar (que até então a livravam das fatigantes tarefas domésticas, como cozinhar e limpar a casa), o Blue Valley Country Club, em segundo lugar (o clube já não era mais possível, nas circunstâncias, o que pôs um fim abrupto aos prazeres do golfe), mas acima de tudo a gastança fácil e livre com roupas e sapatos, as visitas ao cabeleireiro duas vezes por semana, as pedicures e as massagens, os braceletes e os colares comprados por impulso e depois raramente usados, todas as armadilhas da chamada boa vida que ela vinha levando nos últimos dez anos à qual tinha renunciado — ou assim parecia a Ferguson — sem nenhum segundo de arrependimento. Ela passou o primeiro verão da separação pré-divórcio trabalhando no jardim dos fundos, cuidando da casa e cozinhando, promovendo a maior agitação na cozinha, o que redundava em jantares tão deliciosos e abundantes para o filho quando ele chegava em casa, depois do trabalho, que ele passava a maior parte dos dias, na loja do pai, pensando no que a mãe ia lhe dar para comer de noite. Ela raramente saía e raramente conversava ao telefone, a não ser com sua mãe, em Nova York, mas naquele verão houve muitas visitas de sua amiga Nancy Solomon, a leal camarada de seu tempo de infância, que começou a fazer Ferguson pensar numa daquelas vizinhas de porta nos seriados cômicos de tevê, a colega dona de casa de aparência engraçada e que está sempre disponível para tomar uma xícara de café e bater um longo papo, e depois que Ferguson subia para seu quarto para ler ou trabalhar em seu novo conto ou escrever mais uma carta para Amy, nada o deixava mais feliz do que ouvir as mulheres rindo na cozinha, lá embaixo. Sua mãe estava rindo outra vez. Os círculos escuros embaixo dos olhos estavam se apagando lentamente e, pouco a pouco, ela começava a retomar a aparência da pessoa que era — ou talvez de uma pessoa nova, pois a antiga tinha desaparecido fazia tanto tempo que Ferguson mal conseguia lembrar como era.

Dan Schneiderman e seus filhos voltaram da Europa no fim de agosto. Nos sessenta e dois dias que transcorreram desde sua partida, Ferguson escreveu catorze cartas para Amy, metade delas tinha conseguido alcançá-la no lugar certo e na hora certa, ao passo que as demais continuaram esquecidas em diversas agências da American Express da Itália e da França. Ferguson não se atreveu a falar de amor naquelas cartas, pois seria arrogante e injusto de sua parte pôr Amy numa situação embaraçosa, fazer uma pergunta para a qual ela não seria capaz de dar uma resposta nua e crua, mas as cartas eram cheias de declarações carinhosas e, às vezes, altamente emocionais, de uma amizade imortal, e mil vezes disse que sentia muita falta dela, que desejava muito voltar a vê-la e que o pequeno mundo em que ele vivia ficava incrivelmente vazio quando ela não estava presente. De seu lado, Amy mandou cinco cartas e onze cartões-postais, todos chegaram sãos e salvos em Nova Jersey e, embora os cartões de Londres, Paris, Florença e Roma fossem necessariamente curtos (e crivados de pontos de exclamação!!), as cartas eram compridas e falavam, sobretudo, de como ela estava se adaptando à morte da mãe, o que parecia mudar dia após dia e, às vezes, até de uma hora após outra, com alguns momentos completamente bons, quando ela não estava pensando no assunto, mas, quando pensava na mãe, era difícil não se sentir culpada, escreveu Amy, e isso era o mais difícil de aceitar, a culpa interminável, porque uma parte de Amy sabia que ela viveria melhor sem a mãe em sua vida, e admitir esse sentimento era uma terrível confissão da sua podridão. A essa carta amarga, cheia de ódio contra si mesma, Ferguson reagiu com mais notícias sobre a separação de seus pais e do divórcio em andamento, dizia para Amy que ele estava não só feliz com o que estava acontecendo, como se sentia até entusiasmado em saber que não teria mais de passar outra noite debaixo do mesmo teto que seu pai, e que não se sentia nem um pouco culpado por causa disso. A gente sente o que sente, e nós não somos responsáveis por nossos sentimentos. Por nossas ações, sim, mas não pelo que sentimos. Você nunca fez nada de errado com sua mãe. Discutiu com ela, às vezes, mas foi uma boa filha e não deve se torturar pelo que está sentindo agora. Você é inocente, Amy, e não tem direito nenhum de se sentir culpada por coisas que não fez.

Metade do que ele escreveu naquele verão se perdeu, mas essas frases, por acaso, estavam numa das cartas que acabaram chegando às mãos dela, em Londres, só um dia antes de Amy voltar para Nova York com o pai e o irmão.

Um dia depois que voltaram, os três Schneiderman foram à casa deles para jantar. Foi o primeiro de muitos jantares que Rose faria para eles ao longo do primeiro ano de Ferguson no ensino médio, os dois, três e às vezes quatro jantares semanais, que eram sobretudo com Dan e Amy, depois que Jim partiu de novo para a faculdade, e como Ferguson ainda não tinha a menor ideia de que sua mãe e o pai de Amy eram, um para o outro, qualquer coisa além dos bons amigos daquela remota primavera do Dan me contou, ele interpretava aqueles convites para jantar como gestos de bondade e gentileza, uma solidária mão estendida para uma família de luto, o pai e a filha ainda muito tolhidos pela dor para conseguirem encarar as tarefas de fazer as compras e cozinhar para si mesmos, seus assuntos domésticos estavam um caos, com camas por fazer e pratos sujos na pia, agora que Liz já não estava mais presente para manter a ordem doméstica, mas além da generosidade havia também motivos pessoais, Ferguson se deu conta, pois sua mãe agora estava sozinha, e tinha ficado sozinha desde o início do verão, sua vida estava em suspenso sobre um vazio, entre o passado morto e um futuro em branco, desconhecido, e por que ela não daria as boas-vindas à companhia do simpático Dan Schneiderman e de sua filha, Amy, que traziam palavras, sentimentos e carinho para dentro de casa, e sem dúvida aqueles jantares foram bons para todos eles durante o período de transição da melancolia pós-enterro e do divórcio iminente, especialmente para o próprio Ferguson, que achava aquelas reuniões em torno da mesa da cozinha um dos argumentos mais fortes já apresentados para defender sua tese de que a vida estava, de fato, melhorando.

Melhorar, é claro, não queria dizer que era boa, e talvez nem chegasse perto de ser boa. Significava simplesmente que as coisas estavam menos ruins do que foram antes, que a condição geral de sua vida tinha melhorado, mas à luz do que aconteceu no primeiro jantar com os Schneiderman, no fim de agosto, as coisas ainda não haviam melhorado tanto quanto ele esperava. Ferguson tinha ficado mais de dois meses sem ver Amy e, portanto, as linhas do seu rosto tinham se tornado cada vez menos familiares para ele, e, quando ele a examinava, do outro lado da mesa, enquanto os cinco atacavam a caçarola de carne assada feita por sua mãe, Ferguson compreendeu que a beleza dos olhos de Amy tinha algo a ver com suas pálpebras, que as pregas em suas pálpebras eram diferentes das pregas nas pálpebras da maioria das pessoas e, por causa disso, seus olhos pareciam, ao mesmo tempo, aguçados e inocentes, uma combinação rara, que ele nunca tinha visto em mais ninguém, olhos jovens que continuariam a ser jovens mesmo depois que ela tivesse envelhecido, e era por isso que ele tinha se apaixonado por Amy, Ferguson desconfiava, o momento da revelação ocorreu quando ele viu aqueles olhos derramarem lágrimas no enterro da mãe; Ferguson ficou tão comovido com aqueles olhos chorosos que não conseguia mais pensar nela apenas como amiga, de repente era o amor, amor do tipo apaixonado, que ultrapassava todas as outras formas de amor, e ele queria que Amy o amasse também da mesma forma que ele a amava agora. Depois da sobremesa, Ferguson a levou para o quintal para uma conversa em particular, enquanto os outros três continuaram sentados em volta da mesa, conversando. Era uma daquelas noites quentes e úmidas de final de verão de Nova Jersey, o ar denso salpicado por lampejos e cintilações pulsantes de mil vaga-lumes, as mesmas criaturas que ele e Amy capturavam nas noites de verão quando eram crianças, colocavam dentro de vidros e andavam com aquele brilhante relicário de luz nas mãos, e agora os dois caminhavam pelo mesmo quintal, conversando sobre a viagem de Amy à Europa, o fim do casamento dos pais de Ferguson e as cartas que os dois tinham escrito um para o outro, em julho e agosto. Ferguson perguntou se ela havia recebido a última, a que ele tinha mandado para Londres dez dias antes, e, quando ela respondeu que sim, ele perguntou se ela compreendeu o que estava tentando lhe explicar. Acho que sim, disse Amy. Não tenho certeza de que ajude muito, mas talvez comece a ajudar, em algum momento, aquela história de que não somos responsáveis por nossos sentimentos, vou ter de refletir sobre isso por um tempo, Archie, pois ainda não consigo deixar de me sentir responsável pelo que sinto.

Foi então que Ferguson pôs o braço direito sobre o ombro de Amy e disse: Eu amo você, Amy. Você sabe disso, não é?

Sei, Archie, sei sim. E eu também amo você.

Ferguson parou de andar, virou o rosto para Amy e pôs também o braço esquerdo em volta dela. Quando puxou o corpo de Amy contra o seu, disse: Estou falando de amor de verdade, Schneiderman, amor total, amor para sempre, o maior amor de todos os tempos.

Amy sorriu. Um momento depois, ela o enlaçou nos braços, e quando os braços compridos e nus de Amy entraram em contato com os braços nus de Ferguson, as pernas dele começaram a tremer.

Há meses que penso nisso, disse ela. Se a gente devia tentar ou não. Tenho tanta vontade, Archie, mas também estou tão assustada. Se a gente tentar e não der certo, provavelmente não seremos mais amigos, pelo menos não como somos agora, ou seja, os melhores amigos do mundo, ligados como irmãos e irmãs são ligados, é assim que eu sempre pensei em nós, como irmão e irmã, e toda vez que tento me imaginar beijando você, me dá uma sensação de incesto, de algo errado, algo que sei que vai me trazer arrependimento, e não quero perder o que temos, vou ficar arrasada se não puder mais ser sua irmã, e será que vai valer a pena perder todas as coisas boas que temos em troca de alguns beijos no escuro?

Ferguson ficou tão esmagado com o que ela disse que se desvencilhou dos braços de Amy e deu dois passos para trás. Irmão e irmã, disse ele, com a raiva crescendo na voz, que absurdo!

Só que não era absurdo, e, quando o pai de Amy e a mãe de Ferguson se casaram, onze meses e quatro dias depois da noite daquele primeiro jantar, os dois amigos se tornaram oficialmente irmão e irmã, e embora a palavra “meio” fosse incorporada à sua designação, daí em diante eles eram membros da mesma família, e os dois quartos onde dormiam até o fim do ensino médio ficavam lado a lado, no mesmo corredor do primeiro andar de sua nova casa de família.


4.1

A norma dos alojamentos estabelecida no Manual do Estudante do Barnard College determinava que todos os calouros que moravam em outra cidade tinham de residir em um dos dormitórios que ficavam no campus, ao passo que os calouros de Nova York podiam optar entre residir num dormitório e morar em casa, com os pais. A independente Amy, que não tinha nenhuma vontade de ficar com os pais e nenhuma vontade de dividir um quarto com alguém num dormitório cheio de regulamentos, tapeou o sistema dizendo que seus pais tinham se mudado da rua 25 Oeste para um apartamento maior, na rua 11 Oeste, um apartamento muito mais espaçoso e que, na verdade, era ocupado por quatro estudantes que não eram calouras, mas uma aluna do segundo ano e outra do penúltimo ano de Barnard, além de uma aluna do penúltimo ano e outra do último ano de Columbia, e quando Amy se mudou para aquela casa imensa, com corredores compridos, instalações hidráulicas muito antigas e maçanetas de vidro bisotado, ela se tornou a única residente do quinto quarto. Seus pais concordaram com a tapeação, porque Amy lhes mostrou os números que comprovavam que seria mais barato pagar um quinto do aluguel de duzentos e setenta dólares do apartamento do que residir num dormitório, e também porque, e especialmente porque, eles sabiam que estava na hora de sua filha voluntariosa sair de casa. Tinha passado pouco mais de um ano desde o piquenique no quintal da casa de Ferguson, e agora a filha dos Schneiderman e o filho dos Ferguson tinham alcançado aquilo que desejavam com mais ardor: um quarto com chave na porta e a chance de dormirem juntos na mesma cama quando quisessem.

O problema era que quando quisessem acabou se revelando uma noção escorregadia, antes uma possibilidade idealizada do que uma proposta viável, e, como um deles ainda continuava agarrado em Montclair e o outro estava envolvido no turbilhão de confusões e adaptações que vinham junto com o início da vida de estudante universitário, eles acabaram dividindo aquela cama menos vezes do que esperavam. Havia os finais de semana, é claro, e eles aproveitavam isso sempre que podiam, ou seja, a maioria dos finais de semana de setembro, outubro e do início de novembro, mas as liberdades do verão tinham sido reduzidas e, só uma vez durante todo aquele tempo, Ferguson pôde dar uma de suas escapadas relâmpago para a cidade. Os dois continuavam a conversar sobre as coisas que sempre conversaram, que naquele outono incluíam questões como o Relatório da Comissão Warren (verdadeiro ou falso?), o Movimento pela Liberdade de Expressão em Berkeley (vida longa para Mario Savio!) e a vitória do ruim Johnson contra o infinitamente pior Goldwater (não três vivas, mas dois, talvez um só), mas então Amy foi convidada para passar um fim de semana em Connecticut, e eles tiveram de cance­lar seus planos, o que foi logo seguido por mais um cancelamento na semana seguinte (uma ponta de gripe, disse ela, embora Amy não estivesse no apartamento quando Ferguson telefonou no sábado de noite nem no domingo à tarde), e pouco a pouco Ferguson sentiu que ela estava escapando dele. Seus antigos temores voltaram, as negras ruminações do inverno anterior, quando achou que ela talvez devesse deixar Nova York, evocando em pensamento as pessoas que Amy iria acabar conhecendo naqueles locais imaginários, os outros rapazes, os outros amores, e por que em sua cidade natal deveria ser diferente? Agora Amy estava vivendo num mundo novo, enquanto Ferguson pertencia ao mundo antigo que ela havia deixado para trás. Apenas trinta e seis quarteirões para o norte e, no entanto, lá os costumes eram completamente distintos e as pessoas falavam outra língua.

Não que ela parecesse entediada com ele ou o amasse menos, não que o corpo de Amy se enrijecesse quando ele a tocava ou que não se sentisse feliz com ele na cama nova, no apartamento novo, era simplesmente que agora ela parecia distraída, incapaz de concentrar sua atenção nele, como fazia no passado. Depois daqueles dois finais de semana que eles perderam, Ferguson conseguiu agendar uma visita ao apartamento vazio no sábado seguinte ao Dia de Ação de Graças (as colegas de Amy tinham ido passar o feriado com suas famílias), e, quando os dois sentaram na cozinha para beber vinho e fumar cigarros, ele notou que Amy estava olhando para a janela em vez de olhar para ele, e, em vez de ignorar aquilo e continuar o que estava falando, ele parou no meio de uma frase e perguntou se havia alguma coisa errada, e foi aí que aconteceu, foi aí que Amy virou a cabeça para ele, fitou-o nos olhos e pronunciou as nove pequenas palavras que vinham se formando em sua cabeça já havia quase um mês: Acho que a gente precisa dar um tempo, Archie.

Eles tinham só dezessete anos, disse Amy, e estava começando a dar a sensação de que estavam casados, era como se já não tivessem mais nenhum futuro, a não ser continuar juntos, e mesmo que, a longo prazo, acabassem de fato ficando juntos, ainda era cedo demais para se prenderem naquele compromisso agora, iam se sentir sufocados, aprisionados por promessas que talvez não fossem capazes de cumprir e, em pouco tempo, acabariam magoados um com o outro, e por que não respirar fundo e apenas relaxar por um tempinho?

Ferguson sabia que estava sendo idiota, mas só havia uma pergunta que seu coração idiota conseguia pensar em fazer: Você está dizendo que não me ama mais?

Você não me escutou direito, Archie, disse Amy. Só falei que eu preciso de mais ar. Quero que a gente mantenha as portas e as janelas abertas.

O que quer dizer que você se apaixonou por outra pessoa.

O que quer dizer que alguém se interessou por mim e eu fiquei com ele umas vezes. Não é nada sério, acredite. Na verdade, nem sei se gosto mesmo dele. Mas a questão é que não quero me sentir culpada por isso, e tenho me sentido culpada, porque não quero magoar você, e então eu me pergunto: Qual é o problema com você, Amy? Não está casada com o Archie. Não chegou nem à metade do seu primeiro ano na faculdade, e por que não deveria ter a chance de explorar um pouco o mundo, beijar outro rapaz, se quiser, fazer o tipo de coisa que as pessoas fazem quando são jovens?

Porque isso iria me matar, essa é a razão.

Não é para sempre, Archie. Só estou pedindo um tempo.

Continuaram conversando por mais de uma hora e, então, Ferguson saiu do apartamento e retornou para Montclair. Passaram-se quatro meses e meio antes que ele voltasse a ver Amy, quatro meses e meio de tristeza, sem beijos, sem toques e sem conversas com a pessoa que ele mais queria beijar e tocar, com quem mais queria conversar, mas Ferguson conseguiu resistir àquele tempo sem se desfazer em pedaços, porque tinha a convicção de que ele e Amy não tinham terminado, que a longa e complicada jornada em que tinham embarcado juntos havia apenas sofrido seu primeiro desvio, um desmoronamento de pedras que barrou seu caminho e os obrigou a tomar um desvio pelo mato, onde, momentaneamente, perderam de vista um ao outro, porém cedo ou tarde acabariam reencontrando a estrada e continuariam seu caminho. Ele estava convencido disso, porque acreditava na palavra de Amy, pois Amy era a única pessoa que ele conheceu que nunca mentia, que não era capaz de mentir, que sempre dizia a verdade, em qualquer circunstância. E quando ela disse que não o estava jogando para escanteio nem o mandando para um exílio perpétuo, que tudo o que estava pedindo era um tempo, uma pausa para abrir as janelas e arejar o ambiente, Ferguson acreditou.

A força dessa crença o manteve de pé através daqueles meses vazios e sem Amy, e ele se abrigou em sua fortaleza e tentou tornar aqueles meses os melhores possíveis, se recusou a sucumbir às tentações da autopiedade, que foram tão atraentes para ele nos primeiros estágios de sua adolescência (a perda de Anne-Marie Dumartin, o ferimento na mão), lutou para encarar os enigmas da dor de modo mais forte e decidido (a dor da frustração, a dor de viver no mundo de merda do sr. Martino), preparou-se para assimilar os golpes agora, em vez de desabar sob sua força, guardou sua posição, em vez de fugir correndo, entrincheirou-se para resistir ao que ele agora entendia que seria um cerco demorado, numa guerra de trincheiras. Do fim de novembro de 1964 até meados de abril de 1965: um tempo sem sexo e sem amor, um tempo de se voltar para dentro de si mesmo e de solidão desencarnada, tempo de se forçar, finalmente, a ser adulto, de perder o interesse por tudo que ainda tivesse alguma relação com sua infância.

Foi seu último bom ano no ensino médio, o último ano que passou na cidade de Montclair, Nova Jersey, o último ano que viveu debaixo do mesmo teto que os pais, o último ano da primeira parte de sua vida, e, agora que estava sozinho de novo, Ferguson contemplou seu mundo antigo e familiar com renovada concentração e intensidade, pois mesmo quando mantinha seu olhar fixo nas pessoas e nos lugares que havia conhecido nos últimos catorze anos, tinha a sensação de que eles já começavam a desaparecer diante de seus olhos, dissolvendo-se lentamente, como a imagem de uma foto polaroide que se transforma no sentido inverso, que vai desfazendo a revelação, enquanto os contornos dos prédios se toldam, os traços do rosto dos amigos se tornam menos distintos e as cores brilhantes se apagam, até se tornarem retângulos brancos feitos de nada. Ele estava entre seus colegas de turma mais uma vez, de um modo como não esteve durante mais de um ano, já não escapulia para Nova York nos finais de semana, já não era mais uma pessoa com uma vida secreta, a sombra de um polegar reintroduzida no meio de jovens de dezessete e dezoito anos que ele conhecia desde os três, quatro e cinco anos de idade, e agora que eles começavam a sumir, Ferguson se viu olhando para eles com algo próximo à ternura, o mesmo bando maçante de suburbanos para os quais Ferguson tinha dado as costas de modo tão abrupto, depois que Amy subiu com ele para o quarto, na tarde do piquenique do Dia do Trabalho, eram de novo seus únicos companheiros, e ele fazia o possível para tratá-los com tolerância e respeito, mesmo o mais ridículo e o mais cabeça-oca de todos, pois Ferguson não estava mais militando no ramo dos julgamentos, tinha desistido de sua compulsão de caçar os defeitos e as fraquezas dos outros, porque, nessa altura, havia aprendido que era tão fraco e tinha tantos defeitos quanto eles, e, se queria mesmo crescer e virar o tipo de pessoa que esperava ser, teria de manter o bico fechado e os olhos abertos e nunca mais olhar ninguém com desprezo.

Por ora, nada de Amy, e nada de Amy por uma extensão de tempo que ameaçava ser bem longa, mas a convicção irracional de Ferguson de que os dois estavam destinados a ficarem juntos outra vez, em algum ponto do futuro, o impelia a fazer planos para aquele futuro quando chegasse a hora de mandar seu pedido de ingresso para a faculdade. Isso era uma das coisas curiosas no fato de estar no último ano do ensino médio, ou seja, ter de passar a maior parte do tempo pensando no ano seguinte, ciente de que uma parte de quem ele era já não existia mais, embora permanecesse ali onde estava, como se vivesse em dois lugares ao mesmo tempo, o presente sem graça e o futuro incerto, reduzindo sua existência a uma série de números que incluía sua nota média no curso e a pontuação na prova de seleção para a universidade, procurar os professores que ele preferia e pedir que escrevessem cartas de recomendação para ele, redigir o ensaio absurdo e inconcebível sobre si mesmo, com o qual esperava causar boa impressão em uma banca de desconhecidos anônimos a respeito de seus méritos para frequentar a instituição deles, depois vestir paletó e gravata e viajar até aquela instituição para ser entrevistado por alguém cujo relatório teria grande peso em sua aceitação ou não, e de repente Ferguson começou a se preocupar de novo com a mão, pela primeira vez em meses se sentiu aflito com os dedos que faltavam, quando se sentou diante do homem que o ajudaria a decidir seu futuro, perguntando a si mesmo se o homem o estaria vendo como uma pessoa deficiente ou apenas como alguém que sofreu um acidente, e então, mesmo na hora em que estava respondendo as perguntas do homem, Ferguson lembrou-se da última vez que ele e Amy conversaram sobre sua mão, no verão, quando, por algum motivo, ele olhou para a mão e disse que aquilo o deixava revoltado, o que deixou Amy tão aborrecida que ela chegou a gritar com ele, disse que, se ele alguma vez voltasse a falar da mão, ela ia pegar um facão e cortar o próprio polegar esquerdo e dar para ele de presente, e a ferocidade da raiva de Amy foi tão poderosa que Ferguson prometeu que nunca mais falaria do assunto, e enquanto continuava a falar com o homem que o estava entrevistando, se deu conta de que ele não só não devia nunca mais falar do assunto como também não devia nem pensar naquilo e, pouco a pouco, obrigou-se a empurrar aquele pensamento para fora de sua cabeça e se concentrar na conversa com o homem, que era professor de música na Universidade Columbia, a qual, nem é preciso dizer, foi a primeira opção de Ferguson, a única universidade que ele tinha interesse em frequentar, e quando o cordial, bem-humorado e absolutamente simpático compositor de óperas cômicas dode­cafônicas descobriu que Ferguson se interessava por poesia e pretendia ser escritor algum dia, foi até a estante de livros do seu escritório e pegou quatro números recentes da Columbia Review, a revista literária dos alunos da graduação, e entregou para o nervoso e tímido candidato que vinha do outro lado do rio Hudson. Talvez você goste de dar uma olhada nessas revistas, disse o professor, e então eles apertaram as mãos e se despediram, e, quando Ferguson saiu do prédio e caminhou pelo campus, que já era familiar para ele, por causa da sua meia dúzia de encontros secretos nos fins de semana com Lady Schneiderman, no outono, Ferguson se perguntou se não poderia esbarrar com ela naquela tarde (não esbarrou) ou se não deveria ir ao apartamento de Amy na rua 111 Oeste e tocar a campainha (ele não foi, não deveria, não podia ir), e assim, em vez de se atormentar com pensamentos sobre seu amor ausente e inacessível, Ferguson abriu um dos números da Columbia Review e deu de cara com um poema com um refrão extremamente divertido e vulgar, um verso tão chocante em sua crueza que Ferguson riu alto quando leu: O bom mesmo para você é ter alguém para foder. O poema podia não ser grande coisa, mas Ferguson não pôde deixar de concordar com o sentimento, que continha uma verdade que nenhum outro poema jamais havia expressado de forma tão contundente, ou pelo menos nenhum poema que ele tivesse lido e, além disso, achou estimulante saber que Columbia era um lugar onde os estudantes podiam publicar tais pensamentos sem medo de serem censurados, o que significava que ali o estudante podia ser livre, pois se um estudante tivesse escrito aquele verso para a revista literária da Montclair High School, seria expulso na mesma hora e, seguramente, despachado para a cadeia.

Seus pais eram indiferentes. Nenhum dos dois fez faculdade, não sabiam nada sobre as diferenças entre uma universidade e outra e, portanto, ficariam contentes com seu menino onde quer que ele estivesse, fosse na universidade pública em New Brunswick (Rutgers) ou na Universidade Harvard em Cambridge, em Massachusetts, pois ambos eram ignorantes demais para se tornarem esnobes acerca do prestígio de uma determinada instituição em relação a outra e estavam simplesmente orgulhosos de Ferguson, por ter sido tão bom aluno em toda sua vida. A tia Mildred, porém, que pouco antes tinha sido promovida a professora titular em Berkeley, tinha ideias diferentes sobre o destino acadêmico do seu preferido, e, num telefonema interurbano, do outro lado do país, no início de dezembro, tentou atrair o sobrinho para a sua maneira de pensar. Columbia era uma excelente primeira opção, disse ela, nenhum problema quanto a isso, o programa de graduação era um dos mais fortes do país, mas ela também queria que Ferguson considerasse outras opções, Amherst e Oberlin, por exemplo, faculdades pequenas e isoladas onde a atmosfera podia ser mais calma e menos cheia de distrações do que em Nova York, mais estimulante para os rigores dos estudos concentrados, mas se Ferguson tinha uma forte preferência por uma universidade grande, por que não pensar em Stanford e Berkeley, como ela adoraria ter Ferguson consigo na Califórnia durante quatro anos, e aquelas duas universidades eram tão boas quanto Columbia, ou até melhores, mas Ferguson respondeu que já havia decidido, era Nova York ou nada, e se Columbia não o aceitasse, ele iria para a Universidade de Nova York, que aceitava quase todo mundo que se candidatava, e se alguma coisa desse errado lá também, seu diploma do ensino médio lhe permitiria se matricular em cursos da New School, que não recusava mesmo ninguém, e esse era seu plano, disse Ferguson, só três possibilidades, todas em Nova York, e quando sua tia perguntou por que tinha de ser em Nova York, quando havia tantos outros lugares mais atraentes para escolher, Ferguson foi buscar a resposta no fundo da memória e catou as palavras que Amy tinha falado para ele no primeiro dia em que se encontraram — porque, disse ele, o negócio é Nova York. Não tem outro lugar.

Um estado de limbo, talvez, mas, na estreita brecha entre nem aqui nem lá, naquele presente sem graça, algo aconteceu com Ferguson que alterou sua maneira de pensar sobre o que ia acontecer em seguida. No início de dezembro, ele arranjou um emprego no Montclair Times, numa situação que pode ser melhor descrita como se o emprego é que tivesse arranjado Ferguson, pois apareceu no seu caminho de repente, sem nenhum esforço sério de sua parte, uma dádiva do acaso, mas depois que começou a trabalhar, descobriu que queria continuar fazendo aquilo, pois não só gostou do trabalho, como o efeito desse prazer foi estreitar os espaços infinitos de um lugar qualquer indeterminado no futuro e transformá-lo em um lugar determinado e preciso, e com esse estreitamento, uma multidão de coisas variadas de repente se transformou numa coisa única. Em outras palavras, a três meses de seu aniversário de dezoito anos, Ferguson, por acaso, esbarrou numa vocação para a vida toda, algo para ele fazer por muito tempo, e o assombroso é que nunca teria ocorrido a ele fazer aquele serviço se não tivesse, primeiramente, sido forçado.

O Montclair Times era um jornal semanal que cobria acontecimentos locais desde 1877, e, como Montclair era maior do que a maioria das cidades na região (população: quarenta e quatro mil), o jornal era mais encorpado, mais abrangente e comportava mais anúncios do que os outros semanários do condado de Essex, ainda que a maior parte das matérias publicadas fossem mais ou menos as mesmas que saíam nos jornalecos menores: reuniões do Conselho de Educação, reuniões do Clube Feminino de Jardinagem, banquetes dos escoteiros, acidentes de carro, noivados e casamentos, assaltos, arrombamentos e atos de vandalismo juvenil, tal como relatados no registro policial, resenhas de exposições no Museu de Arte de Montclair, palestras no Montclair State Teachers College, e os esportes em todas suas manifestações nativas: a liga infantil de beisebol, o futebol americano da categoria Pop Warner, e uma ampla cobertura das partidas disputadas pelo time principal do ensino médio, o temível Montclair Mounties, cuja equipe de futebol americano tinha terminado a melhor temporada de sua história — uma pontuação perfeita de 9-0, o título de campeão estadual e a terceira colocação geral no país, o que significava que, entre os milhares de times de futebol americano do ensino médio espalhados pelos Estados Unidos, só havia dois melhores do que o de Montclair. Ferguson tinha perdido todas aquelas partidas disputadas aos sábados, mas agora, só dez dias depois de sua conversa baixo-astral com Amy, após o Dia de Ação de Graças, a mãe veio lhe falar de uma possível vaga para trabalhar no Times — supondo que ele fosse ficar interessado. Parecia que Rick Vogel, o jovem que cobria os esportes do ensino médio para o jornal tinha causado tão forte impressão ao relatar a gloriosa temporada do time de futebol americano que acabou sendo contratado pelo Newark Evening News, um jornal diário com uma circulação vinte vezes maior do que o semanário de Montclair e com um orçamento grande o suficiente para pagar um salário vinte vezes maior, e o editor-chefe do Times se viu naquilo que a mãe de Ferguson chamou de um grande aperto: a temporada de basquete estudantil estava programada para começar na terça-feira seguinte e ele não tinha ninguém para escrever sobre os jogos.

Até aí, a ideia de trabalhar num jornal nunca tinha passado pela cabeça de Ferguson. Ele se via como um homem da literatura, um homem cujo futuro seria dedicado a escrever livros, e, quer se tornasse romancista ou dramaturgo ou o herdeiro de Walt Whitman e William Carlos Williams de Nova Jersey, ele estava direcionado para a arte, e, qualquer que fosse a importância dos jornais, não havia dúvida de que escrever para um jornal nada tinha a ver com arte. Por outro lado, uma oportunidade tinha se apresentado para Ferguson, ele estava numa situação de indefinição, inquieto e descontente com quase tudo e, talvez, um bico no Times injetasse um pouco de colorido no presente sem graça e o desviasse da tentação de se confinar nas circunstâncias infelizes em que se encontrava. Mais que isso, havia também algum dinheiro envolvido — um honorário nominal de dez dólares por matéria —, porém, mais até que o dinheiro, havia o fato de que o Times era um jornal de verdade, não uma publicação de brincadeira como o Mountaineer no colégio Montclair High, e, se Ferguson conseguisse cavar um emprego lá, entraria nas fileiras do mundo adulto — já não seria mais um rapaz de quase dezoito anos, no ensino médio, mas um jovem adulto ou, o que era igualmente bom a seus ouvidos ou até mais satisfatório, um jovem prodígio, quer dizer, um rapaz que estava fazendo o trabalho de um homem adulto.

Não se devia esquecer que Whitman começou como jornalista no Brook­lyn Eagle e que Hemingway tinha escrito para o Kansas City Star e que Stephen Crane, nascido em Newark, tinha sido repórter no New York Herald, e assim, quando a mãe de Ferguson perguntou se ele tinha algum interesse em ficar com a vaga de Vogel, que se demitira de forma repentina, Ferguson não precisou de mais de meio minuto para dizer que sim. Não ia ser fácil, acrescentou a mãe, mas Edward Imhoff, o gordo rabugento que editava o Times, talvez estivesse tão desesperado que aceitasse apostar num jovem sem experiência, pelo menos por uma partida, o que lhe daria um tempo a mais, caso Ferguson não desse certo, mas, como ambos sabiam, disse a mãe, ele ia dar certo, e, como ela publicava fotografias no jornal de Imhoff havia mais de doze anos e tinha incluído o retrato dele no seu Livro dos Notáveis de Garden State (um incomparável gesto de generosidade não solicitada), aquele chato estava em dívida com ela, disse Rose, e sem desperdiçar mais nenhum segundo, ela pegou o telefone e ligou para ele. Era assim que a mãe de Ferguson tratava da situação ela mesma, quando algo precisava ser feito — tomava a frente e resolvia na hora, indômita e irresistível, e Ferguson apreciou muito sua valentia arrojada, enquanto ouvia a parte da mãe na conversa com Imhoff. Nenhuma vez nos sete minutos em que os dois conversaram, ela pareceu a mãe que implora um favor para o filho. Ela era uma sagaz caçadora de talentos que tinha acabado de encontrar a solução para o problema de um velho amigo, e Imhoff devia agradecer de joelhos por ela salvar sua pele.

Graças à garra daquele telefonema, Ferguson conseguiu uma reunião com o editor-chefe dispéptico e emburrado, e, embora viesse munido de dois exemplos de sua capacidade de escrever a fim de comprovar que não era um palerma analfabeto (um trabalho de colégio sobre a peça Rei Lear e um poema curto, jocoso, que terminava com os versos: Se a vida é um sonho,/ O que acontece se eu acordar?), o bulboso e careca Imhoff mal olhou para os papéis. Imagino que você saiba alguma coisa sobre basquete, disse ele, e imagino também que seja capaz de escrever uma frase coerente, mas e sobre os jornais — você já se deu ao trabalho de ler algum? Claro que ele lia jornais, respondeu Ferguson, três jornais todo dia. O Star-Ledger para ver as notícias locais, o New York Times para ver as notícias nacionais e internacionais, e o Herald Tribune porque tinha os melhores escritores.

Os melhores?, disse Imhoff. E, na sua opinião, quem é o melhor?

Jimmy Breslin, sobre política, por exemplo. Red Smith, sobre esporte, também. E o crítico de música Gilbert Schneiderman, que por acaso é tio de um grande amigo meu.

Sorte sua. E quantas matérias de jornal você escreveu, sr. Sabichão?

Acho que o senhor já sabe a resposta para essa pergunta.

Ferguson não se importava nem com o que Imhoff pensava dele nem com a possibilidade de Imhof não o aceitar para o emprego. A coragem da mãe também o deixou com coragem, numa atitude de absoluta indiferença, e a indiferença tinha força, Ferguson se deu conta, e qualquer que fosse o resultado daquela entrevista, ele não ia deixar que aquele barril azedo de arrogância e maus modos o intimidasse.

Agora me dê um bom motivo para que eu contrate você, disse Imhoff.

Porque o senhor precisa de alguém para cobrir a partida de terça-feira à noite e eu estou disposto a fazer isso. Se o senhor não quer que eu faça o trabalho, para que está jogando fora seu tempo precioso conversando agora comigo?

Seiscentas palavras, disse Imhoff, e bateu com a palma das mãos sobre a mesa. Se fizer uma cagada, está na rua. Se der conta do recado, ganhou seu dia.

Redigir uma matéria para jornal ia exigir um tipo de escrita diferente de qualquer outra coisa que Ferguson tinha feito antes. Diferente não só de escrever poemas ou contos, que era uma coisa tão distinta do jornalismo que nem dava para discutir, mas também de outras formas de textos que não eram de ficção, que ele havia redigido durante boa parte da vida: cartas particulares (que às vezes se referiam a fatos reais, mas eram, sobretudo, cheias de opiniões sobre si mesmo e sobre outras pessoas: eu amo você, eu odeio você, eu ando triste, eu ando feliz, nosso velho amigo não passa na verdade de um mentiroso desprezível) e trabalhos para a escola, como seu recente ensaio sobre a peça Rei Lear, que não passava de um punhado de palavras que respondiam a outro punhado de palavras, como era o caso de quase todos os trabalhos feitos na escola: palavras que respondiam palavras. Em contraposição, uma matéria de jornal era um punhado de palavras que respondiam ao mundo, uma tentativa de transpor o mundo não escrito para o mundo das palavras, e, a fim de contar a história de um acontecimento ocorrido no mundo real, paradoxalmente, a gente tinha de começar pela última coisa que havia acontecido, em vez de partir da primeira, o efeito em vez da causa, não era George Bliffle acordou ontem de manhã com dor de barriga, mas sim George Bliffle morreu na noite de ontem, aos setenta e sete anos de idade, e alguma referência por alto à dor de barriga, dois ou três parágrafos abaixo. Os fatos acima de tudo e o fato mais importante antes de todos os outros fatos, mas só porque a gente tinha de se ater aos fatos, isso não queria dizer que era preciso parar de pensar ou não fosse permitido usar a imaginação, como Red Smith tinha feito naquele mesmo ano, quando relatou a derrota de Sonny Liston na disputa do título dos pesos pesados: “Cassius Marcellus Clay abriu caminho aos trancos no meio da horda que fervilhava à sua volta e pulou e berrou no ringue, trepou nas cordas vermelhas de veludo como um esquilo e brandiu no ar sua mão ainda coberta com a luva. ‘Vocês vão ter de engolir o que falaram.’ Urrava ele para o setor da plateia onde ficava a imprensa. ‘Vocês vão ter de engolir o que falaram.’” Só porque o jornalista está confinado ao mundo real, isso não quer dizer que ele seja menos escritor, se for alguém que saiba escrever bem.

Ferguson sabia que o esporte não era um assunto de maiores consequências no longo prazo, mas era um tema que se rendia à palavra escrita com mais presteza do que a maior parte dos assuntos, porque cada partida tinha uma estrutura narrativa embutida, o ágon da competição necessariamente resultava em vitória para um time e derrota para o outro, e o trabalho de Ferguson era contar a história de como o vencedor venceu e o perdedor perdeu, fosse por um ponto ou por vinte pontos, e quando ele apareceu para ver o primeiro jogo da temporada naquela terça-feira à noite, em meados de dezembro, já havia imaginado como ia compor sua matéria, pois o drama central do time de basquete de Montclair naquele ano era a juventude e a inexperiência dos jogadores, nenhum dos cinco titulares tinha sido titular na temporada anterior, oito alunos da última série tinham se formado em junho e, com apenas uma exceção, a equipe atual era composta de alunos do segundo e do primeiro ano. Esse seria o fio que uniria seus textos sobre o time, decidiu Ferguson, de uma partida para a outra, seguindo passo a passo para ver se um bando de iniciantes crus iria se desenvolver até tornar-se uma equipe sólida, à medida que a temporada evoluía, ou simplesmente iria avançando aos tropeções, de uma derrota para outra, e embora Imhoff prometesse botar Ferguson no olho da rua se o primeiro texto não conseguisse dar conta do recado, Ferguson nem pensava em fracasso, positivamente ele não ia fracassar e, portanto, encarava aquela primeira matéria como o capítulo inicial de uma saga que ele ia narrar até o fim da temporada, após a décima oitava partida, em meados de fevereiro.

O que ele não esperava era que fosse se sentir tão extraordinariamente vivo quando entrou no ginásio do colégio e se sentou ao lado do fiscal encarregado de marcar o placar do jogo, diante da mesa colocada bem em cima da linha divisória da quadra. De repente, tudo ficou diferente. A despeito de quantas partidas ele tinha visto naquele mesmo ginásio ao longo dos anos, a despeito de quantas aulas de educação física tivera ali desde o dia em que entrou no colégio, a despeito de quantos treinamentos em quadra coberta havia feito ali como jogador de beisebol, o ginásio, naquela noite, não era mais o mesmo ginásio. Tinha se transformado num espaço de palavras potenciais, as palavras que ele ia escrever sobre aquela partida, que tinha apenas começado, e, como escrever aquelas palavras era o seu trabalho, ele tinha de olhar para o que estava acontecendo mais atentamente do que jamais tinha olhado para qualquer outra coisa, e a mera atenção e a singularidade de propósito que aquele tipo de olhar requeria pareciam erguê-lo e encher suas veias de poderosas descargas de corrente elétrica. O ar em sua cabeça estava fervilhando, seus olhos estavam muito abertos, e fazia semanas que ele não se sentia tão vivo, vivo e alerta, todo aceso e desperto para o momento. Tinha nas mãos um caderninho de bolso e, durante toda a partida, anotava às pressas aquilo que via na quadra de tacos de madeira, por longos intervalos ele se apanhava vendo e escrevendo ao mesmo tempo, a pressão de traduzir em palavras o mundo não escrito estava puxando as palavras para fora com uma velocidade surpreendente, era completamente distinto da vagarosa e taciturna agonia envolvida na redação de um poema, tudo agora era velocidade, tudo era pressa e, quase sem pensar, ele ia escrevendo palavras como um jogador baixo que controlava a bola com a velocidade de um camundongo e uma esquelética máquina de pegar de rebotes com a ajuda de cotovelos mortíferos e afiados como pontas de lápis e um arremesso tremendo que esvoaçava para dentro e para fora do aro da cesta como um beija-flor indeciso, e então, depois que Montclair perdeu para Bloomfield com um placar apertado de 54 a 51, Ferguson concluiu a matéria com: Os fiéis torcedores do Mountie, desacostumados a perder, depois de um outono de desempenho perfeito, saíram do ginásio em silêncio, arrastando os pés.

A matéria era para sair na manhã seguinte, por isso Ferguson voltou para casa correndo no Impala branco e subiu para seu quarto, onde passou as três horas seguintes escrevendo e reescrevendo o texto, aparando o primeiro rascunho de oitocentas palavras para um de seiscentas e cinquenta, e depois encolhendo para quinhentas e noventa e sete, um pouco abaixo do limite de Imhoff, que Ferguson datilografou numa versão final, sem erros de datilo­grafia, na sua máquina de escrever portátil Olympia, a indomável máquina alemã que seus pais tinham lhe dado de presente em seu décimo quinto aniversário. Caso Imhoff aceitasse a matéria, aquele seria o primeiro texto que Ferguson ia publicar na vida fora das revistas do colégio, e enquanto encarava a iminente perda de sua virgindade autoral, ele hesitava, ia e vinha, sem saber qual nome usar para assinar a matéria. Archie ou Archibald, o nome sempre tinha sido um problema para ele, Archie por causa daquele idiota deplorável da história em quadrinhos, Archie Andrews, o amigo dos personagens Jughead e Moose, o adolescente cabeça-oca, incapaz de decidir se amava a loura Betty mais do que a morena Veronica ou vice-versa, e Archibald porque era um antigo constrangimento, um nome antiquado e cheirando a mofo, àquela altura já praticamente um defunto, e o único homem de letras conhecido pelo nome de Archibald em qualquer parte do mundo era o poeta americano de que Ferguson menos gostava, Archibald MacLeish, que ganhava todos os prêmios e era considerado um tesouro nacional, mas na verdade era um chato, vazio e sem talento. Com a exceção de seu tio-avô, falecido havia muito tempo e que Ferguson nunca tinha visto, o único Archie-Archibald com quem sentia alguma afinidade era Cary Grant, que tinha nascido na Inglaterra com o nome de Archibald Leach, mas, tão logo o acrobata e showman chegou aos Estados Unidos, trocou de nome e se transformou num astro do cinema de Hollywood, o que jamais teria acontecido se tivesse mantido o nome Archibald. Ferguson gostava de ser Archie para os amigos e a família, não havia nada de errado com Archie quando ouvia o nome nas falas íntimas de afeição e de amor, porém havia algo de juvenil e até de risível em Archie, no contexto público, sobretudo para um escritor, e como Archibald Ferguson estava fora de cogitação, em qualquer hipótese, o jornalista em botão de quase dezoito anos decidiu suprimir seu nome por completo e assinar só com as iniciais, como T.S. Eliot e H. L. Mencken tinham feito com seus nomes, e desse modo começou a carreira de A. I. Ferguson. A.I., conhecido para alguns como um campo de pesquisa chamado de Inteligência Artificial — porém havia outras referências também contidas nessas letras, entre elas Anonymous Insider,* e era nessa que Ferguson preferia pensar toda vez que via seu nome impresso.

Como tinha de ir para o colégio na manhã seguinte, sua mãe aceitou dar um pulo no escritório de Imhoff e lhe entregar a matéria, pois seu estúdio fotográfico ficava apenas a dois quarteirões do prédio do Times, no centro de Montclair. Seguiu-se um dia de respiração ansiosa — será que Ferguson iria para o olho da rua ou continuaria no jornal, será que iam pedir para ele cobrir a partida de sexta-feira à noite ou seu trabalho de repórter de basquete estava encerrado após uma única partida? Pois agora que ele tinha mergulhado de cabeça, já não se sentia mais indiferente, e fingir que não se importava seria uma mentira. Seis horas e meia de aula no colégio e depois a viagem até o estúdio Foto Roseland para ouvir o veredicto, que sua mãe proferiu com certa dose de ironia e admiração:

Está tudo certo, Archie, disse ela, indo logo ao que mais importava, ele vai publicar sua matéria no jornal de amanhã, e você está contratado para o resto da temporada de basquete, e para a temporada de beisebol também, se é o que você quer, mas, pelo amor de Deus, que raio de sujeitinho é aquele, resmungando e bufando sem parar, comigo ali de pé na frente dele, enquanto ia lendo seu texto, e primeiro foi logo atacando o nome com que você assinou, que eu gostei muito, aliás, ele não conseguiu engolir o que chamou pretensão do nome, A.I., A.I., A.I., ele não parava de repetir o tempo todo, e depois acrescentou: Arrogante Imbecil, Asno Intelectual, Absoluto Ignorante, ele não conseguia parar de insultar você, porque se deu conta de que o que tinha lido era um bom texto e um homem feito aquele não está a fim de incentivar os jovens, ele quer é esmagá-los, por isso pinçou do texto umas duas ou três coisinhas só para mostrar como ele é superior a todo mundo, o comentário sobre o beija-flor indeciso, isso ele simplesmente odiou e riscou com seu lápis azul, e mais algumas coisas que o fizeram bufar ou rogar pragas, com a boca meio fechada, mas o xis da questão é que você está empregado na imprensa local, ou, nas palavras de Ed Imhoff, quando eu perguntei para ele se queria você ou não: O moleque vai dar conta. O moleque vai dar conta! Eu soltei uma gargalhada quando ouvi isso e então perguntei para ele: E isso é tudo que você tem a dizer, Ed? Ao que ele respondeu: E já não chega? Bem, talvez você também ache bom me agradecer por arranjar um repórter para o seu jornal. Agradecer a você?, disse ele. Não, minha cara Rose, é você quem tem de agradecer a mim.

De um jeito ou de outro, Ferguson estava dentro, e o bom daquele arranjo era que raramente tinha de ver Imhoff ou falar com ele, pois tinha de ir ao colégio na quarta e na segunda, o prazo final, respectivamente, para as matérias sobre as partidas de terça e sexta à noite, que eram publicadas juntas, quando o jornal saía na tarde de quinta. Portanto, a mãe de Ferguson continuou a levar os textos para Imhoff, e, embora Ferguson tenha ido duas vezes se reunir com aquele Peixe Grande (num aquário pequeno) para ser despojado do pecado da grandiloquência (se expressões como “desespero existencial e movimento de balé que desafia os princípios da física newtoniana” podem ser consideradas grandiloquentes), a maior parte de suas conversas com Imhoff se dava por telefone, como quando o chefe lhe pediu para fazer um perfil extenso do treinador de basquete Jack McNulty, depois que seu time ganhou seis partidas seguidas e levantou seu índice de 9 para 7, ou quando Imhoff instruiu Ferguson a começar a vestir paletó e gravata nas partidas, porque ele era um representante do Montclair Times e tinha de começar a se comportar como um cavalheiro quando estava a serviço, como se usar paletó e gravata tivesse qualquer coisa a ver com escrever sobre jogos de basquete, mas aquele era um tempo em que questões de roupa e cabelo tinham começado a separar os velhos dos jovens, e, assim como muitos rapazes no seu colégio, Ferguson tinha deixado o cabelo comprido naquele ano, os velhos cortes da década de 1950, agora, estavam ultrapassados, e as mudanças também estavam em curso entre as garotas, cada vez mais elas deixavam de pentear o cabelo em ondas bufantes e em forma de colmeia, como antigamente, e simplesmente escovavam e deixavam o cabelo solto em volta dos ombros, o que Ferguson achava muito mais atraente e sexy, e, enquanto ele examinava a paisagem humana naquelas primeiras semanas de 1965, sentia que todo mundo começava a ficar mais bonito e havia no ar alguma coisa que lhe agradava.

No dia 7 de fevereiro, oito soldados americanos foram mortos e 126 foram feridos num ataque do vietcongue contra uma base militar em Pleiku — e começou o bombardeio do Vietnã do Norte. Duas semanas depois, no dia 21 de fevereiro, poucos dias depois do fim da temporada de basquete do ensino médio, Malcom X foi fuzilado por assassinos da Nação do Islã, na hora em que estava fazendo um discurso no Audubon Ballroom em Washington Heights. Eram esses os dois únicos assuntos que pareciam existir, escreveu Ferguson numa carta para a tia e o tio na Califórnia, o crescente banho de sangue no Vietnã e o movimento dos direitos civis, na esfera local, os Estados Unidos brancos em guerra contra os amarelos no Sudeste Asiático e os Estados Unidos brancos em conflito com seus próprios cidadãos negros, que estavam cada vez mais em conflito consigo mesmos, pois o movimento que já havia se dividido em facções estava se fracionando ainda mais, em facções de facções, e talvez até em facções de facções de facções, todo mundo em conflito com todo mundo, as linhas divisórias estavam tão tensas que muito poucos se atreviam a atravessá-las, e o mundo tinha se dividido a tal ponto que, quando Ferguson, inocentemente, chamou Rhonda Williams para sair com ele em janeiro, descobriu que aquelas linhas agora estavam revestidas de arame farpado. Era a mesma Rhonda Williams que ele conhecia havia dez anos, a garota falante, esguia, que frequentava a maioria das aulas que Ferguson também frequentava e que, por acaso, não era uma pessoa branca, mas negra, assim como muitos alunos no colégio Montclair High, que era o colégio mais integrado racialmente na região, um segmento do noroeste de Nova Jersey onde todos os colégios em redor eram ou quase totalmente de brancos ou quase totalmente de negros, e Rhonda Williams, cuja família era mais abastada do que a de Ferguson e que, por acaso, tinha a pele negra, que na verdade era uma pele marrom-clara, só um ou dois pontos mais escura do que a pele de Ferguson, a vivaz Rhonda Williams, que era filha do diretor do setor de Clínica Geral no Hospital V.A. nos arredores de Orange e cujo irmão caçula era o armador reserva no time de basquete de Montclair, a inteligente Rhonda Williams, muito ligada ao colégio, que sempre tinha sido amiga de Ferguson e compartilhava com ele o amor pela música, foi, consequentemente, a primeira pessoa que lhe veio à cabeça quando soube que Sviatoslav Richter ia se apresentar com um programa dedicado a Schubert no Mosque Theatre em Newark, no sábado da semana seguinte, e assim perguntou se Rhonda não estava a fim de ir com ele, não só porque achava que poderia curtir o concerto, mas também porque já fazia dois meses desde a última vez que tinha visto Amy e andava seco para ter uma companhia feminina, estava louco para estar com alguém que não fosse um jogador de basquete ou Bobby George ou o detestável Edward Imhoff, e, entre todas as garotas no colégio, Rhonda era aquela de quem ele mais gostava. A perspectiva de um lanche cedo na noite de sábado no Claremont Diner e depois ouvir Schubert tocado por um dos melhores pianistas do mundo pareceu a Ferguson algo que nenhum amante da música pensaria em recusar, mas por incrível que pareça ela recusou e deixou Ferguson na mão, e, quando Ferguson perguntou por quê, Rhonda respondeu:

Simplesmente não vai dar, Archie.

Isso quer dizer que você está com um namorado firme e eu não sabia?

Não, não tem namorado nenhum. É só que eu não posso.

Mas por quê? Se você não tem compromisso nessa noite, qual é o problema?

Prefiro não dizer.

Ora, vamos lá, Rhonda. Isso não é justo. Puxa, sou eu, lembra? Seu velho amigo Archie.

Você é inteligente o bastante para imaginar sozinho o que é.

Não. Eu não sou. Não consigo nem começar a adivinhar do que é que você está falando.

É porque você é branco, é por isso. Porque você é branco e eu sou negra.

E isso é motivo?

Acho que é.

Não estou pedindo para você se casar comigo. Só quero ir a um concerto com você.

Eu sei, e estou muito agradecida por você me convidar, só que não posso.

Por favor, me diga que é porque não gosta de mim. Isso eu posso aceitar.

Mas eu gosto de você, Archie. Você sabe. Sempre gostei de você.

Será que você percebe o que está dizendo?

Claro que sim.

É o fim do mundo, Rhonda.

Não, não é. É o começo, o começo de um mundo novo, e a gente tem de aceitar.

Fosse o fim do mundo ou o começo do mundo, o fato é que Ferguson nunca ia conseguir aceitar aquilo, e saiu daquela conversa se sentindo ao mesmo tempo furioso e atingido por um golpe baixo, apavorado com o fato de que uma conversa assim ainda pudesse ocorrer cem anos depois da Guerra Civil. Queria conversar com alguém sobre aquilo, despejar as mil razões por que ficou tão angustiado com o que aconteceu, só que a única pessoa com quem ele era capaz de se abrir a respeito de assuntos como aquele era Amy, e Amy era justamente a única pessoa com quem ele não podia falar naquela ocasião, e, quanto aos colegas de colégio, não havia mais nenhum em quem ele confiasse tão a fundo para poder fazer essas confidências, e até o Bobby, que ainda ia ao colégio de carro com ele toda manhã e continuava a se considerar um amigo do peito de Ferguson, não poderia contribuir grande coisa numa discussão desse tipo, e além do mais o Bobby andava com seus próprios problemas, nessa ocasião, problemas de amor adolescente, e da espécie mais devastadora, uma paixão não correspondida por Margaret O’Mara, que, por sua vez, havia seis anos que tinha uma paixão por Ferguson, o que agora era a fonte de intermináveis problemas e constrangimentos para Ferguson, já que logo depois de sua conversa final com Amy, depois do Dia de Ação de Graças, ele chegou a brincar com a ideia de chamar Margaret para sair com ele, não que sentisse nenhum desejo ardente de se envolver com Margaret, que era uma garota simpática e vazia, com um rosto extraordinariamente atraente, mas depois que Amy declarou que estava interessada em beijar outros rapazes, Ferguson se perguntou, não sem alguma amargura, se ele não deveria reagir saindo por aí atrás de outras garotas para beijar, e Margaret O’Mara era a primeira candidata da fila, porque tinha quase certeza de que ela ia querer que ele a beijasse, só que aí, na hora em que já estava se preparando para convidá-la, Bobby veio e confessou que estava apaixonado por aquela mesma Margaret O’Mara, que era o primeiro amor monumental de sua vida, só que ela parecia não ter o menor interesse por ele, mal escutava quando ele lhe falava, e será que o Ferguson não podia fazer a gentileza de interceder a seu favor e explicar para Margaret que ele, Bobby, era um sujeito muito legal e digno (sombras de Cyrano de Bergerac, um filme que Ferguson e Margaret tinham visto juntos numa aula de francês do décimo ano), e assim, quando Ferguson chegou para Margaret e tentou falar alguma coisa em favor de Bobby (em vez de pedir para ela sair com ele mesmo), ela riu e o chamou de Cyrano. O riso foi o fim da história — que resultou numa debacle dupla, fracasso em duas frentes. Bobby continuava louco por ela, e, embora Margaret não fosse desperdiçar a menor chance de sair com Ferguson, o próprio Ferguson tinha resolvido que não ia mais chamar Margaret para sair, porque não era capaz de fazer isso com seu amigo. O que o levou a não sair com garota nenhuma por dois meses, e aí, quando afinal chamou uma garota para sair, foi logo a Rhonda Williams, que educadamente lhe deu um fora e ensinou a Ferguson que os Estados Unidos em que ele desejava viver não existiam — e provavelmente nunca iriam existir.

Em circunstâncias diferentes, ele poderia chegar para a mãe e conversar sobre suas frustrações, mas Ferguson andava se sentindo velho demais para fazer isso e não queria deixar a mãe triste com um comprido falatório emotivo sobre o futuro sinistro que vislumbrava para a República. O futuro de seus pais já era bastante sinistro e, com a receita doméstica minguando, tanto do lado do estúdio Foto Roseland quanto do lado da loja TV & Rádio Stanley, e com os quinze mil dólares suplementares a essa altura já quase esgotados, mudanças drásticas eram iminentes, era só uma questão de tempo para que a família tivesse de pensar em outra maneira de viver e trabalhar, e talvez até em outro lugar para morar e trabalhar. Ferguson sentia pena especialmente do pai, cujo pequeno negócio de varejo já não podia mais competir com os descontos das grandes redes cujas lojas começavam a pipocar em cidades como Livingston, West Orange e Short Hills, e por que alguém ia querer um televisor do pai de Ferguson, quando o mesmo aparelho podia ser encontrado por um preço quarenta por cento mais barato na loja E. J. Korvette, a poucos quilômetros de distância? Quando Mike Antonelli foi demitido na segunda semana de janeiro, Ferguson entendeu que a loja estava mal das pernas, mas seu pai ainda insistia em manter a velha rotina, chegava às noves horas em ponto, toda manhã, para se instalar na bancada de trabalho, nos fundos, onde continuava a consertar torradeiras quebradas e aspiradores de pó com defeito, trazendo à memória de Ferguson, cada vez mais, o velho dr. Manette de Um conto de duas cidades, o prisioneiro da bastilha meio enlouquecido que ficava no banco de sua cela remendando sapatos, ano após ano remendando sapatos, ano após ano consertando aparelhos domésticos quebrados, e cada vez mais Ferguson era levado a admitir o fato incontestável de que o pai jamais conseguiu se recuperar inteiramente do choque da traição de Arnold, que sua fé na família tinha sido destruída, e então, nas ruínas de suas certezas esboroadas, a única pessoa da família que ele ainda amava bateu com o carro de encontro a uma árvore e aleijou o filho para o resto da vida, e muito embora jamais falasse sobre o acidente, tanto Ferguson quanto sua mãe sabiam que ele raramente parava de pensar naquilo.

As receitas do estúdio Foto Roseland também estavam minguando, não tão depressa quanto as da loja TV & Rádio Stanley, talvez, mas a mãe de Ferguson sabia que os dias do estúdio de fotografia estavam chegando ao fim e, desde algum tempo, ela vinha reduzindo o número de horas que mantinha o estúdio aberto, de dez horas por dia, cinco dias por semana, em 1953, para oito horas por dia, cinco dias por semana, em 1956, para oito horas por dia, quatro dias por semana, em 1959, para seis horas por dia, quatro dias por semana, em 1961, para seis horas por dia, três dias por semana, em 1962, para quatro horas por dia, três dias por semana, em 1963, enquanto dedicava suas energias, cada vez mais, a serviços fotográficos para Imhoff, no Montclair Times, onde passou a ser assalariada na função de diretora de fotografia do jornal, mas aí seu livro dos notáveis de Garden State foi publicado, em fevereiro de 1965, e dois meses depois o livro figurava na maioria das salas de espera de médicos, dentistas, advogados e de repartições municipais em todo o estado e Rose Ferguson deixou de ser uma nulidade invisível e passou a ser uma pessoa reconhecida, e, respaldada na força de seu sucesso com o livro, ela resolveu procurar o editor do Newark Star-Ledger (cuja fotografia figurava no livro) e pedir um emprego como fotógrafa da equipe regular, pois apesar de a mãe de Ferguson, a essa altura, estar com quarenta e três anos de idade (velha demais, talvez?), para a maioria das pessoas ela parecia ter seis ou sete anos menos, e, enquanto o editor examinava o conteúdo de seu volumoso portfólio e recordava o retrato lisonjeiro que ela havia feito dele, e que estava pendurado numa parede da sala de estar em sua casa, de repente ele estendeu o braço e apertou a mão de Rose, pois o fato era que o jornal estava mesmo com uma vaga aberta e Rose Ferguson, mais do que ninguém, estava perfeitamente gabaritada para preencher aquela lacuna. O salário não era grande coisa, mais ou menos a mesma quantia que ela conseguia amealhar com os retratos do estúdio e seu trabalho para Imhoff, em média, por ano, o que não ia servir nem para prejudicar nem para melhorar a situação financeira geral da família, mas aí o pai de Ferguson apareceu com a brilhante ideia de fechar a loja TV & Rádio Stanley, que já andava no negativo fazia três anos, e assim um negativo se transformou em positivo, que ficou ligeiramente mais positivo ainda quando Sam Brownstein o chamou para trabalhar na sua loja de material esportivo em Newark (ou, como o pai de Ferguson disse, num de seus raros momentos de espírito brincalhão, trocar condicionadores de ar por luvas de beisebol), e assim, na primavera de 1965, tanto o estúdio Foto Roseland como a loja TV & Rádio Stanley fecharam as portas para sempre, e, com Ferguson à beira de ir para a faculdade no outono, seus pais disseram que estava na hora de começar a pensar em vender a casa e alugar uma residência menor, mais perto de seus novos locais de trabalho, o que permitiria economizar dinheiro mais do que suficiente para as despesas com a faculdade do filho, pois, por algum motivo, o pai de Ferguson se opunha à ideia de pedir uma bolsa (orgulho tolo ou tolice orgulhosa?) ou de reduzir o fardo das despesas por meio de um programa em que os estudantes trabalhavam em regime de meio expediente, porque, como o pai explicou, ele não queria que seu filho trabalhasse enquanto estudava para poder se dedicar mais a seus estudos, e quando Ferguson protestou, dizendo que aquilo era absurdo, a mãe se aproximou do pai, beijou seu rosto e disse: Não, Archie, é você quem está sendo absurdo.

O aniversário de Ferguson, naquele ano, caiu numa quarta-feira. Agora tinha dezoito anos, o que lhe dava o direito de beber álcool em qualquer bar ou restaurante na cidade de Nova York, casar-se sem o consentimento dos pais, morrer pelo seu país, ser julgado como um homem por um tribunal, mas não de votar nas eleições municipais, estaduais e federais. Na tarde seguinte, 4 de março, ele chegou do colégio e topou com uma carta de Amy na caixa de correio. Querido Archie, dizia ela. Um beijão para você no seu aniversário. Em breve, meu doce, vai ser muito em breve, vai ser muito muito em breve — contanto que você ainda esteja interessado. Fiz o melhor que pude para não pensar em você, mas não deu certo. O inverno está tão gelado, morando aqui neste quarto, com as janelas abertas. Estou congelando! Amor, Amy.

Sem saber o que significava em breve, e muito menos vai ser muito muito em breve, Ferguson não conseguiu, de jeito nenhum, entender o significado do que Amy tinha escrito, embora o tom da carta parecesse animador. Ficou tentado a responder com uma carta derramada, mas depois resolveu esperar até a questão da faculdade ficar definida, o que só iria acontecer em meados do mês seguinte. Por outro lado, se Amy mandasse outra carta antes disso, ele responderia na mesma hora — mas ela não mandou nenhuma carta e o impasse continuou. Ferguson imaginou que estava sendo forte, porém, mais tarde, quando retrospectivamente recapitulou as ações de sua personalidade futura, compreendeu que estava sendo apenas teimoso. Teimosamente orgulhoso, o que afinal não passava de outra forma de dizer burro.

No dia 7 de março, duzentos policiais do Alabama atacaram 525 manifestantes que defendiam os direitos civis, em Selma, quando estavam se preparando para atravessar a ponte Edmund Pettus e começar uma marcha rumo a Montgomery para protestar contra a discriminação de direitos. Daí em diante, a data ficaria conhecida como Domingo sangrento.

Na manhã seguinte, fuzileiros navais americanos desembarcaram no Vietnã. Os dois batalhões, enviados para proteger a base aérea em Da Nang, foram as primeiras forças de combate instaladas no país. As tropas americanas no Vietnã agora chegavam a mais de vinte e três mil militares. No fim de julho, o número aumentaria para 125 mil e as cotas de alis­ta­mento seriam duplicadas.

No dia 11 de março, o reverendo James J. Reeb, de Boston, Massachusetts, foi espancado até a morte em Selma. Dois outros ministros brancos unitários saíram feridos do atentado.

Seis dias depois, um juiz local decidiu que a marcha de Selma para Montgomery podia prosseguir. O presidente Johnson federalizou a Guarda Nacional estadual, e, depois que ele mandou mais dois mil e duzentos soldados para proteger os manifestantes, a marcha começou, no dia 21 de março. Na mesma noite, Viola Liuzzo, mãe de cinco filhos que tinham partido de Detroit para o Alabama para participar do movimento, foi fuzilada e morta por membros da Ku Klux Klan, porque um negro estava sentado a seu lado no banco da frente do carro.

Na segunda-feira (22 de março), um Ferguson perplexo, transtornado, começou a trabalhar de novo no jornal Montclair Times. Um mês tinha passado desde o fim da temporada de basquete, e agora havia chegado a hora do beisebol, o terrível e belo beisebol, o que seria uma proposta completamente distinta da cobertura do basquete, tanto assim que Ferguson, de início, pensou que não seria capaz de fazê-lo, mas ficar sem escrever para o jornal tinha sido duro, ele sentiu falta de falar sobre as partidas da mesma forma como um fumante sente falta do cigarro quando o maço chega ao fim, e o tempo extra que teve para trabalhar em seus poemas acabaram não resultando em nenhum poema digno de ler, nada mais do que uma série de poemas frustrados, tão desanimadores para Ferguson que ele começou a questionar se teria mesmo algum talento para a poesia, e agora que já estava a catorze meses de distância do acidente e a uma temporada inteira de distância de qualquer envolvimento com o beisebol, talvez tivesse chegado a hora de Ferguson se pôr à prova e verificar se era capaz de voltar a um campo de jogo sem esbarrar com um monte de dores e arrependimentos inúteis. Haveria a excitação daquela escrita elétrica em alta velocidade, Ferguson disse para si mesmo, haveria o prazer de ver Bobby George dar tacadas que fariam a bola voar por cima da cerca, e de conversar com os olheiros da liga principal, que certamente iriam aparecer, para ver Bobby jogar, e, contanto que Ferguson conseguisse suportar estar presente sem fazer mais parte daquilo tudo, haveria também as an­tigas emoções que vinham do cheiro da grama recém-aparada e das bolas brancas no alto, cruzando o céu azul, e do barulho das bolas golpeadas pelos bastões e batendo nas luvas de couro, e aquelas coisas que ele veria com pra­zer, pensou Ferguson, lhe trariam prazer porque ele havia sentido muita falta delas, e, portanto, sem compartilhar nenhuma vez seus temores com Imhoff, ele manteve o trato que fizeram em dezembro e, no dia 22 de março, foi até o escritório de Sal Martino para entrevistar o treinador acerca da temporada vindoura, no que acabou sendo a primeira de vinte e duas matérias que escreveu naquela primavera sobre o time principal de beisebol do colégio Montclair High School.

Não foi tão difícil quanto ele achou que seria, na verdade não foi nem um pouco difícil, e, quando a temporada começou com uma partida na casa do adversário no Columbia High School, no início de abril, Ferguson foi até lá de carro, pensando menos na partida que seria disputada naquela tarde do que nas palavras que ia usar para descrevê-la. Sentia-se infinitamente mais velho do que um ano antes, muito mais velho do que qualquer outro da sua idade, especialmente em comparação com os rapazes do time, que seria também o seu time, não fosse o acidente, e só para provar como as coisas tinham se transformado profundamente para ele, quando, na semana seguinte, deixou seu Impala na oficina Krolik’s Garage para um ajuste do motor e foi de ônibus junto com o time para mais uma partida na casa do adversário, dessa vez em East Orange, Ferguson preferiu se sentar ao lado de Sal Martino a ficar junto com seus colegas de turma, lá atrás, pois a bagunça, a barulheira e as risadas escandalosas dos rapazes tinham perdido o atrativo para ele e, subitamente, mais uma coisa infantil tinha ficado para trás, e era estranho sentir-se tão velho, pensava Ferguson, era estranho, porque lhe dava uma sensação de tristeza e, ao mesmo tempo, de alegria, o que vinha a ser uma emoção nova para ele, algo sem precedentes na história de sua vida emotiva, tristeza e alegria misturadas numa única montanha de sentimentos, e, quando essa imagem lhe veio à cabeça, ele se viu pensando na garota de White Rock no rótulo da garrafa de água mineral gasosa e na sua conversa com a tia Mildred sobre Psiquê, seis anos antes, quando conversaram sobre a transformação das lagartas em borboletas, pois o intrigante na transformação de uma coisa em outra era que as lagartas provavelmente estavam bem contentes de serem lagartas, rastejando pela terra, sem pensar, nem uma vez, em virar outra coisa, e por mais triste que fosse para elas deixar de ser lagartas, com certeza era melhor e absolutamente espantoso recomeçar de novo como borboletas, ainda que a vida de uma borboleta fosse mais precária e às vezes durasse apenas um único dia.

Nas primeiras cinco partidas da temporada, Bobby George, ferido de amor, conseguiu fazer quatro duplos, três homeruns e alcançou um aproveitamento médio de 632, com cinco bases por bolas e oito corridas impulsionadas. O que quer que Margaret O’Mara tivesse feito com o coração do pobre rapaz, não tinha conseguido afetar sua capacidade de jogar beisebol. E, imagine só, disse para Ferguson um olheiro do clube Minnesota Twins, enquanto observava Bobby retirar um corredor na segunda base, o moleque nem vai ter completado dezoito anos no verão.

No dia 16 de abril, Ferguson finalmente se sentou e escreveu uma carta breve para Amy. Estou dentro, começou. Columbia me aceitou como aluno da turma de 69 — um número deliciosamente evocativo que parece sugerir toda sorte de atividade excitante no futuro. Diferente de você, não fiz o menor esforço para não pensar em você, mantive você no pensamento o tempo todo, e com amor (e às vezes deprimido), durante os últimos quatro meses e meio. Portanto, sim, em resposta à sua pergunta retórica, ainda estou interessado e sempre estarei interessado e nunca deixarei de estar interessado, porque amo você loucamente e não consigo suportar pensar na minha vida sem você. Por favor, diga-me quando vai ser possível te rever. Seu Archie.

Ela não se deu ao trabalho de escrever dessa vez, mas telefonou, ligou para ele, em casa, poucas horas depois de receber a carta, e a primeira coisa que surpreendeu Ferguson foi como era bom ouvir de novo a voz dela, sua voz de Nova York com o r suavizado que transformava seu nome em algo que soava como Ahchie e, um instante depois, ela repetiu a última frase do bilhete de Ferguson, dizendo: Quando vai ser possível te rever?, ao que ele respondeu: Isso mesmo, quando?, e então veio a resposta que ele tanto havia esperado, da parte dela: Quando você quiser. Qualquer hora, a partir de já.

E assim o banido Ferguson, mais uma vez, se viu nas boas graças de sua rainha temperamental, e, como Amy julgava que ele tinha agido com nobreza durante seu exílio, sem cartas nem telefonemas suplicantes, sem exortações chorosas para ser reintegrado na sua antiga posição na corte, as primeiras palavras que ela disse para ele quando Ferguson chegou de carro a Nova York para ver Amy na noite seguinte foram: Você é o meu primeiro e único, Archie, o meu número um em um milhão e o primeiro e único, e, como ela começou a chorar no momento em que ele a abraçou, Ferguson desconfiou que a vida tinha sido um tanto dura para ela nos quatro meses e meio anteriores, desconfiou que tinham acontecido coisas de que ela se envergonhava, sem dúvida coisas relativas a sexo e, por essa razão, ele resolveu não lhe fazer nenhuma pergunta, nem naquela hora nem nunca, pois não queria ouvir falar de outras pessoas com quem ela havia dormido e ter de imaginar seu corpo nu na cama com outro corpo nu que ostentava uma ereção prolongada e gorda que avançava e penetrava no espaço entre as pernas abertas de Amy, nada de nomes nem descrições, por favor, nenhum detalhe de nenhum tipo, e como ele não lhe fez nenhuma das perguntas que ela devia estar esperando que ele fizesse, Amy, por causa disso, se apertou a ele com mais força ainda.

Foi a primavera mais linda da vida de Ferguson, a primavera em que esteve com Amy outra vez, em que teve Amy para conversar outra vez, em que segurou Amy nua nos braços outra vez, em que escutou Amy soltar os cachorros contra Johnson e a CIA por embarcarem vinte mil soldados para a República Dominicana a fim de impedir que o historiador e escritor Juan Bosch, livremente eleito, assumisse a presidência, porque supostamente estava sob a influência dos comunistas, o que era falso, e por que se meter nos assuntos de um país pequenino, quando os Estados Unidos já estavam causando tanto mal em outras partes do mundo? Como Ferguson admirava Amy pela pureza de sua indignação, e que satisfação poder passar os finais de semana com ela em Nova York outra vez, onde, dali a poucos meses, ele também estaria morando, e além de Amy, a primavera foi linda porque as preocupações de Ferguson sobre o ano seguinte foram, afinal, deixadas para trás, o que queria dizer que ele podia relaxar pela primeira vez depois de todos os anos que passou no colégio, assim como todo mundo na turma da última série estava também relaxando durante aqueles dois meses de dolce far poco, o que, de algum modo, tinha diminuído antigos conflitos e animosidades e parecia trazer todo mundo mais para perto uns dos outros à medida que a vida deles juntos ia chegando ao fim, e então, quando o tempo esquentou, houve o ritual que Ferguson instituiu com o pai: todos os dias de semana os dois acordavam às seis horas da manhã e saíam de casa às seis e meia para jogar tênis durante uma hora, ou uma hora e meia, nas quadras públicas vazias da cidade, seu pai, de cinquenta e um anos de idade, ainda conseguia derrotar Ferguson em todos os sets com placares de 6-2 e 6-3, mas o exercício estava fazendo Ferguson recuperar a forma, e, depois de um longo período sem nenhum esporte desde o dia do desastre, o tênis estava preenchendo uma necessidade antiga, e ainda poderosa, para ele, e Ferguson ficou contente de ver o pai ganhar, contente de ver como o velho não sofria por desmontar seu antigo negócio, vender o estoque remanescente de aparelhos de tevê, rádio, condicionadores de ar, por dois terços do preço, por metade do preço, por um terço do preço, agora a luta havia terminado, seu pai já não se importava mais com nada, todas suas antigas ambições tinham virado fumaça, e, com a mãe estava também no processo de desmontar seu próprio negócio e os dois já com tudo pronto para ficarem livres no dia 30 de maio e começarem seus novos trabalhos em meados de junho, havia naquela primavera algo de eufórico entre eles, uma euforia semelhante à que sentem as crianças pequenas quando alguém as segura pelos pés e as levanta no ar, de ponta-cabeça, como Amy e Ferguson deviam estar se sentindo quando pularam pelados em cima da cama naqueles momentos perdidos do passado distante, e que sorte que, mesmo depois de sua mãe ter comunicado ao Montclair Times que ela iria embora, Imhoff não demitiu Ferguson, como faria se fosse levado por um sentimento vingativo, e assim Ferguson ia continuar a cobrir as duas partidas semanais de beisebol do time principal de Montclair, e, com Bobby George a caminho de jogar uma temporada estadual num time de primeiro escalão e, muito provavelmente, de assinar um contrato com um clube da liga principal do país, Ferguson ficou impressionado de ver como Bobby soube lidar bem com seu estrelato recém-descoberto, o que fez dele o principal assunto do colégio, e, muito embora continuasse a tirar notas baixas nas provas e não conseguisse deixar de rir das piadas sem graça sobre filhas de fazendeiros e caixeiros-viajantes, havia uma nova aura de grandeza à sua volta que começava aos poucos a se infiltrar em Bobby e modificar a maneira como ele via a si mesmo, e agora que Margaret O’Mara tinha começado a falar com ele, era raro ver Bobby sem um sorriso no rosto, o mesmo sorrido doce de que Ferguson se lembrava de seus dias juntos, quando ambos eram meninos de quatro ou cinco anos de idade.

Uma das melhores coisas naquela primavera maravilhosa foi a expectativa do verão, fazer planos com Amy para a viagem que os dois iriam fazer à França, uma viagem de um mês, do meio de julho até o meio de agosto, um mês porque isso era tudo que daria para bancar, depois de juntarem o dinheiro que tinham economizado de seus trabalhos no verão anterior, os honorários de Ferguson no Montclair Times pelas matérias que escreveu não tinham sido consumidos em gasolina para seu carro nem em hambúrgueres para sua barriga, um considerável presente de formatura dos avós de Ferguson (quinhentos dólares), uma contribuição menor do avô paterno de Amy e somas adicionais amealhadas pelos pais de ambos, o que daria para cobrir quatro semanas e meia de vida a pão e água, depois de descontado o preço das passagens do voo fretado, e assim, em vez de tentar espremer uma grande turnê europeia naquele limitado período de tempo, eles preferiram se fixar em um país só e mergulhar nele o máximo possível. A França foi a escolha inevitável, pois ambos estavam estudando francês e queriam ganhar fluência na língua, mas também porque a França era o centro de tudo que não era americano, com os melhores poetas, os melhores romancistas, os melhores diretores de cinema, os melhores filósofos, os melhores museus, a melhor comida e, sem outra bagagem que não as mochilas que levavam nas costas, eles deixaram o território americano, no aeroporto Kennedy, às oito horas da noite do dia 15 de julho, um dia depois da comemoração do Dia da Bastilha, na França. Foi sua primeira viagem ao exterior. Para Ferguson, também foi a primeira vez que andou de avião, o que significa que foi a primeira vez que perdeu o contato com a terra.

Paris, sobretudo, Paris durante vinte e dois dos trinta e um dias que passaram na França, com uma excursão de trem para o norte (Normandia e Bretanha, visitas à praia Omaha, ao Monte Saint-Michel e ao castelo da família Chateaubriand, em Saint-Malo) e uma excursão para o sul (Marselha, Arles, Avignon e Nîmes). Uma promessa de conversarem, os dois, em francês o maior tempo possível, manter-se longe dos turistas americanos, travar conversas com residentes locais a fim de praticar o francês, só ler livros e jornais em francês, só ver filmes franceses, mandar para casa cartões-postais escritos em francês. O hotel em que ficaram em Paris era tão obscuro que nem tinha nome. A tabuleta acima da porta dizia apenas HOTEL, e o quarto simples que eles compartilhavam na Rue Clément, no sexto arrondissement, que dava de frente para o Marché Saint-Germain, o pequeno, mas suficiente, chambre dix-huit, que não tinha telefone nem televisão e era equipado com uma torneira de água fria, mas sem privada, custava dez francos por noite, o equivalente a dois dólares, o que saía um dólar por cabeça, e que diferença fazia que a privada ficasse no fim do corredor e nem sempre estivesse livre quando eles queriam usar, ou que o chuveiro fosse uma caixa de metal espremida na parede, no alto da escada, e nem sempre estivesse livre quando eles queriam usar; o essencial era que o quarto era limpo, claro e a cama era grande o bastante para que duas pessoas pudessem dormir confortavelmente, e mais essencial ainda era o fato de que o dono do hotel, um homem parrudo e de bigode, chamado Antoine, não se importava nem um pouco com o fato de Amy e Ferguson dividirem a mesma cama, apesar de estar bem claro que os dois não eram casados e que tinham idade para serem filhos do próprio Antoine.

Foi a primeira coisa de que gostaram na França (a bendita indiferença com a vida particular dos outros), porém logo viriam outras coisas também, como o fato difícil de entender que tudo parecia ter um cheiro melhor em Paris do que em Nova York, não só as padarias e os restaurantes e os cafés, mas até as mais profundas entranhas do metrô, onde o desinfetante usado para lavar o chão tinha no aroma algo afim ao perfume, ao passo que os metrôs de Nova York eram fedorentos e muitas vezes irrespiráveis, e também o constante movimento do céu, em que as nuvens não paravam de se avolumar no alto para depois se espalharem, o que criava uma espécie de luz cintilante e mutante que era, ao mesmo tempo, suave e cheia de surpresas, e a latitude norte que mantinha o céu de verão claro por muitas horas a mais do que ocorria na cidade deles, só ficava escuro lá pelas dez e meia ou quinze para as onze da noite, e o prazer de ficar apenas vagando pelas ruas, de se perder e, mesmo assim, nunca estar completamente perdido, como nas ruas do Village em Nova York, só que agora uma cidade inteira era como o Village, sem que tivesse o traçado das ruas quadriculado e houvesse poucos ângulos retos nos bairros que eles frequentavam, eles avançavam como que por uma trilha sinuosa, de calçamento de paralelepípedos, que desaguava em outra trilha, e também havia, é claro, a comida, la cuisine française, devorada com sofreguidão na sua única refeição diária, num restaurante, todas as noites, depois do café da manhã, feito de pão com manteiga e café (tartine beurré e café crème), e de um almoço de sanduíches de presunto (jambon de Paris) ou sanduíches de queijo feitos em casa (gruyère, camembert, emmental), os jantares noturnos nos restaurantes bons, mas baratos, registrados no guia Europa por cinco dólares por dia, e em lugares como Le Restaurant des Beaux Arts e Wadja, em Montparnasse, e La Crémerie Polidor (supostamente, um dos locais onde James Joyce costumava comer), eles mergulhavam em comidas e em pratos que nunca tinham visto em Nova York nem em nenhum lugar, poireaux vinaigrette, rillettes, escargots, céleri rémoulade, coq au vin, pot au feu, quenelles, bavette, cassoulet, fraises au crème chantilly e a enganosa bomba de açúcar conhecida como baba au rhum. Uma semana depois de porem os pés em Paris, os dois tinham se transformado em ferozes francófilos, repentinamente Amy declarou sua decisão de se especializar em francês, enquanto ia abrindo caminho pelos romances de Flaubert e Stendhal, e Ferguson fazia suas primeiras tentativas hesitantes de traduzir poesia francesa, no chambre dix-huit nos fundos do La Palette, e lia pela primeira vez Apollinaire, Éluard, Desnos e outros poetas franceses de antes da guerra.

Nem é preciso dizer que havia momentos em que os dois discutiam e se irritavam mutuamente, pois estavam juntos quase todos os segundos, por trinta e um dias e noites, e Amy era uma pessoa propensa a ataques ocasionais de irritação e a explosões de palavrões, ao passo que Ferguson tinha tendência a se evadir para profundezas de introspecção rabugenta e silêncios inexplicáveis, mas nenhuma desavença entre eles durava mais do que uma ou duas horas e, na maioria dos casos, senão em todos, aconteciam quando estavam em viagem, sob a pressão do deslocamento e de noites maldormidas dentro de trens. Também nem é preciso dizer que os Estados Unidos estavam em seu pensamento o tempo todo durante a viagem, apesar de estarem felizes por se encontrarem longe de lá, naquele momento, e conversavam extensamente sobre as duas coisas eletrizantes que tinham acontecido enquanto estavam fora — Johnson assinou a Lei do Seguro de Saúde no dia 30 de julho e, depois, a Lei do Direito de Voto, no dia 6 de agosto — e também sobre a calamidade que aconteceu no dia 11 de agosto, apenas cinco dias depois de terem partido: os motins raciais em Los Angeles, os motins raciais da população negra num bairro chamado Watts. Depois do que, Amy disse: Esqueça a ideia de estudar francês. Meu primeiro impulso era o correto, desde o início. História e ciência política. Ao que Ferguson ergueu uma taça imaginária e disse: Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Peça a Amy Schneiderman para governar seu país.

Um dia antes de voltarem para Nova York, fizeram duas descobertas constrangedoras: 1) tinham comprado livros demais para levar no avião; 2) seu dinheiro estava perigosamente curto — sem dúvida porque a compra dos livros não estava prevista em seu orçamento. Os dois tinham perdido peso durante o mês que passaram fora de casa (Ferguson, três quilos, Amy, dois quilos), mas já era de esperar em pessoas decididas a subsistir apenas com uma refeição completa por dia, e, no entanto, apesar daquela economia, eles gastaram demais em suas frequentes visitas a livrarias, sobretudo a Librairie Gallimard, em frente à l’Église Saint-Germain, e à loja dirigida pelo editor de esquerda François Maspero, em frente à l’Église Saint-Severin, e além dos vinte e um volumes de poesia que Ferguson tinha comprado e dos onze grossos romances que Amy tinha comprado, os dois não foram capazes de resistir a comprar também uma quantidade de livros políticos de Frantz Fanon (Les Damnés de la terre), Paul Nizan (Aden Arabie) e Jean-Paul Sartre (Situations I, II, III), o que aumentou o total para trinta e sete livros. Várias horas de seu último dia em Paris, portanto, foram consumidas em empacotar aqueles livros em caixas de papelão, levar ao correio e despachar para o apartamento de Amy na rua 111 Oeste (todos para o apartamento de Amy, mesmo aqueles que pertenciam a Ferguson, porque os pais dele tinham aceitado um sinal pela compra de sua casa no início de junho e agora ele não sabia se, àquela altura, ainda estavam morando em Montclair ou já tinham se mudado para outro endereço), e o preço dos selos necessários para enviar aquelas caixas de papelão para o outro lado do oceano por um navio vagaroso — com a entrega prevista para algum dia por volta do Natal — depauperou a tal ponto seus recursos remanescentes que eles se viram com apenas catorze dólares, oito dos quais seriam necessários para pagar o ônibus até o aeroporto, de manhã. Seus planos para um farto jantar de despedida no Restaurant des Beaux Arts naquela noite foram, em consequência, destruídos, e os dois se viram reduzidos a ter de jantar minguados hambúrgueres no Wimpy’s, no Boulevard Saint-Michel. Felizmente, os dois acharam aquilo divertido, pois um planejamento tão malfeito como aquele provava que os dois eram, de fato, as Pessoas Mais Ridículas na Face da Terra.

Assim, os encardidos jovens de dezoito anos voltaram de suas aventuras gaulesas capengando pelo terminal aéreo de Nova York com suas mochilas sobrecarregadas e suas cabeleiras emaranhadas, e, depois que passaram pelo controle de passaportes e pela alfândega, seus pais abriram os braços e lhes deram as boas-vindas, saudando-os com um entusiasmo e uma intensidade normalmente reservados para o regresso de heróis de guerra e descobridores de novos continentes. Amy e Ferguson, que já tinham combinado de se encontrar dali a alguns dias, se despediram com um beijo e depois saíram com suas respectivas famílias para serem levados para casa, tomarem banho, cortarem o cabelo e, com seus pais, fazerem breves visitas aos avós, tias e tios.

Como Ferguson rapidamente descobriu, enquanto caminhava para o carro, sua residência não era mais a casa em Montclair, mas um apartamento no bairro de Weequahic, em Newark. Nem o pai nem a mãe pareciam incomodados com aquele passo atrás, para fora dos subúrbios, aquela aparente queda de status social ou de status econômico ou de status mundano ou qualquer outra medida do que constituía o sucesso ou o fracasso na vida americana, o que livrou Ferguson da obrigação de se sentir incomodado por consideração a eles, pois a verdade era que ele não se importava nem um pouco.

Sua mãe ria. Não só estamos de volta a Nova York, disse ela, como estamos no mesmo prédio em que morávamos quando nos casamos — 25, Van Velsor Place. Não é o mesmo apartamento, mas fica no mesmo andar, o terceiro andar, no outro lado do corredor social do apartamento onde você passou os primeiros três anos de vida. É mesmo extraordinário, não acha? Fico imaginando se você não vai se lembrar de alguma coisa daquele tempo. Um apartamento idêntico, Archie. Não é o mesmo, mas é igualzinho.

Uma hora depois, quando Ferguson entrou no apartamento de dois quartos no terceiro andar do número 25, Van Velsor Place, ficou impressionado de ver como, mesmo depois de um tempo tão curto, já dava uma sensação aconchegante e habitável. Em apenas três semanas, seus pais já tinham conseguido se instalar e, em comparação com o acanhamento do chambre dix-huit, as dimensões do apartamento lhe pareceram imensas. Nada como a casa em Montclair, é claro, mas bastante espaçoso.

E então, Archie?, disse a mãe, enquanto ele entrava e saía dos cômodos. Alguma coisa voltou à sua memória?

Ferguson gostaria de ter pensado em algum comentário sagaz que fizesse eco às esperanças da voz da mãe, mas tudo que conseguiu fazer foi balançar a cabeça e sorrir.

Não se lembrava de nada.

* Informante anônimo. (N. T.)


4.2


4.3

O verão de 1962 começou com uma viagem para um lugar distante e terminou com uma segunda viagem para um local ainda mais distante, quatro viagens de ida e volta pelo ar, que levaram Ferguson à Califórnia (sozinho) e a Paris (com a mãe e Gil), onde ele passou, no total, duas semanas e meia sem ter de se preocupar em topar com Andy Cohen. No intervalo entre as viagens, Ferguson ficou em casa, na Riverside Drive, evitando o Cine Thalia, mas indo assistir ao maior número possível de filmes novos e antigos, participou de duas ligas de beisebol ao ar livre e, por sugestão de Gil, leu pela primeira vez literatura americana do século XX (Babbitt, Manhattan Transfer, Luz em agosto, Em nosso tempo, O grande Gatsby), mas para o rapaz de quinze anos que era Ferguson, que não havia posto os olhos em Andy Cohen nenhuma vez durante os meses em que passou do primeiro para o segundo ano do ensino médio, a parte mais memorável do verão foi viajar de avião pela primeira vez e ver o que viu e fazer o que fez na Califórnia e em Paris. Memorável, é claro, não significava que todas suas memórias fossem boas, mas mesmo a pior delas, a lembrança que continuava a lhe causar a maior dor, tinha nascido de uma experiência que se revelou instrutiva, e, agora que ele havia aprendido a lição, esperava nunca mais cometer o mesmo erro.

A viagem para a Califórnia foi um presente da tia Mildred, a parente esquiva e misteriosa de outros tempos que havia boicotado o casamento da irmã em 1959 e que parecia não querer ter mais nada a ver com a família; no entanto ela voltou a Nova York ainda duas vezes desde aquela desagradável e injustificada afronta, uma vez para o enterro do pai dela, em 1960, e depois para o enterro da mãe, em 1961, e agora estava de volta ao seio da família, com relações razoavelmente boas com a irmã, mais uma vez, e com relações excelentes com seu novo cunhado, e naquela segunda visita sua atitude estava tão mudada que ela, de bom grado, apareceu para jantar no apartamento em Riverside Drive, onde um dos convidados era seu ex-marido, Paul Sandler, o ex-tio de Ferguson, que havia continuado amigo da casa dos Adler-Schneiderman, Paul Sandler, ainda por cima, na companhia de sua segunda esposa, uma pintora eloquente e sem papas na língua cujo nome era Judith Bogat, e Ferguson ficou impressionado de ver como a tia parecia à vontade e relaxada durante o jantar, trocando gentilezas com o ex-marido como se não existisse entre eles nenhuma história, discutindo com Gil os progressos das obras do Lincoln Center ainda não terminadas, e chegou até a elogiar a irmã por causa de algumas fotografias recentes, e também fez a Ferguson uma porção de perguntas simpáticas e desafiadoras sobre filmes, basquete e as agruras da adolescência, o que levou a um súbito e espontâneo convite para visitar Palo Alto — por conta dela —, e assim ficou acertado que seu sobrinho ia viajar de avião para passar uma semana com ela depois do fim do ano escolar. Duas horas depois, quando os últimos convidados para o jantar se dispersaram na noite, Ferguson perguntou para a mãe por que a tia Mildred agora parecia tão diferente, tão feliz.

Acho que ela está apaixonada, respondeu a mãe. Não sei dos detalhes, mas ela falou de uma pessoa chamada Sidney algumas vezes, e tive a sensação de que os dois devem estar morando juntos agora. Com a Mildred, a gente nunca sabe, mas não há dúvida de que ela anda de muito bom humor.

Ferguson esperava que a tia fosse encontrá-lo no aeroporto, mas era outra pessoa que o estava esperando no terminal no dia em que ele pousou em San Francisco, uma mulher mais jovem, talvez de vinte e cinco ou vinte e seis anos, parada na porta da saída, segurando um exemplar do livro de Mildred sobre George Eliot, uma garota miúda, de aspecto vivaz, quase bonita, de cabelo castanho curto, calça jeans arregaçada nas canelas, camisa xadrez vermelha e preta, duas botas de crocodilo de dois tons com bico fino e um lenço amarelo cingido em volta do pescoço — a primeira mulher do Oeste que Ferguson viu, uma autêntica vaqueira!

O Sidney de quem a mãe de Ferguson tinha falado era, na verdade, Sydney, uma Sydney com o sobrenome de Millbanks, e enquanto a jovem acompanhava o viajante esgotado para fora do terminal e o levava até o carro, no estacionamento, explicou que Mildred estava dando aulas num curso de verão naquele trimestre e tinha ficado presa numa reunião do departamento no campus, mas iria jantar com eles, em casa, dali a poucas horas.

Ferguson inalou seu primeiro sopro do ar da Califórnia e disse: Você é a cozinheira?

Cozinheira, arrumadeira, massagista e parceira de cama, respondeu Sydney. Espero que você não fique chocado.

A verdade era que Ferguson ficou mesmo um pouco chocado, ou pelo menos surpreso, ou talvez confuso, pois era a primeira vez que ouvia falar de duas pessoas do mesmo sexo que moravam juntas, e ninguém nunca tinha falado com ele nem dado a menor pista de que sua tia, em segredo, preferia o corpo de mulheres ao corpo dos homens. O divórcio do tio Paul agora tinha uma explicação, ou parecia ter uma explicação, porém mais interessante ainda era que a vaqueira Sydney não via a menor necessidade de esconder a verdade, e havia algo de admirável na sua franqueza, pensou Ferguson, era bom não se sentir envergonhado por ser diferente, e assim, em vez de admitir que estava um pouco chocado ou confuso com aquela revelação inesperada, Ferguson sorriu e disse: Não, nem um pouco. Estou só feliz por tia Mildred não estar mais sozinha.

A viagem do aeroporto de San Francisco até a casa em Palo Alto levou mais ou menos quarenta minutos, e, enquanto Sydney avançava pela via expressa no seu Saab verde-claro, foi contando para Ferguson como tinha conhecido Mildred alguns anos antes, quando andava em busca de uma outra casa para morar e acabou alugando o apartamento que ficava na garagem da casa dela. Em outras palavras, foi um encontro acidental, algo que nunca teria acontecido se ela não tivesse topado com quatro linhas em letras minúsculas num jornal, mas, pouco depois de se mudar, as duas já tinham ficado amigas e, alguns meses depois, se apaixonaram. Nenhuma das duas tinha ficado com outra mulher antes, mas agora lá estavam elas, disse Sydney, uma professora universitária e uma professora do ensino fundamental, uma mulher já de quarenta e poucos anos e uma mulher de mais ou menos vinte e cinco, uma judia de Nova York e uma metodista de Sandusky, Ohio, arrastadas pelo maior romance de suas vidas. O que mais causava confusão em tudo aquilo, prosseguiu Sydney, era que ela jamais havia pensado em mulheres, sempre foi uma garota louca por rapazes, e ainda agora, depois de estar com uma mulher por quase três anos, ainda não pensava em si mesma como uma lésbica, era apenas uma pessoa apaixonada por outra e, como essa pessoa era linda e sedutora e diferente de todo mundo, que diferença fazia que estivesse apaixonada por um homem ou uma mulher?

Provavelmente ela não deveria estar falando com Ferguson daquele modo. Sem dúvida, havia algo de inconveniente e talvez até de indecente no fato de uma mulher adulta compartilhar confidências desse tipo com um garoto de quinze anos, mas o Ferguson de quinze anos ficou entusiasmado com sua franqueza, em nenhum outro momento de sua adolescência um adulto havia se mostrado tão honesto com ele acerca do caos e das ambiguidades da vida erótica, e, embora ele tivesse apenas acabado de conhecer Sydney Millbanks, Ferguson decidiu que gostava dela, que gostava dela imensamente, e, como ele mesmo andava lutando com aquelas mesmas questões havia meses, lutando para entender qual sua posição no espectro do desejo garotas-rapazes e para saber se pertencia à zona dos rapazes e garotas ou dos rapazes e rapazes ou dos rapazes e garotas intercambiáveis, Ferguson teve a sensação de que aquela vaqueira da Califórnia, aquela amante de homens e mulheres, aquela pessoa que tinha acabado de entrar em sua vida e que o estava levando de carro para a casa de sua tia em Palo Alto, podia ser uma pessoa com quem ele poderia conversar sem medo de ser ridicularizado ou insultado ou mal compreendido.

Concordo, disse Ferguson. Não importa que seja um homem ou uma mulher.

Não é muita gente que pensa desse jeito, Archie. Você sabe disso, não é?

Sei, sim, só que eu não sou muita gente, sou só eu, e o esquisito comigo é que o único sexo que já fiz na vida foi com outro garoto.

Isso é muito comum com garotos da sua idade. Tão comum que você não devia se preocupar com isso — no caso de você estar preocupado. A gente faz o que pode, não é?

Ferguson riu.

Pelo menos espero que você tenha gostado, disse Sydney.

Gostei de fazer, mas depois de um tempo eu não gostei foi dele. Por isso pus um fim na história.

E agora você está pensando: o que vai acontecer?

Até eu ter a chance de fazer isso com uma garota, na verdade eu não sei o que vai acontecer.

A gente ter quinze anos não é lá grande coisa, não é?

Tem aspectos positivos, eu acho.

É mesmo? Diga um.

Ferguson fechou os olhos, ficou em silêncio por um intervalo demorado e então virou para ela e disse: A melhor coisa de ter quinze anos é que a gente não precisa ter quinze anos por mais de um ano.

Na Califórnia, não havia moscas nem mosquitos, e o ar de Palo Alto cheirava como uma caixa de balinhas para tosse, pastilhas picantes e adocicadas para a garganta, com aroma de eucalipto, porque havia pés de eucalipto por todo lado, exalando um perfume penetrante que parecia limpar as fossas nasais toda vez que a pessoa inalava. Vick Vaporub fornecido de graça pela atmosfera do norte da Califórnia, para a saúde e a felicidade da população humana!

Por outro lado, Ferguson achou a cidade bizarra, era menos um lugar real do que a ideia de um lugar, um posto avançado semiurbano e semissuburbano, projetado por um mestre urbanista sem a menor tolerância com sujeira ou imperfeição, o que fazia tudo parecer maçante e artificial, uma exótica cidadezinha fantasma habitada por gente de cabelo bem-arrumado e dentes brancos retinhos, todas vestidas em roupas bonitas, muito na moda e informais. Felizmente, Ferguson não passou muito tempo lá, foi uma vez fazer compras com Sydney no supermercado mais espaçoso, mais limpo, mais bonito que tinha visto na vida, foi uma vez ao posto de gasolina para reabastecer o carro, um primitivo Saab com motor de cortador de grama (sete partes de gasolina para uma parte de óleo, ambos despejados diretamente no tanque), e ainda duas vezes ao cinema de arte local, para ver filmes do Festival Carole Lombard, que estava em cartaz naquela semana (Irene, a teimosa; Ser ou não ser), primeiro porque Sydney achava que Mildred era muito parecida com Carole Lombard, o que, pensando bem, Ferguson concluiu que era mais ou menos verdade, e que comédias formidáveis eram aqueles filmes, e agora que Ferguson os tinha visto, ele não só tinha uma nova atriz para admirar como também um novo entendimento da tia Mildred, que ria mais alto do que ninguém naqueles filmes; e como a mãe de Ferguson contou para ele que a irmã mais velha, em outros tempos, zombava dela por gostar tanto de filmes, ele se perguntava se o amor não teria abrandado a atitude da tia em relação àquilo que ela chamava de lixo de entretenimento vulgar, ou se ela sempre tinha sido uma hipócrita, dando uma de superior para mostrar que seu gosto e sua inteligência estavam acima das possibilidades da irmã, em todos os aspectos, ao passo que, na esfera particular, a tia vibrava com o mesmo lixo que empolgava todo mundo.

Por duas vezes, os três saíram de Palo Alto e partiram em excursões de um dia inteiro, no Peugeot preto de Mildred, primeiro para o Mount Tamalpais, na quarta-feira, quando fizeram a viagem de volta pela costa, que incluiu uma parada de duas horas em Bodega Bay, onde jantaram num restaurante que dava para o mar, e na segunda vez foi um passeio no sábado para San Francisco, que arrancou do espantado Ferguson uma porção de gritos de entusiasmo de turista, enquanto subiam e desciam os morros, e depois pa­raram para almoçar no restaurante chinês, onde ele comeu dim sum pela primeira vez (uma comida que tinha um gosto tão bom que seus olhos se encheram de lágrimas, enquanto ele se deliciava com três tipos diferentes de almôndegas — lágrimas de gratidão, lágrimas de alegria, lágrimas provocadas pelo molho picante que impregnou suas narinas), mas, na maior parte do tempo, Mildred estava ocupada com as aulas e as reuniões com estudantes naquela semana, o que significou que, até ela chegar em casa para jantar, às seis horas ou às seis e meia, Ferguson ficava sozinho ou ficava com Sydney, embora muito menos sozinho do que com Sydney, que estava gozando suas férias escolares de dez semanas, assim como ele, e já que ela afirmava ser a pessoa mais preguiçosa do mundo, título que Ferguson sempre acreditara ser exclusivamente seu, os dois passavam a maior parte do tempo juntos, esparramados em cima de mantas no quintal da casa, que era um chalé de um só andar, com parede de estuque, telhado de terracota, ou então dentro de casa, que era agradavelmente fornida de livros e discos, e foi a primeira casa em que Ferguson pôs os pés onde não havia nenhum televisor, e, à medida que os dias iam passando e ele ia conhecendo Sydney melhor, ficou intrigado ao perceber que a vaqueira quase bonita estava se transformando numa vaqueira bonita, e depois numa vaqueira muito bonita, pois o nariz meio comprido que, no início, lhe pareceu um defeito, agora lhe chamava a atenção como algo sedutor e elegante, e os olhos azul-acinzentados, que antes pareceram tão corriqueiros, agora pareciam vivos e repletos de sentimento. Fazia só poucos dias que ele a conhecia, mas já tinha a sensação de que eram amigos — da mesma forma, imaginou Ferguson, que ele e sua prima Francie tinham sido amigos no passado distante, anterior ao incêndio em Newark.

E assim foi nos primeiros cinco dias de sua visita, ou seja, os três dias em que eles não passearam no carro de Mildred, os dias tranquilos e sem incidentes em que Ferguson e Sydney ficavam deitados no quintal e jogavam conversa fora, falando o que viesse à cabeça, não só sobre a questão de quem trepava com quem e por quê, mas também sobre a infância de Sydney em Ohio e sobre a infância dupla de Ferguson, em Nova Jersey e em Nova York, sobre as maneiras diferentes como as histórias são contadas nos livros e nos filmes e sobre os prazeres e as frustrações de dar aula para crianças, sobre como Mildred se sentia animada e nervosa de ter o sobrinho hospedado em sua casa, animada por todas as razões óbvias, mas nervosa porque hesitava em expor o filho da irmã à maneira como ela agora estava vivendo, o que explicava por que ela havia pedido que Sydney dormisse no apartamento da garagem enquanto Ferguson estivesse com elas, para poupar o garoto de algum constrangimento, como ela explicou, se referindo a seu próprio constrangimento, e quando Ferguson perguntou para Sydney por que ela tomou logo a frente e contou para ele a verdade, minutos depois de pegá-lo no aeroporto, a vaqueira bonita disse: Eu detesto dissimulação, esse é o motivo. Fazer isso significa que você não acredita na sua própria vida, ou que a gente tem medo da própria vida, e eu acredito na minha vida, Archie, e não quero ter medo dela.

Por volta das quatro horas, eles se levantavam com esforço e andavam devagar até a cozinha para começar a fazer o jantar, continuavam a conversar enquanto picavam cebolas e descascavam batatas, com doze anos de diferença entre os dois, o que paradoxalmente representava muito mais do que os quinze anos que, na idade, separavam Sydney e Mildred, mas apesar de tudo Ferguson e Sydney eram mais próximos em espírito do que Sydney em relação a Mildred, era o que Ferguson sentia, dois bobos, em contraste com a intelectual superculta da Universidade de Stanford, antes uma questão de temperamento do que de idade, ele imaginou, mas, às seis e meia, quando Mildred finalmente chegava em casa, Ferguson prestava mais atenção na maneira como as duas mulheres agiam com ele, ciente de que a tia estava fingindo não estar envolvida com Sydney, como ele sabia que estava, ao passo que Sydney teimosamente ignorava a ordem para fingir, demonstrava carinhos que pareciam deixar Mildred cada vez mais incomodada à medida que os dias iam passando, os queridas e benzinhos e doçuras que, sem dúvida nenhuma, teriam agradado muito a ela se Ferguson não estivesse sentado à mesa, e, depois de cinco dias, Ferguson teve a sensação de que as duas estavam aprisionadas em uma briga muda, provocada por sua presença, e na noite do sexto dia, que foi a véspera do último dia de sua visita, a cada vez mais aflita e mal-humorada Mildred acabou bebendo vinho demais no jantar e perdeu a compostura — perdeu porque queria perder e precisava do vinho para conseguir vencer aquela barreira —, e o surpreendente em sua explosão foi que ela não atacou Sydney, mas sim o sobrinho, como se ele fosse a causa de seus problemas, e na hora em que o ataque começou, Ferguson entendeu que Sydney tinha contado a seu respeito pelas suas costas, que a vaqueira o havia traído.

Desde quando você virou um búlgaro, Archie?, disse Mildred.

Um búlgaro?, perguntou Archie. Do que você está falando?

Você leu Cândido, não leu? Não se lembra dos búlgaros?

Não estou entendendo.

Os sodomitas búlgaros. É daí que vem a palavra, você sabe. Búlgaro, bugger, que quer dizer sodomita.

E o que isso quer dizer?

Homens que trepam com outros homens.

Ainda não sei do que você está falando.

Um passarinho me contou que você andou trepando com outros meninos. Ou que talvez outros meninos andaram trepando com você.

Um passarinho?

Nesse ponto, Sydney entrou na conversa e disse: Deixe o garoto em paz, Mildred. Você está bêbada.

Não estou, não, retrucou Mildred. Estou levemente intoxicada e isso me dá o direito de dizer a verdade, e a verdade, nesse caso, meu adorado Archie, é que você é jovem demais para seguir esse caminho agora, e que se você não se controlar, vai acabar virando um veado completo antes que você mesmo perceba, e aí não há mais como voltar atrás. Já temos gente assim demais na família, eu receio, e a última coisa de que precisamos é de mais um.

Sem pronunciar nenhuma palavra, Ferguson se levantou da mesa e começou a sair da sala.

Aonde está indo?, perguntou Mildred.

Para longe de você, respondeu Ferguson. Você não tem a menor ideia do que está falando, e eu não tenho por que ficar aqui sentado escutando suas besteiras.

Ah, Archie, disse Mildred, volte aqui. Temos de conversar.

Não temos, não. Já estou cheio de conversar com você.

Ferguson saiu batendo os pés no chão, lutando para conter as lágrimas que se acumulavam nos olhos, e, quando chegou ao saguão na frente da casa, virou-se para esquerda e seguiu pelo corredor ladrilhado até alcançar o quarto de hóspedes, no final. De longe, ele ouvia que Mildred e Sydney estavam discutindo, mas não queria escutar o que estavam dizendo, e, na hora em que entrou no quarto e fechou a porta, as vozes delas ficaram abafadas demais para que ele pudesse identificar alguma palavra.

Ferguson sentou-se na cama, colocou as mãos sobre o rosto e começou a chorar.

Chega de compartilhar segredos, disse para si mesmo, chega de confissões desprevenidas, chega de confiar nas pessoas que não merecem confiança. Se ele não podia dizer o que queria dizer diante de pessoa nenhuma, então ia ficar de boca fechada e não ia falar nada para ninguém.

Agora ele compreendia por que a mãe sempre tinha admirado tanto a irmã mais velha — e por que a mãe sempre se decepcionou com ela. Tanta inteligência, disse Ferguson para si mesmo, tanto senso de humor, quando estava disposta ao bom humor, tanta generosidade, quando estava disposta a ser generosa, só que Mildred podia ser maldosa, mais maldosa do que qualquer outra pessoa na face da Terra, e agora que Ferguson tinha sido alvo daquela maldade, não queria ter mais nada a ver com ela e, dali em diante, riscaria o nome da tia de sua lista. Chega de tia Mildred, e chega de Sydney Millbanks, que tinha parecido tão promissora como amiga — mas como é que ele podia ser amigo de alguém que parecia seu amigo, mas não era?

Passados alguns momentos, Sydney estava batendo na porta. Ele sabia que era Sydney, porque ela chamou seu nome, perguntou se ele estava bem, perguntou se não podia entrar e falar com ele, mas Ferguson respondeu que não, ele não queria ver Sydney nem falar com ela, queria que ela o deixasse em paz, mas infelizmente a porta não tinha tranca e Sydney acabou entrando de todo jeito, abriu a porta aos pouquinhos, até que Ferguson pudesse ver seu rosto e as lágrimas que desciam em suas faces, e então ela acabou entrando de uma vez, pediu desculpas pelo que tinha feito, dizia desculpe, desculpe, desculpe.

Vá à merda, passarinho, disse Ferguson. Não quero nem saber das suas desculpas. Só me deixe em paz.

Sou uma linguaruda idiota, disse Sydney. Quando começo a falar, nunca sei quando é hora de parar. Eu não queria isso, Archie, juro, eu não queria.

Claro que queria. Contar um segredo já é bastante ruim, mas mentir é pior ainda. Então não comece agora a mentir, está bem?

O que posso fazer para melhorar as coisas, Archie?

Nada. Vá embora, só isso.

Por favor, Archie. Deixe que eu faça alguma coisa por você.

Além de sair deste quarto, só há uma coisa que eu quero.

Diga o que é, que você vai ter.

Uma garrafa de uísque.

Não está falando sério.

Uma garrafa de uísque, de preferência fechada, e se estiver aberta, então que esteja bem cheia.

Você vai passar mal.

Escute, Sydney, ou você traz a garrafa para mim ou eu mesmo vou lá pegar. Mas prefiro não ir lá agora, porque minha tia está na sala e eu não quero ver a cara dela.

Tudo bem, Archie. Só um instante.

Assim Ferguson conseguiu sua garrafa de uísque, pela metade, Johnnie Walker Red Label, entregue em mãos por Sydney Millbanks, uma garrafa vazia até a metade, que Ferguson preferiu fingir que era uma garrafa cheia até a metade, e quando Sydney saiu do quarto de novo, ele começou a beber o uísque e continuou bebendo, em goles pequenos, vagarosos, até as primeiras lascas da alvorada atravessarem as fendas da veneziana e a garrafa ficar vazia, e, pela segunda vez naquele ano, Ferguson vomitou no chão da casa de outra pessoa e desmaiou.

Paris foi diferente. Paris foi só a sensação de estar em Paris e de vagar pelas ruas com a mãe e com Gil, ir ao vernissage da primeira exposição individual da mãe, na Galerie Vinteuil, na Rue Bonaparte, as duas noites que eles passaram com uma velha amiga de Gil chamada Vivian Schreiber, a descoberta de que, apesar de suas notas B e B+ na Riverside Academy, ele havia aprendido francês suficiente para se virar sozinho no idioma, a conclusão de que Paris era a cidade onde ele gostaria de morar um dia. Depois de um verão vendo filmes franceses antigos e novos, era impossível percorrer as ruas de Montmartre sem pensar que podia topar com o jovem Antoine Doinel, personagem do filme Os incompreendidos, era impossível descer pelos Champs-Élysées sem a esperança de esbarrar com a deslumbrante Jean Seberg, andando para lá e para cá, com a sua camiseta branca, vendendo exemplares do Herald Tribune pela calçada — o mesmo jornal onde seu padrasto trabalhava! — ou rodar pelas margens do Sena e fuçar as barraquinhas dos bouquinistes sem se lembrar do livreiro gorducho que mergulha no rio para resgatar o vagabundo Michel Simon, no filme Boudu, salvo das águas. Paris era o filme de Paris, um amontoado de todos os filmes de Paris que Ferguson tinha visto, e como era inspirador descobrir que agora ele estava num lugar real, real em toda sua realidade suntuosa e estimulante, e mesmo assim podia caminhar com a sensação de que era também um lugar imaginário, um lugar que estava na sua cabeça e também no ar que envolvia seu corpo, um aqui e agora simultâneo, um passado em branco e preto e um presente muito colorido, e Ferguson tinha todo prazer de ficar indo e voltando entre uma coisa e outra, e seus pensamentos, às vezes, se moviam tão velozmente que os dois lados se misturavam numa coisa só.

Era incomum que uma exposição começasse no fim de agosto, quando metade da população de Paris saía da cidade, mas era a única data vaga na agenda da galeria — 20 de agosto até 20 de setembro —, e a mãe de Ferguson aceitou, muito contente, pois sabia que o diretor tinha feito todo o possível para encaixar sua exposição na programação da galeria. Ao todo, quarenta e oito fotografias, mais ou menos metade eram fotos já publicadas e o resto fazia parte de um livro novo, que seria publicado no ano seguinte, Cidade silenciosa. Ferguson já sabia que ele era o tema de uma das fotos, mas mesmo assim, quando entrou na galeria, achou um pouco perturbador ver a si mesmo pendurado na parede, lá do outro lado, a antiga e conhecida fotografia que sua mãe havia tirado sete anos antes, nos tempos anteriores ao Gil, quando moravam no apartamento em Central Park Oeste, uma imagem de corpo inteiro, tirada pelas costas, ele sentado no chão da sala vendo O Gordo e o Magro na televisão, seu torso aos oito anos de idade envolto numa camiseta listrada, de manga curta, e o comovente na fotografia, que tinha por título o nome Archie, era a curva de suas costas magras, cada vertebra da coluna sobressaía no pano da camiseta, criando o efeito pele-e-osso que sublinhava a vulnerabilidade infantil, o retrato de um ser exposto, um menininho encerrado numa concentração total diante dos dois palhaços de chapéu-coco na tela, e portanto esquecido de tudo o mais à sua volta, e como Ferguson se sentiu orgulhoso da mãe por ter produzido uma fotografia tão boa, que poderia não passar de uma foto instantânea banal, mas não era, como também acontecia com as outras quarenta e sete fotografias expostas naquela noite, e, quando Ferguson olhou para sua própria pessoa jovem e sem rosto, sentada no chão de um apartamento onde eles já não moravam mais, ele não pôde deixar de voltar aos meses do interregno curioso e ao desastre na Hilliard School e recordar como sua mãe havia, no final, tomado o lugar de Deus em sua mente, como o ser supremo, a encarnação do espírito divino, uma divindade falha e mortal, propensa a ataques de mau humor e às confusões agitadas que afligiam todos os seres humanos, mas Ferguson adorava a mãe porque era a única pessoa que nunca o decepcionava e, por mais vezes que ele mesmo a decepcionasse ou se portasse abaixo do que deveria, sua mãe nunca deixou de amá-lo e nunca deixaria de amá-lo até o fim da vida.

Bonita e tensa, disse Ferguson para si mesmo enquanto olhava a mãe sor­rir, fazer que sim com a cabeça e apertar a mão dos convidados para o vernissage, que atraiu mais ou menos cem pessoas, apesar das férias de agosto, um bando barulhento, espremido na acanhada sala de exposição da galeria, barulhento porque as oito ou nove dúzias de pessoas que tinham ido até lá estavam, aparentemente, mais interessadas em falar umas com as outras do que em ver as fotos na parede, mas aquele foi o primeiro vernissage a que Ferguson compareceu na vida, e ele não estava familiarizado com os protocolos de tais reuniões, as hipocrisias sofisticadas dos supostos amantes da arte que iam a uma exposição a fim de ignorar as obras expostas, e se o jovem garçom que servia bebidas numa mesa num canto não tivesse a gentileza de servir para Ferguson uma taça de vin blanc, seguida de outra taça, vinte minutos depois, ele poderia ter ido para a rua em sinal de protesto, pois aquele era o grande momento de sua mãe e ele queria que todo mundo ali se fixasse na obra de Rose Adler, queria que todos fossem afetados por aquela obra a tal ponto que acabariam prostrados, num estado de mudez e assombro e, como aquilo não aconteceu, Ferguson ficou parado num canto, sentindo-se irritado e frustrado, inexperiente demais para entender que os pontinhos vermelhos colados ao lado das molduras, na parede, significavam que aquelas fotografias tinham sido vendidas e que sua mãe estava num excelente estado de humor naquela noite, nem um pouco aborrecida com o falatório e com a barulheira daquela gente rude e ignorante.

No meio do seu segundo vin blanc, Ferguson viu Gil deslizando no meio do bando com o braço nos ombros de uma mulher. Os dois vinham na sua direção, avançavam a passos firmes rumo à mesa de bebidas, a despeito dos corpos no meio do caminho e, quando chegaram perto o suficiente para que Ferguson visse que os dois estavam sorrindo, lhe veio à cabeça que a mulher devia ser a velha amiga de Gil, Vivian Schreiber. Gil já havia lhe contado alguma coisa a respeito dela, mas Ferguson não tinha prestado muita atenção e gravara pouca coisa daquela história, que era bastante complicada, disso ele se lembrava, tinha a ver com a guerra e com o irmão mais velho de Vivian, Douglas Gant ou Grant, que tinha trabalhado na unidade de Inteligência de Gil e era seu melhor amigo, e de algum jeito Gil tinha mexido os pauzinhos para permitir que Vivian, irmã muito mais jovem do seu amigo de Exército, também muito mais jovem do que ele, entrasse na França em setembro de 1944, apenas um mês depois da libertação de Paris e três meses depois que ela se formou numa universidade nos Estados Unidos. As razões pelas quais Vivian precisava ir para a França eram uma questão obscura para Ferguson, mas, pouco depois que ela chegou, casou-se com Jean-Pierre Schreiber, cidadão francês de pais judeus alemães, nascido em 1903 (o que fazia dele um homem vinte anos mais velho do que Vivian), que tinha conseguido não ser preso pelos alemães nem pela polícia de Vichy, viajando para a neutra Suíça dias antes da invasão da França, e, segundo o que Gil contou para Ferguson, Schreiber era rico, ou tinha sido rico, ou logo ficou rico outra vez, por causa do renascimento do negócio de exportação de vinho de sua família, ou fabricação de vinho, ou fabricação de garrafas de vinho, ou alguma outra empresa comercial que nada tinha a ver com plantar ou vender uvas. Um casamento feliz, mas sem filhos, disse Gil, que durou até o fim de 1958, quando o jovial e elegante Schreiber, inesperadamente, caiu morto na hora em que corria para pegar um avião no aeroporto de Orly, o que fez de Vivian uma viúva jovem, e agora que ela havia vendido sua parte do negócio do marido para os sobrinhos dele, era uma viúva jovem e rica e, acrescentou Gil, a mulher mais charmosa e mais inteligente de Paris, uma grande amiga.

Todos esses fatos e pedaços de fatos ou possíveis antifatos giravam dentro da cabeça de Ferguson enquanto Gil e Vivian Schreiber se aproximavam do lugar onde ele estava. Sua primeira impressão da grande amiga foi de que ela era uma das três ou quatro mulheres mais bonitas que ele tinha visto na vida. Então, quando ela chegou mais perto e Ferguson pôde distinguir suas feições com mais precisão, se deu conta de que ela era menos bela do que impressionante, uma mulher de trinta e oito anos que emanava uma aura radiante de segurança e naturalidade, cujas roupas, maquiagem e cabelo tinham um arranjo tão despretensioso e elegante que pareciam não ter exigido nenhum esforço da parte dela para alcançar o efeito que alcançavam, uma mulher que não ocupava simplesmente um espaço na sala onde todos eles estavam, mas parecia dominar a sala, ser dona da sala, como certamente seria a dona de todas as salas do mundo em que por acaso entrasse. Logo depois, Ferguson apertou a mão dela e fitou seus olhos grandes e castanhos e sentiu o cheiro bom do perfume que pairava em torno de seu corpo, enquanto ouvia sua voz extraordinariamente profunda, que dizia que era uma honra conhecê-lo (uma honra!), e de repente tudo começou a brilhar com mais força dentro de Ferguson, pois certamente Vivian Schreiber era uma pessoa excepcional e conhecê-la havia de ter um grande peso na sua triste e corriqueira vida de um garoto de quinze anos.

Vivian estava presente no jantar que ocorreu depois da exposição, mas havia doze pessoas à mesa no restaurante e Ferguson ficou longe demais dela para ter oportunidade de conversar, por isso se contentou em olhar para ela ao longo do jantar, observando como as pessoas em volta de Vivian Schreiber escutavam com atenção o que ela dizia, como ela sempre dava alguma contribuição para a conversa e, uma ou duas vezes, voltou os olhos para ele e viu que Ferguson também estava olhando para ela, e Vivian sorriu; porém, afora isso, e afora o rumor que correu até sua ponta da mesa de que Vivian tinha comprado seis fotografias de sua mãe (inclusive Archie), não houve contato entre os dois naquela noite. Três noites depois, quando Ferguson, a mãe e Gil se encontraram com Vivian para jantar no La Coupole, não houve obstáculos para a livre troca de palavras, mas, por algum motivo, Ferguson sentia-se tímido e tolhido na presença dela e pouco se manifestou, preferindo escutar a conversa dos três adultos, que tinham muito a dizer sobre vários assuntos, inclusive as fotografias da mãe, que Vivian elogiou como sublimemente humanas e inquietantemente diretas, e sobre o irmão mais velho de Vivian, Douglas Gant ou Grant, que era biólogo marinho em La Jolla, na Califórnia, e sobre os progressos de Gil em seu livro sobre os quartetos de cordas de Beethoven, e sobre o trabalho da própria Vivian no livro que estava escrevendo acerca de um pintor do século XVIII chamado Chardin (ainda desconhecido para Ferguson, naquela altura, mas quando ele partiu de Paris, quatro dias depois, já tinha cumprido a missão de ver todos os quadros de Chardin no Louvre e havia absorvido o misterioso fato de que contemplar um copo de água ou um jarro de barro ou uma lona pintada podia ser mais envolvente e relevante para a alma do que olhar para o filho de Deus crucificado num daqueles retângulos pintados, todos parecidos), porém, embora Ferguson tivesse ficado em silêncio na maior parte do jantar, estava atento e feliz, completamente envolvido no que os outros diziam, e como apreciava estar sentado à mesa no La Coupole, aquele restaurante enorme e cavernoso, com toalhas de mesa brancas e garçons ríspidos em seus uniformes pretos e brancos, e todo mundo em volta falava ao mesmo tempo, tanta gente falava e olhava uns para os outros ao mesmo tempo, a mulher cheia de ruge, com seus cachorrinhos, e o homem de aspecto sombrio que não parava de fumar seus Gitanes, e os casais estranhamente enfeitados que pareciam estar ali para fazer um teste para atores de uma peça em que representariam os papéis principais, o palco de Mont­parnasse, como Vivian chamava, o interminável jeux du regard, e lá estava Giacometti, disse ela, e lá estava o ator que representava todas as peças de Beckett, e lá estava outro artista cujo nome não significava nada para Ferguson, mas que devia ser uma figura famosa e conhecida de todo mundo em Paris, e, como eles estavam em Paris sua mãe e Gil deixaram que Ferguson bebesse vinho no jantar, e que luxo estar num lugar onde ninguém se importava com a idade da gente, e, várias vezes durante o tempo que eles ficaram naquela mesa de canto no restaurante, Ferguson se recostou um pouco para trás e observou a mãe, Gil e a luminosa Vivian Schreiber e se viu desejando que os quatro pudessem continuar sentados ali para sempre.

Mais tarde, quando Gil e sua mãe iam pôr Vivian num táxi, a jovem viúva segurou o rosto de Ferguson na mão, beijou-o nas duas bochechas e disse: Volte para me ver quando for um pouco mais velho, Archie. Acho que vamos ser bons amigos.

Entre as viagens para a Califórnia e para Paris, houve um verão quente em Nova York, as partidas de basquete ao ar livre em Riverside Park, as quatro ou cinco noites por semana em salas de cinema com ar-condicionado, os romances americanos, grandes e pequenos, que Gil continuava a deixar na sua mesinha de cabeceira, e o pobre plano que o mantinha preso em Nova York, quando todos seus colegas de escola tinham viajado para algum lugar, em julho e agosto, sem falar no Jim, de dezenove anos, que estava trabalhando como conselheiro numa colônia de férias em Massachusetts, e a sempre esquiva e desnorteante Amy, que conseguiu dar um jeito de embarcar para Vermont a fim de participar de um programa de dois meses de imersão total na língua francesa, o que era exatamente o que Ferguson deveria ter feito e, sem dúvida, teria feito se tivesse tido o bom senso de propor aquilo para a mãe e Gil, que quase certamente poderiam ter bancado o curso, que o tio Dan e a tia Liz não podiam bancar, mas Amy, com sua boa conversa, havia conseguido arrancar da avó, em Chicago, e do bode velho, no Bronx, o dinheiro necessário, e assim lá estava ela, mandando para Ferguson cartões-postais zombeteiros e provocadores, das matas da Nova Inglaterra (Cher Cousin, A palavra “con” em francês não significa o que pensei que significava. O equivalente em inglês seria “bobão” ou “babaca” — e não é isso que você está pensando. Ao passo que “queue”, que significa “rabo”, também significa, em francês, você sabe o quê. E isso me faz lembrar: Como anda o meu bobão predileto em Nova York neste momento? Está quente demais para você, Archie, ou esse suor que vejo na sua testa é fingimento? Baisers à mon bien-aimé, Amy), enquanto Ferguson penava no calor escaldante de Manhattan, aprisionado em mais um período sem amor, de masturbações e fantasias, e de cruéis e persistentes sonhos eróticos.

O assunto principal em casa naquele verão era o Lincoln Center e a discussão prolongada entre Gil e seus colegas sobre o novo Philharmonic Hall, que finalmente seria inaugurado no dia 23 de setembro. O monstrengo purulento (como o avô de Ferguson chamava) fazia parte da paisagem entre as ruas 60 e 70 Oeste desde quando Ferguson e sua mãe tinham ido morar em Nova York — uma gigantesca clareira de trinta acres, de onde foi removida uma favela, um projeto financiado com o dinheiro de Rockefeller, que arrasou centenas de prédios e expulsou a pontapés milhares de pessoas de seus apartamentos para abrir caminho para aquilo que era chamado de novo eixo cultural. Todas aquelas montanhas de entulho e tijolos, todas aquelas escavadeiras e bate-estacas, e os buracos no chão, todas aquelas explosões pelo bairro durante tantos e tantos anos, e agora o primeiro prédio do complexo do Lincoln Center, de dezesseis acres, estava quase pronto, a controvérsia estava prestes a se tornar uma das mais ferozes e clamorosas polêmicas públicas na história da cidade. Tamanho contra equilíbrio acústico, arrogância e prepotência contra matemática e razão, e Gil estava no meio daquela história toda, porque a rixa tinha sido provocada pelo Herald Tribune, em especial por duas pessoas que trabalhavam mais estreitamente ligadas ao jornal, o editor de arte Victor Lowry e o crítico musical titular Barton Crosetti, que havia conduzido uma campanha agressiva para ampliar o número de assentos nos projetos iniciais da nova sala, porque, insistiam eles, uma grande metrópole como Nova York merecia algo maior e melhor. Maior, sim, argumentou Gil, mas melhor não, pois o projeto acústico tinha sido calibrado para um auditório de dois mil e quatrocentos lugares, e não de dois mil e seiscentos, e ainda que os arquitetos e engenheiros responsáveis pelo plano tenham dito que a qualidade do som ficaria diferente, o que era outro jeito de dizer pior ou inaceitável, a prefeitura acabou cedendo às exigências do Herald Tribune e aumentou o tamanho da sala. Gil encarou a capitulação como uma derrota para o futuro da música orquestral em Nova York, mas agora que a versão ampliada do prédio estava quase terminada, o que poderia ele fazer senão torcer para que o resultado fosse menos desastroso do que temia? E se não fosse pior, ou seja, se o resultado fosse apenas tão ruim quanto ele esperava, então Gil iria lançar uma campanha por conta própria, dizia ele, e mergulhar de cabeça num esforço para ajudar a salvar o Carnegie Hall, que a prefeitura já tinha intenção até de demolir.

Naquele verão, a piada na família era: Como é que se soletra a palavra “eixo”? Resposta: l-i-x-o.

Gil podia brincar desse jeito porque a única alternativa era ficar furioso, e andar para lá e para cá, cheio de raiva, era um jeito ruim de viver, explicou Gil para Ferguson, era inútil e autodestrutivo, além de ser cruel para as pessoas que dependem de nós, que precisam que a gente não sinta raiva, sobretudo quando o motivo de nossa raiva é uma coisa que não podemos controlar.

Você entende o que estou tentando dizer, Archie?, perguntou Gil.

Não tenho certeza, respondeu Ferguson. Acho que entendo.

(Não tenho certeza: uma sutil referência à erupção vulcânica de Gil contra Margaret, no antigo apartamento em Central Park Oeste. Acho que entendo: o reconhecimento de que, depois daquela noite, ele não viu mais o padrasto perder o controle dos nervos em grande escala. Só poderia haver dois motivos para explicar a mudança em Gil: (1) seu caráter tinha melhorado com o tempo; (2) seu casamento com a mãe de Ferguson o havia transformado num homem melhor, mais calmo, mais feliz. Ferguson preferiu acreditar na segunda alternativa — não só porque queria acreditar nisso, mas também porque sabia que era a resposta correta.)

Não que a questão não seja importante para mim, prosseguiu Gil. Minha vida toda é a música. Minha vida toda é escrever sobre a música executada nesta cidade, e, se essas apresentações vão ser piores agora, por causa de decisões estúpidas tomadas por alguns cabeças de bagre, mesmo que com boas intenções — alguns deles são meus amigos, lamento dizer —, então, é claro, eu vou ficar furioso, e tão furioso que já cheguei até a pensar em me demitir do jornal, só para que eles saibam como eu levo a sério essa história. Mas o que isso ia me trazer de bom — ou para você, ou para sua mãe, ou para qualquer pessoa? Acho que a gente conseguiria se virar sem o meu salário do jornal, se necessário, mas a realidade é que eu adoro meu trabalho e não quero me demitir.

Você não deve se demitir. Pode haver problemas lá no jornal, mas você não deve se demitir.

De todo jeito, essa história não vai durar muito tempo mais. O Herald Tribune está afundando financeiramente, e duvido que se aguente por mais de dois ou três anos. Então, eu posso muito bem afundar junto com o navio. Um membro leal da tripulação, até o fim, ao lado do capitão louco que nos conduziu para águas tão perigosas.

Você está brincando, não é?

Desde quando você me viu brincar, Archie?

O fim do Herald Tribune. Eu me lembro da primeira vez que você me levou lá, e me lembro de como adorei, como ainda continuo adorando toda vez que vamos juntos àquele prédio. É difícil acreditar que ele não vai mais existir. Eu cheguei até a pensar... bem, deixa pra lá...

Pensou o quê?

Não sei... que um dia... agora, parece tão idiota... que um dia eu podia acabar trabalhando lá também.

Que ideia maravilhosa. Isso me deixa comovido, Archie... profundamente comovido... Mas por que um garoto com todos os seus talentos ia querer ser jornalista?

Não jornalista, mas crítico de cinema. Do mesmo jeito que você escreve sobre música, concertos, talvez eu pudesse escrever sobre filmes.

Eu sempre achei que você ia acabar fazendo seus próprios filmes.

Acho que não.

Mas você gosta tanto de cinema...

Adoro ver filmes, mas não sei se eu iria gostar de fazer filmes. Toma tempo demais fazer um filme, e durante esse tempo não sobra tempo para ver outros filmes. Entende o que estou dizendo? Se a coisa de que mais gosto é ver filmes, então o melhor emprego para mim seria ver o maior número de filmes que eu puder.

Já fazia quase um mês que o ano letivo tinha começado quando a sala nova foi inaugurada com um concerto de gala, apresentado pela Filarmônica de Nova York sob a regência de Leonard Bernstein, um evento considerado tão importante que foi transmitido ao vivo pela CBS — uma transmissão nacional, ao vivo, irradiada para todos os lares dos Estados Unidos. Nos dias seguintes, outros concertos foram apresentados por algumas das orquestras sinfônicas mais admiradas do país (de Boston, da Filadélfia, de Cleveland), e no fim da semana tanto a imprensa como o público tinham dado seu veredicto sobre as virtudes acústicas da principal atração do Lincoln Center. FRACASSO FILARMÔNICO, dizia uma manchete. FRUSTRAÇÃO FILARMÔNICA, dizia outra. FIASCO FILARMÔNICO, dizia uma terceira. Essa repetição da letra F pareceu irresistível aos editores dos jornais, pois caía como uma luva nas frases tanto dos indignados amantes da música quanto dos eternos “do contra” e dos piadistas de mesa de bar. Algumas pessoas discordaram, no entanto, afirmaram que os resultados não eram tão ruins assim e, desse modo, começou a ruidosa disputa entre favoráveis e contrários, o debate incivilizado que continuaria a impregnar o ar de Nova York por meses e anos dali em diante.

Ferguson acompanhou aqueles acontecimentos por força de sua lealdade a Gil, satisfeito de ver que seu padrasto estava do lado vencedor do debate, a despeito do mal que a sala defeituosa pudesse causar aos tímpanos dos mecenas da música clássica da cidade, e num domingo à tarde ele chegou a ficar na frente do Carnegie Hall, com a mãe, segurando um cartaz que dizia POR FAVOR, ME SALVEM, mas na maior parte do tempo Ferguson não estava ligando, tinha os pensamentos todos voltados para as exigências do colégio e para a interminável busca de amor, mesmo quando todos os jornais de Nova York fecharam durante a greve dos gráficos, que durou do início de dezembro até o último dia de março — que ele preferiu encarar como um repouso merecido para Gil.

Amy tinha rompido com o namorado do ano anterior, que Ferguson nunca chegou a conhecer e cujo nome ele nem sequer sabia, mas ela acabou encontrando um novo ami intime durante seu verão francófono em Vermont, alguém que morava em Nova York e, portanto, estava disponible pour les rencontres chaque weekend, o que mais uma vez jogou Ferguson para escanteio, deixando-o sem condições sequer de pensar em um novo assalto à fortaleza do coração de Amy. O mesmo valia para as garotas atraentes na Riverside Academy — todas trancadas e fora de alcance, como no ano anterior, o que significava que Isabel Kraft ainda não era nada mais do que uma sílfide fantasma que corria pela floresta da imaginação de Ferguson, uma mera fantasia, sob a luz de suas angústias noturnas — mais real do que a Miss Setembro, talvez, mas não muito.

Se ao menos Andy Cohen não tivesse dito aquelas palavras na primavera anterior, pensava Ferguson às vezes, se ao menos a relação simples que havia entre eles não tivesse se tornado tão confusa e impossível. Não que ele sequer gostasse de Andy Cohen, mas do jeito que estavam as coisas no seu segundo ano de colégio, aquelas farras nas tardes de sábado na rua 107 Oeste estavam começando a fazer sentido outra vez, pelo menos quando ele pensava em como era bem melhor ficar com alguém do que ficar sem ninguém. Por outro lado, a musa de Onã nunca vinha a Ferguson na forma de um corpo masculino. Era sempre uma personagem feminina que se esgueirava por baixo da coberta da sua cama, pois quando não era Isabel Kraft que saía de dentro de seu biquíni e apertava sua pele contra a pele dele, então era Amy ou ainda — e isso Ferguson achava bem maluco — era Sydney Millbanks, a jovem vaqueira de duas caras que o apunhalou pelas costas, ou Vivian Schreiber, que lhe disse mais ou menos quarenta e sete palavras e tinha idade suficiente para ser sua mãe, mas lá estavam elas, as duas mulheres de suas viagens pelos continentes e oceanos, em julho e agosto, e não havia nada que ele pudesse fazer para impedir tanto uma quanto a outra de penetrar em seus sonhos à noite.

O contraste parecia bastante claro, uma fronteira rigorosa entre o que ele queria e o que as circunstâncias permitiam que tivesse, a carne macia de mulheres que necessariamente tinham de ser adiadas por mais um ou dois anos, e o pau duro de garotos que podiam ser desfrutados agora, se a oportunidade aparecesse, o impossível em oposição ao possível, fantasias noturnas em oposição a realidades diurnas, amor de um lado e luxúria adolescente do outro, tudo tão bem definido e sem ambiguidade, mas aí ele descobriu que a fronteira era menos definida do que supunha, que o amor podia existir dos dois lados daquela fronteira mental e podia fazer com ele aquilo que a jovem vaqueira disse que tinha feito com ela, e entender isso sobre si mesmo, depois de rechaçar o amor indesejado de Andy Cohen, veio como um choque para Ferguson — e o deixou assustado, tão assustado que ele mal parecia saber quem era agora.

No fim de setembro, ele partiu de Nova York mais uma vez, e de novo para um lugar distante, viajou para Cambridge, no Massachusetts, a fim de passar o fim de semana com seu primo Jim. Dessa vez não foi de avião, mas por terra, em dois ônibus para Boston, numa viagem de cinco horas e meia, com uma parada em Springfield, sua primeira viagem de longa distância em ônibus, e depois dormiu duas noites no alojamento de Jim, no MIT, acampado na cama normalmente ocupada pelo colega de quarto do primo, que tinha saído do campus na sexta-feira de manhã e só voltaria no domingo à noite. O plano era meio nebuloso. Ver as paisagens, jogar um pouco de basquete no ginásio na manhã de sábado, visitar uns laboratórios no MIT, dar uma olhada no campus de Harvard, dar uma volta por Back Bay e por Copley Square, em Boston, almoçar ou jantar em Harvard Square, ir ao cinema no Brattle Theatre — um tipo de fim de semana improvisado, sem programação fixa, disse Jim, pois o propósito da visita era dar umas voltas por aí e passar um tempo juntos e o que acabassem fazendo não tinha muita importância. Ferguson ficou animado. Não, mais do que animado — vibrando de expectativa, e a mera ideia de passar o fim de semana com Jim imediatamente afastou as nuvens do céu carregado que ele tinha acima da cabeça e o transformou num azul radioso. Ninguém era melhor do que Jim, ninguém era mais gentil e mais generoso do que Jim, ninguém era mais admirável do que Jim, e durante toda a viagem de ônibus para Boston, Ferguson pensava em como tinha sorte de estar na mesma família que seu notável primo adotivo. Ele o adorava, Ferguson disse para si mesmo, ele o adorava sem reservas, e sabia que Jim também o adorava, por causa de todas aquelas manhãs de sábado em River­side Park, quando Jim ensinava ao nanico garoto de doze anos como jogar basquete, quando havia cem outras coisas que ele poderia fazer, ele adorava Jim por que ele o havia convidado para ir a Cambridge sem nenhuma razão a não ser dar umas voltas por aí e passar um tempo juntos, e agora que Ferguson tinha sentido o gostinho dos prazeres das intimidades garoto-garoto, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para se ver nu nos braços de Jim, ser beijado por Jim, ser acariciado por Jim, sim, ser sodomizado por Jim, que era uma coisa que jamais aconteceu com o garoto do City College na primavera anterior, pois ele faria tudo o que que Jim quisesse, já que aquilo era amor, um grande e ardente amor, que continuaria a arder pelo resto de sua vida, e se Jim se revelasse o tipo de garoto ambidestro em que ele mesmo parecia estar se transformando, o que era absolutamente improvável, é claro, então um beijo de Jim o levaria até os portões do paraíso e, sim, eram essas as palavras que Ferguson dizia para si mesmo quando pensava no assunto durante a viagem para Boston: os portões do paraíso.

Foi o fim de semana mais feliz de sua vida — e também o mais triste. Feliz porque estar com Jim lhe deu a sensação de estar protegido, seguro no nimbo confortável da calma do outro rapaz, e a todo momento ele podia ter a certeza de ser ouvido com a mesma atenção com que ouvia Jim, que nunca o deixava com a sensação de ser inferior, ou menor, ou sem importância. Os fartos cafés da manhã na lanchonetezinha no outro lado do rio Charles, a conversa sobre o programa espacial, os enigmas matemáticos e os enormes computadores que, um dia, seriam tão pequenos que caberiam na palma da mão, o programa duplo com Bogart, nos filmes Casablanca e Uma aventura na Martinica, no cinema Brattle Theatre no sábado à noite, tantas coisas às quais ser grato durante as longas horas que passaram juntos entre sexta-feira e a tarde de domingo, mas ao longo de todo o tempo havia a dor constante de saber que o beijo que ele queria nunca seria dado, que ter Jim era também não ter Jim, que ter e não ter significava nunca expor seu sentimento verdadeiro sem correr o risco de perecer no fogo eterno da humilhação. O pior de tudo: ver o corpo nu do primo no vestiário depois de ter jogado basquete com ele, os dois sozinhos na quadra, ficarem nus juntos, sem a menor possibilidade de estender o braço e pôr os dedos no corpo musculoso e magro de seu amor proibido, e depois, na manhã de sábado, a tática atrevida de Ferguson para testar a temperatura ambiente, caminhando sem nenhuma roupa pelo dormitório durante mais de uma hora, tentado a perguntar se Jim não queria uma massagem, mas sem se atrever a isso, tentado a se sentar na cama dele e começar a se masturbar na sua frente, mas sem ter coragem, esperando que sua nudez fosse provocar alguma reação do seu primo absolutamente heterossexual, o que nem é preciso dizer que não aconteceu, pois Jim já estava apaixonado por outra pessoa, uma garota de Mount Holyoke chamada Nancy Hammerstein, que veio de carro no domingo para almoçar com eles, uma garota de primeira, inteligente de sobra, que viu em Jim a mesmíssima coisa que Ferguson via, e assim, mesmo em meio à sua felicidade, Ferguson sofreu demais naquele fim de semana, louco pelo beijo que nunca receberia e ciente de como se iludia ao desejar tal beijo, e, já sentado no ônibus no caminho de volta para Nova York, no domingo, ele chorou um pouco, depois chorou muito quando o sol se pôs e a escuridão envolveu o ônibus. Andava chorando cada vez mais nos últimos dias, ele se deu conta... e quem era ele?, não parava de se perguntar... e o que era ele?... e por que diabo ele insistia em tornar a própria vida tão difícil?

Ele tinha de superar aquilo ou então morrer, e, como Ferguson não se sentia pronto para morrer aos quinze anos e meio de idade, fez o que pôde para superar a situação, mergulhando de cabeça, com um fervor disperso, num redemoinho de buscas contraditórias. Na época em que começou a crise dos mísseis de Cuba, que terminou duas semanas depois, sem que lançassem nenhuma bomba nem declarassem guerra nenhuma, sem que deixassem para trás nenhuma outra guerra senão a sempre presente Guerra Fria de longa duração, Ferguson havia publicado sua primeira crítica de cinema, tinha fumado seu primeiro cigarro e perdido a virgindade com uma prostituta de vinte anos de idade num pequeno bordel na rua 82 Oeste. Na manhã seguinte, ele jogou no time de basquete da Riverside Academy, mas, na condição de um dos três únicos alunos do segundo ano na equipe de dez jogadores, ele ficava no banco de reservas e raramente jogava mais de um ou dois minutos por partida.

Publicado. O texto não era propriamente uma crítica, mas uma visão geral, uma discussão sobre os méritos iguais, porém contrastantes, de dois filmes sobre os quais Ferguson vinha refletindo havia alguns meses. Foi publicado no deprimente e muito mal impresso jornalzinho do colégio chamado Riverside Rebel, de oito páginas em folhas de tamanho grande, que publicava notícias velhas sobre eventos esportivos interescolares, matérias sobre controvérsias irrelevantes no colégio (a queda de qualidade na comida da cantina, a decisão do diretor de proibir o uso de rádios transistores no corredor, no intervalo das aulas), e poemas, contos, além de um ou outro desenho, feitos pelos alunos que se imaginavam poetas, contistas e desenhistas. O sr. Dunbar, o professor de inglês de Ferguson naquele ano, era o orientador pedagógico do Rebel e incentivou o cinéfilo em botão a colaborar com textos, todos os que quisesse escrever, argumentando que o jornal vivia uma carência desesperadora de sangue novo e que colunas regulares sobre livros, filmes, arte, música e teatro seriam um passo na direção certa. Instigado e lisonjeado com a proposta do sr. Dunbar, Ferguson pôs mãos à obra num texto sobre Os incompreendidos e Acossado, seus dois filmes franceses prediletos do verão anterior, e, agora que ele mesmo tinha ido à França, parecia bastante natural que começasse sua carreira de crítico de cinema escrevendo sobre a Nouvelle Vague. Afora o fato de os dois filmes terem sido feitos em preto e branco e se passarem na Paris contemporânea, argumentava Ferguson, eles nada tinham em comum. As duas obras eram radicalmente distintas no tom, na sensibilidade e na técnica narrativa, tão distintas que seria inútil compará-las e mais inútil ainda passar um momento sequer questionando qual dos dois filmes era o melhor. Sobre Truffaut, escreveu: realismo comovente, tocante, mas pragmático, profundamente humano, rigorosamente honesto, lírico. Sobre Godard, escreveu: fragmentado e descontínuo, sexy, perturbadoramente violento, divertido e cruel, constantes referências jocosas a filmes americanos, revolucionário. Não, escreveu Ferguson no último parágrafo, ele não ia tomar o partido de um filme ou de outro, porque adorava ambos, da mesma forma que adorava os filmes de faroeste de Jimmy Stewart e os musicais de Busby Berkeley, as comédias dos Irmãos Marx e os filmes de gângster de James Cagney. Por que escolher?, perguntava ele. Às vezes, queremos cravar os dentes num bom hambúrguer gorduroso e, outras vezes, nada tem paladar melhor do que um ovo cozido ou uma bolachinha salgada. A arte é um banquete, concluía Ferguson, e cada prato na mesa é um convite para nós — um convite para ser comido e desfrutado.

Fumou. Certa manhã de domingo, uma semana depois da viagem de Ferguson a Cambridge, as duas famílias Schneiderman amontoaram seus seis corpos numa caminhonete alugada e partiram rumo ao norte, para o condado de Dutchess, onde pararam para almoçar em Beekman Arms, em Rhinebeck, e depois se espalharam pela cidade em várias direções. Como de costume, a mãe de Ferguson desapareceu com sua câmera e não foi mais vista, até chegar a hora de voltar para Nova York. Tia Liz seguiu para a rua principal a fim de vasculhar os antiquários, e Gil e tio Dan voltaram para o carro, dizendo que queriam dar uma olhada na vegetação de outono, quando na verdade queriam mesmo era conversar sobre o que fazer com seu pai doente, já com mais ou menos oitenta e cinco anos de idade e que, de repente, passou a precisar de cuidados paliativos, vinte e quatro horas por dia. Nem Ferguson nem Amy tinham o menor interesse em ficar fuçando lojas de móveis e contemplar as cores mutantes das folhas em agonia, portanto viraram à direita quando viram a mãe de Amy dobrar à esquerda, e continuaram caminhando até chegarem aos limites da cidade, onde toparam por acaso com uma colina ainda coberta de grama verde, um agradável montinho de terra macia que parecia suplicar para que eles se sentassem, o que ambos prontamente fizeram e, alguns segundos depois, Amy meteu a mão no bolso, tirou um maço de cigarros Camel sem filtro e ofereceu um a Ferguson. Ele não hesitou. Já estava mais do que na hora de dar uma tragada naqueles canudinhos de câncer, pensou Ferguson, o Senhor-Atleta-Machão-Que-Nunca-Ia-Fumar-Porque-Era-Ruim-Para-a-Respiração, e é claro que tossiu depois das três primeiras tragadas, e é claro que ficou um pouco tonto, e é claro que Amy riu porque era gozado ver Ferguson fazendo as coisas que todos os fumantes novatos inevitavelmente faziam, mas depois ele pegou o jeito e começou e dominar a técnica, e não demorou muito e ele e Amy estavam conversando, e conversando de uma forma que já fazia mais de um ano que não era possível para eles, sem nenhuma ironia ou insulto ou acusação, com todo o rancor e todo o ressentimento acumulados desfeitos como se fossem a fumaça que jorrava de suas bocas e se dissipava no ar de outono, e então pararam de falar e se limitaram a ficar sentados na grama, sorrindo um para o outro, felizes de serem amigos de novo e não estarem mais em conflito, e nesse momento Ferguson passou o braço em volta de Amy, fingiu que lhe dava uma chave de braço e rosnou em seu ouvido: Mais um cigarro, por favor.

Perdido. Havia um garoto maldoso e excitante na turma do último ano chamado Terry Mills, um vagal inteligente que, melhor do que qualquer pessoa no colégio, conhecia as coisas que supostamente os adolescentes deveriam ignorar. Era ele o fornecedor de uísque para as festinhas de fim de semana, o abastecedor de pílulas de anfetamina para aqueles que queriam acelerar a mente e ficar ligados a noite toda, o provedor de maconha para aqueles que preferiam uma forma de intoxicação mais branda, e o cafetão que ajudava os outros a perder a virgindade, levando-os ao prostíbulo situado na rua 82 Oeste. Um dos garotos mais ricos da Riverside Academy, o gorducho e sarcástico Terry Mills morava com a mãe divorciada, e em geral ausente, numa casa espaçosa entre a Columbus Avenue e a Central Park Oeste, e, embora houvesse muita coisa no comportamento de Terry Mills que Ferguson achava repugnante, também achava difícil não gostar dele. Segundo Terry, legiões de garotos da Riverside Academy, no passado e no presente, deixaram a infância para trás nos quartos do bordel da rua 82, era uma tradição estabelecida havia muito tempo, dizia ele, uma tradição que ele mesmo havia abraçado dois anos antes, quando estava no segundo ano, e agora que Ferguson também tinha sido promovido para o escalão dos alunos do segundo ano, quem sabe ele não estaria interessado em fazer uma visita àquele reino encantado das delícias sensuais? Sim, disse Ferguson, claro que iria, com toda certeza que sim, e quando podia ir?

A conversa ocorreu numa tarde de segunda-feira, na hora do almoço, a segunda-feira após o domingo que Ferguson passou em Rhinebeck, fumando cigarros com Amy, e na manhã seguinte Terry avisou que tudo estava combinado para a sexta-feira de tarde, por volta das quatro horas, o que não seria problema para Ferguson, porque seu horário de recolher tinha sido ampliado para as seis naquele ano, e felizmente ele tinha os vinte e cinco dólares necessários para se transformar num homem, embora Terry ainda tivesse esperança de que a sra. M., a diretora do estabelecimento, pudesse ser convencida a dar um desconto de estudante para Ferguson. Sem saber o que esperar, pois não tinha nenhuma experiência em bordéis, a não ser o que tinha visto nas cores berrantes dos filmes de faroeste em tecnicolor, Ferguson entrou no prédio de apartamentos na rua 82 Oeste sem nenhuma imagem na cabeça — nada senão um vazio de incertezas, zero vezes zero. Ele se viu num daqueles grandes prédios de apartamentos no Upper West Side com o reboco lascado e de paredes amarelas, um lugar que foi elegante no passado e que, sem dúvida, havia abrigado um burguês proeminente de Nova York e sua família volumosa, mas quem é que ia querer ficar observando as paredes e o reboco quando o primeiro quarto, logo na entrada, era uma amplo salão com seis mulheres jovens, meia dúzia de profissionais do amor, sentadas em cadeiras e sofás, em vários estágios da seminudez, duas delas, de fato, completamente despidas, o que fazia delas as primeiras mulheres nuas que Ferguson via na vida.

Ele tinha de escolher. Isso foi um problema, porque não tinha a menor ideia de qual das seis seria a melhor amante para um garoto inexperiente e vir­gem, cuja história sexual, até então, se restringia a um parceiro masculino, e ele tinha de escolher depressa, porque se sentia incomodado de ficar olhando para aquelas mulheres como se fossem pedaços de carne expostos no balcão, sem cérebro e sem alma, portanto Ferguson eliminou as quatro parcialmen­te vestidas e restringiu sua escolha às duas completamente nuas, imaginando que assim não haveria surpresas quando a função começasse, e de repente não houve mais dificuldade nenhuma, pois uma delas era uma porto-riquenha gorducha, de peitos grandes, com bem mais de trinta anos, e a outra uma negra bonita que não podia ter muito mais idade do que Ferguson — uma fada esguia, de peitos pequenos, cabelo curto e pescoço comprido, além do que parecia ser uma pele incrivelmente lisa, uma pele que prometia uma sensação melhor do que qualquer pele que as mãos de Ferguson já haviam tocado.

Seu nome era Julie.

Ele já havia pagado seus vinte e cinco dólares à rotunda e fumante contumaz sra. M. (nada de desconto para jovens novatos), e, como Terry havia anunciado, com toda grossura, que a pica de Ferguson nunca tinha visto a parte de dentro de uma boceta, não fazia nenhum sentido fingir que já tinha percorrido aquele caminho antes, e o caminho, no caso, era um corredor estreito que levava a um quarto apertado, sem janelas, com uma pia e uma cadeira, e quando Ferguson avançou por aquele corredor atrás do traseiro doce e bamboleante da jovem Julie, com o volume dentro de suas calças já crescendo, a tal ponto que na hora em que entrou no quarto e Julie disse para tirar a roupa, ela olhou para sua pica e disse: Você fica mesmo duro rapidinho, não é, garoto? O que deixou Ferguson imensamente satisfeito, ciente de que era viril o bastante para produzir uma ereção mais depressa do que a maioria dos clientes adultos de Julie, e de repente sentiu-se feliz, nem um pouco nervoso ou com medo, ainda que não compreendesse plenamente as regras básicas daquele tipo de jogo, como quando tentou beijá-la nos lábios e Julie o repeliu, dizendo: A gente não faz isso, meu bem... Guarde isso para sua namorada, mas ela não se importou quando ele pôs a mão em seus peitos pequenos ou beijou seu ombro, e como foi boa a sensação quando ela lavou sua pica na pia com sabão e água quente, e a sensação foi melhor ainda quando ele aceitou uma coisa chamada meio-a-meio sem saber o que era (felação + copulação), e os dois ficaram deitados juntos na cama e o primeiro meio do meio-a-meio revelou-se tão prazeroso que ele teve medo de que não fosse conseguir fazer a segunda metade, mas acabou conseguindo, de algum jeito, e essa foi a melhor parte de toda a aventura, a tão longamente esperada e sonhada e adiada penetração no corpo de outra pessoa, o ato da cópula, e as sensações de estar dentro dela foram tão fortes que Ferguson não conseguiu mais se segurar e gozou quase que imediatamente — tão depressa que lamentou sua falta de controle, lamentou não ter sido capaz de adiar o clímax por pelo menos alguns segundos.

A gente pode fazer de novo?, perguntou.

Julie soltou uma gargalhada — um ataque de hilaridade de sacudir a barriga e que reboou pelas paredes no quartinho. Então, ela disse: Você gozou, está acabado, seu engraçadinho... a menos que tenha mais vinte e cinco dólares no bolso.

Não tenho nem vinte e cinco centavos, respondeu Ferguson.

Julie riu de novo. Eu gosto de você, Archie, disse ela. É um garoto boa-pinta, com uma piroca bonita.

E eu acho você a garota mais linda de Nova York.

A mais magrela, é o que quer dizer.

Não, a mais linda.

Julie se pôs sentada e deu um beijo na testa de Ferguson. Volte para me ver outro dia, disse ela. Você sabe o endereço e aquele seu amigo fofoqueiro tem o número do telefone. Ligue primeiro para marcar o horário. Você não vai querer vir aqui quando eu não estiver, não é?

Não, senhora. Nunca mesmo.

No banco. Fazer parte do time principal na condição de aluno do segundo ano era um reflexo do aprimoramento de Ferguson como jogador durante o verão. As ligas que jogavam ao ar livre tinham ficado muito competitivas, as equipes estavam apinhadas de garotos pobres e negros do Harlem que levavam o basquete muito a sério, que sabiam que jogar bem basquete significava poder entrar para um time do ensino médio, o que podia significar jogar numa equipe universitária e uma chance de sair do Harlem para sempre, e Ferguson deu muito duro para melhorar seu arremesso de longe e seu controle de bola, dedicou longas horas de treinamento extra com um dos garotos mais sôfregos da Lenox Avenue, chamado Delbert Straughan, um colega atacante que jogava no mais forte dos dois times em que ele tinha jogado, e agora que estava cinco centímetros mais alto e alcançava a robusta estatura de um metro e setenta e cinco, Ferguson havia progredido da mera eficiência para algo próximo da excelência, com uma impulsão tão poderosa nas pernas que, mesmo com sua altura, era capaz de enterrar uma bola em cada duas ou três tentativas. O problema de jogar no time principal na condição de aluno do segundo ano, no entanto, era que o atleta era automaticamente relegado ao segundo time, o que o condenava a passar a temporada inteira só pegando as sobras, como um jogador que fica sempre no banco. Ferguson entendia a importância das hierarquias e ficaria bem satisfeito com seu papel subordinado se não achasse que era melhor jogador do que o ala titular, um aluno do último ano chamado Duncan Nyles, às vezes apelidado Nunca Nyles — pois, por uma fatalidade do destino, Ferguson não só era melhor do que ele, como era muito melhor. Se Ferguson fosse o único a ter essa opinião, não seria tão exasperante, acontece porém que quase todos os jogadores pensavam a mesma coisa, e os mais ruidosos de todos eram os outros proletários magrelos, entre eles seus velhos amigos do time dos calouros do ano anterior, Alex Nordstrom e Brian Mischevski, que ficavam francamente enojados com a decisão do treinador de deixar Ferguson no banco e não paravam de lembrar o amigo de que estava sendo tratado de maneira injusta, pois as provas estavam ali, bem na cara de quem quisesse ver: toda vez que os times A e B se enfrentavam nos treinamentos, Ferguson fazia mais cestas, pegava mais rebotes e roubava mais bolas do que o Nunca Nyles.

O treinador era uma pessoa desconcertante — meio gênio, meio idiota — e Ferguson nunca conseguia entender qual era a dele. Antigo jogador de defesa do time do St. Francis College, no Brooklyn, um dos menores colégios do circuito Católico na região do metrô, Horace “Feliz” Finnegan conhecia o esporte de fio a pavio e sabia como ensinar, mas em todos os outros aspectos seu cérebro parecia ter sofrido uma atrofia, parecia ter se convertido numa pegajosa massa de fios de pensamentos derretidos e de canos de linguagem incendiados. Formem pares de três, dizia para os rapazes no treinamento, ou Façam um círculo, rapazes, trezentos e sessenta e cinco graus, e além dos incessantes despropósitos havia também as perguntas que os rapazes faziam só pelo prazer de ver o treinador coçar a cabeça, como: Ei, treinador, o senhor vai a pé para o colégio ou leva seu almoço?, ou: É mais quente na cidade ou no verão?, joias de contrassenso que nunca deixavam de provocar a almejada coçadinha de cabeça, o almejado levantar de ombros, o almejado Dessa vez você me pegou. Por outro lado, o Feliz Finnegan era um perfeccionista no que dizia respeito aos pontos mais requintados do basquete, e Ferguson se maravilhava de ver como ele fervia de indignação toda vez que um jogador errava um arremesso livre (a coisa mais fácil na droga desse jogo) ou via um jogador desperdiçar um passe perfeito (preste mais atenção, seu babaca, senão vou pôr você para fora desta quadra). Ele exigia que jogassem com eficácia e inteligência, e, embora todo mundo risse dele pelas costas, o time vencia a maior parte das partidas, tinha um desempenho constantemente acima e além de seus escassos talentos. No entanto, Nordstrom e Mischevski não paravam de pressionar o amigo para que tivesse uma reunião particular com o treinador, não que isso fosse servir para mudar de fato alguma coisa, diziam eles, mas queriam saber por que o treinador insistia em escalar o jogador errado na posição de ala. Sim, o time ganhava a maior arte dos jogos, mas será que o Finnegan não queria ganhar todos os jogos?

Boa pergunta, disse o treinador, quando Ferguson afinal bateu na sua porta no início de janeiro. É uma ótima pergunta e fico bem contente que você tenha me questionado sobre isso. Sim, qualquer idiota pode ver que você é melhor do que o Nyles. Se comparar um com o outro, lado a lado, não vai sobrar nada dele, senão uma cueca vazia e uma poça de suor no piso da quadra. Nyles é um palerma. Você é um mexicano, Ferguson, um grão de feijão humano, e joga mais pegado do que qualquer um que eu já vi, mas preciso do palerma lá dentro da quadra. Química, essa é a questão. São cinco contra cinco e não um contra um, sacou? Com aqueles outros quatro caras disparando para lá e para cá feito uns pontinhos, umas faíscas elétricas, o quinto tem de ser um saco de batata, uma bola de carne com um par de tênis nos pés, um grande zé-ninguém que só serve para ocupar espaço e pensar em digerir sua comida. Entende o que estou dizendo, Ferguson? Você é bom demais. Tudo ia mudar se eu pusesse você no time. O ritmo ia ficar acelerado demais, nervosinho demais. Vocês todos acabariam tendo um ataque do coração e crises epilépticas e a gente ia começar a perder os jogos. Teríamos um time melhor, mas seríamos piores. Seu dia vai chegar, garoto. Tenho planos para você — mas só na temporada que vem. A química vai ser diferente, depois que os pontinhos e as faíscas voarem da gaiola, e aí eu vou precisar de você. Tenha paciência, Ferguson. Treine até estourar, reze direitinho de noite, não fique batendo punheta, e tudo vai acabar dando certo.

Ferguson teve vontade de largar o time na mesma hora, pois o que Finnegan parecia estar propondo era que ele não tivesse nenhuma chance de jogar pelo resto da temporada, não importava o que fosse acontecer — a menos que a chamada química começasse a dar errado e o time parasse de vencer; mas como, em sã consciência, ele poderia torcer para o time perder e ainda continuar a se considerar um membro fiel da equipe? No entanto, Finnegan tinha praticamente prometido uma posição de titular na temporada seguinte, e, com base naquela promessa, Ferguson engoliu o sapo com re­lutância e segurou a barra, treinou com empenho a fim de impressionar Finnegan, treinando até estourar todos os dias, se bem que não rezasse de noite nem conseguisse parar de bater punheta.

Quando a temporada seguinte começou, no entanto, ele se viu no banco outra vez, e o mais horrível daquilo era que não havia ninguém para ele pôr a culpa — nem Finnegan, Finnegan menos do que qualquer outra pessoa. Aconteceu que, do nada, apareceu um jogador novo, um aluno do segundo ano de um metro e oitenta e sete de altura, cuja família tinha mudado de Terre Haute, em Indiana, para Manhattan, e o fenômeno nativo de Indiana era um jogador tão formidável, tão superior a Ferguson e a qualquer outro do time que o treinador não teve outra opção senão pôr logo o novato de titular, e, junto com o outro atacante titular do ano anterior, o inabalável e confiável Tom Lerner, que tinha sido eleito capitão do time, não sobrou espaço para Ferguson na linha de ataque titular. Ferguson fez algum esforço para ampliar seu tempo de jogo, mas cinco ou seis minutos por partida não eram o suficiente e ele se sentia mofando no banco de reservas. Tinha se convertido nu­ma espécie de segundo plano, uma combinação de matador e soldado afas­tado da linha de combate, cujos talentos pareciam estar se degradando silenciosamente, e a frustração crescente, como confessou para a mãe e o padrasto na hora do jantar, certa noite, estava matando seu espírito, e tanto foi assim que, depois dos primeiros quatro jogos da temporada, o que aconteceu quatro semanas depois do assassinato de Kennedy, quando faltavam dois dias para completar um mês daquela grotesca sexta-feira em que mesmo o Ferguson cético e sem ilusões derramou lágrimas junto com todo mundo e se permitiu sucumbir à tristeza geral do país, sem entender que o assassinato do presidente era uma reconstituição do assassinato do próprio pai, anos antes, o horror completo de sua dor particular, agora representada diante de um grande público, e no dia 20 de dezembro de 1963, alguns minutos depois do fim da quarta partida do Riverside, Ferguson foi ao gabinete do treinador e anunciou que ia deixar o time. Sem mágoas, disse ele, só que não dava mais para aguentar. Finnegan respondeu que compreendia, o que provavelmente era verdade, e depois os dois apertaram as mãos e pronto.

Ele acabou indo jogar numa liga patrocinada pelo West Side Y. Ainda era basquetebol, ele ainda gostava de jogar, mas, embora Ferguson fosse visto como o melhor jogador de seu time, não era a mesma coisa, não podia ser a mesma coisa e nunca mais voltaria a ser a mesma coisa. Não havia mais os uniformes vermelhos e amarelos. Não havia mais as viagens de ônibus. Não havia mais os fanáticos do Rebel gritando nas arquibancadas. E não havia mais Chuckie Showalter batendo seu bumbo.

No início de 1964, à beira dos dezessete anos, Ferguson tinha publicado mais uma dúzia de matérias sobre cinema sob a supervisão do sr. Dunbar, muitas vezes com a ajuda de Gil em questões de estilo e tom, além do problema, sempre intimidador, de entender com exatidão o que ele queria dizer para depois dizê-lo com a maior clareza possível. Seus textos tendiam a alternar temas americanos e estrangeiros, um exame da linguagem das comédias de W. C. Fields, por exemplo, seguido por algo sobre Os sete samurais ou A canção da estrada, Um passeio ao sol seguido por O Atalante, O fugitivo seguido por A doce vida — um tipo de crítica elementar, menos interessada em fazer julgamentos sobre os filmes do que em tentar capturar a experiência de ver os filmes. Pouco a pouco, seu trabalho foi melhorando; pouco a pouco, sua amizade com o padrasto se aprofundou e, quanto mais filmes assistia, mais filmes desejava assistir, pois ir ao cinema era menos uma fome do que um vício, e, quanto mais filmes consumia, mais aumentava seu apetite de ver filmes. Entre os cinemas que mais frequentava estavam o New Yorker, na Broadway (a dois quarteirões de sua casa), o Symphony, o Olympia e o Beacon, em Upper West Side, o Elgin, em Chelsea, o Bleecker Street e o Cinema Village, no centro, o Paris, ao lado do Plaza Hotel, o Carnegie, vizinho ao Carnegie Hall, o Baronet, o Coronet e os Cinemas I e II, nas ruas 60 Leste, e, depois de uma pausa de alguns meses, o Thalia, mais uma vez, onde ele ainda teve de topar com Andy Cohen depois de doze visitas. Além dos cinemas comerciais, havia o Museu de Arte Moderna, fonte indispensável de filmes clássicos, e agora que Ferguson era sócio (um presente de Gil e da mãe quando fez dezesseis anos), ele podia ver qualquer filme, simplesmente mostrando a carteirinha na porta. Quantos filmes ele viu no período entre outubro de 1962 e janeiro de 1964? Uma média de dois todo sábado e domingo e mais um toda sexta-feira, o que dava um total de trezentos — umas boas seiscentas horas sentado no escuro, ou o número de tique-taques do relógio repetidos ao longo de vinte e cinco dias e noites consecutivos, e quando subtraindo os minutos perdidos para dormir e vários desmaios sob o efeito de bebida, mais de um mês de sua vida em vigília, durante os quinze meses que aquilo durou.

Também fumou mais mil cigarros (com e sem Amy) e continuou sua busca de amor com bravura, bebendo trezentos copos do melhor uísque escocês nas festas de fim de semana promovidas por Terry Mills e seus sucessores igualmente dissolutos no ano seguinte, já não vomitava mais no tapete quando exagerava, mas desfalecia discretamente, e satisfeito, num canto da sala, buscando aqueles alheamentos alcoólicos de forma consciente a fim de expurgar do pensamento os mortos e os malditos, pois tinha chegado à conclusão de que a vida sem mediações era horrível demais para suportar, e que sorver bebidas destinadas a entorpecer os sentidos podia trazer conforto para um coração confuso, mas era importante tomar cuidado e não ir longe demais, motivo pelo qual as bebedeiras ficavam restritas aos finais de semana, e não a todos os finais de semanas, mas a quase todos, e ele achava curioso o fato de não ir atrás da bebida com sofreguidão, a menos que ela aparecesse na sua frente, e mesmo nesse caso ele achava que podia facilmente resistir, só que, depois que tomava o primeiro copo, não conseguia parar, senão quando já havia bebido demais.

Estava cada vez mais fácil de conseguir maconha naquelas festanças de fim de semana, mas Ferguson concluiu que não era para ele. Depois de três ou quatro baforadas, as coisas mais sem graça começavam a parecer muito engraçadas e ele se desmanchava num ataque de riso. Aí começava a se sentir leve, muito tolo e burro por dentro, o que produzia o efeito desagradável de jogá-lo de volta para alguma encarnação infantil dele mesmo, pois, embora Ferguson estivesse lutando para crescer na época, e o número de vezes em que acabava caindo fosse igual ao daquelas em que conseguia se manter de pé, ele não queria mais pensar em si mesmo como uma criança, por isso deixou a maconha de lado e se fixou na bebida, preferia ficar de porre a ficar chapado, e desse jeito podia ter a sensação de que agia como um adulto.

Por último, mas não menos importante, ou seja, acima e antes de tudo, naqueles quinze meses ele tinha voltado ao estabelecimento da sra. M. seis vezes. Iria mais vezes, porém os vinte e cinco dólares representavam um problema, pois sua mesada equivalia a apenas quinze dólares semanais e ele não tinha nenhum emprego nem outro meio de obter dinheiro (seus pais queriam que ele se concentrasse nos estudos), e, depois que gastou os primeiros vinte e cinco dólares em outubro (1962), sua conta bancária ficou vazia até seu aniversário de dezesseis anos, em março (1963), quando a mãe assinou para ele um cheque de cem dólares para suplementar o presente de sua carteirinha de sócio do museu, dinheiro que deu para quatro sessões com Julie, no apartamento na rua 82 Oeste, mas as outras duas visitas foram pagas apropriando-se de coisas que não lhe pertenciam e transformando-as em dinheiro, ações criminosas que atormentavam Ferguson e devoravam sua consciência arruinada, mas o sexo era tão importante para ele, tão fundamental para seu bem-estar, era tão indiscutivelmente a única coisa capaz de impedir que ele desmoronasse, que Ferguson não conseguiu se conter e deixar de vender a alma em troca de alguns momentos nos braços de Julie. Deus estava morto fazia anos, mas o diabo tinha voltado para Manhattan e estava fazendo um retorno estrondoso na parte norte daquela aldeia.

Era sempre Julie, porque era a garota mais bonita e mais desejável que trabalhava para a sra. M., e agora que ela havia entendido como Ferguson era jovem (na primeira vez em que apareceu, ela achou que Ferguson tinha dezessete, e não quinze), sua atitude com ele tinha se suavizado numa forma de camaradagem jocosa, enquanto acompanhava o crescimento de seus braços e pernas no intervalo de um encontro para o outro, não que ela o tratasse com algo parecido a ternura ou afeição, mas Julie era amigável o suficiente para quebrar as regras agora, deixar que ele a beijasse nos lábios quando queria, às vezes até deixava que pusesse a língua dentro de sua boca e, além disso, o bom em estar com Julie era que ela nunca falava de si mesma e nunca lhe fazia nenhuma pergunta (além da sua idade), e, afora o fato de trabalhar para a sra. M. toda terça e toda sexta, Ferguson não sabia nada a respeito da vida de Julie, se trabalhava como prostituta em outras casas pela cidade, por exemplo, ou se os dois dias com a sra. M. ajudavam a pagar sua faculdade, quem sabe até no City College, onde ela poderia muito bem se sentar na carteira vizinha à de Andy Cohen, no seu seminário sobre literatura russa, ou se tinha namorado ou marido ou filho pequeno ou vinte e três irmãos e irmãs ou se planejava assaltar um banco ou mudar para a Califórnia ou comer torta de galinha no jantar. Era melhor não saber, ele achava, era melhor que não houvesse mais nada senão sexo, que ele achava que era um sexo tão profundamente recompensador que, por duas vezes durante aqueles quinze meses, Ferguson se dispôs a violar a lei e entrar em livrarias no Upper West Side com um casaco de lã por cima de seu paletó de inverno cheio de bolsos e encher os bolsos dos dois agasalhos com livros de bolso, que depois marcou com várias dobras nos cantos das folhas, além de sublinhar alguns trechos, e vendeu para um sebo que ficava do outro lado da rua, em frente à Universidade Columbia, por um quarto do preço de capa, roubar e vender dúzias de romances clássicos a fim de obter o dinheiro extra de que precisava para fazer mais sexo com Julie.

Ele gostaria que fossem sessenta vezes, em vez de seis, mas só de saber que Julie estaria lá, sempre que a necessidade premente fosse mais forte do que ele, já bastava para matar seu interesse de andar atrás das garotas do colégio, as meninas de quinze e dezesseis anos que teriam repelido suas mãos curiosas quando tentasse tirar seus suéteres, sutiãs e calcinhas, nenhuma delas andaria pelada na sua frente como Julie fazia, nenhuma deixaria que ele penetrasse o santuário interior de sua feminilidade sagrada, e, mesmo supondo que um milagre assim pudesse acontecer, quanto trabalho seria necessário para alcançar o que ele já havia alcançado com Julie, e com Julie nunca poderia nascer nenhuma das mágoas que inevitavelmente surgiriam se ele se apaixonasse por alguma daquelas boas meninas e, em todo caso, ele não amava nenhuma delas, só a sua adorada Amy, que não estudava na Riverside Academy, mas sim na Hunter High School, numa outra parte da cidade, sua perdida e redescoberta prima que beija, a bem-amada dos cigarros sem filtro e da gargalhada estrondosa, ela era a única que compensava todo o esforço e o risco, a única garota com quem sexo também significava amor, pois tudo tinha mudado nos últimos quinze meses, o mundo de seus desejos tinha sido virado de ponta-cabeça e, uma por uma, Isabel Kraft, Sydney Millbanks e Vivian Schreiber tinham todas evaporado de seus pensamentos à noite, os dois únicos que lhe vinham à cabeça eram o rapaz e a moça Schneiderman, os ferozmente desejados Jim e Amy, toda noite era um ou outro que rastejava para sua cama, para ficarem a seu lado, certas noites primeiro um e depois a outra, e isso fazia sentido, ele supunha, sentido para uma pessoa que estava partida ao meio e não conseguia entender quem era, o Archibald Isaac Ferguson à beira de completar dezessete anos, conhecido de diversas maneiras como maníaco sexual que caça prostitutas e criminoso pé de chinelo, ex-jogador de basquete do ensino médio e crítico de cinema ocasional, amante duas vezes rejeitado por seu meio-primo e sua meia-prima, e filho e enteado dedicado de Rose e Gil — que cairiam duros no chão se descobrissem o que ele andava aprontando por aí.

Quando o velho Schneiderman bateu as botas no fim de fevereiro, houve uma confraternização depois do enterro no apartamento de Riverside Drive, uma reunião reduzida, porque o pai viúvo de Gil não tinha feito nenhum amigo novo nos últimos vinte anos, e a maior parte dos amigos antigos já tinha encontrado acomodações perpétuas em outras localidades, uma coleção, talvez, de vinte e quatro pessoas, que abrangia as filhas de Gil, Margaret e Ella, que fizeram aí sua primeira aparição na família desde o outono de 1959, em companhia de seus maridos recém-adquiridos, gordos e meio carecas, um dos quais tinha engravidado Margaret, e, a despeito de sua má vontade com elas, Ferguson teve de admitir que as primas por afinidade não demonstravam nenhum sinal de hostilidade para com sua mãe, o que foi uma sorte para elas, pois nada teria deixado Ferguson mais feliz do que fazer uma cena e pôr as duas para fora de sua casa, um impulso violento completamente despropositado nas circunstâncias, mas depois de ficar debaixo do frio de fevereiro durante quase uma hora, enquanto a família punha o bode velho para repousar na terra, Ferguson estava se sentindo agitado, nervosinho, como diria o treinador Feliz Finnengan, talvez porque ele estivesse pensando nos maus bofes e no ânimo briguento de seu semiavô, ou talvez porque toda morte o fazia pensar na morte do pai, e assim, quando os enlutados se reuniram de novo no apartamento, Ferguson sentiu-se deprimido o suficiente para entornar duas rápidas doses de uísque em sua barriga vazia, o que pode ter contribuído para os fatos que se seguiram, pois, assim que começou a reunião depois do enterro, ele passou a se comportar mal, e de uma forma tão descarada, estranha e inconveniente que nem para ele ficou claro se havia enlouquecido ou descoberto o mistério do universo.

O que aconteceu foi o seguinte. Primeiro: Todos os presentes estavam de pé ou sentados pela sala, a comida estava sendo comida, a bebida estava sendo bebida, as conversas iam e vinham entre pares e grupos de pessoas. Ferguson viu Jim parado num canto diante da janela falando com o pai, abriu caminho até aquele canto e perguntou se Jim não poderia conversar com ele em particular. Jim respondeu que sim, e os dois seguiram pelo corredor e entraram no quarto de Ferguson, onde, sem nenhuma palavra ou qualquer preâmbulo, Ferguson pôs os braços em volta de Jim e disse que o amava, amava mais do que a qualquer pessoa no mundo, o amava tanto que estava disposto a morrer por ele, e, antes que Jim pudesse responder, Ferguson, agora com um metro e oitenta e dois de altura, cobriu de muitos beijos o rosto de Jim, de um metro e oitenta e quatro. O bom Jim não ficou nem chocado nem indignado. Supôs que Ferguson estava bêbado ou profundamente abalado com alguma coisa, por isso abraçou o jovem primo, segurou-o num abraço demorado e fervoroso e disse: Eu adoro você, Archie. Somos amigos para toda a vida. Segundo: Meia hora depois, todos os presentes continuavam de pé ou sentados na sala, a comida ainda estava sendo comida, a bebida ainda estava sendo bebida, as conversas ainda iam e vinham entre pares e grupos de pessoas. Ferguson viu Amy parada num canto diante da janela conversando com sua prima Ella, ele abriu caminho até lá e perguntou a Amy se não podia conversar com ele em particular. Amy respondeu que sim, e os dois seguiram pelo corredor e entraram no quarto de Ferguson, onde, sem nenhuma palavra ou qualquer preâmbulo, Ferguson pôs os braços em volta de Amy e disse que a amava, amava mais do que a qualquer pessoa no mundo, a amava tanto que estava disposto a morrer por ela, e, antes que Amy pudesse responder, Ferguson lhe deu um beijo na boca, e Amy, que estava familiarizada com a boca de Ferguson por causa dos muitos beijos que ele lhe dera nos dias remotos de seu namoro pubescente, abriu a boca e deixou que Ferguson mergulhasse a língua e, dali a pouco, ela havia abraçado seu primo e os dois estavam tombados na cama, onde Ferguson meteu a mão por baixo da saia de Amy e começou a deslizar a mão para cima, sobre a meia comprida que cobria sua perna, e Amy meteu a mão nas calças de Ferguson e segurou seu pênis endurecido, e, depois que cada um terminou sua parte, Amy sorriu para Ferguson e disse: Isso é bom, Archie. Faz muito tempo que a gente precisava fazer isso.

Depois, tudo melhorou. Ofensas sociais graves e inaceitáveis aparentemente nem sempre eram graves e inaceitáveis, pois pouco tempo depois que Ferguson conseguiu abrir o coração e declarar seu amor aos dois Schneiderman, sua amizade com Jim tinha ficado mais forte e ele e Amy se tornaram um casal novamente. Na semana após o funeral, sua mãe e Gil lhe deram duzentos dólares de aniversário, mas ele já não precisava mais de dinheiro para Julie, podia gastar com Amy e comprar lindas peças de lingerie para ela usar nas noites em que Gil e sua mãe saíam e os dois ficavam com o apartamento só para eles, ou nas noites em que os pais de Amy saíam, ou nas noites em que os pais de outra pessoa qualquer saíam e um de seus amigos arranjava um quarto para os dois ficarem sozinhos, escondidos, por algumas horas, e como as coisas tinham melhorado entre ambos, agora que ele escrevia artigos sobre cinema e Amy podia ver que Ferguson não era o bobo que ela achava que era, de repente Amy o respeitava, de repente não importava se ele estava por dentro da política ou não, ele era um rapaz do cinema, um rapaz da arte, um rapaz sensível, e para ela aquilo era ótimo, e que impacto agradável era descobrir que nenhum dos dois era virgem, que nenhum dos dois tinha medo, que ambos tinham aprendido o bastante para saber como satisfazer o outro, certamente isso fazia toda diferença, ser feliz na cama com a pessoa amada, que o amava também, e, por um breve tempo, Ferguson andava para lá e para cá com a sensação de que, sim, era verdade — ao abraçar Jim e Amy, ele havia revelado o segredo do universo.

Não podia durar, é claro, o grande amor teria de ser posto de lado e talvez tivesse até de ser esquecido, porque Amy estava um ano na sua frente no colégio e iria para a Universidade de Wisconsin no outono, não para a vizinha Barnard, como estava originalmente planejado, mas sim para a remota tundra americana, porque Amy havia resolvido, depois de longas semanas de uma atormentada investigação espiritual, que ela precisava ficar o mais distante possível da mãe. Ferguson suplicou para ela que não fosse, na verdade ficou de joelhos e implorou, mas a chorosa Amy disse que não tinha opção, porque, em Nova York, acabaria sufocada e asfixiada por sua mãe, que nunca parava de interferir, e por mais que Amy adorasse o seu querido Archie, achava que estava lutando pela própria vida e tinha de ir embora, simplesmente tinha de ir embora e não podia permitir que a persuadissem do contrário. Essa conversa foi o começo do fim, o primeiro passo para a vagarosa demolição do mundo perfeito que os dois tinham criado para si, e, como o dia seguinte era o início do fim de semana em que Amy ia fazer sua viagem para Cambridge, planejada havia tanto tempo, a fim de visitar o irmão, Ferguson se viu sozinho em Nova York naquela noite de sexta-feira em abril, e ele, que não bebia uma gota de álcool desde aquela tarde do enterro do velho e não tinha ido a nenhuma das festas infames de seus amigos, tomou um porre tão gigantesco que dormiu a manhã seguinte inteira e acabou perdendo a hora de ir ao colégio, onde tinha de fazer a prova de seleção para ingressar na universidade, marcada para as noves horas.

No outono, haveria outra oportunidade de fazer o teste, mas a mãe e Gil ficaram aborrecidos com ele por ser tão irresponsável, e, embora ele não pudesse criticá-los por ficaram revoltados com seu erro de não comparecer para fazer o exame, a raiva deles, no entanto, o feriu, e o feriu muito mais do que deveria e, pela primeira vez na vida, Ferguson começou a entender como ele era frágil, como era difícil para ele manter o rumo firme, mesmo durante o menor conflito, sobretudo num conflito provocado por uma falha sua, por uma tolice sua, pois a questão era que ele precisava ser amado, ser mais amado do que a maioria das pessoas precisava, ser amado completamente e sem descanso durante todos os minutos de sua vida em vigília, ser amado mesmo quando fazia coisas que o tornavam inviável para o amor, sobretudo quando a razão exigia que ele não fosse amado e, ao contrário de Amy, que estava castigando a mãe ao se afastar dela, Ferguson nunca poderia se afastar da mãe, sua mãe, que nada tinha de opressiva, cujo amor era a fonte de todo amor para ele, e só de ver a mãe fazer cara feia para ele com aquele olhar triste no rosto já era devastador, uma bala no coração.

O fim chegou no início do verão. Não no outono, quando Amy devia partir para o Wisconsin, mas no início de julho, quando ela partiu numa viagem de dois meses pela Europa, de mochila nas costas, com uma amiga, outra menina-prodígio de Hunter, chamada Molly Devine. Mais tarde, naquela mesma semana, Ferguson partiu para Vermont. A mãe e o padrasto tinham aceitado que ele seguisse o exemplo de Amy e participasse de um programa de imersão total em língua francesa no Hampton College. Era um bom programa e o francês de Ferguson melhorou imensamente nas três semanas em que esteve lá, mas foi um verão sem sexo, cheio de pavor daquilo que o aguardava quando retornasse a Nova York: o último beijo de Amy — e depois adeus, sem dúvida um adeus para sempre.

Portanto, depois que Amy fugiu para Madison, no Wisconsin, lá estava Ferguson, aluno do último ano do colégio, com toda a vida à sua frente, como foi informado pelos professores, pelos parentes e por todo adulto que cruzasse seu caminho, só que ele tinha acabado de perder o amor de sua vida e a palavra futuro tinha sido apagada de todos os dicionários do mundo. De modo quase inevitável, seus pensamentos se voltaram de novo para Julie. Não era amor, é claro, mas pelo menos era sexo, e sexo sem amor era melhor do que sexo nenhum, sobretudo quando não teria de roubar nenhum livro para só assim ter como pagar por aquilo. Nessa altura, a maior parte do dinheiro que ganhara de presente de aniversário tinha ido embora. Tinha sido gasto em lingeries, perfume e jantares de linguine com Amy na primavera, mas ele ainda tinha ficado com trinta e oito dólares, mais do que o suficiente para outra farra no tal apartamento da rua 82 Oeste. Tais eram as contradições da masculinidade, descobriu Ferguson. O coração podia estar partido, mas as gônadas continuavam a dizer para esquecer o coração.

Ligou para a sra. M. na esperança de marcar um encontro com Julie na tarde de sexta-feira, e, embora a sra. M. tenha tido certa dificuldade para lembrar-se dele (fazia meses desde sua última visita), Ferguson refrescou sua memória, dizendo que ele era o rapaz que estava na sala conversando com as garotas quando aquele guarda entrou para pegar seu envelope semanal e o pôs no olho da rua. Ah, sim, sim, respondeu a sra. M. Agora me lembro de você. Charlie Estudante. Era assim que a gente chamava você.

E a Julie?, perguntou Ferguson. Posso me encontrar com ela na sexta?

Julie não está aqui, disse a sra. M.

E onde ela está?

Não sei. Dizem que ficou viciada em heroína, meu anjo. Duvido que a gente volte a vê-la.

Isso é horrível.

Pois é, horrível mesmo, mas o que se pode fazer? Tenho outra garota negra aqui agora. Muito mais bonita do que Julie. Mais carnes por cima dos ossos, mais personalidade. Cynthia, é o nome dela. Quer que eu agende você?

Garota negra?... Mas o que é que isso tem a ver?

Pensei que você gostasse de garotas negras.

Eu gosto de garotas em geral. Por acaso, eu gostei da Julie.

Bem, se você gosta de garotas em geral, não tem problema, não é? A cocheira está lotada agora.

Vou pensar um pouco, disse Ferguson. Ligo mais tarde.

Desligou o telefone e, durante trinta ou quarenta segundos, repetiu a palavra “horrível” trinta ou quarenta vezes, lutando para não imaginar o corpo débil de Julie atordoado em algum canto, no meio de uma névoa de intoxicação, torcendo para que a informação da sra. M. estivesse errada e que Julie não estivesse mais trabalhando porque tinha se formado em filosofia, com louvor, no City College, e estava estudando para fazer a pós-graduação em Harvard, e então seus olhos se rasgaram num momento, enquanto uma imagem se formava em sua mente: Julie tombada e morta sobre um colchão sem lençol, nua e rígida, num quarto lúgubre do Albergue do Santo Inferno.

Uma semana depois, ele estava disposto a fazer uma tentativa com Cynthia ou com qualquer outra do estabelecimento da sra. M. que tivesse duas pernas, dois braços e algo parecido com um corpo de mulher. Infelizmente, ele tinha gastado o resto do dinheiro do seu presente de aniversário com uma série de compras de discos na loja Sam Goody’s e tinha de recorrer a meios nada recomendáveis para conseguir o dinheiro, portanto, numa tarde quente de sexta-feira, no início de outubro, um dia antes de seu novo exame de seleção para a universidade, vestiu seu traje de ladrão, formado pelo sobretudo de lã e pelo casaco de inverno provido de muitos bolsos, e entrou na livraria em frente ao campus da Universidade Columbia, chamada Mundo do Livro, nome que lembrava tanto a loja incendiada que no passado tinha sido o Mundo do Lar que Ferguson chegou a hesitar na hora de entrar, mas entrou assim mesmo, apesar de seus escrúpulos, e enquanto ficava parado na seção de livros de ficção em brochura, na parede sul da loja, enfiando nos bolsos romances de Dickens e Dostoiévski, sentiu uma mão baixar com força sobre o ombro, pelas costas, e então uma voz rosnou em seu ouvido: Peguei você, seu sacana — não se mexa!, e de uma hora para outra a operação roubo-de-livros de Ferguson chegou a um fim ridículo e lamentável, pois afinal que pessoa em sã consciência vestiria um sobretudo de lã num dia em que a temperatura, ao ar livre, estava em dezessete graus?

Deram a maior dura nele e não teve conversa. A epidemia de roubo de livros que se disseminava pela cidade estava levando muitos livreiros à beira da ruína e a lei tinha de pegar alguém para servir de exemplo, e, como o proprietário do Mundo do Livro estava de saco cheio e enfurecido com o que vinha acontecendo com seu negócio, ele chamou a polícia e disse que queria dar queixa. Não interessava que eram só dois livrinhos finos metidos nos bolsos de Ferguson — Oliver Twist e Memórias do subsolo —, o garoto era um ladrão e tinha de ser castigado. Portanto, atônito e mortificado, Ferguson foi algemado, preso e levado numa viatura até a delegacia local, onde foi fichado, obrigado a deixar as impressões digitais e fotografado em três ângulos, enquanto segurava uma tabuleta com seu nome. Então o puseram numa cela com um cafetão, um traficante de drogas e um homem que tinha esfaqueado a esposa, e, durante as próximas três horas, Ferguson ficou ali sentado, à espera de que um dos guardas voltasse e o levasse para que fosse denunciado diante de um juiz. O juiz era Samuel J. Wasserman, ele tinha autoridade para retirar a acusação e mandar Ferguson para casa, mas não fez isso, porque também achava que alguém tinha de servir de exemplo, e não poderia haver candidato melhor do que Ferguson, um garoto rico, de nariz empinado, de um colégio particular dito progressista, que havia violado a lei sem nenhum motivo, mas apenas por esporte. O martelo do juiz foi batido. O julgamento foi marcado para a segunda semana de novembro e Ferguson foi solto sem fiança — sob a condição de permanecer sob a custódia dos pais.

Seus pais. Eles foram chamados e ambos estavam de pé na sala do tribunal quando Wasserman marcou a data do julgamento. A mãe chorava, sem fazer nenhum barulho, enquanto balançava a cabeça para um lado e para o outro, como se ainda não tivesse conseguido assimilar o que Ferguson tinha feito. Gil não chorava, mas também balançava a cabeça para um lado e para o outro e, pela expressão em seus olhos, Ferguson entendeu que ele tinha vontade de lhe dar uma surra.

Livros, disse Gil, quando os três estavam na esquina à espera de um táxi, no que é que você estava pensando? Eu dou livros para você, não dou? Eu lhe dou todos os livros que você pode desejar. Por que diabos você foi roubar livros?

Ferguson não podia lhes contar sobre a sra. M. e o apartamento na rua 82 Oeste, não podia contar sobre o dinheiro que esperava angariar para poder trepar com uma prostituta, não podia contar que tinha transado sete vezes com uma prostituta viciada que sumiu e se chamava Julie, nem sobre os outros livros que já havia roubado no passado, por isso mentiu e disse: É por causa dessa onda que está acontecendo com alguns amigos meus, roubar livros como uma prova de coragem. É uma espécie de competição.

Alguns amigos, disse Gil. Uma competição.

Os três sentaram-se no banco de trás do táxi e, de repente, Ferguson sentiu tudo se desmanchar dentro dele, como se não tivesse mais ossos embaixo da pele. Encostou a cabeça no ombro da mãe e começou a chorar.

Preciso que você me ame, mãe, disse ele. Não sei o que vou fazer se você não me amar.

Eu amo você, Archie, disse a mãe. Sempre vou amar. Só que eu não compreendo mais você.

No meio de toda a confusão, ele acabou se esquecendo do exame de seleção para a universidade, que devia fazer de manhã — e a mãe e Gil também esqueceram. Não que tivesse grande importância, Ferguson se dizia, enquanto os dias iam se arrastando, pois a verdade era que a ideia da faculdade tinha perdido sua atração, e como Ferguson nunca havia gostado muito de ir ao colégio, a perspectiva de não ir mais para colégio nenhum depois daquele ano era algo que devia ser levado seriamente em consideração.

Na semana seguinte, quando correu a notícia do choque entre Ferguson e as autoridades, a Riverside Academy tratou de lhe aplicar uma suspensão de um mês, medida autorizada pelos estatutos do código que regia o comportamento estudantil. Durante esse tempo, ele teria de continuar cumprindo suas tarefas de casa, ou correria o risco de ser expulso quando retornasse, disse o diretor, e teria também de ir trabalhar. Trabalhar onde?, perguntou Ferguson. Vai entregar sacolas de compras no Gristedes, na Columbus Avenue, disse o diretor. Por que lá?, indagou Ferguson. Porque um dos pais aqui do colégio é o dono, respondeu o diretor, e ele está disposto a deixar que você trabalhe lá durante o tempo da suspensão. Vão me pagar?, perguntou Ferguson. Sim, vão pagar, respondeu o diretor, mas você não pode ficar com o dinheiro. Tem de ir todo para a caridade. Estamos pensando na Associação Americana de Livreiros, podia ser um bom beneficiário. O que você acha disso?

Acho ótimo, sr. Briggs. Acho que é uma ideia excelente.

O juiz do julgamento de novembro, Rufus P. Nolan, considerou Ferguson culpado e deu uma sentença de seis meses numa instituição de detenção juvenil. A severidade do veredicto ficou pairando no ar por três ou quatro segundos (segundos longos como horas, como anos) e então o juiz acrescentou: Sentença suspensa.

O representante legal de Ferguson, um jovem advogado criminal chamado Desmond Katz, pediu que a mancha do veredicto fosse apagada dos registros legais do seu cliente, mas Nolan recusou. Tinha demonstrado uma leniência extraordinária ao suspender a sentença, disse, e achava de bom alvitre o advogado se conter e não forçar demais sua sorte. O crime o havia revoltado. Como filho de pessoas privilegiadas, Ferguson parecia pensar que estava acima da lei e que roubar livros não era nada mais do que uma travessura, ao passo que seu cabal desrespeito pela propriedade privada e sua indiferença cruel pelos direitos alheios davam mostras de um espírito empedernido que precisava ser enfrentado com dureza a fim de assegurar que suas tendências criminosas fossem extirpadas pela raiz. Como réu primário, merecia mais uma chance. Mas merecia também ficar com essa marca em seu histórico — para pensar duas vezes antes de sequer passar pela sua cabeça a ideia de fazer uma proeza como aquela.

Duas semanas depois, Amy escreveu para lhe contar que tinha se apaixonado por outra pessoa, um aluno do último ano chamado Rick, e que ela não ia voltar para Nova York no Natal, porque Rick a havia convidado para ficar com ele na casa de sua família, em Milwaukee. Disse que tinha muita pena de dar notícias tão ruins para ele, mas algo assim estava fadado a acontecer, mais cedo ou mais tarde, e que tinham sido muito boas aquelas semanas lindas na primavera, e que ela ainda o amava muito, e que se sentia muito feliz porque os dois seriam sempre os melhores amigos-primos da face da Terra.

Acrescentou um pós-escrito dizendo que ficou aliviada ao saber que ele não ia para a cadeia. Que história mais idiota, disse ela. Todo mundo rouba livros, mas logo você é que tem de ser apanhado.

Ferguson estava se desintegrando.

Sabia que tinha de se recompor — do contrário, seus braços e suas pernas começariam a se soltar do corpo e ele ia passar o resto do ano rastejando no chão feito uma minhoca.

No sábado seguinte ao dia em que rasgou e queimou a carta de Amy na pia da cozinha, viu quatro filmes seguidos em três cinemas diferentes, do meio-dia às dez da noite — uma sessão dupla no Thalia, um filme no New Yorker e outro no Elgin. No domingo, viu mais quatro filmes. Os oito filmes ficaram tão embolados na sua cabeça que, quando foi dormir no domingo à noite, ele nem conseguia se lembrar de qual era um e qual era outro. Decidiu que, dali em diante, anotaria uma descrição sucinta de cada filme que visse e guardaria as folhas num fichário especial de três argolas em sua escrivaninha. Seria uma forma de se prender à sua vida em vez de perdê-la. Mergulhar no escuro sim, mas sempre com uma vela na mão e uma caixa de fósforos no bolso.

Em dezembro, publicou mais dois artigos no jornal do sr. Dunbar, um longo sobre três filmes de faroeste de John Ford (A mocidade de Lincoln, Como era verde meu vale, As vinhas da ira) e um texto breve sobre o filme Quanto mais quente melhor, que praticamente ignorava o enredo e se concentrava nos homens disfarçados de mulher e no corpo seminu de Marilyn Monroe deslizando para fora de seu vestido diáfano.

A ironia era que ser suspenso do colégio não transformou Ferguson num pária. Ao contrário, sua reputação parecia ter até melhorado entre os amigos, que agora olhavam para ele como um rebelde atrevido, um hombre durão, e até as garotas pareciam achá-lo mais atraente agora que tinha sido oficialmente se convertido numa pessoa perigosa. Seu interesse por aquelas garotas havia terminado quando fez quinze anos, mas Ferguson chamou algumas para sair só para ver se conseguiam fazer que ele parasse de pensar em Amy. Não conseguiram. Nem mesmo na hora em que abraçou e beijou Isabel Kraft — o que sugeria que ia levar tempo, muito tempo, até que estivesse pronto para começar a respirar outra vez.

Nada de faculdade. Essa foi a decisão final, e, quando disse para a mãe e para Gil que não ia se inscrever no exame de seleção para a universidade no início de janeiro, que não ia enviar pedidos de matrícula para Amherst nem Cornell nem Princeton nem para qualquer outro lugar sobre o qual tinham conversado no ano anterior, seus pais olharam para ele como se tivesse anunciado que ia cometer suicídio.

Você não sabe o que está dizendo, retrucou Gil. Não pode interromper sua educação agora.

Não vou interromper, disse Ferguson. Vou só me educar de outra maneira.

Mas onde, Archie?, perguntou a mãe. Não tem a intenção de ficar aqui neste apartamento pelo resto da vida, não é?

Ferguson riu. Que ideia, disse ele. Não, não vou ficar aqui. Claro que não vou ficar aqui. Eu queria ir para Paris — supondo que eu consiga me formar no ensino médio e supondo que vocês aceitem me dar um presente de formatura que cubra o preço de uma passagem barata só de ida.

Você está se esquecendo da guerra, disse Gil. Na hora em que você sair do ensino médio, eles vão pegar você, alistar no Exército e embarcá-lo para o Vietnã.

Não, não vão fazer isso, disse Ferguson. Não vão ter coragem.

Dessa vez Ferguson tinha razão. Seis semanas depois de conseguir, aos trancos e barrancos, concluir o ensino médio, tendo feito as pazes com Amy, tendo dado sua bênção ao noivado de Jim com Nancy Hammerstein, tendo vivido um namoro de primavera inesperadamente caloroso e reconfortante com seu bom amigo Brian Mischevski, o que convenceu Ferguson de vez, já agora com dezoito anos, de que ele era de fato uma pessoa destinada a amar homens e mulheres e que, por causa dessa duplicidade, sua vida seria mais complicada do que a maioria das demais vidas, mas também talvez mais rica e mais revigorante, e tendo escrito um texto novo para o jornal do sr. Dunbar de quinze em quinze dias até o fim do último semestre, tendo acrescentado quase cem páginas ao seu fichário de três argolas de folhas soltas, tendo trabalhado com Gil para preparar uma abrangente lista de leituras para seu primeiro ano como estudante sem matrícula em nenhuma faculdade ou universidade, tendo voltado para o Gristedes, na Columbus Avenue, para apertar a mão de seus ex-colegas de trabalho, tendo voltado à livraria Mundo do Livro para pedir desculpas ao dono, George Tyler, por ter roubado alguns livros, tendo entendido que sorte ele teve de ser preso e não ser punido com severidade, tendo jurado nunca mais roubar nada de ninguém, Ferguson recebeu sua carta de Saudações do governo americano e foi convocado para se apresentar ao serviço de alistamento na Whitehall Street para seu exame físico do Exército, no qual, nem é preciso dizer, foi aprovado, porque era um jovem em ótima forma, sem nenhum problema físico nem qualquer anormalidade, mas como tinha ficha na polícia e como confessou abertamente ao psiquiatra da equipe de seleção que tinha atração por homens e também por mulheres, mais tarde, naquele verão, ele recebeu um novo cartão de alistamento com sua nova classificação datilografada na frente: 4-F*.

fraco — frouxo — fodido — e fracassado.

* Classificação do sistema de seleção para o serviço militar nos Estados Unidos. (N. E.)


4.4

Naqueles três anos como aluno do ensino médio nos subúrbios de Nova Jersey, o Ferguson de dezesseis, dezessete e dezoito anos começou a escrever vinte e sete contos, terminou dezenove e passou não menos de uma hora por dia com o que chamava de seus cadernos de trabalho, que ia enchendo com diversos exercícios de escrita que ele inventava para si mesmo, a fim de manter a forma, afiar a pegada e tentar melhorar (como ele disse certa vez para Amy): descrições de objetos físicos, paisagens, céus no amanhecer, rostos humanos, animais, o efeito da luz na neve, o barulho da chuva no vidro, o cheiro de madeira queimada, a sensação de andar na neblina e ouvir o vento soprar entre os galhos das árvores; monólogos na voz de outras pessoas a fim de se transformar naquelas pessoas ou, pelo menos, tentar entendê-las melhor (o pai, a mãe, o padrasto, Amy, Noah, seus professores, seus colegas de colégio, o sr. e a sra. Federman), mas também pessoas desconhecidas e mais distantes, como J. S. Bach, Franz Kafka, a garota do caixa do supermercado local, o cobrador da Companhia Ferroviária Erie Lackawanna, o mendigo barbado que lhe pediu um dólar na Grand Central Station; imitações de admirados, rigorosos, inimitáveis escritores do passado (pegue um parágrafo de Hawthorne, por exemplo, e componha algo baseado no seu modelo sintático, usando um verbo nos lugares onde ele usava um verbo, um substantivo nos lugares onde ele usava um substantivo, um adjetivo nos lugares onde ele usava um adjetivo — a fim de sentir o ritmo nos ossos, sentir como se forma a música); uma sequência curiosa de vinhetas geradas por trocadilhos, homonímias e deslocamentos de uma letra: óleo/olho, luxo/luto, alma/lama, porto/morto; e arroubos impetuosos de escrita automática, a fim de limpar o cérebro, toda vez que estiver se sentindo tolhido, como um jorro de escrita de quatro páginas inspiradas pela palavra “nômade”, que começava assim: Não, eu não estou doido. Não estou nem zangado, mas me dê uma chance para desnortear você e num instante eu vou te deixar com os bolsos vazios. Também escreveu uma peça em um ato, que ele queimou de desgosto uma semana depois de terminar, e vinte e três poemas que estavam entre os mais nojentos que qualquer cidadão do Novo Mundo jamais viu e que ele rasgou depois de jurar para si mesmo que nunca mais ia escrever poemas. No geral, detestava o que escrevia. No geral, achava que era burro e sem talento e que jamais conseguiria escrever nada, mesmo assim insistia, se forçava a se dedicar àquilo todos os dias, a despeito dos resultados muitas vezes decepcionantes, entendia que não haveria esperança para ele, a menos que persistisse, que para ser o escritor que almejava levaria anos, mais anos do que seu corpo levaria para terminar de crescer, e toda vez que escrevia algo que parecia ligeiramente menos ruim do que o texto que tinha escrito antes, Ferguson achava que estava progredindo, ainda que o texto seguinte se revelasse uma abominação, pois a verdade era que ele não tinha opção, estava destinado a fazer aquilo ou então morrer, porque, apesar de seus esforços e de seu descontentamento com as coisas mortas que muitas vezes saíam dele, fazer aquilo lhe dava a sensação de estar vivo, mais do que qualquer outra coisa que já tinha feito na vida, e quando as palavras começavam a cantar em seus ouvidos e ele se sentava diante da escrivaninha e empunhava a caneta ou colocava os dedos nas teclas da máquina de escrever, sentia-se nu, nu e exposto ao vasto mundo que passava em disparada na sua frente, e nada dava uma sensação melhor do que isso, nada podia se equiparar à sensação de desaparecer de si mesmo e entrar no vasto mundo cantarolando, por dentro, as palavras que cantarolavam no interior de sua cabeça.

Teimoso. Era essa a palavra que melhor descrevia Ferguson naqueles anos — e a cada ano ele ficava mais teimoso, mais fechado em si mesmo, mais sem vontade de sair do lugar quando alguém ou alguma coisa fazia pressão sobre ele. Ferguson tinha endurecido — endurecido em seu desprezo pelo pai, endurecido nos sacrifícios que continuava a impor a si mesmo anos depois da morte de Artie Federman, endurecido em sua oposição à sociedade suburbana, que o mantinha prisioneiro, desde o início de sua vida consciente. Se Ferguson ainda não tinha se transformado num ranzinza insuportável que fazia as pessoas fugirem na hora em que ele entrava na sala, era porque não vivia procurando briga e, em geral, guardava suas ideias para si. A maioria de seus colegas do ensino médio o encaravam como um tipo de cara legal — um pouco rabugento, às vezes, um pouco perdido nos próprios pensamentos, mas não chegava a ser um sujeito disposto a arranjar briga e, decididamente, nada tinha de chato, pois Ferguson não era contra todo mundo, só contra algumas pessoas, e as pessoas com as quais ele não se sentia em contradição gostavam dele, e as pessoas de quem ele gostava, ele tratava com uma afeição reservada, mas atenciosa, e as pessoas a quem ele amava, ele as amava do jeito como um cachorro ama, com todas as partes de seu ser, nunca julgava, nunca condenava, nunca pensava mal, simplesmente as cultuava e se regozijava em sua presença, pois sabia que era completamente dependente do pequeno bando de pessoas que o amavam e que ele amava, e que sem elas ele estaria perdido, outro Hank ou Frank jogado fora pelo tubo da lixeira, rumo ao incinerador de lixo, um floco de cinza que flutua pelo céu da noite.

Ferguson não era mais o menino que tinha escrito “Par perfeito” aos cator­ze anos, um zé-ninguém bobão, mas continuava a levar aquele garoto dentro de si e sentia que os dois continuariam a caminhar juntos por muito tempo. Combinar o estranho com o familiar: era a isso que Ferguson aspirava, observar o mundo da maneira mais acurada possível, como o mais dedicado dos realistas, e ainda assim criar uma forma de ver o mundo através de lentes distintas, ligeiramente deformadoras, pois ler livros que tratavam apenas do familiar inevitavelmente nos ensinava apenas coisas que já sabíamos, e ler livros que tratavam do estranho nos ensinava coisas que não precisávamos saber, e o que Ferguson desejava, acima de tudo, era escrever contos que abrissem espaço não só para o mundo visível dos seres sensíveis e de coisas inanimadas, mas também para as vastas e misteriosas forças invisíveis que se ocultavam no visível. Ele queria perturbar e desorientar, fazer as pessoas estourarem de tanto rir e tremerem com calafrios, queria partir corações e causar danos nas mentes, dançar a dança insana dos garotos pirados quando rodopiam no seu dueto dos duplos. Sim, Tolstói era sempre tão comovente, e, sim, Flaubert escreveu as melhores frases da criação, mas, por mais que Ferguson adorasse seguir as reviravoltas dramáticas e cada vez mais drásticas de Anna K. ou de Emma B., naquele momento da vida, os personagens que lhe falavam mais fundo eram o K. de Kafka, o Gulliver de Swift, o Pym de Poe, o Próspero de Shakespeare, o Bartleby de Melville, o Kovalióv de Gógol e o monstro de M. Shelley.

Os primeiros esforços de seu segundo ano de estudante: um conto sobre um homem que desperta, certa manhã, e descobre que tem um rosto diferente; um conto sobre um homem que perde sua carteira com o passaporte numa cidade estrangeira e vende seu sangue para poder comer; um conto sobre uma menina pequena que troca de nome no primeiro dia de cada mês. Um conto sobre dois amigos que deixam de ser amigos por causa de uma disputa em que os argumentos dos dois estão errados; um conto sobre um homem que mata a esposa por acidente e depois decide pintar todas as casas de seu bairro de cor vermelha bem viva; um conto sobre uma mulher que perde a faculdade de falar e, à medida que os anos passam, descobre que está cada vez mais feliz; um conto sobre um adolescente que foge de casa e então, quando resolve voltar, descobre que os pais desapareceram; um conto sobre um rapaz que está escrevendo um conto sobre um rapaz que está escrevendo um conto sobre um rapaz que está escrevendo um conto sobre um rapaz que...

Hemingway o ensinou a examinar as frases com mais cuidado, a medir o peso de cada palavra e cada sílaba que entrava na construção de um parágrafo, porém, por mais admirável que fosse a escrita de Hemingway, quando estava em sua melhor forma, sua obra não dizia grande coisa para Ferguson, toda aquela arrogância viril e o estoicismo de feições contraídas lhe pareciam ligeiramente ridículos, por isso deixou Hemingway de lado em favor de Joyce, mais profundo e mais rigoroso, e depois, quando fez dezesseis anos, ganhou de presente do tio Don mais um monte de livros em formato de brochura, entre eles os livros do então desconhecido Isaac Babel, que rapidamente se converteu no contista número um no mundo para Ferguson, e Heinrich von Kleist (o tema da primeira biografia de Don), que rapidamente se tornou o contista número dois para Ferguson, no entanto, ainda mais valioso para ele, para não dizer precioso e eternamente fundamental, foi a edição de quarenta e cinco centavos da coleção Signet, que juntava os livros A desobediência civil e Walden e que foi incluída na sua seção de livros de ficção e poesia, pois embora Thoreau não fosse autor de romances ou contos, era um escritor de uma clareza e precisão sublimes, um criador de tantas frases maravilhosamente elaboradas que Ferguson sentia sua beleza como as pessoas sentem um soco no queixo ou uma febre no cérebro. Perfeitas. Cada palavra parecia se encaixar perfeitamente e cada frase parecia uma pequena obra de arte em si mesma, uma unidade independente de respiração e pensamento, e a emoção de ler essa prosa residia em nunca saber qual a distância que Thoreau ia pular ao passar de uma frase para a frase seguinte — às vezes era só uma questão de centímetros, outras vezes, vários metros, às vezes eram quilômetros e mais quilômetros —, e o efeito desestabilizador daquelas distâncias irregulares ensinou a Ferguson um jeito novo de pensar nos próprios esforços, pois o que Thoreau fazia era combinar dois impulsos opostos e mutuamente excludentes em cada parágrafo que escrevia, aquilo que Ferguson passou a chamar de impulso para controlar e impulso para correr riscos. Esse era o segredo, sentia Ferguson. Todo controle levava a um resultado sufocante, sem ar. Todo risco levava ao caos e à incompreensão. Mas, junte os dois, e aí então talvez você acabe dando em alguma coisa, talvez as palavras que estão cantando dentro da sua cabeça acabem cantando na página e bombas detonem, prédios desmoronem e o mundo comece a parecer diferente.

Mas em Thoreau havia mais do que apenas o estilo. Havia a necessidade selvagem de ser ele mesmo, e ninguém mais a não ser ele mesmo, ainda que ao preço de ter de ofender seus semelhantes, a teimosia da alma que tinha tanto apelo para Ferguson, cada vez mais teimoso, o Ferguson adolescente, que via em Thoreau um homem que havia conseguido permanecer adolescente por toda a vida, vale dizer, um homem que nunca abandonou seus princípios, que nunca se converteu num adulto corrupto e vendido — um garoto corajoso até o fim amargo, o que era exatamente o futuro que Ferguson imaginava para si. Entretanto, além do imperativo espiritual de transformar a si mesmo num ser corajoso e confiante, havia o exame crítico que Thoreau fazia da premissa americana de que o dinheiro governa tudo, a rejeição do governo americano e sua disposição de ir para a cadeia a fim de protestar contra as ações daquele governo, e depois, é claro, havia a ideia que tinha mudado o mundo, a ideia que ajudou a Índia a se tornar um país independente cinco meses depois de Ferguson nascer, que era a mesma ideia que então se espalhava pela América do Sul e talvez ajudasse a transformar também os Estados Unidos, a desobediência civil, a resistência sem violência contra a violência de leis injustas, e como as coisas tinham mudado pouco em cento e vinte anos, desde Walden, Ferguson disse para si mesmo: a Guerra dos Estados Unidos contra o México agora se convertera na Guerra do Vietnã, a escravidão dos negros agora se convertera na opressão das leis de segregação racial no sul dos Estados Unidos e nos governos estaduais controlados pelo Klan, e, assim como Thoreau tinha escrito seu livro nos anos que desembocaram na Guerra Civil, Ferguson achava que ele também estava escrevendo num momento em que o mundo estava à beira de se despedaçar de novo, e por três vezes, nas semanas que precederam e sucederam o casamento de sua mãe com o pai de Amy e Jim, enquanto ele via na televisão as imagens e observava nos jornais as fotografias dos monges budistas no Vietnã do Sul que incendiaram os próprios corpos até morrer a fim de protestar contra a política do regime de Diem, apoiado pelos americanos, Ferguson entendeu que os dias tranquilos da infância tinham chegado ao fim, que o horror daquelas imolações provavam que, se homens estavam dispostos a morrer pela paz, então a guerra que se alastrava cada vez mais no país deles, mais cedo ou mais tarde, se tornaria tão grande que obscureceria tudo e acabaria deixando todo mundo cego.

A casa nova ficava em South Orange, não em Maplewood, mas como as duas cidades eram governadas por um único comitê educacional, Ferguson e Amy acabaram ficando como estudantes na Columbia High School, o único colégio público no distrito, no ensino médio. Já tinham terminado seu segundo ano quando seus pais se casaram no dia 2 de agosto de 1963, e a conversa desoladora que ocorrera no quintal da casa antiga de Ferguson, onze meses antes, estava completamente esquecida. Amy tinha arranjado um namorado, Ferguson tinha arranjado uma namorada e sua amizade irmão-irmã tinha se consolidado exatamente da forma como Amy esperava, se bem que agora que eles eram de fato irmão e irmã, talvez a velha metáfora tivesse se tornado uma besteira redundante.

O pai de Ferguson estava ficando com todo o dinheiro da venda da casa antiga, mas Dan Schneiderman continuava a ser o proprietário da casa mais antiga ainda, a primeira casa de Maplewood, aquela que Ferguson jamais gostaria de ter deixado, e, quando esta foi vendida por vinte e nove mil dólares, ele pôde comprar uma casa um tanto maior, em South Orange, por trinta e seis mil dólares, pois embora a mãe de Ferguson estivesse quase sem nenhum tostão, porque o pai tinha parado de mandar os cheques depois que ela se casou com Dan, o próprio Dan já não vivia mais duro, pois ele e Liz tinham feito um seguro de vida no valor de cento e cinquenta mil dólares para cada um, logo no início de seu casamento e, agora que ele tinha recebido essa quantia após a morte horrível e prematura de Liz, a recém-formada família dos Adler, Ferguson e Schneiderman estava, por enquanto, numa situação financeira confortável. Era difícil não ficar pensando na origem daquele dinheiro, a sinistra transfiguração de um câncer terminal em dólares, mas Liz estava morta e a vida continuava em movimento, e que opção tinha qualquer um deles a não ser ir em frente junto com a vida?

Todos adoraram a casa nova. Até Ferguson, que se opunha energicamente a morar numa cidade pequena, que abriria mão de quase tudo para poder morar em Nova York ou em outra cidade maior, em qualquer parte do mundo, admitia que tinha sido uma bela escolha e que a casa branca, de tábuas, de dois andares, construída em 1903 e localizada num beco fora de mão conhecido como Woodhall Crescent era um lugar muito melhor para descansar os ossos do que o gelado Castelo do Silêncio onde ele foi forçado a morar durante os sete anos anteriores. Provavelmente poderiam ter usado mais um quarto no primeiro andar, dos quatro quartos disponíveis, pois o quarto que seria o de Jim foi convertido num escritório para Dan, mas ninguém encarou isso como uma dificuldade, muito menos o fleumático Jim, que só os visitava raramente e que parecia satisfeito de dormir no sofá da sala, e, se ele não se incomodava, por que os outros se incomodariam? O importante era que todos estavam juntos e, como Ferguson aprovava Dan e Jim, e Amy aprovava a mãe de Ferguson, e Dan aprovava Ferguson, e a mãe de Ferguson aprovava Amy e Jim, todos se juntaram em paz e não davam atenção às fofocas nas duas cidades, que tinham a sensação de que, com todas as reviravoltas e comoções do ano anterior — morte, divórcio, novo casamento, casa nova, e dois adolescentes crescidos morando lado a lado no mesmo andar daquela casa —, algo estranho ou fora do normal ou muito errado devia estar acontecendo em Woodhall Crescent 7. O homem não era nada mais do que um artista batalhador, pelo amor de Deus, o que significa que era um luftmensch (segundo os judeus) relaxado e que gostava de tiradas mordazes, ou um cabeludo rebelde com tendências políticas duvidosas (segundo os não judeus), e como é que a esposa de Stanley Ferguson deixou para trás seu casamento e todo o dinheiro que vinha junto para unir forças com um sujeito como aquele?

A maior chance para Ferguson nada tinha a ver com o casamento de sua mãe com Dan Schneiderman. Ela tinha sido casada antes, afinal, e nisso Dan era um marido melhor, mais compatível, do que seu pai tinha sido. Ferguson aprovava a união e não pensava muito no assunto, porque não precisava. O que ele pensava de fato, no entanto, e que representava uma subversão de suas condições básicas de vida, era o fato de que não era mais um filho único. Quando pequeno, tinha rezado para ganhar um irmão ou irmã, mil vezes tinha implorado para a mãe produzir um bebê para ele, de modo que não ficasse mais sozinho, porém um dia ela lhe disse que não seria possível, que não tinha mais bebês dentro dela, o que significava que ele ia ser seu primeiro e único Archie até o fim dos tempos, e pouco a pouco Ferguson se reconciliou com seu destino solitário, tornando-se a pessoa pensativa e sonhadora que ago­ra queria passar a vida adulta sequestrado num quarto, escrevendo livros, deixando de lado os prazeres turbulentos e a camaradagem animada que a maioria das crianças experimenta com os irmãos, mas também evitando os confli­tos e os ódios que podem transformar a infância numa briga infernal e sem trégua, que termina numa amargura que dura a vida inteira ou em psicose permanente, e agora, aos dezesseis anos, tendo evitado tanto o bem quanto o mal de não ser o único por toda a vida, o desejo infantil de Ferguson tinha sido atendido na forma de uma irmã de quinze anos e de um irmão de vinte —, mas era tarde demais, tinha sido adiado por tempo demais para que tivesse algum proveito para ele, e, muito embora Jim ficasse ausente na maior parte do tempo e Amy fosse, de novo, sua amiga íntima (depois de um demorado intervalo de ressentimento por ela ter dado o fora nele no verão anterior), havia dias em que Ferguson não conseguia evitar as saudades de sua vida antiga, de filho único, ainda que aquela vida tivesse sido muito pior do que essa nova.

Seria diferente se Amy o amasse da maneira como ele passara a amar Amy, se os dois tivessem aproveitado as circunstâncias novas para se permitirem várias formas de travessuras carnais, improvisadas sessões de sexo escondido enquanto os pais não reparavam neles, farras de luxúria secretas e encontros à meia-noite no quarto de um ou do outro, pois eram vizinhos, culminando no sacrifício mútuo da virgindade de ambos, em nome do amor e da plena saúde mental, mas Amy não estava interessada, ela queria, de fato e de verdade, ser sua irmã, e Ferguson, doido por sexo, cujo objetivo primordial na vida era cravar seu pênis no corpo nu de uma garota e deixar sua virgindade para trás de uma vez por todas, tinha de aceitar aquilo, ou então explodir por força da agitação contínua de querer o que não podia ter, pois o desejo frustrado era um veneno que se infiltrava em todas as partes de uma pessoa e, depois que as veias e os órgãos internos ficavam saturados, o veneno viajava para cima, rumo ao cérebro, e explodia através da tampa do crânio.

As primeiras semanas na casa nova foram as mais difíceis para ele. Ferguson tinha não só de suprimir o impulso de agarrar Amy e lambuzar sua cara de beijos, toda vez que ficavam sozinhos, e ele tinha não só de reprimir as fantasias de ereção noturna, nas quais se esgueirava para a cama dela, no quarto vizinho, como também havia numerosos ajustes práticos que tinham de ser feitos, o que, em larga medida, girava em torno da questão de como não infringir a privacidade um do outro, e até que os dois estabelecessem um conjunto de regras inapeláveis de como coexistir nos espaços compartilhados (bater antes de entrar, arrumar o banheiro antes de sair, lavar os próprios pratos, não colar as respostas do dever de casa do outro, a menos que o outro lhe desse a resposta por livre e espontânea vontade, e não espiar o quarto do vizinho, o que significava que Ferguson não podia bisbilhotar o diário de Amy e Amy não podia bisbilhotar os cadernos de trabalho e os contos de Ferguson), houve alguns momentos esquisitos e um ou dois verdadeiramente embaraçosos, como quando Amy abriu a porta do banheiro e viu Ferguson ainda molhado e sentado, nu, na privada, se masturbando — Não vi isso!, ela berrou, quando fechou a porta com força —, ou quando Ferguson saiu do seu quarto de supetão, exatamente na hora em que Amy estava passando pelo corredor, tentando prender a toalha em volta do corpo e, quando a tolha, de repente, caiu, deixando à mostra a brancura de sua pele nua, o perplexo Ferguson, que ficou olhando para os peitos de mamilos pequenos e, pela primeira vez, viu o púbis crespo e castanho de sua meia-irmã, Amy soltou bem alto um Que merda!, a que Ferguson respondeu com uma réplica quase espirituosa — Eu sempre desconfiei que você tinha um corpo, disse. Agora eu tenho certeza — e Amy riu, depois levantou os braços numa pose jocosa de modelo erótica, e disse: Agora estamos quites, Mr. Dick, o que se referia não só ao personagem engraçado, cujo nome era sinônimo de pênis, no romance David Copperfield, livro que ambos adoravam, como também àquilo que Amy tinha visto no banheiro, alguns dias antes.

Era verdade que Ferguson tinha uma namorada, mas também era verdade que ele teria largado a garota num instante se Amy, na figura de Barkis, outro personagem do mesmo romance, estivesse a fim, mas isso não acontecia, e, agora que Ferguson tinha visto o corpo que nunca seria entregue a ele, nunca mais teria de se torturar, fazendo força para imaginar como era esse corpo, e isso foi um pequeno passo à frente, ele teve a impressão, uma forma de começar a se curar de uma obsessão doentia que nunca iria levá-lo a lugar nenhum, senão para o Poço Sem Fundo da Tristeza Eterna, e como recompensa ele tentou fixar seus pensamentos no corpo da namorada, que até então ele tinha visto nu só da cintura para cima, mas as explorações de ambos estavam ficando mais atrevidas e mais impulsivas, agora que voltaram a ficar juntos no início de seu penúltimo ano no colégio, o que significava que havia motivo para esperança, e, depois de um verão difícil, em que ele não sabia em que pé estava sua situação com Amy nem como iria agir em relação a ela, Ferguson decidiu capitular, queimar as armas de seu arsenal e assinar um tratado mental de rendição incondicional e, a partir desse momento, ele começou a levar mais a sério seu novo papel e a se comportar como o irmão da irmã Amy, ciente de que era a única forma de continuar a amá-la e continuar a ser amado por ela.

Às vezes brigavam, às vezes Amy gritava e batia a porta com força, xingava Ferguson, às vezes Ferguson se escondia no quarto e se recusava a falar com Amy por noites inteiras, blocos compactos de dez ou doze horas ininterruptas, mas no geral os dois se esforçavam para se dar bem e, no geral, se davam bem. De fato, sua amizade voltou a ser o que era antes de Ferguson meter na cabeça a ideia de que eles tinham de ser mais do que simples amigos, mas havia uma densidade adicional àquela amizade, agora que os dois estavam morando com os pais recém-casados na mesma casa em Woodhall Crescent, entre conversas mais longas e mais íntimas que, às vezes, demoravam três ou quatro horas e que, em algum ponto, sempre acabavam desaguando na morte da mãe de Amy e na morte de Artie Federman, com mais horas de estudos e preparativos juntos para provas (o que fez as notas de Ferguson subirem de B? e um ou outro A? para o mesmo nível de Amy, que era só de A e A?), mais cigarros fumados juntos, mais álcool bebido juntos (quase sempre cerveja, a barata Rolling Rock, em garrafas verdes e compridas, ou até a ainda mais barata Old Milwaukee, naquelas garrafas marrons e bojudas), mais filmes antigos vistos juntos na tevê, mais partidas de buraco disputadas entre ambos, mais viagens para Nova York juntos, mais piadas, mais provocações, mais discussões sobre política, mais risadas e mais inibições para meter o dedo no nariz e peidar na companhia um do outro.

O colégio tinha mais de dois mil e cem alunos, pouco mais de setecentos por série, e naquela fábrica educacional do ensino secundário público, que atendia às cidades de Maplewood e South Orange, havia uma mistura de protestantes, católicos e judeus, uma população, no geral, de classe média, com uma fatia de componentes da classe trabalhadora de colarinho-branco, meninos e meninas cujas famílias tinham vindo da Inglaterra, Escócia, Itália, Irlanda, Polônia, Rússia, Alemanha, Tchecoslováquia, Grécia e Hungria, mas nenhuma família asiática, e só vinte quatro alunos negros em todo o colégio, o que o tornava um dos colégios mais monocolores no condado de Essex e, mesmo após tanto tempo, dezenove ou vinte anos depois da libertação dos campos de morte e do fim da Segunda Guerra Mundial, persistiam traços de antissemitismo nas duas cidades, sobretudo na forma de sussurros, silêncios e exclusões não declaradas em lugares como o Clube de Tênis de Grama de Orange South, mas às vezes era pior, e nem Ferguson nem Amy esqueceram a cruz que foi queimada na frente do gramado da casa de um de seus amigos judeus em Maplewood quando eles tinham dez anos de idade.

Mais de dois terços dos mais de setecentos alunos de sua série iriam fazer faculdade depois, alguns iriam para as melhores instituições privadas do país, outros para faculdades particulares medíocres no litoral leste, outros iriam para faculdades públicas em Nova Jersey, e, para os quatro rapazes que não iam estudar em nenhuma faculdade, havia o Exército e o Vietnã e, depois disso, se houvesse um depois, iriam trabalhar como mecânicos e frentistas de posto de gasolina, seguir carreiras como padeiros e motoristas de caminhão de longa distância, empregos intermitentes ou fixos de encanadores, eletricistas e carpinteiros, vinte anos na Polícia, no Corpo de Bombeiros ou no Departamento de Saneamento, ou então arriscando a sorte em atividades como jogadores de apostas, chantagistas e assaltantes à mão armada. Para as garotas que não iam fazer faculdade, havia o casamento e os filhos, escola de secretariado, escola de enfermagem, escola de esteticista, escola de assistente de dentista, trabalhar em escritórios, restaurantes e agências de viagem, e a possibilidade de passar o resto da vida a vinte quilômetros da cidade onde haviam nascido.

Havia algumas exceções, porém, algumas garotas que não iriam para a faculdade e também não iam ficar paradas, algumas garotas com passados e futuros completamente distintos das garotas de Nova Jersey que Ferguson vinha examinando por toda sua vida, e foi uma dessas figuras que, por acaso, apareceu na sua turma da aula de inglês no primeiro dia do seu primeiro ano como aluno no ensino médio, uma garota de cabelo escuro, pele escura, que não era bonita nem feia, mas singularmente cativante aos olhos de Ferguson, toda encolhida em si mesma como um bicho sem medo aprisionado num zoológico, que calmamente observa os observadores através das barras da jaula, imaginando qual deles terá coragem de vir lhe dar comida, e quando a sra. Monroe começou a aula, se dirigiu a cada um dos vinte alunos, perguntou seus nomes e pediu que se apresentassem aos demais colegas de turma, Ferguson ouviu a garota de cabelo escuro falar com o que ele achou que era um sotaque britânico e, sem fazer qualquer pausa para refletir sobre a questão, Ferguson enfiou na cabeça que tinha de dar em cima dela, não só porque uma garota que vinha de fora era automaticamente mais desejável do que uma garota local, dos subúrbios de Jersey, como também porque aquilo aconteceu exatamente sete dias depois de Amy dar um fora nele, no quintal, e Ferguson estava livre, repugnantemente livre, para dar em cima de qualquer garota que cruzasse seu caminho. Felizmente, Amy não estava na sua turma de inglês naquele ano, o que significava que seus olhos não ficariam olhando para Ferguson enquanto ele olhava para a garota de cabelo escuro e planejava um jeito de se aproximar, cortejar e ganhar aquela garota, e, sem Amy por perto para espionar suas intenções, ele podia deixar aquelas intenções tão transparentes quanto quisesse.

Dana Rosenbloom. Não era britânica, mas sul-africana. A segunda de qua­tro filhas de Maurice e Gladys Rosenbloom, nascida em Joanesburgo, no momento residindo nos Estados Unidos porque o próspero pai de Dana, dono de uma indústria, não era só um empresário capitalista, como também um socialista, um homem tão contrário ao regime de governo do apartheid, que dominava o país desde 1948, que militou contra ele e, ao se engajar naquelas atividades subversivas, ofendeu as autoridades sul-africanas a tal ponto que quiseram mandá-lo para a prisão, um lugar que não seria nada bom para a saúde de Maurice Rosenbloom nem para o moral de sua família, portanto os seis foram embora às pressas da África do Sul, rumo a Londres, deixando para trás sua fábrica, sua casa em Joanesburgo, seus carros, seus gatos, seu cavalo, sua casa de campo, seu barco e a maior parte de seu dinheiro. De tudo para quase nada, e, com o pai de Dana já com sessenta e dois de idade e frágil demais para trabalhar, a mãe, bem mais jovem, que Ferguson supôs ser uma pessoa de seus quarenta e poucos anos, assumiu para si a tarefa de sustentar a família em Londres, missão que cumpriu ascendendo a um cargo de grande proeminência na Harrods, no intervalo de três anos, e depois de chegar ao cargo mais alto possível na loja de departamentos, aceitou um cargo ainda mais importante, por um salário duas vezes maior, na Saks Fifth Avenue, em Nova York. Assim, os Rosenbloom foram aterrissar em solo americano na primavera de 1962 e, assim, acabaram encontrando uma casa grande, que rangia, na Mayhem Drive, em South Orange, Nova Jersey, e assim Dana Rosenbloom acabou sentada a duas carteiras de distância de Ferguson na aula de inglês da sra. Monroe, no primeiro ano do ensino médio, na Columbia High School.

Uma sul-africana branca, com a pele morena de uma africana do norte, as origens do Leste Europeu sobrepostas em camadas nas origens mais antigas dos desertos do Oriente Médio, a judia exótica da literatura alemã e nórdica, a garota cigana das óperas do século XIX e dos filmes em tecnicolor, Esmeralda, Betsabeia e Desdêmona embrulhadas numa só, o fogo negro do cabelo encrespado, rebelde, queimando como uma coroa sobre sua cabeça, braços e pernas esguios e quadris estreitos, uma ligeira falta de aprumo nos ombros e na parte de cima do pescoço, enquanto rabiscava suas anotações durante a aula, movimentos lânguidos, nunca afobados nem fatigados, calma, branda e calma, não a sedutora levantina que aparentava ser, mas uma garota sólida, com impulsos calorosos, afetuosos, era, de vários modos, a garota mais comum entre aquelas que tinham atraído Ferguson, não era linda da maneira como Linda Flagg era linda, nem inteligente da maneira como Amy era inteligente, porém era mais velha e mais equilibrada do que ambas, por causa daquilo que ela e a família tinham passado, mais velha do que o próprio Ferguson, um sensualista sem tormentos, mas com bastante experiência e atrevimento para que ela se mostrasse receptiva a suas primeiras investidas, e, em pouco tempo, compreendeu que Dana estava louca por ele e que nunca o faria em pedacinhos, como Amy às vezes fazia, a polemista Schneiderman, que estourou de rir quando Ferguson sacou de um cachimbo e o acendeu depois do jantar, certa noite, durante o Ano de Muitos Jantares, antes de seus pais se casarem, o cachimbo que ele tinha comprado para fumar enquanto escrevia, porque achava que todos os escritores tinham de fumar cachimbo quando sentavam diante de suas escrivaninhas e escreviam, e, céus, como ela havia zombado dele impiedosamente por causa daquilo; o chamou de pateta pretensioso e de o moleque mais besta que jamais existiu, palavras que Dana Rosenbloom jamais diria para ele nem para ninguém, e assim Ferguson paquerou a novata de olhos escuros que tinha vindo de Joanesburgo e de Londres, e acabou ganhando a garota, não porque soubesse o que estava fazendo, no que diz respeito à arte da sedução, mas porque ela havia se apaixonado por ele e queria ser seduzida.

Ferguson não estava apaixonado por ela, jamais ficaria apaixonado por ela, desde o início ele entendeu que Dana nunca seria a grande paixão que estava procurando, mas seu corpo pedia para ser tocado, ele estava ávido por intimidades com alguém e Dana o tocava e o beijava bem, tão bem e tantas vezes que os prazeres físicos obtidos por meio das carícias dela praticamente suprimiam a necessidade de uma grande paixão naquela altura da vida. Uma pequena paixão com muitos toques e beijos era o bastante, por ora, e quando eles avançaram rumo à pele nua, ao sexo completo, no inverno de seu penúltimo ano no colégio, aquilo foi mais do que o suficiente para satisfazer Ferguson.

Sexo animal e sem palavras com a garota cigana que o adorava, comunicação por olhares, gestos e toques, poucas trocas verbais sobre qualquer outra coisa que não os assuntos mais triviais, não era um encontro de mentes, como com Amy ou com a futura garota de seus sonhos, mas um encontro de corpos, uma compreensão entre corpos, uma falta de inibição que era tão nova para Ferguson que ele, às vezes, tremia quando pensava no que os dois faziam um para o outro nos quartos vazios em que conseguiam ficar sozinhos, a pele ardendo de felicidade, o suor escorrendo dos poros, enquanto se lambuzavam de beijos, um ao outro, e como ela era boa com ele, como aceitava bem os medos e os desesperos egoístas de Ferguson, como tinha pouca importância para ela o fato de Ferguson a amar menos do que ela a ele, porém os dois sabiam que sua ligação não passava de uma questão temporária, que os Estados Unidos era a terra dele, e não dela e, por enquanto, ela estava só aguardando sua hora, até a formatura e o aniversário de dezoito anos, quando Dana ia partir para Israel para morar num kibutz entre o Mar da Galileia e as Colinas de Golan, isso era tudo que ela desejava, nada de faculdade, nada de livros, nada de grandes ideias, só plantar seu corpo num lugar junto com outros corpos e fazer o que tivesse de fazer para pertencer a um país que nunca iria expulsá-la.

Inevitavelmente, havia ocasiões em que ele se sentia entediado com ela, desligado, porque Dana dava muito pouca importância a coisas que eram as mais importantes para ele, e, durante os anos em que estudaram juntos no colégio, ele vacilava e oscilava, ficava de olho em outras garotas, saía com outras durante o verão, época em que Dana visitava os parentes em Tel Aviv, só que jamais conseguia romper com ela inteiramente, a doçura do bom coração de Dana era irresistível, e o sexo era necessário, a única coisa que apagava todo o resto, nos minutos ou nas horas que durava, e parecia fazer Ferguson entender por que tinha nascido e o que significava pertencer ao mundo, o início da vida erótica, o início da vida real, e nada disso seria possível com qualquer outra garota no colégio, as Linda Flagg e as Nora McGinty e as Deb­bie Kleinman eram todas virgens militantes, donzelas profissionais trancafiadas em cintos de castidade e, portanto, mesmo que suas afeições oscilassem de tempos em tempos, Ferguson sabia como tivera sorte de ter encontrado Dana Rosenbloom, e nunca iria deixá-la, até não ter outra escolha, pois além de entregar a si mesma a ele, Dana também entregou sua família, e Ferguson passou a amar a família dela, amar a ideia de que uma família assim pudesse existir, e toda vez que ele entrava naquela casa e se via envolvido pela aura dos Rosenbloom, sentia-se tão feliz de estar ali que não queria mais sair.

O que vinha a ser essa aura era algo que escapava de qualquer definição precisa, apesar de Ferguson, ao longo dos anos, ter feito numerosas tentativas de compreender o que a tornava tão especial, tão diferente de outras casas em que havia entrado. Uma mistura do chique e do banal, pensava ele às vezes, mas de tal forma que o chique nunca ficava manchado pela trivialidade, e o trivial nunca era influenciado pelo chique. As maneiras britânicas, elegantes, lindamente controladas dos pais floresciam lado a lado das tendências anárquicas das filhas, embora nenhum dos lados parecesse se incomodar com o outro, e uma atmosfera de paz parecia reinar em torno da casa o tempo todo, mesmo quando as duas filhas mais novas gritavam uma para a outra, na sala. Um flagrante: a alta, esguia, aristocrática sra. Rosenbloom, num dos vestidos Chanel ou Dior que vestia em seu escritório na Saks Fifth Avenue, conversando pacientemente sobre o controle da natalidade com a filha mais velha, Bella, que tinha virado beatnik desde que chegou aos Estados Unidos e que escutava a mãe com paciência, enquanto ajeitava o suéter preto de gola rulê e passava, em torno dos olhos, um delineador preto, que lentamente a transformava num guaxinim. Segundo flagrante: o miúdo e um tanto emagrecido sr. Rosenbloom, com sua gravata ascot no pescoço e cavanhaque grisalho, discursando sobre as virtudes da boa caligrafia para a filha mais nova, Leslie, uma menina de nove anos, magrinha, de joelhos esfolados e já com casquinha, e com um ratinho hamster de estimação, chamado Rodolfo, dormindo no bolso do vestido. Essa era a aura dos Rosenbloom, ou uma ou duas de suas emanações momentâneas, e quando Ferguson refletia sobre as turbulências que aquelas pessoas tinham enfrentado juntas, quando pensava no que devia ter sido perder tudo e ter de começar tudo de novo, pela segunda vez, e ainda por cima em outra parte do mundo, ele se perguntava se não teria encontrado uma família mais corajosa e mais resistente do que a sua. Esta também era a aura: Estamos vivos e, de agora em diante, é viver e deixar os outros em paz, e que os deuses deem as costas para nós e não se metam mais em nossa vida, para sempre.

Havia muito que aprender com o sr. Rosenbloom, concluiu Ferguson, e como o pai de Dana, de sessenta e seis anos, já não trabalhava mais e passava a maior parte de seus dias em casa, lendo livros e fumando cigarros, Ferguson começou a ir visitá-lo de vez em quando, na maioria das vezes logo depois do colégio, quando a luz do fim de tarde se derramava por dentro da sala e projetava sombras complexas e entrecruzadas sobre o chão e os móveis, e lá ficavam os dois, sentados, o jovem e o velho, na penumbra, na sala a meia-luz, conversando sobre nada em particular, passeando pela política e as peculiaridades da vida americana, de vez em quando discutiam sobre um filme ou livro ou pintura, mas o grosso da conversa consistia nas histórias que o sr. Rosenbloom contava a respeito do passado, anedotas frívolas e encantadoras sobre viagens em mares tempestuosos, a bordo de navios a vapor de carreira, rumo à Europa, les bons mots que ele havia pronunciado quando jovem, a carga de prazer que correu por dentro dele quando tomou o primeiro gole de martíni, referências a discos de gramofone, ao sem fio, e a meias de seda arregaçadas que deslizavam para baixo nas pernas das mulheres, nada de grande consequência, nada de profundo, mas era fascinante escutar; raro era que falasse de seus problemas na África do Sul — Ferguson notou isso —, mas, quando ele de fato falava alguma coisa, nunca havia rancor em sua voz, nada da raiva ou da indignação que se poderia esperar de um homem exilado, e era por isso que Ferguson se sentia tão atraído por Rosenbloom e tinha tanto prazer em sua companhia — não porque fosse um homem que tinha sofrido, mas porque era um homem que havia sofrido e ainda era capaz de contar piadas.

O sr. Rosenbloom nunca leu nenhum conto de Ferguson, nem sequer pôs os olhos numa única palavra que Ferguson tinha escrito, mas foi ele, entre tanta gente, quem apareceu com a solução para um problema que perturbou Ferguson durante muitos meses e, sem dúvida, teria continuado a incomodar durante anos.

Archie, disse o velho, certa tarde. Belo nome para usar no dia a dia, mas não é um nome lá muito bom para um romancista, não é?

Não, respondeu Ferguson. É tragicamente inadequado.

E Archibald também não é lá muito melhor, não é?

Não, nem um pouco melhor. Pior.

Então, o que você vai fazer quando começar a publicar seus livros?

Se é que, um dia, vou mesmo publicar algum livro.

Bem, vamos supor que vá. Tem alguma alternativa em mente?

Acho que não.

Acha que não ou não tem mesmo nenhuma alternativa?

Nenhuma.

Hmmm, disse o sr. Rosenbloom, enquanto acendia um cigarro e olhava para as sombras. Após uma longa pausa, perguntou: E o seu nome do meio? Tem algum?

Isaac.

O sr. Rosenbloom exalou uma grande nuvem de fumaça do cigarro e repetiu as duas sílabas que tinha acabado de ouvir: Isaac.

Era o nome do meu avô.

Isaac Ferguson.

Isaac Ferguson. Como Isaac Babel e Isaac Bashevis Singer.

Um belo nome judeu, não acha?

A parte Ferguson nem tanto, mas a parte Isaac, sem dúvida é, sim.

Isaac Ferguson, romancista.

Archie Ferguson, o homem, Isaac Ferguson, o escritor.

Nada mal, eu diria. O que você acha?

Nada mal mesmo.

Duas pessoas numa só.

Uma pessoa em duas. É bom nos dois sentidos. Nos dois sentidos, é esse o nome que vou usar para assinar minha obra: Isaac Ferguson. Isso se eu conseguir ser publicado, é claro.

Não seja tão modesto. Quando você conseguir ser publicado.

Seis meses depois dessa conversa, quando os dois estavam sentados em casa, conversando sobre as diferenças entre a luz da tarde sul-africana e a lua da tarde de Nova Jersey, o sr. Rosenbloom levantou-se da cadeira, caminhou até o fundo da sala e voltou com um livro na mão.

Talvez fosse bom você ler isto aqui, disse ele, enquanto deixava o livro cair delicadamente da sua mão para a mão de Ferguson.

Era Cry, the Beloved Country: A Story of Comfort in Desolation,* de Alan Paton. Publicado por Jonathan Cape, Thirty Bedford Square, Londres.

Ferguson agradeceu ao sr. Rosenbloom e prometeu devolver o livro em três ou quatro dias.

Não precisa devolver, disse o sr. Rosenbloom, ao se sentar de novo na cadeira. É para você, Archie. Não preciso mais dele.

Ferguson abriu o livro e viu que havia uma inscrição na primeira página, que dizia: 23 de setembro de 1948. Muitos aniversários felizes, Maurice — Tillie e Ben. Embaixo das duas assinaturas, escrito em letras grossas de imprensa, havia mais duas palavras: AGUENTE FIRME.

Se ele não queria tomar dinheiro do pai, estava fora de questão a ideia de passar mais um verão trabalhando em uma das lojas dele. Ao mesmo tempo, se Ferguson não ia tomar dinheiro do pai, tinha de começar a ganhar di­­­n­hei­ro por conta própria, mas empregos de dois meses no verão não estavam fáceis de arranjar naquela parte do mundo, e ele não sabia onde procurar tra­balho. Agora que tinha dezesseis anos, achou que poderia voltar para o Acam­pamento Paraíso e trabalhar de garçom, mas não ia ganhar nada além das gorjetas que os pais davam no último dia do verão, o que renderia apenas a ninharia de uns duzentos dólares, mais ou menos, e além disso Ferguson não queria mais saber da colônia de férias e não queria voltar lá nunca mais, a mera ideia de pôr os pés na terra onde tinha visto Artie Federman morrer era o suficiente para ele ver de novo a morte, e ver e rever mil vezes, até que fosse o próprio Ferguson quem exalaria o débil e diminuto Oh que saiu da boca de Artie, até que fosse o próprio Ferguson quem cairia na grama, o próprio Ferguson quem morresse, e simplesmente era impossível ir lá, mesmo que o salário dos garçons fosse de quatrocentos dólares por refeição.

Na primavera de seu segundo ano no colégio, com o casamento da mãe já anunciado para o início de agosto e sem nenhuma solução à vista, Jim pôs Ferguson em contato com um de seus antigos colegas do ensino médio, um ex-jogador de futebol americano, meio-campista, de cento e quatro quilos, chamado Arnie Frazier, que tinha levado pau nas provas em seu primeiro ano na Universidade Rutgers e era gerente de uma firma de mudanças em Maplewood e em South Orange. A frota consistia em uma van Chevrolet branca e o negócio era todo feito com dinheiro à vista, por baixo dos panos, sem seguro, sem empregos registrados, nenhuma estrutura formal e nenhum imposto, porque nenhuma renda era declarada. Embora Ferguson só fosse alcançar a idade suficiente para dirigir em março, Frazier o pegou como um quebra-galho para substituir seu atual piloto, que tinha sido convocado para o Exército e ia partir para o Fort Dix no fim de junho. O amigo de Jim queria mesmo era um trabalhador em regime de horário integral, para o ano todo, mas Jim era amigo de Frazier porque, certa vez, tinha salvado a irmã gêmea de Frazier de uma situação delicada numa festa do colégio (nocauteando um jogador de lacrosse embriagado que estava apalpando a menina num canto da sala), e Frazier achava que tinha uma dívida com Jim e não podia dizer que não. Foi assim que Ferguson pôs mãos à obra e começou sua carreira de trabalhador de mudanças, que tomou todos os três verões das férias do colégio, de 1963 a 1965, pois seus serviços foram convocados também no ano seguinte, quando o novo funcionário foi obrigado a largar o trabalho por causa de uma hérnia de disco na coluna lombar, e mais uma vez no terceiro ano, quando a frota se expandiu para duas vans e Frazier se viu precisando com urgência de um segundo motorista. Às vezes, era um trabalho fatigante e, todo ano, quando Ferguson recomeçava a trabalhar nas mudanças, metade dos músculos do corpo doíam de modo lancinante pelos primeiros seis ou sete dias, mas ele achava o trabalho braçal um bom contrapeso para o trabalho mental de escrever, pois não só servia para manter a forma física e prestar um serviço legítimo para os outros (transportar os bens das pessoas de um lugar para outro), como também lhe permitia pensar com as próprias ideias, em vez de dar seus pensamentos para outra pessoa, como era o caso da maior parte dos trabalhos que não eram braçais, ajudando terceiros a fazer dinheiro à custa do seu cérebro e recebendo em troca o mínimo possível, e, embora o salário de Ferguson fosse baixo, cada serviço terminava com quinze dólares e, às vezes, vinte dólares, em notas de um pingando na sua mão, e como havia trabalho de sobra naqueles anos, antes que os milhões torrados no Vietnã destruíssem a economia, ele acabava ganhando mais ou menos duzentos dólares toda semana, livres de impostos. Por isso Ferguson passou aqueles três verões carregando sofás e camas para cima e para baixo por escadarias estreitas, entregando espelhos antigos e escrivaninhas estilo luís-quinze para decoradores de interior em Nova York, fazendo a mudança de estudantes da faculdade para dentro ou para fora de seus dormitórios nos campus na Pensilvânia, em Connecticut, e em Massachusetts, carregando geladeiras velhas e condicionadores de ar quebrados para o lixão da cidade e, nesse meio-tempo, ia conhecendo muita gente com quem nunca na vida teria esbarrado se ficasse sentado num escritório ou servindo cones de sorvete para crianças barulhentas no Gruning’s. Além do mais, Arnie o tratava bem e parecia ter respeito por ele, e, embora fosse verdade que o chefe de Ferguson, de vinte e um anos de idade, tinha votado em Goldwater na eleição de 64 e queria jogar bombas nucleares em Hanói, também era verdade que o mesmo Arnie Frazier contratou dois negros quando comprou a segunda van, e a equipe se expandiu para quatro, e o último verão em que Ferguson trabalhou para ele trouxe o inestimável bônus de ficar rodando todo dia com um daqueles negros, Richard Brinkerstaff, um gigante barrigudo que ficava olhando através do para-brisa da van enquanto Ferguson os levava para o destino seguinte, assimilando cuidadosamente as paisagens que iam passando, as estradas suburbanas vazias, as ruas esburacadas da cidade, as avenidas industriais abarrotadas de carros e, mil vezes seguidas, no mesmo tom de voz, falava sobre qualquer coisa que lhe causava prazer ou tristeza ou nojo, e apontava o dedo para a garotinha que brincava com seu cão pastor no gramado da frente da casa onde ela morava ou para o bebum de cabelo desgrenhado que caminhava trôpego na esquina da Bowery com Canal, e dizia: Como é bonito, Archie. Como é bonito.

Ferguson sabia que seu pai não conseguia de jeito nenhum entender o que ele estava fazendo. Não só porque achava impossível compreender por que alguém podia querer se meter num terreno tão pantanoso como era escrever livros, algo que lhe parecia uma loucura delirante, além de ser uma forma garantida de afundar na pobreza, no fracasso e numa decepção capaz de espatifar o moral de qualquer um, como também porque seu filho tão bem-criado, exposto aos privilégios do êxito empresarial americano, construído com o próprio suor desde os primeiros dias de vida, agora deixava de lado as oportunidades que tinham sido oferecidas a ele, a fim de alcançar o sucesso e o progresso na vida, para esbanjar seus verões trabalhando como um operário comum, trabalhando para um cretino que abandonou a faculdade e que enganava a Receita Federal. Não havia nada de errado com o dinheiro que ele estava ganhando, mas o problema era que nunca se tornaria mais dinheiro, pois um trabalho rasteiro como aquele o manteria sempre no nível mais rasteiro, e, quando seu filho começou a falar em se sustentar sozinho no futuro como operário de fábrica ou marinheiro da Marinha mercante, o pai teve calafrios ao pensar no que seria dele. O que tinha acontecido com aquele menino que queria tanto ser médico? Por que tudo tinha dado tão errado?

Era assim que Ferguson imaginava que o pai devia pensar, se é que o pai pensava mesmo nele, e, nos monólogos de duas ou três páginas que escreveu na voz do pai, Ferguson lutava para entender a maneira como ele pensava, cavando e fuçando daqui e dali, em busca das poucas coisas que sabia a respeito do início da vida de Stanley Ferguson, os anos difíceis, sem dinheiro, quando o avô foi assassinado e sua avó, que berrava, quase histérica, tomou conta do clã, e depois a misteriosa partida dos dois irmãos do pai para a Califórnia, algo que nunca foi devidamente explicado, nunca foi devidamente compreendido, e depois disso o ímpeto para se tornar o homem mais rico da face da Terra, o grande profeta dos lucros, que acreditava em dinheiro como as outras pessoas acreditavam em Deus ou em sexo ou nas boas ações, o dinheiro como salvação e realização, o dinheiro como a medida suprema de todas as coisas, e qualquer um que resistisse a essa fé ou era tolo ou covarde, como a ex-esposa e o filho eram certamente covardes e tolos, tinham os cérebros entupidos das besteiras servidas em boas porções pelos romances e pelos filmes rasteiros de Hollywood, e a culpa pelo que tinha acontecido era sobretudo da ex-esposa, sua antes adorada Rose, que tinha virado a cabeça do menino para longe do pai e o havia mimado com todo aquele disparate sobre descobrir seu eu verdadeiro e forjar seu destino pessoal, mas agora era tarde demais para desfazer o estrago e o menino era um caso perdido.

Entretanto, nada disso explicava por que o pai continuava a cochilar na frente dos filmes no cinema ou da tela da tevê, nem por que, à medida que sua fortuna crescia, ele se tornava mais mão-fechada e mais pão-duro, só levava o filho para restaurantes baratos e fajutos em seus jantares quinzenais, nem por que havia mudado de ideia quanto a vender a casa em Maplewood e tinha se mudado de novo para lá, depois que Ferguson e a mãe saíram, nem por que, depois de se dar ao trabalho de mandar imprimir vários exemplares do conto “Par perfeito”, ele nunca pediu para ver nenhum dos contos novos de Ferguson, nunca perguntava sobre como estava se dando com o padrasto e os irmãos adotivos, na casa em Woodhall Crescent, nunca perguntava em que faculdade ele queria estudar, nunca dizia nenhuma palavra sobre o assassinato de Kennedy nem parecia se importar com o fato de o presidente ter sido assassinado e, quanto mais Ferguson tentava se enfiar no túnel que levava à alma do pai, em busca de algo que não estivesse morto ou isolado das outras pessoas, menos conseguia encontrar. Mesmo o complexo sr. Rosenbloom, que certamente escondia do mundo muito, senão a maior parte, de sua vida interior, fazia mais sentido para Ferguson do que o pai. Tampouco as diferenças entre ambos podiam se resumir ao fato de que o pai trabalhava e o sr. Rosenbloom não. Dan Schneiderman trabalhava. Não as doze ou catorze horas por dia que seu pai consumia, mas umas boas sete ou oito horas diárias, cinco ou seis dias por semana, e ainda que não fosse o artista mais assombroso do mundo, conhecia as limitações de seu talento modesto e tinha prazer com sua obra, que ele conseguia fazer render o suficiente para ganhar a vida, como artesão autônomo do pincel, como às vezes dizia. Não era a grana preta que Stanley Ferguson açambarcava, é claro, mas ele tinha um coração mais generoso, apesar disso, como demonstrava o carro novo que tinha comprado para a nova esposa, o que fez de Ferguson e Amy sócios proprietários do antigo Pontiac da mãe quando foram aprovados no exame de direção e tiraram a carteira de motorista, bem como os sagazes objetos móveis e as pequenas esculturas mecânicas giratórias que ele fazia para dar de presente no aniversário de todo mundo, e também as saídas surpresa para ir a restaurantes, concertos e filmes, e a mesada que ele fazia questão de dar para Ferguson, junto com a que dava para sua filha — as semanadas que dava para ambos, porque queria que o que eles ganhassem trabalhando no verão fosse depositado no banco e deixado lá, intacto, até terminarem o ensino médio —, porém mais importante que tudo era a generosidade de sua própria pessoa, seu bom humor, sua solicitude amorosa, seu espírito juvenil, sua extravagância, sua paixão pelo pôquer e por todos os jogos de azar, seu descuido um tanto imprudente em relação ao amanhã, em favor do hoje, o que o redundava num homem tão diferente do pai de Ferguson que o filho e enteado tinha dificuldade para conciliar os dois como membros de uma mesma espécie. Então, havia também o irmão mais velho de Dan, Gilbert Schneiderman, o novo tio de Ferguson, de inteligência impressionante, que trabalhava duro como ninguém, dava aulas de história da música em horário integral na Julliard School e escrevia verbetes e mais verbetes sobre compositores clássicos para uma enciclopédia musical que seria lançada em breve, e o tio Don — o intenso, e às vezes turrão, pai de seu melhor amigo, Noah — também trabalhava, nunca parava de trabalhar, a todo vapor, em sua biografia de Montaigne, além de despachar duas e às vezes três resenhas de livros por mês, e até Arnie Frazier trabalhava, o ex-jogador de futebol americano inapto para o serviço militar que passava a perna na Receita Federal, se matava de trabalhar, como Ferguson sabia muito bem, mas isso não o impedia de beber uma caixa com seis latas de Löwenbräu toda noite e ter relações amorosas com três garotas, de três cidades diferentes, ao mesmo tempo.

Ferguson tentava não sentir raiva quando estava com o pai, apesar de ter se horrorizado ao perceber como o rei do comércio de utilidades domésticas ficou satisfeito ao deixar que Dan Schneiderman pagasse a mesada do filho, algo que moralmente, e legalmente, deveria ser feito pelo pai, no entanto Ferguson desconfiava que o pai também estava zangado, não tanto com ele, mas com a mãe, que não só tinha feito pressão para obter o divórcio como havia casado de novo em tão pouco tempo, e, ao abdicar de sua responsabilidade com relação ao filho, o pai de Ferguson obteve a miserável recompensa de não ter de dividir seu dinheiro, junto com a tradicional satisfação de atirar as despesas nas costas do novo marido da ex-esposa. Jogos e diversão no circo de pulgas das torturas e das animosidades mesquinhas, dizia Ferguson consigo, enquanto seu coração se encolhia mais ainda dentro dele, mas, talvez, também não importasse tanto assim que o pai tivesse renegado a obrigação de sua mesada, pois Ferguson teria recusado o dinheiro se ele oferecesse, e também não queria confrontar o pai com a decisão que tinha tomado de não aceitar seu dinheiro, o que seria encarado como um gesto de hostilidade, algo próximo de uma declaração de guerra, e Ferguson não estava a fim de travar combate com o pai, queria apenas suportar seus encontros com a maior tranquilidade possível e não deixar que acontecesse nada capaz de causar dor a nenhum dos dois.

Nenhum dinheiro do pai — e nenhum beisebol, porque o fantasma de Artie Federman continuava andando a seu lado, e Ferguson não ia quebrar sua promessa. Outros esportes eram permitidos, mas nenhum contava tanto quanto o beisebol, e depois de começar como atacante no time principal de basquete do colégio, Ferguson resolveu que não ia mais jogar no time no ano seguinte, o que acarretou o fim abrupto e definitivo de sua participação em esportes organizados. No passado, aquilo tivera a maior importância para ele, mas foi antes de ter lido Crime e castigo, antes de ter descoberto o sexo com Dana Rosenbloom, antes de ter fumado seu primeiro cigarro e tomado seu primeiro drinque, antes de ter se tornado um futuro escritor que passava as noites sozinho em seu quarto, enchendo seus preciosos cadernos com palavras, e embora ainda adorasse os esportes e nunca pensasse em abandoná-los, os tinha relegado à categoria de diversões ociosas — jogar futebol americano só de toque, sem derrubar os oponentes no chão, disputar umas peladinhas de basquete, jogar pingue-pongue no porão da casa nova, uma ou outra partida de tênis no domingo de manhã com Dan, a mãe e Amy, em geral em duplas, filhos contra pais, pai e filha contra mãe e filho. Jogos recreativos, em oposição às batalhas de vida ou morte da adolescência. Jogar duro, suar a camisa, ganhar ou perder a partida, e depois voltar para casa, para uma ducha e um cigarro. Mas ainda era lindo, para Ferguson, sobretudo o esporte que mais interessava a ele, o proibido beisebol, que ele nunca mais ia jogar, e continuava torcendo para seu time, recém-inventado, de Flushing, ainda que o destino do mundo ocidental já não pesasse mais na balança, quando Choo Choo Coleman pisou na caixa do batedor com dois outs e dois homens na baixa, na nona entrada. O padrasto e a mãe resmungavam quando o inevitável terceiro strike era convocado, mas Ferguson simplesmente fazia que sim com a cabeça, ou balançava a cabeça, para depois se levantar e, calmamente, desligar a tevê. Os Choo Choo Coleman deste mundo tinham nascido para o strike out, e os Mets não seriam os Mets se não fosse assim.

Dois jantares por mês com o pai e um jantar de dois em dois meses com os Federman em New Rochelle, um ritual que Ferguson cumpria à risca, apesar de seus pressentimentos, pois nunca estava claro para ele por que os pais de Artie sempre o chamavam, e estava ainda menos claro por que ele aceitava fazer a longa viagem até lá para vê-los, quando na verdade não estava a fim, quando na verdade todos aqueles jantares o deixavam cheio de horror. Sombrio. Os motivos deles escapavam à compreensão de Ferguson, pois nem ele nem os Federman entendiam o que estavam fazendo nem por que persistiam em fazê-lo e, no entanto, o impulso estava presente desde o início: a sra. Federman o abraçou muito depois do enterro e lhe disse que ele seria sempre parte da família; Ferguson, sentado ao lado de Celia, de doze anos, na sala durante duas horas, brigando para encontrar palavras para dizer que, agora, ele era o irmão dela e iria cuidar dela para sempre. Por que tinham dito aquelas coisas e pensado aquilo tudo — e o que aquilo significava, afinal?

Ele e Artie foram amigos por apenas um mês. Tempo bastante para virarem os gêmeos A. F., tempo bastante para terem a sensação de que estavam no início do que viria a ser uma longa amizade, mas não o bastante para que se tornassem, tanto um quanto o outro, parte da família do amigo. Quando o amigo morreu, Ferguson nunca tinha posto os olhos em Ralph e Shirley Federman. Nem sequer sabia seus nomes, mas eles sabiam de Ferguson, por causa das cartas que o filho tinha escrito e enviado para eles do Acampamento Paraíso. Aquelas cartas eram cruciais. O tímido e pouco falante Artie tinha aberto o coração com os pais para falar do novo e maravilhoso amigo, e assim os pais já estavam convencidos de que Ferguson era maravilhoso antes mesmo de conhecê-lo. Então Artie morreu e, três dias depois, o amigo maravilhoso apareceu no enterro, não era a imagem perfeita de seu filho, mas um garoto bem parecido com ele, alto e forte, o mesmo corpo jovem de atleta, a mesma formação de judeu, as mesmas boas notas na escola, e aquele garoto entrava em suas vidas no exato momento em que perderam o filho, o mesmo garoto que o filho chamava de irmão, isso deve ter produzido um forte efeito sobre eles, refletiu Ferguson, um efeito sinistro, como se seu menino desaparecido tivesse ludibriado os deuses e enviado outro garoto para ficar em seu lugar, um filho substituto no mundo dos vivos, em troca do que tinha morrido, e assim, ao manter contato com Ferguson, eles podiam ver o que teria acontecido com seu filho enquanto ia crescendo lentamente e se transformava em homem, as mudanças graduais que tornavam um garoto de quinze anos diferente de um de catorze, um de dezesseis diferente de um de quinze, um de dezessete diferente de um de dezesseis e um de dezoito diferente de um de dezessete. Era uma espécie de performance, Ferguson se deu conta, e toda vez que viajava para Rochelle para mais um jantar dominical, tinha de cumprir a tarefa de fingir ser ele mesmo, sendo ele mesmo, representar o papel dele mesmo da maneira mais completa e fiel que podia, pois todos sabiam que estavam fazendo um jogo, ainda que não estivessem conscientes de que sabiam disso, e Archie nunca seria Artie, não só porque não queria ser, mas porque os vivos jamais poderiam substituir os mortos.

Eram boas pessoas, pessoas gentis, pessoas comuns, e moravam numa casinha branca numa rua margeada por árvores, com outras casinhas brancas que eram de outras famílias de classe média, que trabalhavam muito, tinham dois ou três filhos e um ou dois carros na garagem branca de madeira. Ralph Federman era um homem alto e magro, beirando os cinquenta, farmacêutico formado e dono da menor das três farmácias da rua principal do bairro comercial de New Rochelle. Shirley Federman, também alta, mas não magra, era alguns anos mais jovem do que o marido. Formada no Hunter College, tinha um emprego de meio expediente na biblioteca local, pedia votos para candidatos do Partido Democrático nas eleições nacionais e estaduais, e tinha um fraco pelos musicais da Broadway. Ambos tratavam Ferguson com uma espécie de deferência serena, talvez um pouco chocados e também agradecidos por ele continuar a aceitar seus convites, por lealdade a seu filho, e como eles não queriam perdê-lo, tendiam a se colocar em segundo plano nos jantares e deixar que Ferguson falasse quase todo o tempo. Quanto a Celia, raramente dizia alguma palavra, mas escutava, escutava Ferguson com mais atenção do que seus pais, e Ferguson via como ela se desenvolvia, de uma criança tímida e aflita, para uma garota de dezesseis anos que sabia se controlar, e ocorreu a ele que Celia era o motivo pelo qual ele continuava a ir lá, pois sempre fora evidente para Ferguson como ela era brilhante, mas agora Celia estava ficando também bonita, uma espécie de beleza esguia, de braços e pernas compridos, semelhante a um cisne, e muito embora ainda fosse jovem demais para ele, dali a um ou dois anos não seria mais, e, alojada em algum reduto profundo e inacessível do cérebro de Ferguson, se abrigava a ideia informe de que ele estava destinado a se casar com Celia Federman, que a narrativa de sua vida exigia que se casasse com ela, a fim de desmentir a injustiça da morte prematura de seu irmão.

Era essencial que ele falasse, que não se limitasse a ficar lá sentado, enchendo linguiça com conversas formais, mas sim que falasse de verdade, contasse para eles tudo que podia contar sobre si, para que começassem a compreender quem ele era, e cada vez mais, depois das primeiras visitas, foi exatamente isso que fez, falou sobre si mesmo e sobre o que acontecia com ele, porque nessa altura havia cada vez menos coisas para falar sobre Artie, era medonho demais ficar remoendo mil vezes o mesmo assunto, e Ferguson podia ver com os próprios olhos como, no curso de nove meses, o cabelo do sr. Federman tinha passado de castanho-escuro para um misto de castanho e grisalho e para predominantemente grisalho e depois para completamente branco, como o pai de Artie ficara muito mais magro por um tempo, enquanto sua mãe continuava a ganhar peso, mais cinco quilos em outubro de 1961, sete quilos em março de 1962, dez quilos em setembro, seus corpos diziam para Ferguson o que estava acontecendo com suas almas enquanto continuavam a viver com a morte de Artie, e não havia mais nenhuma necessidade de discutir as façanhas do filho como membro da liga infantil, aos dez anos de idade, nenhuma necessidade de mencionar de novo suas notas A? em ciência e em matemática, e assim Ferguson adotou uma nova estratégia para conseguir encarar aqueles jantares, que consistia em pôr Artie para fora da sala e obrigá-los a pensar em outro assunto.

Nunca dizia nenhuma palavra sobre sua desistência do beisebol por causa do filho deles, nunca dizia nenhuma palavra sobre seus pensamentos libidinosos sobre Amy Schneiderman, nunca diza nenhuma palavra sobre fazer sexo com Dana Rosenbloom, nunca dizia nenhuma palavra sobre a noite em que bebeu demais com o namorado de Amy, Mike Loeb, e acabou vomitando na calça e nos sapatos, porém, afora ocultar esses segredos e indiscrições, Ferguson fazia questão de não se censurar, tarefa difícil para alguém tão reservado como ele, mas aproveitava para exercitar sua sinceridade diante deles, representar um papel, e nas duas dúzias de jantares em New Rochelle a que compareceu nos quatro anos entre a morte de Artie e sua formatura no ensino médio, Ferguson falou sobre muitas coisas, inclusive as reviravoltas abruptas que ocorriam em sua família (o divórcio dos pais, o segundo casamento da mãe, suas relações frias com o pai) e a experiência curiosa de adquirir um novo conjunto de parentes, não apenas o padrasto e dois irmãos adotivos, como também o irmão de Dan, Gil, um homem erudito e simpático que se interessava pelas aspirações literárias do novo sobrinho adotivo (Você tem de aprender tudo que puder, Archie, disse ele um dia, e depois precisa esquecer tudo, e aquilo que não conseguir esquecer vai constituir a base de sua obra), e a soturna esposa de Gil, Anna, e suas filhas gorduchas e dissimuladas, Margaret e Ella, e mais o velho pai excêntrico de Dan, que morava num quarto no terceiro andar de um asilo de idosos em Washington Heights e já estava gagá ou se encontrava nos primeiros estágios da demência, mas mesmo assim ainda saía com umas tiradas inesquecíveis de vez em quando, com aquele seu sotaque de Sig Ruman: Agora quero que todo mundo cale o bico para eu poder mijar em paz! Um dos melhores resultados do casamento da mãe, contou Ferguson para eles, foi que, por algum misterioso lance de prestidigitação que havia entrelaçado tantas famílias distintas e sobreposto vários troncos familiares, seu melhor amigo e primo por casamento, Noah Marx, agora era parente também de sua nova meia-irmã e de seu meio-irmão, primos por casamento em primeiro ou segundo graus (ninguém sabia dizer ao certo), um fato que, às vezes, o deixava estonteado quando parava para pensar no assunto — Noah e Amy unidos a ele na mesma tribo, tudo junto e misturado! —, e que grande progresso era ver como Dan Schneiderman se dava bem com Donald Marx, o que não era o caso do seu pai, que não gostava do tio Don e que, certa vez, o chamou de babaca metido a besta, e desse jeito agora era melhor, disse Ferguson, ainda que as relações da mãe com a irmã não tivessem melhorado e nunca fossem melhorar, mas agora era possível pelo menos sentar e jantar com os Marx sem ter vontade de sair berrando ou sacar um revólver e dar um tiro em alguém.

Ferguson conseguia lhes contar coisas que jamais contaria para mais ninguém, o que fazia dele uma pessoa diferente quando estava ali com eles, uma pessoa mais franca e mais interessante do que era em casa ou no colégio, uma pessoa capaz de fazer os outros rirem, e talvez isso fosse mais um motivo para ele continuar voltando lá, porque sabia que eles queriam escutar as histórias que ele contava, as divertidas anedotas sobre Noah, por exemplo, alguém que ele nunca se cansava de incluir na conversa, seu fiel companheiro de viagem pelas selvas da vida, que ganhara uma bolsa de estudos integral na Fieldston School, em Riverdale, um dos melhores colégios particulares na cidade, o Noah, de aparelho nos dentes, mais alto que ele, que tinha conseguido arranjar uma namorada e estava dirigindo peças de teatro no colégio, peças contemporâneas, como As cadeiras e A cantora careca, de Ionesco, peças mais antigas, como O demônio branco, de John Webster (que banho de sangue!), e fazendo pequenos filmes com sua câmera Bell & Howell, de oito milímetros. Continuava a ser um dos mais astutos sabotadores do mundo e acompanhou o segundo de seus encontros semimensais com o pai, em maio de 1964, dessa vez não em um restaurante barato, mas no temível Blue Valley Country Club, um convite que Ferguson aceitou de forma impulsiva, insistindo que Noah fosse incluído na festa, proposta que supôs que o pai ia rejeitar, mas o pai o surpreendeu ao aceitar seu pedido, e assim o rei do comércio das utilidades domésticas e os dois garotos saíram para almoçar no clube, numa tarde de domingo, e como Noah sabia tudo sobre os atritos de Ferguson com o pai e sabia como ele detestava o clube, zombou do lugar e das coisas que ele significava vestindo uma boina xadrez com um pompom branco no topo, especialmente para a ocasião, um chapéu tão burlesco e desproporcional que Ferguson e o pai riram quando viram, talvez a única ocasião em que riram em uníssono em mais de uma década, mas Noah fez a maior cara de paisagem e não abriu o menor sorriso, o que tornou aquela cena gozada ainda mais engraçada, é claro, e disse para os dois que era sua primeira visita a um clube de golfe e por isso queria se apresentar bem, já que o golfe era um jogo escocês e nenhum golfista deve prescindir (ele disse mesmo nenhum deve prescindir) de adornos e chapéus escoceses, enquanto abriam caminho pelos buracos do gramado. É verdade que, quando chegaram ao clube, Noah passou um pouco das medidas, talvez porque tenha se sentido incomodado ao roçar ombro a ombro com o que ele chamava de ricos podres, ou talvez porque quisesse demonstrar sua solidariedade com Ferguson, ao declarar em alto e bom som aquilo que o próprio Ferguson jamais ousaria dizer, como quando um homem obeso passou gingando como um pato, apontou para a boina xadrez e disse: Bonito chapéu! — ao que Noah replicou com um enorme sorriso engessado no rosto: Obrigado, bolão! —, mas o pai de Ferguson estava caminhando três ou quatro metros à frente deles e não ouviu o insulto e, pelo menos por uma vez, Ferguson conseguiu resistir a um dia no Blue Valley Country Club sem desejar estar em outro lugar, longe dali.

Isso era um lado de Noah, contou ele para os Federman, o jocoso agente provacador e palhaço endiabrado, mas no fundo era uma pessoa séria e pensativa, e nada provava melhor isso do que a maneira como se comportou no fim de semana em que Kennedy foi assassinado. Por pura casualidade, Noah tinha sido convidado para ir a Nova Jersey para passar alguns dias com Ferguson e Amy, em sua nova casa em Woodhall Crescent. O plano era fazerem um filme juntos, com sua câmera de oito milímetros, uma adaptação sem som do conto de Ferguson intitulado O que aconteceu?, que falava sobre um garoto que foge de casa e, quando volta, descobre que os pais desapareceram, com Noah no papel do garoto e Ferguson e Amy no papel dos pais. Então, na sexta-feira, 22 de novembro, poucas horas antes de Noah supostamente partir de Nova York, na rodoviária de Port Authority, Kennedy foi alvejado e morto em Dallas. Seria compreensível se cancelasse a visita, mas Noah não quis, e telefonou para pedir que fossem buscá-lo na rodoviária de Irvington, conforme o combinado. Todos eles ficaram vendo televisão durante o resto do fim de semana, Ferguson e seu padrato sentados juntos na ponta do sofá comprido na sala, e Amy e a mãe adotiva enroladinhas juntas na outra ponta, Rose com os braços em volta de Amy e Amy com a cabeça encostada no ombro de Rose, e Noah teve a sagacidade de pegar sua câmera e filmar todos eles, os quatro, durante boa parte daqueles dois dias, a câmera indo e voltando do rosto de um para o rosto do outro, alternando com as imagens em preto e branco da televisão, o rosto de Walter Cronkite, Johnson e Jackie Kennedy no avião, enquanto o vice-presidente fazia o juramento e era empossado como novo presidente, Jack Ruby assassinando Oswald com um tiro num corredor da delegacia de polícia em Dallas, o cavalo sem cavaleiro e o filhinho pequeno que bateu continência para o caixão do pai no dia do enterro, todos aqueles eventos públicos se alternando com as quatro pessoas no sofá, Dan Schneiderman e seu rosto soturno, o enteado apático e esgotado, e as duas mulheres chorosas que assistiam àqueles acontecimentos na tela da tevê, tudo em silêncio, é claro, pois a câmera não podia registrar os sons, uma enorme quantidade de tomadas que deviam alcançar umas dez ou doze horas no total, uma extensão insuportável que ninguém conseguiria ver do início ao fim, mas Noah pegou os rolos de filme e os levou para Nova York, achou um editor profissional para ajudar e cortou aquelas horas todas para vinte e sete minutos, e o resultado foi estupendo, disse Ferguson, uma catástrofe nacional escrita no rosto das quatro pessoas e no aparelho de televisão à sua frente, um filme de verdade, feito por um garoto de dezesseis anos, que, mais do que um documento histórico, era uma obra de arte, ou, como Ferguson disse, usando a palavra que sempre usava quando descrevia alguma coisa que amava: uma obra-prima.

Havia muitas histórias de Noah para contar, mas também sobre Amy e Jim, sobre a mãe e os avós, sobre Arnie Frazier e o acidente de que escaparam por pouco na rodovia de Nova Jersey, sobre Dana Rosenbloom e sua família, sobre suas conversas com o sr. Rosenbloom e sobre sua amizade com Mike Loeb, o namorado de Amy, depois ex-namorado, depois namorado reabilitado, que não apenas sabia quem era Emma Goldman e tinha lido sua autobiografia, Vivendo minha vida, como também era a única pessoa no colégio que tinha lido Memórias de um anarquista na prisão, de Alexander Berkman. O parrudo Mike Loeb, marxista antissoviético em botão, que acreditava no movimento, em organização, em ação de massa e, consequentemente, via com maus olhos o interesse de Ferguson por Thoreau, que era todo voltado para o indivíduo, o solitário homem de consciência que agia por um princípio moral, mas com fundamentação teórica para atacar o sistema, para reconstruir a sociedade de baixo para cima e de cima para baixo, um escritor excelente, está certo, mas que sujeito mais pudico e melindroso, e tinha tanto medo de mulher que provavelmente acabou indo para a cova ainda virgem (Celia, de catorze anos na ocasião, reprimiu o riso quando Ferguson repetiu aquelas palavras), e ainda que sua ideia de desobediência civil tivesse sido aproveitada por Gandhi, Martin Luther King e outros no movimento dos direitos civis, a resistência passiva não era o bastante, mais cedo ou mais tarde acabaria chegando a hora do conflito armado, e era por isso que Mike preferia Malcom X a M. L. King e tinha pregado um cartaz do Mao na parede de seu quarto.

Não, retrucou Ferguson, quando os pais de Artie perguntaram se ele concordava com aquele rapaz, porém era isso que tornava as conversas entre eles tão instrutivas, disse Ferguson, porque toda vez que Mike o contestava, ele tinha de pensar mais sobre aquilo em que acreditava no fundo, e como é que uma pessoa podia aprender alguma coisa se só conversava com pessoas que pensavam exatamente como ela?

Então, havia também a sra. Monroe, seu tema predileto, a única pessoa que tornava suportável sua vida de aluno do ensino médio, e a grande sorte que foi ter aquela professora de inglês no segundo e também no terceiro ano do curso, a jovem e espirituosa Evelyn Monroe, que tinha só vinte e oito anos quando Ferguson começou a assistir às suas aulas, o antídoto vibrante para a antiquada, reacionária e antimodernista sra. Baldwin, a professora Monroe, que em solteira se chamava Ferrante, uma garota italiana robusta, oriunda do Bronx, que partiu de lá para cursar a universidade em Vassar com uma bolsa de estudos integral, casada, no passado, com o saxofonista de jazz Bobby Monroe, frequentadora dos locais mais animados do Village, amiga de músicos, artistas, atores e poetas, a professora mais avançada que já havia embelezado os corredores da Columbia High School, e o que distinguia a professora Monroe de todos os outros professores que Ferguson tivera era que ela encarava seus alunos como pessoas plenamente formadas, seres humanos independentes, adultos crescidos, e não crianças grandes, o que produzia o efeito de fazer os alunos se sentirem bem consigo mesmos, sentados na sua aula, escutando a professora falar sobre os livros que ela havia escolhido, Mr. Joyce, Mr. Shakespeare, Mr. Melville, Miss Dickinson, Mr. Eliot, Miss Eliot, Miss Wharton, Mr. Fitzgerald, Miss Cather e todos os demais, e, nas duas séries em que Ferguson teve aulas com ela, não havia um só aluno que não adorasse a sra. Monroe, mas ninguém mais do que o próprio Ferguson, que mostrava para a professora todos os contos que escrevia enquanto cursava o ensino médio, até no último ano, quando ela já não era mais sua professora, não porque fosse um juiz melhor do que tio Don ou tia Mildred, supunha Ferguson, mas sim porque achava que ela era mais honesta com ele do que os tios, mais minuciosa em suas críticas e, ao mesmo tempo, mais estimulante, como se já estivesse estabelecido, desde o início, que ele havia nascido para ser escritor e não tinha alternativa possível.

Ela pendurava um cartaz acima do quadro-negro, uma frase do poeta americano Kenneth Rexroth que ela havia copiado em letras grandes o bastante para serem lidas por quem estivesse na última fila, e, como Ferguson muitas vezes se via olhando para o cartaz durante a aula, mais tarde calculou que deve ter lido aquilo alguns milhares de vezes durante os anos que teve aulas com ela; CONTRA A RUÍNA DO MUNDO, SÓ EXISTE UMA DEFESA: A ARTE CRIATIVA.

A sra. Federman disse: as pessoas muito jovens precisam de uma sra. Monroe, Archie, mas nem todos conseguem ter alguém assim.

Que pensamento assustador, disse Ferguson. Nem sei o que seria de mim sem ela.

Nova York continuava atraindo Ferguson e ele continuava indo lá o mais que podia em seus sábados livres, às vezes sozinho, às vezes com Dana Rosenbloom, às vezes com Amy, às vezes com Amy e Mike Loeb, às vezes só com Mike Loeb e às vezes com os três juntos, quando ele (e eles) se encontrava com Noah nos fins de semana em que Groucho estava acampado no Village com o pai e Mildred, ou então ia lá só com o pai, se o tio Don e a tia Mildred estivessem morando em casas separadas, de novo. Densidade, imensidade, complexidade, como Ferguson definia, quando perguntavam por que preferia a cidade aos subúrbios, um sentimento compartilhado por todos os cinco membros de sua pequena gangue, e, com a exceção de Dana, que já havia decidido aonde queria ir depois de terminar o ensino médio, os outros quatro decidiram que deviam ficar em Nova York para cursar a faculdade. Isso queria dizer Columbia, paras os três rapazes, e Barnard, para Amy, supondo que fossem aceitos, o que parecia bem provável, e não uma aposta de grande risco, tendo em vista suas boas notas, porém, embora três deles tenham conseguido entrar na faculdade, só um deles acabou se mudando para Morningside Heights no mês de setembro seguinte. Noah, o candidato recusado, reagiu à derrota cultivando um hábito novo, no verão, após o terceiro ano no colégio, e acabou gostando tanto de fumar maconha que, temporariamente, perdeu o interesse pelo colégio, o que fez suas notas baixarem desastrosamente no primeiro semestre de seu último ano, e Columbia, que era a alma mater do seu pai, o lugar onde todo mundo em sua família esperava que ele fosse passar os quatro anos seguintes, o recusou. Noah fez pouco-caso. Então ele ia estudar na Universidade de Nova York, o que lhe permitia morar em Nova York, como planejado, e embora fosse universalmente sabido que se tratava de uma universidade pior do que Columbia, com um programa de graduação medíocre, para estudantes desmotivados e indiferentes, a Universidade de Nova York lhe dava a chance de estudar cinema, matéria que não era oferecida na graduação de Columbia, e além do mais, disse ele, ia morar no centro, na parte mais bacana da cidade, em vez de ficar no buraco fedorento daquela favela enfiada entre o Harlem e o rio Hudson.

Noah, para Washington Square, Mike, para os quarteirões residenciais, na rua 116 Oeste, entre a Broadway e a Amsterdam Avenue, e Ferguson e a meia-irmã para faculdades situadas fora dos limites da cidade. A decisão de Amy tinha tudo a ver com Mike. Os dois já tinham rompido uma vez antes, quando ele traiu Amy com uma garota chamada Moira Oppenheim no meio do primeiro ano da faculdade, mas, após uma separação prolongada, que terminou com humilhantes gestos de contrição de Mike, Amy lhe deu mais uma chance, e agora, apenas quatro meses depois, ele tinha pisado na bola mais uma vez, traiu Amy com a mesma Moira Oppenheim, nada mais nada menos que isso, a vagabundinha fingida que não aceitava um não como resposta, e a paciência de Amy acabou, furiosa, e terminou com Mike de uma vez por todas. As cartas das universidades para as quais ela havia se candidatado pousaram na caixa de correio da casa de Woodhall Crescent na semana seguinte. Sim, de Barnard, e sim, de Brandeis, sua primeira e segunda opções, e, como ela não queria ficar em nenhum lugar perto de Mike Loeb nem mesmo ter de olhar outra vez para a cara dele e para aquele corpo inchado, ela disse não para Nova York e sim para Waltham, Massachusetts, convencida de que uma era tão boa quanto a outra, e aliviada por não guardar nenhum arrependimento de sua decisão. O porco a havia humilhado e partido seu coração e Ferguson concordava que ela estaria melhor indo para outro lugar, e, só para provar como estava a seu lado, propôs dar a ela o automóvel Pontiac que era dos dois quando Amy partisse para Massachusetts, no outono, e cortar sua amizade com Mike Loeb naquele instante, a partir deste minuto.

A situação de Ferguson era mais complicada do que a de Amy. Foi aceito por Columbia e queria estudar em Columbia, e, ainda que fosse obrigado a dividir o dormitório com Mike Loeb, ele queria ir para Columbia, só que havia a questão do dinheiro, a incontornável questão de quem ia pagar a faculdade. Ele podia recuar e ir pedir para o pai, que sem dúvida nenhuma lhe daria apoio, por mais que relutasse em relação a isso, ciente de que, no final das contas, era sua responsabilidade soltar a grana para custear a educação do filho, mas Ferguson se recusava sequer a pensar nessa opção. A mãe e Dan sabiam qual era sua posição a respeito disso, sempre souberam, desde o início, e muito embora achassem sua posição cabeçuda e autoderrotista, o respeitavam por aquilo e não tentavam mudar sua forma de pensar, pois Rose tinha se retirado do campo de batalha, os dias de luta para que Ferguson e seu pai fizessem as pazes tinham ficado para trás, e, depois do golpe baixo que o pai tinha dado na mãe na questão da venda da casa velha, Rose compreendia que a decisão do filho de não aceitar nenhum dinheiro de Stanley era uma forma de defendê-la — uma decisão altamente irracional e emocional, talvez, mas também um gesto de amor.

Ferguson sentou com a mãe e o padrasto para conversar sobre esses assuntos em novembro, em sua última série do ensino médio. Estava chegando a hora de mandar seus pedidos de ingresso para as universidades e, embora Dan tenha dito para ele não se preocupar, que o dinheiro estaria reservado, não importava o preço, Ferguson tinha suas dúvidas. Imaginava que um ano de faculdade chegaria a custar cinco ou seis mil dólares (aulas, alojamento e alimentação, livros, roupas, material, dinheiro de passagem e uma pequena mesada para despesas pessoais), o que chegaria a um total de vinte ou vinte e cinco mil dólares quando tivesse concluído os quatro anos do curso completo. O mesmo era verdade para Amy — vinte ou vinte e cinco mil dólares, nos próximos quatro anos. Jim ia se formar no MIT exatamente no momento em que Amy e Ferguson iam se formar no ensino médio, o que eliminava a necessidade de pagar uma terceira faculdade, só que Jim estava tentando ingressar na pós-graduação de física e, muito embora fosse quase certo que ele ia conseguir uma bolsa de estudos em alguma universidade, junto com uma ajuda de custo para despesas pessoais, essa ajuda de custo não seria suficiente para cobrir tudo e, portanto, Dan teria de meter a cara e tentar cavar mais mil ou mil e quinhentos dólares por ano para Jim, o que redundaria numa despesa geral em dinheiro, para custear os estudos de dois Schneiderman e um Ferguson em instituições de ensino superior, a algo em torno de onze, doze ou treze mil dólares por ano. Em média, Dan ganhava trinta e dois mil dólares por ano — o que explicava as dúvidas de Ferguson.

Havia o dinheiro extra do seguro de vida de Liz, mas os cento e cinquenta mil dólares entregues a Dan no verão de 1962 tinham se reduzido a setenta e oito mil no fim de novembro de 1964. Vinte mil dos setenta e dois mil dólares tinham sido gastos para pagar a dupla hipoteca da casa velha, depois de vendê-la, e comprar a nova em dinheiro à vista, o que deixou sua mãe e o padrasto na posição confortável de serem, imediatamente, donos da casa em Woodhall Crescent 7, sem nenhum banco fungando em seu cangote, sem mais nada para pagar, senão os impostos de propriedade e as contas de água. Outros dez mil dólares daqueles setenta e dois mil tinham sido gastos também com a casa, para pintura, consertos e melhorias, o que apenas valorizava o imóvel se um dia quisessem vendê-lo. No entanto, outros quarenta e oito mil dólares tinham evaporado desde o casamento, em carros, contas de restaurante, férias e desenhos de Giacometti, Miró e Philip Guston. Por mais que Ferguson odiasse a sovinice do pai, também se sentia um tanto alarmado com a maneira descontrolada como o padrasto dissipava o dinheiro à sua volta, pois se a renda de Dan era pequena demais para cobrir os estudos, então aqueles setenta e oito mil dólares seriam o único recurso deles e, segundo os cálculos de Ferguson, aquela soma iria se reduzir a pouco mais ou pouco menos de trinta mil dólares quando ele e Amy terminassem a faculdade, e bem menos do que isso, se Dan e a mãe continuassem a gastar como vinham fazendo nos dois últimos anos. Por essa razão, Ferguson queria tomar o mínimo possível deles — nada, se possível. Não que achasse que alguém ia morrer de fome, mas se assustava ao pensar que um dia, num futuro não muito distante, quando a mãe fosse menos jovem e, talvez, com a saúde já não tão boa, depois de uma vida inteira fumando seus maços diários de Chesterfield, ela e Dan poderiam se ver em apuros financeiros.

Ele havia economizado dois mil e seiscentos dólares de seus dois verões de trabalho para Arnie Frazier. Se cortasse as despesas com livros e discos, provavelmente conseguiria acrescentar mais mil e quatrocentos dólares à sua conta bancária no fim daquele verão, o que faria subir o total a quatro mil dólares redondos. Seu avô já havia confidenciado à mãe de Ferguson que planejava dar a ele dois mil dólares como presente de formatura no ensino médio e, se seu dinheiro e o dinheiro do avô fossem usados para pagar a faculdade, a parte de Dan se reduziria a nada. Isso com relação ao primeiro ano, mas e quanto aos três anos seguintes? Ele ia continuar trabalhando no verão, é claro, mas o que ia fazer e o que ia ganhar não passavam de pontos de interrogação naquela altura, e muito embora o avô provavelmente estivesse disposto a pingar alguma contribuição, seria errado contar com aquilo, ainda mais agora que sua avó tinha aparecido com uma doença cardíaca e as despesas médicas deles estavam subindo. Um ano em Nova York, se ele tivesse a sorte de entrar na Universidade Columbia — e, depois disso, o que mais poderia fazer um homem sensato, senão voar para Las Vegas e apostar tudo o que tinha no número treze?

Havia uma solução difícil, mas acessível para ele, um lance de dados que resolveria todos seus problemas de dinheiro, se a combinação premiada fosse favorável a ele, mas se Ferguson ganhasse a aposta, também perderia aquilo que mais desejava, pois Nova York e Columbia estariam fora do tabuleiro para sempre. Pior ainda, significaria que teria de passar mais quatro anos em Nova Jersey, o último lugar do mundo onde queria ficar, e não apenas em Nova Jersey, mas numa cidadezinha de Nova Jersey que não era maior do que aquela onde morava agora, o que o deixaria na mesma situação de que vinha tentando fugir durante quase a vida toda. No entanto, se a solução se apresentasse (e havia boas razões para acreditar que aquilo não ia acontecer), ele a aceitaria com alegria e beijaria o dado lançado ao tabuleiro.

Princeton estava começando algo novo naquele ano, o Programa de Bolsas Walt Whitman, fundado em 1936 por um ex-aluno chamado Gordon DeWitt, que tinha sido criado em East Rutherford e lá havia frequentado esco­las públicas, e o dinheiro de DeWitt pagaria bolsas de estudo integrais para quatro alunos de graduação de Nova Jersey, oriundos de colégios públicos, todos os anos. Carência financeira era um dos requisitos, junto com excelência acadêmica e integridade de caráter, e, como filho de um negociante endinheirado, era de imaginar que Ferguson não tivesse direito a se candidatar, mas não era o caso, pois além de renegar sua obrigação de mandar um subsídio para o filho, Stanley Ferguson tinha rompido o acordo de divórcio que havia assinado com a ex-esposa, o qual estipulava que ele contribuiria com metade do dinheiro necessário para o sustento do filho, ou seja, reembolsar sua mãe por metade do que ela e o novo marido gastavam com a comida que Ferguson comia e as roupas que ele vestia, bem como metade das contas de médicos e dentistas, porém, seis meses depois do seu segundo casamento, quando viu que não chegava nenhum dinheiro do ex-marido, a mãe consultou um advogado, que escreveu uma carta ameaçando processar o pai de Ferguson na justiça, para obrigá-lo a pagar o que devia, e, quando o pai respondeu propondo um acordo — nenhum dinheiro para custear a metade das despesas com o filho, mas em troca, dali em diante, ele pararia de declarar o filho como seu dependente no imposto de renda e deixaria essa honra para Dan Schneiderman —, o assunto ficou resolvido. O próprio Ferguson não soube de nada relativo a essa discussão, mas quando contou para a mãe e o padrasto acerca das bolsas de estudos Walt Whitman, explicando que pretendia mandar sua candidatura, mesmo achando que não se enquadrava nos requisitos, eles afirmaram que se encaixava sim, pois embora Dan tivesse uma renda respeitável, o fardo de manter três jovens em universidades ao mesmo tempo praticamente qualificava Ferguson como um caso de carência financeira. No que dizia respeito à lei, o vínculo entre pai e filho tinha sido rompido. Ferguson era menor de idade e, como seu único sustento financeiro, agora, provinha da mãe e do padrasto, aos olhos de Princeton e de todo mundo, era como se o pai tivesse deixado de existir. Essa era a boa notícia. A má notícia era que Ferguson tinha finalmente descoberto a verdade sobre o pai, e ficou tão abalado com o que o homem tinha feito, tão furioso com ele por sua pão-durice e sua maldade com a mulher com quem fora casado, que nada daria mais satisfação para Ferguson do que dar um murro na cara do pai. O filho da mãe o havia rejeitado, e agora ele iria rejeitá-lo também.

Eu sei que prometi jantar com ele duas vezes por mês, disse Ferguson, mas acho que não quero ver meu pai nunca mais. Ele quebrou a promessa que fez a você. Por que não posso quebrar minha promessa com ele também?

Você já tem quase dezoito anos, disse a mãe, e pode fazer o que quiser. Sua vida pertence a você.

Quero que ele se foda.

Vá com calma, Archie.

Não, estou falando sério. Quero que ele se foda.

Ferguson imaginou que haveria milhares de candidatos, os melhores alunos do estado inteiro, atletas do país todo, de futebol americano e basquete, os primeiros colocados das turmas, os campeões dos clubes de debate, prodígios das ciências com notas máximas nas provas de admissão para a universidade, candidatos tão formidáveis que ele mesmo não teria a menor chance de passar nem da primeira seleção, mas enviou seu pedido assim mesmo, junto com dois contos seus e mais uma lista de pessoas que tinham se oferecido para escrever cartas de recomendação para ele: a sra. Monroe; seu professor de francês, o sr. Boldieu; seu atual professor de inglês, o sr. MacDonald. Ele queria ser um leão, mas, se o destino o havia escolhido para ser um tigre, então ele faria todo esforço para ostentar suas listras com orgulho. Preto e laranja em vez de azul e branco. F. Scott Fitzgerald em vez de John Berryman e Jack Kerouac. Será que alguma coisa disso tudo tem mesmo importância? Princeton podia não ser Nova York, mas ficava a apenas uma hora de trem, e a vantagem de Princeton sobre Columbia era que Jim tinha se candidatado para cursar pós-graduação lá, em física. Jim tinha certeza de que seria aceito, certeza que Ferguson não tinha quanto a si mesmo, mas, pelo menos, era pos­sível sonhar, e como era agradável imaginar os dois passando os próximos quatro anos juntos naquele ambiente florestal cheio de livros e bolsas de estudos, enquanto o fantasma de Albert Einstein se esgueirava por entre as árvores.

Depois daquela conversa com a mãe e Dan, no fim de novembro, Ferguson escreveu uma carta comprida para o pai, na qual explicava por que queria suspender seus jantares quinzenais. Não chegava a dizer diretamente que não queria nunca mais voltar a vê-lo, pois ainda não estava claro, para Ferguson, se era aquela a sua posição ou não, embora desconfiasse que sim, mas ele tinha só dezessete anos de idade e não dispunha de coragem e confiança para lançar um ultimato capaz de modificar para sempre o futuro, que ele contava que fosse longo, e quem podia saber que reviravoltas poderia sofrer seu relacionamento com o pai nos anos que viriam? O que ele decidiu, porém, e consistia no âmago da carta, foi mostrar como ficou desgostoso ao saber que o pai não o mencionava como dependente em sua declaração para o imposto de renda. Dava a sensação de que ele tinha sido apagado, escreveu Ferguson, como se o pai estivesse tentando esquecer os vinte anos passados de sua vida e fingisse que aqueles anos nunca tinham existido, não apenas seu casamento com a mãe de Ferguson, mas o fato de que tinha um filho, ao qual ele agora havia renunciado inteiramente, para deixá-lo por conta de Dan Schneiderman. Mas, colocando tudo isso de lado, prosseguiu Ferguson, depois de dedicar duas páginas inteiras ao tema, os jantares dos dois tinham se tornado deprimentes demais, e para que continuar com aquela sinistra encenação de ficarem jogando conversa fora um com o outro, quando a verdade era que nenhum dos dois tinha nada mais a dizer, e que tristeza ficarem juntos naqueles restaurantes soturnos, olhando para o relógio e contando os minutos que faltavam para a tortura chegar ao fim, e não seria muito melhor dar uma pausa por um tempo e refletir se queriam recomeçar em algum momento do futuro, ou não?

O pai escreveu de volta, três dias depois. Não era a resposta que Ferguson queria, mas, pelo menos, era alguma coisa. Tudo bem, Archie, vamos dar um tempo, por enquanto. Espero que você esteja bem. Seu pai.

Ferguson não ia mais estender a mão para ele. Isso estava resolvido, e, se o pai não estivesse disposto a procurá-lo e tentar recuperar sua companhia, então o assunto estaria encerrado.

Enviou seus pedidos de uma vaga para Columbia, Princeton e Rutgers no início de janeiro. Em meados de fevereiro, tirou um dia de aula e foi a Nova York para sua entrevista em Columbia. Já estava familiarizado com o campus, que sempre o fazia pensar numa cidade romana de mentira, com as duas enormes bibliotecas de frente uma para a outra no meio do pequeno campus, Butler e Low, ambas eram volumosas estruturas de granito em estilo clássico, elefantes que imperavam acima dos prédios de tijolos, menos volumosos à sua volta, e, quando Ferguson achou o caminho para o Hamilton Hall, subiu a escada até o terceiro andar e bateu à porta. O entrevistador era um professor de economia chamado Jack Shelton, e que homem mais divertido era aquele, fez piadas o tempo todo durante a conversa, chegou a fazer graça com a sufocante e esclerosada Columbia, e quando soube que a ambição de Ferguson era ser escritor, concluiu a conversa entregando para o aluno do último ano da Columbia High School alguns exemplares da revista literária do Columbia College. Meia hora depois, folheando as revistas na viagem de volta ao centro da cidade, no metrô, Ferguson esbarrou com o verso de um poema que o surpreendeu imensamente: O bom mesmo para você é ter alguém para foder. Chegou a rir alto quando leu aquilo, feliz ao se dar conta de que Columbia não podia ser tão sufocante assim, pois o verso não só era engraçado como também verdadeiro.

Na semana seguinte, fez sua primeira visita a Princeton, onde achou difícil que muitos alunos publicassem poemas com a palavra “foder”, porém o campus era muito mais amplo e mais atraente do que o de Columbia, um esplendor bucólico que compensava o fato de não ficar em Nova York, mas sim numa cidadezinha de Nova Jersey, arquitetura gótica em oposição à arquitetura clássica, um paisagismo de discrição impressionante, quase perfeita, um cenário repleto de arbustos meticulosamente podados e árvores altas e viçosas, porém um tanto antisséptico, como se o vasto terreno onde Princeton estava situada tivesse se convertido num imenso viveiro de plantas, cheirando a dinheiro, da mesma forma que o Blue Valley Country Club, uma versão ao estilo Hollywood da universidade americana ideal, a instituição de ensino sulista mais ao norte, como alguém lhe disse, certa vez, mas quem era Ferguson para ficar reclamando se por acaso ganhasse um passe livre para caminhar por aquele chão, na condição de um bolsista do programa Walt Whitman?

Eles deviam saber que Walt Whitman era um homem que não tinha o menor interesse por mulheres, dizia Ferguson consigo mesmo, quando completou seu passeio pelo campus, um homem que acreditava no amor entre homens e homens, mas o velho Walt tinha passado os últimos dezenove anos de vida em Camden, no fim daquela estrada, o que fazia dele o monumento nacional de Nova Jersey, e, embora sua obra fosse, ao mesmo tempo, espantosamente boa e espantosamente ruim, a melhor parte era também a melhor poesia já escrita naquela região do mundo, e aplausos para Gordon DeWitt por ter escolhido o nome de Walt para seu programa de bolsas de estudo para os jovens de Nova Jersey, em vez do nome de algum político ou esnobe de Wall Street, exatamente o que DeWitt tinha sido nos últimos vinte anos.

Dessa vez eram três entrevistadores, e não um, e embora Ferguson estivesse vestido de forma adequada para a ocasião (camisa branca, paletó e gravata) e, com relutância, houvesse cedido à vontade da mãe e de Amy, que imploraram para ele cortar o cabelo antes de ir para lá, sentiu-se nervoso e deslocado diante daqueles homens, que se mostraram tão amistosos quanto o professor de Columbia e fizeram todas as perguntas que ele já esperava ter de responder, mas quando o interrogatório de uma hora de duração finalmente terminou, Ferguson saiu da sala com a sensação de que tinha estragado tudo, xingou a si mesmo por ter confundido os títulos dos livros de William James com os do irmão, Henry James, por exemplo, e também, pior ainda, por ter trocado Sancho Pança por Poncho Sança, e apesar de ter corrigido aqueles erros no mesmo instante em que as palavras saíam da boca, houve os erros crassos de um verdadeiro e completo idiota, ele teve a sensação, e não só estava convencido de que acabaria ficando em último lugar entre todos os candidatos à bolsa de estudos, como também se sentia revoltado consigo mesmo por ter se saído tão mal sob pressão. Por algum motivo, ou motivos, ou por motivo nenhum que ninguém mais a não ser os três homens que falaram com ele poderia compreender, o comitê não foi da mesma opinião, e, quando o chamaram para voltar para uma segunda entrevista no dia 3 de março, Ferguson ficou perplexo — mas também, pela primeira vez, começou a se perguntar se não haveria algum motivo para ter esperança.

Era uma forma curiosa de passar seu décimo oitavo aniversário, meter-se dentro de um paletó com gravata mais uma vez e viajar até Princeton para ter uma conversa cara a cara com Robert Nagle, professor de letras clássicas que havia publicado traduções de Sófocles e Eurípides e um livro inteiro sobre os pré-socráticos, um homem de quarenta e poucos anos, de cara triste e melancólica, olhar vigilante e insondável, a melhor cabeça literária em toda Princeton, segundo o professor de inglês de Ferguson no colégio, o sr. MacDonald, que tinha estudo em Princeton e torcia muito para que Ferguson conseguisse a bolsa. Nagle não era homem de perder seu tempo batendo papo sobre coisas irrelevantes. A primeira entrevista foi cheia de perguntas sobre as realizações acadêmicas de Ferguson (boas, mas nada de espetacular), seu trabalho na empresa de mudanças durante as férias de verão, as razões por que tinha parado de participar de esportes competitivos, seus sentimentos sobre o divórcio dos pais e o novo casamento da mãe, e o que esperava alcançar estudando em Princeton e não em outro lugar, mas Nagle ignorou aqueles assuntos e pareceu interessado em dois contos que Ferguson tinha anexado a seu pedido de vaga no programa e queria saber que escritores ele tinha lido e não tinha lido e quais eram aqueles que mais admirava.

O primeiro conto, “Onze momentos na vida de Gregor Flamm”, era o texto mais longo que Ferguson tinha escrito nos últimos três anos, vinte e quatro páginas datilografadas, compostas entre o início de setembro e meados de novembro, dois meses e meio de trabalho contínuo, durante os quais ele pôs de lado seus cadernos de anotações e seus projetos secundários para se concentrar na tarefa que havia determinado para si mesmo, que era contar a história da vida de alguém, sem que fosse uma história contínua, saltando pedaços e mostrando diversos momentos desconexos, a fim de investigar uma ação, um pensamento ou um impulso, e depois pulando para outro momento, e apesar das lacunas e dos silêncios entre as partes isoladas, Ferguson imaginou que o leitor iria alinhavar tudo aquilo em sua mente, de forma que as cenas acumuladas se encaixariam em algo semelhante a um conto, ou algo mais do que um conto — a miniatura de um romance longo. Com seis anos de idade, no primeiro episódio, Gregor olha para um espelho a fim de examinar o próprio rosto e chega à conclusão de que não seria capaz de se reconhecer se visse a si mesmo andando pela rua; depois o Gregor aos sete anos de idade está no Yankee Stadium com o avô, parado no meio da multidão, de pé, para aplaudir um lance de Hank Bauer, e sente algo molhado e pegajoso bater na pele nua do braço direito, um escarro cuspido por alguém, um espesso losango de muco que o faz pensar numa lesma que rasteja sobre sua pele, sem dúvida uma expectoração disparada por alguém sentado na arquibancada superior, e, além do nojo que Gregor sente quando esfrega aquilo do braço com o lenço, e depois joga o lenço fora, existe o enigma de tentar adivinhar onde está sentada a pessoa que escarrou em cima dele e se fez aquilo de propósito ou não, se estava mirando no braço de Gregor e acertou o alvo ou se foi por acaso que a cusparada acabou batendo onde bateu, uma diferença importantíssima, na cabeça de Gregor, pois um golpe intencional postulava um mundo em que a maldade e a crueldade são forças reinantes, um mundo em que homens invisíveis atacam meninos desconhecidos sem nenhum motivo além do prazer de fazer mal aos outros, ao passo que um lance acidental postulava um mundo em que coisas casuais acontecem sem ser culpa de alguém, e mais à frente aparece o Gregor de doze anos que descobre o primeiro pelo pubiano que brotou em seu corpo, o Gregor de catorze anos, que vê seu melhor amigo morrer na sua frente, morto por algo chamado aneurisma cerebral, o Gregor de dezesseis anos, deitado na cama nu com a garota que o ajudou a perder a virgindade, e depois, no episódio final, o Gregor de dezessete anos, sentado sozinho no alto de um morro, observando as nuvens que passam no alto, e se pergunta se o mundo é real ou não passa de uma projeção da própria mente e se, no caso de ser real, como sua mente, algum dia, será capaz de abarcá-lo? O conto termina: E então ele desce o morro, pensando na dor que sente na barriga e pensando se almoçar vai fazer com que se sinta melhor ou pior. É uma da tarde. O vento sopra do Norte e o pardal que estava pousado no fio de telefone foi embora.

O outro conto, “Direita, esquerda ou em frente?”, fora escrito em dezembro e consistia em três episódios separados, cada um com sete páginas. Um homem chamado Lazlo Flute está fora, no campo, dando um passeio a pé. Chega a uma encruzilhada e tem de escolher entre três possibilidades, ir para a esquerda, para a direita ou em frente. No primeiro capítulo, vai em frente e se vê em apuros, atacado por um par de assaltantes. Espancado e roubado, deixado para morrer na beira da estrada, ele acaba voltando à consciência, consegue se pôr de pé e cambaleia por mais um quilômetro e meio até chegar a uma casa, bate à porta e um velho deixa que ele entre, e logo, inexplicavelmente, pede desculpas a Flute e implora seu perdão. O homem leva Flute à pia da cozinha e o ajuda a lavar o sangue do rosto, sempre tagarelando, se lamentando e falando de uma coisa horrível que tinha feito, mas às vezes, disse ele, minha imaginação me escapa e eu não consigo me controlar. Leva Flute para outro cômodo, um pequeno escritório no fundo da casa, e aponta para uma pilha de páginas manuscritas sobre a escrivaninha. Dê uma olhada, se quiser, diz ele, e quando o herói espancado pega as folhas do manuscrito, vê que é um relato das coisas que acabaram de acontecer com ele. Que personagens mais desalmados, diz o velho. Eu não sei de onde eles vieram.

Na segunda parte, Flute toma a direita em vez de seguir em frente. Não tem nenhuma lembrança do que lhe aconteceu no primeiro capítulo e, como o novo episódio começa em tábula rasa, o novo início parece oferecer a esperança de que algo menos aterrador aconteça com ele dessa vez, e, de fato, após dois quilômetros e meio pela estrada da direita, encontra uma mulher parada ao lado de um carro quebrado, ou algo que parece um carro quebrado, pois por que a mulher estaria ali parada no meio do nada se o carro estivesse funcionando, mas quando Flute chega perto dela, vê que nenhum pneu está furado, o capô não está aberto e o radiador não está cuspindo nuvens de fumaça no ar. Entretanto, deve haver algum tipo de problema e, quando o solteiro Flu­te se aproxima um pouco mais, vê que a mulher é extremamente bonita, ou pelo menos é assim aos seus olhos e, portanto, ele se agarra à oportunidade de poder ajudá-la, não só porque deseja ajudar, mas porque uma oportunidade se ofereceu e ele quer tirar o máximo proveito disso. Quando pergunta qual é o problema, ela responde que acha que a bateria pifou. Flute abre o capô e vê que um dos cabos se soltou e, assim, prende de novo o cabo e diz para ela voltar para o carro e dar a partida, o que ela faz e, quando o carro pega, logo no primeiro giro da chave, a linda mulher dá um grande sorriso para Flute, sopra um beijo para ele e, prontamente, vai embora, parte tão depressa que ele nem tem tempo de anotar o número da placa do carro. Nenhum nome, nenhum endereço, nenhum número e nenhuma forma de retomar contato com o espectro encantador que entrou e saiu de sua vida como um raio, em questão de minutos. Flute continua a andar, irritado com a própria burrice, perguntando-se por que suas oportunidades na vida sempre parecem escorregar entre os dedos, acenam para a ele com a promessa de coisas melhores, mas sempre acabam decepcionando no final. Três quilômetros adiante, os ladrões do primeiro capítulo reaparecem. Saltam de detrás de uma cerca viva e tentam jogar Flute no chão, mas dessa vez ele resiste, dá uma joelhada no baixo-ventre de um deles, mete os dedos nos olhos do outro e consegue escapar, correndo pela estrada, enquanto o sol se põe e a noite começa a cair, e, bem na hora em que já está começando a ficar difícil de enxergar, ele dá com uma curva na estrada e vê de novo o carro da mulher, dessa vez estacionado junto a uma árvore, mas a mulher foi embora, e, quando ele chama por ela e pergun­ta quem é ela, ninguém responde. Flute foge noite adentro.

Na terceira parte, ele toma o caminho da esquerda. É uma tarde maravilhosa no fim da primavera e os campos dos dois lados estão coalhados de flores silvestres, duzentos passarinhos cantam no ar cristalino, e, enquanto Flute contempla as várias formas como a vida foi boa e cruel com ele, chega à conclusão de que a maioria de seus problemas foram causados por ele mesmo, que ele é responsável por ter tornado sua vida tão sem graça e sem aventuras e, se pretende mesmo viver a vida com plenitude, precisa passar mais tempo com os outros e parar de fazer tantas caminhadas solitárias.

Por que dá a seus personagens nomes tão estranhos?, perguntou Nagle.

Não sei, respondeu Ferguson. Provavelmente porque os nomes dizem aos leitores que os personagens estão num conto e não na vida real. Eu gosto de contos que admitem que são contos e não fingem ser a verdade, a verdade toda e nada mais além da verdade, em nome de Deus.

Gregor. Uma referência a Kafka, suponho.

Ou a Gregor Mendel.

Um sorriso ligeiro correu pelo semblante triste e melancólico. Nagle disse: Mas você leu Kafka, não leu?

O processo, A metamorfose e mais uns dez ou doze contos. Estou tentando ir devagar, porque gosto demais dele. Se eu sentar e devorar todo o Kafka que ainda não li, aí não vou ter nenhum Kafka novo para ler depois, e isso seria triste.

Poupando seus prazeres.

Isso mesmo. A gente ganha só uma garrafa e, se beber tudo de uma vez só, não vai ter oportunidade de beber de novo.

No seu pedido de bolsa, você diz que quer ser escritor. O que acha do que já escreveu até agora?

A maior parte é ruim, revoltantemente ruim. Algumas poucas coisas são um pouco melhores, mas não quer dizer que sejam boas.

E qual é a sua opinião sobre os dois contos que nos enviou?

Mais ou menos.

Então, por que mandou?

Porque são os mais recentes e também porque são os mais longos que já escrevi.

Sem parar para pensar, me diga o nome de cinco escritores que não se chamem Kafka que produziram grande impacto em você.

Dostoiévski. Thoreau. Swift. Kleist. Babel.

Kleist. Poucos alunos do ensino médio andam lendo esse escritor hoje em dia.

A irmã de minha mãe é casada com um homem que escreveu uma biografia de Kleist. Foi ele quem me deu seus contos.

Donald Marx.

O senhor conhece?

Ouvi falar.

Cinco é um número muito pequeno. Acho que deixei de fora alguns dos nomes mais importantes.

Tenho certeza disso. Dickens, por exemplo, não é? E Poe, sem dúvida Poe, e talvez Gógol. Sem falar dos modernos, Joyce, Faulkner, Proust. Provavelmente você já leu todos eles.

Proust, não. Os outros, sim, mas ainda não cheguei ao Ulysses. Meu pla­no é ler neste verão.

E Beckett?

Esperando Godot, mas só isso, por enquanto.

E Borges?

Nenhuma palavra.

Você tem muita diversão pela frente, Ferguson.

Nesta altura, eu mal cheguei ao início. Além de algumas peças de Shake­s­peare, não li nada escrito antes do século XVIII.

Você mencionou Swift. E Fielding, Sterne e Austen?

Não, ainda não.

E o que há em Kleist que o atrai tanto?

A velocidade das frases, o ímpeto. Ele fala e fala, mas não mostra muita coisa, o que todo mundo diz que é a maneira errada de fazer, mas eu gosto do jeito como seus contos avançam. É tudo muito intrincado, mas ao mesmo tempo dá a sensação de que estamos lendo um conto de fadas.

Você sabe como ele morreu, não sabe?

Se matou com um tiro na boca, aos trinta e quatro anos. Depois de matar uma mulher, sua amiga, num pacto de suicídio duplo.

Diga-me, Ferguson, o que aconteceria se você fosse aceito em Princeton, mas seu pedido de bolsa de estudos fosse rejeitado? Viria para cá mesmo assim?

Vai depender do que disserem em Columbia.

Essa é sua primeira opção.

Sim.

Posso perguntar por quê?

Porque fica em Nova York.

Ah, é claro. Mas você virá para cá, se lhe dermos a bolsa de estudos.

Sem dúvida nenhuma. É uma questão de dinheiro, entende, e mesmo se eu entrar em Columbia, não tenho certeza de que minha família possa pagar para que eu estude lá.

Bem, não sei o que o comitê vai decidir, mas quero dizer a você que gos­tei de ler seus contos e acho que são bem melhores do que mais ou menos. O sr. Flute ainda está em busca de outra estrada, eu imagino, mas “Gregor Flamm” é uma bela surpresa, um excelente trabalho para alguém da sua ida­de, e, com algumas poucas emendas na terceira e na quinta parte, tenho certeza de que poderia ser publicado. Mas, não. E é isso que eu queria dizer para você, o meu conselho. Contenha-se por um tempo, não saia correndo para publicar alguma coisa, continue trabalhando e, num prazo curto, você estará pronto.

Obrigado. Não, obrigado não... mas, sim, como em sim, o senhor tem razão, ainda que possa estar enganado quanto a não serem mais ou menos, quero dizer, mas significa tanto para... Meu Deus, nem sei mais o que estou dizendo.

Não diga nada, Ferguson. Apenas levante da cadeira, aperte minha mão e vá para casa. Foi um privilégio falar com você.

Seguiram-se seis semanas de incerteza. Março inteiro e até meados de abril, as palavras de Robert Nagle flamejavam dentro da cabeça de Ferguson, trabalho excelente e foi um privilégio falar com você o mantinham animado ao longo dos dias gélidos do fim do inverno e início da primavera, pois ele se deu conta de que Nagle foi o primeiro estranho, a primeira pessoa neutra, o primeiro observador de fora, completamente alheio a ele, que leu seus trabalhos, e agora que a melhor cabeça literária em Princeton tinha encontrado méritos em seus contos, o jovem autor queria poder parar de ir ao colégio para passar dez horas por dia sentado em seu quarto com a nova obra que estava tomando forma em sua cabeça, um épico em muitas partes, chamado Viagens de Mulligan, que com certeza seria a melhor coisa que tinha escrito, o grande salto para a frente, afinal.

Certa manhã, no meio do longo período de espera, quando Ferguson estava sentado na cozinha ruminando sobre tigres e leões e sobre as chances de ele acabar como uma formiga, na grande fábrica de formigas conhecida pelo nome de Rutgers, situada na metrópole mundialmente famosa de New Brunswick, em Nova Jersey, sua mãe entrou na cozinha com o jornal Star-Ledger daquele dia, jogou na mesa do café da manhã na frente dele e disse: Dê só uma olhada nisto, Archie. Ferguson olhou e o que viu foi tão inesperado, tão fora do reino do que parecia possível, tão clamorosamente errado e ridículo, que teve de olhar mais três vezes antes de começar a assimilar a novidade. Seu pai tinha se casado de novo. O profeta dos lucros tinha se unido a Ethel Blumenthal, de quarenta e um anos, viúva de Edgar Blumenthal e mãe de dois filhos, Allen, de dezesseis, e Stephanie, de vinte, e quando Ferguson olhou bem para a fotografia de seu pai sorridente e da nada feia segunda sra. Ferguson, viu que tinha certa semelhança com a mãe, sobretudo na estatura e na cor escura e feitio do cabelo, como se o pai tivesse procurado uma nova versão do modelo original, mas a substituta tinha só metade de sua beleza, e havia um toque reservado em seu olhar, algo triste, fechado e talvez um pouco frio, ao passo que os olhos da mãe de Ferguson eram um porto de refúgio para todos que dela se aproximavam.

Ferguson imaginou que deveria se sentir ofendido com o fato de seu pai nunca ter apresentado a ele aquela mulher, que tecnicamente era sua madrasta agora, e profundamente ofendido também por não ter sido nem convidado para o casamento, mas ele não se sentiu nem uma coisa nem outra. Ficou aliviado. A história estava terminada e o filho de Stanley Ferguson, que já não precisava mais fingir que sentia nenhum vínculo filial com o homem que o havia procriado, olhou para a mãe e gritou: Adios, papa... vaya con Dios!

Três semanas depois, no mesmo dia, em três partes diferentes do país — Nova York, Cambridge, Massachusetts e uma cidadezinha em Nova Jersey —, os membros mais jovens da tribo misturada e embaralhada abriram suas caixas de correio e encontraram as cartas que vinham esperando. Exceto por um único não de Noah, foi uma inundação de sins para todos, um triunfo sem precedentes, que pôs o quarteto Schneiderman-Ferguson-Marx na posição invejável de poderem escolher para onde queriam ir durante os quatro anos seguintes de suas vidas. Além da Universidade de Nova York, Noah podia frequentar o City College ou a Academia Americana de Artes Dramáticas. Jim podia ir para Caltech, ao sul de Princeton, ou ficar onde já estava, no MIT. Além de Barnard e Brandeis, as opções de Amy incluíam Smith, Pembroke e Rutgers. Quanto a Ferguson, as formigas tinham vindo até ele, como era esperado, mas também as duas feras da selva, como não era esperado, e quando olhou para Amy, exultante, espalhando suas cartas pela cozinha toda e rindo até estourar, ele se levantou e disse, na sua melhor imitação do sotaque do avô: Nós valsarr juntas, agorra, ja liebchen? Então, andou até onde ela estava, abraçou-a e lhe deu um beijo nos lábios.

Bolsa de estudos Walt Whitman.

Apesar da carta estimulante de Columbia, Nova York teria de esperar. O dinheiro tornava imperativo ir para Princeton, mas além disso havia também a honra de ter ganhado a bolsa de estudos, que incontestavelmente era a melhor coisa que jamais havia acontecido com ele, uma pena colossal em seu chapéu, como disse Dan, e até para o calejado e pouco expansivo Ferguson, que normalmente era tão tímido com relação a seus sucessos que preferia sair da sala a abrir a boca e se vangloriar, a bolsa de Princeton era diferente, uma coisa tão grande que dava uma sensação boa levar aquilo consigo para todo lado e deixar que os outros vissem, e, no colégio, quando se espalhou a notícia de que ele era um dos quatro selecionados, ele absorveu os cumprimentos sem se sentir embaraçado nem fazer nenhum de seus costumeiros comentários autodepreciativos, estava ávido por adulação, apreciou ser o centro de um mundo que, de repente, estava girando em volta dele, admirado, invejado e comentado por todo mundo, e muito embora quisesse mudar para Nova York logo em setembro, a ideia de se tornar um bolsista do programa Walt Whitman em Princeton era mais do que o suficiente para animar sua vida, por enquanto.

Dois meses se passaram e, um dia depois de se formar no colégio, Ferguson recebeu uma carta do pai. Além de um breve bilhete de congratulações pela bolsa de estudos (que tinha sido anunciada no jornal Star-Ledger), o envelope continha um cheque de mil dólares. O primeiro impulso foi de rasgar e mandar os pedacinhos de volta pelo correio, mas depois pensou melhor e decidiu depositar o cheque na sua conta. Uma vez descontado, pre­en­cheria dois cheques de quinhentos dólares, um para o SANE (Comitê Nacional pela Política Nuclear Sensata) e o outro para o SNCC (Comitê de Coordenadação dos Estudantes Não Violentos). Não fazia sentido rasgar dinheiro quando se podia fazer bom uso dele, e por que não o entregar para aqueles que lutavam contra as imbecilidades e as injustiças do mundo bagunçado em que ele vivia?

Na mesma noite, Ferguson trancou-se no quarto e chorou pela primeira vez desde que saiu da casa velha. Mais cedo, naquele dia, Dana Rosenbloom tinha partido para Israel, e, como seus pais iam mudar de novo para Londres, para recomeçarem a vida mais uma vez, era mais do que provável que ele nunca mais a visse. Ferguson implorou para ela não ir, explicou que estava errado sobre muitas coisas e queria mais uma chance para provar que a merecia, e, depois que ela respondeu que já havia tomado sua decisão e que nada poderia detê-la, Ferguson, impulsivamente, pediu que Dana se casasse com ele e, como Dana entendeu que não era uma brincadeira, que Ferguson estava falando sério, cada palavra, respondeu que ele era o amor de sua vida, o único homem a quem ela ia dedicar todo seu coração, e então beijou Ferguson pela última vez e foi embora.

Na manhã seguinte, ele recomeçou a trabalhar para Arnie Frazier, mais uma vez. O sr. College estava de volta ao ramo de mudanças e, sentado na van, ouvindo Richard Brinkerstaff falar sobre sua infância no Texas e sobre o bordel em sua cidadezinha natal, onde a madame era tão sovina que reciclava até as camisinhas, deixando de molho na água quente e depois enrolando na ponta de um cabo de escova e pondo para secar ao sol, Ferguson entendeu que o mundo era feito de histórias, tantas histórias diferentes que, se fossem todas reunidas num livro, esse livro teria novecentos milhões de páginas. O verão de Watts e a invasão americana do Vietnã tinham começado, e nem a avó de Ferguson nem o avô de Amy viveriam para ver o fim daquilo.

* Chore o país amado: História de consolo na desolação, em tradução livre. (N. E.)


5.1

Ele acabou ficando com um quarto no décimo andar do Carman Hall, o mais novo dormitório do campus, mas depois que Ferguson desfez as malas e arrumou suas coisas, foi para um dormitório vizinho, alguns metros ao norte, Furnald Hall, e pegou o elevador até o sexto andar, onde ficou parado diante da porta do quarto 617 por alguns momentos, e depois desceu, caminhou para o leste, pelo atalho de tijolos que passava ao lado da Biblioteca Butler e seguiu para um terceiro dormitório, o John Jay Hall, onde pegou o elevador para o décimo segundo andar e ficou parado diante da porta do quarto 1231 por alguns momentos. Federico García Lorca tinha morado naqueles dois quartos durante os meses que passou em Columbia, em 1929 e 1930. Furnald 617 e John Jay 1231 foram os quartos onde ele escreveu “Poemas de solidão da Universidade Columbia”, “Retorno à cidade”, “Ode a Walt Whitman” (Nova York de lama/ Nova York de arame e de morte)* e a maior parte dos demais poemas coligidos em Poeta em Nova York, livro que acabou publicado em 1940, quatro anos depois de Lorca ser espancado, morto e jogado numa vala comum por homens de Franco. Solo sagrado.

Duas horas depois, Ferguson caminhou até a Broadway e a rua 116 Oeste e encontrou Amy no Chock Full o’Nuts, lar do café celestial, que era considerado tão bom que nem mesmo o dinheiro de Rockefeller conseguia comprar uma qualidade melhor (segundo o anúncio da televisão). Chock Full o’Nuts era a mesma empresa que empregava Jackie Robinson, o amigo do governador Rockefeller, como vice-presidente e diretor de pessoal, e depois que Ferguson e Amy meditaram por alguns minutos acerca daqueles fatos estranhos e intrincados — o ubíquo Nelson Rockefeller, cuja família era dona de plantações de café da América do Sul, e o ex-jogador de beisebol Jackie Robinson, cujo cabelo ficou branco, embora ele fosse relativamente jovem, e uma cadeia de oitenta cafeterias em Nova York com funcionários predominantemente negros —, Amy pôs os braços em torno do ombro de Ferguson, puxou-o para junto de si e perguntou como se sentia agora, como estudante da faculdade, um homem livre, enfim. Bem demais, meu amor, simplesmente maravilhoso, disse ele, e beijou Amy no pescoço, na orelha e na sobrancelha — exceto por um pequeno detalhe, que por pouco não fez Ferguson levar um murro na cara, uma hora depois de chegar ao campus. Estava se referindo à tradição de Columbia de forçar os calouros a vestir gorros azul-claros durante a semana de orientação (com o número de sua série estampado na frente do gorro, no seu caso, o ridículo 69), algo que na opinião de Ferguson era um costume revoltante que devia ter sido abolido décadas antes, uma regressão às iniciações humilhantes da vida dos estudantes universitários ricos no século XIX, e lá estava ele, disse Ferguson, cuidando da sua vida, rodando pelo alojamento de lá para cá, com o crachá espetado no peito que o identificava como calouro, quando foi barrado por dois veteranos, chamados de monitores e cujo trabalho era ajudar os subalternos do primeiro ano a achar seu caminho pelo campus, só que aqueles brutamontes de cabelo curto, de paletó de tweed e gravata, que deviam ser jogadores de futebol americano do time principal, não tinham o menor interesse em ajudar Ferguson a encontrar seu caminho, e sim em barrar seu caminho e perguntar por que não estava usando o tal gorro, com o jeito e num tom de voz antes de policiais nada amistosos do que de estudantes amistosos, e Ferguson respondeu sem meias palavras que o gorro estava lá em cima, no quarto, e que ele não tinha a menor intenção de usar aquilo em nenhum momento daquele dia nem em dia nenhum daquela semana, e nessa altura um dos policiais chamou-o de seboso e mandou que voltasse para o quarto e pegasse o gorro. Me desculpe, disse Ferguson, se quer tanto assim o gorro, você vai ter de ir lá pegar você mesmo, uma réplica que deixou o monitor tão possesso que, por um instante, Ferguson achou que ele ia avançar e passar pisando por cima dele, mas o outro policial disse para o amigo se acalmar e, em vez de prolongar o confronto, Ferguson simplesmente seguiu seu caminho.

Sua primeira aula de antropologia sobre grupos de afinidade entre estudantes homens, disse Amy. O mundo do qual você agora faz parte está dividido em três tribos. Os rapazes da fraternidade e os atletas, que constituem mais ou menos um terço do contingente, os cê-dê-efes, que constituem outro terço, e os sebosos, que formam o outro terço. Você, meu caro Archie, estou contente em dizer, é um seboso. Apesar de ter sido um cê-dê-efe.

Pode ser, disse Ferguson. Mas um cê-dê-efe com coração de seboso. E também, talvez — é só um palpite —, com a cabeça de um atleta.

O café celestial foi servido diante deles, no balcão, e na hora em que Ferguson estava prestes a tomar o primeiro gole, um jovem entrou e sorriu para Amy, um jovem de porte médio, cabelo comprido e despenteado, que incontestavelmente era um dos sebosos, membro da tribo a que Ferguson agora parecia pertencer, já que o comprimento do cabelo (segundo Amy) era um dos fatores que distinguiam os sebosos dos cê-dê-efes e dos atletas, o fator menos relevante de uma lista que incluía inclinações políticas de esquerda (contra a guerra, a favor dos direitos civis), fé na arte e na literatura, e desconfiança de todas as formas de autoridade institucional.

Que bom, disse Amy. Esse é o Les. Eu sabia que ele ia vir.

Les era um estudante do penúltimo ano chamado Les Gottesman, um amigo casual de Amy, nada mais do que um conhecido distante, na verdade, mas todo mundo, dos dois lados da Broadway, sabia quem era Amy Schneiderman, e Les tinha aceitado dar um pulo no Chock Full o’Nuts naquela tarde como um presente de boas-vindas de Amy para Ferguson, em seu primeiro dia de faculdade, porque ele, Les Gottesman, era o autor do verso que tinha surpreendido e alegrado tanto Ferguson em sua visita ao campus, seis meses antes. O bom mesmo para você é ter alguém para foder.

Ah, aquilo, disse Les, quando Ferguson pulou do seu banco e apertou a mão do poeta. Acho que, na época, pareceu divertido.

Ainda é divertido, disse Ferguson. E também é vulgar e ofensivo, pelo menos para certas pessoas, provavelmente para a maioria das pessoas, mas também é a inegável constatação de um fato.

Les sorriu com modéstia, olhou para Amy e para Ferguson umas duas vezes e depois disse: Amy me contou que você escreve poemas. Talvez queira mostrar alguns para a Columbia Review. Dê um pulo até lá, um dia. Ferris Booth Hall, terceiro andar. É o escritório em que todo mundo fica berrando.

No dia 16 de outubro, Ferguson e Amy participaram da primeira manifestação contra a guerra, uma passeata organizada pelo Comitê da Quinta Avenida de Passeatas Pela Paz no Vietnã, que atraiu dezenas de milhares de pessoas, num espectro que ia de estudantes ativistas maoistas até rabinos judeus ortodoxos, a maior multidão que os dois já tinham visto, exceto em estádios de beisebol, e, naquela radiosa tarde de sábado no início do outono, debai­xo do céu azul perfeito de um perfeito dia de Nova York, quando os ma­nifestantes desceram pela Quinta Avenida e viraram para o leste, rumo à praça das Nações Unidas, alguns cantando, outros gritando, a maioria caminhando em silêncio, que era como Ferguson e Amy preferiram fazer, ficar de mãos dadas e andar lado a lado em silêncio, multidões de espectadores que estavam sentados no muro baixo em torno do Central Park aplaudiram ou gritaram palavras de incentivo, ao passo que outra facção, a facção favorável à guerra, aqueles que Ferguson mais tarde passou a se referir como a gente antiantiguerra, gritava insultos e xingamentos e, em vários momentos, jogavam ovos nos manifestantes, ou corriam no meio da multidão dando socos, ou jogavam tinta vermelha.

Duas semanas depois, as forças pró-guerra e antiantiguerra promoveram sua própria passeata em Nova York, no que denominaram Dia do Esforço para Apoiar o Vietnã da América, quando vinte e cinco mil pessoas passaram diante de um contingente de autoridades eleitas, que os aplaudiram do alto de palanques elevados. Poucos americanos, naquela altura, estavam dispostos a admitir os erros da guerra de seus governantes, mas com cento e oitenta mil militares americanos no Vietnã e a campanha de bombardeio conhecida como Operação Trovão Retumbante já em seu oitavo mês, com as unidades americanas na ofensiva e os números de mortes de soldados chegando das batalhas em Chu Lai e Ia Drang, a rápida e inevitável vitória que Johnson, McNamara e Westmoreland tinham prometido ao público americano parecia cada vez menos segura. No fim de agosto, o Congresso aprovou uma lei que determinava uma pena de cinco anos de prisão e até dez mil dólares de multa para quem fosse condenado por destruir documentos do Serviço de Convocação Militar. Todavia, jovens continuaram a queimar suas cartas de convocação em protestos públicos, enquanto o movimento de Resistência à Convocação Militar se expandia pelo país. Um dia antes de Ferguson e Amy irem à passeata na Quinta Avenida, trezentas pessoas se reuniram diante do Centro de Alistamento das Forças Armadas, na Whitehall Street, para ver David Miller, de vinte e dois anos, atear fogo na sua carta de convocação militar, no primeiro desafio público à nova lei federal. Quatro outros jovens tentaram fazer o mesmo em Foley Square, no dia 28 de outubro, e foram engolidos por um bando de intrometidos e pela polícia. Na semana seguinte, quando outros cinco estavam prestes a queimar suas cartas de convocação durante uma manifestação na Union Square, um jovem antianti pulou do meio da multidão e espirrou sobre eles o jato de um extintor de incêndio, e, quando um dos cinco rapazes encharcados conseguiu, mesmo assim, atear fogo à sua carta ensopada, centenas de pessoas de pé por trás da barreira de policiais gritaram: “Nos deem essa alegria, bombardeiem Hanói!”.

Também gritaram: “Taquem fogo em vocês, não nas cartas!”, uma referência feia ao pacifista quacker antiguerra que havia ateado fogo ao próprio corpo até morrer, quatro dias antes, diante do Pentágono. Depois de ler o relato de um padre católico francês que tinha visto seus paroquianos queimarem no napalm, Norman Morrison, de trinta e um anos, pai de três filhos pequenos, foi de carro de sua casa em Baltimore até Washington, D.C., sentou-se a menos de cinquenta metros da janela do gabinete de Robert McNamara, derramou querosene sobre o corpo e se imolou contra a guerra, num protesto silencioso, uma erupção de chamas de força igual àquela causada pelo na­palm quando lançado de um avião.

Taquem fogo em vocês mesmos, não nas cartas de convocação.

Amy tinha razão. O pequeno e quase invisível incômodo chamado Vietnã tinha crescido e se tornado um conflito maior do que o da Coreia, maior do que qualquer outra coisa, desde a Segunda Guerra Mundial, e não parava de crescer dia a dia, a cada hora mais tropas eram enviadas para aquele país remoto e empobrecido do outro lado do mundo, para combater a ameaça do comunismo, impedindo que o Norte conquistasse o Sul, duzentos mil, quatrocentos mil, quinhentos mil jovens da geração de Ferguson embarcaram para selvas e aldeias de que ninguém tinha ouvido falar nem conseguia apontar no mapa, e, ao contrário Guerra da Coreia e da Segunda Guerra, que foram travadas em territórios situados a milhares de quilômetros de solo americano, aquela guerra estava sendo travada tanto no Vietnã como também em casa. Os argumentos contrários à intervenção militar eram tão claros para Ferguson, tão persuasivos em sua lógica, tão evidentes depois de um exame abrangente dos fatos, que era difícil para ele compreender como alguém podia apoiar a guerra, mas milhões apoiavam, muito mais milhões, nessa altura, do que os milhões que se opunham, e aos olhos das força pró e antianti, qualquer um que se opusesse à política de seu governo era um agente inimigo, um americano que tinha perdido o direito de ser chamado de americano. Toda vez que via mais um dissidente se arriscar a ficar cinco anos preso por queimar sua carta de convocação, berravam traidor e lixo comuna, ao passo que Ferguson olhava para aqueles rapazes com respeito e considerava que eram os americanos maios corajosos e mais íntegros do país. Estava totalmente a favor deles e iria aos protestos contra a guerra, até que o último soldado voltasse para casa, mas jamais poderia ser um deles, nunca ficaria no mesmo nível, por causa do polegar que faltava em sua mão esquerda, o que já o havia poupado da ameaça que seus colegas iriam enfrentar quando terminassem a faculdade e fossem convocados para os exames físicos. Desafiar o alistamento militar não era tarefa para aleijados ou deficientes, mas para os aptos, aqueles que se qualificavam como matéria-prima para um bom soldado, e por que correr o risco de ir para cadeia por força de um gesto sem sentido? Era uma posição solitária, era o que Ferguson sentia, muitas vezes, como se fosse um exilado que estivesse exilado até dos outros exilados e, por consequência, havia a sensação de vergonha, ligada ao fato de ser quem ele era, mas, gostasse ou não, o acidente de carro o havia livrado da futura batalha de ter de optar entre resistir ou se esconder, só ele entre seus conhecidos não precisava viver com medo do próximo passo e, certamente, isso o ajudou a se manter de pé durante um tempo, enquanto tantos outros perdiam o equilíbrio e caíam, pois o país já estava partido ao meio em setembro e outubro de 1965 e, a partir desse ponto, era impossível pronunciar as palavras “Estados Unidos” sem também pensar logo na palavra “loucura”.

Temos de destruir a aldeia para salvá-la.

Então, no dia 9 de novembro, uma semana depois do suicídio de Norman Morrison diante do Pentágono, aproximadamente seis semanas depois do começo do primeiro semestre de Ferguson em Columbia, quando ele ainda estava tateando seu caminho e sem saber se a faculdade era mesmo tudo aquilo que prometia, as luzes se apagaram em Nova York. Eram cinco horas e vinte e sete minutos da tarde e, durante trinta minutos, uma área que abrangia duzentos mil quilômetros quadrados do nordeste dos Estados Unidos tinha ficado sem energia elétrica, deixando mais de trinta milhões de pessoas no escuro, entre elas oitocentos mil passageiros de metrô em Nova York a caminho de casa depois do trabalho. O desafortunado Ferguson, que, nessa altura, parecia ter aprimorado a arte de estar no lugar errado na hora errada, estava sozinho dentro de um elevador que subia para o décimo andar de Carman Hall. Estava voltando a seu dormitório para deixar uns livros e vestir um paletó mais pesado, mas não pretendia passar mais do que um minuto no quarto, pois às seis horas ele e Amy deviam estar juntos, cozinhando seu espaguete, para jantar no apartamento dela; depois disso ele iria ler um trabalho de história que Amy tinha terminado naquela tarde, quinze páginas sobre a revolta de 1866 em Haymarket Square, Chicago, um serviço editorial que Ferguson prestava toda vez que Amy redigia um trabalho, porque sempre se sentia melhor, dizia Amy, se ele desse uma lida antes de ela entregar. Depois disso, iam ficar juntos no sofá da sala por umas duas horas, pondo em dia as tarefas para as aulas do dia seguinte (Tucídides, para Ferguson, John Stuart Mill, para Amy) e, depois disso, se estivessem a fim, dariam uma caminhada pela Broadway, até o West End Bar, para tomar uma ou duas cervejas, talvez conversar com algum amigo, se por acaso aparecesse e, quando já estivessem fartos de ficar no bar, voltariam para o apartamento, para mais uma noite na cama de Amy, pequena, mas deliciosamente confortável.

Ele nunca soube ao certo o que aconteceu primeiro, a repentina parada do elevador ou o apagar das luzes, ou se os dois eventos se deram ao mesmo tempo, o breve estalo das lâmpadas fluorescentes, acima de sua cabeça, ou o violento tranco da cabine do elevador à sua volta, um chiado seguido por um estouro, um estouro seguido por um chiado, ou um chiado e um estouro juntos, porém, como quer que tenha ocorrido, foi rápido e, em dois segundos, as luzes tinham apagado e o elevador parou de se mover. Ferguson ficou preso entre o sexto e o sétimo andares e ali permaneceu durante treze horas e meia, sozinho no escuro sem nada para fazer, senão examinar os pensamentos na cabeça e torcer para que a luz voltasse antes que sua bexiga não aguentasse mais.

Desde o início, compreendeu que não era só um problema seu, mas de todo mundo. Pessoas gritavam pelo prédio — Blecaute! Blecaute! —, e até onde Ferguson podia ver, não havia pânico nas vozes, na verdade o tom era até festivo e exuberante, uma explosão de risos extasiados subia pelo poço do elevador e ressoava pelas paredes da cabine, as velhas e maçantes rotinas tinham perdido o propósito, algo novo e inesperado tinha caído do céu, um cometa preto corria pelo céu da cidade, e vamos dar uma festa e celebrar à vontade! Aquilo era bom, pensou Ferguson, e quanto mais tempo a alegria durasse, mais o ajudaria a não entrar em pânico, pois, se ninguém mais tinha medo, por que ele teria? Apesar de estar preso dentro de uma caixa de metal e não conseguir enxergar mais do que o mais cego dos cegos numa noite de inverno sem estrelas no Polo Norte, e apesar de ter a sensação de estar trancado num caixão e poder morrer de fome antes de conseguir rastejar para fora dali.

Em dois ou três minutos, alguns estudantes mais conscientes começaram a bater nas portas do elevador e perguntar se tinha alguém preso lá. Tem, sim!, responderam algumas vozes, e Ferguson descobriu que não era o único azarado a ficar entalado no meio do nada, que ambos os elevadores estavam ocupados, mas a outra cabine tinha meia dúzia de pessoas, enquanto Ferguson estava sozinho, não apenas preso, como os outros, mas confinado numa solitária, e, quando gritou seu nome e o número do quarto (1014B), uma voz respondeu: Archie! Seu bundão! Ao que Ferguson respondeu: Tim! Quanto tempo vai demorar? A resposta de Tim não foi nada animadora: Quem é que vai saber?

Não havia nada a fazer. Tinha de ficar ali e esperar, o desastrado sr. Confuso, que estava a caminho do apartamento da namorada quando foi acidentalmente transformado no Experimento Número 001, agora confinado num tanque de privação sensorial, suspenso a seis andares e meio de altura, o Harry Houdini da Ivy League, o Robinson Crusoé de Nova York e da maior região metropolitana, e, se não desse uma sensação tão horrível ficar trancafiado naquela cela escura feito breu, Ferguson teria rido de si mesmo e se curvaria para agradecer os aplausos, por fazer o papel de palhaço número um da humanidade, o palhaço número um do cosmos.

Ia mijar nas calças mesmo, resolveu. Se e quando fosse necessário esvaziar a bexiga, ele teria de retornar aos procedimentos autoensopantes dos primeiros anos da infância, em vez de alagar o piso e se ver — durante as próximas não sabia quantas horas — sentado no meio de uma poça fria de urina enlameada.

Nada de cigarros e nada de fósforos também. Fumar ajudaria a passar o tempo e os fósforos teriam permitido que ele enxergasse alguma coisa de vez em quando, sem falar na ponta brilhante do cigarro toda vez que inalasse, só que seus fósforos e cigarros tinham acabado de tarde e sua intenção era comprar um maço novo a caminho do jantar na Casa de Espaguete Schneiderman, na rua 11 Oeste. Vá sonhando, palhaço.

Era impossível saber se os telefones ainda estavam funcionando, mas havia uma chance, e por isso gritou para Tim novamente, pois queria pedir a seu colega de quarto que telefonasse para Amy para contar o que tinha acontecido, e assim ela não iria ficar preocupada quando batessem as seis horas e ele ainda não tivesse chegado, só que Tim não estava mais lá e, quando Ferguson gritou dessa vez, ninguém respondeu. Nos últimos minutos os gritos de alegria e os risos tinham silenciado, o bando de gente nos corredores tinha se dispersado em grande parte, e sem dúvida Tim tinha subido para fumar maconha com seus amigos maconheiros no décimo andar.

Tão escuro ali dentro, tão desligado de tudo, tão fora do mundo ou do que Ferguson sempre imaginou ser o mundo, que aos poucos foi se tornando possível que ele indagasse a si mesmo se ainda estava dentro do próprio corpo.

Pensou no relógio de pulso que os pais tinham lhe dado no sexto aniversário, um relógio de criança, com pulseira metálica flexível e números no mostrador que brilhavam no escuro. Como aqueles números iluminados eram reconfortantes para ele, deitado na cama, antes que o sono fechasse seus olhos e o puxasse para baixo, pequenos companheiros fosforescentes que desapareciam de manhã, quando o sol subia, amigos de noite, mas meros algarismos pintados durante o dia e, agora que ele não usava mais relógio de pulso, imaginou o que teria acontecido com aquele presente de aniversário de tanto tempo atrás e onde teria ido parar. Nada mais para ver e mais nenhuma sensação de tempo, nenhum jeito de saber se estava no elevador havia vinte ou trinta minutos, ou quarenta minutos ou uma hora.

Gauloises. Era essa a marca dos cigarros que pretendia comprar quando passasse pela Broadway, o cigarro que ele e Amy tinham começado a fumar durante a viagem à França, no verão, os canudos gorduchos de tabaco marrom, superforte, dentro dos maços azul-claros, sem papel celofane em volta, o mais barato dos cigarros franceses, e só de fumar um cigarro Gauloise nos Estados Unidos agora, já dava para eles voltarem aos dias e às noites que os dois tinham passado naquele outro mundo, os cheiros da fumaça grossa, igual à de um charuto, eram tão diferentes dos cheiros do tabaco alourado dos cigarros Camel, Lucky e Chesterfield, que uma baforada, uma expiração, bastava para mandar os dois de volta para o chambre dix-huit no seu hotelzinho em frente ao mercado, e de repente suas mentes viajavam pelas ruas de Paris mais uma vez, enquanto viviam de novo as alegrias que tinham experimentado juntos ali, cigarros como sinal daquela felicidade, do amor novo e maior que se apoderou deles durante o mês que passaram fora, e que agora podia ainda se expressar por meio de ações como evocar encontros surpresa com poetas desbocados, que nem chegaram a se formar, como um presente para o mais novo membro do Batalhão dos Sebosos de Morningside Heights, a abençoada Amy e seu talento para o gesto imprevisível, seus improvisos-relâmpago, seu coração generoso e pródigo.

Ferguson sentiu-se tentado a aceitar a proposta de Les e apresentar algum escrito seu para a Columbia Review, mas passou um mês e meio e ele ainda não tinha ido lá bater à porta da revista. Não que fosse dar para Les algum de seus poemas recentes, que eram todos decepcionantes, em sua opinião, e não mereciam ser publicados, mas as traduções que tinha começado a fazer em Paris se tornaram um trabalho mais sério agora, e depois de ter investido em alguns dicionários que o haviam ajudado a melhorar seu francês imperfeito (Le Petit Robert, Le Petit Larousse Illustré e o indispensável Francês-Inglês Harrap’s), ele já não compreendia mal os versos nem dava mancadas grosseiras e, pouco a pouco, suas versões de Apollinaire e Desnos começaram a soar poemas escritos em inglês, em vez de poemas franceses que foram passados por um moedor de carne linguístico e convertidos em franglês, mas ainda não estavam completamente prontos, ainda havia um trabalho a ser feito a fim de ficarem bons, e ele não queria bater à porta da revista antes de se sentir bem com todas as palavras e todos os versos daquelas glórias líricas que ele admirava profundamente demais para não dedicar a elas tudo o que tinha, mil vezes seguidas, tudo o que tinha. Não estava claro se a revista ia querer publicar traduções, mas valia a pena fazer o esforço de descobrir, pois a Review tinha atraído alguns dos calouros mais interessantes que ele havia conhecido até então, e ao se tornar parte daquilo, o próprio Ferguson poderia unir forças com poetas e prosadores como David Zimmer, Daniel Quinn, Jim Freeman, Adam Walker e Peter Aaron, todos frequentavam vários cursos junto com ele e, nas últimas seis semanas, Ferguson tinha ficado com eles tempo bastante para saber que eram inteligentes e cultos, escritores iniciantes que pareciam ter bagagem para irem em frente e virarem poetas e romancistas de verdade um dia, não eram apenas calouros da categoria dos sebosos muito sabidos e ferozmente dotados, como também todos eles tinham vencido a semana de orientação dos calouros sem pôr o tal gorro na cabeça nem uma vez sequer.

Nada de poemas para Ferguson, pelo menos por enquanto, e ainda que a aventura pudesse recomeçar de novo, algum dia, no futuro, por enquanto ele não tinha opção a não ser pensar em si mesmo como um poeta em inatividade. A doença que havia contraído no meio da adolescência tinha dado uma febre de dois anos, que acabou produzindo quase cem poemas, mas aí Francie bateu com o carro em Vermont e, de repente, os poemas pararam de vir, por razões que ele ainda não conseguia entender e, desde então, ele passou a ter cuidado, sentir medo, e os poucos poemas que conseguiu escrever não ficaram bons, ou nem chegavam a dar para o gasto, estavam longe de dar para o gasto. A prosa jornalística havia resgatado Ferguson de um impasse, mas uma parte dele sentia falta da lentidão do trabalho poético, a sensação de escavar a terra e sentir o gosto de terra na boca, e assim seguiu o conselho de Pound para os jovens poetas e pôs a mão à prova na tradução. De início, pensou naquilo como nada mais do que um exercício para não perder a pegada, uma atividade que lhe traria os prazeres de escrever poesia sem nenhuma de suas frustrações, mas agora que já andava metido naquilo havia algum tempo, compreendeu que ali tinha muito mais do que isso. Se você amava o poema que estava traduzindo, então desmontar aquele poema e montar tudo de novo no seu idioma era um ato de devoção, uma forma de servir o mestre que lhe havia proporcionado a coisa linda que você tinha nas mãos, e o grande mestre Apollinaire e o pequeno mestre Desnos tinham escrito poemas que Ferguson achava lindos, ousados e espantosamente inventivos, todos eles imbuídos de um espírito de melancolia e, ao mesmo tempo, de leveza, uma combinação rara que, de certo modo, unia impulsos contraditórios em guerra dentro do coração de dezoito anos de Ferguson e, assim, ele dedicava àquilo todo tempo livre que conseguia arranjar, reformulando, repensando e refinando suas traduções, até que se tornassem consistentes o bastante para ele chegar a bater à porta.

A porta era a porta da sala 303 no Ferris Booth Hall, o centro de atividades estudantis, que ficava colado à parede do prédio do seu dormitório, na ala sudoeste do campus, o prédio onde estava preso agora, no elevador, e, supondo que não fosse ficar louco na escuridão, teria de escrever sobre aquela experiência, se é que conseguiria sair dali um dia, escrever um texto espirituoso e provocativo, em primeira pessoa, que o Columbia Daily Spectator ia publicar, porque agora ele fazia parte da equipe editorial, um dos quarenta estudantes da graduação que trabalhavam no jornal estudantil sem nenhuma interferência da administração da universidade ou de censores da faculdade, pois, se ele ainda não tinha tomado coragem para bater à porta da sala 303, havia, porém, entrado num escritório maior, no outro lado do corredor, no segundo dia da semana de orientação dos calouros, a sala 318, e disse para o encarregado do momento que queria se integrar à equipe. E bastava isso. Nenhum período de experiência, nenhum teste, nenhuma necessidade de mostrar as matérias que tinha escrito para o Montclair Times — era só chegar e fazer, e, se cumprisse os prazos e provasse que era um repórter competente, você era aceito. Auf wiedesersehen, Herr Imhoff!

Para calouros, as opções de assunto eram: Questões Acadêmicas, Atividades Estudantis, Esportes e a cobertura da comunidade do entorno, e quando Ferguson disse: Nada de esporte, por favor, qualquer coisa, menos esporte, deram para ele as Atividades Estudantis, o que acarretava fazer duas matérias por semana, em média, no geral textos curtos, mal chegavam à metade das matérias que ele tinha escrito sobre as partidas de basquete e beisebol do ensino médio, no ano anterior. Até então, suas colaborações haviam tocado numa série de questões políticas, que envolviam causas de esquerda e de direita, o plano do Comitê 2 de Maio para organizar uma associação contra a convocação militar no campus e a luta contra o que chamavam de “uma injusta guerra de repressão”, mas também uma matéria sobre um bando de estudantes republicanos que decidiram apoiar a candidatura de William F. Buckley para prefeito, porque o prefeito atual, John Lindsay, “tinha se desviado dos princípios do Partido Republicano”. Outras matérias, que Ferguson chamava materiazinhas ligeiras e bobaginhas, o haviam envolvido em certas questões paroquiais da universidade, como os treze calouros que continuavam ainda sem vaga nos dormitórios, três semanas depois do início do semestre, ou o concurso para escolher o nome da nova cafeteria no John Jay Hall, que agora oferecia “máquinas de vender delicatéssen no estilo da cafeteria Horn & Hardart”, uma competição patrocinada pelo Serviço de Alimentação da Universidade, que ia premiar o vencedor com uma refeição grátis, para duas pessoas, em qualquer restaurante de Nova York. Agora, nos dias imediatamente anteriores ao blecaute, Ferguson vinha trabalhando numa matéria sobre uma caloura de Barnard que estava sendo objeto de desconfiança por receber uma visita masculina em seu quarto num horário irregular, pois a regra vigente só permitia visitas de homens nas tardes de domingo, entre duas e cinco horas, e a visita da acusada esteve com ela à uma da madrugada. A garota, cujo nome era protegido e não podia ser mencionado na matéria, achava a punição injusta, “porque as outras também fazem isso, só que eu é que fui apanhada”. Não admira que Amy tivesse mentido e trapaceado para arranjar um jeito de não morar num daqueles dormitórios-prisões quando era caloura. O repórter A. I. Ferguson escreveu a matéria como uma rigorosa reportagem de jornal, e era esta sua obrigação, mas o estudante do primeiro ano Archie Ferguson desejava poder sair em defesa da garota, citando o refrão do poema de Les Gottesman, logo na primeira linha da sua matéria.

Deixe que os fatos falem por si.

O trabalho em jornal era tanto um envolvimento com o mundo quanto um distanciamento do mundo. Se Ferguson tencionava fazer bem seu serviço, teria de aceitar os dois elementos do paradoxo e aprender a viver em estado de dúvida: a exigência de mergulhar no meio das coisas e, ainda assim, permanecer à margem, como um observador neutro. O mergulho nunca deixava de empolgá-lo — fosse o mergulho em alta velocidade, ao escrever sobre uma partida de basquete, fossem as escavações mais vagarosas, mais profundas, necessárias para investigar regras parentais antiquadas numa faculdade onde estudam mulheres —, mas a contenção era um problema potencial, ele sentia, ou pelo menos algo a que teria de se adaptar ao longo dos meses e anos à sua frente, pois fazer o juramento de imparcialidade e objetividade do jornalista não era algo diferente de se unir a uma ordem monástica ou passar o resto da vida num mosteiro de vidro — retirado do mundo dos assuntos humanos, ainda que o mundo continuasse a rodar à sua volta, de todos os lados. Ser jornalista significava nunca poder ser a pessoa que jogava o tijolo na janela que começava a revolução. Você podia ver o homem jogar o tijolo, podia tentar entender por que ele jogava o tijolo, podia explicar para os outros qual a importância do tijolo para começar a revolução, mas você mesmo nunca podia jogar o tijolo nem mesmo ficar no meio da multidão revoltada, que incentivava o homem a jogar o tijolo. Por temperamento, Ferguson não era do tipo inclinado a jogar tijolos. Era, assim esperava, uma pessoa mais ou menos razoável, porém a agitação dos tempos era tamanha que os motivos para não jogar tijolos começavam a parecer cada vez menos razoáveis, e, quando finalmente chegasse o momento de jogar o primeiro tijolo, as simpatias de Ferguson estariam com o tijolo, e não com a janela.

Sua mente vagou à deriva por um tempo, atolada nas profundezas da escuridão infinita à sua volta, e, quando ele emergiu da fuga mental, viu-se pensando nos últimos versos de sua tradução de um poema curto de Desnos.

Em algum lugar do mundo

Ao pé de uma montanha

O desertor fala com sentinelas

Que não entendem sua língua.

Então, após quatro horas de cativeiro na caixa preta, sua bexiga finalmente não aguentou mais e Ferguson molhou as calças, da mesma forma como tinha feito quando era um bebezinho de fraldas, risonho e inocente. Que coisa mais nojenta de fazer, disse para si mesmo, enquanto o líquido escorria pela cueca e pela calça de veludo cotelê, mas também, ao mesmo tempo, como era bom estar com a bexiga vazia.

Lembrou que tinha feito xixi junto com Bobby George, certo dia à tarde, no quintal da casa de George, quando os dois tinham cinco anos, e que George virou para ele e perguntou: Archie, para onde é que vai tudo isso? Milhões de pessoas e bichos fazem xixi por milhões de anos, por que não existem oceanos e rios de xixi, em vez de água?

Era uma pergunta que Ferguson nunca tinha sido capaz de responder.

Seu antigo amigo de infância tinha assinado um contrato com o time Baltimore Orioles, um dia depois de se formar no ensino médio e, na última matéria que Ferguson escreveu para o Montclair Times, havia relatado o bônus de quarenta mil dólares que fazia parte do contrato, junto com a iminente saída de Bobby para Aberdeen, Maryland, onde começaria a jogar como receptor para o time de Orioles na temporada curta, nível A, na Liga de Nova York-Penn. O rapaz tinha conseguido ótimos resultados em vinte e sete partidas naquele verão (um índice de 291), antes do serviço de alistamento militar convocá-lo para os exames físicos, e, como não havia nenhuma prorrogação universitária para impedir que ele fosse servir seu país agora e não dali a quatro anos, ele foi integrado ao Exército dos Estados Unidos em meados de setembro e, no momento, estava chegando ao fim de seu treinamento básico em Fort Dix. Ferguson rezava para que Bobby fosse enviado para um posto confortável na Alemanha Ocidental, onde lhe dariam um uniforme de beisebol e o deixariam jogar durante dois anos, como forma de cumprir sua missão patriótica, pois a ideia do pequeno Bobby George abrindo caminho na selva do Vietnã, com um fuzil nas costas, era tão repulsiva para Ferguson que não dava nem para imaginar.

Quanto tempo a guerra ia durar?

Lorca, assassinado por um esquadrão da morte fascista aos trinta e oito anos. Apollinaire, morto com a mesma idade pela gripe espanhola, quarenta e oito horas antes do fim da Primeira Guerra Mundial. Desnos, morto aos quarenta e quatro anos de tifo, em Theresienstadt, dias antes de o campo ser liberado.

Ferguson pegou no sono e sonhou que estava sonhando que estava morto.

Quando a luz voltou, às sete da manhã seguinte, ele foi cambaleando para seu quarto, no décimo andar, tirou as roupas molhadas e ficou debaixo do chuveiro por quinze minutos.

No dia anterior, Roger Allen LaPorte, de vinte e dois anos, tinha molhado suas roupas com gasolina e ateado fogo ao próprio corpo na frente da Biblioteca Dag Hammarskjöld, nas Nações Unidas. Com queimaduras de terceiro e segundo graus em noventa e cinco por cento do corpo, foi levado de ambulância para o hospital de Bellevue, ainda consciente e falando. Suas últimas palavras foram: Sou um trabalhador católico. Sou contra a guerra, todas as guerras. Fiz isso como um gesto religioso.

Morreu pouco depois do fim do blecaute.

Calouro, Humanas (obrigatório). Semestre de outono: Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Heródoto, Tucídides, Platão (O banquete), Aristóteles (Estética), Virgílio, Ovídio. Semestre da primavera: Livros variados do Velho e do Novo Testamento, Agostinho (Confissões), Dante, Ra­belais, Montaigne, Cervantes, Shakespeare, Milton, Espinosa (Ética), Molière, Swift, Dostoiévski.

Calouros, CC (Civilização Contemporânea — obrigatório). Semestre de outono: Platão (República), Aristóteles (Ética a Nicômaco, Política), Agostinho (Cidade de Deus), Maquiavel, Descartes, Hobbes, Locke. Semestre de primavera: Hume, Rousseau, Adam Smith, Kant, Hegel, Mill, Marx, Darwin, Fourier, Nietzsche, Freud.

Estudos de literatura. Semestre de outono (em lugar do curso obrigatório de redação para calouros, pois Ferguson teve nota alta no exame prévio): Um seminário concentrado no estudo de um único livro — Tristam Shandy.

O romance moderno. Semestre de primavera: Seminário bilíngue com livros lidos alternadamente em inglês e em francês — Dickens, Stendhal, George Eliot, Flaubert, Henry James, Proust, Joyce.

Poesia francesa. Semestre de outono — Século XIX: Lamartine, Vigny, Hugo, Nerval, Musset, Gautier, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Corbière, Lautréamont, Rimbaud, Laforgue. Semestre de primavera — Século XX: Péguy, Claudel, Valéry, Apollinaire. Jacob, Fargue, Larbaud, Cendrars, Perse, Reverdy, Breton, Aragon, Desnos, Ponge, Michaux.

Não demorou muito para ele decidir que a melhor coisa da Universidade Columbia eram os cursos, os professores e seus colegas estudantes. As listas de leitura eram soberbas, as turmas eram pequenas e os professores eram membros do quadro permanente que tinham um prazer e um interesse especial em lecionar para alunos da graduação, e os outros estudantes eram argutos, preparados e não tinham medo de falar durante a aula. Ferguson falava pouco, mas assimilava tudo que era discutido naquelas sessões de uma ou duas horas, com a sensação de que tinha aterrissado numa espécie de paraíso intelectual, e, como rapidamente compreendeu que, apesar de ter lido muitos livros nos dez ou doze anos anteriores, ele ainda não sabia quase nada, lia aplicadamente todos os textos programados, centenas de páginas por semana, às vezes mais de mil, derrapando aqui e ali, mas pelo menos passando os olhos nos livros e nos poemas que resistiam a ele (Middlemarch, Cidade de Deus e a pompa lúgubre de Péguy, Claudel e Perse), e às vezes fazendo até mais do que lhe pediam (varreu o Dom Quixote de ponta a ponta quando o previsto eram trechos selecionados, que abarcam apenas metade do romance — mas como é que alguém podia não querer ler tudo daquele que era o melhor e o mais poderoso de todos os grandes livros?). Duas semanas depois de começar o semestre de outono, seus pais vieram de Newark para visitá-lo e levaram Ferguson para jantar com Amy no Green Tree, o restaurante húngaro barato na Amsterdam Avenue de que Ferguson havia gostado tanto que o chamava de Yum City (cidade das delícias), e quando começou a contar como estava gostando das aulas e como era espantoso que sua principal tarefa na vida agora fosse ler e escrever sobre livros (!), a mãe lhe contou a história da sua própria grand aventure durante os meses anteriores ao nascimento de Ferguson, confinada à cama sem nada a fazer a não ser ler todos os livros excelentes que Mildred recomendava, dúzias de obras que Stanley pegava na biblioteca para ela e nas quais ela pensava ainda, até então, tantas delas ainda muito frescas em sua memória depois de tantos anos, e como Ferguson não conseguia se lembrar de ver a mãe lendo nada, a não ser um punhado de livros de suspense e alguns sobre arte e fotografia, sentiu-se comovido com a imagem da jovem mãe grávida, deitada sozinha o dia inteiro no primeiro apartamento de Newark, com romances apoiados na barriga, cada vez maior, o volume embaixo da pele, que não era outra coisa senão ele mesmo, Ferguson, ainda por nascer e, sim, disse a mãe, sorrindo com carinho ao pensar naqueles dias antigos, como é que você poderia não amar os livros depois de todos os livros que li quando estava grávida de você?

Ferguson riu.

Não ria, Archie, disse o pai. É o que os biólogos chamam de osmose.

Ou metempsicose, disse Amy.

A mãe de Ferguson se mostrou confusa. Psicose?, disse ela. Do que você está falando?

A transmigração das almas, explicou Ferguson.

Mas é claro, respondeu a mãe. É o que eu estava tentando dizer para vocês. Minha alma está na sua alma, Archie. E vai estar sempre, depois que meu corpo for embora.

Nem pense nisso, disse Ferguson. Fiz um acordo especial com o pessoal lá de cima e eles prometeram que você vai viver para sempre.

Boas aulas, bons professores, bons colegas. Mas nem todos os aspectos da experiência em Columbia eram alegres, e, entre as coisas de que Ferguson menos gostava naquele lugar estavam as pretensões chatas das universidades de elite, a chamada Ivy League, suas regras retrógradas e seus protocolos rígidos, sua falta de interesse pelo bem-estar dos estudantes. Todo o poder estava nas mãos da administração e, sem nenhum devido processo legal ou comissão de investigação imparcial para supervisionar as questões de disciplina, eles podiam pôr qualquer um para fora a qualquer momento, sem ter de dar explicações a ninguém. Não que Ferguson tivesse intenção de se meter em encrenca, mas o tempo provaria que outros estavam, e, quando quantidades maiores de estudantes decidiram criar encrenca, na primavera de 1968, a instituição inteira ficou enlouquecida.

Isso virá mais tarde.

Ferguson estava contente de estar em Nova York, contente de estar com Amy, na Nova York de Amy, pelo menos como um morador da capital do século XX, em tempo integral, mas, embora já estivesse familiarizado com o bairro de Columbia, ou mais ou menos familiarizado, agora que estava morando lá, finalmente começou a ver Morningside Heights pelo que era de fato: uma zona de pobreza e desespero, ferida, em desintegração, quarteirões e mais quarteirões de prédios degradados, com a maioria dos apartamentos cheios de camundongos, ratazanas e baratas, junto com as pessoas que moravam lá dentro. As ruas sujas estavam muitas vezes coalhadas de lixo não recolhido, e metade dos pedestres que andavam pelas ruas estava fora de si ou prestes a sair de si, ou estavam se recuperando de surtos nervosos. O bairro era o quilômetro zero para as almas perdidas de Nova York e, todo dia, Ferguson passava por uma dúzia de homens e mulheres trancafiados em diálogos profundos, incompreensíveis, com pessoas invisíveis, gente que não existia. O vagabundo de um braço só com a sacola de compras abarrotada, seu corpo curvado para a frente, enquanto ele olhava para baixo, para a calçada, e murmurava seus padre-nossos com voz miúda e rascante. O baixote barbudo escondido em diversas entradas dos prédios nas ruas transversais à Amsterdam Avenue, lendo exemplares do Daily Forward de um mês antes, com a ajuda de um caco rachado de uma lupa de aumento. A mulher gorda que vagava de pijama. Nas ilhas de trânsito, no meio da Broadway, o bêbado, o idoso e o louco amontoados em bancos em cima da grade do metrô, sentados ombro a ombro, enquanto fitavam à distância, em silêncio. Nova York de lama/ Nova York de arame e de morte. E também havia a pessoa a quem todos se referiam como o Yumkee Man, o maluco quase velho que ficava parado na esquina na frente do Chock Full o’Nus todos os dias, cantarolando as palavras “yawveh yumpkee”, um orador pomposo, à maneira antiga, também conhecido como sr. Yumkee e Emsh, que se proclamava filho de Napoleão, que se proclamava o messias e um inabalável patriota americano, que nunca ia a lugar nenhum sem levar sua bandeira americana, que em dias frios a enrolava nos ombros e a usava como xale. E o careca e cabeçudo homem ou rapaz chamado Bobby, que passava os dias cumprindo tarefas para os proprietários da loja de máquinas de escrever Ralph’s Typewriter Shop, na Broadway, esquina com a rua 113, correndo pela calçada de braços abertos, fingindo que era um avião, costurando para lá e para cá no meio do trânsito de pedestres, enquanto emitia barulhos do motor de um B-52 em pleno voo, na velocidade máxima. E o careca Sam Steinberg, o sempre presente Sam S., que pegava três metrôs no Bronx, todo dia de manhã, para vender balas na Broadway ou na frente do Hamilton Hall, mas também para vender seus desenhos toscos de animais imaginários, feitos com piloto mágico, ao preço de um dólar, pequenos trabalhos em papelões de lavanderia, que vinham dentro das camisas passadas, e gritando para quem quisesse ouvir: Ei, misterrr, pinturas novas aqui, liiindas pinturas novas aqui, as mais liiindas do muuundo. E o grande enigma do Hotel Harmony, o hotel em ruínas para homens que não tinham onde cair morto, plantado na esquina da Broadway com a rua 110, o prédio mais alto no raio de vários quarteirões, e escrito na parede de tijolos, em letras grandes o bastante para serem lidas a quatrocentos metros de distância, estava o lema do hotel, que seguramente merecia o título do mais estonteante oximoro do mundo: HOTEL HARMONY — ONDE VIVER É UM PRAZER.

Era um mundo em colapso o que havia no Upper West Side, e foi preciso um tempo para se acostumar, até Ferguson ficar calejado com a miséria e a sordidez do novo chão onde ele pisava, mas nem tudo era desolação em Heights, jovens vagavam pelas ruas também, garotas bonitas de Barnard e Juilliard muitas vezes figuravam na paisagem, flutuavam perto dele como ilusões de ótica ou espíritos saídos de sonhos, havia livrarias para folhear os livros na Broadway, entre as ruas 114 e 116, tinha até uma loja de livros num porão, dobrando a esquina da rua 115 e descendo uma escadinha, onde Ferguson podia passar a meia hora que tinha livre vasculhando a seção de poesia francesa, os cinemas Thalia e New Yorker exibiam os melhores filmes velhos e novos a apenas vinte e vinte e cinco quarteirões ao sul, Edith Piaf tocava na vitrola automática numa lanchonetezinha fuleira chamada College Inn, onde ele podia se entupir com um café da manhã barato e conversar com a garçonete de cabelo pintado de louro que o chamava de meu doce, tinha o Chock Full o’Nuts para um café de dez minutos, hambúrgueres de sobrevivência no Prexy’s (O hambúrguer com nível universitário), ropa vieja e expresso no Ideal (I-dei-al), o bar cubano-chinês na Broadway, entre as ruas 108 e 109, e almôndegas e goulash no Yum City, o restaurante aonde ele e Amy iam tantas vezes jantar, e o casal de proprietários gorduchos começaram a oferecer sobremesas grátis para os dois; mas o ponto, ou refúgio, central naquele bairro em colapso era o West End Bar and Grill, que ficava na Broadway entre as ruas 113 e 114, com seu imenso balcão oval de carvalho liso e polido, os compartimentos com mesas para quatro ou seis pessoas ao longo das paredes norte e leste, e as cadeiras e mesas grandes, e móveis, na sala dos fundos. Amy já havia apresentado Ferguson ao West End no ano anterior, mas agora que o próprio Ferguson ia ser um residente de um ano inteiro, aquela birosca velhusca e mal iluminada logo se tornou seu local mais frequentado, seu escritório de dia e seu ponto de reunião à noite, seu segundo lar.

Não era a cerveja nem o bourbon que o interessavam, era o papo, a chance de conversar com os amigos do Spectator e da Columbia Review, conversar com os amigos políticos de Amy e com vários frequentadores habituais do West End; as bebidas eram meros acessórios líquidos para ele ir esticando ao máximo, a fim de continuar sentado no compartimento, pois aquela era a primeira vez na vida de Ferguson que ele se via rodeado de gente com quem queria falar, agora não era só a Amy, que já havia dois anos era sua única interlocutora, a única pessoa em sua vida com quem valia a pena conversar, agora havia diversas pessoas, muitas pessoas, e as conversas de que ele tomava parte ali no West End tinham tanto valor para ele quanto tudo o que era dito em suas aulas no Hamilton Hall.

Os rapazes do Spectator eram uma turma séria e trabalhadora, mais cê-dê-efes do que sebosos, no que dizia respeito à maneira de vestir e ao corte de cabelo, mas cê-dê-efes com coração de sebosos, e os iniciantes, colegas de Ferguson da turma de 1969, já eram jornalistas dedicados, tinham acabado de terminar o ensino médio, mas metiam a cara e se envolviam em seus trabalhos como se estivessem trabalhando no ramo havia muitos anos. Os membros mais velhos da equipe do Spectator, em geral, frequentavam outro bar, algumas quadras adiante, na Broadway, o Gold Rail, o salão preferido dos rapazes da fraternidade estudantil e dos atletas, mas os parceiros de Ferguson preferiam a atmosfera mais encardida e menos barulhenta do West End, e, além dos três que às vezes se juntavam com ele para beber e bater papo num dos compartimentos laterais, havia o calmo e pensativo Robert Friedman, um garoto de Long Island que cobria a seção de Assuntos Acadêmicos e que, na idade absurda de dezoito anos, era capaz de escrever com tanta competência e profissionalismo quanto qualquer repórter do Times ou do Herald Tribune, havia Greg Mullhouse, de Chicago, que falava muito depressa e cobria a seção de Esportes, e o intratável, questionador, mordazmente sarcástico Allen Branch, de San Francisco (da seção de Assuntos Comunitários), e todos concordavam que a comissão diretora do jornal era conservadora demais, tímida demais na maneira como tratava as diretrizes políticas ruins da universidade em relação à guerra (permitir a presença de recrutadores militares no campus, não cortar os laços com o ROTC — pronunciava-se rotsy, “podre” —, que era o Programa da Unidade de Treinamento de Oficiais da Reserva da Marinha de Guerra), bem como sua tática digna de um proprietário de cortiços, despejando residentes pobres dos prédios de apartamentos que pertenciam à universidade, para a futura expansão de Columbia pelos terrenos vizinhos, e quando chegasse a vez deles de tomarem o controle do Spectator na primavera de seu segundo ano, elegeriam Friedman para o cargo de editor-chefe e rapidamente poriam mãos à obra para mudar as coisas. Os planos para aquele possível golpe apenas confirmaram o que Ferguson já havia imaginado a respeito da turma dos calouros daquele ano. Eram diferentes das classes mais adiantadas — mais agressivos, mais impacientes, mais dispostos a se erguer e lutar contra a burrice, a complacência e a injustiça. Os filhos do pós-guerra, nascidos em 1947, tinham pouco em comum com os filhos nascidos durante a guerra, apenas dois ou três anos antes, um racha geracional tinha se aberto naquele breve intervalo de tempo e, embora a maioria dos alunos das turmas adiantadas ainda aceitassem as lições que tinham aprendido na década de 1950, Ferguson e seus amigos entendiam que estavam vivendo num mundo irracional, um país que matava seus presidentes e legislava contra seus cidadãos e mandava seus jovens para morrer em guerras sem sentido, o que significava que estavam mais em sintonia com a realidade do presente do que os mais velhos. Um pequeno exemplo, um exemplo trivial: as batalhas dos gorros na Semana de Orientação dos Calouros. Instintivamente, Ferguson se recusou a usar seu gorro, mas os rapazes do Spectator e da Columbia Review também se recusaram, bem como muitos outros e, num contingente de seiscentos e noventa e três estudantes, mais de um terço resolveu encarar e bater de frente com os monitores de futebol americano nos dias anteriores ao início das aulas. Nada tinha sido organizado. Cada rapaz antigorro tinha agido por conta própria, apavorado diante da ideia de ter de desfilar pelo campus como um condenado no pelotão dos patetas, e a contaminação da resistência se espalhou, até se converter num movimento de massa de facto, um boicote geral, uma luta entre a tradição e o senso comum. O resultado? A administração anunciou que, dali em diante, os gorros seriam dispensados para todos os estudantes calouros. Uma vitória microscópica, sim, mas talvez um sinal das coisas que estavam por vir. Gorros, hoje — e amanhã, quem sabe o que mais?

No fim da semana do Dia de Ação de Graças, Ferguson tinha amontoado uma pilha de meia dúzia de traduções que lhe pareceram mais ou menos acabadas e, depois que passaram pelo decisivo Teste Amy, ele finalmente juntou tudo, meteu num envelope de papel pardo e submeteu o material à Review. Ao contrário do que esperava ouvir, os editores não eram avessos à ideia de incluir traduções na revista — contanto que não sejam muito compridas, como disse um deles —, e foi assim que a versão em inglês de Ferguson do poema de Desnos sobre o desertor e as sentinelas, “Na beira do mundo”, foi aceita para publicação no número da primavera da revista. Ainda que não fosse um poeta completo, podia participar do ato de escrever poesia ao traduzir poemas que eram muito superiores a tudo que ele mesmo poderia escrever, e os jovens poetas ligados à Review, cujas ambições pessoais eram muito maiores do que as de Ferguson, e que arriscavam tudo quando sentavam para escrever, ao passo que ele não arriscava quase nada quando sentava para traduzir, reconheceram seu valor para o grupo como alguém capaz de julgar os méritos de certas obras em relação a outras, alguém que trazia uma perspectiva mais ampla, mais abrangente, à conversa deles acerca de poesia, mas nunca o abraçavam como um membro de sua panelinha, o que era perfeitamente justo e correto, pensava Ferguson, pois, no fim das contas, e na verdade, não era mesmo um deles e, no entanto, no que dizia respeito a ficar matando tempo na lanchonete West End, todos eram bons amigos e Ferguson adorava conversar com eles, sobretudo com David Zimmer, que o impressionava como o mais brilhante do bando, junto com o colega não escritor de Zimmer, Marco Fogg, de Chicago, um rapaz excêntrico, de cabelo desgrenhado, que andava para lá e para cá num terno de tweed irlandês e era tão profundamente bem informado sobre literatura que fazia piadinhas em latim e conseguia fazer os outros rirem, mesmo quando ninguém entendia nada.

Os jornalistas e os poetas eram aqueles que Ferguson mais procurava, porque achava que eram os mais animados, os que já tinham começado a delinear melhor o que eram em relação ao mundo, mas havia outros na turma de 1969 que não tinham a menor ideia nem de si mesmos nem de nada, os tateantes rapazes adolescentes que haviam arrancado à força notas boas no colégio e conseguiam escapar da eliminação em testes padronizados, mas que ainda tinham uma cabeça de criança, a horda de bobalhões efebos e virgens que haviam crescido em cidades provincianas e em casas de subúrbio e que se aferravam ao campus e a seus quartos, porque Nova York era grande demais, bruta demais, rápida demais, e o lugar os ameaçava e confundia. Um desses inocentes era o colega de quarto de Ferguson, um sujeito simpático, vindo de Dayton, Ohio, chamado Tim McCarthy, que tinha entrado na faculdade completamente despreparado para assumir a liberdade de morar sozinho, longe de casa pela primeira vez na vida, mas, ao contrário de muitos na mesma situação, não fugia para dentro de si mesmo nem se escondia da cidade, ele mergulhava nela de cabeça, fazia força para se perder nos prazeres gêmeos do consumo monumental de cerveja e da constante inalação de maconha, com uma ou outra viagem de ácido no meio, como um extra. Ferguson não sabia o que fazer. Ele passava a maior parte de suas noites com Amy, no apartamento na rua 11, e seu quarto em Carman Hall servia como pouco mais do que um escritório, o lugar onde guardava seus livros, sua máquina de escrever e suas roupas, e, sempre que estava no quarto, ficava sentado na escrivaninha com a máquina de escrever na sua frente, trabalhando nas matérias novas para o Spectator, redigindo os diversos trabalhos, longos e breves, que seus cursos exigiam, ou então reformulava mais um rascunho de uma de suas traduções. Não via Tim vezes suficientes a ponto de poder formar um vínculo com ele, suas relações eram amistosas, mas profundamente superficiais, como tinha ouvido uma mulher dizer para outra mulher no ônibus 104, e, embora Ferguson tivesse a sensação de que o rapaz estava no caminho do que poderia se tornar um problema sério, relutava em se meter nos assuntos particulares de Tim. Já tinha visto o bastante para saber que ele mesmo não tinha interesse em experimentar a bobeira que era a maconha ou a loucura que era o LSD, mas que direito tinha de chegar e dizer para Tim McCarthy se conter e não ingerir aquelas coisas? Um dia, à tarde, em meados de dezembro, porém, quando Tim entrou no quarto cambaleante, berrando e rindo demais, depois de sua mais recente sessão de maconha com a gangue do fim do corredor, Ferguson finalmente resolveu abrir o jogo e falou: Para você, Tim, pode parecer engraçado, mas não tem graça nenhuma para os outros.

O rapaz de Dayton mergulhou na cama e sorriu: Não seja tão azedo, Archie. Está começando a falar que nem meu pai.

Não me importo com quantas drogas você use, mas não vai ser tão engraçado para você quando for reprovado e tiver de sair da faculdade, não é?

Você está falando bobagem, sr. Nova Jersey. Só tenho notas A e B neste semestre, e são mais As do que Bs, e se eu fizer o que sei fazer nas provas finais no mês que vem, na certa vou até entrar na lista dos melhores alunos da faculdade. Papai vai ficar orgulhoso.

Que bom para você. Mas se continuar a ficar doidão todos os dias, por quanto tempo vai conseguir dar conta do recado?

Dar conta do recado? Eu dou sempre conta de tudo, cara, e estou sempre muito ligado nas coisas, e quanto mais doidão, mais ligado eu fico. Você é que devia experimentar um dia, Archie. Dá o maior tesão do mundo deste lado do Estreito de Gibraltar.

Ferguson deu uma risada curta, parecida com uma bufada — não muito diferente das bufadas de Amy —, mas, neste caso, era antes um reconhecimento de derrota do que uma risada autêntica. Tinha começado uma discussão e estava fadado a perder.

Nunca vamos ser mais jovens do que somos agora, disse Tim, e quando a gente deixa de ser jovem, tudo vai ladeira abaixo bem depressa. A maçante vida adulta. Os papos furados do grande papo furado universal. Emprego, esposa, filhos e depois você está arrastando os pés metidos num par de chinelos, à espera de que venham carregar você num leito com rodinhas rumo à grande fábrica de cola — sem dente, sem nada. Portanto, por que não viver ao máximo e se divertir bastante enquanto pode?

Depende do que você chame de se divertir.

Se soltar, por exemplo.

Certo. Mas o que você entende por se soltar?

Rodar a mil por hora, ir até a lua e voltar.

Pode até dar certo para você, mas não serve para todo mundo.

Você não prefere voar a ficar rastejando no chão? Nem tem o que discutir, Archie. É só abrir os braços e sair voando.

Algumas pessoas não querem isso. E ainda que pensem que querem, não vão conseguir.

Por que não?

Porque não conseguimos, e pronto. Simplesmente não conseguimos.

Não que Ferguson fosse incapaz de voar, de se soltar ou de ir à lua e voltar, mas ele precisava de Amy para fazer aquelas coisas, e agora que tinham superado seu primeiro rompimento, sua primeira reconciliação e sua primeira experiência de dormirem juntos todas as noites na França, ele não conseguia mais separar a ideia de ser quem era da necessidade de estar com Amy. Nova York foi o passo seguinte, a chance de se verem todos os dias na vida do dia a dia, estarem juntos quase constantemente, se desejassem, mas Ferguson entendia que não podia tomar nenhuma daquelas possibilidades como garantidas de antemão, pois o rompimento lhe havia ensinado que Amy era uma pessoa que precisava de mais do que a maioria das pessoas precisava, que a mãe sufocadora a tinha transformado numa pessoa alérgica a todas as formas de pressão emocional, e se ele exigisse dela mais do que estava disposta a dar, acabaria caindo fora e escapando dele mais uma vez. Às vezes, ele se perguntava se não a amava demais ou se ainda não havia aprendido como amar Amy da forma correta, porque a verdade era que Ferguson ficaria muito feliz de se casar com ela no dia seguinte; apesar de ser um estudante de dezoito anos nos primeiros meses da faculdade, já se sentia preparado para percorrer o resto da vida com ela e nunca mais pôr os olhos em nenhuma outra mulher. Sabia como tais pensamentos eram exagerados, mas não conseguia deixar de pensar assim. Amy estava toda enroscada dentro dele. Ferguson era quem era porque ela estava dentro dele, e com ele agora, e por que fingir que algum dia na vida ele ainda poderia ser alguma coisa remotamente humana sem Amy?

Ferguson nunca dizia nenhuma palavra sobre isso. A ideia era não assustar Amy, e sim amá-la, e Ferguson fazia o melhor possível para ficar alerta aos humores dela e reagir às indicações sutis, mudas, que lhe diziam se aquela noite seria boa para dormir na cama juntos, por exemplo, ou se Amy preferia esperar até a noite seguinte, tomar o cuidado de perguntar se ela queria jantar com ele naquela noite ou se encontrarem mais tarde, no West End, ou ficar em casa, porque os dois tinham trabalhos para escrever, ou então largar tudo de lado e ir ver um filme no Thalia. Ferguson deixava que Amy tomasse todas as decisões, porque sabia que ela se sentia mais livre e mais feliz quando era ela quem decidia e, acima de tudo, a Amy que ele queria era a garota impetuosa, meiga, sagaz, que tinha salvado a vida dele depois do acidente, a destemida parceira de conspiração que tinha viajado pela França com ele, e não a monarca emburrada que o havia banido de sua corte no outono anterior, para quatro meses de embrutecimento solitário, no seu marasmo de Nova Jersey.

No geral, acabava dormindo com ela quatro ou cinco noites por semana, em média, muitas vezes até cinco vezes, com uma, duas ou às vezes três noites sozinho em sua cama de solteiro, no décimo andar de Carman Hall. Era um arranjo viável, ele sentia, embora desejasse que o placar final da semana fosse um inapelável sete a zero, mas o importante era que, depois de dois anos, seus corpos ainda pegavam fogo quando se metiam juntos embaixo do lençol, e era rara a noite em que Ferguson dormisse na cama de Amy sem antes fazerem amor. Numa inversão da proposição de Gottesman, não apenas o sexo constante era bom para eles, como o sexo bom os deixava mais constantes e mais fortes: eram antes dois geminados em um do que um mais um, separados um do outro. A intimidade física que se desenvolvera entre ambos era tão intensa agora que Ferguson às vezes tinha a sensação de que conhecia o corpo de Amy melhor do que seu próprio corpo. Mas nem sempre, e portanto era essencial que lhe obedecesse e seguisse sua liderança nas questões do corpo, que ele prestasse muita atenção no que ela lhe dizia com os olhos, pois de vez em quando ele entendia mal os sinais e fazia algo errado, como agarrar e beijar, quando ela não queria que fizesse aquilo, e, muito embora ela nunca o repelisse (o que só servia para aumentar a confusão de Ferguson), ele percebia que o coração de Amy não estava plenamente envolvido, que o sexo não estava na cabeça dela naquela hora da mesma forma como estava na sua, como sempre estava na sua, mas ela ia em frente e deixava que ele fizesse amor com ela da mesma forma, porque não queria deixar Ferguson frustrado, submetia-se aos desejos dele com uma espécie de envolvimento passivo, sexo mecânico, que era pior do que sexo nenhum e, na primeira vez em que aconteceu, Ferguson sentiu tanta vergonha de si mesmo que jurou que nunca mais iria acontecer, mas voltou a acontecer, mais duas vezes nos meses seguintes, o que o levou a compreender, afinal, que homens e mulheres não eram a mesma coisa e que, se ele tinha mesmo a intenção de tratar bem aquela mulher, teria de prestar o máximo de atenção possível e aprender como pensar e sentir o que ela sentia, pois, em sua mente, não havia nenhuma dúvida de que Amy sabia exatamente o que ele estava pensando e sentindo, o que explicava por que ela tolerava suas grosseiras mancadas sensuais e seus atos de estupidez de amor cego.

Outro erro que às vezes ele cometia era superestimar a confiança que Amy tinha em si mesma. O grande urro de vida que emanava da alma dos Schneiderman parecia eliminar quaisquer derrapadas para a dúvida e a incerteza, mas, assim como todo mundo, Amy tinha seus maus momentos, momentos de tristeza, fraqueza e introspecção amarga e, como ocorriam muito raramente, sempre pareciam pegar Ferguson de surpresa. Dúvidas intelectuais sobre tudo, se as ideias políticas dela pareciam sensatas ou não, se tudo que ela fazia ou dizia ou pensava teria valor para todo mundo, se valia a pena combater o sistema, quando o sistema nunca ia mudar, se a luta para melhorar as coisas só faria que piorassem mais ainda, por causa de todas as pessoas que iriam se levantar contra as pessoas que lutavam para melhorar as coisas, mas também as dúvidas de Amy a respeito de si mesma, as coisinhas de garota que de repente a atormentavam sem nenhum motivo visível, seus lábios eram finos demais, seus olhos eram pequenos demais, seus dentes eram grandes demais, havia muitas pintas em suas pernas, os mesmos pontinhos marrom-claros que Ferguson tanto adorava, mas não, ela dizia, são feias, e dizia que nunca mais ia vestir shorts, e agora estava ficando gorda, e agora tinha perdido peso demais, e por que tinha os peitos tão pequenos, e que desgraça de nariz grande de judeu tinha no meio da sua cara, e que diabo ia fazer com aquele cabelo maluco e enroscado, era impossível, impossível fazer qualquer coisa com ele, e como é que ela podia querer continuar usando batom, quando as empresas de cosméticos faziam lavagem cerebral nas mulheres para conformar todas elas a uma visão artificial e preconceituosa de mulher, a fim de alimentar a grande máquina de lucro capitalista que não parava de fazer as pessoas quererem aquilo de que não precisavam? Tudo isso vinha de uma garota deslumbrante, atraente, na flor de sua jovem vida adulta, e se uma pessoa como Amy Schneiderman era capaz de sucumbir e pôr em questão, daquela forma, o corpo que lhe pertencia, o que dizer das garotas gordas, sem charme e deformadas, que não podiam ter a mais ínfima chance? Não era só que os homens e as mulheres eram diferentes, concluiu Ferguson, mas sim que era mais difícil ser mulher do que homem e, então, se algum dia ele se esquecesse disso, pensou Ferguson, que os deuses descessem do alto de sua montanha e arrancassem os olhos da sua cara.

Na primavera de 1966, fundaram uma filial da SDS (Estudantes pela Democracia) em Columbia. Nessa época, já era uma organização de âmbito nacional e, um por um, a maioria dos grupos estudantis de esquerda no campus votaram a favor de se unir à SDS ou abandonar suas fileiras e se dissolver nela. Entre esses grupos estava o Comitê da Zombaria Social, que tinha feito uma passeata em volta do College Walk no ano anterior, empunhando cartazes em branco, num protesto geral contra tudo (um espetáculo que Ferguson adoraria ter visto), o Movimento 2 de Maio, apoiado pelo Partido Trabalhista Progressista, membros do próprio Partido Trabalhista Progressista (a linha dura, trabalhistas maoistas) e o grupo ao qual Amy tinha pertencido desde seu ano de caloura, o ICV (Comitê Independente do Vietnã), que tinha enfrentado a polícia no mês de maio anterior, quando vinte e cinco membros invadiram a cerimônia de premiação da Unidade de Treinamento de Oficiais da Reserva da Marinha de Guerra, na praça da Biblioteca Low. O lema da SDS era Deixem o povo decidir!, e Ferguson apoiava as posições do grupo com tanto entusiasmo quanto Amy (contra a guerra, contra o racismo, contra o imperialismo, contra a pobreza — e a favor de um mundo democrático em que todos os cidadãos pudessem viver como iguais), mas Amy entrou para a organização e Ferguson, não. As razões eram óbvias para ambos, e eles nem perdiam muito tempo conversando sobre o assunto, nem perdiam tempo nenhum tentando convencer o outro a tomar uma decisão diferente, uma vez que ele, na verdade, a incentivava a entrar na organização e ela entendia por que ele nunca iria se unir a nada, pois Amy era alguém capaz de se imaginar jogando tijolos, uma pessoa que, sem dúvida nenhuma, tinha nascido para jogar tijolos, ao passo que Ferguson não podia e não ia fazer isso, e, mesmo que queimasse seu crachá de imprensa e se demitisse do Spectator, não iria se unir a nada em nenhuma circunstância. No dia 26 de março, Ferguson caminhava com Amy, de novo, pela Quinta Avenida, em mais uma manifestação antiguerra, mas isso era o mais longe que ele chegava, sua cota a favor da causa. Havia tantas horas em um dia, afinal de contas, e depois que terminava de fazer seus trabalhos para a faculdade e para o jornal, a perspectiva de passar um tempo com seus poetas franceses era muito mais atraente do que participar de reuniões políticas barulhentas e contenciosas a fim de planejar a próxima ação do grupo contra o próximo item do programa.

Quando o segundo semestre terminou, no início de junho, Ferguson apertou a mão de Tim McCarthy, despediu-se de Carman Hall e se mudou para uma residência mais espaçosa, fora do campus. Só calouros eram obrigados a morar nos dormitórios e, agora que seu primeiro ano tinha ficado para trás, Ferguson estava livre para ir aonde quisesse. O tempo todo, seu desejo era morar com Amy, mas, por uma questão de orgulho (e talvez como um teste de amor), Ferguson se conteve e não lhe perguntou se não poderia alugar um dos dois quartos que provavelmente iriam vagar em seu apartamento (ambos ocupados por alunas do último ano), à espera de que ela mesma fizesse a proposta, o que Amy fez, afinal, no fim de abril, horas depois de saber que suas duas parceiras de apartamento, que estavam concluindo a graduação, iriam partir de Nova York no mesmo dia em que recebessem seus diplomas, e como era muito mais doce poder morar lá, convidado por ela, do que tendo se convidado a si mesmo, saber que ela o queria tanto quanto ele a queria.

Prontamente, os dois tomaram posse dos dois quartos vagos, ambos maiores e mais claros do que a pequena toca espremida de Amy no fundo do apartamento, agora estavam em dois quartos contíguos no corredor principal. Ambos providos de camas de casal, escrivaninhas, cômodas e estantes de livros, que eles compraram dos inquilinos anteriores pela soma vultosa de quarenta e cinco dólares para cada um, e a existência de Ferguson do ano anterior, feita de idas e vindas, chegou ao fim, acabou-se o vaivém pela Broadway, entre seu dormitório e o apartamento de Amy, agora os dois moravam juntos, dormiam juntos na mesma cama sete noites por semana e, durante o verão inteiro de 1966, o Ferguson de dezenove anos andava com a incrível sensação de que havia entrado num mundo em que não era mais necessário pedir ao mundo nada mais do que aquilo que ele já tinha.

Um momento de equilíbrio e plenitude interior sem precedentes. Ganhar sua fatia do bolo e comer. Ninguém, mas ninguém mesmo jamais sonhou ser tão feliz assim. Às vezes, Ferguson se perguntava se não teria passado a perna no autor do Livro da vida terrestre, o qual acabou virando as páginas do livro depressa demais naquele ano, e assim tinha deixado em branco as páginas relativas àqueles meses.

O verão da quente e insuportável Nova York, trinta e dois graus dia após dia, enquanto o asfalto tostado derretia sob o sol e as placas de concreto da calçada queimavam debaixo da sola dos sapatos, o ar tão denso de umidade que até os tijolos nas fachadas dos prédios pareciam gotejar suor e, em toda parte, o fedor do lixo que apodrecia nas calçadas. Bombas americanas caíam em Hanói e em Haiphong, o campeão dos pesos pesados falava com a imprensa sobre o Vietnã (Nenhum vietcongue me chamou de crioulo, disse ele, desse modo conflagrando as duas guerras americanas numa só guerra), o poeta Frank O’Hara foi atropelado por um buggy de duna numa praia em Fire Island e morreu aos quarenta anos de idade, e Ferguson e Amy estavam presos em maçantes empregos de verão, ele como vendedor de livraria, ela como datilógrafa e arquivista, trabalho mal pago que os obrigava a racionar seus cigarros Gauloises, mas Bobby George estava jogando beisebol na Alemanha, o West End Bar tinha ar-condicionado ligado, e, quando eles voltavam para seu apartamento quente e sem ventilação, Ferguson podia passar panos molhados no corpo nu de Amy e sonhar que estavam de novo na França. Era o verão da política e do cinema, dos jantares no apartamento dos Schneiderman, na rua 75 Oeste e no apartamento dos Adler, na rua 58 Oeste, de comemorar a mudança de Gil Schneiderman para o New York Times, depois que o Herald Tribune fechou as portas e saiu de cena, de ir a concertos no Carnegie Hall com Gil e Jim, o irmão de Amy, de pegar o ônibus 104 pela Broadway até os cinemas Thalia e New Yorker para fugir do calor vendo filmes, que eles decidiram, em conjunto, que só seriam comédias, sempre, pois a desolação do momento exigia que rissem sempre que possível, e quem melhor para animá-los do que os Irmãos Marx e W. C. Fields, ou as idiotices bizarras estreladas por Grant e Powell, Hepburn, Dunne e Lombard, eles nunca se fartavam de ver, pulavam direto no ônibus na mesma hora em que descobriam que estava passando mais uma sessão dupla de comédias, e que alívio era esquecer a guerra e o lixo fedorento por algumas horas, enquanto ficavam sentados no ar-condicionado, no escuro, mas quando não estava passando nenhuma comédia no bairro ou em nenhum lugar, eles retornavam a seu projeto de verão de queimar as pestanas lendo o que chamavam de literatura da dissidência, lendo Marx e Lênin, porque era preciso ler, e Trótski e Rosa Luxemburgo, Emma Goldman e Alexander Berkman, Sartre e Camus, Malcom X e Frantz Fanon, Sorel e Bakúnin, Marcuse e Adorno, em busca de respostas que ajudassem a explicar o que tinha acontecido com seu país, que parecia estar desmoronando sob o peso de suas contradições, mas enquanto Amy se via se aproximando de uma leitura marxista dos fatos (a inevitável derrubada do capitalismo), Ferguson tinha suas dúvidas, não só porque a dialética hegeliana virada de ponta-cabeça lhe parecia uma visão mecânica e simplista do mundo, como porque não havia nenhuma consciência de classe entre os trabalhadores americanos, nenhuma simpatia pelo pensamento socialista em nenhum lugar da cultura e, portanto, nenhuma chance para o grande levante que Amy previa. Em outras palavras, eles discordavam, embora estivessem fundamentalmente do mesmo lado, porém nenhuma daquelas diferenças parecia ter importância, pois nenhum dos dois se sentia inteiramente seguro de nada naquela altura, e cada um entendia que o outro podia estar certo, ou que ambos podiam estar errados, e era melhor ventilar suas dúvidas com liberdade e franqueza do que marcharem juntos às cegas, até despencarem pela beira de um penhasco.

Acima de tudo, era o verão de olhar para Amy, de ver Amy passar batom e escovar seu cabelo impossível, de estudar suas mãos enquanto ela esfregava a loção corporal na palma das mãos e depois esfregava nas pernas, braços e seios, de lavar o cabelo para ela, que ficava de olhos fechados e afundava na água morna da banheira, a banheira antiga com patas de leão e manchas de ferrugem que cortavam a porcelana rachada, de deitar na cama de manhã e ver Amy se vestir num canto do quarto, enquanto a luz descia através da janela e a cercava, sorrindo para ele enquanto se enfiava na calcinha e no sutiã e na saia de algodão, os pequenos detalhes domésticos ligados ao fato de estar vivendo junto da sua órbita feminina, tampões, pílulas anticoncepcionais, as pílulas para as cólicas nos períodos ruins, as tarefas domésticas que faziam juntos, comprar comida, lavar pratos, a maneira como, às vezes, ela mordia o lábio inferior quando os dois estavam na cozinha cortando e picando cebolas e tomates para a panela de chili que iria alimentá-los no fim de semana, na hora de jantar, a concentração nos olhos de Amy toda vez que pintava as unhas das mãos ou dos pés, para causar uma boa impressão no trabalho, ver Amy raspando as pernas e as axilas, sentada em silêncio no banheiro, depois entrar na banheira junto com ela e ensaboar sua pele branca e escorregadia, a inacreditável lisura da sua pele em contato com as mãos dele, e sexo, sexo, sexo, o verão suado sem nenhum cobertor nem lençol por cima deles, quando rolavam pela cama no quarto de Amy e o ventilador velho, que estalava, agitava o ar um pouco e não refrescava nada, os tremores e os suspiros, os uivos e grunhidos dentro dela, em cima dela, embaixo dela, ao lado dela, as risadas profundas abafadas na garganta de Amy, os ataques de cócegas de surpresa, os repentinos fragmentos de antigas canções populares do tempo da infância deles, canções de ninar, trocadilhos de sacanagem, poemas infantis e a Amy irritada, estreitando as pálpebras em mais de um seus acessos de raiva, a Amy feliz engolindo água com gelo e cerveja gelada, comendo depressa, escavando o prato como um estivador esfomeado, os roncos de riso quando via Fields e os Irmãos Marx — Não tem nenhuma cláusula de sanidade, Archie!** — e o magnífico Ah que ela exalou, certa noite, quando Ferguson lhe entregou sua tradução de um poema de juventude de René Char, um poema tão curto que consistia em apenas seis palavras, um breve lampejo intitulado “Mão de Lacenaire”, referência ao poeta criminoso do século XIX que, mais tarde, surgiu como um personagem do filme O bulevar do crime:

Mundos de eloquência se perderam.

Podia não acabar nunca. O sol estava cravado no céu, faltava uma página no livro e seria sempre verão, contanto que eles não respirassem fundo demais nem fizessem muitas perguntas, sempre verão, quando tinham dezenove anos e estavam, finalmente, quase finalmente, finalmente talvez quase à beira de dar adeus ao momento em que tudo ainda estava à frente deles.

* Tradução de William Agel de Mello, Obra poética completa (Brasília: UnB, 2004).

** Refere-se a uma fala do filme Uma noite na ópera (1935), dos Irmãos Marx. (N. T.)


5.2


5.3

No dia 7 de novembro de 1965, Ferguson chegou ao décimo sexto livro da Odisseia de Homero. Estava sentado diante de uma escrivaninha em um quartinho de empregada no sexto andar de um edifício de apartamentos no sétimo arrondissement de Paris, que tinha sido seu lar nas ultimas três semanas, e agora que Odisseu tinha finalmente voltado para Ítaca, depois de sua interminável viagem de volta de Troia, a Atena de olhos cinzentos disfarçou-o nos trajes e no corpo de um velho vagabundo alquebrado e, enquanto o homem de muitas artimanhas está sentado com o guardador de porcos Eumeu numa choupana na montanha nos arredores da cidade, entra Telêmaco, filho de Odisseu, que não passava de um bebê quando o pai partiu para Troia, vinte anos antes, e ainda não sabe nada sobre o regresso do pai, pois ele mesmo acabou de voltar de uma viagem longa e perigosa, e, quando Eumeu sai da choupana e vai para o palácio a fim de avisar Penélope, a mãe do jovem, que Telêmaco voltou para Ítaca são e salvo, o pai e o filho ficam a sós pela primeira vez e, embora o pai tenha plena consciência de que está diante do filho, o filho ainda não sabe de nada.

Então, Atena aparece disfarçada de uma mulher de Ítaca, alta e bonita, vista apenas por Odisseu e, portanto, invisível para o filho, e, quando ela acena para o pai sair um momento, diz para ele que o tempo de andar disfarçado terminou e que, agora, ele deve se revelar para Telêmaco. “Sem dizer mais nada” (segundo a tradução de Fitzgerald, recém-publicada, que estava sobre a escrivaninha de Ferguson), “ela tocou seu bastão de ouro no homem,/ tornou seu manto puro branco e a túnica de malha/ fresca à sua volta./ Ela o tornou jovem e maleável,/ rubro de sol, o semblante limpo, já sem barba/ grisalha alguma sobre o queixo.”

Não havia nenhum Deus, Ferguson se dizia o tempo todo. Nunca houve nem haveria um Deus único, mas havia deuses, muitos deuses, de muitas e de todas as partes do mundo, entre eles, os deuses gregos, que moravam no Monte Olimpo, Atena, Zeus, Apolo e vários outros, que tinham feito suas estripulias nas primeiras duzentas e noventa e cinco páginas da Odisseia, e aquilo de que os deuses mais gostavam era se meter nos assuntos dos homens. Simplesmente, não conseguiam se conter, era para isso que tinham nascido. Do mesmo jeito que os castores não podiam deixar de construir barragens, supunha Ferguson, ou que os gatos não podiam deixar de torturar os ratos. Seres imortais, é verdade, mas seres com tempo de sobra nas mãos, o que significava que nada era capaz de impedir que urdissem seus entretenimentos picantes e, não raro, aterradores.

Quando Odisseu entra de novo na choupana, Telêmaco fica perplexo com a transformação do velho naquilo que agora ele conclui que deve ser um deus. Mas Odisseu, à beira de se desfazer em lágrimas, quase incapaz de arrancar as palavras da boca, diz baixinho: “Não sou deus. Por que me tomar por um deus? Não, não./ Sou o pai que sua infância não viu/ e que sofreu penosamente por não ver. Sou ele”.

Essa foi a primeira punhalada, a ponta da lâmina que perfurou a pele de Ferguson em algum ponto na região desprotegida, sem ossos, entre as costelas e a virilha, pois ler as palavras da breve réplica de Odisseu produziu nele o mesmo efeito que teria produzido se os versos dissessem: Vai fazer frio, Archie. Não esqueça de levar o cachecol para a escola.

Em seguida, a lâmina foi em frente, até o fim: “envolvendo/ nos braços aquele pai maravilhoso/ Telêmaco chorou. Lágrimas salgadas/ brotaram da fonte da saudade dos dois homens/ e gritos irromperam de ambos, veementes e palpitantes/ como os de um grande falcão de garras afiadas/ cujos filhotes são pegos por lavradores, antes que saibam voar./ Assim gritavam eles, desamparados, vertendo lágrimas/ e poderiam continuar chorando até o pôr do sol”.

Foi a primeira vez que Ferguson chorou ao ler um livro. Já havia derramado lágrimas no escuro, em salas de cinema, vazias ou lotadas, às vezes diante do maior lixo sentimental e boboca, mais de uma vez havia engasgado ao escutar a Paixão segundo São Mateus com Gil, sobretudo naquele trecho no lado A do primeiro disco em que a voz do tenor de repente se enche de emoção, mas livros nunca tinham feito isso com ele, nem mesmo os livros mais tristes e mais comoventes, e ainda agora, na pálida luz de novembro de Paris, as lágrimas desceram na página 296 da sua edição de bolso da Odisseia de um dólar e quarenta e cinco centavos, e quando ele desviou os olhos do poema e tentou olhar para a janela do seu quartinho, tudo no quarto estava borrado.

Odisseia era o segundo livro na lista de Gil. Ilíada veio antes, e, depois de vencer a travessia dos dois poemas épicos do anônimo bardo dos bardos a quem deram o nome de Homero, Ferguson jurou que ia ler mais noventa e oito livros nos dois anos seguintes, inclusive tragédias e comédias gregas, Virgílio e Ovídio, parte do Velho Testamento (versão de Rei Jaime), Confissões, de Santo Agostinho, Inferno, de Dante, mais ou menos metade dos Ensaios, de Montaigne, não menos de quatro tragédias e três comédias de Shakespeare, Paraíso perdido, de Milton, trechos escolhidos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume e Kant, The Oxford Book of English Verse, The Norton Anthology of American Poetry, bem como romances ingleses, americanos, franceses e russos de escritores como Fielding-Sterne-Austen, Hawthorne-Melville-Twain, Balzac-Stendhal-Flaubert, e Gógol-Tolstói-Dostoiévski. Gil e a mãe de Ferguson esperavam que seu filho, incapaz de servir o Exército, ex-ladrão de livros, mudasse de atitude a respeito de entrar para a faculdade em um ou dois anos, mas caso Ferguson persistisse em recusar os benefícios da educação formal, pelo menos aqueles cem títulos lhe dariam algum conhecimento sobre alguns dos livros que toda pessoa culta deveria ler.

Ferguson tinha intenção de cumprir a promessa, porque queria ler aqueles livros, e queria mesmo ler cada um daqueles volumes. Não queria passar pela vida como um cabeça-oca sem instrução e sem disciplina, só que não queria ir para faculdade, e, muito embora estivesse disposto a assistir às cinco aulas semanais de duas horas na Alliance Française, porque uma das suas ambições de vida era se tornar proficiente em francês, não tinha a menor vontade de frequentar aulas em mais nenhum lugar, muito menos numa faculdade que não seria em nada melhor do que qualquer das outras instituições de segurança máxima em que ficara confinado desde os cinco anos de idade — e, sem dúvida nenhuma, ainda pior. A única razão para abrir mão de seus ideais e cumprir aqueles quatro anos de detenção numa faculdade seria obter um adiamento na convocação para o Exército, o que serviria para adiar o dilema de marchar para o Vietnã ou dizer não para o Vietnã, o que, em troca, acarretaria um segundo dilema entre uma prisão federal ou o afastamento permanente dos Estados Unidos, tudo adiado durante os quatro anos de sentença, mas Ferguson já tinha resolvido o problema por outros meios, e, agora que o Exército o havia recusado, ele podia também recusar a faculdade, sem ter de encarar nenhum daqueles dilemas outra vez.

Sabia que tinha sorte. Não apenas havia sido poupado da guerra e de todas as detestáveis opções que viriam depois da guerra, as alternativas terríveis que todo americano do sexo masculino, depois do colégio e depois da faculdade, teria de enfrentar enquanto perdurasse a guerra maligna, como seus pais não tinham se voltado contra ele, e isso era o crucial, nada era mais importante para as perspectivas de sobrevivência de longo alcance do que o fato de Gil e sua mãe terem perdoado Ferguson pelas transgressões em seu último ano no ensino médio, e, muito embora continuassem a se preocupar com ele e questionar sua estabilidade mental e emocional, não o haviam obrigado a começar a consultar um psicoterapeuta, sugestão de Gil, dizendo que isso poderia lhe trazer um bem enorme, pois Ferguson argumentou que não era necessário, que ele tinha cometido sua cota de erros bobos da adolescência, mas estava essencialmente bem e que jogar fora o dinheiro deles com uma proposta tão nebulosa serviria apenas para deixá-lo com uma sensação de culpa. Eles cederam. Sempre cediam quando ele lhes respondia num tom de voz maduro e sensato, porque toda vez que Ferguson estava seguro de si, o que correspondia mais ou menos à metade do tempo, havia poucas pessoas no mundo tão meigas como ele, tão amáveis como ele, tamanha doçura e um amor tão transparente emanavam de seus olhos que poucos conseguiam resistir, muito menos sua mãe e seu padrasto, que estavam absolutamente cientes de que Ferguson podia ser outras coisas que nada tinham a ver com doçura, mas mesmo assim se viam incapazes de resistir.

Dois lances de sorte e, depois, um terceiro lance de sorte, que chegou a ele no último minuto, a chance de morar em Paris por um tempo, talvez um tempo longo, algo que, de início, não parecia possível, não com a mãe preocupada com a distância enorme que se abriria entre eles, e Gil nervoso com a logística da aventura e com as dúzias de problemas práticos que aquilo representaria, mas então, algumas semanas depois de Ferguson ser recusado pelo Exército e a carta de recusa chegar à caixa de correio da família, Gil escreveu para Vivian Schreiber, em Paris, para pedir seu conselho. A resposta surpreendente que ela enviou em sua carta pôs fim à ansiedade de Gil e reduziu em muito a preocupação da mãe de Ferguson. “Mandem o Archie para mim”, escreveu Vivian. “O chambre de bonne no sexto andar que pertence ao meu apartamento está vazio desde que o filho de meu irmão Edward voltou para os Estados Unidos, para seu último ano em Berkeley, e eu não me dei ao trabalho de procurar um novo inquilino, o que significa que Archie pode ficar lá, se não se importar em morar num apartamento mínimo. Aluguel grátis, é claro. E agora que meu livro sobre Chardin foi publicado em Londres e em Nova York, passo meu tempo traduzindo o texto para o francês, para meu editor em Paris, um trabalho maçante que, felizmente, está quase concluído, e sem nenhum projeto novo à vista no horizonte imediato, eu ficaria bem feliz de assumir a tarefa de ser a professora particular de Archie, enquanto ele perfaz a travessia pelos livros maravilhosos da sua lista, o que, é claro, tornará necessário que eu também leia os livros, e tenho de admitir que a ideia de mergulhar em toda essa beleza, mais uma vez, é extremamente prazerosa. Os artigos sobre filmes, escritos no colégio, que você incluiu em sua carta mostram que Archie é um jovem capaz e inteligente. Se ele não aprovar meus métodos de ensino, podemos procurar outra pessoa. Mas estou disposta a fazer uma tentativa.”

Ferguson ficou eufórico. Não era só Paris, mas Paris sob o mesmo teto que Vivian Schreiber, Paris sob os cuidados benevolentes da mais gloriosa encarnação da feminilidade, Paris na Rue de l’Université, no sétimo arrondissement, Paris da Margem Esquerda, com todos os confortos de um bairro rico e tranquilo, a pouca distância dos cafés de Saint-Germain, a pouca distância da Cinémathèque, no Palais de Chaillot, no outro lado do rio, e, o mais importante de tudo, pela primeira vez, a vida por conta própria.

Foi doloroso ter de dar adeus à mãe e ao Gil, sobretudo à mãe, que chorou um pouco no final de seu último jantar feito em casa juntos, numa noite úmida de meados de outubro, o que quase o fez cair no choro também, mas Ferguson evitou aquele potencial transtorno contando a eles a respeito do livro que tinha começado a escrever nos dias logo depois de seu exame físico no Exército, num momento em que ainda não tinha certeza do que ia acontecer com ele e se sentia completamente perdido, um livro pequeno, que já tinha um título que estava para sempre gravado na pedra, Como Laurel e Hardy salvaram minha vida, que era, em essência, um livro sobre a mãe, disse ele, e os anos duros que os dois haviam passado juntos entre a noite do incêndio de Newark e o dia em que ela se casou com Gil, um livro que seria dividido em três partes: “Esquecimentos gloriosos”, a primeira parte, uma exposição de todos os filmes que tinham visto juntos durante o Interregno Curioso e os meses seguintes, a importância daqueles filmes para eles, o poder salvador de vidas daqueles ridículos filmes de estúdio, vistos juntos nos balcões dos cinemas de West Side, enquanto a mãe soltava baforadas de seus Chester­field e Ferguson sonhava que estava dentro dos filmes, representando nas telas bidimensionais à sua frente, e depois a segunda parte, que se chamaria “Laurel e Hardy”, a história de sua afeição por aqueles dois retardados e sobre como ele ainda os amava, e depois uma parte final, ainda não inteiramente elaborada, algo um pouco parecido com “Arte e Lixo” ou “Isso contra Aquilo”, que ia explorar as diferenças entre os filmes lixo de Hollywood e as obras-primas de outros países e defender com ênfase o valor do lixo, ao mesmo tempo que defendia aquelas obras-primas, e talvez fosse bom para ele ir para longe, disse Ferguson, para longe da mãe, como ela era agora, a fim de escrever sobre como ela era naqueles anos, poder viver um tempo nos amplos espaços da memória, densamente povoados, sem interferência do presente, nada para distraí-lo da vida no passado, pelo tempo que ele precisasse ficar lá.

A mãe sorriu para ele, entre lágrimas. Apagando, com a mão esquerda, um cigarro fumado até a metade, ela esticou a mão direita para Ferguson, puxou o filho em sua direção e beijou sua testa. Gil se levantou da mesa, caminhou até onde Ferguson estava sentado e o beijou também. Ferguson beijou ambos e depois Gil beijou a mãe de Ferguson e todos se despediram e deram boa-noite. Na tardinha do dia seguinte, aquele boa-noite virou adeus e, um minuto depois, Ferguson embarcou no avião e foi embora.

Vivian tinha envelhecido bastante desde a última vez que Ferguson a vira, ou parecia bem mais velha do que a pessoa que ele trazia dentro da cabeça durante os últimos três anos, mas agora ela estava com quarenta e um anos, quase quarenta e dois, o que significava que era apenas dois anos mais jovem do que sua mãe, sua mãe ainda linda, que também tinha envelhecido bastante nos últimos três anos, e sem dúvida Vivian Schreiber ainda continuava linda, só que um pouco mais velha, só isso, e mesmo que fosse objetivamente menos linda do que sua mãe, ainda tinha aquele brilho em volta de si, aquela sedutora aura de glamour, força e certeza que sua mãe não tinha, sua mãe artista que dava duro e só se preocupava em ter a melhor aparência possível quando ia para eventos sociais, ao passo que Vivian Schreiber escrevia livros sobre artistas e estava sempre em eventos sociais, uma viúva abastada e sem filhos e com uma multidão de amigos, nas palavras de Gil, uma pessoa que vivia batendo papo com artistas, escritores, jornalistas, editores, galeristas e diretores de museus, ao passo que a mãe de Ferguson, mais discreta, vivia entrincheirada em seu trabalho, sem nenhuma companhia íntima, senão o marido e o filho.

Sentados no banco de trás do táxi que os levou do aeroporto para a cidade, Vivian (não sra. nem Mme Schreiber, como ela o havia instruído no terminal do aeroporto, mas Vivian, ou Viv) fez a Ferguson uma centena de perguntas a respeito dele mesmo e de seus planos, perguntou sobre o que ele esperava alcançar morando em Paris, ao que Ferguson respondeu falando sobre o livro que tinha começado a escrever, no verão, sobre sua determinação de aprimorar seu francês a tal ponto que fosse capaz de falar francês tão bem quanto falava inglês, sobre sua ansiedade de mergulhar na lista de leitura de Gil e absorver todas as palavras daqueles cem livros, sobre ver o maior número de filmes que pudesse e registrar suas observações em seu fichário de folhas soltas presas por três argolas, falou sobre sua ambição de escrever artigos sobre filmes e publicá-los em revistas de língua inglesa, na Inglaterra, nos Estados Unidos ou mesmo editadas na França, caso algum editor aceitasse, falou que queria jogar basquete em algum lugar e entrar para uma liga, se existisse em Paris alguma coisa parecida com uma liga amadora de basquete, falou sobre a possibilidade de dar aulas particulares de inglês para crianças a fim de reforçar a mesada que os pais iriam lhe mandar, um negócio feito por baixo dos panos, pois pela lei ele não podia trabalhar na França, e assim Ferguson, entontecido pela mudança de fuso horário, saiu falando sem parar em resposta às perguntas de Vivian Schreiber, não mais intimidado por ela, como havia ficado quando tinha quinze anos, agora ele era capaz de pensar sem temor em encará-la não como uma espécie de parente auxiliar, mas como uma pessoa adulta conhecida e uma possível amiga, pois não havia razão para supor que ela lhe havia oferecido um quarto no prédio onde morava por algum impulso maternal adormecido (mulheres sem filhos procuram cuidar do filho que poderiam ter tido aos vinte poucos anos de idade), não, a maternidade por procuração não estava em questão aqui, existia outro motivo, um motivo ainda desconhecido, que continuava a causar perplexidade em Ferguson, e, portanto, depois de responder as numerosas perguntas, ele tinha só uma pergunta a fazer a ela, que era a mesma pergunta que vinha fazendo a si mesmo desde o dia em que Gil recebeu a carta de Vivian: Por que ela estava fazendo aquilo? Não que ele não se sentisse grato, disse Ferguson, não que não estivesse entusiasmado de voltar a Paris, só que os dois mal se conheciam, e por que ela se daria a todo aquele trabalho por alguém que mal conhecia?

Boa pergunta, disse ela. Eu gostaria de poder responder.

Você não sabe?

Na verdade, não.

Tem alguma coisa a ver com o Gil? Para agradecer o que ele fez por você durante a guerra, talvez?

Talvez. Mas não é só isso. Tem mais a ver com questões mal resolvidas, eu acho. Levei quinze anos para escrever o livro sobre Chardin e, agora que ficou pronto, aquilo que o livro representava na minha vida se transformou num espaço vazio.

Quinze anos. Não consigo acreditar. Quinze anos.

Vivian sorriu, uma espécie de sorriso amargo, Ferguson reparou, mas, ainda assim, um sorriso. Disse ela: Sou lenta, meu bem.

Ainda não entendi. O que é que o espaço vazio tem a ver comigo?

Pode ser a fotografia.

Que fotografia?

A foto que sua mãe tirou quando você era menino. Comprei a fotografia, lembra? E nos últimos três anos ela ficou pendurada na parede do quarto onde terminei de escrever Chardin. Olhei para a foto milhares de vezes. O menino de costas para a câmera, a coluna ossuda protuberante, a camiseta de listras bem apertada contra as vértebras, seu braço esquerdo magro esticado, a mão espalmada sobre o tapete, e o Gordo e o Magro na tela ao fundo, a distância entre a tela e seu rosto é a mesma entre a câmera e suas costas. As proporções são perfeitas — sublime. E lá está você, completamente sozinho, no chão, perdido entre as duas distâncias. A infância encarnada. A solidão da infância. A solidão da sua infância. E nem preciso dizer que, toda vez que olho para a fotografia, penso em você, no rapaz que conheci em Paris há três anos, o mesmo rapaz que, um dia, foi aquele menino da fotografia e, depois de pensar tantas vezes em você, é difícil, para mim, não pensar em nós dois como amigos. Por isso, quando Gil me escreveu e disse que você queria vir para cá, falei para mim mesma: que ótimo, agora vamos poder ser amigos de verdade. Sei que parece meio doido, mas é isso mesmo. Acho que vamos passar uma temporada muito interessante juntos, Archie.

O apartamento no segundo andar era amplo, o chambre de bonne no sexto andar não era. Sete cômodos espaçosos embaixo, um cômodo pequeno em cima, e todos aqueles sete cômodos estavam repletos de móveis, luminárias de pé, tapetes persas, pinturas, desenhos, fotografias e livros, livros por toda parte no quarto principal, um apartamento espaçoso, de teto alto, que dava uma sensação de simplicidade e de espaço livre, porque os cômodos eram grandes o bastante para assimilar os objetos que continha, sem estorvar os movimentos das pessoas, dava uma sensação agradável de quantidade exata, nunca muito pouco nem demais, e como Ferguson ficou encantado com a cozinha enorme, toda branca, em estilo antigo, com a cerâmica branca e preta no piso e as portas duplas espelhadas, entre a sala de estar e a sala de jantar, com seus delicados puxadores de porta franceses, em contraste com as maçanetas brutas usadas nos Estados Unidos, e as sólidas janelas duplas na sala de estar, revestidas de cortinas finas, quase transparentes, de musselina, que permitiam que a luz filtrasse por elas todas as horas da manhã e da tarde, e muitas vezes até a hora do pôr do sol. O paraíso burguês no apartamento embaixo, mas em cima, no quarto de empregada no sexto andar, que a rigor era o sétimo andar do prédio, pois os franceses contavam o térreo não como o primeiro andar, mas sim como rez-de-chaussée, não havia nada senão paredes nuas, um teto inclinado e espaço suficiente apenas para uma cama, uma estante de livros estreita de cinco prateleiras, uma pequena escrivaninha com uma cadeira de madeira e palhinha que rangia, um gaveteiro embutido embaixo da cama e uma pia de água fria. Banheiro comunitário no corredor social; nem chuveiro nem banheira. Para chegar àquele andar, era preciso pegar o elevador até o quinto andar e subir a escada até o andar seguinte, onde um comprido corredor de madeira se estendia na face norte do edifício, com seis portas marrons idênticas enfileiradas lado a lado, todas pertencentes aos proprietários dos apartamentos, desde o térreo até o quinto andar, e a porta de Ferguson era a segunda, enquanto as demais portas eram ocupadas por criadas portuguesas e espanholas que trabalhavam para os proprietários, embaixo. Era uma pequena e desoladora cela monástica, Ferguson se deu conta, quando pôs os pés ali com Vivian em sua primeira manhã em Paris, nem de longe aquilo que ele esperava, o menor espaço em que teria de viver desde o início da vida, um chambre que certamente tomaria um bom tempo dele para se acostumar, e só depois ele seria capaz de aprender como morar ali sem se sentir sufocado, porém tinha janelas, ou uma janela dividida em duas partes, uma janela dupla alta na parede norte, com uma sacada minúscula cercada por uma grade de metal dos três lados, e espaço suficiente apenas para acomodar seus pés tamanho quarenta e um, e daquela sacada ou através daquela janela dupla ele podia olhar para o norte e ver a paisagem do Quai d’Orsay, do Sena, do Grand Palais, do outro lado do rio, e mais adiante, na Margem Direita, podia avistar até a cúpula cor de marfim da catedral Sacré-Coeur de Montmartre, e caso ele virasse a cabeça para a esquerda e se inclinasse na beira da grade da sacada, lá estavam o Champ de Mars e a Torre Eiffel. Nada mal. Nada mal mesmo, finalmente, porque nunca tinha havido nenhuma dúvida de que ele teria de passar todo seu tempo naquele quarto, ia ser ali seu lugar de escrever, estudar e dormir, mas o lugar de comer, tomar banho e conversar era lá embaixo, no apartamento de Vivian, onde a cozinheira Celestine lhe dava comida toda vez que pedia, as deliciosas tigelas de café com tartines beurrées no café da manhã, os almoços quentes, quando não comia sanduíches em pequenos cafés ou nos arredores do Boulevard Saint-Germain, e os jantares em casa, com ou sem Vivian, ou os jantares com Vivian em restaurantes, ou com Vivian e outras pessoas em restaurantes ou em festas no apartamento de Vivian ou nos apartamentos de outras pessoas, e, à medida que Vivian apresentava Ferguson ao complexo mundo parisiense a que ela pertencia, aos poucos ele começava a se sentir à vontade.

Nos primeiros cinco meses, o ritmo de sua rotina diária era o seguinte: trabalhar em seu livro todo dia de manhã, das nove ao meio-dia, almoço do meio-dia à uma, ler os livros da lista de Gil de uma às quatro, exceto às terças e quintas, quando lia de uma às duas e meia e passava a hora e meia seguinte no escritório de Vivian, conversando com ela sobre os livros, uma caminhada de uma hora por diversos bairros da Margem Esquerda (sobretudo Saint-Germain, o Quartier Latin e Montparnasse), e depois ia ao Boulevard Raspail para suas aulas na Alliance Française, de segunda à sexta. Até terminar seu livro (o que aconteceu alguns dias depois de seu décimo nono aniversário, em março) e até sentir que seu francês estava afiado o bastante para poder abrir mão das aulas (também em março), Ferguson se aferrou rigorosamente àquelas três atividades fundamentais, escrever, ler e estudar, deixando de lado todas as outras, o que significava que, por enquanto, não havia tempo para ver filmes, a não ser aos sábados e domingos e em alguma noite eventual em dias de semana, nenhum tempo para o basquete e nenhum tempo para dar aulas particulares de inglês para crianças. Nunca antes Ferguson havia demonstrado tamanhas dedicação e concentração de propósitos, um compromisso tão fervoroso com as tarefas que havia determinado para si, mas nunca antes havia se sentido tão calmo e seguro quando a luz penetrava em sua janela de manhã, nunca tinha se sentido tão contente de estar onde estava, mesmo nas manhãs em que acordava de ressaca ou não se sentia em sua melhor forma.

O livro era tudo para ele. O livro era a diferença entre estar vivo e não estar vivo e, embora Ferguson ainda fosse jovem, sem dúvida extremamente jovem para embarcar em tal projeto, a vantagem de começar o livro aos dezoito anos de idade era que ele ainda se encontrava próximo do tempo de sua infância e lembrava tudo muito bem e, por causa do sr. Dunbar e do Riverside Rebel, já fazia alguns anos que ele escrevia e, estritamente falando, não era mais um novato. Tinha publicado vinte e sete matérias de vários tamanhos no jornal do sr. Dunbar (o texto mais curto tinha duas páginas e meia datilografadas e o mais longo, onze) e, depois que começou a registrar suas impressões sobre os filmes no arquivo de folhas soltas, havia adquirido o hábito de escrever quase todos os dias, pois agora o arquivo já estava com mais de cento e sessenta folhas, e o salto de quase todo dia para todo santo dia faça chuva ou faça sol não era tanto um salto quanto o passo natural seguinte. Além de seus próprios esforços nos três anos anteriores, houve também as longas conversas com Gil, as lições de Gil sobre como alcançar a concisão, a elegância e a clareza em cada frase que escrevia, como unir uma frase à outra, a fim de construir um parágrafo que tivesse alguma musculatura, e como começar o parágrafo seguinte com uma frase que iria prolongar ou contradizer as afirmações do parágrafo anterior (dependendo do argumento ou do propósito), e Ferguson escutou seu padrasto e absorveu aquelas lições, o que significava que, embora mal tivesse terminado o colégio quando começou a trabalhar em seu livro, já havia feito o juramento de lealdade à bandeira do Mundo da Escrita.

A ideia viera a ele depois das humilhações de seu exame físico no Exército, no dia 2 de agosto. Não só tinha sido obrigado a revelar a mancha negra em seu nome, denotada pelas palavras “registro criminal”, como também o médico o havia forçado a falar de assuntos particulares, não apenas sobre estar surrupiando livros no dia em que a mão de George Tyler tinha esmagado seu ombro, ele contou também quantas e quantas outras vezes ele havia roubado livros sem ser apanhado, e como Ferguson se sentia tenso e assustado de estar naquele prédio do governo na Whitehall Street, falando com um médico do Exército dos Estados Unidos, ele acabou contando a verdade, disse várias vezes, em resposta à pergunta dele, mas além da humilhação de ser forçado a esmiuçar suas atividades de ladrão em seu último ano no colégio, houve ainda a maior humilhação de todas, ao ter de confessar seus desejos sexuais não naturais, sua atração por rapazes e também por garotas, e então o homem, cujo nome era dr. Mark L. Worthington, pediu para que ele desse detalhes relativos a esse ponto também, e embora Ferguson já tivesse entendido que contar a verdade iria garantir que ele nunca teria de servir o Exército nem passar cinco anos numa prisão federal por se recusar a servir o Exército, foi duro contar a verdade por causa do nojo que viu nos olhos do dr. Worthington, a repulsa expressa na contração dos lábios e da mandíbula, mas o homem quis saber os detalhes e Ferguson não teve escolha senão dar os detalhes, e assim, um por um, perfilou os atos eróticos que havia praticado durante seu caso de amor com o lindo Brian Mischevski, desde o início da primavera até o dia em que Brian partiu de Nova York, no início do verão, e Sim, senhor, disse Ferguson, foram para a cama juntos muitas vezes sem nenhuma roupa, ou seja, os dois completamente nus, e Sim, senhor, disse Ferguson, tinham se beijado de boca aberta e meteram a língua nas bocas abertas, e Sim, senhor, tinha posto seus pênis endurecidos na boca um do outro, e Sim, senhor, tinham ejaculado na boca um do outro, e Sim, senhor, tinham colocado os pênis endurecidos na bunda um do outro e tinham ejaculado dentro da bunda ou em cima das nádegas ou na cara ou na barriga um do outro, e quanto mais Ferguson falava, mais enojada se tornava a fisionomia do médico, e, quando a entrevista chegou ao fim, Ferguson, que nunca seria convocado, estava tremendo dos pés à cabeça e enjoado com as palavras que haviam escapado de sua boca aos trambolhões, não porque sentisse vergonha do que tinha feito, mas porque os olhos do médico o condenavam, o encaravam como um degenerado moral e uma ameaça à estabilidade da vida americana, o que, para Ferguson, deu a sensação de que sua própria vida tinha levado cusparadas do governo dos Estados Unidos, que era seu país afinal, gostasse dele ou não, e como vingança, ao sair daquele prédio e ganhar o ar quente de verão de Nova York, disse para si mesmo que ia escrever um livrinho sobre os anos sombrios seguintes ao incêndio em Newark, um livro tão forte, tão brilhante e tão impregnado das verdades do que significava estar vivo que nenhum americano jamais ia querer cuspir nele outra vez.

Eu tinha sete anos de idade quando meu pai morreu queimado num incêndio criminoso. Seus restos mortais carbonizados foram colocados numa caixa de madeira, e, depois que eu e minha mãe colocamos essa caixa debaixo da terra, o solo no qual pisávamos começou a desmoronar embaixo de nossos pés. Eu era só uma criança. Meu pai tinha sido meu único pai e minha mãe foi sua única esposa. Agora ela não era esposa de ninguém e eu era um menino sem pai, filho de uma mulher, mas não mais filho de um homem.

Morávamos numa cidadezinha em Jersey, perto de Nova York, mas, seis semanas depois da noite do incêndio, eu e minha mãe partimos daquela cidadezinha e fomos morar na cidade grande, onde temporariamente ficamos abrigados no apartamento dos pais de minha mãe, na rua 58 Oeste. Meu avô chamou esse tempo de “interregno curioso”. Com isso, ele se referia a um tempo sem endereço fixo e sem escola e, nos meses seguintes, os meses frios de inverno do fim de dezembro de 1954 e do início de 1955, enquanto minha mãe e eu vagávamos pelas ruas de Manhattan em busca de uma casa nova para morar e de uma escola nova para eu estudar, muitas vezes nos refugiávamos no escuro dos cinemas...

Um primeiro rascunho da primeira parte do livro já estava pronto antes de Ferguson deixar Nova York, em meados de outubro. Setenta e duas páginas datilografadas, escritas nos dois meses e meio entre o exame físico no Exército e a viagem de avião através do oceano Atlântico, mais ou menos uma página por dia, o que vinha a ser o objetivo que Ferguson havia determinado para si mesmo, uma página decente por dia e qualquer coisa a mais que isso já podia ser considerada um milagre. Ele não teve coragem de mostrar aquela versão inicial do livro para Gil nem para a mãe, queria lhes mostrar o produto acabado só quando estivesse mesmo acabado de verdade, porém a maioria dos filmes que viu com a mãe durante o Interregno Curioso eram discutidos naquelas páginas, junto com o próprio Interregno Curioso, e depois o início de sua carreira, em Hilliard, sua guerra contra Deus e o programa autodestrutivo de fracasso voluntário, as incontáveis investidas aos balcões dos cinemas para ver mais filmes de Hollywood com a mãe durante o período dos Esquecimentos Gloriosos, seguido pelo novo início de carreira da mãe como fotógrafa e a transformação do seu outrora radioso quarto de brinquedos na câmara escura onde ela revelava seus filmes, onze meses e meio de seu início de vida, desde a manhã do dia 3 de novembro de 1954, quando a mãe lhe disse que o pai tinha morrido queimado num incêndio em Newark, até a tarde do dia 17 de outubro de 1955, quando Ferguson ligou a televisão no seu apartamento no terceiro andar e topou com a canção tema de “Cuckoos” e os créditos na abertura do filme anunciaram o primeiro filme de O Gordo e o Magro que ele viu na vida.

Levou algumas semanas para se habituar a seu novo ambiente e fazer as pazes com o espaço reduzido de seu quarto, mas lá pelo dia 1o de novembro, Ferguson já estava de volta a seu livro, tendo se preparado para a parte “Stan e Ollie” com uma lista completa de seus filmes, feita quando ainda estava em Nova York, onde também, com a ajuda do padrasto, conseguiu com Clement Knowles, diretor do departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna, ver todos os filmes de Laurel e Hardy da coleção do museu, muitas vezes sozinho, na moviola mesmo, outras vezes em projeções na tela grande feitas só para ele, e como Ferguson escrevia um relato minucioso sobre cada filme que via, os filmes estavam frescos na sua cabeça outra vez quando começou a escrever sobre eles em Paris. De forma bastante notável, só havia um livro sobre Laurel e Hardy, em inglês, uma biografia dupla de duzentas e quarenta páginas feita por John McCabe, publicada em 1961, e mais nada, nenhum outro livro em inglês de que Ferguson tivesse notícia. Ollie, o gordo, tinha morrido em 1957, e Stan, o magro, não tremendamente velho (setenta e quatro anos), morreu em fevereiro de 1965, menos de seis meses antes de Ferguson conceber seu plano de escrever sobre como os dois tinham salvado sua vida dez anos antes, e quando ele começou a redigir aquela parte do livro, não pôde deixar de pensar na oportunidade que tinha perdido, pois nada o deixaria mais feliz do que mandar o original de seu livro para Stan quando tivesse o rascunho completo. A exemplo dos textos que havia escrito quando era aluno do ensino médio em Nova York, a abordagem de Ferguson estava toda concentrada em simplesmente ver os filmes, os filmes tal como ele os tinha visto aos oito e nove anos de idade, sem nenhuma informação biográfica sobre seus amigos de chapéu-coco, nenhuma informação histórica sobre como ocorreu a formação da dupla, em 1926, por iniciativa do diretor de cinema Leo McCarey, no Hal Roach Studio, e nada sobre os três casamentos de Ollie e os seis casamentos de Stan (três deles com a mesma mulher!). Além de escrever seu livro, e absolutamente tão importante quanto escrever o livro, o assunto que dominava os pensamentos de Ferguson de modo mais insistente era o sexo e, no entanto, mesmo agora, na idade avançada de dezoito anos, ele achava quase impossível imaginar Stan Laurel fazendo sexo com alguém, muito menos com suas seis esposas, três das quais eram a mesma pessoa.

Ferguson foi em frente, atravessando novembro, dezembro e metade de janeiro, para concluir a segunda parte do livro, recontando a visita surpresa dos avós ao apartamento em Central Park Oeste, em dezembro, carregados de presentes volumosos, uma tela de cinema enrolada, um projetor de cinema de dezesseis milímetros e dez latas de curtas-metragens de O Gordo e o Magro, e essa parte do livro, por algum motivo insondável, ficou exatamente do mesmo tamanho que a primeira, setenta e duas páginas, e seu último parágrafo dizia: Pouco importava que o projetor fosse de segunda mão — funcionava. Pouco importava que as imagens estivessem arranhadas e que o som, às vezes, parecesse vir do fundo de uma banheira — dava para ver os filmes. E junto com os filmes, veio todo um conjunto de palavras novas para eu dominar — “obturador”, por exemplo, que era uma palavra muito melhor para se pensar do que “carbonizado”.

Então Ferguson perdeu o rumo. A terceira parte do livro, que nos meses intermediários havia ganhado um título novo, “Sucateiros e gênios”, tinha o intuito de explorar as diferenças entre os filmes de arte e os filmes comerciais, sobretudo as diferenças entre Hollywood e o resto do mundo, e Ferguson tinha dedicado muita reflexão aos cineastas que havia escolhido para abordar em seu texto, três sucateiros de Hollywood, que tinham se destacado ao fazer bons produtos comerciais numa grande variedade de gêneros e estilos (Mer­vyn LeRoy, John Ford, Howard Hawks) e três gênios do exterior (Eisenstein, Jean Renoir e Satyajit Ray), porém, depois de duas semanas e meia bastante tumultuadas tentando passar seus pensamentos para o papel, Ferguson entendeu que o tema sobre o qual estava escrevendo não tinha nada a ver com o resto do livro, que estava escrevendo outro livro ou outro ensaio e que, em seu livro sobre pais mortos, viúvas aguerridas e meninos esmagados, não havia nenhum espaço para especulações daquele tipo. Foi um choque se dar conta de que havia estruturado muito mal seu projeto, mas agora, sob a força daquele caminho errado, ele tinha a sensação de que sabia como reparar o estrago. Pôs de lado as vinte páginas iniciais de “Sucateiros e gênios” e voltou à primeira parte, que agora dividiu em duas, “Um Interregno Curioso”, que cobria o tempo pós-incêndio, os dias pré-Hilliard, em Nova York, e terminava com as palavras ditas pela mãe para uma mulher que vendia bilhetes num cinema no Upper West Side — Vá cuidar da sua vida, senhora, e me dê logo meu troco —, e depois “Esquecimentos gloriosos”, que agora ia começar num ponto diferente, com Ferguson entrando para a Hilliard em seu primeiro dia de aula, mas ainda terminava com a televisão e seu primeiro filme de O Gordo e o Magro. Na terceira parte, acrescentou alguns parágrafos sobre a reação da mãe diante dos dois retardados e explorou a piada das obrigações cotidianas de forma um pouco mais abrangente, porém o capítulo ainda terminava com a palavra carbonizado. Em seguida, acrescentou uma quarta parte, “Jantar na varanda”, que agora ele entendia ser a conclusão lógica do livro, o coração emocional do livro, e como ele pôde ser tão cego e tão tapado para ignorar aquela cena com sua mãe na sala de estar, como pôde ter pensado em manter aquilo fora da história quando na verdade tudo no livro estava construído tendo em vista aquele momento, e assim, durante três manhãs em meados de fevereiro, três manhãs de devastação e de trabalho absolutamente concentrado, sentindo-se mais vivo nas palavras que escrevia agora do que em qualquer outro trecho, Ferguson escreveu as dez páginas que precisava escrever sobre sua crise emocional e a confissão que fez para a mãe, sobre o dilúvio de lágrimas que se derramaram dos dois, sentados no tapete da sala, sobre o contínuo remoer de seus pensamentos que passaram do Deus-mudo para Deus-nenhum e para anti-Deus, e o motivo de suas notas ruins na escola, e depois, quando os dois já haviam secado as lágrimas e se abraçado, é claro!, saíram para ver filmes na esquina da rua 95 com a Broadway, onde comeram cachorros-quentes no balcão do cinema e regaram o sanduíche com Coca-Cola aguada e sem gás, enquanto a mãe acendia mais um cigarro Chesterfield e os dois viam Doris Day cantar uma das músicas mais idiotas jamais compostas, “Que sera, sera”, na versão tecnicolor de Hitchcock de O homem que sabia demais.

Escrever sobre si mesmo durante os seis meses que ele demorou para terminar seu curto livro de 157 páginas acabou levando Ferguson a estabelecer uma relação nova consigo mesmo. Sentiu-se mais estreitamente ligado aos próprios sentimentos e, ao mesmo tempo, mais afastado deles, quase alheio, indiferente, como se durante a redação do livro, paradoxalmente, ele tivesse se tornado uma pessoa mais calorosa e mais fria, mais calorosa porque tinha aberto suas entranhas e exposto ao mundo, mais fria porque ele podia olhar para suas entranhas como se pertencessem a outra pessoa, um estranho, um anônimo qualquer, e se essa nova interação com seu eu escritor era boa ou ruim para ele, melhor ou pior para ele, Ferguson não era capaz de dizer. Tudo que sabia era que escrever o livro o havia deixado exausto e não tinha certeza de que teria coragem de escrever outra vez sobre si mesmo. Sobre filmes, sim, talvez sobre outras coisas também, algum dia, mas autobiografia era dilacerante demais, a necessidade de ser, ao mesmo tempo, caloroso e frio era árdua demais, e, agora que ele havia redescoberto sua mãe, tal como ela era naquela época, de repente Ferguson se viu com saudades da mãe como ela era agora, se viu com saudades dela e também de Gil, e com o jornal Herald Tribune à beira do fim, ele bem que gostaria que os dois viessem visitá-lo em Paris em breve, pois muito embora Ferguson fosse quase um homem, uma boa parte dele continuava a ser criança, e, como havia habitado sua infância durante os últimos seis meses, não era fácil sair dela.

Naquela tarde, Ferguson desceu para sua aula particular no escritório de Vivian, levando consigo as páginas soltas de Como Laurel e Hardy salvaram minha vida, em vez de levar seu exemplar de Hamlet. Hamlet teria de esperar, decidiu Ferguson, o Hamlet, que não fazia outra coisa que não esperar, teria de continuar esperando um pouco mais, porque, agora que o livro estava acabado, Ferguson sentia-se desesperado para que alguém o lesse, pois ele mesmo era incapaz de julgar o que tinha escrito e não fazia nenhuma ideia se aquilo tinha dado num livro de verdade ou num livro frustrado, num jardim cheio de violetas e rosas ou num caminhão de estrume. Como Gil estava do outro lado do oceano, Vivian era a melhor opção, a opção inevitável, e Ferguson sabia que podia confiar que ela faria uma leitura justa e imparcial de sua obra, pois já tinha dado provas de ser uma excelente preceptora, sempre rigorosamente preparada para suas duas aulas particulares semanais e incrivelmente perspicaz, com inúmeras coisas para dizer sobre as obras que ambos analisavam (leitura atenta, o método de explication de texte para certas passagens cruciais, como demonstrado no capítulo do livro Mímesis, de Auerbach, sobre a cicatriz de Odisseu), mas também em torno das obras e por trás das obras, as condições sociais e políticas na Roma antiga, por exemplo, o exílio de Ovídio, o banimento de Dante, ou a revelação de que Agostinho era da África do Norte e, consequentemente, um homem negro ou pardo, um afluxo constante de livros de referência, de história, e de estudos críticos conferidos na Biblioteca Americana, situada ali perto, e na Biblioteca do Conselho Britânico, um pouco mais distante, e Ferguson ficou impressionado, e ao mesmo tempo achou graça, ao ver que a extremamente mondaine e muitas vezes frívola Mme Schreiber (como ela ria nas festas, como ela gargalhava de piadas sujas) era também uma dedicada estudiosa e intelectual, uma estudante summa cum laude formada em Swarthmore, com doutorado em história da arte na Sorbonne, à qual ela se referia em tom jocoso como a Sore Bone, ou seja, “osso dolorido”, em inglês (uma tese sobre Chardin — sua primeira investida no tema que, mais tarde, iria ser o assunto de seu livro), e uma escritora clara e fluente (Ferguson leu partes do seu livro) e, além de orientá-lo quanto à maneira de ler e analisar as obras literárias da lista de Gil, ela ainda se dava ao trabalho de ensinar a Ferguson como olhar e compreender também as obras de arte, por meio de visitas aos sábados ao Louvre, ao Musée de l’Art Moderne, ao Jeu de Paume, ou à Galerie Maeght, e embora Ferguson continuasse a achar incompreensível que ela quisesse dedicar tanto tempo à sua educação, entendia que, por causa dela, sua própria mente estava se desenvolvendo de maneira firme, mas por quê, ele perguntava, por que você está fazendo tudo isso por mim, e a enigmática Viv sempre sorria e dizia: Porque estou me divertindo, Archie. Porque estou aprendendo muita coisa.

Quando Ferguson desceu com o original de seu livro naquela tarde, em meados de fevereiro, já estava morando em Paris havia quatro meses, e ele e Vivian Schreiber tinham se tornado amigos, bons amigos, e talvez (Ferguson pensava, às vezes) até um pouquinho apaixonados um pelo outro, ou pelo menos ele estava apaixonado por ela, e Vivian nunca deixava de se mostrar no mínimo calorosa com ele, afetuosa da maneira mais cúmplice possível, e, quando ele bateu à porta de seu escritório para seu encontro das duas e meia, não esperou que ela mandasse entrar, porque não era assim que eles faziam, bastava que batesse à porta para avisar que tinha chegado e depois entrar, e assim ele entrou e a encontrou sentada em seu lugar de costume, na poltrona preta de couro, com os óculos de leitura e um cigarro Marlboro aceso, enganchado entre o dedo indicador e o dedo médio da mão esquerda (ainda fumava cigarros americanos, depois de vinte e um anos na França), um exemplar de bolso de Hamlet na mão direita, o texto aberto em algum ponto do meio do livro e, como sempre, a foto dele mesmo na parede logo atrás da cabeça de Vivian, Archie, a foto que a mãe tinha tirado havia mais de dez anos, que ele de repente se deu conta de que estaria na capa do seu livro, caso alguém quisesse publicá-lo (boa sorte!), e quando Vivian ergueu os olhos e sorriu para Ferguson, ele atravessou o cômodo sem dizer nada e colocou o original aos pés dela.

Terminou?, perguntou Vivian.

Terminei, respondeu.

Que bom, Archie. Bravo. E muitos merdes para marcar este dia.

Fiquei pensando se a gente não podia deixar o Hamlet de lado esta tarde, para que você desse uma olhada no meu livro. É curto. Duvido que você precise de mais do que duas ou três horas para ler até o fim.

Não, Archie, vou precisar de mais do que isso. Imagino que você queira uma resposta de verdade, não é?

Claro. E sempre que alguma coisa chamar a sua atenção, fique à vontade para assinalar. O livro ainda não está na sua última versão, terminei apenas por enquanto. Portanto, leia com um lápis na mão. Sugira mudanças, melhorias, cortes, tudo que passar pela sua cabeça. Estou cheio dele, não consigo nem mais olhar.

É isso mesmo que vamos fazer, disse Vivian. Vou ficar aqui e você vai sair, vá dar uma volta, vá a uma lanchonete, ao cinema, faça o que quiser e, quando voltar para cá, suba direto para seu quarto.

Está me pondo para fora, hein?

Não quero você por perto enquanto eu estiver lendo o livro. Interferência mental demais. Tu comprends? (Você entende?)

Oui, bien sûr. (Sim, claro.)

Amanhã, às oito e meia da manhã, vamos nos encontrar na cozinha. Isso vai me dar o resto da tarde, a noite inteira e até a madrugada, se necessário.

E o seu jantar com Jacques e Christine? Vocês não iam se encontrar às oito?

Vou cancelar. Seu livro é mais importante.

Só se for bom. Se estiver ruim, você vai me rogar uma praga por não ter ido ao jantar com eles.

Não acho que vá ser ruim, Archie. Porém, mesmo se for, ainda assim, seu livro é mais importante do que o jantar.

Como pode saber disso?

Porque é o seu livro, seu primeiro livro, e não importa quantos livros você venha a fazer no futuro, nunca mais vai escrever seu primeiro livro.

Em outras palavras, perdi a virgindade.

Isso mesmo. Perdeu a virgindade. E se para fazer isso transou bem ou transou mal, não importa, você nunca mais vai ser virgem.

Na manhã seguinte, Ferguson entrou na cozinha alguns minutos antes das oito horas, na esperança de se fortalecer com uma ou duas tigelas do café au lait da Celestine, antes de Vivian aparecer e proferir seu veredicto sobre o pretexto indigente que era o seu livro e jogá-lo na lata de lixo da história, mais uma coisa humana descartada para apodrecer entre milhões de outras. Apesar de seus cálculos, no entanto, Vivian tinha se antecipado e, quando Ferguson entrou na cozinha, lá estava ela, sentada à mesa branca esmaltada, na cozinha branca, vestida em seu roupão de banho branco, com as páginas em preto e branco de seu original repousando numa pilha ao lado da sua tigela branca do café au lait de Celestine.

Bonjour, M. Archie, disse Celestine. Vous vous levez tôt ce matin (O senhor levantou cedo esta manhã), tratando Ferguson pelo pronome formal vous, que os empregados usavam, em vez do familiar tu, usado para tratar os iguais, uma peculiaridade da linguagem francesa que ainda feria seus ouvidos americanos.

Celestine era uma mulher pequena e enérgica, de mais ou menos cinquenta anos, discreta, mas extremamente gentil, Ferguson sempre achava isso, porém, embora insistisse em tratá-lo por vous, ele gostava da maneira como pronunciava seu nome em francês, suavizando o áspero som tch na forma de um ch menos abrasivo, transformando-o em Ar-chii, o que, em troca, sempre o levava a pensar na palavra francesa archive. Por jovem que fosse, ele já havia se transformado num arquivo, o que significava que era alguém a ser conservado para os tempos futuros — ainda que seu livro fosse parar na lata de lixo da história.

Parce que j’ai bien dormi, respondeu Ferguson (porque dormi bem), o que era obviamente falso, pois bastava olhar para seu cabelo desgrenhado e seus olhos fundos para qualquer um ver logo que tinha bebido uma garrafa inteira de vinho na noite anterior e que mal havia conseguido dormir.

Vivian se levantou e o beijou no rosto, a saudação matinal padrão entre ambos, mas então, divergindo do ritual de costume, passou os braços em redor dele e o beijou de novo nas duas bochechas, dois beijos estalados, depois do que, abruptamente, o empurrou para trás, manteve-o à distância de seu braço esticado, e perguntou: O que houve com você? Está com um aspecto horrível?

Estou nervoso.

Não fique nervoso, Archie.

Estou quase cagando nas calças.

Também não faça isso.

E se eu não conseguir me controlar?

Sente-se, seu bobo, e me escute.

Ferguson sentou-se. Logo depois, Vivian sentou-se também. Inclinou-se para a frente, fitou Ferguson nos olhos e disse: Não se preocupe, bobinho. Tu piges? (Entendeu?) Tu me suis bien? (Está me acompanhando?). É um livro lindo e comovente e estou espantada de que alguém com a sua idade possa ter escrito algo tão bom. Se não mudar nenhuma palavra, já tem força bastante para ser publicado, tal como está. Por outro lado, ainda não está perfeito, e como você me disse para ir em frente e marcar o que eu quisesse, eu marquei. Tem umas seis ou sete páginas de cortes sugeridos, eu diria, junto com cinquenta ou sessenta frases que mereciam ser mais trabalhadas. Na minha opinião. Não precisa seguir minha opinião, é claro, mas tome aqui o original (empurrou-o em cima da mesa na direção de Ferguson), e até você decidir o que quer fazer, não vou dizer mais nenhuma palavra. São só sugestões, lembre-se, mas, na minha opinião, acho que as alterações vão melhorar o livro.

Como posso agradecer?

Não me agradeça, Archie. Agradeça sua mãe maravilhosa.

Mais tarde, naquela manhã, Ferguson se debruçou de novo nas páginas de seu original e começou a percorrer os comentários de Vivian, a maioria dos quais acertavam em cheio, ele achava, oitenta ou noventa por cento das vezes, pelo menos, o que dava um percentual bem elevado, tantos cortes diminutos, mas decisivos, uma expressão aqui, um adjetivo ali, sutis, mas implacáveis desbastamentos, a fim de reforçar a energia da prosa, e depois as frases desajeitadas, havia um número grande demais daquelas frases, ele teve vergonha de admitir, pontos cegos que ele tinha deixado escapar, mesmo depois de dúzias de leituras, e, durante os dez dias seguintes, Ferguson atacou cada um daqueles lapsos estilísticos e repetições irritantes, às vezes modificando pontos que Vivian não tinha marcado, às vezes voltando atrás e retornando à forma original, mas o essencial era que Vivian tinha deixado intacta a estrutura do livro, seu lápis não tinha invertido a ordem de parágrafos e partes, não havia nenhuma reformulação séria e nenhum trecho excluído, e, depois que Ferguson incorporou as revisões no seu original datilografado, agora todo rabiscado e quase ilegível, datilografou o livro inteiro outra vez, em três cópias (dois papéis-carbono), o que acabou se revelando um trabalho infernal, por causa da sua tendência para bater nas teclas erradas, mas quando chegou seu décimo nono aniversário, no dia 3 de março, ele tinha quase terminado e, seis dias depois, o trabalho ficou pronto.

Enquanto isso, Vivian tinha feito uns contatos, indagou a amigos ingleses a respeito de possíveis editores para o livro de Ferguson, preferiu Londres a Nova York, porque tinha melhores contatos na Inglaterra, e Ferguson, que ignorava tudo que dizia respeito à publicação, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, deixou tudo por conta de Vivian e se concentrou na datilografia, enquanto já começava a pensar no seu ensaio, parcialmente redigido, “Sucateiros e gênios”, que poderia, ou não, vir a ser o germe de um segundo livro, e a pensar também em reler seus trabalhos mais longos do tempo do ensino médio, com a ideia de reformular os textos (caso achasse que valesse a pena) e tentar publicar em revistas, mas mesmo depois de Vivian reduzir as possibilidades britânicas a duas pequenas editoras literárias, diminutas, mas agressivas e seriamente dedicadas a publicar o que ela chamou de novos talentos, Ferguson já não tinha mais esperança de que nenhuma delas aceitasse publicar seu livro.

Você decide para onde quer mandar primeiro, disse Vivian, quando os dois estavam sentados na cozinha, na manhã do seu décimo nono aniversário, e, quando lhe disse que os nomes das duas editoras eram Io Books e Thunder Road, Ltd., Ferguson instintivamente disse Io, não porque tivesse uma ideia clara de quem era Io, mas porque a palavra “thunder”, trovão, parecia soar hostil para um livro com os nomes “Laurel” e “Hardy” no título.

Eles já estão no ramo há quatro anos, disse Vivian, uma espécie de passatempo para um jovem abastado, de uns trinta anos de idade, chamado Aubrey Hull, que em geral publicava poetas, foi o que me disseram, com um pouco de ficção e não ficção no meio, livros bem desenhados e bem impressos, papel bom, mas só lançam doze ou quinze livros por ano, ao passo que a Thunder Road lança cerca de vinte e cinco. Mesmo assim, você prefere a editora Io?

Por que não? Eles vão rejeitar o livro, de um jeito ou de outro. E quando mandarmos para o pessoal da editora Thunder, também vão recusar.

Tudo bem, sr. Negativo, uma última pergunta. A folha de rosto. O livro vai ser enviado na semana que vem, e que nome você quer usar, como autor?

Que nome? Meu nome, é claro.

Estou falando de Archibald ou Archie, ou A., ou talvez A. mais a inicial do segundo nome.

Minha certidão de nascimento e meu passaporte dizem que sou Archibald, mas ninguém nunca me chamou de Archibald Isaac. Nunca fui Archibald, como nunca fui Isaac. Sou Archie. Sempre fui Archie e sempre vou ser Archie, até o fim. É o meu nome, Archie Ferguson, e é o nome que vou usar para assinar minha obra. Não que isso tenha importância agora, é claro, pois nenhum editor, em sã consciência, vai querer publicar um livro tão estranho, mas é bom pensar nisso para o futuro.

Assim corriam as horas do dia nos primeiros meses de Ferguson em Paris, as satisfações do estudo intenso e do trabalho árduo em seu livro, o constante aprimoramento de seu francês depois do programa de verão em Vermont, as aulas na Alliance Française, os jantares onde só falavam francês com os amigos de Vivian em Paris, as conversas cotidianas com Celestine, sem falar dos numerosos encontros com estranhos quando estava no bar e comia sanduíches de presunto nos cafés em sua hora de almoço, o que tinha feito dele um americano quase bilíngue na França, e acabou tão imerso em sua segunda língua que, a não ser por seus estudos em inglês, sua escrita em inglês e suas conversas com Vivian, todas em inglês, seu próprio inglês poderia ter começado a se atrofiar. Muitas vezes, agora, chegava a sonhar em francês (uma vez, comicamente, com legendas em inglês embaixo da ação), e sua cabeça vivia o tempo todo fervilhando com trocadilhos bilíngues bizarros, não raro obscenos, como, por exemplo, transformar a expressão francesa comum au contraire (ao contrário) numa homonímia inglesa de uma vulgaridade aterradora: O cunt rare (Oh, rara boceta).

As bocetas viviam na sua cabeça, no entanto, assim como os pênis, junto com corpos imaginados e lembrados de mulheres e homens nus, do presente e do passado, pois quando o sol baixava no fim da tarde e a cidade ficava escura, a solidão revigorante de seu regime de vida, durante o dia, muitas vezes desandava numa espécie de solidão sufocante, à noite. Os primeiros meses foram os mais penosos para ele, o período inicial em que Ferguson foi apresentado a muita gente, mas ninguém de quem gostasse em especial, ninguém de quem gostasse nem a milésima parte do que gostava de Vivian, e, em seu quartinho sufocante, para se distrair da solidão, ele expurgava aquelas horas noturnas vazias fazendo uma entre diversas coisas: lia (quase impossível), escutava música clássica em seu rádio transístor de bolso (um pouco mais possível, mas nunca por mais de vinte ou trinta minutos seguidos), trabalhava em seu livro num segundo turno (difícil, mas às vezes produtivo, às vezes inútil), saía para ver a sessão das dez em cinemas que ficavam atrás e em volta do Boulevard Saint-Michel (em geral, agradável, mesmo quando o filme não chegava a ser bom, mas depois ele tinha de voltar para seu quarto à meia-noite e meia e a solidão ainda estava lá, à sua espera), vagava pelas ruas de Les Halles em busca de uma prostituta, quando o problema pênis-boceta saía do controle (o zumbido na virilha, só de ter de passar por todas aquelas piranhas na calçada, um alívio temporário, mas o sexo era brusco e desolador, trepadas impessoais, sem nenhum valor, que inevitavelmente o deixavam cheio de memórias dolorosas de Julie em suas longas caminhadas de volta para casa, no escuro, e com a mesada de apenas oitenta dólares por semana, que Gil e a mãe lhe mandavam, aqueles rombos de dez ou vinte dólares tinham de ser reduzidos ao mínimo). A última solução era o álcool, que também podia ser parte das outras soluções, beber e ler, beber e escutar música, beber e voltar do cinema ou de alguma prostituta de olhos tristes — a única solução que resolvia tudo quando a solidão se tornava grande demais para ele. Como havia abjurado o uísque depois de um dos demasiado numerosos desmaios e estupores que sofrera em Nova York, Ferguson tinha mudado para o vinho tinto como seu remédio predileto, e, com um litro de vin ordinaire sendo vendido por um mísero franco nas épiceries do bairro, perto dos lugares onde almoçava (vinte centavos de dólar por uma garrafa sem rótulo, nas mercearias espalhadas pelo sexto arrondissement), Ferguson tinha sempre consigo uma ou duas daquelas garrafas guardadas em seu quarto, e, quer saísse, quer ficasse em casa numa determinada noite, o vinho tinto de um franco era um bálsamo eficiente para induzir o torpor e, no fim, o mergulho no sono, se bem que aquelas safras de uvas vagabundas e sem nome podiam fazer mal a seu organismo e, muitas vezes, ele acordava de manhã brigando contra os giros de sua cabeça zonza e dolorida.

Em geral, jantava só com Vivian no apartamento uma ou duas vezes por semana, comida tradicional de clima frio, como pot au feu, cassoulet e boeuf bourguignon, preparado e servido por Celestine — que não tinha marido nem família em Paris e estava sempre disponível para fazer horas extras quando era chamada —, refeições tão saborosas que Ferguson, sempre esfomeado, raramente podia resistir a uma segunda dose do prato principal ou até a uma terceira, e foi durante aqueles jantares sossegados, só os dois, sozinhos, que ele e Vivian se tornaram amigos, ou consolidaram a amizade que já existia desde o início, os dois compartilhavam histórias de suas vidas, e muito do que Ferguson veio a saber sobre ela foi bastante inesperado: nascida e criada na região de Flatbush, no Brooklyn, por exemplo, a mesma região da cidade onde o Archie original tinha morado, judia, apesar de vir de uma família chamada Grant (o que levou Ferguson a contar a história de como, certo dia, seu avô passou de Reznikoff para Rockefeller e daí para Ferguson), filha de um médico e de uma professora da quinta série, quatro anos mais jovem do que seu irmão cientista brilhante, Douglas, amigo de Gil durante a guerra, uma viagem à França em 1939, aos quinze anos de idade, para visitar parentes distantes, em Lyon, onde conheceu Jean-Pierre Schreiber, um parente ainda mais afastado, talvez primo em quarto ou quinto grau, e muito embora ele tivesse acabado de comemorar seu trigésimo quinto aniversário, o que fazia dele um homem vinte anos mais velho do que ela, alguma coisa aconteceu, disse Vivian, uma centelha se acendeu entre nós e ela se entregou a Jean-Pierre, um viúvo na direção de uma importante empresa de exportação francesa, e ela, apenas uma colegial na Erasmus High School, no Brooklyn, uma relação que, sem dúvida, deixaria chocada a maioria das pessoas de fora, que veriam naquilo algo um pouco pervertido, mas nunca pareceu assim para Vivian, que via a si mesma como uma mulher adulta, a despeito da pouca idade, e então, quando os alemães atravessaram a Polônia, em setembro, os dois não tiveram mais chance de se ver outra vez até o fim da guerra, mas Jean-Pierre estava salvo, em Lausanne, e, durante os cinco anos que Vivian levou para concluir o ensino médio e a faculdade, ela e Jean-Pierre trocaram duzentas e quarenta e quatro cartas e já estavam comprometidos a se casarem quando Gil conseguiu mexer as cordinhas e dar um jeito para que ela entrasse na França, logo depois que Paris foi liberada, em agosto de 1944.

Era agradável ouvir as histórias de Vivian, porque ela parecia ter tanto prazer de contar, ainda que, provavelmente, fosse mesmo um pouco pervertido que um homem de trinta e cinco anos se apaixonasse por uma menina de quinze, porém Ferguson não podia deixar de notar que ele também tinha quinze anos quando fez sua viagem à França, onde conhecera Vivian Schreiber graças a relações familiares de tipo parecido, uma mulher que era não apenas vinte anos mais velha do que ele, mas sim vinte e três, no entanto, para que se dar ao trabalho de ficar fazendo contas, quando já estava estabelecido que uma pessoa tinha menos da metade da idade da outra, e, durante todos aqueles primeiros meses solitários em Paris, Ferguson, ativamente, desejou Vivian com fervor e torcia muito para que os dois acabassem indo para a cama, pois já que a vida amorosa e o casamento dela não tinham sido inibidos por questões de idade, era possível cogitar que ela estaria disposta a fazer a experiência na direção oposta, com ele, ser a parte mais velha dessa vez, enquanto ele tomaria o lugar que tinha sido dela, como a parte mais jovem, no que tinha tudo para ser uma intoxicante aventura de perversidade erótica. Ferguson a achava linda, afinal, velha em comparação com ele, mas nada velha no quadro geral das coisas, uma mulher que ainda reluzia de sensualidade e de sedução e, na sua mente, não havia a menor dúvida de que ela o achava atraente, pois sempre havia comentado como ele era bonito, como es­tava deslumbrante, quando saíam do apartamento para ir a algum jantar, e quem sabe se não era essa a razão secreta e verdadeira de Vivian ter convidado Ferguson para morar com ela — porque tinha sonhado com seu corpo e queria se aninhar em sua carne jovem? Isso permitiria entender sua generosidade inexplicável com ele, a casa e a comida de graça, as aulas particulares de graça, as roupas que ela comprou para ele, na primeira vez em que saíram para fazer compras, no Le Bon Marché, em novembro, todas as caras camisas, sapatos, suéteres que ela despejou sobre Ferguson naquele dia, os três pares de calças pregueadas de veludo cotelê, o paletó esporte com abertura dupla atrás, o casaco de inverno e a echarpe vermelha de lã, roupas francesas de primeira linha, as roupas da moda que ele adorava vestir, e por que ela faria todas essas coisas se não estivesse sentindo por ele o mesmo desejo ardente que ele sentia por ela? Brinquedo sexual. Era essa a expressão e, sim, ele ficaria bem feliz de se tornar seu brinquedo sexual, se fosse mesmo isso que Vivian tivesse em mente, porém, ainda que ela, muitas vezes, olhasse para ele como se fosse exatamente isso que andava em seu pensamento (os olhares pensativos dirigidos ao seu rosto, quando os olhos de Vivian esquadrinhavam os menores gestos de Ferguson), ele, na posição da parte mais jovem, não estava em condição de agir, não tinha o direito de dar o primeiro passo, cabia à Vivian estender a mão para ele; no entanto, por mais que desejasse que ela o tomasse em seus braços e o beijasse na boca, ou até estendesse a mão e tocasse seu rosto com a ponta dos dedos, Vivian nunca fez isso.

Ferguson a via todos os dias, mas os detalhes de sua vida privada eram um mistério para ele. Será que tinha um amante, Ferguson se perguntava, ou alguns amantes, ou uma série de amantes, ou nenhum amante? Suas saídas repentinas, às dez horas da noite, depois que os dois jantavam sozinhos, seriam a prova de que ela estava a caminho de um encontro na cama de algum homem, em algum ponto da cidade, ou ela apenas saía para beber com amigos, no fim da noite? E também suas ocasionais viagens de fim de semana, em média uma ou duas vezes por mês, em geral, para Amsterdam, pensava ele, onde parecia plausível pensar que um homem estaria à sua espera, mas então, também, agora que seu livro sobre Chardin tinha sido publicado, talvez ela andasse em busca de um novo assunto para escrever e tivesse escolhido Rembrandt ou Vermeer ou algum outro pintor holandês, cuja obra só pudesse ser vista na Holanda. Perguntas sem resposta, e, como Vivian falava livremente sobre o passado, mas não sobre o presente, pelo menos não sobre seus assuntos pessoais no presente, a única alma com quem Ferguson se sentia ligado em toda Paris, o único ser humano que ele amava, também era um estranho para ele.

Um ou dois jantares por semana no apartamento, a sós com ela, dois ou três jantares por semana em restaurantes, quase sempre com outras pessoas, amigos de Vivian, sua horda de velhos amigos de Paris, oriundos de dois mundos distintos, mas não raro sobrepostos, a arte e a literatura, pintores e es­cultores, professores de história da arte, poetas que escreviam sobre arte, galeristas e suas esposas, todos com suas carreiras já bem adiantadas, o que sig­nificava que Ferguson era sempre o mais jovem à mesa, suspeito, aos olhos de muitos, de ser o brinquedo sexual de Vivian, Ferguson se deu conta, mesmo que suas suspeitas fossem equivocadas, e como Vivian sempre o apresentava como o enteado de um de meus amigos americanos muito queridos, um bom número de pessoas entre os quatro, seis ou oito convivas naqueles jantares simplesmente o ignoravam (ninguém podia ser mais frio ou mais rude do que os franceses, Ferguson descobriu), ao passo que outros se aproximavam dele e queriam saber tudo a seu respeito (ninguém podia ser mais afetuoso ou mais democrático do que os franceses, ele também descobriu), porém, mesmo nas noites em que Ferguson era ignorado, havia o prazer de estar nos restaurantes, de tomar parte na boa vida que aqueles lugares pareciam representar, não apenas o espetáculo suntuoso do La Coupole, que ele havia testemunhado três anos antes e ainda perdurava, para ele, como a corporificação de tudo que existia de diferente entre Paris e Nova York, mas outras brasseries como Bofinger, Fouquet’s e Balzar, palácios e palacetes do século XIX, com paredes forradas de madeira e colunas espelhadas, que rumorejavam com o retinir dos talheres e o rugido murmurante de cinquenta ou duzentas e cinquenta vozes humanas, mas também os locais mais bagunçados no quinto arrondissement, onde ele comeu couscous e merguez pela primeira vez em restaurantes tunisianos e marroquinos situados em porões, e onde foi iniciado nas fragrâncias do coentro, da culinária vietnamita, a comida dos inimigos mortais dos americanos, e, por duas ou três vezes naquele outono, quando os jantares se tornaram especialmente animados e se estendiam para além da meia-noite, o grupo todo, de quatro ou cinco ou seis ou sete, saía vagando até Les Halles para tomar uma sopa de cebola no Pied de Cochon, um restaurante lotado de fregueses, à uma, às duas ou às três da madrugada, os sofisticados pretendentes a artista e os festeiros da madrugada sentados às mesas, enquanto as prostitutas do bairro ficavam de pé junto ao balcão, bebendo ballons de rouge ao lado de parrudos açougueiros em seus jalecos e aventais respingados de sangue, uma mistura de incongruência tão radical e de harmonia tão improvável que Ferguson se perguntava se tal cena poderia existir em qualquer outro lugar do mundo.

Muitos jantares, mas nenhum sexo, nenhum sexo pelo qual não tivesse de pagar e do qual, no fim, não tivesse de se arrepender, e, fora desses remorsos, nenhum contato físico com ninguém, exceto os beijos no rosto que Vivian lhe dava. De Gaulle foi reeleito presidente da república no dia 19 de dezembro, Giacometti estava morrendo na Suíça, vítima de uma doença cardíaca chamada pericardite (morreu no dia 11 de janeiro), e, toda vez que Fer­guson chegava em casa, à noite, depois da uma de suas rondas após o jantar, era detido por um guarda que pedia para ele mostrar os documentos. No dia 12 de janeiro, Ferguson começou a mal pensada terceira parte de seu livro, que lhe causou muitas dificuldades e muitas horas de trabalho jogadas fora, até que finalmente riscou tudo e imaginou um final melhor e mais adequado. No dia 20 de janeiro, enquanto ainda se encontrava no meio daquelas perturbações com seu livro, recebeu uma carta de Brian Mischevski, que estava no primeiro ano da Universidade Cornell, e, quando Ferguson terminou de examinar os quatro curtos parágrafos da carta do amigo, sentiu como se um edifício tivesse desabado em cima dele. Não só os pais de Brian se recusaram a cumprir a promessa de pagar a viagem do filho a Paris na primavera, viagem que Ferguson esperava com ansiedade, como também o próprio Brian achava que, no fim das contas, provavelmente era melhor mesmo que fosse assim, pois agora ele tinha uma namorada, e, por mais que tivesse sido divertido ficar com Ferguson no ano anterior, o que eles tinham feito não passava de coisa de criança, na verdade, e Brian tinha largado aquilo depois que entrou para a faculdade, tinha deixado tudo para trás, para sempre, e ainda que Ferguson continuasse a ser seu amigo número um de toda a vida, a amizade deles teria de ser apenas uma amizade normal dali em diante.

Normal. O que significava normal, Ferguson se perguntava, e por que não era normal para ele sentir o que sentia, quanto tinha vontade de beijar e fazer amor com outros rapazes, o sexo de um sexo só era tão normal e natural como o sexo de dois sexos, talvez até mais normal e mais natural, porque o pênis era uma coisa que os rapazes compreendiam melhor do que as moças e, portanto, era mais fácil saber o que o outro queria, sem ter de ficar adivinhando, sem ter de representar os jogos da paquera e da sedução, que podiam tornar confuso o sexo de dois sexos, e por que uma pessoa tinha de escolher entre um e outro, por que bloquear metade da humanidade em nome do normal ou do natural, quando a verdade era que todo mundo era duplo e as pessoas e a sociedade e as leis e as religiões das pessoas em sociedades diferentes apenas tinham muito medo de admitir isso. Como a garota vaqueira da Califórnia tinha lhe dito, três anos e meio antes: Eu acredito na minha vida, Archie, e não quero ter medo dela. Brian tinha medo. A maioria das pessoas tinha medo, mas ter medo era um jeito burro de viver, Ferguson sentia, um jeito desonesto e desmoralizante de viver, uma vida sem saída, uma vida sem vida.

Durante os dias seguintes, ele andava sem rumo, sentindo-se arrasado com a carta de despedida de Brian — enviada de Ithaca, em Nova York, logo de um lugar com esse nome (Ítaca!) —, e as noites eram quase insuportáveis com sua solidão. A ingestão de vinho tinto duplicou e, em duas noites consecutivas, ele vomitou na pia. Vivian, que tinha na cabeça um bom par de olhos, associados a um cérebro sagaz e observador, olhou para ele com cuidado durante seu primeiro jantar a sós depois da carta de Brian, hesitou por alguns momentos e então perguntou qual era o problema. Ferguson, que se sentia confiante de que ela não iria traí-lo como Sydney Millbanks tinha feito em sua desastrosa viagem a Palo Alto, resolveu contar a verdade, já que precisava falar com alguém e não havia mais ninguém além de Vivian.

Sofri uma decepção, disse ele.

Estou vendo, respondeu Vivian.

Pois é, uma tonelada de dor caiu em cima de mim outro dia, e ainda estou tentando superar isso.

Que tipo de dor?

Dor de amor. Na forma de uma carta de uma pessoa de quem eu gosto muito.

É duro.

Extremamente. Não fui só descartado, também fui chamado de anormal.

O que significa anormal?

No meu caso, um interesse generalizado por todo tipo de gente.

Entendo.

Entende mesmo?

Suponho que você esteja falando de garotas e rapazes, não é?

Estou, sim.

Eu sempre soube disso, Archie. Desde a primeira vez que nos conhecemos no vernissage da exposição da sua mãe.

Como podia saber?

Pela maneira como você olhava para o rapaz que servia as bebidas. E também pela maneira como olhava para mim, pela maneira como ainda olha para mim.

É tão óbvio assim?

Na verdade, não. Mas eu tenho uma boa noção das coisas... com minha grande experiência.

Quer dizer que tem bom faro para as pessoas que amam nas duas direções?

Fui casada com alguém assim.

Ah. Eu não tinha ideia.

Você é muito parecido com Jean-Pierre, Archie. Talvez tenha sido por isso que eu quis que você viesse para cá e ficasse comigo. Porque me lembra muito ele... muito.

Você sente falta dele.

Horrivelmente.

Mas deve ter sido um casamento complicado. Quero dizer, se eu continuar sendo como sou, acho que nunca vou me casar com ninguém.

A menos que seja com outra pessoa igual a você.

Ah. Eu nunca pensei nisso.

Sim, pode ser um pouquinho complicado às vezes, mas o esforço vale a pena.

Está querendo me dizer que você e eu somos iguais?

Isso mesmo. Mas também somos diferentes, é claro, porque, sem que eu nada tenha feito para isso, sou uma mulher e você, meu caro rapaz, é um homem.

Ferguson riu.

Então, Vivian riu também, o que fez Ferguson rir de novo, e, quando Ferguson riu mais uma vez, Vivian riu em resposta novamente, e em pouco tempo os dois estavam rindo juntos.

No sábado seguinte, dia 29 de janeiro, dois convidados vieram jantar no apartamento, ambos americanos, ambos velhos amigos de Vivian, um homem de cinquenta anos, chamado Andrew Fleming, que tinha sido professor de história americana de Vivian na faculdade e que agora lecionava em Columbia, e uma jovem de uns trinta anos chamada Lisa Bergman, que viera de La Jolla, na Califórnia, e havia pouco tempo se mudara para Paris a fim de trabalhar numa empresa de advocacia americana e cuja prima mais velha era casada com o irmão de Vivian. Depois da conversa de Ferguson com Vivian, no início daquela semana, que levou à chocante confissão dupla de suas inclinações iguais, mas também opostas, Ferguson se perguntou se Lisa Bergman não seria a paixão de Vivian no momento e, caso fosse mesmo assim, se sua presença à mesa naquela noite era o sinal de que Vivian tinha entreaberto a porta um pouquinho para deixar que ele visse, de relance, sua vida privada. Quanto a Fleming, que estava em Paris num semestre sabático para concluir a redação da parte final de seu livro sobre o que ele denominava de os velhos rapazes americanos na França (Franklin, Adams, Jefferson), e era tão óbvio que não era um homem talhado para as mulheres, era tão óbvio que se tratava de um homem interessado apenas em homens, que, depois de vinte ou trinta minutos, num lampejo, passou pela cabeça de Ferguson que ele estava participando de seu primeiro jantar puramente homoerótico desde aquela horrível noite em Palo Alto. Dessa vez, porém, estava se divertindo.

Era bom estar entre americanos outra vez, era tão confortável e espontâneo, tão agradável ficar com pessoas que compartilhavam as mesmas referências e riam das mesmas piadas, os quatro tão diferentes entre si e, no entanto, batiam papo à vontade como se tivessem sido amigos havia anos, e, quanto mais Ferguson examinava a maneira como Vivian olhava para Lisa, e quanto mais ele observava a maneira como Lisa olhava para Viv, mais certo ele se sentia de que sua intuição estava correta, que as duas estavam mesmo envolvidas, e isso deixou Ferguson feliz por Vivian, pois queria que ela tivesse tudo e qualquer coisa que seu bom coração desejasse, e aquela Lisa Bergman, como em Ingrid e Ingmar, um Bergman sueco, em oposição a um Bergman alemão ou judeu, era um personagem absolutamente fascinante, um par animado e vivo para Viv, que merecia tudo de bom.

Grande. Era a primeira coisa que se notava nela, a grandeza do corpo, um metro e setenta e oito de altura, ossos grandes, uma garota troncuda, sem nem um pingo de gordura, sólida, de ombros largos, braços grossos e vigorosos, seios grandes e cabelo extremamente louro, uma loura do sul da Califórnia, de rosto redondo e bonito, pestanas descoloridas, quase invisíveis, o tipo de mulher que Ferguson imaginaria ganhando medalhas numa competição de arremesso de peso e de lançamento de disco numa Olimpíada de verão, uma amazona sueco-americana que parecia ter saltado das páginas de uma revista de nudismo, nudismo sóbrio, consciente e saudável, a campeã de levantamento de peso das colônias nudistas de todo o mundo civilizado, e era divertida, diabolicamente divertida, e sem constrangimentos, ria no meio das frases, a cada duas frases que dizia, frases deliciosamente americanas, apimentadas com palavras que levaram Ferguson a entender quanta falta ele sentia de ouvir aquilo desde que havia partido de Nova York, palavras de duas sílabas, sempre a postos, como “dinky” (fofo), “dorky” (cretino), “grotty” (detestável), “snazzy” (bacana), “goofy” (pateta), “snooty” (metido), “crummy” (caído), “cruddy” (nojento), “crappy” (uma bosta), “gunky” (grudento) e ainda outras bem maldosas, como em “maravilhoso” ou “fantástico”, e, fosse qual fosse o tipo de direito que ela praticava em Paris, sobre isso Lisa não falava nenhuma palavra.

Em contraste, Fleming, de meia-idade, era baixinho e gorducho, um metro e sessenta e sete, no máximo, com um jeito de andar parecido com um pato e uma barriga considerável, que sobressaía por baixo do suéter com gola em V embaixo do paletó, mãos pequenas e carnudas, rosto sem queixo e pelancudo, e com um estranho e incomum par de óculos com aros de chifre, com lentes grandes, empoleirado no nariz. Um jovem professor que, de repente e de forma irrevogável, deixara de ser jovem. Um veterano professor universitário, com uma leve gagueira e cabelos grisalhos cada vez mais escassos na cabeça, mas também vivo e alerta para as outras três pessoas à mesa, um homem que tinha lido muito, sabia muita coisa, mas não falava sobre si nem tampouco sobre seu trabalho, pois era esse o jogo que eles todos estavam jogando naquela noite, Lisa, a advogada, não falava sobre direito, Vivian, que escrevia sobre arte, não falava sobre arte, Ferguson, o memorialista, não falava sobre suas memórias, Fleming, o historiador, não falava sobre os velhos rapazes americanos em Paris, e, a despeito de alguns lapsos ocasionais de gagueira, Fleming se expressava em frases limpas, articuladas com fluência, participava de forma ativa da conversa geral sobre todas as coisas e sobre coisa nenhuma, política, por exemplo, bien sûr, a guerra no Vietnã e o movimento contra a guerra, no seu país natal (duas vezes por mês, Ferguson recebia relatórios de sua prima Amy, em Madison), De Gaulle e as eleições francesas, o recente suicídio de um homem chamado Georges Figon, pouco antes de ser preso pelo sequestro de Mehdi Ben Barka, o político marroquino cujo paradeiro continuava ignorado, mas também digressões triviais em assuntos como tentar lembrar o nome da atriz que trabalhou no filme cujo título ninguém conseguia lembrar ou — nisso, Lisa se destacava — recitar as letras de obscuras canções populares da década de 1950.

O jantar se prolongava lentamente e de forma agradável, três horas langorosas de comida e conversa, além de grande quantidade de vinho, e depois eles partiram para o conhaque, e, quando Ferguson e Fleming ergueram suas taças para brindar, Vivian falou algo para Lisa sobre querer lhe mostrar alguma coisa em algum lugar no apartamento (Ferguson tinha parado de prestar atenção nessa altura, mas esperava que as duas estivessem saindo para poderem se agarrar no escritório ou no quarto de Vivian), e, na hora em que as duas saíram, deixando Ferguson sozinho à mesa com Fleming, e depois de um momento de constrangimento em que nenhum dos dois disse nada, porque nenhum deles sabia o que dizer, Fleming sugeriu que fossem lá para cima, para visitar o quarto de Ferguson, o qual mais cedo, naquela noite, Ferguson tinha descrito como o menor quarto do mundo, e, embora Ferguson risse e comentasse, estupidamente, que não havia grande coisa para se ver lá, senão uma escrivaninha bagunçada e uma cama em desordem, Fleming disse que não importava, ele estava simplesmente curioso de ver como era o menor quarto do mundo.

Se fosse qualquer outra pessoa que não Fleming, provavelmente Ferguson teria dito que não, mas, no correr da noite, ele tinha começado a gostar do professor universitário e se sentiu atraído por ele por causa da bondade que via em seus olhos, algo mais terno e mais compassivo e triste, uma dor de sofrimento causada pelo que Ferguson imaginava ser uma constante pressão interna para esconder do mundo quem ele era, um homem da geração que ficava no armário, que tinha passado trinta anos se esquivando em esquinas escuras e se desviando dos olhares desconfiados dos colegas e dos estudantes, e certamente todos haviam sempre implicado com ele por ser efeminado, mas contanto que se comportasse e mantivesse as mãos afastadas dos inocentes e desprevenidos, continuariam a permitir, com rancor, que ele pisasse no gramado do clube campestre das suas universidade de elite, e, durante todo o tempo do jantar, com Ferguson sentado à mesa, pensando na desolação que devia ser uma vida assim, começou a sentir pena de Fleming, talvez tenha até começado a sentir piedade dele, e por essa razão respondeu que sim ao convite para a jornada até o último andar do prédio, em vez de dizer não, apesar de aquilo estar começando a lhe dar a velha sensação de Andy Cohen, de estar com uma pessoa que dizia uma coisa e queria dizer outra, mas também, que diabo, pensou Ferguson, ele já estava bem grandinho agora, e não tinha de fazer a vontade de ninguém que ele não quisesse atender, muito menos de um homem quase velho, gentil, pelo qual não sentia a menor atração física.

Puxa vida, disse Fleming, quando Ferguson abriu a porta e acendeu a luz do quarto. É mesmo muito, muito pequeno, Archie.

Ferguson puxou a colcha às pressas por cima do lençol sobre a cama, e fez um gesto para Fleming sentar, enquanto pegava a cadeira da escrivaninha e sentava também frente a frente com Fleming, tão perto dele, no quarto atulhado, que seus joelhos quase se tocavam. Ferguson ofereceu um cigarro Gauloise para Fleming, mas o professor balançou a cabeça e recusou, de repente pareceu nervoso e distraído, nem de longe seguro, era como se quisesse dizer algo, mas não soubesse absolutamente como dizer. Ferguson acendeu um cigarro para si e perguntou: Está tudo bem?

Eu estava só pensando... pensando quanto... quanto você ia querer?

Querer? Não estou entendendo. Querer o quê?

Quanto... dinheiro.

Dinheiro? Do que está falando?

Vivian me disse que você... disse que você está precisando de dinheiro, que... que vive com o dinheiro muito curto.

Ainda não estou entendendo. Está querendo dizer que quer me dar dinheiro?

Isso. Se isso for do seu agrado... para... para... ser bom comigo.

Bom?

Sou um homem solitário, Archie. Preciso que toquem em mim.

Naquele momento Ferguson entendeu. Fleming não subiu com ele com nenhum plano ou expectativa de seduzir, mas estava disposto a pagar em troca de sexo, caso Ferguson aceitasse, pagaria porque sabia que nenhum jovem ia querer tocar nele sem ser pago, e, pelo prazer de ser tocado por um homem jovem e desejável, Fleming estava disposto a transformar esse jovem numa prostituta, numa Julie masculina, para comer sua bunda, embora ele provavelmente não estivesse pensando naqueles termos grosseiros, pois não seria o sexo anônimo de prostituta e cliente, mas entre duas pessoas que já se conheciam, o que transformaria aquela transação num gesto de caridade, um homem velho dava a um jovem um dinheiro de que ele muito precisava e o velho seria recompensado com um tipo de caridade diferente, e, enquanto os pensamentos de Ferguson rodopiavam em sua cabeça, argumentando que sua mesada escassa não podia ser considerada motivo de penúria, por causa do aluguel de graça, da comida de graça e das roupas de graça, que provinham da circunstância de ele morar sob a proteção de sua benfeitora rica e, no entanto, apesar de tudo, viver com uma soma que redundava em dez dólares por dia para cobrir todas as demais despesas não era nada fácil, não quando havia tantos livros sobre filmes que ele queria comprar e não tinha dinheiro, não quando queria ter um toca-discos e uma coleção de discos para ouvir à noite, em vez das maçantes transmissões de rádio da France Musique; sim, mais dinheiro iria ajudá-lo, mais dinheiro iria fazer Ferguson sentir-se melhor em uma porção de maneiras diferentes, mas será que estava disposto a fazer o que Fleming queria que fizesse para obter aquele dinheiro, e qual seria a sensação de fazer sexo com alguém que era fisicamente repulsivo para ele, qual seria a sensação, e quando Ferguson se fez essa pergunta, de repente imaginou como seria rico se consentisse em tais atividades como uma ocupação paralela, dormir com turistas americanos solitários de meia-idade em troca de dinheiro, um parrudo jovem de aluguel para os homens, um jovem gigolô charmoso para as mulheres, e embora houvesse algo moralmente errado naquilo, ele supôs, algo de malvado, para usar a palavra que Lisa tinha empregado várias vezes naquela noite, era só uma questão de sexo, o que nunca era errado, desde que as duas pessoas quisessem mesmo aquilo, e além do dinheiro haveria a recompensa adicional de experimentar muitos orgasmos, ao mesmo tempo que trabalhava para ganhar aquele dinheiro, o que vinha a ser qua­se cômico, quando se parava para pensar no assunto por um momento, pois, neste mundo, um orgasmo era a única coisa indiscutivelmente boa que o dinheiro não podia comprar.

Ferguson inclinou-se para a frente e perguntou: Por que Vivian contou para você que eu ando com pouco dinheiro?

Não sei, respondeu Fleming. Ela estava só conversando comigo sobre você... e... mencionou que você vivia... quais foram mesmo as palavras?... na maior... na maior dureza.

E o que fez você imaginar que eu estaria interessado em ser bom com você?

Nada. Só uma esperança, só isso... Uma... sensação.

E em quanto dinheiro você está pensando?

Não sei. Quinhentos francos? Mil francos? Diga você, Archie.

Que tal mil e quinhentos?

Eu... eu acho que posso pagar isso. Deixe-me dar uma olhada.

Quando Ferguson viu Fleming meter a mão no bolso de dentro do paletó e tirar a carteira, entendeu que, na verdade, já estava aceitando a negociação, que, em troca da mesma quantidade de dinheiro que recebia mensalmente dos pais, ele ia tirar a roupa na frente daquele homem gordo e meio careca e fazer sexo com ele, e, quando Fleming começou a contar as notas na carteira, Ferguson se deu conta de que estava apavorado, morto de medo, apavorado da mesma forma como tinha estado quando roubava livros da livraria Mundo do Livro, em Nova York, um calor por baixo da pele, provocado pelo que ele, certa vez, tinha descrito para si mesmo como a cauterização do medo, uma queimadura que agora se espalhou tão depressa pelo corpo que aquele latejar em sua cabeça beirava a excitação, sim, era isso, o medo e a excitação de ultrapassar o limite do que era permitido, e, embora Ferguson tenha sido considerado culpado e pudesse ter de passar seis meses na prisão, o que teoricamente o ensinaria a nunca mais chegar nem perto do limite, ele continuava a desafiar o não Deus, o Deus impostor de sua infância, a descer e esmagá-lo se tivesse coragem, e agora que Fleming havia retirado da carteira doze notas de cem francos e seis notas de cinquenta e tinha guardado de novo a carteira no bolso, Ferguson ficou tão indignado consigo mesmo, tão enoja­do com a própria fraqueza, que se chocou ao ouvir a crueldade na própria voz, quan­do disse para Fleming:

Ponha o dinheiro na escrivaninha, Andrew, e apague a luz.

Obrigado, Archie. Eu... eu não sei como agradecer a você.

Ele não queria olhar para Fleming. Não queria nem vê-lo, e, ao não olhar e não ver, tinha esperança de poder fingir que Fleming não estava ali, que era outra pessoa que tinha subido com ele para seu quarto, e que o próprio Fleming não havia estado no jantar naquela noite e que Ferguson nunca o tinha conhecido, nunca sequer soubera que existia alguém chamado Andrew Fleming na face da Terra.

A operação seria feita no escuro ou não haveria nada — daí a ordem para apagar a luz —, mas agora que Ferguson se levantara da cadeira e começara a tirar a roupa, a luz se acendeu no corredor social, a minuterie (luz de um minuto) que era acesa vezes seguidas por diversas pessoas ao longo do dia, e, como havia alguns vãos entre o portal e a porta mal encaixada, a luz entrou de repente, só o bastante para não ficar escuro, agora que seus olhos tinham se adaptado ao escuro, luz bastante para ele distinguir o contorno protuberante do corpo de Fleming, agora nu, o que fez com que Ferguson voltasse os olhos para o chão enquanto subia na cama alta de madeira, com a funda gaveta embutida embaixo do colchão, e depois, quando já estava na cama, voltou os olhos para cima e olhou para a parede, enquanto Fleming começava a beijar seu peito nu e deslizava a mão para seu pênis, que endurecia lentamente e que, depois de uma vigorosa manipulação, acabou metido na boca de Fleming. Mais adiante, quando o submisso Ferguson se viu deitado de costas e não podia mais olhar para a parede, virou os olhos para a janela, pensando que a visão do lado de fora poderia ajudá-lo a esquecer que estava ali dentro, aprisionado naquele quarto pequeno demais, mas, naquele instante, a luz do corredor acendeu de novo e transformou a janela num espelho que refletiu o que estava dentro do quarto, e lá estava ele com Fleming em cima da cama, ou melhor, lá estava Fleming em cima dele, na cama, com a bunda flácida, achatada de velho empinada no ar, e, no instante em que Ferguson viu aquela imagem na janela, transformada em espelho, fechou os olhos.

Sempre tinha feito amor de olhos abertos, sempre com os olhos bem abertos, porque adorava olhar para a pessoa com quem estava, e, deixando de fora Andy Cohen e algumas das prostitutas que vagavam por Les Halles, ele nunca havia estado com alguém por quem não sentisse uma forte atração, pois o prazer de tocar alguém e também ser tocado por uma pessoa de quem ele gostava era realçado ao olhar para essa pessoa, os olhos tinham tanto a ver com o gozo quanto qualquer outra parte do corpo, mesmo a pele, mas agora, pela primeira vez desde que conseguia se lembrar, estava com alguém às cegas, o que o isolou daquele quarto e do momento presente, e, mesmo quando Fleming pediu a Ferguson que segurasse seu pênis e cuspisse nele, Ferguson já não estava mais presente ali por inteiro, sua mente produzia imagens que nada tinham a ver com o que acontecia na cama, em seu quartinho do último andar na Rue de l’Université; Odisseu e Telêmaco choravam nos braços um do outro, Ferguson corria a mão pelas nádegas adoráveis, redondas e musculosas de Brian Mischevski, que ele nunca mais veria nem tocaria, e a pobre Julie, cujo sobrenome ele nunca chegou a saber, estava morta, estirada num colchão sem lençol, em seu quarto, no Hôtel des Morts.

Agora Fleming pediu que Ferguson penetrasse nele, por favor, disse ele, sim, se quiser, obrigado, bem fundo, até o fim, e enquanto o ainda cego Ferguson conduzia sua ereção para dentro do amplo orifício do homem invisível, o professor grunhia, depois começou a gemer, depois continuou a gemer, enquanto o pênis de Ferguson se movia, uma onda de sons agoniantes que não podiam ser bloqueados, porque Ferguson não estava preparado para aquilo, ao contrário das coisas visuais para as quais havia se preparado e havia conseguido apagar, porém, ainda que tapasse os ouvidos, os sons continuariam a ser escutados, nada podia impedir, e então acabou de repente, a ereção de Ferguson foi amolecendo e encolhendo, já não era possível manter de pé, nem a ereção nem o que ele estava fazendo, tudo havia acabado, ele estava se retirando, tinha terminado sem chegar a terminar, mas era o fim de tudo aquilo, era o fim e era para sempre.

Desculpe, disse ele. Não consigo fazer isso.

Ferguson sentou-se na cama, de costas para Fleming, e de repente um jato de ar encheu seus pulmões, encheu-o a ponto de sufocá-lo, e então o ar se projetou para fora, também num jato, num único e prolongado soluço, um som de ânsia de vômito tão alto quanto uma tosse alta, tão alto quanto o latido de um cão, um uivo entrecortado que disparou através de sua traqueia, irrompeu no ar à sua volta e o deixou ofegante, sem fôlego.

Nenhum sentimento era pior do que aquele. Nenhuma vergonha era mais terrível.

Enquanto Ferguson chorava em silêncio com o rosto coberto pelas mãos, Fleming tocou seu ombro e disse que lamentava muito, nunca deveria ter subido ao seu quarto e pedido para fazer aquilo, era uma coisa errada, não sabia como aquilo podia ter acontecido, mas, por favor, disse ele, você não deve deixar que isso o desanime, não tem nenhuma importância, eles tinham bebido demais, estavam com a cabeça fora de ordem, tudo foi um erro, e tome aqui mais mil francos, disse ele, tome aqui mais mil e quinhentos francos, e por favor, Archie, saia por aí e gaste em alguma coisa boa para você, algo que deixe você feliz.

Ferguson se levantou da cama e pegou o dinheiro na escrivaninha. Não quero seu dinheiro fedorento, disse, amassando as notas no punho cerrado. Nem um franco do seu dinheiro desgraçado.

E então, ainda nu, andou até o canto norte do quarto, abriu as duas metades da comprida janela dupla, saiu para a sacada e jogou o bolo de notas no ar frio da noite de janeiro.


5.4

Ele tinha dezoito anos e ela, dezesseis. Ele estava prestes a começar a faculdade e ela estava no início do penúltimo ano do ensino médio, mas antes de perder mais tempo pensando nela, antes desperdiçar mais um segundo imaginando o possível futuro a que podiam, ou não, estar destinados a compartilhar um dia, ele resolveu que tinha chegado o momento de fazer o teste com ela. Linda Flagg tinha levado bomba nesse teste, três anos antes, mas Amy Schneiderman e Dana Rosenbloom tinham sido aprovadas. Aquelas duas eram as únicas garotas que ele tinha amado na vida, e, embora ainda as amasse de formas diferentes, agora Amy era sua meia-irmã e nunca o amara do mesmo jeito que ele a amava, e, embora Dana o tivesse amado mais do que ele merecia ser amado, ela tinha ido embora e morava em outro país, tinha ido embora para sempre, para toda a vida.

Ele sabia que havia algo de louco naquela história toda, uma precária lógica das quatro da madrugada, na ideia de que ele pudesse desfazer a maldição da morte de Artie ao se apaixonar pela irmã de seu amigo falecido, só que havia mais do que isso, ele dizia a si mesmo, havia uma autêntica atração por Celia, cada vez mais encantadora, que puxou o pai esbelto e não trazia nenhuma semelhança genética com a mãe, corpulenta e com excesso de peso, mas que era tão linda quanto Celia estava ficando e com uma cabeça tão perspicaz quanto era a da mãe; com certeza, Ferguson nunca tinha ficado sozinho com ela, e, nenhuma vez, desde o dia do enterro, chegou a conversar com ela sem a presença dos pais, ele ainda não sabia ao certo como era aquela garota, lá no fundo, se era a garota de classe média recatada e submissa que ficava calada à mesa durante as visitas de Ferguson a New Rochelle, ou se era uma pessoa com espírito, feita com o tipo de estofo que faria Ferguson andar atrás dela quando chegasse a hora.

Ele chamou aquele teste de Exame de Iniciação do Restaurante Automático Horn & Hardart.

Se ela ficasse tão extasiada com sua primeira visita ao restaurante automático quanto ele mesmo tinha ficado, quanto seus dois amores do ensino médio tinham ficado no tempo em que tinham mais ou menos a mesma idade que ela, então a porta continuaria aberta e ele continuaria a pensar em Celia e a esperar que ela crescesse.

Caso contrário, a porta se fecharia e Ferguson deixaria de escanteio sua tola fantasia de tentar corrigir as injustiças do mundo e nunca mais pensaria em abrir a porta.

Telefonou para a casa de New Rochelle na quinta-feira, depois do Dia do Trabalho. Ferguson ia ficar duas semanas sem ir para Princeton, mas as escolas públicas já estavam em aulas e ele torcia para que ela estivesse livre para um encontro na tarde daquele sábado ou, pelo menos, no sábado seguinte.

Quando Celia atendeu o telefone e ouviu a voz dele, supôs que Ferguson queria falar com a mãe para marcar mais um jantar em sua casa. Quase baixou o fone, antes que ele pudesse lhe dizer que não, que era com ela mesma que queria falar, e, depois de perguntar como se sentia de volta às aulas (etc. etc.) e se estava tendo aulas de biologia, física ou química naquele ano (física), perguntou se ela não gostaria de se encontrar com ele em Manhattan naquele sábado ou no sábado seguinte para almoçar e ver um filme ou visitar um museu ou qualquer outra coisa que ela gostasse de fazer.

Você está brincando, é claro, disse ela.

Brincando, por quê?

É só que... bem, deixe pra lá, não tem importância.

E então?

Sim, estou livre, sim. Neste sábado e também no outro, à tarde.

Então, que tal neste sábado?

Está certo, Archie, neste sábado.

Marcaram na estação Grand Central, e, depois de passar dois meses e meio sem se encontrar com ela, ficou animado ao ver como estava bonita, sua pele suave, cor de xarope de bordo, agora um pouquinho mais escura, por causa do sol de verão de New Rochelle, onde ela havia trabalhado como conselheira assistente e instrutora de natação numa colônia de férias para crianças pequenas, o que deixava seus dentes e o branco de seus olhos com uma claridade realçada, e a blusa branca simples e a saia azul-celeste e ondulante que tinha vestido naquela tarde lhe caíam muito bem, pensou Ferguson, assim como o batom rosado que estava usando, que acrescentava mais um toque de cor ao retrato geral, feito de brancos, azuis e marrons, e, como o dia estava quente, ela havia prendido o cabelo escuro, que batia nos ombros, num coque de bailarina, o que deixava exposto seu pescoço comprido e gracioso, e Ferguson ficou tão impressionado com toda aquela imagem, quando ela caminhou em sua direção e apertou sua mão, que teve de parar e lembrar que ela ainda era jovem demais para ele, que aquilo não passava de um encontro de amizade e que, além de seu aperto de mão inicial e do outro aperto de mão que trocariam na hora da despedida, ele não devia, em nenhuma circunstância, nem pensar em pôr as mãos nela.

Aqui estou eu, disse Celia. Agora, me diga por que eu estou aqui.

Enquanto caminhavam para o centro, da rua 42 Leste rumo ao quarteirão entre a Sexta e a Sétima Avenidas, na rua 57 Oeste, Ferguson tentou explicar o que o tinha levado a telefonar para ela, do nada, mas Celia mostrou-se cética, não se convenceu com as histórias que ele contou sobre o motivo, balançava a cabeça quando ele vinha com disparates como: eu vou para a faculdade daqui a pouco tempo e não teremos mais chance de nos ver neste outono, ao que ela retrucava: E desde quando me ver foi alguma coisa importante para você?, como quando ele disse: Somos amigos, isso não basta?, ao que ela retrucou: Somos amigos? Você e meus pais são amigos, talvez, mais ou menos amigos, mas você falou comigo no máximo umas cem palavras nos últimos quatro anos, e por que você quer sair com uma pessoa que você quase não se dá conta de que está viva?

A garota tinha espírito, Ferguson pensou, aquilo estava bem claro, bem estabelecido. Ela havia se tornado uma garota orgulhosa e esperta, que não tinha medo de dizer o que pensava, mas, junto com aquela segurança recém-descoberta, também havia adquirido um talento para fazer perguntas que não tinham resposta, pelo menos respostas que ele pudesse dar sem parecer maluco. A todo custo, tinha de manter Artie fora da conversa, mas agora que ela havia contestado suas razões, Ferguson entendeu que teria de lhe dar respostas melhores do que as capengas explicações que dera até ali, respostas verdadeiras, a verdade completa sobre todas as coisas, menos sobre o irmão dela, e então começou de novo, dizendo que tinha telefonado porque, francamente, queria vê-la, o que era mesmo o caso, e a razão pela qual desejava vê-la a sós era porque achava que estava na hora de aprofundar a amizade entre os dois, em particular, independente dos pais e da casa em New Rochelle. Ainda relutante em aceitar quaisquer das explicações de Ferguson como remota ou plausivelmente verdadeiras, Celia indagou por que ele se deu àquele trabalho, por que ia querer gastar seu tempo com ela, uma simples aluna do ensino médio, quando já estava a caminho de Princeton, e mais uma vez Ferguson lhe deu uma resposta simples e autêntica. Porque agora ela já estava grande, disse Ferguson, tudo era diferente e ia continuar a ser diferente dali em diante. Ela havia adquirido o costume equivocado de olhar para ele como se fosse uma pessoa mais velha, mas o calendário dizia que só havia dois anos de diferença entre ambos e, dali a pouco, dois anos de diferença já não teriam mais a menor importância para o que quer que fosse, e, para todos os efeitos, os dois seriam da mesma idade. Para dar um exemplo, Ferguson começou a falar sobre seu meio-irmão, Jim, que era quatro anos mais velho que ele e, mesmo assim, era um de seus melhores amigos, uma pessoa que o encarava como um igual, em todos os sentidos, e agora que Jim tinha sido reprovado no exame físico do Exército por causa de um sopro no coração mal diagnosticado e tinha preferido fazer a pós-graduação em Princeton, o que poria os dois no mesmo campus, ao mesmo tempo — que sorte! —, eles estavam planejando se encontrar o máximo possível e estavam até fazendo o mapa de uma viagem que fariam juntos, em algum momento na primavera ou no início do verão — iriam de Princeton para Cape Cod a pé, seguindo até o ponto mais extremo do cabo, sem pegar nem carro nem trem nem ônibus ou, nem pense nisso, montar numa bicicleta.

Celia estava começando a amolecer, mas, ainda assim, falou: Jim é seu irmão. Isso faz muita diferença.

Meu meio-irmão, disse Ferguson. E só de quatro anos para cá.

Tudo bem, Archie, acredito em você. Mas se você quer ser meu amigo agora, vai ter de parar de agir como se fosse meu irmão mais velho, meu irmão mais velho postiço. Entendeu?

Claro que entendi.

Nada dessa história de irmão de mentira, e chega também dessa história de Artie, porque eu não gosto disso e jamais gostei. É ruim e é bobo, e não fez bem nenhum para ninguém.

Concordo, disse Ferguson. Chega dessa história. Para sempre.

Eles tinham acabado de virar para oeste, deixando para trás a Madison Avenue, e começavam a caminhar pela rua 57. Depois de quinze quarteirões de dúvida, perplexidade e debates contenciosos, foi declarado um cessar-fogo e agora Celia estava sorrindo, Celia estava escutando as perguntas de Ferguson e dizia que, é claro, sabia o que era um restaurante automático, e é claro que já tinha ouvido falar do Horn & Hardart, mas não, isso ela admitia, até onde podia lembrar, nunca tinha posto os pés naquele lugar, nem mesmo quando era pequena. E aí perguntou: Como é que é lá, e por que estamos indo para lá?

Você vai ver, respondeu Ferguson.

Ele queria, agora, lhe dar todas as chances possíveis, a maior margem de erro, porque queria muito que ela passasse no teste, chegou mesmo ao ponto de violar as regras e permitir que a indiferença valesse tanto quanto o entusiasmo completo e apaixonado. Só a antipatia ou o escárnio a eliminariam no teste, disse Ferguson consigo, algo equivalente ao nojo que tinha visto nos olhos de Linda Flagg quando ela ergueu os olhos e viu a mulher negra de cento e trinta e cinco quilos falando sozinha sobre o menino Jesus morto, mas aí, antes que ele pudesse levar aquele pensamento adiante, já haviam chegado ao restaurante automático e estavam andando dentro daquela caixa brilhante maluca, feita de vidro e metal cromado, e as primeiras palavras que saíram da boca de Celia pôs fim a suas preocupações antes que elas tivessem a menor chance de se confirmarem. Minha Nossa, disse ela. Que lugar mais incrível e bacana.

Sentaram com seus sanduíches e conversaram, em geral sobre o verão, que, no caso de Ferguson, tinha passado com ele carregando móveis para a empresa de mudanças junto com Richard Brinkerstaff, indo ao cemitério, para o enterro da sua avó e do avô de Jim e de Amy, e escrevendo sua pequena saga, Viagens de Mulligan, livro que ia ter vinte e quatro partes ao todo, disse ele, cada uma com cinco ou seis páginas, cada uma seria o relato de uma viagem a algum país imaginário, os relatos antropológicos de Mulligan eram destinados à Associação Americana de Almas Deslocadas e, como agora já estava com doze partes prontas, tinha esperança de que o estudo na faculdade não fosse tão esmagador que o impedisse de prosseguir com o livro depois que se mudasse para Princeton. Quanto a Celia, além de ter mergulhado bastante em piscinas junto com crianças durante o dia, havia tido aulas noturnas de francês e de trigonometria na faculdade de New Rochelle, e agora que tinha acumulado aqueles créditos adicionais, já poderia terminar o ensino médio, após o penúltimo ano, com apenas mais um curso extra de um semestre, o que significava que ela poderia começar a faculdade no outono seguinte, e, quando Ferguson perguntou Por que toda essa pressa?, ela respondeu que estava cheia de morar naquela cidadezinha suburbana furreca e queria dar o fora para estudar em Nova York, ou em Barnard ou na NYU, para ela, tanto fazia uma como outra, e Ferguson ficou escutando, enquanto ela enumerava os motivos por trás da sua fuga da prisão, e teve a sensação repentina e vertiginosa de que estava ouvindo a si mesmo, pois o que ela estava dizendo e pensando sobre sua vida parecia quase idêntico ao que ele mesmo tinha dito e pensado durante anos.

Em vez de lhe dar os parabéns por ser a aluna mais inteligente e ambiciosa do mundo, o que, sem dúvida nenhuma, acabaria levando os dois a falar sobre as boas notas de Artie e como aquelas notas boas pareciam estar no sangue da família, Ferguson perguntou o que ela queria fazer depois do almoço. Havia muitos filmes passando naquela tarde, disse ele, inclusive um filme novo dos Beatles (Help!) e o último filme do Godard, Alphaville, que Jim já tinha visto e do qual não conseguia parar de falar, mas Celia tinha a impressão de que seria mais agradável visitar um museu ou uma galeria, onde poderiam continuar conversando um com o outro, em vez de ter de ficar sentados no escuro por duas horas, escutando os outros falarem. Ferguson fez que sim com a cabeça e disse: Bom argumento. Podiam, então, andar até a Quinta Avenida, direto até o Frick, no centro, e passar a tarde lá, olhando quadros de Vermeer, Rembrandt e Chardin. Está bem? Sim, estava ótimo. Mas, primeiro, acrescentou ele, mais uma xícara de café antes de sair, e um instante depois ele pulou da cadeira e sumiu com suas duas xícaras vazias.

Ferguson se afastou só por um minuto, mas nesse tempo Celia notou um homem sentado numa mesa ao lado deles, um velhinho miúdo, que ficara oculto, por trás do ombro de Ferguson, e, quando ele voltou com as xícaras de café recarregadas e dois potes de creme de leite, viu que Celia estava olhando para ele com tamanha desolação nos olhos que Ferguson perguntou se havia algum problema.

Estou com tanta pena dele, disse ela. Aposto que não comeu nada o dia todo. Fica ali sentado, olhando para sua xícara de café como se tivesse medo de beber, porque, depois que o café acabar, não vai ter dinheiro para comprar outra xícara, e aí vai ter de ir embora.

Ferguson, que tinha notado o velho quando estava voltando para a mesa, achou que não seria educado virar-se e olhar para ele de novo, mas, sim, o homem o havia impressionado como um solitário desamparado, um beberrão grisalho e maltratado, de unhas sujas e cara triste de duende, e Celia provavelmente tinha razão quando achou que ele havia gastado seu último centavo.

Acho que a gente devia dar alguma coisa para ele, disse ela.

Devia sim, respondeu Ferguson, mas temos de lembrar que ele não pediu nada para nós e, se a gente simplesmente chegar lá e lhe der algum dinheiro, porque estamos com pena dele, pode até ficar ofendido, e aí todas as nossas boas intenções só vão servir para que ele se sinta ainda pior do que já está.

Você talvez tenha razão, disse Celia, ao erguer sua xícara e aproximá-la da boca, mas, ao mesmo tempo, talvez esteja errado.

Os dois terminaram e se levantaram das cadeiras. Celia abriu a bolsa e, quando estavam andando na direção do velho, sentado na mesa vizinha, ela meteu a mão na bolsa, puxou um dólar e colocou na frente dele.

Por favor, senhor, disse ela, vá lá e compre alguma coisa para comer, e o velho, pegando a nota e enfiando no bolso, ergueu os olhos e disse: Obrigado, senhorita. Deus a abençoe.

Mais tarde seria mais tarde, sem dúvida um mais tarde extremamente instrutivo e gratificante, um mais tarde feito de tardes e, talvez, até noites com a admirável e ainda jovem demais Celia, mas agora era o agora, e por enquanto o mundo tinha se deslocado para o brejo de amoreiras e para a baixada pantanosa do centro de Nova Jersey, por enquanto o mundo consistia, por completo, em ser ele um dos oitocentos calouros da universidade e tentar adaptar-se às suas novas circunstâncias. Ferguson se conhecia bem o bastante para saber que, provavelmente, não iria se adaptar, que naquele lugar haveria coisas de que ele não ia gostar, mas ao mesmo tempo estava determinado a tirar o máximo proveito das coisas de que ia gostar e, com esse objetivo, já havia estabelecido cinco mandamentos pessoais antes de sua partida para Princeton, cinco leis que ele pretendia seguir à risca durante todo o tempo:

1) Fins de semana em Nova York o maior número de vezes possível. Depois da repentina e calamitosa morte da avó, em julho (insuficiência cardíaca congestiva), seu avô, agora viúvo, dera para ele uma chave do apartamento na rua 58 Oeste, junto com a autorização de uso irrestrito do quarto vago, o que significava que sempre teria um lugar para passar a noite. A promessa daquele quarto representava um exemplo singular da conjunção do desejo com a oportunidade, pois, na maioria das tardes de sexta-feira, Ferguson poderia sair do campus e pegar o trem de um só vagão que fazia o trajeto de ida e volta entre Princeton e o Entroncamento de Princeton (trem conhecido pelo nome de Furreco, como em cidadezinha suburbana furreca) e depois passar para o trem maior e mais ligeiro que disparava para o norte, rumo ao centro de Manhattan, para a nova e feia Estação Penn, em contraste com a estação antiga e linda, que tinha sido demolida em 1963, mas, deixando de lado as mancadas arquitetônicas, ainda era Nova York e as razões para ir até lá eram múltiplas. A razão negativa era que aquilo lhe permitia escapar do abafamento de Princeton, em troca de um jato de ar fresco, para variar (muito embora o ar de Nova York não fosse nada fresco), o que tornaria o abafamento de Princeton mais suportável, e talvez até agradável (no seu jeito peculiar de abafamento), durante o tempo que ficasse no campus. A razão positiva era a antiga razão do passado: densidade, vastidão, complexidade. Outra razão positiva era a chance que ele teria de passar um tempo com o avô e pôr em dia sua amizade com Noah, o que era vital para ele. Ferguson contava fazer novas amizades na faculdade, queria fazer amigos, desejava muito fazer amigos, mas será que algum daqueles amigos seria tão importante para ele quanto Noah?

2) Nada de oficinas literárias. Uma decisão difícil, mas Ferguson pretendia fincar pé nessa regra até o fim. Difícil porque o programa de graduação em Princeton era um dos mais antigos do país, o que significava que ele podia acumular créditos acadêmicos fazendo aquilo que já fazia normalmente, ou seja, ser recompensado pelo privilégio de poder trabalhar duro em seu livro, o que, em troca, significava que sua carga de estudos seria efetivamente aliviada, com um curso a menos a cada semestre, o que lhe daria mais tempo não só para escrever, mas também para ler, ver filmes, ouvir música, beber, andar atrás das garotas e ir a Nova York, mas Ferguson era contra frequentar uma oficina literária por uma questão de princípio, pois estava convencido de que a escrita de ficção não era um assunto que pudesse ser ensinado, que todo futuro escritor tinha de aprender a escrever sozinho, e mais ainda, com base na informação que tinha recebido sobre como funcionavam aquelas ditas oficinas (a palavra o levava a pensar, inevitavelmente, numa sala cheia de aprendizes serrando pranchas de madeira e martelando pregos em tábuas), os alunos eram incentivados a comentar o trabalho uns dos outros, o que lhe parecia absurdo (o cego guiando outro cego!), e por que ele teria de se sujeitar a ter seu livro picado em pedacinhos por um estudante de graduação cabeça-oca, a sua obra, inclassificável e excepcionalmente bizarra, que com toda certeza levantaria suspeitas e desdém, como mero lixo experimental. Não que ele fosse contrário à ideia de mostrar seus contos para pessoas mais velhas e experientes, para uma discussão crítica em particular, mas a ideia de um grupo lhe dava horror, e saber se o horror era causado por arrogância ou por medo (o murro tão temido) tinha menos importância do que o fato de que ele não dava a menor bola para a obra de ninguém, a não ser a sua, e para que se dar ao trabalho de fingir que se importava com o livro dos outros, quando isso não era verdade? Ele continuava em contato com a sra. Monroe (que tinha lido as primeiras doze partes de Viagens de Mulligan, o que lhe rendeu doze beijos e nenhum murro, junto com alguns comentários pertinentes e esclarecedores), e se e quando ela não estivesse acessível, outros leitores confiáveis incluíam o tio Don, a tia Mildred, Noah e Amy, e se algum dia ele se visse em apuros e não pudesse alcançar nenhum desses leitores confiáveis, iria bater à porta do escritório do professor Robert Nagle, a melhor cabeça literária em toda universidade de Princeton, e humildemente pedir sua ajuda.

3) Nada de clubes estudantis. Três quartos de seus colegas de turma acabariam se associando a algum daqueles clubes, mas Ferguson não estava in­te­ressado. Semelhantes às fraternidades de estudantes, mas nem de longe idênticos a elas, com a palavra “briga” inscrita no lugar do que outros grupos cha­mavam de ímpeto, eles tinham o ranço de todas aquelas coisas antiquadas, veneráveis e retrógradas de Princeton que deixavam Ferguson frio e, portanto, mantendo-se longe de clubes estudantis e se tornando “independente”, ele conseguiria evitar um dos aspectos mais sufocantes daquele lugar sufocante e, assim, se sentir mais feliz de estar ali.

4) A interdição do beisebol ia continuar, uma proibição que incluía também todas as formas variantes do jogo: softball, wiffleball, stickball, além de meramente brincar de arremessar a bola com quem quer que fosse, a qualquer hora, mesmo que fosse com uma bola de tênis ou com uma bolinha de borracha cor-de-rosa que se usava para brincar na rua ou mesmo com uma bola feita de duas meias embrulhadas. Ter saído do ensino médio ajudava a deixar aquela luta para trás, ele sentia, pois não teria mais de estar em contato com os velhos amigos do beisebol, que recordavam que jogador promissor era ele, lembravam-se de como tinham ficado desconcertados com a sua decisão de parar de jogar e não conseguiam entender as desculpas falsas que tinha dado para abandonar o jogo, continuaram a insistir com ele e a fazer perguntas durante o curso inteiro. Felizmente, aquelas perguntas tinham terminado nessa altura. Por outro lado, agora que havia escapado dos corredores e das salas de aula do colégio, Ferguson estava prestes a entrar numa das universidades mais obcecadas por esportes no país, a universidade que tinha enfrentado Rutgers no primeiro jogo de futebol americano interuniversitário, dis­putado em 1869, a universidade que fazia apenas seis meses que tinha se classificado para as quartas de final do campeonato nacional de basquete e ficara em terceiro lugar no torneio de basquete da Associação Atlética Universitária Nacional, a melhor posição de todos os tempos para uma equipe nas universidade de elite, com o país inteiro eletrizado pelas batalhas de manchetes, Bill Bradley contra Cazzie Russell, de Michigan, a que se seguiram os cinquenta e oito pontos feitos por Bradley, algo jamais visto, na vitória de Princeton na partida disputada entre os dois perdedores das semifinais, e sem dúvida nenhuma todo mundo no campus continuava a falar daquelas proezas quando Ferguson chegou. Havia atletas por toda parte e ele, naturalmente, ia querer se meter e tomar parte de várias atividades esportivas, mas elas teriam de se restringir a coisas como partidas de basquete em meia quadra e partidas de futebol americano simplificado, e, a fim de se prevenir de quaisquer tentações futuras de participar do esporte que ele tinha jurado evitar, como um monumento fúnebre em homenagem ao irmão de Celia, Ferguson tinha se desfeito de seu equipamento de beisebol no final do mês de agosto, entregando dois bastões, um par de tênis com travas nas solas, e a luva Rawlings, modelo Luis Aparicio, que havia quatro anos que ficava numa prateleira do seu quarto, para Charlie Bassinger, o rapaz magricelo de dezenove anos que era seu vizinho em Woodhall Crescent. Fique para você, disse a Charlie, não preciso mais dessas coisas, e o jovem Bassinger, sem saber direito do que estava falando o seu muito admirado vizinho, quase estudante universitário, olhou bem para Ferguson e perguntou: Quer dizer, para sempre, Archie? Isso mesmo, respondeu Ferguson. Para sempre.

5) Nenhuma brecha para o pai. Se o pai abrisse uma brecha para ele, Ferguson ia pensar cuidadosamente se iria ou não corresponder, mas não estava esperando que aquilo acontecesse. A última comunicação entre os dois tinha sido o breve bilhete escrito por Ferguson para agradecer o presente do pai por sua formatura no ensino médio, em junho, e como ele se sentia especialmente amargo e sem esperança naquela tarde em que o cheque chegou (Dana tinha partido para Israel naquele mesmo dia), acabou contando para o pai seu plano de doar metade do dinheiro para o SNCC e a outra metade para o SANE. É pouco provável que o pai tenha gostado daquilo.

Receios e pressentimentos, tensão e mais tensão, e se não fosse a presença tranquilizadora da mãe e de Jim, que estavam na van com Ferguson na manhã em que ele partiu para o brejo e o pântano da VIDA NA UNIVERSIDADE, provavelmente ele teria desperdiçado seu café da manhã e desembarcaria cambaleante, ao pisar nos gramados orvalhados de Princeton, com metade daquele café da manhã na camisa.

Foi um dia intenso para toda a família. Dan e Amy estavam em outro carro, viajando para o norte, rumo a Brandeis, Ferguson e companhia estavam viajando para o sul, numa das vans brancas Chevrolet de Arnie Frazier, que tinha feito a gentileza de emprestá-la de graça, e lá estavam eles percorrendo a Rodovia Expressa de Nova Jersey naquela manhã garoenta, úmida, com Jim ao volante e Ferguson e a mãe espremidos a seu lado, no banco da frente, todo o espaço atrás estava cheio até o teto com os bens terrenos dos dois irmãos adotivos, a mixórdia familiar de lençóis, fronhas, travesseiros, toalhas, roupas, livros, discos, toca-discos, rádios, máquinas de escrever, e agora que Ferguson tinha acabado de recitar para eles os três primeiros de seus cinco mandamentos, Jim balançava a cabeça e sorria seu enigmático sorriso dos Schneiderman, que era antes um sorriso de pensamento e reflexão do que um sorriso que beirasse ou sequer sugerisse o riso.

Relaxe, Archie, disse ele. Você está levando essa história a sério demais.

Sim, Archie, concordou a mãe. O que foi que deu em você esta manhã? Ainda nem chegamos lá e já está pensando no que vai fazer para fugir?

Estou assustado, só isso, respondeu Ferguson. Com medo de me ver perdido no meio de uma masmorra reacionária e antissemita e não conseguir sair vivo de lá.

Agora seu meio-irmão riu.

Pense em Einstein, disse Jim. Pense em Richard Feynman. Não matam judeus em Princeton, Archie, só mandam que fiquem andando com estrelas amarelas na manga.

Agora Ferguson riu.

Jim, disse a mãe, você não devia fazer piada com essas coisas, não devia mesmo — mas, um instante depois, ela também estava rindo.

Por volta de dez por cento, pelo que eu soube, disse Jim. O que é uma porcentagem muito mais alta do que a nacional, que é de... quanto? Dois por cento, três por cento?

Columbia tem mais ou menos vinte ou vinte e cinco por cento, disse Ferguson.

Pode ser, respondeu Jim, mas Columbia não deu uma bolsa de estudos para você.

Brown Hall e uma suíte com dois quartos no terceiro andar, grande o suficiente para abrigar quatro calouros, com uma sala comum e um banheiro no meio. Brown Hall e um colega de quarto chamado Small, Howard Small, sujeito parrudo, corpulento, de mais ou menos um metro e oitenta de altura, de olhar claro e uma aura de serena confiança, uma pessoa confortavelmente instalada em seu pedaço de chão, em sua própria pele. Um aperto firme, mas não firme demais nem triturador de ossos, quando os dois apertaram as mãos pela primeira vez e, um momento depois, Howard se inclinou para a frente e examinou com atenção o rosto de Ferguson, o que era uma coisa bem estranha de se fazer, pensou Ferguson, mas aí Howard lhe fez uma pergunta que transformou aquela coisa estranha em algo que nada tinha de estranho.

Por acaso você não estudou na Columbia High School, estudou?, perguntou Howard.

Estudei, sim, respondeu Ferguson. Na verdade, vim de lá mesmo.

Ah. E quando estudou lá, por acaso não jogou no time de basquete principal, jogou?

Joguei, sim. Mas só no segundo ano do ensino médio.

Eu sabia que já tinha visto sua cara antes. Você era o ala, se me lembro direito, não era?

Esquerdo. Ala esquerdo. Mas você tem razão. Não que eu saiba por que você tem razão, mas você tem.

Eu era sempre reserva no time principal de West Orange naquele ano. Ficava no banco.

O que significa... que interessante... que nossos caminhos já se cruzaram duas vezes.

Duas vezes, sem a gente nem sequer saber disso. Uma vez, na partida em casa e a outra, fora de casa. E, assim como você, parei de jogar depois daquela temporada. Mas eu era uma negação, sem nenhum talento, realmente hor­rível, incapaz. Ao passo que você era um bom jogador, eu lembro, talvez fos­se até muito bom.

Eu não jogava mal. Mas a questão era: Será que eu queria ficar a vida toda pensando naquelas cuecas especiais de jogadores de basquete ou preferia dedicar toda minha atenção a calcinhas e sutiãs?

Os dois sorriram.

Não foi uma escolha difícil então.

Não, nenhuma dificuldade.

Howard andou até a janela e acenou para o campus. Olhe só para este lugar, disse ele. Me faz lembrar o retiro campestre de um duque inglês ou um desses hospitais para doentes mentais de famílias loucamente ricas. Universidade de Princeton, a magnífica, muito obrigado por me aceitar aqui, e muito obrigado por essa propriedade suntuosa. Mas, por favor, me explique uma coisa. Por que há tantos esquilos pulando para lá e para cá? Pelo que eu saiba, os esquilos sempre foram cinzentos, mas aqui em Princeton são todos pretos.

É porque fazem parte do esquema decorativo, disse Ferguson. Lembra as cores de Princeton, não lembra?

Laranja... e preto.

Isso mesmo, laranja e preto. Quando a gente começar a ver alguns esquilos laranja, vamos entender porque os pretos estão aqui.

Howard riu da piada de Ferguson, ligeiramente engraçada e ligeiramente idiota, e, como riu, a contração nervosa no estômago de Ferguson começou a afrouxar um pouco, pois ainda que Princeton se revelasse um lugar hostil ou frustrante, ele já teria um amigo ali, ou assim parecia, a seus olhos, quando ouviu a risada do colega de quarto, e que sorte a sua encontrar aquele amigo logo nos primeiros minutos da primeira hora do primeiro dia.

Quando passaram para a tarefa de desfazer suas trouxas, caixas e bolsas, Ferguson ficou sabendo que Howard tinha pasado a infância em Upper West Side, em Manhattan, mas aos onze anos tinha se convertido num garoto suburbano quando seu pai foi nomeado decano dos estudantes na Universidade Estadual de Montclair, e como era curioso saber que os dois tinham passado os últimos sete anos morando a poucos quilômetros um do outro e, mesmo assim, tinha se cruzado só de relance naquelas duas vezes nas quadras de tacos de basquete, dos ginásios dos colégios. Testando um ao outro, como fazem pessoas que não se conhecem, mas se veem jogadas arbitrariamente na mesma cela, ambos rapidamente se deram conta de que compartilhavam muitos gostos e muitas aversões, mas não todas, nem mesmo a maioria; ambos preferiam os Mets aos Yankees, por exemplo, mas dois anos antes Howard tinha se tornado vegetariano convicto (se opunha moralmente à matança de animais), ao passo que Ferguson era um carnívoro inato e sem apelação, e embora Howard admitisse fumar cigarros de vez em quando, Ferguson consumia regularmente entre dez e vinte cigarros Camel por dia. Em matéria de livros e escritores, os dois estavam fora de sintonia (Howard tinha lido pouca poesia americana contemporânea e pouca ficção europeia. Ferguson andava cada vez mais imerso nas duas coisas), mas, em matéria de filmes, o gosto de ambos coincidia incrivelmente, e, quando os dois declararam que sua comédia predileta da década de 1950 era Quanto mais quente melhor e que seu filme de suspense predileto era O terceiro homem, Howard exclamou, numa repentina explosão de entusiasmo, Jack Lemmon e Harry Lime!, e logo depois sentou-se diante da sua escrivaninha, agarrou uma caneta e desenhou uma caricatura de uma partida de tênis entre um limão (Lemon) e uma lima (Lime). Ferguson ficou olhando, admirado, enquanto seu prodigioso colega de quarto traçava o desenho — o limão, mais comprido e com mais calombos, provido de braços e pernas, com uma raquete de tênis na mão direita, jogando contra a lima, menor, mais redonda, mais lisa, também provida de braços, pernas e raquete, ambos com uma cara que parecia a dos atores originais (Jack Lemmon e Harry Lime), e, quando Howard acrescentou uma rede e uma bola que voava no ar, o cartum ficou pronto. Ferguson olhou para o relógio de pulso. Três minutos entre o primeiro traço e o último. Nada mais do que três minutos, talvez até dois.

Meu Deus, disse Ferguson. Você sabe desenhar mesmo, hein?

Lemmon contra Lime, disse Howard, ignorando o elogio. É meio gozado, não acha?

Não é só meio gozado. É muito engraçado.

Daqui ainda pode sair mais alguma coisa.

Não tenho dúvida, disse Ferguson, enquanto batia de leve com o dedo na caneta de Howard, e disse: William Penn (caneta), e bateu com o dedo no desenho e disse: contra Patti Page (página).

Ah, mas é claro! Isso não vai acabar nunca, não é?

E continuaram com aquela história por algumas horas, enquanto desfaziam as malas e arrumavam suas coisas, enquanto almoçavam no refeitório e através da tarde, enquanto vagavam juntos pelo campus, e até a hora do jantar, quando já haviam reunido uns quarenta ou cinquenta pares daquele tipo. Do início ao fim, nunca pararam de rir e às vezes riam tão alto e, de vez em quando, em intervalos tão demorados, que Ferguson perguntava a si mesmo se alguma vez na vida já tinha rido tanto assim, desde que se entendia por gente. Riam a ponto de chorar. Riam a ponto de ficar sem fôlego. E que esporte bom era aquele para superar temores e receios de um jovem viajante que tinha acabado de sair de casa e se via parado na linha divisória entre o passado escrito e o futuro ainda por escrever.

Pense nas partes do corpo, disse Howard, e um ou dois minutos depois, Ferguson respondeu: Legs (pernas) Diamond contra Learned Hand (mão). Pouco depois, Howard rebateu com: Edith Head (cabeça) contra Michael Foot (pé).

Pense em corpos molhados, disse Ferguson. H2O em qualquer um de seus diversos estados, e Howard respondeu: John Ford (vau) contra Larry Rivers (rios), Claude Rains (chuvas) contra Muddy Watters (águas lamacentas). Depois de alguns momentos de reflexão concentrada, Ferguson acrescentou àqueles dois pares, outros dois, de sua autoria: Bennet Cerf (ondas) contra Toots Shor (costa), Veronica Lake (lago) contra Dick Diver (mergulhador).

Vale com personagens de ficção?, perguntou Howard.

Por que não? Contanto que a gente possa saber quem são, eles são tão reais quanto pessoas de verdade. Afinal, desde quando Harry Lime deixou de ser um personagem de ficção, ué?

Opa, me esqueci do Harry. Nesse caso, permita que eu ofereça a você C. P. Snow (neve) contra Uriah Heep (monte).

Ou dois outros cavalheiros ingleses: Christopher Wren (cambaxirra) con­tra Christopher Robin (pintarroxo).

Incrível. Agora, pense nos reis e nas rainhas, disse Howard, e depois de uma pausa prolongada, Ferguson respondeu: William of Orange (laranja) contra Robert Peel (casca). Quase na mesma hora, Howard rebateu com: Vlad, o Empalador contra Carlos, o Gordo.

Pense nos americanos, disse Ferguson, e durante uma hora e meia, eles produziram:

Cotton (algodão) Mather contra Boss Tweed.

Nathan Hale (robusto) contra Oliver Hardy (resistente).

Stan Laurel (louros) contra Judy Garland (grinalda).

W. C. Fields (campos) contra Audrey Meadows (campinas).

Loretta Young (jovem) contra Victor Mature (maduro).

Wallace Beery (bêbado de cerveja) contra Rex Stout (forte).

Hal Roach (barata) contra Bugs (besouros) Moran.

Charles Beard (barba) contra Sonny Tufts (tufos).

Myles Standish (de pé) contra Sitting Bull (touro sentado).

E foram em frente, sem parar, mas quando, afinal, voltaram para seu quarto depois do jantar e sentaram para fazer uma lista dos pares de nomes, mais da metade do que tinham imaginado já havia evaporado de suas cabeças.

A gente vai ter de anotar melhor, disse Howard. Pelo menos a gente aprendeu que as tempestades cerebrais crescem a partir de materiais altamente inflamáveis e, a menos que a gente ande sempre com uma caneta ou um lápis à mão, vai acabar esquecendo a maior parte do que fez.

Para cada um que a gente esquecer, disse Ferguson, vamos sempre ser capazes de inventar outro. Pense nos crustáceos, por exemplo, jogue sua rede e espere um pouco, e logo vamos pegar Buster Crabbe (caranguejo) contra Jean Shrimpton (lagosta).

Legal.

Ou então sons. Um doce pio na floresta, um alto rugido na selva, e lá estamos nós com Lionel (leão) Trilling (trilo) contra Saul Bellow (urro).

Ou combatentes do crime com secretárias e namoradas cujos nomes vão sem endereços.

Você me boiando.

Pense em Perry Mason e o Super-Homem e o que a gente tem é Della Street (rua) contra Lois Lane (beco).

Boa. Boa demais. Mas então dê uma volta pela praia e, antes que você note, já está olhando para George Sand (areia)... contra Lorna Doone (duna).

Essa seria muito boa para desenhar. Uma ampulheta jogando tênis com um biscoito.

Sim, mas e que tal Veronica Lake (lago) contra Dick Diver (mergulhador)? Pense nas possibilidades.

Deliciosas. É tão sexy, chega a ser quase obsceno.

Nagle era seu conselheiro acadêmico. Nagle era o professor que dava aulas de Literatura Clássica Traduzida, o curso que estava contribuindo mais do que qualquer outro para o desenvolvimento mental de Ferguson. E era quase certo que Nagle era a pessoa que tinha argumentado com mais empenho em seu favor, para que ele ganhasse a bolsa de estudos, e muito embora Nagle nunca fosse falar do que tinha feito, Ferguson sentia que Nagle tinha esperança nele e dedicava um interesse especial a seu progresso, e também sentia que isso era crucial para seu equilíbrio interior naquele tempo de transição e de potencial transtorno, pois as esperanças de Nagle representavam a diferença entre se sentir um estranho e sentir que podia pertencer àquele lugar, e, quando Ferguson lhe entregou seu primeiro trabalho do semestre, cinco páginas sobre a cena do encontro entre Odisseu e Telêmaco no sexto livro da Odisseia, Nagle devolveu-o com um bilhete enigmático, rabiscado no pé da última página, Nada mau, Ferguson — continue, o que Ferguson entendeu como uma forma lacônica de o professor lhe dizer que tinha feito um bom trabalho, um trabalho que não chegava a ser brilhante, talvez, mas um bom trabalho mesmo assim.

De quinze em quinze dias, sempre às quartas-feiras, ao longo do primeiro semestre, o professor e a esposa, Susan, recebiam em sua casinha, na rua Alexander, os seis calouros orientados por Nagle para um chá à tarde. A sra. Nagle era uma morena baixa e redonda que lecionava história antiga na Universidade Rutgers e cuja cabeça batia no ombro do marido magro e melancólico. Enquanto a esposa servia o chá, Nagle servia sanduíches, ou enquanto Nagle servia o chá, ela servia sanduíches, e enquanto ele ficava sentado na poltrona fumando cigarros e falava com algum de seus orientandos, ou o ouvia, a sra. Nagle ficava sentada no sofá e falava com os outros orientandos do marido, ou os ouvia. E o casal era tão sociável e, entretanto, se mostravam tão reservadamente polidos um com o outro, que Ferguson, às vezes, se perguntava se não se comunicariam em grego antigo quando não queriam que a filha de oito anos, Barbara, soubesse do que estavam falando. Aos olhos de Ferguson, a ideia de um chá formal sempre parecera o tipo de atividade social mais maçante do mundo (ele nunca tinha ido a um chá antes), mas na verdade apreciava as festinhas de noventa minutos na casa dos Nagle e tentava não faltar a nenhuma, pois elas proporcionavam mais uma oportunidade de ver o professor em ação, e o que se revelava ali era que Nagle era mais do que parecia ser na sala de aula ou em seu gabinete, onde jamais falava sobre política, a guerra e questões contemporâneas, porém ali em sua casa, às quartas-feiras, de quinze em quinze dias, à tarde, ele dava as boas-vindas a seus seis orientandos do primeiro ano, que por acaso eram dois estudantes judeus, dois estrangeiros e dois negros, e, quando se parava para pensar que só havia doze calouros negros em toda a turma de oitocentos alunos (só doze!) e nada mais do que cinco ou seis dúzias de judeus e talvez metade ou um terço disso de estrangeiros, parecia claro para Ferguson que Nagle tinha assumido, discretamente, a tarefa de cuidar dos intrusos e garantir que eles não se afogassem naquele lugar estranho e ameaçador, e, fosse lá ele motivado por convicções políticas ou por amor a Princeton ou apenas por bondade humana, Robert Nagle estava fazendo o que podia para que os marginais se sentissem em casa.

Nagle, Howard e Jim — no primeiro mês da nova vida de Ferguson como bolsista atrapalhado, um jovem que antes pensava em si mesmo como um homem e que agora regressava às incertezas aflitivas da infância, foram eles três que o mantiveram inteiro. Howard era mais do que um cartunista endiabrado com um senso de humor impetuoso, era também um sólido pensador e um estudante consciencioso, com planos de se especializar em filosofia, e, como era atencioso e geralmente contido, sem exigir muitas atenções de Ferguson, foi possível para Ferguson dividir o quarto com ele sem sentir que sua privacidade estava sendo invadida. Esse foi um de seus maiores temores, ter de morar num quarto bem pequeno, junto com outra pessoa, algo que até então só tinha lhe acontecido no Acampamento Paraíso, onde dormira em beliches, em cabanas, junto com dois conselheiros e mais sete meninos, porém em casa ele sempre pudera se recolher entre as quatro paredes de seu santuário individual, mesmo na casa nova em Woodhall Crescent, quando Amy ficava no quarto vizinho, batendo as portas e tocando música alto, e a preocupação era se conseguiria ler ou escrever ou até pensar com outra pessoa deitada numa cama ou sentada diante da escrivaninha, a mais ou menos dois metros dele. Aconteceu que Howard também tinha ficado preocupado com o mesmo problema, pois ele também sempre tivera seu próprio quarto na adolescência, e numa conversa franca no terceiro dia da Semana de Orientação dos Calouros, durante a qual ambos confessaram seus temores de viver sem solidão e com muito ar passando de um par de pulmões para o outro, os dois elaboraram o que esperavam que fosse um modus operandi aceitável. Seus colegas de alojamento eram um estudante de medicina de Vermont chamado Will Noyes e um mago que tinha feito oitocentos pontos na prova de matemática, de Iowa, chamado Dudley Krantzenberger, e Ferguson e How­ard combinaram que, quando a sala estivesse vazia, ou seja, quando Noyes e Krantzenberger estivessem no quarto deles ou fora do prédio, um dos dois (Ferguson ou Howard) iria ler, escrever, pensar, estudar, desenhar no quarto e o outro, na sala comum, e quando Noyes ou Krantzenberger ou ambos es­tivessem na sala comum, Ferguson e Howard se revezariam, um iria para a biblioteca, enquanto o outro continuaria no quarto. Apertaram as mãos e fe­charam o acordo, mas quando o semestre começou para valer e, depois de algumas semanas, os dois começaram a se sentir tão à vontade na companhia um do outro que as regras preventivas não vigoraram mais. Os dois entravam e saíam quando bem entendiam e, se ambos resolviam ficar ali ao mesmo tempo, descobriam que eram capazes de ficar juntos por longos períodos de trabalho silencioso, sem perturbar os pensamentos um do outro nem contaminar o ar que ambos respiravam. Problemas potenciais às vezes se convertem em problemas de verdade, mas outras vezes, não. Naquele caso, não. No dia 1o de outubro, aqueles dois ocupantes do alojamento do terceiro andar em Brown Hall tinham inventado mais oitenta e uma duplas para jogar tênis.

Quanto a Jim, ele também estava se adaptando a um novo conjunto de circunstâncias, tateando seu caminho como aluno do primeiro ano da graduação no arduamente competitivo Departamento de Física, tão esgotado quanto seu meio-irmão naquela fase inicial no paraíso dos esquilos pretos, no entanto os dois conseguiam jantar juntos toda terça-feira, ou comiam espaguete no apartamento com o colega de quarto de Jim, um aluno de graduação no MIT chamado Lester Patel, de Nova Delhi, ou comiam hambúrgueres num lugar sempre lotado na Nassau Street, chamado Bud’s, além de jogarem basquete por uma hora e meia, um contra um, no Dillon Gym, de dez em dez dias, mais ou menos, partidas que Ferguson sempre perdia para o ligeiramente mais alto e ligeiramente mais talentoso Schneiderman, mas não com placares tão humilhantes que não valesse a pena o esforço de jogar. Certa noite, mais ou menos duas semanas depois do início das aulas, Jim deu um pulo no Brown Hall para uma visita surpresa a Ferguson e Howard, e quando Howard pegou a lista de duplas de tênis que tinham elaborado até então e mostrou para Jim alguns desenhos que ilustravam as duplas (Claude Rains de um lado da rede, como um bolo de pingos isolados, e Muddy Waters do outro lado, atolado na lama até a cintura), Jim deu uma risada tão forte quanto as risadas que Howard e Ferguson deram na manhã em que criaram aquela brincadeira, e ver Jim curvado de tanto rir e soltando gargalhadas daquele jeito louco revelava algo de bom em seu caráter, foi a sensação de Ferguson, assim como ser aprovada no Teste de Iniciação de Horn & Hardart tinha revelado algo de bom sobre o caráter de Celia, pois em ambos os casos a reação havia provado que a pessoa em questão tinha uma afinidade de espírito, uma pessoa que apreciava as mesmas justaposições malucas e os mesmos emparelhamentos imprevisíveis que Ferguson distribuía em duas colunas, gosto e não gosto, pois a triste verdade era que nem todo mundo era apaixonado por Horn & Hardart ou pela grandeza poética da cozinha automática, onde a pessoa metia uma moedinha numa fenda, e nem todo mundo ria ou sequer sorria das duplas de tênis, como Ferguson tinha observado com Noyes e Krantzenberger, que tinham olhado os pares, um por um, com as caras mais indiferentes do mundo, sem entender que era para achar graça, incapazes de apreender a duplicidade cômica que ocorria quando uma palavra-coisa também se apresentava como palavra-nome, e que colocar dois daqueles nomes-coisa juntos podia alçar a gente para um inesperado reino de felicidade, não, toda a aventura tinha dado com os burros na água para seus colegas de alojamento, sóbrios e de pouca imaginação, ao passo que Jim ficou borbulhante de alegria, abraçava a barriga e dizia que fazia anos que não ria tanto, e mais uma vez Ferguson se viu diante do velho problema do murro e do beijo, que parecia inextricável, pois o que não podia falar por si mesmo, senão sendo ele mesmo, e portanto acabava ficando para sempre a mercê do quem, e uma vez que sempre havia só um que e muitos quem, os quem inevitavelmente tinham a última palavra, mesmo quando estavam errados em seus julgamentos, não só sobre coisas grandes, como livros e o projeto de prédios de oitenta andares, mas também sobre coisas pequenas, como uma lista aleatória de piadas tolas e inofensivas.

Os cursos em que Nagle não era o professor não eram tão atraentes como as aulas de Literatura Clássica Traduzida, mas eram muito bons, e, entre o trabalho de se adaptar a seu novo ambiente e o trabalho exigido por aqueles cursos, entre os quais havia um curso obrigatório de prosódia e redação para os calouros, além de Introdução à Literatura Francesa, com Lafargue, o Romance Europeu de 1857 a 1922, com Baker, e História Americana I, com Mc­Dowell, sobrou pouco tempo, no primeiro mês, para Ferguson pensar no pobre Mulligan, e todo tempo que conseguia salvar ele acabava usando para suas viagens a Nova York.

Seu avô tinha ido para a Flórida a fim de lá passar o outono e o inverno, o que deu a Ferguson livre acesso ao apartamento sempre que quisesse e, junto com o apartamento, veio o luxo de poder ficar completamente sozinho, o que era revigorante. Os cômodos do apartamento da rua 58 Oeste também lhe proporcionavam a delícia de poder dar telefonemas grátis, pois o avô lhe dissera, de forma explícita, para usar o telefone toda vez que sua boca sentir comichão e não se importar com os custos. A oferta implicava certo grau de moderação, é claro, um entendimento de que Ferguson não ia perder o controle e sobrecarregar o avô com contas exageradas de ligações interurbanas, o que eliminava a possibilidade de ligar para Dana, em Israel, por exemplo (algo que ele faria, de todo jeito, se soubesse seu número de telefone), mas mesmo assim conseguiu manter contato com várias pessoas do front doméstico, sempre mulheres, as mulheres que ele amava, tinha amado ou podia começar a amar, mais cedo ou mais tarde.

A meia-irmã Amy tinha se jogado de cabeça no movimento contra a guerra em Brandeis, que atraía todas as pessoas mais interessantes no campus, disse ela, entre as quais um aluno do último ano chamado Michael Morris, que tinha sido um dos voluntários do Verão da Liberdade no Mississippi, no ano anterior, e Ferguson não podia deixar de torcer para que esse fosse melhor para Amy do que o cretino para quem ela dera seu coração no ensino médio, o dúbio Loeb, de inúmeras tramoias e promessas quebradas. Teria sido aquilo um erro inocente de Amy, se perguntava Ferguson, ou, depois de ter rejeitado seu futuro meio-irmão naquela noite dos vaga-lumes no quintal da casa velha, ela estaria destinada a se apaixonar sempre pelo homem errado, um depois do outro? Tome cuidado, disse Ferguson para ela. Esse tal de Morris parece um bom sujeito, mas não entre nessa história com muita afobação antes de saber quem ele é de verdade. Em seu papel, autonomeado, de conselheiro sentimental, Ferguson dava conselhos sobre assuntos que estava longe de conhecer. Uma forma sutil de vingança inconsciente, talvez, pois, por mais que se importasse com Amy, a ferida de sua antiga rejeição ainda ardia de vez em quando e Ferguson nunca tinha sido capaz de lhe dizer como ela o havia magoado.

A mãe de Ferguson tinha arranjado um emprego na Hammond Map Company, em Maplewood, um contrato de longo prazo para ela tirar fotografias que serviriam de ilustração numa série de calendários e agendas de Nova Jersey que eles planejavam começar a publicar em 1967, ou seja, dali a um ano, pois agora estavam no outono de 1966, Figuras Ilustres de Nova Jersey, Paisagens de Nova Jersey, Locais Históricos de Nova Jersey, e duas edições de Arquitetura de Nova Jersey (uma com prédios públicos e outra com residências perticulares), trabalho que foi cavado graças à intervenção de um dos clientes comerciais de Dan, e Ferguson achou que aquela era uma notícia excelente, por diversas razões, primeiro, e antes de qualquer coisa, por causa do dinheiro extra que iria entrar em casa (fonte de perpétua preocupação), mas acima de tudo porque ele queria que a mãe ficasse ocupada com alguma atividade outra vez, depois que o pai havia, por descuido, desligado a tomada do estúdio dela, e como já não tinha mais crianças em casa para ela cuidar, por que não fazer aquilo, algo que tinha tudo para se tornar um trabalho gratificante para a mãe e animar seus dias, por mais estapafúrdia que pudesse parecer a ideia de calendários e agendas semanais inspiradas em Nova Jersey.

A pessoa que, no passado, ele havia chamado de sra. Monroe e que agora tratava por Evie, apelido que os amigos de Evelyn usavam para chamá-la, estava de volta à Columbia High School, dando suas aulas na frente de suas diversas turmas de inglês e supervisionando a nova safra de editores encarregados de tocar a revista literária dos alunos, mas as coisas, para ela, sofreram uma guinada brusca no início de setembro, quando seu namorado nos últimos três anos, um jornalista político do Star-Ledger chamado Ed Southgate, rompeu o namoro abruptamente e voltou para a esposa, e Evie ficou abatida e sofrendo muito, passava as últimas horas dos fins de semana com um copo de uísque na mão, ouvindo discos de blues arranhados, com Bessie Smith e Lightnin’ Hopkins e, que inferno, Ferguson não parava de pensar, enquanto as árvores mudavam de cor e as folhas começavam a cair no chão, como é que a grande alma daquela mulher podia doer tanto? Toda vez que telefonava para ela, fazia todo o possível para arrancá-la daquele abatimento e tirar de sua cabeça o falecido Ed, porque não fazia nenhum sentido ficar olhando para trás, sentia ele, e não havia alternativa senão empurrar Evie para fora daquele buraco cheio de uísque fazendo piadas sobre o Ed Defunto, e já no desespero dizia para ela não se preocupar, porque ele, Ferguson, seu ex-aluno, iria salvá-la, e se ela não quisesse ser salva era melhor trancar bem todas as portas de casa ou fugir da cidade, porque ele iria de todo jeito, gostasse ela ou não, e num instante os dois estavam dando risadas e a nuvem se dissipava, apenas pelo tempo necessário para que ela falasse de outras coisas, além de ficar sentada sozinha na saleta do térreo com uma garrafa de uísque, as noites sem amor, fechada na sua metade da casa geminada onde ela morava, num quarteirão de árvores altas, ondulantes e sombreadas, em East Orange, a casa geminada que Ferguson tinha visitado oito ou dez vezes no verão, e que agora conhecia bem o bastante para saber que era um dos poucos lugares do mundo onde se sentia totalmente ele mesmo, e toda vez que telefonava para Evie, pensava naquelas visitas de verão e pensava na noite em que os dois beberam demais e estavam à beira de irem para a cama juntos quando a campainha da porta tocou e o garotinho que morava do outro lado da rua perguntou se Evie não podia emprestar uma xícara de açúcar para a mãe dele.

E havia Celia, um telefonema toda noite de sexta-feira ou toda tarde de sábado para sua nova amiga, sem nenhum propósito especial, a não ser provar que estava levando a sério sua missão de ser seu amigo, e Ferguson continuava ligando, porque ela sempre parecia feliz quando ele telefonava. Suas primeiras conversas tinham uma tendência a ficar rodando por muitos assuntos desconexos, mas eles raramente se perdiam e Ferguson gostava de escutar a voz séria e inteligente de Celia enquanto ziguezagueavam da sociologia das facções do ensino médio para a guerra no Vietnã, das queixas preocupadas de Celia sobre os pais apáticos, debilitados, para ruminações sonhadoras sobre a possibilidade de haver esquilos alaranjados, porém em pouco tempo ela começou a falar, cada vez mais, sobre os preparativos para os exames de seleção para a universidade, o que eliminava qualquer outra chance de sair aos sábados, por enquanto, e então, no fim de setembro, ela anunciou que tinha começado a sair com um garoto chamado Bruce, que aparentemente estava prestes a se tornar algo parecido com um namorado, o que causou um sobressalto em Ferguson quando ela lhe contou, e continuou a produzir o mesmo efeito por um ou dois dias, mas, depois que se acalmou, ele refletiu que provavelmente aquilo era bom, pois Celia havia produzido uma impressão forte demais sobre ele no dia que os dois passaram juntos em Nova York, e sem mais nenhuma outra garota no horizonte, por ora, ele poderia acabar se jogando impetuosamente sobre ela na próxima vez em que se encontrassem, algo de que ele iria se arrepender, algo que poderia acabar por destruir as chances dos dois, no futuro, e era até bom que aquele tal de Bruce se pusesse entre ambos agora, pois os romances no ensino médio raramente duravam além da formatura e, no ano seguinte, ela já estaria na faculdade, se as coisas corressem conforme o planejado, como haviam de correr, sem dúvida nenhuma, e depois disso toda a situação estaria diferente outra vez.

Entretanto, nos quarteirões do centro da cidade, em Washington Square, Noah cravava os dentes nos prazeres carnais de sua nova vida independente, sua libertação das fronteiras claustrofóbicas do apartamento da mãe, na West End Avenue, e dos ciclos de paz e briga do insano casamento do pai com sua madrasta neurastênica. Como disse para Ferguson certo dia, enquanto lhe mostrava seu dormitório, aquele seu quarto minúsculo era a melhor coisa do mundo, depois de acampar no mato em Montana. Não estou mais confinado, Arch, disse ele, eu me sinto como um escravo emancipado que vai embora para terras distantes, e embora Ferguson ficasse preocupado por Noah estar fumando maconha demais e cigarros demais (quase dois maços por dia), ele tinha os olhos claros e, no geral, parecia em boa forma, mesmo tendo de encarar a perda da namorada, Carole, que tinha dado um fora nele antes de partir para viver debaixo de seus próprios céus vastos, em Yellow Springs, Ohio.

Duas semanas depois de começar o primeiro semestre de aulas, Noah anunciou que a Universidade de Nova York era muito menos exigente do que Fieldston, e que ele podia cumprir suas tarefas diárias mais ou menos no mes­mo tempo que levava para consumir um jantar de cinco pratos. Ferguson se perguntou quando foi que Noah tinha comparecido a um jantar de cinco pratos, mas entendeu o que ele queria dizer e não pôde deixar de admirar o primo por se mostrar tão à vontade com a questão da faculdade, que no caso dele quase tinha provocado um colapso nervoso. Portanto, lá estava o jovem sr. Marx, um homem novo em seu novo ambiente, pisando impávido os becos de paralelepípedos de seu torrão de West Village, indo a clubes de jazz e vendo filmes no Cine Bleecker Street, anotando ideias para roteiros de filmes, sentado no Caffè Reggio, bebendo sua sexta xícara de café expresso naquele dia, e lá estava ele fazendo amizade com jovens poetas e pintores de Lower East Side, e quando Noah começou a apresentar Ferguson a algumas daquelas pessoas, o mundo de Ferguson se expandiu de um modo que acabaria por reconfigurar o panorama de sua vida, pois aqueles primeiros encontros foram os primeiros passos rumo à descoberta do tipo de vida que seria possível para ele no futuro, e mais uma vez, como sempre, Noah era a pessoa a quem ele tinha de agradecer por guiá-lo na direção certa. Por mais que Ferguson se opusesse às oficinas literárias de Princeton, sabia que tinha muito a ganhar conversando com outros escritores e artistas, e, como a maioria dos novatos do centro da cidade que conhecia por intermédio de Noah eram três, quatro ou cinco anos mais velhos do que ele, já andavam publicando seus textos em revistas pequenas e organizando apresentações em grupo, em porões degradados e em modestas lojinhas com vitrine, o que significava que estavam quilômetros à frente dele naquele aspecto e, portanto, Ferguson escutava com cuidado o que diziam. A maioria acabava lhe ensinando alguma coisa, mesmo aqueles com quem Ferguson não simpatizava muito, porém o mais inteligente, em sua opinião, era aquele de quem ele mais gostava, um poeta chamado Ron Pearson, que tinha vindo de Tulsa, Oklahoma, para Nova York, quatro anos antes e tinha se formado em Columbia em junho e, certa noite, no pequeno e espremido apartamento de Ron, à beira da estrada de ferro, na Rivington Street, quando Ferguson, Noah e mais duas ou três pessoas estavam sentados no chão, com Ron e sua esposa, Peg (ele já era casado!), a con­versa passava do movimento Dada para o anarquismo, da música dodecafônica para as histórias em quadrinhos pornográficas com os personagens infantis Nancy e Sluggo, das formas tradicionais na poesia e na pintura para a função do acaso na arte, e de repente mencionaram John Cage, um nome que Ferguson reconheceu apenas vagamente, e quando Ron soube que seu novo amigo, vindo dos brejos de Jersey, nunca tinha lido nada dos escritos de Cage, ficou de pé, com um pulo, caminhou até a estante de livros e pegou um exemplar de capa dura de Silêncio. Você tem de ler isto aqui, Archie, disse ele, senão nunca vai aprender como pensar em mais nada, a não ser naquilo que os outros querem que você pense.

Ferguson agradeceu e prometeu devolver o livro assim que possível, mas Ron fez um gesto de recusa e disse: Fique com ele. Tenho mais dois exemplares, então agora este aí é seu.

Ferguson abriu o livro, folheou por alguns momentos e depois topou com esta frase, na página 96: “O mundo é fértil: tudo pode acontecer”.

Era sexta-feira, 15 de outubro de 1965, e Ferguson era estudante em Prince­ton havia um mês, um dos meses mais árduos e exaustivos de que conseguia se lembrar, mas agora ele estava pulando fora daquilo, ele sentia, algo começava a se deslocar dentro dele mais uma vez, e passar aquelas horas com Noah, Ron e os outros ajudara a empurrá-lo para longe de coisas fracas, zangadas e presas dentro dele, e agora Ferguson tinha o livro, um exemplar de capa dura de Silêncio, de John Cage, e quando a festinha acabou e todo mundo foi embora, ele disse para Noah que estava cansado e queria voltar para o apartamento do avô, na parte alta da cidade, o que não era verdade, pois não estava nem um pouco cansado e queria simplesmente ficar sozinho.

Duas vezes antes, um livro o havia virado pelo avesso e tinha transformado a pessoa que ele era, tinha explodido seus pressupostos sobre o mundo e o projetara para um território novo, onde, de uma hora para outra, tudo no mundo parecia diferente — e continuaria diferente pelo resto do tempo enquanto ele continuasse a viver no tempo e ocupasse um espaço no mundo. O livro de Dostoiévski era sobre as paixões e contradições da alma humana, o livro de Thoreau era um manual de como viver, e agora Ferguson tinha descoberto um livro que Ron havia, com razão, chamado de um livro sobre como pensar e, sentado no apartamento do avô, lendo “Duas páginas, 122 palavras sobre música e dança”, “Conferência sobre nada”, “Conferência sobre alguma coisa”, “Quarenta e cinco minutos para um locutor” e “Interdeterminação”, ele recebeu aquilo como um vento feroz e purificador que soprava através do cérebro e limpava o lixo que tinha se acumulado ali, sentiu que estava em presença de um homem que não tinha medo de fazer as perguntas primordiais, de começar tudo desde o início e descer por uma trilha que ninguém havia percorrido antes dele, e quando Ferguson, por fim, baixou o livro às três e meia da manhã, sentiu-se tão estimulado e aceso pelo que tinha acabado de ler que sabia que dormir estava fora de questão, e que ele não seria capaz de fechar os olhos durante o resto da noite.

O mundo é fértil: qualquer coisa pode acontecer.

Tinha feito planos de se encontrar com Noah ao meio-dia e caminharem pela Quinta Avenida naquilo que seria sua primeira manifestação contra a guerra, o primeiro protesto em grande em escala em Nova York contra o aumento das tropas americanas no Vietnã, um evento que certamente iria atrair dezenas de milhares de pessoas, ou até cem ou duzentas mil pessoas, e nada iria impedir que Ferguson participasse, mesmo que ficasse com os pés dormentes e tivesse de se arrastar pela Quinta Avenida como um sonâmbulo embriagado, mas faltavam muitas horas para o meio-dia e, pela primeira vez desde o dia em que pusera os pés em Brown Hall, no mês anterior, Ferguson estava pronto para escrever de novo e nada iria impedi-lo de fazer aquilo.

As primeiras doze viagens de Mulligan o haviam levado a países que viviam em estado de guerra permanente, países de intenso rigor religioso, que castigavam os cidadãos por terem pensamentos impuros, países cujas culturas se dedicavam a procurar os prazeres sexuais, países cujo povo pensava em comida e quase mais nada, países governados por mulheres, onde os homens serviam de lacaios mal remunerados, países dedicados a criar arte e música, países governados por leis racistas, do tipo nazista, e outros países em que as pessoas não conseguiam distinguir as diferentes cores da pele, países onde os mercadores e os homens de negócios ludibriavam o povo por uma questão de dever cívico, países organizados em torno de competições esportivas perpétuas, países sitiados por terremotos, vulcões em erupção e um mau tempo que nunca passava, países tropicais onde as pessoas não usavam roupa, países gelados onde as pessoas eram obcecadas por roupas de pele, países primitivos e países tecnologicamente avançados, países que pareciam pertencer ao passado e outros que pareciam pertencer ao presente ou a um futuro distante. Ferguson tinha feito o esboço de um mapa das vinte e quatro viagens antes de começar a escrever o livro, mas descobriu que a melhor maneira de entrar num capítulo novo era escrever às cegas, pôr no papel tudo o que parecesse borbulhar dentro de sua cabeça, enquanto deixava o texto rolar de frase para frase, e então, quando o primeiro rascunho frenético ficava pronto, ele voltava e, devagar, começava a podar, em geral reescrevia tudo mais cinco ou seis vezes antes de chegar à forma adequada e definitiva, a misteriosa combinação de leveza e peso que ele estava buscando, o tom sério-cômico necessário para levar a cabo aquelas narrativas bizarras, a implausibilidade plausível do que ele chamava de absurdo em movimento. Encarava seu livrinho como uma experiência, um exercício que lhe permitiria flexionar alguns novos músculos autorais, e, quando terminou de escrever o último capítulo, tinha intenção de queimar o manuscrito ou, se não queimar, enterrá-lo num lugar onde ninguém pudesse encontrá-lo.

Naquela noite, no quarto desocupado do apartamento do avô, que no passado fora o quarto que sua mãe tinha dividido com a irmã Mildred, impregnado da sensação de liberdade que o livro de Cage tinha lhe transmitido, exultante e impetuoso, em regozijo com a ideia de que seu silêncio de um mês tinha chegado ao fim, escreveu o primeiro e o segundo rascunho do que, sem dúvida, era seu esforço mais maluco até então.

OS DRONS

Os droons são mais felizes quando reclamam das condições de sua terra. Os habitantes das montanhas invejam o povo que vive nos vales e o povo dos vales sonha migrar para as montanhas. Os fazendeiros estão descontentes com os frutos de sua colheita, os pescadores resmungam insatisfeitos com o produto diário da pescaria e, no entanto, nenhum pescador ou fazendeiro jamais admitiu assumir a responsabilidade do seu fracasso. Preferem culpar a terra e o mar a admitir que são maus fazendeiros e pescadores, que o conhecimento antigo pouco a pouco se perdeu e que sua competência no que fazem é tão reduzida quanto a de iniciantes sem prática.

Pela primeira vez em minhas viagens, encontrei aquilo que eu chamaria de povo preguiçoso.

As mulheres perderam a esperança no futuro e já não têm mais interesse em ter filhos. As mais abastadas passavam seus dias estiradas e nuas em lisas lajes de pedra, cochilando sob o calor tépido do sol. Os homens, que pareciam preferir ficar vagando entre rochas pontudas e áreas de declive acentuado, se ressentiam da indiferença das mulheres, mas pouco faziam a respeito e não tinham nenhum plano definido para mudar a situação. De vez em quando, se aventuravam a uma débil investida e atiravam pedras nas mulheres ociosas, mas, em geral, as pedras caíam longe do alvo.

Já fazia algum tempo que toda criança era afogada logo ao nascer.

Na minha chegada ao palácio, fui saudado pela Princesa de Ossos e seu séquito. A Princesa me afastou da discussão que seu séquito quis levantar e me levou ao jardim, onde me serviu uma tigela de maçãs e explanou acerca das paixões de seu povo. Que novos desafios estariam preparando contra as guardiãs da virtude?, perguntou ela. Embora falasse de questões graves, a Princesa não parecia perplexa nem excessivamente alarmada. Muitas vezes ria, como de alguma piada particular e, ao longo da conversa, continuava a se abanar com um leque de bambu, que tinha ganhado de presente quando criança, contou ela, do embaixador da China. De manhã, me deu provisões para minha viagem.

Há muitos povoados, todos tocam os sinos na torre, numa série de oito círculos concêntricos. Na praia, sempre se podem ver os icebergs.

Dizem que a torre é a estrutura mais antiga da ilha, construída num tempo anterior à memória. Já não está mais desabitada, porém a lenda conta que, no passado, ali foi um local de culto e que oráculos enviados para lá pelo adivinho Botana governaram os Droons, no período que foi sua época de ouro.

Montei meu cavalo e decidi seguir para as terras agrestes do interior. Depois de três dias e três noites, cheguei ao povoado de Flom, onde, pelo que me disseram, um novo culto havia contagiado as imaginações do povo e ameaçava destruí-lo. Segundo minha fonte (um escriba do palácio), o contágio do autodesprezo que se disseminava entre os cidadãos de Flom havia alcançado proporções tais que eles tinham se voltado contra seus próprios corpos e almejavam diminuí-los ou desfigurá-los ou torná-los inúteis, naquilo que o escriba definiu como orgia de mutilação.

“Orgia” não é a palavra apropriada. “Orgia” sugere um transporte e um prazer extasiante, mas não existe prazer no povo de Flom. Eles cuidam de sua vida com a intensa serenidade dos fanáticos religiosos.

Uma vez por dia, uma cerimônia conhecida como A Provação é cumprida na praça central do povoado. Os participantes se enrolam em gaze, bem apertados, da cabeça aos pés, só deixam um buraquinho para as narinas e, assim, evitam o sufocamento, e então quatro servos daquelas figuras que parecem múmias recebem ordem de puxar as pernas e os braços de seu senhor ou senhora, puxar com toda força possível, pelo maior tempo possível. O teste consiste em suportar a tortura. No caso de algum membro se romper durante o processo, um grande brado de exultação se ergue na multidão. A Provação, agora, se transformou no que é conhecido como A Transcendência. Os membros arrancados são conservados num recipiente de vidro no prédio da prefeitura e são adorados como objetos sagrados. Os amputados recebem os privilégios da realeza.

As novas leis aprovadas pelo governo municipal refletem, todas elas, os princípios da Transcendência. Os serviços para a comunidade são recompensados com amputações indolores, ao passo que criminosos condenados são obrigados a se submeterem a uma operação demorada, durante a qual partes adicionais do corpo são costuradas em sua carne. Por uma primeira infração, é costume prender uma mão à região da barriga. Para os infratores renitentes, porém, estão reservados castigos mais humilhantes. Certa vez, vi um homem com a cabeça de uma jovem presa nas costas. Outro tinha pés de bebê que brotavam das palmas das mãos. Existem até aqueles que parecem andar carregando um corpo inteiro a mais.

Em seu ir e vir cotidiano, o povo de Flom tenta dissipar os temores que po­deriam ser associados à sua existência precária. Eles não têm nenhuma tendência ao esquecimento — sua angústia persiste, mesmo quando não vê nenhum sinal disso, a olho nu. Portanto, eles resolveram encarar a questão e, desse modo, superar os obstáculos que os impediam de conhecer a si mesmos. Não pediram desculpa por transformar seu solipsismo num fetiche.

Não são meramente seus corpos que eles desejam superar, mas também sua sensação de isolamento uns dos outros. Um homem descreveu a situação para mim deste modo: “Parece que não conseguimos encontrar um denominador comum. Cada um de nós carrega seu mundo particular, que raramente entra em contato com o mundo de outra pessoa. Ao reduzir o tamanho de nossos corpos, almejamos diminuir os espaços que existem entre nós. De forma bastante notável, é um fato comprovado que os am­pu­tados são mais propensos a participar da vida dos outros do que os flomienses providos dos quatro membros. Alguns são até capazes de se casar. Talvez, quando encolhermos e nos tornarmos quase nada, conseguiremos afi­nal nos encontrar uns com os outros. No fim, a vida é muito difícil. A maioria de nós morre aqui simplesmente porque nos esquecemos de respirar”.

Contando o tempo que ele passou andando pelo quarto, entre um parágrafo e outro, e mais os minutos perdidos preparando xícaras de café solúvel e pegando um maço novo de cigarros Camel em sua bolsa de viagem, Ferguson levou pouco mais de duas horas para compor aquele rascunho inicial. Quando terminou de redigir, baixou o lápis e releu cuidadosamente o que tinha feito, recostou-se na cadeira, esperou um momento, para fumar, se coçar e pensar, e depois pegou o lápis e começou a reescrever o capítulo. Seis versões e nove dias depois, só quatro frases do original continuaram como na versão original.

Na quarta-feira anterior ao Dia de Ação de Graças, Ferguson foi para casa pela primeira vez em mais de dois meses, viajou com Jim para a casa em Woodhall Crescent, enquanto Amy fazia a mesma viagem, vinda de Boston, e lá estavam eles de novo, os cinco juntos, para o final de semana prolongado, mas, afora os momentos em que ficou sentado diante do peru assado anual, na tarde de quinta-feira, Ferguson passou pouco tempo em casa. Dan e sua mãe estavam tão profundamente casados agora que começavam até a se parecer um com o outro, pensou Ferguson, mas Amy tratou-os de maneira rude e contenciosa, e, quando Ferguson tentou amainar seu estado de espírito no jantar do feriado, enumerando uma dúzia de novas duplas de tênis que ele e Howard haviam elaborado (Arthur Dove [rola] contra Walter Pidgeon [pombo], John Locke [tranca] contra Francis Scott Key [chave], Charles Lamb [cordeiro] contra George Poulet [galinha], Robert Byrd [passarinho] contra John Cage [gaiola]), todos os outros riram, inclusive Jim, que já tinha ouvido a maioria daqueles pares umas duas vezes, mas Amy soltou um longo gemido e depois partiu contra Ferguson, por desperdiçar seu tempo no que ela chamou de humor universitário trivial e besta. Será que ele não sabia que os Estados Unidos estavam travando uma guerra ilegal e imoral? Não sabia que os negros estavam sendo fuzilados e mortos em todo o país? E o que lhe dava o direito, sr. Mimado Sabe-Tudo de Princeton, de ignorar essas injustiças e desperdiçar sua educação se entregando a tolas brincadeiras de dormitório de estudantes?

Ferguson entendeu que o romance entre Amy e o herói do Verão da Liberdade, Michael Morris, não estava indo bem, ou que talvez nem existisse mais, porém ele se conteve e não perguntou nada para ela sobre sua vida amorosa e simplesmente disse: Sim, Amy, eu concordo com você. O mundo é uma fossa de merda, dor e horror, mas se você está me dizendo que deseja criar um país onde rir é contra a lei, então acho que prefiro morar em outro lugar.

Você não me escutou direito, disse Amy. Claro que a gente precisa rir. Se não rirmos, provavelmente estaremos mortos daqui a um ano. Só que não acho graça nas suas duplas de tênis... e elas não me fazem rir.

Dan disse para a filha se acalmar e baixar a bola. Jim disse para a irmã tomar um comprimido antirrabugice, que ele rapidamente emendou para um comprimido antiantirrabugice, e a mãe de Ferguson perguntou a Amy se havia acontecido alguma coisa, pergunta que Amy respondeu olhando para baixo, para seu guardanapo, e mordendo o lábio inferior e, a partir desse ponto até o fim do jantar, Ferguson não disse mais quase nada para ninguém. Depois da torta de abóbora, todos foram para a cozinha para lavar a louça, limpar as panelas e frigideiras juntos, e então Dan e Jim foram para a sala para ver o noticiário e os resultados das partidas de futebol americano na televisão, enquanto Amy e a mãe de Ferguson ficaram sentadas à mesa da cozinha, para terem aquilo que Ferguson supôs que ia acabar se desenvolvendo numa conversa séria e franca sobre o que estava acontecendo com Amy (sem dúvida, Michael Morris). Passava um pouco das seis horas. Ferguson subiu para o primeiro andar para usar o telefone no quarto principal, o único telefone na casa que lhe permitia a privacidade de conversar sem ser ouvido pelos outros. No fim de semana anterior, Evie tinha dito que ia jantar com os Kaplan no Dia de Ação de Graças, o casal que morava na casa vizinha, os dois eram seus melhores amigos no bairro, mas, por via das dúvidas, Ferguson ligou para a casa dela, pois havia uma chance remota de a festa ter terminado cedo. Ninguém atendeu. Isso significava que teria mesmo de ligar para a casa dos Kaplan, o que, por sua vez, o obrigaria a ter uma longa conversa com o membro da família Kaplan que por acaso atendesse o telefone, ou George ou Nancy ou um dos dois filhos, já em idade de entrar na faculdade, Bob e Ellen, e todos eram amigos de Ferguson, e normalmente ele bem que gostaria de poder conversar com todos, mas naquela noite em especial ele só queria falar com Evie.

Algumas de suas melhores recordações do tempo da adolescência estavam ligadas à casa dos Kaplan, que visitou muitas vezes durante os anos do ensino médio, e às reuniões nas noites de sexta e sábado naquela estrutura de madeira empenada, de dois andares, entupida com milhares de livros que não cabiam no sebo de livros de George, muitas vezes com Dana, muitas vezes também com Mike Loeb e Amy, e na maioria daquelas noites era um pequeno bando de doze ou dezesseis pessoas que se juntava ali, uma mistura incomum de adultos e adolescentes, uma mistura mais incomum ainda de adolescentes negros e brancos, mas aquela parte de East Orange era mais ou menos metade branca e metade negra, naquela época, e como os Kaplan e Evie Monroe eram esquerdistas contra a bomba e a favor da integração racial, sem dinheiro nenhum e sem nenhuma intenção de fugir, e também porque todo mundo que aparecia ali era espertinho o bastante para brincar com o nome de George e chamá-lo de O Homem Que Não Existia (referência ao nome falso dado a Cary Grant no filme Intriga internacional: GEORGE KAPLAN), Ferguson às vezes pensava naquela casa como o último posto avançado da sanidade, em todos os Estados Unidos.

Foi Bob quem atendeu, o que foi bom para Ferguson, pois Bob era o menos falante dos Kaplan e costumava ter quatro coisas em mente ao mesmo tempo, por isso, depois de uma breve conversa sobre os altos e baixos da faculdade e sobre a merda dessa confusão lá no Vietnã (palavras de Bob), o telefone foi passado para Evie.

O que foi, Archie?, perguntou ela.

Nada. Eu só queria ver você.

A sobremesa começa em dez minutos. Por que não pega seu carro e vem para cá?

Só você. Sozinha.

Algum problema?

Na verdade, não. Uma repentina necessidade de ar. Amy está num de seus ataques de raiva, os caras estão falando de futebol americano na sala e eu estou com uma vontade louca de ver você.

É bonito, isso, uma vontade louca.

Acho que nunca usei essa expressão, nem uma vez na vida.

Nancy está com dor de cabeça e George parece que está pegando uma gripe, por isso duvido que o jantar se prolongue muito tempo. Devo estar em casa daqui a uma hora.

Você se incomoda?

Não, claro que não. Vou adorar ver você.

Ótimo. Daqui a uma hora vou à sua casa.

Não era segredo que os dois tinham afeição um pelo outro, que Ferguson, de dezoito anos, e Evie Monroe, de trinta e um, tinham deixado as formalidades de aluno e professora para trás, na sala de aula, já fazia muito tempo. Agora eram amigos, bons amigos, talvez os melhores amigos, mas junto com a amizade existia uma atração física crescente, de ambas as partes, algo que continuava a ser um segredo para todo mundo, mesmo para eles dois no início, os pensamentos libidinosos espontâneos que nenhum dos dois estava preparado para transformar em realidade, por medo ou inibição, mas aí veio o efeito desinibidor de umas doses de uísque a mais numa noite de quinta-feira, em meados de agosto, e de uma hora para outra as chamas abafadas de sua atração mútua se inflamaram numa festa de carícias selvagens no sofá, na sala do térreo, o jogo de amor que foi interrompido na hora agá pelo toque da campainha da porta, um evento notável não só por causa da sua ferocidade, como também porque aconteceu no tempo do Ed, se bem que já era o fim do período do Ed, e agora que o Ed tinha ido embora e Dana Rosenbloom tinha ido embora e Celia Federman não passava de uma miragem no horizonte remoto e fazia um bom tempo que nem Ferguson nem Evie tinham tocado em ninguém, tanto tempo que nem um dos dois gostaria nem de calcular, parecia mais do que inevitável que eles quisessem se tocar um ao outro mais uma vez, naquela friorenta noite do Dia de Ação de Graças. Dessa vez, não foi preciso usar nenhuma bebida alcoólica. O uso inesperado das palavras “vontade louca”, de Ferguson, lançou os dois de volta à lembrança daquela noite de quinta-feira em agosto, quando a coisa que haviam apenas começado não tinha chegado ao fim, e foi assim que, quando Ferguson chegou à casa geminada de Evie, em Warrington Place, os dois subiram para o quarto no primeiro andar, tiraram as roupas aos poucos e passaram uma noite comprida e feliz, terminando, afinal, aquilo que tinham começado.

Foi sério. Não era uma aventura avulsa, para ser esquecida de manhã — mas sim o começo de alguma coisa, o primeiro de muitos outros passos que viriam a seguir. Ferguson não se importava que ela fosse mais velha, não se importava que os outros soubessem, não se importava se as pessoas ficassem falando. Por mais impróprio que fosse o namoro de uma mulher de trinta e um com um rapaz de dezoito, não havia nada que a justiça pudesse fazer contra eles, pois Ferguson havia alcançado a maioridade, eles não escondiam nada e eram absolutamente intocáveis. Se a sociedade encarasse o que estavam fazendo como algo errado, então que continuasse encarando como quisesse e que fosse pastar.

Não era só o sexo, embora o sexo fosse uma grande parte da questão, tanto para a jovem Evie quanto para Ferguson, privado de sexo, que andava com o permanente tesão de todos os jovens e nunca estava satisfeito, os dois aprisionados pela necessidade de se embolar um no outro e enlaçar os braços e as pernas em frenéticas explosões de transe carnal, sexo espalhafatoso, expansivo, que os deixava vazios e sem fôlego, ou então os vagarosos estímulos de ficar tocando a pele da maneira mais suave e delicada possível, à espera do momento em que já não conseguissem mais aguentar, a generosidade de tudo aquilo, a alternância de violência e doçura, e como a história erótica de Ferguson se limitava a apenas uma outra parceira de cama, até então, a esguia e magra Dana, de peitos pequenos e quadris estreitos, a maior e mais substanciosa Evie lhe apresentava uma nova forma de feminilidade que, de início, foi excitante e estranha ao mesmo tempo, e depois excitante, mas não estranha, e depois completamente estranha de novo, porque tudo no sexo era estranho mesmo. Isso, em primeiro lugar, mas não era tudo, nem de longe. O vínculo dos corpos. Corpos rijos e corpos lânguidos, corpos mornos e corpos quentes, corpos nádegas, corpos molhados, corpos de pau e boceta, corpos de pescoço e corpos de ombro, corpos de dedo e corpos dedilhantes, corpos de mão e quadril, corpos que lambem e, sempre e o tempo todo, corpos de cara, os dois rostos olhando uma para o outro, na cama e também fora da cama, e não, o rosto de Evie não era lindo, não podia ser considerado nem mesmo vagamente bonito por qualquer critério que estivesse em vigor naquele ano, tinha nariz demais, uma cara italiana angulosa, com muitas quinas, mas que olhos para olhar para ele, olhos castanhos ardentes que perfuravam Ferguson até o fundo e nunca se acovardavam nem fingiam um sentimento que não existia, e o encanto dos dois dentes incisivos, ligeiramente tortos, que davam a ela um levíssimo aspecto de dentuça e transformava sua boca na boca mais sensual do país inteiro, e o melhor de tudo era que podia passar a noite com ela, o que não tinha sido possível com Dana, senão duas ou três vezes, mas agora era sempre, toda vez, e a perspectiva de acordar na manhã seguinte ao lado de Evie ajudava Ferguson a cair no sono mais profundo e mais extasiante que jamais havia experimentado.

Encontravam-se no fim de semana, todo fim de semana em Nova York, até o avô de Ferguson voltar da Flórida, no início de abril, e a vida de Ferguson, que já era partida, agora se dividia entre a travessia de um vazio cada vez maior entre o campus e a cidade, cinco noites por semana num lugar, duas noites por semana em outro, estudo e aulas da manhã de segunda até a manhã de sexta, sem tempo para Mulligan, porque ele era um bolsista do programa Whitman e não tinha permissão de tirar notas baixas e, portanto, era imperativo que cumprisse todas suas obrigações em Princeton antes de partir para a cidade ao meio-dia de sexta-feira (lia trabalhos, artigos, estudava para testes, discutia Zenão e Heráclito com Howard), e era então que voltava para a outra metade de sua vida dupla, em Nova York, o que significava Evie, desde o momento em que ela tocava a campainha na sexta-feira, entre seis e sete horas, Mulligan nas horas de sexta-feira antes que Evie chegasse, Mulligan por quatro horas nas manhãs de sábado e domingo, enquanto Evie corrigia os trabalhos de seus alunos, lia livros e preparava as aulas da semana, depois o almoço, e aí saíam juntos pela cidade, em seguida as noites de sábado com os amigos dele ou dela ou então os dois sozinhos iam ver filmes, peças, concertos, ou ficavam no apartamento rolando na cama juntos, e a segunda metade de seus domingos truncados, quando voltavam para o quarto silencioso depois do café da manhã tardio, e falavam ou não falavam até as quatro, cinco ou seis horas, quando finalmente se obrigavam a se vestir e Evie o levava de carro até a Penn Station. Era sempre a pior parte — despedir-se, e depois a viagem de trem de volta para Princeton, no entardecer de domingo. Por mais que Ferguson repetisse aquela viagem, não conseguia se habituar.

Evie era a única pessoa que tinha lido todos os contos que Ferguson havia escrito nos últimos três anos. Era a única pessoa a quem Ferguson tinha confessado as restrições dilacerantes que ele impusera a si mesmo, depois da morte de Artie Federman. Era a única pessoa que compreendia a profundidade da amargura que ele sentia em relação ao pai. Era a única pessoa que percebia plenamente a natureza da devastação que o roía por dentro, a mixórdia contraditória de julgamentos duros, implacáveis, e do desprezo feroz contra a ganância americana por dinheiro, combinados com uma abrangente docilidade de espírito, seu amor desmedido pelas pessoas com quem ele se importava, sua retidão de bom menino e seu jeito estabanado e fora do compasso de lidar com o próprio coração. Evie o conhecia melhor do que ninguém. Sabia como era excepcionalmente esquisito e, ao mesmo tempo, como parecia ser espantosamente normal, como se Ferguson fosse um extraterrestre que tivesse acabado de aterrissar em seu disco voador, ela lhe disse certa noite em junho (antes do incidente com a campainha que tocou, antes que os dois nem sequer desconfiassem que iam acabar indo para a cama juntos), um homem do espaço, vestindo as mesmas roupas que qualquer terráqueo do século XX, o mais perigoso espião do universo, e aquela pessoa extraordinariamente estranha, de aparência normal, se sentiu estranhamente reconfortada pelas palavras dela, pois era exatamente assim que ele queria pensar em si mesmo, e era gratificante pensar que ela era a única pessoa que sabia disso.

Entretanto, eles não eram tão corajosos quanto Ferguson esperava. A ideia de fazer tudo às claras, de não dar a menor bola para o que pensassem sobre o caso deles, não poderia funcionar sem algumas exceções, pois bem depressa ficou claro que certas pessoas teriam de continuar desinformadas, para o bem delas mesmas — e para o bem de Ferguson e Evie também. No caso de Ferguson, isso significava sua mãe, e se era a mãe, também tinha de incluir Dan, Amy e Jim. No caso de Evie, significava a mãe, no Bronx, o irmão e a esposa dele, no Queens, e a irmã e o marido da irmã, em Manhattan. Todos os parentes ficariam escandalizados, disse Evie, e embora Ferguson não achasse que a reação da mãe fosse ser tão forte assim, sem dúvida também ia ficar angustiada, ou preocupada, ou confusa, e não valeria a pena explicar a questão toda para ela, pois todas as justificativas de Ferguson, na certa, só serviram para deixá-la mais angustiada, mais preocupada ou mais con­fusa. Por outro lado, com os amigos de Evie, em Manhattan, não havia nenhum obstáculo para deixar tudo às claras. Eram atores, músicos de jazz e jornalistas, eram todos sofisticados demais para se incomodarem. O mesmo era verdade para o grupo menor dos conhecidos de Ferguson em Nova York (por que Ron Pearson iria se incomodar?), mas Noah era uma potencial pedra no caminho dele, pois era mais do que um simples amigo, era primo de Ferguson por afinidade, e embora parecesse improvável que Noah encon­trasse algum motivo para falar com o pai sobre a vida amorosa do primo, existia sempre uma chance de ele deixar alguma coisa escapar num momento de descuido, numa hora em que Mildred estivesse ouvindo, escondida, no quarto vizinho, mas aquele era um risco que ele teria de correr, decidiu Ferguson, pois a amizade de Noah era importante demais para ele e Ferguson confiava em Noah o suficiente para poder contar com seu silêncio, se ele pedisse para manter segredo, o que Noah fez, e fez sem hesitação, quando ouviu o pedido, e quando o jovem Marx levantou a mão direita e jurou solenemente ficar de bico fechado, deu os parabéns a Ferguson por ter ganhado a afeição de uma mulher mais velha. Quando Ferguson apresentou os dois pela primeira vez, Noah apertou a mão de Evie e disse: A famosa sra. Monroe, afinal. Faz anos que o Archie fala de você, e agora estou vendo por quê. Alguns homens têm loucura pela Marilyn, ainda que ela não esteja mais entre nós, mas com o Archie sempre foi Evelyn, e quem é que pode censurá-lo por ser louco por você?

E quem pode me censurar por ser louca pelo Archie?, disse Evie. Tudo se encaixa maravilhosamente, não é?

Duas semanas depois dessa noite, Evie abriu a porta de sua alma e deixou Ferguson entrar.

Era mais um sábado, mais um dos bons sábados no meio de mais um de seus bons finais de semana em Nova York, e eles tinham acabado de voltar para o apartamento na rua 58 Oeste, vindo de uma festinha com alguns amigos de Evie, músicos de jazz. Em vez de irem direto para o quarto, como faziam normalmente depois de saírem nas noites de sábado, Evie pegou na mão de Ferguson e o levou para a sala, disse que havia uma coisa que queria falar para ele primeiro, e então sentaram no sofá juntos, Ferguson acendeu um cigarro Camel, passou o cigarro para Evie, que deu uma tragada e devolveu para Ferguson, e então ela disse:

Aconteceu uma coisa comigo, Archie. Uma coisa séria. Era para minha menstruação ter descido na segunda-feira, mas não veio. Em geral, meu ciclo é regular, mas lá de vez em quando posso perder a data e atrasar um dia, um dia e meio, por isso não me preocupei muito, achei que podia vir na terça-feira, mas não aconteceu nada também na terça. É excepcional. Não tem precedente. Profundamente curioso. No passado, essa seria a hora em que eu começaria a entrar em pânico, pensando que poderia estar grávida, as possibilidades mais sombrias me viriam à cabeça, pois eu nunca quis engravidar, pelo menos acho que não, e suponho que os dois abortos provam isso — o primeiro, quando estava no segundo ano da faculdade, em Vassar, o outro mais ou menos um ano depois que eu e Bobby nos casamos. Mas agora, e com agora eu quero dizer terça-feira, quatro dias atrás, com a menstruação já dois dias atrasada, pela primeira vez na vida não fiquei preocupada. E se eu estiver grávida, o que é que tem demais?, perguntei a mim mesma. Tem importância? Não, respondi, não tem importância. Seria até a coisa mais incrível do mundo. Nunca em minha vida, Archie — nenhuma vez pensei assim e nunca disse essas palavras para mim mesma. Quarta-feira. Ainda nada de sangue. Eu não só não fiquei preocupada, como me senti nas nuvens.

E aí?, perguntou Ferguson.

E a quinta-feira chegou ao fim. Um mundo inteiro escorreu de dentro de mim e eu ainda estou sangrando como se tivesse levado uma facada na barriga. Ora essa, você sabe disso. Dormiu comigo na noite passada.

Pois é, tinha um bocado de sangue. Mais do que o usual. Não que eu me importe, é claro.

Eu também não me importo. O que é importante é isto, Archie: Alguma coisa aconteceu comigo. Agora, estou diferente.

Tem certeza?

Tenho, absoluta. Ferguson entendeu do que ela estava falando, a montanha de singularidades inexplicáveis e questões intimidadoras, como quem seria o pai da criança, como é que ela se propunha a ser mãe sem estar casada e, se não estiver casada nem morando com ninguém, como poderá ser mãe e continuar lecionando ao mesmo tempo, se não tiver o dinheiro para pagar uma babá ou empregada?

Evie se esquivou daquelas perguntas, conduzindo-o para um breve passeio pela sua vida interior, com pesada ênfase na parte relativa ao amor e ao sexo, passando pelos rapazes e homens por quem tinha se apaixonado ao longo dos anos, entre a adolescência e agora, as boas e más decisões que havia tomado, os flertes efêmeros e os compromissos mais demorados, que acabaram, todos eles, redundando em nada no final, e o pior de todos os erros — seu inviável casamento com Bobby Monroe, que durou dois anos e meio —, e a coisa surpreendente naquelas paixões, esperanças e decepções, disse Evie, era que nenhuma delas a deixara mais feliz do que ele, o seu menino-homem Archie, o seu insubstituível Archie, e pela primeira vez na vida ela estava com alguém em que sentia que podia confiar, alguém que podia amar sem, ao mes­mo tempo, temer o momento em que seria castigada por amar demais ou com muita força. Não, Archie, disse ela, você não é como nenhum dos outros. Você é o primeiro homem que não tem medo de mim. É uma coisa notável, de verdade, e estou tentando viver isso da maneira mais plena que posso, porque lá no fundo você sabe e eu sei que não vai durar.

Não vai durar?, disse Ferguson. Como pode dizer isso?

Porque não pode. Porque não vai. Porque você ainda é muito jovem e, mais cedo ou mais tarde, não vamos mais servir um para o outro.

Aquele era o xis da questão, Ferguson se deu conta, a previsão de um tempo em que os dois não estariam mais juntos, um futuro em que tudo que estava acontecendo agora iria desaparecer e eles seriam transformados em fantasmas da memória que habitavam as mentes um do outro, seres sem substância, sem pele, osso e coração, e era por isso que ela pensava em bebês agora, e queria ter um filho — por causa dele, porque queria que ele fosse o pai, um pai fantasma, que iria legar seu corpo em herança para o filho dela e continuaria vivendo com ela para sempre.

Fazia sentido. E então, também, não fazia sentido nenhum.

Não era nada de urgente, disse Evie, e não era uma coisa que ela quisesse que Ferguson ficasse pensando com muita frequência, a questão era apenas que a possibilidade existia agora, uma coisa para deixar guardada lá no fundo da cabeça deles, e depois de irem em frente como antes, e não, ela não pedia que ele assumisse nenhuma responsabilidade, ele não teria nem sequer de assinar a certidão de nascimento, se não quisesse, era uma tarefa dela, não dele, e ainda bem que as mulheres não precisavam ser casadas para ter filhos, disse Evie, e aí começou a rir, soltou a grande gargalhada de alguém que toma uma decisão e já não tem medo de nada.

Eles continuaram como antes. A única diferença era que Evie deixava seu diafragma em casa e Ferguson parou de comprar preservativos.

Ele não ficou abalado com a ideia de ser pai, assim como não ficara abalado com a ideia de se tornar marido quando propôs se casar com Dana. O que o abalou, de fato, foi a ideia de perder Evie. Agora que ela fizera sua declaração pessimista sobre a futura extinção de ambos como casal, ele estava determinado a provar que ela estava errada. No entanto, se o tempo mostrasse que Evie tinha razão, ele seguiria seu exemplo e tentaria aproveitar ao máximo o tempo que os dois ainda tinham juntos, vivendo da maneira mais plena possível.

Era possível que Ferguson já não estivesse mais pensando com clareza, mas não era essa a sensação que dava. Tinha os olhos abertos e o mundo estava fervilhando à sua volta.

Passaram-se os meses.

Ele escreveu o vigésimo quarto capítulo de Viagens de Mulligan, o relato da fatigante jornada de Mulligan de volta para casa, vindo de um país que estava no meio de uma guerra civil com três ramificações. O livro de Ferguson estava terminado, todas as cento e trinta e uma páginas, em espaço duplo, mas em vez de queimar o manuscrito, como tinha planejado, ele escavou suas economias até o fundo e arrancou dali a quantia irracional de cento e cinquenta dólares, a fim de contratar uma datilógrafa profissional para fazer as três cópias do livro (um original e duas cópias em papel-carbono), as quais, então, entregou para Evie, Howard e Noah, como um presente. Todos disseram que tinham gostado. Tranquilizaram Ferguson, mas ele, nessa altura, estava de saco cheio de Mulligan e já andava sonhando com o projeto seguinte, uma empresa arriscada, chamada O caderno escarlate.

Celia Federman foi aceita em Barnard e na Universidade de Nova York e ia começar a cursar a Universidade Barnard no outono, com a intenção de se especializar em biologia. Ferguson lhe mandou um buquê de rosas brancas. Ainda conversavam por telefone de vez em quando, mas depois que Bruce e Evie entraram em suas vidas, não houve mais sábados em Nova York.

Howard e Ferguson decidiram continuar divindo um quarto até o fim da faculdade. No ano seguinte, eles faziam as refeições no Woodrow Wilson Club, que não era um clube de estudantes típico, mas, ao contrário, um anticlube para estudantes que não queriam se associar a clube nenhum. Alguns dos alunos de graduação mais brilhantes iam comer lá. O refeitório aconchegante tinha umas vinte mesinhas para quatro pessoas, o que lhe dava o aspecto de uma cafeteria anticafeteria, e uma das coisas boas dali era que muitas vezes os professores ficavam batendo papo depois da sobremesa. Howard e Ferguson planejavam convidar Nagle para conversar sobre um de seus fragmentos de Heráclito prediletos: Se não esperares, nunca irás esbarrar com o inesperado, que é inacessível e impenetrável.

Noah o informou de que ele planejava passar o verão trabalhando na sua ideia, sempre adiada, de adaptar o conto “Par perfeito” para fazer um filme em preto e branco. Quando Ferguson lhe disse para não desperdiçar seu tempo naquela besteira juvenil, Noah respondeu: É tarde demais, Archibald, já escrevi o roteiro e a câmera de dezesseis milímetros está alugada por um custo de zero centavos.

Jim andava questionando seu futuro no Departamento de Física de Princeton e, depois de meses de dúvida e luta interior, tinha mais ou menos resolvido parar depois de completar o mestrado e se tornar professor de ciências no ensino médio. Não sou aquela fera que pensei que era, disse ele, e não quero passar a vida como um assistente de segundo escalão, trabalhando no laboratório de outra pessoa. Além do mais, ele e a namorada, Nancy, queriam se casar e isso significava que ele teria de arranjar um emprego de verdade, com salário de verdade e se tornar um membro completo do mundo real. Ferguson e Jim adiaram seus planos de caminhar até Cape Cod, mas quando chegaram os feriados da Páscoa, em abril, fizeram a caminhada de Princeton até Wood­hall Crescent, mais ou menos cinquenta e seis quilômetros em linha reta no mapa, porém mais de sessenta e cinco no pedômetro de Jim. Só para ver se conseguiam. Claro que, no dia, estava chovendo e é claro que estavam ensopados quando subiram a escadinha da porta da casa e tocaram a campainha.

Amy se associou à SDS, Estudantes pela Democracia, e arranjou um namorado novo, um colega calouro em Brandeis, que por acaso vinha de New­ark e, também por acaso, era negro. Luther Bond. Que nome bom, pensou Ferguson, quando Amy contou para ele pelo telefone, mas e o seu pai, perguntou Ferguson, ele já está sabendo? Não, claro que não, disse Amy, você está brincando? Não se preocupe, disse Ferguson, Dan não é assim, ele não vai ligar. Amy deu um grunhido. Não aposte nisso, respondeu ela. E quando é que vou conhecer o seu namorado?, perguntou Ferguson. Quando quiser, qualquer hora, respondeu Amy, onde você quiser, contanto que não seja em Woodhall Crescent.

O avô de Ferguson voltou da Flórida muito bronzeado, com uns cinco quilos a mais na cintura e uma expressão louca nos olhos, o que levou Ferguson a se perguntar que travessuras o velho não teria feito junto com aquele bando de boas-vidas lá no ensolarado estado da Flórida. Não que ele quisesse saber, disso não havia dúvida, e como o avô figurava na lista de parentes que tinham de ser mantidos desinformados a respeito de seu caso com Evie, na hora em que Benjy Adler voltou para seu apartamento em Nova York, o idílio dos dois em Nova York chegou ao fim. A rua 58 Oeste agora estava interditada, e como não havia nenhum apartamento substituto acessível na cidade, a única solução era esquecer Nova York e passar aqueles dias e noites na casa geminada de Evie em East Orange. Era um arranjo difícil. Não havia mais peças, filmes nem jantares com amigos, só os dois juntos agora, durante cinquenta horas ininterruptas, todo fim de semana, mas que outra opção eles tinham? Chegaram a conversar sobre alugar um pequeno apartamento conjugado em algum lugar do centro, um local barato que lhes traria a cidade de volta, sem dependerem mais de avôs inconstantes nem de ninguém, mas mesmo um preço barato estava além do que podiam pagar.

A menstruação atrasada em dezembro foi seguida pelo sangramento rigorosamente pontual em janeiro, fevereiro, março e abril. Evie dizia para Ferguson não pensar nisso muitas vezes, porém ele desconfiava que ela é que estava pensando no assunto com uma constância que ia muito além de muitas vezes, algo como cinquenta ou sessenta vezes por dia, e depois de quatro meses sem engravidar, sem que nenhuma célula de esperma aderisse a algum óvulo, sem que nenhum zigoto ou blástula ou embrião fincasse raízes no corpo de Evie, ela começava a exibir sinais de frustração. Ferguson disse para ela não se preocupar, que essas coisas muitas vezes precisavam de tempo, e, para sublinhar seu argumento, mencionou os dois longos anos que sua mãe demorou para engravidar, no caso dele mesmo. Estava só tentando ajudar, mas a ideia daqueles dois anos era mais do que Evie podia encarar e ela retrucou, com um grito: Você está louco, Archie? O que faz você imaginar que nós temos dois anos? Provavelmente, não temos nem dois meses!

Quatro dias depois, ela foi a um ginecologista para fazer um exame completo dos órgãos reprodutores e um exame de sangue detalhado, abrangendo também outros órgãos. Quando o resultado chegou, na quinta-feira, Evie telefonou para Ferguson, em Princeton, e anunciou: Estou saudável como uma menina de dezoito anos!

Isso levantava a pergunta: Será que Ferguson, de dezenove anos, era também tão saudável quanto um rapaz de dezoito anos?

Não posso ser eu, disse ele. Não é possível.

Mesmo assim, Evie fez questão de que ele fosse ver um médico — por via das dúvidas.

Ferguson ficou apavorado. A ideia de plantar um bebê dentro de Evie era, provavelmente, uma tolice, ele admitia, no íntimo, um ato de amor irrefletido e de orgulho masculino mal compreendido que podia levar a toda sorte de consequências desastrosas a longo prazo, mas se ele e Evie iam conseguir ou não ter um filho juntos não era o que estava preocupando Ferguson no momento. O que estava em jogo era sua própria vida e seu próprio futuro. Desde pequeno, desde o momento em que sua consciência de jovem compreendeu o fato misterioso de que ele era uma criatura em transição, destinada a crescer e virar adulto, Ferguson assumiu o pressuposto de que, um dia, se tornaria pai, que mais cedo ou mais tarde iria produzir pequenos Fergusons que iriam crescer e virar adultos, homens e mulheres, um devaneio que sempre tomou como algo líquido e certo, uma realidade futura, porque era assim que o mundo funcionava, gente pequena se desenvolvia e virava gente grande, que, em troca, trazia ao mundo mais gente pequena, e, quando você já estava crescido o bastante para fazer isso, fazia. Mesmo agora, como um filósofo e defensor de livros obscuros de dezenove anos de idade, cansado da vida, aquilo era uma coisa que ele continuava a aguardar com ansiedade e muito prazer.

Ejacular nunca foi algo tão pouco prazeroso quanto no dia em que Ferguson foi ao consultório do dr. Breuler, nos arredores de Princeton. Espirrar seu sêmen num copinho esterilizado e depois cruzar os dedos para que milhões de bebês potenciais estivessem valsando no meio da secreção. Quantos marinheiros embriagados podiam dançar na cabeça de um alfinete? Quan­tos alfinetes eram necessários para manter uma pessoa inteira?

A enfermeira agendou uma nova visita na semana seguinte.

Quando ele apareceu no dia marcado, o dr. Breuler disse: Vamos fazer mais um teste, só para ter certeza de que sabemos do que estamos tratando.

Na semana seguinte, quando Ferguson voltou para sua terceira visita ao consultório, o dr. Breuler lhe disse que se tratava de um estado que afetava apenas sete por cento da população masculina, mas um número de espermatozoides abaixo do normal comprometia gravemente a capacidade de ter filho, ou seja, menos de quinze milhões de espermatozoides por mililitro de sêmen ou um total de menos de trinta e nove milhões por ejaculação, e os números de Ferguson estavam bem abaixo disso.

Há algo que se possa fazer?, perguntou Ferguson.

Receio que não, respondeu o dr. Breuler.

Em outras palavras, sou estéril.

No sentido de não poder ter filhos, sim.

Estava na hora de Ferguson ir embora, mas ele sentiu seu corpo tão pesado que sabia que era impossível se levantar da cadeira. Ergueu os olhos e sorriu sem graça para o dr. Breuler, como se pedisse desculpa por não ser capaz de se mexer.

Não se preocupe, disse o médico. Em todos os outros aspectos, você está em perfeita forma.

Sua vida estava só começando, Ferguson disse para si mesmo, sua vida nem sequer havia começado e a parte mais essencial dele já estava morta.

A queda da casa de Ferguson.

Ninguém, ninguém jamais viria depois dele, ninguém, nem agora nem nunca, até o fim dos tempos.

Uma queda para a categoria das notas de rodapé no Livro da vida terrestre, um homem que seria conhecido, para sempre, como O último dos Ferguson.


6.1

Mais tarde, o que vale dizer um, dois e três dias depois, toda vez que Ferguson parava para pensar no que tinha acontecido entre o outono de 1966 e a formatura de Amy, no início de junho de 1968, alguns eventos dominavam suas lembranças, destacando-se com nitidez, apesar de todo o tempo que havia decorrido, ao passo que muitos outros, para não dizer a maior parte dos outros, foram reduzidos a sombras: uma pintura mental composta de algumas áreas banhadas por uma luz intensa e esclarecedora e outras áreas veladas por obscuridades, figuras sem forma postadas em cantos turvos e marrons da tela e, aqui e ali, borrões de nulidades completamente pretas, a completa escuridão do elevador preto do dormitório.

As outras três pessoas que dividiam o apartamento com eles, por exemplo, colegas estudantes chamados Melanie, Fred e Stu, no primeiro ano, Alice, Alex e Fred, no segundo ano, não representavam nenhum papel na história. Vinham e iam embora, liam seus livros, faziam suas comidas, dormiam em suas camas e davam bom-dia quando saíam do banheiro de manhã, mas Ferguson mal se dava conta delas e, no dia seguinte, tinha dificuldade para lembrar seus rostos. Ou o temido curso de ciências obrigatório de dois anos, que ele finalmente resolveu encarar no segundo ano, matriculando-se num curso sarcasticamente apelidado de Física para Poetas, matando quase todas as aulas, completando seus relatórios de laboratório forjados num frenesi de fim de semana, com a ajuda de um dos amigos de Amy, do curso de matemática de Barnard — uma questão sem importância. Mesmo sua decisão de não integrar o conselho editorial do Spectator não pesou muito na narrativa. Era uma questão de horas, nada mais que isso, nada a ver com falta de interesse, mas Friedman, Mullhouse, Branch e os outros empenhavam cinquenta e sessenta horas semanais no trabalho, e isso era mais do que Ferguson estava disposto a se dedicar. Nenhum dos membros do conselho tinha namorada — sem tempo para o amor. Nenhum deles escrevia ou traduzia poesia — sem tempo para literatura. Nenhum deles figurava entre os alunos de melhor nota — sem tempo para estudar. Ferguson já havia resolvido continuar no jornalismo depois de se formar na faculdade, mas, por ora, precisava de Amy, de seus poetas e de seus seminários sobre Montaigne e Milton, por isso assumiu o compromisso de ser repórter e membro associado do conselho editorial, escrevendo muitas reportagens ao longo daqueles anos e cumprindo, uma vez por semana, seu turno no plantão da noite, o que acarretava ir ao escritório, em Ferris Booth Hall, e compor títulos para as matérias que seriam impressas no jornal da manhã seguinte, despachar as matérias prontas para Angelo, no terceiro andar, que cuidava da tipografia e arrumava as colunas de tipos, prendendo as peças nas pranchas e depois indo de táxi ao Brooklyn por volta das duas da madrugada para entregar as pranchas de impressão na gráfica, que iria produzir vinte mil exemplares, mais tarde entregues ao campus de Columbia por volta do meio da manhã. Era um processo do qual Ferguson gostava de participar, mas, a longo prazo, nem isso nem sua decisão de não fazer parte do conselho editorial tinham qualquer importância.

Por outro lado, o que contava era que seus avós tinham morrido durante aqueles anos, o avô em dezembro de 1966 (ataque do coração) e a avó em dezembro de 1967 (derrame).

O que também contava era a Guerra dos Seis dias (junho de 1967), mas a guerra começou e acabou depressa demais para poder ser muito importante, ao passo que os motins raciais que explodiram em Newark no mês seguinte, e que não duraram mais do que a guerra no Oriente Médio, tinha transformado tudo. Num minuto, seus pais estavam comemorando a vitória dos pequenos e bravos judeus contra seus inimigos gigantescos, e, no minuto seguinte, a loja de Sam Brownstein, na Springfield Avenue, foi arrombada e saqueada e os pais de Ferguson estavam fechando sua tenda e fugindo para o deserto: não apenas deixaram Newark e Nova Jersey para trás, como desceram para o sul da Flórida no fim do ano.

Outro ponto iluminado na tela: abril de 1968 e a explosão em Columbia, a revolução em Columbia, os oito dias que abalaram o mundo.

Todo o resto de luz na pintura brilhava sobre Amy. Escuridão acima e abaixo dela, escuridão atrás dela, escuridão de ambos os lados, mas Amy envolta em luz, uma luz tão forte que quase a deixava invisível.

Outono de 1966. Depois de participar de mais de uma dúzia de reuniões da SDS, depois de participar de uma greve de fome de três dias na escada da Biblioteca Low no início de novembro para protestar contra a matança no Vietnã, depois de tentar explicar suas ideias em numerosas conversas com seus colegas em West End, na confeitaria Hungarian Pastry Shop e no bar College Inn, Amy estava ficando cada vez mais desencantada. Eles não me escutam, disse a Ferguson, quando os dois estavam escovando os dentes certa noite, antes de irem para a cama. Eu levanto para falar e todos olham para o chão, ou então me interrompem e não me deixam terminar, ou então me deixam terminar e depois não dizem nada, e então, quinze minutos depois, um dos caras se levanta e diz quase exatamente a mesma coisa que eu tinha acabado de falar. Às vezes usa as mesmas palavras, e todo mundo aplaude. Eles são uns brutos, Archie.

Todos eles?

Não, nem todos. Meus amigos do ICV, o Comitê Independente do Vietnã, são legais, se bem que eu gostaria que eles me dessem mais apoio, mas o pessoal da facção PL é insuportável. Sobretudo o Mike Loeb, o líder da turma. Ele me corta toda hora, grita comigo, me insulta. Acha que as mulheres no movimento tinham de ficar fazendo café para os homens ou distribuindo panfletos nos dias de chuva, fora isso, é para a gente ficar de bico calado.

Mike Loeb. Ele frequenta um ou dois cursos comigo. Mais um garoto dos subúrbios de Nova Jersey, lamento dizer. Um daqueles gênios autodeclarados que tem resposta para tudo. O sr. Sabichão, de camisa xadrez de lenhador. Um pé no saco.

O engraçado é que ele frequentou o mesmo colégio que Mark Rudd. Agora, os dois estão juntos de novo na SDS e mal falam um com o outro.

Porque Mark é um idealista e Mike é um fanático.

Ele acha que a revolução vai vir nos próximos cinco anos.

Sem chance.

O problema é que os homens são mais numerosos do que as mulheres numa proporção, mais ou menos, de doze por um. Somos muito poucas e é fácil descontar em cima da gente.

Por que não vão embora e formam seu próprio grupo?

Você diz, sair do SDS?

Não precisa sair. E só parar de ir às reuniões.

E aí?

Aí, você vai ser a primeira presidente da Associação de Mulheres de Barnard pela Paz e pela Justiça.

Que ideia.

Não gostou?

Vamos ser marginalizadas. As grandes questões são todas questões universitárias, questões nacionais, questões mundiais, e vinte garotas sem sutiã desfilando com cartazes contra a guerra não vão produzir grande efeito.

E se vocês juntarem umas cem?

Isso não existe. Acontece que não temos um número grande o suficiente para chamar a atenção. Para o bem ou para o mal, acho que estou num beco sem saída.

Dezembro de 1966. Não foi apenas o ataque de coração que matou o avô de Ferguson que foi inesperado (seus exames cardíacos estavam normais havia anos, sua pressão sanguínea era normal); a maneira como ele morreu causou um embaraço em todo mundo na família, uma vergonha. Não que a esposa ou as filhas ou os genros ou o neto não tivessem consciência de seu pendor para correr atrás de mulheres, seu antigo fascínio por emoções extraconjugais, só que nenhum deles desconfiava que Benjy Adler, de setenta e três anos, chegaria ao ponto de alugar um apartamento para uma mulher com menos da metade de sua idade e mantê-la como amante, em regime de horário integral e morando no emprego. Didi Bryant tinha só trinta e quatro anos. Foi contratada como secretária na empresa Gersh, Adler e Pomerantz, em 1962, e depois de trabalhar lá por oito meses, o avô de Ferguson decidiu que a amava, decidiu que, a qualquer custo, tinha de possuir aquela mulher e, quando a doce e curvilínia Didi Bryant, nascida no Nebraska, lhe disse que estava disposta a ser possuída, o preço abrangia o aluguel de um apartamento de um quarto na rua 63 Leste, entre Lexington e Park, dezesseis pares de sapatos, vinte e sete vestidos, seis casacos, uma pulseira de diamantes, uma pulseira de ouro, um colar de pérolas, oito pares de brincos e uma estola de pele de marta. O caso durou, mais ou menos, três anos (muito felizes, segundo Didi Bryant), e então, numa tarde gelada no início de dezembro, num horário em que o avô de Ferguson deveria estar no escritório, na rua 57 Oeste, ele foi a pé ao apartamento de Didi, na rua 63 Leste, subiu na cama com ela e sofreu o enorme enfarto coronariano que o matou, na hora em que ejaculava pela última vez, em sua vida movimentada, mal organizada e, no geral, prazerosa. La petite mort e la grande mort, com dez segundos de diferença, entre uma e outra — o gozo e a morte, no intervalo de três respirações curtas.

Sem dúvida, era uma situação embaraçosa, uma situação complexa. A horrorizada Didi, presa debaixo do peso do amante corpulento, olhando para o topo de sua careca e para os poucos fios de cabelos restantes nas têmporas, tingidos de castanho (Oh, a vaidade dos velhos), desvencilhou-se de debaixo do cadáver e depois telefonou para chamar uma ambulância, que transportou Didi e o corpo amortalhado do avô de Ferguson para o hospital Lenox Hill, onde, às três e cinquenta e dois da tarde, Benjamin Adler foi registrado como morto, e depois a pobre a abalada Didi teve de telefonar para a avó de Ferguson, que nada sabia sobre a existência da jovem, e disse para ela ir imediatamente ao hospital, porque tinha acontecido um acidente.

O enterro foi restrito aos familiares mais próximos. Nenhum Gersh nem os Pomerantz foram convidados, nenhum amigo, nenhum parceiro de negócios, nem mesmo a tia-avó e o tio-avô de Ferguson da Califórnia (o irmão mais velho da avó, Saul, e sua esposa escocesa, Marjorie). O escândalo tinha de ser sufocado e a reunião de um público muito grande seria mais do que a avó de Ferguson poderia suportar, portanto, só oito pessoas cumpriram a jornada até o cemitério de Woodbridge, Nova Jersey, para acompanhar o enterro de seu avô: Ferguson e os pais, Amy, a tia-avó Pearl, a tia Mildred e o tio Henry (que vieram de avião de Berkeley um dia antes) e a avó de Ferguson. Escutaram o rabino recitar o Kadish, jogaram terra na caixa de pinho dentro da cova e em seguida voltaram para o apartamento na rua 58 Oeste, para almoçar; depois se refugiaram na sala e se dividiram em três grupos, três conversas separadas, que se prolongaram até bem depois de escurecer: Amy no sofá com a tia Mildred e o tio Henry, o pai de Ferguson e a tia-avó Pearl nas poltronas em frente ao sofá, e Ferguson na mesinha da alcova junto às janelas da frente, com a mãe e a avó. Dessa vez, foi a avó, sobretudo, que se incumbiu de falar. Depois de tantos anos em silêncio, enquanto o marido despejava suas incessantes piadas e histórias disparatadas, era como se ela estivesse, finalmente, reivindicando seu direito de falar por si mesma, e o que ela falou naquela tarde espantou Ferguson, não só porque as palavras em si eram espantosas, mas porque era espantoso entender como ele havia avaliado sua avó de modo tão completamente errado durante toda a vida.

O primeiro espanto foi que ela não tinha mágoa nenhuma de Didi Bryant, a quem se referia como aquela mocinha bonita em prantos. E que coragem dela, disse a avó, não ter fugido e desaparecido no meio da noite, como faria a maior parte das pessoas na sua situação, mas aquela moça era diferente, ficou plantada no saguão do hospital até a ESPOSA aparecer e não ficou envergonhada ao contar o seu caso com Benjy, ao dizer que sentia uma grande afeição por ele e ao revelar a tristeza, a grande tristeza que sentia por ter acontecido aquilo. Em vez de condenar Didi pela morte de Benjy, a avó de Ferguson teve pena dela e a chamou de pessoa boa e, a certa altura, quando Didi perdeu o controle e começou a chorar (esse foi o segundo espanto), a avó disse para ela: Não chore, querida. Tenho certeza de que você o fez feliz, e o meu Benjy era um homem que precisava ser feliz.

Havia algo de heroico naquela reação, sentiu Ferguson, uma profundidade de compreensão humana que virava de pernas para o ar tudo o que ele havia pensado sobre a avó até aquele momento, e então ela se virou um pouquinho na cadeira e olhou diretamente para a mãe de Ferguson, os olhos encharcados pela primeira vez em todo aquele dia, e um momento depois ela falou de coisas que ninguém da geração dela jamais falava, afirmando sem rodeios que havia frustrado o marido, que tinha sido uma esposa ruim para ele, porque a parte física do casamento nunca a havia interessado, tinha achado a relação sexual dolorosa e desagradável e, depois que as meninas nasceram, ela disse para Benjy que não podia mais fazer aquilo, ou só de vez em quando, como um favor para ele, e então o que se poderia esperar, perguntou para a mãe de Ferguson, é claro que Benjy foi atrás de outras mulheres, era um homem de fortes apetites, e como ela poderia censurar o marido por isso, quando ela o havia deixado na mão e tinha um desempenho tão fraco no quesito da cama? Em todos os outros aspectos, ela o amava, durante quarenta e sete anos, ele foi o único homem na sua vida, e acredite em mim, Rose, nem por um minuto tive a sensação de que ele não me amava também.

Junho de 1967. Tudo se resumiu a uma questão de dinheiro. Quando a mãe de Ferguson lhe disse, no fim de janeiro, que o pai estava cobrindo os custos da Universidade Columbia, do apartamento, da comida, dos livros e das despesas extras sacando porções de sua apólice de seguro de vida de seis em seis meses, Ferguson entendeu que teria de começar a contribuir com algo mais do que as migalhas do salário mínimo que tinha ganhado como ajudante de livraria no verão anterior, que ele devia aos pais qualquer soma adicional que conseguisse ganhar, como um gesto de boa-fé, ou de gratidão.

Amy já estava com um trabalho engatilhado para o verão seguinte. No almoço após o enterro, no apartamento dos avós, Amy passou horas conversando com a tia Mildred e o tio Henry. O historiador Henry e a estudante de história Amy se entenderam muito bem, e quando o tio de Ferguson contou para ela sobre o projeto que planejava começar em junho (um estudo sobre o movimento dos trabalhadores nos Estados Unidos), Amy levantou tantas perguntas interessantes (segundo Henry) que ela, de repente, se viu diante de uma proposta de trabalho de verão como auxiliar de pesquisa. O trabalho seria em Berkeley, claro, e agora que Amy iria para lá no fim do semestre letivo da primavera, a consequência natural era que Ferguson fosse com ela. Durante todo o inverno e o início da primavera, os dois conversaram sobre aquilo como se fosse sua próxima grande aventura no exterior — outra França, mas, dessa vez, viajar para o exterior dentro do seu próprio país. Trem, avião ou ônibus, quem sabe no velho automóvel Impala, de carona ou então num daqueles trabalhos itinerantes em que a gente transporta o carro de alguém para outra cidade: eram essas as opções diante deles, e o truque era adivinhar qual delas ficaria mais barata. No entanto, era essencial que Ferguson arranjasse um trabalho em Berkeley antes de ir para lá, todo o projeto dependia de ele também ter um trabalho, e Ferguson não podia se dar ao luxo de perder tempo procurando alguma vaga de emprego só depois de chegar. A tia Mildred prometeu ajudar, garantiu que havia um monte de empregos e que não haveria nenhum problema, mas quando ele escreveu para a tia no fim de março e, de novo, em meados de abril, as respostas foram tão obscuras, tão vazias de detalhes que ele teve quase certeza de que ela havia esquecido de procurar trabalho para ele, ou ainda não tinha começado a pro­curar, ou não tinha nenhuma intenção de procurar, senão quando ele já estivesse a caminho da Califórnia. Foi aí que uma oportunidade se apresentou do nada, por conta própria, em Nova York, uma boa oportunidade, e apesar da decepção que lhe causou, sentiu que não podia recusar, sem correr o risco de passar o verão inteiro sem nada. Por mais estranho que fosse, era um trabalho quase idêntico ao de Amy, o que, de certa forma, piorava ainda mais a situação, como se ele tivesse sido transformado no alvo de alguém que tivesse uma ideia toda torta de como contar uma piada sem graça nenhuma. Um professor de Ferguson no período letivo da primavera foi encarregado de escrever uma história de Columbia, desde sua fundação até a comemoração de seu aniversário de duzentos anos (1754 a 1954), e ele estava precisando de um auxiliar de pesquisa para ajudá-lo a dar um empurrão inicial no livro. Ferguson não teve de se candidatar para o cargo. Andrew Fleming ofereceu a vaga para ele porque ficou impressionado com seu aluno de vinte anos e com sua capacidade de escrever — não eram só seus trabalhos de estudante, mas suas matérias de jornal e suas traduções de poesia também. Ferguson ficou lisonjeado com aqueles comentários generosos, mas foi o salário que o atraiu, duzentos dólares por semana (financiados por um fundo de pesquisa da universidade), o que significava que ele poderia juntar mais de dois mil dólares até o início do semestre do outono, e assim, de uma hora para outra, ele não ia mais para a Califórnia. Pouco importava que o gorducho Fleming, de cinquenta e dois anos, fosse um eterno solteirão, sempre seriamente interessado por rapazes. Ferguson nunca duvidou de que o professor tinha um xodó por ele — mas isso não era nada que Ferguson não pudesse resolver e nada que o impedisse de aceitar o trabalho.

Escreveu para a tia Mildred uma última vez no início de maio, na esperança de que aparecesse finalmente alguma vaga de emprego em Berkeley que lhe permitisse não fechar o negócio com Fleming, antes de começar a trabalhar, mas se passaram duas semanas e nada de resposta, e, quando ele afinal se dispôs a torrar dinheiro num telefonema interurbano para a Califórnia, a tia disse que não tinha recebido a carta. Ferguson desconfiou que ela estava mentindo, mas não podia dar voz à sua desconfiança sem provas, e que diferença fazia, afinal de contas? Mildred não tinha intenção de sabotar seus planos, ela era preguiçosa, só isso, deixou a questão de lado e agora era tarde demais para fazer qualquer coisa, e assim a tia, que antigamente adorava tanto o único e incomparável Archie, tinha deixado o sobrinho na mão.

Amy ficou arrasada. Ferguson estava desesperado. A ideia de ficarem separados por dois meses e meio era horrível demais para sequer falarem do assunto e, no entanto, nenhum dos dois conseguia ver uma saída. Amy disse que o admirava por agir como um adulto (embora ele sentisse que Amy estava um pouco revoltada com ele também), e, embora Ferguson tivesse a tentação de pedir que ela cancelasse a viagem e ficasse em Nova York, sabia que seria presunçoso e errado da sua parte fazer aquilo, portanto nunca pediu. A Guerra dos Seis Dias estourou no dia 1o de junho e, um dia depois que terminou, Amy partiu para Berkeley sozinha. Os pais lhe deram o dinheiro da passagem de avião e Ferguson foi com eles ao aeroporto, na manhã em que ela foi embora. Uma despedida infeliz, desajeitada. Sem lágrimas e sem grandes gestos, mas um abraço demorado e solene, seguido pela promessa de escreverem um para o outro assim que possível. De volta a seu quarto na rua 111 Oeste, Ferguson sentou-se na cama e olhou para a parede à sua frente. Ouviu uma criança chorar no apartamento vizinho, ouviu um homem gritar Vá à merda para alguém na calçada, cinco andares abaixo e, de repente, se deu conta de que tinha cometido o pior erro de sua vida. Com trabalho ou não — ele deveria ter ido com ela e se virado do jeito que conseguisse. Era assim que era preciso viver, era esse o tipo de vida movimentada que desejava para si, uma vida que dançava, mas ele optou pelo dever em detrimento da aventura, pela responsabilidade com os pais em detrimento do seu amor por Amy, e sentiu ódio de si mesmo por sua cautela, por seu coração laborioso e careta. Dinheiro. Sempre dinheiro. Sempre o dinheiro apertado. Pela primeira vez na vida, começou a se perguntar qual seria a sensação de alguém que já nasce podre de rico.

Mais um verão em Nova York com aquela gente maluca e os rádios tocando, ouvindo os roncos e os peidos do sublocatário no quarto de Amy, ao lado do seu, enquanto ficava deitado na cama, à noite, suando, suando nas camisas e nas meias todos os dias; ao meio-dia, andando pelas ruas com os punhos cerrados agora; no bairro, era um assalto a ponta de faca de hora em hora, quatro mulheres estupradas nos elevadores do prédio deles, esteja preparado, fique de olhos abertos, tente prender a respiração quando passar por uma lata de lixo. Dias compridos no meio de um milhão de livros, na réplica do Partenon chamada Biblioteca Butler, tomando notas sobre a Columbia pré-revolucionária, na época conhecida pelo nome de King’s College, e as condições de vida na Nova York em meados do século XVIII (porcos correndo pelas ruas, excremento de cavalo por todo lado), a primeira universidade no estado, a quinta no país, John Jay, Alexander Hamilton. Gouverneur Morris, Robert Livingston, o primeiro presidente da Suprema Corte, o primeiro secretário do Tesouro, autor do texto final da Constituição dos Estados Unidos, membro da comissão de cinco homens que redigiu o primeiro texto da Declaração de Independência, os Pais Fundadores quando jovens, quando meninos, quando bebês, correndo no meio das ruas, junto com os porcos e os cavalos, e depois Ferguson voltava para casa após cinco ou seis horas na bolorenta Biblioteca Butler, para datilografar suas anotações para Fleming, que encontrava duas vezes por semana em West End, com ar-condicionado, sempre lá, nunca no escritório ou no apartamento de Fleming, pois, embora o historiador gentil, respeitoso, profundamente inteligente nunca pusesse a mão em Ferguson, seus olhos ficavam o tempo todo cravados em cima dele, em busca de algum sinal de encorajamento ou de algum relance de desejo recíproco, e isso já era demais para suportar, Ferguson sentia, pois gostava de Fleming e não podia deixar de ter pena dele.

Enquanto isso, Amy estava na terra dos hippies, a cinco mil quilômetros na direção oeste, Amy estava no Jardim do Éden, Amy vagando pela Tele­graph Avenue, em Berkeley, durante o Verão do Amor, e Ferguson lia e relia suas cartas quantas vezes podia, para poder ficar ouvindo sua voz, levava as cartas para a biblioteca toda manhã para usar como pílulas contra o tédio, toda vez que seu trabalho ameaçava deixá-lo em estado de coma, e as cartas que ele escrevia em resposta eram leves e ligeiras e o mais divertidas que conseguia fazer, sem nenhum papo sobre guerra, sobre os cheiros azedos nas ruas, as mulheres estupradas nos elevadores ou a desolação que tinha baixado em seu coração. Parece que você está vivendo o grande tempo de sua vida, escreveu Ferguson numa das quarenta e duas cartas que mandou para Amy naquele verão. Aqui em Nova York, eu estou vivendo a vida do meu tempo.

Julho de 1967. Na opinião de Ferguson, a parte mais triste dos tristes motins de Newark era que nada poderia impedir que acontecessem. Ao contrário da maioria dos acontecimentos no mundo, que também poderiam não ter ocorrido se as pessoas estivessem pensando com mais clareza (o Vietnã, por exemplo), Newark era inevitável. Talvez não ao ponto de chegar a vinte e seis pessoas mortas ou a setecentas pessoas feridas ou a mil e quinhentas pessoas presas ou a novecentos estabelecimentos comerciais destruídos ou a dez milhões de dólares de prejuízo contra a propriedade, mas Newark era um lugar onde tudo estava errado havia muitos anos e os seis dias de violência que começaram no dia 12 de julho foram o resultado lógico de uma situação que só poderia ser enfrentada por meio da violência, de um tipo ou de outro. O fato de a guerra ter estourado quando um taxista negro chamado John Smith foi preso por ultrapassar ilegalmente uma viatura da polícia e, em seguida, ser espancado com cassetetes por dois policiais brancos, foi menos uma causa do que um efeito. Se não fosse Smith, teria sido algum Jones. E se não fosse Jones, teria sido algum Brown ou White ou Gray. No caso, calhou de ser um Smith, e, quando ele foi arrastado para dentro da Quarta Delegacia de Polícia pelos guardas que o prenderam, John DeSimone e Vito Pontrelli, o boato de que Smith tinha sido assassinado rapidamente se espalhou entre os moradores do grande conjunto habitacional do outro lado da rua. Não era verdade, como se constatou, mas a verdade mais profunda era que a população de Newark era, nessa altura, formada por mais de cinquenta por cento de negros, e aquelas duzentas e vinte mil pessoas, na maioria, eram pobres. Newark tinha a mais elevada percentagem de moradias abaixo do padrão no país, o segundo índice de criminalidade mais elevado, o segundo índice de mortalidade infantil mais elevado e uma taxa de desemprego duas vezes maior do que a média nacional. O governo municipal era todo de brancos, noventa por cento da Polícia eram de brancos, e quase todos os contratos de construção eram destinados a empresas controladas pela Máfia, que presenteava com generosas propinas os funcionários municipais que os ajudavam e se recusavam a contratar operários negros, porque não pertenciam aos sindicatos só de brancos. O sistema era tão corrupto que a prefeitura era comumente chamada de Fábrica de Roubo.

No passado, Newark tinha sido uma cidade onde as pessoas faziam coisas, uma cidade de fábricas e empregos de produção fabril e todo tipo de coisas que existiam no mundo era fabricado ali, desde relógios de pulso até aspiradores de pó e canos de chumbo, desde garrafas até escovas de garrafas e botões, desde pão em embalagens até bolinhos e salames italianos de trinta centímetros. Agora, as casas de ripas de madeira estavam desmoronando, as fábricas tinham fechado as portas e a classe média branca estava se mudando para os subúrbios. Os pais de Ferguson tinham feito isso já em 1950 e, até onde ele se lembrava, eles foram os únicos que voltaram, mas Weequahic não era propriamente Newark, era uma cidade de judeus na ala sudoeste de uma Newark imaginária e tudo fora tranquilo ali, desde o início dos tempos. Setenta mil judeus num mesmo lugar, um esplêndido parque de mil e duzentos quilômetros quadrados, projetado por Olmsted, e um colégio de ensino médio de onde saíram mais ph.Ds. do que qualquer outro colégio do país.

Ferguson estava bebendo cerveja em West End, na noite 12 e, quando voltou para seu apartamento, um pouco depois da uma da manhã, o telefone estava tocando. Ele atendeu e ouviu o pai gritando no fone: Onde diabo vo­cê se meteu, Archie? Newark está pegando fogo! Eles arrebentaram as janelas e saquearam as lojas! Os guardas estão atirando e sua mãe está lá fora, na Spring­field Avenue, tirando fotos para aquele jornal desgraçado! Eles bloquearam a rua com cordões de isolamento e não posso chegar lá! Venha para casa, Archie! Preciso de você aqui, e não se esqueça de trazer a sua carteira de imprensa!

Era tarde demais para pensar em ir ao centro e pegar um ônibus no terminal de Port Authority, por isso Ferguson acenou para um táxi na Broadway e disse para o motorista pisar fundo, expressão que tinha ouvido uma porção de vezes nos filmes, mas que nunca havia pronunciado, e, embora a viagem tenha lhe custado só dois dos trinta e quatro dólares que trazia na carteira, conseguiu chegar ao prédio de apartamentos em Van Velsor Place em menos de uma hora. Felizmente, as ruas dos arredores estavam calmas. O motim tinha começado no Setor Central e depois se espalhou para áreas da parte baixa, mas o Setor Sul ainda estava intacto. Para tranquilizar ainda mais a situação, sua mãe tinha acabado de voltar para casa e seu pai, superagitado e meio enlouquecido, começava a reencontrar seu equilíbrio.

Nunca vi nada parecido, disse a mãe. Coquetéis molotov, lojas saqueadas, guardas de armas em punho, incêndios, pessoas enfurecidas correndo para todo lado — puro caos.

A loja do Sam acabou, disse o pai. Ele telefonou uma hora atrás e me disse que não sobrou nada. Loucos, animais selvagens, é o que são. Imagine, queimar seu próprio bairro, é a coisa mais burra de que já ouvi falar.

Vou para a cama, anunciou a mãe. Estou esgotada e tenho de ir para o Ledger amanhã bem cedo.

Chega dessa história, Rose, disse o pai.

Chega de quê, Stanley?

Chega de fotografias de guerra.

É o meu trabalho. Tenho de fazer. Já temos uma pessoa da família sem trabalho, por causa do que aconteceu nesta noite, e não há a menor possibilidade de eu não trabalhar.

Mas vão acabar matando você.

Não, não vão me matar. Acho que agora já acabou. Todo mundo estava voltando para casa quando saí de lá. A festa acabou.

Era o que ela pensava, e também era o que pensavam muitos outros, até o prefeito, Hugh Addonizio, que fez pouco-caso dos distúrbios, como coisa irrelevante, apenas umas garrafas quebradas, mas quando o motim recomeçou na noite seguinte, a mãe voltou para as ruas com sua câmera e, dessa vez, Ferguson estava com ela, com sua carteira de imprensa do Montclair Times e do Columbia Spectator, para o caso de serem detidos pela polícia e chamados para se identificarem. O pai passou o dia com Sam Brownstein na sua loja de artigos esportivos em ruínas, avaliando os prejuízos, fechando com tábuas de compensado o que antes eram as vitrines, resgatando as poucas coisas que foram deixadas para trás, e ele ainda estava com Sam quando Ferguson e a mãe partiram para a Springfield Avenue depois do pôr do sol. O pai pensava que Ferguson estava lá para proteger a mãe, mas, na verdade, ele estava lá porque queria, pois a Rose não precisava de proteção enquanto fazia seu trabalho, que era tirar fotos, o que fazia com tranquilidade e disciplina notáveis, sentia Ferguson, tão segura e concentrada que ele não demorou para se dar conta de que, pelo contrário, era ela que o estava protegendo. Um grande contingente de jornalistas e fotógrafos tinha se reunido no Setor Central naquela noite, gente dos jornais de Newark, de Nova York, das revistas Life, Time e Newsweek, da AP da Reuters, da imprensa underground, da imprensa negra, do rádio e da televisão, e a maioria deles ficava espremida e junta, enquanto observavam o tumulto se desdobrar pela Springfield Avenue. Era uma coisa perturbadora de testemunhar e Ferguson admitia, com franqueza, que estava à beira do pavor, às vezes até se apavorava mesmo, mas também estava empolgado e admirado, totalmente despreparado para a força explosiva da energia que irrompia pela rua, a mistura de emoção forte e movimento impulsivo que parecia fundir raiva e júbilo num sentimento que ele jamais havia encontrado em nenhum lugar, um sentimento novo para o qual ainda seria preciso dar um nome, e não só não era uma coisa louca, como o pai tinha dito, como tampouco era uma burrice, pois a turba de negros estava atacando sistematicamente negócios de propriedade de brancos, muitos deles brancos judeus, e ao mesmo tempo poupavam lojas que pertenciam a negros, as lojas com os dizeres IRMÃO DE ALMA grafados na frente e, desse modo, estavam dizendo aos brancos que eles eram encarados como inimigos invasores e que estava na hora de irem embora do país. Não que Ferguson achasse que aquilo era uma boa ideia, mas pelo menos fazia sentido.

Mais uma vez, o motim se extinguiu e, mais uma vez, todo mundo foi para casa e, agora sim, parecia que tudo estava acabado para sempre, a segunda noite de um festim de destruição e de um extravasamento anárquico de duas noites, mas o que ninguém na multidão que se retirava sabia, na ocasião, era que, às duas horas e vinte minutos da madrugada, o prefeito Addonizio havia telefonado para o governador Richard Hughes e pedido que mandasse a Guarda Nacional e tropas da Polícia estadual de Nova Jersey. Quando o dia nasceu, três mil soldados da Guarda Nacional faziam ronda pela cidade em tanques, quinhentos policiais fortemente armados da Polícia do estado tomaram posições nas ruas do Setor Central e, durante os três dias seguintes, a Guerra do Vietnã voltou para casa, em Newark, pois se nenhum vietcongue ja­mais chamou Muhammad Ali de preto safado, agora o povo negro de New­ark tinha se transformado no vietcongue.

Governador Hughes: “Isso é uma insurreição criminosa de gente que diz que odeia os brancos, mas que na verdade odeia os Estados Unidos”.

Barreiras com arames farpados. Toque de recolher para carros, às dez horas da noite, todo mundo fora das ruas às onze. Os saques pararam e a exaltação das duas primeiras noites se converteu em guerra urbana, uma batalha a céu aberto em que as armas eram fuzis, metralhadoras e incêndios. Um comandante do Corpo de Bombeiros chamado Michael Moran, um branco de trinta e oito anos, pai de seis filhos, levou um tiro e morreu quando estava no alto de uma escada de bombeiros averiguando um alarme de incêndio na Central Avenue, e, a partir deste ponto, a Guarda Nacional e a Polícia estadual agiram com o pressuposto de que a cidade estava infestada de franco-atiradores negros, de tocaia nos telhados, de armas em punho apontadas para qualquer branco que passasse. O fato de que vinte e quatro, das vinte e seis pessoas mortas naqueles dias, eram negras poderia refutar aquela ideia, porém, mesmo assim, foi isso que permitiu que os guardas e os policiais disparassem treze mil cargas de munição e atirassem diretamente para a janela de um apartamento no segundo andar de uma mulher chamada Rebecca Brown, por exemplo, fuzilada e morta com o que o jornal Star-Ledger definiu como “uma saraivada de balas”, ou disparar mais vinte e três balas contra o corpo de Jimmy Rutledge, ou matar a tiros Billy Furr, de vinte e quatro anos, pelo crime de pegar um refrigerante gelado numa loja de conveniência já saqueada e entregar para um sedento fotógrafo da revista Life.

No meio de tudo isso, a mãe de Ferguson fez o que podia para continuar tirando fotos dos tanques, dos soldados e dos agora demolidos estabelecimentos comerciais de negros, no Setor Central, centenas de fotos que documentavam todos os aspectos da conflagração que ela julgasse relevantes, e, como o pai de Ferguson estava dominado pelo pânico a respeito da segurança de Rose, ele fazia questão de acompanhá-la aonde quer que ela fosse, o que, durante aqueles três dias, o levou a ficar sentado com ela no banco de trás do velho automóvel Impala enquanto Ferguson dirigia e levava os pais pela cidade, e, depois, quando se aproximava a hora do toque de recolher, entregar os rolos de filmes fotográficos no prédio do Star-Ledger, para serem revelados, antes de voltarem para seu apartamento na tranquila Van Velsor Place. A admiração de Ferguson pela mãe continuou a crescer ao longo do horror daqueles dias. Que uma mulher de quarenta e cinco anos que tinha passado a vida num estúdio fotográfico fazendo retratos e tinha começado no jornalismo fotografando festas em jardins do subúrbio fosse capaz de sair nas ruas e fazer o que estava fazendo agora, o deixava chocado e parecia uma das transformações mais improváveis que ele tinha visto. Esse era seu consolo único, pois tudo mais naquele tempo lhe dava náusea, náusea no coração, náusea na bar­riga, náusea do mundo em que vivia, e não ajudava nada o fato de o pai praguejar todas as noites contra eles, os malditos schvartzes e como eles odiavam a nós, e aos judeus, e isso era o fim, declarou o pai, ele também iria odiá-los para sempre a partir daquele momento, odiar furiosamente por todos os minutos, até o dia em que morresse, e, durante uma daquelas arengas bombásticas, Ferguson ficou tão enojado que perdeu a calma e disse para o pai calar a boca, algo que nunca tinha feito em toda a vida.

As tropas se retiraram no dia 17 e, quando o último tanque deixou a cidade, a guerra estava terminada.

E tudo o mais também estava terminado, pelo menos para os judeus de Weequahic, que pareciam pensar exatamente igual ao pai de Ferguson sobre o que tinha acontecido e, no intervalo de seis meses, quase todas as famílias da região foram embora, algumas se mudaram para Elizabeth, ali perto, outras partiram para os subúrbios dos condados de Essex e de Morris, e um bairro que no passado tinha sido só de judeus não tinha mais nenhum judeu. Que estranho que a maioria dos pais e dos avós dos negros que moravam em Newark tinha vindo do sul durante a Grande Migração, entre as duas guerras mundiais, e agora, como as fotos de sua mãe sobre os motins tinham alcançado certo reconhecimento no mundo e ela tinha recebido o convite para trabalhar no jornal Miami Herald, seus pais estavam trocando de lugar com seus vizinhos negros e partindo, eles mesmos, para o sul.

Foi terrível ver seus pais partirem.

Outono de 1967. Algo da luz do sol, da luz das estrelas ou do luar na Cali­fórnia tinha dado um brilho novo na cor do cabelo de Amy e escurecido a cor de sua pele, e ela voltou para Nova York com sobrancelhas e pestanas mais claras, mais louras, e uma luz mais bronzeada que irradiava das faces, dos braços, das pernas, o marrom-dourado de um bolinho assado que saiu do forno ou de uma fatia de torrada quente e amanteigada. Ferguson queria comer Amy toda. Depois de dois meses e meio de celibato e agonia, ele não se fartava de Amy, e, como ela também havia morrido de fome durante todo o verão, representando o papel do que ela chamou de freira frígida, se encontrava num estado de excitação fora do comum, seca para dar a ele tanto quanto ele estava seco para dar a ela, e Ferguson, que entendia, agora, que ele tinha herdado a maior parte, senão todos os fortes apetites do avô, estava pronto para dar a ela tudo que tinha, e foi o que fez, e foi o que Amy fez também, com tudo que tinha, e durante três dias consecutivos, depois que ela chegou ao apartamento na rua 111 Oeste, os dois acamparam na cama de casal no quarto de Amy e restabeleceram suas relações com a força desconhecida que os mantinha unidos.

No entanto, certas coisas tinham mudado e nem todas eram do agrado de Ferguson. Por exemplo, Amy tinha se apaixonado pela Califórnia, ou pelo menos pela parte da Califórnia onde ficava a Bay Area, e a garota que nunca iria deixar Nova York estava agora pensando seriamente se não devia tentar ingressar na faculdade de direito em Berkeley no ano seguinte. A questão não era o direito. Ferguson não ligava a mínima se ela queria ser advogada, o que era algo que os dois tinham discutido muitas vezes no passado, uma advogada para os pobres, uma advogada ativista, uma profissão que lhe permitiria fazer mais bem no mundo do que uma pessoa que organizava manifestações contra a guerra ou greves de inquilinos contra senhorios gananciosos e irresponsáveis, pois a guerra estava fadada a terminar um dia (ela esperava), e seria mais satisfatório pôr senhorios gananciosos na cadeia do que implorar que eles ligassem o sistema de calefação, exterminassem os ratos ou não usassem mais tinta à base de chumbo. Não havia a menor dúvida, o negócio era ser advogada — mas a Califórnia?, do que ela estava falando? Ela esqueceu que Ferguson ainda estaria em Nova York no ano seguinte? Ficarem separados no verão já tinha sido difícil, mas um ano inteiro ia deixar Ferguson maluco. E o que fazia Amy imaginar que ele ia querer segui-la para a Califórnia depois de formado? Ela não poderia fazer uma faculdade de direito mais sensata, como em Columbia ou na Universidade de Nova York ou em Fordham, e morar no apartamento junto com ele? Por que tornar tudo tão tremendamente complicado?

Archie, Archie, não comece a pirar. É só uma especulação, por enquanto.

Eu fico chocado que você chegue a pensar no assunto.

Você não sabe como é a vida lá. Depois de duas semanas, parei de pensar em Nova York, e estava bem contente de não pensar nisso. Eu me sentia em casa.

Não era isso que você dizia antigamente. O negócio é Nova York, lembra?

Eu tinha dezesseis anos quando falava assim e nunca tinha ido a Berke­ley ou a San Francisco. Agora, como mulher adulta, de vinte anos, mudei de ideia. Nova York é um cocô.

Certo. Mas nem toda. A gente sempre pode mudar para outro bairro.

O norte da Califórnia é o lugar mais bonito dos Estados Unidos. Tão lindo quanto a França, Archie. Não acredite em mim, se não quiser. Vá ver por si mesmo.

Agora eu estou meio ocupado.

Nas férias de Natal. A gente podia ir no recesso de inverno.

Certo. Mas, mesmo se eu achar que lá é o melhor lugar do mundo, isso ainda não vai resolver o problema.

Que problema?

O problema de ficarmos um ano separados.

A gente supera isso. Não vai ser tão difícil assim.

Acabei de passar o verão mais solitário, mais desolador da minha vida. Foi difícil, Amy, muito difícil, tão difícil que eu quase não aguentei. Um ano inteiro vai me destruir, na certa.

Tudo bem, foi difícil. Mas também acho que foi bom para nós dois. Ficar sozinhos, dormir sozinhos, sentir falta um do outro e escrever cartas — acho que isso fez de nós um casal mais forte.

Ah.

Eu amo você de verdade, Archie.

Sei que ama. Mas às vezes eu acho que você ama seu futuro mais do que ama a ideia de ficar comigo.

Dezembro de 1967. Naquele inverno, eles não foram para a Califórnia porque a avó de Ferguson morreu, e morreu com a mesma forma de explosão interna abrupta que havia matado o avô, um ano antes, e a viagem teve de ser cancelada para que eles pudessem comparecer a mais um enterro em Wood­bridge, Nova Jersey. Depois, seguiu-se uma semana frenética na qual muitas mãos se dividiram na distribuição dos pertences da avó, na limpeza de seu apartamento, o que teve de ser concluído em tempo recorde, porque os pais de Ferguson estavam à beira de se mudar para a Flórida, por isso todo mundo se juntou para contribuir e ajudar, Ferguson, é claro, mas também Amy, que acabou fazendo mais do que qualquer outra pessoa, e Nancy Solomon e o marido, Max, e Bobby George, que tinha sido dispensado do Exército e tinha regressado a Montclair e estava treinando para voltar em forma na pré-temporada da primavera, e até Didi Bryant, que tinha feito amizade com a avó de Ferguson depois da morte do avô e chorou por ela com a mesma força com que tinha chorado por ele (quem é que, em sã consciência, podia garantir que a vida fazia sentido?). A mãe de Ferguson precisava de ajuda, porque estava arrasada demais e naquela semana chorou mais do que a soma de todas as lágrimas que Ferguson tinha visto a mãe chorar desde a infância até aquele momento, e Ferguson também sentiu uma tristeza avassaladora tomar conta dele, não só porque tinha perdido a avó, o que já era dor suficiente, como também porque detestava ver o que estava acontecendo no apartamento, o vagaroso desmonte dos cômodos onde um objeto depois do outro era embrulhado em jornais e guardado em caixas de papelão, todas as coisas que tinham feito parte da sua vida desde quando ele se entendia por gente, as reles e miúdas quinquilharias com que havia brincado nas próprias mãos e nos joelhos quando menino, os elefantes de marfim da avó e os hipopótamos de vidro verde, o paninho bordado e amarelado embaixo do telefone, na saleta, os cachimbos do avô e as caixas vazias que antigamente serviam para conservar os charutos úmidos e nas quais ele adorava meter o nariz e cheirar fundo para sentir o aroma acre do tabaco deixado pelos charutos, desaparecidos havia muito tempo, agora tudo tinha ido embora, agora tudo tinha ido embora para sempre, e o pior de tudo era que a avó estava planejando mudar para a Flórida com os pais dele e morar com eles no apartamento novo em Miami Beach, e muito embora ela dissesse que estava ansiosa para mudar (Você vai lá me visitar, Archie, e a gente vai tomar o café da manhã no Wolfie’s, na Collins Avenue, e comer ovos mexidos com cebolas e salmão), ele desconfiava que a ideia de abandonar o apartamento, depois de tantos anos, a deixava apavorada e talvez, no fundo, ela bem que desejasse ter um derrame, porque simplesmente não conseguia encarar a mudança.

A última coisa na cabeça de Ferguson, na ocasião, era o dinheiro, pois logo ele, que raramente parava de pensar e se preocupar com dinheiro no dia a dia de sua vida, havia deixado em segundo plano a questão dos bens e das consequências financeiras que vinham após a morte de alguém, mas seu avô havia amealhado uma considerável bolada de dinheiro durante seus longos anos na empresa Gersh, Adler e Pomerantz, e, muito embora bons bocados daquela bolada tivessem sido torrados com Didi Bryant e suas antecessoras, a avó de Ferguson tinha herdado mais de meio milhão de dólares após a morte do marido, e agora que ela também tinha morrido, esse dinheiro passou para suas duas filhas, Mildred e Rose, cada uma ganhou a metade, segundo os termos do testamento e, depois de pagos os impostos, a tia e a mãe de Ferguson ficaram, cada uma delas, duzentos mil dólares mais ricas do que eram antes do derrame fatal sofrido pela mãe. Duzentos mil dólares! Era uma soma tão escandalosa que Ferguson chegou a rir quando a mãe ligou da Flórida no fim de janeiro e lhe deu a notícia, e então ele riu ainda mais quando ela anunciou que metade da sua metade iria para ele.

Seu pai e eu discutimos isso com todo cuidado, disse ela, e achamos que é apenas uma questão de justiça que você receba alguma coisa já. A quantia a que chegamos é de vinte mil dólares. Os outros oitenta, vamos deixar aplicados em investimentos para você, e assim, se e quando você se vir numa situação em que possa precisar de uma parte do dinheiro, os oitenta já serão mais do que oitenta. Você agora é um rapaz crescido, Archie, e achamos que vinte já seria o bastante para atravessar seus três últimos semestres de faculdade, mantendo ainda uma boa quantia de reserva, para quando começar o que chamam de vida real, uma poupança de uns seis ou oito mil dólares, o que vai lhe dar a chance de encontrar o trabalho que realmente deseja, e não algum que você aceite só porque tem a sensação de que precisa aceitar, porque está desesperado atrás de dinheiro. Além do mais, isso vai facilitar as coisas para nós, os velhos, na distante Miami Beach. Seu pai não vai ter de lhe mandar cheques mensais para seu aluguel e sua mesada, não vai ter de pensar em pagar seus estudos, tudo vai ser mais simples para todos nós e, de agora em diante, você vai ser o responsável.

O que fiz para merecer isso?, perguntou Ferguson.

Nada.

Mas o que foi que eu fiz para merecer esse dinheiro, afinal?

Nada. É assim que são as coisas, Archie. As pessoas morrem e a vida continua, e o que a gente puder fazer para ajudar uns aos outros, bem, é isso que a gente faz, não é?

Janeiro de 1968. Como Amy era uma pessoa que nunca voltava atrás depois de ter tomado uma decisão, ela fincou pé e enviou o pedido de uma vaga para a faculdade de direito em Berkeley, e, como Ferguson sabia que ela ia conseguir a vaga e resolveria ir para lá assim que fosse aceita, ainda que também fosse aceita em Columbia e em Harvard, ele tentou se consolar pensando no dinheiro que lhe permitiria viajar para a Califórnia para ver Amy em visitas breves, às vezes em visitas mais demoradas, caso ela preferisse não voltar para Nova York nas férias de Natal ou da primavera e, desse modo, talvez fosse possível superar aquele ano sem se sentir esmagado por sua ausência. Era improvável, pensava Ferguson, mas pelo menos o dinheiro lhe daria uma chance, ao passo que, antes do dinheiro, não havia absolutamente nenhuma esperança.

Além disso, o interessante no dinheiro era como ele afetava pouco as circunstâncias exteriores de sua vida. Agora Ferguson hesitava um pouco menos na hora de comprar os livros e discos que queria, tendia a substituir roupas e sapatos gastos com um pouco mais de presteza do que no passado e, sempre que queria surpreender Amy com um presente (flores, em geral, mas também livros, discos e brincos), podia ceder ao impulso sem parar para pensar. Fora isso, pouca coisa mudou. Continuava a ir às aulas, escrever matérias para o Spectator e a traduzir poemas franceses, continuava a frequentar seus esconderijos baratos — o West End, o Green Tree e Chock Full o’Nuts —, mas lá no fundo, nas profundezas submersas da câmara mental onde Ferguson vivia sozinho, em comunhão silenciosa com a própria consciência, havia uma coisa que agora era muito diferente. Milhares de dólares estavam depositados na sua conta no First National City Bank, na esquina da rua 110 Oeste com a Broadway e, só de saber que estavam lá, ainda que Ferguson não tivesse nenhum desejo particular de gastar, aquilo já o aliviava da obrigação de pensar em dinheiro setecentas e quarenta e seis vezes por dia, o que no fim era tão ruim, senão pior, do que não ter dinheiro suficiente, pois tais pensamentos podiam ser dilacerantes e até assassinos, e não ter mais de pensar naquilo era uma bênção. Essa era a verdadeira vantagem de ter dinheiro em comparação com não ter, ele concluiu — a questão não era poder comprar mais coisas, e sim não ter mais de ficar o tempo todo com aquele pensamento infernal pairando acima da cabeça feito um balão de história em quadrinhos.

Início de 1968. Ferguson via a situação como uma série de círculos concêntricos. O círculo exterior era a guerra e tudo o que acontecia dentro dela: soldados americanos no Vietnã, combatentes inimigos do norte e do sul (vietcongues), Ho Chi Minh, o governo de Saigon, Lyndon Johnson e seu gabinete, a Polícia exterior dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a contagem dos cadáveres, napalm, aldeias incendiadas, corações e mentes, a escalada, a pacificação, a paz com honra. O segundo círculo representava os Estados Unidos, os duzentos milhões no front doméstico: a imprensa (jornais, revistas, rádio, televisão), o movimento contra a guerra, o movimento a favor da guerra, o movimento Black Power, o movimento da contracultura (hippies e yippies, maconha e LSD, rock and roll, a imprensa underground, Zap Comix, os Merry Pranksters, os Motherfuckers), a turma dos Hard Hats e do Ame-o ou Deixe-o), o espaço vazio ocupado pelo chamado abismo de gerações entre os pais de classe média e seus filhos, e a vasta multidão de cidadãos que viriam a ser conhecidos pelo nome de Maioria Silenciosa. O terceiro círculo era Nova York, que era quase idêntico ao segundo círculo, porém mais imediato, mais vívido: um laboratório repleto de exemplos das correntes sociais mencionadas acima, que Ferguson podia perceber de forma direta, com os próprios olhos, e não através de um filtro de palavras escritas ou imagens publicadas, ao mesmo tempo que levava em conta as nuances e as particularidades da própria Nova York, que era diferente de todas as outras cidades americanas, sobretudo por causa da enorme separação entre ricos e pobres. O quarto círculo era Columbia, a morada temporária de Ferguson, o pequeno mundo à mão que o rodeava e seus colegas estudantes, o terreno circundante de uma instituição que já não se mantinha isolada do mundo exterior, pois os muros tinham tombado e o exterior, agora, não se distinguia do interior. O quinto círculo era o individual, cada pessoa, em qualquer dos demais círculos, mas no caso de Ferguson os indivíduos que contavam de fato eram aqueles que ele conhecia pessoalmente, sobretudo os amigos com quem partilhava a vida em Columbia e, mais que todos os outros, é claro, o indivíduo dos indivíduos, o ponto no centro do menor dos cinco círculo, a pessoa que era ele mesmo.

Cinco reinos, cinco realidades separadas, mas cada uma estava ligada às outras, o que significava que, quando algo acontecia no círculo exterior (a guerra), seus efeitos podiam ser sentidos em todo o país, Nova York, Columbia, e até no último ponto no centro de cada círculo interior das vidas privadas, individuais. Quando a guerra se agravou na primavera de 1967, por exemplo, quinhentas mil pessoas fizeram uma passeata nas ruas de Nova York, no dia 15 de abril, para condenar a guerra e pedir a imediata retirada das tropas dos Estados Unidos no Vietnã. Cinco dias depois, no campus de Columbia, nos arredores da cidade, trezentos membros do movimento SDS fizeram uma demonstração no John Jay Hall “para fazer algumas perguntas” aos recrutadores da Marinha, que tinham instalado suas mesas no saguão e foram atacados por uma turma de cinquenta rapazes dos oficiais da reserva da Marinha e por estudantes atletas, o que acarretou um sangrento conflito de punhos cerrados e narizes partidos que acabou contido pela polícia. Na tarde seguinte, a maior manifestação em Columbia em trinta anos ocorreu na praça Van Am, entre o John Jay Hall e o Hamilton Hall, quando oitocentos membros e apoiadores da SDS protestaram contra o recrutamento da Marinha no campus e quinhentos provocadores pró-Marinha jogaram ovos contra eles, do outro lado da cerca, no Campo Sul, onde faziam a sua própria contramanifestação. Ferguson e Amy se envolveram naquela cena turbulenta, ela como participante e ele como repórter e testemunha, e quando Ferguson lhe explicou sua teoria dos círculos concêntricos naquela noite em West End, ela sorriu e disse: Mas é óbvio, meu caro Sherlock Holmes, como o senhor é esperto.

A questão era que ninguém estava contente, nem de um lado nem do outro. O povo favorável à guerra estava ficando cada vez mais frustrado com o fracasso de Johnson, que não conseguia vencer a guerra, e o povo contrário à guerra estava ficando cada vez mais frustrado com o fracasso de Johnson, que não conseguia terminar a guerra. Enquanto isso, a guerra continuava a crescer, quinhentos mil soldados, quinhentos e cinquenta mil soldados e, quanto maior ficava, mais o círculo exterior pressionava os outros círculos, espremendo-os cada vez mais uns contra os outros e, em pouco tempo, o espaço entre eles tinha encolhido até virar minúsculas frestas de ventilação, o que dificultava a respiração dos solitários aprisionados no centro, e quando a pessoa não consegue respirar, começa a entrar em pânico, e o pânico é uma coisa próxima à loucura, a sensação de que a gente perdeu a razão e está perto de morrer, e no início de 1968 Ferguson começava a ter a sensação de que todo mundo tinha ficado louco, tão louco quanto os malucos que falavam sozinhos, em voz alta, na Broadway, e pouco a pouco ele tinha se tornado tão maluco quanto todos os outros.

Então, naqueles primeiros momentos do ano novo, tudo começou a explodir. Os ataques de choque dos comandos de sapadores do vietcongue contra mais de cem cidades e povoados sul-vietnamitas durante a Ofensiva do Tet, no dia 30 de janeiro, provou que os Estados Unidos jamais conseguiriam vencer a guerra, ainda que as tropas americanas tivessem contra-atacado e esmagado os inimigos em todas as batalhas da ofensiva, matando trinta e sete mil vietcongues, em comparação com os dois mil mortos americanos, com mais outras dezenas de milhares de combatentes vietcongues feridos ou captura­dos e meio milhão de civis sul-vietnamitas transformados em refugiados desabrigados. A mensagem para o público nos Estados Unidos era que os norte-vietnamitas nunca desistiriam, que continuariam a lutar até que morresse a última pessoa em seu país, e quantos soldados americanos ainda seriam necessários para destruir aquele país, os quinhentos mil que já estavam lá teriam de aumentar para um milhão, para dois milhões, três milhões, e se era assim, será que a destruição do Vietnã do Norte também não ia significar a destruição dos Estados Unidos? Dois meses depois, Johnson apareceu na televisão e anunciou que não ia concorrer à reeleição no outono. Era o reconhecimento do fracasso, o reconhecimento de que o apoio público à guerra tinha se desgastado a tal ponto que sua política tinha sido rejeitada, e Ferguson, que havia admirado o bom Johnson da Guerra contra a Pobreza, da Lei dos Direitos Civis e da Lei do Direto ao Voto, e tinha desprezado o Johnson do Vietnã, se viu na posição desconfortável de ter pena do presidente dos Estados Unidos, pelo menos por um ou dois minutos, enquanto tentava se colocar na posição de Lyndon Johnson e experimentar a angústia que ele devia ter sentido quando decidiu renunciar ao trono, e então Ferguson sentiu-se feliz, feliz e também aliviado, por Lyndon Johnson estar de saída, em breve.

Cinco dias depois, Martin Luther King foi assassinado em Memphis. Mais uma bala disparada por um zé-ninguém americano, mais um golpe contra o sistema nervoso coletivo, e então centenas de milhares de pessoas saíram para as ruas e começaram a espatifar vidraças e atear fogo aos prédios.

Cento e oitenta e oito Newarks.

Os cinco círculos concêntricos se fundiram num único disco negro.

Agora, era um disco LP e a música que tocava sem parar era um antigo blues chamado “Can’t Take It No More, Sugar, ‘Cause My Hurts So Bad”.*

Primavera de 1968 (I). Ele quase não via mais Amy. Foi o último semestre dela em Barnard, e, como Amy já havia cumprido os requisitos acadêmicos e já tinha pontos quase suficientes para se formar, sua carga horária era extraordinariamente leve naquela primavera, o que lhe permitia passar a maior parte do tempo fazendo trabalho político com a SDS. Até então, a maior preocupação de Ferguson tinha sido a faculdade de direito em Berkeley (que aceitou Amy em abril, poucos dias depois de M. L. King ser assassinado em Memphis), mas agora ele tinha medo de perder Amy antes mesmo do começo do verão. As posições dela tinham endurecido durante os meses que deixaram as pessoas loucas, no início de 1968, a empurraram mais fundo para uma posição de militância radical e de fervor anticapitalista, e ela não podia mais rir das pequenas diferenças de opinião entre os dois, não entendia mais por que ele não concordava com ela em todos seus pontos de vista.

Se você aceita minha análise, disse ela, um dia, então necessariamente tem de aceitar minhas conclusões.

Não, eu não, retrucou Ferguson. Só porque o capitalismo é o problema, isso não significa que a SDS vai fazer o capitalismo desaparecer. Estou tentando viver no mundo real, Amy, e você está sonhando com coisas que nunca vão acontecer.

Um exemplo: agora que Johnson retirou a candidatura, Eugene McCarthy e Robert Kennedy iam, ambos, concorrer para a vaga de candidato à presidência pelo Partido Democrático. Ferguson, nitidamente, não estava empolgado e não apoiava nenhum dos dois, mas prestava bastante atenção em suas campanhas — em especial à de Kennedy, pois estava claro, para ele, que McCarthy não tinha nenhuma chance — pois, embora fosse indiferente a respeito do senador de Nova York, sentia que Robert Kennedy era uma opção melhor do que o desacreditado Humphrey, e qualquer democrata era preferível a Nixon ou, mais problemático ainda, a Ronald Reagan, o governador do futuro estado de Amy, que estava ainda mais à direita do que Goldwater, mas era importante fazer distinções, ele dizia consigo, era importante reconhecer que havia coisas ruins neste mundo defeituoso, e havia coisas ainda piores, e quando se tratava de votar numa eleição, o ruim era melhor do que o pior. Amy não admitia mais traçar esse tipo de distinções. No que lhe dizia respeito, os democratas eram todos iguais, todos eram liberais vendidos, e ela não queria ter nada a ver com eles, eram os responsáveis pelo Vietnã e por todos os outros horrores que os Estados Unidos tinham infligido ao mundo, e que se danassem todos eles e tudo aquilo que defendiam, e se os republicanos ganhassem, bem, talvez fosse até melhor para o país a longo prazo, porque os Estados Unidos se transformariam num Estado fascista policial e o povo acabaria se revoltando contra isso, como se um povo que tivesse acabado de eleger os republicanos fosse querer derrubá-los assim que chegassem ao poder, como se o povo pudesse não preferir viver num Estado fascista policial, se isso servisse para prender os radicais antiamericanos, como ela.

A garota que tinha chorado com o assassinato de John Kennedy, em 1963, agora via o irmão dele, Robert, como um instrumento da opressão capitalista. Ferguson estava disposto a deixar de lado aqueles comentários como um excesso de entusiasmo ideológico, mas no início de abril ele também ficou sob ataque, e o político, de repente, se tornou pessoal, pessoal demais, havia coisas demais dos dois envolvidas, além das ideias que estavam discutindo. Ferguson se perguntava se Amy não teria algum namoro secreto com um de seus confrades da SDS, ou se ela e sua colega de Barnard, Patsy Dugan, não estariam explorando, juntas, os mistérios do amor de Safo (ultimamente, ela andava falando muito de Patsy), ou se não estaria ainda irritada com ele por não ter ido para a Califórnia com ela no verão anterior. Não, não era possí­vel, Ferguson se deu conta, nenhuma daquelas possibilidades tinha a mais remota chance de ser verdadeira, pois não era da natureza de Amy fazer nada pelas costas dele e, se tivesse se apaixonado por outra pessoa, teria contado para Ferguson e, se ainda tinha mágoa dele por causa do verão anterior, não poderia ser um desgosto consciente, pois aquilo era uma questão encerrada já havia meses e, nos meses que se seguiram àquilo, tinha havido inúmeras ocasiões excelentes entre os dois, juntos, sem falar de como Amy tinha sido maravilhosa nos dias seguintes à morte de sua avó, preenchendo a lacuna deixada pela mãe de Ferguson, que ficou quase paralisada, e organizando a limpeza do apartamento com a velocidade e a precisão de uma jogada de beisebol no estilo de Sandy Koufax. De lá para cá, algo tinha acontecido, no entanto, e se não tinha sido provocado por nenhuma das causas habituais, também parecia impossível que fosse só por causa de uma tola divergência política. Ele e Amy sempre tinham discordado. Um dos prazeres de morar com ela estava justamente na extensão em que os dois podiam divergir e, ainda assim, continuar amando um ao outro, apesar disso. Suas batalhas sempre foram travadas em torno de ideias, nunca envolviam a eles mesmos, pessoalmente, mas agora Amy tinha começado a perseguir Ferguson porque suas ideias não coincidiam com as dela, porque ele se mostrava relutante em pular para dentro do vulcão revolucionário junto com Amy e, portanto, ele tinha se tornado um liberal reacionário, de pensamento retrógrado, um pessimista, um ironista, um agenbite-of-inwit, como dizia Amy, citando James Joyce, para indicar que ele era devorado por remorsos de consciência (o que queria dizer, supunha Ferguson, que ele tinha apego demais por Joyce e por tudo que é literário), um mero observador, um diletante, um velho careta e um monte de bosta.

Do ponto de vista de Ferguson, tudo se resumia a uma diferença essencial: Amy era crente e ele era agnóstico.

Certa noite em que ela ficou fora de casa até tarde da noite com amigos, na certa discutindo sobre Mike Loeb num bar em West End ou tramando com Patsy Dugan uma forma de aumentar o contingente feminino na SDS, Ferguson deitou na cama do quarto de Amy, a mesma cama em que ele havia dormido a maioria das noites dos dois últimos anos, e como estava especialmente cansado naquela noite, pegou no sono antes de ela voltar. Quando acordou, na manhã seguinte, Amy não estava na cama a seu lado, e, quando examinou a forma estufada do travesseiro dela, concluiu que Amy não tinha voltado para casa e havia passado a noite em outro lugar. Esse outro lugar acabou sendo a cama de Ferguson, no quarto vizinho, e, quando ele entrou naquele quarto para pegar um par de meias limpas e uma cueca, o barulho do piso rangente acordou Amy.

O que está fazendo aqui?, perguntou Ferguson.

Tive vontade de dormir sozinha, respondeu ela.

Ah?

Achei que era bom dormir sozinha, para variar.

E foi?

Foi, sim, muito bom. Acho que a gente devia fazer isso por um tempo, Archie. Você na sua cama e eu na minha. O que poderíamos chamar de um período de refresco.

Se é o que você quer. Parece mesmo que não tem sido lá muito caloroso ultimamente, quando a gente dorme junto na mesma cama.

Obrigada, Archie.

Não tem de quê.

Assim começou o chamado período de refresco. Durante as seis noites seguintes, Ferguson e Amy dormiram sozinhos em suas respectivas camas, em seus quartos, nenhum deles estava seguro de que tinham chegado ao fim ou estavam só dando um tempo, uma pausa, e na manhã do sétimo dia, 23 de abril, poucas horas depois de terem saído de suas camas separadas e tomado rumos separados ao deixarem o apartamento, a revolução começou.

Primavera de 1968 (II). No dia 14 de março, Ferguson e seus camaradas do jornal Spectator elegeram Robert Friedman como seu novo editor-chefe, o mesmo dia 14 de março em que Amy e seus camaradas da SDS votaram em Mark Rudd como seu novo presidente e, de uma hora para outra, as duas organizações se transformaram. O jornal continuou a relatar as notícias como sempre, mas seus editoriais se tornaram mais duros e mais diretos, e Ferguson ficou satisfeito de ver que o Vietnã, as relações entre brancos e negros e o papel de Columbia no prolongamento da guerra eram, agora, discutidos abertamente, muitas vezes de forma combativa, como uma questão de política e de convicção. Na SDS, Estudantes por uma Sociedade Democrática, a mudança de tática foi ainda mais chocante. A liderança nacional tinha convocado uma mudança, “do protesto para a resistência” e, em Columbia, o contingente do chamado Eixo da Práxis tinha sido substituído pela Fração da Ação, mais belicosa. No ano anterior, o objetivo tinha sido educação e consciência, o tímido gesto de abordar os recrutadores da Marinha e “fazer algumas perguntas”, ao passo que agora o objetivo era provocar, dividir, agitar as coisas, o máximo possível.

Uma semana depois de Rudd assumir a direção do movimento, o diretor do quartel-general do Departamento do Sistema de Recrutamento de Nova York, coronel Paul B. Akst, chegou ao campus da Universidade Columbia para falar no Earl Hall sobre as mudanças recentes nas leis de alistamento militar. Cento e cinquenta pessoas compareceram, e, quando Akst se adiantou para dar início à sua explanação (um homem atarracado, inflado em sua farda militar de gala), houve uma comoção no fundo do auditório. Alguns estudantes vestidos em trajes militares começaram a tocar a canção patriótica “Yankee Doodle Dandy” numa versão para tambor e flautim, enquanto outros brandiam armas de brinquedo no ar. Como que por reflexo, um bando de estudantes atletas pulou para reprimir, repelir e expelir os sebosos e, quando a atenção de todo mundo estava voltada para a confusão no fundo do auditório, alguém sentado na primeira fila se levantou e jogou uma torta de morango com glacê na cara do coronel Akst. Como acontece em todos os bons filmes de comédia pastelão, foi um golpe certeiro. Na hora em que a plateia se virou de novo, uma porta lateral tinha se aberto de forma misteriosa, e o lançador da torta e um cúmplice fugiram.

Naquela noite, Amy contou para Ferguson que o pelotão da torta era formado por um membro da SDS importado de Berkeley e que o cúmplice era o próprio Mark Rudd. Ferguson achou muita graça. Uma pena para o coronel, pensou ele, mas não houve maiores estragos, ainda mais à luz do grande estrago causado pela guerra, e que brincadeirazinha esperta foi aquela. O Eixo da Práxis nunca sonharia em tentar uma proeza assim (frívolo demais), mas a Fração da Ação aparentemente não se opunha ao uso da frivolidade como instrumento para defender suas posições políticas. A direção da universidade ficou furiosa, é claro, prometeu “o rigor da lei” para o baderneiro, caso se constatasse que não era um estudante de Columbia, e suspendê-lo, se fosse “um dos nossos”, mas uma semana depois a universidade teve de enfrentar um desafio muito mais sério do que uma torta de morango com glacê, e os culpados nunca foram apanhados.

Na primeira fase do drama, a SDS estava concentrando suas atividades em duas questões principais: o Instituto de Análise de Defesa e a proibição de manifestações e piquetes dentro da universidade, uma política nova que fora iniciada pelo reitor Grayson Kirk, no outono. O Instituto de Análise de Defesa, IDA, tinha sido criado pelo Pentágono em 1956, como um canal para atrair a ajuda de cientistas da universidade na pesquisa de armas para o governo, mas ninguém tinha consciência da relação de Columbia com aquele programa, até 1967, quando dois membros da SDS encontraram documentos nas estantes da biblioteca que se referiam à participação de Columbia no IDA, um instituto do qual, ao todo, onze universidades eram membro, e agora que os conselhos universitários de Princeton e de Chicago recomendaram aos diretores de suas faculdades que abandonassem o programa, os estudantes e os membros do conselho de Columbia pediam que sua universidade fizesse o mesmo, embora Kirk tivesse sido membro do conselho diretor do Instituto nos nove anos anteriores, mas como não sentir repulsa diante do fato de que a pesquisa do IDA levou ao desenvolvimento de pesticidas químicos como o Agente Laranja, que estava sendo usado para desfolhar as selvas do Vietnã, ou que a tática sangrenta do “bombardeio de saturação” era fruto do trabalho do instituto sobre técnicas de contrainsurgência? Em outras palavras, Columbia estava participando da guerra, estava com as mãos sujas (como Amy dizia, muitas vezes), e a única ação sensata era forçar a universidade a parar com aquilo. Não que a guerra fosse ser encerrada, mas persuadir Columbia a parar constituiria uma pequena vitória depois de tantas derrotas, pequenas e grandes. Quanto à proibição de manifestações no interior do campus, os estudantes alegavam que era uma violação dos direitos da Primeira Emenda, uma medida inconstitucional contra o princípio da liberdade de expressão e, portanto, a resolução de Kirk era inválida.

Durante as semanas anteriores, a SDS tinha feito circular pelo campus uma petição pedindo que Columbia se retirasse do IDA, e agora que mil e quinhentos funcionários da universidade e estudantes tinham assinado o documento (entre eles Ferguson e Amy), a SDS resolveu atacar as duas questões numa ação única, no dia 26 de março, uma semana depois da agora já esquecida brincadeira da torta de morango. Um grupo de cem estudantes entrou na Biblioteca Low, o prédio branco coberto por uma cúpula, que imitava o Panteão romano e servia como centro administrativo da universidade, e desafiou a proibição de piquetes e manifestações dentro dos prédios, levando cartazes com as palavras “FORA IDA!”. Amy estava lá, junto com os manifestantes, Ferguson estava lá, na condição de repórter e testemunha e, durante mais ou menos uma hora, os estudantes andaram pelos corredores entoando palavras de ordem (um deles, com um megafone); depois disso seguiram para o primeiro andar e entregaram a petição para um funcionário de alto escalão da universidade, que garantiu que ia fazer chegar às mãos do reitor Kirk. Então, o grupo saiu do prédio e, no dia seguinte, seis deles foram escolhidos para receber punições disciplinares, Rudd no topo da lista, com mais quatro do conselho de direção da SDS, só seis entre os cem estudantes que participaram, porque, como explicou o decano, eram os únicos que puderam ser identificados. Nas duas semanas seguintes, os seis do protesto do IDA se recusaram a se reunir com o decano, o que era o protocolo para resolver problemas disciplinares (uma conversa em particular, seguida pelo que se supunha ser uma punição justa — como na maioria dos tribunais de mentira), exigindo, em troca, que fossem julgados numa audiência pública. O decano respondeu que todos seriam suspensos se não comparecessem a seu gabinete. No dia 22 de abril, finalmente os acusados foram falar com ele, mas não discutiriam a questão de sua participação na manifestação contra o IDA. Ao saírem do gabinete, todos receberam uma advertência disciplinar.

Nesse meio-tempo, Martin Luther King foi assassinado. Aconteceu no Harlem o mesmo que em Newark um ano antes, mas Lindsay não era Addonizio e não chamou a Guarda Nacional nem as tropas da Polícia estadual para atirar contra os manifestantes, e enquanto o Harlem pegava fogo, logo abaixo da colina de Columbia, a loucura no ar já enlouquecido em Morningside Heights estava evoluindo para chegar àquilo que Ferguson, agora, sentia que tinha se transformado num completo e acabado delírio febril. No dia 9 de abril, a universidade fechou as portas em homenagem a King. Só um evento foi programado — uma cerimônia religiosa fúnebre na capela St. Paul, perto do centro do campus, que acabou atraindo uma multidão de mil e cem pessoas —, e, na hora em que o vice-reitor David Truman começaria seu discurso fúnebre, em nome da direção de Columbia, um estudante vestido de paletó e gravata se levantou em uma das primeiras fileiras e andou devagar até púlpito. Mark Rudd — de novo. O microfone foi imediatamente desligado.

Falando sem ler, sem amplificação, sem saber quantas pessoas podiam ouvir, Rudd se dirigiu à multidão em voz contida. “O dr. Truman e o reitor Kirk estão cometendo uma afronta moral contra a memória do dr. King”, disse ele. “Como podem os líderes da universidade fazer uma homenagem fúnebre para um homem que morreu quando tentava sindicalizar os trabalhadores do saneamento, se eles, durante anos, combateram a sindicalização dos trabalhadores negros e porto-riquenhos da própria universidade? Como podem essas pessoas homenagear um homem que lutou pela dignidade humana, enquanto eles roubam a terra do povo do Harlem? E como podem esses diretores homenagear um homem que pregava a desobediência civil não violenta, enquanto punem por indisciplina seus próprios estudantes por terem feito um protesto pacífico?” Fez uma pausa e depois repetiu a frase de abertura. “O dr. Truman e o reitor Kirk estão cometendo uma afronta moral contra a memória do dr. King. Portanto, vamos protestar contra essa obscenidade.” Junto com outros quarenta ou cinquenta manifestantes (negros e brancos, estudantes e não estudantes), Rudd, então, saiu da capela. Ferguson, sentado numa das fileiras do meio, aplaudiu calado o que tinha acabado de acontecer. Muito bem, Mark, disse consigo mesmo, e parabéns por ter a coragem de se levantar e falar.

Antes do assassinato de Martin Luther King, havia um grupo (SDS) e duas questões (IDA e disciplina) que impulsionavam a atividade da ala esquerda no campus. Depois, veio outro grupo (SAS, Sociedade dos Estudantes Afro-Americanos) e uma terceira questão (o ginásio) e, duas semanas depois da cerimônia fúnebre em homenagem a King, a coisa grande que ninguém esperava que fosse acontecer, que ninguém sequer imaginava que pudesse acon­tecer, estava acontecendo, em todas as formas inimagináveis e inesperadas que as coisas grandes costumam acontecer.

O ginásio de Columbia, que também atendia pelo nome alternativo de Gym Crow, ia ser construído em um dos terrenos do Harlem que Rudd acusou a Universidade Columbia de roubar, terra pública, nesse caso, o parque Morningside, perigoso, degradado e nunca usado por brancos, um barranco íngreme, cheio de pedregulhos e árvores mortas, que começava no alto, em Columbiaville, e terminava embaixo, em Harlemville. Não havia dúvida de que a universidade precisava de um ginásio. O time de basquete da universidade tinha acabado de vencer o campeonato da Ivy League (a liga das principais universidades), tinha entrado no torneio da NCAA (Associação Atlética Universitária Nacional) ranqueado em quarto lugar, no país todo, e o ginásio atual tinha mais de sessenta anos, era pequeno demais, estava desgastado, não era mais viável, porém o contrato que a reitoria tinha negociado com a prefeitura, no fim da década de 1950 e início da década de 1960, era algo sem prece­dentes. Dois acres do parque seriam arrendados para a universidade pelo valor nominal de três mil dólares ao ano, e Columbia se tornaria a primeira instituição privada na história de Nova York a construir uma estrutura em terra pública para uso próprio e privado. Lá embaixo, na extremidade do parque encostada no Harlem, haveria uma entrada de fundos, especial para os membros da comunidade, que daria para uma espécie de ginásio dentro do ginásio, um espaço separado que ocuparia doze e meio por cento de toda a área. Depois da pressão dos ativistas locais, Columbia aceitou o aumento da área do ginásio do Harlem para quinze por cento — com o acréscimo de uma piscina e um vestiário com armários, como um brinde adicional. Quando H. Rap Brown veio a Nova York para uma reunião da comunidade em dezembro de 1967, o presidente da SNCC disse: “Se eles construírem o primeiro andar, explodam tudo. Se vierem escondidos de noite e construírem três andares, taquem fogo. E se construírem nove andares, é tudo de vocês. Tomem tudo e talvez a gente deixe que eles entrem, no fim de semana”. No dia 19 de fevereiro de 1968, Columbia foi em frente e deu início ao projeto. No dia seguinte, vinte pessoas foram ao Morningside Park e puseram os corpos na frente dos tratores e dos caminhões basculantes, a fim de impedir o trabalho no canteiro de obras. Seis estudantes de Columbia e seis moradores da vizinhança foram presos e, uma semana depois, quando uma multidão de cento e cinquenta apareceu para protestar contra a construção do ginásio, mais vinte estudantes de Columbia foram presos. Nenhum deles era membro da SDS. Até então, o ginásio não era uma questão tratada pela SDS, mas agora que a administração da universidade se recusava a reconsiderar seus projetos ou sequer discutir a ideia de reconsiderar o assunto, rapidamente aquilo se tornou um problema não só da SDS, como também dos estudantes negros no campus.

A SAS contava com mais de cem membros, mas até o assassinato de King ela não havia tomado parte de nenhuma atividade política declarada, concentrava-se em como aumentar a matrícula de negros na universidade e conversava com os decanos e os chefes de departamento a respeito da adoção de cursos sobre história e cultura afro no currículo da graduação. Como em qualquer universidade de elite nos Estados Unidos, na época, a população negra em Columbia era minúscula, tão escassa que Ferguson tinha só dois amigos negros entre os colegas da graduação, dois amigos que nem eram muito próximos, o que era verdade também para a maioria dos conhecidos brancos, que pareciam não ter, também, amigos negros. Os estudantes negros eram isolados por causa de seu número e duplamente isolados porque se man­tinham à parte e reservados, um pouco perdidos e ressentidos, sem dúvida, no meio daquele enclave branco de tradição e poder, em geral eram vistos como forasteiros, até pelos seguranças negros do campus, que os detinham e pediam para ver suas identidades, porque jovens com caras negras não poderiam ser estudantes de Columbia e, portanto, não tinham nada de estar ali. Depois da morte de King, a SAS elegeu um novo conselho de líderes radicais, alguns brilhantes, outros revoltados, alguns brilhantes e também revoltados, e todos audaciosos como Rudd, ou seja, dotados de confiança suficiente para tomarem a palavra e discursarem para mil pessoas com a mesma facilidade com que falavam para uma só e, para eles, a grande questão era a relação entre Columbia e o Harlem, o que significava que o IDA e a disciplina podiam ficar por conta dos estudantes brancos, mas o ginásio era da conta deles.

Dois dias depois da cerimônia em homenagem a King, Grayson Kirk foi à Universidade de Virgínia fazer um discurso na comemoração dos duzentos e vinte e cinco anos do nascimento de Thomas Jefferson (por mais turbulentos que fossem aqueles dias, também eram coalhados de despropósitos), e lá o ex-cientista político que tinha assento nos conselhos de várias empresas e instituições financeiras, Mobil Oil, IBM e Con Edison, entre outras, o reitor da Universidade Columbia que havia sucedido Dwight D. Eisenhower, depois que o general deixou Columbia para ser presidente dos Estados Unidos, lá, pela primeira vez, Grayson Kirk falou contra a Guerra do Vietnã, não porque ele achasse a guerra um equívoco ou que não fosse honrada, disse ele, mas por causa dos danos que ela causava ao país, e então pronunciou as frases que logo chegariam ao campus de Columbia e aumentariam a dose de gasolina no fogo que já começava a arder: “Nossos jovens, em números perturbadores, parecem rejeitar toda forma de autoridade, derivada de qualquer fonte, e buscaram refúgio num niilismo turbulento e rudimentar, cujo único objetivo é a destruição. Não conheço nenhuma outra época na história em que o abismo entre as gerações tenha sido maior nem mais potencialmente perigoso”.

No dia 22 de abril, dia em que os Seis do IDA foram punidos, a SDS publicou um jornal de número único, de quatro páginas, intitulado Encosta na parede!, uma convocação para o comício marcado para o meio-dia do dia seguinte, que supostamente culminaria em mais uma manifestação interna na Biblioteca Low, onde dúzias, vintenas ou centenas mostrariam seu apoio aos Seis do IDA, violando a mesma regra que havia deixado os seis em apuros. Uma das matérias era escrita por Rudd, uma carta de oitocentas e cinquenta palavras, dirigida a Grayson Kirk, em resposta aos comentários que ele tinha feito na Universidade de Virgínia. Terminava com os três curtos parágrafos abaixo:

Grayson, eu duvido que você entenda isto, por pouco que seja, pois suas fantasias isolaram seu pensamento do mundo tal como ele é. O vice-reitor Truman diz que a sociedade é basicamente sã: o senhor diz que a Guerra do Vietnã foi um acidente bem-intencionado. Nós, os jovens, a quem o senhor teme, e com razão, dizemos que a sociedade está doente e que o senhor e o seu capitalismo são a doença.

O senhor pede ordem e respeito às autoridades; nós pedimos justiça, liberdade e socialismo.

Só resta uma coisa a dizer. Pode parecer niilista para o senhor, pois é o primeiro tiro de uma guerra de libertação. Vou usar as palavras de LeRoi Jones, de quem tenho certeza de que o senhor não gosta nem um pouco: “Encosta na parede, seu filho da puta, isto é um assalto”.

Ferguson ficou apavorado. Depois do eloquente discurso de Rudd na ce­rimônia fúnebre em homenagem a King, não fazia sentido cometer um erro tático tão grosseiro. Não que a substância do texto não tivesse méritos, a questão era o tom insolente, e, se a SDS estava tentando obter mais apoio entre os estudantes, aquele tipo de coisa só serviria para afastá-los. O texto era exemplo de uma fala para convertidos, em vez de tentar alcançar outras pessoas, e Ferguson queria que a SDS vencesse, a despeito de certas reservas quanto ao que era possível e o que era impossível, no geral ele apoiava o grupo e acreditava na sua causa, mas uma causa nobre exigia um comportamento nobre de seus defensores, algo mais refinado e mais autocontrolado do que insultos rasteiros e tiradas adolescentes baratas. O lamentável daquilo era que Ferguson gostava de Mark Rudd. Tinham sido amigos desde o primeiro ano de faculdade (dois rapazes de Nova Jersey com uma formação quase idêntica) e, até então, Mark tinha sido um presidente impressionante, a tal ponto que Ferguson ficara cego para a ideia de que ele pudesse cometer erros, e agora que ele havia derrapado com aquela história de Caro Grayson e filho da puta, Ferguson se sentia desapontado, perdido na posição incômoda de ser contra aqueles que eram contra, o que vinha a ser um lugar solitário para uma pessoa que também era contra aqueles que eram a favor.

O mais notável foi que Amy não discordou dele. Ainda estavam no meio do chamado período de refresco, em camas separadas, e nos últimos dias os dois não se viam muito, mas, quando Amy voltou para casa depois da reunião da SDS na noite do dia 22, ela também se sentia desapontada, não só por causa do texto do jornal, que ela admitia ser grosseiro e infantil, como porque só cinquenta ou sessenta pessoas compareceram no Fayerweather Hall para a última reunião do ano letivo, ao passo que a maioria das reuniões nos meses anteriores tinha atraído duzentas pessoas ou mais, e ela temia que a SDS estivesse perdendo terreno, que quase todos os centímetros que a associação havia ganhado, agora estivessem perdidos, e temia que no dia seguinte fosse acontecer um desastre, disse ela, uma última manifestação fraca, que terminaria em fracasso e fecharia as portas da SDS de Columbia para sempre.

Amy estava enganada.

Primavera de 1968 (III). Nunca antes na história. Nunca antes sequer se imaginou. O círculo cada vez mais largo e, de uma hora para outra, tudo estava rodando dentro dele. Pai-Ninguém** se curvou todo, com espasmos na barriga, a maior caganeira. A fera à solta, uma forma com corpo de leão e cabeça de homem, uma horda. Como quem, quem o quê, e sem mais nem menos, todos perguntando para ele: Por que essa treva e obscuridade em todas suas leis e suas palavras? O centro não podia, as coisas não podiam, a horda não podia não não não podia fazer outra coisa senão o que fez, mas não foi a anarquia que se desatou, foi o mundo mesmo que se desatou, pelo menos por um tempo, e assim começou o maior e mais prolongado protesto estudantil da história dos Estados Unidos.

Perto de mil, de manhã. Dois terços eram antiguerra, reunidos em torno do relógio de sol, no centro do campus, um terço antiantiguerra, na escadaria da Biblioteca Low, supostamente para proteger o prédio contra a invasão, mas também para descer o cacete se a coisa chegasse àquele ponto. Já haviam divulgado palavras de alerta e a ameaça de lutas corporais tinha feito surgir um pelotão de professores jovens, dispostos a apartar as brigas, se necessário. Discursos para começar, um por um, a história de costume, a linha da SDS, mas a SAS estava ali também, a primeira manifestação política integrada na história de Columbia, e, quando Cicero Wilson subiu no relógio de sol para discursar para a multidão, o novo presidente da SAS, recém-eleito, começou falando do Harlem e do ginásio, mas pouco depois (Ferguson ficou chocado) estava atacando os estudantes brancos. “Se querem saber de quem é que eles estão falando”, disse, se referindo aos racistas, “olhem-se no espelho, porque vocês não sabem nada sobre o povo negro.”

Amy, que estava na frente, interrompeu-o e gritou: “O que faz você pensar que não existem brancos do seu lado? O que faz você pensar que não estamos todos juntos? Somos seus irmãos e irmãs, cara, e vamos ser muito mais fortes se vocês ficarem com a gente e se a gente ficar com vocês”.

Um mau começo. Era preciso tirar o chapéu para Amy por ter falado, mas era um começo espinhoso, e a confusão prosseguiu por um tempo. A Biblioteva Low estava impenetrável. As portas tinham sido trancadas e ninguém estava disposto a arrombar as portas ou a começar uma briga com os seguranças. De volta ao relógio de sol, enfeitado com uma inscrição que dizia HORAM EXPECTA VENIET (espere a hora, ela vai chegar), mas será que a hora tinha chegado mesmo ou o dia 23 de abril ia desmoronar nas ruínas de mais uma oportunidade perdida? Outra rodada de discursos, mas tudo caíra numa imobilidade e a energia da multidão tinha evaporado. Bem na hora em que parecia que o comício estava em seus estertores, no entanto, alguém deu um grito: PARA O GINÁSIO! As palavras bateram com a força de um tapa na cara e, de repente, trezentos estudantes correram para o leste, pelo College Walk, rumo ao Morningside Park.

Amy tinha subestimado a magnitude do descontentamento, a epidemia de infelicidade que tinha se espalhado nas fileiras da maioria do pessoal do campus que não era da SDS, que em sua maior parte parecia à beira de um ataque de nervos, enquanto a guerra impossível de ser vencida trovejava e os Pais-de-Ninguém na Casa Branca e na Biblioteca Low continuavam a proferir suas palavras sombrias e a sancionar suas leis obscuras, e, quando Ferguson correu junto com a multidão que correu para o parque, entendeu que os estudantes estavam possuídos, que suas almas tinham sido tomadas pela mesma fusão de alegria e revolta que havia testemunhado nas ruas de Newark no verão anterior, e que ela não poderia ser contida, a menos que disparassem balas contra a multidão. Havia policiais no parque, mas não em número suficiente para deter os estudantes e impedir que rompessem os doze metros da cerca de correntes que circundavam o canteiro de obras, enquanto outros estudantes brigavam com os guardas, em desvantagem numérica, e lá estava David Zimmer, Ferguson percebeu, e lá estava o amigo de Zimmer, Marco Fogg, o gentil Zimmer e o ainda mais gentil Fogg; ele estava no meio da turba que atacava a cerca e, por um momento, Ferguson teve inveja deles, queria poder se integrar e fazer o que estavam fazendo, mas depois o sentimento passou e ele manteve sua posição.

Quase uma batalha, mas não exatamente. Atritos, safanões, trocas de em­purrões, policiais contra estudantes, estudantes contra policiais, estudantes pulando em cima de policiais, estudantes dando pontapés em policiais, empurrando e jogando policiais no chão, um rapaz de Columbia foi apanhado pelos guardas no meio da confusão (branco, não era da SDS), acusado de agressão e emboscada, injúria criminosa e resistência à prisão, e quando começaram a chegar mais policiais, que desceram para o parque com seus cassetetes em punho, os estudantes deixaram o local e voltaram para o campus. Enquanto isso, o outro bando de estudantes — os que tinham ficado para trás — agora marchavam para o parque. O grupo que avançava e o que recuava se encontraram no meio da Morningside Drive, e, quando os que se retiravam contaram aos que avançavam que a questão no parque tinha terminado, os dois grupos voltaram para o campus e se reuniram de novo junto ao relógio de sol. Havia uns quinhentos, nessa altura, e ninguém sabia o que ia acontecer. Uma hora e meia antes, eles tinham um plano, mas os acontecimentos tinham atropelado aquele plano e tudo o que ia acontecer dali para a frente seria de improviso. Até onde Ferguson conseguia entender, só uma coisa estava clara: a multidão continuava possuída — e disposta a fazer qualquer coisa.

Alguns minutos depois, a maioria deles estava a caminho do Hamilton Hall, onde centenas se derramaram no salão de entrada, no térreo, uma massa de corpos espremidos naquele espaço pequeno, enquanto os atletas os empurravam e os sebosos empurravam no sentido contrário, e mais corpos se derramavam para dentro, todo mundo agitado e confuso, tudo tão confuso que o primeiro ato da rebelião no campus foi o erro sem rumo e autodestrutivo de trancar o decano da graduação dentro de seu gabinete e torná-lo refém (erro corrigido na tarde seguinte, quando Henry Coleman foi solto), mas os estudantes envolvidos na ocupação do prédio ainda tiveram meios de formar um comitê de direção, composto de três membros da SDS, três da SAS, dois do Conselho de Cidadania da Universidade e um dos simpatizantes sem filiação, e definiram uma lista de reivindicações que mostrava os objetivos do protesto:

1. Cancelamento imediato de todos os processos de punição em andamento e as punições disciplinares já aplicadas a seis estudantes e anistia geral para os estudantes que participavam daquela manifestação.

2. Revogação da proibição de manifestações no recinto da universidade, decretada pelo reitor Kirk.

3. Interrupção imediata da construção do ginásio de Columbia no Morn­ingside Park.

4. Todas as futuras medidas disciplinares contra estudantes da universidade seriam resolvidas em audiências públicas, diante de estudantes e professores, conforme o devido processo legal.

5. A Universidade devia se desfiliar, de fato e não apenas no papel, do Instituto de Análise de Defesa; e o reitor Kirk e o curador William A. M. Burden tinham de renunciar a seus postos no Conselho de Curadores e no Conselho Executivo do IDA.

6. A Universidade Columbia devia usar seus bons ofícios para conseguir a suspensão das acusações contra aqueles que participaram das manifestações no canteiro de obras da construção do ginásio no parque.

As portas do prédio continuavam abertas. Era o início da tarde de um dia normal de aula e, como disse Rudd para Ferguson mais tarde, o contingente da SDS sentiu que não podia alijar os estudantes que não participavam do movimento barrando seu acesso às aulas, que continuavam a ocorrer nos andares de cima. Eles queriam que aqueles estudantes viessem para seu lado e não tinha sentido fazer algo que levasse a maioria a se voltar contra eles. O prédio não estava “dominado” a esse ponto, portanto, havia uma ocupação ocorrendo em seu interior e, à medida que o dia avançava, e se espalhava a notícia do que estava ocorrendo no Hamilton Hall, dúzias de pessoas que não tinham ligação com a universidade começaram a aparecer, os membros da SDS de outras universidades, membros da SNCC e do CORE, representantes de várias organizações Paz Agora, e, assim como essas pessoas chegavam para prestar seu apoio, chegava também comida, cobertores e outros itens para as necessidades práticas dos que iam passar a noite no prédio. Amy era uma dessas pessoas, mas Ferguson estava ocupado, tomando notas, e não tinha tempo para conversar com ela. Em troca, soprou um beijo para ela, de longe. Ela sorriu e acenou (um dos raros sorrisos que lhe dirigiu naquelas semanas), e então ele correu para a redação do Spectator, em Ferris Booth Hall, para escrever sua matéria.

Naquela noite, a aliança frágil e breve entre a SDS e a SAS se desfez. Os estudantes negros queriam bloquear as portas e impedir que todo mundo en­trasse no Hamilton Hall, até que as seis reinvindicações fossem atendidas. Estavam prontos para resistir, disseram, e como já circulavam boatos nos corredores de que haviam trazido armas às escondidas para o interior do prédio, a conclusão era de que a resistência de que estavam falando poderia ser violenta. Eram cinco horas da manhã, naquela altura, e horas de discussão levaram a um impasse, a disputa entre portas abertas ou fechadas não pôde ser resolvida, e agora a SAS sugeria, educadamente, que a SDS saísse do prédio e fosse ocupar outro prédio por sua própria conta. Ferguson compreendia a posição da SAS, mas ao mesmo tempo achava o racha desmoralizante e desolador, e compreendia por que a SDS se sentia tão ferida com aquele divórcio. Era Rhonda Williams dizendo não para ele, de novo. Era o seu pai falando todas aquelas coisas repugnantes depois dos motins de Newark. Era no que o mundo tinha se transformado.

A ironia consistia em que, sem a expulsão da SDS naquela manhã, a rebelião em Columbia nunca teria se espalhado para além do Hamilton Hall e a história das seis semanas seguintes teria sido diferente, uma história muito menor, e a coisa grande que acabou acontecendo não teria sido grande o suficiente para que alguém notasse.

Minutos antes do nascer do sol, no dia 24 de abril, os membros da SDS banidos do prédio invadiram a Biblioteca Low e levantaram barricadas na ala em que ficava o gabinete do reitor Kirk. Dezesseis horas depois, cem estudantes da faculdade de arquitetura tomaram o controle de Avery Hall. Quatro horas depois, às duas da madrugada do dia 25, duzentos alunos da graduação se trancaram no Fayerweather Hall. À uma da manhã do dia 26, um grupo excedente da Biblioteca Low ocupou o Mathematics Hall e, em questão de horas, duzentos estudantes e não estudantes radicais tinham sob seu controle um quinto prédio. Naquela mesma noite, Columbia anunciou que aceitava o pedido do prefeito Lindsay de suspender a construção do ginásio.

A universidade estava fechada e não havia nenhuma atividade no campus que não fosse a atividade política. A Biblioteca Low, o Avery Hall, o Fayer­weather Hall e o Mathematics Hall já não eram mais uma biblioteca e três prédios, mas quatro comunas. O Hamilton Hall tinha sido rebatizado como Universidade Malcom X.

Os filhos do Pai-Ninguém estavam dizendo não e, até aquele momento, ninguém sabia o que ia acontecer depois.

Ferguson estava cheio de trabalho. O jornal que saía cinco dias por semana passara a ser publicado sete dias por semana, e era preciso escrever matérias, ir aos lugares, falar com as pessoas, participar de reuniões, e tudo dormindo pouco ou nada, era difícil conseguir mais de duas ou três horas de sono por noite, e tudo com pouca ou nenhuma comida, só uns pãezinhos, sanduíches de salame e café, mais café e mil cigarros, mas aquela pauleira de trabalho era boa para Ferguson, ele se deu conta, ficar tão ocupado e tão esgotado produzia o duplo efeito de mantê-lo acordado e, ao mesmo tempo, entorpecido, e ele precisava estar desperto a fim de ver as coisas que aconteciam à sua volta e escrever sobre os acontecimentos com a presteza e a precisão que eles exigiam, mas também precisava estar entorpecido a fim de não pensar em Amy, que agora estava quase perdida para ele, quase extinta, e embora Ferguson continuasse a dizer para si mesmo que ia lutar para conquistá-la de volta, fazer tudo o que pudesse para evitar que o inimaginável acontecesse, sabia que tudo o que os dois tinham sido um para o outro no passado, agora já não eram mais.

Ela estava com o grupo da Biblioteca Low, ou seja, entre os mais aguerridos. Na tarde do dia 26, quando Ferguson estava correndo pelo campus a caminho do Mathematics Hall, avistou Amy no peitoril do segundo andar, na janela do gabinete de Kirk. De pé à sua direita estava Les Gottesman, que já tinha se formado e agora era aluno da pós-graduação do Departamento de Inglês, e à sua esquerda estava Hilton Obenzinger, grande amigo de Les, que também era amigo de Ferguson, um dos adeptos da Columbia Reviw, e lá estava Amy entre Les e Hilton. Com o sol brilhando sobre ela, um sol tão forte que seu cabelo indomável parecia em chamas na luz da tarde, e ela parecia feliz, pensou Ferguson, tão desgraçadamente feliz que ele teve von­tade de chorar.

Primavera de 1968 (IV). O que ele estava presenciando era uma revolução em miniatura, concluiu Ferguson, uma revolução numa casinha de bonecas. O objetivo da SDS era forçar um confronto com Columbia, que deixasse a nu, diante de todos, que a administração era exatamente aquilo que o grupo afirmava (intransigente, sem contato com a realidade, um pedacinho do quadro americano geral, de racismo e imperialismo), e uma vez que a SDS provasse isso para o resto dos estudantes do campus, os que estavam no centro viriam para o lado deles. Esta era a questão: eliminar o centro, criar uma situação que jogaria todo mundo num lado ou no outro, os prós e os contras, sem deixar espaço no meio para moderação e conversa fiada. “Radicalizar” era o termo usado pela SDS e, a fim de alcançar esse objetivo, tinham de se comportar com a mesma obstinação que a administração e nunca ceder centímetro algum. Havia intransigência de ambas as partes, portanto, mas como os estudantes não tinham poder em Columbia, a intransigência da SDS era entendida como força, ao passo que a intransigência da administração, que detinha o poder, era entendida como fraqueza. A SDS estava provocando Kirk a usar a força para desocupar os prédios, que era exatamente aquilo que todos os outros queriam evitar, mas o espetáculo de centenas de policiais tomando o campus de assalto era também exatamente aquilo que estava fadado a causar horror e repulsa nas pessoas que continuavam no centro e voltá-las a favor da causa dos estudantes, e a tola administração (que acabou se revelando ainda mais tola do que Ferguson supunha — tão tola quanto o tsar da Rússia, tão tola quanto o rei da França) caiu direitinho na armadilha.

A administração fincou pé na sua linha dura, porque Kirk via Columbia como um modelo para todas as universidades do país e, se ele se dobrasse diante das absurdas reivindicações dos estudantes, o que aconteceria em outros lugares? Era a teoria do dominó em miniatura, a mesma teoria que tinha levado meio milhão de soldados americanos para o Vietnã, mas, como Ferguson descobriu nos primeiros dias em que morou em Nova York, o dominó era jogado em cima de caixotes de leite e mesas dobráveis pelos porto-riquenhos, nas calçadas do Harlem hispânico, e não tinha nada a ver com política nem com a administração de universidades.

Por outro lado, a SDS estava ganhando consistência à medida que a coisa avançava. Todo dia era recheado de desdobramentos inesperados, todas as horas pareciam durar mais do que um dia inteiro e, para fazer o que era preciso fazer, era indispensável uma concentração absoluta, além de uma abertura de espírito que só se encontra nos melhores músicos de jazz. Como líder da SDS, Mark Rudd se tornou um jazzista e, quanto mais tempo durava a ocupação dos prédios, mais impressionado Ferguson ficava com a maleabilidade com que Rudd se adaptava a cada nova circunstância, a rapidez com que era capaz de pensar de improviso, com sua disposição de conversar sobre pontos de vista alternativos para cada crise. Kirk era duro, mas Rudd era solto e muitas vezes divertido, Kirk era o maestro de uma banda militar que tocava marchas de John Philip Sousa, enquanto Rudd estava no palco tocando bebop com Charlie Parker, e Ferguson duvidava que qualquer outra pessoa na SDS fosse capaz de se sair melhor como porta-voz do grupo. Na noite de 23 de abril, Ferguson já tinha perdoado Mark pela cagada do Caro Grayson — filho da puta, a qual, aliás, não havia ofendido as pessoas da maneira como ele imaginou que ia acontecer — o povo dos estudantes, ou seja, pró-SDS e antidireção —, o que, em troca, levou Ferguson a se perguntar o que ele sabia sobre aqueles assuntos afinal, pois as palavras não só não ofenderam as pessoas como se tornaram um dos gritos de guerra do movimento. Não que Ferguson se sentisse feliz quando ouvia as massas de estudantes gritando a palavra de ordem Encosta na parede, filho da puta!, mas para ele era evidente que Mark tinha uma ideia mais clara do que ele a respeito do que estava se passando, o que explicava por que Rudd liderava uma revolução e Ferguson estava apenas assistindo e escrevendo a respeito.

Enxames de gente no campus em todos os momentos, mesmo no meio da noite, enxames que viravam as noites durante a semana inteira, depois enxames intermitentes durante o mês seguinte e, mais tarde, toda vez que Ferguson parava para pensar sobre aquele tempo, o caos que começou no dia 23 de abril e durou até o dia da formatura, 4 de junho, foram sempre os enxames de gente que lhe vinham primeiro ao pensamento. Enxames de professores e estudantes portando braçadeiras de cores diferentes, brancas para o corpo docente (que tentava manter a paz), vermelhas para os radicais, verdes para os que apoiavam os radicais e as seis reivindicações, e azuis para os atletas e direitistas, que se intitulavam Coalizão da Maioria e promoviam manifestações ruidosas e revoltadas para denunciar as outras manifestações desencadearam um ataque contra o Fayerweather Hall, certa noite, para expulsar os invasores (foram repelidos, depois de muito empurra-empurra) e formaram um bloqueio bem-sucedido em torno da Biblioteca Low no dia final das ocupações, para impedir que a comida entrasse no prédio, o que acarretou mais empurra-empurra e algumas cabeças ensanguentadas. Como era de esperar numa universidade do tamanho de Columbia (17 500 estudantes, abrangendo graduação e pós-graduação), o corpo docente estava dividido em numerosas facções, desde o total apoio à administração ao total apoio aos estudantes. Várias sugestões foram apresentadas, vários comitês foram formados, uma nova maneira de tratar os processos disciplinares, por exemplo, a comissão tripartite, que defendia uma distribuição combinada, em números iguais, de membros da administração, do corpo docente e dos estudantes, e a comissão bipartite, que defendia uma banca formada só por representantes do corpo docente e dos estudantes, sem membros da administração, porém a comissão mais ativa foi aquela que se intitulou Grupo Docente Ad Hoc, amplamente constituída de professores mais jovens, que promoveu reuniões demoradas e frenéticas durante os dias seguintes, em busca de uma solução pacífica que daria aos estudantes a maior parte do que desejavam e os retiraria dos prédios ocupados sem ter de chamar a polícia. Todos seus esforços fracassaram. Não que não tivessem ideias boas, só que todas as ideias eram barradas pela administração, que não admitia ceder nem recuar em nenhuma das reivindicações relativas à disciplina, e assim o corpo docente aprendeu que estava tão impotente quanto os estudantes, e que ColumbIa era uma ditadura, bastante benevolente, até então, mas que tendia cada vez mais ao absolutismo, sem o menor interesse em se reformar e se tornar algo semelhante a uma democracia. Os estudantes chegavam e iam embora afinal, o corpo docente também chegava e ia embora, mas a administração e o conselho de curadores eram eternos.

Columbia não hesitaria em chamar a polícia para arrancar os estudantes brancos dos prédios, se necessário, mas os estudantes negros no Hamilton Hall representavam um problema mais complexo e potencialmente mais perigoso. Se a polícia os atacasse ou os tratasse com brutalidade na hora de prendê-los, o espetáculo da violência de brancos contra negros podia incendiar o povo do Harlem e levá-lo a investir contra o campus em retaliação, e então Columbia se veria em guerra contra uma massa de negros vingativos, dispostos a fazer a universidade em pedaços e a tacar fogo na Biblioteca Low até destruí-la. Tendo em vista a fúria no Harlem após o assassinato de Martin Luther King, a violência e a destruição em escala tão massiva eram mais do que um mero temor irracional, eram uma possibilidade muito clara. Uma ação policial para expulsar os invasores dos cinco prédios foi planejada para a noite do dia 25 para o dia 26 (a mesma noite em que o Mathematics Hall foi tomado), mas quando policiais à paisana, disfarçados de civis, começaram a bater com seus cassetetes de guardas-noturnos na cabeça dos professores de braçadeira branca, postados na frente da Biblioteca Low para proteger os manifestantes lá dentro, Columbia recuou e cancelou a operação. Se era aquilo que a Força de Patrulhamento Tático fazia contra os brancos, o que não estariam preparados para fazer contra os negros? A administração precisava de mais tempo para negociar com os líderes da SAS, em Hamilton, para que os emissários do corpo docente pudessem elaborar um acordo de paz em separado, capaz de poupar a universidade de uma invasão do Harlem.

Quanto aos estudantes brancos, o sentimento geral da redação do Spectator era de que a SDS já havia levado a melhor nas duas questões mais importantes que tinham desencadeado o protesto, pois agora era quase certo que Columbia ia se afastar do IDA e que o ginásio nunca seria construído. Neste momento da história, os estudantes nos prédios ocupados poderiam ter saído ilesos e declarado vitória, mas as outras quatro reivindicações continuavam na mesa de negociação e a SDS não admitia arredar pé, até que todas fossem atendidas. O item mais controverso era o relativo à anistia (anistia geral a todos os estudantes que participaram das manifestações), que se revelou uma espécie de charada para a maioria das pessoas no campus, até para os membros da equipe do Spectator, que eram quase unânimes na simpatia pelos ocupantes dos prédios, pois se, como a SDS reivindicava, a universidade era uma autoridade ilegítima que não tinha direito de punir os estudantes, como podiam esperar que a mesma autoridade ilegítima desculpasse os manifestantes pelo que estavam fazendo? Como Mullhouse disse para Ferguson em tom jocoso numa tarde, com seu fingido sotaque fanhoso de caubói: É um danado de um quebra-cabeça, né não, Arch? Em resposta, Arch coçou a cabeça e sorriu. Você tá danado de certo, disse ele, e eu posso até estar enganado, mas acho que é isso mesmo que eles estão querendo. O raciocínio deles é absurdo, mas fincando pé numa posição que sabem que não podem ganhar, obrigam a administração a usar a força.

Para fazer o quê?, perguntou Mullhouse.

Chamar a polícia.

Não pode estar falando sério. Ninguém pode ser tão cínico.

Não é cinismo, Greg. É estratégia.

Tivesse ele razão ou não, o fato é que a polícia acabou sendo chamada, no fim do sétimo dia de ocupação, e às duas e meia da madrugada de 13 de abril — horário em que o Harlem estaria dormindo, como alguém salientou — começou a bagunça. Mil soldados de capacetes, da polícia antimotim do município de Nova York, se espalharam pelo campus, enquanto mil espectadores se mantinham de pé, debaixo do frio e da umidade daquela que foi a mais aterradora de todas as noites negras, enquanto outros se aglomeravam e se agitavam, gritando e entoando Sem violência! para a polícia, e os de braçadeiras azuis aplaudiam e os de braçadeiras brancas e verdes tentavam barrar a entrada da polícia de choque nos prédios, e a primeira coisa que Ferguson percebeu foi a animosidade que existia entre a polícia e os estudantes, um ressentimento mútuo que nada tinha a ver com os antagonismos entre brancos e negros que todo mundo temia, mas um ódio de classe, de branco contra branco, os estudantes privilegiados e os policiais de baixo escalão, que encaravam os rapazes e as moças de Columbia como fedelhos hippies ricos e mimados, e os professores que os apoiavam não eram melhores, intelectuais antiguerra metidos à besta, vermelhos, os envenenadores das mentes jovens, portanto primeiro trataram de evacuar o Hamilton Hall e retirar os negros da maneira mais branda que podiam e, como não houve nenhuma resistência dos orgulhosos estudantes da Universidade Malcom X, firmemente organizados, que tinham votado para não resistir e sair, deixando que a polícia os escoltasse tranquilamente pelos túneis embaixo do prédio para os camburões estacionados do lado de fora, nenhum soco foi desferido contra eles, nenhum cassetete golpeou o crânio de nenhum deles, e Columbia, sem fazer nenhum esforço, conseguiu se livrar da ira do Harlem. Nessa altura, o suprimento de água dos outros prédios tinha sido cortado e, um por um, os policiais da tropa de choque e seus parceiros disfarçados à paisana começaram a esvaziar Avery, Low, Fayerweather e Math, onde os estudantes, às pressas, reforçavam as barricadas que tinham erguido por trás das portas, mas cada prédio tinha seu próprio batalhão de braçadeiras brancas e braçadeiras verdes à sua frente e foram eles que sofreram o pior golpe, foram eles que levaram chutes, murros e cacetadas, enquanto os policiais abriam caminho no meio deles, munidos de pés de cabra, para arrombar as trancas das portas e invadir os prédios, para derrubar as barricadas e prender os estudantes que estavam lá dentro. Não, aquilo não era Newark, Ferguson continuava a dizer para si mesmo, enquanto via a polícia fazer seu trabalho, nenhum tiro era disparado e, portanto, ninguém ia ser morto, mas só porque não era tão ruim quanto Newark, não queria dizer que não era uma coisa grotesca, pois lá estava Alexander Platt, decano adjunto da graduação, levando um murro no peito da polícia, e lá estava o filósofo Sidney Morgenbesser, o homem dos tênis brancos, dos suéteres desfiados e das tiradas ontológicas cortantes, tomando um golpe de cassetete no alto da cabeça quando estava de guarda na entrada de fundos do Fayerweather Hall, e lá estava um jovem repórter do New York Times, Robert McG. Thomas Jr., mostrando sua carteira de imprensa, enquanto subia a escada no Avery Hall e recebia ordem de deixar o prédio, momento em que levou uma pancada na cabeça de um guarda que usava um par de algemas como um soco inglês, depois foi puxado escada abaixo e golpeado por uma dúzia de porretes, enquanto descia aos trambolhões até a rua, e lá estava Steve Shapiro, fotógrafo da revista Life, levando um soco no olho, aplicado por um policial, enquanto outro policial destruía sua câmera, e lá estava um médico do corpo de voluntários de primeiros socorros, com roupa branca de médico, sendo jogado no chão, chutado e arrastado para dentro de um camburão, e lá estavam dúzias de estudantes, rapazes e moças, sendo agarrados por soldados à paisana, escondidos em moitas, que cobriam suas cabeças e seus rostos com golpes de cassetete, de porrete e de coronha de pistola, dúzias de estudantes andando aos tropeções, com sangue escorrendo da cabeça, da testa, das sobrancelhas, e em seguida, depois que os manifestantes foram arrancados dos prédios e carregados para longe nos camburões, uma falange dos guerreiros da polícia de choque começou a se movimentar de forma sistemática, para um lado e para outro, no Campo Sul, a fim de varrer do campus as centenas de pessoas que continuavam ali, e atacaram bandos de estudantes indefesos e os derrubaram aos murros, e lá estava a polícia montada a galope na Broadway, atrás dos afortunados que conseguiram se esquivar e fugir dos cassetetes no ataque ao campus, e lá estava Ferguson, tentando fazer seu trabalho como repórter, para seu modesto jornalzinho estudantil, levando uma pancada na nuca de um cassetete curto, brandido por mais um policial à paisana, vestido de modo a parecer um estudante, a mesma cabeça que tinha levado onze pontos quatro anos e meio antes, e quando Ferguson tombou no chão por causa do impacto, alguém pisou na sua mão esquerda com o salto de uma bota ou sapato, a mesma mão em que já faltava o polegar e dois terços do dedo indicador, e quando o pé baixou em cima dele, Ferguson teve a sensação de que a mão tinha se quebrado, o que acabou não acontecendo, mas como doeu, e como inchou depressa, e como, dali em diante, ele passou a ter desprezo pelos policiais.

Setecentas e vinte pessoas presas. Quase cento e cinquenta registros de feridos, além de um número não calculado de feridos que não foram notificados, entre eles os golpes na mão e na cabeça de Ferguson.

O editorial do Spectator naquele dia não tinha palavras — só o cabeçalho do jornal seguido por duas colunas em branco, com margens pretas.

Primavera de 1968 (V). No sábado, 4 de maio, Ferguson e Amy finalmente sentaram para conversar. Foi Ferguson quem insistiu, e deixou claro que não queria conversar sobre seus ferimentos nem sobre a prisão de Amy com seus colegas da Biblioteca Low, e também não iam conversar sobre a greve geral contra Columbia, que tinha sido declarada na noite do dia 30 de abril por uma coalização de braçadeiras vermelhas, braçadeiras verdes e moderados (a estratégia da SDS tinha dado certo), nem iam se deter por um minuto sequer nas coisas grandes que estavam começando a ocorrer na sua adorada, e ferozmente lembrada, Paris, não, disse ele, por uma noite eles iam deixar a política de lado e conversar sobre eles mesmos, e Amy, com relutância, aceitou, embora ela quase não conseguisse pensar agora em mais nada, senão no movimento, aquilo que ela chamava de euforia da luta, e no despertar eletrizante que, depois de seis dias de vida comunitária na Biblioteca Low, a havia transformado.

A fim de evitar a potencial troca de gritos no apartamento, Ferguson sugeriu que fossem para um lugar neutro, um local público, onde a presença de estranhos os impediria de perder o autocontrole, e, como já fazia mais de dois meses que não iam ao Green Tree, resolveram voltar ao Yum City para o que Ferguson supôs que seria a última refeição que fariam juntos, até o fim da vida. Como o sr. e a sra. Molnár ficaram contentes ao ver seu casal jovem predileto atravessar a porta do restaurante, e como se mostraram acolhedores quando Ferguson pediu uma mesa num canto na sala dos fundos, o ambiente menor e ligeiramente elevado que tinha menos mesas, e como foram gentis ao lhes oferecer uma garrafa grátis de vinho Bordeaux para acompanhar seu jantar, e como Ferguson se sentiu desolado quando ele e Amy sentaram-se para sua última refeição, para sempre, notando como era perfeitamente adequado que Amy, instintivamente, escolhesse se sentar na cadeira de costas para a parede, indicando que ela poderia ficar olhando para as outras pessoas no restaurante, ao passo que Ferguson, instintivamente, sentou-se na cadeira de costas para os outros, indicando que a única pessoa que ele poderia ver era Amy, Amy e a parede atrás dela, pois isso era o que eles eram, disse Ferguson consigo, isso era o que eles sempre tinham sido nos últimos quatro anos e oito meses, Amy olhando para os outros e ele olhando só para Amy.

Ficaram ali uma hora e meia, talvez uma hora e quarenta e cinco minutos, ele nunca teve certeza de quanto tempo foi com exatidão, e enquanto a normalmente esfomeada Amy apenas beliscava sua comida e Ferguson se afogava em taças e mais taças de vinho tinto, esvaziando sozinho quase toda a primeira garrafa e depois pedindo outra, os dois falavam e ficavam em silêncio, falavam e ficavam em silêncio de novo, depois falaram, falaram e falaram, e dali a pouco Ferguson ouviu Amy dizer que estava acabado, que eles tinham se afastado um do outro, se movido em direções diferentes e que agora, portanto, teriam de parar de morar juntos, e não, disse Amy, não era culpa de ninguém, muito menos de Ferguson, que a havia amado com tanta força e tão bem desde seu primeiro beijo naquele banco do pequeno parque em Montclair, não, a questão era que simplesmente ela não conseguia mais aguentar os limites sufocantes de um casal, ela precisava ser livre para ir em frente sozinha, para ir para a Califórnia sem os laços e sem o fardo de ninguém nem de nada e continuar a trabalhar para o movimento, isso era sua vida agora, e lá não havia mais lugar para Ferguson, o seu maravilhoso Ferguson de bom coração e de grande espírito teria de se virar sem ela, e Amy lamentava, lamentava muito, lamentava demais, mas era assim que tinha de ser agora, e nada, coisa nenhuma em todo o vasto mundo, poderia mudar aquilo.

Amy estava chorando, nessa altura, dois rios de lágrimas escorriam pelo rosto, enquanto, gentilmente, ela crucificava o filho de Rose e Stanley Ferguson, mas o próprio Ferguson, que tinha muito mais razão para chorar do que ela, estava bêbado demais para isso, não embriagado em excesso, mas o suficiente para não sentir nenhum impulso de abrir as torneiras de água salgada, o que foi um lance de sorte, sentiu ele, pois não queria que a última impressão que Amy levasse dele fosse a de um homem destruído, se desmanchando em lágrimas na frente dela, e portanto ele reuniu todas as forças que ainda lhe restavam e disse:

Ah, minha amada e adorada Amy, minha extraordinária Amy do cabelo selvagem e dos olhos radiosos, minha querida amante de mil noites nuas transcendentes, minha formidável garota cuja boca e cujo corpo fizeram coisas tão maravilhosas com a minha boca e o meu corpo durante anos, a única garota que dormiu comigo, a única garota com quem eu quis dormir, eu não vou só sentir falta do seu corpo todos os dias pelo resto da vida, vou sentir falta especialmente das partes do seu corpo que pertencem só a mim, que pertencem aos meus olhos e às minhas mãos e que não são conhecidas nem por você, as suas partes que você nunca viu, as partes de trás que são invisíveis para você, como as minhas são, para mim, como são invisíveis para todo mundo que tem um corpo, a começar pela bunda, é claro, sua deliciosa bunda redonda e bem-feita, e a parte de trás das pernas com os pontinhos marrons que adorei por tanto tempo, e as linhas riscadas em sua pele bem atrás dos joelhos, no ponto em que as pernas se dobram, como admirei a beleza daquelas duas linhas, e depois a metade oculta do seu pescoço e as protuberâncias em sua coluna, quando você se inclina, e a adorável curva na sua região lombar, que pertenceu a mim e só a mim ao longo de todos esses anos, e acima de tudo suas escápulas, que sempre me fizeram lembrar as asas de um cisne, as asas que se projetam das costas da garota do rótulo da água mineral gasosa White Rock, que foi a primeira garota que amei na vida.

Por favor, Archie, disse Amy. Por favor, pare.

Mas eu não terminei.

Não, Archie, por favor. Eu não aguento.

Ferguson estava à beira de falar de novo, mas antes que pudesse pôr a língua na posição apropriada, Amy se levantou, enxugou as lágrimas com o guardanapo e saiu do restaurante.

Maio-junho de 1968. Na manhã seguinte, Amy fez as malas, deixou-as com os pais na rua 75 Oeste e, então, passou seu último mês como aluna de graduação de Barnard acampada no sofá da sala do apartamento de Patsy Dugan, na Claremont Avenue.

Ferguson estava mais do que exausto agora, mais do que entorpecido, estava de volta ao elevador escuro do dormitório no blecaute de 1965, que já não podia mais se distinguir do blecaute de 1946-7, quando ele ainda estava no útero da mãe. Ferguson tinha vinte e um anos de idade, e se queria mesmo ter algum tipo de vida no futuro, tinha de nascer de novo — um recém-nascido, aos berros, arrancado das trevas, para uma nova chance de encontrar o próprio caminho, no resplendor e no deslumbramento do mundo.

No dia 13 de maio, um milhão de pessoas marcharam pelas ruas de Paris. A França inteira estava em revolta e onde, em nome de Deus, tinha se metido De Gaulle? Um cartaz dizia: COLUMBIA-PARIS.

No dia 25, Hamilton Hall foi ocupado pela segunda vez, e cento e trinta e oito pessoas foram presas. Naquela noite, a batalha no campus de Columbia entre a polícia e os estudantes foi maior, mais sangrenta e ainda mais selvagem do que a da noite da invasão policial com setecentos presos.

Depois do número publicado no dia 22, o Spectator interrompeu as publicações, até o número final do semestre, no dia 3 de junho. Naquele mesmo dia, Ferguson deixou Nova York para passar um mês com os pais na Flórida.

Quando estava no avião para o sul, Andy Warhol levou um tiro e quase morreu, alvejado por uma mulher chamada Valerie Solanas, que tinha escrito um manifesto intitulado SCUM, ou seja, escória, (abreviação de Sociedade pelo Despedaçamento dos Homens) e também uma peça teatral intitulada Vá tomar no cu.

Dois dias depois, Robert Kennedy levou um tiro em Los Angeles, disparado por um homem chamado Sirhan Sirhan e morreu, aos quarenta e dois anos de idade.

Todo fim de tarde, ao escurecer, Ferguson caminhava pela praia, jogava tênis com o pai na maior parte das manhãs, comia ovos e salmão defumado no Wolfie’s, em homenagem à avó, e passava o grosso do seu tempo no apartamento, com ar-condicionado, trabalhando em suas traduções de poemas franceses. No dia 16 de junho, sem ter mais ideia de onde estaria Amy, ele pôs num envelope um daqueles poemas, selou e enviou para ela, aos cuidados dos pais de Amy, em Nova York. Ferguson não era capaz de lhe escrever uma carta, mas o poema, de certa forma, conseguia dizer a maioria das coisas que ele mesmo já não era mais capaz de lhe dizer.

A BELA RUIVA
de Guillaume Apollinaire

Estou na frente de todos um homem cheio de bom senso

Ciente da vida e da morte tanto quanto alguém vivo pode ser

Que já provou as dores e as alegrias do amor

Que sabe às vezes como expressar suas ideias

Que sabe falar algumas línguas

Que cumpriu sua cota de viagens

Que viu a guerra na infantaria e na artilharia

Ferido na cabeça e trepanado sob o efeito do clorofórmio

Que perdeu os melhores amigos no pesadelo da batalha

Sei tanto quanto é possível saber sobre os antigos e os novos

E sem ligar para esta guerra de hoje

Entre nós e por nós meus amigos

Julgo essa longa briga entre tradição e imaginação

Uma disputa entre a Ordem e a Aventura

Você cuja boca é feita à imagem da boca de Deus

Uma boca que é a própria ordem

Seja gentil quando nos comparar

Com aqueles que são a perfeição da ordem

Nós que andamos em busca de aventura em toda parte

Não somos seus inimigos

Queremos lhes dar reinos vastos e estranhos

Onde as flores de mistério existem para ser colhidas por qualquer um

Naqueles lugares existem novas cores de fogo nunca vistas

O caos de mil ilusões de ótica

Que devem ser tornadas reais

Queremos explorar a bondade o enorme país onde tudo é mudo

Bem com o tempo que pode ser perseguido ou chamado de volta

Pobre de nós que sempre lutamos nas fronteiras

Do ilimitado e do futuro

Pobres de nossos erros pobres de nossos pecados

Agora o verão está sobre nós a estação violenta

E minha juventude está tão morta quanto a primavera

Ó sol este é o tempo de a razão pegar fogo

E eu estou à espera

Para seguir a forma doce e nobre

Ela sempre acha que só eu posso amá-la

Ela vem me atrai para si como limalhas de ferro para um ímã

Ela tem a feição encantadora

De uma ruiva adorável

Seu cabelo é feito de ouro ao que parece

Um lindo clarão de relâmpago que estoura sem parar

Ou aquelas chamas que valsam

Em rosas híbridas extenuadas

Mas podem rir e rir de mim

Homens de todo mundo em especial a gente daqui

Pois há tantas coisas que não ouso dizer a vocês

Tantas coisas que vocês não me deixariam dizer

Tenham pena de mim

(Traduzido por A. I. Ferguson)

* “Não aguento mais, meu bem, porque meu coração está doendo demais”, em tradução livre. (N. T.)

** Nobodaddy: divindade cruel e ciumenta imaginada pelo poeta inglês William Blake (1757-­-1827) como crítica ao cristianismo. (N. T.)


6.2


6.3

Trinta e um dias depois que ele jogou o dinheiro de Fleming pela janela, Ferguson datilografou as últimas páginas da versão final de seu livro. Tinha imaginado que começaria a sentir toda sorte de coisas boas a respeito de si mesmo naquele momento, porém, depois de um breve surto de entusiasmo, quando puxou as últimas cinco folhas de papel e de papel-carbono do rolo de sua máquina de escrever, aquele sentimento logo se desfez, mesmo a sensação boa e supostamente eterna de ter provado para si que era capaz de escrever um livro, que era uma pessoa que terminava o que começava, e não um daqueles farsantes de vontade fraca que sonhavam coisas grandiosas, mas jamais conseguiam cumprir a promessa, qualidade humana que dizia respeito a muitas outras questões do que simplesmente escrever livros, porém, após mais ou menos uma hora, Ferguson já não estava sentindo mais quase nada, senão uma espécie de tristeza exausta e, quando desceu para o térreo a fim de tomar um drinque antes do jantar com Vivian e Lisa, às seis e meia, suas entranhas estavam entorpecidas.

Vazio. Esta era a palavra para aquilo, pensou, sentado no sofá, enquanto tomava seu primeiro gole de vinho, o mesmo espaço vazio de que Vivian tinha falado quando descreveu o que sentira depois de terminar de escrever seu primeiro livro. Não vazio, no sentido de estar sozinho num quarto sem móveis — mas vazio no sentido de parecer oco. Sim, era isso, oco, esvaziado, como uma mulher depois de dar à luz. Mas, nesse caso, um filho natimorto, um bebê que nunca iria mudar, crescer nem aprender a andar, pois os livros vivem dentro de nós só enquanto estamos escrevendo, mas, assim que saem de nós, estão completamente consumidos e mortos.

Quanto tempo durou a sensação?, perguntou para Vivian, enquanto perguntava a si mesmo se seria apenas uma crise temporária ou o começo de um mergulho profundo num estado de completa melancolia; mas antes que Vivian pudesse responder, Lisa, como um fio desencapado, deu um pulo e disse: Passa depressa, Archie. Só uns cem anos, mais ou menos. Não é, Viv?

Há uma solução rápida, disse Vivian, sorrindo diante da ideia daqueles cem anos. Comece a escrever outro livro.

Outro livro?, disse Ferguson. Agora eu me sinto tão chamuscado por dentro que nem sei se algum dia vou conseguir ler outro livro.

Mesmo assim, Vivian e Lisa ergueram um brinde a Ferguson por ter dado à luz aquele bebê, que podia até não estar vivo para ele, disseram as duas, mas estava bastante vivo para elas, tanto assim, acrescentou Lisa (que não tinha lido nenhuma página do livro), que ela estava disposta a largar seu emprego de advogada se Ferguson prometesse contratá-la como babá. Era esse o senso de humor de Lisa — seu senso de humor absurdo —, mas acabava sendo engraçado, porque ela mesma era engraçada, e fez Ferguson rir. Depois, imaginou Lisa andando por Paris com um bebê morto num carrinho de bebê, e riu mais uma vez.

Na manhã seguinte, Ferguson e Vivian caminharam até o correio no Boulevard Raspail, sua seção local do PTT estatal (Postes, Télégraphes et Téléphones), que na França era conhecido pelo nome de Pei-Tei-Tei, as iniciais triplas que se desprendiam da língua de forma tão eufônica que Ferguson jamais se cansava de repeti-las, e, quando eles entraram naquele volumoso prédio dos serviços de comunicação oferecidos aos cidadãos da República Francesa e a todos que estavam em viagem ou em residência na França, enviaram para Londres uma cópia do manuscrito de Ferguson. O envelope não foi endereçado para Aubrey Hull, da editora Io Books, e sim para uma mulher chamada Norma Stiles, que trabalhava como publisher na empresa editorial inglesa que havia editado o livro de Vivian (Thames & Hudson) e que por acaso era amiga de seu colega mais jovem na T&H, Geoffrey Burnham, o qual, por sua vez, era grande amigo de Hull. Foi essa a maneira que Vivian escolheu para apresentar o livro — por meio da intervenção da sua amiga, que lhe garantiu que pegaria o original imediatamente e passaria logo para Burnham, que em seguida passaria para Hull. Não era complicado demais?, perguntou Ferguson para Vivian, quando ela propôs a ideia. Não seria mais rápido e mais simples simplesmente mandar logo direto para o próprio Hull?

Mais rápido, sim, disse Vivian, e mais simples também, mas a chance de o livro ser aceito seria quase zero, pois os originais que chegavam enfiados por baixo da porta acabavam, geralmente, no monte de sebo — (duas expressões novas para o novato Ferguson) — e são quase sempre rejeitados sem uma leitura adequada. Não, Archie, nesse caso, o caminho mais longo é o melhor caminho. O único caminho.

Noutras palavras, disse Ferguson, duas pessoas tinham de gostar do livro antes de ele chegar à pessoa cuja opinião de fato interessava.

Receio que sim. Felizmente, essas duas pessoas não são tolas. Podemos contar com elas. O mistério é o Hull. Mas pelo menos há noventa por cento de chance de ele ler.

Portanto, lá estavam eles na manhã do dia 10 de março de 1966 na fila do Pei-Tei-Tei local, no sétimo arrondissement de Paris, e, quando chegou sua vez, Ferguson ficou maravilhado com a rapidez e a eficiência do homenzinho atrás do balcão, quando pesou o embrulho em sua balança cinzenta de metal e, sofregamente, colou os selos no grande envelope marrom e, depois, tratou de socar aqueles retângulos vermelhos e verdes com seu carimbo de borracha, reduzindo as múltiplas faces de Marianne a mais ou menos uma polegada de vida, e de repente Ferguson se viu pensando na cena desvairada do filme Os quatro batutas, dos Irmãos Marx, em que Harpo enlouquece carimbando tudo o que vê pela frente, até a careca dos funcionários da alfândega, e, de uma hora para outra Ferguson se sentiu inundado de amor por tudo que é francês, até as coisas mais tolas e ridículas e, pela primeira vez em várias semanas, disse para si mesmo que era muito bom estar morando em Paris e que muito do que havia de bom naquilo derivava do fato de conhecer Vivian e ser seu amigo.

O preço dos selos do correio aéreo era alto, mais de noventa francos, depois de somados o seguro e o certificado de entrega (algo perto de vinte dólares ou um quarto de sua semanada), mas quando Vivian meteu a mão na bolsa para pegar o dinheiro para pagar ao funcionário do correio, Ferguson agarrou seu pulso e disse para ela parar.

Dessa vez, não, disse ele. É o meu bebê morto que está aí dentro e sou eu quem tem de pagar.

Mas, Archie, é caro demais...

Eu pago, Viv. No Pei-Tei-Tei, sou eu quem paga a conta.

O.k., sr. Ferguson, como quiser. Mas agora que seu livro está prestes a voar para Londres, prometa-me que vai parar de pensar nele. Pelo menos até que exista um motivo para começar a pensar nele de novo. Está certo?

Vou fazer o melhor que eu puder, mas não estou prometendo nada.

A segunda fase de sua vida em Paris tinha começado. Sem nenhum livro para escrever e sem necessidade nenhuma de continuar a frequentar as aulas de francês na Alliance Française, Ferguson não estava mais preso ao rígido esquema da programação diária que cumprira nos cinco meses anteriores. A não ser por seus estudos com Vivian, ele estava livre para fazer o que queria agora, o que significava, acima de tudo, que tinha tempo para ir ao cinema nas tardes dos dias de semana, escrever cartas mais compridas e mais frequentes para as pessoas que mais importavam para ele (a mãe e Gil, Amy e Jim), procurar alguma quadra de basquete, coberta ou ao ar livre, para recomeçar a jogar e fazer tentativas de arrebanhar potenciais alunos para aulas particulares de inglês. A questão do basquete só foi resolvida no início de maio, e ele jamais conseguiu encontrar alunos particulares, mas mandou uma torrente constante de cartas e viu um número incrível de filmes, pois, por mais que Nova York fosse um bom lugar para ver filmes, Paris era melhor ainda e, nos dois meses seguintes, ele acrescentou cento e trinta itens ao seu fichário de argolas com folhas soltas, e eram tantas as páginas novas que o fichário original, de Nova York, tinha agora um irmão francês.

Essa foi a única escrita que ele produziu durante a primeira parte da primavera — cartas, aerogramas e cartões-postais para os Estados Unidos e uma pilha crescente de sinopses de uma ou duas páginas com observações abreviadas sobre filmes. Enquanto trabalhava nas revisões finais de seu livro, ele também andou pensando em ensaios e artigos que desejava escrever mais tarde, no entanto, agora ele se deu conta de que aquelas ideias tinham sido inflamadas pela adrenalina que o levava a terminar o livro e, uma vez concluído o trabalho, a adrenalina se acabou e seu cérebro pifou. Ele precisava de uma breve pausa antes de recomeçar e, portanto, durante as primeiras semanas da primavera, se contentou em anotar as ideias às pressas num caderninho de bolso que levava consigo em suas caminhadas, rascunhar possíveis enredos e contraenredos sobre vários temas, sentado na escrivaninha do seu quarto, e reunir mais exemplos para o texto que queria escrever sobre crianças nos filmes, a representação da infância nos filmes, desde as cortantes lambadas de vara desfechadas contra o traseiro de Freddie Bartholomew, por Basil Rathbone, no filme David Copperfield, até Peggy Ann Garner que entrava na barbearia para pegar a caneca de barbear de seu falecido pai, no filme Laços humanos, desde o forte tapa na cabeça de Jean-Pierre Léaud no filme Os incompreendidos, até Apu e sua irmã, primeiro sentados num campo de juncos para ver o trem passar e, depois, encolhidos entre os troncos de uma árvore, enquanto a chuva desaba em cima deles, no filme indiano A canção da estrada, a mais linda e mais devastadora imagem da infância que Ferguson tinha visto no cinema, uma imagem tão impressionante e carregada de sentidos que ele se via obrigado a conter o choro toda vez que pensava nela, mas aquele ensaio e também os outros estavam adiados por enquanto, porque ele continuava ainda tão esgotado com o trabalho em seu pobre livrinho que mal tinha energia para manter uma sequência de pensamentos por mais de vinte ou trinta segundos sem esquecer o primeiro pensamento, quando chegava ao terceiro.

Apesar de sua brincadeira quando disse que não tinha certeza de que algum dia seria capaz de ler outro livro, Ferguson leu muitos livros naquela primavera, mais do que tinha lido em qualquer outra época da vida e, à medida que seus estudos com Vivian avançavam, ele se sentia mais envolvido no que os dois estavam fazendo juntos, mais plenamente comprometido, porque a própria Vivian parecia mais confiante, mais confortável em seu papel de professora. Assim, um por um, eles percorreram mais seis peças de Shake­s­peare, peças de Racine, Molière e Calderón de la Barca, depois atacaram os ensaios de Montaigne, enquanto Vivian apresentava a ele a palavra “parataxe” e os dois discutiam sobre a força e a velocidade da prosa e exploravam a mente do homem que havia descoberto ou revelado ou inventado o que Vivian chamou de a mente moderna, e então foram três consistentes semanas com o Cavaleiro da Triste Figura, que fez por Ferguson, aos dezenove anos, o que o Gordo e o Magro tinham feito por ele quando menino, ou seja, conquistar seu coração com um amor ilimitado por um ser imaginário, o louco-visionário-tateante do século XVII que, a exemplo dos palhaços do cinema sobre os quais Ferguson tinha escrito em seu livro, nunca desistia: “... e por um longo período, tropeçando aqui, caindo ali, desabando num ponto e me levantando em outro, eu tenho cumprido grande parte de meu propósito...”.

Os livros da lista de Gil, mas também livros sobre filmes, história e antologias em inglês e francês, ensaios e polêmicas de André Bazin, Lotte Eisner e dos diretores da Nouvelle Vague, antes de começarem a fazer seus próprios filmes, os primeiros artigos de Godard, Truffaut e Chabrol, uma releitura dos dois livros de Eisenstein, as reflexões de Parker Tyler, Manny Farber e James Agee, estudos e meditações de velhos veneráveis como Siegfried Kracauer, Rudolf Arnheim e Béla Balázs, todos os números dos Cahiers du Cinéma, de ponta a ponta, sentado na biblioteca do Conselho Britânico, lendo a revista Sight & Sound, esperando que chegassem de Nova York os exemplares da sua assinatura de Film Culture e Film Comment, e depois, após ficar lendo das oito e meia da manhã até o meio-dia, as excursões à tarde à Cinémathèque do outro lado do rio, só um franco por ingresso, com sua carteira de estudante da Riverside Academy, que o bilheteiro nem chegava a olhar para verificar se ainda era uma carteira válida, o primeiro e maior arquivo de filmes que existia no mundo, fundado pelo gordo, obsessivo e quixotesco Henri Langlois, o maior homem de cinema entre todos os homens de cinema, e que curioso era ver raros filmes ingleses com legendas em sueco ou filmes mudos sem nenhum acompanhamento musical, mas essa era a lei de Langlois, NADA DE MÚSICA, e embora Ferguson tenha levado um tempo para se adaptar a uma tela totalmente silenciosa e um cinema sem nenhum som, senão as tosses e os narizes fungando da multidão, além de um algum estalido eventual do projetor, ele começou a apreciar a força daquele silêncio, pois muitas vezes acontecia de ouvir coisas enquanto assistia àqueles filmes, barulho de uma porta de carro que fecha com força, um copo de água colocado sobre uma mesa, uma bomba que explodia num campo de batalha. O silêncio dos filmes mudos parecia produzir um frenesi de alucinações auditivas, o que dizia algo sobre a percepção humana, supôs Ferguson, e como as pessoas experimentavam as coisas quando estavam emocionalmente envolvidas na experiência, e quando ele não ia à Cinémathèque, ia ao La Pagode, Le Champollion, ou a um dos teatros na Rue Monsieur-le-Prince ou ia ao Boulevard Saint-Michel, ou atrás dele, perto da Rue des Écoles, e depois, o que ajudou ainda mais a impulsionar sua educação, houve a surpresa da descoberta de Action Lafayette, Action République e Action Christine, o triunvirato dos cinemas Action, que só passavam antigos filmes de Hollywood, a safra de filmes em preto e branco de um Estados Unidos já desaparecido e de que poucos americanos se lembravam; comédias, histórias policiais, dramas do tempo da Depressão, filmes de lutadores de boxe e filmes de guerra dos anos 1930, além de filmes do início dos anos 1950, produzidos aos milhares, e eram tão ricas as possibilidades oferecidas a ele que o conhecimento de Ferguson acerca do cinema americano aumentou enormemente depois que se mudou para Paris — assim como seu amor pelos filmes franceses tinha nascido no cinema Thalia Theater e no Museu de Arte Moderna de Nova York.

Enquanto isso, Fleming continuava no seu pé, Fleming estava louco para pedir desculpas, Fleming fazia o maior esforço para compensar a noite do dinheiro e das lágrimas e, por muitos dias depois daquela noite, ele telefonava para o apartamento de Vivian pelo menos uma vez por dia para falar com Ferguson, mas quando Celestine enfiava os recados por baixo da porta do quarto de Ferguson, ele rasgava e não ligava de volta. Duas semanas seguidas de ligações sem resposta, e então os telefonemas pararam e as cartas e os bilhetes começaram. Por favor, Archie, me deixe ser seu amigo. Por favor, Archie, conheço muitos estudantes interessantes aqui em Paris e gostaria muito de apresentá-los a você para que possa começar a fazer amizade com gente da sua idade. Três semanas seguidas com duas ou três cartas por semana, todas sem resposta, todas rasgadas e jogadas no lixo, e então, por fim, as cartas também pararam. Ferguson rezou para que fosse o fim, mas existia sempre a possibilidade de topar com Fleming em algum jantar ou esbarrar com ele na rua por acidente e, portanto, a história ainda não estaria oficialmente encerrada, até que Fleming voltasse para os Estados Unidos, em agosto, o que estava a meses de distância.

As noites continuaram desoladoras, sem nenhum parceiro de cama ou de beijos, fosse homem ou mulher, para arrancá-lo do isolamento, mas era melhor ficar sozinho, sem ninguém para tocar, do que ser tocado por um homem como Fleming, disse para si mesmo, ainda que não fosse culpa dele ser quem ele era. Então Ferguson apagava a luz, abaixava a cabeça no travesseiro e ficava deitado, no escuro, recordando.

O industrioso e eficiente PTT, que na França fazia o mesmo trabalho que, nos Estados Unidos, era dividido em três entidades (U.S. Post Office, Western Union e Ma Bell) cuidavam para que a correspondência fosse despachada duas vezes por dia, uma vez de manhã e outra à tarde, e, como o endereço de Ferguson era o mesmo de Vivian, suas cartas e remessas chegavam primeiro ao apartamento do térreo. Quando chegavam, a boa Celestine as levava para cima, enfiava as cartas por baixo da porta do quarto de Ferguson ou batia à porta para lhe entregar objetos grandes demais para passarem naquele intervalo estreito — suas revistas americanas sobre cinema, por exemplo, ou os livros que Gil e Amy mandavam de vez em quando. Às nove e dez da manhã do dia 11 de abril, quando Ferguson estava sentado em seu quarto relendo A vida é um sonho (La Vida es Sueño) de Calderón de la Barca, ouviu o leve som familiar dos pés de Celestine na escada, em seguida, o rangido das tábuas do assoalho do corredor, quando se aproximou da porta e, um momento depois, um envelope branco e liso apareceu sobre o chão, a poucos centímetros de seus pés. Correio Britânico. Um envelope de empresa, com o endereço do remetente impresso no canto superior esquerdo, que dizia: Io Books. Já preparado para más notícias, Ferguson se abaixou, pegou a carta e então retardou a abertura do envelope por uns seis ou sete minutos, tempo suficiente para começar a se perguntar por que estava tão amedrontado com algo que ele já dissera para si mesmo que não tinha importância.

Ele demorou mais trinta ou quarenta segundos para entender que a má notícia que estava esperando receber era, na verdade, uma boa notícia, que em troca de um adiantamento de quatrocentas libras a título de direitos autorais, a Io tinha a entusiasmada intenção de publicar Como o Gordo e o Magro salvaram minha vida em março ou abril do ano seguinte, mas nem mesmo a resposta positiva de Aubrey Hull foi capaz de convencê-lo de que alguém poderia querer, sinceramente, aceitar seu livro, por isso Ferguson elaborou uma história para explicar a carta, acusando Vivian de ter oferecido dinheiro às escondidas para custear a publicação, sem dúvida Vivian tinha comprado Hull num daqueles sinistros acordos feitos por baixo dos panos, que incluía preencher mais um cheque de muitos milhares de libras para pagar mais livros na Io Books no futuro. Desde que se mudou para Paris, Ferguson não se aborreceu com Vivian nenhuma vez, nenhuma vez lhe disse qualquer palavra dura nem desconfiou de que ela fosse outra coisa que não honesta e bondosa, mas aquilo já era levar a bondade longe demais, disse Ferguson para si mesmo, aquilo já era transformar a bondade numa forma de humilhação e, ainda por cima, era profunda e revoltantemente desonesto.

Às nove e meia, ele desceu para o apartamento de Vivian, jogou a carta de Hull na frente dela e exigiu que confessasse o que tinha feito. Vivian nunca tinha visto Ferguson naquele ânimo agressivo. O rapaz estava fora de si, fumegava de indignação, com visões paranoicas de intrigas sorrateiras e fraudes torpes, e, como Vivian lhe disse mais tarde, só duas reações possíveis ocor­reram a ela ao vê-lo parado na sua frente desvairado daquele jeito: ou lhe dar um tapa na cara ou dar uma gargalhada. Ela optou por rir. O riso era a mais demorada das duas opções, porém, em dez minutos, Vivian tinha conseguido persuadir o orgulhoso Ferguson, exageradamente sensível e patologicamente desconfiado de si mesmo, de que ela não tivera nenhum papel na resposta positiva ao seu livro e não mandara para Hull nem um tostão, nem um sou, nem sequer uma simples moedinha vermelha de dez centavos de dólar.

Acredite em si mesmo, Archie, disse ela. Mostre algum orgulho. E, pelo amor de Deus, não me acuse nunca mais de nada desse tipo.

Ferguson prometeu que não faria mais isso. Sentia muita vergonha, disse, estava mortificado com seu ataque imperdoável, e o pior de tudo era que não tinha a menor ideia do que havia acontecido com ele. Louco, era isso, pura e simples loucura, e se algum dia voltasse a acontecer, Vivian não devia pensar em rir, e sim lhe dar logo um tapa na cara.

Vivian aceitou suas desculpas. Fizeram as pazes. A tempestade passou e, pouco tempo depois, os dois até entraram juntos na cozinha para comemorar a boa notícia, tomando um segundo café da manhã, com mimosas (suco de laranja e champanhe) e bolachinhas com caviar; contudo, por mais que Ferguson começasse a se sentir bem com a boa notícia da carta de Hull, seu ata­que de loucura continuou a perturbá-lo e ele se perguntava se aquela cena na frente de Vivian não seria o primeiro aviso de uma crise nervosa iminente.

Pela primeira vez na vida, ele começava a sentir um pouco de medo de si mesmo.

No dia 15, chegou uma segunda carta de Hull, anunciando que ele viria para Paris na terça-feira, dia 19. O homem da editora Io pedia desculpas por avisar sobre a viagem tão em cima da hora, mas se calhasse de Ferguson estar livre naquela tarde, ele gostaria de ter a oportunidade de conhecê-lo. Sugeriu um almoço ao meio-dia e meia no Fouquet, onde poderiam conversar sobre os planos do livro e, caso a conversa tivesse de se prolongar além do horário do almoço, seu hotel ficava logo depois da esquina dos Champs-Élysées, e eles poderiam ir até lá e continuar. De um modo ou de outro, Ferguson podia aceitar ou recusar, deixando um recado na portaria do George V. Atenciosamente etc.

Com base no que Vivian soubera de sua amiga Norma Stiles, cujo conhecimento se baseava no que ela soubera, por sua vez, do seu colega de trabalho Geoffrey Burnham, o que Ferguson soube a respeito de Aubrey Hull se limitava a estes fatos: trinta anos de idade, casado com uma mulher chamada Fiona e pai de dois filhos pequenos (de um e quatro anos), formado no Balliol College de Oxford (onde conheceu Burnham), filho de um rico fabricante de chocolate e biscoito, uma semiovelha negra (uma ovelha cinzenta?) que gostava de frequentar círculos artísticos e tinha bom faro para literatura, um editor sério, mas também conhecido como uma pessoa festeira e um pouquinho excêntrica.

As vagas linhas daquele retrato levaram Ferguson a imaginar Hull como um daqueles pomposos cavalheiros britânicos que apareciam com frequência nos filmes americanos, o sujeito esnobe e metido, de cara vermelha e com uma queda para a zombaria e para comentários em voz baixa, que pretende ser engraçado, mas que nunca tem graça nenhuma. Talvez Ferguson também andasse vendo filmes demais ou talvez seu temor instintivo do desconhecido o tivesse ensinado a esperar o pior em todas as situações novas, mas a verdade era que Audrey Hull não só não tinha cara vermelha nem jeito esnobe, como se revelou também uma das pessoas mais carinhosas e amáveis que Ferguson já havia encontrado em suas andanças pela vida.

Um tipo de homem muito pequeno, uma espécie de miniatura, só um metro e sessenta de altura, e todas suas feições eram miniaturizadas nas mesmas proporções: cabeça pequena, rosto pequeno, mãos pequenas, braços pequenos e pernas pequenas. Olhos azuis brilhantes. A pele branca leitosa de uma pessoa que viveu num país sem sol, ensopado de chuva, e uma coroa de cabelo cacheado que, no espectro das cores, ficava em alguma faixa entre o vermelho e o louro, o tom de cabelo que certa vez Ferguson ouviu alguém chamar de gengibre. Sem saber o que dizer quando apertaram as mãos e sentaram para almoçar no Fouquet, na tarde do dia 19, Ferguson se obrigou a entabular uma conversa dizendo, sem nenhuma razão, que Hull era a primeira pessoa que ele conhecia com o nome Aubrey. Hull sorriu e perguntou a Ferguson se ele sabia o significado do nome. Não, respondeu Ferguson, não tinha a menor ideia. O senhor dos elfos, disse Hull, e essa resposta foi tão cômica e tão inesperada que Ferguson teve de se conter para não soltar a gargalhada que se formou dentro dos pulmões, uma risada que podia ser interpretada como um insulto, ele se deu conta, e para que correr o risco de ofender o homem que aceitou seu livro, logo nos primeiros dois minutos de seu primeiro encontro? Mesmo assim — como era adequado, como era perfeitamente apropriado que aquele homenzinho miúdo fosse o senhor dos elfos! Foi como se os deuses tivessem entrado na casa de Aubrey na noite anterior a seu nascimento e tivessem instruído seus pais acerca do nome que deviam dar ao filho, e, agora que a cabeça de Ferguson estava cheia de imagens de elfos e deuses, ele olhou para o rosto pequeno e bonito de seu editor e se perguntou se não estaria sentado em presença de um ser mitológico.

Até aquele dia, Ferguson não tinha sabido nada sobre como as editoras funcionavam ou o que faziam para promover os livros. Além de fazer o projeto visual e imprimi-los, Ferguson achava que a tarefa principal era conseguir o maior número possível de resenhas em jornais e revistas. Se as resenhas fossem positivas, o livro seria um sucesso. Se fossem negativas, seria um fracasso. Agora Aubrey estava lhe dizendo que as resenhas eram apenas um elemento do processo e, enquanto o senhor dos elfos explanava sobre quais eram os outros elementos envolvidos, Ferguson foi ficando cada vez mais interessado, mais admirado com o que ia acontecer com ele quando seu livro fosse publicado. Uma viagem a Londres, para começar. Entrevistas com a imprensa diária e semanal, entrevistas com repórteres da BBC, talvez até uma aparição na tevê ao vivo. Um evento à noite num teatro pequeno, no qual Ferguson leria trechos de seu livro para a plateia e depois teria uma conversa simpática com um jornalista ou outro escritor. E — isto ainda teria de ser elaborado, mas como seria agradável, se desse certo — uma noite de filmes de O Gordo e o Magro no Cine NFT ou em outro cinema, com Ferguson no palco, para apresentar os títulos.

Ferguson sob as luzes da ribalta. Ferguson com sua fotografia no jornal. Ferguson com sua voz no rádio. Ferguson no palco, lendo para uma multidão muda de fãs devotados.

Como alguém poderia não querer isso?

A questão é, Aubrey dizia, seu livro é tão incrivelmente bom que merece o tratamento mais completo. Ninguém escreve livros aos dezenove anos. Ninguém jamais ouviu falar de uma coisa dessas e aposto que as pessoas vão ficar enlouquecidas com isso, assim como eu fiquei, como Fiona ficou, como todo mundo na minha equipe ficou.

Vamos torcer, disse Ferguson, tentando manter bem arrolhado seu entusiasmo, para que ele não fosse arrastado pela empolgação diante das palavras de Aubrey e acabasse fazendo papel de bobo. Mas era incrível como ele estava começando a se sentir bem agora. As portas estavam se abrindo. Uma a uma, Aubrey estava abrindo as portas para ele e, um a um, surgiriam novos quartos para ele entrar, e a ideia do que iria encontrar naqueles quartos o enchia de felicidade — mais felicidade do que havia sentido em meses.

Não quero exagerar, disse Aubrey (provavelmente querendo dizer que estava exagerando), mas ainda que você morresse de repente amanhã, Como o Gordo e o Magro salvaram minha vida viveria para sempre.

Que frase mais estranha, retrucou Ferguson. Na certa, é a frase mais estranha que já ouvi na vida.

É, foi mesmo muito esquisita, não foi?

Primeiro eu morro de repente, depois salvo minha vida e depois vou viver para sempre, ainda que eu já deva estar morto.

É mesmo muito esquisito. Mas ela saiu do meu coração e a intenção era fazer um elogio sincero.

Olharam um para o outro e riram. Algo começava a subir à superfície, algo forte o bastante para que Ferguson desconfiasse que Aubrey estava dando em cima dele, que seu companheiro de almoço, jovial, de cabeça cor de gengibre, era o mesmo tipo de pessoa bissexual que ele e já havia trilhado aquele caminho muitas vezes. Ferguson se perguntava se o pênis de Aubrey seria tão pequeno quanto o resto de seu corpo, e então, começando a pensar em seu próprio pênis, ele se perguntou se teria, algum dia, a chance de descobrir.

Veja, Archie, prosseguiu Aubrey, cheguei à conclusão de que você é uma pessoa diferente da maioria, uma pessoa especial. Senti isso quando li seu original, e agora que o conheci pessoalmente, estou convencido. Você é dono de si mesmo e por causa disso é estimulante estar na sua companhia, mas também exatamente por isso você nunca vai se encaixar em lugar nenhum, o que é bom, eu creio, pois assim vai continuar a ser o dono de si mesmo, e um homem que é dono de si mesmo é melhor do que a maioria dos homens, ainda que ele não se encaixe.

Na verdade, disse Ferguson, abrindo seu melhor e maior sorriso, enquanto mergulhava de cabeça no jogo de sedução que Aubrey parecia ter começado, eu tento me encaixar sempre que posso... com qualquer pessoa que posso.

Aubrey sorriu em resposta, depois daquela réplica obscena, animado por saber que Ferguson tinha entendido todas as nuances da situação. É isso mesmo que eu estou querendo dizer, respondeu Aubrey. Você está aberto a todas as experiências.

Sim, retrucou Ferguson, muito aberto. Para todo mundo.

Todo mundo, naquele caso, significava a pessoa que estava sentada à frente dele, no pomposo e agradavelmente barulhento Fouquet, o absolutamente encantador Aubrey Hull, um homem que tinha caído do nada na sua frente e que ia fazer tudo que estava a seu alcance para transformar a vida de Ferguson, convertendo seu livro num sucesso, o charmoso e sedutor Aubrey Hull, um tipo de homem desejável e intoxicante ao extremo, cuja boquinha bonita Ferguson queria desesperadamente beijar, e então, depois que Aubrey tomou mais uma ou duas taças de vinho, o suposto excêntrico passou a chamar Ferguson de magrelinho, belo rapaz, bom rapaz, bonito rapaz, o que tinha menos de excêntrico do que de sedutor e excitante e, na hora em que terminaram o almoço, tudo já estava às claras, sem mais nenhum mistério para ponderar nem perguntas a fazer.

Ferguson sentou-se na cama no quarto do quinto andar do Hôtel George V e viu Aubrey tirar o paletó e a gravata. Já fazia tanto tempo que ele não ficava a sós com uma pessoa de quem gostasse, tanto tempo sem ser tocado por alguém, sem ninguém que quisesse tocar nele sem primeiro falar em dinheiro, que quando o senhor dos elfos caminhou na direção da cama, sentou no seu colo e passou os braços em torno do torso de Ferguson, todo vestido, Ferguson estremeceu. Então ele estava beijando a boquinha bonita e tremendo de cima a baixo, em toda a extensão do corpo, e quando suas línguas se encontraram e o abraço ficou mais forte, Ferguson lembrou-se das palavras que tinha dito a si mesmo anos antes, enquanto viajava de ônibus para Boston para ver seu amado Jim: os portões do paraíso. Sim, era essa sua sensação agora, e depois dos quartos que tinha visitado na imaginação durante o almoço, os quartos em que tinha entrado enquanto Aubrey abria porta após porta para ele passar, agora outra porta estava se abrindo, e ele e Aubrey estavam entrando juntos. Homens de carne e osso. Uma cama num hotel de Paris cujo nome era de um rei inglês. Um americano e um inglês naquela cama, em pele nua e em carne e osso. Au-delà. A palavra francesa para o que vem depois. O mundo seguinte que respira dentro deles no aqui e agora deste mundo.

O pênis era tão pequeno quanto ele havia imaginado, mas, assim como o resto de Aubrey, era adequado às proporções de sua estrutura miniaturizada, e não era menos bonito do que sua boquinha bonita ou nenhuma outra parte dele. O importante era que Aubrey sabia o que fazer com o que tinha. Aos trinta anos, tinha muito mais experiência na cama e em questões do corpo do que os garotos com quem Ferguson tinha transado no passado, e, como era um amante amigável, sem nenhuma inclinação estranha ou repugnante e sem nenhuma culpa de sua paixão de foder e ser também comido por rapazes jovens, Aubrey era, ao mesmo tempo, mais sutil e mais agressivo do que Andy Cohen e Brian Mischevski tinham sido, e mais confiante e, ao mesmo tempo, mais generoso, uma pessoa encantadora que gostava de fazer aquilo tanto quanto gostava que fizessem aquilo com ele, e as horas que passaram juntos naquela tarde e naquele início de noite foram, certamente, até então, as melhores e mais satisfatórias da vida de Ferguson em Paris. Uma semana antes, Ferguson temia estar a caminho de um colapso nervoso. Agora, seu cérebro estava estourando com mil pensamentos novos e seu corpo estava relaxado.

Dez dias depois de viajar para o outro mundo nos braços do seu editor inglês, Ferguson abraçou sua mãe e pediu que ela o perdoasse. Ela e Gil tinham acabado de chegar a Paris. O New York Herald Tribune tinha fechado as portas e se extinguido no dia 24 de abril, e com Gil temporariamente desempregado até o outono, quando iria começar sua nova carreira de professor no Mannes School of Music, a mãe e o padrasto resolveram desfrutar a lua de mel que nunca haviam tido depois de seis anos e meio de casamento. Para começar, uma semana em Paris. Depois, Amsterdam, Florença, Roma e Berlim Ocidental, que Gil tinha visto seis meses depois do fim da Segunda Guerra Mundial, no fim de 1945. Planejavam aproveitar seu tempo ali para ver pinturas italianas e holandesas, e depois Gil mostraria à mãe de Ferguson os lugares onde ele tinha vivido quando menino.

Ferguson tinha terminado de datilografar as três cópias de seu livro no dia 9 de março. Uma cópia, agora, estava na prateleira de cima da estante de seu quarto em Paris, outra cópia estava em cima da escrivaninha de Aubrey, em Londres, e a terceira tinha sido enviada para o apartamento de seus pais, em Riverside Drive, em Nova York. Duas semanas depois de o texto ter atravessado o oceano, Ferguson recebeu uma carta de Gil. Isso era normal, pois sua mãe não era muito de escrever cartas e nove décimos da correspondência que ele enviava para ambos, em conjunto, eram respondidos apenas por Gil, às vezes com um P.S. da mãe no final (Estou com muita saudade de você, Archie!, ou Mil beijos da sua mãe!), e às vezes, não. Os primeiros parágrafos da carta de Gil eram cheios de comentários positivos sobre o livro e o trabalho notável que ele tinha feito para equilibrar o conteúdo emocional da história com os dados físicos e fenomenológicos, e dizia que estava muito impressionado com seu rápido desenvolvimento e aprimoramento como escritor. No quarto parágrafo, no entanto, o tom da carta começava a mudar. Mas, querido Archie, Gil tinha escrito, você deve se dar conta de como o livro abalou profundamente sua mãe e como foi difícil para ela lê-lo. É claro, reviver dias tão penosos do passado seria difícil para qualquer um, e eu não culpo você por ter feito sua mãe chorar (eu mesmo chorei um pouco), mas havia alguns pontos em que você talvez tenha sido honesto demais, eu receio, e ela ficou chocada com a intimidade dos detalhes que você revelou sobre ela. Ao reler o original, eu diria que a passagem mais ofensiva está nas págs. 46-47, no meio da seção sobre o verão desolador que vocês dois passaram no litoral de Jersey, trancados naquela casinha, juntos, vendo televisão desde manhã cedo até tarde da noite e quase sem pôr os pés na praia. Só para refrescar sua memória: “Minha mãe sempre fumou, mas agora estava fumando sem parar, consumia quatro ou cinco maços de Chesterfield por dia, raramente se dava o trabalho de usar fósforos ou isqueiros, porque era mais simples e mais eficiente acender o cigarro seguinte com a ponta acesa do último cigarro. Até onde sei, antes ela raramente tomava bebidas alcoólicas, mas agora estava bebendo seis ou sete doses de vodca pura toda noite e, na hora em que me punha na cama para dormir, sua voz ficava enrolada e as pálpebras ficavam semicerradas sobre os olhos, que não conseguiam mais suportar olhar para o mundo. Meu pai tinha morrido havia oito meses nessa altura, e toda noite, naquele verão, eu subia no lençol quente e enrugado da minha cama e rezava para minha mãe continuar viva de manhã”. Isso é uma brutalidade, Archie. Talvez você devesse pensar na possibilidade de cortar isso da versão final ou, pelo menos, modificar em certa medida — para poupar sua mãe da dor de ver esse infeliz intervalo de sua vida exposto aos olhos do público. Pare e pense nisso por um momento e você entenderá por que estou pedindo para fazer isso... E aí vinha o último parágrafo: A boa notícia é que o jornal Tribune está à beira de fechar as portas e, daqui a pouco, estarei sem emprego. Quando isso acontecer, sua mãe e eu vamos viajar pela Europa — o mais provável é que seja no fim de abril. Poderemos conversar sobre isso, então.

Mas Ferguson não quis esperar até lá. A questão era perturbadora demais para ser adiada até o fim de abril, pois agora que Gil tinha levantado aquelas frases do livro e isolado a passagem do que estava em redor, Ferguson compreendeu que tinha sido bruto demais e que merecia as repreensões que o padrasto lhe fizera. Não que a passagem não fosse verdadeira, pelo menos da perspectiva de sua própria pessoa aos oito anos de idade, tal como a recordava sua própria pessoa mais velha na hora em que estava escrevendo o livro. A mãe fumou demais naquele verão, bebia direto suas doses de vodca e não cuidava da casa, e ele ficava alarmado com a apatia e a passividade que a dominavam, às vezes ficava até assustado com seu alheamento entorpecido, a seu lado, enquanto ele construía castelos de areia na praia, e seu olhar ficava perdido nas ondas. As frases que Gil havia copiado em sua carta retratavam a mãe de Ferguson em seus piores momentos, bem lá no fundo de sua queda na dor e na confusão, mas a questão toda, para Ferguson, consistia em contrastar aquele verão perdido com o que aconteceu com a mãe depois que eles voltaram para Nova York, o que assinalou seu retorno à fotografia e o início de uma vida nova, a invenção de Rose Adler. No entanto, parecia que Ferguson tinha carregado demais nas tintas no contraste, fundindo seus temores de criança e suas falsas apreensões de adulto numa situação que tinha sido menos grave do que ele havia imaginado (ela havia tomado alguma vodca, segundo o que a mãe contou para Gil, mas foram só duas garrafas durante os quarenta e seis dias que os dois ficaram em Belmar) e, portanto, depois de ler a carta, Ferguson sentou e escreveu respostas arrependidas de uma página para cada um deles, uma para a mãe e outra para o padrasto, pedindo desculpas por qualquer aborrecimento que tivesse causado e prometia apagar do livro a passagem ofensiva.

Portanto, lá estava ele, agora, na manhã do dia 29 de abril, no saguão do Hôtel Port Royal, com os braços em torno da mãe, entontecida com a mudança do fuso horário, pedindo seu perdão. Lá fora, a chuva batia nas ruas com força e, enquanto Ferguson apoiava o queixo no ombro da mãe, olhou pela janela da frente do hotel e viu um guarda-chuva voar, arrancado das mãos de uma mulher.

Não, Archie, disse a mãe, eu não preciso perdoar você por nada. Você é que tem de me perdoar.

Gil já estava na fila do balcão da recepção, aguardando sua vez de apresentar os passaportes, assinar a ficha de hóspede e fazer o registro deles no hotel e, enquanto cuidava daqueles assuntos maçantes, Ferguson conduziu a mãe até um banco num canto do saguão. Ela parecia exausta com a viagem e, se queria continuar a conversar com ele, como Ferguson supunha, seria mais fácil se estivesse sentada. Exausta, acrescentou Ferguson para si, porém não mais do que ficaria qualquer pessoa depois de viajar doze ou treze horas seguidas, e apesar disso ela estava com um aspecto muito bom, pensou, quase nenhuma diferença em comparação com a última vez que a tinha visto, seis meses e meio antes. Sua linda mãe. Sua mãe linda e, de certa forma, exausta, e como era bom estar olhando de novo para seu rosto.

Senti muita saudade de você, Archie, disse ela. Sei que você agora é uma pessoa adulta e tem direito de ser quem quiser, mas este foi o intervalo mais longo em que ficamos separados e não foi fácil me acostumar.

Eu sei, disse Ferguson. Para mim também, foi a mesma coisa.

Mas você está feliz aqui, não está?

Sim, em geral, sim. Pelo menos, acho que sim. A vida não é perfeita, você sabe. Nem mesmo em Paris.

Essa é boa. Nem mesmo em Paris. Nem mesmo em Nova York também, por falar nisso.

Me diga, mãe. Por que você falou aquilo, alguns minutos atrás, antes de a gente vir para cá e sentar?

Porque é a verdade, por isso. Porque é errado, da minha parte, criar tanto transtorno.

Não concordo. O que eu escrevi é cruel e injusto.

Não necessariamente. Não do seu ponto de vista de um garoto de oito anos. Enquanto você frequentava a escola, eu estava conseguindo me aguentar, mas aí vieram as férias e eu não sabia mais o que fazer da minha vida. Um caos, Archie, era isso que eu era, um caos tremendo, e deve ter sido um pouco assustador para você, na ocasião, ficar ao meu lado.

Mas não é essa a questão.

Não, você está enganado, a questão é essa. Você se lembra do meu livro de fotos Casamento Judeu, não lembra?

Claro que lembro. A velha prima Charlotte e seu marido careca e míope, o sr. Não-Sei-das-Quantas.

Nathan Birnbaum, o dentista.

Já faz dez anos, não é?

Quase onze. E ainda não voltei a falar com eles depois de todo esse tempo. Você entende por quê, não é? (Ferguson fez que sim com a cabeça.) Porque eles fizeram comigo o que eu quase fiz com você.

Não estou entendendo.

Tirei fotografias deles, que eles mesmos não gostaram. Fotos muito boas, eu achei. Não eram as imagens mais lisonjeiras do mundo, mas eram boas fotos, fotos interessantes, e quando eles não me permitiram usar as fotos no livro, deixei Charlotte e Nathan sumirem da minha vida, porque achei que eram dois tolos.

O que isso tem a ver com O Gordo e o Magro?

Você não entende? No seu livro, você tirou uma fotografia de mim. Na verdade, muitas fotografias, dúzias e dúzias de fotos, e a maioria delas é muito lisonjeira, algumas tão lisonjeiras que fiquei até sem graça de ler aquelas coisas sobre mim mesma, mas junto com as imagens lisonjeiras havia uma ou duas que me mostravam sob uma luz diferente, uma luz desfavorável, e quando li essas passagens do livro, me senti magoada e zangada, tão magoada e zangada que falei com Gil, o que eu não deveria ter feito, e aí ele escreveu para você aquela carta, que fez você se sentir tão mal, mas sei que a última coisa que você desejava era me magoar, e aí, quando você escreveu aquelas cartinhas para nós, eu senti que tinha feito algo errado com você. Seu livro é um livro honesto, Archie. Você contou a verdade em cada fase que escreveu e não quero que revise nada nem apague nada por minha causa. Está entendendo, Archie? Não mude nenhuma palavra.

A semana passou depressa. Vivian suspendeu suas sessões de estudo durante a visita dos pais e, embora Ferguson passasse algumas horas lendo de manhã, encontrava-se com a mãe e com Gil toda tarde para almoçar e depois ficava com eles até a hora de voltar para casa e dormir. Muitas coisas tinham mudado naqueles meses desde que ele deixara Nova York, e, no entanto, tudo ainda continuava essencialmente igual. Gil tinha terminado seu livro sobre Beethoven depois de sete anos de trabalho, e parecia não ter nenhum desgosto por deixar para trás as pressões do jornalismo em favor da vida mais tranquila de dar aulas de história da música em Mannes. A mãe de Ferguson continuava a tirar retratos de pessoas famosas para revistas, e pouco a pouco montava um livro novo sobre o movimento americano contra a guerra (ela era uma ferrenha opositora da guerra). Levava consigo a pequena câmera Laica e alguns rolos de filme a todo lugar que iam naqueles dias, tirava fotos e mais fotos dos cartazes de protesto que haviam tomado conta de Paris (U.S. FORA DO VIETNÃ, YANKEE VÁ EMBORA, À BAS LES AMERLOQUES, LE VIETNÃ POUR LES VIETNAMIENS), junto com numerosos instantâneos de cenas de rua de Paris e alguns rolos de filme só de Ferguson e Gil, sozinhos ou juntos. Os três viram pinturas no Louvre e no Jeu de Paume, foram à Salle Pleyel ver uma apresentação da Missa em tempo de guerra (Ferguson e a mãe acharam extraordinário, mas Gil reagiu a seu entusiasmo com um sorriso amarelo, o que queria dizer que, para ele, não tinha sido grande coisa) e, certa noite, depois do jantar, Ferguson convenceu-os a ir ao cinema Action Lafayette, na sessão das dez, ver uma projeção do filme Na noite do passado, de Mervyn LeRoy, que eles todos concordaram que tinha uma montanha de lixo suficiente para encher quatro caminhões, mas, conforme a mãe de Ferguson assinalou, como era prazeroso ver Greer Garson e Ronald Colman fingindo que estavam apaixonados.

Nem é preciso dizer que Ferguson contou para eles a respeito da carta da editora Io Books. Nem é preciso dizer que a mãe gostaria muito de ceder um negativo da foto Archie para a capa. Nem é preciso dizer que Ferguson levou-os ao seu quartinho no sexto andar para mostrar onde estava morando. Nem é preciso dizer que a mãe e Gil reagiram de forma diferente ao que viram. A mãe deu um suspiro e disse: Ah, Archie, como é que pode? Por outro lado, Gil deu uma palmadinha no ombro de Ferguson e disse: Seja lá quem consiga se sair bem num lugar assim terá meu mais completo e duradouro respeito.

No entanto, outras questões não eram tão simples nem agradáveis para Ferguson e, algumas vezes, durante a semana, ele se viu na posição incômoda de ter de esconder certas coisas e contar algumas mentiras. Quando a mãe perguntou se tinha conhecido algumas garotas bonitas, por exemplo, ele inventou a história de um namoro ligeiro com uma estudante italiana e atraente chamada Giovanna que estava na sua turma da Alliance Française. Era verdade que havia uma Giovanna na sua turma, mas, a não ser por duas conversas de trinta minutos no café que ficava na esquina do curso, nada aconteceu entre os dois. Assim como nada aconteceu entre ele e Béatrice, a garota francesa incrivelmente inteligente que trabalhava como assistente na Galerie Maeght e que seria, supostamente, alguém que Ferguson namorou por um ou dois meses. Sim, Béatrice trabalhava na galeria e os dois tinham sentado juntos no jantar de um vernissage na galeria Maeght em dezembro, e tiveram uma espécie de flerte muito tênue e sem objetividade, mas, quando Ferguson telefonou e a chamou para sair, ela recusou com a desculpa de que estava noiva e que ia se casar, algo que nem se preocupara em dizer durante o jantar. Não, Ferguson não ia falar com a mãe a respeito de garotas, porque não havia garota nenhuma, a não ser as cinco prostitutas, todas acima do peso ou abaixo do peso, que ele encontrou nas ruas de Les Halles, e Ferguson não ia falar com a mãe sobre elas nem ia partir seu coração falando sobre Aubrey e sobre a excitação que sentiu quando o senhor dos elfos enfiou o pênis endurecido no seu cu. Ela jamais poderia saber de nada disso. Havia setores de sua vida que tinham de ser barrados e protegidos da mãe com a máxima vigilância e, por causa disso, os dois nunca poderiam ser próximos um do outro como foram no passado e como ele ainda queria que fossem. Isso não significava que Ferguson não tinha mentido para ela antes, mas agora estava mais velho e as circunstâncias eram diferentes, e, mesmo quando andava por Paris com a mãe e se alegrava por ver como ela estava contente, se alegrava por ver como ela continuava a lhe dar apoio, aqueles dias tiveram um matiz de tristeza também, uma sensação de que uma parte essencial de Ferguson estava à beira de se dissipar e desaparecer de sua vida para sempre.

Naquela semana, houve três jantares com Vivian, dois em restaurantes e um no apartamento da Rue de l’Université, um jantar só com eles quatro e mais nenhum convidado, nem mesmo Lisa, que normalmente ia a todas as festas de Vivian. Ferguson ficou um pouco surpreso quando soube que Lisa não iria, mas depois pensou naquilo por alguns minutos e entendeu que Vivian estava se protegendo, exatamente o que ele mesmo faria se estivesse em seu lugar. A exemplo de Ferguson, Vivian tinha um lado escuro discreto para esconder do mundo e, muito embora Gil fosse seu velho amigo, parecia não saber nada acerca do complicado casamento que ela tinha construído com Jean-Pierre nem sobre o que ela andava fazendo desde a morte do marido e, portanto, não podia ser exposto ao espetáculo de um jantar com a nova parceira feminina de cama de Vivian. As sombras de tia Mildred e da vaqueira de Palo Alto, de quatro anos antes, lembrou Ferguson, porém com esta diferença crucial: mesmo aos quinze anos, ele não se importou e não ficou chocado, porém, embora o Gil de cinquenta e dois anos de idade pudesse pensar que não se importaria com aquilo, era quase certo que seria um choque para ele.

Quando os quatro estavam sentados em torno da mesa da sala de jantar naquela noite, Ferguson sentiu-se reconfortado de ver como Vivian e sua mãe se davam bem, como as duas rapidamente ficaram amigas depois de alguns poucos encontros, mas as duas mulheres estavam ligadas, agora, por causa de Gil e de sua admiração mútua (quantas vezes Vivian tinha falado sobre as fotografias maravilhosas da mãe de Ferguson), e também por causa dele mesmo, o deslocado filho de Rose, que agora morava sob o teto de Vivian, e vezes e vezes seguidas, desde sua chegada a Paris, a mãe lhe disse como estava agradecida a Vivian por cuidar dele, por estudar com ele e lhe dar tanta coisa e, no jantar daquela noite, ela disse tudo isso diretamente para a própria Vivian, lhe agradeceu por tomar conta do seu menino danadinho, e sim, disse Vivian, às vezes, esse seu diabinho pode ser bem complicado, as duas ficaram brincando com ele, sabiam que ele levava aquilo numa boa e não ligava; não só não ligava como, na verdade, até gostava que elas brincassem assim e, no meio daquela alegre zombaria geral anti-Archie, lhe ocorreu que Vivian tinha uma ideia melhor de quem ele era no momento presente do que a mãe. Vivian não só tinha trabalhado nos originais do livro com ele, não só tinha percorrido com ele as cem obras mais importantes da literatura ocidental, como sabia tudo a respeito do seu eu interior dividido ao meio e, sem dúvida nenhuma, era a confidente mais íntima que ele jamais tivera na vida. Uma segunda mãe? Não, isso não. Não havia nenhuma necessidade de mais mães a essa altura Mas, então, o quê? Mais do que uma amiga, menos do que uma mãe. Sua irmã gêmea, talvez. A pessoa que ele seria se tivesse nascido menina.

No último dia, foram ao Hôtel Pont Royal para se despedir deles. A cidade estava em sua melhor forma e absolutamente linda naquela manhã, um céu azul radioso no alto, o ar morno e claro, aromas agradáveis que voavam das boulangeries vizinhas, garotas bonitas nas ruas, buzinas de carros, motonetas soltando peidos, o completo e exuberante deslumbramento guershwiniano da primavera em Paris, a Paris de cem canções água com açúcar e de filmes em tecnicolor, mas o fato era que, realmente, era deslumbrante e inspirador, verdadeiramente o melhor lugar na face da Terra e, mesmo na hora em que Ferguson saiu do edifício de apartamentos na Rue de l’Université para ir ao hotel, na Rue Montalembert, mesmo na hora em que reparava no céu, nos aromas e nas garotas, estava lutando contra o imenso peso que tinha caído sobre ele naquela manhã: o temor surdo e infantil de ter de se despedir da mãe. Não queria que ela fosse embora. Uma semana não foi o bastante, ainda que uma parte dele soubesse que ele mesmo estaria melhor sem ela, porque, quando estava com ela, pouco a pouco sempre se transformava num bebê, mas agora a tristeza banal de mais uma despedida tinha se transmutado numa premonição de que nunca mais a veria, que algo estava para acontecer com ela, antes que os dois tivessem outra oportunidade de ficarem juntos, e que aquele adeus seria seu último adeus. Uma ideia ridícula, disse consigo mesmo, o tipo de fantasia romântica de quem está com a mente enfraquecida, um rasgo de angústia adolescente em sua modalidade mais embaraçosa, mas a ideia estava agora dentro dele e Ferguson não sabia como se livrar disso.

Quando chegou ao hotel, viu a mãe num tumultuoso estado de agitação e atropelo, envolvida com as preocupações do momento e sem tempo para falar de premonições sombrias de doenças fatais e acidentes mortais, pois naquela manhã em particular ela estava indo para a Gare du Nord, de onde iria para Amsterdam, estava no caminho de Paris para outra cidade, outro país, outra aventura estava prestes a começar, e havia bolsas e malas para serem colocadas no bagageiro do táxi, havia verificações de última hora em sua bolsa de mão, para conferir se estava levando os medicamentos de Gil para o estômago, havia gorjetas para distribuir e carregadores e mensageiros do hotel a quem ela precisava agradecer e dar adeus, e, depois de dar no filho um rápi­do e entusiástico abraço de despedida, a mãe virou a cabeça para o táxi, mas, na hora em que Gil abriu a porta e ela já estava prestes a entrar e sentar no banco de trás, virou-se e soprou para Ferguson um grande beijo sorridente. Seja um bom menino, Archie, disse ela, e de repente o mau pressentimento que ele vinha trazendo consigo desde cedo, naquela manhã, desapareceu.

Enquanto via o táxi sumir por trás da esquina, Ferguson decidiu que ia ignorar os desejos da mãe e cortar o trecho do livro.

O mau pressentimento se dissipou, mas, como os acontecimentos comprovaram dez meses depois, a premonição de Ferguson não estava errada. O abraço de despedida entre ele e a mãe, no dia 6 de maio, foi a última vez que os dois se tocaram e, depois que ela sentou no banco de trás do táxi e Gil fechou a porta, Ferguson nunca mais a viu. Falaram-se pelo telefone, uma ligação à noite, no dia do seu vigésimo aniversário, em março de 1967, mas, depois que Ferguson baixou o fone, nunca mais ouviu a voz da mãe. Sua premonição não estava errada, mas também não havia acertado exatamente no alvo. O acidente ou a doença fatal que Ferguson havia imaginado que fulminaria sua mãe não aconteceu com ela, e sim com ele, um acidente de trânsito que ocorreu durante sua visita a Londres para celebrar a publicação do seu livro, o que significa que, depois que se despediu da mãe no dia 6 de maio de 1966, em Paris, ele teve trezentos e quatro dias de vida.

Felizmente, Ferguson não tinha ciência dos planos cruéis que os deuses haviam traçado para ele. Felizmente, não sabia que estava destinado a ter um verbete tão curto no Livro da vida terrestre e, portanto, continuou a viver como se houvesse milhares de amanhãs pela frente, e não apenas trezentos e quatro.

Dois dias depois que a mãe e Gil partiram de Amsterdam, Ferguson recusou o convite para ir a uma festa com Vivian e Lisa quando soube que Fleming tinha sido convidado. Já fazia mais de três meses daquela noite do dinheiro e das lágrimas, e já havia um bom tempo que ele tinha absolvido Fleming de qualquer culpa daquele mal-entendido. O que continuava a atormentá-lo era a memória do que ele se permitira fazer, a convicção de que tinha sido culpa dele mesmo, tudo culpa sua, e como Fleming não o forçara a fazer nada que ele tivesse dito que não queria fazer, como poderia atribuir a Fleming a responsabilidade do que aconteceu? Não foi Fleming, foi ele mesmo, era sua própria vergonha, a memória de sua própria ganância e degradação que o levou a rasgar as cartas de Fleming e não responder seus telefonemas, porém, mesmo sem guardar nenhum rancor agora, por que iria querer vê-lo outra vez?

No café da manhã, na cozinha, na manhã seguinte, Vivian lhe falou de alguém que ela havia conhecido na festa, um rapaz com quem tinha esbarrado nos jardins de Reid Hall, um posto avançado da Universidade Columbia em Paris, um jovem de vinte e cinco ou vinte e seis anos que havia deixado nela uma forte impressão, disse Vivian, alguém que ela achou que ia agradar a Ferguson tanto quanto agradara a ela. Um canadense de Montreal, de mãe branca, do Quebec, e pai negro, original de New Orleans, uma pessoa chamada Albert Dufresne (Al-ber Du-frenn), formado na Universidade Howard, em Washington, onde havia jogado na equipe de basquete (algo que Vivian supôs que fosse interessar a Ferguson, e interessou mesmo), e que tinha se mudado para Paris depois da morte do pai para escrever seu primeiro romance (outra coisa que Vivian supôs que fosse interessar a Ferguson, e interessou mesmo), e, agora que ela havia conseguido despertar o interesse de Ferguson, ele pediu que lhe contasse mais coisas.

De que tipo?

Por exemplo, como ele é?

Intenso. Inteligente. Comprometido — como na palavra francesa engagé. Não tem um senso de humor lá muito grande, lamento informar. Mas é muito vivo. Cativante. Um desses jovens ardentes que querem virar o mundo de pernas para o ar e reinventar tudo.

Ao contrário de mim, por exemplo.

Você não quer reinventar o mundo, Archie, você quer entender o mundo para encontrar um modo de viver nele.

E o que leva você a pensar que vou me dar bem com essa pessoa?

Um colega escritor, um colega jogador de basquete, um colega da América do Norte, um colega que é filho único e, apesar de o pai ter morrido apenas há dois anos, um colega órfão, pois o pai dele foi embora de casa, de volta a New Orleans, quando Albert tinha seis anos de idade.

O que o pai dele fazia?

Trompetista de jazz e, segundo o filho, bebia muito, um filho da mãe de um beberrão incorrigível.

E a mãe?

Professora da quinta série do fundamental. Igual à minha mãe.

Vocês devem ter tido muito assunto para conversar.

Também devo dizer que o sr. Dufresne tem um excelente aspecto, uma figura bem fora do comum.

Como assim?

Alto. Um metro e oitenta e quatro, oitenta e cinco, por aí. Magro e musculoso, eu diria, apesar de estar todo vestido, é claro, por isso não consigo ser mais precisa. Mas parece um ex-atleta que conseguiu se manter em forma. Diz que ainda joga basquete sempre que tem oportunidade.

Isso é bom. Mas não consigo ver o que ele tem de fora do comum.

É o rosto, eu acho, as características impressionantes do rosto. Não só o pai era negro como também há nele algum sangue do povo choctaw, ele me contou, e quando tudo isso se misturou com os genes da mãe, acabou dando um negro de pele clara com feições meio asiáticas, eurasianas. Uma cor de pele notável, eu achei, com um brilho de toque acobreado, uma pele que não é nem clara nem escura, o retrato perfeito da menina dos cachinhos dourados na história infantil, se entende o que quero dizer, uma pele tão adorável que senti vontade de tocar nela durante todo o tempo da conversa.

Bonito?

Não, eu não chegaria a tanto. Mas tem boa aparência. Um rosto que a gente tem vontade de olhar.

E quanto a seu... suas inclinações íntimas?

Não posso garantir. Normalmente eu adivinho logo de cara, mas esse Albert é uma espécie de enigma. Um homem para homens, eu suponho, mas um tipo de homem viril, que não quer irradiar sua atração para outros homens.

Um veado macho.

Talvez. Falou em James Baldwin algumas vezes, se é que isso significa alguma coisa. Adora Baldwin, acima de todos os escritores americanos. Por isso veio a Paris, disse ele, porque queria seguir os passos do Jimmy.

Também adoro Baldwin, também acho que é o melhor escritor americano, mas só porque Baldwin transa com outros homens, isso não prova nada sobre os homens que gostam de seus livros.

Exatamente. Em todo caso, falei bastante sobre você, e quando contei sobre seu livro, Albert pareceu fortemente impressionado, talvez tenha até sentido um pouco de inveja. Dezenove anos, ficou repetindo. Dezenove, e já está prestes a ser publicado, e lá estava ele com vinte e tantos anos, ainda quebrando a cabeça para completar pelo menos a primeira metade do primeiro romance.

Espero que tenha dito para ele que meu livro é curto.

Disse. Um livro muito curto. Também falei que você era louco para jogar basquete. Acredite ou não, ele mora na Rue Descartes, no quinto arrondissement, e bem na frente do prédio dele tem uma quadra descoberta. A corrente da grade está sempre fechada a cadeado, diz ele, mas é fácil passar por cima e ninguém jamais criou qualquer problema para quem entra lá e fica jogando.

Passei na frente dessa quadra uma porção de vezes, mas os franceses são tão rigorosos com correntes, cadeados e regulamentos que achei que, se eu tentasse entrar, seria deportado.

Ele disse que gostaria de conhecer você. Tem interesse?

Claro que tenho. Vamos jantar com ele hoje. Tem aquele restaurantezinho marroquino de que você tanto gosta, aquele bem ao lado da Place de la Contrescarpe, La Casbah, e a Rue Descartes fica bem perto, é só subir a ladeira. Se ele não tiver outros planos, talvez possa se encontrar com a gente para uma travessa de couscous royale.

Jantar esta noite com Vivian, Lisa e o estranho, que apareceu quinze minutos atrasado, com o aspecto exatamente igual ao que Vivian descreveu, com aquela pele extraordinária e seu jeito enérgico e confiante. Não, não é uma pessoa dada a jogar conversa fora ou fazer piadinhas, mas foi capaz de sorrir e até rir quando achava que tinha alguma coisa digna de lhe fazer rir, e, o que quer que estivesse tão bem trancado lá dentro dele, acabava suavizado pela gentileza da voz e pela curiosidade dos olhos. Ferguson estava sentado bem de frente para ele. Podia ver todo seu rosto e, embora Vivian provavelmente tivesse razão em dizer que o rosto não chegava a ser bonito, Ferguson achou-o lindo. Não, obrigado, disse Albert quando o garçom tentou servir um pouco de vinho na sua taça, e aí olhou para Ferguson e explicou que ele estava dando um tempo por enquanto, o que parecia sugerir que tinha andado bebendo antes, sem dúvida mais do que deveria, uma confissão de fraqueza, talvez, e como vinha de uma pessoa tão contida e controlada como Albert Dufresne, Ferguson deu as boas-vindas a isso como um sinal de que o homem era humano, afinal. De novo, a voz gentil e harmoniosamente modulada que fazia Ferguson se lembrar de como gostava de ouvir a voz do pai quando menino, e com o bilíngue Albert, que falava francês com um leve sotaque canadense, e um inglês idiomático da América do Norte, com sotaque francês, Ferguson se viu experimentando uma espécie de prazer semelhante, ou mesmo idêntico.

Uma conversa tortuosa que se estendeu por duas horas, com Lisa mais moderada do que Ferguson jamais tinha visto — só contribuiu com algumas poucas interjeições engraçadas, em vez de centenas, como se estivesse sob o feitiço do estranho e entendesse que suas gracinhas acabariam produzindo uma impressão ruim, no caso dele —, mas Albert pareceu relaxado diante de Vivian, ela, que produzia esse efeito na maioria das pessoas, é claro, embora naquele caso o efeito talvez fosse realçado, porque havia algo em Vivian que ecoava algum atributo da mãe de Albert, uma pessoa com quem ele era muito ligado, disse ele, a mãe branca daquele homem negro, com seu pai negro imprestável e desprezado; como deve ter sido difícil, Ferguson se deu conta, e que carga pesada Albert devia carregar dentro de si; e então lá foi sua família para Nova York, e o ano e meio que ele havia passado no Harlem, depois de se formar na faculdade, seguido pela decisão de ir para a França — porque os Estados Unidos eram uma vala comum para todos os negros que morassem lá, sobretudo para um negro como ele (ele queria dizer um negro homossexual, como ele?, se perguntou Ferguson, ou estaria se referindo a outra coisa?), e então todos começaram a falar sobre a longa história dos escritores e artistas negros americanos que tinham ido morar em Paris, a nua e numinosa Josephine Baker, como disse Albert, e Richard Wright, Chester Himes, Countee Cullen e Miles Davis nos braços de Juliette Gréco, Nancy Cunard nos braços de Henry Crowder, e o heroico Jimmy de Albert, que foi tão brutalmente insultado ao não ser convidado a discursar na passeata de Washington, em março, três anos antes, disse ele, mas como Bayard Rustin já estava na lista dos oradores talvez eles achassem que um veado negro já era o suficiente (os indícios estavam aumentando), e então Ferguson interveio e começou a falar sobre o romance Giovanni, de Baldwin, que na sua humilde e sincera opinião era um dos livros mais corajosos e de escrita mais elegante que ele já havia lido (um comentário que recebeu um movimento aprovador da cabeça de Abert) e, um momento depois, como acontece tantas vezes nas conversas que se passam durante um jantar, todos logo passaram a falar de outro assunto e os dois estavam falando de basquete, o time do Boston Celtics, Bill Russell, o que levou Ferguson a fazer a Albert a mesma pergunta que tinha feito a Jim, muitos anos antes: Por que Russell é o melhor, se ele nem chega a ser bom?, ao que Albert respondeu: Mas ele é bom, sim, Archie. Russell poderia fazer vinte e cinco pontos por partida, se quisesse. Acontece que Auerbach não precisa que ele faça isso. Quer que ele seja o maestro do time e, como todos nós sabemos, um maestro não toca um instrumento. Fica parado com sua batuta e comanda a orquestra e, embora pareça simples, se não houvesse nenhum maestro fazendo esse trabalho, os músicos sairiam do tom e tocariam todas as notas erradas.

A noite terminou com um convite. Se Ferguson não estivesse ocupado no dia seguinte à tarde, bem que poderia ir à casa de Albert por volta das quatro e meia para uma partida amigável, um contra um, na sua “quadra particular” de basquete em frente ao seu prédio, do outro lado da Rue Descartes. Ferguson disse a Albert que fazia meses que não jogava e estava muito enferrujado, mas sim, respondeu, ele iria lá, adoraria jogar.

Foi assim que Albert Dufresne entrou na vida de Ferguson. Assim o homem que viria a ser conhecido como Al Bear ou Mr. Bear ingressou no regimento como companheiro de armas de Ferguson para a batalha seguinte na interminável Guerra do Tédio contra as Dores da Existência Humana, pois, à diferença do bissexual Aubrey Hull, que vivia satisfeito, casado com sua Fiona heterossexual e que era um pai maravilhoso para seus dois rebentos pequenos, o solteiro Al Bear, homossexual apenas ativo, cujas inclinações íntimas pendiam para os Aubrey deste mundo e não para as Fiona, estava a postos para as ações de combate em horário integral, e, como morava na mesma cidade que Ferguson, horário integral, significava todos os dias, pelo menos pelo tempo que durasse a batalha.

Os desdobramentos inesperados de sua primeira tarde juntos, que começou com as partidas brutas e disputadas de um contra um, nas quais o ex-comandante em chefe fora de forma brigava feio pela posse da bola nos rebotes, contra o ágil ex-armador Mr. Bear, seus corpos esbarravam um contra o outro, enquanto se atracavam na disputa das bolas perdidas e tentavam bloquear os arremessos, três partidas muito pegadas, com vinte ou trinta faltas em cada um dos dois, e o rodopio humilhante com que o menino branco Ferguson conseguiu pular mais alto do que o menino negro Dufresne, e, embora Ferguson acabasse perdendo todas as três partidas que jogaram, porque seu arremesso de longe estava horrivelmente sem pontaria, ficou bem claro que os dois eram jogadores mais ou menos equivalentes e, quando Ferguson entrasse em forma outra vez, Albert teria de jogar tudo o que sabia para conseguir fazer frente a ele.

Depois, quando passaram por cima da corrente com cadeado, os dois estavam esgotados, ofegantes, ensopados de suor salgado e pegajoso, e então atravessaram a rua e subiram para o apartamento de Albert, no terceiro andar. A ordem e a limpeza dos dois quartos, a parede com quatrocentos livros no quarto mais espaçoso, com a cama e o armário, a escrivaninha e a máquina de escrever Remington no quarto menor, com as páginas do romance de Albert em andamento, arrumadas numa pilha perfeita, a luz que entrava pelas janelas na cozinha e na copa bem-arrumadas, com sua mesa de madeira e quatro cadeiras também de madeira, e mais a luz que entrava pelas janelas no banheiro branco e ladrilhado. Não era o tipo de chuveiro que se conhece nos Estados Unidos, mas um daqueles chuveiros manuais usados na França que ficavam suspensos ou apoiados na banheira e que espirravam através do que Ferguson chamava de esguicho de telefone, e, como Ferguson era o convidado, Albert lhe ofereceu gentilmente o primeiro banho, portanto Ferguson entrou no banheiro, descalçou os tênis com um chute, tirou as meias encharcadas e fedorentas, o calção e a camiseta, abriu a água e pisou na banheira funda e retangular. Com o jato contínuo do esguicho de telefone suspenso na mão direita, com a água jorrando em cima da cabeça, com o barulho da água nos ouvidos e os olhos fechados para protegê-los dos dardos de líquido quente, ele não ouviu Albert bater à porta e não o viu entrar no banheiro, logo depois.

Uma mão tocou sua nuca. Ferguson baixou o braço, largou a ducha e abriu os olhos.

Albert continuava de calção, mas tudo o mais estava de fora.

Suponho que você ache isso bom, disse ele, enquanto a mão descia pelas costas de Ferguson e parava na bunda.

Mais do que bom, disse Ferguson. Se não acontecesse, eu sairia daqui como um freguês triste e insatisfeito.

Albert pôs a outra mão em volta da cintura de Ferguson e empurrou seu corpo contra ele. Você é um menino maravilhoso, Archie, disse ele, e eu não ia querer que você fosse embora daqui insatisfeito. Na verdade, seria muito melhor para nós dois se você ficasse, não acha?

A tarde se transformou em noite, a noite em madrugada, a madrugada em manhã, e a manhã se transformou em mais uma tarde. No que dizia respeito a Ferguson, aquilo era o máximo, o amor explosivo que só acontece uma vez na vida, e, durante os duzentos e cinquenta e seis dias seguintes, ele morou num país estrangeiro, um lugar que não era a França nem os Estados Unidos nem qualquer outro lugar, um país novo que não tinha nome nem fronteiras nem cidades nem vilas, um país com uma população de duas pessoas.

Isso não queria dizer que o Mr. Bear fosse uma pessoa fácil de lidar ou que Ferguson não tenha amargado e passado uns maus pedaços durante aqueles oito meses de tanto de sexo, camaradagem e conflito, pois a bagagem que seu novo amigo carregava dentro de si era, de fato, um fardo pesado para ele e, por mais que, em público, Albert parecesse jovem, inteligente e seguro, tinha uma alma velha e desoladora, e almas velhas e desoladoras podem ser bem amargas às vezes, e bem aborrecidas às vezes, sobretudo para as almas de quem não sente a mesma amargura e o mesmo aborrecimento. Por mais que Albert fosse amável na maior parte dos dias, frequentemente com uma ternura e um calor que assombravam Ferguson e o faziam pensar que não podia existir ninguém melhor no mundo do que o homem carinhoso e afetuoso deitado a seu lado na cama, Albert também era orgulhoso e competitivo e dado a formular juízos morais brutos acerca dos outros, e em nada ajudava o fato de o livro do jovem Ferguson estar em vias de publicação, ao passo que o mais velho Albert ainda estava escrevendo o seu romance, e em nada ajudava o fato de o senso de humor juvenil de Ferguson muitas vezes entrar em choque com a retidão azeda de Albert, o espalhafato leviano de ideias avoadas que jorravam de Ferguson nos momentos de exultação pós-coito, como a sugestão de raspar todos os pelos do corpo, comprar perucas e roupas de mulher e depois irem ambos a um restaurante ou a uma festa e ver se conseguiam levar a cabo a brincadeira e se fazerem passar por mulheres de verdade. Ar-chi, disse Ferguson, imitando a pronúncia de Celestine quando falava seu nome, não seria mesmo interessante se eu conseguisse ser de fato uma mulher por uma noite? A resposta irritada de Albert: Não seja tolo. Você é homem. Tenha orgulho de ser homem e esqueça essa bobagem de travesti. Se quiser mudar a pessoa que você é, então tente ser um negro por um ou dois dias e veja o que vai acontecer com você. Ou então, depois de uma sessão especialmente gratificante na cama, a proposta de Ferguson de que eles entrassem no ramo dos modelos e posassem nus, os dois juntos, para revistas pornográficas gays, imagens coloridas em páginas duplas dos dois se beijando e fazendo boquete um no outro e comendo a bunda um do outro, com fotos em close do esporro jorrando dos seus pênis, isso não seria um estouro?, disse Ferguson, e pense só no dinheiro que a gente ia ganhar.

Onde está sua dignidade?, gritou Albert, em resposta, mais uma vez sem entender que Ferguson estava só brincando. E por que todo esse papo sobre dinheiro? Talvez você não receba lá muito de seus pais, mas a Vivian cuida de você bem direitinho, não é? Me parece que sim, então por que fica falando em se humilhar em troca de um punhado de francos extras?

É exatamente isso, disse Ferguson, deixando para lá sua fantasia excêntrica para tratar de algo real, algo que o andava preocupando já fazia uns dois meses. Vivian cuida tão bem de mim que estou começando a me sentir um vadio, e eu não gosto dessa sensação, pelo menos não estou gostando mais. Há alguma coisa errada em receber tanta coisa dela, mas também não tenho autorização para trabalhar neste país, como você sabe muito bem, e então o que é que vou fazer?

Você pode dar a bunda em bares de gays, disse Albert. Aí então você vai sentir o gosto real do que é viver na lama.

Já pensei nisso, respondeu Ferguson, lembrando-se da noite do dinheiro e das lágrimas. Não tenho interesse.

Como era o mais jovem dos dois, com sete anos de diferença, Ferguson era o caçula do casal, o menor que seguia o comando do maior, o que era de fato o papel que ele se sentia mais à vontade para representar, pois nada lhe parecia melhor do que a sensação de viver sob a proteção de Albert, de não ter de ser o responsável ou aquele a quem cabia entender tudo e, no geral, Albert o protegia de fato e, no geral, cuidava dele muitíssimo bem. Albert foi a primeira pessoa que ele conheceu que compartilhava sua paixão dupla, mas unificada pelo mental e pelo corporal, e o corporal era antes de tudo o sexo, a primazia do sexo sobre todas as demais atividades humanas, mas o basquete, os exercícios e a corrida também, correr o Jardin des Plantes, flexões de braço, abdominais, agachamentos e polichinelos na quadra ou no apartamento, e as partidas de basquete, ferozes e contundentes, de um contra um, que eram desafiadoras e satisfatórias em si mesmas, também serviam como uma forma requintada de preliminares eróticas, porque, agora que ele conhecia tão bem o corpo de Albert, era difícil não pensar no corpo nu que se escondia por baixo do calção e da camiseta de Albert enquanto ele se movimentava pela quadra, os detalhes esplêndidos e profundamente amados do ser corporal do Mr. Bear, e o ser mental não se limitava às funções e aos esforços cognitivos do cérebro, abrangia também o estudo de livros, filmes e obras de arte, a necessidade de escrever, a tarefa essencial de tentar entender ou reinventar o mundo, a obrigação de pensar em si mesmo em relação aos outros e rejeitar a sedução de viver só para si, e quando Ferguson descobriu que Albert se interessava por filmes tanto quanto por livros, os dois criaram o costume de irem juntos ver filmes na maior parte das noites, todo tipo de filme, por causa do gosto eclético de Ferguson e da disposição de Albert de ir com ele a qualquer cinema que escolhesse, mas, entre os muitos filmes que viram, nenhum foi mais importante para eles do que o filme de Bresson, Au Hasard Balthazar,* que estreou em Paris no dia 25 de maio e que eles viram juntos em quatro noites consecutivas, um filme que invadiu seus corações e suas cabeças com o clamor e o furor de uma revelação divina, O idiota, de Dostoiévski, transformado num conto sobre um burro na França rural, o espezinhado e cruelmente maltratado Balthazar, emblema do sofrimento humano e da santa tolerância, e Ferguson e Albert não se cansavam de rever o filme, porque cada um deles via, na história de Balthazar, a história da sua própria vida, cada um sentia que era Balthazar enquanto viam o filme projetado na tela, e assim foram mais quatro vezes assisti-lo depois da primeira vez, e, no final da última sessão, Ferguson tinha aprendido a imitar os ruídos roucos e discordantes que irrompiam da boca do burro em momento cruciais do filme, o lamento asmático de uma criatura vítima que luta para continuar respirando, um som horrível, um som de cortar o coração, e daí em diante, toda vez que Ferguson queria dizer a Albert que estava de baixo-astral ou sofrendo por causa de alguma injustiça que tinha visto no mundo, dispensava as palavras e fazia sua imitação do urro duplo, atonal e cortante de Balthazar, o zurro do além, como Albert o chamava, e como o próprio Albert era incapaz de se soltar a esse ponto e, portanto, não conseguia fazer o mesmo, toda vez que Ferguson se transformava no burro sofredor, achava que estava fazendo aquilo pelos dois.

Gostos semelhantes na maioria das coisas, reações semelhantes a livros, filmes e pessoas (Albert adorava Vivian), mas no que dizia respeito ao que escreviam, os dois tinham esbarrado num impasse, porque nenhum deles conseguia tomar coragem para mostrar sua obra para o outro. Ferguson queria que Albert lesse seu livro, mas relutava em impor isso a ele e, como Albert nunca pedia para ver o livro, Ferguson se continha e não dizia nada nem compartilhava nenhuma notícia sobre o original corrigido e editado que Aubrey tinha enviado de Londres, nenhuma notícia sobre a decisão de usar a fotografia da mãe na capa nem sobre a seleção de dez fotos retiradas dos filmes de O Gordo e o Magro, e mais dez fotos extraídas de filmes do fim de 1954 e de 1955 (entre as quais a foto de Marilyn Monroe em O mundo da fantasia, a foto de Dean Martin e Jerry Lewis em Artistas e modelos, de Kim Novak e William Holden em Férias de amor, de Marlon Brando e Jean Simmons em Garotos e garotas, e de Gene Tierney e Humphrey Bogart em A mão esquerda de Deus). Também não disse nenhuma palavra sobre a primeira prova tipográfica, a segunda prova tipográfica nem sobre as provas encadernadas, quando elas chegaram no início de julho, no final de julho e no início de setembro, e nem uma vez mencionou a carta que recebeu de Aubrey, dizendo que Paul Sandler da editora Random House, em Nova York (o ex-tio Paul, de Ferguson), iria publicar uma edição americana do livro um mês depois do lançamento na Inglaterra.

Quando Ferguson perguntou para Albert se podia dar uma olhada na primeira metade de seu romance em andamento (um pouco mais de duzentas páginas, ao que parecia), Albert respondeu que ainda estava muito cru e que não ia mostrar para ninguém antes de terminar. Ferguson disse que compreendia, o que era mesmo verdade, pois ele também não tinha mostrado o livro para ninguém até terminar, mas pelo menos talvez Albert pudesse contar qual era o título. Albert balançou a cabeça, alegando que o livro ainda não tinha título, ou melhor, estava em dúvida sobre três possibilidades e ainda não tinha decidido qual delas preferia, uma resposta que podia ser verdade e podia ser uma evasiva educada. Na primeira vez em que Ferguson pôs os pés no escritório de Albert, os originais estavam em cima da escrivaninha, perto da máquina de escrever Remington, mas depois daquele dia as folhas desapareceram, sem dúvida foram para dentro de uma das gavetas da grande escrivaninha de madeira. Em algumas ocasiões durante os meses que os dois passaram juntos, Ferguson se viu sozinho no apartamento enquanto Albert tinha ido à rua para fazer alguma coisa ali por perto, o que significava que ele poderia entrar no escritório e pegar os originais na gaveta onde estavam escondidos, mas Ferguson nunca fez isso, porque não queria ser o tipo de pessoa que fazia essas coisas, que traía a confiança dos outros, quebrava promessas e agia às escondidas, quando ninguém estava olhando, pois dar uma espiada nos originais do livro de Albert seria tão ruim quanto roubar ou queimar o livro, um ato de deslealdade tão repugnante que seria imperdoável.

Albert fazia mistério sobre seu livro, mas em outros aspectos ele era supreendentemente transparente, às vezes até se mostrava ansioso para falar sobre si, e, nas primeiras semanas que passaram juntos, Ferguson acabou sabendo muitas coisas do passado dele. Havia sido abandonado pelo pai aos seis anos, como tinha contado para Vivian na noite em que se conheceram em Reid Hall, mas então, após dezessete anos sem contato nenhum, Albert foi lembrado no testamento do pai, e lembrado no valor de sessenta mil dólares, dinheiro suficiente para ficar morando em Paris por cinco anos ou mais, sem nenhuma preocupação além do seu romance. Sua proximidade com a mãe, que foi banida da família estritamente católica quando se casou com um negro, e mesmo depois que o negro foi embora e a família se mostrou disposta a perdoar e esquecer, sua mãe, forte e determinada, continuou banida de propósito, por vontade própria, porque não estava disposta a perdoar ou esquecer. Montreal, uma cidade desprovida de negros e de gente de mestiçagens, uma cidade onde Albert cresceu e floresceu como um filhotinho de estimação, uma fera nos esportes, uma fera nas notas da escola, mas, em meados da adolescência, veio a crescente compreensão de que ele era diferente da maioria dos garotos brancos, negros ou misturados, e veio o temor de que a mãe descobrisse, algo que Albert achava que a deixaria arrasada de tanto desgosto, e por isso ele foi embora de Montreal aos dezessete anos para fazer faculdade nos Estados Unidos, na Universidade Howard, só de negros, na predominantemente negra Washington, uma faculdade boa, mas um lugar podre para se viver e, pouco a pouco, em seu primeiro ano na cidade, ele perdeu o controle de si mesmo. Primeiro a bebida, depois a cocaína, depois a heroína, a grande crise de confusão apática e certeza furiosa, uma mistura letal que o fez retornar, trôpego, para Montreal e para os braços da mãe, mas era melhor ser viciado em drogas do que ser um filho veado, raciocinava Albert, e então a mãe o carregou para as Montanhas Laurentian para passar o verão e o deixou trancado num celeiro para fazer o que ela chamou de Tratamento de Cura Miles Davis, quatro dias seguidos vomitando, cagando e berrando, as tremedeiras e as gemedeiras grotescas da desintoxicação e da abstinência, o confronto brutal com a própria nulidade patética e com o deus ridículo que se recusava a cuidar dele, e então sua mãe o retirou do celeiro e ficou a seu lado, em silêncio, durante os dois meses seguintes, enquanto ele aprendia de novo a comer, a pensar, e parava de sentir pena de si mesmo. De volta a Howard no outono e, desse dia em diante, nenhuma gota de vinho, cerveja ou uísque, nenhum tapinha de maconha e nenhuma cheirada de pó, limpo durante os oito anos seguintes, mas ainda apavorado até a medula de que fosse cair morto por overdose. Quando Albert contou essa história para Ferguson, no terceiro dia depois que se conheceram, Ferguson resolveu parar de beber em sua presença e, assim, logo ele, que tinha tanto prazer com a bebida e curtia o vinho quase tanto quanto curtia o sexo, não ia mais beber com o querido Mr. Bear, e não, não tinha graça, não tinha mesmo a menor graça, mas era necessário.

Dez dias depois daquele terceiro dia, Ferguson começou a escrever de novo. Seu plano original era voltar de mansinho, revisando alguns de seus textos antigos, do tempo do ensino médio, para ver se era possível salvar alguma coisa, porém, após um exame minucioso do texto sobre os filmes de John Ford que não eram do gênero western, o artigo que ele imaginava ser o melhor que já tinha escrito, achou-o cru e pobre, não valia nem pensar no assunto. De lá para cá, Ferguson tinha avançado tanto, e por que voltar atrás se tudo dentro dele clamava para ir adiante? Tinha acumulado bons exemplos de sobra para começar a escrever o artigo sobre a representação da infância em filmes, e a ideia de “Sucateiros e gênios”, que não parava de se desenvolver, tinha ganhado um título mais simples e mais direto, “Filmes e cinema”, uma distinção que lhe permitiria explorar a linha divisória, muitas vezes vaga, entre arte e entretenimento, mas no meio de suas deliberações sobre que texto escrever primeiro, algo novo veio à tona, algo grande o bastante para abarcar ambas as ideias e Ferguson estava pronto para pôr mãos à obra.

Gil tinha enviado uma carta de Amsterdam, junto com um pacote de livros, folhetos e cartões-postais da Casa de Anne Frank, na Prinsengracht 236, que ele e a mãe de Ferguson tinham visitado em seu último dia na cidade. Agora, era um museu, escreveu Gil, e o público podia subir a escada até o Anexo Secreto e ficar no quarto onde a jovem Anne Frank tinha escrito seu diário, e como ele lembrava da comoção de Ferguson com aquele livro quando leu na aula de inglês na oitava série da escola Riverside Academy, arrebatado pelo livro a tal ponto que você confessou sentir uma “paixão gigantesca” por Anne Frank e chegou a dizer que estava “loucamente apaixonado por ela”, achei que o material que estou enviando aqui fosse interessar a você. Sei que há algo de indecoroso na fetichização dessa pobre menina, continuou Gil. Depois do enorme sucesso do livro, e depois da peça de teatro e do filme também, Anne Frank se transformou numa representante kitsch do Holocausto para a população não judia, nos Estados Unidos e em toda parte, mas não se pode culpá-la por isso, Anne Frank está morta e o livro que ela escreveu é uma bela obra, a obra de uma escritora em botão, com talento autêntico, e devo dizer que sua mãe e eu ficamos profundamente comovidos com nossa visita àquela casa. Depois que você nos contou a respeito do ensaio que está planejando escrever sobre as crianças nos filmes, não pude deixar de pensar em você quando vi as imagens que Anne colou na parede do Anexo Secreto, recortes de jornais e revistas com astros de Hollywood — Ginger Rogers, Greta Garbo, Ray Milland, as irmãs Lane —, o que me levou a comprar o livro com textos dela que não têm relação com o diário, Contos da Casa dos Fundos. Dê uma olhada no conto “Sonhos de estrelato no cinema”, uma fantasia de satisfação de desejo sobre uma garota europeia de dezessete anos chamada Anne Franklin (Anne Frank não chegou a viver até os dezessete anos) que escreve para Priscilla Lane, em Hollywood, e acaba sendo convidada para passar as férias de verão com a família Lane. Uma longa viagem aérea através do oceano, depois através do continente americano e, quando aterrissa na Califórnia, Priscilla a leva até o estúdio de cinema da Warner Bros, onde a garota é fotografada e testada — e acaba ganhando um emprego de modelo de roupas para tenistas. Que delírio! E lembra também, Archie, a foto que Anne F. colou em seu diário com a legenda: “Essa é uma fotografia de mim, como eu gostaria de ser, o tempo todo. Aí eu poderia ter uma chance de ir para Hollywood”. O matadouro de milhões, o fim da civilização, e uma garotinha holandesa destinada a morrer num campo de concentração está sonhando com Hollywood. Você pode querer refletir sobre isso.

Este passou a ser o projeto seguinte de Ferguson, um ensaio de extensão ainda indeterminada, intitulado “Anne Frank em Hollywood”. Escreveria não só sobre crianças no cinema, também escreveria sobre o efeito dos filmes sobre as crianças. Principalmente filmes de Hollywood; e não só crianças ame­ricanas, mas do mundo em geral, pois lembrou-se de ter lido em algum lugar que Satyajit Ray, na Índia, quando jovem, escreveu uma carta de fã para a estrela juvenil Deanna Durbin, na Califórnia, e ao usar Ray e Anne como seus principais exemplos, poderia também explorar a fronteira arte/entretenimento, em que vinha matutando desde que começara a pensar em cinema. A sedução de penetrar num mundo paralelo de glamour e liberdade, o desejo de se integrar a histórias alheias, maiores e melhores do que a realidade, levitar e subir para fora de si mesmo e deixar a terra para trás. Não era um tema insignificante e, no caso de Anne Frank, uma questão de vida ou morte. Cinema e filmes. Sua outrora adorada Anne, sua ainda adorada Anne, aprisionada no Anexo Secreto e ansiosa para ir a Hollywood, morta aos quinze anos, assassinada em Bergen-Belsen aos quinze anos, e depois Hollywood fez um filme sobre os últimos anos de sua vida e a transformou numa estrela.

Você não tem ideia de como essas coisas são preciosas para mim, escreveu Ferguson para o padrasto, agradecendo a carta e os livros. Elas cristalizaram meus pensamentos e me forneceram um caminho novo para entrar naquilo que eu desejo escrever agora. Por sua causa, o impulso se elevou a um novo patamar de seriedade e só posso esperar que eu esteja à altura e seja capaz de fazer justiça ao tema. Roupa de tenista. Povoados cercados de arame farpado, vigiados por metralhadoras. Greta Garbo rindo pela primeira vez. Travessuras nas praias da Califórnia, enquanto uma epidemia de tifo se espalha na capital da Lama. Tempo para coquetéis, para todo mundo. Tempo para os poços de cal, minhas criancinhas que morrem. Como ainda podemos nos amar uns aos outros? Como podemos ainda continuar pensando nossos pensamentos egoístas? Você estava lá, Gil, você viu em primeira mão e sentiu o cheiro e, no entanto, dedicou sua vida à música. É impossível dizer como eu admiro e amo você.

Estar com Albert significava não estar com Albert na maior parte das horas do dia. Albert, na Rue Descartes, adicionando palavras a seu romance, Ferguson em seu chambre de bonne, lendo os livros da lista de Gil e trabalhando em seu ensaio, e então, por volta das cinco horas, Ferguson baixava a caneta e ia para o apartamento de Albert, onde às vezes jogavam basquete e outras vezes não jogavam e, jogassem ou não, depois caminhavam pelo ruidoso mercado da Rue Mouffetard e faziam compras para o jantar, ou então, em vez de fazer compras para o jantar, iam a um restaurante mais tarde, e como Ferguson não tinha dinheiro para comer em restaurantes, Albert pagava sua parte da conta (era sempre generoso com o dinheiro e não se cansava de repetir para Ferguson coma, coma à vontade, esqueça o preço), e então, depois de ir ou não ir ao cinema (em geral iam), voltavam para o apartamento no terceiro andar em frente à quadra de basquete e subiam juntos na cama, exceto nas noites em que Albert ia jantar no apartamento de Vivian e passava a noite no quartinho de Ferguson, no sexto andar.

Ferguson imaginou que ia durar para sempre e, se não para sempre, pelo menos por muito tempo, por muitos meses e anos. No entanto, após duzentos e cinquenta e seis dias de vida naquela rotina cativante, aquilo que ele temeu acerca da mãe, na manhã em que os dois se despediram, em maio, de modo misterioso e inesperado, aconteceu com a mãe de Albert. Um telegrama às sete da manhã, no dia 21 de janeiro, enquanto os dois ainda estavam dormindo na cama de Albert, na Rue Descartes, a zeladora bateu com força na porta e disse: M. Dufresne, un télégramme urgente pour vous, e de repente os dois pularam da cama, se enfiaram nas roupas, e então Albert leu o telegrama, o telegrama azul com as notícias sombrias de que sua mãe tinha dado um passo em falso e despencado um lance de escada em seu prédio de apartamentos e havia morrido aos sessenta anos de idade. Albert não falou nada. Entregou o telegrama para Ferguson e continuou sem falar nada, e, quando Ferguson terminou de ler o telegrama, que se encerrava com as palavras VENHA JÁ PARA CASA, Albert começou a gemer.

Partiu para o Canadá à uma da tarde do mesmo dia e, como havia muitas questões familiares e financeiras complicadas para resolver enquanto estivesse lá, e como ele também decidiu ir até New Orleans depois do enterro da mãe, para descobrir mais coisas sobre a vida do pai, conforme ele se exprimiu numa carta para Ferguson, acabaria ficando dois meses do outro lado do mundo, e, como Ferguson só tinha quarenta e dois dias de vida no dia em que Albert partiu de Paris, os dois nunca mais se viram.

Ferguson estava calmo. Sabia que Albert voltaria em algum momento e, enquanto isso, ele trataria de tocar para a frente seu trabalho e tiraria proveito da ausência de Albert para retomar seu antigo costume de beber vinho no jantar, taças e mais taças de vinho embriagante, se necessário, pois, apesar de estar calmo, também estava preocupado com Albert, que tinha ficado arrasado com o telegrama e pareceu meio transtornado quando lhe deu um abraço de despedida no aeroporto; e se ele não conseguisse segurar a barra e voltasse a usar drogas? Fique calmo, dizia Ferguson para si mesmo, e tome mais uma taça de vinho, fique calmo e continue seguindo em frente. Nessa altura, o ensaio sobre Anne Frank já tinha mais de cem páginas e se transformara num livro, mais um livro que levaria mais um ano ainda para ficar pronto, mas aí já não era mais janeiro, era fevereiro, e faltando só um mês para a publicação de O Gordo e o Magro, Ferguson estava começando a achar difícil se concentrar.

Aubrey não tinha voltado a Paris depois de sua visita em abril, mas ele e Ferguson tinham escrito um para o outro mais ou menos uma dúzia de vezes durante os últimos dez meses. Havia muitos detalhes, grandes e pequenos, para tratar em relação ao livro, entretanto, além disso, as cartas continham alusões carinhosas e bem-humoradas às horas que os dois passaram juntos no quarto do quinto andar do Hôtel George V, e, embora Ferguson tivesse escrito que estava mais ou menos enrolado com alguém em Paris, o senhor dos elfos continuava inabalável e estava totalmente preparado para uma reprise, ou várias reprises, do desempenho anterior durante a estada de seu autor em Londres. Parecia que era assim que as coisas funcionavam no mundo sem mulheres por onde Ferguson agora navegava. Como Albert lhe explicou certa vez, as regras de fidelidade compulsória que se aplicavam a homens e mulheres não vigoravam para homens e homens e, se existia alguma vantagem em ser um veado transgressor em relação a um cidadão casado e cumpridor das leis, ela estava na liberdade de trepar à vontade com quem a gente quisesse, na hora que quisesse — contanto que não magoasse os sentimentos do seu número um. Mas o que isso significava exatamente? Não era para ele contar ao seu número um que tinha ficado com outra pessoa, supunha Ferguson, e se Albert trepava com alguém, ou com vários alguéns, em suas peregrinações pela América do Norte, Ferguson também não queria ficar sabendo de nada, nem contaria a ele se acontecesse de trepar com Aubrey em Londres. Não, a questão não era se, disse para si mesmo, mas quando — quando, onde e quantas vezes durante os dias e noites em que ficaria na Inglaterra, pois, por mais que amasse Albert, achava Aubrey irresistível.

O plano era lançar o livro no dia 6 de março, segunda-feira. Ferguson ia comemorar o aniversário de vinte anos em Paris, no dia 3, depois, na noite do dia 4, na Gare du Nord, pegaria o trem até o porto e chegaria à Estação Victoria na manhã do dia 5. Em suas últimas mensagens, Aubrey havia confirmado que havia entrevistas e eventos programados, conforme o prometido, inclusive a noite com filmes de o Gordo e o Magro no National Film Theatre, um programa de curtas que juntaria Negócio de arromba, de vinte minutos, Navegando em seco, de vinte e um minutos, Noites de farra, de vinte e seis minutos, e o estouro do século, com trinta minutos, Caixa de música, e assim que a decisão do National Film Theatre foi transmitida a Ferguson, ele passou uma semana redigindo introduções de uma página para cada um dos quatro filmes, em pânico diante da ideia de congelar quando ficasse cara a cara com a plateia, caso tentasse falar em público sem um texto pronto, e, como queria que seus pequenos textos fossem encantadores e bem-humorados, além de informativos, levou muitas horas escrevendo e reescrevendo antes de ficar apenas remotamente satisfeito com os resultados. Mas aquela noite seria muito divertida — e que coisa generosa e solícita Aubrey tinha feito por ele —, e aí, apenas vinte e quatro horas depois de terminar de redigir as introduções, dois exemplares do livro pronto chegaram pelo correio na tarde de quarta-feira, 15 de fevereiro, e pela primeira vez na experiência de mundo de Ferguson, o passado, o futuro e o presente eram um só. Ele tinha escrito o livro, depois tinha esperado o livro e agora o livro estava em suas mãos.

Deu um dos exemplares para Vivian, e, quando ela pediu que ele autografasse, Ferguson riu e disse: Nunca fiz isso antes, sabe? Onde tenho de assinar e o que é que vou escrever?

O lugar tradicional é a folha de rosto, respondeu Vivian. E pode dizer o que quiser. Se não consegue pensar em nada, só assine o nome.

Não, assim não pode. Tenho de dizer alguma coisa. Me dê um minuto, está bem?

Estavam na sala. Vivian estava sentada no sofá com o livro no colo, porém, em vez de sentar a seu lado, Ferguson começou a andar para lá e para cá na frente de Vivian, e, depois de ir e voltar algumas vezes, abandonou a área próxima ao sofá e andou para a parede mais afastada, virou para a direita e andou até a parede seguinte, depois virou para a direita de novo e andou até a parede seguinte, e então deu meia-volta e retornou até o sofá, onde, afinal, sentou-se ao lado de Vivian.

Muito bem, disse ele. Estou pronto. Me dê o livro que eu vou autografar para você.

Vivian disse: Acho que você é a pessoa mais estranha e engraçada que eu já vi na vida, Archie.

Sim, eu sou assim. Faço todo mundo estourar de tanto rir. O sr. Ha-Ha-Ha, com aquela roupa roxa de palhaço. Agora, me dê o livro aqui.

Vivian lhe entregou o livro.

Ferguson encontrou a folha de rosto e meteu a mão no bolso, à cata de uma caneta, mas bem na hora em que ia começar a escrever, parou, virou-se para Vivian e disse: Vai ser curto. Espero que não se importe.

Não, Archie, não me importo. Nem um pouco.

Ferguson escreveu: Para Vivian, amada amiga e salvadora — Archie.

A Terra girou mais dezesseis vezes em torno de si mesma e, na noite do dia 3 de março, comemoraram o vigésimo aniversário de Ferguson com um pequeno jantar no apartamento. Vivian se propôs a convidar quantas pessoas ele quisesse, mas Ferguson disse que não queria ninguém mais, muito obrigado, queria ficar em família, o que significava eles dois e Lisa, além do ausente Albert, que estava rodando pelo sul dos Estados Unidos, rastreando membros da família do pai e, muito embora Ferguson soubesse que era ridículo, pediu a Vivian que deixasse uma cadeira para Albert, no mesmo espírito da cadeira preparada para Elija, na Páscoa judaica, e Vivian, que não achou aquilo nada ridículo, pediu a Celestine que pusesse a mesa para quatro pessoas. Logo depois, resolveu aumentar o número para seis, para que a mãe e o padrasto de Ferguson também pudessem ser incluídos.

Ferguson tinha dois dias de vida, e foi a última vez que falou com os pais, mas a ligação telefônica teve de ser combinada de antemão e, uma hora antes de se sentar para jantar com Vivian e Lisa, na noite do dia 3, a mãe e Gil ligaram de Nova York para lhe desejar feliz aniversário e boa sorte em sua viagem para Londres. Ferguson contou para Gil que levaria Nosso amigo comum (o nonagésimo primeiro livro em sua lista), de Charles Dickens, que serviria para lhe fazer companhia durante as duas longas viagens através do Canal da Mancha (onze horas cada uma), mas ele duvidava que fosse ter tempo para ler em Londres, porque a programação de suas atividades tinha ficado muita cheia. Em todo caso, só restariam nove livros depois daquele, e Ferguson e Vivian planejavam liquidar a leitura de todos lá pelo fim de maio, mas que prazer seria viver dentro do cérebro fervilhante daquele inglês, comentou Ferguson, e depois que ele e a professora Vivian tivessem dado cabo no número cem da lista, ele queria ir atrás de todos os romances de Dickens que ainda não tinha lido.

Então sua mãe pegou o fone e começou a falar sobre o tempo. A Inglaterra era um lugar úmido demais, disse ela, o filho não podia se esquecer de levar o guarda-chuva o tempo todo e vestir a capa de chuva, quem sabe até comprar galochas de borracha para proteger os pés. Em qualquer outra ocasião, Ferguson ficaria aborrecido. A mãe falava com ele como se fosse um menino de sete anos, e, normalmente, ele teria descartado suas advertências com um gemido rouco ou teria feito algum comentário ácido e galhofeiro, mas, naquele dia em especial, aquilo não o aborreceu, achou até graça, sentiu-se protegido por seu carinho e se admirou com o infinito sentimento maternal que continuava a arder dentro dela. Claro que não, mãe, disse Ferguson. Não vou a lugar nenhum sem meu guarda-chuva. Prometo.

Aconteceu que, ao chegar em Londres, na manhã do dia 5, Ferguson esqueceu o guarda-chuva no trem. Não era sua intenção perder o guarda-chuva, mas na agitação de recolher seus pertences e sair depressa para a pla­taforma e procurar Aubrey, o guarda-chuva acabou ficando. E, de fato, estava chovendo na cidade naquela manhã, exatamente como a mãe tinha previsto, pois a Inglaterra era mesmo um lugar úmido, e a primeira coisa que impressionou Ferguson foram os cheiros, o assalto de cheiros novos que entraram em seu corpo no instante em que deixou o ar de seu compartimento e passou para o ar da estação de trem, cheiros completamente distintos dos cheiros de Paris e de Nova York, uma atmosfera mais áspera, mais corrosiva, carregada de emanações mistas de casacos de lã molhados, carvão queimado, paredes de pedra umedecidas e fumaça de cigarros Player, com seu tabaco da Virgínia, adocicado demais, em contraste com a rudeza dos cigarros Gauloises e com a fragrância chamuscada dos cigarros Luckys e Camels. Um mundo diferente. Tudo completamente distinto, e, como ainda estavam no início de março e ainda não era a primavera, também sentia nos ossos uma espécie nova de frio.

E então Aubrey estava sorrindo para ele e jogando seus braços pequenos em torno do corpo de Ferguson, declarando que o menininho ossudo tinha desembarcado, afinal, e como aquela semana ia ser boa para os dois. Seguiram rumo ao ponto de táxi do lado de fora da estação, onde se espremeram embaixo da cúpula do guarda-chuva preto de Aubrey e esperaram sua vez; primeiro falaram como se sentiam felizes de se encontrarem outra vez, porém, alguns momentos depois, o editor Aubrey disse ao escritor Ferguson que as primeiras resenhas sobre o livro tinham começado a ser publicadas nos últimos dias e que todas foram positivas, exceto uma; tinha saído uma excelente matéria na New Statesman, uma entusiástica no Observer, mas nada abaixo de favorável em todas as publicações, exceto aquele disparate ranzinza na Punch. Que ótimo, disse Ferguson entendendo como aquelas opiniões eram importantes para Aubrey, mas ele mesmo se sentia curiosamente alheio a tudo aquilo, como se as resenhas fossem sobre o livro de outra pessoa, alguém com o nome igual ao seu, talvez, mas não a pessoa que estava entrando num táxi londrino pela primeira vez, um dos tão falados elefantes pretos em forma de carro que ele tinha visto em tantos filmes ao longo dos anos e que se revelaram ainda maiores do que havia imaginado, mais uma coisa britânica diferente das coisas americanas e francesas, e que delícia estar sentado no amplo espaço do banco de trás, ouvindo Aubrey tagarelar os nomes dos editores das revistas e os nomes dos resenhistas sobre os quais Ferguson não conhecia nada e que, para ele, eram tão reais quanto personagens secundários numa peça de teatro do século XIX. Em seguida, o táxi partiu e seguiu rumo ao hotel e, de repente, já não havia mais nada de delicioso, era, isso sim, desconcertante e até um pouco assustador. O volante estava do lado errado do carro e o motorista dirigia do lado errado da rua! Ferguson sabia muito bem que este era o modo inglês, mas nunca havia experimentado a situação pessoalmente e, por força do hábito antigo e de reações reflexas enraizadas, sua primeira viagem pelas ruas de Londres o fez ter sobressaltos, toda vez que o motorista fazia uma curva ou que outro carro se aproximava na direção contrária, e, vezes e mais vezes, Ferguson foi obrigado a fechar os olhos com medo de que o carro batesse.

Chegaram a salvo no Durrants Hotel, em George Street 26 (W1), não distante da Wallace Collection e da Igreja Católica Romana St. James. Durrants, que se pronuncia como currants, e Aubrey disse que tinha escolhido esse hotel para Ferguson porque era essencialmente britânico e respeitável, não era um exemplo da Londres moderna, e sim do que ele chamava de Londres dos velhos tempos, com um bar no térreo cujo balcão tinha painéis de madeira escura e trabalhada, tão soturno e espetacularmente arcaico que C. Aubrey Smith era frequentador assíduo do local, embora já fizesse vinte anos que tivesse morrido.

E, além do mais, prosseguiu o senhor dos elfos, as camas são tão confortáveis.

Você e sua mente suja, disse Ferguson. Não admira que a gente se dê tão bem.

Pássaros da mesma plumagem, meu jovem amigo ianque. Com calças de vaqueiro enfeitadas e um bom par de pôneis para nos levar para fora da cidade.

Aubrey ajudou Ferguson a se registrar na recepção, mas depois teve de correr para casa. Era domingo, dia de folga da babá, e ele havia prometido ficar com Fiona e os filhos até a hora do chá, quando voltaria ao hotel para um passeio de pônei, e depois levaria Ferguson para jantar.

Fiona está ansiosa para conhecer você, disse ele, mas isso só vai acontecer amanhã, infelizmente.

Quanto a mim, estou ansioso para que a tarde chegue logo e você possa vir para cá. Aliás, a que horas é o chá?

Para nossos propósitos, a qualquer momento entre quatro e seis. Até lá você pode descansar. Essas travessias do Canal da Mancha podem ter efeitos brutais em nosso sistema e você deve estar ser sentindo meio frito — ou pelo menos refogado.

Acredite ou não, eu consegui dormir no trem, portanto estou bem. Cru, por assim dizer. Fresco, cru e louco para começar logo.

Depois que Ferguson desfez as malas, voltou ao térreo e entrou no restaurante para o café da manhã, que ainda estava sendo servido, às dez horas, e teve a primeira experiência da cozinha inglesa, um prato que consistia em um ovo estrelado (gordurento, mas delicioso), duas fatias finas de bacon malpassadas (ligeiramente repugnantes, mas deliciosas), duas salsichas de carne de porco, um tomate cozido, e cozido até não poder mais, e duas fatias grossas de pão branco feito em casa, lambuzadas com manteiga de Devonshire, melhor do que qualquer manteiga que ele já havia provado. O café era imbebível, por isso optou por um bule de chá, sem dúvida o chá mais forte que existia em toda a Cristandade, que ele teve de diluir em água quente antes de conseguir entornar pela garganta, e depois agradeceu ao garçom, levantou-se da cadeira e saiu a trote rumo ao banheiro, para uma demorada e infeliz sessão com suas entranhas trovejantes.

Queria sair e dar uma volta, mas a chuva fina que vinha caindo mais cedo tinha se transformado num aguaceiro e, em vez de subir e se trancar no quarto, decidiu visitar o famoso bar em que o balcão tinha painéis de madeira trabalhada e procurar, ali, o fantasma de C. Aubrey Smith.

Naquela hora, o bar estava vazio, mas ninguém pareceu se importar quan­do ele perguntou se podia ficar ali um pouco enquanto esperava o tempo cla­rear (estava previsto sol para a tarde), e como o funcionário do hotel se mostrou tão amigável, Ferguson resolveu que gostava dos ingleses e que os achava um povo nobre e generoso, não eram reservados, como os franceses podiam ser, não eram zangados, como os americanos podiam ser, mas calmos e bem-humorados, uma gente tolerante, que aceitava as fraquezas de seus companheiros humanos e não se intrometia nem condenava os outros por falarem com sotaque estranho.

Então, Ferguson sentou-se no bar vazio com painéis de madeira trabalhada e ficou meditando por um tempo sobre os ingleses, em especial sobre C. Aubrey Smith e o belo fato, mas irrelevante, de que ele, o mais inglês de todos os cavalheiros ingleses, a própria personificação da Inglaterra para o público dos Estados Unidos em incontáveis filmes de Hollywood, tinha sido outro senhor dos elfos, neste caso, os elfos da Terra do Cinema e, num instante, Ferguson pegou o caderninho que levava no bolso do paletó e começou a anotar os nomes dos atores britânicos que tinham trabalhado na Califórnia e que, num grau nunca imaginado por ele até aquela manhã, ajudaram a criar aquilo que mundo agora considerava ser o cinema americano. Tantos nomes e tantos filmes com aqueles nomes na lista dos créditos, e, enquanto Ferguson ia anotando aqueles que despejavam em cascata da sua cabeça, ou melhor, enquanto ia colhendo os nomes de dentro de sua cabeça, um a um, à medida que lhe ocorriam, foi também incluindo na lista os títulos dos filmes em que tinha visto os atores com aqueles nomes, e ficou espantado ao constatar como eram numerosos, uma avalanche de filmes e mais filmes que não acabavam mais, uma quantidade assombrosa, e sem dúvida ainda havia muitos outros de que ele não se lembrava.

Para começar, o primeiro nome da lista, o inevitável Stan, o Magro, par­ceiro de Ollie, o Gordo, cujo nome de nascimento era Arthur Stanley Jeffer­s­on, nascido na cidade de Ulverston, em 1890, depois levado para os Estados Unidos em 1910, com a Companhia de Fred Karno, como substituto de Charles Chaplin; mais de oitenta filmes estrelados por Stan Laurel, mais de cinquenta filmes com Chaplin e pelo menos vinte com C. Aubrey Smith (inclusive Rainha Cristina, A Imperatriz Vermelha, Lanceiros da Índia, Mares da China, Um garoto de qualidade, O prisioneiro de Zenda),** e mais cem filmes com Ronald Colman, Basil Rathbone, Freddie Bartholomew, Greer Garson, Cary Grant, James Mason, Boris Karloff, Ray Milland, David Niven, Laurence Olivier, Ralph Richardson, Vivian Leigh, Deborah Kerr, Edmund Gwenn, George Sanders, Laurence Harvey, Michael Redgrave, Vanessa Redgrave, Lynn Redgrave, Robert Donat, Leo G. Carroll, Roland Young, Nigel Bruce, Gladys Cooper, Claude Rains, Donald Crisp, Robert Morley, Edna May Oliver, Albert Finney, Julie Christie, Alan Bates, Robert Shaw, Tom Courtenay, Peter Sellers, Herbert Marshall, Roddy McDowall, Elsa Lanchester, Charles Laughton, Wilfrid Hyde-White, Alan Mowbray, Eric Blore, Henry Stephenson, Peter Ustinov, Henry Travers, Finlay Currie, Henry Daniell, Wendy Hiller, Angela Lansbury, Lionel Atwill, Peter Finch, Richard Burton, Terence Stamp, Rex Harrison, Julie Andrews, George Arliss, Leslie Howard, Trevor Howard, Cedric Hardwicke, John Gielgud, John Mills, Hayley Mills, Alec Guinness, Reginald Owen, Stewart Granger, Jean Simmons, Michael Caine, Sean Connery e Elizabeth Taylor.

A chuva parou às duas horas, mas o sol não saiu. Em vez disso, o céu nublado se encheu de mais nuvens, e nuvens tão pesadas e volumosas que logo começaram a baixar, lentamente desceram de seu lugar de costume no céu, até encostarem no chão e, quando Ferguson finalmente saiu do hotel para uma pequena caminhada pelos arredores, as ruas eram um labirinto de neblina. Nunca lhe aconteceu de conseguir enxergar tão pouco num horário que, supostamente, ainda era dia, e ficou intrigado, pensando em como os ingleses conseguiam tocar seus afazeres diários no meio daquela escuridão encharcada e vaporosa, mas depois disse outra vez para si mesmo que os ingleses eram, provavelmente, familiarizados com as nuvens, pois se Ferguson tinha aprendido alguma coisa com Dickens era que as nuvens no céu sobre Londres baixavam para visitas frequentes, no meio das pessoas e, num dia como aquele, parecia que elas tinham trazido suas escovas de dentes e planejavam pernoitar ali mesmo.

Já passava um pouco das três horas. Ferguson resolveu que devia começar a voltar para o hotel, a fim de se preparar para o regresso de Aubrey, que poderia ser às quatro ou, ao mais tardar, às seis horas, mas ele queria estar pronto já às quatro, na esperança de que Aubrey conseguisse se desvencilhar da família antes cedo do que tarde. Primeiro, um banho de banheira ou de chuveiro e, depois, ia vestir os presentes de aniversário que Vivian tinha comprado para ele em Paris, na semana anterior, a calça, a camisa e o paletó, tudo novo, que o deixavam com cara de um milhão de dólares, como ela disse, e era desse jeito que ele queria parecer aos olhos de Aubrey, em suas roupas novas, e depois as roupas seriam retiradas e os dois iriam para a cama para fazer o que tinham feito no Hôtel George V e, não, Ferguson não ia se sentir culpado, disse para si mesmo, ia curtir bastante e, no que dizia respeito a Albert, Ferguson iria se consolar pensando que o Mr. Bear estaria fazendo a mesma coisa com outra pessoa e curtindo tanto quanto ele, e, quando estava andando e pensando em Aubrey e em Albert e nas diferenças entre os dois, não só nas diferenças físicas, entre claro e escuro e pequeno e grande, como nas diferenças mentais e culturais e nas diferenças entre suas maneiras de encarar a vida, as profundezas sombrias do coração de Albert em oposição à alegria espirituosa de Aubrey, Ferguson seguia caminhando na direção do hotel, e de repente desviou o pensamento para a entrevista que ia dar a alguém do Telegraph, no dia seguinte pela manhã, às dez horas, a primeira entrevista de sua vida, e, muito embora Aubrey tivesse dito para ele não se preocupar, apenas relaxar e ser quem ele era, Ferguson não conseguia deixar de ficar um pouco preocupado, afinal de contas, o que significava ser ele mesmo, se perguntava, ele era várias pessoas ao mesmo tempo, dentro dele havia muitas pessoas, na verdade, uma forte e outra fraca, uma reflexiva e outra impulsiva, uma generosa e outra egoísta, eram tantas as pessoas diferentes que, no final, ele era tão grande quanto todo mundo ou tão pequeno quanto ninguém, e, se isso era verdade para ele, então tinha de ser verdade para todo mundo, o que significava que todo mundo era todo mundo e ninguém ao mesmo tempo, e com essa ideia quicando para lá e para cá dentro na cabeça, chegou ao cruzamento da Marylebone High Street com a Blandford Street, no ponto onde a Marylebone passava a se chamar Thayer Street, logo depois da esquina com a George Street, onde ficava o hotel, e embora a neblina estivesse se fechando e se enrolando em torno dele, Ferguson conseguiu enxergar, de leve, a luz vermelha do sinal de trânsito piscando na névoa, uma luz vermelha que era equivalente a um sinal de parar, por isso Ferguson parou e esperou que um carro passasse, e, como estava perdido em pensamentos sobre todo mundo e ninguém, virou a cabeça e olhou para a esquerda, ou seja, fez o que sempre tinha feito, a vida toda, quando atravessava as ruas, o olhar reflexo e automático para a esquerda, a fim de verificar se não vinha algum carro, esquecendo-se de que estava em Londres e que, nas cidades inglesas, era preciso olhar para a direita e não para a esquerda e, portanto, não viu o Ford britânico marrom que saiu da esquina com a Blandford, por isso desceu do meio-fio e começou a atravessar a rua, sem entender que o carro que não tinha visto tinha o direito de passar pela rua, e, quando o carro se chocou com o corpo de Ferguson, bateu com tanta força que ele saiu voando, como se fosse um míssil humano lançado para o espaço, um jovem a caminho da lua e das estrelas, além, e quando alcançou o cume de sua trajetória, começou a descer e, quando aterrissou, o topo de sua cabeça bateu de encontro à quina do meio-fio, ele fraturou o crânio, e, a partir daquele momento, todo futuro pensamento, palavra e sentimento que poderiam nascer dentro daquele crânio foram apagados.

Do alto de sua montanha, os deuses olharam e deram de ombros.

* No Brasil, o filme ganhou o título de A grande testemunha. (N. E.)

** Títulos dados no Brasil. (N. E.)


6.4

O astuto e irresponsável Noah Marx, que tinha dado sua palavra de honra de que não ia mostrar os originais de Viagens de Mulligan para ninguém, a não ser para seu pai e sua madrasta, quebrou a promessa ao emprestar o livro para Billy Best, um prosador de vinte e quatro anos que havia largado a Universidade Columbia e ganhava a vida como administrador de um prédio de quatro andares, sem elevador, na rua 89 Leste, entre a Primeira e a Quinta Avenidas, um sub-bairro de trabalhadores em Yorkville conhecido como Rhinelander District. Dois anos antes, Billy tinha fundado uma pequena editora de livros mimeografados chamada Gizmo Press, uma empresa não comercial e anticomercial que havia lançado, até então, uma dúzia de livros, entre os quais os volumes de poesia de Ann Wexler, Lewis Tarkowski e Ron Pearson, nascido em Tulsa, que tinha dado para o autor de Viagens de Mulligan um exemplar do livro de John Cage, Silêncio, no mês de outubro. Naqueles tempos anteriores ao advento da impressão barata em ofsete, a mimeografia era a única forma de produção de livro ou revista viável para escritores jovens e sem dinheiro em Nova York, e longe de ser um sinal de obscuridade ou uma estrada de mão única rumo ao esquecimento completo, ter a obra publicada em mimeógrafo por uma editora como a Gizmo Press era considerado uma honraria. A tiragem média girava por volta de duzentos exemplares. Os títulos e as ilustrações nas capas de cartolina eram desenhados em preto e branco pelos amigos artistas de Billy no centro da cidade (a maioria era feita por Serge Grieman ou Bo Jainard, desenhistas ágeis e inventivos, cujas capas ajudaram a estabelecer o tom predominante do desenho gráfico dos meados da década de 1960, o visual do momento: arrojado e sem enfeites e sem se levar muito a sério), e ainda que houvesse algo tosco e improvisado nos livros impressos em folhas de papel de datilografia, de vinte por trinta centímetros, o conteúdo era sem manchas e legível, tão claro quanto qualquer livro impresso em ofsete. A esposa de Billy, Joanna, preparava os estênceis na sua grande máquina de escrever Remington de escritório, em caracteres de uma paica, em espaço simples, com margens não justificadas à direita, quando se tratava de uma obra em prosa, e depois os estênceis eram postos no mimeógrafo na oficina de Billy e rodados na frente e no verso de todas as folhas, cotejadas por um grupo de amigos e de voluntários e presas com grampos no meio da dobradura. A maioria dos exemplares era distribuída de graça, ou seja, enviada ou entregue a escritores e artistas, e os mais ou menos cinquenta exemplares restantes eram distribuídos para um punhado de livreiros de Manhattan que acreditavam na futura geração de novatos americanos, e, para um jovem, entrar na Gotham Book Mart ou na Eighth Street Bookshop e ver seu livro mimeografado entre os recentes lançamentos de poesia e ficção era compreender que ele estava começando a existir como escritor.

Ferguson deveria ficar furioso com seu primo por ter agido às escondidas dele e mostrado o livro para alguém sem sua permissão, mas não ficou. Noah tinha esbarrado com Billy Best numa reunião no Lower East Side, em meados de maio, um mês depois de Ferguson concluir a redação do livro e uma semana depois de sua terceira e última visita ao dr. Breuler. Noah começou a falar com Billy sobre o livro de seu primo, Billy demonstrou interesse em dar uma olhada e, na última semana de maio, Noah telefonou para Ferguson e disse que o negócio estava no papo. Desculpe, desculpe, disse ele, sabia que não devia ter mostrado o original para ninguém, mas acabou mostrando, de todo jeito, e agora Billy estava empolgado com Viagens de Mulligan e queria publicar, e Ferguson não ia ser tolo de tentar impedir que aquilo acontecesse, ia? Não, respondeu Ferguson, ele era totalmente a favor, e depois agradeceu a Noah por sua ajuda, o que os fez entabular uma conversa que durou meia hora e, depois que desligaram o telefone, Ferguson entendeu que não fazia a menor diferença se ele achava que o livro devia ser queimado e esquecido, agora precisava do livro, porque sua vida estava acabada e publicá-lo talvez fosse uma forma de se iludir e pensar que ainda tinha algum futuro, ainda que nenhum Ferguson fosse fazer parte daquele futuro, e como era coerente o fato de ter escolhido publicar o livro sob o nome de um homem assassinado, seu avô paterno Isaac, morto com duas balas num armazém de produtos de couro em Chicago, em 1923, o homem que devia ser Rockefeller, mas acabou sendo Ferguson, pai de um pai que havia sumido da vida do filho e avô de um neto que jamais poderia ser pai.

Billy Best tornou-se um bom amigo e um editor dedicado dos primeiros livros de Ferguson, mas Noah Marx era o grande amigo e padrinho, e, toda vez que Ferguson tentava imaginar quem ele seria sem Noah, sua mente se fechava e se recusava a dar qualquer resposta.

A esperta Joanna conseguiu transformar as cento e trinta e uma páginas em espaço duplo do original de Ferguson em cinquenta e nove páginas em espaço simples, eliminando os espaços em branco que antecediam cada capítulo das vinte e quatro viagens de Mulligan e começando as viagens que vinham na mesma página das que tinham acabado, o que reduziu grande parte do trabalho de um ano a trinta folhas de papel — finas o bastante para serem grampeadas sem esforço. Em vez de usar Bo Jainard ou Serge Grieman para o desenho da capa, Ferguson perguntou para Billy se Howard Small poderia dar uma força e, como Howard fazia ótimos desenhos (Mulligan sentado numa escrivaninha e escrevendo um de seus relatos numa sala repleta de artefatos e suvenires de suas aventuras), ele também se tornou parte da família Gizmo e continuou a contribuir com capas e ilustrações até a editora falir e fechar as portas em 1970. Cinquenta e nove páginas em trinta folhas de papel — o que significava que a última página do livro estava vazia. Billy perguntou para Ferguson se não gostaria de escrever uma nota biográfica, para preencher o espaço e, depois de refletir por quase uma semana, Ferguson apresentou as duas frases seguintes:

Isaac Ferguson, de dezenove anos, pode ser visto vagando pelas ruas de Nova York. Ele mora longe.

Não havia mais Evie. Não houve mais visitas à casa geminada em East Orange depois da última consulta com o dr. Breuler, em Princeton. Ferguson não tinha mais coragem de encarar Evie. Ele a havia decepcionado e destruído suas esperanças e não tinha coragem de fitá-la nos olhos e dizer que nunca seria o pai fantasma do bebê ilusório que ela havia inventado a fim de manter os dois juntos em algum mundo futuro, quando as circunstâncias tivessem, afinal, separado ambos. Que situação mais enrolada. Como os dois tinham se frustrado reciprocamente, e agora que as palavras de um médico puseram fim a suas aspirações ilusórias, Ferguson pegou o telefone e anunciou aquele fim, como um covarde qualquer teria feito, sem sequer se atrever a se sentar diante dela, cara a cara, e contar e, talvez, chegar à conclusão de que não era a pior tragédia do mundo e que eles podiam continuar, apesar de tudo. Evie ficou chocada com sua frieza. É uma pena e tudo, disse ela, e eu lamento mui­to por você, Archie, mas o que é que isso tem a ver conosco?

Tudo, disse ele.

Não, você está errado, retrucou Evie, não faz diferença nenhuma, e, se você não entende o que estou te dizendo agora, então você não é a pessoa que eu achei que fosse.

Ferguson estava contendo as lágrimas ao fim de cada frase.

A gente não ia durar muito tempo mais, disse Evie, e talvez eu tenha sido tola ao te arrastar para essa história de gravidez, mas, que diabo, Archie, eu te dei tudo que tenho e você me deve pelo menos a decência de se despedir de mim pessoalmente.

Não consigo, respondeu Ferguson. Se eu for encontrar você, vou me descontrolar e acabar chorando, e eu não quero que você me veja chorar.

Isso seria tão terrível assim?

Para mim, seria. O pior de tudo.

Cresça, Archie. Tente agir como um homem.

Estou tentando.

Não está fazendo força.

Vou fazer força, juro. O importante é que nunca vou deixar de amar você.

Já deixou. Está farto, não quer nem mais ver a minha cara.

Não é verdade.

Pare de mentir, por favor. E, enquanto você está aí escutando, Archie, por favor, do fundo do coração, aproveite e vá à merda.

Numa quarta-feira, dia 25 de maio, duas semanas depois daquela conversa horrorosa com Evie, Noah ligou com a notícia de que Billy Best queria publicar Viagens de Mulligan. Ferguson e Billy conversaram no dia 25 e combinaram de se encontrar no sábado, dia 28, e por isso Ferguson não ficou em Princeton naquele fim de semana para se preparar para as provas finais com Howard, como tinha planejado. Entretanto, foi para Nova York na sexta-feira, como de costume, mas, como tinha dito ao avô que não iria para lá naquele fim de semana e depois se esqueceu de avisá-lo que, na verdade, teria de ir, acabou pegando o avô de surpresa, e a surpresa causada foi só um centésimo maior do que a surpresa que ele mesmo teve.

Até onde sabia, ele era a única pessoa que tinha a chave do apartamento. Agora que ele e Evie haviam terminado, Ferguson tinha ido até lá duas vezes para passar finais de semana solitários no quatro vago do apartamento e, naquelas duas tardes de sexta-feira, ele tinha entrado num apartamento silencioso e encontrado o avô sentado no sofá da sala, lendo as páginas de esporte do Post, mas dessa vez, quando enfiou a chave na fechadura e abriu a porta, ouviu vozes na sala, talvez duas ou três vozes, não soube dizer quantas, mas nenhuma era a voz do avô, e quando estava já dentro do apartamento, a primeira coisa que ouviu com clareza foi a voz de um homem, que dizia: Está bem, Al, agora mete seu pau dentro dela, e então a voz de outro homem disse: E quando ele estiver fazendo isso, Georgia, lembre de pegar o pau duro do Ed e colocar na boca.

Havia uma espécie de corredor entre a porta da frente e a entrada da sala, e, quando Ferguson passou na ponta dos pés pela porta fechada do quarto vago à sua direita e depois pela estreita cozinha com copa, também à direita, chegou ao fim da parede e estava parado no limiar da sala e o que viu foi seu avô sentado ao lado de um homem que operava uma câmera de dezesseis milímetros, três tripés de iluminação acesos e muito brilhantes, com algo que deviam ser uns mil watts em cada um, outro homem no meio da sala com uma prancheta debaixo do braço e três pessoas nuas no sofá, uma mulher e dois homens, uma mulher de olhos mortos, de uns trinta anos, cabelo louro descolorido, peitos grandes e barriga flácida e proeminente, e dois homens quase idênticos (talvez gêmeos), animais atarracados e peludos, com pênis intumescidos e bundas penugentas, obedecendo às instruções do diretor e do câmera.

O avô de Ferguson sorria. Era o elemento mais chocante em todo aquele quadro sórdido — o sorriso no rosto do avô enquanto o velho via a mulher e os dois homens se chupando e trepando em cima do sofá.

O diretor foi o primeiro que viu Ferguson, um pequeno e jovem malandro de vinte e poucos anos, com jeans e blusão cinzento, o homem que falava durante a ação, porque não estavam gravando o som, que sem dúvida seria acrescentado mais tarde, com uma série de gemidos e suspiros histriônicos, durante a pós-produção daquele que, certamente, seria o empreendimento cinematográfico mais barato do mundo, e quando o jovem diretor viu Ferguson parado no corredor, junto à porta da sala, disse: Quem diabo é você?

Não, disse Ferguson, quem diabo é você e o que é que você pensa que está fazendo aqui?

Archie!, gritou o avô, enquanto o sorriso desaparecia de seu rosto e se transformava numa expressão de medo. Você me disse que não viria no fim de semana!

Pois é, mudei meus planos, respondeu Ferguson, e agora acho que essa gente tem de cair fora deste apartamento já.

Acalme-se, meu velho, disse o diretor. O sr. Adler é o nosso produtor. Foi ele que nos convidou para vir aqui e não vamos embora antes de terminar a filmagem.

Desculpe, disse Ferguson, enquanto andava na direção das pessoas nuas, no sofá, mas a diversão acabou por hoje. Ponham suas roupas e se mandem.

Quando quis segurar a mão da mulher para levantá-la e mandá-la embora, o diretor correu para ele, por trás, e passou os braços em volta do tronco de Ferguson e os prendeu pelos lados do corpo. Um dos gêmeos nus pulou do sofá e afundou o punho direito na barriga de Ferguson, um soco doloroso que inflamou o espírito combativo de Ferguson a tal ponto que ele se desvencilhou do diretor baixinho e o jogou no chão. A mulher disse: Chega dessa gritaria, seus babacas. Parem com essa merda e vamos acabar logo com essa história.

Antes que a coisa virasse uma briga de verdade, o avô de Ferguson se adiantou e disse para o diretor: É uma pena, Adam, mas acho que é melhor a gente ficar por aqui hoje. Este rapaz é meu neto e preciso ter uma conversa com ele. Telefone amanhã para a gente combinar o próximo passo.

Em dez minutos, o diretor, o câmera e os três atores tinham ido embora. Ferguson e o avô estavam na cozinha a essa altura, sentados de frente um para o outro, nas extremidades da mesa, e, no momento em que ouviu a porta se fechar, Ferguson disse: Seu velho idiota. Estou com tanto nojo de você, nunca mais quero ver sua cara.

O avô enxugou os olhos com um lenço e olhou para a mesa. As meninas não devem saber, disse ele, referindo-se às duas filhas. Se descobrirem, vão ficar arrasadas.

Você quer dizer que quem vai ficar arrasado é você, retrucou o neto.

Não conte nada, Archie. Prometa isso.

Ferguson, que nunca tinha pensado em contar para a mãe ou para a tia Mildred o que tinha visto naquele dia, se recusou a fazer qualquer promessa, embora soubesse que nunca ia contar para ninguém.

Sou muito solitário, disse o avô. Eu só queria me divertir um pouco.

Se divertir. Torrar seu dinheiro num filme pornô de quinta categoria. Afinal, qual é o problema com você?

É inofensivo. Não faz mal a ninguém. Todos se divertem. O que há de errado nisso?

Se você precisa perguntar, então você não tem mais jeito mesmo.

Você está sendo duro demais, Archie. Como é que se tornou assim tão duro?

Não sou duro. Estou só chocado, e com um enjoo no estômago.

Elas não podem saber nunca. Se você prometer que não vai contar para elas, eu farei tudo que você quiser.

Só quero que pare, só isso. Cancele o filme e nunca mais faça isso.

Olhe, Archie, e se eu lhe desse algum dinheiro? Isso não ajudaria? Sei que você não quer mais ficar aqui comigo, mas se tivesse algum dinheiro no bolso você podia procurar outro apartamento em Nova York. Você gostaria disso, não é?

Está tentando me subornar?

Chame como quiser. Mas se eu lhe desse cinco... seis... não, digamos... dez mil dólares... isso ajudaria muito você, não é? Podia alugar um apartamentozinho em qualquer lugar e passar o verão todo escrevendo, em vez de trabalhar naquele emprego de que me falou. Qual era mesmo?

Remoção de sucata.

Remoção de sucata. Que desperdício de tempo e energia.

Só que eu não quero seu dinheiro.

Quer sim, é claro que quer. Todo mundo quer dinheiro. Todo mundo precisa de dinheiro. Encare isso como um presente.

Um suborno, você quer dizer.

Não, um presente.

Ferguson pegou o dinheiro. Aceitou a proposta do avô com a consciência tranquila, porque, na realidade, não era um suborno, mas um presente, pois, afinal de contas, ele jamais diria nenhuma palavra para sua mãe nem para a tia Mildred, e, se o avô tinha ficado tão envergonhado a ponto de ser capaz de preencher um cheque de dez mil dólares, era melhor que o dinheiro fosse para o neto do que para financiar outro filme de sacanagem. Mas que choque foi entrar e dar de cara com aquela cena bizarra, e como pode?, seu avô estava virando um louco e um tarado na velhice — viúvo e sozinho, sem constrangimentos, livre para se permitir qualquer excentricidade pervertida que lhe viesse à cabeça, e qual seria a próxima indecência que ele iria inventar? Ferguson continuava a amar o avô, mas tinha perdido todo respeito por ele e talvez até o desprezasse agora, o bastante para não querer nunca mais ficar no apartamento dele outra vez e, no entanto, não era nem metade do desprezo que sentia pelo pai, que a essa altura tinha desaparecido completamente de sua vida, tinha sumido por razões que, em grande parte, tinham a ver com dinheiro, e lá estava ele, aceitando dinheiro do avô, numa boa, e apertando sua mão para agradecer. Mais uma situação complicada, mais uma ameaçadora encruzilhada no meio do caminho, e, assim como Lazlo Flute tinha descoberto em Esquerda, direita ou em frente?, qualquer opção que fizesse acabaria sendo uma escolha errada.

Entretanto, dez mil dólares eram uma quantia monumental em 1966, uma bolada além da imaginação. Com apartamentos pequenos nos bairros precários de Nova York sendo alugados por menos de cem dólares mensais, às vezes até por cinquenta ou sessenta dólares, Ferguson poderia achar algo adequado para suas fugas de Princeton e ainda ficar com dinheiro bastante no bolso para passar os verões sem ter de trabalhar em empregos de verão. Não que ele tivesse medo da ideia de carregar sucata no intervalo entre seu ano de calouro e o segundo ano de faculdade. Pela experiência dos verões no tempo do ensino médio, quando trabalhou com Arnie Frazer e Richard Brinkerstaff, sabia que o trabalho temporário trazia várias satisfações e que era possível aprender valiosas lições de vida durante aquele processo, mas à sua frente ainda havia muitos anos daquele tipo de trabalho e a chance de poder desfrutar uma pausa daquele pesado trabalho braçal durante seu tempo na faculdade representava uma interrupção imprevista e muito bem-vinda. Tudo porque ele tinha entrado de surpresa e pegado o avô em flagrante, de calças arriadas. Uma descoberta revoltante, sim, mas, ao mesmo tempo, como não rir daquilo tudo? E ele, que iria manter os lábios selados até o último suspiro exalar de seus pulmões, agora estava nadando em dinheiro, dado para que calasse a boca. Se não fosse possível rir daquilo, teria de haver alguma coisa errada com a pessoa, alguma coisa muito errada dentro da sua cabeça.

Ferguson saiu de casa para comer uma pizza e tomar uma cerveja com Noah, no Village, depois passou a noite no chão do dormitório de estudantes onde o primo morava, na Universidade de Nova York, e no dia seguinte, quando foi à parte alta da cidade se encontrar com Billy Best, as coisas mais incríveis continuaram a acontecer com ele. Billy se mostrou tão relaxado e cordial, tão efusivo nos elogios ao livro de Ferguson, o qual chamou de a porra-louquice mais filha da mãe que tinha lido em muito e muito tempo, que o jovem autor agradeceu ao primo, em pensamento, mais uma vez, por ter colocado seu livro em contato com aquela pessoa, tão diferente de qualquer outra pessoa que Ferguson já havia visto. Billy era um casca-grossa oriundo da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, um escritor sofisticado de vanguarda, nascido e criado no mesmo bairro onde continuava a morar, administrador do seu prédio, porque havia herdado o emprego do pai, um nativo das ruas, criado na escola da rua, e que encarava seu bairro como se ele fosse um xerife num filme de faroeste de Hollywood, mas que também era o autor de um romance complexo e alucinatório, ainda em andamento, passado entre as guerras franco-indígenas, intitulado Cabeças esmagadas (Ferguson adorou o título), e só de ouvir a voz melodiosa de tenor irlandês nova-iorquino do seu editor, Ferguson tinha a sensação de que até os tijolos dos prédios da rua 89 Leste vibravam ao som de suas palavras. Além do mais, a esposa grávida de Billy, Joanna, falava com aquela mesma voz, simples e acolhedora, secretária forense durante o dia, datilógrafa e cortadora de estêncil para a editora Gizmo Press à noite, era ela quem ia trabalhar no livro de Ferguson, enquanto o bebê crescia dentro de sua barriga, era ela que ia trazer o filho de Ferguson ao mundo, ainda que fosse apenas um livro e ainda que ele mesmo nunca fosse ter nada a ver com a produção de bebês de verdade; e, quando Joanna e Billy perguntaram se não queria jantar com eles naquela primeira noite de sábado de sua nova amizade, Ferguson mencionou que, dali a alguns dias, ia procurar um apartamento para morar, tão logo o cheque fosse depositado em sua conta, e, como Billy e Joanna sabiam tudo o que acontecia em seu pequeno bairro, lhe deram logo a dica de um apartamentozinho que ficava seis prédios adiante, no mesmo quarteirão, um apartamento de quarto e sala cujo anúncio para alugar apareceu apenas alguns dias depois de sua primeira refeição com o casal, e foi assim que Ferguson acabou alugando seu cantinho no terceiro andar, na rua 89 Leste, por setenta e sete dólares e cinquenta centavos mensais.

Seu primeiro ano em Princeton estava chegando ao fim. Howard ia viajar no verão para trabalhar com a tia e o tio numa fazenda de gado leiteiro, no sul de Vermont, e apesar de Ferguson ter sido convidado para acompanhá-lo naquela aventura bucólica, o semidestruído ex-amante de Evie Monroe, que havia simultaneamente se tornado o autor semirressuscitado do livro Viagens de Mulligan, que seria publicado em breve, já havia desistido do trabalho de remover sucata e tinha planos de passar o verão trabalhando em seu próximo projeto de livro, O caderno escarlate. Amy também estaria na cidade durante aqueles meses (ia trabalhar como assistente editorial numa revista chamada Nurses Digest), bem como seu novo namorado, Luther Bond, que tinha arranjado uma vaga para substituir alguém na seção de Próximos Eventos no semanário Village Voice. Celia Federman, por outro lado, estaria longe, desfrutando o prêmio que os pais tinham lhe dado por se formar antecipadamente no ensino médio: uma viagem de duas semanas pela Europa com a prima de vinte anos, Emily. Conforme previsto, o namorado Bruce, também conhecido como Mandato de Namoro Tampão, era coisa do passado. Celia prometeu escrever para Ferguson exatamente vinte e quatro cartas, que ela o instruiu a guardar numa caixa com a etiqueta Viagens de Federman.

Noah também acabou indo embora, de modo inesperado e no último minuto, rumo ao norte de Massachusetts, para participar do Festival de Teatro de Williamstown, para o qual ele havia se candidatado meio por extravagância, porque a garota de quem andava atrás também havia se candidatado, só que, enquanto ela foi recusada, sem sequer receber uma resposta, Noah acabou sendo aceito e agora ele ia trabalhar como ator em duas peças diferentes durante o verão (Todos eram meus filhos e Esperando Godot), e o plano para uma versão cinematográfica do conto “Par perfeito” foi de novo para a gaveta. Ferguson ficou aliviado. Mais do que isso, ficou feliz por Noah, que sempre era o melhor ator em cena, todas as vezes que o viu representar, o que devem ter sido umas sete ou oito vezes ao longo dos anos e, por mais que Noah desejasse ser cineasta, Ferguson estava convencido de que ele tinha talento para ser um ator de primeira linha, não só em comédias, onde já se destacava de sobra, como também em dramas, embora talvez não em tragédias, pelo menos não nos clássicos de cinquenta toneladas, desses em que os homens arrancam os olhos, as mães cozinham os filhos em caldeirões e Fortimbrás entra em cena, enquanto a cortina baixa lentamente sobre um monte de cadáveres ensanguentados. Ferguson também sentia que Noah poderia fazer as pessoas mijarem nas calças de tanto rir se quisesse apresentar um monólogo cômico, mas, toda vez que lhe sugeria fazer isso, Noah torcia o nariz e respondia: Não é para mim. Mas estava enganado, pensava Ferguson, era um grande erro resistir e, certa noite, ele até se deu ao trabalho de escrever algumas piadas para Noah, só para dar um empurrãozinho, mas escrever piadas era difícil, tão difícil que se mostrou quase impossível, e, a não ser por algumas das duplas das partidas de tênis que havia bolado com Howard no início do ano, parecia que Ferguson não tinha talento nenhum para isso. Escrever frases engraçadas num conto era uma coisa, mas criar tiradas inesquecíveis e nocauteadoras exigia um tipo de cérebro diferente do que tinha sido implantado dentro do crânio de Ferguson.

Amy estava ligada a Luther Bond desde o início de maio. Agora era junho e, segundo a mais recente conversa por telefone entre ela e Ferguson, sua meia-irmã, agressiva e combativa, ainda não havia tomado coragem para contar ao pai nem à madrasta que havia um homem novo em sua vida. Aquilo deixou Ferguson frustrado, pois ele sempre tinha admirado a audácia de Amy, ainda que às vezes também tivesse sentido vontade de esganá-la, e a única razão que conseguiu imaginar para explicar a hesitação de Amy não era o fato de seu namorado ser negro, e sim de ser um negro militante, do tipo Black Power, que se situava ainda mais à esquerda do que Amy, uma figura grande, ameaçadora, de casaco de couro, de gorro preto em cima da cabeleira afro — exatamente o tipo de pessoa capaz de meter medo no gentil e apaziguador pai de Amy e provocar nele um ataque de pânico de um mês de duração.

Portanto o casal veio de Boston e se instalou em seu apartamento sublocado em Morningside Heights. Na mesma noite, encontraram Ferguson para beber no West End Bar e, quando apertou a mão de Luther Bond pela primeira vez, a caricatura que ele havia desenhado no pensamento explodiu em mil fragmentos inúteis. Sim, Luther Bond era negro e, sim, apertava a mão com a firmeza de uma pessoa forte e, sim, havia uma espécie de determinação obstinada em seu olhar, mas, quando aqueles olhos miraram os olhos de Ferguson, ele entendeu que estava olhando não para um inimigo, e sim para um amigo em potencial, alguém de quem Ferguson desejava muito gostar, e, se Luther não era o terrorista beligerante e cheio de ódio da sua caricatura, isso significava que Ferguson estava enganado quanto a Amy e, então, por que será que ela não contou nada para o pai acerca do namorado?

Ferguson teria de conversar com Amy, em particular, sobre isso e fazer o que pudesse para pôr algum juízo na cabeça dela, mas por ora tinha de se concentrar no próprio sr. Bond, a fim de entender que tipo de pessoa era ele. Não era alto, isso estava bem claro, estava na média, um metro e oitenta, por aí, mais ou menos a mesma altura de Amy, e, se o cabelo podia servir como um indicador das convicções políticas da pessoa, a recatada cabeleira afro de Luther sugeria que ele estava à esquerda, mas não na extrema esquerda, em contraste com as grandes cabeleiras afro usadas pelo pessoal do movimento Black Is Beautiful, e quanto ao rosto, bem, era incrivelmente bonito, pensou Ferguson, tinha um aspecto tão bom que beirava o fofinho, se é que um adjetivo como esse podia ser usado para um homem, e quando Ferguson observou melhor seu rosto, entendeu por que Amy se sentira atraída por Luther e continuava a se sentir atraída por ele depois de seis semanas de muito papo e de sexo constante, mas, deixando de lado essas coisas superficiais por um momento, os detalhes exteriores de estatura, comprimento de cabelo e índices de fofura, o mais importante que Ferguson estava descobrindo em Luther era que tinha um agudo senso de humor, algo que Ferguson prezava nas pessoas, porque ele mesmo era bastante limitado no quesito da graça verbal, motivo por que sempre gravitava em torno de gente como Noah Marx, How­ard Small e Richard Brinkerstaff, todos capazes de fazer sua cabeça girar, e, quando Luther contou para Ferguson que seu colega de alojamento em Bran­deis tinha sido um calouro chamado Timothy Sawyer, em outras palavras, Tim Sawyer, Ferguson deu uma risada e depois perguntou se Tim tinha alguma semelhança com Tom, mas Luther respondeu que não, que fazia lembrar antes aquele outro personagem do livro de Murk Twang, Hick Funn.

Aquilo foi engraçado. Murk Twang e Hick Funn eram autenticamente engraçados, o mesmo tipo de duas coisas em uma que Howard elaborava em seus momentos mais inspirados, e o fato de Amy rir tornou aquilo ainda mais divertido, sem dúvida, muito mais divertido, porque o volume da risada de Amy indicava que ela havia sido apanhada no contrapé, o que revelava que nunca tinha ouvido Luther falar daquele jeito, o que por sua vez revelava que Luther não tinha inventado sua versão distorcida de Mark Twain e Huck Finn no mês anterior ou um ano antes, nem vivia repetindo aquilo para os amigos, não, ele inventou aquilo ali na hora, na bucha, no West End Bar, e Ferguson prezava um espírito capaz de ser rápido e sagaz a ponto de disparar de surpresa um par de trocadilhos deliciosos como aqueles, ou, como teve vontade de dizer em alto e bom som, mas não disse, aqueles trocadalhos do carilho. Em troca, riu bem alto junto com a arfante meia-irmã, e depois perguntou ao sr. Bond se não podia lhe pagar mais uma cerveja.

Ferguson já havia recebido alguma informação sobre a formação de Luther e o caminho singular que ele havia percorrido, de Central Ward, em Newark, para a Universidade Brandeis, na Nova Inglaterra, coisas que Amy tinha mencionado nas conversas ao telefone, como por exemplo os sete anos que Luther passara na Newark Academy, uma das melhores escolas particulares da região, paga não pelo pai de Luther, que era motorista de táxi, nem por sua mãe, empregada doméstica, e sim pelos patrões dela, Sid e Edna Waxman, um casal rico de South Orange, cujo filho único tinha morrido na Batalha do Bulge, uma dupla incomum de almas enlutadas que haviam se apaixonado por Luther quando ainda era criança, e, agora que ele tinha ganhado sua bolsa de estudos em Brandeis, os Waxman estavam fazendo a mesma coisa pelo seu irmão mais novo, Septimus (Seppy), e quem é que podia imaginar, disse Amy para Ferguson ao telefone, uma família judia rica e uma família de negros em dificuldades unidas para sempre nos Estados Desunidos da América — Ha!

Ferguson, portanto, estava a par de que o namorado de Amy tinha cursado a Newark Academy quando os três sentaram no bar em West End para tomar umas bebidas, e, em pouco tempo, a conversa passou a tratar da própria Newark e do basquete, um esporte que Luther e Ferguson haviam praticado nos tempos do ensino médio, e, como as palavras “Newark” e “basquete” haviam surgido inesperadamente na mesma frase, Ferguson lembrou-se do ginásio de Newark, onde ele, aos catorze anos, havia jogado uma partida que teve três prorrogações e, na hora em que disse as palavras “três prorrogações”, Luther se inclinou para a frente, fez um barulho indecifrável, não verbal, em algum ponto no fundo da garganta e disse: Eu estava lá.

Então você se lembra do que aconteceu, disse Ferguson.

Nunca esqueci.

Estava no time que jogou?

Não, estava na arquibancada, esperando que a sua partida terminasse para a minha começar.

Você viu a cesta no arremesso do meio do campo.

O tiro mais comprido da história. Em cheio.

E depois?

É, também vi. Parece que foi ontem.

A garotada desceu toda da arquibancada e levei um murro, um murro bem dado, enquanto corria para fora do ginásio, o murro foi tão forte que fiquei com dores durante horas.

Deve ter sido eu.

Você?

Dei um murro em alguém, mas não sei quem era. Todos os brancos parecem iguais, não é?

No meu time, fui o único que levou um murro. Só pode ter sido eu. E, se fui eu, só pode ter sido você.

Amy disse: O planeta Terra, antes estável, saiu de órbita. Ondas gigantes varrem os Sete Mares, vulcões apagam do mapa cidades inteiras. Ou será que estou imaginando coisas?

Ferguson sorriu de leve para Amy e depois se voltou para Luther.

Por que você fez aquilo?, perguntou.

Não sei. Na hora, eu não sabia, e até hoje não consigo explicar.

Aquilo me deixou abalado, disse Ferguson. Não o murro, mas a razão para o murro. A loucura do ginásio, o ódio.

Foi crescendo aos poucos, mas, no terceiro desempate, a coisa lá estava ficando bem feia. Aí veio aquele arremesso de longe e todo mundo explodiu.

Até aquela manhã, eu era aquele garoto americano médio, cabeça-oca. Uma pessoa que acreditava no progresso e na busca de um amanhã melhor. Curamos a pólio, não foi? O racismo ia ser curado logo depois. O movimen­to dos direitos civis era a pílula mágica que havia de transformar os Estados Unidos numa sociedade indiferente para a cor da pele. Depois daquele murro, depois do seu murro, de repente fiquei muito mais esperto sobre uma por­ção de coisas. E agora sou tão esperto que não consigo nem pensar no futuro sem sentir um mal-estar. Você mudou minha vida, Luther.

Se isso ajuda, disse Luther, aquele murro também me modificou. Os sentimentos da multidão tomaram conta de mim naquela manhã, e a raiva da multidão virou a minha raiva. Eu já não estava mais pensando com a minha cabeça, eu deixei a multidão pensar por mim, por isso perdi o controle, desci correndo para a quadra e fiz aquela besteira. Nunca mais, eu disse para mim mesmo. De agora em diante, sou eu quem vai mandar em mim. Meu Deus. São brancos que estão pagando para eu ir à escola, não é? O que é que eu tenho contra os brancos?

Pois espere só para ver, disse Amy. Até agora, você está com sorte.

Eu sei, respondeu Luther. Plano A: Estudar para virar um advogado que nem Thurgood Marshall, dar duro para ser o primeiro prefeito negro de New­ark, dar duro para ser o primeiro senador negro de Nova Jersey. Mas, se isso não der certo, existe sempre o Plano B: Comprar uma metralhadora e seguir as palavras de Malcom. Por qualquer meio que for necessário. Nunca é tarde demais, certo?

Vamos torcer para que não, disse Ferguson, enquanto erguia o copo e fazia que sim com a cabeça.

Luther deu uma risada. Gostei desse seu meio-irmão, disse para Amy. Ele atiça minha veia humorística e ainda sabe levar um murro. O braço dele deve ter doído à beça naquele dia, mas e a minha mão? Pensei até que tinha quebrado meus dedos.

O caderno escarlate ia ser a obra mais difícil e, de longe, a mais desafiadora que ele já havia tentado escrever, e Ferguson tinha sérias dúvidas de sua capacidade para realizar aquela tarefa. Um livro sobre um livro, um livro que a pessoa podia ler e no qual também podia escrever, um livro em que a pessoa podia entrar como se fosse um espaço físico tridimensional, um livro que era o mundo e continuava a ser mental, um enigma, uma paisagem abundante, repleta de belezas e de perigos, e pouco a pouco uma história começaria a se desenvolver ali dentro, que iria colocar o autor fictício, F., em confronto com os elementos mais sombrios dele mesmo. Um livro de sonho. Um livro sobre as realidades imediatas que estavam na frente do nariz de F. Um livro impossível, que não podia ser escrito e que, com toda certeza, redundaria num caos de cacos aleatórios e incoerentes, um monte de absurdos. Por que tentar fazer uma coisa assim? Por que não inventar simplesmente mais uma história e contar do jeito como faria qualquer escritor? Porque Ferguson queria fazer alguma coisa diferente. Porque Ferguson não estava mais interessado em apenas contar histórias. Porque Ferguson queria se pôr à prova contra o desconhecido e ver se conseguia sobreviver ao combate.

Primeiro item. No caderno escarlate, estão todas as palavras que ainda precisam ser ditas e todos os anos de minha vida que precedem o dia em que comprei o caderno escarlate.

Segundo item. O caderno escarlate não é imaginário. É um caderno real, tão real quanto a caneta que está na minha mão ou a camisa que está nas minhas costas, e está aberto na minha frente, sobre a escrivaninha. Comprei este caderno há três dias, numa papelaria na Lexington Avenue, na cidade de Nova York. Havia muitos outros cadernos à venda na loja — cadernos azuis, cadernos verdes, amarelos, marrons —, mas, quando deparei com o vermelho, ouvi como ele me chamava e dizia meu nome. O vermelho era tão vermelho que a cor, na verdade, era escarlate, pois ardia de forma tão brilhante quanto o A no vestido de Hester Prynne. Dentro do caderno escarlate, as páginas são brancas, é claro, e são muitas, mais do que alguém podia contar nas horas entre o nascer do dia e o pôr do sol, num longo dia de verão.

Quarto item. Quando abro o caderno escarlate, vejo a janela através da qual estou olhando, na minha mente. Vejo a cidade, do lado de fora da janela. Vejo uma velha que anda com seu cachorro e ouço a partida de beisebol que estão ouvindo num rádio no apartamento vizinho. Duas bolas, dois strikes, dois jogadores eliminados. Lá vai bola.

Sétimo item. Quando viro as páginas do caderno escarlate, muitas vezes vejo coisas que achava que tinha esquecido e, de repente, me vejo de volta ao passado. Recordo antigos números de telefone e amigos que sumiram. Recordo o vestido que minha mãe usava no dia da minha formatura no primário. Recordo a data da assinatura da Carta Magna. Recordo até o primeiro caderno escarlate que comprei na vida. Foi em Maplewood, Nova Jersey, faz muitos anos.

Nono item. No caderno escarlate, há números cardinais, aves de asas pretas e tordos. Há o time de beisebol Boston Red Sox e o time Cincinnati Red Stockings. Há rosas, tulipas e papoulas. Há uma fotografia do Touro Sentado. Há a barba de Érico, o Ruivo. Há panfletos de esquerda, beterrabas cozidas e nacos de carne crua. Há fogo. Há sangue. Também estão incluídos O vermelho e o negro, o Temor Vermelho e A máscara da morte rubra. Essa é apenas uma lista parcial.

Décimo segundo item. Há dias em que alguém que possui um caderno escarlate não deve fazer nada mais senão ler o caderno. Em outros dias, é necessário escrever nele. Isso pode ser complicado e, em certas manhãs, quando me sento para trabalhar, não tenho certeza de qual atividade é a correta. Parece que depende da página a que você chegou naquele momento, mas, como as páginas não têm número, é difícil saber de antemão. Isso explica porque passei tantas horas infrutíferas olhando para as páginas em branco. Acho que era de esperar que eu encontrasse uma imagem ali, mas, quando nada acontece, depois de todo meu esforço, muitas vezes sou dominado pelo pânico. Houve um episódio que foi tão desmoralizante para mim que achei que eu ia ficar doido. Chamei meu amigo W., que também tem um caderno escarlate, e contei para ele como eu estava desesperado. “São os riscos de ter um caderno escarlate”, disse ele. “Ou a gente se entrega ao desespero e depois espera que ele passe sozinho ou queima o caderno escarlate e esquece que teve um.” W. pode ter alguma razão, mas nunca fui capaz de fazer nada disso. Por mais dor que me cause, por mais que eu, às vezes, me sinta perdido, eu jamais conseguiria viver sem um caderno escarlate.

Décimo quarto item. Nas páginas da direita do caderno escarlate, aparece uma luz atenuante, crepuscular, em diversos momentos do dia, uma luz semelhante àquela que cai nos campos de trigo e de cevada no pôr do sol, no final do verão, só que mais brilhante, de certo modo, mais etérea, mais repousante para os olhos, ao passo que as páginas da esquerda emitem uma luz que faz a gente pensar numa tarde fria de inverno.

Décimo sétimo item. A chocante descoberta, na semana passada, de que é impossível entrar no caderno escarlate, ou melhor, de que o caderno escarlate é um instrumento para penetrar em espaços imaginários tão vívidos e tão tangíveis que adquirem a aparência da realidade. Não se trata apenas de uma reunião de páginas para ler e escrever, portanto, é um locus solus, uma fissura microscópica no universo, que pode se expandir para permitir que alguém a atravesse, caso aperte o caderno escarlate contra o rosto e, de olhos fechados, aspire os aromas do papel. Meu amigo W. me preveniu que pode ser perigoso partir numa dessas excursões feitas de improviso, mas agora que fiz minha descoberta, como posso resistir à vontade de me esgueirar, de vez em quando, nesses outros espaços? Arrumo na marmita uma pequena refeição, jogo algumas coisas dentro de uma bolsa pequena (um suéter, um guarda-chuva dobrável, uma bússola) e depois telefono para W., para avisar que estou de partida. Ele se preocupa comigo o tempo todo, eu receio, porém W. é muito mais velho do que eu (já fez setenta anos, no último aniversário) e talvez tenha perdido o gosto por aventuras. Boa sorte, me diz ele, seu retardado, e então eu rio no fone e desligo. Até agora, eu não me afastei por mais de duas ou três horas de cada vez.

Vigésimo item. No caderno vermelho, fico feliz de poder comunicar isto, existe uma brutal maldição contra todo mundo que, algum dia, me enganou.

Vigésimo terceiro item. Nem tudo no caderno escarlate é o que parece ser. A Nova York que habita dentro dele, por exemplo, nem sempre corresponde à Nova York da minha vida em vigília. Já me aconteceu de, quando eu caminhava pela rua 89 Leste, virar na esquina do que eu esperava ser a Segunda Avenida e dar de cara com o Central Park Sul, perto do Columbus Circle. Talvez seja porque eu conheça essas ruas com mais intimidade do que quaisquer outras na cidade, pois, no início do verão, me mudei para um apartamento na rua 89 Leste, e, desde o início de minha vida, já fui ao Central Park Sul centenas de vezes para visitar meus avós, cujo apartamento fica num prédio na rua 58 Oeste e que também tem uma saída para o Central Park Sul. Essa sinapse geográfica poderia sugerir que o caderno escarlate é um instrumento altamente pessoal, para cada pessoa que possua um, e que não existem dois cadernos escarlates iguais, ainda que todas as capas pareçam idênticas. As memórias não são contínuas. Elas saltam de um lugar para outro e traçam arcos por cima de vastos intervalos de tempo, com muitas lacunas no meio, e, como meu meio-irmão chama isso de efeito de quantum, as histórias múltiplas e contraditórias que se encontram no caderno escarlate não formam uma narrativa contínua. Ao contrário, elas tendem a se desdobrar como fazem os sonhos, vale dizer, com uma lógica que nem sempre se mostra logo aparente.

Vigésimo terceiro item. Em todas as páginas do caderno escarlate, estão minha escrivaninha e tudo o mais que há no quarto onde estou agora. Embora, muitas vezes, eu tenha sentido a tentação de levar meu caderno escarlate comigo, em minhas caminhadas pela cidade, ainda não tomei coragem de retirá-lo da escrivaninha. Por outro lado, quando eu parto para dentro dele, propriamente dito, sempre me parece que eu tenho comigo o caderno escarlate.

Assim Ferguson começou a atravessar o lago a nado pela segunda vez, o seu lago Walden de trabalho solitário com as palavras, de sete a dez horas por dia na escrivaninha. Acabaria sendo um longo e desajeitado espadanar de pernas e braços dentro da água, com frequentes submersões e ainda mais cansaço nas pernas e nos braços, mas Ferguson tinha um talento nato para mergulhos em águas profundas e perigosas, quando não há nenhum salva-vidas, e, uma vez que um livro assim nunca tinha sido escrito nem sequer tinha sido sonhado por ninguém antes dele, Ferguson teve de aprender sozinho como fazer o que estava fazendo, na mesma hora em que fazia. Como parecia acontecer com tudo que ele escrevia agora, acabava descartando mais material do que aproveitava, aparando os 365 itens que tinha escrito entre o início de junho e meados de setembro de 1966, e chegando a 174, que deram para encher cento e onze páginas datilografadas em espaço duplo no último rascunho, o que tornou seu livro, do tamanho de uma novela, ligeiramente mais curto do que o primeiro, e, depois de montado nos estênceis em espaço simples pela editora Gizmo, o texto coube em cinquenta e quatro páginas, um número par, que eximiu Ferguson da onerosa responsabilidade de ter de redigir mais uma nota autobiográfica.

Estava gostando de morar em seu pequeno apartamento, pago com o dinheiro do suborno, e durante todo seu primeiro verão ali, em 1966, enquanto Joanna trabalhava na datilografia de Viagens de Mulligan e Ferguson quebrava a cabeça para escrever as páginas de O caderno escarlate, ele continuava a pensar nos dez mil dólares e em como o avô, de maneira marota e ardilosa, tinha explicado o “presente” para a filha Rose, chamando-a para conversar em sua casa logo no dia seguinte (que foi também o dia em que Ferguson encontrou Billy e Joanna Best pela primeira vez), para contar à filha que ele havia dado início a seu próprio projeto informal de patrocínio das artes, equivalente ao da Fundação Rockefeller, ou seja, a Fundação Adler para Promoção das Artes, e havia simplesmente entregado para o neto um prêmio de dez mil dólares, a fim de incentivar sua carreira de escritor. Que incrível montanha de conversa fiada, pensou Ferguson, e ainda assim, que coisa mais interessante que um homem que se envergonhou a ponto de chorar e a ponto de preencher um cheque para expiar sua culpa ainda pudesse, no dia seguinte, dar a volta por cima e sair contando vantagem sobre o que tinha feito. Que velho maluco e idiota, mas, no domingo seguinte, quando Ferguson falou, de Princeton, por telefone com a mãe, teve até de abafar o riso quando ela comunicou o que o velho tinha contado para ela a incrível picaretagem daquela história toda, a ostentação de autoenobrecimento da generosidade sem paralelo do avô, e quando a mãe disse: Pense só, Archie, primeiro a bolsa de estudos Walt Whitman e agora esse presente espantoso do seu avô — Ferguson respondeu: Eu sei, eu sei, eu sou o sujeito mais sortudo na face da Terra, repetindo de forma consciente as palavras de Lou Gehrig, no estádio Yankee, depois de descobrir que estava morrendo da doença que acabaria levando o nome dele. Vida mansa, disse a mãe de Ferguson. Sim, era isso mesmo, vida mansa, e que mundo lindo e maravilhoso era aquele quando a gente não parava para olhar mais de perto.

Um colchão no chão, uma escrivaninha e uma cadeira que ele tinha encontrado na calçada, perto de casa, e carregado para cima até seu apartamento com a ajuda de Billy, algumas panelas e frigideiras compradas por uns poucos trocados numa loja local da Legião da Boa Vontade, lençóis, toalhas e roupas de cama doados pela mãe e por Dan como um presente de enxoval, e uma segunda máquina de escrever, comprada na loja de máquinas de escrever de segunda mão Osner’s, na Amsterdam Avenue, para não ter de carregar uma máquina de escrever de Princeton para Nova York, e depois levar de volta para Princeton, toda sexta-feira e todo domingo, uma máquina Olympia fabricada na Alemanha Ocidental mais ou menos em 1960, com um toque ainda mais refinado e mais ligeiro do que sua leal e adorada Smith-Corona. Jantares frequentes com os Best, jantares frequentes com Amy e Luther, reuniões ocasionais com Ron Pearson e a esposa, Peg, além de expedições solitárias para jantares precoces no Ideal Lunch Counter, na rua 86 Leste, o boteco que tinha um letreiro na porta, dizendo: SERVINDO COMIDA ALEMÃ DESDE 1932 (uma data relevante, que não estabelecia nenhuma relação com o que havia ocorrido na Alemanha no ano seguinte), e Ferguson adorava matar a fome com aqueles pratos pesados, que enchiam a barriga, Königsberger Klopse e Wiener Schnitzel, e ouvir a garçonete grandalhona e musculosa, atrás do balcão, gritar para a cozinha, com seu sotaque carregado, Von schnitzel!, o que nunca deixava de despertar lembranças do falecido pai de Dan e Gil, o outro avô maluco da sua tribo, o Opa biruta e intratável de Jim e Amy. O homem mais sortudo na face da Terra também teve a boa sorte de conhecer Mary Donohue naquele verão, a irmã mais jovem de Joanna, de vinte e um anos, que estava passando aqueles meses com os Best e trabalhando num escritório antes de voltar para Ann Arbor para cursar o último ano, e como a carnuda Mary, simpática e doida por sexo, caiu de amores por Ferguson, ela muitas vezes aparecia em seu apartamento à noite e ia para a cama com ele, o que ajudava a diminuir a constante saudade de Evie, que ele continuava a sentir, e ajudava a afastar seus pensamentos da maldade que tinha feito com ela, cortando relações sem sequer uma despedida decente. As carnes abundantes e macias de Mary — um bom lugar para se afogar e esquecer quem era, para tirar dos ombros o fardo de ser ele mesmo —, e o sexo era bom, por­que era simples e transitório, sexo sem laços, sem ilusões, sem esperanças de nada mais duradouro do que aquilo que era.

O plano inicial de Ferguson era se intrometer na história e resolver ele mesmo o problema Amy-Luther, agir pelas costas deles, da mesma forma como Noah tinha feito com o original de seu livro, e ligar para a mãe, contar o que estava acontecendo e perguntar como ela achava que Dan ia reagir àquela novidade. Depois, reexaminou a questão e concluiu que não tinha o direito de enganar a meia-irmã e agir sem seu consentimento, portanto, certa noite, em meados de junho, quando Ferguson, Bond e Schneiderman estavam sentados em West End, inalando e absorvendo uma rodada de cigarros e cervejas, o filho de Rose perguntou à filha adotiva de Rose se ela não deixaria que ele falasse com a mãe em nome dela, a fim de pôr um ponto-final nesse absurdo. Antes que Amy pudesse responder, Luther se inclinou para a frente e disse: Obrigado, Archie, e logo depois Amy disse mais ou menos a mesma coisa: Obrigado, Arch.

Ferguson telefonou para a mãe na manhã seguinte e, quando contou por que estava ligando, a mãe riu.

Nós já sabemos de tudo isso, disse ela.

Sabem? Mas como é que podem saber?

Soubemos por meio dos Waxman. E também pelo Jim.

Jim?

É, o Jim.

E o que é que o Jim acha?

Ele não liga. Ou melhor, liga sim, porque ele gosta muito do Luther.

E o Dan?

Um pouco chocado, no início, eu acho. Mas agora acho que já superou. Quer dizer, Amy e Luther não estão com planos de se casar, estão?

Não tenho a menor ideia.

Casamento já seria demais. Um peso para os dois, uma estrada muito, muito dura, se resolverem fazer isso, e dura também para os pais do Luther, que, por falar nisso, não estão, nenhum dos dois, nada contentes com esse pequeno romance, para começar.

Você já falou com os Bond?

Não, mas Edna Waxman diz que os Bond estão preocupados com o filho. Acham que ele anda muito com brancos, acham que perdeu o sentimento da sua negritude. A Newark Academy, agora Brandeis, e todo mundo tão simpático com ele, virou o queridinho dos brancos. É tudo muito gentil e cômodo, dizem eles, nenhuma pedra nos ombros e, no entanto, ao mesmo tempo, eles sentem muito orgulho do filho e são muito gratos aos Waxman por ajudá-los. É um mundo bem complicado, não é, Archie?

E você, o que é que você acha de tudo isso?

Ainda estou pensando. Não sei ainda, antes de poder encontrar pessoalmente o Luther. Diga para a Amy me telefonar, está bem?

Farei isso. E não fique preocupada. Luther é um cara legal, e peça para Edna Waxman dizer aos Bond que não fiquem preocupados também. O filho está com uma pedra nos ombros. Só que não é muito grande, só isso. Uma pedra do tamanho certo, eu diria, uma pedra adequada para ele.

Um mês e uma semana depois, Ferguson, Mary Donohue, Amy e Luther estavam viajando para o norte, no velho automóvel Pontiac, rumo à fazenda no sul de Vermont, onde Howard Small estava passando o verão, e, naquela mesma sexta-feira, em outro carro, a mãe de Ferguson e o pai de Amy, juntos com a tia e o tio adotivo de Ferguson, viajavam para Williams­town, Massachusetts, onde os cinco estudantes de graduação iriam encontrá-los na noite seguinte para ver a apresentação de Noah no papel de Lucky, na peça Esperando Godot. Porcos, vacas, galinhas, cheiro de esterco no estábulo, vento varrendo os montes verdejantes e rodopiando pelo vale abaixo, e How­ard, de ombros largos, vagando ao lado do quarteto de Nova York, enquanto passeavam pela terra de sua tia e de seu tio, os sessenta acres que se estendiam pelos arredores de Newfane. Como Ferguson se sentiu feliz ao reencontrar seu colega de faculdade, e como era bom que a tia e o tio não tivessem acessos de frescura com as combinações para que os casais de colegas dormissem juntos (Howard fincou pé e obrigou os tios a aceitar — se não), e agora que a questão entre Amy e seu pai, relativa a Luther, tinha sido resolvida, todos estavam muito relaxados naquele fim de semana, longe do cimento quente e dos vapores fumegantes de Nova York, enquanto Amy galopava num pasto, montada num garanhão alazão. Uma imagem memorável, que Ferguson continuaria a saborear ao longo dos anos dali em diante, mas nada foi mais memorável do que a representação teatral na noite de sábado, em Williamstown, a apenas oitenta quilômetros da fazenda, a peça que Ferguson tinha lido no ensino médio, mas nunca tinha visto encenada, que ele tinha relido naquela mesma semana para se preparar para a montagem, só que aconteceu que nada poderia prepará-lo para o que viu naquela noite, Noah com a peruca de cabelo branco e comprido, embaixo do chapelão de feltro, e com uma corda no pescoço, o escravo agredido e sobrecarregado de aflições, o bobo, o palhaço mudo, que cai e engatinha e tropeça, passos tão bem coreografados, os movimentos ondulantes, entorpecidos, espasmódicos, de pés arrastando, para a frente e para trás, cochilando de pé, o chute inesperado desferido contra a perna de Estragon, as lágrimas inesperadas que descem pelo rosto, a dança patética, contorcionista, que executa quando recebe a ordem de dançar, o chicote e os sacos para cima e para baixo, repetidas vezes, o banco de Pozzo dobrado e desdobrado repetidas vezes, não parecia possível que Noah fosse capaz de fazer aquelas coisas, e então, no primeiro ato, o discurso famoso, o discurso de Puncher e Wattmann, o discurso do “quaquaquaqua”, a longa ladainha de palavrório acadêmico sem pontuação, e Noah mergulhou na fala como se estivesse num transe, uma incrível exibição de controle respiratório e de ritmo verbal complexo e, meu Deus, disse Ferguson para si mesmo, meu Santo Jesus Cristo, enquanto as palavras voavam da boca de seu primo, e então os outros três pularam em cima dele e bateram nele e esmagaram seu chapéu, e Pozzo brandiu o chicote outra vez, e mais uma vez foi De pé! Porco!, e lá foram eles embora, saíram do palco, enquanto Lucky se estatelava nos bastidores.

Depois dos aplausos e dos agradecimentos, Ferguson pegou Noah em seus braços e o apertou com tanta força que quase quebrou suas costelas. Quando Noah conseguiu respirar de novo, disse: Estou contente que você tenha gostado, Archie, mas acho que me saí melhor em todas as outras apresentações. Saber que você estava na plateia, e meu pai, e Mildred, e Amy, e a sua mãe... bom, você pode imaginar. Que pressão, cara. Pressão mesmo.

O quarteto de Nova York voltou de carro para a cidade no domingo à noite e, na manhã seguinte, 25 de julho, o poeta Frank O’Hara foi atropelado por um buggy na areia de uma praia em Fire Island e morreu aos quarenta anos de idade. Quando a notícia do acidente se espalhou entre os escritores, pintores e músicos de Nova York, um grande lamento se ergueu por toda cidade e, um por um, os jovens poetas que haviam adorado O’Hara caíram de joelhos e choraram. Ron Pearson chorou. Ann Wexler chorou. Lewis Tarkowski chorou. E na parte alta da cidade, na rua 89 Leste, Billy Best deu um murro na parede com tanta força que seu punho atravessou a placa de gesso da parede pré-fabricada. Ferguson nunca tinha visto O’Hara, mas conhecia sua obra e a admirava por sua efervescência e liberdade, e, embora não tenha caído de joelhos nem tenha arrebentado a parede com um soco, passou o dia seguinte relendo os dois livros de O’Hara que tinha em casa, Poemas do almoço e Meditações numa emergência.

Sou o mais simples dos homens, escreveu O’Hara em 1954. Tudo que quero é amor ilimitado.

Fiel à sua promessa, Celia mandou para Ferguson exatamente vinte e quatro cartas durante os dois meses de sua viagem no exterior. Cartas boas, ele achou, cartas bem escritas, com muitas observações agudas sobre suas experiências em Dublin, Cork, Londres, Paris, Nice, Florença e Roma, pois Celia, a exemplo do irmão, Artie, sabia como observar as coisas com cuidado, com mais paciência e curiosidade do que a maioria das pessoas, como se podia constatar em sua frase sobre a zona rural irlandesa numa das primeiras cartas, que deu o tom para tudo o que veio a seguir: Uma terra verde e sem árvores, pontilhada de pedras cinzentas e gralhas pretas que voam no alto, uma imobilidade no coração de tudo, mesmo quando o coração está batendo e o vento começa a soprar. Nada mau para uma futura bióloga, pensou Ferguson, porém, por mais amistosas que fossem as cartas, nada continham de íntimo nem de revelador, e, quando Celia voltou para Nova York no dia 23 de agosto, um dia depois de Mary Donohue lhe dar um beijo de despedida e regressar para Ann Arbour, Ferguson não tinha a menor ideia de qual seria sua relação com Celia. Sua intenção era descobrir logo, o mais depressa possível; no entanto, nessa altura, como Celia tinha dezessete anos e meio, a proibição de contatos físicos estava suspensa. O amor era um esporte de contato afinal, e agora Ferguson estava em busca de amor, estava pronto para o amor, para usar as palavras de uma antiga canção de Cantando na chuva, e, por todas as velhas razões e por todas as novas razões também, ele tinha grande esperança de encontrar esse amor nos braços de Celia Federman. Se ela o aceitasse.

Ela ficou perplexa com o despojamento da casa de Ferguson quando foi visitá-lo no dia 27. A escrivaninha era boa, o colchão era bom, mas como ele conseguia guardar as roupas numa caixa de papelão, no armário, e não ter um cesto ou uma bolsa grande para as roupas sujas, e simplesmente deixar as meias e as cuecas jogadas no chão do banheiro? E por que não arranjar uma boa estante de livros, em vez de empilhar os livros encostados na parede? E por que não tinha quadros? E por que comer na escrivaninha, quando havia espaço para pôr uma mesinha no canto da cozinha? Era porque ele queria o menor número de coisas possível, explicou Ferguson, e também porque não se importava. Sei, sei, disse Celia, ela estava se comportando como uma mulher de meia-idade dos subúrbios, e estava resmungando que nem uma ex-boêmia renegada nas selvas de Manhattan, ela estava entendendo tudo, e aquilo não era mesmo da sua conta, mas será que ele não gostaria de tornar sua casa nem um pouquinho melhor?

Os dois estavam de pé no meio da sala, com o sol sobre eles entrando através das janelas e batendo em cheio no rosto de Celia, o rosto iluminado de uma garota de dezessete anos e meio, de tamanha beleza que Ferguson ficou desnorteado ao vê-la, desnorteado e em silêncio, pasmo e trêmulo de incerteza, e, enquanto continuava a olhar para ela, e ficava olhando e olhando para ela, porque se sentia incapaz de olhar para qualquer outra coisa, Celia sorriu e disse: Qual é o problema, Archie? Por que está me olhando desse jeito?

Desculpe, disse ele. Não consigo evitar. É só que você está tão linda, Celia, tão incrivelmente linda, que começo a me perguntar se você é mesmo real.

Celia riu. Que exagero, disse. Nem chego a ser bonita. Não passo de uma garota mediana e comum.

Quem foi que disse essa besteira para você? Você é uma deusa, a rainha de toda a Terra e de todas as cidades dos céus.

Bem, é gentil que você pense assim, mas talvez fosse melhor você ir ao oculista, Archie, e comprar uns óculos.

O sol deslocou-se no céu, ou uma nuvem passou na sua frente, ou Ferguson começava a se sentir sem graça por sua declaração impetuosa, mas, quatro segundos depois de Celia dizer aquelas palavras, o alvo de seu olhar não era mais a mesa, o alvo era mais uma vez a mesa que Ferguson não tinha, a estante que ele não tinha, a cômoda que ele não tinha, e se aquilo era tão importante para ela, disse Ferguson, talvez pudessem pegar emprestado o carrinho de mão do Billy e ir procurar uns móveis pela rua, era o método testado e aprovado de decorar apartamentos em Manhattan, e com as pessoas ricas no Upper East Side jogando fora uma porção de coisas boas todos os dias, tudo que ele tinha de fazer era caminhar uns poucos quarteirões para o sul e depois uns poucos quarteirões para oeste, onde era certo que encontrariam na calçada alguma coisa que Celia aprovasse.

Estou pronta, se você quiser. Ferguson também estava pronto, mas, antes de saírem, havia duas ou três coisas que ele queria mostrar para ela, e então a levou até sua escrivaninha, onde apontou para uma caixinha de madeira com as palavras Viagens de Federman escritas em cima e, quando ela assimilou a importância daquela caixa e a lealdade à amizade deles que aquilo demonstrava, Ferguson abriu a gaveta de baixo, do lado direito da escrivaninha, puxou um exemplar do livro Viagens de Mulligan¸ da editora Gizmo Press, e entregou para Celia.

O seu livro!, disse Celia. Foi publicado!

Olhou bem para a capa de Howard, correu a mão suavemente sobre o desenho de Mulligan, folheou ligeiro com o polegar as páginas mimeografadas no miolo do livro e então, inexplicavelmente, deixou o livro cair no chão.

Por que você fez isso?, perguntou Ferguson.

Porque eu quero beijar você, disse ela.

Um instante depois, ela passou os braços em volta de Ferguson e apertou sua boca contra a dele e, na mesma hora, os braços de Ferguson a envolveram e suas línguas entraram na boca um do outro.

Foi o primeiro beijo deles.

E foi um beijo de verdade, que alegrou imensamente o coração de Ferguson, pois não só o beijo oferecia uma promessa de mais beijos, nos dias futuros, como provava que Celia era real.

Fazia mais de um ano que ele não tinha nenhum contato com o pai. Raramente Ferguson pensava no pai agora, e quando pensava, percebia que a raiva que antes sentia havia se reduzido a uma indiferença embotada, ou talvez tivesse se reduzido a nada, uma lacuna dentro da cabeça. Ele não tinha pai. O homem que, no passado, foi casado com sua mãe havia sumido nas sombras de um mundo alternativo, que já não tinha interseções com o mundo em que o filho vivia, e, se o homem ainda não estava comprovadamente morto, já fazia muito tempo que estava desaparecido e nunca mais seria encontrado, em qualquer tempo futuro.

Três dias antes de partir para Princeton para o início de seu segundo ano na faculdade, entretanto, quando Ferguson estava sentado na sala de Wood­hall Crescent vendo uma partida do Mets com seu meio-irmão Jim, e a noiva de Jim, Nancy, inesperadamente o profeta dos lucros irrompeu na tela do televisor num comercial, no intervalo do jogo. Ostentando costeletas espessas, com um toque grisalho, e paramentado num terno elegante e vistoso (cor ignorada, pois o televisor era em preto e branco), ele estava anunciando a inauguração de um novo centro comercial em Florham Park e martelava com força os preços baixos, os preços muito, muito baixos, que você pode pagar, e venha dar uma olhada nos novos televisores a cores RCA e nas pechinchas que vão deixar você de queixo caído, na semana que vem, quando a loja abrir para os clientes. Incrível como ele vendia seu peixe com habilidade e confiança, disse Ferguson para si mesmo, garantindo ao público que sua vida angustiada e monótona seria impulsionada para as alturas ao fazer compras na loja Ferguson’s, e, para um homem que nunca tinha aprendido a falar, como tinha dito a mãe, um dia, ele agora estava falando que era uma maravilha, e parecia à vontade e descontraído na frente da câmera, parecia satisfeito consigo mesmo, com o total domínio da situação, e, enquanto gesticulava e sorria, acenando para que as massas invisíveis viessem e poupassem uma bolada, um quarteto de vozes sopranos e tenores trilava com animação ao fundo: Preços mais baixos não há/ Alegria maior não tem/ Só na Ferguson’s, Ferguson’s, Fer-gu-son’s!

Duas ideias surgiram na cabeça de Ferguson quando o anúncio terminou, uma logo depois da outra, e tão depressa que as duas foram quase simultâneas:

1) Que era melhor parar de ver partidas de beisebol na televisão, e 2) Que seu pai continuava a rondar na periferia de sua vida, ainda não tinha se apagado por completo, continuava presente, apesar da distância entre eles, e talvez mais um capítulo da história estivesse para ser escrito antes de o livro ser finalmente fechado.

A menos que fizesse um curso relâmpago de grego antigo e aprendesse o idioma em apenas um ano letivo, Ferguson não teria mais aulas com Nagle. Mas Nagle continuava a ser seu conselheiro acadêmico e, por razões que tinham tudo a ver com seu pai, ou talvez não tivessem nada a ver com seu pai, Ferguson continuava a procurar em Nagle a aprovação e o incentivo, continuava a querer impressionar aquele homem mais velho, fazendo trabalhos de alta qualidade em seus cursos, dando provas da solidez de caráter exigida dos participantes do Programa de Bolsas de Estudo Walt Whitman, mas, acima de tudo, conquistando o apoio do professor para a ficção que estava escrevendo, um sinal de que estava cumprindo a promessa que Nagle tinha visto nele depois de ler Onze momentos na vida de Gregor Flamm. Em sua primeira reunião a sós no semestre do outono, Ferguson entregou para Nagle um exemplar de Viagens de Mulligan na edição da Gizmo Press, ambivalente e temeroso de que tivesse se aventurado a publicar sua obra cedo demais, preocupado com a possibilidade de Nagle encarar o livro mimeografado como o gesto descaradamente ambicioso de um jovem escritor que ainda não estava pronto para ser editado, duplamente temeroso de que Nagle lesse o livro e achasse horrível, desferindo mais um daqueles socos que Ferguson temia tanto quanto desejava os beijos das pessoas que admirava, mas, naquela primeira tarde, Nagle aceitou o livro com um aceno de cabeça cordial e algumas poucas palavras de congratulação, sem nada saber de seu conteúdo, é claro, mas pelo menos sem condenar Ferguson por ter se afobado a buscar uma publicação prematura para acabar encontrando o inevitável arrependimento e constrangimento que viriam após tamanha prova de arrogância mal calculada, e, enquanto Nagle segurava o livro nas mãos e examinava a ilustração em preto e branco na capa, mencionou que achava o desenho muito bom. Quem é H. S.?, perguntou, apontando para a assinatura abreviada no canto direito inferior, e quando Ferguson disse que era Howard Small, seu colega de dormitório em Princeton, a fisionomia circunspecta de Nagle lançou um de seus raros sorrisos. O aplicado Howard Small, disse ele. Um estudante tão bom, eu não tinha ideia de que sabia desenhar tão bem assim. Vocês formam uma dupla e tanto, não é?

Na reunião seguinte no escritório do professor, três dias depois, quando deviam decidir que cursos Ferguson iria fazer naquele semestre, Nagle começou a proferir seu veredicto sobre o livro Viagens de Mulligan. Não importava que Billy, Ron e Noah tivessem, todos eles, abraçado o livro com fervor, tampouco importava que Amy, Luther e Celia tivessem reagido com beijos entusiásticos (no caso de Celia, beijos físicos de verdade), e também nem contava o fato de tia Mildred e tio Don terem se dado ao trabalho de telefonar e despe­jar uma chuva de elogios em cima dele durante quase uma hora, ou o fato de Dan e sua mãe e a falecida Evie Monroe e a falecida Mary Donohue terem, todos eles, dito para Ferguson que o livro era ótimo; a opinião de Nagle era a que contava, mais que todas, porque era o único observador objetivo, o único sem vínculos de amizade, de amor ou de família, e uma palavra negativa sua iria aparar bem rente, talvez até demolir, o monte de palavras positivas recebidas dos demais.

Nada mau, disse ele, usando a expressão a que costumava recorrer quando gostava bastante de alguma coisa, porém com certas reservas. Um progresso em relação a suas obras anteriores, prosseguiu, escrito com rigor, tem uma refinada e sutil musicalidade nas frases que nos atrai para ler, mas é rematadamente, desvairadamente louco, é claro, uma inventividade que beira o terreno do colapso mental, e no entanto, apesar de tudo isso, os textos são divertidos quando você quer que sejam divertidos, dramáticos quando você quer que sejam dramáticos, e está claro que você leu Borges agora, e aprendeu com ele algumas lições sobre como caminhar na fronteira entre o que eu chamaria de ficção e prosa especulativa. Algumas ideias tolas de aluno do segundo ano de faculdade, eu receio, mas é isso que você é, Ferguson, um aluno do segundo ano da faculdade, portanto não vamos nos deter nos pontos fracos do livro. No mínimo, você me convenceu de que está progredindo, o que sugere que você vai continuar a progredir à medida que o tempo passe.

Obrigado, disse Ferguson. Nem sei o que dizer.

Não fique mudo diante de mim agora, Ferguson. Ainda temos de conversar sobre seus planos para o semestre. O que me leva à pergunta que eu vinha querendo lhe fazer. Você não mudou de ideia quanto a se inscrever numa das oficinas literárias?

Não, na verdade, não.

Mas é um bom programa, você sabe. Um dos melhores que existem.

Tenho certeza de que o senhor está certo. Só que eu acho que serei mais feliz se ficar quebrando a cabeça sozinho.

Entendo suas reservas, mas ao mesmo tempo acho que ia ajudar você. E, além do mais, tem a questão de Princeton, a questão de ser parte da comunidade de Princeton. Por exemplo, por que você não apresentou nenhum texto à Nassau Literary Review?

Não sei. Nunca passou pela minha cabeça.

Tem alguma coisa contra Princeton?

Não, nem de longe. Adoro isto aqui.

Então, não há mágoa nenhuma?

Nem sombra. Eu me sinto um afortunado.

Enquanto ele conversava com Nagle e os dois traçavam o esquema de seu currículo para o semestre de outono, Howard estava no dormitório, lendo O caderno escarlate, livro que Ferguson chamara de natimorto uma semana antes, mais um defunto expelido do meu cérebro infestado de besteiras, como tinha dito para Howard quando lhe entregou o original, mas Howard já estava acostumado com os tormentos e as dúvidas de Ferguson e não dava atenção a isso, tinha confiança na força da própria inteligência para tirar suas próprias conclusões independentes, e, quando Ferguson entrou no quarto, depois da reunião com Nagle, Howard já havia terminado de ler o livro.

Archie, disse ele, você já leu Wittgenstein?

Não, ainda não. É mais um na minha lista dos não lidos ainda.

Certo. Ou melhor, dá uma boa olhada nisto aqui, mein Herr.

Howard pegou um livro azul com o nome de Wittgenstein na capa, abriu até achar a página que estava procurando e leu em voz alta para Ferguson: E também significa alguma coisa falar de “viver nas páginas de um livro”.

É verdade, é verdade, disse Ferguson. E então, se pondo em posição de sentido e prestando continência militar, acrescentou: Obrigado, Ludwig!

Você entende aonde é que estou querendo chegar, não é?

Na verdade, não.

O caderno escarlate. Acabei de ler o livro, faz uns dez minutos.

“Como passei as férias de verão.” Lembra aquelas coisas que a gente tinha de escrever na escola quando criança? Pois é, foi assim que passei minhas férias de verão. Vivendo nas páginas dessa monstruosidade... esse aborto em forma de livro.

Você sabe como eu adorei o Mulligan, não sabe? Pois este agora é mais profundo, melhor e mais original. Um grande salto. E tomara que você me deixe fazer a capa do livro.

O que faz você pensar que Billy vai querer publicar?

Não seja idiota. É claro que ele vai querer publicar. Foi Billy quem descobriu você e ele acha que você é um gênio, o bebê gênio de olhos radiantes que ele descobriu e, aonde quer que você vá, é para lá que ele também quer ir.

Pois agora me diga uma coisa, disse Ferguson, começando a abrir um sorriso. Acabei de levar um banho de água fria do Nagle por causa do Mulligan. É bom e não é bom. Tem coisas de um estudante do segundo ano, mas é divertido. Foi escrito por um louco, que devia ser posto numa camisa de força. É um passo à frente, mas ainda tem muita estrada e muito chão para andar. E acontece que eu concordo com ele.

Você não deve dar ouvidos ao Nagle. É um excelente professor... de grego. Eu e você adoramos o Nagle, mas ele não está habilitado para julgar seu trabalho. Ele está preso no passado e você é aquilo que vai acontecer no futuro. Pode não ser amanhã, talvez, mas sem dúvida, depois de amanhã.

Assim começou o segundo ano de Ferguson no paraíso do esquilo preto, ouvindo uma preleção de vestiário do seu companheiro de dormitório, How­ard Small, que agora era, para Ferguson, um amigo tão importante quanto Noah e Jim, uma parte indispensável daquilo que o mantinha vivo, e, por mais que os elogios de Howard sobre seu livro pudessem ser exagerados, ele tinha razão ao prever que Billy ia querer publicar seu novo livro, e, como Joanna estava grávida de sete meses e meio e perto demais de dar à luz para poder datilografar os estênceis, foi o próprio Billy quem fez o serviço, tanto assim que, uma semana antes de o pequeno Molly Best vir ao mundo, no dia 9 de novembro, o segundo livrinho de Ferguson foi impresso.

Foi um ano melhor do que o primeiro tinha sido, com menos aflições e menos perturbações interiores, com um sentimento mais consistente de pertencer ao lugar onde o destino calhou de colocá-lo, foi o ano dos poemas anglo-saxões de Chaucer, dos maravilhosos versos aliterativos de Sir Thomas Wyatt (... enquanto ela foge mundo a fora/ eu, sem forças, fraco, me afogo...), o ano de protestar contra a Guerra do Vietnã, tomando parte das manifestações contra a Dow Chemical, no Engineering Quad, com Howard e seus outros amigos do Woodrow Wilson Club, para denunciar a fabricante de napalm, foi o ano de se estabelecer em seu apartamento nova-iorquino de fim de semana mais fartamente decorado e de reforçar sua amizade com Billy, Joanna, Ron e Bo Jainard, fazer uma ponta no primeiro filme de Noah, um curta-metragem de sete minutos intitulado Manhattan Confidential, em que Ferguson podia ser visto de relance, na mesa de um bar de baixa categoria, lendo Espinosa em francês, e foi o ano de trabalhar em A alma das coisas inanimadas, uma sequência de treze meditações sobre os objetos de seu apartamento, livro que ele concluiu no fim de maio. Foi também o ano em que morreu seu avô, de uma forma estranha e ignominiosa da qual ninguém na família queria falar, o ponto culminante de uma longa farra de jogatina de uma semana de duração, sem pausa, em Las Vegas, durante a qual ele perdeu noventa mil dólares na roleta e depois sofreu um ataque do coração enquanto fazia amor (ou tentava fazer amor) com duas prostitutas de vinte anos de idade em seu quarto. Nos dezessete meses que haviam passado desde a morte da esposa, Benjy Adler torrou mais de trezentos e cinquenta mil dólares e foi enterrado como indigente pela Sociedade Funerária Judaica, administrada pelo Círculo de Trabalhadores, uma organização à qual ele se unira em 1936, no tempo em que lia romances de Jack London e ainda se considerava socialista.

E também havia Celia, no início e no fim de tudo, estava Celia, pois aquele foi o ano em que Ferguson se apaixonou e a coisa mais desconcertante naquela história era que mais ninguém, a não ser a mãe, enxergava em Celia o que Ferguson via. Rose achou que era uma garota maravilhosa, mas todos os outros ficaram confusos. Noah chamou-a de rebento bobo de Westchester, a versão feminina de seu irmão fantasma, só que com a pele mais escura e um rosto mais atraente, uma cê-dê-efe de Barnard que ia passar a vida inteira metida num jaleco branco de laboratório estudando ratos. Jim achou que era bonita, mas jovem demais para Ferguson, ainda não plenamente desenvolvida. Howard admirava sua inteligência, mas se perguntava se não seria uma pessoa convencional demais para Ferguson, uma burguesa certinha demais, que nunca iria compreender que Ferguson dava muito pouca importância para aquilo que, aos olhos dos outros, tinha muito valor. Amy avaliou Celia só com duas palavras: Por quê? Luther chamou-a de obra em andamento e Billy disse: Archie, o que é que você está fazendo?

Será que ele sabia mesmo o que estava fazendo? Achava que sim. Achou que sabia quando Celia colocou a nota de um dólar na frente do velho, no restaurante Horn & Hardart’s. Achou que sabia quando ela insistiu para que ele parasse com essa história de irmão de mentira, na hora em que os dois estavam andando da estação Grand Central para o restaurante automático. E achou que sabia quando Celia deixou seu livro cair no chão e declarou que queria beijá-lo.

Quantos beijos se seguiram àquele primeiro beijo ao longo dos meses seguintes? Centenas de beijos. Milhares de beijos. E na noite de 22 de outubro, quando os dois deitaram no colchão do quarto de Ferguson e fizeram amor pela primeira vez, a inesperada descoberta de que Celia não era mais virgem. Tinha havido o já mencionado Bruce, na primavera do seu último ano no ensino médio, e tinha havido dois viajantes americanos durante sua viagem com a prima Emily pela Europa, um nativo de Ohio, em Cork, e um rapaz da Califórnia, em Paris, porém, em vez de se sentir frustrado com a descoberta de que não era o primeiro, Ferguson sentiu-se animado, incentivado por ver que ela era aberta a aventuras e tinha um apetite carnal forte o bastante para correr riscos.

Ferguson adorava o corpo de Celia. Achava seu corpo nu tão lindo que mal conseguiu falar na primeira vez em que ela tirou a roupa e se deitou a seu lado. A inacreditável suavidade e quentura da pele, os braços e as pernas esguios, as faces bojudas da bunda arredondada e boa de agarrar entre os dedos, seus peitos empinados e escuros, os mamilos pontudos, ele nunca havia conhecido alguém tão lindo, e o que os outros não conseguiam entender era como ele se sentia feliz de estar com ela, passar as mãos pelo corpo da pessoa que ele agora amava mais do que qualquer outra que já havia amado. Se os outros não conseguiam entender, pior para eles, mas Ferguson não estava a fim de pedir aos jovens menestréis que tirassem seus violinos da caixa e derramassem melodias sentimentais. Um violino só bastava e, contanto que Ferguson pudesse ouvir a música que estava tocando, ele continuaria ouvindo por conta própria.

Mais importante do que os outros, ou do que os outros achavam, era o simples fato deles dois estarem juntos, e, agora que já haviam avançado para um estágio novo, havia a necessidade, cada vez mais premente, de compreender com exatidão o que estava acontecendo. Será que seu florescente amor por Celia ainda estava ligado à morte de Artie, perguntava a si mesmo, ou o irmão dela tinha sido, enfim, eliminado da equação? Afinal de contas, foi assim que começou, na época dos jantares em New Rochelle, quando o mundo se abriu ao meio e a aritmética dos deuses ofereceu a Ferguson uma fórmula para colar de novo as duas partes: apaixonar-se pela irmã do amigo morto e, dessa forma, o mundo continuaria a girar em torno do sol. Os cálculos loucos de uma mente adolescente superaquecida, de uma mente indignada e de luto, porém, por mais irracionais que fossem os números, ele esperava acabar se apaixonando por ela, e, se e quando aquilo acontecesse, também esperava que ela se apaixonasse por ele, e agora que ambas as coisas tinham ocorrido, ele não queria mais que Artie se metesse naquela história, pois as coisas que tinham ocorrido haviam ocorrido, acima de tudo, por si mesmas, a começar pelo dia em Nova York em que Ferguson viu uma garota cheia de compaixão tirar um dólar da bolsa e dar para um velho todo ferrado, até o dia em que aquela mesma garota, um ano depois, estava parada, na luz do seu apartamento, conquistando Ferguson com a força de sua beleza, passando pelas vinte e quatro cartas enviadas de países estrangeiros reunidas dentro de uma caixa de madeira, a garota toda entusiasmada que deixou seu livro cair no chão e queria beijá-lo, nada disso tinha a ver com Artie e, no entanto, agora que ele e Celia tinham se apaixonado um pelo outro, Ferguson teve de admitir que era bom e era certo que fosse ela a garota com quem ele estava, e não qualquer outra, ainda que algo dentro dele se contraísse ao pensar naquele bom e certo, porque, agora que ele amava Celia, compreendia como, desde o início, seu desejo por ela tinha sido aflitivo, olhar para uma pessoa viva, uma pessoa que respirava, e transformá-la no símbolo de sua campanha para corrigir as injustiças do mundo, o que ele vinha pensando, pelo amor de Deus, e como seria muito melhor se Artie, agora, estivesse fora de cena para sempre. Chega de fantasmas, disse Ferguson para si mesmo. O garoto morto o havia levado para Celia, mas, agora que já havia cumprido sua missão, estava na hora de ir embora.

Nunca, nenhuma palavra sobre o assunto para Celia, e, quando 1966 virou 1967, era notável como os dois falavam pouco a respeito do irmão dela, como ambos estavam determinados a evitar o assunto e tocar para a frente o projeto de viverem só os dois, para que o terceiro invisível não ficasse parado entre ambos ou pairando acima deles, e, à medida que os meses rolavam e sua ligação se estreitava e os amigos de Ferguson, pouco a pouco, se aproximavam e passavam a aceitar Celia como parte permanente da paisagem, ele se deu conta de que ainda havia à sua frente um gesto necessário para que o encanto fosse quebrado. Nessa altura, era primavera e, depois de comemorar seus aniversários em março, no dia 3 e no dia 6, agora os dois estavam com vinte e com dezoito anos de idade, e numa tarde de sábado em meados de maio, uma semana depois de Ferguson ter escrito o parágrafo final de As almas das coisas inanimadas, atravessou a cidade rumo a Morningside Heights, onde Celia estava abrigada em seu dormitório em Brooks Hall, escrevendo dois trabalhos de fim de ano, o que significava que aquele fim de semana seria diferente da maioria e não incluiria as habituais caminhadas, conversas e explorações noturnas na cama de Ferguson, mas ele havia ligado para Celia às dez horas da manhã e perguntado se poderia “pegá-la emprestado” por trinta ou quarenta minutos mais tarde, e não, disse ele, não é para fazer aquilo, embora ele desejasse bastante que fosse aquilo, mas era para fazer uma coisa para ele, uma coisa que ia ser simples e ao mesmo tempo árdua e, mesmo assim, era algo da máxima importância para a futura felicidade de ambos. Quando ela perguntou o que era, Ferguson respondeu que só contaria depois.

Por que tanto mistério, Archie?

Porque sim, disse ele. Porque sim, só isso, essa é a razão.

Enquanto fazia a viagem pela orla do Central Park no ônibus que atravessava a cidade, sua mão direita estava dentro do bolso do seu casaco de primavera e os dedos estavam apertados em volta de uma bola de borracha cor-de-rosa, que ele havia comprado naquela manhã numa loja de doces e cigarros na Primeira Avenida, uma bola de borracha comum, fabricada pela Spalding Company e amplamente denominada, em Nova York, pela palavra spaldeen. A missão de Ferguson, naquela tarde radiosa de meados de maio, era esta: Ir até o Riverside Park com Celia e jogar beisebol com ela, quebrar a promessa que tinha feito nas profundezas de sua infelicidade, seis anos antes, a promessa de nunca mais jogar beisebol e, de uma vez por todas, acertar as contas com suas obsessões.

Celia sorriu quando ele contou qual era a tal coisa de tamanha importância, e olhou para Ferguson de um jeito que parecia sugerir que sabia que ele estava de brincadeira ou que ainda tinha algo escondido embaixo da manga do casaco, mas estava feliz de se ver livre de seu quarto, disse Celia, e podia haver maneira melhor de passar o tempo do que jogar beisebol no parque? Celia estava duplamente a fim de jogar, também porque era uma garota atlética, uma nadadora excelente, uma tenista bem razoável e não era ruim no arremesso da bola ao cesto, e, depois de observá-la algumas vezes na quadra de tênis, Ferguson sabia muito bem que ela era capaz de apanhar a bola de beisebol e de não arremessar do jeito como as garotas costumam fazer, com o braço dobrado no cotovelo, e sim mais ou menos como os garotos fazem, com um impulso do ombro e com o braço estendido. Ferguson apertou os lábios contra o rosto de Celia e agradeceu por acompanhá-lo. Por mais que ele quisesse, nunca poderia contar para ela por que estava fazendo aquilo.

À medida que seguiam para o parque, misteriosos jorros de suor começaram a brotar dos poros de Ferguson, sua barriga começou a palpitar e ficava cada vez mais difícil encher de ar os pulmões. Tonto. Tão tonto que segurou o braço de Celia para manter o equilíbrio quando andaram pela ladeira acentuada da rua 116 Oeste e avançaram, arrastando os pés, para Riverside Drive. Tonto e assustado. Ele tinha feito aquela promessa a si mesmo quando ainda era menino, e desde então aquilo tinha sido uma das forças propulsoras de sua vida, uma prova de vontade, de força interior e de sacrifício por uma causa sagrada, solidariedade que atravessava o abismo entre os vivos e os mortos, um penhor aos mortos, ao dizer não para algo belo deste mundo, e quebrar a promessa agora, não era fácil para ele, era difícil, mais difícil do que qualquer outra coisa que ele pudesse imaginar, mas tinha de ser feito, tinha de ser feito agora, pois, por mais nobre que a causa tivesse sido, também tinha sido uma loucura, e ele não queria mais ser um louco.

Atravessaram Riverside Drive, e, quando seus pés tocaram a grama do parque, Ferguson tirou a bola do bolso.

Recue um pouquinho, Celia, disse ele, e depois que a sorridente namorada recuou aos pulinhos e os dois ficaram a mais ou menos seis metros de distância, Ferguson ergueu o braço e lançou a bola para ela.

O verão prometia coisas importantes para todo mundo no círculo de Ferguson. Ou pelo menos era o que parecia quando o verão começou, e por que mencionar os desastres de julho e agosto, quando a cronologia clama para que as elevadas esperanças de junho venham primeiro? Para Ferguson e seus amigos, foi um tempo em que todo mundo parecia estar correndo na mesma direção, em que todo mundo estava à beira de fazer algo nunca visto, algo extraordinário, que nenhum deles havia imaginado que seria possível. Na distante Califórnia, o verão de 1967 tinha sido declarado o Verão do Amor. Ali em sua terra, na Costa Leste, a coisa começou como o Verão das Exaltações.

Noah estava voltando para Williamstown para mais uma temporada de representações (Tchékhov, Pinter), e dava duro para terminar o roteiro de seu segundo filme, que seria menos curto do que o primeiro, um filme sonoro de dezesseis minutos com o título inicial de Faça cosquinhas nos meus pés. Além disso, Noah tinha arranjado uma namorada nova, na pessoa de Vicki Tremain, de peitos grandes e cabelos frisados, uma colega da Universidade de Nova York das turmas anteriores a 1969 que sabia de cor mais de cem poemas de Emily Dickinson, fumava maconha tão compulsivamente quanto outras pessoas fumavam cigarros, e tinha aspirações a virar a primeira mulher a atravessar os vinte e seis quarteirões entre Washington Square e o Empire State Building caminhando sobre as mãos. Ou pelo menos assim dizia. E dizia também que tinha sido estuprada repetidas vezes por Lyndon Johnson durante os quatro anos anteriores, e que se Marilyn Monroe tivesse se casado com Henry Miller, em vez de Arthur Miller, não teria se matado. Vicki era uma jovem com grande senso de humor e uma aguda consciência dos absurdos da vida, e Noah estava tão impressionado com ela que suas pernas ficavam bambas toda vez que Vicki chegava perto dele.

Amy e Luther não vinham mais para Nova York. Tinham achado um apartamento em Sommerville, e, enquanto Luther faria cursos suplementares em Harvard, Amy passaria os dois meses e meio seguintes trabalhando na linha de montagem de uma fábrica em Cambridge. Ferguson se lembrava dos biscoitinhos Necco de sua infância, em especial das batalhas que travava com os biscoitos no Acampamento Paraíso quando o tempo estava ruim, todos os garotos engaiolados dentro da cabana atirando aqueles disquinhos duros uns contra os outros enquanto a chuva se derramava em cima do telhado, mas então Rosenberg levou um teco logo abaixo do olho e as guerras de biscoitos Necco foram proibidas. Uma escolha interessante, disse Ferguson para Amy ao telefone, mas por que trabalhar numa fábrica e que história era aquela? Política, respondeu ela. Pediram aos membros do movimento Estudan­tes Pela Democracia que fossem trabalhar em fábricas no verão, para ajudar a dis­seminar o movimento contra a guerra na classe operária, que continuava, em sua maioria, naquela altura, a favor da guerra. Ferguson perguntou se ela achava que ia servir para alguma coisa. Amy respondeu que não tinha a menor ideia, mas, ainda que a agitação interna não desse resultado, ia ser uma experiência boa para ela, uma chance de aprender alguma coisa sobre as condições de trabalho dos operários nos Estados Unidos e sobre as pessoas que trabalhavam nas fábricas. Amy tinha lido centenas de livros sobre o assunto, mas um verão na fábrica de biscoitos Necco iria fatalmente ensinar muito mais. Imersão total. Mãos à obra, conhecimento prático. Arregaçar as mangas e meter a cara, certo?

Certo, disse Ferguson, mas me prometa uma coisa.

O quê?

Não coma biscoitos demais.

Ah, é? E por que isso?

Fazem mal aos dentes. E também não jogue biscoitos no Luther. Nas mãos de alguém com pontaria certeira, eles podem se transformar em armas mortíferas, e a saúde de Luther é muito importante para mim, pois eu quero ir com ele a uma partida de beisebol neste verão.

Tudo bem, Archie. Não vou comer os biscoitos nem vou jogar em ninguém. Vou só fabricar.

Jim tinha concluído o mestrado em física em Princeton e ia se casar com Nancy Hammerstein no início de junho. Já haviam assinado um contrato de aluguel de um apartamento de dois quartos em South Orange, um apartamento no terceiro andar de um prédio que ficava na esquina da South Or­ange Avenue com a Ridgewood Road, um dos três prédios de apartamentos de uma cidade majoritariamente formada por casas de família, e os dois iam se mudar para lá depois que voltassem de sua lua de mel num camping em Berkshires. Jim tinha recebido a proposta de um emprego como professor de física na West Orange High School e Nancy ia dar aula de história em Montclair High, mas tinham escolhido morar em South Orange porque Jim ainda tinha muitos amigos lá, e, com os filhos num horizonte não muito remoto, fazia bastante sentido ficar na mesma cidade dos futuros avós daquelas crianças. Que ideia, pensou Ferguson: ele ia ser tio, Amy ia ser tia e sua mãe e seu pai iriam brincar com dois netos sentados sobre os joelhos.

Howard ia voltar para a fazenda em Vermont, não para ordenhar vacas e consertar cercas de arame farpado, como tinha feito no passado, mas para fazer uso de seus quatro semestres de grego antigo numa tradução para o inglês dos fragmentos escritos e das transcrições de palavras ditas por Demócrito e Heráclito, os dois pensadores pré-socráticos comumente chamados, respectivamente, de o Filósofo Que Ri e o Filósofo Que Chora. Howard tinha achado um trecho engraçado num texto antigo de John Donne, que ele planejava inserir como epígrafe do seu projeto: Hoje, entre nossos sábios, não duvido que encontremos muitos que riam dos prantos de Heráclito, mas nenhum que chore do riso de Demócrito. No entanto, mesmo enquanto Howard brigava com suas versões de D. (A ação começa com coragem; o acaso governa o fim) e H. (O caminho para o alto e o caminho para baixo são um único caminho), ele continuava seu projeto T. M., a obra de ilustrar as sessenta melhores duplas de partidas de tênis que ele e Ferguson tinham inventado nos dois últimos anos, pois Howard era uma dessas criaturas versáteis, que se sentia à vontade com palavras e também com imagens e estava mais feliz quando vivia em ambos os reinos ao mesmo tempo, e, além daqueles trabalhos de traduzir e desenhar, seu principal objetivo naquele verão era passar o maior número de horas possível com Mona Veltry, sua amiga de infância, de Battleboro, que nos meses recentes tinha sido promovida à condição de namorada, amante, companheira intelectual e possível futura esposa. Antes de se despedirem em Princeton, no dia seguinte ao último dia das provas finais, Howard arrancou de Ferguson a promessa de ir a Vermont para fazer duas visitas demoradas, talvez três, naquele verão.

Billy estava se aproximando do fim de seu comprido romance de quatrocentas páginas e tinha planos de lançar As almas das coisas inanimadas em meados de agosto. Ron e Peg Pearson estavam à espera do primeiro filho, e Ron, Ann e Lewis, que já vinham conversando sobre a ideia havia mais de um ano, tinham descoberto uma financiadora abastada na figura da ex-esposa do primeiro marido da mãe de Ann, que ia ajudá-los a criar uma nova editora, Livros do Tumulto, uma editora pequena que lançaria seis ou sete livros por ano, livros de capa dura em formato convencional, com cadernos costurados e impressos em tipografia tradicional, nas mesmas gráficas que fabricavam em série os livros das outras editoras de Nova York. A mimeografia estava longe de morrer, porém soluções alternativas pouco a pouco se tornavam acessíveis, porque alguns dos escritores de bolsos vazios da parte baixa de Manhattan tinham sacado onde é que estava a grana.

Quanto a Celia, ela também ia passar o verão em Massachusetts, junto com Noah, Amy e Luther, não junto com eles, no sentido literal, mas no povoado de Woods Hole, na ponta da península ocidental de Cape Cod, para trabalhar como estagiária no Laboratório de Biologia Marinha. Não eram ratos, como Noah havia vaticinado no outono, mas moluscos e plâncton e, apesar de Celia, tecnicamente, ser jovem demais para tal função, seu professor de biologia em Barnard, Alexander Mestrovic, ficou tão impressionado com sua inteligência e seu sentido inato para as micronuances da vida celular que fez questão de que ela o acompanhasse até Massachusetts para o projeto de pesquisa genética de que ele participava, na esperança de que a chance de observar os professores e os estudantes de pós-graduação em atividade aclimatasse Celia aos rigores do trabalho em laboratório, o que em troca a ajudaria a se preparar para uma futura carreira científica. Celia relutou em ir. Queria achar um trabalho na cidade e morar com Ferguson durante o verão, que era exatamente o que ele também desejava, mas não, disse Ferguson, ela não podia recusar a proposta de Mestrovic, seu convite era uma honra de tamanha magnitude que ela acabaria se arrependendo, pelo resto da vida, de não ter ido, e além do mais não havia o que temer, acrescentou Ferguson, ele tinha acesso a um carro e ia passar muito tempo em Vermont e em Massachusetts nos meses seguintes, visitando Howard, Noah, Amy e Luther, em Newfane, Williamstown e Somerville, e Woods Hole seria o destino prioritário de todas suas excursões para o norte, ele a visitaria o maior número de vezes que ela pudesse aguentar e, por favor, disse ele, não seja ridícula, você tem de aceitar, e assim ela aceitou, e, com um beijo estalado no meio da Guerra dos Seis Dias, ela se despediu de Ferguson e partiu.

Não havia muita dúvida de que ele ia se sentir sozinho, mas não seria uma solidão insuportável, achava Ferguson, não com a chance de ver Celia umas duas vezes por mês, não com as visitas prolongadas à fazenda de How­ard, e, agora que seu último livrinho já tinha ficado para trás, a página estava em branco outra vez. Mais de oito meses tinham sido investidos em elucubrar aquelas meditações peculiares sobre objetos domésticos e as vidas imaginárias que tinham levado antes de serem recolhidos das ruas, divagações malucas sobre a torradeira quebrada e a questão de saber se uma torradeira quebrada ainda podia ser chamada de torradeira, já que não podia mais funcionar como torradeira e, se não podia, que nome deveria receber então, reflexões sobre luminárias, espelhos, tapetes e cinzeiros, junto com histórias das pessoas imaginárias que foram seus donos e as usaram, antes de irem parar ali, em seu apartamento, que coisa mais penosa, ou até despropositada, de se fazer, e agora existia mais um livrinho para o Billy produzir duzentos exemplares e distribuir para os amigos. O último capítulo da fase Gizmo, como Ferguson mais tarde iria denominar aquele período, três pequenas obras de mérito duvidoso, sem dúvida eram falhas e acanhadas, mas nunca medíocres ou previsíveis, às vezes até radiantes, portanto talvez não fossem os fracassos completos que ele, muitas vezes, temia, e, como Billy e os outros davam apoio ao que ele fazia, talvez fossem boas o suficiente para estabelecer Ferguson como alguém com um futuro possível, com o potencial para um futuro possível, em todo caso, e, depois de passar os últimos dois anos e tanto compondo aquele trio de frenéticos exercícios de aquecimento, Ferguson entendeu que a primeira fase de seu aprendizado tinha chegado ao fim. Agora ele precisava avançar para algo novo. Acima de tudo, disse Ferguson para si mesmo, precisava desacelerar um pouco e começar a contar histórias outra vez, abrir seu caminho de volta para um mundo povoado por outras mentes, além da sua.

Não escreveu nada durante as três primeiras semanas das férias de verão. Houve o casamento de Jim e Nancy no Brooklyn, no dia 10 de junho, houve os dias esplêndidos com Celia em Woods Hole, do dia 16 até o dia 18, mas acima de tudo ele andava pela cidade matando o tempo, fazendo um esforço para fixar os olhos nas coisas que estavam na sua frente, como a carta de Dana Rosenbloom, ainda sem resposta, dentro do seu bolso. Nova York estava se esfarelando. Os prédios, as calçadas, os bancos, os bueiros, os postes de iluminação, as placas de trânsito estavam todos rachados, quebrados ou se fazendo em pedaços, centenas de milhares de jovens estavam lutando no Vietnã, os rapazes da geração de Ferguson eram embarcados para serem mortos por razões que ninguém havia justificado de maneira adequada, os velhos no comando tinham perdido contato com a verdade, mentiras eram a moeda corrente no discurso político dos Estados Unidos agora, e cada bar, infestado de baratas e em petição de miséria, em toda a extensão de Manhattan, tinha um letreiro de luz neon na janela, que dizia: A MELHOR XÍCARA DE CAFÉ DO MUNDO.

Dana estava casada, grávida de seis meses, e feliz e realizada, segundo sua carta. Ferguson estava feliz por ela. Sabendo o que ele agora sabia sobre si mesmo, estava claro que ela havia agido muito bem ao evitar o casamento com um homem incapaz de ter filhos, porém, por mais que desejasse responder para lhe dar os parabéns, outras passagens da carta o haviam perturbado e ele ainda estava em busca de um caminho para responder. O tom exultante dos comentários de Dana sobre a guerra, as presunçosas certezas da conquista militar, o tribalismo dos guerreiros judeus que derrotavam os inimigos numerosos. Margem Ocidental, Sinai, Jerusalém Oriental, tudo agora sobre o controle israelense, e sim, tinha sido uma vitória importante e surpreendente, e é claro que eles se sentiam orgulhosos, mas de tudo isso nada viria de bom, se Israel insistisse em ocupar aqueles territórios, achava Ferguson, só levaria a mais problemas adiante, porém Dana não conseguia ver assim, talvez ninguém em Israel conseguisse ver a situação de fora, eles ficaram tanto tempo aprisionados dentro do próprio medo, e agora estavam dançando dentro do novo poder conquistado, e, como Ferguson não queria perturbar Dana com suas opiniões, que poderiam ser opiniões erradas, até onde ele sabia, continuava a adiar a carta que queria escrever em resposta.

Seis dias depois de voltar de Woods Hole, Ferguson saiu para mais uma de suas perambulações pela cidade e, quando passou por um terreno baldio, entulhado de geladeiras abandonadas, bonecas sem cabeça e cadeiras de bebê espatifadas, uma expressão surgiu espontânea em sua mente, quatro pa­lavras que vieram do nada e depois continuaram a se repetir enquanto ele pros­seguia a caminhada, a capital das ruínas, e quanto mais pensava naquelas palavras, mais ficava convencido de que eram o título de sua nova obra, dessa vez um romance, sua primeira tentativa de um romance, um livro sério e implacável sobre o país partido em que vivia, um mergulho num registro muito mais sombrio do que qualquer outra coisa que já houvesse existido e, ali mesmo, enquanto caminhava pela calçada naquela tarde, o livro começou a tomar forma dentro dele, a história de um médico chamado Henry Noyes, cujo nome era roubado de William Noyes, o estudante do curso preparatório para a faculdade de medicina que tinha sido colega de dormitório de Ferguson no Brown Hall, em seu ano de calouro, mas um nome pronunciado como se fosse a palavra inglesa “noise” (barulho) e, no entanto, cindido nas pala­vras “no” (não) e “yes” (sim), quando separadas a segunda e a terceira letras, essa era a escolha inevitável, a única que atendia as necessidades da história. A capital das ruínas. Ferguson levaria dois anos para concluir aquele romance de duzentas e quarenta e seis páginas, mas um dia antes de partir para a fazenda de Howard em Vermont, no dia 30 de junho de 1967, sentou e escreveu a primeira versão do primeiro parágrafo do que ele passaria a encarar como o seu primeiro livro de verdade.

Ele recordou a primeira explosão, trinta e cinco antes, o surto de suicídios inexplicáveis que havia assombrado a cidade de R. no inverno e na primavera de 1931, aquela terrível série de meses em que quase duas dúzias de jovens, entre quinze e vinte anos de idade, tinham dado fim às próprias vidas. Na época, ele também era jovem, só catorze anos de idade, calouro no ensino médio, e nunca mais esqueceria a hora em que soube que Billy Nolan tinha se matado, nunca esqueceria as lágrimas que havia derramado quando lhe contaram que a linda Alice Morgan tinha se enforcado no porão da sua casa. A maioria tinha se enforcado trinta e cinco anos antes, sem deixar nenhum bilhete ou explicação, e, agora estava recomeçando, quatro mortes só em março, mas dessa vez os jovens estavam se matando por asfixia, inalando gás até morrer, trancados na garagem, sentados dentro de carros, com o motor ligado. Ele sabia que haveria mais mortes, que mais gente jovem iria sumir antes que a epidemia terminasse, e ele resolveu tomar aquelas desgraças como uma questão pessoal, pois agora ele era médico, o clínico geral Henry J. Noyes, e três das quatro crianças mortas recentemente foram seus pacientes, Eddie Brickman, Linda Ryan e Ruth Mariano, e ele havia trazido os três ao mundo, com as próprias mãos.

Estava combinado de todos se encontrarem na fazenda de Howard no sábado, 1o de julho, entre cinco e seis horas. Celia iria de Woods Hole no Chevy Impala usado que seus pais tinham comprado para ela, em maio; Schnei­derman e Bond iriam de Somerville no Skylark 1961 que os Waxman tinham dado para Luther como presente de despedida quando ele partiu para cursar o primeiro ano da faculdade, e Ferguson partiria da casa em Woodhall Crescent, aonde tinha de ir bem cedo naquela manhã para pegar o velho Pontiac. O plano era passar a noite de sábado na fazenda, tomar o café da manhã lá no dia seguinte, e depois irem de carro para Williamstown, a fim de ver Noah se pavonear sobre o palco no papel de Konstantin, na matinê de domingo da peça A gaivota. Depois disso, Celia ia voltar para Woods Hole, Amy e Luther iam voltar para Somerville, e Ferguson, Howard e Mona Veltry iam voltar para a fazenda. Ferguson tinha passe livre para ficar lá o tempo que quisesse. Imaginou que ia se demorar umas duas semanas, mas nada estava definido, e talvez ele acabasse acampado lá durante o resto do mês, com viagens para Woods Hole nos finais de semana.

Todo mundo chegou a Vermont no horário combinado, e, como a tia e o tio de Howard tinham saído para visitar amigos em Burlington naquela noite, e como ninguém estava a fim de cozinhar, os três casais resolveram sair para jantar num lugar chamado Tom’s Bar and Grill, um botequim pé-sujo na Route 30, a uns quinhentos metros do centro de Brattleboro. Os seis se espremeram na caminhonete de Howard, depois de umas duas rodadas de cerveja na fazenda, uma pequena bebedeira na cozinha, porque a idade para beber em Vermont era vinte e um anos e por isso eles não poderiam tomar cerveja no Tom’s, e, como uma rodada não fosse o suficiente, eles só saíram mesmo quando já eram quase nove horas da noite e, às nove da noite de sábado, o Tom’s costumava se encontrar num estado de caos, com música country muito alta martelando no toca-discos automático e os malucos no bar já na enésima dose de suas bebidas refrescantes.

Era um bando de lavradores e trabalhadores rudes, sem dúvida de predominância direitista, a favor da guerra, e, quando Ferguson entrou com seu pequeno bando de amigos esquerdistas e universitários, imediatamente compreendeu que tinham ido para o lugar errado. Havia algo nos homens e nas mulheres sentados no bar, ele sentiu, havia neles algo que indicava que estavam a fim de arranjar encrenca, e o lamentável era que ele e seus amigos tiveram de se sentar num lugar à vista de todo o bar, porque não havia mesas livres na sala dos fundos. O que era aquilo, Ferguson não parava de se perguntar, quando uma garçonete simpática apareceu para pegar seus pedidos (Oi, meninos, o que vai ser?), se perguntando se os olhares ácidos voltados em sua direção tinham algo a ver com seu cabelo comprido e com o cabelo mais ou menos comprido do Howard, ou com o discreto cabelo afro de Luther, ou com o próprio Luther, pois era a única pessoa negra presente, até onde a vista alcançava, ou com a beleza elegante de gente chique das três garotas, muito embora Amy estivesse trabalhando numa fábrica naquele verão e os pais de Mona pudessem perfeitamente estar sentados numa das mesas na outra sala, naquela noite, e aí, quando Ferguson observou com mais atenção as pessoas no bar, algumas das quais estavam de costas para eles, se deu conta de que a maior parte dos olhares vinham de dois caras lá na ponta, sentados na parte direita do balcão de três lados, que tinham uma visão livre da mesa deles, dois caras de quase trinta anos, ou uns trinta e poucos anos, que podiam ser lenhadores ou mecânicos de carro ou professores de filosofia, até onde Ferguson conseguia perceber, o que era quase nada além do fato óbvio de que olhavam com desagrado, e então Amy fez algo que já devia ter feito centenas de vezes no ano anterior, encostou-se em Luther e o beijou na bochecha e, de repente, Ferguson compreendeu o que estava deixando os filósofos indignados, não era o fato de um negro entrar em seus domínios só de brancos, mas de uma mulher branca tocar num jovem negro em público, encostar-se no seu corpo e lhe dar um beijo, e quando a isso se somavam todas as outras provocações lançadas contra eles naquela noite, os universitários cabeludos, as garotas de rosto fresco, pernas compridas e dentes lindos, os mesmos que queimavam bandeiras e queimavam as cartas de convocação militar e todo aquele exército de nojentinhos hippies antiguerra, e ainda por cima se acrescentasse a isso o número de cervejas que os dois haviam consumido nas horas em que tinham ficado ali sentados, não menos de seis cada um, talvez até dez, não era nada estranho nem nada remotamente espantoso que o maior dos dois professores de filosofia tenha se levantado de seu banco, caminhado até a mesa deles e dito para a meia-irmã de Ferguson:

Pare com isso, garota. Essas coisas não são permitidas aqui.

Antes que Amy pudesse pôr em ordem o pensamento e responder, Luther disse: Cai fora, meu irmão. Suma daqui.

Não estou falando com você, panaca, retrucou o filósofo. Estou falando com ela.

Para enfatizar o que dizia, apontou o dedo para Amy.

Panaca!, disse Luther, com uma risada alta, teatral. Essa foi boa. O panaca aqui é você, meu irmão, não eu. O próprio panaca em pessoa.

Ferguson, cuja cadeira estava mais perto do filósofo, de pé, decidiu se levantar e lhe dar uma aula de geografia.

Acho que você está um pouco confuso, disse ele. Não estamos no Mississippi, estamos em Vermont.

Estamos nos Estados Unidos, replicou o filósofo, agora voltando a atenção para Ferguson. Terra dos livres e lar dos bravos!

Livre para você, mas não para eles, é isso?, perguntou Ferguson.

É isso mesmo, panaca, disse o filósofo. Não para eles, se ficam querendo se comportar desse jeito, em público.

Desse jeito, como?, disse Ferguson, com um toque de sarcasmo na voz, que fez o como soar parecido com um palavrão.

Desse jeito aqui, seu babaca, disse o filósofo.

E deu um soco na cara de Ferguson, e a briga começou.

Foi tudo tão idiota. Uma briga de bar com um racista embriagado e louco para arranjar encrenca, mas, depois do primeiro soco, o que mais Ferguson poderia fazer senão revidar com mais um soco? Felizmente, o amigo do filósofo não se meteu na confusão, e, embora Howard e Luther tentassem separar a briga, não conseguiram fazer isso a tempo de evitar que Tom chamasse a polícia e, pela primeira vez na vida, Ferguson foi preso, algemado e levado para uma delegacia para ser fichado, deixar as impressões digitais e ser fotografado em três ângulos distintos. O juiz de plantão à noite estabeleceu uma fiança de mil dólares (cem dólares à vista), que Ferguson pagou com a ajuda de Howard, Celia, Luther e Amy.

Cortes acima dos olhos, a ponta da sobrancelha direita riscada do mapa para sempre, uma dor no queixo, sangue escorrendo pelas bochechas, mas nada quebrado, ao passo que o homem que o havia atacado, um bombeiro hidráulico de trinta e dois anos chamado Chet Johnson, saiu do combate com o nariz fraturado e passou a noite no Brattleboro Memorial Hospital. Na manhã de segunda-feira, no tribunal, ele e Ferguson foram acusados de agressão, perturbação da ordem e destruição de propriedade privada (uma cadeira e alguns copos tinham sido quebrados no meio da refrega) e o julgamento foi marcado para terça-feira, 25 de julho.

Antes de Ferguson ouvir a acusação na segunda-feira, o domingo na fazenda foi desolador, a peça de Noah foi esquecida e todos ficaram sentados na sala, conversando sobre o que havia acontecido na noite anterior. Howard se considerava culpado. Nunca deveria ter levado os amigos para o Tom’s, disse ele, e Mona lhe deu cobertura, chamando para si toda a culpa: Eu é que deveria saber que não podia deixar vocês entrarem naquele hospício de roceiros. Celia falou demoradamente sobre o que chamou de incrível valentia de Ferguson — mas também contou como ficou assustada quando a briga começou, a horrorosa violência daquele primeiro soco. Amy falou de modo exaltado por um tempo, rogou pragas contra si mesma por não ter enfrentado aquele fanático feio e porcalhão, dominada pelo pânico que sentiu na hora em que o sujeito esticou o dedo e apontou para ela, e depois, bem diferente da Amy que Ferguson havia conhecido por tantos anos, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Luther era o mais indignado entre eles, o mais amargo, aquele que estava mais enraivecido com a briga e não se perdoava por ter deixado Archie suportar a carga principal, em vez de afastá-lo com um empurrão e usar seu próprio punho negro para acertar com toda a força a boca do sacana. A tia e o tio de Howard, já pensando no próximo passo, falavam em arranjar um bom advogado para tratar do caso de Ferguson. No meio da tarde, Amy, a Destemida, tinha recuperado a clareza mental o bastante para telefonar para sua casa, em Woodhall Crescent, e contar para o pai a encrenca em que Archie estava metido. Ela passou o fone para Ferguson, e quando a mãe, confusa e aflita, falou, Ferguson disse que ela não precisava ficar preocupada, a situação estava sob controle e não havia necessidade de irem até Vermont. Mas como ele podia ter certeza, se perguntou Ferguson no instante em que dizia aquelas palavras, e o que é que ia acontecer com ele?

Passaram-se os dias. Um jovem advogado de Barttleboro, supostamente bom, chamado Dennis McBride, ia defender Ferguson. Celia ia voltar para a fazenda todo fim de semana, porque Ferguson não tinha permissão de sair do estado de Vermont até o fim do julgamento, supondo que o caso não fosse terminar com o juiz mandando Ferguson para a prisão por um mês ou três meses ou um ano, quando a sentença final recaísse sobre ele. Todo dinheiro possível teria de ser desembolsado para evitar que aquilo acontecesse, mais dólares para tirar da pilha minguante dos dez mil dólares que o avô, agora falecido, tinha lhe dado um ano antes, mas pelo menos ele tinha o dinheiro e não precisava pedir ajuda para a mãe ou para Dan. Então chegou o dia 12 de julho, e, quando ouviu a mãe lhe dar as notícias no telefone, achou difícil imaginar do que ela estava falando. No meio de suas briguinhas particulares, um grande pesadelo público estava se espalhando pelas ruas de Newark, e a cidade onde ele havia passado os primeiros cinco anos de vida estava agora tomada pelas chamas.

Guerra racial. Não eram motins raciais, como os jornais noticiavam para todo mundo, mas uma guerra entre raças. Soldados da Guarda Nacional e da polícia de Nova Jersey atiravam para matar, vinte e seis mortos naqueles dias de devastação e matança, vinte e quatro negros e dois dos outros, sem falar das centenas ou dos milhares espancados e feridos, entre eles o poeta e dramaturgo LeRoi Jones, cidadão de Newark e ex-amigo íntimo de Frank O’Hara, arrastado para fora de seu carro quando passava para observar a destruição na zona central; foi levado para o distrito policial, trancado numa sala e espancado com tanta brutalidade por um guarda branco que Jones achou que ia morrer. O guarda que o espancou tinha sido seu colega no ensino médio.

Segundo Amy, ninguém na família Bond tinha sido afetado. Luther tinha ficado em Somerville, longe da guerra; Seeppy, de dezesseis anos, estava viajando pela Europa com os Waxman, e o sr. e a sra. Bond tinham conseguido evitar as balas, os porretes e os punhos. Um aleluia, entre os milhares de lamentos de dor, horror e repulsa. A cidade natal de Ferguson tinha se transformado na capital das ruínas, mas os quatro Bond estavam todos vivos.

Passar por tudo aquilo enquanto se preparava para defender a própria vida no tribunal. Faltavam oito dias para seu julgamento quando a guerra em Newark terminou, uma segunda guerra dos seis dias, para acompanhar a Guerra Dos Seis Dias no Israel de Dana, e, quer os combatentes compreendessem isso ou não, ambos os lados em ambas as guerras tinham perdido, e, enquanto Ferguson fazia suas viagens diárias para Brattleboro a fim de consultar seu advogado e preparar sua defesa, ele se perguntava se não estava, também, à beira de perder tudo, e se questionava e se afligia a tal ponto que suas entranhas pareciam estar se desatando, os tubos enrolados de tripas e intestinos estavam se desfazendo e, mais cedo ou mais tarde, iam acabar explodindo através da sua barriga e se espalhando sobre a calçada da Main Street em Brattleboro, onde um cachorro esfomeado viria para devorar aquilo tudo gulosamente e agradecer ao todo-poderoso deus cachorro pela generosidade de suas bênçãos.

McBride estava sereno, tranquilo e cautelosamente otimista, ciente de que seu cliente não tinha sido o agressor na noite em questão, e com cinco testemunhas para respaldar sua versão, cinco testemunhas confiáveis, que cursavam faculdades e universidades importantes, seu testemunho estava fadado a superar o provável falso testemunho de Robert Allen Gardiner, o amigo embriagado de Chet Johnson.

Ferguson foi informado de que o juiz que ia presidir seu julgamento tinha se formado em Princeton, na turma de 1936, o que significava que William T. Burdock tinha sido colega de universidade, e talvez amigo, do benfeitor que patrocinava a bolsa de estudos de Ferguson, Gordon DeWitt. Era impossível saber se isso era bom ou ruim. Como o caso não seria julgado por um júri, como a decisão estava inteiramente nas mãos do juiz Burdock, Ferguson torcia para que aquilo fosse positivo.

Na noite do dia 22, três dias antes do dia marcado para o começo do julgamento, Luther telefonou para a fazenda para falar com Archie. Quando a tia de Howard passou o fone para Ferguson, uma nova onda de medo trovejou em suas entranhas. O que foi, agora?, ele se perguntou. Será que Luther estava telefonando para dizer que não poderia comparecer ao tribunal na terça-feira?

Não era nada disso, explicou Luther. É claro que vou dar meu testemunho. Sou a sua testemunha principal, não sou?

Ferguson deu um suspiro no fone. Estou contando com você, disse.

Luther fez uma pausa no outro lado da linha telefônica, um intervalo muito mais comprido do que Ferguson esperava. A estática reverberava pelos fios, como se o silêncio de Luther não fosse um silêncio, mas um clamor dos pensamentos que se debatiam dentro da sua cabeça. Afinal, falou: Você se lembra do Plano A e do Plano B?

Sim, me lembro. Plano A: cooperar. Plano B: não cooperar.

É isso aí — curto e grosso. Pois agora eu inventei um Plano C.

Você quer me dizer que existe outra opção?

Receio que sim. A opção adeus e boa sorte.

O que isso significa?

Estou ligando para você do apartamento dos meus pais, em Newark. Você tem ideia de como está Newark agora?

Vi as fotos. Quarteirões inteiros destruídos, incendiados, prédios saqueados. O fim de uma parte do mundo.

Eles querem nos matar, Archie. Não querem só nos isolar e nos deixar trancados. Querem que a gente morra.

Nem todo mundo, Luther. Só os piores.

Os que estão no poder. Os prefeitos, os governadores, os generais. Eles querem varrer a gente do mapa.

E o que isso tem a ver com o Plano C?

Até agora, eu estive disposto a cooperar, mas, depois do que aconteceu na semana passada, acho que não sou mais capaz de fazer isso. Então olhei para o Plano B e comecei a respirar fundo. Os Panteras são uma força agora, e estão fazendo exatamente aquilo que eu achava que ia fazer se o Plano A fracassasse. Comprar armas para se defender, entrar em ação. Agora parecem fortes, mas não são. A América Branca não vai apoiar o que eles estão fazendo, e um por um vão ser apanhados e mortos. Que maneira estúpida de morrer, Archie — por nada. Portanto, esqueça o Plano B.

E o Plano C?

Eu vou embora. Picar a mula, como diziam nos velhos filmes de faroeste. Vou viajar até Vermont para o seu julgamento na terça-feira e, quando o julgamento acabar, não vou mais para o sul, para Massachusetts, vou partir para o norte, para o Canadá.

Canadá. Por que o Canadá?

Primeiro, porque não são os Estados Unidos. Segundo, porque tenho um monte de parentes em Montreal. Terceiro, porque posso terminar a faculdade em McGill. Fui aceito lá quando terminei o ensino médio, você sabe. Tenho certeza de que vão me aceitar de novo.

Tenho certeza que sim, mas a transferência leva tempo, e, se você largar a faculdade no semestre do outono, vai ser convocado pelo Exército.

Talvez, mas que diferença faz, se eu nunca mais vou voltar?

Nunca?

Nunca.

E quanto a Amy?

Pedi para ela vir comigo, mas ela disse que não.

Você entende por quê, não é? Não tem nada a ver com você.

Provavelmente não. Mas só porque ela vai ficar aqui, não quer dizer que não pode ir me visitar lá. Afinal, não é o fim do mundo.

Não, mas provavelmente isso quer dizer que é o fim de você e Amy.

Talvez isso não seja tão ruim assim. A gente não ia ficar junto por muito tempo mesmo. A curto prazo, acho que a gente estava querendo defender uma ideia. Se não para nós mesmos, pelo menos para todo mundo. E então aquele otário veio até a nossa mesa naquela noite e nos ameaçou. Defendemos nossa ideia, mas quem é que quer viver num mundo que obriga a gente a baixar a cabeça para os inimigos que vivem o tempo todo nos encarando? A vida já é dura demais do jeito que está, e eu estou exausto, Archie, estou quase no meu limite.

O que aconteceu depois tem duas partes, a parte boa, a primeira, e a parte não tão boa, a segunda. A primeira parte foi o julgamento, que correu mais ou menos como McBride tinha previsto. Não que Ferguson não tenha morrido de medo durante a maior parte dos trabalhos, não que seus intestinos não ameaçassem se soltar mil vezes durante as duas horas e meia que ele passou na sala do tribunal, mas ajudou bastante o fato de sua mãe e seu padrasto estarem lá, junto com Noah, tia Mildred e tio Don, e ajudou também o fato de seus amigos serem testemunhas tão precisas e articuladas; primeiro Howard, depois Mona, depois Celia, depois Luther e, por fim Amy, que fez um relato vívido de como ficou assustada com as palavras e com os gestos de ameaça de Johnson, antes de desferir o primeiro soco, e ajudou também o fato de que Johnson, ao lhe darem a palavra, confessou espontaneamente que estava embriagado na noite de 1o de julho e que não conseguia lembrar o que tinha feito. Todavia, Ferguson achou que McBride cometeu um erro tático ao levá-lo a falar tão demoradamente sobre a faculdade durante seu testemunho, pois não só lhe perguntou o que fazia na vida (estudante), mas também onde estudava (Princeton) e em que condições (bolsista do Programa Walt Whitman) e qual era sua nota média (três vírgula sete), pois embora aquelas respostas tenham produzido uma impressão considerável no juiz Burdock, elas eram irrelevantes para a questão em pauta e podiam ser vistas como uma pressão desleal sobre ele. No fim, Burdock considerou Johnson culpado de provocar a briga e determinou que tinha de pagar uma multa de mil dólares, ao passo que Ferguson, o acusado inicial, foi liberado da acusação de agressão e condenado a pagar cinquenta dólares para ressarcir Thomas Griswold, o proprietário do Tom’s Bar and Grill, pelo prejuízo causado e cobrir os custos de uma cadeira nova e seis copos novos. Era o melhor resultado possível, a retirada completa e permanente do peso que vinha carregando nas costas, e, quando os amigos e a família de Ferguson se reuniram em torno dele para comemorar a vitória, ele agradeceu a McBride pelo seu belo trabalho. Talvez o homem soubesse o que estava fazendo, afinal de contas. A fraternidade de Princeton. Se o mito era verdade, todo homem de Princeton estava do lado de outros homens de Princeton, ao longo das gerações, na vida e na morte, e se Ferguson era de fato um homem de Princeton, como ele agora julgava ser, então, quem poderia garantir que não foi o Tigre — ou seja, o fato de ser aluno de Princeton — que salvou sua pele?

Pouco depois de saírem do tribunal, enquanto os onze entraram no estacionamento para buscar seus carros, Luther veio por trás de Ferguson, pôs o braço em torno de seu ombro e disse: Cuide-se bem, Archie. Vou cair fora.

Antes que Ferguson pudesse responder, Luther deu meia-volta e começou a caminhar na direção oposta, andou depressa rumo ao seu Buick verde, estacionado perto da saída, na frente do estacionamento. Ferguson pensou: Então é assim que você faz. Sem lágrimas, sem grandes gestos, sem afetuosos abraços de despedida. Senta a bunda no carro e vai embora em busca de uma vida melhor no primeiro país que aparece. Admirável. Mas também, afinal, como é que você pode dar adeus a um país que já não existe para você? Seria como apertar a mão de um morto.

Quando Ferguson estava olhando para a versão adulta do menino de catorze anos que tinha dado um soco nele entrar no carro, Amy, de repente, veio correndo e entrou em cena. O motor pegou e, no último segundo, na hora em que Luther estava engatando a primeira marcha no Skylark, ela abriu a porta do passageiro com força e pulou para dentro do carro.

Os dois foram embora juntos.

Isso não queria dizer que ela pretendia ficar morando com ele no Canadá. Significava apenas que era difícil se separar, difícil demais por enquanto.

A segunda parte do que aconteceu depois tinha tudo a ver com Gordon DeWitt e o mito da fraternidade de Princeton.

Todo ano, promoviam um almoço dos bolsistas do Programa Walt Whitman na primeira semana do semestre de outono, e Ferguson tinha comparecido a dois almoços até agora, uma vez como calouro e outra como aluno do segundo ano. Levantar-se e curvar-se em agradecimento, na condição de um dos quatro bolsistas originais no primeiro ano, levantar-se e curvar-se em mais um agradecimento, quando as fileiras se ampliaram para oito, no segundo ano, um almoço com galinha e três pratos na sala de refeições do clube do corpo docente, pontuado por breves discursos do reitor da universidade, Robert F. Goheen, e de outros dirigentes de Princeton, comentários esperançosos, idealistas, sobre os jovens homens americanos e o futuro do país, exatamente aquilo que se esperava ouvir em tais reuniões, mas Ferguson tinha ficado impressionado com algumas coisas que DeWitt tinha dito na primeira reunião, ou pelo menos com a maneira sincera e desajeitada como ele falou, não só que acreditava que todos os jovens mereciam uma chance, por mais humilde que fosse sua origem, mas também expôs suas lembranças de ter chegado a Princeton como aluno de colégio público, de uma família pobre, e lembrou como se sentira deslocado no início, o que ecoou fundo no Ferguson que ainda se sentia deslocado e que, na hora em que ouviu aquelas palavras, estava ali no campus fazia só três dias. No ano seguinte, DeWitt se levantou e fez um discurso quase idêntico — mas com um acréscimo fundamental. Mencionou a guerra no Vietnã, enfatizou a obrigação de todos americanos se unirem no esforço para brecar a onda de comunismo e atacou duramente o crescente número de jovens e esquerdistas americanos iludidos que eram contrários à guerra. DeWitt estava do lado dos falcões, portanto, porém o que mais se poderia esperar de um especulador de Wall Street, com pontaria certeira, que tinha ganhado milhões servindo nas trincheiras do capitalismo americano? Além disso, era formado na mesma faculdade que John Foster Dulles e seu irmão Allen, os dois inventores da Guerra Fria, como secretário de Estado e diretor da CIA, no governo de Eisenhower, e, se não fosse o que os dois tinham feito nos anos 1950, os Estados Unidos não estariam em guerra contra o Vietnã do Norte nos anos 1960.

Apesar de tudo, Ferguson estava contente de aceitar o dinheiro de DeWitt e, a despeito de suas diferenças políticas, ele gostava bastante do homem em si. Baixo e parrudo, de sobrancelhas espessas, olhos castanho-claros e quei­xo quadrado, DeWitt apertou vigorosamente a mão de Ferguson na pri­mei­ra vez em que se encontraram, desejou-lhe toda a sorte do mundo ao em­bar­car em sua aventura universitária e, na segunda vez, quando o desem­penho de Ferguson no primeiro ano se revelou digno de nota, DeWitt chamou-o pelo prenome. Continue com seu bom trabalho, Archie, disse ele. E depois: Tenho muito orgulho de você. Agora Ferguson era um de seus rapazes e DeWitt tinha um agudo interesse por seus rapazes e acompanhava seus progressos de perto.

Na manhã após o julgamento, Ferguson disse adeus para os amigos em Vermont e voltou de carro para Nova York. As tensões das três semanas anteriores tinham esgotado Ferguson e forneceram muito assunto para ele refletir. A cena violenta no bar, a violência em Newark, a lembrança forte e tátil das algemas apertando seus pulsos, a dor na barriga durante o julgamento, a decisão súbita, mas não impetuosa, de Luther, de construir uma vida nova em Montreal, e Amy, a pobre e devastada Amy, correndo feito louca para o carro. Também tinha que pensar no seu livro, o livro que esperava ser capaz de escrever, e pouco a pouco, ele foi voltando ao normal e começou a se sentir reconfortado com seu quarto, sua escrivaninha, suas longas conversas ao telefone com Celia, à noite. No dia 11 de agosto, a mãe ligou para dizer que tinha chegado uma carta do Programa Walt Whitman naquela tarde. Ele queria que ela lesse a carta no telefone ou era melhor que enviasse o envelope para a rua 89 Leste? Supondo que não fosse nada importante, com certeza uma mensagem da sra. Tommasini, a secretária do programa, com informações sobre a data e a hora do almoço comemorativo de setembro. Ferguson respondeu que a mãe não precisava gastar seu fôlego e que mandasse o envelope para ele na próxima vez que desse um pulo no correio. Passou uma semana inteira, até a carta chegar a Nova York, mas na manhã do dia em que ela chegou, sexta-feira, 18 de agosto, Ferguson partiu para Woods Hole num ônibus da Trailways (o automóvel Pontiac estava na oficina para alguns reparos) e, portanto, só quando voltou da visita a Celia, na segunda-feira seguinte, dia 23, Ferguson abriu o envelope e recebeu o segundo soco na cara, naquele verão.

A carta não era da sra. Tommasini, mas de Gordon DeWitt, uma carta de um parágrafo do fundador do programa de bolsas de estudo Walt Whitman, na qual Ferguson era informado de que uma série de fatos lamentáveis tinham, recentemente, chamado a sua atenção (a atenção de DeWitt) por um antigo colega de Princeton, o juiz William T. Burdock, de Brattleboro, em Vermont, relativos a uma briga de bar, na qual ele (Ferguson) tinha sido responsável por quebrar o nariz de uma pessoa, e, embora legalmente ele tenha sido inocentado por agir em legítima defesa, moralmente tinha se condu­zido de forma extremamente repreensível, pois, em primeiro lugar, não havia defesa para o fato de ter entrado num estabelecimento tão indigno, e o próprio fato de Ferguson estar lá já suscitava dúvidas alarmantes sobre sua capacidade de avaliar o que é certo e o que é errado. Como Ferguson sabia muito bem, todos os participantes do Programa de Bolsas de Estudo Walt Whitman tinham de assinar um juramento de caráter em que prometiam se conduzir como cavalheiros em toda e qualquer circunstância, assumir a responsabilidade de serem exemplos de bom comportamento e de virtude cívica e, como Ferguson não tinha cumprido a promessa que fizera, era seu triste dever (dever triste de DeWitt) informar que sua bolsa tinha sido cancelada. Ferguson podia permanecer em Princeton normalmente, se optasse por continuar, mas o custo de seu curso, de seus alojamentos e de suas refeições já não seria financiado pelo Programa. Com pesar, mas respeitosamente...

Ferguson pegou o telefone e discou o número do escritório de DeWitt, em Wall Street. Desculpe, disse a secretária, o sr. DeWitt está viajando, está na Ásia, e só vai voltar no dia 10 de setembro.

Não adiantava ligar para Nagle. Ele e a esposa estavam na Grécia.

Será que Ferguson conseguiria cobrir os custos? Não, não era possível. Tinha entregado um cheque de cinco mil dólares para McBride, e suas reservas agora se limitavam a dois mil dólares. Era insuficiente.

Pedir que a mãe e Dan pagassem? Não, ele não tinha coragem de fazer isso. O projeto do calendário e da agenda de sua mãe já estava encerrado, agora, e Phil Costanza, colaborador e parceiro fiel de Dan durante dezesseis anos, tinha sido devastado por um derrame e provavelmente nunca mais poderia trabalhar. Não era o melhor momento para pedir favores.

Usar os seus dois mil dólares e pedir que eles cobrissem a diferença? Talvez. Mas e no ano seguinte, quando os dois mil tivessem sumido?

Usar os dois mil dólares também significaria abrir mão do apartamento. Um pensamento desolador: acabou-se Nova York.

E, além disso, se não voltasse para Princeton, ele ia perder seu direito de ficar livre do alistamento militar por ser estudante universitário. O que significava que ia ser convocado pelo Exército, e, como não ia aceitar servir, se e quando fosse chamado, a convocação militar significaria cadeia.

Outra universidade? Uma universidade mais barata? Mas qual, e como seria possível conseguir uma transferência em tão pouco tempo?

Ele não tinha a menor ideia do que fazer.

Uma coisa era certa: eles não o queriam mais. Tinham decidido que ele não servia e lhe deram um pé na bunda.


7.1

Depois que voltou da Flórida, fez as malas e se mudou para um apartamento na rua 107 Oeste, quatro quarteirões ao sul, entre a Broadway e a Am­sterdam Avenue. Dois cômodos e uma cozinha, pela soma extravagante, mas perfeitamente viável, de cento e trinta dólares por mês (havia certas vantagens, por ter dinheiro no banco), porém, embora ele preferisse morar sozinho, sem dividir a casa com ninguém, e ficasse contente por abandonar o ambiente sinistro da rua 11 Oeste (uma ação necessária), era difícil dormir sozinho. O travesseiro era duro demais ou macio demais, o colchão era chato demais ou ondulado demais e, toda noite, os lençóis arranhavam os braços ou se embolavam em torno das pernas, e, sem Amy nenhuma a seu lado para fazê-lo relaxar e dormir, com os movimentos serenos de sua respiração, os músculos de Ferguson se mantinham tensos, os pulmões não queriam reduzir o ritmo e ele não conseguia evitar que sua mente disparasse numa velocidade capaz de despejar cinquenta e dois pensamentos por minuto, um para cada carta do baralho. Quantos cigarros tinha fumado às duas e meia da madrugada? Quantos copos de vinho tinto havia bebido, depois da meia-noite, para reprimir os espasmos e induzir os olhos a fecharem? Dor no pescoço, quase toda manhã. Cólicas na barriga, de tarde. Falta de ar, ao anoitecer. E, de manhã, ao meio-dia e à noite: um coração que batia depressa demais.

A questão não era mais Amy. Ele tinha passado o verão se reconciliando com o fato de sua separação, com a inevitabilidade de ficarem separados para sempre, e já não punha mais a culpa nela nem em si mesmo. Os dois vinham caminhando em direções opostas já fazia quase um ano e, mais cedo ou mais tarde, o filamento que os mantinha unidos teria mesmo de se romper. E se rompeu de fato, e a força do rompimento foi tão grande e tão poderosa que fez Amy voar para o outro lado do país. Califórnia. A calamidade da distante Ca­lifórnia, e, desde o início de maio, nem uma só palavra sobre ela — um zero tão grande quanto um buraco aberto no céu.

Em seus momentos de mais força, ele conseguia dizer para si mesmo que tinha sido melhor assim, que a pessoa que Amy tinha se tornado já não era a pessoa com quem ele podia ou queria viver e, portanto, ele não tinha nada de que se arrepender. Em seus momentos de maior fraqueza, sentia falta de Amy, sentia falta do mesmo jeito como sentia falta dos dois dedos que tinha perdido no acidente, e, agora que Amy tinha ido embora, aquilo muitas vezes dava a sensação de que outra parte de seu corpo tinha sido roubada. Quando estava a meio caminho entre os momentos de força e os de fraqueza, torcia para que aparecesse alguém para ocupar a outra metade de sua cama e curar sua insônia.

Casa nova, o sonho de um novo amor, o longo verão de trabalho em suas traduções, que persistiu durante o outono, o inverno e a primavera, os problemas somáticos provocados pela perda do amor e/ou seu estado mental atual, que acabou fazendo com que Ferguson fosse parar na emergência do hospital St. Lukes com vinte e sete punhais cravados na barriga (não era o apêndice supurado que ele imaginou, mas uma crise de gastrite), a contínua calamidade no Vietnã, acompanhada por outros numerosos choques que ocorreram ao longo da segunda metade de 1968 e da primeira metade de 1969 — eles eram parte da história de Ferguson —, mas por enquanto a atenção devia ser dirigida para o que ele travava contra a figura simbólica do Pai-Ninguém, o personagem inventado por William Blake e que ficou gravado na sua cabeça como o representante dos homens irracionais encarregados de dirigir o mundo. Em meados de setembro, quando ele voltou para Columbia para seu último ano na faculdade, sentia-se desiludido e amargurado com a maior parte das coisas, entre elas as coisas que havia descoberto, relativas à manipulação da imprensa americana, e agora vinha pensando melhor para saber se queria mesmo se unir às fileiras daquela fraternidade quando saísse da faculdade, ou se a decisão que havia tomado ainda no tempo do ensino médio, de ser jornalista profissional, ainda estava valendo a pena à luz da corrupção e da desonestidade que havia testemunhado em primeira mão durante os dias da revolta em Columbia, na primavera anterior. O New York Times tinha mentido. O chamado jornal de referência, o suposto bastião da cobertura ética e isenta, havia desvirtuado sua matéria sobre a intervenção policial, no dia 30 de abril, e publicara um relato dos acontecimentos, escrito antes que os fatos tivessem ocorrido. A. M. Rosenthal, o vice-editor geral do Times, tinha recebido de alguém da diretoria de Columbia uma dica da invasão iminente, algumas horas antes da tropa de choque aparecer no bairro e, já sabendo que mil soldados seriam chamados, a matéria principal na primeira página da edição da manhã seguinte, no dia 30 de abril, anunciou que aqueles mil soldados tinham removido os estudantes dos prédios ocupados e prendido centenas deles, sob a acusação de invasão de propriedade (número que havia sido incluído às pressas, no último minuto, depois do texto já pronto), mas nenhuma palavra sobre o que havia de fato ocorrido, nenhuma palavra sobre a banho de sangue e a violência, nenhuma palavra sobre os estudantes e os professores espancados, e nenhuma palavra sobre a maneira como a polícia tinha usado algemas e cassetetes para espancar um dos repórteres do próprio Times, em Avery Hall. No jornal da manhã seguinte, a manchete da capa, de novo, deixava de mencionar o motim policial que tinha ocorrido no campus durante o ataque, embora houvesse uma discreta matéria sobre supostos atos de brutalidade policial, escondida na página 35: LINDSAY ORDENA APURAÇÃO DA CONDUTA POLICIAL. O terceiro parágrafo da matéria afirmava que “em situações assim, é difícil definir o que seja a brutalidade policial, como sugerem dezenas de relatos de estudantes de Columbia. Para um experiente manifestante das campanhas contra a guerra e em defesa dos direitos civis, a ação da polícia no campus de Columbia ontem, em sua maior parte, foi relativamente suave”. O espancamento sádico do repórter do Times, McG. Thomas Jr., não era men­cionado, senão no décimo primeiro parágrafo.

Dezenas de estudantes. Mas que estudantes, Ferguson queria saber, e quais eram seus nomes? E quem eram os experientes veteranos dos movimentos contra a guerra e em defesa dos direitos civis que tinham sofrido maus-tratos da polícia em manifestações anteriores? Nenhum estagiário que trabalhasse no Columbia Daily Spectator teria permissão de publicar uma matéria como aquela sem fornecer citações diretas e a identidade dos estudantes que tinham feito aqueles comentários, se tivessem realmente declarado aquilo. Seria aquilo uma reportagem ou um editorial em forma de reportagem, perguntou-se Ferguson? E, por favor, digam, qual era a definição da palavra “suave”.

No dia 1o de maio, mais uma matéria de capa, escrita pelo próprio Rosenthal, uma mistura desconexa, curiosamente despropositada, de lamentos, impressões e espanto indignado. “Eram quatro e meia da madrugada”, começava o primeiro parágrafo, “e o reitor da universidade encostou-se na parede de sua sala. Ali, tinha sido seu gabinete. Passou a mão no rosto. ‘Meu Deus’, disse ele, ‘como seres humanos podem fazer uma coisa dessas?’... Ele vagava pela sala. Estava quase sem mobília nenhuma. As mesas e cadeiras tinham sido destroçadas, quebradas e entulhadas nas salas vizinhas pelos estudantes que invadiram o prédio...”

Na página 36 daquela mesma edição matinal do Times, outra matéria relatava os estragos causados em várias salas e escritórios pelos ocupantes do Mathematics Hall. Janelas espatifadas, um fichário de biblioteca virado, cadeiras e escrivaninhas despedaçadas, guimbas de cigarro sobre os tapetes, arquivos de pastas tombados, portas quebradas. “Uma secretária, quando voltou ao prédio, pela primeira vez, depois de ser retomado, na quinta-feira, olhou em volta com repugnância: ‘Eles não passam de porcos’, disse ela.”

Os porcos, no entanto, não eram os estudantes que haviam ocupado os prédios, mas a polícia, que tinha entrado nos prédios depois do ataque. Foram os policiais que destruíram as mesas e as cadeiras, foram eles que despejaram jatos gotejantes de tinta preta nas paredes, que rasgaram sacos de cinco e de dez quilos de arroz e de açúcar e espalharam o conteúdo pelos escritórios e pelas salas de aula, e que espatifaram potes de vidro de molho de tomate contra o chão, contra as mesas e os armários de arquivos, foram eles que arrebentaram as janelas, e a estratégia funcionou, pois horas depois daquele segundo ataque da polícia, uma multidão de fotografias que comprovavam os estragos já estava circulando por todo país (a parede riscada com tinta preta foi uma imagem especialmente popular) e os jovens rebeldes tinham sido transformados num bando de baderneiros e brutamontes incivilizados, uma gangue de bárbaros cujo único propósito era destruir a mais sagrada das instituições da vida americana.

Ferguson sabia qual era a história verdadeira, porque estava lá, era um dos repórteres do Spectator escalados para investigar as acusações de vandalismo contra os estudantes, e o que ele e seus colegas repórteres tinham descoberto — mediante depoimentos juramentados de membros do corpo docente — foi que não havia nenhuma tinta atirada contra a parede quando um contingente de professores percorreu o prédio vazio do instituto de Matemática às sete horas da manhã do dia 30 de abril. Depois que saíram, só a polícia e fotógrafos da imprensa tiveram permissão de entrar, e, quando os professores voltaram mais tarde naquele dia, descobriram que as paredes estavam cobertas de tinta. Idem para as mesas e cadeiras, arquivos, janelas e sacos de alimentos. Em boas condições às sete horas, saqueado e destruído ao meio-dia.

De nada ajudava o fato de o editor do New York Times, Arthur Ochs Sulzberger, ser membro do conselho de curadores de Columbia. Nem a circunstância de William S. Paley, diretor da rede CBS de televisão, e Frank Hogan, procurador do distrito de Manhattan, também fazerem parte do mesmo conselho. Ao contrário de muitos amigos, Ferguson não tinha o costume de procurar conspirações para explicar as operações ocultas dos escudeiros do Pai-Ninguém, mas como não imaginar que o jornal mais influente dos Estados Unidos havia, deliberadamente, deturpado a cobertura dos acontecimentos em Columbia, e como não ficar desconfiado diante do fato de que a rede de televisão mais influente havia convidado o reitor de Columbia, Grayson Kirk, para o programa Em Face da Nação, mas nunca pediu que nenhum líder estudantil apresentasse o outro lado da história? Quanto à questão dos agentes da ordem pública, Ferguson e seus colegas estudantes em Morningside Heights estavam bastante cientes do que a polícia havia feito durante e depois do ataque, mas ninguém mais parecia extremamente interessado no assunto.

Caso encerrado.

Ferguson voltou a pé para o campus de Columbia, naquele mês de setembro, sentindo-se arrasado e desmoralizado. Um sentimento de vazio e de esgotamento à medida que as afrontas de agosto continuaram a ecoar dentro dele, tanques soviéticos atravessaram a fronteira da Tchecoslováquia para exterminar a Primavera de Praga, Daley chamando Ribicoff de judeu sujo filho da puta na convenção do Partido Democrático, em Chicago, enquanto vinte e três mil policiais, locais, estaduais e federais, jogavam gás e davam murros em jovens manifestantes e jornalistas no Grant Park, e a multidão gritava em uníssono, O mundo inteiro está vendo!, e aí Ferguson começou seu último ano na faculdade em Nova York no meio de mais uma crise, o espetáculo enlouquecido de professores de escolas públicas entrando em greve para protestar contra o controle comunitário do Conselho de Educação, em Ocean Hill-Brownsville, mais um choque entre negros e brancos, ódio racial em sua feição mais horrenda e mais suicida, negros contra judeus, judeus contra negros, mais veneno para encher o ar, enquanto o mundo voltava os olhos para as Olimpíadas, que estavam prestes a começar na cidade do México, onde a polícia atacou uma horda de trinta mil estudantes e trabalhadores que faziam um protesto e matou vinte e três, além de prender milhares, e depois, no início de novembro, aos vinte e um anos de idade, Ferguson votou pela primeira vez e os Estados Unidos elegeram Richard Nixon como seu novo presidente.

Durante todos os seis primeiros meses daquele seu último ano na faculdade, Ferguson tinha a sensação de que estava preso dentro do corpo de um estranho e já não era capaz de se reconhecer quando olhava para o próprio rosto no espelho, o que também era verdade para os pensamentos que encontrava toda vez que olhava para dentro da própria cabeça, pois também eram, em sua maioria, os pensamentos de um estranho: pensamentos céticos, amargurados, desgostosos, que nada tinham a ver com a pessoa que ele tinha sido no passado. No fim, um homem viria do norte e ajudaria a curar sua amargura, mas isso só ia acontecer no primeiro dia da primavera, e o outono e o inverno foram difíceis para Ferguson, tão difíceis que seu corpo não aguentou e ele acabou indo parar na emergência do hospital.

Se não ia mais ser jornalista, então não fazia nenhum sentido continuar trabalhando como repórter do Spectator. Pela primeira vez em anos, ele teria condições de escapulir de seu mosteiro de vidro e travar contato direto com o mundo outra vez, não como um cronista das ações das outras pessoas, mas como o herói de sua própria vida, por mais tumultuada e confusa que aquela vida pudesse ser. Chega de reportagens, mas nada tão drástico como uma ruptura completa, pois ele adorava as pessoas com quem trabalhava lá (se havia algum jornalista que ele respeitava, agora, nos Estados Unidos, este era Friedman, assim como outros rapazes do Spectator), portanto, em vez de cortar todos os vínculos com o jornal, ele abriu mão de seu posto de membro associado do conselho editorial e se transformou num resenhador eventual de livros e filmes, o que significava entregar mais ou menos um texto mais longo todo mês, especulações sobre temas divergentes, como os poemas póstumos de Christopher Smart e o mais recente filme de Godard, Weekend (Fim de semana), que Ferguson defendia ser o primeiro exemplo conhecido daquilo que ele chamava de surrealismo público, em oposição ao surrealismo privado de Breton e seus seguidores, pois os dois dias e meio entre a tarde de sexta-feira e a noite de domingo, comumente chamados de fim de semana, compreendiam aproximadamente um terço da semana nas sociedades industriais e pós-industriais como a França e os Estados Unidos, assim como as sete ou oito horas que um indivíduo passava na cama, toda noite, constituíam mais ou menos um terço da vida daquela pessoa, o tempo do sonho das mulheres e dos homens privados, em paralelo com o tempo do sonho da sociedade em que eles viviam, e o filme de Godard, anárquico, respingado de sangue, de carros batidos e de canibalismo sexual, não era outra coisa senão a exploração de um pesadelo de massa, que era exatamente o tipo de coisa que agora calava mais fundo em Ferguson.

Hilton Obenzinger e Dan Quinn foram indicados como os editores-chefes da Columbia Review, David Zimmer e Jim Freeman eram os novos editores assistentes e Ferguson tornou-se um dos nove que compunham o corpo literário. Dois números por ano, como no passado, mas agora eles tinham levantado dinheiro para fundar algo denominado Columbia Review Press, que lhes permitiria lançar quatro livros pequenos, além dos dois números anuais. Quando os treze se encontraram para a reunião inaugural em Ferris Booth Hall, em meados de setembro, houve pouca discussão acerca dos três primeiros títulos da lista. Poemas de Zimmer, poemas de Quinn e uma coletânea de contos de Billy Best, um ex-estudante de Columbia que havia largado a universidade cinco anos antes, mas ainda mantinha contato com alguns membros da Review. O quarto livro provocou um problema. Jim e Hilton pediram para ficar de fora, dizendo que não tinham nada de consistente para encher sessenta e quatro páginas, talvez nem mesmo quarenta e oito, e então, durante uma pausa na discussão, Hilton desembrulhou um pacote de quatrocentos gramas de carne moída, fez uma bola na mão e jogou com toda força contra a parede, enquanto gritava a palavra Carne!, e o bolo estalou de encontro à parede e ficou ali colado por alguns segundos antes de deslizar e cair no chão. Assim era o espírito audaz e dadaísta de Hilton, e esse era o espírito daquele ano quando as melhores cabeças no campus compreenderam que as questões mais importantes só podiam ser respondidas por bizarrices estapafúrdias, em contraste com a tática do tipo encosta-na-parede da primavera anterior, e depois que todo mundo aplaudiu Hilton por sua aula sobre os pontos mais sutis da ciência da lógica, Jim Freeman olhou para Ferguson e disse: E que tal as suas traduções, Archie? Você já tem uma quantidade suficiente para fazer um livro?

Nem de longe, mas eu trabalhei um bocado no verão. Dá para esperar até a primavera?

Por votação unânime, ficou resolvido que uma pequena antologia de traduções de Ferguson de poetas franceses do século XX seria o quarto e último livro publicado naquele ano. Quando Ferguson lembrou a eles que era ilegal publicar traduções sem comprar os direitos autorais dos originais, ninguém pareceu se importar. Quinn ressaltou que a edição seria limitada a quinhentos exemplares, a maioria seria distribuída de graça, e, se algum editor francês calhasse de aparecer em Nova York e esbarrasse com um exemplar do livro de Ferguson numa prateleira da livraria Gotham Book Mart, o que ele poderia fazer? Naquela altura, todos eles já teriam sumido do mapa, dispersos pelos mais remotos rincões do país e, sem dúvida, também de outros países, e, além do mais, por que alguém ia querer persegui-los por causa de umas poucas centenas de dólares?

Estou com o Dan, disse Zimmer. Foda-se o dinheiro.

Pela primeira vez em semanas, provavelmente, senão em meses, Ferguson deu uma risada.

Votaram de novo só para oficializar a questão e, um por um, todos os treze membros do conselho editorial da Columbia Review repetiram as palavras de Zimmer: Foda-se o dinheiro.

Jim e Hilton estabeleceram a data limite de 1o de abril para a entrega do original pronto, o que lhes daria tempo suficiente para imprimir o livro antes de todos se formarem, em junho, e, à medida que os meses corriam, Ferguson muitas vezes se indagava o que teria acontecido com ele se Jim Freeman não tivesse feito aquela pergunta, pois, a cada mês que passava, ficava cada vez mais claro, para ele, que aquele prazo é que estava salvando sua vida.

Aqueles poemas eram seu refúgio, a única e pequenina ilha de sanidade onde ele não se sentia alienado de si mesmo e em desacordo com Tudo Que Existia, e muito embora tivesse terminado muito mais traduções do que havia admitido na reunião, não menos de cem páginas até então, talvez umas cento e vinte, ele prosseguiu com suas versões de Apollinaire, Desnos, Cendrars, Éluard, Reverdy, Tzara e os outros, queria acumular uma fartura de material para trabalhar quando chegasse a hora de ter de escolher quais poemas entrariam nas cinquenta ou sessenta páginas que a editora tinha condições de publicar, um livro dissonante, que ia dar tiros para todo lado, desde os gritos comoventes de “A bela ruiva” até o gesto louco, musical e acrobático de “O homem aproximativo”, de Tzara, do ritmo discursivo de “Páscoa em Nova York”, de Cendras, até a graça lírica de Paul Éluard:

Chegamos ao mar com relógios

No bolso, ou com o barulho do mar

No mar, ou somos os portadores

De uma água mais pura e silenciosa?

A água roça facas afiadas em nossas mãos.

Os guerreiros acharam suas armas nas ondas

E o som de seus golpes parece

As rochas que destroem os barcos à noite.

É a tempestade e o trovão. Por que não o silêncio

Da maré, pois, dentro de nós, sonhamos

Espaço para o maior silêncio e respiramos

Como o vento sobre mares terríveis, como o vento

Que rasteja lento, sobre todos os horizontes.

Portanto, Ferguson tinha seus trabalhos extracurriculares de fazer traduções e escrever resenhas, tanto um quanto o outro, de modo alternado e, não raro, simultâneo, uma luta e um prazer para ele, o prazer da luta para conseguir acertar, a frustração de não conseguir acertar com mais frequência do que era de esperar, os poemas que o derrotavam e não podiam ser transpostos para um inglês aceitável, depois de levarem duas dúzias de punhaladas, o fracasso de seu texto sobre o efeito de ouvir dois tipos diferentes de música, cantados por diferentes tipos de vozes femininas (Janet Baker, Billie Holiday, Aretha Franklin), porque, no fim, era impossível escrever sobre música, concluiu Ferguson, impossível pelo menos para ele, e mesmo assim conseguiu escrever alguns artigos que não chegaram a ficar tão horríveis a ponto de não serem publicados e, entretanto, a pilha de traduções continuava a crescer e, no meio de tudo aquilo, havia também as aulas a que estava assistindo, sobretudo seminários sobre literatura inglesa e francesa, porque ele havia cumprido todos os requisitos acadêmicos, exceto um, ciências, os abomináveis dois anos de créditos em ciências, que eram uma completa perda de tempo e de energia, em sua opinião, mas Ferguson descobriu que havia um curso concebido para pessoas tapadas que nem ele, Introdução à Astronomia, que aparentemente não reprovava ninguém, porque o professor era contrário a reprovar alunos de campos de estudo alheios à ciência, e, mesmo se o aluno não desse as caras em nenhuma aula do curso, tudo que precisava fazer era responder uma prova de múltipla escolha no final do ano, um teste em que o aluno não tinha como ser reprovado, mesmo que não conseguisse adivinhar as respostas e só fizesse dez por cento dos pontos, por isso Ferguson se matriculou naquele curso sobre a matemática celestial para tapados, mas, como estava vivendo no corpo de um estranho e já não sabia mais quem ele mesmo era, e como não sentia nada senão desprezo pelas regras de Columbia e pelos assuntos absurdos que o obrigavam a estudar contra sua vontade, foi até a livraria da universidade, no início do primeiro semestre, e roubou um livro de astronomia, ele, que nunca tinha roubado nada em toda sua vida, que tinha trabalhado na livraria Mundo do Livro no verão, depois de seu ano de calouro, e tinha apanhado em flagrante seis ou sete estudantes roubando livros e tinha mandado todos eles para o olho da rua, agora era ele o ladrão de livros, e surrupiou um volume de capa dura, de quatro quilos, enfiou embaixo do paletó e saiu andando calmamente para a saída e para a rua, debaixo de um sol indiano, agora ele estava fazendo coisas que jamais teria feito no passado, comportava-se como se não fosse mais ele mesmo, mas aí, de novo, talvez essa fosse a pessoa que ele havia se tornado agora, pois a verdade era que não se sentia culpado por furtar o livro — não sentia absolutamente nada quanto a isso.

Noites demais em West End, noites demais embriagado com Zimmer e Fogg, mas Ferguson também desejava demais a companhia e os papos, e, nas noites em que ia sozinho para o bar, sempre havia a possibilidade de encontrar alguma garota que estivesse tão sozinha quanto ele. Uma possibilidade mínima, na verdade, porque ele era tremendamente sem experiência no que dizia respeito a esses assuntos, havia passado quase cinco anos da juventude e do início da idade adulta com uma só garota, a eternamente desaparecida Amy Schneiderman, que o havia amado e depois parou de amar e depois o deixou de lado, e agora Ferguson estava recomeçando do zero mais uma vez, um iniciante na arte da conquista, sem saber quase nada sobre como se aproximar de alguém e começar uma conversa, mas um Ferguson meio alto era mais charmoso do que um Ferguson sóbrio, e, três vezes durante os três primeiros meses de seu regresso a Columbia, tendo bebido o bastante para superar a timidez, mas não tanto que perdesse também o controle dos pensamentos, ele acabou indo para a cama com uma mulher, uma vez por uma hora, outra vez por algumas horas e a terceira vez por toda uma noite. Todas as mulheres eram mais velhas que ele e, em duas das três ocasiões, ele é que foi abordado, e não o contrário.

A primeira foi um desastre. Ele tinha se matriculado num seminário de pós-graduação sobre o romance francês, era o único aluno de graduação numa turma com dois alunos de pós-graduação e seis alunas de pós-graduação, e, quando uma daquelas alunas apareceu em West End na terceira semana de setembro, ele se aproximou para cumprimentar. Alice Dotson tinha vinte e quatro ou vinte e cinco anos, não era feia nem hesitante, mas um pouco gordinha e desajeitada, talvez pouco acostumada aos protocolos do sexo fortuito, talvez ainda mais tímida do que ele, mas, quando Ferguson se viu nos seus braços, tarde da noite, o corpo dela tinha um aspecto e dava uma sensação tão diferente do corpo de Amy que ele ficou abalado com a estranheza de tudo e, depois, para aumentar ainda mais sua confusão, ela era muito mais passiva na cama do que a ardorosa e impetuosa Amy, e, enquanto Ferguson levava adiante a missão de tentar copular com ela, a todo momento sua mente se desviava da tarefa em questão, e, muito embora Alice parecesse estar se divertindo de um jeito sereno e meio sonhador, ele não conseguiu terminar o que tinha começado, uma coisa que nunca havia acontecido em todos os anos que estivera com Amy, e o encontro prazeroso que vinha buscando com tanta ansiedade acabou se transformando em uma hora desafortunada de vergonha e impotência. Tampouco teve a oportunidade de esquecer aquele golpe baixo em seu orgulho masculino, pois a turma daquele curso se reunia por duas horas, toda segunda e quinta-feira, e duas vezes por semana, por todo o resto do ano, lá estava Alice Dotson, sentada à mesa, com todos os outros alunos, fazendo tudo o que podia para ignorá-lo.

A segunda ocasião não deixou nenhuma cicatriz, mas serviu como uma lição valiosa. Uma secretária de trinta e um anos, de aspecto agradável, mas sem nada de especial, apareceu em West End certa noite com o propósito específico de pegar um estudante. Chamava-se Zoe (nunca disse o sobrenome), e, quando pôs os olhos no solitário Ferguson, sentou-se a seu lado, no balcão, pediu um Manhattan e começou a falar sobre o campeonato nacional de bei­sebol, que destacava no momento a disputa entre os times Cardinals e Tigers (Zoe torcia por St. Louis, porque tinha sido criada em Joplin, Missouri). Depois de três ou quatro goles de seu drinque, ela testou a temperatura da água, colocando a mão na coxa de Ferguson, e, como ele era suscetível a provocações desse tipo, reagiu dando um beijo na sua nuca. Zoe sorveu o resto do Manhattan, Ferguson esvaziou sua cerveja e dali os dois entraram num táxi e partiram para a casa dela, na rua 84 Oeste, trocando não mais de seis ou sete palavras enquanto se tocavam e se beijavam no banco de trás do táxi. Tudo foi muito impessoal, ele achou, mas o corpo flexível da mulher se movia de um jeito que excitava Ferguson, e, quando chegaram ao apartamento, o órgão desgostoso que o havia decepcionado de forma tão cruel com Alice Dotson não teve nenhum problema para terminar o que havia começado com Zoe Sem Sobrenome. Foi a primeira vez que ficou só uma noite com uma mulher. Ou quase uma noite, na qual uma primeira rodada foi seguida por uma segunda, mas, quando a segunda terminou, às duas da madrugada, Zoe pediu que Ferguson fosse embora, garantindo que ambos se sentiriam melhor de manhã se não passassem a noite juntos. Ele não sabia o que pensar. Era bom enquanto durava, disse para si mesmo, mas o sexo sem sentimentos tinha suas indiscutíveis limitações, e, enquanto voltava para seu apartamento no meio da ventosa noite de outono, se deu conta de que não tinha valido a pena.

A terceira ocasião foi memorável, a única coisa boa que lhe aconteceu durante aqueles meses longos e vazios. Embora West End fosse essencialmente um ponto de encontro de estudantes, havia uma quantidade de frequentadores que já não eram mais estudantes, ou nunca tinham sido, os sonhadores excêntricos e beberrões que ficavam sentados sozinhos nos bancos, tramando a derrubada de governos imaginários ou tomavam a saideira antes de passarem mais uma temporada frequentando as reuniões dos Alcoólicos Anônimos, ou então lembrando os velhos tempos, quando Dylan Thomas ficava ali no bar, recitando seus poemas. Entre os frequentadores constantes, estava uma jovem que Ferguson havia conhecido muito tempo antes, no início de seu ano de calouro, uma beldade esguia, de pernas compridas, de Lubbock, no Texas, chamada Nora Kovacs, por quem ele sempre se sentira atraído, mas de quem nunca havia se aproximado por causa de Amy, uma garota bem fora do comum, que tinha vindo para o norte para fazer faculdade em Barnard, em 1961, largou o curso no meio do primeiro semestre e acabou ficando no bairro desde aquele tempo, a Nora desbocada, obscena, tipo vai-se-foder, que havia se desviado para a profissão de tirar a roupa na frente de estranhos, uma artista do striptease que viajava para os remotos postos avançados da indústria americana a fim de animar a vida de homens sem mulher que trabalhavam em campos de exploração de petróleo, estaleiros e usinas, uma artista bem remunerada que desaparecia de Nova York por alguns meses para rodar pelo Alasca ou pelo litoral do Golfo do Texas, mas acabava sempre voltando para retomar seu assento no bar de West End, aonde ia quase toda noite para bater papo com quem estivesse sentado a seu lado, falava sobre suas aventuras na estrada e espinafrava os retardados Pai-Ninguém que estavam destruindo o universo. Ferguson não a conhecia direito, mas ao longo dos anos os dois tiveram cinco ou seis conversas mais demoradas, e, como ele a havia ajudado, certa vez, numa questão de considerável importância, havia entre os dois um vínculo especial, ainda que não fossem amigos íntimos. Remontava a uma noite em seu tempo de calouro, quando Ferguson entrou no West End sem Amy e passou quatro horas conversando com Nora, só os dois, numa mesa no canto. Ela estava prestes a partir na sua primeira turnê de striptease, contou Nora, e precisava de um nome artístico, pois tinha certeza absoluta de que não ia fazer sucesso como Nora LuAnn Kovacs. Num repentino lampejo de inspiração, Ferguson disse: Starr Bolt, Raio de Estrela. Puta merda, respondeu Nora, que sacada do caralho, Archie, você é um gênio, e talvez naquela única vez ele tenha sido mesmo um gênio, pois Starr Bolt era um nome que irradiava glamour, liberdade e força sexual, os atributos fundamentais de que qualquer striper precisava para alcançar o topo, e, toda vez que ele encontrava Nora durante os anos seguintes, ela sempre agradecia a Ferguson por transformá-la no que chamava, jocosamente, de Rainha do Interior.

Ferguson gostava de Nora porque sentia atração por ela, ou sentia atração por Nora porque gostava dela, porém também compreendia que Nora era um desastre, bebia demais, usava drogas demais, tinha se convertido naquilo que os guardiões da virtude chamavam de vagabunda ou puta, uma jovem que seguia em alta velocidade pela estrada que ia terminar em sofrimento e ruína, sincera sem medir as consequências para si mesma, à vontade demais no corpo deslumbrante que Deus tinha lhe dado, sem nenhum outro propósito na vida que não pôr à prova a moral de homens fracos e de pecadores vacilantes, uma mulher que transava com quem bem entendesse e que falava abertamente sobre sua boceta, seu clitóris e sobre os prazeres de ter um pau duro enterrado na bunda, mas ao mesmo tempo Ferguson achava que ela era um dos membros mais inteligentes da turma do West End, uma garota com um coração amoroso e impulsos gentis, e, embora desconfiasse que ela não fosse viver além dos trinta ou trinta e cinco anos, não sentia por Nora nada que não fosse afeição.

Fazia meses que não a via, talvez meio ano, mas lá estava ela, certa noite, no início de novembro, poucos dias depois de Nixon derrotar Humphrey, o que havia lançado uma sombra no estado de espírito já bastante sombrio em que Ferguson se afundara naquele outono, e quando ele sentou a seu lado, no bar, Nora deu uma de suas grandes risadas e sapecou um beijo na sua bochecha esquerda.

Conversaram por cerca de uma hora, trataram de diversos assuntos cruciais, como a prisão do ex-namorado de Nora por vender drogas, o definitivo afastamento de Amy da vida de Ferguson, o anúncio desolador (para Ferguson) de que Nora ia partir para o Arizona na manhã seguinte, e o fato curioso de que, enquanto Nora estava no Alasca, balançando as tetas na cidade de Nome (frase que ele jurou nunca mais esquecer), ela tomou a peito (uma piadinha de Nora) a tarefa de se manter a par do que estava acontecendo em Columbia na primavera anterior, lendo os exemplares do Spectator que suas amigas Molly e Jack lhe mandavam de Nova York todos os dias. Em consequência, tinha lido todas as matérias escritas por Ferguson sobre a ocupação dos prédios da universidade, o ataque da polícia, a greve e tudo o mais.

As notícias podiam até demorar a chegar ao Alasca, mas as matérias de Ferguson eram boas pra cacete, disse ela, são muito foda, Archie, e depois de agradecer o elogio, Ferguson explicou que tinha se afastado da atividade de repórter. Talvez para sempre, disse, talvez temporariamente, não tinha certeza ainda, mas de uma coisa ele tinha certeza: não sabia mais o que pensar, seu cérebro tinha sangrado até secar, e também não tinha dúvida de que aquela merda (obrigado, Sal Martino) estava em toda parte.

Nora disse que nunca tinha visto Ferguson tão para baixo.

Pois eu estou ainda mais para baixo do que isso, respondeu Ferguson. Cheguei ao nonagésimo andar do porão e o elevador não para de descer.

Só tem uma solução, disse Nora.

Uma solução? Diga logo qual é, por favor, já.

Um banho.

Um banho?

Um banho quente e gostoso, e nós dois juntos.

Ferguson nunca tinha recebido uma proposta feita com tanta graça, e também nunca ficou tão contente em aceitar.

Vinte e cinco minutos depois, enquanto Nora abria as torneiras da banheira do seu apartamento na Claremont Avenue, Ferguson lhe disse que Deus tinha, de fato, lhe dado um corpo maravilhoso, porém, mais importante do que isso, também tinha lhe dado senso de humor, e, muito embora ela fosse partir para o Arizona de manhã, agora Ferguson bem que gostaria de se casar com ela, e, apesar de saber que não podia se casar com ela nem agora nem em nenhum outro tempo futuro, queria passar todos os minutos das próximas onze horas com ela, ficar com ela todos os segundos, até ela sair para pegar o avião, e agora que Nora estava sendo tão gentil com ele, queria que soubesse que a amava por isso e que a amaria pelo resto da vida, mesmo que nunca mais a visse.

Vamos lá, Archie, disse Nora. Jogue as roupas lá no canto e entre logo. A banheira está cheia e a gente não quer que a água fique fria, não é?

Novembro. Dezembro. Janeiro. Fevereiro.

Ele ainda estava na faculdade, mas já não queria mais saber da faculdade, avançava aos trambolhões para o fim do curso enquanto matutava o que ia fazer da vida depois que lhe entregassem o diploma. Em primeiro lugar, havia a questão de deixar o Pai-Ninguém espiar no seu ânus e examinar seus testículos, a questão de dar aquela tossida compulsória para o médico e fazer um exame escrito que ia provar se ele era inteligente o bastante para morrer pelo seu país. O serviço de alistamento militar iria convocá-lo para o exame físico do Exército em algum dia de junho ou julho, mas ele não estava preocupado com isso, por causa de seus dois dedos ausentes, e, agora que o Quaker a favor da guerra, com um plano secreto para pôr fim ao conflito, estava sentado em seu trono e falava em redução de tropas, Ferguson duvidava que os militares fossem estar tão desesperados a ponto de querer suprir seus regimentos com soldados que não tinham um dedo polegar. Não, o problema não era o Exército, o problema era o que fazer da vida depois que o Exército o recusasse, e, entre as dúzias de coisas que ele já havia decidido que não ia fazer, estava a pós-graduação. Chegou a pensar naquilo por uns três ou quatro minutos nas férias do Natal, quando estava com os pais na Flórida, mas bastou dizer as palavras em voz alta para compreender como se sentia profundamente revoltado com a simples ideia de passar mais um dia sequer da vida numa universidade, e, agora que fevereiro estava prestes a terminar, já havia acabado o prazo para enviar os pedidos de vaga. Dar aulas em escolas era outra opção. Havia uma pressão para que recém-formados fossem lecionar em bairros pobres na periferia da cidade, os bairros precários de negros e latinos, nas partes alta e baixa de Manhattan, os setores degradados dos municípios distantes, e pelo menos haveria algo de honroso em trabalhar assim por alguns anos, disse Ferguson para si mesmo, tentando educar as crianças daqueles bairros em desintegração e, ao mesmo tempo, sem dúvida nenhuma, aprendendo com os alunos tanto quanto eles aprenderiam com Ferguson, o sr. Menino Branco fazendo sua pequena parte para melhorar as coisas, em vez de piorar, mas então ele voltava à realidade e pensava na sua incapacidade para falar em público quando havia mais de cinco ou seis estranhos na sala, aquela timidez paralisante que transformava numa tortura o simples gesto de se levantar e falar com tanta gente olhando, e como ele poderia controlar uma turma de trinta ou trinta e cinco crianças de dez anos, se não ia sair nenhuma palavra de sua boca? Ferguson não seria capaz de fazer aquilo. Mesmo que quisesse, seria impossível para ele.

Ferguson já havia descartado o jornalismo, mas, em algum momento na segunda ou terceira semana de fevereiro, ele começou a se perguntar se não teria se precipitado, pois ainda que a grande imprensa do establishment não fosse algo em que valia a pena pensar, havia outros ramos do jornalismo para considerar. A imprensa contra o establishment, conhecida também como imprensa alternativa ou underground, tinha crescido com mais força durante o ano anterior aproximadamente, e o East Village Other, o Liberation News Service e o Rat estavam a todo vapor, para não falar de uma porção de semanários independentes em cidades ao redor de Nova York, publicações tão abusadas e anticonvencionais que faziam o Village Voice parecer tão careta quanto o velho Herald Tribune, portanto talvez houvesse algo em defesa da ideia de trabalhar em algum daqueles jornais. Pelo menos eram contra todas as coisas que Ferguson era contra, e a favor de muitas coisas de que ele também era a favor, no entanto havia uma série de desvantagens a serem consideradas também, as quais incluíam o problema do salário baixo (ele queria ganhar a vida sozinho, com seu trabalho, e não ter de recorrer demais aos fundos da mãe) e o problema ainda maior de escrever exclusivamente para pessoas de esquerda (sua esperança sempre foi de mudar a maneira como as pessoas pensavam e não apenas confirmar o que já pensavam), o que dificilmente o poria na posição panglossiana de viver no melhor dos mundos possíveis, mas sim num mundo em que o melhor e o possível raramente apareciam juntos na mesma frase, um trabalho possível, com o qual ele pudesse viver, sem se sentir conspurcado por ele, era certamente melhor do que não ter trabalho nenhum.

A. I. Ferguson, o principal repórter do Weekly Blast, a bíblia americana dos faustianos descontentes e degenerados, o jornal referência para os poucos eleitos.

No mínimo, era um assunto que exigia uma reflexão cuidadosa.

E assim Ferguson continuou pensando durante os quinze ou vinte dias seguintes, e aí veio a Noite dos Punhais, que explodiu logo depois da meia-noite de 10 de março de 1969, uma semana depois de seu vigésimo segundo aniversário e quatro dias depois de ter ido ao apartamento de Jim Freeman, na rua 108 Oeste, e entregar a ele o original terminado de A bela ruiva e outros poemas da França, uma coletânea grande demais, que ele disse para Jim cortar como achasse melhor, e, enquanto Ferguson caminhava lentamente pelos cômodos de seu próprio apartamento na noite do dia 10, compondo em pensamento uma carta comprida e introspectiva para Nora Kovacs, sentiu uma pontada forte na parte baixa do abdômen, uma das muitas que o haviam afetado durante os últimos meses, mas, em vez de amainar depois de dez ou vinte segundos, como acontecia na maioria das vezes, aquela pontada foi seguida de outra, mais forte ainda, que doeu tanto que ele já não a classificou mais de pontada, e sim de uma dor genuína e, logo depois do segundo golpe, o ataque geral começou, os punhais em suas entranhas, as vinte e sete lanças que o deixaram se contorcendo na cama durante quase duas horas, e, quanto mais tempo durava a dor, mais provável parecia que seu apêndice ou outro órgão estivesse se rompendo dentro do corpo, o que o deixou tão assustado que ele quis a todo custo ficar de pé, vestir o casaco e cambalear até a emergência do hospital St. Luke, a sete quarteirões e meio dali, enquanto apertava a barriga com as mãos e gemia alto, andando trôpego no meio da noite, parando toda hora para se segurar num poste de iluminação quando achava que estava em perigo de cair, mas, a despeito de tudo isso, ninguém na Amsterdam Avenue pareceu notar que ele estava ali, ninguém se deu ao trabalho de chegar perto e perguntar se precisava de ajuda, nenhuma pessoa entre as oito milhões em Nova York tinha o mínimo interesse em saber se ele estava vivo ou morto, e depois ficou esperando uma hora e meia até ser chamado a uma sala, onde um médico jovem passou quinze minutos lhe fazendo perguntas e apalpando sua barriga, depois mandaram Ferguson voltar para a sala de espera, onde continuou sentado por mais duas horas e, quando ficou claro que seu apêndice não ia explodir naquela noite, o médico o examinou de novo e prescreveu uns comprimidos, dizendo para ficar longe de comidas apimentadas, evitar uísque e outras bebidas fortes, evitar grapefruits, seguir a dieta mais leve possível pelas próximas duas ou três semanas, e, se outro ataque ocorresse nesse meio-tempo, era melhor que arranjasse alguém para ir com ele até o hos­pital, e, quando Ferguson fez que sim com a cabeça para as instruções sen­satas e prestativas do médico, se perguntava, em pensamento: Mas alguém, quem? Onde ele ia achar alguém para lhe fazer companhia, no calor da hora, na próxima vez em que achasse que ia morrer?

Ficou quatro dias de cama, bebendo chá fraco e beliscando bolachas e torradas, e, sete dias depois de estar se sentindo bem o bastante para sair de casa outra vez, apareceu um homem chamado Carl McManus, que veio do norte do estado de Nova York para conversar com os membros da equipe do Spectator que estavam deixando seus cargos. O conselho editorial formado por Friedman, Branch, Mullhouse e os outros já havia concluído seu mandato de um ano e entregara o jornal para o novo conselho, e Ferguson, o crítico freelancer eventual, já havia redigido o último texto que iria publicar no Spectator, uma resenha favorável, e sombria, da mais recente coletânea de poemas de George Oppen, Sobre ser numeroso, publicada no dia 7 de março, três dias antes da Noite dos Punhais. A ironia era que, entre os veteranos, Ferguson era o único que continuava a considerar a ideia de se tornar jornalista. Friedman, esgotado pelo trabalho e com a cabeça à beira de explodir, planejava hibernar em um daqueles empregos de professor de escola pública que deixaram Ferguson apavorado, Branch ia entrar no curso de medicina em Harvard, Mullhouse ia ficar ali mesmo em Columbia para fazer pós-graduação em história, mas todos foram àquela reunião, porque McManus tinha escrito uma carta para Friedman ainda na primavera, elogiando o trabalho da equipe do Spectator durante os “Tumultos”, e um elogio de Carl McManus tinha muito valor para eles. O editor-chefe do Rochester Times-Union tinha sido editor-chefe do Spectator em 1934 e, de lá para cá, naqueles trinta e tantos anos, ele tinha ido à Espanha cobrir a Guerra Civil Espanhola, tinha ido à Ásia cobrir o front do Pacífico na Segunda Guerra Mundial e tinha ficado em sua terra para cobrir o Terror Vermelho no fim dos anos 1940, e o movimento dos direitos civis nos anos 1950 e no início dos 60. Depois disso, passou uma longa temporada no setor editorial do Washington Post e, agora, de um ano e meio para cá, ele era o cabeça do Times-Union, onde tinha arranjado seu primeiro emprego depois que se formou em Columbia nos anos 1930. Não chegava a ser uma lenda no meio nem nada (nunca tinha publicado um livro e raramente aparecia no rádio ou na tevê), mas era uma personalidade conhecida, um homem com uma reputação grande o bastante para animar os corações dos esgotados tripulantes do Spectator quando receberam sua carta no início de maio.

Sotaque do Brooklyn, cara larga de irlandês, orelhas pronunciadas, corpo que poderia pertencer a um ex-zagueiro de futebol americano ou a um estivador, olhos azuis alertas e um tufo de cabelo ruivo e meio grisalho, cabelos compridos o bastante para sugerir um interesse em se manter afinado com seu tempo, ou então o cabelo de um homem que tinha se esquecido de ir ao barbeiro. Informal. Mais espontâneo do que a maioria das pessoas, e uma risada boa e ressonante quando Mullhouse propôs que todos fossem ao Lion’s Den, no primeiro andar, o barzinho de estudantes que servia, na versão de Mullhouse, para o repetido refrão dos bares de Nova York, a pior xícara de café do mundo.

Sete pessoas sentadas em torno de uma mesa de fórmica, seis estudantes de vinte e poucos anos e o homem de cinquenta e seis de Rochester, que entrou logo no assunto e disse que tinha voltado para Columbia à cata de recrutas. Algumas vagas de jornalista iam abrir no seu jornal e ele queria preencher as vagas com o que chamou de sangue fresco, garotos famintos, dispostos a se matar por causa dele e, assim, transformar um jornal decente num jornal bom, um jornal melhor, e como já estava familiarizado com o trabalho deles e sabia do que eram capazes, queria contratar três naquele mesmo instante. Quer dizer, se alguém aqui for doido o bastante para querer mudar para Rochester, em Nova York, onde os ventos que sopram do lago Ontario no inverno podem congelar a meleca no nariz e fazer as pernas virarem palitos de picolé.

Mike Aronson perguntou por que tinha vindo falar com eles, e não com alunos da Escola de Jornalismo, ou ele também tinha planos de dar um pulo lá?

Porque a experiência adquirida em quatro anos de trabalho no Spectator, respondeu McManus, vale mais do que um ano no curso de graduação. O assunto que vocês cobriram na primavera passada foi uma questão grande e complicada, uma das maiores coberturas de universidade em muitos anos, e todos vocês que estão sentados aqui nesta mesa fizeram um ótimo trabalho, em certos casos, um trabalho notável. Vocês já estiveram no meio do fogo, foram todos testados, e eu sei o que vou ter na mão se qualquer um de vocês aceitar o convite e vier trabalhar comigo.

Então, Branch levantou a questão muito mais importante do New York Times. O que levou McManus a pensar na cobertura que eles fizeram do caso em Columbia na primavera passada e por que algum deles ia querer trabalhar para a imprensa tradicional quando tudo o que essa imprensa fazia era publicar mentiras?

Eles violaram as regras, respondeu McManus, e eu fiquei tão revoltado com isso quanto você, sr. Branch. O que eles fizeram beirou o monstruoso, o imperdoável.

Muito depois, quando Ferguson teve oportunidade para refletir no que havia acontecido naquela tarde, pensar no motivo por que ele fez o que fez, e se perguntar quais seriam, ou não seriam, as consequências de não fazer aquilo, ele entendeu que tudo girou em torno da palavra monstruoso. Um homem mais modesto, mais prudente, teria dito irresponsável ou desleal ou decepcionante, palavras que não teriam nenhum efeito sobre Ferguson, só monstruoso transmitia a plena força da indignação que ele vinha carregando consigo nos últimos meses, uma indignação que era, aparentemente, compartilhada por McManus, e, se os dois tinham o mesmo sentimento acerca daquele assunto, deviam ter também o mesmo sentimento a respeito de outras coisas, e, se Fer­guson ainda tinha algum interesse em trabalhar para um jornal diário ou descobrir se o jornalismo era a solução para ele, então talvez não fosse uma ideia tão ruim encarar os ventos polares do norte gelado e aceitar a proposta de McManus. Era apenas um emprego, afinal. Se não desse certo, ele podia muito bem mudar de ramo e tentar alguma outra coisa.

Conte comigo, disse Ferguson. Acho que estou a fim de arriscar.

Ninguém mais estava a fim. Um por um, os amigos de Ferguson tiraram o corpo fora, um por um, todos eles cumprimentaram e apertaram a mão de McManus e disseram até logo, e aí ficaram só os dois, Ferguson e seu futuro patrão, e, como o avião de McManus só ia decolar às sete horas, Ferguson re­solveu matar a aula de poesia romântica inglesa, sugeriu que seguissem pela rua e fossem ao West End, onde poderiam continuar a conversa num ambiente mais aprazível.

Acharam uma mesa vaga num dos compartimentos da frente, pediram duas garrafas de Guiness e, depois de algumas breves palavras sobre Columbia antes e Columbia agora, McManus passou a pôr Ferguson em dia sobre a geografia do lugar para onde ele estava indo, falou com revigorante rudeza a respeito do mundo agonizante no noroeste do estado de Nova York, a única parte do país onde a população estava diminuindo, disse ele, e em nenhum lugar isso era tão drástico quanto em Buffalo, que tinha perdido quase cem mil pessoas na década anterior, a outrora gloriosa Buffalo, como ele definiu, não sem um toque de ironia lisonjeira na voz, a joia da antiga cultura do canal e da navegação, hoje uma desolação semideserta, fábricas falidas e abandonadas, casas em escombros com portas e janelas lacradas por tábuas, estruturas desmoronadas, uma cidade bombardeada, mas que jamais foi atingida por bomba nem guerra nenhuma, e depois, seguindo além da desolação de Buffalo, ele conduziu Ferguson numa breve excursão por algumas outras cidades da região, escolhendo cuidadosamente seus epítetos à medida que passava pe­la aporrinhante Syracuse, a anêmica Elmira, a feia Utica, a desafortunada Bing­hamton e a esfarrapada Rome, que nunca foi capital de império nenhum.

Você faz tudo soar tão... sedutor, disse Ferguson. Mas e quanto a Roch­ester?

Rochester era um pouco diferente, disse McManus, uma ramificação melhor da decadência, um lugar que estava caindo mais devagar do que os outros e, portanto, ainda era mais ou menos sólido, pelo menos por enquanto. Uma cidade de trezentos mil habitantes numa região metropolitana de mais ou menos um milhão e duzentas mil pessoas, o que explicava a circulação do Times-Union, que era de duzentos e cinquenta mil exemplares por dia. Uma cidade da série B dos times de beisebol, é claro, mas não chegava a ficar na parte de baixo da tabela, já que o time Red Wings, do Triplo-A,* ainda reforçava o time Baltimore Orioles com uma dieta de proteínas pesadas, com os jogadores Boog Powells, Jim Palmers e Paul Blairs, além de ser o lar de Eastman Kodak, Bausch & Lomb, Xerox, e da indispensável mostarda francesa, companhia inseparável de todo cachorro-quente americano desde 1904, o que fazia dela uma cidade em que a maioria das pessoas tinha emprego em empresas que não estavam em vias de se mudar para o sul nem para o exterior. Por outro lado, apesar dos barcos a vela e dos clubes campestres, da esplêndida cinemateca e da orquestra filarmônica decente, da boa universidade e da escola de música melhor ainda, uma das melhores do mundo, havia a jogatina, a prostituição e as quadrilhas de extorsão, controladas por Frank Valenti e pela Máfia também, em vastas regiões de pobreza e crime, as brutas favelas de negros que abrigavam de quinze a vinte por cento da população, e muitas daquelas pessoas lutavam para não perder o emprego ou estavam desempregadas ou fabricavam drogas mesmo, e, caso Ferguson tivesse esquecido (Ferguson não tinha esquecido), tinham ocorrido três dias de revolta no verão de 1964, uma semana depois da revolta no Harlem, três mortos, duzentas lojas saqueadas e danificadas, mil pessoas presas, e aí Rochester convocou a Guarda Nacional e pôs fim à revolta, a primeira vez na história em que a Guarda Nacional atravessou os portões de uma cidade do norte.

Nesse ponto, Ferguson mencionou Newark, Newark no verão de 1967, e contou como foi estar ao lado da mãe na Springfield Avenue durante a noite dos cristais.

Portanto, você sabe do que estou falando, disse McManus.

Infelizmente, sei, respondeu Ferguson.

Primaveras frias, prosseguiu McManus, verões adoráveis, outonos toleráveis, invernos brutais. Você verá o nome de George Eastman em toda parte que olhar, mas se lembre de que Frederick Douglass e Susan B. Anthony também moraram em Rochester, e até Emma Goldman passou um tempo lá, organizando operários em fábricas de trabalho escravo, no fim do século XIX. E também — isso é muito importante —, toda vez que você ficar meio para baixo e desanimado e, quem sabe, quiser se matar, vá dar uma volta em Mount Hope. É um dos maiores e mais antigos cemitérios públicos dos Estados Unidos e, no entanto, é o lugar mais lindo da cidade. Eu mesmo vou lá muitas vezes, sobretudo quando preciso pensar a fundo e fumar charutos compridos e grossos. Isso nunca deixa de clarear os pensamentos e às vezes até ilumina a mente. O local de repouso de trezentas mil almas que se foram.

Trezentas mil pessoas em cima da terra em Rochester, disse Ferguson, e trezentas mil embaixo da terra. É o que o nosso bom amigo poderia chamar de sinistra simetria.

Ou de casamento do céu com o inferno.

Assim começou a primeira conversa entre Ferguson e Carl McManus, o aquecimento para as duas horas que passaram juntos no West End, discutindo sobre os tipos de matéria que ele iria escrever para o jornal, o período de iniciação, com reportagens locais que, mais adiante, passariam para assuntos estaduais ou nacionais se ele engrenasse de fato no emprego, o que McManus, com generosidade, parecia admitir como um desfecho inevitável, e sobre o salário que ele ia ganhar para começar (baixo, mas não a ponto de ter de lutar contra miséria ou passar fome), informações detalhadas sobre a equipe do jornal e sobre a impressão, e, quanto mais conversavam, mais Ferguson se sentia satisfeito com a decisão que havia tomado, seu instintivo pode contar comigo em resposta à palavra “monstruoso”, e agora que estava conhecendo McMa­nus um pouquinho melhor, entendeu que ia aprender muito trabalhando para aquele homem, que ir para a inusitada Rochester era uma mudança boa e plausível, e, quando estendeu a mão esquerda e a mostrou para McManus (que, em toda sua vida, foi o primeiro estranho que lhe perguntou como tinha perdido os dedos), Ferguson disse: Eu espero que isto tire o pessoal do alistamento militar das minhas canelas e, assim, eu possa aceitar o emprego.

Não se preocupe com o alistamento militar, disse McManus. Você já assinou contrato comigo e ninguém pode servir dois exércitos ao mesmo tempo.

Pouco a pouco, as batidas do coração reduziram o ritmo naquela primavera e os punhais saíram de sua barriga. Ferguson comprou um novo par de travesseiros, continuou a evitar grapefuits e tomou mais três banhos com Nora. Corrigiu as provas tipográficas de seu livro. Pediu uma assinatura de três meses do jornal Times-Union e começou a acompanhar a vida cotidiana em Rochester. Convidado para se integrar ao recém-formado, e caprichosamente batizado, Time de Poesia de Columbia, viajou para Sarah Lawrence e Yale, com Obenzinger, Quinn, Freeman e Zimmer, para fazerem recitais de poesia juntos para plateias de estudantes (era impossível falar em público, mas ler suas traduções em folhas datilografadas não era), eventos de alta energia, seguidos por bebedeiras e risadas consideráveis e (em Sarah Lawrence) por uma conversa de nove minutos com uma espantosa estudante de uma faculdade mista, chamada Delia Burns, que ele quis desesperadamente beijar, mas não beijou. Ferguson redigiu seus trabalhos finais para os seminários de literatura e conseguiu acordar na hora certa na manhã da prova de astronomia. Havia cem questões com cinco opções cada, e, como Ferguson tinha comparecido a apenas uma aula e nunca tinha aberto o livro do curso, saiu marcando as letras ao acaso, do A ao E, e se sentiu satisfeito por ter acertado dezoito por cento da prova, resultado suficiente para receber a nota D+ e ser aprovado. Então, para arrematar com chave de ouro seu gesto de rebelião quase invisível, voltou para a livraria da faculdade e vendeu o livro para eles e, assim, deu duas lições naqueles safados. Pagaram seis dólares e cinquenta centavos pelo livro. Dez minutos depois, quando estava caminhando pela Broadway rumo a seu apartamento na rua 107 Leste, um mendigo chegou perto e pediu um trocado, e Ferguson pegou todos os seis dólares e cinquenta centavos e enfiou na mão do sujeito, dizendo: Tome aqui, senhor. Um presente dos curadores da Universidade Columbia. Com meus cumprimentos.

Seu livro foi publicado no dia 20 de maio, numa bonita edição de capa mole com setenta e duas páginas, que lhe deu muito prazer de ver e segurar nas mãos nas horas seguintes ao momento em que ele a retirou de uma caixa de papelão na redação da Review, e, dali a uma semana, ele tinha distribuído para amigos e parentes quinze dos vinte exemplares a que tinha direito como autor. A capa era ilustrada com uma reprodução da conhecida foto de Apollinaire no tempo da Primeira Guerra Mundial, aquela que mostrava a cabeça de Wilhelm Apollinaris de Kostrowitzky envolto em ataduras depois da cirurgia para tratar do ferimento na têmpora, causado por uma granada: o poeta como mártir, a idade moderna nascida na lama das trincheiras, França em 1916, Estados Unidos em 1969, ambos aprisionados por guerras que nunca terminavam e que devoravam seus jovens. Três exemplares foram postos à venda, em consignação, na livraria Gotham Book Mart, outros três na livraria Eighth Street Bookshop e mais seis na barraquinha de livros baratos no campus da universidade. O inestimável Zimmer, o melhor e mais admirado amigo de Ferguson, entre as pessoas de sua turma, resenhou o livro no Spectator e não disse nada senão palavras positivas, palavras excessivamente positivas: “As obras dessa reunião de poemas da França não deveriam ser encaradas como meras traduções, mas como poemas em língua inglesa em seu pleno direito, uma contribuição valiosa para a nossa literatura. O sr. Ferguson tem o ouvido e o coração de um verdadeiro poeta e eu, de minha parte, hei de retornar a essas obras magníficas muitas e muitas vezes enquanto os anos forem passando”.

Palavras excessivamente positivas. Mas o jovem David Zimmer era assim, uma pessoa que, em breve, teria de encarar o grande problema que todos eles iriam encarar, no instante em que partissem de Morningside Heights. No caso de Zimmer, o dilema expresso numa rima. Yale ou cadeia.** Uma bolsa de quatro anos para fazer a pós-graduação em literatura em Yale ou dois anos na cadeia, se viessem convocá-lo para o Exército. Yale ou cadeia. Que refrãozinho mais gracioso era aquele e que mundo era aquele que o Pai-Ninguém tinha inventado.

Não ia ser difícil dar adeus a Columbia, que estava passando por uma onda de protestos e manifestações na primavera de 1969, acontecimentos que Ferguson estava disposto a ignorar por razões de pura autopreservação, mas ia sentir falta dos colegas e de alguns professores, ia sentir falta de não poder desenvolver a educação que tinha recebido de Nora, nas poucas noites que passaram juntos, e ia sentir falta do rapaz esperançoso que tinha chegado ali, no outono de 1965, o rapaz que lentamente foi desaparecendo ao longo dos quatro anos anteriores, e que nunca mais seria encontrado.

Em meados de junho, na mesma manhã em que Ferguson tossiu como o médico mandou e fez o exame escrito no serviço de alistamento, na White­hall Street, Bobby George e Margaret O’Mara se uniram nos sagrados laços do matrimônio na igreja católica de São Tomás de Aquino, em Dallas, Texas, onde Bobby era o apanhador titular do time de beisebol da segunda divisão de Baltimore, e que calhou de ser o mesmo dia (segundo uma carta que Ferguson recebeu de sua tia Mildred) em que a silenciosa e permanentemente foragida Amy compareceu à convenção nacional dos Estudantes Pela Democracia, em Chicago, uma reunião rancorosa, que se transformou num conflito feroz em torno de táticas e de ideologia entre a facção PL e o grupo que viria a ser conhecido como os Meteorologistas, que levou ao racha e à repentina e chocante extinção da SDS como organização política. Tio Henry e tia Mildred haviam mantido contatos esporádicos com Amy durante seu primeiro ano na faculdade de direito, e Mildred escreveu para seu antigo favorito só para lhe dizer que Amy havia decidido dar as costas para as ilusões da militância revolucionária e dedicar-se à causa mais realista dos direitos da mulher. O momento da revelação ocorreu quando um homem chamado Chaka Wells, vice-ministro da informação dos Panteras Negras de Chicago ergueu-se para atacar o PL e, sem nenhuma razão visível, começou a falar das mulheres da SDS, empregando a expressão “poder da boceta” e dizendo que o “Super-Homem era um bundão, porque nunca sequer tentou trepar com Louis Lane”, sentimento ecoado, poucos minutos depois, por outro Pantera Negra, Jewel Cook, que declarou que também era a favor do “poder da boceta” e que “o irmão só está querendo dizer para vocês, irmãs, que vocês têm uma posição estratégica na revolução: de bruços”. Já era uma piada velha e surrada naquela altura, piada que Amy tinha ouvido dúzias de vezes nos anos anteriores, mas naquele dia, em Chicago, ela finalmente deu um basta e, em vez de unir forças com os Meteorologistas, a facção rachada que incluía os ex-estudantes de Columbia Mike Loeb, Ted Gold, Mark Rudd e outros, todos expulsos de Columbia no fim do semestre letivo da primavera do ano anterior, ela se levantou da cadeira e saiu do centro de convenções. Nas palavras de tia Mildred, no fim da carta, resvalando para o tom condescendente a que ela muitas vezes recorria quando falava de outras pessoas: Achei que você deveria saber disso, Archie, ainda que os dois já não formem um casal. Parece-me que a nossa Amy finalmente está começando a crescer.

Bobby George diz Aceito. Ferguson mostra a mão esquerda para o médico do Exército dos Estados Unidos. Amy sai do estádio Coliseum de Chicago e larga o movimento para sempre. Seria possível que todas aquelas coisas tivessem ocorrido ao mesmo tempo? Ferguson gostaria de pensar que sim.

Mais interessante ainda: na ocasião em que Ferguson se mudou para Rochester, no início de julho, Bobby já fora promovido para o time Red Wings do Triplo-A da Liga Internacional. Numa cidade onde Ferguson não conhecia absolutamente ninguém, era muito improvável que seu mais velho amigo estivesse lá também, não por muito tempo, talvez, mas pelo menos até o fim do verão e até o encerramento da temporada de beisebol, os primeiros meses de adaptação e instalação na cidade, Bobby e sua noiva Margaret, duas pessoas que ele conhecia desde sempre, a bonita Maggie O’Mara, com os vestidinhos curtos e floridos e as meias abaixadas nas canelas, pondo a língua para fora para o ofegante Bobby George no jardim de infância quando a professora era a sra. Canobbio, em Montclair, e agora a ainda bonita, mas sofisticada e opiniosa Margaret, de vinte e dois anos, munida de seu diploma em administração na Universidade Rutgers, e o sempre cordial e incansável Bobby, que ia galgando degrau por degrau rumo às ligas principais de beisebol, uma união improvável, Ferguson achava, nada que ele pudesse ter previsto, mas o mero fato de Bobby ter persuadido Margaret a se casar com ele devia significar que, depois de dois anos no Exército e um ano e meio como jogador profissional de beisebol, ele finalmente também estava começando a crescer.

Quanto à Amy, agora aquilo já não era da conta de Ferguson, o que significava que ele não deveria se importar com o que ela fizesse ou deixasse de fazer de sua vida, mas Ferguson se importava, jamais conseguia se obrigar a ser indiferente, e, à medida que os meses passavam, ele se sentia cada vez mais aliviado com a decisão de Amy de não se unir aos Meteorologistas em Chicago. Os velhos amigos deles de Columbia tinham enlouquecido. O poder intratável do grande Esquecido havia frustrado seus impulsos idealistas e esmagado sua capacidade de pensar racionalmente e, por meio de uma longa série de hipóteses erradas e conclusões equivocadas, decisões baseadas naquelas hipóteses erradas e conclusões equivocadas, eles acabaram ficando encurralados num canto onde se viram sem outra opção a não ser acreditar que um exército de cem ou duzentos ex-estudantes de classe média, sem nenhum seguidor e nenhum apoio de parte alguma no país, poderia liderar uma revolução que derrubaria o governo dos Estados Unidos. Aquele governo estava destruindo seus jovens, embarcando os mais pobres e de mais baixo nível educacional para combater numa guerra que supostamente estaria terminando, só que não estava, enquanto os jovens privilegiados ficavam destruindo a si mesmos. Oito meses e meio depois de Amy se retirar da convenção em Chicago, seu velho amigo da SDS de Columbia, Ted Gold, junto com seus colegas Meteorologistas Diana Oughton e Terry Robbins, morreram numa explosão numa casa geminada, na rua 11 Oeste, em Nova York, quando um deles ligou o fio errado de uma bomba caseira que estavam fabricando no porão. O corpo de Oughton ficou tão destruído que a única forma de identificá-lo foi com a impressão de um dedo amputado, encontrado no meio dos escombros. Nada sobrou de Robbins. Sua pele e seus ossos se desmaterializaram no incêndio causado pela detonação dos canos de gás, e sua morte só foi confirmada depois que os Meteorologistas comunicaram que ele estava com os outros dois.

Ferguson viajou para Rochester no velho Impala no dia 1o de julho, mas seu trabalho no Times-Union só ia começar no dia 4 de agosto. Cinco semanas para se aclimatar a seu novo ambiente, sair atrás de um apartamento e transferir seu dinheiro para um banco local, colar em Bobby e Margaret, esperar que chegasse sua nova classificação do serviço de alistamento militar, ver a promessa cumprida de Kennedy, quando assistiu a um par de astronautas americanos caminharem na superfície da lua, tocar para a frente o projeto que ele havia começado em Nova York, de traduzir poemas de François Villon, e de tirar Nova York de seu sistema. O apartamento mais amplo e mais barato que conseguiu encontrar ficava num bairro degradado chamado South Wedge, um amontoado de quarteirões na zona leste da cidade, não longe do rio Genesee. O cemitério de Mount Hope, adorado por McManus, ficava a poucos passos dali, bem como a Universidade de Rochester e um vasto terreno gramado chamado Highland Park, onde ocorria, toda primavera, o festival anual de lilases. Naquela parte do mundo, os preços eram baixos e, por oitenta e sete dólares mensais, ele alugou o último andar inteiro de uma casa de madeira de três andares, na Crawford Street. A casa, propriamente dita, não era grande coisa, com seus tetos cheios de rachaduras e sua escada rangente, com suas calhas muito obstruídas e a tinta amarela da fachada já descascando, mas Ferguson tinha três cômodos mobiliados e uma cozinha só para si, e a luz que se derramava através das janelas, à tarde, era bem melhor para sua saúde mental do que a escuridão da rua 107 Oeste, e melhor a tal ponto que ele estava disposto a fazer vista grossa para os defeitos da casa. Os proprietários moravam no apartamento que ficava no térreo e, apesar de o fraco do sr. e da sra. Crowley pela vodca muitas vezes os levar a discutir à noite, os dois eram sempre perfeitamente cordiais com Ferguson, o que também valia para o caso do irmão solteiro da sra. Crowley, Charlie Vincent, veterano da Segunda Guerra, que morava no apartamento do meio e vivia da pensão mensal por invalidez, um sujeito simpático que parecia não fazer quase mais nada além de ficar fumando, tossindo e vendo televisão, além de sofrer com eventuais noites de pesadelo, quando gritava, dormindo, Stuart! Stuart!, com toda a força da voz, tão alto e com um pânico tão grande que Ferguson conseguia ouvi-lo através das tábuas do piso, no andar de cima, mas quem poderia criticar Charlie por reviver seu passado de vez em quando, nos momentos em que estava de guarda baixa, e como não ter pena do adolescente que tinha sido embarcado para lutar no Pacífico, vinte e seis anos antes, e voltara para Rochester com a cabeça cheia de pesadelos?

Ferguson ficou sabendo que Bobby e Margaret tinham de ir embora da cidade, sem ter tido tempo de aproveitar muito a companhia deles. Ferguson jantou uma vez com eles, conseguiu ver Bobby jogar uma partida pelo time Red Wings, mas, quando ele chegou, no dia 1o de julho, o time estava prestes a partir em turnê e, quatro dias depois que Bobby voltou para Rochester, no dia 10, o apanhador do time Orioles fraturou a mão num choque com um jogador do time Yankee de Nova York, na base. Depois de fazer 327 pontos em suas três primeiras semanas no Triplo-A, Bobby foi chamado para se unir ao plantel de jogadores do time mais bem colocado de Baltimore e, se conseguisse um bom resultado como apanhador nas estatísticas da Liga Americana, era improvável que continuasse a jogar nas ligas menores. Era impossível não ficar feliz por ele, era impossível não exultar com sua promoção — e, no entanto, por mais difícil que fosse para Ferguson admitir, era impossível não se sentir contente por eles estarem indo embora.

Não tinha nada a ver com Bobby. Bobby continuava a ser o mesmo Bobby de antigamente, um Bobby mais velho, mais experiente, mais reflexivo, porém ainda era o garoto de coração grande, incapaz de pensar mal de alguém, o mais constante e mais amado amigo de Ferguson, aquele que o amava mais do que ninguém jamais o amara, inclusive Amy, especialmente Amy, e como Bobby ficou alegre na noite de seu único jantar juntos, em Rochester, no Crescent Beach Hotel, abraçando Margaret a cada catorze segundos e falando dos velhos tempos em Montclair, os dias de glória do segundo ano do ensino médio, quando a mão de Ferguson ainda estava intacta e os dois jogavam juntos no mesmo time, os titulares mais jovens daquele time que venceu o torneio dos times de até dezesseis anos e dois meses, o time que havia ganhado o jogo. É claro que Bobby tinha de falar sobre aquilo, porque jamais se cansava de falar do assunto e, quando Ferguson lhe pediu para contar a história mais uma vez para Margaret, Bobby sorriu, beijou a esposa na bochecha e desatou seu relato daquela tarde de maio, de seis anos antes. Foi assim que aconteceu, disse ele. A gente estava perdendo de um a zero para o Bloomfield, na última entrada. Um homem fora e dois em jogo, Archie na terceira e Caleb na segunda, Caleb Williams, o irmão mais velho de Ronda, e aí aparece o Fortunato e o técnico Martino faz sinal para uma rebatida de leve, deu dois toquinhos com o dedo na pala do boné e depois tirou o boné e coçou a cabeça, esse era o sinal, a única vez que fez o sinal, não só uma rebatida suicida bem de leve para ganhar uma corrida, mas duplamente suicida, para ganhar duas corridas. Ninguém em toda a história havia imaginado uma jogada como aquela, mas Sal Martino inventou tudo, porque era um gênio do beisebol. Um lance difícil de executar, porque era preciso um corredor super-rápido na segunda base, mas Caleb era rápido de sobra, o corredor mais veloz do time, e então lá vem a bola arremessada e Fortunato faz uma boa repetida de leve, uma bola de efeito e lenta, meio para o lado direito do montinho. Na hora em que o apanhador recebe a bola, Archie já está atravessando a base para fazer o ponto. Achando que já não havia mais nada a fazer, o apanhador lança para a primeira e Fortunato está fora do jogo por uma distância só de três ou quatro passos. Mas o que o apanhador não percebe é que Caleb tinha começado a correr ao mesmo tempo que Archie, na hora em que ele estava chegando ao desfecho do seu lance e, quando o homem da base pega a bola, Caleb está quase na quarta base. Todo mundo em Bloomfield grita para o homem da primeira base, Jogue a bola! Jogue a bola!, por isso ele arremessa a bola para a base, mas já é tarde, um golpe duro que bate em cheio na luva do apanhador, só que com alguns segundos de atraso, e Caleb vem correndo e escorrega na base para vencer a partida. Uma nuvem de poeira se levanta e Caleb fica de pé com um pulo, de braços erguidos. A vitória arrancada das mãos da derrota, uma grande vitória para o toquezinho de nada de uma rebatida miudinha. Nunca vi nada semelhante. De lá para cá, já joguei centenas de partidas, mas aquilo foi o negócio mais empolgante e mais legal que já vi num campo de beisebol, meu maior momento de todos os grandes momentos. Duas corridas, meninos e meninas, e a bola não chegou a percorrer mais do que nove metros.

Não, o problema não era Bobby, que estava no auge de sua inimitável bobbyice naquela altura, o problema era Margaret, a mesma Margaret que havia tido certa queda por Ferguson, aos dezessete anos, que havia escrito para ele uma carta de amor anônima quando tinha doze anos, que dava mole para ele durante todo o ensino médio e que havia comemorado abertamente o regresso de Anne-Marie Dumartin para a Bélgica, que tinha sido a única garota que deixara Ferguson de fato tentado, durante os quatro meses e meio que ficou separado de Amy, no último ano do ensino médio, que foi a única em cuja boca sua língua teria entrado se não fosse todo o carinho de Bobby por ela, aquela que havia zombado de Ferguson chamando-o de Cyrano, quando ele tentou intervir em favor de Bobby, a maçante Margaret, mas inteligente e atraente de doer, e que, por razões que ele não conseguia vislumbrar, era agora a esposa de seu mais velho amigo, pois Ferguson ficou completamente espantado ao ver como ela prestava pouca atenção no monólogo de Bobby sobre o lance suicida inacreditável, e como ela não parava de olhar para ele, do outro lado da mesa, em vez de olhar para o marido, enquanto Bobby falava, devorando-o com os olhos, como se ela estivesse dizendo, sim, eu estou casada com esse pateta gentil e de miolo mole já tem um mês, mas continuo sonhando com você, Archie, e como é que você foi capaz de me rejeitar durante todos esses anos, quando na verdade fomos feitos um para o outro, desde o início, e aqui estou eu, me tome, e que se danem as consequências, porque o tempo todo eu quis somente sempre você. Pelo menos, era isso que Ferguson percebia pela maneira como ela olhava para ele no restaurante do Crescente Hall Hotel, e a verdade era que ele estava mesmo excitado com Margaret, na condição de solitário, celibatário, sem amor, em busca de amor, um estranho numa cidade nova, como é que Ferguson poderia não sentir tesão com os olhares que ela dirigia para ele, e quem sabe se não teria capitulado naquele verão se ela e Bobby não tivessem ido embora para Baltimore, pois haveria inúmeras oportunidades para os dois se encontrarem a sós, com todas as noites em que Bobby estaria fora de casa, jogando nas distantes Louisville, Columbus e Richmond, e quantas vezes ele teria aceitado os convites de Margaret para ir jantar no apartamento dela, quantas gar­rafas de vinho teriam bebido juntos, com certeza sua resistência acabaria fraque­jando em algum momento, sim, era isso que os olhos dela estavam di­zendo quando os dois estavam sentados um de frente para o outro no restaurante do hotel, renda-se, por favor, renda-se, Archie, e como Archie compreendeu que talvez não fosse forte o bastante para manter as mãos longe dela, caso ela permanecesse na cidade, ficou mais do que feliz quando viu Margaret ir embora.

No ano anterior, os círculos concêntricos se fundiram num disco preto duro, um LP, com um único blues no lado A. Agora, o disco foi virado e a canção do lado B era um canto fúnebre intitulado “Senhor, teu nome é morte”. A melodia entrou na cabeça de Ferguson poucos dias depois de ter co­meçado a trabalhar no Times-Union, e, quando o primeiro compasso veio flutuando da Califórnia, no dia 9 de agosto, com as palavras “Charles Manson” e “assas­sinos de Tate-LaBianca”, não demorou muito para que a melodia modulasse para o suicídio, na noite do Dia das Bruxas, do jovem Marshall Bloom, cofundador da Agência de Notícias Liberação, na qual Ferguson tinha pensado seriamente em trabalhar logo depois de terminar a faculdade, seguido, em meados do outono, por um verso sobre o tenente William Calley e o Massacre de My Lai, no Vietnã do Sul, e depois, quando o último ano da década de 1960 chegou ao último mês, a polícia de Chicago desatou um refrão em staccato ao alvejar e matar o Pantera Negra Fred Hampton na cama, enquanto dormia, e dois dias depois, quando os Rolling Stones subiram ao palco de Altamont para cantar o resto da canção, um bando do grupo Hells Angels atacou um jovem negro que brandia uma arma no meio da multidão e o matou a facadas.

Woodstock II. As crianças da flor e os malvados. E vejam como o dia tão depressa se desfez em noite.

Bobby Seale amarrado a uma cadeira, com uma mordaça na boca, por ordem do juiz Julius Hoffman, enquanto os Oito originais se transformavam em Sete.

Os Meteorologistas desfecharam um ataque suicida contra dois mil policiais de Chicago durante os Dias da Raiva, em outubro, os velhos colegas de escola de Ferguson envergavam capacetes de futebol americano e óculos de proteção, protetores de virilha e joelheiras amarradas por cima da calça, em posição de combate, munidos de correntes, canos e porretes. Seis foram baleados, centenas foram carregados em camburões. Com que finalidade? “Trazer a guerra para casa”, berravam eles. Mas desde quando a guerra já não estava em casa?

Quatro dias depois disso: o Dia da Moratória do Vietnã. Milhões de americanos disseram sim e, durante vinte e quatro horas, quase tudo nos Estados Unidos parou.

No nono dia após esse Dia: setecentos e cinquenta mil pessoas marcharam em Washington pelo fim da guerra, a maior manifestação política jamais vista no Novo Mundo. Nixon assistiu a um jogo de futebol americano naquela tarde e disse para o país que aquilo não ia fazer nenhuma diferença.

Na reunião dos Meteorologistas naquele mês de dezembro, em Flint, Michigan, Bernardine Dohrn exaltou Charles Manson por ter matado “aqueles porcos”, referindo-se à grávida Sharon Tate e aos demais que morreram naquela casa. Um dos velhos colegas de Ferguson da Universidade Columbia se levantou e disse: “Somos contra tudo que é bom e decente nos Estados Unidos dos brancos. Vamos queimar, saquear e destruir. Nós somos a incubação do pesadelo da mãe de vocês”.

Em seguida, partiram para a clandestinidade e nunca mais apareceram em público.

E lá estava Ferguson, de volta a seu buraco, como o pontinho mais insignificante no centro do menor dos círculos, já não estava mais rodeado por Columbia e por Nova York, mas sim por Times-Union e por Rochester. Até onde podia ver, tinha sido uma troca bastante justa, e, agora que ele estava fora de risco (a notícia de sua dispensa do serviço militar tinha chegado três dias antes de começar a trabalhar), o emprego era seu, enquanto conseguisse provar que merecia a vaga.

Havia dois jornais diários em Rochester. Ambos pertenciam à Gannet Publishing Company, mas cada um tinha uma finalidade diferente, uma linha editorial diferente e uma visão diferente da vida. A despeito do nome, o matutino Democrat and Chronicle era solidamente republicano e favorável ao mundo dos negócios, ao passo que o vespertino Times-Union se situava mais no campo liberal, sobretudo agora com McManus na direção. Liberal era melhor do que conservador, está claro, ainda que fosse, afinal, apenas mais uma expressão para dizer em cima do muro, que dificilmente seria a posição de Ferguson em qualquer questão política do momento, mas, por enquanto, ele se sentia contente de estar onde se encontrava, escrevendo matérias para McManus e não para o East Village Other, o Rat ou para a Agência de Notícia Liberação, que tinha sofrido um racha tão violento que havia se fragmentado em organizações separadas, os marxistas linha-dura, em Nova York, e os sonhadores da contracultura numa fazenda no oeste de Massachusetts, onde Marshall Bloom tinha se matado com apenas vinte e cinco anos de idade, se envenenando com monóxido de carbono, e com aquela morte Ferguson começou a perder a fé no mundo fechado do jornalismo de extrema esquerda, que às vezes parecia ter se tornado tão desvairado quanto os grupos rachados da falecida SDS, e agora que a Los Angeles Free Press estava publicando uma coluna regular escrita por Charles Manson, Ferguson não queria ter mais nada a ver com aquele mundo. Ele detestava a direita, detestava o governo, mas agora ele detestava a falsa revolução da extrema esquerda também, e, se aquilo significava ter de trabalhar para um jornal situado em cima do muro, como o Rochester Times-Union, azar, que fosse assim. Ele tinha de começar em algum lugar e McManus tinha prometido lhe dar uma chance de verdade — se e quando ele se mostrasse capaz.

Foi uma iniciação difícil. Ele foi para a editoria de cidade, era o repórter mais jovem de todos e trabalhava sob as ordens de um homem chamado Joe Dunlap, que correta ou incorretamente encarava Ferguson como o garoto favorito de McManus, seu protegido ambicioso recém-saído de uma universidade de elite, o escolhido entre os novatos da equipe, e em consequência Dunlap fazia questão de pegar pesado com ele, pois era rara a matéria entregue por Ferguson que ele não reescrevesse de fio a pavio, não apenas os títulos e o ângulo das matérias, mas muitas vezes as próprias palavras, e sempre em detrimento do texto como um todo, achava Ferguson, o que só servia para piorar suas matérias, em vez de melhorar, como se o machado editorial de Dunlap não fosse uma ferramenta para podar, mas sim para derrubar as árvores. McManus o advertira sobre isso durante aquela primeira conversa em West End, e o havia instruído a nunca reclamar. Dunlap era um sargento linha-dura que estava ali para jogar seu moral para baixo e, como um potro chucro, Ferguson tinha de fazer o que mandavam, ficar de bico calado e não deixar o seu moral baixar, por mais que ele sentisse, muitas e muitas vezes, a tentação de meter um murro na cara de Dunlap.

Havia outras pessoas com quem era menos difícil trabalhar, algumas eram até bastante simpáticas, pessoas que, pouco a pouco, passaram a contar como amigas suas, entre elas Tom Gianelli, um fotógrafo careca e corpulento do Bronx, que muitas vezes saía com Ferguson para cobrir as notícias e que era capaz de imitar as vozes de uma porção de atores e atrizes de Hollywood à beira da perfeição (sua Bette Davis era sublime), e Nancy Sperone, recém-formada na Universidade de Rochester, que havia conseguido uma vaga na Página das Mulheres e estava começando uma pós-graduação em namoros à noite, o que ajudou Ferguson em seu período inicial de adaptação, pois assim não tinha de dormir sozinho todas as noites, e Vic Howser, da seção esportiva, que estava acompanhando o progresso de Bobby no time Orioles e reagiu com a mesma alegria de Ferguson quando Bobby fez uma alta pontuação em sua estreia no campeonato nacional contra o time Mets, e, além das pessoas que ele estava conhecendo e de que estava gostando no jornal, havia o próprio jornal em si, o prédio grande e as centenas de empregados que trabalhavam ali todos os dias, editores e críticos de cinema, recepcionistas e telefonistas, redatores de obituários e colunistas de pesca, repórteres que datilografavam suas matérias nas escrivaninhas, mensageiros que corriam de um andar para outro e a enorme gráfica, na parte de baixo do prédio, que vomitava um jornal novo toda manhã, a tempo de chegar às ruas ao meio-dia e, apesar do raivoso carniceiro Dunlap, que virou a segunda encarnação de Edward Im­hoff, Ferguson gostava de fazer parte daquele enxame complexo de corpos em alvoroço e nunca se arrependeu de sua decisão.

Sem remorsos, e, no entanto, embora Nancy Sperone fosse solteira e desimpedida, o que não tinha sido o caso da tentadora, mas fora dos limites, Margaret O’Mara George, Ferguson sabia desde o início que ela não era a resposta. Todavia, continuou a sair com Nancy e a dormir com ela durante os primeiros nove meses em Rochester, a primeira vez na vida em que entrou mais fundo num caso intermitente e sem paixão com uma mulher por quem sentia carinho, mas que jamais conseguiria amar. Nancy, que nascera ali mesmo, mostrou a cidade para ele, apresentou-o ao famoso Peixe Frito da Noite de Sexta-Feira, arrastou-o para um boteco chamado Mick Tahou Hots para se deliciar com outro prato típico de Rochester conhecido como Tábua de Lixo (uma experiência que Ferguson jurou nunca mais repetir enquanto vivesse), e o levou para ver diversos filmes antigos no arquivo da Eastman House, entre eles Um condenado à morte escapou, de Bresson, e o drama lacrimoso Laços humanos, de Kazan, de 1945, que induziu ambos a derramarem os indispensáveis oceanos de lágrimas absurdas e soluçantes. Nancy era inteligente e compreensiva, leitora compenetrada de livros e jornalista talentosa, que se integrara ao Times-Union como mais um jornalista da onda de jovens promovida por McManus, morena de olhos escuros, cabelo curto e cara grande e redonda (sua cara de Luluzinha, como dizia Nancy), um pouco carnuda demais, talvez, mas sensual de sobra para que Ferguson sentisse falta de seu corpo toda vez que ficavam separados por mais de uma semana ou dez dias. Não era culpa de Nancy se ele não conseguia sentir amor por ela, mas tampouco era culpa de Ferguson se Nancy andava atrás de um marido e ele não tinha o menor interesse em arranjar uma esposa. Em meados de dezembro, quando Ferguson passou um fim de semana na Flórida com os pais, entendeu que ele e Nancy não iam dar em nada, mas continuou a se encontrar com ela por mais uns quatro meses depois de voltar, e ficou naquele chove-não-molha de antes, até que Nancy arranjou outro homem, que queria de fato se casar, o que foi bom, concluiu Ferguson, pois, durante todos aqueles meses em que ele não foi capaz de amar Nancy Sperone, começava a se desenhar a consciência de que, depois de um ano inteiro e boa parte do ano seguinte sem nenhum sinal de Schneiderman, ele ainda não tinha se recuperado da perda de Amy. Ferguson continuava ainda no luto de sua ausência — como se suportasse os efeitos de um divórcio, talvez mesmo de uma morte, e não havia nada que pudesse fazer a respeito do assunto, a não ser ir aguentando, até que não sentisse mais nada.

Quase um ano tinha passado desde a última vez que vira os pais, e, agora que eles estavam plenamente instalados no mundo estranho do sul da Flórida, haviam se convertido em criaturas do sol, ex-nortistas bronzeados e de aspecto saudável que moravam e trabalhavam na Terra Sem Neve, adeptos de longas caminhadas em terrenos arenosos (a mãe) e de partidas de tênis ao ar livre todas as manhãs, de janeiro até dezembro (o pai) e, sim, Ferguson ficou feliz em rever os pais, mas ambos haviam mudado no intervalo entre as visitas, e aquelas mudanças foram a primeira coisa que ele percebeu quando o pegaram no aeroporto no início da noite de sexta-feira. Não tanto a mãe, talvez, que continuava na correria do seu trabalho de fotógrafa no Herald e que, mais que qualquer outra coisa, gostava mesmo era de ficar naqueles papos de jornalista com o filho, no entanto ela andara tentando parar de fumar nos últimos seis meses e havia ganhado peso, talvez uns quatro ou cinco quilos, o que a deixava com a aparência um pouco diferente, mais velha e mais jovem ao mesmo tempo, se isso é possível, ao passo que o pai, que se aproximava dos cinquenta e seis anos e continuava forte, por causa da rotina de jogar tênis, pareceu a Ferguson, no entanto, levemente mais enfraquecido, o cabelo mais grisalho e mais ralo, além de mancar bem de leve depois de andar mais do que cinquenta ou cem metros (um músculo contraído ou uma dor crônica no pé), não era mais o calado e entorpecido dr. Manette, o personagem de Dickens, labutando incansável em sua bancada, mas sim um funcionário do setor de classificados do Herald, emprego que ele dizia apreciar e até amar, mas que o havia transformado num humilde Bob Cratchit, outro personagem de Dickens, e Ferguson não pôde deixar de pensar na longa e vagarosa queda que tinha ocorrido desde o Mundo do Lar Três Irmãos até aquilo.

O melhor dia da visita de sexta a domingo foi o último, quando eles saíram para um grande almoço, sem pressa nenhuma, no Wolfie’s, na Collins Avenue, o cheiro gostoso dos frescos pãezinhos de cebola e do peixe defumado que pairava no salão, enquanto os três comiam salmão e ovos em homenagem à avó de Ferguson, sobre quem falaram demoradamente, além do avô e a agora desaparecida Didi Bryant, mas a mãe, em especial, lhe fez perguntas sobre Rochester e o Times-Union, queria saber tudo sobre tudo, e Ferguson contou quase tudo que podia, só não mencionou seu envolvimento com Nancy Sperone, porque, provavelmente, não agradaria ao pai, a simples ideia de seu filho saindo por aí com uma garota italiana católica sem dúvida iria deixar o pai irritado e levaria a alguns comentários amargos do tipo nós contra eles, sobre shcvartzes e shiksas (palavras que Ferguson detestava, duas das palavras mais feias no léxico do iídiche), e assim deixou Nancy de fora das conversas e falou sobre McManus e Dunlap, sobre Bobby George, que tinha feito seu primeiro home-run numa partida da liga principal de beisebol, em Boston, no mês de julho, e que estava a apenas quatro meses de ser pai, e falou sobre algumas matérias que tinha escrito, sobre o apartamento de mau gosto onde morava, o que levou a mãe a fazer a pergunta que todas as mães fazem para os filhos, quer sejam pequenos e façam xixi na fralda, quer sejam diplomados na universidade e tenham vinte e dois anos.

Você está bem, Archie?

Às vezes eu me pergunto o que estou fazendo lá, disse Ferguson, mas acho que estou bem, sim, ainda estou me adaptando, tateando meu caminho, estou mais ou menos bem, mais ou menos feliz com o emprego, mas uma coisa está clara, há uma coisa de que tenho absoluta certeza: não vou passar o resto da vida em Rochester, no estado de Nova York.

Três alarmes de incêndio. O vigésimo aniversário de um caso de homicídio sem solução. Atividade contrária à guerra em faculdades e universidades locais. A dissolução de um círculo de ladrões de cachorro. Um acidente de trânsito fatal na Park Avenue. A criação de uma nova associação de inquilinos nos bairros negros da zona oeste da cidade. Durante quatro meses, Ferguson labutou como um modesto repórter aprendiz debaixo do olhar desconfiado de Joe Dunlap, e depois McManus puxou-o para fora da editoria de cidade e lhe deu algo maior. Pelo visto, Ferguson tinha sido aprovado no teste. Não que ele tenha chegado algum dia a entender qual era exatamente a natureza daquele teste nem quais os critérios adotados por McManus em seu julgamento; no entanto, já que tinha acontecido, era inevitável concluir que o chefe, agora, achava que Ferguson estava apto para o próximo patamar.

Na manhã seguinte ao Natal, McManus convocou Ferguson ao seu gabinete e lhe contou uma ideia que andava rodando sua cabeça ultimamente. Os anos 1960 estavam praticamente encerrados, disse ele, faltava menos de uma semana para o grande ponto-final, e o que Ferguson achava de redigir uma série de artigos sobre os últimos dez anos e como afetaram a vida nos Estados Unidos? Não se tratava de uma abordagem cronológica, de um sumário em forma de linha do tempo com os eventos principais, mas sim algo mais substancial, uma sequência de matérias de duas mil e quinhentas palavras sobre vários temas relevantes, a guerra do Vietnã, o movimento dos direitos civis, o crescimento da contracultura, os desenvolvimentos da arte, da música, da literatura e do cinema, o programa espacial, os tons contrastantes dos governos de Eisenhower, Kennedy, Johnson e Nixon, o pesadelo dos assassinatos de figuras públicas de destaque, o conflito racial e a explosão dos guetos nas cidades americanas, os esportes, a moda, a televisão, a ascensão e a queda da Nova Esquerda, a queda e a ascensão do republicanismo de direita e da fúria dos operários conservadores, a evolução do movimento Black Power e a revolução da pílula, todas as mudanças ocorridas nos Estados Unidos, do rock à política, expostas na linguagem vernácula americana, o retrato de uma década tão cheia de tumulto que pôde dar ao país um Malcolm X e um George Wallace, A noviça rebelde e Jimi Hendrix, os irmãos Berrigan e Ronald Reagan. Não, não seria o tipo habitual de reportagem, prosseguiu McManus, seria um olhar no espelho retrovisor, uma forma de recordar aos leitores de Times-Union onde eles estavam dez anos antes e onde estavam agora. Essa era uma das vantagens de trabalhar num jornal vespertino. Mais espaço para manobrar, mais tempo para ficar fuçando por aí e investigar, mais oportunidades para produzir matérias de longo alcance. Mas não podia ser só uma recapitulação a seco. Ele não estava atrás de um texto acadêmico, mas de artigos com algum chamariz, e, para cada livro e revista antiga que Ferguson lia para sua pesquisa, McManus queria que ele falasse com cinco pessoas. Se não conseguisse alcançar o Muhammad Ali, devia ir atrás do seu treinador e do seu assistente de canto de ringue, Angelo Dundee e, se não conseguisse falar com Andy Warhol, deveria falar com Roy Lichtenstein ou Leo Castelli. Fontes primárias. As pessoas que fizeram as coisas ou que estavam perto quando algo aconteceu. Será que ele estava se fazendo entender?

Sim, estava se fazendo entender perfeitamente.

E o que Ferguson achava?

Eu estou nessa, respondeu Ferguson. Mas quantas matérias o senhor vai querer e quanto tempo tenho para escrever?

Umas oito ou dez, imagino. Mais ou menos duas semanas para escrever cada uma, é pegar ou largar. É o bastante?

Se eu desistir de dormir por um tempo, acho que vou conseguir. Tenho de entregar as matérias para o sr. Dunlap?

Não, acabou seu tempo com o Dunlap. Você vai trabalhar diretamente comigo.

E onde e como vou começar?

Volte para sua escrivaninha e só me apareça com umas quinze ou vinte ideias. Temas, títulos, reflexões, tudo o que lhe parecer mais premente, e então vamos bolar um plano geral.

Nem posso dizer ao senhor como isso é importante para mim.

É trabalho para um jovem, Archie, e você é o mais jovem que tenho à mão. Vamos ver o que acontece.

Ferguson investiu nas matérias tudo o que tinha, porque todo seu futuro no jornal dependia daquilo. Escreveu e reescreveu, devorou mais de cem livros e quase mil revistas e jornais e não só falou ao telefone com Angelo Dundee, Roy Lichtenstein e Leo Castelli, como com dúzias de pessoas, o que lhe permitiu formar um coro de vozes para acompanhar os textos que escrevia sobre os bons e velhos tempos de outrora que haviam se extinguido recentemente, oito matérias de duas mil e quinhentas palavras que abrangiam política, presidentes e o pandemônio da dissenção social, além de incursões no terreno da música de John Barryman, Dream Songs, o massacre em câmara lenta no fim do filme Bonnie and Clyde, e o espetáculo de meio milhão de crianças americanas dançando na lama, num fim de semana, numa fazenda do estado de Nova York, a apenas quatrocentos quilômetros ao sul de Rochester. No geral, McManus ficou satisfeito com o resultado e apenas fez uma ligeira edição no texto, o que foi a parte mais gratificante do exercício todo para Ferguson; no entanto o chefe ficou satisfeito também porque as matérias provocaram uma porção de cartas dos leitores, a maioria positiva, com comentários do tipo “Muito obrigado, A. I. Ferguson, por nos levar nesse passeio pela Alameda da Memória”, mas também chegou uma boa leva de comentários negativos, ataques contra a “visão esquerdista que Ferguson tem de nosso grande país”, que magoavam um pouco, ele tinha de reconhecer, muito embora Ferguson esperasse coisa bem pior. O que ele não esperava era a dose de hostilidade que ia perceber em alguns repórteres jovens da equipe do jornal, mas as coisas eram assim mesmo, supunha ele, cada jogador tinha de se virar para apanhar a bola e segurar com força, e, como Nancy apontava toda vez que ele publicava uma matéria nova, o ressentimento dos outros só servia para provar que ele estava fazendo um bom trabalho.

A previsão era uma série de dez matérias, mas Ferguson teve de parar na hora em que estava se engalfinhado com o material da nona matéria (sobre cabelos compridos, minissaia, colares de contas e botas de couro branco — as novidades da moda de meados e do final dos anos 1960) quando outro golpe de marreta caiu do céu. O movimento contra a guerra andava relativamente calmo nos meses anteriores. A retirada gradual das tropas americanas, a chamada vietnamização da guerra e o novo sistema de convocação militar por sorteio tinham contribuído para a calmaria do movimento, mas aí, nos últimos dias de abril de 1970, Nixon e Kissinger subitamente ampliaram a guerra ao invadir o Camboja. A opinião pública americana ainda estava dividida meio a meio, mais ou menos metade a favor e metade contra, o que significava que metade do país apoiava as ações militares, mas a outra metade, onde estavam as pessoas que tinham participado das manifestações contra a guerra nos últimos cinco anos, viam aquela incursão estratégica como o fim de toda esperança. Saíram às ruas centenas de milhares de pessoas, manifestações de massa foram organizadas nos campi das universidades e, num desses campi, em Ohio, soldados jovens, nervosos e mal treinados da Guarda Nacional atiraram contra os estudantes, uma fuzilaria de três segundos que acabou matando quatro e ferindo nove, e a maioria dos americanos ficou tão horrorizada com o que ocorreu em Kent State que, espontaneamente, abriram as bocas e soltaram um brado coletivo que se espalhou por todo o território do país. Na manhã seguinte, bem cedo, 5 de maio, McManus despachou Ferguson e seu parceiro fotógrafo, Tom Gianelli, para a Universidade de Buffalo para cobrir as manifestações e, de repente, ele não estava mais investigando o passado recente, mas vivendo outra vez o Agora.

A universidade tinha vivido semanas de conflitos incontroláveis no fim de fevereiro e no início de março, contudo, depois de Kent State, mesmo a mais branda erupção era muito mais violenta do que tudo o que Ferguson tinha visto em Columbia, sobretudo no segundo dia em que esteve lá, um dia de ventania em Buffalo, em meados da primavera, com neve no chão e rajadas geladas de vento varrendo o lago Erie. Não havia prédios ocupados, mas a atmosfera estava mais carregada e potencialmente mais perigosa quando cerca de dois mil estudantes e professores foram atacados por soldados da polícia de choque, com capacetes, armados de pistolas, porretes e gás lacrimogênio. Jogaram pedras contra eles, tijolos foram arremessados, as janelas dos carros da polícia e dos prédios da universidade foram arrebentadas, cabeças e corpos foram atacados e, mais uma vez, Ferguson se viu na linha divisória entre dois bandos belicosos, só que dessa vez era mais assustador, porque os estudantes de Buffalo estavam mais dispostos a lutar do que os estudantes de Columbia, alguns estavam tão exaltados e fora de controle que Ferguson achou que estavam dispostos a morrer. Jornalista ou não, se encontrava tão exposto quanto eles, e, assim como dois anos antes ele tinha sido atropelado no meio da confusão e levado pancadas na cabeça e na mão, agora foi atingido pelo gás lacrimogênio junto com todo mundo, e, enquanto apertava um lenço molhado contra os olhos que ardiam e vomitava o almoço na calçada, Gianelli puxou-o pelo braço em busca de um lugar onde o ar fosse mais respirável e, alguns minutos depois, quando tinham chegado à esquina da Main Street com a Minnesota Avenue, bem perto do campus, Ferguson afastou do rosto o lenço molhado, abriu os olhos e viu um jovem jogar um tijolo na vidraça de um banco.

Um ou dois dias depois, três quartos das universidades dos Estados Unidos estavam em greve. Mais de quatro milhões de estudantes se uniram ao protesto e, uma por uma, todas as universidades de Rochester fecharam as portas pelo resto do período escolar.

Um dia depois de Ferguson entregar sua matéria sobre Buffalo, teve uma breve conversa com McManus na porta do prédio do Times-Union. Enquanto olhavam para o trânsito e fumavam seus cigarros, ambos reconheceram, com relutância, que não fazia mais nenhum sentido publicar matérias sobre os anos 1960. Oito eram o bastante e a nona e a décima já tinham se tornado des­necessárias.

Depois que Nancy descobriu seu novo homem nos primeiros dias da greve dos estudantes, Ferguson desperdiçou os seis meses seguintes perseguindo duas mulheres diferentes, que não valiam o esforço de andar atrás delas e que vão continuar anônimas, porque seus nomes também não valem o esforço de serem ditos. Ferguson já começava a se sentir inquieto, tinha a sensação de que já estava farto de Rochester após um ano e meio naquela cidade de série B, e se perguntava se não deveria tentar a sorte em outro lugar, em outro jornal, ou quem sabe largar o jornalismo de vez e tentar ganhar a vida como tradutor, pois, por mais que gostasse das pressões da redação em alta velocidade, brigar com o francês do século XV de Villon era mais satisfatório para ele no fim das contas, e embora o tempo fosse escasso, Ferguson tinha conseguido esmerilhar uma primeira versão aceitável de O legado e estava a meio caminho de uma versão preliminar de O testamento, não que ele fosse conseguir, algum dia, se alimentar fazendo tradução de poemas, está claro, mas um gordo livro de prosa de vez em quando podia ajudar a pagar as contas, e, no mínimo, mesmo se ele continuasse morando em Rochester por mais algum tempo, será que não faria sentido deixar aquele buraco fétido e infestado de baratas na Crawford Street onde estava morando e mudar para uma casa melhor?

Era janeiro de 1971, fevereiro de 1971, os dias mais escuros e mais frios do ano naquele lúgubre posto avançado de inverno, uma época em que só se podiam esperar coisas lúgubres, uma época de fantasias de morte e delírios de morar nos trópicos, mas exatamente na hora em que Ferguson já começava a pensar em se enterrar debaixo de um monte de cobertores e ficar metido na cama por três meses seguidos, seu trabalho no Union-Times tornou-se interessante mais uma vez. O circo voltou à cidade. Os leões e os tigres estavam rugindo, uma multidão se aglomerava embaixo da tenda ampla e Ferguson, às pressas, pulou de volta para dentro de seus trajes de equilibrista da corda bamba e galgou a escadinha para tomar sua posição na plataforma suspensa.

Depois dos tiros disparados em Kent State, Ferguson foi transferido para a editoria nacional e agora trabalhava sob as ordens de um homem chamado Alex Pittman, um editor jovem, de bons instintos e com uma atitude mais tolerante do que Dunlap. Ferguson tinha entregado uma porção de matérias para Pittman ao longo de semanas, entre maio e fevereiro, mas nada tão empolgante como as duas matérias grandes que estouraram na primeira metade do ano novo e que, de modo muito curioso, se transformaram em duas versões da mesma história: amarrar as pontas soltas dos anos 1950 e 1960, porque alguém tivera a coragem de roubar documentos secretos do governo e apresentá-los ao público, o que significava que, ainda que os anos 1960 estivessem encerrados em termos cronológicos, não tinham terminado de fato e estavam, na verdade, apenas começando — tudo de novo. No dia oito de março, um grupo desconhecido de ativistas invisíveis que se intitulavam Comissão de Cidadãos para Investigar o FBI arrombou um pequeno escritório do governo, com espaço para dois funcionários, numa cidade estranhamente chamada Me­dia, na Pensilvânia, e surrupiou mais de mil documentos secretos. No dia seguinte, aqueles documentos foram enviados para várias empresas de notícia em todo o país, pondo a nu a operação secreta de espionagem do FBI chamada COINTELPRO (Programa de Contra-Inteligência), iniciada por J. Edgar Hoover em 1956 para acossar os catorze ou vinte e seis comunistas que ainda restavam nos Estados Unidos, e depois se expandiu para abranger membros de organizações de negros que lutavam pelos direitos civis, organizações contra a guerra do Vietnã, organização do Black Power, organizações feministas e mais de duzentas organizações da Nova Esquerda, entre elas a SDS e os Meteorologistas. Não se tratava apenas de espionar, mas de infiltrar informantes e agentes provocadores em suas fileiras para provocar dissenção e descrédito, e, assim como os temores desvairados dos ativistas dos anos 1960 estavam se tornando realidade, o Grande Irmão tinha observado tudo, de fato, o mais fiel e maluco soldado de Pai-Ninguém tinha estado por trás de tudo aquilo, o tampinha nanico J. Edgar Hoover, que havia angariado tanto poder durante seus quarenta e sete anos de trabalho, que os presidentes engasgavam quando ele batia na porta do gabinete de um deles. Os documentos revelavam centenas de crimes e centenas de golpes baixos para sujar o nome de pessoas inocentes, mas nada era tão vil quanto o trabalho que ele tinha feito com Viola Liuzzo, que se tornou tema de uma das matérias de Ferguson, a dona de casa de Detroit, com cinco filhos, que tinha ido ao Alabama para participar da marcha de Selma a Montgomery e que, pelo simples fato de abrir a porta de seu carro e dar carona para um negro, tinha sido morta por um grupo da Ku Klux Klan, e um dos assassinos era Gary Thomas Rowe, “conhecido informante do FBI”, e então Hoover cometeu a temeridade de escrever uma carta para Johnson, dizendo que a sra. Liuzzo tinha sido membro do Partido Comunista e havia abandonado os filhos para fazer sexo com negros do movimento dos direitos civis, uma acusação forjada que sugeria que ela fora uma inimiga do povo e, portanto, alguém que merecia morrer.

Três meses depois do escândalo do COINTELPRO, os Papéis do Pentágono foram publicados no New York Times e Ferguson também trabalhou naquele caso, inclusive na história por trás da história de como Daniel Ellsberg surrupiou os documentos do prédio e entregou a Neil Sheehan, repórter do Times, o antes detestado New York Times, que, talvez para expiar as mentiras que publicara em 1968, se arriscou a publicar documentos secretos, um momento brilhante do jornalismo americano, como concordavam Pittman, McManus e Ferguson, e de repente as mentiras do governo americano estavam nuas na frente do mundo inteiro, coisas que nunca tinham sido divulgadas em lugar nenhum da imprensa, os bombardeios secretos do Camboja e do Laos, os ataques na costa do Vietnã do Norte, mas, além disso e antes disso, os milhares de páginas que delineavam, passo a passo, o processo pelo qual algo que parecia fazer sentido desmoronava em completo absurdo.

Em seguida, o circo foi embora da cidade, de novo, e Ferguson caiu nos braços de Hallie Doyle, uma estudante de vinte e um anos de Mount Hol­yoke, que conseguira um emprego de verão no jornal, a primeira mulher que conheceu desde que viera para o norte, que talvez fosse capaz de quebrar o encanto de Amy, afinal, uma pessoa profundamente inteligente e perspicaz, criada na Igreja Católica Romana, mas que já não fazia mais parte daquilo, porque não acreditava que virgens pudessem ser mães nem que os mortos pudessem se levantar da sepultura, embora acreditasse, com uma certeza íntima, que os humildes herdariam a terra, que a virtude era sua própria recompensa e que não fazer com os outros aquilo que não queremos que façam conosco era um modo mais sensato de conduzir a vida do que lutar para seguir os preceitos da regra de ouro, que obrigava os seres humanos a se transformarem em santos, o que não levava a lugar nenhum, senão à culpa e ao desespero eterno.

Uma pessoa sã, talvez até uma pessoa sábia. Uma pessoa pequena, mais não ínfima, de um metro e sessenta e quatro ou sessenta e cinco, de corpo elegante e ágil, óculos de vovó empoleirados no nariz e um cabelo de forte coloração amarela, tão loura que dava a impressão de uma Cachinhos Dourados plenamente adulta, porém, por mais atraentes que aqueles cabelos fossem para Ferguson, o mistério se abrigava no rosto de Hallie, que era um rosto comum e também bonito, sem graça e deslumbrante, em turnos, um rosto que mudava de aspecto com o mais leve desvio ou inclinação da cabeça, ora um camundongo no estilo Cachinhos Dourados, ora a assombrosa garota do rótulo da garrafa de água mineral White Rock, ora insossa e quase sem feições, ora radiante e arrebatadora, uma caneca irlandesa sem nada de extraordinário, que podia, num piscar de olhos, se transformar no semblante mais encantador jamais visto, fora das telas de cinema. O que ele havia de fazer com tamanho enigma? Nada, decidiu Ferguson, absolutamente nada, pois a única resposta era continuar olhando para ela a fim de sentir a sensação cada vez mais prazerosa de estar sempre desestabilizado.

Hallie tinha sido criada em Rochester e estava de volta à cidade, naquele verão, para vender a casa da família na East Avenue, que havia se tornado supérflua depois que seus pais, que escreviam sobre ciência, se mudaram para San Francisco no início do ano. O emprego no Times-Union tinha sido obtido por meio da ajuda de um amigo da família, e não passava de uma forma de matar o tempo de maneira mais eficiente do que ficar sem fazer nada — além de ser uma oportunidade de ganhar, de quebra, algum dinheiro extra.

Uma assistente temporária de redação de jornal no verão, mas, na vida real, uma estudante de biologia e de inglês, duas faculdades concomitantes, uma estudante que ia iniciar o último ano do curso no outono. Uma poeta em botão, com planos de longo prazo de fazer o curso de medicina e depois enveredar ainda pelo ramo da psiquiatria e, por fim, especializar-se em psicanálise, e tudo aquilo era muito impressionante, porém o que chamou mesmo a atenção de Ferguson, acima de tudo, foi a forma como ela havia passado os dois verões anteriores: tinha morado em Nova York, atendendo telefonemas num programa de ajuda de emergência para suicidas, na esquina da rua Quatro Leste com a Avenida A.

Em outras palavras, disse Ferguson para si mesmo, enquanto ele estava escutando o disco desenrolar os versos lúgubres e desoladores de “Senhor, teu nome é morte”, Hallie estava trabalhando para salvar vidas. Não todas ao mesmo tempo e de uma vez só, como Amy e tantos outros acreditavam, mas uma por uma, uma de cada vez. Falar com um homem ao telefone e, gradualmente, convencê-lo a não puxar o gatilho da arma apontada para a cabeça. Falar com uma mulher, na noite seguinte e, pouco a pouco, persuadi-la a não engolir o conteúdo do frasco de comprimidos agarrado em sua mão. Nenhum impulso para reinventar o mundo de cima a baixo, nenhuma ação de contestação revolucionária, mas um compromisso para fazer o bem no mundo fraturado a que ela pertencia, um plano de passar a vida ajudando os outros, o que era menos um ato político do que um gesto religioso, uma religião sem religião ou dogma, uma fé no valor de um por um, um de cada vez, uma viagem que ia começar na faculdade de medicina e depois prosseguiria pelo tempo que demorasse até concluir sua preparação de psicanalista, e, quando Amy e outros argumentassem que a sociedade estava doente e ajudá-las a se adaptar a uma sociedade doente só serviria para piorar a situação dessas pessoas, Hallie responderia: Por favor, vão em frente e melhorem a sociedade, se puderem, mas enquanto isso as pessoas estão sofrendo e eu tenho um trabalho a fazer.

A questão não era que Ferguson havia encontrado a Segunda Garota, mas sim que, à medida que o verão avançava, ele se perguntava se não teria encontrado A Garota que iria apagar todas as outras pelo resto de seus dias nesta terra linda e destroçada.

Hallie foi morar com ele na toca de rato da Crawford Street no início de julho, e, como o verão daquele ano estava especialmente escaldante, eles abriam as janelas e se transformavam em nudistas sempre que estavam em casa. Do lado de fora, nas noites dos dias de semana e nos dias e nas noites do fim de semana, viram doze filmes, viram seis partidas de beisebol do time Rex Wings, jogaram tênis quatro vezes (a superatlética Hallie derrotou Ferguson sistematicamente por dois sets a um), fizeram caminhadas pelo cemitério de Mount Hope, ficavam sentados no Parque Highland e liam poemas e traduções um do outro, até que Hallie desatou a chorar e, numa tarde de domingo, declarou que seus poemas eram muito ruins (não, não são ruins, disse Ferguson, ainda estão se desenvolvendo, embora houvesse pouca dúvida de que ela teria um futuro mais promissor na medicina do que na literatura), foram ver quatro concertos de música clássica na Escola de Música Eastman, Bach, Mozart e Webern, e jantaram inúmeras vezes em toda sorte de restaurantes, decentes ou atrozes, porém nenhum jantar foi mais memorável do que o que tiveram no Antonio’s, na Lake Avenue, onde a refeição foi acompanhada de música incessante, tocada por um homem chamado Lou Blandisi, que se apresentava como o Acordeonista Fora de Moda de Little Italy e que parecia conhecer todas as canções que já haviam sido compostas no mundo, desde músicas pop americanas de sucesso até danças irlandesas e klezmer judaicos da região do rio Pale, na Estônia.

Para ir direto ao ponto: nos primeiros dias de agosto, os dois pronunciaram várias dúzias de vezes a decisiva frase de três palavras, um para o outro, as três palavras que fecham o acordo e anunciam que não há como voltar atrás e, no fim do mês, ambos começaram a pensar em longo prazo, pensamentos duradouros sobre o futuro. Então veio a inevitável despedida e, enquanto o amor de Ferguson partia para seu último ano na faculdade em South Hadley, no Massachusetts, ele se perguntava como poderia sobreviver sem ela.

Oito de setembro. O verão agora tinha terminado. As crianças berravam de novo embaixo da janela de seu quarto de manhã cedo e, da noite para o dia, o ar de Rochester havia retomado aquela sensação viva, de começo de ano letivo, de lápis que tinham acabado de ser apontados, de sapatos novos e duros — o cheiro da infância, as memórias entranhadas nos ossos, que vinham de muito tempo atrás. O Triste Senhor Solitário, que se remoía de saudades da sua ausente Hallie em todas as horas dos últimos dez dias, voltou para sua toca de rato às quatro e meia da tarde daquele dia e, um minuto depois de chegar, antes que tivesse tempo de desembrulhar o saco de papel onde estavam os ingredientes de seu jantar, o telefone tocou. Pittman estava ligando da redação do Times-Union. Pittman com um tom premente na voz. Pittman disse que “alguma coisa estava se armando em Attica”, a prisão estadual situada a oitenta quilômetros a sudoeste de Rochester, e ele ia mandar Ferguson e Gianelli para lá, amanhã bem cedo, para falar com Vincent Mancusi, o superintendente da prisão, “para descobrir o que é que está acontecendo”. A entrevista já tinha sido marcada para as nove horas, Gianelli ia pegar Ferguson às sete e, embora naquele momento a coisa não passasse de uma pequena confusão, poderia virar um negócio grande, portanto “fique de olhos e ouvidos abertos, Archie, e trate de se manter longe de qualquer encrenca”.

Haviam acontecido duas grandes agitações nos presídios de Nova York no ano anterior, uma no norte do estado, em Auburn, e a outra em Tombs, em Manhattan, rixas e confrontos corporais entre presos e guardas que acarretaram um monte de indiciamentos e penas adicionais. Os líderes dos dois movimentos — na maioria, negros, todos eles comprometidos com alguma forma de política revolucionária — tinham sido transferidos para Attica a fim de “cortar pela raiz os agitadores”, e, agora que o Pantera Negra George Jackson tinha sido baleado e morto na prisão de San Quentin, na Califórnia, durante uma suposta tentativa de fuga, com uma arma escondida na peruca de cabeleira afro que ele estava usando (algumas pessoas acreditavam mesmo nisso), os detentos das prisões superlotadas de Nova York começavam a fazer barulho outra vez. Sessenta por cento dos dois mil e quinhentos prisioneiros de Attica eram negros, cem por cento dos guardas eram brancos, e Ferguson não apenas não estava nem um pouco ansioso para fazer sua primeira visita a uma unidade correcional de segurança máxima, como estava morrendo de medo daquela história. Estava feliz com a companhia de Gianelli, a viagem de uma hora até lá seria bastante agradável, enquanto Tom ia conversar com ele, ficaria imitando as vozes de Cary Grant e Jean Harlow e tagarelando sobre as rodadas eliminatórias da liga principal de beisebol, mas quando chegassem lá e entrassem no presídio, estariam pondo os pés no inferno.

Ferguson não queria mais aquilo. Seus nervos estavam esgotados, ele estava pronto para entregar os pontos, e, depois de dizer a si mesmo uma dúzia de vezes, nos últimos oito ou nove meses, que já estava farto e não queria mais saber daquilo, dessa vez ele não ia recuar. Tinha chegado ao limite do que era capaz de suportar. Basta de Rochester, basta do jornal, basta de ter de viver com os olhos o tempo todo cravados no mundo sombrio de guerras despropositadas, governos mentirosos, policiais espiões disfarçados e homens revoltados, desesperados, engaiolados em masmorras construídas pelo estado de Nova York. Aquilo já não estava ensinando mais nada para ele. Vezes seguidas ele aprendia a mesma lição e, àquela altura, já sabia de cor e salteado aquela história, antes mesmo de sentar para escrever. Rien ne va plus, como diziam para os apostadores de Monte Carlo quando a roleta estava prestes a girar de novo. Apostas encerradas. Ele tinha apostado seu dinheiro no zero e havia perdido, e agora estava na hora de ir embora.

Iria ao presídio de manhã com Gianelli, faria a entrevista com o diretor, que na certa ia dizer que tudo estava sob controle, e, se pedisse para dar uma olhada na prisão e, quem sabe, conversar com um ou dois presos, sem dúvida seu pedido seria negado, por motivo de segurança. Aí ele ia escrever a matéria que conseguisse e entregaria ao Pittman. Mas aquela seria a última. Diria a Pittman que estava farto e apertaria sua mão em despedida. Depois, iria ao gabinete de McManus e agradeceria por ter lhe dado a chance de trabalhar ali, apertaria sua mão e agradeceria o privilégio de conhecê-lo, só que ele não era talhado para aquele tipo de serviço, diria Ferguson, agora o trabalho o estava matando e ele estava esgotado, depois agradeceria ao chefe, uma vez mais, por ser aquele homem bom que era e sairia do prédio pela última vez.

Cinco horas. Pegou o telefone e ligou para o número de Hallie, em Massachusetts, mas ninguém atendeu, depois de tocar catorze vezes, nem mesmo a colega de quarto de Hallie, nem mesmo para lhe dizer que Hallie tinha saído de noite e só ia voltar às onze ou à meia-noite.

Os olhos azuis de Hallie olhando para ele na hora em que ela rastejava na cama na direção de Ferguson. O corpo branco de Hallie, pequeno e impetuoso, apertado ao seu corpo. Me diga algumas das coisas de que você mais gosta, pediu para ele certa vez, e Ferguson respondeu com uma piada tola e um jogo de palavras: As platibandas do Central Park, as plataformas da Grand Central Station e ver as bandas em forma à sombra dos plátanos. Ela respondeu: Sí, sí, sí, em espanhol. Ou talvez estivesse falando em inglês see, see, see (estou vendo, estou vendo).

Às vezes ela ria tão alto e tão forte que seu rosto ficava vermelho.

Se Ferguson não ia morar em Rochester, para onde queria ir? Para começar, Massachusetts. South Hadley, Massachusetts, para conversar com ela a sério e traçar uma espécie de plano para o futuro. Talvez alugar um apartamento em algum canto do bairro e trabalhar nas traduções de Villon, enquanto ela cursava a faculdade. Ou então Ferguson fazia isso por um tempo, enquanto aprendia a aliviar a ansiedade e se tornava de novo um ser humano, e depois viajar para Paris com ela, nas férias de Natal. Ou vagar pela Europa sozinho, ver o máximo que pudesse em um ou dois ou quatro meses. Não, quatro meses não. Seria tempo demais, ele não era capaz de aguentar. Um apartamentozinho em Amherst ou alguma outra cidade. Essa seria uma boa solução, por enquanto, e depois iriam os dois juntos passar uns dois meses na Europa, depois que Hallie se formasse, em junho. Tudo era possível. Pegando um pouquinho dos fundos de sua mãe, quando a ansiedade aumentasse, tudo seria possível naquele ano.

Seis horas. Ovos mexidos, presunto e duas fatias de torrada com manteiga para o jantar — além de quatro taças de vinho.

Luy qui buvoit du meilleur et plus chier

Et ne deust il avoir vaillant ung pigne

Sete horas. Agora ele estava sentado diante de sua escrivaninha e olhava aqueles dois versos de Testament, de Villon. Significavam, aproximadamente: Ele, que bebia os melhores e mais caros vinhos/ E não tinha dinheiro para comprar um pente. Ou: E não tinha como pagar o preço de um pente. Ou: E não tinha recursos para comprar um pente. Ou: E não tinha grana para faturar um pente. Ou: Estava duro demais para torrar sua pouca grana num pente. Ou: E não podia jogar fora os últimos tostões em troca de um pente.

Nove horas. Telefonou de novo para Massachusetts. Vinte toques dessa vez, mas novamente ninguém atendeu.

Não era só um amor novo, mas um novo tipo de amor, um jeito novo de estar com alguém que traduzia um jeito novo de estar consigo mesmo, um jeito melhor, por causa de quem e do que e de como ela ficava com ele, o jeito de ser ele mesmo a que Ferguson sempre havia aspirado, mas nunca havia conseguido alcançar no passado. Chega de ataques de introspecção taciturna, chega daquelas viagens para os pântanos de meditações com que ele se atormentava, chega de se voltar contra si mesmo, uma fraqueza que sempre o havia tornado algo menor do que ele devia ser. Hallie lhe dava força. CERVEJA GUINNESS é boa para você, diziam os cartazes nas paredes dos bares. Não havia dúvida de que Hallie Doyle era boa para ele.

Quinze para as onze. Ferguson foi para o quarto, deu corda no relógio e ajustou o despertador para as seis horas. Depois voltou para a sala, pegou o telefone e ligou de novo para Hallie.

Não houve resposta.

No apartamento embaixo do de Ferguson, Charlie Vincent desligou a televisão, esticou os braços e se levantou do sofá. O inquilino do andar de cima estava indo para a cama, o rapaz boa-pinta que tinha dormido com a loura bonita durante o verão inteiro, que jovens simpáticos e bacanas, sempre uma palavra gentil quando cruzavam com ele na escada ou na caixa da correspondência, mas agora a garota tinha ido embora e o rapaz dormia sozinho de novo, o que era muito ruim, de certa forma, pois ele bem que gostava de ficar ouvindo os gemidos do rapaz e os soluços da moça, sons muito bons de ouvir, muito satisfatórios para os ouvidos e para outras muitas partes dele, que sempre sentia vontade de estar lá, no andar de cima, na cama com eles, não como estava agora, mas sim em seu antigo corpo, do tempo em que era jovem e bonito também, anos, anos, quantos longos anos tinham se passado e, embora não pudesse subir e estar com eles nem vê-los, sentado numa cadeira num canto do quarto, ouvir e imaginar aqueles dois tinha sido quase tão bom quanto isso, e, agora que o rapaz estava sozinho, também havia algo de bom naquilo, um rapaz tão adorável, com seus ombros largos e seus olhos cordiais, o que ele não daria para ter nos braços aquele corpo nu e cobri-lo de beijos, por isso Charlie Vincent desligou a televisão e arrastou os pés pelo caminho que ia da sala até o quarto, a fim de ouvir os rangidos da cama enquanto o rapaz ficava se virando para lá e para cá em cima do colchão e se acomodava para passar a noite. Agora, no quarto, estava escuro. Charlie Vincent tirou a roupa, deitou-se na cama e pensou no rapaz enquanto se masturbava, até que a respiração acelerou, um calor se espalhou por ele e acabou-se a função. Aí, pela quinquagésima terceira vez desde aquela manhã, acendeu um de seus compridos cigarros Pall Mall sem filtro para dar umas baforadas...

* Nível mais alto da chamada Liga Menor de beisebol. (N. T.)

** Em inglês, “cadeia” é jail. Daí a rima. (N. E.)


7.2


7.3


7.4

A tia Mildred o salvou do pior. Mexendo as cordinhas, usando sua autoridade de diretora do Departamento de Inglês, escalando degrau por degrau a interminável escada da burocracia, ameaçando renunciar em protesto se o diretor do setor de seleção não se dobrasse à vontade dela, defendendo sua causa em reuniões de duas horas de duração com o reitor recém-empossado Francis F. Kilcoyne, contrário à guerra, homem conhecido por sua atitude compreensiva e por seus elevados princípios morais, a professora Adler acabou cavando uma vaga para Ferguson como estudante com plenos direitos no Brooklyn College, uma semana antes do começo de seu primeiro semestre do terceiro ano.

Quando Ferguson perguntou como ela havia conseguido realizar um feito tão incrível, Mildred respondeu: Eu contei para eles a verdade, Archie.

E a verdade era que ele tinha defendido um amigo negro ameaçado por um branco fanático e tinha sido inocentado no tribunal, o que sugeria que sua Bolsa de Estudos do Programa Walt Whitman em Princeton tinha sido cancelada injustamente e que ele merecia uma vaga em Brooklyn, não apenas por sua média de notas situá-lo entre os melhores alunos de sua série, mas também porque a perda da bolsa de estudos iria impedi-lo de continuar estudando em Princeton em razão da falta de recursos, e, se Ferguson não conseguisse se matricular em outra universidade no início do semestre do outono, perderia sua condição de estudante universitário, além de perder a bolsa, e se veria sujeito à convocação para o Exército. Como opositor da guerra do Vietnã, ele não admitiria entrar para o Exército, caso o convocassem para o serviço militar, o que provavelmente redundaria numa pena de prisão, segundo as leis do alistamento obrigatório, e então, perguntava ela, não seria uma obrigação do Brooklyn College salvar aquele jovem tão promissor de um futuro sombrio e absurdo?

Nunca tinha passado pela cabeça de Ferguson que sua tia fosse capaz de tomar uma posição, qualquer que fosse, com tão grande empenho, muito menos em favor dele ou de alguém da família, mas no dia 21 de agosto, menos de uma hora depois de telefonar para o escritório de DeWitt e ser informado de que aquele figurão estava em viagem ao exterior, Ferguson procurou Mildred por desespero — não que ele esperasse que a tia fosse fazer alguma coisa em seu favor, mas porque precisava de algum conselho, e, como Nagle estava fora, numa ilha do Mediterrâneo, esquadrinhando cacos de cerâmica do período pré-helênico, era ela a única pessoa que podia lhe dar conselhos. Naquele dia, o tio Don atendeu o telefone no quarto toque da campainha. Mildred estava fora de casa, resolvendo algumas coisas na rua, disse ele, e só ia voltar dali a uma hora, mais ou menos, só que Ferguson não podia esperar uma hora, suas entranhas estavam contraídas de pavor e perplexidade e as palavras da carta de DeWitt estavam entaladas na sua garganta, por isso ele despejou a história toda em cima de Don, que ficou chocado, indignado e furioso o suficiente para dizer para Ferguson que DeWitt devia ser arrastado e esquartejado pelo que tinha feito, mas mesmo naqueles momentos iniciais da crise, quando Ferguson ainda não estava em condições de raciocinar, Don já começava a abrir caminho para uma solução, se perguntava como cavar uma brecha que permitisse que Ferguson entrasse em outra universidade antes que o prazo para isso terminasse, o que significava que aquilo, no início, era ideia dele, mas quando Mildred voltou para casa e conversou com Don, rapidamente a ideia passou também a ser dela e, quando a tia ligou para Ferguson, quarenta e cinco minutos depois, lhe disse para não ficar preocupado, porque ela ia cuidar de tudo.

Ter Mildred do seu lado fez toda a diferença. A quente e fria tia Mildred, a meiga e cruel tia Mildred, a inconstante e não muito amigável irmã de sua irmã Rose, a mais ou menos incentivadora, porém, no mais das vezes, alheia madrasta de Noah, o filho de Don, a generosa, porém, em geral, descompromissada tia de seu único sobrinho, agora parecia dizer ao filho de sua irmã que ela se importava muito com ele, muito mais do que ele imaginava. Mildred contou para Ferguson como ela havia conseguido lhe arranjar uma vaga no Brooklyn College, mas quando ele perguntou por que ela havia se dado todo aquele trabalho por causa dele, antes de tudo, a ferocidade da resposta deixou-o chocado: Tenho uma fé tremenda em você, Archie. Acredito no seu futuro e só passando por cima do meu cadáver eu vou deixar que alguém roube esse futuro de você. Que esse DeWitt vá plantar batatas. Nós somos o povo do livro e o povo de livro tem de ficar unido.

Rainha Esther. Mãe Coragem. Mãe Jones. Irmã Kenny. Tia Mildred.

A primeira coisa e a mais importante para dizer acerca de seu ingresso no Brooklyn College era que as aulas eram gratuitas. Num raro gesto de sabedoria política, os pais da cidade de Nova York tinham declarado que os rapazes e moças dos cinco distritos tinham direito à educação ao custo anual de nenhum dólar, o que não só ajudou a impulsionar os princípios da democracia como provou que o bem maior podia ser alcançado quando a receita dos impostos municipais era colocada nas mãos certas, e aquilo ofereceu a dezenas de milhares, centenas de milhares e, ao longo dos anos, milhões de rapazes e moças de Nova York a oportunidade de receber uma educação que a maioria deles não teria condições de pagar, e Ferguson, que não podia mais pagar o preço elevado da universidade de Princeton, agradecia àqueles pais da cidade, falecidos tantos anos antes, toda vez que pisava os degraus de concreto da estação de metrô na Flatbush Avenue e caminhava pelo campus de Midwood. Mas, além disso, a universidade era boa, era mesmo excelente. Era necessário um aproveitamento médio mínimo de 87 no ensino médio para obter uma vaga, além de passar num exame de seleção rigoroso, o que significava que, em sua turma, não havia ninguém com uma nota abaixo de B?, e, como a maioria estava na faixa de notas de 92 a 96, Ferguson estava cercado por pessoas bastante inteligentes, muitas delas podiam ser classificadas de brilhantes. Princeton também tinha sua cota de alunos brilhantes, mas contava com certa parcela de rapazes que tinham apenas bons pistolões, ao passo que Brooklyn era formada por rapazes e moças (felizmente), e, em seu corpo de alunos, não carregava nenhum peso morto. Todo mundo vinha da cidade, é claro, mais ou menos o dobro de alunos que havia em Princeton, onde o contingente na graduação provinha de todas as partes do país, mas Ferguson era um nova-iorquino duro na queda e um ferrenho partidário da cidade e, assim como tinha se deliciado com a companhia de seus amigos de Nova York no Acampamento Paraíso, quando menino, agora sentia prazer em estar com seus colegas nova-iorquinos nervosos e que gostavam de discutir no Brooklyn College, onde o corpo de alunos podia ser menos variado do que em Princeton, em termos geográficos, porém era mais diversificado em termos humanos, em sua mixórdia fervilhante de etnias e culturas, com hordas de católicos e judeus, um revitalizante número de rostos negros e asiáticos, e, como a maioria era formada por netos dos imigrantes que desembarcaram na ilha de Ellis, era muito provável que fossem os primeiros na família a frequentar uma faculdade. Além disso, o campus era um modelo de projeto arquitetônico sensato, nem de longe o que Ferguson esperava encontrar, uma área aconchegante de dez hectares e meio, em comparação com os duzentos hectares de Princeton, e que também parecia atraente aos olhos de Ferguson, com seus prédios elegantes em estilo georgiano que enchiam a paisagem, em vez das torres góticas opressivas, os quadriláteros gramados enfeitados com elmos, um lago de lírios e um jardim para passear nos intervalos entre as aulas, sem dormitórios, sem clubes de estudantes, sem a loucura do futebol americano. Era um jeito completamente distinto de cursar uma faculdade, com o movimento político contra a guerra como principal obsessão do campus, no lugar dos esportes, as exigências dos trabalhos acadêmicos tomando o tempo da maior parte das atividades extracurriculares e, o melhor de tudo, a possibilidade de ir para casa, o seu apartamento na rua 89 Leste, quando os compromissos do dia terminavam.

As viagens de metrô de Yorkville, em Manhattan, para Midwood, no Brooklyn, e depois de volta outra vez, todos os dias, de segunda a quinta, eram tão demoradas que Ferguson conseguia fazer a maior parte das leituras das disciplinas sentado no vagão. Não se inscreveu no curso da tia Mildred sobre o romance vitoriano, porque achou que sua presença na sala podia ser um fardo para ela, mas quando o tio Don voltou a lecionar como professor convidado, na primavera, para seu curso bianual de um semestre, sobre a arte da biografia, Ferguson se inscreveu. Don fazia uma minipalestra densa, acelerada, no início de cada aula e depois abria para uma discussão geral, um tipo de professor um tanto desajeitado e desorganizado, achou Ferguson, mas nunca maçante ou enfadonho, sempre a postos para o desafio de pensar por conta própria, ao mesmo tempo divertido e impassível, tal como era na maioria das circunstâncias da vida, e que série de livros estranhos ele pediu que os alunos lessem, naquela primavera, Plutarco, Suetônio, Agostinho, Vasari, Mon­taigne, Rousseau e o bizarro e apelativo coleguinha do dr. Johnson, James Boswell, que confessava em seus diários que ia interromper seu texto no meio da frase para sair pelas ruas de Londres e fazer e acontecer com pelo menos três prostitutas numa só noite, porém a parte mais empolgante daquelas aulas, para Ferguson, foi ler finalmente Montaigne pela primeira vez, e, agora que tinha sido exposto às frases intratáveis e relampejantes do francês, Ferguson havia descoberto um mestre novo para lhe fazer companhia em suas próprias viagens pela Terra da Tinta e do Papel.

Portanto, foi assim que uma coisa ruim se transformou numa coisa boa. Um murro nocauteador de Gordon DeWitt que, teoricamente, teria posto Ferguson fora de combate, mas, na hora em que ele já começava mesmo a cair, um punhado de pessoas pulou para dentro do ringue e o segurou pelos braços antes de seu corpo beijar a lona; tia Mildred primeiro e de modo mais relevante, a mais forte entre todos, na função de amparadora de corpos, e também o tio Don, com seu pensamento rápido, e, um por um, todos aqueles que se juntaram à sua volta, quando tiveram notícia do murro que Ferguson tinha levado, Celia, sua mãe e Dan, Noah, Jim e Nancy, Billy e Joanna, Ron e Peg, e também Howard, que conversou com Nagle na manhã seguinte ao regresso a Princeton do ex-consultor acadêmico de Ferguson, e então o próprio Nagle, que escreveu uma carta incomumente calorosa, depois que How­ard lhe deu a notícia perturbadora acerca da bolsa de estudos, e se ofereceu para ajudar de todas as formas que pudesse e sugeriu que, talvez, Susan pudesse arranjar alguma vaga para ele na Universidade Rutgers, e como aquela carta foi importante para Ferguson, Nagle lhe estendeu a mão como amigo e tomou o seu lado contra DeWitt, e a longa conversa ao telefone com Amy e Luther em Montreal, o que se associou à guinada alarmante que desencadeou o rompimento de Howard e Mona Veltry, uma violenta rixa verbal sobre qual dos dois tinha sido responsável por levar o grupo ao Tom’s Bar and Grill, cada um culpava o outro, até que os dois perderam o controle e seu grande amor morreu, tão depressa como uma flor doente na primeira friagem do inverno, e então, apenas poucos dias depois disso, Luther abruptamente pôs fim ao namoro com Amy, enxotou Amy porta afora e mandou que ela voltasse para os Estados Unidos, e lá estava Ferguson com a atordoada e magoada meia-irmã, que lhe contou que Luther tinha feito aquilo pelo bem dela mesma, e por favor, Archie, disse Amy, meu querido irmão maluco, não faça nada idiota como sair correndo para o Canadá, fique na sua, prenda a respiração e reze para que alguma coisa boa aconteça, que foi exatamente o que acabou acontecendo, por causa da Mãe Coragem Mildred, e apesar da calamidade geral em que ele estava vivendo naqueles dias de incerteza, Ferguson sentiu-se tão profundamente amado pelas pessoas que ele amava que ganhar a Bolsa de Estudos Walt Whittman acabou fazendo menos para levantar seu moral do quer perder aquela bolsa.

O mundo estava conturbado. Tudo em toda parte estava em movimento. A guerra estava fervendo no sangue de Ferguson, Newark era uma cidade morta no outro lado do rio, amantes estavam em chamas, e, agora que Ferguson tinha obtido uma moratória, voltou para seu livro sobre o dr. Noyes e as crianças mortas na cidade de R. Duas horas, a partir das seis, todas as manhãs, de segunda à quinta, e depois o maior número de horas possível de sexta a domingo, apesar da sempre crescente carga de tarefas acadêmicas que ele tinha de cumprir com todo rigor a fim de saldar sua dívida com Mildred, que ficaria muito decepcionada se ele desse sinais de um aproveitamento mais fraco e não obtivesse boas notas. Montaigne; Leibniz; Leopardi; e o dr. Noyes. O mundo estava se desfazendo em pedaços e a única forma de não se despedaçar junto era manter a mente concentrada em seu trabalho — rolar para fora da cama todo dia de manhã e meter a cara no trabalho, quer o sol resolvesse brilhar no céu, quer não.

O ensino gratuito era uma bênção, mas ainda havia certa dose de problemas de dinheiro para ele enfrentar, e, nas primeiras semanas do semestre do outono, Ferguson lutava para traçar um plano que não incluísse receber ajuda da mãe nem do padrasto. A bolsa de estudos tinha coberto alojamento e alimentação, além das aulas, o que lhe permitira, sem nenhuma despesa, encher a barriga três vezes por dia, cinco dias por semana, cinco dias que poderiam ser sete, se ele não fizesse questão de passar os dois dias restantes em Nova York, mas agora que ele estava na cidade, e só na cidade, precisava pagar todas as refeições e as compras no mercado, algo que não tinha mais condições de fazer, depois de torrar cinco mil dólares com o advogado de Brattleboro e ficar apenas com pouco mais de dois mil dólares no banco. Calculou que conseguiria se virar com mais ou menos quatro mil dólares por ano, o que deixaria em suas mãos as migalhas suficientes para levar uma vida minúscula, de rato de sacristia, só que dois mil não eram quatro mil, e ele só tinha a metade do que ia precisar. Como era de esperar, Dan se ofereceu para cobrir a diferença e propôs lhe dar uma mesada, o que Ferguson aceitou com relutância, porque não tinha mesmo opção, ciente de que a única alternativa seria pegar um trabalho de meio expediente em algum lugar qualquer (supondo que arranjasse um emprego), o que tornaria impossível dar seguimento à escrita de seu livro. Disse que sim, porque tinha de dizer que sim, porém, só porque estava muito agradecido a Dan pelos duzentos dólares mensais, ele não era obrigado a se sentir feliz com aquela solução.

No início de novembro, a ajuda veio de uma fonte inesperada, que direta ou indiretamente podia ser rastreada em seu próprio passado, mas que, ao mesmo tempo, não tinha nada a ver com ele. Outros eram responsáveis por lhe dar o dinheiro de que ele precisava, dinheiro que ele não merecia, mas pelo qual, no entanto, havia trabalhado, embora sem nenhuma intenção de ganhar aquela grana, pois assim como um escritor não pode saber se vai ser pichado ou adorado pelo que escreveu, ele também não podia saber se as horas que passava diante da escrivaninha iriam levá-lo a alguma coisa ou a nada. Durante todo o tempo, Ferguson não presumia nada e, portanto, nunca pronunciava as palavras “escrever” e “dinheiro” na mesma frase, achando que só carreiristas e picaretas da literatura oportunista sonhavam com dinheiro enquanto escreviam, ele achava que o dinheiro teria de vir sempre de outro lugar, a fim de alimentar sua compulsão de encher retângulos brancos com filas e mais filas de rabiscos pretos, mas, na idade ridiculamente precoce de vinte anos, Ferguson aprendeu que sempre não significava sempre, mas sim na maior parte das vezes e, naquelas raras ocasiões em que as expectativas lúgubres de sempre se comprovavam erradas, a única reação adequada era agradecer aos deuses por seu gesto aleatório de benevolência, e depois voltar às expectativas lúgubres de sempre, ainda que o primeiro encontro com o princípio de na maior parte das vezes trovejasse dentro dos ossos com a força de uma bênção sagrada.

Livros do Tumulto, uma editora legalizada, que não fazia livros mimeografados, tinha sido criada por Ron, Lewis e Anne na primavera, tinha lançado sua primeira leva de publicações no dia 4 de novembro: duas coleções de poemas (uma de Lewis e a outra de Anne), as tradução de Reverdy feitas por Ron e o épico de 372 páginas escrito por Billy, Cabeças esmagadas. O anjo da empresa, a ex-esposa do primeiro marido da mãe de Anne, mulher efusiva, de seus quarenta e poucos anos, chamada Trixie Davenport, deu uma grande festa em seu duplex na Lexington Avenue para comemorar o acontecimento, e Ferguson, junto com quase todo mundo que ele conhecia, foi convidado para a festança na noite de sábado. Ele nunca se sentia confortável no meio de multidões, a aglomeração de muitos corpos espremidos em espaços fechados tendia a deixá-lo tonto e emudecido, mas por algum motivo aquela noite foi diferente, talvez porque se sentisse muito feliz pelo Billy, depois de ter passado tantos anos escrevendo seu livro, ou talvez porque achasse divertido ver os encardidos e empobrecidos poetas e pintores do centro da cidade misturados com os grã-finos do East Side, mas quer fosse por um só daqueles motivos ou pelos dois, Ferguson sentiu-se feliz de estar ali naquela noite, perto da linda e um pouco intimidada Celia, que também não era muito de se meter em multidões, e, quando Ferguson olhou ao redor e observou aquele cenário barulhento e lotado de gente, viu John Ashbery sozinho num canto soltando baforadas de um cigarro Gitane, Alex Katz bebericava uma taça de vinho branco, Harry Mathews apertou a mão de uma mulher alta e ruiva, de vestido azul, Norman Bluhm ria, enquanto fingia aplicar uma chave de braço em alguém, e lá estava o animado Noah, de cabelos frisados, ao lado da voluptuosa Vicki Tremain, também de cabelos frisados, e lá estava Howard falando com ninguém menos do que Amy Schneiderman, que tinha vindo passar o fim de semana em Nova York, e dez minutos depois de Ferguson chegar, lá estava Ron Pearson abrindo caminho na direção dele e, um momento depois, Ron passou o braço em volta de seus ombros e o levou para fora do salão, porque tinha uma coisa que queria conversar com ele.

Subiram ao andar de cima, seguiram por um corredor, viraram à esquerda, tomaram outro corredor e se esgueiraram para dentro de uma sala vazia com uns dois mil livros e seis ou sete pinturas numa das paredes. Uma coisa acabou sendo uma proposta de negócio, se é que uma empresa minúscula e fadada a não ter lucros, como era o caso da editora Livros do Tumulto, podia ser chamada de negócio. Como Ron explicou, o triunvirato encarregado da direção da editora votou para incluir Ferguson na lista de publicações do ano seguinte, reunindo num único livro seus três títulos lançados pela editora Gizmo. Segundo seus cálculos, o volume ficaria com 250 ou 275 páginas e daria para ter tudo pronto mais ou menos dali a oito ou dez meses. O que ele achava da ideia?

Não sei, disse Ferguson. Você acha que esses livros são bons o bastante?

Não estaríamos fazendo a proposta se achássemos ruins, disse Ron. É claro que são bons.

Mas e o Billy? Ele não precisa dar sua autorização?

Mas ele já deu. O Billy está dando todo apoio. Ele está com a gente agora, e quer ver você junto também.

Que cara. Briguei com meus babuínos e abati a balas os babacas e curandeiros com meu bom e leal bacamarte. Ninguém jamais escreveu uma frase mais legal do que esta.

Eu também tenho de falar do dinheiro.

Que dinheiro?

A gente está tentando se comportar como editores de verdade, Archie.

Não estou entendendo.

Um contrato, um adiantamento, direitos autorais. Com certeza você já ouviu falar dessas coisas.

Vagamente. Num outro mundo onde, por acaso, eu não vivo.

Três livros num livro só, lançado numa edição de três mil exemplares. A gente achou que dois mil dólares de adiantamento faria ressoar uma bela assimetria.

Não brinque, Ron. Dois mil dólares vão me salvar. Não vou mais ter de mendigar pelas esquinas, não vou mais ter de pedir dinheiro para pessoas que não têm dinheiro para me dar, não vou mais ficar suando de noite. Por favor, me diga que não está querendo me fazer de bobo.

Ron deu um de seus sorrisos mínimos, sutis, e sentou numa cadeira. O procedimento padrão é receber metade na assinatura do contrato, prosseguiu ele, e a outra metade quando o livro for publicado, mas, se você está precisando de tudo de uma vez, tenho certeza de que se pode dar um jeito.

Como é que se pode ter certeza?

Porque, disse Ron, apontando para um Mondrian na parede oposta, Trixie pode fazer tudo que quiser.

Sim, disse Ferguson, ao virar e olhar para a tela. Acho que pode.

Só falta discutir uma coisa. Um título, um título geral para os três livros. Não há pressa nenhuma, mas Anne inventou um título, na reunião, que todo mundo achou bem engraçado. Engraçado, porque você ainda é tão chocantemente jovem e novo no mundo que às vezes a gente até se pergunta se você ainda usa fralda.

Só de noite, mas já não preciso usar durante o dia.

Então o sr. Calça Mijada anda agora por aí de cueca limpa.

Pelo menos na maior parte do tempo. Mas o que foi que a Anne sugeriu?

Obras reunidas.

Ah. Sim, é bem engraçado, de fato, mas também... qual é a palavra que estou procurando?... também soa um pouco funéreo. Como se eu estivesse embalsamado e prestes a partir numa viagem só de ida rumo ao pretérito perfeito do indicativo. Acho que eu prefiro algo um pouco mais esperançoso.

O livro é seu. É você que tem de decidir.

Que tal Prolusões?

Como naquelas primeiras obras de Milton?

Isso mesmo. “Composição literária de natureza preliminar ou prepa­ra­tória.”

Nós dois sabemos o que a palavra significa, mas será que mais alguém sabe?

Se não sabem, podem olhar no dicionário.

Ron tirou os óculos, limpou as lentes com um lenço e depois colocou de novo na cara. Após uma breve pausa, deu de ombros e disse: Estou contigo, Archie. Que eles procurem a palavra no dicionário.

Ferguson voltou para a festa se sentindo atordoado e sem peso, como se sua cabeça já não estivesse presa ao corpo. Quando tentou contar para Celia a boa-nova, a zoeira das vozes rodando à sua volta era tão alta que ela não conseguiu escutar o que ele estava dizendo. Deixe para lá, disse Ferguson, apertou sua mão com força e beijou seu pescoço, eu conto mais tarde. Então contemplou a turba de gente vertical reunida na sala e viu Howard e Amy ainda conversando, agora já bem perto um do outro, encostados um no outro e completamente absorvidos pela conversa, e, quando observou a maneira como sua meia-irmã e seu ex-colega de quarto olhavam um para o outro, bateu a ideia de que os dois podiam estar virando uma coisa só, que com Mona e Luther fora de cena, e sem dúvida para sempre, em ambos os casos, fazia todo sentido que Howard e Amy explorassem as possibilidades, e como seria curioso se Howard terminasse se inserindo nos clãs e linhagens superpostos daquela tribo emaranhada e misturada para se tornar um membro honorário da trupe de vaudeville itinerante dos Schneiderman-Adler-Ferguson-Marx, o que converteria seu amigo num meio-irmão extraoficial, e que honra seria, disse Ferguson para si mesmo, dar a Howard as boas-vindas naquele círculo fechado e lhe oferecer conselhos sobre como se abaixar quando Amy começasse a jogar biscoitos recheados Necco na sua cabeça, a extraordinária Amy Schneiderman, a garota que Ferguson havia desejado com tanta sofreguidão que ainda doía pensar no que poderia ter acontecido, mas nunca aconteceu.

Ele tinha dinheiro o bastante para se sustentar por um ano e, nos primeiros cinco meses daquele ano, Ferguson conseguiu se virar numa boa, seguindo seu plano à risca. Agora, só quatro coisas tinham importância para ele: escrever seu livro, amar Celia, amar os amigos e ir ao Brooklyn College e voltar para casa. Não que Ferguson tivesse parado de prestar atenção no mundo, mas o mundo não estava mais simplesmente se desfazendo em pedaços, o mundo tinha pegado fogo e a pergunta era: O que fazer, ou não fazer, quando o mundo pega fogo e você não tem o equipamento para apagar as chamas, quando o incêndio está tanto dentro de você quanto à sua volta e quando, a despeito do que você faça ou deixe de fazer, suas ações não servem para modificar nada? É melhor se aferrar a seu plano e escrever o livro. Foi a única resposta que Ferguson conseguiu imaginar. Escrever o livro, substituindo o incêndio real por um incêndio imaginário, e torcer para que o esforço acabasse dando em alguma coisa que fosse mais do que nada. Quanto à ofensiva do Tet no Vietnã do Sul, quanto à desistência de Lyndon Johnson de concorrer à presidência, quanto ao assassinato de Martin Luther King: observar tudo isso com o maior cuidado possível, assimilar tudo o mais fundo possível, porém nada mais além disso. Ele não ia combater nas barricadas, mas ia aplaudir os que combatessem, e depois voltaria para seu quarto para escrever seu livro.

Entendia como aquela atitude era questionável. A arrogância, o egoísmo que havia ali, a arte acima de tudo era um ponto falho em seu pensamento, mas se ele não se aferrasse à sua ideia (que provavelmente era menos uma ideia do que um reflexo instintivo), iria render-se a um contra-argumento que postulava um mundo em que livros não eram mais necessários, e que momento poderia ser mais importante para a escrita de livros do que um ano em que o mundo estava em chamas — e você estava em chamas junto com ele?

Aí veio a primeira de duas grandes pancadas que desabaram em cima de Ferguson naquela primavera.

Às nove horas da noite no dia 6 de abril, dois dias depois do assassinato de Martin Luther King, quando chamas de verdade ardiam em metade das cidades dos Estados Unidos, o telefone tocou no apartamento de Ferguson na rua 89 Leste. Uma pessoa chamada Allen Blumenthal queria falar com Archie Ferguson, e por acaso não seria o próprio Ferguson que estava agora ao telefone? Sou eu mesmo, respondeu, enquanto tentava lembrar onde tinha ouvido o nome Allen Blumenthal, que parecia ressoar uma campainha remota em algum canto da memória... Blumenthal... Blumenthal... e aí estourou, afinal, o relâmpago do reconhecimento: Allen Blumenthal, o filho de Ethel Blumenthal, a mulher com quem seu pai estava casado havia três anos, o meio-irmão desconhecido de Ferguson, dezesseis anos de idade na época do casamento e, portanto, dezenove anos agora, só dois anos mais jovem do que Ferguson — a idade de Celia.

Você sabe quem sou, não sabe?, perguntou Blumenthal.

Se é o Allen Blumenthal que eu estou achando que é, disse Ferguson, então você é o meu meio-irmão. (Uma pausa para que a magnitude da palavra se fizesse sentir.) Alô, meio-irmão.

Blumenthal não riu da piadinha leve mas amistosa de Ferguson, nem perdeu tempo nenhum, para entrar logo no assunto. Às sete horas daquela manhã, quando estava jogando uma partida de tênis de aquecimento numa quadra ao ar livre no South Mountain Tennis Center com seu amigo de infância Sam Brownstein, o pai de Ferguson tinha sofrido um colapso e morrido de ataque do coração. O enterro ia ser dali a dois dias no Templo B’nai Abraham, em Newark, e Blumenthal estava ligando em nome da mãe para convidar Ferguson para assistir à cerimônia fúnebre, que seria presidida pelo rabino Prinz, e depois acompanhar a família até o cemitério em Woodbridge, para o enterro, depois do que (se Ferguson quisesse) poderia se unir a eles na casa em Maplewood. O que Blumenthal ia dizer para a mãe? Aceitava o convite ou não?

Sim, eu vou, disse Ferguson. É claro, estarei lá.

O Stanley era um cara maravilhoso, disse o meio-irmão desconhecido, e sua voz começou a vacilar, em outro registro. Não consigo acreditar que isso tenha acontecido.

Ferguson ouviu o ar trepidar na garganta de Blumenthal e, de repente, o rapaz estava soluçando...

No entanto, não havia lágrima nenhuma em Ferguson. Por muito tempo, depois de ter desligado o telefone, ele não conseguiu sentir nada senão um peso imenso em cima da cabeça, uma pedra de dez toneladas que o imobilizava até as canelas e a sola dos pés, e então, pouco a pouco, o peso se voltou para dentro e foi suplantado pelo horror, o horror que rastejava pelo seu corpo e zunia pelas veias e, depois do horror, uma invasão de trevas, trevas dentro dele e em volta dele, e a voz dentro da cabeça, que dizia que o mundo não era mais real.

Cinquenta e quatro anos. E não viu nem sinal dele desde aquele grotesco comercial de tevê, dezoito meses antes. Os preços nunca foram mais baixos, o moral nunca foi mais alto. Imagine: cair morto aos cinquenta e quatro anos.

Em tantos e tantos anos de brigas e silêncios, nenhuma vez Ferguson chegou a desejar que algo assim acontecesse. Seu pai, sempre atlético e em forma, que não fumava e não bebia, deveria viver até uma idade avançada e, de um jeito ou de outro, em algum ponto das décadas vindouras, ele e Ferguson deveriam encontrar um modo de purgar o rancor que crescera entre ambos, mas tal hipótese se baseava na certeza de que haveria muitos anos a mais à frente dele, e agora não havia mais nenhum ano sequer, nem mesmo um dia ou uma hora ou a mais ínfima fração de segundo.

Três anos de silêncio ininterrupto. Agora, aquilo era a pior parte, aqueles três anos e nenhuma chance de desfazer o silêncio, nenhuma despedida no leito de morte, nenhuma doença premonitória que preparasse Ferguson para o golpe, e como era estranho que, desde o momento em que havia assinado o contrato de seu livro, Ferguson andasse pensando cada vez mais no pai (por causa do dinheiro, desconfiava ele, prova de que existiam no mundo pessoas dispostas a lhe dar dinheiro em troca do trabalho vão de escrever histórias de mentirinha), e, havia mais ou menos um mês, Ferguson vinha pensando na possibilidade de enviar para o pai um exemplar de Prolusões, quando o livro fosse publicado, a fim de mostrar que ele estava conseguindo se virar, ganhar a vida, nos seus próprios termos, e também (talvez) como um gesto largo de abertura que podia levar a uma futura reconciliação, enquanto ele se perguntava se o pai iria responder ou não, se o pai iria jogar o livro no lixo ou iria sentar e escrever uma carta para ele, e, caso o pai escrevesse mesmo, Ferguson mandaria uma carta em resposta e combinaria um encontro, em qualquer lugar, para acertar aquela situação de uma vez por todas, honestos e francos um com o outro pela primeira vez, sem dúvida com gritos e palavrões na maior parte do tempo da conversa, e, toda vez que Ferguson visualizava aquela cena em pensamento, geralmente acabava numa sangrenta troca de socos, os dois esmurrando um ao outro, até ficarem cansados demais para manterem os braços erguidos. Também era possível que ele acabasse não mandando o livro para o pai, mas pelo menos pensava em fazer aquilo e, sem dúvida, já era bastante coisa, sem dúvida, era um sinal de esperança, pois mesmo uns socos já seriam algo melhor do que o distanciamento vazio dos últimos três anos.

Ir à sinagoga. Ir ao cemitério. Ir à casa em Maplewood. A nulidade e a futilidade de tudo: encontrar Ethel e seus filhos pela primeira vez e a descoberta de que eram, todos eles, pessoas reais, com braços, pernas, rostos e mãos, a viúva inconsolável fazendo o que podia para se manter de pé durante aquela provação, não a pessoa fria da fotografia do casamento, no Star-Ledger, mas uma mulher pensativa, despretensiosa, que tinha se apaixonado pelo pai de Ferguson e se casara com ele, quase com toda certeza uma esposa paciente e dedicada, talvez até, em certo sentido, uma esposa melhor para seu pai do que a independente e mutável Rose, e depois de receber, da mãe deles, um beijo na bochecha, apertar as mãos de Allen e de Stephanie, que sem dúvida amaram Stanley mais do que seu filho biológico, o Allen que estava terminando seu primeiro ano na Universidade Rutgers e pretendia se formar em economia, o que teria agradado seu padrasto, um rapaz sensato, com a cabeça no mundo real, diferente do frustrante filho real, que vivia no mundo da lua na maior parte do tempo, e, além dos membros da segunda família de seu pai, Ferguson também se viu com membros de sua primeira família, tias e tios da Califórnia, Joan e Millie, Arnold e Lew, que Ferguson não via desde os primeiros dias de sua infância, e o que mais o impressionou naqueles parentes sumidos havia tanto tempo foi o curioso fato de que, embora os irmãos não fossem tremendamente parecidos um com o outro, cada um deles, à sua maneira, tinha uma forte semelhança com o pai.

Por alguma razão, Ferguson ficou naquela casa por mais tempo do que deveria, o velho Castelo do Silêncio, onde ele fora mantido prisioneiro durante sete anos e havia escrito o conto sobre os sapatos, Ferguson quase todo o tempo sozinho, de pé, num canto da sala, sem falar muito com os numerosos estranhos que estavam ali, sem querer estar ali e sem disposição de ir embora, aceitando os pêsames de vários homens e mulheres, depois de informados de que ele era o filho de Stanley, agradecendo com um movimento da cabeça, apertando as mãos, porém ainda atordoado demais para fazer qualquer coisa além de concordar com eles quando diziam estar muito chocados e perplexos com a repentina e chocante morte de seu pai. As tias e os tios saíram cedo, o choroso e arrasado Sam Brownstein e sua esposa, Peggy, rumaram para a porta, mas mesmo depois que a maior parte dos demais convidados já havia se retirado, em fila, no fim da tarde, Ferguson ainda não estava pronto para ligar para Dan e pedir que viesse apanhá-lo de carro (seu plano era passar a noite na casa de Woodhall Crescent), pois agora ele entendia a razão pela qual tinha ficado tanto tempo ali, ou seja, para ter uma chance de conversar a sós com Ethel, e, quando ela se aproximou de Ferguson alguns minutos depois e perguntou se podiam ir juntos a algum lugar e conversar a sós, ele sentiu-se reconfortado ao saber que ela estava pensando a mesma coisa.

Foi uma conversa triste, uma das conversas mais tristes na história de sua vida até então, sentar diante de sua madrasta na salinha de tevê do porão recém-reformado, enquanto os dois compartilhavam o que sabiam do enigma que tinha sido Stanley Ferguson, um homem que Ethel admitia ter sido quase inalcançável para ela, e que pena Ferguson sentiu daquela mulher enquanto olhava suas lágrimas convulsivas, e se ela se recuperava por um tempo era para, logo em seguida, desmoronar outra vez, e que choque, ela não cansava de repetir, que choque ver um homem de cinquenta e quatro anos dar de cara com a morte, como se fosse um muro de tijolos que se ergue na sua frente, o segundo marido que ela enterrava em nove anos, Ethel Blumberg, Ethel Blumenthal, Ethel Ferguson, professora da sexta série em escolas públicas de Livingston por duas décadas, mãe de Allen e Stephanie, e sim, disse ela, fazia todo sentido eles adorarem Stanley, pois Stanley tinha sido extraordinariamente bom para eles, pois depois de estudar muito o objeto Stanley Ferguson, ela chegara à conclusão de que ele era generoso e bom com estranhos, mas fechado e impenetrável com as pessoas de quem deveria ser mais próximo, a esposa e os filhos, nesse caso, seu filho único, Archie, pois Allen e Stephanie não passavam de distantes forasteiros para ele, duas crianças equivalentes ao filho e à filha de um primo em terceiro grau ou do homem que lavava seu carro, o que tornava fácil para ele ser bom e generoso com os dois, mas e quanto a você, Archie, perguntou Ethel, por que tanto ressentimento se acumulou entre vocês dois ao longo dos anos, tanta amargura que Stanley não admitia que eu conhecesse você e não quis que você viesse ao casamento, muito embora não parasse de dizer que não tinha nada contra você e estivesse — para usar as palavras deles — disposto a deixar aquele assunto morrer.

Ferguson queria explicar para ela, porém sabia que ia ser difícil mergulhar nos milhares de detalhes e nuances da longa luta ao crepúsculo que havia tomado a melhor parte de sua vida, portanto acabou resumindo a questão toda em uma afirmação simples e abrangente:

Eu estava esperando que ele entrasse em contato comigo e ele estava esperando que eu entrasse em contato com ele, e, antes que um dos dois se dispusesse a dar o primeiro passo, o prazo se esgotou.

Dois tolos teimosos, disse Ethel.

Isso mesmo. Dois tolos presos na própria teimosia.

Não podemos mudar o que aconteceu, Archie. Agora está acabado, não tem jeito, e só posso dizer que espero que você não fique se atormentando com isso mais do que já se atormentou. Seu pai era um homem esquisito, mas não era cruel nem vingativo, e, muito embora tenha dificultado as coisas para você, eu acho que ele estava do seu lado.

Como pode saber disso?

Porque ele não cortou você do seu testamento. Na minha opinião, deveria ter deixado uma quantia bem maior, mas, pelo que seu pai me contou, você não tem nenhum interesse em ser coproprietário de uma rede de sete lojas de aparelhos domésticos. É verdade?

Não tenho mesmo nenhum interesse.

Ainda estou convencida de que ele deveria ter deixado mais para você, porém cem mil dólares não é uma quantia tão má assim, é?

Ferguson não sabia o que dizer, por isso continuou sem dizer nada, sentado em sua cadeira, e respondeu à pergunta de Ethel com um meneio de cabeça, para dizer que não, cem mil dólares não era uma quantia tão má assim, muito embora ele não tivesse certeza naquela altura de que queria aceitar ou não, e, agora que já não havia mais nada a ser dito, Ethel e Ferguson voltaram para o andar de cima, onde ele telefonou para o padrasto e disse que estava pronto para ir. Quinze minutos depois, quando o carro de Dan apareceu na frente da casa, Ferguson apertou a mão de Allen e de Stephanie e se despediu de ambos, e, enquanto Ethel o acompanhava até a porta, disse para o filho do marido morto que, a qualquer dia da semana seguinte, ou da outra, ele devia esperar um telefonema de Kaminsky, o advogado, para tratar de sua herança, e então Ferguson e Ethel se abraçaram, um fervoroso abraço de despedida, solidariedade e afeição, prometeram manter contato dali em diante, apesar de ambos saberem que nunca fariam aquilo.

No carro, Ferguson acendeu seu décimo quarto cigarro Camel do dia, abriu uma fresta da janela e se virou para Dan. Como vai minha mãe? Foi a primeira pergunta que fez enquanto seguiam rumo a Woodhall Crescent, a pergunta peculiar, mas necessária, sobre o estado mental da mãe depois de saber que o ex-marido, com quem ficara casada por dezoito anos, e o pai de seu filho, abrupta e inesperadamente, havia deixado este mundo, pois apesar de seu divórcio raivoso e do silêncio ininterrupto que existiu entre ambos desde o divórcio, mesmo assim a notícia devia ter caído como um raio sobre ela.

A palavra raio diz tudo, respondeu Dan. O que explica as lágrimas, eu acho, e a perplexidade e a dor. Mas isso foi dias atrás, e agora ela está mais ou menos apaziguada com o fato. Você sabe como é, Archie. Quando a pessoa morre, a gente começa a ver as coisas a respeito dessa pessoa de forma diferente, por mais que tenha havido problemas no passado.

Então você está dizendo que ela está bem.

Não se preocupe. Antes de eu sair, ela me pediu para perguntar a você se sabia alguma coisa sobre o testamento de seu pai. O cérebro dela está funcionando de novo, o que sugere que as lágrimas secaram. (Por um instante, desviou os olhos da estrada e se virou para Ferguson.) Ela anda muito mais preocupada com você do que consigo mesma. Como eu também, por falar nisso.

Em vez de falar sobre o desalento e a confusão em seu próprio cérebro, Ferguson revelou para Dan a notícia dos cem mil dólares. Supôs que a cifra de seis dígitos não iria impressioná-lo, mas o normalmente imperturbável e despreocupado Dan Schneiderman ficou nitidamente surpreso. Para um homem com a fortuna de Stanley Ferguson, cem mil dólares era uma ninharia e qualquer quantia abaixo daquilo seria uma ofensa.

Mesmo assim, retrucou Ferguson, é um monte de dinheiro.

Sim, concordou Dan, uma verdadeira montanha.

Em seguida, Ferguson explicou que ainda não tinha resolvido o que queria fazer, se ia aceitar o dinheiro para si ou se desfazer dele, e, enquanto pensava no assunto, queria que Dan e a mãe cuidassem do dinheiro para ele, e, se por acaso quisessem usar uma parte para si, enquanto ele pensava melhor no que fazer, poderiam ficar à vontade para fazer o que quisessem, com sua aprovação.

Não seja burro, disse Dan. O dinheiro é seu, Archie. Ponha na sua conta e gaste com você, do jeito que quiser. Agora sua guerra contra seu pai acabou, você não precisa continuar lutando depois que ele morreu.

Talvez tenha razão. Mas eu tenho de tomar essa decisão por mim mesmo e ainda não decidi. Enquanto isso, o dinheiro vai ficar com você e minha mãe, por segurança.

Tudo bem, deixe conosco. Quando recebermos, a primeira coisa que vou fazer é preencher um cheque para você, no valor de cinco mil dólares.

Por que cinco mil?

Porque é o que você precisa para passar o verão e o último ano da faculdade. Eram quatro mil, mas agora vão ser cinco. Você já ouviu falar da inflação, não ouviu? A guerra não está matando só as pessoas, está começando a matar a economia também.

Mas se eu decidir que não quero ficar com o dinheiro, já não vão ser mais cem mil dólares, vão ser noventa e cinco mil.

Não depois de um ano. Hoje em dia, os juros andam aí pelos seis por cento. Quando você se formar na faculdade, os noventa e cinco mil já vão ser cem mil de novo. É o que chamamos de dinheiro invisível.

Eu nunca soube que você era tão bom negociador.

E não sou mesmo. Você é que é o rei dos negócios, Archie, mas se eu não fizer alguns negócios também por minha conta, não vou conseguir acompanhar você.

A segunda pancada daquela primavera foi perder Celia.

Primeiro motivo: Na hora em que a tia Mildred retirou Ferguson da casa em chamas e arranjou um novo abrigo para ele, no Brooklyn College, fazia um ano que ele e Celia tinham se abraçado e arriscado o primeiro beijo. Daquele beijo, seguiu-se o amor, um amor grande, que agora ofuscava todos os amores do passado, mas durante aquele ano Ferguson tinha compreendido também como seria complicado amar Celia. Quando os dois estavam sozinhos, juntos, Ferguson sentia que geralmente estavam em harmonia, sentia que geralmente eram capazes de superar as diferenças que às vezes irrompiam entre ambos, tirando a roupa e indo para a cama, e que o elo de cópulas copiosas e luxuriantes os mantinha unidos, mesmo quando estavam em desacordo acerca de como viver ou para que estavam vivendo. Tanto Ferguson quanto Celia tinham opiniões contundentes sobre as questões que mais diziam respeito a cada um deles, porém tais questões, muitas vezes, eram diferentes, pois Ferguson estava se preparando para um futuro na arte, ao passo que Celia estava se preparando para um futuro na ciência e, embora ambos afirmassem admirar o que o outro fazia (Ferguson não tinha dúvida de que Celia era entusiasmada com o trabalho dele, Celia não tinha dúvida de que Ferguson estava assombrado com seu imenso talento científico), eles não podiam ser tudo para ambos o tempo todo.

Refutação: Uma distância entre os dois, mas não tão larga que pudesse frustrar seus esforços para construir uma ponte. Celia lia livros, escutava música e saía alegremente para ver filmes e peças de teatro com Ferguson, e o próprio Ferguson estava estudando biologia naquele ano, pois precisava fazer mais um curso de ciências para cumprir sua grade curricular, mas também fazia aquele curso de biologia por causa dela, a fim de dominar pelo menos os rudimentos da linguagem que Celia usava, e, como Ferguson lhe explicou, para mergulhar mais fundo em seu livro, que ambos compreendiam que só poderia ser escrito se adentrassem fundo no reino do dr. Noyes, formado por corpos físicos, os tecidos e os ossos dos corpos doentes e sadios que seu homem tratava havia mais de vinte anos como médico. Além de ajudar Ferguson em seu curso de biologia, Celia também se incumbia de conseguir para ele entrevistas com estudantes de medicina de Barnard e Columbia, com jovens médicos residentes nos hospitais St. Luke, Lenox Hill e Columbia Presbyterian, e arranjou até uma inestimável reunião de quatro horas com seu próprio médico de família, Gordon Edelman, de New Rochelle, que atendia Celia desde a infância, um homem maciço, de peito redondo, que calmamente guiou Ferguson pela história da rotina cotidiana de seu ofício, os dramas que ele havia enfrentado ao longo dos anos, e chegou até a falar um pouco sobre a morte prematura do irmão de Celia, explicou que Artie não apresentava sintomas de um aneurisma e, portanto, não foi submetido ao perigoso procedimento de uma angiografia, o único método para examinar um cérebro vivo, em 1961, em contraste com o método mais seguro de fazer em pedaços um cérebro morto durante uma autópsia. Não apresentava. Em outras palavras, não havia nada que alguém pudesse fazer, e aí veio o dia em que o vaso se rompeu e as palavras do médico se embaralharam em três palavras diferentes, que comportavam um sentido completamente distinto: Não está mais presente.

Por causa de seu romance, Ferguson também estava fazendo a viagem desoladora, mas necessária, pela literatura do suicídio e, a fim de se manter em dia com ele, Celia também leu alguns daqueles livros, começando com ensaios e tratados de psicologia, sociologia e filosofia, de Hume, Schopen­hauer, Durkheim e Menninger, depois numerosos relatos do passado remoto e do presente próximo, Empédocles e seu mítico salto para as chamas do vulcão do Monte Etna, Sócrates (cicuta), Marco Antônio (espada), o suicídio em massa dos judeus rebeldes em Massada, a descrição de Plutarco do suicídio de Catão, em Vidas paralelas (desventrando as próprias entranhas na frente do filho, do médico e dos servos), o desafortunado gênio menino Thomas Chatterton (arsênico), a poeta russa Marina Tsvetáieva (enforcamento), Geor­ge Eastman (um tiro no coração), Herman Göring (cianeto) e, o caso mais pertinente de todos, as frases de abertura de O mito de Sísifo: “Só existe um problema filosófico verdadeiramente sério, o suicídio. Julgar se a vida vale a pena ou não redunda em responder à pergunta fundamental da filosofia”.

F: O que você acha, Celia? Camus está certo ou errado?

C: Provavelmente está certo. Mas apesar disso...

F: Concordo com você. Provavelmente está certo, mas não necessa­ria­mente.

Não tudo ao mesmo tempo, porém mais coisas do que o necessário para uma boa experiência, talvez uma experiência esplêndida e duradoura, só que eles tinham apenas dezoito e vinte anos quando o ano letivo começou, e uma das coisas boas que os dois compartilhavam era a convicção de que o trabalho vinha antes do prazer e que nenhum dos dois tinha a menor aptidão para a vida doméstica. Embora o apartamento de Ferguson na rua 89 Leste fosse grande o bastante para os dois, eles jamais pensaram em morar juntos, não porque fossem muito jovens para os rigores da coabitação, mas porque eram essencialmente solitários e precisavam de longos períodos sozinhos para executarem seus trabalhos. Para Celia, aquilo significava seus estudos em Barnard, onde ela brilhava não apenas na ciência e na matemática, mas também em todas as matérias, o que a colocava a fundo no terreno do trabalho pesado, uma trabalheira obsessiva, vinte e quatro horas por dia, ao lado de quatro outras garotas incansáveis de Barnard, em seu segundo ano da faculdade, com quem morava num pardieiro grande e lúgubre na rua 111 Oeste, um apartamento que ela chamava, em tom de brincadeira, de Claustro da Perpétua Quietude. Para Ferguson, as exigências do trabalho não eram menos rigorosas, a dupla jornada de trabalho em que ele tentava fazer o melhor possível no Brooklyn College e, ao mesmo tempo, lutava para escrever seu romance, que por causa disso avançava devagar, no entanto outra coisa boa na obsessiva Celia era a maneira como ela estava profundamente afinada com as obsessões de Ferguson e, várias vezes naquele ano, às sextas, sábados e domingos em que faziam planos de se encontrar e Ferguson se via repentinamente enrolado com seu livro, Celia não ficava ofendida quando ele ligava na última hora para cancelar o encontro, dizia para ele meter a cara e escrever com o coração e para não se preocupar. Esse era o xis da questão, ele se deu conta, o espírito de companheirismo que punha Celia à parte de todo mundo que ele conhecia, pois nunca houve nenhuma dúvida de que ela ficava decepcionada com aqueles telefonemas de última hora, mas tinha a firmeza (a força de caráter) para fingir que não ficava.

Segundo motivo: Um encontro quase sempre harmonioso de corpos e mentes quando os dois estavam sozinhos, mas quando punham os pés no mundo exterior e se misturavam com outras pessoas, a vida se tornava problemática. Além das quatro garotas que dividiam com ela o apartamento, Celia tinha poucos amigos mais próximos, talvez nenhum e, portanto, o grosso da socialização intermitente dos dois consistia em planar para dentro e para fora do mundo de Ferguson, que no geral era um mundo alheio à Celia, um mundo que ela tentava compreender, mas não conseguia. Não tinha nenhuma dificuldade com a geração mais velha e se sentia tratada com afeição pela mãe e pelo padrasto de Ferguson, divertiu-se nos dois jantares que ela e Ferguson tiveram com a tia Mildred e o tio Don, mas Noah e Howard a deixaram com uma má impressão. Noah, porque ela achou insuportáveis os seus gracejos sarcásticos incessantes, e Howard, porque Celia se sentia magoada com sua educada indiferença em relação a ela. Celia se dava bem com Amy e com a esposa de Jim, Nancy, mas o círculo sempre crescente de amigos de Ferguson, formado por poetas e pintores, lhe causava tédio e, na mesma medida, aversão, e Ferguson ficava triste ao ver como ela parecia infeliz sempre que passavam a noite com Billy e Joanna, os quais agora eram ligados a ele como parentes consanguíneos, uma tristeza que se transformava em culpa e também em irritação quando ele via Celia aguentar calada mais uma de suas compridas e tortuosas conversas sobre poetas e escritores, com Ron, Lewis ou Anne, e ela entendia menos ainda por que seu nobre e profundo Archie achava tão divertido ir ver os filmes vagabundos de Joan Crawford, na companhia de Bo Jainard e seu amigo Jack Ellerby, aqueles rapazes magricelas e malucos que às vezes se beijavam no escuro do balcão do cinema e que nunca paravam de rir, todos eles riam demais, dizia Celia, não havia ninguém, nenhuma pessoa sequer em toda aquela turba que levasse alguma coisa a sério, eles eram uns desleixados, frouxos, bobos, nervosinhos, sem eira nem beira, sem nenhum objetivo na existência a não ser perambular pela periferia da vida e fazer uma arte que ninguém queria ver nem comprar, e sim, Ferguson admitia, talvez fosse verdade, mas eles eram seus rapazes e garotas, seus parceiros párias, destemidos e sem amargura, e como nenhum deles era mesmo muito apto para este mundo, uma gargalhada de vez em quando apenas mostrava que estavam fazendo o melhor que podiam nas circunstâncias.

Refutação: No começo do ano (1968), Ferguson compreendeu que não podia mais sujeitar Celia a seus colegas de reputação duvidosa, alguns dos quais eram homossexuais ostensivos ou viciados em drogas ou em bebida, alguns eram uns desabotinados, emocionalmente perdidos, que viviam sob cuidados psiquiátricos intensos e, ainda que alguns fossem bem casados e pais de família com filhos pequenos, por mais que Ferguson tentasse encaminhá-la para dentro daquela pequena sociedade de obcecados de miolo mole, ela sempre resistia, e, em vez de continuar castigando Celia pelo pecado de querer acompanhá-lo quando ele saía em busca da companhia dos outros, Ferguson resolveu eximi-la da obrigação de ficar em presença de qualquer pessoa que não fosse de seu agrado. Sabia que era um passo na direção errada, que cortar Celia daquela parte de sua vida abriria um espaço permanente entre os dois, mas não queria correr o risco de perdê-la, e de que outro modo poderia segurá-la a não ser liberando a namorada daquelas noites infelizes com seus amigos?

Na primeira vez em que ela dormiu em sua casa depois disso, Ferguson pinçou uma coisa que ela disse e introduziu o assunto da maneira mais sutil possível. Estavam juntos na cama, deitados, partilhando um de seus cigarros Camel, depois de uma hora fartamente satisfatória embaixo e em cima dos lençóis e do edredom, jogando conversa fora, dizendo coisas sem importância ou, talvez, sem falar nada (ele não conseguia lembrar), talvez estivessem só olhando um para o outro, como costumavam fazer naquelas horas, cada um se impregnava do outro e prolongava o momento deslizando as mãos para cima e para baixo pela pele nua do outro, sem outras palavras que não as necessárias para Ferguson dizer como ela era linda, se ele de fato chegasse a falar tanto assim, porém lembrava que os olhos de Celia estavam fechados e que ela estava cantarolando baixinho para si mesma, um som minúsculo e sem melodia que parecia um ronronar, uma mulher-pantera de pernas compridas, langorosa, Celia, estirada a seu lado, sussurrando para ele numa voz gutural: Eu adoro quando você está assim, Archie, só nós dois juntos em nossa ilha. Com as ondas da cidade quebrando lá fora.

Eu também, disse Ferguson, e é por isso que estou propondo uma moratória, uma proscrição de todo contato com o mundo exterior.

Está querendo dizer que a gente deve se trancar neste quarto e nunca mais sair?

Não, a gente pode sair. Mas só nós dois. Chega de andar para lá e para cá com outras pessoas.

Por mim, tudo bem. O que me importam as outras pessoas?

Só tem um problema. (Uma pausa para uma baforada e pensar em como dizer aquilo sem magoar Celia.) Vamos ter de começar a nos ver um pouquinho menos.

E por que a gente ia querer fazer isso?

Porque as pessoas que para você não importam não são pessoas que, para mim, não importam.

E de que pessoas você está falando?

Aquelas que eu obriguei você a engolir. Billy Best, Howard Small, Noah Marx, Bo Jainard — todo o bando dos inaceitáveis.

Não sou contra eles, Archie.

Talvez não, mas também não é a favor, e não vejo por que você tenha de suportar a companhia deles.

Está dizendo isso por mim ou por você?

Por nós dois. A questão é que me mata ver você emburrada daquele jeito.

Sei que está tentando ser gentil, mas o que você acha mesmo é que eu sou uma pateta, não é? Uma burguesinha careta e cabeça-oca.

Isso mesmo. Uma garota que só tira notas A e é convidada para voltar para Woods Hole para trabalhar no verão só pode ser uma pateta e uma cabeça-oca.

Mas eles são seus amigos. Não quero atrapalhar você.

São meus amigos, mas não há nada que obrigue que sejam também seus amigos.

É meio triste, não acha?

Na verdade, não. É só uma situação nova, só isso.

Estou me referindo ao menos tempo, ao fato de a gente se ver menos vezes.

Se a qualidade desse “menos” for maior do que a deste “mais” que temos hoje, o menos vai compensar as horas tristes que passei vendo você sofrer com aquela gente e, assim, o menos vai acabar produzindo mais e, na verdade, o menos vai ser mais.

Começaram um ritmo novo de encontros, só aos fins de semana, dois fins de tarde, duas noites e duas madrugadas por fim de semana, na sexta e no sábado, na sexta e no domingo, ou no sábado e no domingo, exceto nas raras sextas, sábados ou domingos em que Ferguson ligava no último minuto para cancelar o encontro, o que o deixava livre para se associar a um ou mais dos inaceitáveis na noite de fim de semana que não era dividida com Celia, sem mencionar as noites dos dias úteis em que Ferguson não estava sobrecarregado com as tarefas da faculdade, uma noite em cada quatro, no máximo, em que ele jantava com Billy e Joanna na casa deles, um pouco mais acima, na mesma rua, e conversava sobre escritores, política, cinema, pintores e esportes, enquanto Billy e Joanna se revezavam para brincar com Molly, a filhinha de um ano de idade, o irmão mais velho de Ferguson, o Billy, que havia acreditado em Ferguson antes de todo mundo e era seu único amigo prosador no aquário de poetas onde ele agora nadava, o único naquele meio com ouvido para prosa e capaz de entender seus argumentos sobre por que Flannery O’Connor e Grace Paley eram estilistas mais audaciosos e inventivos do que Bellow, Updike ou qualquer outro homem americano, exceto talvez Baldwin, e dessa forma Ferguson conseguia não perder contato com os Bests, com Noah, com Howard, com o trio do Tumulto e com todos os outros indispensáveis que o mantinham ancorado no mundo. Sim, era um pouco triste, como Celia tinha dito, mas depois de um mês e de outro mês daquela nova situação, Ferguson teve a sensação de que eles estavam começando a se dar melhor, respiravam com menos dificuldade, porque havia menos distrações e irritações para enfrentar, e, embora Ferguson também soubesse que ainda havia também muito a ser feito, que o pequeno problema que ele tinha resolvido não era nada em comparação com o problema grande que era manter muita coisa de si mesmo escondida de Celia, e, a menos que ele encontrasse forças para se abrir com ela e lhe contar tudo que ela precisava saber, Ferguson acabaria por destruir o futuro dos dois e terminaria sem nada.

Terceiro motivo: Era possível argumentar que todo o caso deles tinha sido construído sobre uma premissa falsa. Não que Ferguson tivesse mentido para Celia, mas ele havia insistido em esconder dela a verdade sobre a primazia da morte de Artie na fórmula “amor é igual a justiça divina” e, muito embora ele achasse que tinha, em larga medida, superado aquele problema com a pequena partida de beisebol entre os dois no Riverside Park na primavera anterior, que se desdobrou em partidas de um contra um, entre ele e Celia, durante todo o verão, em Woods Hole e também na fazenda em Vermont, sobretudo durante as semanas lúgubres anteriores ao seu julgamento, quando aquelas partidas risonhas e festivas, momentaneamente, o afastavam dos pensamentos sobre o dia em que teria de se apresentar perante o tribunal, ele ainda não tinha dito nenhuma palavra para Celia a respeito de nada disso. A louca obsessão de seis anos tinha chegado ao fim, mas se ele agora estava curado ou, pelo menos, com a saúde parcialmente recuperada, por que não tinha tomado coragem para contar a ela acerca dos sacrifícios que tinha imposto a si mesmo como tributo pela morte de seu gêmeo A. F.? Era porque estava apavorado. Era porque temia que Celia fosse achar que ele era louco e não fosse querer mais nada com ele.

Pior ainda, havia sua incapacidade de contar para Celia acerca de sua condição, revelar o segredo de seu nascimento anormal como fruto do acasalamento de um burro e uma égua, Ferguson, a mula falante, uma criatura incapaz de procriar e, portanto, decaída na categoria do fracassado genético, e aquela verdade era tão esmagadora para Ferguson, tão danosa para as certezas fálicas de seu ego masculino, que ele jamais conseguia tomar coragem para dividir aquilo com Celia, o que significava que deixava que, toda vez que iam juntos para a cama, ela continuasse a tomar as inúteis precauções do controle de natalidade, nenhuma vez Ferguson lhe disse que não havia nenhuma necessidade de introduzir o diafragma, porque fazer amor com ele representava a garantia de que ela nunca teria de se preocupar com o risco de uma gravidez.

Um erro imperdoável. Uma covardia em escala tão grande que transformava Ferguson exatamente naquilo que ele tinha jurado nunca se tornar: desonesto.

Refutação: Não havia nenhuma refutação. Na mente de Ferguson, no entanto, a possibilidade de que o diagnóstico do dr. Breuler estivesse errado continuava a lhe dar esperança. Até consultar outro médico, e a menos que fizesse isso, o imperdoável continuaria perdoável, porque existia sempre a pequena possibilidade de que o controle da natalidade fosse mesmo necessário, e ele não queria que Celia soubesse da verdade vergonhosa de sua condição até que tivesse cem por cento de certeza. Tudo que tinha a fazer era consultar outro médico e se submeter de novo ao exame — só que Ferguson tinha medo demais de fazer aquilo, medo demais de descobrir, e por isso continuava adiando.

Conclusão: Duas semanas e meia depois da morte do pai, quando o incêndio do momento levou suas chamas até o campus de Columbia, Celia pôs uma braçadeira verde e ajudou na causa, fazendo sanduíches para os estudantes que estavam dentro dos prédios, uma voluntária entre dezenas de outros, na Brigada do Lanche do Ferris Booth Hall. Não pôs a braçadeira vermelha dos ativistas, mas sim a verde, a dos simpatizantes e apoiadores, uma posição sensata para alguém que não participava da vida política do campus e dedicava todas as energias a estudar para seus cursos, porém Celia tinha, sim, opiniões políticas e, embora não fosse talhada para a linha de frente das ações, montar barricadas e ocupar prédios da universidade, aquelas opiniões eram fortes o bastante para situá-la ao lado dos estudantes e contra a direção, a despeito das reservas que ela pudesse ter em relação à tática dos estudantes e por mais que ela se contraísse de medo ao ouvir cem ou quinhentas vozes gritando Encosta na parede, filho da puta! Na opinião de Ferguson, Celia estava agindo de acordo com os princípios fundamentais da Declaração de Direitos de Federman, o mesmo impulso que a levara a colocar a nota de um dólar na frente do velho no restaurante automático quando tinha dezesseis anos, e, agora que tinha dezenove, nada havia mudado. Celia ligou para o apartamento dele na noite do dia 23 e, enquanto Ferguson escutava Celia contar o que tinha acontecido em Columbia naquele dia, o comício ao meio-dia, no relógio de sol, no meio do campus, o ataque ao canteiro de obras do ginásio em construção em Morningside Park, depois a tomada do Hamilton Hall por uma coalizão formada pela SDS e pela SAS, estudantes brancos e negros agindo em conjunto para fechar as portas da universidade, Ferguson começou a rir — em parte, por surpresa, imaginou ele, mas, sobretudo, de felicidade. Quando desligou o telefone, entendeu que aquela foi a primeira boa risada que tinha dado desde a noite em que havia atendido o mesmo telefone e falado com Allen Blumenthal.

À uma hora da tarde de sexta-feira (dia 26), Ferguson resolveu suspender o trabalho em seu romance pelo resto do dia e atravessar a cidade a fim de verificar o que estava acontecendo em Columbia. Era tarde demais para telefonar para Celia, que certamente estava com seus colegas sanduicheiros no refeitório do Ferris Booth Hall, mas não ia ser difícil encontrá-la e, quando conseguisse abrir caminho entre as travessas de presunto, mortadela e fatias de pão de fôrma industrializado, eles poderiam dar uma volta pelo campus juntos e ver o que estava acontecendo. Enquanto o ônibus circular subia pela Madison Avenue, Ferguson entabulou a mesma conversa que parecia ter consigo mesmo toda vez que ia para Morningside Heights: E se ele tivesse escolhido ir para a Universidade Columbia em vez de Princeton? E se tivesse se matriculado em Columbia, de que forma sua vida teria sido diferente da vida que levava agora? Para começar, não haveria o Brooklyn College. Tampouco haveria a rua 89 Leste. Não entraria de surpresa no meio da filmagem pornô na casa de seu avô. Não haveria os dez mil dólares nem Nagle nem Howard Small — o que significaria nenhuma briga de bar em Vermont, nenhum julgamento, nenhum resgate milagroso pela tia Mildred, nenhuma partida de tênis imaginária e nenhum romance entre Howard e Amy, que acabou virando um romance tórrido e que não dava nenhum sinal de que fosse arrefecer tão cedo. No entanto, haveria os mesmos três livros na editora Gizmo, se bem que o segundo e o terceiro teriam sido um pouco diferentes. E os mesmos papéis representados por Mary Donohue, Evie Monroe e Celia. Porém, se tivesse ido para Columbia, será que não estaria dentro de um daqueles prédios ocupados junto com os estudantes que protestavam agora, ou sua vida o teria colocado no mesmo ônibus circular que viajava pela orla norte do Central Park a caminho de Morningside Heights?

A situação tinha se alterado desde o dia 23. A aliança de brancos e negros tinha se desfeito, no entanto mais quatro prédios tinham sido tomados pelos estudantes e o presidente da SDS, o líder reconhecido da rebelião, por acaso era um velho amigo de Ferguson, do tempo do ensino médio, Mark Rudd. Sim, Mike Loeb também fazia parte — o ex-atormentador de Amy, portanto um ex-amigo de Ferguson —, mas, segundo o que Celia tinha ouvido dizer, Loeb era apenas mais um dos membros da SDS que participavam das reuniões no Mathematics Hall, ao passo que Rudd estava no comando, o porta-voz da SDS e o agitador-chefe, e ele e Ferguson sempre tinham se dado muito bem, assistiram juntos a muitas aulas de inglês, francês e história, saíam juntos, em programas de casais, com suas namoradas de nomes quase idênticos, Dana e Diana e, certa manhã, mataram aula juntos a fim de escapulir para Nova York, onde visitaram a Bolsa de Valores em Wall Street, para ver o capitalismo em ação, e como era adequado, e também estranhamente engraçado, que Mark, que havia ensinado Ferguson a dirigir um carro de câmbio manual na primavera do penúltimo ano de ambos no ensino médio, o que permitiu que Ferguson dirigisse o Chevy de Arnie Frazier e passasse mais um verão como trabalhador de uma firma de mudanças de objetos grandes e pesados, estivesse agora na liderança de uma revolta estudantil e tivesse seu retrato estampado no jornal todos os dias.

Aconteceu que Ferguson nem chegou à Universidade Columbia naquela tarde. O ônibus circular número 4 viajava da Zona Leste para Zona Oeste pela rua 110, conhecida alternativamente como Cathedral Parkway, nos quarteirões entre a Central Park Oeste e a Riverside Drive e, quando o ônibus chegou à esquina da Broadway com a rua 110, Ferguson saltou e começou a caminhar para o norte, rumo ao campus, na rua 116, porém, a fim de chegar a seu destino, primeiro tinha de passar pelo quarteirão onde Celia estava morando, rua 111 Oeste, entre Broadway e Amsterdam e, de modo muito curioso, quando estava passando pela rua 111 e caminhava devagar rumo à esquina seguinte, inesperadamente, avistou a própria Celia, em pessoa, Celia, de saia azul esvoaçante e blusa cor-de-rosa, mais ou menos meio quarteirão à sua frente e também caminhando para o norte, sem dúvida a caminho do refeitório do Ferris Booth Hall. O fato de Celia não estar sozinha não o perturbou, muito embora a pessoa que estava com ela não fosse uma de suas colegas de apartamento de Barnard, e sim um homem, no caso, um homem de vinte e dois anos chamado Richard Smolen, que Ferguson reconheceu como um dos estudantes de medicina com quem ele tinha conversado em outubro, quando Celia conseguiu marcar entrevistas para ajudá-lo a escrever seu romance, e, como Smolen era de New Rochelle e tinha jogado em times de beisebol e basquete com Artie, quando menino, Celia o conhecia da vida toda, e por que Ferguson sentiria o mais ínfimo ciúme ou temor ao descobrir que Celia estava caminhando pela rua ao lado de um velho amigo? Acelerou o passo a fim de alcançá-los, mas, antes de chegar a uma distância da qual pudesse gritar para chamá-los, Celia e Robert pararam no meio da calçada, se abraçaram e começaram a se beijar. Foi um beijo apaixonado, um beijo demorado, um beijo de luxúria e de puro e incontrolável desejo e, até onde Ferguson era capaz de entender, parado na calçada a menos de seis metros de onde os dois estavam se abraçando, era um beijo de amor.

Se era de amor, só se podia concluir que os dois tinham acabado de sair do apartamento de Celia, onde haviam passado sabe-se lá quantas horas rolando na cama dela, e agora que tinham vestido suas roupas outra vez e caminhavam rumo a Columbia para fazer sanduíches para os estudantes nos prédios ocupados, o rescaldo de sua embriaguez de volúpia ainda estava quei­mando com tanta força que eles não conseguiam manter as mãos afastadas um do outro, ainda continuavam famintos e querendo mais.

Ferguson deu meia-volta e começou a caminhar para o sul.

Epílogo: Ele não telefonou e ela também não telefonou, até segunda-feira — para contar a ele sobre Smolen (uma notícia velha para Ferguson a essa altura) e para pôr um ponto-final na história. Um fim de semana em silêncio, durante o qual Ferguson concluiu que a culpa do desastre era sua e que Smolen era menos a causa do que um sintoma de seus problemas e, como ele tinha sido desonesto com ela desde o início, bem que merecia levar um fora. Celia, a linda. Celia, os múltiplos delírios de tocar em Celia e dobrar seu corpo no corpo dele. Mas o sexo não era o bastante. Parecia inimaginável que Ferguson tivesse chegado a tal pensamento, mas o sexo não era o bastante, e quase tudo o mais, entre os dois, tinha sido errado. Ferguson havia desejado amar Celia, porém nunca amara outra coisa que não a ideia de amar Celia, o que não chegava a ser amor, e sim uma forma bruta e imperdoável de burrice, portanto deixe que ela vá embora com seu bonito estudante de medicina, disse Ferguson para si mesmo, deixe que caminhe ao lado de seu futuro cardiologista e atual ladrão de corações, de volta para o torvelinho de Columbia, para o incêndio que continuava a se espalhar, e havia chegado a hora de Fer­guson deixar que o torvelinho de Celia saísse de sua vida e ele partisse pa­ra a próxima parada, sem ela.

Nos meses que seguiram, mais nenhum personagem de destaque em A história de Ferguson caiu morto fulminado no meio de quadras de tênis nem em qualquer outro lugar, e nenhum outro amor foi encontrado ou perdido ou sequer especulado. Um verão vagaroso, tristonho, em companhia de seu romance, enquanto Ferguson começava a escrever a segunda e a terceira partes do livro, trancado em seu apartamento-ateliê durante a maior parte do dia, sem ninguém para ver à noite, senão Billy e Joanna, a um quarteirão de distância, e Noah, que estava na cidade trabalhando como ator em seu primeiro filme profissional, mas Noah estava ora ocupado, ora exausto, e tinha pouco tempo para Ferguson, exceto nos finais de semana. Afora eles, todo mundo tinha ido embora da cidade, ou para a casa de campo da família ou para chalés alugados no norte do estado de Nova York e na Nova Inglaterra, ou estavam percorrendo a rota de turismo de baixo custo por várias cidades e regiões rurais da Europa Ocidental. Como sempre, Howard estava na fazenda dos tios em Vermont, só que dessa vez Amy estava com ele, e os dois já andavam fazendo planos para a vida depois da faculdade, que iria começar dali a apenas um ano, e, supondo que Howard conseguisse escapar do alistamento militar, os dois pensavam em fazer alguma pós-graduação, Howard em filosofia e Amy em História dos Estados Unidos, e a opção ideal era Columbia, onde os dois poderiam morar juntos num apartamento em Morningside Heights e se tornarem cidadãos de Nova York. Vezes seguidas, Howard e Amy pediram a Ferguson que os visitasse em Vermont e, vezes seguidas, Ferguson inventou desculpas para não fazer a viagem. Para ele, Vermont era um lugar mal-assombrado, dizia, e ainda não sabia se estava mesmo pronto para voltar lá, ou então andava tão envolvido em seu romance que não dava para pensar em sair de Nova York, ou então tinha pegado um resfriado de verão e não estava em condições de viajar, mas mesmo na hora em que falava aquelas coisas (que em parte eram verdade), a maior verdade de todas era que, agora que havia perdido Celia, Amy estava de novo em seu pensamento, a eternamente perdida e amada Amy, que nunca havia desejado Ferguson e nunca iria desejar, e expor-se ao espetáculo da felicidade dela com o cunhado extraoficial de Ferguson era mais do que ele seria capaz de suportar naquele momento. Não que tivesse parado de pensar em Celia naquele verão, só que ela se infiltrava em sua cabeça com menos frequência do que ele tinha imaginado e, à medida que o primeiro mês de calor se transformava no segundo mês de calor, Ferguson começava a se sentir quase feliz por não estarem mais juntos, como se um encantamento tivesse se quebrado e ele tivesse voltado a ser ele mesmo, e não alguma visão fabricada e ilusória de si mesmo, ao passo que Artie estava com ele de novo, no calor do verão, a morte de Artie e a morte de seu pai, aquelas eram as lembranças em que Ferguson mais se detinha, sentado em seu quarto quente e apertado enquanto sangrava as palavras em seu livro, e, quando a questão da herança ficou resolvida, no fim de abril (um legado fora do padrão, como se constatou, pois se tratava dos fundos de uma apólice de seguro de vida, o que contornava a necessidade de pagar quaisquer impostos de herança), Ferguson pegou os cinco mil dólares com Dan e, agora, estava observando, com uma admiração mórbida, como, mês a mês, os noventa e cinco mil avançavam, passo a passo, até voltarem a ser os cem mil originais. Dinheiro invisível, disse Dan. Ferguson chamou aquilo de dinheiro fantasma.

Ele estava escrevendo um livro sobre a morte e, certos dias, tinha a sensação de que o livro queria matá-lo. Cada frase era uma luta, cada palavra em cada frase poderia ser outra palavra diferente, e, como todas as outras coisas que ele havia escrito nos três anos anteriores, para cada página que de fato aproveitava, Ferguson jogava fora umas quatro. Apesar dos pesares, no início do verão, tinha cento e vinte e duas páginas concluídas e metade da história já estava contada. Uma infestação de suicídios, que agora já estava chegando ao fim de seu terceiro mês, durante a qual a cidade de R. sepultou vinte e duas crianças, um número alarmante para uma cidade de província de noventa e quatro mil habitantes, e o dr. Noyes estava mergulhado no problema desde o início, trabalhava com duas dúzias de médicos, uma dúzia de psiquiatras e cerca de trinta padres e pastores para prevenir o próximo suicídio, porém, apesar de seus esforços intensos e coletivos, que compreendem demoradas entrevistas e sessões de aconselhamento com todos os jovens da cidade, nada que fizessem parecia trazer qualquer ajuda e, a essa altura, o médico já está levantando a hipótese de que as incontáveis horas que eles dedicaram a pôr fim ao flagelo serviram apenas para prolongá-lo, ele se perguntava se isolar um problema e mantê-lo exposto aos olhos do público mês após mês não serviria para conservar o problema vivo, em vez de lhe dar um fim, levando os vulneráveis, portanto, à tentação de resolver seus próprios problemas de maneiras que eles mesmos não teriam imaginado por conta própria, e assim as crianças de R. continuavam a se matar como antes e, pouco a pouco, o inquebrantável dr. Noyes ia perdendo as forças. Foi nesse ponto que Ferguson interrompeu a escrita para fazer os exames finais e escrever seu trabalho de fim de curso, em junho, e, quando retomou o contato com a história do livro nas primeiras semanas do verão, já sabia como o romance ia terminar; entretanto, por mais que ajudasse saber disso, saber era diferente de fazer, e, também chegar ao fim significaria pouco, a menos que conseguisse escrever direito. Os problemas que os jovens da cidade do dr. Noye têm de encarar são, ao mesmo tempo, eternos e de momento, uma combinação de destino biológico com fatos históricos contingentes. Os abalos da adolescência, dos primei­ros amores e dos amores rompidos, e o temor diário de ser apartado e expulso pelo rebanho, o medo da gravidez, o trauma da gravidez real e da maternidade precoce, as emoções do excesso (dirigir depressa demais, beber demais), o tédio, o desprezo pelos pais, pelos adultos e por todo mundo com autoridade, a melancolia, a solidão e a dor do mundo (Weltschmerz) que oprimia o coração, mesmo quando a luz do sol batia com força sobre eles — os antigos intermináveis tormentos de ser jovem —, mas para aqueles em que o risco era maior, os jovens de dezessete e dezoito anos, existe a ameaça do Vietnã que se ergue à frente deles no instante em que saem do colégio, a incontestável realidade do momento americano, pois poucos jovens formados no ensino médio no município de R. deixam a cidade para cursar a faculdade, pois é uma cidade de operários, onde o fim do ensino médio significa o começo da vida adulta, e, agora que sessenta e quatro caixões que continham cadáveres de soldados americanos mortos tinham sido devolvidos para a cidade e foram enterrados em cemitérios locais durante os três últimos anos, agora que os irmãos mais velhos daqueles jovens tinham chegado sem pernas, sem braços e sem olhos, e ficaram internados no Hospital V.A., em W., perto da cidade, o fervor patriótico que tinha varrido R. no verão de 1965 se transformou em repulsa e pavor na primavera de 1968, e a guerra que era travada pelo governo dos Estados Unidos no outro lado do mundo já não era mais uma guerra que nenhum daqueles jovens estivesse disposto a lutar. Morrer por nada, como seus irmãos, como seus primos morreram, como os irmãos de seus amigos morreram, parece um escárnio contra os princípios da vida em si, e afinal por que foi que eles nasceram, estão se perguntando agora, e o que estão fazendo neste mundo, se é só para abrir mão da vida em troca de nada, antes mesmo de começar a viver? Alguns se automutilam, atiram contra os próprios dedos ou polegares a fim de serem recusados no exame médico, mas outros preferem uma solução menos sangrenta e se envenenam até a morte, com o gás que sai do motor de carros ligados dentro da garagem fechada da casa dos pais e, na maioria das vezes, se o rapaz tem uma namorada, a garota e o rapaz ficam juntos dentro do carro, abraçados um ao outro, enquanto a fumaça lentamente cumpre sua missão. No início, Noyes fica estarrecido com aquelas mortes absurdas e faz todo o possível para detê-las, porém, à medida que o tempo passa, seus pensamentos começam a se mover numa direção diferente e, lá pelo quarto ou quinto mês, ele mesmo acaba contaminado pelo mesmo mal. O que Ferguson se propunha a fazer com a história, dali para a frente, era seguir o dr. Noyes nas várias etapas que acabariam por levá-lo a tirar a própria vida no fim do livro, a enorme empatia que ele desenvolve com os jovens sob seus cuidados, as conversas com mais de duzentos e cinquenta rapazes e moças, que o convencem de que a cidade não está passando por uma crise médica, mas sim por uma crise espiritual, que a questão não é a morte nem o desejo de morte, mas a perda da esperança no futuro, e, quando Noyes compreende que estão todos vivendo num mundo sem esperança, Ferguson faz planos para pôr o médico junto com um dos jovens de quem ele vinha tratando nos últimos meses, uma garota de dezessete anos chamada Lily McNamara, cujo irmão gêmeo, Harold, já havia se matado, e o dr. Noyes, que já não era casado e não tinha filhos, vai levar Lily para sua casa por uma semana ou um mês ou meio ano e tentar persuadir a garota simples, teimosa, com dificuldade para se expressar, a abandonar suas ideias de morte. Vai ser a última investida do médico, o último esforço para repelir seu próprio desejo de sucumbir, e, como não vai conseguir levar a moça a se voltar para vida, o médico vai acompanhá-la para dentro da garagem, fechar as portas e as janelas, entrar no carro junto com ela e ligar o motor...

Setenta e quatro páginas escritas e reescritas lentamente, entre meados de junho e meados de setembro, e duas semanas depois que ele começou, mais uma vez, a fazer as viagens de metrô de ida e volta ao Brooklyn College, suas obras reunidas foram publicadas pela editora Livros do Tumulto. Após um verão tão árduo, Prolusões brotou do fundo da terra de modo tão inesperado quanto o primeiro açafrão no início da primavera. Um clarão púrpura que explode através da lama e da neve enegrecida no solo gelado, uma linda lança de cor num mundo, de resto, sem cores, pois a sobrecapa do livro Prolusões era mesmo púrpura, um matiz de púrpura chamado cor de malva, a cor que Ferguson e Ron tinham escolhido entre as numerosas cores disponíveis, uma capa tipográfica projetada de forma austera, com seu nome e o título em preto, um retângulo fino e branco ao redor, um piscar de olho para as capas da editora Gallimard, na França, elegante, muito elegante, pensou Ferguson, e, quando segurou um exemplar do livro nas mãos pela primeira vez, experimentou uma coisa para a qual não estava preparado: um raio de exaltação. Não foi diferente da exaltação que sentiu ao ganhar a bolsa de estudos do programa Walt Whitman, Ferguson se deu conta, mas com a seguinte diferença: a bolsa tinha sido tomada dele e o livro seria sempre seu, ainda que fosse lido por apenas dezessete pessoas.

Houve resenhas. Pela primeira vez na vida, Ferguson levou tapas e beijos em público, treze vezes nos quatro meses seguintes, pelas suas contas, resenhas compridas, médias e curtas, em jornais, revistas e publicações literárias trimestrais, quatro beijos de língua satisfatórios, uma amistosa palmadinha nas costas, três socos na cara, uma joelhada nos colhões, uma execução por um pelotão de fuzilamento e dois olhares de indiferença. Ferguson era um gênio e também um idiota, um menino-prodígio e um pirralho presunçoso, mas era a melhor coisa que aconteceu naquele ano e a pior coisa que aconteceu naquele ano, transbordante de talento e também privado de todo talento. Nada havia mudado, desde a controvérsia com a sra. Baldwin por causa da história de Hank-Frank e as opiniões divergentes de tia Mildred e do tio Don, meio século antes, o puxa e empurra do positivo e do negativo, no entanto, por mais que Ferguson tentasse ignorar o bom e o mau que era dito sobre ele, tinha de admitir que as ferroadas continuavam a doer, mesmo muito tempo depois que os beijos já haviam se dissolvido, e que era mais difícil esquecer um ataque que o definia como “um hippie maluco e fora de controle, que não acredita na literatura e quer destruí-la” do que lembrar os elogios que diziam que ele era “um menino brilhante que acabou de chegar”. Foda-se, disse para si mesmo, quando arquivou as resenhas na última gaveta da escrivaninha. Se e quando ele voltasse a publicar um livro, tamparia os ouvidos com cera, cobriria os olhos com uma venda, amarraria o corpo ao mastro de um navio e então entraria na tempestade, até que as sereias já não pudessem mais alcançá-lo.

Pouco depois de sair o livro, Mary Donohue voltou à cena. Fazia cinco meses que Celia tinha ido embora naquela altura, e o solitário Ferguson, sedento de sexo, ficou mais do que interessado quando ouviu Joanna contar que sua irmã tinha acabado de se separar do namorado dos últimos dezoito meses e, se Ferguson tivesse algum interesse em rever Mary, Joanna teria todo o prazer de convidar os dois para jantar com eles nos próximos dias ou semanas. Mary, agora, estava farta de Michigan e tinha voltado para Nova York para estudar direito da Universidade de Nova York, sete ou nove quilos mais magra, segundo Joanna, que estava sondando Ferguson porque Mary tinha perguntado dele, e, se Ferguson estivesse a fim, parecia que Mary também estaria a fim, e foi assim que Mary e Ferguson começaram a se encontrar de novo, ou seja, começaram a dormir juntos de novo, como nos velhos tempos do verão de 1966, e não, não era amor, nunca seria amor, mas de certa forma era ainda melhor do que amor, amizade, amizade pura e simples, com imensa quantidade de admiração recíproca, e com tanta profundidade que, lá pelo segundo mês de seu segundo caso, Ferguson começou a acreditar que Mary era a garota escolhida para tirar de seus ombros o peso de Celia, com ela Ferguson se abriu pela primeira vez a respeito da história de Artie, a história do beisebol e a vergonhosa história do diafragma; contou para Mary aquilo que nunca tivera coragem de contar para ninguém e, quando chegou ao fim daquela história infame de silêncio e falsidade, deu as costas para ela, virou-se para a parede e disse: O que há de errado comigo?

Ser jovem, respondeu Mary. Essa é a única coisa errada que já aconteceu com você. Você era jovem e tinha os pensamentos de um jovem ainda em desenvolvimento, com um grande coração e um caso de idealismo juvenil exacerbado. Agora você já não é mais tão jovem e parou de pensar assim.

Só isso?

Só. Exceto por um detalhe, que não tem nada a ver com o fato de ser jovem. Você devia ter contado para ela, Archie. O que você fez foi... como posso dizer isso sem magoar seus sentimentos...?

Repreensível.

Sim, é essa a palavra. Repreensível.

Eu queria me casar com ela, entende, pelo menos eu achava que queria, e se eu contasse para ela que nunca poderíamos ter filhos, na certa ela teria me dado um fora.

Mesmo assim. Foi errado não contar.

Bem, eu contei para você, não foi?

Comigo é diferente.

Ah, é? E por quê?

Porque você não quer se casar comigo.

Quem sabe se eu não quero? Quem sabe se você não quer? Quem sabe de alguma coisa?

Mary riu.

Pelo menos você pode parar de tomar a pílula agora, continuou Ferguson.

Você não é o único homem em Nova York, sabia? O que vai acontecer se, numa noite dessas, eu esbarrar com o Señor Magnífico e ficar de cabeça virada?

Só peço que não me conte nada, só isso.

Nesse meio-tempo, Archie, você deve consultar outro médico... só para ter certeza.

Eu sei, disse Ferguson, eu sei que devia fazer isso, e vou fazer, um dia, em breve, é claro que eu vou, um dia, em breve, prometo.

Mil novecentos e sessenta e nove foi o ano dos sete enigmas, das oito bombas, das catorze rejeições, dos dois ossos quebrados, do número duzentos e sessenta e três e da piada que transformou sua vida.

1) Quatro dias depois de Richard Nixon ser empossado como trigésimo sétimo presidente dos Estados Unidos, Ferguson escreveu a última frase de A capital das ruínas. A primeira versão completa estava pronta, a primeira versão exaustivamente elaborada, submetida a tantas revisões a essa altura, que provavelmente poderia ser classificada como a nona ou décima versão, mas Ferguson ainda não estava satisfeito com o manuscrito, não estava plenamente satisfeito, de maneira nenhuma, sentia que havia mais trabalho a fazer antes de poder declarar que o livro estava terminado, por isso se aferrou ao livro por mais quatro meses, remendando e refinando, cortando e acrescentando, substituindo palavras e afiando as frases e, quando sentou para datilografar a versão final e derradeira, no início de junho, estava no meio dos exames finais no Brooklyn College e quase pronto para se formar.

Só havia um editor que Ferguson conhecia, só um editor com quem ele queria publicar, e agora que tinha terminado seu romance, como seria bom entregar o original para seus amigos da Livros do Tumulto, que tantas e tantas vezes tinham dito e repetido para ele que continuariam a publicar seus livros para sempre. Entretanto, nos últimos meses, as coisas tinham mudado e a empresa, ainda jovem e em formação, que lançara doze livros desde a fundação, no verão de 1967, estava à beira da extinção. Trixie Davenport, que casara duas vezes e era a única financiadora da pequena, mas não invisível, editora, tinha se casado pela terceira vez em abril, e o novo marido, Victor Krantz, que parecia não ter nenhuma ocupação visível além de gerir os investimentos de Trixie, não era um amante das artes (exceto da arte produzida por pintores mortos, como Mondrian e Kandinski) e recomendou ao anjo da editora Livros do Tumulto que parasse de jogar seu dinheiro no lixo, em “causas perdidas”, como aquela editora. Assim, a tomada foi desligada da parede. Todos os contratos para livros futuros foram cancelados, exemplares que ainda não estavam nas livrarias ou no armazém dos distribuidores teriam de ser vendidos em saldos e, os que não fossem vendidos, iriam para a reciclagem de papel. Nos nove meses desde sua publicação, Prolusões vendera oitocentos e seis exem­plares. Não era muito, talvez, mas para os padrões da editora era um desempenho decente, o quarto livro mais vendido na editora, depois do livro de poemas eróticos de Anne (1846), do Cabeças esmagadas De Billy (1141) e dos picantes diários de Bo, sobre a vida noturna dos homossexuais do centro da cidade (966). No fim de maio, Ferguson comprou cem exemplares de seu pró­prio livro por dois dólares a unidade, guardou em caixas abrigadas no porão da casa em Woodhall Crescent e depois voltou para Nova York na mesma noi­te para ir a uma festa na casa de Billy, que ficou lotada e onde todo mundo que havia trabalhado ou publicado na editora Livros do Tumulto, com suas esposas, maridos, namoradas e namorados, se reuniu para maldizer o nome de Victor Krantz e tomar um porre. Mais triste ainda, agora que Joanna estava grávida outra vez e Billy trabalhava numa empresa de mudança para trazer dinheiro para casa, houve o inevitável momento em que Billy subiu numa cadeira no meio da festa e anunciou o fim da editora Gizmo Press, mas pelo menos, disse Billy, berrando com voz embriagada e as veias do pescoço inchadas, pelo menos eu vou continuar, até publicar todos os livros e folhetos que prometi, porque Eu sou uma pessoa que honra seus compromissos!, uma referência explícita a quem desligou a tomada da editora Livros do Tumulto, e todo mundo aplaudiu e elogiou Billy por ser um homem de palavra, enquanto Joanna se punha a seu lado com as lágrimas escorrendo pelo rosto, e Mary se pôs ao lado de Joanna, com o braço em volta dos ombros da irmã, e aí Mary pegou um lenço e começou a enxugar as lágrimas do rosto de Joanna, e Ferguson, que estava perto delas e observava a cena com cuidado, amou Mary por fazer aquilo.

Por recomendação de Billy, Ferguson arranjou uma agente literária para tratar do problema de conseguir uma editora nova para seu livro. O nome da agente era Lynn Eberhardt, e nem é preciso dizer que era também a agente de Billy (não porque Billy tivesse terminado outro livro, mas porque Lynn tinha esperança de conseguir um contrato para Cabeças esmagadas com uma editora de livros de bolso, agora que Livros do Tumulto havia parado de respirar), e Ferguson ficou animado com a reação da agente ao seu A capital das ruínas, que ela chamou de um brilhante romance antiguerra, na carta que escreveu para aceitar Ferguson como cliente, e então, dois dias depois, ao telefone, descreveu o livro como um filme de Bergman transplantado para os Estados Unidos e traduzido em palavras. Os sentimentos de Ferguson acerca dos filmes de Bergman eram ambíguos (gostava de alguns, não gostava de outros), mas entendeu que Lynn julgava ser um grande elogio e agradeceu a ela por seu comentário generoso. Lynn era uma jovem entusiasmada, pequena e bonita, de cabelo louro e lábios rubros e reluzentes, tinha começado seu próprio negócio mais ou menos um ano antes e, como uma agente literária jovem e independente, sem nenhum cliente antigo no estoque, estava na batalha para arranjar os melhores escritores jovens e iniciantes e, aos vinte e dois anos e três meses de idade, Ferguson não poderia ser outra coisa senão jovem. Em seguida, ela começou a encaminhar o original para sua lista de editores de Nova York e, uma a uma, as rejeições começaram a chegar. Não que algum daqueles editores achasse que o livro de Ferguson fosse ruim ou sem valor nenhum ou não mostrasse sinais do que chamavam de “um talento notável”, mas o julgamento unânime era de que A capital das ruínas era tão flagrantemente anticomercial que, ainda que pagassem um adiantamento de apenas cinquenta dólares ou não pagassem nenhum adiantamento, iriam sofrer o diabo para recuperar o dinheiro gasto para imprimir o livro. No fim do ano, depois de viajar pelas caixas de correio e pelos escritórios de catorze editoras, o original do livro tinha recebido catorze cartas negativas.

Catorze socos na barriga, e todos doeram.

Não se preocupe, disse Lynn. Vou pensar em alguma coisa.

2) Os quatro membros mais jovens do clã entrelaçado se formaram em suas respectivas faculdades no início de junho, Amy em Brandeis, Howard em Princeton, Noah na Universidade de Nova York e Ferguson em seu retiro rural, perto da estação de metrô de Flatbush, em Midwood, e, agora que os exercícios de aquecimento tinham terminado, os quatro deram início à sua viagem rumo ao futuro.

Depois de passar o grosso da adolescência e toda a juventude se preparando para uma vida no cinema, Noah havia pegado Ferguson e todo mundo de surpresa ao mudar de rota e declarar sua intenção de, dali em diante, se concentrar no teatro. Representar no cinema era uma caretice, explicou Noah, uma farsa mecanizada do tipo liga e desliga, que não podia se comparar com a farsa autêntica que era representar diante de uma plateia ao vivo, sem refilmagens e sem os cortes das tesouras do diretor para salvar sua pele. Noah tinha dirigido três filmezinhos próprios e havia representado em outros três, mas agora estava se despedindo do celuloide e partindo rumo à representação e à direção tridimensional na Escola Dramática de Yale. Por que mais um curso?, perguntou Ferguson. Porque eu preciso estudar mais, disse Noah, porém, se ficar claro que não preciso, largo o curso, volto para Nova York e vou morar com você. Minha casa é horrivelmente pequena, disse Ferguson. Estou sabendo, respondeu Noah, mas você não se importa de dormir no chão, não é?

Mais um curso para Noah, o que não era o esperado, e mais um curso para Amy e Howard, como já estava prometido e planejado. Columbia para os dois, junto com os esplendores da vida conjugal sem casamento, enquanto Amy fazia seu ph.D. em história dos Estados Unidos, mas Howard tinha desistido de estudar filosofia e, em vez disso, ia ingressar no Departamento de Letras Clássicas, onde poderia mergulhar mais fundo ainda nos fragmentos aforísticos dos pré-socráticos, sem ter de perder seu tempo com as bobagens analíticas anglo-americanas que andavam em moda na época. Wittgenstein sim, mas Quine lhe dava dor de cabeça, disse ele, e ler Strawson era como mastigar vidro. Ferguson entendia a que ponto Howard amava seus antigos gregos (a influência de Nagle tinha sido profunda, muito mais duradora em Howard do que nele mesmo), mesmo assim Ferguson não podia deixar de sentir certa decepção com aquela decisão do amigo, pois parecia que Howard era mais bem talhado para a arte do que para a pesquisa acadêmica e gostaria que ele se arriscasse perigosamente com suas canetas e seus lápis e tentasse alcançar o sucesso com seus desenhos, ganhando a vida com sua mão, que já era mais competente do que a mão profissional do pai de Amy, e, depois das capas de livro que tinha feito para Billy e dos cartuns que tinha publicado em Princeton Tiger e das engraçadíssimas duplas de tênis, além de dúzias de outras maravilhas que ele havia produzido num relance ao longo dos anos, Ferguson, afinal, resolveu enfrentar Howard e perguntar por que o estudo em vez do desenho? Porque o desenho é fácil demais para mim, respondeu seu antigo colega de alojamento estudantil, e eu nunca vou conseguir ser melhor nisso do que já sou agora. Estou procurando alguma coisa que vai me pôr à prova, uma disciplina que me leve para além de onde eu acho que posso chegar. Isso faz sentido para você, Archie? Sim, fazia sentido, talvez muito sentido, mesmo assim Ferguson ficou desolado.

Quanto ao próprio Ferguson, nunca esteve em questão a ideia de continuar estudando. Já chega, declarou aos demais membros do clã, e pouco tempo depois, naquela primavera, arranjou em emprego, exatamente o tipo de emprego que seu pai teria condenado, um trabalho que com certeza faria seu pai se revirar no túmulo agora, mas o pai de Fritz Mangini, o mais esperto e mais confiável amigo de Ferguson no Brooklyn College, era dono de uma empresa de serviços gerais, e um dos serviços que aquela empresa fazia era de pintura de apartamentos e, quando Fritz disse para Ferguson que seu pai andava atrás de mais um pintor para completar a equipe naquele verão, Ferguson foi falar com o sr. Mangini em seu escritório na Desbrosses Street, no baixo Manhattan, e logo foi contratado. Não era um trabalho fixo de cinco dias por semana, como a maioria dos empregos, mas uma situação de trabalho intermitente, com intervalos, o que casava muito bem com os propósitos de Ferguson, imaginou ele, trabalhar por uma ou duas semanas e depois ficar uma ou duas semanas sem trabalho, e os períodos em que ele trabalhasse iriam gerar receita o bastante para comer e pagar o aluguel durante os períodos em que estivesse sem trabalho. Agora que tinha se formado na faculdade, ele era, portanto, um escritor e um pintor de paredes ao mesmo tempo, mas como tinha acabado de terminar seu primeiro romance e ainda não estava pronto para começar outro livro (seu cérebro estava exausto e suas ideias tinham se exaurido), ele era, mais que tudo, pintor de paredes.

Amy iria avançar sem nenhum obstáculo em seu caminho, mas os planos dos outros três dependiam do que ia acontecer com eles durante e após seus exames médicos no Exército, marcados para aquele verão: Howard em meados de julho, Noah no início de agosto e Ferguson no fim de agosto. Caso fossem convocados, Howard e Noah decidiram seguir o exemplo de Luther Bond e ir para o norte, para o Canadá, mas Ferguson, que era mais teimoso e cabeça quente, resolveu que ia correr o risco de ir para a prisão. A facção pró-guerra tinha palavras para aplicar a pessoas como eles — fujões do serviço militar, covardes, traidores do país —, mas os três amigos não fariam objeção a lutar pelos Estados Unidos numa guerra que achassem justa, já que nenhum deles era pacifista nem acreditava que devia se opor a todas as guerras; os três eram contrários apenas àquela guerra, e isso porque consideravam que era moralmente indefensável, não um mero erro político, mas um criminoso ato de loucura e, assim, o que os unia era seu dever patriótico de se opor à participação na guerra. O pai de Howard, o pai de Noah e o padrasto de Ferguson foram, todos eles, soldados na Segunda Guerra Mundial, e seus filhos e seu enteado os admiravam por terem combatido o fascismo, o que julgavam ser uma guerra justa, mas o Vietnã era diferente, e como era confortador para todos, na grande tribo entrelaçada, saber que os três veteranos daquela outra guerra davam apoio a seus filhos e a seu enteado na oposição a essa guerra.

A Batalha de Hamburguer Hill, a Operação Apache Snow, no Vale Xau, e a Batalha de Binh Ba, na província de Phuoc Tuy. Esses eram alguns dos nomes e lugares que chegavam do Vietnã nas semanas anteriores e seguintes à formatura dos três na faculdade, e enquanto se preparavam para sua visita ao serviço de alistamento militar em Newark (Howard) e na Whitehall Street, em Manhattan (Noah e Ferguson), Noah e Howard consultaram médicos para tratar de enfermidades imaginárias que eles achavam que podiam acarretar uma classificação 4-F (incapacitado para o serviço militar) ou 1-Y (apto para o serviço militar, mas só em casos de extrema necessidade), o que os pouparia de ter de mudar para o Canadá. Howard sofria de alergia a poeira, capim, erva-de-santiago, solidago e outros pólens que pairavam no ar durante a primavera e o verão (febre do feno), mas seu médico, solidário a ele e contrário à guerra, escreveu uma carta dizendo que Howard também sofria de asma, doença crônica que talvez pudesse, ou não, garantir sua liberação do serviço militar. Noah também se muniu de uma carta, uma declaração do psicanalista contrário à guerra que ele vinha consultando duas vezes por semana nos seis meses anteriores, atestando o medo neurótico que seu paciente sentia de espaços abertos (agorafobia), que em ocasiões de estresse exagerado produzia paranoia completa e que, associada à sua tendência homossexual latente, impedia que ele agisse de maneira funcional em ambientes exclusivamente masculinos. Quando Noah pegou a carta e mostrou para Ferguson, ele balançou a cabeça e riu. Olhe para mim, Archie, disse ele. Sou um perigo para a sociedade. Um doido varrido.

Acha que o médico acredita mesmo nesse papo furado?, perguntou Ferguson.

Quem sabe?, respondeu Noah. E, depois de uma breve pausa, deu mais uma gargalhada e disse: É provável.

Para seu próprio bem, Ferguson achou que também devia consultar um médico e fazer algo semelhante ao que Howard e Noah tinham feito, porém, como o leitor já deve ter observado a essa altura, Ferguson nem sempre agia pensando em seu próprio bem. Na segunda-feira de manhã, dia 25 de agosto, ele se apresentou no centro de alistamento na Whitehall Street sem nenhuma carta para mostrar à equipe médica, a respeito de qualquer enfermidade física ou mental, imaginária ou real. Era verdade que, quando criança, tivera a febre do feno, mas nos últimos anos parecia ter se curado e a única doença que tinha, de fato, e que o havia condenado à condição de mula falante, era irrelevante para o caso.

Ferguson caminhou pelo prédio de cueca branca, na companhia de um bando de rapazes também de cueca branca. Rapazes brancos, rapazes pardos, rapazes negros, rapazes amarelos — todos no mesmo barco. Ferguson fez a prova escrita, seu corpo foi medido, pesado e examinado, e depois ele foi para casa, imaginando o que ia acontecer dali a alguns dias.

3) Ho Chi Minh morreu no dia 2 de setembro, aos setenta e nove anos de idade. Ferguson, que estava no quarto trabalho para o sr. Mangini desde o início do verão, soube da notícia pelo rádio, quando estava no alto de uma escada pintando o teto da cozinha de um apartamento de três quartos na Central Park Oeste, entre as ruas 83 e 84. O tio Ho tinha morrido, mas nada ia mudar por causa daquilo e a guerra iria continuar, até que o Norte conquistasse o Sul e os americanos fossem postos para correr. Isso era garantido, dizia Ferguson para si mesmo, enquanto mergulhava o pincel na lata de tinta para dar outra mão no teto, só que muitas outras coisas não estavam nada garantidas. Por que a carta que avisava a data de seu exame médico tinha sido enviada para ele um mês depois de Howard e de Noah terem recebido as suas, por exemplo, e por que Howard já havia recebido sua nova classificação da comissão de Newark (1-Y), mas, depois de um intervalo equivalente, Noah continuava sem receber nenhuma notícia da comissão de Manhattan? Era tudo tão arbitrário, ao que parecia, um sistema que funcionava com duas mãos independentes, cada uma ignorava o que a outra fazia, enquanto executavam suas tarefas separadas e, agora que o exame médico tinha ficado para trás, não estava claro quanto tempo Ferguson teria de esperar.

Ele estava se preparando para o pior e, ao longo do verão e do início do outono, pensava o tempo todo na prisão, em ficar trancafiado contra sua vontade e ter de se sujeitar às regras e ordens caprichosas de seus carcereiros, pensava na ameaça de ser estuprado por seus colegas presidiários, dividir a cela com um condenado violento que tem um estilete escondido e cumpre uma sentença de sete anos de prisão por roubo à mão armada ou de cem anos por homicídio. Então o pensamento de Ferguson se desviou do presente e ele começou a pensar em O Conde de Monte Cristo, livro que tinha lido aos doze anos de idade, o falsamente acusado Edmond Dantès, preso por catorze anos no Château d’If, ou em O zero e o infinito, romance que tinha lido na oitava série, com os dois homens presos em celas contíguas e que se comunicavam por meio de batidas na parede, numa linguagem cifrada, ou no infindável número de filmes sobre prisão que tinha visto ao longo dos anos, entre eles A grande ilusão, Um condenado à morte escapou, O fugitivo, Dreyfus na Ilha do Diabo em A vida de Émile Zola, Rebelião no presídio, O presídio, Vinte mil anos em Sing Sing e O homem da máscara de ferro, mais uma história de Dumas, na qual o irmão gêmeo morre sufocado pela própria barba.

Pensamentos inquietos, pungentes, que chocavam na incubadora dupla da incerteza e do pânico sempre crescente.

Para ele, o verão sempre tinha sido uma época de trabalho intenso, mas naquele verão Ferguson fez muito pouca coisa, exceto ler as primeiras quatro cartas de rejeição do seu A capital das ruínas. Um mês depois da morte de Ho Chi Minh, o número de cartas já havia subido para sete.

4) Durante todo o verão e o outono daquele ano, enquanto Ferguson consumia suas horas para o sr. Mangini e ponderava sobre o futuro incerto à sua frente, um homem andava explodindo bombas na cidade de Nova York. Sam Melville, ou Samuel Melville, nascido em 1934, cujo nome de nascença era Samuel Grossman, tinha mudado de nome em homenagem ao homem que escrevera Moby Dick, ou em homenagem ao diretor de cinema francês Jean-Pierre Melville, cujo nome de nascença era Jean-Pierre Grumbach, ou então não em homenagem a ninguém ou por nenhum motivo, a não ser para se desassociar do pai e do nome do pai. Um marxista independente, aliado aos Meteorologistas e aos Panteras Negras, mas que essencialmente agia por conta própria (às vezes, com um ou dois cúmplices, mas em geral não), Melville implantou sua primeira bomba no dia 27 de julho, danificando a estrutu­ra do Grace Pier, na orla de Nova York, instalações de propriedade da empresa United Fruit Company, antiquíssima exploradora de camponeses opri­midos na América Central e do Sul. No dia 20 de agosto, ele atacou o prédio do Marine Midland Bank; no dia 19 de setembro, os escritórios do departamento de Comércio e do Inspetor Geral do Exército, no prédio do Federal Office, na baixa Broadway. Os alvos seguintes incluíram os escritórios da empresa Standard Oil, no RCA Building, o quartel-general do Chase Manhattan Bank e, no dia 11 de novembro, o prédio da General Motors, na Quinta Avenida, mas no dia seguinte, quando Melville foi implantar uma bomba no prédio da Corte Criminal na Centre Street, onde ia ocorrer o julgamento do grupo Pantera 21, cometeu o erro de escolher um informante do FBI como cúmplice e acabou preso em flagrante. Foi para a prisão de Tombs em abril de 1970, onde organizou uma greve de prisioneiros, o que acarretou sua transferência para Sing Sing em julho, onde organizou mais uma rebelião no presídio, o que provocou mais uma transferência em setembro, para uma prisão de segurança máxima em Attica, no norte do estado de Nova York.

Segundo todos os relatos, o crescente radicalismo de Melville foi estimulado pelos acontecimentos em Columbia, na primavera de 1968. Na noite do ataque, em 30 de abril, o ex-engenheiro hidráulico de trinta e quatro anos apareceu no campus para dar seu apoio aos estudantes e, na pancadaria causada por mil soldados do pelotão de choque, com os setecentos estudantes presos, os inúmeros ataques aos estudantes de braçadeira verde e braçadeira branca, Melville incentivou-os a revidar e lutar contra a polícia. Com um pequeno grupo de manifestantes, ele começou a arrastar latões de lixo de cento e noventa litros de capacidade, feitos de aço temperado e vulcanizado, para o telhado da Biblioteca Low, a fim de jogá-los em cima dos guardas, lá embaixo. Os estudantes mais jovens ficaram com medo, não estavam nem um pouco preparados para tomar parte numa ação tão temerária, e se dispersaram no meio da noite. Pouco depois, Melville foi descoberto pela polícia e arrastado para dentro de outro prédio, onde o espancaram com porretes e o deixaram amarrado numa cadeira. Dias depois, ele se uniu ao Comitê de Ação Comunitária (CAC), grupo oposto à política adotada pela Universidade Columbia de expulsar inquilinos pobres dos prédios de propriedade da universidade e, numa das manifestações do CAC na frente de St. Marks Arms, na rua 112 Oeste, ele foi preso junto com alguns membros do grupo.

Columbia tinha posto fogo em Melville e, no ano seguinte, ele começou sua campanha de explodir bombas por toda a cidade. Executou os primeiros ataques com tanta habilidade que permaneceu à solta por três meses e meio, sem ser identificado e sem deixar vestígios. Os jornais sensacionalistas o chamavam de Bombardeiro Maluco.

Ferguson nunca tinha visto Sam Melville e não tinha a menor ideia de quem fosse ele, até sua prisão no dia 20 de novembro, mas as histórias de ambos se cruzaram na quarta bomba, a mais destrutiva das oito, e se cruzaram de tal maneira que o fato chegou a mudar o rumo de sua vida, pois era praticamente garantido que o apto e saudável estudante, formado na faculdade, iria receber a classificação 1-A do serviço de alistamento militar, o que abriria caminho para um processo na justiça federal e uma pena longa numa prisão federal, mas quando Melville explodiu o Centro de Alistamento Militar na Whitehall Street, no início de outubro, Ferguson ainda não tinha recebido notícias sobre sua classificação e, como não chegou nenhuma carta durante o resto daquele mês, nem durante o mês de novembro, Ferguson, com cautela, concebeu a teoria de que sua ficha tinha sido destruída dos arquivos pela bomba de Melville, que ele estava, como gostava de dizer para si mesmo, fora dos livros.

Em outras palavras, Ferguson estava de fato fora dos livros e, portanto, Sam Melville tinha salvado sua vida. E tinha salvado não apenas a vida de Ferguson, como a vida de centenas, ou talvez milhares, de outros e, portanto, o Bombardeiro Maluco sacrificou a própria vida ao ir para a prisão por eles.

5) Pelo menos era o que Ferguson imaginava, ou desejava, ou rezava para ser verdade, mas, estivesse fora dos livros ou não, havia ainda mais uma ponte para atravessar antes de dar o assunto por encerrado. Nixon tinha alterado a lei. O Serviço do Sistema de Seleção já não dependia mais do conjunto integral dos homens americanos entre dezoito e vinte e seis anos de idade para completar as fileiras das Forças Armadas, mas apenas de alguns, aqueles que receberiam os números mais baixos na nova loteria do alistamento militar, cujo sorteio iria ocorrer na segunda-feira, dia 1o de dezembro. Trezentos e sessenta e seis números possíveis, um para cada dia do ano, levando em conta o ano bissexto, um número para a data de nascimento de cada rapaz nascido nos Estados Unidos, uma convocação às cegas, com base em números que diriam se você estava livre ou não, se você ia para longe lutar ou ia ficar em casa, se ia para a prisão ou não, todo o cenário de sua vida futura era esculpido pelas mãos do general Mero Acaso, o comandante das urnas, dos caixões e dos cemitérios nacionais.

Absurdo.

O país tinha sido transformado num cassino e você não tinha nem permissão de jogar os dados por sua conta. O governo ia jogar os dados por você. Qualquer coisa abaixo de oitenta ou cem significaria perigo. Qualquer coisa acima disso significaria: Obrigado, doutor.

O número de 3 de março foi 263.

Dessa vez, nenhuma exaltação, nem raio ou corrente elétrica em suas veias, nenhum açafrão púrpura brotou através da neve enegrecida, mas uma repentina sensação de calma, talvez até de resignação, talvez de tristeza. Ele estava pronto para tomar aquela atitude de desafio que tinha prometido, porém agora não precisava mais fazer aquilo. Não precisa sequer pensar no assunto. Levante e respire, levante e dê uma volta, levante e tome o mundo nas mãos, e, quando Ferguson levantou, respirou, deu uma volta e tomou o mundo nas mãos, compreendeu que, nos últimos meses, vinha vivendo num estado de paralisia.

Pai, disse ele, meu estranho pai morto, seu filho não vai viver atrás das grades. Seu filho está livre para ir aonde quiser. Reze pelo seu filho, pai, assim como ele reza por você.

Ferguson sentou-se diante de sua escrivaninha e examinou o jornal em busca do dia 16 de junho, o aniversário de Noah.

Número 274.

E depois, o aniversário de Howard, 22 de janeiro.

Número 337.

No fim da tarde do dia seguinte, Noah pegou uma carona de New Haven até Nova York e, às sete horas, Ferguson e Howard o encontraram em West End para começarem a noite com uma rodada de drinques, antes de irem a um jantar comemorativo chinês no Moon Palace, a apenas dois quarteirões ao sul da Broadway. Porém, sentindo-se confortáveis em sua mesa, num compartimento de canto, acabaram se demorando em West End e nunca foram ao restaurante, jantaram a abominável caçarola de carne assada com macarrão de seu bar predileto e depois ficaram ali mesmo, até duas e meia da madrugada, enquanto sorviam enormes quantidades de álcool em suas diversas formas mais conhecidas: em geral uísque para Ferguson, um uísque de qualidade medíocre, que o levou aos trambolhões para as entranhas mais profundas da embriaguez, no entanto, até se dissolver num torpor pastoso, chapado, com visão dupla, e ser carregado por seus dois companheiros cambaleantes de volta para o apartamento de Howard e Amy na rua 113 Oeste, onde passou as primeiras horas da manhã desacordado no sofá, Ferguson lembrou que, a certa altura, Howard e Noah tinham se unido para lhe dar um esporro e criticá-lo por uma porção de coisas, algumas das quais ainda conseguia lembrar, outras já não conseguia, mas entre as que conseguia lembrar estavam as seguintes:

p Ele era um tolo por não tocar no dinheiro que o pai tinha deixado.

p Com a ajuda do dinheiro em que ainda não tinha tocado, ele devia dar adeus aos Estados Unidos, atravessar o Atlântico e passar pelo menos um ano na Europa. Ele ainda não tinha ido a lugar nenhum em sua pobre vidinha, e precisava começar a viajar agora.

p Devia tirar da cabeça que a Mary Donohue tinha encontrado o seu Señor Magnífico e não ficar falando em casamento, pois, embora Mary fosse uma mulher formidável e tivesse mantido Ferguson de pé durante os maus bocados que ele passou, os dois não tinham futuro juntos, porque ele não era o que ela queria ou precisava, e ele também não tinha nada a oferecer para ela.

?p Doze recusas dos editores de Nova York não eram razão para perder um minuto de sono, e, mesmo que o livro fosse recusado por mais doze editoras, acabaria publicado por alguém e a única coisa que importava, agora, era começar a pensar em seu próximo livro...

Da maneira como Ferguson lembrava, tinha concordado com eles, em todos aqueles pontos.

6) Como era um funcionário consciencioso e como não queria deixar na mão seus colegas de equipe, chegando tarde para trabalhar, Ferguson apareceu no trabalho na manhã seguinte às nove em ponto. Tinha dormido quatro horas e meia no sofá de Howard e Amy e, depois de tomar três xícaras de café forte no Tom’s Restaurant na esquina da Broadway com a rua 112, foi a pé até o trabalho, em Riverside Drive, entre as ruas 88 e 89, um enorme apartamento de quatro quartos que ele tinha começado a pintar alguns dias antes, com Juan, Felix e Harry. Naquela manhã o ar estava gelado e Ferguson estava com uma tremenda ressaca, os olhos injetados de sangue, a cabeça pesada e a barriga desarranjada, tropeçando pelas ruas do centro com o rosto escondido pelo cachecol, que começava a cheirar mal por causa do porre que ainda permeava sua respiração. Juan disse: O que foi que aconteceu com você, cara? Felix disse: Você parece que está no bagaço, garoto. Harry disse: Por que não vai para casa e dorme um pouco para se recuperar? Mas Ferguson não queria ir para casar e dormir, estava perfeitamente bem e tinha ido lá para trabalhar, só que, uma hora depois, quando estava trepado no alto de uma escada dobrável, pintando mais um teto de cozinha, perdeu o equilíbrio e caiu no chão, quebrou o tornozelo esquerdo e o pulso esquerdo. Harry chamou uma ambulância e, depois que um médico do hospital Roosevelt pôs os ossos no lugar e engessou o pulso e o tornozelo, examinou seu trabalho e comentou: Um tombo feio, meu rapaz. Tem sorte de não ter caído de cabeça.

7) Ferguson passou as seis semanas seguintes na casa de Woodhall Crescent se empanturrando com os bons pratos de sua mãe, enquanto seus ossos se soldavam de novo, jogando baralho com Dan à noite, depois do jantar, sentado na sala na companhia dos dois Schneiderman, nas noites em que a televisão transmitia as partidas do time de basquete Knicks, e sua mãe e a grávida Nancy ficavam sozinhas na cozinha, conversando sobre os mistérios do mundo feminino, a vida do lar, os confortos e prazeres de estar em casa por um tempo, enquanto ele tomava seu fôlego compulsório (palavras de Dan) ou apenas fazia o balanço (palavras da mãe) e pensava no que ia fazer depois.

Mary foi embora, para logo se casar com um señor inteligente chamado Bob Stanton, promotor assistente do distrito de Queens, uma pessoa muito mais estabelecida na vida do que Ferguson jamais conseguiria ser, uma decisão que nada tinha de insensata, achava Ferguson, no entanto era uma dor que demandaria mais tempo para se curar do que seus ossos fraturados levariam para se consolidar, e, com Mary agora já longe, não havia mais nada que o prendesse a Nova York, nada que o compelisse a continuar trabalhando como pintor de paredes para o sr. Mangini, pois Howard e Noah tinham, finalmente, conseguido meter um pouco de juízo na sua cabeça na noite da sua grande bebedeira, e Ferguson tinha mudado de ideia a respeito da questão do dinheiro do pai, concordando com eles, com relutância, em que não aceitar o dinheiro seria um insulto. O pai estava morto e os mortos já não podem se defender. Por mais rancores que tenham se formado entre ambos ao longo dos anos, o pai o havia incluído no testamento, o que significava que desejava que Ferguson ficasse com cem mil dólares e usasse da maneira que julgasse adequada, com a compreensão de que a maneira adequada, em seu caso, seria viver com o dinheiro para continuar escrevendo, com certeza o pai devia saber disso, raciocinou Ferguson, e a verdade era que havia nele, naquela altura, pouco rancor e, quanto mais tempo de morto tinha o pai, menos rancor ele sentia, e agora, depois de um ano e meio, o rancor era tão pequeno que tinha desaparecido quase de todo e o espaço que antes era ocupado pelo rancor agora estava tomado pela dor e pela confusão: dor, confusão e arrependimento.

Era um bocado de dinheiro, dinheiro bastante para viver durante anos, se gastasse com cuidado, e Howard e Noah tinham feito bem ao enfatizar a importância daquela grana, recomendando sensatamente que tivesse paciência na questão do romance rejeitado (para o qual Lynn Eberhardt acabou, afinal, encontrando um lar no início de fevereiro, ao enviar o livro para a Columbus Books, uma editora pequena, arrojada, na contracorrente, com sede na cidade de San Francisco e que estava em atividade desde a década de 1950), mas acima de tudo compreendendo que o dinheiro permitiria que Ferguson desse o passo que lhe faria o maior bem possível, nas circunstâncias presentes, e, enquanto ficava à toa na casa em Woodhall Crescent e contemplava o nevoeiro de possibilidades que o dinheiro lhe oferecia, pouco a pouco conseguiu ver as coisas do ponto de vista de seu pai: tinha chegado a hora de sair dos Estados Unidos e ver um pouco do mundo, deixar o incêndio para trás e ir para outro lugar — qualquer lugar.

Ferguson hesitou e ponderou durante as duas semanas seguintes, reduzindo, um a um, os numerosos lugares possíveis, de cinco para três e depois para um só. A língua tinha de ter a última palavra, mas ainda que falassem inglês na Inglaterra e na Irlanda, ele duvidava que seria feliz morando num daqueles lugares de clima úmido, encharcado. Em Paris também chovia, é claro, mas o francês era a única outra língua que ele era capaz de falar e ler com tolerável eficiência, e, como nunca tinha ouvido ninguém dizer nada negativo sobre Paris, resolveu tentar a sorte lá. Como um aquecimento, iria a Montreal para uma breve visita a Luther Bond, que estava vivo e muito bem em seu novo país, tendo conseguido uma vaga na Universidade McGill mais ou menos na mesma época em que Ferguson entrara no Brooklyn College, e, agora que estava formado, trabalhava como repórter aprendiz no Montreal Gazette e morava com uma namorada nova, Claire, Claire Simpson ou Sampson (a letra de Luther muitas vezes era difícil de decifrar) e Ferguson estava morrendo de vontade de ir para o norte, morrendo de vontade de ir para o leste, morrendo de vontade de ir embora.

Imaginou que seu tornozelo o deixaria andar de novo lá pelo fim de janeiro, o que seria tempo mais do que o suficiente para liberar o apartamento na rua 89 Leste e se preparar para a grande mudança.

Então, no dia 1o de janeiro, quando Ferguson estava prestes a dar a primeira mordida no seu primeiro café da manhã na década nova, sua mãe lhe contou a piada.

Era uma piada velha, ao que parecia, que já circulava nas salas de estar de casas de judeus havia muitos anos, mas por alguma razão inexplicável tinha passado despercebida de Ferguson, de um jeito ou de outro, ele nunca estava em nenhuma daquelas salas quando alguém contava a piada, mas, naquela manhã do dia de Ano-Novo de 1970, sua mãe finalmente lhe contou a piada na cozinha, a história clássica do jovem judeu russo de nome comprido e impronunciável que chega à ilha Ellis e começa a bater papo com um Conterrâneo mais velho e experiente e, quando o jovem diz seu nome para o velho, o velho franze a testa e diz que um nome comprido e impronunciável não ia servir para nada em sua vida nova nos Estados Unidos; ele precisava mudar para algo mais curto, com um bom toque americano. O que você sugere?, perguntou o jovem. Diga para eles que você é Rockefeller, disse o velho, com isso, não tem como não dar certo. Duas horas depois, quando o jovem russo sentou para ser entrevistado por um funcionário da imigração, não conseguia desencavar da memória o nome que o velho tinha recomendado. Qual seu nome?, perguntou o funcionário. Depois de dar um tapa de frustração na cabeça, o jovem exclamou em íidiche: Ikh hob fargessen! (Eu esqueci!). E assim o funcionário da ilha Ellis tirou a tampinha de sua caneta-tinteiro e, zelosamente, registrou o nome em seu livro: Ichabold Ferguson.

Ferguson gostou da piada e riu muito quando a mãe contou para ele na hora do café da manhã, na cozinha, mas quando subiu a escada mancando para seu quarto, viu que não conseguia parar de pensar naquilo, e, com mais nada para distraí-lo de seus pensamentos, continuou pensando no pobre imigrante pelo resto da manhã e no início da tarde, momento em que a história foi libertada do domínio das piadas e se tornou uma parábola acerca do destino humano e das trilhas de intermináveis bifurcações que uma pessoa precisa enfrentar quando caminha pela vida. Um jovem é subitamente rasgado em três jovens, todos idênticos entre si, mas cada um com um nome diferente: Rockefeller, Ferguson e o longo e impronunciável X, que viajou com ele da Rússia até a ilha Ellis. Na piada, ele termina como Ferguson, porque o funcionário da imigração não entende a língua que ele fala. Isso já era pra lá de interessante — ter um nome à força, por causa do erro burocrático de alguém, e depois continuar a usar aquele nome pelo resto da vida. Interessante, como algo bizarro ou engraçado ou trágico. Um judeu russo transformado num escocês presbiteriano, com quinze canetadas de outro homem. E se o judeu é tido como um protestante nos Estados Unidos brancos e protestantes, se toda pessoa que ele encontra automaticamente supõe que ele é outra pessoa que não aquela que é de fato, como aquilo afetará sua vida futura nos Estados Unidos? Impossível dizer exatamente como, mas é possível supor que fará diferença, que a vida que levará como Ferguson não será a mesma que levaria como o jovem judeu X. Por outro lado, o jovem X não se opunha a se tornar Rockefeller. Aceitou o conselho do compatriota mais velho acerca da necessidade de escolher outro nome e, então, o que ia acontecer se ele tivesse se lembrado do nome na hora, em vez de deixar que fugisse de sua mente? Teria se tornado um Rockefeller e, daquele dia em diante, as pessoas iriam supor que ele era um membro da família mais rica do país. Seu sotaque iídiche não ia permitir que ele enganasse ninguém, mas como aquilo poderia impedir que as pessoas imaginassem que ele pertencia a outro ramo da família, um dos ramos estrangeiros secundários, que poderiam reconstituir suas linhagens diretamente até John D. e seus herdeiros? E se o jovem X houvesse tido meios de recordar e dizer que seu nome era Rockefeller, como aquilo poderia ter afetado sua vida futura nos Estados Unidos? Teria a mesma vida ou uma vida diferente? Sem dúvida, uma vida diferente, disse Ferguson consigo mesmo, mas de que maneira, era impossível saber.

Ferguson, cujo nome não era Ferguson, achou intrigante se imaginar como alguém nascido com o nome Ferguson ou Rockefeller, alguém com um nome diferente do X que estivera preso a ele quando foi extraído do útero materno no dia 3 de março de 1947. A rigor, o pai de seu pai não tinha, afinal, recebido um nome novo quando desembarcou na ilha Ellis no dia 1o de janeiro de 1900 — mas e se tivesse?

A partir daquela pergunta, o livro novo de Ferguson já havia nascido.

Não uma pessoa com três nomes, disse para si mesmo, naquela tarde, que por acaso era no dia 1o de janeiro de 1970, o septuagésimo aniversário da chegada de seu avô aos Estados Unidos (se a lenda da família merecia crédito), e o homem que não se tornara nem Ferguson nem Rockefeller e tinha sido baleado num armazém de artigos de couro, em Chicago, em 1923. Mas, para os propósitos da história, Ferguson ia começar com seu avô e com a piada e, depois que a piada fosse contada no primeiro parágrafo, seu avô já não seria um jovem com três nomes possíveis, e sim com um nome, nem X nem Rockefeller, mas Ferguson, e então, depois de contar a história de como seus pais se conheceram, se casaram e de como ele mesmo nasceu (tudo com base em anedotas que tinha ouvido da mãe, ao longo dos anos), Ferguson ia virar a proposição de ponta-cabeça e, em vez de perseguir a ideia de uma pessoa com três nomes, inventaria três outras versões de si mesmo e contaria suas histórias junto com sua própria história (mais ou menos a sua história, pois ele também se tornaria uma versão ficcionalizada de si mesmo), e escreveria um livro sobre quatro pessoas idênticas, mas diferentes, com o mesmo nome: Ferguson.

Um nome nascido de uma piada sobre nomes. A chave de ouro de uma piada sobre judeus da Polônia e da Rússia que embarcaram em navios para os Estados Unidos. Sem dúvida, uma piada judaica sobre os Estados Unidos — e a enorme estátua que se encontra no porto de Nova York.

Mãe dos exilados.

Pai da discórdia.

Que distribui nomes bastardos.

Ele continuava viajando pelas duas estradas que havia imaginado aos catorze anos de idade, continuava caminhando pelas três estradas com Lazlo Flute e, por todo o tempo, desde o início de sua vida consciente, o sentimento persistente de que as bifurcações e as linhas paralelas das estradas escolhidas ou relegadas estavam, todas elas, sendo percorridas pelas mesmas pessoas, ao mesmo tempo, as pessoas visíveis e as pessoas da sombra, e que o mundo, tal como era, nunca poderia ser mais do que uma fração do mundo, pois o real consistia também naquilo que poderia ter acontecido, mas não aconteceu, que uma estrada não era nem melhor nem pior do que qualquer outra estrada, mas o tormento de estar vivo num corpo único residia no fato de que, a qualquer momento dado, era preciso estar numa só estrada, muito embora fosse possível estar em outra, viajando rumo a um lugar completamente distinto.

Idênticos, mas diferentes, ou seja, quatro garotos com os mesmos pais, os mesmos corpos e o mesmo material genético, mas cada um morava numa casa diferente, numa cidade diferente, com seu próprio conjunto de circunstâncias. Levados para um lado e para o outro por efeito daquelas circunstâncias, os garotos começariam a divergir, à medida que o livro avançasse, rastejando ou caminhando ou galopando em seu caminho através da infância, da adolescência e do início da vida adulta, como personagens cada vez mais distintos, cada um tinha seu caminho próprio, e separado, e, no entanto, todos eles eram a mesma pessoa, três versões imaginárias de si mesmo, e depois ele mesmo lançado no meio, como o Número Quatro, como um extra, o autor do livro, mas os detalhes ainda eram ignorados por ele naquela altura, só entenderia o que estava tentando fazer depois que começasse a fazer, mas o essencial era amar aqueles outros garotos como se fossem reais, amar tanto quanto amava a si mesmo, tanto quanto tinha amado o garoto que havia caído morto diante de seus olhos numa tarde quente de verão de 1961, e, agora que seu pai também estava morto, aquele era o livro que ele precisava escrever — para eles.

Deus não estava em lugar nenhum, disse para si mesmo, mas a vida estava em toda parte e a morte estava em toda parte, e os vivos e os mortos estavam juntos.

Só uma coisa era certa. Um por um, os Ferguson imaginários iriam morrer, assim como Artie Federman tinha morrido, mas só depois que ele tivesse aprendido a amá-los como se fossem reais, só depois que a ideia de vê-los morrer se tornasse insuportável para ele, e aí ele ficaria sozinho consigo mesmo, outra vez, o último homem que sobrou.

Daí o título do livro: 4 3 2 1.

Assim termina o livro — com Ferguson indo embora para escrever o livro. Levando duas malas pesadas e uma mochila, ele partiu de Nova York no dia 3 de fevereiro e viajou de ônibus para Montreal, onde passou uma semana com Luther Bond, e depois tomou um avião e atravessou o oceano rumo a Paris. Durante os próximos dois anos e meio, morou num apartamento de dois quatros na Rue Descartes, no quinto arrondissement, trabalhou com afinco em seu romance sobre os quatro Ferguson, que acabou virando um livro muito mais comprido do que havia imaginado e, quando escreveu a última palavra no dia 25 de agosto de 1975, o original alcançou o total de 1133 páginas datilografadas em espaço duplo.

Para ele, as passagens mais difíceis de escrever foram as que recontavam as mortes de seus adorados garotos. Como foi difícil evocar a tempestade que matou o jovem de treze anos, de semblante luminoso, e que angústia ele sentiu quando escreveu os detalhes do acidente de trânsito que pôs fim à vida do Ferguson-3, aos vinte anos de idade, e depois daqueles dois apagamentos necessários, porém horríveis, nada lhe causou mais dor do que ter de contar a morte do Ferguson-1, na noite de 8 de setembro de 1971, passagem que deixou para escrever só nas últimas páginas do livro, o relato do incêndio que consumiu a casa em Rochester, Nova York, quando Charlie Vincent, seu vizinho do térreo, pegou no sono com o cigarro aceso sobre a cama, um de seus Pall Mall, e acabou se incendiando junto com os lençóis e cobertores que o cobriam, e, enquanto as chamas se espalhavam depressa pelo quarto, subiram e acabaram tocando no teto, e, como a madeira daquela casa velha era seca e porosa, o fogo atravessou o teto e pôs em chamas o piso do quarto no primeiro andar e, assim, num piscar de olhos, o fogo engolfou tão depressa o adormecido jornalista, tradutor e amante de Hallie Doyle, de vinte e quatro anos de idade, que o quarto inteiro já estava em chamas antes que ele tivesse chance de pular da cama e rastejar até a janela.

Ferguson fez uma pausa. Levantou-se da escrivaninha, tirou um cigarro do bolso da camisa e caminhou em redor, e para trás e para a frente, entre os dois cômodos do pequeno apartamento, e, quando sentiu que sua mente estava clara o bastante para recomeçar, voltou para a escrivaninha, sentou-se na cadeira e escreveu os parágrafos finais do livro:

Se Ferguson tivesse sobrevivido àquela noite, acordaria na manhã seguinte e viajaria para Attica com Gianelli e, durante os cinco dias seguintes, escreveria matérias sobre a revolta na prisão, a tomada do presídio pela massa de mais de mil homens, que fecharam o estabelecimento, ao mesmo tempo que os rebelados tomaram trinta e nove guardas como reféns a fim de fazer pressão em favor de suas exigências de reformas. Havia pouca dúvida de que Ferguson-1 ficaria comovido com a solidariedade entre os presos. Quase todo mundo na prisão racialmente dividida se uniu no apoio às demandas e, pela primeira vez, até onde todos conseguiam lembrar, prisioneiros brancos, negros e latinos ficaram todos do mesmo lado. O outro lado se mexeu um pouco, mas não o bastante para oferecer alguma esperança. Rejeitaram a reivindicação de uma anistia, rejeitaram a reivindicação de substituir o superintendente da prisão e rejeitaram a reconhecidamente impossível reivindicação de dar aos rebelados um passe livre para sair do país, mesmo depois que o governo da Argélia prometeu aceitar todos eles. Quatro dias de negociações desgastantes e fracassadas entre os presos e o comissário do departamento de Serviços Correcionais, Russell Oswald, e, durante quatro dias seguidos, o governador Rockefeller se recusou ir à prisão para ajudar os dois lados a encontrar uma saída. Então, no dia 13 de setembro, veio a desconcertante ordem de Rockefeller para retomar a prisão à força. Às nove e quarenta e seis da manhã, guardas do batalhão de presídios e soldados da polícia estadual de Nova York se posicionaram no alto dos muros externos do presídio e abriram fogo contra os homens no pátio, matando dez reféns e vinte e nove presos, entre eles Sam Melville, que foi caçado e executado à queima-roupa, minutos depois que a barragem de tiros de fuzil havia parado. Além daquelas trinta e nove mortes, três reféns e oitenta e cinco presos ficaram feridos. O pátio ficou encharcado de sangue.

Logo depois do ataque, espalhou-se a notícia de que os presos tinham cortado a garganta dos dez reféns assassinados, mas, no dia seguinte, em Roch­ester, quando o médico legista do Condado de Monroe examinou os corpos dos dez guardas mortos, afirmou que nenhum deles tinha morrido por ferimentos de faca. Todos tinham sido baleados por seus colegas da polícia. Numa reportagem do New York Times, escrita por Joseph Lelyveld, no dia 15, o parente de um dos guardas massacrados, Carl Valone, viu o corpo e, depois disse: “Não havia nenhum corte. Nem mesmo tocaram no Carl. Foi morto por uma bala que trazia gravado o nome de Rockefeller”.

Nelson Rockefeller representava a ala liberal do Partido Republicano e, até o massacre de Attica, sempre fora visto como um homem de moderação e bom senso, mas em maio de 1973, mais uma vez, ele deixou o mundo perplexo ao impor à legislatura do estado de Nova York uma série de leis que estipulavam penas de quinze anos, no mínimo, até prisão perpétua, para quem vendesse cinquenta gramas ou mais de heroína, morfina, ópio, cocaína ou maconha, ou estivesse de posse de cem gramas ou mais das mesmas substâncias. As chamadas Leis das Drogas de Rockefeller eram as mais punitivas jamais aplicadas em qualquer estado do país.

Talvez ele tivesse sonhos de se tornar presidente e quisesse mostrar para o campo durão do público americano, defensor da lei e da ordem, que ele era muito durão; no entanto, por mais que sempre tivesse desejado se tornar o líder do Mundo Livre, não conseguiu ser indicado candidato à presidência do país pelo seu partido, perdendo em 1960, 1964 e 1968, para Nixon, Goldwater e Nixon de novo, mas quando o execrado Nixon renunciou à presidência em 1974, seu vice-presidente, Gerald Ford, que tinha assumido esse cargo depois da renúncia do execrado Spiro Agnew, assumiu o cargo de presidente e apontou Nelson Rockefeller para ser seu vice-presidente, o que tornou ambos os únicos presidente e vice-presidente da história dos Estados Unidos que ocuparam esses cargos sem terem sido eleitos pelo povo americano, e foi assim que, no dia 19 de dezembro de 1974, depois de uma votação de 287 a 128, na Câmara dos Deputados, e de 90 a 7, no Senado, Nelson Rockefeller foi empossado como o quadragésimo primeiro vice-presidente dos Estados Unidos.

Era casado com uma mulher chamada Happy.

 

 

                                                                  Paul Auster

 

 

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