ALFRED BRINKLEY ESTÁ sentado num dos banquinhos do deque superior. O sol de novembro o encara do alto como um enorme olho claro e ele o encara de volta enquanto a balsa atravessa a baía de São Francisco. Uma sombra o encobre, um garotinho se aproxima para pedir: – O senhor poderia tirar uma foto nossa? Alfred balança a cabeça com veemência. Não, não, não. A fúria parece tensionar seus músculos, como se um arame apertasse seu crânio. Você tem que esmagar esse menino como um inseto. Alfred desvia o olhar e canta mentalmente “Ai, ai, ai, ai, meu Sau-sa-lito-lindo...” para silenciar as vozes interiores. Em busca de consolo, afaga Bucky sob a jaqueta de náilon azul. Mas o gesto é vão e as vozes continuam martelando em sua cabeça. Seu panaca. Seu idiota. Gaivotas grasnam no céu como crianças barulhentas.
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O sol brilha através das nuvens, deixando o firmamento transparente como vidro. Elas sabem o que eu fiz. Turistas de bermuda e boné se espalham ao longo da amurada, fotografando Alcatraz, Angel Island e a Golden Gate Bridge. Um veleiro passa perto da embarcação, com a vela enfunada, espirrando água na borda da balsa. Alfred deixa o tronco cair com o peso dos pensamentos. Vê a retranca girar. Ouve o estalo forte. Meu Deus! O veleiro! Alguém tem que pagar! Com um barulho que assusta Alfred, os motores da balsa engatam marcha a ré e o deque vibra durante a atracação. Ele se levanta e abre caminho através de um grupo de turistas, atropelando mesas e cadeiras, provocando olhares de censura nos passageiros. Vai até o deque aberto da popa e se depara com uma mãe que repreende o filho, um garoto de nove ou 10 anos de cabelos castanhos. – Você está me deixando maluca! – grita a mulher. Alfred sente o arame se partir. Alguém tem que pagar! Enfia a mão no bolso da jaqueta e encontra Bucky. Encaixa o dedo no gatilho. A balsa dá um solavanco ao atracar. As pessoas buscam apoio umas nas outras, rindo, e depois se preparam para desembarcar. Alfred encara a mãe, que ainda humilha o filho. Uma mulher miúda com calça clara na altura das canelas e uma blusa branca de tecido fino que deixa entrever a silhueta dos seios e acentua o contorno dos mamilos.
– O que deu em você hoje, hein? – ruge ela por cima dos motores. – Está enchendo meu saco, sabia? Bucky está na mão de Alfred: um revólver que pulsa como se tivesse vida própria. A voz aumenta: Mate essa mulher. Mate essa mulher. Ela passou dos limites. Bucky está apontada para o centro do peito dela. Buum! Alfred sente o coice da arma, vê a mulher voar para trás com um grito de dor e a blusa manchada de sangue. Ótimo! O menino arregala os olhos ao ver a mãe estirada no chão, deixa cair o sorvete de morango e faz xixi nas calças. O garoto também está merecendo. Buum!
capítulo 2
IMAGENS DE VELAS BRANCAS povoam a mente de Alfred enquanto o sangue se espalha pelo deque. A sempre confiável Bucky ainda está quente em sua mão. Ele corre os olhos pelo convés. A voz em sua cabeça agora grita: Corra! Fuja! Você não queria fazer isso! Alfred vê de relance um homem grande correr em sua direção, o rosto crispado de fúria, os olhos soltando faíscas. Ele estica o braço. BUUM! Um oriental de olhos negros e sérios, com um risco branco no lugar da boca, tenta roubar Bucky de sua mão. BUUM! Uma mulher negra observa a cena de perto, paralisada pelo tumulto dos turistas. Ela se vira em sua direção com as bochechas vermelhas e os olhos arregalados. Encara-o com firmeza e lê a mente de Alfred. – Agora chega, filho – diz, estendendo a mão trêmula. – Entregue-me essa arma. Ela sabe o que você fez. Como isso é possível? BUUM! Alfred sente um grande alívio quando a mulher que leu sua mente desaba no chão. As pessoas se movem em ondas naquele espaço mínimo, protegendo-se, umas se jogando para a direita, outras para a esquerda. Alfred as acompanha com os olhos. Vê que estão com medo. Com medo dele. A seus pés, a mulher negra segura um celular entre os dedos ensanguentados. Arfando, ela digita os números com o polegar. Tarde demais. Alfred pisa na mão da mulher e se agacha. – Você devia ter me impedido! – diz ele, com os dentes trincados. – Era sua obrigação! Bucky a espeta na testa. – Não! – implora ela. – Por favor! Alguém grita: – Mamãe! Um rapaz magricela de aproximadamente 18 anos corre na direção dele segurando uma barra de ferro. A balsa balança e Alfred aperta o gatilho. BUUM! O tiro acerta na barra de ferro, que rodopia no ar e cai no chão. O jovem corre até a mulher e se joga sobre ela. Você quer protegê-la? As pessoas se escondem sob os bancos e os gritos parecem envolvê-lo como línguas de fogo. O ronco dos motores se mistura ao ruído metálico da prancha de desembarque que acaba de
ser baixada. Bucky continua apontada contra a multidão enquanto Alfred olha por sobre a amurada. Ele calcula a distância. Um metro e meio até a base da prancha e depois um salto grande até o cais. Alfred guarda Bucky no bolso, coloca as duas mãos na amurada e salta por cima dela, a queda amortecida pelo solado dos tênis. Uma nuvem cobre o sol, tornando-o quase imperceptível. Rápido, marujo. Pule! E assim ele faz. Salta para o cais e corre na direção do mercado de peixes, onde se mistura à agitação do estacionamento. Passa então a caminhar e, uma quadra adiante, chega ao centro comercial. Já está assobiando quando desce a escada da estação de metrô. E continua assobiando quando toma o trem de volta para casa. Você conseguiu, marujo.
PARTE 1
VOCÊ CONHECE ESTE HOMEM?
capítulo 3
EU ESTAVA DE FOLGA naquela manhã de sábado, na primeira semana de novembro, quando fui chamada até a cena de um crime porque meu cartão de visita fora encontrado no bolso da vítima. Agora me achava na sala escura de um sobrado na Rua 17, diante de um delinquente chamado José Alonzo. Sem camisa, ele estava jogado num sofá velho com os punhos algemados atrás das costas. A cabeça pendia sobre o peito e as lágrimas escorriam pelo queixo. Eu não estava nem um pouco comovida. – Já leu os direitos dele? – perguntei ao inspetor Jacobi, ex-parceiro e atual subordinado. Com 51 anos recém-completados, Jacobi já vira mais vítimas de homicídio em seus 25 anos na polícia do que muito oficial veria em toda a vida. – Li, sim, tenente. Antes de ele confessar. – O inspetor estava com os punhos cerrados ao longo do tronco, com uma expressão de repulsa no rosto. – Entendeu seus direitos? – perguntei a Alonzo. Ele assentiu e voltou a chorar, resmungando: – Eu não queria fazer isso, mas ela me deixou maluco! Uma menininha de três anos, com um laço branco encardido nos cabelos e uma fralda molhada que ia até os joelhos, agarrava-se à perna do pai, aos prantos. Aquilo, sim, me deixava comovida. – O que Rosa fez para deixar você tão “maluco”? – perguntei. – Estou muito interessada em saber. Rosa Alonzo jazia morta no chão, o belo rosto virado para a parede mofada, a cabeça rachada pelo ferro de passar que o marido havia usado para agredi-la. A tábua estava caída a seu lado e lembrava um cavalo morto. O ar ainda tinha o perfume do spray de passar roupa. Na última vez em que havíamos conversado, Rosa disse que não abandonava o marido porque temia que ele a matasse. Por mim, ela teria ido para bem longe com a filha. O inspetor Richard Conklin, parceiro de Jacobi e mais novo integrante do Departamento de Homicídios, foi até a cozinha e despejou num pote um pouco de ração para o gato que miava sobre a mesa de fórmica. – É possível que ele fique aqui por um bom tempo – explicou sem se virar para nós. – Ligue para a Secretaria de Proteção aos Animais – falei. – Já liguei, mas disseram que estão ocupados. – Conklin abriu a torneira da pia e encheu outro
pote de água. Alonzo novamente se manifestou: – Sabe o que ela disse para mim, tenente? “Vai trabalhar!” Caramba, isso me tirou do sério! Eu o encarei até que ele desviasse o olhar, dizendo à mulher morta: – Eu não queria ter feito isso, Rosa. Por favor, me dê mais uma chance! Jacobi o segurou pelo braço, fazendo com que ele se levantasse. – Ela perdoa, companheiro, ela perdoa... – falou. – Agora vamos dar um passeio. A menina voltou a chorar quando Patty Whelk, do Juizado de Menores, entrou na sala. – Oi, Lindsay – disse ela, contornando a vítima no chão. – E esta princesinha aqui, como se chama? Peguei a criança no colo, retirei o laço de seus cabelos encaracolados e entreguei-a para a assistente social. – Esta é a Anita Alonzo – informei. – Anita, esta é a Patty. Patty e eu trocamos um olhar de tristeza no instante em que ela acomodava a menina no colo. Enquanto a assistente social procurava uma fralda limpa no quarto, pedi a Conklin que esperasse pelo médico-legista e saí à rua na cola de Jacobi e Alonzo. – Até mais – despedi-me de Jacobi e fui até meu carro, estacionado junto ao lixo na calçada. Eu virava a chave na ignição quando meu celular tocou. Hoje é sábado, caramba! Quero um pouco de paz! Atendi no segundo toque. Era Anthony Tracchio, meu chefe. Ainda que as sirenes berrassem ao fundo, era possível perceber a tensão em voz: – Boxer, houve um atentado na balsa Del Norte. Três pessoas mortas. Há alguns feridos. Preciso de você aqui imediatamente.
capítulo 4
EU ESTAVA COM UM MAU pressentimento ao imaginar o que poderia ter tirado Tracchio do conforto de sua casa num sábado. E esses sentimentos pioraram quando avistei cinco viaturas estacionadas na entrada do píer e duas sobre a calçada nas extremidades da estação das balsas. Um policial veio em minha direção: – Por aqui, tenente. – E apontou para a rua que levava à parte sul do píer. Passei por viaturas, ambulâncias e caminhões dos bombeiros e estacionei perto do terminal. Ao sair do carro, senti o frio de 15 graus daquele dia nublado. Um vento agitava as águas da baía, fazendo com que a Del Norte batesse seguidamente contra o píer. A presença policial havia chamado a atenção das pessoas, que perambulavam entre a estação e o mercado, algumas tirando fotos, outras perguntando o que tinha acontecido. Era como se pudessem farejar pólvora e sangue no ar. Passei por baixo da fita amarela que isolava o píer, cumprimentei os policiais conhecidos e ergui o rosto ao ouvir Tracchio chamar meu nome. Ele estava na prancha da balsa. Usava um blazer de camurça, sapatos de couro e, como sempre, o cabelo penteado de modo a esconder sua calvície. Ele acenou para que eu entrasse na balsa. Caminhei até ele, mas logo no início da prancha precisei dar passagem a dois paramédicos que desciam carregando uma maca. Não pude deixar de olhar para a vítima: uma mulher negra com o rosto inteiramente coberto por uma máscara de oxigênio e o braço espetado por uma cânula de soro. O lençol que cobria seu corpo estava ensopado de sangue. Senti uma repentina dor no peito. Meu coração se manifestava antes mesmo que o cérebro pudesse concatenar os fatos. Claire Washburn! Minha melhor amiga foi baleada! Imediatamente me agarrei à maca, interrompendo sua descida e fazendo com que um dos paramédicos berrasse comigo: – Saia do caminho! – Sou policial – anunciei, abrindo a jaqueta para mostrar meu distintivo. – Você podia ser Deus! – rebateu o homem. – Ela está sendo levada para a emergência. Eu não conseguia me acalmar e meu coração estava prestes a sair pela boca. – Claire! – chamei, acompanhando a maca pelo píer. – Claire, sou eu, Lindsay! Está me ouvindo? Nenhuma resposta.
– Como ela está? – perguntei ao paramédico. – Você ainda não entendeu que precisamos levá-la ao hospital? – Responda, droga! – Eu não sei, caramba! Impotente, observei os dois homens abrirem as portas da ambulância. Quinze minutos haviam se passado desde o telefonema de Tracchio. Claire esperara no deque durante todo esse tempo, perdendo sangue, tentando respirar com uma bala dentro do peito. Segurei a mão da minha amiga enquanto as lágrimas brotavam nos meus olhos. Claire virou o rosto para mim e suas pálpebras tremeram. – Lindsay... – balbuciou. Retirei a máscara para que ela pudesse falar. – Onde está William? – Logo me lembrei: William, filho caçula de Claire, trabalhava nas balsas nos fins de semana, o que talvez explicasse a presença dela ali. – Nós nos separamos. Acho que ele foi atrás do atirador.
capítulo 5
CLAIRE REVIROU OS OLHOS e recolheu a mão. Os paramédicos colocaram a maca na ambulância, fecharam as portas e ligaram a sirene escandalosa. Minha melhor amiga seguia de ambulância para o Hospital Geral de São Francisco. Era uma corrida contra o tempo. O atirador fugiu e William correu atrás dele. Tracchio pousou a mão no meu ombro e disse: – Logo vamos ter o retrato falado do homem, Boxer. Sorri para ele e segui na direção do mercado de peixes, examinando cada rosto enquanto abria caminho através da vagarosa multidão. Era como andar no meio de um rebanho de gado. Eu olhava para cada uma das malditas barracas e para o espaço entre elas, passava os olhos pelos corredores, procurando desesperadamente por William. Mas foi ele quem me encontrou. Veio correndo em minha direção, berrando: – Lindsay! Lindsay! Sua camiseta estava encharcada de sangue. Ele ofegava com o rosto enrijecido pelo medo. Coloquei as mãos nos ombros dele e, chorando mais uma vez, disse: – William, você está ferido? Ele negou com um gesto de cabeça. – Este sangue não é meu. Mamãe levou um tiro! Então o abracei, um pouco mais aliviada. Ao menos William estava bem. – Sua mãe está a caminho do hospital – falei, sem coragem para dizer que ela ficaria bem. – Você viu o atirador? Como ele é? – Um cara branco e magricela – respondeu William, caminhando a meu lado em meio à multidão. – Tem barba e cabelo compridos, escuros. Ele ficou o tempo todo de cabeça baixa, Lindsay. Não consegui ver os olhos dele. – Quanto anos ele parecia ter? – Tipo... Alguns anos a menos que você. – Trinta e poucos? – Isso. E é mais alto do que eu. Mais de um metro e oitenta. Estava com uma calça cargo e uma jaqueta de náilon azul. Lindsay, ouvi-o dizer que era obrigação da mamãe evitar que ele atirasse em mais alguém. Que diabo ele queria dizer com aquilo? Claire é a legista-chefe de São Francisco. Uma patologista forense, não uma policial. – Acha que foi algo pessoal? Que o alvo dele era sua mãe? Que ele talvez a conhecesse? William balançou a cabeça de forma negativa.
– Eu estava ajudando a amarrar a balsa quando a gritaria começou – disse ele. – O homem atirou em outras pessoas primeiro. Mamãe foi a última. Ele estava com a arma apontada para a cabeça dela. Peguei uma barra de ferro para acertá-lo, mas o sujeito atirou em mim também. Depois pulou da balsa. Fui atrás dele, mas acabei perdendo-o de vista. Eu então me dei conta do que William tinha feito. Agarrando-o pelos ombros, falei alto: – E se você tivesse alcançado o sujeito, William? Você parou para pensar nisso? Aquele “cara branco e magricela” estava armado. Ele teria matado você! Lágrimas escorreram pelo rosto de William. Comovida, puxei-o para outro abraço e disse: – Mas você foi corajoso. Foi muita coragem sua proteger Claire. Acho que salvou a vida dela.
capítulo 6
DESPEDI-ME DE WILLIAM com um beijo antes de ele entrar na viatura de Pat Noonan, que o levaria até o hospital. Em seguida subi à balsa e me juntei a Tracchio no deque superior. Demorei a esquecer aquele cenário pavoroso. Os corpos estavam caídos naquele deque de 30 ou 40 metros quadrados, com pegadas de sangue em todas as direções. O lugar estava imundo: peças de roupas abandonadas (entre elas, um boné vermelho pisoteado), copos descartáveis, embalagens de cachorro-quente e folhas de jornal ensanguentadas. Fui tomada por um súbito desespero. O assassino poderia estar em qualquer parte e as pistas que nos levariam até ele haviam sido destruídas por turistas, policiais e paramédicos. Além disso, era impossível não pensar em Claire. – Você está bem? – perguntou Tracchio. Fiz que sim com a cabeça, mas com medo de começar a chorar. – Esta é Andrea Canello – disse Tracchio, apontando para o corpo de uma mulher de calça clara e blusa branca, deitada contra a amurada. – Segundo aquele rapaz ali – um adolescente de cabelos espetados e um nariz queimado de sol –, ela foi a primeira a ser atingida. Depois foi o filho dela, um menino de mais ou menos nove anos. – Ele vai sobreviver? – perguntei. Tracchio deu de ombros e disse: – Perdeu muito sangue. – Em seguida indicou outro corpo, um homem branco de cabelos grisalhos que aparentava uns 50 anos, caído atrás de um banco. – Per Conrad. Engenheiro. Trabalhava na balsa. Provavelmente ouviu os tiros e tentou ajudar. E aquele ali – mostrou o oriental de costas no centro do deque – é Lester Ng. Corretor de seguros. Outro que poderia ter sido herói. Segundo as testemunhas, o episódio não levou mais de três minutos. Comecei a imaginar a cena, levando em consideração o relato de William, as observações de Tracchio e as pistas que eu via no local. Tentava juntar as peças daquele quebra-cabeça a fim de formar um quadro que fizesse sentido. Perguntava-me se o ataque tinha sido planejado com antecedência ou se algo repentino o desencadeara. Neste último caso, o que teria provocado o atirador? – Um dos passageiros acha que viu o homem sentado sozinho ali, antes do incidente – informou Tracchio. – Disse que ele fumava um cigarro. Um maço de Turkish Specials foi encontrado sob uma das mesas. Segui Tracchio até a popa da balsa, onde estavam sentados vários passageiros em estado de choque. Alguns tinham a pele e as roupas respingadas de sangue. Outros fixavam olhos num
ponto imaginário. Ninguém dizia palavra. Policiais anotavam nomes, telefones, e colhiam o depoimento de algumas testemunhas. O sargento Lexi Rose se aproximou e disse: – Chefe. Tenente. Este é o Sr. Jack Rooney e ele tem boas notícias. Um homem idoso veio em nossa direção. Usava uma elegante jaqueta de náilon vermelha, óculos de armação enorme e, pendurada ao pescoço, uma minúscula câmera fotográfica. Apesar de sério, parecia satisfeito com algo. – Ele está aqui – disse, erguendo a câmera. – Filmei o psicopata em ação.
capítulo 7
CHARLES CLAPPER, CHEFE DA perícia criminal, atravessou a prancha com sua equipe e subiu na balsa pouco depois de as testemunhas terem sido dispensadas. Parou à nossa frente, cumprimentou Tracchio, piscou para mim e olhou ao redor. Em seguida enterrou as mãos nos bolsos do paletó de tweed, retirou um par de luvas de borracha e as vestiu. – Que bagunça, hein... – falou Clapper. – Vamos tentar ser otimistas – comentei, mas sem conseguir disfarçar a tensão. – Chamou a pessoa certa, tenente – retrucou ele. Fiquei ao lado de Tracchio enquanto os peritos se espalhavam pelo deque, distribuindo etiquetas, fotografando os corpos e os respingos de sangue que estavam por toda parte. Retiraram uma bala do casco da balsa e ensacaram um item que poderia nos levar ao assassino: o maço de cigarros encontrado sob uma das mesas da popa. – Preciso ir agora, tenente – informou Tracchio, conferindo as horas em seu Rolex. – Tenho uma reunião com o prefeito. – Quero comandar este caso – falei. – Pessoalmente. Ele me olhou com desconfiança, sem piscar. Eu sabia que tinha pisado num calo do meu chefe, mas era a única coisa que eu podia fazer naquelas circunstâncias. Tracchio era um homem bom e eu gostava dele. Mas havia subido na hierarquia sem colocar os pés para fora do gabinete, sem sujar as mãos de sangue numa cena de crime, portanto tinha tendência a ver as coisas sempre pelo mesmo ângulo. Ele queria que eu fizesse meu trabalho sentada atrás de uma mesa, mas é nas ruas que eu rendo mais. A última vez que eu disse que gostava de investigar, ele me chamou de ingrata, falando que eu tinha muito a aprender sobre liderança, que eu deveria fazer o que era esperado de mim e agradecer a sorte de ter sido promovida a tenente. E agora fazia questão de lembrar, de maneira ríspida, que um dos meus colegas foi morto nas ruas e que, poucos meses antes, Jacobi e eu havíamos sido baleados numa rua deserta do Tenderloin District. Ele tinha razão. Por muito pouco não morremos. Mas eu sabia que meu pedido não seria recusado. Minha melhor amiga estava com uma bala enterrada no peito e o atirador estava solto. – Vou trabalhar com Jacobi e Conklin. Apenas três pessoas. McNeil e Chi ficarão na retaguarda. Só chamarei outros oficiais em caso de extrema necessidade.
Tracchio assentiu a contragosto, mas ordenou que eu não perdesse tempo. Agradeci e imediatamente liguei para Jacobi. Em seguida entrei em contato com o hospital e soube que Claire ainda estava no centro cirúrgico. Saí da balsa levando a câmera de Jack Rooney. Assim que eu sentasse à minha mesa, examinaria o material que ele havia filmado e veria com meus próprios olhos o que tinha acontecido. Ainda atordoada com o episódio, desci a prancha e fui recebida no píer pelos repórteres das TVs e do jornal San Francisco Chronicle. Eu conhecia todos aqueles rostos. Câmeras enquadravam meu rosto, clicando sem parar. Microfones formavam um bloqueio à minha frente, impedindo que eu avançasse. – Foi um ataque terrorista, tenente? – Quem é o atirador? – Quantas pessoas morreram? – Calma, pessoal. Tudo acabou de acontecer – informei. Eu me perguntava por que eles não tinham cercado Tracchio ou qualquer um dos policiais ali, que certamente adorariam ver o próprio rosto no jornal da noite. – Os nomes das vítimas serão divulgados assim que falarmos com os familiares. Fiquem tranquilos – arrematei. – Nós vamos descobrir quem é esse marginal. Ele não ficará impune.
capítulo 8
PASSAVA DAS DUAS DA TARDE quando me apresentei ao médico de Claire, Al Sassoon, que segurava o prontuário da minha amiga na recepção da UTI. Ele tinha 40 e poucos anos, cabelos escuros e rugas de expressão que desciam do canto dos lábios. – É você quem está investigando o ataque? – perguntou. Fiz que sim com a cabeça e disse: – Além disso, Claire é minha amiga. – É minha amiga também – rebateu ele sorrindo. – Por ora, só o que posso dizer é que a bala perfurou uma costela e se alojou no pulmão esquerdo. Felizmente não atingiu o coração nem qualquer artéria importante. Claire vai sentir um pouco de dor na costela e terá de usar um dreno pleural até o pulmão voltar à sua função plena. Mas é uma mulher saudável e teve muita sorte. Sem falar que está sendo muito bem cuidada pelo nosso pessoal. As lágrimas que eu vinha segurando até então ameaçaram escorrer pelo meu rosto. Baixei os olhos e, com um nó na garganta, disse: – Eu gostaria de falar com ela. O atirador matou três pessoas. – Daqui a pouco ela vai acordar – falou Sassoon. O médico pousou a mão em meu ombro e abriu a porta do quarto de Claire para que eu entrasse. O encosto do leito estava levantado para facilitar a respiração. Claire tinha uma cânula nas narinas e outra espetada ao braço. Os olhos estavam inchados. Sob o tecido fino da camisola hospitalar se percebiam as bandagens que cobriam todo o peito. Eu nunca tinha visto minha amiga doente, muito menos ferida. Edmund, o marido dela, saltou da poltrona assim que me viu entrar. Estava com um aspecto horrível, o rosto crispado de medo e perplexidade. Larguei a sacola de compras que levava comigo e lhe dei um abraço demorado e forte. – Meu Deus, Lindsay – disse ele ao meu ouvido. – Isso não podia ter acontecido. Sussurrei todas as coisas que costumamos dizer quando as palavras nos faltam: – Logo, logo ela vai ficar boa, Edmund. Pode confiar. – Não sei... – ele desabafou assim que nos separamos. – Mesmo que ela fique boa... Você também já foi baleada, Lindsay. Por acaso conseguiu superar o trauma? Não sabia o que responder. A verdade era que eu ainda acordava suando no meio da noite sempre que sonhava com aquela noite terrível na Larkin Street. Eu me lembrava do impacto daquelas balas no meu corpo, da sensação de impotência, do medo de morrer. – E William? – dizia Edmund. – O mundo dele virou pelo avesso depois do que aconteceu.
Coitado. E essa bolsa aí? Posso ajudar? Ele pegou a sacola e a abriu para que eu pegasse o balão prateado com a mensagem “Fique boa logo” que seria amarrado ao leito de Claire. Em seguida pousei a mão sobre a de Claire e perguntei a Edmund: – Ela disse alguma coisa? – Abriu os olhos rapidamente e perguntou por William. Eu falei que ele estava bem. Depois ela disse que precisava voltar a trabalhar e apagou. Isso foi uma meia hora atrás. Tentei me lembrar da última vez que tinha visto Claire antes do ataque. Havia sido na véspera, no estacionamento em frente ao prédio da Central. Era fim de expediente. Uma despedida absolutamente banal. – A gente se vê, amiga – disse ela. – Vai pela sombra, Borboleta – chamei-a pelo velho apelido. Como se tivéssemos a certeza de que iríamos nos encontrar no dia seguinte. E se Claire tivesse morrido hoje? E se nunca mais eu voltasse a vê-la?
capítulo 9
EU AINDA SEGURAVA A MÃO de Claire quando Edmund voltou à poltrona e ligou a TV com o controle remoto. Com o volume do aparelho no mínimo, ele perguntou: – Já viu isso, Lindsay? Olhei para a tela, que exibia uma grande faixa preta com a seguinte mensagem: “Material impróprio para menores. Cenas de violência explícita.” – Vi, sim. Logo depois do ataque. Mas gostaria de ver outra vez. – Eu também – disse Edmund. Era o vídeo gravado na balsa por Jack Rooney. Juntos, Edmund e eu assistimos ao que Claire tinha enfrentado havia algumas horas. As imagens eram granuladas e trêmulas. De início focavam três turistas sorridentes que acenavam para a câmera com um veleiro ao fundo, dando lugar a uma bela tomada da Golden Gate Bridge. A câmera se movimentava pelo deque superior, mostrando garotos alimentando gaivotas com pedaços de pão. Um menino de boné vermelho desenhava tranquilamente com lápis de cor numa das mesas: era Anthony Canello. Sentado próximo à amurada, um barbudo muito magro beliscava o próprio braço distraidamente. Nesse instante a imagem congelou e o rosto do homem foi realçado por um círculo. – É ele – disse Edmund. – Será um maluco, Lindsay? Ou um assassino pronto a entrar em ação? – Talvez as duas coisas – respondi, mas sem tirar os olhos da TV, que agora exibia um segundo vídeo. Uma multidão se aglomera junto da amurada enquanto a balsa atraca no píer. De repente a câmera vira para a esquerda, focalizando o rosto desesperado de uma mulher que leva a mão ao peito e cai no chão. Anthony Canello, o menino de boné, olha diretamente para a câmera, mas um efeito aplicado à imagem desfoca intencionalmente seu rosto. Sinto um arrepio quando ele é lançado na direção oposta à do atirador. Nesse momento as imagens tremem bruscamente, como se Rooney tivesse sido atropelado por alguém, mas logo estabilizam. E o que vem em seguida faz com que eu leve a mão à boca e Edmund crave as unhas na poltrona: Claire se aproxima do atirador com o braço estendido. Embora não seja possível ouvir o que ela diz, não há dúvida de que minha amiga pede ao atirador que entregue a arma. – Quanta coragem – falei. – Meu Deus!
– Muita coragem – balbuciou Edmund, passando a mão sobre os cabelos grisalhos. – Claire e William. Os dois foram muito corajosos. O atirador está de costas para a câmera quando puxa o gatilho. É possível ver apenas os músculos de suas costas retesando no momento em que a arma é disparada. Claire leva a mão ao peito e desaba no chão. As imagens voltam a mostrar o terror no rosto da multidão, depois focalizam o atirador agachado, ainda de costas para a câmera. Ele pisa no antebraço de Claire e berra algo para ela. Ao ver a cena, Edmund não se contém: – Desgraçado! Claire balbuciou alguma coisa atrás de mim, mas quando virei ela ainda estava dormindo. Voltei os olhos para a TV, exatamente no momento em que o atirador se volta para a câmera, olhando para baixo, a barba escondendo a metade inferior do rosto. Estava vindo na direção de Rooney, que interrompe a filmagem. – Ele atira em William depois disso – falou Edmund. Então lá estou eu na tela da TV, os cabelos desgrenhados em razão da corrida até o mercado, os olhos arregalados numa expressão de espanto. “Quem tiver alguma informação que possa nos levar até este homem, por favor, entre em contato com a polícia” , eu dizia, e num corte seco minha imagem dá lugar à do atirador com o número do telefone e o site da Polícia de São Francisco na parte de baixo da tela. Em letras enormes, uma legenda dizia: VOCÊ CONHECE ESTE HOMEM? Edmund se virou para mim, visivelmente abalado: – Vocês já têm alguma coisa? – Temos este vídeo de Jack Rooney – apontei para a TV –, temos a cobertura da mídia, além de aproximadamente 200 testemunhas. Vamos encontrar este homem, Edmund. Eu prometo. Não contei a ele o pensamento que não saía da minha cabeça: Se este sujeito escapar, eu abandono a polícia. Levantei-me e peguei a sacola. Edmund perguntou: – Não pode ficar mais um pouquinho? Claire vai gostar de vê-la aqui. – Volto depois – respondi. – Agora preciso falar com uma pessoa.
capítulo 10
SAÍ DO QUARTO DE CLAIRE no quinto andar e desci de escada até a UTI pediátrica no segundo, já me preparando para a conversa que estava por vir. Não conseguia parar de pensar no pequeno Anthony Canello observando a mãe receber uma bala no peito segundos antes de levar um tiro também. Precisava perguntar se ele já tinha visto o atirador alguma outra vez, se o ouvira dizer qualquer coisa ao disparar a arma, se sabia de algum motivo para que ele e a mãe fossem escolhidos como alvo. Uma conversa da qual ele jamais se esqueceria, dependendo da maneira como eu a conduzisse. A polícia tem uma coleção de ursinhos de pelúcia para dar às crianças vítimas de algum trauma, mas eu os achava simplórios demais para oferecer a um menino que acabara de ver a mãe ser assassinada. Antes de seguir até o hospital eu havia parado numa loja de brinquedos artesanais e comprado um urso personalizado: pedi que costurassem um coração no peito e que bordassem nele meus votos de rápida recuperação. Os corredores da ala pediátrica tinham tons pastel, enfeitados com murais de arco-íris e cenas de piquenique. Por fim encontrei a UTI e mostrei meu distintivo à enfermeira de plantão, uma mulher de seus 40 anos com cabelos grisalhos e enormes olhos castanhos. Disse a ela que precisava entrevistar uma testemunha e que não demoraria mais que alguns minutos. – A senhora quer falar com Anthony Canello? O garotinho que levou um tiro na balsa? – São apenas três perguntas. Vou ser o mais cuidadosa possível. – Sinto muito, tenente – disse a enfermeira, encarando-me. – A cirurgia dele era arriscada demais. Vários órgãos vitais foram atingidos. Infelizmente não havia muito que fazer. Ele faleceu uns vinte minutos atrás. Ao ouvir aquelas palavras, deixei o corpo cair contra o balcão à minha frente. A enfermeira falava comigo, perguntando se podia fazer alguma coisa ou chamar alguém. Entreguei a ela a sacola com o ursinho e pedi que o desse à primeira criança que fosse internada na UTI. De alguma forma encontrei meu carro no estacionamento e voltei para a Central.
capítulo 11
O PRÉDIO DA POLÍCIA de São Francisco ocupa um quarteirão inteiro na Bryant Street. Seus dez andares abrigam também o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e uma prisão que toma todo o último andar. O Instituto Médico-Legal fica no prédio vizinho, interligado ao primeiro andar da construção principal por meio de uma passagem coberta, que eu agora atravessava a caminho do necrotério. Assim que abri a porta da sala de autópsias, deparei-me com o ar gelado do lugar. Eu andava ali como se estivesse em casa, hábito estimulado por minha melhor amiga Claire, a legista-chefe. Naturalmente não era minha amiga quem estava no alto de uma escada, fotografando o cadáver feminino estirado sobre a mesa. Era o substituto dela, um homem de 40 e poucos anos, mais ou menos um metro e setenta e cinco de altura, cabelos grisalhos e óculos de armação preta. – Dr. G. – falei, entrando na sala. – Olhe por onde pisa, tenente. Fazia apenas seis horas que o Dr. Humphrey Germaniuk assumira o comando dos trabalhos e suas pastas já estavam empilhadas junto à parede em pequenas torres meticulosamente organizadas, uma das quais atropelei ao entrar e precisei endireitar com o pé. Eu sabia que Germaniuk era perfeccionista, gostava de uma boa piada e se saía muito bem num banco de testemunhas. Na verdade, era tão qualificado quanto Claire, e já corria à boca pequena que era o candidato mais provável para substituí-la caso fosse necessário. – Como vão as coisas com Andrea Canello? – perguntei, aproximando-me do corpo sobre a mesa de autópsia. A “paciente” do Dr. G. estava em decúbito dorsal, nua, deixando à mostra o ferimento à bala no centro do peito. Já ia me debruçar para examiná-lo melhor quando o médico desceu da escada e se colocou no meu caminho. – Passagem proibida, tenente. Zona interditada para a polícia – anunciou com um sorriso nos lábios, embora não estivesse brincando. – Passaram por aqui uma vítima de abuso sexual, uma atropelada por um bonde e uma mulher com o crânio rachado por um ferro de passar roupa. As vítimas da balsa vão tomar o restante do dia, e eu mal comecei. Se tiver alguma pergunta, tenente, faça logo. Ou então deixe seu número de telefone na minha mesa e eu ligo quando terminar. O homem virou as costas e começou a medir o ferimento de Andrea Canello.
Com a cabeça latejando por causa do sermão que acabara de ouvir, afastei-me sem reclamar: não podia me dar ao luxo de me indispor com o Dr. G. Além disso, ele não havia feito mais que exercer seu direito. Na ausência de Claire, o necrotério, que já andava sobrecarregado ultimamente, estava numa situação de emergência. Germaniuk mal me conhecia e precisava proteger seu departamento, seu emprego, os direitos de seus pacientes e a integridade da investigação. E teria de fazer sozinho a autópsia de todas as vítimas da balsa. Se um segundo patologista fosse convocado para trabalhar naquele caso de múltiplos homicídios, um bom advogado de defesa conseguiria encontrar inconsistências que desacreditariam o depoimento de ambos. Mas apenas se encontrarmos o psicopata que matou essas pessoas e o levarmos a julgamento. O relógio já indicava quatro da tarde. Se Andrea Canello era a primeira vítima de Germaniuk, o mais provável era que seu trabalho ocupasse não só o resto do dia como também a noite inteira. E eu ainda tinha meus problemas. Quatro pessoas haviam morrido. Quanto mais o tempo passasse, maiores as chances do assassino escapar. – Dr. G. Ele ergueu os olhos de sua prancheta e me encarou com a testa franzida. – Desculpe a insistência, mas o assassino matou quatro pessoas e ainda não sabemos quem ele é, muito menos onde encontrá-lo. – Você quis dizer três pessoas – corrigiu o médico. – Apenas três vítimas vieram para cá. – Anthony Canello, o filhinho desta mulher, morreu no hospital meia hora atrás – expliquei. – Tinha nove anos. Portanto foram quatro pessoas e Claire Washburn está na UTI. A expressão de impaciência logo desapareceu dos olhos do Dr. Germaniuk. Com um tom de voz diferente, bem mais ameno, ele perguntou: – Em que posso ajudar?
capítulo 12
HUMPHREY GERMANIUK USOU uma sonda maleável para explorar o ferimento no peito de Andrea Canello. – Não posso afirmar nada antes de ouvir o especialista em armas de fogo, mas tudo indica que o atirador usou uma arma de calibre 38. Exatamente o que eu havia pensado ao ver a gravação, mas era preciso ter certeza. Jack Rooney virou a câmera para outra direção logo depois de Andrea Canello ser atingida. Caso tivesse resistido por alguns segundos, e se conhecesse o assassino, talvez ela tivesse gritado o nome dele. – Acha que ela poderia ter sobrevivido a esse tiro? – perguntei. – Sem chance – respondeu o médico. – Um tiro assim, direto no coração... Já estava morta antes de cair. – É muita precisão – observei. – Seis balas, cinco acertos. Com um revólver. – A balsa estava lotada. Era difícil alguém não acabar morto – disse ele casualmente. Ambos erguemos o rosto quando a porta metálica no fundo da sala se abriu e um técnico entrou empurrando uma maca. – Dr. G., onde o senhor quer que eu ponha isto aqui? Inteiramente coberto por um lençol, o corpo sobre a maca não tinha mais que um metro e vinte de comprimento. “Isto aqui” era uma criança. – Deixe aí mesmo – respondeu Germaniuk. – Depois trazemos para cá. Caminhamos até a maca e ele puxou o lençol. Olhar para o cadáver do menino me deixou arrasada. Anthony estava com a pele azulada e exibia no tórax uma incisão de 30 centímetros recém-suturada. Precisei conter o impulso de fazer carinho em seu rosto ou de passar a mão em seus cabelos, qualquer coisa que pudesse consolar uma criança que por azar havia ficado frente a frente com um maluco. – Sinto muito, Anthony. – Aqui está meu cartão – disse Germaniuk, tirando-o do bolso do jaleco para colocá-lo em minha mão. – Ligue para o celular se precisar de mim. Quando se encontrar com Claire, diga que vou fazer uma visita assim que possível. Fale também que estamos todos torcendo por ela. Que ela fique tranquila. Vamos cuidar de tudo por aqui.
capítulo 13
OS POLICIAIS DO MEU departamento puxaram suas cadeiras e estavam ao redor da minha mesa, fazendo perguntas e levantando hipóteses sobre o atirador da balsa Del Norte. Meu celular então tocou. Reconheci o número de Edmund e atendi imediatamente. Com a voz rouca e embargada, ele disse: – Claire acabou de fazer uma radiografia. Está com uma hemorragia interna. – Como assim, Edmund? O que houve? – A bala raspou no fígado. Vão ter de operá-la outra vez. Eu tinha acreditado no sorriso do Dr. Sassoon ao ouvir que Claire logo ficaria bem, mas o medo que eu sentia agora chegava a me dar náusea. Quando subi os degraus que levavam à UTI, encontrei uma sala de espera repleta de parentes e amigos de Claire, além de Edmund e dos dois filhos, William e Reggie. Este, de 20 anos, tinha acabado de chegar de Miami, onde cursava faculdade. Depois de abraçar todo mundo, sentei-me ao lado de Cindy omas e Yuki Castellano, também grandes amigas de Claire. Nós quatro formávamos o que apelidamos, de brincadeira, de o “Clube das Mulheres contra o Crime”. Ficamos ali à espera de alguma notícia. Ao longo daquelas intermináveis horas de tensão, relembramos velhas histórias engraçadas de Claire enquanto bebíamos café morno e comíamos chocolate comprado nas máquinas do corredor. Nas primeiras horas da manhã, Edmund pediu que rezássemos. Todos nos demos as mãos e ele pedia a Deus pela vida da esposa. Esperávamos que, com a união do nosso pensamento, Claire sobrevivesse à cirurgia. Naquela madrugada angustiante eu me lembrei da ocasião em que fui baleada e do apoio e do carinho que recebi de Claire e Cindy. Também recordei outros momentos em que tive de esperar em salas como aquela: o câncer da minha mãe e o AVC da mãe de Yuki. As duas tinham morrido. – Onde estará agora esse atirador desgraçado? Fumando um cigarro? Dormindo numa cama macia e planejando o próximo ataque? – perguntou Cindy, revoltada. – Não está numa cama – respondeu Yuki. – Aposto 10 pratas que está na rua, dormindo numa caixa de papelão. Já eram cinco da manhã quando o Dr. Sassoon finalmente apareceu, exausto, para dar notícias. – Claire está bem – disse ele. – Reparamos o dano no fígado e a pressão arterial está voltando ao normal. Todos os sinais vitais também aparentam normalidade.
O alívio foi tão grande que as pessoas começaram a aplaudi-lo. Edmund abraçou os filhos, os três homens com lágrimas nos olhos. O médico sorria. Era um herói, quanto a isso não havia dúvida. Voltei para casa e ainda encontrei energia para dar uma corrida na vizinhança com minha border collie Martha. Em seguida liguei para Jacobi enquanto via o sol se levantar no horizonte. Às oito em ponto me encontrei com ele e Conklin no saguão da Central. Era domingo. Eles traziam café e sanduíches de presunto. Eu amava aquela dupla. – Ao trabalho! – falei.
capítulo 14
CONKLIN, JACOBI E EU nos acomodávamos no meu cubículo quando vimos pela vidraça os inspetores Paul Chi e Cappy McNeil entrarem na sala de 50 metros quadrados que abrigava os 12 integrantes do Departamento de Homicídios. Cappy, com seus mais de 100 quilos, fez ranger a cadeira em que se sentou. Chi, um homem esguio, estacionou o traseiro magro na bancada ao lado de Jacobi, que naquele momento tinha mais um de seus frequentes acessos de tosse. Com todos os lugares ocupados, Conklin permaneceu de pé atrás de mim, apoiando-se na janela que dava para a rua e com as pernas cruzadas. Eu sentia um calor às minhas costas, que vinha daquele corpo de 29 anos, bem torneado, um metro e oitenta e cinco de puro músculo, cabelos castanhos caindo sobre os olhos escuros e que era uma mistura de John Kennedy Jr. com um fuzileiro naval. Chi colocou sobre minha mesa a edição de domingo do Chronicle. A foto do atirador, uma imagem retirada do vídeo feito por Jack Rooney, estampava a primeira página com a legenda: VOCÊ CONHECE ESTE HOMEM? Todo mundo se debruçou sobre o jornal para examinar novamente aquele rosto. A cabeleira descia até a altura do queixo e a barba escondia toda a área que ia do lábio superior até o pomo de adão. – Jesus Cristo! – disse Cappy. Nós quatro olhamos para ele. – Que foi? Só estou dizendo que o cara parece Jesus Cristo. – Não vamos conseguir nada do laboratório numa manhã de domingo – falei –, mas temos isto aqui. Retirei da minha gaveta uma fotocópia que mandara fazer do maço de cigarros encontrado na balsa. – E também isto aqui – emendei, pousando a mão sobre a pilha de papéis à minha frente: depoimentos de testemunhas, recados telefônicos e e-mails enviados ao site da nossa corporação. – Podemos dividir isso aí entre nós – sugeriu Jacobi. Seguiu-se uma discussão até que Chi, erguendo a voz, disse: – Espere aí! O maço pode nos levar a algum lugar! Uma marca como Turkish Specials só é vendida em lojinhas de bairro, dessas familiares. E se um desses proprietários se lembrar da cara do atirador?
– Tudo bem – falei. – Podem ir em frente. Jacobi e Conklin levaram metade dos depoimentos para suas mesas e começaram a telefonar. Chi e McNeil também fizeram algumas ligações antes de sair para a rua. Assim que me vi sozinha, passei a examinar o que Brenda, assistente do departamento, havia pesquisado sobre as vítimas. Nenhuma delas tinha ficha na polícia. Imaginando algum vínculo entre o atirador e os mortos, comecei a ligar para os números listados nos depoimentos, mas não obtive nada de útil nas primeiras conversas. Até que falei com o bombeiro que estava a alguns metros de Andrea Canello no momento em que o assassino abriu fogo. – Ela estava brigando com o filho quando o cara a acertou – contou o homem. – Eu estava quase me intrometendo para que ela pegasse leve com o menino, mas aí... ela já estava morta. – O que ela estava dizendo? Você lembra? – “Você está enchendo meu saco, garoto!” Alguma coisa assim. Foi terrível! E o garoto? Sobreviveu? – Infelizmente, não. Fiz mais algumas anotações, tentando reunir pequenos fragmentos em pequenas peças que mais tarde pudessem formar um quadro geral. Bebi o que restava do meu café e disquei para a pessoa seguinte na lista. O homem se chamava Ike Quintana e havia ligado na véspera, dizendo que ele e o atirador talvez já tivessem sido amigos 15 anos antes. Agora ele explicava: – Parece muito com esse meu amigo. Se for ele mesmo, esteve internado comigo no Hospital Estadual de Napa no fim dos anos 1980. – Eu prestava atenção em cada palavra. Não queria perder uma única sílaba. – A senhora entendeu, não entendeu? Ele e eu passamos um tempo no mesmo hospício.
capítulo 15
DESENHEI UMA ESTRELA ao lado do número de telefone de Ike Quintana. – Qual é o nome do seu amigo? – perguntei, apertando o fone contra o ouvido, mas Quintana começou a se esquivar. – Prefiro não dizer. De repente nem é ele. Tenho uma foto. Se quiserem, podem vir aqui dar uma olhada. Mas venham logo. Sou muito ocupado. – Nem pense em sair de casa, pois já estamos indo. Fui até a sala e gritei: – Temos uma pista. Um endereço na San Carlos Street. – Eu gostaria de continuar com os telefonemas. Estamos recebendo novos vídeos do ataque – falou Conklin. Jacobi se levantou, vestiu o paletó e disse: – Eu dirijo, Boxer. Eu conhecia Jacobi havia 10 anos e trabalhara ao lado dele por três anos até ser promovida a tenente. Durante o tempo em que formamos uma dupla desenvolvemos uma amizade profunda e uma conexão quase telepática. Mas desconfio que nem ele nem eu tínhamos consciência desse vínculo até a noite em que fomos baleados por dois adolescentes drogados. A proximidade da morte nos uniu ainda mais. E agora ele nos conduzia a uma das áreas mais pobres e perigosas da cidade, nas redondezas do Tenderloin District. Finalmente encontramos o endereço que Ike Quintana havia nos passado, um prédio de dois andares que abrigava uma espécie de templo no primeiro e dois apartamentos no segundo. Toquei a campainha e a porta se abriu. Depois de atravessarmos um saguão escuro, Jacobi e eu subimos os degraus que levavam a um corredor acarpetado fedendo a mofo. Havia uma porta em cada lado do corredor. Bati no apartamento 201 e fomos atendidos depois de uns 15 segundos. Ike Quintana era um homem branco, cabelos pretos arrepiados, com uns 30 e tantos anos. Vestia-se de maneira estranha: uma camiseta podia ser vista sob o colarinho da camisa de flanela. Para dar o toque final, o homem tinha um cardigã cor de cobre desabotoado que chegava na altura dos quadris. As calças eram de pijama, listradas de azul, e os chinelos, de feltro marrom. Abrindo um sorriso simpático, apesar dos dentes que faltavam em sua boca, ele estendeu a mão para nos cumprimentar e nos convidou a entrar. Jacobi se adiantou e eu segui atrás dos dois homens, atravessando um túnel de jornais velhos e de sacos de lixo transparentes que iam até o teto, repletos de latas de refrigerante. Na sala,
caixas de papelão transbordavam de moedas, canetas e embalagens vazias de detergente. – Vejo que você está preparado para o que der e vier – murmurou Jacobi. – A ideia é essa – devolveu Quintana. Panelas e latas se espalhavam por todos os lados da cozinha e a mesa tinha sido transformada em uma espécie de arquivo: recortes de jornal cobertos por uma toalha azul, mais recortes protegidos por uma toalha vermelha e assim sucessivamente até formar uma pilha de 30 centímetros de altura. – Acompanho beisebol desde criança – disse o homem timidamente, oferecendo-nos café em seguida. Jacobi e eu agradecemos, mas ainda assim ele acendeu uma das bocas do fogão e colocou água para ferver. – Você tem a foto para nos mostrar? – perguntei. Quintana colocou um velho engradado de madeira sobre a mesa e remexeu fotografias, cardápios e pequenos objetos que eu não consegui identificar. – Aqui está – disse afinal, mostrando uma foto desbotada. – Acho que foi tirada por volta de 1988. Cinco adolescentes (duas moças e três rapazes) viam TV no que parecia ser a sala de recreação de uma clínica. – Este aqui sou eu. – Quintana apontava para uma versão mais jovem de si mesmo, um rapaz que se esparramava numa poltrona laranja. Aparentemente já tinha o hábito de se vestir em camadas de roupas. – Estão vendo este outro aqui, perto da janela? Olhei para a foto. Era um jovem muito magro, com cabelos compridos e uma barba muito rala. O rosto estava de perfil, portanto poderia ser o atirador ou um jovem qualquer. – Estão vendo como ele puxa os pelos do braço? – perguntou Quintana. Confirmei com um gesto de cabeça. – Por isso achei que esse meu amigo pudesse ser o atirador. Ele passava horas fazendo isso. Eu adorava o cara, até coloquei nele o apelido de Fred-a-lito-lindo por causa de uma música que ele não parava de cantar. – Qual é o nome verdadeiro dele? – perguntei. – Era muito deprimido – disse Quintana. – Por isso deu entrada no Hospital de Napa. O coitado se internou. Houve um acidente e a irmã caçula dele morreu. Alguma coisa com um veleiro, eu acho. Quintana desligou o fogão e se afastou. Só então me ocorreu: Se houver um incêndio, este lugar vai ser reduzido a pó. – Sr. Quintana, por favor, não nos obrigue a repetir a pergunta, certo? – resmungou Jacobi. – Qual é o nome do homem? Embrulhado em roupas que eliminavam qualquer dúvida de que estávamos diante de um acumulador compulsivo, mas com o porte aristocrático de um senhor de terras, Quintana voltou à mesa com seu café numa xícara lascada e respondeu:
– O nome dele é Alfred. Alfred Brinkley. Francamente não sei se ele mataria aquelas pessoas. Ele é o sujeito mais doce do mundo.
capítulo 16
ENQUANTO JACOBI DIRIGIA de volta a Bryant Street, liguei para Richard Conklin e pedi a ele que pesquisasse o nome de Brinkley no banco de dados. Chi e Cappy nos aguardavam em um bar em frente ao prédio da Central. Jacobi e eu nos juntamos a eles, pedimos um chope e então ouvimos o relatório da dupla. – Interrogamos um sujeito na tabacaria que fica na esquina da Polk com a Vallejo – disse Chi, indo direto ao ponto. – Um velhote que é proprietário do estabelecimento. Segundo ele, são vendidos dois maços de Turkish Specials por mês e sempre para o mesmo freguês. Conklin entrou no bar, sentou-se à mesa, pediu uma cerveja e um hambúrguer malpassado. A expressão no rosto do inspetor sugeria que ele arquitetava algo. – Meu parceiro aqui ficou todo empolgado só por causa de um maço de cigarros – falou Cappy. – E não era para ficar? – rebateu Chi. – Sem enrolação, por favor – resmungou Jacobi. As bebidas chegaram. Jacobi, Conklin e eu erguemos nossos copos para Don MacBain, dono do bar, um ex-capitão da Polícia de São Francisco cujo retrato decorava a parede atrás do balcão. Chi continuou: – Daí o velhote disse que o tal freguês era um grego de mais ou menos 80 anos. Mas depois pediu para ver a foto outra vez. Cappy tomou a palavra: – Então peguei a foto e praticamente esfreguei no nariz dele, e o homem disse: “É ele? Este homem vinha comprar jornal aqui todos os dias. Foi ele quem atirou naquelas pessoas?” Jacobi chamou a garçonete novamente. – Syd, vou querer um hambúrguer também. Ao ponto e com fritas. Falando ao mesmo tempo que meu ex-parceiro, Chi continuou: – Então o velhote falou que não sabia o nome do homem, mas achava que ele morava do outro lado da Vallejo, no número 1.513. – A gente foi para lá e... – acrescentou Cappy. – Vamos logo com isto, pelo amor de Deus! – disse Jacobi, esfregando os olhos com os dedos e louco para ouvir a conclusão daquela história. – Conseguimos um nome – terminou Cappy. – O síndico do prédio reconheceu a foto na mesma hora. Disse que o sujeito tinha sido despejado dois meses antes, logo depois de perder o emprego.
– Que rufem os tambores! – brincou Chi. – O nome do atirador é... Alfred Brinkley! Foi triste ver a decepção nos olhos da dupla, mas eu precisei dizer: – Obrigada, Paul. Mas já sabemos o nome dele. Vocês descobriram onde ele trabalhava? – Descobrimos, tenente. Na Livraria Sam, na Mason Street. Virando-me para Conklin, falei: – Richard, você está parecendo o gato da Alice. Desembucha! Até então ele acompanhava a conversa com um sorrisinho no rosto, esparramado na cadeira, equilibrando-a nas duas pernas de trás. Mas então se ajeitou e se debruçou sobre a mesa, dizendo: – Brinkley não tem antecedentes criminais. A propósito, serviu na base militar de Presidio por dois anos. Foi dispensado por motivos médicos em 1994. – Ele conseguiu entrar no Exército depois de ter sido internado num hospital psiquiátrico? – perguntou Jacobi. – Era um garoto quando passou pelo Hospital de Napa – respondeu Conklin. – De qualquer maneira, o recrutamento em Presidio não deve ter sido lá muito rigoroso. O atirador começava a ganhar um rosto. Eu agora tinha uma resposta, por mais assustadora que fosse, para a pergunta que vinha me atormentando desde o ataque. Brinkley atirava tão bem porque fora treinado no Exército.
capítulo 17
ÀS NOVE HORAS DA MANHÃ SEGUINTE, Jacobi, Conklin e eu estacionamos na Mason, esquina com a North Point. Estávamos a duas quadras da Fisherman’s Wharf, uma área turística da cidade repleta de hotéis, restaurantes, locadoras de bicicleta e lojas de suvenir. Os ambulantes começavam a armar suas barracas de quinquilharias nas calçadas. Eu estava tensa quando entramos no amplo salão da livraria. Jacobi mostrou seu distintivo à vendedora mais próxima, perguntando se ela conhecia Alfred Brinkley. A moça chamou o gerente. Descemos com ele de elevador até o porão e lá fomos apresentados ao supervisor do estoque, Edison Jones, um homem de aproximadamente 30 anos e pele escura. O sujeito vestia uma camiseta do grupo Duran Duran e tinha um piercing no nariz. Demos uma olhada no local. Milhares de prateleiras eram sustentadas por paredes de concreto. Mais ao fundo havia uma enorme porta de metal, que dava acesso à rampa de carregamento. Àquela hora o lugar estava movimentado, com funcionários empurrando carrinhos repletos de livros. – Alfred e eu éramos amigos – disse Jones. – Não que saíssemos para tomar cerveja, mas era um cara inteligente e eu gostava dele. No entanto, ele começou a ficar esquisito depois de um tempo. Jones baixou o volume da TV que estava sobre uma mesa de metal atulhada de faturas e materiais de escritório. – Esquisito como? – perguntou Jacobi. – Às vezes ele virava para mim e falava: “Você ouviu o que o repórter acabou de me dizer?” Como se a TV estivesse se dirigindo a ele, sabe? Também andava meio agitado, assobiando e cantarolando. Os gerentes começaram a ficar preocupados – recordou Jones, passando a mão sobre a camiseta. – Assim que Alfred começou a faltar ao trabalho, a direção achou um motivo para mandá-lo embora. Guardei os livros dele. – De uma prateleira próxima, o funcionário puxou uma caixa e a colocou sobre a mesa. Abrindo-a, deparei-me apenas com grandes autores: Jung, Nietzsche e Wilhelm Reich. Também havia um velho exemplar de A origem da consciência no colapso da mente bicameral, de Julian Jaynes. Retirei-o da caixa e Jones disse: – Era o livro favorito dele. Eu tinha certeza que ele ia voltar para buscar, mas não voltou. – Do que se trata? – Segundo Alfred, a teoria de Jaynes é que, até mais ou menos três mil anos atrás, os hemisférios do cérebro humano não eram conectados. Ou seja, as duas metades não se
comunicavam entre si. – E daí? – perguntou Jacobi. – Para o autor, naquela época as pessoas acreditavam que os pensamentos vinham de fora, que eram ordens dos deuses. – Então Brinkley estava o quê? – refletiu Jacobi. – Ouvindo vozes dos deuses da televisão? – Acho que ele ouvia vozes o tempo todo. E elas diziam a ele o que fazer. O relato de Jones me deixou arrepiada da cabeça aos pés. Mais de 48 horas haviam se passado desde o incidente na balsa. Enquanto tateávamos no escuro, Brinkley continuava à solta, recebendo ordens de vozes que só ele ouvia, levando consigo uma arma. – Você faz ideia de onde ele possa estar? – perguntei. – Mês passado eu o vi em frente a um bar – respondeu Jones. – Com um aspecto terrível. Barbudo. Até brinquei, dizendo que ele tinha voltado para o tempo das cavernas. Mas ele parecia meio abobado, nem olhou para mim. – Onde foi isso? – Na calçada do Bar White Horse, na Geary. Alfred não bebe, então talvez estivesse hospedado no hotel que fica em cima do estabelecimento. Eu conhecia o lugar. O Hotel Barbary era uma das muitas espeluncas do Tenderloin District, frequentado sobretudo por prostitutas, traficantes e viciados. O lugar era praticamente um chiqueiro. Se Alfred Brinkley estava morando no Barbary no mês anterior, era bem provável que ainda estivesse por lá.
capítulo 18
O SERVIÇO DE METEOROLOGIA tinha previsto chuva, mas o sol brilhava forte no céu. Alfred Brinkley ergueu a mão para proteger os olhos, mas era como se seus dedos fossem transparentes. O homem buscou abrigo na escuridão do metrô, descendo às pressas os degraus que levavam à estação do Civic Center, a qual ele costumava frequentar quando ainda tinha emprego. Caminhava com os olhos baixos, acompanhando os próprios passos sobre o conhecido piso de mármore branco e bordas de granito preto, atravessando o mezanino sem olhar para os escravos corporativos que compravam jornais, flores ou água antes de embarcar. Não queria captar nenhum pensamento daqueles cérebros robotizados, tampouco encarar o olhar torto daquelas pessoas bisbilhoteiras. Tomou a escada rolante para a plataforma, mas, em vez de se acalmar, percebeu que, quanto mais descia, mais nervoso e irritado ficava. As vozes tinham voltado com os xingamentos de sempre. Sem tirar os olhos do chão, ele cantarolou mentalmente: “Ai, ai, ai, ai, meu metrô-litolindo...” Precisava calar aquelas vozes. Assim que chegou ao terceiro subsolo, percebeu o erro que havia cometido. A plataforma estava repleta de zumbis que voltavam do trabalho para casa. Os casacos escuros lhes davam a aparência de nuvens carregadas, como se perfurassem Alfred com seu olhar, cercando-o e encurralando-o. As imagens que vira antes, nas TVs de uma loja de eletrodomésticos, voltaram a atormentá-lo. Imagens que o mostravam atirando nos passageiros da balsa. Você fez aquilo! Resmungando e cantarolando, Alfred ziguezagueou por entre a multidão até alcançar o último centímetro de plataforma e por pouco não caiu sobre os trilhos. Podia sentir o ódio e o olhar acusatório ao seu redor, o que só aumentava sua fúria. Os azulejos brancos das paredes pareciam latejar. Olhando de esguelha, podia ver as pessoas o encarando, lendo sua mente. Sua vontade era gritar: “Fui obrigado a fazer aquilo! Cuidado! Vocês podem ser os próximos!” Baixou os olhos para os trilhos, imóvel, as mãos enterradas nos bolsos, a direita fechada sobre Bucky. Eles sabem, dizia a voz em sua mente. Podem enxergar sua alma, Alfred. Uma voz estridente chamou às suas costas: – Ei, você aí! Virando o rosto, Brinkley se deparou com uma mulher de queixo fino e minúsculos olhos
pretos que, dedo em riste, dizia: – É ele. Este homem estava na balsa. Ele estava lá. É o atirador da balsa. Alguém chame a polícia! As coisas pareciam fora do controle. Todos ali sabiam o que ele havia feito. Seu panaca! Seu burro! Ai, ai, ai, ai, aiiiii... Alfred sacou Bucky do bolso e a apontou para o alto. As pessoas começaram a gritar e se afastar. O túnel escuro começou a rugir, cuspindo a carcaça prateada que agora adentrava a estação ruidosamente, abafando os demais barulhos e pensamentos. Os passageiros desembarcavam como ratos na plataforma, enquanto uma multidão se espremia para entrar nos vagões, atropelando Alfred com a força de uma avalanche, espremendo-o contra os pilares de concreto, expulsando o ar de seus pulmões. Ele enfim conseguiu se desvencilhar. Abrindo caminho através da massa compacta, correu para a escada rolante e foi subindo os degraus de dois em dois, acotovelando-se com os roedores que bloqueavam o caminho até o ar puro das ruas. Na sua cabeça, as vozes não paravam de gritar: Depressa! Mova este seu traseiro velho!
capítulo 19
O RELÓGIO DIGITAL DO MICRO-ONDAS marcava 19:08. Eu estava exausta após um dia inteiro revirando o Tenderloin District para no fim sair de lá apenas com uma lista de todos os lugares onde Alfred Brinkley não morava. Além de cansada e frustrada, também me sentia aflita. O suspeito ainda estava pelas ruas. Coloquei água para ferver e despejei um pacote de macarrão instantâneo na panela. Enquanto esperava, fui relembrando o dia, tentando encontrar algo que talvez tivesse passado despercebido ao longo da nossa visita a mais de 50 hoteizinhos baratos, das conversas inúteis que havíamos tido com recepcionistas e hóspedes. Martha se aproximou balançando o rabo. Fiz um carinho em suas orelhas, pus mais ração e ela baixou a cabeça no pote, rebolando o corpo peludo. – Boa menina – falei. – Minha grande companheira. Eu tinha acabado de abrir uma cerveja quando a campainha tocou. Quem será? Arrastei-me até a janela para espiar quem havia tido a coragem de aparecer àquela hora, mas não reconheci o homem na calçada. Notei apenas que o sujeito estava barbeado e segurava um envelope. – O que você quer? – perguntei. – Uma entrega, tenente. É urgente. E você precisa assinar. Quem será esse homem? Um oficial de justiça? Um vendedor? O temporizador apitou às minhas costas, avisando que meu jantar estava pronto. – Deixe na caixa de correio! – berrei de volta. – Eu até poderia fazer isso – disse o visitante. – Mas a senhora falou na TV, “Você conhece este homem?” Lembra? – E você conhece? – Eu sou ele. Eu fiz aquilo.
capítulo 20
EU NÃO TIVE REAÇÃO. O atirador da balsa está à minha porta? Balancei a cabeça como se acordasse de um sonho e gritei: – Estou descendo! Peguei meu coldre pendurado no encosto de uma cadeira e prendi as algemas no cinto. Liguei para Jacobi no celular, rezando para que ele viesse logo. Era bem possível que eu estivesse fazendo uma besteira, mas, se o homem na rua fosse mesmo Alfred Brinkley, eu não poderia correr o risco de deixá-lo escapar. Empunhei minha pistola e abri uma fresta na porta, usando-a como proteção. – Mantenha suas mãos onde eu possa vê-las – gritei. O homem parecia hesitante. Ameaçou ir embora, mas voltou na direção da porta, cantarolando baixinho e olhando para os lados. Meu Deus do céu! Ele é maluco mesmo. Onde será que a arma está escondida? – Mãos para cima e fique onde está! Ele se acalmou e ergueu os braços, abanando o envelope no alto como se fosse uma bandeira branca. Examinei seu rosto, comparando-o com a imagem que eu fazia do atirador. O homem à minha frente estava barbeado, mas o trabalho tinha sido péssimo, pois eu enxergava pequenos tufos pretos em partes do seu rosto. Com exceção deste último detalhe, ele podia estar dizendo a verdade. Era alto e magricela e usava roupas idênticas ou semelhantes às que o atirador havia usado dois dias antes. Será que ele é Alfred Brinkley? Como um assassino bate à porta de uma policial para se entregar? Ou será que estou diante de um maluco carente de atenção? Cheguei até a calçada, apertando minha arma com as duas mãos, apontando-a contra o peito do homem. Em poucos segundos senti o fedor que ele exalava. – Sou eu – disse ele, olhando fixamente para os próprios sapatos. – Você disse que estava à minha procura. Vi na TV. Na vitrine de uma loja. Ele cambaleou um instante e eu berrei: – Deitado no chão! Agora! Ele se deitou de bruços, cruzando as mãos sobre a cabeça. Com minha pistola encostada contra a nuca do sujeito, revistei-o em busca de alguma arma. Encontrei um revólver no bolso do paletó, guardei-o na cintura da minha calça e procurei nos outros bolsos. Não havia mais nada. Guardei minha pistola no coldre e puxei as algemas do cinto.
– Qual é seu nome? – perguntei, imobilizando seus braços magros. Em seguida recolhi o envelope caído na calçada e o guardei no bolso. – Alfred Brinkley – respondeu ele agitado. – Você já me conhece. Pediu que eu me entregasse, não lembra? “Nós vamos descobrir quem é este marginal.” Está tudo escrito aí. As imagens da gravação de Jack Rooney voltaram à minha cabeça. Vi aquele homem atirando nas pessoas. Atirando em Claire. Com a mão trêmula retirei a carteira do bolso de suas calças e examinei os documentos sob a luz fraca da rua. Era mesmo Alfred Brinkley quem estava ali. Eu o havia pegado. Informei-o de seus direitos, dos quais ele abriu mão, repetindo: – Sou o atirador da balsa. Fui eu que fiz aquilo. – Como me encontrou? – perguntei. – Seu endereço está na internet. No computador da biblioteca – respondeu. – Me prenda, por favor. Tenho medo de fazer de novo. Foi então que Jacobi chegou, freando bruscamente e saindo do carro com a arma em punho. – Puxa, Boxer, você nem esperou por mim. – Sr. Brinkley está cooperando, Jacobi. Tudo sob controle. Ao ver Jacobi ali, e sabendo que o perigo havia passado, fui tomada de um alívio repentino, uma vontade quase incontrolável de rir e chorar ao mesmo tempo. – Belo trabalho – ouvi meu amigo dizer, sua mão pousada em minhas costas. Respirei fundo para me acalmar. Ajudamos Brinkley a ficar de pé e se acomodar no banco traseiro do carro de Jacobi. Olhando para os lados e franzindo o rosto numa careta de choro, o homem se virou para mim e disse: – Obrigado, tenente. Eu sabia que a senhora ia me ajudar.
capítulo 21
JACOBI ME ACOMPANHOU até minha sala. Enquanto esperávamos pelos procedimentos de praxe na prisão de Brinkley, sentamos à minha mesa, bebendo café e discutindo o que precisaria ser feito em seguida. Brinkley havia confessado o crime e recusava assistência jurídica. Mas a declaração que me dera por escrito não passava de rabiscos sem sentido que falavam de uma luz branca, de ratos e de uma arma chamada Bucky. Precisávamos de uma confissão oficial para provar que, embora fosse mentalmente perturbado, Alfred Brinkley agora gozava de suas faculdades mentais. Depois de ligar para Tracchio, telefonei para Cindy, que, além de grande amiga, é uma das melhores repórteres policiais do San Francisco Chronicle. Queria dar a ela a notícia da captura de Brinkley. Em seguida fui até a área ocupada pelo Departamento de Homicídios e fiquei andando de um lado a outro, contando os minutos até a chegada do meu chefe. Por volta das nove horas já haviam fotografado Alfred Brinkley e tomado suas impressões digitais. Ele agora vestia uniforme de presidiário. Suas roupas foram enviadas para análise, pois talvez tivessem manchas de sangue e resíduos de pólvora. Na presença de um perito médico, perguntei se podíamos colher uma amostra de sangue e expliquei o motivo: – Precisamos ter certeza que você não está alcoolizado ou sob efeito de alguma droga ao fazer sua confissão. – Estou limpo – disse ele, dobrando a manga do macacão e mostrando seu braço. Em seguida foi levado à sala de interrogatório número dois, o cubículo de azulejos cinza com uma câmera de vídeo que nem sempre funcionava. Dali a pouco Jacobi e eu nos sentamos diante da arranhada mesinha de metal, frente a frente com o assassino. Eu sentia arrepios só de olhar para aquele rosto pálido e malcuidado. Ainda me lembrava do que ele dissera. “Fui eu que fiz aquilo.”
capítulo 22
BRINKLEY ESTAVA AGITADO. Batia os joelhos contra a parte de baixo da mesa e havia cruzado os punhos algemados de tal modo que conseguia puxar os pelos do braço. – Sr. Brinkley, sabe que tem o direito de permanecer calado, não sabe? – perguntei. Ele confirmou com um gesto de cabeça e novamente repeti seus direitos. – Entendeu tudo o que eu disse? Coloquei à sua frente um atestado de renúncia e ele o assinou. Alguém arrastou uma cadeira do outro lado do espelho, enquanto no teto a câmera se moveu discretamente. O interrogatório podia começar. – O senhor sabe que dia da semana é hoje? – Segunda-feira – respondeu. – Onde o senhor mora? – Nas estações de metrô. Em frente a lojas de eletrodomésticos. De vez em quando na biblioteca. – Sabe onde está agora? – No prédio da Polícia de São Francisco. O endereço é Bryant Street, 850. – Ótimo, Sr. Brinkley. Então me diga o seguinte: o senhor estava na balsa Del Norte neste último sábado, dois dias atrás? – Estava, sim. Era um dia lindo. Encontrei o bilhete da passagem no mercado – contou. – Não é crime usar um bilhete achado, é? – O senhor achou o bilhete ou roubou de alguém? – Achei no chão. – Então vamos em frente – disse Jacobi a ele. A essa altura Brinkley parecia mais calmo e bem mais jovem do que de fato era. Comecei a ficar irritada com a postura infantil que ele agora assumia, como se fosse uma criancinha inofensiva, como se fosse ele a vítima. Fiquei me perguntando que impressão aquele homem poderia causar diante de um júri. Será que ele vai conquistar os jurados, que podem considerá-lo inocente por causa da sua simpatia e do parafuso a menos? – Na viagem de volta, Sr. Brinkley... – prossegui. – Pode me chamar de Alfred. – Tudo bem, Alfred. Enquanto a Del Norte estava atracando no porto de São Francisco, você sacou uma arma e atirou em alguns dos passageiros?
– Fui obrigado – disse ele com a voz embargada. – A mãe estava... Olha, fiz uma coisa errada, eu sei! E quero ser punido! – Atirou naquelas pessoas? – Sim, atirei! Atirei naquela mãe e no filho dela. Naqueles dois homens. Naquela mulher que estava olhando para mim como se soubesse tudo o que se passava na minha cabeça. Eu sinto muito. Estava me divertindo, mas de repente tudo desandou. – Mas você planejou aquele ataque, não foi? – perguntei, mantendo a voz neutra e encorajando Brinkley com um sorriso. – Estava levando uma arma carregada, não estava? – Sempre levo Bucky comigo – respondeu Brinkley. – Mas não queria machucar aquelas pessoas. Eu não as conhecia. Nem achava que elas fossem reais, até que vi a reportagem na TV. – Verdade? Então por que atirou nelas? – perguntou Jacobi. Brinkley olhou para o espelho às minhas costas e então respondeu: – Foram as vozes que mandaram. Será que ele está falando a verdade ou fingindo que é maluco para se defender perante o júri? Jacobi perguntou a respeito das vozes, mas Brinkley preferiu ficar calado. Encostou o queixo no peito e resmungou: – Quero que vocês me prendam. Por favor. Estou morrendo de sono, preciso dormir. – Há uma cela vazia no 10º andar – falei. Bati à porta da sala e o sargento Steve Hall entrou, postando-se atrás do homem. – Sr. Brinkley – falei enquanto todos nós ficávamos de pé –, o senhor foi indiciado pelo assassinato de quatro pessoas, pela tentativa de assassinato de uma quinta pessoa e por outros 14 crimes menores. Sugiro que providencie um bom advogado. – Muito obrigado – disse Brinkley, encarando-me pela primeira vez. – A senhora é uma pessoa honrada. Fico muito grato por tudo o que fez.
capítulo 23
AO ABRIR A PORTA DE CASA na manhã seguinte, encontrei o jornal com a manchete de Cindy em letras enormes: ATIRADOR DA BALSA CAPTURADO. Quando cheguei ao trabalho, fui recebida por uma multidão de repórteres que se aglomeravam na calçada. – Como está se sentindo, tenente? – Excelente – falei sorrindo. – Melhor impossível. Respondi a todas as perguntas, elogiei minha equipe e sorri para algumas fotos antes de entrar no prédio e tomar o elevador até o terceiro andar. Assim que pisei no departamento, Brenda começou a bater palmas e se levantou para me abraçar. Através das vidraças eu podia ver as flores que esperavam por mim sobre minha mesa. Reuni meu pessoal, agradeci a eles por tudo o que haviam feito e, quando o inspetor Lemke perguntou se eu tinha alguma dica sobre como enfeitiçar bandidos, todos caíram na gargalhada. – Sei que a gente tem de mexer o nariz – disse ele –, mas nada acontece quando eu tento. – É que além de mexer o nariz – falou Rodriguez – você tem de cruzar os braços e piscar ao mesmo tempo! Na pequena copa, eu me servia de café antes de atacar a pilha de papéis que ocupava metade da minha mesa quando Brenda esticou o pescoço através da porta e disse: – Chefe na linha 1. Fui para minha sala, afastei o enorme buquê sobre a mesa e rapidamente li o cartão que se projetava das rosas: entre muitos abraços e beijos, vi o bilhete assinado por Joe, meu namorado. Ainda com um sorriso no rosto, apertei o botão que piscava no telefone à minha frente. Tracchio, com inusitada gentileza, pedia que eu subisse até sua sala. – Vou chamar a equipe – falei. – Não, venha sozinha – disse ele. Avisei Brenda de que voltaria em poucos minutos e subi até o quinto andar, onde ficava o gabinete de Tracchio, uma ampla sala forrada de lambris de madeira. Ele se levantou assim que entrei e estendeu a mão para me cumprimentar, dizendo: – Boxer, prender aquele maluco é motivo de orgulho para a Polícia de São Francisco. Mais uma vez, parabéns pelo excelente trabalho. – Valeu, chefe. E obrigada pelo apoio. – Eu já ia dando as costas para sair quando percebi no rosto dele uma expressão de constrangimento que nunca tinha visto. Tracchio gesticulou para que eu me sentasse, sentou-se também e rolou a cadeira para a frente
e para trás algumas vezes antes de cruzar as mãos sobre o abdômen e dizer: – Lindsay, cheguei à conclusão de que tenho sido meio durão. Será que ele finalmente vai aumentar minha equipe? Reajustar o valor das horas extras? – Observei de perto seu desempenho neste caso – prosseguiu – e fiquei impressionado com a coragem e a determinação com que você conduziu a investigação. – Obrig... – Portanto tenho de admitir que você estava certa e eu, errado. Certa sobre o quê? Tentei adivinhar o que ele iria dizer, mas nada me ocorreu. – Como você mesma disse, seu lugar é nas ruas e não atrás de uma mesa. Só agora estou vendo. Finalmente a ficha caiu. É um grande desperdício mantê-la no trabalho administrativo. Eu olhava perplexa para Tracchio quando ele colocou um distintivo sobre a mesa e disse: – Parabéns, Boxer, por seu merecido rebaixamento a sargento.
capítulo 24
FIQUEI TONTA, SEM ACREDITAR no que tinha acabado de ouvir. Entendi cada palavra que Tracchio dissera, mas parecia que estávamos distantes, como se cada um de nós estivesse de um lado de uma estrada. – Você continuará informalmente subordinada a mim e seu salário, claro, permanecerá o mesmo... Eu berrava em silêncio: Rebaixamento? Você está me rebaixando? Justo hoje? – Que foi, Boxer? Não era isso que você queria? Faz meses que você vem me importunando com essa... – Não, quero dizer, sim. Mas não esperava que... – Puxa, Boxer. Que história é essa agora? Passei a noite inteira conversando com as pessoas, trocando ideias com todo mundo, só porque você disse que era isso que queria. Abri a boca, mas fechei-a novamente. – Você me dá um tempinho, chefe? – finalmente consegui dizer. – Só para me acostumar com a ideia, pode ser? – Desisto! – exclamou ele, pegando o grampeador para batê-lo contra a mesa. – Não entendo você. Acho que nunca vou entender. Eu desisto, Boxer! Eu não lembro se me despedi de Tracchio, mas recordo bem do longo trajeto até as escadas, dos sorrisos forçados que eu ia abrindo para as pessoas que me parabenizavam pelo caminho. Minha cabeça não parava de girar. Que armadilha é essa em que eu caí? E que diabo eu quero afinal? Eu descia para o terceiro andar, apoiando-me com dificuldade no corrimão da escada, quando me deparei com Jacobi, que vinha na direção oposta. – Warren, você nem vai acreditar no que acabou de acontecer – falei. – Venha, vamos sair daqui. Descemos juntos até o saguão e saímos à rua, caminhando pela Bryant Street na direção do Mercado de Flores. – Tracchio me ligou ontem à noite – disse Jacobi a certa altura. Ergui os olhos para ele. Embora nunca tivéssemos tido segredos um com o outro, vi a expressão de constrangimento em seu rosto e isso me deixou assustada. – Ele me ofereceu o posto, Lindsay. O seu posto. Mas respondi que não aceitaria a menos que você aprovasse. O tremor que eu sentia sob os pés era o metrô passando, mas parecia um terremoto. Eu sabia o que deveria dizer: Parabéns, Jacobi. Foi uma ótima escolha de Tracchio. Você vai se sair muito
bem. Mas eu não conseguia articular as palavras. – Preciso de um tempo para pensar, Jacobi. Vou tirar um dia de folga. – Foi o que consegui dizer. – Claro, Lindsay. Ninguém vai fazer nada antes que... – Talvez dois dias. – Lindsay, pare com isso! Desembuche, vai! Mas era tarde, pois a essa altura eu atravessava a rua na direção do estacionamento. Peguei meu carro e segui pela Bryant até a Sexta Avenida, onde subi o viaduto que me levaria de volta a Potrero Hill. Embora estivesse ao volante, saquei o celular e liguei para Joe ao mesmo tempo que acelerava para entrar na faixa de alta velocidade. Era uma da tarde em Washington. Vamos, Joe, atenda! A chamada caiu na caixa postal, então deixei um recado. – Ligue assim que puder. Em seguida telefonei para o Hospital Geral de São Francisco. Pedi à telefonista que me transferisse para o quarto de Claire.
capítulo 25
EU ESPERAVA OUVIR A VOZ de Claire, mas foi Edmund quem atendeu, dando a impressão de que havia dormido mais uma noite sentado na poltrona. – Como ela está? – perguntei com um nó na garganta. – Fazendo outra ressonância magnética – respondeu. – Diga a ela que pegamos o atirador. Ele confessou e já está preso. Comentei com Edmund que ligaria mais tarde para falar com Claire e em seguida telefonei novamente para Joe. Dessa vez tentei o gabinete dele, mas foi em vão. Arrisquei o número de casa, porém fui atendida pela secretária eletrônica. Parei no semáforo da Rua 18 e esperei impaciente, tamborilando no volante. Pisei fundo no acelerador assim que a luz verde se acendeu. Uma velha lembrança me veio à cabeça: o dia em que eu fui promovida a tenente logo após ter prendido o “matador de noivos” , um psicopata que merecia um lugar no Hall da Fama dos Criminosos Mais Depravados. Na época, enxerguei a promoção como um gesto político, já que nenhuma mulher havia ocupado o posto antes. Aceitei sem saber se eu queria o poder e a responsabilidade que faziam parte da nova função. Pelo visto, eu ainda não sabia. Eu tinha pedido para voltar às ruas e nada mais natural que Tracchio não tivesse entendido minha reação. Droga. Nem eu mesma entendia. Às vezes só compreendemos uma situação quando estamos envolvidos nela. O chefe disse que eu continuaria me reportando a ele numa relação informal. Conversa fiada. Eu havia sido rebaixada. Será que vou aceitar receber ordens de Jacobi? “Respondi que não aceitaria nada a menos que você aprovasse”, ele tinha dito. Preciso falar com Joe. Peguei o celular no banco do passageiro e liguei mais uma vez. A voz de Joe na secretária eletrônica despertava ótimas lembranças: as viagens que fizemos juntos, as noites de amor e as pequenas coisas que eu amava naquele homem. Cada minuto ao lado dele era vivido como se fosse o último da minha vida, pois eu nunca sabia quando nos veríamos novamente. Eu faria qualquer coisa para estar nos braços de Joe, entregar-me ao seu amor. Bastaria sentir o toque dele para que minha tristeza fosse reduzida a pó. Desliguei o telefone sem deixar recado e tentei os outros dois números. Nada. Estacionei o carro na primeira vaga que avistei, puxei o freio de mão e fiquei como uma idiota,
olhando para o nada, querendo que Joe se materializasse à minha frente. Foi então que tive uma ideia brilhante. Por que não?
capítulo 26
O SAGUÃO DO AEROPORTO era um mar de homens engravatados com ternos cinza. Eu era a única que não combinava com aquela paisagem monocromática. Vestindo um blazer de tweed sobre um suéter de caxemira amarelo, sem falar na calça jeans um tanto justa, eu sabia que estava chamando a atenção. Aquilo era uma massagem no meu ego. Enquanto esperava a chamada para o embarque, repassei mentalmente se não havia esquecido nada: Martha estava com a cuidadora, minha arma e meu distintivo, trancados na gaveta da cômoda e o celular estava no carro. Na verdade, esquecido no carro. Não seria necessário nenhum psicólogo me dizer que, ao deixar o telefone dentro do veículo, eu estava inconscientemente mandando o trabalho para o inferno. Mas o batom estava na minha bolsa, claro. Assim como a passagem para Washington na classe executiva que Joe mandara com as chaves de seu apartamento e um bilhete: “Você tem 24 horas para cumprir sua missão. Não se atrase. Agente Joe.” Eu me sentia uma inconsequente ao entrar no avião. Sabia que estava deixando a cidade com um grande problema a ser resolvido, mas a vida não se resumia a trabalho. Joe sempre me surpreendia com visitas inesperadas e eu nunca havia feito a mesma coisa com ele. O champanhe de boas-vindas me ajudou a relaxar e, assim que decolamos, abaixei o encosto da poltrona e dormi, acordando apenas quando o piloto anunciou que iríamos aterrissar. Já em terra firme, tomei um táxi e disse ao motorista o endereço de Joe. Em meia hora estávamos diante de jardins e fontes do Edifício Kennedy-Warren, um luxuoso prédio residencial. E apenas alguns minutos depois eu pisava no corredor acarpetado do último andar, tocando a campainha do meu namorado. Bem, aqui estou! Ninguém atendeu, então toquei novamente. Nada. Peguei as chaves na bolsa e abri as duas fechaduras da porta. – Joe? – gritei ao entrar no vestíbulo escuro e berrei mais uma vez a caminho da cozinha. Onde será que ele se meteu? A cozinha abria para um amplo espaço que era utilizado como sala de jantar e de visitas. A luz que atravessava as janelas refletia no piso de tábuas corridas, revelando a varanda que se estendia mais adiante. Os móveis, de impressionante bom gosto, pareciam todos em seu devido lugar, sem nenhum sinal de que alguém havia passado por ali recentemente. Olhando melhor, no entanto, quase tive um infarto. Uma mulher estava deitada no sofá, virada para as janelas, lendo uma revista
com os fones do iPod enterrados nos ouvidos. Eu estava tão chocada que não conseguia me mover ou dizer qualquer coisa.
capítulo 27
MEU CORAÇÃO BATIA MAIS forte à medida que eu observava melhor a moça no sofá, percebendo um sanduíche e uma xícara de chá na mesinha de centro. Ela vestia uma regata preta e calça de tactel também preta. Os cabelos, fartos e com mechas louras, terminavam num coque atrás da cabeça. Os pés estavam descalços. Não fosse o formigamento nos dedos das mãos, eu poderia jurar que o sangue tinha parado de correr nas minhas veias. Será que Joe leva uma vida dupla, com uma mulher em Washington e outra em São Francisco? Meu rosto ardia num misto de raiva e vergonha. Eu não sabia se gritava ou se saía correndo dali. Como Joe é capaz de me trair? A mulher viu minha imagem refletida no vidro das janelas. Em seguida largou a revista, levou as mãos ao rosto e deu um grito. Eu também gritei: – Quem é você? – Quem é você? – berrou ela de volta, os cabelos caindo nos ombros enquanto tirava os fones do ouvido. – Sou a namorada de Joe – falei. Eu me sentia desprotegida e vulnerável, desejando ter meu distintivo para esfregar na cara dela. Caramba, Joe, o que é isso? – Meu nome é Milda – disse ela, pulando do sofá e conduzindo-me até a cozinha. – Trabalho aqui. Faço a limpeza para o Sr. Molinari. Comecei a rir de tão nervosa que estava. Ela tirou do bolso um cheque assinado e o ergueu na frente do meu rosto. No entanto eu não conseguia prestar atenção em nada. As imagens dos últimos dias corriam pela minha cabeça. Além disso, a presença daquela mulher fazia com que eu não tivesse controle sobre minhas emoções. – Terminei meu trabalho mais cedo – falou, lavando a louça que tinha acabado de usar –, então resolvi descansar um pouquinho. Você não vai contar nada para ele, vai? – Não, claro que não – balbuciei. – Já estou indo embora. – Ela fechou a torneira da pia. – Preciso buscar meu filho. Já vou, tudo bem? Fiz que sim com a cabeça. Tão logo me vi sozinha, procurei pelo banheiro e vasculhei os armários à procura de esmaltes, maquiagens e absorventes. Como não encontrei nenhum item feminino, fui até o quarto, um cômodo amplo com vista para o pátio do prédio. Abri o closet e corri as mãos pelas roupas
penduradas nos cabides. Nenhuma saia, nenhum vestido. Que diabo estou fazendo? Eu conheço Joe, não conheço? Fui até a cama e comecei a levantar a colcha para examinar os lençóis quando vi o portaretratos sobre a mesinha de cabeceira. Uma foto tirada em Sausalito seis meses antes, Joe abraçando-me enquanto o vento lambia nossos cabelos. Apertei as mãos contra os olhos. Que vergonha! As lágrimas escorreram. Fiquei ali por um tempo, chorando no quarto de Joe. Depois saí e voltei para a Califórnia.
PARTE 2
A MENINA DE OLHOS CASTANHOS
capítulo 28
MADISON TYLER JOGAVA amarelinha na calçada. Cansada da brincadeira, voltou correndo até a babá e as duas seguiram de mãos dadas na direção do Alta Plaza Park, a garota perguntando: – Você estava ouvindo, Paola? Paola Ricci apertou a mãozinha dela. Às vezes ficava espantada com a precocidade da menina de cinco anos. – Claro que estava, minha linda. – Como eu ia dizendo – prosseguiu Madison com aquele seu jeitinho engraçado de adulta –, quando eu toco a Bagatelle de Beethoven, as primeiras notas são uma escala ascendente e elas parecem uma escada azul. – Ela solfejou as notas. – Na parte seguinte, quando eu toco dó-rédó, as notas são rosa-verde-rosa! – Você imagina que as notas têm cores, é isso? – Não, Paola – retrucou a menina com afetada paciência. – As notas têm essas cores. Você não vê cores quando canta? – Não – respondeu Paola. – Acho que sou uma boboca. Uma babá boboca. – Não sei o que é uma bababoboca – disse Madison, sorrindo com os enormes olhos castanhos –, mas é muito engraçado. As duas seguiram gargalhando pela calçada, Madison abraçando Paola pela cintura, enterrando o rosto no casaco da jovem babá enquanto passavam diante do Waldorf, colégio de elite a apenas meio quarteirão de onde a menina morava com os pais. – Hoje é sábado – sussurrou para Paola. – Não quero nem olhar para essa escola! Estavam a um quarteirão do parque. Ao avistar os muros de pedra do lugar, Madison foi ficando cada vez mais agitada. Mudando de assunto, ela disse: – Mamãe disse que eu posso ter um terrier quando ficar mais velha. Vou chamá-lo de Brutus. – Que nome sério para um cachorrinho! – disse Paola, redobrando a atenção para atravessar a Divisadero Street e portanto não percebendo a van preta estacionada junto ao portão do parque. Além disso, carros como aquele eram comuns no bairro. Puxando-a pelo braço, Paola ajudou a menina a subir a calçada alta e parou ao reparar que alguém havia saltado da van e agora vinha rapidamente na direção delas. – Paola, quem é ele? – perguntou Madison. – O que foi? – berrou Paola para o homem. – Problemas em casa. Vocês duas precisam vir comigo. Madison, sua mãe levou um tombo na escada.
A menina, que se escondia atrás da babá, deu um passo à frente e disse: – Papai falou que é para a gente nunca entrar no carro de estranhos! E você é muito estranho! O homem suspirou e colocou a menina no ombro, como se pegasse um saco de batatas. – Me solta! Socorro! – gritou, pouco antes de ser jogada no banco traseiro da van. – Você também! – ordenou o homem para Paola, apontando uma arma para o peito dela. – Caso contrário, pode se despedir da menina.
capítulo 29
RICHARD CONKLIN E EU voltávamos de uma difícil investigação. Um atirador havia disparado uma arma de dentro de um carro em movimento naquela manhã. Tínhamos acabado de sair do elevador quando Jacobi nos chamou à sua sala. Fomos até o cubículo de vidro e nos acomodamos em torno dele: Conklin na borda da bancada, onde Jacobi costumava sentar, e eu na cadeira ao lado da mesa. Jacobi agora ocupava a cadeira que um dia fora minha. Eu ainda tentava me acostumar a essa mudança repentina. Não pude deixar de perceber a bagunça que Jacobi havia feito ali em menos de duas semanas: jornais estavam empilhados no chão e no parapeito da janela e o cesto de lixo fedia a comida estragada. – Você é um porco, Jacobi! – falei. – Olhe só para este chiqueiro! Ele riu com gosto, algo que se tornara frequente nos últimos dias. Apesar do meu ressentimento, era um alívio ver que meu ex-parceiro não precisava mais perseguir bandidos pelas ladeiras da cidade. Jacobi era um ótimo policial e eu vinha fazendo um enorme esforço para contornar as divergências que existiam entre nós. Jacobi tossiu algumas vezes e então disse: – Temos um caso de sequestro. – E o abacaxi é nosso? – protestou Conklin. – O Departamento de Operações Especiais já entrou em ação, mas parece que houve um homicídio também, segundo informou uma testemunha. Vamos trabalhar em conjunto com o tenente Macklin. – Jacobi ligou o laptop, algo que nunca tinha feito antes. Em seguida vasculhou a bagunça sobre a mesa, pegou um CD e, sem nenhuma habilidade, colocou-o na bandeja da máquina. – Uma garotinha de cinco anos estava indo para o parque com a babá hoje de manhã quando foi sequestrada. A mulher se chama Paola Ricci, uma italiana com visto para trabalhar no país. A menina é Madison Tyler. – Da família Tyler, do Chronicle? – perguntei. – Exatamente. É filha de Henry Tyler. – Você disse que havia uma testemunha? – Sim, uma mulher que passeava com o cachorro. Ela viu alguém de casaco cinza sair de uma van preta estacionada diante do parque na Scott Street. – “Alguém”? – perguntou Conklin. – Ela não soube dizer se era homem ou mulher porque só viu de relance e a pessoa estava de costas. Pelo mesmo motivo, não conseguiu identificar o veículo. Tudo aconteceu muito rápido.
– E o que indica que houve um homicídio? – perguntei. – Segundo a mesma testemunha, assim que o carro virou na Divisadero, ela ouviu um tiro. E viu sangue espirrando na janela de trás.
capítulo 30
JACOBI CLICOU NO MOUSE algumas vezes e girou o laptop para que eu e Conklin pudéssemos ver o vídeo que passava na tela. – Esta é Madison Tyler – falou. A câmera focalizava uma garotinha de cabelos louros que saía de trás das cortinas para entrar num palco, usando um vestido de veludo azul-marinho com gola rendada, meias brancas e sapatos vermelhos. Era a menina mais linda que eu tinha visto na vida. Sob aplausos entusiasmados, ela se sentou diante de um piano de cauda e começou a tocar com perfeição uma difícil peça clássica que eu desconhecia. Ela terminava com um charme particular, esticando o braço nas notas mais graves, executando os acordes finais sob uma nova rodada de aplausos. Em seguida, virando-se para a plateia, disse: “Quando eu tiver braços maiores vai ser bem mais fácil.” Todo mundo começou a rir e um garoto de uns nove anos saiu das coxias para lhe entregar um buquê. Ao fim do vídeo, perguntei: – Os sequestradores já entraram em contato com os pais? – Ninguém ligou ainda – respondeu Jacobi. – Nenhum pedido de resgate até agora. Não temos nada.
capítulo 31
CINDY THOMAS TRABALHAVA no pequeno escritório que havia montado em seu novo apartamento. Com a TV ligada na CNN, estava concentrada na matéria que escrevia sobre o iminente julgamento de Alfred Brinkley. Pensou em não atender o telefone que começou a tocar, mas mudou de ideia ao olhar o identificador de chamadas. – Sr. Tyler? Henry Tyler falava com uma voz seca, quase irreconhecível. Cindy chegou a pensar que se tratava de uma brincadeira, mas isto não era do feitio do chefe. Assustada e perplexa, tentava entender o que falava o homem, que agora chorava sem parar, perdendo a linha do raciocínio, obrigando Cindy a repetir o que ele dizia. – Ela estava usando um casaco azul – repetiu Cindy. – Isso. Um casaco azul-marinho, suéter vermelho, calça azul e sapatos vermelhos. – Mando a matéria em uma hora. A essa altura os canalhas já terão ligado para informar o valor do resgate. O senhor vai ter sua filha de volta, Sr. Tyler. Cindy despediu-se do editor-chefe do Chronicle, desligou o telefone e ficou imóvel, agarrada aos braços da cadeira, tomada de um pavor repentino. Como repórter policial, já cobrira casos de sequestro suficientes para saber que, se a menina não fosse encontrada naquele mesmo dia, a chance de ela ser achada com vida cairia pela metade. E se tornaria praticamente nula se não fosse encontrada no dia seguinte. Então se lembrou da última vez que a vira, no início do verão, quando a menina havia feito um visita à redação do jornal. Madison passou meia hora rodopiando na cadeira giratória de Cindy, rabiscando um bloco de papel, fazendo dezenas de perguntas, como se fosse ela a repórter: – O que é “nariz de cera”? Você não tem medo de entrevistar bandidos? Qual foi a matéria mais difícil que você já escreveu? Madison era uma menina simpática e divertida, e Cindy ficou triste ao vê-la ir embora. – Venha, Madison. Srta. omas precisa trabalhar – dissera a secretária do Sr. Tyler ao aparecer para buscá-la. Cindy se despedira dela com um beijo no rosto, dizendo: – Você é muito fofa, sabia? Madison jogou os braços em torno do pescoço da jornalista e retribuiu o beijo, antes de ser levada pela secretária. – A gente se vê daqui a pouco na editoria de quadrinhos! – falara Cindy à menina.
– É lá mesmo que eu vou estar! – Madison virara-se para dizer. Agora Cindy olhava para a tela do computador, paralisada ao pensar que Madison estava sob o poder de sequestradores, talvez presa no porta-malas de um carro, talvez violentada sexualmente, talvez morta. Respirou fundo e abriu um novo documento no programa de texto. Depois de quatro tentativas fracassadas, sentiu as palavras fluírem da ponta dos dedos: “Madison Tyler, cinco anos, filha do editor-chefe do San Francisco Chronicle, foi sequestrada na manhã de hoje a alguns quarteirões de sua casa em...” A jornalista ainda ouvia a voz embargada de Henry, dizendo: “Escreva a matéria, Cindy. Se Deus quiser, Madison já estará de volta quando ela for publicada.”
capítulo 32
YUKI CASTELLANO ESTAVA no 22º Distrito da Corte Superior, sentada num dos bancos da galeria, esperando que o número de seu processo fosse chamado. Fazia um mês que ela havia sido admitida na Promotoria Pública. Apesar dos vários anos que trabalhara como advogada de defesa num respeitado escritório, só agora Yuki percebia que a acusação era uma tarefa mais pesada do que defender burocratas em processos civis. O trabalho atual era exatamente o que ela procurava. Seus ex-colegas não acreditariam na felicidade que ela sentia em sua nova vida profissional. O objetivo daquela audiência era agendar o julgamento de Alfred Brinkley. A Promotoria contava com um assistente cuja função era cuidar das tarefas mais burocráticas. Mas, naquele caso específico, Yuki preferia estar envolvida em todos os detalhes. Ela havia sido convocada por Leonard Parisi, assistente de promotoria sênior, para auxiliá-lo naquele processo. Alfred Brinkley tinha assassinado quatro pessoas. E por mera obra do acaso não matara Claire Washburn, uma de suas melhores amigas. Yuki correu os olhos pela galeria, observando traficantes e pedófilos que, acompanhados da mãe ou da namorada, confabulavam com os advogados ao longo dos bancos. Por fim localizou Barbara Blanco, que sussurrava algo para Brinkley. Era uma mulher inteligente que, assim como Yuki, havia tirado a sorte grande ao ser escolhida para o caso do atirador da balsa. Ela alegara inocência no indiciamento de Brinkley e certamente tentaria anular a confissão antes do julgamento. Argumentaria que o homem não estava no exercício de suas faculdades mentais no momento do crime e que vinha sendo medicado desde então. Faria o possível para retirá-lo do sistema penal e colocá-lo no sistema psiquiátrico. Boa sorte a ela. O número de Yuki enfim foi chamado. Nervosa, ela fechou o laptop e se aproximou do banco. Alfred Brinkley seguiu lentamente atrás de sua advogada, menos agitado e com um aspecto mais apresentável do que no indiciamento. Yuki abriu a cancela de madeira que separava a galeria do tribunal e se postou ao lado de Blanco e Brinkley diante do juiz Norman Moore, que os fitou rapidamente com olhos muito azuis e consultou sua ementa. – Muito bem – disse ele. – Que tal resolvermos este assunto o mais breve possível, digamos... dia 17 de novembro, uma segunda-feira? Yuki concordou imediatamente, mas Blanco argumentou:
– Meritíssimo, Sr. Brinkley tem um longo histórico de desequilíbrio mental. Conforme o artigo 1.368 do Código Penal, precisará ser avaliado para sabermos se tem condições de enfrentar um julgamento. Moore pousou as mãos sobre a mesa, suspirou e disse: – Perfeitamente, Srta. Blanco. Dra. Charlene Everett já voltou de férias. Hoje mesmo pela manhã ela disse que tem um tempo livre. Ela aplicará o psicotécnico no Sr. Brinkley. – Virandose para Yuki, falou: – Tudo bem com a senhorita... Castellano, certo? – Sim, meritíssimo – respondeu ela e continuou, metralhando as palavras como sempre: – A defesa quer apenas adiar o caso e afastar Sr. Brinkley do olho do furacão até que a mídia se esqueça dele. Srta. Blanco sabe perfeitamente que seu cliente tem plenas condições de enfrentar um julgamento. Ele matou quatro pessoas, depois se entregou e confessou espontaneamente. O povo de São Francisco quer e merece um julgamento rápido... – Sei muito bem o que o povo quer, Srta. Castellano – interveio o juiz, contrapondo seu jeito manso de falar à verborragia de Yuki. – Mas teremos uma resposta da Dra. Everett em poucos dias, não mais que isso. O povo vai saber esperar, a senhorita não acha? – Claro, meritíssimo – respondeu Yuki e, assim que ouviu o juiz chamar o caso seguinte, deixou o tribunal pelo vestíbulo e saiu ao corredor de mármore. Dobrou à direita e seguiu até seu gabinete com a esperança de que a psiquiatra forense chegasse à mesma conclusão a que ela própria e Lindsay já haviam chegado: Alfred Brinkley podia ser doido, mas não era legalmente incapacitado. Era um assassino que havia tirado a vida de quatro pessoas de maneira premeditada. Se tudo corresse bem, em breve a Promotoria teria a oportunidade de provar isso.
capítulo 33
JOGUEI AS CHAVES PARA CONKLIN e me sentei no banco de passageiro. Meu parceiro assobiava nervosamente enquanto avançávamos pela Bryant Street. Mais adiante tomamos a Rua 6, seguimos por alguns quarteirões e depois dobramos na Market, rumo ao bairro de Pacific Heights. – Se há uma coisa que faz a gente não querer ter filhos é essa história de sequestro – disse ele a certa altura. – Se não fosse isso... – Eu teria vários! Começamos a conversar sobre o sequestro de Madison Tyler, cogitando se havia mesmo ocorrido um homicídio, se a babá não era cúmplice. – Ela trabalhava na casa – falei. – Sabia tudo sobre a família: o dinheiro que eles tinham, os hábitos, os horários. Se Madison confiava nela, então foi ainda mais fácil sequestrá-la. – Nesse caso, por que teriam matado a babá? – perguntou Conklin. – Talvez porque não tivesse mais utilidade. – Menos uma pessoa para dividir a grana do resgate. Mas apagar a babá na frente da criancinha é barra-pesada! – Será que apagaram a babá ou a menina? Nossa conversa terminara quando enfim chegamos à Washington, uma das ruas mais bonitas do bairro. A casa dos Tyler ficava no meio de um quarteirão arborizado, uma imponente mansão vitoriana de fachada com jardineiras das quais transbordavam plantas frondosas. Na minha opinião, aquela era uma casa de sonhos, o último lugar vulnerável a uma tragédia. Conklin estacionou e seguimos pelo caminho de pedra que conduzia até a porta. No lugar da campainha havia uma aldrava de bronze. Ergui a peça de metal e deixei que ela batesse contra o suporte, consciente de que o interior daquela residência abrigava duas pessoas abatidas pelo sofrimento.
capítulo 34
HENRY TYLER NOS RECEBEU à porta e ficou pálido assim que me reconheceu. Ergui meu distintivo, dizendo: – Sou a sargento Boxer e este é o inspetor Conklin. – Sei quem você é, Departamento de Homicídios – retrucou ele. – É amiga de Cindy Thomas. – Exatamente, Sr. Tyler, mas, por favor, ainda não temos nenhuma notícia sobre sua filha. – Outros inspetores já estiveram aqui – disse ele, convidando-nos a entrar. Ao atravessar um pequeno corredor acarpetado, chegamos a uma sala que parecia saída de um livro de História, decorada luxuosamente com antiguidades, tapetes persas e quadros de aristocratas posando com seus cachorros. Um piano ficava ao lado de uma janela, proporcionando uma vista deslumbrante da baía. Tyler gesticulou para que nos sentássemos e se acomodou à nossa frente num sofá de veludo. – Viemos aqui porque uma mulher que testemunhou o sequestro ouviu um tiro. – Um tiro? – Não temos nenhum motivo para acreditar que Madison tenha sido ferida, Sr. Tyler, porém precisamos saber mais sobre sua filha e Paola Ricci. Naquele momento Elizabeth Tyler entrou na sala, elegantemente vestida em seda bege, com os olhos vermelhos e inchados. Sentou-se ao lado do marido e cruzou as mãos. – A sargento acabou de dizer que uma testemunha do sequestro de Madison ouviu um tiro. – Meu Deus! – exclamou Elizabeth, deixando o corpo cair contra o do marido. Expliquei novamente a situação, fazendo o possível para tranquilizar os pais da menina, dizendo que sabíamos apenas que um tiro havia sido disparado. Evidentemente deixei de fora o sangue visto no vidro do carro. Assim que Sra. Tyler se recompôs, Conklin perguntou se eles tinham notado alguém rondando a vizinhança, alguém que parecesse não morar nas redondezas. – Não – respondeu Tyler. – Nunca vimos ninguém estranho. – Tomamos conta uns dos outros aqui no bairro – emendou Elizabeth. – Bisbilhotamos sem nenhum pudor. Se qualquer um de nós tivesse visto alguma coisa estranha, teria chamado a polícia. Pedimos ao casal que nos contasse sobre seus deslocamentos e sua rotina: a que horas saíam de casa, a que horas voltavam, coisas desse tipo. – Agora me contem sobre sua filha – falei. – Com o máximo de detalhes possível. Sr. Tyler se alegrou por um instante.
– É uma menina extremamente feliz. Adora cachorros. E, como você deve saber, é excelente pianista. – Vi um vídeo em que ela tocava – falei. – Sabia que ela tem o dom da sinestesia? – interveio Elizabeth. Neguei com um gesto de cabeça e perguntei: – O que é sinestesia? – Quando ela ouve ou toca música, as notas lhe parecem coloridas. É um dom maravilhoso – falou a mulher. – É uma condição neurológica – disse Henry Tyler com impaciência. – Isso não tem nada a ver com o sequestro dela. Essa gente quer dinheiro! – O que o senhor pode nos dizer a respeito de Paola? – perguntei. – Falava inglês muito bem – respondeu Henry. – Estava conosco havia dois meses. Quando foi mesmo que a contratamos? – perguntou à mulher. – Em setembro. Logo depois que Maya voltou para o Sri Lanka. Foi muito bem recomendada – disse Sra. Tyler. – Madison gostou dela de imediato. – Vocês conhecem algum amigo dessa Paola? – Não – respondeu a mulher. – Ela não tinha permissão para trazer amigos. Folgava nas tardes de terça e aos domingos e infelizmente não sabemos o que ela fazia nesses dias. – Estava sempre falando no celular – emendou o marido. – Foi Madison quem me contou. Portanto, deve ter amigos. Mas o que você está sugerindo? Acha que Paola pode ter alguma coisa a ver com o sequestro? – O que o senhor acha? – É bem possível. Ela sabe que temos dinheiro. Talvez quisesse roubar um pouco para si. Ou talvez estivesse sendo manipulada por algum namorado. – Neste momento não devemos excluir nenhuma possibilidade – falei. – Seja lá quem tenha feito isso – disse Henry Tyler, com a mulher começando a desabar a seu lado –, encontrem nossa filha! Custe o que custar!
capítulo 35
O QUARTO DE PAOLA RICCI na casa dos Tyler era pequeno e tinha uma decoração nitidamente feminina. Na parede oposta à cama se via um pôster da região italiana da Lombardia e um crucifixo esculpido à mão estava afixado na cabeceira. O cômodo dispunha de três portas: a primeira levava ao corredor, a segunda dava para o banheiro e a terceira, para o quarto de Madison. A cama estava arrumada com uma colcha de chenile azul e as roupas, muito elegantes, se organizavam perfeitamente no closet: camisetas, saias e blusas, além de uma prateleira com suéteres de cores neutras. Alguns pares de sapatilhas estavam enfileirados no chão e uma bolsa de couro preto pendia da maçaneta da porta. Abri a bolsa e examinei a carteira. Segundo informava a habilitação de motorista, Paola tinha 19 anos. – Tem um metro e setenta e cinco de altura, cabelos castanhos, olhos azuis... e curte uma ervinha – falei, sacudindo o saquinho com três baseados que estavam escondidos num dos compartimentos internos da bolsa. Enquanto Conklin examinava o conteúdo de um nécessaire, abri a gaveta superior da cômoda, onde ficavam as roupas íntimas: algodão branco para os dias de trabalho, cetim de cores tropicais para os dias de folga. – Um pé no recato, outro na pimenta! Fui até o banheiro e abri o armarinho em cima da pia. Encontrei vários cremes e loções para os cabelos e a pele, além de uma cartela de anticoncepcionais. Com quem ela anda dormindo? Um namorado? Henry Tyler? Não era a primeira vez que uma babá se envolvia com o patrão. Estou diante de um crime passional? – Vem dar uma olhada nisto aqui, tenente – berrou Conklin do quarto. – Quero dizer, sargento. Fui ver o que era, mas antes falei: – Se você não consegue me chamar de “Boxer”, que tal “Lindsay”? – Tudo bem, Lindsay – disse o inspetor bonitão, o rosto iluminado por um sorriso. – Olhe, Paola tem um diário.
capítulo 36
CONKLIN COMEÇOU EXAMINAR o quarto de Madison e me deixou lendo o diário da babá. Paola tinha uma letra bonita, usava símbolos e desenhos para pontuar sua escrita. Uma leitura superficial deixava nítida a adoração da italiana pelos Estados Unidos. Falava com entusiasmo sobre os restaurantes e as lojas da Fillmore Street, dizendo que não via a hora de o tempo melhorar para que pudesse encontrar as amigas e se sentar ao ar livre, como fazia em seu país. Páginas e páginas falavam de butiques sofisticadas ou registravam os comentários das amigas sobre homens, roupas e celebridades. Ao mencionar as pessoas do seu círculo de amizade, usava apenas as iniciais, levando-me a acreditar que fumava maconha com ME e LK. Procurei por menções a Henry Tyler e percebi que eram frequentes, mas sempre vinham com o codinome de “Sr. C”, ou “Senhor Chefe”. Notei também que ela sempre enfeitava com uma estrelinha a inicial de alguém que se chamava “G” . Referia-se diversas vezes aos olhares libidinosos do tal “G” , mas dava a clara impressão de que as coisas ainda não haviam chegado às vias de fato. O maior número de referências era a Madison, deixando nítido o amor que a babá tinha pela menina. Paola tinha chegado ao ponto de colar nas páginas alguns desenhos e poemas dela. Não havia nada que falasse de planos ou atos de vingança. Fechei o livrinho vermelho convicta de que se tratava do diário de uma moça ingênua morando fora de seu país. Mas também não podia descartar que ela o tivesse plantado ali justamente para enganar quem o encontrasse. Henry Tyler nos acompanhou até a porta. Antes que saíssemos, segurou-me pelo braço e disse: – Fico agradecido por vocês terem tido a sensibilidade de poupar minha mulher, mas sei muito bem por que vieram aqui. É possível que alguma coisa já tenha acontecido à minha filha. Por favor, me mantenham informado de tudo. Quero saber a verdade. Dei o número do meu celular para aquele pai desesperado e prometi ligar sempre que tivéssemos novas informações. Quando saímos, os técnicos já grampeavam as linhas telefônicas da casa e os inspetores do Departamento de Operações Especiais interrogavam os vizinhos. Em seguida fomos até o Alta Plaza Park, que tinha uma vista deslumbrante da cidade. Entre babás, crianças e passeadores de cachorro, percebi alguns policiais fazendo perguntas aos frequentadores. Conklin e eu ajudamos, conversando com todas as babás e as crianças que conheciam Madison, inclusive uma jovem com as iniciais ME, a amiga que Paola tinha citado em seu diário.
Madeline Ellis se desmanchou em lágrimas ao saber do sequestro, apavorada com o que poderia ter acontecido a Paola e Madison. – É como se tudo estivesse pelo avesso – disse ela. – Este lugar era para ser muito seguro! – Madeline empurrava um carrinho de bebê. Visivelmente emocionada, continuou: – Paola é uma moça muito legal. Até um pouco imatura para idade dela. Contou também que o “G” do diário era George, cujo sobrenome ela desconhecia, um dos garçons do Restaurante Paradise. Disse que eles vinham se paquerando, mas tinha certeza de que ainda não haviam saído juntos. Encontramos George Henley servindo uma das mesas na varanda do restaurante, que ficava na Fillmore Street, e o interrogamos. Fomos duros com o rapaz, mas minha intuição dizia que ele não estava envolvido com nenhum sequestro. Era apenas um jovem que trabalhava para pagar a faculdade. Limpou as mãos no avental, segurou a carteira de motorista de Paola e examinou a foto. – Ah, sim, claro – falou. – Já a vi aqui com as amigas. Mas nem sabia o nome dela.
capítulo 37
O SOL JÁ BAIXAVA NO HORIZONTE quando deixamos o apartamento de Willy Evans, uma espécie de faz-tudo que morava na garagem de um dos vizinhos de Henry Tyler. Era uma figura asquerosa com unhas inacreditavelmente imundas e que possuía dezenas de terrários habitados por lagartos e cobras. No entanto, por mais evasivo que fosse, tinha um bom álibi para o momento do sequestro de Madison e Paola. Conklin e eu nos despedimos e fomos interrogar outros vizinhos, mostrando fotos da babá e da garotinha aos moradores que àquela hora chegavam do trabalho. Deixamos vários deles assustados, mas não conseguimos nenhuma pista concreta. Ao voltar à Central, registramos nossas anotações num relatório, transcrevendo as entrevistas e relatando que os Devine, vizinhos de porta dos Tyler, não haviam sido encontrados porque estavam em viagem de férias desde alguns dias antes do sequestro. Anotamos também que, na opinião dos amigos de Paola Ricci, a moça era uma santa. Despedi-me de Conklin e fui até o hospital. Claire dormia quando entrei em seu quarto. Ela abriu os olhos, disse um “oi” arrastado e voltou a dormir. Fiquei um tempo com ela, esparramada na poltrona, cochilando por uns instantes, até que finalmente decidi ir embora e me despedi com um beijo na testa da minha grande amiga. Estacionei na ladeira que levava à minha casa e fui subindo a rua com as chaves na mão, ainda assustada com toda aquela história envolvendo Madison Tyler. Precisei piscar algumas vezes para ter certeza de que não estava tendo uma alucinação. Joe me esperava nos degraus de casa com a coleira de Martha nas mãos. Assim que ele se levantou corri para seu abraço, demorando-me por alguns segundos. Como era gostoso ficar grudada ao corpo de Joe.
capítulo 38
ATÉ ONDE EU SABIA, Joe não tomou conhecimento da minha aventura malsucedida em Washington e aquele não era o momento para lhe contar. – Você deu comida para Martha? – perguntei, abraçando-o ainda mais forte e puxando-o para um beijo. – Também passeei com ela – sussurrou. – E comprei um delicioso tornedor com limão siciliano para nós dois. O vinho já está gelando. – Um dia desses ainda vou entrar no meu apartamento e atirar em você por engano. – Você não faria uma coisa dessas, loura. Faria? Afastei-me dele e abri um sorriso, respondendo: – Não, Joe, claro que não! – Esta é minha garota! Em seguida nos beijamos novamente: um beijo longo e molhado, meu corpo se derretendo contra o dele. Subimos até o apartamento com Martha latindo enquanto tentava nos pastorear, fazendo com que ríssemos tanto que nossas pernas estavam bambas quando enfim chegamos à porta. Como era do nosso costume, a comida precisou esperar. Joe tirou minhas roupas, depois as suas, abriu o chuveiro e deixou a água esquentar. Assim que entramos no boxe, ele colocou minhas mãos contra a parede e foi me ensaboando delicadamente, excitando-me tanto que precisei me conter para não gritar. Depois me enrolou numa toalha, levou-me para a cama e acendeu o pequeno abajur de lâmpada vermelha na mesinha de cabeceira. Começou a tirar minha toalha como se aquela fosse nossa primeira vez, como se ainda precisasse explorar meu corpo. Fiquei admirando o peitoral largo dele, seguindo com os olhos o caminho de pelos que descia por seu abdômen. Quando ergui os braços para tocá-lo, ele já estava pronto. – Quietinha... – sussurrou no meu ouvido. Com a cabeça pousada no travesseiro, as palmas das mãos viradas para cima, deixei que Joe me levasse à loucura enquanto me beijava por toda parte, roçando os dedos nos lugares certos, apertando seu corpo rígido contra o meu. No entanto, apesar de todo o calor, algo mais se passava na minha cabeça. Eu relutava contra os sentimentos que nutria por Joe, mas não sabia por quê. E dali alguns segundos veio a resposta: Não quero fazer isto.
capítulo 39
CHEGUEI A PENSAR QUE estava ficando louca: eu queria Joe e ao mesmo tempo não queria. De início achei que ainda estivesse muito impressionada com os acontecimentos daquele dia, a história do sequestro de Madison e Paola, mas o que me afligia de verdade era a lembrança de ter ido até Washington duas semanas antes e invadido um espaço que não era meu. Joe agora estava deitado a meu lado com a mão pousada em minha barriga. – Que foi, Lindsay? Balancei a cabeça como se dissesse que não era nada, mas ele virou meu rosto, obrigando-me a olhar diretamente para aqueles enormes olhos azuis. – Tive um dia horrível – respondi. – Imagino que sim – retrucou ele. – Isso não é novidade. Mas este seu olhar me diz que você está escondendo algo. Senti as lágrimas brotarem, o que me deixou envergonhada. Não queria me mostrar vulnerável diante de Joe – Pode ir soltando a língua, loura – falou. Rolando o corpo, aninhei a cabeça em seu ombro. – Não está fácil, Joe. – Eu sei, eu sei. Quero me mudar para cá, mas ainda não é o momento. Eu me acalmava enquanto ele discorria sobre os problemas do seu trabalho, as eleições que se aproximavam, a preocupação com ataques terroristas nas grandes cidades, as prioridades da segurança nacional. A certa altura, parei de ouvir. Levantei-me da cama e vesti um robe. – Você vai voltar? – perguntou Joe. – O problema é exatamente este – falei. – Estou sempre fazendo a mesma pergunta com relação a você. Ele já ia dizendo alguma coisa, mas não lhe dei tempo: – Escute, Joe. – Sentei-me na beirada da cama. – Por melhor que seja esta nossa história, não dá para tapar o sol com a peneira. Nunca sei quando vamos nos ver e acho que estou velha demais para um relacionamento assim... tão bissexto. – Lindsay... – Você sabe que tenho razão. Nunca sei quando você vai aparecer, nem se vou conseguir encontrá-lo por telefone. Então você dá as caras, some de novo e me deixa aqui, morrendo de saudades. Nunca temos tempo para ficar juntos, levar uma vida normal como duas pessoas
normais. Às vezes conversamos sobre você se mudar para cá, mas nós dois sabemos que isso nunca vai acontecer. – Lindsay, eu juro... Não posso esperar pela posse do novo presidente ou o fim da ameaça terrorista, Joe! Será que você não entende? Ele agora também estava sentado e seus olhos irradiavam tanto amor que eu não conseguia encará-los. – Eu te amo, Lindsay. Por favor, não vamos brigar. Tenho de ir embora amanhã de manhã. – Você tem de ir embora agora, Joe! – surpreendi-me dizendo. – Por mais que me custe falar isto, não quero mais saber de promessas. Vamos colocar um ponto final nesta história, está bem? Foi ótimo enquanto durou. Se você realmente me ama, por favor, vá embora. Depois de um beijo de despedida, voltei para a cama e fiquei por um bom tempo olhando para o teto, encharcando o travesseiro de lágrimas, perplexa com a burrice que tinha acabado de fazer.
capítulo 40
FALTAVA POUCO PARA A MEIA-NOITE de sábado. Cindy dormia sozinha em seu novo apartamento no edifício Blakely Arms quando foi acordada por uma mulher que berrava em espanhol num dos andares de cima. A jornalista ouviu uma porta bater, depois passos apressados, o rangido de uma dobradiça e uma nova porta batendo, mais perto de seu apartamento. Deve ser a porta da escada. Ouviu novos gritos, que agora vinham da rua. Vozes masculinas chegavam a seu apartamento no terceiro andar. Era uma briga de casal. Começou a temer pela própria segurança, algo que nunca ocorrera no antigo apartamento. O desconto que conseguira na compra do imóvel talvez fosse o prenúncio de uma grande roubada. Levantou-se da cama, atravessou a enorme sala e foi até o hall. Olhou através do olho mágico e não viu nada. Certificou-se de que a porta estava trancada e foi até a mesa do escritório. Correu as mãos pelos cabelos e os prendeu num rabo de cavalo. Caramba, estou tremendo! A discussão dos vizinhos talvez não fosse o único motivo do nervosismo de Cindy. Era provável que estivesse abalada por causa da matéria que vinha escrevendo sobre o sequestro de crianças. Desde o telefonema de Henry Tyler, ela vinha pesquisando o assunto na internet e estava surpresa com o grande número de crianças que eram sequestradas no país. A maioria era raptada por parentes, mas logo era encontrada e devolvida aos pais. Contudo, havia casos de vítimas que eram esfaqueadas, estranguladas ou enterradas vivas pelos criminosos. Isso geralmente acontecia nas primeiras horas após o rapto. Segundo as estatísticas, talvez Madison tivesse sido levada por um conhecido que logo faria contato. Mas por que o sequestrador ainda não procurou os pais da menina? Aquela pergunta provocava arrepios na jornalista. Cindy voltava para o quarto quando a campainha tocou. Ficou paralisada, sentindo o coração pular dentro do peito. Eu não conheço ninguém neste prédio. Quem pode ser a esta hora? A campainha tocou de novo, um barulho mais estridente. Amarrando o robe, ela foi até a porta e espiou pelo olho mágico. Mal conseguia acreditar no que via. É Lindsay! E ela está com um aspecto horrível!
capítulo 41
EU ESTAVA PRESTES A DESISTIR quando Cindy abriu a porta. De robe cor-de-rosa e com os cabelos presos, ela olhava para mim como se estivesse diante de um fantasma. – Você está bem? – perguntei. – Eu? Estou ótima, Lindsay. Moro aqui, lembra? Mas e você, está bem? – Eu teria ligado antes – falei, abraçando minha amiga, aproveitando a oportunidade para me acalmar. Mas Cindy percebeu a expressão de perplexidade em meu rosto. Aliás, ela também não parecia muito tranquila. – Só que... eu não sabia que estava vindo para cá até chegar aqui. – Entre e se acalme, pelo amor de Deus! – disse ela, olhando aflita enquanto eu me dirigia até o sofá. Caixas de papelão estavam empilhadas contra a parede e havia pedaços de plástico bolha por toda parte. – Como diria Yuki, parece que você viu o diabo! Consegui esboçar um sorriso e depois disse: – É, eu não estou muito bem. – Quer beber o quê? Um chá? Alguma coisa mais forte? – Um chá está ótimo. Recostei-me nas almofadas e dali a alguns minutos Cindy voltou da cozinha, sentou-se num banquinho à minha frente, entregou-me a xícara e disse: – Pode abrir o bico. Cindy era o paradoxo em forma de gente. Estava sempre arrumada, com unhas perfeitas e maquiagem em dia. Mas aquela mulher “poderosa” rodava a baiana quando desconfiava de alguma coisa. Senti-me uma verdadeira idiota. Eu tinha melhorado só de ver minha amiga e não queria mais falar sobre Joe. – Vim conhecer seu apartamento novo, só isso – falei. – Conte outra – retrucou, séria. – Você é jogo duro, hein? – É mal da profissão, minha querida! – Do qual você se orgulha, né? – Você nem imagina quanto! – Sua chata... – Eu agora já estava rindo. – Vai lá, esvazie esse peito. Pode mandar bala! – Esta foi minha bala: chamar você de chata. – Puxa, Lindsay! O que houve? Pode falar!
Cobri o rosto com a almofada e, sem enxergar nada, entreguei os pontos: – Terminei com Joe! Cindy puxou a almofada das minhas mãos, dizendo: – Você está brincando! – Pegue leve comigo, Cindy. Senão vou vomitar no seu tapete. – Está bem, está bem. Mas por que você fez uma coisa dessas? Joe é um cara inteligente, lindo. Vocês se amam! O que deu na sua cabeça? Ergui os joelhos e os abracei contra o peito. Cindy se sentou a meu lado e colocou o braço em meus ombros. Minha sensação era de que eu nadava contra a correnteza com uma bola de ferro amarrada aos pés. Tinha chorado tanto nas últimas horas que temia por minha sanidade mental. – Não precisa se apressar, amiga. Estou aqui. Pode dizer o que está acontecendo... Então abri as comportas, contando toda a história sobre minha vergonhosa e rápida viagem a Washington, falando como me sentia naquela montanha-russa amorosa ao lado de Joe. – Está doendo muito, Cindy. Mas sei que fiz a coisa certa. – Tem certeza que não é só porque você ficou magoada quando chegou lá e encontrou a tal garota? – Tenho. Claro que tenho! – Puxa, Lindsay. Minha intenção não era fazer você chorar. Deite aqui, vai. Feche os olhos. Cindy me puxou com delicadeza e colocou uma almofada sob minha cabeça. Em seguida buscou um cobertor, apagou as luzes e voltou até o sofá, dizendo: – Esta história ainda não acabou. Acredite em mim. Ainda não acabou. – Nem sempre você está certa, sabia? – murmurei. – Quer apostar? – Cindy beijou-me no rosto e se retirou para o quarto. Minutos depois eu já dormia profundamente, perdida em sonhos agitados, acordando apenas quando o sol atravessou as janelas sem cortina da sala de Cindy. Fiz um esforço para ficar sentada e vi o recado que Cindy tinha deixado na mesa de centro, dizendo que havia saído para comprar café e pão. Meus neurônios então deram sinal de vida. Jacobi e Macklin tinham marcado uma reunião para as oito horas daquela manhã. Todas as pessoas envolvidas no caso Madison Tyler e Paola Ricci já deveriam estar lá – menos eu! Deixei um bilhete para Cindy, calcei os sapatos e saí correndo porta afora.
capítulo 42
JACOBI REVIROU OS OLHOS quando passei por ele e fui me sentar nos fundos da sala. O tenente Macklin me encarou por alguns segundos e resumiu o que já havia sido discutido. Como não havia qualquer informação sobre o paradeiro de Madison Tyler e Paola Ricci, nossa tarefa seria interrogar todos os agressores sexuais com passagem pela polícia. – Patrick Calvin – falei, passando os olhos no primeiro nome da lista enquanto Conklin e eu entrávamos na viatura. – Prisioneiro recentemente posto em liberdade condicional depois de cumprir pena por ter molestado sexualmente a própria filha. A menina tinha seis anos quando o crime aconteceu. Conklin deu partida no carro. – Não dá para entender essa escória – falou. – Quer saber? Acho que nem quero entender! Calvin morava num pequeno prédio na esquina da Palm com a Euclid, próximo ao Jordan Park e a dois quilômetros de onde Madison Tyler morava. Um Corolla azul registrado em seu nome estava estacionado na rua. Senti o cheiro de bacon frito quando chegamos ao pátio aberto na entrada do prédio. Subimos as escadas e batemos à porta de Calvin, pintada num vermelho forte. Uma garoto de cabelos desgrenhados, de aproximadamente um metro e sessenta de altura e com pijama xadrez e meias brancas atendeu a porta. Parecia ter 15 anos. Cogitei perguntar se o pai dele estava em casa, mas o tom cinzento das faces e as mãos tatuadas diziam que ali estava um ex-inquilino do nosso sistema carcerário. – Patrick Calvin? – perguntei, mostrando meu distintivo. – O que vocês querem? – Sargento Boxer. E este é o inspetor Conklin. Temos algumas perguntas a fazer. Será que podemos entrar? – Não, não podem. O que vocês querem? Conklin tem uma doçura que às vezes me deixa com inveja. Eu já o vi interrogando psicopatas com uma calma impressionante. Quando José Alonzo foi preso, meu parceiro teve o trabalho de alimentar o gatinho abandonado na cena do crime. – Desculpe, Sr. Calvin – disse ele dessa vez. – Sabemos que hoje é domingo, mas uma criança está desaparecida e não temos tempo a perder. – E o que eu tenho a ver com isso? – É melhor o senhor ir se acostumando – falei. – Está em liberdade condicional e... – Querem revistar a casa, é isso? – berrou Calvin de volta. – Caramba, vivemos num país livre
ou não? Cadê a ordem judicial! Vocês não têm ordem nenhuma! – O senhor me parece muito nervoso para quem não tem culpa no cartório – disse Conklin. – Dá até para desconfiar... Ouvi meu parceiro explicar ao homem que poderíamos ligar para o supervisor da condicional e entrarmos ali sem maiores problemas. – Ou podemos obter um mandado de busca – propôs o inspetor. – Em dois minutos as viaturas chegam aqui, com as sirenes berrando para todos os seus vizinhos ouvirem, deixando bem claro quem exatamente o senhor é. – Então... – falei. – Podemos entrar? Calvin devolveu meu olhar azedo com outro idêntico. – Não tenho nada a esconder – respondeu. E recuou para nos dar passagem.
capítulo 43
O APARTAMENTO DE CALVIN tinha poucos móveis. Eram todos de madeira clara e pareciam comprados em lojas de departamentos populares. Havia uma prateleira sobre a TV com vários tipos de bonecas: grandes, pequenas, de pano, com roupas de festa, etc. – Comprei para minha filha – explicou Calvin, desabando sobre uma cadeira. – Caso ela venha me visitar. – Quantos anos ela tem agora? – perguntou Conklin. – Dezesseis? – Me deixe em paz – retrucou Calvin. – Não estou com saco, ok? – Olhe os modos, Sr. Calvin – disse Conklin, indo dar uma olhada no quarto do homem. Eu me sentei no sofá e tirei o bloco de anotações do bolso, tentando não pensar na menina, agora uma adolescente, que tinha um pai como aquele. Em seguida perguntei a Calvin se ele já havia visto Madison Tyler. – No noticiário de ontem à noite – respondeu. – Muito linda. Dá até vontade de morder. Mas não a conheço. – Muito bem, então. Onde o senhor estava ontem às nove da manhã? – Vendo televisão. Gosto de assistir aos desenhos animados para falar de igual para igual com as garotinhas, se é que a senhora me entende. O sujeito tinha uns 10 centímetros a menos do que eu e era bem mais franzino. Contudo, era tão asqueroso quanto Alfred Brinkley e provocava em mim uma vontade de partir para a violência. – Por acaso o senhor tem um álibi? – perguntei. – Claro. É só perguntar para meu amigo aqui – respondeu, fechando a mão sobre a virilha. – Ele vai dizer tudo o que a senhora quiser saber. Aquilo foi o bastante. Pulei em cima do canalha e, puxando-o pelo colarinho do pijama, o joguei contra a parede, derrubando algumas bonecas da prateleira. Conklin voltou do quarto quando eu estava prestes a esganar o homem. Como se nada estivesse acontecendo, ele se encostou na moldura da porta. – Bela coleção de fotos que o senhor tem no quarto – disse Conklin casualmente. – Sobretudo as dos garotinhos brincando no Alta Plaza Park. Imediatamente lancei um olhar na direção dele. Madison e Paola tinham sido sequestradas na rua em frente ao parque. – Viu minha câmera? – perguntou Calvin em tom de desafio. – Dezesseis megapixels e um zoom de 15x. Tirei aquelas fotos a um quarteirão de distância. Conheço bem as regras e não
quebrei nenhuma delas. – Sargento – disse Conklin para mim –, há uma menina nas tais fotos. Acho que pode ser Madison. Liguei para Jacobi, dizendo que Patrick Calvin tinha fotos que mereciam um exame mais cuidadoso. – Precisamos de dois homens para vigiar Calvin enquanto Conklin e eu providenciamos uma ordem judicial. – Pode deixar, Boxer. O carro já está seguindo. Vou pedir a Chi que cuide do mandado e traga Calvin para cá. – Conklin e eu damos conta do recado, Jacobi – falei. – Claro que dão – disse Jacobi –, mas acabamos de receber uma ligação da rodoviária de São Francisco. Pela descrição que fizeram, acho que Madison andou por aquela área. – Ela foi vista lá? – Parece que está lá.
capítulo 44
O TERMINAL RODOVIÁRIO TRANSBAY é um enorme galpão de concreto na esquina da Primeira Avenida com a Mission Street. O interior daquela caixa-forte é iluminado por lâmpadas fluorescentes que piscam sobre a população de mendigos que perambulam pelo local. Mesmo à luz do dia a rodoviária consegue provocar arrepios. Eu não via a hora de encontrar Madison Tyler e sair logo dali. Conklin e eu descemos as escadas que levavam ao subsolo escuro onde ficavam as bilheterias e a área de segurança. Duas mulheres negras estavam do outro lado do balcão. Costurada no bolso do uniforme azul-marinho, uma etiqueta de pano informava: SEGURANÇA PATRIMONIAL. Mostramos nossos distintivos e elas nos deixaram entrar. O local era um cubículo com duas paredes de vidro e outras duas de alvenaria, mobiliado com duas mesas, alguns arquivos e com três portas que abriam mediante digitação de senha. Sentada a uma das mesas estava uma garotinha de cabelos claros que escorriam até os ombros. O casaquinho azul estava desabotoado sobre o suéter vermelho e as calças azuis. E os sapatos eram vermelhos. Meu coração começou a pular de alegria. Nós encontramos Madison com vida! O chefe da segurança, um sujeito forte com seus 40 e poucos anos, cabelos e bigodes grisalhos, veio nos receber: – Alfred Zimmer – apresentou-se ele, apertando nossas mãos. – Encontramos esta mocinha aqui há uns 15 minutos, vagando sozinha pelo terminal. Não foi, meu amor? Mas não conseguimos que ela falasse conosco. Curvando o tronco com as mãos apoiadas nos joelhos, fiquei cara a cara com a menina, mas ela mantinha os olhos baixos. Era possível perceber que havia chorado muito. As bochechas estavam sujas e o nariz escorria. O lábio inferior apresentava um inchaço e um arranhão atravessava ao lado esquerdo do rosto. Olhei rapidamente para Conklin. O alívio que eu sentira ao encontramos a menina viva dava lugar a preocupação com o que poderia ter sido feito a ela. O rostinho traumatizado nem de longe lembrava o da menina prodígio que eu vira tocando piano na gravação. Conklin também se curvou para falar com ela. – Meu nome é Richard – disse ele, sorrindo. – E o seu, é Madison? A menina ergueu os olhos, abriu a boca e balbuciou: – Mááa-dii. Meu Deus, pensei, ela está apavorada. Segurei as mãozinhas dela e percebi que estavam
geladas. – Chame os paramédicos – falei baixinho para Conklin, tentando não assustá-la ainda mais. – Tem alguma coisa errada com ela.
capítulo 45
AGITADOS, CONKLIN E EU andávamos de um lado para outro diante da emergência do hospital quando os Tyler chegaram e nos abraçaram como se pertencêssemos à sua família. Eu estava feliz. Parte daquela história tinha chegado ao fim. E, se tudo corresse como eu esperava, Madison voltaria a si tão logo reencontrasse os pais. Além disso, eu tinha algumas perguntas a fazer à menina, a começar com: “Você se lembra do rosto dos sequestradores?” – Ela estava dormindo quando a vi pela última vez – falei a Henry e Elizabeth Tyler. – Dr. Collins acabou de passar por aqui e disse que voltará... daqui a uns 10 minutos. – Preciso perguntar uma coisa – disse Elizabeth Tyler a meia-voz. – Alguém tocou em minha filha? – Tudo indica que ela passou por maus momentos – respondi. – Os médicos ainda não fizeram nenhum exame mais invasivo, pois estavam esperando pela permissão dos pais. Elizabeth Tyler tapou a boca com as duas mãos, segurando as lágrimas. – Mas devo informar que ela não falou quase nada – acrescentei. – Madison não é assim. – É possível que tenha sido ameaçada e por isso esteja com medo. – Esses animais! – Por que eles levariam Madison para abandoná-la sem sequer pedir resgate? – perguntava Henry Tyler enquanto entrávamos na emergência. Deixei a pergunta sem resposta porque não tive coragem de expor o pensamento que veio à minha mente: Pedófilos não pedem resgate. O casal entrou no cubículo cercado por cortinas onde a menina estava. Rapidamente Henry se virou e disse baixinho, segurando meu braço: – Obrigado. Segundos depois ouvi Elizabeth chamar o nome da filha e dar um grito. Precisei recuar quando ela saiu do cubículo e atravessou às pressas o corredor. Henry Tyler saiu atrás dela e, com o indicador apontado para meu rosto, começou a gritar: – Vocês têm ideia da besteira que fizeram? Esta garota não é Madison! Ouviu bem? Ela não é nossa filha!
capítulo 46
EU AINDA PEDIA DESCULPAS a Henry e Elizabeth Tyler quando eles entraram em seu carro e partiram em disparada. Perplexa, demorei alguns segundos para atender o celular que tocava em minha cintura. Era Jacobi: – Uma mulher acabou de ligar dizendo que a filha sumiu. Uma criança de cinco anos. Cabelos louros e compridos. A mulher era Sylvia Brodsky e estava histérica. Perdera a filha de vista enquanto fazia compras no mercado. Alicia certamente havia se afastado num momento de distração da mãe. Segundo a telefonista da emergência, a mulher dissera que a menina era autista. Alicia Brodsky mal conseguia falar. Pouco depois da ligação de Jacobi, Sylvia Brodsky chegou ao hospital para buscar a filha, mas Conklin e eu já tínhamos ido embora. A bordo de nossa viatura estávamos repassando os fatos, pelos quais eu assumia inteira responsabilidade. – Eu devia ter sido mais incisiva quando disse aos Tyler que talvez tivéssemos encontrado a filha deles, mas que não podíamos ter certeza. De qualquer forma, falei que precisávamos da presença deles para identificar a menina, não falei, Richard? Você ouviu. – Eles pararam de ouvir quando você disse que talvez Madison tivesse sido encontrada. Tudo batia, Lindsay. A menina disse que o nome dela era Madison. – Ou algo parecido. – E os sapatinhos vermelhos? – insistiu Conklin. – Quantas meninas louras de cinco anos têm um casaco azul e sapatos vermelhos? – Pelo menos duas, não é? – respondi suspirando. De volta à Central, interrogamos Calvin por duas horas, apertando-o até eliminar de seu rosto o sorrisinho irônico. Examinamos as fotos digitais que ainda estavam em sua câmera e as que Conklin havia encontrado no quarto do sujeito. Embora não houvesse nenhuma foto de Madison Tyler, olhamos todas elas com atenção na esperança de que Calvin tivesse acidentalmente fotografado o sequestro ou de que tivesse captado uma imagem da van preta. Mas constatamos que ele não tirara fotos na região do Alta Plaza Park no dia anterior. De qualquer maneira, Patrick Calvin continuava a ser um sujeito asqueroso, o que infelizmente não constituía crime. Portanto, não nos restava outra coisa a fazer senão mandá-lo de volta às ruas. Naquele mesmo dia Conklin e eu ainda interrogamos três molestadores com passagem pela
polícia: sujeitos de aparência absolutamente comum sem nada que os identificasse como os predadores sexuais que de fato eram. Contudo, os três tinham álibis incontestáveis. Por volta das sete da noite joguei a toalha. Eu estava triste e cansada. Voltei para casa, dei um abraço em Martha e prometi a ela uma corrida após o banho. Encontrei na bancada da cozinha um recado da “babá” da minha border collie. Fui até a geladeira, abri uma cerveja e peguei o bilhete para ler:
Oi, Lindsay. Vi que você não estava em casa, então fiquei com pena da Martha e a levei para dar uma volta! A Lembra que eu falei que meus pais vão me emprestar a casa de Hermosa Beach para o Natal? Pois é. Quem sabe você não deixa Martha ir comigo? Seria ótimo para ela, Lindsay!!! Me liga quando puder. Beijos, Karen.
Quase morri de remorso ao lembrar que havia me esquecido de ligar para Karen. Eu vinha sendo uma péssima mãe para Martha nos últimos tempos. Minha nova função me obrigava a duplas jornadas e a fins de semana de trabalho. Eu me dei conta de que não havia descansado um único dia desde o incidente na balsa. Baixei o tronco para dar um beijo em Martha, levantei suas orelhas e, olhando diretamente naqueles olhos enormes, perguntei: – Quer dar uma corridinha na praia, Boo?
capítulo 47
ERA MANHÃ DE SEGUNDA-FEIRA e o sol não havia despontado no horizonte. Conklin e eu estávamos no canteiro de obras vizinho ao Fort Point, a enorme fortaleza construída na península de São Francisco durante a Guerra de Secessão e que agora ficava à sombra da Golden Gate Bridge. Um vento gelado soprava da baía, dando à temperatura de 10 graus uma sensação térmica de dois. Eu estava tremendo e não sabia se era culpa do frio ou do que estávamos prestes a descobrir. Fechei o zíper da jaqueta forrada de lã e enterrei as mãos nos bolsos, sentindo os olhos se umedecerem com a ventania. Um soldador que trabalhava na manutenção da ponte veio em nossa direção segurando um copo de café fumegante. Wayne Murray nos contou que havia percebido algo estranho agarrado às rochas ao chegar ao trabalho naquela madrugada. – Primeiro achei que fosse uma foca – disse ele abalado. – Mas ao chegar mais perto vi um braço saindo da água. Nunca tinha visto um cadáver na vida. Ouvi portas de carro batendo às minhas costas. Rindo e falando alto, cerca de 10 homens atravessaram o portão do canteiro de obras. Entre os trabalhadores, percebi paramédicos e três policiais do Departamento de Parques. Pedi a eles que isolassem a área e baixei os olhos para o corpo escuro junto ao quebra-mar, a mão e o pé direitos boiando na água que corria até mar aberto. – Ela não foi largada aqui – disse Conklin. – Alguém teria visto. Ergui os olhos para o policial que patrulhava a ponte com seu fuzil AR-15. – É verdade – falei. – Dependendo da hora e das marés, pode ser que ela tenha sido jogada de um píer qualquer. Os criminosos esperavam que ela fosse levada para alto-mar. – Olha só quem está chegando – disse Conklin. – Dr. G. O médico-legista parecia mais animado naquela manhã, com os cabelos brancos ainda molhados exibindo as marcas do pente e as calças impermeáveis de pescaria puxadas muito acima da cintura. Acompanhado de um assistente, o legista assumiu a liderança dos trabalhos e nós fomos atrás dele, caminhando com dificuldade sobre as pedras da encosta, a uns cinco metros da margem. – Fiquem onde estão e tomem cuidado – ordenou Dr. Germaniuk ao nos aproximarmos do corpo. – Não quero que ninguém caia ou toque em alguma coisa. Obedecemos sem contestar. O legista desceu até o corpo, depositou sua maleta de equipamentos no chão e com a lanterna deu início à análise. Eu podia ver nitidamente o corpo
sob o facho de luz. O rosto da vítima estava inchado e escuro. – A pele já está se desprendendo da musculatura em alguns pontos – disse o médico. – Faz alguns dias que ela está na água. Tempo suficiente para ter boiado até aqui. – Algum ferimento à bala na cabeça? – perguntei. – Não dá para afirmar. Parece que a cabeça bateu diversas vezes contra as pedras. Vou fazer uma radiografia assim que a levarmos para o necrotério. O legista fotografou o corpo duas vezes de cada ângulo, com o flash da câmera disparando a cada dois segundos. Anotei que a vítima usava um casaco escuro e suéter de gola rulê. Os cabelos eram curtos e tinham o mesmo corte com franjas que dois dias antes eu vira na foto da carteira de motorista encontrada em suas coisas. – Nós dois sabemos que esta aí é Paola Ricci – disse Conklin, aproximando-se do corpo. – É verdade – falei. – Mas só vou acreditar depois do laudo oficial.
capítulo 48
CLAIRE ESTAVA SENTADA na cama quando entrei em seu quarto no hospital. Corri para abraçá-la, apertando-a com tanta força que ela reclamou: – Calma, calma! Esqueceu que estou com um buraco no peito? Dei um passo atrás, beijei o rosto da minha amiga e me sentei a seu lado. – Quais são as novidades do médico? – perguntei. – Ele disse que sou uma guerreira – respondeu Claire começando a tossir, cobrindo a boca com a mão direita. Por fim conseguiu dizer: – Só dói quando tusso. – Você é uma guerreira e... – Vou ficar boa logo, logo. Saio deste lugar na quarta-feira. Fico de molho em casa por um tempo e depois disso é vida normal! – Graças a Deus. – Venho agradecendo a Deus desde que aquele maluco atirou em mim. Nem lembro mais quando foi! – Duas semanas atrás, Borboleta. Duas semanas e dois dias. Claire ergueu uma caixa de bombons e peguei o primeiro que vi. – Você tem dormido no porta-malas do carro? – perguntou. – Ou trocou Joe por um garotão de 18 anos? Busquei água para nós duas, coloquei um canudo no copo de Claire, entreguei a ela e respondi: – Não troquei Joe por ninguém. Apenas... terminei com ele. As sobrancelhas de Claire ergueram-se. – Mentira! Expliquei o que havia acontecido, sofrendo a cada palavra. Claire ouvia tudo com atenção, demonstrando estar preocupada. Fez algumas perguntas, mas a maior parte do tempo fui eu quem falou. Depois de um gole d’água, limpei a garganta e contei sobre minha nova patente na Polícia de São Francisco. Ela ficou chocada mais uma vez. – Você pediu para ser rebaixada e mandou o Joe pastar... ao mesmo tempo? Estou preocupada com você, amiga. Tem dormido bem? Está comendo direitinho? Balancei a cabeça para as duas últimas perguntas, jogando-me na poltrona enquanto a enfermeira entrava no quarto com o jantar e os remédios de Claire.
– Aqui está, Dra. Washburn. Quero ver a boca bem aberta! Claire tomou os remédios sem reclamar, mas pôs o jantar de lado assim que a enfermeira saiu. – Esta é a gororoba do dia – disse ela. Então me dei conta de que não havia comido nada durante o dia. Apropriei-me do jantar de Claire e amassei com o garfo as ervilhas, misturando-as ao bolo de carne. Tomava o sorvete quando contei a ela que o corpo de Paola Ricci já havia sido identificado. – Os sequestradores mataram a babá minutos depois de a levarem com a menina. Nem quiseram esperar para se livrar da moça. Mas isso é tudo o que temos até agora, Borboleta. Não sabemos quem são os caras nem qual é o paradeiro de Madison. – Mas por que esses caras não ligaram para pedir o resgate? – Essa é a pergunta que não quer calar. Deviam ter ligado há muito tempo. Acho que não estão atrás da grana dos Tyler. – Caramba! – Pois é! – Larguei a colher de plástico sobre a bandeja e novamente me recostei na poltrona, olhando para o nada. – Lindsay? – Tenho pensando numa coisa. Eles mataram Paola porque ela testemunhou o sequestro de Madison. – Faz sentido. – Mas se Madison testemunhou o assassinato da babá eles também não vão deixá-la sair dessa com vida.
PARTE 3
A CONTABILIDADE
capítulo 49
CINDY THOMAS DEIXOU seu apartamento no Blakely Arms, atravessou a esquina e deu início à sua caminhada de cinco quadras até a redação do Chronicle. Num apartamento dois andares acima do dela, com vista para os fundos do prédio, um homem chamado Garry Tenning estava tendo uma manhã difícil. Apertava as bordas de sua mesa de trabalho tentando aplacar a fúria. Cinco andares abaixo um cachorro latia sem parar no pátio, como se cada ganido fosse um espeto de churrasco atravessando seus tímpanos. O morador sabia que cachorro era aquele. Tratava-se de or, o pinscher de Margareth Glynn, loura oxigenada e mãe solteira do insuportável bebê Oliver, que morava no térreo e usava o pátio dos fundos como se fosse dona do lugar. Tenning apertou ainda mais o protetor auricular nos ouvidos. Mesmo assim ainda conseguia ouvir os latidos de or. Esfregava as mãos na camiseta enquanto tinha a nítida sensação de que o animal afiava as unhas em seu cérebro. Caramba! Será que não é possível ter um pouco de silêncio? Na tela do computador à sua frente era possível ver linhas e colunas ordenadas meticulosamente de cima a baixo no capítulo seis do seu livro: Contabilidade – Um resumo estatístico do século XX. Para o homem aquele livro era mais que um simples projeto pessoal: era sua razão de viver, um grande legado que iria deixar para a humanidade. Por isso ele se alegrava tanto com as cartas de recusa que chegavam das editoras, que se negavam a publicar sua obra-prima. Registrava carinhosamente as ocorrências num livro e depois arquivava as cartas numa pasta reservada para este fim. Tenning sabia que mais cedo ou mais tarde sua obra chegaria às livrarias para se tornar uma referência a estudiosos do mundo inteiro e a gerações futuras. Ninguém poderia tirar isso dele. Ainda brigando mentalmente com o cachorro, Tenning corria os olhos pelas linhas de números (as tempestades de raios desde o ano de 1900, as nevascas em Vermont, as vacas mortas por tornados) quando um caminhão de lixo começou sua barulheira no quarteirão adiante. O homem achou que sua cabeça fosse explodir. Eu não estou ficando louco! Aquela era uma reação perfeitamente normal diante de tanto barulho. Ainda que tapasse os ouvidos, ele podia ouvir a sinfonia metálica do caminhão, que acabara de despertar a choradeira de Oliver. Maldito bebê! Quantas vezes já fui interrompido por essa criatura? E esse vira-lata que não para de latir?
Tenning sentia aumentar a pressão no peito e na cabeça. Se não fizesse alguma coisa, iria explodir. Ele tinha chegado ao limite.
capítulo 50
APESAR DOS DEDOS TRÊMULOS, Tenning amarrou rapidamente os cadarços dos tênis, saiu ao corredor, trancou a porta do apartamento e guardou as chaves no bolso. Usou as escadas para descer ao porão: ele jamais usava os elevadores. Passou pela lavanderia e entrou na sala onde ficavam as duas caldeiras do prédio. Um cano enferrujado com meio metro de comprimento estava jogado num dos cantos do cômodo. Tenning levantou do chão o objeto como se estivesse diante de um valioso tesouro. Dobrando à direita, seguiu a orientação da placa que indicava a saída. Destravou a porta com o antebraço e ficou ali por um minuto, banhado pelo sol e reconhecendo o ambiente a seu redor. Em seguida virou a esquina do prédio e caminhou através do pátio de lajotas decorado com vasos de plantas, que haviam sido postos ali após a reforma. or logo notou a presença do homem e começou a latir, esticando ao máximo a corrente da coleira que o prendia ao alambrado. Ao lado do cachorro, estava o carrinho de bebê em que Oliver Glynn não parava de berrar. Tenning sentiu uma onda de satisfação varrer seu corpo. Dois coelhos numa cajadada só. Apertando o cano em suas mãos, foi se esgueirando pelo muro do prédio rumo à barulheira infernal daquelas duas almas perdidas. Foi quando Margareth Glynn, com os cabelos presos atrás da cabeça com um lápis, saiu de seu apartamento e se dirigiu até o carrinho de bebê. Curvando o tronco e deixando à mostra boa parte das coxas brancas, tomou o filho no colo. Tenning observava a cena escondido. O bebê imediatamente parou de chorar, mas or passou a latir com mais intensidade, animado com a presença da dona. Margareth berrou para que o animal se calasse e em seguida encostou a cabeça do filho contra os seios murchos, voltando para o apartamento. Tenning avançou na direção de or, que interrompeu o latido e começou a lamber o próprio focinho, na esperança de um carinho ou comida. Em poucos segundos, no entanto, ele voltou a latir. O homem levantou o cano e o baixou com toda a força. or ganiu, tentando abocanhar o braço de Tenning quando ele o reergueu contra o céu azul antes da segunda paulada. O pinscher finalmente se calou. O homem recolheu o cachorro morto e o jogou na lata de lixo do pátio. Quem vai descansar em paz agora sou eu.
capítulo 51
TRÊS DIAS HAVIAM SE PASSADO desde o sequestro de Madison Tyler e o assassinato da babá Paola Ricci na Scott Street, a poucos metros do Alta Plaza Park. Estávamos todos reunidos naquela manhã: Conklin, quatro inspetores que faziam hora extra após o turno da noite, Macklin, seis oficiais do Departamento de Operações Especiais e eu. Após passar os olhos pela sala, Macklin disse: – Vou ser rápido, para que possamos voltar logo ao trabalho. Não temos nada até agora. Isto é, nada além do talento das pessoas aqui reunidas. Então vamos continuar fazendo o que sabemos fazer melhor: nosso trabalho sério de policiais. E para aqueles que são religiosos... rezem por um milagre. Ele distribuiu as tarefas e perguntou se alguém tinha dúvidas. Em seguida todos nos levantamos, prontos para o trabalho. Examinei a nova lista de maníacos que Conklin e eu devíamos interrogar. Atravessei o piso arranhado e fui até a sala de Jacobi. – Entre, Boxer. – Jacobi, acho que temos duas pessoas envolvidas no sequestro: o cara que raptou a menina e o motorista. Muito estranho, você não acha? Que um pedófilo tenha um comparsa? – Alguma outra ideia, Boxer? Pode falar! – Eu gostaria de voltar à estaca zero. À testemunha. Quero conversar com ela. – Depois desses anos todos, não acredito que você esteja desconfiando de um interrogatório que eu mesmo fiz – resmungou Jacobi. – Espere aí. Tenho a transcrição aqui comigo. Dei um suspiro e fiquei observando Jacobi remexer na bagunça em sua mesa e examinar várias pastas de arquivo até encontrar o que procurava. – Achei. O nome dela é Gilda Gray. O número está aí. – Valeu, tenente – falei, segurando a pasta que ele me entregou. Só então me dei conta de que até aquele momento eu nunca havia chamado Jacobi de tenente. Sorrindo, ele ergueu os olhos para mim e eu sorri de volta antes de retornar à mesa que eu dividia com Conklin na sala do departamento. Imediatamente liguei para Gilda Gray, que disse: – Infelizmente não posso ir até aí agora. Tenho uma apresentação marcada com um cliente às nove e meia. – Uma criança está desaparecida, Srta. Gray – insisti. – Olhe, posso contar tudo o que vi pelo telefone. É coisa rápida. Eu estava passeando com meu cachorro na Divisadero, abrindo um jornal para limpar a sujeira dele, quando a menina e a
babá atravessaram a rua. – O que aconteceu depois? – Eu não sei. Estava olhando para baixo, endireitando o jornal, quando ouvi uma criança gritar. Levantei os olhos, mas vi apenas um sujeito de casaco cinza abrindo a porta de uma van preta. – Um sujeito de casaco cinza. Entendi. Viu quem estava dirigindo o veículo? – Não. Joguei o jornal no lixo e reparei a van dobrar a esquina. Depois, como eu já disse, ouvi uma explosão e vi o que parecia ser sangue jorrando contra a janela de trás do carro. Foi horrível! – Pode me dizer mais alguma coisa sobre o homem de casaco cinza? – Tenho quase certeza que era branco. – Alto, baixo, algum traço físico marcante? – Não prestei atenção. Sinto muito. Perguntei a Gilda Gray quando ela poderia vir à Central para dar uma olhada em algumas fotos, ao que ela respondeu: – Você quer que eu reconheça a nuca de um homem? – De qualquer modo, muito obrigada – falei, desligando o telefone em seguida. Erguendo o rosto, deparei-me com os olhos castanhos de Conklin e por alguns segundos fiquei paralisada. – Então – disse ele –, vamos ou não interrogar aqueles malucos? – Infelizmente vamos, Richard. Leve seu café.
capítulo 52
KENNETH KLASSEN LAVAVA seu Jaguar prateado quando estacionamos na ladeira diante de sua casa na Vallejo. Quarenta e oito anos, branco e não muito alto, Klassen tinha toda a pinta desses diretores de filme pornô que fazem o que for necessário para ficar com tudo em cima: apliques no cabelo, plástica no nariz, lentes azuis nos olhos, dentes clareados e várias outras excentricidades estéticas. Segundo sua ficha na polícia, o homem havia sido flagrado numa sala de chat tentando marcar um encontro com uma menina que ele achava ter 12 anos, mas que na verdade era uma policial de 40. Assinara um acordo com a Promotoria Pública: em troca de sua ajuda em outras investigações sobre pornografia infantil, fora agraciado com uma bela condicional e uma multa altíssima. Ainda fazia filmes pornôs com adultos, o que era perfeitamente legal. Uma expressão de alegria iluminou seu rosto quando Conklin e eu saímos do carro e nos aproximamos. – Ora, ora, ora – disse ele, fechando a mangueira e olhando-nos de cima a baixo. Congelou o sorriso tão logo se deu conta de que éramos policiais. – Kenneth Klassen – falei, mostrando o distintivo. – Sou a sargento Boxer e este é o inspetor Conklin. Temos algumas perguntas a lhe fazer. Será que podemos entrar? – Entrar, sair, entrar... – retrucou ele, balançando a mangueira com acintosa ironia. – Cuidado com o que fala, meu amigo – disse Conklin calmamente. – Brincadeirinha, inspetor. Por favor, entrem. Sintam-se à vontade. Seguimos Klassen casa adentro, passando por um vestíbulo enorme e uma sala de estilo contemporâneo até sairmos numa estufa de vidro, anexa à cozinha, onde era possível ver samambaias, gardênias e vasos de cactos. Gesticulou para que nos acomodássemos nas cadeiras de vime penduradas por correntes ao teto e logo depois um chinês surgiu no canto da estufa, fechou a mão direita sobre o punho esquerdo e ali ficou, esperando. – Posso pedir ao Sr. Wu que lhes sirva alguma coisa? – perguntou Klassen. – Não, obrigada – respondi. – Então. O que trouxe os senhores até aqui nesta manhã esplendorosa? Equilibrando-me na beirada da cadeira suspensa, tirei meu bloco de anotações enquanto Conklin perambulava pela estufa, observando as estatuetas eróticas que decoravam o lugar, remexendo em alguns vasos.
– Fique à vontade – disse Klassen a ele. – Onde o senhor estava na manhã de sábado? – perguntei. – Sábado... – repetiu ele, recostando-se na cadeira, correndo a mão pelos cabelos e exibindo no rosto a expressão de quem se lembrava de um sonho bom. – Sábado eu estava filmando O mambo da meia-noite. Bem aqui onde estamos. Estou dirigindo uma série de curtas-metragens. Ou “curtas-sacanagens”, como costumamos dizer. – Ótimo – falei. – Preciso do nome e do telefone de todas as pessoas que possam confirmar esta informação. – Sou suspeito de alguma coisa, sargento? – Digamos que é um potencial suspeito. Klassen olhou-me com malícia, como se tivesse acabado de receber um elogio sensual. – Sua pele é perfeita – falou. – Aposto que não gasta um centavo com maquiagem. – Sr. Klassen, não me faça perder a paciência. Nomes e telefones, por favor. – Tudo bem. Vou imprimir uma lista. – Ótimo. Por acaso conhece esta criança? – perguntei, mostrando a foto de Madison Tyler que estava no bolso da minha jaqueta havia três dias. Enojava-me ter que deixar aquele homem passar os olhos naquele rostinho lindo. – É a filha do cara do jornal, não é? Vi na TV – disse Klassen sorrindo, quase me cegando com os dentes excessivamente claros. – Olhe, posso facilitar a vida de todo mundo, ok? Venham comigo.
capítulo 53
O ELEVADOR NA COPA DE KLASSEN parecia mais um caixote de madeira. Conklin, Klassen e eu embarcamos nele. Notei apenas dois botões no painel: um para o primeiro andar, outro para o terceiro. Não havia nenhuma parada intermediária. A máquina parou no destino final, um espaço de 15 por 12 metros, muito bem iluminado, com móveis, refletores, rolos de carpete e painéis encostados contra as paredes. Num dos cantos havia uma computador de última geração. Embora não existisse muita coisa ali, examinei o local em busca de algo que indicasse a presença de uma criança. – Tudo é feito digitalmente hoje em dia – dizia Klassen, sentando-se num banquinho diante do monitor de tela plana. – A gente filma e edita no mesmo lugar. – Em seguida ligou o computador e clicou sobre o ícone Mambo da meia-noite. – Isto aqui ainda é o material bruto do que foi filmado no sábado. Um álibi com data, hora e tudo mais. Comecei a filmar às sete da manhã e trabalhei o dia inteiro. Uma música latina começou a sair das caixas de som do computador e as imagens surgiram na tela: uma jovem de lingerie preta cercada de velas no quarto cenográfico agora desmontado. Após uma tomada geral, a câmera fecha na cama, onde Klassen passa a mão pelo próprio corpo, dizendo as bobagens comuns a todos os filmes pornôs enquanto a moça faz striptease. – Haja paciência... – resmunguei. Conklin se colocou entre mim e o monitor. – Vamos levar uma cópia disto – falou. – Tudo bem. Klassen tirou um CD do computador, colocou-o num estojo e entregou a Conklin, que perguntou: – Você tem fotos ou filmes de menores de idade nesta máquina? – Claro que não! – bufou Klassen. – Pornografia infantil não é minha praia! Além disso, não vou ser burro de quebrar meu acordo com a Promotoria. – Ótimo, muito bem – disse Conklin com a calma que lhe é peculiar. – Então vou dar uma olhada nestes seus arquivos enquanto a sargento dá uma volta pela casa. – Uma bela casa, por sinal – falei. – Gosto muito do que você fez aqui. – E se eu disser que não permito? – Neste caso – respondeu Conklin –, vamos ter de levá-lo para um interrogatório enquanto providenciamos uma ordem judicial. Depois seu computador será confiscado e sua casa
vasculhada com cães farejadores. – A escada é logo ali. Deixei Conklin com Klassen no computador e desci para os andares inferiores, espiando todos os cômodos, abrindo portas e closets, olhando e ouvindo, rezando para encontrar Madison Tyler. O ajudante chinês trocava as roupas de cama num dos quartos do segundo andar quando mostrei a ele meu distintivo e a foto da menina desaparecida. – Por acaso o senhor já viu esta criança? – perguntei. Ele balançou a cabeça com veemência, respondendo: – Nenhuma cliança aqui. Sr. Klassen não gosta cliança. Nenhuma cliança aqui! Dali a dez minutos, já de volta à varanda em frente à casa, eu respirava o ar gelado da manhã quando Conklin se juntou a mim, fechando atrás de si a pesada porta de madeira. – Até que foi divertido – falei. – Os álibis dele serão todos confirmados – disse Conklin, guardando a lista de nomes e números em seu bolso. – Com certeza. Richard, você acha que esse cara é espada? – Sei não. Acho que é desses que se animam com qualquer coisa que se mexe! Klassen estava na calçada quando Conklin e eu entramos no carro. Erguendo uma das mãos, e abrindo mais um de seus sorrisos de comercial de pasta de dente, falou: – Tchau, tchau! Então voltou a encerar seu Jaguar prateado, assobiando tranquilamente enquanto nosso modesto Ford arrancava ladeira acima.
capítulo 54
CONKLIN E EU ESTÁVAMOS na sala do departamento. Ao lado do telefone havia uma pilha de recados de várias pessoas que juravam ter visto Madison Tyler pelos mais variados lugares: da praça Ghirardelli até a cidade de Osaka, no Japão. O relatório da autópsia que Dr. Germaniuk fizera em Paola Ricci estava à minha frente. Causa mortis: tiro na cabeça. Modus mortis: homicídio. O legista havia anexado um bilhete, que li em voz alta para Conklin.
Sargento Boxer, As roupas foram enviadas para o laboratório. Submeti Paola Ricci a um exame para detectar se foi vítima de violência sexual, mas, em razão do tempo que o corpo passou submerso, dificilmente teremos um resultado positivo. A bala atravessou o crânio, porém nenhum projétil foi encontrado. Atenciosamente, H.G.
– Tiro n’água! – disse Conklin, correndo a mão pelos cabelos. – Os sequestradores não estão de brincadeira. – Será que estamos comendo mosca? Temos o quê? Temos o testemunho praticamente inútil de uma mulher que viu quase nada, mas nenhum número de placa nem uma prova concreta: uma guimba de cigarro, um chiclete, um cartucho de bala. Para piorar, até agora não houve pedido de resgate. Conklin se recostou na cadeira e disse, olhando para o teto: – Esses caras não parecem maníacos sexuais. Matar Paola um minuto depois de capturá-la? O que foi isso? – É como se o sujeito estivesse aflito ou pilhado com alguma coisa – falei. – Talvez drogado. Crack ou qualquer porcaria dessas. Como se o trabalho tivesse sido encomendado a alguém. Ou eles não contassem com a presença de Paola. Ou talvez ela tenha reagido e o sequestrador entrou em pânico. Mas você tem razão, Richard. Você tem toda razão! – Conklin se endireitou na cadeira, fazendo com que ela rangesse. – Precisamos mudar o rumo desta investigação, colocar o foco sobre Paola Ricci. Ainda que esteja morta é possível que ela nos leve até Madison. Ele já ligava para o consulado italiano quando Brenda girou sua cadeira na minha direção. Com o telefone no ouvido, mas tapando o bocal, disse:
– É para você, Lindsay. Linha quatro. Alguém que não quis se identificar. Alguém muito esquisito! Pedi o rastreamento da ligação. Com o coração pulando no peito, atendi: – Sargento Boxer. – Só vou dizer uma vez – falou a voz alterada por um sintetizador. Sinalizei para que Conklin pegasse a extensão. – Quem está falando? – perguntei. – Não interessa – respondeu a voz. – Madison Tyler está bem. – Como você sabe? – Diz alguma coisa, Madison. Uma voz infantil e chorosa veio à linha. – Mamãe? Mamãe? – Madison, é você? O sintetizador voltou a falar: – Diga aos pais dela que eles fizeram uma grande besteira ao chamar a polícia. Quanto a vocês, fiquem na sua ou a menina vai se dar mal. Se fizerem o que estou mandando, ela continua viva. Mas de qualquer maneira os Tyler nunca mais verão a filha. A ligação ficou muda. – Alô? Alô? Bati diversas vezes no receptor até que ouvi um sinal de discagem. – Brenda, ligue imediatamente para a telefonista! – Que diabo foi isso? – perguntou Conklin. – “Foi uma grande besteira chamar a polícia.” Lindsay, você acha que era Madison na linha? – Não dá para saber. Sei lá, meu Deus! – Caramba! – exclamou o inspetor, dando um soco na mesa. Eu estava tonta. Será que Madison está bem? Como os pais da menina não teriam chamado a polícia? Será que houve um pedido de resgate do qual não sabemos? Todos os oficiais na sala olhavam para mim e Jacobi estava de pé a meu lado, praticamente empoleirado em meus ombros quando a telefonista nos retornou com o resultado do rastreamento. O sequestrador havia ligado de um celular pré-pago roubado havia poucos dias. Era impossível saber com quem estávamos lidando. – A voz estava alterada por um sintetizador – falei para Jacobi. – Vou mandar a gravação para o laboratório. – Mostre aos pais antes disso. Talvez eles possam confirmar se era mesmo Madison. – Também é possível que seja um maluco brincando – sugeriu Conklin assim que Jacobi se afastou. – Melhor que seja – falei. – Porque não vamos “ficar na nossa”. Isso nunca!
Eu não podia dizer o que estava pensando: Talvez tenhamos ouvido as últimas palavras de Madison Tyler.
capítulo 55
FAZIA ALGUNS ANOS QUE Brenda Fregosi trabalhava como assistente no Departamento de Homicídios. Apesar de seus 25 anos, era a “mãezona” da turma. Ela me observava com uma expressão de empatia enquanto eu estava ao telefone com Henry Tyler. Esperou que eu desligasse e então me passou o bilhete que havia escrito com sua letra angulosa: “Claire quer que você vá ao hospital às seis horas.” Faltava pouco para as seis. – Como ela estava? – perguntei. – Parecia bem. – Isso foi tudo o que ela disse? – Palavra por palavra, ela disse: “Por favor, Brenda, diga a Lindsay que venha ao hospital às seis em ponto. Obrigada e beijos.” Não fazia nem 24 horas que eu visitara Claire. O que poderia ter acontecido? Com a cabeça a mil, peguei o carro e fui até o Hospital Geral de São Francisco. Certa vez minha amiga havia falado uma coisa interessante sobre o cérebro humano: quando uma pessoa se sente bem, não passa pela cabeça dela que um dia pode se sentir mal. E, quando está no fundo do poço, ela acha que nunca vai sair dele. Enquanto chupava uma bala de hortelã, eu me lembrava da voz chorosa dizendo “Mamãe? Mamãe?” ao mesmo tempo que sentia o incômodo que sempre me assaltava quando precisava ir a um hospital: a sensação começou quando eu vira mamãe morrer numa UTI 15 anos antes. Ao chegar ao estacionamento, recordei-me de como era bom ter a companhia de Joe nos momentos de sofrimento. Fazia três dias que eu havia terminado nosso namoro. Meus pensamentos se voltaram para Claire assim que entrei no elevador do hospital. Quando vi meu triste reflexo nas portas metálicas, tentei ajeitar os cabelos com as mãos, mas dali a pouco as portas se abriram para um corredor frio que tinha um cheiro forte de desinfetante. Não fui a primeira a chegar ao quarto de Claire. Yuki e Cindy já haviam puxado cadeiras para junto da nossa amiga, que estava sentada na cama com uma camisola florida e exibia no rosto um lindo sorriso. Uma reunião do “Clube das Mulheres contra o Crime”? Mas por quê? – Olá, pessoal! – Contornando a cama, cumprimentei cada uma delas com um beijo. – Você está linda! – falei para Claire, aliviada por não se tratar de nada grave. – Posso saber qual é o motivo da festinha? – Ela se recusou a dizer – respondeu Yuki. – Estava esperando você chegar.
– Tudo bem, tudo bem – disse Claire. – Tenho uma coisa importante a falar. – Você está grávida! – exclamou Cindy. Claire começou a gargalhar. – Ficou maluca, jornalista? – falei. Uma gravidez era a última coisa que Claire precisava aos 43 anos de idade e com dois filhos crescidos. – Que tal uma pista? – sugeriu Yuki. – Meninas! Vocês estragaram minha surpresa! – disse Claire, ainda rindo. Cindy, Yuki e eu viramos o rosto para encará-la. – Tive de fazer uns exames – continuou. – Acontece que... como sempre acontece, nossa amiga jornalista está certa! – Arrá! – exclamou Cindy. – Se eu não tivesse dado entrada no hospital, é possível que só soubesse da gravidez quando começassem as contrações. Àquela altura, as quatro amigas falávamos ao mesmo tempo: – O que você disse? – Isso não é uma pegadinha, é? – E aí, já está de quantos meses? Só paramos de falar quando Claire, serena como um monge budista, disse: – Fiz um ultrassom e meu bebezinho está ótimo!
capítulo 56
PRECISEI ABANDONAR A COMEMORAÇÃO, pois estava atrasada para a reunião com Tracchio. Ao entrar em sua sala, ele já oferecia as poltronas de couro para que os Tyler se sentassem, enquanto Jacobi, Conklin e Macklin puxavam as cadeiras de plástico, colocando-as em torno da mesa do chefe. Henry e Elizabeth Tyler estavam com aspecto de quem não dormia havia um bom tempo: tinham o rosto pálido e as olheiras eram profundas. Um gravador foi colocado na mesa de Tracchio. Apertei o “play” e a voz assustadora do sequestrador se misturava à minha até que finalmente ouvimos o desespero de uma menina: “Mamãe? Mamãe?” Interrompi a gravação. Elizabeth Tyler estendeu os braços na direção do aparelho, virou-se para o marido e, aos prantos, enterrou o rosto no casaco dele. – Esta é a voz de Madison? – perguntou Tracchio. Os dois confirmaram com um gesto e Jacobi interveio: – Ouvir o resto desta gravação será ainda mais difícil para os senhores. Mas estamos otimistas. Quando recebemos a ligação, Madison estava viva. A fita voltou a rolar e fiquei observando o rosto dos Tyler enquanto eles ouviam o sequestrador dizer que a menina estava bem, mas que nunca voltaria para os pais. Esperei alguns segundos e perguntei: – Vocês têm ideia do motivo de ele ter dito que “foi uma grande besteira ter chamado a polícia?”. – Claro que não! – respondeu Henry, exaltado. – Por que diabo eles se sentiriam ameaçados? Vocês não descobriram nada, nem sequer têm um suspeito! Onde está o FBI? Por que eles não estão tentando encontrar nossa filha? – Estamos, sim, trabalhando com o FBI – respondeu Macklin. – Usamos as fontes e os bancos de dados deles, mas os federais não participarão diretamente do caso a menos que haja alguma razão para acreditar que Madison tenha sido levada para fora do estado. – Então digam que ela foi! – Sr. Tyler – disse Jacobi –, vocês receberam algum tipo de contato do sequestrador, instruindo para que a polícia não fosse chamada? – Não, nada! – respondeu Elizabeth. – Henry? Por acaso eles ligaram para a redação do jornal?
– Também não. Eu juro! Eu pensava em Paola Ricci enquanto observava o casal. – Vocês disseram que Paola Ricci foi muito bem recomendada – perguntei. – Recomendada por quem? Sra. Tyler se inclinou para a frente, respondendo: – Paola chegou até nós diretamente pela empresa dela. – Que tipo de empresa? – perguntou Macklin, tenso. – Uma agência de babás – respondeu Elizabeth. – Eles treinam moças de boa família, geralmente de outros países. Providenciam os vistos de trabalho e encontram os empregos. Paola tinha referências ótimas, tanto da agência quanto de famílias italianas. Era uma moça adorável. Gostávamos muito dela. – Esta agência é remunerada pelo serviço? – perguntou Jacobi. – Sim. Acho que pagamos 18 mil dólares a eles. Ao ouvir aquele valor, senti um formigamento nos braços e um frio no estômago. – Como se chama a agência? – perguntei. – Westbury... Não, chama-se Westwood – respondeu Henry Tyler. – Vocês vão falar com eles? – Vamos, mas, por favor, não contem nada a ninguém sobre a ligação do sequestrador – advertiu Jacobi. – Voltem para casa e fiquem perto do telefone. Deixem o resto por nossa conta. – Vocês vão entrar em contato com a agência? – insistiu Sr. Tyler. – Vamos virá-la pelo avesso.
capítulo 57
CINDY FALAVA AO TELEFONE com Yuki enquanto colocava a louça na máquina de lavar. – Ele é muito engraçado – dizia, referindo-se a Whit Ewing, repórter do Chicago Tribune que conhecera um mês antes durante o caso do Hospital Municipal. – O cara de óculos, certo? O tal que saiu correndo pela porta de emergência do tribunal e disparou o alarme? – lembrou-se Yuki, rindo. – Esse mesmo. Ele brinca dizendo que é o irmão nerd de Clark Kent – riu Cindy. – Fala que um dia vai vir a São Francisco só para jantar comigo. Também está mexendo os pauzinhos no jornal para vir cobrir o caso Brinkley. – Espere lá – disse Yuki. – Você não está pensando em fazer a mesma coisa que Lindsay, está? Quero dizer, Whit mora em Chicago. Por que começar um relacionamento distante quando a gente está cansada de saber que isso não dá certo? – Sei lá, é que... Bem, já faz um tempo que... que não me divirto um pouco, se é que você me entende. – Pois é, eu também – suspirou Yuki. – Nem lembro quando foi a última vez. Muito menos com quem! Cindy riu e Yuki pediu um segundo para atender outra ligação. Quando voltou à linha, disse: – O dever me chama, minha cara repórter. Preciso desligar. – Tudo bem. A gente se vê no tribunal. Cindy desligou e só então acionou a máquina de lavar. Em seguida levou o lixo até o corredor, chamou o elevador e, assim que ele chegou, certificou-se de que estava vazio antes de entrar. Pensou novamente em Whit Ewing, lembrando-se de Lindsay e Joe. Sabia que os relacionamentos a distância eram por natureza uma montanha-russa: divertidos durante um tempo, mas depois começam a enjoar. Além disso, havia outro motivo para ter um namorado em São Francisco: não era fácil morar sozinha naquele lugar estranho. Apertou o botão do subsolo. O elevador recém-reformado foi chacoalhando poço abaixo e dali a pouco ela saiu nas entranhas do prédio. A caminho da lixeira, ficou assustada com o que ouviu: o choro de uma mulher e os gritos de um bebê. Era só o que me faltava. Seguindo, deparou-se com a mulher: loura, aproximadamente de sua idade e segurando o bebê no colo. Um saco de lixo preto estava aos pés dela. – O que houve? – perguntou Cindy. – Meu cachorro! – choramingou. Abaixando-se, abriu as bordas do saco para que Cindy visse
o animal coberto de sangue. – Eu o deixei sozinho um minuto para levar o bebê para dentro de casa. Meu Deus! Chamei a polícia, achando que ele tinha sido roubado. Mas olha! Alguém que mora neste prédio fez esta atrocidade. Algum vizinho espancou meu Thor até a morte!
capítulo 58
ERAM OITO E MEIA DA MANHÃ de quarta-feira, quatro dias após o sequestro de Madison Tyler. Conklin e eu tínhamos estacionado diante de um canteiro de obras na esquina da Waverly com a Clay e a fumaça dos nossos cafés embaçava as janelas enquanto observávamos os carros que cruzavam as ruas de Chinatown. Eu vigiava um prédio de três andares com fachada de tijolos vermelhos no centro do quarteirão. O primeiro pavimento era ocupado por uma farmácia de manipulação e os dois superiores abrigavam a Agência Westwood. Minha intuição dizia que ali encontraríamos algumas respostas. Um elo entre Paola Ricci e o sequestro, por exemplo. Qualquer coisa que pudesse nos ajudar. A porta do prédio se abriu às oito e trinta e cinco e uma mulher saiu para deixar o lixo na calçada. – Hora de entrarmos em ação – disse Conklin. Atravessamos a rua e, distintivos em punho, interceptamos a mulher antes que ela voltasse para dentro do prédio. Branca, magra, 30 e poucos anos, cabelos escuros, lisos e curtos: se não fossem as marcas de expressão no rosto, eu diria estar diante de uma modelo. – Eu já estava esperando por uma visita da polícia – disse ela, com uma das mãos na maçaneta da porta. – Os proprietários estão viajando. Vocês podem voltar na sexta-feira? – Claro – respondeu Conklin –, mas gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas agora, se não for incômodo. Brenda, nossa assistente, é apaixonada por Conklin. Diz que o inspetor é um “ímã de mulheres” e ela está repleta de razão. Ele não força nenhuma barra para ser atraente, não faz caras e bocas: é naturalmente sensual. A morena hesitou, mas deu uma olhada no inspetor e escancarou a porta. – Mary Jordan – apresentou-se. – Gerente, contadora, madre superiora... Faço de tudo um pouco aqui. Por favor, entrem. Sorri de forma discreta para Conklin enquanto subimos a escada e chegamos à sala dela, um cômodo minúsculo. A mesa ficava disposta diagonalmente em relação à porta, com duas cadeiras à sua frente. Na parede atrás, uma foto emoldurada mostrava Mary Jordan cercada de várias jovens, talvez babás da agência. Percebi que ela estava nervosa. Acomodou-se à mesa, mordeu o lábio inferior, levantou-se de novo, guardou três pastas num arquivo, sentou-se novamente, mexeu na corrente do relógio e
começou a batucar com um lápis. Eu estava tonta só de olhar. – Qual é sua opinião sobre o sequestro de Paola Ricci e Madison Tyler? – perguntei. – Sei lá. Não faço a menor ideia do que aconteceu – respondeu, disparando a falar em seguida. Disse que era a única funcionária fixa da Westwood. Exceto o faxineiro, um senhor de 60 anos, nenhum outro homem prestava serviço à agência, e os fornecedores não usavam uma van preta para fazer as entregas. Os proprietários da Westwood eram Paul e Laura Renfrew, marido e mulher. Naquele momento, Paul visitava potenciais clientes no norte do estado enquanto Laura tinha ido à Europa recrutar novas moças. Ambos haviam deixado a cidade antes do sequestro. – Os Renfrew são gente boa – garantiu Mary Jordan. – E há quanto tempo você os conhece? – Comecei a trabalhar com o casal pouco antes de eles mudarem a empresa de Boston pra cá, cerca de oito meses atrás. A agência ainda não está dando lucro – prosseguiu Mary. – E agora, com Paola morta e Madison... desaparecida... Não é exatamente a publicidade de que a gente precisa. Com os olhos marejados, ela pegou um lenço de papel do bolso e os secou. – Srta. Jordan – falei, debruçando-me sobre a mesa –, percebo que você está preocupada com alguma coisa. O que é? – Não é nada. Estou bem, juro. – Difícil acreditar nisso. – É que eu adorava Paola. Fui eu quem a colocou em contato com os Tyler. Fui eu. Se não tivesse feito isso, ela ainda estaria viva!
capítulo 59
– AQUI É O ESCRITÓRIO DOS RENFREW – disse Srta. Jordan. Referia-se à porta pintada de verde e trancada a cadeado no fim do corredor. – Por que o cadeado? – perguntei. – Eles trancam quando estão viajando – explicou. – O que é bom. Assim não preciso vigiar as meninas para que elas não bisbilhotem. Nesse instante ouvimos passos no andar superior. – Há uma copa lá em cima – disse Jordan, prosseguindo com o passeio pela agência. – A sala de reuniões fica à sua direita e o dormitório também é no andar superior – falou, olhando para a escada. – As meninas moram aqui até encontrarmos uma família para elas. Eu também vivo aqui. – Quantas meninas moram aqui hoje? – perguntei. – Quatro. Depois que Laura voltar da Europa, provavelmente vamos receber mais quatro. Conklin e eu passamos o restante da manhã interrogando as moças na sala de reuniões. Todas tinham entre 18 e 22 anos, eram europeias e falavam inglês bem. Nenhuma fez qualquer reclamação contra os Renfrew ou Paola Ricci. – Quando Paola morava aqui, ela rezava todas as noites – informou uma jovem chamada Luisa. – Além disso, era virgem! De volta à sua mesa, Mary Jordan deu de ombros quando perguntamos se ela tinha ideia de quem poderia ter sequestrado Paola e Madison. O telefone tocou e Conklin aproveitou para me perguntar: – Quer que eu arrombe o cadeado? – Você agora virou chaveiro? – Eu tenho 1.001 utilidades, sargento – respondeu ele, piscando para mim. – Bobagem – falei. – Madison Tyler não está aqui. A “madre superiora” aí já teria entregado o ouro. Já descíamos a escada quando Mary Jordan nos alcançou e apertou o braço de Conklin. – Não sei se estou fazendo a coisa certa – disse. – Pode ser apenas fofoca da minha parte e não quero causar problemas para ninguém. – Você não deve ter esse tipo de preocupação, Mary – retrucou Conklin. – Seja lá o que for, precisa nos contar. – Eu estava começando a trabalhar com os Renfrew – disse a moça, olhando para a porta do pequeno prédio e voltando a encarar Conklin. – Uma das meninas me disse uma coisa, mas me
fez prometer que não contaria a ninguém. Falou que uma outra menina da agência tinha sumido do emprego sem avisar. Não porque fosse malcriada ou coisa parecida. O passaporte dela estava com os Renfrew e ela não poderia arrumar outro emprego sem ele. – E a polícia foi avisada do sumiço da garota? – Acho que sim. Só estou repetindo o que me contaram. Aliás, Helga Schmidt nunca mais foi encontrada.
capítulo 60
A REUNIÃO DE CONDOMÍNIO pegava fogo quando Cindy chegou. Duzentas pessoas se espremiam no saguão do prédio. Fern Galperin, a síndica, era uma mulher bonita, miúda e usava óculos de armação de metal. – Um de cada vez! – berrava ela. – Margareth, por favor, continue o que estava falando! Cindy avistou Margareth Glynn, a mulher que encontrara na véspera na lixeira do prédio, espremida entre duas pessoas num pequeno sofá. Glynn dizia em voz alta: – A polícia mandou apenas um formulário para que eu preenchesse. Não vão fazer porcaria nenhuma com relação a meu or. E agora que ele morreu, vou fazer o quê? Comprar outro cachorro? Arrumar um revólver? – Olhe, estou tão assustada e revoltada quanto você – disse Galperin, apertando contra o peito o yorkshire dela –, mas essa história de revólver... Você só pode estar brincando, não é? Mais alguém quer falar? Cindy colocou a bolsa no chão e perguntou à mulher a seu lado: – O que está rolando? – Você não soube do Thor? – Infelizmente, sim. Estava na lixeira quando Margareth o encontrou. – Sinistro, não é? Thor era uma peste, mas daí a ser morto a pauladas...! – Faz pouco tempo que me mudei – disse Cindy. – É a primeira vez que acontece uma coisa dessas aqui? – Que nada! Thor não foi o primeiro. O poodle da Sra. Neely foi encontrado morto na escada. – Parece que algum morador não gosta muito de cachorros. – Pois é – prosseguiu a mulher, uma bela morena. – E tem mais. Há cerca de um mês, Sr. Franks, um vizinho muito simpático que morava no segundo andar, se mudou às pressas, no meio da noite. Deixou com a síndica as cartas que durante meses alguém vinha deixando debaixo de sua porta. Eram ameaças. – Que tipo de ameaça? – De morte. Dá para acreditar numa coisa dessas? – Por que ele não chamou a polícia? – Parece que chamou. Só que as cartas eram anônimas. Os policiais fizeram algumas perguntas, mas não deu em nada. Como sempre! – Sr. Franks também tinha cachorro?
– Não. Tinha um aparelho de som! – Com um sorriso nos lábios, a mulher estendeu a mão e se apresentou: – Debbie Green, apartamento 202. – Cindy Thomas, 304. – Muito prazer, Cindy. Bem-vinda ao Pesadelo em Blakely Arms. A jornalista abriu um sorriso hesitante. – Você não tem medo? – Um pouco – suspirou Debbie. – Mas meu apartamento tem trancas e alarmes. E estou namorando um cara também. Eu o convenci a morar comigo. – Sorte sua. – Cindy voltou os olhos para a reunião quando um homem mais idoso tomou a palavra. – Sr. Horn, sua vez. – Obrigado. O que mais me incomoda é essa impunidade – disse ele. – Cartas deixadas sob as portas. Cachorros assassinados... Cá entre nós, acho que Margareth tem razão. Se a polícia não pode ou não quer nos ajudar, acho uma boa ideia formarmos uma patrulha de moradores. A ideia de Sr. Horn provocou uma discussão ainda mais acalorada e a síndica precisou intervir. – Pessoal! Por favor, levantem a mão! Tom, você tem algo a dizer? Um homem de 30 e poucos anos, magro e de calvície avançada, levantou-se do outro lado do saguão. – Essa história de patrulha me deixa com os cabelos em pé – falou. – Porque a pessoa que está tocando este terror no prédio, seja lá quem for, pode muito bem se alistar. Aí não vai precisar mais se esconder pelos cantos: circulará livremente pelos corredores. Isso é de arrepiar, não acham? Aliás, são mais de 400 moradores neste prédio, metade está presente nesta reunião. É bem possível que nosso criminoso também esteja. Aqui e agora!
capítulo 61
YUKI NUNCA TINHA VISTO Leonard Parisi tão irritado. Red Dog, apelido inventado pelos colegas da Promotoria, era um ruivo muito alto e simpático com seus mais de 100 quilos. Mas naquele momento os olhos escuros estavam furiosos enquanto ele esmurrava a mesa de reunião, fazendo saltar os pratos com os restos de comida chinesa. Os cinco novos assistentes de promotoria pareciam chocados, com exceção de David Hale, que se atrevera a dizer que o caso Brinkley seria “moleza”. – Não existe moleza! – rugiu o promotor. – O caso de O. J. Simpson parecia moleza, não parecia? Mas o júri decidiu que o sujeito era inocente! Pois este é justamente nosso desafio com Brinkley. Temos uma confissão gravada e várias testemunhas. Além disso, o crime foi filmado. Mesmo assim não podemos achar que vai ser “moleza”! – Mas, Leonard – insistiu Hale –, o cara foi filmado em ação! Não dá para desqualificar uma prova dessas! Parisi sorriu e disse: – Todo mundo que tenha televisão em casa viu várias vezes a filmagem que Jack Rooney fez de Alfred Brinkley atirando naquelas pessoas. A esta altura ela já perdeu completamente o impacto, percebem? De qualquer maneira, a gravação de Rooney existe e isso é bom. Vamos fazer o máximo para tirar esse sujeito de circulação. Parisi se recostou na cadeira para observar: – Mas não esqueçamos uma coisa. Nossa adversária, Barbara Blanco, é uma advogada inteligente, obstinada. Não aceitou esse caso por dinheiro. Acredita nos clientes dela e o júri com certeza vai perceber isso. Precisamos estar preparados. E aqui termina o sermão de hoje! Um silêncio respeitoso tomou conta da sala de reuniões. Leonard Parisi era “o cara” daquele pedaço. – Yuki, por acaso esquecemos de abordar algum assunto? – Acho que não. – Então, como está se sentindo? – Ótima, Leonard. Pronta para a luta. Eu mal posso esperar. – Claro, você só tem 28 anos. Quanto a mim, preciso de uma boa noite de sono. Amanhã nos encontramos aqui às sete e meia. E vocês estejam preparados! Vamos ter um dia duro amanhã! Yuki se despediu dos colegas e saiu da sala, empolgada por ter tido a sorte de ser escolhida para assistir Leonard Parisi no julgamento de Alfred Brinkley. Apesar da preleção do promotor, sentia-se confiante. Brinkley não era O.J. Simpson, não era uma celebridade, nem tinha apelo
de mídia. Semanas antes dormia na rua com uma arma no bolso. Dificilmente os jurados se arriscariam a deixar que um maluco daqueles voltasse às ruas de São Francisco. Ou ao menos assim ela esperava.
PARTE 4
O POVO CONTRA ALFRED BRINKLEY
capítulo 62
YUKI COLOCOU SUA PASTA ao lado da de Leonard na mesa no saguão do prédio. Passaram pelo detector de metais, atravessaram o primeiro conjunto de portas duplas até a pequena antessala, depois outro conjunto de portas até chegarem à sala do tribunal. Um burburinho tomou conta da galeria quando o promotor grandalhão, com seu paletó azulmarinho, e a pequenina Yuki, vestida em um terninho pérola, entraram na sala. Leonard abriu a portinhola que separava a galeria da área reservada ao corpo jurídico, deixou que sua assistente a atravessasse primeiro e se instalou à mesa da acusação. A empolgação de Yuki deu lugar ao nervosismo, mas não havia nada que ela pudesse fazer e aquela espera começava a irritá-la. Ajeitou a lapela do paletó, arrumou seus papéis e conferiu as horas no relógio. Faltavam exatamente cinco minutos para o início do julgamento e a mesa da defesa ainda estava vazia. A sala foi tomada por grande agitação quando Alfred Brinkley apareceu no corredor. Ele parecia inofensivo com a barba feita, os cabelos cortados e o terno de poliéster azul. Yuki ficou nervosa ao perceber que Barbara Blanco não estava ao lado do réu. No lugar dela estava um homem de 40 e poucos anos, vestido com um elegante terno Armani cinza e gravata Hugo Boss amarela. Yuki conhecia muito bem o novo advogado de Brinkley. Todos os presentes na sala do tribunal o conheciam. – Ah, droga! – disse Parisi visivelmente incomodado. – Mickey Sherman. Você sabe quem é, não sabe, Yuki? – Claro que sei. Trabalhamos juntos quando defendi uma amiga meses atrás. – Eu lembro. Uma tenente da Polícia de São Francisco acusada de homicídio doloso. – Parisi tirou os óculos, limpou-os com um lenço e falou para Yuki: – O que eu disse ontem à noite? – Que estivéssemos preparados. – Algumas vezes odeio ter razão. O que você pode me dizer sobre Sherman além do fato de ele adorar uma câmera? – É do tipo que não liga muito para os detalhes – respondeu Yuki. – Esse é o ponto fraco dele. Ela sabia pelos jornais que Mickey Sherman havia deixado o cargo de procurador da cidade de São Francisco para abrir um escritório de advocacia. Defenderia Brinkley sem cobrar honorários, mas a atenção que o caso receberia da mídia seria uma ótima publicidade. Caso ele ganhasse. – Bem, ele não tem mais uma equipe a seu lado – observou Parisi. – Ninguém para cuidar dos detalhes que tanto odeia. É aí que vamos pegá-lo. Aliás, já estou vendo uma grande
oportunidade. – Eu sei – disse Yuki. – Alfred Brinkley não está parecendo um doente mental. Mas, Leonard, é óbvio que Mickey Sherman também sabe disso.
capítulo 63
YUKI REDOBROU A ATENÇÃO quando o juiz Norman Moore assumiu seu lugar na tribuna. Havia uma garrafa térmica e um laptop na bancada à frente. As duzentas pessoas na sala se sentaram assim que ele deu início à sessão. Moore tinha a reputação de ser um juiz imparcial, com tendência a deixar que os advogados falassem bastante antes de bater o martelo. Gastou 15 minutos instruindo os jurados antes de ajeitar os óculos e voltar os olhos azuis para Leonard Parisi, dizendo: – A Promotoria está pronta para começar? – Está, meritíssimo. Parisi se levantou, abotoou o paletó e se aproximou do banco dos jurados para cumprimentálos. Red Dog era realmente enorme: tinha uma cintura avantajada e ombros largos e caídos. Os cabelos ruivos eram crespos e a pele, marcada. Não era um galã, mas, quando começava a falar, tinha o charme de um grande astro do cinema. Ninguém conseguia tirar os olhos dele. – Senhoras e senhores, quando foram selecionados para integrar este júri, todos afirmaram ter visto a gravação que um passageiro fez da tragédia na balsa Del Norte: a “Gravação Rooney” . Disseram também ser capazes de não prejulgar o réu, de julgá-lo apenas com base naquilo que ficar provado neste tribunal. Portanto, gostaria de relembrar os acontecimentos do dia 1º de novembro para que os senhores possam visualizá-los com a mais absoluta clareza. Era um dia agradável para um passeio de balsa. A temperatura estava amena e o sol não muito forte. Vários turistas estavam de bermuda porque, afinal, São Francisco fica na Califórnia, certo? As pessoas na sala riram do comentário de Parisi, que ainda esquentava as baterias de sua exposição inicial. – Um dia agradável que terminou em tragédia porque Alfred Brinkley, réu neste julgamento, também estava a bordo. Sr. Brinkley não tinha um centavo, porém, ao encontrar um bilhete no mercado do cais, decidiu fazer um passeio até Larkspur. Levava consigo uma arma carregada com seis projéteis. O promotor passou rapidamente a língua nos lábios e retomou a explanação: – Pois bem! A viagem de ida transcorreu sem nenhum incidente, mas na volta, quando a balsa atracava em São Francisco, Sr. Brinkley presenciou uma discussão entre Andrea Canello e seu filho, um adorável garoto de 9 anos chamado Anthony. Por um motivo que só ele poderá nos dizer, sacou sua arma e atirou no peito dessa mulher de 30 anos. Andrea morreu na hora, diante do próprio filho – acrescentou Parisi. – Apavorado, o menino arregalou os olhos para o homem que acabara de matar sua mãe e... O que fez então o réu?
O promotor fez uma pausa de efeito. – Atirou contra Anthony Canello, que estava armado com uma casquinha de sorvete de morango! O menino cursava o quarto ano do ensino fundamental. Certamente sonhava com a bicicleta que ganharia de Papai Noel. Mas todos os seus sonhos foram roubados pelo Sr. Brinkley, pois naquele mesmo dia o menino morreu em um leito de hospital. A expressão no rosto dos jurados mostrava que Parisi os comovera. Uma jovem mulher de cabelos vermelhos mordia o próprio lábio enquanto enxugava o rosto encharcado de lágrimas. O promotor ficou calado até que ela se recompusesse.
capítulo 64
O JUIZ MOORE PERGUNTOU aos seis homens e às seis mulheres do júri: – Querem fazer um intervalo? Não? Então prossiga, Sr. Parisi. – Obrigado, meritíssimo – agradeceu o promotor. Ao olhar rapidamente para a mesa da defesa, viu que Mickey Sherman sussurrava algo para seu cliente, dando as costas para ele, mostrando de maneira acintosa que a exposição do promotor não o havia abalado. – Como já foi dito – continuou –, a balsa Del Norte atracava no cais quando Sr. Brinkley atirou contra Andrea e Anthony Canello. A atracação foi tão barulhenta que encobriu o barulho do disparo da arma de fogo. Mesmo assim algumas pessoas perceberam o que estava acontecendo. Naquele dia Sr. Per Conrad trabalhava na balsa como engenheiro responsável. Era um pai de família com mulher e quatro filhos. Faltavam dois anos para sua aposentadoria. Ao ver Alfred Brinkley com uma arma na mão, bem como os corpos de Andrea e Anthony Canello, ele correu na direção do atirador para desarmá-lo, mas o réu atirou contra o engenheiro, acertando-o na testa. Nesse momento, foi possível ouvir o grito de indignação de algumas pessoas da plateia. Parisi esperou pelo silêncio e voltou a se dirigir aos jurados: – Sr. Lester Ng era corretor de seguros em Larkspur. Vinha para um compromisso profissional em São Francisco. Também era pai de família e ex-piloto da Força Aérea americana. Igualmente tentou desarmar Sr. Brinkley, mas levou um tiro na cabeça. Sr. Ng e Sr. Conrad eram heróis e morreram justamente por isso. Parisi se aproximou do banco dos jurados, plantou as mãos no parapeito e correu os olhos pelas pessoas enquanto falou: – Mas Sr. Brinkley ainda não havia saciado sua sede de sangue. Perto dele se encontrava uma mulher pela qual esta cidade tem enorme apreço: Dra. Claire Washburn, legista-chefe do Instituto Médico-Legal. Apesar do pavor que devia estar sentindo, Dra. Washburn teve a coragem de dizer ao réu: “Agora chega, filho. Me dê essa arma.” Mas, em vez do revólver, Sr. Brinkley deu a ela uma bala no peito. Nesse momento, William Washburn, filho da legista, correu para socorrer a mãe e por muito pouco não foi atingido também. Por sorte a balsa batia contra o píer e o réu errou o alvo. Claire e William Washburn sobreviveram, graças a Deus, e oportunamente darão seu testemunho neste julgamento. Parisi fez uma pausa de modo que a história pudesse ser assimilada pelos jurados. Depois prosseguiu: – Não há dúvida de que tudo isso aconteceu. Não há dúvida de que, alheio a idade, sexo e
raça, e sobretudo alheio à razão, Alfred Brinkley matou quatro pessoas, além de tentar tirar a vida de outras duas. Sr. Jack Rooney, que também prestará seu depoimento, filmou todo o episódio. O vídeo será apresentado aos senhores, bem como a gravação na qual o réu confessa a autoria desses crimes. Neste processo não veremos nenhum exame de DNA, nenhuma análise de impressões digitais, nada daquilo que vemos nos seriados de TV. Não cabe aqui a pergunta clássica “quem matou?”, porque já sabemos quem apertou o gatilho. E ele está sentado bem ali! O promotor apontou para o homem de terno azul. Brinkley estava com a cabeça de tal modo enterrada nos ombros que parecia não ter pescoço. Fitava o chão com os olhos vidrados, dando a nítida impressão de que estava dopado. Parisi se perguntava até que ponto ele estava ouvindo ou entendendo o que vinha sendo dito. – A defesa tentará convencer os senhores de que Sr. Brinkley é um psicótico e não pode responder por seus atos – disse o promotor, voltando para sua mesa. – Especialistas da área médica terão a desfaçatez de dizer que o réu precisa de “tratamento” no lugar de punição. Pois que fiquem tranquilos! Temos ótimos médicos no sistema penitenciário. Agir de modo insano não exime ninguém dos rigores da lei. Os incapacitados sabem muito bem o que significa tirar a vida de outra pessoa. Alfred Brinkley embarcou naquela balsa com uma arma carregada, atirou deliberadamente contra seis pessoas, matou quatro delas e depois fugiu da cena do crime. Ora, fugiu por quê? Porque tinha plena consciência do que acabara de fazer. Leonard Parisi iria terminar sua exposição: – Senhoras e senhores do júri, provaremos que Sr. Brinkley estava perfeitamente lúcido quando cometeu esses atos hediondos. Pedimos, portanto, que os senhores deliberem a favor da acusação. Muito obrigado e peço desculpas àqueles a quem fiz chorar. Este episódio é mesmo uma tragédia.
capítulo 65
YUKI SEGUIU MICKEY SHERMAN com os olhos quando ele se levantou da mesa da defesa, dirigiu-se ao púlpito e se apresentou aos jurados. Ele tinha um charme natural que conquistaria os membros do júri logo na primeira frase. – Pessoal, tudo o que foi dito pela acusação é verdade – começou. A declaração era ousada. – Todos vocês sabem o que aconteceu na Del Norte. Sr. Brinkley de fato embarcou naquela balsa com uma arma carregada. Atirou naquelas pessoas sem pensar nas consequências. Além dele estavam a bordo mais de 200 passageiros, alguns dos quais foram testemunhas dos disparos. Sr. Brinkley não jogou fora sua arma após fugir, não tentou se livrar da prova. Isto não é o que poderíamos chamar de um “crime perfeito” . Quem além de um louco seria capaz de semelhante comportamento? Sherman pigarreou antes de retomar seu discurso: – Portanto, já sabemos o que aconteceu. Resta saber o motivo. E é para isto que estamos aqui. Sr. Brinkley não tinha consciência de suas ações porque, quando disparou contra aqueles malafortunados, não estava de posse de suas faculdades mentais. Uma vez que este conceito, o da capacidade mental, será o cerne do nosso debate, talvez seja este um bom momento para esclarecê-lo. A questão é: Sr. Brinkley tinha consciência ou não da gravidade de seus atos ao cometer aqueles crimes? Se não tinha, porque sofria de alguma enfermidade mental, ele estava, do ponto de vista jurídico, “incapacitado” . Portanto, não pode ser criminalmente responsabilizado. Mickey Sherman fez uma pausa, arrumou seus papéis sobre o púlpito e, quando voltou a falar, adotou o tom de voz que Yuki admirava e temia. Um tom que dava a seus argumentos uma certeza incontestável: – Sr. Brinkley foi diagnosticado como portador de transtorno esquizoafetivo – informou aos jurados. – Trata-se de uma doença como o câncer ou a diabetes. Uma doença herdada geneticamente e agravada pelos traumas de infância. Uma doença pela qual ele não pediu, pois simplesmente nasceu com ela. Um mal que pode acometer qualquer um de nós nesta sala. E que doença será pior do que essa, que faz nosso cérebro se voltar contra nós, induzindo pensamentos e ações que vão de encontro ao nosso caráter e à nossa natureza? A explanação de Sherman estava chegando aos últimos momentos: – Eu gostaria de deixar bem clara a tristeza que sentimos por todas as vítimas desta lamentável tragédia. Se Alfred Brinkley pudesse voltar no tempo, se pudesse tomar uma pílula mágica que lhe devolvesse a sanidade mental naquele primeiro dia de novembro, estou certo de que não
hesitaria em fazê-lo. Se tivesse consciência da própria enfermidade, teria procurado ajuda. Mas meu cliente não entendia o que se passava com ele. A vida de Alfred Brinkley, senhores jurados, é a tradução mais fiel daquilo que vulgarmente chamamos de “vida de cão”.
capítulo 66
MICKEY SHERMAN SENTIA a adrenalina correr nas veias e tinha certeza de que conseguiria absolver seu cliente. Brinkley estava apenas acordando para o mundo real após 15 anos de uma lenta descompensação psíquica que era fruto de sua doença. O mundo era cruel àquele homem, que precisava se dopar para enfrentar um julgamento que poderia terminar com a pena capital. – Sr. Brinkley ouvia vozes – disse Mickey Sherman, perambulando à frente dos jurados. – Não estou me referindo àquela “voz” que de vez em quando todos nós ouvimos na cabeça, àquele monólogo interior que nos ajuda a solucionar problemas, escrever um discurso ou encontrar as chaves do carro. As vozes que Sr. Brinkley ouvia eram perturbadoras e cruéis. Vozes que o atormentavam sem cessar, xingando-o, induzindo-o a matar. Sherman colocou ênfase nesta última palavra e fez uma pausa de cinco segundos antes de voltar à carga: – Quando assistia à TV, Alfred Brinkley acreditava que os apresentadores estavam falando com ele, acusando-o de crimes, dizendo-lhe o que fazer. Depois de anos resistindo a essas vozes, ele por fim decidiu obedecê-las. Senhoras e senhores do júri, quando disparou aquela arma, Alfred Brinkley não estava em contato com a realidade. Não sabia que aquelas pessoas contra as quais atirou eram de carne e osso. Achava que não passavam de uma alucinação. Mais tarde, ao ver nos jornais as imagens do acontecimento e se reconhecendo nelas, enfim percebeu o que havia feito. Ficou tão transtornado e arrependido que se entregou à polícia por conta própria. Abriu mão de todos os seus direitos e confessou a autoria dos crimes. As palavras fluíam com facilidade da boca de Sherman: – Isto dá aos senhores uma boa medida de como funciona a cabeça do meu cliente. A acusação tentará convencê-los de que a tarefa mais difícil nas mãos dos senhores será escolher o porta-voz do veredicto. Mas os senhores ainda não ouviram tudo. Testemunhas que conhecem Sr. Brinkley, bem como os psiquiatras que tiveram a oportunidade de examiná-lo, darão provas do caráter dele tanto antes quanto depois do surgimento da doença. Tenho plena convicção de que, após ouvirem esses depoimentos, os senhores votarão pela inocência de meu cliente com base em sua incapacitação mental. Pois a verdade é que Alfred Brinkley é um homem bom que teve a infelicidade de perder o discernimento em razão de uma terrível doença.
capítulo 67
ÀS OITO E MEIA DA NOITE, Yuki e Leonard Parisi jantavam no LuLu, um velho armazém perto do tribunal que fora transformado em restaurante. Um lugar amplo e frio, porém bastante concorrido. Yuki se orgulhava de estar ali com o promotor. Ao mesmo tempo que saboreavam seus pratos (ela pediu uma pizza de rúcula, ele optou por um medalhão de cordeiro), os novos parceiros repassavam os acontecimentos do dia e tentavam prever os obstáculos que poderiam encontrar na manhã seguinte. Leonard serviu mais vinho para ambos, um tinto reserva especial, e disse: –Adversários, tremei! A equipe Red Dog é imbatível! Yuki riu, bebeu da taça e guardou seus papéis na bolsa enquanto os pratos eram recolhidos da mesa. A lenha que era queimada no enorme forno do restaurante preenchia o ambiente com um agradável perfume. – Café? – perguntou Leonard a Yuki. – Claro – respondeu ela. – Estou com tanta fome que vou pedir profiteroles de sobremesa. – Eu a acompanho – disse Leonard, erguendo o braço para chamar a garçonete. Foi então que, em uma fração de segundo, o promotor ficou pálido, levou a mão ao peito e tentou se levantar. Mas o corpo enorme se desequilibrou e Leonard desabou para trás. Yuki ouviu uma bandeja cair às suas costas e pratos quebrando no chão. Uma pessoa começou a gritar. Levou alguns segundos até se dar conta de que era seu chefe quem berrava. Então se levantou rapidamente e se agachou ao lado do promotor, que rolava o tronco de um lado a outro, gemendo. – Leonard! Leonard! Onde você está sentindo dor? Ele sussurrou a resposta, mas Yuki não conseguiu ouvir por causa do tumulto a seu redor. – Leonard, você consegue levantar os braços? – Meu peito... – disse baixinho. – Chame minha mulher. – Posso levá-lo ao hospital – ofereceu um homem atrás de Yuki. – Meu carro está aqui na frente. – Obrigada, mas isso vai demorar muito. – Olhe, o hospital fica só a 10 minutos... – Obrigada! – disse Yuki com firmeza. – Os paramédicos já estão chegando! Pegou a bolsa, virou-a no chão e encontrou o celular. Ficou imaginando o trânsito congestionado até o hospital, as três horas na sala de espera da emergência: o cenário mais
provável caso Leonard fosse levado dali por outro veículo que não fosse uma ambulância. Um erro que ela havia cometido com o próprio pai. Segurando a mão do promotor, Yuki discou o número da emergência. – Depressa, depressa... – sussurrava ela impaciente. Quando enfim foi atendida, falou com a maior clareza possível: – Por favor, mandem uma ambulância para o restaurante LuLu, na Folsom, 816. Meu amigo está tendo um infarto.
capítulo 68
CONKLIN E EU NÃO SAÍAMOS do telefone, verificando as pistas do caso Madison Tyler e Paola Ricci. Jacobi então saiu da sua sala e disse: – Vocês dois estão precisando de ar fresco. Quinze minutos depois, pouco antes das sete da noite, estacionamos diante de um prédio residencial próximo à esquina da Townsend com a Rua 3. Três viaturas da polícia, dois caminhões dos bombeiros e a van dos legistas haviam chegado antes de nós. – Estranho – falei para Conklin. – Conheço este lugar. Minha amiga Cindy mora aqui. Tentei ligar para ela, mas o celular estava ocupado e o fixo não atendia. Procurei por Cindy entre os moradores que se aglomeravam na calçada, dando seus depoimentos aos policiais. Na fachada do prédio era possível observar uma cortina tremulando numa das janelas do quinto andar. Cindy morava no terceiro. Mas meu alívio desapareceu ao saber que alguém havia sido morto no prédio da minha amiga. O porteiro, um cinquentão de testa alta e cabelos grisalhos que saíam por baixo do quepe, andava de um lado a outro. Tinha um visual meio hippie, como se ainda não tivesse saído dos anos 1960. Apresentou-se como Joseph Boyd e disse que trabalhava no Blakely Arms havia três anos. – Foi a moradora do 502, Portia Fox, quem sentiu o cheiro de gás – disse ele. – Chamou a portaria meia hora atrás. Isso mesmo – falou, olhando para o relógio. – Foi você quem chamou os bombeiros? – Sim. Chegaram aqui em cinco minutos. – E esta Portia Fox? Onde ela está agora? – Deve estar aí na calçada. Evacuamos o quinto andar inteiro... Eu vi Sra. Wolkowski morta! Foi horrível! – O senhor saberia dizer se alguém teria motivo para matar Sra. Wolkowski? – perguntou Conklin ao porteiro. – Não. Ela era uma velhinha rabugenta, mas não fazia mal a ninguém. – Sr. Boyd, a que horas o senhor chegou para trabalhar hoje? – Estou aqui desde as oito da manhã. – O prédio tem câmeras de segurança? – perguntei. – Os moradores têm um interfone com vídeo para quando alguém toca a campainha. Mas é só isso.
– E o que tem no subsolo do prédio? – Lavanderia, lixeira, um banheiro e uma porta que dá para o pátio. – Uma porta trancada? Ela tem alarme? – perguntou Conklin. – Antes tinha um alarme – respondeu Boyd. – Mas depois da reforma o pátio foi transformado numa área de uso comum. Cada morador tem sua chave. – Certo. Portanto não há nenhum esquema de segurança no subsolo – concluí. – Por acaso o senhor viu algo ou alguma pessoa suspeita por aqui hoje? Boyd deu uma risada que beirava a histeria. – Se eu vi alguém suspeito? Neste prédio? Hoje foi o primeiro dia neste mês que eu não vi.
capítulo 69
O POLICIAL QUE ESTAVA À PORTA do apartamento 501 era Matt Hartnett, um novato fortão, um tanto parecido com o ex-governador Arnold Schwarzenegger. – A vítima é Sra. Irene Wolkowski – disse ele, anotando o horário da minha chegada e entregando-me a prancheta para que eu assinasse. – Vista pela última vez na lavanderia do prédio por volta das onze da manhã. O marido não chegou do trabalho e ainda não conseguimos falar com ele. Meu parceiro e outra equipe estão entrevistando os moradores na rua. Confirmei com um gesto de cabeça e ele abriu um rápido sorriso. Passamos por baixo da fita que isolava a porta e encontramos a equipe de peritos que fotografava o corpo da vítima. O apartamento cheirava a gás. As janelas da sala estavam abertas para arejar, dando a impressão de que ali dentro fazia mais frio do que na rua. A morta jazia de costas no centro do cômodo, braços e pernas esparramados. Aparentava ter 60 e poucos anos. Sangue escorria de sua nuca, encharcando o carpete cinza e formando uma trilha que se bifurcava numa das pernas do piano, que havia sido destruído. As teclas que ficaram intactas também estavam ensanguentadas, além das que se espalhavam pelo chão como se tivessem sido marteladas uma a uma. Dr. Germaniuk havia instalado holofotes portáteis para iluminar a sala. Notei que um dos pés do sofá ainda tinha restos do plástico de embalagem. O legista me cumprimentou, ajeitou os óculos com as costas da mão e guardou sua câmera. – O que temos aqui? – perguntei a ele. – Uma situação estranha. A não ser pelo piano destruído e as bocas do fogão abertas, tudo me parece em seu devido lugar. A cena do crime estava relativamente organizada, o que na maioria das vezes significava que cada detalhe havia sido meticulosamente planejado e o criminoso era inteligente. – A vítima foi golpeada na cabeça, tanto na frente quanto atrás – disse Dr. G. – Tudo indica que foram usados dois objetos diferentes. O piano foi um deles. Mais detalhes, só depois que Sra. Wolkowski for examinada no necrotério. Por ora, só posso dizer que ela ainda não entrou em rigor mortis: está quente ao toque e pouco lívida. Faz apenas algumas horas que esta mulher foi morta, talvez menos. É possível que o assassino tenha acabado de sair daqui.
capítulo 70
AO OUVIR A VOZ DE CINDY à porta, imediatamente saí do apartamento para abraçá-la no corredor. – Estou bem, estou bem – murmurou ela. – Acabei de escutar seus recados. – Você conhecia a vítima? – Acho que não. Ao menos de nome. Posso dar uma olhada nela? Civis não podem entrar em cenas de crime e Cindy sabia muito bem disso. Mas já traváramos essa batalha antes (a velha guerra entre jornalistas e policiais) e eu havia perdido. Ela agora tinha uma expressão no olhar que eu já conhecia: uma teimosia que não iria ceder por nada no mundo. – Fique longe do corpo e não toque em nada. – Deixe comigo. – Se alguém reclamar, você sai na mesma hora. E prometa que não vai escrever nada sobre isso. – Prometido! – disse minha amiga com um beicinho. Apontei para um dos cantos da sala e Cindy se instalou nele. Perdeu a cor ao ver o cadáver no chão, mas era apenas mais uma entre as várias pessoas que estavam no apartamento, portanto ninguém a expulsou de lá. – Aquela é Cindy? – perguntou Conklin, apontando o queixo na direção dela. – Sim. É de confiança. – Se você diz... Apresentei Richard a Cindy enquanto o corpo de Irene Wolkowski era enrolado em lençóis para ser guardado no saco mortuário. Com o vento soprando das janelas, levantamos algumas hipóteses sobre o que acontecera ali. Falei para Conklin: – Digamos que o assassino seja alguém que ela conhece. Algum morador do prédio. Ele toca a campainha e diz: “Olá, Irene. Desculpe interromper. É que a música estava tão bonita...” – Pode ser. Ou talvez tenha sido o marido – sugeriu Conklin –, que chegou mais cedo do trabalho, matou a mulher e fugiu. Ou um amigo. Ou um amante. Um desconhecido talvez... – Um desconhecido? – falou Cindy. – Difícil. Eu não deixaria um desconhecido entrar no meu apartamento. Você deixaria? – Eu sei – rebateu Conklin. – Mas de repente ela estava tocando piano e não ouviu a porta abrir. Nem os passos, por causa do carpete. – É verdade – concordei. – Aquela bolsa é dela? – perguntou Cindy.
Uma bolsa feminina preta se encontrava sobre uma poltrona. Peguei-a, tirei a carteira e mostrei a Conklin o maço de notas de 20 e os vários cartões de crédito que estavam dentro dela. – Lá se vai a hipótese de roubo – falei. – Eu estava lá quando um dos tais cachorros foi encontrado – disse Cindy, resumindo a história em seguida. Richard balançou a cabeça, a franja caindo nos olhos. – Um maluco perdeu as estribeiras e veio fazer isto aqui? Também acho difícil. Uma coisa é matar um cachorro, outra bem diferente é matar uma mulher. Sabem o que acho mais estranho? Se ele espancou a vítima até a morte, por que teve o trabalho de abrir o gás? – Ou queria que ela fosse descoberta – falei –, ou queria ter certeza que estava morta. – Olhando para Cindy, emendei: – Nem uma linha sobre isto no jornal, ouviu?
capítulo 71
YUKI NÃO CONSEGUIA PARAR de pensar em Leonard, no rosto do promotor crispando-se de dor enquanto o infarto tentava matá-lo. Ele agora estava fora de risco no hospital. Após se despedir dele na noite anterior, deixara um recado na secretária eletrônica de David Hale: “Houve uma emergência. Me encontre no gabinete amanhã às seis da manhã e esteja pronto para ir ao tribunal.” Com seu caderninho de anotações e um copo de café, ela agora conversava com o colega na velha sala de reuniões da Promotoria Pública, colocando-o a par dos últimos acontecimentos. – Por que não pedimos um adiamento? – perguntou ele. David estava razoavelmente apresentável naquela manhã, com um paletó bege, calças azuis e gravata listrada. Precisava de um bom corte nos cabelos, mas quanto a isso não havia nada a fazer. Entre todas as pessoas disponíveis, ele era o mais adequado. – Por três motivos – respondeu Yuki, batendo na mesa com uma colher de plástico. – Primeiro, Leonard não quer perder Jack Rooney como testemunha. A situação dele é complicada. Sabemos que estava de férias quando ocorreu o ataque à balsa. Talvez não seja possível trazê-lo de volta a São Francisco quando precisarmos dele novamente e nesse caso a gravação que ele fez pode ser descartada. – Entendi. – Segundo, Leonard não quer correr o risco de perder o juiz Moore. – É verdade. – Leonard disse que vai se recuperar a tempo de fazer as considerações finais. – Ele falou isso? – Sim, quando estava sendo preparado para cirurgia. Estava lúcido e falou com convicção. – E o médico disse o quê? – Que há uma grande possibilidade de que a lesão no coração seja reversível. – Tiveram de abrir o peito dele? – Sim. Já falei com a mulher de Leonard. Felizmente correu tudo bem. – Quer dizer que ele vai estar em condições de fazer as considerações finais daqui a uma semana? – Provavelmente, não. – respondeu Yuki. – E isso nos leva ao terceiro motivo. Leonard disse que estou tão preparada quanto ele para este julgamento. Falou que confia em nós. Portanto não vamos decepcioná-lo. David Hale olhou fixamente para ela antes de dizer, boquiaberto:
– Yuki, não tenho a menor experiência em julgamentos. – Eu tenho alguns anos, David. – Em processos civis, não em criminais. – Não amole, David! Tenho experiência e ponto final! Vamos dar a Red Dog o nosso melhor. Vamos repassar tudo o que já sabemos nas próximas três horas. Temos várias coisas a nosso favor: testemunhas oculares idôneas, a gravação de Rooney e um júri que certamente não vai engolir o argumento da incapacidade mental. Foi isto que Leonard disse na reunião preparatória: quanto mais ficar demonstrada a gratuidade do crime, maior será o receio dos jurados de que Brinkley volte às ruas como se nada... Yuki se calou ao perceber o sorriso no rosto do colega. – Do que você está rindo, David? – Lembra o que eu disse antes deste julgamento começar? Isso vai ser moleza. Não tenho dúvida!
capítulo 72
PARADA DIANTE DO PÚLPITO, Yuki se lembrava da sua primeira audiência. Agarrou as bordas e se recordou do gigante Leonard naquele mesmo lugar, fazendo com que o móvel se parecesse uma minúscula estante de partituras. Por sua vez, ela se assemelhava a uma colegial no dia da formatura. Os jurados a encaravam ansiosos. Será que vou conseguir convencê-los de que Alfred Brinkley é culpado? Yuki convocou sua primeira testemunha, Bobby Cohen, um oficial com 15 anos de polícia. Era um homem correto e objetivo: perfeito para dar início aos trabalhos. Sob a batuta de Yuki, contou em poucas palavras o que vira ao chegar ao porto naquela manhã. Ao fim do relato a palavra foi passada a Mickey Sherman, o advogado de defesa, que disse ter apenas uma pergunta: – O senhor testemunhou pessoalmente os disparos na balsa? – Não, senhor. – Obrigado, isso é tudo. Yuki mentalmente riscou Cohen de sua lista, pensando que, embora não tivesse visto os disparos, ele havia preparado o terreno para os jurados. Agora cabia a ela pintar o cenário de horror na balsa. Em seguida chamou Bernard Stringer, o bombeiro que testemunhara Brinkley atirar contra Andrea e Anthony Canello. O homem fez o juramento e calmamente ocupou seu lugar. – Sr. Stringer, pode nos dizer qual é sua ocupação? – perguntou Yuki. – Sou bombeiro no Quartel Norte, que fica na esquina da Rua 26 com a Geary. – O que estava fazendo na balsa Del Norte no dia 1º de novembro? – Sou um pai de fim de semana – respondeu, sorrindo. – Meus garotos adoram passear de balsa. – Por acaso viu alguma coisa diferente naquele dia? – Sim. Vi os disparos no deque superior da embarcação. – E o atirador está presente nesta sala hoje? – Está. – Pode apontá-lo, por gentileza? – Está sentado logo ali. O homem de terno azul. – Registre-se nos autos que Sr. Stringer apontou para o réu, Alfred Brinkley. Sr. Stringer, a que distância o senhor estava de Andrea e Anthony Canello quando eles foram baleados pelo Sr.
Brinkley? – Mais ou menos a mesma que estou da senhorita agora. Uns dois metros. – Pode nos contar exatamente o que viu? Os músculos do rosto de Stringer se retraíam enquanto ele se lembrava dos terríveis acontecimentos daquele dia: – Sra. Canello estava chamando a atenção do filho de um jeito ríspido, eu achei. Por favor, não me entendam mal. Ela não agia de forma violenta, nada disso. Só que o garoto estava sofrendo com aquilo, então eu achei que devia intervir. Mas não cheguei a dizer nada porque o réu atirou nela e em seguida no garoto. – Sr. Brinkley disse alguma coisa a qualquer uma dessas duas vítimas antes de disparar sua arma? – Não. Só mirou e... Bum! Bum! Muito frio. Yuki deixou que as palavras do bombeiro ecoassem pela sala por alguns segundos, então disse: – Só para deixar bem claro. Quando o senhor disse “muito frio” , não estava se referindo ao tempo, estava? – Não. Estava me referindo ao modo como ele matou aquelas pessoas. O rosto parecia de gelo. – Obrigada, Sr. Stringer. A testemunha é sua – disse Yuki ao advogado de defesa.
capítulo 73
YUKI VIU MICKEY SHERMAN enfiar as mãos nos bolsos e se dirigir até o banco das testemunhas. O sorriso que o advogado exibia no rosto era verdadeiro, mas os passos tranquilos e o vocabulário coloquial não passavam de disfarce. Yuki já havia trabalhado em outro caso com ele, portanto sabia decifrar sua linguagem. Sherman levaria o indicador direito ao lábio superior antes de dar o bote e saltar no pescoço da testemunha. – Sr. Stringer, por acaso Andrea ou Anthony Canello fizeram alguma coisa para provocar meu cliente? – perguntou. – Não. Até onde pude ver, eles não haviam notado a presença dele. – E o senhor afirma que meu cliente parecia calmo quando atirou neles, certo? – Ele parecia um sujeito doido, mas quando puxou o gatilho estava com o olhar frio e vazio, como eu disse antes. – Olhando para Sr. Brinkley agora, o senhor diria que ele apresenta o mesmo aspecto que apresentava na balsa Del Norte? – Eu diria que não. – Em que medida ele lhe parece diferente? Stringer suspirou, olhando para as próprias mãos antes de responder: – Ele parecia um mendigo. Quero dizer, o cabelo estava comprido e a barba, desgrenhada. As roupas estavam imundas e não cheiravam lá muito bem... – Então ele parecia um mendigo. Tinha um olhar vazio e fedia. E o senhor o viu atirar contra duas pessoas que não o provocaram. Que sequer haviam notado a presença dele. – Correto. Sherman levou o indicador até o lábio superior. – Então o que o senhor está dizendo é o seguinte: Alfred Brinkley parecia e agia como um louco. Yuki imediatamente se levantou. – Protesto, meritíssimo. Está havendo indução da testemunha. – Protesto deferido. – Sr. Stringer, Sr. Brinkley lhe parecia uma pessoa mentalmente sã? – Longe disso. Ele parecia um louco, isso sim! – Obrigado, Sr. Stringer – arrematou Sherman. Yuki pensou em alguma pergunta que pudesse fazer à testemunha para neutralizar o efeito
das palavras “louco” e “doido”. Mas só veio à sua mente: – A Promotoria convoca Jack Rooney.
capítulo 74
JACK ROONEY SURGIU NO CORREDOR, apoiando-se na bengala, ora jogando o peso do corpo sobre a perna esquerda ora puxando o quadril direito, repetindo o movimento com impressionante destreza até chegar ao banco das testemunhas. Aceitou a ajuda oferecida pelo oficial de justiça, que o levantou pelo ombro e o acomodou no assento. – Muito obrigada por ter comparecido, Sr. Rooney – disse Yuki. O homem idoso vestia um cardigã vermelho sobre a camisa branca, além de usar uma gravataborboleta. Um par de óculos grandes e quadrados se assentava sobre o enorme nariz. Os cabelos brancos estavam tão perfeitamente penteados quanto os de um menino no primeiro dia de aula. – É um prazer – retrucou ele, radiante. – Sr. Rooney, o senhor estava na balsa Del Norte no dia 1º de novembro? – Estava, sim. Com minha mulher Betty e dois amigos nossos, Leslie e Joe Waters. Moramos perto de Albany, no estado de Nova York, e essa foi nossa primeira viagem a São Francisco. – Alguma coisa fora do normal aconteceu durante a travessia da balsa? – Fora do normal é pouco, minha filha. Aquele homem ali matou várias pessoas – disse ele, apontando para Brinkley. – Fiquei com tanto medo que por pouco não urinei nas calças. Yuki deu um sorriso discreto enquanto as pessoas gargalhavam no tribunal. Depois disse: – Sr. escrivão, por favor, registre que a testemunha identificou o réu. Sr. Rooney, o senhor fez uma gravação em vídeo do atentado na balsa? – Bem, era para ser um filme do nosso passeio, com a Golden Gate, o presídio de Alcatraz e outras atrações. Mas acabei registrando o atentado numa câmera que meu neto me deu – respondeu ele. – Ela é do tamanho de uma barra de chocolate, mas tira fotos e filma. Eu tiro as fotos e meu neto passa para o computador. Ah, e eu vendi o filme para um canal de TV. O dinheiro praticamente pagou as despesas da viagem inteira. – Meritíssimo? – disse Mickey Sherman de sua mesa, com um ar de tédio. O juiz Moore se debruçou sobre a bancada e disse: – Sr. Rooney, por favor, responda às perguntas apenas com “sim” ou “não” , exceto quando lhe solicitarem uma explicação, está bem? – Perfeitamente, meritíssimo. Desculpe, mas é a primeira vez que deponho na vida. – Tudo bem. Com as mãos cruzadas à sua frente, Yuki perguntou: – O senhor me deu uma cópia desta gravação, não deu, Sr. Rooney?
– Sim, dei. – Meritíssimo, peço a permissão para exibir esta cópia e anexá-la a outras provas da acusação. – Permissão concedida, Srta. Castellano. David Hale colocou o CD no computador. Em alguns segundos as imagens surgiram em duas TVs de tela plana. A primeira parte da gravação mostrava a bela paisagem da baía numa tarde tranquila, com uma longa panorâmica das atrações turísticas terminando num close de um casal sorridente: Sr. e Sra. Rooney. Atrás deles, era possível ver Alfred Brinkley fora de foco, olhando para a água. A segunda parte do filme era um banho de sangue. Yuki observava o rosto dos jurados enquanto disparos e gritos ecoavam pela sala do tribunal. As imagens mostravam o pavor nos olhos de Anthony ao ser baleado, o pequeno corpo projetando-se na direção da amurada antes de cair sobre o cadáver da mãe. Leonard Parisi havia se enganado. Os jurados não pareciam indiferentes ao terror daquelas cenas, pois era assombroso vê-las na presença do assassino. Duas mulheres do júri cobriam a boca e desviavam o olhar da tela. Um jurado mais idoso olhava toda hora para Brinkley, horrorizado. O réu permanecia imóvel na cadeira, vendo a si mesmo matar inocentes. – Sem perguntas – disse Mickey Sherman, virando-se para cochichar algo no ouvido de seu cliente. – Muito obrigado, Sr. Rooney – falou o juiz. – O senhor já pode retornar a seu lugar. Yuki esperou que o homem voltasse lentamente pelo corredor antes de dizer: – A Promotoria convoca Claire Washburn.
capítulo 75
CLAIRE PERCEBIA QUE TODOS os olhares se dirigiam a ela enquanto percorria o longo corredor até o banco das testemunhas. Vinte e quatro horas antes ela estava descansando em sua cama, para a qual pretendia voltar logo que fosse dispensada. A legista avistou Yuki, sua amiga de apenas 28 anos. Sabia que a segurança estampada naquele belo rosto era um disfarce para o pavor que ela estava sentindo. Abriu um sorriso e continuou seu percurso em direção ao oficial de justiça, que a esperava com a Bíblia nas mãos. Fez o juramento, acomodou-se no banco e ajeitou as dobras do vestido, largo em razão dos sete quilos perdidos em três semanas. A dieta do peito furado, pensou. – Muito obrigada por ter comparecido, Dra. Washburn. Sei que a senhora saiu do hospital há poucos dias. – Isso mesmo. – Pode dizer aos jurados por que foi hospitalizada? – Levei um tiro no peito. – A pessoa que disparou o tiro está presente aqui? – Está. É aquele desgraçado ali. Dessa vez, Sherman não se deu o trabalho de se levantar. Conformou-se em dizer: – Meritíssimo, protesto. Tenho quase certeza de que a testemunha não pode se referir a meu cliente dessa forma! – Dra. Washburn, a defesa tem razão. – Desculpe, meritíssimo. – Encarando Brinkley, ela emendou: – Perdão, eu não devia ter chamado o senhor de desgraçado. Os risos se espalharam pela galeria e pelo banco dos jurados até que o juiz, pacientemente, bateu o martelo e disse: – Senhores, senhores... E senhoras também – disse, olhando para Claire sobre os óculos. – Ordem no tribunal! Não estamos num circo. Não hesitarei em esvaziar esta sala caso isto venha a se repetir. Srta. Castellano, por favor, contenha suas testemunhas! É parte das suas obrigações! – Sinto muito, meritíssimo. – Yuki limpou a garganta e prosseguiu: – Dra. Washburn, pode nos dar mais detalhes sobre seu ferimento? – Meu pulmão foi perfurado por uma bala de calibre 38, que por pouco não me matou. – Com certeza foi uma experiência horrível, além de muito dolorosa. – Foi. Eu mal consigo descrevê-la em palavras. – Os jurados viram as imagens do atentado – disse Yuki, comovida. – O que a senhora disse
ao réu antes de ser baleada? – Eu disse: “Agora chega, filho. Entregue-me essa arma.” – E o que aconteceu depois? – Ele falou alguma coisa que não entendi direito, que a culpa era minha, que eu deveria tê-lo impedido. E dali a pouco eu já estava deitada numa maca. – A senhora tentou impedir que ele atirasse em outras pessoas? – Tentei. Mas ele não parava de atirar. O sangue do Sr. Ng espirrou por todo o deque. – Obrigada, doutora – disse Yuki. – A testemunha é da defesa.
capítulo 76
MICKEY SHERMAN CONHECIA Claire Washburn havia muito tempo. Na realidade, gostava dela e estava feliz por vê-la bem após os acontecimentos na Del Norte. Mas a legista era uma séria ameaça a seu cliente. – Dra. Washburn, qual é sua profissão? – Sou responsável pelo Instituto Médico-Legal da prefeitura de São Francisco. – Portanto é médica formada, certo? – Certo. – À época de sua residência, passou pelos diferentes setores de um hospital, não passou? – Sim, passei. – Inclusive pela ala psiquiátrica? – Sim. – Chegou a ver algum paciente andando pelos corredores com os olhos vidrados? – Protesto – disse Yuki. – A pergunta é irrelevante. – Protesto indeferido – retrucou o juiz. – A testemunha pode responder. – Sinceramente não me lembro dos meus pacientes da psiquiatria, Sr. Sherman. O que posso lhe dizer é que todos os pacientes que atendo agora têm os olhos vidrados. – Tudo bem – disse Sherman, sorrindo, com mãos nos bolsos e andando diante dos jurados. – Em todo caso, doutora, a senhora teve a oportunidade de observar Sr. Brinkley, não teve? – “Observar” não é bem a palavra. – Teve ou não teve, Dra. Washburn? – Sim, tive. Pude “observá-lo” na balsa e o estou vendo bem ali – disse ela, apontando para Brinkley. – Vamos nos ater ao que aconteceu na balsa. A senhora acabou de afirmar que meu cliente disse algo como “A culpa é sua” e “Você devia ter me impedido.” – Correto. – A senhora teve alguma culpa no episódio? – Não. – O que acha que Sr. Brinkley quis dizer com isso? – Não tenho a menor ideia. – Naquele momento Sr. Brinkley lhe parecia estar de posse de suas faculdades mentais? Uma pessoa capaz de discernir o certo do errado? – Não sei dizer. Não sou psiquiatra.
– Bem, de qualquer maneira ele tentou matá-la? – Eu diria que sim. – Ele a conhecia? – Claro que não. – A senhora chegou a provocá-lo em algum momento? – Pelo contrário. – Diria então que este atentado foi um ato gratuito, sem nenhuma explicação plausível? – Acho que sim. – Acha? Nunca o tinha visto antes e ele estava dizendo coisas sem sentido. A senhora o viu atirar em quatro pessoas antes de receber um tiro também, não viu? Ora, não haveria uma palavrinha para descrever alguém que age dessa maneira? Esta palavrinha não seria “louco”? – Protesto, meritíssimo! A defesa está induzindo a testemunha numa questão que cabe ao júri decidir! – Protesto deferido. Yuki deixou o corpo cair na cadeira. Mickey notou que os olhos da jovem assistente corriam aflitos entre os jurados, a testemunha e ele próprio. Ótimo. Ela está nervosa. – Dra. Washburn, Sr. Brinkley lhe parecia uma pessoa mentalmente sã? – Não. – Muito obrigado. Sem mais perguntas. – Srta. Castellano – disse o juiz –, a testemunha está dispensada? – Ainda não, meritíssimo – respondeu Yuki, dirigindo-se ao banco das testemunhas. Mickey percebeu a testa franzida e as mãos cruzadas à frente. Sabia que Yuki gostava de gesticular e certamente fazia um esforço para se conter. – Dra. Washburn – disse –, a senhora sabe dizer em que Alfred Brinkley estava pensando quando atirou na senhora? – Não – respondeu Claire, enfática. – Claro que não! – Na sua opinião, doutora, quando Sr. Brinkley atirou contra a senhora, o mais provável não seria que ele soubesse o que estava fazendo, que tivesse consciência da gravidade de seus atos? – Isto é o mais provável! – Obrigada, Dra. Washburn. A testemunha está dispensada, meritíssimo. Enquanto Claire voltava a seu lugar, Mickey Sherman cochichou algo para seu cliente, levando a mão até a boca como se contasse um segredo. – Até aqui tudo bem, Fred. Você não achou? Brinkley meneou a cabeça feito um boneco de mola. Nesse instante, Yuki disse em voz alta: – Convoco a sargento Lindsay Boxer ao banco das testemunhas.
capítulo 77
EU TINHA PASSADO UMA NOITE conturbada no sofá de Cindy, levantando-me a cada 20 minutos para vigiar os corredores do prédio. Todas as áreas comuns haviam sido verificadas (saídas de emergência, escadas, telhado, subsolo) sem que nenhum suspeito fosse identificado. O sol ainda não tinha nascido quando passei rapidamente em casa para me trocar. Agora, já no tribunal, eu esperava minha vez de depor. Confesso que senti a adrenalina correr pelas veias quando fui chamada pelo oficial de justiça. Cruzei o velho piso do corredor, fiz meu juramento e ocupei meu lugar no banco das testemunhas. Yuki me cumprimentou de modo formal, pediu que eu me apresentasse e em seguida perguntou: – A senhora reconhece o homem que confessou ter atirado contra seis pessoas na balsa Del Norte? Respondi que sim, apontando para o sujeito que estava ao lado de Mickey Sherman. Na verdade, Alfred Brinkley estava diferente em relação à última vez que eu o vira. O rosto parecia mais cheio. Os olhos, antes irrequietos, agora nem sequer piscavam. De barba feita e cabelos cortados, ele parecia ter rejuvenescido uns cinco anos. O mais estarrecedor de toda a situação era que ele tinha o aspecto de um homem inofensivo, um sujeito que podia se sentar ao lado de qualquer pessoa num ônibus sem levantar suspeita. Com um leve pigarro, Yuki virou-se para mim e perguntou: – A senhora ficou surpresa quando o réu bateu à porta da sua casa? – Fiquei perplexa. Mas quando ele pediu que eu o prendesse, não pensei duas vezes. – Fez o que exatamente? – Desarmei-o, coloquei as algemas e pedi reforços. Eu e o tenente Warren Jacobi o levamos até a Central, onde ele foi fichado e interrogado. – A senhora leu os direitos dele? – Sim. Uma vez na calçada e outra na Central. – E ele parecia entender o que a senhora estava dizendo? – Sim. Fizemos um rápido teste para ter certeza de que ele sabia quem era, onde estava e o que havia feito. Ele abriu mão dos direitos por escrito e disse novamente que atirara contra aquelas pessoas na Del Norte. – Parecia uma pessoa sã? – Sim. Estava agitado e maltrapilho. Mas eu e o tenente Jacobi vimos que ele estava lúcido e consciente. E isso é que entendemos por sanidade mental.
– Muito obrigada, sargento – disse Yuki. – A testemunha é da defesa. Os olhos dos jurados se voltaram para o elegante homem ao lado de Alfred Brinkley. Mickey Sherman ficou de pé, fechou o botão do paletó cinza e lançou um belo sorriso na minha direção. – Como vai, Lindsay?
capítulo 78
MESES ATRÁS EU TINHA CONTADO com a ajuda de Sherman num processo movido contra mim. Ele havia me instruído sobre como depor, dando-me dicas sobre o modo correto de falar e vestir numa audiência. Sem dúvida, sua ajuda fora fundamental. Se não fosse por Sherman, talvez eu não fizesse mais parte da polícia. Apesar dessa dívida de gratidão, criei uma barreira contra ele, pensando exclusivamente naquelas imagens ainda frescas na minha memória: as vítimas de Alfred Brinkley. O menino que havia morrido no hospital. Claire segurando minha mão, achando que estava morrendo enquanto perguntava pelo filho. E o cliente de Sherman era o culpado de tudo isso. – Sargento Boxer – disse Sherman –, é muito raro que um assassino procure um policial em casa para se entregar, não é? – Eu diria que sim. – E Alfred Brinkley escolheu especificamente a senhora para fazê-lo, correto? – Foi o que ele me disse. – A senhora conhecia Sr. Brinkley? – Não. – Então por que foi procurada por ele? – Segundo contou o próprio Sr. Brinkley, ele tinha me visto na TV pedindo informações sobre o atentado. Disse que interpretou isso como uma ordem para que ele viesse me procurar. – Como ele descobriu seu endereço? – Disse que foi até uma biblioteca e procurou meu endereço na internet. – A senhora disse há pouco que desarmou o Sr. Brinkley. Tirou o revólver dele, certo? – Certo. – O mesmo revólver que ele usou na balsa? – O mesmo. – E ele também tinha uma confissão escrita de próprio punho, não tinha? – Tinha. – Então para que não fique nenhuma dúvida: meu cliente ouviu seu apelo na televisão e o interpretou como um recado pessoal dirigido a ele. Em seguida encontrou seu endereço na internet e bateu à sua porta. E ainda levava consigo a arma que havia usado para matar quatro pessoas. – Protesto, meritíssimo – disse Yuki. – Indução. – Vou indeferir – retrucou o juiz –, mas, por favor, Sr. Sherman, vamos direto ao ponto.
– Pois não, meritíssimo. Mickey caminhou na minha direção, encarando-me, pedindo com seus olhos castanhos e intensos que eu confiasse nele. – O ponto é o seguinte, sargento: um assassino guarda a arma do crime, depois a leva até a residência de uma policial. A senhora há de convir que isto não só é inusitado, como também é um total despropósito! – É inusitado, devo admitir. – Sargento, a senhora perguntou ao Sr. Brinkley por que ele havia atirado contra aquelas pessoas? – Perguntei. – E o que ele disse? Minha vontade era não responder à pergunta, mas eu não tinha esta opção. – Disse que estava obedecendo a ordem das “vozes”. – Vozes que ele ouvia na cabeça? – Foi isso que entendi. Mickey sorriu para mim como se tivesse certeza da vitória. – Por ora é só. Muito obrigado, Lindsay.
capítulo 79
YUKI E EU OCUPÁVAMOS UMA mesa no bar de Don MacBain, próximo à Central. Minha amiga tinha o aspecto de quem carregava todo o peso do mundo nas costas. – Eu devia ter feito uma contrainterpelação – disse ela, logo após fazermos nossos pedidos. O lugar estava lotado de advogados, policiais e funcionários da prefeitura. Yuki precisava falar alto para que eu conseguisse ouvi-la. – Eu devia ter perguntado o que você pensou quando Brinkley falou das vozes. – Que diferença faz o que pensei ou deixei de pensar? – Muita diferença – respondeu Yuki, passando as mãos nos cabelos. – Sargento Boxer, o que a senhora pensou quando o Sr. Brinkley disse que estava obedecendo a ordem de vozes? Apenas dei de ombros. – Puxa, Lindsay. Você podia ter dito que tinha sacado a jogada dele, que Brinkley estava arquitetando uma defesa com base na insanidade mental. – Yuki, não dá para controlar as coisas dessa maneira. Você está fazendo um ótimo trabalho! Mas Yuki não se deixou convencer. – Mickey está fazendo tudo certo. Transforma cada ponto negativo num ponto positivo para defesa. “Meu cliente matou pessoas gratuitamente? Isto significa que ele é doido de pedra, certo?” – É a única carta que ele tem na manga, Yuki. Olha, Brinkley parecia lúcido e acho que deixei isto claro. Os jurados não vão engolir essa história de que Brinkley estava ouvindo vozes. Não vão acreditar na palavra dele. – É verdade. – Yuki rasgava em pedacinhos seu guardanapo de papel. – Fico imaginando o que a melhor amiga da promotora do caso O. J. Simpson disse para ela antes do ex-jogador de futebol americano ser declarado inocente. Recostei-me na cadeira assim que nossos hambúrgueres e nossa porção de batata frita chegaram. Em seguida disse: – Agora há pouco vi Mickey na escadaria do tribunal, cercado de repórteres. Engraçado. Antes a gente adorava o talento dele para usar a mídia a seu favor. Mas agora eu vejo uma coisa dessas e fico pensando: “Que raposa velha!” Yuki não riu. – Amiga – falei, pousando a mão no braço dela. – Você está causando uma ótima impressão nos jurados. É inteligente e sabe tudo sobre esse processo. – Está bem, está bem – disse ela. – Chega de choro. Obrigada pelo testemunho e pelo apoio.
– Agora faça-me um favor! – Diga. – Mande todas essas calorias goela abaixo e tenha um pouco mais de confiança em si mesma! Yuki ergueu seu hambúrguer, mas devolveu-o ao prato sem mordê-lo. – Sabe qual é o problema, Lindsay? Eu cometi um erro. Num caso desses não dá para cometer deslizes. Pela primeira vez na vida eu acho que posso perder.
capítulo 80
– MACKLIN ACABOU DE LIGAR – disse Jacobi assim que coloquei os pés no departamento, voltando do almoço. Conklin e eu fomos até a sala dele. – Um garoto foi sequestrado em Los Angeles três horas atrás. Um menino. Segundo disseram, um geniozinho da matemática. Nem me dei o trabalho de sentar. Fiz dezenas de perguntas a Jacobi: Os sequestradores estavam numa van preta? Já tinhas alguma pista: uma placa de carro, uma descrição, qualquer coisa? Os pais foram interrogados? Receberam alguma ligação dos sequestradores? Resumindo: havia alguma semelhança entre aquele sequestro e o de Madison Tyler? – Boxer, vá com calma, ok? – pediu Jacobi, jogando no lixo os restos de um hambúrguer. – Vou contar tudo o que sei até agora. – Então capricha – falei, brincando. Só então puxei uma cadeira e apoiei os cotovelos na mesa para ouvi-lo. – Os pais estavam em casa e o menino brincava no quintal – prosseguiu Jacobi. – A mãe ouviu um carro cantando pneu. Como estava ao telefone, olhou pela janela, viu uma van preta dobrando a esquina e não deu importância ao fato. Dali a alguns minutos foi até o quintal e percebeu que o filho não estava mais lá. – O menino foi até a calçada, é isso? – perguntou Conklin. – É possível, pois o portão estava aberto. Talvez tenha sido ele quem o abriu. Ou talvez outra pessoa. A Polícia de Los Angeles já emitiu um alerta, mas o pai também acionou os federais. Jacobi mostrou-me um fax timbrado do FBI. A segunda página trazia uma foto do menino: olhos grandes e redondos e covinhas nas bochechas. – O nome dele é Charles Ray e tem seis anos. A Polícia de Los Angeles fez uma análise das marcas de pneu no asfalto diante da casa. Compatíveis com os pneus que vêm de fábrica no último modelo da van Honda. Mas não há prova de que o carro esteja envolvido no sequestro. Nenhuma impressão digital diferente foi encontrada no portão. – O garoto tinha babá? – perguntei. – Sim. Briana Kearny. Estava no dentista quando Charles foi levado. O álibi confere. Pode ser que sejam os mesmos sequestradores de Madison Tyler, pode ser que não. Resumindo, Boxer: é um tiro no escuro. – Acho que devíamos interrogar os pais – sugeriu Conklin. – Como se eu pudesse fazer alguma coisa para impedir vocês dois – disse Jacobi. – Vocês são dois cachorros doidos!
Em seguida nos entregou duas folhas de papel: passagens aéreas para Los Angeles, ida e volta, emitidas pela internet em meu nome e no de Conklin. – Mas prestem atenção – disse. – Até segunda ordem estamos tratando o sequestro desse menino como parte do caso de Madison Tyler. Portanto reportem-se ao tenente Macklin. E me mantenham informado. – Jacobi conferiu as horas no relógio. – São duas e quinze. Lá pelas quatro vocês já devem estar em Los Angeles.
capítulo 81
CINCO VIATURAS ESTAVAM PARADAS diante da casa dos Ray, um pequeno chalé de madeira idêntico aos outros da vizinhança. Os três policiais que conversavam na calçada nos cumprimentaram quando mostramos nossos distintivos e um deles virou-se para nós e disse: – A mãe está em casa. Eileen Ray veio à porta. Era branca, alta, 30 e poucos anos e tinha os cabelos escuros presos num rabo de cavalo. Parecia estar nos últimos meses de gravidez e seu aspecto era péssimo: rosto inchado e vermelho por causa do choro. Conklin e eu nos apresentamos e ela nos convidou a entrar. Um técnico do FBI grampeava o telefone na sala. – A polícia tem sido maravilhosa. Estamos muito gratos – disse a Sra. Ray, indicando um sofá e uma cadeira para que nos sentássemos. A sala estava atulhada com cestos, flores secas e gaiolas de passarinho, e era possível ver caixas de papelão dobradas sobre a mesa da cozinha. O cheiro forte de incenso me dava a sensação de que eu estava numa lojinha de artesanato. – Trabalhamos em casa – disse Sra. Ray, respondendo à pergunta que percebera em meu olhar. – Vendemos nossos produtos pela internet. – Onde está seu marido? – perguntou Conklin. – Rodando de carro pelo bairro com um agente do FBI e Briana. Tem esperança de que Charles esteja vagando por aí, perdido. Coitadinho do meu filho! – exclamou Eileen, ameaçando chorar novamente. – Deve estar desesperado! Quem teria a coragem de fazer uma coisa horrível dessas? E por quê? Não tínhamos respostas, apenas perguntas sobre os acontecimentos recentes, o relacionamento do casal e o portão que havia sido encontrado aberto. Também indagamos se alguém (parente, amigo ou estranho) vinha demonstrando interesse especial pelo menino, algo que houvesse despertado a atenção. Ela respondeu a todas as perguntas sem que chegássemos a lugar algum. Eileen amassava um lenço quando Scott Ray, o marido, entrou na casa com o agente e a babá, uma adolescente com rosto de criança. Conklin e eu nos dividimos: ele foi interrogar Scott no quarto enquanto eu falava com Briana na cozinha. Ao contrário das moças da Agência Westwood, ela era americana, morava a três quadras de distância e cuidava de Charles esporadicamente. Começou a chorar ao ser pressionada com perguntas sobre amigos e namorados, bem como
sobre qualquer pessoa que a tivesse procurado para saber dos hábitos da família Ray. Ao terminarmos a investigação, Conklin e eu nos despedimos e voltamos à rua quando as luzes do simpático chalé já estavam acesas. – A babá não tem nada a ver com a história – falei. – O pai também não – retrucou Conklin. – Tudo aponta para mais um pedófilo que atraiu a criança para o carro. – É verdade. É muito fácil um desgraçado desses roubar uma criança. Ele oferece um doce e a criança vai atrás. Então o sujeito some com ela. Nenhuma testemunha, nenhuma pista. E depois... Bem, depois é a longa espera pelo telefonema que provavelmente nunca virá.
capítulo 82
MAIS DE SETE HORAS HAVIAM se passado desde o sequestro do pequeno Charles Ray e os criminosos ainda não tinham entrado em contato com a família. Ao contrário dos pais de Madison, Eileen e Scott não eram ricos, o que praticamente descartava motivações financeiras. Estávamos na sala do capitão Jimenez da Polícia de Los Angeles e o agente David Stanford, do FBI, nos colocava a par de suas suspeitas e descobertas. Com olhos azuis e longos cabelos grisalhos, o agente vinha trabalhando em outro caso antes de ser convocado para o de Charles. Sobre a mesa do capitão havia uma pilha de folhetos com a foto do menino. Peguei um deles e fiquei admirando os olhinhos perfeitamente redondos, os dentes de leite e os cabelos pretos e ondulados. Será que o corpo dele vai ser encontrado daqui a algumas semanas num terreno baldio? Assim que terminou a reunião, liguei para Macklin e fiz meu relatório. O agente Stanford então nos ofereceu uma carona até o aeroporto. Já saíamos da estrada quando ele sugeriu que parássemos para um drinque antes do embarque. Queria saber os detalhes do sequestro de Madison Tyler. O bar se chamava Latitude 33 e dispunha de amplo salão, onde nos acomodamos para conversar, tomar uma cerveja e comer os amendoins servidos como cortesia. Falamos sobre Madison e depois Stanford nos contou sobre um terrível caso de sequestro infantil no qual ele trabalhara meses antes. Uma menina de 10 anos havia sido raptada enquanto voltava a pé da escola. Fora encontrada 24 horas depois: estuprada, estrangulada e abandonada no altar de uma igreja. Os culpados ainda não tinham sido presos. – Com que frequência esses sequestros terminam bem? – perguntei. – No caso do sequestro de crianças, elas geralmente são levadas por algum parente e devolvidas com vida, sem maiores danos. Mas, quando o sequestrador é um estranho, a situação se complica. As chances de resgate caem para 50%. – Visivelmente tenso, ele acrescentou: – Podem chamar de paranoia ou de profissionalismo, porém, quanto mais desses criminosos eu conseguir mandar para trás das grades, mais seguro o mundo estará para meus três filhos.
capítulo 83
– POR QUE VOCÊS NÃO FICAM E ME acompanham no jantar? – perguntou o agente. Aceitamos o convite e o voo das oito decolou para São Francisco sem nossa presença. O garçom veio à mesa com os cardápios, Stanford pediu uma garrafa de vinho tinto e contamos o que sabíamos sobre o sequestro e assassinato de Paola Ricci. – Honestamente – concluí –, não chegamos a lugar nenhum. Era um beco sem saída atrás do outro. Em poucos minutos nossos pratos chegaram e Stanford pediu mais uma garrafa da bebida. Eu finalmente consegui relaxar, feliz com a companhia agradável e a oportunidade de trocar ideias ao som de jazz que uma banda tocava. Também comecei a sentir as pernas de Conklin sob a mesa, a jaqueta que roçava meu braço, o ritmo já familiar daquela voz, o vinho que descia gostoso com o avanço das horas. Às nove e quinze, David Stanford pagou a conta, disse que daria notícias assim que os registros telefônicos dos Ray fossem examinados e prometeu nos avisar caso descobrisse alguma relação com o caso de Madison Tyler e Paola Ricci. Àquela altura havíamos perdido mais um voo para São Francisco. Richard e eu nos despedimos do agente preparados para uma longa espera diante do balcão da companhia aérea. Estávamos a caminho da saída quando a banda começou a tocar uma música romântica e a cantora convocou os casais presentes para dançar. A clientela era formada de viajantes cansados e funcionários do aeroporto. Richard sorriu para mim e disse: – Está a fim de pagar um mico? – Claro, por que não? – respondi, sorrindo de volta. Puxada por Conklin, fui até a pista e senti os braços de meu parceiro em volta da minha cintura. Reparei que outros pares se formavam. Meu Deus, como é bom estar nos braços deste homem. O salão rodava um pouco, então fechei os olhos e me apoiei em Richard. O espaço entre nós era cada vez menor em razão do tamanho da pista, muito pequena para tantos casais. Fiquei nas pontas dos pés e pousei a cabeça no ombro de meu parceiro. Richard automaticamente me puxou para junto dele. Quando a música parou, ele disse: – Puxa, não estou com a menor vontade de encarar um voo agora, e você? Eu concordei com ele, dizendo que já era tarde, que o dia havia sido cansativo e que, além
disso, que mal haveria em passar a noite em Los Angeles com todas as despesas pagas? Mesmo assim fiquei bastante dividida ao entregar o cartão de crédito à recepcionista do hotel, dizendo a mim mesma que aquilo não significava nada. Não pensava em fazer outra coisa além de subir para o quarto e dormir. E só. No elevador espelhado, Richard e eu fomos separados por um sonolento casal durante a lenta subida de 10 andares. Sou obrigada a admitir que estava sentindo falta daqueles dois braços em volta da minha cintura. Quando saímos do elevador, falei: – Boa noite, Richard. – Em seguida dei as costas para meu parceiro e enfiei a chave eletrônica na fenda, ciente de que ele fazia o mesmo na porta atrás de mim. – A gente se vê amanhã, Lindsay. – Claro, Richard. Durma bem. A luzinha verde se acendeu e a maçaneta girou na minha mão.
capítulo 84
MINHA CABEÇA FERVILHAVA num misto de desejo, alívio e remorso quando fechei a porta do quarto. Tirei minhas roupas e dali a alguns segundos eu já estava sob a água quente do chuveiro. De banho tomado, enrolei o corpo numa toalha e sequei os cabelos. Limpei o vapor do espelho e avaliei minha nudez. Ainda podia ser considerada uma mulher jovem, bonita e desejável. Os seios estavam firmes, o abdômen seco e os cabelos claros caíam ondulados até abaixo dos ombros. Por que Joe ainda não me procurou? Vestida com o roupão do hotel, fui até o quarto e conferi a caixa postal do celular. Nada. Tão vazia quanto a secretária eletrônica de casa. Fazia seis semanas que não via Joe. Será que nossa história chegou ao fim e nunca mais nos veremos? Fechei as cortinas, descobri a cama e ajeitei os travesseiros. Ainda tonta por causa do vinho, enfiei-me debaixo das cobertas. Assim que fechei os olhos, as imagens de Joe foram dando lugar a fantasias mais apimentadas. Os pensamentos me levaram até a pista de dança onde meia hora antes Richard me apertava em seus braços. Eu me lembrava do exato momento em que senti a rigidez dele contra meu corpo, abraçando-o pelo pescoço, pressionando meu corpo contra o dele. Não é proibido sentir essas coisas, disse a mim mesma. Éramos duas pessoas de carne e osso, ambas reagindo naturalmente às circunstâncias, dois adultos ao mesmo tempo sozinhos e juntos e... Foi então que alguém bateu à porta. Meu coração quase veio à boca quando ouvi uma nova batida.
capítulo 85
APERTANDO O CINTO DO ROUPÃO, caminhei até a porta. Através olho mágico vi que era Richard com uma ridícula touca de banho na cabeça. Abri a porta às gargalhadas. Conklin estava de calças e com a camisa de algodão azul desabotoada até o meio do peito. Ele agitava a escova de dentes do hotel como se ela fosse uma pequena bandeira branca. – Você teria pasta de dentes? – perguntou. – Há condicionador, sabonete e hidratante no banheiro, mas nenhum sinal de pasta. A expressão séria, combinada com o pedido esdrúxulo e a touca de banho, fez com que eu novamente caísse na gargalhada. Escancarei a porta, dizendo: – Também não ganhei nenhuma pasta de dente, mas acho que tenho alguma coisa na bolsa que pode servir. A porta se fechou às minhas costas e, quando fui pegar a bolsa que havia deixado no chão, tropecei num dos meus sapatos. Richard segurou-me pelo cotovelo e caímos um em cima do outro, olhos no olhos, tontos e sozinhos num quarto de hotel em Los Angeles. Obedecendo a um impulso, retirei a touca da cabeça dele, deixando que os lindos cabelos castanhos caíssem sobre o rosto não menos lindo. Richard jogou longe a escova de dente, abraçou-me pela cintura e me puxou. – Só tem um problema com essa nossa parceria profissional – falou. – Um grande problema. Baixou o rosto para me beijar e eu deixei. Fechei meus braços naquelas costas largas e nossas bocas se encontraram. Ainda abraçados, ele me conduziu até a cama e deitou em cima de mim, entrelaçando os dedos nos meus, pressionando minhas mãos contra o colchão, sussurrando meu nome no ouvido. – Faz tempo que sonho com isso, Lindsay. Desde a época em que você nem sabia meu nome. – Eu sempre soube seu nome. Meu desejo por aquele homem era enorme. Mas quando meu parceiro abriu meu roupão e enfiou os lábios em meu pescoço, um pânico repentino fez com que meu cérebro puxasse o freio de mão. Aquela havia sido uma péssima ideia. – Richard, não... – murmurei. Fechei o roupão enquanto o inspetor rolava para o lado, ofegante e confuso, encarando-me. – Desculpe – disse ele. – Não precisa se desculpar – falei, tomando sua mão entre as minhas. – Eu o acho um cara
atraente, mas somos parceiros, Richard. Nossa obrigação é cuidar um do outro. Só que não desta maneira. Ele ficou visivelmente triste quando eu disse: – Vamos fingir que isto não aconteceu.
capítulo 86
NA MANHÃ SEGUINTE AO NOSSO retorno de Los Angeles, Conklin e eu voltamos à Agência Westwood. Fomos atendidos por um senhor de 50 e poucos anos, rosto redondo, cabelos louros e um par de olhos verdes que nos encaravam através de óculos sem armação. Será que ele está envolvido no sequestro de Madison Tyler? Exibindo meu distintivo, apresentei meu parceiro e a mim mesma. – Sou Paul Renfrew – falou. – Vocês são os detetives que estiveram aqui outro dia, certo? Respondi que sim e disse que tínhamos algumas perguntas sobre Paola Ricci. Convidados a entrar, seguimos o elegante senhor através do corredor até a porta verde que tínhamos visto trancada a cadeado da última vez. – Por favor, sentem-se – disse Renfrew. Conklin e eu nos acomodamos nos dois pequenos sofás no canto da sala. O homem puxou uma cadeira e falou: – Suponho que queiram saber onde eu estava quando Paola foi sequestrada. – Seria um bom começo – retrucou Conklin, que parecia cansado. Paul Renfrew tirou uma pequena agenda de couro do bolso do paletó. Sem que pedíssemos, começou a fazer um relatório sobre os contatos que havia feito no norte do estado durante a semana da morte da babá, com direito ao nome de todos os potenciais clientes com quem tinha conversado. – Posso fazer uma cópia disto se quiserem – ofereceu. Numa escala de 1 a 10 (sendo a dezena a pior das hipóteses), minha intuição dava ao Sr. Renfrew um temeroso 7. Ele parecia ensaiado demais. Aceitei a sugestão da cópia e perguntei sobre os compromissos de sua mulher no mesmo período. – Ela está viajando pela Alemanha e a França. Minha mulher não segue um itinerário definido. Deve estar de volta na semana que vem. – Por acaso o senhor suspeita de alguém que poderia fazer mal a Paola ou a Madison? – perguntei. – Não, ninguém – respondeu Renfrew. – Sempre que ligo a TV vejo a notícia de um novo sequestro. Parece uma epidemia. Paola era uma moça adorável e estou chocado com o que aconteceu. Gostávamos muito dela. Quanto a Madison... – prosseguiu. – Só a vi uma vez. Que motivos alguém teria para machucar um anjinho daqueles? Não consigo imaginar. A morte dessa menina é uma grande tragédia.
– O que leva o senhor a acreditar que ela esteja morta? – perguntei. – Não está? Apenas achei que... Desculpem, fui precipitado! Realmente espero que ela seja encontrada com vida. Já íamos embora quando Mary Jordan, a gerente da agência, saiu de trás de sua mesa e veio falar conosco. Na calçada, o ar fedia a peixe, vendido no mercado vizinho. Segurando-me pelo braço, aflita, Jordan disse: – Por favor, precisamos conversar em outro lugar. Tenho uma coisa importante a lhes dizer.
capítulo 87
EM 15 MINUTOS CHEGAMOS à Central. Conklin e eu estávamos reunidos com Mary Jordan em nossa apertada copa. Ela segurava um copinho de café, mas parecia muito nervosa para tomar a bebida. – Depois que vocês foram embora naquele dia, antes que o Sr. Renfrew voltasse de viagem, decidi dar uma bisbilhotada pela agência. E encontrei isto aqui – disse ela, tirando da bolsa a fotocópia de uma planilha. – É do livro de registro da Westwood. – Onde você achou isto, Mary? – perguntou Conklin. – Encontrei a chave do escritório dos Renfrew, que é onde fica o livro. Liguei para a Promotoria Pública e fui atendida pela assistente Kathy Valoy. Coloquei-a a par da situação e ela disse que chegaria logo. Em poucos minutos a jovem atravessava a porta da copa e era apresentada a Mary Jordan. – Por acaso a sargento Boxer ou o oficial Conklin pediram a você que conseguisse este material? – Não. – Caso tenha sido induzida a fazer algo neste sentido – explicou Valoy –, o livro de onde esta planilha foi tirada será excluído do rol de provas na hipótese de um julgamento futuro. – Agi por espontânea vontade – retrucou Jordan. – Juro que estou dizendo a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade. A assistente de promotoria riu e disse: – Lindsay, a gente precisa almoçar qualquer dia desses. – Então se despediu e deixou a sala. Perguntei a Mary se podia ver o documento, então ela me passou a planilha, que tinha três colunas: ALOCAÇÕES, CLIENTES, TAXAS. A lista de alocações se compunha exclusivamente de nomes femininos, quase todos de origem estrangeira. Os nomes dos clientes vinham precedidos de “Sr. e Sra.” e as taxas eram valores de quatro dígitos, nada que chamasse a atenção. – Todas estas moças foram alocadas nestas famílias este ano? – perguntei. Mary fez que sim com a cabeça e disse: – Lembra o que eu falei naquele dia? Que uma das babás da agência, uma moça chamada Helga, tinha sumido oito meses atrás, quando a Westwood ainda funcionava em Boston? – Sim, eu me lembro. – Bem, procurei o nome dela no livro de registro. Aqui está – disse ela, apontando para uma das linhas da planilha. – Helga Schmidt. E os patrões dela estão logo ao lado: Penelope e
William Whitten. – Continue – pediu Conklin. – Os registros mostram que os Whitten têm uma filha chamada Erica. Uma menina de quatro anos capaz de solucionar problemas de matemática. Um prodígio. Pesquisei o nome do casal na internet e encontrei esta entrevista aqui no Boston Globe. Mary tirou outra folha da bolsa e a colocou sobre a mesa. Era o tal artigo de jornal. Virou-o na nossa direção e foi falando enquanto líamos: – Isto aí foi publicado em maio no caderno “Estilo de Vida” . Sr. Whitten é crítico de vinhos. Ele e a mulher foram entrevistados em casa. Neste trecho aqui – apontou para os parágrafos finais da matéria – o casal conta que a filha Erica tinha ido morar na Inglaterra com uma irmã da Sra. Whitten e estava estudando numa escola particular. Achei isso muito estranho! É difícil de acreditar. Os Whitten contratam uma babá, que some de repente, e eles mandam a filha para a Europa? Erica só tem quatro anos! Além disso, os Whitten não têm muita grana. Por que mandariam a filha para o exterior? Richard e eu trocamos olhares e Jordan prosseguiu. – Provavelmente nada disso teria chamado minha atenção não fosse o assassinato de Paola e o sequestro de Madison. Não acredito que Erica Whitten esteja morando na Inglaterra. Vocês acham que é loucura minha? – Quer mesmo saber o que acho? – perguntei. – Acho que você tem o faro de uma ótima policial.
capítulo 88
JACOBI TOSSIA VIOLENTAMENTE a meu lado. O charuto de Tracchio exalava uma fumaça azul e fedorenta. O telefone da mesa dele tocou: era o agente David Stanford, do FBI, que ligava da residência dos Whitten, em Boston. – O casal está transtornado – informou pelo viva voz –, mas consegui arrancar a história deles. A filha caçula, Erica, foi sequestrada com a babá, Helga Schmidt, oito meses atrás. Finalmente alguma informação batia com o caso de Paola Ricci e Madison Tyler. Mas, se Erica tinha sido sequestrada oito meses antes, por que os pais não chamaram a polícia? – Ninguém viu o sequestro – continuou o agente –, mas o casal encontrou um bilhete sob a porta de casa. Fazia uma hora que a menina devia ter voltado da escola com a babá. Havia algumas fotos com a mensagem. – O bilhete era um pedido de resgate? – perguntou Macklin, nervoso. – Não exatamente. Vocês têm fax aí? Tracchio passou a ele o número do aparelho. Era possível ouvir vozes do outro lado da linha: um homem e uma mulher discutiam baixinho. A voz feminina dizia: “Vai, Bill, conta para eles.” Dali a pouco Stanford disse: – Vou passar Bill Whitten para vocês. Sr. Whitten veio à linha. Tracchio apresentou a si mesmo e ao restante do grupo sem dar maiores detalhes. – Os senhores precisam entender o que estão fazendo conosco – disse o homem. Estava com a garganta seca e sua voz parecia um grunhido animal. – Eles disseram que iam matar nossa filha se chamássemos a polícia. É possível que nosso telefone esteja grampeado. Talvez haja alguém vigiando nossa casa! Estão entendendo? Atrás da mesa de Tracchio, o fax apitou e uma folha foi descendo para a bandeja. – Só um minuto – disse Tracchio, recolhendo o papel. Depois largou-o sobre a mesa para que pudéssemos ler.
Estamos com Erica. Se a polícia for chamada, a menina morre. Se desconfiarmos de alguma coisa, ela morre também. E depois vamos pegar o Ryan. Ou a Rebecca. Ou a Sheila. Fiquem na sua e não machucaremos ninguém. Todo ano vocês vão receber uma foto de sua filha. Talvez até um telefonema. Quem sabe ela não volta um dia?
Sejam inteligentes e fiquem de bico calado. Todos os seus filhos vão ficar agradecidos. O bilhete havia sido escrito oito meses antes, mas a crueldade do conteúdo dava a impressão de que o crime acabara de acontecer. Ficamos horrorizados, mas foi Macklin quem pegou o fax e o amassou com raiva, como se tivesse nas mãos o pescoço do sequestrador. Tracchio retirou uma segunda folha da máquina. – As fotos não estão muito nítidas – disse ele a Stanford. – Erica foi fotografada contra um fundo branco com as roupas que usava no dia em que foi levada. As outras imagens são dos filhos mais velhos dos Whitten, tiradas diante da escola. Também tem uma foto de Rebecca no quarto dela. Tudo será devidamente analisado – explicou o agente do FBI. Minha cabeça começou a trabalhar: Eles vão procurar por impressões digitais e outros vestígios no envelope e no bilhete. Mas o que Stanford não está dizendo, porque os Whitten estão ao lado dele, é que todas as crianças encontradas mortas e não identificadas no país terão o DNA comparado com o da menina e o da babá. Não havia dúvida de que o bilhete e as fotos não passavam de uma estratégia para ganhar tempo. Erica Whitten e Helga Schmidt estavam mortas. Mas o que os sequestradores ganham com isso? O que eles querem? Eu tentava achar uma resposta para aquelas perguntas quando meu celular tocou. Era o inspetor Paul Chi: – Acabamos de receber uma chamada de emergência, Lindsay. Alguém foi atacado no edifício Blakely Arms.
capítulo 89
AO SAIR DO ELEVADOR no sexto andar, Conklin e eu nos deparamos com dois policiais à porta do apartamento 602. Reconheci um deles, Patrick Noonan, que desde algum tempo vinha tentando ser transferido para o Departamento de Homicídios. – O que aconteceu, Noonan? – Uma coisa horrível, sargento. O nome da vítima é Ben Wyatt. Mudou para cá ano passado. Conklin ergueu a fita de isolamento e eu passei por baixo, escutando Noonan dizer: – O agressor entrou normalmente pela porta. Encontrou-a aberta ou foi convidado a entrar. Talvez tivesse a chave. – Quem chamou a polícia? – A vizinha do 601. Virginia Howsam. Conklin e eu entramos no apartamento, que quase não tinha móveis. Sobre o piso de tábuas corridas uma poça de sangue escuro formava uma auréola em torno da cabeça da vítima. Era um negro forte de 30 e poucos anos. Vestia short, camiseta cinza de malha e tênis de corrida. Estava ao lado de uma esteira ergométrica. Agachei-me para examinar melhor. Os olhos estavam fechados e a respiração era pesada. Ao menos ainda vivia. Em seguida chegaram os paramédicos, que se reuniram em torno do corpo, contaram até três e o colocaram sobre uma maca. O mais próximo de mim disse: – Está inconsciente. Vamos levá-lo ao Hospital Geral de São Francisco. A senhora se incomoda de chegar um pouquinho para lá, sargento? As sirenes berravam pela Townsend quando Charles Clapper chegou acompanhado de dois peritos. Foi direto à esteira. – O fio disto aqui foi cortado – falou, mostrando o ponto exato do corte que parecia ter sido feito à faca. – Você viu a vítima? – perguntou-me. – Vi. Está vivo, Charles. Ao menos por enquanto. Parece que levou uma cacetada na nuca. Assim como no caso de Irene Wolkowski, o instrumento da agressão tinha sido levado do apartamento. Também não havia muita coisa fora do lugar. Com certeza existia um vínculo entre os ataques que vinham aterrorizando o prédio. Mas que ligação é essa? Que diabo está acontecendo aqui?
capítulo 90
VIRGINIA HOWSAM, VIZINHA de porta de Ben Wyatt, tinha 20 e tantos anos e trabalhava numa casa noturna no centro da cidade. Contou que o morador do 602 era corretor de valores e se dava bem com todos os moradores do prédio. Agradecemos e tomamos a escada até o andar inferior, na esperança de que alguém pudesse ter ouvido algum barulho que nos ajudasse a descobrir o horário da agressão. Conklin estava atrás de mim na escada quando meu celular tocou. Peguei o aparelho da cintura e vi o nome na tela: David Stanford. – Boxer falando. – Tenho boas notícias. Sinalizei para Conklin de modo que ele se aproximasse para ouvir também. – Alguma novidade sobre Erica Whitten? – Não, mas achei que você gostaria de saber que Charles Ray já está em casa. – Maravilha, David! O que aconteceu? Stanford contou que o marido de uma mulher deprimida confessara toda a história. Semanas antes o bebê do casal havia morrido subitamente. – Essa mulher que levou Charles estava numa depressão profunda – falou. – Dirigia pela rua quando viu o menino no quintal. Parou o carro e o raptou. – Ela foi presa? – Foi, mas ainda não é a pessoa que estamos procurando, Lindsay. Essa mulher não tem nada a ver com Erica Whitten ou Madison Tyler. Vinha sendo medicada e ontem foi o primeiro dia em que saiu de casa depois da morte do filho. Agradeci a Stanford, desliguei o telefone e olhei para Conklin, encarando-o, sentindo o calor daquela proximidade. – Então não temos nada – comentou. – Temos alguma coisa – falei, retomando a descida. – Temos um assassino à solta neste prédio macabro. Quanto a Madison Tyler, chegamos a mais um beco sem saída.
capítulo 91
MICKEY SHERMAN ESTAVA ao lado de Alfred Brinkley à mesa da defesa, tentando ganhar a atenção do seu cliente, que havia recebido forte medicação naquele dia. – Fred. Fred! – Sherman sacudiu-o pelos ombros. – Fred, hoje começa sua defesa, está entendendo? Vou chamar algumas pessoas para testemunhar a seu favor, para falar do seu caráter. Brinkley meneou a cabeça, dizendo: – Você vai chamar meu médico para depor. – Isso. Dr. Friedman vai explicar sua condição mental, mas você não precisa se preocupar, pois ele está do nosso lado. – Quero ter a oportunidade de contar minha versão da história. – Vamos ver. Ainda não sei se é o caso de convocá-lo para depor. O assistente de Mickey passou a ele um bilhete dizendo que as testemunhas já haviam chegado. Dali a pouco o oficial de justiça pediu que todos se levantassem e o juiz surgiu à porta que ficava atrás de seu banco. Em fila, os jurados entraram na sala e foram se acomodando no banco. O quarto dia do julgamento de Alfred Brinkley iria começar. – A defesa convoca Sr. Isaac Quintana. Apesar da estranha sobreposição de roupas, o homem tinha os olhos vivos e sorria ao ocupar o banco das testemunhas. – Sr. Quintana... – começou Sherman. – Pode me chamar de Ike. É assim que todos me chamam. – Então está bem – disse Sherman, bem-humorado. – Ike, como você e Sr. Brinkley se conheceram? – No Napa. Foi onde a gente se conheceu. – O Napa não é uma faculdade, é? – perguntou Sherman, sorrindo para a testemunha, que chacoalhava moedas no bolso das calças. – Faculdade que nada! – respondeu Quintana, devolvendo o sorriso. – É um hospício mesmo! – Um hospital estadual, correto? – Correto. – Sabe dizer por que Alfred estava internado lá? – Sei. Ele andava deprimido. Não comia nada nem saía da cama, além de ter pesadelos horríveis. A irmã dele havia morrido e Alfred deu entrada no hospital porque não queria mais
viver. – Ike, como você sabe que Alfred estava deprimido e tinha tendências suicidas? – Ele mesmo contou. Eu também sabia que ele estava tomando antidepressivos. – Quanto tempo vocês passaram juntos no Napa? – Mais ou menos dois anos. – Vocês se davam bem? – Muito bem. Alfred era um cara bacana. Por isso tenho certeza que ele não tinha a intenção de matar aquelas pessoas na... – Protesto! – exclamou Yuki. – A testemunha está divagando, meritíssimo. Solicito que a última frase seja excluída dos autos. – Protesto deferido. Frase excluída. – Ike – prosseguiu Sherman, impassível –, em algum momento Alfred se mostrou uma pessoa violenta? – Alfred? Violento? Quem disse uma bobagem dessas? Ele era a calma em pessoa! Por causa dos remédios, sabe? A gente toma um comprimido desses e a loucura vai embora rapidinho!
capítulo 92
YUKI SE LEVANTOU DA MESA e alisou as dobras da saia, achando que Quintana parecia um ventríloquo com aquele sorriso gratuito. Mas tudo indicava que ele havia causado boa impressão: os jurados não paravam de sorrir para a testemunha. – Sr. Quintana – disse Yuki –, por que o senhor estava internado naquele hospital psiquiátrico? – Tenho TOC. Nada muito sério. Mas toma muito tempo da minha vida: estou sempre pegando coisas na rua, adoro colecionar objetos... – Obrigada, Sr. Quintana. O senhor também é psiquiatra? – Não, mas conheço vários. Yuki sorriu, acompanhada pelos jurados. Seu grande desafio naquele momento era desmontar o depoimento de Quintana sem que o júri se voltasse contra ela. – O senhor trabalha em quê? – perguntou. – Lavo pratos no Restaurante Jade, na Bryant Street. Para quem gosta de limpeza, nada melhor que contratar um lavador de pratos com TOC. – Faz sentido – retrucou Yuki em meio às gargalhadas que vinham da galeria. – O senhor tem formação médica? – Não. – E qual foi a última vez que viu Sr. Brinkley? – Uns 15 anos atrás. Alfred recebeu alta da clínica em... 1988, eu acho. – E vocês não tiveram nenhum contato depois disso? – Não, nenhum. – Portanto não saberia dizer se ele fez ou não duas lobotomias e um transplante de coração neste período, saberia? – Rárárá, essa foi boa! Humm, mas ele fez isso mesmo? – O que realmente estou querendo dizer, Sr. Quintana, é que o “cara bacana” que o senhor conheceu no hospital, um rapaz de apenas 16 anos, pode ter mudado desde então. O senhor é a mesma pessoa que era 15 anos atrás? – Bem, hoje minha coleção está bem maior! Mais risadas foram ouvidas na sala, inclusive no banco dos jurados. Yuki sorriu para deixar claro que também achava graça. Esperou que as pessoas se calassem e continuou: – Ike, quando você disse que Sr. Brinkley era “louco” , isto foi uma opinião sua como amigo, não foi? Não estava dizendo que ele era mentalmente incapacitado conforme define o código
penal, estava? – Não, não estava. Não entendo nada disso. – Obrigada, Sr. Quintana. Sem mais perguntas.
capítulo 93
DR. SANDY FRIEDMAN, a segunda pessoa do dia convocada por Sherman, atravessou o corredor para ocupar o banco das testemunhas. Era um ótimo psiquiatra, formado em Harvard, e vestiase de maneira condizente com sua profissão: óculos, suéter e gravata-borboleta, sem falar da grande semelhança com o ator Liam Neeson. Assim que o médico fez seu juramento, Sherman disse: – Dr. Friedman, por acaso já teve a oportunidade de conversar com Sr. Brinkley? – Por três vezes desde que ele foi detido para ser julgado. – Chegou a fazer um diagnóstico da doença dele? – Sim. Na minha opinião ele sofre de transtorno esquizoafetivo. – Pode nos explicar o que é isso? Friedman se recostou na cadeira enquanto organizava os pensamentos, então respondeu: – O transtorno esquizoafetivo é uma desordem cognitiva, emocional e comportamental que envolve elementos da esquizofrenia paranoide. Algo parecido com o transtorno bipolar. – “Bipolar” seria o mesmo que “maníaco-depressivo”? – perguntou o advogado. – “Bipolar” quer dizer que as pessoas com o transtorno esquizoafetivo apresentam mudanças súbitas de humor, oscilando entre a hiperatividade, daí o termo “maníaco” , e a tristeza profunda, o lado “depressivo” . Apesar disso, muitas vezes elas conseguem conviver com o problema e até fazer parte da sociedade. – E elas ouvem vozes, doutor? – Muitas, sim. Este seria um dos aspectos esquizoides da doença. – Vozes ameaçadoras? – Sim. – O psiquiatra sorriu. – Este seria o aspecto paranoide. – Sr. Brinkley lhe disse que as pessoas na televisão falavam com ele? – Disse. Este também é um sintoma comum do transtorno esquizoafetivo. Um exemplo de distanciamento da realidade. E a paranoia faz com que ele ache que as vozes se dirigem a ele. – Pode explicar melhor o que quer dizer com “distanciamento da realidade”? – Claro. Desde o início da doença do Sr. Brinkley, na adolescência, ele sofre de uma distorção na maneira de pensar, agir e expressar suas emoções. E sobretudo na maneira de perceber a realidade. Este é o elemento psicótico: a incapacidade de discernir entre o real e o imaginário. – Muito obrigado, doutor – disse Sherman. – Bem, falemos agora sobre os acontecimentos que trouxeram Sr. Brinkley a este julgamento. O que o senhor tem a dizer sobre eles? – No caso do transtorno esquizoafetivo, geralmente há algo que precipita e aumenta a
incidência dos comportamentos, digamos, “loucos” . Na minha opinião, o que desencadeou tudo isso foi o fato de ele ter sido demitido. A perda da rotina, o despejo do apartamento onde morava, tudo pode ter agravado sua condição. – Entendo, entendo. Dr. Friedman, Sr. Brinkley lhe contou o que aconteceu naquela balsa? – Sim. Nas nossas conversas disse que não pisava num barco desde os 16 anos, quando perdeu a irmã num acidente de veleiro. Naquele dia na balsa houve ainda outro agente precipitante: ele viu um veleiro. E isso desencadeou o episódio. Em termos leigos, foi isso que levou Sr. Brinkley a “perder o juízo” . Dali em diante ele não podia mais discernir entre a fantasia e a realidade. – Ele disse ao senhor que estava ouvindo vozes na balsa? – Disse. Vozes que o mandavam matar. É preciso deixar claro que Sr. Brinkley nutre uma profunda revolta com relação à morte da irmã, uma revolta que culminou nessa súbita explosão de fúria. Para ele, as pessoas na balsa não eram reais. Eram apenas um cenário para seu delírio. As vozes eram reais, e o único meio de fazê-las calar era obedecendo a elas. – Dr. Friedman – disse Sherman, tocando os lábios com a ponta do indicador –, seria possível afirmar com razoável certeza médica que, ao obedecer a tais vozes e atirar contra os passageiros na balsa, Sr. Brinkley não estava em condições de separar o certo do errado? – Perfeitamente. Com base nas conversas que tive com ele e nos meus 20 anos de experiência no tratamento de pacientes com graves distúrbios mentais, posso afirmar que no momento em que disparou sua arma Alfred Brinkley sofria de uma enfermidade mental que o impedia de separar uma coisa da outra. Estou convencido disso.
capítulo 94
DAVID HALE ENTREGOU um bilhete a Yuki: o desenho de um buldogue com uma coleira cheia de pregos e baba escorrendo da boca. Em cima do animal havia uma palavra dentro de um balão: “Atacar!” Yuki sorriu e imaginou o promotor Leonard Parisi se aproximando do banco para estraçalhar o psiquiatra contratado por Mickey Sherman. Desenhou um círculo em torno do cachorro, sublinhou a palavra de ordem e então se levantou. A caminho do banco da testemunha, perguntou em voz alta: – Dr. Friedman, o senhor é bastante conhecido pelos depoimentos que costuma dar como especialista, certo? O médico respondeu que sim e acrescentou que já havia testemunhado em diversas ocasiões, tanto para a defesa quanto para a acusação. – No caso em julgamento, foi a defesa que o contratou? – Sim, foi. – E quanto o senhor recebeu por isso? Friedman olhou para o juiz que, devolvendo o olhar, disse: – Responda, por favor, Dr. Friedman. – Recebi oito mil dólares. – Oito mil dólares. Muito bem. E há quanto tempo o senhor vem tratando o Sr. Brinkley? – Sr. Brinkley nunca foi meu paciente. – Ah! – disse Yuki. – Então me esclareça uma coisa: é possível um psiquiatra diagnosticar algum tipo de transtorno em uma pessoa que ele nunca tratou? – Tive três conversas com Sr. Brinkley, durante as quais o submeti a vários testes psicológicos. Portanto, respondendo à sua pergunta, sim, sou capaz de avaliar o Sr. Brinkley sem nunca ter tratado dele. – Assim sendo, com base nessas três conversas e nesses testes, o senhor acredita que o réu não era capaz de separar o certo do errado no momento em que atirou contra aquelas pessoas? – Sim, acredito. – Mas não chegou a realizar nenhuma tomografia para saber se havia um tumor pressionando alguma região do cérebro dele, chegou? – Claro que não. – Então como pode saber que Sr. Brinkley não respondeu aos testes de maneira tendenciosa apenas para se livrar da acusação de assassinato?
– Ele não poderia fazer uma coisa dessas – respondeu o médico. – Esses testes são à prova de mentiras. As perguntas são repetidas de maneiras diferentes e, quando as respostas não são consistentes, sabemos que o paciente está mentindo. – Doutor, o senhor aplica esses testes porque, na verdade, não tem como saber ao certo o que se passa na cabeça do paciente, não é? – Bem, para chegar a um diagnóstico também levamos em conta os aspectos comportamentais. – Entendo. Dr. Friedman, o senhor conhece o termo jurídico “consciência de culpa”? – Conheço. Refere-se às ações de uma pessoa que atestam a consciência que ela tem de que fez algo errado. – Muito bem colocado, doutor – disse Yuki. – Agora, quando alguém atira em seis pessoas e depois foge, tal como fez Sr. Brinkley, isso não seria um caso nítido de consciência de culpa? Não indicaria que ele sabia que havia feito algo errado? – É preciso deixar uma coisa bem clara, Srta. Castellano. Nem tudo o que uma pessoa faz durante um surto psicótico é desprovido de lógica. Os passageiros daquela balsa estavam gritando, correndo atrás do Sr. Brinkley para agredi-lo. Então ele fugiu. Qualquer pessoa nessas circunstâncias teria fugido também. Yuki olhou rapidamente para David, que meneou a cabeça num gesto de encorajamento. Ela precisava de algo genial que derrubasse o psiquiatra. A pergunta que lhe veio à cabeça foi: – Dr. Friedman, a intuição exerce algum papel nas suas avaliações? – Claro que sim. A intuição é composta de várias camadas de experiência. Portanto recorri à minha intuição, bem como aos procedimentos formais da psiquiatria, para avaliar Sr. Brinkley. – E chegou a alguma conclusão sobre ele ser ou não uma pessoa perigosa? – Conversei com Sr. Brinkley antes e depois de ele ser medicado com Risperdal. Sou da opinião de que ele não é uma pessoa perigosa caso receba a medicação correta. Yuki plantou as mãos no parapeito, olhou diretamente nos olhos do psiquiatra e, alheia às pessoas que lotavam a sala, perguntou: – Dr. Friedman, o senhor conversou com Sr. Brinkley na cela de uma delegacia. Então pergunte isto à sua intuição: o senhor se sentiria seguro dentro de um táxi que fosse conduzido por ele? Sozinho com Alfred Brinkley num elevador? Jantando na casa do réu? Mickey Sherman imediatamente se levantou. – Meritíssimo, protesto. Estas perguntas devem ser desconsideradas. – Protesto deferido – resmungou o juiz. – Sem mais perguntas, meritíssimo – disse Yuki.
capítulo 95
ÀS OITO DA MANHÃ DAQUELA segunda-feira, Miriam Devine pegou as correspondências acumuladas na mesa do vestíbulo e foi até a cozinha. Na véspera, ela e o marido tinham chegado de um cruzeiro pelo Mediterrâneo: 10 maravilhosos dias sem telefone, televisão ou contas a pagar. Sua vontade era que aquela deliciosa sensação de férias não terminasse nunca, mantendo-a afastada para sempre das dores de cabeça do mundo real. Ah, se eu pudesse! Miriam fez café, colocou o pão na torradeira e examinou a correspondência, empilhando os catálogos no canto direito da mesa, as contas no esquerdo e o restante diante da caneca de café à sua frente. Ao perceber o envelope branco endereçado aos Tyler, colocou-o sobre a pilha central e seguiu trabalhando, preenchendo cheques e jogando fora as propostas de cartões de crédito. Jim então entrou na cozinha, segurando uma xícara de café: – Meu Deus. Não estou com a menor vontade de ir ao escritório. Aquilo lá vai estar um inferno. – Vou fazer seu prato favorito para o almoço, querido. Bolo de carne. – Ótimo. Estou vendo que meu dia não vai ser tão ruim assim. Jim Devine foi até o jardim e fechou a porta de casa, deixando a mulher na cozinha. Miriam terminou de ler as correspondências, lavou a louça do café e ligou para a filha. Em seguida telefonou para a vizinha Elizabeth Tyler. – Elizabeth, querida! Jim e eu chegamos ontem à noite. Recebi uma correspondência de vocês por engano. Você não quer dar um pulinho aqui e a gente aproveita para colocar a conversa em dia?
capítulo 96
CONKLIN E EU ESTÁVAMOS na sala dos Tyler. Fazia 15 minutos que Miriam Devine havia entregado o bilhete dos sequestradores. A mensagem deixara Elizabeth arrasada e eu também não me sentia muito melhor. Lembrei-me de ter batido à casa dos Devine no dia do sequestro. Uma mansão vitoriana de fachada clara revestida com réguas de madeira, quase idêntica à dos Tyler. Eu conversara com Guadalupe Perez, a empregada, que em seu inglês macarrônico informou sobre a viagem dos patrões. Nove dias antes eu não poderia ter imaginado que essa mesma Guadalupe recolhera um envelope deixado sob a porta dos Devine para guardá-lo com o restante das correspondências do casal. Ninguém poderia imaginar uma coisa dessas! – Que tipo de relação vocês têm com os Devine? – Conklin perguntou a Henry Tyler, que andava furioso pela sala. Havia fotos de Madison em todos os cantos: imagens dela ainda bebê na mesa de centro, uma foto com os pais num porta-retratos na estante, etc. – Não foram eles, está bem? Os Devine não têm nada a ver com essa história! – rugiu Tyler. – Madison sumiu! – berrou com as mãos na cabeça. – Agora é tarde! Olhei para a bancada onde estava o bilhete escrito com letras de forma, perfeitamente legível apesar da distância a que eu me encontrava.
Estamos com a menina. Se a polícia for chamada, ela morre. Se desconfiarmos de alguma coisa, ela morre também. Madison está com saúde. E assim vai permanecer desde que vocês fiquem na sua. Esta foto é a primeira. Todo ano vocês vão receber uma nova. Talvez até um telefonema. Quem sabe ela não volta um dia? Sejam espertos. Bico calado. Madison agradece. A foto que acompanhava o bilhete havia sido tirada logo após o sequestro. Madison estava limpa e com aparência saudável. Ainda usava o casaquinho azul e os sapatos vermelhos. – Será que eles sabem que não recebemos esta mensagem? Que em nenhum momento tivemos a intenção de desobedecê-los?
– Não temos como saber, Sr. Tyler. E não há como fazermos nenhuma... Elizabeth Tyler me interrompeu, com as veias do pescoço saltando sob a pele clara: – Madison é a menina mais inteligente que você possa imaginar. Ela canta e toca piano, além de ter a risada mais gostosa do mundo. Fico pensando em como ela está agora. Será que foi estuprada, amarrada a uma cama e está passando fome e frio? Ou será que já está nas mãos de Deus? É só nisso que conseguimos pensar, sargento. Precisamos saber o que aconteceu à nossa filha. Vocês têm de fazer o impossível para encontrá-la – suplicou a mulher. – Têm de trazer nossa filha de volta!
capítulo 97
GUARDADO NUM PEQUENO saco plástico, o bilhete dos sequestradores agora estava na minha mesa, posicionado de tal forma que eu e Conklin pudéssemos lê-lo.
Se a polícia for chamada, ela morre. Ainda estávamos chocados com o tom daquelas palavras. Era impossível não pensar que, ao investigarmos o caso de Paola Ricci e Madison Tyler, talvez tivéssemos provocado a morte da menina. Dave Stanford chegou ao departamento ao meio-dia e então repassamos o bilhete ao FBI. Jacobi pediu uma pizza. Conklin pegou uma cadeira para o agente e colocamos diante dele as pastas daquele caso. Após uma hora de reunião, tudo se resumia a uma única pista: a Agência Westwood. Os Whitten e os Tyler tinham em comum a contratação do mesmo serviço de babás. Começamos a telefonar para os clientes que constavam da planilha que Mary Jordan havia deixado comigo. Em seguida comemos a pizza e saímos. Conklin e Macklin seguiram no carro de Stanford e eu fui no banco do carona de Jacobi. Era bom ver aquele rosto familiar a meu lado, aquele traseiro enorme que mal cabia atrás do volante. – Desculpe dizer, mas você está com cara de quem comeu e não gostou – comentou ele. – Esse sequestro está embrulhando meu estômago. Mas, já que você tocou no assunto, vou lhe fazer uma pergunta. Alguma vez você mentiu para mim ao me ver com essa cara? – Não, acho que não. – Pois é. Esta é uma das coisas que sempre gostei em você. A franqueza. – Ah, não é hora para rasgar seda – disse ele, sorrindo. Em seguida dobrou à direita na Lombard e estacionou. Ao longo de cinco horas, interrogamos quatro clientes da Agência Westwood e suas respectivas babás. O sol já sumia quando nos reunimos com Macklin e outros oficiais na Central. A conversa não demorou, pois chegamos à rápida conclusão de que nós quatros escutamos a mesma coisa: elogios à Westwood e às suas babás. Por volta das sete, decidimos que o trabalho seria retomado na manhã seguinte. Despedi-me de todos e segui rumo a Potrero Hill. As luzes da cidade cintilavam no horizonte enquanto eu estacionava diante de casa. Eu tinha acabado de puxar o freio de mão quando reconheci o vulto atrás de uma árvore.
Meu coração quase saiu pela boca quando pisquei por alguns segundos e levei um susto enorme. Joe estava bem ali!
capítulo 98
JOE ESTAVA NA PORTA DA MINHA casa. Eu não conseguia acreditar! Não havia uma única alma no mundo que eu desejasse ver tanto como meu ex-namorado. – Quantas vezes eu já lhe disse – falei, o coração em disparada e as pernas bambas – que é perigoso dar susto num policial armado? – É verdade. Mas você agora tem alergia a telefone? Desenvolveu uma fobia nova? – Joe sorria timidamente. – Puxa, nem para dar um simples alô! Você é jogo duro, hein, loura? – Acha mesmo? Eu me sentia exausta, acabada, com uma vontade louca de chorar. Mas me segurei para não desabar diante dele. Já fora do carro, eu tamborilava no capô, com a cara amarrada. Ainda assim, Joe continuava lindo e maravilhoso. – Desculpe-me por aparecer desta forma – disse ele, abrindo um sorriso enorme. – Queria muito vê-la. Então, como anda a vida? – Melhor impossível – menti sem piedade. – Muito trabalho. – Imagino. Vejo seu nome em todos os jornais. A verdadeira “Mulher Maravilha”. – Maravilha seria se eu conseguisse resolver um caso que anda tirando meu sono – falei, com um sorriso escapando dos meus lábios. Eu começava a baixar a guarda. Dei um passo à frente sem perceber. – E você, como está? – Muito ocupado também. – “Quem muito trabalha não se mete em bandalha” , já dizia o ditado. – Tranquei o carro, mas não subi a calçada. Era mais prudente manter distância daquele homem. Eu precisava de um tempo para pensar. Joe sorriu e disse: – É verdade, mas não é bem o trabalho que vem ocupando minha mente. É a mudança de vida. Como? Mudança de vida? Meu coração veio à garganta, os joelhos começaram a tremer. Foi quando tive o lampejo: Joe estava bem porque tinha arrumado outra mulher. Fez questão de vir até São Francisco porque uma novidade dessas não podia ser dita por telefone. – Eu não queria ligar antes que as coisas se concretizassem – falou, despertando-me das minhas divagações. – Você sabe como é a burocracia do governo. – De que diabo você está falando? – Pedi transferência para São Francisco, Lindsay.
Senti um alívio indescritível. Meus olhos se encheram de lágrimas ao me lembrar dos momentos especiais ao lado dele. Ao que parecia, as tardes repletas de amor estavam prestes a voltar – Disseram que não havia problema, mas estou esperando a resposta – prosseguiu. Baixando o tom de voz e me encarando, acrescentou: – Lindsay, você não imagina como eu senti saudade. O vento que soprava da baía secou minhas lágrimas. Subitamente me vi ansiosa pela noite que estava apenas começando. Ainda havia uma garrafa de vinho na geladeira. Sem falar do óleo aromático na mesinha de cabeceira. Pensei no fogo que se acenderia na minha cama assim que nos tocássemos. – Por que você não sobe um pouco? – perguntei. – Ou prefere ficar aqui na rua? Uma expressão séria surgiu em seu rosto quando ele veio em minha direção. Pousou delicadamente as mãos em meus ombros e disse: – Eu adoraria subir, mas não posso perder o voo. Eu só queria dizer isto a você: não desista de mim, Lindsay! Por favor! Ele então me puxou para junto de si. Instintivamente retesei o corpo, cruzei os braços e baixei o rosto. Não queria olhar nos olhos dele, pois em uma fração de segundo eu me lembrei da montanha-russa que era meu relacionamento com Joe Molinari. Fazia uma semana que eu tinha decidido colocar um ponto final naquela história que me deixava doida: uma hora ele estava a meu lado, mas num piscar de olhos ele desaparecia. Isso não vai mudar nunca! Pela última vez olhei para Joe. Afastando-o de mim, disse: – Desculpe, eu sinto muito. Por um instante achei que você tivesse mudado. Mas é melhor você ir. Tenha uma boa viagem. Joe me chamava repetidas vezes enquanto eu corria até a porta do meu sobrado. Enfiei a chave na fechadura e girei a maçaneta em menos de um segundo. Bati a porta e corri escada acima. Mas ao entrar em casa não resisti. Fui até a janela e tive tempo de ver o carro dele dobrando a esquina.
capítulo 99
MEU TELEFONE COMEÇOU a tocar enquanto eu estava à janela. Provavelmente era Joe ligando do carro, porém eu não tinha mais nada a dizer a ele. Fui até o banheiro e fiquei 20 minutos embaixo da ducha. Quando voltei ao quarto, o telefone continuava tocando, então resolvi diminuir o volume da campainha. Ignorei também a luz vermelha que piscava freneticamente na secretária eletrônica, bem como o celular, que berrava no bolso da jaqueta. Coloquei meu jantar no micro-ondas. Já bebia a primeira taça de vinho quando o maldito celular tocou outra vez. Arranquei-o da jaqueta e rosnei: – Boxer! – Eu estava prestes a berrar que Joe me deixasse em paz quando, decepcionada, me dei conta de que era meu parceiro Richard do outro lado da linha. Ele dizia: – Puxa, Lindsay, que dificuldade para atender um telefone! – Estava irritado, mas eu pouco me importava. – Estava no banho – falei. – Até onde sei, isso ainda é permitido. O que houve? – Mais um incidente no Blakely Arms. Quase perdi o fôlego. – Homicídio? – Ainda não sei. Ligo assim que chegar lá. Já estou perto. – Faça o isolamento do prédio. Bloqueie as saídas. Não deixe ninguém sair! – Não se preocupe, sargento. Eu então me lembrei da vítima da esteira ergométrica. Como pude me esquecer dele? – Richard, a gente se esqueceu de Ben Wyatt. – Não, a gente não se esqueceu. – Você ligou para o hospital? – Liguei. – Como ele está? – Morreu duas horas atrás. Falei a Richard que o encontraria em poucos minutos e liguei para Cindy. Ela não atendeu. Joguei o celular sobre a bancada, mas a vontade era fazê-lo voar janela afora. O micro-ondas apitou cinco vezes, avisando que meu jantar estava pronto. – Assim vou acabar ficando louca! – berrei para o aparelho. – Louca de pedra! Deixando vinho e jantar para trás, troquei de roupa, afivelei o coldre no ombro e vesti um
blazer. Finalmente consegui falar com Cindy, informando-lhe sobre o que tinha acontecido. Em seguida peguei o carro e fui até o prédio na esquina da Townsend com a Rua 3. Eu estava preparada para uma conversa séria com minha amiga. Eu exigia que ela se mudasse para meu apartamento até que encontrasse um lugar mais seguro para morar.
capítulo 100
CINDY ME ESPERAVA NA PORTARIA do prédio. Seus cabelos estavam despenteados e o batom havia desaparecido quase totalmente da boca, como se ela tivesse mordido os lábios. – Meu Deus! – gritou ela ao me ver. – O pesadelo se repetiu! – Cindy – falei, seguindo minha amiga pelo saguão –, os vizinhos têm comentado alguma coisa? Alguma fofoca? As pessoas desconfiam de algum morador? – Não estou sabendo de nada, Lindsay. Eu só percebo que as pessoas estão apavoradas. Subimos pelo elevador e novamente me vi diante de um apartamento repleto de policiais. Conklin cumprimentou Cindy e então me apresentou a Aiden Blaustein, um rapaz de 20 e poucos anos, alto e vestido de preto da cabeça aos pés: jeans rasgados, jaqueta de couro e camiseta de uma banda de rock. Os cabelos escuros eram curtos na nuca e compridos na frente, caindo sobre os olhos amedrontados. – Sr. Blaustein é a vítima – informou Conklin. Minha amiga logo se apresentou: – Sou Cindy Thomas, do Chronicle. Você pode soletrar seu sobrenome? Uma vez repórter, sempre repórter! Apesar de ileso, o garoto provavelmente estava abalado demais para dar uma entrevista. – Pode me dizer o que aconteceu? – tomei a dianteira. – Sei lá, caramba! – respondeu. – Saí às cinco da tarde para comprar uma cerveja, encontrei uma ex-namorada e a gente acabou comendo alguma coisa. Daí, quando voltei para casa, dei de cara com o lugar detonado! Conklin abriu a porta do apartamento, que na verdade era uma quitinete, e entrei com Cindy atrás de mim. – Fique perto de mim... – falei. – E não toque em nada... – acrescentou ela. O lugar parecia um ferro-velho virado ao avesso. Em poucos segundos contei um computador, três monitores, um aparelho de som e uma televisão de tela plana de 42 polegadas. Nada havia sido roubado: apenas destruído e reduzido a pó. A mesa estava com as quatro pernas quebradas. – Levei anos para comprar tudo isso – disse Blaustein. – Você trabalha? – perguntou Cindy. – Trabalho. Faço sites de internet e crio games. Devo ter perdido umas 25 mil pratas nessa brincadeira. – Sr. Blaustein – falei –, quando saiu de casa, por acaso não deixou a porta aberta?
– Nunca deixo a porta aberta. – Ele deixou o som ligado ao sair – informou Richard. – Alguém reclamou da música alta? – perguntei. – Hoje? – Hoje ou em qualquer outro dia. – Volta e meia recebo um telefonema de um morador nervosinho. – Quem? – Você quer saber o nome dele? O cara não dá boa-noite nem bom-dia. Só diz que vai acabar comigo se eu não desligar a música. Faz algum tempo que ele me liga duas vezes por semana. Xinga até meus filhos! – Você tem filhos? – perguntei, incrédula. – Os filhos que ainda vou ter, se Deus quiser! – O que você diz para ele? – Eu? Eu xingo o sujeito com os piores palavrões do mundo. Mas não adianta. Nem sei quem ele é. Olha que eu conheço todos os moradores deste prédio! Inclusive ela – falou, apontando para Cindy. – Terceiro andar, não é? – E nenhuma outra pessoa reclamou da música? – Nunca! Primeiro, eu só trabalho durante o dia. Segundo, o condomínio permite barulho até as 10 da noite. Terceiro, eu nunca escuto música alto. Suspirando, peguei o celular e liguei para a perícia. Falei com o plantonista da noite e pedi que ele viesse logo. – Você tem para onde ir? – perguntei ao rapaz. – Acho que sim. – Porque você não vai poder dormir aqui hoje. Seu apartamento ficará interditado por um tempo. Blaustein correu os olhos pela bagunça, contabilizando o prejuízo. – Não durmo aqui nem que me paguem!
capítulo 101
ASSIM QUE ENTRAMOS NO ELEVADOR, Cindy, Richard e eu chegamos a algumas conclusões. – Os cachorros, o piano, a esteira ergométrica... – disse o inspetor. – O apartamento desse rapaz com quem acabamos de conversar – acrescentou Cindy. – É sempre a mesma coisa – falei. – O barulho. – Tem razão – concordou Conklin. – Seja lá quem for o criminoso, é o barulho que o deixa louco. – Richard, desculpe-me por ter sido ríspida com você agora há pouco. É que tive um dia péssimo. – Não esquente a cabeça, Lindsay. Assim que concluirmos esse caso, vamos nos sentir bem melhor. As portas do elevador se abriram e fomos até a portaria, onde centenas de moradores se aglomeravam, histéricos. Segurando seu bloco de anotações, Cindy foi conversar com a síndica enquanto eu segui até o balcão da portaria. – Silêncio! – gritou a meu lado um homem, que gesticulou o braço para que eu falasse: – Bem, obrigado. Sou a sargento Boxer. Não preciso mencionar que vários incidentes vêm acontecendo neste prédio... Esperei que as habituais reclamações sobre a incompetência da polícia cessassem e prossegui, dizendo que iríamos interrogar todos os moradores e que ninguém poderia deixar o prédio. Um senhor grisalho, aparentando bem mais de 60 anos, ergueu a mão e se apresentou como Andy Durbridge. – Sargento, talvez eu tenha algumas informações úteis. Vi um desconhecido na lavanderia esta tarde. Ele tinha os braços arranhados, como se tivesse sido mordido por um cachorro. – Pode descrevê-lo melhor? – perguntei, sentindo uma onda de tensão varrer meu corpo. – Mais ou menos um metro e setenta, musculoso, cabelos castanhos já ralos e uns 30 anos de idade. Dei uma olhada aqui e não o encontrei. – Obrigada, Sr. Durbridge – falei. – Alguém aqui sabe de quem se trata? Uma jovem de cabelos encaracolados abriu caminho pela multidão até me alcançar. Estava pálida e com os olhos arregalados, nitidamente apavorada. – Sou Portia Fox – disse com a voz trêmula. – Sargento, será que podemos conversar em particular?
capítulo 102
PORTIA FOX E EU FOMOS até a rua. – Acho que sei quem é o tal homem – falou. – Pela descrição do Sr. Durbridge, é o cara que mora no meu apartamento durante o dia. – Vocês dividem o apartamento? – Mais ou menos – respondeu a moça, olhando para os lados. – Ele aluga meu escritório. Trabalho durante o dia e ele, à noite. – O apartamento é seu e esse homem o subloca. É isto que está me dizendo? Ela confirmou com a cabeça. – Como ele se chama? – Garry Tenning. Ao menos é o que está escrito nos cheques dele. – E onde está Sr. Tenning agora? – perguntei. – Deve estar no trabalho. Acho que é num canteiro de obras. – Ele trabalha numa obra à noite? Por acaso você tem o celular dele? – Não. Durante um ano a gente tomava café na padaria aqui da esquina. Ele sorria para mim e me dava bom-dia. Parecia um cara legal. Então me perguntou se eu conhecia algum lugar barato que ele pudesse alugar. Bem, eu estava dura, precisando da grana. Aquela criança havia deixado que um estranho fosse morar com ela. Minha vontade era sacudi-la pelo pescoço, mas preferi perguntar: – A que horas ele volta do trabalho? – Por volta das nove da manhã. Como eu disse, quando ele chega, eu já saí. Como abriu uma padaria perto do trabalho, nunca mais fui nessa da esquina. – Preciso dar uma olhada no seu apartamento. – Claro – disse ela, tirando a chave da bolsa. – Faço questão que vocês subam. Meu Deus, e se eu estiver dividindo meu apartamento com um assassino?
capítulo 103
– IDÊNTICO AO MEU – disse Cindy, entrando comigo no apartamento de Portia Fox. A porta social dava para uma sala grande e ensolarada com vista para a rua. A decoração era moderna e despojada, condizente com uma jovem. Havia uma bela cozinha americana e a sala de jantar fora fechada e transformada num pequeno escritório. – É aqui que ele fica – disse Portia. – Alguma janela no cômodo? – perguntei. – Não. E foi justamente por isso que ele alugou. Como o escritório estava trancado à chave, tínhamos duas opções: obter permissão do Sr. Tenning ou conseguir uma ordem judicial. Ainda que não existisse um contrato de locação, ele remunerava a proprietária e isso lhe assegurava certos direitos. – Você tem outro lugar onde passar a noite? – perguntei à Srta. Fox. Deixei um policial à porta do apartamento enquanto Portia arrumava sua mochila. Dei minhas chaves para Cindy e disse a ela que fosse ao meu apartamento. Minha amiga sequer reclamou. Richard e eu passamos duas horas interrogando os outros moradores. Já passava das 10 quando chegamos à Central. A sala do departamento era ainda mais deprimente à noite, sobretudo por causa da luz fria do teto. Senti no ar o cheiro dos restos de comida deixados nos cestos de lixo. Joguei fora um copo de café esquecido em minha mesa e liguei o computador enquanto Richard fazia o mesmo com o dele. Acessei nosso banco de dados e, embora estivesse preparada para uma demorada pesquisa sobre Garry Tenning, em poucos minutos encontrei o que precisava. Existia um mandado de prisão emitido em seu nome. Não era nada grave: ele tinha deixado de comparecer a uma audiência relativa a uma infração de trânsito. Havia mais coisas: – Garry Tenning trabalha para a Construtora Cra – disse Richard. – Pode estar em qualquer um dos canteiros de obra da empresa. Só vamos conseguir localizá-lo amanhã quando o escritório estiver funcionando. – Ele tem porte de arma? – perguntei. Richard digitou alguma coisa. – Tem. E está válido. Garry Tenning tem uma arma.
capítulo 104
NA MANHÃ SEGUINTE UMA tempestade desabou sobre São Francisco, alagando várias ruas da cidade. Conklin estacionou na Townsend, diante do Hillside, um edifício residencial com lojas no térreo. Se não estivesse chovendo, poderíamos enxergar as duas portarias do Blakely Arms, bem como o caminho que contornava a fachada leste do prédio indo até a entrada dos fundos, com acesso ao pátio. No entanto, mal enxergávamos o carro parado à nossa frente. Os inspetores Chi e McNeil estavam numa viatura logo atrás. Procurávamos um homem branco de um metro e setenta, cabelos castanhos ralos, talvez vestindo uniforme e talvez com um revólver no bolso. Provavelmente Tenning tomaria café na padaria e então atravessaria a Townsend para chegar em “casa” logo depois das nove. Achávamos que ele fosse entrar pelos fundos do prédio e subir pela escada de incêndio a fim de não encontrar nenhum morador. Observando pelas janelas embaçadas, eu via os pedestres escondidos sob os guarda-chuvas andando apressadamente pelas calçadas, uns entrando na lavanderia, outros na farmácia e vários na estação de metrô. Richard e eu havíamos dormido pouco aquela noite, de modo que, ao ver um homem semelhante à descrição de Tenning atravessar a rua, não tivemos certeza de que se tratava do nosso suspeito. – Casaco de náilon cinza com guarda-chuva preto atravessando a rua – falei para Conklin. Segundos depois o sinal abriu e os carros bloquearam nossa visão. O suspeito acabou se misturando a outros pedestres. – Talvez ele tenha ido pelos fundos – falei. – Provavelmente – retrucou Conklin. Chamei McNeil pelo rádio, avisando que estava na hora de entrar em ação. Esperamos alguns segundos, Conklin e eu fechamos o zíper dos nossos casacos e saímos em direção à portaria principal do prédio. Subimos de elevador até o quinto andar. Usei a chave de Portia Fox para destrancar a porta do apartamento, sem abri-la. Saquei minha arma. Assim que Chi e McNeil chegaram, Conklin abriu uma fresta na porta. Entramos os quatro no apartamento e verificamos todos os cômodos antes de nos dirigir para o escritório. Com a orelha à porta, ouvi uma gaveta sendo fechada e sapatos caindo no chão. Fiz um sinal para Conklin e ele bateu à porta.
– Polícia de São Francisco, Sr. Tenning. Temos um mandado para detê-lo. – Deem o fora daqui! – respondeu uma voz irritada. – Vocês não têm mandado nenhum. Conheço meus direitos! – Sr. Tenning, o senhor estacionou seu carro numa vaga do Corpo de Bombeiros, lembra? Quinze de agosto do ano passado. Depois faltou à audiência. – Vocês vieram me prender por causa disso? – Abra porta, Sr. Tenning. A maçaneta girou e lentamente a porta se abriu. A irritação de Tenning transformou-se em ódio assim que ele viu as armas apontadas para seu peito. Ele bateu a porta. – Arrombem! – ordenei. Conklin chutou duas vezes próximo à maçaneta, rachando a madeira até que a porta se abrisse por completo. Mas imediatamente tivemos de recuar, pois Tenning estava recostado à parede do cômodo. Segurava um revólver com as duas mãos, apontando-o contra nós. – Não vou a lugar nenhum – disse. – Estou cansado e nem um pouco a fim de sair.
capítulo 105
A ADRENALINA CORRIA POR minhas veias. Nervosa, girei com o pé direito e me coloquei no vão da porta, pernas firmes e ligeiramente afastadas, com minha pistola apontada para Tenning. Eu usava colete à prova de balas, mas ainda assim poderia ser atingida na cabeça. Além disso, as paredes de gesso não serviriam de proteção caso Tenning decidisse reagir. – Largue esta arma! – berrei. – Estou com o dedo no gatilho! – Quatro policiais armados por causa de uma multa de trânsito? Contem outra! Vocês acham que sou burro? – Burrice é morrer por causa de 50 dólares, Tenning! O homem passou os olhos pelas quatro armas apontadas para ele. Então resmungou: – Droga! – E largou o revólver, que caiu no chão. Imediatamente invadimos o escritório, atropelando uma cadeira e derrubando uma mesa. Chutei a arma na direção da porta enquanto Conklin virava Tenning contra a parede para algemá-lo. – Você está preso por não comparecer a uma audiência – disse meu parceiro, ofegante – e por atentar contra agentes policiais. Informei a Tenning seus direitos, percebendo que minha voz estava rouca por causa do perigo que tínhamos acabado de correr. – Belo trabalho – falei aos companheiros, ainda meio tonta. – Você está bem, Lindsay? – perguntou McNeil, pousando a mão em meu ombro. – Estou. Obrigada, capitão – falei. Eu imaginava o banho de sangue que poderia ter acontecido ali. E, por incrível que pudesse parecer, Tenning estava sendo preso por infringir uma lei de trânsito. Examinei melhor o cômodo, um cubículo de três por quatro com uma cama de solteiro, uma cômoda de pinho e dois gaveteiros que serviam como pés da mesa. O tampo estava no chão ao lado do computador e de várias folhas de papel. Percebi que algo havia rolado para baixo da cama. O objeto tinha uns cinco centímetros de diâmetro e meio metro de comprimento. Agachei-me para observá-lo melhor. Havia manchas vermelhas ao longo daquele cano enferrujado. Chamei Conklin e ele se ajoelhou a meu lado. Nossos olhares então se cruzaram. – Parece que isto aí foi usado como porrete – disse meu parceiro.
capítulo 106
ESTÁVAMOS NA SALA de interrogatório número dois. Tenning sentava-se à minha frente e encarava o espelho. Vestido com uma camiseta branca e calça jeans, tinha os cotovelos fincados na mesa, e o queixo, grudado no peito, deixava à mostra sua calvície iminente. Ele se recusava a falar enquanto o advogado não chegasse. O pedido levaria uns 15 minutos para tramitar na Defensoria Pública e o profissional precisaria de outros 15 para se materializar à nossa frente. Nesse período, nada que Tenning dissesse poderia ser usado contra ele. – Conseguimos a ordem judicial para revistar seu quarto – falei. – Sabe aquele cano que você usou para matar Irene Wolkowski e Ben Wyatt? Já está no laboratório! Os resultados vão ficar prontos antes do seu advogado aparecer. Com um sorriso irônico, Tenning disse: – Então me deixe em paz até ele chegar. Quero ficar sozinho com meus pensamentos. – Mas seus pensamentos me interessam muito! O que eram aquelas estatísticas que vi no seu quarto? – Estou escrevendo um livro. Preciso continuar meu trabalho. Richard entrou na sala com um radinho de pilha nas mãos. Ligou o aparelho e começou a mexer nos botões, mas ouvia-se apenas o ruído de estática. Então disse para Tenning: – O sinal aqui é fraco. Quero saber quando essa chuva vai parar. O homem foi ficando visivelmente nervoso à medida que o barulho aumentava. Virou-se para o inspetor e perguntou: – Ei, não dá para desligar essa porcaria? – Só um minuto, só um minuto – respondeu Conklin. Aumentou ainda mais o volume e colocou o aparelho sobre a mesa. – Posso lhe trazer um cafezinho, Garry? Não é tão bom quanto o da sua padaria favorita, mas dá para o gasto. – Escute aqui – disse Tenning, que não tirava os olhos do rádio –, vocês não podem me interrogar sem a presença de um advogado. Por que não me jogam numa cela? – Não estamos interrogando ninguém, meu camarada. – Conklin ergueu uma cadeira de metal, soltou-a diante da mesa e sentou-se ao lado de Tenning. – Estamos tentando ajudá-lo. Você quer um advogado? Tudo bem. – Agora ele falava com os lábios grudados ao ouvido de Tenning. – Mas está abrindo mão da oportunidade de confessar e fechar um acordo. Acho que dá para a gente fazer um acordo, não dá, sargento? – Claro que dá – falei por cima do barulho do rádio. Peguei o aparelho, sintonizei numa estação de heavy metal e aumentei o volume. Os solos de guitarra faziam vibrar a mesa. –
Vamos exumar os cachorros que você enterrou, Garry. Comparar a arcada dentária de cada um deles com a cicatriz que você tem aí no braço. E, com um teste de DNA, vamos provar que o sangue naquele cano pertence a uma das suas vítimas. Depois, eu e o inspetor Conklin vamos assistir de camarote ao seu julgamento, que mandará você para a cadeira elétrica. A menos, é claro, que eu leve um papo com o promotor para ver se consigo tirar a pena de morte da jogada. – Conferi as horas no relógio. – Você tem uns 10 minutos para decidir. Naquele momento, um cantor de death metal começou a grunhir uma melodia ensurdecedora. Encolhendo-se na cadeira e tapando os ouvidos com as mãos, Tenning suplicou: – Pare! Pare! Chamem o advogado. Eu conto tudo. Mas desliguem essa porcaria, pelo amor de Deus!
capítulo 107
AINDA CHOVIA FORTE QUANDO estacionei atrás do carro de Claire. Atravessei a rua sob o aguaceiro e corri até o Susie’s. Ao entrar no bar, senti o cheirinho de filé, cebola e banana frita, e vi que a banda afinava os instrumentos. Susie, a proprietária, convocava os clientes para um torneio de limbo, a dança caribenha em que as pessoas passam debaixo de uma corda. Eu pendurava meu casaco quando ela me viu e disse: – Ei, Lindsay, tire esses sapatos molhados e venha até aqui! Você vai arrasar! – Nem pensar, Susie! – respondi, rindo. – Não se esqueça de que já paguei esse mico uma vez! – Então fui para os fundos do salão, fiz um sinal para Lorraine e pedi uma cerveja. Yuki acenou assim que me viu, já ocupando “nossa mesa” de sempre. Cindy ergueu o rosto e sorriu. Fui até elas e me sentei ao lado da minha melhor amiga, Claire. Fazia muito tempo que nosso grupo não se reunia. Assim que chegou minha bebida, Cindy propôs um brinde a mim, parabenizando-me pela prisão de Garry Tenning. Comecei a rir e falei: – Eu tinha um bom motivo para prender o desgraçado. Se não fizesse isso, teria de suportar você morando comigo para o resto da vida! – Yuki e Claire ainda não sabiam dos crimes no Blakely Arms. Contei toda a história e depois disse: – Ele está escrevendo esse livro chamado Contabilidade – Um resumo estatístico do século XX. – Mentira! – exclamou Yuki. – O cara está escrevendo um livro sobre tudo o que aconteceu nos últimos 100 anos? – Está. Se é que você pode chamar de “livro” milhares de páginas repletas de tabelas e planilhas. Está tudo lá: a quantidade de cereais produzida em cada estado, os alunos formados no ensino fundamental, os acidentes provocados por eletrodomésticos... – Caramba, é só pesquisar no Google – disse Yuki, incrédula. – Mas Garry Tenning acha que essa é a missão dele – falei, ao mesmo tempo que Lorraine chegou com mais cerveja e os cardápios. – Ele trabalhava como vigia noturno num canteiro de obra. O que lhe dava a oportunidade de “alimentar as grandes ideias” , segundo ele mesmo contou. – Mas, se ele passava o dia trancafiado num escritório sem janelas, como é que se incomodava com o barulho? – perguntou Claire. – É que o som passa por canos e dutos de ventilação – explicou Cindy. – Passa pelos lugares mais bizarros. No meu banheiro eu escuto alguém cantando pelo respiradouro na parede. Mas não tenho a menor ideia de quem seja!
– De repente ele sofre de hiperacusia – falou Claire. – Hiper o quê? – perguntei. – É quando o cérebro apresenta algum problema na percepção dos sons – explicou Claire em meio ao barulho de pratos e talheres proveniente da cozinha. – Sons que outras pessoas não percebem podem ser intoleráveis para quem sofre de hiperacusia. – Qual é a consequência disso? – perguntei. – A pessoa se isola do mundo. Acrescente uma pitada de loucura e aí chegamos a Garry Tenning. – O fantasma do Blakely Arms! – disse Cindy. – Mas então, Lindsay, quais são as chances de ele se livrar com o pagamento de fiança? – Nenhuma. O cara confessou e temos a arma do crime. Está preso e vai mofar na cadeia. – Bem, se ele sofre mesmo desse transtorno, vai sofrer na prisão – falou Yuki. Lorraine chegou com nossos pratos e Cindy propôs que contássemos as novidades. Enquanto comíamos, cada uma foi falando de suas histórias e suas preocupações mais recentes. – Agora vou ter de trabalhar dobrado – disse Claire. – Dr. G. vai para o Colorado. Recebeu uma proposta irrecusável. Deve ser por isso que está chovendo tanto! Fizemos um brinde ao médico e Claire perguntou a Yuki como ela estava se sentindo. – Meio bipolar – respondeu, rindo. – Às vezes fico achando que Alfred vai conseguir convencer os jurados de que ele é mesmo um psicótico. Mas no dia seguinte acordo com a certeza de que vou dar uma bela rasteira em Mickey Sherman. De uma hora para outra começamos a discutir o nome do bebê que Claire ainda trazia na barriga. – Se for menina... Margarita! – sugeriu Cindy, ganhando aplausos de todas nós. Terminamos nosso jantar, bebemos café e nossa mesa foi cedida a novos clientes. À saída, desafiamos umas às outras a sair correndo sob a chuva. Fui a última a atravessar a porta. Dirigindo de volta para casa, absorta no vaivém do limpador de parabrisa e nos faróis da pista contrária, percebi que o silêncio dentro do carro, após um dia tumultuado e uma noite divertida, aos poucos me transportava de volta aos meus problemas pessoais. Joe não estaria me esperando em casa. Muito menos Martha, que estava de férias na casa da cuidadora. Trovejava bastante quando cheguei ao apartamento. E a chuva não parava de cair quando fui para a cama sozinha.
capítulo 108
NA MANHÃ SEGUINTE, Richard e eu esperávamos impacientes até que, com 10 minutos de atraso, Mary Jordan chegou à Central. Parecia cansada e tinha olheiras escuras e profundas. Conduzimos a gerente da agência Westwood para o cubículo sem janelas que chamávamos de copa. Richard lhe ofereceu uma cadeira e fui preparar um café: um dedo de leite e duas colheres de açúcar, idêntico ao da sua visita anterior. – Tenho rezado por Madison – disse a moça, apertando as mãos sobre o colo. – Mas estou certa de que fiz o que Deus queria. Ao ouvir aquela última frase, senti um frio no estômago. – Que você fez, Mary? – perguntei. – Quando Sr. Renfrew saiu hoje cedo, bisbilhotei o escritório dele. Ela colocou sobre a mesa uma bolsa grande de couro falso e tirou um velho livro de contabilidade. Lia-se na etiqueta: AGÊNCIA QUEENSBURY. – Foi Sr. Renfrew quem escreveu – disse, apontando para as letras de forma e os números bem desenhados. – É o registro da agência que o casal tinha em Montreal, no Canadá, dois anos atrás. – Em seguida retirou uma foto que marcava uma das páginas. Era um lourinho de mais ou menos quatro anos e olhos verdes. – Você tem uns minutinhos? – perguntei. Ela fez que sim com a cabeça. Eu subira no elevador com Kathy Valoy, a assistente de promotoria, portanto sabia que ela estava no prédio. Liguei para Valoy e repassei as informações trazidas por Jordan, não me esquecendo da foto. – Kathy, este casal vem rodando o mundo, abrindo e fechando agências de babás. Tenho quase certeza que o garoto da foto é mais uma vítima deles. Kathy provavelmente correu escada acima, pois eu mal havia desligado o telefone quando ela apareceu na porta da copa. Perguntou mais uma vez a Mary Jordan se ela havia obtido aquelas informações por conta própria. – Então vou ligar para o juiz agora mesmo – disse Kathy, olhando para a foto e passando a mão pelos cabelos curtos. – Vamos ver o que consigo. Minutos depois de acompanharmos a gerente da Westwood até o elevador, Kathy Valoy ligou de volta: – Estou enviando o mandado de busca por fax.
capítulo 109
BATEMOS À PORTA DA AGÊNCIA e foi o próprio Paul Renfrew quem nos atendeu. Estava elegante, vestindo um paletó cinza, camisa branca e gravata-borboleta, com os cabelos recém-aparados. Assim que nos reconheceu, abriu um sorriso enorme, erguendo as sobrancelhas sobre os óculos. Parecia feliz com nossa chegada. – Novidades? – foi logo perguntando. – Encontraram Madison? Só então ele avistou os quatro policiais que desciam da van com caixas de papelão vazias. – Temos um mandado de busca, Sr. Renfrew – falei. Conklin sinalizou para os homens e subimos até o escritório do proprietário da agência. O lugar parecia em perfeita ordem. Era possível ver uma xícara de chá e uma torrada ao lado de pastas de arquivo abertas. – Gostaria que o senhor nos contasse sobre a Agência Queensbury – falei. – Por favor, sente-se – disse ele, apontando para os pequenos sofás no canto da sala. Acomodou-se em sua cadeira de rodinhas e se arrastou até ficar à minha frente. Volta e meia olhava para os policiais que, sob a supervisão de Conklin, jogavam as pastas de arquivo nas caixas de papelão. – A agência do Canadá não é nenhum segredo – falou. – Eu teria contado se achasse que era importante. Foi fechada porque faliu. – Ao dizer isso espalmou as mãos como se quisesse mostrar que não tinha nada a esconder. – Às vezes sou um péssimo homem de negócios. – Precisamos conversar com sua mulher – falei. – Claro, claro! Ela também quer conversar com vocês. Está chegando de Zurique hoje à noite. Renfrew se esforçava tanto para parecer sincero que resolvi deixá-lo pensar que me convencia. – O senhor conhece esta criança? O homem segurou a foto do menino de olhos verdes e a examinou. – Não estou reconhecendo. Por quê? Eu deveria? Conklin se aproximou com um policial às suas costas e vários livros de contabilidade sob um dos braços. – Sr. Renfrew – disse o inspetor –, o senhor está proibido de fazer negócios por 72 horas e isto inclui usar o telefone comercial. Este aqui é o oficial Pat Noonan. A missão dele é garantir que a agência permaneça fechada até que o mandado expire. – Ele vai ficar aqui? – E será rendido por um colega daqui a oito horas. O senhor gosta de esportes? Pat adora conversar sobre beisebol, basquete e hóquei. Sem falar das corridas de cavalo.
Noonan sorriu, mas Renfrew ficou paralisado na cadeira. – Ah, Sr. Renfrew – acrescentou Conklin –, nem pense em sair da cidade. Pegaria mal.
capítulo 110
A TENSÃO NA SALA DE TRACCHIO era insuportável. A imprensa vinha atacando a polícia havia mais de uma semana. Dos telejornais da noite aos tabloides de supermercado, não existia um único veículo que nos desse refresco. Uma jovem de 19 anos fora assassinada e a filha de um conhecido empresário estava desaparecida. Uma situação péssima e todos na sala se sentiam culpados. – Boxer, explique tudo ao chefe – instruiu Jacobi. Olhei para ele como se dissesse que eu ainda sabia fazer meu trabalho. Organizei sobre a mesa o material que havia trazido (as cópias dos bilhetes dos sequestradores e as fotos das três crianças: Erica Whitten, Madison Tyler e o garoto de olhos verdes) e então disse: – Ainda não sabemos quem é o menino. Paul Renfrew disse que não o conhece, mas esta foto foi encontrada num dos seus livros. Richard colocou sobre a mesa o livro de contabilidade da agência de Montreal, junto com outros dois, da agência de São Francisco. – Falamos com a polícia canadense – continuei. – Um menino chamado André Devereaux foi levado de um parque próximo à própria casa, dois anos atrás. Ainda não foi encontrado, mas estava com a babá. – E a babá era da Queensbury? – Sim, senhor – disse Conklin. – Examinei estes livros. Os Renfrew têm despesas altíssimas com aluguéis, com o recrutamento dessas moças no exterior, com advogados, com os custos administrativos da agência, etc. Mesmo cobrando caro pelos serviços que prestam, estão perdendo uma baba. – E continuam no ramo – falei. – É muito estranho. O que eles ganham com isso? O tenente Macklin entregou a Tracchio uma foto que tinha acabado de imprimir. – Este é André Devereaux, o canadense sequestrado. Parece o menino da foto no livro dos Renfrew. A babá dele era Britt Osterman, uma sueca “importada” pela Queensbury. Foi encontrada morta num terreno baldio uma semana depois do sequestro do garoto. Bala na cabeça. Os proprietários da Agência Queensbury – prosseguiu Macklin – eram dois americanos que se apresentavam como John e Tina Langer. Sumiram logo após o sequestro. A polícia canadense nos mandou esta foto do casal. Macklin nos entregou outra fotografia impressa, tirada numa festa de fim de ano. Homens de terno, mulheres bem-vestidas, um ambiente sofisticado. Macklin apontou para um casal, ambos na casa dos 40. Ela era morena e usava um vestido azul decotado, recostando-se ao sorridente
marido que a abraçava pela cintura. Não reconheci a mulher, mas logo vi quem era o homem. Tinha os cabelos pretos, penteados para trás, além de um cavanhaque. Não usava óculos. Mas havia poucos minutos estava frente a frente com aquele rosto. Eu tinha certeza: John Langer e Paul Renfrew eram a mesma pessoa.
capítulo 111
PASSAVA DE UMA DA TARDE daquele mesmo dia. Conklin e eu estávamos no Restaurante Clark, em Chinatown, e havíamos pedido o prato da quarta-feira: bife, purê de batatas e salada de palmito. O inspetor mastigava sua carne, mas eu não tinha o menor apetite. Através das vidraças do restaurante víamos a fileira de sobrados de tijolo aparente em que ficava a Agência Westwood. Uma chinesinha grávida veio nos servir mais chá. Quando voltei os olhos para a rua, Paul Renfrew acabava de sair até a calçada. – Veja – falei para Conklin, batendo o garfo no prato dele. Meu celular tocou. Era Pat Noonan. – Sr. Renfrew acabou de sair para almoçar. Disse que volta em uma hora. Duvido que ele vá almoçar, pensei. Ele vai tentar fugir. Enquanto Conklin pagava a conta, liguei para Stanford e Jacobi, vesti minha jaqueta sobre o colete à prova de balas e fiquei observando Renfrew sumir calçada abaixo, passando pela farmácia e indo em direção à esquina da Waverly com a Clay. Meu parceiro e eu entramos em nosso carro a tempo de ver Renfrew abrir seu BMW prateado, olhar desconfiado à sua volta e arrancar na direção sul. Dave Stanford e a agente Heather omson partiram atrás dele assim que Renfrew alcançou a Sacramento Street. Jacobi e Macklin, por sua vez, seguiram por uma rua paralela. Falávamos pelo rádio, informando nossas localizações e a do BMW. Não fazíamos ideia de para onde estávamos indo e talvez por isso meu coração estivesse tão acelerado. Atravessamos a Bay Bridge e fomos na direção leste pela Autoestrada 24 até chegarmos ao Condado de Contra Costa. Conklin e eu estávamos logo atrás de Renfrew quando ele saiu da Altarinda Road e entrou em Orinda, uma cidadezinha tranquila habitada por milionários, escondida entre belíssimas colinas. Pelo rádio do carro ouvi Jacobi informar à polícia da cidade sobre nossa operação. Macklin pediu reforços à polícia estadual e solicitou um helicóptero à polícia de Oakland. Em seguida foi a vez de Stanford, que também não estava de brincadeira: convocou a equipe de operações especiais do FBI. – A Polícia de São Francisco acaba de perder o controle da operação – falei para Conklin, vendo Renfrew reduzir a velocidade e estacionar diante de uma casa de janelas azuis. Meu parceiro passou direto pela casa, procurando não chamar atenção. Fizemos um retorno na esquina e estacionamos à sombra de uma árvore, numa vaga oposta ao BMW prateado de
Renfrew, que deixara o carro atrás de uma van Honda preta. Não podia ser coincidência. Devia ser a van usada no sequestro de Madison Tyler e Paola Ricci.
capítulo 112
PESQUISEI A PLACA DA VAN no computador do carro, pensando na possibilidade de obter uma ordem judicial, confiscar o veículo e, com sorte, encontrar algum vestígio do sangue de Paola Ricci: a prova concreta para ligar os Renfrew ao sequestro de Madison e sua babá. Ao longo das duas horas seguintes, os três carros formaram um cordão de isolamento: um diante da casa e os outros dois nas extremidades do quarteirão. Não era possível ver qualquer movimento no interior da residência. Eu me perguntava o que Paul Renfrew poderia estar fazendo lá dentro: arrumando as malas para fugir? Destruindo pistas e provas? Faltava pouco para as quatro da tarde quando cinco picapes apareceram na esquina à minha frente. Dave Stanford veio falar comigo. Aquela missão já não era mais secreta. Ele disse: – Estamos assumindo o comando, Lindsay. Mas, como Renfrew a conhece, tente trazê-lo para fora. Conklin girou a chave e foi para a frente da casa, parando diante da entrada da garagem. Peguei o megafone e, usando a porta do carro como escudo, falei: – Paul Renfrew! Aqui é a sargento Boxer. O senhor é suspeito de homicídio e temos um mandado para detê-lo. Por favor, saia lentamente com as mãos para o alto. Minha voz ecoou pela vizinhança tranquila. Notei que os pássaros na árvore do gramado alçaram voo ao ouvir o barulho estridente do aparelho. – Movimento no segundo andar – avisou Conklin. Os músculos do meu corpo se retesaram. Os olhos varriam a fachada da casa sem perceber nada estranho. Mesmo assim eu estava arrepiada, como se uma arma estivesse apontada para mim. Novamente ergui o megafone e berrei: – Sr. Renfrew, esta é sua última chance. Estamos armados. Não nos obrigue a usar a força. Saia imediatamente. Foi então que a porta da casa se abriu e Renfrew apareceu, gritando: – Estou saindo! Não atirem! Por favor, não atirem! Olhei para a equipe do FBI que estava mais à esquerda. Contei 10 fuzis M16 apontados para a casa. Tinha quase certeza de que um atirador de elite estava posicionado em algum telhado do outro lado da rua, com a cabeça de Renfrew na mira do seu rifle. – Dê um passo à frente para que possamos vê-lo melhor – ordenei à silhueta parada à porta. – Muito bem, Sr. Renfrew. Agora se vire de costas e venha caminhando na minha direção. Um gramado de 10 metros de comprimento nos separava.
– Não posso – disse Renfrew numa voz baixa, quase suplicante. – Se eu fizer isso, ela atira em mim.
capítulo 113
RENFREW ESTAVA DESESPERADO e tinha motivos para isso. Se desse um único passo em falso, acabaria morto ali mesmo. Mas não éramos nós quem deixávamos o homem horrorizado. – Quem vai atirar em você? – perguntei. – Minha mulher, Laura. Ela está no segundo andar com uma pistola. Não quis descer comigo. Se eu der um passo à frente, ela atira em mim. Se quiséssemos saber o paradeiro de Madison Tyler, teríamos de manter Paul Renfrew vivo. – Faça exatamente o que eu mandar! – berrei. – Tire seu paletó e jogue para longe... Isso, ótimo! Agora puxe o forro dos bolsos da calça para fora. O microfone do meu rádio estava ligado, de modo que todos em nosso canal podiam ouvir. – Desafivele o cinto, Sr. Renfrew. E baixe as calças. O homem olhou torto para mim, mas obedeceu, deixando que a camisa o cobrisse até a altura das coxas. – Agora gire lentamente. Trezentos e sessenta graus. Levante a camisa para que eu possa ver sua cintura – falei. – Muito bem, pode vestir as calças novamente. Ele se recompôs em exatos três segundos. – Agora quero que levante a barra das calças até os joelhos. – Belas pernas para um homem – cochichou Conklin do outro lado do carro. – Agora vamos tirar o cara daqui. Assenti com a cabeça. Se a mulher de Renfrew já tivesse descido, poderia atirar contra ele a qualquer momento. Ordenei então que ele saísse e apoiasse as mãos na fachada da casa. – Se fizer o que estou mandando, vai sair da mira da sua mulher – falei. – Com as mãos na parede, vá andando para sua esquerda e depois deite no chão com as mãos cruzadas sobre a nuca. Assim que ele se deitou, uma picape avançou pelo gramado. Dois agentes do FBI saltaram do carro e algemaram Renfrew. Os federais já o acomodavam no banco traseiro quando ouvi um estilhaçar de vidros no segundo andar da casa. Droga! Uma mulher surgiu à janela. Apertava uma arma contra a cabeça de uma menina que parecia em estado de choque. A menina era Madison Tyler! A mulher que a mantinha sob a mira da pistola se chamava Tina Langer, conhecida em São Francisco como Laura Renfrew. Exibia no rosto uma expressão de fúria, sem um único traço de medo.
Berrou da janela: – O fim do jogo é sempre a parte mais interessante, não é, sargento? Quero um salvo-conduto. Um para mim e outro para a menina. Ouvi o barulho de helicóptero. Quero que o aparelho pouse neste gramado agora! Se alguém fizer alguma besteira, a menina... Vi o rombo se abrir na testa da mulher antes de ouvir o estalido seco do rifle, disparado pelo atirador de um telhado vizinho. Madison deu um berro e Laura Renfrew desabou no chão.
capítulo 114
SERÁ QUE MADISON TYLER ESTÁ BEM? Só pensava nisso quando Conklin e eu invadimos o quarto no segundo andar da casa. Mas a menina não estava lá. – Madison? – gritei. Uma cama de solteiro estava encostada à parede junto à porta. Sobre ela se via uma mala aberta com roupas infantis. – Madison, cadê você? – berrou Conklin, indo a meu lado até o closet. – Somos da polícia. – Madison, está tudo bem, querida – falei, girando a maçaneta. – Ninguém vai machucá-la. Abrindo a porta, vi uma pilha de roupas no chão, e alguma coisa se movia debaixo dela. Agachei-me com medo do que podia encontrar. – Madison, meu nome é Lindsay, sou da polícia. Vou levá-la para casa. Recolhi as roupas até encontrar a menina. Ela chorava baixinho, abraçando a si mesma, balançando o corpo de olhos fechados. Louvado seja Deus. Não acredito que encontramos Madison Tyler! – Está tudo bem, meu amor – falei emocionada. – Logo, logo você vai estar com seus pais. Ela então abriu os olhos. Estendi os braços e Madison se jogou neles. Abracei-a com todo o amor do mundo, sentindo seus cabelos sedosos contra o rosto. Peguei o celular e disquei o número que já tinha gravado na agenda. Minhas mãos tremiam. – Sra. Tyler, aqui é Lindsay Boxer. Estou com o inspetor Conklin e... encontramos sua filha! – Encostando o telefone ao ouvido de Madison, sussurrei: – Diga alguma coisa para sua mãe...
capítulo 115
CONKLIN E EU CHEGAMOS ao prédio do FBI no início da noite. Ao lado de outros 15 agentes, acompanhávamos por um monitor o interrogatório conduzido por Dave Stanford e Heather Thomson. A dupla relembrava os atos cometidos por Paul Renfrew, também conhecido como John Langer, David Cornwall e Josef Waller. Este último era seu nome verdadeiro. – Ele está adorando essa atenção toda – falei para Conklin. – Sorte que não sou eu que estou lá dentro com ele – disse Conklin. – Eu não ia aguentar uma coisa dessas. “Uma coisa dessas” era o jeito bonachão de Waller. Ele conversava com os dois agentes como se estivesse diante de velhos amigos. Macklin, Conklin e eu ficamos perplexos ao vê-lo enunciar, salivando de prazer, o nome de todas as suas vítimas: André Devereaux, Erica Whitten, Madison Tyler e uma menina chamada Dorothea Alvarez, da Cidade do México. Uma vítima que não conhecemos, que talvez ainda esteja viva. Dando um gole no café, Waller contou a Stanford e omson onde as outras crianças estavam. Elas haviam se tornado brinquedos sexuais de milionários ao redor do mundo. – Foi ideia da minha mulher trazer as babás da Europa e empregá-las em casas de gente rica – disse. – Depois era só encontrar compradores para as crianças. Minha função era cuidar das babás. Elas ficavam felizes quando a criança sob seus cuidados era bonita, inteligente ou talentosa. Sempre me contavam isso com orgulho. – Então as babás indicavam as crianças, mas não suspeitavam do que vocês pretendiam fazer – concluiu Thomson. Waller apenas sorriu. – Como você achava os compradores? – quis saber Stanford. – Eram eles quem me procuravam – respondeu Waller. – Homens ricos, de boas famílias, então eu achava que as crianças estariam em boas mãos. Minha vontade era vomitar, mas agarrei os braços da cadeira e mantive os olhos grudados no monitor. – Você manteve Madison em cativeiro por quase duas semanas – observou omson. – Uma decisão arriscada! – Estávamos aguardando uma transferência bancária – disse Waller, aborrecido. – Havia uma oferta de dois milhões por Madison, mas as negociações emperraram. Recebemos uma segunda proposta não tão boa, mas o comprador original voltou a demonstrar interesse. Essa indefinição
estragou tudo. – Quanto ao sequestro de Madison e Paola... – falou Stanford. – O parque estava movimentado. Vocês agiram à luz do dia. Uma manobra arriscada, devo admitir. Como conseguiram fazer isso? – Olhe, por pouco não nos demos mal. – Waller suspirou ao lembrar o fato. Dava a impressão de que escolhia as palavras. – Fomos com a van até o parque – disse o homem. – Pedi a Paola e Madison que entrassem no carro. Era assim que a coisa funcionava: as crianças confiavam nas babás e as babás confiavam em nós. – Brilhante. Waller meneou a cabeça. Diante do incentivo, fez questão de prosseguir: – Falamos a Paola e Madison que havia uma emergência na casa dos Tyler, que Elizabeth havia sofrido um tombo. Apaguei Madison com éter no banco de trás, a mesma tática dos outros sequestros. Mas Paola tentou agarrar o volante, então precisei agir rápido. O que o senhor teria feito? – perguntou a Stanford. – Teria estrangulado o senhor na maternidade – respondeu o agente. – Eu não hesitaria em fazer isso.
PARTE 5
FRED-A-LITO-LINDO
capítulo 116
O TRIBUNAL ESTAVA APINHADO de repórteres, servidores da justiça, parentes das vítimas e dezenas de pessoas que haviam presenciado o surto de Alfred Brinkley na balsa Del Norte. O burburinho ficou mais intenso quando o réu entrou escoltado por dois guardas. Lá está ele! O atirador da balsa! Mickey Sherman se levantou quando as algemas foram retiradas dos pulsos de seu cliente. Puxou a cadeira para Brinkley, que perguntou: – Você vai me deixar falar? – Ainda estou pensando no assunto – respondeu o advogado. – Alfred, você quer mesmo fazer isso? – Quero. A propósito, como estou hoje? – Está ótimo. Mickey sentou-se novamente e olhou seu cliente pálido e esquelético de cima a baixo. Mais parecia um espantalho vestido com aquele terno. Sem falar nos cabelos mal cortados, nos talhos que havia feito no rosto ao se barbear. Geralmente um advogado não convoca seu cliente a depor, a menos que seja seu último recurso. Ainda assim, é fundamental ter carisma ou idoneidade para influenciar os jurados. Alfred Brinkley não cumpria nenhum dos requisitos. Por outro lado, o que a dupla teria a perder? A acusação contava com testemunhas oculares, com uma gravação e uma confissão. Portanto, Sherman avaliava as possibilidades: evitar o risco ou dar ao louco “Fred-a-lito-lindo” a oportunidade de convencer os jurados de que ele era obrigado a obedecer às vozes em sua cabeça. O réu tinha o direito de testemunhar em sua própria defesa, mas Sherman acreditava que conseguiria dissuadi-lo. Ainda não tinha chegado a uma conclusão quando os jurados se acomodaram no banco e o juiz tomou seu lugar na tribuna. O oficial de justiça deu início à sessão e um silêncio pesado caiu sobre a sala. Olhando por sobre a armação dos óculos, Norman Moore perguntou: – Está pronto, Sr. Sherman? – Estou, meritíssimo. – O advogado ficou de pé, abotoou o paletó e virou para seu cliente. – Alfred...
capítulo 117
– ENTÃO DEPOIS DO ACIDENTE com sua irmã você se internou no Hospital Estadual de Napa? – perguntou Sherman, percebendo que Alfred estava à vontade no banco das testemunhas. – Sim. Pedi que me internassem. Estava ficando ruim da cabeça. – Sei. Você foi medicado no hospital? – Claro que fui. É dureza ter 16 anos e ver sua irmã morrer na sua frente. – Você ficou deprimido porque não pôde salvar sua irmã quando ela foi atingida por uma das velas e caiu no mar? – Meritíssimo – disse Yuki, levantando-se –, não me oponho que o Sr. Sherman também dê seu testemunho, mas acho que ele deveria ao menos fazer o juramento. – Vou lhe fazer outra pergunta – disse Sherman, sorrindo, ignorando a adversária. – Alfred, você ouvia vozes na cabeça antes da sua irmã morrer? – Não. Comecei a ouvir ele depois. – “Ele”? Você pode ser mais preciso? O réu cruzou as mãos atrás da nuca e deu um suspiro profundo. – Olhe, não é só uma voz – explicou. – Tem a voz de uma mulher chorosa, mas essa não importa. Porque tem outra, a de um homem muito brabo. Brabo é pouco. Ele é uma fera! E ele me controla, entende? – Foi essa voz que mandou você atirar naquelas pessoas na balsa? Brinkley fez que sim com a cabeça, visivelmente transtornado. Depois disse: – Ele ficava berrando: “Mata! Mata! Mata!” E nada mais tinha importância. Eu só conseguia ouvir ele, só podia fazer o que ele mandava fazer. Tudo era ele! – Alfred, seria correto dizer que, na ausência dessas vozes que passaram a controlá-lo desde a morte da sua irmã, você nunca, jamais, teria atirado naquelas pessoas? Sherman então percebeu que havia perdido a atenção do seu cliente. Brinkley olhava fixamente para um ponto da galeria, dizendo: – É minha mãe! Aquela ali é minha mãe! Todos olharam para a mulher bonita que pedia licença enquanto se acomodava num dos bancos. Uma morena de 50 e poucos anos. Ela deu um sorriso frio para o filho e se sentou. – Alfred – disse Sherman. – Mãe! Eu vou contar! – berrou ele com a voz emocionada. – Está ouvindo, mãe? Está preparada para a verdade? Sr. Sherman, o senhor não entendeu! Fica repetindo que foi um “acidente”. Mas a morte de Lily não foi acidente!
O advogado se virou para o juiz e falou calmamente: – Meritíssimo, acho que podemos fazer um breve interv... – Não preciso de intervalo para dizer a verdade!– interrompeu Brinkley, exaltado. – Não preciso mais da sua ajuda, Sr. Sherman!
capítulo 118
– MERITÍSSIMO – DISSE SHERMAN de maneira tranquila, agindo como se seu cliente não tivesse acabado de fazer uma enorme besteira –, sugiro que o testemunho do Sr. Brinkley seja eliminado dos autos. – Com base em quê, Sr. Sherman? – Eu estava fazendo sexo com ela, mãe! – berrou Brinkley. – A gente tinha feito isso antes. Ela estava tirando a blusa quando a vela girou e... – Meu Deus! – gritou uma mulher na galeria. – Meritíssimo – disse Sherman –, meu cliente não está... Yuki interrompeu o advogado de defesa: – Meritíssimo, foi o próprio Sr. Sherman quem convocou o réu como testemunha! Brinkley desviou os olhos da mãe e encarou os jurados, assustando-os com sua expressão insana. – Jurei falar a verdade – disse ele em meio ao caos instalado na sala, impassível às marteladas do juiz. – E a verdade é que não levantei um dedo sequer para salvar minha irmã. – Brinkley cuspia enquanto berrava. – E matei aquelas pessoas na balsa porque ele mandou. Sou um homem perigoso. Sherman voltou à mesa, sentou-se e calmamente foi guardando seus papéis. O réu não parava de gritar: – Naquele dia na balsa, mirei meu revólver contra as pessoas e puxei o gatilho. Nada impede que eu volte a fazer a mesma coisa! Os jurados olhavam desesperados enquanto ele secava as lágrimas do rosto. – Agora basta, Sr. Brinkley! – rugiu o juiz. – Vocês juraram fazer justiça – prosseguiu o réu, agitado, dando tapinhas na própria perna. – Tenho de pagar por tudo o que fiz! E se não me derem a sentença de morte, prometo que volto a matar! Sherman travou os fechos da pasta com raiva. O dia estava perdido. – Sr. Sherman – gritou o juiz, vermelho como um salmão –, mais alguma pergunta para sua testemunha? – Não neste momento, Meritíssimo. – Srta. Castellano, quer contrainterpelar? Yuki não conseguia pensar em nada tão forte quanto as palavras do próprio réu: “Se não me derem a sentença de morte, prometo que volto a matar.”
– Sem mais perguntas, meritíssimo – disse ela. Assim que o juiz dispensou Alfred Brinkley, Yuki começou a se perguntar o que tinha acabado de acontecer. Será que Brinkley cavou a própria cova? Ou conseguiu convencer os jurados de que é ainda mais louco do que Sherman queria provar?
capítulo 119
ALFRED BRINKLEY SENTOU-SE em sua cama na minúscula cela que ocupava no 10º andar do prédio da Polícia de São Francisco. O barulho ali era insuportável: o falatório dos outros detentos, o rangido do carrinho de refeições e o estrondo das portas metálicas que não paravam de bater. Com a bandeja sobre o colo, começou a comer seu jantar. Um peito de frango seco, um purê de batatas ralo e um pão velho e duro: o mesmo cardápio da véspera. Devorou a comida sem nenhum prazer. Limpou a boca com o guardanapo, amassou o papel até formar uma bola e deixou-a cair sobre o centro da bandeja. Colocou os talheres de plástico junto à borda, levantou-se do colchão e empurrou a bandeja por baixo da porta. Voltou à cama e se recostou na parede, os pés tocando levemente o chão. Via à sua esquerda a bancada que fazia as vezes de cômoda e pia e, à sua frente, a parede de concreto rabiscada com números de telefone, nomes de gangues e símbolos que ele não conhecia. Começou a contar os blocos da parede, acompanhando o desenho dos rejuntes. Um guarda veio recolher a bandeja. Reparou o nome no crachá: Ozzie Quinn. – Hora dos remédios, Alfred – disse o guarda. Brinkley se aproximou das grades, recebeu o copinho de plástico com os comprimidos e os jogou na boca. – Muito bem – disse Ozzie, passando outro copinho, este com água. Esperou que Brinkley engolisse os comprimidos e disse: – Apagaremos as luzes em 10 minutos. – Não deixe o bicho-papão me pegar – falou Alfred, voltando para a cama. Novamente se recostou na parede, cantando baixinho: “Ai, ai, ai, ai, Mamãe-zinha-linda...” De repente, segurou a borda da cama e deu um impulso para a frente, batendo com a cabeça contra a parede. Sentou-se novamente e repetiu o gesto. Duas, três, quatro vezes...
capítulo 120
QUANDO CHEGOU À SALA DO TRIBUNAL, Yuki levou um susto ao ver seu chefe, Leonard Parisi, sentado à mesa da acusação. Telefonara para ele assim que ficou sabendo da tentativa de suicídio de Brinkley, mas não esperava vê-lo ali. – Leonard, que bom que você veio – disse ela, ainda que temesse que seu chefe assumisse o caso na reta final. – E os jurados, concordaram em prosseguir? – perguntou Parisi. – Ao que parece, sim. Ninguém quer a anulação. Mickey nem sequer pediu adiamento. – Ótimo. Admiro a petulância do sujeito – resmungou Parisi. Do outro lado da sala, Sherman conversava com seu cliente. Com a cabeça enfaixada, Brinkley usava uma camisola hospitalar sobre um pijama listrado. Olhava para baixo, o rosto coberto de hematomas, e nem sequer ergueu a cabeça quando o oficial de justiça mandou que todos ficassem de pé. O juiz assumiu seu lugar na tribuna, serviu-se de água e perguntou a Yuki se ela estava pronta para as considerações finais. Ela confirmou com um gesto de cabeça e andou até o púlpito, sentindo o coração disparar. Limpou a garganta, cumprimentou os jurados e começou: – Não estamos aqui para decidir se o Sr. Brinkley tem ou não problemas psicológicos. Todos nós temos problemas e os enfrentamos com maior ou menor grau de sucesso. O réu disse que ouvia vozes em sua cabeça e talvez ouvisse mesmo. Não temos como saber e também não importa. Uma doença mental, senhoras e senhores, não significa uma desculpa para matar. Se Alfred Brinkley ouvia vozes, isso não muda o fato de que ele tinha plena consciência do que estava fazendo ao matar quatro pessoas inocentes. E como podemos ter certeza de que ele tinha essa consciência? – perguntou ela aos jurados. – Ora, seu comportamento é prova suficiente. Suas ações. Yuki fez uma pausa e, correndo os olhos pela sala, viu a expressão tensa de Leonard Parisi, o olhar vidrado de Alfred Brinkley, os jurados que permaneciam atentos, esperando que ela continuasse: – Vejamos então que ações foram essas. Em primeiro lugar, o réu embarcou na Del Norte com um revólver carregado. Depois esperou pela atracação da balsa de modo que não ficasse acuado no meio da baía, sem ter por onde escapar. Estas ações são provas mais do que evidentes de premeditação. Sr. Brinkley agiu de caso pensado. Enquanto a balsa atracava, ele sacou o revólver, atirou contra seis pessoas e fugiu – disse Yuki, encarando os jurados. – Fugiu porque tinha consciência da sua culpa, porque sabia que havia feito algo de errado. Ficou dois dias
foragido, entregou-se à polícia e confessou. Confessou o quê? Os crimes que sabia ter cometido. Outra pausa, agora mais breve. – Talvez jamais saibamos o que se passava na cabeça do réu naquele dia, mas sabemos o que ele fez. Sabemos também o que ele próprio nos contou na tarde de ontem. Alfred Brinkley apontou sua arma contra a primeira vítima, atirou e... – Yuki transformou a mão num revólver e girou o braço como se jurados e público estivessem sob sua mira – disparou mais cinco vezes. Em seu depoimento, o réu fez questão de salientar que é um homem perigoso. Ora, a maior prova da sanidade do Sr. Brinkley é o fato de ele concordar com a Promotoria: é culpado e merece a pena máxima prevista em lei. Portanto, peço aos senhores que aceitem o pedido dele. Assim jamais correremos o risco de encontrá-lo por aí com uma arma na mão. Yuki ainda sentia a adrenalina correndo nas veias quando se sentou ao lado de Leonard Parisi, que sussurrou em seu ouvido: – Parabéns, Yuki. Você foi maravilhosa!
capítulo 121
MICKEY SHERMAN SE LEVANTOU num pulo. Encarando os jurados, contou uma história simples e trágica, como se estivesse diante da mãe ou da namorada. – É preciso que fique claro, pessoal – disse. – Alfred Brinkley quis atirar naquelas pessoas e atirou. Ponto final! Em nenhum momento negamos isso nem vamos negar agora. Mas que motivos teria ele para fazer uma coisa dessas? Rixa com alguma das vítimas? Dinheiro? Drogas? Nenhuma dessas opções. A polícia não encontrou nenhum motivo racional simplesmente porque não havia motivo. Mas quando um crime é cometido sem motivo, a pergunta por quê? ainda fica no ar. O advogado encerrou esta última frase com uma leve batida de palmas. Então voltou a falar: – Ocorre que Alfred Brinkley sofre de “transtorno esquizoafetivo” , uma doença, assim como a leucemia e a esclerose múltipla. Meu cliente não fez nada para merecê-la. Nem sequer sabia que sofria disso. Quando atirou naquelas pessoas, Alfred Brinkley não tinha consciência de que estava fazendo algo errado, nem mesmo que elas eram reais. Ele próprio nos contou isto. Sabia apenas que uma voz gritava em sua cabeça, ordenando que ele matasse. E o único modo de calar essa voz era obedecendo-lhe. Mas os senhores não precisam apenas confiar em nossa palavra para saber que do ponto de vista jurídico o réu é inimputável. Meu cliente possui um histórico de doenças mentais, iniciado 15 anos atrás quando ele foi internado num hospital psiquiátrico. Várias testemunhas disseram tê-lo visto falando com aparelhos de TV, cantando sozinho, batendo a própria cabeça na parede. Sherman agora andava de um lado para outro, dizendo: – Também ouvimos o depoimento de um respeitado psiquiatra, Dr. Sandy Friedman, que examinou o Sr. Brinkley em três ocasiões e diagnosticou o transtorno esquizoafetivo. Segundo nos disse o médico, no momento em que atirou naquelas pessoas, meu cliente se achava num estado psicótico de delírio. Sofria de uma doença mental que o impedia de apresentar um comportamento adequado às leis e às normas da sociedade. Ora, esta é a própria definição de inimputabilidade. Não se trata de uma doença inventada por advogados. Sherman deu dois passos até a mesa da defesa, pegou um livro pesado e disse: – Este aqui é o Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, uma espécie de bíblia dos psiquiatras. Ficará à disposição dos senhores, de modo que possam consultar o verbete sobre o transtorno esquizoafetivo e confirmar que se trata de uma psicose, uma grave doença mental que governa as ações das pessoas acometidas por ela. Pois bem! Meu cliente não é um cidadão exemplar nem estamos aqui para condecorá-lo. Mas Alfred Brinkley também não é um
criminoso e nada em seu passado aponta nesse sentido. Sua conduta ontem foi mais uma prova de sua doença. Quem, de sã consciência, pediria a um júri para ser condenado à pena de morte? O advogado voltou à mesa da defesa, depôs o livro e deu um gole no copo d’água antes de voltar ao púlpito: – As provas de insanidade mental neste caso são óbvias. Meu cliente não matou por amor ou ódio, dinheiro ou diversão. Não é uma pessoa má. É uma pessoa doente. Portanto, o que peço aos senhores é apenas isto: que a justiça seja feita e que Alfred Brinkley seja considerado inocente por motivo de insanidade mental. O resto ficará a cargo do nosso sistema de saúde pública.
capítulo 122
– PENA QUE VOCÊS NÃO ESTAVAM LÁ para ouvir a argumentação final de Yuki – disse Cindy, abraçando a jovem assistente de promotoria, sorrindo do outro lado da mesa em que também estávamos eu e Claire. – Foi um arraso! – Você está sendo parcial... Não esqueça a jornalista que existe dentro de você! – devolveu Yuki, rindo enquanto prendia os cabelos atrás das orelhas. – Espere aí! – respondeu Cindy às gargalhadas. – Quem está dizendo isso é a pessoa física, não a jurídica. Estávamos no MacBain, um bar em frente à Central, todas com o celular sobre a mesa. Clara MacBain, garçonete e filha do proprietário, trouxe quatro copos e duas garrafas grandes de água mineral. – Água? Tem alguém doente aqui? – perguntou ela, brincando. – Isto é um bar, caso vocês não tenham percebido. – O problema é o seguinte, Clara – respondi, apontando para cada uma de nós. – Trabalhando. Trabalhando. Trabalhando. Trabalhando e grávida. A garçonete riu, deu os parabéns a Claire, anotou nossos pedidos e foi para a cozinha. – Quer dizer então que ele ouve vozes? – perguntei a Yuki. – Talvez. Mas muitas pessoas ouvem vozes. Dez mil só em São Francisco. Provavelmente umas três estão aqui neste bar. Mas não estou vendo ninguém sacando uma arma. Até acho que Alfred Brinkley ouça vozes, mas naquele dia... Ele sabia muito bem o que estava fazendo. – Desgraçado – disse Claire. – Estou falando como pessoa física, jurídica e sendo completamente parcial. De repente as imagens da balsa vieram à minha cabeça: o deque sujo de sangue, os passageiros histéricos, o pavor que senti ao ver minha amiga à beira da morte. Lembrei-me de ter abraçado William e agradecido a Deus por tê-lo poupado. Perguntei a Yuki: – Você acha que os jurados vão condená-lo? – Sei lá. É o que deviam fazer. Se alguém merece a pena capital, este alguém é Alfred Brinkley – disse, sacudindo o saleiro sobre as batatas fritas, os cabelos caindo sobre o rosto, impedindo que eu visse seus olhos.
capítulo 123
ERA O TERCEIRO DIA DE DELIBERAÇÕES por parte do júri. Passava das duas da tarde quando Yuki recebeu o telefonema. É agora. Ficou paralisada na cadeira sem saber o que fazer. Mas logo começou a agir: mandou um torpedo para Leonard e ligou para as amigas. Todas estávamos a 10 minutos do tribunal. Yuki deixou sua mesa e atravessou o corredor até o cubículo de David. – Eles já voltaram! Seu colega deixou o sanduíche de atum pela metade e desceu com Yuki até o saguão do prédio. Cruzaram o conjunto de portas, passaram pelo esquema de segurança do tribunal e, depois de atravessarem o vestíbulo envidraçado, tomaram seus lugares à mesa da Promotoria. A sala ia enchendo à medida que a notícia se espalhava. As equipes de TV montavam suas câmeras. A área reservada à imprensa já estava lotada de repórteres dos jornais, dos tabloides e das agências de notícia. Cindy se encontrava junto do corredor. Yuki avistou Claire e Lindsay sentadas no centro da sala, mas não localizou a mãe do réu, Elena Brinkley. Mickey Sherman chegou vestindo um elegante terno azul-marinho. Colocou sua pasta sobre a mesa, acenou com a cabeça para Yuki e fez uma ligação. O celular da assistente de promotoria tocou. – Leonard – disse ela, reconhecendo o número na tela do aparelho. – A sentença sai daqui a pouco. – Estou no cardiologista – retrucou o promotor. – Mantenha-me informado. A porta à esquerda do banco do juiz se abriu e o oficial de justiça entrou na sala com Alfred Brinkley.
capítulo 124
AS ATADURAS DE BRINKLEY HAVIAM sido retiradas, deixando à mostra os pontos que começavam no meio da testa e terminavam no topo da cabeça. O roxo em torno dos olhos era agora uma mancha amarelada. Assim que foi liberado das algemas, sentou-se ao lado de Sherman. Pela porta à direita do banco do júri entraram os 12 jurados e os dois suplentes, todos bem vestidos e bem penteados, com uma das juradas ostentando um colar dourado. Evitavam olhar para Yuki ou para Brinkley. Estavam nitidamente tensos, como se o veredicto tivesse sido alcançado após uma discussão acirrada. Dali a pouco o juiz Moore entrou na sala. Limpou os óculos enquanto o oficial anunciava o início da sessão e então disse: – Sr. presidente, suponho que o júri tenha chegado a uma conclusão. – Chegamos, meritíssimo. – Então, por gentileza, entregue o veredicto ao oficial de justiça. O presidente do júri era um marceneiro de cabelos claros que iam até a altura dos ombros. Aparentemente nervoso, passou o formulário dobrado ao oficial, que o entregou ao juiz. Moore desdobrou o papel, examinou seu conteúdo e pediu ao público que ficasse em silêncio quando o veredicto fosse lido. Yuki cruzou as mãos sobre a mesa. Podia ouvir David Hale respirando a seu lado. O juiz começou a ler o documento: – Com relação à acusação de homicídio doloso de Andrea Canello, o júri concluiu que, por motivo de insanidade mental, o réu Alfred Brinkley é “inocente”. Yuki sentiu um calafrio percorrer o corpo. Recostou-se na cadeira, mal prestando atenção ao que dizia Moore enquanto lia o nome dos jurados e o veredicto de cada um deles. Levantou-se apenas quando Claire e eu viemos a seu encontro. Juntas, pudemos ver o olhar que Brinkley lançava para ela enquanto era novamente algemado. Antes de ser conduzido para fora da sala, ele se virou para Yuki e disse: – A senhorita bem que tentou. Mas não conseguiu, não é? E agora? Agora... alguém tem de pagar. Um dos guardas calou-o com uma cotovelada e Alfred Brinkley saiu escoltado pelo corredor. Louco ou não, o homem ficaria longe das ruas por um tempo. Yuki tinha certeza disso. Mas o medo que ela sentia não ia desaparecer tão cedo.
capítulo 125
UM MÊS DEPOIS, CONKLIN E EU estávamos de volta ao Alta Plaza Park, onde tudo havia começado. Henry Tyler veio ao nosso encontro, com o vento castigando seu casaco. Apertou a mão do inspetor e me cumprimentou em seguida. – Graças a vocês nossa vida voltou a ter sentido. Nem sei como agradecê-los – disse, chamando a mulher e a filha, que brincavam num balanço próximo. Radiante ao nos ver, Madison saltou e veio correndo em nossa direção. Tyler ergueu a menina no colo e ela se inclinou para nos abraçar. – Vocês são meus novos amigos – falou com uma voz meiga. Eu ainda sorria quando ele colocou a filha no chão e disse, com um enorme sorriso nos lábios: – Somos muito gratos. Podem contar com nossa eterna amizade. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu nunca sentira tanto orgulho de ser policial. Enquanto voltávamos para o carro, Richard e eu comentamos sobre vida dura que tínhamos: a rotina de investigações, a proximidade com criminosos, as pistas que não levavam a lugar algum. – Mas quando tudo acaba bem – falei –, é uma beleza... Richard parou de repente e colocou a mão em meu braço. – Vamos ficar aqui um minuto. Sentei-me num dos bancos do parque, aquecido pelo sol, e Richard se acomodou a meu lado. Vi que ele precisava desabafar. – Lindsay, o que eu sinto por você não é só atração física – disse ele. – É muito mais do que isso. Pode acreditar. Pela primeira vez na vida eu tive dificuldade em olhar para aquele rosto tão bonito. Eu ainda sentia vergonha do nosso inusitado encontro naquele quarto de hotel em Los Angeles. – Você nos dá uma chance? – perguntou. – A gente pode sair para jantar uma noite dessas. Prometo que vou me comportar. Lindsay, eu só queria... Ok, vamos deixar para lá. – Richard se calou ao perceber a resposta em meu rosto. Balançou a cabeça e disse: – Assunto encerrado. Pousando minha mão sobre a dele, falei: – Desculpe. – Não precisa. Esqueça, Lindsay. Esqueça o que eu disse, está bem? – Richard deu um rápido sorriso. – Depois eu me viro na terapia. – Você faz terapia? – E isso adianta? Claro que não! – falou, rindo. – Olha, você sabe o que eu sinto por você e
isso é quase suficiente. A viagem de volta à Central foi embaraçosa. A conversa era entremeada com longos períodos de silêncio, até que recebemos uma chamada, dizendo-nos que um corpo havia sido encontrado no Tenderloin District. Trabalhamos no caso até tarde da noite e ao longo do dia seguinte. No fim das contas, aquela ocorrência teve um efeito terapêutico. Fiquei com a impressão de que trabalhávamos juntos por muitos anos. Despedi-me de Conklin um pouco depois das nove. Eu tinha acabado de sair do prédio da Central quando meu celular tocou. – O que será agora? – resmunguei. Ouvi apenas o barulho de uma turbina, que logo foi substituído por uma voz grave e potente, iluminando meu triste início de noite. – Sei que não devo dar susto num policial armado. Portanto achei melhor avisar com antecedência. Vou estar em São Francisco este fim de semana. Tenho novidades. E quero muito vê-la.
capítulo 126
A CAMPAINHA TOCOU. Atendi o interfone e falei: – Estou descendo. Corri escadaria abaixo. Karen Triebel, a cuidadora de Martha, esperava por mim à porta do sobrado. Beijei-a rapidamente e me agachei para abraçar minha querida border collie. – Ela morreu de saudades, Lindsay. – É mesmo? – perguntei, caindo no chão com Martha sobre mim. Fiquei um tempo na calçada, recebendo os beijos molhados da minha fiel amiga. – Já vou indo – disse Karen, caminhando de volta para seu carro. – Vi que estou sobrando. – Espere aí. Suba um pouquinho. Tenho de pagá-la. – Deixe para a próxima – disse ela, batendo a porta e girando a chave na ignição. – Valeu! – berrei ao vê-la passar à minha frente. Voltando os olhos para Martha, disse: – Você sabe que eu te amo muito, não sabe? A resposta veio com uma lambida na cara. Subi até o apartamento, vesti um casaco leve, um boné e os tênis de corrida. Voltei com Martha e corremos até o parque. Sentei-me num dos bancos e soltei minha border collie. Imediatamente ela começou a correr em círculos, pastoreando os outros cachorros, andando atrás das pessoas. Depois de uns minutos ela voltou até o banco, sentou-se à minha frente e pousou a cabeça nas minhas pernas, encarando-me com seus enormes olhos pretos. – E aí, Boo, gostou de voltar para casa? Cansada das férias? Voltamos para o asfalto e seguimos correndo, agora sem pressa. Assim que cheguei em casa, preparei uma boa tigela de ração para Martha e fui para o chuveiro. Já secava os cabelos quando percebi que ela dormia profundamente na minha cama, exausta, as pálpebras, o focinho e as patas tremendo por causa de algum sonho bom que estava tendo. Nem se deu o trabalho de espiar quando voltei ao quarto e me arrumei para o encontro com Joe.
capítulo 127
O RESTAURANTE BIG 4 FICA no alto de Nob Hill, em frente à Grace Cathedral. O nome é uma homenagem aos quatro pioneiros do sistema ferroviário americano. Um lugar sofisticado com paredes forradas de madeira, lustres de cristal e flores por toda parte. Segundo as revistas especializadas, um dos melhores lugares da cidade para comer. As entradas haviam sido servidas: foie gras com caramelo de maçã para Joe, peras cozidas na manteiga com presunto de parma para mim. No entanto, mesmo diante de um cenário tão suntuoso, não pude deixar de notar certo acanhamento no olhar dele. – Tive um monte de ideias cafonas – disse Joe. – Mas, por favor, não pergunte quais, ok? – Claro que não – respondi, sorrindo e levando à boca uma última garfada de pera. – É que... depois de pensar muito... Juro, loura, pensei para caramba. Tomei uma decisão e quero lhe contar o que é. Baixei o garfo, deixei que o garçom recolhesse meu prato e então disse: – Vai, pode falar. – Está bem. Você sabe que fui criado com mais seis irmãos, não sabe? E que quase não víamos papai... – Ele era caixeiro-viajante, não era? – Era. Vendia tecidos e aviamentos. Vivia para cima e para baixo, só voltava para casa no domingo. Às vezes nem isso. Mas era mamãe quem sofria com essa história. Tinha verdadeira adoração pelo marido. Papai ligava para a gente toda noite, antes que fôssemos dormir. Mas um certo dia ele não telefonou. Mamãe ficou apavorada, achando que ele tivesse sofrido um acidente. Então ligou para a polícia rodoviária. Acharam papai no dia seguinte, dormindo no carro numa oficina no estado do Tennessee. – O carro tinha quebrado? – Tinha, e não havia celular naquela época. Puxa, até conseguirmos falar com ele de novo... Mas você nem imagina o que passamos! Só pensamos no pior: um acidente, um assalto... Chegamos a suspeitar que ele tivesse uma vida dupla! – Deve ter sido horrível... Joe se calou e começou a brincar com os talheres. Depois prosseguiu: – Ao ver o sofrimento da minha mãe e dos meus irmãos, papai disse que iria largar o emprego. Mas como ia continuar sustentando a família? Certo dia ele realmente largou. E nunca mais saiu de casa. Eu estava no segundo ano da faculdade. Joe nos serviu mais vinho e o garçom chegou com os pratos principais. Mas, diante da emoção
que eu percebia nele e dos sentimentos que começavam a brotar em mim, eu já não tinha a menor vontade de comer. – Continue, Joe. – Papai voltou para casa e nós, os filhos, aos poucos fomos saindo. Um de cada vez. O dinheiro, claro, tinha ficado mais curto. Mas os velhos nunca haviam sido tão felizes. Aliás, são felizes até hoje. Naquela época eu tinha prometido a mim mesmo que nunca faria com minha própria família o que papai havia feito conosco, ficando ausente por tanto tempo. E quando eu e você nos encontramos naquele dia... quando falei que não podia perder meu voo e vi a expressão no seu rosto... só então a ficha caiu. Percebi que, mesmo sem querer, eu agira exatamente como meu pai. Por isso, Lindsay, a notícia que eu tenho para lhe dar é que estou de volta. E agora é definitivo.
capítulo 128
EU APERTAVA A MÃO DE JOE enquanto ele contava sobre sua transferência para São Francisco. Ouvia com atenção cada palavra, mas minha cabeça não parava de girar. Várias vezes tínhamos conversado sobre como seria nossa vida debaixo do mesmo teto, porém nunca havíamos tomado qualquer providência no sentido de concretizar nossos planos. Mas agora, observando-o de tão perto, eu tinha a impressão de que o passo decisivo estava prestes a ser dado. Joe pegou a colher de café e a guardou no bolso do paletó. Com certeza a confundira com os óculos de leitura. Em seguida levou a mão a outro bolso e tirou uma caixinha de veludo de uma famosa joalheria. – Quero que você aceite isto, Lindsay – falou, afastando o vaso de flores que estava sobre a mesa. – Por favor, abra. – Não sei se consigo. – Consegue, sim. É só levantar a parte de cima... Ri da piadinha dele e quase engasguei quando abri o presente: um anel de ouro com três diamantes enormes. Respirei fundo e tomei um gole d’água. Aquela joia era de tirar o fôlego! Olhei nos olhos de Joe sem saber o que falar, sentindo a boca seca. – Eu te amo, Lindsay. Quer se casar comigo? Quer ser minha mulher? O garçom se aproximou da mesa, mas, vendo o que se passava, deu meia-volta e sumiu. Fechei a caixinha e tive a nítida impressão de que as luzes do restaurante se tornaram mais suaves. Engoli em seco, a cabeça girando. Joe e eu já havíamos passado por um casamento, ambos terminados em divórcio. Eu não sabia se estava preparada para isso novamente. – Lindsay? Eu então voltei a mim. – Também te amo, Joe, e estou... sei lá... tonta! – falei com a voz embargada. – Preciso de um tempo para pensar. Para ter certeza absoluta de que estou fazendo a coisa certa. Se incomoda de ficar com o anel só mais um pouquinho? – perguntei, empurrando a caixinha na direção dele. – Vamos ver como a gente “funciona” junto durante um tempo. Como lida com as coisas do dia a dia: a lavanderia, a louça suja, os fins de semana... Joe ficou nitidamente desapontado. Depois de alguns minutos, tomou minha mão, colocou a caixinha e fechou meus dedos sobre ela, dizendo: – Isto é seu, Lindsay. Não vou mudar de ideia. Quero me casar com você e ponto final. Não ligo para louça suja, saco de lixo e todas essas coisas relativas à casa – disse ele, sorrindo. – Na verdade, estou louco para fazer isso!
De um segundo a outro as luzes do restaurante voltaram a brilhar. Sorrindo e segurando minhas mãos, Joe continuou: – Quando achar que está pronta, me avise. Não vejo a hora de colocar este anel no seu dedo. E ligar para meus pais com a notícia de que teremos em breve um belo casamento à italiana.
capítulo 129
ERA 6 DE JUNHO QUANDO JACOBI pediu que Richard e eu fôssemos à sala dele. Nunca tinha visto meu ex-parceiro tão furioso. – Tenho más notícias – disse ele. – Alfred Brinkley fugiu. Meu queixo desabou. Ninguém fugia de Atascadero, o hospital psiquiátrico para onde eram levados os condenados com problemas mentais. Na realidade, o lugar era mais parecido com uma prisão de segurança máxima do que um hospital. – Como ele conseguiu? – perguntou Conklin. – Bateu a cabeça contra a parede da cela e... – Não estava medicado? Jacobi deu de ombros: – Sei lá. Seja como for, o psiquiatra que foi vê-lo, um sujeito chamado Carter, levou-o para o consultório com a escolta de um guarda. – O que aconteceu? – perguntei – Quando chegaram ao consultório, o médico pediu que as algemas do paciente fossem retiradas para um exame neurológico. – Jacobi contou ainda que Brinkley usou um bisturi para atacar o guarda e roubar sua arma. Prendeu os dois num depósito e fugiu do hospital com as roupas e o carro do psiquiatra. – Tudo isso aconteceu duas horas atrás. Foi emitido um alerta com a descrição do veículo de Carter: um Honda Civic azul. – A essa altura ele já se livrou do carro – disse Conklin. – Provavelmente – retrucou Jacobi. E acrescentou: – Não sei o que isto significa, mas, segundo informou um carcereiro, Brinkley andava agitado por conta da biografia de um assassino em série que havia lido. Edmund Kemper. – Sei quem é – disse Conklin. – Matou seis moças. O sujeito morava com a mãe. – Esse mesmo – confirmou Jacobi. – Certa noite Kemper apareceu em casa depois de ter saído com uma dessas jovens e a mãe virou para ele e disse: “Não me venha encher o saco contando como foi sua noite.” – A mãe sabia dos assassinatos? – perguntei. – Não sabia. Pois bem, ela disse para o filho maluco: “Mas você vai encher meu saco de qualquer jeito, não vai?” Então Kemper esperou a mãe dormir e decapitou a velha! Colocou a cabeça dela sobre a lareira e contou para a cabeça tudo o que fez durante a noite. – Se bem me lembro, o cara se entregou à polícia – disse Conklin, estalando os dedos como
sempre faz quando está nervoso. Eu também estava agitada com o fato de Brinkley estar de volta às ruas com uma arma na mão. – Exato – disse Jacobi. – Ele se entregou à polícia e, ao fazer sua confissão, falou que tinha matado aquelas moças em vez de matar a mãe. Sacou? – agora ele se dirigia a mim. – Kemper finalmente matou a pessoa certa. – E o carcereiro disse que esse Kemper tinha algum significado especial para Alfred Brinkley, certo? – Certo – respondeu Jacobi. Então ficou de pé, ajeitou a calça e contornou as pernas compridas de Conklin para chegar à porta. – Brinkley era obcecado por Edmund Kemper.
capítulo 130
ALFRED BRINKLEY ANDAVA PELA Scott Street, olhando para a frente com o boné do Dr. Carter enterrado na cabeça, admirando os veleiros ancorados na marina, sentindo a brisa que vinha da baía. A dor de cabeça não tinha passado, mas os remédios haviam calado as vozes. Agora conseguia pensar e sentia-se forte e poderoso. Como no dia em que ele e Bucky atiraram naquelas pessoas da balsa. Enquanto caminhava, relembrava a cena no consultório do Dr. Carter, a rapidez com que havia agido ao se ver livre das algemas. Toque o nariz, Sr. Brinkley. Agora toque os dedos dos pés. Segure este bisturi. O mesmo bisturi com que ele dominaria o médico e roubaria a arma do guarda. Alfred agora gargalhava, lembrando-se dos dois homens que grunhiam ao ter as mãos amarradas, ambos nus e com tufos de gaze enfiados na boca, até serem trancados no depósito. “Nós vamos achá-lo, Alfred”, dissera o guarda ao ser imobilizado. Meu plano é voltar para cá. Mas preciso resolver um probleminha antes. As casas da Scott Street tinham um gramado na frente e eram grudadas umas às outras, lembrando uma cadeia de montanhas. A construção que Alfred procurava tinha fachada clara e janelas azuis, além de uma garagem coberta. Ele não demorou a reconhecer o gramado verde, com direito a um frondoso limoeiro. O carro estava estacionado. Perfeito, cheguei na hora certa. Alfred cruzou o gramado e entrou discretamente na garagem. Passando pelo BMW , pegou na bancada a pistola de pregos e verificou se estava funcionando. Ótimo. Atravessou a porta que dava acesso ao interior da casa e entrou na sala de piso de tábuas corridas. Por um momento ficou imóvel diante do altar com imagens de santos. Em seguida pegou o álbum de fotos na cômoda, retirou um quadro da parede e foi até a cozinha. Ela estava sentada à mesa, olhando as contas. Sob um dos armários, a pequena TV passava um canal de notícias. A mulher de cabelos escuros ergueu a cabeça assim que sentiu a presença dele na cozinha. Arregalou os olhos, tentando entender o que se passava. – Hola, mamãe – disse Alfred, animado. – Cheguei! Está na hora de a senhora aparecer na televisão!
capítulo 131
– VOCÊ NÃO DEVIA ESTAR AQUI, Alfred – disse Elena. Ele colocou a pistola de pregos sobre a pia e trancou a porta da cozinha. Em seguida folheou o álbum, encontrou as fotos da irmã e as mostrou à mãe: a menina no carrinho de bebê, no aniversário de um ano, brincando na praia. Elena arregalou os olhos novamente quando o filho pegou o quadro, um retrato de Lily, e o espatifou contra a mesa. – Não! – Sim, mamãe. Sim, senhora! Estas fotos são indecentes. São pornográficas! Então abriu o lava-louças, colocou o álbum na prateleira inferior, o quadro na superior, bateu a porta e programou o relógio para cinco minutos. Os registros fotográficos de Lily iriam por água abaixo. A máquina começou a contagem regressiva. – Alfred – disse Elena, começando a se levantar –, isto não tem a menor graça! Ele a empurrou de volta à cadeira. – A máquina vai começar a funcionar daqui a cinco minutos. Quero sua atenção nestes quatro. Depois tiro suas preciosas fotos de dentro dela. Puxou uma cadeira e se sentou ao lado da mãe, que olhou para ele com a mesma expressão de desdém que o fizera odiá-la a vida inteira. – Não terminei de contar a história que comecei no tribunal – disse ele. – Aquela mentira deslavada, você quis dizer – retrucou Elena, olhando rapidamente para o lava-louças e depois para a porta trancada. Alfred tirou do bolso a arma roubada do guarda – Quero conversar com a senhora, mamãe. – Esta arma não está carregada! Ele abriu um sorriso e atirou contra o chão, deixando a mulher apavorada. – Coloque os braços sobre a mesa – ordenou. – Você quer aquelas fotos de volta, não quer? Ao ver que ela não obedecia, colocou os braços da mãe sobre a mesa, pegou a pistola de pregos e com dois disparos prendeu um dos punhos da camisa sobre o tampo. Depois disse: – Viu? Achou o quê? Que eu fosse machucá-la? Não sou nenhum doente mental, mamãe. A senhora sabe disso. Em seguida pregou o outro punho da camisa da mãe, que, desesperada, viu o relógio do lavalouças diminuir a contagem.
– Devolva minhas fotos, Alfred. Elas são tudo o que tenho na vida. Ele levou a boca até o ouvido da mulher e sussurrou: – Realmente menti naquele dia, mamãe. Mas foi para infernizar a senhora. Para a senhora saber como eu me sinto! – Não quero saber de você! – disse Elena, tentando se libertar dos pregos e quase rasgando a camisa. – Não quer? Então veja só o que vou fazer! Alfred pegou a pistola e foi pregando os dois braços da camisa da mãe até a altura dos cotovelos. Em seguida continuou: – Quer saber a verdade? Eu morria de vontade de “brincar de médico” com Lily e a culpa era toda sua. Porque era a senhora quem a vestia como uma prostituta, com saia curta, sapatos de salto e unhas pintadas! A menina tinha 12 anos, caramba! A senhora achava o quê? Que Lily podia se vestir assim e ninguém ia querer trepar com ela? Nesse instante o telefone tocou e Elena Brinkley levou um susto. Alfred foi até o aparelho e arrancou o fio da tomada. Depois pegou o porta-facas na bancada e o largou sobre a mesa. – Esqueça o telefone. A senhora hoje só vai falar comigo. Sou a pessoa mais importante do mundo. Do seu mundo! – O que você está fazendo, Alfred? – O que a senhora acha? – perguntou ele, sacando uma das facas compridas. – Acha que vou cortar fora sua língua? Que espécie de maluco acha que sou? Ao ver o pavor nos olhos da mãe, Alfred começou a gargalhar e então disse: – O que aconteceu foi o seguinte: naquele dia eu vi Lily fazendo sexo oral num cara que trabalhava na marina. – Mentira! Sem dizer nada, ele começou a afiar a lâmina na pedra do porta-facas, deliciando-se com o ruído. – É melhor você ir embora – disse Elena. – A polícia já deve estar chegando. – Ainda não terminei. Agora a senhora vai ser obrigada a me ouvir, nem que... Alfred se calou de repente, ouvindo a voz que berrava: “Mata! Mata! Mata!” Largou a faca e secou o suor das mãos. Segurou novamente a faca. – Como eu estava dizendo, Lily estava me provocando, rebolando a meu redor, quase pelada, e depois foi lá e começou a chupar o cara. Esqueça as fotos e preste atenção em mim! Depois a gente saiu com o veleiro e ancorou num lugar distante, onde ninguém podia nos ver. Ela então tirou o sutiã do biquíni. Mentiroso. Covarde. Colocando a culpa na irmã! – Ela tirou o sutiã e eu me aproximei, pegando nos peitinhos dela. Aí ela ficou me olhando daquele jeito. Do mesmo jeito que senhora está olhando para mim agora. Como se eu fosse um monte de bosta! – Não quero ouvir mais nada!
– Mas vai ouvir – disse Brinkley, encostando a faca no pescoço enrugado da mãe. – Então lá estava ela, só com a calcinha do biquíni, me chamando de monstro e gritando: “Vou contar tudo para mamãe!” Pois estas foram as últimas palavras da sua filhinha querida, sabia? Quando ela me deu as costas, passei a mão na retranca da vela e acertei a cabeça da Lily bem na... De repente ele foi interrompido pelo barulho de vidro se quebrando, seguido de um estalo ensurdecedor e um clarão forte. Alfred Brinkley achou que o mundo havia explodido.
capítulo 132
PELA JANELA DA COZINHA EU via Brinkley com uma faca encostada no pescoço da mãe. Estávamos armados e prontos para atirar, mas Elena bloqueava o filho. Se invadíssemos a casa por qualquer uma das portas, Alfred teria tempo para matá-la. Senti um pavor enorme pelo que podia acontecer à mulher. Minha vontade era gritar. Em vez disso virei-me para Ray Quevas, chefe do batalhão de operações especiais, e ele balançou a cabeça, novamente dizendo que não havia condições de atirar. Portanto, quando pediu permissão para lançar uma bomba de efeito moral, consenti sem hesitar. Vestimos nossos óculos e máscaras. Com o cano do lança-granadas, Ray estilhaçou mais uma janela e atirou. O projétil ricocheteou nas paredes da cozinha e explodiu com um clarão impressionante. Num piscar de olhos, os homens do batalhão derrubaram a porta e entramos na sala esfumaçada com um único objetivo: imobilizar Alfred Brinkley antes que ele pegasse sua arma. Encontrei-o caído debaixo da mesa. Rapidamente me joguei sobre ele e torci seus braços às costas. Já fechava as algemas quando Brinkley se virou e me derrubou no chão. O homem era forte como um touro. Enquanto eu tentava me erguer, ele pegou a arma caída a seu lado. Arrancando a máscara, Conklin berrou: – Coloque as mãos para cima! Agora! A situação era tensa.
capítulo 133
EMBORA ESTIVESSE SOB A MIRA dos lasers das armas, Alfred Brinkley não largava seu revólver, que estava apontado para Conklin, que também apontava para ele. Eu estava bem ao lado de Alfred. Num impulso, apertei o cano da minha pistola contra as costas dele e berrei através da máscara: – Não se mova. Qualquer movimento que fizer, eu atiro! Richard desarmou-o com um chute, fazendo com que o revólver voasse pela cozinha. Seis armas apontavam para Brinkley enquanto ele era algemado. Minha sensação agora era de alívio, embora ele não parasse de rir. Retirei minha máscara, tossindo por causa da fumaça e sem entender por que ele ria tanto. Afinal estava sendo preso outra vez. – Ele ia me matar! – dizia Elena Brinkley aos prantos. – Levem-no daqui, pelo amor de Deus! – O que aconteceu? – perguntou Alfred, erguendo o rosto na minha direção. – Lembra-se de mim? – falei. – Ah, claro – respondeu. – Minha amiga Lindsay Boxer! – Ótimo. Você está preso por fuga, conduta imprudente e tentativa de homicídio. Atrás de mim, Jacobi dizia a Elena para ficar calma, pois logo seria tirada daquela mesa. – Você tem o direito de permanecer calado – falei para Brinkley. Impaciente, Elena se desvencilhou sozinha dos pregos. Imediatamente foi até o filho, berrando: – Odeio você! Queria que você tivesse morrido! Em seguida deu um tapa no rosto dele. – Uau, esse doeu – disse Brinkley, olhando rapidamente para mim. – Qualquer coisa que disser poderá e será usada contra você – falei. – Que palhaçada é essa? – berrou ele, alheio aos policiais armados que o cercavam. – Só o que você pode fazer é me levar de volta para o hospital. Estas acusações idiotas não vão dar em nada. – Cale esta boca, animal – gritei. – Agradeça por estar vivo! – Cale a boca você! – devolveu Brinkley, berrando ainda mais alto que eu, salivando com uma expressão de ódio no olhar. – Não sou culpado de nada e você sabe muito bem disso. Sou juridicamente inimputável. E de repente ouvi Elena Brinkley gritar: – Não!
O lava-louças tinha começado a funcionar.
EPÍLOGO
A SEXTA BALA
capítulo 134
EU NÃO CONHECIA O HOMEM que jazia nu sobre a mesa de Claire, sabia apenas que a morte dele talvez tivesse alguma relação com a tragédia da balsa Del Norte. Claire havia cortado o couro cabeludo do cadáver e dobrado a pele sobre o rosto, serrando o crânio e retirando o cérebro em seguida. Ela agora tinha entre os dedos o fragmento de uma bala. – Isto aqui atravessou alguma coisa antes de parar nos miolos dele – falou. – Um pedaço de madeira, talvez. Qualquer coisa capaz de reduzir a velocidade e o impacto. Mesmo assim o coitado não escapou. Liguei para Jacobi, que disse: – Você sabe o que fazer, Boxer. Conte sua história, mas seja breve. Depois ele me passou para o chefe, a quem dei um breve resumo: Wei Fong, operário da construção civil de 32 anos, acabara de morrer naquela manhã após alguns meses de coma. O ferimento à bala na cabeça não permitia intervenção cirúrgica. Ele tinha sido ferido no dia em que Alfred Brinkley atacou a balsa. – A sexta bala de Brinkley foi disparada a esmo – falei. – E acabou matando Wei Fong. As mãos de Claire estavam trêmulas quando ela guardou o fragmento num saco plástico. Em seguida assinamos a papelada e eu liguei para o laboratório da perícia. Ouvi Claire dizer ao cadáver sobre a mesa: – Sr. Fong... sei que não pode me ouvir, mas... obrigada, querido. O carro de Claire estava bem em frente ao prédio. As roupas que ela havia buscado na lavanderia ainda se encontravam no banco do passageiro. Passei-as para trás e afivelei o cinto de segurança. – É parecido com o caso de Charles Manson – falei enquanto saíamos para a Harriet Street. – Dois assassinatos aparentemente sem nenhuma relação: o da atriz Sharon Tate e o do casal LaBianca. Duas equipes de policiais trabalhando paralelamente durante semanas até descobrirem que os crimes haviam sido cometidos pelas mesmas pessoas. E agora isto: a equipe de Macklin tinha trabalhado no caso de Wei Fong sem chegar a lugar nenhum. – Até o coitado morrer – disse Claire, perguntando: – Está tudo aí com você? – Está. O fragmento de bala estava guardado no bolso da minha jaqueta. A arma, entre meus pés, dentro de um saco de papel lacrado. Tomamos a Autoestrada 280 até César Chávez e de lá fomos para o estaleiro de Hunters Point, onde ficava o laboratório da perícia criminal.
Claire parou o carro à sombra de uma das três palmeiras à entrada do estacionamento. Desci antes mesmo que ela puxasse o freio de mão.
capítulo 135
JIM MUDGE, O DIRETOR DO LABORATÓRIO, esperava por nós em sua sala. Cumprimentou-nos, recebeu o saco de papel e imediatamente o abriu para retirar Bucky, a companheira fiel de Alfred Brinkley. Voltamos os três para o corredor e entramos na segunda porta à direita, onde havia uma galeria de tiro. Mudge entregou o revólver a um inspetor, que o disparou contra um tanque de água, buscou o cartucho de calibre 38 e o entregou a mim, dizendo: – Aqui está, sargento. Boa sorte. Esse desgraçado já foi longe demais. O diretor nos conduziu a outra sala, no fim do corredor. Nela havia diversas mesas com computadores e microscópios. Fomos recebidos por uma jovem, que disse: – Meu nome é Petra. Vamos ver o que vocês têm aí. Entreguei a ela o cartucho disparado com a arma de Alfred Brinkley e o fragmento que Claire havia retirado do cérebro de Wei Fong. Prendi a respiração e cruzei os dedos. Claire e eu nos posicionamos atrás da técnica enquanto ela colocava as balas sob as lentes de um microscópio. Estava sorrindo quando recuou e disse: – Vejam vocês mesmas. Não tive dúvidas quando comparei as imagens ampliadas das duas balas. O padrão de estrias e sulcos no fragmento era idêntico ao da bala recém-disparada com a arma de Brinkley. O fragmento pertencia à sexta bala que Alfred Brinkley tinha disparado na balsa contra William, o filho de Claire, que por sorte escapara ileso. A bala que levaria o maluco de volta ao tribunal para um novo julgamento. Virei-me para Claire, mas fiquei na dúvida se apertava a mão ou se abraçava minha amiga. Então fiz uma coisa e depois outra. – Nós conseguimos... – disse ela em meus braços.
capítulo 136
DALI A UMA HORA, RICHARD CONKLIN e eu estávamos no hospital psiquiátrico de Atascadero, esperando numa sala repleta de pequenas mesas e cadeiras. Brinkley finalmente veio ao nosso encontro. Estava com um aspecto saudável: o rosto vermelho e aparentemente bem alimentado. Achei que fosse me tirar para dançar de tão alegre que ficou ao me ver. – Lindsay! Ficou com saudades? Olhe, não consigo esquecer aquela última vez que a gente se viu! – Nem se dê o trabalho de sentar, Alfred – falei. – Estamos aqui para lhe dar voz de prisão. Você está sendo acusado de homicídio. – Está brincado. Isto é uma piada, não é? Não pude conter o sorriso. – No dia daquele seu espetáculo na Del Norte... – O que tem? – Seu último tiro não acertou William Washburn, mas outra pessoa. Estamos aqui para prendê-lo pelo assassinato de Wei Fong. Homicídio culposo. – Você só pode estar delirando, Lindsay – disse Brinkley, sacudindo os ombros num gesto de indiferença. – Quer dizer então que matei alguém que nem sequer estava vendo? – Exatamente. Você é um ótimo atirador. – Vocês estão sonhando. Já fui inocentado pelo que fiz na balsa. Oficialmente sou um doente mental, esqueceram? Estão reincidindo no erro. – Daquela vez você não foi indiciado pela morte do Sr. Fong, Fred. Agora é um novo julgamento. Novas provas. Novos jurados. E posso apostar que sua mãe vai estar lá também, depondo a favor da acusação. Ao ouvir isso, Brinkley imediatamente apagou o sorriso que vinha exibindo. Mandei que ele se virasse, algemei-o e li seus direitos. Richard e eu o escoltamos até nosso carro. Assim que se acomodou no banco traseiro, Brinkley assumiu uma expressão diferente, como se estivesse sofrendo. Desconfiei que se lembrava da infância, da origem de seus vários problemas. Mas Alfred já estava cantando quando alcançamos a autoestrada: – Ay, ay, ay, ay, canta y no llores... Porque cantando se alegran... Cielito lindo, los corazones... – Foi sua mãe quem lhe ensinou isto? – perguntei a ele, olhando pelo retrovisor. Fiquei surpresa quando, olhando no fundo dos meus olhos, ele parou de cantar e numa voz rouca disse:
– Ei, Lindsay, você acha mesmo que me pegou?
James Patterson
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