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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


6 DE ABRIL / Sveva Casati Modignani
6 DE ABRIL / Sveva Casati Modignani

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Lucia Bonanno Brambilla pousou na mesa da cozinha uma travessa cheia de espaguete com molho de tomate, manjericão e pimentão. Era alta e tinha um corpo sólido, bem modelado. Era de Milão. Os cabelos loiros e os olhos azuis fascinaram o inspetor da polícia Giovanni Bonanno quando a encontrou na praia de Mondello, perto de Palermo. Tinham passado trinta anos desde aquele primeiro encontro. Lucia era então uma jovem professora, em férias com umas amigas. Bonanno flertou com discrição. Ela apreciou a solidez moral do siciliano. Não foi amor à primeira vista, apaixonou-se por ele pouco a pouco. Depois casaram.
Durante muito tempo ficaram na Sicília, onde nasceram os dois filhos. Viviam em Milão havia doze anos, desde que Giovanni fora nomeado vice-comissário da Brigada Anticrime da Lombardia. Profundo conhecedor dos mecanismos da máfia, obteve resultados importantes em investigações complexas sobre as ligações entre o crime organizado, o mundo político e o dos negócios. Em seguida foi promovido a comissário. A família e o trabalho eram toda a sua vida. Este último, porém, absorvia quase por inteiro o seu tempo. Quando os filhos eram ainda pequenos, a Senhora Bonanno lamentava-se: – Pareço uma mãe solteira.
Giovanni desaparecia durante dias e dias sem sequer poder dizer onde estava, nem de que assuntos estava tratando. Lucia temia por ele, porque sabia que estava empenhado em operações perigosas. Escondia a sua ansiedade atrás de uma aparente rudeza, que o marido tentava atenuar, consciente de ser a causa daquela inquietação.
O comissário tinha chegado em casa meia hora antes e beijara-lhe levemente a face enquanto falava com alguém ao celular. Lucia foi para a cozinha e pôs para ferver a água para o espaguete.

 

 

 


 

 

 


Agora a massa já estava na mesa e o marido ainda continuava falando ao telefone. Andava para trás e para frente na pequena sala de estar do apartamento. Era um sinal inequívoco: significava que tinha nas mãos um caso importante.

A senhora Bonanno apareceu à porta da sala e, por gestos, deu-lhe a entender que o almoço estava pronto. O comissário não replicou e acendeu um cigarro.

– Terronel, comilão e fumante. Mas quem foi que me mandou casar com você? – resmungou, enquanto voltava à cozinha. Bateu a porta com força, sentou-se à mesa e começou a comer sozinha.

O marido foi até ela um pouco depois e sorriu.

– E a mim, quem foi que me mandou casar com uma mulher com mau jeito como você? Como única resposta, a senhora Bonanno agarrou uma fatia de pão e atirou nele. Ele pegou-a no ar. – Sabe o que Sócrates disse à mulher, Xantipa, quando ela partiu uma jarra na sua cabeça? – brincou o comissário, enquanto se sentava à mesa. E continuou: – “Tanto trovejou, que acabou por chover.” Xantipa ficava sempre furiosa, como você, porque o marido passava mais tempo com os discípulos do que com ela – concluiu Bonanno, enterrando o garfo na massa.

– Pobre mulher, como eu a entendo – suspirou a senhora Bonanno, que começava finalmente a se acalmar. O telefone tocou na sala de estar. Ela olhou o marido nos olhos.

– Se atender, te espeto – preveniu-o, segurando o garfo com um ar ameaçador. Ele continuou comendo e deixou que o gravador de chamadas entrasse em funcionamento. Lucia viu que ele estava ansioso, mas fez de conta que não percebeu. Naquele momento tocou também o celular. Bonanno desligou-o. A mulher deu um suspiro resignado e disse:

– Vamos, despache esse assunto. Eu mantenho o prato quente. Espero que consiga acabar o almoço. O comissário limpou a boca com o guardanapo.

– És uma querida – agradeceu.

– O que é que está acontecendo, desta vez? – perguntou ela.

– Um roubo numa igreja – respondeu, enquanto se levantava da mesa. – Atacaram o padre?

– Agrediram uma mulher. Jovem e muito bonita, ao que parece. Deram-lhe uma pancada na cabeça com um candelabro e levaram a sua carteira. Antes de ser atacada, ela tentou se defender e, por baixo das unhas, os peritos encontraram pedaços de pele do agressor. Fizeram algumas análises que nos permitiram identificá-lo. Tem cadastro nos nossos arquivos por furto de joias e relógios de marca. É pouco provável que a vítima tivesse joias e relógios valiosos numa bolsa de pano. Não acha? Em suma, tem todo o ar de ser um roubo muito estranho.

– Giovanni, você vai se reformar daqui a três meses. Como é que vai conseguir sobreviver sem os seus enigmas? – perguntou a mulher, com doçura.

– Vou dedicar a você o tempo que tirei em trinta anos de casamento. Pinto as paredes da casa, levo-a para pescar e trato do jardim da nossa casa no lago – disse, sem convicção.

– Vai entrar em depressão e eu vou ter de inventar qualquer coisa que dê sentido ao tempo que nos resta para vivermos juntos – comentou ela, com alguma amargura.

O marido nem a ouviu. Já estava na sala. Tinha acendido um cigarro, esquecendo as boas intenções do dia, e estava lendo no celular o número da chamada que não tinha atendido. Era do seu escritório. Sentou-se no sofá e ligou para Capuzzo.

– Há novidades? – perguntou o comissário.

– O Terlizzi já tentou contatá-lo três vezes. Quer um relatório completo sobre o caso San Marco – informou o inspetor. Terlizzi era o magistrado que acompanhava o processo. Tinha recebido um primeiro relatório e queria saber mais, até porque a identidade da vítima ainda estava envolvida num grande mistério, enquanto a do agressor suscitava algumas interrogações.

Chamava-se Gerlando Randazzo e era oriundo de Trapani. Alguém afirmava que ele tinha ligações fortes com um foragido mafioso sobre o qual pendiam algumas acusações graves.

Bonanno, que tinha adquirido uma longa experiência na Sicília, conhecia bem o mundo da máfia e nunca deu crédito a essas vozes.

O dito foragido era de grande calibre e Bonanno excluía a hipótese de haver qualquer ligação entre um ladrão insignificante, como Randazzo, e um homem tão poderoso. No entanto, o caso San Marco tinha qualquer coisa de anormal e Bonanno queria falar sobre isso com Angelo Marenco, o chefe da polícia, antes de contactar o magistrado.

– Se o Terlizzi voltar a ligar, diga que não me encontrou – ordenou o comissário, e perguntou: – Notícias da vítima? – Boas e más. Fisicamente está reagindo bem, mas parece que tem um problema de memória. Vamos ver o que acontece nos

próximos dias. De qualquer maneira, por enquanto, ainda não se conhece a identidade da mulher – concluiu Capuzzo. Bonanno desligou a chamada sem fazer comentários.

A mulher entrou na sala de estar com uma xícara de café na mão. – Já tem açúcar – anunciou. – Só precisa ter o trabalho de beber. Quanto ao almoço, esquento para o jantar. – Sentou-se numa poltrona, em frente ao marido.

Ele tomou o café.

– Nem a minha mãe conseguia fazer um café tão bom – elogiou. E acrescentou: – Na sua opinião, por que é que um ladrão de relógios de marca, sem mais nem menos, quase mata uma mulher para lhe tirar uma bolsa indiana de pano?

– Para a oferecer à namorada, que adora bolsas indianas – brincou ela, olhando-o com ternura. O marido era um honesto servidor do Estado. Recebia um salário modesto e tinham dado juntos alguns saltos mortais para educar dois filhos e dar a eles um curso superior.

Agora envelheciam juntos. Giovanni tinha os cabelos cinzentos, bolsas debaixo dos olhos, e estava ficando pesado. Ela era ainda loira, com a ajuda de alguma pintura, e os músculos do rosto tinham perdido firmeza. Mas guardava a imagem dela e a do marido como quando eram jovens e bonitos.

– Pois bem, vou trabalhar – disse Bonanno, levantando-se.

– Nem vale a pena perguntar a que horas chega logo à noite – resmungou Lucia. – Vá lá, dê um sorriso para mim – disse ele, enquanto se inclinava para a mulher e acariciava a sua face. – Gosto de você, velho comilão – sussurrou ela. Depois acrescentou: – Não fique angustiado. Até porque já sabe que essa história também vai ser resolvida.

– Acha?

– Tenho certeza.


1

– Era alta, magra, jovem e bonita – afirmou a mulher, uma dona de casa com cerca de sessenta anos, pequena e redonda como uma bola. – Eu estava saindo da igreja, depois da missa, quando ela entrou. Eu até trazia o saco das compras – explicou, indicando o saco de plástico pousado no chão –, mas ela não tinha nada na mão. Só trazia uma bolsa a tiracolo, de pano colorido, com franjas e espelhinhos. Sabe o que me pareceu, comissário, uma daquelas bolsas orientais. Mesmo a saia, apertada de lado, que cobria as pernas até os tornozelos, e o lenço amarrado na cabeça pareciam de tecido indiano. Passou ao meu lado e deixou um rastro de perfume muito bom. Parei e olhei para ela: era um espanto. Até pensei que fosse modelo. Vi-a entrar nesta capela e ajoelhar-se em frente à imagem de Santa Teresa do Menino Jesus. Nessa altura fui embora. Saí da igreja e, ao atravessar a praça, encontrei uma conhecida minha com quem conversei um bocado. Depois entrei no café em frente para tomar um descafeinado. Sabe, é que a cafeína me faz mal. Estava saboreando o meu café na santa paz, quando ouvi a sirene da ambulância. Foi só o tempo de esvaziar a xícara e, da porta do café, vi que tinha parado em frente à igreja. Então atravessei a praça correndo; correndo tanto quanto eu consigo correr, porque tenho um enfisema. De qualquer maneira, quando lá cheguei, os enfermeiros estavam transportando a mulher. Eu olhei para ela. O rosto, tão bonito, estava coberto de sangue. Um bife, comissário. Santo Deus, como a deixaram! E logo aqui, na casa do Senhor!

Tirou um lencinho do bolso do vestido e limpou uma lágrima. Estava sentada na beira de um banco, ao lado do comissário, na capela de Santa Teresa. Em frente a eles, os peritos da polícia fotografavam algumas manchas de sangue no chão, evidenciadas por um risco branco de giz. Do alto de um pedestal, Santa Teresa do Menino Jesus parecia observar, com uma infinita piedade, a cena que se desenrolava aos seus pés.

– Muito obrigado, minha senhora – disse o comissário, que tinha ouvido a história com atenção. Os homens da Brigada Anticrime esquadrinhavam todos os cantos da igreja, tentando fazer o mínimo de barulho possível, por respeito ao lugar onde se encontravam.

– Quem é que pode tê-la agredido de uma maneira tão brutal? – perguntou a mulher ao comissário. O homem olhou para ela, pensativo. Depois sorriu e disse:

– Vamos descobrir, fique sossegada.

O comissário chamava-se Giovanni Bonanno e tinha passado toda a vida nas forças armadas. Uma vez que sabia do assunto, passo a passo degrau acabou por chegar a chefe da Brigada Móvel de Milão.

Pouco tempo antes, no seu gabinete na delegacia, rolava entre os dedos o terceiro cigarro do dia. Ainda tinha que esperar dez minutos antes de o acender, porque prometera a si próprio fumar só um por hora. Entretanto, olhava pela janela para o céu sereno daquela manhã de julho, o que o fazia desejar pescar no rio. Lamentando o fato de não poder fazer, ia permitir-se, pelo menos, o prazer antecipado do cigarro, quando o inspetor Capuzzo irrompeu no gabinete.

– Já não se bate mais à porta? – comentou com agressividade, enquanto desistia de acender o isqueiro que apertava na mão. – Desculpa, mas chegou agora uma comunicação da central. Agrediram uma mulher em San Marco – anunciou de um só fôlego.

A igreja, ao fundo da via Fatebenefratelli, ficava a um quarteirão da delegacia. Chegaram ao local em poucos minutos. San Marco parecia deserta. Depois, de uma capela lateral, saiu um reduzido grupo de pessoas: a dona de casa com o saco das compras, um jovem sacerdote com uma cabeleira farta, um velhote alto e magro e alguns curiosos atraídos pela sirene da ambulância.

O padre explicou sucintamente as condições em que a vítima fora encontrada. Tinha celebrado, como todas as manhãs, a missa das oito e meia no altar-mor. Depois foi tomar o café da manhã. Cerca das nove e meia estava outra vez na igreja para a leitura dos Salmos e a meditação sobre o Evangelho. De repente, sentiu o barulho de uma queda atrás de si. Pousou o livro sagrado na estante do altar-mor e olhou em volta. Não havia ninguém. Então avançou pela coxia central até que, do lado esquerdo, viu um homem no chão, tateando à procura de um apoio para se levantar. Era o velhote trêmulo que agora estava sentado, em silêncio, ao lado da dona de casa.

O homem contou ao comissário que tinha ficado por ali depois do fim da missa, porque na casa do Senhor se sentia menos só.

– Desde que fiquei viúvo – sussurrou –, a surdez torna a minha solidão ainda mais penosa. – Quando decidiu deixar a igreja, viu uma mulher estendida no chão na capela de Santa Teresa. Parecia morta. Assustou-se e gritou para pedir ajuda, mas nem um único som saiu da garganta. Sentiu-se mal e caiu onde o padre foi encontrá-lo, após o que, descoberto o corpo da mulher, correu até a sacristia para ligar para o 109. Foram estas as informações que o comissário recolheu. Nessa altura, depois de ter mandado embora as testemunhas, Bonanno ficou na capela organizando os dados que possuía. Uma mulher, jovem e bonita, entrou na basílica pouco depois das nove da manhã de um dia útil, para rezar. Segundo o testemunho da dona de casa, a mulher estava só e não parecia assustada. A certa altura, alguém a atacou. Talvez o agressor se encontrasse já na igreja e estivesse à espera dela. Talvez a tivesse seguido. O comissário formulava rapidamente as suas hipóteses, enquanto a mão, enfiada no bolso do casaco, martirizava o maço de cigarros. O único dado seguro era a hora da agressão, ocorrida enquanto o sacerdote tinha ido tomar o café da manhã e o homem idoso, isolado pela surdez, se demorara junto ao altar-mor, que ficava a cerca de trinta metros de distância do local do crime.

– Capuzzo, o que é que vocês encontraram? – perguntou Bonanno ao inspetor, que entrava na capela. – Descobrimos o objeto contundente – respondeu Capuzzo, que lhe mostrava um candelabro de latão. A base facetada estava suja de sangue. Bonanno anuiu. Um dos peritos da polícia tomou conta dele e enfiou-o num saco de plástico. – Estava dentro de um confessionário, ao fundo da igreja – explicou o inspetor. Depois leu os apontamentos do comissário.

– Encontramos uma fotografia em preto e branco, um lencinho de algodão branco e um frasco com vaporizador de perfume Chanel – anunciou.

– É tudo? – perguntou Bonanno.

– Pelo menos até agora. Estes objetos devem ter caído da bolsa, da qual não há vestígios, como confirmam também os enfermeiros da ambulância.

O comissário assentiu.

– Notícias da mulher?

– Foi levada para o hospital de Niguarda e foi operada no serviço de urgência de cirurgia. Um dos nossos homens está lá – informou o inspetor.

– Vamos ao hospital – decidiu Bonanno.

Durante o trajeto, o comissário telefonou ao tribunal para informar o magistrado. Na sala de espera da cirurgia, Bonanno encontrou o cirurgião que tinha operado a mulher. – A paciente ainda não recuperou a consciência. O hematoma no crânio deve ser reabsorvido espontaneamente. Fizemos a sutura de uma ferida extensa na pele. Nõs a transportamos para a unidade de tratamento intensivo. Vamos mantê-la lá até ela se recuperar completamente. – E acrescentou: – Para sua informação, quem a agrediu deu um único golpe, para fazê-la desmaiar. Costuramos a ferida sem problema nenhum. A moça está bem. É preciso avisar a família – concluiu.

– Por enquanto, ainda não conhecemos a identidade dela. Roubaram-lhe a bolsa onde tinha os documentos. Temos que iniciar as investigações de rotina o mais depressa possível – replicou o comissário, enquanto tirava um cigarro do maço. – Haverá algum lugar onde se possa fumar em paz? – perguntou.

O cirurgião sorriu e indicou-lhe uma porta envidraçada que dava para uma varanda. – Ali fora, comissário. Como sempre, lembre aos seus homens que sejam rápidos e discretos. Assim que houver novidades, eu o informo – prometeu. Sabia que os peritos tinham de recolher as impressões digitais da vítima, fotografá-la, efetuar todas investigações importantes para o caso. Em breve iriam descobrir muitas coisas acerca dela e, provavelmente, acerca do agressor.

– A vítima defendeu-se – acrescentou ainda o cirurgião, quando se preparava para regressar à sala de cirurgia. – Ou, pelo menos, deve ter tentado defender a bolsa que trazia a tiracolo. Tratamos de uma escoriação que tinha no ombro. – Transmitia as informações a conta-gotas.

– É tudo, professor? – perguntou Bonanno, impaciente, enquanto rolava o cigarro entre os dedos. – Depois do golpe na nuca, caiu para a frente. Não há fraturas, mas o rosto está coberto de hematomas. O comissário concordou, recordando o testemunho da dona de casa. Deu dois passos em direção à porta que dava para a varanda. O cirurgião voltou a chamá-lo. Bonanno, mesmo assim, acendeu o cigarro e aspirou longamente. O médico dirigiu-lhe um olhar compreensivo.

– Ofereço-lhe uma última informação. Não sei como seria o rosto daquela mulher antes da agressão, mas posso garantir-lhe que tem um corpo escultural. Lindíssimo.

– Muito bem. Já tinham me dito isso – resmungou Bonanno. Saiu para a varanda e saboreou, finalmente, o terceiro cigarro do dia.


2

Elena Gorini tinha 35 anos. Depois da licenciatura em Medicina e da especialização em Neurologia, tinha se dedicado ao estudo das perturbações da memória, que foi aprofundando em cursos e experiências em institutos de investigação italianos e estrangeiros.

Desde há alguns anos trabalhava com uma pequena equipe de especialistas no serviço de neuropsicologia do Hospital de Niguarda. Cada um deles acompanhava um certo número de pacientes, sobre os quais discutiam durante as reuniões.

O caso de amnésia da mulher agredida na igreja de San Marco fora confiado a Elena Gorini, mas envolvia toda a equipe. Ao fim de sete dias de internamento, efetivamente, não só a mulher continuava a não se lembrar de nada sobre si própria nem sobre o seu passado, como também ninguém a tinha procurado ou denunciado o seu desaparecimento. Parecia estar sozinha no mundo, sem família e sem amigos.

Todas as manhãs chegava ao serviço o telefonema de um agente da polícia pedindo notícias da doente. A resposta de Elena era sempre a mesma:

– Está melhor, mas não é capaz de nos dizer quem é. E aí, alguma novidade? – perguntava a médica, por sua vez. – Nenhuma – respondia o polícia.

Da mulher misteriosa apenas se sabia que devia ter por volta de 35 anos e que tinha a marca de uma antiga cicatriz de cesariana. Encontrava-se em boas condições de saúde e fisicamente tinha superado muito bem o traumatismo causado pelo golpe desferido pelo agressor. No momento em que foi internada trazia roupa interior branca, simples mas de ótima qualidade, uma saia indiana, uma camiseta de algodão azul-turquesa, umas sandálias sem salto e um lenço de seda amarrado à volta da cabeça.

No anelar da mão esquerda trazia uma aliança de ouro branco. Por dentro estava gravada uma data: 6 de abril de 96. Não tinha vestígios de esmalte nas unhas nem restos de maquiagem no rosto. Quando lhe entregaram os objetos encontrados na igreja, ela apenas mostrou interesse pelo frasco de perfume Chanel.

A essência, notoriamente cara, contrastava com o vestuário modesto e com o comportamento esquivo da mulher. Os médicos tinham reparado na correção da linguagem e nas maneiras delicadas, pelo que consideravam tratar-se de uma pessoa culta e de boa educação.

A Quarenta e Um, como era conhecida por causa da cama que ocupava, tinha um corpo perfeito e um rosto lindíssimo, iluminado por grandes olhos azuis. No entanto, parecia não ter consciência da sua própria beleza. A maneira de andar, de se mexer e de gesticular era discreta, quase hesitante.

Elena Gorini raciocinava sobre estes elementos contrastantes e perguntava-se qual seria a chave do mistério daquela mulher, bonita e insegura, que cheirava a Chanel e que tinha sido agredida numa igreja enquanto rezava.

A única ligação da Quarenta e Um com a realidade era a fotografia em preto e branco encontrada com os outros objetos. Foi com base naquela imagem que a Dra. Gorini estruturou o trabalho de recuperação da paciente.

Naquela manhã quente de agosto, as persianas descidas atenuavam a luz ofuscante do sol no laboratório de neuropsicologia. O calor sufocante era mitigado por um velho ventilador barulhento. A Quarenta e Um estava sentada à mesa, em frente a um computador. Trazia um roupão azul e uns chinelos de borracha, fornecidos pelo hospital. Olhava com atenção para a fotografia em preto e branco reproduzida na tela.

Levou uma mão à cabeça e passou os dedos rapidamente pela testa. Um vestígio de pelagem escura começava a recobrir a zona da cabeça que tinha sido raspada sete dias antes, quando a tinham operado.

Elena Gorini, que estava sentada ao lado dela, apercebeu-se do nervosismo da paciente. Sabia que muito em breve seria acometida por uma forte cefaleia, consequência do traumatismo que tinha sofrido.

– Está cansada – disse. – Vou te dar um analgésico e, por hoje, encerramos a sessão – acrescentou, enquanto lhe estendia um copinho de plástico que continha umas gotas de um medicamento diluído em água.

A jovem mulher bebeu e voltou imediatamente a olhar fixo na tela. Os hematomas que marcavam o rosto estavam sendo reabsorvidos e revelavam um rosto muito bonito, com as maçãs do rosto altas, bem pronunciadas, e uns olhos profundos, de recorte alongado.

– Nos encontramos amanhã de manhã. Deseja voltar para o quarto sozinha? – perguntou a médica, levantando-se da cadeira. – Eu ainda vou ficar – respondeu, finalmente, sem tirar os olhos da fotografia. Era um retrato de família. Ao fundo via-se um alpendre rural, com utensílios agrícolas. Os personagens estavam alinhados em duas filas. Os do primeiro plano estavam sentados num banco de madeira. Os outros estavam em pé, atrás daqueles. Duas vezes por dia, Elena Gorini submetia a Quarenta e Um a uma série de exercícios para a recuperação da memória, e todas as sessões se concluíam com a observação da fotografia. A médica sugeria a hipótese de aquela imagem representar a sua família de origem. Por isso, a paciente continuava à procura, naqueles rostos, dos vestígios de um passado que demorava a surgir.

Naquele momento, ao mesmo tempo que percebia os primeiros sintomas de cefaleia, sentiu que estava prestes a se recordar de alguma coisa.

A neuropsicóloga pousou a mão no seu ombro e disse:

– Continue observando a fotografia, se quiser.

A paciente indicou com o dedo uma menina que estava sentada no banco. – Sou eu – sussurrou.

As pernas compridas e magras, de flamingo, despontavam de uma pequena saia rodada. Os cabelos fartos emolduravam um rosto levemente assustado. Atrás dela, em pé, um rapaz pouco mais que adolescente tinha uma mão pousada nos seus ombros frágeis, como que para a proteger.

– Sou mesmo eu – repetiu baixinho.

– Muito bem – disse Elena Gorini, que continuava imóvel, em pé, ao lado dela. Era um momento importante, uma ocasião que a médica tinha de aproveitar.

– Sou eu – repetiu mais uma vez a paciente. – Mas não me lembro do meu nome. Uma pontada lancinante na cabeça bloqueou a respiração e perturbou-a. – Quando é que passam estas dores? – perguntou, enquanto fechava os olhos e levava uma mão à nuca. – Nas últimas 24 horas só teve dois ataques. Este é o segundo. Nos dias anteriores eram mais frequentes – disse, para a animar, e prosseguiu: – Fique sossegada, o analgésico está quase fazendo efeito. – Vou para a cama – decidiu a mulher. Tentou levantar-se. Elena reteve-a, fazendo força com a mão sobre o ombro dela. – Espere. Tente concentrar-se mais uma vez na fotografia. De que é que se lembra? O que é que sente ao olhar para ela? –

insistiu, sentando-se ao seu lado.

A doente voltou a fixar o olhar na tela.

– Não me lembro de nenhum fato, de nenhum episódio particular, mas há alguma coisa nesta imagem que me faz sofrer e que me deprime.

– Quem é a mulher que está sentada ao seu lado? – insistiu Elena. – Coragem, só mais um esforço. Depois, pode ir descansar – prometeu.

Na fotografia, ao lado da criança, estava sentada uma mulher jovem que usava um vestido de verão com algumas pretensões de elegância. Tinha no colo um recém-nascido com uma camiseta comprida, cheia de rendas, talvez um traje de batizado.

– Acho que é o sofrimento desta mulher que me faz sentir mal – sussurrou a doente. – É a minha mãe – acrescentou, sufocando um soluço.

– E aquela criança? Quem é? É seu irmão? Sua irmã? – insistiu a médica, indicando o recém-nascido. O ruído do ventilador sublinhava a tensão que unia médica e doente. – Por que é que eu já não sei o meu nome? – perguntou a mulher, em vez de responder. Era uma manobra de diversão da

mente para devolver à escuridão um fato angustiante.

Elena percebeu isso e impediu-a de divagar.

– Neste momento, o seu nome não é importante. Fale-me do bebê – pediu a médica, convencida de que a amnésia da Quarenta e Um dependia de uma vivência dolorosa que a mulher queria esquecer.

– Não sei nada. Não me lembro de nada. Deixe-me em paz! – reagiu a doente e desatou a soluçar. Elena calou-se e esperou pacientemente que a crise passasse. A mulher acalmou e olhou outra vez para a tela.

– É Ezio, o meu irmão mais novo – sussurrou, por fim. – Foi o meu pai que tirou este retrato de família. O Ezio só tinha dois meses e morreu pouco depois.

Cobriu o rosto com as mãos e recomeçou a soluçar. Elena rodeou-lhe os ombros com afeto e manteve-a apertada contra si até que a mulher parou de chorar.


3

– A Quarenta e Um está dormindo – anunciou uma médica, que acabava de concluir a ronda da tarde naquele serviço, quando entrou na sala de reuniões. Elena Gorini, sentada à mesa com os colegas, referia-se aos progressos da paciente.

– Então, se não houver mais nada, eu vou embora – continuou a colega. – Ainda preciso ir às compras, passar na casa da minha mãe, que está sempre protestando porque nunca me vê, e buscar a roupa na lavandaria antes que feche para férias. – Os presentes ignoraram os problemas dela.

– Quando acordar, é preciso pegá-la com muito cuidado – explicou Elena em voz alta, retomando o fio do discurso. – Já entendi. Vou embora e deixo-os trabalhar – declarou a outra médica e saiu. – Tive uma ideia – continuou Elena. – Se a levássemos para dar uma voltinha? – perguntou. – O que é que quer dizer “uma voltinha” – perguntou o médico mais velho. – Fora do serviço. Levo-a para dar um passeio no jardim – explicou Elena. – É uma mudança pequena, mas pode estimulá-la.

Os colegas olharam-na, duvidosos.

– Como é óbvio, não sairemos de dentro do hospital – explicou a Dra. Gorini. Quando os outros foram embora, ela subiu ao segundo andar. A cama número quarenta e um ficava num pequeno quarto particular, ao fundo do corredor. Entrou na ponta dos pés. A paciente estava acordando. A médica abriu o armário e pegou a roupa que ela trazia quando foi internada. Alguma enfermeira simpática a tinha lavado e colocado no lugar, com cuidado.

– O que vai fazer? – perguntou, com uma voz sonolenta, a Quarenta e Um. – Resolvi convidá-la para dar uma volta – respondeu, pousando a roupa em cima da cama. – Não imagina como estou cansada.

– Estou vendo. Mas tenho a certeza de que já não dói a sua cabeça. – O passeio é mais uma das suas experiências? – perguntou a mulher. – Digamos que quero fazer uma coisa diferente com você – explicou a médica. – Mas eu não sou obrigada a segui-la. Já estou bastante angustiada e não me agrada me sentir pior – protestou. – Pode vir a sentir-se melhor.

– Acha mesmo? Tem a certeza que sabe como é que eu me sinto? Estou aqui há sete dias e ninguém se apresentou para dizer: sou o marido, ou o namorado, ou o filho, ou a mãe, ou o amigo do peito, ou o colega de trabalho. Ninguém me procurou. De onde venho? O que será que fiz de tão terrível para ninguém me procurar? Esta aliança que trago no dedo pode ser a do meu casamento. Onde está o meu marido? Por que razão fui agredida e derrubada? Era apenas um roubo, ou seria qualquer coisa pior? Quem é que me garante que, ao sair daqui, alguém não vai tentar me agredir outra vez, ou até me matar? E talvez até me fizesse um favor, porque lhe garanto que não tenho muita vontade de continuar a viver – concluiu, em lágrimas.

– Coragem, tenho a certeza de que muito em breve vai conseguir reconstruir a sua vida, e que ela não vai ser feita apenas de episódios tristes como aqueles de que começou a lembrar. – Elena sorriu e pegou uma de suas mãos. – Levante-se. Isto é uma ordem, e tem que respeitá-la.

A Quarenta e Um limpou as lágrimas. Levantou-se e vestiu as peças de roupa que a médica ia lhe entregando, uma a uma. A saia e a blusa tinham nela o ar de coisas sofisticadas. O lenço amarrado em volta da cabeça fazia sobressair a perfeição do rosto. As sandálias de couro realçavam os tornozelos finos e os pés bem modelados.

Elena dirigiu-lhe um olhar de admiração.

– É muito bonita – constatou.

O cumprimento caiu no vazio. A Quarenta e Um abriu a gaveta da mesinha de cabeceira, pegou no frasco de Chanel e vaporizou os pulsos com um gesto rápido que, evidentemente, lhe era habitual.

– Talvez me sinta melhor – disse, por fim, respirando profundamente. Percorreram as alamedas dos terrenos do hospital, caminhando lentamente. O céu estava coberto de nuvens e o ar tinha refrescado. O Hospital de Niguarda era uma pequena cidade com grandes edifícios brancos, construídos durante os anos do fascismo, com ruas asfaltadas, calçadas, árvores, canteiros, automóveis, ônibus e pessoas que andavam de um lado para o outro.

Estavam perto da saída quando o guarda do portão deixou o seu posto, que era um cubo de vidro e alumínio, e foi até elas correndo.

– Estava mesmo à sua procura, doutora – disse.

– O que foi que aconteceu?

– Querem falar com a senhora da segurança. Está o agente Russo ao telefone – informou. Elena voltou-se para a doente:

– Desculpe. Eu volto num instante.

Entrou na cabine do porteiro. O telefone estava em cima da mesa de plástico cinzenta. – Fala Elena Gorini – começou, levando o telefone ao ouvido. A voz de Russo assaltou-a como um furacão. – Peço desculpa, Sra. doutora, mas há notícias frescas sobre a Quarenta e Um – anunciou. Através do vidro, Elena observou a mulher, que estava sentada num banco. Tinha a cabeça reclinada para trás e os olhos

fechados.

– Tem nome. É uma tal Irene Cordero – continuou o agente.

– E mais?

– É tudo, por enquanto. O colega da central diz que mais tarde lhe fornecerão mais informações. – Obrigada, Russo – sussurrou Elena.

Desligou o telefone, agradeceu ao guarda e aproximou-se da doente. Sentou-se no banco ao lado dela. A mulher não se mexeu.

– A polícia já sabe quem você é – disse Elena.

– É sério? – perguntou a mulher em voz baixa.

– É sério, Irene – respondeu a médica.


4

– Então, me chamo Irene – repetiu a mulher, após um longo silêncio. – Foi isso que me disse o polícia – anuiu Elena.

– Encontraram os meus documentos?

– Não sei. Vão nos dar outras informações em breve.

– Disse-me que, logo a seguir ao internamento, me tiraram as impressões digitais. Talvez tenham chegado assim ao meu nome. Talvez até tenha cadastro. Quer ver que anda se entretendo com uma presidiária?

– Se assim fosse, há sete dias tinha entrado na igreja para esconder uma mala cheia de droga, ou para a entregar a um emissário que lhe daria outra, cheia de dinheiro. Depois, este último, pensando melhor, agredira-a para fugir com o dinheiro e com o material. Que lhe parece? – brincou Elena.

– E se fosse verdade? – perguntou Irene, angustiada.

– Se tivesse cadastro, a polícia tinha nos comunicado imediatamente o seu nome e todos os pormenores da sua vida – tranquilizou-a a médica.

– Irene deriva do grego eirene e significa paz – observou a mulher, pensativa. – Então sabe grego – constatou Elena.

– Talvez. Mas se pensar no meu nome, me vem à mente Irene de Salônica. Foi martirizada no ano do Senhor de 304 – explicou, e acrescentou: – Qual é o meu sobrenome?

– Cordero.

– É um sobrenome do Piemonte. Irene Cordero. Soa bem, mas não o associo a nada nem a ninguém. Em qualquer caso, a partir de amanhã já pode escrever na minha ficha clínica – constatou com alguma amargura.

– Tem certeza de que não se lembra de nada?

– Apenas alguns raios de luz que escurecem rapidamente. Falei da minha mãe, mas nem sequer sei o nome dela. Estou confusa e perturbada por sons sem sentido que se perseguem no meu espírito. Posso até ser louca – raciocinou Irene.

– Mas não é. Garanto.

– No entanto, a palavra “louca” me recorda alguma coisa. Ouço vozes masculinas, de timbres diferentes, que dizem com desprezo: “É louca.”

– Tenho certeza de que a sua memória conserva recordações muito mais agradáveis do que essas. Acredite – animou-a. Levantaram-se do banco e avançaram ao longo da alameda para voltar ao serviço. Fizeram um percurso diferente do da ida e passaram em frente à capela do hospital. Irene parou e disse:

– Gostaria de saber o que estava fazendo na igreja de San Marco às nove da manhã de um dia normal. – E acrescentou: – Agora sei como me chamo e, no entanto, a minha memória não melhora.

– De que se esconde, Irene? – perguntou Elena.

– Do sofrimento. Sinto-o dentro de mim, como um tumor maligno, que me oprime e me angustia. Sabe o que é que eu acho? Que, antes da agressão, deve ter me acontecido alguma coisa terrível. Então, dominada pelo desespero, fui à igreja rezar. A oração tem um poder terapêutico. Não lhe parece uma explicação lógica? Mas agora chega. Não estou com vontade de responder a mais perguntas – reagiu a mulher.

Elena Gorini não fez comentários, deixando que Irene seguisse o fio dos seus próprios pensamentos. A mulher deu alguns passos e parou. Virou-se para a médica e disse: – Antes de a senhora entrar no meu quarto, sonhei que estava num bosque. Através da folhagem densa das árvores passavam

lâminas iridescentes de sol. Eu estava sentada no chão. A minha avó estava aos meus pés. Apontou um dedo para cima e disse: “Em cima daquele ramo, há muito tempo, pousei o meu amor. Ainda está lá. Consegue vê-lo?” Eu olhei, mas, por cima de nós, só havia folhas. “Ali em cima não tem nada”, disse à minha avó. “Olhe melhor”, insistiu ela. Fiquei de pé, estendi os braços para cima e caiu nas minhas mãos um novelo de seda cor-de-rosa que se transformou numa lindíssima rosa escarlate.

– O que sentiu? – indagou Elena.

– Uma sensação de prazer quase sensual. Depois acordei. Em qualquer caso, não me lembro nada da minha avó. Se calhar nunca houve nenhuma avó na minha vida.

Irene olhou para a fachada da capela, encimada por uma grande cruz de ferro. Juntou as mãos. Depois fez o sinal da cruz, recitando:

– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Aquela manifestação de religiosidade, já tão fora de moda, impressionou a neuropsicóloga e confirmou a convicção de que tinha na sua frente um caso muito complexo.


5

Às nove horas da manhã daquele dia 2 de agosto o Dr. Angelo Marenco saiu do seu gabinete no primeiro andar do comissariado.

Desceu as escadas, enquanto respondia distraidamente ao cumprimento de funcionários e colaboradores. Atravessou o pátio onde estavam estacionados os carros da polícia, passou o átrio e virou à direita, seguindo pela via Fatebenefratelli em direção à piazza San Marco.

Anunciava-se mais um dia sufocante, mas Angelo Marenco era um homem da planície: o calor não o incomodava. No entanto, perturbava-o o ar poluído.

Tinha nascido no campo. A sua família possuía cinquenta jornadas de terra, na província de Cuneo. A “jornada” era a unidade de medida do terreno arado por uma junta de bois do nascer ao pôr do sol. Desde há algum tempo, os bois tinham sido substituídos por tratores, mas mantinha-se o antigo conceito de medida. Cinquenta jornadas eram um patrimônio discreto.

A escola e o trabalho nos campos tinham marcado a sua infância e a adolescência. Angelo amava o verão. Começou a detestá-lo quando se transferiu para Turim para frequentar a escola. Na cidade, ficou hospedado na casa de uma tia materna que era casada com um empregado bancário.

Ali, os meses estivais pareciam tórridos e arranjava sempre pretexto para ir à casa, ao campo. Até que entrou em conflito com a família, que queria vê-lo formado em Agronomia. Ele, porém, sem os consultar, ao fim de alguns anos mudou de faculdade e inscreveu-se em Direito.

– O Angelo é um cabeça dura. Quer sempre fazer as coisa à maneira dele – dizia o pai. – Um camponês obstinado – assim o definiram em seguida os seus superiores quando entrou para a polícia e, como simples agente, acabou o curso. Agora era chefe de polícia.

Atravessou o empedrado que revestia a pracinha côncava da igreja de San Marco. Vestiu o casaco de linho, que até aquele momento trazia no braço, e entrou na basílica.

Molhou a ponta dos dedos na pia da água benta e fez um rápido sinal da cruz. A penumbra fresca da igreja transmitiu de imediato uma sensação de bem-estar. Não era um católico praticante, mas gostava da calma daquela esplêndida basílica que visitava todas as manhãs, se os compromissos lhe permitissem. Os seus colaboradores conheciam aquele hábito singular do Dr. Marenco e confundiam-no com religiosidade. E talvez fosse, mas era sobretudo uma maneira de se isolar e de arrumar as ideias.

Tinha também estado em San Marco na manhã em que fora agredida a mulher que estava agora no hospital. Quando o informaram, pensou que, se ali tivesse ficado mais meia hora, um crime teria sido impedido e evitado muitos problemas, uma vez que a identidade da vítima era ainda desconhecida e o agressor, logo identificado, tinha literalmente desaparecido no vazio.

Sentou-se no último banco, como fazia todos os dias. Inclinou a cabeça sobre o peito e fechou os olhos. Aquela pausa de recolhimento era um corte com a realidade, uma necessidade imposta pela dureza do seu trabalho. Ao fim de vinte anos de profissão, o chefe da polícia esforçava-se ainda para erguer uma barreira entre si, os seus próprios sentimentos e os fatos cruéis com que tinha de lidar todos os dias. No silêncio, sublinhado pelo ranger de passos de alguns fiéis, à luz quente das velas, respirando o perfume do incenso que nunca se evaporava, ele recuperava recursos e energias, como quando era rapaz caminhava sozinho pelos campos durante horas.

As suas origens camponesas revelavam-se na linguagem seca, no pudor de exteriorizar os seus próprios sentimentos e na cautela com que formulava juízos.

No silêncio da igreja, o chefe da polícia pensou no rosto luminoso de Viviana, a mulher. Estava na Sardenha com os três filhos, na casa do pai, o professor Martinelli, jurista brilhante e titular, em Milão, de um importante escritório de advogados.

Viviana era uma mulher bonita, que se distinguia pela elegância e pela simplicidade de maneiras. Amava-a profundamente e adorava os filhos, três rapazes enérgicos que definia, na brincadeira, como “os meus patifes”.

Dentro de quinze dias ia encontrá-los na praia para levá-los para San Benedetto, a sua terra natal, onde, como todos os anos, iriam passar as duas últimas semanas de agosto. Naqueles dias, Angelo Marenco recuperava uma parte importante das suas raízes. Ensinava os filhos a usar a foice e a enxada, a limpar os feijões das ervas daninhas e a tratar dos animais. À noite, sentava-se debaixo do alpendre com parentes e vizinhos e mantinha junto dele Viviana e os filhos, enquanto o pai ia abrindo garrafas de vinho das suas terras. Havia sempre alguém que recordava histórias de tempos passados e o pai, invariavelmente, falava do milagre econômico dos anos sessenta, quando nasceram as primeiras indústrias e começou, mesmo no campo, a corrida para o progresso. Quem não tinha conseguido acertar o passo com as novas tecnologias tinha perdido terra e casa.

Naquele ponto, o velho Marenco atacava os políticos que, em vez de ajudarem os camponeses, tinham apoiado a indústria. – Nem os comunistas percebiam nada. Ou talvez fizessem de conta que não percebiam – dizia, acalorado. – Só queriam competir com a Democracia Cristã e não se deram conta de que estavam enterrando o recurso mais importante do nosso país. Angelo Marenco sorriu. O pai era realmente uma pessoa especial. Tinha poucos estudos, mas sempre soubera ver muito longe.

Pois bem, a pausa de recolhimento estava no fim. Levantou-se e dirigiu-se para a saída. Voltou a percorrer a via Fatebenefratelli e entrou no café em frente à delegacia.

O empregado, apesar da quantidade de pessoas que entrava e saía, viu-o imediatamente, porque ficava com metade da cabeça acima das outras pessoas.

– O de costume, Sr. doutor?

O chefe da polícia anuiu, aproximando-se da caixa. A dona do café sorriu. Era uma loira à volta dos quarenta anos, do Piemonte, como ele.

– Olá, Sr. doutor. Já viu o calor que está? – disse, com o sotaque típico daquele dialeto. Ele replicou com um gesto de resignação.

– É claro que o senhor, só para não ter que falar, era capaz de cortar a garganta – rosnou a mulher entredentes. Angelo sentou-se ao balcão, deitou bastante açúcar no café bem curto, mexeu-o lentamente e saboreou-o com prazer. Estava bem-disposto e, uma vez que a loira continuava a sorrir, perguntou-lhe em tom de brincadeira: – O seu marido nunca a leva para dar uma volta?

– Nunca – respondeu ela, aproveitando a deixa. – Esse está sempre cansado. Não é dos nossos lados. – Então eu a convido para jantar logo à noite – propôs o chefe da polícia. A loira corou até as orelhas. Era boa pessoa, mas gostava dos homens bonitos e o Dr. Marenco era aquilo que ela definia

como “homem perfeito e bonito”.

– Veja lá o que diz. Olhe que eu era bem capaz de aceitar – replicou, com um ar sedutor. – Quando acabar o namoro, quero falar com você – disse o comissário Bonanno aproximando-se do chefe da polícia.

Angelo respirou de alívio porque, naquele ponto, não sabia como havia de sair daquele impasse com a loira. – Chega sempre no momento certo – constatou em voz baixa, pousando a xícara vazia no balcão. Saíram do café.

– Então? – perguntou o chefe da polícia.

– É o caso San Marco. Tenho novidades – anunciou Bonanno. E continuou: – Finalmente sabemos o nome da mulher bonita que perdeu a memória.

– Quem é? – perguntou Angelo, enquanto tirava o casaco.

– É alguém que conhece você muito bem. Irene Cordero.

Quando era pequeno e explodia de repente no céu o fragor de um trovão, Angelo ficava imobilizado pelo medo. Naquele momento, comportou-se da mesma maneira. Atravessava a rua com Bonanno e estacou, com os automóveis passando por ele como setas. O comissário olhou-o, preocupado. Após um longuíssimo instante, continuaram a andar e pararam em frente ao portão da delegacia central.

– Como foi que conseguiram identificá-la? – perguntou o chefe da polícia, que tinha já recuperado o controle de si próprio. – Nestes últimos dias, o pároco de San Marco reparou numa mancha de umidade por cima do confessionário, junto à capela de Santa Teresa. Contatou os operários, que ali se apresentaram ontem, ao fim da tarde. Afastaram o confessionário para verificar a extensão da infiltração e, por baixo, encontraram o talão de um cartão de embarque do voo Londres-Milão de 26 de julho. O padre resolveu levá-lo à polícia e hoje de manhã, às oito horas, entregou-o ao Capuzzo. Consultamos a companhia aérea, que nos forneceu o nome do passageiro, e confrontamos as impressões digitais do talão com as da mulher agredida: são idênticas. Trata-se de Irene Codero – concluiu o comissário.

– Ótimo – disse Marenco. Sem mais comentários, deixou Bonanno em frente à delegacia e dirigiu-se à piazza Cavour. A imagem de Irene, tão bonita, com um rosto de porcelana, uma voz muito doce e um olhar intenso explodia na cabeça e no coração.

Caminhava rapidamente e, em poucos minutos, chegou à praça. Atravessou-a, passou um grande portão de ferro forjado e entrou numa alameda do jardim público. Sentou-se num banco, à sombra de um plátano.

Do outro lado da cortina de árvores chegava o ruído dos automóveis. A sirene de uma ambulância rasgou o ar. Ao longo da alameda sombria, dois idosos caminhavam, devagar, conversando em voz baixa. Lembrou-se de quando tinha ido levar Viviana e as crianças ao aeroporto de Linate. Foi no dia 26 de julho e eles iam partir para a Sardenha.

– Nem vale a pena perguntar se vai conosco no fim de semana – disse a mulher. – Nunca se sabe. Até pode ser que vá – respondeu, abraçando-a. – Mas por que foi que eu me casei com você? – perguntou Viviana, em torno de brincadeira, mas não completamente. – Porque gosta de policiais – respondeu ele, enquanto lhe acariciava o rosto. Viviana era uma mulher maravilhosa, a única capaz de o fazer esquecer Irene. Seguiu-a com os olhos, enquanto ela passava dos limites. Voltou-se, juntamente com os filhos. Atirou-lhe um beijo soprado na palma da mão. Ele sorriu e despediu-se, levantando um braço. Depois foi para o escritório e contaram-lhe que uma mulher jovem tinha sido agredida e roubada na basílica de San Marco. Agora sabia que a vítima era Irene.

Tinham passado vinte anos desde o dia em que, assustado como um menino de escola, lhe tinha perguntado: “Irene, quer casar comigo?”

Mas ela era feita de vento. Muitas vezes acreditou que a tinha na mão, mas de todas as vezes acabou por se dar conta de que apenas agarrava o ar. Sofrera muito por ela.

Nunca chegou a esquecê-la, mas, com o passar do tempo, o sofrimento tinha se atenuado e tinha conseguido construir uma existência tranquila.

Não via Irene há muitos anos. Agora ela entrava novamente na vida dele.


6

Angelo entrou como uma fúria no gabinete do comissário. Bonanno estava falando ao telefone. Viu-o e concluiu bruscamente a conversa.

– Puseram-na sob proteção? – perguntou o chefe da polícia. Era evidente que se referia a Irene. – Estão dois dos nossos homens vigiando-a desde hoje de manhã. – Onde estiver a Irene, está o Tancredi Sella. E onde estiver o Sella, está um monte de complicações – comentou Angelo, preocupado. – Diz aos seus homens que se despachem. Encontrem o agressor. Quero saber se se trata de um roubo de carteira banal ou se é mais alguma coisa. Vamos trabalhar, entendido? – berrou. Depois saiu, batendo a porta com maus modos.

Não era nada do tipo que tinha ataques de fúria súbitos. Por isso, Bonanno foi atrás dele, que ia já descendo precipitadamente as escadas. Apanhou-o no momento em que Angelo estava entrando no carro.

– Pelo amor de Deus, se acalma – aconselhou-o. Estava sem fôlego por causa da corrida. – Temos um encontro com o Terlizzi ao meio-dia. Ia dizer isso. Já esperava uma reação da sua parte. Mas não contava que fosse tão violenta. Achava que eram já águas passadas – acrescentou, ofegante.

– Acha que estou exaltado? – perguntou o chefe da polícia, irritado. – Acho. E não me parece que seja caso para isso – protestou Bonanno, que conhecia a história de Irene e Angelo, e sabia o que ele tinha sofrido por causa disso. Por isso acrescentou: – Tenha cuidado para não se deixar envolver outra vez. Você tem uma ótima família. Será uma pena se estragar tudo.

O Dr. Marenco não respondeu. Fechou a porta na sua cara, pôs o carro para trabalhar e partiu em grande velocidade. Enquanto se desvencilhava no meio do trânsito, conseguiu obter via rádio as coordenadas do setor hospitalar em que Irene se encontrava.

– Avisa-os da minha chegada – ordenou ao agente de turno.

Assim, quando chegou ao serviço de neuropsicologia, a Dra. Gorini estava à espera dele. – Onde está Irene Cordero? – perguntou bruscamente, depois de ter se apresentado. – Sr. Comandante, gostaria de lhe lembrar que isto não é um quartel. Estamos num hospital e eu sou responsável pelos meus doentes – replicou Elena, irritada com o tom peremptório do homem. Estavam em frente à porta da neuropsicologia e ela não parecia disposta a se deixar intimidar.

– Quero ver Irene Cordero – insistiu Angelo.

Elena captou uma expressão de angústia nos olhos do polícia e pensou que aquele homem, bonito e autoritário, poderia estar envolvido na vida de Irene não só por motivos profissionais. Então sorriu e disse:

– Fique sossegado, a Irene está bem e daqui a pouco vai poder vê-la. – Depois acrescentou, em tom de cumplicidade: – Pediu-me uns minutos, antes de o receber, para ficar apresentável. Sabe, é a primeira vez que recebe visitas. – Abriu a porta e, com um gesto, convidou-o a entrar. Naquele quarto pequeno, o computador, em cima da mesa, estava ligado, e a tela reproduzia a fotografia de família em preto e branco. Angelo reparou nela.

Aproximou-se da mesa e olhou para a imagem durante muito tempo. Elena Gorini observava-o, com as mãos metidas nos bolsos da bata. – Conheço Irene Cordero desde sempre – disse por fim –, mas não a vejo há anos. – Seis de abril de 96 – tentou Elena Gorini, aproximando-se dele. – Como?

– É a data gravada na aliança que a Irene traz no anelar. Sabe alguma coisa sobre isso? – Rigorosamente nada. Mas, por favor, fale da amnésia da Irene. Angelo estava mais calmo, pelo menos aparentemente.

– Recuperou apenas alguns fragmentos da infância. De qualquer maneira, é um bom começo. Durante dias e dias andamos tateando no escuro. – E acrescentou: – Vou buscá-la.

Deu alguns passos em direção à porta e depois parou. Virou-se e disse: – Até este momento, a fotografia era a única pista de que dispúnhamos. Agora, a sua ajuda pode ser determinante. Angelo ficou só. Sentou-se à mesa e olhou para a tela do computador. Então era aquela a fotografia referida nas atas, juntamente com os outros objetos encontrados na igreja. Se tivesse pedido logo para vê-la, Irene teria sido imediatamente identificada. Observou a imagem, que remontava a trinta anos atrás. Reconheceu um por um todos os personagens captados pela câmera. Recordou um dia distante, quando Irene foi chamá-lo:

– A minha mãe quer que você vá. E eu também quero – disse-lhe. Foi assim que se achou pousando no meio da família dela. Era ele o rapaz de quinze anos atrás da pequena Irene.

Admirou-se pelo fato de ela ter conservado aquela fotografia durante tanto tempo. – Nunca esqueceu – sussurrou, e um nó de comoção apertou-lhe a garganta. Logo a seguir foi tomado por um ataque de cólera porque, mais uma vez, estava à beira de se deixar envolver com aquela mulher frágil e desesperada, egoísta e corajosa, sincera até a impiedade. Ninguém conhecia Irene tão bem quanto ele, que quase a vira nascer.

Angelo tinha cinco anos quando pegou ela no colo pela primeira vez. Estava na fazenda da família Cordero, e Irene, que tinha poucos dias, berrava no colo da mãe, Rosanna. – Posso pegar ela? – pediu Angelo.

Rosanna entregou a menina. Pesava tanto como um pintinho. Ficou logo sossegada. – Você inspira confiança – comentou Rosanna.

Ele sorriu e pensou: “Vou protegê-la das bruxas.”

Lembrou-se dela menina, com as pernas enterradas na neve, pelo caminho que ia da fazenda até a estrada. O casaquinho vermelho parecia uma mancha de sangue na extensão branca dos campos. A mochila cor-de-rosa, abarrotada de livros e cadernos, pesava nos ombros frágeis, e ela, em certos momentos, vacilava. Tinha seis anos e andava na primeira classe. Viu-o chegar vindo da fazenda dele.

– Angelo, meu anjo bonito, voe pra cá – gritou Irene, com os olhos brilhantes de frio, o nariz pingando e as mãos nuas rachadas pelas frieiras. Angelo foi até ela, instalou-a em cima dos seus ombros e foi levá-la à escola.

Pelo caminho, fartou-se de conversar com ele. Depois agradeceu-lhe e disse: – Um dia vou te dar um grande presente. Vou te comprar um cachecol azul muito bonito. Sentiu a porta abrir-se. Levantou os olhos da tela. Irene tinha entrado na sala e olhava para ele. Não tinha mudado desde a última vez em que se encontraram. Tinham passado muitos anos. Só o olhar parecia diferente.

Não havia sombras naqueles magníficos olhos azuis.

Trazia uma calça de linho lilás e uma camisa branca que lhe realçavam a silhueta perfeita. Tinha um lenço lilás apertado na nuca. Aquela roupa nova era um presente de Elena.

O policial sentiu um vago perfume de Chanel que conhecia bem.

– Olá, Irene – disse baixinho, enquanto se levantava da cadeira.

– Olá – respondeu ela, com uma voz monocórdica.

Elena Gorini, atrás dela, observava-os em silêncio.

– Como é que está? – perguntou Angelo.

– Estou bem, obrigada – afirmou, sem se mexer.

– Estava aqui olhando para a fotografia da sua família – continuou ele. Irene aproximou-se e olhou para a tela. – Eu também estou aqui. Não me reconhece? – perguntou ele, devagar. Ela olhou durante muito tempo para a imagem, sem falar. Depois entreabriu os lábios num sorriso e indicou, na fotografia, o adolescente por trás dela.

– É claro que me lembro de você – exclamou. Abriu os braços e disse: – Angelo, meu anjo bonito, voe pra cá. O chefe de polícia apertou-a contra si. Irene escondeu o rosto no ombro dele, encostou os lábios ao ouvido e sussurrou: – Lembro-me de todas as horas, de todos os momentos.

Elena Gorini, sem fazer barulho, saiu do quarto.


7

Angelo estava atrasado. Travou bruscamente e a roda posterior da motocicleta deslizou no asfalto, que se tornara escorregadio devido à neve que caía densa de um céu de chumbo.

Naquela tarde de dezembro, úmida e melancólica, as iluminações natalinas coloriam as ruas do centro de Milão. Angelo prendeu a motocicleta com a corrente a um poste de iluminação e enfiou a chave do cadeado no bolso do blusão. Tinha aos ombros uma mochila que continha um livro de Biologia, um gravador e o caderno de anotações. Encolheu, como uma tartaruga, o pescoço dentro da gola e, bafejando as mãos entorpecidas pelo frio, avançou rapidamente ao longo da via dei Giardini. Dobrou a esquina e, alguns metros adiante, entrou num portão baixo. À esquerda, uma escada de cimento conduzia para um amplo porão de um café-padaria com salão de chá. Lá embaixo o ar era quente e úmido. O espaço estava dividido em vários setores, delimitados por paredes pintadas de branco: o vestiário do pessoal, o depósito das bebidas, o armazém das provisões e a cozinha, onde os padeiros trabalhavam a um ritmo cerrado, entre aromas de baunilha e caramelo e a letra de uma música da moda cantada por Amanda Lear: Voulez-vous un rendez-vous tomorrow . O teto era uma sucessão de abóbadas construídas dois séculos antes, com tijolos à vista.

Havia um grande movimento de pessoal entre o porão e o andar superior. O monta-cargas subia e descia, uns praguejavam, outros riam, outros cantavam.

– Marenco, despacha. Está atrasado, como de costume – lembrou-lhe um rapaz que, no vestiário, colocava uma camiseta e um jeans.

– Eu sei – disse Angelo. Abriu o armário que lhe pertencia, arrumou o blusão e a mochila e começou a despir-se com movimentos muito rápidos. Estava atrasado porque, depois da aula de Biologia, tinha ido à secretaria informar-se sobre a data dos exames.

– Quem se lixa sou eu – protestou o colega, já pronto para ir embora. – Amanhã não tenho aulas. Venho mais cedo – prometeu Angelo, enquanto apertava um grande avental branco. A seguir meteu-se pela escada interna que conduzia ao andar de cima e desembocava dentro do balcão. Trabalhava seis horas por dia e preparava cafés, chás, chocolates quentes, ponche , limonadas e cappuccino. Quando ia embora, depois de ter respirado durante tanto tempo os vapores da cafeína, Angelo tinha os nervos à flor da pele. No entanto, considerava-se feliz por ter aquele trabalho, que lhe permitia pagar o aluguel de um quarto sem pedir muito dinheiro à família.

– Ora veja, chegou o professor! – exclamou Rocco, um colega do balcão, que o substituía na máquina do café. Era um napolitano com cerca de quarenta anos, simpático e generoso. Zombava de Angelo porque tinha aspirações diferentes das dele, mas estava sempre pronto para ajudá-lo e para cobrir os atrasos. O café estava repleto de clientes, que se encontravam quer ao balcão quer nas mesas. Havia também muita gente no setor que fora reservado para a realização de embrulhos de Natal. Eram dias terríveis de trabalho. – Um descafeínado cheio – pediu uma cliente jovem, enquanto estendia o talão da caixa ao empregado napolitano, que transmitiu o pedido a Angelo: – Então são três cappuccinos, dois cafés e um descafeínado comprido. – Depois voltou-se para a moça e perguntou-lhe, com um ar malicioso: – De que comprimento que o quer, menina?

– Quanto baste – respondeu ela, sem se perturbar.

Angelo, que estava de costas às voltas com a máquina, censurou Rocco em surdina: – É sempre o mesmo engraçadinho. Se o chefe te ouve, está feito. – Quando eu vejo uma mulher como aquela, perco o juízo – replicou o napolitano em voz baixa. Angelo voltou-se para o balcão e viu-a.

Trazia uma capa azul, era alta e magra, tinha uns cabelos encaracolados e muito negros que emolduravam um rosto de porcelana iluminado por grandes olhos de um azul intenso.

Teve vontade de saltar por cima do balcão para abraçá-la. Mas limitou-se a sorrir. – Olá, Irene – cumprimentou-a.

– Angelo! Não posso acreditar – exclamou ela.

– O que é que está fazendo em Milão? – perguntou o rapaz.

– Arranjei um bom emprego – respondeu Irene, muito satisfeita.

Angelo tinha a encontrado seis meses antes, durante o verão. Irene trabalhava numa fábrica de jeans em San Benedetto. Contou-lhe que estava frequentando um curso noturno de secretariado, porque não queria ser operária toda a vida, como a mãe. Ele deu-lhe razão. Foram dar uma volta pelos campos, de bicicleta, e ela despejou em cima dele, como sempre, um rio de palavras, misturando realidade e fantasia.

– Os três cappuccinos, saem ou não? E é mais um ponche de tangerina. – Rocco tentava colocá-la na ordem. Não era permitido conversar com os clientes, sobretudo quando havia muita gente ao balcão.

– Eu saio às oito. Onde é que posso encontrá-la? – sussurrou Angelo a Irene. – Estou aqui fora à sua espera – garantiu ela, antes de esvaziar a xícara de descafeínado. Angelo trabalhou toda a tarde, ignorando os comentários mordazes do napolitano. Pensava em Irene, sozinha numa grande cidade desconhecida. Precisava tê-la à vista, porque era bonita demais para passar despercebida e podia muito bem se meter em complicações. Milão não era San Benedetto, onde toda a gente a conhecia e a protegia. Ali, as moças bonitas corriam riscos de todos os gêneros. Do balcão da padaria assistia muitas vezes a situações que não lhe agradavam.

Às oito horas desceu ao porão, mudou de roupa e saiu. A neve, que continuava caindo, atenuava o ruído do trânsito. Olhou em volta. Irene não estava ali. Dirigiu o olhar para o interior do café. Também lá não estava. Resignou-se a ter de esperar por ela. Às nove, tremendo de frio, concedeu-se mais cinco minutos de espera, para depois pegar a motorizada e voltar para casa. Cinco minutos após cinco minutos e já eram quase dez horas. Foi embora, desiludido e preocupado.

Antes de subir os seis andares até o quarto onde vivia, entrou na leiteria onde às vezes jantava, à base de café com leite e pão.

Aquele espaço, iluminado por uma luz tênue, tinha as paredes de azulejo branco, mesas de ferro com tampo de mármore raiado de cinzento e um balcão de madeira escura. O cheiro do leite misturava-se com o perfume do café, da canela, do chocolate, do licor de anis e das malas de mentol metidas em grandes frascos de vidro.

– Precisava dar um telefonema – pediu Angelo à dona, que cochilava, empoleirada num banco alto, atrás do balcão. Era uma mulher de idade, minúscula, com uns cabelos imaculados enrolados na nuca, como as velhas camponesas que Angelo tão bem conhecia. Chamava-se Vera. Tinha já um filho com quarenta anos, que a ajudava no estabelecimento. Não era muito esperto, e para ela era uma preocupação constante.

– O que será dele quando eu já não estiver aqui? – A pergunta, que não supunha nenhuma resposta, era muitas vezes dirigida com uma voz angustiada aos velhos clientes que o tinham visto crescer. A signora Vera sorriu para Angelo. Zerou o contador e disse: – Já pode.

Num canto, ao fundo do estabelecimento, havia uma cabine com um telefone de parede, um modelo com vinte anos. Angelo entrou e acendeu a luz. Depois discou o número da casa dos pais. Atendeu a mãe, que lhe perguntou, preocupada:

– O que foi que aconteceu? Estávamos dormindo.

– Queria notícias de vocês – desculpou-se.

Normalmente ligava para casa uma vez por semana, aos domingos, porque custava metade do preço. – Se telefona às dez e meia da noite, é porque aconteceu alguma coisa. Fez alguma dívida? Foi mal em algum exame? Pode me dizer tudo. Estou aqui sozinha, na cozinha – disse a mãe, para acalmá-lo. – Hoje vi a pequena dos Cordero. Disse-me que trabalha em Milão. Sabe alguma coisa? – decidiu perguntar. Ouviu um grande suspiro da mãe.

– A pobre da Agostina está desesperada. A Irene foi embora há um mês. Parece que arranjou um emprego como telefonista. De qualquer maneira, deixa de se fazer de anjo da guarda. Pense mais nos seus exames. Os anos passam e ainda não está formado. O seu pai já começa a resmungar e eu tenho que lhe dar razão.

– Está bem, mãe. Prometo que vou estudar mais – garantiu ele.

As notícias sobre Irene não o tranquilizaram. Pagou a chamada, despediu-se da signora Vera e começou a subir as escadas da velha casa com uma sensação de mal-estar. Os pais queriam que ele se inscrevesse em Agronomia, mas ele se sentia mais atraído por outras faculdades, como Direito ou Filosofia. Nos anos em que tinha vivido em Turim, com os tios, descobrira novos horizontes, diferentes dos da agricultura. Sabia que, se exprimisse aquelas dúvidas em casa, o pai e os irmãos não iam entendê-lo. Por isso, tinha mesmo que se atirar para a frente. Os exames iam andando devagar, e sentia-se culpado por causa das propinas que a família lhe pagava. Com 23 anos, alguns dos amigos do colégio já estavam formados. Ele, pelo contrário, não tinha ainda ideias claras sobre o futuro.

Chegou ao sexto andar com a perspectiva de um banho bem quente e de um sono reparador. A mãe tinha razão: tinha mesmo de estudar e de deixar de se considerar o anjo da guarda de Irene.

Irene estava ali, sentada no tapete em frente à porta dele.

A luz que iluminava as escadas apagou-se. Angelo acionou no interruptor. Estava sem fala. Foi ela quem falou: – Até que enfim. Estou à sua espera há horas.

– A verdade é que fui eu quem esteve à sua espera, durante duas horas, debaixo da neve – replicou Angelo, irritado. Mas estava feliz por voltar a vê-la. Abriu a porta de casa. Chegou até eles o calor de um aquecedor a querosene.

– Saí do trabalho às seis e não sabia para onde poderia ir até às oito. No verão passado me deu a direção e por isso vim para cá. Estava convencida de que, se não me visse à porta da padaria, vinha logo para casa – explicou.

– É completamente doida – disse Angelo, e abraçou-a, rindo.

O mal-estar tinha desaparecido de repente.


8

Angelo tinha sempre se sentido responsável por Irene, mesmo quando era ainda um rapazinho. Não sabia de onde vinha o impulso de protegê-la. Aceitava-o como uma coisa natural.

– Já comeu? – perguntou-lhe, enquanto a ajudava a tirar o casaco e o cachecol. Ela abanou a cabeça e olhou em volta.

– Anda, vou lhe mostrar o meu palácio – brincou ele.

O quarto era grande, tinha quatro janelas em duas paredes opostas, uma mesa de pingue-pongue, duas cadeiras diferentes, uma cama, estantes metálicas cheias de livros e de discos e um armário velho de duas portas. Num canto, por trás de um biombo, havia um fogão a gás, uma lava-louça, uma prateleira para os pratos e um frigorífico. Nas paredes, cartazes que reproduziam pinturas de Van Gogh e de Chagall. Uma porta pequena, ao fundo do quarto, dava para um banheiro minúsculo com um chuveiro rudimentar.

– Vou arranjar qualquer coisa para comer – propôs Angelo. – Na geladeira há ovos, leite, sumos de fruta, manteiga e queijo. – Eu não tenho fome – declarou Irene, que foi sentar-se na cama. A rede metálica chiou. – Mas come, de qualquer maneira. Sou muito bom em cozinhar ovos estrelados – disse, enquanto acendia o fogão. Pousou sobre a chama uma frigideira de ferro e jogou dentro um pedaço de manteiga, que começou a derreter e a fazer barulho. Partiu quatro ovos e despejou a clara em cima da manteiga. Quando começou a ficar branca, deixou cair as gemas, pôs sal, cobriu a frigideira e apagou a chama. Dois minutos depois tirou a tampa. O jantar estava pronto.

Comeram na mesa de pingue-pongue e beberam suco de abacaxi. – Agora me conta tudo – disse ele, apoiando os cotovelos na mesa. Desde o verão anterior, Irene, se é que era possível, estava ainda mais bonita. Vestia uma calça preta, uma blusa vermelha de gola alta e umas botas de couro sem salto. Não estava pintada. Angelo achou que ela também não precisava. – Nunca mais volto para San Benedetto. Tenho pena, por causa da minha avó e do meu pai, mas naquela fábrica de calças eu me sentia sufocando. Não nasci para ser operária, nem sequer camponesa. Quero outras coisas da vida e vou tê-las – explicou, enquanto limpava a boca com um guardanapo de papel.

– O que é que quer dizer com isso? – perguntou Angelo.

– Eu trabalhava na máquina de costura à espera do sábado, porque no dia seguinte não ia para a fábrica. Aos domingos levantava-me tarde, quando os sinos começavam a tocar. De tarde não sabia o que faria. Na aldeia, os homens jogavam cartas na taberna e as mulheres passeavam na rua principal. Eu ia a Cuneo com as minhas amigas, ver algum filme estúpido. Ainda não tinha acontecido nada e a festa já tinha acabado. O domingo só era bom ao sábado. À noite, pelo caminho, encontrava um bêbedo praguejando contra as estrelas, ou então dois camponeses se batendo sabe-se lá por que antigo rancor. E um cão ladrando para a Lua. De longe vinha o choro de uma mulher a quem o marido batia. Depois, regressava à fazenda. No dia seguinte era segunda-feira e voltava tudo ao mesmo, sempre igual. Eu já não aguentava aquela vida, acredite – concluiu.

Angelo concordou. Também ele tinha sentido o mesmo mal-estar e ficou feliz por poder fazer a vontade da família, que o mandou para Turim continuar os estudos. Depois, também Turim pareceu pequena demais para as suas aspirações e veio para Milão, a cidade da opulência, do bem-estar e do sucesso.

– Por isso, decidi que tinha de me mexer. Vi no jornal um anúncio de uma empresa de Milão que precisava de uma recepcionista e que pedia que juntasse ao currículo uma fotografia de corpo inteiro. Mandei aquela que você tinha tirado, em agosto do ano passado, na praça de San Benedetto. Não estava à espera que me respondessem. Mas afinal me chamaram e contrataram. Sou uma espécie de porteira. Estou sentada no átrio atrás de uma mesa com tampa de vidro, entre dois canteiros de plantas verdes. Tenho de receber as visitas e de acompanhá-las aos vários gabinetes, sempre sorrindo. O patrão, de manhã, chega antes de toda a gente e me olha da cabeça aos pés. Depois diz: “Absolutamente perfeita.” Eu chamo o elevador e ele sobe. O secretário, que o imita em tudo, na maneira de vestir, nos gestos e até no tom de voz, repete: “Absolutamente perfeita”, e vai ao encontro do chefe – explicou, enquanto imitava os dois personagens de uma maneira cômica.

Angelo sorriu.

– E quem é esse patrão? – perguntou.

– É um siciliano. Chama-se Tancredi Sella. – Não disse que era um homem lindíssimo. – E a empresa?

– É a Cosedil. Constroem casas, bairros inteiros. E compram palácios antigos, casas de campo, terrenos e lojas. É um vaivém de arquitetos, de assessores e de homens de negócios – contou a moça, animada.

Como sempre, quando ganhava embalo, Irene nunca mais parava de conversar e Angelo nunca sabia se ela estava dizendo a verdade ou se apenas dava voz às suas fantasias. Contou-lhe que Tancredi Sella era casado, que tinha dois filhos e uma mãe que telefonava para o escritório todos os dias.

Irene prosseguiu:

– Este trabalho já começa a me aborrecer um bocado. Mas o ordenado não é mau e o alojamento é confortável. No corso Porta Romana, a Cosedil pôs dois andares de um prédio à disposição dos colaboradores não residentes em Milão. Eu tenho um apartamento tão pequenino que parece de uma boneca. Mas tem tudo. Pago um aluguel simbólico, e também temos cantina, que é muito barata. Em fins de novembro, com o salário, recebi de presente uma embalagem com cremes de beleza, sabonetes e perfumes. Dizem que o Sella é generoso e que gosta de dar presentes.

– Isso é verdade. A Cosedil forneceu uma lista infinita de nomes e endereços à nossa padaria. Mandou panettoni, champanhe e caviar a meio mundo. O diretor estava todo contente e a empregada encarregada das expedições teve de prenda cosméticos e perfumes – confirmou Angelo. E acrescentou: – Que desperdício. Nós, camponeses, temos uma outra visão da vida.

– Fale por você. Eu gostava de chegar aos andares mais altos da Cosedil. As empregadas que trabalham lá em cima têm casacos de vison e camisolas de caxemira. Passam férias nas Caraíbas e vão a todas as festas – replicou ela.

– E resume-se a isso, aquilo que deseja da vida?

– Oh, não! Desejo muito mais – declarou sorrindo.

– Por exemplo?

– Quero ficar rica e ser admirada, cortejada, bajulada e venerada. – Pensava que sonhava com o Príncipe Encantado. Normalmente, na sua idade, as moças sonham com o amor. – O amor, como diz a minha avó, dura um dia. A riqueza e o poder duram toda a vida. – Irene, Irene, quando é que vai crescer? – suspirou Angelo, enquanto despenteava os seus cabelos. – Se crescer significa contentarmo-nos com aquilo que temos e deixar de sonhar com os olhos abertos, eu nunca vou crescer.

Já sofri tanto que chega. E bem sabe, meu querido Angelo – declarou. – Sem um diploma de estudos, não vai ser fácil fazer carreira na Cosedil – objetou ele. Irene enfiou o casaco.

– Vale uma aposta? – E acrescentou: – Obrigada pelo jantar.

– Não está pensando que eu vou te deixar ir para casa sozinha – disse ele, enquanto pegava no blusão. Ainda nevava. Um lamaçal escorregadio cobria as calçada e a rua. Dirigiram-se ao ponto de ônibus e esperaram muito tempo por ele.

– Devia visitar a Agostina – sugeriu Angelo, recordando as palavras da mãe. – E vou – disse Irene.

Havia poucos passageiros no ônibus.

– Parto com você na noite da ceia. Vou passar o Natal com a avó – prometeu. E acrescentou: – Espero que ela fique contente, porque vou renunciar a uma semana de férias em Courmayeur, gentilmente oferecida pelo Dr. Sella. Mas eu não sei esquiar.

– A generosidade do seu chefe não tem limites – comentou Angelo, sarcástico. – E bem pode dizer. É um homem extraordinário. Não pensa só nos negócios dele, trabalha também para nós. Antes das festas vai reunir a todos, para um coquetel, e vai entregar um presente a cada um dos empregados – revelou, com um ar alegre. – Ainda há pouco me disses que o trabalho te aborrece – observou. – Se calhar, esse mítico Dr. Sella ainda te vai oferecer uma mesa de diretora, como presente de Natal.

– Não me zombe. Só tem de esperar para ver as coisas de que eu sou capaz. Olha, já chegamos. Desceram do ônibus. O prédio no corso Porta Romana era uma construção recente. O átrio, todo em mármore e vidro, estava iluminado como se fosse dia, e havia um pinheiro de Natal todo enfeitado que sobressaía em frente a duas paredes de espelho que o repetiam até o infinito.

– Apesar de ser uma simples empregada, a Cosedil te instalou como uma princesa – comentou Angelo. Descobriu dentro de si um sentimento de antipatia feroz em relação àquele Tancredi Sella, que nem sequer conhecia. – Então vê se diz alguma coisa – concluiu bruscamente, enfiando as mãos nos bolsos do blusão.

Tinha dado alguns passos em direção à saída quando Irene o chamou. – Como é que vai voltar para casa? – perguntou-lhe.

– Com as minhas pernas – respondeu ele, continuando a andar.

– Angelo, meu anjo bonito, voe pra cá – chamou Irene, com uma nota de desespero na voz. Ele voltou para trás. Ela abriu os braços e apertou-o contra o peito. – Gosto muito de ti – sussurrou ao seu ouvido.

Angelo abraçou-a e um nó de desejo apertou a garganta.

– Chama, se precisar de alguma coisa – disse.

Irene fez um sinal de assentimento.


9

Irene meteu o cartão magnético no dispositivo próprio. Um breve ruído indicou que a fechadura estava aberta. Empurrou a porta e uma célula fotoelétrica que entrou em ação iluminou o apartamento minúsculo. Na entrada, abriu a porta de correr do armário de roupa e pendurou o casaco e o cachecol. Tirou as botas e entrou na sala de estar, enterrando os pés num carrete fofo de lã azul. A sala estava decorada com móveis modernos: uma mesa quadrada, duas cadeiras almofadadas, uma poltrona e um divã, do qual saía uma cama de casal. Na parede do fundo, duas portas, uma ao lado da outra, comunicavam com a cozinha e com o banheiro.

Despiu-se, vestiu o roupão e foi à cozinha preparar uma xícara de leite quente, com açúcar e cacau, que tomou já estendida na cama. Passava da meia-noite e esperou adormecer imediatamente, porque o despertador tocava impiedoso às seis e meia da manhã e ela não podia permitir-se chegar atrasada à Cosedil. No momento em que foi contratada, o diretor de pessoal disse:

– O nosso presidente é pontualíssimo. Os colaboradores, seja a que nível for, têm de se habituar a isso. Tinham passado dois meses desde que entrara pela primeira vez nos escritórios da via Turati. Levaram-na a uma sala no terceiro andar daquele edifício de pedra e vidro. Achou-se com mais dez mulheres novas e bonitas, todas cuidadosamente pintadas e penteadas. Ela, pelo contrário, não tinha uma ponta de maquiagem e trazia vestida uma calça preta de fustão com uma blusa branca de gola alta que, já gasta por muitas lavagens, lhe sublinhava a magreza. Sentiu-se deslocada e sem jeito. Naquele momento chegou a pensar que, não tendo sequer concluído o curso de secretariado, se lhe pedissem para escrever uma carta comercial ela nem sabia por onde começar. Em pânico, preparava-se já para ir embora, quando uma empregada da Cosedil se aproximou dela e, sorrindo, lhe disse:

– Venha comigo.

Levou-a até um gabinete onde, atrás de uma mesa comprida, estava sentado um homem de rosto severo e duas mulheres igualmente carrancudas. Observaram-na durante muito tempo, em silêncio, antes de a convidarem para sentar-se à sua frente. Depois falaram entre eles em voz baixa, observando às vezes o currículo que Irene tinha enviado, sem lhe fazerem uma única pergunta. Quando já pensava que estavam prestes a liquidá-la, indicando-lhe a porta de saída, o homem anunciou:

– Foi admitida como recepcionista. Amanhã de manhã alguém vai se ocupar de você, para lhe ensinar tudo sobre as funções que vai desempenhar. Além disso, vai frequentar um curso de inglês. A partir deste momento pode-se considerar funcionária da Cosedil. – E acrescentou: – Uma vez que não mora em Milão, vai ter à sua disposição um apartamento, num dos nossos edifícios, pelo qual vai pagar um aluguel simbólico.

Foi assim que começou. Irene entrou num vórtice. Passava de um curso de formação para as aulas de inglês, com breves intervalos para as refeições. Deram-lhe uma farda: tailleur azul, feito sob medida, blusa de seda com riscas azuis e brancas e sapatos de meio salto.

Duas semanas mais tarde estava sentada atrás de uma mesa de aço e vidro no grande átrio da Cosedil que comunicava, através de uma porta de correr em vidro, com o gabinete de dois guardas armados que controlavam num monitor o movimento no interior e no exterior do edifício.

Faltavam dez minutos para as oito quando a porta do átrio se abriu e viu entrar um homem lindíssimo, alto, de olhos azuis e cabelos da cor do trigo maduro. Trazia um casaco azul e, na mão direita, transportava uma pasta preta de trabalho. Vinha seguido de dois guarda-costas.

– A moça quem é? – perguntou-lhe com um ar decidido.

– Sou a recepcionista. Chamo-me Irene – disse ela com um sorriso, tal como tinham lhe ensinado. E acrescentou: – Quer me dizer o seu nome, por favor?

– Sou o presidente, moça – respondeu, dirigindo-se ao elevador particular que conduzia diretamente ao último andar do edifício. Quando ia já desaparendo dentro da cabine, seguido pelos guardas, voltou-se e, avaliando-a com frieza, sussurrou: – Absolutamente perfeita.

Meia hora mais tarde, havia em cima da mesa de Irene uma jarra de cristal com um ramo de lilases brancos. – São as boas-vindas da parte do presidente – anunciou o paquete. Tancredi Sella, siciliano de nascimento, era um homem riquíssimo que, pelo que se dizia, gozava de alta proteção no mundo político. Trabalhava dezoito horas por dia, mas nunca deixava de trocar algumas palavras com os seus colaboradores, empregados e secretárias.

– Um pai severo, mas muito meigo – assim o definiam os funcionários. Irene recordava tudo isto enquanto tentava adormecer e resolveu falar diretamente com ele sobre o problema que a afligia.

O trabalho como recepcionista, de fato, começava a aborrecê-la. Tinha analisado os vários setores da Cosedil e queria pedir uma transferência para a seção da imprensa e relações públicas. Tinha vontade de estudar, de melhorar, de fazer carreira. Angelo havia de se sentir orgulhoso dela. Sorriu e, sempre sorrindo, adormeceu.

Na manhã seguinte, o sol brilhava sobre a cidade. A temperatura tinha descido e a neve tinha se transformado em gelo. Irene entrou num ônibus apinhado de trabalhadores friorentos e taciturnos. Como sempre, chegou à Cosedil mais cedo do que a sua hora de entrada. Passou a porta de serviço, entrou no vestiário e enfiou a farda, arrumando a roupa no armário. Foi até a sala de visitas para verificar se estava tudo em ordem: os cinzeiros limpos, os jornais bem alinhados, as folhas das plantas nos vasos sem um grão de poeira. No gabinete ao lado encheu as cafeteiras de água para o chá e para o café, verificou se os copos e as xícaras de porcelana estavam brilhando, se os panos estavam bem passados a ferro e se os biscoitos estavam frescos. Colocou com cuidado chocolates e bombons nas taças de prata. Depois sentou-se à mesa, no átrio.

Naquele momento entrou Tancredi Sella.

– Bom dia, Sr. presidente – cumprimentou Irene, levantando-se, muito direita. Sorriu, ao mesmo tempo que se perguntava como poderia formular o pedido de uma entrevista. Pensou, enquanto ele entrava no elevador, que devia pedir um encontro por intermédio de uma das secretárias dele. Ou talvez dirigir-se ao chefe de pessoal. Nesse tempo, desfilavam à frente dela diretores e empregados, que ela cumprimentava um a um. Passou também a secretária do Dr. Chiara, o chefe de pessoal.

– Senhorita Giusti, pode marcar-me uma entrevista com o seu chefe? – perguntou-lhe em voz baixa. – Há algum problema? – perguntou a jovem Giusti.

– Está tudo ótimo, obrigada – respondeu Irene.

– Então não precisa de entrevista nenhuma – rematou a secretária, e desapareceu dentro do elevador. – Então não precisa de entrevista nenhuma – repetiu Irene em surdina, imitando a voz e os gestos da secretária. Estava furiosa. – Bruxa feia – rosnou –, um dia ainda vai ter que fazer contas comigo – acrescentou, enquanto voltava ao seu lugar. Foi uma manhã frenética. Os visitantes chegavam continuamente. Serviu chás quentes, cafés americanos, chocolates e biscoitos durante três horas consecutivas. Desculpou-se junto daqueles que tardavam em ser recebidos. Às onze horas telefonou-lhe o Dr. Macrì, o secretário pessoal do presidente.

– Vou mandar alguém para substituí-la. Suba já até o meu escritório – ordenou. Meu Deus, a bruxa deu se conta de que eu a imitei e agora vão me castigar, pensou Irene. Tinha aprendido muito cedo a esperar golpes baixos fosse de quem fosse. Quando se achou em frente ao Dr. Macrì, nem lhe deu tempo de falar. – Eu sei que não se deve imitar as pessoas. Sei que fui a última a chegar e que não valho nada. Mas quando formulo educadamente um pedido, espero uma resposta igualmente educada. De qualquer maneira, o senhor não precisa se incomodar. Vou embora na ponta dos pés, da mesma maneira que cheguei – disse tudo de um fôlego.

O Dr. Macrì dirigiu-lhe um olhar interrogativo. Não percebia o que ela estava dizendo, mas também não se interessava. Ignorou aquela lenga-lenga e anunciou:

– Signorina Cordero, esta noite deverá acompanhar o presidente a um jantar. A signorina Magda vai lhe explicar melhor. Só quero lhe recomendar que tenha sempre a boca fechada e que sorria. É tudo. Obrigado. – Abriu a porta do gabinete para ela sair.

Irene estava tão aturdida que, por um instante, se perguntou como deveria interpretar aquela novidade. Depois percebeu que era aquilo mesmo que desejava, e que tinha obtido sem pedir nada a ninguém.

Bateu à porta da signorina Magda.

Irene considerava-a uma mulher de idade. Na realidade, não tinha ainda quarenta anos e trabalhava há quinze com o Dr. Sella. Era de baixa estatura e tinha um corpo esguio, toda ela nervos e óculos. Provavelmente era já assim aos vinte anos e continuaria aos sessenta. Vivia em função do presidente que, na sua escala de valores, vinha imediatamente depois de Deus.

– Entre, querida – disse-lhe com uma voz afetuosa, quando viu a moça surgir à porta do gabinete. E continuou: – Logo à noite, o Sr. Presidente vai jantar no Hotel de Milan com um prelado romano, um ministro e um secretário de Estado. O Sr. Presidente considera que uma presença feminina, discreta e elegante, poderá dar um tom mais leve ao jantar. Tem um tailleur preto, não é verdade, querida?

Irene abanou a cabeça: não tinha.

– Não há problema – declarou a mulher. – Vá já comprar um na loja que fica em frente ao Hotel de Milan. Eu aviso a gerente. Peça que a ajudem a escolher os acessórios. Temos conta aberta nessa loja. Vai correr tudo bem, querida. Oh, só mais uma coisa: apanhe o cabelo com uma travessa. Isto é uma sugestão pessoal. É tudo. Obrigada, querida – concluiu Magda.

Irene olhou para ela com um ar hesitante.

– Pode dar-me mais alguma explicação? – sussurrou. Esperava que a secretária lhe desse instruções mais vastas e precisas para aproveitar melhor a ocasião que lhe oferecia. A perspectiva de um jantar com um prelado e dois políticos, além do Dr. Sella, deixava-a aterrada.

– Como disse, querida? – perguntou Magda, com uma voz muito doce. – Tenho medo – desabafou.

A mulher sorriu.

– Não se preocupe. Vai correr tudo bem. Além do mais, se é que isto pode sossegá-la, o Sr. Presidente sabe sempre aquilo que faz – garantiu.

– Mas não sabe aquilo que eu faço – replicou Irene, desolada, quando já ia saindo do gabinete.


10

Irene não tinha tido uma existência fácil. Conhecera não só a doçura do pai e a bonomia severa da avó, mas também a agressividade de uma mãe problemática e imprevisível. Por isso, aprendeu a esquivar-se para a prepotência sem se fazer notar, movendo-se com cautela e ficando calada. Fora o medo sugerindo-lhe aqueles comportamentos.

Naquela noite estava aterrada. Esperou que o tailleur preto, com carteira e sapatos baixos da mesma cor, contribuísse para esbater a sua presença.

Tancredi Sella sorriu enquanto se instalava no banco traseiro do Mercedes preto, ao lado dela. O Hotel de Milan, na via Manzoni, era muito próximo da Cosedil, e Irene achou que podiam lá chegar muito mais depressa a pé, mas guardou para si esta consideração. Nunca tinha andado num automóvel de luxo e sentiu o perfume do couro, ao qual vinha juntar-se o da loção pós-barba do presidente, que tinha um ligeiro aroma de vétiver.

Ele parecia absorto nos seus pensamentos, enquanto o carro avançava à velocidade dos pedestres no trânsito pré-natal que obstruía a piazza Cavour e toda a via Manzoni. Um dos guarda-costas estava ao volante do automóvel, o outro ia sentado ao lado dele. Nenhum dos três homens lhe dirigiu a palavra. Passou quase meia hora antes que o Mercedes estacionasse em frente ao hotel. Saiu primeiro o guarda-costas, que ofereceu a mão a Irene para ajudá-la a sair do carro. Depois foi atrás dela e do presidente até o interior do hotel. Quando entraram num átrio com colunas, espelhos, estuques e molduras douradas, Tancredi deu-lhe o braço e conduziu-a em direção a uma escadaria de mármore. – Vamos jantar no primeiro andar, na sala Verdi – disse, rompendo o silêncio. – O mestre viveu muito tempo neste hotel. E aqui morreu – explicou, enquanto o guarda-costas tomava conta dos casacos que traziam. Entraram na sala. Irene viu o grande retrato de Giuseppe Verdi pendurado por cima do fogão de sala em mármore e, no meio da sala, uma mesa oval posta com pratas e cristais cintilantes. A toalha branca de linho chegava ao chão. Num canto do salão havia um pinheiro de Natal com enfeites vermelhos e dourados.

Dois criados serviam os aperitivos a três homens sentados em grandes poltronas em frente à lareira crepitante. – Caríssimo – começou o mais idoso dos três, com uma voz de barítono, enquanto se levantava para cumprimentar Tancredi, que ia ao encontro dele. Era muito alto, estava vestido de preto e tinha um colarinho branco justo à volta do pescoço. Tinha cabelos brancos e um rosto seco e severo.

– Eminência – respondeu Tancredi, enquanto lhe apertava a mão e fazia uma ligeira inclinação de cabeça. Irene estava parada no meio da sala e, não sabendo o que fazer, observava a troca de apertos de mão entre o Dr. Sella e os convidados.

– Venha, Irene. – O presidente chamou-a, e ela, sorrindo, aproximou-se dos homens. – A signorina Cordero é a última aquisição da Cosedil – disse, como apresentação.

Irene achou que devia imitá-lo e inclinou ligeiramente a cabeça.

– Para que setor? – perguntou o prelado, que a olhava, satisfeito. – Relações públicas – replicou Tancredi. Era a confirmação oficial de um cargo. O presidente declarou-o com simplicidade. Irene esforçou-se para esconder a exaltação.

Houve apertos de mão, depois o prelado indicou a poltrona ao lado da sua, dizendo: – Sente-se, filha.

Um criado inclinou-se sobre ela e sussurrou:

– Deseja um aperitivo, minha senhora?

Irene declinou da oferta com um gesto. Faltava o ar, não conseguia falar, mas continuou a sorrir, de acordo com as ordens do Dr. Macrì.

Os homens conversaram ainda um pouco e depois abandonaram as poltronas e aproximaram-se da mesa já preparada. Tancredi mandou Irene sentar-se à cabeceira. Os criados serviram uma entrada de peixe.

Com um gesto hesitante, Irene pegou o garfo que estava do lado de fora, esperando que fosse aquele o correto. Os outros imitaram-na.

Ficou mais descontraída e conseguiu saborear a delicadeza tenra de uma fatia fina de salmão. – Este salmão é, com certeza, irlandês – comentou o clérigo. Depois voltou-se para Irene, olhou-a com ternura e continuou:

– Sabe, filha, os noruegueses e os escoceses defendem que o salmão deles é o melhor. Mas não é assim. As águas da Irlanda, que deságuam diretamente no Atlântico, são muito mais puras. Já esteve na Irlanda?

A pergunta era dirigida a ela e tinha necessariamente de responder. – Não conheço a Irlanda, uma pena. Quanto ao salmão, é a primeira vez que o provo – replicou Irene, com uma candura desconcertante.

O prelado anuiu com um ar satisfeito.

– Relações públicas: foi isso que disse, Dr. Sella? Também lá embaixo, em Roma, nós precisávamos de uma representante tão encantadora.

– Não tente levá-la de mim – brincou Tancredi.

– Não tinha pensado nisso, mas é uma ideia que merece uma reflexão – replicou o convidado. E voltou-se de novo para a moça: – Tem um nome muito bonito. Irene deriva do grego eirene , e significa paz. Tem o poder de inspirar serenidade.

A apreciação do prelado a fez corar. Deixou de sorrir e baixou os olhos. O jantar prosseguiu e os homens voltaram a conversar entre eles. – Os amigos do Trapani concordam em entregar-nos a obra para as condutas do aqueduto. Obviamente, vai ser preciso oferecer uma contrapartida. E disso é o senhor que vai tratar, Dr. Sella – disse o secretário de Estado. – É evidente – respondeu Tancredi. – Falta resolver o problema do outro concorrente – sublinhou. – O advogado, o Dr. Dazaro, saberá fazê-lo chegar a um acordo. Com a sua ajuda, caro Sella – interveio o ministro. Para Tancredi era importante a adjudicação da obra e percebeu que o ministro queria favorecer um amigo. Por isso propôs: – Podia entregar-se toda a parte legal da operação ao Dr. Dazaro. – Creio que se sentirá muito honrado por poder ocupar-se disso – garantiu o ministro, satisfeito, e continuou: – Posso marcar uma reunião no escritório dele, em Roma.

– Entre amanhã e a véspera de Natal, qualquer dia está bem para mim – disse o presidente da Cosedil, que tinha pressa em concluir o negócio.

– Não é assim tão urgente – interveio o clérigo.

Irene observou Tancredi discretamente. Tinha enfiado um dedo no colarinho da camisa, como se tivesse ficado apertada. Captou aquele gesto como um sinal de irritação. Mas quando falou, a sua voz não traiu a mais pequena emoção.

– É verdade, monsenhor. A adjudicação da obra não é assim tão urgente. Eu é que tenho o péssimo hábito de trabalhar sob o impulso de uma pressa irracional. Queimo as etapas porque acho excitante atingir as metas em tempos curtos.

– Festina lente : apresse-se com calma, diziam os antigos romanos – citou o interlocutor. – Eles podiam fazê-lo porque eram os donos do mundo. Eu ainda não sou – ironizou Tancredi, suscitando o sorriso de toda a gente.

– Meu caro Sella, nunca se esqueça de que mais vale induzir os outros a correr, pois o tempo joga a favor do vencedor. – Bebeu um trago de vinho e aproximou o cálice da chama de uma vela que exaltava a cor de âmbar do Corvo de Salaparuta. Depois continuou: – A presença da jovem Irene me leva a reflexões mais sensatas. Estou agora lembrando que o nosso concorrente tinha me pedido um favor. Vou convidá-lo para jantar no quarto domingo do Advento. É claro que também o espero, Dr. Sella.

– Daqui a três dias – precisou Tancredi, já com a certeza de que a mediação do advogado Dazaro não agradava ao prelado. – Exatamente – sorriu com bonomia o clérigo que, ao que parecia, queria conduzir o jogo. Irene ouvia o diálogo com atenção, mas não conseguia captar todos os subentendidos. – Confio no monsenhor – concluiu Tancredi.

– E naquilo que diz respeito ao Dr. Dazaro? – perguntou o ministro, que parecia estar em brasa. – É um personagem que poderá ser útil no momento oportuno. Só o conheço pela fama que tem e não tenho grande interesse em encontrá-lo. Mas você, caro Sella, faz bem em contatá-lo.

A mensagem era clara. Dazaro não era persona grata à facção do prelado e, no entanto, naquela situação, podia ser útil. O jantar terminou com um sorvete de morango coberto de chocolate quente. Os convidados saíram da mesa e voltaram a sentar-se em frente à lareira, enquanto esperavam que o café fosse servido. Tancredi aproveitou para se aproximar de Irene.

– Absolutamente perfeita – sussurrou, satisfeito. – O Alfonso está aqui fora. Vai levá-la a casa. Obrigado. – Beijou-lhe levemente a mão. Era uma despedida.

– A Irene vai deixar-nos? – perguntou o prelado.

– Tal como a princesa da história, deve regressar antes que soe a meia-noite – justificou Tancredi. – Miss Sorriso. Importa-se que eu a trate assim? Espero voltar a vê-la em breve. Irene desceu as escadas com o guarda-costas do presidente, pensando quando poderia contar a Angelo todos os pormenores daquele jantar.


11

Na manhã seguinte, quando se dirigiu à Cosedil, Irene levava consigo um volumoso saco branco que continha o tailleur e os acessórios que usara na noite anterior. Deixou-o no gabinete da signorina Magda. Chegou à sua secretária no átrio no momento em que entrou Tancredi Sella que, como sempre, respondeu apressadamente ao cumprimento que lhe dirigiu.

Às seis horas da tarde, quando toda a gente saiu do edifício e nos escritórios ficavam apenas os diretores e as secretárias, a signorina Magda chamou-a.

– Pode vir comigo, querida?

O que é que ela quer agora?, perguntou Irene a si própria, enquanto batia à porta. A secretária informou-a de que o tailleur usado para o jantar lhe pertencia. E continuou:

– Vai ter oportunidade de voltar a usá-lo muito em breve. A propósito, ao que parece, o seu casaco não estava muito bem. Foi uma falha minha, não sua. Amanhã vá outra vez à mesma loja e escolha um casaco elegante. Traga um azul, condiz com os seus olhos. Você vai acompanhar o doutor a Roma e vai jantar com ele na casa do monsenhor Sidney, que apreciou muito a sua presença. É tudo, minha querida. Parabéns.

Irene não se mexeu.

– Alguma objeção? – perguntou a secretária.

– O que é que a Cosedil quer de mim? – perguntou Irene, hesitante. – Você aspira a um trabalho diferente daquele para o qual foi contratada. Se assim não fosse, não tinha pedido uma entrevista com o diretor de pessoal. A Cosedil quer o máximo dos seus funcionários, e só pode obter se favorecer as inclinações de cada um. Mais alguma pergunta, querida?

– Responda-me sinceramente, se puder. Será que estou dando os primeiros passos para fazer carreira? A senhorita Magda olhou-a por cima dos seus óculos de presbíope. Apresentava uma expressão indecifrável. – Isso, querida, só vai depender de você.

No fim do dia de trabalho, em vez de pegar o ônibus para voltar para casa, Irene passou pela padaria onde Angelo trabalhava. Foi direta ao balcão. Faltavam poucos minutos para as oito.

– Gostaria de me preparar dois ovos estrelados? – perguntou.

– Só se não me obrigar a ficar duas horas lá fora à sua espera – respondeu. A neve tinha derretido e as ruas estavam limpas. O trânsito, com a proximidade do Natal, estava cada vez mais caótico.

Montaram os dois na motocicleta e, em gincana por entre as filas de automóveis, chegaram rapidamente à casa de Angelo. – Vamos à leiteria? – propôs ele.

– Decida você – replicou Irene.

– O café com leite da senhora Vera é tão bom como o da minha mãe – decidiu Angelo, conduzindo-a para o interior do estabelecimento. O calor tinha embaçado os vidros. A senhora Vera estava atendendo dois operários que tinham se sentado junto do grande fogão de terracota, enquanto o filho dela colocava lá uma tora de madeira.

As mesas estavam predominantemente ocupadas por homens que conversavam entre eles e que trocavam comentários e piadas com outros clientes habituais.

– Aqui dentro parece que estamos em San Benedetto – observou Irene, enquanto pendurava o casaco num cabide. A senhora Vera aproximou-se.

– Quem é esta moça tão bonita? – perguntou, enquanto olhava para Irene com simpatia. – Somos da mesma aldeia. Vi-a crescer – explicou Angelo.

– Eu diria que cresceram juntos: têm mais ou menos a mesma idade – considerou a mulher. E prosseguiu: – Chocolate e biscoitos. Está bem?

– Comida de reis, como diz a minha avó – respondeu Irene.

Os biscoitos, leves e aromáticos, mergulhados no chocolate quente, assumiam uma textura mole que se desfazia na boca. – Ontem à noite comi salmão – começou Irene.

– Coisa de rico – comentou Angelo.

– Fui jantar no Hotel de Milan com o meu patrão e três homens que vieram de Roma. Um era monsenhor – contou. – E o que é que você tem a ver com aquela gente? – perguntou Angelo, com uma voz áspera. – Fui eleita Miss Sorriso. Era a parte decorativa de um encontro de negócios, ou pelo menos foi isso que eu percebi, entre o meu patrão e aqueles três sujeitos.

– Achava que era recepcionista.

– Fui promovida: agora trabalho em relações públicas. Vestiram-me com roupa nova e o Dr. Macrì, que é o secretário do patrão, explicou que tenho de sorrir e ficar calada. E eu assim fiz. No fim do jantar, o motorista foi me levar em casa, enquanto os homens ficaram conversando.

– Já não tenho fome – disse Angelo, enquanto afastava a xícara do chocolate. – Está zangado?

– Muito.

– Por quê?

– Não entendo que raio de trabalho é que você está fazendo.

– Relações públicas. Pagam-me para isso. E garanto que não é fácil. Mas eu me saio muito bem. Ninguém me botou as mãos nem me fizeram cumprimentos desagradáveis. Antes pelo contrário, fui tratada com muito respeito. Há alguma coisa de mal? – perguntou a moça, irritada.

– Há sim. É uma história que não me agrada – sussurrou Angelo, furioso. – Você está é com ciúmes – replicou Irene com calma.

– Vou te levar para a casa – decidiu ele, enquanto se levantava.

– Não vim aqui para discutir – objetou Irene.

– Na sua opinião, o que é que eu devia achar? Que está cheia de sorte? Há mulheres como você que suam para poderem levar um salário para casa. Depois chega a Cinderela de San Benedetto e o príncipe encantado, loiro e fascinante, que a introduz nos salões dourados do Hotel de Milan e a senta a uma mesa de empresários duvidosos com a bênção do monsenhor. E ela, como não sabe fazer mais nada, fica calada e sorri. Diz o que é que eu devo pensar de tudo isso? – declarou Angelo, enquanto se dirigia para a porta do estabelecimento.

– Não me parece que sejam pessoas duvidosas. Além disso, não é verdade que eu só sei ficar calada e sorrir. Estou estudando. Vou fazer um curso de inglês e outro de secretariado, por conta da empresa – explicou ela, seguindo-o até o exterior da leiteria.

– E vai acabar na cama de um deles. Talvez até na do presidente. – É pior do que a minha avó. É mau e injusto. Não fiz nada de mal para merecer isso tudo – disse ela, com lágrimas nos olhos.

Angelo, num impulso, abraçou-a e tapou-lhe a boca com um beijo. – Estou apaixonado por você – sussurrou, abraçando-a com força. – Também estou – disse ela, com um suspiro. E acrescentou: – Me apaixonei por você quando tinha cinco anos. – Ao dizer isto, recordou o dia da festa de San Benedetto. Todas as amiguinhas das outras fazendas estavam na aldeia, porque havia um parque de diversões. A mãe andava para trás e para frente, do estábulo para o terreiro, descalça. Tinha na mão um jarro de vinho e praguejava contra os seus fantasmas entre dois tragos. O pai, apesar de ser dia de festa, estava na fábrica fazendo hora extra. A avó trabalhava na horta.

– Mãe, me leva à feira? – Mais do que uma pergunta, era uma súplica. Sabia que a fúria da mãe muito em breve ia se transformar num furacão. E ela não queria estar presente.

Assim, esperava evitar o pior.

– As minhas amigas estão todas na aldeia – lamentou-se. Deu um salto para trás a fim de evitar uma bofetada de Rosanna, que perdeu o equilíbrio e caiu, ficando com as pernas para o ar. E ali ficou durante alguns instantes. Quando se levantou, mantendo milagrosamente a salvo o jarro de vinho, Irene já tinha fugido a sete pés. Agarrou-se à rede que separava a horta da estrada. Lágrimas silenciosas sulcavam as faces gorduchas.

– O que foi que aconteceu desta vez? – perguntou Angelo. Vinha de bicicleta da sua fazenda, com outros amigos, e dirigia-se à aldeia. Os outros continuaram. Ele parou. Era um rapazinho, trazia uns calções curtos e uma camisa azul.

– Nada – respondeu ela, limpando as lágrimas.

– Está chorando.

– Estive descascando cebolas.

– Claro, comigo também acontece sempre. – Fingiu acreditar.

– Vai à feira? – perguntou ela.

– Vou contigo – ele sorriu e, pegando nela em peso, instalou-a em cima da bicicleta. Irene recordava a corrida pelas vielas batidas pelo sol, o ar quente de junho que despenteava os cabelos e acariciava o rosto, a respiração de Angelo que pedalava com velocidade cantando a plenos pulmões: Prendi questa mano, zingara... Irene passou do choro à alegria. O seu Angelo, durante algumas horas, salvara-a do desespero. – Quando eu for grande, casa comigo? – perguntou-lhe num sussurro. Ele não a ouviu. Continuava a cantar. Agora, nos braços de Angelo, Irene disse:

– Sempre te amei. Vim para Milão porque já não conseguia ficar na aldeia sem você. Ele procurou outra vez os lábios dela e beijou-a durante muito tempo, com paixão. Estavam sozinhos naquela rua pouco frequentada e não sentiam o frio que os envolvia. Ele sentiu vergonha por aquele ciúme estúpido. A pequena Irene Cordero era um presente do destino.

– E agora, quem é que me vai dar forças para te deixar? – interrogou-a em surdina. – Amanhã estaremos juntos outra vez – respondeu ela.

Angelo pensou no postal que o Exército Italiano tinha lhe mandado. Tinha se esquecido de enviar o pedido para adiar a chamada para alistar-se como recruta. O pai telefonara-lhe naquela manhã para lhe dizer que era um asno. Em janeiro deveria apresentar-se no quartel de Cuneo.

– Vai ter de interromper os estudos. Quando acabar o serviço militar, quem me garante que volta para a universidade? Todo o dinheiro que gastamos contigo até este momento foi atirado fora – berrou, tratando-o como um irresponsável.

– Amanhã estaremos juntos outra vez – repetiu Angelo. Faltou-lhe a coragem para lhe dizer que, depois das festas, iam ter de se separar.


12

Irene andou de avião pela primeira vez na vida, no avião particular de Tancredi Sella. A bordo estavam também o Dr. Macrì, a senhorita Magda, o Dr. Scianna, advogado, e os dois guarda-costas, que nunca deixavam sozinho o presidente da Cosedil.

Sentada numa cômoda poltrona de uma pequena sala de estar, Irene fechou os olhos e fingiu dormir. Estava atordoada com tudo aquilo que lhe estava acontecendo. Estava apaixonada por Angelo, pela sua força, pela capacidade que ele tinha para protegê-la e para fazê-la sentir-se segura. Estimava-o e tinha uma confiança ilimitada nele. Da consciência de ser profundamente amada nascia o medo de o irritar. Ele não teria gostado de tê-la encontrado a bordo daquele avião que a levava para Roma no papel de Miss Sorriso. Por isso lhe escondeu aquela viagem, à qual não renunciaria por motivo nenhum. Tinha ao alcance da mão tudo aquilo que uma moça de origem humilde podia desejar: roupa elegante, contatos com gente importante, um avião particular. Por que privar-se disso? A alternativa era regressar a San Benedetto, viver na fazenda e trabalhar na fábrica. Estava absolutamente convencida de que, depois de anos de sofrimento, a vida estava finalmente premiando-a, e ninguém, nem mesmo Angelo, poderia impedi-la de aproveitar isso.

O avião aterrissou em Ciampino às seis da tarde. Atravessaram o aeroporto no meio da deferência quase servil do pessoal de serviço nas chegadas.

Dois automóveis azuis estavam já à espera para levá-los a Roma. O Dr. Sella entrou num carro com os guarda-costas e o advogado. Irene, o Dr. Macrì e a senhorita Magda ocuparam o segundo carro, conduzido por um motorista.

– Tem uma bolsa muito bonita. Não estava na lista das aquisições autorizadas. Devo pensar que a pagou com o seu dinheiro? – perguntou-lhe a secretária em voz baixa.

– De modo nenhum. Trouxe-a por a considerar uma simpática homenagem à expedição romana – respondeu Irene, com um ar plácido, enquanto o automóvel corria pela periferia.

A senhorita Magda levou uma mão à boca, como se quisesse sufocar um grito. – Minha querida, será que entende aquilo que fez? – perguntou em surdina. Estava escandalizada. Irene não perdeu a compostura.

O Dr. Macrì estava mergulhado na análise de alguns documentos que tinha extraído da pasta e parecia ignorá-las. – Aquela loja é uma propriedade da Cosedil – precisou a signorina Magda. – Então, qual é o problema? – replicou a moça.

O Dr. Macrì deu uma gargalhada repentina e Irene não percebeu se aquilo que a provocou foi o diálogo entre ela e a senhorita Magda ou o conteúdo de um dos documentos que estava analisando.

Os automóveis pararam no pátio de um palácio barroco na via Borgognona, no coração da cidade. Irene e a senhorita Magda pegaram um elevador que as levou ao terceiro andar. Entraram num apartamento com assoalho de madeira, tetos trabalhados, bancos antigos e grandes telas renascentistas. As salas eram pequenas, aconchegantes e acolhedoras.

– Até o século passado, este era o andar da criadagem. Quando o Sr. Presidente comprou este palácio, transformou-o em residência de hóspedes. Vamos ficar aqui esta noite. Este é o seu quarto – disse a senhorita Magda, mostrando-lhe um quarto decorado com móveis Império.

– O doutor e os outros onde estão? – perguntou Irene.

– O Sr. Presidente está no apartamento dele, no primeiro andar. Os outros estão no segundo. Este é o seu banheiro. Eu fico no quarto em frente. Se precisar de alguma coisa, pode usar o telefone. Botão verde para a cozinha, branco para a lavandaria, azul para comunicar com o meu quarto, vermelho para uma linha exterior. Mais alguma pergunta, querida?

– Mais nada. Obrigada, senhorita Magda – respondeu Irene, que se sentia deprimida e se perguntava o que estaria ela fazendo naquele palácio, quando preferia estar em Milão, com Angelo.

– Tem vinte minutos para se arranjar. Depois, vai descer até ao pátio, onde o Sr. Presidente irá encontrá-la. Eu tenho algum trabalho atrasado para despachar. Boa noite, querida – concluiu a secretária.

Quando chegou ao pátio, Tancredi esperava-a com um ar distraído. Entraram no automóvel, sempre com os guarda-costas, e deixaram o palácio da via Borgognona. Percorreram um labirinto de ruas pequenas, consteladas de iluminações natalinas. O trânsito em Roma estava particularmente caótico. Irene observava através da janela as luzes ofuscantes das vitrines, as pessoas barulhentas que se acotovelavam nas ruas. Depois o automóvel entrou num palácio barroco e parou num pátio delimitado por um pórtico retangular. Entre as colunas que suportavam as abóbadas em arco, havia grandes vasos de barro com limoeiros. Subiram uma escadaria ampla e encontraram-se num vestíbulo forrado de damasco vermelho, com grandes telas sombrias nas paredes e estátuas de madeira de meninos angélicos. Desta vez, o clérigo vestia o hábito e recebeu-os no seu escritório.

– Miss Sorriso quis dar-me o prazer da sua presença – disse o prelado, enquanto ia ao encontro dela e lhe estendia a mão, que Irene apertou com fervor.

– Foi muito gentil por ter me convidado. Fico satisfeita por voltar a vê-lo – replicou ela. O prelado cumprimentou Tancredi e disse:

– Muito obrigado, Dr. Sella, por aquele lindíssimo San Giorgio que me foi entregue esta manhã e que agora está na minha sala de estar.

– É apenas uma lembrança de Natal – disse Tancredi, pensando que aquela antiga estátua de madeira tinha lhe custado uma fortuna.

Naquele momento chegou também o outro convidado. O prelado foi ao encontro dele e cumprimentou-o afetuosamente. Era o deputado Franco Cardano, que parecia ter a mesma idade do dono da casa. Os lábios finos e o nariz aquilino conferiam-lhe o aspecto de uma ave de rapina.

– Apresento-lhe a Irene, do gabinete de relações públicas da Cosedil – disse o clérigo. E continuou: – Convidei o Dr. Sella porque queria que se conhecessem.

O deputado tocou com os lábios a mão que Irene lhe estendia e trocou com Tancredi um vigoroso aperto de mãos. Depois voltou-se de novo para Irene:

– Eu já a encontrei em qualquer parte. Ajude-me a recordar – pediu-lhe, enquanto lhe dirigia um olhar embaraçoso. – Não posso ajudá-lo, lamento muito. Tenho certeza de que nunca nos tínhamos visto antes. – A sua beleza vai levá-la muito longe – insistiu o homem.

– Muito longe, onde? – perguntou candidamente Irene.

Por um instante, o político pareceu não encontrar uma resposta. O prelado interveio tempestuosamente. – Meu caro Franco, a Irene pertence à esfera do espírito. Como eu. No entanto, o mundo político e o financeiro apaixonam-me. Quis que encontrasse o meu amigo Sella porque tem grandes projetos para a nossa querida ilha. Pode ser que te interessem – declarou abertamente, enquanto se dirigiam à sala de jantar.

Mais uma vez, Irene limitou-se a ouvir e a sorrir. Porém, durante o jantar, seguiu atentamente a conversa e percebeu que, para que lhe fosse adjudicada a construção do aqueduto, a Cosedil tinha de obter o apoio do Ministério das Obras Públicas, sujeito a certas condições. Neste ponto, Irene deixou os convivas, como tinha já acontecido em Milão. O motorista deixou-a no pátio do palácio da via Borgognona e ela subiu até o seu quarto. Alguém tinha preparado a cama para a noite e o pijama estava estendido em cima da coberta, pronto para ser vestido. Na mesa de cabeceira estava uma pequena bomboneira com pé de porcelana que continha bolinhos, bombons e biscoitos secos. Numa bandeja havia uma garrafa de água mineral e um copo.

Irene despiu-se rapidamente e enfiou-se na cama. Mas os seus pensamentos flutuavam entre Angelo e o trabalho na Cosedil: o primeiro representava a segurança, o segundo, uma maravilhosa possibilidade. Infelizmente, porém, eram inconciliáveis entre si. Deu voltas e voltas na cama. Por fim, levantou-se. Foi até a janela e olhou para baixo, para o pátio. Viu chegar um automóvel do qual saíram duas mulheres loiras, barulhentas, com casacos de peles. Iam escoltadas por um dos guarda-costas do presidente, que as conduziu até o interior do palácio. Pouco depois chegou o outro automóvel azul, com Tancredi e o deputado. Pareciam muito eufóricos e, ao percorrer os poucos metros que os separavam da entrada, comportavam-se como se fossem velhos amigos.

Aquilo que viu não lhe agradou, porque não lhe parecia digno nem de Tancredi nem do deputado. Irene perguntou a si própria se o prelado saberia que, depois de o terem deixado, os dois homens iam continuar o serão na companhia de duas senhoras de reputação duvidosa. Preferiu não encontrar uma resposta. Voltou para a cama e adormeceu.


13

Angelo estava de péssimo humor. Irene tinha desaparecido. Tinham marcado um encontro em frente à padaria e ela não tinha comparecido. Não a encontrou no patamar de casa, nem na leiteria. Não estava na Cosedil, para onde tinha telefonado perguntando por ela, nem em casa, onde uma lacônica mensagem do gravador de chamadas convidava o interlocutor a ligar mais tarde.

Era véspera de Natal. Às oito horas da noite a padaria fechou as portas. Às nove, Angelo estava na piazza Castello e entrou na caminhonete que o levaria a Cuneo. Daí a poucas horas ia voltar a ver os pais e os irmãos e receber as suas censuras.

Ia ser um péssimo Natal. O pior da sua vida. Sentou-se ao fundo, junto a uma pequena janela embaçada. Havia poucos passageiros na caminhonete. Na prateleira por cima dos bancos havia embrulhos de Natal, panettoni e garrafas de espumante. Também Angelo tinha a sua parte de embrulhos coloridos, que em qualquer caso não iam conseguir amansar os Marenco. No dia anterior tinha recebido uma carta azeda de Alfredo, o irmão mais velho, que tinha se casado um ano atrás e que já tinha um filho.

Na carta dizia-lhe, entre outras coisas: “Com o nosso dinheiro, suado até o último tostão, te oferecemos a possibilidade de estudar. Você andou perdendo tempo e em quatro anos de universidade não fez nada. E agora vai ter que ir para a tropa, por causa do seu descuido. É um pecado grave...”

Alfredo tinha razão. Angelo não tinha desculpa.

Estava deprimido e considerava-se uma nulidade. Talvez Irene tivesse intuído tudo isso. Como poderia ele protegê-la, se não sabia sequer cuidar de si próprio?

O motorista pôs o motor a trabalhar. Para lá da janela, do outro lado da rua, alguns manifestantes convidavam os jovens a se inscreverem para o corpo da polícia. Era uma boa publicidade. Destacava-se o rosto altivo e viril de um rapaz fardado de olhar inteligente.

– Olá, Angelo – sussurrou Irene, sentando-se ao lado dele. Trazia com ela um grande saco de tela que pousou sobre os joelhos.

Ele não respondeu, nem se virou para olhar para ela. O seu coração, porém, acelerou os batimentos. – Está zangado comigo, eu sei – disse ela, enquanto o ônibus se punha em movimento. Você me fez muita falta – continuou em voz baixa.

Sentiu um nó na garganta.

– Fale comigo, por favor – implorou Irene.

Então Angelo voltou-se lentamente para ela e abraçou-a, escondendo o rosto no seu ombro. Manteve-a apertada contra ele até que o batimento do coração acalmou.

– Não imaginava te encontrar aqui – confessou, por fim.

– Já sabia que íamos voltar os dois juntos à aldeia. Era uma promessa – disse ela. E contou-lhe: – Estive em Roma, a trabalho. Fui no avião particular do presidente e fiquei instalada num palácio principesco. Se tivesse dito isto antes, ia ficar zangado. Andei contando as horas que me separavam deste momento.

Angelo pensou que também ele tinha alguma coisa para ela lhe perdoar. Disse apenas: – Fale-me de Roma.

Ouviu a história de Irene, tentando conter a irritação, porque era evidente que ela parecia cativa daquele mundo cintilante com o qual ele não podia competir.

Também desta vez, ela não contou tudo. Ocultou o episódio das prostitutas. Parecia abjeto e não abonava nada a favor do chefe que, em qualquer caso, a partir daquela noite, via sob uma luz diferente.

Ainda poucas horas antes de entrar naquele ônibus, durante a festa de Natal oferecida nos escritórios da via Turati, ao olhar para Tancredi que oferecia a cada um dos empregados um presente caro, ela pensava: “Tem duas faces. Uma pública e uma privada.” E perguntou-se qual das duas seria a verdadeira.

Irene recebeu um pequeno relógio de ouro. “Inteiramente merecido”, explicou Tancredi quando o entregou a ela. Agora trazia-o no pulso e Angelo viu-o.

Foi mais uma frustração.

Ele tinha na mochila o presente de Natal para Irene. Resolveu não o dar a ela, para não se sentir humilhado com o confronto. – Querido Angelo, aquele mundo não nos pertence. Eu estou lá dentro, mas só por acaso. Mas, enquanto estiver lá, quero ter o máximo – declarou ela.

O ônibus chegou à praça da estação de San Benedetto. Estava lá o pai de Angelo. Tinha ido buscar o filho para o levar para casa de carro e não gostou muito de o ver com Irene. Não tinha preconceitos em relação à família Cordero, mas não lhe agradava que o filho se ligasse à filha de Rosanna, de cuja loucura toda a aldeia tinha sido testemunha.

Também Angelo sentiu alguma contrariedade ao ver o pai. Esperava poder levar Irene a pé até a fazenda. Apesar de ser de noite e de estar muito frio, aquele longo pedaço de estrada por entre campos gelados teria lhe permitido tê-la ao seu lado.

– Amanhã de manhã vou te encontrar – sussurrou-lhe, sem se decidir a atravessar a praça para ir ao encontro do pai. – Por que não passa lá em casa mais tarde? Estava esperando passar a noite de Natal com você – pediu ela. – Eu também – respondeu ele –, mas não vai ser fácil me livrar da minha família. – Então, vão se despedir ou não? – protestou Pietro Marenco.

Angelo pousou uma mão no braço de Irene e levou-a até o pai.

– A tua avó está no hospital – disse Pietro Marenco, dirigindo-se a Irene. Ela não replicou. Subitamente, sentiu o frio da noite e começou a bater os dentes. – O teu pai não quis dizer para não te alarmar – acrescentou o homem. Irene sentiu no ombro a mão protetora de Angelo.

– Vem conosco. O diretor do hospital é meu amigo. Deixarão você entrar, apesar de ser tarde – propôs-lhe Pietro Marenco, enquanto abria a porta do carro.


14

Irene entrou às pressas no quarto do hospital, tenuemente iluminado por uma luz embutida na parede por cima da cabeceira da cama onde Agostina estava deitada. Aproximou-se. Dois tubos de plástico transparente, colados nas narinas, permitiam à mulher respirar melhor. Havia mais duas camas vazias no quarto. Irene sentou-se à cabeceira da avó. Apoiou sua mão na dela e Agostina abriu os olhos.

– Olá, avó – disse Irene.

– Está com as mãos frias – sussurrou Agostina.

– Lá fora está um gelo.

– Que horas são?

– É quase meia-noite.

– Você é a Irene, não é? – perguntou, e prosseguiu: – Eu tinha certeza de que você vinha. – Como é que está?

A avó não respondeu.

O quarto estava pintado de verde-pálido. Em cima da mesa de cabeceira de metal havia um copo que continha uma infusão de camomila, uma embalagem de gaze esterilizada e um pacote de biscoitos.

– Como é que está? – repetiu Irene.

Agostina não respondia.

Irene levantou-se, tirou o casaco e deixou-o na cama ao lado.

– Não posso te deixar sozinha um instante, arranja logo complicações – fingiu censurá-la, sentando-se de novo ao lado dela. – Já arranjei muitas. Mais uma, menos uma, não faz diferença – resmungou a avó. – Isso é que faz. Tem que sair dessa depressa. Que sentido teria a minha vida sem você? – O mesmo que tinha há uns meses atrás, quando você foi embora – atirou-lhe Agostina, reencontrando, por um momento, a garra habitual.

– Está com vontade de discutir? Eu não. Fui embora para procurar o meu caminho, que não era o da fábrica. Mas sabia que você estava aqui, e bastava para mim voltar à aldeia para ouvir os seus sermões. Nunca pensei vir a te encontrar aqui dentro, com esse ar de doente. Diga-me que montou este espetáculo para mim, para eu não ir embora outra vez. – Tentou brincar, mas tinha vontade de chorar e de se inclinar sobre a avó para lhe dar um abraço.

Antes de entrar no quarto, tinha falado com o médico do turno da noite. Soube que a avó tinha sido internada alguns dias antes, acompanhada pelo genro, que a tinha encontrado em casa, quase morrendo, ao fundo da escada.

– Teve um colapso. Há duas artérias entupidas e uma fibrilação auricular que não auguram nada de bom – explicou-lhe, com aquela linguagem pouco compreensível dos médicos. E acrescentou: – Estamos tratando dela. Mas tem muita idade e sofre destes distúrbios há muito tempo. Não sabiam?

Irene nunca tinha dado conta de que Agostina estivesse doente.

– A avó não é assim tão velha. Só tem sessenta e cinco anos – corrigiu. A enfermeira de serviço interveio:

– É uma mulher muito só. O único que a vem visitar é o genro, de manhã, antes de ir para a fábrica. Onde é que estão os filhos e os netos?

– O genro em questão é o meu pai. Os meus tios e os meus primos vivem entre Biella, Ivrea e Turim, e os filhos mal conhecem esta avó. Mas, agora, aqui estou eu... Posso ficar com ela esta noite?

– Só vai lhe fazer bem – concordou a enfermeira. Era um hospital pequeno, construído poucos anos antes, e servia os habitantes daquela região nas emergências. Os casos graves eram dirigidos para os centros mais equipados. Ali não dominavam as regras férreas dos grandes hospitais, e a assistência noturna aos doentes era confiada de boa vontade aos familiares.

Assim, Irene preparou-se para passar a noite com a avó. Tinha pena de não poder abraçar o pai. Mas, de qualquer maneira, estaria com ele na manhã seguinte.

– Você foi embora para ir atrás do Marenco – disse a avó, de repente. – Quando fala assim, não te suporto – respondeu Irene, irritada.

No olhar de Agostina brilhou uma luz maliciosa. – Estou contente por você estar aqui – disse. – Agora deite e durma. Assim também me deixa dormir.

A moça apagou a luz. Deitou-se na cama ao lado e cobriu-se com o casaco. Mas nenhuma das duas conseguia conciliar o sono. No corredor tocou uma campainha. A enfermeira passou em frente ao quarto delas e continuou em direção à enfermaria de onde tinha vindo a chamada.

Irene pensou que, em Milão, havia hospitais muito especializados, onde a avó seria mais bem acompanhada. Mas não sabia a quem se dirigir para pedir a transferência. Sem contar que no dia seguinte era Natal e que estaria tudo parado. Estava quase adormecendo, quando ouviu a voz da avó.

– De todos os meus filhos, aquela de quem mais gostei foi a tua mãe, e também foi ela quem me fez sofrer mais. Era uma tonta, mas a culpa não era dela – sussurrou Agostina.

– Era alcoólatra – replicou Irene, contendo um bocejo. Tinha sono, mas sabia que a avó não a deixaria dormir. – A culpa não era dela – insistiu a velha.

– A culpa era de quem, então?

– Eu é que sei.

Irene afastou o casaco e sentou-se na cama.

– E eu também não posso saber? Nunca ninguém ousou impor-se à minha mãe. Era a conjura do silêncio. O avô, depois da apoplexia, não podia falar. Você, os tios e o meu pai faziam de conta que não viam, que não percebiam. Ela odiava todo mundo e só não descarregava a raiva em cima do meu pai. O que é que ele tinha de especial? – perguntou a moça, à espera de que a avó decidisse, finalmente, dar-lhe algumas explicações.

– O teu pai era inocente e a Rosanna respeitava-o – afirmou Agostina. – E eu? Não era inocente? – replicou Irene.

– A tua mãe era uma mulher muito complicada – defendeu Agostina. – Continua a se expressar por enigmas – protestou Irene.

A avó não tinha vontade de falar da filha e mudou de assunto:

– Gostava de estar na minha cozinha, olhando para os campos através da janela. E me apetecia um pacotinho de amendoins – disse, com um suspiro.

– Dava-me sempre um, na festa da aldeia – recordou Irene. E acrescentou: – Para mim, tinham o sabor da América. A América que ela conhecia era a das histórias de Barbarina, a dona do Bar Centrale. Quando era pequena, Irene sentava-se num canto do estabelecimento, à espera de que a mãe se enchesse de vinho, e Barbarina falava-lhe da América. Dizia-lhe que lá, se uma pessoa tivesse talento, fosse rica ou pobre, poderia tornar-se uma personagem importante. Contava-lhe a história da filha. Irene já a conhecia, mas gostava de ouvi-la novamente. Chamava-se Silvia. Tinha ido para a França trabalhar num bistrô, em Paris. Um realizador americano reparou nela e contratou-a para figurante de um espetáculo de variedades. Silvia gostava de dançar. Aquilo foi a rampa de lançamento. Partiu para Nova Iorque com a companhia toda. Barbarina mostrava-lhe

as fotografias da filha, vestida de tules e lantejoulas, dançando e tendo ao fundo arranha-céus. Folheava as revistas de espetáculos que falavam nela. Miss Silvia Ferrero, bailarina de um grande show que estava em cena na Broadway. Barbarina recebia da América embrulhos, enviados pela filha, que continham vestidos, bijuteria, discos, latas de cacau e boiões de manteiga de amendoim.

Irene enfiava a cara nas caixas que, segundo ela, tinham o cheiro da América, um lugar longe da tristeza. Às vezes, Barbarina oferecia-lhe um pão untado com manteiga de amendoim. Era especial. Por isso prometeu à avó:

– Vou trazer um pacote.

– Tente me levar para casa. Não quero morrer aqui dentro, neste quarto triste. Quero partir no meio das minhas panelas de cobre, do perfume das maçãs nas prateleiras, do meu fogão e da alfazema pendurada nas traves. Abre a gaveta da mesa de cabeceira – ordenou.

Irene obedeceu. Havia um porta-moedas, um pente, alguns lenços de linho bem passados a ferro, os brincos de ouro e uma fotografia em preto e branco da família inteira com os tios, o avô, a avó, ela própria pequenina, Angelo atrás dela e a mãe que tinha ao colo o irmão pequenino que acabaria por morrer poucos dias mais tarde. Algum tempo depois morreu também a mãe.

– Pega a fotografia e guarda-a – disse-lhe a avó.

Irene observou-a durante muito tempo e depois meteu-a na carteira. – Por que é que não me fala da minha mãe? – tentou de novo.

– Peça ao teu pai que te conte a história da Rosanna. Ele conhece-a com todos os pormenores – respondeu Agostina. A enfermeira apareceu à porta do quarto.

– O que vem a ser esta tagarelice toda? – perguntou. – De noite, dorme-se. – Meta-se na sua vida – disse a avó.

– Fazia-o de boa vontade, se não tivesse que tratar da senhora e dos outros doentes – replicou a mulher, enquanto se afastava.

– Agora vamos dormir – disse Irene. – Amanhã vou falar com o meu pai. – A noite já ia longa quando, finalmente, adormeceram.


15

Mauro Cordero chegou ao hospital às seis e meia da manhã. Trazia roupa lavada, espumante e panettone. Entrou no quarto e encontrou Irene, estendida na cama ao lado da avó. Dormiam as duas.

Mexeu-se com cuidado. Pousou os embrulhos em cima da mesa e sentou-se ao lado da janela, à espera de que acordassem. Aquelas duas mulheres eram todo o seu mundo de afetos, não tinha mais ninguém desde que Rosanna lhe faltara e, antes dela, o filho. Olhou para elas e sentiu-se feliz.

Tinha sofrido muito com a partida de Irene, que passou pela fábrica para se despedir dele. – Vou para Milão – dissera-lhe.

– Se as coisas não correrem bem, vem embora depressa – recomendara ele, e sentiu uma grande dor dentro de si. – Está bem – respondera a moça.

Telefonou-lhe nessa mesma noite.

– Fui contratada por uma empresa importante – anunciara, muito feliz. – Não esqueças a tua avó – dissera ele timidamente, dentro do seu estilo. Gostaria de ter acrescentado: “Tenho tantas saudades tuas”, mas não ousara.

– Quero ser rica, pai. Quero que você tenha alguma coisa de melhor na vida. – Aquela foi a maneira de lhe dizer que gostava muito dele.

Irene era um pequeno pássaro de grandes asas. Precisava voar para muito longe. O pai tinha que lhe dar razão. Não mexeria um dedo para a fazer regressar àquela fazenda triste, mesmo sabendo que San Benedetto não era o pior lugar para viver. Só esperava que, do céu, Rosanna tomasse conta dela.

– Feliz Natal. Café e remédios – anunciou uma enfermeira com voz grossa, ao entrar no quarto. Agostina abriu os olhos, mas voltou logo a fechá-los.

Irene acordou, viu o pai e sorriu-lhe. Pulou da cama e foi abraçá-lo. – Feliz Natal, papai – sussurrou, para não incomodar a avó.

– Já sabia que ia te encontrar aqui. Disse-me o Angelo, ontem à noite – respondeu ele em surdina. – Achava que os deixaria sozinhos num dia como este? – perguntou a moça, baixinho. – Agora vai para casa descansar um bocado. Eu trato da avó.

– Por que não me telefonou para me avisar que ela estava no hospital? – quase o repreendeu. – Não queria te arranjar problemas. E depois, tinha certeza de que você vinha. Entraram as empregadas da limpeza e obrigaram-nos a sair do quarto, enquanto Agostina cochilava. – Há um café aqui embaixo. Ofereço um cappuccino e um bolo – propôs o pai. Tinha os olhos brilhantes de felicidade. Ao balcão do café, no meio da conversa, Irene ficou sabendo que os filhos de Agostina tinham sido avisados sobre as condições em que ela se encontrava, mas não acharam que valesse a pena alterar os planos que tinham para as férias de Natal. – De qualquer maneira, ela vai ficar boa depressa. Nós já reservamos um hotel na montanha e estamos de partida – tinha dito o filho mais velho, que falava também em nome dos irmãos.

– Mas não vai ficar boa depressa. A avó está gravemente doente – declarou Irene. – Eu sei. O cardiologista me disse que depois das festas vai transferi-la para o hospital de Cuneo – informou. – E se já for tarde demais?

– Não vai ser. Está tudo bem, minha menina. Agora vai para casa – insistiu, acariciando-lhe afetuosamente o ombro. – Está me mandando embora. Por quê? – perguntou Irene, desconfiada. – Passou a noite no hospital. Agora precisa descansar umas horas. Eu volto para casa ao fim da tarde. – Tudo bem. Logo à noite temos de conversar os dois.

– Sobre o quê?

– Sobre a mãe. Eu preciso saber. A avó diz que você conhece a história toda e já é o momento de contá-la a mim. Mauro Cordero pousou as duas mãos nos ombros da moça. Olhou-a nos olhos, como se quisesse ver-lhe a alma. – Eu vou te contar – disse-lhe num sussurro. – Vai ser difícil para mim falar e para você ouvir. Mas, como sempre, a Agostina tem razão.

Irene saiu do hospital e esperou durante muito tempo a caminhonete que a levou até perto da fazenda. Enquanto se dirigia a casa, a neve, que cobria a estrada, estalava-lhe por baixo dos sapatos, e um sol muito pálido projetava sobre aquela brancura as sombras compridas das árvores. A porta, como sempre, não estava fechada à chave. A cozinha estava impecavelmente limpa. Ao lado da lareira havia um aquecedor a querosene que Mauro tinha ligado no máximo, de forma que o calor, através da escada, chegasse também ao andar de cima. No varal, junto ao aquecedor, estavam pendurados os panos da louça. A mesa, coberta com uma toalha natalina vermelha e verde, estava posta para duas pessoas. Em cima de uma velha masseira estava um presépio cheio de luzinhas com a estrela de Belém por cima da cabana. Irene tirou o casaco e ficou olhando as fotografias da família que estavam alinhadas, desde sempre, em cima do aparador. Chamou-lhe a atenção uma fotografia sua, ainda pequenina, com a mãe. Caminhavam de mãos dadas ao longo de uma alameda de tílias, em San Benedetto. Sorriam, tranquilas. Rosanna vestia um casaco claro, sapatos de salto alto e segurava uma bolsa debaixo do braço. Ao observá-la, Irene deu-se conta de que se parecia muito com ela. Tinha sido o pai que tirara aquela fotografia num dia de festa, na primavera. Um dia feliz, porque Rosanna tinha anunciado que ia lhe dar um irmão pequenino. Um dia para recordar como uma pedra preciosa, depois dos anos sombrios que o tinham precedido. Os tios tinham deixado a fazenda e viviam então na cidade com as respectivas famílias. Restavam apenas os pais e os avós. O avô tinha piorado. Já quase não comia e estava sempre na cadeira de rodas ao lado da lareira ou em qualquer canto afastado, com a cabeça inclinada sobre o peito. O pai estava sempre na fábrica. Ela fazia os trabalhos da escola na mesa da cozinha e, de vez em quando, levantava os olhos para o relógio de parede, por cima do aparador. Os dias eram curtos e a noite chegava depressa. As horas passavam devagar e a mãe já devia estar em casa há algum tempo. Mas não aparecia.

– Vai buscá-la na aldeia – ordenava a avó, com um suspiro.

Rosanna trabalhava numa fábrica de confecções. Fazia as bainhas dos vestidos e não havia nenhuma tão boa quanto ela com a agulha e com a linha. Também escrevia poemas, de que Irene gostava muito. Rosanna lia-os para ela e depois dizia: – São horríveis. E rasgava as folhas. Tinha também muito jeito para os enigmas e resolvia as palavras cruzadas e as charadas mais complicadas. Teria sido uma mulher notável se não tivesse o vício de beber.

Por isso, quando a avó lhe ordenava que a fosse buscar, apertava-lhe o coração, porque era uma tarefa dolorosa. Enfiava então o casaco, enterrava na cabeça o gorro de lã e ia até a estrada bater os pés por causa do frio. Esperava que passasse a caminhonete e sentava-se ao lado do motorista, que a conhecia e não lhe cobrava bilhete.

Saía na praça da aldeia e ia diretamente ao Bar Centrale. A mãe ali estava, ao fundo da sala, no canto mais escuro. Com uma mão segurava o copo de vinho, com a outra, o cigarro. O olhar turvo fixava um horizonte que só ela podia ver. Irene sentava-se ao lado dela e, com a mão, fazia-lhe carinho no braço.

– A avó está à sua espera – sussurrava.

– Deixe estar – balbuciava Rosanna.

– Eu também quero que você venha para casa – dizia Irene, desesperada. – A minha casa é esta – respondia, afagando a garrafa de vinho. – A outra é só uma fazenda habitada por pessoas nojentas. Irene sabia que tinha de ter paciência e ficar calada até Rosanna estar completamente embriagada. Só então se levantava com muito custo e, cambaleando, se dirigia para a saída do bar, dizendo-lhe: – Vamos.

Regressavam a pé, porque agora era tarde e a caminhonete já não passava. A longa caminhada sob as estrelas diluía em parte o efeito do vinho.

Quando entravam em casa, Irene sentava-se na cozinha para tomar a sopa que a avó lhe aquecia e Rosanna subia até o quarto para acordar o marido que fazia o turno da noite na fábrica. Mauro partia no seu pequeno carro e Irene ia para junto da mãe, que já estava sóbria. Rosanna sorria e, batendo com a mão na cama, convidava-a para se enfiar com ela debaixo dos cobertores.

Depois abraçava-a e, naquele ponto, a tensão de Irene desfazia-se e abandonava-se a um pranto desesperado. – Está chorando porque eu sou má? – perguntava Rosanna com ternura. Ela não sabia de onde nasciam os soluços que lhe sacudiam o peito. – Conte-me uma coisa bonita – dizia Rosanna, apertando-a contra si. – Amanhã, se não for à taberna, eu te conto muitas coisas bonitas – sussurrava Irene em meio as lágrimas. Depois adormecia, exausta.

De manhã, quando acordava, a fazenda estava deserta. A avó, no estábulo, tratava dos animais, o avô estava escondido em qualquer parte e o pai ainda não tinha voltado da fábrica. Olhava pela janela e via a mãe afastar-se com um passo rápido, rebolando em cima de uns saltos altíssimos. Ia pegar o ônibus que a levava ao trabalho.

Irene vestia-se e descia até a cozinha, onde estava já pronta a tigela de leite e chocolate com os biscoitos. Comia em pé, enquanto arrumava os livros e os cadernos na mochila, e depois corria pelo meio da vinha até a estrada, onde passava a caminhonete. Angelo estava sempre no ponto de parada, à espera dela, sem dar a entender isso. Irene tinha já esquecido a angústia da noite anterior e sorria, feliz.

Desviou então o olhar da fotografia, que lhe fez lembrar uma parte do passado que gostaria de esquecer, mas que não conseguia afastar. Queria esclarecer a história da mãe, queria a verdade que a família nunca falava, encobrindo-a com um mistério que confundia o espírito e o coração. Talvez, se a conhecesse, conseguisse se libertar daquele mal-estar que a recordação da mãe provocava. Angelo Marenco, pelo contrário, era a parte boa e límpida do seu passado.

O telefone, um aparelho daqueles velhos, negros, ainda pendurado na parede, começou a tocar. Era Angelo. – Vou passar por aí – disse-lhe.

Irene foi até o quarto. Estava como o tinha deixado. A cama com a cabeceira de nogueira e a coberta de tecido escocês, o armário, as cortinas de renda feitas pela mãe, a cadeira de balanço com a boneca vestida de seda cor-de-rosa que o pai te deu e os quadrinhos feitos com flores secas. Foi ao banheiro tomar banho, tremendo de frio. Não havia aquecimento central naquela casa. Voltou a vestir-se e desceu até a cozinha. Colocou no forno uma travessa de ravioli e abriu uma garrafa de vinho.

Angelo bateu à porta e entrou.

– Feliz Natal – desejou ele, enquanto lhe dava um embrulhinho muito bem enfeitado. Tinha arranjado coragem para dar-lhe o presente, finalmente.

– Feliz Natal – respondeu ela, entregando também um presente.

Durante um instante, olharam-se com timidez. Depois ela abriu os braços: – Angelo, meu anjo bonito, voe para cá – exclamou rindo. Abraçaram-se e ele beijou-a, experimentando uma sensação maravilhosa que gostaria de prolongar até o infinito. Mas esforçou-se para afastá-la docemente e perguntou-lhe: – Como está a Agostina?

– Mal. Já a conhece. Não se queixa e continua a resmungar. O meu pai está com ela. Eu estou contigo e vai ser um bom Natal, apesar de tudo – afirmou Irene.

– Apesar de tudo – repetiu Angelo, considerando que com a família dele as coisas tinham corrido melhor do que pensava. Mérito da mãe, que tinha a capacidade de acalmar as tensões e que tinha lhe arrancado uma promessa solene: não ia abandonar a universidade e ia dar aos Marenco a satisfação de terem um filho com um curso superior.

– Então te convido para o almoço. Há ravioli no forno, vinho e panettone – anunciou ela. Desembrulharam os presentes. Angelo ofereceu-lhe um frasco de Chanel N.º 5. – É o perfume da Marilyn Monroe – comentou Irene. E acrescentou: – É muito caro. – Esfregou a tampa nos pulsos e atrás das orelhas. – Para mim você é melhor do que a Marilyn Monroe. Me deixe cheirar – disse Angelo, insinuando o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – É muito sensual – declarou, repetindo as palavras da vendedora do perfume.. – Eu acho que não sou uma moça sensual – disse ela, corando, e afastando-o com ternura. – É verdade. Você é só o fim do mundo – afirmou Angelo.

Estavam excitados e intimidados.

– Abra o meu presente – pediu Irene.

Era um cachecol azul de caxemira macia. Tinha lhe custado um quarto do ordenado. – Você é louca! Isto é uma coisa de ricos.

– Desde pequena que queria te oferecer um cachecol como esse. E consegui. Sentaram-se à mesa.

Durante o almoço, Irene não parou de conversar.

– Angelo, os namorados fazem amor – disse-lhe, de repente.

Ele não entendeu se aquela frase, pronunciada com candura, era uma pergunta ou um convite. – Fazem, é verdade – respondeu.

– E por que é que nós não fazemos?

– Só tem dezoito anos. Ainda é uma menina. Fazer amor é coisa de gente grande – observou ele. – Você já fez?

Angelo corou. Gostaria de poder desempenhar o papel do homem vivido que já conhece tudo da vida. Mas não era assim, e ele não sabia fingir.

– Vamos lá, responde – insistiu Irene.

– Fiz uma vez no colégio, com a irmã de um amigo meu, muito mais velha do que eu – confessou. – Só uma vez?

– Depois houve uma colega da faculdade. A mãe dela nos viu e eu comecei a fugir pelas escadas abaixo, meio nu, com a roupa na mão. Uma vergonha que ainda me dói.

Ela riu com vontade.

– Estava apaixonado por essas moças?

– Gostava delas.

– É bom fazer amor?

– Agora chega – rematou ele.

– Eu acho que nós devíamos fazer amor, porque você quer e eu também tenho vontade – insistiu Irene. – Isso é uma coisa que não se programa. Acontece e, em qualquer caso, não a nós, hoje, nesta casa – declarou. – Na fábrica havia operárias mais novas do que eu que já faziam amor há muito tempo – martelou ela. – Problema delas. Vamos mudar de assunto.

Gostaria de lhe dizer que era aquilo que ele mais desejava. No entanto, porque a amava, queria que acontecesse como por milagre, num lugar lindíssimo. Mas não encontrava palavras para lhe dizer tudo isso e muito mais.

– O meu pai vai chegar daqui a pouco – mentiu ela, ao sentir-se repelida. E começou a arrumar a cozinha. – Obrigado pelo almoço – disse Angelo, que não decidia se ia embora. – A sua família está à sua espera. Tem de voltar para casa – lembrou-lhe Irene, com modos bruscos. Estava ofendida e embaraçada por causa do que tinha dito. E sentiu-se culpada por ter esquecido o sofrimento da avó. Por isso acrescentou: – Vou outra vez para o hospital. Amanhã nos falamos.

Angelo foi embora e bateu a porta. Estava transtornado por ter repelido a mulher que amava, quando devia tê-la apertado nos seus braços para toda a eternidade.

Irene abriu a porta com força. Viu-o afastar-se cabisbaixo, sobre a terra coberta de neve. – Não passa de um camponês. Uma raça danada – gritou, furiosa. Angelo voltou para junto dela correndo. Abraçou-a e cobriu-lhe o rosto de beijos. – Daqui a quinze dias vou para a tropa. Não sabia como havia de te dizer isto – sussurrou. – Agora já disse.

– Amanhã vou pedir o carro emprestado ao meu pai. Vamos até qualquer lado. Um lugar lindíssimo. Vamos ficar juntos contando um ao outro as nossas emoções – prometeu Angelo.

Foi então que viram chegar o automóvel de Mauro.

O homem saiu do carro, enquanto o rapaz o cumprimentava com um gesto, começando a afastar-se. – Vim buscar a roupa. A avó morreu – disse o pai, ao entrar em casa. Irene detestou-se por ter pensado no amor e na vida enquanto a avó estava morrendo. Uma dor aguda atravessou-lhe o peito. – Eu pensei que ela tivesse adormecido. Tínhamos comido juntos o panettone e bebido um gole de espumante. A certa altura

ela disse que queria dormir. Bocejou. E morreu – contou Mauro, com os olhos vermelhos de choro.


16

Irene foi transferida para um quarto no último piso do pavilhão de neuropsiquiatria. Angelo deu ordens para que houvesse sempre um agente do lado de fora da porta vigiando.

– Vai ficar aqui durante alguns dias – disse Angelo, depois de a ter informado sobre a presença do guarda. – Por quê? – perguntou Irene.

– Ainda não pegamos o seu agressor e queremos fazer mais algumas tentativas para o encontrar antes de te deixarmos sair. – E acrescentou: – Sério que não se lembra do que trazia contigo, de Londres?

– Acha que se eu me lembrasse ainda estaria aqui? – respondeu, com um ar irritado. No quarto, além da cama e de uma pequena mesa de metal, havia duas poltronas. Angelo atendeu o celular e sentou-se no braço de uma das poltronas.

– Eu mando um dos meus homens buscá-la. Fique sossegada – disse, quando terminou a chamada. Irene foi até junto dele, sentou-se na poltrona e pousou-lhe a cabeça na perna. Angelo estendeu uma mão para tocar em seu ombro, mas ela encolheu rapidamente. Levantou-se e foi sentar-se na poltrona em frente. Estava embaraçado e não queria dar a entender.

– Preciso de calor humano – declarou Irene. E acrescentou: – Faz alguma ideia de como me sinto? As minhas recordações vão surgindo como folhas trazidas pelo vento.

Naquele momento viu de novo Angelo quando tinha vinte e três anos e usava a farda da tropa. Vinha correndo ao encontro dela, à saída do quartel, ao longo de uma alameda com tílias em flor. E depois, com a respiração ofegante da corrida e da emoção, dizia: – Tenho as chaves da casa de um amigo meu.

Levou-a até uma pequena casa na colina, no meio de um bosque. Era maio, eram jovens e descobriram juntos o amor. – Desculpe, chefe. – A voz do policial, que apareceu à porta, trouxe-a de volta à realidade. Angelo foi ter com o homem fora do quarto e a deixou só. Irene aproximou-se da janela e viu dois rapazinhos que brincavam no jardim do hospital. Um velho de passo incerto, apoiado numa bengala, quase foi derrubado pelos gestos violentos dos dois, assustou-se e praguejou contra eles. Enquanto observava aquela cena, uma dor aguda atingiu-a na nuca. Afastou-se da janela. A Dra. Gorini tinha lhe dado uma pequena sacola com remédios que estava na mesa de cabeceira, ao lado da cama, com uma garrafa de água mineral e um copo. Encontrou a caixa dos analgésicos. Tirou dois e tomou-os com a ajuda de um gole de água. Baixou as persianas, estendeu-se na cama e esperou que o medicamento fizesse efeito depressa.

– Está com uma daquelas dores de cabeça? – perguntou Angelo, que tinha voltado ao quarto. – Exatamente.

– Então vou te deixar sossegada. – E acrescentou: – Se precisar de ajuda, toca a campainha. O teu anjo da guarda, que está ali à porta, vem logo em teu socorro.

– Está bem – respondeu ela.

– Uma última informação. Logo à tarde receberá uma visita. A madre Maria Francesca, abadessa de Altopioppo, vem te ver. Já não tinha notícias suas há uma semana e estava preocupada contigo. Por fim, resolveu telefonar para a polícia para comunicar o seu desaparecimento. Informei-a pessoalmente sobre aquilo que lhe aconteceu. Acho que vai ser importante para você o encontro com ela – disse Angelo, e foi embora.

As palavras de Angelo chegaram até ela como se tivessem sido amplificadas por um megafone distante. Agora martelavam na cabeça, dilatando-se como os círculos formados por uma pedra atirada à água. Enquanto o analgésico começava a fazer efeito, Irene lembrou-se.


17

Eram seis e meia da manhã. Estava escuro. O nevoeiro envolvia-a como uma coberta de algodão. Os faróis do carro não penetravam aquela massa leitosa e ela não conseguia ver as linhas brancas que delimitavam a estrada. Não sabia onde estava. O limpador de para-brisa deixava no vidro uma pasta acinzentada. Irene estava só e assustada. Reduziu ao mínimo a velocidade, à espera de vislumbrar o acostamento da estrada, mas a névoa só lhe mostrava fantasmas enormes que pareciam querer devorá-la.

A certa altura, o motor do Mercedes começou a falhar e, logo a seguir, o carro parou. Os faróis, que iluminavam o vazio, apagaram-se e Irene ficou mergulhada no silêncio.

– Mas que grande chatice! – resmungou, buscando coragem. Tentou inutilmente voltar a ligar o motor. – Está morto – constatou.

Abriu a porta. À sua volta só havia nevoeiro e silêncio. Pousou um pé no chão e sentiu por baixo da sola uma camada de saibro. Devia estar na periferia de Milão, mas não sabia onde tinha ido parar. Saiu do carro, e os saltos finos dos sapatos enterraram-se no chão de cascalho. De repente chegou até ela o toque ligeiro de um sino.

Deu alguns passos, guiada pelo som que se repetia, insistente, e vislumbrou o perfil de uma igreja encimada por um campanário cujo topo se perdia na névoa. Uma pequena luz por cima da entrada de mármore branco iluminava o caminho ladeado por uma sebe baixa de murta.

Ouviu então um canto muito suave de vozes femininas, acompanhado pelo som de um órgão. Aproximou-se da igreja, empurrou um portão antigo e foi envolvida por um intenso perfume de incenso. Parou, intimidada.

A luz vacilante de muitas velas exaltava os afrescos que revestiam as naves da igreja. As freiras formavam duas filas escuras dos dois lados do altar-mor.

– Oremos – ouviu-se a voz de uma religiosa.

– Glória a Deus no céu e paz na terra – responderam as vozes em coro. Irene avançou sobre o pavimento de tijoleira, tentando não fazer barulho. – Desceu sobre nós a palavra de Deus – recitaram as monjas.

Chegou até o altar e uma das irmãs, a primeira que estava sentada na fila da esquerda, virou a cabeça e viu-a. Deixou o grupo e foi ao encontro dela num passo ligeiro. Aproximou-se e, sorrindo, sussurrou: – Posso ajudá-la, menina?

– Perdi-me no nevoeiro – explicou Irene, desorientada.

– Está na abadia de Altopioppo – respondeu a freira, que usava uns óculos com lentes grossas de míope. – Como é que eu vim parar aqui? – interrogou-se Irene. E continuou: – O meu carro não anda. Por favor, chame um mecânico. O meu celular está sem bateria.

As monjas, entretanto, continuavam a cantar.

– Venha comigo – decidiu a freira, avançando à frente dela em direção a uma porta que se abria do lado direito. Percorreram um corredor mobiliado com mesinhas cobertas de rendas e pequenos objetos decorativos, pequenos quadros de flores nas paredes e uma gaiola com dois papagaios amarelos. Através de uma vidraça, ao longo da parede do lado esquerdo, Irene viu um minúsculo claustro antigo. Entraram num vestíbulo espaçoso. Um grande retrato de um bispo sobressaía numa parede revestida de nogueira clara.

– Tire o casaco e pendure-o ali – sugeriu a freira, indicando um cabide pregado na parede. – Eu vou preparar um café. – Eu só preciso usar o telefone – disse Irene –, não se incomode com o café. – Mas é que eu gosto muito – respondeu a monja, com um sorriso malicioso –, e a menina vai me fazer companhia. Não tenha pressa. Na vida há tempo para tudo – disse, avançando à frente dela em direção a outro corredor. Irene seguiu-a com curiosidade. Achou-se numa pequena cozinha amarela e branca. Os eletrodomésticos e os apetrechos eram modernos. A monja ligou uma cafeteira elétrica. Depois pôs duas xícaras e um açucareiro de porcelana branca numa bandeja de metal e colocou-o no centro da mesa quadrada.

Através de uma janela alta, protegida por uma grade em ferro forjado, Irene viu que o nevoeiro estava dissipando-se e já se entrevia o azul do céu.

– As outras irmãs dizem que ninguém sabe fazer o café como eu. Sabe, nasci no meio do café. Sou de Milão. Os meus pais tinham uma torrefação em Porta Venezia. Chamo-me Maria Luciana. Posso saber o seu nome? – perguntou a freira.

O café começou a descer, escuro e denso, para dentro de uma cafeteira de cerâmica branca que a monja tinha aquecido com um jato de vapor.

– Me chamo Irene – respondeu.

– O Senhor foi generoso com você. É muito bonita – observou a freira. E prosseguiu: – Comigo, o Bom Deus foi mais sovina. Não nasci bonita, e quando era muito pequenina peguei a gripe espanhola. Sobrevivi, mas a febre enfraqueceu-me a vista e fui sempre muito míope. O Senhor quis assim. Ele lá tem os seus desígnios, que as nossas pequenas mentes não podem compreender. Mas, querida Irene, por uma vez na vida, só uma, gostaria de ser alta, forte e bonita como a menina – declarou, enquanto deitava o café nas xícaras. – Tome-o enquanto está quente – aconselhou, e acrescentou: – Dizem que faz mal. Mas eu tomo muito e já passei os oitenta anos, sempre de boa saúde, dando graças a Nosso Senhor.

O café era realmente excelente e Irene apreciou-o.

– Agora tenho de voltar à igreja. Espere aqui, que eu vou lhe mandar a madre Maria Ernesta; ou, se preferir, venha comigo – disse a freira.

Irene seguiu-a. Estava cansada. Tinha saído há pouco tempo da villa de Tancredi, em Cassano d’Adda. Na noite anterior, depois de uma das habituais discussões furiosas que serviam para extravasar a infelicidade de cada um, tinha decidido dormir no segundo andar, no quarto da roupa. Ali Tancredi não iria encontrar com ela. Por razões obscuras, havia quartos naquela vila em que não entrava. A cozinha, por exemplo, ou aquele salão imenso, cheio de armários antigos, nos quais se arrumava toda a roupa de casa. Havia ali uma cama, que ninguém usava, onde Irene se sentia a salvo, envolvida pelo perfume da alfazema que era inserida, em sacos pequeninos, no meio dos lençóis e das toalhas de linho.

Quando dormia naquele quarto, caía num sono reparador. Naquela noite, no entanto, não tinha conseguido dormir durante muito tempo. Talvez a discussão tivesse ultrapassado a medida do suportável. Aparentemente, Irene possuía tudo aquilo que qualquer mulher poderia desejar: beleza, dinheiro e sucesso. Na realidade, sentia-se insatisfeita e infeliz porque se dava conta de ter perdido a capacidade de sonhar, de desejar, de fazer projetos, de dar um sentido à sua própria existência.

Onde quer que fosse, tinha à sua volta uma multidão de admiradores prontos para satisfazer qualquer desejo seu. Tinha um cartão de crédito ilimitado. Qualquer festa ou recepção não era considerada importante sem a sua presença. Naquelas ocasiões, os comentários espirituosos e o sorriso estampado nos lábios escondiam o seu desconforto. Vivia uma vida que não lhe pertencia, no meio de pessoas que, muitas vezes, não lhe interessavam. Quando era jovem e ingênua, deixara-se envolver pelo fascínio de Tancredi. Depois percebeu que ele era tão sequioso de poder e de riqueza que aceitava muitos compromissos só para obter aquilo que queria. Por trás da bonomia com que tratava sócios, colaboradores e empregados, escondia um desejo de onipotência que Irene já não suportava.

O idílio com Tancredi tinha se quebrado.

– Mas o que é que você quer da vida? – perguntou ele, uma vez, durante uma discussão feroz. – Quero os meus sonhos de volta – respondeu, desesperada.

– Você é louca – disse ele.

– Gostaria muito de ser, para não ver o homem que você é. Pensa que todo mundo está à venda e que cada um tem um preço. – Até você tem o teu. E eu sei, porque o paguei – atirou-lhe.

– Mas não conseguiu me ter. Se eu tivesse realmente me vendido a você, agora me desprezaria e já teria me eliminado como fez com todos aqueles que comprou para poder te libertar deles. Você tem é medo de mim, porque não me possui.

Irene sabia como feri-lo e como o encurralar no canto em que ele se debatia. Por isso tinham se separado. Ele vivia na casa de campo, ela num apartamento no último andar de um palácio oitocentista na via Solferino. Mas viam-se todos os dias no escritório, porque Irene dirigia o departamento de relações públicas e o gabinete de promoção da Cosedil. Ocupava agora uma posição importante dentro da empresa e era muito estimada.

Dora, a mulher legítima de Tancredi, vivia com os filhos no palacete da via Gesù e só raramente encontrava o marido. Assim, na noite anterior, Irene tinha ido a Cassano para um jantar com os diretores da Cosedil. Correu tudo bem até o momento em que os hóspedes abandonaram a vila. Depois da discussão com Tancredi, dormiu no quarto de vestir e acordou de madrugada. O sono atenuou-lhe a agressividade. Foi até o seu quarto no primeiro andar, tomou uma ducha e vestiu umas calças, uma camiseta e um casaco. Desceu ao andar térreo e entrou no carro, que estava estacionado no pátio. Um nevoeiro cerrado envolvia o parque; porém, desafiando o bom senso, decidiu voltar para casa, em Milão. Agora, a irmã Maria Luciana tinha lhe dito que se sentasse num banco encostado a uma parede do corredor e tinha-a deixado sozinha. Pouco depois veio encontrar com ela uma freira jovem e bonita.

– Bom dia, Irene. Sou a irmã Maria Emanuela. Soube que tem um problema com o carro – disse. Por cima do hábito trazia um casaco negro de lã pesada. – Deixe-me dar uma olhada em seu motor – acrescentou, avançando à frente dela em direção à saída.

O nevoeiro tinha se dissipado completamente e o sol nascia nos campos. Irene voltou a percorrer o caminho ladeado de murtas e viu finalmente o espaço coberto de saibro em frente à abadia onde o carro tinha parado.

– Eu vinha na via rápida. Não consigo entender como é que pude chegar até aqui – comentou. – Talvez tenha sido o Senhor a guiá-la até nós – observou a irmã Maria Emanuela, com um ar alegre. – É uma boa maneira de encarar a vida. Tudo aquilo que acontece de positivo é por vontade do Senhor – observou Irene. – É exatamente isso – anuiu a freira.

Maria Emanuela sentou-se no lugar do condutor e ligou a ignição, sem sucesso. Então saiu e abriu o motor. Tirou do bolso do hábito uma pequena lanterna. Orientou a luz para as ligações elétricas do motor. Desligou e voltou a ligar uma série de cabos.

– Está tudo em ordem – constatou. – Agora vou buscar o nosso carro para carregar a bateria – comunicou-lhe. – Não queria que se incomodasse. Só peço que ligue para o mecânico – disse Irene, que se sentia pouco à vontade com aquela intromissão no convento.

– Como preferir. Talvez seja melhor assim, porque eu só ia lhe permitir retomar a estrada até a oficina da aldeia: tem que substituir a bateria. O seu Mercedes é novo, mas a bateria não é a original. Enganaram-na, Irene – afirmou a monja.

– A irmã é mecânica? – perguntou Irene, espantada.

– Sou engenheira aeronáutica – respondeu a irmã Maria Emanuela. As duas mulheres despediram-se e a freira regressou ao convento.

Enquanto esperava pelo mecânico, Irene dirigiu-se à igreja. Voltou a observar a fachada. Uma lápide, ao lado da entrada, apresentava uma frase em latim: NO ANO DE 1176, NO DIA 23 DE ABRIL, FOI ERIGIDA A IGREJA DEDICADA AOS SANTOS MARIA E JOSÉ. Tinham passado quase novecentos anos e a beleza daquele edifício sagrado tinha permanecido intacta.

O sino voltou a tocar. Eram oito horas da manhã. Um homem alto, magro, com um rosto bonito e severo coberto com uma curta barba grisalha, saiu da porta de um edifício adjacente. Trazia umas calças de veludo canelado e uma camisa de lã grossa de gola alta.

– Bom dia – cumprimentou-a, com um sorriso franco.

Abriu o portão antigo e entrou na igreja.

– Bom dia – respondeu Irene. E foi atrás dele.

Viu-o entrar pela porta que, do lado direito, levava ao mosteiro. Ela ficou ao lado de uma coluna. As monjas estavam já sentadas nos bancos. O homem voltou a aparecer pouco depois. Trazia os paramentos sagrados e a opa era de um bonito verde muito vivo bordada a ouro. Foi até o altar, fez o sinal da cruz, juntou as mãos e começou a celebrar a missa.

Irene foi-se embora. Voltou ao carro e sentou-se ao volante. Do interior do carro observava a arquitetura sóbria da abadia e pensava na doçura inocente de madre Maria Luciana e na serenidade singela de madre Maria Emanuela. Interrogou-se sobre as razões que poderiam ter levado uma mulher jovem, realmente bonita, com uma licenciatura em Engenharia Aeronáutica, a fechar-se dentro dos muros de um convento. Não encontrou uma resposta. Mas desejou saber mais alguma coisa sobre a abadia de Altopioppo.

Estendida na cama, na escuridão daquele quarto de hospital, Irene recordava. Repetiu em surdina: – Altopioppo. – Com aquele nome, a memória restituiu-lhe uma peça importante da sua história: os dias anteriores à agressão.


18

Eram cinco e meia da tarde. Na doce placidez da abadia de Altopioppo, as freiras recitaram o Magnificat e concluíram a missa vespertina cantando o hino de Glória ao Pai.

Irene, com outros dois hóspedes do convento, tinha assistido à celebração da tarde. Há algum tempo se refugiava muitas vezes em Altopioppo, e naquele lugar antigo, onde parecia que o tempo tinha parado, tentava dar alguma ordem aos seus pensamentos e à sua vida inquieta.

O sol de julho trespassava os vidros das grandes janelas laterais, iluminando o interior da igreja antiga. As freiras fecharam os missais e, silenciosamente, saíram para o pequeno claustro retangular, desaparecendo depois no interior do convento. Também Irene, com os outros hóspedes, saiu da igreja. A madre Maria Francesca, a abadessa, ficou sentada no seu lugar. Com a cabeça inclinada sobre o peito e os braços cruzados por baixo do escapulário negro, continuou em solidão a sua prece.

A madre Maria Francesca tinha cinquenta anos e dirigia há quinze a comunidade das monjas beneditinas de Altopioppo com uma severidade materna. Tinha entrado no convento aos 22 anos, depois de ter se formado em Filologia Clássica e em Teologia. Tinha nascido em Palermo por um acaso. A mãe era uma famosa atriz de teatro e o pai professor de História de Arte. Passou os anos da primeira infância nos camarins e atrás dos palcos dos teatros de toda a Itália e, uma vez que se aborrecia, depressa aprendeu a ler e a escrever. A mãe passava a vida declamando, mesmo quando não estava no palco. Aquele sentido dramático fascinava a pequena Maria Francesca. Via o pai quando regressavam a Roma, onde ele ensinava na universidade. O professor olhava para aquela filha tímida e silenciosa e dizia-lhe:

– Está mais crescida.

Ela respondia:

– Obrigada, papai – considerando aquilo um cumprimento.

Quando chegou à idade de ir para a escola, o pai e a mãe acharam que a solução mais adequada seria um bom colégio. Assim, aos seis anos, Francesca foi levada para Arles, em França, e hospedada numa comunidade de religiosas. As colegas sofriam muito pelo afastamento da família. Ela, pelo contrário, sentiu-se como um peixinho na água. Era uma menina estudiosa, viva e muito independente. Gostava de cantar e tinha uma capacidade vocal notável. Gostava tanto das cançonetas como do canto gregoriano. Aos dez anos falava corretamente o francês, o inglês e o alemão. Aos dezesseis concluiu o ensino secundário com a nota máxima e deixou o colégio. O pai tinha morrido e a mãe vivia em Milão, a sua cidade de origem. Foi encontrar com ela e matriculou-se na Universidade Católica. Aos vinte anos formou-se em Filologia Clássica e foi viver com um músico, amigo da mãe, por quem tinha se apaixonado. Eram os anos da contestação juvenil. Ela saía para a rua com os companheiros, organizava manifestações, orientava as atividades na universidade e frequentava cursos de Teologia, à procura de respostas para as muitas interrogações que a atormentavam. Os seus dias tinham um ritmo extenuante. Uma noite o companheiro acordou-a para fazer amor, e ela sentiu de repente aquele ato como uma afronta.

Nos dias seguintes, Francesca questionou-se sobre o fato de a vida a dois ser realmente adequada para ela ou, pelo contrário, ser um sapato muito apertado para o seu pé. Pouco depois encontrou, no meio dos papéis que tinham pertencido ao pai, um estudo pormenorizado sobre a pintura da Lombardia do século XIV. O professor dedicava uma atenção particular aos afrescos de Giotto da abadia de Altopioppo.

Este texto levou-a a visitar a antiga igreja. Chegou à hora das Vésperas, sozinha. Abriu o portão antigo do edifício sagrado. Viu um pequeno grupo de religiosas sentadas nos bancos, em volta do altar-mor. Ouviu as suas preces e depois ergueu os olhos para observar a enfiada de abóbadas cobertas de afrescos que a luz da tarde fazia sobressair. Pensou no pai que, naquela igreja, tinha passado dias e dias a observar, a analisar e a descrever aqueles afrescos esplêndidos com histórias do Antigo e do Novo Testamento. Ao observar a pintura da Anunciação, Francesca captou a fragilidade do homem e a esperança da salvação.

Foi claro para ela que Deus tinha confiado a uma mulher a tarefa de dar à luz o seu próprio filho Jesus, vindo ao mundo para socorrer a humanidade. No mistério da Natividade, Francesca encontrou finalmente a resposta a muitas interrogações que a atormentavam e compreendeu qual o sentido a dar à sua própria vida.

– Posso fazer alguma coisa por você? – perguntou-lhe alguém em surdina. Francesca teve um sobressalto. Achou-se ao lado de uma freira que a olhava com simpatia. As outras tinham ido embora e a igreja estava deserta.

– Estou à procura de Deus – sussurrou.

– Procura-o em você – respondeu a monja.

Naquela noite Francesca regressou à cidade e fez as malas. O companheiro chegou no momento em que ela se preparava para sair. Foi obrigado a dominar a raiva em relação àquilo que lhe parecia uma fuga sem explicação.

– Vai me deixar? – perguntou, desesperado. Amava profundamente Francesca. Aquela mulher que, apesar de não ser muito bonita, era rica em vigor intelectual, fascinava-o. – Não quero te perder. Aonde quer ir?

– Para longe do barulho, dos gritos, dos debates estéreis – respondeu, olhando-o com ternura. – E acha que existe um lugar longe de tudo isso?

– Talvez. Ainda não sei. Mas, se quero entender aquilo que acontece à minha volta, tenho primeiro que olhar para dentro de mim.

– Te amo. Não me deixe.

– Não vamos discutir, por favor. Tenta me entender, preciso ir embora. – Abraçou-o, mantendo-o durante muito tempo apertado contra si.

Entrou no convento. Primeiro como hóspede, depois como postulante. Passava os dias entre o estudo, o trabalho e a oração. Ao fim de um ano passou a noviça e, aos 29 anos, pronunciou os votos. Deus não a desiludira, tinha encontrado nele uma fonte inesgotável de amor. A sua necessidade de lutar contra as injustiças não tinha se apaziguado. Na Cúria chamavam-lhe “a batalhadora”. Ao tornar-se abadessa de Altopioppo, melhorou a situação econômica da comunidade monástica, adjudicando financiamentos importantes para o restauro dos incunábulos. Dirigiu-se a uma editora que publicava obras teológicas e ocupou-se da escolha de textos e do aspecto tipográfico.

Finalmente, investiu uma grande energia na formação de um coro especializado em cantos gregorianos que, em pouco tempo, se tornou uma atração. As pessoas dirigiam-se à abadia para ouvir a voz das freiras. O exíguo patrimônio do mosteiro, de ano para ano, foi engrossando, e Francesca conseguiu enfrentar despesas extraordinárias e necessárias: uma instalação de aquecimento central para o convento e para a abadia e uma cozinha moderna e funcional.

A abadessa era um vulcão em atividade permanente. Permitiu que duas jovens freiras aprendessem a arte do restauro, mandando-as correr o mundo e frequentar cursos de especialização, para lhes confiar a conservação dos antigos afrescos do mosteiro. As monjas que demonstravam uma inclinação especial para o estudo frequentavam cursos universitários por conta do convento.

Conseguiu obter mais fundos junto da Cúria e construiu uma nova ala da abadia: a medieval, totalmente restaurada, foi destinada à hospedaria para acolher visitantes, congressos, debates e encontros de oração.

Debateu-se com as religiosas de outras ordens e obteve da igreja a eliminação do colarinho engomado que apertava com força o pescoço das freiras. Esperava ainda conseguir fazer desaparecer a touca branca que escondia os cabelos, porque limitava a liberdade de movimentos.

A sua existência era uma batalha contínua, travada com humildade, rezando e trabalhando, como impunha a regra da ordem monástica.

Agora, a madre Maria Francesca estava preocupada com o futuro de Altopioppo. Algum tempo atrás, dois mil hectares de terreno à volta do convento tinham sido vendidos pelo conde Giovanni Richiedei de Soncino a um novo proprietário que, como garantiam algumas pessoas, já tinha conseguido obter uma licença para construir, em frente ao convento, um bairro residencial com campos de tênis e piscinas.

A abadessa, que ouviu aqueles rumores, foi rapidamente até à Cúria no dia seguinte. – Não podemos fazer nada para bloquear o projeto? – perguntou ao bispo. O prelado sabia que a freira acalentava a esperança de adquirir duas casas de lavoura, junto ao convento, para as reconstruir e as transformar numa moderna biblioteca.

– Lamento muito, madre, mas não posso ajudar. Além do mais, não está realmente confirmado que o novo proprietário queira construir o condomínio. E, em qualquer caso, a Cúria está mal de dinheiro. Conforme-se. – O bispo tinha outros problemas, bem mais graves, para resolver.

– Isso nunca. Vou é rezar. Eu acredito sempre na ajuda do Senhor – replicou a freira. Às seis horas daquela tarde de julho, depois de ter concluído as suas orações, a abadessa decidiu reunir as irmãs. – Soube que podem vir a construir um condomínio novo junto ao convento. Algumas de vocês podem pensar que não será propriamente uma catástrofe se não conseguirmos obter as duas casas para a nossa biblioteca. É verdade, não será. Mas, agora, mais do que nunca, precisamos de espiritualidade e devemos combater a ostentação e a superficialidade com a cultura e com o conhecimento. Convido vocês a rezar para que ao lado da nossa abadia possamos construir a nova biblioteca.

Naquela noite, depois do jantar, Irene, que tinha participado da reunião, aproximou-se da abadessa e sussurrou-lhe: – Preciso falar contigo.

Isolaram-se numa pequena sala no térreo.

– Talvez eu consiga arranjar maneira de poder dispor das duas casas pelas quais tem tanto empenho. A madre Maria Francesca olhou-a com um ar interrogativo.

– Confie em mim – disse Irene. – Amanhã vou a Londres ver o meu filho. Na segunda-feira, quando eu voltar, explico-lhe tudo.

A abadessa sabia como Irene ficava inquieta a cada vez que regressava daquelas visitas a Londres. Há muito tempo que sentia a falta do filho, e ela, por mais de uma vez, tinha estado à beira de a encorajar a deixar o trabalho na Cosedil e a dedicar-se inteiramente a ele. Mas conhecia bem Irene. Sabia que devia ser ela sozinha a compreender que era preciso dar uma volta decisiva à sua vida. Uma vez que em Londres ela ia tratar também de Altopioppo, a abadessa resolveu que a madre Maria Imelda iria com ela.


19

Irene estava sentada à mesa revendo a transcrição de uma conferência que tinha sido realizada, em Altopioppo, por um frade belga, sobre o mundo islâmico.

O islã tornara-se tema de amplas reflexões, depois do ataque terrorista às Torres Gêmeas de Nova York, por parte das comunidades monásticas espalhadas por todo o mundo.

Durante as suas estadias no convento, eram submetidos à apreciação de Irene, que era especialista em promoção, todos os projetos importantes destinados a serem tornados públicos.

A editora do convento iria publicar num volume a transcrição de algumas conferências com o texto em italiano e, ao lado, a tradução em inglês. A madre Maria Imelda, que tinha sido intérprete parlamentar, ocupava-se do texto em inglês, ao mesmo tempo que Irene verificava o italiano. A abadessa, logo a seguir ao jantar, chamou Imelda ao seu escritório.

– Decidi que vai a Londres visitar as nossas irmãs. A Irene vai contigo. A madre Mary Judith vai dar uma olhada à tua tradução para inglês. Estou muito empenhada nesta coletânea de conferências. Não podemos nos permitir nenhum erro – anunciou.

Há vinte anos que a madre Maria Imelda não ia à Inglaterra, onde tinha estudado, visitado museus, mantido relações com professores e companheiros do colégio, e onde tinha aprendido a montar a cavalo e a praticar canoagem.

Corou, ao ouvir as palavras da abadessa, depois sentiu umas cócegas na garganta, e finalmente explodiu numa irreprimível gargalhada de alegria, ao mesmo tempo que os olhos se enchiam de lágrimas.

– Acalme-se. A Irene tem que tratar de alguns assuntos pessoais. Partem as duas amanhã. A madre Maria Imelda sentou-se à mesa, em frente à de Irene.

– Amanhã de manhã vamos para Londres, você e eu – sussurrou, com uma voz risonha. Irene assentiu, sem levantar os olhos da tela do computador.

– Já sei que esta noite não vou conseguir dormir. Estou muito, muito agitada – continuou a monja num murmúrio. – Tem à sua frente mais trinta folhas de texto para traduzir. Se se acalmar, consegue acabá-las para amanhã de manhã – disse No dia seguinte, 24 de julho, madre Maria Giovanna levou-as ao aeroporto de Linate no pequeno ônibus do convento. Para a viagem, Maria Imelda, que já tinha passado os sessenta anos, vestia um tailleur de linho cor de mel e tinha os cabelos escondidos por baixo de um engraçado barrete de algodão azul-celeste. Irene vestia umas calças brancas de algodão e uma blusa azul-turquesa.

As madres Mary Judith e Mary Susan estavam à espera delas em Heathrow. Tinham estado ambas hospedadas em Altopioppo alguns anos atrás e trocaram abraços e saudações.

Entraram no metrô e saíram em Green Park. Depois, a pé, chegaram ao pequeno convento de Brook Street, por trás da igreja dedicada a St. John. Refrescaram-se, porque estava muito calor em Londres, tomaram chá com biscoitos e começou então uma tagarelice cerrada que só terminou ao meio-dia.

Depois do almoço, Irene despediu-se das freiras antes de ir para sua casa, em Cherry Lane. – Não sei quando volto – disse à madre Maria Imelda. – Tenho alguns assuntos para tratar. – Faz o que tens de fazer – replicou ela.

Irene conhecia bem o bairro de Mayfair, onde ficava o convento, com as pequenas ruas tortuosas de Shepherd’s Market e a área à volta, de Bruton Street a Savile Row e Albany Court. Ia ali muitas vezes com o filho para deixá-lo correr à vontade nos jardins protegidos por grades.

Ergueu os olhos para o céu. Um amontoado de nuvens brancas deslizava lentamente a oeste e talvez desabasse um aguaceiro. Deu por ela em Cherry Lane. A antiga rua empedrada era ladeada por uma série de casas brancas com portas de cores vivas e batentes de latão brilhante. Em frente ao número sete, tirou a chave da bolsa indiana que trazia a tiracolo. Parou para observar a casa: os vidros brilhantes das janelas, os gerânios brancos ao longo do peitoril da bow-window e o pequeno jardim da frente sempre bem cuidado. Subiu as escadas, enfiou a chave na fechadura e entrou no vestíbulo.

Frida veio ao encontro dela. Vestia a farda de todas as empregadas de Tancredi: vestido branco de risquinhas azuis e um pequeno avental engomado. Apesar do nome nórdico, Frida era siciliana. Tinha a pele dourada das mulheres mediterrânicas e os cabelos brancos amarrados numa trança enrolada na nuca.

– Bem-vinda, minha senhora.

A casa estava silenciosa. No vestíbulo luminoso pairava um ligeiro aroma de baunilha. O relógio monumental, ao lado do elevador, deu quatro badaladas. Irene reparou num par de patins abandonados ao lado do bengaleiro de porcelana chinesa. Respirou o perfume da cera com a qual Frida dava brilho ao chão. Uma lâmina de luz iluminava uma tela do século XVIII que reproduzia uma vista panorâmica de Londres. Tinha-a comprado num leilão, na Sotheby’s, há muitos anos, rematando-a a um preço alto. Era uma pintura realmente notável.

– O menino saiu com a avó. Havia um espetáculo de marionetes no Hyde Park. Voltam à hora do chá – comunicou-lhe imediatamente.

– Então vou para o meu quarto – disse Irene, subindo a escada que conduzia aos andares superiores. Abriu a porta do quarto. Era muito bonito, decorado com móveis antigos. Abandonou a bolsa em cima da cama coberta com um cetim verde-pálido, entrou no quarto de vestir, tirou a roupa e foi ao banheiro para tomar uma ducha refrescante. Do guarda-roupa tirou um jeans e uma polo branca. Vestiu-se e voltou ao quarto. Abriu o cofre, escondido por trás de uma bonita Natividade do século XVII, que estava cheio de cartas e documentos. Encontrou aquilo que lhe interessava. Sentou-se à mesa, por baixo da janela que dava para o jardim interior, e leu com atenção.

Era o documento que decretava a doação, por parte de Tancredi, dos terrenos e das casas de Altopioppo. Recordou a noite em que, depois do jantar, na sala da casa da via Solferino, em Milão, que dava para os telhados da cidade, Tancredi lhe entregou um envelope.

– É um presente para ti – disse-lhe. E explicou: – Não é a joia do costume. – Estou vendo – respondeu ela, abrindo-o. Era a ata da doação da propriedade de Altopioppo, à saída de Milão. – O que é que eu faço com isto? – perguntou, desconcertada.

– Nada. Mas ao menino, um dia, vai convir – afirmou.

Contou-lhe que era um grande terreno com campos de trigo e muita água. Havia edifícios rurais, um pequeno centro habitado, várias casas de lavoura e uma vila antiga.

– A vila é muito bonita. É do século XVIII, e os afrescos das salas estão bem conservados. Há um parque imenso com estátuas da época cobertas de trepadeiras – explicou.

Irene aceitou aquele presente em nome do filho. Era uma espécie de dote para o pequeno John, que não tinha o nome do pai, ao contrário dos filhos legítimos, que herdariam aquele enorme patrimônio.

Agora, porém, parecia que Tancredi tinha novos projetos para Altopioppo, e agia como se a propriedade ainda pertencesse a ele. O objetivo era evidente: valorizar um bem do qual o filho iria usufruir.

– Mas, pelo menos, podia ter me consultado – protestou em surdina, enquanto metia o documento na bolsa indiana. Depois lembrou-se de que Tancredi a tinha procurado no escritório, em casa e no convento, embora ela tivesse sempre conseguido evitá-lo. Talvez quisesse estar com ela para lhe falar de Altopioppo. Tinha chegado o momento de esclarecer a sua vida e aquela relação. Percebia que até o pequeno John tinha necessidade

disso. Ninguém melhor do que ela, nascida e crescida no meio de equívocos, sabia quanto isso era importante. Ouviu vozes que vinham do térreo. Reconheceu a voz do filho. Desceu as escadas muito depressa e o pequeno correu ao encontro dela. Pegou nele pelas axilas, levantou-o e apertou-o contra ela, rindo. Rosalia, a mãe de Tancredi, deu-lhe as boas-vindas com a habitual ladainha de queixumes por trás da qual se escondia um amor desmesurado pelo neto.

– Eu estou ficando velha e o teu filho está cada vez mais indomável – disse. – Oh, don’t believe her – sussurrou John.

– Como correu o teatro de marionetes? – perguntou Irene, enquanto beijava Rosalia na face. – Tenho de estar sempre de olho nele, porque de repente foge. Não tem a noção do perigo. Olha o que ele fez ontem, no jardim. – A avó mostrou um alto na cabeça de John. A cabeleira farta, de cabelos muito loiros, escondia um pequeno hematoma.

– Agora a mãe vai dar muitos beijos no menino dela e o alto vai embora – disse Irene, abraçando-o. Foram para a sala de estar, onde Frida estava servindo o chá e a torta de maçã.

– Senta direito – ordenou a avó ao neto.

– Não. Quero ficar no colo da mãe – rebateu John.

– Está vendo? Ah, que menino mais desobediente. – Rosalia fingiu zangar-se e depois voltou-se para Irene: – Quanto tempo fica conosco?

– Dois dias. No dia 26 de julho tenho que estar em Milão.

Irene olhava para o filho e não deixava de se espantar com a sua semelhança com Tancredi. – O pai também era assim, quando era pequenino? – perguntou a Rosalia. – São duas metades da mesma laranja. O seu filho tem o temperamento do pai. – Mãe, é verdade que você e o pai não são casados? – perguntou John, de repente. – Ora aí está uma pergunta embaraçosa. E ainda vai ter de ouvir muitas outras perguntas, porque ele está crescendo, compara-se com os amiguinhos e quer saber tudo – sublinhou Rosalia. – É verdade. Não somos casados – confirmou Irene.

Tocaram à porta. Chegaram duas crianças vizinhas. John foi para o jardim brincar com eles. Irene pôs o chá na sua xícara e na de Rosalia.

– Não me parece lá muito bem – observou a mulher.

– Está enganada, Rosalia. Estou bastante tranquila, e isso parece-me quase um milagre. No entanto, ainda não tomei decisões sobre o meu futuro – sussurrou.

– Então se apresse, porque o John está crescendo, começa a questionar-se sobre certas coisas e precisa mais de você do que de mim. Dá uma de mãe e ao mesmo tempo ainda não sabe muito bem se quer construir um futuro ao lado de Tancredi – desabafou Rosalia.

Irene pensou nos seus intermináveis raciocínios sobre estas e outras interrogações. Anos de reflexão não tinham ainda lhe fornecido respostas claras. Não tinha a certeza de querer dividir a vida com Tancredi, mas, se tivesse que escolher entre o trabalho e o filho, escolheria John.

– Vou me apressar – prometeu.

– Daqui por alguns dias vou levar o menino para Cefalù, como todos os anos. Por que não vem conosco? – Preciso resolver algumas coisas em Milão. Vou demorar pelo menos uma semana. Depois posso ir encontrá-la. Eu aviso – respondeu.

– Alguma vez lhe disse que, entre você e a Dora, é a nora que eu gostaria de ter tido? – Já há algum tempo que me dá a entender isso. Decidiu que a balança deve pender para o meu lado. – Exatamente.

– Vamos ver. Agora quero organizar um passeio com o meu filho para amanhã. Gostaria de o levar a Canterbury. – Eu aviso o motorista – propôs Rosalia.

– Nem pensar nisso. Vamos de trem, e o John vai se divertir muito mais – determinou Irene. Na manhã seguinte, na estação de Victoria, Irene pôs duas cartas no correio. Uma era a ata de doação de Altopioppo e ia endereçada em seu nome, para o convento. Ia viajar para Milão sem bagagem, e o documento era muito importante para levá-lo dentro de uma bolsa de pano. Na outra mandou duas linhas a Tancredi: “Soube que quer fazer grandes obras em Altopioppo. Não tenciono te deixar deliberar sobre uma coisa que não lhe pertence. Temos de falar sobre isso.” Esta última carta ia dirigida à sede em Milão da Cosedil.

À noite, quando voltou de Canterbury, depois de ter deitado John, decidiu regressar ao convento para rever o trabalho da madre Maria Imelda. Ia lá passar a noite.

Antes de sair da casa de Cherry Lane, vestiu uma saia indiana e uma blusa de algodão, prevendo o calor que ia apanhar à chegada.

Na manhã seguinte, dia 26 de julho, às sete horas da manhã, pegou o avião para Milão.


20

Na vila de Cala di Volpe decorria um grande almoço em homenagem a Tancredi Sella, que completava 52 anos. Estavam lá todos: a ex-mulher, que interrompera as férias nos Dolomitas, os filhos, que velejavam no Mediterrâneo e tinham atracado na Sardenha, o velho tio arquipresbítero de Cefalù e outros parentes de todos os tipos e graus, os amigos e os colaboradores mais próximos. Havia jornalistas, escritores, artistas, políticos, estilistas famosos, empresários, jogadores de futebol, homens da finança e intermediários. Era o seu triunfo anual.

O vento doce e seco da ilha acariciava os rostos bronzeados e fazia flutuar os vestidos diáfanos das senhoras. O esplendor das joias e o brilho dos sorrisos soltavam-se como confetes de Carnaval. Os criados serviam iguarias refinadas e champanhe. Toda a gente trazia um presente para o festejado.

Uma orquestra de vinte e oito elementos tocava música suave e temas famosos dos anos setenta. Tinha chegado dos Estados Unidos uma estrela da canção. Fazia-se acompanhar pelo marido, pelo filho, pelo agente e por dois guarda-costas. Era este o presente de don Giuseppe Nicosia, um rico empresário siciliano que vivia em Denver, no Colorado, e que era uma espécie de pai adotivo de Tancredi.

Ele, o festejado, estava numa forma resplandecente, apesar de ter se levantado de madrugada e de ter trabalhado toda a manhã, antes de aterrissar com o seu helicóptero no prado da vila. Aqueles banhos de multidão jubilosa eram o seu tônico, porque lhe satisfaziam a necessidade de se sentir amado.

– Então como é que vai isso, grande chefe? – murmurou uma voz amiga. Tancredi estava numa exibição de galanteios com uma jovem e graciosa parlamentar romana. Concluiu os cumprimentos de circunstância e voltou-se para Franco Bruschi.

Conheciam-se desde o tempo do liceu. Naquele tempo, o jovem Sella frequentava um colégio particular de religiosos e Franco estava na escola pública. Eram vizinhos e tinham começado a se dar bem porque o primeiro era um ás em grego e em latim, enquanto o outro brincava com a matemática como um prestidigitador.

Franco era de Milão, filho do diretor de uma filial do Banco da Sicília. O pai de Tancredi era um funcionário administrativo. Tinham ambos pouco dinheiro e muitos sonhos. Tornaram-se amigos e nunca mais se separaram.

– Preciso de uma pausa de cinco minutos – confessou Tancredi, pegando-lhe no braço e afastando-se com ele em direção à piscina.

– Pausa de quem, de quê? Sentia-o morto sem isto – disse Franco, indicando aquele lugar, os convidados e o cenário com um gesto do braço.

– Sentia-me morto sem você. É o meu grilo falante, a boca da verdade. É o único que tem a coragem de me dizer sempre aquilo que pensa – disse Tancredi, sentando-se numa cadeira de braços branca.

– E, a cada vez que o faço, com a minha língua comprida, arrisco-me a perder todos os cargos que ocupo – rebateu Franco. – Já os tinhas perdido há muito tempo, se eu tivesse encontrado um substituto possível. Na realidade, você é Franco de nome e de fato. Percorremos um longo caminho juntos, todo a subir. Agora chegamos ao topo. Gostaria que o meu avô que era pedreiro estivesse aqui me vendo – sussurrou. E lembrou-se de quando tinha oito anos, vivia em Palermo com a família, e num domingo os pais decidiram ir a Alcamo visitar o avô Tancredi. Estavam todos na cozinha bebendo vinho novo. Ele saiu para observar o avô, que repousava numa cadeira, encostada à parede da casa, em pleno sol, com os ombros envoltos numa manta de lã preta. Estava fumando um grande charuto cubano.

– Você quem é? – perguntou o velho, quando o menino se aproximou dele. – Sou o teu neto. Me chamo Tancredi, como você.

– Então és filho do Giovanni.

Um cão de raça indefinida, de pelo dourado, girava à volta dele, cheirando-o. Chamava-se Denver. Tinha um olhar doce. – Não sente calor? – observou o pequeno.

– Ainda trago em cima de mim o frio da América – explicou o avô, soprando dos lábios finos uma nuvem de fumo azulado. – Como é a América?

– Infinita.

A resposta não lhe esgotou a curiosidade. Deu a volta à pergunta: – Como é que são os americanos?

– Conheci poucos. Estava sempre com os meus conterrâneos.

O avô era de poucas falas. Tinha partido para a América num navio quando tinha trinta anos e, em Alcamo, passavam fome. Chegou a Denver, no Colorado. Trabalhou vinte anos partindo pedra para pavimentar as estradas. Depois regressou, comprou uma casa e um terreno e disse: – Estou cansado. Vou descansar um bocado. – Sentou-se ao sol e não voltou a trabalhar.

Todos os anos, no Natal, o avô recebia uma encomenda de Denver. Continha roupas, charutos cubanos e uns doces especiais.

O velho tinha sempre uma reserva de balas para os netos, quando o iam visitar. Deu algumas a Tancredi. – Estas são especiais. É um amigo meu que as manda, don Giuseppe Nicosia. Há muitos anos, fiz-lhe um favor. Nunca mais se esqueceu. É um homem de respeito.

O pequeno Tancredi, naquela tarde de julho, ouviu pela primeira vez o nome de don Giuseppe Nicosia. Nicosia e Franco Bruschi tinham feito a fortuna dele.

– O seu avô sabia que ainda viria a ser um grande empresário – observou Franco, afastando-o daquela recordação longínqua. – Aquela carta para o amigo americano deu a você, a mais ninguém – sublinhou. – A propósito, qual era o favor que don Nicosia tinha recebido do seu avô? – perguntou Franco.

– Nunca te disse?

– Nunca te perguntei.

– Foi para a cadeia no lugar dele. Passou oito anos na prisão de Denver. Depois expulsaram-no dos Estados Unidos. – Um favor assim não se esquece.

– Depende. Há gente que tem memória curta – observou Tancredi. – Isso é gente que não presta. Não tem o sentido da amizade e rapidamente acaba de pernas para o ar. Você não é assim e ainda tem muito caminho à sua frente.

– Em que está pensando?

– Nos seus filhos. Os Sella devem tornar-se uma dinastia – afirmou Franco. – O Ruggero e o Antonio são dois preguiçosos estragados pelo mimo da mãe. Não têm vontade de trabalhar. Além disso, deveriam se meter na política, e isso eu não lhes posso pedir a partir do momento em que eu próprio, em primeiro lugar, prefiro ficar longe dela. Uso-a quando preciso, como um remédio repulsivo que se tem de tomar por necessidade – comentou Tancredi.

Saro, o mordomo, materializou-se ao lado deles.

– A senhora Rosalia chama-o ao telefone – murmurou ao ouvido de Tancredi. Tinham falado de manhã e a mãe dera-lhe os parabéns. Sabia que em Cala di Volpe era dia da festa de aniversário. Por que razão telefonava?

– Diga que já retorno – disse ao mordomo.

– É urgente. Tomei a liberdade de lhe trazer o telefone sem fio. – Saro entregou-lhe o aparelho. – Mãe! – começou Tancredi. – O que foi que aconteceu? Está bem? O John está bem? – Ouça. Já te disse que a Irene está aqui. Pensando melhor, acho que está no momento de tomar uma decisão. Foi a Canterbury com o pequeno, dar um passeio. Volta ao fim da tarde. Prepara as suas coisas de maneira a que ela te encontre aqui – ordenou a mãe.

– Não pode ser um pouco menos enigmática?

– Estou pensando no futuro de vocês, nos dois, juntos, a partir do momento em que o teu casamento com a Dora acabou. Quanto mais depressa vier, melhor. Um beijo.

A mãe desligou o telefone. Sabia que Tancredi ia partir imediatamente.


21

Eram sete horas da tarde do dia 25 de julho quando o Falcon da Cosedil, a empresa de Tancredi Sella, obteve autorização para decolar.

Tancredi partiu sem se despedir dos amigos, nem dos filhos, nem da ex-mulher. Havia na sua vida uma única pessoa capaz de o perturbar: Irene.

Quando começou a afastar-se dele, bastaram poucos dias de ausência para experimentar uma sensação de vazio incomensurável. Tancredi precisava dela. Massacrou-a com telefonemas.

– Se gosta do nosso filho, fica longe de mim durante algum tempo – disse ela. A partir daí Irene dividiu-se entre o trabalho, o filho e as estadias no convento de Altopioppo. Tancredi pediu à hospedeira um copo de água e um tranquilizante. Depois estendeu-se no sofá e esperou conseguir dormir durante o voo. Mas o sono não veio. Pensamentos e recordações sobrepunham-se sem lhe dar tréguas. Pensava em John, que tinha uma necessidade desesperada da mãe. Era uma criança notável. Tinha garra, coragem e uma simpatia inata que o tornavam irresistível. Era decididamente melhor do que os dois filhos que tinha de Dora. Talvez porque não sabia que tinha um pai rico e poderoso. E, em qualquer caso, o mérito também era de Dora, a ex-mulher, que tinha imposto regras férreas em relação àquela criança.

Dora era filha única de don Beppe Giuffrida. Hábil a manobrar votos, fortemente ligado à corrente política que há quarenta anos conduzia o país, era temido tanto pelos amigos como pelos inimigos. Sobre ele contavam-se em surdina mil e uma infâmias. Mas eram apenas palavras. Perante ele abriam-se de par em par todas as portas, e nenhuma calúnia alguma vez chegou sequer a arranhar o poder desmedido que exercia, na Sicília e em outras partes, com um semblante de bonomia paternal. Do pai, Dora herdara um temperamento que era tudo menos ameno. Desde jovem, deu muito que fazer ao ilustre pai. Depois de casada, soube colocar o marido em ordem.

Sete anos atrás, quando soube que Irene estava grávida, e ainda não pensava no divórcio, enfrentou Tancredi com calma e determinação.

Programou a noite de modo a que estivessem a sós ao jantar. Na sala de jantar do palacete da via Gesù, as portadas estavam totalmente abertas para a varanda, de onde chegava o perfume intenso das flores.

O criado serviu um risotto de flor de abóbora e peixe-espada na chapa acompanhado de legumes agridoces. O cozinheiro de Trapani, que há vinte anos se ocupava da dieta da família e supervisionava os jantares de gala, concluiu o menu com uns crepes de frutas silvestres. Dora conversou sobre futilidades e Tancredi acompanhou a conversa com a cortesia de sempre. Eram dois estranhos bem-educados, unidos por dois filhos já crescidos e por interesses econômicos consistentes. Durante anos e anos, Dora foi a mulher fiel de um marido transgressor. Não tinha ciúmes, porque não estava apaixonada. Casou com ele para escapar à atmosfera sufocante da Sicília, onde todo mundo a conhecia e onde lhe demonstravam uma deferência que a exasperava.

Alguns anos antes, conhecera um aristocrata que vivia da administração do seu próprio patrimônio. Foi amor à primeira vista. Apaixonaram-se um pelo outro.

Tancredi não escondeu o seu desapontamento com aquela relação. Não tinha ciúmes, mas incomodava-o aquele homem muito honesto e inatacável.

Nem sequer Dora se incomodou por causa de Irene, que era mais nova vinte anos do que ela e que todos consideravam-na como uma espécie de segunda senhora Sella. Achava-a inteligente e espirituosa. Quando a encontrava, cumprimentava-a como se fosse uma amiga muito próxima. Aquela mulher do Piemonte nunca alteraria a relação que ela tinha com o marido, baseada no poder. A não ser que...

Este “a não ser que” era uma dúvida incômoda, nascida de vozes insistentes sobre uma gravidez de Irene. Se assim fosse, era preciso remediar a situação.

Por isso, naquela noite, no fim do jantar, Dora sussurrou:

– A não ser que...

– A não ser o quê? – perguntou o marido.

– A não ser que você tenha enlouquecido.

– Talvez, se me fornecer um pequeno indício, eu consiga entender. – Consta que a Irene está grávida – disse, com uma voz tranquila. – Pronto, então já sabe – respondeu ele, com uma sensação de alívio. – Nunca tivemos segredos entre nós.

Tancredi precisou de alguns instantes para refletir. E concluiu que Dora tinha razão: sempre tinham sido sinceros um com o outro.

– Eu ia te falar sobre isso num desses dias – declarou. Era verdade. – Então, vamos tratar deste problema.

– E tem mesmo que haver um problema? O filho é da Irene – comentou. – E seu. Não me parece que tenha dúvidas quanto a isso – afirmou ela. – Obviamente que não. E também devo te dizer que a situação não me desagrada. Ela está feliz e eu tenho vontade de ter outro filho – disse Tancredi sorrindo.

– Nem pensar. Fique sabendo que eu peço o divórcio. Acha que te convém o divórcio? – perguntou placidamente, rodando no anelar uma pequena aliança de diamantes rosados.

– Posso te dar tudo aquilo que quiser. Até podia casar com aquele seu aristocrata que vive no passado, e eu, quem sabe, podia casar com a Irene – tentou, com um tom falsamente jocoso.

O sorriso de Dora extinguiu-se.

– Mas eu já tenho tudo aquilo que quero – afirmou, gélida.

Ele não ousou sequer imaginar o que podia acontecer se a mulher dissesse ao pai, don Beppe Giuffrida, que era obrigada a divorciar-se por causa de um filho bastardo de Tancredi.

Para lhe clarear as ideias de uma forma inequívoca, Dora continuou: – Pare de pensar em tirar um alfinete que seja aos meus filhos.

– O seu tom não me agrada. – O marido tentou impor-se.

– E a mim não agrada brincar com a família. A não ser que seja eu a decidi-lo – declarou ela. Ao dizer “família”, referia-se também às empresas, às relações e aos negócios.

Tancredi tinha conseguido estender aquele império financeiro também porque o sogro tinha aparado todos os golpes dos seus inimigos, em todos os níveis. Estremeceu com a ideia daquilo que poderia acontecer se don Giuffrida o abandonasse ao seu destino ou, pior ainda, se lhe declarasse guerra. Mas, como sempre que se sentia encurralado, Tancredi apelava a todos os seus recursos para encontrar uma saída. Naquele momento, pensou que devia criar alianças novas e mais poderosas, distanciando-se do círculo dos Giuffrida. Estava na altura de reforçar a sua imagem de homem equidistante de qualquer facção política. Mas não bastava um mês nem um ano para atingir aquela nova meta. Era um trabalho longo e paciente. Por isso era obrigado, naquele momento e durante muito tempo ainda, a não hostilizar a mulher e o sogro.

Sorriu e estendeu uma mão para lhe acariciar o joelho. Ela retribuiu o sorriso. Se imaginasse o plano que Tancredi tinha elaborado em poucos segundos, não se sentiria tão segura de si.

– Já encontrou uma solução. Estou te ouvindo – declarou ele.

– Já ouviu falar de aborto? – perguntou a mulher.

– Vagamente. É uma prática com que não concordo. E, de qualquer maneira, neste caso está fora de questão. A Irene quer o filho.

Ela virava a bebida noturna de abacaxi e funcho. Pousou a xícara na mesinha de madeira clara. Uma lufada de ar tépido, ao insinuar-se na sala, fez enfunar as cortinas de seda e espalhou o perfume do jasmim. Eram as flores preferidas dela e do amante, que lhe tinha contado que Paolina Borghese, irmã de Napoleão, as apreciava a tal ponto que nunca se separava delas. Para onde quer que fosse, levava consigo as plantas de jasmim.

– Aquilo que a Irene quer é completamente irrelevante. Só conta aquilo que nós queremos – afirmou. – Acho que estamos começando mal. O aborto está excluído, até porque é um crime. A senhora Sella explodiu numa gargalhada. Os brincos de ouro e safiras que trazia nas orelhas tilintaram. – Tancredi, por favor. Não vamos ser moralistas, não é disso que se trata – exclamou. Estavam tendo uma conversa muito séria e, apesar das farpas recíprocas, nenhum dos dois queria discutir. Tancredi pensou outra vez na necessidade de se manter a distância do sogro. Sobre essa questão, precisava conversar com Franco Bruschi, o amigo mais querido e também o colaborador mais importante. A sua inteligência e clarividência sempre tinham se revelado muito úteis. Não deu a entender o incômodo provocado pelo sarcasmo da mulher. Limitou-se a enfiar o indicador no colarinho da camisa, como se lhe ficasse apertado. Este era o sinal do seu nervosismo.

– Tenho a certeza de que tem outra solução em mente – disse.

– Na nossa terra, como bem sabe, situações como esta resolvem-se com um casamento reparador. Portanto, não te resta senão encontrar um excelente marido que fique feliz por assumir a paternidade da criança.

– Ela não quer casar. Duvido mesmo que se casasse comigo, se eu lhe propusesse casamento. Não quer um marido, mas quer aquele filho. É suficientemente louca para se importar com qualquer questão de conveniência, no nosso dinheiro e com todo o resto.

– A Irene é esperta, e você é um tonto. De qualquer maneira, não tenho nada com isso. Mas fique sabendo que não quero mais nenhum pequeno Sella. Prepare-se para as consequências – comunicou Dora.

Tancredi seguiu a vontade dela. Encontrou uma solução indolor para todos: a criança não teria o seu nome e, portanto, não iria interferir no patrimônio dos Sella. Nem sequer ia nascer e viver na Itália. Naquela noite, Dora despediu-se dele com um sentimento de satisfação.

– O problema está encerrado – disse-lhe, antes de o deixar só.

Agora, enquanto o avião aterrissava em Londres, Tancredi considerou que Dora lhe tinha feito um favor. Obrigou-o a manter a criança longe do seu mundo, e isso acabou por ser uma vantagem para John. Só no verão o filho ia à Itália para passar um mês na praia, em Cefalù, na casa de Rosalia D’Antoni, a sua mãe.


22

Através da bow-window da sala de estar, Rosalia viu o filho sair do Rolls com os dois guarda-costas. Tancredi entrou no vestíbulo.

– Onde estão a Irene e o menino? – perguntou à mãe, que ia ao encontro dele. – O John está no quarto dele. Está dormindo já há um bom tempo. A Irene, como se tivesse pressentido alguma coisa, disse

que tinha um compromisso de trabalho e foi embora – explicou Rosalia. E acrescentou: – Lamento muito. Tentei te avisar, mas já tinha partido. Te obriguei a fazer esta viagem para nada.

Tancredi foi atrás da mãe até a biblioteca. Deixou-se cair, exausto, no sofá de couro vermelho. – Mãe, se você não existisse, eu não era capaz de te inventar. Me fez vir até aqui para me encontrar com a Irene e agora descubro que ela não está aqui – protestou.

– Ouve, eu me preocupo com o futuro do John. O fato de ter feito uma viagem em vão não é o fim do mundo. No entanto, é bom que saiba que a Irene está pondo muitas coisas em causa.

– Foi ela que te disse?

– Sim e não. Eu adivinhei. Posso estar enganada, mas não creio. Alguma coisa me diz que está prestes a tomar algumas decisões. Tenho a certeza de que deseja sair daquele isolamento. E, se isso vier a acontecer, bonita como é, alguém poderá apaixonar-se por ela e levá-la – raciocinou, com a simplicidade habitual. E continuou: – Numa primeira fase eu julguei mal a Irene, considerando-a uma calculista. Depois fiz um ato de contrição. É a mulher certa para você.

Rosalia sabia que, depois do nascimento de John, Irene tinha passado momentos difíceis e Tancredi não tinha sido capaz de a ajudar. Tinha se deixado intimidar pela mulher. Isto não lhe disse, mas explicou:

– Não sabe lidar com as mulheres. E, sobretudo, tem medo delas. – É verdade. Olha como eu me comporto contigo. Faço 52 anos, você me convoca exatamente no meio da minha festa e eu venho correndo. Acha isto normal?

– Acho. Porque eu sei o que é bom para você, para o menino e para a Irene. Tem de voltar a conquistá-la. Tem fascínio para dar e vender. Faz alguma coisa de grandioso. Redime-se aos olhos dela. E, por amor de Deus, deixe de se passar por macho duro e insensível, porque não o é – disparou Rosalia.

Deixou-o sozinho refletindo.

Tancredi subiu no elevador até o segundo andar, onde ficavam os quartos de John e da enfermeira. Na ponta dos pés, entrou no quarto do filho e deixou a porta entreaberta, para que entrasse alguma luz da antecâmara. Em cima de uma mesinha viu um monte de revistas infantis. Evitou uma raquete de tênis abandonada no chão. A lua cheia, para lá da janela, espreitava, curiosa. Recordou uma noite de alguns anos atrás. Chegou a Londres, de repente, renunciando ao sono para passar algumas horas com Irene. Não a encontrou no quarto deles, no primeiro andar. Ficou preocupado. Subiu então até o segundo andar e encontrou-a estendida no sofá, no quarto destinado à criança que ia nascer no mês seguinte. Olhava para o céu estrelado

através dos vidros quadrados da janela. O ventre redondo, por baixo da camisola, parecia conter a lua. – Sabe que o céu de Londres tem vinte e seis tonalidades diferentes? – disse-lhe Irene, enquanto ele se inclinava para a beijar.

– Contou-as? – sussurrou Tancredi, abraçando-a.

– Vão do branco leite até o azul-escuro, passando por todas as gradações do cinzento e do dourado – explicou-lhe, com um bocejo. E continuou: – À noite venho muitas vezes até este quarto, porque quero que o menino se habitue a conhecê-lo. Tenho de preparar tudo, aos poucos. Falo-lhe do céu, de mim e das estrelas. Conto-lhe as aventuras de Peter Pan e as da minha avó Agostina. Eu acho que ele gosta de me ouvir, porque dá pontapés e parece satisfeito.

O menino, agora, estava crescido. Era loiro e luminoso como ele. Inclinou-se sobre a cama pequena para lhe espiar o sono, que era profundo como o de todas as crianças. Sentiu um nó de comoção na garganta. Pousou-lhe uma mão hesitante nos caracóis e acariciou-os levemente.

– Se estiver algum anjo a te fazer companhia, diz-lhe que o seu pai quer casar com a sua mãe – murmurou. – Ela foi a coisa mais bonita que me aconteceu na vida. É uma mulher muito complicada, e isso ainda a torna mais interessante. Estou perdidamente apaixonado por ela. – Saiu do quarto na ponta dos pés e desceu até o andar térreo. A casa estava mergulhada em silêncio. Ele estava tão cansado que não conseguiu conciliar o sono.

Dentro de alguns dias, a mãe e o pequeno partiam para Cefalù. Ele havia de arranjar tempo para passar uns dias com eles, e esperou que Irene tivesse alguma intenção de ir ter com eles também. Queria ver John correndo feliz pela praia e brincando com os filhos dos pescadores.

Ao contrário dos dois filhos legítimos, John não precisava de guarda-costas. Tanto mais que, depois da morte de don Beppe Giuffrida, Dora tinha se tornado inofensiva.

Aquele siciliano poderoso tinha caído de repente, na varanda da sua casa de Palermo, enquanto comia sozinho um prato de massa com sardas.

Alguém insinuou que ele tinha sido envenenado. O parecer do médico foi: “Enfarte de miocárdio.” Ninguém aprofundou as causas daquela morte.

O seu desaparecimento levantou uma nuvem de pó. Os seus homens foram dizimados numa série de emboscadas. Teve início uma luta pela troca de poderes. As investigações sobre os inquiridos aportaram em Roma e ficaram cobertas de poeira. Começou a soprar um vento novo na ilha. Os políticos que tinham apoiado Beppe Giuffrida caíram em desgraça. Dora, libertada da obediência que devia ao pai, decidiu divorciar-se e casar com o seu aristocrata.

Tancredi era, portanto, um homem livre. Precisava apenas do acordo de Irene para dar uma virada em sua vida. Mas ela era tão difícil de agarrar como o próprio ar.


23

Irene chorava baixinho, enquanto acariciava a aliança que trazia no dedo. Por dentro estava gravada a data de nascimento do filho: 6 de abril de 96. Tancredi ofereceu-lhe aquele anel no dia seguinte ao do nascimento de John.

Estava sentada na cama, envolvida pela escuridão, no quarto do hospital. Uma mão leve veio pousar-lhe no ombro, ao mesmo tempo que uma voz de mulher lhe dizia: – Irene, sou eu.

Então acendeu uma pequena lâmpada pousada na mesa de cabeceira. Era a madre Maria Francesca que ali estava e que lhe sorria.

– Olá, madre – murmurou Irene, muito cansada para tentar levantar-se da cama. – Então lembra de mim – disse a abadessa, satisfeita, inclinando-se sobre ela. Abraçou-a, afagando-lhe os cabelos eriçados.

E acrescentou: – O que é que aconteceu, minha menina?

Irene começou a chorar. A abadessa tentou animá-la.

– Vá lá, então, não é nada. Já vai passar – disse com ternura, embalando-a nos seus braços. Mas as lágrimas pareciam nunca mais acabar.

– Esqueci do meu filho – explicou Irene entre soluços. E continuou: – Como é possível que só agora tenha me lembrado dele, que é toda a minha vida, todo o meu amor?

– E não está contente por ter lembrado dele no seu coração e nos seus pensamentos? Deve parar de chorar e dar graças a Deus por ter te dado o pequeno John.

A madre Maria Francesca tirou de cima da mesa de cabeceira dois lenços de papel e limpou-lhe o rosto. – Como é que vai? – perguntou.

– A crise está passando. É dia ou noite?

– São quase oito horas da noite. Foi a polícia que me trouxe até aqui. Parece que alguém pode te fazer mal e por isso eu vou rezar para que tal não aconteça. Ali fora do quarto está um anjo da guarda tomando conta de você, e um carrinho com o teu jantar. Gostaria de comer?

– Depende – respondeu Irene.

– Eu vi uma salada de fruta com sorvete.

– Então está bem. Me faz companhia?

A abadessa foi buscar o carrinho. Irene levantou-se da cama. As duas mulheres aproximaram as cadeiras do carrinho e sentaram-se uma em frente à outra.

Enquanto comia, Irene lançava de vez em quando olhadelas furtivas à abadessa, que intuía que ela hesitava em falar-lhe abertamente. A madre Maria Francesca não tinha pressa. Conhecia as pausas de Irene.

– Tive saudades suas – disse a freira.

– Vamos brincar de frases patetas? – perguntou Irene com ironia. – Por que não? Vou te dizer que pensei muito em você – replicou a abadessa, sorrindo. – E que esteve junto de mim em oração, que onde quer que eu me esconda Deus me vai encontrar etc. – disse Irene. – Não há nada mais melado do que as frases feitas – constatou a abadessa. E acrescentou: – Devia ouvir a nossa nova postulante, também chamada enciclopédia das citações: a fé move montanhas, se Deus não existisse era preciso inventá-lo, e assim por diante.

Riram tanto que o policial apareceu à porta, cheio de curiosidade. – O senhor se meta na sua vida – disse a madre Maria Francesa, repreendendo-o. O homem voltou a fechar a porta e elas encontraram um novo motivo para rirem. Depois a alegria esfumou-se e o silêncio desceu entre elas. – Acho que chegou o momento de tomar algumas decisões sobre o meu futuro. O John precisa de mim e eu, dele – sussurrou

Irene.

A abadessa mexeu a salada de fruta na taça.

– Mas que requinte. Juntaram aqui lascas de amêndoa e amendoins ralados – observou, como se quisesse ignorar as palavras de Irene.

– Madre, está me ouvindo?

– São oito e meia da noite. Levantei-me às cinco da manhã e estou cansada, mas não estou surda – replicou. – A minha avó havia de gostar desta salada de fruta. Gostava de amendoins. E a minha mãe também – recordou Irene. E prosseguiu: – Eu era doida por manteiga de amendoim passada no pão. Era a Barbarina, a dona do Bar Centrale, que me dava. Mandava-lhe a manteiga, a filha da América. Quando eu era pequena, queria ir viver na América.

– Recuperou a memória – constatou a freira.

– Sim, mas não completamente. Há fragmentos do passado que aparecem aqui e ali. É como se tivesse um livro nas mãos e fosse lendo alguns capítulos, ao acaso.

– O que é que recorda da sua viagem a Londres? – perguntou a freira. – Tudo, acho eu, incluindo um dia fantástico com o meu filho. O meu filho! – exclamou. – Está na Sicília, com a avó. Tenho tantas saudades dele!

– Telefone amanhã de manhã – tranquilizou-a. E acrescentou: – Tome, te trouxe esta carta. Mandou-a de Londres e endereçou-a a você própria, para o convento.

Irene pegou no envelope que continha o registro de propriedade de Altopioppo. Não era o momento certo para falar disso com a abadessa. Pousou-o no carrinho, sem o abrir.

– É tarde. Eu tenho que regressar a Altopioppo – anunciou a freira, que queria deixar Irene a sós com os seus pensamentos. – Eu vou com a senhora – propôs ela.

– Ao que parece, está mais segura neste quarto, por enquanto. Tenha cuidado contigo, minha menina. Amanhã te telefono. A abadessa levantou-se e aproximou-se dela para lhe beijar a testa. Quando ficou só, Irene pegou no envelope e foi pousá-lo em cima da mesa de cabeceira. Não tinha vontade de o abrir. Sentou-se na cama e pensou no filho, que lhe fazia muita falta. Aquele afastamento tornou-se um tormento. Começou a rezar,

na esperança de atenuar a dor que sentia. Mas nem a oração conseguiu preencher o vazio provocado pela ausência do menino. Então recordou uma espécie de rito mágico praticado pela avó, para aliviar o coração de um peso insuportável.


24

Uma mão veio pousar-lhe no ombro. Irene acordou imediatamente e, por instinto, cobriu a cara com um braço. – Levante e não faça barulho – disse a avó, num sussurro.

Por um instante, receara que tivesse sido a mãe acordando-a de repente, no meio da noite. Já tinha acontecido outras vezes. Rosanna acordava-a e pedia-lhe que a deixasse deitar-se com ela. Às vezes abraçava-a e, chorando, dizia-lhe que gostava muito dela, ou então acusava-a de ser a sua ruína. Irene nunca sabia quando a mãe a odiava e quando a amava. E nem sequer sabia por que razão nutria por ela sentimentos tão contraditórios.

A voz da avó tranquilizou-a. Deslizou para fora da cama, esfregando as pálpebras inchadas de sono. – O que foi que aconteceu? – perguntou, sufocando um bocejo.

– Vamos dar um passeio. Vista-se. Te espero na cozinha – explicou Agostina em voz baixa, antes de sair silenciosamente do quarto.

Era um quarto muito pequeno, ao fundo do corredor, no andar de cima da casa da lavoura. Tinha duas janelas. Uma dava para o pátio dos fundos, onde ficava o galinheiro, a coelheira, o depósito das ferramentas, o palheiro e a estrumeira. A outra dava para a eira, rodeada pelos estábulos, e via-se dali a estrada que levava à aldeia. Daquela janela via-se a primeira luz da madrugada.

A roupa, um par de jeans e uma camisola de algodão, estava dobrada em cima de uma pequena cama ao lado da dela. Por enquanto, estava vazia. Mas sabia que um dia ali se deitaria um irmão ou uma irmã. A mãe estava grávida. Parecia feliz com aquela gravidez.

Irene desceu até a cozinha, escorregando montada no corrimão da escada de madeira. Em cima da mesa estava uma xícara de leite com cacau e uma fatia de pão untada com manteiga de amendoim.

Agostina estava de pé, em frente à janela, olhava para a eira que ia clareando e enquanto tomava o café em pequenos goles. Trazia o vestido dos dias de festa, o de seda azul, salpicado de estrelinhas brancas. Os ombros largos conferiam uma certa força àquele corpo alto e magro.

– Aonde vamos? – perguntou Irene, enquanto tomava o café da manhã. – A um bosque – disse a avó.

– Que bosque?

– Já vai ver – rematou Agostina.

Pousou a xícara no lava-louça. Meteu uns pães com presunto dentro de uma saca de pano e juntou uma garrafa de laranjada, que tirou da geladeira.

A fazenda estava ainda mergulhada no silêncio. O galo cantou pela primeira vez. Daí a pouco tempo estariam todos acordados.

– Quando é que voltamos? – perguntou a pequena.

– Ainda não fomos e já quer saber quando voltamos – ralhou Agostina. – Eles sabem? – insistiu Irene. Referia-se aos pais.

A avó tirou um papel e um lápis da gaveta do aparador.

– Escreve aí – ordenou. – Vamos estar fora todo o dia.

Irene obedeceu e assinou: IRENE E AVÓ. Depois seguiu Agostina até o pátio dos fundos. A avó montou na bicicleta e teve o cuidado de ver se a neta estava bem instalada no assento posterior.

Pedalou com energia pela estrada de terra batida. O ar de junho conservava ainda a frescura da noite. Quando chegaram à praça de San Benedetto, Agostina prendeu a bicicleta a um poste de iluminação. A caminhonete estava quase partindo. Entraram e a avó pagou os bilhetes.

– Vamos a Turim? – perguntou Irene.

– Não. Agora fique sossegada e durma – aconselhou Agostina. Tinham se sentado ao fundo do ônibus e a avó ofereceu-lhe o ombro para ela apoiar a cabeça.

– Vamos sair num lugar que se chama Castel Rocchero. Você não o conhece, mas eu conheço. É muito bonito, vai ver – garantiu-lhe.

Irene sabia que podia confiar nela. Embalada pelo movimento do ônibus, ouvindo a respiração regular da avó, a respirar o seu perfume de feno e de lavanda, voltou a atar os fios do sono.

O sol ergueu-se no horizonte em todo o seu esplendor, projetando longas sombras entre as filas de árvores que ladeavam a estrada. Agostina apertava contra si o corpo miúdo da neta e o seu coração destilava ternura.

Desceram da caminhonete e Agostina olhou em volta, desanimada. O fosso que em tempos rodeava o castelo já não existia. O que havia era um parque de estacionamento para automóveis. No lugar onde outrora se estendiam campos e se erguia, majestosa, uma grande nogueira, havia agora casas, todas iguais umas às outras, de uma fealdade sombria, apesar de cada uma delas ter um minúsculo jardim. Agostina teve alguma dificuldade em encontrar o caminho que levava ao bosque de faias.

– Há trinta anos que não venho para estes lados – justificou-se para Irene. – Parece que ainda ontem fazia este caminho a pé, ou de bicicleta, ou em cima de uma carroça. Mas já passou muito tempo, e agora tenho medo de ter me perdido.

– Temos de ir ter com alguém? – perguntou a pequena.

Não obteve resposta. A avó avançava com o seu passo largo e cadenciado, caminhando ao longo da estrada onde passavam automóveis. Caminhavam há quase uma hora quando Agostina levantou um braço, indicando uma mancha de árvores que se perfilava, sombria e distante, contra o sol aberto da manhã.

– Aqui está, é ali ao fundo – disse.

– O quê?

– Queria saber a onde íamos. Vamos ali ao fundo.

– Isto não é um passeio – protestou Irene.

Para ela, dar um passeio significava ir até o mar, na Liguria. Ou então subir as montanhas de teleférico. Encontrar outras crianças com quem brincar, almoçar no restaurante ou fazer um piquenique num prado. O local indicado pela avó não tinha atrativos.

– Vai ser muito interessante – declarou Agostina, continuando a andar a passo largo. Quando entraram no bosque de faias, deram conta de que não estavam sós. Encontravam-se ali pessoas com mochilas e bastões. Tinha chovido muito nos dias anteriores e agora procuravam cogumelos e caracóis no chão do bosque. Avó e neta caminharam durante muito tempo, ignorando-as. A certa altura, Agostina parou. Colocou a bolsa no chão e tirou de lá uma toalha de algodão, que estendeu sobre a erva.

– Vamos sentar – propôs.

O sol penetrava com alguma dificuldade a barreira das árvores. O ar estava fresco e reinava um grande silêncio, sublinhado pelo zumbido dos insetos.

– Tenho sede – queixou-se Irene. Agachou-se na toalha e cruzou as pernas, imitando a avó. – Bebe laranjada. Já não deve estar fresca. Paciência – disse Agostina. Irene destapou a garrafa e bebeu. A avó estava encostada ao tronco rugoso de uma árvore. Tinha os olhos fechados e uma

lágrima deslizou-lhe pela face.

Irene não falou. Percebia que na cabeça da avó passava-se alguma coisa. Esperou para saber. Mastigou um pão. Os pães que a avó preparava eram muito bons, porque os untava com manteiga, acrescentava cogumelos ou alcachofras em azeite e recheava-os com presunto. Por isso devorou um e logo a seguir outro. Caíram algumas migalhas no leito de folhas que recobria o terreno e, do nada, materializou-se ali um exército de formigas que rapinou aqueles restos minúsculos. Irene, que andava pelos oito anos, sabia muitas coisas sobre a vida das formigas, porque a professora tinha passado horas a falar da inteligência delas. Por isso agora, na falta de outras distrações, começou a acompanhar o trabalho frenético dos insetos.

– Há trinta anos, exatamente neste lugar, morreu o seu avô – começou Agostina, quebrando o silêncio. Irene pensou no avô, que tinha partido depois de uma doença prolongada, e que repousava para sempre no cemitério de San Benedetto.

– Chamava-se Luigi. O corpo dele está sepultado no cemitério. Mas o espírito está aqui, entre estes ramos, e eu ainda consigo senti-lo – prosseguiu Agostina.

Irene olhou em volta, à procura de uma confirmação para as palavras da avó. Não a encontrou. – Eu tive dois maridos. Entre um e outro, um amante. O seu avô.

Irene captou a palavra “amante” e achou que soava mal nos lábios finos da avó. Aquele vocábulo, para ela, era sinônimo de pecado, e tinha também outras implicações que não sabia definir muito bem mas que, em qualquer caso, destoavam da severidade composta da avó. Por isso pensou que ela não estava bem.

– Temos de voltar para casa – disse.

– Era o irmão mais velho do meu primeiro marido. Amei-o de tal maneira que julguei que morria também quando ele me deixou. Mas eu não podia morrer. Trazia a tua mãe dentro de mim. Precisava viver. Entende isto?

– Não – respondeu Irene. – O avô chamava-se Armando.

– Está crescendo. Precisas conhecer a história da tua família. Disse que ia ser um passeio interessante. Eu não digo mentiras. O seu avô era Luigi Benazzo. Nunca mais deixei de pensar nele.

Irene sentiu-se pouco à vontade. Estava habituada às meias palavras, às meias verdades, às contradições constantes que apanhava nas palavras e nos comportamentos dos seus familiares. Agora a avó obrigava-a a escutar fatos que preferia ignorar.

– Vamos para casa – repetiu. Tentou levantar-se, mas a avó agarrou-lhe o braço e obrigou-a a ficar sentada. – É preciso que você saiba. A tua vida, o teu futuro, são coisas que me preocupam. Vive-se mal no meio dos equívocos. Na nossa família há muitos equívocos para uma menina como você. Sabe, Irene, a vida não é fácil para ninguém. Mas para as mulheres é dificílima. O mundo muda muito depressa e nunca para melhor, pelo menos para nós. O caso é que na nossa fazenda aconteceram coisas muito dolorosas, e dentro daquelas paredes eu nunca ia conseguir te falar delas. Mas aqui, neste lugar que é tão querido ao meu coração, posso te contar tudo sobre as tuas raízes. Quero que você conheça a minha história. Eu também fui jovem e, antes ainda, uma menina como você. Está vendo esta velha faia? Naquele ramo, ali em cima, pousei o meu amor e encontrei a coragem para continuar a viver. Se não tivesse feito isso, se não me tivesse libertado daquele peso que me esmagava o coração, tinha morrido eu também e você nunca teria nascido. Um dia, talvez daqui a um ano, talvez amanhã, esta faia vai ser abatida e, com ela, a minha árvore também. Alguém vai construir aqui uma aldeia, ou uma fábrica, ou uma estrada. Mas agora ainda está como estava há muitos anos, quando entrei, recém-casada, em casa dos Benazzo.


25

Agostina nascera durante a Primeira Guerra Mundial, quando o pai estava na frente de batalha. Veio ao mundo no estábulo, sobre um monte de feno coberto com um lençol. A mãe sentiu-se humilhada porque aquela era a sua terceira filha. Por isso chorou.

A recém-nascida era muito débil. Se tivesse morrido, ninguém tinha feito disso uma tragédia. No entanto, agarrou-se imediatamente ao seio da mãe e chupou com uma força que não se sabia de onde vinha.

Ao fim de uma semana, a mãe foi se encontrar com o padre para pedir perdão pelo ato impuro que tinha gerado uma nova vida e o favor de escrever uma carta ao marido para lhe anunciar o nascimento. Ela não tinha nenhuma familiaridade com a escrita e mal sabia assinar o nome.

– Diga-lhe, senhor padre, que lamento ter trazido ao mundo uma menina. Que da próxima vez, quando ele voltar da guerra, espero dar-lhe um rapaz e que a esta vou chamar Agostina, já que nasceu em agosto – sugeriu, pondo em cima da mesa da sacristia o dinheiro para o papel de carta e para o selo.

O velho padre pensou que não valia a pena gastar dinheiro para anunciar uma notícia desagradável, sem contar que aquela pequena não tinha ar de querer vingar por muito tempo. E lhe disse isto.

– Não interessa – respondeu a jovem mãe. – Ele é o chefe da casa e tem que ser informado. – E Agostina não morreu. Quando o pai voltou da guerra, ela escondeu-se atrás da saia da mãe, porque aquele homem barbudo e ferido, que trazia consigo um cheiro que não lhe era familiar, a assustava. Também as irmãs mais velhas o olharam com receio. O homem não lhes deu importância. Antes quis saber como tinham corrido as colheitas, se as vacas tinham tido crias e se a mulher tinha contraído dívidas. Só sorriu quando ela o sossegou sobre este último ponto.

– Enquanto esteve fora trabalhei pelos dois. Não devemos nada a ninguém – garantiu. – Mas nos privamos de tudo e a fome é muita – acrescentou, com ar de quem se desculpa. E pôs na mesa a sopa do costume, de couve e alho-poró.

Só então o homem barbudo observou Pierina, a filha mais velha.

– Quantos anos tem? – perguntou.

– Sete – respondeu Pierina, corando de embaraço.

– Está na escola?

– Estou na segunda classe.

– Então na próxima primavera vou te empregar como vaqueira. É menos uma boca e uns sacos de trigo que se poupam – decidiu o homem.

Esta foi a primeira recordação que Agostina teve do pai. E memorizou também o choro da irmã, que procurou refúgio na mãe enquanto suplicava:

– Vaqueira, não!

Ao fim de alguns anos, também a ela tocou a mesma sorte. Foi tirada da escola ainda antes de ter concluído a segunda classe.

Era um domingo de março. O pai disse:

– Vou te levar à aldeia.

Agostina empalideceu e o seu corpo débil foi percorrido por um arrepio. Olhou para as irmãs mais velhas, que já estavam preparadas para seguir o pai.

– Vai ver que não é assim tão mau – disse Pierina, para a animar. – Dão leite, queijo e pão com fartura – garantiu Gianna. No entanto, elas também não estavam felizes. A mãe preparou uma pequena merenda de pão para cada uma delas. Apenas disse: – Tenham coragem. – Tinha mais três filhos para criar. Todos rapazes.

Na praça estavam muitos camponeses com as faces coradas barbeadas de fresco e roupas de domingo. Alguns deles procuravam moças para mandar para a montanha com os rebanhos. Gianna e Pierina foram logo contratadas. Já eram crescidas e tinham um ar despachado. Agostina teve alguma dificuldade em encontrar um patrão. O corpo enfezado e o rosto macilento não eram um bom cartão de visita. O pai teve que convencer um camponês hesitante.

– Está vendo-a assim, mas é forte como um touro. Quando nasceu parecia uma aranha. Mas nunca teve uma doença. Come pouco ou nada. E é obediente – garantiu.

O camponês acreditou:

– Está bem, eu fico com ela.

– Cinco liras de salário por dia – estabeleceu o pai. Para as filhas mais velhas tinha pedido e conseguido sete. Agostina tinha visto as irmãs afastarem-se com os patrões. Agora era a vez dela. – Trago-a de volta no outono – garantiu o homem, afastando-se.

– Até logo – disse o pai. Depois virou-se para ela: – Não me deixe ficar mal. – Era a despedida. Nem um beijo, nem uma carícia, nem um sorriso. Agostina arrancou atrás do homem com um passo largo e decidido. A certa altura voltou-se e gritou:

– Diga à mãe que lhe mando um beijo. – Mas o pai já tinha ido embora. Agostina sabia que a mãe não estava satisfeita por ter que a mandar guardar vacas, mas também sabia que não podia se opor à vontade do marido. O pai ansiava por ter muita terra e poupava todos os tostões para comprar mais um lote. Três filhas entregues a um patrão durante seis meses representava não só um pequeno ganho como também uma economia de seis sacos de trigo. A família aumentava e a mãe estava prestes a comprar outro filho.

Os primeiros dias na montanha foram muito duros. A beleza dos prados em flor, do céu pincelado de azul e da brisa perfumada não bastou para a alegrar, porque nem sequer reparou. Só chorava e contava as vacas, com receio de perder alguma. A solidão das pastagens, as montanhas cobertas de neve no horizonte e os temporais repentinos enchiam-na de tristeza. Procurava na memória os cheiros da sua casa e os rostos que lhe eram familiares, e gostaria de ser um grande pássaro para voar até lá.

A patroa era simpática para ela. De madrugada, quando partia para o pasto, metia-lhe na mão um bom pedaço de pão e uma ração abundante de queijo. Às vezes dava-lhe, às escondidas do marido, um ovo cozido ou um pedaço de toucinho. Por fim deixou de chorar, de recordar, de pensar e de desejar.

No outono, quando desceu ao vale, a família quase não a reconheceu. Tinha engordado. Estava mais forte, tinha crescido meio palmo e trazia as faces rosadas. O coração tinha endurecido, mas disso ninguém deu conta.

O pai tinha comprado outro campo. Agora possuía trinta jornadas de terra e parecia satisfeito. Nascera mais um irmão. – É preciso trabalhar mais, porque as bocas estão aumentando – afirmou o pai. Uma noite, Agostina pediu autorização à mãe para poder regressar à escola: – Pelo menos, para acabar a segunda classe – disse.

O outono avançado e o inverno eram estações mortas para o campo. Achou que, para tratar dos animais, bastavam o pai, a mãe e as irmãs.

– Eu vou falar com o seu pai – prometeu a mulher. Agostina era inteligente, estudava com vontade e aprendia depressa. Na manhã seguinte, enquanto cozinhava os alhos-porós no fogão, comunicou-lhe o veredito: – Quanto à escola, o seu pai disse que não.

– Por quê? – ousou perguntar Agostina.

– É preciso dinheiro para os sapatos novos, para os livros e para os cadernos. Foi como se levasse uma bofetada. O dinheiro ganho em seis meses de trabalho era fruto do seu cansaço. Entregara-o à família, mas pensava que lhe pertencia algum. Achava que tinha direito a isso. – É você que tem de tratar dos mais pequenos enquanto eu trabalho – explicou a mãe. – Agora tem que matar a fome de nove

bocas – sussurrou a mulher.

– E vão ser ainda mais, porque vejo que está à espera de outro filho – replicou. – Não é por minha vontade. Os filhos vêm e é preciso tê-los – suspirou a mãe, com um ar resignado. O assunto estava encerrado.

Tinha catorze anos quando o pai a mandou, com Gianna e Pierina, ter com Diano Marina para a colheita da azeitona. – Uma vida de cão – repetiam as duas irmãs mais velhas, sempre que regressavam da Riviera. Agostina sentiu em si própria

aquele cansaço ingrato.

Choveu durante muitos dias e ela trabalhou horas seguidas debaixo de água, ajoelhada na lama. Os joelhos cobriram-se de frieiras e a pele estalou. Nas mãos abriram feridas que não cicatrizavam. Muitas moças choravam e, por entre as lágrimas, invocavam a mãe. Agostina cerrou os dentes e não invocou ninguém. Quando podia, enchia-se de caquis e laranjas. O seu coração tornava-se cada vez mais duro.

Alimentava um rancor surdo em relação ao pai que a obrigava, a ela e às irmãs, a este sofrimento, e raiva pela resignação da mãe, que aceitava ter um filho a seguir ao outro.

Agora tinha crescido e, através das amigas, aprendera como funcionavam as coisas entre um homem e uma mulher. Via fios de prata a despontar por entre os cabelos escuros da mãe, que estava perdendo os dentes e ia ficando cada vez mais pálida e mais magra.

Uma vez surpreendeu-a banhada em lágrimas. A mulher chorava a cada vez que percebia que estava grávida. – Por que não se revolta? – perguntou Agostina, cheia de ressentimento em relação ao pai. – Não fale assim. É pecado – disse a mulher.

– Aquilo que ele faz é que é pecado – respondeu, furiosa.

– Um homem é um homem.

– O homem é pior do que um animal. Eu nunca vou casar – decidiu. – Dá tempo ao tempo e vai ver que, também para você, as coisas não vão ser diferentes – disse a mãe, olhando-a quase com ternura.

As duas irmãs mais velhas estavam agora em Turim. Trabalhavam como empregadas domésticas. Voltavam a casa ao fim de cada mês e entregavam o salário ao pai. Como recompensa, o homem repreendia-as porque ganhavam muito pouco. Lamentava-se sempre da miséria.

No inverno, Agostina regressou da colheita da azeitona e pensou que podia ficar em casa até a Primavera, quando chegasse a vez de ir ela também servir em Turim. Tinha apanhado muito frio. Tinham-lhe inchado as amídalas. Custava-lhe engolir e estava com febre. Entrou na cozinha. O pai estava passando a ferro notas de cinco e dez liras.

– Amanhã vai para França – disse-lhe.

Agostina sabia o que significava aquela ordem. As irmãs e outras amigas já tinham estado lá antes dela. – Estou doente – lamentou-se.

– Então vai dormir no estábulo. Não há nada como o calor dos animais para curar todas as doenças. Amanhã tem que estar pronta para partir.

Dormiu no estábulo e, na manhã seguinte, a febre tinha passado. Juntou-se a um grupo de moças. Atravessaram a fronteira, diretas a Grasse. Iam colher violetas.

Durante dias e dias, da madrugada até o anoitecer, andou dobrada colhendo flores. Agostina aprendeu rapidamente a fazer raminhos de vinte, quarenta e sessenta violetas. Uma mulher passava e colocava os ramos em grandes caixas de cartão que eram logo despachadas para as grandes cidades: Paris, Lion, Londres. Eram presentes para mulheres cortejadas e elegantes que, ao recebê-las, sorririam satisfeitas sem saberem nada sobre a dor e o cansaço, as privações e as lágrimas de outras mulheres menos afortunadas.

Agostina regressou de Grasse. Era a primavera de 1931. Um irmão pequenino correu ao encontro dela. – A mãe morreu – anunciou.

– Quando? – perguntou, atordoada.

– No mês passado. Teve um bebê e depois morreu.

Era noite. No estábulo, o pai e outros irmãos tratavam dos animais. Viu-a e estendeu-lhe logo a mão, para que lhe entregasse o dinheiro que tinha ganho na França.

– Foi o causador da morte da minha mãe – gritou Agostina. – Nem sequer se preocupa em me escrever para me dizer. Mas, no fim das contas, o que é para você uma mulher, além de ser um animal que se explora enquanto consegue respirar? Tem mais amor pelos animais do que pelos seus filhos. A terra te preocupa mais do que a nossa mãe. Ela morreu e eu não soube de nada. Por quê?

O pai olhou para ela, espantado. Não sabia se havia de lhe dar uma bofetada ou de considerar que estava louca. No entanto, estendeu a mão outra vez.

– O dinheiro – disse.

– O meu dinheiro não te dou. Já me tirou muito. E para mim, o que é que fica? Você compra terra e animais. Eu ganhei reumatismo, estes sapatos estragados e este xale, que agora não passa de uma teia de aranha. Você não é um pai, é um explorador!

Os irmãos tinham parado de trabalhar. Apoiaram-se ao cabo do gadanho e escutaram, pasmados, as palavras daquela irmã que mal conheciam.

– Se não me der já o dinheiro, te espeto isto – sibilou o homem, apontando-lhe a forquilha com que acabava de revolver o feno das vacas.

– Só espero que tudo aquilo que acumulou caia em ruínas, porque a sua terra e os seus animais estão marcados pelo cansaço, pelas doenças e pelas dores dos seus filhos e da nossa mãe. Quer estes trocados? Toma lá, miserável! – Atirou o dinheiro ao chão, para o meio do estrume.

Os irmãos tinham recomeçado a trabalhar. Aquilo que tinham visto e ouvido era uma coisa perturbadora que preferiram esquecer. O pai explodiu numa gargalhada clamorosa que se assemelhava a um soluço. Inclinou-se para apanhar o dinheiro. Quando se ergueu, Agostina já não estava ali.

Foi para Turim e pediu ajuda às irmãs. Encontraram-lhe um trabalho como empregada doméstica em casa de dois professores que tinham quatro filhos.


26

Agostina estava habituada a esforços bem diferentes. O trabalho de “criada para todo o serviço” não era assim tão pesado. Não era difícil lavar lençóis com sabão em pó, rachar lenha para o fogão, arrastar móveis e tirar a poeira escondida, desengordurar pratos e panelas com cinza, dar brilho aos vidros com papel de jornal umedecido e tomar conta de quatro crianças desenfreadas. Os problemas surgiam quando tinha de cozinhar. Como todos os camponeses, não tinha nenhuma familiaridade com o fogão. Sabia preparar uma sopa, mas perante uma peça de carne para estufar, cozer ou assar entrava em desespero. Em sua casa comia-se carne muito raramente, e era péssima. Pôr uma mesa era uma operação que requeria um grande esforço. Passar a ferro era um exercício impossível. As mãos grandes e calejadas não conheciam a delicadeza. Muitas vezes partia preciosas xícaras de porcelana e copos de cristal. Os danos eram-lhe deduzidos no salário.

Dormia num porão por baixo das escadas, ao lado da cozinha: um espaço de metro e meio por três. Era aquele o seu quarto. Comia os restos da mesa e ficava satisfeita quando a patroa lhe oferecia um vestido que já não usava.

Nunca se queixava. Mas tinha saudades do campo. Tinha a nostalgia da vida ao ar livre, do calor dos animais, do cheiro da terra, do canto do galo e do silêncio da noite.

Aos domingos tinha seis horas de liberdade. Aproveitava para se encontrar com Gianna e Pierina, que já tinham namorado. Iam até a margem do rio, onde a cidade confinava com o campo.

Os futuros cunhados eram dois irmãos camponeses de Cuneese. Iam casar no outono, e as irmãs voltariam a trabalhar nos campos. Elas também não gostavam da cidade.

Uma vez Pierina apareceu com uma face inchada e azulada. Tinha sido o pai que lhe batera. – Fomos a casa com os nossos noivos lhe pedir o dinheiro para o dote – contou Gianna. – É mais fácil arrancar uma pena de um pássaro voando do que arrancar cem liras do velho – acrescentou Pierina. – Por ele, devíamos casar sem camisas, nem lençóis, nem toalhas, nem colchões. – Felizmente, estavam lá os nossos noivos para nos defender, porque de outra maneira tinha nos matado. – Mas no fim acabaram por ter o dinheiro – disse Agostina.

– À força de murros e insultos. Tivemos de o ameaçar que íamos chamar a polícia – explicou ainda Pierina. – Se um dia alguém me pedir em casamento, fica sabendo que eu não levo dote – comentou Agostina. – Nunca me dobrarei para ter aquilo a que tenho direito.

Depois da discussão com o pai e da fuga para Turim, Agostina decidiu que nunca mais regressaria ao campo. E antes ainda, quando era pequena, tinha jurado que nunca casaria. Não queria um homem que lhe inchasse o ventre e que a fizesse morrer à força de gravidezes. Sem contar que não gostava de crianças. Tinha sido obrigada a tratar dos irmãos mais novos quando era de tenra idade. Um encargo que a fazia perder a paciência. Assim como agora, na casa dos patrões, não gostava de tomar conta dos filhos. Agostina não sentia o instinto maternal, da mesma forma que recusava a ideia da vida a dois. Não tinha feito contas aos impulsos dos seus dezessete anos. Um domingo, as irmãs e os futuros cunhados apresentaram-lhe um amigo: Giacomo Benazzo, camponês como eles.

Giacomo era um bonito rapaz. Ostentava um sorriso irônico, que lhe agradou, e uma margarida na lapela do casaco, que lhe transmitiu uma ideia de gentileza.

– Os Benazzo são ricos – informou Pierina. – Têm vinhas e campos de trigo. Poucos animais, só para as necessidades da família, que é muito numerosa.

– A nossa família também é rica, mas eu nunca vi a ponta de um centavo, e vocês duas foram tratadas a murros e pedradas para terem uma pequena parte daquilo que lhes pertence – afirmou Agostina.

As duas irmãs casaram. Agora já não tinham tempo de voltar à cidade, aos domingos, para lhe fazerem companhia. Mas Giacomo Benazzo sim. Convidou-a para ir ao cinema, onde ela nunca tinha estado. Ofereceu-lhe uma caixa de chocolates San Carlo. Levou-a aos carrosséis. Falou-lhe da família dele.

– Lá em casa quem manda é a minha mãe. É avarenta com os filhos e pérfida com as noras. Somos cinco irmãos, todos casados, menos eu, que sou o mais novo. As minhas cunhadas suportam-na. Quem sabe se eu vou arranjar uma mulher que faça a mesma coisa!... – Pretendia que isto fosse uma proposta de casamento, que Agostina não aproveitou.

No entanto, detinha-se muitas vezes para considerar a sua situação de criada para todo o serviço, que era tão humilhante como o convívio com o pai, apesar de menos cansativa. Além do mais, não gostava de viver na cidade. A nostalgia do campo devorava-a. Na casa dos patrões sentia-se prisioneira. A única solução seria casar com um camponês. Mas, ao lembrar-se da mãe, não conseguia sequer aceitar a ideia de um casamento.

Num domingo de verão, Giacomo levou-a até a beira do rio. No lugar em que a água descrevia uma curva, havia uma pequena praia de seixos. Tinham tirado os sapatos e movimentavam os pés na água límpida e fresca.

O rapaz tinha lhe oferecido um pacote de amendoins torrados. Agostina desfazia a casca entre o polegar e o indicador e depois abria as sementes ao meio: metade para ela e metade para o companheiro. Achou que aquela era a maneira certa de partilhar as coisas entre um homem e uma mulher. O bonito e o feio, o descanso e a fadiga, o dinheiro e as contrariedades deviam ser divididos ao meio. Mas nunca era assim. Os homens tomavam conta de tudo. Para as mulheres sobravam as migalhas. Sentia na boca o sabor pastoso daqueles amendoins, que se confundia com o outro, áspero, dos velhos rancores. Não conseguia ser feliz nem sequer com aquele rapaz simpático.

Ergueu os olhos para as montanhas que abraçavam a cidade. Recordou os longos verões e os outonos melancólicos da infância passados nos pastos, as vacas dóceis e o som dos chocalhos, o sentimento de abandono que lhe pesava no coração como uma pedra. Estaria sozinha mesmo que se casasse, porque não havia homem capaz de partilhar os seus pensamentos.

Ela revolvia amarguras e Giacomo discorria sobre o tempo, sobre o inverno que ia ser precoce, sobre as vinhas que era preciso proteger, sobre os dois anos de serviço militar em Reggio Calabria, onde tinha visto o mar e a costa da Sicília.

A certa altura, inesperadamente, Giacomo deitou-a em cima dos seixos e tomou-a com um ardor que lhe agradou. Depois, porém, parecia que não tinha mais nada para lhe dizer. Enquanto a acompanhava até a casa, não ousaram sequer olhar-se nos olhos. Nela ficou-lhe na boca o sabor pastoso dos amendoins.

À noite, estendida no porão, no vão das escadas, Agostina foi assaltada por uma grande perturbação relativamente àquilo que tinha acontecido.

Tinha perdido a respeitabilidade. Só ela, como mulher, tinha que guardar a virgindade. Recordou as ameaças lançadas pelo padre, durante os sermões dominicais, contra as mulheres desonestas. Uma moça decente não devia satisfazer desejos vergonhosos, sob pena de ser condenada a arder entre as chamas do inferno para toda a eternidade. Da mesma forma que uma mulher tinha o dever de fazer filhos porque, segundo a vontade de Deus, era esse o único fim do matrimônio.

Agostina remoeu durante muito tempo estas regras invioláveis, e outras ainda. As mulheres, fossem elas esposas ou filhas, quando eram agredidas, desprezadas, exploradas para lá de todos os limites, não deviam reagir, mas aceitar em nome da soberania do homem. No trabalho, porém, deviam rivalizar com os homens. As mães, depois de cada parto, deviam pedir perdão ao Senhor pelo filho nascido da fornicação. Aos pais nada era exigido.

Muito raramente acontecia que as mulheres, em idade avançada, se apropriavam do papel masculino e se vingavam nos outros dos padecimentos sofridos, fechando a porta do seu coração. Era possível que a mãe de Giacomo fosse um destes casos raros.

– Essa questão, em qualquer caso, não me diz respeito – sussurrou para si própria. Nunca mais queria voltar a ver aquela espécie de namorado.

Assim, no domingo seguinte não compareceu ao encontro. Ia poupar-se à humilhação de não o encontrar. Além do mais uma amiga lhe tinha confessado que o namorado, depois de ter tido relações com ela, tinha desaparecido. Durante dois domingos consecutivos passou as horas de descanso no porão, tentando dormir, até porque, dormindo, não pensava.

No terceiro domingo, Giacomo Benazzo apresentou-se na porta de serviço. Com uma mão segurava o chapéu, com a outra um pacotinho de doces.

– Por que foi que não voltou a aparecer? – perguntou-lhe. Estava com um ar embaraçado e corou. – Não sei – respondeu.

Era inútil explicar-lhe a complexidade das suas razões. Não as teria entendido. Ele tinha um ar infeliz. Mas ela também não estava satisfeita. Lembrou-se das irmãs. Quando se encontravam com os namorados, ficavam com os olhos brilhantes de alegria. Mas ela era diferente. Ela cultivava rancores e media o poço profundo das injustiças. Elas preferiam ignorar tudo.

– Vim te perguntar se quer casar comigo – anunciou Giacomo.

Não a comoveu aquele ar de cão escorraçado. Considerou-o por aquilo que ele era: um bom rapaz, demasiado brando para ser verdadeiro. Mais dia menos dia, já o sabia, havia de lhe levantar a mão.

– Gosto de você – sussurrou o rapaz.

Nunca ninguém a tinha amado, mas aquelas palavras não conseguiram derreter o seu coração. – Já percebi – respondeu. Não o queria ofender e acrescentou: – Vou pensar nisso. Giacomo ofereceu-lhe os doces. Ela aceitou com relutância.

– Agora tem de ir embora. Os meus patrões não permitem que a criada receba homens – avisou-o. – Queria te dizer que quero casar contigo porque também te acho bonita. Pretendia ser um cumprimento, mas irritou-a.

– Obrigada – disse, no entanto.

– Fico à sua espera no próximo domingo, com uma resposta – recomendou-lhe. – Vou ver se posso – replicou Agostina.

No domingo seguinte compareceu ao encontro. Fez isso porque tinha dado conta de que estava grávida. Esta situação, em que não tinha pensado de todo, pareceu-lhe aterradora. Os patrões iam despedi-la e ela não ia saber para onde ir. Por isso, se queria sobreviver com dignidade, precisava realmente de um marido.


27

O casamento foi celebrado na igreja de Castel Rocchero, a aldeia dos Benazzo. Agostina estava grávida de três meses. O noivo ofereceu-lhe um vestido de musselina azul-celeste, uns brincos e um alfinete de granadas. Com as suas economias, ela deu-lhe a camisola de seda para o casamento.

As duas irmãs tinham se cotizado para lhe fornecer um enxoval muito modesto: lençóis, toalhas, colchões de crina e um mínimo de roupa interior. O pai limitou-se a assinar a autorização, porque Agostina era menor.

Alguns dias antes do casamento, Giacomo levou a noiva à aldeia para apresentá-la à família. A sogra tinha tido onze filhos. Oito eram vivos: três moças e cinco rapazes. Giacomo era o mais novo. As moças viviam noutros lugares com os maridos. Os rapazes tinham levado as mulheres para casa. Por isso também havia as noras e muitas crianças. Uma vez que o velho Benazzo tinha morrido há muito tempo, a viúva, Maria, assumira o papel de chefe de família. Chamavam-lhe “Maina d’fer”, Maria de ferro, e esta alcunha dizia muito sobre o seu caráter.

Quando viu a futura nora, disse:

– Não é uma mulher submissa. – Giacomo respondeu: – Para mim está bem assim. Depois da cerimônia, quando regressaram a casa, foram recebidos pela “sparata”, um antigo ritual de bom augúrio. Parentes e amigos, em frente à casa onde iam entrar os noivos, empunhavam espingardas e disparavam tiros consecutivos, levantando os canos para o céu e fazendo um ruído diabólico.

A refeição foi servida na eira. O vinho e o sol pálido de setembro infundiram audácia e desataram as línguas. Soltaram-se piadas e gargalhadas sonoras.

A sogra, para a ocasião, não se importou com as despesas. Queria manter bem alta a reputação dos Benazzo entre os vizinhos. Os cunhados olharam-na com simpatia, as cunhadas com receio.

Agostina não se sentia bem. Comeu pouquíssimo e, a certa altura, correu para o estábulo e vomitou. – Amanhã de manhã quero lavar o seu lençol – disse uma voz atrás dela. Maina d’fer olhou com perversidade para o rosto pálido da nora.

– Para isso, vai ter que esperar até que eu dê à luz. Estou grávida de três meses – replicou Agostina. Estava furiosa com Giacomo, que não tinha tido a coragem de revelar à família a situação em que ela se encontrava.

– Eu já tinha percebido que as coisas estavam nesse pé. E só me pergunto se aquilo que traz aí dentro é sangue do meu sangue. Quando o caminho está aberto, onde passou um, podem passar cem.

Agostina sabia que não ia viver dias fáceis com aquela família, mas, já que a sua vida nunca tinha sido fácil, estava conformada a ter que suportar isso. Mas não podia tolerar o fato de ser insultada.

Voltou a ocupar o seu lugar à mesa, ao lado do marido. Os convidados estavam fazendo um brinde. Ela levantou o copo e anunciou com uma voz clara:

– À saúde da criança que, se Deus quiser, vai nascer daqui a seis meses. Calaram-se todos, até os animais que esgaravatavam os restos. Nunca tinha acontecido uma noiva declarar publicamente o seu estado, apesar de não ser assim tão insólito que uma moça se casasse à espera de um filho. No momento do parto, quando as contas não batiam certo, dizia-se que o menino tinha nascido prematuro, ou que Nossa Senhora tinha oferecido à mãe algumas semanas. Toda a gente percebeu que o anúncio de Agostina era um desafio lançado à sogra. Que, por sua vez, não tinha nenhuma intenção de se deixar calcar por aquela moça de nariz no ar.

Foi ao encontro dela sorrindo. Beliscou-lhe um braço com maldade, magoando-a, e declarou: – Estes dois pombinhos estão com pressa de dar mais braços à terra. E só Deus sabe como nós precisamos deles. Está chegando um e hão de vir mais cem. Brindemos, pois, à saúde dos dois pombos. – Levantou o copo, levou-o aos lábios e esvaziou-o rapidamente.

– Cem filhos! – aclamaram os convidados, e recomeçaram a rir para vencer o embaraço e afastar o ar de tempestade que se adensava sobre o banquete.

Mas não era fácil calar Agostina. Tinha sofrido em silêncio durante demasiados anos. Continuava ainda sofrendo, sentindo-se obrigada a uma união que não desejava. Quis que a última palavra fosse a sua.

– Espero bem que não – disse. E acrescentou: – Tive um momento de fraqueza por este jovem bonito que, depois, quis casar comigo. Um momento apenas, e chegou. De qualquer maneira, será como Deus quiser.

Os olhares preocupados tornaram-se risonhos. Maina d’fer tinha encontrado pão para os seus dentes. À noite, Giacomo e ela afastaram-se pelos campos.

– Se calhar a minha mãe tem razão. Não é uma mulher submissa – observou. – Já sabia. Mas me quis, mesmo assim – disse ela.

– Numa casa não pode ser toda a gente mandando. Cada poleiro tem o seu galo. – Exatamente. Não uma galinha – insistiu Agostina.

– Eu não quero ficar do lado da minha mãe. Mas também não quero ficar contra ela. Se a fazenda prospera, se trabalhamos todos em santa paz, também é por mérito dela.

– Me ofendeu, no estábulo, depois de eu ter estado maldisposta. Eu respeito-a, mas quero ser respeitada. Sou uma hóspede e devo fazer o possível para ser aceita, não rejeitada.

Giacomo não respondeu. As cunhadas não raciocinavam daquela maneira. Tinha arranjado uma mulher difícil. – Não se ponha sozinha contra toda a gente – comentou.

Agostina respirou o perfume áspero que chegava da vinha, onde as uvas estavam prontas para serem apanhadas. O campo era a sua vida. Tinha nascido para trabalhar a terra e para a amar, embora até essa fosse uma relação difícil e muito trabalhosa. Nem sempre a terra estava de acordo com as expectativas, mas pretendia a alma daqueles que se dedicavam.

– Sempre estive sozinha contra toda a gente. Combati sozinha o medo das bruxas quando era pequenina e me mandavam para montanha, o medo dos raios quando rebentavam os temporais e eu não tinha onde me abrigar, o medo de errar quando trabalhava como uma besta de carga. Mas agora já não tenho medos. Nem lágrimas. Não gosto de ninguém, nem sequer de você. Fiquei contigo por conveniência – disse, com um sorriso triste.

Giacomo quis perguntar-lhe se gostava do filho que trazia no ventre, mas não ousou. Temia a resposta dela. Ela adivinhou aquele pensamento e sorriu.

– Quantas vezes já nos metemos com Deus, hoje, durante o almoço. Mais uma vez não o vai incomodar. Por isso juro que vou ser uma boa mulher e uma boa mãe. E agora, vamos dormir.

Tinham se afastado muito de casa. Para não estragar os sapatos da festa, e também porque lhes ficavam apertados, tinham-nos tirado e levavam-nos na mão, caminhando descalços sobre a terra que conservava ainda vestígios de calor. Viram alguns pirilampos no escuro, os últimos da estação, e a silhueta escura de um monte de feno.

– Eu vou dormir aqui – disse Giacomo.

– Eu te faço companhia – decidiu ela.

Cavaram um nicho e deitaram-se juntos.

– Não é verdade que eu não gosto de você – confessou Agostina, ao fim de algum tempo. A proximidade do marido não lhe preenchia a solidão, mas confortava-a. Pensou que, ao fim e ao cabo, tinha tido sorte. Não ousava pensar o que seria dela se Giacomo não tivesse querido casar. Quando era pequena, ao serão, os camponeses contavam muitas histórias. Uma vez, uma mulher tinha falado de uma pobre moça que, ao ficar grávida, tinha sido expulsa de casa. Quanto a bebê, ela entregou-o a um asilo. Depois foi para Turim, ganhar a vida nas esquinas.

A mãe comentara:

– Vê-se bem que já era dada a isso, porque de outra maneira não o tinha feito. – Sabe, eu não sou muito dada a estas coisas da cama – sussurrou. – Já percebi – disse Giacomo. Virou-se de lado e adormeceu.

Maina d’fer levantou-se quando era ainda noite. Entreabriu a porta do quarto dos noivos, de onde não tinha vindo nenhum rumor, por muito que ela esticasse a orelha. A cama estava intacta e vazia. Teve um gesto de contrariedade:

– Entrou em casa o diabo – resmungou, dominada pelo ciúme.

Desceu até a cozinha. Tirou do esconderijo o café moído, o açúcar, um ovo e os biscoitos. Bateu a gema do ovo com o açúcar, regou-a com o café fervendo e depois molhou ali os biscoitos. Era o seu refazendado café da manhã secreto. Apagou todos os vestígios daquela primeira refeição e pôs para ferver a água para preparar o café de chicória para os filhos, as noras e os netos. Ia juntar-lhe uma noz de manteiga e servi-lo com pão seco.

Ouviu ruídos que vinham de fora. A nora estava varrendo a eira com uma vassoura de ramos. Os animais já estavam no curral e Giacomo estava lavando o estábulo.

– O diabo. Entrou em casa o diabo – repetiu. Achou que devia procurar a velha de uma aldeia vizinha, que tinha fama de bruxa. Ia lhe pedir umas ervas que se deitavam ao lume para expulsar o mal.


28

Agostina não teve uma vida fácil com os Benazzo. A esperança de conseguir a solidariedade das cunhadas foi frustrada. Apesar de serem também vítimas da sogra, não tinham passado para o lado dela. Era muito diferente delas. Não entrava em mexericos, não se queixava e trabalhava mais do que lhe era pedido. À noite participava da reza coletiva do rosário, mas não se juntava ao serão no estábulo. Ficava na cozinha, sentada em frente à lareira apagada, onde as brasas soltavam ainda um mínimo de calor e fazia malha. Preparava toucas e casaquinhos para o filho que ia nascer. Da primeira vez ousou acender o candeeiro a petróleo. A sogra apagou-o, dizendo:

– Aqui não nos permitimos estes luxos. – Já tinha sido criticada por comprar uma meada de lã. Então desfez uma das suas camisolas para fazer mais casaquinhos, sem pedir dinheiro ao marido. Depois aprendeu a trabalhar no escuro. Contava as malhas e isso ajudava-a a sossegar.

Agostina não era a única a detestar os serões. Também Luigi, o filho mais velho de Maria, os detestava. Tinha quarenta anos, seis filhos, e à noite, apesar do cansaço, tentava que os filhos lhe repetissem o que tinham aprendido na escola. A voz dos pequenos, aninhados num banco, fazia-lhe companhia.

Luigi era um homem calmo. Não olhava para ela com desconfiança. O seu olhar pensativo pousava às vezes sobre ela com serenidade. Chegava mesmo a pedir-lhe uma opinião sobre as previsões do tempo, sobre a baixa do preço das uvas, sobre a vaca prenhe que estava próxima do parto. Fazia-o quando estavam sós, demonstrando-lhe uma consideração que a gratificava.

Giacomo evitava importuná-la mais do que o razoável. Tinha dado conta de ter casado com uma mulher complicada. O que a tornava assim era, sobretudo, a simplicidade do seu comportamento: trabalhava sem cometer erros, não pedia nada, sujeitava-se à disciplina férrea imposta pela sogra e, no entanto, parecia dominar a família toda. Tinha a impressão de que até a mãe a temia um pouco, e ele temia-a também.

O cão que não ladra morde, pensava, esperando que o nascimento do filho pudesse amansá-la. À noite, depois do serão, quando a família regressava a casa, Agostina já tinha abandonado a lareira e recolhido à cama.

Ele subia até o quarto, deitava-se sem fazer barulho e esperava em silêncio que ela lhe desejasse boa noite. Sabia que estava acordada. Ela fazia-o raramente. Por fim, Giacomo adormecia. Às vezes acontecia que Agostina lhe dizia em voz baixa:

– Se quiser, estou aqui. – Ele queria. Quereria todas as noites. Era para isso que um homem arranjava uma mulher. Mas, com ela, nada era certo. Agarrava-a e dizia: – Te acho tão bonita. – Ela não emitia um gemido, nem um suspiro. Mentia, dizendo:

– Estou aqui. – Estava longe, sabe-se lá onde. Se ao menos ele conseguisse ir ter com ela! Mas ela enfiava-se em algum esconderijo inacessível. A Giacomo restava, na garganta, um fastidioso sentimento de insatisfação.

Agostina tinha lhe prometido que seria uma boa esposa e uma boa mãe. Ele, honestamente, não podia afirmar o contrário. Uma noite de inverno, depois de ter se esforçado durante muito tempo em cima dela, retirou-se, desanimado.

– Pode ser que, quando já não estiver grávida, as coisas corram melhor entre nós – suspirou. – Lamento – disse ela. – Mais do que isto, não posso fazer – desculpou-se. – Ainda vou acabar por ir dormir no palheiro, como o Luigi – prognosticou. – Não percebo – disse ela, perturbada.

– Não sabia?

– O que é que há para saber?

– O meu irmão não quer ter mais filhos. Diz que já teve demasiados. É por isso que dorme no palheiro há três anos. Então é isso, aquele cheiro estranho, pensou Agostina.

Gostava de se empoleirar na escada de mão, armada de forquilha, e de fazer cair a palha, enterrando-se até o meio das pernas naquela massa cadente de que emanavam odores fortes de erva, terra e flores que o sol tinha secado sem as privar das suas melhores essências. Agostina, como muitos camponeses, tinha um olfato apuradíssimo. No palheiro dos Benazzo tinha sentido imediatamente um cheiro mais complexo, mais envolvente, intenso ao ponto de a perturbar. Aquela sensação vinha, pois, da presença de Luigi.

– Nunca fala com as suas cunhadas? – perguntou Giacomo.

– Esta é uma família em que toda a gente se olha de esguelha. Basta uma coisa de nada para pegarem fogo como fósforos. Eu não falo, assim estou sossegada – declarou.

Alguns dias antes, enquanto preparava o terreno em volta das vides, deu por ela trabalhando lado a lado com Luigi. Ele apoiou-se na enxada e olhou para ela com um meio-sorriso.

– Coragem – disse-lhe. – A nossa família não é melhor nem pior do que muitas outras. – Se eu pensar na minha, esta é um torrão de açúcar – respondeu ela. – Deve haver, em qualquer parte, maneiras melhores para as pessoas viverem juntas. Nós só conhecemos isto. A minha mãe,

apesar de tudo, consegue manter-nos unidos. Detesta as noras porque é muito ciosa dos filhos – comentou ele. – E do café dela também – revelou Agostina, retribuindo o sorriso. E prosseguiu: – Levanta-se quando os outros ainda estão dormindo para preparar o seu café com ovo batido, e molha lá os biscoitos. A nós só nos toca a chicória. A tua mãe não sabe que eu desço antes dela e vejo tudo. – Não sabia por que tinha deixado escapar esta revelação, que tinha escondido até do marido. Luigi era a única pessoa que lhe inspirava confiança e, de fato, riu com vontade.

– Precisei chegar aos quarenta anos para conhecer estas pequenas astúcias da minha mãe. É verdade que você fala pouco, mas não te escapa nada.

– Se quiser, te conto do xarope de tamarindo e das pastilhas de mentol que esconde por trás da pilha dos pratos de festa – continuou, esvaziando o saco.

– Não se zangue. Faz mal ao seu bebê – censurou-a.

Agostina cuspiu na palma da mão, voltou a agarrar o cabo da enxada e recomeçou a trabalhar. – Se calhar, quando for velha, vou ser igual – concluiu.

Mais tarde, disse ao marido:

– Não gostaria que fosse dormir no palheiro. Na próxima vez, vou tentar fazer melhor – prometeu, ainda envolvida pela sensação de confiança que Luigi lhe tinha transmitido.

Novembro já ia avançado. Agostina enterrou a cabeça no travesseiro e sentiu o cheiro do ar. – Me cheira a queimado – afirmou.

Na fazenda estava tudo em silêncio. A família dormia.

– Não me parece – replicou Giacomo.

– Sim, sim – teimou ela. Pôs-se em pé de um salto, cobriu os ombros com um xale e desceu precipitadamente a escada de madeira que levava à cozinha. Tropeçou, às escuras, numa cadeira que estava no meio da divisão. Saiu de casa e viu o fumo que vinha da barraca das ferramentas.

A barraca ficava no estábulo e confinava com o palheiro. Agostina distinguiu, na escuridão, dois homens numa grande briga. Ouviu o som de murros. Foi ao encontro deles e ouviu a voz aflita de Luigi.

– Abre imediatamente o estábulo e manda os animais cá para fora – ordenou. Depois, com um soco no estômago, atirou definitivamente ao chão o adversário.

De repente, todos os Benazzo apareceram na eira. O homem que estava no chão, sem sentidos, era Franco, um dos irmãos Benazzo.

Uma língua de fogo perfilou-se, ameaçadora, por trás da janela da barraca. Agostina foi correndo soltar os animais, antes que o incêndio se propagasse pelo estábulo. – Peguem os cobertores todos, molhem-nos e atirem-nos nas chamas – ordenou Luigi. Agostina começou a tirar água do poço. Os baldes passavam de mão em mão e a água era jogada nas chamas. Entretanto chegaram os cobertores. Agostina embebeu-os em água e começaram todos a cobrir as línguas de fogo. O que aconteceu foi que Franco, depois de ter passado o serão na taberna na aldeia, tinha regressado à fazenda tão bêbado que não reconheceu a porta de casa. Entrou na barraca, convencido de que se tratava do seu quarto. Estendeu-se num banco de madeira, que confundiu com a cama. Acendeu um cigarro que caiu dos dedos e, ao cair, incendiou pedaços de madeira e de palha.

Luigi, que estava dormindo no palheiro, acordou ao ouvir uns passos vacilantes na eira e deduziu que era Franco, uma vez que os cães latiam em vez de ladrar. Ficou, porém, desconfiado quando ouviu ranger a porta da barraca e não a de casa.

Então desceu e sentiu o cheiro acre do fumo. Escancarou a porta. O irmão ressonava em cima do banco. Levantou-o em peso e arrastou-o até a eira. Franco acordou, sem o reconhecer. Estava de tal maneira bêbado que confundiu Luigi com um agressor. Deu-lhe um murro no queixo. Resultou dali uma luta que Luigi concluiu rapidamente com um soco poderoso, enquanto gritava para chamar a família.

Ernesta, a mulher de Franco, ao ver o pobre homem desmaiado, começou a agredir Luigi: – Traidor, deu cabo dele!

As crianças, proibidas de sair de casa, eram uma selva de carinhas curiosas que espreitavam pelas janelas aquele espetáculo insólito.

Entretanto, Agostina continuava a tirar água do poço. Quando um balde ficava cheio e oscilava, pendurado na corrente, ela pegava-lhe pela asa e entregava-o aos outros.

Ao levantar mais uma vez o balde, sentiu uma guinada na barriga. Logo a seguir foi acometida por uma dor aguda nos rins. Soltou um queixume e desfaleceu.

O fogo foi dominado e apagado. Ela foi levada para o hospital, onde abortou. O susto e a fadiga daquela noite custaram a vida à criança.

Foi Giacomo quem a transportou na carroça, espicaçando o cavalo numa corrida esforçada até o hospital. Apesar de ser já muito tarde, Agostina foi imediatamente assistida pelo pessoal de turno. Mais tarde, o médico que fez a raspagem falou com Giacomo:

– Era um rapaz – disse-lhe. E continuou: – Vocês, camponeses, não têm consideração nenhuma pelas suas mulheres. Aquela pobre está agora cheia de febre. Vai buscar roupa para ela. Pode não aguentar a noite, se a infecção não se resolver.

Giacomo olhou para o homem, que lhe incutia um grande respeito. Não tinha percebido bem o significado daquelas palavras.

– Consideração eu tenho. Até demais. Foi por causa do incêndio. A roupa eu tenho aqui. Posso levá-la já para casa, sem esperar pela noite – balbuciou timidamente.

– O que eu disse foi que, se a sua mulher não morrer, é um milagre – esclareceu o médico, brutalmente. Giacomo deixou-se cair em cima de um banco, no corredor, em frente à enfermaria de vinte camas, numa das quais Agostina lutava para sobreviver.

– Vai para casa. De qualquer maneira, você aqui não pode fazer nada – ordenou o médico. Giacomo saiu. O cavalo e a carroça com que tinha transportado Agostina estavam em frente aos degraus do hospital. Subiu para a carroça, embrulhou-se no cobertor, inclinou a cabeça sobre o peito e chorou. Tinha as mãos e o nariz chamuscados pelo fogo, mas não lhe doíam. A dor estava toda na boca do estômago e era lancinante. Nunca pensou que pudesse sofrer tanto por uma mulher. Recordou o seu corpo pequeno e firme, o rosto de linhas delicadas, as mãos calosas e fortes e os olhos grandes e profundos que sabiam ver além das coisas. Agostina não tinha nascido para ter marido e filhos, pensou.

A noite esfumou-se no cinzento de uma manhã muito fria. Desceu da carroça e pôs o cobertor em cima do cavalo. Voltou ao serviço onde Agostina estava internada. Uma freira de touca branca foi ao encontro dele.

– Olha que a sua mulher é como os gatos. Tem sete vidas – disse-lhe a sorrir. – Agradece a Nosso Senhor e vai à igreja acender uma vela.

Então lembrou-se daquilo que a mulher tinha lhe contado a propósito do seu nascimento: – Era uma aranha. A minha mãe, a princípio, pensou que eu não ia sobreviver. Mas aqui estou. Mantiveram-na no hospital durante vários dias. Antes de a levarem para casa, o médico avisou Giacomo: – Respeita-a durante um ano, pelo menos. Antes disso não pode aguentar outra gravidez. Giacomo assentiu, feliz. No Natal levou um capão ao médico, para lhe agradecer. Agostina passou o inverno ao pé da lareira. Costurava, fazia malha, ouvia as crianças enquanto repetiam as lições a Luigi e aprendia ela também, e suportava as alfinetadas da sogra, que não perdia uma oportunidade para insistir:

– Há mulheres que não prestam para nada. Nem para fazer filhos. Chegou a primavera. A terra acordou e acordou ela também. Tinha armazenado energias. Agora queria trabalhar. Agostina estava bem. Nunca tinha se sentido melhor. Às vezes pensava na criança que o destino lhe tinha negado, até que olhou para dentro de si própria, com uma sinceridade impiedosa, e conseguiu admitir que nunca tinha desejado aquele filho: – Não nasci para ser mãe – constatou, desanimada.

Maio chegou. Uma companhia de músicos veio até a fazenda para festejar a Nossa Senhora. Fez-se uma festa na eira. Ela, esquiva como sempre, escapou do marido e dos outros convidados que lhe pediam para dançar:

– Não sou capaz – desculpou-se, afastando-se da alegria coletiva que a enchia de uma tristeza da qual desconhecia a razão. Até Maina d’fer, que tinha bebido mais do que o razoável, tinha se posto a dançar, revelando uma agilidade insuspeita. Ela escapuliu-se, dirigiu-se ao palheiro, subiu a escada de mão e deixou-se cair sobre aquela montanha de feno que tinha um perfume tranquilizante: o da terra, da erva, das folhas secas pelo sol e do cunhado Luigi. Levantou um braço para esconder a cara e chorou. Na última vez em que tinha chorado tinha sete anos, quando a mandaram para a montanha tomar conta das vacas. Uma mão áspera tocou-lhe no braço. Luigi tinha se estendido ao lado dela. Sentiu-lhe o hálito, que cheirava a menta. Escondeu o rosto no peito dele e saltaram todas as lágrimas que durante anos tinha reprimido. O seu coração duro derreteu como uma bola de neve ao sol. O cunhado beijou-lhe delicadamente o rosto e depois aconteceu o milagre. O seio de Agostina acolheu aquele homem meigo e seguro, e foi como se um grande fogo de artifício, cheio de luzes e cores, explodisse à sua volta.

– Meu Deus, o que é que eu fui fazer! – sussurrou Luigi, apertando-a contra si. Agostina pensou: estou apaixonada.

Na eira aumentava o ruído da dança e das gargalhadas. Ninguém notou a falta deles.


29

Não se sentiam muito orgulhosos daquele amor que consumavam às escondidas, conscientes de cometer um pecado. – Me sinto um desgraçado – disse Luigi por mais de uma vez. – Me sinto culpado em relação à minha mulher, que não fez

nada para merecer a minha infidelidade, e em relação ao Giacomo, porque tem quase menos vinte anos do que eu e houve um tempo em que eu substituí o pai.

Agostina, dominada pelos impulsos dos seus dezoito anos, um dia confessou: – Eu não tenho nada a ver com o Giacomo. Não devia ter casado com ele. E você também não devia ter casado. Por que não esperou por mim?

– Como é que eu havia de fazer? Quando você nasceu, eu tinha vinte e três anos. Era um homem. – Mas esperou até ter mais dez anos para arranjar uma mulher.

– Agostina, mas que absurdos é que estamos dizendo aqui? E que erros estamos cometendo? Eu podia ser seu pai, e no entanto nos tornamos amantes. A minha mulher e o meu irmão não merecem isso.

– É verdade. Vamos acabar já com isto, Luigi, porque mais cedo ou mais tarde vão acabar por nos descobrir e aí vai ser um mau momento para mim e para todos os Benazzo.

Agostina estava atormentada pelo sentimento de culpa. Olhava para Giacomo com ternura e sentia por ele apenas uma espécie de amor fraternal. Quanto ao amor, aquele que nunca sonhara ou imaginara, derretia-lhe o coração e apertava-lhe o ventre numa dentada. Não sentia o cansaço enquanto trabalhava, inclinada na terra, debaixo do sol. De vez em quando erguia o olhar. Os olhos procuravam Luigi. Via-o e sentia-se segura. Acontecia a mesma coisa com ele também. Descobria a silhueta miúda e sólida da cunhada mesmo quando mal se via, nos limites extremos dos campos. A vontade de correrem um para o outro e de se refugiarem um no outro tornava-se irresistível. Mas ambos sabiam que o campo tem cem olhos, mesmo quando se julga que não anda viva alma por ali. O desejo pelo outro tornava-se cada vez mais premente e ambos se esforçavam até à exaustão para o fazer calar.

Uma noite, enquanto Agostina lavava a louça em frente à janela e lá fora, por baixo da mesma janela, Luigi afiava as foices, ouviu chamar por ela em voz baixa.

A família estava na eira e tinham recebido a visita de alguns vizinhos. – Encontrei uma saída – disse-lhe.

Giacomo, sentado na mesa da cozinha, organizava a lista dos trabalhadores. Agostina encostou o rosto à grade de ferro da janela e continuou o seu trabalho. O coração começou a galopar-lhe no peito.

– Dois amigos meus de Alba compraram terra na Argentina. Partem no fim do mês. Tenho que arranjar os documentos. Vou com eles – continuou a sussurrar.

Gostaria de lhe dizer:

– Eu vou contigo. – Mas, em vez disso, inclinou a cabeça sobre a pilha dos pratos, enquanto pensava que aquela era a única saída para ambos.

– Espero por você esta noite – concluiu ele.

Ela continuou a esfregar energicamente os pratos com a cinza. Quando acabou de arrumar a cozinha, limpou as mãos no avental e preparou-se para sair.

– Aonde vai? – perguntou Giacomo, levantando os olhos do caderno. Agostina estremeceu. O seu espírito estava longe. A voz do marido trouxe-a de volta à realidade. – A Ginetta não está boa. Vou ver o que se passa – respondeu ela. A Ginetta era uma vaca. Estava prenhe. Naquele dia não tinha comido e Agostina desconfiava que alguma coisa não estava correndo bem.

– Eu vou contigo – disse ele. Fechou o caderno. Atravessaram a eira onde se ouviam as vozes dos camponeses que, à luz das estrelas, repetiam até o infinito as histórias de sempre.

Entraram no estábulo. Os animais dormiam. Giacomo acendeu o candeeiro e aproximaram-se da Ginetta, que olhou para eles com olhos meigos. Repararam nos músculos da espinha, percorridos por um arrepio. Agostina lhe fez um carinho no focinho.

– Está com um bocadinho de febre – constatou.

– Amanhã de manhã vai ser preciso chamar o veterinário – disse o marido. – Me traz água. Ela precisa beber. E um cobertor. Não pode apanhar frio – pediu ela. Ficaram algum tempo ao lado do animal, fazendo carinho. À luz do candeeiro, o perfil forte e austero de Giacomo recortava-se contra uma parede do estábulo, projetando uma sombra gigantesca. Agostina estremeceu, como se também sentisse febre. Elaborou uma série infinita de censuras a si própria. Queria tanto que o marido a maltratasse, como o pai fazia, para arranjar uma justificação para a traição. Mas, em vez disso, quase sem o dar a entender, tocava-lhe às vezes a mão com delicadeza como que a dizer:

– É preciosa, para mim. – Sentiu-se infame, malvada. Sentiu-se a pior das mulheres. Pensou: não tenho coragem de o deixar. Não o merece. Sabia que Giacomo nunca havia de entender o seu amor por Luigi, porque ela própria também não encontrava palavras que explicassem por que razão tinha se apaixonado. Olhou o marido e, num impulso de ternura quase maternal, declarou:

– Não vou te deixar.

Como é evidente, Giacomo não entendeu.

– Eu fico com a Ginetta. Vai dormir – disse.

Agostina sorriu. Saiu do estábulo e dirigiu-se ao palheiro.

Luigi estava à espera dela. Apertou-a contra ele e falou-lhe ao ouvido: – Vou levar a minha família para a Argentina – confessou.

Ela assentiu. Era a única decisão possível.

– Mas por esta noite, só por esta noite, ainda sou seu – acrescentou ele. Chorava, enquanto a amava, e as suas lágrimas, ao caírem sobre o rosto de Agostina, confundiam-se com as dela.

Não se aperceberam sequer de um ruído de saias pela escada acima. Maina d’fer, da eira, tinha visto a nora afastar-se do estábulo e chegar ao palheiro. Tinha-a seguido e agora olhava aqueles dois corpos que se procuravam. Teve um esgar de contrariedade. Voltou a descer silenciosamente a escada e enfiou-se em casa. Foi para a cama e achou que era melhor esquecer aquilo que tinha visto.

Mas não conseguiu. Nos dias que se seguiram espiou Agostina e viu-a sob uma nova luz. Se o seu Luigi, tão maduro, tão responsável e honesto, tinha perdido a cabeça por ela, isso queria dizer que aquela nora tinha qualquer coisa de insólito que não vinha só da força do caráter. Talvez houvesse nela alguma coisa que lhe tivesse escapado. Luigi tinha um temperamento ponderado. Casou quando ia já entrado nos anos e avaliou bem a sua escolha. Encontrou uma mulher dócil mas não tonta, fez seis filhos e depois achou que já chegava, não só por ele, mas também por consideração pela mulher. Acompanhava os filhos como não o faziam os outros irmãos. Considerava-os importantes, mas não só como braços para o campo. Esforçava-se por lhes valorizar também o espírito. Que coisa o teria atraído de uma forma tão irracional em Agostina, a ponto de chorar como uma criança?

Maina d’fer estava perturbada. Não ia falar. Nunca revelaria aquele segredo escaldante. Mas estava preocupada. Sentia no ar a desgraça. As ervas que tinha trazido da bruxa e que tinha queimado na lareira para afastar o diabo não tinham servido para nada. No domingo de manhã olhou com apreensão para os dois filhos, o mais velho e o mais novo, que se afastavam juntos, armados de serras e machados para rachar lenha, em direção ao bosque de faias.

Agostina, à porta do estábulo, despediu-se dos dois com um gesto. Depois voltou para dentro para tratar da Ginetta, que estava melhorando.

Era meio-dia. Ouviram-se na fazenda os gritos de Giacomo, que corria numa aflição em direção à eira. – O Luigi caiu da árvore. Mandem chamar o médico. Tirou a carroça da arrecadação, enquanto Agostina o ajudava a atrelar o cavalo.

Maina d’fer fechou os olhos e sussurrou:

– Chegou a desgraça. Depois ordenou ao filho: – Vai você correndo à aldeia chamá-lo. Os outros estão todos na igreja. Giacomo montou na bicicleta. Agostina subiu para a carroça e segurou as rédeas. A sogra sentou-se ao lado dela. Dirigiram-se ao bosque. Descobriram as marcas da passagem dos dois homens. Depois viram um monte de ramos cortados.

Abandonaram a carroça. A moça começou a correr pelo meio das árvores. Maina seguia-a, com um passo lento. Não tinha pressa nenhuma de ver.

Ouviu o grito desesperado da nora.

Luigi estava deitado de costas, no chão, como uma marionete desarticulada. O ramo a que tinha subido quebrara-se de repente, fazendo-o cair. A casca ainda o mantinha agarrado à árvore. A moça, inclinada sobre ele, acariciava-lhe o rosto apagado e, por entre as lágrimas, sussurrava-lhe palavras de grande ternura.

– Partiu mais cedo do que pensava e me deixou só – lamentava-se. – Deixa-o sossegado, pelo menos agora – disse Maina, com uma voz firme. Depois passaram os dias. A ausência de Luigi tinha deixado um vazio que até as crianças percebiam. Tornaram-se mais calmos. Apagaram-se os mexericos e houve uma trégua nas represálias. Uma noite, Agostina subiu até o palheiro e ficou ali revivendo recordações. Pouco depois viu a cabeça da sogra aparecer no cimo da escada.

– É melhor ir procurar o teu marido – avisou Maina. E continuou: – Já percebeu bem aquilo que quero dizer. Ele teve ordens para te respeitar até o outono.

– Por quê? – perguntou Agostina.

– Este mês te faltaram as regras – explicou a mulher, com uma ruga amarga nos lábios. A nora olhou-a com um ar desolado.

– Não sei de nada – disse.

– Eu sei. Marco as datas de todas as minhas noras. Quero saber quando está para vir algum neto – explicou, olhando-a nos olhos. – É bom que o seu filho seja filho do Giacomo.


30

Agostina entrou no bosque de faias. Era madrugada. Sentiu o último pio de uma coruja. O som dos seus passos antecipou o despertar dos melros, das cotovias e de outros pássaros que, aborrecidos, começaram a fazer barulho. Movia-se insegura naquele terreno ainda imerso na escuridão. Tropeçou várias vezes. Reconheceu a pilha de madeira que Luigi e Giacomo tinham cortado no dia da desgraça. Ninguém a tinha ainda transportado para a fazenda. Continuou mais alguns metros e depois parou. O céu começava a clarear. Ergueu os olhos e reconheceu a árvore da qual Luigi tinha caído. Acariciou-lhe o tronco e encostou o ouvido à casca, como se quisesse ouvir a respiração da planta ferida. Tocou as folhas do ramo grande que tinha quebrado sob o peso de Luigi. A casca ainda o segurava, impedindo-o de se soltar.

Agachou, tateando o terreno com as palmas das mãos. Encontrou uma ligeira depressão que tinha se formado no sítio onde Luigi caiu. Sentou-se naquele ponto e cruzou as pernas por baixo dela. A terra mole parecia uma grande almofada, ainda úmida de orvalho. Pousou as mãos nos joelhos e fechou os olhos. Aspirou lentamente o ar, que cheirava a bosque. Desde há muitos dias, a dor era uma pedra que lhe esmagava o peito, fazendo-a sofrer.

– Vamos ter um filho – sussurrou.

O espírito do homem amado estava ali. Captava-o com todos os sentidos e sabia que ele a ouvia. Por isso é que fora ao bosque. Luigi tinha de saber que uma parte dele ainda vivia. Sentiu um sopro de vento à volta dos ombros e pensou que ele a abraçava. Agostina iniciou um longo monólogo com Luigi, contando-lhe como tinha, desde pequena, aprendido a conhecer o espírito do vento e a fazê-lo seu amigo. Nessa altura, o vento tinha-a ensinado a libertar-se do medo. Bastava fazê-lo escorregar para fora dela e apertá-lo com força ao ramo de uma árvore.

– Agora preciso libertar-me da dor pela sua perda – anunciou-lhe. Fê-la escorregar docemente para fora do peito a atou-a ao ramo partido da árvore. Depois sorriu: – Agora estou melhor. O nosso filho só deve conhecer o meu sorriso. Vou lhe falar de você. Vou lhe contar tudo sobre as emoções que fez brotar de um coração árido como o meu. Ele vai se parecer contigo. De cada vez que o abraçar, será como se abraçasse a você. Vai ter a sua voz, o seu rosto e a sua força, e vai me proteger. Te amei muito, Luigi. Adeus, meu amor.

Apanhou um punhado de terra úmida, que era uma mistura de folhas, fungos, cascas e musgo, e esfregou a cara. – Olha só como ficou. Parece uma bruxa. – Era a voz de Giacomo, que estava na sua frente, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças.

– Eu estava apaixonada por ele – confessou Agostina, erguendo para o marido, que lhe fazia frente, os olhos cheios de lágrimas.

– Fique calada – intimou-a com uma voz áspera.

Ela levantou-se. Com as mãos, tirou a terra do rosto:

– Você já sabia – disse calmamente.

– Bastava ver como você olhava para ele e como ele olhava para você. Só se fosse cego é que não dava conta. – Encostou-se ao tronco da faia, tirou do bolso metade de um cigarro e acendeu-o. Saiu-lhe dos lábios uma baforada de fumo azulado. O sol já tinha nascido e os primeiros raios iluminaram a terra.

Agostina sentiu-se trespassada por uma melancolia pungente. Uma lâmina de sol, ao penetrar o fumo azulado do cigarro, lhe fez lembrar as luzes esfumadas da pista de um circo que durante alguns dias tinha se instalado junto à aldeia. Giacomo tinha ido com ela ver o espetáculo. Não havia animais ferozes, nem cavalos amestrados, mas apenas saltimbancos e palhaços. O rufar dos tambores, a cintilação dos fatos e a voz estridente do dono do circo acompanhavam as exibições dos acrobatas, dos ilusionistas e dos palhaços que ofereciam ao público, com generosidade, o seu esforço. Eram crianças, mulheres, jovens e velhos que não se poupavam. Por baixo da maquiagem pesada que os tornava grotescos, para suscitar a alegria, Agostina captou a tristeza de uma vida errante e a extraordinária capacidade de oferecer coração, músculos e cérebro, pedindo em troca apenas aplausos, gargalhadas e algumas moedas. No dia seguinte, enquanto o circo desmontava a grande tenda, levou-lhes um cesto de ovos e hortaliça. Pousou-o nos degraus de madeira de uma carroça e fugiu.

Agora, no meio das faias, olhou para o marido. Considerou a sua paciência infinita, recordou a forma como tinha tratado dela quando estava no hospital e como a respeitara durante meses. Sem uma censura, sem um gesto de impaciência. E agora dizia-lhe que sabia daquele amor por Luigi e que tinha se calado. Deu-lhe tudo sem lhe pedir nada em troca. Nunca tinha estado apaixonada por ele mas, naquele momento, amou-o profundamente.

– Eu não te mereço – sussurrou.

Giacomo sorriu-lhe.

– Por que não me fez parar, enquanto podia? – perguntou Agostina. – Tentei. Nem sequer deu conta – confessou, desconsolado.

– Me perdoa – disse ela. Estendeu uma mão para lhe fazer um carinho no rosto. O marido impediu aquele gesto, agarrando-lhe o pulso e apertando-o até lhe doer.

– É uma puta! – atirou Giacomo.

Agostina estremeceu como se tivesse recebido uma chicotada. O marido olhava-a com desprezo. Aquela mudança repentina atordoou-a e feriu-a. Nunca tinha se considerado uma puta, porque putas eram as mulheres que se prostituíam. E ela não o tinha feito. Entregara-se a ele por fraqueza, casara com ele por necessidade, prometera-lhe ser uma boa esposa e só não mantivera a promessa por ter se apaixonado pelo cunhado. Sabia que tinha pecado, mas não era uma puta. Recordou o aviso da sogra: “É melhor ir procurar o teu marido.” Foi quase uma ordem que ela não percebeu. A morte de Luigi fê-la sentir-se

quase uma viúva. Não podia receber no seu seio outro homem, nem sequer o marido. Olhou Giacomo com altivez:

– É uma ofensa que não mereço – murmurou baixinho. – Como a tua mãe sempre disse, não sou uma mulher submissa. Só Deus sabe quanto gostaria de o ser. Evitaria muitas complicações. Nem sequer sou ingrata, apesar de o parecer. Gosto de você, apesar de você não acreditar. Mas nunca mais poderei ser sua mulher.

O marido atingiu-a com violência na face. Agostina perdeu o equilíbrio e caiu. A agressividade não fazia parte da personalidade de Giacomo.

– Você não é uma mulher, é um demônio – disse, apontando-lhe o cigarro como se a quisesse trespassar. Tinha os olhos vermelhos e brilhantes. E de repente, com voz rouca, sussurrou: – A morte do Luigi há de pesar para sempre na sua consciência e na minha.

A mulher encolheu-se. Giacomo incutia-lhe terror.

– O que é que está me dizendo? – perguntou em surdina, esperando que ele não lhe respondesse. – Caim também não matou o irmão por prazer. Foi provocado para além do tolerável, depois se arrependeu. Percebeu agora?

Um raio de sol trespassou-lhe os olhos. Agostina baixou a cabeça e tapou os ouvidos com as mãos. – O Luigi caiu da árvore – gritou com quanto fôlego tinha. Houve de repente um bater de asas desesperado. Os pássaros assustaram-se e voaram para longe. Depois foi o silêncio.

– Puta! – repetiu Giacomo, e desferiu um pontapé contra o tronco da árvore ferida. Agostina levantou-se e lançou-lhe um olhar gélido:

– Estou grávida do seu irmão – disse com voz firme.

O marido apagou o cigarro com a bota e depois afastou-se, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. Viu estremecerem-lhe os ombros e ouviu-o dizer, entre o riso e as lágrimas:

– Ninguém vai poder negar que é sangue do meu sangue.

Agostina sentiu uma espécie de beliscão no baixo ventre. Pensou que uma mulher grávida devia transmitir serenidade ao filho. Ela, porém, estava comunicando-lhe desespero. Recordou então as palavras da mãe:

– Uma mulher grávida é sagrada. Quem a insulta comete um pecado, porque a criança vai carregar as consequências disso durante toda a vida.

Agostina distinguiu, na luz esfumada do crepúsculo, as irmãs e os maridos. Estavam sentados nos bancos de madeira por baixo do alpendre, com o resto da numerosa família. As crianças rodopiavam em volta dos adultos, brincando de esconder. Parou por baixo dos ramos de um salgueiro cuja copa se inclinava sobre a superfície da água de um regato. Pousou no chão a mala de napa onde tinha metido a roupa e os lençóis. Faltou-lhe coragem para continuar. Não era fácil apresentar-se àquela gente toda pedindo uma cama, porque não tinha para onde ir.

Os cães devem ter dado conta da sua presença, porque apareceram de repente. Viu-os atravessar a eira e correr ladrando em direção a ela. Agostina apanhou uma pedra na margem do regato e atirou-a contra eles. Mas não chegou para os fazer calar. Alguém assobiou. Eles pararam à frente dela e começaram a rosnar, ameaçadores. Um homem idoso, que não conhecia, levantou-se do banco e avançou em direção a ela. Agostina continuou imóvel. Sabia que se desse um passo os cães se atiravam nela.

O homem viu-a e olhou-a de esguelha.

– O que é que faz aí? – perguntou.

– Estou à procura da Gianna e da Pierina, as minhas irmãs – disse. As crianças tinham parado de brincar e estavam agora alinhadas atrás do homem, que mandou embora os cães com um gesto. Uma menina passou para a frente.

– É a tia Agostina – exclamou. Corou de emoção e correu à procura da mãe. Era a filha mais velha de Gianna. – Então, força! Avança – sugeriu aquele homem carrancudo, com um tom que pretendia ser cordial. Finalmente, Gianna e Pierina foram ao encontro dela, esforçando-se por manifestar a surpresa de encontrarem na sua frente, inesperadamente, a irmã que não viam desde o dia do casamento. Não tentaram saber como estava. Mas perguntaram: – O que foi que aconteceu? – pondo-se na defensiva.

Agostina olhou para elas. Estavam outra vez as duas grávidas. Pierina já tinha tido três filhos. Gianna apenas dois. – Como é que a pequena conseguiu me reconhecer? – perguntou Agostina, em vez de responder. – Aquela é fina como tudo. Te viu na fotografia – explicou Gianna. Depois foi ao encontro da irmã e abraçou-a. – Está me cheirando a complicações – disse.

O homem aproximou-se, pegou na mala de Agostina e dirigiu-se a casa. – Sempre foi esquisita. O que foi que arranjou, desta vez? – quis saber Pierina, olhando-a com um ar desconfiado. Não estavam contentes por vê-la e nada faziam para esconder isso. De vez em quando escreviam-se, mas nenhuma delas faria cinquenta quilômetros para encontrar a outra. A viagem era um luxo reservado para as grandes ocasiões: casamentos ou funerais.

– Não quero enfrentar aquela gente toda – murmurou Agostina, indicando a família reunida ao ar livre. – Vinha para ficar aqui uns dias – prosseguiu, olhando para as duas irmãs com um ar suplicante.

– O nosso sogro já pegou a sua mala. É sinal que pode ficar – sossegou-a Gianna. Dirigiram-se a casa. Agostina trazia o vestido cinzento de seda das festas. Tinha os cabelos apanhados na nuca. O rosto, escurecido pelo sol, escondia o cansaço que, no entanto, se adivinhava no seu olhar. Os cunhados, que já a conheciam, sorriram e ofereceram-lhe um copo de vinho. Os outros parentes e os filhos esperavam dela uma explicação.

– À casa dos Benazzo, nunca mais volto – anunciou finalmente.

A mala estava em frente à porta de casa, uma casa de lavoura muito parecida com aquela que acabava de abandonar. Ninguém fez comentários. Quanto menos soubessem, menos probabilidades tinham de se sentirem envolvidos. Mas Agostina leu uma reprovação no olhar de todos eles. Nunca tinha se visto uma mulher que deixava o marido. Não havia razões, por mais graves que fossem, que pudessem justificar aquele gesto. Ninguém, nem mesmo as mulheres, consideraram a dor que Agostina trazia dentro dela. Os sentimentos eram uma extravagância que não podiam se permitir.

– Vai dormir com uma das suas irmãs – disse uma velha, que devia ser a sogra. Pierina olhou para o marido, que concordou. Ele ia dormir no palheiro. – Obrigada – sussurrou Agostina.

– Então vamos para a cama. Já é tarde – ordenou o sogro.

Pouco depois, as três irmãs estavam reunidas no quarto de Pierina, onde estava também a última criança que tinha nascido, de um ano e meio, e que se agitava no berço de madeira.

– Então? – perguntou Gianna. Já estava com a camisola de dormir e tinha se esgueirado para fora do quarto para se encontrar com as irmãs.

– Apanhei a caminhonete hoje de manhã cedo. Cheguei à aldeia e depois não conseguia me decidir. Fiz o caminho a pé até aqui. Perguntei por aí onde vocês estavam. A história que trago aqui dentro não é muito bonita – confessou Agostina. Não estava com vontade de contá-la, apesar de saber que era seu dever dar uma explicação.

Pierina tinha dobrado e colocado cuidadosamente a sua roupa nas costas de uma cadeira. Soltou os cabelos e pousou o travessão de tartaruga no mármore da cômoda. O candeeiro de petróleo, em cima de um armário, difundia uma claridade amarelada. Agostina estava sentada, ainda vestida, na beira da cama.

– Te puseram na rua? – perguntou.

– Ora essa! Eu é que fugi. Não sabem que estou aqui – respondeu. – Por quê? – perguntou Gianna, impaciente.

– Estou grávida, e o filho não é do Giacomo – anunciou. E gostaria de ter acrescentado: Isso é outra história, mas é muito grave e não se pode dizer.

O silêncio desceu sobre elas. Depois, Gianna e Pierina fizeram o sinal da cruz e recitaram juntas: – Oh, meu Senhor, acompanhai quem está só. E para quem recusar a companhia, um pontapé no traseiro. Assim seja. – Era uma invocação antiga que pressupunha também o castigo para quem recusasse as regras. – Eu já sei o que é que vocês estão pensando: que eu sou uma puta – sussurrou Agostina. Pierina não fez comentários.

– Esquisita sempre foi. Puta, nunca – disse Gianna, inesperadamente. Era quase uma absolvição. De fato, acresescentou: – Mas isso são coisas que só as senhoras podem fazer, como a duquesa Ludovica, a mulher do conde Cesare Soria. Ficou grávida de um oficial. O conde até ficava com ela. Mas ela foi embora com o oficial. Agora vive em Roma e continua sendo uma grande dama. Mas as mulheres como nós devem ser tementes a Deus, porque de outra maneira ninguém nos respeita.

– O que te deu na cabeça para enganar o Giacomo? – Pierina tinha uma maneira meiga de interrogar que fazia lembrar muito a mãe.

– Não me deu nada na cabeça. Foi uma coisa que nasceu do coração – respondeu Agostina, com sinceridade. – Me lembro muito bem de quando éramos crianças. Vocês conseguiam sorrir, às vezes. Eu não. Estava sempre triste. A minha vida foi idêntica a de vocês, mas ainda assim às vezes vocês eram felizes. Invejei vocês por isso. Eu não me lembro de uma hora despreocupada em toda a minha vida. Foi assim desde que nasci até os dezenove anos. Depois, sem eu dar conta, um dia o amor chegou para mim também. E de repente foi uma alegria puríssima. Um milagre em que não conseguia acreditar. Eu dizia para mim: isto está acontecendo comigo, exatamente comigo. Esta alegria, não a procurei. Veio, assim. E fui feliz como nenhuma de vocês alguma vez vai ser. Depois veio a dor. Ele...

Gianna acabou a frase por ela:

– Ele fugiu e te deixou sozinha nesse estado.

– Ele morreu, sem saber que eu esperava um filho. Sabia-o a minha sogra, que me aconselhou a descarregar a responsabilidade no Giacomo. Não quis descer tão baixo. Disse ao meu marido. Os Benazzo não querem escândalos. O Giacomo aceitava o filho como seu. Mas eu não podia continuar dividindo a cama com ele. Não o desejava. Nunca o amei. E depois... – Agostina não disse mais nada. Não podia contar a ninguém, nem a si própria, a terrível descoberta que fez no bosque.

Desapertou o vestido, tirou-o e vestiu uma camisola que trazia na mala. – E os colchões, aqueles bons, de crina, que te compramos com o nosso dinheiro? – perguntou Pierina. Naquele momento pareciam mais importantes os colchões do que o futuro da irmã.

– Não podia trazer comigo – desculpou-se Agostina.

– Estragou a tua vida para sempre. Porque é esquisita. Não podemos contar a verdade aos outros. Ficamos metidas nisso mesmo sem termos culpa. Não é por mal, Agostina. É porque certas coisas mais vale que não se venham a saber – disse a irmã mais velha.

– Só pedi que eu ficasse aqui alguns dias. Depois vou embora – anuiu Agostina, deixando-se cair na cama, abatida pelo cansaço. Não queria pensar no futuro. Só queria dormir e conservar no ventre o filho do amante. Não podia censurar as irmãs por não entenderem as suas razões, mesmo que ela entendesse as delas. No dia seguinte pensaria no que podia fazer para recomeçar de novo. Bocejou.

– Mas trouxe comigo os lençóis. Fiquem com eles, são seus.


31

Foi o acaso que a ajudou. Passou um caminhão pela fazenda. O condutor estava fazendo a ronda dos campos, recrutando mulheres para o plantio de arroz na zona de Tortona.

– Se me quiser, eu vou com o senhor – disse Agostina ao homem. Ele avaliou-lhe a compleição débil, mas sólida. Tinha o mesmo olhar do camponês que, quando era pequena, a contratou como “vaqueira”. Agostina pensou que a vida se reformula sempre com modalidades idênticas. – São quarenta dias a partir de hoje – informou o homem. – O salário corrente mais quarenta quilos de arroz quando te

trouxer aqui outra vez.

– Negócio fechado – decidiu ela.

– Tem um colchão? – perguntou ele.

Algumas mulheres, em cima do caminhão, tinham um colchão enrolado e uma saca com roupa. Agostina pensou nos colchões que as irmãs tinham lhe oferecido. Lembrou-se do desapontamento delas por os ter deixado em casa dos Benazzo e deu uma gargalhada. Finalmente, tudo se reduzia a uma questão de colchões.

– Eu arranjo um saco de folhas de milho – disse.

Pierina meteu-lhe a mala na mão:

– Os lençóis são seus – afirmou. E acrescentou: – O que é que vai fazer no meio de julho, quando acabar a monda do arroz? – A única coisa que me ensinaram: vou trabalhar – respondeu ela. – E o que é que nós fazemos se o seu marido vier à sua procura?

– Digam, da minha parte, que tenho a consciência limpa, e que a dele está negra como a do diabo. Ele vai entender – rematou, antes de subir para o caminhão, que partiu chiando.

As mulheres entoaram uma canção. Estavam felizes porque tinham um salário assegurado. Eram camponesas, entre os quinze e os trinta anos, algumas das quais trabalhavam nas magras propriedades da família,

outras eram assalariadas. Muitas delas deixavam os filhos, que confiavam aos parentes, para enfrentar um trabalho extenuante. As mães e as avós tinham adoecido nos arrozais, e algumas tinham até morrido. Isto acontecia quando aquela planta delicadíssima se cultivava nos pauis infestados de mosquitos que transmitiam a malária. Porém, não deixavam aquele trabalho devastador.

– Se não se envelhece no arrozal, morre-se com certeza na miséria – diziam, e todos os anos centenas de mulheres enfrentavam o risco.

Agostina gostaria de poder participar da euforia das companheiras, pondo de lado pensamentos, dúvidas e inquietações. Mas a sua vontade não era suficientemente forte para vencer a dor. Olhava a paisagem que ia mudando à medida que se afastavam.

– Nunca esteve num arrozal? – perguntou uma mulher que ia sentada perto dela. Tinha cabelos dourados e besuntava a cara com uma pomada que a tornava branca.

Agostina abanou a cabeça.

– Eu me chamo Betta. Tenho trinta anos e desde os quinze que vou sempre para os arrozais, no verão. Da primeira vez, quando vi aqueles campos todos alagados, achei que era o mar. Eu nunca vi o mar. E as outras riram nas minhas costas! Aqui ninguém conhece o mar – disse.

– Eu conheço – replicou Agostina.

A mulher acreditou:

– Como é? – perguntou.

– Plano, quando o céu está bonito. Assustador, quando há tempestade. Fui para a Liguria durante muitos anos, apanhar azeitona. Via o mar ao longe. Estava quase sempre mau tempo e a água era da cor do chumbo. O mar não é muito bonito – comentou.

– Tem algum creme para o sol? – perguntou a mulher.

Agostina voltou a abanar a cabeça.

– Precisa pôr – aconselhou-a, estendendo-lhe a sua lata de creme. – Se não, quando regressar à aldeia, todo mundo vai perceber que esteve num arrozal. Sabe como são as pessoas. – E acrescentou: – Olha, já começa o nosso inferno de água. Indicou-lhe terrenos imensos e alagados, que se tingiam de vermelho à luz do entardecer, divididos por riscas de terra mais elevadas. – Estamos quase chegando. Está vendo ali embaixo uns telhados vermelhos? São os da fazenda da Mezzetta. O patrão é o signor Ettore. É um sujeito loiro, com dois metros de altura e bem nutrido. Tem a pele branca e cor-de-rosa, como a dos padres – informou Betta.

O caminhão entrou no pátio. Enquanto desciam, Betta sussurrou-lhe: – Está vendo aquela morena? Se chama Cesarina. É a chefe das trabalhadoras e faz de alcoviteira do patrão. Tem cuidado com o que diz e com o que faz quando ela estiver por perto.

Via-se logo que a Mezzetta era uma fazenda rica. Uma mulher, gorducha e larga, dos seus quarenta anos, com cabelo ralo e deslavado e uma penugem densa à volta dos lábios, observou-as uma a uma. Tinha as mãos pousadas nas ancas e as maçãs do rosto vermelhas devido ao excesso de rouge.

– Aquela é a senhora Lina, a mulher do patrão. Isto é, ela é que é a patroa. Ele já arrumou as botas – informou ainda. Betta sabia muitas coisas e gostava dos mexericos, mas Agostina achou que ela devia ser uma mulher generosa. Talvez tivesse os seus problemas, mas não vivia sob o peso deles. Por isso sorriu, e murmurou por sua vez: – Eu nunca fiz este trabalho. Amanhã fica perto de mim.

– Agarrada como o musgo à terra – garantiu Betta.

A patroa, à laia de boas-vindas, fez um breve discurso: – Me dirijo sobretudo às novas – começou. E prosseguiu: – As menores devem recolher até às dez horas da noite. As outras, às onze. A sopa e o pão somos nós que damos. O resto é com vocês. Ao domingo só se trabalha das seis ao meio-dia. A tarde é para descansar e à noite podem dançar. Não devem dar trela àqueles moscardos que já ali estão, atrás das sebes, a olhar e a medir vocês. É assim todos os anos, depois da monda: alguma lá fica grávida sem saber quem é o pai.

As mulheres riram, porque já tinham deitado o olho aos rapazes da aldeia que, a pé ou de bicicleta, as tinham seguido até ali e que agora olhavam para elas e lhes piscavam o olho por trás das sebes. Mas riram também porque a senhora Lina, de mãos nas ancas, se mexia e declamava como Mussolini, apontando o queixo para cima e erguendo-se nas pontas dos pés.

– Daqui a meia hora, depois do rosário, há sopa de toucinho e batatas. Vão lá, então – concluiu a patroa. Agostina foi parar em um grande barracão com cinquenta camas e outras tantas cadeiras. Quem, igual a ela, não tinha colchão, fez um saco com os lençóis e encheu-o de folhas secas de milho que tiraram de um monte que havia num canto. As folhas esgotaram-se em poucos minutos. Malas e trouxas desapareceram por baixo da rede de cada uma. A tagarelice, as gargalhadas e as discussões pareceram-lhe ensurdecedoras. Sentou-se na cama, que ficava ao lado da de Betta. Estava incomodada e exausta.

– Nunca senti tanto calor – disse.

– Ainda estamos em 2 de junho. Espera mais umas semanas e depois vai ver o que é o calor a sério – afirmou a outra. Agostina deixou vaguear o olhar. Na parede, por cima de cada cama, havia um prego comprido onde as mulheres penduravam os chapéus de palha de aba larga. Com o uso, a palha tinha descorado ao sol, mas as fitas que os enfeitavam eram novas e tinham cores berrantes. Ela achou que eram bonitos de se ver. Teve pena de não ter também um chapéu. Tinha de se proteger com um lenço, como fazia quando trabalhava no campo.

Foi assim que Agostina começou o seu trabalho no arrozal. Tal como lhe ensinaram as companheiras, protegeu os braços e as pernas com uma blusa de mangas compridas e meias pretas para se defender do sol que lhe queimaria a pele. Entrou nos campos alagados uma hora depois do nascer do sol e saiu uma hora antes do crepúsculo. O trabalho era acompanhado pelo canto de temas em voga. O patrão vigiava o trabalho no dique, a chefe controlava a eficiência delas. Às vezes as mulheres calavam-se, exaustas. Ela espicaçava-as:

– Cantem, mulheres, porque se não perdemos o ritmo. – Quando o sol já ia alto, um rapaz trazia da fazenda um barril de água fresca e pães. Podiam então levantar as costas, inclinadas há horas, beber e comer um pouco de pão. Os pés, sempre mergulhados na água, eram às vezes beliscados pelas cobras que escapavam logo, mais assustadas do que elas.

Às repressões da chefe associavam-se as do senhor Ettore:

– Força, mulheres, que daqui a pouco é noite e o trabalho fica para trás. Cantem, cantem. Andorinhas cinzentas e brancas sobrevoavam os campos alagados, prontas para capturar uma cobra. O dia nunca mais acabava. À noite libertavam-se do suor e do cansaço quando iam tomar banho na água fria de um rego,

depois sentavam-se em círculo na eira para tomar a sopa enquanto a luz do dia se apagava. Então chegavam os rapazes da aldeia, com o cabelo úmido de brilhantina. Traziam um acordeão, um bandolim, uma guitarra.

Na eira, improvisavam-se danças e nasciam amores.

Agostina ia para a cama, estendia-se naquela espécie de colchão que estalava, pousava as mãos no ventre, fechava os olhos, ouvia a criança que crescia dentro dela e pensava em Luigi. Uma noite, quando regressava do arrozal, um rapaz da fazenda foi ao encontro dela. Levava-lhe um telegrama que a patroa já tinha lido. O texto dizia: “Necessária tua presença. Giacomo faleceu esta noite.”

Foi assim que Agostina regressou à casa dos Benazzo e soube que Giacomo tinha se enforcado com uma corda na trave do estábulo.


32

Pela segunda vez, em poucas semanas, a família Benazzo estava de luto. Os netos de Maina, dezesseis ao todo, estavam muito excitados. Para eles, que eram ainda crianças, um morto em casa era uma diversão.

Chegavam os vizinhos, acompanhados de parentes adultos e crianças. As mulheres traziam flores, os homens, o vinho, e as crianças, os poucos brinquedos que tinham. Enquanto as mulheres alternavam rosários e conversas, os homens faziam previsões sobre as colheitas, discutiam um novo pesticida ou uma das últimas técnicas de mecanização. Os rapazes obtinham um copo de vinho a mais e rações de comida especiais. Pararam de beber, de comer e de brincar quando viram chegar Agostina, a viúva.

Caminhava com um passo incerto, quase contra a vontade. Vinha acompanhada das duas irmãs. Uma criança correu até a casa para anunciar a sua chegada. Com efeito, quando entrou no quarto onde o corpo de Giacomo tinha sido preparado, foi recebida pelo silêncio. Parentes e vizinhos encolheram-se, inclinaram a cabeça e, um a um, foram saindo. Por um instante, Agostina vacilou, atordoada, não tanto pela dor como pelo perfume das flores espalhadas à volta da cama. Maina d’fer estava sentada ao lado do filho. Segurava entre os dedos as contas negras de um rosário. Sabia que a nora estava ali, mas não levantou os olhos.

Então Agostina fez um sinal às irmãs para que saíssem também elas do quarto. Depois sentou-se num banco, aos pés da cama. E olhou em volta. Na janela faltava uma portada de madeira. Tinha sido retirada e colocada por baixo da coberta branca para suster o corpo do defunto, isolando-o do colchão de crina que as irmãs lhe tinham censurado de não ter levado com ela quando fugiu.

Olhou para o rosto de Giacomo. Parecia sereno. Pensou que não era verdade que os mortos perdessem toda a expressão. Ele estava confiante e indefeso como naquela tarde de verão, na margem do rio, quando Agostina partilhou com ele um pacote de amendoins. Sentiu de novo na boca aquele sabor pastoso. Sufocou uma tentativa de vômito.

– Foi você quem o matou – sussurrou a sogra.

Agostina não replicou. Olhou de novo em volta. Tinha dormido naquele quarto durante quase dois anos: alguns móveis velhos carcomidos pelo caruncho, uma imagem emoldurada com a reprodução da Sagrada Família à cabeceira da cama, uma espingarda de caça pendurada num prego ao lado da porta, um ramo de espigas e alfazema em cima da cômoda, a bacia e o cântaro da água.

Naquele quarto, em cima daquela cama, tinha partilhado as noites com um homem que não tinha conseguido amar, apesar da boa vontade.

Agora, sabia-o, toda a gente pensava que tinha se enforcado por ela ter fugido. Mas a verdade era outra e Giacomo não tinha sequer tido a coragem de a guardar só para si. Tinha-a atirado para cima dela, culpando-a.

– Dos meus cinco rapazes, dois você levou embora. É realmente demasiado para uma mãe – disse ainda a sogra. Agostina pensou que a verdade tinha muitas caras e que cada um escolhia aquela que melhor se adaptava à sua própria consciência.

Ela não conhecia os sentimentos de uma mãe, porque ainda não tinha tido filhos. No entanto, aceitou as palavras de Maina. – Se é assim que pensa – disse – eu vou já embora. De resto, se não tivesse recebido o telegrama, não estaria aqui. A mulher afastou finalmente o olhar das mãos entrelaçadas no rosário e olhou-a com severidade. – Aquilo que nós duas sabemos, ninguém mais deve saber. Para toda a gente, mesmo para o resto da sua família, você está grávida do Giacomo. Perdi dois filhos. Não vou perder o meu neto – declarou. Abriu a gaveta da cômoda. Pegou nos brincos e no alfinete que Giacomo tinha oferecido a Agostina de prenda de casamento. Agostina tinha os deixado ficar antes de fugir.

– Toma o seu ouro e o seu lugar nesta casa – concluiu a mulher.

Agostina enfiou lentamente os brincos e sussurrou: – A senhora pensa que sabe, mas não sabe nada. O Giacomo fez com que o Luigi caísse da árvore. Depois não aguentou o remorso. A verdade é esta. A senhora perdeu dois filhos, e eu o homem que amava.

A sogra inclinou a cabeça sobre o peito. Os ombros estremeceram-lhe num soluço sem lágrimas. O padre entrou no quarto para benzer o cadáver. Chegou à eira o carro preto puxado por dois cavalos. O cortejo fúnebre espalhou-se ao longo dos caminhos ensolarados por entre as vinhas. O padre, em voz alta, invocava um a um todos os santos do paraíso. Parentes e amigos respondiam:

– Intercede por ele.

Giacomo foi sepultado ao lado de Luigi.

Agostina rezou para que, no outro mundo, os dois irmãos se reconciliassem. As crianças fingiram uma dor que não sentiam, divertindo-se a imitar os adultos. Todas as pessoas abraçaram Maina d’fer e se limitaram a um formal aperto de mão à viúva. Agostina continuava a ser olhada com desconfiança e temor. Só a viúva de Luigi foi até ela e lhe disse:

– Lamento muito.

O cortejo fúnebre desfez-se e todos deixaram o cemitério. Os Benazzo regressaram à fazenda. Agostina pensou que as mulheres vivem toda a vida numa condição de perene submissão: primeiro ao pai e depois ao marido. Enquanto a mulher respeitasse esta regra, garantindo ao homem o direito de supremacia, gozava do respeito dos outros. Agostina não tinha conseguido aceitar essa situação.

Assim, uma vez mais, decidiu não satisfazer a vontade da sogra.

– Vou voltar ao arrozal – anunciou, enquanto os Benazzo se preparavam para regressar a casa. Não tinha mais nada a partilhar com eles.

Era o fim da tarde. O céu tingia-se de ouro.

Maina d’fer sentou-se num pilar de pedra. Tirou da bolsa um lenço que cheirava a naftalina e secou o rosto suado. – A monda do arroz acaba daqui a umas semanas. Eu espero – respondeu a sogra. Agostina sabia que, naquela altura, teria dinheiro e arroz, mas não uma casa para onde ir. A casa, para ela, era uma obsessão. Nunca tinha tido nenhuma, nem sequer quando era pequena e gostaria muito de viver na fazenda, em vez de ir trabalhar para fora. Nem sequer a teve enquanto foi casada: a casa era da sogra, não dela.

– A senhora quer tanto o seu neto quanto eu quero o meu filho. Vamos ver. Não prometo nada. As irmãs aproximaram-se.

– Temos de apanhar a caminhonete – disse Pierina.

– Eu também vou apanhá-la – decidiu Agostina.

– E os colchões? – perguntou Gianna. – Não os pode deixar aqui se não pretende voltar. – Já não aguento mais vocês – desabafou Agostina. Encaminhou-se sozinha em direção à aldeia. Entrou na mercearia pouco antes de fechar.

– Um pacote de amendoins – pediu. Queria sentir na boca o sabor pastoso e triste do passado.


33

O transplante e a monda do arroz tinham acabado. Agostina, do alto de um outeiro, observou a fazenda da Mezzetta. Parecia uma ilha no meio de um mar plano, infinito, silencioso. A água cobria a terra a perder de vista. As companheiras, na eira, com cavaletes e pranchas de madeira, preparavam uma grande mesa para o jantar que concluía uma fadiga que tinha durado quarenta dias. Cantavam com vozes de soprano e contralto, atropelando a letra, uma canção francesa: “ J’ai deux amours, mon pays et Paris ...” Não sabiam sequer o significado das palavras, mas a entoação era perfeita. Explodiam gargalhadas e piadas brejeiras que se perdiam no ar daquele entardecer de julho. Os mosquitos atacavam-lhes as pernas brancas e firmes. O signor Ettore e a mulher, com os braços apoiados no peitoril da janela do quarto, observavam-nas de cima e sorriam. Tinham chegado os músicos da aldeia e afinavam os instrumentos: um acordeão, uma guitarra e um bandolim. Alguns jovens da aldeia avançavam timidamente, trazendo uma contribuição para o jantar: salame, vinho e queijo.

Agostina sentiu-se apanhada por uma melancolia lancinante. Invejou a alegria daquelas mulheres. Poucas delas eram felizes. Só algumas, muito jovens, que naqueles dias tinham arranjado um namorado e estavam agora à espera de outra festa, a do casamento. As outras sofriam muitas penas: os filhos, a miséria e as doenças. Mas conseguiam ultrapassá-las, para gozar o serão.

Caminhou pelo outeiro e entrou nos jardins da fazenda. Para além dos arbustos de hortênsias e rosas, havia um nicho de seixos e cimento onde estava colocada uma Virgem de gesso com um manto azul-celeste. Tinha um rosto levemente rosado e uns traços finos. Agostina tentou rezar uma ave-maria, mas a voz se apagou depressa. Aquela oração não ia mudar a sua vida.

Agora que a monda tinha acabado, os pingentes de ouro tinham se tornado pesados, sabendo que devia voltar à fazenda dos Benazzo. Era uma viúva que trazia no ventre um filho ilegítimo. Na manhã seguinte ia partir com as companheiras, levando consigo alguns quilos de arroz e o dinheiro ganho naquelas semanas. Entregava tudo à sogra e recomeçava a vida de sempre: trabalho e mais trabalho, até o momento do parto. E depois? Os anos iam passar, ela envelheceria sem mais lampejos de amor nem cintilações de alegria. Uma vida petrificada, pensou.

– O que é que te consome? – perguntou uma voz atrás dela. Era Betta, a companheira tagarela que tinha lhe ensinado as técnicas para a sobrevivência no trabalho mortificante do arrozal.

– Tudo me consome, desde sempre – respondeu Agostina, voltando-se. – Não é uma boa maneira de viver. – Betta sentou-se no banco de madeira, em frente à imagem de Nossa Senhora. – Não conheço outra – replicou.

– Pode ser que venha um temporal, finalmente. Esteve muito calor, nestes dias. Vai refrescar durante algumas horas e esta noite tenho certeza de que vamos conseguir dormir – prognosticou Betta, olhando o céu que se enchia de nuvens.

– A última noite na Mezzetta – constatou Agostina e, com horror, pensou que ia passar a noite seguinte debaixo do teto dos Benazzo.

– Amanhã vou dormir com os meus quatro filhos. Há cinco semanas que não os vejo. Tenho saudades daqueles malandros. – Esticou uma perna e começou a massageá-la. – Com o dinheiro que ganhei vou lhes comprar sapatos e roupas novas. Bem precisam, coitadinhos.

– Nunca fala do seu marido – observou Agostina.

– É por respeito a você, que perdeu o seu – disse.

– Não foi um grande casamento – sussurrou. – Apesar de ter durado pouco, me bastou para o resto da vida – confessou. Betta anuiu.

Já tinha percebido que aquela jovem companheira era profundamente infeliz. – Nunca há rosas e flores para uma mulher casada. Mas há os filhos. Eles são uma grande consolação – declarou, e os olhos brilharam de alegria.

– O jantar está pronto. Venham, mulheres! – O chamamento vinha da eira e a voz era de Cesarina, a chefe. – Vamos lá. Vai ver que esta noite vão passar as tristezas todas. Palavra da Betta. – A amiga levantou-se e deu-lhe a mão.

Doíam-lhe as pernas, sobretudo a esquerda. O médico tinha lhe dito: – Nem pense em ir para a monda do arroz. Aquela água toda só pode agravar os seus problemas. – Ela disse: – Sim, Sr. doutor. Vou fazer o que diz. – Mas quando chegou o verão, voltou ao arrozal. Aquele ganho suplementar era importante para a família. – As dores vêm e vão. As necessidades ficam – costumava repetir. Agora sabia que depois de jantar ia dançar e que, enquanto dançasse, a dor nas pernas se atenuava. Talvez até a esquecesse. E era a mesma coisa.

Os donos da fazenda, o senhor Ettore e a senhora Lina, estavam debaixo do alpendre com alguns amigos que tinham vindo da cidade. Estavam sentados em cadeirões de vime cobertos com almofadas. Tinham já jantado na sala que, dizia-se, estava mobiliada com um aparador de cada lado e cadeiras estofadas e revestidas a pele. Ninguém tinha acesso àquela casa, muito menos à sala. Só as criadas que todos os dias faziam a limpeza e passavam a cera no chão. Ao lado da sala ficava o escritório do signor Ettore, onde recebia o feitor e os fornecedores com quem tratava das encomendas. Agora, os senhores saboreavam bebidas frescas e observavam o espetáculo das trabalhadoras em festa, como se estivessem no teatro. Agostina não estava gostando de se sentir, com as companheiras, objeto do divertimento deles. Mas as coisas eram mesmo assim. Se fosse para a cama, dava mais na vista. Por isso resignou-se a esperar até o fim do jantar, quando começasse o baile. Betta, que estava ao lado dela, deu-lhe uma cotovelada.

– Já reparou como o do acordeão olha para você? – sussurrou-lhe, com um ar malicioso. Agostina anuiu. O acordeonista tinha um armazém de produtos alimentares na cidade. Todas as noites vinha à Mezzetta e fingia entreter-se com as moças. Mas ele só tinha olhos para ela. Chamava-se Armando, tinha vinte e dois anos e sofria de uma gagueira que suscitava a hilaridade das mondadeiras. Quando ela regressou do funeral do marido, ele se apresentou com um ramo de cravos.

– Como não sei falar, espero que estas flores te digam que lamento a sua desgraça – declarou, tropeçando nas palavras e corando como uma papoula.

Eram cravos vermelhos e tinham um perfume agradável.

– Vou colocá-los na Nossa Senhora – respondeu Agostina, deixando-o ali plantado. Durante algumas noites, Armando não apareceu, convencido de que a tinha ofendido. Depois voltou às proximidades da fazenda, tentando sempre chamar a sua atenção.

– O Armando é bom rapaz. Tenho a certeza de que está apaixonado por você – prosseguiu Betta. – Daqui por algum tempo vai cansar de andar de luto. Por isso, podia encorajá-lo um bocadinho.

Ela não respondeu. Não tinha a intenção de encorajar ninguém. Tinha amado apenas um homem e mais ninguém iria ocupar o lugar dele. Armando, naquela noite, tocou só para ela tangos pungentes e mazurcas alegres. Agostina não sentiu nenhuma emoção. Pelo contrário, procurava o momento mais oportuno para se afastar sem se fazer notada. Fê-lo durante a confusão de um brinde. Estava subindo os primeiros degraus da escada de madeira que dava acesso ao grande quarto no sótão quando senhora Lina a chamou.

– Venha cá. Preciso falar contigo – disse a patroa.

Agostina sentiu um impulso de correr pela escada acima, ignorando o apelo. A senhora tinha deixado o marido e os hóspedes e avançava ao encontro dela. Na escuridão da noite, os brincos de diamantes brilhavam como pirilampos nos lados daquele rosto barbudo. Um verdadeiro desperdício, pensou Agostina.

– Eu estive te observando – disse a senhora. – É uma pessoa que gosta de trabalhar – acrescentou. Pretendia ser um cumprimento.

Agostina não disse nada. Apoiou-se no corrimão da escada e esperou pelo que ia se seguir. – Agora que ficou sem marido, pode ficar aqui. Tenho um quarto livre, ao fundo do pátio – propôs a senhora. A moça não estava à espera daquela proposta, pareceu-lhe até muito boa para ser verdadeira. Não voltaria à casa dos Benazzo e evitaria assim uma existência de equívocos e de hipocrisia. – Estou grávida de três meses – murmurou devagar.

– Não sabia – respondeu a patroa, surpreendida. E continuou: – É verdade que você fala pouco. De qualquer maneira, a proposta continua valendo. A Mezzetta está cheia de crianças. Mais uma, menos uma, não faz diferença.

– Está bem – respondeu Agostina. Recomeçou a subir a escada. Pensou que ia deixar aos Benazzo os colchões de crina, comprados com o dinheiro das irmãs, que nunca lhe perdoariam. Pensou também que aquilo não podia ser uma solução definitiva. Mais cedo ou mais tarde, os patrões a mandariam embora. Eram raros os casos de camponeses que trabalhavam para patrões que passavam a vida na mesma fazenda.

Não esperava, porém, que a estadia na Mezzetta fosse tão breve. Durou o tempo de dar à luz Rosanna. Logo a seguir chegou a notícia de que o pai tinha morrido de enfarte. Não tinha ainda sessenta anos.

Deixou um patrimônio discreto em terra e em dinheiro, sem fazer testamento. Assim, os filhos dividiram tudo em partes iguais. Agostina ficou rica e pensou que aquela riqueza não era um presente, mas o fruto de um trabalho extenuante.

Armando continuava a ir à fazenda e a levar-lhe pequenos presentes. Tentava exprimir os sentimentos que nutria por ela, mas tropeçava nas palavras. Aquela falta de jeito levou-a a crer que ele poderia ser um bom companheiro. Quis ser padrinho de batismo da menina e depois pediu-lhe que casasse com ele.

– Está bem – disse Agostina. – Neste mundo, uma mulher sozinha não vai longe. Mas não espere de mim aquilo que não posso te dar.

– Eu não espero nada – respondeu Armando. – Basta que você diga que sim. Agostina sabia que os pais de Armando estavam contra um casamento com uma viúva que, além disso, era uma camponesa, enquanto eles se consideravam comerciantes abastados. Fizeram-lhe saber que o filho não ia receber nada para aquele casamento.

Nada podia lhe importar menos. Agora era rica.

Comprou um discreto lote de terra para cultivar, oito vacas leiteiras, que representavam uma segurança adicional, e uma casa de lavoura em condições desastrosas. Recuperou-a, tendo em mente, como modelo, a casa dos Benazzo. Quis que fosse espaçosa e confortável. Decidiu esperar alguns anos antes de ter mais filhos e voltou a prometer a si própria não permitir que o marido a cansasse com demasiadas gravidezes.

Pensou que os anos difíceis tinham acabado. Não sabia que o pior ainda estava para vir.


34

Ao meio-dia, Tancredi desceu até a praia de Cefalù. O filho estava envolvido numa luta com dois rapazinhos dali, Nannuzzo e Toni. Encheu-o de orgulho constatar que John conseguia segurar os dois companheiros, despachando murros e pontapés com uma rapidez de reflexos surpreendente.

Desconhecia o motivo da desavença. Resolveu esperar o fim da luta sem intervir. Quando Nannuzzo e Toni se declararam vencidos, o menino ordenou: – Agora repitam comigo: a mamã do John não é um fantasma. É tão bonita que parece um anjo. Os dois obedeceram.

– A avó disse que se calhar ela vem aqui se encontrar comigo. Assim vocês também vão poder vê-la – disse o pequeno. E prosseguiu, estendendo a mão: – Amigos?

– Amigos – declararam Toni e Nannuzzo, apertando-a.

Naquele momento, Tancredi foi ao encontro da criança. John viu-o, deu um salto e atirou-se a ele, enchendo-lhe a roupa de areia.

– Olá, papai. Não imaginava que chegasse tão cedo – disse, admirado. – Como é que está, campeão? Parece que alguém lhe deixou um olho roxo – notou Tancredi. – Quando dá, também tem que saber apanhar – comentou o menino. – No final, parece que você é que ganhou a partida.

– É natural. Tenho a razão do meu lado. Talvez a mamãe venha a Cefalù. – Sério? Não sabia de nada.

– Claro. Vocês nunca se encontram, nunca se falam.

Aquelas palavras atingiram-no, mas não o deu a entender:

– Mas os seus pais te amam muitíssimo – garantiu.

John mudou de assunto:

– Convidei para almoçar o Salvatore Licausi, o meu melhor amigo – anunciou. – Eu o conheço?

– Talvez. É o filho do sapateiro.

– Pensava que os seus melhores amigos fossem o Nannuzzo e o Toni – observou. – Tenho muitos melhores amigos. Em Londres tenho o Philip, o Martin, o Wilson e a Linda. Na verdade, a Linda é a minha namorada, mas isso você já sabe.

Tancredi anuiu.

Era a última de seis irmãs, filhas de um vizinho da casa de Cherry Lane, cuja mulher estava constantemente grávida, na esperança de ter um filho rapaz.

– De qualquer maneira, a Linda não conta. Até porque não é bonita como a mamãe, e depois é só uma moça. Elas não contam, não é assim?

– Depende. A sua mãe, para mim, conta muitíssimo. E fico contente por saber que talvez venha a Cefalù. – Assim vai conhecer os meus amigos sicilianos – concluiu John. Tancredi tirou os sapatos, enrolou as calças e deixou que as ondas, à beira-mar, lhe acariciassem os tornozelos. O calor do

sol de agosto era mitigado por um vento seco que cheirava a ervas aromáticas. Amava o clima e o mar daquela ilha. Quando regressava à Sicília, sentia que pertencia profundamente àquela terra, onde mergulhavam as suas raízes. Respirou fundo. Pegou na mão de John e disse-lhe:

– No meio desses amigos todos, um dia vai ter mesmo que escolher o melhor. – E recordou o último encontro com o avô Tancredi. Naquela altura, tinha dezenove anos. Tinha feito as provas de acesso à universidade com boas notas e estava já matriculado.

Foi ao campo falar com o avô.

– Já sei que quer vir a ser um homem instruído – disse, observando o neto. – Quero me formar em economia e comércio – explicou Tancredi. O velho não disse nada. Estava sentado no lugar do costume, do lado de fora da casa, e tinha nos ombros a sua manta negra.

Ele continuou em pé, intimidado. O avô incutia-lhe respeito.

– As escolas não servem para muito sem as amizades – sentenciou. – Eu tenho muitos amigos – disse o neto.

– Basta apenas um. Mas tem que ser bom. De outro modo vai passar fome, como os seus pais. O pai, Ruggero, era funcionário do registro civil. O ordenado era modesto e, para o aumentar, tratava da parte administrativa de uma sociedade de importações e exportações. Mas, com três filhos para criar, o dinheiro nunca era suficiente. Tancredi tinha dois irmãos mais novos: Alvaro e Giuseppina. A mãe, Rosalia D’Antoni, alimentava grandes ambições para os filhos. Nesse aspecto era apoiada pelo irmão, monsenhor Alvaro, pároco de Cefalù. Com a ajuda dele, a família conseguia manter os filhos estudando.

O avô tirou do bolso do casaco um envelope amassado:

– Quando chegar o momento – disse ao neto – manda esta carta a don Giuseppe Nicosia. Tancredi leu o nome do destinatário, escrito com a caligrafia pontiaguda do avô: – Ele é meu amigo. Vai perceber. O resto virá por si – concluiu.

O avô morreu e Tancredi mandou a carta para a América.

De Denver, no Colorado, chegou-lhe um convite de don Nicosia para que fosse ter com ele. Tancredi preparou-se para partir e falou sobre isso com Franco Bruschi, o seu melhor amigo.

– Que sorte! – exclamou Franco.

– Depende do ponto de vista. A América me assusta um bocado. O avô dizia que era grande e que fazia muito frio. – Vai gostar. E vai ter um monte de coisas para me contar, quando voltar – garantiu-lhe, invejando-o sinceramente por aquela viagem.

– A América não faz parte dos meus projetos. Depois de acabar o curso, tenciono ir para Milão. Na Sicília não vejo um futuro profissional – objetou Tancredi.

– Abre os olhos, meu amigo. Na Sicília há oportunidades enormes, basta saber aproveitá-las, se a máfia permitir. – Vê-se logo que não é siciliano. Vocês, continentais, estão sempre enchendo a boca com a palavra máfia – observou Tancredi.

– Sério? Não sabia que o Al Capone era um santinho do missal – disse Franco, com ironia. – Em Milão, de onde você vem, não há bandidos? Não há gente que dispara e mata? – Olha que o meu pai, aqui em Palermo, por mais de uma vez se viu obrigado a conceder empréstimos sem garantia.

Obrigado, percebe? Por mais de uma vez se viu obrigado a abrir contas de milhões com dinheiro cuja proveniência ignorava. Obrigado, entende? Em Milão, isto não acontece.

– É tudo o mesmo país.

– Não estou de acordo. De qualquer maneira, aqui precisa ter amigos, ou só ter terra queimada à sua volta. Viu como ontem, durante a aula de Direito, quando perguntei ao professor qual era a linha de demarcação entre a legalidade e a ilegalidade, a resposta que ele deu foi: a amizade. Toda a gente riu, mesmo você. Mas ele disse, substancialmente, uma grande verdade – afirmou Franco.

Passeavam ao longo do corso Libertà. Depois entraram num café, sentaram-se a uma mesa e pediram qualquer coisa para beber. Era sempre Franco quem pagava. Tancredi nunca tinha uma lira.

– Portanto – continuou o rapaz de Milão –, se a máfia deixar, podem se fazer grandes coisas na Sicília. Basta ter amigos. – A mim basta um: você. Um dia, você e eu vamos fazer grandes coisas – garantiu Tancredi. – Depois da faculdade, se tiver sorte, arranjo um lugar num banco e, se me correr bem, passo a diretor de uma filial, como o meu pai.

– É esse o seu sonho?

– Aos vinte anos, já acabou a idade dos sonhos e é preciso olhar a realidade de frente – comentou Franco. – Ouve bem o que eu te digo. A idade dos sonhos nunca acaba. O meu avô partia pedra para pavimentar as estradas. Eu vou me tornar um construtor de estradas, de casas, de cidades. Você vai trabalhar comigo. Basta para mim a ajuda de um amigo. Um só. Você é o amigo de quem eu preciso – decretou Tancredi.

Depois foi para Denver. Conheceu don Nicosia e compreendeu que a amizade é uma cadeia formada por muitos elos, um agarrado ao outro. Sobre uma cadeia de amigos, Tancredi tinha construído um império econômico que o tornava um dos homens mais ricos da Itália. Agora, porém, alguns elos começavam a ceder e isso preocupava-o. Mas entretanto estava com o filho e não queria pensar nesses problemas. Por isso, disse:

– Tem razão, John: é preciso ter muitos amigos. Mas, no meio deles, há sempre um que é o melhor de todos. – Para você é o tio Franco – afirmou a criança, referindo-se a Franco Bruschi. – Para mim vai ser o Salvatore Licausi. Salvatore viu-os chegar e correu ao encontro deles.

– Você é filho do Nunzio? – perguntou Tancredi, olhando para ele com atenção. O nariz tinha uma bossa como o do sapateiro, e tinha os olhos escuros como um temporal.

– Sou, sim, senhor – respondeu o pequeno.

– O seu pai costurou algumas sandálias, quando eu era pequeno – contou Tancredi. – Eu também sei costurar, até já ensinei ao John – disse Salvatore. – Ele me ensina inglês. Rosalia apareceu na varanda:

– Chegou o correio de Milão – anunciou ao filho.

Tancredi entrou em casa. Tinham lhe mandado a correspondência pessoal do escritório. Ao percorrer os envelopes, reconheceu imediatamente a caligrafia de Irene. Leu a carta e sorriu. Ao fim e ao cabo, ela queria vê-lo, pois de outra forma não teria concluído a mensagem com estas palavras: vamos discutir o assunto.

Fechou-se no escritório e ligou para a empresa, em Milão.

– A senhora não está – respondeu a secretária de Irene.

– Sabe quando volta? – insistiu ele.

– Estará fora durante alguns dias – foi a resposta lacônica.


35

A signorina Magda entrou no escritório às oito horas em ponto. Viu a luz vermelha acesa por cima da porta do presidente. O porteiro tinha lhe dito que o doutor tinha chegado pouco antes, diretamente de Cefalù. Ela sentou-se à secretária e verificou os compromissos para aquele dia.

Mas começaram a telefonar os colaboradores mais madrugadores. – O Sr. doutor está ocupado – avisou, sem passar a chamada.

De vez em quando acendia-se também a luz vermelha do telefone direto de Tancredi. Estava fazendo e recebendo chamadas. Às dez começou a ficar preocupada. Bateu à porta do presidente. Não obteve resposta. Entrou. Tancredi estava sentado à secretária, com os cotovelos apoiados e a cabeça entre as mãos. – Tudo bem Sr. doutor? – perguntou, com um fio de voz.

– O que quer? – perguntou ele.

Em trinta anos de trabalho, nunca tinha sido tão desagradável com ela. Levou a mal. Voltou e saiu, empertigada. A senhorita Magda, uma vez mais, teve de constatar que o Sr. doutor já não era o mesmo de outros tempos. Desde que Irene Cordero o deixara, ele tinha se tornado mais áspero e tinha tido até alguns problemas de saúde.

No início daquela história, a senhorita Magda tinha ficado cheia de ciúmes. Sempre tolerara as suas amantes de passagem, mas não estava preparada para lhe perdoar uma paixão total, como era a de Tancredi por Irene. A certa altura, porém, acabou por aceitar a jovem e chegou mesmo a colocá-la no mesmo plano do presidente. Uma conquista de que se orgulhava. Quando começaram as discussões entre Irene e Tancredi, não sabia bem que partido tomar, até porque não conhecia os motivos daqueles dissabores. Aquela moça tinha uma altivez que lhe agradava e que ela própria gostaria de possuir. Espiava os altos e baixos dos dois apaixonados com a curiosidade ingênua de quem nunca viveu uma história de amor.

Na juventude tinha tido alguns pretendentes muito discretos. O Dr. Sella era como um astro, e todos os outros homens empalideciam em comparação com ele. Além disso, não tinha tempo para pensar em namorados, porque dedicava a Tancredi todas as suas energias. Depois da morte do pai, o salário que recebia era o único recurso para a sobrevivência da mãe e das três irmãs. Tinha conseguido que elas estudassem e arranjado um emprego para as três. Trabalhavam em empresas associadas da Cosedil, estavam casadas e tinham filhos. Os sobrinhos satisfaziam as suas necessidades maternais.

A mãe, que já tinha ultrapassado os noventa anos, vivia entre a cama e o sofá. Estava sempre melancólica e mal tolerava a assistência de uma empregada. Só se animava quando Magda voltava para casa. As duas mulheres jantavam juntas e a filha contava-lhe as novidades do dia, mas falava sobretudo do “doutor”. Esse era um tema que as ocupava.

Tancredi nunca imaginaria ser objeto de amor não só da secretária mas também da mãe de noventa anos. As duas mulheres conversavam em voz baixa sobre a sua vida e as suas empresas, como amigas que partilham um amor pelo mesmo homem. A mãe da senhorita Magda sofreu os mesmos ciúmes da filha quando Tancredi se apaixonou por Irene. Depois aceitaram o fato com a mesma resignação. Mais tarde, esperaram um casamento suntuoso que coroasse aqueles sonhos. Quando Irene se afastou de Tancredi, condenaram-na com o mesmo desprezo.

Ao fim de tantos anos, Irene ainda fazia parte daqueles colóquios tranquilos. E cada vez mais, dolorosamente, admitiam que o doutor já não era o mesmo desde que ela se afastara dele.

– Tanta ingratidão – deplorava a velha senhora. – Nem há um mínimo de respeito por aquela criança. Sabe-se lá o que a pobre criatura sofre por não ter uma família normal.

– Uma verdadeira afronta – anuía a senhorita Magda. Não se percebia se a afronta era dirigida a Tancredi ou a elas, as duas, que tinham encontrado uma razão de viver na luz refletida daquele grande amor.

Agora, a senhorita Magda retomou o seu lugar à mesa e tentou mergulhar no trabalho. Mas a descortesia do doutor tinha-a ferido de tal maneira que não conseguia encontrar a concentração necessária.

Mas a porta do gabinete presidencial continuava hermeticamente fechada. De repente, apareceu o Dr. Franco Bruschi.

– Vou falar com ele – disse.

– Pelo amor de Deus. Está de péssimo humor. Me dê tempo para avisá-lo – propôs ela. – Não é preciso. Acabou de me chamar e está à minha espera – garantiu-lhe, abrindo a porta do gabinete de par em par. Tancredi estava com a cabeça pousada na mesa, sem sentidos.

– Signorina Magda, chame imediatamente o médico – gritou Franco. Ela apareceu à porta, viu o que havia para ver e percebeu imediatamente o que tinha de fazer, sem se deixar perturbar pela emoção.

O médico de Tancredi morava na via Turati, mesmo em frente ao edifício da Cosedil. A secretária conhecia os seus horários e sabia que, àquela hora, o Dr. Gaudenzi se dirigia a pé ao hospital, que ficava próximo dali. Marcou o número do celular.

– Fala a Magda. O Sr. Presidente teve uma indisposição – disse, sem perder tempo em preâmbulos. – Estarei aí daqui a dois minutos – garantiu o Dr. Gaudenzi.

Ela regressou ao gabinete e ajudou o Dr. Bruschi a levar Tancredi até o sofá. Alargou o nó da gravata, desapertou o colarinho da camisa e tirou-lhe os sapatos.

– Agora percebi – sussurrou, e perdoou-lhe a antipatia de há pouco. Tancredi abriu os olhos. Estava recuperando-se. – Tenho de medir a pressão imediatamente. Me ajude a tirar-lhe o casaco – pediu ao Dr. Bruschi. Foi buscar o aparelho no armário do banheiro. O médico entrou no momento em que a secretária acabou a medição. – Dezoito e meio por doze – anunciou ao Dr. Gaudenzi.

– Temos de lhe dar já um diurético – disse o médico.

– Já está aqui – respondeu a secretária, estendendo-lhe uma embalagem de Lasix. O médico auscultava-lhe o coração e verificava-lhe o pulso.

– Felizmente, não está descompensado – comentou, com uma sensação de alívio. Há alguns anos, Tancredi sofria de problemas de hipertensão arterial, que mantinha sob controle com uma dose mínima de medicamentos estabilizadores.

A subida inesperada da pressão era, portanto, um episódio preocupante. A secretária entregou-lhe dois comprimidos do diurético e um copo de água. – Beba – pediu. Tancredi obedeceu, enquanto o médico o interrogava. – Teve algum contratempo?

– Tenho sempre – respondeu Tancredi.

– Alguma coisa te irritou? – insistiu o médico.

– Ouve, agora estou bem – disse Tancredi, impaciente.

– Vai ficar aqui estendido durante umas horas pelo menos. Olha que, se eu fosse um profissional consciencioso, te internava de urgência para fazer uma série de exames – avisou Gaudenzi.

– Mas não é. E eu tenho o que fazer. Por isso te agradeço e me despeço já de você – disse, ostentando o sorriso fascinante das grandes ocasiões.

– Senhorita Magda, meça-lhe a pressão daqui a meia hora. Depois me diga alguma coisa – disse o médico, que se preparava para sair.

A senhorita Magda baixou-se para lhe calçar os sapatos. Tancredi protestou, indignado. – Pelo amor de Deus! Ainda sou autossuficiente.

Ela nem o ouviu e fez aquilo que tinha que fazer.

– Eu agora tomaria um café – interveio Franco Bruschi.

A secretária foi ao seu gabinete e chamou o serviço interno de cafeteria. – Um café e um chá de camomila – pediu.

As mãos tremiam-lhe. Agora que o susto tinha passado, a fria lucidez com que tinha enfrentado a situação de emergência deixou lugar à emoção. Sentou-se à secretária e esperou até ficar mais calma.

Naquele momento, através da porta entreaberta, chegaram-lhe as vozes de Tancredi e Franco Bruschi. – O que é que te fez entrar em órbita? – perguntou Franco.

– A Irene – respondeu Tancredi.

A secretária pôs-se à escuta. Não queria ser bisbilhoteira, mas queria saber o que estava acontecendo de novo entre o presidente e Irene.

– Explica melhor – insistiu o amigo.

– Na semana passada, na basílica de San Marco, alguém agrediu a Irene para a assaltar e atingiu-a na cabeça. Foi operada para lhe tratarem dos ferimentos e, quando acordou, tinha perdido a memória. Durante alguns dias não sabiam quem era. Quando finalmente a identificaram, a polícia decidiu mantê-la sob vigilância no hospital. Temem que o agressor, que ainda não apanharam, tenha tido um mandante: alguém que quisesse me atingir através da mulher que amo. A Irene pode ter sido agredida por minha causa, entende? – contou Tancredi, angustiado.

– Não, não entendo, mas peço que se acalme. Quem é que devia te atingir através da Irene? – Aqueles que já tentaram, sem sucesso, me atingir – respondeu Tancredi. – Não me parece crível, nem sequer admissível – observou Franco. – Além do mais, ela foi assaltada. Por isso, o agressor é um ladrão.

– Em qualquer caso, eu preciso vê-la, falar com ela – disse Tancredi. – Quem te disse que a Irene foi agredida? – perguntou Franco.

– Soube esta manhã numa conversa com o chefe da polícia, Angelo Marenco. A senhorita Magda ouviu tudo. O tremor das mãos aumentou. Arrependeu-se de ter ouvido e decidiu que, naquela noite, não falaria sobre aquilo com a mãe.


36

Sonhou que estava num bosque. Através das árvores, havia mil olhos que a observavam; ela se assustou e agarrou-se às pernas da avó.

– Esqueceu o teu filho como quem se esquece de um guarda-chuva – acusou Agostina. – Não é verdade. Foi este bosque que me fez esquecer dele – defendeu-se, mas a voz não tinha som. Depois acordou. A luz da manhã entrava pela janela aberta de par em par. Angelo estava sentado numa cadeira ao lado da cama.

– Onde estou? – perguntou Irene, olhando em volta com um ar desolado. – Gostaria de te dizer que está em cima de uma nuvem. Mas não é verdade – respondeu Angelo, olhando-a com ternura. Ela sentou-se na cama.

Angelo levantou a voz, para que o policial que estava do lado de fora do quarto o ouvisse. – Café para dois – pediu. Depois voltou-se para ela: – Durante o sono estava agitada e te queixava. – Os meus sonhos são muito inquietos – explicou ela.

– Agora sabe onde está?

– Sim, claro.

– Muito bem. Então vai ter de se levantar, lavar e vestir. Tem roupa nova no banheiro. Espero que te sirva. Não tenho muita prática em vestidos e roupa íntima de mulher – resmungou num tom rude, enquanto Irene saía do quarto.

Depois da ducha, olhou para o espelho. Angelo tinha lhe comprado uma camisola íntima cor-de-rosa e uma camisa da mesma cor, dois tamanhos acima.

Voltou ao quarto. Angelo estava à espera dela.

– Não tem prática em vestidos nem em roupa interior. Devia só comprar perfumes. O meu frasco está quase vazio. – Da próxima vez, já sei o que te trago – respondeu ele.

– Quero ir embora daqui. Quero ver o meu filho – afirmou ela.

– Entendo. Eu também quero ver os meus rapazes – disse Angelo. Irene mexeu com a colher a xícara de café pousada na mesa de cabeceira. – De onde veio esta carta? – perguntou o chefe de polícia. – Vem dirigida a você e a letra é sua. Enviou-a de Londres para o convento. Como foi que chegou até aqui?

– Foi a abadessa quem a trouxe para mim. Abre-a, se te interessa. Angelo abriu e encontrou a ata de doação de Altopioppo:

– Não se pode dizer que o seu Sella não seja generoso – comentou, com azedume. – Então foi a Londres buscar este documento e enviou-o para o convento. Por quê?

– Viajava com uma bolsa de pano. Não me parecia prudente trazê-lo comigo – explicou. E continuou: – Quero transformar duas casas de lavoura, próximas do convento, numa biblioteca, realizando assim o sonho da abadessa. Quando cheguei a Milão, apanhei um táxi para ir até o escritório. Quando passei em frente a San Marco, decidi sair para entrar na igreja e rezar. A seguir iria até a via Turati a pé. Agora me lembro de tudo, até o momento em que entrei na igreja. Depois há um buraco negro na minha memória.

– Pode ser esse o motivo da agressão – comentou Angelo.

– Explique melhor – pediu Irene.

– Alguém podia não estar de acordo com a tua ideia de oferecer as duas casas ao convento. – Você é doido varrido – protestou Irene. – Não falei com ninguém sobre este meu projeto. Nem com o Tancredi, se é a ele que se refere. E depois, por que é que o odeia assim tanto? – perguntou, furiosa. – Por que é que o ama tanto assim? – desafiou Angelo.

– Nem sequer tenho a certeza de estar apaixonada – reagiu.

– Então por que ficou com ele há vinte anos? – perguntou, com uma voz áspera. Da conversa com Tancredi, tinha percebido que aquele homem, bonito e inteligente, amava e sempre tinha amado Irene. O velho ciúme voltou a fazer-se sentir. Prometeu a si próprio controlar-se, mas não tinha conseguido fazê-lo. Por isso, zangou-se consigo mesmo. Estava misturando profissão e vida privada: um comportamento errado e perigoso.

– Quer me atirar o passado à cara? Neste momento, quero saber se estou aqui para ser protegida ou repreendida. – E prosseguiu: – Também gostaria de saber se você está aqui como polícia ou como amante rejeitado.

Angelo cerrou os lábios:

– Desculpa – sussurrou.

– Quero ir embora daqui. Quero ver o meu filho – insistiu ela.

– Agora não – rematou o chefe de polícia.

– Me deixe ao menos ir a Altopioppo.

– Primeiro temos de encontrar o seu agressor e arrumar essa história. Depois pode ir embora. – Anda perseguindo fantasmas – concluiu Irene.

Angelo não respondeu e saiu do quarto. Ao agente que estava no corredor, disse: – Não a perca de vista. É capaz de desaparecer debaixo dos seus olhos. Sozinha no quarto, Irene aproximou-se da janela. Viu uma pequena borboleta branca esvoaçar no ar abafado e finalmente pousar, exausta, na borda do parapeito. A luz do verão, a caminho do fim, empalidecia já no presságio do outono, e os seus pensamentos, como borboletas extenuadas, voaram cansados à procura de um sítio para descansar. Então voltou-lhe à ideia a fazenda de San Benedetto. Aquele era o único lugar para descansar. Ali estava Mauro Cordero, tomando conta das recordações do passado. Pensou na sua ternura paternal, na generosidade com que tinha amado a mãe, na dedicação por Agostina. E recordou o Natal de muitos anos atrás. Ela tinha jantado com Angelo. Depois, quando o rapaz foi embora, Mauro voltou para lhe dizer que a avó tinha morrido. Então ela e Mauro subiram até o quarto de Agostina. Escolheram o mais bonito entre os vestidos da avó e meteram-no num saco. Depois desceram até a cozinha.

– Agora vamos tomar um bom café – disse Irene, limpando as lágrimas. Mauro acendeu a lareira e sentou-se num banco, em frente ao lume. Irene sentou-se ao lado dele e estendeu-lhe uma xícara de café já com açúcar.

– A avó já não precisa de nós. Por isso, pode esperar. Mas você tem de me contar a história da minha mãe. Por favor, pai, agora. Eu preciso saber – suplicou Irene.

E Mauro Cordero começou a contar.


37

– Parece uma rosa de maio – diziam os camponeses, quando viam a moça com a mãe. Aquela filha, de uma beleza absoluta, com uma pele de seda, um cabelo loiro acobreado que lhe acariciava o pescoço e um corpo esbelto, era o orgulho e o tormento de Agostina. Do pai herdara o olhar grave e intenso, o perfil decidido e a harmonia dos gestos. Dela tinha o caráter esquivo e sombrio. Mas, ao contrário da mãe, Rosanna era cheia de medos, que enfrentava com uma agressividade no limite da violência. Agostina desculpava-a, pensando naquilo que a filha tinha sofrido quando estava dentro dela. Atravessava agora uma idade difícil e exteriorizava o mal-estar com o descontentamento. – As minhas amigas têm um vestido novo para a festa. Eu não – protestava. – Se eu te fizer um vestido novo, os teus irmãos também vão querer. O dinheiro não me chega – respondia-lhe Agostina. – As minhas amigas vão ao cinema, ao domingo. Eu tenho que ficar aqui trabalhando na terra. – Preciso da sua ajuda.

– As minhas amigas, no verão, vão para uma colônia de férias, na praia. Eu não vou a lado nenhum. Por quê? – As suas amigas não têm o pai no sanatório – explicava a mãe. E lembrava-se de quando era pequena e os pais lhe recusavam a comida, uns sapatos novos, um xale mais quente, a possibilidade de ir à escola. A filha tinha outras pretensões, queria defender-se no confronto com as outras da idade dela, movida pela inveja e pela preocupação da aparência.

A guerra tinha privado Agostina da ajuda do marido e tinha sido obrigada a aguentar, sozinha, a sobrevivência da família. Tinha de pagar aos homens que a ajudavam a lavrar a terra. Algumas colheitas tinham corrido mal. Empenhou os brincos para comprar as sementes. Levantava-se de noite para ordenhar as vacas. De madrugada, quando os filhos ainda estavam dormindo, partia com a carroça cheia de bidões de leite para entregar à cooperativa da aldeia, que nem sempre lhe pagava com pontualidade. Por sorte, aos fins de semana vinha gente da cidade comprar ovos, galinhas, legumes e manteiga. Mas os lucros eram sempre imprevisíveis.

No fim da guerra, o marido regressou com os soldados que sobreviveram à campanha da Rússia. Foi repatriado num trem-hospital e desviado imediatamente para a montanha, para um sanatório. Agostina correu ao encontro dele e observou-o longamente antes de reconhecer naquela sombra de homem o jovem bonito com quem tinha casado.

– Não fez grande negócio ao casar comigo – disse-lhe Armando, com um fio de voz. Ela olhou-o sem responder.

– Não me agrada morrer aos trinta anos. Os médicos dizem que os meus pulmões metem nojo. – Agora há remédios milagrosos – disse-lhe, para o confortar.

– Talvez seja melhor acender umas velas a Nossa Senhora – aconselhou-a. – Vou fazer isso – prometeu Agostina.

Regressou à aldeia, entrou na igreja, comprou cinco velas, acendeu-as em frente à imagem de Nossa Senhora e rezou para que o marido voltasse a ser forte e saudável como quando casara com ele. As velas funcionaram. Ao fim de alguns meses, com o início da primavera, um pulmão começou a cicatrizar.

Agostina ia vê-lo de seis em seis meses. A viagem era longa e custosa. Tinha de entregar os filhos e a propriedade a um jovem empregado, que dormia no palheiro, e aos vizinhos, que conheciam as suas atribulações e a ajudavam de boa vontade.

Com a passagem dos meses, notava grandes melhoras no marido. Tinha deixado de tossir, estava mais gordo e já não gaguejava. Era como se a guerra e a doença o tivessem revigorado até na alma. Passeavam ao longo das alamedas arborizadas no parque do sanatório. Desciam até a aldeia e comiam na taberna. Depois sentavam-se num banco olhando as montanhas.

Uma vez Armando disse-lhe:

– Quero fazer amor.

Agostina olhou-o como se ele lhe tivesse feito uma proposta inconveniente. Nunca tinha sido mulher de cama. Só com Luigi descobrira como se pode ser feliz fazendo amor. Mas nessa altura tinha dezenove anos e estava apaixonada.

– Falaremos nisso outra vez – prometeu. – Agora tenho que ir correndo para a estação, senão perco o comboio. – Pensava nas crianças, nos animais e na terra.

Voltou a ver o marido no verão. Deram um passeio pelo bosque, que se perdia em direção a uma lagoa junto a um planalto. Da água nasciam nenúfares rosados. Sentaram-se na erva aquecida pelo sol e comeram aquilo que Agostina tinha trazido de casa: pão e salame, ovos cozidos e torta de damasco. Beberam vinho da propriedade.

Armando, como sempre, conduzia a conversa, que nunca tocava os problemas da fazenda. O sol fazia sobressair o seu perfil forte e doce. Voltara a ser um homem bonito e vigoroso.

De repente, abraçou-a. Deitou-a na erva e agarrou-a sem grandes rodeios. Agostina não teve coragem para o repelir. Sujeitou-se, resignada. Dois meses depois escreveu-lhe uma carta para lhe dizer que estava grávida. E não conseguiu esconder o desapontamento causado por aquela nova gravidez.

Pensou em tudo isto, enquanto a filha a culpava de não satisfazer as suas pretensões por causa das restrições econômicas de uma família que não podia contar com um pai doente.

E Rosanna esclareceu:

– Além do mais, o Armando não é meu pai. Não tenho culpa que você tenha que trabalhar por ele também. Do padrasto conservava uma vaga recordação, porque tinha apenas quatro anos quando Armando partiu para a guerra.

Naquela altura, nem sequer sabia que não era pai dela. Ficou sabendo quando foi para a escola. O seu sobrenome não era o mesmo dos irmãos. Sofreu esta diferença como uma traição da mãe contra ela.

– O Armando é meu marido e te peço que o respeite como tal – disse Agostina. Estava em frente ao fogão preparando o molho de carne para acompanhar a massa. Rosanna olhou para aquela mãe de ar severo, que não se permitia nenhuma vaidade feminina. Vestia camisas e calças de homem, as de Armando, que estavam ali, nas gavetas, inutilizadas. Tinha descoberto o aspecto prático daquelas roupas e percebeu que os homens eram mais espertos do que as mulheres. Nos campos, as calças protegiam as pernas e os seus joelhos se beneficiaram com isso. Agora conseguia apertá-las com dificuldade. Estava no quarto mês de gravidez e ainda não tinha se decidido a falar sobre isso com os filhos.

Rosanna, de pé, em frente à mesa, ralava um pedaço de queijo curado. – Por que é que tenho que o respeitar? Ele não te respeita. Pensa que ainda não percebi que está grávida? Agostina deixou cair a colher de madeira com que mexia o molho e corou como se tivesse sido apanhada em falta. – Essas coisas não te dizem respeito – replicou, refreando o instinto de dar uma bofetada na fillha. – Ai, isso é que dizem. Vai haver outra boca para comer e vamos ter de apertar o cinto ainda mais, enquanto o senhor permanece na montanha, na boa vida.

Agostina deu por si respondendo com as palavras pronunciadas pela mãe, muitos e muitos anos atrás: – É a vontade do Senhor – sussurrou, com um suspiro de resignação. – É a vontade do senhor que está no sanatório a coçar a barriga e que não dá importância aos nossos problemas – replicou Rosanna.

Tinha doze anos e manifestava o mal-estar de todos os adolescentes. Vivia obcecada pelo confronto com as outras moças da idade dela, que tinham famílias mais abastadas e que lhe pareciam mais desembaraçadas e elegantes do que ela. Os pais das amigas tinham deixado o campo e trabalhavam nas fábricas. Naquela zona, nasciam, como cogumelos, oficinas, laboratórios e empresas de todos os tipos.

O pai de Adelia, a sua melhor amiga, tinha vendido a terra e os animais para transformar o estábulo num armazém. Contratou operárias, que embalavam fardas militares usadas e farrapos. Vendia tudo a uma fábrica de papel e enriquecia. Havia uma grande necessidade de papel. Imprimiam-se novos jornais e muitos livros. O pai de Adelia comprou uma moto e ao domingo ia passear com a mulher e com os filhos. Adelia gabava-se de ter um pai rico. Lavava-se com sabonete Lux, o sabonete das estrelas de cinema, que era branco, fazia muita espuma e tinha um perfume intenso. Ela usava sabão da roupa, preparado em casa pela mãe com as carcaças dos animais.

– Agora chega. – Agostina virou-se para ela com um olhar que brilhava de cólera. Não tinha desejado aquele filho que crescia dentro dela, mas agora, enquanto o seu ventre aumentava de dia para dia, prevalecia um sentimento de proteção por aquela nova vida que ia se formando. – Então rala você o queijo – disse a moça com grosseria, abandonando o ralador em cima da mesa. Saiu e bateu a porta da cozinha. E vingou-se nos dois irmãos, que estavam brincando com outras crianças, empurrando-os e fazendo-os cair, antes de se afastar em direção aos campos.

Rosanna tinha ciúmes. Disso a mãe tinha consciência. Como todos os filhos mais velhos, teve que partilhar as atenções maternas, primeiro com dois irmãos mais novos, e agora com um terceiro que ia nascer durante o inverno. Pouco adiantava que Agostina, quando podia, lhe oferecesse às escondidas uma tablete de chocolate ou um lencinho com renda em volta. A filha pretendia muito mais. Reclamava atenções constantes e não entendia que a mãe tinha sobre ela o peso de uma propriedade para comandar.

Eram tempos realmente difíceis. Os camponeses agarravam qualquer pretexto para organizar uma greve. Os guardas não perdiam nenhuma ocasião para lhes dar umas cacetadas e os meter na prisão. Agostina dava-se conta de que os trabalhadores eram mal pagos e sabia que as forças da ordem seguiam ordens que vinham de cima. No fundo, estava do lado dos trabalhadores. Mas não conseguia satisfazer as exigências deles.

Naqueles momentos sentia a falta de Armando. Precisava de um homem com quem se confortar e dividir responsabilidades. A filha não deixava de ter alguma razão. O marido agora estava bem, mas parecia não ter pressa nenhuma de voltar para casa. Duas semanas antes tinha recebido um postal com os cumprimentos do costume, para ela e para os filhos, e uma frase que não soube como interpretar:

– O médico disse que, quando eu quiser, me dá alta.

Não lhe respondeu. Estava muito zangada para isso. Mas também temia o regresso dele. Estava já ausente há muitos anos, e parecia que tinha que receber um estranho.

Foi à porta e chamou os filhos:

– Venham comer! – Foi então que viu Armando saltar do carro de um camponês. Agostina ficou na soleira, apoiada ao caixilho da porta, com a colher numa mão e a compor os cabelos com a outra. Deu um suspiro. Gostaria de ter ficado contente, mas sentiu o coração pesado.


38

Todos os habitantes das fazendas da vizinhança vieram para a desfolhada. O regresso de Armando era um pretexto para se encontrarem e fazerem uma festa. Por isso estavam agora todos na eira, ouvindo o marido de Agostina, salvo da guerra e da tuberculose, que tinha pegado no acordeão e feito soar os primeiros acordes de uma valsa, acompanhado por um vizinho que tocava guitarra. As mulheres escutavam-no com arrebatamento, as mais novas gingavam e, de mãos dadas, acompanhavam a música com a letra da canção: “ Domani tu mi lascerai e più non tornerai . 1 .”

Uma velha deu uma palmada no ombro do marido e disse:

– Anda, vamos dançar.

Houve logo quem os imitasse. As crianças juntaram-se aos adultos. Formaram-se pares de mulheres com mulheres, homens com homens, velhos com novos.

Agostina corria para trás e para frente, da eira para a cozinha, com copos, vinho e biscoitos. Entretanto faziam-se comentários sobre Armando, que tinha voltado mais bonito, sobre os desacatos recentes devidos às exigências odiosas dos camponeses, que não tinham em consideração os magros lucros dos patrões sobrecarregados com os impostos, sobre as desgraças que tinham atingido esta ou aquela família e sobre Agostina, que ia dar mais um filho àquele malandro do marido, que a tinha engravidado quando ainda estava no hospital.

– Venha cá, bela mulher, que também quero dançar com você – disse o jovem empregado que tinha ajudado Agostina nos meses mais difíceis do pós-guerra e que agora, com o regresso de Armando, tinha medo de perder o lugar.

– Eu não sou de dançar – defendeu-se ela, com o ar esquivo de sempre. – Alto lá! Se a Agostina tem que dançar com alguém, é comigo – exclamou o marido. Tirou do ombro a correia do acordeão e ofereceu o instrumento a Pietro Marenco, que era um virtuoso do teclado. E prosseguiu: – Toca o Violino Cigano. É um tema de que a minha mulher gosta muito.

Depois agarrou-a com energia e fê-la dar uma pirueta para depois a apertar contra si, apaixonadamente. – Gosto de você – sussurrou, olhando-a com olhos lânguidos.

– Já não tenho idade para estas coisas. E depois, tem as crianças – disse ela, tentando furtar-se àquele abraço fogoso. – Não acho bem que vejam a mãe nesta figura.

Pensava na sombra de homem que tinha encontrado no hospital quando o repatriaram. Tinha voltado como novo, ainda melhor do que antes. Demonstrava um vigor e uma audácia que não lhe conhecia. Não só tinha deixado de gaguejar e de corar, como também a olhava com um descaramento que a irritava. Apresentava-se com o ar de quem diz: “O patrão voltou.” Não se tinha preocupado em avaliar o cansaço e as mil e uma dificuldades que ela tivera que enfrentar, dia após dia, durante toda a sua longuíssima ausência. Agora pavoneava-se como um cavalheiro em roupa de festa e permitia-se tratá-la com uma audácia inaceitável, como inaudito fora o seu anúncio, mal entrou em casa:

– Fui a Cuneo e comprei uma motocicleta. Amanhã vou buscá-la. Agostina ficou sem palavras. Uma moto era uma despesa que não podiam se permitir e uma forma de ostentação que não lhe agradava.

– É preciso dinheiro. E nós não temos. Aqui a vida é cada vez mais difícil. Em relação ao fim da guerra, andamos para trás, em vez de andarmos para a frente – fez-lhe ver, considerando que ela própria, depois de acabar de trabalhar na sua terra, ia virar o feno para outros. O jovem empregado, embora não fosse pago, tinha que ser alimentado e ao domingo recebia uma paga de quinhentas liras. Ela ganhava cem liras por hora e trabalhava onde calhava. As crianças andavam na escola e precisavam de cadernos, de sapatos e de roupa. Ela tinha passado tormentos por causa de um dente cariado e, para poupar, tinha recorrido ao velho ferreiro de San Benedetto, que também arrancava dentes. Havia anos que não fazia um vestido novo e não se concedia um dia de folga.

– Por que é que se incomoda tanto? Não te pedi o dinheiro. De resto, sempre quis comprar a terra. Podia parecer uma senhora atrás do balcão, na loja de Tortona. Fiz-lhe a vontade e vim executar um trabalho que não é o meu. Passei anos de inferno. Agora vira-se a página e começa-se de novo – replicou Armando, olhando para os filhos, como que a procurar um sinal de aprovação.

A massa tinha um cheiro convidativo e o tom rosado do molho, feito com aparas de porco, dava água na boca. – Começa de novo. Eu não cheguei a parar. Durante todos estes anos, dia após dia, levantei-me antes do sol e deitei-me já de noite. Não me venha dizer que se começa de novo. – Esforçava-se para falar com um tom sereno, mas estava profundamente irritada. A motocicleta parecia-lhe um insulto aos mil e um sacrifícios de cada dia. Naquele momento, apareceu a filha. Olhou para o homem que estava sentado à mesa com os irmãos. Tinha sabido do seu regresso pelos Marenco. Não acontecia nada naquela terra que não se ficasse imediatamente sabendo. Também ele a olhou, espantado.

– Sou a Rosanna – disse ela.

– Ainda bem que disse. Eu não te reconhecia. Está uma senhorinha. A sua mãe já tinha me dito que estava crescida, mas não a este ponto. Muito bem. Vem aqui e me dá um beijo.

– Não é preciso. Em nossa casa isso não se usa – replicou a moça, sentando-se à mesa. Armando riu.

– Ora bem, estabeleceu as distâncias e marcou os limites. Não é por acaso que é filha da sua mãe – comentou. Durante o jantar ela olhava para ele de esguelha, a meio caminho entre a desconfiança e a curiosidade. – O pai comprou uma motocicleta – disse Roberto, o irmão de dez anos. – Como a do pai da Adelia? – perguntou Rosanna, subitamente animada. – Onde está? Posso vê-la? – Vai buscá-la amanhã – acrescentou Gino, o irmão mais novo.

– Ah, sim, do dizer ao fazer vai uma grande distância – sentenciou. – A sua mãe não tinha me dito que é azeda como uma solteirona velha – provocou o padrasto, com ar de quem estava se divertindo muito. E acrescentou: – Vou levar os quatro para dar uma volta. Primeiro as senhoras, evidentemente. Agostina teve vontade de gritar contra aquele desperdício. Ainda poucos dias antes fora obrigada a dar cinco mil liras a Marianna Barbero por causa da confusão que Roberto, Gino e o resto da companhia de catraios das redondezas tinham armado. Mas a culpa tinha sido toda dos filhos, e por isso foi ela quem teve que pagar as despesas com o médico.

Os filhos, em vez de a ajudarem, só lhe arranjavam problemas. Tinham decidido assustar uma viúva idosa que se embriagava muitas vezes e contava histórias de uma bruxa que a perseguia durante a noite e que virava a casa de pernas para o ar. As crianças divertiam-se a ouvir o que ela dizia e os comentários dos adultos.

Um dia Agostina mandou-os à casa dos Marenco, para pedir emprestado um carrinho de mão, porque o dela tinha partido. Quando pegaram-no, Roberto viu uma grande abóbora na horta dos Marenco. Roubou-a com a ajuda do irmão, transportou-a no carrinho e escondeu-a atrás do galinheiro.

– A mãe vai te bater quando souber que roubou a abóbora – observou Gino. – É para fazer uma brincadeira com a Marianna – disse Roberto. – Sério? Quer fazer uma caveira? – perguntou o irmão, entusiasmado. – É isso mesmo. Precisamos de uma faca, um pau e uma vela.

Um companheiro de brincadeira viu-os e quis participar na empresa. Espalhou-se a notícia de uma brincadeira com Marianna e, assim que caiu a noite, os meninos se esgueiraram para fora das camas. A grande abóbora, esvaziada e esculpida como uma enorme caveira, estava pronta. Colocaram na cavidade uma vela acesa, fixaram a base num pau e envolveram-na num lençol. Depois foram até a casa dela. Através da janela da cozinha, viram a mulher sentada à mesa. Estava bebendo vinho e falando sozinha.

– Marianna, sou o fantasma do seu vinho e vim buscá-la – pronunciou Roberto, com uma voz cavernosa, enquanto os companheiros faziam oscilar a abóbora em frente à janela. – Marianna, tem que me seguir por entre as chamas do Inferno – prosseguiu o rapaz.

A pobre mulher deixou cair o copo ao chão e depois, gritando de medo, correu para fora de casa e avançou pelo caminho, levantando os braços ao céu e berrando:

– Para o Inferno não! Para o Inferno não! – por fim caiu, fraturou um ombro e desmaiou. As crianças assustaram-se.

– Matamos a velha – repetiam chorando.

Apareceu uma camponesa, atraída pelo barulho. Viu Marianna num estado deplorável. Chegaram mais outros e puseram-na numa carroça para a levarem ao hospital.

Agostina só soube da história no dia seguinte, quando umas vizinhas lhe contaram a brincadeira que os filhos tinham preparado.

Correu até a aldeia para visitar a viúva, que estava muito mal. Tinham-na engessado, e estava num estado de confusão preocupante. Teve de ouvir uma reprimenda do médico. Depois foi chamada pelo presidente da câmara e obrigada a pagar as despesas. Cinco mil liras. Quando voltou para casa, os dois meliantes tinham se eclipsado. Esperou-os pacientemente até o fim do dia, quando tentavam enfiar-se, sem serem vistos, dentro da cama. Deu-lhes uma sova e obrigou-os a lavar o estábulo todas as noites até o fim da semana.

Só mais tarde se isolou no quarto e riu com gosto.

No entanto, aquelas cinco mil liras consumiam-na. O marido devia ter gasto pelo menos cinquenta mil com a motocicleta. Depois vieram os vizinhos e Armando pegou no acordeão que ela tinha guardado durante tantos anos.

Agora fazia-a rodopiar, como se fosse uma criança. Apertando-a contra si, fez aderir o seu corpo ao dela e sussurrou: – Isto é só uma entrada. O melhor vem esta noite, quando estivermos sós. – Depende do ponto de vista – atirou Agostina. Antes queria uma bofetada do que aqueles subentendidos. Soltou-se do abraço do marido e foi correndo para casa.

Fechou-se no quarto. Estava mais zangada consigo própria do que com Armando. No final das contas, ele apenas reclamava os seus direitos de marido. Mas ela não tinha nenhum desejo de cumprir o seu dever de mulher. Parecia que estava vendendo o corpo a troco de uma segurança que era apenas aparente. E sentia-se humilhada. Dentro de pouco tempo deveria receber Armando. Tinha que se resignar, até porque a sua agitação fazia muito mal à criança que trazia dentro dela. Respirou fundo e aproximou-se da janela. O marido exibia-se num tango com Rosanna, que se mexia com embaraço porque ainda ninguém a tinha ensinado a dançar. A filha sorria. Aquela aversão que sentia pelo padrasto, se ainda a atormentava, parecia bem disfarçada.


39

– Como é que é possível que, todos os santos dias, vocês cheguem em casa neste estado? Agostina estava exasperada e gritava para vencer a angústia daqueles dias. Roberto e Gino, os dois rapazes, tinham acabado de chegar da escola com a roupa rasgada, um olho roxo e uma ferida na testa. Colocou um bife sobre o olho pisado de Roberto e limpou com água oxigenada o corte na testa de Gino. Roberto tinha andado ao murro e Gino à pedrada com os colegas da escola. Era uma história que já durava há muito tempo, desde que começara aquela greve sem tréguas dos trabalhadores que pediam aos patrões um aumento de salário de cem mil liras por ano, seis dias de férias pagas e o descanso dominical, além das garantias em caso de doença.

– Apanhamos, mas também demos. O Tanino Furia ficou com um nariz deste tamanhão – disse Gino, que tinha nove anos e a força de um touro.

– Nós não temos culpa de ter contra nós os filhos dos patrões e os dos trabalhadores – lamentou-se Roberto, que se olhava ao espelho, apertando o bife contra o olho, e que entretanto repetia: – Que nojo!

A linha política que predominava naquele período era a favor da indústria nascente, para que a Itália pudesse competir com os outros países da Europa, em detrimento da agricultura. Os trabalhadores rurais lamentavam a discrepância entre os seus salários e os dos operários. A família de Agostina estava no meio da tempestade. Ela era dona das suas terras, mas para sobreviver tinha de trabalhar durante o dia para alguns vizinhos que possuíam mais terra do que ela. Como os filhos dos patrões e os dos trabalhadores tomavam o partido dos pais, desencadeando disputas que começavam com palavras e terminavam à pancada, acontecia que Gino e Roberto eram sempre apanhados na mira ora de uma ora de outra facção. Naquele período, também Rosanna tinha os seus problemas. As meninas só eram menos agressivas na aparência. Na realidade, traduziam as nódoas roxas em escárnio e pérfidas insinuações.

As amigas ofendiam-na dizendo que tinha um pai malandro, que aproveitava as greves para fazer corridas de moto, dando uma no cravo outra na ferradura para não se incompatibilizar com ninguém.

– Se deixássemos esta maldita fazenda e fôssemos para Tortona, para casa dos avós, eu poderia levar uma vida mais decente e teríamos todos a barriga cheia – protestava, sempre que chegava da escola, furiosa porque as amigas tinham lhe roubado o diário, rabiscado um livro ou puxado o cabelo.

Este era um assunto que deixava Agostina completamente fora de si. – Um dia ainda costuro essa bocarra – ameaçava a mãe, que se sentia profundamente ofendida sempre que a família punha em questão aquela vida de camponeses. Ela não tolerava a ideia de trabalhar atrás do balcão de uma loja, entre quatro paredes que cortariam a respiração. Precisava de espaços abertos, de horizontes vastos, do cheiro da terra e dos animais.

À noite, quando se reunia na eira com os vizinhos, tentava perceber os acontecimentos para encontrar dentro de si uma motivação que lhe sugerisse de que lado estava a razão.

Desde que se lembrava, nunca os trabalhadores tinham enfrentado uma greve tão dura. Nunca a política tinha entrado de uma forma tão pesada nas suas vidas.

Pietro Marenco era um patrão razoável que, naquela grande confusão entre comunistas e democratas cristãos, conseguia pensar com clareza.

– Temos um governo que é cego – dizia –, que acha que resolve os problemas mandando a polícia dar cacetadas nos grevistas, e não percebe que a terra é um recurso muito importante para o nosso país.

Agostina anuía. Não precisava que a convencessem nesse sentido. Mas sabia que as reivindicações dos trabalhadores eram legítimas. Ela era a primeira, quando trabalhava por salário diário, a se lamentar pela escassa recompensa. Mas também sabia como eram incertos os lucros proporcionados pela agricultura. As novas tecnologias não podiam evitar as geadas repentinas, as inundações ou o granizo. Mas amava a terra.

Sentiu uma guinada no coração quando Tulio, um outro vizinho, afirmou: – Os meus filhos não vão ser camponeses como eu. Quero que trabalhem nas fábricas, porque a terra é maldita. A mulher de um trabalhador que chorava disse que, como tinha os homens em greve há mais de dez dias, já não tinha nada para pôr na mesa.

– O meu marido já nem me fala. Anda com uma cara medonha e basta uma coisa de nada para se virar contra mim. Os meus filhos mais velhos nem se levantam da cama. Dizem que têm medo de aparecer por aí, porque sabem que quando acabar a greve o patrão vai arranjar um pretexto para os despedir.

– Não seja tão pessimista, Faustina – disse Pietro Marenco, para a animar. – O senhor fala bem porque é patrão. Agora vieram os fura-greves, para nos tirar o pão da boca. – Esses, como chegam, também vão embora. E também são uns pobres diabos, como os camponeses. Os fura-greves chegaram de todos os lados, oferecendo braços desajeitados. O próprio Marenco contratou alguns e dizia mal da vida dele ao ver o trabalho tão mal feito.

– Hoje de manhã estava no estábulo e apareceu um delegado sindical de Cuneo – contou Agostina. – Disse-me que eu não devia ordenhar as minhas vacas porque ao domingo não se trabalha. Não é que está tudo maluco? São animais e não sabem que ao domingo não podem produzir leite. Se não as ordenho apanham uma mastite e depois tenho que mandá-las para o matadouro. Aquele é um dos tais que acreditam que o leite é o leiteiro que o faz. E ainda veio me dizer que eu não podia trabalhar para outros patrões. Por isso, eu vou deixar de o fazer – disse, voltando-se para Pietro Marenco.

Patrões e trabalhadores, todos estavam de acordo: naqueles dias vivia-se mal e o campo parecia menos bonito, o ar menos puro, a água menos limpa. O sol já tinha se posto há um pedaço, mas não se viam brilhar as estrelas.

– Até as estrelas estão em greve – gritou uma criança, com uma voz límpida. Um camponês levou aos lábios o copo de vinho e tomou um pequeno gole. – Até o vinho me parece menos bom – disse um trabalhador. E acrescentou: – O padre disse à minha mulher que vamos todos para o Inferno se estivermos ao lado dos comunistas. Eu não tenho o cartão do partido, mas se os outros fazem greve eu não posso ficar para trás. O senhor o que diz, patrão?

Tentava ser absolvido, pelo menos por Pietro Marenco.

– Digo que tem razão. Que deve ter um salário melhor. Mas eu não nado em dinheiro. Os impostos, sou eu que os pago. E os anos maus também. E então, o que é que se faz?

Rosanna conversava à parte com outras moças, mas esticava o ouvido para a discussão dos adultos. Entretanto observava Armando, que bebia em silêncio. Tinha curiosidade de saber o que pensava o marido da mãe. Mas o homem limitava-se, de vez em quando, a fazer uma festa no braço de Agostina, que o repelia, irritada.

Na estrada de terra passou uma procissão conduzida pelo pároco. Quatro homens seguravam a imagem de Nossa Senhora. O resto do cortejo era formado por camponeses e jovens filhas de Maria que seguravam velas acesas e cantavam:

– Queremos Deus que é nosso pai, queremos Deus que é nosso rei. São fortes os filhos, castas as filhas... – A igreja tem sempre razão – interveio Armando. – Não é por acaso que existe há dois mil anos. Estes comunistas são lacaios da União Soviética e, se não tivermos cuidado, depois dos canhões dos alemães vamos provar os dos russos. – Ora vejam! – resmungou Agostina. – Você nunca fala, mas quando abre a boca é só para dizer absurdo. – Entretanto, a terra vai de mal a pior e as vacas ficam doentes porque aqueles fura-greves não sabem ordenhá-las – insistiu

ele. Depois sorriu para a mulher. – Vamos dormir. De qualquer maneira, não vamos ser nós a resolver a situação. Rosanna foi até ele.

– Finalmente sei que pensa de maneira diferente da minha mãe.

– Você se mete na sua vida e não cuspa sentenças com essa boca ainda suja de leite – redarguiu Agostina. Foram embora. E estavam todos tristes. Durante a noite ia haver mais confrontos entre camponeses e fura-greves contratados pelos patrões. Enquanto regressavam a casa, Armando pôs um braço protetor à volta dos ombros da mulher. – É muito dura com a Rosanna – disse.

– Eu não. A vida é que é dura, e é bom aprender isso desde criança – respondeu. – Já me esquecia que você sabe tudo e eu não sei nada, que você é boa e eu sou mau. – Põe-me nervosa quando diz certos absurdos. Mas eu invejo-a, porque sabe de que lado deve estar. Está com os patrões e

com os padres, que fazem a propaganda deles do púlpito e às voltas pelos campos. Eu, mesmo sabendo que vou contra os meus interesses, estou do lado dos comunistas e, portanto, dos trabalhadores. Eles não podem fazer propaganda, porque lhes atam as mãos e os levam para a cadeia. Que raio de democracia é essa?

– Mulher, pensa nos seus deveres de esposa. A política deixa para nós – disse Armando, num sussurro, acariciando-lhe um seio.

– Vai desafogar os seus ardores na taberna – protestou ela, ofendida. Foi até os filhos e entraram juntos em casa. Armando pegou na moto e afastou-se.

Foi naquela noite que ocorreu o episódio das videiras.

Um agricultor rico, Ersilio Tonello, na manhã seguinte, levou os guardas às suas vinhas e mostrou-lhes as videiras cortadas. – Aqueles porcos vermelhos me serraram as pernas – gritou, desesperado. – Cortaram a vinha, que é como matar a planta.

Vou acabar de joelhos. – E deu os nomes dos comunistas, garantindo que eram eles os responsáveis. Eram trabalhadores seus. Foram presos e encerrados em celas. Bateram para que confessassem o delito. Não confessaram nada.

– Como é que podem pensar que um camponês possa fazer semelhante coisa? – defenderam-se. – Aquelas videiras eram bonitas porque nós tratamos delas e as cultivamos – explicaram.

Mas havia testemunhas prontas para jurar que os tinham visto nos campos durante a noite. Nasceu dali um caso que ocupou as primeiras páginas dos jornais. A polícia tinha finalmente encontrado os culpados ideais para justificar as ações repressivas.

Agostina foi até Pietro Marenco.

– O que é que podemos fazer por aqueles dois rapazes? Nós sabemos que estão inocentes. – Eu me inscrevi no Partido – declarou Pietro, e acrescentou: – Nunca fui comunista. Nem agora sou. Mas não tinha outra maneira de exprimir a minha oposição a este governo, que está maltratando a nossa gente. – Então eu também vou me inscrever e inscrevo também aquele inútil do meu homem – decidiu ela. – Você é doida varrida – protestou Armando, quando ela lhe pediu que fosse com ela à aldeia. Mas, como sempre, teve que lhe fazer a vontade. Apresentaram-se na Casa do Povo e um jovem ativista reparou em Armando. Observou-o como se quisesse tirar as medidas. Depois sussurrou qualquer coisa ao ouvido do companheiro, o qual foi correndo à procura do secretário da seção, que conhecia bem o casal Elia.

– Com que então, querem se inscrever – começou o chefe, com um ar feroz. – Eu quero. Ele vem por acréscimo – esclareceu Agostina.

– A você dou já o cartão. E com muito prazer. Ao Armando não. Primeiro temos que esclarecer umas coisas. Agostina corou. Armando, por sua vez, empalideceu.

– Vamos embora – disse.

– Um momento. Que história é essa? O que é que há para esclarecer? – perguntou ela. – Dá-nos um tempo, Agostina. Entretanto, está aqui o seu cartão. Já está à sua espera há algum tempo – afirmou o secretário. – Não, não! Se não lhe dão o cartão, eu também não o quero – replicou, pondo-se imediatamente do lado do marido. Armando deu-lhe uma cotovelada e sussurrou:

– Deixa pra lá. Vamos embora.

– O Armando tem razão. Voltem para casa. Nós damos notícias depois – disse o secretário. A mulher estava ofendida e preocupada.

– Armou alguma que eu ainda não sei – conjeturou, enquanto montava na motocicleta. – Eu não armei coisa nenhuma. Já tinha lhe dito para ficar bem longe dos comunistas. Mas acabou por se saber que Armando tinha armado uma coisa terrível. As videiras de Ersilio Tonello tinham sido cortadas

por ele a troco de vinte mil liras. Um jovem ativista “vermelho”, durante uma ronda noturna com outros companheiros, tinha reparado na motocicleta perto de um campo. Agostina soube quando os guardas se apresentaram na fazenda para prendê-lo. Nem mesmo eles estavam muito contentes por ter que reconhecer que os trabalhadores comunistas tinham sido erradamente acusados. Os trabalhadores dos campos deram um suspiro de alívio. Sempre tinham defendido que a sua gente nunca seria capaz de cometer um crime tão mesquinho. Depois veio à tona uma outra verdade: as videiras cortadas eram as que estavam destinadas a morrer. Armando Elia tinha executado o trabalho “sob orientação” do proprietário, que foi também incriminado.

Agostina sentiu uma dor e uma vergonha tão pungentes que nunca mais teve coragem de voltar à aldeia. Armando foi processado, sofreu uma condenação ligeira, mas tinha manchado a honra da família. Nunca mais lhe perdoou.


40

Agostina obrigou o marido a lhe dar o dinheiro da traição, vinte mil liras, recebidas de Ersilio Tonello. Depois foi encontrar Pietro Marenco, o único vizinho com quem ainda ousava falar.

– Faz um favor. Entrega este dinheiro àqueles desgraçados que foram espancados por nossa causa. Não diga que sou eu que mando. Dá e pronto – recomendou.

– Agostina, por estes lados toda a gente te conhece. Não tem nada de que se envergonhar – animou-a. – Casei com um homem sem honra. Agora só desejo fugir e ir para um lugar onde ninguém me conheça – disse, com o coração inchado de sofrimento.

Era outono. A greve, que durara quarenta dias, tinha acabado. Patrões e trabalhadores estavam nos limites e trabalhavam para remediar aquela longa inação, porque a terra não permite abandonos. De qualquer modo, os trabalhadores tinham obtido algumas regalias e estava começando uma nova luta: a dos patrões contra o governo, que aumentava os impostos para além do razoável.

– Nunca mais vou ter coragem de ir à aldeia. Até os meus filhos se envergonham daquilo que o pai fez – confessou, esforçando-se para reter as lágrimas.

– Tenha paciência e espera que o tempo passe. Daqui a alguns meses já ninguém fala dessa história horrível – disse, para sossegá-la.

Agostina nunca mais foi visitar o marido na prisão. Mandou Rosanna levar-lhe roupa para mudar e recebeu dele uma carta com um pedido de perdão. Não respondeu.

Sentia-se aniquilada. Trabalhava como sempre, mas não obtinha consolo com a ideia de que a terra, a casa e os animais lhe pertenciam.

Nem sequer o pequeno Ugo, o mais novo, conseguia lhe dar conforto. Olhava para Rosanna, a única filha, e perguntava-se o que lhe reservaria o futuro.

Uma vez disse:

– Os rapazes, sabe-se lá como, conseguem sempre se arranjar. Quando não fazem sozinhos, encontram uma mulher que lhes sirva de escudo. Mas uma mulher, em quem pode se apoiar?

Rosanna não respondia e a tristeza da mãe enchia-a de angústia.

Fechada no seu isolamento, Agostina adquiriu o hábito de falar sozinha. Enquanto cortava a erva, cegava o centeio ou ordenhava as vacas, fazia e voltava a fazer um apanhado da sua vida. E perguntava-se onde teria errado.

Os filhos, que já conheciam o hábito do solilóquio, escondiam-se às vezes para ouvi-la. Não compreendiam o sentido das suas palavras, mas achavam tolo aquele costume da mãe. Por vezes, quando estava profundamente absorta nos seus monólogos, divertiam-se a aparecer ao pé dela, de repente, assustando-a. Ela reagia agitando os braços e distribuía sapatadas ao acaso. Eles fugiam rindo.

Armando regressou da prisão no fim do outono, com um ar de cão escorraçado. Parecia um velho. Tinha o cabelo todo branco. Tinha emagrecido e estava ainda mais bonito.

Vendeu a motocicleta, que durante meses tinha ficado no palheiro, e meteu o produto da venda no frasco do açúcar, onde Agostina guardava o dinheiro para as compras. Aquele gesto enterneceu-a e achou que tinha sido dura demais com ele. Talvez Armando fosse apenas um homem confuso.

Numa manhã de fins de novembro, quando as crianças já tinham saído para a escola e o pequeno Ugo dormia num cesto na eira, ela e Armando foram carregar o estrume na carroça.

Agostina continuava usando as calças do marido. Ele tinha se protegido com um grande avental de fustão que chegava aos pés. Era como se os papéis tivessem se invertido: ela usava calças, ele, saias. Abanou a cabeça, desconsolada.

Quando encheram a carroça, pegou no pequeno ao colo, empoleiraram-se nas traves e avançaram pelos campos. A terra arada estava pronta para receber o adubo. Chegados ao limite do campo pararam o cavalo, desceram e deixaram Ugo no caminho. O cão, que os seguia para todo o lado, aninhou-se ao pé do pequeno.

– Armando – disse ela –, olha para a terra. É como se respirasse. – Das zonas escuras elevava-se um vapor ligeiro. – Não acho – respondeu ele.

– A terra está viva, como nós. Respira e alimenta-se dos nossos cuidados. A terra quer bem a quem lhe quer bem. Respeita-nos, se nós a respeitarmos – explicou Agostina.

Armando não queria contrariá-la, mas não conseguia entendê-la. Agostina inclinou-se e, com uma mão, afagou um torrão. Ugo começou a chorar.

– O menino precisa de alguma coisa – disse o marido, contente por acabar com aquela história. Agostina levantou-se e foi falar com o filho.

– Nunca será um camponês. Nasceu comerciante – lamentou.

Pegou o filho no colo, enquanto Armando começava a espalhar o estrume. – Se se preocupasse menos com a terra e mais com os que estão à sua volta, talvez as coisas corressem melhor entre nós – protestou Armando, enquanto voltavam para casa.

– Quando nos casamos eu o avisei – replicou ela. – Entre um comerciante e um camponês vai uma distância como da Terra à – Você é a Lua?

– Eu sou uma desgraçada que tentou ir ao seu encontro.

– Nem sequer sabe quem eu sou. Alguma vez me perguntaste o que passei na guerra e no sanatório? São coisas que mudam um homem.

Armando não conseguia esquecer os horrores e o sofrimento de cinco anos de guerra. Não conseguia explicar como tinha conseguido sobreviver à campanha da Rússia. Quase todos os companheiros tinham morrido e ele tinha estado preso num campo. Aprendera ali a odiar os comunistas e pegara uma tuberculose. Convencera-se de que aquilo que o amarrava à vida era a ideia de voltar a abraçar Agostina.

Finalmente, voltou a vê-la quando ela foi visitá-la no sanatório. Mas nos olhos da mulher lera apenas a resignação pelo seu fim, que parecia iminente.

Bem diferente foi a reação dos pais, que lhe transmitiram a esperança na cura. Armando combateu a doença e curou-se. E mais, sentiu-se forte a ponto de superar a timidez, a gaguez e a facilidade de corar de que sempre sofrera.

Quando começou a passear no parque do sanatório, descobriu uma rede que separava o setor masculino do feminino. Entre os doentes jovens nasciam histórias de amor que se consumavam na troca de bilhetes amorosos e beijos roubados por entre as malhas da rede metálica. Do outro lado da rede, Armando reparou numa mulher altiva e bonita. Também ela reparou nele. Começou entre eles uma troca de sorrisos, palavras e bilhetes. Ela chamava-se Silvia e tinha vinte anos. Uma freira surpreendeu-os enquanto se beijavam através da rede e pôs fim àquela história, impedindo Silvia de sair para o parque. Armando encontrou uma forma de se comunicar com ela através de um menino doente que podia aceder ao setor feminino sem ser controlado. A troca de mensagens tornou-se mais intensa, até que Silvia marcou um encontro com ele na cidade para o domingo seguinte, em frente à fonte na praça do município. Silvia apresentou-se ao volante de um carro conversível. Um lenço de seda, atado debaixo do queixo, cobria os cabelos dourados. Tinha o rosto em parte escondido por uns grandes óculos de sol e os lábios pintados de um vermelho berrante.

– Entre – disse.

– Parece uma atriz – observou ele, admirado.

Ela sorriu, divertida, e partiu com uma chiadeira de pneus ao longo da rua principal. – Onde é que vamos? – perguntou Armando.

No sanatório acabava por se saber tudo de todos. Assim, Silvia sabia que Armando era casado, e ele sabia que Silvia era uma bailarina de variedades. Entrava e saía do sanatório desde os quinze anos. Tinha como amante um advogado de Turim que a enchia de presentes. Até o carro era uma prenda dele.

– A um lugar onde não se possam encontrar caras conhecidas – afirmou ela, referindo-se aos doentes que gozavam a saída dominical.

Desceram em direção ao lago e tomaram o café da manhã na esplanada de uma estalagem que se refletia na água. Armando tocou-lhe num braço. Queimava.

– Está com febre – constatou.

– Estou sempre – respondeu ela, com displicência. Tirou um cigarro da carteira. – Não devia fumar – observou ele, enquanto ela aspirava uma quantidade de fumo que lhe provocou um ataque de tosse. – Não faz diferença – afirmou ela, tapando os lábios com um lenço que ficou manchado de vermelho. – É só batom – tranquilizou-o.

– É sangue – esclareceu Armando. Pegou no cigarro e atirou-o à água. – Não volte a fazer isso – disse Silvia, gélida, acendendo imediatamente outro cigarro. – Eu te levo para dar uma volta no lago – propôs Armando.

– Tenho frio. Vai pedir um quarto – ordenou.

Havia outros clientes na esplanada, por baixo de um alpendre de glicínias que os protegia do sol. Olhavam para Silvia porque era bonita e muito vistosa.

O quarto da estalagem dava para um jardim de rosas. O perfume entrava pela janela. Armando afastou a coberta de cretone branco. Silvia despiu-se e, tremendo, enfiou-se entre os lençóis.

– Tenho frio – sussurrou.

Armando cobriu-a com o seu corpo e amou-a com toda a ternura de que foi capaz. – Nunca tinha feito amor com uma tísica, antes? – perguntou Silvia. Armando só tinha feito amor com Agostina, mas não daquela maneira: a mulher não o teria permitido, nem ele teria ousado fazê-lo. Mesmo na guerra, quando o governo decidia que os militares tinham direito a alguma distração com prostitutas, ele nunca tinha ido com nenhuma. Era tímido demais para isso. A doença mudara-o, de fato.

– Estou apaixonado por você – sussurrou-lhe, respirando o seu perfume penetrante. – Eu não estou apaixonada por você, Armando. Apenas amo a vida que estou para deixar. Você vai viver. Eu vou partir muito em breve. Na última semana, a febre não me deu tréguas um único dia. Vi as últimas radiografias. No lugar dos pulmões só tenho cavernas.

Ele tapou-lhe os lábios com um beijo. Ela acendeu um cigarro e recomeçou a tossir e a cuspir sangue. Ele limpou-a com uma toalha molhada. Silvia estava fraquíssima e ele teve de ajudá-la a vestir-se.

– Consegue conduzir o carro até o sanatório? – perguntou-lhe.

Ela abanou a cabeça e meteu-lhe as chaves na mão.

Silvia morreu três dias depois. Só voltou a vê-la na capela mortuária. A freira do setor entregou-lhe um envelope. Dentro havia dinheiro e um bilhete em que Silvia escrevera: “Não é verdade que não te amo. Com este dinheiro compra qualquer coisa que agrade, para poder se lembrar de mim.”

Quando Armando voltou para casa, já curado, comprou uma motocicleta com aquele dinheiro. Agora disse à mulher:

– Nem sequer me perguntou por que foi que eu fiz aquela covardia aos trabalhadores, que me custou o seu desprezo e a minha prisão.

– Por que foi que fez?

– Para incomodá-la. Comporta-se como se fosse minha mãe, quando devia ser apenas a minha mulher. – Você também não me conhece. Já me perguntou como vivi quando você estava na guerra e no sanatório? – Se tivesse te perguntado, não me tinha respondido.

– Não tenho o hábito de andar chorando pelos cantos. Nem sequer gosto que os outros façam. O passado é o passado. No meu mundo não há espaço para a comiseração.

– Nem sequer para o amor. A não ser que se trate dos seus filhos – sublinhou Armando. Agostina tinha recusado desde que ele saíra da prisão.

Agora não replicou. Sabia que o marido tinha razão, mas não conseguia sentir-se culpada. – Você não precisa de um homem – Armando abanou a cabeça com um ar desconsolado. – Todas as mulheres precisam de um companheiro – admitiu, com uma voz amena. E continuou: – Nós dois, porém, não estamos bem combinados. Mas temos filhos crescendo e precisamos arranjar um ponto de encontro. Eu nunca vou deixar a terra. Você nunca será um camponês. Por onde podemos começar?

– Pelo nosso quarto – decidiu ele, agarrando-a pela cintura. Levantou-a da trave da carroça e pousou-a no chão. Tinham já chegado em casa e Ugo dormia na cesta.

– Agora os pequenos estão chegando. Tenho de preparar o almoço – tentou resistir Agostina. Mas Armando abraçou-a e pousou-lhe um beijo nos lábios.

Rosanna chegou da aldeia de bicicleta. Viu aquele comportamento de intimidade entre a mãe e o padrasto e não gostou. Também eles a viram.

– Arranja alguma coisa de comer e trata do pequenino – ordenou Armando, quando ela parou na eira. – Por que eu? – perguntou, incomodada.

– Eu e a sua mãe temos o que fazer – respondeu ele, empurrando a mulher para dentro de casa. A jovem odiou-os.


41

Rosanna tinha um talento natural para costurar e para bordar. Com Adelia, a sua amiga, escolhia retalhos de tecido dos montes de farrapos que se vendiam a peso, lavava-os, passava-os a ferro e transformava-os em saias, blusas e vestidos. Só assim podia competir com as amigas, que podiam se permitir roupas confeccionadas pela costureira. Por vezes, as dela eram mais bonitas do que as das outras.

– Olha que teve de ir cortar a erva – pedia a mãe, vendo-a às voltas com tesoura, agulha e linha. Rosanna não se dava sequer ao trabalho de responder. Continuava com a costura, ignorando-a. Agostina precisava da ajuda dela para trabalhar a terra, mas percebia que Rosanna tinha outros interesses e aspirações diferentes. Depois do fim da guerra, o mundo tinha mudado e os jovens tinham abandonado o campo para trabalhar nas fábricas, onde se cansavam menos e ganhavam mais.

Rosanna podia ser filha de Armando, de tal maneira eram parecidos. Ambos trabalhavam a terra de má vontade e apenas por obediência. Mas enquanto Armando bufava e ria ao mesmo tempo, sem levar em consideração a mulher, Rosanna fazia cara feia quando não conseguia fugir às ordens da mãe.

– Já não a suporto – lamentava-se Agostina.

– Nem eu a suporto – replicava ela, de rosto sombrio e olhos cintilantes de cólera. – Meninas, deixem disso, ou ainda mato vocês com cócegas – ameaçava Armando atrás delas. Agostina afastava-o com um empurrão potente.

Rosanna, quando ele conseguia pegá-la e fazer cócegas debaixo dos braços, ria e guinchava, gritando: – Cócegas não. Não vale.

Agostina observava-os e abanava a cabeça.

O único aspecto positivo era que, nos últimos tempos, o comportamento da filha em relação ao padrinho era menos hostil. Parecia que tinha deixado de odiá-lo.

Armando, por seu lado, dedicava-lhe muitas pequenas atenções, e Agostina criticava-o porque com os filhos, dizia ela, é preciso manter a distância.

– Confiança a faz perder o respeito – resmungava.

Rosanna andava pelos quinze anos. Continuava bonita e o temperamento não tinha melhorado. Às vezes fechava-se num mutismo obstinado que durava alguns dias. Em relação aos irmãos alimentava uma indiferença soberana.

Gostava de ler e levava para casa, da biblioteca, livros e mais livros. Fechava-se no quarto, e era necessária toda a força de vontade da mãe para a afastar da leitura e a convencer a virar a palha ou a sachar a horta.

Agostina não permitia que ela vivesse sem fazer alguma coisa.

Depois de acabar a instrução primária, Rosanna frequentou, durante três anos, uma escola de orientação profissional. Os professores estavam satisfeitos com ela. Uma vez mandaram chamar os pais. Como é evidente, apresentou-se só Agostina, pronta para ouvir sabe-se lá que absurdo da filha.

– A Rosanna é uma aluna brilhante – afirmou, pelo contrário, a professora de língua materna. – Eu diria mesmo que é a melhor aluna de toda a escola.

Agostina pensou em Luigi e disse:

– É inteligente como o pai.

– Acompanha lindamente todas as matérias, tanto práticas como teóricas – continuou a professora –, e seria um sacrilégio não a deixar continuar os estudos para colocá-la para trabalhar.

– Já lhe disse isso? – perguntou Agostina.

– Já, mas ela não me ouve.

– Nem vai me ouvir. Quer fazer só o que entende. Se ela continuar estudando, vai ser um grande sacrifício para nós, mas aguentamos. Eu sei bem o que sofri quando o meu pai resolveu me tirar da escola. Não quero de maneira nenhuma comportar-me da mesma maneira com a minha filha. Mas veja, Sra. Professora, se eu digo que é branco, a minha filha diz que é preto, só pelo prazer de me contradizer. Fale a senhora com ela – implorou Agostina.

De qualquer maneira, quando Rosanna voltou da escola, tentou abordar o assunto. – As suas professoras me disseram que é a melhor de toda a escola – começou, enquanto cortava os legumes para a sopa. – E depois? – perguntou a filha, enquanto ia preparando um pão com queijo. – Fiquei satisfeita por ouvir elogiarem-na.

Rosanna alcançou o peitoril da janela e sentou-se. O gato saltou ao seu colo. Ela trincou o pão e deu-lhe um pedaço. Rosanna observava a mãe. Agostina tinha 34 anos e já notavam alguns fios de prata por entre os cabelos. O rosto, curtido pelo sol, estava marcado por rugas profundas. Nem nos modos, nem na roupa, havia uma sombra de vaidade. Não se importava com o aspecto, ao contrário das outras mulheres. Nunca tinha usado um creme, nem um batom nos lábios. Não tinha nada que pudesse chamar a atenção de um homem. No entanto, o marido afagava-lhe muitas vezes as ancas, quando pensava que ninguém estava vendo. E, como se isso não bastasse, Rosanna ouvia muitas vezes, de noite, a rede da cama chiando. Naqueles momentos odiava a mãe.

– Era bom que cada um se metesse nos seus assuntos – disse a filha. – Isso não é resposta que se dê – reagiu Agostina. A água na panela estava fervendo e ela mergulhou lá os legumes cortados.

Depois juntou um punhado de sal, baixou a chama e pôs a tampa. Desde há algum tempo que o velho fogão a lenha tinha sido substituído por um fogão barato que funcionava com um botijão de gás. Era uma novidade requerida por Armando, que permitia à mulher reduzir algum cansaço.

– Eu não estudo porque me agrada, mas para ficar longe dos campos. Quero trabalhar em uma fábrica e ganhar um salário, sem me sentir em dívida com você – declarou Rosanna. Afastou o gato com a mão e desceu da janela.

– E depois – acrescentou –, eu não tenho nada a ver com você nem com o resto da família. Aqui toda a gente se chama Elia. Eu sou Benazzo. Está claro?

As pessoas diziam a Agostina:

– Os seus rapazes são bonitos. Mas a pequena é como uma rosa. – Ela replicava: – Tem muitos espinhos. Seja como for que a pegue, ela pica. – Então diziam, para consolá-la: – Ela acalma quando tiver um namorado.

Os pretendentes a namorados eram muitos. Amilcare, um filho dos Marenco, era um deles. Rosanna andava sempre se esbarrando nele. Uma noite ele parou embaixo da janela dela e, acompanhado pelo violão, fez-lhe uma serenata.

Enquanto cantava “ Chi gettò la luna nel rio ”, apanhou-o com um cântaro de água na cabeça. Fugiu a sete pés, mortificado. Rosanna, debruçada da janela do quarto, ficou vendo-o desaparecer na escuridão. Fechou as portadas e achou-se ao lado de Armando, que lhe pousou uma mão no ombro. Aquele contato ligeiro a fez estremecer.

– Por que é que manda embora todos? O Amilcare é um bom rapaz. Podia ser um bom marido – disse o padrasto. – Eu não quero um camponês – sussurrou ela, subitamente perturbada pela proximidade daquele homem, que tinha se tornado ainda mais bonito depois que os cabelos tinham ficado completamente brancos. Voltou-se de repente para ele e olhou-o nos olhos. Armando afastou-se dela lentamente e saiu do quarto. Então Rosanna percebeu que não queria saber de camponeses, nem de rapazes da cidade, porque só gostava de Armando.


42

Em cima da mesa estava a caneca do leite, a do café acabado de fazer, a tigela da marmelada, a manteiga e o pão cortado em fatias.

Da cozinha, Agostina berrou para acordar a família:

– São seis e meia. O café da manhã está pronto. Fora da cama!

De repente alguém bateu à porta de casa. Ela tirou o cadeado e abriu. Erminio, o empregado, tirou o boné e inclinou a cabeça.

– Bom dia, signora Agostina – disse. Era sempre o primeiro a apresentar-se à mesa. – Com licença – continuou, enfiando o boné no bolso do casaco. Já tinha varrido a eira e, logo a seguir ao café da manhã, ia abrir o estábulo para ordenhar as vacas.

As crianças desceram, numa barulheira, ainda cheias de sono e por acabar de vestir. Depois apareceu Armando. Serviram-se em silêncio. Agostina pegou Ugo ao colo, pôs-lhe um babador e ajudou-o a molhar no leite o pão com manteiga, enquanto olhava em volta.

– Onde é que está a Rosanna? – perguntou.

– Apanhou a caminhonete hoje de manhã, às cinco e meia – respondeu Erminio. – Disse-lhe alguma coisa? – quis saber Agostina.

– Dei-lhe o bom-dia. Ela não respondeu – disse o homem.

Ela olhou para o marido com um ar interrogativo. Ele abanou a cabeça. – Vai procurá-la – ordenou.

– Se ela foi embora, tem lá os seus motivos – defendeu-se Armando. – Você foi o último a falar com ela, esta noite, depois de ter despejado a água na cabeça daquele pobre rapaz. – O concerto não foi muito do agrado dela – continuou Armando. – Mas deve ter lhe dito alguma coisa – insistiu Agostina, fixando-o nos olhos, como se quisesse fulminá-lo. Armando baixou o olhar para a xícara de café e não respondeu.

O filho mais velho acabou de tomar o café com leite, limpou a boca e informou: – Foi trabalhar na fábrica de trapos do pai da Adelia.

– Tem certeza? – perguntou a mulher, furiosa.

– Foi ela que me disse – respondeu o rapaz.

Agostina perguntou-se o que teria feito de mal para ser constantemente desafiada pela filha. Erminio já tinha escapulido para o estábulo, e os dois filhos mais velhos tinham saído para a escola. Agostina passou uma mão na testa, como se quisesse mandar embora os maus pensamentos. – Como é que eu devo agir com essa menina? – perguntou ao marido, mesmo sem esperar que ele lhe desse alguma resposta. De fato, Armando não fez comentários. Tirou do cabide o avental de trabalho, apertou-o na cintura e saiu. No entanto, antes de fechar a porta, olhou para a mulher com ternura.

– A Rosanna é assim mesmo – disse. – Não vale a pena consumir a alma. Conforma-se. Rosanna voltou depois do anoitecer.

Agostina viu-a descer da caminhonete. Estava descascando feijão, sentada à porta de casa. Dirigiu-lhe um olhar interrogativo.

– Trabalho na escolha dos farrapos – anunciou a filha. – Me dão trinta mil liras por mês. Agostina pensou que Rosanna poderia cultivar a sua terra, ou continuar estudando, mas tinha preferido um trabalho dos mais – Metade do dinheiro vou dar para casa, para o meu sustento – disse ainda, orgulhosa. – Eu não o quero – rebateu Agostina.

Desagradava-lhe a ideia de a filha se humilhar com um trabalho tão ingrato. – Eu meto-o no frasco do açúcar – decidiu a moça.

– Não estou nada satisfeita – objetou a mãe.

– É exatamente por isso que o faço – disparou Rosanna, com um sorriso de desafio e entrou em casa. Agostina recordou que também o marido tinha traído dois camponeses para irritá-la, mas que depois tinha arrependido.

Talvez Rosanna voltasse também a pensar no assunto. Suspirou e continuou a descascar o feijão. O pequeno Ugo corria pela eira, perseguido por um ganso que queria lhe dar uma bicada. Ele estava divertido e com medo ao mesmo tempo. O ganso chamava-se Florindo. Era muito mau e podia fazer-lhe mal. Pousou no chão o saco dos feijões e se atirou ao ganso, armada de um bastão, para afastá-lo.

– Xô, xô! – começou a berrar, abanando o bastão.

Florindo abriu as asas, levantou as penas e, desviando a sua atenção do pequeno, preparou-se para a atacar, ameaçando-a com o seu “Qua qua”.

– Se não sossegar, arranco o seu pescoço, sua besta má – gritou.

Ugo ria-se. O ganso acalmou e afastou-se. Ela riu-se também.

– Tem que manter-se afastado do Florindo. Já sabe que ele é mau – avisou à criança. – É mau como a Rosanna – disse Ugo.

Agostina agarrou o filho pelo braço.

– A sua irmã não é má – sussurrou. – É só um bocadinho complicada. – A Rosanna não é má – repetiu Ugo. – Só é má quando bebe vinho. Também arrancamos o pescoço dela? Agostina ficou gelada.

– Você também bebe um pinga de vinho, às vezes – afirmou Agostina, para atenuar aquela frase que, dita assim, parecia ser terrível.

– Mas ela bebe do garrafão. Puxa-o com uma palha. Eu a vi – explicou com candura. Aquilo era uma transgressão bastante comum entre os jovens do campo. Ela própria o tinha feito, quando era pequena. Pousou o pequeno no chão e disse:

– Vá brincar. E fique longe do Florindo.

De qualquer modo, quando a família se reuniu à volta da mesa, ela manteve a filha sob vigília. Rosanna tomou a sopa e comeu omelete com queijo, acompanhadas de um único copo de vinho aguado, como todos os outros. Ficou sossegada. Durante o jantar, os irmãos, como sempre, tentaram alfinetar a irmã.

– Os trabalhos feios rendem muito dinheiro – sentenciou Roberto, atirando-lhe uma bolinha feita com miolo de pão. – Vai ficar milionária à força de separar farrapos – ajudou Gino. O braço de Rosanna saltou como um raio através da mesa e atingiu, numa sucessão rápida, primeiro um e depois o outro irmão. Os dois morreram de rir e, ao mesmo tempo, começaram a cantar: “Chi gettò la luna nel rio, chi la gettò?” Era uma imitação cômica da serenata de Amilcare Marenco.

– Agora chega. Peçam desculpa à sua irmã – interveio Armando que, até aquele momento, não tinha levantado os olhos do prato.

– Irmã, uma ova! Você não é meu pai. Lembrem-se disso! – rebateu Rosanna, fulminando-o com um olhar. Depois afastou a cadeira, correu pelas escadas acima e fechou-se no seu quarto.

– Não é capaz de se fazer respeitar – criticou Agostina.

– Não sou pai dela – respondeu Armando. Bebeu um copo de vinho e saiu para a eira. Levantou os olhos para a janela de Rosanna. Viu-a atrás dos vidros. Olhava para ele, enquanto desabotoava lentamente a blusa e se mostrava na sua imatura nudez. Armando engoliu qualquer coisa de doce e amargo. Depois baixou os olhos e afastou-se em direção aos campos. Chegou à aldeia a pé. Foi à taberna e afogou no vinho a sua fraqueza. Voltou a altas horas da noite, completamente bêbedo. Rosanna estava sentada no peitoril da janela. A Lua fazia brilhar a garrafa de vinho que tinha na mão.

Armando entrou em casa, subiu as escadas e abriu a porta do quarto. Agostina dormia, vencida pelo cansaço. Tomou-a com violência, chorando como uma criança.


43

Passaram os anos. Os trabalhadores, que tinham recomeçado as greves, foram obrigados a interrompê-las porque o rio transbordou e danificou casas, culturas e animais. Em casa de Agostina andavam todos nervosos e bastava uma coisa de nada para desencadear um litígio.

Agostina decidiu pedir ajuda a uma bruxa. Nunca tinha acreditado nelas. Mas lembrava-se de que a mãe e as outras camponesas, quando entravam em desespero, se dirigiam a elas e, depois, alguma coisa acontecia sempre.

Enterrando na lama os pés calçados com as botas de borracha, foi ao cemitério. Tinha a certeza de encontrar ali a “Carulina di bindei”. Chamavam-lhe assim por causa das fitas coloridas que entrançava com os cabelos. Usava uma meia de cada cor. Todos os dias ia ao cemitério deixar comida e vinho na campa dos pais, mortos há bastante tempo. Enfeitava as lápides com fitas coloridas, flores de papel, bonecas e brinquedos. Vivia, sabe Deus como, com a pensão do marido, morto na guerra. Ia à igreja comungar, depois de ter desenhado na testa a foice e o martelo do Partido Comunista, em que estava inscrita. O padre conhecia-a, fazia de conta que não via e administrava-lhe o sacramento. Ela sabia prever o futuro com o tarot, curar chagas com emplastros de ervas e afastar o demônio com palavras cujo significado toda a gente ignorava.

Agostina, em qualquer caso, foi ao cemitério. Percorreu até o fundo a rua principal, que terminava com a capela gótica de uma família que, antigamente, era proprietária daquelas terras. Dali controlava a entrada sem se fazer notar. Esperou um bom pedaço, a remoer pensamentos sombrios, até que a viu chegar. As fitas coloridas pendiam-lhe dos cabelos e trazia nos braços um grande ramo de hera. Ajoelhou-se em frente ao túmulo dos pais e rezou durante muito tempo. Depois tratou de tirar o pó das lápides, de as enfeitar com a hera e de substituir as tigelas de comida. Carulina era pequena, magra, e não aparentava os seus sessenta anos. Parecia um espírito alegre. Agostina foi ao encontro dela.

– Olá, Carulina – cumprimentou.

– Morreu alguém? – perguntou a bruxa.

– Perdi a paz – respondeu Agostina.

– Isso vê-se – replicou, com um sorriso cheio de ironia. Sentou-se ao lado da campa, de costas voltadas para a lápide. Agostina agachou-se ao lado dela.

Lembrou-se de todas as vezes em que, vendo-a de longe, tinha desviado caminho para não a encontrar. E lamentou esse fato. – Como é que se pode viver sem paz? – perguntou.

– Nem tudo corre mal. Nem com a sua família toda – disse Carulina, acariciando o saibro do caminho. Os seixos estavam escurecidos pela umidade, mas onde ela passava a mão, secavam e ficavam brancos.

– Quem, e o quê, é que eu vou conseguir salvar? – perguntou Agostina. A bruxa olhou-a nos olhos e disse:

– Os filhos dos seus filhos vão se salvar, a Irene em primeiro lugar – profetizou. – Não há Irene nenhuma, e os meus filhos ainda são pequenos – explicou. – Vão crescer. Antes queria que morressem sem procriar? A Irene vai ser a primeira a chegar. Ela vai conhecer a paz. Você não, nem o seu homem, que não tem espinha dorsal, nem a sua filha, que está tão desesperada que é capaz de se entregar ao diabo, nem os seus rapazes, que só vão amar o dinheiro. Conforma-se. Cada qual tem o seu destino.

Carulina disse tudo isto num sussurro, com o rosto reclinado sobre o peito e o olhar fixo no saibro que afagava. – O que foi que eu fiz de mal? – perguntou Agostina.

– Só fez aquilo que a apeteceu fazer. O mal e o bem não têm nada a ver com isto. Deixa as coisas acontecerem, sem se atormentar. Só o Senhor é onipotente. Quer competir com Ele?

Agostina foi embora, desiludida e perturbada. A “Carulina di bindei” tinha lhe sugerido a resignação. Era como se tivesse ido ao médico para lhe ouvir dizer que estava morrendo e que ele não podia fazer nada para salvá-la. Quanto àquela Irene, que talvez estivesse em algum lugar para vir, era a coisa que menos lhe importava.

Naquela noite, porém, Rosanna anunciou:

– Não volto a trabalhar nos trapos.

Mais uma vez, estavam todos à mesa. Agostina esticou as orelhas. – Os Vauro vão me dar emprego na confecção das calças – explicou. Os Vauro tinham sido camponeses durante muitas gerações. Depois, uma filha resolveu trabalhar como calceira. Em cinco anos, com o apoio da família, tinha criado uma fábrica de confecções que abastecia os grandes armazéns de todas as cidades importantes.

– Se correr bem, daqui a três meses passo a efetiva e me dão quarenta mil liras por mês. Rosanna tinha vinte anos. Gostava de se vestir bem. Gostava, sobretudo, de sapatos de saltotacão vertiginoso e cintos altos, que apertavam muito na cintura fina. Continuava a ter muitos pretendentes. Ao fim do dia, quando saía da fábrica, em vez de correr até em casa para dar uma mão, como faziam Roberto e Gino, sentava-se a uma mesa do Bar Centrale com as amigas. Gostava de se fazer admirar. Cruzava as pernas, cobertas por umas finíssimas meias de nylon, deixando entrever uma saia de baixo, com grandes folhos engomados, que fazia inchar a saia rodada de cores muito berrantes. Da cintura fina despontava, como uma flor, um busto harmonioso que as blusas muito decotadas faziam sobressair. Numa mão segurava o copo do aperitivo, na outra ostentava um cigarro.

Era impossível não reparar nela. As amigas invejavam-na, os homens olhavam-na com avidez. E isso parecia deixá-la satisfeita. Mas não era assim, porque ela desejava um único homem: o padrasto.

Ficava no bar até tarde, sabendo que ele, por ordem de Agostina, iria buscá-la para levá-la de volta para casa. Entre os jovens que andavam à volta dela como moscas contava-se também Mauro Cordero. Era da idade de Rosanna. Era um rapaz bonito e tímido. À noite, passava de motocicleta em frente ao bar. Fazia uma paragem, antes de continuar até a fábrica onde fazia o turno da noite. Era tão tímido que não ousava sequer cumprimentá-la. E, no entanto, parava só por causa dela. Aproximava-se do balcão do bar e pedia um café. Enquanto o bebia, olhava de esguelha para ela e elaborava fantasias celestiais. Os amigos davam-lhe cotoveladas e diziam:

– Estúpido, avança! – Ele corava e fugia.

Uma noite, enquanto atravessava a esplanada do bar e passava ao lado de Rosanna, um rapaz passou-lhe uma rasteira. Mauro perdeu o equilíbrio e foi parar em cima dela, fazendo-a cair.

Ficou tão mortificado que os olhos se encheram de lágrimas, ao mesmo tempo que corava até as orelhas. – Desculpe, signorina – implorou, enquanto a ajudava a levantar-se. Os amigos do bar riam de satisfação.

– Ora essa – disse ela, encontrando milagrosamente um sorriso. – Já percebi que quiseram lhe pregar uma peça. – Estou realmente desolado – repetiu Mauro.

– Mas eu fiquei encantada. Aliás, convido-o a sentar-se na minha mesa. Faça-me companhia. Estes rapazes de San Benedetto são tão grosseiros – afirmou Rosanna, em voz alta, para que a ouvissem.

Mauro estava emocionado e confuso. Não conseguia acreditar que a mulher dos seus sonhos lhe falasse com tanta doçura e o preferisse aos outros.

– Eu tenho de ir trabalhar – foi tudo o que conseguiu dizer. E era tal a emoção que, desta vez, tropeçou sozinho e caiu entre as mesas. Ela socorreu-o prontamente, ignorando as gargalhadas dos invejosos.

Saíram juntos do bar e ela estendeu-lhe a mão para se despedir:

– Eu também tenho de voltar para casa.

Desta vez, Mauro encheu-se de coragem:

– Se não se importar de ir na minha Lambretta, eu levo-a.

– Mas vai chegar tarde ao trabalho – observou ela, maliciosamente. – Eu pago a multa.

Não se tinham apresentado, nem era preciso, porque se conheciam há algum tempo, apesar de nunca terem se falado nem cumprimentado antes. Rosanna sabia que Mauro, órfão de pai e mãe, tinha sido confiado a uma instituição onde tinha crescido e aprendido uma profissão. Aos dezesseis anos, quando regressou a San Benedetto, foi acolhido por uma irmã do avô paterno, que era solteira e que, desde sempre, geria uma velha mercearia que mal lhe dava para viver. Era um rapaz solitário, que nunca conhecera o calor de uma família. Esta falta de afeto fazia-o sentir-se sempre em dívida para com os outros, quase como se quisesse desculpar-se de ter vindo ao mundo. Mexia-se com discrição, tentava passar despercebido e sonhava com uma namorada com quem casar. Rosanna era o mais bonito dos seus sonhos. Tinha se apresentado da pior maneira e, no entanto, não só ela o tinha preferido aos outros como ainda aceitara que ele a levasse a casa.

Mauro não sabia que a moça o estava usando para fazer ciúmes a Armando. Tinha visto chegar o padrasto do outro lado da praça. Queria que ele a visse afastar-se com Mauro e, quando a Lambretta passou ao lado dele, dirigiu-lhe um grande sorriso.


44

Agostina, na eira, suspirou de alívio quando viu chegar a filha na motocicleta que avançava pelo caminho, na companhia de Mauro. Conhecia-o como sendo um rapaz doce, respeitador e um grande trabalhador. A tia-avó merceeira tinha lhe dito que o rapaz fazia o turno da noite numa fábrica para poder trabalhar a terra durante o dia, e pagar assim a hospitalidade que ela lhe oferecia.

– Querem ver que a conversa com a “Carulina di bindei” está me trazendo algum bem? – interrogou-se, em voz baixa, e foi ao encontro deles.

Convidou Mauro para tomar alguma coisa fresca. O rapaz limitou-se a cumprimentá-la, desculpando-se por não poder aceitar.

– Ia chegar muito tarde à fábrica. Mas ele volta – garantiu Rosanna por ele. Agostina sorriu como há muito tempo não fazia. Pensou que, se os dois começassem a andar juntos, talvez Rosanna melhorasse.

– Vou fazer-te a torta de cogumelos e batatas de que tanto gosta – disse. Rosanna não a ouviu. Já tinha voado para casa e estava fechada no quarto. Ficou atrás da janela, para espiar o regresso do padrasto.

Viu-o descer da caminhonete, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, aquele passo bamboleante de que ela tanto gostava e uma madeixa de cabelos brancos que cobria a testa. Sentou-se no peitoril da janela. Ele levantou os olhos e viu-a. Deu um pontapé numa lata, apressou o passo, deu a volta à casa e dirigiu-se ao pátio dos fundos. Tirou o casaco, pôs o avental e continuou o trabalho que tinha interrompido para ir buscá-la na aldeia. Ela mudou de janela. Escancarou aquela que dava para o pátio dos fundos e voltou a sentar-se no peitoril.

Armando não levantou a cabeça do trabalho. Sabia que ela estava ali em cima, olhando para ele. Rosanna debruçou-se com o corpo todo fora da janela e pousou os pés no revestimento de telha da loja. Caminhando sobre o telhado, chegou ao palheiro e desceu pelo alçapão. Com um salto, atirou-se para aquela montanha almofadada de feno. Quando Armando entrou no palheiro encontrou-a à frente dele, estendida na palha. Olhava-o com ar de desafio.

– Vai ajudar a sua mãe – disse-lhe, com uma voz estrangulada. Aquela moça tão bonita, estendida no feno, com a saia descomposta mostrando a perfeição das pernas, era capaz de perturbar qualquer um.

– Está com ciúmes. Por que não reconhece isso? – perguntou-lhe. – Não me faça perder a paciência – censurou-a, lutando contra o desejo de abraçá-la. – Você me quer. Sempre me quis, mas tem medo da Agostina. Como ela diz, é só bonito, não tem espinha dorsal. Hoje à noite subiu na Lambretta com o Mauro e pensou: aquele rapaz vai levá-la embora. Mas você olha para mim e não ousa fazer nada. Não tem coragem, Armando. E está atormentado pelos ciúmes.

Rosanna levantou-se e, ao fazê-lo, o decote da blusa escorregou do ombro, revelando um seio perfeito. – Tem que deixar de me provocar – retorquiu Armando, dando-lhe uma bofetada que lhe atingiu a face. Logo a seguir agarrou-a por um braço e apertou-a até machucá-la. – Perdoa-me – sussurrou, desesperado. – Eu não queria.

Rosanna, naquele momento, tentou soltar-se, mas ele pousou os lábios nos dela e beijou-a. Caíram juntos na palha e ele tomou-a com uma paixão que nunca tinha sentido. Depois cobriu-a de beijos.

– Sim, tenho ciúmes. Não a queria, mas também não queria que outro a tivesse. Se isto é amor, é um sofrimento de partir o coração. – Chorava sem freio e abraçava-a como se temesse perdê-la.

Tocou a sineta: Agostina chamava a família, porque o jantar estava pronto. Foi um regresso cruel à realidade. – Meu Deus do céu, o que foi que eu fiz – disse Armando. Levantou-se da palha e arranjou, com gestos quase maternos, a roupa de Rosanna e a dele.

A moça não disse nada. Subiu pela escada de mão, saiu para o telhado e, saltitando pelo meio das telhas, entrou no quarto. Despiu-se, lavou-se, vestiu o pijama, depois desceu até o meio das escadas e disse: – Hoje não janto. Estou cansada. Vou dormir. – Não tinha vontade de enfrentar Agostina. – Mas eu fiz a torta de cogumelos e batatas – protestou a mãe, desiludida. – Amanhã eu como – prometeu ela. E, inesperadamente, acrescentou: – Obrigada. – Depois fechou-se no quarto. Tirou do fundo do armário uma garrafa de vinho. Estendeu-se na cama e, lentamente, trago após trago, esvaziou-a. Então sentiu-se leve, ao mesmo tempo que as pálpebras se tornavam pesadas. Fechou os olhos e adormeceu. Na manhã seguinte não desceu para o café da manhã. Agostina entrou no quarto dela. Rosanna estava acordada há algum tempo, mas fingiu dormir. Tinha escondido debaixo da cama a garrafa de vinho vazia. – Olha que hoje não é domingo. Tem que se levantar, se não chega tarde ao trabalho – disse, enquanto a abanava. – Hoje fico em casa – respondeu a filha.

– Por quê? – indagou Agostina.

– Não me sinto bem.

A mãe passou uma mão na sua testa.

– Não tem febre. O que é que tem?

– É preciso ter febre para uma pessoa não se sentir bem? Eu é que sei como me sinto – disse, irritada. Por um instante, teve a suspeita de que a filha estava mentindo. Depois envergonhou-se disso. Não havia razão para lhe contar uma mentira. De resto, Rosanna era até bem franca. Agredia-a com as suas verdades, chegando mesmo a ser cruel. – Tenho de ir para o campo todo o dia. O seu pai está à espera do veterinário. Se precisar de alguma coisa, chama por ele – concluiu. O veterinário passava de seis em seis meses, para controlar o estado de saúde dos animais. Quando teve a certeza de estar só, Rosanna desceu até a cozinha e comeu a torta de cogumelos e batatas. Depois sentiu o ruído de um automóvel. O veterinário apareceu na eira. Viu Armando, que ia ao encontro dele. Olhou-o com um ar arrebatado e pensou: é meu.

Voltou ao quarto e ficou à espera dele. Sabia que Armando ia até ela assim que o médico fosse embora. Calculou uma meia hora, enquanto arrumava o quarto. Mas sentiu os passos dele na escada poucos minutos depois. Entreabriu a porta. Tinha entrado no quarto que dividia com a mulher. Saiu pouco depois com uma mochila às costas.

– Aonde vai? – perguntou Rosanna, abrindo a porta.

Armando parou no meio das escadas e ergueu para ela um olhar desesperado. – Vou fugir. Não vê? – disse.

– Por quê? – perguntou ela, assustada.

– Passei a noite pensando em você, na festa, fazendo amor com você, ao lado da sua mãe, fingindo que dormia. Ainda vai haver uma tragédia, se eu não for embora.

– Armando, por favor, não me deixe. – Rosanna estava quase chorando. Ele voltou a subir as escadas, segurou-a pela cintura e apertou-a nos braços.

– Anda – sussurrou ela. – Anda para a minha cama.

Armando afastou-a e desceu as escadas correndo. Da janela, Rosanna viu-o entrar no carro com o veterinário. Depois de eles partirem, foi ao porão, enfiou a palha dentro de um garrafão e começou a sorver avidamente.


45

– O seu pai estará fora durante uns tempos. Foi à casa dos pais, porque a avó está doente – anunciou Agostina, quando os filhos estavam reunidos para o jantar.

Rosanna tinha a cabeça inclinada sobre o prato e o olhar carregado. – Ainda se sente mal? – perguntou a mãe.

– Nunca estive tão bem – respondeu, com ar de querer agredi-la. – Como eu imaginava. Já vi que deu conta da torta.

– Quando a avó morrer, fazemos um dia de descanso, não é? – perguntou Gino. Os pais de Armando eram uns avós quase desconhecidos. Vinham visitá-los uma vez por ano, para o almoço de Natal.

Traziam presentes, comiam e depois iam embora outra vez. Os netos não tinham nenhuma relação afetiva com eles. No entanto, se a avó estava doente, sendo já velha, era possível que morresse e, nesse caso, teriam de faltar à escola para ir ao funeral.

– Esperemos que morra depressa – disse Gino.

Agostina deu-lhe uma palmada no pescoço. Eles riram. Mas Ugo começou a chorar. Chorava sempre que a mãe se zangava. Rosanna saltou como uma mola e deu-lhe uma bofetada.

– Não quero ouvir essa choradeira – berrou.

Agostina fulminou-a com o olhar.

– Nunca mais ouse maltratar os meus filhos – exclamou.

– Os seus filhos. A sua casa. O seu marido. É tudo seu. Se ao menos houvesse alguma coisa minha! Mas nem que eu a procure com uns binóculos – disse a moça, agressiva.

– A vida é sua, se ao menos soubesse fazer bom uso dela – sussurrou a mãe. – O que é que quer dizer com isso?

– Ouviu muito bem – disse a mãe, olhando-a com severidade.

Rosanna corou. Seria possível que Armando tivesse falado? Claro, de qualquer maneira tinha-a avisado da sua partida. Mas o que teria lhe dito mais? Os rapazes pararam de comer e olharam para elas.

– Não gosto de adivinhações – desafiou Rosanna.

– É egoísta e frívola. Só pensa nos seus prazeres, que não vão te levar muito longe. Já tinha-a posto fora de casa, se não fosse minha filha – desabafou Agostina.

Rosanna agarrou a bolsa que estava pendurada num cabide e gritou: – Muito bem. Então vou embora.

Os irmãos olharam para ela, espantados, e também um pouco aliviados, porque aquela irmã era realmente insuportável. – Rosanna, onde é que vai? – perguntou Ugo, por entre as lágrimas. – Vou a Tortona ver quando é que a avó morre.

Correu para a estrada porque tinha visto a caminhonete aparecer na curva. Tinha estado algumas vezes em Tortona, quando era menor. Tinha achado a loja dos Elia fascinante. O que mais a prendeu foi o perfume que ali pairava: uma mistura de aromas de presunto, café, baunilha, noz-moscada, queijo e pão fresco. Os avós viviam acima da loja, numa casa com muitos quartos.

Rosanna chegou à casa deles no meio da noite. Foi Armando quem abriu a porta. Estava em mangas de camisa e tinha em ar abatido. Olhou para ela. Sorriu. Abraçou-a.

– Vim te buscar – disse ela.

– Armando, quem é? – perguntou uma voz que vinha de um quarto distante. Era a mãe, que tinha acordado. – Ninguém, fica sossegada – respondeu o filho.

– Então, não me manda entrar? – perguntou Rosanna.

Ele pegou-lhe no braço e conduziu-a até o seu quarto. Deitou-a na cama e começou a despi-la. – Nasceu para a minha perdição – sussurrou ele. – Fugir não adiantou nada. – Então desiste. Eu acabaria por te encontrar, ainda que tivesse ido para o outro lado do mundo. – Por que foi que, no meio de tantos homens, foi escolher logo a mim? – perguntou, já vencido. E acrescentou: – Carrego-a como uma doença de que não me posso libertar, apesar de querer muito. Passaram a noite fazendo amor. Só quando as gelosias filtraram a primeira luz da manhã é que Armando a levou para uma divisão contígua, que era uma espécie de sala com um sofá. Tapou-a com um cobertor. – Agora dorme. Logo voltamos para casa.

– O que foi que disse à minha mãe? – perguntou.

– Nada. Acha que eu lhe posso dar uma dor tão grande?

– Então desconfia de alguma coisa.

– Como a conhece mal! A Agostina é incapaz de alimentar suspeitas sobre alguém. – Está defendendo-a.

– Não merece ser ofendida.

– Odeio quando faz isso.

– É a minha mulher e a mãe dos meus filhos. Gosto dela.

– Mas entretanto faz amor comigo – afirmou ela, com um sorriso de triunfo. – Não me sinto nada orgulhoso desta nossa história – admitiu Armando, com tristeza. – Eu sinto – sussurrou Rosanna.

Finalmente tinha se apropriado de alguma coisa que pertencia à mãe. Apenas isso contava para ela, que não sabia que amava Agostina ao ponto de querer ser igual a ela, de entrar nela, de pensar com a cabeça dela e de possuir aquilo que ela possuía.

Armando tinha se sentado na beira da cama e afagava os seus cabelos. – Como era a minha mãe, quando a conheceu? – perguntou Rosanna. – Era como você. Você é igual a ela.

A moça sorriu, satisfeita.

– Conta – pediu-lhe.

– Tinha mais ou menos a sua idade e trabalhava nos arrozais. Era esquiva e não dava confiança a ninguém, sobretudo aos homens. Movia-se com a altivez de uma rainha. Incutia respeito a toda a gente. Trazia-a no ventre, mas tinha abandonado o marido. Quando ele morreu, eu arranjei coragem para me declarar. Estava perdidamente apaixonado por ela. Duvido que ela alguma vez o tenha estado por mim. Sempre teve medo de exteriorizar os seus sentimentos. Você é parecida com ela, mas falta-lhe a generosidade e a força que ela tem. Se assim não fosse, não estaríamos aqui. Você bebe às escondidas e eu a desejo, e penso em você, e sonho contigo, e por isso me esconjuro. Agora dorme. Mais logo voltamos para casa e que Deus tenha piedade de nós – concluiu num sussurro.

Quando voltaram a San Benedetto, encontraram Mauro Cordero. Estava trabalhando na eira. – O que é que está fazendo aqui? – perguntou Rosanna, tratando-o por tu. – Pensei em convidá-la para irmos ao cinema – respondeu ele, corando. – Mauro, deixa dessas cerimônias – disse ela.

– Hoje é o meu dia de folga. Você não estava. Mas eu vi que aqui fazia falta uma mão. – Olhava-a com adoração. Rosanna não apreciou aquela candura, aquela disponibilidade, aquela inocência. Mauro era apenas um instrumento para provocar o ciúme de Armando.

– Então vamos já para o cinema – decidiu.

– Não faça mal a ele também. É um bom rapaz – sussurrou o padrasto, antes de entrar em casa. Rosanna sorriu e sentiu-se invencível. Tinha nas mãos o marido da mãe. Era aquilo que sempre tinha querido. Mauro não lhe suscitava nenhum sentimento.

Agostina deu graças ao céu por o marido e a filha terem regressado, porque a sogra não estava tão mal como ela pensava e porque Rosanna estava montando na Lambretta de Mauro para ir com ele ao cinema.

Tinha pena que o rapaz não fosse um camponês. Mas já se tinha conformado com a ideia de que nenhum dos filhos queria continuar a trabalhar a terra.

Entrou em casa. O marido abraçou-a.

– O que vêm a ser estas denguices? – defendeu-se ela, afastando-o. Armando sentou-se à mesa, sem dizer nada. Os filhos pareciam desiludidos pelo fato de a avó não ter morrido. Gino mais

do que todos. Não gostava de estudar nem gostava de trabalhar a terra. Não via a hora de acabar a escola para depois, passado ou reprovado, ir trabalhar em San Benedetto, numa oficina de reparação de automóveis. Os motores eram a sua paixão.

Agostina sentou-se em frente ao marido e deu um longo suspiro.

– O que foi? – perguntou Armando.

Os rapazes tinham saído para a eira e faziam uma grande algazarra com os amigos. – A Rosanna bebe às escondidas – confessou Agostina.

– Eu sei – respondeu Armando.

– É infeliz.

– Também sei isso.

– O que é que eu posso fazer? – perguntou a mulher, num sussurro. Assim se passou o verão. Veio um longo inverno e começou um novo ano. Rosanna e Armando amavam-se como e onde podiam. A necessidade de se possuírem nunca os saciava. Rosanna tornava-se cada vez mais agressiva. Só encontrava alguma paz entre os braços de Armando, ou quando se agarrava ao gargalo de uma garrafa de vinho.

Mauro continuava com a sua corte discreta. Estava apaixonado e não arranjava coragem para se declarar. Gozava do privilégio de poder acompanhá-la ao cinema, aos bailes, ou a dar um passeio. Às vezes oferecia-lhe flores e dava uma mão a Agostina, quando era preciso.

Um dia, Rosanna descobriu que estava grávida.


46

O hábito de se reunirem os vizinhos, ao serão, para conversar e beber um copo de vinho, sobrevivia agora apenas em poucas famílias, as mais abastadas, as que tinham conseguido acertar o passo com os tempos e que geriam as propriedades como se fossem empresas.

Muitas fazendas pequenas agonizavam. Os jovens trabalhavam na indústria, única saída para a sobrevivência, enquanto os pais conseguiam com dificuldade tratar das pequenas propriedades.

Onde morria uma fazenda, nascia uma pequena fábrica. As instalações fabris, da periferia das cidades, invadiam os campos. O novo avançava com a arrogância do vencedor, e o velho, apesar de ter já perdido o fôlego, não se decidia a morrer.

Agostina fazia parte desta humanidade agonizante. Os filhos, quando voltavam do trabalho, vestiam roupa boa e iam divertir-se. Deslocavam-se de Vespa, de Lambretta e de carro.

– Já não sabem andar; os pés só lhes servem para dançar – lamentava Agostina. E reforçava a dose: – Mudam de namorada como se muda um par de meias.

Ugo, o filho mais novo, estudava com vontade e gostava de matemática, disciplina em que se distinguia. – Vou ser contador – dizia, inchando como um balão em frente dos irmãos. – Vou trabalhar de terno e gravata, não de macacão, como vocês.

Rosanna era a única que não elaborava projetos, até porque só via escuridão à frente dela. Às vezes saía com Mauro Cordero, mas o mais frequente era fechar-se no quarto e beber. Armando já não tocava acordeão. À noite, quase sempre, ia ao bar, na aldeia. Vivia com a sensação de estar à beira de um precipício do qual desejava e temia cair. Agostina estava sozinha com os seus fantasmas. Às vezes a solidão era tão pesada que ia fazer uma visita aos Marenco. Sentia algum conforto no calor daquela grande família, e comparava a solidez deles com a sua própria fraqueza. Olhava para Paolo Marenco, o filho mais velho, que tinha casado cedo e tinha já três filhos. Também Amilcare, o irmão mais novo, o namorado que Rosanna tinha rejeitado, estava agora casado e feliz e esperava o primeiro filho. Agostina teria gostado muito que aquele menino fosse seu neto.

Naquele frio domingo de março foi Ugo que a arrastou até a casa dos Marenco, porque havia lá mais crianças para brincar. Roberto e Gino estavam na montanha, esquiando, Armando tinha ido jogar cartas na taberna da aldeia e Rosanna estava fechada no quarto. Da janela, viu a mãe e o irmão mais novo afastarem-se. Esperou que Armando voltasse depressa.

Cobriu-se com um casacão de lã e sentou-se na soleira da porta à espera dele. A garrafa de vinho lhe fez companhia e aqueceu-a. Viu-o chegar.

Armando pedalava sem pressa. Pela primeira vez, não lhe pareceu tão desejável. Ele tinha quase 48 anos, muitos em comparação com os dela. Os cabelos brancos estavam escondidos por baixo de um grande boné de lã que lhe cobria as orelhas. Vinha curvado sobre o guiador, enfiado num casaco de pele.

Parou a bicicleta por baixo do alpendre. Soprou nas mãos para as aquecer. Depois viu-a. – O que é que está fazendo aqui fora, no frio? – perguntou.

Rosanna não respondeu. Armando sentou-se nos degraus, ao lado dela. – Onde está a sua mãe?

Não obteve resposta. A garrafa que Rosanna tinha na mão estava quase vazia. Tirou-a dela e bebeu um gole de vinho. Depois pousou-a no chão.

– Estou grávida – disse ela, finalmente.

Duas palavras difíceis de pronunciar.

– É mais uma das suas brincadeiras – reagiu.

– Hoje fiz o exame de urina.

O homem, por um momento, escondeu o rosto entre as mãos. Depois olhou para ela e gemeu: – Não é possível. Eu tive sempre cuidado.

Pensou no ventre pequeno e perfumado da moça. Era quente, acolhedor, era a sua vertigem, o poço das suas lágrimas, a fonte da sua alegria. Naquele pequeno ventre tinha-se perdido e reencontrado uma infinidade de vezes. Tinha-o tocado em todos os pontos, afagado e beijado.

– Eu tive sempre cuidado – repetiu, abanando a cabeça. Armando estava atordoado e desesperado. Rosanna levantou-se, enfrentando-o, e disse:

– Nesse caso, a minha gravidez é obra do Espírito Santo.

– Que Deus tenha piedade de nós! – exclamou Armando, sentindo-se sufocar. – Estava na ilusão de que esta história podia andar para a frente, até o infinito, sem que houvesse nenhuma complicação? – provocou Rosanna.

– Meu Deus, o que foi que eu fiz – sussurrou ele.

– Já é tarde para fazer um exame de consciência. Agora trate-se de arranjar uma solução – replicou ela. Armando estava plenamente consciente da sua culpa. Rosanna, a lindíssima filha de Agostina, estava inocente. Tinha-o provocado por todos os meios, e ele, em vez de se impor com a autoridade de um pai, tinha-lhe feito a vontade com a fraqueza de um homem vencido pelo desejo. Tinha de assumir as suas responsabilidades. A ideia de que no ventre daquela mulher estava germinando uma vida tornava-a para ele ainda mais preciosa. Iam fugir os dois. Em Tortona, a casa dos pais era mais bonita e mais confortável do que aquela onde viviam. Havia a loja de produtos alimentares onde ela poderia trabalhar. Rosanna e a criança não passariam fome, com certeza. Finalmente, já não seria preciso esconderem-se. As pessoas iam falar e voltar a falar, alguém armaria um escândalo mas, por fim, o tempo havia de fazer esquecer tudo. E ele passaria o resto dos dias adorando Rosanna e aquela flor maravilhosa nascida do seu amor.

Levantou-se, apertou-a contra ele e afagou-lhe os cabelos.

– Amo-a e amo o nosso filho. Vou fazer de você uma mulher feliz – prometeu, enfiando uma mão por baixo do casaco pesado, à procura do seio.

Rosanna encolheu-se.

– Me dá nojo – gritou, afastando-o de si.

Era a primeira vez que o repelia.

– Mas o que é que está dizendo? Você só está assustada e eu também estou. Mas juntos vamos arranjar coragem e vamos viver em Tortona.

– E nela, não pensa? Não pensa na minha mãe? Na dor que vamos lhe causar? Mas que homem você é? Ah, sim, já me esquecia que é um fraco, que não foi capaz de usar o bom senso, quando foi altura disso. E agora foge das suas responsabilidades. Um homem, mas um homem de verdade, não tinha feito de uma mocinha ciumenta sua amante. É sério que não sente vergonha? Você e eu já fizemos muito mal à minha mãe. Não vou lhe dar mais este desgosto, que é o pior de todos – decidiu. Abriu a porta de casa.

Armando segurou-a por um braço.

– O que é que você queria que eu fizesse? – perguntou.

Rosanna virou-se de repente e disse:

– Já fez o bastante. Eu te mato, se ousares contar alguma coisa à mãe.


47

Mauro Cordero tinha comprado um Fiat 600 cinzento-pérola em segunda mão. – Um golpe de sorte – explicou a Rosanna. – Só tem vinte mil quilômetros. Está como novo. Comprou-o para ir buscar a moça quando ela saía do trabalho e levá-la em casa. Assim evitava-lhe as longas esperas no ponto do ônibus. Quando entrava na fazenda, Agostina recebia-o como um filho e os irmãos de Rosanna faziam-lhe uma festa. A ele parecia que aquela era a família que nunca tinha tido. Na mesa encontrava uma tigela de sopa quente. Rosanna preparava-lhe dois pães para a noite e ele ia para a fábrica, feliz.

Naquela noite, quando parou o carro na eira, Rosanna disse:

– Não entre já. Preciso falar contigo.

Mauro nunca tinha ousado tocá-la com uma carícia, contentando-se com o privilégio de se considerar o seu cavaleiro. – Vou te fazer uma pergunta e não é preciso que responda: se entrar em casa comigo, é sim. Se der meia volta com o carro e for embora, é não. Em qualquer dos casos, vou sempre considerar como um amigo leal. Mauro intuiu que estava prestes a ouvir alguma coisa que não ia lhe agradar. – Estou à espera de um bebê – confessou enfim, de um fôlego.

Ele deu um longo suspiro.

– Não estava à espera disso – sussurrou.

– Nem eu – disse Rosanna.

– O pai da criança sabe?

Mauro perguntou-se quem poderia ser o homem que ultrapassara a barreira de distanciamento altivo que Rosanna tinha erguido entre ela e os seus admiradores. Depois veio-lhe à ideia que pudesse ter sido tomada à força.

– Isso é irrelevante – afirmou ela.

– Nem por isso. Parece-me que devia casar contigo – objetou Mauro. E a ideia de que alguém a levasse embora para sempre pareceu insuportável.

– Já é casado e, em qualquer caso, eu não o amo. Pelo contrário, detesto por aquilo que me fez. Mauro pensou que o ódio era um sentimento tão forte quanto o amor, e isso desagradou-lhe. – A minha mãe sofreu muito toda a vida – continuou a moça. – Não quero juntar mais um elo à cadeia daquelas dores, mas vai ser assim se não me ajudar. Quer casar comigo, assumindo a paternidade deste filho? – perguntou, e susteve a respiração enquanto esperava que Mauro lhe respondesse: – Vamos tomar a sopa.

O rapaz não disse nada. Agostina apareceu à porta da cozinha. Tinha visto o carro parar na eira. – De que é que vocês estão à espera? – perguntou.

– Vamos tomar a sopa, antes que esfrie – respondeu o rapaz, depois de um instante de hesitação, e entrou em casa com ela. À mesa, tomou em silêncio a sopa. Rosanna pôs à frente dele um saco com dois pães com presunto. – Estão muito calados, esta noite – observou Agostina.

Mauro não estava com vontade de falar. Tomava uma colher atrás da outra enquanto ia remoendo as palavras de Rosanna. Devorava-o a curiosidade de saber quem seria o homem misterioso. Não era com certeza ninguém da aldeia. Sabia como os homens gostavam de falar, sobretudo de mulheres. Quando conseguiam pôr a mão numa mulher, fossem solteiros ou casados, vangloriavam-se como se tratasse de uma empresa heroica. Não importava que as mulheres ou as namoradas viessem a saber. As mulheres engoliam desde sempre ofensas e lágrimas, caladas.

Sobre Rosanna nunca tinha havido fofoca nesse sentido. Toda a gente falava daquele feitio horrível que ela tinha e do seu gosto pelo vinho. Por isso admitiu a hipótese de o pai da criança poder ser um forasteiro. Tinham chegado muitos, sobretudo delegados sindicais, que andavam pelas fazendas e atordoavam as mulheres com as suas conversas. Armavam-se em galos porque os homens andavam nos campos ou nas fábricas e as mulheres estavam sozinhas. Mas Rosanna também estava na fábrica durante o dia. E à noite fechava-se em casa. Por isso, não podia ter sido um forasteiro. Na fábrica eram todas mulheres, inclusive a dona. Havia um único homem, o contador. Um velhote míope e curvado, que estava além de qualquer tentação.

Como, onde, quando e por quem tinha Rosanna sido seduzida?

A certa altura, Mauro considerou o padrasto, e visualizou uns olhares um pouco estranhos entre ele e Rosanna. Mas teve vergonha daquele pensamento, porque lhe parecia uma blasfêmia. Sempre o tinha considerado um homem inofensivo, preocupado em fazer a vontade da Agostina e proteger Rosanna.

Depois recordou uma tarde de domingo, anos atrás. Era verão. O campo estava silencioso sob um sol quente, implacável. A Lambretta estava com problemas e Mauro havia deixado-a no mecânico. Chegou na casa dos Elia de bicicleta. A eira estava deserta. Os irmãos de Rosanna, como já sabia, estavam no Bar Centrale jogando flippers, à espera que abrisse o cinema. Agostina tinha saído, levando Ugo atrás dela, para ir ao funeral de um irmão. Ficaria fora dois dias. Mauro parou a bicicleta e ergueu os olhos para a janela da moça. As portadas de madeira estavam semicerradas, para não deixar entrar o sol. Tinha a certeza de que ela estava na cama. Pegou numa pedrinha e atirou-a à janela. Não obteve resposta. Então atirou uma segunda, e depois uma terceira. Finalmente, a janela abriu-se e Rosanna apareceu naquele espaço exíguo, tapando o busto nu com uma ponta da combinação. Tinha os cabelos desalinhados.

– Não estava à sua espera – sussurrou, e parecia contrariada com aquela visita inesperada. Mauro teve a sensação de ver uma sombra por trás dela.

– Quem é que está contigo? – perguntou-lhe.

– O meu amante – replicou Rosanna. – Que palerma! Quem é que quer que esteja aqui? Espere por mim. Vou-me vestir e já desço.

Desceu imediatamente e abriu a porta da cozinha.

– Entra. Eu arranjo-lhe qualquer coisa fresca – propôs-lhe.

– Lamento ter te acordado – desculpou-se ele, aceitando o convite. – Até fez bem. Estou contente por ter vindo. Mas fala baixo. Acho que o Armando está dormindo – disse-lhe Rosanna. No entanto, ouviu-se chiar uma porta no andar de cima e, pouco depois, Armando desceu as escadas com o seu passo pesado. Os cabelos brancos afagavam a testa. Era um homem muito bonito e sorriu, sentando-se à mesa ao lado dele. – Então você não estava dormindo? – perguntou a moça, fulminando o padrasto com um olhar. Armando sorriu.

– Tenho o sono leve. Senti que tinha chegado alguém. Leva esta moça para dar uma volta. Por ela, passava o domingo inteiro em casa – disse Armando.

Apesar dos sorrisos, Mauro sentiu-se um intruso, e pareceu que entre ela e o padrasto existia a sombra de um mal-estar inquietante. Depois o homem saiu para a eira. Rosanna sentou-se em frente a ele e olhou-o com ternura.

– Vamos ao cinema? – propôs-lhe.

Ao recordar aquele episódio, Mauro teve a certeza de que Rosanna tinha sido amante de Armando. O pai da criança era o padrasto. Não formulou juízos, limitando-se a aceitar a realidade.

Olhou para Agostina e sentiu em relação a ela uma pena infinita.

– Obrigado, senhora Agostina – disse. – É sempre muito simpática comigo. – Depois virou-se para Rosanna – Obrigado também pelos pães. Vou comê-los esta noite.

Ela não disse nada. Foi até a pia e começou a lavar a louça.

Quando estava para sair, Mauro virou-se e disse:

– Senhora Agostina – anunciou, com voz clara –, estava pensando em perguntar à Rosanna se ela quer casar comigo. A senhora o que diz?


48

Não tinham dinheiro que chegasse para montar casa. Mauro ainda tinha que acabar de pagar as prestações do carro, e a tia-avó, apesar de poder ajudá-lo economicamente, recusou-se a fazê-lo porque a mulher que o sobrinho escolheu não a agradava. Nem sequer fizeram lua de mel. O quarto dos noivos foi o de Rosanna. Agostina, com as suas poupanças, arranjou-o com móveis novos.

Não ficou escandalizada quando Rosanna lhe disse que ia se casar porque estava grávida. – Também aconteceu a mim – confessou. – Casei com o seu pai porque esperava um filho. Mas o meu casamento foi um desastre.

– O Mauro é o melhor homem que eu podia encontrar – disse Rosanna para tranquilizá-la. Naqueles tempos, Armando passava os dias nos campos. À noite ia comer na aldeia, na taberna. Voltava de noite e dormia no estábulo ou no palheiro. Tinha envelhecido de repente. Já não falava com ninguém. Quando se sentava à mesa com os outros, mantinha os olhos baixos e custava até responder às perguntas que lhe dirigiam.

Uma noite Agostina foi até ele, ao palheiro. Foi até junto dele e pôs-lhe uma mão na testa. – Sente-se mal? – perguntou-lhe, com ternura.

– Sinto – respondeu Armando.

– Tem que ser visto pelo médico.

– Não é preciso – disse ele.

– Deve ter acontecido alguma coisa – insistiu a mulher.

– Preciso ficar só.

– Por que não vai até Tortona passar umas semanas? Nunca te habituaste a viver no campo – sugeriu. – Vou pensar nisso – respondeu. No entanto, não se foi embora.

Rosanna e Mauro casaram em abril. Armando arranjou uma boa desculpa para não ir à igreja com os outros. De resto, foi uma cerimônia breve e modesta. Agostina preparou uma pequena festa na fazenda para os convidados. À noite, os noivos subiram até ao quarto.

Rosanna despiu-se e ficou em combinação. Mauro notou o ventre levemente arredondado. Ela cobriu-se rapidamente com um roupão e sentou-se em frente ao espelho para tirar a maquiagem do rosto. O marido enfiou-se num canto para se despir também e vestir o pijama.

Os convidados tinham partido. A casa estava silenciosa.

– De que lado quer dormir? – perguntou Rosanna.

– Escolhe você – respondeu Mauro.

– Não, decide você.

– Está bem. Então escolho o lado esquerdo – decidiu Mauro. E enfiou-se na cama. Agostina tinha feito as coisas tornarem-se maiores. O quarto era todo em madeira de faia. A cama tinha uma rede de molas e um colchão de boa lã inglesa. Havia também um armário de três portas com um espelho central, um outro espelho por cima de um móvel de quatro gavetas e um terceiro sobre o toucador. Duas cadeiras forradas e um banco completavam a mobília. Pendurada na parede, por cima da cabeceira da cama, havia uma imagem que representava a Sagrada Família.

Rosanna enfiou-se debaixo dos cobertores, do lado direito.

– Como se sente? – perguntou o marido.

– Como alguém que contraiu uma dívida e não sabe como nem quando vai poder pagá-la – confessou Rosanna. – Eu cresci num orfanato. Isso você já sabe. Mas não sabe o que sofrem as crianças que crescem sem pais. Nunca conheci o calor de uma família. Quando entrei nesta casa, parecia tocar o céu. Os seus irmãos, que me recebiam com alegria, a sua mãe, que me dedicava tantas pequenas atenções, e você, que me considerava o seu melhor amigo. Devo muito a todos vocês. Quando me disse que estava à espera de uma criança, pensei nela como um outro eu. As crianças deviam ter sempre pais, casa e afetos. Estou apaixonado por você. O fato de ter te entregado a outro não mudou os meus sentimentos. Mas o amor que sinto por você não tem nada a ver com a minha decisão de casar contigo. Fiz isso por solidariedade com o seu filho. Como vê, não tem nenhuma dívida comigo – disse ele.

– Quando me confirmaram que estava grávida, a médica me propôs abortar. Disse que tratava ela disso e me pediu cem mil liras. Se tivesse, tinha aceitado. Não sinto nada por este filho. Acho que uma mulher deve querer uma criança. Eu não a quero – confessou ela.

– Quero eu. Você só tem que esperar que o tempo cure as feridas – sossegou-a. – As minhas nunca vão sarar – afirmou Rosanna, ao mesmo tempo que duas grandes lágrimas molhavam as faces. Mauro limpou as lágrimas com um lenço imaculado.

– Esquece, Rosanna, e perdoa. É bom ter paz no coração – sussurrou Mauro. Rosanna olhou para ele à luz pálida do candeeiro pousado na mesinha de cabeceira. Foi como se o visse pela primeira vez.

O olhar e o sorriso do marido traduziam o seu temperamento doce e amável. Gostaria de ser como ele e esperou conseguir, com o tempo, vir a amar a criança que ia nascer e o homem com quem tinha casado.

– Quem sabe, talvez um dia eu venha também a conhecer a paz no coração. E vai ser um grande dia – disse, sorrindo em meio as lágrimas.

Mauro puxou-a para si e lhe deu na testa um beijo tímido.

– Boa noite – sussurrou. Adormeceu logo a seguir.

Ela, porém, deu ainda muitas voltas na cama. Depois, quando teve certeza de que Mauro estava dormindo, desceu até a cozinha. Encontrou uma garrafa de vinho e bebeu um longo trago. Então apagou a luz e olhou pela janela. Armando estava na eira. Fumava um cigarro e olhava na direção dela. A Lua iluminava a alvura dos seus cabelos. O padrasto estava sofrendo as penas do inferno. E ela também não conseguia encontrar paz no coração. Esvaziou a garrafa de vinho. Depois encolheu-se na sombra e, lentamente, avançou em direção ao quarto. Mauro dormia, tranquilo. Também ela adormeceu.


49

Irene nasceu em outubro, num dia em que parecia que a fúria da chuva queria aniquilar o mundo. Nasceu em casa, com a ajuda do médico e de Agostina que, quando viu a menina, recordou as palavras da “bruxa” Carulina: “Nem tudo corre mal. Os filhos dos seus filhos vão se salvar. A Irene em primeiro lugar.”

– Vai se chamar Irene – decidiu, cheia de alegria.

Estava orgulhosa da primeira neta e esperou que a menina ajudasse Rosanna a mudar de vida. Irene nasceu com icterícia e, num impulso de amor maternal, Rosanna prometeu a si mesma que nunca mais beberia uma gota de vinho.

Naquele dia ficaram todos em casa por causa dos grandes aguaceiros que estavam transformando os campos e as estradas em pântanos. A caminhonete suspendeu o serviço e o médico não conseguiu ir embora. Por isso, sentou-se à mesa da cozinha com os homens da casa e aceitou um copo de vinho doce com a torta de peras que Agostina tinha feito para festejar o nascimento da menina.

O médico conhecia há muito tempo os problemas de Agostina com Rosanna e, um dia, tentou explicar-lhe que a filha tinha uma personalidade bipolar.

– O que é que isso quer dizer? – perguntou ela.

– Quer dizer que está deprimida e que se magoa, fazendo sofrer também as pessoas que ama. – Não há um remédio para curá-la? – perguntou.

– Infelizmente, não existe. A Rosanna cura-se sozinha, bebendo. Quando já não consegue conter o sofrimento, se embriaga e dorme – explicou o médico.

Agora Agostina esperava que a pequena Irene pudesse ser mais forte do que a doença da mãe e que fosse, de qualquer maneira, uma cura melhor do que o vinho.

Mauro foi o primeiro a entrar no quarto para ver a recém-nascida. Abraçou Rosanna e quis pegar a menina no colo. – Como está? – perguntou à mulher.

– Estou cansada – respondeu Rosanna.

– Estou orgulhoso de você. Nunca a ouvi gritar.

– Não tive muitas dores – respondeu.

– Gosto tanto de você e da menina – confessou Mauro, olhando a recém-nascida com orgulho. Rosanna ficou comovida. Mauro viu-a chorar e animou-a:

– Vai correr tudo bem, Rosanna. Temos um pequeno tesouro para cuidar. – Depois pôs-lhe o bebê nos braços e tirou do bolso das calças uma caixinha de veludo. – É para você – disse, e entregou-a à mulher.

Dentro havia um pequeno colar de coral. Logo a seguir ao casamento, quando passeava na vila com Mauro, Rosanna viu-o na vitrine da ourivesaria e exclamou:

– Que bonito! – No dia seguinte, Mauro voltou sozinho e comprou-o, apesar de ser bastante caro. Rosanna comoveu-se ainda mais.

– Vou mesmo acabar por me apaixonar por você – disse, em meio as lágrimas. Depois chegaram os irmãos de Rosanna e uma vizinha que, desafiando o aguaceiro, queria ver a pequena Cordero. Ofereceu um perfume à Rosanna e uma medalha com a Nossa Senhora à menina. – E você, não vai ver a sua neta? – perguntou o médico a Armando. Depois olhou pela janela da cozinha para observar o céu. Tinha o carro debaixo do alpendre, a salvo. Esperava uma estiada para pegar na estrada. Armando lutava contra a fumaça da lareira, que invadia a cozinha. Era uma maneira de sufocar a emoção e a dor. – Tenho tempo – respondeu. Morria de vontade de ver a pequena e a mãe, mas sabia que Rosanna não ia deixá-lo entrar no quarto. Não voltara a lhe dirigir a palavra desde o dia em que tinha lhe anunciado que estava grávida. Durante todo o tempo que durou o trabalho de parto ele tinha ficado na cozinha ouvindo as vozes e os ruídos que vinham do andar de cima. Depois ouviu Agostina gritar, feliz: – É uma menina! – Minha filha! , pensou, evitando a custo a comoção, e sentiu uma dor lancinante no esterno. Pensou que ia morrer. Depois, lentamente, a dor passou. No entanto, um peso intolerável oprimia o peito. Gostaria de poder gritar a verdade, de dizer a todo mundo que Irene era sua filha. Mas tinha de se calar.

– Vocês, camponeses, são realmente estranhos – observou o médico, que começou a ficar nervoso. Não havia telefone na fazenda e ele não sabia como avisar a família daquele atraso. Voltou à mesa e serviu-se de mais uma dose de vinho doce.

Os rapazes propuseram uma partida de cartas, só para enganar o tempo. O empregado chegou a correr, debaixo da chuva, com as botas de borracha se enterrando na lama. Entrou na cozinha e comunicou:

– Os animais estão inquietos. Estão aos coices. A Mirella me apanhou aqui, de lado, e me atirou para o chão como um chouriço. – O nervosismo dos animais não era um bom presságio.

– Bebe um copo à saúde da minha neta – convidou Agostina.

– Saúde e felicidades – disse o rapaz, erguendo o copo.

O céu, a poente, clareou. Deixou de chover e um raio de sol penetrou as nuvens. Na cozinha, a fumaça subiu de repente pela chaminé.

– Viu, Sr. Doutor? – disse Agostina, satisfeita. – Depois da tempestade vem a bonança. Do andar de cima chegaram os gritos agudos de Irene. Agostina correu pelas escadas acima. – A menina tem fome – declarou, entrando no quarto.

Viu Mauro, aflito, à procura das fraldas, e Rosanna que ria da falta de perícia do marido. – Vai embora. Eu trato da menina – decidiu a avó, empurrando o genro para fora do quarto. – Ainda bem que está aí – afirmou Rosanna, grata à mãe que vinha tratar daquele pequeno ser barulhento. Irene agarrou-se ao seio da mãe e começou a chupar com avidez. – É muito feinha – constatou Rosanna.

– Os recém-nascidos são todos assim. Parecem velhos – explicou Agostina. Parecia um sonho poder conversar serenamente com a filha. Talvez a maternidade a tivesse realmente mudado.

O céu foi riscado por um relâmpago e logo a seguir explodiu um trovão. Irene estremeceu, abandonou o mamilo da mãe e recomeçou a gritar.

– Assustou-se – observou Rosanna.

– É natural. As crianças assustam-se como nós, e até mais – disse Agostina. Recomeçou a chover furiosamente.

– Esperemos que não haja outra cheia. Já vivi duas, e me bastou – suspirou Agostina. – Não vai haver. Não agora, que a minha menina ainda só tem poucas horas de vida – declarou Rosanna. E acrescentou: – Sabe, mãe, estou contente por ter casado com o Mauro. – Gostava de pensar que Irene era filha do marido. Naquele momento abriu-se a porta e Armando meteu a cabeça dentro do quarto. – Posso ver a menina? – perguntou timidamente. Parecia que o coração ia rebentar com a emoção. Rosanna agarrou numa ponta do lençol e cobriu o seio e o rosto da menina. – Fora! – intimou-o, com uma voz zangada. Irene recomeçou a chorar. Ele fechou a porta. – Por que é que faz isso? – perguntou Agostina, com um suspiro.

Ouviu-se uma queda. A mulher precipitou-se para fora do quarto. Armando estava no chão e parecia morto. O médico ainda estava na eira, pois o carro não se decidia a arrancar. Socorreu-o imediatamente e fez o melhor que podia, mas Armando nunca mais se recuperou do acidente vascular cerebral que lhe paralisara a metade esquerda do corpo. Havia meses que, atormentado pelos remorsos e pelo ciúme, invocava a morte. Mas Deus não tinha lhe permitido morrer.


50

– Portanto, agora já sabe que não sou seu pai – concluiu Mauro Cordero. Irene olhou através dos vidros da janela o campo que tremia no gelo daquela tarde de Natal. – A avó sabia disso tudo? – perguntou.

O relógio, por cima da lareira, marcava os segundos no silêncio da grande cozinha invadida pelas primeiras sombras da tarde.

– Quem é que pode dizer? É um fato que, quando o Armando se sentiu mal e foi levado com urgência para o hospital, pronunciou o nome da sua mãe antes de entrar em coma. Chamou-a três vezes. Ainda me lembro. Eu estava ali, ao pé dele. Com a sua avó. Agostina soltou um suspiro doloroso. Eu acho que a sua avó tinha percebido, mas que sempre se recusou a olhar a verdade de frente – afirmou Mauro.

Irene pousou uma mão no seu ombro.

– Vamos ao hospital – disse baixinho.

Voltou-se para observar mais uma vez as fotografias nas molduras por cima do aparador. Havia uma de Armando Elia, montado na motocicleta. Vestia um casado de pele. Apresentava um sorriso resplandecente. Os olhos grandes e profundos pareciam sulcados por uma melancolia que desmentia o sorriso e a pose de ator de um antigo filme americano.

O Armando que ela tinha conhecido era um velho de cabelos brancos que não conseguia falar, que tinha de ser alimentado, lavado e mudado.

Quando era pequena e andava à volta dele, sentia sempre em cima dela aquele olhar sofredor que a seguia em tudo o que ela fizesse. Ela não prestava atenção nele. Ninguém tratava dele, além da avó.

Agostina afagava a sua fronte sem dizer uma palavra, até porque ele não podia lhe responder. Uma vez Armando conseguiu agarrar Irene por um braço. A mãe caiu em cima deles como um falcão. Arrancou-a, ao pé dele, e berrou:

– Você não pode tocá-la!

Irene assustou-se. Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça para o peito. Irene escondeu o rosto no ombro da mãe, que tinha pegado ela no colo, e começou a soluçar. Havia qualquer coisa de turvo entre o avô e a mãe que a sufocava. Tinha quatro anos e aquela recordação perseguia-a desde sempre.

– É possível que a minha mãe ainda o amasse? – perguntou a rapariga, fixando a fotografia. – Tenho certeza. Nunca deixou de amá-lo – afirmou Mauro.

– E, no entanto, quis ter outro filho – observou Irene, virando-se para olhar para Mauro. – Foi quando o Armando morreu. Ela me disse que se sentia como se tivesse renascido. Pelo menos, creio que tentava convencer-se a si própria. Queria um filho, queria deixar a fazenda e alugar um apartamento num prédio que estavam construindo em San Benedetto. Tinha até deixado de beber. Nunca a tinha visto tão feliz. Tinha feito uns vestidos muito bonitos para você. Enchia-nos de ternura. Fazia bolos e outras coisas boas. Era uma nova mulher, em suma.

– Lembro-me bem desse período. Durou umas semanas – confirmou a moça. – Durou uns meses. Éramos todos felizes. Até que nasceu o Ezio, o nosso filho. – E depois? Como foi que a minha mãe morreu?

– Eu trouxe uma garrafa de champanhe para festejar. Não devia. Bastou meio copo e a sua mãe recomeçou a beber. Tínhamos feito desaparecer todo o vinho que havia em casa e ela, como não o encontrava, ficava furiosa. Dava de mamar ao menino e depois fugia, à procura de uma taberna. Ezio não aumentava de peso, era magro e estava sempre com problemas. Morreu com uma pneumonia. Tinha pouco mais de dois meses.

– A mãe passava horas no cemitério, chorando sobre a campa do Ezio – recordou a moça. – A verdade é que Rosanna tentou, mas não conseguiu viver sem o Armando. Eles tiveram uma louca e trágica história de amor. Invocava-o, entre os vapores do vinho, com palavras ternas que me dilaceravam. Eu acho que agora os seus pais são verdadeiramente felizes. Se existe o paraíso dos apaixonados, eles estão certamente lá e vão se amar para toda a eternidade – sussurrou Mauro.

Irene olhou outra vez para a fotografia de Armando.

– Acha que eu sou parecida com ele? – perguntou.

– É parecida com a sua mãe, que era parecida com a avó. Mas tem alguma coisa do Armando no recorte dos olhos e na forma do nariz – constatou o homem.

– Não consigo pensar no avô como meu pai.

– Eu sempre te amei como filha.

– Eu sei. Foi o mais terno dos pais e assim continuará a ser. Não se esqueça que eu tenho o seu sobrenome – afirmou Irene, com lágrimas nos olhos. Chorava pela morte de Agostina, pela sua própria infância infeliz e confusa, que tinha lhe deixado marcas na alma, mas sobretudo chorava pelo amor trágico dos pais, que nunca tinham se conformado com a separação e que procuraram na morte a via para poderem finalmente se reencontrar.

– Temos de ir – pediu Mauro.

– Abraça-me. Só me resta você, agora que até a avó nos deixou – disse Irene. Escondeu o rosto no ombro do homem e soluçou como quando era pequena, com o coração dilacerado por tantas dores. Entraram no carro. Irene tinha sobre os joelhos o saco em que metera o vestido de Agostina e um pacote de amendoins que tinha encontrado no armário. A estrada estava deserta. Nas fazendas, as famílias reunidas festejavam o Natal. Pararam em frente ao hospital. Havia um empregado da agência funerária à espera deles. Vestiram Agostina, meteram-na no caixão e transportaram-na para a capela. Mauro e Irene sentaram-se no banco, conversando em voz baixa. – A avó, em várias ocasiões, disse que não queria celebrações quando morresse – lembrou Mauro. – Eu sei. Uma vez me recomendou: “Quando eu morrer, não avisem ninguém. Não gosto de funerais.” Mas temos de avisar os tios.

– Avisa-os, se quiser. Mas não vai encontrá-los. Sabiam que a sua avó estava doente, mas nenhum deles telefonou pedindo notícias. Eu não os entendo – afirmou Mauro.

– Não são más pessoas. Esqueceram-se dela porque a vida deles está em outro lado e o passado já não lhes diz respeito. Por isso, só vamos estar nós dois no funeral, e acho que a avó vai ficar contente assim – comentou Irene.

– Sabe que deixou ficar tudo o que tinha a você?

– Não tinha nada, pobre mulher.

– Muito mais do que você imagina. Tinha a herança do Armando: três casas em Tortona e a loja. E depois conseguiu investir bem as poupanças. A questão dos seus tios já está resolvida há algum tempo. Aquilo que tem, é seu.

– É nosso – precisou Irene.

– Amanhã, depois do funeral, falamos sobre isso – disse Mauro.

Na manhã de Santo Stefano, quando o padre chegou para oficiar o ritual fúnebre, a capela encheu-se de gente e de flores. Uma comunicação silenciosa tinha difundido a notícia da morte de Agostina Elia. Num raio de vinte quilômetros, todos os camponeses, operários, proprietários, autoridades e até camaradas comunistas vieram prestar-lhe homenagem. O padre falou dos valores cristãos de uma grande mulher que tinha sabido enfrentar as adversidades da vida com a ajuda da fé. O chefe da seção local do Partido Comunista falou do seu orgulho de combatente pela justiça e da sua clarividência política pelo fato de ter sempre continuado a trabalhar a terra.

Irene achou que o padre e o comunista estavam cada um a fazer o seu próprio comício e que Agostina, exasperada, se pudesse, tinha mandado aos dois se calarem.


51

Irene pensava em como tinham sido difíceis os dias que se seguiram à narrativa do pai. A história de Rosanna perturbou-a profundamente. Depois do funeral da avó, caiu numa espécie de torpor que a mantinha ancorada à velha casa de campo, ao seu quarto de menina, à sua cama. Embrulhava-se na manta e dormia. No sono procurava uma escapatória para o mal-estar que a revelação daquelas verdades tinha desencadeado. Não queria encontrar-se com ninguém e não atendia o telefone. Todo mundo, exceto Mauro, atribuiu aquele comportamento à dor provocada pela morte de Agostina. Até Angelo se conformou com aquela recusa. Todos os dias lhe escrevia uma carta e a enfiava por baixo da porta do quarto dela. Falava-lhe um pouco de tudo, futilidades e grandes projetos, livros que andava lendo e conversas familiares. Ela percorria distraidamente as folhas e esquecia-as logo. Uma vez escreveu-lhe: “Quando estava triste, dizia-me: Angelo, meu anjo bonito, voe para cá. Estou aqui à espera que me chame.”

Mauro forçava-a a descer até a cozinha quando era a hora de almoço ou de jantar. Ela enfiava um roupão pesado da avó e provava alguma coisa para lhe fazer a vontade. Depois voltava a fechar-se no quarto.

Passaram as festas e a signorina Magda da Cosedil telefonou. Falou com Mauro, que lhe disse: – A avó morreu no Natal. A Irene está muito abatida. Não sei se vai querer voltar a Milão. Mas acho que era bom que voltasse.

Naquele mesmo dia, chegou um ramo de flores e um bilhete de Tancredi que dizia: “Espero o regresso de Miss Sorriso.” Chegou também uma mensagem de Angelo: “Amanhã vou para a tropa. Mandaram-me quarenta dias para Caserta. Depois vou ser transferido para outro lugar. Será que tenho de partir sem vê-la?” Irene não respondeu.

Depois, lentamente, recomeçou a viver, carregando com ela o peso de muitos sentimentos emaranhados. Tinham passado vinte anos desde então e Irene pensou que não tinha ainda desenrolado completamente aquela meada.

Apesar de, agora, a sua vida ser muito mais tranquila.

Alguém bateu à porta, afastando-a dos seus pensamentos. Apareceu o policial habitual e anunciou-lhe uma visita. – Uma visita que lhe vai agradar – acrescentou, com um ar alegre. Logo a seguir entrou o comissário Bonanno. Ela estava sentada no sofá e foi até ele para cumprimentar.

– Bom dia, signora Cordero. Vim lhe dizer que pode deixar o hospital. Agora mesmo, se assim desejar – afirmou, satisfeito. – Isso significa que o caso está encerrado?

– Finalmente prendemos o seu agressor e o interrogamos. Das averiguações concluiu-se que ele nos disse a verdade. Randazzo viu-a sair do táxi e confundiu-a com uma top-model. Pensou que tivesse dinheiro e joias na bolsa. Seguiu-a até dentro da igreja e agrediu-a para assaltá-la. Em suma, tratou-se de um furto banal.

– Fico contente por isso, muito obrigada, Sr. Comissário – exclamou Irene. E acrescentou: – Gostaria de ir embora já, mas preciso de dinheiro para o táxi e para a passagem de avião.

– Ainda não tem documentos. Não pode viajar – observou o comissário. – Eu acho que o senhor consegue me arranjar uma carteira de identidade em poucas horas – afirmou Irene, com um sorriso malicioso.

– Vou tentar – respondeu Bonanno e foi embora.

Olhou em volta para decidir aquilo que ia levar com ela. Em primeiro lugar, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e pegou no frasco de Chanel. Ao fazê-lo, recordou o Natal de 1985. Foi a última vez que Angelo lhe ofereceu aquele perfume.


52

– O que eu quero para você é um sonho que dure para sempre. Nunca acorde, meu amor – sussurrou Tancredi, pousando os lábios no pulso de Irene, enfiado numa pulseira de platina e brilhantes. Tinha acabado de oferecer e era o seu primeiro presente importante.

Estavam em Roma, na pequena sala de um restaurante decorado como uma taça de bombons dos finais do século xix, com uma única mesa central redonda, suficientemente pequena para que as suas mãos se pudessem tocar. No centro, um arranjo delicado de jasmins brancos e pequenas velas vermelhas sobre uma toalha de damasco prateado sublinhava a atmosfera natalina. Faltavam dois dias para o 25 de dezembro de 1985. Irene tinha 21 anos e era há seis meses a namorada secreta do homem mais rico da Itália. Aquela história era conhecida apenas por muito poucas pessoas: Franco Bruschi, a signorina Magda, os guarda-costas e o motorista. Oficialmente, Irene era uma diretora do gabinete de promoção da Cosedil que trabalhava muito e bem. Deixara o apartamento do corso Porta Romana e vivia agora no último andar de um prédio oitocentista na via Solferino. Um casal de empregados espanhóis tomava conta dela e da casa.

Irene tinha aquilo que muitas mulheres da sua idade consideravam um sonho inatingível: um trabalho importante, uma casa refazendada, uma conta-corrente ilimitada e um homem fascinante e apaixonado por ela. Tinha, em suma, tudo aquilo que pensava desejar.

– Durante dois dias não vou vê-la nem telefonar. Consegue sobreviver sem mim? – perguntou Tancredi, com ar de brincadeira.

A véspera de Natal era dedicada à mulher e aos dois filhos, que o esperavam na casa de campo com os amigos e os colaboradores mais íntimos. Haveria a ritual troca de presentes, a ceia à base de ostras do Atlântico e champanhe Don Pérignon, uma orquestra que tocaria Stille Nacht e a missa da meia-noite celebrada na capela privada, enquanto que os maus humores, as frustrações, as angústias, as melancolias e as irritações de cada um seriam cuidadosamente ocultadas por trás de sorrisos, beijos, aplausos e agradecimentos. Em Cassano já havia neve. Em Roma, o siroco prenunciava a chuva.

Tancredi passaria o dia de Natal na Sicília, na vila entre Palermo e Trapani, para almoçar com Rosalia D’Antoni, a mãe, e também com a irmã, o irmão e todos os parentes e amigos que viviam na ilha.

– Pergunte a si próprio se vai conseguir sobreviver sem mim – respondeu Irene. Os olhos brilhavam de malícia. Tancredi ergueu uma sobrancelha, olhando-a com um ar de homem duro e vivido. – Voe baixinho, pequena – disse, numa cômica imitação de Humphrey Bogart. – Da mesma maneira que a fiz, também posso destruí-la.

Irene riu, divertida, ele lhe deu um beijo na mão e depois começou a cantar, em voz baixa: And then remember this, a kiss is just a kiss , a canção do filme Casablanca .

Irene não só não ia chorar pela sua ausência, como estava até feliz por regressar a San Benedetto, onde Mauro a esperava ansiosamente.

Depois da morte da avó, Mauro Cordero remodelara inteiramente a velha fazenda. Em dois anos, a casa de Agostina ficou esplêndida. Refez todas as instalações, as escadas, o telhado, os tetos, os pavimentos e as paredes, utilizando antigas traves de madeira, telhas descoloridas pelo tempo, azulejos valiosos e mármores lindíssimos que tinha recuperado, percorrendo os campos da região, de velhas casas em demolição.

O palheiro transformou-se numa oficina, onde ele restaurava móveis e peças que recolhia onde calhava. Num palácio do século xviii, que estava sendo demolido, descobriu painéis de madeira pintada e móveis de época que decoravam o quarto de uma criança. Comprou-os por uma soma insignificante e estava restaurando-os.

– Só faltou me darem dinheiro por eu ter levado aquilo tudo embora – contou a Irene, orgulhoso daquela empresa. Irene tinha passado uns dias tranquilos com Mauro durante o verão daquele ano. – Pai, por que é que não arranja outra companheira? – perguntou-lhe um dia. Parecia que aquele homem estava sempre arranjando alguma coisa que fazer para colmatar o vazio dos afetos. – Na minha idade? Só se fosse maluco – replicou Mauro.

– O que é que está dizendo? Só tem cinquenta anos. Eu ficava contente se voltasse a casar com uma boa mulher – insistiu Irene.

– E eu vou ficar contente quando você se casar. E quando me der uns netos. – Esquece. Não tenho intenção de me casar.

– Não tenho pressa. Esperava que escolhesse o Angelo. Mas não foi assim. Vou esperar pelo próximo candidato. Agora Irene observava Tancredi e perguntava-se quais seriam os seus sentimentos em relação a ele. O amor, segundo Irene, tinha muitas faces; mas poderia dizer que estava apaixonada por ele? Estava fascinada, cativa, subjugada e excitada. Ele tinha a capacidade de atordoá-la. E, no entanto, Irene não podia, ou não queria, admitir que estava apaixonada.

– O que é o amor, Tancredi? – perguntou-lhe.

– Conhece a Emily Dickinson? – perguntou ele.

– É uma nova secretária? – brincou Irene.

O homem deu uma grande gargalhada.

– Está bem, conhece. Emily Dickinson escreveu: “Tudo aquilo que sabemos do amor é o amor.” – Eu gosto muito dos poemas de amor da Emily Dickinson, mas não era essa a resposta que eu queria de você. – O amor não precisa de respostas. Entende isso, querida?

– Não, mas não faz mal. Está aqui você que percebe tudo, por você e por mim – disse Irene. – O que está fazendo? Me provocando? – perguntou Tancredi.

Irene aproximou-se dele e, enquanto encostava os lábios aos dele, recitou: – “Vem devagar, Paraíso! Lábios que não o conhecem, timidamente se alimentam do teu jasmim, como a abelha extenuada que chega tarde à flor.” – Beijou-o e continuou: – Foi a Emily Dickinson que escreveu, e eu ia jurar que não conhecia este poema – afirmou Irene.

– Tem o dom de me surpreender – replicou Tancredi.

– E você o de me convidar para jantar sem me deixar provar este folhado de pato. – Se tiver que escolher entre mim e o folhado de pato, o que escolhe? – Será que tenho uma terceira possibilidade?

– Não.

– Então escolho o folhado – afirmou Irene, divertida.

– Qual era a terceira possibilidade?

– Não vou lhe dizer, porque não me ofereceu – respondeu ela, começando a comer. – E lembrar-me que eu amanhã tenho que aguentar as piadas habituais dos meus colaboradores! Mas quem é que me manda fazer isso? Sou o patrão e não sou livre de ficar com a minha namorada quando e como quero. Por quê? – lamentou Tancredi. Irene pensou que, certamente, os colaboradores iriam também se perguntar por que razão deviam sacrificar um momento tão íntimo das festas a um patrão exigente que reclamava o seu tempo até nos dias de férias. Mas não lhe disse. – Porque gosta de fazer de monarca. Se tivesse vivido na França no tempo de Luís XIV, tinha ofuscado o Rei Sol. Você é um príncipe normando e precisa de cortesãos que vivam de luz refletida. O que é que acha? Respondi bem? – disse Irene, irônica, com ar de aluna embaraçada.

– Você é uma pequena víbora. Não deixa passar nada. Gostaria de entrar na sua cabeça para saber o que pensa. – É essa a diferença entre nós. Eu não preciso entrar na sua cabeça para saber o que você pensa. Basta-me uma inflexão de voz, um gesto, para perceber – respondeu placidamente Irene.

– Dupla pequena peste. E se eu a destruísse? – ameaçou de novo. – Meu caro, tenho que te tirar essa ilusão. Você não pode me destruir, porque não me fez. Limitou-se a me dar coisas das quais eu não tenho necessidade absolutamente nenhuma. E, no entanto, me divertem. Mas nunca vai ter a minha alma. Até porque você não é o Doutor Fausto e eu não sou a Margarida. – Irene dedicou-lhe um sorriso apaziguador.

Naquela noite, no quarto do palacete da via Borgognona, Tancredi amou-a com paixão e não imaginou que os pensamentos dela pudessem estar em outro lugar. O seu espírito perseguia Angelo Marenco, e o remorso de o ter deixado ainda a atormentava.


53

Na manhã seguinte, quando acordou, estava só. Tancredi tinha partido de madrugada, deixando um embrulho e um bilhete para ela em cima da mesa do quarto.

Saiu da cama descalça, enfiou um roupão branco e vaporoso de caxemira, ligou para a cozinha para lhe levarem o café da manhã e depois sentou-se à mesa e abriu o envelope.

Tancredi escrevera: “Quer mesmo saber o que é o amor? Uma chatice monumental quanto a mim. Porque, desde que está comigo, nunca mais tive paz. Amo-a. Feliz Natal.”

O embrulho continha uma bolsa de noite em ouro maciço. Pequenos topázios de cores pálidas ornamentavam o fecho. Abriu-a. E ficou desiludida. Era como se, dentro daquele invólucro dispendioso, esperasse encontrar um elixir milagroso contra o mal-estar que a atormentava desde sempre. Nada, nem ninguém, tinha conseguido dissipar aquela melancolia, aqueles medos. Nem sequer Angelo, que conhecia todos os poros, até os mais íntimos, conseguira oferecer-lhe alguma serenidade.

Voltou a fechar a bolsa e atirou-a para cima da cama onde tinha dormido com Tancredi. Um empregado bateu à porta e entrou com a bandeja do café da manhã. Um ramo de azevinho, cheio de pequenas bagas vermelhas, acompanhava uns croissants que cheiravam bem, café, mel e manteiga. Irene gostava de tomar o café da manhã sozinha, desde que o ambiente fosse confortável, os linhos muito brancos, os talheres de prata e os pratos de porcelana finíssima.

– Feliz Natal – disse o empregado. Chamava-se Urbano. Era um camponês de Madonie. Trabalhava com a mulher no palacete romano de Tancredi há dez anos. Tinha visto transitar muitas mulheres por aqueles quartos. Algumas só por uma noite, outras durante alguns meses. Eram atrizes, bailarinas, modelos à procura de sucesso. Irene era completamente diferente delas. Era alta, magra, discreta, vestia com sobriedade, não se pintava, fazia tudo para passar despercebida. Urbano dizia à mulher:

– Esta tem ar de quem vai durar aqui muito tempo.

Quando Irene chegava a Roma, instalava-se como sempre na ala dos colaboradores. No entanto, o casal de empregados sabia que o presidente ia se encontrar com ela durante a noite para que ninguém, nem mesmo eles, pudesse tecer conjecturas sobre o assunto. Isto queria dizer que a ligação entre Tancredi e a moça devia manter-se em segredo. Eles, de resto, nunca diriam nada a ninguém.

– Feliz Natal também para você e para a sua mulher – respondeu Irene. Ligou o rádio e sintonizou um noticiário. – O Sr. Presidente encarregou-me de acompanhá-la a Ciampino. O avião para Milão parte ao meio-dia. Está um trânsito tremendo na cidade, por isso temos que partir por volta das dez – avisou o empregado. Falava pouco e, quando o fazia, não dizia uma única palavra além do necessário.

– Eu estou pronta às dez. Obrigada – confirmou Irene.

A única coisa que a punha de bom humor era pensar que ia passar o Natal em San Benedetto, na companhia do pai, longe dos telefones, das chamadas urgentes, dos contratempos cotidianos, das conversas insípidas e dos problemas de trabalho.

Ouviu o noticiário. Deirramou o café na xícara de porcelana e aclarou-o com um pouco de nata. Bebeu um gole e depois deu uma dentada num croissant.

E ficou ali, paralisada, com um pedaço de croissant na boca, ouvindo a voz do locutor que lia uma notícia acabada de chegar de uma agência noticiosa: “Foi por pouco evitada uma catástrofe no aeroporto romano de Ciampino. A bordo de um aeroplano de fabricação francesa, propriedade do construtor Tancredi Sella, foi detectada uma bomba. O conhecido empresário estava prestes a embarcar, com destino a Milão, quando os homens da segurança descobriram o artefato. Já foi aberto um inquérito.”

Irene engoliu o croissant e quase sufocou. A prudência de Tancredi levava-o a viajar muitas vezes separado dela. Sem esta precaução, ela podia estar também naquele avião. Quem quereria matar Tancredi? E por quê? Precisava falar com ele, saber algo mais. Por que não tinha ainda lhe telefonado, para tranquilizá-la?

Ligou para o celular. Estava desligado. Ficou ainda mais alarmada. Naquele momento, deu-se conta de como Tancredi era importante para o equilíbrio da sua vida. Então desatou a soluçar.

– O que querem dizer essas lágrimas? – disse uma voz, que naquele momento lhe pareceu a mais preciosa do mundo. Uma mão terna lhe afagou os cabelos. Tancredi estava ali, à frente dela, e estava absolutamente tranquilo.

– No rádio... disseram uma coisa... terrível – desabafou Irene, dominada pelos soluços. – E você ainda ouve aqueles absurdos? Não é nada verdade – disse, abraçando-a. – Como é que pode não ser nada verdade? Você não partiu. – Pegou o lenço do bolso do casaco de Tancredi e limpou a cara.

– Vamos regressar a Milão de carro, você e eu, juntos – disse.

– Quero saber – insistiu ela.

– Arrume-se. Se correr tudo bem, chegamos por volta da duas da tarde, e eu ainda tenho dois encontros de trabalho em Milão – declarou Tancredi. Depois viu a bolsa de ouro abandonada em cima da cama. – É assim que trata suas coisas? – perguntou-lhe, com o tom de um pai que censura a desordem da menina descuidada.

– Não me mexo daqui se não me contar tudo – teimou Irene, agarrando-se à poltrona com os braços. Ele respirou fundo. Tirou o sobretudo e sentou-se em frente a dela. – Esta notícia nunca devia ter saído do domínio privado. No entanto, alguém perdeu a cabeça. E assim ficou-se sabendo do atentado. Não é a primeira vez que alguém atenta contra a minha vida. Acha que vivo rodeado de guarda-costas pelo prazer de me sentir importante? – perguntou.

– Não é a primeira vez? – pasmou ela.

– E não será a última – respondeu serenamente, como se se tratasse de um risco inevitável. – Portanto, se eu bem percebi, um dia alguém pode te matar.

– Não vai acontecer. Eu sou invulnerável – declarou, sorrindo.

– Por que é que querem matá-lo? Por que não denuncia esses atentados? – insistiu. – Faço-o regularmente. Mas está vendo, querida, se os ladrões esvaziarem a casa, você denuncia o furto, mas não se apanham os ladrões. O que é que se pode fazer?

– Mas aqui não se trata de furto – exclamou Irene.

– Querem o meu patrimônio, exatamente como quando os ladrões querem apropriar-se das coisas importantes que lhe pertencem. É a mesma coisa.

– Quem é que quer derrubá-lo?

– Todos aqueles que me invejam. E são muitos. Cada operação comercial, cada transação, cada nova aquisição, cada nova empresa é como uma batalha em campo aberto entre dois exércitos opostos. Vence quem for mais forte, quem for mais destro, quem conseguir levar para o seu lado gente da facção adversária. Muitas vezes, quem perde não se conforma e continua a combater. Se não consegue através das vias legais, tenta com a difamação ou, pior ainda, com a intimidação – explicou, calmamente.

– Portanto, você sabe quem quer te ver morto? – comentou Irene. – Não exatamente. Mas sei que muita gente inveja o meu sucesso. – E não faz nada?

– Absolutamente nada. Sempre respondi a todos os ataques com a calma dos fortes. – Diria a mesma coisa se o seu avião tivesse explodido e você tivesse salvo por um golpe de sorte? – perguntou-lhe. – Agora arrume-se, porque temos de ir embora – respondeu Tancredi, impaciente. – Não me respondeu – insistiu Irene.

– Sim, consideraria isso como um acidente de percurso. E agora, está satisfeita? Durante a viagem de carro, Tancredi falou ao telefone sem interrupção. Tranquilizou amigos, colaboradores e jornalistas.

Jurou que não tinha havido nenhuma bomba, mas apenas um pequeno despertador que tinha caído da sua bolsa de viagem. Não valia a pena publicar justificativas. A notícia seria esquecida em poucas horas. Não estava viajando de avião, porque havia problemas com o trem de aterrissagem.

Por fim desligou o telefone. Abraçou Irene.

– Ouviu?

– Palavra por palavra – respondeu ela.

– Aprende comigo. Os problemas resolvem-se com calma e em silêncio – sentenciou, e a sua voz era uma lâmina cortante. Irene estremeceu ao pensar que Tancredi tinha corrido um grande risco. No entanto, disse: – Vou tentar aprender.

– Gostou daquela bolsa que deixei em cima da mesa?

– Valiosa demais para mim – respondeu sorrindo.

– É uma maneira simpática de me dizer que não quer saber dela para nada. Mas não deixe de ser assim como é. Porque é exatamente esta mulher que eu amo – sussurrou, afagando-lhe o rosto.


54

Quando Irene chegou a San Benedetto já era noite. Estacionou o carro no “pátio das traseiras”, que agora era um grande espaço gramado, ao lado do carro do pai. Viu-o à janela da cozinha, de onde chegava uma luz quente e convidativa. Os cães, dois grandes rafeiros de muitas cores, reconheceram-na e atiraram-se a ela ganindo e abanando a cauda.

Mauro apareceu à porta, libertou-a dos cães e pegou os embrulhos que ela tinha trazido de Milão. Quando entraram em casa, o pai abraçou-a.

– Já começava a ficar preocupado. Não estava em casa, nem no escritório. – Desculpa. Estava em Roma e, francamente, não imaginava que fosse tão tarde – respondeu ela, sentando-se, com uma sensação de alívio, no banco de madeira ao lado da lareira.

No canto, entre a lareira e o aparador, havia um pinheiro que chegava a uma trave do teto. Os enfeites da árvore estavam ainda nos caixotes. No fogão fervia o molho de atum, e a água na panela esperava pelo espaguete.

– Está com fome? – perguntou Mauro.

– Fiquei agora, quando senti o aroma do seu molho. O que foi que colocou lá? – Os ingredientes de sempre. Os que a sua mãe usava. Quando queria. A Rosanna sabia cozinhar mesmo muito bem. – Nunca se esqueceu dela?

– Vou mergulhar a massa – disse ele, sem responder, e acrescentou: – Depois vamos fazer a árvore. O que são estes embrulhos todos? Por que é que gasta tanto dinheiro?

– Não fez o presépio – observou Irene.

– Vou fazê-lo logo à noite – afirmou, com um sorriso malicioso.

– Não gasto muito dinheiro. São presentes que recebo, como todos os outros empregados da Cosedil. Mas também tenho uma surpresa para você. Uma coisa pequena na qual trabalhei, noite após noite, durante várias semanas – anunciou Irene, escolhendo no meio dos sacos um embrulho retangular.

– O que é? – perguntou Mauro, com os olhos brilhantes de alegria. – Abre, e já vai ver.

Mauro abriu o embrulho e encontrou um pequeno quadro numa moldura de madeira azul. Era uma tela branca bordada a ponto de cruz. Por entre ramos de flores de cores tênues, sobressaía uma frase: ESTA CASA ESTÁ VIVA E BONITA POR MÉRITO DE MAURO CORDERO, O MEU PAI. IRENE. 25 DE DEZEMBRO DE 1985.

– Tem que a pendurar na porta – sugeriu ela, fingindo ignorar o seu olhar brilhante de comoção. – Obrigado – conseguiu sussurrar.

– Feliz Natal, pai – disse ela, abraçando-o.

– Feliz Natal para você também, minha menina – respondeu, comovido. Naquele momento, Irene sentiu-se feliz naquela sala, que Mauro Cordero tinha inteiramente remodelado, apagando as recordações tristes e dolorosas do passado.

– Oh, meu Deus, a massa! – disse Mauro.

Enquanto se abraçavam, comovidos, a água tinha saído da panela e alagado o tampo do fogão. – Quem é que vai limpar este desastre? – perguntou Irene, divertida. Riram os dois. Agora era mesmo véspera de Natal.

Mais tarde foram até a aldeia para a Missa do Galo. Estavam lá os habitantes de San Benedetto e dos arredores. Irene conhecia a todos e todo mundo a cumprimentava. Muitos deles tinham falado dela durante muito tempo, por causa do noivado desmanchado com Angelo Marenco. O comentário recorrente era: “Apesar de ser maluca, nunca será tanto como a pobre da mãe.”

Agora viram-na avançar, altiva, pelo braço do pai, em direção ao portão da igreja, onde o coro, acompanhado pelo órgão, entoava já um cântico de Natal.

Uma voz atrás dela exclamou:

– Você é a pequena Cordero!

Era Barbarina, a dona do Bar Centrale. Alguns anos atrás tinha vendido o estabelecimento para ir para os Estados Unidos se encontrar com a filha bailarina.

– Deixe-me olhar para você. Meu Deus! Que bonita está – disse, abraçando-a de repente. Mauro, com receio de se pavonear demasiado ao lado de Irene, sussurrou-lhe: – Espero por você lá dentro e te guardo lugar.

– A Barbarina também está muito bem – replicou a amiga. – Aqui na aldeia dizia-se que nunca mais ia voltar da América. – Deixa-os falar. Esta gente daqui só sabe fazer duas coisas: trabalhar e bisbilhotar. – Sabe que em Milão, numa mercearia, encontrei manteiga de amendoim? – disse Irene. – Ainda se lembra? Come pouca, porque aquilo é uma bomba de colesterol. Soube que trabalha numa empresa importante. – É verdade. Mas não posso esquecer esta terra. E depois há o meu pai, que está sempre tão sozinho. – O Mauro! Se eu tivesse menos dez anos, casava com ele. Sabes, o meu Gino morreu há três anos. Um ataque repentino e paz à sua alma. Por isso, vendi o estabelecimento e fui para a América. A minha filha está em Los Angeles. Vê lá, mora numa vivenda em Sunset Boulevard. Que tristeza de lugar! Ninguém conhece ninguém. As pessoas, quando trabalham juntas, parece que ficam amigas. Mas quando acaba o trabalho, adeus, até amanhã. A minha filha agora é coreógrafa. Ganha um monte de dinheiro e gasta outro tanto. Já teve dois maridos e, neste momento, vive com um realizador. Eu resisti dois anos naquele lugar de selvagens. Depois não aguentei mais e voltei para cá. Ainda bem que não vendi a casa. Estou pensando em abrir outro estabelecimento, de tipo americano. Vou chamar de Hollywood Bar. Se a despedirem em Milão, venha trabalhar comigo – exclamou a mulher, com um ar alegre.

– Obrigada. Não me esquecerei – respondeu Irene, e apressou-se a se encontrar com o pai. Era bonita, a missa, na igreja enfeitada para as festas. Irene não a sentiu como gostaria. O encontro com Barbarina lembrara-lhe as noites tristes passadas num canto do Bar Centrale à espera que a mãe se decidisse a voltar para casa. Agora que conhecia a história de Rosanna, perguntou-se como teria sido a sua vida se a mãe fosse uma mulher como as outras. Rosanna tinha vivido a vida que o destino lhe reservara. E a minha vida, interrogou-se, como será?

Precisava de segurança, mas não a encontraria na Cosedil nem no papel de companheira do grande Tancredi Sella. As casas, o dinheiro e as joias não representavam a segurança de que precisava. A segurança, provavelmente, era Angelo Marenco. Ele tinha lhe oferecido sem condições e ela tinha fugido, como se estivesse diante de um perigo. Teve medo de medir forças com a segurança, com o equilíbrio e com a serenidade, tal como se tem medo de avançar num território completamente desconhecido.

A missa acabou e as pessoas dirigiram-se para a saída. Uma mão pousou sobre o seu ombro. Virou-se de repente e viu Angelo na sua frente. O coração começou a bater muito depressa.

– Vamos dar uma volta? – perguntou ele, em tom severo. Mais do que uma pergunta, parecia uma ordem. Os Marenco passaram por ela todos juntos, sem a cumprimentar. Mauro, mais uma vez, interveio com a discrição de sempre. – Eu já vou. Leve-a para casa, Angelo, por favor? – disse.

Quando Irene deixou aquele ótimo rapaz, Mauro ficou muito aborrecido. Mas decidiu não intervir nem fazer perguntas sobre uma questão que apenas dizia respeito à filha.

Todo mundo viu os dois jovens dirigirem-se a pé, lado a lado, para a estrada que ia dar aos campos. Caminharam em silêncio, com as golas dos casacos levantadas cobrindo o pescoço e a cara, e o bafo que se adensava num vapor branco.

– O seu patrão teve hoje um susto – começou ele, quase contra vontade. – Como é que sabe?

– Sou policial. Já se esqueceu?

– Achei que queria ser advogado, depois de acabar o curso – observou ela. – Ainda me faltam dois exames, e depois a tese para defender. Vou continuar nas forças da ordem. – E acrescentou: – Como está?

– Estou feliz por poder caminhar contigo por esta estrada fora.

– Podíamos ter caminhado juntos por toda a vida – sussurrou Angelo. – Ia te fazer a vida impossível.

– Eu sei. Mas estava disposto a correr esse risco.

– Eu cresci, Angelo. Você continua a me ver como uma menina. Agora sou uma mulher e sei que não sou a mais indicada para você. Ia te fazer sofrer e ia sofrer eu também.

– Enquanto que agora estamos os dois bem – respondeu ele, irônico. – Fala por você.

– Está com vontade de discutir?

– Por que não? Já me conhece – declarou Irene.

– Mas é noite de Natal!

– Eu gosto muito de você – disse ela, num sussurro.

– Eu sei. Mas não me ama e nunca vai amar ninguém. Só pertence a si própria. Isto já eu sabia, desde quando era pequena e eu a levava aos ombros por cima da neve, ou montava na minha bicicleta. Eu deveria ser-lhe grato por ter mandado o nosso casamento ao ar. No entanto, se você agora me dissesse: “Pensei melhor no assunto. Vamos casar”, eu dizia que sim, do fundo do coração.

– Mas eu não vou lhe dizer isso.

– Isso também eu sei.

– Feliz Natal, Angelo querido – disse ela, beijando-o na face.

Angelo apertou-a contra ele, sabendo que apenas abraçava, desesperadamente, um sonho. Irene era feita de vento e dentro de um instante já teria desaparecido. Ninguém a podia agarrar.

Meteu-lhe um pequeno embrulho na mão.

– Sabia que ia te encontrar esta noite. É o meu presente para você – sussurrou. – Chanel Nº 5 – sorriu ela. – Continuo a usá-lo sempre.

– Estou vendo – notou ele, escondendo o rosto dentro da gola do casaco dela. – E este é o meu presente para você. Eu também sabia que você ia voltar a vê-la – declarou Irene, entregando-lhe um embrulho que tinha trazido dentro da carteira.

– Um cachecol azul, de caxemira – disse ele. E acrescentou: o cachecol azul de costume. Prometeu-me um quando era pequena. Lembra?

– Eu lembro-me de tudo, Angelo. Às vezes penso que uma memória fraca me facilitaria a vida. Mauro viu-os da janela do quarto, no primeiro andar. Torceu por eles, como se torce pela equipe do coração, mesmo quando se sabe que se está perdendo.

Angelo pôs o cachecol ao pescoço, por cima de outro, idêntico, que Irene já lhe tinha oferecido. – Boa noite – desejou-lhe, afastando-se.

– Angelo! – Ela voltou a chamá-lo, e a sua voz era como um pedido de auxílio. Ele não se virou e continuou o seu caminho.


55

Através das janelas da cozinha, por trás das cortinas de renda, viam-se as luzes intermitentes da árvore de Natal. Irene empurrou a porta e entrou. O lume na lareira estava quase apagado. Por baixo da árvore estavam os presentes que iriam abrir juntos, ela e Mauro, na manhã seguinte. Em cima do aparador, ele tinha já montado o presépio. Era o mesmo de quando ela era pequena, com as figuras de pasta de papel que o pai tinha cuidadosamente envernizado. Brilhavam agora, numa postura tranquila, em cima de um prado de musgo verde, contando um sonho de salvação que se perpetuava nos séculos.

Irene despiu o casaco, tirou da carteira o perfume que Angelo lhe tinha oferecido e o deixou junto da árvore, juntamente com os outros presentes.

Depois aqueceu leite e juntou-lhe açúcar e cacau. Encheu duas xícaras e subiu as escadas. Bateu à porta do quarto de Mauro. Ele estava sentado no sofá lendo um livro.

– Eu sabia que esperava por mim. Quer tomar um chocolate quente comigo? – perguntou Irene. – Que pergunta! – exclamou ele. Fechou o livro e pegou na xícara. Irene sentou-se na cama e olhou em volta. Os móveis daquele quarto tinham sido comprados por Agostina quando Rosanna e Mauro se casaram. Estavam ainda bonitos e sólidos. Em cima da cômoda havia uma série de fotografias a cores e em preto e branco. Rosanna aparecia em todas elas. Havia também um estojo de pele clara. Dentro, em cima de uma almofada de veludo cor de marfim, estavam arrumadas as joias da mãe: um relógio de pulso em ouro, dois anéis, uma pulseira e um colar de coral.

Uma vez tinha surpreendido Mauro, em frente àquele estojo aberto, acariciando os adornos de Rosanna como se acariciasse a recordação da mulher.

Pensou na extraordinária força de ânimo daquele homem que se alimentava de pequenas coisas e que, mesmo no meio das amarguras, conseguia sempre estar sereno.

Tinha encontrado o seu lugar numa família atribulada e agora estava sozinho tomando conta das recordações. Entre as fotografias expostas em cima da cômoda, todas elas tiradas por Mauro, havia também as de Ezio, o irmão mais novo precocemente desaparecido.

– Pai, nunca sente saudades do pequenino? – perguntou Irene ao pai. – Viveu tão pouco – sussurrou Mauro. – Como dizia a Agostina, cada qual tem o seu destino – acrescentou. – E eu? Qual é o meu destino? – perguntou Irene em voz alta.

– Lembra-se daquela bruxa com quem de vez em quando a sua avó ia encontrar no cemitério? – A Carulina di bindei? Claro que me lembro. Morreu?

– Está viva como um galo. Tinha previsto o seu nascimento e foi ela que deu o seu nome. Se tem tanta curiosidade em saber, vai procurá-la. Dizem que é uma bruxa muito poderosa e que quanto mais envelhece melhor consegue ver ao longe – contou o pai.

– Eu não acredito em bruxas.

– Nem eu. O futuro, às vezes, adivinha-se conhecendo o passado. Você teve anos difíceis durante a sua infância. Traz dentro de você feridas que ainda não se fecharam. Por que é que acha que fugiu do Angelo? Eu sei que gosta muito dele, mas não estava convencida de que queria casar com ele. Venha comigo. Vou mostrar-lhe uma coisa – disse Mauro.

Levou-a para fora do quarto, ao longo do corredor, até aquele que fora o quarto dos rapazes de Agostina. Irene recordava um ambiente atulhado, com camas recuperadas, velhos baús em vez de armários e uma estante com muitas prateleiras onde a avó punha as maçãs, as cebolas e outras provisões para o inverno.

Estava transformado num lindíssimo quarto de criança. O chão era de faia clara e as paredes estucadas estavam pintadas de um bonito amarelo pálido e debruadas de riscas azuis. Os móveis eram do século xviii: a cabeceira da cama era em madeira pintada de azul e amarelo, as portas do armário apresentavam desenhos de inspiração pastoral, havia uma cômoda com as mesmas decorações e uma pequena mesa com duas cadeirinhas para crianças.

– Aqui está – disse Mauro. – Este vai ser o quarto do seu primeiro filho. Eu sei que agora não quer se casar nem ter filhos. Mas um dia isso vai acontecer. Eu aqui estarei, e não me impeça de deixar tomar conta do teu filho.

– Obrigada – sussurrou Irene.

– Fiz isso para mim. O seu futuro dá um sentido à minha vida. E agora vamos dormir, porque já é tarde e eu tenho sono – concluiu Mauro, dirigindo-se ao seu quarto.

Irene levou as xícaras vazias para a cozinha. Sentou-se no banco, ao lado da lareira já apagada. As luzes da árvore brilhavam intermitentemente, iluminando tenuemente aquele grande espaço.

Pensou em Angelo. Tinha fugido para não casar com ele, para não despejar os seus problemas em cima dele. Tinha conquistado Tancredi, sabendo que já tinha mulher e que assim não correria o risco de uma segunda proposta de casamento. Tinha sido ela a apanhá-lo. Ele nunca teria mexido um dedo para conquistá-la. Irene tinha precisado lhe dar provas da sua honestidade, até porque ele nunca tinha estabelecido relações com nenhuma das muitas mulheres, algumas realmente interessantes, que trabalhavam para ele.

Aconteceu em junho. Angelo estava à espera de Irene em San Benedetto para irem à câmara assinar o contrato de casamento. Na véspera ela tinha partido para Roma com a signorina Magda, o Dr. Macrì e a Dra. Cortesi, chefe do departamento de marketing.

Haveria uma reunião no palácio Pamphili, com os clientes mais importantes da Cosedil, que incluía uma conferência de Tancredi e, depois, um jantar de gala. O gabinete de imprensa e relações públicas tinha trabalhado durante semanas na preparação daquele evento. Tancredi deveria chegar de Palermo, onde tinha se encontrado com o sogro e o seu clã para aprofundar os detalhes de um novo negócio.

Irene telefonou a Angelo.

– Vou a caminho de Roma. Regresso a Milão amanhã de manhã e estarei em San Benedetto, em frente à câmara, às três em ponto.

– O seu pai e os meus esperam-nos lá em casa, à hora de almoço – relembrou Angelo. – Eu sei. Peça-lhes desculpa por mim. Mas estou trabalhando, no fim das contas – replicou. No palácio Pamphili cumpriu as suas funções, seguindo as diretivas da Dra. Cortesi, dando uma mão para controlar se os preparativos para a conferência e para o jantar estavam decorrendo sem problemas. Tancredi era um organizador muito exigente e bastava um cabelo fora do lugar para desencadear as suas críticas.

Quando chegou de Palermo, estando já muito cansado, deu-se conta de que havia uma nódoa minúscula no colarinho da sua camisa imaculada. Irene teve que correr à via Borgognona buscar uma para substituir aquela. A signorina Magda estava em alvoroço, porque parecia que a instalação dos microfones não estava funcionando como devia. As recepcionistas contratadas para receber os convidados tinham as saias dois centímetros mais curtas do que a medida estabelecida e algumas delas estavam excessivamente maquiadas: imperfeições imperdoáveis, segundo Tancredi Sella.

Irene tinha percebido havia algum tempo que o mundo da Cosedil era como um estúdio cinematográfico, onde reinava a confusão mais absoluta e o nervosismo podia se cortar à faca, até que aparecia a claquete: a partir desse momento, como por milagre, tudo corria de uma forma absolutamente perfeita, como Tancredi exigia.

O cansaço do presidente foi se dissolvendo enquanto falava, prendendo a atenção do público. O seu discurso pacato, o sorriso irresistível e a presença física tinham um papel muito importante. Por fim, tudo correu bem, e até o jantar foi perfeito.

Irene estava sentada à mesa de Tancredi e da secretária, com alguns clientes muito importantes da Cosedil. O presidente, de vez em quando, levantava-se para trocar algum comentário com os clientes acomodados em outras mesas. O café foi servido.

Irene tinha entretido com poucas palavras e muitos sorrisos um industrial de Parma. Era um homem com cerca de cinquenta anos, que herdara do pai uma pequena fábrica de vidro que tinha transformado mundialmente em um colosso.

– O que acha da ideia de me fazer companhia esta noite? – propôs-lhe o homem, enquanto mexia o açúcar no café. Ela ficou sem fôlego. Quase esperou ter ouvido mal, e não respondeu. – É claro que ninguém dá nada a ninguém. Eu sou generoso e saberei recompensá-la – prosseguiu o homem, com a arrogância de quem está convencido de que o dinheiro pode comprar qualquer pessoa e qualquer coisa. Naquele momento, Tancredi estava sentado à mesa com eles. Captou as palavras daquele cliente precioso e o olhar perturbado de Irene. Ostentou um dos seus sorrisos irresistíveis e levantou-se. – Estou mesmo precisando falar contigo – disse ao industrial, enquanto dava a volta à mesa para se aproximar. Depois sussurrou a Irene: – Peça ao meu motorista que a leve à via Borgognona. Tancredi salvara-a de uma situação embaraçosa. Quando chegou ao palacete, apesar de ser já muito tarde, ficou no pátio à espera do regresso do presidente.

Estava furiosa por causa da baixeza daquele homem que, por dever profissional, não tinha podido colocá-lo em seu lugar. Tancredi chegou mais cedo do que ela pensava. Irene estava sentada na mureta do claustro. A Lua, no ar doce de junho, espreitava do céu.

Ele saiu do carro, viu-a e foi ao encontro dela.

– Lamento muito – desculpou-se.

– É tudo o que tem para dizer? – respondeu ela, agressiva.

– Devo acrescentar que lhe agradeço por não ter respondido.

– É sério? Um convidado seu me insulta e o senhor agradece-me por ter me calado? – Irene levantou a voz para desabafar a frustração.

– O que é que eu devia ter feito? Desafiá-lo para um duelo? – replicou ele, com a mesma veemência. – Mas que raça de gente é aquela com quem o senhor faz negócios? – Signorina Cordero, pare de fazer-se de Joana d’Arc! O mundo está cheio de personagens como aquele senhor de Parma.

Não me diga que não sabe, porque eu não acredito.

Olhou-o, furiosa, sem responder. Depois, com um salto, desceu da mureta. Um salto dos sapatos de noite partiu-se no empedrado. Perdeu o equilíbrio e teria caído, desajeitadamente, se Tancredi não a tivesse segurado pela cintura, apertando-a contra si. Irene olhou para ele e foi como se o visse pela primeira vez. O luar iluminava tenuemente aquele rosto lindíssimo. Ela encostou os lábios aos de Tancredi. Pareceu tê-lo apanhado de surpresa. Mas a surpresa durou um brevíssimo instante. Com a rapidez que o caracterizava, ele puxou-a para si e beijou-a com paixão. Depois inclinou-se ligeiramente, enfiou-lhe uma mão por baixo dos joelhos, pegou nela e, segurando-a nos braços, atravessou o pátio, sem dizer uma palavra.

Levou-a para o quarto dele e disse, ao pousá-la na cama:

– Aqui, juro, nunca fiz amor com nenhuma mulher.

Irene abandonou-se à sua maneira de amar, que era doce e apaixonada. – Acho que me apaixonei por você numa manhã de novembro de há três anos, quando a vi pela primeira vez na sala da entrada da Cosedil, muito empertigada por trás da mesa de vidro – disse. Irene respirou fundo e sentiu-se liberta do medo de se casar, de criar uma família, de ter filhos. Foi assim que começou a história com Tancredi.

Sentada no banco, ao lado da lareira apagada, na cozinha da avó, Irene recordou aquela noite de junho. Tancredi não sabia, mas salvara-a de um naufrágio. E, sobretudo, salvara Angelo de um casamento falho.


56

A madre Maria Serena estava sentada à mesa separando a correspondência do correio que tinha acabado de chegar. Ouviu tocar a campainha da porta da entrada. Levantou-se e percorreu o vestíbulo com o seu passo lento, mancando ligeiramente por causa da dor na anca. Já nem os analgésicos conseguiam aliviar o sofrimento. Deveria ter sido operada há vinte anos. Agora, com 82 anos, era realmente tarde demais para uma intervenção.

A campainha voltou a tocar. Ela abriu o postigo e viu um homem, já não muito jovem, mas decididamente bonito. Reparou nos olhos profundos e azuis, no rosto cuidadosamente barbeado e bronzeado e numa madeixa de cabelos grisalhos que caía sobre a testa ampla.

– Bom dia – disse a freira. – Em que lhe posso ser útil?

– Vim pedir a vossa hospitalidade – respondeu o homem.

– O senhor reservou um aposento? – perguntou a freira.

O homem abanou a cabeça.

– Já esteve aqui outras vezes?

– Não. É grave? – perguntou, com uma ponta de sarcasmo.

– Isso, só o senhor é que pode determinar – respondeu prontamente a madre Maria Serena. – É claro que pretendo pagar pelo incômodo – apressou-se a acrescentar. – Não é disso que se trata. A nossa hospitalidade não prevê nenhuma contrapartida. De qualquer maneira, espere um instante. Vou mandar-lhe a madre Maria Luciana. É ela que trata do acolhimento. – Fechou o postigo na cara. Regressou lentamente à sua mesa e, através do intercomunicador, chamou a outra freira.

Passaram alguns minutos. O homem ouviu um ruído de passos, depois o portão abriu-se e uma pequena freira idosa olhou-o por trás de umas espessas lentes de míope.

– Bom dia. Sou a madre Maria Luciana. Quer me seguir? – Não era uma pergunta, era uma ordem. Foi atrás dela ao longo de um corredor para o qual davam três portas. Abriu a última e convidou-o a entrar numa pequena sala. A religiosa indicou-lhe uma poltrona. Ela continuou em pé, com as mãos escondidas por baixo do escapulário. Sorriu, enquanto o observava com uma intensidade que o homem considerou embaraçosa.

– Quer ficar conosco? – perguntou-lhe, por fim.

– Se for possível.

A freira anuiu.

– Durante quantos dias?

– Não faço ideia.

– De que é que anda à procura?

– Não sei – respondeu ele, com um gesto de inquietude que a monja captou imediatamente. – Se não sabe do que anda à procura, não vai encontrar aqui nada – disse. Ele não respondeu.

Madre Maria Luciana sentou-se em frente a ele e pensou que, a julgar pela postura, pela roupa e pelos modos, o seu interlocutor devia ser um homem rico e com alguns problemas. Ficou curiosa.

– Conte-me tudo – disse, com o ar de uma moça que se prepara para ouvir uma história interessante. – Ando à procura da Irene – revelou com uma voz firme.

Madre Maria Luciana levantou-se.

– Para isso vai ter de falar com a nossa abadessa. Mas a madre Maria Francesca não está aqui. Pode passar por aqui em outro dia. Ou então telefone daqui por uns dias. Não precisa da nossa hospitalidade.

Por trás daquela doçura aparente, o homem percebeu uma forte determinação de ficar em silêncio. Tentou contornar o obstáculo.

– Madre, perdoe-me a má-educação. Nem sequer me apresentei. Chamo-me Tancredi Sella. – Vou tomar nota do seu nome e avisarei a abadessa, assim que ela regresse. O poder que aquele nome evocava não perturbou a monja.

– Permite-me então ficar aqui até poder me encontrar com a madre abadessa? – Aquele freira humilde, de olhar caridoso e firme, intimidava-o. Não estava habituado àquele tipo de submissão. Como um postulante, esperava uma resposta que tardava em chegar. O toque do telefone, na cabina ao fundo do corredor, marcava ainda mais o silêncio absoluto daquelas paredes. Um relâmpago cruzou o céu e, logo a seguir, um trovão possante abalou o ar.

– Outro temporal! – lamentou a freira. Depois acrescentou: – Tem alguma bagagem? – Tenho uma bolsa, no carro.

– Então vá buscá-lo e espere-me em frente à igreja. Vou conduzi-lo à ala dos hóspedes. Tancredi achou-se numa cela branca e limpa, com uma cama coberta por uma colcha verde, uma mesinha de cabeceira em madeira, uma mesa e uma cadeira com assento de palha. Em cima da mesa havia uma Bíblia e uma fotografia a cores de um cristo medieval em madeira. Uma janela de arco rebaixado, protegida por um mosquiteiro, dava para um grande pátio rural que a chuva que caía transformava num pântano. Parecia desabitado. Havia apenas uns gansos brancos aninhados por baixo do alpendre e alguns pombos que tinham se refugiado no meio das telhas velhas do telhado.

Tancredi estremeceu. Cansaço, angústias e noites sem dormir estavam destruindo-o. Agora estava só, completamente só, num espaço de dois metros quadrados. Sentou-se na cama e meteu a cara entre as mãos. Pensou que aquela cela pequena e nua em que se encontrava era a conclusão certa para uma vida passada a perseguir metas desprovidas de significado. Tinha desejado e obtido o sucesso, o poder e o dinheiro, e agora dava-se conta de que não era mais do que um homem infeliz.

O temporal passou e Tancredi continuava ali, sentado naquela pequena cama, refletindo. Da igreja chegaram-lhe as vozes dulcíssimas das monjas cantando.

Entrou no banheiro, que era espaçoso, em comparação com a exiguidade da cela. Era de um asseio impressionante. Encontrou espuma de banho para a ducha, sabonete de alfazema e toalhas de linho bordadas à mão.

Sentiu bater à porta. Era outra vez a pequena freira míope que lhe incutia respeito. – Lembrei-me que talvez precisasse de uma manta de lã – começou. Segurava com um braço um invólucro cor de caramelo.

– Este agosto está mesmo maluco – continuou, e entrou decidida na cela. Tirou a colcha verde e estendeu o cobertor por cima dos lençóis brancos.

– Eu ouvi-as cantar – disse Tancredi.

– É a oração da Hora Média. No meio da manhã reunimo-nos para receber através da palavra de Deus a força para prosseguir o caminho do dia – respondeu madre Maria Luciana. Depois, com um sorriso de cumplicidade, continuou: – Quer um bom café?

– Há um bar? – perguntou Tancredi.

– Temos uma máquina de moedas no piso da entrada. Mas não lhe aconselho. Venha comigo à cozinha. Eu é que sei como se faz um bom café – declarou, avançando à frente dele pela escada que levava ao andar de baixo. – Este velho edifício, em outros tempos, era o nosso convento. Quando a Cúria nos deu os fundos para construirmos um novo, transformamo-lo na ala dos hóspedes – explicou.

Percorreram uma parte de um pátio coberto de saibro e passaram em frente à igreja. – Já viu como é bonita? – perguntou a freira, e acrescentou: – Depois pode visitá-la, se quiser. Conduziu o homem para dentro de uma cozinha minúscula onde a cafeteira estava já fervendo. – Beba este néctar e não se atormente. Confie-se ao Senhor. Ele sabe aquilo que é bom para nós – disse a freira, estendendo-lhe uma xícara fumegante.

– Estou deprimido, irmã – deu por si declarando, surpreendido.

– Irmã, não. Madre. Mas pode chamar-me simplesmente Maria Luciana – E acrescentou: – Não estaria aqui se não tivesse alguma aflição. Não tenha pressa de resolver os seus problemas, a paz do coração é uma conquista grande e trabalhosa. Gosta do meu café?

– É ótimo, obrigado – respondeu Tancredi.

– A madre Maria Francesca volta amanhã – sussurrou a freira com ar de quem lhe confiava um segredo. – Se decidir ficar conosco à espera dela, ao meio-dia e meia vai ser servido o almoço na salinha dos hóspedes. Entretanto, pode fazer o que quiser. Pode ir à igreja, pode retirar-se para a sua cela ou pode passear pelos campos. Nós temos o nosso trabalho, que nos mantém ocupadas. Há uma Bíblia na sua mesa. Abra-a ao acaso, leia e não se preocupe se não entender. A palavra de Deus não é assim tão fácil de entender. E agora, se me permite, tenho o que fazer.

– A Irene dorme na ala dos hóspedes, quando está conosco?

– Agora não pense nela. Pense em si – aconselhou, iludindo a sua pergunta. Levou-o até a saída. – Sinto-me inútil – confessou Tancredi, ao despedir-se dela.

– Também eu. E mais, tomei os votos para testemunhar que Cristo também vive dentro de inúteis como eu. Tancredi saiu para o pátio, onde uma lâmina de sol procurava uma abertura por entre as nuvens. Pensou que a madre Maria

Luciana devia ser uma pessoa especial, e que talvez fossem também as outras monjas com as quais Irene se entretinha durante o tempo que passava no convento.

Seguiu um caminho asfaltado, pouco mais largo que uma passagem, com um rego que corria ao longo do lado direito. À esquerda, por entre as fileiras de choupos, estendiam-se campos de centeio. Passou uma pequena ponte e viu um velho moinho com uma roda enorme que girava, empurrada pela água. Aqui e ali, os edifícios rurais abandonados suscitavam em Tancredi uma sensação de penosa solidão. Pensou que, provavelmente, os camponeses que trabalhavam nos campos os tinham abandonado para viver no centro da pequena vila de Altopioppo. Estava ali há poucas horas apenas e parecia-lhe que aquele lugar distante de tudo estava revolvendo a alma.

A via rápida não ficava longe, mas as longas filas de choupos criavam uma barreira contra os ruídos. Aquela extensão silenciosa de prados e terrenos irrigados sob o sol de agosto, que agora brilhava sobre os campos, tinha as cores, os perfumes e a luz de um mundo de que perdera já a memória. Pareceu recuar nos séculos até chegar a uma paisagem medieval, onde viviam aquelas monjas que pareciam criaturas fora do tempo.

Deu meia-volta e ouviu a campainha que anunciava a hora do almoço. A madre Maria Serena estava à porta e sorriu.

– Faça favor. É por ali – disse, indicando-lhe um corredor.

Ao fundo abria-se uma porta que dava para uma pequena sala com dois aparadores opostos em estilo renascentista, lúgubres e pesados. Havia uma mesa retangular, ao centro, coberta com uma toalha branca. Os pratos, os talheres e os copos eram simples e muito limpos. As cadeiras, de espaldar alto, tinham um forro de pele. A mesa estava posta para dois e havia uma hóspede à espera dele. Era uma moça alta e magra, com o cabelo pintado de loiro, uma sombra azul nas pálpebras e rímel em abundância nos cílios. Vestia um jeans desbotado e uma camiseta sem mangas de riscas azuis e brancas.

– Esta é a nossa Cristina. – A velha monja fez as apresentações. – Este senhor chegou hoje de manhã. Agora a madre Ornella vai servir-lhes o almoço – concluiu, e afastou-se com o seu passo vacilante.

– Chamo-me Tancredi – disse ele, estendendo a mão à moça.

– Sabe que o seu rosto não me é estranho? Já esteve aqui? – perguntou ela, de pé. Tancredi pensou que desde há muitos anos os jornais e a televisão difundiam a sua imagem muito mais do que ele gostaria. – Esta é a minha primeira experiência – afirmou, à espera que a religiosa se sentasse. Entrou uma freira jovem. O rosto, fresco e sorridente, emergia da touca branca e do véu. Trazia uma assadeira que colocou em cima da mesa.

– Hoje o cozinheiro preparou uma lasanha – anunciou, com um ar feliz. – O cozinheiro? – perguntou Tancredi, admirado.

– É um excelente rapaz, que está aprendendo a profissão – respondeu madre Maria Ornella. – Então, bom apetite – concluiu, desaparecendo por trás de uma porta de vidro.

Cristina fez o sinal da cruz, juntou as mãos e rezou:

– Senhor, nós lhe damos graças pela comida que nos oferece. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Amém. – Depois sentou-se.

Tancredi, intimidado, imitou-a. Continuava pensando em Irene. Será que ela também almoçava naquela sala, ou no refeitório das freiras?

– Também está instalada na ala dos hóspedes? – perguntou à moça. – Eu tenho um bar em San Giuliano. Hoje é o meu dia de descanso. Passo-o aqui, no convento. Cheguei hoje de manhã às cinco e meia, para as Matinas. Vou embora depois das Vésperas, porque tenho de preparar o estabelecimento. Esta noite fechei às duas. Estava muito cansada para fazer a limpeza. Queria dormir um pouco antes de enfrentar o meu dia de descanso, tão cansativo. De fato, só dormi três horas – explicou Cristina.

– Ora bem, encontrei alguém que consegue me ganhar. Eu sempre me gabei das minhas cinco horas de sono – replicou Tancredi.

– Quando uma pessoa faz uma coisa de que gosta, o sono é quase um empecilho – disse ela, enfiando o garfo na massa recheada de carne picada e béchamel. – Que boa! – exclamou. Depois deitou no copo o vinho que estava já em cima da mesa. – Posso? – perguntou, encostando a garrafa ao copo dele.

– Eu achava que no convento não se bebia vinho – observou ele.

– Por quê? Jesus gostava de beber. E de comer, também. Gostava de se rodear de mulheres bonitas e de gente alegre. O vinho e o riso fazem bem à alma.

– Tem namorado? – perguntou Tancredi. Imaginou que ela seria uma moça simples, modesta, que se esforçava por se sentir atraente acentuando a pintura dos olhos, que eram grandes, verdes e muito vivos.

– Ele deixou-me. Sofri muito, até porque se meteu com a minha melhor amiga. Depois achei que era aquela a vontade do Senhor. Ele sabe o que está bem e o que está mal para nós. A oração, aquela que se exprime com o coração e com a inteligência, ajuda-nos a seguir as suas indicações. Agora o Senhor está me dizendo que devo intensificar os exercícios espirituais. Rezo até dentro do balcão do bar, quando os bêbados bebem até cair e quando entram os drogados que querem esvaziar a gaveta. O Senhor é o meu Pastor e saberá guiar a minha vida – afirmou, serena.

Tancredi pensou em Irene. Talvez também ela se exprimisse como Cristina. De qualquer modo, começava a perceber que entre as paredes daquele convento Irene devia ter encontrado algo de muito importante. Tentaria descobri-lo e, sobretudo, não ia deixar aquele lugar sem vê-la.

Enquanto as freiras trabalhavam e rezavam, Tancredi refugiou-se de novo na sua cela. Ficou ali, atrás do mosquiteiro, observando o pátio rural. O sol tinha secado o terreno. Estendida num lençol de erva, uma gata branca e cinzenta segurava entre as patas um gatinho que mamava o seu leite e, de vez em quando, lambia-o com uma ternura materna. Fez-lhe lembrar o período em que Irene vivia na casa de Cherry Lane e dava de mamar ao filho.


57

Era maio. Tancredi tinha acabado de chegar de Milão para passar a noite no palacete de Londres. Irene e o menino, juntos, eram a imagem da pureza e da serenidade. Ela estava de pijama, enroscada em cima da cama, e John, que tinha feito um ano pouco antes, estava aninhado na curva envolvente do corpo dela. Dormiam profundamente. O pequeno, de vez em quando, mexia os lábios como se estivesse mamando.

Tancredi sentiu um nó de comoção apertar a garganta e teve vontade de os abraçar. Tinha dois filhos já grandes e não se lembrava de tê-los visto crescer, nem de alguma vez ter surpreendido a mulher num momento de tão absoluta ternura.

Estavam todos dormindo em casa: os empregados, a babá e a mãe, que tinha deixado Palermo e se tinha mudado para ali “para dar uma mão”, como ela dizia, desde que o menino nascera, e ali continuava.

Rosalia d’Antoni sempre tinha hostilizado a ligação entre o filho e Irene. Emitiu juízos cáusticos acerca daquela moça que, contratada como recepcionista, tinha feito carreira ao longo dos anos e tinha se enfiado na cama do filho. Depois, sabe-se lá como, a sua atitude mudou.

– Sabe que não me parece assim tão má, esta moça? – disse uma vez. Aconteceu durante uma recepção na vila de Cassano. Tancredi tinha reunido os colaboradores mais próximos, os jornalistas de mais confiança, os políticos a quem estava muito ligado e as suas mulheres ou companheiras. Como sempre, Dora aproveitou o pretexto para se eclipsar, enquanto Irene fazia as honras da casa.

Era outono. Os convidados chegaram para a caça ao faisão na propriedade de Tancredi. Irene tratou da coreografia do evento, assistida pelo arquiteto Sabelli.

Escolheu os desenhos para a decoração dos pratos e das toalhas, bordadas com temas outonais de folhas amarelecidas, maçãs avermelhadas e castanhas. Sugeriu o arranjo das salas e dos quartos para os hóspedes em tons de verde e amarelo. Orientou o trabalho dos cozinheiros e dos jardineiros.

Durante o almoço, a mãe de Tancredi sujou o vestido de chiffon. Irene viu o desapontamento da siciliana, que considerava aquela mancha a consequência de um movimento desastrado, absolutamente inadmissível numa ocasião em que toda a gente devia se comportar de uma forma perfeita. Irene conseguiu deixar escorrer um fio de água no seu próprio vestido.

– Ops! – exclamou, olhando para Rosalia, que estava sentada à frente dela. Depois dirigiu-se aos comensais mais próximos: – Peço desculpa. – Levantou-se, fornecendo assim um pretexto à mãe do dono da casa para sair, atrás dela, da sala de jantar.

Subiram juntas ao primeiro andar.

– Tenho um produto milagroso para eliminar essa manchinha – disse Irene, enquanto levava a mulher até a lavandaria. Vaporizou sobre o chiffon delicadíssimo uma espuma amarelada. Rosalia estava horrorizada e pensou: esta estúpida estragou o meu vestido. Poucos instantes depois, com duas vigorosas escovadelas, o tecido voltou a ficar perfeito. A mulher apreciou aquele pequeno favor, a graça com que a tirou de uma situação embaraçosa e a simplicidade brincalhona com que Irene concluiu: – Et voilà , podemos regressar aos convidados.

Rosalia sorriu, pela primeira vez, e agradeceu-lhe.

– De nada – respondeu Irene, dedicando-lhe um sorriso genuíno.

Era isso que tinha de especial a namorada do filho: a simplicidade. Não se pintava, não ostentava assinaturas de grandes costureiros, nem joias. Sempre a vira de calças e blusas. Raramente, como naquela ocasião, vestia uma roupa elegante: um vestido de noite justo, de cor verde-bosque; um tom difícil de usar. Caía-lhe muito bem.

– Quem lhe fez esse vestido? – perguntou-lhe, enquanto voltavam à sala de jantar. – A modista da minha terra. Isto é um segredo que só revelo a você. Não gosto de esbanjar dinheiro em roupa – declarou candidamente.

Tornaram-se amigas. Aquela genuína moça do Piemonte, de origens tão humildes como as suas, que conhecia o valor do dinheiro e amava a solidez do trabalho, agradava-lhe. Tinha muito mais temas de conversa com Irene do que com Dora, a mulher legítima do filho. Por isso, quando soube que ela esperava um bebê e que, para satisfazer a vontade de Dora, a criança devia nascer no estrangeiro, fez uma cena a Tancredi.

– Como é que pode aceitar tudo isso? – perguntou-lhe.

– Às vezes esquece de que a Dora é filha de don Giuffrida e que você fez tudo o que foi possível para concretizar este noivado – respondeu.

– O que é que quer, jogar isso na minha cara? De qualquer maneira, eu não vou deixar aquela pobre moça sozinha. Chegou a Londres pouco antes do nascimento da criança, instalou-se na casa de Cherry Lane, e Irene ficou-lhe muito grata pela ajuda.

Naquela noite, Tancredi meteu-se na cama ao lado de Irene e do menino, mexendo-se com cuidado para não os acordar. Ficou ali a olhar, através dos vidros, para o céu estrelado, recordando as palavras de Irene quando estava grávida: – Sabe quantas tonalidades tem o céu de Londres? Vinte e seis, eu contei-as. – Aquele tinha sido um período esplêndido para ambos. Agora ela estava fugindo-lhe das mãos e ele não sabia por quê. No ninho quente daquele leito, Tancredi passou delicadamente os dedos por entre os cabelos descompostos de Irene. Ela abriu os olhos e ele adivinhou o sorriso na escuridão aconchegante do quarto. – Tenho sono – sussurrou ela, com uma voz suave. E voltou a adormecer. Tancredi, pelo contrário, ficou acordado durante muito tempo, perguntando a si próprio se era possível que a maternidade pudesse transformar tão profundamente uma mulher. Parecia que Irene tinha muito mais coisas a dizer a Rosalia do que a ele próprio. Não encontrava uma resposta, e não a encontrou sequer naquela noite. Adormeceu exausto; quando acordou, a cama estava vazia.

O empregado disse-lhe que o menino tinha saído para o passeio habitual com a babá. – As senhoras estão tomando café da manhã – acrescentou.

Desceu então ao andar de baixo e ouviu as vozes das duas mulheres. Estavam conversando. Parou na copa e encheu uma cafeteira de café.

– Você precisa se distrair um bocado. Há meses que só faz de mãe galinha e ainda acaba por estragar a criança com mimo. Acha bom? – perguntou a mãe.

– Que mais posso eu fazer? E depois também não tenho assim muita certeza de querer fazer outra coisa. O menino preenche a minha vida – afirmou Irene.

Tancredi não tinha intenções de ouvir o que conversavam, mas aquelas palavras pareciam muito importantes para as perder. – Nunca nenhum filho preencheu a vida de nenhuma mãe. Quando muito, escravizou-a. Eu tive três e ficava feliz quando a minha sogra ou uma vizinha me substituía e eu podia sair e redescobrir o mundo. Eram pequenas fugas inocentes, mas serviam-me para recarregar as baterias – disse Rosalia.

– Então acha que eu podia dar um salto a Milão, só para rever o escritório? – perguntou Irene. Tancredi entrou em cena, com a cafeteira na mão. As duas mulheres estavam sentadas na mesa hexagonal inserida no vão da janela. Irene estava lindíssima. Vestia umas calças cinzentas e uma blusa branca de angora. Uma fita de veludo branco segurava uma selva de caracóis negros.

– Se me der tempo para tomar o café da manhã, partimos imediatamente – começou Tancredi, que não cabia em si de alegria.

– É só uma escapadela. Amanhã quero estar aqui outra vez – precisou Irene. Durante a viagem de avião, Irene esteve muito silenciosa. Tancredi trabalhava e ela olhava o céu através da janela. – Acha que o menino vai sentir a minha falta? – perguntou-lhe, a certa altura, dando voz às suas preocupações. – Pergunta-me antes se eu, desde há meses, não sinto a sua – respondeu, irritado. – E por que é que devia? O John e eu não estamos em Londres por nossa vontade. – Eu já sabia que iria me atirar isso à cara.

– E como o assunto te incomoda, prefere evitá-lo – provocou Irene. – Foi você que quis a criança.

– Parecia que você também a queria.

– É claro que queria! – respondeu, levantando a voz.

– Não grite – reagiu ela.

– E você não me provoque.

– Não é preciso muito para o provocar. Basta que alguém te chame às suas responsabilidades. Está habituado aos seus cortejadores, que não ousam sequer respirar. Por muito estranho que possa parecer, eu não faço parte desse grupo. Como a sua mulher, de resto. Tem que se conformar. As mulheres da sua vida não o temem e por isso não venha choramingar ao pé de mim, dizendo que te faço falta – respondeu Irene, exteriorizando aquilo que pensava.

Tancredi enfiou um dedo no colarinho da camisa que, de repente, tinha ficado tão apertado que perturbava a respiração. Olhou para ela, esperando que aquele olhar tivesse o poder de reduzi-la a cinzas.

– Deixa a minha mulher sossegada – sibilou por entre os dentes.

– Acaba com essa hipocrisia. Casou-se com a Dora por interesse e a teme porque o pai dela te mete medo. Me isolou em Londres para se esquivar às represálias dela – atirou-lhe.

A bofetada partiu de repente, atingindo-a numa face. A resposta de Irene foi igualmente imediata e enérgica. Estavam separados pela mesinha da sala e olhavam-se como se quisessem despedaçar-se.

Tancredi meteu o rosto entre as mãos. Estava horrorizado com aquilo que tinha feito. – Perdoa-me – sussurrou.

Tinham discutido outras vezes, mas nunca tinham chegado àquele ponto. – Perdoa-me também – disse ela.

A hospedeira de bordo entrou na sala para anunciar que estavam em fase de aterrissagem e que deviam apertar os cintos. Encontrou-os abraçados. Tinham cada um o rosto escondido no ombro do outro. Sentiam-se terrivelmente infelizes.


58

Tancredi apareceu à porta do gabinete de Irene. Eram oito horas da noite e ela continuava a trabalhar. – Ainda vai demorar muito tempo? – perguntou.

– Algumas semanas – respondeu.

– Eu já terminei, por hoje – disse ele, continuando à porta.

– Então eu também vou terminar – concordou ela.

– Jantamos fora ou em casa?

– Em minha casa. Já avisei a Carmen. Vamos ter uma salada fresca da sua horta de Cassano, frango do campo da sua criação de Cassano e morangos do seu bosque de Cassano – enumerou com satisfação, enquanto desligava o computador e dava um aspecto de ordem à secretária.

O motorista e os guarda-costas estavam à espera deles no átrio da Cosedil. – Está um fim de tarde lindíssimo. Por que não vamos a pé? – propôs Irene. – Parece-me uma boa ideia – disse ele.

Tentavam os dois remendar o rasgão provocado pela discussão violenta daquela manhã. – Notícias do menino? – perguntou ele, enquanto lhe dava o braço e avançavam pela via Turati. – A sua mãe me disse que, se eu ousar telefonar outra vez, não me atende. Está ótimo, como é evidente. Mas estou cheia de vontade de vê-lo.

Tancredi preparava-se para responder.

Ela continuou: – Reforçou a vigilância. Temos dois guarda-costas à nossa frente e dois atrás – constatou. – A prudência nunca é excessiva – afirmou ele.

Estava muito bonito aquele fim de tarde de maio em Milão. O ar tépido misturava-se ainda com uma brisa gelada. Não havia trânsito ao longo da via Montebello e ouvia-se o rumor cadenciado dos seus passos. Durante os longos meses que passara em Londres, Irene tinha quase esquecido o quanto gostava de caminhar sob a luz tênue dos candeeiros de Milão.

– O que se passou, enquanto eu estive fora? – perguntou.

– A rotina de costume – disse ele.

– O que foi que se passou? – insistiu Irene. Sentiu um nervosismo repentino na atitude de Tancredi. – Durante o trajeto de Cassano para Milão, às oito da manhã, um automóvel tentou pôr-se ao lado do dos meus filhos. É evidente que aqueles sujeitos não sabiam que os meus homens estavam seguindo o carro dos rapazes, e fugiram. Eu estava em Londres, contigo. Não aconteceu nada, mas preferi mandar os rapazes para a Suíça. Agora ficam ali estudando e estão a salvo – explicou.

Irene sentiu um arrepio de medo. Tancredi movia-se num ambiente pouco fiável e muito perigoso. Pensou imediatamente no pequeno John e agradeceu à sorte o fato de ele não ter o sobrenome dos Sella e de a sua existência ser desconhecida de muita gente. Tinha de arranjar maneira de o manter sempre afastado do mundo de Tancredi.

– A sua mulher, como reagiu? – perguntou-lhe.

– Ficou preocupada e concordou com a decisão de mandar os filhos para o colégio. Assim até fica com mais tempo para o aristocrata dela – respondeu.

Foi um jantar tranquilo. Irene saboreou o prazer de reencontrar a sua casa, tal e qual como a tinha deixado. Naquela noite, Tancredi entregou-lhe o registo de propriedade de Altopioppo.

Irene voltou a meter o documento no envelope. Aceitou a oferta em nome do filho e disse: – Gostaria que o John fosse um rapaz como tantos outros, que crescesse em sossego, que se apaixonasse pelo estudo e que conhecesse o cansaço e a dignidade do trabalho. A sua mulher, sem o saber, prestou-nos um grande serviço. O John vai viver na Inglaterra e não vai ter cortejadores, mas sim muitos amigos leais.

– Não crie muitas ilusões. Os filhos nem sempre correspondem às nossas expectativas. Falo por experiência própria. – Depende da maneira como o veem enfrentar a vida. Não precisam de palavras, mas de exemplos. O luxo é um exemplo pernicioso – afirmou ela, e não era a primeira vez que acentuava o bem-estar excessivo dos filhos de Tancredi. A seguir concluiu: – Não sei se fiz bem em aceitar de presente a propriedade de Altopioppo.

Tancredi baixou a cabeça e observou, com uma sensação de desagrado, um grão de poeira que tinha se depositado na ponta de um sapato.

– Mas o que é que você quer? – perguntou-lhe em voz baixa. – Haverá alguma coisa que te satisfaça, que te torne feliz? – Eu não sei o que quero, Tancredi. Repara, a minha avó Agostina queria a terra dela, a casa dela, a família dela. A minha mãe queria um amor impossível. À sua maneira, foram generosas nos sentimentos. Eu gostaria de ser generosa como elas, mas não consigo. Acho que tenho medo de me sentir muito envolvida. É isso, talvez eu tenha medo de sofrer. Deve ser esse o meu problema – confessou.

– Eu acho que você ainda tem de crescer. Vou ficar à espera até ser grande – declarou ele. E acrescentou: – Entretanto, gostaria de tê-la perto de mim. – Agarrou-lhe um braço, obrigando-a a levantar-se, depois pegou nela e levou-a para o quarto.

Por mais que amasse Irene, recusava-se a percorrer continuamente o fio complexo dos seus pensamentos. Mas ela estava se afastando e só conseguia senti-la verdadeiramente sua quando faziam amor. Logo a seguir, porém, Irene fechava-se como um ouriço e tornava-se impenetrável.

Assim, naquela noite, vencido já pelo cansaço, mas não resignado à ideia da absoluta autonomia de Irene, disse-lhe: – Casa comigo.

– Pede a minha mão à sua mulher – respondeu ela, quase adormecendo. – Um dia posso me divorciar.

– Nesse dia voltaremos a falar no assunto – rebateu ela. E acrescentou: – Boa noite, querido. Liquidou-o com um bocejo.

Na manhã seguinte, quando o empregado bateu à porta do quarto para o acordar, Irene estava já ao telefone falando com a sogra.

– Tem certeza de que o menino dormiu bem? – Tinha o tom de voz de uma mãe ansiosa. – Posso mesmo ficar sossegada? Então vou ainda dar um salto ao escritório agora de manhã e parto de tarde. Dê um beijo ao John da minha parte. É uma querida, Rosalia.

Tancredi foi tomar uma ducha e ela ouviu-o cantar: “And then remember this, a kiss is just a kiss...” Tomaram juntos o café da manhã e estavam ambos de excelente humor. Era como se a discussão do dia anterior nunca tivesse ocorrido, como se aquele idílio não conhecesse quebras.

– Tenho que ir a Roma. Por que não vem comigo? – perguntou Tancredi. – Quero ir ao escritório e depois regressar a Londres, esta tarde. – Almoçamos com o monsenhor Sidney. Depois mando-a para o pé do nosso filho – prometeu. E esperou ansioso pela resposta dela.

– Está bem – assentiu Irene. A ele pareceu que ela estava fazendo uma grande concessão.


59

Tancredi estava sozinho com as inquietações que o mosteiro lhe suscitava. Até aquele momento, nunca tinha parado para refletir sobre si próprio.

Quando Irene começou a afastar-se dele, temeu que ela tivesse embarcado numa nova história de amor. Mas descobriu que ela dividia o tempo entre Londres, o escritório de Milão e Altopioppo, onde passava breves períodos, de vez em quando. Só via Irene no escritório, por motivos de trabalho. A última vez em que tinha conseguido falar com ela estavam em Londres, em sua casa. John estava com eles e tinham encenado uma aparência de normalidade. Só quando a criança foi para a cama dormir a sesta é que Irene se resignou a responder às perguntas de Tancredi.

Estavam no minúsculo jardim nos fundos do palacete. Ela apoiou-se na beira de uma fonte de mármore e pôs um dedo por baixo do tênue fio de água que saía do cântaro entornado por um Cupido de mármore. Estava de costas para Tancredi, que a olhava com desejo. Irene estava mudada, parecia mais serena mas mais difícil de agarrar. Tinha cortado o cabelo e os caracóis em desordem descobriam o pescoço fino e delicado. Vestia jeans e uma blusa de lã. Continuava a usar o mesmo perfume caro e muito feminino.

– Eu devia ter imaginado que um dia ia se afastar de mim – começou Tancredi. Ela continuava brincando com a água. Não respondeu.

– Comportou-se da mesma maneira com o seu namorado – continuou ele. E acrescentou: – Entra como um ciclone na vida dos outros, apropria-se dos sentimentos deles e desaparece. Não é uma maneira muito correta de agir.

Irene continuava calada.

– Tem medo dos sentimentos – acusou-a.

Ela virou-se lentamente para ele. Tancredi achou que ela nunca tinha estado tão bonita. – É verdade. Fizeram-me sofrer durante muito tempo. Agora dão um sentido à minha vida. Você, pelo contrário, só tem desejos, não tem sentimentos – afirmou ela.

– As estadias no convento não estão melhorando o seu temperamento. – Talvez. Mas estou mais tranquila.

Aproximou-se dele, que estava sentado num banco de pedra. Enterneceu-a ver com quanta tristeza Tancredi olhava para ela. – Onde se meteu aquela moça viva, atrevida, sorridente, adorável, capaz de me comover e de me fazer sofrer? – sussurrou ele, pegando-lhe na mão.

– Eu mudei, mas não ao ponto de me tornar outra pessoa. Aliás, estou aprendendo a me conhecer, a me aceitar e a gostar de mim. E é um trabalho longo e cansativo, sobretudo para alguém que está sempre com pressa de chegar sabe-se lá onde.

Tancredi levantou-se e pôs-se na frente dela. Pousou-lhe as mãos nos ombros. – Não a entendo. Antes queria que tivesse se metido com alguém que considerasse melhor do que eu. Aí eu podia lutar para reconquistá-la.

– Há quanto tempo é que acha que pode haver alguém melhor do que você? Sempre teve uma grande autoestima – disse – Por culpa sua, vejo vacilar muitas certezas – lamentou-se ele.

O pequeno John apareceu correndo no jardim, ao mesmo tempo que a avó, que vinha atrás dele chamando-o. Irene abriu os braços e ele saltou para ela.

– Mamã, me leva aos saltos? – perguntou.

– Já esteve lá ontem – interveio Rosalia.

“Os saltos” eram uma estrutura para as crianças brincarem. Havia pontes, torres, cavernas, castelos e escorregões vertiginosos insufláveis de muitas cores vivas. As crianças andavam à solta e os adultos ficavam tranquilos porque eles não podiam se machucar.

– Quero ir lá com a mamãe e com o papai – disse John.

– E a mamãe e o papai irão levá-lo lá – respondeu Tancredi.

– Um momento, quanto é que custam esses saltos? – perguntou Irene. – Uma libra e dá para todo o dia – garantiu o pequeno.

– Temos uma libra? – perguntou Irene a Tancredi.

Tancredi meteu a mão no bolso e tirou de lá uma moeda.

– Só tenho meia. – Encenou aquela comédia que divertia John.

– Eu também só tenho meia – afirmou Irene.

– Meia com mais meia faz uma – declarou John.

– Então podemos ir – decidiu ela.

– E o lanche? Precisamos de três pence para um muffin – continuou John. – Estão vendo como é? Dá-lhe um dedo e ele a seguir quer o braço inteiro. De qualquer maneira, para hoje, eu dou os três pence – interveio Rosalia.

Aquela foi a última vez em que Tancredi conseguiu passar umas horas com Irene. Deixou de a procurar e, quando ia visitar o filho, já não se preocupava em fazer coincidir as suas visitas com as dela.

Mas desde que soubera que ela tinha sido agredida, a necessidade de a ter ao seu lado, para a amar e para a proteger, tinha-se tornado imperiosa.

A mãe, com um telefonema, avisou-o de que Irene tinha ido a Cefalù e que tinha regressado com o filho para o levar a Altopioppo. Por isso, a esperaria o tempo que fosse necessário. Naquela cela sentia-se como um animal na jaula, mas não se deixaria dominar pelo mal-estar que o convento lhe provocava.

Quando ouviu a campainha que tocava para as Vésperas, decidiu entrar na igreja. Os afrescos das naves faziam ressaltar a importância da espiritualidade como alimento da alma. Mais uma vez, Tancredi teve a impressão de ter dado um mergulho no passado. Os cânticos e as orações das monjas transmitiram-lhe uma sensação de paz que ele nunca tinha conhecido antes, e por isso ficou grato a Irene. Por mérito dela, ele tinha chegado a Altopioppo. No fim das Vésperas, continuou sentado no banco gozando o silêncio e a beleza daquele lugar.

Aproximou-se uma freira, que lhe disse:

– São horas de jantar, signor. Vamos fechar a igreja.

– Acho que não vou jantar. Prefiro voltar ao meu quarto.

Estava uma noite quente, mas as paredes espessas da ala dos hóspedes conservavam ainda a frescura da manhã. Tancredi tirou o casaco, estendeu-se na cama e adormeceu.

Foi acordado pelo canto de um galo. Não se lembrava de ter alguma vez dormido tão bem, durante tanto tempo e tão profundamente.

Tomou uma ducha e vestiu-se rapidamente. Desceu a escada de pedra do edifício e, numa sala do andar de baixo, encontrou a máquina de moedas que servia chá, café, chocolate e bolos. Colocou uma moeda e recebeu um café muito doce. Saiu para o pátio. A luz da madrugada tingia o céu de cores tênues. Da igreja chegavam os cânticos das freiras.

Sentia-se bem, no melhor das suas forças. Gostava da vida. Amava Irene e queria casar com ela. Tencionava fazer todo o possível para convencê-la.

Em cima de uma coluna de pedra havia um cartaz que contava a história da abadia de Altopioppo. Leu-a e considerou que aquele belíssimo pedaço de história pertencia a Irene e ao filho: tinha tido sorte em adquiri-lo.

– Dr. Sella? – Uma voz simpática tirou-o daqueles pensamentos. Voltou-se e viu na sua frente uma monja de rosto comprido, espiritual. Só o olhar inquisidor contradizia a imagem

evanescente daquela figura de negro que escondia as mãos e os braços por baixo do escapulário. – A senhora é a abadessa, imagino. – Os olhos penetrantes da mulher deixaram-no embaraçado. Teve a impressão de que a

religiosa tinha estado sempre no convento e que tinha se negado a aparecer para o obrigar a ficar ali. – Soube que estava à minha procura. Pode falar – disse a madre Maria Francesca. De repente, faltaram-lhe as palavras. Ela continuava a fixá-lo com frieza. Era muito diferente das monjas sorridentes que o tinham recebido no dia anterior. A freira que estava à frente dele tinha o aspecto de um guerreiro. Tudo aquilo que Tancredi conseguiu dizer foi:

– Gostaria de reconquistar a Irene. Será que pode me ajudar?


60

A abadessa considerou Tancredi um homem lindíssimo e fascinante. As linhas do rosto bem marcadas, o olhar determinado de antigo normando. Não se espantou que Irene tivesse se deixado cativar por ele, quando era ainda jovem e insegura. Mas depois tinha crescido. Foi assaltada pelas dúvidas e na espiritualidade encontrou valores que procurava há muito tempo.

– A Irene procura um terreno fértil para nele introduzir as suas raízes. Será que o senhor, Dr. Sella, pode ser esse terreno? – Espero que sim. Amo a Irene e o nosso filho. Gostaria que fôssemos os três uma família. A freira recordou o dia em que Irene tinha se apresentado em Altopioppo, com um saco de viagem, pedindo para se hospedar.

Àquele primeiro dia tinham se seguido outros. Irene adquiriu o hábito de passar breves temporadas em Altopioppo. A madre Maria Francesca via-a na igreja e observava-a. Irene acordava todas as manhãs às cinco horas e seguia a liturgia das horas sagradas desde a primeira até a última. Enquanto as monjas dedicavam o seu tempo ao estudo e ao trabalho, ela passeava sozinha pelos campos, ou então ficava no quarto.

As monjas que, por turnos, lhe serviam as refeições, informaram a abadessa de que a jovem hóspede comia pouquíssimo, não pedia nada e não queria nada. Chegava ao convento e, ao fim de alguns dias, ia embora. Já todas as freiras conheciam a sua história. Sabiam que tinha um filho, em Londres, e que o ia visitar regularmente.

Uma manhã, depois da missa, enquanto Irene tomava o café da manhã na pequena sala dos hóspedes, a abadessa sentou-se à frente dela. Observou-a, enquanto ela untava com mel uma fatia de pão torrado. Derramou café numa xícara, bebeu um longo gole e depois sorriu.

– Como está? – perguntou.

– Sobrevivo – foi a resposta da jovem mulher.

– O ideal seria viver, não sobreviver – respondeu a monja.

– Ainda não sei por que lado começar para aprender a viver. Diga-me, madre. – Lembra-se daquela manhã em que veio cair em cima de nós como um temporal? – E depois fugi – disse Irene, e riu com aquela recordação.

– Mas voltou. E continua a frequentar o convento. Por quê?

– Espero conseguir dar alguma ordem ao meu espírito e à minha vida – afirmou. – Como está o John? – perguntou a monja.

– Cresce que é uma maravilha. Devia vê-lo! – exclamou, feliz.

– Ele devia vê-la muitas mais vezes. As crianças precisam da mãe – observou a abadessa. – Mas ele tem uma avó sempre presente. As avós são importantes, eu sei por experiência. Tive uma excepcional. O John

está em boas mãos – garantiu.

– A mão de Deus é a mais segura. Logo a seguir vem a da mãe, para um filho. Não há avó no mundo que a possa substituir – sussurrou a abadessa.

– Está dizendo-me que devo deixar o trabalho para me ocupar do meu filho? – Estou pensando em voz alta. Talvez tenha medo de fazer o seu papel de mãe. Não acha? – Em Altopioppo aprendi que Deus tem um desígnio para cada um de nós. Acha que devo dedicar-me inteiramente ao meu

filho?

– Vai perceber isso sozinha. Tem confiança.

Agora, a madre Maria Francesca olhava para Tancredi, pensativa. Depois, com um sorriso malicioso, disse-lhe: – Veja se a convence.

– Não vou conseguir nada. Sei que perdi toda a credibilidade aos olhos dela – sussurrou Tancredi. – Tente falar com ela – sugeriu a abadessa.

– Não quer me ouvir. E depois, não sei onde a encontrar.

– Está aqui. Não a vê? Está chegando com o John. – A monja apontou o dedo em direção ao portão, ao fundo do pátio da igreja.

Irene caminhava ao longo do caminho, segurando a criança pela mão. – Daddy ! – gritou John, quando o reconheceu. Deixou a mão da mãe e correu ao encontro dele. Irene estacou, no meio do caminho. Era a primeira vez que o via depois da agressão e do hospital. Tancredi agarrou John pelas axilas, levantou-o e deu duas voltas sobre si próprio, ao mesmo tempo que John ria e chamava

pela mãe: – Ma, look at me! I’m flying .

A abadessa reparou na extraordinária semelhança do menino com o pai: bonito e radiante como ele, pensou. Tancredi voltou a pô-lo no chão. John correu ao encontro da mãe e deu-lhe outra vez a mão. – Mamãe, venha brincar comigo e com o papai – disse, com entusiasmo. – Se calhar, os seus pais precisam conversar – interveio a abadessa. – É a Maria Francesca – disse Irene ao filho.

– A sua boss ? – perguntou John, dirigindo-se à mãe.

A freira riu com gosto.

– Venha comigo, meu menino. Vamos brincar com as amigas da sua mãe. A criança foi atrás dela.

Tancredi ficou ali, em pé, à frente de Irene, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. – Por que é que está aqui? – perguntou ela.

Estava calma e nos seus lábios lindíssimos desenhou-se um sorriso. No pátio, do outro lado do adro, parou um ônibus. Saiu uma comitiva de pessoas idosas, conduzidas por um jovem professor de História de Arte, que anunciou:

– E agora preparem-se para apreciar um mimo, como conclusão do nosso curso sobre Giotto e os seus alunos. Os visitantes, curiosos e compenetrados, passaram o gradeamento e dirigiram-se à igreja, atrás do cicerone. – Vão ver os afrescos? – perguntou Tancredi.

Irene confirmou.

– Vamos dar uma volta – propôs Tancredi, pousando uma mão no braço de Irene. Avançaram ao longo de um caminho pequeno que conduzia a duas casas de lavoura abandonadas, habitadas por pombas e gatos.

– Sabe que tudo isto pertence a você e ao nosso filho – disse Tancredi, indicando os campos em volta. – Também sei que está programando uma grande transformação para Altopioppo sem me ter consultado – observou Irene. – Teria feito, se ao menos tivesse respondido aos meus telefonemas. – Seja como for, não estou de acordo com o seu projeto. Estas casas, que têm quinhentos anos, não vão nunca dar lugar a

moradias fantásticas com piscina e campo de jogos. O mosteiro precisa alargar-se. Aqui vai nascer uma grande biblioteca. E vai tornar-se um centro de estudos muito importante, à disposição de todo mundo.

Irene estava muito empenhada, e aquele fervor tornava-a ainda mais bonita e desejável. – Quer dar um presente às freiras? Então dá. Não vou ser eu que vou me opor – disse ele. Irene parou e olhou para ele durante muito tempo. Depois declarou: – Nos negócios, sei que você dificilmente concede alguma coisa sem uma contrapartida. Então, o que quer em troca? – Case comigo.

Irene sabia que Tancredi e a mulher tinham se divorciado. Sabia também que tinha sido Dora a querer o divórcio. Por isso calou-se e sorriu com uma ponta de ironia.

– Não é preciso responder-me agora – disse Tancredi –, tome todo o tempo de que precisar para refletir. Chegam cinco segundos? – disse, olhando para os ponteiros do relógio de pulso. Depois sorriu e acrescentou: – Estou brincando, como é evidente. Eu espero. Espero que você decida tornar-se minha mulher.

Ela abanou a cabeça.

– Vou pensar nisso, mas duvido que o casamento seja o mais indicado para mim. Em qualquer caso, antes disso quero ter certeza de me bastar a mim própria.

Recordou a avó Agostina. Tinha se casado duas vezes, não por amor, mas por defesa. E tinham sido uniões infelizes. No mundo em que tinha vivido, não havia espaço para uma mulher sem marido. Recordou a mãe. Casara com Mauro pela mesma razão. Era realmente uma maneira humilhante de enfrentar a vida conjugal, mas elas não tiveram escolha. Ela, pelo contrário, podia continuar o seu caminho sozinha, sem se esconder por trás de um marido. Queria viver com John e trabalhar para ele e para si própria.

– No entanto, agradeço por me ter feito esse pedido – acrescentou. – Ainda não te disse tudo. Se vivermos juntos, poderei defendê-la melhor a você e ao John – declarou Tancredi. – Defender de quem? De quê? O Angelo não te disse que se tratava de um larápio? Prenderam-no, confessou e está na cadeia.

Irene entrou em San Benedetto pela porta medieval que em outros tempos constituía o único acesso ao grande burgo. Chegou com o seu carro velho, que funcionava ainda muito bem. John estava sentado ao lado dela e, pela primeira vez, visitava a terra da mãe.

– Agora vou mostrar-lhe as belezas desta terra – anunciou Irene.

– Que belezas? – perguntou a criança que, ao olhar em volta, via apenas ruelas tortuosas e casas a cair. – Há o castelo, por exemplo – disse ela.

– Mas não nos interessa, não é, mamã? Já vimos muitos nos arredores de Londres – respondeu John. – Há a igreja onde eu fui batizada – continuou.

– Igrejas também já vimos muitas, não vimos?

– Depois há o cinema Splendor, mas só abre aos sábados e aos domingos. Às vezes passam filmes para crianças. – Isso me parece interessante – aprovou John.

– Também temos os jardins com os escorregadores e os balanços. – Me leva lá?

– Mas, sobretudo, temos o Hollywood Bar. A dona chama-se Barbarina e faz os melhores refrescos gelados da região. – De repente, fiquei com sede – anunciou John.

Irene sorriu e parou o carro à sombra de um grande plátano que era o orgulho da terra. Tinham saído de Altopioppo depois da missa e do café da manhã, que tomaram na companhia da abadessa. – Não está pensando que se livra de mim com essa facilidade toda, não é? – disse Irene. – Sei que virá até nós sempre que sentir necessidade. E eu a quero aqui para acompanhar o trabalho de restauro das casas velhas.

– Já lhe disse que na nova biblioteca está previsto um pequeno apartamento para o John e para mim? O convento faria sempre parte da sua vida. Sabia que, quando crescesse, John havia de contestar as escolhas dela e seguir o seu próprio caminho, como era justo que acontecesse. Mas entretanto queria-o com ela, sempre e em qualquer lugar. – Mamãe, vamos conhecer o avô novo? – pediu-lhe o filho.

Na noite anterior, a madre Maria Emanuela e a madre Maria Cristina tinham improvisado para ele um pequeno concerto de rock, com guitarra e órgão. A abadessa cantou algumas canções de Elton John e Irene dançou com ele. John divertira-se muito. Agora estavam em frente ao Hollywood Bar. Na porta estava escrito: AIR CONDITIONING. Entraram. O interior era todo em aço e espelhos. Nas paredes estavam penduradas fotografias enormes dos personagens mais conhecidos de Hollywood, de Brad Pitt a Harrison Ford, de Julia Roberts a Madonna. Em cima do balcão, dentro de uns grandes recipientes de vidro gelado, uma pá elétrica mexia gelo moído com menta e café, limonadas e laranjadas. Numa mesa de canto, duas donas de casa trocavam mexericos em frente a uma xícara de café. Barbarina, com uns óculos de presbiope encavalitados na ponta do nariz,

estava lendo o jornal.

Era uma hora tranquila. Aquele espaço só se animava à noite, depois do jantar, quando a patroa, ajudada pelos empregados, preparava long-drinks americanos, enquanto a aparelhagem estereofônica tocava música rock e os jovens chegavam em massa, porque o Hollywood Bar era o lugar da moda mais frequentado daquela zona.

Barbarina levantou os olhos e ficou durante algum tempo a olhar para a mulher e para a criança. Depois os lábios alargaram-se num sorriso. Desceu do banco em que estava sentada, saiu do balcão e foi ao encontro dela.

– Irene! Mas que bela surpresa. E este é o seu filho, não é? Você é o inglesinho. O seu pai me disse que vinha. Sente-se. Quer um bom refresco de menta? – Falava alternadamente com ela e com John, que parecia um bocado perturbado com tanta cordialidade.

– É para isso mesmo que aqui estamos, Barbarina – disse Irene. E sentou-se com John numa mesa. – Vou já servi-los – respondeu a patroa.

– Neste bar, John, passei muitos fins de tarde com a Barbarina, que me dava pão com manteiga de amendoim. As duas donas de casa, que tinham se encontrado ali para trocar fofoca, observavam-nos, e Irene pensou que dentro de poucas horas toda a gente em San Benedetto ia saber da sua chegada. Barbarina, como era seu estilo, começou a contar a John as suas aventuras americanas na rodagem de um filme em que a filha tinha participado e dançado.

– Agora vamos para casa – propôs Irene, depois de John ter acabado o refresco. Quando chegaram à eira, Mauro já os esperava.

– A Barbarina me telefonou – comunicou, e foi ao encontro deles, enquanto saíam do carro. Segurava no braço um cachorrinho de pelo imaculado. John olhou para o animal com uns olhos sorridentes. – Você é o avô? – perguntou.

– Exatamente. Há anos que estou à sua espera. E este é o seu cão – disse Mauro. – Como se chama? – perguntou John.

– Ainda não tem nome. Está à espera que lhe ponha um.

– Posso pegá-lo no colo? – perguntou. O cachorro era muito mais interessante do que o avô. Mauro entregou-lhe o cachorro.

– Preciso o conhecer um pouco, antes de lhe dar um nome – decidiu. Irene e Mauro abraçaram-se.

– Que grande prenda, trazer o meu neto – disse o homem, comovido. – Em que ponto estão as vinhas novas, pai? – perguntou Irene.

– Os seus trabalhadores já estão trabalhando nelas. Daqui a dois anos vamos ter a primeira vindima – garantiu Mauro. – Já pensei num nome para dar ao nosso vinho. Vê se adivinha.

– Tem a ver com a sua avó? – perguntou Mauro.

– O nosso vinho vai se chamar Donna Agostina.

– Se ela aqui estivesse, havia de dar uma grande gargalhada – observou o pai. – As vinhas deviam ser um pretexto para ocupar o seu tempo, além de serem uma fonte de rendimento. Agora quero tratar da

terra contigo, pai. Nos meus genes estão os campos, o cansaço e o prazer de ver crescer as plantas e recolher os frutos. Foi isso que eu sempre quis, apesar de ter demorado algum tempo a entendê-lo. – E acrescentou: – Sabe, nos anos em que trabalhei na Cosedil, aprendi todos os truques da profissão. Falo da publicidade, da distribuição, das técnicas de venda de um produto. Vai ver, vamos fazer grandes negócios os dois juntos.

Chegou o meio de agosto. O campo estava como que atordoado pelo calor e pelo canto das cigarras. Irene, John e o cachorro tinham adormecido na cadeira de balanço, por baixo do alpendre da casa. Mauro estava na sua oficina preparando um instrumento agrícola.

Tancredi tinha partido há pouco tempo. Chegara de manhã, com o pretexto de estar com o filho e com o propósito de sondar os projetos de Irene.

Ela tinha falado muito pouco. Ele não poupara golpes baixos para lhe tocar as cordas dos sentimentos. – A minha mãe sente muito a falta do neto. Ainda está em Cefalù. Posso levar-nos até lá, por alguns dias? – Este verão vai ser assim, Tancredi. Está vendo a maneira como o John se diverte. Está descobrindo um mundo diferente e novas amizades. Eu acho que tudo isto é importante para a formação dele. Ao fim e ao cabo, sabe que você e eu queremos o melhor para ele – insinuou.

– Eu podia ficar com vocês na praia. Gostaria de remendar trapos velhos. Acho que também isso seria o melhor para ele. – Tancredi, acabe com isso. Não há trapos entre nós. E, em qualquer caso, é o nosso filho que nos une – rebateu Irene. – Eu mudei. Se vivesse ao meu lado, ia descobrir um homem novo. Ela observou-o.

Tinha um olhar mais doce que o tornava, se possível, ainda mais fascinante. Sabia que tinha se envolvido com Tancredi por aquilo que ele representava, não por aquilo que era. Devia ter isso em consideração.

– Eu também mudei – disse-lhe. – Quer acredite quer não, quero tratar da terra. Eu sou uma camponesa, Tancredi. Tenho que descobrir se o John também é.

– E se não for?

– Vamos ver – respondeu.

Almoçaram juntos, por baixo do alpendre, no pátio dos fundos da casa. Antes de ir embora, Tancredi conseguiu arrancar-lhe uma promessa: em setembro iam levar o filho à Sicília. Era justo que a avó Rosalia pudesse continuar a tê-lo com ela de vez em quando. – E eu não deixarei de estar à sua espera, minha querida. – Apertou-a contra ele. Agora, John e ela foram acordados por vozes de crianças.

– Olha que bonito! Parece uma bola de neve! – É daquele menino ali. Três meninos entraram na eira. John arregalou os seus olhos curiosos. Irene endireitou-se na cadeira. Mauro, que vinha da oficina, tratou-os pelos nomes.

– Vocês cresceram muito, desde o ano passado – constatou. E acrescentou: – Venham. Este é o meu neto, o John. Meio inglês e meio italiano – apresentou-o.

O pequeno desceu da cadeira de balanço e estendeu-lhes a mão, na cômica imitação de um adulto. Eles pareciam muito interessados no cachorro branco.

– Como se chama? – perguntou o mais velho.

– Peter, como o Peter Pan – explicou John.

– Podemos brincar com ele? – pediram.

Irene olhou para eles. O pai disse-lhe que eram os filhos de Angelo Marenco. O do meio e o mais novo eram muito parecidos com ele.

– Gostariam vocês de tomar um refresco? – perguntou.

Os rapazes aceitaram. Ela entrou na cozinha e o pai foi atrás dela. – O Angelo está aqui com a família – disse. – Regressa à aldeia todos os anos, para o feriado de agosto. Irene já sabia.

– A mulher dele é advogada, filha de um príncipe dos tribunais. Família rica. Bonita mulher – acrescentou. Irene pôs os copos numa bandeja.

– Ainda vão acabar por se encontrar – prosseguiu Mauro.

– Pai, tenha calma. A história com o Angelo acabou há muito tempo – declarou, enquanto servia o refresco. – E quem é que diz o contrário? – protestou o pai.

– Eu já te conheço. Acha que, como eu não quero casar com o Tancredi, posso estar mais voltada para o Angelo. Não é assim? – perguntou, enquanto acrescentava água fresca ao xarope.

– Mas deve ter alguma coisa em mente para o seu futuro – arriscou Mauro. – Eu posso passar sem um homem, pai. Não preciso dele para criar o John nem para tratar dos nossos interesses. – Mas se calhar há um homem que não pode passar sem você, e sem o filho – desabafou Mauro. Irene não respondeu, saiu para o alpendre e começou a distribuir os refrescos pelos meninos, que já tinham se tornado amigos. Então viu aparecer Angelo, que vinha de mão dada com a mulher. Observou-a. Era uma mulher elegante. Da altura dela, um pouco menos magra, de cabelos loiros, compridos e lisos, apanhados na nuca com um laço. Trazia um vestido com estampa de flores, de algodão leve. Estava bronzeada, luminosa. Angelo, com as mangas da camisa dobradas, parecia um pouco embaraçado quando lhe sorriu.

– Parece que os meus três malandrinhos vieram perturbar o seu sossego – desculpou-se. – De maneira nenhuma! Estão ali brincando com o meu filho. Olha para eles, nem sequer deram conta da sua chegada – disse Irene.

– A Viviana, a Irene – Angelo fez as apresentações.

As duas mulheres apertaram as mãos, estudando-se uma à outra.

– Como está? – perguntou Angelo.

– Às vezes ainda tenho dores de cabeça, mas acho que estou bem. Mauro apareceu à porta da cozinha.

– Ficam aí torrando ao sol, ou preferem entrar e beber um copo de vinho? – perguntou. Entraram naquele grande espaço sombrio e fresco. Os meninos, debaixo do alpendre, brincavam com o cão. As suas gargalhadas enchiam o ar.

– Parabéns! Têm uma casa muito bonita – constatou Viviana.

– Quer vê-la? Vou levá-la ao andar de cima – propôs Mauro.

Viviana seguiu-o, deixando que os dois velhos amigos conversassem a sós. – O jornalzinho das fazendas divulgou a notícia da chegada do Sella – anunciou Angelo. E acrescentou: – Então, casa com ele, finalmente?

– Talvez. Ainda não decidi.

– Devo reconhecer que te ama realmente. – E continuou: – Casa com ele. É o homem certo para você. Irene calou-se e avançou em direção ao aparador para ir buscar os copos de vinho, enquanto Angelo abria uma garrafa de espumante branco. Mauro e Viviana entraram na cozinha.

– O seu pai fez coisas fantásticas – disse Viviana.

– Porque é um homem extraordinário – disse Irene.

– Não querem aparecer logo à noite lá em casa? – propôs Angelo. – Seria bom. Como nos velhos tempos – respondeu Mauro, entusiasmado. Quando os Marenco se foram embora, Irene subiu até o seu quarto. Tirou da carteira a velha fotografia de grupo em preto e branco que a avó tinha lhe dado e que a ajudara a percorrer a sua vida. Tinha chegado o momento de cortar com o passado. O filho, na eira, chamava por ela. Enfiou no bolso a fotografia e saiu do quarto. Foi até o alpendre. – Mamã, olha. O Peter me deixou pôr-lhe a coleira. Posso ir com o avô ver as vinhas? – perguntou John. – Não quer vir também? – convidou Mauro.

Ela recusou, com um gesto.

– Dói-me um bocado a cabeça. Fico aqui à sua espera – respondeu. Viu-os afastarem-se em direção aos campos.

Quando desapareceram, no lugar onde o caminho descrevia uma curva, Irene atravessou a eira e aninhou-se à uma sombra.

 

 

                                                                  Sveva Casati Modignani

 

 

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