PEQUENAS LUZES PISCAVAM no pinheiro diante da janela. Arranjos de ores natalinas e cartões decoravam a bela sala. A lenha crepitava na lareira e perfumava o ambiente com seu aroma doce. Um boneco de Papai Noel cantarolava com sua voz mecânica: “Bate o sino pequenino, sino de Belém. Já nasceu o Deus menino para o nosso bem.” Henry Jablonsky não enxergava direito os garotos. O que se chamava Falcão havia roubado seus óculos e os colocara sobre o consolo da lareira, fora de seu alcance. Aquilo não deixava de ser um bom sinal, pensou Jablonsky. Os rapazes talvez não quisessem ser identicados e portanto deviam planejar soltá-los com vida. Senhor, deixe-nos viver e prometo servir-te até o fim dos meus dias. Jablonsky observava os dois vultos que se deslocavam ao redor da árvore; sabia que a arma estava na cintura de Falcão. Ouviu um papel de embrulho sendo rasgado e viu o que se chamava Pombo balançando o laço comprado para o novo gato da casa. Eles disseram que não nos machucariam, que era apenas um assalto. Jablonsky havia memorizado o rosto dos dois garotos a m de conseguir fazer um retrato falado para a polícia, providência que tomaria assim que a dupla saísse da casa. Ambos pareciam ter saído de um comercial de TV . Falcão: aspecto saudável, extrovertido, cabelo louro repartido para o lado. Pombo: um pouco mais alto que Falcão, cerca de 1,90m, forte como um touro, mãos enormes. Provavelmente dois jovens de classe média. Talvez exista bondade no coração deles.
......
Enquanto Jablonsky assistia à cena, Falcão, o louro, aproximou-se da estante e correu os dedos pelas lombadas dos livros, recitando os títulos num tom amistoso, como se fosse um amigo da família. – Uau, o senhor tem o Fahrenheit 451, de Ray Bradbury! Um clássico! – disse ele, puxando o livro da estante e abrindo-o na primeira página. Depois curvou o tronco próximo a Jablonsky, deitado no chão com as mãos amarradas e um pé de meia enado na boca. – Não conheço início de livro melhor do que este. – Conferindo dramaticidade às palavras, Falcão leu: – “Queimar era um prazer. Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas.” Enquanto o parceiro recitava o texto, Pombo puxou de baixo do pinheiro uma caixa grande, embrulhada com papel e ta dourados. Um presente com o qual Peggy vinha sonhando e esperando havia anos. – “Para Peggy, do Papai Noel” – Pombo leu o cartão e rasgou o embrulho com uma faca. Ele tem uma faca! Jogando o papel no chão, abriu a caixa e disse: – Uma bolsa Louis Vuitton, Peggy! Papai Noel trouxe um presente de 10 mil dólares para você! Isso não é justo! Recolheu outra caixa e a sacudiu enquanto Falcão observava Peggy Jablonsky implorar ajuda, o pedido abafado pela meia enada em sua boca. Henry estava aito com o esforço que ela fazia para se comunicar com os olhos. Falcão se aproximou para acariciá-la, passando as mãos naqueles cabelos claros e no rosto molhado de lágrimas. – Está na hora de abrir todos os seus presentes, Sra. J. E os seus também, Sr. J. – declarou. – Depois decidimos se os senhores continuarão vivos.
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ENRY JABLONSKY SENTIU o estômago embrulhado. A meia de lã grossa estava deixando-o sem ar, sem falar da corda que impedia seus movimentos e do cheiro da própria urina que empesteava o ambiente. Deus do céu, ele havia mijado nas calças! Mas aquilo não tinha importância. Importava apenas que saíssem vivos dali. Ele não podia se mexer. Não podia falar. Mas podia raciocinar. O que devo fazer? Olhando ao redor, Jablonsky avistou o atiçador de brasas junto à lareira, a apenas alguns metros dele. – Sra. J. – disse Pombo à mulher, sacudindo uma caixinha turquesa. – Isto aqui é do Henry. Um colar da Tiffany. Lindo, não é? O que foi? A senhora quer dizer alguma coisa? Ele se aproximou da mulher e retirou a meia de sua boca. – Vocês mentiram quando disseram que conhecem Dougie! – gritou Peggy Jablonsky. – Quem é Dougie? – riu Pombo. – Não nos machuquem... – Shhh, quieta! – ordenou o rapaz, enando a meia novamente na boca da mulher. – Hoje a senhora não apita nada. Somos nós quem definimos as regras aqui. O gato saltou sobre os papéis dos presentes abertos: os brincos de diamante, a gravata Hermès e os talheres de prata. Jablonsky rezava para que eles pegassem aquilo e fossem embora. Mas ele ouviu Pombo falar algo baixinho para Falcão, obrigando-o a se aproximar do parceiro para escutar suas palavras. – Culpados ou inocentes? – perguntou o garoto. – Eles têm uma vida boa. Talvez isso já seja nossa melhor vingança... – respondeu Falcão num tom pensativo. – Ficou maluco? Não vê que isso tudo é uma farsa? Pombo passou por cima da fronha recheada com o conteúdo do cofre da casa, abriu o livro de Ray Bradbury sobre a mesinha lateral, pegou uma caneta e lentamente escreveu na folha de rosto, dizendo em voz alta: – Sic erat in fatis. Assim quis o destino. Pega o gato e vamos dar o fora! Falcão se inclinou sobre Henry Jablonsky: – Desculpe, meu camarada – disse, retirando a meia da boca do homem. – Pode ir se despedindo da patroa.
Henry cou confuso. Que diabo estava acontecendo? Foi quando percebeu que podia falar! Então berrou: – Pee-ggyy! Uma labareda surgiu num dos galhos do pinheiro de Natal e rapidamente consumiu o restante da árvore. No calor da sala, o rosto do homem começou a car vermelho. A fumaça subia em colunas grossas, acumulando-se no teto e impedindo a iluminação do recinto. – Não nos deixem aqui! As labaredas subiam pelas cortinas. Henry ouvia os gritos abafados de sua mulher quando a porta da frente se fechou com força.
PARTE 1 A GAROTA DA TRANÇA AZUL
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capítulo 1
STÁVAMOS SENTADAS EM VOLTA da fogueira no quintal de um dos chalés alugados nas imediações do belo parque de Point Reyes, uma hora ao norte de São Francisco. – Lindsay, pegue seu copo – ordenou Cindy. Experimentei a margarita, achando-a deliciosa. Yuki vigiava o marshmallow que assava na grelha. Martha, minha border collie, estava deitada com as patas da frente cruzadas. A luz do fogo desenhava formas cintilantes sobre nossos rostos enquanto o sol se punha no mar. – Foi um dos meus primeiros casos na prossão – disse Claire. – Então, sobrou para mim. Eu que tive de subir uma escada velha até o teto do celeiro, apenas com uma lanterna na mão. Yuki se engasgou com a tequila, mal conseguindo respirar. – É para beber devagar! – Cindy e eu berramos ao mesmo tempo. Claire bateu nas costas da amiga, mas logo continuou: – Se não bastasse ter de me arrastar escada acima naquele breu com milhares de insetos a meu redor, tomei um susto ao encontrar o morto pendurado no teto. O homem parecia estar levitando na escuridão! Olhos esbugalhados, língua para fora… Uma coisa do outro mundo! – Mentira! – gritou Yuki, rindo. Um pouco alterada com uma única taça de margarita, ela usava calça de pijama, camiseta da Faculdade de Direito de Berkeley e o cabelo preso num rabo de cavalo. Parecia mais uma estudante do que uma mulher de quase 30 anos. – Naquela escuridão – prosseguiu Claire –, berrei para os dois colegas que esperavam lá embaixo e pedi que subissem e retirassem o corpo. Claire fez uma pausa de efeito e foi nesse momento que meu celular tocou. – Lindsay, não! – implorou Cindy. – Por favor, não atenda! Olhei rapidamente para a tela na esperança de que fosse meu namorado Joe, ligando apenas para me dizer que tinha chegado em casa. Mas era o tenente Warren Jacobi, meu ex-parceiro e atual chefe. – Jacobi? – falei para mim mesma. – Continua, Claire – disse Yuki. – Ela vai ficar pendurada no telefone a noite inteira! – Lindsay? É bem provável! – comentou Claire, antes de retomar a história: – Então, quando fui abrir o zíper do saco mortuário, um morcego saiu voando de dentro das roupas do defunto! Acabei molhando as calças, acreditam? – disse ela às gargalhadas. – Juro por Deus! – Boxer? Está me ouvindo? – perguntou rispidamente Jacobi.
– Estou, Warren, mas hoje é sábado! – resmunguei de volta. – Acho que você vai querer pegar o caso. Se não, é só dizer que passo para Cappy e Chi. – O que houve? – Peixe grande, Boxer. Aliás, enorme. É sobre aquele garoto da família Campion. Michael Campion.
M
capítulo 2
EU CORAÇÃO QUASE PAROU quando ouvi o nome de Michael Campion. Ele não era apenas um simples “garoto” . Filho único do ex-governador Connor Hume Campion, o menino nascera em berço de ouro, com um problema cardíaco gravíssimo, uma espécie de bomba-relógio prestes a explodir a qualquer momento. Com a imprensa por todos os lados, a vida de Michael sempre foi assunto de interesse público: do bebê adorável, passando pela criança talentosa e precoce, ao adolescente lindo, alegre e inteligente. Seu pai se tornara um dos porta-vozes da Associação Americana de Cardiologia e Michael era o garoto-propaganda da instituição. Embora raramente vissem o menino em público, as pessoas tinham verdadeira adoração por Michael e estavam sempre à espera de uma grande descoberta da medicina que pudesse dar a ele algo banal à maioria dos mortais: uma vida longa e saudável. Mas em janeiro daquele ano Michael retirou-se uma noite para seu quarto e nunca mais foi visto. Nenhum pedido de resgate foi feito, tampouco foi encontrado qualquer sinal de violência nos aposentos do menino. Mas uma das portas dos fundos da casa estava destrancada e Michael havia desaparecido. O sumiço foi tratado como sequestro e o FBI mobilizou agentes em todos os estados do país para cuidar do caso. A Polícia de São Francisco vinha fazendo sua própria investigação, entrevistando parentes, empregados da família, colegas e professores de Michael, bem como os amigos que o menino conheceu na internet. Os telefones da polícia começaram a tocar assim que jornais e revistas publicaram fotos do garoto. Canais da TV aberta e por assinatura exibiam documentários sobre a triste vida de Michael Campion e volta e meia aparecia alguém dizendo tê-lo visto. Mas as pistas nunca levavam a lugar nenhum. Portanto, passados alguns meses sem que qualquer sequestrador tivesse feito contato ou alguma informação concreta viesse à tona outros assuntos (ataques terroristas, incêndios, escândalos políticos, crimes violentos) roubaram o lugar do filho do ex-governador nas manchetes dos jornais. Embora o caso não estivesse solucionado, as pessoas pensavam na pior das hipóteses: o garoto tinha sido sequestrado, morto e enterrado por criminosos que sumiram do mapa. Os moradores de São Francisco lamentavam a tragédia ao lado dos pais do garoto e, embora jamais fossem esquecê-lo, já estavam interessados em outros assuntos. Agora Jacobi telefonava do nada com a esperança de que o mistério pudesse ser resolvido de alguma forma. – O corpo de Michael foi encontrado? – perguntei a ele. – Não, mas enfim temos uma pista confiável. Apertei o celular contra a orelha, completamente alheia às histórias mal-assombradas de Claire e ao primeiro encontro do ano do Clube das Mulheres contra o Crime. – Se quiser entrar neste barco, Boxer – continuou Jacobi –, me encontre daqui a uma hora na Central... – Estarei lá, não se preocupe.
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capítulo 3
IZ A VIAGEM DE UMA HORA até a Central de Polícia de São Francisco em 45 minutos. No saguão, tomei as escadas até o terceiro andar e cheguei ao Departamento de Homicídios, já procurando por Jacobi. Lâmpadas uorescentes iluminavam aquele espaço de 100m2, fazendo com que os policiais da noite, debruçados sobre suas mesas, parecessem zumbis recém-saídos da tumba. Alguns colegas mais velhos ergueram a cabeça e me cumprimentaram, dizendo “E aí, sargento?” , enquanto eu seguia rumo à sala de Jacobi, um cubículo envidraçado com vista para a rampa de acesso à Autoestrada 280. Richard Conklin, meu atual parceiro, já havia chegado. Ele tinha 30 anos, com 1,85m da mais pura beleza americana, e estava com uma das pernas sobre a bagunça que era a mesa de Jacobi. Ao puxar a cadeira, bati o joelho no encosto e soltei um sonoro palavrão. – Olha os modos, mocinha – disse Jacobi. Lembrei que aquela sala já havia sido um espaço perfeitamente funcional quando era eu que a ocupava. Tirei o boné e sacudi os cabelos, torcendo para que nem Jacobi nem Conklin sentissem meu bafo de tequila. – Que pista é essa? – fui direto ao assunto. – É mais uma informação do que uma pista – respondeu Jacobi. – Uma ligação anônima feita de um celular pré-pago. O sujeito disse que viu o jovem Campion entrar na casa de uma prostituta em Russian Hill na noite em que desapareceu. Enquanto Jacobi abria espaço na mesa para nos mostrar a cha criminal da mulher, pensei em tudo o que eu sabia sobre Michael Campion. Ele não tinha namorada, não ia a festas nem praticava esportes. Sua vida se resumia a ir e voltar à exclusivíssima Escola Newkirk com o motorista da família. Portanto, não seria descabido imaginar que ele tivesse procurado uma prostituta. Provavelmente subornara o motorista para fugir por uma hora da confortável prisão onde os pais o confinavam. Mas o que teria acontecido depois? O que teria acontecido com Michael? – Por que você acha que essa informação é confiável? – perguntei a Jacobi. – O sujeito descreveu a roupa que o garoto usava: jaqueta azul com listra vermelha numa das mangas. Um presente que ele tinha ganhado de Natal. A imprensa nunca falou sobre isso. – E por que o sujeito esperou três meses para abrir o bico? – Não sei. Só estou repetindo o que ele disse. Falou que estava saindo da casa da prostituta
quando Michael chegou. Talvez não tenha aberto o bico antes porque é casado e tem lhos. Não queria se envolver na confusão, mas aos poucos foi cando com a consciência pesada. E acabou cedendo, eu acho. – Russian Hill é um bairro de bacana – comentou Conklin. – É estranho que uma prostituta more lá. Meu parceiro tinha razão. Russian Hill é uma das regiões mais caras de São Francisco. E não fica longe da Escola Newkirk. Tirei meu bloco de anotações da bolsa. – Qual é o nome da prostituta? – perguntei. – Ela foi registrada como Myrtle Bays – respondeu Jacobi, passando-me a cha criminal. A fotograa anexa mostrava uma jovem de aspecto infantil, cabelos louros e curtos, olhos enormes. Pela data de nascimento, Myrtle tinha 22 anos. – Alguns anos atrás – prosseguiu Jacobi –, ela oficialmente mudou de nome. Agora se chama Junie Moon. – Quer dizer então que Michael Campion foi visitar uma prostituta – falei, colocando o dossiê sobre a mesa. – Qual é sua hipótese, Jacobi? – Eu diria que o garoto morreu em agrante delito, Boxer. Trocando em miúdos, morreu com a “boca na botija” . Se essa nova pista for realmente verdadeira, eu diria que a Srta. Myrtle Bays, também conhecida como Junie Moon, matou Michael no seu último dia de virgindade e depois sumiu com o corpo.
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capítulo 4
M RAPAZ LOURO DE CABELOS ESPETADOS, vestindo um blazer preto, assobiava ao sair da casa de Junie Moon. De nossa viatura, Conklin e eu o observamos caminhar pela Leavenworth e desligar o alarme de seu BMW do ano. Assim que as lanternas do veículo dobraram a esquina, meu parceiro e eu fomos até o sobrado vitoriano que precisava urgentemente de uma reforma. Toquei a campainha, esperei um minuto e toquei outra vez. A porta então se abriu, revelando-nos uma jovem de rosto lavado. Vi logo que Junie Moon não era uma prostituta qualquer. Percebia-se nela um frescor raramente visto numa “mulher da vida” . Os cabelos, ainda molhados do banho, tinham cachos dourados que terminavam numa trança tingida de azul. Os olhos eram verde-escuros e uma cicatriz na cruzava o lábio superior perfeitamente desenhado. Uma jovem linda. No entanto, o aspecto infantil e desconcertante de Junie foi o que mais me chamou a atenção. Ela apertou o cinto do roupão de seda quando Conklin mostrou seu distintivo e anunciou nossos nomes, acrescentando: – Departamento de Homicídios. Podemos entrar um minuto? – Homicídios? Querem falar comigo? – replicou ela. A voz combinava com o aspecto físico: jovial e com um tom de pureza e inocência. – Temos algumas perguntas sobre uma pessoa desaparecida – disse meu parceiro, abrindo seu irresistível sorriso sedutor. Junie Moon nos convidou a entrar. Sua casa tinha um perfume doce e oral, talvez lavanda ou jasmim, e a iluminação era suave, provinda de luminárias de seda drapejada. Conklin e eu nos acomodamos num sofá de dois lugares enquanto Junie preferiu uma banqueta, cruzando as mãos sobre os joelhos. Estava descalça, deixando à mostra unhas pintadas num tom claro de coral, semelhante ao do interior das conchas. – Sua casa é muito simpática – elogiou Conklin. – Obrigada. Aluguei já com os móveis – disse Junie. – Por acaso conhece este rapaz? – perguntei a ela, mostrando uma foto de Michael Campion. – Você quer dizer em pessoa? Este aí é o filho do ex-governador, não é? – Sim, o próprio. Os olhos verdes da moça ficaram ainda maiores. – Nunca vi Michael Campion em toda a minha vida.
– Tudo bem, Srta. Moon – falei. – Mas gostaríamos que nos acompanhasse até a Central para mais algumas perguntas.
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capítulo 5
UNIE MOON ESTAVA CONOSCO na sala de interrogatório número dois, um cubículo de azulejo cinza com uma mesa de metal, quatro cadeiras idênticas e uma câmera de vídeo axada ao teto. Verifiquei duas vezes para ter certeza de que o aparelho funcionava. A jovem vestia um cardigã rosa de tricô sobre uma camisete com renda, calças jeans e tênis, sem nenhuma maquiagem no rosto. Ela parecia (e não é exagero meu) uma adolescente recémsaída da aula. Conklin começou a ler os direitos de Junie com charme e displicência, como se aquilo fosse apenas uma formalidade banal. Junie assinou os formulários sem protestar. Ainda assim, quei preocupada: segundo as normas da polícia, os direitos são lidos apenas quando o interrogado está detido, o que não era o caso ali. Além disso, a advertência de Conklin talvez inibisse a jovem de dizer o que sabia. Não havia o que fazer. Portanto, engoli minha irritação. Junie pedira café e agora dava pequenos goles no copinho descartável enquanto eu examinava sua cha criminal. Mencionei as três detenções por prostituição e ela respondeu que não tinha sido presa uma única vez desde que trocara de nome. – É como se eu fosse outra pessoa, sabe? Seus braços não apresentavam qualquer sinal de picadas de seringas ou hematomas, o que me deixou ainda mais confusa. Que diabo a teria levado para aquele caminho? Por que razão uma jovem tão bonita havia escolhido se prostituir? – Peguei esse nome de um lme antigo chamado Tell Me at You Love Me, Junie Moon, com Liza Minelli – contou ela a Conklin. – Vários clientes me pedem que eu diga isto a eles: que os amo – acrescentou com um sorriso triste. Conklin tirou dos olhos castanhos uma mecha dos cabelos escuros e brilhantes. Eu duvidava que ele tivesse visto o filme. – É mesmo? Interessante – comentou meu parceiro. – Então, Junie – concluí. – A maioria de seus clientes é formada por estudantes? – Diga a verdade, sargento. Será que eu não preciso de um advogado? Porque, se entendi direito, você está insinuando que eu faço sexo com menores de idade e isso é mentira. – Você pede a identidade deles antes de tirar a roupa? – Não estamos interessados na sua... nas suas atividades sociais, Junie – interveio Conklin. – Só queremos saber de Michael Campion. – Eu já disse – retrucou ela, agora com a voz ligeiramente trêmula. – Nunca vi Michael
Campion. Se tivesse visto, eu lembraria. – Que que bem claro – expliquei. – Não estamos culpando você de nada. Sabemos que Michael era um rapaz doente. Talvez o coração dele tenha parado justamente no momento em que vocês estavam... – Ele nunca foi meu cliente – insistiu Junie. – Seria uma honra, mas isso nunca aconteceu. Sem o sorriso sedutor nos lábios, Conklin disse: – Junie, se colaborar conosco, deixaremos você em paz. Dou minha palavra. Mas caso continue atrapalhando nosso trabalho, a coisa vai car feia para o seu lado. Escute o que estou dizendo. Continuamos com aquele jogo de gato e rato por mais duas horas, meu parceiro e eu recorrendo a todos os artifícios da cartilha policial. Ora dizíamos que ela podia conar na gente, ora mentíamos descaradamente e algumas vezes partíamos para a ameaça aberta. Ainda assim, Junie continuava armando que não conhecia Michael Campion. Resolvi dar a última cartada. Batendo a mão sobre a mesa, falei: – E se eu disser que uma testemunha viu Michael entrar na sua casa na noite de 21 de janeiro? E que ela cou esperando por ele porque ia dar uma carona para o garoto depois? Mas isso não aconteceu, Junie, porque Michael não saiu da sua casa. – Uma testemunha? Mas isso é impossível – disse a jovem. – Só pode ser um engano. Eu queria desesperadamente uma pista que pudesse nos ajudar, mas aquela conversa não estava nos levando a lugar nenhum. Já começava a achar que a ligação anônima não tinha passado de um trote (e cogitava acordar Jacobi no meio da madrugada berrando os piores palavrões imagináveis) quando Junie baixou os olhos para a mesa. Parecia chorar, seu rosto transtornado pela tristeza. – Tudo bem, tudo bem – disse ela. – Não estou aguentando mais. Se vocês desligarem aquela câmera, conto tudo o que aconteceu. Conklin e eu nos entreolhamos, perplexos. Sem pensar duas vezes, fui até o aparelho e o desliguei. – A verdade é sua única saída, Junie – falei, o coração pulando dentro do peito. Debrucei-me sobre a mesa com as mãos cruzadas à frente. Junie então começou a nos contar toda a história.
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capítulo 6
UDO ACONTECEU EXATAMENTE como vocês disseram – Junie ergueu o rosto, olhando-nos com uma expressão que podia ser interpretada como medo ou angústia. – Michael morreu? – perguntei a ela. – Ele está morto? – Posso começar pelo começo? – Junie se dirigiu a Conklin. – Claro – respondeu meu parceiro. – Não estamos com pressa. – No início eu não sabia quem ele era. Quando ligou para marcar um encontro, Michael deu um nome falso. Então, ao abrir a porta, vi quem era... Meu Deus! O adorado lho do exgovernador! Ele tinha ido me ver! – O que aconteceu depois? – perguntei. – Ele estava muito nervoso – disse Junie. – Não parava quieto. Toda hora olhava para a janela, como se alguém estivesse espiando do lado de fora. Ofereci uma bebida, mas ele não quis, pois queria se lembrar de tudo. Disse que era virgem. Junie baixou mais uma vez a cabeça, as lágrimas pingando na mesa. Conklin passou-lhe uma caixa de lenços de papel e depois nos entreolhamos, perplexos. – Vários garotos que me procuram são virgens – continuou a jovem. – Às vezes querem ngir que estão passando a noite com uma namorada. Faço de tudo para que eles tenham uma experiência inesquecível. – Claro – murmurou Conklin. – Foi isso que aconteceu com Michael? Ele ngiu estar com uma namorada? – Isso mesmo – concordou Junie. – Assim que fomos para o quarto, ele me disse seu nome verdadeiro. E eu revelei o meu! Ele achou bacana e começou a falar da vida. Michael era campeão de xadrez na internet, sabiam? Ele era muito simples, não gostava de ser visto como celebridade. A certa altura também comecei a achar que estava com um namorado. – Vocês chegaram a fazer sexo, Junie? – perguntei. – Claro. Michael pôs o dinheiro na mesinha de cabeceira e eu comecei a tirar as roupas dele. Tínhamos acabado de deitar quando... quando ele precisou parar. Disse que estava sentindo dores. – Junie levou a mão ao peito. – Eu sabia da doença dele, mas achei que aquilo fosse passar logo. De repente a jovem desabou sobre a mesa, enando a cabeça entre os braços cruzados, aos prantos. – Michael piorou – ela soluçava. – Pediu que eu ligasse para o pai, mas eu não conseguia me
mexer! Nem sabia como fazer para chamar o pai dele! E se telefonasse, o que eu ia dizer? Que era uma prostituta? O pai dele era um ex-governador, caramba! Ia me jogar na cadeia e me deixar mofando lá para o resto da vida! Então peguei Michael nos braços e comecei a cantar para ele – continuou. – Minha esperança era que ele melhorasse – disse, levantando a cabeça. – Mas ele piorou.
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capítulo 7
MÚSCULO LATEJANDO NO QUEIXO de Conklin era o único sinal de que ele estava tão chocado quanto eu com a confissão de Junie Moon. – Quanto tempo Michael levou para morrer? – perguntou à jovem. – Não sei. Alguns minutos. Ou talvez mais. Foi horrível, horrível! – disse Junie, balançando a cabeça ao relembrar a cena. – Então liguei para meu namorado. – Você ligou para seu namorado? – perguntei incrédula. – Por acaso ele é médico? – Não, mas eu precisava dele. Ricky chegou, mas àquela altura Michael já tinha morrido e nós o levamos até a banheira. Depois ficamos um tempo conversando sobre o que fazer. Minha vontade era gritar: “Sua imbecil! Você podia ter salvado o garoto! Michael Campion podia estar vivo!” Respirei fundo para não estapear Junie, recostei-me na cadeira e deixei que Conklin continuasse com o interrogatório. – O que você fez com o corpo, Junie? Onde está Michael? – Eu não sei. – Como assim, não sabe? – falei, ao levantar-me e quase derrubar a cadeira, começando a andar em círculos em volta da mesa. Junie falou rápido, como se quisesse chegar logo ao fim da história: – Depois de algumas horas, Ricky decidiu cortar o corpo de Michael com uma faca. Foi a coisa mais horrível que vi na vida. E olha que eu cresci numa fazenda! Eu não parava de chorar e vomitar – disse Junie, dando a impressão de que estava prestes a fazer o mesmo ali na sala de interrogatório. Puxei a cadeira e sentei-me novamente, disposta a não assustar aquela garota de programa mais do que ela estava me assustando. – Depois que começamos a cortar o corpo, não tínhamos como voltar atrás – prosseguiu Junie, encarando Conklin com um olhar de desespero. – Ajudei meu namorado a colocar o corpo esquartejado de Michael em oito sacos de lixo e depois os levamos para a picape de Ricky. Devia ser umas cinco da madrugada. Não havia ninguém na rua. Olhei para ela enquanto tentava imaginar o inimaginável: aquela criatura de aparência infantil com as mãos encharcadas de sangue carregando o corpo esquartejado de Michael Campion. Ouvi Conklin dizer: – Continue, Junie, estamos escutando. Você precisa desabafar. – Seguimos pelo litoral durante algumas horas – disse ela, como se relembrasse um sonho. –
Dormi, mas logo acordei com Ricky dizendo que tínhamos chegado. Ele estacionou nos fundos de um McDonald’s, onde havia umas caçambas de lixo. – E foi nelas que vocês jogaram os sacos, certo? – Em que cidade estavam? – acrescentei. – Você se lembra? – Não. – Tente se lembrar! – gritei. – Estou tentando! Em seguida Junie nos disse o nome e o endereço do namorado, devidamente anotados por mim. Conklin entregou-lhe um bloco e perguntou se ela queria formalizar seu depoimento. – Acho que não – respondeu, aparentemente exausta. – Vocês podem me levar para casa? – Acho que não – repeti as palavras dela. – Fique de pé e coloque as mãos para trás. – Vocês estão me prendendo? – Estamos. As algemas ficaram largas nos pulsos dela. – Mas eu contei a verdade! – Sim, e estamos agradecidos – falei. – Muito obrigada. Você está presa por destruir provas e obstruir o trabalho da polícia. Por enquanto é só. Junie voltou a chorar, dizendo a Conklin que estava arrependida, jurando que não era culpada. Eu percorria mentalmente o mapa da Califórnia, tentando me lembrar de todas as cidades do litoral, imaginando as centenas de McDonald’s que havia na região. Àquela altura eu me perguntava qual era a chance de encontrar os restos mortais de Michael Campion.
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capítulo 8
ASSAVA POUCO DA MEIA-NOITE e eu estava sentada num dos bancos da minha cozinha observando Joe colocar uma massa para cozinhar. Com mais de 1,80m de altura, cabelos escuros e olhos azuis cintilantes, ele se encontrava diante do fogão vestido apenas com uma cueca azul, despenteado e o rosto amassado pelo sono. Joe tinha jeito de marido e me amava. Eu também o amava. Esse era o motivo pelo qual ele se mudara de Washington para São Francisco, pondo m a nosso tumultuado namoro a distância para iniciar um relacionamento novo e talvez duradouro. Embora tivesse alugado um apartamento maravilhoso na Lake Street, no mês seguinte à sua mudança ele trouxe suas panelas de cobre e passou a dormir na minha cama cinco vezes por semana. Por sorte eu consegui me mudar para o terceiro andar do meu prédio, onde o espaço é bem maior. Nosso relacionamento havia se tornado mais profundo e amoroso, exatamente como eu esperava. Portanto, só me restava perguntar por que o anel de noivado que Joe me dera ainda estava na caixinha de veludo preto, com os três diamantes brilhando no escuro. Por que eu não consigo dizer “sim”? – O que Cindy lhe disse? – perguntei a ele. – Palavra por palavra? Ela disse: “Aqui é a Martha. Lindsay recebeu uma pista nova sobre o caso Campion e foi cuidar do assunto. Pode dizer que eu falei: ela estragou nosso m de semana e amanhã vou ligar cobrando meu furo de reportagem. E é melhor que seja um dos grandes.” Comecei a rir da imitação que Joe fazia de Cindy, que além de grande amiga é uma das melhores repórteres policiais do San Francisco Chronicle. – Ou conto tudo para ela – falei –, ou não conto nada. Por enquanto não tenho nada a dizer! – Mas para mim você vai contar, loura. Já que me acordou a essa hora... Respirei fundo e relatei a Joe a história de Junie Moon, explicando que ela negou tudo durante duas horas, até que pediu para desligarmos a câmera e revelou seu “encontro” com Michael e o suposto ataque cardíaco dele. Falei também que, em vez de chamar um médico, a garota cantou uma canção de ninar para o garoto enquanto ele morria. – Meu Deus! Faminta, esperei que Joe servisse um prato de talharim ao sugo para mim e uma taça de sorvete para ele. – Onde está o corpo? – perguntou, puxando um banco para se sentar a meu lado.
– Essa pergunta vale 60 milhões de dólares – falei, referindo-me ao suposto tamanho da fortuna dos Campion. Depois contei o restante da história: o relato que Junie fez sobre o esquartejamento de Michael, a viagem com o namorado pelo litoral, a desova do corpo no estacionamento de uma lanchonete. – Conklin leu os direitos de Junie assim que chegamos à Central – comentei –, e isso me deixou furiosa. Junie não estava presa e eu sabia que depois disso ela caria de bico calado. Para falar a verdade, eu acreditei quando Junie disse que tudo o que ela sabia sobre o garoto tinha sido por meio das revistas. Eu estava prestes a deixá-la ir quando Conklin conseguiu que a garota soltasse o verbo. No fim das contas, valeu a pena ele ter lido os direitos dela. Balançando a cabeça, ponderei: – Conklin é muito seguro para um policial tão jovem, sem falar no jeito que tem com as mulheres. É impressionante – falei, preparando o terreno. – Além de bonito, é educado e inteligente. As mulheres não conseguem se segurar na frente dele, vão logo abrindo o bico... Joe recolheu meu prato vazio e se levantou bruscamente. – Que foi? – perguntei. – Do jeito que você falou, tenho a impressão de que já vi esse cara – disse ele, abrindo a torneira da pia. – Gostaria de conhecê-lo qualquer dia desses. – Claro... – A propósito, que tal a gente ir para a cama? – perguntou Joe, interrompendo minhas palavras. – Foi um dia longo.
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capítulo 9
OR VOLTA DAS OITO DA MANHÃ SEGUINTE, encontramos Ricky Malcolm saindo da espelunca em que morava na Mission Street. Ao perceber que éramos da polícia, ele tentou fugir, mas fomos atrás e o convencemos a nos acompanhar até a Central. – Você não está sendo preso – falei, conduzindo-o até nosso carro. – Só queremos ouvir sua versão da história. Ricky agora estava na “caixa” , que era como chamávamos a sala de interrogatório. Ele me encarava com seus olhos verdes afastados um do outro, seus braços tatuados, o rosto abatido de quem não via a luz do sol fazia anos. Em meio ao amontoado de tatuagens no braço direto, uma delas me chamou a atenção: um coração vermelho com as iniciais R.M. espetado numa lua crescente. Ricky parecia um homem perigoso e violento, e agora eu me perguntava se a história de Junie sobre a morte de Michael Campion era verdadeira. Será que Michael morreu de causas naturais? Ou este sujeito esquisito encontrou a namorada com Michael e resolveu matar o garoto? Os antecedentes criminais de Ricky incluíam três detenções e uma condenação, todas por posse de drogas. Fechei a pasta à minha frente e perguntei: – O que tem a nos dizer sobre Michael Campion? – Apenas o que li nos jornais – respondeu. O interrogatório seguiu nessa linha por algumas horas e, como o “charme” de Conklin não surtia nenhum efeito sobre Ricky Malcolm, cabia a mim conduzir a conversa. Eu estava tentando arrancar alguma informação dele, qualquer coisa, alguma mentira que o levasse a cair em contradição, mas o rapaz era teimoso ou esperto, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Insistia em dizer que jamais tinha visto Michael Campion. Nem vivo, nem morto. Fui obrigada a ceder: – Já sei o que aconteceu, Ricky. Sua namorada se meteu numa enrascada e você precisou ajudá-la. O que é compreensível, eu acho. – Do que você está falando? – Do corpo, Ricky. Você se lembra? Michael Campion morreu na cama de Junie! O rapaz abriu um sorriso irônico e disse: – Foi isso que ela disse que aconteceu? E que eu tive alguma coisa a ver com a história? – Junie confessou – interveio Conklin. – Já sabemos de tudo. O garoto estava morto quando
você chegou lá. Você não teve nada a ver com isso, não estamos culpando você de nada! – Isso é uma piada, não é? – rebateu Malcolm. – Porque não faço a menor ideia do que estão falando! – Se é mesmo inocente, então nos ajude – falei. – Onde você estava na noite de 21 de janeiro? – Onde você estava? – devolveu ele. – Como vou saber onde eu estava três meses atrás? Uma coisa é certa: eu não ajudei Junie a sair de uma enrascada com um playboyzinho morto. Vocês são muito trouxas! Não estão vendo que Junie está manipulando vocês? – Está? – perguntei. – Claro que está! Junie é uma idiota romântica! Ela acha que vive num mundo cor-de-rosa! Ela quer acreditar que transou com Michael Campion antes de ele bater as botas... Foi nesse instante que bateram no vidro, conforme eu esperava. Ricky se dirigiu a Conklin: – Não me importa o que ela disse, pois não matei ninguém, muito menos desovei um corpo em qualquer lugar que seja. Junie gosta de chamar atenção, cara. Você devia saber quando uma prostituta está mentindo. Pode me indiciar, cara, ou então eu vou dar o fora. Abri a porta, recebi os papéis trazidos por Yuki e sorrimos uma para a outra. De volta à mesa, declarei: – Sr. Malcolm, o senhor está preso por destruição de provas e obstrução do trabalho da polícia. – Espalhei os mandados de busca sobre a mesa, dizendo: – Amanhã a essa altura, cara, sua vida será um livro aberto. Acabaram seus segredos!
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capítulo 10
NQUANTO RICKY MALCOLM DORMIA numa cela no 10º andar do prédio da polícia, entramos no apartamento dele, um quarto e sala em cima de um restaurante chinês. Além de Conklin, estavam comigo os investigadores McNeil e Chi. Um leve fedor de carne podre podia ser percebido na entrada. – Está sentindo? – perguntei a Cappy McNeil. Em seus 25 anos de polícia, Cappy já tinha visto centenas de cadáveres. Ele fez que sim com a cabeça e disse: – Será que ele se esqueceu de um daqueles sacos de lixo? – Talvez uma pequena lembrança. Quem sabe um dedo ou uma orelha? McNeil e seu parceiro, o esguio e esperto Paul Chi, foram até a cozinha do apartamento enquanto Conklin e eu seguimos para o quarto. Uma das janelas tinha a persiana abaixada. Levantei-a com um puxão e deixei que a luz fraca da manhã invadisse os aposentos de Ricky Malcolm. O lugar parecia um chiqueiro: os lençóis estavam embolados sobre o colchão manchado, pontas de cigarro utuavam numa caneca de café na mesinha de cabeceira e pratos com restos de comida se amontoavam na cômoda e na televisão. Abrindo a gaveta do criadomudo, encontrei alguns cigarros de maconha, frascos de comprimidos e uma caixa de preservativos. McNeil entrou no quarto e, olhando à sua volta, disse: – Gostei da decoração. Aprovada. – Encontrou alguma coisa? – Não. A menos que Ricky tenha esquartejado Michael Campion com uma faca de descascar laranja, a prova do crime não está na cozinha. A propósito, o cheiro aqui está mais forte. Conklin abriu o armário, examinou bolsos de calças e sapatos, e depois voltou à cômoda. Jogou para fora camisetas e revistas pornográcas, mas fui eu que encontrei o rato morto sob um coturno atrás da porta. – Eeeeca! Acho que encontrei. – O pote de ouro no fim do arco-íris! – brincou McNeil. Depois de revirarmos cada centímetro do apartamento durante quatro horas, Conklin suspirou desapontado: – Não há nenhuma arma aqui. – Tudo bem – falei. – Podemos ir.
Voltamos à rua no momento em que o reboque da perícia chegava para levar a picape de Ricky Malcolm. Observamos o trabalho até o comboio partir ruidosamente rua acima, em direção ao laboratório da polícia. McNeil e Chi foram embora na viatura em que tinham vindo, ao passo que Conklin e eu seguimos no nosso carro. A certa altura meu parceiro se virou para mim e disse: – Aposto 100 pratas, Lindsay, ou um jantar... você escolhe – comecei a rir do seu sorriso de galã. – Aposto que há amostras do DNA de Michael Campion em algum lugar daquela picape. – Não quero apostar nada – retruquei. – Torço para que você esteja certo.
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capítulo 11
UNIE MOON PARECIA CANSADA e triste naquela tarde de céu escuro em que uma chuva na caía sobre a cidade. Conklin ergueu a ta com que os peritos haviam isolado o sobrado; passei por baixo dela, assinei a prancheta que o policial à porta segurava e entrei na mesma sala onde havíamos interrogado a prostituta na noite anterior. Mas dessa vez tínhamos um mandado de busca. O barulho de marretas nos levou até o banheiro do segundo andar, onde peritos esburacavam o chão e as paredes a m de alcançar os canos da banheira. Charlie Clapper, chefe da perícia, estava no corredor, junto à porta do cômodo. Com os cabelos grisalhos meticulosamente penteados, ele usava um de seus vários paletós idênticos e tinha no rosto uma expressão de angústia. – Não alimente esperanças, Lindsay – adiantou ele. – Este lugar tem esperma suciente para manter nosso laboratório ocupado durante um ano. – Precisamos apenas de um o de cabelo – falei. – Ou de uma gota do sangue de Michael Campion. – Eu também gostaria de visitar Veneza antes que ela afunde. Aliás, já que é para fazer pedidos, ainda quero um Mercedes conversível. Um baque metálico foi ouvido quando o perito trabalhando na banheira desmontou o sifão. Enquanto ele guardava os canos em sacos plásticos, Conklin e eu seguimos até o quarto de Junie. O lugar não era como o chiqueiro onde Ricky Malcolm dormia, mas estava longe de ser um exemplo de ordem e limpeza. Havia tufos de poeira sob os móveis, manchas nas paredes espelhadas e o grosso carpete cinza tinha um aspecto ensebado. Um dos peritos perguntou se estávamos prontos. Em seguida fechou as cortinas, apagou as luzes e foi varrendo a colcha, o carpete e as paredes com o bastão de luz ultravioleta, revelando manchas azuladas que indicavam a presença de sêmen. Após terminar seu trabalho, olhou para mim e disse: – Se os clientes vissem isso, eu duvido que eles tirariam a roupa. Conklin e eu descemos as escadas em direção ao ronco do aspirador de pó e camos ali, observando o trabalho dos técnicos. Em meio à barulheira, meu parceiro precisou gritar: – O que podíamos esperar depois de três meses do desaparecimento? Uma placa dizendo: “Michael Campion morreu aqui”?
De repente ouvimos um estalido metálico. O perito desligou o aparelho, se ajoelhou e puxou a faca de churrasco que estava debaixo do sofá de veludo, o mesmo em que havíamos sentado na noite anterior. Usando luvas, ergueu o objeto para que pudéssemos ver a mancha cor de ferrugem na lâmina serrilhada.
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capítulo 12
U AINDA FESTEJAVA A DESCOBERTA da faca quando meu celular tocou. Era Anthony Tracchio, nosso chefe, que falava num tom de voz estranhamente alto. – O que foi, Tony? – Quero vocês dois no meu gabinete. Agora! Ele desligou após rápidas e inúteis evasivas. Dali a 15 minutos, ao entrarmos no espaçoso gabinete de Tracchio, Conklin e eu deparamos com duas guras conhecidas sentadas nas poltronas de couro: o ex-governador Connor Hume Campion, com cara de poucos amigos, e sua mulher Valentina, bem mais jovem que o marido, que parecia dopada. A edição do Chronicle de domingo se encontrava sobre a mesa de Tracchio e, mesmo de cabeça para baixo e a alguns metros de distância, eu consegui ler a manchete: SUSPEITA INTERROGADA SOBRE A MORTE DE MICHAEL CAMPION. Cindy não esperou minha declaração, porra! Que diabo ela poderia ter escrito? Alisando os poucos os de cabelo que ainda cobriam sua cabeça, nosso chefe nos apresentou aos pais do garoto enquanto Conklin e eu puxávamos duas cadeiras para perto da mesa enorme. Connor Campion nos cumprimentou com um olhar severo. – Tive de car sabendo disto pelo jornal? – disse ele para mim. – Que meu lho morreu no colo de uma vagabunda! Meio envergonhada, falei: – Se tivéssemos algo mais concreto, Sr. Campion, o senhor seria o primeiro a saber. Mas tudo o que temos até agora é uma denúncia anônima segundo o qual seu lho teria visitado uma prostituta. Estamos acostumados a receber pistas falsas o tempo todo. Este poderia ter sido mais um caso. – Poderia ter sido? Então o jornal está dizendo a verdade? – Ainda não li a matéria, Sr. Campion, mas posso colocá-lo a par de todos os acontecimentos recentes. Tracchio acendeu um charuto enquanto eu fazia ao ex-governador um relato de nossas últimas 18 horas: os interrogatórios, a busca inútil por provas e a detenção de Junie Moon com base em sua ainda não conrmada alegação de que Michael havia morrido em seus braços. Assim que parei de falar, Campion cou de pé. Naquele momento percebi que, enquanto a polícia tomava por certa a morte do garoto, os pais ainda não tinham jogado a toalha. Meu
breve relato abriu os olhos do casal para uma realidade que eles não esperavam. Aquilo não era o que eles queriam ouvir. O ex-governador agora dirigia seu olhar de fúria para Tracchio, um homem que se tornara chefe sem nunca ter colocado os pés fora do gabinete, dono de uma carreira medíocre na administração policial. – Quero o corpo do meu lho. Nem que para isso todos os lixões do estado tenham que ser vasculhados à mão! – Fique tranquilo. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance – disse Tracchio. Campion se virou para mim e de repente sua fúria deu lugar à tristeza, fazendo com que seus olhos se enchessem de lágrimas. Tocando-o no braço, falei: – Estamos trabalhando em tempo integral, senhor. Não descansaremos enquanto Michael não for encontrado.
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capítulo 13
UNIE MOON ENTROU TIMIDAMENTE na sala de interrogatório do presídio feminino. Usava um macacão laranja e tinha no rosto rugas recentes de preocupação. Atrás dela vinha a defensora pública Melody Chado, que caria conhecida em todo o país qualquer que fosse o desfecho daquele caso. Vestia preto da cabeça aos pés (túnica, calças, colar de contas) e parecia não estar ali para brincadeiras. Puxou uma cadeira para sua cliente, sentouse também e abriu sua pasta de couro preto, olhando várias vezes para o relógio enquanto esperávamos. Havia apenas quatro cadeiras na sala pequena. Portanto, quando dali a pouco chegou Yuki Castellano, assistente de promotoria e minha amiga, só lhe restou car de pé. Yuki deixou sua pasta sobre a mesa e se recostou na parede. A Srta. Chado dava a impressão de que acabara de se formar na faculdade. Devia ser apenas alguns anos mais velha que sua cliente, que parecia vulnerável a ponto de ser digna de pena: o que me deixava bastante irritada. – Aconselhei minha cliente a não dar nenhum depoimento – disse a defensora, assumindo uma expressão tão séria que tive de me controlar para não rir. – A palavra é sua, Srta. Castellano. – Conversei com o promotor. Estamos indiciando sua cliente por homicídio culposo. – O correto não seria “ocultação de cadáver”? – perguntou Chado. – Negativo – respondeu Yuki decidida. – Sua cliente foi a última pessoa a ver Michael Campion com vida. A Srta. Moon nem sequer chamou um médico ou avisou a polícia. E por quê? Porque não se importava com a vida de Campion. Ela só estava pensando em si mesma. – Vocês jamais vão conseguir um indiciamento por homicídio – rebateu Chado. – A margem para dúvidas neste caso é enorme. – Pense bem, Junie – aconselhou Yuki. – Ajude-nos a encontrar os restos de Michael. Se uma possível autópsia indicar que o coração dele teria parado de qualquer maneira, revogamos o indiciamento por homicídio e deixamos você em paz. – Nada disso – interveio Chado. – É provável que o corpo esteja tão decomposto a ponto de o coração não ser mais encontrado. E aí? Aí vocês já terão estabelecido um nexo causal com minha cliente e ela estará perdida. Durante o debate entre as duas, acabei reformulando minha opinião sobre Melody Chado. Ou a jovem defensora tivera uma excelente formação ou fora criada numa família de advogados. Quem sabe as duas coisas.
Em sua cadeira, Junie olhava assustada para Chado. Talvez a imagem de um coração decomposto tivesse apagado qualquer fantasia romântica que ela pudesse ter com relação a Michael Campion. – Quero saber da faca – disse Conklin, conduzindo a conversa para nossa única pista concreta. – Que faca? – perguntou Junie. – Encontramos uma faca debaixo do seu sofá. Tudo indica que as manchas na lâmina são de sangue. A perícia vai precisar de alguns dias para analisá-la, mas, se você nos ajudar, tenho certeza de que a Srta. Castellano verá nisso um sinal da sua boa vontade. – Não responda nada – retrucou Melody Chado. – Esta reunião está encerrada! Falando ao mesmo tempo que a defensora, e olhando para Conklin, Junie disse: – Achei que a faca estivesse num dos sacos de lixo. Não sei dizer que faca é essa que encontraram. Mas eu acabei de me lembrar do nome da cidade. – Junie, chega! Nem mais uma palavra! – Acho que era Johnson – continuou a prostituta. – Vi uma placa quando a gente saiu da estrada. – Por acaso não seria Jackson? – perguntei – É, Jackson! Isso mesmo! – Tem certeza? Você não disse que seguiram pelo litoral? – Certeza absoluta! Já era tarde e eu me confundi. Não queria me lembrar de nada – acrescentou ela olhando para baixo. – Eu queria esquecer.
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capítulo 14
CIDADE DE JACKSON ERA CONHECIDA pela tradição de os moradores fazerem churrasco nas calçadas e pelas feiras de artesanato, além de abrigar um grande depósito de lixo. Passava do meio-dia e o cheiro de podre se intensicava à medida que o sol aquecia a montanha de dejetos. Gaivotas e urubus sobrevoavam o local que se estendia até o sopé das montanhas. O delegado Oren Braun apontava para a enorme área que mandara cercar com cordas, o perímetro onde havia sido depositado o lixo do mês de janeiro. – Assim que recebi a ligação do ex-governador, pus o pessoal para trabalhar – contou a mim e a Conklin. – “Urgência urgentíssima”: foram as palavras que Connor Campion usou. Procurávamos por oito sacos de lixo pretos num oceano de sacos de lixo pretos. A uns 100 metros de onde estávamos, uma dúzia de policiais examinava as três toneladas de lixo que formavam uma montanha de seis metros de altura. Ao mesmo tempo, o responsável pelo depósito orientava um homem que vasculhava o local com dois cães farejadores. Eu estava ligeiramente otimista, o que era estranho diante das circunstâncias. – Depois de três meses aqui – resmunguei para Conklin –, o corpo de Michael vai se resumir a ossos e ligamentos. Nesse instante, como se tivessem escutado meu comentário, os cães deram sinal de alerta. Olhando para onde estávamos pisando, Conklin e eu caminhamos com o delegado rumo ao latido dos animais. – Tem alguma coisa nesse saco aí – disse o responsável pelos cachorros. Os animais cheiravam uma sacola de mercado. Ao me agachar, percebi através de um rasgo no plástico que o conteúdo estava enrolado em folhas de jornal. Abri para ver o que era e encontrei o corpo em decomposição de um recém-nascido. A pele estava ácida e esverdeada, já roída pelos ratos que havia no depósito. Não dava para saber se era menino ou menina e o jornal tinha a data da semana anterior. Alguém havia jogado um bebê no lixo. Será que ele foi asxiado até a morte ou já nasceu sem vida? Naquele estágio de decomposição, os legistas jamais chegariam a uma resposta. Conklin fez o sinal da cruz e sussurrava algumas palavras quando meu celular tocou. Afasteime e atendi, aliviada por tirar os olhos daquela cena terrível. – Pelo amor de Deus, Yuki – não esperei minha amiga falar –, me dê uma boa notícia! – Desculpe, Lindsay. Junie Moon revogou sua confissão. – Não me diga uma coisa dessas! Quer dizer então que, agora, Michael não morreu nos
braços dela? – Meu estômago deu um nó. A conssão da prostituta era a única coisa que tínhamos até então. Mas por que ela havia se retratado? – Agora Junie arma que não teve nada a ver com o desaparecimento e a morte de Michael Campion. Disse que foi coagida a confessar. – Coagida? Por quem? – perguntei, ainda desnorteada. – Por você e Conklin. Dois policiais malvados que a obrigaram a confessar algo que jamais aconteceu.
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capítulo 15
SUSIE’S É UMA MISTURA DE RESTAURANTE com bar caribenho. A comida apimentada combina com a música ao vivo e com a margarita deliciosa do local, sem falar que as garçonetes sabem nosso nome e percebem quando eu e minhas amigas estamos tendo um papo sério. Como aquele que estava rolando entre mim e Cindy. Ocupávamos nossa mesa nos fundos do salão. Fulminando minha amiga com o olhar, eu disse: – Será que é difícil entender? Falar que algo é condencial para você é a mesma coisa que nada. Quase cavei minha própria sepultura por ter lhe contado que estava trabalhando numa nova pista no caso de Michael Campion. Percebe a gravidade disso, Cindy? – Juro que não usei uma única linha sua, Lindsay! Recebi a informação da diretoria do jornal. – Mas como? – Os editores tinham uma fonte e eu z a entrevista. Não vou dizer quem é – falou, batendo a tulipa de cerveja na mesa. – Mas o que importa é o seguinte: você não precisa se preocupar, já que simplesmente não me contou nada. Ok? Essa é a verdade. Sou alguns anos mais velha que Cindy e existe entre nós uma relação fraterna (eu no papel da irmã mais velha), nascida na ocasião em que ela invadiu a cena de um crime que eu investigava, mas depois me ajudou a solucionar o caso. É raro um policial ter amizade com algum repórter. A ideia de que “o povo quer saber” é sinônimo de problema e às vezes pode inuenciar a opinião dos jurados. Também é impossível conar neles. Ao mesmo tempo, adoro minha amiga Cindy e cono nela 99% das vezes. Ali estava ela, sentada à minha frente com seu alinhado suéter de seda branca, os cachos dourados balançando de um lado para outro e os dentes ligeiramente sobrepostos acentuando seu charme. Parecia inocente da acusação que eu havia feito e se mantinha firme em sua posição. – Tudo bem – resmunguei. – Que tal um pedido de desculpas? – Tudo bem, foi mal. Desculpa. – Ótimo, está desculpada. Pode me dizer agora o que está rolando no caso de Michael Campion? – Você não presta, Cindy! – falei às gargalhadas, já acenando para Claire e Yuki que acabavam de chegar.
Claire, que estava com uma barriga enorme por causa da gravidez, não cabia mais no espaço entre o banco e a mesa. Levantei-me e providenciei uma cadeira para a cabeceira, de modo que minha amiga pudesse se acomodar. Yuki sentou-se ao lado de Cindy e em poucos minutos Lorraine veio anotar nossos pedidos. Assim que ela se afastou, Yuki disse para a vizinha: – Tudo o que eu disser, mesmo que seja de conhecimento público, é confidencial! Claire e eu caímos na gargalhada. – Que droga! As pessoas acham que levo alguma vantagem pelo fato de conhecer vocês – falou Cindy, soltando um suspiro dramático. – A audiência para revogar a conssão de Junie Moon correu sem problemas – relatou Yuki. – Já que ela assinou os papéis de anuência dos seus direitos quando confessou, o juiz disse que a confissão era legítima. – Ótimo – falei, respirando aliviada. – Até que enfim uma boa notícia! – Yuki, vocês vão julgá-la por homicídio sem a existência de um corpo? – perguntou Claire. – Sim. Esse é um caso de prova circunstancial, e casos desse tipo podem ser vencidos – disse Yuki. – Olha, eu estaria mais feliz se tivesse uma prova. Ou pelo menos se Ricky Malcolm zesse alguma declaração incriminatória. Mas as autoridades estão sendo pressionadas. Além disso, acho que podemos ganhar. Yuki fez uma pausa para dar um gole na cerveja e depois prosseguiu: – Os jurados vão acreditar na conssão de Junie. No m vão responsabilizá-la pela morte de Michael Campion.
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capítulo 16
O DIA SEGUINTE EU TRABALHAVA à minha mesa quando Conklin chegou fedendo a lixo. – Muito trabalho em Jackson? – Muito. O delegado está cavando seus 15 minutos de fama antes que o FBI assuma a busca. Mas acho que as coisas estão sob controle. Tapei o nariz quando ele puxou sua cadeira, cruzou as pernas compridas sob a mesa e abriu sua garrafa térmica de café. – Os registros telefônicos conrmam que Junie ligou para Ricky às 23h21 daquela noite em que Michael sumiu – falei. – Aliás, telefonava para ele diariamente nesse horário. – As mulheres são assim mesmo. Ligam para o namorado. – A propósito, Clapper telefonou. As digitais na faca são de Ricky. – É mesmo? Isso é ótimo! – Mas o sangue é bovino – emendei. – Bem, a faca era de churrasco. Vai ver que ele comeu um bife. – Mas a coisa não para aí. – Só um minutinho – pediu Conklin, colocando duas pedras de açúcar no café e bebendo num único gole. – Vai, pode continuar. – Não foi encontrado nenhum vestígio de sangue ou tecido celular na banheira, e o o de cabelo que mandamos para análise não era de Michael. Além disso, não há qualquer sinal de que alguém tenha tentado limpar o sangue. Nenhum vestígio de detergente. – Ótimo – comentou meu parceiro, franzindo a testa. – Mais um crime perfeito, é isso? – Calma que tem mais. Na picape do rapaz também não foi encontrado nenhum vestígio de sangue, nenhum fio de cabelo de Michael, nada. – Então eu me enganei com relação ao carro. Você devia ter apostado, Lindsay. Iria jantar comigo hoje à noite. E por minha conta! – Mas você ia tomar um banho antes, certo? – brinquei. Apesar do clima de descontração, meu humor estava péssimo. Cedo ou tarde eu teria de ligar para os Campion e dizer que ainda não tínhamos nenhuma prova, que Junie Moon havia revogado sua confissão e que Ricky Malcolm estava livre. – Quer ligar para Ricky e dizer que ele pode vir buscar o carro? Conklin telefonou, mas ninguém atendeu. Dali a pouco deixamos a Central e fomos até o laboratório da perícia, que cava em Hunter’s Point. No caminho, abri todas as janelas do carro
para que o vento arejasse as roupas de meu parceiro. Assim que cheguei ao local, assinei a liberação da picape de Ricky e resolvemos ir pessoalmente até o apartamento dele depois de mais três ligações perdidas. À porta, Conklin bateu e berrou: – Polícia! – e continuou batendo até que um chinês saiu do restaurante no térreo. – O Sr. Malcolm foi embora – disse o homem. – Pagou o aluguel e saiu na moto. Deixou uma bagunça horrível. Querem ver? – Já vimos, obrigado. – Ele se mandou – murmurei para meu parceiro enquanto voltávamos para o carro. – Ricky Malcolm. O sujeito mais patife, canalha e nojento do Universo. Um selvagem da motocicleta e mentor de crimes terríveis. Em breve numa cidade perto de você.
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capítulo 17
UI ARRANCADA DO SONO e dos braços do meu namorado por uma ligação de Jacobi. – Vista-se – ordenou. – Conklin vai buscar você em casa. Já deve estar chegando. E desligou sem dizer mais nada. Mas uma coisa era certa: alguém tinha morrido. Já passava da meia-noite quando meu parceiro estacionou nosso carro diante de uma casa em chamas em Presidio Heights. Quatro caminhões dos bombeiros e um número idêntico de viaturas já estavam diante das colunas da varanda, o vento formando um redemoinho de fumaça num dos cantos da sala. Curiosos se agrupavam do outro lado da rua, observando os bombeiros jogando água sobre as cinzas do que até poucos minutos antes era uma das belas casas daquela rica vizinhança. Fechando a jaqueta, passei por baixo de um dos jatos de água e atravessei o gramado no momento em que os geradores foram ligados. Conklin estava à minha frente quando subimos os degraus da varanda. Mostrou seu distintivo à porta e entrou na casa. – Duas vítimas, sargento – adiantou o oficial Pat Noonan. – Primeira porta à direita. – A legista já foi chamada? – perguntei. – Está a caminho. A escuridão ali dentro era maior do que do lado de fora. O cômodo indicado por Noonan era um amplo escritório ou uma sala de estar. À luz da lanterna pude ver restos de móveis, estantes de livros e uma TV grande. Além de duas pernas esticadas no chão. Pernas que tinham sido arrancadas do corpo. – Noonan! Noonan! – gritei. – Que diabo é isto aqui? – Movimentando a lanterna, deparei com um segundo corpo a alguns metros do tronco do primeiro, junto à porta. O oficial chegou à sala com um bombeiro atrás de si, um rapaz com o nome Mackey impresso no uniforme. – Sargento – disse o bombeiro –, fui eu que encontrei. Estava tentando recolher minha corda, mas ela ficou presa. Foi assim que descobri o corpo. – Você arrastou o corpo? – Eu... hummm... eu não imaginava que o corpo e as pernas fossem se soltar – disse Mackey, a voz rouca pela fumaça e provavelmente pelo medo. – Você puxou o corpo inteiro ou só as pernas? Onde estava o corpo antes? – Perto da porta. Não sei se era homem ou mulher. Desculpe, sargento. Mackey se retirou, o melhor que ele podia fazer naquele momento. As coisas que o fogo não
tinha destruído, a água e os bombeiros se encarregaram de fazer. Dicilmente saberíamos o que havia acontecido ali. Ouvi alguém chamar meu nome. Reconheci a voz no instante em que o facho de uma lanterna atingiu meu rosto. Chuck Hanni era um investigador especializado em incêndios criminosos, um dos melhores da polícia. Eu o conhecera alguns anos antes, quando ele apareceu num incêndio vestido socialmente, vindo direto de um jantar. Na ocasião ele usava uma calça creme e entrou na casa que pegava fogo para combater as chamas. Naquela noite aprendi bastante sobre a investigação em casos de incêndio, mas até hoje não sei como ele saiu de lá com a calça limpa, intacta. – Olá, Lindsay – disse Hanni. Usava paletó e gravata. Os cabelos pretos nos estavam molhados e uma cicatriz de queimadura começava no polegar direito e continuava por baixo do punho da camisa. – Encontramos os documentos do casal. Conklin, que estava agachado ao lado de uma das vítimas, cou de pé e se juntou a nós, dizendo: – Patty e Bert Malone. São os nomes deles. Percebi algo estranho em seu jeito de falar. Os corpos estavam tão queimados que era quase impossível identificá-los. Percebendo a interrogação em meu olhar, ele explicou: – Já estive nesta casa antes. Conhecia estas pessoas.
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capítulo 18
U ENCARAVA MEU PARCEIRO em meio à fuligem que se desprendia do teto e à barulheira que podia ser ouvida ao nosso redor: o esguichar das mangueiras, a estática do rádio, os berros dos bombeiros. – A lha deles era minha colega de escola – falou. – Kelly Malone. Os pais dela eram muito bacanas. – Sinto muito, Conklin. – Ela foi estudar no Colorado e eu nunca mais a vi. Kelly vai ficar arrasada. Coloquei a mão no ombro dele, sabendo que até prova em contrário a morte dos Malone seria tratada como homicídio. No segundo andar, os bombeiros continuavam com o trabalho de limpeza, desmontando o telhado e apagando os focos que ainda havia entre as vigas. – O alarme estava desligado – constatou Hanni, novamente se juntando a nós. – Os bombeiros foram chamados pelos vizinhos. O fogo começou nesta sala – disse ele, apontando para os móveis praticamente reduzidos a pó. Depois de correr os olhos pelos montes de escombros, acrescentou: – Eu aviso se encontrarmos algo de importante. Mas, pelo jeito, não esperem muita coisa. Impressões digitais, anotações... nada disso. – Mas você vai tentar, não vai? – perguntou Conklin. – Eu já disse que sim, Rich. A última coisa de que precisávamos ali era que meu parceiro se envolvesse numa discussão. Perguntei a ele como eram os Malone. – Kelly dizia que às vezes o pai era chato, mas para uma menina de 18 anos um pai chato devia ser alguém que não deixa a filha chegar em casa depois das 11. – Do que mais você se lembra? – Bert vendia carros de luxo e Patty não trabalhava. Tinham ótimo padrão de vida. Viviam recebendo gente em casa. Os amigos pareciam pessoas legais. Gente comum, como eles mesmos. – Não seria a primeira vez que “gente comum” acaba no banco dos réus – resmungou Hanni. A luz de faróis desviou minha atenção para as vidraças quebradas. A van dos legistas tinha acabado de chegar. Nesse instante, Noonan se aproximou para dizer: – Estou vindo da suíte lá de cima, sargento. Existe um cofre no closet. A porta está aberta e o interior vazio.
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capítulo 19
UDO ISTO POR CAUSA de um roubo? – disse Conklin, exaltado, enquanto Claire entrava na sala com sua assistente. Antes que ela perguntasse quem havia morrido, eu me aproximei, dei-lhe um abraço e disse em seu ouvido: – Conklin conhecia as vítimas. – Ok, pode deixar. Enquanto Claire preparava seus instrumentos de trabalho, contei a ela sobre o cadáver mutilado pelo bombeiro. Em seguida saí do caminho para que ela pudesse fotografar os dois corpos com sua velha câmera. – Este cômodo possui duas portas – constatou ela. – Chuck, você disse que o incêndio começou aqui. Mas as vítimas não tentaram fugir. Por quê? – É possível que tenham sido pegas de surpresa – respondeu Hanni, cortando amostras do carpete e guardando-as em pequenos sacos plásticos. – Elas podiam estar bebendo e caíram no sono, deixando um cigarro cair entre as almofadas do sofá. Hanni explicou algo que para nós era difícil de acreditar: em menos de um minuto a fumaça de um incêndio preencheria o espaço de um cômodo como aquele e as pessoas que estivessem dormindo acordariam tossindo, sem enxergar nada, desorientadas. Em seguida observou: – Uma pessoa diz “Vamos por aqui” e a outra contesta, “Não, por ali” . Também é possível que uma delas tenha caído e, depois de inalar tanta fumaça, as duas acabaram desmaiando. O mais provável é que estas duas vítimas tenham morrido em poucos minutos. Conklin voltou à sala com um livro nas mãos. – Encontrei isto aqui na escada – disse, entregando-me o livro. – Queimando na água, afogando-se nas chamas. Charles Bukowski. Isto é o quê? Poesia? Dei uma olhada na folha de rosto, onde havia algo escrito à caneta. Li para Conklin: – Annuit Cœptis. Parece latim. – A pronúncia correta é kep-tis – corrigiu ele. – É a inscrição que está nas notas de um dólar, logo acima da pirâmide com o olho. Significa “A Providência favorece nosso esforço”. – Você sabe latim? – Estudei em escola católica – respondeu Conklin, dando de ombros. – Então, parceiro, o que acha? O incendiário deixou um recado? Que Deus aprova tudo isto? Correndo os olhos pelos escombros, ele respondeu:
– Não o Deus em que eu acredito.
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capítulo 20
S TRÊS DA MADRUGADA, HANNI, Conklin e eu ainda acompanhávamos o trabalho dos bombeiros, que isolavam a casa pregando tapumes nas portas e nas janelas. Os curiosos já haviam ido embora e as marteladas ecoavam na vizinhança silenciosa. A certa altura, Hanni disse: – Quatro meses atrás houve um incêndio parecido em Palo Alto. – Parecido como? – perguntei – Uma casa grande. Gente rica. O alarme estava desligado. Duas pessoas morreram na sala e eu me perguntei a mesma coisa: por que elas não fugiram? – Pânico, desorientação... Como você mesmo disse. – É, isso acontece. Mas como só fui chamado dois dias depois do incêndio, não deu para saber direito. Fico furioso quando os bombeiros decidem que um incêndio é acidental sem que um perito esteja presente. De qualquer modo, os corpos já haviam sido cremados quando me chamaram. – Você achou o incêndio suspeito? – perguntou Conklin. – Ainda acho – respondeu Hanni. – As vítimas eram pessoas tranquilas e tinham muito dinheiro. Mas ninguém conseguiu descobrir o motivo pelo qual alguém quisesse matar Henry e Peggy Jablonsky. Vingança, um prêmio de seguro ou algo parecido. Não havia nada disso. Ao que parece, ninguém tinha birra contra o casal. Fiquei com a pulga atrás da orelha, mas não foi possível dizer se aquilo foi um crime ou se uma brasa voou da lareira e incendiou a árvore de Natal. – Você encontrou algum livro com uma inscrição em latim? – perguntei. – Quando cheguei ao local, os bombeiros já haviam jogado vários objetos encharcados no jardim da casa. Não pude sequer procurar por um livro. – Isso dito, Hanni tirou do bolso a chave do carro. – Ok, pessoal. Por hoje chega. A gente se vê daqui a algumas horas. Conklin e eu nos afastamos e o investigador partiu. – Você conseguiu falar com Kelly? – perguntei a meu parceiro. – Caiu na secretária eletrônica. Eu não sabia o que dizer. – Balançando a cabeça, emendou: – Então falei: “Aqui é o Rich. Rich Conklin. Faz muito tempo que a gente não se fala, Kelly, mas... me ligue assim que puder.” – O que mais você podia dizer? – Sei lá. Há duas possibilidades: ou ela vai achar que sou doido por estar ligando a uma da madrugada para dar um alô depois de 12 anos, ou... se souber que sou da polícia, vai car
apavorada!
O
capítulo 21
INSTITUTO MÉDICO-LEGAL FICA num prédio ligado ao da Polícia por uma passarela coberta, à qual se tem acesso através de uma das portas do fundo do saguão. Claire já trabalhava na gelada sala de autópsia quando lá cheguei às nove e meia da manhã. – E aí, coração? – disse ela, erguendo rapidamente o rosto enquanto deslizava seu bisturi do esterno até o osso pélvico de Patty Malone. – Nem parece uma pessoa – falei, apontando para o cadáver. – Os corpos queimam feito cera, viram parte do combustível – comentou Claire, prendendo o tecido carbonizado com grampos. – Os resultados dos exames de sangue estão prontos? – Sim. A Sra. Malone havia bebido um ou dois drinques e o marido tinha anti-histamínico no sangue. A substância pode tê-lo deixado meio sonolento. – E o monóxido de carbono? – perguntei, vendo que Chuck Hanni atravessava a porta da sala. – Acabei de pegar o histórico odontológico do casal, Claire – disse ele. – Vou deixar a papelada na sua mesa. A legista assentiu com a cabeça e emendou: – Eu estava prestes a dizer a Lindsay que, pela quantidade de monóxido de carbono encontrada, os Malone resistiram bravamente. As radiograas não apontam nenhum sinal de projéteis ou fraturas. Mas encontrei algo que vocês vão querer olhar. Ajustando o avental de plástico que mal conseguia proteger a barriga cada vez maior por causa da gravidez, Claire se virou para a mesa às suas costas. Puxou o lençol que cobria as pernas de Patty Malone e correu o indicador sobre a faixa rosada, quase imperceptível, que contornava os tornozelos da mulher. – Estão vendo que este pedaço de pele não cou carbonizado? – perguntou ela. – Aconteceu a mesma coisa nos pulsos do Sr. Malone. A pele estava protegida durante o incêndio. – Protegida com o quê? Com uma atadura? – perguntei. – Pode ser. Se fossem apenas os tornozelos, eu diria que a Sra. Malone talvez estivesse de meias. Mas os pulsos do marido me deixaram desconada. Tenho certeza de que essas marcas são de algum material usado para amarrar as vítimas e que, provavelmente, queimou no incêndio. Já tenho meu veredicto. Causa mortis: asxia por inalação de fumaça. Modus mortis: homicídio.
Olhando para o corpo desgurado de Patty Malone, quei pensando que no dia anterior aquela mulher havia acordado e penteado os cabelos para depois encontrar o marido na cozinha e preparar o café da manhã. Talvez ela tenha ligado para uma amiga a m de jogar conversa fora. Em momento algum lhe passou pela cabeça que à noite ela e o marido, com quem estava casada havia 32 anos, morreriam queimados. Por um tempo, talvez algumas horas, os dois ficaram ali, conscientes, esperando a morte chegar. Era mais um caso hediondo de terror psicológico. Os assassinos tiveram a intenção de fazê-los passar por aquele calvário. Mas quem seriam eles? E que motivos teriam para cometer um crime tão brutal?
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capítulo 22
ACOBI E EU DARÍAMOS A MESMA atenção ao caso dos Malone ainda que eles não fossem conhecidos de Conklin. Mas o fato de o casal ter sido próximo do nosso colega nos dava a sensação de que o conhecíamos. Naquele dia, Jacobi substituía meu parceiro, já que Conklin tinha ido ao aeroporto buscar Kelly Malone. Estávamos diante de uma casa em Laurel Heights, a apenas alguns quarteirões da residência dos Malone. Toquei a campainha e fui atendida por um homem de 40 e poucos anos vestido de calça jeans e um casaco de moletom. Ele parecia saber o motivo de nossa visita. Jacobi nos apresentou e em seguida perguntou: – Ronald Grayson está? – Vou chamá-lo – disse o homem, que era pai do garoto. – Será que podemos entrar? – Claro. É sobre o incêndio, não é? Ele abriu passagem e entramos numa bela sala, com móveis confortáveis e uma televisão de tela plana sobre a lareira. – Ronald! – berrou o homem. – A polícia está aqui! Ouvi a porta dos fundos bater forte. – Droga! – exclamei. – Peça reforços. Deixei Jacobi na sala, corri através da cozinha e saí pela porta dos fundos. Meu velho parceiro já não podia mais correr em função dos pulmões debilitados e dos quarenta quilos ganhos desde a promoção a tenente. Perseguindo o garoto, vi quando ele saltou a cerca e passou para o quintal ao lado. Ronald Grayson não era um atleta, mas tinha pernas compridas e conhecia bem a vizinhança. Eu já estava perdendo terreno quando ele deu uma guinada brusca para a direita e entrou nos fundos de uma garagem. – Pare onde está! – berrei. – E ponha as mãos para o alto! Mas Ronald continuou correndo. Eu estava numa situação difícil: não queria atirar no garoto, mas vi que ele tinha algum motivo para estar fugindo. Seria ele o autor do incêndio? Será que esse garoto é um assassino? Chamei a Central, informei minha localização e segui atrás dele, passando pela garagem a tempo de vê-lo atravessar o Arguello Boulevard, bater contra o capô de uma viatura e cair no meio da rua. Um segundo carro chegou enquanto dois policiais desciam do primeiro. Um deles
agarrou o garoto pela camiseta e o jogou sobre o capô para que o outro pudesse revistá-lo. Foi então que notei o rosto azulado de Ronald. – Meu Deus! – gritei. Puxando-o, afastei-o do carro e z com que ele dobrasse o tronco. Abracei-o por trás, fechei a mão direita sobre o pulso esquerdo, encontrei o ponto certo sob as costelas do garoto e dei três apertões na altura de seu abdômen. Ele tossiu, cuspindo longe três saquinhos plásticos. Três saquinhos de cocaína. Eu estava ofegante e furiosa. Rapidamente algemei Ronald e o prendi por porte e tráco de drogas. Em seguida li seus direitos. – Seu idiota – falei. – Estou armada, sabia? Poderia ter atirado em você. – Vá para o inferno! – Isso é maneira de agradecer, seu pivete? – gritou um dos policiais. – Por muito pouco a sargento não acabou com sua vida!
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capítulo 23
ACOBI E EU JÁ SABÍAMOS DUAS coisas a respeito de Ronald Grayson: que o garoto carregava algumas pedras de crack ao ser preso e que havia sido ele quem tinha chamado os bombeiros para falar sobre o incêndio na casa dos Malone. Ele também seria o autor do incêndio? Sentada diante de Ronald na sala de interrogatório, lembrei-me de outro adolescente, Scott Dyleski. Dyleski tinha 16 anos quando invadiu uma casa em Lafayette, matou a moradora a facadas e mutilou o corpo porque, segundo sua mente doentia, a mulher havia recebido por engano os apetrechos de droga que ele tinha comprado e se recusara a devolvê-los. Portanto, olhando para Ronald Grayson de 15 anos, com sua pele muito clara e cabelos escuros, os dedos tamborilando sobre a mesa como se nós estivéssemos desperdiçando o tempo dele, eu me perguntava se ele havia matado Patty e Bert Malone para roubá-los e comprar mais drogas. Num tom de voz paciente e amigável, perguntei: – Ronald, você pode nos contar o que aconteceu? – Não tenho nada a declarar. – É um direito seu – interveio Jacobi em tom de ameaça. Com seus mais de cem quilos espalhados num corpo de estatura mediana, Jacobi é uma montanha de músculos e feições abrutalhadas, com os olhos cinzentos reetindo a cor grisalha dos cabelos. Eu esperava que o garoto demonstrasse medo ou respeito, mas Ronald não parecia nem um pouco intimidado pelo tenente. – Não quero saber da cocaína, seu pivete! – xingou Jacobi, ofegando no rosto do garoto. – Mas, falando de homem para homem, se você contar sobre aquele incêndio, talvez a gente possa dar uma aliviada nessa questão da droga. Entendeu? Estou tentando ajudar você. – Me deixa em paz, seu gordo nojento! – gritou Ronald. Antes que Jacobi desse um tapa na nuca do garoto, Vincent Grayson apareceu na porta da sala com um advogado. – Ronald, não diga nada! – Eu não disse nada, pai. Vincent então descarregou sua raiva em Jacobi. – Você só pode falar com meu filho se eu estiver presente. Conheço bem a lei! – Fica frio, Sr. Grayson – rosnou Jacobi. – O imbecil do seu lho está preso por porte e tráco de drogas, e em nenhum momento falei com ele sobre isso.
O advogado se chamava Sam Farber e, pelo cartão de visita, deduzi que era o único sócio de um escritório especializado em testamentos e hipotecas. – Pois agora estou falando como você, você e você – continuou Jacobi, apontando para o garoto, o pai e o advogado. – Posso interceder junto ao promotor em benefício de Ronald se ele colaborar no caso do incêndio. É só isso que nos interessa neste momento. – Meu cliente é um bom menino – disse Farber, puxando uma cadeira e alinhando a pasta com a quina da mesa antes de abri-la. – Estava com o pai quando ligou para os bombeiros. Dou minha palavra que esse é o único envolvimento dele nesse caso. – Sr. Farber – falei –, a pessoa que liga para comunicar um incêndio é sempre investigada como possível autor do incidente. E Ronald ainda não nos convenceu de que não teve nada a ver com esse caso. – Pode falar, Ronald – disse Farber. O garoto encarou-me rapidamente e correu os olhos até a câmera no teto que gravava a conversa. Mastigando as palavras, ele falou: – Eu estava no carro com papai. Senti cheiro de fumaça. Mostrei para ele o caminho que devia tomar e dali a pouco vimos o fogo. Então peguei meu celular e liguei para os bombeiros. Foi só isso. – Que horas eram? – Dez e meia. – Sr. Grayson, a pergunta foi dirigida a seu filho. – Escute, meu lho estava do meu lado no carro! O frentista do posto de gasolina pode confirmar isso. – Ronald, você conhecia os Malone? – perguntei. – Quem? – As pessoas que moravam na casa que pegou fogo. – Nunca ouvi falar deles. – Viu alguém saindo da casa? – Não. – Já esteve em Palo Alto? – Eu nunca fui ao México. – Estão satisfeitos agora? – interveio o advogado. – Meu cliente não se recusou a cooperar. – Tudo bem, mas precisamos dar uma olhada no quarto dele – falei.
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capítulo 24
PSICANÁLISE ENXERGA OS INCÊNDIOS criminosos como uma metáfora sexual masculina. O ato de pôr fogo equivaleria à fase de excitação, o incêndio seria a consumação e os jatos de água da mangueira representariam a ejaculação. Não descarto essa tese, já que a maioria dos incendiários é do sexo masculino e 50% deles são adolescentes. Jacobi e eu deixamos Ronald numa cela e voltamos à casa dos Grayson com o pai do garoto. Estacionamos diante da pequena casa, limpamos os pés no capacho e cumprimentamos a Sra. Grayson, que estava assustada e solícita demais. Recusamos o café oferecido e em seguida pedimos licença para revistar o quarto de Ronald. Eu esperava encontrar objetos como linha de pescar, produtos inamáveis e algum pertence de Patty e Bert Malone. A cômoda de Ronald estava tão dilapidada que parecia ter saído de um depósito do Exército da Salvação. Tinha quatro gavetas grandes, duas pequenas e sobre o tampo havia um abajur, alguns jarros cheios de moedas, uma pilha de bilhetes de loteria e um aparelho ortodôntico guardado num estojo de plástico vermelho. Um abajur estava ligado à tomada junto à porta. Com muito esforço, Jacobi afastou a cama, retirou as gavetas da cômoda e despejou o conteúdo de cada uma delas sobre o colchão. A tralha encontrada se resumia a meia dúzia de revistas pornográcas, um saquinho de maconha e um cachimbo. Em seguida abrimos o closet e reviramos a montanha de roupas sujas. Cuecas, calças jeans e meias: tudo cheirava a suor e juventude, sem qualquer odor de gasolina ou fumaça. Erguendo o rosto, observei que o pai do garoto nos vigiava da porta do quarto. – Estamos quase terminando, Sr. Grayson – falei sorrindo. – Precisamos apenas de alguma anotação com a letra de Ronald. – Aqui está – disse ele, retirando um caderno sobre a pilha de livros na mesinha de cabeceira. Ao passar os olhos pelas páginas, vi que não precisaria mandá-lo para análise: a letra meticulosa e elaborada do menino nada tinha a ver com a inscrição em latim encontrada no livro dos Malone. Ronald Grayson tinha um bom álibi e, a contragosto, fui obrigada a admitir que ele nos contara a verdade. Mas o que me incomodava em relação ao garoto (mais que sua atitude, seus péssimos modos e as drogas) era o fato de que ele não havia perguntado nada a respeito dos Malone. Ele teria mentido ao dizer que não os conhecia ou simplesmente não dava a mínima para o
episódio? – E meu filho? – perguntou Vincent Grayson. – É todo seu – respondeu Jacobi por sobre os ombros, pouco antes de bater a porta e caminhar de volta ao carro. Antes de darmos a partida, falei para o homem: – Ronald cará sob sua custódia até ser indiciado por porte e tráco de drogas. Como prometido, vamos tentar aliviar a barra dele com o promotor. Mas no seu lugar, Sr. Grayson, eu ficaria de olhos bem abertos. Ele está infringindo a lei. Pior que isso, está metido com marginais. Um bom e demorado castigo é o que eu faria se Ronald fosse meu filho.
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capítulo 25
URANTE AS QUATRO HORAS seguintes, Jacobi e eu batemos à porta de todos os vizinhos dos Malone, coletando informações, intimidando-os com as perguntas que fazíamos. Rachel Savino morava numa mansão de estilo mediterrâneo ao lado da casa das vítimas. Morena, bonita e com aproximadamente 40 anos, ela vestia calças justas e uma blusa mais justa ainda, a marca da aliança evidenciando o divórcio recente. Ela não nos convidou a entrar. Passando os olhos por minhas roupas (calças empoeiradas, camisa de corte masculino e blazer), cou visivelmente assustada ao perceber a arma que eu trazia na cintura e quase não reparou a presença de Jacobi. Com certeza não parecíamos moradores do bairro. Portanto, meu colega e eu camos ali, parados sobre os degraus de mármore enquanto cinco ou seis cães da raça shih-tzu pulavam e latiam ao nosso redor. – Por acaso conhece este rapaz? – perguntei, mostrando-lhe uma foto de Ronald Grayson. – Não, acho que não. – Viu alguém a pé ou de carro rondando esta região? Alguém que fosse estranho à vizinhança? – perguntou Jacobi. – Darwin, quieto! Não, não vi nada. – Algum garoto ou algum carro suspeito? Alguém que tenha batido à sua porta? Algum telefonema ou alguma entrega fora do comum? Não. Não. Não. Agora era ela quem fazia as perguntas. Queria saber se o incêndio na casa dos Malone fora acidental ou intencional, se o casal tinha sido assassinado. – Estamos apenas fazendo uma investigação, Sra. Savino. – respondeu Jacobi. – Não precisa borrar as... Rapidamente interrompi meu parceiro, dizendo: – E os cachorros? Latiram de forma diferente ontem à noite, por volta das dez e meia? – Ficaram agitados com os caminhões dos bombeiros, mas não antes. – A senhora acha estranho que os Malone não estivessem com o alarme de casa ligado? – Acho que eles nem se davam o trabalho de trancar as portas – respondeu ela, dando a conversa por encerrada. Recolheu os cachorros para dentro de casa, bateu a porta e trancou ruidosamente todas as fechaduras e ferrolhos. Ao m de quatro horas e uma dúzia de interrogatórios, Jacobi e eu tínhamos descoberto que os Malone eram pessoas generosas, queridas, sem nenhum problema matrimonial e que
frequentavam a igreja. Um casal perfeito que não tinha um único desafeto na vizinhança. Quem poderia tê-los matado e por quê? Jacobi resmungava algo sobre os pés que doíam quando meu celular tocou. Era Conklin, ligando do carro dele: – Fiz uma rápida pesquisa sobre a pirâmide nas notas de um dólar – falou. – É um símbolo da maçonaria, uma sociedade secreta que existe desde o século XVIII. George Washington era maçom, assim como Benjamin Franklin e quase todos os fundadores da nação. – É, eu sei. Mas e Bert Malone? Também era maçom? – Kelly tem certeza de que não. Ela está aqui comigo, Lindsay. Estamos indo para a casa dos pais dela.
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capítulo 26
HEGAMOS À CASA AO MESMO tempo que Conklin e a lha dos Malone. A porta do passageiro do carro deles se abriu antes que o motor fosse desligado e uma jovem saiu em disparada na direção dos escombros. Conklin gritou seu nome, mas ela não parou. Rapidamente virou o rosto em direção aos faróis do nosso veículo e só então consegui vê-la melhor. Alta e magra, tinha uns 30 anos, usava calça legging sob uma saia curta e uma jaqueta de couro marrom. Os cabelos ruivos estavam presos numa trança que chegava à cintura. Alguns os formavam um halo em torno da cabeça iluminada pelos faróis. “Halo” é a palavra exata: Kelly Malone tinha o rosto de uma santa. Conklin correu ao encontro dela e, quando Jacobi e eu os alcançamos, o inspetor já havia aberto a tranca colocada pelos bombeiros. Com a luz da lua atravessando o telhado destruído, acompanhamos Kelly Malone pelo esqueleto da casa dos pais. A certa altura, ainda escoltada por Conklin, ela desabafou: – Meu Deus, meu Deus! Rich, ninguém poderia odiá-los a esse ponto! Kelly preferiu não entrar no cômodo onde os pais tinham morrido. Em vez disso, subiu as escadas e seguiu até um ponto do corredor. Conklin estava a seu lado quando ela atravessou a soleira do que ainda restava da suíte do casal. A fuligem e a água haviam destruído os móveis, o carpete e as fotos que decoravam as paredes. Kelly recolheu do chão um porta-retratos com a fotograa do casamento dos pais e o limpou com a manga da jaqueta. O vidro ainda estava intacto, mas a água se inltrara pelas bordas da moldura. – Acho que é possível restaurar – disse ela com a voz embargada. – É possível, sim – concordou Conklin. Em seguida a conduziu até o cofre aberto e perguntou o que ficava guardado ali dentro. – Mamãe tinha umas joias antigas que herdou da minha avó. A seguradora deve ter a lista. – Srta. Malone, por acaso se lembra de alguém que tivesse algum ressentimento contra seus pais? – perguntou Jacobi. – Saí de casa aos 18 anos. Papai às vezes pegava pesado na loja de carros, mas se estivesse sofrendo alguma ameaça, certamente mamãe teria me contado. Vocês têm certeza de que não foi acidente? – perguntou ela, os olhos suplicantes voltados para Conklin. – Sinto muito, Kelly, mas não foi um acidente – respondeu ele, abraçando-a para que ela chorasse contra seu peito.
A dor daquela jovem partia meu coração. Ainda assim eu precisava saber: – Kelly, quem seriam os principais beneficiados com a morte de seus pais? Ela se encolheu como se tivesse ouvido uma revelação inédita. – Eu – respondeu bruscamente. – Eu e meu irmão somos os principais beneciados! Você nos pegou: contratamos um assassino para matar nossos pais e queimar a casa! Assim colocaríamos as mãos na grana deles! – Desculpe, Kelly. Eu não estava sugerindo que você ou seu irmão tivessem alguma coisa a ver com isto. A partir desse momento ela se dirigiu apenas a Conklin. Enquanto esperava com Jacobi no andar de baixo, ouvi quando o inspetor lhe contou sobre a inscrição em latim na folha de rosto do livro. – Latim? Não sei nada a respeito. Se mamãe ou papai escreveram alguma coisa em latim, essa foi a primeira e única vez – sentenciou Kelly Malone.
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capítulo 27
ALCÃO HAVIA PRENDIDO A BARATA sob um copo de vidro emborcado na mesa do quarto de casa. Comum nas mansões de Palo Alto, o inseto era um macho da espécie Blatta orientalis, tinha uns três centímetros de comprimento e ostentava uma carapaça escura. Um bicho comum, porém valioso para Falcão. – Você está se saindo muito bem, Macho – disse ele para a barata. – Sua vida não é uma maravilha, devo admitir, mas você é guerreiro e vai aguentar. Atrás de Falcão, deitado na cama, Pombo lia uma apostila relativa ao projeto que sua turma na faculdade vinha desenvolvendo: um fax tridimensional, algo talvez inspirado numa das engenhocas futuristas de Jornada nas estrelas e que possivelmente um dia se tornaria realidade. O conceito era o seguinte: uma máquina escanearia um objeto no ponto A e uma réplica idêntica seria esculpida a laser no ponto B. Aquilo não era nenhuma novidade para Pombo, que já tinha visto um protótipo em ação. Portanto, o que ele fazia naquele momento era se ocupar com alguma coisa até que o preguiçoso Falcão resolvesse descolar o traseiro da cadeira. – Você está atrasado, cara – resmungou ele. – Em vez de car conversando com esse bicho, você devia preparar o diálogo antes que os imbecis dos seus pais cheguem em casa. – Por que você não gosta do Macho? – perguntou Falcão. – Faz 16 dias que ele sobrevive apenas de ar e do pouco de gordura que existe no tampo da mesa. Não é verdade, Macho? Uma façanha e tanto, Pombo! Sério! – Sério? Cara, você é um panaca! – Você não está percebendo a grandeza do experimento – continuou Falcão, impassível. – Um inseto que já está por aí desde os primórdios, cara! Macho está vivendo de ar! E se continuar vivo por mais quatro dias, vai ganhar a liberdade de volta. Esse é o nosso trato. Estou até pensando na recompensa que vou dar a ele. – Inclinando-se para examinar seu refém, Falcão bateu no copo, fazendo com que a barata acenasse de volta com as antenas. – Que tal um brownie de chocolate, hein, meu camarada? Ao ouvir aquilo, Pombo se levantou da cama, foi até a mesa e, por trás do amigo, levantou o copo e esmurrou o inseto, esmagando-o contra o tampo da mesa. Uma das pernas da barata continuou se mexendo durante alguns segundos. – Ei! Por que você fez isso? Por que você... – Ars longa, vita brevis. A arte é longa, meu caro, mas a vida é breve. Escreve a droga do diálogo ou eu pulo fora.
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capítulo 28
ONKLIN E EU PASSAMOS O DIA inteiro visitando casas de penhores na esperança de encontrar alguma das joias de Patricia Malone: algo que talvez pudesse nos servir de pista. O último estabelecimento em que entramos era um buraco entre dois bares na Mission Street, um lugar chamado Arca do Tesouro. Não sei se o proprietário ouviu quando Conklin e eu entramos, mas, ao ver nosso reexo nos vários espelhos pendurados à parede, ele veio ao nosso encontro. Seu nome era Ernie Cooper. Com a aparência de um veterano do Vietnã, o homem era parrudo como um armário e parecia grande demais para o tamanho da loja. Os cabelos grisalhos estavam presos num rabo de cavalo e um iPod podia ser visto no bolso da camisa, os fones enados nos ouvidos. Percebi o volume de uma arma sob o paletó. Enquanto Conklin mostrava a Cooper as fotos das joias de Patricia Malone obtidas na seguradora, eu passava os olhos pelos vários troféus, guitarras e computadores velhos que se amontoavam pelo lugar. Um macaco empalhado com um abajur anexado às costas chamou-me a atenção, bem como a coleção de porquinhos de porcelana numa das quatro vitrines que abrigavam alianças de casamento, relógios, medalhas militares e correntes de ouro. Ernie Cooper assobiou ao ver as fotos. – Quanto será que vale tudo isso? Uns 200 mil? – Por aí – respondeu Conklin. – Ninguém costuma aparecer por aqui com esse tipo de coisa, mas de qualquer modo... Quem vocês estão procurando? – Talvez este cara aqui – disse Conklin, entregando-lhe uma cópia da foto de Ronald Grayson. – Posso ficar com ela? – Claro. Aqui está meu cartão – respondeu meu parceiro. – Divisão de Homicídios. – Exato. – Então... foi o quê? Latrocínio? Conklin sorriu e se limitou a responder: – Se este garoto aparecer... se alguém aparecer com uma dessas joias, nós queremos saber. Foi quando percebi a pequena foto em preto e branco colada à caixa registradora: Ernie Cooper descendo a escadaria do Civic Center de São Francisco vestindo o uniforme da polícia.
Percebendo que eu olhava a imagem, ele disse: – Seu sobrenome é Boxer, não é? Vi na credencial. Trabalhei com um sujeito com esse mesmo sobrenome. – Marty Boxer? – Esse mesmo. – É meu pai. – Verdade? Não me leve a mal, mas o cara era insuportável. – Não se preocupe – falei. Cooper assentiu com a cabeça, abriu a registradora e guardou o cartão de Conklin junto com as fotos de Grayson e das joias da Sra. Malone. – Ainda tenho um bom faro. Mais do que quando era policial. Vou dar uma bisbilhotada por aí. Se eu descobrir alguma coisa – disse Ernie Cooper, fechando a registradora –, entro em contato com vocês. Prometo!
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capítulo 29
CÉU TINHA ESCURECIDO ENQUANTO Conklin e eu estávamos na loja de Ernie Cooper. Ouvi trovoadas no caminho até o carro e, ao entrarmos na viatura, percebi os pingos grossos de chuva já batendo contra o para-brisa. Rapidamente fechei a janela, prendendo a pele entre o indicador e o polegar na manivela da porta. – Droga! – dei um grito, exagerando no volume da voz. Eu estava chateada. Conklin também parecia insatisfeito. O longo dia de trabalho não tinha dado em nada. Meu parceiro girou a chave na ignição, a testa franzida e o cansaço pesando nas costas. – Quer que eu dirija? Ele desligou o carro e deu um longo suspiro, jogando-se contra o banco. – Tudo bem – falei. – Me dê a chave. – Posso dirigir. O problema não é esse. – Qual é então? – Você. Eu? Seria porque eu havia interrogado Kelly? – O que eu fiz? – perguntei, incrédula. – Não se trata do que você fez, mas de quem você é. Tentei evitar a conversa com um olhar, como se dissesse: “Por favor, Conklin, não é hora para isso.” Mas as imagens surgiam em rápida sequência na minha mente, lembranças de uma noite em Los Angeles após uma estressante jornada de trabalho, a qual por muito pouco não terminou numa cama de hotel. Minha razão pisou no freio a tempo de evitar uma besteira. Seis meses depois, a recordação daquele episódio nos assustava no interior daquele carro velho e fedendo a mofo, que parecia prestes a entregar os pontos sob o temporal que desabava. Percebendo a aflição em meu rosto, Conklin disse: – Não vou fazer nada. Jamais faria qualquer coisa... O problema é que não consigo esconder o que eu sinto, Lindsay. Sei que está com Joe, mas queria que soubesse que estou apaixonado por você. E que faria qualquer coisa para ficar ao seu lado. – Rich, não posso – falei, olhando fundo nos olhos dele, vendo a dor que meu parceiro sentia e sem saber o que fazer para aliviá-la. – Puxa... – disse ele. Cobrindo o rosto com as mãos, bufou: – Aaaaaargh! – Em seguida esmurrou o volante algumas vezes e girou a chave para dar a partida.
– Conklin, você quer mudar de parceiro? – perguntei, tocando em seu braço. – Lindsay, vamos esquecer o que acabei de dizer, ok? – respondeu ele, rindo. – Vamos ngir que não falei nada. Foi mal, desculpe. – Estou falando sério. – Esquece. Nem toque mais nesse assunto. Olhou pelo retrovisor e arrancou. Forçando um sorriso, disse: – Só quero esclarecer uma coisa. Quando eu trabalhava com Jacobi, nada parecido com isso aconteceu.
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capítulo 30
IMPRESSIONANTE A REPRESENTATIVIDADE dos mortos entre a população de Colma, na Califórnia. Existem 12 habitantes descansando debaixo da terra para cada um que circula em sua superfície. Minha mãe está enterrada no cemitério de Cypress Lawn, bem como a mãe de Yuki e Bert e Patty Malone, que agora eram velados pelos filhos. Se alguém me observasse de longe, provavelmente pensaria que eu estava sozinha. Eu tinha depositado ores sobre a lápide de Benjamin e Heidi Robson, duas pessoas que eu não conhecia, e me sentado num banco a cem metros de onde os Malone estavam sendo enterrados. Minha pistola se achava escondida sob a jaqueta azul e um microfone no colarinho da camisa permitia que eu me comunicasse com as viaturas à entrada do cemitério. Eu estava à espera de Ronald Grayson ou de qualquer pessoa estranha àquele lugar. Alguns assassinos têm o prazer mórbido de assistir ao encerramento do espetáculo e dar a si mesmo uma salva de palmas. Eu torcia para que isso acontecesse hoje. Ali sentada, eu podia ver Kelly Malone à frente do grupo de cinquenta pessoas e de costas para os dois caixões. Conklin a observava enquanto ela proferia algumas palavras. Eu ouvia apenas o zumbido distante de um cortador de grama, ao qual logo se juntou o barulho do guincho baixando os caixões. Kelly e o irmão jogaram um último punhado de terra e se afastaram. Kelly se aproximou de Conklin e ele a abraçou. Havia algo de comovente e familiar na amizade deles. Ao ver aquela cena, senti uma dor no peito. Quando Kelly e Conklin vieram caminhando com o padre na minha direção, virei-me antes que eles vissem meus olhos marejados. Falando rente ao colarinho da camisa, disse: – Boxer na linha. Entrando em ação.
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capítulo 31
MACBAIN É UM BAR PERTO da Central frequentado por advogados e policiais que não se importam de se acomodar em mesas minúsculas e conversar aos berros por causa da barulheira. Cindy e Yuki ocupavam uma mesa junto à janela, com a assistente de promotoria apertada contra o batente da porta e Cindy espremida por causa de um homem gordo sentado atrás dela. Com apenas vinte minutos para almoçar, Yuki deixava a amiga assustada com a movimentação contínua de suas mãos e a velocidade supersônica (maior que a habitual) com que falava em razão do tempo curto. – Quase implorei por esse caso – disse ela, enando na boca uma das batatas fritas roubadas do prato de Cindy e repetindo a frase pela milésima vez. – Havia três assistentes na minha frente, mas Red Dog me entregou o caso por causa do Brinkley. Red Dog era Leonard Parisi, chefe de Yuki e famoso assistente de promotoria sênior de cabelos ruivos, e Brinkley era Alfred Brinkley, o “atirador da balsa” , o primeiro caso importante de Yuki na Promotoria. Foi um julgamento tenso, pois a população estava revoltada com o homem que atirou contra cinco pessoas a bordo de uma balsa na baía de São Francisco. – É um pouco irônico – disse Yuki a Cindy. – Existiam várias provas no caso de Brinkley: a arma, a conssão, as duzentas testemunhas e o vídeo amador. Mas no caso de Junie Moon é o oposto. – Parou de falar e tomou o resto do refrigerante diet que estava em seu copo. – Não temos nada: nem arma, nem corpo, nem testemunhas. Apenas a conssão desmentida de uma garota que talvez nem saiba fritar um ovo. Eu não posso perder esse caso, Cindy. – Calma, amiga. Você não vai... – Não vou mesmo! Você está certa! Não importa que Junie Moon tenha arrumado uma nova advogada. – Quem é? – L. Diana Davis. – Não acredito! – Pois é. A cereja do bolo. Minha adversária é um rolo compressor feminista que atropela tudo o que vê pela frente. Ah, já ia me esquecendo: há um sujeito que está escrevendo um livro sobre Michael Campion. Faz uma semana que ele corre atrás de mim. O nome é Jason Twilly e ele está doido para falar com você. – Jason Twilly? O autor de best sellers sobre crimes? – Esse mesmo!
– Yuki! Jason Twilly é um gigante! Um astro do mercado editorial! – Isso é o que ele diz – riu Yuki. – Dei seu número para ele. Parece que o sujeito quer saber algumas informações a meu respeito. Você pode dizer o que quiser para o cara, menos que eu estou morrendo de medo! – Você é uma figura, sabia? Yuki deu uma risada, tirou uma nota de vinte da bolsa e disse: – Está na minha hora. Tenho uma reunião com Red Dog. Havia três assistentes na minha frente, Cindy. Se ele tivesse passado esse caso para um deles, eu teria cortado os pulsos! Portanto, só me restam duas opções: vencer ou vencer!
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capítulo 32
INDY CHEGOU AO BAR do Hotel St. Regis, na vibrante região ao sul da Market Street conhecida como SoMa, para se encontrar com Jason Twilly. O escritor caria hospedado ali até o m do julgamento e não havia em São Francisco hotel melhor do que aquele. O homem se levantou ao ver Cindy se aproximar. Alto e magro, aparentava ter menos de 43 anos e era tão bonito pessoalmente quanto nas fotos que a repórter tinha visto nas orelhas dos livros dele, bem como numa matéria da Entertainment Weekly. – Jason Twilly – ele se apresentou com a mão estendida. – Olá. Cindy omas. – Ela se acomodou na cadeira que o escritor havia puxado. – Desculpe o atraso. – Não se preocupe. Aproveitei esse tempinho para dar uma organizada nas ideias. Cindy tinha feito uma rápida pesquisa sobre o escritor antes do encontro e havia descoberto novas informações a respeito dele: Jason Twilly era um homem inteligente, talentoso, calculista e um tanto impiedoso. Um jornalista armara que ele tinha o mesmo estilo de Truman Capote, destacando o dom raro do autor de penetrar na mente dos criminosos e humanizá-los a ponto de os leitores sentirem simpatia por eles. A repórter queria apenas aproveitar a atmosfera bacana do bar e a companhia do famoso escritor, mas não podia se descuidar. Estava preocupada com Yuki, pois não sabia como Jason pretendia descrevê-la, nem se para sua amiga seria bom ou ruim que o próximo livro do autor fosse sobre Michael Campion. Apesar da aparente tranquilidade de Yuki, Cindy sabia que o escritor estava atento a tudo o que fosse dito naquele encontro. – Acabei de ler Malvo – disse a repórter, referindo-se ao livro de Jason sobre o atirador que, manipulado por um comparsa, matou 10 pessoas e assustou a capital do país ao longo de um mês. – Gostou? – devolveu ele, revelando um sorriso encantador que abria o lado esquerdo da boca enquanto apertava os olhos. – Agora vejo os adolescentes de maneira diferente. – Vou interpretar sua resposta como um elogio. A propósito, o que vai beber? O escritor chamou a garçonete, pediu vinho para Cindy, água mineral para si e explicou que, como a acusação de Junie Moon estava a cargo de Yuki, ele gostaria de ter uma ideia melhor sobre ela. Por isso, queria entrevistar uma de suas amigas mais próximas. – Conversei com alguns dos professores dela da faculdade – disse ele. – E com alguns ex
colegas do Duffy & Rogers. – Ela estava prestes a se tornar sócia do escritório – comentou a repórter. – Eu soube. Yuki falou que perdeu o interesse pelos casos civis após a morte da mãe no Hospital Municipal e que portanto decidiu passar para o outro lado, para a Promotoria. – Exatamente. – Mas que conclusão podemos tirar disso? Que ela é uma pessoa agressiva? Talvez vingativa? – Isso é uma provocação? – perguntou Cindy sorrindo. – Por acaso Yuki lhe pareceu uma pessoa vingativa quando você conversou com ela? – De modo algum – respondeu Jason, dando mais um de seus sorrisos sedutores. – Bem, ela me pareceu um pouco agressiva – emendou o escritor. – Tive a oportunidade de vê-la em ação no julgamento de Alfred Brinkley. Contou ainda que já havia assinado um contrato para escrever a biograa não autorizada de Michael Campion antes de o garoto desaparecer. – Tudo levava a crer que o caso ia terminar sem solução quando a polícia recebeu uma denúncia e chegou a Junie Moon. Quando soube que Yuki Castellano seria a responsável pela acusação, quei com água na boca. Vai ser um julgamento emocionante. O entusiasmo dela pela profissão é o que mais me impressiona. E a coragem também. – L. Diana Davis vai cortar um dobrado – concordou Cindy. – Observação interessante – comentou Jason. – Porque eu estava justamente pensando: “Que bom que Yuki pode contar com uma amiga como Cindy.” Não quero desmerecer Yuki, mas Davis vai acabar com ela.
PARTE 2 HABEAS CORPUS (Que tenhas teu corpo)
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capítulo 33
UKI FOI OBRIGADA A ABRIR caminho entre os repórteres que a cercavam desde o momento em que encostou o carro no meio-o. Pendurou a bolsa no ombro, pegou a pasta e atravessou a rua, os repórteres em seu encalço, perguntando aos berros sua opinião sobre o julgamento prestes a começar, se havia alguma coisa que ela gostaria de dizer. – Agora não, pessoal – falou. – Não posso deixar o juiz esperando. – Baixando a cabeça, seguiu até a esquina e viu as vans das emissoras de TV estacionadas na Bryant: a imprensa do país inteiro estava ali para cobrir o julgamento de Junie Moon. O sinal de pedestres abriu e ela atravessou a rua, caminhando rumo à multidão ainda maior que se aglomerava na escadaria do prédio do Tribunal de Justiça. Embora tivesse dito que se encarregaria da mídia, Leonard Parisi ainda estava preso num congestionamento e não sabia dizer a hora que chegaria ao julgamento. Portanto, Yuki gastara meia hora ao celular com ele repassando as considerações iniciais que pretendia fazer. Daí a sua pressa. Ainda se esquivando dos repórteres, ela subiu os degraus da escadaria até alcançar a enorme e pesada porta de aço e vidro do saguão. Um repórter de TV se adiantou para ajudá-la, piscou o olho e disse: – Nos vemos mais tarde, Yuki. A assistente de promotoria colocou a pasta e a bolsa sobre o balcão, passou pelo detector de metais, agradeceu os votos de boa sorte do segurança e tomou a escada para o segundo andar. Na sala do tribunal, as paredes com lambris de madeira pareciam não comportar a multidão que havia chegado. Yuki ocupou seu lugar à mesa da acusação e trocou olhares com Nick Gaines, seu assistente. Com os olhos arregalados e o rosto suado, o rapaz parecia tão aito quanto ela. – Cadê Red Dog? – perguntou ele. – Preso no trânsito. O ocial de justiça pediu silêncio e ordenou que todos cassem de pé. O juiz Bruce Bendinger surgiu à porta que cava atrás de sua cadeira e se acomodou na tribuna entre as bandeiras dos Estados Unidos e da Califórnia. Bendinger tinha 60 anos, cabelos grisalhos e se recuperava de uma cirurgia no joelho. O colarinho que aparecia sob a toga era cor-de-rosa e a gravata de seda tinha listras em tons vibrantes de azul. Ao notar que ele franzia a testa, Yuki se deu conta de que o juiz, habitualmente afável, estava irritado mesmo antes do início do julgamento. Talvez seu joelho não lhe desse trégua.
Ela mal ouviu quando ele instruiu os jurados. Aproveitou o momento para espiar sua adversária, L. Diana Davis, a implacável advogada de Junie Moon. Davis tinha cerca de 50 anos, vinte dos quais dedicados à defesa de mulheres vítimas de violência. Naquela manhã ela usava um de seus famosos terninhos vermelhos, batom forte e joias pesadas, os cabelos curtos formando perfeitas ondas prateadas. Parecia vestida para um programa de TV e Yuki não tinha dúvida quanto à atenção que sua adversária receberia da imprensa à saída do tribunal. Yuki então percebeu que não eram apenas a pressão do julgamento e o assédio da mídia que roubavam a paz da experiente prossional. Junie Moon tinha sua parcela de culpa. Sentada ao lado de sua advogada, a jovem parecia um animal indefeso em seu terninho bege e colarinho de renda. – Podemos começar, Srta. Castellano? – Yuki ouviu o juiz dizer. – Sim, meritíssimo. Ela afastou a cadeira e se dirigiu para o púlpito, certicando-se de que o único botão de seu blazer estava devidamente fechado, sentindo um frio na espinha enquanto centenas de olhares se voltavam para ela. No meio do caminho, parou e sorriu para os jurados. E logo em seguida deu início à consideração inicial mais importante de sua carreira.
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capítulo 34
ENHORAS E SENHORES – pronunciou Yuki diante do púlpito. – Muito se sabe sobre a vida de Michael Campion. Infelizmente, o que está em juízo hoje é a morte dele. Na noite de 21 de janeiro, Michael Campion, um garoto de 18 anos, foi até a casa da ré, Junie Moon, e depois nunca mais foi visto. A Srta. Moon é uma prostituta. A informação é relevante apenas pelo fato de que Michael procurou a Srta. Moon porque ela é uma prostituta. Oportunamente vamos apresentar testemunhas e colegas da vítima que dirão aos senhores que havia tempo Michael planejava visitar a Srta. Moon porque queria perder a virgindade. Yuki interrompeu rapidamente o discurso para examinar os jurados e então continuou: – E de fato perdeu não só a virgindade, como a vida também, o que não deveria ter acontecido. Ele não deveria ter morrido. Se a ré tivesse agido com responsabilidade, se tivesse agido com humanidade, Michael Campion ainda estaria entre nós. Tudo o que aconteceu a ele depois de entrar na casa da Srta. Moon foi relatado em detalhes à polícia pela própria ré – disse Yuki apontando para Junie Moon. – Ela mesma contou. Admitiu à polícia que havia deixado Michael Campion morrer e tratado os restos mortais dele como lixo. Yuki colocou os jurados a par dos detalhes da conssão de Junie, do relato que ela zera sobre a morte de Michael Campion, do esquartejamento e dos sacos de lixo jogados na caçamba. Em seguida deu as costas para a ré, deixou suas anotações sobre o púlpito e, sem nenhuma pressa, caminhou até os jurados. Ela não se preocupava mais com a ausência de Red Dog, nem com os repórteres que a aguardavam à porta do tribunal em busca de algum furo jornalístico. Tampouco se incomodava com o aspecto angelical de Junie Moon, que mais parecia uma dama de honra a caminho do altar. Yuki pensava apenas nos jurados à sua frente. – Senhoras e senhores – continuou –, Michael Campion estava desaparecido havia três meses quando a polícia recebeu informações que levaram à ré. Os restos mortais do garoto não foram recuperados porque já era tarde. A defesa alegará que não existe crime sem corpo. Dirá que a polícia coagiu a Srta. Moon e por esse motivo ela retratou a conssão que havia feito. Dirá que a Promotoria não tem um caso legítimo nas mãos. Mas isso não é verdade. Não temos provas físicas, mas temos provas circunstanciais, várias delas. Caminhando ao longo do banco dos jurados, correndo os dedos sobre o parapeito, Yuki percebeu o impacto de sua consideração inicial, viu que os jurados estavam em suas mãos,
ansiosos por cada palavra que tinha a dizer. Não lhe passava pela cabeça decepcioná-los. – A Srta. Moon foi indiciada por destruição de provas e homicídio culposo – prosseguiu. – Para sustentar essa acusação, temos de evidenciar o dolo, a má intenção da ré. Assim reza a lei. Diz-se que uma pessoa foi mal-intencionada quando ela agiu com “um coração mesquinho e perverso” . Segundo nos contou a própria ré, Michael Campion pediu a ajuda dela, mas não foi atendido porque, para a Srta. Moon, o importante naquele momento era proteger seus próprios interesses. Junie Moon deixou que Michael Campion morresse quando poderia tê-lo salvado. Não vejo exemplo melhor para caracterizar uma pessoa mal-intencionada. É por isso que a Promotoria está acusando Junie Moon de homicídio. E ao longo deste julgamento vamos provar o fundamento dessa acusação.
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capítulo 35
. DIANA DAVIS PLANTOU AS MÃOS nas bordas do púlpito e o sacudiu até que ele se virasse na direção dos jurados. Encarando cada um deles, começou seu discurso: – Bom dia. Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer à acusação por ter poupado meu trabalho na consideração inicial. Vamos economizar um bom tempo. Satisfeita com as risadas que conseguira arrancar da plateia e de alguns jurados, ela colocou uma das mãos na cintura, abriu um sorriso e continuou: – Como a Srta. Castellano acabou de armar, estamos diante de um caso de homicídio sem a existência de um cadáver. Se a vítima não fosse uma celebridade, dicilmente a Promotoria teria a ousadia de abrir este processo. Não há um cadáver e não há sequer uma “arma do crime” . Apesar de todos os avanços da tecnologia forense, não foi encontrada uma única prova, por microscópica que fosse, na cena desse suposto crime. A experiente advogada parou de falar, umedeceu os lábios com a língua e retomou o discurso: – Após um interrogatório intenso, ou melhor dizendo, um interrogatório violento por parte da polícia, minha cliente acabou confessando um crime que não cometeu. No momento oportuno um especialista dará seu testemunho sobre aquilo que chamamos de “síndrome da falsa conssão” , resultado da ameaça psicológica. Foi justamente isso que aconteceu à Srta. Moon. Ela mesma contará aos senhores todos os acontecimentos da noite de 21 de janeiro. Tudo o que a acusação tem a apresentar é a conssão revogada de uma jovem que foi vítima de policiais truculentos e tendenciosos, os quais tinham apenas um objetivo em mente: encontrar alguém que pudesse levar a culpa pelo desaparecimento do lho do ex-governador. E esse alguém foi Junie Moon. Davis fez uma pausa para que suas palavras fossem assimiladas. Em seguida continuou: – Ao longo dos próximos dias os senhores terão uma ideia melhor sobre o absurdo dessa acusação. Nenhuma amostra de DNA será apresentada como prova, ninguém virá aqui com fotos de um corpo para explicar como ocorreu o suposto crime. Nem mesmo Ricky Malcolm, ex-namorado da Srta. Moon, será chamado para testemunhar a favor da acusação, pois ele já disse à polícia que nunca encontrou Michael Campion. Falou que nada aconteceu. Portanto, o que terá acontecido a Michael Campion? Ora, não há ninguém no mundo que não saiba que esse garoto sofria de uma cardiopatia congênita fatal e que vivia, digamos assim, com uma espada sobre a cabeça.
Davis sentia que seu discurso se aproximava do m, portanto elevou ligeiramente seu tom de voz: – Depois de sair de casa na noite de 21 de janeiro, algo aconteceu. Não sabemos ainda o que foi esse “algo” , mas não cabe a mim, muito menos aos senhores, fazer qualquer tipo de especulação. Terminados os trabalhos deste julgamento, a Promotoria pedirá aos senhores que considerem a Srta. Moon culpada de todos as acusações trazidas a juízo. Mas o senso comum dirá aos senhores que minha cliente é inocente de todos eles. Junie Moon não destruiu prova alguma. Não retalhou ninguém na banheira de casa, tampouco procurou uma lixeira para jogar os restos mortais de quem quer que seja. E tão certo quanto dois e dois são quatro, Junie Moon não é culpada de nenhum homicídio.
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capítulo 36
OFICIAL DE JUSTIÇA FINALMENTE chamou meu nome. Levantei-me do banco em que esperava no corredor, atravessei as portas duplas e fui descendo a rampa até o banco das testemunhas, observada por todos os presentes. Mais uma vez me dei conta de que o destino de Junie Moon dependeria em grande parte de meu depoimento. E de que L. Diana Davis faria o possível para reduzi-lo a pó. Fiz o juramento de praxe, tomei meu assento e respondi às perguntas preliminares de minha amiga Yuki, informando meu tempo de serviço e minha patente como policial. Ela então começou: – Sargento Boxer, a senhora interrogou a ré em 19 de abril? – Sim. O inspetor Richard Conklin e eu inicialmente interrogamos a ré na casa dela e depois a levamos para a Central da Polícia de São Francisco, que fica no terceiro andar deste prédio. – Ela parecia amedrontada, nervosa ou intimidada? – Pelo contrário. Parecia bem à vontade. Em nenhum momento se opôs a nos acompanhar até a Central. – Na ocasião, vocês perguntaram a ela sobre Michael Campion? – Sim. – E o que ela disse? – perguntou Yuki. – De início falou que não conhecia Michael Campion. Mas duas horas depois ela pediu que desligássemos a câmera de vídeo. – O que aconteceu em seguida? Em resposta às perguntas de Yuki, repeti para os jurados o que Junie dissera a mim e a Conklin: a maneira como a vítima havia morrido, a ligação para Ricky Malcolm e o m dado ao corpo de Michael Campion. – A senhora teve algum motivo para duvidar desse depoimento? – perguntou Yuki. – Não. Achei que foi bastante convincente. – A ré chegou a ser interrogada em outra ocasião? – Sim. Voltamos a falar com a Srta. Moon alguns dias depois no presídio feminino. Esperávamos que ela tivesse lembrado o nome da cidade em que ela e o namorado deixaram os restos mortais do Sr. Campion. – E lembrou? – Sim. A cidade era Jackson. Fica a três horas e meia daqui.
– Só para deixar claro: esse foi o segundo interrogatório, certo? – Certo. – Em algum momento a ré deu a entender que estava sendo coagida? – Protesto! – berrou Davis. – A testemunha está sendo induzida a especular! – Deferido – disse rispidamente o juiz Bendinger. – Reformulando – continuou Yuki. – A senhora ou o inspetor Conklin ameaçaram a ré? Recusaram a lhe dar comida ou a impediram de dormir? – Não. – Ela fez seu relato por iniciativa própria? – Fez. – Muito obrigada, sargento – disse Yuki. – Sem mais perguntas. Dali a dois minutos L. Diana Davis estava a dois palmos do meu nariz.
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capítulo 37
ARA MINHA SURPRESA, A ADVOGADA era uma mulher pequena e não tinha mais que 1,60m. Eu talvez a imaginasse mais alta por causa de sua reputação e por vê-la apenas na TV. – Sargento Boxer – começou –, a senhora trabalha na Divisão de Homicídios da Polícia de São Francisco há mais de dez anos. Já investigou dezenas de casos e interrogou centenas de suspeitos. Com certeza sabia que seria chamada para nos dizer o que aconteceu no caso de Junie Moon, correto? – Correto. – Portanto, como conseguiu a conssão da ré? Falou que acidentes acontecem? Que ela não era culpada de nada? Eu sabia que deveria ser breve e direta nas minhas respostas, mas diante da expressão de Davis, senti uma repentina vontade de soltar a língua. – É possível que eu tenha dito coisas desse tipo. Os interrogatórios nunca são iguais. Às vezes precisamos falar grosso. Outras vezes temos de ser gentis. E outras tantas somos obrigados a mentir – falei. – Há limites legais para os interrogatórios, mas garanto que em nenhum momento meu parceiro ou eu ultrapassamos esses limites. Davis sorriu, girou 180 graus, caminhou até o banco dos jurados e novamente se virou para mim. – É mesmo? – perguntou. – Pois bem. A senhora já disse que a ré pediu que a câmera da sala de interrogatório fosse desligada. – Sim, disse. – Então, deixe-me ver se entendi direito. Vocês gravaram tudo... até o momento em que a Srta. Moon “confessou”. Ou seja, não há nenhum registro dessa suposta confissão. – A ré parecia relutante em falar porque a câmera estava ligada. Portanto, quando pediu que a desligássemos, eu concordei. Em seguida ela nos contou o que aconteceu. – Nesse caso, como devemos interpretar o fato de que vocês gravaram tudo exceto a confissão? A senhora parece sugerir que a ré foi ardilosa, que agiu premeditadamente ao pedir que a câmera fosse desligada – disse Davis, dando de ombros e transmitindo aos jurados a impressão de que não dava o menor crédito às minhas palavras. – Sugerir que minha cliente foi esperta o bastante para fazer uma confissão extraoficial. – Eu não estou... – Muito obrigada, sargento – interrompeu Davis. – Meritíssimo, não tenho mais nenhuma
pergunta a fazer a esta testemunha. Yuki imediatamente ficou de pé: – Permissão para contrainterpelar, meritíssimo! – Permissão concedida, Srta. Castellano – retrucou o juiz. – Sargento Boxer, por acaso vocês são obrigados a gravar uma confissão? – De modo algum. Uma conssão é uma conssão, seja por escrito ou verbal, gravada ou não. Ter o registro dela é ótimo, mas não é um requisito. Yuki assentiu e depois perguntou: – Vocês faziam ideia do que a Srta. Moon iria dizer quando pediu que a câmera fosse desligada? – Não. Desliguei a câmera porque ela pediu que a desligássemos. E porque achei que só assim descobriríamos a verdade. E quer saber de uma coisa? Funcionou.
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capítulo 38
VONTADE DE YUKI ERA QUE TODAS as testemunhas fossem como Rich Conklin: rmes e idôneas. Ele tinha a aparência de um jovem militar e bom lho. Além disso, era um homem muito bonito. Conklin contou aos jurados que estava havia cinco anos na Polícia de São Francisco, sendo os dois últimos no Departamento de Homicídios. – O senhor interrogou a ré no dia 19 de abril? – perguntou Yuki a ele. – A sargento Boxer e eu conversamos com a Srta. Moon. – Antes disso o senhor tinha alguma ideia preconcebida quanto à culpa ou à inocência dela? – Não, senhora. – Leu os direitos da interrogada? – Sim, li. – Pelo que sei, a Srta. Moon não estava sob custódia quando o senhor leu para ela os direitos. Nesse caso, por que foi advertida de que tudo o que dissesse poderia ser usado contra ela? – Foi uma jogada – respondeu Conklin. – O senhor poderia explicar melhor o que quer dizer com “jogada”? Conklin afastou a mecha de cabelos escuros que caía sobre um dos olhos e respondeu: – Claro. Suponhamos que eu diga a um suspeito: “Quero interrogar você. Pode me acompanhar até a Central?” Ele irá comigo de livre e espontânea vontade. Essa pessoa não será obrigada a responder a nenhuma pergunta e poderá ir embora a qualquer momento. Não precisa saber de seus direitos porque não está detida. – Ele se reacomodou na cadeira e logo prosseguiu: – Mas veja bem: se por acaso o suspeito car desconado de alguma coisa, poderá solicitar a presença de um advogado, que com certeza dará m ao interrogatório. Ou o suspeito simplesmente irá embora. E não poderemos fazer nada para impedi-lo, uma vez que ele não está detido. – Se bem entendi, inspetor, vocês tomaram uma medida preventiva com a Srta. Moon. Na hipótese de que incriminasse a si própria, a ré já teria sido advertida de que suas palavras poderiam ser usadas contra ela. Foi isso? – Exatamente. A Srta. Moon era nossa única testemunha e talvez estivesse envolvida num crime. Então pensei: caso ela tenha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Michael Campion, não podemos correr o risco de interromper a conversa para ler os seus direitos. Isso seria o fim do interrogatório. Não queríamos apenas a verdade. Acima de tudo, desejávamos encontrar Michael.
– E a Srta. Moon solicitou um advogado? – Não. – Contou todos os detalhes sobre a morte de Michael Campion e o que foi feito com o corpo dele? – Sim, contou. – Inspetor Conklin, como o senhor descreveria o aspecto da Srta. Moon quando ela fez sua confissão? – Parecia triste e arrependida – respondeu ele. – O que levou o senhor a achar isso? – Ela começou a chorar. Falou que sentia muito e que, se pudesse voltar no tempo, faria tudo diferente.
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capítulo 39
NSPETOR CONKLIN – COMEÇOU DAVIS, sorrindo. – O senhor me parece um policial competente. Yuki cou tensa. Podia ver sua adversária preparando a ratoeira. Conklin não disse nada, continuou encarando a advogada até que ela voltasse a falar. – O senhor confirma que desde o início a ré negou conhecer Michael Campion? – Sim, mas um em cada cem suspeitos diz que não conhece a vítima. – O senhor já interrogou cem suspeitos de homicídio? – Foi só um modo de dizer. Não sei quantos interroguei, mas foram muitos. – Entendo – falou Davis. – Um modo de dizer que o senhor e a sargento Boxer trapacearam e intimidaram minha cliente até que ela confessasse. – Protesto! – gritou Yuki de sua cadeira. – Protesto deferido. – Vou reformular. Como já foi dito aqui, não há nenhuma gravação dessa “conssão” da Srta. Moon, há? – perguntou Davis, gesticulando as aspas com os dedos. – Não, não há. – Portanto, não sabemos qual é o conteúdo dela, sabemos? – Acho que minha palavra basta – respondeu Conklin. Davis sorriu e armou o bote: – Inspetor, o senhor fez anotações enquanto ouvia o depoimento de minha cliente? – Fiz. – Pedi para vê-las durante o levantamento das provas, porém fui informada de que elas não existem mais. – É verdade – disse Conklin com o rosto vermelho. – Gostaria de entender o que o senhor está armando, inspetor – declarou Davis, valendo-se do tom de superioridade que havia aperfeiçoado ao longo de décadas. Seu objetivo era desacreditar e humilhar Conklin. – O senhor estava investigando um possível assassinato. Como disse há pouco, a Srta. Moon era sua principal testemunha, talvez uma suspeita. Não havia nenhum registro formal da conssão, portanto o senhor fez um registro por escrito de modo que pudesse repetir aos jurados o que a ré tinha dito, certo? Mas em seguida jogou fora as anotações. Pode nos dizer o motivo? – Utilizei as anotações para fazer meu relatório. Depois de digitá-lo, não precisava mais delas. – Ah, não? Mas o que seria um registro confiável da conversa que vocês tiveram: as anotações
feitas naquela noite ou um relatório de alguns dias mais tarde? O senhor deveria ter guardado as anotações, inspetor. Deveria ou não deveria?... Inspetor? Diante da mudez de Conklin, ela solicitou: – Meritíssimo, o senhor poderia fazer a gentileza de instruir a testemunha a responder à minha pergunta? Yuki coçava as mãos sob a mesa. Não sabia que Conklin tinha destruído as anotações. Por outro lado, ainda que ele não tivesse agido de maneira correta, aquele era um costume entre os policiais. O juiz Bendinger se ajeitou na cadeira e pediu a Conklin que respondesse à pergunta. Um tanto contrariado, o inspetor disse: – Minhas anotações não acrescentariam nada, mas... – Mas ainda assim o senhor decidiu jogá-las fora e eu me pergunto o motivo! Será que os policiais não têm espaço para guardar papéis na Central? Os arquivos estão lotados? – Isso é ridículo. – Muito ridículo – disse Davis, deixando que as palavras ecoassem nas paredes da sala. Em seguida continuou: – O senhor por acaso se lembra de onde jogou as anotações? No cesto de lixo? Na rua? Pela janela do carro? No vaso sanitário? – Meritíssimo – interveio Yuki. – A defesa está constrangendo a testemunha... – Indeferido. A testemunha pode responder – adiantou-se o juiz. – Eu triturei os papéis – cuspiu Conklin, a garganta estufada contra o colarinho da camisa. – Então conte aos jurados por que fez isso. Yuki percebeu a faísca no olhar do inspetor, mas não havia nada que pudesse fazer para impedir a explosão. – O motivo pelo qual a gente costuma destruir anotações é para que advogados charlatões como você não distorçam os fatos e... Yuki arregalou os olhos. Jamais vira Conklin perder a calma. Davis já tinha cavado a cova dele e agora estava pronta para empurrá-lo no buraco. – Inspetor Conklin, foi assim que o senhor se comportou quando interrogou minha cliente? Foi assim que perdeu as estribeiras? – Protesto, meritíssimo! – berrou Yuki. – Com base em quê? – O argumento da defesa é... condenável. Bendinger não conseguiu segurar o riso. – Indeferido – falou. – Contenha-se, Srta. Castellano. Sorrindo, Davis plantou uma das mãos na cintura, virou-se para Conklin e disse: – Uma última pergunta, inspetor. Por acaso o senhor também não triturou qualquer outra prova que pudesse inocentar minha cliente?
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capítulo 40
INDA IRRITADA COM A ASTÚCIA de Davis e com o estresse daquele dia, Yuki deixou o tribunal pela porta dos fundos, aproveitando para conferir o celular. Apagou mensagens, fez anotações e mandou um e-mail para Red Dog, que àquela altura já estava em casa aito por notícias. Também usou a porta dos fundos para entrar no estacionamento onde havia deixado seu Hyundai. Abria o carro quando ouviu alguém chamar seu nome. Correndo os olhos à sua volta, avistou Jason Twilly atravessando a Bryant e correndo em sua direção: – Yuki, espere um minuto! Ela acomodou sua pasta no banco do passageiro e depois se virou para o escritor que se aproximava. Jason estava lindo, ela pensou enquanto o via contornar os carros no movimentado estacionamento. Não havia nenhuma observação a fazer ao visual do escritor: o corte dos cabelos, os óculos de armação leve que emolduravam os olhos escuros... tudo era perfeito! Ele ainda usava uma elegante camisa azul sob um paletó cinza bem cortado e as calças combinavam com o cinto Hermès que devia ter custado uma fortuna. Jason finalmente a alcançou, mas sem dar nenhum sinal de cansaço por causa da corrida. – Oi, Jason. Algum problema? – Problema nenhum – disse ele, os olhos cravados nos dela. – Só queria dizer que se saiu muito bem hoje. – Obrigada. – Sério. Você é rme, segura, e adorei o modo como driblou os repórteres. Davis está lá, dando show na escadaria... – A defesa precisa desse circo – falou Yuki. – Eu preciso provar que Junie Moon é culpada e não é naquela escadaria que vou conseguir isso. Jason assentiu com a cabeça e disse: – Sabe, também queria lhe contar que ouvi nos corredores alguém dizendo que Junie Moon é meio pancada. Parece que tem um QI abaixo da média. – Não tive essa impressão – retrucou Yuki, imaginando aonde o escritor queria chegar com aquele comentário. Talvez quisesse arrancar alguma informação dela. Ou quem sabe os seis meses na Promotoria já a tivessem transformado numa pessoa mais calejada. O escritor pousou sua pasta no chão, pegou um estojo de couro no bolso do paletó e retirou um pequeno lenço, limpando a poeira dos óculos.
– Acho que Davis vai convocar um psicólogo experiente para convencer o júri de que Junie é lerda e sugestionável e de que os dois policiais truculentos não tiveram nenhuma diculdade para arrancar o que queriam. – Bem, obrigada pela dica. – Bobagem – disse ele, recolocando os óculos já limpos. – Escute, estou louco para saber o que está passando nesta sua cabecinha linda. Aceita jantar comigo? Hein? O que acha? Yuki reetiu uns segundos, pensando na cerveja gelada que a esperava em casa e na pilha de trabalho que tinha pela frente. – Não me leve a mal, mas quando estou com um caso nas mãos gosto de car sozinha no m do dia. Preciso de paz e tempo para organizar as ideias e... – Yuki, você precisa comer! Por que não aceita meu convite, hã? Gosta de caviar, lagosta, champanhe francês? Você escolhe o restaurante! Prometo que estará em casa antes das 11 da noite. E nada de falar de trabalho! Anal será um jantar romântico – arrematou Jason, abrindo seu sorriso enviesado. Era um homem sedutor e tinha consciência disso. Yuki começou a rir e depois surpreendeu a si mesma dizendo: – Tudo bem, vamos lá.
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capítulo 41
TEVEN E SANDY MEACHAM estavam diante da televisão quando a campainha tocou à porta da enorme casa onde eles moravam em Cow Hollow. – Está esperando alguém? – perguntou ele à esposa – Não – respondeu Sandy, pensando que era algum dos candidatos que faziam campanha às vésperas da eleição para o conselho escolar. Deu um gole em sua taça de vinho e sugeriu: – Vamos fingir que não estamos em casa e eles vão embora. – Se quiser, vou lá fora e cubro essa gente de pancada. Assim eles nos deixam em paz – falou Steven, dando socos no ar enquanto calçava os chinelos. Foi até a porta, espiou através do olho mágico e viu dois garotos com aproximadamente a mesma idade de seu filho Scott. O que esses moleques querem? O mais forte vestia uma camiseta rosa sob um colete camuado, os cabelos caindo até os ombros. Certamente não era nenhuma testemunha de Jeová. O outro, mais sóbrio, usava um paletó sobre uma camisa polo lavanda, a franja conferindo-lhe um aspecto de aluno de colégio inglês. Ambos carregavam uma garrafa de bebida. Steven desligou o alarme, abriu ligeiramente a porta e perguntou: – Posso ajudá-los? – Eu me chamo Falcão, Sr. Meacham – apresentou-se o garoto de paletó. – E este é Pombo. Quero dizer, esses são nossos apelidos na faculdade. Somos colegas de Scott e estamos tentando uma vaga na fraternidade Alpha Delta Phi. – Verdade? Estranho, pois Scott não disse... – Não, não, não. Ninguém sabe de nada. É segredo! – Uma vaga na fraternidade... – disse Steven, com saudade de seus tempos de estudante. – Está bem, quando é a iniciação? – Semana que vem – respondeu Pombo. – Mas antes precisamos ser aceitos. Para isso queremos descobrir algumas informações sobre Scott, coisas que ninguém sabe. Se o senhor tiver uma foto dele ainda bebê, de preferência pelado... O homem riu. – Certo, podem entrar – falou, escancarando a porta de sua espaçosa casa com vista para a baía. – Querida, temos visitas! – berrou para a mulher, já conduzindo os garotos para a sala. – Seu apelido é Falcão em homenagem ao pássaro? E você, rapazinho? Por acaso é um adepto da columbofilia, ama os pombos?
Depois de pegar as duas garrafas dos rapazes, ele foi até um dos armários da sala e retirou as taças enquanto os visitantes se apresentavam à Sandy, que disse: – É muita gentileza de vocês trazer a bebida, não precisavam se preocupar. – Eu adoro licor – disse o dono da casa. Em seguida distribuiu os copos já cheios e brindou: – A Falcão e a Pombo! Steven vinha evitando o álcool, mas Sandy já estava tonta do vinho que tomara mais cedo. Ela rodopiou o licor na taça, deu um gole e disse: – Querido, por que não leva os garotos até o quarto de Scott? Vou pegar os álbuns de fotografia. – Eu acompanho a senhora – disse Pombo. – Para ajudar a escolher a foto certa. Sandy estava perdida diante das dezenas de álbuns quando sentiu a incômoda proximidade do rapaz. Ergueu a cabeça e, apertando as pálpebras para dar foco aos olhos embaçados pelo álcool, percebeu que ele segurava uma arma. Respirou fundo, mas Pombo levou o indicador aos lábios, dizendo: – Não grite. Faça o que eu mandar e tudo vai acabar bem.
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capítulo 42
SSO JÁ PERDEU A GRAÇA – disse Steve Meacham aos dois rapazes, afastando-se do cano da arma que Falcão apertava contra suas costas. – Fique junto da sua mulher, Sr. M. – ordenou Falcão. – Eu e meu amigo vamos começar a caça ao tesouro. Comporte-se ou seremos obrigados a machucar vocês. Steven foi para o lado da mulher e passou os olhos pelas duas armas, lembrando-se do revólver que ele mantinha escondido num dos armários da lavanderia. Virando-se para Sandy, viu que a esposa já estava mais sóbria, tentando entender o que acontecia. Quem dera ele soubesse. – Por acaso isso é uma brincadeira da faculdade? – perguntou ele a Pombo. – Sim, senhor – respondeu Falcão às suas costas. – Agora vocês dois vão se deitar no chão de barriga para baixo. – Não vou deitar porcaria nenhuma, seu imbecil! – gritou Sandy, virando-se para trás. – Saiam daqui agora e digam a meu filho que eu quero falar com ele ainda hoje! Pombo se postou atrás dela, levantou o braço e acertou uma forte coronhada na nuca da mulher, que uivou de dor e caiu de joelhos, cobrindo o rosto com as mãos. Steven viu o sangue escorrendo entre os dedos da esposa. Fez menção de socorrê-la, mas parou assim que viu os canos das armas a dois palmos de sua testa. Até então se recusava a acreditar no que estava acontecendo, mas o terror daquela cena eliminou qualquer dúvida. Esses garotos vão nos matar. A não ser que... – Não quero atirar na senhora – gritou Pombo. – Deite de bruços. E você também, coroa. Agora! Steven ficou de joelhos, implorando: – Faço tudo o que vocês mandarem. Levem o que quiserem. Mas, por favor, não atirem! – Assim é que eu gosto – falou Pombo, empurrando as costas de Sandy com o pé. Aguardou que Steven também se deitasse sobre o tapete persa e disse: – Mãos para trás. Os dois! Retirou do bolso da calça um carretel de linha de pesca e amarrou o casal na altura dos pulsos. Depois, arrancou os sapatos de ambos, tirou as meias de Sandy e começou a amarrar os tornozelos do marido com a linha, dizendo: – Vou contar um segredo para vocês. Não perdemos tempo participando de fraternidade. Isso é coisa para idiotas como Scott. – Num gesto rápido, ele baixou a calça e a calcinha de Sandy, que deu um berro.
– Onde fica o cofre, Sr. M.? Qual é o segredo? – perguntou Falcão. – Não temos nenhum cofre – respondeu o homem. – Falcão, vá até o segundo andar – ordenou Pombo. – Eu co aqui fazendo companhia para nossos amigos. Rindo, o garoto deu um tapinha nas nádegas de Sandy, que gritou desesperada: – Tem dinheiro na cômoda do quarto! Embaixo da caixa de charuto. Podem pegar! Levem tudo! Pombo aumentou o volume da televisão e enou um pé de meia na boca de cada um dos reféns. Sandy começou a resmungar, retorcendo-se, levando o rapaz a dar mais um tapinha no traseiro dela. Depois, amarrou sem paciência os tornozelos da mulher com a linha, pegou a segunda garrafa de licor, quebrou o pescoço de vidro contra o consolo da lareira e despejou a bebida sobre a pilha de jornais ao lado da poltrona, o cesto de novelos de lã, os cabelos e as roupas do casal. Apesar da mordaça, Steven começou a gritar, quase sufocando com a meia. – Eu não faria isso – aconselhou Pombo calmamente. – O senhor pode se engasgar com o próprio vômito. Imagine que coisa nojenta! Foi então que Falcão voltou à sala com um charuto entre os dentes e uma fronha cheia de dinheiro. – Caramba! – disse ele rindo. – Tinha cinco mil pratas com os charutos. Ah, também peguei este livro aqui. Pombo se ajoelhou ao lado de Sandy Meacham, que choramingava seminua no tapete, e retirou dos dedos dela os anéis de brilhante. Em seguida se aproximou de Steven e berrou em seu ouvido: – Como é que vocês gostam de dizer? “Viver bem é a melhor vingança” , não é isso? Então, boa vingança para vocês! E obrigado pela grana! – Pronto? – perguntou Falcão olhando para o parceiro. Pombo terminou de escrever na folha e tampou a caneta. – Veni, vidi, vici – pronunciou em voz alta. Depois acendeu os fósforos e os jogou sobre os lugares onde havia derramado o licor. Vuuuuum! As chamas logo se espalharam pela sala. Colunas de fumaça foram escurecendo o ambiente. Os Meacham não conseguiram ver quando os dois rapazes acenaram e fugiram porta afora.
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capítulo 43
CHEIRO DE CARNE QUEIMADA nos alcançou antes que cruzássemos a porta das ruínas da casa dos Meacham em Cow Hollow. O que no passado fora uma obra-prima da arquitetura agora não passava de uma cripta. Chuck Hanni, o investigador de incêndios criminosos, saiu das sombras para nos cumprimentar. Estava cansado e sério, algo raro de ver naquele homem. – Meu segundo caso da noite – explicou ele. – O primeiro foi parecido com este? – perguntou Conklin. – Não. Foi uma explosão num laboratório de drogas sintéticas. A vítima foi jogada longe. – Balançou a cabeça e então prosseguiu: – Mas este aqui foi igual ao caso dos Malone. Acompanhamos o investigador até o cômodo que um dia fora a sala de estar dos Meacham. Fiquei imaginando como era o lugar antes: o pé-direito alto, a lareira imponente, o espelho de moldura dourada sobre o consolo. Agora tudo se resumia a madeira e mármore queimados. Os corpos jaziam lado a lado numa poça de água preta, de bruços, as mãos curvadas como as de um lutador de boxe, resultado do encolhimento provocado pelo fogo. – Se as vítimas estavam amarradas, o material que as prendia queimou – disse Hanni, agachando-se junto aos corpos. – Não adianta procurar impressões digitais agora. Talvez amanhã à luz do dia. De qualquer modo, encontrei isto aqui na bancada da cozinha. – Entregou um livro a Conklin. A história do iatismo. – Há uma dedicatória aqui, Conklin. Está em latim. Meu parceiro abriu na folha de rosto e leu em voz alta: – Radix omnium malorum est cupiditas. – O que significa? – perguntou Hanni. Conklin tentou decifrar a frase, dizendo: – Alguma coisa... alguma coisa... O amor é mau? Sei lá! Meu latim da escola já está cansado. – Cansados estamos todos – disse Claire, juntando-se a nós com dois assistentes a tiracolo. – O que temos hoje? A legista se aproximou dos corpos, rolou o menor deles, e uma lufada de ar escapou da boca da vítima. – Dê uma olhada nisto aqui – Claire disse a Chuck, apontando a garrafa de licor quebrada parcialmente escondida pelo corpo da vítima. Hanni a levantou à altura de seus olhos. – Talvez as impressões digitais que queremos estejam aqui.
Conklin e eu deixamos a legista e o investigador com os corpos e voltamos para fora. Um dos policiais apontou uma mulher bonita entre os poucos curiosos que observavam a cena da calçada. – Foi ela quem ligou – informou o policial. – Debra Kurtz. Mora do outro lado da rua. A mulher devia ter 40 e muitos anos, 1,65m, e era magra demais, talvez anoréxica. Vestia uma calça preta de ginástica. Apresentei-me e perguntei se ela conhecia as vítimas. – Steven e Sandy Meacham eram meus amigos – falou. – Chamei os bombeiros assim que vi o fogo. Meu Deus, meu Deus! Mas já era tarde. – Se importa de nos acompanhar até a Central? – perguntei. – Precisamos de todas as informações possíveis sobre o casal.
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capítulo 44
EBRA KURTZ BEBIA CAFÉ FRIO na menor e mais limpa das nossas duas salas de interrogatório. – Os Meacham eram as pessoas mais legais do mundo – disse ela com o rosto molhado de lágrimas. – Você se lembra de alguém que poderia fazer mal a eles? – perguntei. – Vou comprar um refrigerante na máquina do térreo – falou Conklin à mulher. – Quer alguma coisa? Debra fez que não com a cabeça. Assim que meu parceiro saiu, ela se debruçou sobre a mesa para contar que Sandy bebia regularmente e que o casal tivera relacionamentos extraconjugais. – Não acredito que tenha algo a ver, mas acho melhor falar. Contou ainda que Sandy e Steven tinham dois lhos: Scott, um rapaz de 19 anos que estudava fora da cidade, e Rebecca, mais velha e casada, que morava na Filadéla. E então voltou a ficar emocionada, como se algo a incomodasse. – Gostaria de me contar mais alguma coisa, Debra? Por acaso havia algo entre você e Steven Meacham? – Sim – respondeu ela baixinho. – Tínhamos um caso. – Olhou para a porta como se quisesse terminar seu relato antes que Conklin voltasse. – Eu me odiava por trair minha amiga. É difícil explicar, mas eu gostava dela tanto quanto gostava de Steven. Empurrei a caixa de lenços de papel para Debra no instante em que Conklin entrou na sala, trazendo consigo uma folha de papel. – A senhora tem antecedentes criminais, Sra. Kurtz – falou, puxando uma cadeira para sentar. – Fiquei surpreso. – Eu estava deprimida – contou a mulher, os olhos verdes novamente marejados. – Eu só z mal a mim mesma. Conklin me passou o relatório. – Vejo que você foi presa por roubo – falei. – Meu namorado fez minha cabeça e eu, burra, fui atrás dele. De qualquer maneira, acabei inocentada – explicou Debra. – Inocentada, não – retrucou Conklin. – A senhora fez um acordo para entregar seu namorado e foi recompensada com livramento condicional, não foi? Ah, também teve o incêndio. – Meu marido tinha morrido – disse ela, batendo no peito com a mão fechada. – Incendiei
nossa casa porque era a única maneira de eu ver o que estava sentindo. Minha tristeza não tinha fim. Recostei-me na cadeira. Talvez eu estivesse boquiaberta, pois, ao perceber o espanto em meu rosto, a mulher começou a berrar: – A casa era minha! Nem sequer acionei o seguro. O prejuízo foi meu! Só meu, entendem? – Steven Meacham tinha terminado o caso entre vocês? – Sim, mas foi semanas atrás numa decisão de comum acordo. – A senhora não ficou nem um pouco deprimida? – perguntou Conklin. – Não, não e não... seja lá o que estiver pensando. Não incendiei a casa dos Meacham! Não fui eu! Não fui eu! Perguntamos onde ela se encontrava na hora do incêndio e se conhecia a cidade de Palo Alto. Debra tinha álibis, que foram devidamente anotados. Tudo nos levava a crer que estávamos diante de uma louca com inclinação para destruir os outros e sobretudo a si mesma, porém não tínhamos nenhuma pista concreta que pudesse incriminá-la. E já passava das cinco da madrugada. – Você tem alguma viagem marcada, Debra? – perguntou Conklin com o charme de sempre. Debra negou com um aceno de cabeça. – Ótimo. Por favor, não saia da cidade sem nos avisar.
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capítulo 45
OE AINDA DORMIA QUANDO entrei debaixo das cobertas. Gentilmente expulsei Martha, que ocupava meu lugar na cama, e me abracei a ele, querendo acordá-lo para contar o que estava me incomodando. Meu namorado se virou para mim, puxou-me para junto dele e afundou o rosto nos meus cabelos. – Estava na gandaia, loura? – Um incêndio – falei. – Dois mortos. – Como os Malone? – Exatamente como os Malone. Passei um braço sobre o tronco dele, aninhei o rosto em seu pescoço e exalei um forte suspiro. – Desabafa, meu amor – disse Joe. Beleza! – O problema é uma mulher, Debra Kurtz – falei, vendo que Martha tinha subido novamente na cama e rodopiava algumas vezes antes de se deitar aos meus pés. – É vizinha das vítimas. Foi ela quem ligou para os bombeiros. – Geralmente são os próprios criminosos que telefonam. – Eu sei. Ela disse que se levantou para beber água, viu o incêndio, ligou para os bombeiros e foi observar tudo da calçada. – Ela estava lá quando vocês chegaram? – Sim, foi uma das primeiras pessoas a chegar. Falou que Sandy Meacham, uma das vítimas, era sua melhor amiga. Contou também que tinha um caso com o marido de Sandy, a outra vítima. – Com o marido da “melhor amiga”? É difícil entender essa turma! Dei uma risada e então prossegui: – Parece que o Sr. Meacham deu um pé na bunda dela. Debra tinha uma chave da casa das vítimas. Além de ter passagem pela polícia. Roubo e... adivinhe o quê? Incêndio criminoso. – Caramba, essa deve ter um ótimo advogado! Mas o que você acha que ela fez? Incendiou a casa dos vizinhos e depois ficou esperando a polícia chegar? – É isso que estou dizendo, Joe. É muito bom para ser verdade. Debra Kurtz tinha os meios, o motivo e aproveitou a oportunidade. Ninguém segura uma mulher rejeitada! É a velha história: uma vez incendiário, sempre incendiário. Um vício difícil de largar.
– Ela parece uma assassina? – perguntou Joe. – Na minha opinião, Debra é uma narcisista patética e carente de atenção. – Você está certa. Dei um beijinho em Joe, adorando a aspereza do rosto dele, saboreando aquela boca contra a minha, aproveitando a simples presença daquele homem enorme na minha cama. – Loura – disse Joe –, é melhor parar porque você está cansada. Ri novamente e o apertei ainda mais, dizendo em seguida: – Debra jura que não fez nada. Então fico pensando... Subitamente meu pensamento se voltou para a terrível imagem das vítimas carbonizadas em meio às poças de água suja. – Fica pensando no quê? – perguntou Joe, trazendo-me de volta à realidade. – Fico pensando em duas possibilidades: ou ela incendiou a casa pois é autodestrutiva a ponto de querer ser presa, ou não esperava que os amigos fossem morrer. Mas há uma terceira... – Sua intuição está dizendo que não foi ela. A mulher não passa de uma louca varrida. – Exatamente. É isso aí. Quando acordei, eu estava abraçada a Martha. Joe tinha ido embora e a reunião com Jacobi havia começado sem minha presença.
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capítulo 46
EPOIS DO EXPEDIENTE ME ENCONTREI com Claire no carro dela. Levei um tempo transferindo um par de galochas, uma lanterna, um kit de perícia, um pacote gigante de batatas fritas e três mapas para o banco de trás e enfim me acomodei, dizendo: – Conklin conseguiu uma tradução daquela frase em latim no livro de iatismo. – Sério? O que signica? – perguntou Claire, passando o cinto de segurança abaixo da barriga que estava cada dia maior e esticando-o ao máximo antes de prendê-lo. Também coloquei o cinto e respondi: – Alguma coisa como “O dinheiro é a raiz do mal” . Quero colocar as mãos no idiota que escreveu aquilo e esfregar a cara dele nos dois corpos que estão no seu laboratório! Ele vai ver o que é o verdadeiro mal! – É verdade – ela grunhiu, saindo com o carro pela Bryant e aparentemente determinada a percorrer os três quilômetros até o Susie’s como se estivesse numa pista de Fórmula 1. Ultrapassou um veículo que se arrastava à nossa frente, pisou no acelerador e falou: – Você disse “ele”. Já descartou Debra Kurtz da sua lista? – Ela tem um álibi – respondi chateada, segurando-me no painel ao ver que minha amiga tinha acabado de cruzar um sinal amarelo. – E também tem álibis para as noites em que as casas dos Malone e dos Jablonsky foram incendiadas em Palo Alto. – Huumf! – bufou Claire. – Bem, com relação às duas impressões naquela garrafa, uma delas é de Steven Meacham. A outra não bateu com a de ninguém. Tudo indica que Sandy Meacham levou uma coronhada atrás da cabeça. Encontrei uma marca enorme no crânio. Passei alguns segundos digerindo a informação de que o assassino havia recorrido à violência e depois contei a Claire que as conversas na vizinhança não tinham levado a uma pista sequer. Ela então me informou dos resultados dos exames de sangue: Sandy Meacham havia ingerido bebida alcoólica e tanto ela quanto o marido morreram asfixiados pela fumaça. Tudo aquilo era interessante, mas não explicava nada. Era o que eu dizia a Claire quando ela estacionou na vaga para deficientes diante do Susie’s. Olhando para mim, desabafou: – Eu sou deciente, Lindsay! Engordei vinte quilos com a gravidez e agora não consigo andar um quarteirão inteiro! – Não vou multar você por causa disso, querida. Mas quanto ao recorde de velocidade que você conseguiu quebrar agora há pouco... Ajudei minha melhor amiga a descer do carro e ela me deu um beijinho no rosto, dizendo:
– Adoro que você se preocupe comigo. – Como se isso adiantasse alguma coisa – falei, abraçando-a e abrindo a porta do bar. Em meio ao cheirinho gostoso de frango assado, alho e curry, e embaladas por um clássico de Bob Marley, atravessamos a multidão diante do bar e seguimos até nossa mesa nos fundos, onde Cindy e Yuki nos esperavam. Lorraine, a garçonete, puxou uma cadeira para Claire, entregou os cardápios que conhecíamos de cor e saiu para buscar nossas cervejas e a água mineral de Claire. – Yuki, conte para elas! – Cindy foi logo dizendo. – Conte, Yuki, conte! – Bobagem, não foi nada – disse Yuki, que acabou não resistindo à pressão das amigas: – Tudo bem. Saí para jantar com Jason Twilly. – Você tomou cuidado com o que disse, não tomou? – perguntou Cindy, agora séria. – Sabe como é jornalista, amiga... – Não falamos de trabalho – disse Yuki, rindo. – Foi só um jantarzinho. Mas não precisam ficar animadas, ok? Não rolou beijo nem nada. – E aí? Vão sair de novo? – Se ele me convidar, acho que sim. – Caramba, mulher! – falei rindo. – Esse foi seu primeiro encontro em... um ano, não é isso? Quero ver mais entusiasmo nesse rostinho! – Um ano, não. Dezesseis meses! – disse Yuki. – Mas vamos deixar isso de lado. Então, qual vai ser o brinde de hoje? – A Ruby Rose! – propôs Claire, o copo de água já levantado. – A quem? – perguntamos ao mesmo tempo. – Ruby Rose. Ela está bem aqui – Claire acariciou a própria barriga. – É o nome que eu e Edmund escolhemos para nossa filhinha.
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capítulo 47
UANDO CHEGUEI EM CASA, o sol ainda se punha no horizonte, reetindo sua luz sobre uma viatura parada à porta do meu prédio. Abaixei a cabeça até a janela e perguntei: – E aí? Algum problema? – Você tem um minuto? – Claro. Esticando as pernas compridas, Conklin saiu do carro e foi se sentar nos degraus do prédio. Sentei-me também e não gostei da expressão em seu rosto quando ele abriu um maço de cigarros. Balancei a cabeça e disse: – Você não fuma, Conklin. – Eu sei. Fumei há muito tempo e parei. Mas hoje me deu vontade. Eu mesma havia fumado e parado várias vezes. Confesso que me esforcei para resistir à tentação daquele prazeroso ritual: o fósforo queimando, a brasa se acendendo na ponta do cigarro e o cheiro da fumaça exalada. – Kelly Malone me liga todo dia – falou –, e não tenho nenhuma novidade para ela. Acabei contando sobre os Meacham. Sem saber como reconfortá-lo, murmurei uma bobagem qualquer. – Ela diz que não consegue dormir, pois ca pensando na morte dos pais. E não para de chorar. – Conklin engasgou com a fumaça e abanou a mão para indicar que não podia continuar falando. Eu entendia o sofrimento pelo qual ele estava passando. Àquela altura, tudo levava a crer que os Malone tinham sido mortos por algum assassino serial sobre o qual não tínhamos nenhuma pista. – Ele vai acabar metendo os pés pelas mãos, parceiro. Isso sempre acontece – falei. – E não estamos sozinhos nessa. Não se esqueça de Claire, Hanni... – Você gosta dele? – Gosto. Você não? Conklin deu de ombros: – Por que diabo ele sabe tanto e ao mesmo tempo não sabe de nada? – Ele está fazendo o mesmo que nós. Chapinhando nas informações. Tentando dar sentido ao que aparentemente não faz sentido nenhum. – Chapinhando. Boa palavra. É isso mesmo que estamos fazendo. E o assassino lá, rindo de
nossa cara. Mas justiça seja feita: sou um cara inteligente à beça e traduzo qualquer besteira em latim! Isso tem seu valor, não acha? Era de admirar a atitude de Conklin, que tentava espantar as nuvens negras rindo de si mesmo. Eu ria com ele quando avistei um carro preto vindo lentamente pela rua, procurando uma vaga para estacionar. Era Joe. – Olhe só quem vem ali – falei. – Fique mais um pouquinho, parceiro. Quero apresentá-lo a Joe. Sempre falo de você com ele. – Hoje não, Lindsay. – Conklin se levantou e apagou o cigarro com a sola do sapato, esmagando-o na calçada. – Fica para outro dia. A gente se vê amanhã. O carro de Joe parou em frente ao prédio. Conklin saiu de sua vaga. E meu namorado estacionou nela.
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capítulo 48
OR ACASO JÁ USOU ISTO AQUI? – Joe me perguntou, apontando para o fogão. – Claro que sim. – Ah, é? Então o que é isto? – Retirou do forno o manual do aparelho e algumas embalagens de isopor. – Eu só uso a parte de cima – expliquei. Joe balançou a cabeça, rindo da minha cara, e pediu que eu abrisse o vinho e preparasse a salada. Falei que estava à altura da tarefa, ou pelo menos assim eu esperava. Abri a garrafa, joguei umas folhas de alface-romana numa bonita travessa de vidro marrom, presente de Joe, e piquei um tomate. Em seguida fui buscar o azeite e as ervas, aproveitando a oportunidade para dar uns tapinhas no traseiro durinho de meu namorado. Depois me sentei num banco junto à pia e tirei os sapatos. Dei um gole no vinho e, com Phil Collins cantando ao fundo, escutei Joe falar sobre os três clientes que ele havia conseguido para sua nova consultoria na área de prevenção contra desastres, bem como sobre o encontro que teria dali a uns dias com o governador do estado. Joe estava feliz e, para minha alegria, vinha usando seu apartamento (maior e mais sosticado) apenas como escritório, destinando ao meu a função de lar. Devo admitir que acho meu apartamento uma graça. Os quatro cômodos, apertados porém aconchegantes, cam no terceiro andar de um velho sobrado vitoriano com direito a uma pequena varanda da qual se vê um pedacinho da baía de São Francisco. Um pedacinho que aos poucos estava se tornando o nosso pedacinho. Servi mais vinho para Joe e observei enquanto ele recheava dois lés de tilápia com carne de caranguejo e levava o pirex ao forno. Em seguida lavou as mãos e, lindo como sempre, se postou à minha frente: – O peixe ca pronto em 45 minutos. Quer ir até a varanda? Ainda dá tempo de ver o pôr do sol. – Hummm, acho que não. Coloquei a taça sobre a pia, enrosquei as pernas na cintura de Joe e sorri ao perceber nos olhos azuis dele que minha proposta, bem melhor do que ver o sol poente na varanda, havia sido entendida e aceita. Ele me puxou do banco, me ergueu com os braços musculosos e, com as mãos espalmadas no meu bumbum, me carregou rumo ao quarto, grunhindo de um jeito teatral.
– Está pesada, loura. – Ué, você nunca reclamou dos meus 65 quilos! Acho que o senhor está meio caidinho... – Você vai ver já, já como estou em forma... Ele me deitou com cuidado na cama, acomodou-se a meu lado e me deu um beijo que me fez gemer e passar os braços em seu pescoço. Em seguida realizou uma façanha: sem descolar os lábios dos meus, tirou sua camiseta, minhas calças e nalizou com um chute na porta, de maneira que Martha não atrapalhasse nossa intimidade. – Uau, você é incrível... – falei rindo. – Ainda não viu nada, loura – sussurrou de volta. Em um minuto estávamos nus, abraçados e suados, rolando sobre a cama. Mas enquanto fazíamos nossa viagem rumo ao prazer máximo, a imagem de outro homem invadiu meus pensamentos. Tentei afastá-la, pois não o queria ali. O homem era Rich Conklin.
PARTE 3 COMIDA CASEIRA
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capítulo 49
ENTADO NO PRIMEIRO BANCO da galeria, logo atrás da angelical Junie Moon, Jason Twilly fazia suas anotações enquanto Connor Hume Campion respondia às perguntas de Yuki Castellano. Aos olhos do escritor, o ex-governador havia envelhecido desde o desaparecimento do lho. Parecia exausto, murcho, como se aquilo estivesse literalmente tirando suas últimas forças. Observando Campion e Yuki juntos, Jason teve uma nova ideia para o livro que escrevia. A assistente de promotoria seria a provável perdedora naquela disputa. Ainda assim, era uma prossional inteligente, combativa e encantadora. Como agora, quando usava o sofrimento do ex-governador para comover os jurados e obstruir a defesa. Jason iniciaria o livro com a exposição inicial que Yuki zera dias antes, voltaria no tempo com episódios comoventes da vida do garoto e depois retornaria ao presente com detalhes do julgamento: os depoimentos das testemunhas, a defesa aguerrida de L. Diana Davis e a fragilidade de Junie Moon. O último capítulo caria destinado à exposição nal de Yuki, o veredicto e a justiça sendo feita. O escritor voltou sua atenção para o governador, que dizia: – Michael nasceu com uma deciência cardíaca. Vivia sob cuidados médicos, mas podia morrer a qualquer momento. – Michael sabia de seu problema cardíaco, de sua expectativa de vida? – perguntou Yuki com delicadeza. – Meu lho gostava da vida. Dizia que tinha muitos planos. Sabia que precisava tomar cuidado. Tinha consciência de que quanto mais vivesse, maiores seriam as chances de... Emocionado, o ex-governador não conseguiu terminar a frase. – Sr. Campion – falou Yuki –, Michael contava sobre os planos que tinha? – Ah, sim – respondeu ele sorrindo. – Estava treinando para um campeonato mundial de xadrez pela internet, tinha começado a escrever um livro sobre como era viver com uma doença fatal e queria ajudar as pessoas na mesma situação que ele... E ainda pretendia se casar. O ex-governador balançou a cabeça, virou-se para os jurados e prosseguiu falando diretamente com eles: – Michael era um garoto maravilhoso. Vocês já viram as fotos dele, as entrevistas. Todo mundo sabe que aquele sorriso conseguia iluminar qualquer ambiente triste. Todo mundo sabe da valentia daquele garoto, mas nem todos conhecem a alma generosa que ele tinha, a compaixão que sentia pelo semelhante.
Jason percebeu que Davis, embora irritada, não tinha coragem de apresentar qualquer argumento contra as dolorosas divagações de Campion. Ele agora encarava a ré. – Se eu estivesse lá quando Michael morreu... – disse ele, não de forma agressiva, mas com tristeza na voz. – Se tivesse tido a oportunidade de abraçá-lo, de consolá-lo... Era eu que devia estar ao lado dele, e não você!
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capítulo 50
PROMOTORIA CONVOCA o Sr. Travis Cook – disse Yuki em voz alta. As cabeças se viraram para as portas do fundo da sala e um garoto com cerca de 18 anos, vestindo um blazer com o emblema de um colégio costurado no bolso superior, desceu o corredor, cruzando a cancela que separava a galeria. Os cabelos fartos do rapaz estavam ligeiramente desalinhados e os sapatos precisavam de uma boa engraxada. Um pouco constrangido, ele jurou dizer a verdade e ocupou o banco das testemunhas. Yuki lhe deu bom-dia e depois perguntou: – Onde você conheceu Michael Campion? – Estudamos juntos na Escola Newkirk. – E quando foi isso? – Uns três anos atrás, mas só ficamos amigos mais tarde. – E por que ficaram amigos, você se lembra? – Michael não tinha muitos amigos – respondeu Travis, rapidamente olhando para Yuki e baixando os olhos para as próprias mãos. – As pessoas gostavam dele, mas ninguém se aproximava porque ele não podia praticar esportes, não podia sair com a turma, nada disso. Tudo por causa do problema que ele tinha no coração. – Mas isso não impediu que você se aproximasse dele, não é? – Tenho um caso sério de asma. – E como isso afetou a amizade de vocês? – O problema dele era pior, eu sei, mas a gente se identicava. Falava sobre a diculdade de viver assim, com essas coisas sempre atrapalhando. – Nessas conversas, houve um momento em que você contou a Michael sobre a Srta. Moon? – Sim – respondeu o rapaz após hesitar por alguns segundos. – Travis, sei que isso é embaraçoso, mas você jurou dizer a verdade. – Eu sei. – Ótimo. O que você disse a Michael sobre a Srta. Moon? – Falei que já tinha ficado com ela – sussurrou. – Por favor, fale mais alto. Para que os jurados possam ouvir você. – Falei para Michael que eu já tinha cado com ela – repetiu Travis. – Muitos garotos da escola também caram. Ela é ótima para quem ainda não... Bem, ela é tranquila e não tira
onda. – Travis suspirou e só então conseguiu dizer: – Por isso ela é boa para resolver a parada. – Resolver a parada? – perguntou Yuki, virando-se para os jurados. – Do que está falando exatamente? – Tirar a virgindade. A gente não precisa se preocupar com o que a garota vai achar depois, se gostou ou não, essas coisas... É só fazer a parada, pagar e ir embora. – Entendo. O que Michael disse quando você contou a ele sobre a Srta. Moon? – Falou que não queria morrer virgem. – Travis, você esteve com Michael no dia em que ele desapareceu? – A gente se viu na escola, na fila da cantina. – Como ele estava? – Feliz. Disse que ia se encontrar com Junie à noite. – Obrigada, Travis. A testemunha é sua – disse Yuki a L. Diana Davis. A advogada usava um casaco transpassado azul com quatro botões enormes e um colar de pérolas de três voltas. Os cabelos grisalhos estavam armados, quase duros. Ficou de pé e, sem abandonar a mesa da defesa, disse: – Tenho apenas uma pergunta, Sr. Cook. O garoto a encarou com um aspecto sério. – O senhor viu Michael Campion entrar na casa de Junie Moon? – Não, senhora. – Isso é tudo, meritíssimo – disse Davis, sentando-se novamente.
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capítulo 51
ANYA BROWN SE DIVERTIA ao mesmo tempo que dava uma bela dor de cabeça a Yuki. Ela sorria para o ocial de justiça, jogava os cabelos para os lados e ajeitava o macacão laranja como se fosse um modelito Versace. Era a terceira das detentas que estavam ali para depor a favor da acusação, todas condenadas por tráco de drogas, prostituição ou as duas coisas. E todas conheceram Junie Moon numa cela do presídio feminino de São Francisco. Ainda que o testemunho de detentos fosse considerado suspeito ou inútil, Yuki esperava que a consistência entre aqueles três reforçasse a confissão da ré. Ela então perguntou a Tanya Brown: – Em algum momento a Promotoria ofereceu a você qualquer coisa em troca de seu testemunho? – Não, senhora. – Nenhuma transferência, redução de pena, promessa de melhorias ou qualquer tipo de privilégio? – Não. A senhora disse que não ia me dar nada. – Tanya Brown remexeu o traseiro no banco das testemunhas, tomou um copo de água, sorriu para o juiz e então se acalmou. – Muito bem. A senhorita conhece a ré? – Não muito. Passamos juntas uma única noite na mesma cela. – A Srta. Moon contou por que estava presa? – Contou. Sempre rola esse tipo de papo. – O que ela disse? – Que era do ramo e que tinha feito um programa com Michael Campion. – Por que a senhorita ainda se lembra disso? – Como eu ia esquecer uma coisa dessas? A garota dormiu com o lho do ex-governador! Eu quis saber todos os detalhes. Mas ela disse que, na hora H, o garoto bateu as botas. – A Srta. Moon lhe contou isso? – Contou. Disse que ele tinha um problema no coração. Isso aconteceu comigo uma vez. Um coroa fedido empacotou dentro do carro. Eu saí correndo! – A Srta. Moon também lhe disse o que fez quando o Sr. Campion teve um ataque cardíaco? – Sim. Abriu o berreiro. Falou que ela e o namorado se livraram do corpo. – O que mais? – Disse que Michael era uma graça e que tinha sido um azar o garoto morrer no dia mais
feliz da vida dele. Yuki agradeceu à testemunha, segurou-se para não exalar um suspiro de impaciência e passou a palavra à defesa. Diana Davis fez a Tanya Brown a mesma pergunta que tinha feito às outras duas detentas: – A Srta. Moon deu alguma prova de que realmente esteve com a suposta vítima? Descreveu alguma marca física particular, uma cicatriz ou algo parecido? Mostrou alguma lembrança: um anel, um bilhete, uma mecha de cabelo do garoto? – Hein? Não... não, senhora. Ela não mostrou nada disso. – Sem mais perguntas – disse a advogada, emprestando novamente um tom desdenhoso às suas palavras.
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capítulo 52
ASON TWILLY LIGOU PARA o gabinete de Yuki e a chamou para jantar no Aubergine, um restaurante novo e badalado na McAllister. – Tenho tanta coisa para resolver... – resmungou ela, mas logo cedendo ao convite: – Está bem, vamos. Só não posso demorar. Às oito o restaurante já estava cheio, mas Yuki e Jason conseguiram uma mesinha afastada do bar, onde era possível conversar em paz. De vez em quando os joelhos do escritor roçavam os dela, mas Yuki não se importava. – Davis é durona – disse ela, remexendo as ostras com o garfo. – Não posso me descuidar. – Não se preocupe com isso. A estratégia dela já está ultrapassada – falou Jason. – Provavelmente é ela que não tem conseguido dormir à noite. E por sua causa! Yuki sorriu para o escritor e disse: – Agora chega de falar sobre mim. – Em seguida pediu que ele contasse sobre seu livro de estreia. – Tem certeza? Vendeu só duzentos exemplares! – Mentira! – Sério! Fui eu que comprei todos eles. Ela jogou a cabeça para trás rindo, nalmente conseguindo relaxar, adorando o fato de estar ali com o escritor. – Escrevi sob pseudônimo – continuou ele. – Portanto, se você pesquisar, não vai encontrar aquela porcaria entre minhas obras. – Tudo bem, mas qual era o assunto do livro? – perguntou Yuki. O escritor suspirou de modo dramático, mas ela viu que era apenas um charme para contar mais uma vez uma história de que ele tanto gostava. – Joey Flynn, a cantora e compositora country de Nashville. Conhece? – Não. – Pois bem. Há dez anos, Joey Flynn já havia gravado alguns discos e tinha começado a fazer sucesso. Já ouviu “Minha maldição”? Não? “Norte azul”? Não tem importância. Ela era casada com Luke Flynn, um carpinteiro que fora seu namorado de colégio. Os dois tiveram quatro lhos antes dos 25 anos de idade. Só que um fã apareceu com um buquê de cem rosas no bar onde Joey estava se apresentando e ela ficou toda derretida. – Cem rosas... – repetiu Yuki, imaginando a cena.
Jason sorriu e continuou: – Joey teve um caso com esse sujeito por três semanas, até que Luke descobriu e resolveu tomar uma providência. – E aí? – Foi atrás da mulher e a encontrou num quarto de motel com o amante. – Xiii! – E assim terminou o caso de Joey. Luke nunca perdoou a esposa e ela descobriu que ele estava planejando matá-la. – Sério? Como? – Como o quê? Como ela descobriu ou como ele planejava matar a mulher? Yuki riu novamente e falou: – As duas coisas. Quer saber? Acho que vou comer aquela musse de chocolate. – Você está merecendo. Um prêmio pelo jeito brilhante como conduziu a conversa com o exgovernador – disse o escritor, tocando a manga da camisa de seda de Yuki e levando um tempo para erguê-la e chamar o garçom. Pediu a sobremesa e prosseguiu com a história: – Cinco anos depois de ter traído Luke, Joey descobriu que o marido andava pesquisando métodos de envenenamento na internet. – Meu Deus... – Ela então escreveu uma carta para a melhor amiga, dizendo que se alguma coisa lhe acontecesse, a polícia deveria ir atrás do marido. Joey apareceu morta dali a dez dias. A autópsia encontrou cianureto no sangue. A amiga entregou a carta à polícia e Luke Flynn foi preso e indiciado por homicídio. Depois de um tempo, resolvi escrever um livro sobre o assunto. A editora topou, recebi um belo adiantamento e fui até Nashville entrevistar Luke, que estava preso aguardando julgamento. Vou lhe dizer uma coisa: não há nada parecido com esta comida perto daquela prisão. Ao perceber que Jason não tirava os olhos da musse, Yuki empurrou o prato na direção dele e disse: – É toda sua! – Não quer mais mesmo? Está bem – falou, aceitando o prato. – Mas e depois: o que aconteceu? O garçom trouxe a conta e o escritor lhe estendeu seu cartão Platinum, reservado a clientes selecionados. – Eu a acompanho até o carro. Conto o resto da história no caminho. – Por que não me acompanha até em casa? – propôs Yuki. – O mínimo que posso lhe oferecer em retribuição é um café. Jason abriu um sorriso.
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capítulo 53
ASON TWILLY SE ENCONTRAVA no sofá da sala de Yuki, uma xícara de café na mesinha que o separava da assistente de promotoria, sentada numa poltrona e perdida em pensamentos. Yuki não conseguia acreditar que aquele homem fosse tão lindo e tentava se lembrar da última vez que zera sexo, temendo ter se esquecido de como era. Bem à sua frente, a menos de um metro, estava o escritor famoso que partiria seu coração caso ela não tomasse cuidado. Mas se o tempo para a diversão já era curto, muito menor era sua disposição para uma decepção amorosa. Além disso, ela teria uma teleconferência com Parisi bem cedo na manhã seguinte e precisava se preparar para mais um dia de julgamento. Portanto, estava na hora de ir para cama. Dormir. Empolgado, Jason chegava ao clímax de sua história: – O promotor já havia recebido a carta que Joey Flynn mandara para a amiga. Aliás, a cantora contou para a cabeleireira que estava com medo de ser morta. – Também estou morta, Jason. Mas é melhor contar logo porque daqui a 10 minutos vou para cama. E você, para casa. – Sente aqui do meu lado. Só por 10 minutos. Yuki sentiu o coração pular dentro do peito. Sentiu também que o retrato de sua falecida mãe (sobre o móvel e pendurado à parede) parecia dizer em seus ouvidos que estava na hora de pôr aquele homem porta afora. Apesar disso, ela se levantou da poltrona e foi até o sofá. O escritor a puxou para um beijo e Yuki correspondeu, passando as mãos pelos cabelos dele, assustada com a intensidade do próprio desejo, mal acreditando no que acontecia ali. Mas quando sentiu a mão de Jason em seu seio ela se desvencilhou do abraço e recuou, ofegante e vermelha, as dúvidas que sentia dando lugar a uma certeza. Não estou pronta para isso. Eu mal o conheço. Yuki abaixou a cabeça e desviou o olhar quando o escritor se aproximou para afastar os cabelos dela, caídos sobre o rosto. Como se nada tivesse acontecido, ele falou: – O juiz invalidou a carta como prova, dizendo que se tratava de um testemunho indireto e que Luke Flynn tinha o direito de confrontar sua acusadora. – Que já estava morta – concluiu Yuki. – Exato. Mas ele permitiu o testemunho da cabeleireira. O advogado de Luke cou enfurecido, alegando que também se tratava de um testemunho indireto. Mas o juiz insistiu e ele acabou condenado.
– Estranho... – Pois é. O advogado dele apelou para a Corte Suprema do Tennessee e oito meses depois a sentença foi revogada. Neste exato momento, Luke Flynn está em Louisville com sua nova mulher e os lhos, fazendo armários de cozinha sob encomenda. Como se Joey Flynn jamais tivesse existido! – Eu adivinho o resto – disse Yuki, já respirando normalmente. – Depois disso a poeira baixou e você ficou com duas opções: escrever o livro ou devolver o adiantamento. – Exatamente. Escrevi Norte azul, o mesmo título da música, e o livro foi um fracasso. Mas o seguinte, Malvo, fez bastante sucesso, assim como Os anéis de uma mulher. O que estou escrevendo agora, sobre a vida e a morte de Michael Campion, é narrado pela voz da fascinante... ah, Yuki! Jason a puxou para um novo beijo, mas dessa vez não foi correspondido. Então passou a abraçá-la com mais força, até que Yuki, assustada, conseguiu se soltar e cou de pé, correndo de volta para o outro lado da mesa. Viu que o escritor estava zangado e achou compreensível: ele tinha percebido o desejo dela, mas não se dera conta de que a estava assustando. – Desculpe – falou. – É que... – É que você é uma japinha medrosa! – interrompeu Jason, abrindo seu sorriso torto. Levantou-se, caminhou até Yuki e tentou sem sucesso abraçá-la de novo. Japinha medrosa? O que houve com ele? Yuki recuou e abriu a porta com um gesto brusco: – Boa noite, Jason! – Qual é a sua? – berrou. – Primeiro você se insinua para mim, me convida até aqui, e depois... – Sem terminar o que dizia, ele avançou até Yuki e tentou beijá-la, apertando o seu queixo e puxando o rosto dela para si. – Eu disse não! – gritou ela de volta, desvencilhando-se do escritor. – Saia ou eu chamo a polícia! – Ou é marrenta ou é muito doida... – disse ele com um sorriso frio, baixando o braço. O coração de Yuki ainda pulava dentro do peito quando Jason, sem nenhuma pressa, saiu para o corredor. Ela bateu a porta, trancou-a rapidamente e cou esperando o elevador se fechar. Correu para a janela e dali a pouco viu o escritor aparecer na calçada, entrar em sua Mercedes preta e sair cantando pneus rua afora.
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capítulo 54
ESDE QUE UM ASSASSINO TINHA sido preso em seu prédio, Cindy vinha pensando em providenciar um cachorro para se proteger. Não queria uma animal bravo (de qualquer maneira, pit bulls eram proibidos em São Francisco), mas também não desejava um desses cãezinhos de madame. Portanto, depois de rodar a cidade inteira em busca do cachorro perfeito, acabara indo ao petshop da esquina, que pertencia a um sujeito chamado Seth. – Leve este aqui – disse o homem. – O nome é Trombeta. Trombeta era na verdade uma cacatua de penugem branca e avermelhada. Encolhida na gaiola, a ave tinha o hábito de bicar as penas do peito e gritar quando a porta da loja se abria. – É um macho. Ele está deprimido – continuou Seth. – Precisa de um novo lar. Fique tranquila: se alguém entrar em sua casa, Trombeta dá o aviso. Assim, Trombeta foi rebatizado de Ruivo e cou mais animado quando chegou à sua nova casa. Em pouco tempo adquiriu o costume de se empoleirar no ombro de Cindy enquanto destruía um lápis com o bico e ciciava algumas palavras. Depois de uma semana a jornalista decifrou o falatório. “Mate a vagabunda, mate a vagabunda” , era o que a ave repetia sem parar. “Meu louro lindo, meu louro lindo” , Cindy rebatia, achando que conseguiria reeducar a cacatua se insistisse naquelas palavras. Agora, os dois novos amigos estavam diante do computador no escritório que a repórter tinha em casa. Num site de buscas, ela digitava algumas sequências de palavras: “fatalidades incêndios domésticos” , “fatalidades incêndios domésticos São Francisco” , “incêndios domésticos causa desconhecida” . Mas cada vez que apertava “Enter” , ela desanimava com a quantidade de informações. Cindy acariciou o pescoço do pássaro, foi até a cozinha colocar mais água no chá e voltou para o computador. Já passava das dez da manhã e ela ainda não tinha descoberto nada de interessante. Decidida a encontrar alguma coisa, digitou: “incêndio doméstico casal rico”. – Caramba, Ruivo! – exclamou ao ver os resultados. – É muita informação! Quase todos os links levavam ao mesmo caso de incêndio, uma casa nos arredores de São Francisco destruída pelo fogo quatro anos antes. Lendo os artigos, Cindy se lembrou da história das vítimas, Emil e Rosanne Christiansen, que morreram antes de ela começar a cobrir os casos de crime para o jornal. Emil era dono de uma empresa de fotocopiadoras que foi comprada por uma grande companhia de computadores. Da noite para o dia o casal cou milionário, mudando-se para
uma pequena cidade no litoral do estado. Segundo as matérias, o fogo destruiu a casa antes da chegada dos bombeiros, matando o casal. As autoridades consideraram o incêndio acidental, mas após o trabalho de rescaldo o lho dos Christiansen percebeu que a coleção de moedas do pai havia sumido, bem como um anel de esmeraldas e uma pulseira de safiras e diamantes da mãe. Um página na internet apresentava o depoimento de um investigador do caso: “A vela deve ter caído, incendiado alguns papéis, as cortinas e depois a casa toda. Não encontrei nenhum vestígio de produto inamável, portanto ainda é cedo para dizer se o incêndio foi acidental ou intencional.” Navegando pelas páginas, Cindy encontrou o laudo dos legistas para a morte do casal. Segundo o documento, a causa mortis tinha sido inalação de fumaça e o modus mortis fora “indeterminado, com base no relatório do comandante-geral dos bombeiros.” – E aí, Ruivo? Qual é sua opinião sobre o desaparecimento das joias? – Mate a vagabunda! Mate a vagabunda! Cindy não conseguia parar de pensar naquela pergunta. Os Christiansen haviam sido roubados, então por que o investigador tinha dito que não era possível armar se o fogo fora acidental ou intencional? E mais: seria coincidência que o perito responsável pelo caso dos Christiansen também estivesse trabalhando nos episódios dos Malone e dos Meacham? Cindy conhecia aquele homem porque Lindsay tinha falado dele algumas vezes. Chamava-se Chuck Hanni. Voltou com a cacatua para a gaiola, cobriu-a com um pano e foi até o telefone. Primeiro ligou para seu editor. Depois telefonou para Lindsay.
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capítulo 55
GAROTA ESTAVA ALGUNS QUILOS acima do peso e tomava um milk-shake de morango numa das mesas externas de uma lanchonete do campus. As roupas que ela usava não valorizavam suas formas: uma saia comprida e um casaco de moletom vermelho folgado. A pele era coberta de espinhas e os cabelos tinham uma cor indefinida. Na verdade, ela era perfeita. Falcão apontou o queixo na direção dela e Pombo concordou. Os dois foram até a mesa e se sentaram. Falcão preferiu o lugar ao lado da garota enquanto Pombo se acomodou diante dela. Falcão fez um telefone com o polegar e o mindinho: – Triiiiim! – disse ele. – Alôôô! – respondeu Pombo dando forma ao seu aparelho. – Pombo, pode ir embora. Eu vi a garota primeiro. – Negativo, meu irmão. Eu cheguei antes! Surpresa com a conversa à sua volta, a garota levantou o rosto. Olhou para Falcão, para Pombo, e voltou sua atenção para o laptop, já que postava uma mensagem no Facebook. – Acho que ela não gostou de nós, cara – disse Falcão segurando seu telefone imaginário. – Deve ser uma patricinha metida a besta. – Eu vou falar com ela. Só um minutinho – disse Pombo. Largou seu “telefone” sobre a mesa e se dirigiu à garota: – Oi, eu sou Pombo. Estou no último ano de informática. – Apontou para o prédio da faculdade. – Meu amigo está a m de você e pediu que eu desse o recado, mas eu também fiquei amarradão na sua beleza. – Sei – disse a garota, desconada. – Vocês não têm nada melhor a fazer? Qual é o problema? – Puxa, não precisa ser grosseira! – disse Falcão, tocando o braço dela. – Sou meio tímido, sabe? Preciso de ajuda para chegar numa garota. – Isso é verdade – comentou Pombo. – Meu amigo é muito tímido. Resolvi dar uma força a ele. Mas quando bati os olhos em você, desisti de ajudá-lo. Você faz meu tipo também! – Ah, é? E que tipo seria esse? – perguntou a garota, baixando a guarda. Bicicletas passavam velozes perto da mesa, um cheirinho de pão fresco vinha da lanchonete e o sol já ia alto no horizonte. O dia estava quente e prometia esquentar ainda mais. – Você é uma pessoa criativa, não é? Aposto que sim. Tem cara de escritora. – Eu estudo biologia.
– Biologia? Legal – disse Falcão. – Na verdade, eu sou escritor. Qual é seu nome? – Karen. Karen Lynch. – Eu sou Falcão e este é meu amigo Pombo. – O que você escreve? – Pombo e eu estamos trabalhando juntos num romance – respondeu Falcão. – Quer que eu busque mais um milk-shake para você? É de morango, não é? – É – disse Karen, sorrindo. – Muita gentileza sua. Assim que Falcão saiu, Pombo se debruçou sobre a mesa: – Estou falando sério, Karen. Ele não é seu tipo. Pode ser bonitinho, mas eu sou um gênio da computação. Primeiro da turma. Se eu lhe dissesse meu nome verdadeiro, aposto que você iria reconhecer. Mas olha, quando o Falcão voltar, você vai ter que escolher. Ou chama ele para sair ou vai ter de sair comigo. Tem de ser um ou outro, senão rola briga. Não vai querer separar dois amigos, vai? Seria muita crueldade. Karen voltou os olhos para Falcão, que chegava com o milk-shake. Agradeceu e depois disse: – Então, Falcão, quer dar uma volta qualquer dia desses? – Puxa, Karen... – falou o rapaz, sorrindo. – Eu já estava quase concordando com Pombo, achando que ele seria melhor para você. Meu amigo é famoso na faculdade, sabia? Você vai se arrepender se não sair com ele. A garota olhou para Pombo, hesitante, e ele abriu um sorriso largo, dizendo em seguida: – Ou um ou o outro, Karen. – Que saco! Vão ver se estou na esquina... – disse Karen, os olhos novamente na tela do computador. – Não posso. Tenho medo de dragão – rebateu ele, dando uma sonora risada. – Triiiim! – disse Falcão. – Alôôô? – Até parece que um de nós iria sair com uma baleia dessas... – disse Falcão, alto o bastante para que os estudantes das outras mesas ouvissem. Os dois riram tanto que acabaram caindo no chão. Pombo foi o primeiro a se levantar. Aproximou-se de Karen e passou as mãos nos cabelos dela num gesto brincalhão. – Mea culpa, Karen! – disse ele. – Mais sorte da próxima vez. Em seguida dobrou o tronco numa mesura diante da garota, que começava a chorar.
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capítulo 56
ONKLIN PAROU O CARRO NUMA das ruas estreitas e arborizadas de Monterey, uma cidadezinha litorânea duas horas ao sul de São Francisco. À minha direita, uma ala da casa de madeira de três andares permanecia intacta, mas pilares e vigas podiam ser vistos no centro da construção, o telhado se abrindo para o céu como uma boca banguela. Atravessando a multidão de curiosos que observava a cena da calçada, meu parceiro e eu passamos por baixo da fita de isolamento e cruzamos o jardim. O investigador de incêndios esperava por nós à porta da casa. Devia ter 30 e poucos anos, 1,80m e mexia sem parar nas chaves e moedas que trazia no bolso. Apresentou-se como Ramon Jimenez e nos entregou seu cartão com o celular escrito no verso. Só então abriu a porta. Ao entrarmos na residência, sentimos um forte cheiro de maçã e canela. – Encontramos várias latas de aromatizadores de ambiente – explicou Jimenez. – Os presuntos estavam no escritório. Enquanto seguíamos o investigador pelos escombros, lembrei que alguns policiais e bombeiros usam gírias só para mostrar que são durões quando na verdade cam assustados como qualquer pessoa. Outros o fazem porque acham divertido. Qual seria o caso de Jimenez? – A porta da frente estava trancada? – perguntei a ele. – Não, e foi um vizinho que telefonou para os bombeiros. Muitos moradores desta região não se preocupam em ligar o alarme. Estilhaços de vidro estalavam sob meus sapatos à medida que eu avançava no espaço destelhado. Eu tentava reconstruir o cotidiano das vítimas a partir do que sobrara daquela tragédia. Mas meu talento para encaixar as peças de um quebra-cabeça não estava dando resultado, tamanha havia sido a destruição. Primeiro o fogo e em seguida a água dos bombeiros. Pouco restava do que poderíamos chamar de “cena do crime”. Se alguém tivesse deixado impressões digitais, elas provavelmente já tinham sido apagadas. Fios de cabelo, respingos de sangue, pegadas, recibos, notas... não haveria nada disso ali. A menos que encontrássemos o detonador de um explosivo ou vestígios de alguma substância inamável, nem sequer saberíamos se aquele incêndio e os demais que estávamos investigando foram provocados pela mesma pessoa. A única pista que tínhamos era a semelhança das circunstâncias entre os três incêndios: aquele em Monterey, o da casa dos Malone e o da residência dos Meacham. – As vítimas eram um casal, George e Nancy Chu – contou Jimenez. – Ela era professora do
ensino médio e ele trabalhava como consultor nanceiro. Cidadãos exemplares, bons vizinhos, etc., etc. Não tinham passagem pela polícia. Se quiserem, posso enviar por fax as anotações dos detetives que interrogaram os vizinhos. – E o relatório dos legistas? – perguntei. Conklin vasculhava os escombros às minhas costas. Meu parceiro já subia a escada espiral que ainda se prendia à parede dos fundos. – Os legistas nem foram chamados. Humm... o chefe disse que o incêndio foi acidental e a irmã de Nancy logo chamou a funerária para recolher os corpos. – Ele não viu nenhum motivo para chamar os legistas? – perguntei perplexa. – Estamos investigando vários incêndios semelhantes em São Francisco, todos provavelmente criminosos! – Como eu disse – retrucou Jimenez, tando-me de cima a baixo com os olhos escuros –, também não fui chamado. Quando cheguei os corpos já tinham sido levados e a casa estava isolada. Mas de repente todo mundo resolveu berrar comigo! – Quem mais está berrando com você? – Chuck Hanni. Você sabe quem ele é! – Chuck veio aqui? – Hoje de manhã. Chamamos Hanni para nos dar uma opinião. Ele falou que está investigando dois casos parecidos. Antes que você diga que não avisei: sim, é possível que haja uma testemunha. Cheguei a pensar que não tinha escutado direito. Uma testemunha? Arregalei os olhos para Jimenez, aliviada ao ver um esperança naquele caso. – Os bombeiros encontraram a lha do casal no jardim – contou ele. – Estava inconsciente, intoxicada pela fumaça. Foi levada para o Hospital Santa Ana. – Ela vai sobreviver? Jimenez fez que sim com a cabeça e emendou: – Já está consciente, mas muito assustada. Até agora não abriu a boca.
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capítulo 57
M TELEFONE NÃO PARAVA DE TOCAR em algum canto no segundo andar da casa de George e Nancy Chu. Esperei que aquela triste melodia chegasse ao m e perguntei a Jimenez o nome e a idade da filha do casal. – Molly Chu. A menina tem 10 anos. Anotei as informações e, contornando uma pilha de escombros, fui até a escada. Chamei por Conklin, que já vinha descendo. Antes que pudesse contar a ele sobre Molly Chu, ele me estendeu um livro com as bordas queimadas. Ainda era possível ler o título na capa: O adorador de incêndios, de Joseph Wambaugh. Eu conhecia o livro. Era a história real de um piromaníaco que aterrorizou a Califórnia nos anos 1980 e 1990. A contracapa falava rapidamente sobre um incêndio que destruiu uma loja de materiais de construção, matando quatro pessoas, entre elas um menino de 2 anos. Enquanto o fogo era combatido, um homem lmava a cena pelo retrovisor de seu carro: as escadas Magirus sendo posicionadas, os bombeiros correndo de um lado para outro, desaando o perigo enquanto dois outros incêndios ocorriam a poucos quarteirões dali. O homem se chamava John Leonard Orr, um investigador de incêndios e capitão dos bombeiros de Glendale. Era um sujeito conhecido e respeitado. Viajava pelo estado dando palestras, ajudando a polícia a interpretar pistas e a entender a cabeça dos piromaníacos. Mas enquanto viajava, ele mesmo ia ateando fogo nos lugares. Era ele o autor do incêndio que havia tirado a vida daquelas quatro pessoas. Orr acabou sendo preso quando a polícia desconou da macabra coincidência: o investigador sempre estava presente nas cidades em que ocorriam os incêndios. Foi julgado, condenado e trancafiado numa minúscula cela do presídio de Lompoc. – Você viu este livro aqui? – Conklin perguntou a Jimenez. O investigador balançou a cabeça: – Por acaso esse é meu trabalho? – Achei no banheiro da suíte, entre a pia e o vaso – disse Conklin se dirigindo a mim. As páginas do livro estavam úmidas e enrugadas, porém intactas. Por mais estranho que possa parecer, os livros raramente queimam durante um incêndio. Isso acontece não só por causa de sua densidade, mas porque não há entre as páginas oxigênio necessário à combustão. Ainda segurando o livro, Conklin o abriu na folha de rosto e apontou para a frase escrita a caneta. Prendi a respiração. Ali estava a ligação entre todos os incêndios.
A inscrição em latim era a assinatura do criminoso. Mas por que ele fazia aquilo? O que queria nos dizer? – Hanni esteve aqui – falou Conklin, pensativo. – Por que ele não viu este livro? – Sei lá – resmunguei, correndo novamente os olhos pela frase: Sobria inebrietas. Até eu era capaz de decifrá-la: “Sóbria embriaguez.” Mas que diabo significava aquilo?
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capítulo 58
ONKLIN E EU NUNCA TIVÉRAMOS uma briga séria, mas o tempo fechou dentro do carro durante a viagem de duas horas até a Central. Meu parceiro não aceitava o fato de que um prossional tão experiente como Hanni não tivesse percebido “a única prova na cena do maldito crime”. Eu gostava de Chuck, tinha admiração por ele. Já Conklin não havia trabalhado muitas vezes com o perito, não tinha a mesma ligação com ele, portanto conseguia ser mais objetivo. Por isso levei em conta sua opinião. Hanni seria um psicopata agindo debaixo de nosso nariz? Ou meu parceiro fazia uma tempestade em copo d’água só para dar uma solução ao caso dos Malone, que tanto o afligia? Assim que chegamos ao Departamento, vi que Chuck Hanni estava na sala de Jacobi. Fomos até lá e, antes mesmo de entrarmos, Conklin se virou e disse: – Eu conduzo a conversa, ok? Jacobi acenou para que entrássemos. Conklin se recostou à porta e eu me sentei ao lado de Hanni, que virou sua cadeira em minha direção. – Eu estava dizendo a Jacobi – comentou ele. – Tudo indica que o incêndio na casa dos Chu seja obra do mesmo imbecil que ateou fogo nas outras. Você não acha? Olhando para aquele rosto conhecido, lembrei-me da ocasião em que ele me contou sobre a combustão espontânea. “É assim, Lindsay” , ele disse enquanto tomávamos uma cerveja no MacBain. “Um gordo está bebendo cerveja e fumando na poltrona de casa. Ele cai no sono, o cigarro resvala por entre as almofadas e a poltrona pega fogo. A gordura corporal do sujeito está tão saturada de álcool que ele queima junto com a poltrona, como se fosse uma tocha humana. Depois de um tempo o fogo se apaga e sobram apenas a estrutura de metal e o corpo carbonizado do sujeito. Essa é a famosa combustão espontânea.” “Que nojo” , eu me lembro de ter dito antes de pedir a segunda rodada de cerveja. Às minhas costas, Conklin disse: – Chuck, você foi à casa dos Chu e não nos disse nada. O que houve? – Acha que estou escondendo alguma coisa? – rebateu Hanni de maneira ríspida. – Assim que vi os corpos pedi a Jimenez que avisasse a vocês. Conklin tirou do bolso da jaqueta o livro encontrado na casa, agora protegido por um saco plástico da perícia, e o colocou sobre a mesa de Jacobi. – Isto aqui estava lá – falou casualmente, mas sabendo aonde queria chegar. – Alguém escreveu uma frase em latim na primeira página.
Sem dizer nada, Hanni encarou o livro por alguns segundos e depois resmungou: – Puxa, como não vi isto? – Onde você o encontrou, Conklin? – perguntou Jacobi. – Num dos banheiros da casa, tenente. Estava lá para quem quisesse ver. Jacobi lançou para Hanni o olhar de poucos amigos que ele havia aperfeiçoado em seus 25 anos de interrogatório na polícia. Depois disse: – E aí, Chuck?
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capítulo 59
HUCK HANNI SE LEVANTOU BRUSCAMENTE da cadeira, arranhando o piso da sala de Jacobi. O investigador tinha sido pego de surpresa e estava indignado. – O que estão pensando? Que sou doido como John Leonard Orr? Que incendeio as coisas para chamar a atenção? Ah, inclusive deixei esse livro lá para me incriminar! Escutem aqui. Aplaudi de pé quando o FBI prendeu aquele cara! Conklin sorriu e deu de ombros. Percebi minha testa suada. Hanni até podia não ser quem Conklin achava que ele fosse, mas vários criminosos de aparência inocente tinham sido presos por atos bárbaros. Achei melhor ficar calada e ver aonde aquela conversa ia chegar. – Por que não falou nada sobre o incêndio na casa dos Christiansen? – perguntou Conklin calmamente. – Duas pessoas morreram. Eram ricas. Objetos de valor foram roubados... – Caramba! – interrompeu Hanni. – Não co por aí lembrando casos antigos! Você fica? Se já não bastasse eu sonhar com eles... – Mas o modus operandi foi o mesmo – insistiu Conklin. – Fico pensando se o criminoso é um maníaco que encara os incêndios como um vício, um hábito difícil de largar. Talvez esteja por aí há muito tempo e agora decidiu deixar pistas. Por exemplo, um livro com frases em latim. Pela expressão no rosto de Chuck, achei que ele fosse dar um soco na cara de meu parceiro. No entanto, ele apenas franziu a testa e disse: – Como assim, “difícil de largar”? Faz dois anos que Matt Waters confessou ter incendiado a casa dos Christiansen. Está preso em San Quentin. Verique os fatos antes de fazer acusações, Conklin! Senti meu rosto car vermelho. Será que Cindy estava errada? O incêndio na casa dos Christiansen aconteceu longe de São Francisco, mas ainda assim eu devia ter conrmado as informações da minha amiga. O telefone de Jacobi havia tocado algumas vezes durante a conversa sem que ele atendesse. Agora, nossa assistente Brenda Fregosi entrava na sala, arrancando uma folha do bloquinho rosa e entregando a Jacobi. – Ficou surdo, tenente? Não escutou o telefone? – Ela deu meia-volta e saiu da sala rebolando. Jacobi leu o bilhete e se dirigiu a nós: – O hospital ligou dizendo que Molly Chu está melhorando. Talvez esteja na hora de irmos até lá.
Chuck se levantou para sair, mas Jacobi o deteve. – Vamos conversar, Chuck. Só eu e você.
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capítulo 60
IQUEI ASSUSTADA ASSIM QUE VI a menina. Seu cabelo se resumia a mechas ressecadas e escuras. As sobrancelhas e os cílios haviam sumido e a pele assemelhava-se a brasa de tão vermelha. Conklin e eu nos aproximamos do leito, que parecia flutuar sob as dezenas de balões coloridos. Molly não olhou para nós, mas duas senhoras orientais abriram espaço quando uma terceira, de cabelos brancos, feições arredondadas e com mais de 70 anos, cou de pé e se apresentou como Olga Matlaga, a psicóloga que vinha cuidando de Molly. Ela então se dirigiu à menina: – Dois policiais estão aqui para falar com você, querida. Molly se virou para mim quando eu disse seu nome, mas o olhar parecia vazio, como se o trauma tivesse tragado sua vida e ali estivesse apenas uma pálida lembrança da garota que ela fora um dia. – Vocês acharam Pingo? – perguntou a menina, enrolando as palavras por causa dos analgésicos. Olhei para a Dra. Matlaga, que explicou: – O cachorro dela sumiu. Pingo. Falei então que emitiríamos um boletim de alerta para Pingo e expliquei a Molly o que aquilo significava. Ela sacudiu a cabeça lentamente. Em seguida perguntei: – Pode nos dizer o que aconteceu na sua casa? A menina virou o rosto para a janela. – Molly? – interveio Conklin, puxando uma cadeira e sentando-se de modo a olhar diretamente nos olhos da menina. – Muita gente tem feito perguntas a você, não é? Ela apontou para a mesinha ao lado da cama. Conklin pegou o copo que ali estava, entregou à menina e esperou que ela bebesse. Então continuou: – Sabemos que você está cansada, meu amor, mas se puder contar essa história só mais uma vez... – Ouvi Pingo latindo – disse Molly após um suspiro. – Depois ele parou. Continuei vendo o lme, mas logo ouvi vozes na sala. Mamãe e papai sempre disseram que era para eu não descer quando eles tivessem visitas. – Visitas? – perguntou Conklin, paciente. – Havia mais de uma pessoa? A menina fez que sim com a cabeça. – Eram amigos dos seus pais? Molly sacudiu os ombros e respondeu:
– Mas um deles me carregou para fora do incêndio. – Como era ele, você se lembra? – Tinha um rosto bonito, acho que era louro. Tinha mais ou menos a mesma idade de Ruben. – Ruben? – Meu irmão. Está lá embaixo agora, na lanchonete. Mas ele não mora aqui. Estuda em Los Angeles. Está no segundo ano da faculdade. – Você já tinha visto esse rapaz antes? O que salvou você do incêndio? A psicóloga tocou no meu braço, sinalizando que nosso tempo havia terminado. – Eu não conhecia ele – respondeu a menina. – Pode ter sido um sonho, sabe? – emendou ela, olhando para mim. – Sonho ou não, só sei de uma coisa: era um anjo. Molly então fechou os olhos e silenciosamente deixou que as lágrimas corressem pelo seu rostinho.
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capítulo 61
ANNI É INOCENTE – SENTENCIOU Jacobi, parado à nossa frente e projetando uma enorme sombra na mesa. – Estava investigando uma explosão de um laboratório de metanfetamina na noite do incêndio dos Meacham. Falou que vocês já sabiam disso. Verdade, ele tinha comentado conosco. Dissera que o fogo na casa dos Meacham era seu segundo trabalho naquela noite. – Conversei com cinco pessoas que estavam no laboratório e todas juram que Chuck cou lá até ser chamado para a casa dos Meacham – continuou Jacobi. – Também conrmei que Matt Waters está em San Quentin: prisão perpétua pela morte dos Christiansen. Conklin suspirou. – Vocês dois: mãos à obra! – ordenou Jacobi. – Descubram o que as vítimas tinham em comum. Boxer: McNeil e Chi vão se reportar a você. Coloque aqueles dois para trabalhar! Concentre-se nos Malone e nos Meacham, pois esses são nossos. Aqui está o nome do investigador em Monterey responsável pelo caso dos Chu. Conklin, sugiro que você pegue leve com Hanni. Eu olhava para meu parceiro enquanto Jacobi marchava de volta para sua sala. – Ele quer o quê? – disse Conklin. – Que eu mande flores para o cara? – Hanni ia achar isso estranho – respondi. – Lindsay, minha hipótese não era absurda, concorda? O livro era sobre um investigador de incêndios piromaníaco e Hanni passou batido por ele! – Você foi muito corajoso. Apresentou bons argumentos e não acusou Chuck diretamente. Levou o assunto para seu superior como manda o gurino. Mas co aliviada que tenha se enganado. – Mas e aí? Você conhece o cara! Acha que ele vai furar os quatro pneus do meu carro ou algo parecido? – perguntou Conklin. A ideia tinha lá sua graça. – Quer saber de uma coisa? – rebati. – Chuck cou tão furioso por não ter visto o livro que vai furar os próprios pneus. Escute, basta dizer a ele: “Desculpe, foi mal. Nada de ressentimentos.” Depois vocês apertam as mãos e ca tudo bem. Não é assim que os homens fazem? Eu tinha acabado de falar aquela última frase quando meu telefone tocou. Ainda passei uns dois segundos olhando a expressão soturna de meu parceiro. Sabia que ele se sentia mal com
tudo aquilo, algo que me deixava triste. Finalmente atendi. Era Claire: – Lindsay, você e Conklin podem vir aqui embaixo? Tenho umas coisinhas para mostrar.
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capítulo 62
LAIRE ERGUEU O ROSTO QUANDO Conklin e eu entramos na sala de autópsia pelo portão reservado às ambulâncias. Ela usava uma touca de papel orida e um avental em torno de sua avantajada cintura. – Olá, pessoal. Venham dar uma olhada nisto aqui. Minha amiga estava inclinada sobre algo semelhante a um pedaço de músculo com uns vinte centímetros de comprimento e preso com a ajuda de grampos. – Que diabo é isto? – perguntei. – Uma traqueia – respondeu Claire. – Pertencia ao schnauzer que Hanni encontrou atrás de um arbusto no jardim dos Chu. Estão vendo como está rosa? Nenhum vestígio de fuligem nem de fumaça. Portanto, tudo indica que o cachorro não estava na casa durante o incêndio. Devia estar no quintal e começou a latir quando viu o fogo. Mas alguém calou o pobrezinho com uma paulada na cabeça. Veem essa fratura aqui? Ao ver o schnauzer morto, eu dava adeus ao boletim de alerta que prometera a Molly. Mas quem teria coragem de dizer à menina que seu cachorrinho estava morto? Claire nos contou também que gastara um dia inteiro para trazer da funerária os corpos de George e Nancy Chu. – Não é nossa jurisdição nem o caso é nosso, mas nalmente consegui a permissão do lho do casal, Ruben Chu. Disse a ele que, caso tivesse de testemunhar contra o assassino sem ter examinado o corpo das vítimas, a defesa destruiria meu depoimento. – Exatamente – falei. – O garoto estava arrasado. Não queria que os pais sofressem mais nenhuma “indignidade” . Acabei conseguindo a liberação. Os corpos estão na radiologia – acrescentou Claire. – Já descobriu alguma coisa? – Estavam muito queimados e algumas extremidades se soltaram durante o transporte. Mas encontrei um linha de náilon enrolada num dos tornozelos de George Chu. Não resta dúvida: eles foram amarrados! – Bom trabalho, Claire! – falei animada. – Além disso, consegui sangue suficiente para os exames toxicológicos. – Assim você nos mata de curiosidade. Conte tudo, amiga! – Estou falando o mais rápido que posso, caramba! – riu Claire, apertando meu ombro num gesto de carinho. Em seguida tirou uma folha de papel de um envelope pardo e a colocou sobre a mesa, ao lado da traqueia do cachorro. Correndo o indicador sobre a página, falou: – Alta
concentração de álcool no sangue do casal. Ou os Chu estavam bebendo muito ou ingeriram algo muito forte. – Igual ao caso de Sandy Meacham? – Igualzinho. Lembrei-me da frase no livro. Sobria inebrietas. Sóbria embriaguez. Liguei para Hanni. Se estivesse correta, isso explicaria por que ele não sentira o cheiro de substâncias inamáveis em nenhuma das casas incendiadas. – Chuck? Aqui é Lindsay. É possível que os incêndios tenham sido causados por bebidas alcoólicas?
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capítulo 63
SOL SE PÔS E UM OFICIAL DO TURNO da noite acendeu as luzes do Departamento. Conklin e eu andávamos em círculos. Em algum lugar da cidade um assassino estava jantando, brindando a si mesmo pelos sucessos recentes e talvez planejando mais um incêndio. Não sabíamos quem era e tampouco quando voltaria a atacar. Enquanto Chi e McNeil interrogavam novamente os amigos e os vizinhos dos Meacham e dos Malone, meu parceiro e eu estávamos sentados à nossa mesa, revendo nosso relatório. Reexaminamos as descobertas de Claire, as fotos dos curiosos diante das casas incendiadas, bem como o laudo do grafologista que tinha comparado as inscrições deixadas nos livros. O documento dizia: “Não é possível armar pois os textos estão em letra de fôrma, mas é provável que tenham sido escritos pela mesma pessoa.” Repassamos nossas visitas às duas casas, discutindo cada detalhe, tentando chegar à essência dos fatos. Além da anidade prossional entre mim e Conklin, também há aquela mais pessoal, que vez por outra meu parceiro insiste em trazer à tona. No entanto, em alguns momentos ela surgia à nossa frente como se tivesse vontade própria. Quando isso acontecia, eu me levantava, ia ao banheiro jogar uma água no rosto, providenciava café para nós dois e voltava ao batente. Com os ociais da noite circulando às nossas costas, Conklin listou os fatos que tínhamos até então: – Todos os casais tinham 40 e poucos anos e estavam bem de vida. Portas destrancadas e alarmes desligados. Nenhum sinal de uso de armas de fogo. Todos eles tinham lhos em idade universitária. Todos foram roubados, mas o assassino levou apenas joias e dinheiro. – Exato – falei. – Portanto podemos concluir algumas coisas. O assassino é esperto ou talvez inofensivo o bastante para convencer as pessoas a deixá-lo entrar na casa delas. Arrisco a dizer que se trata de dois criminosos: um para amarrar as vítimas e outro para segurar a arma. Meu parceiro assentiu com a cabeça e continuou: – Ele usou, ou eles usaram, uma linha de pesca para amarrar as vítimas porque o náilon queima rapidamente sem deixar marcas. Também usaram algum produto inamável que não deixa vestígios. São pessoas cuidadosas e espertas, mas não acredito que contassem com a presença de Molly Chu – acrescentou. – Foi a primeira vez que havia uma terceira pessoa na casa das vítimas. A menina devia estar desmaiada quando o tal “anjo” a encontrou e a levou para fora. Um ato heroico, não? – O criminoso achou que Molly não o tivesse visto – falei. – Então julgou que seria mais
seguro levá-la para fora da casa. É, acho que você está certo, gato. Conklin ergueu os olhos e abriu um sorriso. – Eu... Eu não quis... Droga! – falei. – Tudo bem, gata – disse Conklin. – Esquece. – E alargou seu sorriso. – Não amole – falei, arremessando um clipe na direção dele. Conklin agarrou o objeto no ar e prosseguiu: – Então. Digamos que Molly tenha visto um dos assassinos. Imaginemos também que o cara tenha a idade que a menina disse. Os Malone, os Meacham, os Chu e aquele casal de Palo Alto, os Jablonsky. Todos tinham filhos na universidade. Mas em escolas diferentes. – Verdade – falei. – Mas se um universitário, ou qualquer jovem com esse aspecto, bate na porta de alguém, é bem provável que o deixem entrar. Conklin, talvez seja isso! Quando eu estava na faculdade, sempre levava para casa alguma amiga que minha mãe não conhecia. Portanto, se dois garotos batem na sua porta dizendo que são amigos de seu filho... – Isso seria fácil – continuou meu parceiro. – Os jornais sempre publicam alguma matéria sobre universitários. A lha ou o lho de fulano que estuda em determinada escola ganhou um prêmio qualquer no dia tal... Conklin começou a tamborilar sobre a mesa e eu repousei o rosto entre as mãos. Em vez de nos sentirmos diante de uma grande descoberta, era como se tivéssemos em nossa lista de suspeitos todos os rapazes de idade universitária na Califórnia com alguma noção de latim – além, claro, de uma inclinação para o latrocínio e a piromania. Fiquei imaginando as peças daquele quebra-cabeça. O destino favorecendo os atos dos assassinos, o dinheiro como raiz de todo o mal. Havia os livros com as dedicatórias em latim e agora este sobre um bombeiro que provocava incêndios. Quando foi preso, John Orr disse: “Fui burro e fiz o que os burros fazem.” Esses assassinos não estavam repetindo os erros de Orr. Faziam de tudo para mostrar como eram inteligentes. Ter poupado a vida de Molly Chu talvez tivesse sido o único equívoco. O telefone de Conklin tocou e ele girou a cadeira na direção da parede. Em voz baixa, disse: – Estamos trabalhando no caso agora mesmo, Kelly. Aliás, a gente não faz outra coisa. Prometo que aviso quando tivermos alguma novidade. Não vamos deixá-la na mão. Dou minha palavra.
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capítulo 64
UM MERCADO, A SEIS QUARTEIRÕES de casa, Yuki procurava legumes orgânicos para um jantar rápido quando pensou ter visto alguém conhecido no m do corredor. Olhou novamente, mas não viu nada. Achou que estivesse tendo alucinações, vendo fantasmas por causa do cansaço. Por fim jogou um pacote de brócolis no carrinho e seguiu para a seção de congelados. Escolheu uma bandeja de camarões graúdos e mais uma vez teve a sensação de que Jason Twilly se encontrava atrás dela. Levantou a cabeça. Lá estava ele, junto da gôndola de aves congeladas, vestindo paletó marinho e camisa rosa, com um sorriso afetado estampado no rosto. Acenou com a mão, mas não foi ao encontro dela, tampouco lhe deu as costas. Não tinha nenhum carrinho ou cesta. O canalha não estava fazendo compras. O escritor perseguia Yuki. A assistente de promotoria cou tão furiosa que empurrou seu carrinho para o lado e andou na direção de Jason, parando alguns passos diante dos sapatos ingleses do escritor. – O que está fazendo aqui? – perguntou ela, levantando o queixo diante daquele rosto conhecido: o olhar cretino, os óculos de 800 dólares e o sorriso que entortava ligeiramente a boca. – Deixe os legumes no carrinho e venha jantar comigo – disse ele. – Prometo me comportar. Quero lhe pedir desculpas pelo mal-entendido... – Quero esclarecer uma coisa – interrompeu Yuki, metralhando as palavras como era de costume. – As pessoas se enganam. Talvez esse mal-entendido tenha sido culpa minha e eu já me desculpei. De novo, desculpe. Mas preciso que você entenda. Não estou interessada, Jason. Nem em você nem em ninguém. Minha vida agora é só trabalho, trabalho, trabalho. Não estou disponível, ok? Portanto, não volte a me procurar. O sorriso do escritor se transformou numa gargalhada. – Belo discurso – disse ele, aplaudindo de modo exagerado. Yuki recuou assustada. Quem seria aquele homem? Do que ele era capaz? De repente se lembrou do conselho de Cindy para que ela tomasse cuidado com as palavras quando estivesse diante do escritor. Era provável que Jason agora tentasse acabar com a reputação de Yuki ao escrever sobre o julgamento de Junie Moon. Seja o que Deus quiser. – Adeus, Jason. Me deixe em paz. Estou falando sério!
– Estou escrevendo um livro, esqueceu? – rebateu o escritor quando ela já voltava pelo corredor para buscar o carrinho. Naquele momento a vontade de Yuki era sumir. – Você é a protagonista – continuou ele. – Goste ou não, é a estrela do meu show!
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capítulo 65
STÁVAMOS NO DEQUE DO MESMO chalé que havíamos alugado nas imediações de Point Reyes, sentindo no rosto a prazerosa brisa noturna. Yuki ligava o aquecedor do ofurô enquanto Cindy preparava uma salada e os hambúrgueres que seriam grelhados em seguida. A viagem rápida tinha sido ideia de minha amiga repórter, que horas antes reunira o grupo para dizer: – Já que nossa última tentativa de realizar a Excursão Anual do Clube das Mulheres Contra o Crime foi suspensa quando uma de nós atendeu um maldito telefonema e precisou voltar para o trabalho, sugiro que não pensemos duas vezes e coloquemos o pé na estrada agora mesmo! Ela disse também que já havia alugado o chalé e que nos levaria em seu carro. Cindy não costumava aceitar “não” como resposta e a ideia de deixá-la dirigir era bem-vinda naquele momento. Yuki e Claire dormiram no banco de trás durante todo o trajeto enquanto eu ocupava o banco do passageiro com Martha em meu colo, as orelhas dela tremulando ao vento. Eu ouvia a música do rádio do carro e a voz de Cindy enquanto deixava o trabalho para trás e me aproximava do mar. O chalé tinha paredes cor-de-rosa e dois quartos aconchegantes, além de uma área externa com mesa de piquenique e churrasqueira, e um pequeno bosque ao redor. Assim que chegamos, levamos nossa bagagem para dentro. Yuki guardou suas caixas de arquivo no quarto e depois se juntou a mim e a Martha para uma corrida à luz da lua através da pequena trilha que atravessava o bosque e seguia até o topo da encosta. Após o exercício eu estaria pronta para uma bela refeição, uma deliciosa margarita e uma boa noite de sono. Mas quando voltei ao chalé, meu celular não parava de tocar. – Faz horas que essa porcaria está gritando! – disse Claire irritada. – Ou você atende, ou jogo esse telefone no mar. Sorri para minha amiga, peguei o celular na bolsa e vi o nome na tela. Era Jacobi. Atendi. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ouvi o barulho infernal de uma sirene dos bombeiros em meio aos ruídos do trânsito à sua volta. – Jacobi! – berrei. – Jacobi, o que aconteceu? – Não ouviu meus recados? – Não. Só agora peguei o celular. A sirene ao fundo e a própria ligação de Jacobi podiam signicar uma única coisa: um novo incêndio e mais um casal morto graças a um psicopata viciado em adrenalina. Apertei o telefone
contra a orelha para ouvir melhor o que ele tinha a dizer. – Estou na Missouri Street – informou ele. A minha rua? Que diabo Jacobi estava fazendo na minha rua? Alguma coisa a ver com Joe? – Um incêndio, Boxer. Escute, não tem outro jeito. Você precisa voltar imediatamente!
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capítulo 66
ACOBI DESLIGOU, DEIXANDO um abismo assustador entre o dito e o omitido. – Houve um incêndio na Missouri Street – falei às meninas. – Jacobi pediu que eu voltasse imediatamente! Cindy me deu as chaves do carro dela e voltamos todas para a estrada, pisando fundo no acelerador, descendo a sinuosa estradinha de Olema até chegarmos à rodovia. Ao longo do caminho tentei falar com Joe tanto no apartamento dele quanto no meu. Também liguei várias vezes para o celular, mas sem sucesso. Onde ele está? Cadê Joe? Não tenho o costume de rezar, mas ao nos aproximarmos da Potrero Hill pedi a Deus que meu namorado estivesse bem. Na esquina da Missouri com a 20 constatei que minha rua fora isolada pela polícia. Estacionei na primeira vaga livre, desci às pressas com Martha na coleira e corri ladeira acima, deixando minhas amigas para trás. Eu já estava sem fôlego quando avistei meu prédio cercado por caminhões dos bombeiros, viaturas da polícia e uma multidão de curiosos. Aflita, fui examinando os rostos até encontrar as duas estudantes que moravam no segundo andar e Sonya Marron, a síndica. Ela correu ao meu encontro: – Graças a Deus, graças a Deus... – Sonya chorava. – Alguém se feriu? – Não. Não havia ninguém lá dentro. Eu então a puxei para um abraço, aliviada de que Joe não estivesse dormindo no meu apartamento. Mas havia milhares de perguntas a fazer. – O que aconteceu? – perguntei a Sonya. – Eu não sei. Eu não sei... Procurei por Jacobi, mas acabei encontrando Claire, que berrava com o capitão dos bombeiros: – Já en-ten-di... Eu sei que o incêndio pode ter sido criminoso... Mas ela é da polícia... Isso mesmo... Polícia de São Francisco... Eu conhecia o capitão. Era Don Walker, um magricela de nariz enorme que parecia cansado, o rosto sujo de fuligem. Ele deu de ombros e nos deixou passar. Claire me segurou pelo braço e, escoltada por Yuki, Cindy e Martha, entramos no sobrado de três andares que ao longo de dez anos tinha sido minha residência.
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capítulo 67
INHAS PERNAS TREMIAM ENQUANTO subíamos a escada, mas a mente não parava de funcionar. Os degraus estavam intactos e as portas dos dois apartamentos inferiores, abertas. Ambos foram poupados pelo fogo, o que não fazia muito sentido. Mas as peças se encaixaram quando chegamos ao último andar. A porta de meu apartamento estava em ruínas. Atravessando a soleira, deparei com o céu estrelado onde antes havia o teto. Baixei os olhos para o chão, mal conseguindo encarar o estado grotesco em que se encontrava meu querido lar. As paredes estavam enegrecidas e sem cortinas. Os armários de vidro da cozinha haviam estilhaçado. As porcelanas e as embalagens na despensa tinham explodido, deixando em seu lugar um inusitado cheiro de pipoca e detergente. A mobília da sala, antes aconchegante, agora se resumia a pedaços de espuma encharcada e molas soltas. Só então me dei conta: o fogo havia consumido tudo. Martha gania a meu lado. Agachei-me e abracei minha border collie. – Lindsay – ouvi alguém dizer. – Você está bem? Era Chuck Hanni, que vinha do quarto. Será que ele tem alguma coisa a ver com isso? Conklin estava certo? Meu parceiro apareceu atrás de Hanni, ambos consternados com minha dor. Conklin estendeu os braços e eu me joguei neles, feliz por vê-lo ali, entre os escombros de minha casa. Mas logo que pousei a cabeça em seu ombro, ocorreu-me o terrível pensamento: caso Cindy não tivesse nos chamado para viajar, eu estaria em casa com Martha. Afastei-me de Conklin e, com a voz embargada, perguntei a Hanni. – O que aconteceu aqui? Preciso saber! Alguém tentou me matar?
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capítulo 68
ANNI ACENDEU UM REFLETOR no meio da sala no exato instante em que Joe entrou no apartamento. Corri a seu encontro e ele me abraçou com força, quase me deixando sem fôlego. – Liguei um milhão de vezes... – falei. – Desliguei o maldito celular durante o jantar e... – A partir de hoje você vai deixá-lo sempre ligado, nem que seja no modo vibratório... – Desculpe, Lindsay. Nunca vou me perdoar por estar longe no momento em que você mais precisava de mim. – Mas você está aqui agora. É o que importa. Então comecei a chorar sobre a camisa de Joe, feliz que ele estivesse bem, que nenhum de nós tivesse sofrido um único arranhão. Tenho uma vaga lembrança da hora em que minhas amigas e meu parceiro se despediram de mim, mas me recordo perfeitamente de ter ouvido Hanni dizer que tão logo amanhecesse ele vasculharia o prédio para descobrir o motivo do incêndio. Don Walker, o capitão dos bombeiros, tirou o capacete, enxugou a testa com a luva e pediu que Joe e eu fôssemos embora para que ele pudesse isolar o prédio. – Só mais um minuto, Don, está bem? – falei, afirmando mais que pedindo. Fui até o closet do quarto, abri a porta e quei ali, perplexa, até que ouvi Joe dizer às minhas costas: – Não dá para aproveitar mais nada disso, querida. Agora é melhor irmos embora. Vamos para minha casa. Corri os olhos pelo quarto, avaliando a extensão do prejuízo: a cama de quatro colunas, os álbuns de fotograa e, o pior de tudo, a caixinha com as cartas que mamãe me mandara quando eu estava na faculdade e ela lutava pela vida, confronto do qual saiu perdedora. Em seguida examinei cada centímetro do chão à procura de algum livro que parecesse fora do lugar. Nada. Fui até a cômoda e tentei abrir a gaveta superior, mas os puxadores de madeira se desintegraram em minhas mãos. Joe veio ao meu socorro e balançou o móvel até conseguir desemperrar a gaveta. Enquanto eu procurava por baixo das meias, ele disse pacientemente: – Esquece, meu amor. Depois você compra tudo novo. Finalmente encontrei o que procurava. Com a mão direita, ergui a pequena caixa de veludo contra a luz e a abri. Os três diamantes brilharam na penumbra: o anel que Joe me dera alguns meses antes ao me pedir em casamento. Na ocasião eu dissera que precisava de tempo para
pensar. Fechei a caixinha, fitando os olhos preocupados de Joe. O capitão Walker nos esperava no corredor. Dei uma última olhada ao redor e avistei o livro sobre a mesinha do telefone. Eu nunca tinha visto aquele livro. Ele não era meu.
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capítulo 69
LIVRO ERA GROSSO E TINHA UMA capa vermelha com pequenas listras brancas que corriam horizontalmente sob o título: Manual de investigação de incêndios e explosões. Assustada com aquela descoberta, comecei a berrar: – Isto aqui é uma prova! É uma prova! O capitão Walker estava exausto e começava a perder a paciência. Virou-se para mim e disse: – O investigador já falou que vai voltar amanhã cedo, sargento. Agora vou isolar o local, está bem? – Nada disso! – berrei de volta. – Chame um policial agora! Quero este livro trancado na sala de provas hoje mesmo! Ignorando o suspiro do capitão e a mão de Joe em minhas costas, liguei para Jacobi, disposta a telefonar para Clapper ou Tracchio caso ele não atendesse. Se não conseguisse falar com nenhum dos três, ligaria diretamente para o prefeito. Eu estava histérica e tinha consciência disso, mas naquele momento ninguém seria capaz de me demover. – Boxer, é você? – perguntou Jacobi. – Encontrei um livro no meu apartamento – berrei ao celular. – Está intacto. Talvez tenha impressões digitais. Quero que ele seja recolhido e etiquetado por algum perito. – Estou a cinco minutos daí – disse Jacobi. Fui para o corredor com Joe e Martha, meu namorado dizendo que iríamos morar no apartamento dele. Apertando sua mão, pensei nas casas incendiadas que eu vinha investigando e senti remorso por ter sido tão prossional e fria ao lidar com aquilo. Eu tinha visto os corpos e a destruição. Mas só agora sentia o terrível impacto que um incêndio provoca. Dali a pouco ouvi Jacobi conversando com a síndica no andar de baixo, bem como seus passos ofegantes ao se arrastar escada acima. Fomos parceiros por muitos anos e já havíamos rodado milhares de quilômetros por São Francisco em nossa viatura. Tínhamos sido baleados num incidente no Tenderloin District, nosso sangue se misturando numa poça da calçada. Eu conhecia aquele homem mais do que qualquer outro no mundo e ele podia dizer o mesmo de mim. Por esse motivo, tudo o que precisei fazer foi apontar para o livro quando enm ele chegou ao terceiro andar. Jacobi vestiu as luvas de borracha e cuidadosamente abriu a capa vermelha. Eu sentia o coração pular dentro do peito, convicta de que encontraria ali mais uma frase em latim, tão irônica quanto as outras. Mas só o que havia era um nome escrito em letra de fôrma.
O nome de Chuck Hanni.
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capítulo 70
RA 1H03 DA MADRUGADA e fazia 20 graus dentro do quarto. Deitada ao lado de Joe, vestindo uma camiseta dele e enrolada num lençol de 600 os, eu olhava para a hora e a temperatura projetadas no teto por um relógio que parecia concebido para insones e ex-agentes federais que precisavam dessa informação assim que abriam os olhos. Joe passou horas escutando meus temores e suspeitas, mas agora roncava baixinho com a mão adormecida sobre a minha. Martha também dormia profundamente, o ruído de sua respiração e os grunhidos de um sonho qualquer fazendo um agradável contraponto ao ronco de Joe. Eu não conseguia pregar o olho. Estava intrigada com o fato de o incêndio ter poupado os dois apartamentos inferiores para destruir apenas o meu, deixando de pé somente as paredes. Eu era o alvo de um assassino frio e calculista que já havia matado oito pessoas. Será que ele achava que eu estaria em casa? Ou esperou que eu saísse para deixar seu recado. Era possível que Chuck Hanni fosse o criminoso? Nós havíamos almoçado e trabalhado juntos várias vezes. Eu confiava nele. E agora eu era obrigada a imaginá-lo como um assassino com profundo conhecimento em incêndios, que sabia matar alguém sem deixar pistas. Mas como um homem tão preparado e experiente poderia deixar aquele “cartão de visitas” em meu apartamento? Como explicar que um assassino tivesse deixado como assinatura de seu crime a própria assinatura? Aquilo não fazia sentido. Minha dor de cabeça era insuportável. Eu estava enjoada e com ânsia de vômito. Quando meu celular tocou à 1h14, atendi prontamente, ouvindo Joe resmungar a meu lado. – É Conklin – falei e meu namorado voltou a dormir. – E aí, alguma novidade? – perguntei a meu parceiro. – Sim. Você não vai gostar nem um pouco. – Pode falar. O que você descobriu? – minha voz saiu numa mistura de grito e sussurro. Levantei da cama, passei por cima de Martha e fui até a sala de Joe, que tinha vista para o Presidio Park, uma sinistra paisagem de eucaliptos altos que agora dançavam sob a lua. Ouvi às minhas costas o ruído das unhas de Martha contra o piso. Ela viera atrás de mim e bebia água de uma tigela na cozinha. – É sobre o livro – disse Conklin. – Encontraram alguma frase em latim?
– Não. Mas ele pertence ao Chuck. – O quê? – Deixe eu terminar, Lindsay. Não foi ele quem deixou o livro na sua casa. Fui eu.
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capítulo 71
INHA MENTE NÃO CONSEGUIA processar aquela informação: – Espere aí! Repita, por favor! – pedi e Conklin repetiu num tom de arrependimento: – Fui eu que deixei o livro no seu apartamento. – Você está brincando? Ele só podia estar de brincadeira. Que motivo meu parceiro teria para abandonar um guia de incêndios e explosões no meu apartamento? – O que aconteceu foi o seguinte – começou Rich, pisando em ovos. – Chuck e eu saímos para jantar. Eu precisava acertar os ponteiros com ele, como você mesma sugeriu. Falei que queria saber mais sobre a investigação de incêndios. Afinal, o cara é catedrático no assunto. Conklin fez uma pausa para respirar e eu berrei: – Continua! – Fomos até o carro dele depois do jantar. Você não ia acreditar, Lindsay! O cara praticamente mora naquele automóvel. Havia até caixa de pizza em cima do banco. Sem falar do computador, das roupas penduradas no... – Conklin, pelo amor de Deus! – Ele tinha acabado de encontrar o livro para me emprestar quando Jacobi ligou, dizendo que seu apartamento estava pegando fogo. Imediatamente fomos até lá no carro dele, e eu estava com o guia debaixo do braço quando entrei na sua casa. – Você deixou o livro na mesinha do telefone... – Nem me lembrava mais dele. Até que Jacobi me ligou... – disse Conklin, envergonhado. – Jacobi já falou com Chuck? – Não. Quis conversar comigo primeiro. Hanni ainda não sabe de nada. Demorei alguns longos segundos para reorganizar as ideias, para voltar a considerar Chuck Hanni um amigo e perceber que, no m das contas, nada tinha mudado. Eu tremia, mas não era de frio. – Lindsay? – ouvi Conklin dizer. – Ainda não sabemos quem é o autor desses incêndios – falei. – Não sabemos de absolutamente nada.
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capítulo 72
MA SEMANA HAVIA SE PASSADO desde que o juiz Bruce Bendinger entrara em recesso para cuidar do joelho operado. Mas o descanso tinha chegado ao m e o magistrado estava de volta. E Yuki novamente se via diante do circo armado em torno do julgamento de Junie Moon: a marcação cerrada da imprensa, a pressão para vencer. Os trabalhos no tribunal foram reiniciados pontualmente às nove da manhã. Naquele dia, a defesa começaria a construir sua argumentação. L. Diana Davis nem sequer levantou a cabeça quando sua primeira testemunha atravessou a cancela, passando tão perto que o paletó quase roçou no braço da advogada. Yuki viu Davis cochichar algo no ouvido de sua cliente ao mesmo tempo que olhava para os jurados. As câmeras de TV estavam ligadas e os repórteres se aglomeravam no fundo da sala. A advogada sorria quando Yuki sussurrou no ouvido de Parisi: – A mulher está salivando. É a defesa dos sonhos dela. A cliente perfeita. Red Dog sorriu de volta: – Faz parte do jogo, Yuki. Vá se acostumando. Um dia você vai salivar também. Davis parecia acalmar Junie enquanto Charles Clapper, chefe da Perícia Criminal da Polícia de São Francisco, fazia seu juramento. Em seguida ela cou de pé, cumprimentou a testemunha e perguntou: – Tenente Clapper, há quanto tempo o senhor chefia a perícia? – Há 15 anos. – E o que fazia antes disso? – Comecei na Polícia de San Diego logo depois de sair da academia. Fiquei cinco anos na Divisão de Combate ao Narcotráco e mais cinco na de Homicídios. Ainda passei um tempo na Perícia de Las Vegas antes de vir para cá. – Inclusive já publicou trabalhos sobre o rastreamento de provas, não é? – Alguns livros, sim. – Volta e meia aparece na TV , correto? Até mais do que eu – disse Davis com um sorriso largo, arrancando risadas da plateia. – Disso eu não sei – devolveu Clapper, sorrindo também. – Ótimo. Quantos homicídios o senhor investigou nos últimos 25 anos, tenente? – Não faço a menor ideia. – Apenas por alto.
– Por alto? Talvez uns duzentos por ano. – Portanto, podemos dizer que o senhor já investigou uns cinco mil homicídios, correto? – Mais ou menos isso. – “Mais ou menos isso” é uma resposta aceitável – disse Davis, bem-humorada. – E além de investigar crimes recentes, o senhor também investiga casos mais antigos, que aconteceram meses ou anos antes, correto? – Correto. É o que chamamos de “casos frios”. – Pois bem. Em abril deste ano o senhor foi chamado até a casa da ré, não foi? – Fui. – O que encontrou por lá? Algo parecido com a cena de um crime? – Não. Tudo estava em perfeita ordem. Nenhum sinal de sangue, nenhum cartucho de bala, nada. – Mas o senhor fora informado de que talvez um homem tivesse sido esquartejado na banheira da ré. – Sim. – E realizou todos os procedimentos de praxe no rastreamento de provas? – Sim, eu e minha equipe. – Encontraram alguma coisa que pudesse incriminar a ré? – Não. – Algum indício de que alguém havia limpado sangue no local? – Não. – Água sanitária, detergente, alguma coisa parecida? – Não. – Tenente Clapper, deixe-me dar a lista completa para não perdermos tempo. Vamos lá. As paredes foram repintadas? Os tapetes foram lavados? Vocês encontraram algum instrumento que pudesse ter sido usado no esquartejamento de um corpo? – Não. Nada disso. – Portanto, seria justo dizer que o senhor e sua equipe zeram tudo a seu alcance no sentido de averiguar como o crime havia sido cometido, ou mesmo se um crime havia sido cometido? – Claro que sim. – Com base na sua experiência e no exame que fez da suposta “cena do crime” , por favor, diga aos jurados: foi encontrada qualquer prova que pudesse vincular Junie Moon, direta ou indiretamente, ao suposto assassinato de Michael Campion? – Não. – Obrigada, tenente. Sem mais perguntas para a testemunha, meritíssimo.
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capítulo 73
UKI AINDA TENTAVA ASSIMILAR as palavras irônicas de Red Dog. Talvez elas tivessem um fundo de verdade. Um dia você vai salivar também. Largou a caneta sobre o bloco de anotações, ajeitou o blazer ao se levantar e caminhou até o banco das testemunhas. – Tenente Clapper, não quero tomar seu tempo. – Estou à sua disposição, Srta. Castellano. – Como já foi dito, o senhor tem mais de vinte anos de experiência na polícia, correto? – Correto. – E ao longo desses anos como investigador e perito criminal, o senhor certamente já se viu diante de casos envolvendo prostitutas. – Certamente. – Deve ter, portanto, alguma familiaridade com o modo de vida e os hábitos dessas mulheres. – Eu diria que sim. – Seria correto armar, por exemplo, que uma prostituta pode ter relações sexuais com diversos parceiros no mesmo dia, desde que seja paga por isso? – É o trabalho delas. – Mas também há diferentes tipos de prostitutas, correto? Há aquelas que trabalham na rua, as que vão até a casa dos clientes... – Claro. – E também há aquelas que atendem na própria residência. – Algumas, sim. – Seria esse o caso da Srta. Moon? – Foi o que me disseram. – Muito bem. O senhor também diria que, por uma questão de higiene, as prostitutas que trabalham em casa procuram tomar banho entre um cliente e outro? – Eu diria que é uma prática comum, sim. – O senhor saberia dizer, de modo geral, a quantidade de água consumida durante um banho? – Uns setenta litros, mais ou menos. Depende. Yuki assentiu com a cabeça e continuou:
– Tenente, baseado em seu conhecimento sobre as prostitutas, e levando em conta que a Srta. Moon trabalhava em casa, seria razoável supor que ela se lavava depois de fazer sexo com seus clientes, talvez oito, dez vezes ao dia, sete dias na semana... – Protesto! – interrompeu Davis. – A acusação está exigindo que a testemunha especule. Além do mais, é inaceitável a maneira como minha cliente está sendo descrita. – Meritíssimo – argumentou Yuki. – Todos sabemos que a Srta. Moon é uma prostituta. Estou apenas supondo que ela seja uma prostituta limpa. – Prossiga, Srta. Castellano – ordenou o juiz, que brincava com o elástico que trazia no pulso. – Mas se for possível chegar a uma conclusão ainda hoje... – Obrigada, meritíssimo – disse Yuki com gentileza. – Tenente Clapper, o senhor poderia nos conrmar uma coisa? – Respirou fundo, preparando-se para a avalanche verbal que viria a seguir, algo já reconhecido como sua marca registrada. – Se um homem foi esquartejado numa banheira e três meses se passaram entre o dia do crime e o dia em que essa banheira foi examinada pela perícia, poderíamos dizer que uma enorme quantidade de água, sabonete e xampu passou pelo ralo dessa mesma banheira... nos meus cálculos, quase quatrocentos litros diários de água e sabonete, quantidade que pode ser ainda maior se levarmos em conta que alguns clientes também tomavam banho antes de voltar para seu alojamento na faculdade, para seu escritório ou para sua mulher em casa. Pois bem, ainda que a Srta. Moon respeitasse o sagrado descanso dominical, cerca de quinhentos mil litros de água já haviam descido pelo ralo daquela banheira quando sua equipe de peritos a examinou. Minha pergunta então é a seguinte: é possível que toda essa água tenha levado consigo qualquer indício de que ali fora cometido um crime? – Bem... é possível, sim. É bastante provável. – Obrigada, tenente. Muito obrigada. Yuki sorriu para Charlie Clapper, que recebeu do juiz a permissão para deixar o banco.
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capítulo 74
UKI ESTAVA SENTADA AO LADO de Leonard Parisi quando Ricardo “Ricky” Malcolm, o asqueroso cafetão que posava de namorado de Junie Moon, foi chamado a depor. Ela sabia que a advogada de defesa contratara um caçador de recompensas para arrastar Ricky Malcolm do México até São Francisco e, enquanto Malcolm jurava dizer a verdade, Yuki se perguntava se Davis de fato acreditava que aquele delinquente tatuado seria capaz de convencer o júri. Num tom de voz rme, a advogada fez as perguntas preliminares à sua testemunha, adiantando-se à acusação ao fazer Ricky armar que cumprira pena por posse de drogas. Em seguida a advogada abordou as questões realmente importantes. – Que relacionamento o senhor tem com a Srta. Moon? – Fomos namorados. – Não são mais? – Estamos separados – respondeu Malcolm num tom seco. – Eu em Tijuana e ela na cadeia. Alguns risos foram ouvidos na galeria. – Há quanto tempo conhece a Srta. Moon? – perguntou Davis. – Uns três anos. – E houve um momento, mais precisamente no dia 21 do último mês de janeiro por volta das onze e meia da noite, em que o senhor foi chamado pela Srta. Moon para socorrê-la em casa porque um dos clientes dela estava tendo um ataque cardíaco? – Não. – Para que não restem dúvidas: o senhor está armando que Junie não ligou dizendo que precisava de ajuda com Michael Campion? – Não, senhora, ela não ligou. – O senhor chegou a ser interrogado pela polícia sobre o esquartejamento e a remoção do corpo de Michael Campion? – Sim. Falei para eles que não fiz nada disso. – E estava dizendo a verdade? – Claro que estava – respondeu ele, começando a rir. – Nunca matei ninguém. Não suporto ver sangue. Até meus bifes são bem-passados. Essa foi a coisa mais absurda que ouvi na minha vida. – Concordo – emendou Davis. – O maior absurdo de todos os tempos. Yuki imediatamente ficou de pé.
– Protesto, meritíssimo! As opiniões da Sra. Davis são totalmente irrelevantes aqui. – Deferido. A advogada deu meia-volta, aproximou-se dos jurados e depois girou novamente. – No entanto – recomeçou ela, a voz ecoando pelas paredes da sala –, segundo o testemunho da polícia, a Srta. Moon disse que o chamou porque Michael Campion estava tendo uma parada cardíaca, e quando o senhor chegou à casa dela, o rapaz estava morto. – Pura mentira. Isso nunca aconteceu – disse Malcolm, nitidamente se divertindo. – Ainda segundo o testemunho da polícia, a Srta. Moon disse que o senhor esquartejou o Sr. Campion com uma faca e que depois vocês dois se livraram dos restos mortais numa caçamba de lixo. Isso de fato aconteceu? – Claro que não! Essa gente pirou. Aliás, não tenho habilidade alguma com facas. Sou bom com máquinas elétricas! – Muito bem, Sr. Malcolm. Mas, na sua opinião, por que a Srta. Moon diria tudo isso se não fosse verdade? – Porque é uma lesada – respondeu Malcolm, encarando Junie com olhos vidrados. – Como essas retardadas que precisam de educação especial. Ela adora esses romances água com açúcar, além de não perder as novelas da... – Protesto! – interveio Yuki. – Meritíssimo, tudo isso deve ser eliminado dos autos pelo caráter puramente especulativo. – Meritíssimo, o testemunho do Sr. Malcolm está relacionado à credibilidade da ré – rebateu Davis. – Vou deferir. Continue, Sr. Malcolm. Yuki suspirou com raiva e retomou seu lugar entre Red Dog e Nick Gaines. – Como eu estava dizendo... – prosseguiu Malcolm. – Essa é minha opinião. Quando a polícia perguntou se Junie tinha chegado às vias de fato com Michael Campion, foi como se um filme romântico passasse em sua cabeça, apresentando-a no papel de atriz principal! – Obrigada, Sr. Malcolm. O senhor foi indiciado como cúmplice nesse crime? – A polícia tentou, mas o promotor sabia que eles não podiam me indiciar com base nessa conssão bizarra de Junie, ainda mais depois que ela... como é mesmo que vocês dizem? Depois que ela se retratou. – Muito obrigada, Sr. Malcolm. A testemunha é sua – disse Davis, abrindo um sorriso para Yuki.
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capítulo 75
UKI LEU O BILHETE QUE LEONARD lhe passara com sugestões de perguntas. Ali estavam os argumentos que pretendia usar, mas o que talvez ela não tivesse percebido era a importância de Malcolm para a defesa, o respeito que a acusação ganharia se invalidasse o depoimento dele. Yuki se aproximou do banco das testemunhas. – Sr. Malcolm, o senhor veio até aqui hoje por vontade própria? – Não. A Sra. Davis me achou em Tijuana, do outro lado da fronteira. – O senhor tem amigos no México ou por acaso foi até lá para se esconder? – Um pouco das duas coisas – respondeu ele, sacudindo os ombros e sorrindo, mostrando parcialmente seus dentes podres aos jurados. – Alguns minutos atrás o senhor jurou dizer a verdade, não jurou? – Não tenho nada contra a verdade. Colocando a mão no parapeito que cercava o banco das testemunhas, Yuki perguntou: – Que opinião o senhor tem sobre a ré? – Junie é uma moça... legal! – Poderia ser um pouco mais específico? – Mas ela é legal! – devolveu ele, sacudindo mais uma vez os ombros. Yuki abriu um sorriso para mostrar aos jurados que tinha senso de humor. Em seguida continuou: – Se Junie Moon o convidasse hoje a passar uma noite com ela, o senhor iria? – Iria, claro! – E se ela precisasse de um rim, o senhor doaria um dos seus? – Tenho dois, não tenho? – Acredito que sim. – Então eu doaria um para ela! – Ricky Malcolm abriu um sorriso largo, orgulhoso da própria generosidade. – Durante seu relacionamento de três anos com a ré, o senhor gostava de conversar e passear com ela? Essas atividades que namorados fazem? – Sim, claro. – E hoje, que tipo de sentimento nutre por ela? – Isso é um pouco pessoal, não acha? – Meritíssimo! – interveio Davis. – Por acaso estamos num programa de TV? Não vejo que
relevância isso... – Se vossa excelência me permitir um instante para demonstrar a relevância dessas perguntas... – interrompeu Yuki. – Indeferido, Srta. Davis. Prossiga, Srta. Castellano. – Obrigada, meritíssimo – agradeceu Yuki. – Sr. Malcolm, os seus sentimentos não são nenhum segredo de Estado, são? Poderia, por gentileza, subir a manga da camisa e mostrar seu braço aos jurados? O rapaz hesitou até que o juiz ordenou que ele obedecesse. Quando Ricky dobrou a manga de sua camisa, um burburinho foi ouvido na galeria. Entre as várias tatuagens que cobriam sua pele, destacava-se o coração vermelho com as iniciais R.M. espetado numa lua crescente. – Sr. Malcolm, o que significam as letras acima da tatuagem do coração? – As letras D-Q-V-M-A-J-M? – Exatamente. Malcolm suspirou e respondeu: – “Diga que você me ama, Junie Moon.” – Portanto, Sr. Malcolm, seria justo supor que o senhor ainda ama a ré, não seria? Malcolm agora olhava sério para Junie, sem a petulância observada minutos antes. A ré por sua vez o encarava com seus olhos enormes. – É verdade. Eu amo essa mulher. – O bastante para mentir em nome dela? – Claro que eu mentiria por ela. Qual é o problema? – Obrigada, Sr. Malcolm. Sem mais perguntas para esta testemunha, meritíssimo – disse Yuki, virando as costas para Ricky Malcolm.
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capítulo 76
RAM EXATAMENTE OITO DA MANHÃ quando Jacobi deu início à reunião. Pediu que eu me sentasse a seu lado e zesse um resumo a todos os policiais do Departamento sobre nossas descobertas em cada um dos casos de incêndio. Fui obrigada a ser sincera e disse que não tínhamos nada de concreto, nenhuma pista sequer. Eu usava calça jeans, camisa regata bordada com contas, sapatos baixos e uma jaqueta desbotada que eu deixara no apartamento de Joe antes de perder minhas coisas no incêndio. Aquilo era tudo o que eu tinha. Ainda assim z sucesso entre meus colegas. Um veterano fortão berrou dos fundos da sala: – Gostosa! – Olhe o respeito, McCracken! – berrou Conklin de volta, deixando-me vermelha e prolongando o assunto enquanto o pessoal ria e fazia comentários maldosos. Jacobi precisou dar um chute numa mesa para restabelecer a ordem e permitir que eu falasse sobre os casos dos Meacham e dos Malone. Assim que as tarefas foram distribuídas, Conklin e eu entramos em nosso carro e nos dirigimos aos becos do Mission District. Lá estávamos novamente, dois policiais em ação, procurando alguma pista na ausência de qualquer coisa mais concreta. Nossa primeira parada foi numa casa de penhores na Polk, um buraco atulhado de aparelhos eletrônicos obsoletos, instrumentos musicais e umas poucas vitrines com joias de gosto duvidoso. O proprietário se chamava Rudy Vitale, um sujeito obeso com óculos de lentes grossas e cabelos ralos. Sem dúvida aquele homem usava a loja como escritório enquanto fazia seus verdadeiros negócios em carros e esquinas. Deixei que Conklin conduzisse a conversa, pois minha cabeça ainda fervilhava com a guinada radical que minha vida sofrera nas 12 horas anteriores. Eu não pensava em nada além de os danos emocionais daquele incêndio, os objetos que tinham forte ligação com meu passado: a coleção de cerâmica indígena e todos os pertences de minha mãe, sobretudo as cartas em que dizia que me amava, algo que ela só revelara às vésperas de sua morte e por escrito. Enquanto Conklin mostrava a Vitale as fotos das joias, fui correndo os olhos pelas vitrines, ainda tonta, sem esperar muita coisa daquela visita até avistar o colar de saras de Patty Malone numa bandeja. – Conklin! Venha dar uma olhada aqui. Agora! Meu parceiro viu a joia e pediu a Vitale que abrisse a vitrine. Com sua mão que mais parecia
uma luva de beisebol, o homem afastou outros objetos, pegou o colar e o entregou a meu parceiro. – Quer dizer que estas safiras são de verdade? – perguntou Vitale, surpreso. O rosto de Conklin perdeu a cor assim que ele comparou o colar à foto que tínhamos. O colar de Patty Malone estava ali, diante de nossos olhos. – Onde conseguiu isto? – Conklin se dirigiu a Vitale. – Um garoto trouxe semana passada. – Quero ver a documentação. – Volto já – disse o homem, encaminhando-se para os fundos de sua caverna particular. Retirou catálogos e livros que estavam sobre uma cadeira, sentou-se e digitou alguma coisa no laptop. – Aqui está. Paguei cem pratas ao garoto. Venham ver. Xiii! Só agora vi o nome dele. O recibo estava assinado por Clark Kent, o endereço era algum lugar no meio da baía de São Francisco e a descrição dizia “colar de topázio azul”. – Por acaso ele estava de terno e gravata? – berrou Conklin. – Ou de vestido e salto? – Precisamos dar uma olhada naquela ta ali – completei, apontando para a câmera de vídeo no teto. – Eu só tenho o registro das últimas 24 horas. – disse Vitale. – As imagens do garoto já foram apagadas. Lembro-me vagamente dele, mas garanto que não estava de vestido nem de salto. Tinha pinta de universitário. Acho que vendi uns gibis para ele antes. – Pinta de universitário... Poderia ser um pouco mais específico? – pedi. – Cabelos escuros, acho eu. E meio fortinho. – O senhor terá de vir conosco para examinar outras fotos de nosso arquivo – falei. – Também vamos fazer um retrato falado. – Não sou bom sionomista – rebateu Vitale. – É uma anomalia que eu tenho, uma espécie de dislexia. Talvez eu não reconheça o rapaz se passar por ele na rua. – Vamos deixar de papo furado! – cortou Conklin. – Isto aqui é uma investigação de homicídio! Se esse garoto voltar, ligue imediatamente para nós. De preferência enquanto ele ainda estiver na loja. E não se esqueça de fazer uma cópia da identidade dele. – Entendido, chefe. Deixe comigo. De volta ao carro, Conklin disse: – Já é alguma coisa. Kelly vai gostar de ter de volta um objeto da mãe. – Eu não tenho dúvida. Meus pensamentos se voltaram para a morte de minha própria mãe. Virei o rosto para que meu parceiro não visse as lágrimas que brotavam em meus olhos.
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capítulo 77
O PORÃO DO PRÉDIO EM QUE eu morava até o dia anterior, Chuck Hanni mostrava a mim e a Joe alguns detalhes da velha ação elétrica, a água pingando dos canos em nossa cabeça. A porta da caixa de força estava aberta e o investigador apontava sua lanterna para o fusível que queria nos mostrar. – Estão vendo essa moedinha na parte traseira do fusível? Tive dificuldade para identificar o pequeno disco de cobre. – Você conhece as estudantes que moram no segundo andar? – perguntou Hanni. – Só de vista. – Bem, parece que elas queimavam um fusível por dia. Provavelmente com secador de cabelo, ar-condicionado, ferro de passar... E a síndica, cansada de trocar a peça, resolveu enar essa moedinha aí. – Para que ela serve exatamente? Chuck explicou o que tinha acontecido. A moeda funcionou como um atalho para que o circuito não fosse interrompido: só que a eletricidade acabou passando direto e derreteu a ação nos pontos mais fracos: as lâmpadas de teto no segundo andar e as tomadas de meu apartamento. Imaginar as tomadas cuspindo fogo era a parte fácil. Difícil era entender o problema do ponto de vista técnico. Chuck então se deu o trabalho de explicar que em meu prédio, assim como em vários outros antigos, os caibros desciam do telhado ao teto dos apartamentos sem nenhum dispositivo corta-fogo entre eles. – As chamas se alastram num minuto parede acima. Os espaços entre os caibros funcionam como uma chaminé. Quando chegou ao seu apartamento, o fogo saiu pelas tomadas e continuou subindo. Destruiu o telhado e depois se apagou sozinho. – Quer dizer então que foi um acidente? – Sim, eu já estava desconfiado que tinha sido isso. Hanni disse ainda que havia interrogado todas as pessoas: a síndica, as estudantes do segundo andar e especialmente Angel Fernandez, o velhinho faz-tudo que tinha colocado a moeda atrás do fusível para poupar as pernas do trabalho de subir e descer a ladeira diante do prédio. – Se alguém tivesse morrido, eu indiciaria Angel Fernandez por homicídio culposo – falou Hanni. – Meu veredicto é este, Lindsay: o incêndio foi acidental. Você já pode acionar o seguro.
Eu tinha sido treinada para perceber quando alguém mentia, porém vi no rosto de Chuck que ele dizia a verdade. Só que eu estava nervosa e ainda não conseguia descartar a pior das hipóteses. A caminho do carro de Joe pedi a opinião dele, já que meu namorado havia dedicado duas décadas de sua vida ao cumprimento da lei. – Hanni não fez nada, meu amor. Está sofrendo tanto quanto você. Acho até que tem um carinho especial por você. – Essa é sua opinião profissional? – Sim. Hanni está do nosso lado.
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capítulo 78
UKI ESTAVA A MIL POR HORA. Engolíamos nosso almoço em seu gabinete, ambas remexendo a salada como se estivéssemos atrás de pepitas de ouro em vez de pedaços de frango. Ela havia perguntado como eu estava, mas, como eu não tinha muito a dizer, deixei que ela falasse. – Então. A certa altura Davis convocou a Dra. Maria Paige, a psiquiatra. Sabe quem é, não sabe? Neguei com um gesto de cabeça. – Não? Ela aparece sempre na TV. Alta, loura, formada em Harvard. É muito conhecida. Novamente balancei a cabeça e Yuki continuou: – Deixa para lá. Pois bem. Davis chamou a psiquiatra famosa para que ela falasse sobre falsas confissões. – Ah, entendi. A “falsa confissão” de Junie Moon. – Isso. E a psiquiatra sabe das coisas. Explicou a origem da lei que obriga os policiais a ler os direitos dos detidos e depois citou os estudos clássicos de Gudjonsson e Clark sobre a sugestionabilidade de certas pessoas durante um interrogatório. Também citou o livro de Reid sobre as atitudes dos policiais para driblar essas convenções. Parecia que a psiquiatra tinha escrito o livro, Lindsay – prosseguiu Yuki. – Segundo ela armou, alguns policiais intimidam ou ludibriam os suspeitos até eles confessarem. – Alguns, sim, mas eu nunca intimidei nem ludibriei ninguém. – Claro que não. Então ela falou sobre como algumas pessoas menos inteligentes ou de baixa autoestima preferem concordar com os policiais em vez de discordar deles. E os jurados lá, olhando para Junie... – Junie confessou de livre e esp... – Eu sei, eu sei, mas você conhece ela, não conhece? A garota tem aquela pinta de boazinha. Daí a psiquiatra concluiu a exposição e eu quei me perguntando como neutralizar o depoimento dela sem precisar reproduzir a gravação de duas horas de sua conversa com Junie. – Bem, você podia ter feito isso – falei, fechando a embalagem plástica de minha salada para jogá-la no lixo. Yuki fez o mesmo. – Duas horas? Com Junie negando tudo? Nada disso! Mas vai ouvindo. Daí eu quei de pé e falei: “Dra. Paige, a senhora já esteve pessoalmente com Junie Moon?” “Não.” “Chegou a ver a gravação da conversa dela com a polícia?” “Sim.” Então eu perguntei: “Por acaso a polícia intimidou ou ludibriou a ré?” “Eu diria que não”, ela respondeu.
Yuki deu um gole no chá e continuou com a encenação de seu embate com a psiquiatra. – Daí eu fiz uma besteira. – O quê? – Eu estava desesperada, Lindsay! – disse ela com uma careta, varrendo uma mecha de cabelos de seu rostinho oriental. – Falei: “Então, o que a polícia fez exatamente?” Sei que não devemos fazer uma pergunta para a qual não temos resposta, mas puxa! Eu já tinha visto aquele maldito interrogatório um milhão de vezes, sabia que você e Conklin não zeram nada! Daí vi Parisi me fulminando com o olhar enquanto a psiquiatra dizia: “A meu ver a Srta. Moon tem a autoestima no chão, sente-se culpada porque é prostituta e sua conssão foi um modo de expiar a própria culpa.” Mal acreditei que a mulher estivesse pedindo aos jurados que engolissem aquilo, daí falei: “A senhora está dizendo que Junie Moon se sente culpada por ser prostituta e por isso confessou um homicídio culposo?” “É exatamente isso que estou dizendo” , ela armou. E eu: “Isso é tudo, doutora.” Então o juiz mandou ela descer, eu voltei para minha mesa e, enquanto me espremia para passar atrás de Parisi, dei uma olhada para a galeria e quem eu vi? Jason Twilly! – Mas ele está lá todo dia, Yuki! – Eu sei, mas dessa vez estava sentado atrás de mim! Trocamos olhares, claro, porque não tinha outro jeito. Nesse momento, Davis convocava a própria Junie para depor, mas o juiz bateu o martelo, dispensando para o almoço. E aí, quando Parisi foi se levantar, arrastou a cadeira para trás e me prendeu ali, deixando-me cara a cara, ou melhor, peito a cara com o nojento do Jason e seu risinho irônico. Meu estômago revirou, comecei a suar frio e o desgraçado disse: “Ponto para defesa.” Quase desmaiei! E Red Dog, já de pé, lançou seu olhar de fúria na minha direção. Lindsay, não vou perder esse caso por causa daquela psiquiatra, vou? Fale a verdade. Não vou perder porque isso não pode acontecer! – Você não... – Mas não vou mesmo! – disse Yuki, bufando e dando um soco na mesa. – Porque só existem duas possibilidades, Lindsay: ou Junie Moon é culpada, ou é muito culpada. E cedo ou tarde os jurados vão acabar enxergando isso.
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capítulo 79
STANFORD MALL ERA UM SHOPPING a céu aberto, um paraíso de lojas distribuídas por ruazinhas estreitas e enfeitadas com jardins e chafarizes. Gigantes como Bloomingdale’s, Macy’s e Nordstrom disputavam espaço com butiques do patamar de Armani, Louis Vuitton e Lacoste. Falcão e Pombo estavam sentados num dos bancos diante da Polo, cercados de um belo canteiro, o perfume das ores se misturando ao do cappuccino servido numa cafeteria próxima. Era sábado e os clientes endinheirados andavam de um lado para outro, balançando suas sacolas e parando para admirar as vitrines da Ralph Lauren. Com uma minúscula câmera de vídeo, Pombo lmava as pessoas que passavam à sua frente. Caso alguém lhe perguntasse o que estava fazendo, ele diria a verdade, ou ao menos parte dela: gravando um documentário para a faculdade. No entanto, Pombo omitiria que ele e Falcão estavam à procura dos vencedores de um inusitado concurso: os otários mais consumistas do dia. Os amigos já tinham dois casais em vista, nos carros dos quais encontraram colados os adesivos de uma universidade. Ambos eram ótimos candidatos, o que tornava a escolha difícil. Mas assim que chegassem à conclusão, seguiriam o casal para dar uma olhada na casa. Estava na hora do veredicto. O casal de gordinhos carregado de sacolas ou o homem e a mulher de meia-idade que desfilavam suas roupas elegantes enquanto bebiam seu frappuccino? Pombo examinava o material já gravado quando um segurança se aproximou. Um sujeito de 40 e tantos anos, uniforme azul com o nome da empresa no bolso da camisa, quepe, arma no cinto e um jeito arrogante de andar. Hoje em dia era assim, pensou Pombo: basta vestir um uniforme para que qualquer malandro se sinta parte da elite das forças armadas. – E aí, rapazes – disse o homem num tom afável. – É proibido fotografar. A placa está bem ali. – Ah! – disse Pombo, levantando-se do banco. Era mais alto que o segurança, que se viu obrigado a dar um passo atrás. – Não estamos tirando fotos. É uma câmera de vídeo. Estamos fazendo um trabalho para a faculdade. Se o senhor quiser, eu mostro minha carteirinha de estudante. – Não importa – retrucou o sujeito de uniforme. – Por motivo de segurança, ninguém pode fotografar ou filmar este local. Portanto, guardem isso aí ou terei de acompanhá-los até a porta. – Porcaria de segurança... – sussurrou Falcão.
– Já estamos de saída – Pombo foi logo dizendo, colocando-se à frente do amigo. – Desculpe, chefia. Aquela situação irritou os dois rapazes. Anal, gastaram horas selecionando os candidatos e agora iam embora de mãos abanando. – Mas antes preciso fazer uma parada estratégica! – disse ele, como se tivesse se lembrado de alguma coisa importante. Foram até o banheiro e Pombo se aliviou num dos mictórios. Em seguida Falcão tirou do bolso uma caixa de fósforos, acendeu quatro palitos ao mesmo tempo e os jogou no cesto de lixo. Os dois amigos alcançavam o estacionamento quando ouviram as sirenes na autoestrada. Ficaram esperando no carro de Pombo até que os bombeiros pararam diante do chafariz principal, desenrolaram as mangueiras e correram pelas vielas do shopping. Os clientes começaram a correr no sentido contrário, indo em direção ao estacionamento. – Eu me amarro num fogo – disse Falcão. – Não tem barato melhor – completou Pombo.
PARTE 4 EM NOME DA BOA LITERATURA
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capítulo 80
U ENFRENTAVA O CONGESTIONAMENTO ao voltar para casa, ou melhor, para a casa de Joe, quando meu celular tocou. Arranquei o aparelho do bolso e apenas tive tempo de ouvir Yuki berrando: – Lindsay! Ele está me perseguindo! – Ele quem? Quem está perseguindo você? – Aquele doido! Jason Twilly! – Calma, Yuki. Uma coisa de cada vez. Como assim, “perseguindo”? No cruzamento da Townsend com a Sétima, dobrei à esquerda em vez de tomar o caminho para meu ex-apartamento em Potrero Hill. Fiquei com a sensação de que estava nadando contra a maré. Ainda aos berros, Yuki respondeu: – Perseguindo, caramba! O cara não larga do meu pé. Estava sentado no banco do meu carro dez minutos atrás! – Ele arrombou seu carro? – Sei lá. Não lembro se tranquei a porta. Eu estava carregando uns vinte quilos de... A ligação caiu. Disquei rapidamente o número de Yuki, ouvi a secretária eletrônica, desliguei e fiz uma nova tentativa. – Vinte quilos de quê? – perguntei afinal. – De caixas de arquivos. Eu tinha acabado de enar a chave na fechadura quando ele estendeu o braço de dentro do carro e abriu a porta para mim. – E você tinha dito a ele para deixá-la em paz? – Com todas as letras! – É. Isso congura um crime – falei, mudando distraidamente de faixa e recebendo do motorista ao lado uma buzinada seguida de um gesto obsceno. – Quer registrar uma queixa? Só que ele vai botar a boca no trombone. Seguiu-se um momento de silêncio enquanto Yuki analisava as consequências de sua decisão. – Esse cara é maluco, Lindsay! Fala comigo como se eu fosse uma personagem dos livros dele. Tem um parafuso a menos e talvez seja perigoso. Ele entrou no meu carro, caramba! O que mais ele pode fazer? – Tudo bem – retruquei, estacionando na primeira vaga livre que encontrei. Peguei meu bloco e anotei tudo o que Yuki acabara de me contar. – Você vai ter de conversar com algum juiz amanhã de manhã e pedir uma medida cautelar. Mas sua queixa está valendo desde já.
– Amanhã de manhã? Lindsay, Jason Twilly está tentando me assustar... e está conseguindo!
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capítulo 81
UANDO CHEGUEI AO QUARTO de Jason Twilly no quinto andar do Hotel St. Regis, ele me esperava à porta com seu sorriso enviesado no rosto, os cabelos desalinhados, a camisa desabotoada e para fora das calças. Ouvi a porta da escada bater baixinho no m do corredor. Provavelmente alguém precisara sair às pressas, talvez alguma amiguinha do escritor, dessas que cobram por hora. Estendi meu distintivo policial e Twilly, em vez de examiná-lo, cravou os olhos no decote da minha camiseta, descendo-os para a calça jeans e lentamente refazendo o caminho até me encarar. Enquanto ele fazia sua “inspeção” , eu passava os olhos pelo interior daquele quarto, uma suíte espetacular com paredes forradas e uma vista cinematográca da cidade. Um escândalo! – Trabalhando à paisana, sargento? – ele ironizou. – Alguma missão secreta? Aquela era a atitude que vinha assustando Yuki. A vulgaridade do escritor me deixou enfurecida. – Ainda não fomos apresentados, Sr. Twilly. Sou a sargento Lindsay Boxer – falei com a mão estendida. Assim que ele a apertou, rapidamente torci seu braço contra as costas e continuei fazendo força até espremê-lo contra a parede. – Me dê a outra mão. Agora! – Isso é alguma brincadeira? – A outra mão! Coloquei as algemas nele, revistei-o rapidamente e disse: – O senhor está preso por transgressão de espaço privado. Tudo o que disser poderá ser usado contra o senhor num tribunal de justiça. – Mas que porcaria é essa? – O senhor invadiu o carro da assistente de promotoria Yuki Castellano, que registrou uma queixa na polícia. Ao meio-dia de amanhã ela terá em mãos uma medida cautelar contra o senhor. – Deus do céu, tanto barulho por nada! Ela estava carregando milhares de caixas! Eu só abri a porta do carro! – Diga isso a seu advogado – cuspi de volta. Com uma das mãos eu segurava o braço do escritor e com a outra, meu celular. Estava prestes a pedir reforços da Central, mas... – Espere! – gritou Twilly. – Yuki falou que está sendo assediada? Porque isso é uma grande mentira! Confesso que a provoquei, z um pouco de pressão para ela abrir o bico. Sou jornalista
e é isso que os jornalistas fazem. Se pisei na bola, peço desculpas. Não podemos conversar um minuto? Por favor! Eu havia conferido os antecedentes de Jason e ele tinha a cha limpa. Senti um frio no estômago à medida que minha fúria foi se dissipando. Uma advertência severa teria sido suciente. Mas já era tarde: eu tinha algemado o escritor. Cindy alertara Yuki sobre o risco de uma retaliação por parte dele, que tinha livre acesso à mídia. Eu imaginava Jason falando sobre aquela “dura” diante das câmeras da CNN, da Fox e de todos os canais de TV . Seria péssimo para mim e para Yuki, porém serviria de excelente publicidade para o jornalista. – Sargento? Eu precisava reverter aquela história. Ou pelo menos tentar. – O senhor quer evitar uma intimação judicial, Sr. Twilly? Deixe Yuki Castellano em paz. Não se sente atrás dela no tribunal. Não a siga nos supermercados. Não invada o carro ou o apartamento dela. Desse modo podemos esquecer esse incidente. Caso contrário, o senhor vai preso. Fui clara? – Claríssima – respondeu. – Ótimo! Destranquei as algemas e fui saindo pelo corredor. – Espere! – berrou Jason, entrando no quarto. Foi até a escrivaninha, voltou com uma caneta e um caderno, e então disse: – Não quero me esquecer de nada. – Rabiscou alguma coisa e repetiu palavra por palavra o que eu acabara de dizer. – Ótimo, sargento. Quem você quer que interprete seu papel no filme? Ele estava me intimidando. Fui embora com a sensação de ter feito papel de boba. Droga! Talvez eu tivesse cavado minha própria cova ao algemá-lo, mas ainda assim Jason Twilly continuava a ser doido. Doido e perigoso.
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capítulo 82
OE E EU PEDIMOS COMIDA e fomos nos deitar às dez em ponto. Meus olhos se abriram exatamente às 3h04, os números projetando-se no teto enquanto minha cabeça se recuperava dos pesadelos da madrugada. A imagem do sorriso irônico de Jason Twilly me despertara, mas aos poucos seu rosto foi sumindo para ser substituído pelos cadáveres retorcidos que eu tinha visto na mesa de Claire. Lembrei-me também dos olhinhos sem brilho da menina que cara órfã graças a um adolescente que talvez agora estivesse acordado na cama, planejando mais um espetáculo de horrores. Quantas pessoas morreriam até que o encontrássemos? Ele sairia vitorioso daquele jogo macabro? Pensei no incêndio que destruíra minha casa, minhas coisas e minha tranquilidade. Também pensei em Joe, como eu amava aquele homem! Eu insistira para que ele se mudasse para São Francisco a m de construirmos uma vida juntos: e era isso que vínhamos fazendo nos bons e maus momentos. Então por que eu não conseguia aceitar sua proposta de casamento e talvez de constituir família? Em poucos meses eu faria 39 anos. O que estava esperando? Fiquei ouvindo sua respiração durante um tempo até que o sono nalmente voltou. Virei-me na cama e abracei um travesseiro. Talvez percebendo minha agitação, Joe passou o braço sobre minha cintura, encaixou os joelhos nos meus e perguntou: – Pesadelo? – É. Nem lembro mais o que foi, mas depois que acordei quei pensando num monte de gente morta. – Gente em geral ou gente de verdade? – Gente de verdade. – Quer falar sobre o assunto? – Até falaria, mas eles já voltaram para o buraco de onde saíram. Desculpe se acordei você. – Tudo bem. Agora tente dormir. Levei um segundo para entender que as palavras de Joe eram um desafio. Ele afastou meus cabelos da nuca e deu um beijo. Estremeci, surpresa com o arrepio que seus lábios provocaram em meu corpo. Eu não esperava sentir aquilo numa noite tão tumultuada. Virei-me para ele, tei-o nos olhos e vi o brilho de seu sorriso em meio à penumbra azulada do relógio. Então o puxei para um beijo intenso, procurando nele a resposta que não conseguia
encontrar dentro de mim. Joe envolveu minha cintura, mas eu o afastei. – Não – falei. – Hoje quem dá as cartas sou eu. Esquecendo todos os pesadelos e pensamentos ruins, baixei as cuecas de Joe, entrelacei meus dedos nos dele e pressionei nossas mãos contra os travesseiros. Meu namorado gemeu quando me encaixei nele, uivou com os beijos que lhe dei. Assim continuou nossa cavalgada até que nos entregamos à inevitável torrente do prazer. Desabei sobre o tronco de Joe, ainda grudada nele, o rosto encostado em seu peito palpitante. Ele acariciou minhas costas e eu disse que o amava. Lembro que meu namorado beijou-me a testa e puxou as cobertas até meus ombros. Dormimos assim, juntos, ele ainda dentro de mim. Deus do céu! Era tão bom com Joe!
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capítulo 83
UKI OLHAVA PARA JUNIE MOON enquanto o oficial de justiça a submetia ao juramento. Réus não são obrigados a depor. Não perdem pontos quando não depõem e raramente ganham quando o fazem. Portanto, um advogado de defesa se arrisca ao convocar seu cliente para o banco das testemunhas. Sempre existe a possibilidade de que o réu, por mais instruído que esteja, revele algo não combinado, atrapalhe-se com as própria ideias, ria na hora errada ou predisponha os jurados de alguma forma. Mas Davis decidira convocar sua cliente. O público na galeria, bem como os espectadores que acompanhavam o julgamento pela TV , estava curioso para saber o que Junie Moon tinha a dizer. Ela vestia uma blusa branca e uma saia azul que ia até os tornozelos, ambas folgadas em seu corpo franzino. Junie havia emagrecido assustadoramente na prisão. Portanto, quando estendeu a mão direita para fazer o juramento, deixou à mostra os hematomas que tinha no braço. Uma comoção tomou conta da sala. Yuki agora entendia por que Davis convocara sua cliente para depor. Junie Moon em nada lembrava uma prostituta ou uma assassina. Na realidade, tinha o aspecto de uma vítima. Ao nal do juramento, ela subiu ao banco e se sentou com as mãos cruzadas sobre o colo, sorrindo de um modo confiante quando a advogada se aproximou. – Como tem passado? – perguntou Davis. – A senhora quer dizer... na cadeia? – Isso. Algum problema por lá? – Não, senhora. Estou bem. – Ótimo. Junie, quantos anos você tem? – Faço 23 mês que vem. – Quando foi que começou a trabalhar... na vida? – Aos 14 – respondeu a ré, baixinho. – Como isso aconteceu? – Meu padrasto me obrigou. – Está dizendo que foi seu padrasto quem a prostituiu? Ele era seu cafetão? – Pode se dizer que sim, eu acho. Ele transava comigo desde os meus 12 anos. Depois de um tempo começou a trazer os amigos para fazer a mesma coisa.
– Chegou a denunciar seu padrasto por estupro, pedofilia ou qualquer coisa nesse sentido? – Não, senhora. Ele falava que era assim que eu pagava o aluguel. – Seu padrasto está aqui hoje? – Não. Morreu três anos atrás. – E sua mãe, onde está? – Presa. Por tráfico. – Entendo. Muito bem, Junie. Você é uma jovem inteligente. Precisaria mesmo se prostituir para viver? Não poderia trabalhar num restaurante ou numa loja? Quem sabe num escritório? A ré pigarreou e respondeu timidamente: – Sexo é a única coisa que sei fazer e não me importo com isso. É como se... ao menos por alguns minutos... eu me sentisse amada por alguém. – Sexo com estranhos faz você se sentir amada? Ela sorriu e disse: – Sei que não é algo verdadeiro, mas isso me faz sentir bem. Pelo menos no momento que está acontecendo. A advogada fez uma pausa para que os jurados pudessem assimilar a tragédia pessoal da jovem. Em seguida perguntou: – Junie, por favor, diga aos jurados: você fez sexo com Michael Campion? – Não, não fiz. Nunca! – Então por que disse à polícia que fez? – Sei lá! Achei que iria agradar, então acabei falando o que eles queriam ouvir. Eu... Esse é meu jeito. – Obrigada, Junie. Sem mais perguntas, meritíssimo.
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capítulo 84
M PENSAMENTO VEIO À CABEÇA de Yuki. Algo simples e incontestável. Durante seu depoimento, Junie Moon havia transmitido uma imagem tão frágil e vulnerável de si mesma que o mais sensato seria tirá-la daquele banco o mais rápido possível para surpreendê-la nas considerações finais. Nick Gaines lhe entregou um bilhete de Red Dog. Yuki terminou de ler a mensagem no momento em que o juiz Bendinger, impaciente, falou em voz alta: – Srta. Castellano... Vai contrainterpelar ou não? O bilhete era direto. Três palavras apenas. “Acabe com ela.” Ela fez que não com a cabeça e, sussurrando na direção de Leonard Parisi, disse: – Acho melhor passarmos. Ele franziu a testa e devolveu: – Quer que eu assuma? A estratégia de Yuki tinha ido por água abaixo. Ela se levantou e, carregando uma cópia do formulário de anuência de direitos, foi até o banco das testemunhas. – Srta. Moon – disse ela, indo direto ao assunto –, este é o formulário de anuência que a senhorita assinou. Lembra-se dele? – Acho que sim. – A senhorita sabe ler e escrever, não sabe? – Sei. – Pois bem. Este formulário lhe foi entregue pela sargento Lindsay Boxer e pelo inspetor Richard Conklin quando a senhorita foi interrogada na Central de Polícia no dia 19 de abril. Diz aqui: “Antes de responder a qualquer pergunta, o signatário deverá ter plena consciência de seus direitos. Poderá permanecer calado. Tudo o que disser poderá e será usado contra si no Tribunal.” E aqui estão as rubricas. São suas? – São – respondeu Junie após examinar o documento. Yuki leu o documento da primeira à última linha, parando a cada item para perguntar: “A senhorita entendeu o que está escrito aqui? As iniciais são suas?” E a cada pergunta a ré novamente examinava o papel, respondendo: “Sim.” – Esta última parte é uma renúncia de direitos – arrematou Yuki. – Diz que a senhorita compreendeu seus direitos, abriu mão da presença de um advogado e não sofreu qualquer ameaça ou coerção. A senhorita assinou isto aqui?
– Sim, senhora. Assinei. – E disse à polícia que Michael Campion morreu em sua casa e que você se desfez do corpo dele? – Disse. – Em algum momento se sentiu ludibriada ou intimidada pelos policiais? – Não. Yuki voltou à mesa da acusação, largou ali o formulário e novamente se postou diante da ré. – Por que a senhorita fez essa confissão? – Eu queria ajudar a polícia. – Agora quei confusa, Srta. Moon. A senhorita queria ajudar a polícia. Então primeiro disse que jamais tinha visto Michael Campion e depois que ele tinha morrido em seus braços e o corpo havia sido abandonado numa caçamba de lixo. Mas ainda há pouco a senhorita disse que inventou tudo isso para agradar a polícia... Porque esse é o seu jeito. Então, em que mentira a senhorita quer que acreditemos? Junie olhou assustada para Davis e depois para Yuki. Com os lábios trêmulos e o rosto molhado de lágrimas, balbuciou algumas coisas sem sentido, até dizer: – Desculpe... Não sei... Eu não sei o que dizer. Nesse instante, alguém berrou da galeria: – Parem com isso! Era uma mulher, sentada logo atrás da mesa da defesa. Todos os presentes na sala se viraram na direção dela. Ela se chamava Valentina Campion, mulher do ex-governador e mãe de Michael. Estava de pé e se apoiava no ombro do marido. Imediatamente Yuki sentiu todo o sangue das veias descer para os pés. – Não tenho estômago para isso – falou Valentina ao marido. – Não posso admitir que continuem maltratando essa moça! Ela então saiu para o corredor e deixou a sala sob o olhar perplexo do público.
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capítulo 85
UKI PASSARA A NOITE INTEIRA revirando-se na cama. Ainda não tinha assimilado os acontecimentos da véspera, mal acreditando que se metera naquela encrenca por ordem do próprio chefe. Para então levar um tiro de misericórdia de Valentina Campion! As pessoas costumam criar vínculos afetivos durante um julgamento, algumas vezes resultando em ligações bem estranhas. Yuki tinha noção disso. Mas nunca poderia imaginar a Sra. Campion defendendo a ré! Aquilo não fazia nenhum sentido! A mãe de Michael e a assistente de promotoria jogavam no mesmo time, caramba! O tribunal já transbordava de repórteres e do público que se acomodava na plateia. A agitação aumentou ainda mais quando L. Diana Davis atravessou o corredor para ocupar seu lugar à mesa. Estava com um aspecto altivo e presunçoso. Certamente tinha passado a noite comemorando o próprio sucesso, pensou Yuki. Junie Moon entrou na sala escoltada. Sua advogada cou rapidamente de pé e voltou a se sentar ao lado da cliente. As duas mal haviam se acomodado quando o ocial de justiça ordenou que todos se levantassem. Em meio ao burburinho, o juiz surgiu à porta e foi mancando até o banco, enquanto os jurados entravam em la, deixando suas bolsas no chão e se sentando também. Dali a pouco, Bendinger reiterou suas instruções aos jurados e perguntou a Yuki se ela estava pronta para as considerações finais. A assistente disse que sim, mas sem muita convicção em seu gesto. Ela recolheu suas anotações e, equilibrando-se nos saltos de seu Jimmy Choo, seguiu até o púlpito. Organizando os papéis à sua frente, tentou ignorar a presença de todos ali, com exceção da dos jurados. Ignorou a placidez de Parisi, o sorriso irônico de Jason Twilly, a arrogância da advogada de defesa e a fragilidade patética da ré. Tampouco deu atenção a Cindy quando ela acenou dos fundos da galeria. Em seguida foi até um cavalete posicionado no centro da sala e axou um pôster com o rosto de Michael Campion, virando-o na direção dos jurados. Esperou que todos observassem a imagem do adorado garoto que vinha sendo incluído nas preces de religiosos do mundo inteiro. A intenção de Yuki era uma só: deixar claro que o objeto daquele julgamento era a morte daquele rapaz, e não a triste história da prostituta que o deixara morrer. A assistente de promotoria voltou ao púlpito e iniciou o discurso mais sincero de sua vida.
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capítulo 86
ENHORAS E SENHORES DO JÚRI, Junie Moon é uma prostituta – começou ela. – Infringe a lei cada vez que trabalha e seus clientes são na maioria estudantes menores de idade. Contudo, a acusada não é mais idônea ou menos idônea por causa daquilo que faz. Ela tem seus motivos e isso não a torna culpada da acusação que estamos aqui para avaliar. Portanto, peço aos senhores que a julguem do mesmo modo que julgariam qualquer outra pessoa. Somos todos iguais aos olhos da lei. É assim que funciona nossa Justiça. Yuki fez uma breve pausa para umedecer os lábios. Então prosseguiu: – A Srta. Moon foi indiciada por destruição de provas e homicídio culposo. Em minhas considerações iniciais, disse aos senhores que um homicídio culposo só pode ser provado desde que se ateste a má intenção, isto é, que se prove que o réu agiu de tal forma que possamos atribuir a ele “um coração mesquinho e perverso” . Pois bem. O que poderia ser um coração mesquinho e perverso? A ré contou à polícia que ignorou o pedido de socorro de Michael Campion, deixou que ele morresse em seus braços e depois, para esconder seu crime, esquartejou o corpo do rapaz e se desfez dos restos mortais. Algum dos senhores seria capaz de esquartejar um corpo? Ou ao menos imaginar o que é preciso fazer para esquartejar alguém? Ela deixou aquelas duas perguntas no ar por alguns segundos e então retomou seu discurso: – Pois bem, eu tenho diculdade para desossar um simples frango congelado. Portanto, que tipo de pessoa seria capaz de esquartejar outro ser humano que horas antes estava deitado em sua cama? Que tipo de alma, caráter e coração essa pessoa teria? Não seria essa a exata definição de um coração mesquinho e perverso? A ré fez sua conssão quando teve certeza de que não estava sendo lmada e achou que falava extraocialmente. O que foi um equívoco de sua parte. Uma confissão é uma confissão, senhoras e senhores, tenha sido ela lmada ou não. É simples assim! A Srta. Moon admitiu sua culpa e deve ser judicialmente imputada por ela. Nosso dever é provar essa culpa para além de qualquer dúvida razoável. Dessa forma, caso haja alguma pergunta para a qual os senhores ainda não tenham encontrado resposta, saibam que isso é perfeitamente normal. A tarefa dos senhores é chegar a uma conclusão para além de qualquer dúvida razoável, e não de toda e qualquer dúvida. Yuki sentiu um nó na garganta quando disse: – Não sabemos onde está o corpo de Michael Campion. Só o que sabemos é isto: a última pessoa a vê-lo com vida está sentada bem ali, naquela cadeira. Junie Moon confessou seu crime com todos os detalhes. E isso basta para que os senhores façam justiça à família do rapaz e
considerem a ré culpada!
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capítulo 87
INGUÉM SABIA O SIGNIFICADO da letra “l” em L. Diana Davis. Alguns diziam que era a inicial de um nome estranho qualquer, como Lorelei ou Letitia. Outros armavam que a advogada adotara aquela letra para criar uma aura de mistério quanto à sua identidade. L de “letal”: era essa a opinião de Yuki. Davis vestia Chanel para as considerações nais: um terninho rosa de costuras pretas que fazia lembrar Jackie Kennedy, embora não houvesse nada da ex-primeira dama na voz estridente da advogada. – Senhoras e senhores. Este julgamento vai car conhecido por uma pergunta sem resposta: “Onde está o corpo?” Pois bem. Tudo se resume a isso neste julgamento. Onde está o corpo? Vamos um pouco além. Onde está o DNA? Onde está a conssão? Onde está a prova neste caso? A acusação está tentando nos convencer de que nada disso importa. Uma pessoa confessa um crime, é detida, e a polícia não tem nenhum registro dessa conssão. Mas isso não signica nada. Não há corpo, não há sangue em lugar nenhum. Mas isso também não signica nada. Sinto muito, mas tem alguma coisa errada aqui! Algo de muito errado! Ela fez uma pausa e foi correndo a mão pelo parapeito que a separava dos jurados. Depois prosseguiu: – Os senhores se recordam da Dra. Maria Paige, a renomada psiquiatra que veio nos dar sua opinião. Pois bem. Segundo a Dra. Paige, minha cliente tem uma autoestima tão baixa que acabou confessando o crime que não cometeu. A psiquiatra armou que a Srta. Moon sente uma enorme vergonha de ser prostituta, portanto fez a confissão de modo a expiar essa culpa. A advogada tinha retornado ao púlpito, de onde encarava cada um dos membros do júri: – Senhoras e senhores, vou lhes contar um pequeno segredinho sobre as falsas conssões. Sempre que ocorre um crime cuja vítima seja famosa, acontece um interessante fenômeno. Os telefones da polícia não param de tocar. São centenas e centenas de falsas conssões. Pessoas querendo se entregar, confessando os mais hediondos crimes! Elas admitem a autoria ainda que os exames de DNA provem o contrário! Interessante, não? Fazem isso pelos motivos mais impensáveis. Contudo cabe à polícia separar o joio do trigo, as falsas conssões das conssões verdadeiras. E como já foi dito aqui, a confissão de Junie Moon era falsa! A advogada deu uma ênfase exagerada àquela última palavra. Em seguida passou a mão pelos cabelos e retomou o seu discurso: – A ausência de provas neste caso é algo que impressiona. Se a vítima fosse outra pessoa
qualquer, nunca haveria um indiciamento, muito menos um julgamento. Mas Michael Campion é uma celebridade do mundo da política, ao passo que minha cliente é uma pária da sociedade. Por último, quero lembrar que isto aqui não é um circo nem um palco de teatro. É um tribunal de justiça! – àquela altura Davis gritava. – Portanto, peço que os senhores usem de bom senso e avaliem a realidade dos fatos para chegarem à única conclusão possível: Junie Moon é inocente de todas as acusações covardemente imputadas a ela. E ponto final.
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capítulo 88
ASSAVA DAS SETE DA NOITE quando cheguei ao Susie’s. Os clientes junto ao bar já tinham atingido um grau de animação ligeiramente alto. Eu não conhecia a música que a banda tocava, mas sabia que tinha tudo a ver com o sol e o mar cristalino do Caribe. De repente senti uma vontade louca de me mudar para a Jamaica com Joe e abrirmos uma loja de equipamentos de mergulho. Sem falar dos drinques de maracujá e do peixe grelhado na praia. Vi que Lorraine recolhia um prato de ossos de frango de nossa mesa. Eu ainda me aproximava quando ela se adiantou e disse que já traria minha cerveja, deixando um cardápio comigo. Claire ocupava a cabeceira enquanto Cindy e Yuki se acomodavam num dos bancos. Percebi que Yuki estava com uma cara péssima, o aspecto de quem tinha perdido uma guerra. Puxei a cadeira e perguntei: – Então, o que eu perdi? – Yuki arrasou nas considerações finais. Ela... – falou Cindy, sendo logo cortada por Yuki: – Mas Davis revidou à altura! – Ficou maluca? – insistiu minha amiga repórter. – A palavra final foi sua. Você arrasou! Eu nem precisei insistir. Depois de fazermos nossos pedidos, Yuki começou a contar todos os detalhes, imitando cada trejeito de L. Diana Davis. Quando parou para respirar, Cindy a instigou: – Vai, Yuki! Queremos ouvir sua réplica. Repita com vontade! A assistente de promotoria desatou a rir, uma gargalhada alta e forte que a fez enxugar as lágrimas com um guardanapo e beber de um só gole sua margarita, drinque que raramente pedia. Por fim deixou escapar um arroto, riu sem graça e disse: – Detesto esperar a sentença. Foi a nossa vez de cair na risada. Cindy continuou insistindo até que Yuki entregou os pontos. Com seus habituais gestos, palavras e olhares, ela começou: – Eu disse aos jurados: “Um crime foi cometido? Bem, senhoras e senhores, a ré está aqui por um motivo. Foi indiciada por um júri de acusação e não por causa da distância social que a separava do falecido Michael Campion. Junie Moon não chamou a polícia para fazer uma falsa acusação. Foi a polícia que fez seu trabalho e acabou chegando à última pessoa a ver o rapaz com vida. Ela própria disse isso.” – Mandou bem, amiga – aplaudiu Claire.
Yuki sorriu e continuou: – “O corpo de Michael não foi encontrado, mas após sua visita à casa de Junie Moon ele jamais ligou para casa, nem usou o cartão de crédito, o celular, ou mandou um e-mail para os pais ou amigos dizendo que estava bem. Ele nunca faria uma coisa dessas. Não era de sua natureza sumir sem dar notícia. Portanto, onde está Michael Campion? Junie Moon nos contou. Ele morreu! Foi esquartejado! E seu corpo foi jogado no lixo. Ela jogou! E ponto final.” – Eu não disse? – arrematou Cindy. – Nossa amiga arrasou!
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capítulo 89
A MESMA NOITE DE NOSSO encontro no Susie’s, Claire e eu conversávamos no quarto dela. Edmund estava em turnê com a Orquestra Sinfônica de São Francisco e minha amiga tinha pedido que eu dormisse em sua casa, dizendo que não queria estar sozinha caso entrasse em trabalho de parto. Ela agora tentava acomodar seu corpo volumoso no colchão de viscoelástico. – Maior que isso eu não posso car! Não é possível. Não quei assim tão gorda com aqueles dois marmanjos na barriga. Essa mocinha ainda não nasceu, mas já está aprontando! Ri, achando provável que ela fosse bem mais magra quando cou grávida pela primeira vez vinte anos antes. Ainda assim preferi ficar quieta. – Quer comer alguma coisa? – perguntei. – Qualquer coisa que estiver no congelador – respondeu. – Entendido – falei sorrindo, e dali a pouco voltei com um pote de sorvete de creme e duas colheres. Claire retirou a tampa e começamos a alternar as colheradas. – E aí, como vão as coisas com Joe? – perguntou. – Como assim, “como vão as coisas”? – Essa história de vocês morarem juntos, burrinha. Estão pensando em algo mais sério, tipo... casamento? – Adoro seu jeito delicado de ser... – falei rindo. – Você também não é nenhuma rainha da delicadeza. Claire ficou em silêncio. Rimos e em seguida comecei a falar. Claire conhecia boa parte da história: meu casamento fracassado, o relacionamento com Chris, que havia sido morto numa operação da polícia. Falei também de minha irmã Cat, divorciada e com duas lhas pequenas, sempre assoberbada com o trabalho e às turras com o ex-marido. – Mas aí eu co olhando para você, amiga – falei. – Esta sua casa, um marido que te ama, dois lhos já crescidos e, depois desses anos todos, você ainda tem coragem e amor sucientes para gerar sua Ruby Rose. – Mas e aí, querida, o que pretende fazer? – perguntou Claire. – Vai deixar que Joe chegue à conclusão de que você não o ama o bastante para casar? Vai esperar que outra mulher passe a perna em você e fique com ele? Deixei o corpo cair sobre os travesseiros e quei olhando para o teto, pensando em meu
trabalho, nas 17 horas diárias que eu passava ao lado de Conklin e no quanto eu gostava disso. Ultimamente minha vida se resumia à polícia. Fazia tempo que eu não praticava tai chi chuan nem tocava violão. Para piorar, as corridas noturnas com Martha agora eram um hábito apenas de Joe. Também pensei em como minha vida seria diferente caso eu fosse casada e tivesse lhos: lhos que cariam preocupados sempre que eu saísse para trabalhar. E se um dia eu levasse um tiro? Então mudei minha linha de raciocínio: e se eu casse sozinha para o resto da vida? Será que era isso que eu queria? Estava prestes a dividir meus pensamentos com Claire quando, depois de me ver tanto tempo calada, ela tomou a palavra: – Você vai acabar descobrindo, meu amor. – Em seguida tampou o pote de sorvete já vazio e largou sua colher sobre o pires na mesinha de cabeceira. – É só ter calma que você descobre o que é melhor para você... Será? Como Claire podia ter tanta certeza enquanto eu não fazia a menor ideia?
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capítulo 90
TRÊS QUARTEIRÕES DA CENTRAL, a padaria Flor do Campo é um ponto de encontro da turma da polícia. Às seis e meia da manhã, o cheirinho de pão fresco instigava o paladar dos clientes do mercado de ores, onde a loja está localizada. Joe, Conklin e eu ocupávamos uma das mesas externas com vista para as barraquinhas. Era a primeira vez que os dois se encontravam, situação que me causava certo desconforto. Joe revelava a Conklin suas impressões sobre os casos de incêndio, dizendo que concordava conosco, que uma pessoa sozinha não seria capaz de dominar as vítimas. – Esses caras são inteligentes e exibidos – disse Joe. – Quidquid latine dictum sit, altum videtur. – Até você, Joe? – perguntei surpresa, achando que eu era a única pessoa no mundo que não sabia latim. – Mas o que isso significa? Sorrindo, meu namorado respondeu: – “Tudo o que é dito em latim parece profundo.” Conklin concordou com um olhar rme, exatamente como ele fazia ao interrogar algum suspeito. Meu parceiro avaliava Joe, talvez esperando que meu namorado tivesse alguma teoria que pudesse nos ajudar. Ou, melhor ainda, que ele se revelasse um grande idiota. Eu não tinha dúvida de que Joe também avaliava Conklin. – É, eles são inteligentes – disse Conklin. – Pelo visto, mais do que a gente. – Já ouviu falar de Leopold e Loeb? – perguntou Joe, recostando-se na cadeira enquanto o garçom deixava uma torta de morango à sua frente. Em seguida o atendente deu a volta na mesa para servir os ovos mexidos que eu e Conklin havíamos pedido. – Vagamente – respondeu meu parceiro. – Bem – continuou Joe –, em 1924, dois garotos inteligentes e exibidos, além de ricos e antissociais, decidiram matar uma pessoa numa espécie de desao intelectual. O objetivo era ver se eles conseguiam se safar. Leopold tinha um QI altíssimo, em torno de 200, e Loeb, de 160. Escolheram aleatoriamente um colega de escola e mataram o rapaz. Mas, apesar de tanta inteligência, cometeram alguns erros bobos. – Acha que nossos caras podem ter um motivo semelhante? Querem ver se escapam ilesos? – perguntei. – É o que está parecendo. – Esses seriados policiais de TV também não ajudam em nada – completou Conklin. –
Ensinam a não deixar vestígios na cena de um crime. Nossos caras têm sido cuidadosos. As pistas que encontramos não estavam lá à toa. Foi quando parei de prestar atenção e passei a observar a linguagem corporal daqueles homens. Joe despejava as informações sobre Conklin de maneira um tanto agressiva. Por sua vez, Conklin escutava com atenção, mas sem se mostrar servil. Eu gostava tanto daqueles dois que minha cabeça virava ora para um, ora para outro, como se eu acompanhasse uma partida de tênis. Olhos azuis. Olhos castanhos. Meu namorado. Meu parceiro. Deixei os ovos mexidos no canto do prato. Pela primeira vez na vida eu não tinha nada a dizer.
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capítulo 91
UKI ESTAVA SENTADA À MESA da acusação entre Nick Gaines e Leonard Parisi, esperando o início dos trabalhos. Era sexta-feira. Os jurados haviam deliberado por três dias e na véspera, por volta das dez da noite, a Promotoria fora avisada de que eles tinham chegado a um veredicto. Yuki se perguntava se os membros do júri apressaram a decisão para carem livres no m de semana. Mas anal de contas ela não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim para o povo de São Francisco. Yuki estava se sentindo elétrica. Talvez porque viesse bebendo café desde as seis da manhã, após ter dormido apenas duas horas. – Você está bem? – perguntou ela a Nick, que respirava pela boca, exalando um cheiro forte de Vick VapoRub. – Estou, e você? – Ótima. À sua direita, Red Dog escrevia um memorando num bloco amarelo. Parecia calmo, alheio a tudo e a todos. Pura encenação. Na verdade, Parisi era um vulcão prestes a entrar em atividade. Do outro lado do corredor, L. Diana Davis estava de cabelos molhados e devidamente maquiada e penteada. Seu braço repousava sobre os ombros frágeis de Junie Moon. Às nove em ponto, o ocial de justiça, um homem enorme de uniforme verde, ordenou que todos cassem de pé. Yuki se levantou e voltou a se sentar assim que o juiz tomou seu lugar à tribuna. Nick tossiu no lenço e Parisi tampou e guardou sua caneta no bolso interno do paletó. Com as mãos cruzadas à frente, Yuki virou a cabeça para ver os jurados que entravam à sua direita. Os 12 membros do júri estavam bem-vestidos: os homens de terno e gravata, as mulheres de joias e laquê nos cabelos. A porta-voz do grupo se chamava Maria Martinez, uma mulher de 30 anos, professora de sociologia e mãe de dois lhos. Yuki não conseguia imaginá-la se pronunciando a favor de uma prostituta que deixara um rapaz morrer para depois jogá-lo numa caçamba de lixo. Martinez deixou sua bolsa no chão, ao lado do banco. Yuki sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha quando o juiz Bendinger abriu seu laptop, disse alguma piadinha em voz baixa para o escrivão a seu lado e enfim se endireitou na cadeira para sentenciar: – Ordem no tribunal! A sala cou em silêncio e o juiz perguntou à porta-voz dos jurados se eles tinham chegado a
um veredicto. – Chegamos, sim, meritíssimo – respondeu Maria Martinez, entregando ao magistrado o formulário com a decisão. Bendinger leu o documento e devolveu a folha à mulher. Nick tossiu novamente e Parisi, estendendo o braço por trás de Yuki, deu um tapinha na nuca do assistente, censurando-o com o olhar. – Queira por gentileza ler o veredicto – instruiu o juiz à porta-voz. Martinez cou de pé. A mulher parecia menor do que de fato era, vestida no terninho cinza. Pigarreou e disse: – Nós, do júri, deliberamos que a ré, Junie Moon, é inocente da acusação de homicídio culposo. Deliberamos também que a ré, Junie Moon, é inocente da acusação de destruição de provas... Uma onda de exclamações tomou conta do recinto e o juiz precisou recorrer ao martelo para restabelecer a ordem. – O que ela disse? O que ela disse? – perguntava Gaines a Yuki enquanto Bendinger agradecia e dispensava os jurados. Yuki se sentia mal. Ela havia perdido. Perdido e decepcionado a todos: a polícia, a Promotoria, os pais de Michael e até o próprio Michael. Seu dever era fazer justiça ao rapaz, mas ela fracassara. “Esse trabalho não é para mim” , disse ela a si mesma, levantando-se de um modo abrupto. Sem falar com Parisi ou Nick, virou-se para os Campion e disse: – Desculpem-me. Em seguida baixou os olhos e foi abrindo caminho através da multidão que bloqueava o corredor.
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capítulo 92
UKI VIU QUANDO JASON TWILLY se levantou de seu lugar na galeria para segui-la. Contornando as pessoas que conversavam ao longo do corredor, ela seguiu até o banheiro, entrou na cabine que estava livre e trancou a porta. Ficou ali por alguns minutos, a cabeça entre as mãos, pensando no que acabara de acontecer. Depois caminhou até a pia, lavou o rosto e colocou os óculos escuros. De volta ao corredor, tomou a porta de incêndio e desceu as escadas com o coração pulando dentro no peito, a cabeça ainda assimilando aquele veredicto absurdo. As pessoas cariam revoltadas ao saber que Junie Moon sairia da cadeia e culpariam a incompetência da Promotoria com toda a razão. Ela, Yuki, era a única responsável por aquela derrota. Ao chegar ao térreo, traçou uma linha reta até a saída, sem tirar uma vez sequer os olhos do chão. Naquela manhã cinzenta, ela enxergou Leonard Parisi no topo da escadaria, enfrentando um grupo de repórteres que não parava de lhe fazer perguntas, microfones e câmeras em punho. A uns 15 metros dali, três degraus abaixo, Maria Martinez e outros jurados também tinham seu minuto de fama. Yuki conseguiu ouvir algumas frases que a mulher dizia: – Não tínhamos como condenar a ré. Muitas dúvidas não foram respondidas... De repente as câmeras se viraram para as enormes portas de aço e vidro do prédio, das quais saíam L. Diana Davis e Junie Moon, uma abraçada à outra. Yuki apertou o passo a tempo de ver Connor e Valentina Campion ao lado do carro da família, o motorista a postos, o ex-governador conversando seriamente com Jason Twilly. Apesar de o sinal para pedestres estar fechado, ela atravessou a Bryant e seguiu direto para o estacionamento em que deixara seu carro, mais tranquila por se misturar à multidão de pedestres e por saber que o escritor estava ocupado com alguém mais importante do que ela. Tinha as chaves na mão quando enfim encontrou seu Hyundai numa das vagas do fundo. No momento em que destravou a porta do motorista, Yuki ouviu alguém chamar seu nome. Virando-se, fez uma expressão de raiva ao ver que o escritor corria a seu encontro. – Yuki! Espere um minutinho! A perseguição havia recomeçado.
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capítulo 93
APIDAMENTE ELA ENFIOU A CHAVE na fechadura, ouvindo o estalido seco das portas destravando. – Yuki, espere um minutinho! Virou o rosto mais uma vez, ainda com a bolsa pendurada ao ombro e a pasta na mão esquerda. – Não tenho nada a lhe dizer, Jason. Vá embora! O escritor franziu a testa, armando uma expressão de pouquíssimos amigos, o olhar de alguém prestes a perder o controle. – Mas eu tenho, gata. E você vai me ouvir! Sorte sua ter perdido aquele caso, porque Junie Moon não matou Michael Campion. Eu sei quem matou. O quê? O que você disse? – Olhe para mim, Yuki! Olhe! Talvez tenha sido eu. Entrou no carro e bateu a porta na cara do escritor. Jason curvou o tronco e começou a esmurrar a janela, berrando através do vidro: – Nosso assunto ainda não terminou! Se fugir será pior para você! Ela engatou a primeira, pisou fundo no acelerador e saiu cantando pneus. Ligou para Lindsay assim que saiu à rua. Em meio à barulheira do trânsito, ela berrava: – Jason Twilly acabou de me dizer que sabe quem matou Michael Campion, mas quer que eu acredite que foi ele! Que foi ele que matou o garoto! E talvez tenha sido mesmo! Aquele homem é maluco! Quando acessou a rua atrás do estacionamento, Yuki viu a Mercedes de Jason no retrovisor. Então avançou o sinal vermelho e entrou sem sinalizar numa rua secundária. Quando percebeu que não estava mais sendo seguida, voltou até o prédio onde cava o tribunal e estacionou numa vaga reservada aos bombeiros. Mostrou seu documento para o segurança, passou direto pelo detector de metais e subiu de escada até o terceiro andar, onde cava a Central de Polícia. Ainda ofegava quando enm encontrou sua amiga. – Fique tranquila – falou Lindsay. – Agora você está sob minha proteção.
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capítulo 94
UAS HORAS APÓS DEIXAR o Tribunal de Justiça, Yuki colocou suas coisas numa mochila e saiu da cidade, tentando apagar da memória a imagem de Jason Twilly enquanto atravessava a Golden Gate rumo a Point Reyes. Será que o escritor tinha matado Michael Campion? Que motivo ele teria para cometer o crime? E por que contou isso a ela? Ligou o rádio, sintonizou uma estação de música clássica, aumentou o volume e deixou que a melodia tomasse conta do carro e de sua mente. Fazia uma tarde linda e ela estava indo para o chalé que as amigas costumavam alugar. Sua ideia era caminhar na praia, relaxar e lembrar a si mesma de que ela não era uma perdedora: nunca tinha sido e jamais seria! Assim que entrou na Autoestrada 1, deixou-se levar pela beleza da paisagem. Desligou o rádio e abriu as janelas do carro para que pudesse ouvir o barulho das ondas quebrando nos paredões da encosta. A brisa úmida varria os cabelos de seus olhos e deixava seu rosto corado. Ela olhava para a imensidão azul do mar e respirava fundo, tentando expulsar a tensão de seu corpo. Na pequena cidade de Olema, Yuki saiu da rodovia, passou pelas lojinhas do primeiro cruzamento e foi seguindo por vias secundárias, conando em sua memória. Conferiu as horas no relógio novo: ainda eram duas e meia da tarde, haveria muito sol pela frente. A placa que indicava quinhentos metros antes da entrada para o chalé estava praticamente encoberta pela vegetação, mas ela avistou a tempo de dobrar num vale arborizado e alcançar a estrada de terra que subia pela colina. Após algumas curvas, ela enxergou a entrada para o pequeno complexo de chalés. A gerente do lugar, uma loura alta chamada Paula Vaughan, deu-lhe as boas-vindas e conversou amenidades enquanto inseria o cartão de Yuki na máquina. Ao passar os olhos no recibo, a mulher ligou a pessoa ao nome: – Acabei de ver no jornal. Pena que você não ganhou. Yuki ergueu o rosto e disse: – Os restaurantes daqui fazem entregas? Você por acaso tem uma lista telefônica? Minutos depois entrou no chalé, deixou a bagagem no maior dos dois quartos e abriu as portas que davam para o deque. Havia uma trilha que passava à direita da casa, cortando o bosque por uns cem metros colina acima até chegar a uma clareira de onde se tinha uma extraordinária vista do mar.
Yuki tinha caminhando por aquela trilha com Lindsay. Vestiu um jeans e calçou os tênis. Em seguida retirou da pasta sua pistola recém-comprada, guardou-a num dos bolsos da jaqueta de náilon e enou o celular no outro. Mas antes que pudesse explorar o local, ouviu alguém bater à porta. Ouviu também que seu coração novamente batia acelerado.
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capítulo 95
ASON TWILLY VESTIA CALÇAS de sarja e um suéter azul-marinho, com uma bolsa de couro pendurada ao ombro. Bonito e elegante, parecia ter saído de um editorial de moda, e seu sorriso enviesado não apresentava nenhum sinal de ameaça. – O que está fazendo aqui? – perguntou Yuki, mantendo a porta entreaberta. Fechou a mão sobre a pistola que tinha no bolso e se sentiu mais segura, ciente do poder de fogo da arma, do estrago que ela podia fazer. – Sabe de uma coisa? Se não gostasse tanto de você, a essa altura eu estaria muito chateado. Passei a vida toda dispensando mulheres que corriam atrás de mim. Agora você ca aí, fazendo jogo duro, batendo a porta na minha cara! – Como descobriu que eu estava aqui? – Esperei você sair de casa e segui atrás. Não foi difícil. Peço desculpas pela grosseria de hoje cedo. – Jason suspirou e disse: – Sabe o que é? Estou metido numa encrenca. Recebi o adiantamento da editora e torrei o dinheiro. – Ah, é? – É. Perdi no jogo. Uma fraqueza minha. – Ele acrescentou ao sorriso uma pitada de charme juvenil. – Para falar a verdade, as coisas andam fora de controle ultimamente. Só estou contando isso para que você entenda. Há uma turma atrás de mim. Um pessoal barra-pesada. Querem o dinheiro deles de volta e não estão nem aí para meus problemas. – Você está certíssimo, Jason. O problema é seu, não meu! – Espere, espere. Você pode me escutar? Não tenho como devolver o adiantamento da editora. Estou endividado até o pescoço. Só preciso que você converse comigo um pouquinho, que me dê uma luz sobre o caso de Michael Campion, alguma ideia, sei lá! Qualquer coisa que me ajude a pensar em um final decente para o livro que estou escrevendo. – Você está brincando! Depois de toda a confusão que aprontou! Não tenho nada a lhe dizer. Agora adeus! – Yuki. Não vou fazer nada. Prometo que não encosto um dedo em você. Preciso apenas de uma mísera horinha de seu tempo. Aliás, o interesse é seu também. Você é a assistente de promotoria dedicada que levou uma rasteira daquela bruxa. Você foi burlada! – E se eu não quiser falar? – Então vou ter de improvisar e só Deus sabe o que vai sair da minha cabeça. Não me faça pedir de ajoelhos, por favor!
Ela tirou a arma do bolso. – Isto aqui é uma pistola – falou. – É, estou vendo – retrucou Jason, trocando seu sorriso por uma acintosa gargalhada. – É muito bom, é muito bom... – Está se divertindo? Ótimo! – Yuki, sou um jornalista. Não sou nenhum maoso! Quer saber? Esta arma pode até ajudar. Vai deixar você mais calma. Então, que tal darmos uma voltinha por aí? – Venha comigo – disse ela, saindo à varanda e batendo a porta.
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capítulo 96
UKI NÃO TIRAVA A MÃO DA PISTOLA enquanto subia a trilha com o escritor. Jason não parava de fazer perguntas, querendo saber detalhes sobre o júri, a defesa e o veredicto. Por um instante voltou a enxergá-lo como o sujeito charmoso por quem ela se interessara algumas semanas antes, mas logo se lembrou de quem ele realmente era. – Na minha opinião, o veredicto foi um grande equívoco – disse Yuki. – Não sei o que eu poderia ter feito de diferente. – A culpa não foi sua. Junie é inocente – falou o escritor num tom amistoso. – Inocente? Como sabe disso? Eles então chegaram ao topo da colina. Bastava subir um rochedo para ter uma das melhores vistas do Pacíco. Jason e Yuki se sentaram na pedra, afastados alguns metros um do outro. O escritor tirou da bolsa duas garrafinhas de água, destampou uma delas e entregou a Yuki. – Não acha estranho que a polícia não tenha encontrado nenhuma prova material na suposta “cena do crime”? – perguntou ele. – Estranho, sim, mas não impossível – respondeu ela, bebendo um belo gole de água. – A tal informação que a polícia foi investigar... Foi uma ligação anônima, não foi? – Como você sabe? – Estou escrevendo um livro sobre Michael, esqueceu? Eu seguia o garoto o dia todo. Era isso que eu fazia na noite em que ele foi até a casa de Junie. Eu não conseguia acreditar! Michael Campion entrando na casa de uma prostituta? Pensei na mesma hora que meu livro seria um sucesso. Então, quei ali esperando, até que vi o rapaz sair. Vivo! Mas, claro, jamais imaginaria que ele iria sumir depois. – Hããã... Yuki esperava que Jason contasse quem era o assassino ou assumisse a autoria do crime. Mas de repente ela começou a se sentir estranha. Que diabo está acontecendo? Passou a enxergar vultos dançando à sua frente e a voz do escritor parecia reverberar em seus ouvidos. O que era aquilo? O que ele estava dizendo? – Tudo bem? – perguntou Jason. – Você está com uma cara esquisita... – Estou bem – respondeu ela, percebendo que estava prestes a desmaiar. Apoiou as duas mãos no chão para não cair. Yuki se lembrou de que tinha uma arma, de que não podia perder a noção do tempo. Mas àquela altura ela não era mais dona de si.
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capítulo 97
CABEÇA DE JASON FLUTUAVA à sua frente, disforme e fora de foco, o nariz enorme. Suas palavras saíam num jorro contínuo da boca e Yuki estava fascinada com a sonoridade delas, ainda que não conseguisse compreendê-las. Acorde, ela dizia a si mesma. Acorde! – O que você disse? – perguntou Yuki – Quando Michael sumiu – falou o escritor com paciência –, a polícia não encontrou nada. Nenhuma pista, nenhum suspeito. Fiquei esperando durante meses. – Ahã. – As pessoas começaram a perder o interesse na história. Então z o que precisava ser feito. Cumpri com meu dever de cidadão, certo? Liguei para a polícia e entreguei Junie. Não inventei nada. Afinal tinha visto Michael sair da casa dela. – Você... o quê? – Isso mesmo. Fui eu que liguei. Depois, como se alguém tivesse ouvido minhas preces, Junie confessou. Foi tão inacreditável que cheguei a pensar que ela realmente matara Michael. Mas você não conseguiu colocá-la atrás das grades, não é? Portanto, lá se foi o nal perfeito para meu livro. Seja lá quem matou o rapaz, essa pessoa ainda está livre por aí. Só que ainda é possível dar um desfecho espetacular para minha história e colocar uma pedra nisso tudo. É aí que você entra, Yuki. Acho que vai gostar da poesia da coisa, da dramaticidade... Ela via luzes coloridas por trás do escritor, imagens que não conseguia decifrar. Seus ouvidos latejavam cada vez mais forte. O que está acontecendo? – O que está... acontecendo... comigo? – Você está tendo um colapso nervoso. É um sintoma da depressão. – Eu? – É. Você... está... deprimida. – Nãããão – disse Yuki. Tentou se levantar, mas sentiu as pernas fraquejarem. Virando-se para Jason, deparou com olhos enormes, tão escuros quanto dois buracos negros. Onde está minha pistola? – Você está muito deprimida. Foi o que me disse no estacionamento hoje de manhã. Falou que não ama ninguém, que sua mãe morreu por sua culpa. Disse também que não se perdoa pelas besteiras que cometeu no julgamento... – Você está tentando... me enlouquecer.
– Você já está louca! Tudo foi lmado. Milhares de pessoas viram você sair correndo do tribunal – disse o escritor articulando as palavras, mas que para Yuki parecia uma alucinação, algo incompreensível. – A verdade é uma só. Você saiu correndo para o estacionamento e fui atrás. Falou que queria se matar porque não suportava tamanha vergonha. Como se chama o código de honra dos japoneses? Harakiri. É esse o nome, não é? – Nãããão! – Foi, sim! Foi exatamente isso que disse. Fiquei tão preocupado que peguei o carro e saí atrás de você. – Você...? – Eeeeeu! Então me mostrou a arma que tinha comprado para se matar e, acima de tudo, dar a meu livro o fim sensacional que ele merece! A pistola! A pistola! O braço de Yuki parecia de borracha. Ela não conseguia erguê-lo. Além disso, a luzes continuavam piscando. – Eu não... Eu não... Começou a escorregar da pedra quando Jason a agarrou com um gesto brusco, dizendo: – Você meteu os pés pelas mãos e resolveu acabar com sua vidinha miserável! Não há nal melhor do que este! Um nal, digamos... explosivo. Bum! Uma bala na sua testa e pronto! Mais dinheiro entrando na minha conta bancária! Graças a esse seu gesto nal, digno de Hollywood. E tem uma última coisa: eu não suporto mais ouvir seu nome. – Que horas são? – perguntou Yuki piscando, antes que o mundo a seu redor mergulhasse na escuridão.
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capítulo 98
IQUEI APAVORADA. Estávamos recebendo o sinal de áudio enviado pelo transmissor no relógio de Yuki quando de repente ele cou mudo, lançando-nos num silêncio assustador. Apertei o braço de Conklin, interrompendo nosso avanço pela clareira que logo adiante ramicava em três caminhos diferentes. – Perdi o sinal! – Esperem, esperem! – disse Conklin ao microfone preso à gola de sua camisa, comunicandose com a equipe de Operações Especiais espalhada pelo bosque. Em poucos segundos retomamos o sinal. Eu não ouvia mais Yuki, e sim a voz de Jason, que chegava até nós com razoável clareza. “Minha intenção era outra” , dizia ele. “Achava que ia convencê-la a saltar deste penhasco. Mas mudei de ideia: você vai meter uma bala na própria testa!” Yuki deu um grito estridente. Jason estava ameaçando minha amiga! Por que ela não tinha sacado a arma? – Lá em cima! No fim da trilha! – gritei para Conklin. Estávamos a uns duzentos metros do topo da colina. Duzentos metros! Eu não queria saber se o escritor conseguiria nos ouvir. Partimos em disparada. Eu sentia os galhos chicoteando minhas roupas e arranhando meu rosto. Tropecei numa raiz e me agarrei a uma árvore para não cair. Meus pulmões ardiam com o esforço da corrida. Logo avistei duas silhuetas contra o céu azul. O escritor estava muito próximo de Yuki, o que tornava arriscado um tiro àquela distância. – Jason! – gritei. – Afaste-se dela! Agora! Ouvi um tiro. Meu Deus! Yuki, Não! Pássaros voaram das árvores, riscando o céu enquanto o disparo ecoava pela encosta. Eu e os sete homens de nossa equipe corremos em direção à clareira. Yuki estava de joelhos, a testa encostada no chão. A arma está na mão dela. Ajoelhei-me ao lado de minha amiga e a sacudi pelos ombros. – Yuki! Yuki! Fale comigo! Pelo amor de Deus, fale comigo!
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capítulo 99
ESCRITOR ESTAVA COM as mãos para o alto: – Felizmente vocês chegaram, sargento! Eu estava implorando que Yuki não se matasse. Mas ela estava decidida! Abracei minha amiga. Eu sentia no ar o cheiro de pólvora, mas não vi vestígios de sangue nem qualquer ferimento em seu corpo. Ela devia ter disparado a esmo. – Yuki, querida, estou bem aqui. Resmungou alguma coisa, engrolando as palavras. Percebi pelo seu hálito que não estava alcoolizada. Será que tinha sido dopada? – O que fez com ela? – gritei para Jason. – Eu? Nada! Encontrei ela assim! – Você está preso, desgraçado! – gritou Conklin. – Ponha as mãos na cabeça! – Posso saber por quê? Se não for muito trabalho, claro! – Para começo de conversa, que tal tentativa de homicídio? – Você está de gozação. Eu nem encostei nela! – Yuki tinha um grampo no relógio, idiota. Você queria que ela pulasse lá embaixo. Está tudo gravado! Conklin fechou com força as algemas no pulso de Jason, a ponto de ele ganir de dor. Pedi um helicóptero pelo rádio e abracei novamente minha amiga. – Lindsay? – ela me chamou. – O relógio... Está tudo gravado, não está? – Está, querida – falei, abraçando-a ainda mais forte e feliz por tê-la encontrado com vida. Enquanto consolava minha amiga, eu pensava nos últimos acontecimentos. O escritor estava detido por ter atentado contra Yuki, mas o motivo pelo qual o havíamos seguido até ali era o que o próprio escritor dissera a minha amiga no estacionamento mais cedo: ele era o assassino de Michael Campion. Percebi a contradição naquele fato. Dez minutos antes, Jason havia afirmado a Yuki que o rapaz saíra com vida da casa de Junie. Conklin se agachou a nosso lado: – Quer dizer que tudo não passou de uma armação? Só para ele conseguir um nal para o livro que está escrevendo? – Foi o que esse doido disse. E por muito pouco não presenciamos o m de Yuki. No entanto, era Jason Twilly que chegava ao m da linha. Um epílogo com direito a prisão, julgamento e, se Deus quisesse, a
condenação. Minha amiga moveu os lábios, mas as palavras insistiam em não sair. Ela está com dificuldade para respirar. – O que ele deu para você? Alguma droga? – Água. – Espere um pouco, querida. Os médicos já estão chegando. Yuki estava deitada com a cabeça em meu colo quando o helicóptero surgiu no alto de uma montanha. Baixei o rosto para proteger os olhos e foi quando vi as garrafas na trilha. Gritando em meio à barulheira, falei com ela: – Ele colocou alguma coisa na água! Foi isso que você quis dizer? Jason batizou a água? Ela conrmou com um aceno de cabeça. Conklin então recolheu e embalou as provas.Alguns minutos depois, Yuki era içada na maca até o helicóptero.
PARTE 5 DESEJO ARDENTE
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capítulo 100
ALCÃO E POMBO DEIXARAM o carro um pouco à frente da mansão vitoriana em Pacic Heights, a maior naquela vizinhança que se destacava por suas casas imponentes, todas com uma vista cinematográfica da baía. Apesar da opulência, o novo alvo da dupla tinha uma arquitetura aconchegante e tipicamente americana, ainda que inacessível para o bolso da maioria dos mortais. Os dois rapazes admiravam os vitrais, as cúpulas e as aleias que separavam a construção principal do alojamento dos empregados e da casa dos vizinhos. Tinham estudado a planta baixa no site da imobiliária, por isso conheciam cada canto da residência. Estavam preparados e ansiosos, mas não a ponto de cometerem algum engano. Aquela seria a grande e última cartada de Falcão e Pombo: eles fariam seu trabalho, deixariam seu cartão de visitas e retornariam à vida pacata do cotidiano. Mas aquela noite entraria para a história. A dupla ocuparia as manchetes durante semanas e vários lmes seriam feitos sobre o episódio. Ambos acreditavam que dali a cem anos as pessoas ainda falariam daquele crime. – E aí, estou bem? – perguntou Pombo. Falcão ajeitou o colarinho do amigo e depois o examinou da cabeça aos pés. – Lindo, companheiro. A beca está perfeita. – A sua também, irmão – devolveu Pombo. Em seguida se cumprimentaram à maneira romana, entrelaçando os braços como Charlton Heston e Stephen Boyd em Ben-Hur. – Ubi fumus... – disse Falcão. – Ibi ignis – completou Pombo. Onde há fumaça, há fogo. Pombo ajeitou a embalagem dourada do licor e os dois rapazes seguiram lado a lado até a varanda da casa, onde encontraram um cartão colado à vidraça da porta: “À imprensa: Favor nos deixar em paz.” Falcão tocou a campainha. Viu pelas janelas laterais o homem grisalho que vinha em direção à porta, parando ao longo do caminho para acender as luzes dos cômodos. A porta enm se abriu. – Foram vocês que ligaram, certo? – perguntou Connor Campion. – Sim, senhor – respondeu Pombo.
– E como se chamam? – Por ora me chame de Pombo. E este aqui é Falcão. Precisamos tomar cuidado. Sabemos de coisas que podem colocar nossas vidas em risco. – Cone em nós, Sr. Campion – emendou Falcão. – Somos amigos de Michael. Como eu disse ao telefone, temos algumas informações sobre ele. Não podíamos mais ficar calados. O ex-governador examinou os dois rapazes de cima a baixo. Provavelmente não passavam de dois moleques atrás de dinheiro, mas Connor resolveu dar um crédito a eles na esperança de que tivessem alguma pista sobre seu lho. Foi com isso em mente que escancarou a porta e os convidou a entrar.
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capítulo 101
HOMEM DE 65 ANOS CONDUZIU os dois garotos até a biblioteca, onde acendeu algumas das luzes: primeiro o abajur que usara na residência ocial, depois as luminárias que destacavam a parede repleta de livros de direito. – A Sra. Campion está? – perguntou o que se chamava Falcão. – Ela teve um dia cansativo – disse Connor. – Já foi se deitar. Querem beber alguma coisa? – Isto aqui é para o senhor – disse Pombo, entregando-lhe a garrafa de licor. Connor agradeceu, rasgou a embalagem dourada e olhou para o rótulo, dizendo: – É muita gentileza de vocês. Posso abrir se quiserem. Mas se preferirem outra coisa... Vou tomar um uísque. – Obrigado, não queremos nada – falou Pombo. Campion deixou o licor ao lado da foto de Michael sobre o consolo da lareira e curvou o tronco para abrir a antiga vitrine que fazia as vezes de bar, retirando uma garrafa de uísque e um copo. Mas, quando virou, viu que Falcão segurava uma arma. Sentiu o corpo se retesar quando notou o risinho no rosto do garoto. – Estão malucos? Isto por acaso é um assalto? Atrás de Pombo, com os olhos brilhando e um sorriso de satisfação nos lábios, Falcão tirou do bolso um carretel de linha de pesca. Horrorizado, Campion percebeu o que ele pretendia fazer. – Não vou precisar disto aqui – falou, referindo-se ao uísque. Lentamente voltou com a garrafa para o bar e, de costas para os rapazes, foi tateando a prateleira superior. – Vamos ter de amarrá-lo, senhor. Para que pareça um assalto – explicou Pombo. – Precisamos nos proteger. – E o senhor vai chamar agora sua esposa – acrescentou Falcão com rmeza. – Ela vai gostar de ouvir o que temos a dizer. O ex-governador girou rapidamente o tronco, mirou sua pistola contra o peito de Falcão e puxou o gatilho. Bum! Perplexo, o rapaz baixou os olhos até a camisa, a tempo de ver o sangue que começava a jorrar. – O que você... – falou o rapaz. Será que aqueles pivetes não imaginavam que um ex-governador tivesse uma arma em casa? Campion novamente disparou a pistola. Falcão caiu de joelhos, ergueu o rosto para o exgovernador e atirou, estilhaçando o espelho sobre a lareira. Em seguida desabou sobre o tapete.
Pombo, que estava paralisado, começou a gritar: – Velho desgraçado! Olhe só o que você fez! Imbecil! Idiota! Recuando lentamente, o rapaz atravessou a porta da biblioteca e se virou para correr até a porta da casa. Campion se aproximou de Falcão e chutou a arma que o rapaz ainda segurava. Ao fazer isso, o ex-governador perdeu o equilíbrio e caiu de queixo sobre a mesa de centro. Conseguiu se levantar com certo esforço, seguiu cambaleando até o vestíbulo e pelo interfone chamou o caseiro. – Glen! – falou aos berros. – Chame a ambulância! Atirei numa pessoa! Quando ele nalmente chegou ao jardim, Pombo havia sumido. O caseiro vinha correndo a seu encontro com uma espingarda na mão, ao passo que Valentina, parada à porta com os olhos arregalados, queria saber o que estava acontecendo. Luzes foram se acendendo na vizinhança enquanto o cachorro da casa ao lado latia sem parar. No entanto, Pombo já havia ido embora. Ainda segurando sua pistola, Campion berrou no escuro: – Desgraçado! Foi você que matou meu filho, não foi? Você matou meu filho!
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capítulo 102
HEGUEI À CASA DOS CAMPION 15 minutos depois da ligação de Jacobi. Uma caravana de viaturas da polícia bloqueava a rua. Vi dois paramédicos empurrando uma maca em direção a uma ambulância. Eu me aproximei da maca e dei uma olhada na vítima. Uma máscara de oxigênio cobria seu rosto e um lençol estava esticado até a altura do queixo. O rapaz aparentava ter 20 anos ou menos. Branco, cabelos louros e estatura mediana. – Vai sobreviver? – perguntei a um dos paramédicos, que deu de ombros e respondeu: – Levou dois tiros, sargento. Perdeu muito sangue. Dentro da casa, Jacobi e Conklin interrogavam o ex-governador e a mulher, os dois sentados de mãos dadas no sofá. Assim que me viu, meu parceiro olhou para mim como se quisesse dizer algo. Levei alguns segundos para entender o que era. Jacobi me colocou a par dos acontecimentos, dizendo que nenhum documento fora encontrado com o rapaz atingido por Campion. Em seguida falou ao ex-governador: – O senhor conseguiria identificar o segundo garoto? Fazer um retrato falado? – Sim, claro. Jamais vou esquecer aquele rosto. Ele parecia arrasado. Acabara de atirar num jovem e achei que era sobre isso que Campion queria falar quando pediu que eu me sentasse na cadeira a seu lado. Mas eu estava enganada. – Michael queria ser como os outros meninos – falou. – Queria sair e se divertir. Por isso eu cava no pé dele. Quando pegava meu lho fazendo alguma besteira, eu o colocava de castigo. Michael me odiava por isso. – Nada disso, querido! – interrompeu Valentina Campion. – Você fazia o que eu nunca tive coragem de fazer. O rosto do ex-governador parecia murcho, tamanho era seu cansaço. – Michael às vezes era irresponsável – continuou ele –, e eu tentava protegê-lo, sempre pensando no seu futuro, achando que cedo ou tarde a medicina encontraria uma solução para o caso dele. Uma nova cirurgia, um novo medicamento, sei lá, qualquer coisa! Ele pisava na bola e eu dizia: “Quando resolver se comportar como adulto, me avise.” A condição de Michael me deixava com raiva e medo! – Àquela altura, o ex-governador berrava. – Mas acabei perdendo meu filho antes de perdê-lo para a doença! Valentina tentava inutilmente acalmar o marido. – Fui um tirano. Michael e eu não trocamos sequer uma palavra no último mês dele aqui. Se
eu soubesse que nosso tempo seria tão curto... Volta e meia ele me dizia: “Pai, o importante é ter qualidade de vida.” Campion me encarou com os olhos vermelhos e então disse: – Você me parece uma pessoa sensível, sargento. Estou lhe contando tudo isso para que entenda. Deixei aqueles delinquentes entrarem na minha casa porque eles disseram que tinham uma informação sobre Michael. Eu precisava saber o que era! Agora acho que foram eles que mataram meu filho. E hoje tentaram nos roubar. Mas por quê? Por quê? – Difícil dizer, senhor. Falei ao ex-governador que entraríamos em contato assim que tivéssemos alguma novidade. Era tudo o que eu podia dizer naquele momento. Mas àquela altura eu já sabia o que Conklin tentara dizer com seu olhar e mal podia esperar para falar com ele a sós. Fiz um sinal e saímos juntos à rua.
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capítulo 103
ONKLIN E EU NOS RECOSTAMOS em meu carro, observando as centenas de janelas acesas à nossa volta. Connor e Valentina Campion não faziam ideia da morte que Falcão e Pombo planejavam lhes infligir. Mas meu parceiro e eu sabíamos. Fiquei arrepiada ao pensar que por pouco a dupla não atingira seu objetivo. Se o ex-governador não tivesse atirado, os dois rapazes os teriam queimado vivos: ele e a esposa. Conklin tirou um maço do bolso e me ofereceu um cigarro. Não consegui resistir. – Talvez haja algumas digitais na embalagem da garrafa – falou. Fiz que sim com a cabeça. Tinha plena consciência de que seria um golpe de sorte se aqueles garotos tivessem antecedentes criminais e suas digitais estivessem na base de dados da polícia. Mas eu não contava com aquilo. – Falcão e Pombo. Que nomes bizarros! – disse Conklin. – Consegui dar uma olhada nesse Falcão – falei. – Bate com a descrição que Molly Chu fez do “anjo” que a salvou do incêndio. Meu parceiro exalou um longo jato de fumaça para o alto e depois disse: – E a descrição que o ex-governador fez de Pombo também é parecida com a do garoto que penhorou o colar de Patty Malone. – Sem falar na linha de pesca. Então, o que podemos deduzir disso tudo? Que Falcão e Pombo também mataram Michael Campion? Sei lá, isso não combina com o modus operandi da dupla. O negócio deles é amarrar casais endinheirados, deixar um recadinho em latim e colocar fogo na casa. – Também acho estranho – disse Conklin. – Mas e aí? Por que você acha que eles resolveram atacar o ex-governador? – Porque isso seria um jogada de mestre. Os Campion estão sempre na mídia e agora mais do que nunca! Moram numa mansão dessas. Um incêndio nesse palacete seria notícia em todos os jornais. – Só que eles se ferraram! – disse Conklin, sorrindo. – É verdade – sorri de volta. Começávamos a sentir a euforia que se manifesta nos momentos em que as peças de um caso começam a se encaixar após várias tentativas fracassadas. Eu não tinha mais dúvida de que Falcão e Pombo eram os responsáveis por aquela onda de incêndios. Por outro lado, não havia provas disso, tampouco meu parceiro e eu sabíamos quem eram os dois garotos. Apaguei o
cigarro na calçada e me virei para Conklin: – Tomara que esse desgraçado não morra! – Ou que abra o bico antes disso! – rebateu meu parceiro.
O
capítulo 104
MÉDICO QUE ATENDIA FALCÃO se chamava Dave Hammond. Era um homem atarracado, de cabelos ruivos, e apresentava a sisudez de um perfeccionista que passara a noite costurando as entranhas de seu paciente. Conklin e eu gastáramos as mesmas oito horas à espera de uma palavra dele numa asséptica sala de espera do Hospital St. Francis. Quando enfim ele veio ao nosso encontro, às 6h15, fiquei de pé e fui logo perguntando: – Ele está consciente? – O estado do paciente inspira cuidados – respondeu. – Sangrava muito ao dar entrada. Uma das balas perfurou o pulmão e passou de raspão pela aorta. O outro projétil por pouco não acabou com o fígado. – Podemos falar com ele? – perguntou Conklin. – O inspetor não ouviu o que acabei de dizer? Tivemos de injetar oxigênio nos pulmões do garoto, submetê-lo a uma transfusão e depois remover uma pequena área do fígado dele. É o que chamamos de cirurgia de alto risco! Conklin abriu um sorrisinho e insistiu: – Entendi, doutor. Mas e aí? Ele pode falar ou não? – Ele acabou de abrir os olhos – disse Hammond, entregando os pontos em seguida: – Tudo bem, podem entrar. Mas só por um minuto! Um minuto era tudo de que precisávamos, tempo suciente para arrancar duas palavrinhas do desgraçado: seu nome e sobrenome. Entrei na emergência e me aproximei do leito de Falcão, mas fiquei chocada com o que vi. O corpo do rapaz estava imobilizado por cintos de contenção para evitar que um movimento qualquer arruinasse o trabalho do médico. A cabeça de Falcão também se encontrava imobilizada. Remédios e soro eram administrados em sua veia e um dreno tinha sido colocado no tórax para limpar os pulmões. Percebi também que um cateter conduzia a urina até um recipiente sob o leito e cânulas levavam oxigênio às suas narinas Falcão tinha um aspecto horrível, porém estava vivo. E mais do que nunca precisava falar. Toquei sua mão e disse: – Olá. Meu nome é Lindsay. – Onde... estou? – perguntou, abrindo lentamente os olhos. Falei que ele havia sido baleado e que estava num hospital se recuperando. – Por que não consigo... me mexer?
Mostrei os cintos de contenção, expliquei o motivo deles e depois disse: – Precisamos avisar sua família, mas não sabemos seu nome. Falcão examinou meu rosto, moveu os olhos para o distintivo na altura do meu peito e para o volume da arma sob a jaqueta. Em seguida murmurou algo que por pouco não consegui ouvir: – Minha missão já terminou... – Não! – falei em voz alta, apertando ambas as mãos na dele. – Você não vai morrer. Está sendo cuidado por um ótimo médico. Queremos ajudá-lo, mas precisamos saber como você se chama de verdade. Por favor, Falcão, qual é seu nome? O rapaz crispou os lábios, começando a formar uma palavra. Mas, como se uma corrente elétrica atravessasse seu corpo, ele arqueou as costas e endureceu o tronco contra os cintos de contenção. De repente um alarme disparou dentro do quarto. Minha vontade era gritar. Eu ainda segurava as mãos de Falcão quando ele revirou os olhos e soltou um estranho gemido. No monitor ao lado do leito os batimentos cardíacos caíram de 170 para 60 e agora subiam rapidamente, ainda que sua pressão estivesse próxima do zero. – O que foi? – perguntou Conklin. – Ele está morrendo! – gritou Hammond, entrando na sala. Os bipes do monitor deram lugar a um longo apito e as linhas verdes começaram a correr na horizontal. – Cadê a droga do desfibrilador? Em alguns segundos as enfermeiras chegaram com o aparelho, afastando-nos do leito e fechando as cortinas. Do lado de fora conseguíamos ouvir o desespero da equipe ao tentar ressuscitar Falcão. – Vamos, garoto, reaja! – berrava o médico. Seguiu-se um longo silêncio e logo o Dr. Hammond disse: – Horário do óbito, 6h34. Droga! – Mil vezes droga – falei a Conklin.
À
capítulo 105
S 7H45 DAQUELA MANHÃ, já de volta à Central, retirei a jaqueta, pendurei-a no encosto da cadeira, abri minha garrafa de café e me sentei diante de Conklin. – Aquele monstro morreu de propósito – falei. – O monstro morreu, mas nem tudo está perdido – retrucou. – Promete ir comigo até o fim? – Prometo. Palavra de escoteiro – respondeu, piscando o olho. De minha gaveta retirei dois sanduíches embalados em papel-alumínio que deviam estar ali fazia uma semana. Arremessei um deles na direção de Conklin e ele o agarrou no ar, dizendo: – Adoro mulher que sabe cozinhar! – Agradeça aos céus por esse rango aí – falei rindo. – Só Deus sabe quando poderemos comer novamente. Estávamos esperando pelos telefonemas. Uma foto granulada de Falcão sendo retirado da casa dos Campion havia sido publicada no Chronicle daquele dia. Seria difícil, mas não impossível, alguém identicar o garoto a partir dela. Às oito em ponto o telefone tocou à minha frente. Era Charlie Clapper: – Lindsay, encontramos impressões na garrafa e no papel da embalagem. – Me dê uma notícia boa, Charlie – Não vai ser desta vez, minha amiga. Algumas são do tal Falcão, mas ele não tem nenhum registro no nosso banco de dados. – Eu já imaginava. Então estamos falando de um anônimo e provavelmente o outro, o tal Pombo, também não tenha registros? – Isso mesmo, Lindsay. As outras impressões identificadas são do ex-governador. – Obrigada de qualquer forma, Charlie – agradeci, dando um suspiro. Só então atendi a segunda linha. Era Chuck Hanni, que parecia agitado: – Ainda bem que encontrei você – falou. – Houve mais um incêndio. – Acionei o viva voz para que Conklin pudesse ouvir a conversa. – Algumas horas atrás em Santa Rosa. Duas vítimas. Estou indo para lá agora. – Um incêndio criminoso? Alguma coisa a ver com nosso caso? – O delegado disse que uma das vítimas foi encontrada com um livro no colo. Olhei para Conklin, sabendo que ele estava pensando a mesma coisa que eu: o desgraçado do Pombo não tinha perdido tempo.
– Encontramos você lá! – falei para Hanni. Anotei o endereço e desliguei o telefone.
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capítulo 106
CASA ERA CERCADA DE pinheiros altos e cava num condomínio de mansões ao largo de um campo de golfe em Santa Rosa. Estacionamos em meio às viaturas e aos caminhões dos bombeiros que haviam chegado algumas horas antes. Os últimos focos de incêndio eram combatidos enquanto os legistas e os peritos circulavam pelo local, passando por baixo da ta de isolamento. Eu estava furiosa porque Pombo mais uma vez entrara em ação e novamente alimentara seu apetite incendiário num condado fora de nossa jurisdição. Chuck acenou e fomos ao encontro dele junto à casa. – O fogo foi contido na garagem – contou ele, massageando a cicatriz de uma antiga queimadura na mão. Em seguida abriu a porta da garagem para que entrássemos. O espaço acomodaria três carros sem diculdade. As paredes estavam cobertas com utensílios de jardinagem e dezenas de ferramentas. Uma picape do ano se encontrava completamente queimada, a lataria reduzida a manchas azuis e bolhas acinzentadas. Hanni nos apresentou ao delegado de polícia Paul Arcario, à legista Cecilia Roach e ao perito em incêndios Matt Hartnett, um velho amigo de Chuck. – O proprietário da casa é o Sr. Alan Beam – disse Hartnett. – Ainda está no interior do veículo. Há também uma segunda vítima, uma mulher. Foi encontrada ao lado do carro e já acomodamos o corpo no saco mortuário. Fora isso, tudo está do jeito que encontramos. Hanni apontou sua lanterna para a carcaça da picape de modo que Conklin e eu enxergássemos o corpo incinerado no banco do motorista. Uma corrente grossa estava enrolada nas pernas da vítima e um pequeno livro fora deixado logo acima, sobre as dobras rosadas de seu intestino. Senti minhas pernas tremerem. O cheiro de carne queimada e gasolina embrulhava meu estômago. Eu podia imaginar os gritos, as súplicas, o riscar do fósforo, o barulho da explosão. Conklin perguntou se eu estava bem e respondi que sim, embora não conseguisse pensar em nada além do horror que ocorrera naquela garagem algumas horas antes. Um horror que eu julgava ser possível apenas no inferno.
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capítulo 107
DRA. CECILIA ROACH FECHOU o zíper do saco mortuário e pediu aos assistentes que levassem o corpo até a van. A legista de 40 e tantos anos, estatura baixa, cabelos grisalhos presos num rabo de cavalo e óculos pendurados numa corrente de contas nos informou: – Nenhum documento foi encontrado com ela. A única coisa que posso dizer é que se trata de uma mulher muito jovem, talvez adolescente. – Então não é a esposa de Alan Beam? – A ex-mulher do Sr. Beam mora em Oakland – respondeu o delegado, fechando seu celular. – Vai chegar daqui a pouco. Hanni nos deu um breve resumo do que havia acontecido. – O fogo começou na parte de trás da picape. Papel e madeira foram colocados no banco atrás do motorista. E aquilo ali é uma corrente de reboque – falou, apontando para os elos pesados que envolviam as pernas da vítima. Em seguida apontou para a barra de metal aos pés do corpo, dizendo que se tratava de uma tranca de volante, e explicou que ela havia sido usada para atar a corrente à coluna de direção. Segundo a tese de Hanni, o incendiário encharcara o papel e a madeira de gasolina após imobilizar as vítimas. – Depois disso, o mais provável é que tenha jogado gasolina também no corpo e deixado a lata no espaço entre os bancos... – Desculpe, pessoal – interveio Hartnett, abrindo sua caixa com equipamentos de perícia –, mas tenho de apressar as coisas por aqui. O chefe está no meu pé. – Pode nos dar só mais um minuto? – pedi. Em seguida tomei emprestada uma caneta de Hanni e, sob a luz da lanterna dele, passei o braço pela janela da picape e usei a caneta para abrir o livro deixado sobre o corpo de Alan Beam. Qual será o recadinho de Pombo dessa vez? Mais um daqueles enigmas sem sentido? Minha esperança era de que num acesso de fúria ele tivesse deixado algo mais inteligível. Abri a capa do livro, mas na folha de rosto havia apenas o título: Novo Testamento. Nenhuma citação em latim, nem mesmo um nome. Eu já me afastava do carro quando Conklin disse: – Ei, Lindsay, venha dar uma olhada nisto aqui. Dei meia-volta e só então percebi a ta chamuscada que saía de dentro do livro. Novamente usando a caneta, abri a Bíblia na página em questão: Mateus, 3:11. Um pequeno trecho havia sido sublinhado. Com o rosto praticamente encostado ao corpo da
vítima, li o texto em voz alta: “Eu os batizo com água para arrependimento. Mas depois de mim vem alguém mais poderoso do que eu, tanto que não sou digno nem de levar as suas sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo.”
– A
capítulo 108
PURIFICAÇÃO PELO FOGO... – sussurrou Conklin. – É um tema recorrente na Bíblia. Naquele instante a porta da garagem se abriu e deparei com uma mulher de 40 e poucos anos, a luz do amanhecer emoldurando o elegante terninho que ela vestia. A expressão em seu rosto era um misto de revolta e medo. – Sou Alicia Beam. Quem está no comando aqui? – Sou Paul Arcario – disse o delegado, estendendo-lhe a mão. – Foi comigo que a senhora falou ao telefone. Acho melhor conversarmos lá fora. Sem lhe dar ouvidos, a Sra. Beam avançou na direção do carro. Conklin inutilmente tentou detê-la. Alicia arregalou os olhos e depois recuou, berrando: – Meu Deus, Alan! O que aconteceu com você? – Em seguida virou o rosto e, cravando os olhos em mim, perguntou: – Onde está Valerie? Onde está minha filha? Então me apresentei, pedi a ela que deixasse a garagem e me ofereci para acompanhá-la. Mas ela só concordou quando gentilmente pousei a mão em suas costas. Saímos juntas para o jardim e seguimos até a frente da casa. – Era o m de semana de minha lha com o pai – disse ela, abrindo a porta da casa. Assim que atravessou a soleira, a mulher começou a percorrer os cômodos, chamando pela lha. – Valerie! Valerie! Cadê você? Segui no seu encalço, mas dali a pouco ela interrompeu a busca, dizendo: – Talvez ela tenha passado a noite na casa de uma amiga... Ao perceber o brilho de esperança em seus olhos, não tive coragem de abrir o jogo. Além disso, eu não sabia se era Valerie que estava naquele saco mortuário e, ainda que fosse a menina, não cabia a mim dizer isso à mulher. Naquele momento o mais importante era reunir o máximo de informações sobre Alan Beam. – Vamos conversar um pouquinho – falei. Na cozinha, sentamos em lados opostos de uma mesa de madeira e Alicia contou que seu casamento de duas décadas com Alan havia terminado cerca de um ano antes. – Alan estava deprimido havia muitos anos – falou. – Achava que tinha perdido a vida inteira pensando apenas em dinheiro, negligenciando a família e Deus. De uma hora para outra virou religioso, arrependido de tudo, dizendo que não teria tempo suficiente para... Alicia interrompeu suas palavras quando avistou sobre a bancada da pia uma folha de papel azul, aberta ao lado de um envelope.
– Talvez seja um recado da Valerie... Imediatamente se levantou, buscou o papel e leu: – “Querida Valerie, minha lha adorada. Por favor, me perdoe. Eu não suportava mais...” – Erguendo os olhos, disse: – É do Alan. Nesse mesmo instante Hanni surgiu à porta e acenou para que eu fosse falar com ele. Assim que me aproximei, o investigador disse: – Lindsay, uma vizinha acabou de informar que Alan Beam deixou um recado na secretária eletrônica dela, pedindo desculpas e se despedindo. As peças daquele quebra-cabeça começavam a se encaixar. Era óbvio que não iríamos encontrar nenhum recado em latim e nenhuma linha de pesca ali. As vítimas também não eram marido e mulher! Pombo não tinha nada a ver com aquilo, assim como não era o responsável por aquelas mortes. Qualquer esperança que eu pudesse ter de colocar as mãos nele estava morta: tão morta quanto o homem na picape. – Alan Beam se suicidou – falei. Hanni fez que sim com a cabeça e disse: – Vamos tratar o caso como homicídio até termos certeza, mas, segundo disse a vizinha, Beam havia tentado se matar antes. Falou que ele estava no estágio terminal de um câncer. – Por isso ele se acorrentou à direção do carro e ateou fogo em si mesmo? Será? – Talvez não quisesse correr o risco de se arrepender – sugeriu Hanni. – Seja como for, tudo leva a crer que a filha tentou salvar o pai e acabou vítima dos gases tóxicos e do calor.
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capítulo 109
AVIA TANTAS COISAS PARA CONTAR a Joe naquela noite que eu achava que não iria conseguir por causa de meu cansaço. Encontrei-o na cozinha com uma taça de vinho na mão. A julgar pela bermuda e a camiseta que vestia, ele tinha acabado de correr com Martha. O cheirinho delicioso de alho e orégano indicava que meu namorado havia preparado o jantar. Mas a expressão em seu rosto fez com que eu pensasse duas vezes antes de me jogar em seus braços. – Joe, passei a noite toda no hospital... – Jacobi me contou. Se eu não tivesse visto o tapete molhado no banheiro hoje de manhã, nem saberia que você passou em casa. – Você estava dormindo, Joe, e eu só tinha alguns minutos! Mas é essa a regra da casa? Sou obrigada a bater o ponto quando chego? – Isso que você chama de “bater o ponto” eu chamo de consideração. Consideração comigo! Não passou pela sua cabeça que eu poderia ficar preocupado? Eu nem sequer telefonei para ele! – Estou tomando um vinho – falou, mudando de assunto. Meu namorado e eu raramente brigávamos e minha intuição dizia, para meu desgosto, que desta vez a razão não estava do meu lado. – Desculpe. Você está certo. Eu devia ter ligado para avisar onde estava. – Aproximei-me dele e o abracei pela cintura, mas ele se afastou. – Não adianta jogar charme, loura. Isso me deixa aborrecido. – Ele me entregou uma taça de vinho. – Puxa, já pedi desculpas. Foi mal, sei que pisei na bola! – Sabe de uma coisa? – disse ele. Naquele instante, Martha ganiu e saiu correndo para o corredor. – Nós nos víamos mais quando eu morava em Washington. – Isso não é verdade! – Lindsay, quero lhe perguntar uma coisa. Mas você precisa responder com sinceridade. Não, não, não! Não me pergunte se quero me casar com você! Eu ainda não sei! Era isso que passava pela minha cabeça enquanto eu via a tempestade se armar naqueles olhos azuis à minha frente. – Está rolando alguma coisa entre você e Conklin? – Espere aí! Você está achando que... Joe, não é possível que você pense uma coisa dessas!
– Passei uma hora com os dois. Há alguma coisa rolando entre vocês e não venha me dizer que é apenas uma parceria! Nós também fomos parceiros, Lindsay – lembrou ele. – Olhe só no que deu! Abri a boca para dizer algo, mas as palavras caram presas na garganta. Eu me sentia tão culpada que não consegui ngir que estava ofendida. Meu namorado estava coberto de razão: eu e Conklin tínhamos um carinho especial um pelo outro, assim como eu vinha negligenciando Joe nos últimos tempos, fazendo-o corretamente concluir que nossa relação era mais intensa quando estávamos em lados opostos do país. Com a mudança de Joe para São Francisco, ele passara a ser meu, só meu, e com isso eu acabara me acomodando. Um erro pelo qual eu precisava me desculpar. Mas as palavras não saíam. Muitos casais de policiais já haviam se separado pelo mesmo motivo: o trabalho. Ou pior, a obsessão pelo trabalho. Era esse o problema, não era? Eu nem sabia para onde olhar, tamanha era minha vergonha. Nunca na minha vida eu pensara em magoar Joe daquela forma. Deixei minha taça de vinho sobre a bancada, depois peguei a de Joe e a depus também. – Não está rolando nada! – falei. – É só trabalho, querido! Ele me encarou como se estivesse lendo meus pensamentos. Joe me conhecia melhor do que eu mesma. – Vou tomar um banho – disse ele. – Não se esqueça de mexer o molho. Fiquei na ponta dos pés e enlacei o pescoço daquele homem que eu já enxergava como meu futuro marido. Roçava meu rosto no dele, querendo que ele me abraçasse também. Foi o que acabou fazendo. Joe envolveu-me nos braços e me apertou forte. – Eu te amo tanto... – falei. – Nunca mais vou deixar que você duvide disso. Prometo.
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capítulo 110
ONKLIN JÁ TRABALHAVA NO COMPUTADOR quando cheguei à minha mesa. Meu parceiro parecia ligado na tomada, tamanha era a velocidade com que seus indicadores corriam pelo teclado. Agradeci pelo sanduíche de atum que ele deixara ao lado de meu telefone. – Era minha vez – retrucou, sem erguer os olhos quando puxei uma cadeira para me sentar. – A Dra. Roach ligou. Disse que foram encontrados 550ml de gasolina no estômago de Alan Beam. – Caramba! Ela acha que o homem bebeu a gasolina? – Sim. Provavelmente direto da lata. Parece que ele não queria falhar dessa vez. Segundo a Dra. Roach, mesmo sem o fogo ele teria morrido envenenado com a gasolina. Ela está convencida de que foi suicídio. Mas dê uma olhada nisto aqui, Lindsay. – O que foi? – Venha ver. Contornei nossas mesas e me postei atrás de Conklin, que visitava um site chamado CrimeWeb. Ao apertar a tecla “Enter”, ele deu início à animação: uma aranha soltava um o do topo da página, construía sua teia em torno da manchete escrita em vermelho-sangue e depois retornava para o canto da tela. O texto dizia:
Cinco pessoas mortas em tiroteios esta semana. Até quando a Polícia e a Promotoria ficarão de braços cruzados? Rolei a página e li uma dura crítica aos órgãos de Justiça de São Francisco. Tudo o que estava escrito ali era verdade. Os homicídios vinham aumentando e as condenações diminuindo: resultado da escassez de contingente, recursos e tempo. Conklin moveu o cursor do mouse sobre os links da página. – Este aqui – falou, clicando sobre “Casos sem solução”. Várias miniaturas de fotos surgiram na tela. Entre elas havia uma imagem da família Malone e outra da família Meacham. Meu parceiro clicou sobre a dos Malone e disse: – Escute isto. – Então começou a ler em voz alta o texto da página: – “Será que o assassinato de Patty e Bert Malone foi cometido pelas mesmas pessoas que mataram Sandy e Steven Meacham? Achamos que sim. Além disso, há outros crimes igualmente hediondos que levaram a mesma assinatura. Os Jablonsky de Palo Alto e George e Nancy Chu de Monterey também perderam a vida em incêndios. Por que a Polícia de São Francisco não consegue solucionar
esses casos? Se você tiver alguma informação, entre em contato conosco. Diem dulcem habes.” Uma citação em latim! – Não falamos nada à imprensa sobre as frases – observei. – O que essa aí quer dizer? – Diem dulcem habes significa “Tenha um bom dia”. – É, vamos torcer para que o nosso melhore um pouco – falei. Em seguida liguei para a Promotoria, pedi que me transferissem para o gabinete de Yuki e fui atendida por Nick Gaines. Disse a ele que precisávamos de uma ordem judicial para que um provedor de internet nos revelasse o nome do proprietário de um site. – Sem problemas – disse Gaines. – Vou acionar as autoridades competentes. Mas só para saber: vocês têm uma causa provável, não têm? – Estamos trabalhando nisso – falei, despedindo-me e desligando em seguida. – E agora? – perguntei a Conklin. Ele clicou no link “Fale conosco” e, sempre digitando com apenas dois dedos, escreveu: “Preciso falar sobre os incêndios na casa dos Malone e dos Meacham. Por favor, entrem em contato comigo.” O endereço de e-mail de Conklin deixava claro que ele era da polícia. Se Pombo fosse o administrador do site, ele iria se sentir acuado. Por outro lado... bem, não havia outro lado. Minha preocupação se revelou inútil, pois três minutos após ter escrito o e-mail, Conklin recebeu a resposta: “Em que posso ajudá-lo?” A mensagem estava assinada por um certo Linc Weber e trazia o telefone dele.
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capítulo 111
ENCONTRO COM WEBER foi marcado para as quatro horas daquela mesma tarde. Conklin e eu colocamos Jacobi a par do que estávamos fazendo e ele destacou uma equipe para nos dar cobertura. Às duas partimos para uma livraria em Noe Valley. Os inspetores Chi e McNeil permaneceram numa van estacionada na Rua 24, já Lemke e Samuels circulavam à paisana diante da loja e na rua aos fundos. Conklin e eu esperávamos na viatura. O colete à prova de balas me fazia suar, porém eu suspeitava que a adrenalina que corria pelas minhas veias fosse a responsável por tamanha ansiedade. Estávamos a um passo de descobrir se Linc Weber era ou não a real identidade de Pombo. Às três e meia, meu parceiro e eu saímos do carro, dobramos a esquina e entramos na livraria, uma loja antiga, escura e repleta de livros usados, quase todos policiais. O lugar em nada parecia as megalivrarias climatizadas e superiluminadas de hoje, com suas dezenas de andares, seus cafés e sua música ambiente. O caixa era um rapaz de 20 e poucos anos, aspecto andrógino, cabelos cortados rente e com diversos piercings espalhados pelo rosto. Perguntei por Linc Weber e, numa voz suave e feminina, o garoto informou que Linc trabalhava no mezanino. Eu quase conseguia ouvir os ratos correndo entre as prateleiras quando atravessamos os corredores estreitos, acotovelando-nos com os clientes que pareciam ter saído de um hospício. No fundo da loja, avistei uma velha escada de madeira com uma corrente e uma placa: PROIBIDO PASSAR DESTE PONTO. Conklin desatou a corrente, subimos a escada e chegamos a uma espécie de sótão. O teto lembrava o de uma catedral, embora fosse baixo, não mais que três metros desde o topo e chegando a um metro nas laterais. Nos fundos do cômodo cava uma mesa sobre a qual se viam um computador e dois monitores grandes entre algumas pilhas de revistas, papéis e livros. Do outro lado da mesa estava um garoto negro de uns 15 anos de idade, magro, óculos de armação preta, nenhuma tatuagem visível e nenhum colar, a menos que se levasse em conta o aparelho ortodôntico que conseguimos ver quando ele ergueu o rosto e abriu um sorriso. Minhas esperanças imediatamente foram por água abaixo. Aquele não era Pombo. Segundo a descrição do governador, o rapaz era branco, forte e com cabelos castanhos e compridos. – Sou Linc – apresentou-se o garoto. – Bem-vindos à CrimeWeb.com.
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capítulo 112
INC WEBER DISSE QUE ERA UMA “HONRA” nos receber. Apontando para dois pufes, pediu que nos sentássemos, tirou duas garrafas de água mineral de um frigobar às suas costas e nos ofereceu. Sentamos nos pufes, mas recusamos a água. – Lemos o que escreveu no site – disse Conklin casualmente. – Gostaríamos de saber sua opinião sobre os incêndios na casa dos Malone e dos Meacham. – Que tal se eu começar do início? – perguntou o garoto. De modo geral aquela seria uma excelente ideia, mas eu estava tão aita que me interessavam apenas duas perguntas, respondidas da maneira mais sucinta possível: Por que você escreveu uma citação em latim no site? Conhece alguém que tenha o apelido de Pombo? Mas Weber já estava dizendo que nunca havia recebido uma visita da polícia antes e que nossa presença ali era a prova de que o site estava atingindo seu objetivo, porém de um modo que ele jamais poderia imaginar. Em 15 minutos contou que a livraria pertencia a seu pai e que os romances policiais eram sua paixão desde a infância. Contou ainda que pretendia publicar um livro (uma cção ou uma grande reportagem) assim que se formasse na escola. A certa altura, não me contive e interrompi o garoto: – Linc, no seu site você escreveu “Tenha um bom dia” em latim. Por que fez isso? – Ah, o latim! Tirei a ideia daqui... Espere que vou achar... Vasculhou as pilhas à sua frente até encontrar um livro pequeno com o título impresso numa fonte elegante: 7º céu. Entregou-me o livro e rapidamente fui folheando as páginas. Era um romance em formato de quadrinhos. – De início foi publicado num blog – contou Weber. – Depois papai bancou a primeira edição. – E o latim? – perguntei novamente, nervosa com a resposta que ele demorava a nos dar. – Está tudo aí – disse ele. – Os personagens da história sempre dizem alguma coisa em latim. Escute, há algum problema se eu publicar no meu site que vocês me usaram como consultor? Vocês nem imaginam como isso é importante para mim. Só então eu percebi um detalhe na capa. Logo abaixo do título estavam os nomes do autor e do ilustrador. Hans Vetter e Brett Atkinson. E sob os nomes de cada um havia uma pequena imagem. A de Hans Vetter era um pombo e o de Brett Atkinson, um falcão.
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capítulo 113
S CINCO DA TARDE CONKLIN e eu estávamos de volta à Central. Enquanto ele pesquisava os nomes de Atkinson e Vetter na internet, eu lia o livro da dupla. Lia, não. Devorava, de tão bom que ele era. Os desenhos eram em preto e branco e os personagens tinham olhos enormes, ao estilo dos mangás japoneses. Os diálogos inteligentes apresentavam algumas citações em latim. E a história, apesar de absurda, era ótima. No livro, “Pombo” era o cérebro e o braço forte da dupla, ao passo que “Falcão” fazia as vezes do visionário. Ambos eram descritos como vingadores com a missão de proteger os Estados Unidos contra o obsceno e fantasioso mundo dos ricos, ao qual a dupla se referia como “7º céu” , que se resumia a uma onda desenfreada de consumo, prazer e desperdício. Havia apenas uma solução para tamanha opulência: matar os ricos e os ambiciosos, mostrar a eles o significado do verdadeiro consumo: ou seja, o consumo pelo fogo. Pombo e Falcão se vestiam de preto da cabeça aos pés: camiseta, jeans, botas e uma jaqueta de couro com o desenho de seus respectivos pássaros na frente e atrás de seus uniformes. Ambos emitiam raios de seus dedos e o lema da dupla era: Aut vincere aut mori. Vencer ou morrer. Falcão (a pessoa em carne e osso, não o personagem) havia conseguido as duas coisas. Certamente nem ele nem seu comparsa imaginariam que uma de suas vítimas sobrevivesse para revelar seus apelidos. Os motivos e o modus operandi da dupla de criminosos eram ilustrados com absoluta clareza no livro, porém revestidos de uma aura de fantasia. E era isso que me deixava furiosa. Oito pessoas de carne e osso haviam morrido em consequência daquela loucura e ainda não tínhamos nenhuma pista para provar que Falcão e Pombo (duas pessoas da vida real) eram os responsáveis. Na contracapa do livro vinham listadas diversas críticas, além de uma informação que me deixou perplexa. – Você nem imagina – falei para Conklin. – O Bright Line comprou os direitos do livro. – Hein? – resmungou meu parceiro, concentrado na pesquisa que vinha fazendo. – O Bright Line é um estúdio de cinema. Ele vai transformar esta maluquice em filme. – Brett Atkinson – disse Conklin – está no terceiro ano de literatura inglesa em Stanford. Hans Vetter também estuda lá, mas cursa informática. Os delinquentes ainda moram com os
pais, são vizinhos em Mountain View, que ca perto de Stanford. – Girou o monitor na minha direção. – Olhe só. É a foto de Brett no anuário da universidade. Brett Atkinson era Falcão, o garoto que Connor Campion havia atingido com um tiro, o louro de feições aristocráticas que visitáramos no hospital pouco antes de ele morrer. – E este aqui – prosseguiu Conklin – é Pombo. Hans Vetter era bonito, um estudante que, além de ilustrador, vinha enriquecendo suas atividades extracurriculares como assassino serial. – A gente tem de conseguir essas ordens judiciais – falei com a voz embargada. – Se precisar implorar, eu imploro! – Eu também, Lindsay – disse meu parceiro, sério como eu nunca vira antes. – E não podemos cometer nenhum erro desta vez. – Aut vincere aut mori – falei. Conklin sorriu e apertou minha mão. Liguei para Jacobi, que telefonou para o chefe Anthony Tracchio, que contatou um juiz, que, segundo fomos informados, disse: “Vocês estão solicitando um mandado de prisão com base num gibi?” Mal dormi naquela noite. Na manhã seguinte, Conklin e eu fomos para o gabinete do tal juiz munidos de nosso exemplar de 7º céu, das fotos que os peritos haviam tirado nas casas incendiadas, das imagens do casal Chu na mesa do IML e de uma declaração de Connor Campion, armando que os invasores de sua casa se apresentaram como Falcão e Pombo. Também mostrei ao juiz as fotos do anuário de Stanford com os nomes verdadeiros da dupla. Às dez horas daquela mesma manhã tínhamos os mandados e todo o poder de fogo de que precisávamos.
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capítulo 114
OCALIZADA A CINQUENTA QUILÔMETROS a sul de São Francisco, próximo a Palo Alto, Stanford é uma das melhores universidades do país, onde só entram os alunos mais inteligentes. Hans Vetter, também conhecido como Pombo, passava boa parte de seu tempo no laboratório de vídeo da faculdade de informática, um prédio de cinco andares em forma de L com fachada clara. Os laboratórios e centros de pesquisa estavam reunidos em torno de três grandes salas de aula e o prédio em si cava numa espécie de ilha, separado dos demais por caminhos estreitos. Conklin e eu havíamos estudado a planta do prédio com os agentes federais, que agiam em conjunto com a equipe de segurança do campus. Com janelas em todos os lados da construção, qualquer pessoa que se sentasse junto a uma delas conseguiria acompanhar nosso trabalho. Para não chamarmos atenção, deixamos nossos carros longe e seguimos a pé. Conklin e eu usávamos coletes à prova de bala sob a jaqueta da Polícia de São Francisco. Embora levássemos nossas armas, estávamos sob o comando dos federais. Senti a adrenalina disparar pelas minhas veias assim que recebemos o sinal para invadir o prédio. Enquanto alguns homens vigiavam as entradas laterais, entramos num grupo de 12 pelo saguão e tomamos as escadas. A cada andar, dois agentes se separavam do grupo para esvaziar os corredores e trancar as salas de aula. Fiquei preocupada, achando que estávamos fazendo muito barulho. Com certeza os alunos já sabiam de nossa presença. Caso tivesse passado com uma arma pelos detectores de metal do prédio, Vetter poderia fazer os colegas de reféns antes que pudéssemos alcançá-lo. No quinto andar, os federais montaram guarda à porta do laboratório de vídeo. Conklin espiou através do vidro da porta e a escancarou para que eu entrasse. Protegida por ele e pelos fuzis dos agentes, entrei na sala, berrando: – Fiquem onde estão! Basta cooperar e ninguém sairá ferido! Uma aluna deu um grito e o caos se instalou na sala. Vários estudantes se jogaram debaixo da carteira, derrubando câmeras e computadores no chão. A situação parecia prestes a sair de controle. Eu examinava cada canto da sala, tentando localizar o garoto forte de cabelos castanhos compridos, queixo quadrado e olhos de assassino. Mas não o encontrei. Onde está Hans Vetter? Onde está esse desgraçado?
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capítulo 115
ARADO À FRENTE DA SALA, o rosto do orientador do laboratório estava branco como cera, tamanho havia sido seu susto. Aparentava 30 e poucos anos, tinha uma calvície iminente e usava um cardigã verde, uma calça de pano, além de algo que lembrava um par de pantufas. Agitando os braços à sua frente, como se quisesse nos expulsar dali, ele berrou: – Sou o Dr. Neal Weinstein! Que diabo está acontecendo? Se não estivéssemos tão concentrados, seria engraçado observar aquele homem ali, armado apenas com os próprios braços e seu título de Ph.D., confrontando um destacamento de agentes federais repletos de adrenalina nas veias e munidos de um arsenal capaz de derrubar o prédio. – Temos uma ordem judicial para a prisão de Hans Vetter – falei, brandindo o documento junto com minha arma. – Hans não está aqui! – berrou Weinstein. Uma aluna branca com dreadlocks no cabelo e piercing no lábio inferior ergueu o rosto sobre uma das carteiras derrubadas e disse: – Falei com Hans hoje de manhã. Ele comentou que ia viajar. – Você o viu hoje de manhã? – perguntei. – Falei com ele pelo celular. – Ele disse para onde estava indo? – Não. Só me contou que ia viajar porque pedi o carro dele emprestado. Deixei os federais interrogando Weinstein e seus alunos e saí do prédio com Conklin. Mas sob meus pés a sensação não era exatamente a de terra firme. Com a morte do parceiro, Pombo havia fugido. E àquela altura poderia estar em qualquer lugar do mundo. No estacionamento diante do prédio, alguns alunos cochichavam, outros olhavam para o nada, perplexos, e outros tantos riam daquela inesperada agitação. Os helicópteros dos canais de TV sobrevoavam a universidade, informando o mundo sobre o desastroso incidente. Liguei para Jacobi e, tapando um dos ouvidos, z a ele o resumo dos acontecimentos. Não queria que meu superior percebesse minha apreensão e soubesse que Vetter tinha escapado. Tentei manter a voz firme, mas não havia como enganá-lo. Jacobi respirava pesadamente enquanto ouvia meu relato. Por fim disse: – Então, Boxer, o que você está dizendo é que esse Pombo bateu as asas e voou!
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capítulo 116
S VIATURAS DO DELEGADO e do Departamento de Operações Especiais pararam junto ao nosso carro diante de um belíssimo jardim. Estávamos em frente a uma casa colonial de três andares a alguns quilômetros do campus da Universidade de Stanford. Os detalhes da fachada eram perfeitamente éis ao período oitocentista e as mansões ao redor também não cavam para trás. A caixa de correio informava o sobrenome dos proprietários: VETTER. E o carro de Hans estava parado à porta. Policiais falavam entre si pelos rádios, em canais reservados para aquela operação. A área fora isolada e cada homem tinha tomado sua posição. Conklin e eu havíamos acabado de descer do carro. – Esta casa não é muito diferente das outras que a dupla incendiou – observei. Usando a porta de um carro como escudo, meu parceiro pegou um megafone e berrou: – Vetter! Você está sem saída, companheiro! Saia com as mãos na cabeça. Garanto que nada vai lhe acontecer! Percebi um vulto se deslocando atrás das janelas do segundo andar. Era Vetter, indo de um cômodo a outro. Parecia gritar com alguém, mas não era possível ouvir o que o rapaz dizia. – Com quem ele está falando? – perguntou Conklin a mim. Uma televisão foi ligada no interior da casa no volume máximo. Percebi que o apresentador de uma canal de notícias narrava o que ocorria ali à minha frente: “Uma operação que começou duas horas atrás no campus de Stanford agora prossegue na elegante vizinhança de Mountain View, numa rua chamada...” – Vetter! Está me ouvindo? – gritou Conklin através do megafone. O suor escorria em meu rosto. As últimas páginas de 7º céu descreviam um confronto com a polícia. Eu ainda me lembrava das imagens: corpos ensanguentados no chão, Pombo e Falcão fugindo, usando um refém como escudo. Após elaborarmos um plano com o capitão da equipe de Operações Especiais, o ex-fuzileiro naval Pete Bailey, Conklin e eu corremos até a fachada da casa e anqueamos a porta, prontos para agarrar Vetter assim que ele saísse. Agentes estavam posicionados de modo a entrar em ação caso algo desse errado. De repente senti um cheiro de fumaça. – Está sentindo também? – perguntei a Conklin. – A fumaça? – Estou. Será que aquele demente está colocando fogo na própria casa?
Ainda conseguíamos ouvir a televisão ligada na casa. O apresentador repetia as informações transmitidas pelo repórter no helicóptero, que via tudo do alto. Era óbvio que Vetter estava assistindo ao noticiário. Se eu e Conklin estivéssemos sendo lmados, o rapaz saberia exatamente nossa localização e o que pretendíamos fazer. Chamando-me pelo rádio, o capitão Bailey informou: – Sargento, vamos entrar! Mas antes que ele pudesse dar seu comando, uma voz feminina berrou do outro lado da porta: – Por favor, não atirem! Estou saindo! – Ninguém atira! – gritei para Bailey. – A refém vai sair! A maçaneta girou. A porta se abriu e uma coluna de fumaça cinzenta escapou para o jardim, misturando-se ao dia nublado. Logo surgiu uma cadeira de rodas motorizada, pilotada por uma mulher miúda e frágil, talvez vítima de alguma paralisia. Estava embrulhada num longo xale amarelo, que descia da cabeça até as pernas esqueléticas. Diamantes reluziam em seus dedos. Visivelmente aflita, ela virou os olhos azuis na minha direção e suplicou: – Pelo amor de Deus, não atirem! Não matem meu filho!
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capítulo 117
IQUEI ENCARANDO AQUELE par de olhos assustados até que a Sra. Vetter virou a cabeça e falou: – Hans, faça o que eles mandarem! Ao olhar para trás a mulher deixou o xale cair e meu coração veio à boca quando percebi que havia duas pessoas na cadeira. A Sra. Vetter estava sentada no colo do filho. – Hans, faça o que eles mandarem – repetiu o rapaz num tom de deboche. A cadeira motorizada deslizou para o jardim. Agora eu conseguia ver nitidamente: Vetter manipulava os controles com sua enorme mão direita, ao passo que o braço esquerdo segurava o tronco da mãe, que tinha sob o queixo os canos duplos de uma escopeta. Baixei minha pistola e comecei a falar com o rapaz, simulando uma calma que eu não sentia. – Hans, sou a sargento Boxer da Polícia de São Francisco. Não queremos que ninguém se machuque. Então abaixe essa arma, ok? Podemos chegar a um acordo. Está bem para você? – Bem mal! – respondeu Vetter, rindo. – Agora me escutem, vocês dois – continuou, apontando o queixo para mim e para Conklin. – Fiquem entre a minha mãe e os outros policiais. E joguem as armas no chão. Caso contrário alguém vai morrer. Eu não estava com medo: estava apavorada. Conklin e eu zemos o que ele pediu. Com as armas no chão e parados diante da cadeira, nós agora protegíamos a Sra. Vetter e seu lho maluco dos atiradores na beira do gramado. Minha pele começou a formigar. Eu sentia frio e calor ao mesmo tempo. Ficamos naquele impasse por alguns minutos, a fumaça cada vez mais espessa à nossa volta. Numa repentina explosão, as chamas irromperam das janelas dianteiras, quebrando as vidraças e lançando uma chuva de fagulhas sobre nossas cabeças. Mantendo as mãos sempre à vista de Vetter, Conklin berrou: – Fizemos o que pediu. Agora abaixe essa arma, companheiro. Não vai acontecer nada com você, mas largue essa arma! Houve uma nova explosão e logo ouvimos as sirenes dos bombeiros já se aproximando da casa. O rapaz não parecia disposto a se entregar. Pelo menos era essa a expressão em seus olhos. Mas Pombo não tinha mais nenhuma saída. O que ele poderia aprontar?
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capítulo 118
ETTER COMEÇOU A RIR. Por uma fração de segundo minha visão se resumiu à boca escancarada de um garoto que tinha acesso aos melhores dentistas. Ele se virou para Conklin e disse: – Eu imagino Francis Coppola dirigindo esta cena... Ouviu-se então um estalido discreto seguido por uma enorme explosão. Eu nunca tinha visto nada igual. Pouco segundos antes eu encarava os olhos da Sra. Vetter, mas agora via sua cabeça explodir à minha frente, o topo do crânio se abrindo como uma or. O ar ficou escuro com o sangue que jorrava, manchando Conklin, Vetter e eu de vermelho. – Não! – gritei. E o rapaz voltou a rir, os dentes de um branco ofuscante, o rosto como uma máscara de sangue. Usou o cano da escopeta para empurrar a mãe morta da cadeira, fazendo com que ela caísse no chão e rolasse até meus pés. Mirando no espaço entre mim e Conklin, atirou uma segunda vez e o cartucho voou na direção dos atiradores posicionados a vinte metros dali. Apesar do horror que eu presenciava, tentei manter a frieza. Em vez de usar a mãe como salvo-conduto para sua liberdade, Vetter a matara. E os homens do Departamento de Operações Especiais nada podiam fazer contra o rapaz sem que eu e Conklin fôssemos atingidos também. Vetter abriu a culatra com o polegar, dobrou o cano e rapidamente recarregou a escopeta, fechando-a em seguida. Não era a primeira vez que eu ouvia aquele estalo metálico. Ele iria atirar outra vez. Eu não tinha mais dúvida. Aqueles eram os últimos segundos de minha vida. Hans Vetter iria nos matar. Eu não teria tempo sequer de recuperar minha arma. A fumaça era densa à nossa volta. Àquela altura as chamas já devoravam o telhado da casa. O calor havia secado o suor e o sangue em meu rosto. – Saiam do caminho – gritou Vetter. – Se tiverem amor pela vida, saiam já do caminho!
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capítulo 119
ENTI O SANGUE VOLTAR a correr pelos meus dedos e a esperança brilhar no fundo dos meus olhos. Agora eu percebia. Vetter queria que os atiradores o acertassem, que dessem à sua vida o nal glorioso de um super-herói. O rapaz queria morrer, mas antes eu queria que ele pagasse. O destino parecia ler meus pensamentos, pois naquele instante Vetter começou a gritar e sacolejar na cadeira de rodas como se estivesse tendo um ataque epilético. Liguei uma coisa à outra e olhei para Conklin. Meu parceiro aproveitou o momento que o rapaz olhava para os atiradores, sacou sua arma de eletrochoque e disparou. Os os energizados acertaram a perna e o braço direito de Vetter. Conklin então derrubou a cadeira e chutou para longe a escopeta. Enquanto o garoto agonizava no chão, os policiais avançaram pelo gramado, vindo a nosso encontro. Ainda recuperando o fôlego, falei para Conklin: – Alguém já disse que você é um cara muito inteligente? – Não, nunca. – Você está bem? – Ainda não – ele bufava. Recuperei minha pistola e nquei o cano contra a testa de Vetter. Só então Conklin guardou sua arma de eletrochoque. Ainda trêmulo, o rapaz sorriu para mim e disse: – Estou no céu? Eu ofegava, sentindo a pulsação latejar nos ouvidos, os olhos lacrimejando em razão da fumaça. – Seu desgraçado! – gritei. Os caminhões dos bombeiros estacionaram diante da casa e os homens do Departamento de Operações Especiais nos cercaram. Percebendo a fúria no olhar de Conklin, o capitão Bailey se aproximou dele e disse com calma: – É melhor vocês irem se limpar na minha van. – E nos deu as costas, voltando para a calçada com sua equipe. Com a cortina de fumaça bloqueando a visão dos helicópteros, Conklin deu um chute nas costelas de Vetter. – Este é pelos Malone – disse ele. Continuou chutando o garoto até vê-lo parar de sorrir e começar a cuspir os dentes. – Este é pelos Meacham, este é pelos Jablonsky, este é pelos Chu... – E com um chute forte no traseiro do rapaz, arrematou: – Este é por mim mesmo!
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capítulo 120
MBORA TIVÉSSEMOS LIMPADO o rosto com toalhas de papel, Conklin e eu ainda cheirávamos a fumaça e morte. Parado à nossa frente, Jacobi disse: – Parece que vocês mergulharam numa piscina de esgoto. Agradeci a gentileza pensando que a duas quadras dali o fogo continuava a destruir a casa dos Vetter, queimando qualquer prova que pudesse vincular Hans Vetter e Brett Atkinson aos demais incêndios. Agora estávamos diante da residência dos pais de Brett Atkinson, uma mansão de estilo contemporâneo rodeada por casas igualmente luxuosas. Ali moravam pessoas muito ricas. Os pais de Falcão não tinham aberto a porta de sua residência em nenhuma das visitas da polícia, tampouco retornaram nossas ligações. O corpo de seu lho ainda estava no IML. Os vizinhos já haviam conrmado a ausência do casal. Fazia dias que ninguém os via, mas ninguém sabia dizer para onde eles tinham ido. Os motores dos carros estavam frios e a correspondência se acumulava na caixa de correio. O jardineiro que interrompera seu trabalho ao nos ver chegar informou que não tinha visto Perry e Moira Atkinson durante toda a semana. Enquanto não esperava (e nem podia) encontrar mais nada na casa dos Vetter, eu ansiava por conseguir alguma prova concreta dos crimes que a dupla havia cometido na residência dos Atkinson. Trinta e cinco minutos haviam se passado desde o telefonema de Jacobi para Tracchio, pedindo um mandado de busca. Nesse meio-tempo Cindy me ligara para dizer que estava com uma equipe de repórteres do outro lado dos cavaletes que isolavam a rua. Conklin afastou do rosto uma mecha de cabelo manchado de sangue e disse a Jacobi: – Se o juiz não providenciar esse mandado, eu não entendo mais nada! – Devagar, meu amigo! – rebateu Jacobi. – Qualquer besteira e estamos perdidos. Eu me aposento e vocês dois vão fazer segurança de carro-forte. Mas duvido que alguém seja louco para contratá-los! Quinze minutos se passaram, mas a sensação era de que estávamos ali havia 15 horas. Eu estava prestes a desistir e ir embora quando uma estagiária da Promotoria chegou em seu velho Chevrolet. Desceu do carro e veio correndo em nossa direção. Conklin já arrombava uma das janelas com uma chave de roda quando enfim ela nos alcançou.
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capítulo 121
INTERIOR DA CASA DOS ATKINSON parecia um museu. Quilômetros de tábuas corridas se estendiam no chão à nossa frente e enormes telas de arte contemporânea estavam penduradas nas paredes altíssimas. As luzes se acendiam automaticamente quando entrávamos nos cômodos. Mas o horário de funcionamento do museu parecia ter terminado, pois não havia ninguém ali. O ambiente era meio assustador. Nenhum animal de estimação, nenhum jornal ou revista, nenhuma louça na pia da cozinha. Não fossem a comida na geladeira e as roupas meticulosamente arrumadas nos armários, poderíamos supor que ninguém jamais tinha morado ali. Aquela sensação se desfez ao chegarmos ao quarto de Falcão, situado numa ala distante da suíte principal. O cômodo era amplo e arejado e as janelas se abriam para as montanhas. A cama não era lá grande coisa: um colchão de solteiro coberto por uma manta azul simples, ladeado por caixas de som e um fone de ouvido plugado a um aparelho de CD. Uma bancada de fórmica branca atravessava uma das paredes laterais, abrigando vários computadores, monitores e impressoras a laser. A parede adjacente era forrada de uma cortiça grossa. Os desenhos de Falcão, muitos dos quais eu lembrava ter visto no 7º céu, estavam presos ao painel de cortiça. Alguns pareciam mais recentes, ainda por terminar, talvez destinados a um novo livro. – Isto aqui devia ser o escritório deles – sugeriu Conklin. – O lugar onde eles planejavam os incêndios. Meu parceiro se sentou diante de um dos computadores e eu continuei examinando os desenhos. – Livro número dois – falei. – Lux et veritas. Sabe o que isso significa? – Essa é fácil – respondeu Conklin, ajustando a altura da cadeira. – Luz e verdade. – Um bom título. Aposto que outros incêndios já estavam no... – Falcão tem um blog! – gritou meu parceiro, passeando com o mouse pela tela. – Maravilha! Deixei-o lendo os textos de Brett Atkinson e voltei aos desenhos grudados no painel. Um deles me chamou a atenção. Mostrava um casal de meia-idade se abraçando, mas sem qualquer expressão no rosto. Abaixo havia uma legenda. Imediatamente reconheci a letra. Era a mesma que víramos nos livros deixados nas casas incendiadas.
– Requiescat in gelus – li, pronunciando cada uma das sílabas. – Descanse em... o quê? Conklin não estava ouvindo. – Há um mapa aqui no computador – falou. – Algumas cidades estão marcadas com uma estrela: São Francisco, Palo Alto, Monterey. É surreal... Ei, Lindsay, venha ver isto aqui! São fotos das casas que eles incendiaram. Isto é uma prova. Uma prova incontestável! Meu parceiro tinha razão. Fiquei observando enquanto ele acessava os posts antigos do blog, que traziam os nomes dos casais assassinados e dos lhos, bem como as datas de cada incêndio. Os minutos se passaram até que me lembrei do estranho desenho no painel de cortiça e consegui atrair a atenção de Conklin. – Requiescat in gelus – repeti. Meu parceiro me acompanhou até o painel e examinou o desenho daquele casal que podia ser os Atkinson. Leu a legenda e disse: – Gelus só pode ser “gelo”, eu acho. – Gelo? – exclamei. – Deus do céu! Não pode ser! – O que foi? Por que o espanto? Chamei por Jacobi, que vasculhava o restante da casa com a polícia local. Com ele e meu parceiro às minhas costas, encontrei a escada que levava ao porão e descemos os três. Lá estava o freezer, desses enormes, horizontais. Abri a tampa e o ar frio escapou. – Requiescat in gelus – falei. – Descanse no… gelo! Comecei a retirar as embalagens de congelados até que deparei com o rosto de uma mulher. – Cabem duas pessoas aí dentro – observou Jacobi. – É verdade – falei, parando de retirar os congelados. A julgar pela idade aparente da morta, tive quase certeza de que ali estava Moira Atkinson, congelada em seu elegante vestido.
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capítulo 122
U USAVA MEU NOVO UNIFORME azul após ter lavado o cabelo 13 vezes (na verdade 14, para não dar chance ao azar) quando cheguei à sala de autópsia na manhã seguinte. Claire estava no topo de uma escadinha, câmera em punho, fotografando o corpo nu e decapitado de Mieke Vetter. Empoleirada ali, minha amiga parecia enorme e prestes a cair. – Outra pessoa não pode fazer isso por você? – perguntei. – Já terminei, amiga – respondeu, parando em cada degrau e finalmente descendo ao chão. – Vou lhe dar uma ajudinha – falei, apontando para a mulher sobre a mesa. – Esta aí, por exemplo. Sei muito bem como ela morreu. – Mas preciso fazer meu serviço. Motivos forenses. Você sabe disso, Lindsay. – Tudo bem, mas só para você saber: ontem sua paciente me deu um banho de sangue, fragmentos de ossos, cabelos e... massa cinzenta. Você consegue imaginar qual é a sensação de um cérebro na sua pele? – Gelatina esquentada no micro-ondas? É mais ou menos isso, não é? – perguntou Claire, rindo da minha cara. – Exatamente! – Um de meus primeiros casos foi um suicídio – ela foi contando enquanto trabalhava, usando o bisturi para fazer uma incisão em Y desde as clavículas até o púbis da Sra. Vetter. – Um soldado cansado de guerra. Meteu uma escopeta dentro da boca e disparou. E lá fui eu, recém-formada, fotografar o cara no trailer em que ele tinha se matado. Eu lá, debruçada sobre o morto, e os policiais do lado de fora, morrendo de rir. – Morrendo de rir? Por quê? – No momento eu não percebi. Aliás, por isso eles estavam rindo, amiga. Eu também comecei a rir. Era a primeira vez em muitas semanas que eu achava graça de alguma coisa. – Vai ouvindo – continuou Claire. – Enquanto eu fazia meu trabalho sobre o morto, parte do cérebro dele, que tinha grudado no teto do trailer, começou a descolar, até que despencou inteiro na minha cabeça! Plaft! Como se encenasse o antigo episódio, minha amiga deu um tapa na própria cabeça e eu novamente caí na gargalhada. – Como eu disse, gelatina esquentada no micro-ondas... Mas e aí, como foi lá? – perguntou. – Como foi o quê? Meu encontro com o moleque, lho desta aí? Ou meu encontro com o
prefeito? – Os dois, minha amiga. Conte-me tudo e não esconda nada. Vou passar a noite inteira aqui graças a seus amiguinhos Pombo e Falcão, que encheram minha geladeira de carne fresca. – Bom, Vetter foi curto e grosso: exigiu um advogado e fechou o bico. Mas aposto que vai acabar dizendo que o amigo torturou e matou aquelas pessoas enquanto ele ficava só olhando. – O que não vai fazer diferença, certo? Homicida ou cúmplice, a pena será a capital. Aliás, você estava presente quando ele matou esta pobre mulher. – Eu e outros trinta policiais. Mesmo assim, em respeito às famílias das vítimas, quero vê-lo condenado por todos os crimes que cometeu. – E seu encontro com o prefeito, como foi? – Ah! Primeiro ele veio nos cumprimentar, a mim e a Conklin, e Jacobi lá, todo orgulhoso, quase em lágrimas. Eu já estava pensando em dizer que em breve iríamos diminuir a taxa de crimes não solucionados quando... Bem, a conversa tomou outro rumo, para o caso Vetter. Surgiu a dúvida quanto à jurisdição do caso, já que os incêndios ocorreram nos condados de Monterey e Santa Clara, bem como... Claire? O que foi, querida? Algum problema? Minha amiga contorcia o rosto numa expressão de dor. Subitamente largou o bisturi sobre o leito metálico, levou as mãos ao próprio ventre e arregalou os olhos na minha direção. – Minha bolsa acabou de estourar, Lindsay. Acho que chegou a hora... Imediatamente chamei uma ambulância e ajudei minha amiga a se sentar. Dali a um minuto as portas se abriram e dois enfermeiros enormes entraram na sala de autópsia carregando uma maca. – O que houve, sargento? – perguntou o maior deles. – Adivinhe quem vai ter um bebê?
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capítulo 123
PEQUENA RUBY ROSE HAVIA nascido prematura, o que nos obrigava a vestir camisolas, toucas e máscaras hospitalares. Obviamente, todas as peças eram cor-de-rosa. Claire estava com o aspecto de quem acabara de ser atropelada por um trator, mas sob a palidez de seu rosto transparecia a felicidade de uma mãe orgulhosa de sua cria. E como não há quem resista a esse sentimento universal, estávamos eufóricas e sorridentes. Cindy tagarelava sobre a entrevista que zera com um tio de Hans Vetter e Yuki, com uns quilinhos a mais após de ter sido dopada com LSD e quase morta por Jason Twilly, ria sem parar das bobagens dela. Minhas amigas diziam que eu estava linda e radiante, o que não passava de obrigação, já que eu tinha um homem perfeito a meu lado. – Cadê essa mocinha? Ela vai nos deixar esperando? – perguntei rindo a Claire. – Calma, amiga. Vão trazê-la na hora certa. Coma mais um bolinho aí, vai! Eu me lambuzava com uma gigantesca fatia de bolo de chocolate com amêndoas quando a porta do quarto se abriu e... Conklin entrou. Também estava de camisola, touca e máscara, porém azuis, e era um dos poucos homens que eu conhecia que conseguia ser lindo e ridículo ao mesmo tempo. Percebi um brilho em seus olhos castanhos. Com um buquê escondido às costas, ele cumprimentou Cindy e Yuki com dois beijinhos, apertou meu ombro, beijou a testa de Claire e só então, com um gesto teatral, entregou as rosas vermelhas. – São rosas-rubras, homenagem a Ruby Rose – falou, abrindo uma versão tímida de seu sorriso geralmente largo. – Puxa, Conklin. Três dúzias de rosas! Você não sabe que sou casada? Assim que as risadas terminaram, Claire disse: – Muito obrigada, amigo. E quando minha menina chegar, ela vai agradecer também. Cindy olhava para meu parceiro como se nunca tivesse visto um homem na vida. – Puxe uma cadeira – disse ela. – Conklin, vamos jantar no Susie’s logo mais. Não quer vir conosco? – Boa ideia – falei. – Precisamos brindar à mais nova integrante do Clube das Mulheres Contra o Crime. E você será o motorista da noite! – Eu adoraria – disse meu parceiro –, mas estou embarcando num voo daqui a... – olhou para o relógio – duas horas. – Vai para onde? – perguntou Cindy.
Eu também queria saber. Ele não havia comentado nada comigo. – Denver. Só pelo fim de semana. Desviei o olhar até a parede e Claire percebeu o que passava pela minha cabeça: eu não tinha gostado nem um pouco da novidade. – Vai se encontrar com Kelly Malone? – perguntou Cindy, sempre no papel de repórter. – Vou – respondeu ele. A menos que tivesse se contagiado com a felicidade de Claire, ele parecia bastante empolgado. – Aliás, preciso ir. Não quero car preso no engarrafamento até o aeroporto. Só passei para lhe dar os parabéns, Claire. Depois me mande uma foto de Ruby. Vou colocar como protetor de tela no meu computador. – Claro – disse ela, batendo carinhosamente na mão dele e agradecendo mais uma vez pelas flores. – Tenha um bom fim de semana – falei. – Valeu, vocês todas também. Assim que ele foi embora, Cindy e Yuki começaram a falar sobre a pinta de galã de meu parceiro e a especular se Kelly Malone havia sido ou não sua namorada nos tempos de colégio. Era sobre isso que cochichavam quando uma enfermeira chegou ao quarto com a recémnascida num carrinho, deixando-a junto à cama de Claire. Imediatamente nos aproximamos para vê-la. Ruby Rose Washburn era linda! Ela bocejou e abriu os olhinhos de cílios enormes em direção a Claire, que por pouco não explodiu de felicidade e orgulho. Cercando o carrinho, nós quatro nos demos as mãos e silenciosamente zemos uma oração para aquela criança recém-chegada ao mundo. Só então Claire pegou a filha nos braços. – Seja bem-vinda, meu amor – falou, cobrindo sua Ruby de beijos. Virando-se para mim, Cindy disse: – O que você pediu na sua oração? – Não acredito! – falei rindo. – Será que nada é sagrado para você, amiga? Nem com Deus eu posso falar sem que você me peça uma declaração? Cindy riu também e levou a mão aos lábios, escondendo os dentes ligeiramente sobrepostos que lhe davam um toque de charme. – Foi mal, desculpe – falou com os olhos marejados. Então pousei a mão em seu ombro e disse: – Pedi que Ruby Rose estivesse sempre cercada de bons amigos.
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capítulo 124
O SAIR DO CARRO DE LINDSAY, Yuki disse: – Agora sei o que é ficar “anestesiada”. – Bem que tentamos, amiga, mas você entornou duas margaritas! É muito álcool para um corpinho tão pequeno! Vou subir com você. – Estou bem, estou bem – riu Yuki. – Vou direto para a cama. A gente se fala na segunda. Despediu-se de Lindsay, entrou no prédio, cumprimentou o porteiro e, trocando as pernas, subiu os três degraus até a saleta das caixas de correio. Na terceira tentativa conseguiu encaixar a chave na minúscula fechadura, retirou o maço de cartas e tomou o elevador para seu apartamento. Encontrou o apartamento vazio, mas como o fantasma de sua mãe insistia em car por ali, conversou com ele enquanto deixava a correspondência na bancada do vestíbulo. Um envelope escapou de seus dedos e caiu no chão. Sacudindo as pernas, ela tirou os sapatos de salto e disse: – Mamãe, seja lá o que estiver neste envelope, vai ter de esperar. Sua lha está tontinha da silva! No entanto, vencida pela curiosidade, ela se apoiou na bancada, pegou o envelope do chão e examinou a letra do remetente sem reconhecê-la. Não havia nenhum endereço no verso, apenas um nome: Junie Moon. Yuki foi rasgando o envelope enquanto cambaleava até o sofá verde herdado da mãe. A prostituta havia sido inocentada da morte de Michael Campion. Que motivo ela teria para enviar uma carta? Sentada no sofá, Yuki despejou o conteúdo do envelope sobre a mesinha de vidro à sua frente. Além de uma carta havia um segundo envelope, também endereçado a ela. Desdobrou a carta com impaciência e leu:
Prezada Srta. Castellano,
Quando receber esta carta, já estarei longe, em algum lugar que nem eu mesma sei o nome. Quero viajar pelo país, porque nunca saí de São Francisco. Provavelmente você está se perguntando por que resolvi escrever, então vou direto ao assunto.
A prova que você queria está no segundo envelope, a prova que talvez dê aos Campion um pouco de paz. Espero que entenda meus motivos para não contar mais nada.
Um abraço, Junie Moon.
Yuki leu a carta mais uma vez. Tentava entender o signicado daquela frase: “A prova que você queria está no segundo envelope.” Rasgou o envelope branco e o esvaziou sobre a mesa. Dele saíram dois itens: o primeiro era o punho de uma camisa bordado com as iniciais de Michael Campion e manchado de sangue. O outro era uma pequena mecha de cabelos escuros com cerca de cinco centímetros de comprimento. As mãos de Yuki tremiam enquanto ela começava a recuperar sua sobriedade, já pensando no telefonema que daria para Red Dog, já imaginando o tempo que eles levariam para realizar um exame de DNA e confirmar que aqueles fios de cabelo eram de Michael Campion. Mas a lei era clara: ainda que conseguissem achar e prender Junie Moon, não poderiam levála a julgamento uma segunda vez pela morte do garoto. Poderiam indiciá-la por outras coisas (perjúrio, obstrução de justiça, etc.), mas a menos que conseguissem determinar como aquelas provas haviam chegado às mãos dela, era provável que a Promotoria nem sequer se desse o trabalho de indiciá-la por qualquer coisa que fosse. Yuki examinou aquelas provas macabras que literalmente caíram em seu colo. Em seguida pegou o telefone e ligou para Lindsay. Enquanto ouvia o sinal de chamada, pensou em Jason Twilly. O escritor tinha sido indiciado por tentativa de assassinato de uma funcionária da Justiça e, caso fosse condenado, passaria o resto da vida atrás das grades sem direito a recurso ou condicional. Mas ele ainda poderia contratar o melhor advogado criminalista do país e ser absolvido. Poderia voltar às ruas. Yuki o imaginou em algum café de Los Angeles, escrevendo seu livro com todos os ingredientes de que precisava para um nal surpreendente e muito rentável. A imprensa logo caria sabendo do punho de camisa ensanguentado, da mecha de cabelos e do DNA confirmado. Jason não precisaria provar nada. Poderia simplesmente fazer de Junie Moon uma personagem do livro e depois cavar a sepultura dela. Uma voz chamava do outro lado da linha. – Yuki? Yuki? – Lindsay, você pode vir até aqui? Preciso lhe mostrar uma coisa.
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capítulo 125
UNIE MOON OLHAVA PELA JANELA, encantada com a sensação de estar voando, com a maravilha do mar turquesa lá embaixo. Dali a pouco avistou os primeiros contornos da cidadezinha cujo nome ela nem sequer sabia pronunciar. Obedecendo às instruções do piloto, apertou o cinto e subiu a bandeja à sua frente. Em seguida voltou os olhos para a janela, admirando as praias, os barquinhos, as pessoas. Meus Deus, quanta beleza! Mais uma vez pensou naquela noite distante em que Michael Campion deixou de ser apenas um cliente. Eles conversaram sobre o amor que sentiam um pelo outro, sobre a impossibilidade de um futuro em comum. Enrolando os dedos na trancinha que pendia da nuca da jovem, Michael dissera: – Tenho uma ideia. Poderemos ficar juntos para o resto da vida. – Faço qualquer coisa. Qualquer coisa! – ela havia respondido. – Eu também – concordara Michael. Aquilo tinha sido um juramento. Ao longo das semanas seguintes planejaram tudo o que fariam nos próximos seis meses. Assim que chegou a hora, Michael deixou a casa dela com a intenção de sumir. Três meses depois, no entanto, alguém ligou para a polícia dizendo que tinha visto o rapaz naquela noite de janeiro. Então os policiais apareceram para interrogá-la e ela cou confusa, inventando uma história e metendo-se numa grande enrascada. A vida de Junie virou um inferno: a prisão, o julgamento e, o pior de tudo, a impossibilidade de receber cartas ou telefonemas. Mas ela nunca teve dúvidas de que ele a esperaria. Sabia também que ele apareceria para salvá-la na hipótese de sua condenação. Ela aguentou rme. Com a própria inteligência, e sobretudo com a orientação da advogada que Deus lhe enviara, interpretou perfeitamente seu papel. E por fim, com a ajuda de Deus, acabou absolvida. Três dias antes, colocara num envelope o pedaço da camisa e os cabelos enviados por Michael e despachara aquela carta para Yuki Castellano. A parte mais difícil havia cado para trás. Agora ela se deslocava livre de qualquer problema. Usara roupas masculinas na viagem de ônibus de São Francisco até Vancouver, no voo para a cidade do México e naquele instante estava em outro avião, a caminho de um vilarejo na Costa Rica.
Aquele lugar isolado e paradisíaco seria a nova residência deles. Junie esperava que algum dia a medicina encontrasse a cura para o problema cardíaco de Michael e o casal pudesse aproveitar a vida até seus últimos momentos. No banheiro do avião ela nalmente trocou de roupa, escolhendo um vestidinho leve de verão e ajeitando os cabelos recém-pintados de castanho que combinavam com seus elegantes óculos escuros. As rodas da aeronave tocaram a pista, momento em que todos os passageiros aplaudiram, inclusive Junie. Dali a pouco o avião taxiou, a porta da cabine se abriu e Junie foi descendo a escada, lentamente correndo os olhos pelas pessoas que esperavam o desembarque no terminal. Lá estava ele! Michael havia raspado a cabeça, deixara crescer um cavanhaque e estava bronzeado de sol. Com uma camisa listrada de cores vivas sobre uma bermuda jeans, ele sorria e acenava, gritando: – Aqui, meu amor, aqui! Ninguém jamais o reconheceria. Exceto ela. Era a vida com a qual Junie sempre havia sonhado. Uma vida que estava apenas começando.
James Patterson
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