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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


8ª CONFISSÃO / James Patterson
8ª CONFISSÃO / James Patterson

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O VELHO ÔNIBUS ESCOLAR amarelo avançava devagar pela Market Street, na direção sul, às sete e meia daquela manhã de maio. As janelas laterais e o vidro traseiro eram escurecidos, e uma batida de hip-hop pulsava na neblina baixa, que utuava como um véu de seda entre o sol e São Francisco. Tenho meu ice Tenho meu fumo Tenho meu carro Não temos nada a perder Não temos sorte Levanta a cabeça Ninguém sabe quando Vai encontrar a morte… O sinal de trânsito cou amarelo no cruzamento da Market Street com a Rua 4. A placa de PARE do lado esquerdo do motorista girou para fora, o pisca-alerta foi acionado, emitindo uma luz âmbar, e o veículo parou. À direita do ônibus havia um shopping enorme; as vitrines das lojas de departamento estavam cobertas com grandes pôsteres em preto e branco de uma grife, com adolescentes seminus em poses provocantes. À esquerda, estava parada uma van azul ao lado de um dos dois canteiros que dividiam o tráfego – uma área onde se aglomeravam turistas e pessoas à espera de transporte.


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Louise Lindenmeyer, gerente administrativa, estava atrasada para o trabalho. Freou o velho Volvo cinza. Abaixou o vidro da janela e xou o olhar naquele maldito veículo escolar dois carros à frente. Estivera presa atrás dele desde Buena Vista Park. Então, viu-o afastar-se no sinal da Rua 5 com a Market Street, quando um uxo de carros vindos da transversal direita parou na frente dela. E agora aquele ônibus a detivera no sinal… de novo. Louise ouviu um grito: – Ei, babaca! Um homem em mangas de camisa, a gravata tremulando, o rosto enrugado, com creme de barbear seco embaixo da orelha esquerda, passou pelo carro dela para xingar o motorista do ônibus. Uma buzina soou, depois outra e, então, houve uma cacofonia. O sinal ficou verde. Ela tirou o pé do freio e, naquele instante, sentiu uma onda de choque. Seus ouvidos zumbiram quando ela viu o teto do ônibus explodir com violência, voando para o alto. Pedaços de metal em brasas, estilhaços de aço e de vidro dispararam em todas as direções mais rápidos que tiros. Uma nuvem em formato de cogumelo, como a de uma pequena bomba atômica, irrompeu acima do ônibus, que se tornou uma bola de fogo. Uma fumaça negra tomava o ar. Louise viu a van azul arder em chamas e, em seguida, escurecer. Ninguém saiu da van! E agora a labareda se alastrava em direção ao Camry prata bem à frente. O tanque de gasolina estourou e o fogo começou a amejar sobre o carro, consumindo-o em chamas vívidas. O homem de rosto enrugado conseguiu se levantar do asfalto e se dirigir ao buraco onde um dia estivera a janela do carona do carro de Louise. A camisa desaparecera. O cabelo estava frisado e preto. A pele do rosto pendia sobre o ombro. Ela se encolheu, horrorizada, agarrou-se ao puxador da porta enquanto o fogo lambia o capô do Volvo. A porta do carro se abriu e o calor logo avançou. Foi quando viu a pele da própria mão, parecendo uma luva do avesso. Louise não conseguia ouvir os gritos de horror do homem ou os dela mesma. Era como se os ouvidos tivessem sido tapados com cera. A visão estava completamente tomada por pontos dançantes e formas embaçadas. Na mesma hora, foi sugada para um poço de escuridão.
2
MEU PARCEIRO, RICH Conklin, estava ao volante do nosso carro sem identicação policial e eu adoçava o café quando senti o abalo. O painel tremeu. O café quente entornou sobre uma das minhas mãos. – Que diabo é isso? – gritei. Um pouco depois, o rádio bradava, a Central convocando: “Relatos de uma explosão no cruzamento da Market Street com a Rua 4. Unidades próximas, identifiquem-se e respondam.” Joguei o café pela janela, agarrei o microfone e informei que estávamos a duas quadras enquanto Conklin acelerava ladeira acima. Depois, ele freou, fazendo com que o carro derrapasse e ficasse atravessado na Rua 4, bloqueando o trânsito. Saímos às pressas, Conklin berrando: – Lindsay, cuidado. Podem ocorrer outras explosões! O ar estava opaco por causa da fumaça, com um cheiro ruim de borracha, plástico e carne humana queimados. Parei de correr, esfreguei a manga da camisa nos olhos que ardiam e lutei contra a ânsia de vômito. Adentrei o cenário infernal e fiquei arrepiada. A Market Street é uma das principais vias da cidade. Deveria estar fervilhando com o tráfego das pessoas indo para o trabalho. No entanto, agora parecia Bagdá após o atentado de um homem-bomba. As pessoas gritavam, corriam em círculos, cegas pelo pânico e pela fumaça. Passei um rádio para meu chefe, Anthony Tracchio, e relatei que era a primeira oficial na cena. – O que está acontecendo, sargento? Contei-lhe o que via: cinco mortos na rua, mais dois no ponto de ônibus. – Número desconhecido de vítimas, vivas ou mortas, ainda nos carros – respondi, tossindo. – Você está bem, Boxer? – Sim, senhor. Desliguei quando viaturas, ambulâncias e carros de bombeiros, com sirenes estridentes, passaram pela Market Street e formaram um perímetro da Rua 3 até a Rua 5, bloqueando o trânsito nas proximidades. Momentos mais tarde, um veículo blindado chegou, e o esquadrão antibomba, vestindo traje de proteção cinza, espalhou-se pela área devastada. Uma mulher sangrando, de idade indeterminada, cambaleou na minha direção.
Segurei-a quando percebi que suas pernas não resistiam e os joelhos se dobravam, e Conklin me ajudou a conduzi-la até uma maca. – Eu vi tudo – sussurrou a vítima. Ela apontou para uma massa volumosa enegrecida no cruzamento. – Aquele ônibus escolar era uma bomba. – Um ônibus escolar? Por favor, Deus, crianças não! Meus olhos percorreram os escombros, mas não vi nenhuma criança. Será que todas tinham sido queimadas vivas?
3
A ÁGUA JORRAVA DAS mangueiras, apagando as chamas. O metal chiava e sentia-se um cheiro desagradável. Encontrei Chuck Hanni, investigador de incêndios criminosos e especialista em explosões, inclinando-se para fora da porta do ônibus escolar. Ele tinha o cabelo penteado para trás, usava calça cáqui e uma camisa de brim, as mangas arregaçadas, mostrando a velha cicatriz de queimadura que ia do polegar direito até o cotovelo. Hanni ergueu o olhar e comentou: – Meu Deus, que desastre terrível, Lindsay. Conduziu-me pelo que chamou de uma “explosão catastróca” . Mostrou dois corpos totalmente carbonizados, do tamanho de adultos, enroscados entre as duas leiras de assentos próximos ao motorista. Destacou que os pneus dianteiros estavam cheios de ar e os traseiros, furados. – A explosão começou atrás, não no compartimento do motor. E achei isto. Ele indicou pedaços redondos de vidro, tubos condutores e fragmentos de plástico azul derretidos em uma massa atrás da porta do ônibus. – Imagine a força da explosão – disse, apontando para um projétil de metal cravado na parede. – Isto é uma balança de três braços, e suponho que o plástico azul seja de um cooler. Foram necessários menos de 5 litros de éter e apenas uma faísca para fazer tudo isso… Fez um gesto com uma das mãos para indicar os três quarteirões de absoluta destruição. Ouvi tosses secas e botas esmagando vidro. Era Conklin, um vulto de quase 1,90 metro se materializando ao sair da neblina. – Tem algo que vocês devem ver antes que o esquadrão antibomba nos expulse daqui. Hanni e eu o seguimos pelo cruzamento até o local onde havia o corpo de um homem dobrado contra um poste. – Uma testemunha viu este cara voar pelo para-brisa do ônibus na explosão – disse Conklin. O morto era hispânico e tinha o rosto retalhado, o cabelo emaranhado tingido de vermelho com o sangue, o corpo mal coberto com os farrapos de um casaco azul-elétrico e um jeans, o crânio deformado por causa da colisão com o poste. Pelas linhas de expressão no rosto, deduzi que o homem vivera uns quarenta anos
de dureza. Retirei sua carteira de um dos bolsos da calça e abri-a para ver sua habilitação. – Seu nome é Juan Gomez. De acordo com este documento, ele tem apenas 23 anos. Hanni se curvou, afastou os lábios do morto. Vi duas fileiras quebradas de tocos cariados no lugar onde antes existiam os dentes. – Um viciado – concluiu. – Talvez fosse quem preparava a droga. Lindsay, este caso pertence à Divisão de Narcóticos ou à Agência de Controle de Drogas. Hanni digitava um número no celular enquanto eu tava o corpo de Juan Gomez. Dentes podres são o primeiro sinal visível de uso de metanfetamina. Bastam alguns anos de privação de comida e sono para um dependente envelhecer vinte anos. Até lá, a droga teria corroído grande parte do cérebro. Gomez estava de saída antes da explosão. – Então, o ônibus era um laboratório de metanfetamina móvel? – indagou Conklin. Hanni permanecia na linha, à espera da Narcóticos. – Sim, era – respondeu. – Até que houve uma explosão infernal.
PARTE 1
BAGMAN JESUS
capítulo 1
NUMA MANHÃ NO início de maio, Cindy omas abotoou seu trench coat e falou “Bom dia, Pinky” enquanto o porteiro mantinha abertas as portas da frente do condomínio Blakely Arms. Ele tocou a pala do quepe e retribuiu o cumprimento, encarando-a: – Tenha um bom dia, Srta. Thomas. Tome cuidado. Ela não podia dizer que nunca ia atrás de encrenca. Trabalhava na editoria policial do San Francisco Chronicle e gostava de armar “Notícia ruim é notícia boa para mim”. No entanto, havia um ano e meio, um psicopata com uma sublocação ilegal e acessos de fúria constantes, morando dois andares acima dela, entrara de modo sorrateiro nos apartamentos e iniciara uma matança brutal. O assassino havia sido capturado e condenado. Agora, estava isolado no corredor da morte do presídio estadual de San Quentin, conhecido como “Q”. Mesmo assim, ocorreram mudanças no Blakely Arms. Os moradores fechavam as portas com trancas triplas todas as noites, encolhiam-se diante de ruídos repentinos, não se sentiam mais seguros. Cindy estava determinada a não viver com esse tipo de medo. Sorriu para o porteiro. – Sou agressiva, Pinky. Os criminosos é que deveriam tomar cuidado comigo. Em seguida, saiu rapidamente. Andando a passos largos pela Townsend Street, indo da Rua 3 até a Rua 5 – dois quarteirões bem compridos –, Cindy percorria a velha e a nova São Francisco. Passou pela loja de bebidas alcoólicas próxima ao seu edifício, por um drive-thru do outro lado da rua, por um café e por uma livraria no andar térreo de um novo arranha-céu residencial, usando o tempo para retornar telefonemas, agendar compromissos, organizar o dia. Depois, parou perto da estação de Caltrain, que costumava ser um inferno por causa dos moradores de rua drogados e havia pouco tempo fora reformada, no rastro da revitalização do bairro. Porém, atrás da estação, havia um trecho irregular de calçada sem cerca que se estendia ao longo do pátio dos trens. Latas-velhas enferrujadas, da época de Jimi Hendrix, encontravam-se estacionadas na rua, servindo de abrigo para os semteto. Enquanto Cindy se preparava para caminhar por aquela terra de ninguém,
notou um grupo de mendigos adiante; alguns pareciam chorar. Hesitou. Então, retirou do casaco a carteira de identidade, segurou-a à frente como se fosse um distintivo, abriu caminho entre o aglomerado de pessoas, que deram passagem para ela. As raízes dos ailantos haviam rompido a calçada e suas copas sombreavam uma pilha de trapos, jornais velhos e sobras de fast-food ao pé de uma cerca de arame. Cindy sentiu uma ânsia de vômito e prendeu a respiração. O amontoado de trapos era, na verdade, um homem morto. As roupas estavam encharcadas de sangue e o rosto, totalmente deformado. Perto dele, havia uma mulher corpulenta, desdentada, usando muitas camadas de roupas. O nariz estava avermelhado e as pernas, enfaixadas até os joelhos. – O que aconteceu? Quem é este homem? – perguntou Cindy. A mulher a olhou de esguelha. – É B-B-Bagman Jesus. Alguém matou ele! Cindy ligou para o 911, relatou o que, sem dúvida, havia sido um assassinato e esperou a polícia chegar. Os moradores de rua se reuniram ao seu redor. Esses eram os sujos, os incontáveis, os marginalizados que escapavam por entre as brechas da sociedade, viviam onde os recenseadores tinham medo de pisar. Cheiravam mal e se encolhiam, gaguejavam e se coçavam, e faziam de tudo para se aproximar dela. Esticavam a mão para tocá-la, discutiam e se repreendiam. Queriam ser ouvidos. Meia hora atrás, Cindy teria evitado qualquer tipo de contato com aquela gente, mas agora queria muito escutar todo mundo. À medida que o tempo passava e a polícia não chegava, ela sentia que uma matéria ia brotando, preparando-se para florescer. Telefonou para a casa de Lindsay. Houve seis toques antes de uma voz masculina atender com rispidez: – Alô? Ela teve a impressão de que interrompera a amiga e Joe em um momento inoportuno. – Bela hora, Cindy – reclamou ele, ofegante. – Desculpe, Joe, de verdade. Mas tenho que falar com Lindsay.
capítulo 2
– NÃO FIQUE IRRITADO – pedi, aconchegando o cobertor sob o queixo de Joe e acariciando-lhe o rosto com a barba por fazer. Dei-lhe um beijo, daqueles bem quentes. Não queria que ele fosse embora de novo porque eu não lhe dera toda a atenção que merecia. – Não estou irritado – armou, de olhos fechados. – Mas vou querer uma recompensa esta noite, então prepare-se. Dei uma risada. – Mal posso esperar. – Cindy é uma má influência. Ri um pouco mais. Cindy é uma pit bull disfarçada. Parece fazer o estilo fútil, porém é a obstinação em pessoa. Foi assim que abriu caminho à força na cena do meu crime sangrento seis anos atrás e não desistiu até ter conseguido a sua matéria e eu ter solucionado o meu caso. Quem dera todos os meus subordinados fossem como ela. – Cindy é um doce – falei. – Você acaba gostando dela. – Sério? Bom, vou ter que acreditar em você. – Ele deu um sorriso irônico. – Querido, você se importa…? – De levar Martha para passear? Tudo bem. Porque eu trabalho em casa e você tem um emprego de verdade. – Obrigada, Joe. Vai fazer isso logo? Porque acho que ela está precisando. Olhou-me com o rosto inexpressivo, mas os grandes olhos azuis me censuravam. Soprei-lhe um beijo e, então, corri para o chuveiro. Meses haviam se passado desde que o meu aconchegante apartamento em Potrero Hill fora destruído em um incêndio e eu ainda estava me acostumando a morar com Joe, em um bairro de classe alta. Não que eu não apreciasse o boxe de mármore travertino do banheiro com ducha dupla e um dispositivo que liberava sabonete em gel, xampu e hidratante. Além das toalhas de banho luxuosas, dobradas sobre um suporte de metal aquecido. É, as coisas poderiam ser piores. Aumentei a temperatura e a intensidade da água e lavei o cabelo, pensando no telefonema de Cindy, querendo saber por que ela estava tão empolgada. Pelo que eu sabia, mendigos mortos não viravam manchetes, mas Cindy me
disse que aquele era especial, com um nome fora do comum. E me pediu para conferir a cena do crime. Sequei o cabelo, fui pelo corredor acarpetado até o meu próprio closet, que ainda não tinha muitas roupas. Vesti uma calça social lisa e um pulôver azulesverdeado, chequei a pistola e avelei o coldre de ombro. Por m, coloquei o meu segundo melhor blazer azul. Inclinei-me para acariciar as orelhas sedosas da minha adorável border collie e gritei para Joe: – Tchau, querido. Então, saí para encontrar a mais nova paixão de Cindy: um mendigo morto com um nome louco. Bagman Jesus.
capítulo 3
CINDY CONTINUOU AO lado do morto, preenchendo o bloquinho com nomes, descrições, citações dos amigos de Bagman Jesus e dos que lamentavam sua morte. – Ele usava uma cruz muito grande – lembrou um lavador de louças mexicano de um restaurante tailandês. Usava uma camiseta esportiva e jeans sob um avental branco sujo. Tinha o desenho de uma carpa chinesa tatuada nos braços. – A cruz era feita de dois pregos… – Era um crucifixo, Tommy – explicou uma mulher encurvada de cabelo branco, apoiada em seu carrinho de compras à margem do grupo, com feridas nas pernas e o casaco vermelho imundo arrastando no chão. – Descuuuulpa, chefe. Eu quis dizer crucifixo. – E não eram pregos, eram parafusos, com quase 10 centímetros de comprimento, amarrados com um o de cobre. E não se esqueça daquele bebê de brinquedo na cruz. Um bebezinho rosa. A idosa manteve o polegar e o dedo indicador afastados 2,5 centímetros para mostrar a Cindy como o brinquedo era pequeno. – Por que alguém levaria o crucixo dele? – questionou a mulher corpulenta. – Mas sua b-b-bolsa… Aquela era uma bolsa de couro verdadeiro! Senhorita, escreva que ele foi morto por causa de suas co-co-coisas. – Nem sabemos seu nome verdadeiro – comentou Babe, uma garota grande da casa de massagem chinesa. – Ele me deu 10 dólares quando eu estava sem comida. Não pediu nada em troca. – Bagman cuidou de mim quando tive pneumonia – armou um homem grisalho, a calça do terno risca de giz apertada na cintura com barbante. – Meu nome é Bunker. Charles Bunker. Estendeu uma das mãos e Cindy apertou-a. – Ouvi tiros ontem – disse Bunker. – Depois da meia-noite. – Viu quem atirou? – Quem me dera. – Ele tinha inimigos? – Vai me deixar passar? – indagou um homem negro com dreads no cabelo, piercing dourado no nariz e uma blusa de gola rulê branca sob um paletó de smoking velho, que abria caminho com dificuldade em direção a Cindy. Ele soletrou o nome devagar – Harry Bainbridge –, assim a jornalista poderia anotá-lo corretamente. Em seguida, com o dedo longo e ossudo erguido acima de
Bagman, traçou as letras costuradas nas costas do casaco ensanguentado do morto. – Consegue ler isso? – perguntou. Cindy assentiu. – Diz tudo o que você quer saber. Ela anotou. Jesus Salva.
capítulo 4
QUANDO CONKLIN E EU chegamos à esquina da Rua 4 com a Townsend Street, policiais tinham isolado a área, afastado os curiosos, desviado os veículos para o caminho mais longo até a entrada da estação, bloqueado todo o tráfego. Cindy estava à nossa espera na rua. Sinalizou para que parássemos, abriu a porta do carro para mim e começou a despejar sua história antes de eu colocar os pés no chão. – Tive a ideia de uma série de cinco matérias sobre os sem-teto de São Francisco. E vou começar com a vida e a morte desse homem. Apontou para um corpo, estendido em trapos ensanguentados. – Trinta pessoas choravam sobre o corpo dele, Lindsay. Não sei se tantas pessoas assim iriam chorar se fosse eu que estivesse ali deitada. – Cale-se – falou Conklin, dando a volta pela frente do carro. – Você é louca. Com delicadeza, sacudiu-lhe um dos ombros, fazendo com que os cachos louros balançassem. – Ok, ok – admitiu Cindy. Sorriu para ele, os dentes da frente um pouco sobrepostos acrescentando um toque vulnerável à sua graciosidade natural. – Brincadeira. Mas estou falando sério com relação a Bagman Jesus. Me mantenham informada, combinado? – Pode deixar – concordei, porém não entendi por que ela considerava o mendigo uma celebridade e sua morte, um grande assunto. – Cindy, moradores de rua morrem todos os dias… – E ninguém dá a mínima. Que inferno, as pessoas os querem mortos. Essa é a questão! Deixei Cindy e Conklin e fui mostrar meu distintivo a K. J. Grealish, a perita forense responsável. Era jovem, magra e morena e estava com os lábios todos machucados de tanto mordê-los por causa do estresse. – Estou acordada há 27 horas – contou Grealish – e esta merda aqui pode me custar mais 27. Me explique de novo: por que estamos aqui? À medida que os trens entravam no pátio com estardalhaço, a poeira levantava, folhas caíam das árvores e jornais eram carregados pelo vento, contaminando ainda mais a cena do crime. Uma buzina soou – o furgão do médico-legista pedia passagem. Estacionou no meio da rua. A porta se abriu e a Dra. Claire Washburn saiu. Ela colocou as mãos nos quadris largos, lançou-me seu sorriso angelical e eu o retribuí. Aproximei-me
e lhe dei um abraço. Claire não é apenas a médica-legista chefe de São Francisco, mas a minha melhor amiga. Tínhamos nos unido havia quinze anos, quando ela era uma médica-legista assistente, negra e rechonchuda, e eu era uma loura alta com peitos grandes, tentando sobreviver ao meu selvagem primeiro ano no treinamento da Divisão de Homicídios. Aquele tinha sido um período difícil e cruel para nós duas, quando apenas tentávamos fazer nossos trabalhos em um mundo masculino. Ainda conversávamos todos os dias. Eu era a madrinha da sua caçula e me sentia mais próxima de Claire do que da minha própria irmã. Mas fazia mais de uma semana que eu não a via. Após o abraço, Claire perguntou à perita: – K. J.? Você tem as fotos da vítima? Grealish respondeu que sim. Então, eu e Claire passamos por baixo do cordão de isolamento e Cindy veio conosco, o que não foi nenhuma surpresa. – Tudo bem – disse a Grealish. – Ela está comigo. – Na verdade – falou Cindy baixinho –, você está comigo. Andamos ao redor do rastro de sangue e contornamos os cones. Claire colocou a bolsa no chão e se curvou ao lado do corpo. Com uma das mãos enluvadas, virou a cabeça de Bagman de um lado para o outro. Cuidadosamente, examinou o couro cabeludo, procurando por lacerações, fraturas ou outros ferimentos. Após uma longa pausa, exclamou: – Minha nossa. – Chega de jargão médico – exigi. – Fale agora a nossa língua. – Como de costume, Lindsay – Claire suspirou –, não vou me pronunciar até fazer os exames. Mas vejam só… e isso é extraocial, certo, jornalista? – avisou a Cindy. – Está me ouvindo? – Tudo bem. Meus lábios estão selados. Minha boca é um túmulo. – Parece que o cara não foi vítima apenas de um espancamento – murmurou Claire. – Esse pobre coitado levou vários tiros na cabeça. Ele foi baleado à queimaroupa, talvez até acabarem as balas.
capítulo 5
O ASSASSINATO DE UM morador de rua tem prioridade zero na Homicídios. Isso é cruel, porém não temos os recursos para trabalhar em casos nos quais o criminoso nunca será encontrado. Conklin e eu conversávamos sobre isso sentados no carro. – Bagman Jesus foi roubado, certo? – perguntou Conklin. – Alguns sem-teto lhe deram uma surra e, quando ele revidou, atiraram. – Esses tiros… Sei lá. Parece mais coisa de gangue. Ou um bando de garotos arrastando um vagabundo por diversão, depois metendo bala porque cariam impunes. Basta olhar para aquilo. – Apontei para a cena do crime: havia pegadas de sangue entrecruzadas na calçada, de forma aleatória, sem um rumo. Além dessa confusão, não havia testemunhas, câmeras em postes nem cápsulas das balas. Não sabíamos sequer o verdadeiro nome da vítima. Se não fosse pela história que Cindy iria escrever para o Chronicle, o arquivo referente ao caso desse sem-teto teria ido para o fim da pilha até ser esquecido. Até mesmo por mim. Só que aqueles vários tiros disparados à queima-roupa me incomodavam. – Bater e atirar, isso é loucura para um assalto, Rich. Minha intuição é que se trata de uma vingança. Ou algum tipo de crime passional. Conklin deu um sorriso galanteador. – Então, vamos trabalhar nisso. Ele desligou o carro e caminhamos até o m do quarteirão, onde os entrevistados de Cindy ainda vagavam atrás do cordão de isolamento. Voltamos a interrogá-los. A seguir, expandimos a nossa esfera de ação para incluir toda a área da Townsend assim como Clyde Street e Lusk Alley. Conversamos com os caixas de uma bodega, os vendedores de uma sex shop gay, as prostitutas e os drogados que circulavam pela rua. Batemos às portas de moradias de baixa renda. Passamos a tarde falando com operadores de empilhadeira e trabalhadores nos armazéns ao longo da Townsend. A verdade é que muitas pessoas se dispersavam quando viam os distintivos. Outras alegavam que não o conheciam ou não faziam ideia de sua morte. Quem sabia de sua existência tinha histórias para contar. O homem acabara com um assalto à loja de bebidas alcoólicas, às vezes trabalhava em um refeitório popular, sempre tinha alguns dólares para quem precisasse.
Disseram que ele era da elite, rei da rua, um desocupado com coração de ouro. E sua perda foi trágica para aqueles que o consideravam um amigo. No m do dia, minha postura mudara de ceticismo para curiosidade e percebi que fora contaminada pelo entusiasmo de Cindy – ou talvez eu havia cado entusiasmada por conta própria. Bagman Jesus fora o bom pastor de um rebanho ferido. Então, por que havia sido assassinado? Será que apenas estava no lugar errado, na hora errada? Ou sua morte tinha sido premeditada? E isso nos deixou com duas grandes perguntas das quais nenhum bom policial poderia se esquivar com a consciência limpa: Quem matara Bagman Jesus? E por quê?
capítulo 6
CONKLIN E EU chegamos à Central por volta das cinco e cruzamos a sala até o pequeno escritório envidraçado do tenente Warren Jacobi, escritório que um dia já fora meu. Jacobi havia sido meu parceiro. E, embora tivéssemos trocado de funções e discordado com frequência, trabalhávamos juntos havia tantos anos que ele era capaz de ler os meus pensamentos como ninguém – nem Claire, nem Conklin, nem Cindy, nem Joe possuíam a mesma capacidade. Ele estava sentado atrás da mesa, que parecia saída de um ferro-velho, quando entramos. Meu velho amigo e chefe é um policial gordo e grisalho, de 53 anos, sendo mais de 25 deles de experiência na Homicídios. Os olhos cinzentos penetrantes se fixaram em mim, e notei sua expressão séria. – Que diabo vocês dois zeram o dia todo? – perguntou-me. – Será que entendi direito? Estavam trabalhando no caso de um sem-teto morto? O inspetor bonitão – como Conklin é conhecido na Central – indicou-me a cadeira para que eu me sentasse. Em seguida, estacionou o belo traseiro no aparador e começou a rir. – Falei algo engraçado, Conklin? – indagou Jacobi rispidamente. – Você tem doze casos não solucionados em cima da sua mesa. Quer que eu os liste? Estava nervosinho porque a taxa de resolução de assassinatos em São Francisco era ínfima, abaixo até do número de Detroit. – Vou contar a ele – avisei ao meu parceiro. Apoiei os pés na parte da frente da mesa de Jacobi e expliquei: – Perdemos a noção do tempo, Warren. Esse crime apresenta alguns aspectos estranhos e a morte da vítima vai ser destacada em letras garrafais no Chronicle amanhã. Pensei que deveríamos sair na frente. – Continue falando – ordenou Jacobi, como se eu fosse um suspeito que estivesse na cela. Informei-o sobre as boas ações relatadas e as teorias variadas: que Bagman Jesus era um missionário ou lantropo, que o bebê no crucixo era uma declaração pró-vida ou que simbolizava como, um dia, todos nós tínhamos sido inocentes e puros – assim como o Menino Jesus. – O cara levava jeito com as pessoas – concluí. – Muito carismático, algum tipo de santo dos sem-teto. Jacobi tamborilava na mesa.
– Não sabe o nome desse santo, sabe, Boxer? – Não. – E não tem nenhuma pista sobre quem o matou ou qual foi o motivo? – Nem uma sugestão de uma pista. – É isso, então – falou Jacobi, batendo no móvel. – Acabou. Encerrado. A menos que alguém entre aqui e confesse, não desperdicem mais tempo do departamento. Entenderam? – Sim, senhor – respondeu Conklin. – Boxer? – Estou ouvindo o senhor, tenente. Saímos do escritório e batemos o ponto, encerrando o dia. – Você entendeu, certo? – perguntei a Conklin. – Não tem como não entender “encerrado”. – Rich, Jacobi foi bem claro. Ele disse para trabalharmos no caso de Bagman Jesus no nosso tempo livre. Vou descer para ver Claire. Você vem?
capítulo 7
CLAIRE ESTAVA USANDO um avental cirúrgico, com um broche de borboleta no decote, outro avental amarrado à cintura e uma touca orida cobrindo o cabelo. Na mesa de autópsia em aço inoxidável à frente dela, Bagman Jesus estava deitado nu, as feições terrivelmente deformadas e destacadas pelas luzes. Uma incisão em Y ia desde as clavículas até o púbis e havia sido costurada com linha branca grossa. Havia hematomas por todo o corpo, além de lacerações e contusões. Bagman só podia ter sido agredido por vingança. – Recebi os exames de raios X – informou Claire. Olhei para o negatoscópio, que iluminava os exames. Ela continuou: – Mão direita quebrada, provavelmente tentou dar um soco no agressor ou foi pisada quando ele caiu no chão. Muitas fraturas nos ossos da face, assim como fraturas múltiplas no crânio. Três costelas quebradas. É possível que todos esses traumatismos o tenham matado. No entanto, quando lhe bateram com um bastão, ele já estava morto. – Causa da morte? Me diga, Borboleta. Estou pronta. – Meu Deus! – exclamou. – Trabalho o mais rápido que posso e ainda não estou à sua altura, Lindsay. – Por favor? – pedi. Resignada, Claire pegou vários sacos pequenos de papel-cristal com o que pareciam balas distorcidas. – São calibre 22? – perguntou Conklin. – Isso. Quatro dos tiros na cabeça passaram zunindo sob o couro cabeludo e ficaram cravadas ali. Mas, ainda assim, o Sr. Jesus poderia ter sobrevivido. – E então? – indaguei. – O que o matou? – Então, querida, o assassino acertou o Sr. Jesus na têmpora, e é provável que tenha sido o tiro que o matou. Depois atirou na nuca só para garantir. – E ainda bateu no rosto dele? E quebrou as costelas? – questionei, incrédula. – Isso que é crime passional. – É óbvio que alguém o odiava – disse Claire, e então gritou para a assistente. – Leve o Sr. Jesus daqui para mim, pode ser, Bunny? Chame Joey para ajudar. E escreva “Indigente número 27” e a data na identificação presa ao dedo do pé. Eu e Conklin a seguimos até o escritório. – Tenho outra coisa para mostrar a vocês – avisou ela.
Tirou a touca e os aventais. Por baixo, usava calça cirúrgica e sua camiseta favorita, que dizia “Sou gorda e tenho 40 anos, mas esta sou eu” . Claire sempre gargalhava com essa frase, mas ela já tinha 45 e eu achava que estava na hora de arranjar uma nova camiseta. Ela pediu que nos sentássemos e fez o mesmo, destrancando a gaveta de cima da sua mesa. Retirou outro saco de provas, colocou-o em cima do móvel e inclinou a luminária para focar a luz diretamente. – É o crucixo de Bagman – comentei, tando a peça, que tinha a aura de um artefato antigo e valioso. Era exatamente como tinham me descrito: dois parafusos, um o de cobre, um bebê de brinquedo amarrado à cruz. – Pode ter algumas digitais no bebê… – sugeri. – Onde você encontrou isso? – Na garganta de Bagman – respondeu Claire, tomando um gole de água. – Alguém tentou enfiar-lhe isso goela abaixo.
capítulo 8
EU ESTAVA ANSIOSA para ouvir o que Joe pensava sobre Bagman Jesus. Naquela noite, jantávamos no Foreign Cinema. Embora localizado em um sórdido quarteirão no bairro mais perigoso da cidade, rodeado de bodegas e lojas de bugigangas, a decoração sosticada do restaurante dá a impressão de que um disco voador o pegou em Los Angeles e o largou em Mission por engano. Fora o visual, o que faz dele um verdadeiro deleite são as mesas de piquenique no jardim dos fundos, onde lmes antigos são projetados na parede branca de um edifício vizinho. O céu estava límpido, e as lâmpadas incandescentes espalhadas por todo o pátio deixavam a noite ainda mais aconchegante. Sean Penn se achava em uma das mesas com alguns amigos, porém o grande atrativo para mim era jantar com Joe sem precisarmos pegar um avião. Após tantos solavancos angustiantes, a montanha-russa do nosso relacionamento a distância havia se estabilizado quando ele se mudou para São Francisco para ficar comigo. Agora, morávamos juntos. Enfim dando uma chance real. Enquanto passava sem áudio Os guarda-chuvas do amor, Joe ouvia com atenção o relato do meu dia surpreendente: como Conklin e eu nos matamos de andar tentando descobrir quem assassinara Bagman Jesus. – Claire tirou cinco balas da cabeça daquele homem, quatro delas abaixo do couro cabeludo – contei. – O quinto tiro foi na têmpora e parece que foi o de misericórdia. Em seguida, Bagman foi baleado na nuca, após a morte. Isso é típico de uma vingança, não acha? – Essas balas eram calibre 25 ou 22? – Calibre 22. – Faz sentido. Tinham que ser menos destrutivas, para não atravessarem o crânio. Havia alguma cápsula na cena do crime? – Nenhuma. O atirador provavelmente usou um revólver. – Ou uma semiautomática e recolheu as cápsulas. Esse tipo de sujeito não quer deixar provas. Já pensa à frente. – Isso é importante. – Fiquei remoendo o que Joe tinha falado. – Então, talvez tenha sido premeditado? – É possível, Linds. E o chumbo da bala talvez tenha estrias. Veja o que o laboratório diz. Pena que você não vai ter as digitais das cápsulas.
– Talvez haja algumas no bebê de plástico. Joe assentiu, mas não pareceu concordar de verdade. – Você acha que não? – indaguei. – Se o atirador recolheu as cápsulas, deve ser um prossional. Um matador de aluguel ou um militar. Ou um policial. Se era um profissional… – O crucixo também não vai ter digitais – completei. – Mas por que um profissional mataria um morador de rua com tanta crueldade? – Você ainda está no primeiro dia de investigação, Linds. Dê um tempo a si mesma. Concordei, pensando que Jacobi já encerrara esse caso. Apoiei a cabeça nas mãos, enquanto Joe chamava o garçom e pedia vinho. A seguir, notei que ele me deu um sorriso enorme e indecifrável. Recostei-me e o analisei; Joe parecia uma criança escondendo um segredo. Perguntei o que estava acontecendo e esperei que ele degustasse o vinho. Depois de me fazer esperar bastante tempo, inclinou-se sobre a mesa e tomou as minhas mãos nas dele. – Bem, loura, adivinhe quem recebeu um telefonema do Pentágono hoje?
capítulo 9
– MEU DEUS – deixei escapar. – Não me diga que é o que estou pensando. Não consegui me conter. Logo imaginei que Joe estava sendo convocado de volta a Washington – e só a ideia já era insuportável. – Lindsay, que tranquila. O telefonema foi sobre um serviço. Pode ser o primeiro de muitos, todos lucrativos, um grande impulso para a minha empresa de consultoria. Quando conheci Joe durante um caso em que trabalhava, seu cartão prossional dizia: DIRETOR ADJUNTO, SEGURANÇA INTERNA. Em Washington, ele era o melhor combatente do terrorismo. E esse foi o emprego que abandonou ao se mudar para a Costa Oeste para ficar comigo. As credenciais e a reputação dele eram excelentes, mas as oportunidades de trabalho não apareceram em São Francisco com tanta rapidez como esperávamos. Para mim, a culpa era do atual governo, que cou irritado porque o superpopular Joseph Molinari saíra justo em um ano eleitoral. Aparentemente, estavam superando o ressentimento. Uma boa notícia. Relaxei. Sorri. – Uau. Você me assustou, Joe – confessei e comecei a me animar. – Então me conte sobre o serviço. – Claro, mas vamos pedir a comida primeiro. Não lembro o que escolhi porque, quando a refeição chegou, Joe me contava que estava indo para uma conferência no Oriente Médio, já na manhã seguinte. E que talvez ficasse na Jordânia por três semanas ou mais. Ele parou de comer e indagou com delicadeza: – O que há de errado, Lindsay? O que está preocupando você? Ele de fato estava interessado, porém minha pressão subira e eu não era capaz de responder gentilmente. – Seu aniversário é amanhã, Joe. Nós íamos passar o m de semana na casa da Cat, lembra? Catherine é minha irmã, seis anos mais nova, que mora na bela cidade costeira de Half Moon Bay com as duas lhas. Era para ser um m de semana agradável e que significava muito para mim, pois Joe se reuniria à única família que tenho. – Podemos car com Cat outra hora, querida. Tenho que ir a essa conferência. Além disso, Lindsay, tudo o que quero para o meu aniversário é esta noite e você.
– Não posso conversar com você agora – avisei, atirando o guardanapo em cima da mesa, levantando-me em frente à projeção do lme, ouvindo as pessoas gritarem para que eu me sentasse. Atravessei o restaurante e percorri o corredor que levava à saída, com nichos de velas votivas nas paredes. Tirei o celular do bolso e chamei um táxi antes de chegar à rua. Esperei na calçada, naquele bairro inóspito, sentindo-me ultrajada, estúpida e, por fim, irritada comigo mesma. Eu havia me comportado como a loura burra do estereótipo que sempre desprezara.
capítulo 10
SUA LOURA BURRA. Inclinei-me, dei uma nota de 5 dólares ao taxista e o dispensei. Rez o caminho romântico à luz de velas pelo corredor de 10 metros, cruzei o restaurante e voltei ao jardim dos fundos. Cheguei lá quando o garçom retirava os pratos. – Abaixe-se! – reclamava a mesma pessoa de antes. – Você. Sim, você. Sentei-me em frente a Joe e confessei: – Isso foi estupidez da minha parte. Sinto muito. A expressão em seu rosto demonstrava mágoa. – Eu também sinto muito. Deveria ter falado com mais cuidado, mas não imaginei que você reagiria assim. – Não, não se desculpe. Você estava certo e eu fui uma completa idiota, Joe. Me perdoa? – Já perdoei. Mas, cada vez que brigamos, o elefante branco do nosso relacionamento faz o que faz. – Come amendoim? – perguntei. Joe sorriu, porém com tristeza. – Você está entrando nos 40. – Sei disso. Obrigada por me lembrar. – Vou fazer 47 amanhã, como você mesma lembrou. No ano passado, pedi você em casamento. O anel que lhe ofereci continua em uma caixinha, em uma gaveta, não no seu dedo. O que quero para o meu aniversário? Quero que se decida, Lindsay. Com o sincronismo inconveniente que os garçons ao redor do mundo haviam aperfeiçoado, um trio de rapazes rodeou a mesa, um bolo pequeno nas mãos com as velas acesas, e começaram a cantar para Joe “Parabéns pra você” . Assim como eu planejara. Os outros clientes que jantavam acompanharam a música e vários olhares se voltaram para nós. Joe sorriu e apagou as velas. Depois, olhou para mim, o rosto tomado por amor. – Não adianta, loura. Não vou dizer o que desejei. Eu me senti uma tola por estragar a nossa noite. Mas não sabia o que fazer com relação ao desejo de Joe e àquele anel de diamante na caixa de veludo preto.
Porém, tinha certeza absoluta de que a minha indecisão não estava relacionada a Joe.
capítulo 11
ACORDAMOS ANTES DO amanhecer e zemos amor com urgência, sem trocarmos uma palavra. Puxões de cabelo, lábios mordidos, travesseiros jogados no chão. A sessão de sexo ardente era verdadeira, o reconhecimento sincero de que estávamos unidos. Não havia nada que um de nós pudesse dizer que o outro já não soubesse. Ficamos deitados um ao lado do outro em um momento de satisfação, os corpos suados, as mãos entrelaçadas rmemente. O relógio high-tech na mesinha de cabeceira projetava no teto a hora e a temperatura externa em dígitos grandes e vermelhos. Eram 5h15 da manhã. Fazia 11 graus. – Tive um sonho bom. Tudo vai ficar bem – profetizou Joe. Estava me garantindo? Ou tranquilizando a si mesmo? – Como foi o sonho? – Nadávamos juntos, nus, em uma cachoeira. Água. Isso é sexo, certo? Ele soltou a minha mão. Senti um movimento no colchão. Joe sacudiu o cobertor e cobriu o meu corpo. Ouvi a água do chuveiro correndo enquanto permanecia no escuro, sentindome reprimida, chorosa e indecisa. Cochilei, acordando ao toque de Joe no meu cabelo. – Estou indo agora, Lindsay. Estiquei-me, coloquei os braços ao redor do pescoço dele e nos beijamos. – Boa viagem. Não se esqueça de escrever. – Vou ligar. Não era nesse clima desagradável que eu esperara deixar Joe. A porta da frente se fechou e foi trancada. Pulei da cama. Vesti um jeans e um dos suéteres de Joe e corri descalça para o corredor. Fiquei apertando o botão do elevador para descer até ele subir de volta ao décimo primeiro andar e abrir a porta. Entrei em desespero porque o elevador era lento demais. Eu podia visualizar a bagagem de Joe no porta-malas, o carro se deslocando agora ao longo da Lake Street, ganhando velocidade em direção ao aeroporto. Quando cheguei ao saguão, vi-o pela vidraça das portas de vidro da frente, em
pé ao lado de um sedã Lincoln. Passei em disparada pelo porteiro e saí para a rua, chamando-o. Joe ergueu o olhar e abriu os braços. Ao cair contra seu corpo, pressionando o meu rosto no seu paletó, senti as lágrimas escorrerem. – Eu te amo tanto, Joe. – Eu também te amo, loura. – Joe, quando estávamos na cachoeira, eu estava com o anel? – Sim. Um diamante antigo e grande. Poderia vê-lo da Lua. Ri, a cabeça contra um de seus ombros. Nós nos beijamos e nos abraçamos várias vezes, até que o motorista brincou: – Guardem um pouco para mais tarde, ok? – É melhor eu ir – falou Joe. Recuei, relutante, e ele entrou no carro. Acenei e Joe fez o mesmo enquanto o Lincoln preto levava o meu amor embora.
capítulo 12
YUKI ESTAVA EM seu escritório, uma das dezenas de tocas imundas, sem janelas, para os promotores assistentes no Tribunal de Justiça. Encontrava-se preparada, prevenida, e com o traje completo para a ocasião: um terno cinza da grife Anne Klein, uma camisa de seda rosa, sapatos de 300 dólares que comprara pela metade do preço. Eram seis e meia da manhã. Em cerca de três horas, estaria apresentando a argumentação nal no julgamento do terrível, sangrento e complexo homicídio de autoria de Stacey Glenn, uma ex-miss de 25 anos que era, ao mesmo tempo, uma bela e uma fera. O que zera aos pais era revoltante, injusticado e imperdoável, e Yuki estava determinada a condenar a vadia psicótica e a se livrar dela para sempre. Apesar de toda a rmeza e o talento para levar adiante a discussão, Yuki estava ganhando fama de perdedora na Promotoria Pública. E isso a estava matando. Se Stacey Glenn fosse absolvida, por mais que detestasse, Yuki voltaria para o direito civil, lidaria com os divórcios dos ricos e as negociações de contratos. Isso se não fosse demitida antes de deixar o cargo. Curvou-se para a frente na cadeira que rangia e organizou suas chas, cada uma destacando um ponto que ela abordaria ao resumir os fundamentos da acusação. Item 1: Stacey Glenn deixara seu apartamento em Potrero Hill às duas da manhã e dirigira seu inconfundível Subaru Forester vermelho vivo até a casa dos pais em Marin, a 65 quilômetros de distância, após cruzar a Golden Gate. Item 2: Stacey Glenn entrou na residência dos pais entre 3h e 3h15 da manhã, usando uma chave escondida sob uma pedra em forma de coração perto da porta da frente. Dirigiu-se à garagem, passando pela cozinha, levou um pé de cabra para o quarto principal no andar de cima e golpeou os pais na cabeça. Item 3: Uma vizinha testemunhou que, por volta das 3h naquela manhã, viu um Subaru Forester vermelho, com pneus off-road, na frente da casa dos Glenns, reconhecendo o carro de Stacey. Item 4: Deixando os pais à morte, Stacey Glenn dirigiu para casa, passando por um pedágio às 4h35, aproximadamente. Essa cronologia era crucial para o caso porque estabelecia os deslocamentos de Stacey naquela noite e dizimava o álibi de que estava sozinha em casa, dormindo, quando os pais foram atacados.
Item 5: Stacey Glenn era uma consumista, muito endividada. Os pais vivos não valiam nada para ela. Mas mortos significavam milhões de dólares. Item 6: Stacey Glenn tinha os meios, o motivo e a oportunidade – e havia também uma testemunha do crime. E aquela testemunha correspondia a noventa por cento da fundamentação de Yuki. Ela prendeu as chas com um elástico e colocou o pacote dentro da bolsa. Cruzou as mãos sob o queixo e pensou na mãe, que morrera precocemente e se incomodava com a pressão sobre a lha. Keiko Castellano a amara com ardor e Yuki sentia sua presença reconfortante envolver-lhe agora. – Mãe, esteja comigo no tribunal hoje e me ajude a vencer, ok? – pediu em voz alta. – Beijos. Para passar o tempo, ela limpou as gavetas, esvaziou a lata de lixo, apagou endereços antigos da agenda. Em seguida, mudou a blusa rosa, tão delicada, para uma camisa masculina sob medida em um tom mais forte e conante de verdeazulado, que estava envolta no plástico da lavanderia atrás da porta. Às 8h15, seu assistente, Nick Gaines, caminhava com calma pelo corredor, chamando-a. Yuki colocou a cabeça para fora da porta e disse: – Nicky, apenas certifique-se de que o projetor está funcionando. Mais nada. – Você é que manda. – Ótimo. Feche o zíper. Vamos.
capítulo 13
YUKI SE LEVANTOU da cadeira em frente à mesa dos promotores públicos assim que o meritíssimo Brendan Joseph Duffy entrou na sala por uma porta de folhas duplas atrás da tribuna, tomando o seu lugar entre as bandeiras e em frente ao grande brasão do estado da Califórnia. Duffy tinha cabelo grisalho e o porte físico de um atleta, e seus óculos grandes estavam sempre quase na ponta do nariz. Arrancou dos ouvidos os fones do iPod, abriu uma lata de refrigerante e, enquanto os presentes sentavam-se, pediu ao oficial de justiça que fizesse o júri entrar. Do outro lado do corredor, Philip R. Hoffman, o bem conceituado advogado de defesa criminal, conversava aos sussurros com sua cliente. Ele tinha 42 anos e 1,93 metro e era encurvado, com um cabelo escuro indisciplinado. Usava um terno Armani azul-marinho e uma gravata de cetim rosa. As unhas estavam bem cuidadas. Como Yuki, ele era perfeccionista. Ao contrário dela, o índice de ganhos e perdas de Hoffman o colocava no grupo das celebridades. Em geral, exigia honorários acima de 900 dólares a hora, mas dessa vez fazia seu trabalho de graça. Ele não era altruísta. O tribunal estava lotado de jornalistas e a cobertura desse caso valia milhões para sua firma. Stacey Glenn era uma morena estonteante de olhos azuis, maquiada agora com um pouco de blush, que realçava a palidez de presidiária. Usava um terninho xadrez desalinhado, em um tom feio de verde-oliva, parecendo uma professorinha em vez de uma psicopata calculista, assassina e obcecada por dinheiro. Ao lado de Yuki, Nick respirava com um chiado enquanto os jurados entravam na pequena sala por uma porta lateral e se acomodavam em seus lugares. O juiz cumprimentou-os e explicou que naquele dia ambos os lados iriam resumir as fundamentações e que, depois, o júri poderia iniciar as deliberações. Duffy tomou um longo gole do refrigerante direto na lata. Depois, indagou: – Srta. Castellano, a acusação está pronta para prosseguir? – Sim, meritíssimo. Pegando as anotações de cima da mesa, Yuki caminhou até o púlpito no centro do tribunal. Sorriu para os doze jurados e os dois suplentes que havia conhecido a fundo nas últimas seis semanas: todos os seus tiques, trejeitos, risadas e reviradas de olhos. – Bom dia a todos – cumprimentou. Em seguida, apontando para a ré, falou
abertamente: – Stacey Glenn é uma assassina perversa, que não se arrepende do que fez. Matou o pai, que a adorava. Esforçou-se para matar a mãe e achou que tinha conseguido. Golpeou os dois sem piedade porque queria receber o pagamento dos seguros de vida de milhões de dólares. Ela fez isso por dinheiro. Yuki prosseguiu na cronologia que estabelecera – o testemunho do atendente do pedágio e da vizinha dos Glenns – e mencionou o corretor de seguros a quem Stacey telefonara para verificar a importância da apólice dos pais. Por m, pediu ao júri para recordar os depoimentos do inspetor Paul Chi, um investigador da Homicídios condecorado pelo Departamento de Polícia de São Francisco, e de Lynn Colomello, uma paramédica muito experiente. – Os dois testemunharam que, embora estivesse próxima da morte ao ser encontrada na cama ao lado do marido assassinado, Rose Glenn tinha cognição e estava lúcida. Ela obedeceu às instruções dos paramédicos. Sabia quem a atacara e, o mais importante, foi capaz de transmitir essa informação à polícia. Os senhores têm conhecimento de que o inspetor Chi estava com uma lmadora quando foi chamado para a cena do crime naquela manhã. Ao perceber que a Sra. Glenn ainda se encontrava viva, gravou a conversa dos dois, acreditando ser a declaração de uma moribunda. Yuki fez uma pausa antes de prosseguir: – Rose Glenn conhecia muito bem quem havia tentado matá-la. E nesse vídeo ela conta a história de forma muito mais intensa do que qualquer coisa que eu possa dizer. Nick, por favor, passe-o.
capítulo 14
UM VÍDEO DA cena do crime pouco iluminada apareceu na tela ao lado da tribuna do juiz, próxima do júri. Via-se um quarto dominado por uma cama king size. Os lençóis estavam em desordem e manchados com sangue seco. O corpo retorcido de um homem se encontrava de um lado da cama, com o rosto virado para longe da câmera e feridas profundas no couro cabeludo e no pescoço; havia sangue e massa cinzenta na cabeceira. A mão fantasmagórica de uma mulher ergueu-se da cama e acenou para quem lmava se aproximar. O som da respiração difícil se intensicava à medida que a câmera se acercava da cama. Era chocante ver que, apesar de estar com o maxilar deformado e de ter perdido um olho, Rose Glenn permanecia viva. – Sou o inspetor Paul Chi – disse uma voz masculina fora de vista. – Uma ambulância está a caminho, Sra. Glenn. Pode me ouvir? A mulher assentiu devagar. – O seu nome é Rose Glenn? Ela voltou a balançar a cabeça. – Ronald Reagan é presidente dos Estados Unidos? Rose negou. – Sabe quem fez isso a você e ao seu marido? A respiração da mulher se tornou mais irregular, mas ela conseguiu mexer a cabeça para cima e para baixo. – Quem os atacou era um estranho? Rose negou. – A pessoa que os atacou era um membro da família? Ela anuiu. De repente, ouviram-se estalidos dos rádios da polícia e uma maca entrou no quarto fazendo barulho e bloqueando a visão da câmera. Então, a cena clareou mais uma vez. Lynn Colomello apareceu na tela, com o cabelo louro preso em um rabo de cavalo, e exclamou, a voz rouca típica de um fumante: – Meu Deus, ela está viva. Ela correu para Anthony Glenn e sentiu seu pulso. – Rose, foi o seu lho, Rudy, que fez isso? – indagou Chi à mulher que já estava
prestes a morrer. Ela negou com a cabeça, em um movimento lento, agonizante. O som de passos se sobrepôs ao interrogatório e outros dois paramédicos se juntaram a Lynn. Falaram que era necessário um tratamento de emergência, trouxeram um tanque de oxigênio e inseriram uma cânula nas narinas de Rose. – Só preciso de mais um segundo – pediu Chi a eles, então se dirigiu à vítima: – Rose. Rose. Quem a atacou foi a sua filha, Stacey? A mulher assentiu. – Rose, você quer dizer que a sua filha, Stacey, fez isso com vocês? Ela sibilou: – Ssssssim. Era um som terrível, o ar escapando dos pulmões, como se aquele fosse o último suspiro. Em seguida, Lynn deu um sinal e os paramédicos ergueram Rose e a colocaram na maca – e o interrogatório acabou. A tela escureceu e as luzes se acenderam. Os jurados já tinham assistido ao vídeo, mas, como era a peça-chave de Yuki em sua fundamentação, ela esperava que o choque de vê-lo novamente reforçasse seu poder. Ela pigarreou e disse: – Senhoras e senhores, diversas perguntas foram feitas a Rose Glenn naquela manhã e ela foi capaz de mover a cabeça de maneira armativa e negativa, e até de falar. Quando indagaram se a lha a atacara, ela respondeu que sim. Em nenhum momento durante este julgamento Rose Glenn negou o que disse ao inspetor Chi. Apenas não consegue se lembrar. E por que não consegue se lembrar? Porque a lha a golpeou na cabeça com um pé de cabra, causando traumatismo a tal ponto que os médicos nunca tinham visto alguém sobreviver com ferimentos tão graves. No entanto, ela sobreviveu: viúva, desgurada e com parte do corpo paralisada para sempre. Fez uma pausa e, então, continuou: – Foi a ré que provocou tudo isso, senhoras e senhores. A acusação pede que considerem Stacey Glenn culpada tanto pelo assassinato do pai, Anthony Glenn, quanto pela tentativa de assassinato da mãe, Rose. Pedimos que garantam que ela pague por esses crimes com o máximo de rigor. Assim que Yuki tomou seu lugar, sentiu um monte de coisas, todas boas: o conforto da missão cumprida, Nick dando-lhe tapinhas em um dos ombros e a presença da mãe, envolvendo-lhe como um abraço apertado. “Bom trabalho, Yuki,” parabenizou a mãe. “Você arrasou.”
capítulo 15
PHILIP HOFFMAN NUNCA perdera a compostura na presença daquele júri. Havia sido respeitoso com as testemunhas de defesa e jamais usara uma palavra rebuscada se uma simples já dava conta. Tinha certeza de que os jurados conavam nele, e contava com que essa boa impressão também se estendesse à sua cliente. – Pessoal – começou, agigantando-se sobre o púlpito, fazendo-o parecer um mero brinquedo –, Stacey Glenn é uma boa menina que nunca fez mal a uma pessoa. Ela ama os pais. Quando Rose Glenn veio até os senhores a um enorme custo emocional e físico, contou-lhes que Stacey não tem nem um pingo de violência dentro de si. Que nunca, jamais atacaria o pai ou a própria Rose. Os senhores ouviram Rose Glenn dizer que está muito preocupada, que tudo o que disse ou fez quando estava à beira da morte foi mal-interpretado e usado para indiciar a filha inocente. Hoffman balançou a cabeça, deixou as anotações sobre o púlpito e caminhou até o júri. Cruzou as mãos às costas e passou os olhos pelos jurados. – A promotoria usou o vídeo da cena do crime a m de incitar as emoções dos senhores porque é tudo o que eles têm. E esse vídeo, mesmo tão comovente, não é prova de que Stacey Glenn seja culpada. Ele explicou a própria fundamentação em detalhes ao júri, citando os dois neurologistas e o psiquiatra que testemunharam que Rose Glenn estava em choque quando foi interrogada pelo inspetor Chi, logo suas respostas eram totalmente duvidosas. Salientou ainda que o atendente do pedágio acreditava ter visto Stacey Glenn e que uma transação com qualquer motorista durava alguns segundos no máximo. Além do mais, nesse caso, o relance ocorrera em meio à escuridão da noite. – Não há registro da placa do Forester nem da motorista – prosseguiu Hoffman. – Bernice Lawrence, a vizinha que jurou ver o carro de Stacey em frente à casa de seus pais… bem, é uma cidadã e estava tentando ajudar. Talvez tenha visto um veículo semelhante ou tenha errado a data de quando o avistou. De qualquer maneira, ela admite que não chegou a ver Stacey. Se tivermos bom senso, perceberemos ser pouco provável que a minha cliente fosse estúpida o bastante para estacionar o carro dela em frente à residência dos pais e, em seguida, entrar para matá-los. Seria ridículo. Ele fez uma breve pausa e prosseguiu: – Os senhores viram como o quarto de Tony e Rose Glenn cou após o ataque. Dá para acreditar que uma pessoa pudesse erguer um pé de cabra, bater com força,
levantar e bater de novo várias vezes e não car nem um o de cabelo ou uma mancha de sangue em suas roupas? Stacey foi levada a interrogatório horas depois da tragédia. O cabelo, as mãos, todo o corpo foi examinado. O apartamento dela foi revirado, e os sapatos e as roupas foram analisados com cuidado no laboratório. Não havia nenhuma prova. Nenhuma. O carro de Stacey foi todo revistado, e nenhuma prova foi encontrada. Em relação à chave deixada na porta da frente da residência dos pais, eu pergunto: quantos dos senhores mantêm uma chave extra sob o capacho ou em algum outro lugar óbvio onde qualquer um poderia encontrar? E o telefonema para Wayne Chadwell, o corretor de seguros? Stacey estava sendo uma boa lha. Os pais envelheciam e ela vericou a apólice porque queria ter certeza de que ambos estavam protegidos. Hoffman continuou: – Em suma, não há nenhuma prova forense, qualquer que seja, relacionando a minha cliente a esse crime. Nenhuma. E, como a polícia tem o testemunho questionável de uma mulher com ferimentos graves, atribuem esse crime a Stacey e nunca consideraram outra pessoa. Existe dúvida razoável nesse caso? Estou mostrando aos senhores que não há nada além de dúvida razoável. Rose Glenn perdeu o marido e quase morreu. Agora, a promotoria está pedindo aos senhores que agravem a tragédia dessa mulher, retirando-lhe a lha também. Stacey Glenn não fez isso, pessoal. Não há nenhuma prova concreta de que ela tenha feito. Insisto que não a considerem culpada. Obrigado.
capítulo 16
CINDY, EXUBERANTE COM um vestido-envelope rosa e um casaco, cabelo reluzente, parecia recém-saída de uma vitrine de loja de departamentos. Contornou os drogados imundos que vadiavam do lado de fora do edifício de tijolos vermelhos de três andares na Rua 5 perto da Townsend Street e agradeceu a um jovem desdentado que lhe abriu a porta. No térreo do centro de assistência social From the Heart, havia um refeitório popular. Era um grande salão verde, com um bufê de pratos quentes ao longo de uma parede, mesas e cadeiras dobráveis enleiradas e pessoas esfarrapadas andando sem rumo – algumas falando sozinhas, outras comendo ovos em pratos descartáveis. Cindy notou que, perto da entrada, uma mulher negra e magra a observava. Aparentava 40 anos e vestia uma blusa com estampa chamativa e uma calça stretch preta. Óculos com armação roxa estavam pendurados em um cordão ao redor de seu pescoço e havia um crachá preso à roupa, no qual se lia: SRTA. LUVIE JUMP, SUPERVISORA. Ela continuou a examiná-la, desconfiada. – Posso ajudá-la? – perguntou. Cindy se apresentou e contou à mulher que estava escrevendo uma matéria sobre Bagman Jesus para o San Francisco Chronicle. – Estou investigando o assassinato dele – continuou, tirando o jornal matutino de dentro de sua pasta. Abriu-o na página três, deixando à mostra a manchete acima da dobra. A mulher estreitou os olhos para tentar ler. – Já tomou café? – Não – respondeu Cindy. – Então, sente-se. Luvie Jump voltou após um minuto com duas canecas de café, uma cesta de pães e porções de manteiga embalada em papel-alumínio. – Pode ler aquela matéria para mim? – pediu, sentando-se em frente a Cindy, dispondo os talheres de plástico e os guardanapos. – Não estou com os meus óculos de leitura. A repórter sorriu. – Vou adorar. Não costumo fazer leituras com muita frequência. – Alisou o jornal e disse: – A manchete é: “Messias das ruas assassinado. Polícia não tem
pistas.” – Ahã. Prossiga. – “Depois da meia-noite do dia 6 de maio, um sem-teto foi espancado e morto a tiros do lado de fora do pátio da estação Caltrain, na Townsend Street. Todo ano, mais de cem moradores de rua morrem por causa da negligência e da violência, e a cidade os enterra e os esquece.” – Pode repetir isso? – murmurou Luvie. Depois, Cindy continuou: – “Mas esse homem não será esquecido com facilidade. Era um amigo dos rejeitados, dos marginalizados. Era o pastor dessas pessoas, e elas o amavam. Não sabemos o seu nome, mas ele era chamado de Bagman Jesus.” Cindy sentiu um nó na garganta e ergueu o olhar. Viu Luvie sorrindo, mas sua boca tremia como se fosse chorar. – Ele fez o parto do meu lho mais velho em um beco – revelou Luvie. – É por isso que usava aquele bebê na cruz pendurada ao pescoço. Jesus salva. Jesus salva. O que posso fazer para ajudá-la, Cindy Thomas? É só me dizer. – Quero saber tudo sobre ele. – Por onde devo começar? – Sabe o nome verdadeiro de Bagman?
capítulo 17
CINDY SENTIA-SE DOMINADA por um homem morto – de coração, mente e alma. Eu e Conklin nos sentamos com ela no MacBain’s Beers O’ the World Pub, um ponto de encontro de policiais em Bryant. Uma jukebox tocava “Dancing Queen” e, à frente do balcão longo e polido, havia uma la tripla de pessoas animadas que vieram direto da Central. Cindy se mostrava alheia ao ambiente. Sua voz demonstrava raiva ao falar conosco: – Ele fez o parto do bebê dela e ela não sabe o seu nome. Ninguém sabe! Se ao menos o rosto não estivesse desgurado, poderíamos tirar uma foto. Talvez alguém telefonasse com uma identidade. Engoliu a cerveja e bateu a caneca vazia sobre a mesa. – Tenho que fazer as pessoas entenderem a condição dele. Tirar seus narizes das colunas sociais por um minuto para que percebam que uma pessoa como Bagman Jesus tinha importância. Tentei acalmá-la: – Já entendemos, Cindy. Respire. Deixe mais alguém falar! – Sinto muito. – Ela riu. – Sydney – chamou a garçonete, erguendo uma das mãos –, mais uma, por favor. – Rich e eu passamos a nossa hora de almoço analisando as pessoas desaparecidas e verificando as digitais de Bagman. – Na hora do almoço de vocês. Uau – comentou Cindy em tom de brincadeira. – Olhe por este ângulo: nós passamos o seu Bagman para o topo de uma pilha de casos bem avantajada. Cindy me lançou um olhar que dizia “desculpe” , porém ela não se sentia culpada de verdade. Que safada. Ri dela. O que mais podia fazer? – Descobriram alguma coisa? – perguntou. – Nenhuma digital bate com a dele – respondeu Conklin. – Por outro lado, há centenas de homens brancos, de porte médio e olhos castanhos que desapareceram na Califórnia ao longo da última década. Eu telefonei às duas e meia para que você pudesse cumprir o prazo. Quando você acessar o correio de voz… – De qualquer maneira, obrigada, Rich. Eu estava fazendo entrevistas. Desliguei o celular. Veio mais cerveja e, como o jantar chegou, Cindy apresentou os pontos principais das outras entrevistas no centro de assistência social. Demorou um
pouco, mas logo percebi que ela estava dando atenção só para Conklin. Cortei o meu contrafilé e observei os dois interagirem. Os sentimentos por meu parceiro haviam se transformado de modo brusco e inesperado cerca de um ano e meio atrás quando estávamos trabalhando em um caso que nos levara a Los Angeles. Jantamos tarde, bebemos um pouco de vinho e perdemos o voo de volta para São Francisco. Como a noite já ia alta, paguei por dois quartos no hotel do aeroporto. Eu usava um roupão de banho quando Conklin bateu à porta. Pouco depois, estávamos nos agarrando na cama. Dei um basta naquilo antes que fosse tarde demais e a situação se tornasse desagradável e tensa – tão errada como o sol se pôr no leste. Eu estava certa em não levar adiante. Por um lado, embora eu estivesse separada de Joe naquela época, ainda o amava. Além disso, Conklin é cerca de dez anos mais novo e somos parceiros. Também sou a chefe dele. Após aquela noite, concordamos em ignorar os momentos nos quais sentíamos uma química entre nós na viatura, quando eu esquecia o que estava dizendo e cava muda, apenas tando os olhos castanho-claros de Richie. Da melhor maneira possível, contornávamos as ocasiões em que ele explodia em discursos sobre quanto era louco por mim. Mas este não era um daqueles momentos. Agora, o inspetor bonitão abria um sorriso para Cindy e ela quase esqueceu que eu estava ali. Eu poderia armar que eles formavam um casal fantástico. São solteiros. Ficam bem juntos. Parece que têm muito a conversar. – Rich – disse Cindy –, vou tomar outra cerveja. Acha que consegue garantir que eu chegue bem em casa? – Eu levo você – falei, colocando uma das mãos, de modo fraternal, em um de seus braços. – Meu carro está aqui em frente e posso passar por seu apartamento no caminho para casa.
capítulo 18
YUKI QUASE TROMBOU com Phil Hoffman enquanto ele saía do elevador. – Do que acha que isso se trata? – murmurou Hoffman. – Estranho, né? – replicou Yuki. Eram dez horas da manhã, dois dias depois de eles terem feito as declarações nais, e ambos haviam acabado de receber telefonemas da escrivã dizendo que a presença deles era necessária na Sala do Tribunal 6A. Os dois andaram lado a lado ao longo do extenso corredor amarelo, em direção ao tribunal, Hoffman quase 40 centímetros mais alto que Yuki. Nicky Gaines os seguia. – Pode não ser nada – comentou ela. – Certa vez, houve um júri que solicitou uma calculadora. Pensei que estivessem somando os anos que meu cliente passaria na prisão. Acabou que era um jurado fazendo o imposto de renda durante a pausa para o almoço. Hoffman riu, abriu a primeira série de portas para o tribunal, Gaines manteve aberta a segunda e, então, os três caminharam até a frente, sentaram-se atrás das respectivas mesas da defesa e da acusação. Duffy estava na tribuna, a estenógrafa e a escrivã, em seus lugares, e o subxerife, de pé, em frente à bancada do júri, mexendo no bigode. O juiz colocou os óculos no topo da cabeça, fechou o laptop e pediu aos advogados para se aproximarem, e eles obedeceram. – A primeira jurada enviou um bilhete do júri. Um sorriso surgiu no rosto de Duffy enquanto ele abria uma folha de papel dobrada em quatro. A seguir, ergueu-a de modo que Yuki e Hoffman pudessem ver as doze forcas desenhadas no papel com um marca-texto preto. Abaixo delas, estava escrito: “Meritíssimo, acho que temos um problema.” – De jeeeito nenhum – contestou Yuki. – Eles estão deliberando há… o quê? Dez horas? – Meritíssimo – disse Hoffman. – Por favor. Não os deixe sair tão cedo. Isso é bizarro! Yuki não conseguia ler a expressão de Duffy, mas era capaz de decifrar a de Hoffman e sabia que ele também sentia ansiedade, raiva e náusea. Tinham levado meses para preparar aquele caso. Dezenas de pessoas haviam deposto. Foram incontáveis horas de trabalho de preparação, além de seis semanas de apresentações que, para Yuki, foram quase impecáveis.
Se o julgamento fosse declarado inválido, a acusação poderia decidir não despender os gastos necessários para um recurso. Era provável que a rma de Hoffman também abandonasse o caso. E isso significava que Stacey Glenn ficaria livre. – Sentem-se, vocês dois. Não há necessidade de transportar a ré. Duffy chamou o subxerife: – Sr. Bonaventure, por favor, traga o júri.
capítulo 19
À MEDIDA QUE OS jurados colocavam as bolsas no chão, ao lado dos assentos, a mente de Yuki girava como as luzes de uma viatura. Ela os examinou enquanto entravam em fila, procurou por sinais no rosto e na linguagem corporal deles. Quem acreditava que Stacey Glenn era inocente? Quantos deles tinham votado pela absolvição – e por quê? A primeira jurada, Linda Chen, era uma sino-americana de 40 anos, com formação em universidade tradicional e um negócio imobiliário bem-sucedido. Ela tinha uma postura de eciência e objetividade que contrastava com um sorriso largo e fácil. Tanto Yuki quanto Hoffman sentiram-se à vontade com Chen ao selecionarem os jurados. Mais ainda quando ela fora escolhida para ser representante do júri. Agora, Yuki se perguntava como Chen permitira que o júri saísse tão cedo. Duffy sorriu para os jurados e falou: – Pensei muito a respeito do bilhete dos senhores. Compreendo que as seis semanas de julgamento já tenham sido um sofrimento e que muitos queriam ir para casa. Esse julgamento tem sido dispendioso, não apenas em termos de dinheiro, embora seja um custo alto para o estado da Califórnia. Durante a maior parte do ano, ambos os lados têm trabalhado para montar esse caso para os senhores julgarem. Nas atuais circunstâncias, os senhores são os especialistas no caso O Povo contra Stacey Glenn. Se não for possível chegar a uma decisão unânime, o caso terá que ser julgado de novo, e não há nenhum motivo para acreditar que qualquer outro grupo de pessoas seja mais qualicado ou imparcial, ou tenha mais sabedoria para dar o veredicto, do que os senhores. Duffy pediu aos jurados que continuassem com as deliberações e não desistissem por causa de ideias arraigadas com base nas provas, mas que reexaminassem seus pontos de vista com a mente aberta para tentarem chegar a um consenso. Com essa alocução, ele procurava resolver o impasse do júri. Era uma medida considerada coercitiva pelos puristas da lei. Yuki sabia que essa era a melhor opção disponível, mas que poderia sair pela culatra. Um júri ressentido era capaz de recuar e emitir um veredicto qualquer para acabar com o julgamento o mais rápido possível. Obviamente, a decisão mais fácil, que pesaria menos sobre os jurados, era um voto unânime pela absolvição. – Quero que os senhores tenham o máximo de reclusão e conforto – continuou Duffy. – Sendo assim, providenciei seu isolamento no Hotel Fairmont pelo tempo
que for necessário. Yuki viu a expressão de choque dos jurados ao perceberem que o juiz os estava trancando em um hotel, sem qualquer aviso prévio, negando-lhes TV , jornais, refeições caseiras e outros confortos do dia a dia. Eles não ficaram satisfeitos. Duffy agradeceu ao júri em nome da corte e, pegando sua lata de refrigerante, deixou a tribuna.
capítulo 20
O TELEFONE TOCOU NO momento em que Yuki retornava ao escritório. – Sou eu – disse Leonard Parisi, o assistente de promotoria sênior que também era seu superior, defensor e crítico mais severo. – Você tem um minuto? Ela abriu o kit de maquiagem, retocou o batom, fechou a bolsa e saiu para o corredor. – Quer que eu vá junto? – indagou Nick, passando a mão pelo cabelo louro desgrenhado. – Sim. Tente fazê-lo rir. – Sério? – Mal não faria. Parisi estava ao telefone quando Yuki bateu à porta, que se encontrava aberta. Ele voltou-se em sua cadeira giratória e ergueu o indicador no ar, o sinal universal para “Só um minuto”. Ele era muito gordo e tinha quase 50 anos, cabelo ruivo crespo e um problema cardíaco que quase o matara um ano e meio atrás. Era conhecido na cidade como Red Dog, nome que parecia agradá-lo. Parisi lembrava um buldogue raivoso com uma coleira cheia de pinos. Ele desligou o telefone e sinalizou para que Yuki e Nick entrassem. – Ouvi direito? O júri está indeciso? – gritou. – Está – respondeu Yuki da soleira da porta. – Duffy pediu que pensassem melhor e depois os isolou. – Não brinca. O que você acha? Eram um ou dois que estavam obstruindo? – Não sei, Len – confessou ela. – Contei seis jurados que não me encaravam. – Meu Deus! – exclamou ele. – Que bom que Duffy colocou pressão, porém não tenha muitas esperanças. – Balançou a cabeça e fez uma pergunta retórica: – Qual é o empecilho? Stacey Glenn é culpada. – Acredito que seja o testemunho de Rose Glenn – opinou Yuki. – Quando ela afirmou “Minha filhinha nunca nos machucaria”. Tem que ser isso… Parisi já não estava mais escutando. – Tudo bem, vamos aguardar. Nesse meio-tempo, Gaines, corte o cabelo. Castellano, ajude Kathy Valoy após o almoço. Ela está atolada. É isso. Obrigado. Em seguida, atendeu o telefone e girou na cadeira, cando de frente para a janela. – Eu ia ajudar você – disse Nick enquanto caminhavam de volta pelo corredor.
– Mas ele nem olhou para mim. Não consegui fazer um gracejo. Ou uma réplica sarcástica. Ou um trocadilho. Yuki riu. – E, acredite, tenho piadas prontas. Já ouviu aquela sobre o padre, o rabino e o hipopótamo que entraram em um bar… Ela deu uma gargalhada que parecia vinda de um maníaco. – Você me fez rir. Já é alguma coisa – afirmou. – Você se saiu bem, número dois. Até mais tarde. Deixou-o no escritório, desceu a escada até o saguão e passou por trás de um policial enorme, fortemente armado, que guardava as portas pesadas de aço e vidro que levavam à Bryant Street. Yuki passou os olhos pelos repórteres que faziam hora na escadaria do lado de fora do Tribunal de Justiça. Ninguém a vira – ainda. O que era bom. Às vezes, quando a imprensa lhe disparava perguntas, ela queria responder e, em geral, falava sem pensar. Ao ver Candy Stimpson, uma jornalista malhumorada do Examiner, Yuki desceu rápido a escada, traçando uma linha reta em direção à esquina. A repórter gritou atrás dela: – Yuki! O julgamento de Glenn está indo por água abaixo? Como está se sentindo agora? Só quero uma declaração. – Vá embora, Candy – retrucou Yuki, olhando em direção à repórter e continuando a andar enquanto saía da calçada. – Nada a declarar. Candy Stimpson berrou: – Yuki, não! Mas Yuki não entendeu.
capítulo 21
A LUZ OFUSCAVA A visão de Yuki. – Mãe! – gritou. – Mãe! – Está tudo bem – afirmou uma voz masculina reconfortante. – Você está bem. A luz se apagou e ela viu olhos cinza-azulados e, em seguida, todo o rosto. Não conhecia aquele homem, nunca o vira antes. – Quem é você? – Dr. Chesney. John. E o seu nome é…? – Srta. Castellano. Yuki. – Ótimo. – Ele sorriu. – Isso bate com a sua identidade. Tenho algumas perguntas… – O que está acontecendo? – Você está na emergência – explicou o médico, que aparentava 30 e poucos anos e tinha um corpo malhado. – Você atravessou na frente de um carro. – Eu não fiz isso. – Ele estava desacelerando por causa do sinal, para a sua sorte. Sua tomograa não apresentou ferimentos graves, apenas uma pequena concussão. Você levou alguns pontos e sofreu alguns arranhões e uma contusão no quadril esquerdo, porém nenhum osso quebrado. Quantos dedos tem aqui? – Dois. – E agora? – Três. – Ok. Feche os olhos. Toque o nariz com o indicador esquerdo. Agora, a mesma coisa com o direito. Excelente. Qual é a última coisa que você lembra? – Tenho uma contusão no quadril. Chesney riu. – Quero dizer, o que você lembra de antes do acidente? – Uma repórter estava me perseguindo… – Lembra o nome dela? – Candy Bocagrande Stimpson. – Muito bom. Ela está esperando lá fora. Quero que você passe a noite aqui, para ficar em observação… Mas Yuki já estava olhando ao redor e começava a reconhecer a sala de emergência, com o estômago embrulhado. Agarrou as laterais da cama.
– Que hospital é este? – Hospital Municipal de São Francisco. Minha mãe morreu aqui. – Vou querer examiná-la de novo pela manhã… – Não precisa. Estou bem. – Mas você pode ir embora – completou ele. Mostrou-lhe um formulário em uma prancheta e avisou: – Aqui diz que você está saindo contra a recomendação médica. É só assinar. – Tem uma caneta? Chesney entregou-lhe uma e Yuki assinou no local indicado. – Recomendo paracetamol. Ainda dá tempo de mudar de ideia – sugeriu ele. – Não. Não, não, não. – A decisão é sua – garantiu ele. – Não lave o cabelo por, pelo menos, três dias… – Está louco? Não lavar? Preciso trabalhar… – Escute. Olhe para mim, Yuki, e preste atenção. Seu médico vai tirar os pontos em dez dias. Se puder esperar trinta ou quarenta segundos, uma enfermeira trará as suas roupas. Sugiro que vá para casa e durma um pouco. – Perdão? – Durma um pouco. E não estou brincando. Olhe por onde anda.
capítulo 22
TENHO QUE SAIR daqui!, pensava Yuki. Terminou de se vestir, calçou os sapatos, afastou as cortinas ao redor do seu leito e foi embora. Após tomar o caminho errado, parar na obstetrícia e passar pela cafeteria, ela encontrou a porta que dava para a sala de espera. Candy Stimpson se levantou ao vê-la. – Meu Deus, Yuki, sinto muito. Ela tinha cabelo comprido encaracolado e seios enormes. Deu um abraço em Yuki, que o suportou por pouco tempo antes de se soltar de Candy e se dirigir à saída. – Que horas são? Há quanto tempo estou aqui? – perguntou enquanto andava. A repórter a acompanhou, falando por todo o caminho. – Já são mais de cinco horas. Estou com sua pasta, sua bolsa e toda a papelada. Precisei abrir a carteira para pegar o cartão do seguro e… Ah! Também tenho o nome e o número da motorista que a atingiu. Ela quer ter certeza de que você está bem. Deve estar preocupada porque atropelou uma advogada com sua moto… rá! Ah, me dê aquela receita. Vamos passar em uma farmácia. Você tem comida no seu apartamento? Sua cabeça está doendo? – Minha cabeça? Candy a olhou, assentindo em silêncio. Yuki ergueu uma das mãos até o lado esquerdo do couro cabeludo e sentiu os pontos espetando. – Ai, nããão. Um espelho. Preciso de um espelho. Após revirar a bolsa, Candy achou um estojo pequeno de plástico e o entregou a Yuki, que levantou o espelho e, incrédula, encarou a si mesma com os olhos arregalados. Havia uma faixa raspada de cabelo com 7,5 centímetros de largura, começando na têmpora esquerda e fazendo uma curva longa e graciosa até a parte inferior atrás da orelha esquerda. Pontos pretos que lembravam uma lagarta avançavam por essa estrada aberta com perfeição. – Olhe para mim! Pareço um monstro! – gritou para Candy. – Em você, até isso cai bem. Apoie-se em mim, querida. Vou levá-la de carro para casa.
capítulo 23
OUTRA MALDITA NOITE luminosa no Aria. Uma jukebox tocava clássicos da ópera e músicas de lmes de gângster, os turistas estavam tontos por causa dos martínis e os habitués já haviam se embebedado com gim-tônica. A “Garota de Estimação” sentou-se sozinha no bar lotado, acalentando o próprio segredo como se fosse um filhote de passarinho recém-saído do ovo. Ela era uma loura pequena de olhos castanhos e tinha 33 anos, mas aparentava ser uma década mais nova. Uma mulher que podia entrar e sair de uma sala como se estivesse usando uma capa da invisibilidade, feito uma super-heroína. Esse era um ponto positivo. Ela deixou uma nota de 10 dólares no bar, pegou o café irlandês e voltou para a sala VIP. Lá estava, sobre a mesa de bilhar, o caixão de bronze do astro do rock McKenzie Oliver, seu ex-namorado. O caso durara seis meses ou 27 anos, dependendo do ponto de vista, mas, de qualquer forma, terminara mal havia alguns dias. Tinha sido horrível. Ainda não entendia totalmente o motivo. Ela o amara, como ele era de verdade: um menino de peito fundo, pés chatos e um jeito de parecer ao mesmo tempo tranquilo e assustado, assim como na época em que eram crianças e brincavam na areia, quando ele era Mikey e ela, sua amiga. Claro que nada daquilo tivera importância para ele. A prova era a menor de idade frágil, chorosa e viciada, com tatuagens no rosto e argolas no nariz, a “verdadeira” namorada de McKenzie, com quem o roqueiro estivera saindo durante todo o tempo em que a Garota saíra com ele. E ela havia sido a última a saber. Quando os pegara no agra, ele lhe dera aquele olhar que dizia: Ah, qual é. Olhe quem eu sou. O que você esperava? Nem sequer se desculpara. Agora, a Garota espiava dentro do caixão forrado de cetim e tinha que admitir que McKenzie parecia bem. Ela sentiu os olhos marejarem e a tristeza atingir seu coração – o que menos esperara que acontecesse, quando menos esperara. Enxugou as lágrimas com a palma da mão, colocou a chave da porta da frente dele no bolso do peito de seu paletó e sussurrou para o homem morto: – Vá para o inferno, babaca. Assinou o livro de visitas antes de se deixar cair em um sofá para que pudesse observar a festa a distância.
E que festa ele estava tendo. Os caras da banda cheiravam carreiras de cocaína na mesa de bilhar. Bono se aconchegava em um canto com a empresária. Willie Nelson apareceu para prestar homenagem e todos os outros tagarelavam sobre a tragédia, as pessoas que ela conhecera a vida inteira e pensavam conhecê-la, mas que, na verdade, não sabiam nada sobre ela. A Garota fechou os olhos e escutou J’razz, o vocalista principal da banda, cantar “Dark Star” , tributo de McKenzie a si mesmo. Após os aplausos, ele ergueu sua taça ao morto, dizendo: – Uma merda você morrer tão jovem, cara. As luzes se apagaram. A chama das velas bruxuleava. Todos se juntaram a J’razz cantando “A Hole in the Night”. Os amigos e os fãs pensavam que as drogas o haviam matado. No entanto, a Garota sabia que as drogas não tinham nada a ver com isso. McKenzie Oliver fora assassinado. Ela sabia disso porque o matara.
PARTE 2
A ELITE
capítulo 24
A GAROTA SENTOU-SE NO chão do antigo quarto das crianças, encostada à parede. Usava luvas de soldador e botas com pontas de aço, com o precioso Rama em segurança dentro da bolsa. E escutava os gritos abafados dos Baileys através da parede de gesso. – Cachorro! – Vagabunda! – Cala a boca, cala a boca! Os idiotas nem sabiam que ela estava sentada no escuro a apenas 3 metros de distância, que estivera esperando por horas os dois chegarem em casa e transarem até dormir. Usara bem o tempo, repassara o Grande Plano em sua mente. Estava preparada. Conhecia os hábitos deles, a planta da casa, a melhor forma de entrar, o jeito mais rápido de sair. E sabia o código do alarme. Era um bom plano, porém também havia um Plano B – o que fazer se fosse pega. Era ousada a ponto de fazer isso. Do outro lado da parede, Ethan Bailey acusava a esposa de traí-lo, e a Garota não duvidava disso. Isa havia sido uma namoradeira inveterada quando estudaram juntas na Katherine Delmar Burke School. E, desde então, de fato dominara a arte da sedução casual. Como Gwyneth Paltrow em um dia muito bom. Mas não era por isso que a Garota a desprezava. Era algo mais profundo, relacionado à época em que sua vida se despedaçara – quando a Garota tinha 10 anos e o pai morrera, e Isa lhe dera um abraço forte no funeral e dissera: – Sinto muuuito. Mas nunca esqueça que eu te amo. Seremos melhores amigas para sempre. “Para sempre” durara algumas semanas. Como a fortuna e a proteção do pai passaram para a verdadeira família dele, era como se a Garota e a mãe nunca tivessem existido. Nada de escola particular, aulas de dança ou festas de aniversário em Snob Hill. Ela despencara até as planícies sombrias da indiferença – lugar ao qual a lha bastarda de um homem casado pertencia. Isa, por outro lado, formara-se aos 18 anos e, aos 22, casara-se com Ethan Bailey em um vestido longo ornado de contas da grife Carolina Herrera, em um
evento com a presença de toda a elite da Costa Oeste. E depois se seguiram os dois lhos inteligentes, as instituições de caridade, o posto no topo reluzente da alta sociedade. A mãe da Garota aconselhara: – Siga em frente, querida. Comece de novo. Entretanto, suas raízes estavam naquela cidade, até mesmo mais profundas e antigas que a linhagem nobre de Isa. Essa era a sua vida após a queda. Trabalhava para os Baileys e sua laia nojenta, passeando com os cachorros neuróticos, levando os repulsivos casacos de pele para câmaras frigorícas, endereçando convites a amigos esnobes, pessoas que a chamavam de “Garota de Estimação” e que falavam sobre ela quando estava perto o suficiente para ouvir. Por muito tempo, pensou que lidasse bem com isso. Mas, se aprendera algo com McKenzie Oliver, foi que “lidar bem com isso” não era algo positivo. Olhou ao redor do cômodo, agora cheio de prateleiras com roupas ultrajantes, nunca usadas, além de montanhas de caixas fechadas de compras caras feitas por capricho. Era repugnante. A decadência dos podres de ricos. O maldito ouro de 24 quilates. Dentro do quarto, a gritaria cessou. A Garota pressionou um dos ouvidos contra a parede e escutou os Baileys grunhirem e gemerem, Isa gritando “Ooh! Que delícia! Ooh!” . Os dois agora faziam o que chamavam amor, a voz de Isa dando ainda mais motivo à Garota para abatê-la. Então, tudo ficou em silêncio. Ela segurou a alça da bolsa de lona. Estava na hora.
capítulo 25
A GAROTA ABRIU A porta para o quarto dos Baileys, agachou-se quando os pugs, Wako e Waldo, correram em sua direção, fungando, inquietos. Fez sshh, afagou-os e os observou trotarem para suas cestas sob a janela, andarem em círculo e se deitarem de novo. Levantou-se e permaneceu quieta, escutando a respiração rítmica dos Baileys na cama enorme iluminada pelo luar. Nas janelas, cortinas de tafetá ondulavam, o farfalhar se sobrepondo ao som de sua respiração nervosa e o ruído do trânsito na rua abaixo. Dava para ver que Isa estava nua, deitada de bruços sob os lençóis de mil os e um edredom feito com pena de ganso, os cabelos longos e escuros abertos como um leque. À esquerda dela, Ethan estava deitado de costas, seus roncos enchendo o ar com o cheiro de álcool. A Garota caminhou até o lado de Isa, indo direto ao ombro exposto. O coração batia forte. Sua adrenalina estava nas alturas, como se ela tivesse pulado de um avião e esperasse para abrir o paraquedas. Depositou a bolsa de lona no chão, abriu-a e enou a mão enluvada. Só então Isa se mexeu, levantou-se um pouco e, vendo uma silhueta, gritou: – Quem está aí? Sua voz estava engrolada por causa da bebida e do sono. – Isa, sou eu – resmungou a Garota. – O que você está… fazendo aqui? A Garota não conseguia se mexer. O que tinha dado na cabeça dela? E se Isa acendesse as luzes? E se os cachorros enlouquecessem? E se Ethan acordasse? O Plano B era satisfatório, mas estava longe de ser ideal. – Peguei a sua receita médica. Fiz uma viagem especial – sussurrou, improvisando. Ethan rolou para o lado, afastando-se da esposa. Puxou o edredom, colocandoo embaixo de um dos braços. Ele não oferecia perigo. – Coloque a receita na minha mesinha de cabeceira e dê o fora, ok? – É isso que estou fazendo – retrucou a Garota, parecendo zangada. – Está me ouvindo? Fiz uma viagem especial. E você é bem-vinda. Um dos ombros de Isa estava a poucos centímetros da mão da Garota. Ela atacou com suavidade e precisão. – O que foi isso? – perguntou. – Você me beliscou?
– Sim, sua vaca. Porque eu odeio você. Queria que você morresse. Isa riu. – Não hesite, querida. – Não, não eu. No entanto, uma nova ideia estava se formando. Chame-a de Plano C. Com a pulsação acelerada, caminhou até o lado de Ethan na cama. Pegou um livro do chão, colocou-o de volta na mesinha de cabeceira e tou aquele braço peludo estendido sobre o edredom. – O que está fazendo agora? – indagou Isa. – Arrumando as coisas – respondeu ela. E atacou de novo. Ooh! Que delícia! Ooh! – Durma – sugeriu a Garota, fechando a bolsa. – Estarei de volta pela manhã para cuidar dos cachorros. – Não nos acorde. – Não se preocupe. Tenha bons sonhos – falou, a voz num crescendo. Com a bolsa de lona a tiracolo, correu, descendo dois lances de escada no escuro. Digitou o código de Isa no teclado numérico da porta da frente, depois voltou a ativar o alarme e saiu da casa. “Tenham bons sonhos, queridos” , cantarolava uma voz em sua cabeça. “Tenham bons sonhos.”
capítulo 26
ERA POR VOLTA da hora do almoço na segunda-feira quando Jacobi se aproximou e avisou a mim e Conklin: – Preciso que vocês dois vão à Broadway com a Pierce antes de os corpos serem removidos. Boxer, deixe o seu turno e assuma o caso. – Assumir o caso? – indaguei de modo estúpido. Lancei um olhar para Conklin. Havíamos acabado de conversar sobre os Baileys, que tinham sido encontrados mortos algumas horas antes na própria cama. Ficamos contentes por não termos pego um caso que certamente seria cercado pela mídia, acompanhado em tempo real. – O prefeito é primo de Ethan Bailey – comentou Jacobi. – Eu sei. – Ele e Tracchio a querem nisso, Boxer. Pediram você. Aquilo foi tão lisonjeiro que embrulhou meu estômago. Eu e Rich nos afogávamos em casos insolúveis, e não só um crime entre os ricos seria administrado de forma meticulosa pelo alto escalão da polícia, como também os nossos outros doze casos ficariam parados, mofando. – Não reclame – disse Jacobi. – Seu dever é proteger e servir. Encarei-o, a boca fechada para não xingar. No entanto, vi que Conklin estava tendo uma reação bem diferente. Ele abriu um espaço na mesa e Jacobi colocou o traseiro ali, ainda falando. – Há um grupo de empregados que mora na casa, e eles têm uma ala própria. A governanta, Iraida Hernandez, encontrou os corpos – explicou. – Vocês devem falar com ela primeiro. Peguei meu bloco de notas. – O que mais? – Eu começava a sentir toda a pressão do caso. – Os Baileys jantaram com um amigo na noite passada. É um designer de interiores chamado Noble Blue; talvez tenha sido a última pessoa a vê-los vivos. Depois que Hernandez ligou para o 911, telefonou para Blue, que entrou em contato com o prefeito. É tudo o que temos. Bem, haveria mais. Muito mais. A história da família Bailey era famosa. Isa Booth Bailey era da quarta geração de São Francisco, descendente de um dos magnatas da estrada de ferro que instalara linhas de trem sobre as pradarias em meados da década de 1800. Era uma família de bilionários.
A linhagem de Ethan Bailey também remontava ao início do século XIX. Porém, sua família havia sido da classe operária. O bisavô trabalhava nas minas e as gerações seguintes foram progredindo, degrau a degrau, por meio do comércio. Até sua morte na escuridão, Ethan Bailey possuíra a Bailey’s, uma cadeia de restaurantes com bufê a 9,99 dólares. Juntos e separados, os dois tinham sido, em São Francisco, o foco das socialites e aspirantes à ascensão social. Havia rumores de amantes em Hollywood, relações pervertidas e todo tipo de festa que o dinheiro podia pagar. Voltei a prestar atenção ao que Jacobi contava. – Esse Noble Blue é um gay excêntrico. Dizem que ele pode deixá-los a par de tudo sobre a turma dos Baileys, tim-tim por tim-tim. Boxer, leve quem precisar para trabalhar no caso: Lemke, Samuels, McNeil… Quero relatórios e vou meter o nariz em tudo. Olhei-o enfurecida, mas disse: – Tudo bem. Sabe para que estou rezando? Peguei a pasta do caso de uma das mãos de Jacobi e me levantei para colocá-la na minha jaqueta. O rosto dele não mostrava muito interesse. – Para quê, Boxer? – Para que os Baileys tenham deixado bilhetes de suicídio.
capítulo 27
CONKLIN ASSUMIU O volante do nosso Chevrolet sem identicação e arrancamos rumo ao norte pela Bryant Street. Avançávamos pouco a pouco em meio a um trânsito intenso até que comentei “Isto é loucura” e acionamos a sirene. Quinze minutos mais tarde, estacionamos em frente à residência dos Baileys. Havia diversas viaturas e o carro de bombeiros, assim como uma unidade móvel da perícia, que tomava a calçada. São Francisco não tem muitos elementos hollywoodianos, mas, se tivéssemos um mapa de estrelas da cidade, a residência dos Baileys estaria nele. Era uma casa amarela gigantesca de três andares, feita de estuque, com vigas mestras e acabamento brancos, situada na esquina da Broadway com a Pierce, estendendo-se por meio quarteirão para o sul e para o leste. Para mim, ela parecia mais um museu do que um lar, porém tinha uma história fascinante que remontava à época da Lei Seca, e era o melhor que 15 milhões de dólares poderiam comprar: quase 3 mil metros quadrados do terreno mais nobre de São Francisco. Cumprimentei o ocial à porta, Pat Noonan, um garoto com orelhas de abano vermelhas que vinha se notabilizando por um trabalho perfeito. Samuels e Lemke apareceram e eu os mandei de volta à rua para investigarem a vizinhança. – Entrada forçada? – perguntei a Noonan. – Não, senhora. Qualquer um para entrar precisa do código que desativa o alarme e de uma chave. Sabe aquelas cinco pessoas ali? São os empregados que moram na casa. Todos estavam aqui ontem à noite, mas não viram nem escutaram nada. – Impressionante – murmurei. Noonan nos apresentou à governanta, Iraida Hernandez. Era uma mulher bem magra, vestida de forma impecável, com quase 60 anos. Os olhos estavam vermelhos de chorar e seu inglês era melhor do que o meu. Afastei-me com ela para podermos falar em particular. – Não foi suicídio – anunciou Hernandez de modo desaador. – Fui babá de Isa. Crio os lhos dela. Conheço essa família inteira desde as origens e tenho certeza de que ela e Ethan eram felizes. – Onde estão as crianças agora? – Graças a Deus, passaram a noite com os avós. Eu quei aita. E se elas tivessem encontrado os pais em vez de mim? Ou se estivessem em casa… Não, não.
É melhor nem pensar nisso. – Onde a senhora estava na noite passada? – Na cama, assistindo a um programa sobre cirurgia plástica. – O que viu ao abrir a porta dos Baileys? – Vi que eles estavam mortos. Os corpos ainda nem tinham esfriado! – Conhecia alguém que pudesse querer machucá-los? – Muitas pessoas tinham inveja dos dois, mas matá-los? Acho que houve algum tipo de acidente horrível. Hernandez olhou para mim como se à espera de que eu acabasse com o pesadelo, mas eu já estava pensando naquele quebra-cabeça, me perguntando se, de fato, assumira algum tipo de história da Agatha Christie. Avisei à governanta que tanto ela quanto o resto da equipe seriam conduzidos à delegacia para que pudéssemos tirar suas digitais e coletar amostras de DNA. Em seguida, entrei em contato com Jacobi. – Não foi uma invasão – contei. – O que quer que tenha acontecido nessa casa, é provável que os empregados saibam. Todos os cinco tinham acesso irrestrito, então… – Então há grandes chances de que, se os Baileys foram assassinados, um deles seja o culpado. – Isso aí. Você leu a minha mente. Falei que achava que ele e Chi deviam fazer as entrevistas, e Jacobi concordou. Quando terminei o relatório, eu e Conklin passamos por baixo do cordão de isolamento e nos identicamos para um recruta no vestíbulo, que nos levou para o quarto dos Baileys. O interior da residência era um paraíso de paredes de gesso coloridas, frisos elaborados, pinturas europeias antigas requintadas, além de antiguidades por todo lado. Cada um dos cômodos se abria para um ainda maior, uma série de surpresas de tirar o fôlego. Quando chegamos ao terceiro andar, ouvi o som de vozes e da estática dos rádios vindo de algum ponto no meio do corredor acarpetado. O jovem e musculoso sargento Bob Nardone, que trabalhava no turno da noite, apareceu e me chamou enquanto íamos em sua direção. – Desculpe por ter que assumir, Bob. Recebi ordens – falei. Por alguma razão, eu esperava uma briga. – Está brincando, Boxer? Tome o meu caso, por favor!
capítulo 28
CHARLIE CLAPPER, CHEFE da equipe de perícia, estava em pé ao lado da cama dos Baileys. Tinha mais de 50 anos e, como passara metade da vida na polícia, era um ótimo prossional. Era perfeccionista e meticuloso ao extremo, mas não gostava de se gabar: fazia a sua parte e saía de cena. Clapper estivera no lugar do crime por cerca de duas horas e não encontrara sangue nem pegadas. Enquanto os técnicos aplicavam pó nos móveis à procura de digitais, eu assimilava o surpreendente cenário à minha frente. Os Baileys se encontravam na cama, serenos e imaculados como se fossem feitos de cera. Os lençóis e o edredom cobriam a parte inferior de seus corpos nus. Na cabeceira de mogno maciço, estava pendurado um sutiã de renda preta. Roupas espalhavam-se pelo chão como se tivessem sido jogadas ali às pressas. – Tudo continua do jeito como encontramos, com exceção de uma garrafa aberta de champanhe e duas taças, que estão voltando para o laboratório – contou Clapper. – O Sr. Bailey tomou Cafergot para a enxaqueca e Prevacid para a azia. A esposa ingeriu clonazepam. É para a ansiedade. – É um tipo de Valium, certo? – perguntou Conklin. – Similar. As instruções no frasco eram para tomar um comprimido na hora de dormir. É o mínimo. – Quanto havia lá dentro? – indagou o policial. – Estava quase cheio. – A mistura de clonazepam e champanhe poderia ser letal? – Apenas a faria dormir. – Então, qual o seu palpite? – perguntei. – Bem, eu olho as posições dos corpos e espero que isso vá me dizer alguma coisa. Se estivessem de mãos dadas, pensaria em pacto de suicídio. Ou talvez algo um pouco mais sinistro. – Como o assassino ter arrumado a cena depois de as vítimas estarem mortas? Clapper assentiu. – Exato. Algum tipo de premeditação ou reconsideração. Porém, aqui estão duas pessoas aparentemente saudáveis, entre 30 e 40 anos, deitadas em posições naturais. Há sêmen sobre os lençóis, mas nem sangue, nem outras substâncias. E não vejo nenhum sinal de luta, nada de marcas ou feridas. – Por favor, Charlie, diga algo que nos ajude – pedi. – Bem, o caso não tem nada a ver com gás carbônico. O corpo de bombeiros fez
uma varredura completa, e deu negativo. Além disso, os cachorros dos Baileys dormiram aqui – salientou ele, apontando para as camas perto da janela – e ambos estão vivos. Segundo a governanta, a passeadora de cães chegou às oito horas e, ao trazê-los de volta, disse que os dois estavam bem. – Fascinante – comentei. – De fato, perfeito. – Passarei depois os resultados das análises das digitais e deixarei o resto para quando a médica-legista chegar aqui. Mas você tem razão, Lindsay. A cena do crime está muito limpa. Se é que é uma cena de crime. – E isso é tudo? Charlie deu uma piscadela. – É tudo. E tenho dito.
capítulo 29
OS BAILEYS SEMPRE tinham o melhor de tudo, até mesmo na morte. Conseguimos mandados de busca sem sermos bombardeados por perguntas. Pela primeira vez na vida. O assistente de promotoria Leonard Parisi apareceu e pediu para ir à suposta cena do crime. Sua presença me dizia que, se isso era um homicídio e havia um suspeito a ser processado, Red Dog ia tentar, por conta própria, levar o caso a julgamento. Mostrei-lhe as vítimas e ele permaneceu em silêncio, de forma respeitosa. – Isso é horrível – comentou ele. – Independentemente do que aconteceu aqui, é grotesco. Mal Parisi saíra, Claire entrou com dois assistentes. Fiz um relatório do que sabia enquanto ela tirava duas fotos de cada ângulo dos Baileys antes de tocar nos corpos. – Alguma ideia que possa compartilhar? – perguntei enquanto ela puxava os lençóis para baixo e continuava a fotografar. – Espere, querida. Ainda não sei quais são as minhas ideias. Pigarreou exageradamente algumas vezes, pediu ajuda para virar os corpos e afirmou: – Não há rigidez. A palidez está se intensificando. Ainda estão quentes ao toque. Logo, eu estabeleceria a hora da morte em doze horas atrás ou menos. – Poderiam ser seis? – Sim. – Mais alguma coisa? – Sim. Ambos são ricos, magros, bonitos e estão mortos. Claire me deu o aviso de costume: não diria nada ocial até que tivesse feito as autópsias. – Mas eis algo incomum: duas pessoas mortas, a rigidez é quase a mesma, a lividez é quase a mesma. Algo atingiu essas pessoas ao mesmo tempo, Lindsay. Olhe para eles. Nenhum trauma visível, contusão, ferimento a bala, marca de luta. Estou começando a pensar em envenenamento, sabe? – Envenenamento, é? Talvez dois homicídios? Ou um homicídio e um suicídio? Só estou pensando alto. Ela abriu um largo sorriso. – Farei as autópsias hoje. Enviarei o sangue. Informarei a vocês o resultado do laboratório. Contarei assim que souber.
Eu e Conklin investigamos o andar superior da casa-museu dos Baileys enquanto a equipe de Clapper trabalhava na cozinha e nos banheiros. Procurávamos por sinais de perturbação e buscávamos anotações e diários, mas não encontramos nada. Conscamos três laptops: o de Isa, o de Ethan e o que pertencia a Christopher Bailey, de 9 anos, por via das dúvidas. Vasculhamos metodicamente os armários e olhamos embaixo das camas. Depois, fomos para os aposentos dos empregados, para que eles pudessem se acomodar logo que voltassem da Central. Encontrei com Claire quando os corpos estavam sendo encerrados em sacos. Ela olhou para a minha cara fechada e aconselhou: – Não estou preocupada, Linds. Então, relaxe. Os exames toxicológicos nos darão uma pista.
capítulo 30
– LÁ VAMOS NÓS – avisou Conklin, indicando com a cabeça um quarentão de cabelos cor de areia que vestia short e camiseta rosa-choque e nos acenava de um quiosque, uma das diversas cabanas agrupadas ao redor de uma piscina oval. Se, alguma vez, houve um lugar onde cou evidente que eu e Conklin éramos policiais, foi esse. O Bambuddha Lounge se tornara o point dos ricaços modernos depois que Sean Penn promovera uma festa ali após o término das lmagens de O assassinato de Richard Nixon. Enquanto atravessávamos o pátio, as pessoas desviavam o olhar, os baseados eram apagados. Eu meio que esperava alguém gritar “Deem no pé, a polícia pintou na área”. – Eu sou Noble Blue – apresentou-se o homem de rosa. Nós nos apresentamos. Pedi água mineral e ele, mai tai. Quando estávamos à vontade, comentei: – Sei que você jantou com os Baileys na noite passada. – Dá para imaginar? – perguntou Blue. – Os dois estavam fazendo a última refeição. Eu nunca teria adivinhado, nem em um milhão de anos. Antes do jantar, fomos à ópera. Don Giovanni. Foi espetacular. A última palavra cou engasgada e as lágrimas rolaram por suas bochechas bronzeadas. Ele pegou um lenço e as enxugou. – Desculpe – falou Blue. – É que Isa e Ethan encontraram muitos amigos lá. É quase como se houvessem tido uma grande noite porque sabiam… – Eles poderiam saber? – questionou Conklin. – Como eles estavam? Blue contou que os dois estavam “cem por cento normais” . Durante o jantar, Isa ertara com um homem em uma mesa próxima e, como de costume, isso deixou Ethan furioso. – Furioso de que modo? – indaguei. Ele sorriu. – Não quero dizer violento, sargento – respondeu. – Fazia parte das preliminares deles. – Consegue pensar em alguém que poderia querer vê-los mortos? – perguntou Conklin. – Não. Nem em meus sonhos mais loucos. Mas a verdade é que alguns se sentiam esnobados. Todos queriam estar perto dos Baileys, e isso não era possível. Blue falou de comitês que Isa presidia e de pessoas que se sentiam menosprezadas por isso. Comentou sobre outros casais célebres e a competição
não tão amigável entre eles para ver quem era mencionado com mais frequência nas colunas sociais do Chronicle. Ele descreveu com entusiasmo o aniversário de 30 anos de Isa em Paris e o que ela usara, ressaltando que Barbra Streisand zera um show e os trezentos convidados tinham sido presenteados com uma semana de luxo exorbitante. Conklin estava fazendo anotações, mas a lista com trezentos nomes o deteve. – Ela está disponível em algum lugar? – Com certeza. Acho que foi publicada. Poderia pesquisar na internet? – sugeriu ele com amabilidade. Assoou o nariz, tomou um gole da bebida e acrescentou, pensativo: – É claro, as pessoas os odiavam. Ethan e Isa atraíam inveja. O dinheiro deles. A fama. E os dois eram muito fogosos. Balancei a cabeça em concordância, mas, após um bom tempo ouvindo Noble Blue discorrer sobre o estilo de vida dos Baileys, eu estava exausta com tanta informação que não levava a lugar nenhum. Ao mesmo tempo, ele conseguira prender a minha atenção. Descobri que me importava com essas duas pessoas que pareciam ser sortudas e abençoadas até perderem a vida – como se alguém tivesse acionado um interruptor e simplesmente os desligado. Agradeci a Blue, desdobrei as pernas, que já estavam com cãibras, e me afastei do quiosque. – Sei menos agora do que quando Jacobi atirou essa batata quente para nós – comentei com Conklin enquanto caminhávamos em direção à Eddy Street. – Você – disse ele, abrindo a porta do carro. – Eu o quê? Conklin abriu um sorriso sedutor, daqueles que podiam fazer com que eu esquecesse meu nome. – Você – voltou a dizer. – Jacobi atirou essa batata quente para você.
capítulo 31
OS POLICIAIS ENVOLVIDOS no caso dos Baileys estavam dispersos pela pequena e bagunçada sala da Central que, em geral, pensamos ser a nossa casa. Jacobi encontrava-se sentado atrás da minha mesa, dizendo ao telefone: – Acabaram de chegar aqui. Tudo bem. Assim que você puder. Desligou e nos avisou: – Clapper arma que não havia impressões digitais suspeitas no quarto ou nos banheiros. Nada de interessante nos copos, nas pílulas ou na garrafa de champanhe. Claire está trabalhando. Paul, por que você não começa? O inspetor Chi é ágil, otimista, despachado e um interrogador de primeira. Ele e Jacobi tinham entrevistado os empregados dos Baileys que moravam na casa. Chi deu o seu relatório: – Primeiro, o jardineiro. Pedro Vasquez, 40 anos, hispânico. Parecia nervoso. Contou, de forma espontânea, que tinha alguns vídeos pornôs no laptop. No entanto, não era nada fora da lei. Passei uma hora com ele, mas ainda não descobri motivo algum para o crime. Suas digitais não foram encontradas no quarto dos Baileys. Vasquez me contou que nunca passara do térreo e, por enquanto, não temos razão para pensar que esteja mentindo. Segundo: Iraida Hernandez – continuou, virando a página do bloco de anotações. – É uma senhora amável. – Essa é a sua opinião profissional? – perguntou Lemke com indulgência. – Sim. Hernandez é uma cidadã naturalizada, mexicana, 58 anos, empregada por mais de três décadas pela família de Isa Booth e pelos Baileys. Como era de se esperar, suas digitais estão por todo o quarto do casal. Ela não tem cha, mas quanto a um motivo? É uma possibilidade. – Sério? – indaguei. Chi assentiu. – Ela diz que provavelmente está no testamento dos Baileys, logo nunca se sabe. Porém, o meu indicador de fraude não disparou. Iraida Hernandez anda na linha. É leal. Não tinha nada de ruim a dizer sobre qualquer um. Então, como eu disse: uma senhora amável. – E a cozinheira? – lembrou Cappy McNeil. McNeil é um sujeito grande, com mais de 110 quilos. Se as rosquinhas e as escadas não acabarem com ele, poderá ser promovido e sair daqui para um bom trabalho como tenente em uma cidade pequena. É o que ele tem em vista. Chama isso de “partida para a costa”.
– Como já ia dizer… – comentou Chi com o parceiro. – Terceiro: a cozinheira se chama Marilyn Miller, branca, 47 anos. Mudou-se para cá de algum lugar da região central do país. – Olhou as anotações. – Ohio. Estava trabalhando para os Baileys havia apenas um ano. Ficha limpa. Sem digitais no andar de cima. Tudo o que consegui tirar dela foi “O que vai ser de mim agora?” . Não vejo motivo. O que ela tem a ganhar? Mas, assim como o restante dos empregados, o acesso aos Baileys era fácil. E se estamos pensando em veneno… Deu de ombros como se dissesse Ela é a cozinheira. – Disse a ela para não deixar a cidade e consegui duas equipes da Divisão Especial de Investigação – informou Jacobi. – Estarão de olho nela o tempo todo. Chi terminava o relatório sobre os dois últimos empregados dos Baileys, uma segunda governanta e o mecânico, também limpos, quando Claire entrou na sala pisando duro, de tênis e uniforme cirúrgico. Ela olhou ao redor e comentou: – Vocês estão pensando Agora que a Claire está aqui, a festa pode começar? Pensem melhor.
capítulo 32
CHI EMPURROU UMA cadeira até Claire. Ela sentou-se, apoiou os pés em uma mesa e informou: – Senhoras e senhores, os corpos dos Baileys estavam tão puros… Eu achava que os dois iam começar a respirar. Sem pílulas no estômago, nada de escoriações, contusões ou lacerações. Nem sinal de gás carbônico. Também dissequei os pescoços. Em suma, olhei tudo, com exceção dos sonhos deles. Os resultados das autópsias deram negativo. Todos gemeram. Até eu. – Falei com o médico de Ethan – continuou Claire. – E com a ginecologista de Isa. Ambos tinham os históricos médicos recentes e completos dos pacientes, e os Baileys passaram pelos exames físicos com louvor. Aquelas crianças sabiam como cuidar dos próprios corpos. Então, quando desliguei o telefone após conversar dez minutos com você – disse ela a Jacobi –, o relatório da toxicologia, feito às pressas, chegou até mim. Eu estava pronta para opinar que, se houvesse veneno envolvido, um dos Baileys teria golpeado o outro e, em seguida, tomado. Assim, teríamos um homicídio seguido de suicídio. Mas me surpreendi… negativamente. Todos tavam Claire com atenção, em um silêncio completo. Provavelmente nem estavam respirando. Ela balançou um papel impresso e prosseguiu: – O resultado deu negativo. Nenhum veneno, sedativo, narcótico, nada. Causa da morte? Não faço ideia. Como morreram? Não faço ideia. Algo aqui não cheira bem e não sei o que é, mas a probabilidade de esses dois indivíduos, com resultados negativos das autópsias e dos exames toxicológicos, terem expirado quase ao mesmo tempo é, em termos estatísticos, absurdo. – Ai, cara – murmurei. – E você tinha falado “Os exames toxicológicos nos darão uma pista”. – Ok, ok, eu estava errada, Lindsay. Já que não existe nada como “síndrome de morte adulta súbita” , agora pensamos em homicídio. Até termos algo para seguir em frente, vou dar atestados de óbitos assinalando que o caso está em aberto. – E agora? – perguntou Jacobi. Claire tirou os pés da mesa, levantou-se e avisou: – Estou indo para casa. Vou dar um beijo na minha lhinha. Depois, comer um empadão de peru inteiro e uma tigela de pudim de chocolate com chantilly, e é melhor ninguém tentar me deter.
Claire olhou os nossos rostos, cansados depois do dia longo e acinzentados por causa das lâmpadas uorescentes. Eu tinha certeza de que parecíamos mortosvivos. A aparência de Jacobi, em particular, estava horrível. Seria ele quem diria à família, à imprensa, ao nosso superior e ao prefeito que, ao nal do dia, não tínhamos pistas. – Sei que estão apenas começando, assim como eu – falou Claire, o sorriso emitindo um pequeno raio de esperança para o nosso desânimo coletivo. – Mandei as amostras de volta para o laboratório. Vamos deixar a equipe noturna decifrar isso. Estou pedindo para repetirem os testes, desta vez instruindo-os para que procurem por algo esquisito, bizarro.
capítulo 33
EU E CONKLIN passamos sete horas entrevistando os amigos e familiares de Isa e Ethan Bailey, além da pequena lista de empregados que não moram na casa: a secretária de Isa, a professora particular das crianças e a passeadora de cães, que também era faz-tudo. Nada pareceu importante. Enchemos os nossos blocos de anotações e seguimos em frente. Enquanto o resto da minha equipe voltou para investigar a vizinhança, eu e Conklin fomos visitar Yancey e Rita Booth, os pais de Isa, indescritivelmente ricos. Em meio às lágrimas, eles nos convidaram para entrar na magníca residência em Nob Hill. Passamos horas com os Booths, escutando pacientemente e tomando nota. Eles tinham mais de 60 anos, mostravam-se arrasados com a morte de Isa e sentiam necessidade de contar as histórias das duas famílias para superar o choque. Segundo Yancey, havia uma disputa centenária entre os Booths e os Baileys, que perdurava até os dias de hoje e começara por causa de um pedaço de terra com uma demarcação incerta. Soubemos que Ethan tinha três irmãos, nenhum deles bem-sucedido, e esse pequeno fato abriu uma porta para uma nova abordagem da investigação. Vimos as fotos da família Booth desde os dias da corrida do ouro e conhecemos os netos deles, que pediram para ver os policiais. Às cinco horas da tarde, recusamos um convite para o jantar. Deixamos os nossos cartões e garantias de que Isa Booth Bailey era a nossa prioridade número um e saímos de lá o mais rápido possível. Enquanto descíamos os degraus à frente da casa, resmunguei para Conklin: – Vamos trabalhar nesse caso até nos aposentarmos. Entramos no carro e conversamos sobre o que sabíamos a respeito das vidas de Isa e Ethan, pensando se o caso um dia seria solucionado. – Os pais dela nunca vão superar isso – disse a Conklin. – Eles com certeza a amavam. – Quando a Sra. Booth teve aquele ataque de nervos… – Foi de partir o coração. Deu a impressão de que ela pode até morrer de desgosto. – E aqueles garotos pequenos… – Mal entendem o que aconteceu. Quando o menor, Peter, perguntou “Por que
fizeram isso com a mamãe e com o papai?”… – Conklin suspirou. – Isa e Ethan não poderiam ter feito isso. Não consigo imaginar um matando o outro. Não com crianças como aquelas. – Sim. Contei-lhe sobre as minhas sobrinhas, Brigid e Meredith, que tinham mais ou menos a mesma idade dos filhos dos Baileys. – Vou ligar para a minha irmã hoje à noite. Quero ouvir as vozes felizes das meninas. – Boa ideia. – Nós íamos à casa dela. Eu e Joe. Ele teve que viajar a negócios. – Isso é muito ruim. Mas vocês podem visitar Cat quando ele voltar. – Foi o que Joe disse. – Você gosta de crianças, Lindsay – comentou Conklin após um instante. – Deveria ter uma. Olhei pela janela, com a minha mente confusa, pensando no quanto Rich e eu tínhamos nos tornado próximos, no que não poderia ser dito nem relembrado entre nós, no cheiro do cabelo dele, na sensação ao beijá-lo, na parte de mim que lamentava ter dito “não” para ele, porque agora eu nunca saberia se combinávamos. – Lindsay? Tudo bem com você? Voltei-me para ele e respondi: – Só estou pensando. Quando olhei em seus olhos, fiquei arrepiada. Um telefone soou ao longe. Ao terceiro toque, tirei o celular do cinto, sentindo-me insensata, triste e contente – nessa ordem. Era Jacobi, mas não teria me importado se fosse alguém que ligara por engano. Fui salva pelo gongo. Porque fui impedida de sugerir a Conklin fazer o que eu estava pensando – e isso me deixaria pior ainda.
capítulo 34
CLAIRE ESTAVA DE novo no centro da sala da Central, mas, desta vez, parecia esquisita. – Para aqueles que nunca ouviram minha palestra, existem dois tipos de casos: o que depende das circunstâncias e o que depende da autópsia. Ela andava de um lado para o outro, falando tanto para si mesma quanto para nós dez, que estávamos esperando para ouvir sobre o segundo exame toxicológico. – Aquele sem-teto, Bagman Jesus. Ele está com lesões por todo o corpo e seis ferimentos de bala na cabeça e no pescoço, e foi espancado depois de morto. Seu corpo foi encontrado em um bairro frequentado por tracantes de drogas, mas nem sequer preciso conhecer as circunstâncias. Seis ferimentos de bala. Isso é um homicídio. Agora temos duas pessoas mortas encontradas na própria cama. Temos uma autópsia com resultados negativos e nenhuma prova na cena do crime… Ela parou de falar. Engoliu em seco. – O exame toxicológico procurava algo bizarro – disse eu, tentando ajudar. – Negativo. Nenhum indício. Obrigada, amiga, quase me esqueci do que estava falando. Mas agora eu me lembro: o caso Bailey é do tipo que depende das circunstâncias. E isso significa que precisamos do trabalho da polícia. Todos sabem o que estou insinuando. Como eram as nanças do casal? Um deles tinha um caso? Levava uma vida dupla? Vocês têm que me ajudar, me orientar, porque me sinto agoniada sem respostas. Então era isso: ela estava aturdida. Acho que nunca a vira assim antes. – Este é o release que vou divulgar amanhã de manhã. – Tirou um pedaço de papel do bolso do uniforme cirúrgico e começou a lê-lo: – “O caso Bailey está sendo investigado pelo escritório do médico-legista. Como essas mortes são suspeitas, estamos tratando-as como homicídios. Não vou fazer nenhum pronunciamento porque não quero prejudicar a investigação geral.” Parou e ergueu o olhar. – A imprensa vai acabar comigo. – Bom, você não está dizendo que deu o caso por encerrado, não é? – falou Jacobi. Fiquei preocupada com Claire. Ela parecia aflita e assustada. – Vou fazer uma consulta. Entrei em contato com dois patologistas forenses experientes, credenciados pelo conselho, pedindo para virem e darem uma olhada – continuou ela. – Jacobi, você precisa informar às famílias que elas ainda não
podem ter os corpos dos filhos porque não terminamos de trabalhar.
capítulo 35
YUKI FITAVA DE novo os olhos cinza-azulados dele, dessa vez do outro lado de uma pequena mesa na cantina do hospital. Ocupado com o chili vegetariano, o Dr. John Chesney dizia: – Enfim almoçando, catorze horas após o início do meu dia. Ela estava pensando em como o médico era bonito e sentiu uma vertigem só de olhá-lo, mas sabia muito bem que ser bonito não signicava ser bom, honesto ou qualquer outra coisa. Chegou inclusive a se lembrar de alguns babacas lindos com quem namorara ao longo da vida, isso sem mencionar vários assassinos deslumbrantes que enfrentara no tribunal, porém ela não estava nem aí. E o médico também era muito simpático. Yuki quase podia sentir a respiração de Keiko em sua nuca e ouvir um sussurro: “Ah, esse dotô John, ele é bom pra casá.” Mãe, não sabemos nada sobre ele. Chesney bebeu um gole de seu refrigerante e comentou: – Acho que ainda não conheci São Francisco de verdade. Estou aqui há quatro meses e a minha rotina é sair do trabalho, correr para casa, adormecer no chuveiro. Yuki riu. Imaginou-o nu, o cabelo louro-acinzentado grudado na cabeça, a água escorrendo pelo corpo musculoso… – Quando acordo, estou aqui de volta. É como aquele lme Feitiço do tempo, só que em uma zona de guerra. Mas não estou reclamando. Este é o trabalho que sempre quis. E você? É advogada, certo? – Sim. Sou. Ela contou que estava à espera do veredicto de um caso midiático, sobre o qual talvez ele tivesse ouvido falar. – Ex-miss mata o pai com um pé de cabra, tenta fazer o mesmo com a mãe… – Esse é o seu caso? Conversamos muito sobre essa mãe que sobreviveu a cinco golpes na cabeça. Meu Deus, calota craniana afundada, órbita ocular quebrada e mandíbula esmagada. Cara, ela queria mesmo viver. – É. Ela ferrou com a gente quando desmentiu o que chamamos de sua “declaração à beira da morte”… Yuki começou a pensar em Rose Glenn, passou uma das mãos sobre o novo cabelo raspado e percebeu que Chesney sorria, olhando-a com aprovação. – Você fica ótima assim, Yuki.
– Acha mesmo? – Você sabe que era necessário fazer isso, não é? – Boas intenções não são justicativa, doutor. Você passou máquina como se fosse um cortador de grama. Você me deu o pior corte de cabelo que já tive na vida. Chesney riu. – Sou culpado de um corte de cabelo ruim. Por outro lado, caprichei bastante nos pontos. Yuki riu junto com ele. – John, telefonei porque quero pedir desculpas. Sinto muito ter sido uma idiota louca quando estive aqui. – Rá! Você foi a melhor paciente louca que já tive. – Ah, deixa disso! – Ela riu de novo. – Sério. Não me ameaçou, não me bateu nem me furou com uma agulha. Tem um sujeito na emergência com três costelas quebradas e uma concussão que não larga o celular. Ele alega que está trabalhando. Foram necessárias três pessoas para arrancar o telefone da mão dele. O pager de Chesney apitou e ele o olhou. – Droga. Tenho que voltar. Hum, Yuki, gostaria de fazer isto de novo algum dia? – Claro. Estou apenas à distância de uma corrida de táxi. – Talvez pudéssemos ir a outro lugar. Talvez você pudesse me mostrar a cidade. Yuki lhe deu um sorriso tímido. – Então suponho que estou perdoada. Chesney colocou a mão sobre a dela. – Você saberá. Os dois riram. Ficaram se olhando até que ele retirou a mão e foi embora. Yuki já estava à espera do seu telefonema.
capítulo 36
CINDY SAIU DO seu prédio e virou à direita, com o celular ao ouvido, escutando Lindsay. – Eu gostaria de ajudar, mas estamos atolados no caso Bailey – dizia a amiga. – Minha editora está segurando uma página da editoria de cidade para a matéria. Tenho um deadline. Você não tem nada, então? – perguntou Cindy. – Quer saber a verdade? Eu e Conklin fomos expulsos do caso Bagman Jesus no primeiro dia. Tentamos trabalhar nisso por conta própria… – De qualquer forma, obrigada, Linds. Não, sério. Desligou o telefone. Já tinha entendido tudo: ninguém estava trabalhando no caso. Caminhou pela Townsend Street até a passagem entre seu edifício e o local onde Bagman Jesus havia sido assassinado. Parou no humilde santuário, a calçada ainda manchada de sangue, ores murchas e bilhetes escritos à mão presos na cerca. Permaneceu um tempo lendo as mensagens dos amigos dizendo a Bagman Jesus que sentiriam sua falta e que ele seria lembrado. Eram de partir o coração. Um homem bom havia sido morto e a polícia se mostrava ocupada demais para encontrar o assassino. Então, quem estava lutando a favor de Bagman? Ela estava. Seguiu em frente, acompanhando o uxo de pessoas saindo da estação de trem, e virou na Rua 5. Ao lado do edifício do centro de assistência social, cava um restaurante fast-food de comida chinesa que parecia desprezível, do tipo que devia servir esquilo refogado com shoyu e amendoim. Entre os dois prédios, havia uma porta preta. Cindy tinha um encontro marcado ali. Ajeitou a alça de sua pasta no ombro, girou a maçaneta e deu um empurrão na porta com o quadril, que se abriu para uma escada escura e com cheiro acre. Começou a subida íngreme. Os degraus rodeavam um pequeno patamar, até chegar a um andar com três portas, identicadas como um salão de manicure, uma casa de massagem e, mais próximo da frente do edifício, PINCUS & PINCUS, ADVOGADOS. Ela apertou o botão do interfone ao lado da última porta, deu o seu nome e deixaram-na entrar. Sentou-se na recepção, um cubículo ocupado por um sofá de couro rachado e uma mesinha de centro. Estava folheando um exemplar antigo da Us Weekly quando alguém a chamou.
O homem se apresentou como Neil Pincus. Vestia calça social cinza e uma camisa branca de botões com as mangas arregaçadas, sem gravata, e havia uma aliança de ouro no dedo. Tinha entradas no cabelo e feições comuns, agradáveis. Apertaram-se as mãos. – É um prazer conhecê-lo, Sr. Pincus. – Me chame de Neil. Vamos para os fundos. Só posso lhe dar alguns minutos, mas serei todo ouvidos.
capítulo 37
CINDY SENTOU-SE EM frente à mesa do advogado, de costas para a janela suja. Olhou de relance para alguns porta-retratos sobre um aparador à direita: os irmãos Pincus com as bonitas esposas e as lhas adolescentes. Neil apertou um botão no telefone. – Al, por favor, atenda aos meus telefonemas – pediu ao irmão. – Só por alguns minutos. – Voltou-se para Cindy e perguntou: – Como posso ajudá-la? – Você tem uma ótima reputação na vizinhança. – Obrigado. Fazemos o que é possível. Quando as pessoas são presas, cam com um defensor público ou nos pedem ajuda. – Muito amável da parte de vocês fazer esse trabalho de graça. – É bem graticante, na verdade, e não estamos sozinhos. Trabalhamos com um grupo de empresários por aqui que entram com o dinheiro para os custos legais e as necessidades especiais. Temos um programa de troca de seringas. Dirigimos um programa de alfabetização… O telefone soou. Ele deu uma espiada no identicador de chamadas, tornou a olhar para Cindy e continuou a falar, sua voz se sobrepondo aos toques. – Desculpe. Mas acho que você deveria me dizer por que está aqui antes de o telefone nos enlouquecer. – Estou escrevendo uma série de matérias sobre Bagman Jesus, o morador de rua encontrado morto recentemente. – Li a sua matéria. – Ótimo. Não consigo fazer com que a polícia se interesse pela morte. Não acham que o assassinato dele possa ser esclarecido. Pincus suspirou. – Bem, isso é normal – comentou. – Preciso do nome verdadeiro de Bagman para investigar seu passado e trabalhar a partir daí. Minha esperança é que você o tenha ajudado. Caso contrário, talvez você possa me indicar alguém que o conhecesse. – Ah. Se eu soubesse o que você queria, teria lhe poupado a viagem. Eu vi Bagman Jesus na rua, claro, mas ele nunca veio aqui e, se tivesse, é provável que eu não lhe dissesse. – Relação advogado-cliente? – Não exatamente. Olhe, Cindy, eu não a conheço, então não deveria lhe dizer como proceder. Mas farei isso de qualquer maneira. Os sem-teto não são
cachorrinhos sem dono. Eles se tornaram sem-teto por alguma razão. Muitos deles são viciados em drogas. Ou psicóticos. Alguns são violentos. Tenho certeza de que você está bem-intencionada, mas esse sujeito foi assassinado. – Entendo. – Entende? Você é uma menina bonita com roupas bonitas, perambulando por Tenderloin sozinha, perguntando quem matou Bagman Jesus. Suponha que você encontre o tal assassino… E se ele se voltar contra você?
capítulo 38
QUANDO SAIU DO escritório de Neil Pincus, Cindy estava irritada e tão determinada quanto antes. O advogado a chamara de menina, como se ela fosse uma de suas lhas. Subestimou sua tenacidade e não compreendeu que ela era uma jornalista que cobria crimes. Ela era cuidadosa. Experiente. Profissional. E sabe o que mais odiava? Neil Pincus a perturbara. Cindy afastou a ansiedade e abriu a porta do refeitório popular. Olhou ao redor para as centenas de maltrapilhos que enfrentavam a la da comida, enquanto outros estavam curvados sobre seus ovos com bacon para protegê-los. Três homens em roupas sujas vociferavam em um canto. Pela primeira vez, ela se perguntava se alguém naquele lugar matara Bagman Jesus. Não conseguiu encontrar Luvie Jump, então improvisou um megafone com as mãos em concha e gritou para chamar a atenção. – Sou Cindy omas, do Chronicle. Estou escrevendo uma matéria sobre Bagman Jesus. Vou me sentar lá fora – avisou, apontando pela janela para duas cadeiras de plástico na calçada. – Se alguém puder me ajudar, ficarei grata. Vozes se elevaram e ecoaram por todo o enorme salão. Ela saiu e sentou-se na cadeira que parecia menos instável. Abriu o laptop e uma la se formou. A partir da primeira entrevista, aprendeu que, para eles, “ficarei grata” era o código para “pagarei pela informação”. Uma hora após fazer o anúncio, coletara trinta histórias de contato pessoal com Bagman Jesus, fragmentos de conversas pouco compreensíveis e sem sentido. Nada sólido, útil ou mesmo interessante. O preço para essas informações confusas chegara a 75 dólares, além de todos os trocados no fundo da bolsa, um batom, uma pequena lanterna, uma tiara, uma latinha de pastilhas de hortelã e três canetas. Seria um relatório de custos hilário, porém a reportagem não progredira nada. Cindy ergueu o olhar quando a última pessoa, uma mulher negra com um gorro vermelho e óculos de armação roxa, pegou a cadeira à sua frente. – Estou sem dinheiro, mas tenho um vale-transporte – avisou. – Cindy, você agora está morando aqui? Porque isso não é permitido. – Luvie! Continuo trabalhando nessa maldita matéria. Ainda não consegui nada, nem mesmo o nome verdadeiro de Bagman.
– Diga com quem falou. Cindy moveu a barra de rolagem para ver o início do arquivo do computador. – Noise Machine. Miss Patty. Salzamander. Razor, Twink T, Little Bit… – Só um instante, querida. Está vendo, o seu problema é também a sua resposta. Moradores de rua usam apelidos. Alguns deles foram fichados. Ou não querem que as famílias os encontrem. Eles querem estar perdidos. Deve ser por isso que Bagman Jesus não tem um nome verdadeiro. Cindy suspirou, pensando como havia sido levada a manhã toda pelos semnome, sem-teto e sem-esperança, sentindo remorso por ter desligado o telefone na cara de Lindsay, que estava certa em cultivar um terreno mais fértil. Dando adeus ao seu deadline, agradeceu a Luvie, guardou o laptop e caminhou em direção a Mission, pensando que Bagman Jesus se desconectara de seu passado por vontade própria. A morte foi o fim da sua história. Ou não? Uma ideia veio à tona. Cindy telefonou para a editora. – erese, você pode conversar comigo por uns cinco minutos? Quero lhe mostrar algo.
capítulo 39
O SOL DA TARDE entrava pela claraboia e formava um halo ao redor da cabeça de Sara Needleman enquanto dava uma tremenda bronca na Garota de Estimação. – O que você tinha na cabeça quando deixou os cartões dos Baileys sobre a mesa, indicando os lugares deles? – Eu não era a encarregada disso, Sara. – Era, sim. Pedi especicamente a você que os comparasse com a lista de convidados. Isa e Ethan estão na lista? – Não, claro que não. – Fiquei com vontade de matá-la, sério mesmo. Aqueles dois lugares vazios na mesa quatro… Todo mundo está pensando nos Baileys agora, como era de se esperar. – Lamento, Sara – disse a Garota, mas, na realidade, estava longe de lamentar. De fato, ela sentia a euforia se elevar como bolhas de champanhe. Teve que conter uma risada. Até parece que aqueles cartões eram tão importantes assim! A Garota e outras duas assistentes sentaram-se à mesa da recepção na magníca galeria do Museu de Arte Asiática, dando as boas-vindas aos convidados para o jantar de noivado de Frieda, sobrinha de Sara. Os convidados eram a nata da sociedade de São Francisco: senadores, doutores, editores e astros de cinema. Todos subiam a grande escadaria em smokings e vestidos de gala sob medida e eram informados sobre seus lugares e direcionados ao Samsung Hall, pelo qual podiam entrar nas galerias para ver as inestimáveis obras de arte vindas do Japão, da China e da Coreia antes de sentarem-se a uma mesa adornada com seda e copos-de-leite. Então, seria servido um jantar de sete pratos, preparado pelo notável chef Yoji Futomato. Mas isso seria mais tarde. No momento, Sara encerrava o sermão com um último floreio. – Já pode ir embora – falou, com rispidez. – Faltam chegar poucas pessoas. – Obrigada. – A Garota sorriu. – Ainda quer que eu leve os cachorros para passear na parte da manhã? – Sim, sim, por favor, faça isso. Estarei dormindo. – Não se preocupe. Não vou acordá-la. Despediu-se das outras assistentes. Em seguida, pegou a cópia anotada da lista de convidados e a escondeu na bolsa de mão, já tecendo considerações sobre as
duzentas pessoas que cumprimentara naquela noite – quem a reconhecera ou não, quantos pontos cada uma marcara. E pensou em sua noite solitária. Ela prepararia um pouco de macarrão. Beberia um pouco de vinho. Passaria algumas horas agradáveis analisando a lista de convidados. Colocaria as anotações em ordem. Faria alguns planos.
capítulo 40
CLAIRE TINHA COLOCADO as mãos nos quadris e dito “Precisamos do trabalho da polícia” e seguimos à risca. Conklin e eu revistamos a residência dos Baileys pela quarta vez naquela semana, procurando só Deus sabia o quê. Percorremos cada pedaço da casa: os salões de baile e de jogos, o espaço da piscina, as suítes, as cozinhas, as copas, o quarto de brinquedos, as salas de reunião, de jantar e de estar. Abrimos armários, caixas e cofres, esvaziamos gavetas e folheamos todos os livros da biblioteca. – Esqueci o que estamos procurando – queixei-me a Conklin. – Isso é porque o que quer que seja que os matou não está aqui – armou Rich. – O problema não é não ter boas ideias, mas não ter nem uma ruim. – Sim, e estamos fazendo um bom trabalho revirando o lugar, não é? – indaguei, passando os olhos pelo salão principal. Cada maçaneta, superfície e objeto de arte estava sujo com o pó preto para detectar digitais. Todos os espelhos e pinturas haviam sido retirados das paredes. Até mesmo o afável e sábio Charlie Clapper se mostrava desgostoso: “Os Baileys tinham muitos amigos e deram várias festas. Conseguimos impressões digitais e pegadas sucientes para provocar um curto-circuito no laboratório criminal. Por um ano.” – E aí, sargento? – perguntou Conklin. – Ok. Terminamos. Fomos apagando as luzes dos cômodos à medida que seguíamos para o hall e nos esbarramos no escuro quando Conklin trancou a porta da frente ao sairmos. A seguir, acompanhou-me até o carro. Ele manteve a porta aberta enquanto eu pisava no estribo do Explorer, mas escorreguei, perdendo o equilíbrio. Rich me segurou, agarrando os meus ombros e, por uma fração de segundo, percebi o risco. Fechei os olhos. E, como se tivéssemos planejado aquilo, os nossos lábios se juntaram, os meus braços envolveram o pescoço dele e eu senti como se estivesse levitando. Segurei rme, o calor me consumindo, o meu cabelo se agitando ao redor dos nossos rostos enquanto carros passavam por nós. Ouvi um motorista gritar: “Arranjem um quarto!” E, com isso, a gravidade me fez cair de volta à Terra com um solavanco. Que diabo estamos fazendo?
Antes que Rich pudesse dizer “Aquele homem teve uma boa ideia” , eu falei, ofegante: – Droga, Richie, não sei quem é mais louco, você ou eu. Suas mãos estavam nas minhas costas, puxando-me com força contra seu corpo. Soltei-me dos seus braços com delicadeza. Seu rosto estava todo amassado dos nossos beijos, e ele parecia… magoado. – Sinto muito. Rich. Eu deveria ter… – Deveria ter o quê? – Deveria ter prestado atenção ao subir. Você está bem? – Ah, sim. Só mais outra coisa para fingir que nunca aconteceu. Meus lábios ainda formigavam e senti-me envergonhada. Não era capaz de olhar por mais tempo para a expressão ressentida de Conklin. Virei-me, coloquei um dos meus pés trêmulos com rmeza no estribo e sentei-me no banco do carona. – Vejo você amanhã – afirmei. – Ok? – Claro. Sim, Lindsay, sim. Fechei a porta e engatei a marcha. Enquanto dava a ré, Rich fez sinal para que eu abaixasse o vidro da janela, e obedeci. – Você. Já que perguntou, você é a mais louca – falou, apoiando as mãos na abertura da janela. – Entre mim e você, é você. Inclinei-me para fora da janela, coloquei um dos braços ao redor do pescoço dele e o puxei para mim de modo que as nossas bochechas se tocaram. Seu rosto estava quente e úmido e, quando ele colocou uma das mãos em meu cabelo, quase derreti por causa de sua doçura. – Richie, perdoe-me. Recuei, tentei sorrir. Acenei e depois segui para o apartamento vazio que dividia com Joe. Queria chorar. Se, antes, estar com Rich era algo errado por todos os motivos já conhecidos, agora ainda era errado. Eu ainda era dez anos mais velha, nós ainda éramos parceiros – e eu ainda amava Joe. Então por que, eu me perguntava, afastando-me de Rich – acelerando, na realidade –, fazer a coisa certa provoca uma sensação tão ruim?
capítulo 41
YUKI E PHIL Hoffman se acomodaram nas poltronas do gabinete de Duffy. A estenógrafa estava sentada à frente de sua máquina, perto da mesa do juiz, e Yuki pensava: O que será agora? Que diabo é isso? Duffy parecia esgotado, como se tivesse perdido a sua típica expressão de indiferença. Deu um tapinha na fita cassete ao seu lado e gritou, impaciente: – Corinne? O aparelho está pronto? A escrivã entrou no cômodo, todo revestido de painéis de madeira, e colocou o gravador em frente ao juiz, que lhe agradeceu e inseriu a fita. Ele explicou aos advogados: – Aqui está gravada uma ligação feita para a jurada número dois a partir de um telefone público monitorado no presídio feminino. Tem alguns estalos, mas dá para ouvir. Yuki olhou para Hoffman, que deu de ombros enquanto o juiz apertava play. “Consegue me ouvir bem?”, perguntou uma jovem. “Lallie, não posso falar muito. Eu deveria estar no quarto das meninas” , respondeu uma segunda mulher. Dava para reconhecer a voz anasalada da jurada número dois, Carly Phelan, funcionária aposentada dos correios. O juiz apertou stop. – Lallie é a filha da jurada – explicou. – A jurada tem uma filha no presídio feminino? – indagou Hoffman. – É o que parece – respondeu Duffy. Apertou play de novo e a gravação continuou. As mulheres se alternavam nas perguntas: como ia a defesa de Lallie, como eram as acomodações do hotel da mãe, como estava o lho de Lallie agora que a mãe e a avó não se encontravam em casa. – Agora é a parte mais importante. Prestem atenção – avisou Duffy. Yuki se esforçou para compreender as palavras em meio à estática. “Vi a ré do seu caso no chuveiro esta manhã”, comentou Lallie. “Stacey Glenn.” – Merda – exclamou Hoffman. O juiz apertou rew e depois voltou a tocar. “Vi a ré do seu caso no chuveiro esta manhã. Stacey Glenn. Conversava com a supervisora, dizendo que, se tivesse cometido esse assassinato, não teria usado um pé de cabra, pois possui uma pistola em perfeitas condições em casa.” Yuki sentiu-se tonta e um pouco enjoada.
Primeiro, Carly Phelan mentira por omissão durante a seleção do júri. Se dissesse que possuía uma lha na prisão, seria dispensada, pois a conclusão lógica é que ela já estaria predisposta contra a acusação. A promotoria estava tentando condenar alguém como a filha dela! Segundo, e pior, Lallie Phelan dava notícias sobre a ré para a própria mãe. Se Carly Phelan comentasse isso com alguém do júri, todos seriam deslegitimados. – O senhor está declarando o julgamento nulo? – perguntou Hoffman. – Não, não estou. – Então, proponho a anulação do julgamento, meritíssimo. Tenho que preservar os direitos da minha cliente – contestou Hoffman, com um discurso diferente da semana anterior. Duffy fez um gesto descartando aquilo. – Vou substituir a jurada número dois. – Tenho que objetar, meritíssimo – retrucou Hoffman. – Essa conversa aconteceu ontem à noite. Phelan já pode ter contaminado todo o júri. A lha lhe contou que a minha cliente tem uma pistola. – Meritíssimo, estou com o senhor – armou Yuki. – Quanto mais cedo retirar Phelan do júri, melhor. Os suplentes estão prontos para assumirem. – Estou ciente. Tudo bem – afirmou Duffy. – Vamos seguir em frente.
capítulo 42
HOFFMAN E YUKI saíram do gabinete do juiz e caminharam pelo corredor em direção ao tribunal. Ela precisava andar mais rápido para conseguir acompanhálo. Hoffman passou a mão pelo cabelo. – Os jurados vão ter um ataque quando ouvirem isso. Yuki olhou para ele, perguntando a si mesma se Hoffman pensava que ela era inexperiente ou estúpida, ou as duas coisas. O júri caria irritado, é claro. Um novo membro signicava que eles tinham que pôr de lado todas as deliberações anteriores e começar do zero, esquadrinhar as provas mais uma vez, como se tudo fosse desconhecido. O fantástico discurso de encerramento de Yuki se perderia no vazio, e tudo o que os jurados teriam em mente era votar para sair logo do hotel. Sabia que, por dentro, Hoffman estava rindo. Ele tivera uma arma secreta desde o começo em Carly Phelan e nem ao menos soubera disso. Se Phelan tivesse corrompido o júri, teria sido a favor da defesa. – Dê um tempo, Phil. – Yuki, não estou entendendo. – Até parece. O que ambos sabiam era que, se o júri votasse pela condenação, Hoffman iria recorrer. Só o fato de que Carly Phelan mentira durante a seleção do júri era suficiente para conseguir reverter. Por outro lado, se as deliberações voltassem a entrar em um impasse, o que podia muito bem ocorrer, o juiz teria que declarar o julgamento nulo. Duffy não queria a anulação. Queria esse caso encerrado por completo. Ele não precisa se preocupar, pensou Yuki. Seria preciso um ano, ou mesmo dois, para realizar um segundo julgamento. Até lá, a promotoria iria avaliar o custo e, provavelmente, concluir: “Largue isso. Encerramos com Glenn.” Claro, o júri também poderia votar pela absolvição. De qualquer maneira, a jovem Stacey ficaria livre. Minha maldita tendência para perder continua forte. Entre vitória, derrota e empate, as chances eram que Stacey Glenn, aquela abominável assassina, estava prestes a escapar.
capítulo 43
NA MANHÃ SEGUINTE, Cindy foi até o local da morte de Bagman e deixou na calçada a página da editoria de cidade da nova edição do jornal, colocando velas em cima para que não voasse. A manchete acima da sua matéria estava em letras garrafais: RECOMPENSA DE 25 MIL DÓLARES. Abaixo, o lide dizia: “O jornal San Francisco Chronicle está oferecendo 25 mil dólares de recompensa por informações que levem à prisão e à condenação do assassino do homem conhecido como ‘Bagman Jesus’.” Cindy sentiu um puxão em um dos braços. Conseguiu se soltar, virou-se e viu, quase grudada nela, uma mulher de cerca de 30 anos, com cabelo oleoso, pele manchada, um casaco curto preto e roupas cheirando um pouco a urina. – Eu conheci Bagman. Não me olhe desse jeito. Sou drogada, mas sei o que estou falando. – Ótimo. Sou Cindy Thomas. – Flora Gold. – Oi, Flora. Você tem alguma informação para mim? A mulher olhou para os dois lados, observando os pedestres vindos dos subúrbios americanos de classe média branca rumo a seus escritórios em grandes empresas de soware. Próximo deles, a Srta. Gold parecia um troll que se arrastara para fora do esgoto. Voltou o olhar nervoso para Cindy. – Só queria dizer que ele era uma boa pessoa. Cuidou de mim. – O que você quer dizer com “cuidou de mim”? – Em todos os sentidos. E me deu isto. Ela abriu o casaco, puxou para baixo a gola do suéter, mostrou-lhe uma tatuagem acima dos seios. Havia sido feita com tinta preta, o traçado meio asiático. Para Cindy, parecia que fora gravada por um amador, mas a mensagem era clara. FUI SALVA POR JESUS & ADOREI! – Foi o único que deu bola pra mim – contou ela. – Ele me procurou depois que saí de casa no ano passado. Cindy tentou não demonstrar espanto: Flora só estava na rua havia um ano ou menos. – É. Tenho 17 – revelou. – Não me olhe desse jeito. Faço o que quero com a
minha vida. – Está usando meth, não está? – Sim. É como o paraíso. Sexo com ice dá orgasmos alucinantes que duram por uma semana. Não dá para você imaginar. Você deveria experimentar. – Isso vai matar você! – Isso não é da sua conta – retrucou Flora, fechando o casaco bruscamente. – Só quero defender Bagman. Ela virou as costas e se afastou rápido em direção à Townsend. Cindy correu atrás dela e a chamou até Flora parar e se voltar. – Que foi? – Como posso encontrá-la de novo? – Você quer o meu pager? – zombou a adolescente. – Ou quem sabe o meu email? Cindy observou-a se distanciar a passos largos até desaparecer. Flora Gold. Agora entendia. Era o nome de um produto para manter as ores frescas por mais tempo. E o que dizer daquela tatuagem? FUI SALVA POR JESUS & ADOREI! Tentou dar sentido àquilo. Como Bagman salvara Flora? Ela era usuária de meth. Uma viciada. E ia morrer. A garota dissera que Bagman lhe dera a tatuagem, mas o jeito como falara foi estranho, até sexual. Era quase como uma marca reivindicando propriedade. Que tipo de santo marcava um devoto?
capítulo 44
UM SEGURANÇA BATEU à porta da sala. Cindy ergueu o olhar, assim como todos na reunião editorial. – Srta. omas, há uma moradora de rua lá fora. Uma senhora. Ela diz que só vai embora depois que falar com a senhorita. Está causando uma confusão lá embaixo. – Bem, era evidente que isso ia acontecer – comentou erese Stanford, a chefe de Cindy. – Anuncie uma recompensa de 25 mil dólares… – Não tem como só pegar o nome dela ou algo assim? – Ela diz que se chama Flora e que a senhorita quer falar com ela – respondeu o homem. Cindy avisou ao grupo que estaria de volta em cinco minutos. Pegou o elevador, desceu até o saguão, passou pela porta giratória e saiu para a rua. – Estive pensando… – começou Flora sem preâmbulos. – Sobre a recompensa? – É. O que significa “que levem à prisão e à condenação”? – Se você me contar alguma coisa que a polícia possa usar para prender o assassino de Bagman e, se o assassino for condenado após um julgamento, então você recebe a recompensa. Flora puxou os cabelos emaranhados, refletindo. – Sabe quem o matou? – indagou Cindy. A jovem negou com a cabeça. – Mas sei outra coisa. Quem sabe vale 100 dólares. – Conte. Vou ser justa, prometo. – Bagman me amava. E eu sei o nome dele. Flora entregou à jornalista uma plaqueta de metal com um nome gravado em alto relevo. Cindy encarou o objeto, pensando sobre o pseudônimo de Flora Gold e a agitação dos moradores de rua no dia anterior, no refeitório. – Isto é verdade? – Como o céu é azul. Cindy tirou o talão de cheques da bolsa. – Não tenho conta bancária. – Ah. Ok. Sem problemas. As duas caminharam até um caixa eletrônico na esquina, Cindy sacou 100
dólares e deu a metade a Flora. – Você recebe os outros 50 se essa informação der resultado. Viu-a contar as notas, enrolá-las e guardá-las dentro de uma das botas. – Me dê alguns dias e volte a me encontrar, ok? Como fez hoje. Flora assentiu, abriu um pequeno sorriso, a boca aberta apenas o suficiente para Cindy ver que ela não tinha mais os dentes da frente. Depois, a repórter voltou ao edifício do jornal. Esqueceu-se da reunião editorial e foi direto para a sua sala e empurrou a cadeira giratória até perto da mesa. Pesquisou na internet por “Rodney Booker”. Em menos de um segundo, a informação apareceu na tela. Cindy recostou-se na cadeira enquanto a reportagem ia se formando à frente. Era um milagre. Um milagre que ela alcançara. Bagman Jesus havia sido decifrado. Ele tinha um nome. Um passado. E uma família vivendo em Santa Rosa.
capítulo 45
CINDY SENTOU-SE NO confortável solário de uma imponente residência milionária em Santa Rosa, mas não se sentia nada confortável. Será que havia sido precipitada? Sim. Invasiva? Com certeza. Imprudente? Ela devia receber um prêmio por insensibilidade. Em que estivera pensando? Claro, aquele era o problema. Pensara na sua matéria, não em pessoas reais, assim se lançou nas vidas dos Bookers como uma granada. No momento em que Lee-Ann Booker abriu a porta da frente, o rosto doce e maternal brilhando de expectativa, Cindy percebeu que era tarde demais para não puxar o pino. Todos estavam no solário agora. Lee-Ann aparentava 65 anos e tinha cabelo louro-claro. Segurava um colar com cruzes, pedras semipreciosas e amuletos. Sentou-se ao lado de Cindy no sofá de palhinha, chorando e soluçando em meio a lenços de papel. O marido, Billy Booker, trouxe uma caneca de café para a repórter. – Tem certeza de que não quer algo mais forte? – indagou. Parecia uma ameaça. Booker era negro, também na faixa dos 60 anos, com porte militar e o corpo esbelto de um atleta. – Não, obrigada, estou bem – respondeu ela. Só que não estava. Não conseguia se lembrar de nenhum momento na vida em que causara tanta dor a alguém. E também sentia muito medo. Booker pegou a cadeira em frente ao sofá, inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e a olhou com raiva. – O que a faz pensar que esse “Bagman Jesus” é o nosso filho? – Uma mulher que disse ser uma amiga próxima me deu isto. Revirou a bolsa e retirou a plaqueta em que, de um lado, estava gravado RODNEY BOOKER e, do outro, CORPOS DA PAZ. Ao entregá-la ao pai, viu um espasmo de medo atravessar o rosto daquele homem. – E isto prova alguma coisa? Queremos ver o corpo. – Ninguém o reivindicou, Sr. Booker. Ele está com a médica-legista. Ahn, não mostram corpos lá, mas posso dar um telefonema… Booker saltou da cadeira, chutou um banco de palhinha para o outro lado do
solário e virou-se para encarar Cindy. – Ele está em um freezer como um peixe morto, é isso mesmo? E alguém tentou nos encontrar? Não. Se Rodney fosse branco, teríamos sido notificados. – Para ser sincera, Sr. Booker, o rosto desse homem foi espancado até car irreconhecível. Ele não tinha nenhuma identicação. Tenho trabalhado muito para saber sua identidade. – Bom para você, Srta. omas. Bom para você. O rosto estava arrebentado e ele não tinha identicação. Então, volto a perguntar: como sabe que aquele homem morto era o nosso filho? – Se eu pudesse ter uma foto boa de Rodney, acho que conseguiria esclarecer isso rápido. Telefonarei para vocês amanhã. Lee-Ann soltou uma foto do plástico aderente de um álbum e a passou para Cindy. – Ela foi tirada há uns cinco anos. Na imagem, Rodney estava no mesmo sofá de palhinha em que Cindy agora sentava-se. Ele era bonito e tinha a pele clara, ombros largos, o cabelo cortado bem rente, além de um belo sorriso. Ela se esforçou para encontrar uma semelhança no porte e na cor da pele, mas, quando vira os restos de Bagman, ele mal parecia humano. – Você esteve na casa de Rodney? – indagou Booker. – Rodney tem uma casa? – Bem, droga, garota. Meu lho pode estar em casa agora assistindo a um jogo enquanto você está aqui nos assustando. Lee-Ann choramingava e a mente de Cindy voltou a se embaralhar. Casa? Bagman era um sem-teto, não era? Como poderia ter uma casa? E se Rodney estivesse vivo e bem, e ela, totalmente errada? Booker apanhou uma caneta e um bloco de notas da mesinha de centro. Rabiscou o número do celular e o endereço do lho e destacou a folha, entregando-a a Cindy. – Cai na caixa postal quando telefono. Talvez você se saia melhor. Então, qual é o seu plano, Srta. Thomas? Diga-me. Assim, saberei o que eu vou fazer. Ao deixar a residência dos Bookers, Cindy tinha certeza de que a inesperada e bem-intencionada visita não apenas detonara, mas mostrara todos os sinais de um possível escândalo.
capítulo 46
ENQUANTO DIRIGIA DE volta a São Francisco, Cindy estava obcecada. Prometera aos Bookers que os informaria no dia seguinte se Bagman Jesus era ou não o lho do casal. Mesmo sem saber como fazer isso, ela daria o seu máximo, a qualquer custo. Com a mão direita, revirou o conteúdo da bolsa, encontrou o celular e, acionando a discagem rápida, ligou para o número do escritório de Lindsay. Uma voz masculina atendeu: – Conklin. – Rich, é Cindy. Lindsay está? – Encontra-se fora, mas direi a ela… – Espere, Rich. Tenho uma pista sólida sobre Bagman Jesus. Acho que o nome dele é Rodney Booker. – Está fazendo o trabalho da polícia agora, Cindy? – Alguém tem que fazer. – Ok, ok. Acalme-se. – Me acalmar? Acabei de visitar um casal de idade, que não suspeitava de nada, e contei que o filho estava morto… – Você fez o quê? – Eu tinha o nome dele, Rich, ou pensei que tivesse, então fui falar com os pais de Bagman, algo lógico se você pensar bem… – Ai, cara. Como a notícia foi recebida? – Como uma bomba. Billy Booker, o pai, é um veterano do Vietnã, ex-sargento da Marinha. Ele afirma que a polícia é racista e, por isso, não trabalhou no caso. – Bagman era negro? – Booker conhece pessoas inuentes e ameaça entrar em contato com elas. O que quero dizer é: preciso desenvolver esta reportagem antes que eu me torne notícia. Antes que nós nos tornemos notícia. – Nós? – É. O Departamento de Polícia de São Francisco e eu. E sou eu quem sente a obrigação moral. Rich, escute: Rodney Booker tem uma casa. – Você está me deixando confuso. Bagman não era um sem-teto? – Pesquise, por favor. – Estou digitando “Rodney Booker”… Lá vamos nós. Ahn… Cole Street. Em
um ponto distante da Haight Street. Vizinhança agradável. Não era mesmo. Era uma terra degradada, povoada por traficantes de drogas menores. E isso fazia sentido. Se Bagman dissera a verdade para Flora e, se ela não mentira para Cindy, então a casa na Cole Street poderia ser o lugar onde Rodney Booker havia se estabelecido. – Pode checar isso, Rich? Porque, se não fizer isso, eu tenho que fazer. – Relaxe, Cindy. Meu turno acaba em vinte minutos. Irei até lá dar uma olhada. – Encontro você lá – avisou Cindy. – Espere por mim. – Não, Cindy. Eu que sou o policial. Você espera por mim.
capítulo 47
A CASA NA COLE Street era cinza-chumbo, uma entre muitas residências vitorianas em ruínas do quarteirão. Essa, em particular, tinha as janelas de sacada fechadas com tábuas e os degraus da frente sujos de lixo, além de um ar de melancolia que não se dissipara desde o fim dos anos 1960. – Está condenada – comentou Conklin, indicando com o queixo o aviso pregado na porta. – Só o terreno vale algum dinheiro. Se esse imóvel pertencia a Bagman, o que o fez ser um sem-teto? – Essa pergunta foi retórica, certo? – Sim. Estou pensando em voz alta. Cindy cou atrás de Conklin. Ele bateu à porta e colocou a mão sobre a coronha da pistola, à espera. Sem resposta, bateu de novo, dessa vez com mais força. As mãos dela tremiam quando as colocou em concha e espiou através de uma janela. Então, antes que pudesse ser detida, empurrou a porta. Um grito de espanto veio lá de dentro e pilhas de trapos se levantaram do chão e correram em direção aos fundos da casa. Uma porta bateu. – Isto é um abrigo – falou Conklin. – Aquelas pessoas eram invasoras, drogadas, viciadas em crack. Não é seguro, Cindy. Não vamos entrar. Ela passou apressada e se dirigiu à escada, ignorando o policial, que gritava o seu nome. Fizera uma promessa. O ar estava úmido e frio, cheirando a mofo, fumaça e lixo podre. Cindy subiu a escada correndo, chamando “Rodney Booker? Você está aqui?”. Não houve movimento algum, nem mesmo de um rato. O último andar era mais claro e aberto do que os outros. Nada cobria as janelas e a luz do sol iluminava o quarto amplo. No centro de uma das paredes, estava posicionada uma cama de latão, o colchão coberto com lençóis azul-escuros. Havia livros espalhados por todos os lugares. Um cachimbo de crack em cima de uma cômoda cheia de marcas. – Não tenho um mandado de busca, Cindy. Você está entendendo? – perguntou Conklin, aproximando-se por trás. – Nada que encontrarmos aqui pode ser usado como prova. – Segurou-a pelos ombros, sacudindo-a de leve. – Ei, está me ouvindo?
– Acho que Bagman viveu aqui até morrer. – Sério? Com base em quê? Ela apontou para o mural atrás da cama, grosseiramente desenhado em preto e branco no reboco: eram imagens de pessoas se contorcendo, as mãos estendidas para cima, fogo e fumaça ao redor. – Leia aquilo – pediu Cindy. Ali estava a prova pela qual estivera procurando: de que Rodney Booker e Bagman Jesus eram a mesma pessoa. Em meio àquela cena infernal, liam-se duas palavras com a mesma caligraa rudimentar da tatuagem de Flora Gold. Estava escrito JESUS SALVA.
capítulo 48
EU E CONKLIN estávamos dando telefonemas às seis e meia da tarde quando Jacobi passou por nós, tirou uma nota de 20 dólares da carteira, colocou-a em cima da minha mesa junto com vários folhetos de entrega de comida. – Falarei com vocês mais tarde – avisou. – Obrigada, chefe. O trabalho era desanimador. Ainda não sabíamos se as mortes dos Baileys eram um acidente, um homicídio seguido de suicídio ou um duplo homicídio – apenas sabíamos que os consultores de Claire não tinham sido úteis e o público estava em polvorosa. Eu e Conklin fazíamos tudo o que podíamos. Percorríamos a interminável lista de amigos e conhecidos dos Baileys, perguntando: Quando os viu pela última vez? Como estava o humor dos dois? Como era o relacionamento do casal? Sabe de alguém que gostaria de prejudicar Isa ou Ethan? Sabe de alguém que gostaria de vê-los mortos? Eu estava digitando um número quando ouvi meu nome. Ergui o olhar e vi Cindy movendo-se rápido pelo portão de madeira em frente a Brenda Fregosi, nossa assistente, que gritou “Não” e pressionou o botão do intercomunicador. – Cindy está aqui – disparou sua voz pelo alto-falante na minha mesa. Acenando um jornal, minha amiga circulava ao redor dos integrantes da equipe diurna, que vestiam os casacos à medida que os policiais do turno da noite batiam ponto na entrada. Caiu sentada na cadeira sem braços ao lado da minha mesa, inclinando-a para poder olhar Conklin também. Odeio admitir isso, mas ela trouxe luz para a escuridão. – Quer ver como será o jornal de amanhã? – perguntou-me. – Não. – Sou uma celebridade, Richie. Olhe – continuou ela, colocando rapidamente o jornal em cima da minha mesa. Conklin tentou sufocar uma risada e não conseguiu. – Já ouviu a frase “a desgraça adora companhia”? – indaguei. – Você é a desgraçada e eu a companhia. E daí? – A desgraça adora companhia desgraçada. Conklin bufou, Cindy gargalhou e eu não consegui me manter impassível por mais um segundo. – Você detesta quando estou certa, não é? – tripudiou Cindy.
Ela alisou o jornal com delicadeza para que eu pudesse ver bem a imagem da primeira página da editoria de cidade, a fotograa de Rodney Booker, vulgo Bagman Jesus, sob a manchete: RECOMPENSA DE 25 MIL DÓLARES. VOCÊ SABE QUEM MATOU ESTE HOMEM? Rodney Booker era Bagman Jesus. Ele havia sido identicado pelo pai a partir das fotos do necrotério, que mostravam três linhas em relevo em um dos ombros, além de uma tatuagem grosseira – feita cortando-se a pele e esfregando cinzas –, que ganhara quando esteve na África. A morte de Rodney Booker foi um homicídio. E o meu nome estava associado ao caso. Tudo o que eu precisava fazer era descobrir quem o matou. E, enquanto não tinha tempo para fazer isso, Cindy omas estava tanto no auge do sucesso como muito perto de encontrar as provas que procurava. – Estive pensando… – comentou Cindy. – Posso continuar trabalhando no caso e entregar-lhe qualquer coisa que eu descubra. O que acha, Lindsay? – Cindy, você não pode investigar um homicídio, ok? Rich, diga isso para ela. – Não preciso mesmo da sua permissão – retrucou ela. Com um brilho no olhar, continuou: – Tive uma ideia: que tal irmos ao Susie’s e traçarmos um plano com o qual todos possamos lidar… Revirei os olhos, mas Conklin balançava a cabeça, abrindo um largo sorriso para Cindy. Ele gostava dela! Eu já estava prestes a chamar Jacobi para dar um jeito em Cindy, quando Claire irrompeu pelo portão, pisando duro, vindo em nossa direção com uma expressão desagradável. – A Dra. Washburn está a caminho – bradou a voz eletrônica de Brenda pelo intercomunicador. Claire estava ocupada e não gostava de fazer visitas à Divisão de Homicídios. Cindy, distraída, exclamou: – Estamos de saída para o Susie’s. Venha conosco. A médica me encarou. – Não posso ir ao Susie’s, nem vocês. Outra pessoa acabou de chegar. Morta assim como os Baileys.
capítulo 49
O CORPO COBERTO COM um pano na mesa de autópsia era de uma mulher de 33 anos, a pele tão branca quanto a porcelana da minha mãe. O cabelo era brilhante, na altura dos ombros, em quatro tons de louro. As unhas das mãos e dos pés estavam perfeitas e tinham sido pintadas recentemente de marrom. Parecia a Bela Adormecida, à espera do príncipe, que iria abrir caminho por entre as urzes para beijá-la e despertá-la. Li a identificação presa ao dedo do pé. – Sara Needleman. – Reconhecida pela assistente pessoal – informou Claire. Eu conhecia Sara Needleman por suas fotos nas revistas Vogue e W. Era uma estilista de renome que fazia vestidos de festa sob medida para quem tinha 30 mil dólares para esbanjar em um. Havia lido na Gazette que ela costumava fazer conjuntos de vestidos de damas de honra, com cores análogas, mas bem diferentes em estilo, e que, durante a temporada das festas de debutantes, sua loja cava a todo vapor, elaborando os designs tanto para as mães quanto para as lhas aniversariantes. Com certeza ela conhecia os Baileys. – Aqui está o que tenho – falou Claire, pegando uma prancheta. – A Srta. Needleman telefonou para a assistente pessoal, Toni Reynolds, às oito horas da manhã, reclamando de cólicas abdominais. A Srta. Reynolds arma que lhe sugeriu ligar para o médico e que falaria com ela quando chegasse ao trabalho. Sara entrou em contato com Robert Dweck, clínico geral, que lhe disse para ir vêlo ao meio-dia. – Ela nem chegou a se consultar – tentou adivinhar Conklin. – Acertou na mosca – armou Claire. – Sara Needleman telefonou para o 911 às 10h08. A ambulância chegou às 10h15 e ela já estava morta no quarto. – Ela morreu de cólicas abdominais? Alguma coisa que ela comeu? – perguntei. – Ainda não foi determinado, amiga. Amostras do estômago e do sangue estão no laboratório. Nesse meio-tempo, falei com os paramédicos que a trouxeram. Não havia vômito ou excremento na casa. – Por que acha que a morte dela é igual à dos Baileys? – No começo não achava. O trabalho tinha dado uma trégua por aqui quando ela chegou, assim pude analisá-la logo, acreditando saber o que procurar. Três de seus assistentes ngiam estar ocupados e se mantinham perto o
suciente para ouvirem o relato. Eu já era capaz de ver as palavras “Notícia de última hora” , sob uma foto glamourosa de Sara Needleman, interrompendo a programação regular. Podia sentir as pessoas conectando a morte dela à dos Baileys, a pressão atmosférica caindo. Uma grande tempestade se aproximando. Claire assinalou as possíveis causas da morte. – Deixando de lado por enquanto o veneno, cólicas abdominais costumam ser provocadas por uma úlcera péptica ou uma gravidez ectópica. – Mas não dessa vez – supôs Conklin. – Correto, senhor. Portanto, as cólicas poderiam não estar relacionadas à sua morte. Veriquei aneurismas, derrame, ataque cardíaco… mas não encontrei nada. Examinei todos os órgãos. Você poderia embrulhá-los para presente, amarrá-los com um laço de ta e mostrá-los a estudantes de medicina para que conheçam a aparência normal de órgãos. Sem marcas no corpo e contusões de qualquer espécie. Nada errado, exceto estar morta. – Constava da minha lista – comentou Conklin. – Ainda não tinha chegado ao nome dela. – Tarde demais – murmurei. Claire continuou, taciturna: – Então, no momento, estou pensando que temos os Baileys e Sara. Círculo social idêntico. Poderia ser a mesma causa de morte. Assim, quando enviei o sangue dela, solicitei as análises. Tenho segmentos de tecido a menos de 60 graus para serem testados à procura de algo incomum. O que acham que vou dizer agora, companheiros? – Mais trabalho policial – respondeu Conklin. – Bingo! Alguém tem que decifrar isso, pois estou num beco sem saída. Virou-se para o corpo de Sara, colocou uma das mãos sobre o torso da mulher coberta com o lençol e desabafou: – Pensei que já sabia o que tinha acontecido, querida Sara. Mas deu zebra.
PARTE 3
FESTA O TEMPO TODO
capítulo 50
NA MANHÃ SEGUINTE à morte de Sara Needleman, nosso chefe, Anthony Tracchio, telefonou: – O prefeito está na minha cola. Largue tudo menos esse caso e não meta os pés pelas mãos. Respondi “Sim, senhor. Sem meter os pés pelas mãos” , mas queria gritar “O que estamos procurando?”. O tenente Michael Hampton, um veterano de 20 anos da Divisão Especial de Investigação, também havia sido designado para o nosso caso dos milionários mortos e parecia tão feliz quanto eu. Nós nos encontramos no escritório dele, analisamos as tarefas, item a item, e dividimos a lista. Hampton enviou uma equipe ao consultório do Dr. Dweck para coletar os registros de Sara e entrevistar o médico e seus empregados, e outra correu ao showroom e escritório da falecida para conversar com a assistente pessoal, Toni Reynolds, e os demais funcionários. Eu e Conklin fomos de carro até a residência de Sara em Cow Hollow, seguidos por duas viaturas com Chi, McNeil, Lemke e Samuels. Estacionamos na rua. Os quatro começaram a investigar as vizinhanças enquanto eu e meu parceiro entrávamos na casa. Ela não era tão estilosa quanto a mansão dos Baileys, mas, de qualquer forma, era impressionante. O zelador, Lucas Wilde, nos encontrou à porta. Era um hipster com cavanhaque na faixa dos 20 anos e vestia roupas pretas de brim. Conduziu-nos pela residência de 740 metros quadrados, que a Sotheby’s leiloaria assim que uma equipe de limpeza arrumasse a bagunça feita pela perícia. Após o tour pela casa de sete cômodos, inclusive por um jardim japonês de dois níveis nos fundos, convidamos Wilde para ir até a Central e nos contar o que sabia sobre Sara. Ele concordou de boa vontade. – Conheço todo mundo que entra e sai – comentou. Conklin nos deixou na sala de interrogatório número dois e foi levantar a cha do zelador. Como não achou nada comprometedor, voltou com um bloco grande para anotações e cafés para todos. Passamos mais uma hora com Wilde, que despejou tudo sobre Sara Needleman e a empresa que ela administrava. – Bichas e vigaristas, na maioria. Além dos clientes.
O rapaz listou todos os visitantes de Sara, de forma criteriosa, tanto amigos quanto empregados, incluindo a governanta, a passeadora de cães, o jardineiro japonês, o ladrilheiro, o tratador de carpas, a professora de ioga e o fornecedor de comida e bebida. – Que tipo de relacionamento você tinha com Sara? – indaguei. – Nós nos dávamos muito bem. Mas eu não era como o amante de Lady Chatterley, se é isso que você quer saber. Era um faz-tudo e estava feliz por ter emprego e um bom local para morar. Wilde nos contou que viu Sara por um breve instante na manhã da sua morte. Entregou-lhe o jornal, que estava no portão, e ela parecia bem. – Apenas abriu a porta e pegou o jornal. Não teria me dito se estivesse doente. – Alguma ideia? – perguntei. – Se Sara Needleman foi morta, quem a teria matado? – Não saberia por onde começar. Sara era esnobe. Se você fosse alguém poderoso, ela era uma doçura. Se não, cara, ela podia ser fria. Não sei distinguir seus amigos dos inimigos e, francamente, não acho que ela também soubesse.
capítulo 51
SARA NEEDLEMAN AINDA estava no necrotério naquela noite quando as equipes que trabalhavam no caso foram convocadas ao escritório de Tracchio, que dava para a Byron Street e oferecia uma vista panorâmica da Golden Gate. Tracchio era um burocrata prossional e subira na hierarquia por meio de indicação. Não possuía experiência de campo e tinha cintura ácida e um penteado ridículo para esconder a calvície, mas eu começava a apreciá-lo por sua sagacidade política, uma qualidade que me falta por completo. Ele estava agitado de uma forma que eu raramente vira. – Pessoal, digam às famílias de vocês que não estarão em casa até termos este caso encerrado. E animem-se: quem solucioná-lo vai ser considerado um herói. Ou heroína – afirmou, olhando em minha direção. As equipes zeram seus relatórios e eu, Tracchio e Hampton zemos perguntas a elas antes de delegarmos novas tarefas. Eu e Conklin pegamos os nomes de cada pessoa entrevistada a respeito de Sara Needleman. Depois, voltamos às nossas mesas para compará-las com uma lista semelhante do caso Bailey. Era um trabalho maçante, mas tinha que ser feito. Puxei a cadeira até a mesa do meu parceiro e li os nomes. Toda vez que encontrávamos um repetido, ele batia em um botão sobre a mesa, que grasnava “Isso foi fácil” . Por volta das nove da noite, a caixa de pizza vazia estava na cesta de lixo. Tínhamos eliminado os empregados que moravam na casa dos Baileys, mais centenas de pessoas. Ainda assim, havia dezenas de nomes que coincidiam. Os Baileys e Sara iam aos mesmos restaurantes, clubes e academia e eram membros da sociedade de ópera. Compartilhavam até a lavanderia. – Sara Needleman tinha 33 anos, assim como Isa Bailey. Aposto que estudaram na mesma escola – disse Conklin. Assenti. Era algo a se levar em conta. E que expandia nossa pesquisa. Terminei de beber minha lata de refrigerante e joguei-a no lixo. – Li a respeito de um experimento em laboratório – comentei. – Primeiro usaram ratos. Há duas lâmpadas que piscam: uma verde, outra vermelha. Adivinhe a que está prestes a piscar e, se você for para a correta, consegue a comida. A cada dez vezes, a luz verde pisca oito. – Prossiga. – A luz verde pisca tantas vezes que os ratos vão toda hora para essa lâmpada. Por que não? Eles são recompensados oitenta por cento das vezes. Os behavioristas
fizeram a mesma experiência com os seres humanos. – Nunca fui fã de comida de rato. Dei uma risada. – Os humanos ganhavam M&M’s. – Imagino que você vá chegar a algum lugar. – As pessoas tentavam prever quando cada luz ia acender. Procuravam um padrão: por exemplo, tantas vermelhas antes de uma verde. E eram recompensadas apenas 67 por cento das vezes. – Isso prova que os ratos são mais espertos que os humanos. Neguei com a cabeça. Ele tentou de novo. – Isso prova que nós devemos entrevistar todas as pessoas das listas, independentemente de serem vermelhas ou verdes? Voltei a rir. – Isso prova que, às vezes, as pessoas pensam muito – expliquei. – Você está cansada, Linds. – Vamos comparar as listas de novo. E, desta vez, não vamos pensar demais. Apenas vamos nos deter nos nomes dos ratos que tinham as chaves das casas das vítimas. Rich bateu no botão sobre a mesa, que bradou: “Isso foi fácil.”
capítulo 52
A GAROTA DE ESTIMAÇÃO estava devolvendo os cachorros de Sara Needleman a Lucas Wilde quando a viatura parou no meio-o e dois policiais que lhe eram familiares saíram de lá. A mulher era alta e loura e o homem, robusto, com alguns centímetros a mais de altura e talvez 30 anos. A policial mostrou o distintivo, se apresentou como sargento Boxer e a seu parceiro como inspetor Conklin e indagou se a Garota se importaria de ir com os dois até a Central para responder a algumas perguntas. – Ok – concordou ela. Estava calma. Tudo o que tinha a fazer era cooperar e eles seguiriam seu rumo – como fizeram da última vez, quando a interrogaram sobre Isa e Ethan Bailey. Sentou-se no banco de trás do carro, pensou na noite em que zera aquilo, certa de que não se esquecera de nada. Seus pensamentos foram para Wilde. A Garota estava segura de que ele não a vira entrar na casa de Sara porque passara nu à frente da janela do próprio quarto e a luz se acendera no banheiro. Além disso, ela ouvira o chuveiro ligado antes de ir para a entrada principal. Recordou-se de fazer aquilo à Sara quando “A Dama da Agulha de Ouro” se encontrava tão bêbada que nem conseguia abrir um olho. A Garota teve uma sensação estranha, como se estivesse com vontade de rir ou talvez urinar. Escutou os dois policiais tagarelando no banco da frente, contatando a Central, fazendo piadas e falando besteira. Não agiam como se houvesse uma assassina atrás deles. Parecia até que tinham esquecido que ela estava ali. Permaneceu em silêncio entre os policiais enquanto subiam no elevador e recusou o refrigerante que lhe ofereceram quando chegaram à sala de interrogatório. – Tem certeza? Talvez uma garrafa de água? – perguntou a sargento, como se realmente se preocupasse e não quisesse, na verdade, obter uma amostra de DNA. Um truque tão velho que era impressionante como alguém ainda era enganado. – Quero ajudar – disse com doçura. – Independentemente do que vocês queiram saber. O inspetor Conklin era bonito e tinha um cabelo castanho-claro que caía por cima dos olhos. Ele afastou uma mecha enquanto lia para si mesmo as anotações que tinha feito a respeito dela, e então perguntou onde a Garota estivera nas
últimas 48 horas. Ela sabia que estavam conferindo a solidez da sua história em caso de voltarem a interrogá-la e não via nenhum problema nisso. – Saí com os cachorros dos Baileys quatro vezes, de manhã e à noite em ambos os dias. Fico pensando o que vai ser deles… Detalhou o trabalho intenso de passear com os cães e fazer pequenos serviços rotineiros, incluindo dar uma volta naquela manhã com os animais depois de Lucas Wilde lhe telefonar para dizer que Sara estava morta. – Viu algo ou alguém incomum na vizinhança na última semana? – inquiriu a sargento Boxer. – Não. – O que acha de Lucas Wilde? – Ele é ok. Não faz meu tipo. – Como era o seu relacionamento com Sara Needleman? – questionou o inspetor Conklin. – Eu a adorava – respondeu a Garota. Deu um sorriso sedutor para ele. Mal não podia fazer. – Sara era inteligente, engraçada e generosa. Ela me dava peças da sua coleção. Ela era assim. – Com que frequência você passeava com os cachorros dela? – Talvez uma vez por semana. Ela gostava de levá-los por conta própria. Mas, quando ficava sem tempo, me chamava e eu colaborava. – E os Baileys? – A mesma coisa. Passear com os cachorros. Fazer pequenos serviços. Trabalho para muitas pessoas em seus círculos sociais. Dezenas. Tenho referências. – Parece muito bom – comentou o inspetor. – Você faz o seu próprio horário. Sara tinha inimigos? – Sim. Ela tinha três ex-maridos e cerca de trinta ex-namorados, mas não acho que desejavam matá-la. – Existe alguém nessa lista de ex que também pudesse ter rancor dos Baileys? – Essas pessoas falam muito pouco comigo… – Você tem as chaves das casas de Needleman e dos Baileys? – indagou a sargento. A Garota estendeu a mão para o bolso lateral da mochila e tirou de lá um chaveiro no formato de uma âncora. – Tenho muitas chaves. Esta é a questão: co fora do caminho dos meus clientes. Sou do tipo silenciosa, e eles gostam disso. Entro, passeio com os cachorros, levo-os de volta. Pego o meu cheque. Na maior parte do tempo, nem
sabem que estive lá.
capítulo 53
DEPOIS QUE A passeadora saiu, comentei com Conklin: – Há anos que a babá do meu cachorro tem as minhas chaves e o código do alarme e nunca dei a mínima para isso. Martha adora a Karen. Confio nela. – O que você quer dizer, querida sargento? Está descartando a “teoria dos ratos com chaves”? – Não sei, camarada. A passeadora tinha acesso, mas qual seria o motivo? O que tem a ganhar matando os próprios empregadores? O intercomunicador tocou, e a voz de Brenda soou, ofegante e um pouco contida. – Lindsay, você tem visita. Olhei para o lado oposto da sala da Central. Não vi ninguém. Pressionei o botão do intercomunicador e perguntei à Brenda: – Quem é? – Ele está a caminho. Ouvi-o antes de vê-lo, o ruído da borracha contra o assoalho de linóleo. São Judas apareceu, a cadeira de rodas inclinada para cima, e a estacionou perto da minha mesa, com um enorme sorriso no rosto barbudo. – Boxer, você parece ótima, filha. Cada vez melhor. Levantei-me e abracei o lendário Simon McCorkle, conhecido em todo o estado como “São Judas, padroeiro das causas perdidas” . Ele levara um tiro nas costas quando estava de serviço, cou paralisado da cintura para baixo, mas se recusou a se aposentar. Desde aquele dia funesto, há vinte anos, “São Judas” era encarregado do arquivo de casos não solucionados e trabalhava em um escritório no laboratório criminal. – Obrigada, McCorkle. Sua barba está um pouco grisalha. Fica bem em você. – Me dê a mão, Boxer. Não, a esquerda. Não casou? Então, ainda tenho uma chance. Dei uma risada e apresentei-lhe Conklin. Cumprimentaram-se com um aperto de mãos como se fossem irmãos separados que se conheciam depois de um longo tempo e logo estávamos contando a São Judas sobre o caso das mortes dos milionários, uma investigação que nos enlouquecia. – É por isso que estou aqui, menina. Quando vi Sara Needleman no necrotério esta manhã, conectei-a aos Baileys… E adivinhe, Boxer? Isso me soou familiar.
capítulo 54
MCCORKLE PEGOU UMA mochila pendurada atrás da cadeira e colocou-a no próprio colo. – Trouxe um presente para você – revelou, piscando para mim. – Não faço ideia do que seja, mas espero chocolate. Ele retirou um chário cheio de anotações e documentos relativos a um caso de homicídio. Na capa, estava escrito, com uma caneta de ponta grossa, PANGORN, 1982. Surgiram mais dois arquivos, um com a inscrição GODFREY, 1982, e o outro, KENNEDY, 1982. – O que é isso? – perguntei enquanto ele punha os chários na minha mesa abarrotada. – Paciência, minha linda. Só mais este. Christopher Ross. Foi o último a partir: morreu em dezembro de 1982. – McCorkle, meu caro, deixe-me a par. – Vou contar tudo e talvez você, eu e Conklin cheguemos a alguma conclusão. Recostei-me na cadeira. Havia pessoas no mundo que gostavam de plateia, e Simon McCorkle era uma delas. Uma das razões era que ele passava o tempo todo naquele laboratório, em Hunters Point. Outro motivo era a obsessão por casos não resolvidos e por cadáveres. E havia mais um fator. Independentemente de ele resolver o crime no mesmo dia ou no mês seguinte, São Judas estava sempre marcando pontos que não teriam sido feitos sem ele. Era o trabalho ideal para gerar excelentes histórias. – Aqui está o que todas essas vítimas tinham em comum. Ele se inclinou para a frente em sua cadeira e colocou um dos braços musculosos e tatuados sobre os arquivos e eu pude ver uma dançarina de hulahula seminua e peluda em sua praia particular. – Elas eram da alta sociedade – continuou ele. – Nenhuma tinha marcas de violência. Mas a última vítima, esse Christopher Ross… O assassino deixou a arma na cena do crime. E ela era bem peculiar. Eu tinha acabado de sair da escola quando os assassinatos pararam. Não me detive nas particularidades do caso na época, mas agora voltava à minha mente o porquê de aqueles casos não terem sido solucionados. McCorkle abriu um sorriso enquanto observava que, aos poucos, meu cérebro cansado processava as informações. Lembrei.
– Era mesmo uma arma bem peculiar – disse a ele. – Essas pessoas foram mortas por cobras.
capítulo 55
NAQUELA NOITE, RICH Conklin tinha um jantar marcado com Cindy em um restaurante tailandês em frente ao prédio dela. Não era um encontro, quiseram deixar bem claro. Porém, ela piscava para ele a cada arquivo que lhe passava, com todas as matérias sobre os “assassinatos da alta sociedade de 1982” que foram publicadas no Chronicle antes de um computador se tornar tão comum quanto um telefone. – Estou confiando em você – armou Cindy. – Se contar a alguém que eu lhe dei este material do nosso “necrotério”, estarei encrencada. – Não quero que você se meta em encrenca – avisou-a. – Para fazer justiça, eu compartilho e você compartilha – afirmou ela. Poucas garotas com mais de 8 anos poderiam fazer sucesso usando roupa rosa e um prendedor de strass, mas, de algum modo, Cindy estava cem por cento deliciosa. E Conklin estava hipnotizado, observando-a tirar com os dentes a carne de uma asa de frango de uma forma delicada, porém, ao mesmo tempo, demonstrando prazer. – Rich, seja justo – continuou ela. – Está claro que você vê uma conexão entre os Baileys, Sara Needleman e as mortes na alta sociedade de 1982. Mas você acha que o assassino antigo voltou ao batente? – A questão é: eu posso conar em você, Cindy? Você não parece muito confiável. – Aaahh. É só dizer as palavras mágicas. – Por favor, Cindy. – Richieee. Apenas diga “extraocial” . Eu iria para a cadeia antes de quebrar o sigilo. Ele riu, recostou-se e deixou o garçom retirar os restos do seu peixe. – Obrigado por me dizer isso – agradeceu Conklin. – Não quero que você vá para a cadeia. Mas compreenda que eu caria bem mais que encrencado se essa história vazasse para o seu jornal. – Não se preocupe. Primeiro, eu juro não fazer nada. – Ela fez o sinal de juramento dos escoteiros, levantando três dedos da mão e colocando o polegar sobre o mindinho. – Segundo, o que você vai falar é extraocial. E terceiro, não está relacionado à minha matéria – salientou. – Estou trabalhando no caso Bagman Booker, lembra?
– Tudo é extraoficial. Você leu os arquivos. Em 1982, pessoas ricas foram mortas, aparentemente por picadas de cobra, e talvez o assassino esteja saindo da aposentadoria. Quem sabe esteja entediado. Não seria a primeira vez. Dennis Rader, por exemplo. – Ai, cara, esse sujeito… – Ela sacudiu a cabeça, o strass cintilando. – Aquele lema dele, “Amarrá-los, torturá-los, matá-los” , ainda me dá arrepios. Trabalhava para uma empresa de segurança domiciliar, acho. – Sim. Ficou quieto por cerca de 25 anos após seu último assassinato. Até que um dia percebe que a vida tinha mais graça quando provocava os policiais, ganhando as manchetes. Aí começa a enviar cartas para os jornais e as emissoras de televisão. Seu ego o derruba e ele acaba pego. – Então você acredita que o assassino de 1982 é o mesmo cara que matou os Baileys e Sara Needleman? Conklin fez sinal para o garçom. – É possível. – Você pediu a conta? – perguntou Cindy. Olhava-o como se ele tivesse feito algo errado. – Ah, desculpe, você queria mais alguma coisa? Sorvete…? – Estava apenas pensando… Nosso assunto não terminou. E acabei de tirar da caixa minha máquina de cappuccino, Rich. Conklin observou-a enrolar um cacho ao redor de um dos dedos e sorriu. – Isso é um convite para um café?
capítulo 56
MCCORKLE E EU estávamos na Central consumindo comida chinesa já gelada enquanto examinávamos os fichários. O policial abriu o que tinha escrito PANGORN e informou: – April Pangorn era uma bela e jovem viúva, de apenas 28 anos, e muito rica. De acordo com as anotações do inspetor Spark, ela tinha muitos amigos íntimos de ambos os sexos. – Diz aqui que a Sra. Pangorn foi encontrada morta em sua cama, sem marcas ou contusões – comentei. – Assim como os Baileys e Sara Needleman. – Por isso que só foi considerado um homicídio quando Frank Godfrey caiu morto. McCorkle comeu uma costeleta de porco fria e atirou o osso no lixo enquanto eu abria o dossiê de Godfrey. Comecei a folheá-lo para acompanhar enquanto São Judas narrava. – Godfrey, Frank. Homem branco, 45, pugilista prossional aposentado, era proprietário de uma parte do Raleigh’s. Está fechado agora, mas na época era um clube das antigas, com veludo vermelho nas paredes, umidores no balcão, salão de jogos nos fundos. Frankie se mantinha ocupado em seu apartamento de luxo. Muito ocupado. Gostava de mulheres – aos montes – e de gastar dinheiro. Olhe aqui, Lindsay. A foto da cena do crime. A vítima estava deitada de bruços no chão do quarto, como se tivesse tentado rastejar até o banheiro, que aparecia no canto da imagem. – A Divisão de Homicídios achava que Frank havia sido assassinado, porém o médico-legista não conseguiu encontrar a causa – falou McCorkle. – A autópsia e o exame toxicológico não deram em nada. Próximo. Patrick Kennedy era banqueiro – continuou, esticando-se para pegar o terceiro chário. – Era gay, um fato altamente secreto que veio à tona quando ele morreu. Três pessoas podres de ricas foram mortas em poucos meses sob circunstâncias suspeitas. As coisas caram um pouco desesperadoras aqui na Divisão Sul. O tenente Leahy assumiu no lugar do inspetor Sparks, passou um mês entrevistando cada gay de São Francisco. – McCorkle riu. – Metade deles “conhecia” Paddy. Desculpe. Então, um mês depois, Christopher Ross morreu. – E qual foi a história dele? – indaguei. Abri um biscoito da sorte e li em voz alta o papelzinho. – “Um bom amigo lhe dará a resposta.” Dei um soco de leve em um dos enormes braços dele.
– Vamos logo, camarada. Como os policiais descobriram sobre as cobras? Desembucha, Judas.
capítulo 57
MCCORKLE RIU. – Boxer, estou falando o mais rápido possível. – Fale mais rápido. De brincadeira, bati com o punho fechado no chário de Godfrey sobre a mesa, mas começava a car assustada de verdade. Quatro pessoas da alta sociedade morreram de forma misteriosa em 1982. Desta vez, já haviam acontecido três mortes semelhantes, se não idênticas, na mesma semana. Antes eu tinha dúvidas quanto às nossas mortes sem vestígios serem homicídios – agora não mais. Se fosse o mesmo assassino nos dois casos, ele era furtivo, inteligente e muito organizado. – Christopher Ross – lembrei. – A última vítima. – Christopher Ross – repetiu McCorkle, abrindo o quarto dossiê em uma das fotos do necrotério. – Era um homem branco de 42 anos. Rico até dizer chega. Nascido em berço de ouro. Casado, mas com aventuras extraconjugais. Alguns comentavam que ele tinha outra família aqui mesmo na cidade. Olhe para a boca dele, Boxer. Mesmo morto, Chris Ross era bonito. A esposa era uma dessas mulheres que apenas tolerava as indelidades do marido. As pessoas diziam que ela o amava. E então, de repente, foi encontrado morto na própria cama… por obra disso. Ele passou para a parte de trás do dossiê sobre o homicídio de Ross. – Aqui está a arma do assassinato. Era o que eu ansiava para ver – e não era nada parecido com o que esperava. A cobra estava pregada a uma placa ao lado de uma régua que indicava o tamanho do réptil: 53 centímetros de comprimento. Eu não conseguia desviar o olhar. Delicada, com listras cinza-azuladas e brancas, parecia mais uma joia do que uma assassina. – Essa cobra é uma krait – explicou McCorkle. – Incrivelmente letal. Originária da Índia, logo alguém a importou. De forma ilegal. Não há sinais de arrombamento em qualquer uma das residências das vítimas. – Então, como a cobra chegou lá? McCorkle deu de ombros com vigor. – E essa cobra matou as outras vítimas? – indaguei. – Talvez não essa em particular, Lindsay, porém uma do tipo. Os três primeiros
corpos foram exumados e examinados com microscópio. O médico-legista, Dr. Wetmore, encontrou as marcas das picadas em todas as quatro vítimas. Segundo ele, era muito difícil vê-las a olho nu. Eram como alnetadas, imperceptíveis se você não as estivesse procurando. De acordo com o seu relatório, não havia inchaço ou descoloração ao redor das picadas. – E com relação a suspeitos? – perguntei. – A Sra. Christopher Ross herdou 50 milhões de dólares. Foi interrogada várias vezes, mantida sob vigilância. Os telefones foram grampeados, mas ninguém acreditava que ela fosse culpada. Tinha o próprio dinheiro. Tinha tudo. – Ainda está viva? – Morreu em um acidente de carro dois ou três anos após o marido. E nunca houve outro suspeito. – Simon, as vítimas se conheciam? – Algumas, sim, outras, não, mas o que todas tinham em comum era o fato de serem muito ricas. E tem mais uma coisa, que talvez possa ser útil a você. O investigador principal, o tenente Leahy, fez um comentário inadequado com seu subordinado em uma coletiva de imprensa, e o microfone estava ligado. Um repórter publicou isso. – Não me faça implorar, McCorkle. – Leahy armou: “As vítimas eram pervertidas, corruptas, tanto no sexo quanto na moral.” McCorkle me contou que Leahy foi crucicado após o comentário sair no Chronicle e, pouco tempo depois, realocado para Omaha. Entretanto, minha cabeça já estava em outro lugar. Eu já pensava na pequena e graciosa cobra indiana que deixou marcas quase invisíveis. Claire não sabia nada sobre isso. Eu precisava telefonar para ela.
capítulo 58
OS OLHOS DE Rich se ajustaram à luz fraca do apartamento de Cindy. Estivera ali havia um ano e meio, quando um psicopata se encontrava à solta no edifício – uma situação muito diferente da atual. Eles estavam sozinhos e já haviam bebido. Irrequieta, Cindy mexia na máquina para cappuccino como se de fato fosse fazer café. Como aquilo acontecera? Só porque desejara tinha se tornado realidade? Enquanto ela continuava a lidar com o aparelho na bancada da cozinha, mentalmente Rich eliminava o suéter rosa e a calça justa de Cindy, suas mãos percorriam todo aquele corpo. Recusava-se a visualizar muito mais. Não fizera planos. – Qual o nome do pássaro? – perguntou ele, caminhando até a enorme gaiola de latão em cima de uma mesa perto da janela. A ave era branca e cor de pêssego, com garras escamosas e um bico preto. Lembrava-o um cachorro de ferro-velho, bom de briga. – Peaches – respondeu ela, vindo por trás, tão próxima que dava para sentir os seios dela pressionando-lhe as costas. – Estava sozinho na loja de animais… Richard se virou para Cindy, que envolveu o pescoço dele com os braços. Puxou-a para perto e a beijou. Foi um primeiro beijo perfeito, sem choque de nariz ou dentes. Rich sentia cheiro de ores, saboreando o gloss de melancia e o vinho branco nos lábios dela. O corpo de Cindy, pequeno e rme, estava pressionado com força contra o dele, levando-o à loucura, quando Peaches deu um grito agudo: – Mate a vadia! Mate a vadia! – Ele foi maltratado – disse ela baixinho, toda derretida, como se pedisse “Leveme para a cama”. – Que triste – comentou Rich. Estendeu a mão até o cabelo dela e soltou o prendedor de strass, e uma torrente de cachos louros se soltou em sua mão. – Ahhhh – exclamou ela. Ainda em pé diante do passarinho, gentilmente Rich retirou-lhe os brincos com pingentes de diamantes. Colocou um após o outro sobre a mesa, vendo Cindy corar do decote em V do suéter até os olhos enquanto a respiração se acelerava. Ela segurou no cinto dele com uma das mãos.
Rich voltou a beijá-la, e ela gemeu. Em seguida, abriu os olhos azuis e comentou: – Você está um pouco rápido, Rich, mas, por favor, não pare. Ele abriu um largo sorriso. – Que tal uma pausa para o café? – Mais tarde – disse ela, tomando uma das mãos de Rich e o conduzindo pela sala até o quarto. Cindy acendeu o abajur com lâmpada rosa e cúpula transparente, cou na frente dele e ergueu os braços como uma menininha. Ele lhe tirou o suéter. Passou os dedos por seus seios, os mamilos enrijecendo por trás da renda rosa. Ela abriu o sutiã, sentou-se na cama e ficou só de calcinha. Ele tirou a camisa de dentro da calça. Cindy se inclinou para a frente para ajudar com o último botão, desavelou o cinto e o abraçou pela cintura, repousando uma das bochechas no zíper. A roupa dele voou para um canto do cômodo. Os dois se deitaram, grudados um no outro, ofegantes, e Rich deslizou as mãos por dentro da calcinha de tecido fino. Sem jeito, Cindy pegou uma camisinha no criado-mudo e abriu a embalagem com os dentes. Então, Rich estava dentro dela e Cindy gemia baixinho em um de seus ouvidos “Oh, oh, oh” . Segurou-a rme até chegar ao orgasmo e gritar no travesseiro. Algum tempo mais tarde, foi acordado pelo som do telefone na mesinha de cabeceira. Sedosa e quente em seus braços, Cindy sussurrava: – Não vamos contar a Lindsay. – Por que não? – Vai acabar estragando. Rich assentiu – teria aceitado qualquer coisa – e, em seguida, ouviu a voz de Yuki vindo da secretária eletrônica: – Cindy, Cindy, atenda. Onde você está? Tenho que falar com você, droga. Ligue para mim, ok? Adoro você. Cindy segurou o rosto de Rich com uma das mãos, estendeu a outra e lhe deu um pequeno puxão, murmurando: – Richie? Você pode ficar?
capítulo 59
EU E CLAIRE estávamos em frente ao computador do escritório dela às 7h15 da manhã, sem cafeína, lendo um e-mail de Michelle Koo, uma herpetologista sênior de Berkeley. – “Querida Claire, duas das famílias mais conhecidas de cobras venenosas são a Elapidae e a Viperidae” – leu ela em voz alta, mandando ver no latim –, “ou melhor, os elapídeos e os viperídeos. As kraits pertencem ao primeiro grupo, cujo veneno contém neurotoxinas, de ação mais rápida que o do segundo, deixando os cadáveres com boa aparência”. – “Cadáveres com boa aparência”… de fato – concordei, falando por cima do seu ombro. – Poderia até dizer dignos de serem expostos em um museu. – As picadas das kraits costumam ser indolores – continuou Claire – e isso dá à vítima uma falsa sensação de segurança. – Então foi por isso que os Baileys não pediram ajuda. – Estou pensando o mesmo, Linds. Ou talvez nunca souberam que se encontravam em apuros. A taxa de álcool no sangue de ambos também se mostrava muito alta. Assim como em Sara. Os três perderam a consciência. Michelle prossegue: “Os sintomas podem incluir cólicas abdominais e tontura, pupilas dilatadas e fala ininteligível, incapacidade para engolir, arritmia cardíaca, deficiência respiratória, até coma. A morte pode vir em seis a oito horas.” Parara de acompanhar o texto e me xara na foto da krait, o mesmo elapídeo sedutor e adorável que eu vira no dossiê de Christopher Ross. – Michele arma: “A morte se deve diretamente à neurotoxicidade do veneno, já que age nas vias químicas fundamentais que mantêm os nossos músculos em funcionamento.” E esse é o ponto principal, amiga. Os músculos param de funcionar. Assim, a vítima não pode respirar. E a neurotoxina é metabolizada com tanta rapidez que, mesmo que você saiba o que procurar, e nós não sabíamos, nada aparece no exame toxicológico. – Se não há vestígio de neurotoxina nos corpos das vítimas no momento da morte, como se pode provar o que as matou? Claire abriu uma gaveta da mesa e vasculhou. – Achei! – gritou, retirando uma lupa do tamanho de um pires. – Vou fazer exatamente o mesmo que o Dr. Wetmore: examinar os corpos dos meus pacientes com uma lupa e uma luz forte, procurar por furos minúsculos que possam ter sido causados por presas.
capítulo 60
ESTÁVAMOS TODOS AGLOMERADOS no minúsculo escritório de Jacobi: Cindy na cadeira gasta em frente à mesa do meu chefe, eu e Conklin espremidos entre pilhas de papel em cima do aparador. – Eu conheço você há quanto tempo? – perguntou Jacobi a Cindy. – Seis anos, por aí. – E nunca pedi um favor antes, não é? – Warren, eu disse a Rich e a Lindsay que não estou nem cobrindo os assassinatos na alta sociedade. Jacobi encarou minha amiga com um olhar duro, o mesmo que usava para intimidar assassinos pérdos, e eu admirei a capacidade de Cindy de manter o autocontrole. – Não se trata apenas de não ser a sua reportagem – salientou ele. – É que você sabe algo que queremos manter em segredo por enquanto. – Todos aqueles arquivos que consegui para Rich estão no registro público – armou ela, erguendo as mãos. – Qualquer um poderia descobrir o que sei, inclusive outra pessoa no Chronicle. – Estão enterrados no registro público. E precisamos que permaneçam assim por agora. É por isso que vamos lhe fazer uma oferta irrecusável. Ela riu. – Adoro quando vocês me dão uma exclusiva quando já fiz todo o trabalho. – Cindy, não vamos começar a falar de ganho pessoal, ok? Temos quatro casos não solucionados dos anos 1980 e três prováveis homicídios da semana passada. Nós lhe daremos uma visão clara do caso, e isso é uma promessa. Meu celular tocou, preso à minha calça, e olhei de relance para ele. Como não reconheci o número, deixei soar de novo até que o peguei e resmunguei “Boxer” enquanto saía do escritório. Joe riu. – Ahh, cara, sinto muito – lamentei. – Esqueça, loura, é bom ouvir a sua voz, mesmo que você esteja rabugenta. – Tenho bons motivos para estar assim. Coloquei-o rapidamente a par da situação, contando-lhe sobre a morte de Sara Needleman, e que Jacobi estava prendendo Cindy com algemas virtuais de modo que o assassino não desaparecesse. – Alguma pista sobre o executor?
– Muitas e nenhuma. Em breve, vamos começar a atirar dardos na agenda telefônica. Mudando de assunto… quando você vem para casa? Enquanto eu andava em círculos ao redor da mesa de Cappy McNeil, Joe me informou que esperava estar de volta em uma semana mais ou menos e que deveríamos planejar algo divertido, nos vestir com elegância, celebrar o seu regresso. Nós nos mandamos beijos e, então, retornei ao escritório de Jacobi. Sentei-me no aparador barato, bem próximo de Conklin. O calor que emanava de meu parceiro me fez pensar nele e em Joe e me questionar, mais uma vez, por que cada um deles me atraía ao mesmo tempo que afetava meus sentimentos pelo outro. Conklin se inclinou para a frente, quase enando o nariz nos cabelos de Cindy, e lhe falou: – Como você disse, pode ser o mesmo assassino saindo da aposentadoria. Ou pode ser um macaco de imitação. – De qualquer maneira, é um repetidor – rosnou Jacobi. – Não podemos deixálo precavido. Precisamos de toda vantagem porque ainda não chegamos a lugar algum, Cindy, e aposto que, se puder, esse cara vai matar de novo.
capítulo 61
YUKI ESTAVA BEM assustada. Não conseguia se lembrar de um dia em que se sentira tão especial como quando esteve com John “Doc” Chesney. E parecia que, incrivelmente, o sentimento era mútuo. Meu Deus. Por duas vezes, ele a cara olhando até que ela sentiu-se corar e teve que dizer algo, qualquer coisa, pois ficava desconfortável com tanta atenção. Doc a encontrara cedo naquela manhã na praia. Ele vestia jeans e uma parca azul-marinho, uma cor que tornava os olhos dele ainda mais azuis, o cabelo cor de areia ainda mais louro, a totalidade do seu ser deslumbrante o suciente para deixar Brad Pitt com inveja. Advertira a si mesma para não parecer muito boba no primeiro encontro de verdade dos dois, para não deixar que seu olhar a traísse. Lembrou que havia sido uma idiota quando o conhecera e que, ainda assim, ele gostara dela. Yuki conseguira se controlar e ambos tinham passado o dia explorando Crissy Field, um parque muito bonito que se estendia ao longo da costa desde Marina Green até Fort Point, um forte da Guerra Civil sob a Golden Gate. Correra um pouco mais rápido que Doc ao longo do caminho, rira dele por não aguentar, até que ele correu a toda velocidade, passando-a, levantando areia e gritando por cima do ombro: – Ei, garotinha, apenas tente me alcançar. Yuki desabou em um banco desgastado, rindo e ofegando. Doc voltara até ela, também arfando, e deixou-se cair sentado ao seu lado, o cheiro dele invadindo-a, fazendo com que seus joelhos tremessem. – Você gosta de aparecer, sabia? – ralhou. Doc a tou até que ela comentou “Ah, olhe” e apontou para umas cabeças balançando na baía. – Cocos? – Você está de brincadeira, não é? São leões-marinhos. – Você gosta de natureza? – indagou, desamarrando os tênis, sacudindo a areia. – Todo esse céu, essas formas de vida arrepiantes… – Caranguejos e águas-vivas… – Como eu disse, você é uma amante da natureza… – Aaaaah, Doc, isso dói de verdade. – Ela riu. – A propósito, os nova-iorquinos não detêm o monopólio dos arranha-céus. Gosto de cidades tanto quanto você.
– Sério? Prove. Ele abriu um sorriso, mostrando-lhe que toda aquela encenação era apenas isso: uma encenação. De qualquer maneira, Yuki provara, dizendo seus dez arquitetos favoritos, e sete deles também estavam na lista de Doc. Contou-lhe sobre os pontos de referência de São Francisco, considerando a Golden Gate superior à rogs Neck em qualquer dia da semana e opondo a Folsom Street à Quinta Avenida. Depois, perguntou-lhe que oceano podia ver do centro de Manhattan. Ele a apoiou com relação à “questão do oceano” , e caminharam juntos até o Warming Hut. Lá, sentaram-se a uma mesa pequena, com chocolates quentes nas mãos, as bochechas coradas, sorrindo um para o outro como se os seus sentimentos fossem moedas de ouro que os dois encontraram nos bolsos de trás do jeans, sem nunca as terem visto antes. – Sabe, você é deslumbrante – comentou ele. – Sem essa! – Você é, sim. Estendeu a mão e afagou-lhe o cabelo ouriçado. Yuki tocou nas costas da mão dele e repousou a bochecha em sua palma, esperando a bolha da ilusão estourar, o que aconteceu quando o celular começou a tocar “Somebody to Love”. Doc suspirou, retirou a mão quente da bochecha dela, pegou o telefone e o atendeu. – Chesney. Não estou de plantão. Isso não é problema dele? Ok, ok. Posso fazer isso em uma hora. Ele largou o telefone e segurou as mãos de Yuki. – Sinto muito. Vai ser assim até eu subir na hierarquia. – Eu entendo. Andaram juntos de volta até os carros, abraçados, explorando um novo território. Yuki gostava muito da sensação e estava aliviada porque o dia terminara no melhor momento. Sentia-se atraída por Doc e tinha receio. Ele colocou um braço sobre os ombros de Yuki, puxou-a para perto e a beijou, de forma doce e suave, e ela retribuiu com intensidade. Quando se separaram, Yuki deixou escapar: – Não faço sexo há quase dois anos. Ela não conseguiu decifrar a reação de Doc, sua expressão momentânea. Foi como um eclipse. Ele a abraçou, entrou no carro e, com a cabeça fora da janela, avisou: – Eu te ligo.
– Ok – concordou, tão baixo que não daria para ele ouvir em meio ao ruído do motor enquanto se afastava. Por que dissera aquilo para ele?
capítulo 62
CINDY SENTOU-SE A uma mesa privativa de um restaurante chamado Moe’s, apenas a uma quadra da casa de Bagman. O queijo grelhado e o café estavam esfriando e ela fazia anotações para uma reportagem complementar: quantos sem-teto morriam antes dos 40, quantos estavam sob a inuência do álcool ou das drogas quando morreram – 65 por cento. Ela retirava os dados do site do Departamento de Polícia de São Francisco, portanto era uma escrita automática, não criativa, mas isso a distraía das deliciosas dores e pontadas causadas por passar outra noite inteira enroscada em Richard Conklin, dessa vez na casa dele. E aquelas lembranças só faziam com que tivesse vontade de lhe telefonar, marcar outro encontro. Encontrava-se naquele estado mental ofuscante e perigoso quando sentiu um puxão no cabelo. Voltou-se e viu uma mulher observando-a por detrás do banco e chamando-a. Ela lhe parecia familiar, mas Cindy não lembrava quem era. – Desculpe. Eu conheço você? – Eu vi você no From the Heart. – Ok, claro – concordou Cindy, certa de que não vira a jovem no refeitório popular, mas não conseguia ligá-la a qualquer outro lugar. – Quer se juntar a mim? – perguntou, forçando-se a fazer o convite. Talvez aquela mulher de cabelo louro desalinhado fosse a única a saber quem matou Bagman. – Você parece ocupada. – Está tudo bem – falou, fechando o laptop enquanto a outra sentava-se diante dela. Cindy podia ver que a meth começara a deteriorar a mulher: pele acinzentada, pupilas enormes, agitação elevada. – Eu sou Sammy. – Oi, Sammy. – Li a sua última reportagem. Você escreveu que Bagman era um sujeito chamado Rodney Booker. Que ele foi para a Universidade de Stanford. – Sim, foi. – Também fui para Stanford. – Você caiu fora, suponho. – A faculdade não pode competir.
– Com o quê? – Com a vida. Cindy encarou a jovem. Estava se lembrando dos cuidados a se tomar: não falar depressa demais, não fazer movimentos bruscos, não parecer ameaçadora de jeito nenhum. Enquanto o viciado em metanfetamina estivesse falando, Cindy estaria segura. O silêncio poderia significar paranoia – e perigo. Tentou não olhar para o garfo e a faca em cima da mesa. – Sabe quem matou Bagman, Sammy? – perguntou em voz baixa. – Sabe que estamos oferecendo uma recompensa de 25 mil dólares? – Quanto vale a sua vida? – questionou a mulher, seu olhar percorrendo todo o restaurante e, depois, xando-se em Cindy. – Venderia a sua vida por um dinheiro que nunca chegará a gastar? É isso que quero lhe dizer. Você está perdendo o seu tempo. Ninguém vai lhe contar quem são as pessoas que mataram Bagman Jesus. Ninguém se atreveria.
capítulo 63
EU ESTAVA NA viatura com Conklin, indo em direção a uma espelunca em Mission, onde se dizia que o nosso novo e único suspeito trabalhava das três da tarde até meia-noite. O nome de Henry Wallis chegou até nós por meio de uma denúncia anônima. O que a diferenciou das centenas que congestionaram nossas linhas telefônicas foi que Wallis constava da nossa pequena lista. Ele era barman, trabalhara nas festas dos Baileys e namorara Sara – até ser chutado por ela. O informante contou que o vira passando diversas vezes em frente à casa dela, em sua lata-velha, na noite anterior à morte da estilista. A cha de Wallis listava algumas prisões. Ele havia sido condenado por violência doméstica e agressão, além de acusado de tentativa de homicídio. Junto com outros valentões bêbados, espancara um cliente em um beco atrás do bar e quase o matara. As testemunhas tinham histórias divergentes. As provas eram escassas. Wallis não foi considerado culpado. Caso encerrado. Ele era branco, com quase 1,80 metro, 75 quilos e, o mais importante, 46 anos. Isso signicava que era velho o bastante para ter lido sobre os assassinatos da alta sociedade nos anos 1980. Era velho o bastante para tê-los cometido. Eu e Conklin nos perguntávamos se ele possuía as chaves das residências dos Baileys e de Sara. Bem provável. A foto que tínhamos era de quatro anos atrás, mas Wallis estava com uma aparência atraente, mesmo com o flash de alto contraste da Polaroid. Seus braços eram musculosos e havia tatuagens de prisão nos nós dos dedos. Contudo, o que nos fez ir àquele bar foi a tatuagem em seu ombro esquerdo: uma cobra serpenteando pelas órbitas vazias de uma caveira. Conklin dirigia em silêncio, e eu entendia o porquê. Nós dois imaginávamos as possíveis consequências da visita ao Torchlight Bar and Grill: o que faríamos se Wallis sacasse uma arma, se ele corresse, como iríamos controlar o que quer que acontecesse sem causar danos colaterais. Estacionamos na Rua 15, entre a Valencia e a Guerrero, em frente à construção branca com ripas de madeira rodeada por livrarias e cafés. Desabotoei minha jaqueta, coloquei a mão sobre a coronha da pistola. Conklin fez o mesmo. E entramos no ambiente sombrio do bar. Havia uma TV na parte superior, sintonizada em um compacto do jogo de beisebol do dia anterior – os
Athletics apanhavam. O barman era careca, tinha cerca de 1,90 metro e pesava mais de 80 quilos. Estava escuro – apenas uma luz fraca vinda de letreiros de néon –, porém, mesmo a 10 metros de distância, eu podia ver que aquele homem enxugando canecas de cerveja com um pano sujo não era Henry Wallis. Fiquei na soleira da porta enquanto Conklin foi até o barman, mostrou o distintivo e falou calmamente em meio ao ruído alto da televisão. O olhar do homem se xou em mim e depois voltou para o meu parceiro. Ele apontou para uma pessoa no balcão, bebericando uma cerveja e assistindo ao jogo, alheio à nossa chegada. Conklin sinalizou para mim e nos aproximamos de Henry Wallis. Não sei se ele tinha olhos na nuca ou se o sujeito ao lado nos vira ou cutucara. O fato é que, do nada, Wallis virou a cabeça, notou que eu estendi a mão para minha arma e foi em direção à saída dos fundos. – Parado! Wallis, fique onde está – gritou Conklin. O homem passou pela cozinha e continuou correndo até chegar à porta dos fundos, que bateu atrás dele. Quando a alcançamos, Wallis estava dentro de seu Camaro preto enferrujado, saindo em disparada pela Albion Street.
capítulo 64
ENTREI EM CONTATO com a Central e solicitei reforço enquanto Conklin dirigia em alta velocidade pela rua deserta. A voz sensata de Jackie Kam soou no rádio, emitiu o código 33 – para que uma faixa de ondas casse livre para nós – e alertou todas as viaturas na área que estávamos perseguindo um Camaro preto subindo a Rua 16 em direção à Market Street. As circunstâncias não eram boas. Era horário de saída escolar, o pior momento para uma perseguição, perigoso para mim e Conklin, potencialmente letal para os demais motoristas e os pedestres. Acionei a sirene e as luzes. Wallis tinha pelo menos trinta segundos de dianteira, e como se afastava a mais de 100 quilômetros por hora, estava claro que não ia reduzir por nada. – Não consigo ler a placa – informei à Central. Estávamos já bem próximos quando ouvimos o ruído áspero de metal contra metal e buzinadas frenéticas e, em seguida, vimos um furgão de tortilhas tombando. O carro de Wallis deu marcha a ré e partiu a toda, contornando o veículo caído, ziguezagueando e raspando em uma caminhonete estacionada. Depois, acelerou ainda mais, cantando pneu. Avisei à Central sobre a colisão na Market Street e solicitei uma ambulância com urgência. Quando passamos em disparada pelo furgão, o motorista cambaleava pela rua com sangue na testa, acenando para nós. Não podíamos parar. Xinguei o lho da puta do Wallis enquanto Conklin dirigia rápido até o cruzamento da Market com a Castro. Agora, eu tinha o número da placa e a passei para a Central: – Foxtrot Charlie Nove Três Um Echo avançando em direção à Portola. Portola é uma inclinação sinuosa e voávamos por aquelas curvas a mais de 80 quilômetros por hora, o Camaro se afastando cada vez mais à nossa frente. Os veículos subiam na calçada e as bicicletas cavam grudadas nas laterais dos edifícios. Os reforços deviam estar a caminho, mas, no momento, estávamos sozinhos seguindo Wallis. – Central! Alguma vítima?
– Apenas um ferido caminhando, sargento. Qual é a sua localização? Informei a Jackie que estávamos no Twin Peaks Boulevard, o topo de uma pequena montanha no centro da cidade. Eu já havia agrado adolescentes transando naquele local, sob a nossa principal torre de rádio. No entanto, agora eu segurava com rmeza no painel do carro enquanto Conklin gritava “Canalha!” e acelerava na estrada traiçoeira, ladeada com grades de proteção de pouco mais de meio metro de altura, amassadas onde motoristas atrevidos tinham extravasado a sua raiva. Estávamos nos aproximando de Wallis quando ele começou a descer, em alta velocidade, em direção à Clayton, uma ladeira tortuosa e íngreme que me embrulhou o estômago. Apertei o microfone com tanta força que deixei marcas de unhas no plástico. Voltei a dar nossa localização para a Central: seguíamos para Upper Haight, uma área residencial com elegantes ruas arborizadas e casas em estilo Tudor e vitoriano, habitada por famílias jovens. Uma criança, uma mulher e um cachorro apareceram do nada à nossa frente. Gritei “Nãããoo!” e Conklin buzinou e freou, subindo na calçada, a sirene soando estridente quando voltamos para a rua com um baque. – Está tudo sob controle – resmungou Conklin. De quem ele zombava? Olhei para trás e não vi corpos na rua, porém o meu coração ainda estava na boca. Será que íamos sobreviver àquela viagem? Mataríamos pessoas? – Para onde esse babaca está nos levando? – perguntei para o nada. – Para o inferno. Está nos levando para o inferno – respondeu Conklin. Será que ele estava certo? Acho que sim. De alguma forma, por instinto, ele sabia para onde Henry Wallis dirigia. Depois de um tempo, entendi tudo.
capítulo 65
AGARREI-ME AO PAINEL e olhei para fora enquanto as ruas passavam em velocidade e desviávamos de pedestres, perguntando-nos se Henry Wallis era de fato o assassino. Será que ele matara três pessoas na semana passada? Será que matara sete pessoas no total? Quantos mais mataria antes que o detivéssemos? – Segure-se, Linds – avisou Conklin, girando bruscamente o volante. Demos um berro estridente ao entrarmos na Haight Street, onde era quase certo atingirmos punks, velhos hippies ou idosos entrando e saindo dos seus carros. – A Haight termina na Stanyan! – gritei. Seguimos o idiota no Camaro acelerando 30 metros à frente, faíscas saindo do para-choque traseiro, que se soltara no canto direito e era arrastado pela rua. Wallis continuava em vantagem porque não se importava em não bater e se recusava a ser encurralado. Dobrou à direita na Stanyan, dirigiu quase um quarteirão antes de fazer uma curva proibida à esquerda, atravessando duas pistas, para entrar no Golden Gate Park. O imponente Conservatório das Flores, uma estufa gigantesca do século XIX, surgiu à nossa direita. Imaginei Wallis rodopiando e uma cena digna dos lmes de James Bond em que a estufa se estilhaçava em milhões de cacos. Porém, ele derrapou e evitou uma colisão. – Rich, cuidado! – gritei. Seguimos o Camaro em meio a uma cacofonia de buzinas e pneus cantando, a perseguição desenfreada nos levando à frente porque não tínhamos escolha. Nos minutos frenéticos em que havíamos perseguido o Camaro, eu não vira outro carro de polícia, com identicação ou não. Dava para ouvir as sirenes a distância, mas estávamos sozinhos, acelerando ao máximo nosso Crown Vic, vendo a lata-velha de Wallis, a uma meia quadra à frente, tomar a pista do parque em direção à Ocean Beach. Fomos nos aproximando à medida que o terreno se transformava em um íngreme declive. Pessoas correndo com cachorros pulavam, saindo do caminho. Meu Deus, eu queria cobrir os olhos, mas não podia. Ao redor do laguinho à nossa direita, havia idosos e várias crianças brincavam com seus navios de controle remoto. Os dois carros passaram a toda por campos de futebol com times de alunos do ensino médio boquiabertos.
Começamos a subir de novo, agora pela estrada rumo a Sutro Heights, quase ao m do terreno, quando Wallis deu uma guinada para fora do parque e entrou na Point Lobos Avenue, que tinha quatro pistas de alta velocidade. Enquanto eu gritava a nossa localização ao rádio, ele virou à esquerda sobre o canteiro central, disparando como um foguete rumo a Cliff House, um restaurante famoso que cava no extremo ocidental do continente sobre um penhasco rochoso que dá para o Pacífico. Eu podia avistar Wallis agora: ele ia executar uma fuga dramática ao estilo do filme elma & Louise, mas seria um voo solo. Assim que o Camaro bateu contra a grade de proteção e saiu da estrada, vi o inacreditável: a porta do carona se abriu e ele saltou. Só que ele pulou no momento errado. Enquanto o Camaro seguiu em frente, despencando em direção à água cinzenta abaixo, Wallis mergulhou ao lado, e ambos caíram em câmera lenta, como em um sonho. Conklin freou e espiamos sobre o promontório a tempo de ver o Camaro explodir em chamas. – Lá – falei. – Ele está lá! O corpo se encontrava a uns 15 metros abaixo de nós, uma confusão de carne ensanguentada. Era impossível descer: um paredão de 90 graus que ia dar em pedras molhadas e pontudas. Conklin estendeu uma das mãos para mim e eu a segurei firme, hipnotizada pelo fogo crepitando. Ouvi atrás a voz de Jackie Kam chamando pelo rádio do carro: “Sargento Boxer, qual é a sua localização? Lindsay? Lindsay, por favor, me responda.” Conklin soltou a minha mão e se inclinou na beirada do penhasco, com o rosto contra o vento. – Divertiu-se, babaca? Conseguiu o que queria? – gritou para o cadáver. Usei o celular para contatar a Central, mas as viaturas já chegavam freando e cantando pneu por toda a Point Lobos. Jacobi pulou de uma delas antes de ela parar. – Vocês estão bem? Vocês estão bem? – berrou, correndo em nossa direção. Eu estava tão abalada que não conseguia falar. – Fique calma, Boxer – pediu Jacobi, colocando as mãos em meus ombros. Meu grande amigo. – Tente respirar. Lágrimas escorreram pelo meu rosto, mas não eram de tristeza. Era outra coisa – surpresa e alívio por estar viva. Respirei em meio ao ar esfumaçado. – Não entendo, Warren – falei. – Wallis saltou do carro! Ele estava tentando escapar? Ou queria morrer?
– Não importa – comentou Conklin ao meu lado. Assenti. Não importa. Henry Wallis, o homem com a tatuagem de cobra e caveira em um dos ombros, estava morto.
capítulo 66
EU E CONKLIN fomos jantar com Jacobi no restaurante LuLu, o lugar ideal para degustar a culinária da Provença com um toque caseiro, saborosos pratos e pizzas feitas no forno a lenha. O salão estava lotado, com o burburinho das conversas. E o nosso garçom de fato conhecia a carta de vinhos, por muito tempo considerada uma das melhores da cidade. Eu sabia por que Jacobi comemorava. Seu superior e o prefeito tinham lhe parabenizado. Os apresentadores de telejornais não paravam de falar no caso: as tomadas de helicóptero e as notícias de que a vida era segura de novo para os ricos e famosos. Eu não conseguia suportar aquilo e tive que dizer: – Warren, todo mundo está louco? Você sente-se confortável dizendo que Henry Wallis matou os milionários? – Não pode deixar algo bom acontecer na sua vida, Boxer? Não pode apenas ficar feliz por uma hora? – Acho que não – respondi, olhando-o de cara feia. – O que há de errado comigo? Ou será que apenas sou inteligente demais? Conklin me cutucou por baixo da mesa com um dos joelhos, e eu não sabia que diabo havia de errado com ele também. Um homem morrera. Quase o seguimos despenhadeiro abaixo. Tivemos sorte de não estarmos agora olhando para Claire de sua mesa no necrotério. Ou de não estarmos assistindo a uma matéria na TV sobre crianças mortas, os pais chorosos ameaçando mover um processo contra o Estado por outra perseguição fatal em alta velocidade, o apresentador, com expressão de tristeza, informando: “O ofício fúnebre para as criancinhas da família Beckwith terá lugar na igreja das Irmãs do Sagrado Coração, no domingo.” O garçom serviu o vinho e Jacobi o provou, considerando-o excelente. Brindou a mim e Conklin e, sobrepondo-se ao ruído dos comensais endinheirados conversando alegres ao nosso redor, agradeceu: – Um muito obrigado do chefe, do prefeito e, principalmente, de mim. Adoro vocês. Jacobi sorriu, algo que eu só o vira fazer talvez duas vezes nos últimos dez anos, e ele e Conklin se empanturraram de mexilhões assados na panela e pato grelhado. Eu não estava com fome. Os músculos do meu rosto haviam enrijecido, mas
minha mente dava voltas. Será que Henry Wallis era, de fato, o assassino da alta sociedade? Ou apenas algum perdedor, um ex-presidiário com algo a esconder que se apavorara e dera cabo da própria vida? Será que só eu me importava com isso?
capítulo 67
CONTRA O BOM senso, fui atrás de uma assistente da promotoria em seu escritório às nove horas daquela noite, a incansável Kathy Valoy. Ela entrou em contato com um juiz e conseguiu um mandado de busca para o apartamento de Henry Wallis. À meia-noite, eu e Conklin estávamos lá. Wallis havia morado em um prédio de três andares sem elevador na Dolores Street, a poucos quarteirões do Torchlight Bar. Tocamos a campainha até acordar o proprietário do edifício, um homem atarracado chamado Maury Silver. Ele tinha princípio de calvície, dentadura folgada e mau hálito e estava com uma camisa manchada sobre a cueca sambacanção. Silver olhou para o mandado pela porta rachada, leu todas as páginas, frente e verso, e então nos deixou entrar. – O que aconteceu a Henry? – perguntou. – Ah, não. Foi ele que caiu do penhasco com o carro? Henry é um assassino? O apartamento de Wallis cava no térreo, nos fundos. Acendemos as luzes, fechamos a porta na cara do Sr. Silver e reviramos o local. Não levou tanto tempo. Como diversos ex-presidiários, a mobília era mínima e os poucos pertences se encontravam bem-cuidados. Conklin vasculhou o quarto e o banheiro enquanto eu procurava na pequena sala de estar e na cozinha. De tempos em tempos, um chamava pelo outro, em voz alta: quando Conklin achou tijolos de maconha envoltos em plástico na caixa de areia para gatos, e quando deparei com um livro sobre tatuagens, os cantos das folhas dobrados nas páginas retratando cobras. Foi só isso. Nada de recortes de jornais antigos ou novos, santuários dedicados a si mesmo, “troféus” dos ricaços. E o mais importante: nada de cobras. Nada de estatuetas, artefatos ou livros relacionados a cobras. – Não há outros répteis exceto estes – informei, mostrando-lhe o livro. – Dê uma olhada nisto. Segui-o até o quarto e vi o que ele descobrira: uma gaveta cheia de roupa íntima feminina, tamanho EG. – Ou Henry Wallis tinha uma namorada grande… e não vi fotos, cosméticos, nada que pudesse indicar isso… – comentou Conklin – ou ele era um travesti. – Um tracante de drogas travesti. Parabéns para Sara Needleman por se livrar
dele. Vamos trancar este apartamento. – Moro a poucos quarteirões daqui – falou meu parceiro enquanto passávamos o cadeado na porta. – Venha tomar um drinque. Conversar sobre tudo isso. – Obrigada, Rich, mas hoje foi o dia mais longo da minha vida. Preciso ir para casa. Ficar nua. Ir para a cama. – Ok, vou fazer o mesmo, sargento. Rimos enquanto eu caminhava até o meu carro, sentindo-me um pouco boba, pensando que talvez Freud estivesse rindo de verdade. – Tudo bem – concordei, segurando na porta, tomando bastante cuidado ao pisar no estribo do automóvel. – Um drinque apenas.
capítulo 68
A DIFERENÇA ENTRE o apartamento de Conklin e a espelunca de Henry Wallis era abissal. Meu parceiro morava em um quarteirão semelhante, ambas as ruas ladeadas por casas comuns, de dois e três andares, da década de 1950, feitas com materiais baratos e simples. No entanto, uma vez dentro, a residência parecia confortável e aconchegante. A sala de estar era acolhedora, com boa iluminação, sofás acolchoados em torno de uma lareira e um item que todo solteiro deve ter: uma TV de plasma de 52 polegadas. Rich se abaixou perto do sistema de som e deu uma olhada nos CDs. – Van Morrison está bom para você? – perguntou. Respondi “Claro” e olhei as fotos na parede, ampliações em preto e branco de veleiros na baía, as velas enfunadas pelo vento de verão, a luz cintilando nas ondas, três tomadas diferentes, todas de arrancar o fôlego. – Você que tira essas fotos, Rich? – Ahã. – São maravilhosas. Van Morrison entoava “Brown Eyed Girl” , uma melodia que me fez querer cantar junto. Sorri quando Rich me entregou uma taça de vinho e observei-o sentar-se na outra ponta do sofá, colocar os pés em uma tampa de escotilha polida que ele transformara em mesinha de centro. Beberiquei o Chardonnay gelado, arranquei os sapatos e me sentei na outra extremidade do sofá enorme. A tensão deixava o meu corpo à medida que o vinho deslizava pela garganta, seco e agradável. – Veja bem, o que estou pensando é: como isso pode ter acabado? Ele assentiu, encorajando-me a prosseguir. – Um homem está morto. Vai haver algum efeito colateral adverso de que Tracchio e Jacobi não vão gostar. Wallis deve ter uma família em algum lugar. Vão chover perguntas, e nós dois sabemos, Rich, que ele não fez isso. Apenas contribuímos para a morte de uma pista falsa. Conklin riu. – Você retrata um cenário maravilhoso. – E você tem uma ótima risada, Rich. Adoro ouvi-lo rir. Ficamos nos olhando sem piscar até que rompi a conexão. O único relógio na sala era o do DVD, e eu estava muito longe para ler os
dígitos, mas sabia que já era tarde. Devia ser algo por volta de duas da madrugada. Sentia-me excitada, começava a pensar em ver o restante do apartamento. E talvez o restante de Rich. Minha mente e meu corpo estavam superaquecidos, e não acho que ele pretendesse me refrescar quando foi à cozinha buscar a garrafa gelada. Enquanto ele se encontrava lá, abri um botão da blusa. E depois outro. Quando me mexi no sofá, senti algo duro e aado entre as almofadas. Peguei o objeto, puxei-o e vi que era um prendedor de cabelo de strass. Fiquei chocada. Ele só poderia ter ido parar naquele sofá se Cindy e Rich tivessem se agarrado ali. Coloquei o prendedor sobre a mesinha de centro e encarei Rich quando ele retornou com a garrafa. Viu o objeto e a minha expressão. Abriu a boca para dizer algo, mas nada saiu. Desviei o olhar, certifiquei-me de que não percebesse a minha dor. Murmurei que era tarde e o veria pela manhã e agradeci pelo vinho. Saí com os cadarços dos sapatos não totalmente amarrados e o coração partido. Peguei meu carro e conversei comigo mesma enquanto dirigia para casa. – O que foi, está com ciúmes? – gritei. – Porque estar com ciúmes é estupidez! Atenção, neurônios: Rich e Lindsay? Isso é um verdadeiro absurdo!
capítulo 69
QUANDO A GAROTA de Estimação chegou à residência de Molly Caldwell-Davis em Twin Peaks, que tinha uma vista surpreendente da cidade, a festa já vinha acontecendo havia horas. Apertou a campainha, bateu a aldrava até “Tyco” abrir a porta, e a música dos Scissor Sisters ressoou na noite. Tyco vestia suas roupas de festa: um boá de plumas ao redor dos ombros esguios, argolas nos mamilos e uma tanga preta de cetim. Entregou-lhe uma taça de champanhe, beijou-a nos lábios e disse “Oi, gostosa” em tom de brincadeira, fazendo-a rir. A Garota passou por Tyco e entrou no salão principal, vendo o cenário estonteante: mesas e sofás tão altos quanto os do País das Maravilhas, paredes pintadas de preto, tapeçaria com estampa de leopardo, corpos entrelaçados sobre os travesseiros no chão. O local todo parecia mais um bordel do que o lar de uma menina que trabalhava em uma casa de chá e tinha um fundo duciário de oito dígitos. Ela encontrou Molly, bronzeada e com o corpo torneado pela ioga, em um sofá rebaixado, encurvada sobre uma mesa espelhada, aspirando carreiras de pó por meio de um canudo de prata. Esparramado a seu lado, balançando fora do ritmo da música, estava Brian Caine, o lendário bilionário de software, de 50 anos. – Olhe. Quem. Está. Aqui – disse Caine, encarando a Garota de forma tão vulgar que ela quis arrancar os olhos dele. – Molly – falou a Garota, segurando uma garrafa de 68 dólares de Moët & Chandon –, esta aqui está gelada. – Coloque-a em qualquer lugar – mandou. Deu as costas para a Garota quando Tyco trouxe várias fotos tiradas com a Polaroid. Molly gritava de alegria enquanto manuseava, sem jeito, as imagens dos convidados transando no quarto dela. Com a mesma rapidez que Molly parou de dar atenção para a Garota, ela agora se voltou para a empregada. – Não está sentindo esse cheiro? – perguntou-lhe. – Alguma coisa está queimando. Por que está aí, parada? A Garota abrandou a própria expressão. Foi à cozinha, retirou do forno a assadeira com os miniquiches de cogumelo e jogou na tigela do cachorro o conteúdo de uma bandeja de bife japonês sobre torradas – mais de 600 dólares o quilo. Em seguida, retornou à festa, pisando duro. Chamou Molly, por m conseguindo atrair seu olhar desfocado sob a testa
pálida e cheia de botox. – Dei comida para Mischa – informou a Garota. – Vai se lembrar de levá-lo para passear? – Tyco fará isso. – Tudo bem, então. Tchau, docinhos. – Mas você acabou de chegar. – Brian Caine fez beicinho. A frente do pijama de seda preta se abrira, revelando o peito peludo nojento. – Fique. Quero conhecê-la melhor. – Sim, logo após eu descobrir como impedir a ânsia de vômito – retrucou ela. Virou-se sobre as sapatilhas douradas, compradas para a ocasião, e seguiu adiante por entre a multidão indiferente. Voltou para pegar a garrafa de champanhe que comprara e foi embora rapidamente.
capítulo 70
ERA QUASE MEIA-NOITE quando a Garota saiu do táxi e caminhou quatro quarteirões sob as estrelas, o ar quente e úmido vindo do oceano à medida que ela se aproximava das construções precárias na região mais afastada de Presidio. Abriu a porta da frente, pendurou a mochila em um gancho no corredor e foi para a cozinha. Usou uma chave para destrancar a pequena porta de correr, deslizando-a para a fenda na parede. Entrou no cômodo comprido e estreito, que havia sido uma despensa e agora era seu mundo particular. Acionou o interruptor, jogando luz sobre meia dúzia de aquários empilhados em prateleiras na parede dos fundos. Sentiu suas belezuras desenrolando os corpos lustrosos antes mesmo de vê-las se arrastarem em silêncio sobre cascas e folhas – alertas, famintas, ansiosas para se alimentarem. A Garota abriu um armário e retirou suas ferramentas: a pinça com cabo de pistola e as botas com pontas de aço, além das luvas de soldador, feitas de camurça e forradas com Kevlar, que eram espessas, estendendo-se até o cotovelo. Quando estava pronta, aproximou-se da jaula de Vasuki, admirou-lhe o corpo forte e musculoso, a inteligência no olhar, quase como se pudesse se comunicar por telepatia com sua krait favorita. Deslocou a pesada tampa e pegou a cobra com a pinça. – Você pode se alimentar quando voltarmos para casa, querida. Com cuidado, soltou-a dentro de uma fronha, colocou tudo em uma caixa para transportar animais e trancou-a. Retirou uma das cobras garter lhotes de um tanque de criação e a pôs na jaula de Vasuki. Assim, a recompensa de seu animal predileto estaria à espera quando retornassem. Dando uma última olhada ao redor para se certificar de que tudo estava bem, saiu do cômodo e trancou a porta. Colocou a mão por dentro da blusa e tirou o medalhão antigo, pendurado em uma corrente de ouro maciço. Havia sido um presente do pai, e a foto dele estava lá dentro. Levou o objeto aos lábios e beijou-o. – Amo você, papai – disse e apagou as luzes.
capítulo 71
O CENÁRIO NA CASA de Molly se dissolvera depois que a Garota estivera lá havia duas horas. Dezenas de velas derretiam nos respectivos suportes, as bandejas de comidas se encontravam vazias, e os convidados roncavam e se contorciam no chão, mas, definitivamente, estavam em outra dimensão. Havia um som vindo da cozinha, de metal raspando o chão. A Garota estacou e abaixou-se atrás de um sofá, preparada para ngir que estivera ali o tempo todo. No entanto, quando um corpo bateu nela no escuro, ela quase gritou. – Mischa! Shhh. – Acariciou a cabeça sedosa do springer spaniel, desejando que os batimentos cardíacos desacalerassem. – Tyco levou você para passear? – sussurrou, soltando a guia da coleira. O cachorro abanou o rabo, agachou-se e urinou no tapete, abaixando depois a cabeça, à espera de uma reprimenda, mas não recebeu nenhuma. A Garota mandou Mischa car ali e subiu rapidamente a escada que levava ao segundo andar. O quarto de Molly cava no m do corredor; não havia luz alguma brilhando por baixo da porta fechada. Ela girou a maçaneta de latão. E se alguém acordasse? O que faria, então? Entrou no quarto e fechou a porta. Permaneceu em silêncio nas sombras, a pulsação latejando nos ouvidos, os sentidos aguçados por causa do perigo – uma emoção incomparável. A cama se encontrava à frente, entre duas janelas, tomada por um emaranhado de corpos nus. O lençol tinha alguma espécie de estampa animal e estava torcido quase como uma corda, envolvendo-os. A Garota tentou determinar quais partes do corpo pertenciam a cada pessoa e, quando sentiu-se pronta, puxou as luvas para carem bem presas e tirou Vasuki da caixa. A cobra, alerta ao novo ambiente, se tensionou, e a dona sentiu o poder letal. Como todas as kraits, essa era agressiva à noite. E não comia havia três dias. A cabeça de Vasuki ondulou de um lado para o outro quando a Garota a segurou acima da cama. O animal sibilou – e, de repente, se enrolou nas mãos da dona. Em um piscar de olhos, escapou de suas garras, caiu nos lençóis e deslizou por entre as dobras da roupa de cama. Logo ficou camuflada. Invisível por completo.
A Garota arfava como se sentisse dor. Vasuki tinha ido embora. O plano fugira ao controle. Por um louco momento, se imaginou acendendo as luzes para procurá-la e inventando uma história se alguém acordasse – só que Molly não acreditaria em nada que a Garota dissesse. Não daria certo. Aborrecida pelo que deixara acontecer e horrorizada com o que ocorreria a Vasuki se fosse encontrada, a Garota deu uma última olhada em vão sobre a cama banhada pelo luar. Nada se movia. Arrumou a caixa de transporte e deixou o quarto, fechando a porta para que, pelo menos, Mischa fosse poupado. Já fora da casa, começando a longa descida pelo Twin Peaks Boulevard, garantiu a si mesma que tudo caria bem. Por mais terrível que fosse perder a cobra, não havia nenhuma identificação nela. Ninguém jamais poderia associar Vasuki a ela.
capítulo 72
MOLLY CALDWELL-DAVIS ME olhava como se lutasse contra uma amnésia profunda enquanto eu e Conklin a interrogávamos na sala de café da manhã. Seus olhos estavam vermelhos, e ela resmungava microfrases entre longos momentos de silêncio absoluto enquanto se esforçava para se lembrar da noite anterior. – Molly, vá devagar – pediu Conklin. – Basta começar do início e nos contar sobre a festa da noite passada, ok? – Eu quero. Meu advogado. No andar superior, passos martelavam o chão. As ambulâncias já tinham ido embora, mas o quarto de Molly fervilhava de peritos. No corredor lá em cima, Claire e dois de seus assistentes esperavam que eles saíssem para poderem começar o trabalho. – Lindsay, pode subir? – chamou minha amiga. – Você tem que ver isso. – Você precisa mesmo de um advogado, Molly? – perguntou Conklin. – Você não é suspeita de nada. Só queremos compreender o que aconteceu aqui, entende? Porque algo aconteceu. Molly tava algum ponto atrás do meu parceiro quando me levantei e subi a escada. Vestido elegantemente, Charlie Clapper me cumprimentou no corredor, afável e com sua ironia fina. – É uma reprise, Lindsay. Muitas impressões digitais, nenhuma arma e não há sangue, bilhete de suicídio nem sinais de luta. Coletamos seis frascos de remédios prescritos e drogas, porém não acredito que tenha sido overdose. Isto aqui foi Sodoma ou Gomorra, e Deus os puniu. – Não sabia que você era tão ligado ao Antigo Testamento – comentei enquanto espiava ao redor de Clapper, embasbacada com a cena na cama atrás dele. – Puxei à minha mãe. Eu teria dado uma risada, mas a visão do quarto me impactara. Murmurei “Mantenha-me informada” e passei por Clapper, entrando na suíte de Molly, onde dois homens nus jaziam mortos. O garoto se encontrava no chão, a cabeça para um lado, e parecia ser adolescente. O cabelo louro platinado era espetado e os olhos verdes ainda estavam abertos. Dava a impressão de que engatinhava rumo à porta quando sucumbira. O homem mais velho estava na cama em posição semifetal, a barriga caída sobre
o órgão sexual, os olhos também abertos. Não morrera dormindo. Eram indícios da morte por picada de krait. O sistema nervoso central parava de funcionar, provocando paralisia neuromuscular. As vítimas não conseguiram mais respirar. – Quando eles morreram? – Ainda estão quentes, Lindsay. Adoraria falar um tempo menor, mas as mortes aconteceram de seis a doze horas atrás. Molly disse algo útil? – Não. Apenas as quatro palavras perigosas: “Eu quero meu advogado.” Claire suspirou. – Antes de parar de falar, Molly me contou que o garoto morto era seu criado, Jordan Priestly. Ela o chamava de “Tyco”. – Tyco? Como a fabricante de brinquedos? Ah, entendi. Ele era um brinquedinho. – Mas consegui identificar sozinho o outro: é Brian Caine. – Putz. – Pois é, aquele Brian Caine. É melhor Tony Tracchio se preparar, porque as Indústrias Caine vão ficar em cima dele. Claire instruiu os assistentes a pegarem um lençol e enrolar com ele o corpo de Caine para preservar qualquer vestígio antes de colocá-lo no saco. – Você e Conklin podem me encontrar no necrotério quando terminarem aqui. Vou dedicar o meu tempo a esses cavalheiros, examiná-los melhor do que suas mães quando eles nasceram.
capítulo 73
DESCI DE VOLTA à sala de café da manhã e vi que Christine Rogers se juntara a Molly e Conklin. Rogers era uma celebridade por mérito próprio, a advogada dos ricaços. Era elegante e bonita, uma loura de olhos cinzentos que parecia jovem demais para ser sócia sênior de uma importante rma de advocacia que levava o seu nome. Provavelmente a Srta. Rogers cobrava mil dólares a hora. Fiquei me perguntando por que Molly precisava de um canhão quando até mesmo um estilingue era um exagero. Não a tínhamos como suspeita. Estávamos errados? As perguntas assaltavam minha mente: Será que ela conhecia os Baileys? E Sara Needleman? Onde ela estava quando eles foram mortos? Será que ela possuía alguma conexão com as vítimas dos assassinatos com cobras no início dos anos 1980? Será que essa mulher rica meio doida era furtiva, inteligente e com motivos suficientes para ser uma serial killer? Se sim, o que a possuíra para que ela fosse levada a matar pessoas em sua própria cama? O rosto de Christine Rogers demonstrava abatimento, mas o cabelo brilhava, a blusa estava engomada e o terninho risca de giz Armani custava o meu salário. Ela podia ter a agenda louca de um sócio sênior, mas a advocacia era o seu negócio. – A Srta. Caldwell-Davis quer cooperar – avisou. – Quando ela foi para a cama por volta de uma e meia da madrugada, Brian Caine e Jordan Priestly estavam vivos. Ao acordar um pouco depois das dez, os dois se encontravam mortos. Encarei Rogers e disse: – Se ela recuperar a consciência, talvez possa nos dar alguma pista. – Independentemente do que aconteceu, minha cliente estava dormindo e, por milagre, foi poupada. Quero que a polícia, a imprensa, todos, até Deus, saibam que Molly não teve nada a ver com as mortes de seus grandes amigos. Ela se sente mal por ambos estarem mortos. E não tem nada a esconder. – Maravilha – exclamou Conklin. – Então, Molly, essa é a estaca zero. Precisamos de uma lista de todo mundo que esteve aqui na noite passada, incluindo o pessoal do bufê e da entrega de produtos e o passeador de cães. Molly tou-o com grandes olhos avermelhados. Havia saliva seca nos cantos da boca.
– Tyco levou o cachorro para passear. Cozinhei para a festa e Brian foi o barman. Sinceramente, eu não conhecia metade das pessoas que apareceram. Elas trouxeram conhecidos, que trouxeram mais gente. – Vamos começar com as que você conhece – sugeriu Conklin.
capítulo 74
ERA FIM DE tarde quando eu e Conklin entramos na sala de autópsia e vimos o corpo de Tyco. Os olhos estavam fechados e uma série de argolas dos mamilos e piercings cintilava em uma tigela de aço inoxidável sob as luzes. – Quase desisti – comentou Claire. – Mas olhem aqui. Ergueu o braço esquerdo do garoto, entregou-me a lupa para que eu pudesse ver o que ela chamava de “dois furos minúsculos definidos”. Ao meu lado, Bunny Ellis, a assistente número um de Claire, abriu o zíper do saco que continha os restos de Brian Caine. Eu me virei – e, por um momento horripilante, pensei que ele ainda estava vivo. O lençol que envolvia Caine se mexeu, mas não era ele que se mexia. Era algo esguio e listrado, quase imperceptível devido à estampa do pano. – Cobra! É a cobra! – gritei. O animal deslizou para fora do saco com desenvoltura e por uma das pernas da maca até o chão, a cabeça achatada em modo de ataque, serpenteando pelo ladrilho de cerâmica cinza em direção a Claire. – Não se mexa! – berrou Conklin. A pistola já estava em sua mão e ele atirou seis vezes em direção ao alvo que se movia em velocidade. As balas retiniam nos ladrilhos, os tiros ecoavam na sala. E ele não acertou nenhum. Minhas mãos estavam sobre os ouvidos, os olhos, bem abertos. Fitei a cobra se aproximando, agora a menos de um metro das pontas das botinhas de Claire. Vi o terror em seu rosto. Caso ela se movesse, iria atrair o animal, mas não havia escolha. Claire correu para a escada de mão que usava para tirar fotos de cima dos corpos. Saí para o corredor. Quebrei o vidro da caixa de incêndio com a coronha da pistola, tirei os cacos, peguei o machado e corri de volta para a sala. Conklin estava mirando de novo. Claire se encontrava no degrau mais alto da escada e os assistentes gritavam, quase subindo pelas paredes. Enfiei o machado na cobra, dividindo-a exatamente ao meio. Mas as partes continuaram a se mover. – Está morta, certo? – gritei, a voz estridente, o suor escorrendo por dentro da camisa. – Não pode fazer nada, pode? De súbito, minha mente foi tomada por imagens de tubarões em conveses, dados como mortos, que “voltavam à vida” para cravar os dentes nas pernas dos
pescadores. O réptil ainda se contorcia, boca aberta, presas letais expostas. Todos nós observávamos, vidrados pelo assassino que não morria. Conklin saiu do transe, desapareceu dentro do escritório de Claire e retornou com uma lata de lixo de metal, com a qual cobriu as duas partes da cobra. Ele se sentou sobre a lata. De acordo com a sua expressão, parecia estar sentado sobre uma bomba. – Isto é bom – comentou, o rosto avermelhado, suando, olhos um pouco esbugalhados. – Ótima oportunidade para superar meu medo de cobras. O controle de animais chegou ao necrotério quarenta minutos mais tarde. Liberaram Conklin e ergueram a lata de lixo. As duas partes da krait ainda se mexiam. A cabeça sibilava no ar.
capítulo 75
YUKI ESTAVA LIMPANDO a geladeira, escutando Faith Hill, pensando em pôneis malhados e estranhos de pernas compridas, quando o celular tocou. Ela sentiu um frio na barriga. Seria o Doc? Deixou cair a esponja dentro da pia, enxugou as mãos na parte de trás do jeans e foi em direção à mesinha de centro da mãe. No visor, aparecia DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA. Ela atendeu. Uma hora depois, estava sentada em uma poltrona de couro no gabinete do juiz esperando Phil Hoffman chegar. Duffy parecia perturbado, mas só daria alguma dica sobre o motivo da convocação quando Hoffman aparecesse. Yuki usou o tempo para examinar a estante de livros e considerar diversas possibilidades. No entanto, apenas uma parecia provável: o maldito júri do caso de Stacey Glenn não chegara a um veredicto. Os jurados haviam chegado a um impasse – de novo. Logo, Duffy anularia o julgamento e a petulante miss que espancara os pais indefesos e amorosos desfilaria para fora do presídio. O juiz não estava para conversa ada. Ficou trabalhando, abrindo pastas, fazendo anotações, jogando papéis no cesto enquanto os raios do sol da tarde se estendiam pelo tapete persa, e o coração de Yuki continuava a bater forte. Por fim, ouviu a voz de Hoffman do lado de fora do escritório. Ele se abaixou ao passar pela porta e deslizou a mão pelo cabelo escuro desalinhado. – Desculpem, meritíssimo, Yuki. Eu e minha esposa estávamos em Sausalito. Não dava para apressar a balsa. – Sente-se, Phil – pediu Duffy. Hoffman sentou-se na segunda poltrona. – Notícias do júri? – perguntou. Yuki já concluíra que, naquele momento, Hoffman caria tão feliz com uma anulação do julgamento quanto com uma absolvição. Despendera muito tempo no caso. Se houvesse uma anulação, sua cliente seria solta e ele voltaria a ser pago. – Tenho uma notícia ruim – avisou Duffy. – Houve uma briga na cadeia. – O que aconteceu? – indagou Hoffman. – Sua cliente arranjou uma namorada nas últimas semanas e, pelo que entendi, a namorada já tinha outra. Houve uma briga nos chuveiros e Stacey Glenn perdeu.
A namorada da Srta. Glenn agarrou-a pelo pescoço, a outra garota, pela cintura, e as duas a puxaram. Duffy balançou a cabeça de um lado para o outro enquanto todos imaginavam a cena, mas Yuki ainda não era capaz de visualizar o que havia de tão terrível nisso. – Sinto muito, não entendi, meritíssimo. – Culpa minha. Não me expressei bem. A cabeça de Stacey Glenn foi separada da medula espinhal. – Ele colocou uma das mãos ao redor do próprio pescoço e explicou: – O pescoço em si… a musculatura e coisas do tipo… permaneceu no lugar, porém a espinha foi rompida. Em termos médicos, a Srta. Glenn sofreu uma decapitação interna. – Nunca ouvi falar nisso – comentou Hoffman. – Eu também nunca tinha ouvido, mas é o que recebi do departamento responsável pelos presidiários, com base nos resultados da autópsia. – Duffy leu em um bloco de anotações: – “Aquelas estúpidas transformaram Stacey Glenn em uma boneca molenga.” Yuki se levantou, saiu do gabinete do juiz tropeçando e seguiu em frente mesmo quando Hoffman a chamou. Desceu a escada, cambaleante, segurando firme no corrimão, pensando em como o caso terminara. No momento em que chegou ao saguão, sabia que precisava falar com Parisi. Tinham que debater o que divulgariam ao público, e era ele que deveria fazer o comunicado, pois não seria certo deixar que vissem sua euforia quase incontrolável. Stacey Glenn tivera a pena de morte. Nada de condenação, absolvição, anulação. Essa foi a resolução final. Tudo havia acabado. Yuki não perdera o caso – e a psicopata Stacey Glenn estava morta.
PARTE 4
DOC
capítulo 76
CINDY E EU estávamos no Susie’s no início da noite e, mesmo às seis horas, o restaurante de estilo caribenho encontrava-se bastante lotado. Um grupo de percussão se apresentava e Susie promovia uma competição em que as pessoas deviam passar por baixo de uma barra. Arruaceiros, bêbados de tequila, caíam sobre a mesa de bilhar e Lorraine, que costuma ser muito boa quando se trata de timing, perdera o jeito. Ela anotou o pedido de bebidas, voltou para ler os itens especiais do menu, depois para nos mostrar o anel de noivado e em seguida para perguntar se tínhamos tudo de que precisávamos. Isso só nos primeiros cinco minutos. Fuzilei-a com o olhar até que ela recuou e se afastou apressada. Claire e Yuki chegariam a qualquer momento, e eu ainda não encerrara a conversa com Cindy. – Pare de me enrolar, ok? – pediu minha querida amiga, em um tom que soou como um desafio. – Tudo bem. Você e Conklin estão namorando? – Ele contou? Olhe, não começou dessa forma, mas… – Você está dormindo com ele? – Desculpe, Lindsay, mas quem é você para falar alguma coisa? Irmã Maria Margarida das Irmãzinhas do Cinto de Castidade? – Sim, droga. Sou. – Por quê? Qual o seu problema? Levantei a caneca de cerveja vazia para que Lorraine voltasse a enchê-la. – Corona chegando – falou ela. – Lorraine, escute isso – disse eu. – Cindy está dormindo com o meu parceiro e não me contou. – Ops. – Bem, você não acha que, como minha amiga, ela deveria ter me contado? – Ah, não faça isso, Lindsay – suplicou Lorraine. – Não me envolva nessa história. Sou uma garota muito feliz agora e não quero ter problemas com nenhuma de vocês. – Tudo bem. Encha a minha caneca de novo. – Volto já. – Você está brincando, não é, Lindsay? Acha que eu deveria ter lhe contado que estava saindo com Rich quando o tempo todo eu sabia que você ia fazer com que
nós dois nos sentíssemos mal com relação a isso… nem sei por quê! Ela recostou-se na cadeira, parecendo confusa. – Não sabe por quê? – indaguei. A sensação de estômago embrulhado me dizia que eu estava errada e ela, certa, e que eu não havia sido legal. Independentemente do que Cindy e Rich estavam fazendo juntos, isso era assunto deles. Cindy não conhecia muito minha história com Rich, e eu não ia lhe contar – mas talvez ele lhe contasse. Talvez já tivesse contado. Meu rosto deve ter demonstrado alguma hesitação, pois Cindy percebeu uma brecha para atacar. Inclinou-se para a frente, ergueu o queixo e comentou: – Já entendi. Vocês estão juntos, Lindsay? É isso? Diga agora porque, se estiver dormindo com ele, vou chutar aquele cachorro para o olho da rua. – Não. Não. Não estamos. Não quero e nunca aconteceu. – Que bom. Ótimo. Então, qual é o problema? – É por causa da cadeia de comando… – Você está maluca? Eu não trabalho para você. – Mas Conklin trabalha! Ele e eu conversamos sobre coisas que você não deveria saber, para o bem de todos nós. E gostaria de ter tido uma oportunidade para lembrá-lo. – Mesmo que isso zesse sentido, e não faz, não conversamos sobre você. Não conversamos sobre os nossos casos. Apenas transamos e assistimos a lmes na cama. Meu rosto corou e encarei a mesa. Foi informação demais para mim e isso me abalou. Já estava me sentindo meio enjoada quando ouvi “E aí, amigas?” . Ergui o olhar e vi Claire vindo em direção à nossa mesa. Ela estava com a lha nos braços, minha afilhada, Ruby Rose. Yuki e Doc seguiam atrás. – Não terminei de falar ainda – resmunguei. – Ótimo – retrucou Cindy. – Não me faça esperar tempo demais por seu pedido de desculpas.
capítulo 77
YUKI ESTAVA QUASE tonta de prazer. Encontravam-se amontoadas na mesa privativa do Susie’s e as amigas gostaram de Doc. Aliás, dava para dizer pelas expressões faciais delas que todas o adoraram. Ele estava lhes contando sobre o seu dia no pronto-socorro: – Uma paciente me disse que está fazendo coisas inexplicáveis à noite desde que começou a tomar medicamentos para dormir. Parece que, involuntariamente, ela foi até a caixa de remédios e engoliu um frasco inteiro de pílulas. E o mostrou vazio para mim. Claire se inclinou para a frente e Yuki percebeu que ela estava contente por ter outro médico com quem conversar. Perguntou-lhe que pílulas eram. – Dramamine. – Para enjoo? – indagou Claire. – Não podem matá-la. Doc abriu um sorriso. – Ela queria fazer uma lavagem gástrica, porém avisei que não era necessário. Sugeri: “Helen, você está pronta. Faça reserva em um cruzeiro!” Claire começou a rir. Ruby Rose esticou o braço e derrubou uma garrafa de cerveja no colo de Cindy. Lindsay também desatou a rir até lágrimas escorrerem dos olhos. – Sinto muito – desculpei-me com Cindy. – Estou falando sério. Não foi engraçado. Para que pudesse limpar Cindy, Claire entregou Ruby a Doc. A menina puxoulhe o nariz, chamando-o de “Boog-ah” . Ele riu para ela, que deu uma gargalhada, mostrando as gengivas. A noite continuou assim, uma risada levando à outra ainda mais sonora, e Yuki sentia como se fosse o seu aniversário, talvez o melhor que já tivera. Contou às amigas sobre o encerramento do caso Stacey Glenn. Lindsay falou da “cobra que não morria” e Claire abriu os braços para mostrar o tamanho do animal, quase derrubando de novo cerveja no colo de Cindy. – Falando sério, pessoal, é bom saber que tipo de cobra era – avisou Doc. – Há um soro antiofídico, sabe. – Antídoto? – perguntou Cindy. – É a mesma coisa, mas “soro antiofídico” é o termo mais exato – informou Claire. – De qualquer forma, não é fácil conseguir, embora os meus pacientes estivessem precisando dele. Veio a calhar o fato de a sargento Boxer saber golpear
com um machado. Todos continuaram a beber cerveja, menos Doc, que precisava ir para o hospital. Então, veio a melhor parte. Como Yuki se levantou para se despedir, ele colocou os braços ao redor dela e a beijou, fazendo-a se inclinar até que ela deu uma risada e todos aplaudiram, todos mesmo, inclusive pessoas das outras mesas. – Vejo você no fim de semana? – indagou ele. Yuki assentiu, pensando na lingerie que usaria. E depois ele se foi. Logo em seguida, Cindy avisou que tinha um encontro e precisava ir para casa se trocar. Claire também saiu, dizendo: “Tenho que colocar esta pimpolha na cama.” – Você não é apenas a motorista escolhida, é a única, Yuki – comentou Lindsay. A promotora não queria que a noite terminasse. – E se eu a levasse para meu apartamento? Por que não passa a noite lá? – Combinado – concordou Lindsay, bebendo a cerveja de uma só vez. Yuki abriu um sorriso. Ter Lindsay só para si, com uma chance de reviver a noite e conversar sobre Doc… Bem, seria fechar com chave de ouro.
capítulo 78
COMECEI A TAGARELAR assim que entrei no carro com Yuki. – Doc é fantástico. – Acha mesmo? Aliás, obrigada, e sim, ele não é ótimo? – E gosta de você de verdade. – Como você sabe? – Dá para sentir. E depois houve o beijo hollywoodiano na frente de todo mundo. Yuki riu. É um de seus dons inestimáveis, uma risada radiante. Nesse meiotempo, o meu pensamento avançava rápido, e eu não podia esperar mais. Será que Yuki sabia? Será que todos sabiam com exceção de mim? Assim que o carro se pôs em movimento, deixei escapar: – Sabia que Rich e Cindy estão namorando? – Nãããoo. Sério? Não acredito que ela não me contou! – Exatamente. Como devo me sentir, quando meu parceiro está transando com uma das minhas melhores amigas? – De qualquer forma, é um ótimo par. Dobramos à esquerda e o carro ganhou velocidade à medida que descia a ladeira, me embrulhando o estômago. – Cindy sempre gostou dele, mas quem não gosta? – comentou Yuki. – Espere um minuto, Linds. Deixei passar alguma coisa? Abri a janela e o vento fustigou meu rosto. – Quer que eu encoste? Está enjoada? – Estou bem. – Ok, do que se trata, então? Seu parceiro está namorando sua amiga. Por que isso é um problema? Subi o vidro da janela, deixando apenas uma pequena abertura. – Rich e eu tivemos alguns momentos – ouvi-me dizer. Yuki cou boquiaberta. O carro seguiu por uma reta, parando em um sinal, e ela se virou para me olhar. – Defina momentos. Contei-lhe o que (quase) acontecera entre mim e ele quando um caso nos levou a Los Angeles, como havíamos parado antes de as coisas irem longe demais. E como a química não dava uma trégua, mesmo depois de meu apartamento pegar
fogo e eu ir morar com Joe. Inclusive uma semana atrás, quando Conklin me dera um beijo excitante ao lado do carro. Eu ainda falava quando entramos na garagem subterrânea do edifício de Yuki. Ela desligou o carro e me encarou. – Você está apaixonada por ele? – Apaixonada? Não sei como chamar isso, mas temos algo especial… – Então, não se trata de Cindy. Tem a ver com Conklin. Dei de ombros. – Você tem algo especial com ele, se recusou a embarcar nisso diversas vezes e não tem a intenção de fazer nada a respeito, certo? Eu estava bêbada e sendo interrogada por minha amiga promotora. Não tinha defesa. – Nós conversamos sobre isso – comentei. – Foi minha escolha e estou contente de que nunca tenhamos feito nada que pudesse magoar Joe. – E como você se sente em relação a Joe? Diga-me a verdade. – Eu o amo. – Prove. Porque ainda não consigo acreditar. Pedi licença, saí do carro, caminhei até uma lata de lixo enorme perto do elevador e vomitei. Yuki veio com um lenço umedecido e um pacote de chicletes, colocando um braço ao redor da minha cintura. Porém, não deixou que eu me livrasse da enrascada. Voltamos para o carro, reassumimos os lugares e ela continuou: – Conte-me toda a verdade. Eu disse que, quando conheci Joe, havia sido fulminante, amor à primeira vista, e fui correspondida. Desde aquele dia, ele nunca me desapontara. E mudara toda a sua vida para estar comigo. Não apenas um amante, mas também meu melhor amigo, com quem eu podia ser sincera. O único receio que tinha em nosso relacionamento era relativo ao próximo passo, porque seria para sempre. – Se nos casarmos, não posso nunca deixá-lo – concluí. – E isso é ruim? – perguntou Yuki. – É assustador. – Não sou especialista, mas acha que é assustador mesmo, comparado ao trauma que você sofreu? À perda de alguém que você amava? Assenti, concordando. Ela estava falando de Chris, meu ex-parceiro e namorado que havia sido morto a tiros em serviço. Yuki estendeu a mão e tomou a minha. – Lindsay, tudo bem ter uma química com Rich. Não dá para evitar. É
divertido, talvez, e legal haver alguém atraído por você que está junto o tempo todo. Já decidiu que ele não é para você, mas Rich é a sua válvula de escape, porque você está com medo de se casar. Correto? As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. Yuki apertou ainda mais a minha mão. – Deixe-o livre – sugeriu. – Liberte a si mesma também. Yuki me envolveu nos seus braços. Ela é uma coisa minúscula e eu, uma mulher alta e forte, só que, de alguma forma, aquele abraço desajeitado era tudo de que eu precisava. Eu chorava bastante enquanto ela acariciava o meu cabelo. – Sabe o que quero com Doc? – perguntou Yuki. – O mesmo que você tem com Joe.
capítulo 79
CINDY ESTAVA À mesa em sua baia na manhã seguinte, repassando anotações para ver se sua memória não a traía. Por m, encontrou os escritos sobre a entrevista improvisada com a garota que chamava a si mesma de Sammy, a adolescente viciada que dissera que “pessoas” tinham matado Rodney Booker, não apenas uma, mas pelo menos duas. Essa palavra – “pessoas” – vinha assombrando Cindy. Lamentava o fato de Sammy ter fugido antes que se pudesse explorar essa pista signicativa, que talvez levasse a descobrir quem matou Rodney Booker. Voltou a telefonar para Lindsay, dessa vez deixando-lhe uma mensagem de agradecimento pelas amáveis rosas. Pegou a bolsa e deixou o edifício do Chronicle, fazendo uma pequena caminhada até o centro de assistência. Um sem-teto da sua idade, chamado Angel, abriu um sorriso, expondo seus dentes de ouro, e abriu a porta do refeitório enquanto lhe fazia uma reverência exagerada. – Ei, Srta. Cindy ompson. Apelidamos você de queridinha do From the Heart. Por voto popular. Ela sorriu e perguntou-lhe se conhecia uma garota chamada Sammy. – Claro que conheço. Está aqui dentro agora. Cindy passou os olhos pelo enorme salão e viu a adolescente trabalhando atrás de um bufê, servindo o almoço para a longa la de moradores de rua. Usava calça social, uma blusa cara de cores vibrantes, o cabelo louro pálido em uma trança bem-feita. Embora as pupilas de Sammy estivessem grandes o bastante para serem vistas do outro lado do salão, percebia-se de forma clara que a adolescente era uma voluntária, não uma cliente. Cindy se aproximou e a cumprimentou: – Oi, Sammy. Tem alguns minutos para mim? A adolescente parecia não apenas nervosa, mas também sobressaltada. – Não – respondeu. – Não posso. – Por favor. – Não posso falar com você aqui dentro – chiou. – Encontro você no Moe’s em meia hora se for embora agora. Cindy a esperou no restaurante e, após uma hora, pediu um queijo grelhado em pão de centeio. Assim que a comida chegou, Sammy deixou-se cair sentada à sua
frente. – Você não tem jeito, Cindy – falou a garota, sacudindo a cabeça. – Avisei para ter cuidado, mas você não consegue deixar quieto. – Sou capaz de guardar um segredo, porém não posso largar essa história. – Não? Bem, meu pai me deixa connada em casa. Não quer que eu converse com ninguém, principalmente com você. A garota mastigava balas, fazendo bastante barulho e pediu uma Coca-Cola. “Normal”, avisou à garçonete. – Por que não comigo? – Porque você está querendo ser morta. Após mexer o café, Cindy explicou: – Veja bem, isso me confundiu, Sammy. Por que estou em perigo? O que há de tão especial em Rodney Booker que faz com que escrever sobre ele seja algo ameaçador? – Porque os assassinos dele não são moradores de rua. Não querem ser expostos, presos, acusados de homicídio. – Preciso da sua ajuda. Sammy se recostou na cadeira, os olhos arregalados de medo. – Preciso da sua ajuda também – falou, por m. – Quero fugir daqui. Mudar de cidade. Mas não tenho dinheiro. Quero fazer uma proposta. Pode me dar algum tipo de adiantamento daquele prêmio? Dez mil, por exemplo? – De jeito nenhum. Aquele dinheiro ca lá até que os assassinos de Bagman sejam condenados. Posso conseguir uns 200 dólares. – Esqueça. Obrigada, mas não. Eu falei que precisava de ajuda e, a propósito, dane-se. Assim que a adolescente deixou o restaurante, Cindy pagou a conta e voltou a pé para o trabalho. Sammy acabara afetando-a. Seu medo podia ser paranoia de drogado, porém a repórter achava que não era isso: para ela, o assassinato de Rodney Booker estava ligado a algo maior, algo organizado. O que signicava que estava metida em um problema além da sua área de atuação. Telefonou para um número que sabia de cor. – Rich, temos que conversar.
capítulo 80
CONKLIN ENCONTROU SKIP Wilkinson no MacBain’s, uma das mãos em uma tigela de amendoins, a outra em torno de uma caneca de cerveja fresca. Era um garoto magricela com cabelo à escovinha, que estivera na academia de polícia no mesmo período que Conklin. Agora estava na Divisão de Narcóticos e Costumes ou, como a chamava, “Drogas e Prostitutas”. – Então, quer falar sobre Bagman? – indagou Wilkinson. – Qualquer coisa que possa me contar. É um homicídio sem solução. – Bem, não sei muito. Tivemos alguns problemas com ele. Não passava de um traficante de pequeno porte. – Que tipo de drogas? – Crack. Trouxe a ficha dele para você. Wilkinson retirou da pasta surrada um dossiê com dobras em algumas folhas e passou-o a Conklin. – Nunca tivemos motivos sucientes para prendê-lo. Repugnante o que ele fazia. – O que exatamente? – perguntou Conklin. Não havia cha policial nem retrato, apenas anotações à mão, grampeadas no verso do dossiê, onde se lia BAGMAN JESUS. Não sabiam seu nome. – Ele transformava garotas adolescentes em vendedoras de drogas. Tinha uma rede. Mandava-as para a rua. Talvez zesse sexo com todas. Mas não tínhamos fontes conáveis. Assim, inltramos algumas policiais no bairro, esperamos que ele mordesse a isca, porém sem sucesso. – E desistiram? Não estou criticando. Só conseguimos trabalhar algumas horas no assassinato dele… – Não desistimos – respondeu Wilkinson. – Mas, como eu disse, Conklin, ele era peixe miúdo. O crack é ruim, porém estamos sendo derrotados pela meth, que é muito pior. Jovens produziam isso nos porões de casa. Era fácil e barata, só que, desde a repressão à efedrina, se tornou um grande negócio. Enorme, saindo do controle. O crime organizado está se envolvendo. O material vem do México. Não quero encher seus ouvidos, mas isso está fugindo ao nosso alcance. E matando crianças boas. É só se drogar uma vez e não há escapatória. – Então, Rodney Booker era um tracante de crack. Não tínhamos essa informação. – Teríamos chegado a Bagman, mas havia peixes graúdos que preocupavam
mais. Alguém pegou aquele canalha primeiro. Ótimo. Fico contente por terem derrubado aquele verme e dado cabo dele.
capítulo 81
POUCO ANTES DAS oito de uma manhã cinzenta, Cindy estava entre mim e Conklin, apontando uma jovem subindo a Rua 5. – É ela. Camisa vermelha, trança loura. Aquela é Sammy. Ao ouvir o próprio nome, a garota virou a cabeça, viu Conklin correndo a toda velocidade em sua direção e deu no pé. Ela saiu em disparada pelo meio da rua e desapareceu na frente de um caminhão de peixe, que acelerou quando o sinal ficou verde. Pensei que o veículo a tivesse atingido em cheio, mas o vi engrenar a terceira e acelerar enquanto Conklin circundava a porta traseira. Eu também corria, encontrando brechas nas calçadas e na rua apinhadas e vociferando: “Polícia! Saiam do caminho!” Dava para ouvi-lo bufando de raiva – para se ter uma ideia de como eu estava próximo dele –, quando prendi a ponta de um dos sapatos em uma fenda na calçada e fui ao chão. Perdi o ar. Ergui-me cambaleando e um homem me apontou o caminho. Quando os alcancei, Conklin a havia encurralado em um beco entre dois edifícios e gritava com a garota, que estava de olhos arregalados e ofegante: – Pare de correr e escute. Um grupo de moradores de rua se levantou da calçada perto do refeitório popular, alguns se afastando, outros rodeando Conklin e Sammy. Era uma turma ameaçadora e havia muitos. Mostrei o distintivo. Resmungando, a multidão recuou, deu-nos espaço. – Queremos conversar com você na delegacia – disse Conklin à garota. – Venha e seja uma boa moça. Entendeu? Coopere e não iremos fichá-la. – Não. Eu não entendo. Não fiz nada. – Veja bem, eu quero acreditar em você – explicou o inspetor de olhos castanhos ternos. – Mas não acredito.
capítulo 82
VINTE MINUTOS DEPOIS, Sammy, cujo sobrenome ainda era desconhecido, sentava-se em frente a nós na sala de interrogatório número um. No canto do teto, a câmera gravava tudo. A garota não tinha carteira de identidade, porém admitiu ter 18. Era maior de idade e, em termos legais, podíamos interrogá-la. Eu me esforcei para ser amigável, falei-lhe que entendia o porquê de ela estar assustada e lhe dei garantias, mas ela não acreditava em mim. Suas respostas eram evasivas e a postura agressiva me dizia que escondia algo grande. Irritada como eu estava, cada vez mais eu tinha a sensação de que nos ajudaria a esclarecer o caso de Bagman Jesus – talvez naquele mesmo dia. A adolescente mal-humorada tinha olheiras e as bochechas encovadas de uma viciada em meth que passava por uma crise de abstinência. Abriu um pacote de balas e colocou uma na boca. Senti cheiro de cereja e, pela primeira vez, poderia jurar que senti o cheiro do seu medo. Será que Sammy tinha medo de que o assassino de Bagman fosse atrás dela se abrisse a boca? Ou será que tinha alguma implicação naquela morte? Tentei de novo, de modo gentil. – Sammy, o que a incomoda? – Estar aqui. – Olhe, não queremos assustá-la. Estamos tentando descobrir quem matou Bagman. Dê uma ajuda para nós e iremos assegurar que nada lhe aconteça. – Ah, esse é o problema. – Explique: qual é o problema? A máscara de durona caiu. – Sou apenas uma criança! – gritou. – Apenas uma criança! Aquilo me sensibilizou e me fez querer recuar. Em vez disso, resolvi intimá-la. Tirei a jaqueta para que Sammy pudesse ver a arma. – Chega de bobagens. Conte o que sabe ou passará sua vida na prisão como cúmplice indireta do assassinato de Rodney Booker. Conklin cooperava. Ele me obedecia, chamava-me de “sargento” , endurecia o olhar toda vez que Sammy o fitava pedindo ajuda. Não cedemos em nenhum momento.
capítulo 83
CONKLIN ME CONTARA que Bagman tinha uma rede de garotas tracantes de crack, porém eu não imaginara uma como Sammy: ainda bonita, bem-vestida, branca, que falava como se tivesse sido criada com valores familiares e recebido uma boa educação. Como Bagman colocara as mãos nela? Quando me inclinei na direção de Sammy, ela chorou. Conklin empurrou uma caixa de lenços de papel por sobre a mesa. A garota secou os olhos, assoou o nariz, tomou um pouco de ar. E começou a falar. – Vendíamos crack, entendeu? Bagman nos pagava com meth e a usávamos com ele. Passávamos dias e dias fumando, sem comer ou dormir, apenas fazendo sexo sem controle! – gritou para mim. – Aqueles orgasmos enlouquecedores, dez, vinte vezes, um atrás do outro. – Parece ótimo – comentei. – Sim – concordou, perdendo o sarcasmo. – Surreal. Depois, ele nos levava para trabalhar. E, quando nós atingíamos a meta, voltávamos para a casa de Bagman Jesus. – “Nós” equivale a quantas garotas? Sammy deu de ombros. – Três ou quatro. Não mais do que cinco vivendo na casa de cada vez. – Escreva os nomes – solicitou Conklin, entregando um bloco e uma caneta. Ela retornou à realidade e lançou-lhe um olhar que significava Está louco?. – Você disse “nos levava para trabalhar”? – perguntei. – Levava como? – Bagman tinha uma van, claro. A voz de Sammy começava a falhar. Conklin saiu da sala, voltou com um energético e o entregou à garota, que esvaziou a lata em um longo gole. Fiquei pensando em Rodney Booker, o homem bonito que fora para Stanford e se juntara aos Corpos da Paz. Então, mudara de forma radical para o negócio das drogas, dando-lhe um toque original e cruel. Sammy descreveu o horror, parecendo não entender o que estava me fazendo sentir mal. Booker mantivera um harém de tracantes adolescentes de crack e as viciara em uma droga que proporcionava sexo alucinante – até que todas se esgotassem emocionalmente e morressem. Era um diabo moderno. É claro que alguém o matara.
Perguntei a Sammy onde estava a van e ela voltou a dar de ombros. – Não tenho ideia. Já cumpri minha obrigação de cidadã? Posso ir, por favor? Conklin prosseguiu: – Deixe ver se eu entendi direito. Booker produzia meth em casa? – Fez isso por um tempo, mas era perigoso. Ela suspirou alto, permaneceu em silêncio por alguns segundos e voltou a falar: – Minha vida inteira se estagnou quando Bagman morreu. Agora meus pais estão me “limpando” . Sabe como é estar no fundo do poço? Essa é a minha vida. Estou perdendo a cabeça. – Ahã – fez Conklin. Admirei sua tenacidade. – Você disse a Cindy omas que sabia quem matou Bagman… – Nunca disse isso. – Sargento? – chamou ele. – Temos o suficiente – respondi, levantando-me e colocando a jaqueta. – Você tem o direito de permanecer em silêncio – informou Conklin a Sammy. – Qualquer coisa que disser pode e será usada contra você… – Você está me prendendo? Sammy se enrijeceu quando Conklin fez com que ela se erguesse e a algemou. – Quero dar um telefonema – pediu. – Quero o meu pai.
capítulo 84
O NOME COMPLETO DE Sammy era Samantha Pincus, como descobrimos quando o pai dela irrompeu na Central como uma tempestade de inverno. Neil Pincus era um advogado que trabalhava voluntariamente para os moradores carentes de Mission, onde ele e o irmão tinham um escritório de advocacia conjunto no mesmo edifício que alojava o refeitório popular. Avaliei Pincus quando ele apareceu à minha mesa, pedindo para ver a lha. Tinha quase 1,80 metro e mais de 70 quilos. Ele beirava os 50 anos, com um princípio de calvície, estava suado e se mostrava furioso. – Está detendo a minha lha por algo que ela disse sem a presença de um advogado? Vou processar cada um de vocês e também o Estado, está entendendo? Você só leu os direitos dela depois que ela se acusou. – É verdade – concordei. – Porém, esta não é uma detenção para interrogatório, Sr. Pincus. Os direitos dela não foram violados. – Sam não sabia disso. Você a aterrorizou. O que fez foi equivalente à tortura. Sou um defensor dos direitos das vítimas e vou mandar os dois para o inferno. Jacobi observava tudo pelo vidro do seu escritório, censurando seis policiais que espreitavam. Levantei-me, atingindo mais de 1,80 metro por causa dos sapatos. – Tome nota de alguns pontos, Sr. Pincus. Agora é só entre nós quatro. Ajude a sua filha. Faça-a cooperar e não iremos fichá-la. Pincus grunhiu de desgosto, assentiu e nos seguiu até a sala de interrogatório onde a lha esperava, com as mãos algemadas à frente. O pai apertou-lhe um dos ombros com carinho, depois puxou uma cadeira e sentou-se. – Estou escutando. – Sr. Pincus, sua lha admitiu ser viciada e tracante – informei. – Estava envolvida com Rodney Booker, também conhecido como Bagman Jesus, morto de forma violenta. Samantha vendia crack a serviço de Booker e contou a uma fonte muito conável que sabia quem o matara. Trata-se de uma testemunha material, por isso a estamos detendo aqui, e precisamos que nos conte quem é o assassino de Booker. – Não estou admitindo que ela tracava, mas, se fazia isso, não está fazendo agora nem usando. – Bem, tudo ótimo, então – retruquei, ríspida. – Escute, eu e minha esposa estamos de olho nela. Toque de recolher cedo. Sem
celular. Sem computador. Está trabalhando como voluntária em um refeitório popular para que veja quanto a vida pode se tornar ruim… no térreo do prédio do meu escritório. Pincus ergueu os pulsos algemados da filha para que eu pudesse ver seu relógio. – É um GPS. Ela não pode ir a qualquer lugar sem que eu saiba. Sam se tornou um modelo de sobriedade. Dou-lhe a minha palavra. – Isso é tudo, Sr. Pincus? Samantha choramingava. – Onde está a sua decência? – bradou ele. – Booker era a escória. Trabalhava com jovens, que vendiam para jovens. Não apenas com a minha lha, mas com outras garotas. Muitas garotas boas. Nós o denunciamos. – “Nós”? – A Associação da Rua 5. Pesquise. Registrei uma queixa em nome da associação em fevereiro e em março. Mais uma vez em abril. Os policiais não zeram nada. Fomos informados: “Se vocês não têm provas, preencham um formulário.” – O senhor tem arma de fogo? – Não. Dê um desconto. Deixe a Samantha sob a minha custódia. Prisão, mesmo que por uma noite, poderia destruir essa menina. Concordamos em deixar a garota ir e avisamos a Pincus para não permitir que ela saísse da cidade. Assim que os dois saíram da Central, Conklin e eu fomos para as nossas mesas e acessamos o nome de Pincus no banco de dados. Ele não tinha cha, no entanto Conklin encontrou outra coisa. – Neil Pincus tem licença para porte de arma e registrou uma Rohm calibre 22 – informou por cima do monitor. – Um revólver pequeno, sórdido e barato para um advogado pequeno, sórdido e barato. Aquele filho da mãe mentiu.
capítulo 85
AO MEIO-DIA, CONKLIN e eu estávamos em frente ao escritório Pincus & Pincus com outros quatro policiais. Quando a porta se abriu, passamos pela recepção e entreguei um mandado a Neil Pincus. – Mantenha as mãos onde eu possa vê-las – mandei. Ele parecia não entender nada. – O quê? – Pensou que não iríamos descobrir sobre a arma? – Aquela… coisa foi roubada. Fiz um boletim de ocorrência. – O advogado empurrou a cadeira para trás. – Eu a mantinha aqui. Abri uma gaveta da mesa, no canto inferior à direita, e vi uma caixa de metal. Levantei a tampa e só havia uma caixa de papelão vazia. – Essa caixa ficava trancada? – Não. – Onde guardava a munição? – Na mesma gaveta. Olhe, sei que é uma transgressão, mas se fosse precisar da arma, não poderia demorar a alcançá-la. Sargento, raramente eu abria a caixa. Pode ter sido roubado a qualquer momento nos últimos seis meses. Você vira as costas por um segundo aqui, atende a um telefonema ou vai ao banheiro… Dei um passo à frente dele e abri de forma brusca as demais gavetas enquanto Conklin fazia o mesmo com as gavetas de Al, o irmão de Neil, na sala ao lado. Nós seis abrimos o armário de arquivos, reviramos a sala de suprimentos, olhamos embaixo das almofadas de sofá de couro rachado. Depois de pouco tempo, os irmãos se acalmaram e passaram a conversar com os clientes, agindo como se não estivéssemos ali. Como não achamos nada, eu e Conklin visitamos as casas dos dois advogados, uma em Forest Hill e a outra em Monterey Boulevard. Bairros bons, onde não havia crianças degeneradas. Conhecemos as esposas, Claudia e Reva, que cooperaram, como os Pincus haviam lhes pedido. Nós nos familiarizamos com os interiores das caixas de ferramentas, dos closets, armários das louças, baús. Por conta própria, as esposas deixaram que procurássemos dentro dos carros. As casas estavam tão limpas quanto lençóis brancos pendurados no varal em um dia de sol. A execução dos mandados fora desgastante em termos físicos e emocionais.
Sentia-me esgotada e deprimida e não tínhamos nada de concreto. Será que o revólver de Neil Pincus havia sido usado para matar Bagman? Ainda não sabia. Mas apostava que o atirador o jogara da ponte algum tempo após a execução de Rodney Booker. E, no momento, estava sendo enterrado pelas areias movediças do fundo da baía de São Francisco.
capítulo 86
CONKLIN E EU entramos na viatura estacionada do lado de fora da residência de Alan Pincus. Eu devia um telefonema e uma explicação a Jacobi. Sabia que ele caria furioso quando eu lhe contasse que havíamos passado o dia perseguindo o homem que atirara em Bagman, quando um psicopata matava os amigos do prefeito com um réptil venenoso. Estava prestes a dizer isso ao meu parceiro, porém, agora que nos encontrávamos sozinhos, o incômodo no carro não poderia ser ignorado. Ele diminuiu o volume do rádio e cou mexendo com o chaveiro por um instante. – Cindy conversou com você sobre… ahn… nós – falou ele. – Sim. Foi uma grande surpresa – conrmei, encarando-o até que ele desviou o olhar. – Ela disse que você estava chateada. Dei de ombros. – Sinto muito não ter lhe contado, Linds… – Ei. Estou bem. De verdade – menti. – Depois que pensei melhor, percebi que vocês foram feitos um para o outro. – Mas só passou, tipo, uma semana. – Enfim, adoro vocês. Conklin riu, contente, e aquela risada revelou tudo. Estava passando momentos maravilhosos com minha amiga extraordinária, atrevida e generosa, e não queria que isso tivesse fim. O cara que me beijara na semana passada havia desaparecido. Claro, eu o rejeitara e, obviamente, não era a sua dona. Mesmo assim, doía. Perdi o Richie que sofria por mim. Eu me perguntava se o fato de ele dormir com Cindy era uma forma indireta de dormir comigo. Era um pensamento desprezível, algo que não combinava com minha atitude, mas a verdade é que veio à tona. Lembrei-me do conselho de Yuki: “Deixe-o livre. Liberte a si mesma também.” Ele observava o meu rosto à procura de um sinal, talvez da minha aprovação, logo quei contente quando bateram à janela. Era Alan Pincus, que chegara em casa mais cedo do trabalho. Era maior que o irmão mais velho e tinha mais cabelo. Se não fosse por isso,
seriam clones. Abaixei o vidro. – Sargento Boxer? Já terminaram? Porque quero que a vida da minha família volte ao normal. – Terminamos por agora, mas não vamos embora. – Entendo. – Se surgir algo que devamos saber, telefone para nós. – Palavra de escoteiro. Pincus ergueu três dedos. Em seguida, virou-se e foi até a porta da frente. Será que estava nos enganando? Não dava para dizer. Quando ele já havia entrado, sugeri a Conklin: – Vamos telefonar para Cindy.
capítulo 87
MAIS TARDE NAQUELE dia, Conklin, Cindy e eu estávamos no MacBain’s Beers O’ the World Pub quase vazio. Pegamos uma mesa nos fundos do bar, uma tigela de amendoins e Cocas Diet. O rosto de Cindy estava ruborizado, mas não devido à proximidade de Conklin. – Você os deixou ir? Não os segurou, não os deteve… – Parece uma música – interrompeu Conklin. Mostrava-se tão vidrado nela que chegou a cantar “Não me segure, não me detenha, me deixe ir…”, mas Cindy não estava de bom humor. – Como pode tirar sarro de mim? O sorriso dele desapareceu. – Cin, nós os teríamos detido, porém não podemos fazer uma acusação. Ainda não. – Mas vocês estão trabalhando no caso? Juram por Deus? Assentimos. Conklin acrescentou: – Estamos trabalhando de verdade no caso. Cindy enfiou o rosto nas mãos e se queixou: – Coloquei esse sujeito na primeira página do San Francisco Chronicle: “Bagman Jesus, Santo das ruas” . E ele fazia o quê? Transformava adolescentes em tracantes de drogas? E vocês acham que é por isso que alguém o matou? Meu Deus. O que faço agora? – Faça o que sempre faz – respondi. – Publique a verdade. Ei, Cindy, essa é uma matéria melhor, certo? Ela arregalou os olhos ao imaginar o tamanho da manchete. – Posso citar fontes conáveis próximas ao Departamento de Polícia de São Francisco? – Sim. Claro. Conklin pagou a conta, e deixamos o bar juntos. Ela voltou para o Chronicle e para uma reunião de emergência com a chefe. Já eu e meu parceiro caminhamos até a Central. De volta à penumbra da baia, Conklin ligou o seu computador. Passei os olhos pelas mensagens que haviam chegado enquanto estávamos fora e vi uma de São Judas em que Brenda escrevera URGENTE. Eu já estava ligando para McCorkle quando Conklin disse: – Inacreditável.
Parei de teclar o número. – O que conseguiu? – A van de Rodney Booker está apreendida, Lindsay. No dia seguinte ao da morte dele, foi rebocada de uma área imprópria para estacionamento. Telefonei para o departamento de apreensão, localizei o veículo e pedi urgência para levá-lo ao laboratório criminal. Nosso beco sem saída agora era uma via ampla. E foi isso que gritei por cima do ombro para Jacobi, que avançava em nossa direção, furioso, enquanto Conklin e eu saíamos da Central.
capítulo 88
ÀS SETE DAQUELA noite, a perícia aproveitava ao máximo o nosso mandado para investigar o veículo de Booker. O gênio Brett Feller e seu comparsa musculoso, Ray Bates, haviam desmontado a van azul e encontrado a bolsa de Bagman amarrada à parte de baixo de um banco traseiro com um elástico. Os dois jovens ainda não tinham terminado. Tiraram porcas, parafusos e calotas, esperando achar maconha ou uma arma. No entanto, quando Conklin e eu abrimos a bolsa de couro marrom estilo carteiro e olhamos dentro, avisei: – Relaxem, rapazes. Isso é tudo. Tirei os itens de dentro da bolsa. Meu parceiro os colocou na mesa de luz, e Feller – 24 anos, intenso e com um pouco de transtorno obsessivo-compulsivo – arrumou tudo com perfeição e tirou fotos. Meu coração batia forte durante todo o processo e, sinceramente, surpreendime com o próprio entusiasmo. Nas últimas semanas, algumas vezes eu havia me importado com Bagman, outras, não. No começo, eu apenas o considerara um entre dezenas de moradores de rua que eram mortos todo ano enquanto lutavam por um local para dormir ou um dedo de bebida. No momento em que Cindy dissera “E ninguém dá a mínima”, eu me importara. Quando eu soube que Bagman era um tracante de drogas, perdi o interesse de novo. Agora, transformara-se em um predador sem consciência e minha atenção oscilava. Quem acabou com esse cara? O que ficaremos sabendo a partir das coisas dele? Abrir a bolsa de Bagman foi como acordar na manhã de Natal e descobrir que Papai Noel deixara seu saco inteiro embaixo da árvore. Peguei o caderninho de anotações e fui escrevendo nele à medida que os objetos eram retirados. Os itens de 1 a 14 eram uma miscelânea: um sanduíche mofado em um saco plástico, vários maços de notas separados com elásticos de acordo com a denominação – parecia não haver mais de 2 mil dólares. Havia uma Bíblia surrada com o nome de Rodney Booker na folha de guarda e os itens que pareciam ser os mais valiosos: meia dúzia de sacos de pó branco cintilante – 170 gramas de meth. Mas o item número 15 era o que realmente interessava: uma pasta de couro de
cerca de 12,5 x 20,5 centímetros que os viajantes usam para guardar passagens de avião e passaportes. Conklin abriu-a, retirou o conteúdo e desdobrou os papéis, segurando-os como se fossem os pergaminhos do mar Morto. Assim que meu parceiro os colocou sobre a mesa, Feller tirou fotos e descrevi os documentos em voz alta. – Registro de serviço para a van. Troca de óleo e lubricante, 172 mil dólares, 538 quilômetros. Isto parece um bilhete de loteria premiado, cinco de oito números, com a data da véspera do dia em que o corpo de Booker foi encontrado. Vi algumas notas de depósitos, um pouco mais de 3 mil em dinheiro por um período de três dias, e havia recibos de restaurantes fast-food. Quando Bates encontrou a carteira de Bagman no fundo do painel da porta, o que estava lá dentro abalou a todos nós.
capítulo 89
A CARTEIRA ERA MAGRA, feita de couro de cabra de qualidade, com as iniciais RB gravadas em ouro no canto. Retirei a licença de motorista de Booker e encontrei uma folha de papel amarela no compartimento das notas. Desdobrei-a; meus olhos captavam os dados, mas meu cérebro, alguns compassos atrás, ainda tentava compreendê-los. – Trata-se de uma nota de venda. Rodney Booker comprou um ônibus em um feirão de carros usados em Tijuana, em dois de maio, poucos dias antes de morrer. Era um ônibus escolar velho, diz aqui, de 1983. Fitei o papel, lembrando do cruzamento da Market Street com a Rua 4 logo depois que um ônibus escolar velho explodiu, criando um cenário sangrento, espalhando partes de corpos pela rua. Dez pessoas inocentes tinham morrido. Outras ficaram feridas, marcadas para sempre. Lembrei-me de me agachar em um lugar cheio de cacos de vidro, conversar com o investigador de incêndios criminosos Chuck Hanni enquanto ele apontava para as peças quebradas e os pedaços derretidos, no que restara da parte de trás do ônibus, mostrando-me que o veículo tinha sido um laboratório móvel de meth. O proprietário do ônibus nunca havia sido identificado. – O que Sammy disse? – perguntei a Conklin. – Bagman costumava produzir meth na casa, mas era muito perigoso? – Isso aí. Peguei outro pedaço de papel de dentro da carteira. Era um branco, comum, de 15 x 10 centímetros com uma das bordas aderente, arrancado de um bloco de notas, dobrado ao meio. Havia um registro manuscrito da conversão de moedas: de pesos para dólares. Uma palavra rabiscada me chamou a atenção: “efedrina” , o ingrediente principal da metanfetamina. Conklin estava respirando por cima do meu ombro. – Isso é uma assinatura, não é? Jota alguma coisa Gómez. – Juan. Juan Gómez era tão comum quanto John Smith. Poderia não signicar muito, mas era o nome na carteira de identidade do homem que havia morrido na explosão do ônibus antes de sua cabeça ser esmagada contra um poste. Mal podia acreditar no tesouro que tinha nas mãos. Rodney Booker ramicara os negócios, passando de um pequeno vendedor de
crack para um importante vendedor de meth. Comprara os ingredientes, contratara alguém para produzir, adquirira um ônibus e o transformara em um laboratório de metanfetamina. E, na primeira operação, o laboratório matara dez pessoas. O lema de Bagman nunca me parecera tão irônico quanto agora: Jesus Salva.
capítulo 90
YUKI MALHAVA ASSISTINDO a um vídeo de treinamento quando o interfone tocou. – Dr. Chesney está aqui para vê-la – anunciou o porteiro. Uma sensação de euforia percorreu seu corpo. Doc estava adiantado! A campainha tocou, Yuki abriu a porta e ele a beijou. Ela aproveitou ao máximo, passando as mãos pelo cabelo louro dele, contorcendo-se e gemendo. Ele abriu um sorriso e perguntou: – Contente em me ver? Yuki assentiu, sorriu e respondeu “Ahã” , e os dois se beijaram de novo, enquanto Doc fechava a porta com um pontapé. Apenas os dois beijavam desse jeito, e isso não tinha preço, pois era algo único, só deles. – Oi, querido. Como foi o dia? – indagou Yuki, parando para tomar fôlego, rindo da ideia de fazer uma piada de “casal”. Quando foi a última vez que fizera isso? – Não tão ruim, docinho – respondeu. Ele a carregou nos braços e a levou até o sofá, onde a largou suavemente nas almofadas estofadas e se sentou. – Picada de abelha, clavícula quebrada e um parto que começou ainda na sala de espera – enumerou Doc. Acariciou o trecho de cabelo de Yuki que começava a nascer arrepiado, onde ele passara máquina semanas atrás e do qual tanto gostava. Ela também começava a gostar. – Qualquer dia que eu não seja espetado por uma seringa de um paciente HIV positivo é um bom dia para mim – explicou. – Concordo. E aí, o tanque de gasolina está cheio, já arrumou as malas, está pronto para ir? Porque ela estava. Assim que fechasse sua mala, os dois iriam para um m de semana em Napa, um passeio longo, romântico, o belo hotel, a enorme cama com vista. – Estou. Mas há uma coisa que preciso contar primeiro. Yuki olhou em seus olhos. Realmente, Doc havia parecido um pouco irrequieto quando ela abrira a porta. Como ela também se sentira um pouco nervosa, atribuíra isso ao grande nal de semana que se aproximava. Pois logo estariam
fazendo amor pela primeira vez. Agora, o sorriso dele era hesitante, o que a alarmou. Será que o fim de semana dos dois ia ser encurtado? Ou será que era pior do que isso? – John, o que há de errado? Você está bem? – Depende de como você encarar a situação. Vai ser difícil, Yuki. – Seguravalhe uma das mãos, porém permanecia com o olhar baixo. – O problema é: você conta a alguém muito cedo, e é considerado presunçoso. Conta muito tarde, e confundiu sua cabeça. No nosso caso, são as duas coisas: muito cedo e muito tarde… – Você está me assustando, John. Fale logo. – Alguns dias atrás, quando você me disse que não tinha relações sexuais há alguns anos… – Foi estupidez minha. É verdade, mas eu estava nervosa. Apenas escapou. Doc fixou os olhos cinza-azulados nela. – Também não tenho relações sexuais há alguns anos. – Você? Qual é! Não acredito. Yuki relembrou os acontecimentos, pensando em como ela tinha ido ao hospital para vê-lo após o acidente de carro. Ela concordara em lhe mostrar a cidade. Após o primeiro beijo suave dos dois, ela mergulhara em um mais longo, sexy – como acabara de fazer agora. Ela vinha conduzindo a fantasia toda. Ele vinha seguindo seu exemplo. Sentia-se mortificada. Por que não escutara a mãe? “Seja como um cisne, Yuki. Mantenha a cabeça erguida. Nade forte e em silêncio.” Ela não tinha paciência: saíra ao pai, que dirigia tanques. – Por favor, diga logo – pediu. Doc lhe contou, com a voz hesitante, uma história que surgia fragmentada em uma linha de tempo irregular. E embora Yuki mal conseguisse assimilar o que ele estava dizendo, a visão se estreitou. Houve um zumbido alto na cabeça. E, depois, tudo ficou escuro.
capítulo 91
SENTEI-ME EM UMA cadeira instável em frente a Yuki e Cindy na Casa Loco, uma espelunca mexicana especializada em fajitas de frango próxima ao apartamento de Cindy. Estava escuro do lado de fora e as janelas reetiam nossas imagens sem cor, fazendo com que parecêssemos fantasmas. Principalmente Yuki. Cindy a apoiava e insistia para obter mais informações quando Claire chegou, deixando-se cair na cadeira ao meu lado. – Agiu certo em não ir com ele – confortava-a Cindy. – Não pode tomar decisões com a cabeça dando mil voltas. A garçonete adolescente retirou os pratos e Claire pediu café para todas. Yuki comentou: – Continuo achando que poderia ter ido até o m – comentou Yuki. – Apenas entrado no carro… – E se não estivesse se sentindo melhor? – perguntou Cindy. – Seria um m de semana horrível, você retida em Napa com alguém que poderia lhe causar repulsa. – Detesto quando você adoça as coisas. – Bem, não estou errada, estou? – Deixe ver se entendi direito – disse Claire, recapitulando. – Doc nasceu com genitália ambígua? Os médicos não sabiam ao certo se ele era garoto ou garota? Yuki assentiu e enxugou as lágrimas sob os olhos com o indicador. – Informaram aos pais que, se o condicionassem a ser uma garota, ele nunca saberia. – Isso está errado – reclamei. – É uma tragédia, Yuki. Tenho certeza de que os pais estavam sob muita pressão para contar às pessoas o sexo do bebê. De qualquer forma, havia uma teoria baseada na praticidade. Mesmo que os cromossomos fossem XY , se as partes pareciam confusas, faziam a cirurgia. “É mais fácil cavar um buraco do que levantar um poste” , costumava-se dizer. Em seguida, aconselhariam a tratar a criança como uma garota. Dê-lhe estrogênio na adolescência e ela será uma garota. – Eles o chamaram de Flora Jean – contou Yuki, agitada. – Como você disse, Claire, pegaram um bebê e o zeram ser uma garota! Só que ele nunca se sentiu assim… porque não era uma garota. Ai, meu Deus. Isso é muito nojento! – Ele reverteu o processo com quantos anos? – indagou Claire.
– Começou quando tinha 26. Depois, passou por quatro ou cinco anos infernais. – Ah, cara… Coitado dele – comentei. Ela ergueu os olhos marejados para mim. – Sou louca pelo Doc, Lindsay. Ele é doce. É engraçado. Passou por situações em que me mostrei uma verdadeira idiota e uma pessoa frágil. Aquele homem mexe comigo. Mas como vou parar de pensar nele como um cara que era uma garota? – Ah, Yuki… Como ficaram as coisas com ele? – Ele avisou que me telefonaria ao longo do m de semana. Que sairíamos para jantar na semana que vem e conversar. – Doc se preocupa com você – armei. – Está lhe mostrando quanto se preocupa ao lhe contar o que aconteceu. Dando-lhe tempo. – Não sei o que fazer – confessou, a voz embargada. Cindy a segurou, deixando-a chorar, até que Claire se esticou e tomou uma das mãos de Yuki. – Querida, não exija muito de si mesma. Parece complicado, porém talvez não seja. E nada tem que ser decidido agora. Yuki assentiu e começou a chorar de novo.
capítulo 92
CHEGUEI À CENTRAL antes das oito na segunda-feira de manhã e encontrei um envelope cheio em cima da minha mesa. A tira de papel, com o encaminhamento, mostrava que São Judas o enviara por um mensageiro da Divisão de Casos Não Solucionados e também o carimbara: URGENTE, URGENTE, URGENTE. Lembrei, então, que ele me telefonara e eu não retornara. Abri o envelope e deixei cair sobre a mesa um caderninho em frangalhos de algum investigador. Preso com um clipe à capa, havia um bilhete de McCorkle: “Boxer, verique isto. Esta pessoa conhecia a última vítima de 1982 e algumas das recentes. Ela está aguardando o seu telefonema.” Eu esperava que “ela” fosse uma pista que não tivesse esfriado ao longo do m de semana porque, naquele exato momento, tudo o que tínhamos sobre o “assassino com a cobra” era uma desagradável cobertura da imprensa e cinco corpos. Conklin não estava, logo passei alguns minutos na cafeteria, colocando leite e açúcar no restinho de café deixado pelo turno da noite. Ao retornar à mesa, meu parceiro ainda não havia chegado e eu não podia esperá-lo por mais tempo. Abri o caderninho na página indicada por um post-it verde uorescente. Era uma entrevista de 23 anos atrás com uma socialite, Ginny Howsam Friedman. Eu sabia algumas coisas a seu respeito. Ela fora casada com um vice-prefeito na década de 1980, já falecido, e agora era esposa de um cardiologista de renome. Era patrona das artes e uma pintora talentosa. Escaneei os rabiscos do policial, vi o número de telefone que McCorkle sublinhara e liguei. A Sra. Friedman atendeu no terceiro toque e me surpreendeu ao dizer “Estou livre se vier agora”. Deixei um bilhete sobre a cadeira de Conklin e peguei o Explorer para uma esticada até o endereço em Pacific Heights. A bela residência azul e branca de Ginny Friedman, ricamente ornamentada, cava na Franklin Street, em um dos quarteirões de moradias vitorianas totalmente restauradas que fazem de São Francisco uma maravilha visual. Subi os degraus e toquei a campainha. Uma adorável senhora de cabelo grisalho, de 70 e poucos anos, abriu a porta. – Entre, sargento – convidou ela. – Estou tão contente por conhecê-la. O que posso lhe servir? Café ou chá?
capítulo 93
A SRA. FRIEDMAN E eu nos acomodamos em duas cadeiras de vime na varanda de trás e ela começou a me contar sobre os assassinatos que aterrorizaram a alta sociedade de São Francisco em 1982. Mexeu o café e salientou: – Tem que haver uma conexão entre aqueles assassinatos e os recentes. – Também acreditamos nisso. – Espero poder ajudá-los. Contei ao tenente McCorkle que foi horrível quando aquelas pessoas notáveis morreram em 1982. Foi aterrorizante. Veja bem, não sabíamos por que estavam morrendo até Christopher Ross ser encontrado com aquela cobra enrolada em um de seus braços. – E a senhora o conhecia? – Muito bem. Meu primeiro marido e eu saíamos frequentemente com ele e a esposa. Era um homem muito bonito. Alguém em busca de emoções com uma personalidade extrovertida, além de rico, claro. Faturava bem, rios de dinheiro. Chris Ross tinha tudo. Então, morreu. Alguns disseram que era justiça. Que uma cobra havia sido morta por outra… mas estou me adiantando. – Vá devagar – sugeri. – Quero ouvir tudo. Ginny assentiu. – Em 1982, eu dava aulas para garotas do quinto ano na Katherine Delmar Burke School, em Sea Cliff. Você conhece essa escola, tenho certeza. Eu conhecia. Sea Cliff era uma comunidade estonteante à beira-mar, povoada por pessoas extraordinariamente ricas. – As jovens usavam uniforme xadrez em tom verde e todo ano faziam a dança em volta do mastro na festa do dia primeiro de maio. Com tas e tudo. Sara Needleman e Isa Booth eram da minha turma nesse ano. Ainda não consigo acreditar que estejam mortas! Ambas tinham vidas encantadoras. E quando as conheci, eram crianças meigas. Dê uma olhada nisto. Entregou-me um pequeno livro de couro com folhas de papel cristal repletas de instantâneos. Na última página, apontou para leiras escalonadas de garotas de 10 anos em uma foto de turma. – Aqui está Isa. Esta é Sara. E esta, pobrezinha, com os olhos tristes, era sempre uma estranha no ninho – comentou Ginny a respeito de uma garota de cabelo preto na altura dos ombros. A criança parecia familiar, porém, embora me esforçasse por lembrar, não conseguia encaixá-la.
– Era a lha bastarda de Christopher Ross – continuou a Sra. Friedman. – Sua mãe era empregada da família e ele pagava pelos estudos da lha bastarda em Burke’s. Contribuí para que a garota fosse admitida. Todas as outras sabiam do caso, é claro, e algumas delas eram grosseiras. Uma vez, eu lhe disse “Querida, o que não mata fortalece” , e ela parecia tirar coragem disso. Então, Chris morreu, e a esposa, Becky, que já havia ignorado a situação antes, demitiu a mãe de Norma, deserdou as duas, deixando-as sem um centavo. Chris deve ter pensado que viveria para sempre e não as contemplara em testamento. Enm, a pobre Norma foi retirada da escola. E, você sabe, eu estava certa: isso não a matou; acho que a fortaleceu. Fixei o olhar no retrato da garotinha de olhos tristes – e, de repente, as peças se juntaram com tanta força que eu quase pude ouvi-las retinindo. Quando conheci Norma Johnson, seu cabelo era louro-caramelo e ela tinha 33 anos. – A última vez que falei com ela foi há uns dez anos. Conseguira entrar no ramo de pequenos serviços, usando os velhos contatos para obter trabalho. Durante um bom almoço em Fort Mason, Norma falou comigo sem reservas e posso lhe dizer, sargento, e não sinto prazer algum em falar isso, Norma estava muito amarga. Sabe como aquelas meninas ricas chamavam a velha amiga de escola? De “Garota de Estimação”.
capítulo 94
CONKLIN PEGOU UMA cadeira no escritório de Jacobi, mas eu estava tão elétrica que não conseguia sentar. Também me sentia angustiada. Havíamos interrogado Norma Johnson duas vezes, não a consideramos suspeita em nenhuma das ocasiões e a descartamos. – Estou deixando passar algo? – Jacobi me perguntou. – Ou você? Suas mãos carnudas estavam entrelaçadas sobre a mesa de trabalho, que parecia uma pilha de lixo. – Talvez seja eu. O quê, por exemplo? – Você pensou na hipótese de Ginny Friedman ser a assassina? Ela não só admite conhecer uma das vítimas de 1982 como conhece metade das recentes. – Ela tem um álibi sólido, Jacobi. Não lhe disse isso? – Você disse que ela tinha um álibi, Boxer. Estou pedindo detalhes. Certas vezes, relatar algo a Jacobi se tornava uma tortura para mim. Será que ele se esquecera de que havíamos trabalhado juntos por mais de dez anos? Será que se esquecera de que costumava se reportar a mim? – Quando os assassinatos ocorreram, Ginny Friedman estava cruzando o Mediterrâneo em um veleiro – contei. – Ela soube dos assassinatos quando a embarcação atracou na semana passada em Cannes. Na França. – Sei onde Cannes ca – retrucou ele, pronunciando, erradamente, o “s” do nome da cidade. – Tenho os recibos de Friedman de ida e volta do avião e os documentos de viagem do Royal Clipper em cima da minha mesa. A embarcação deixou o porto antes de os Baileys serem assassinados e só retornou depois que Brian Caine e Jordan Priestley já estavam mortos. – Tem certeza? – Examinei o passaporte. A foto era atual e havia o devido carimbo. Ela não esteve em São Francisco ao longo do mês passado, Jacobi, sem chance. De qualquer forma, McCorkle a está investigando. Jacobi retirou o fone do gancho e apertou todos os cinco botões de suas linhas para não receber telefonema algum. Em seguida, encarou-me. – Conte-me mais sobre essa Garota de Estimação. Relatei-lhe que o pai de Norma Johnson, Christopher Ross, não era casado com a mãe dela, que apenas trocava a roupa de cama e passava o aspirador de pó na mansão em Nob Hill.
– Ross era tão rico que estava além de qualquer escândalo, pelo menos enquanto estava vivo – comentei. – Após a sua morte, a mãe de Norma foi demitida e a menina foi ocialmente banida. O pai não lhe deixou nada. As amigas a tratavam como lixo. Então, Norma começou a trabalhar para elas. – Norma possuía as chaves das residências – acrescentou Conklin – e as senhas dos sistemas de segurança. Também tinha muitas oportunidades favoráveis. O que ela disse mesmo, Lindsay? Que ninguém sequer sabia que ela estivera nas casas. Que os clientes gostavam disso. – Ela tinha apenas 10 anos quando o pai foi assassinado? – questionou Jacobi. – Isso mesmo. Não poderia ter matado aqueles ricaços nos anos 1980. No entanto, o fato de o pai ser uma vítima poderia tê-la inspirado. – Macaca de imitação – falou Jacobi. – É o que achamos – concordei. Ele bateu na mesa, levantando poeira. – Peguem essa garota – ordenou. – Vão buscá-la.
capítulo 95
SENTEI-ME À MESA, ao lado de Conklin, na sala de interrogatório, pronta para intervir se necessário, mas ele tinha a entrevista sob controle. Norma Johnson gostava do meu parceiro, que lhe mostrava como era uma boa pessoa, um sujeito em quem se podia confiar – mesmo que você fosse uma psicopata. – Não entendo por que não nos contou que o seu pai havia sido morto por uma cobra – comentou Conklin. – Bem, teria contado se tivessem me perguntado, mas, sabe, não relacionei a morte do meu pai a nada disso até você dizer que os Baileys e Sara haviam sido mortos por uma cobra. – E Brian Caine e Jordan Priestly? Você os conhecia? – Não muito bem. Trabalho para Molly Caldwell-Davis de vez em quando e encontrei Brian na casa dela uma ou duas vezes. Jordan estava lá o tempo todo, porém não éramos amigos. – Trabalhou para Molly na noite de 24 de maio? – Teria que olhar na minha agenda… Não, espere. Ela não deu uma festa no dia 24? Fui convidada. Passei por lá, mas não conhecia ninguém, então disse “oi” para Molly e saí cerca de dez minutos depois. Não precisava levar Mischa para passear. – E como era o seu relacionamento com Molly? Como o descreveria? – Hum, prossional e casual. Eu a conheci por intermédio de um ex-namorado meu. Você deve ter ouvido falar dele. McKenzie Oliver? – A estrela do rock que morreu de overdose? Norma brincou com as pontas dos cabelos. – Sim, é ele mesmo. Não estávamos namorando na época. Conklin fez uma anotação em seu bloquinho e indagou: – Tem alguma opinião a respeito disso? Alguém que poderia ter assassinado o seu pai e, então, 23 anos mais tarde, talvez matado um monte de gente que você conhece? – Não, porém esta é uma cidade muito pequena, inspetor. Todo mundo se conhece. Ressentimentos podem durar gerações, mas, ainda assim, não conheço nenhum assassino. Estou bem certa disso. O comportamento de Norma era comedido, beirando a arrogância – e isso era loucura. Pela terceira vez, ela encontrava-se em uma sala pequena com policiais. Não tinha como não pensar que era suspeita. Possuía motivo para car nervosa, mesmo que fosse inocente.
Deveria estar questionando se precisava de um advogado. Em vez disso, sacudia o cabelo e flertava com Conklin. Fiz duas anotações mentais: Dizer a Claire para rever o relatório da autópsia de McKenzie Oliver. Descobrir se Norma Johnson possuía uma cobra venenosa ou se tinha acesso a uma. Pedi licença, saí da sala de interrogatório e quei com Jacobi atrás do vidro. Juntos, assistíamos e escutávamos enquanto Norma contava a Conklin sobre o próprio pedigree. – Não sei se você sabe, mas meu pai era o tataraneto de John C. Frémont. – O Pioneiro? O explorador que mapeou a rota para a Califórnia à frente da corrida do ouro? – Esse mesmo. Eu tenho sangue azul, inspetor. Não tenho nada contra os aspirantes à ascensão social para os quais trabalho, se é o que está pensando. John C. Frémont entrou para a história… e começou a vida assim como eu. Era um bastardo. – Estou muito impressionado, Norma. Por favor, me ajude. Você conhece São Francisco como a palma da mão, e eu sou um forasteiro. Nem nasci aqui. – Quer saber quem matou todas aquelas pessoas? Já lhe disse. Não tenho ideia. Conklin sorriu, mostrando as covinhas. – Na verdade, ia perguntar quem você acha que poderia ser a próxima vítima. Norma se recostou na cadeira, inclinou a cabeça e sorriu também. – O próximo a morrer? Sabe, meu círculo está cando meio pequeno. Estou achando que a próxima vítima poderia ser eu. – Caramba – comentei com Jacobi. – Não estou gostando disso. O que ela está planejando fazer? – Fique de olho – sugeriu. – Não a perca de vista.
capítulo 96
PERDEMOS DE VISTA a Garota de Estimação. Não sabíamos se ela se misturara ao uxo de pedestres na Bryant Street ou se entrara em um táxi. Eu e Conklin permanecemos como bobos na rua, piscando sob a luz do sol, procurando por uma loura de preto. – Tente o telefone – pedi. – Diga-lhe que tem outra pergunta. Marque um encontro. – Já entendi. Descubra onde ela está. Resmunguei “Desculpe” por ter me comportado como Jacobi, e observei o meu parceiro discar e ouvir a mensagem deixada pela Garota. – Oi, Norma. Aqui é o inspetor Conklin. Ligue para mim, ok? Tenho uma pergunta rápida. Deixou seu número e desligou. – Vamos… – Investigar a casa dela – completou. Murmurei “Espertalhão” e ele riu, e nos dirigimos para o carro. Depois de trinta minutos de trânsito, estacionamos perto do portão da Avenida 25 que dava para Presidio. Presidio tem uma longa história, primeiro como um forte espanhol na baía de São Francisco, em seguida, como sede do Exército quando foi tomada pelos militares dos EUA em 1846. Cerca de 150 anos mais tarde, foi privatizado, tornando-se um complexo de edifícios comerciais e residenciais. A renovação deu origem a edifícios de tijolos vermelhos com varandas brancas no estilo colonial das missões hispânicas. Outras moradias foram abandonadas e, aos poucos, desmoronavam em direção à baía. O endereço da Garota indicava que o apartamento era na parte pitoresca e mais barata do antigo quartel, uma longa caminhada de onde estávamos. E o que me ocorreu na hora foi que, da casa de Norma Johnson, era possível ver Sea Cliff, onde ficava a Burke School – e onde havia sido desgraçada. Eu achava que o status fosse importante para ela. Então, por que se metera naquilo tudo? Eu e Conklin caminhamos rápido pelos arredores de Presidio, que se assemelhavam a um parque, lotados, nesse dia útil, de windsurstas trocando de roupa no estacionamento, apreciando a brisa que vinha de Baker Beach. E, então, o apartamento de Norma apareceu, uma das duas unidades anexadas
com um pequeno jardim na frente. O lugar precisava de uma pintura e havia uma bicicleta deitada na grama alta em frente à porta como se tivesse sido jogada ali na pressa. Bati, chamei-a, voltei a bater, com mais intensidade – mas não obtive resposta. Pensei na Garota de Estimação dizendo a Conklin “A próxima vítima poderia ser eu”. – Circunstância urgente, Rich. Ela pode ter se machucado. Pode estar morrendo. Disse-lhe para chutar a porta. Porém, ele colocou uma das mãos na maçaneta e a girou, e a porta se abriu. Já estava com a pistola na mão quando entramos no apartamento. Era limpo e pequeno, com móveis que pareciam ser sucateados, à exceção de uma fotograa de Christopher Ross em um porta-retratos rebuscado sobre o console no corredor. Ouvi passos abafados e um som estrondoso, mas não consegui identicar o ruído nem de onde vinha. Conklin estava atrás de mim enquanto eu me movia rumo aos fundos do duplex, gritando: – Norma, é a sargento Boxer. A porta estava aberta. Poderia aparecer, por favor? Temos que conversar. Tudo estava em silêncio. Instruí Conklin a car no térreo e subi a escada. Os cômodos no andar superior eram tão pequenos que dava para ver cada canto, porém, ainda assim, revirei camas, vasculhei armários, procurei em painéis soltos, em todos os lugares possíveis. Onde diabo estava a Garota? Olhei os dois quartos pequenos, o banheiro e os armários mais uma vez, mas Norma Johnson não estava ali. A Garota de Estimação invisível voltara a se tornar invisível.
capítulo 97
FIQUEI SOBRESSALTADA COM o estrondo de objetos pesados caindo no chão, no andar abaixo. Então, ouvi o ruído surdo de novo, talvez uma porta de correr pesada – e escutei vozes. Conklin está conversando com Norma Johnson. No momento em que me chamou, encontrava-me na metade da escada. Meu parceiro estava na cozinha, olhando para uma fresta entre a bancada e a geladeira, pelo vão de uma porta que eu pensara ser estreita demais para levar a qualquer lugar, exceto a um armário para material de limpeza. Aparentemente, a porta deslizava para dentro de uma fenda na parede e havia um cômodo atrás, que parecia uma despensa. – Lindsay – disse ele, em um tom comedido –, Norma tem uma arma. Entrei na cozinha de 2,5 x 3 metros até ser capaz de ver Johnson. Ela estava de costas para a despensa e Conklin, a menos de 1,5 metro na frente dela, impedindolhe a saída. Fiquei estupefata ao perceber que a arma era a cobra que ela segurava com a mão direita. Era esguia, listrada de cinza e branco, uma krait mortal, a cauda chicoteando, a cabeça balançando a centímetros do pescoço de Norma. – Saia do meu caminho, inspetor – sibilou ela. – Vou sair pela porta da frente e você vai me deixar ir. E vou trancar a porta. As cobras não incomodarão enquanto você ficar bem quieto e se mover bem devagar. Como Norma avançou em direção a Conklin, consegui ver a despensa atrás dela. Prateleiras de metal ao longo da parede continham uma série de aquários de 75 litros e o chão do cômodo estava coberto com vidro quebrado. Minhas mãos congelaram quando compreendi o som do estrondo. A Garota puxara alguns dos tanques, que se espatifaram no chão. As cobras estavam soltas no apartamento, procurando lugares para se esconderem, provavelmente serpenteando pelos cantos da pequena cozinha onde eu e Conklin nos encontrávamos. – Quero que abra o forno e coloque a cobra dentro! – gritei para a Garota. – Faça isso agora ou vou atirar. Ela riu. – Não, não vou fazer isso – replicou, mostrando-me um belo sorriso que eu não vira em seu rosto antes. – Então, o que vai acontecer, sargento? Vai me deixar ir? Senão, não me importa se Kali vai me morder ou se você vai atirar em mim. Não
faz diferença. Um relógio tiquetaqueava acima do fogão. Ouvi a respiração de Norma Johnson acelerar e vi que Conklin estava pálido. Ele tinha medo de cobras, pavor até, porém permanecia rme como uma rocha, bem perto do que aquela lunática considerava um animal de estimação. Não dava para disparar um tiro certeiro. – Afaste-se, inspetor – ordenou Norma. – Salve a si mesmo e me deixe ir. – Não posso fazer isso – retrucou ele. Então, fechou de forma brusca uma das mãos como se tentasse capturar uma mosca no ar. A intenção era agarrar o pulso da Garota, mas, antes que conseguisse, ela atirou a cobra em cima de Conklin. Ele deu um pulo para trás e ergueu uma das mãos para se proteger do réptil, que atingiu a palma do inspetor e cou presa ali por um instante – até Conklin sacudi-la e ela cair no chão. Conklin recuou, apertando o pulso. A seguir, virou o rosto pálido para mim. – Fui mordido – avisou, permanecendo imóvel. – A desgraçada me pegou.
capítulo 98
NORMA JOHNSON CORREU. Tentou me intimidar ao passar por mim, mas saí do transe de horror, agarreilhe um dos braços e a puxei com força. Um dos ombros estalou e ela gritou, porém a dor não a deteve. Com a mão que estava livre, pegou uma caneca de café e, agarrando-a como se fosse uma pedra, tentou acertar minha mandíbula. Esquivei-me e chutei um dos joelhos dela com toda a força. Norma voltou a gritar e caiu no chão. Eu a z rolar para car de barriga para baixo enquanto ela berrava de dor. Puxei-lhe os braços para trás e algemei-a ao mesmo tempo que gritava para Conklin: – Rich! Deite-se no sofá. Abaixe o braço em direção ao chão para que que em um nível abaixo do coração. Faça isso agora. Ele cambaleou até o cômodo ao lado como se já estivesse morrendo. Registrei a hora, peguei o celular, liguei para a Central e avisei a Kam que Conklin fora atingido. – Precisamos de uma ambulância urgentemente – armei, dando o endereço. – Telefone para o hospital, diga que a vítima foi picada por uma cobra. É uma krait. K-R-A-I-T. Precisamos de soro antiofídico agora. – Antídoto? – Sim. Não. É chamado de soro antiofídico. E mande policiais fardados para levarem a criminosa sob custódia. Caminhei até Norma, que se contorcia, dando gritinhos curtos. Abaixei-me e indaguei: – Você tem algum soro antiofídico aqui? – Mesmo se tivesse, não diria. Chutei-a nas costelas, e ela uivou. Voltei a lhe perguntar. – Não! Não tenho nenhum. Não acreditei. Abri a geladeira e analisei o conteúdo. Três potes de iogurte, caixa de ovos. Um engradado com seis cervejas. Rabanetes murchos. Nenhum frasco que parecesse algo que pudesse salvar a vida de Conklin. Sinceramente, eu me sentia como se dezenas de olhos me tassem. Estava aterrorizada por causa do meu parceiro e por mim mesma. Observava o chão enquanto voltava para a sala, onde Conklin estava deitado em um sofá xadrez azul, o braço atingido abaixado para impedir que o veneno se
deslocasse até o coração. Apenas um ou dois minutos tinham se passado desde que ele fora picado, mas eu não tinha ideia de quanto tempo restava até que seu sistema nervoso central fosse paralisado. Até que ele não conseguisse mais respirar. Será que já era tarde demais? Retirei o cinto dele e o coloquei logo abaixo de seu cotovelo como um torniquete. – Estou com você, camarada. A ambulância está a caminho. Uma sensação de pânico crescia dentro de mim como um tsunami e as lágrimas queriam jorrar. Entretanto, não podia deixar o meu parceiro ver isso. Desejava ter dez por cento da coragem que ele tivera. Forcei-me a desviar os pensamentos do que poderia acontecer. E foquei na distância entre nós e o hospital mais próximo. Pensei no trajeto que os paramédicos teriam que percorrer carregando macas desde o portão da Avenida 25. E depois havia o soro antiofídico. Como o hospital iria consegui-lo a tempo? Enquanto segurava a mão boa de Richie e escutava as sirenes, as almas de cada pessoa morta que eu amava visitaram-me: Jill, Chris e minha mãe. Não suportaria a dor se Conklin morresse. Ouvi as sirenes mais alto e depois se fez silêncio. Para o meu alívio, doze minutos após Conklin ter sido picado, paramédicos com macas irromperam pela porta.
capítulo 99
– COBRAS VENENOSAS ESTÃO soltas por todo o chão. São letais! – gritei. – Você disse que um policial foi atingido? – indagou um dos policiais. Eu o conhecia. Tim Hettrich. Vinte anos na polícia e um dos nossos melhores. Entretanto, ele e o meu parceiro tinham uma rixa, que começara quando Conklin foi promovido para a Homicídios. Achava que os dois se odiavam. – Uma cobra venenosa picou Conklin. – Um policial foi atingido, sargento. Vamos entrar. Enquanto Conklin era amarrado à maca, caminhei até o local onde Norma Johnson permanecia algemada no chão. O rosto estava inchado e o nariz sangrava, mas eu tinha a impressão de que, se uma cobra rastejasse para fora da despensa e a picasse, ela exultaria. Talvez quisesse morrer como o pai. Uma parte de mim tinha a esperança de que aquilo acontecesse, mas a outra, mais racional, queria ouvir a história. Queria saber o que Norma Johnson zera, quais foram as vítimas e o porquê de tudo isso. E que o Estado a julgasse, a condenasse e a matasse. Fiquei em pé ao lado dela e li os seus direitos. – Você tem o direito de permanecer em silêncio, sua covarde nojenta – informei. – Qualquer coisa que disser pode e será usada contra você em um tribunal. Você tem direito a um advogado, se conseguir encontrar um que seja vigarista o suciente para defendê-la. Se não puder pagar, o Estado da Califórnia lhe providenciará um. Fazemos isso até mesmo para a escória. Compreende os seus direitos, Garota de Estimação? Ela sorriu. Agarrei-lhe os braços pelas algemas e a sacudi, forçando o ombro deslocado e fazendo-a gritar. – Eu fiz uma pergunta: compreende os seus direitos? – Sim, sim! – Já a peguei, sargento – falou Hettrich. Colocou-a de pé e a empurrou pela porta. Eu queria sair também. No entanto, precisava ver o que havia dentro da despensa. Precisava saber. Caminhei até a abertura e tei as prateleiras de metal que ocupavam o espaço estreito. Dava para ver as kraits deslizando pelos restos da maioria dos tanques, cada uma delas carregada de veneno.
Aquilo era impressionante: anal, quais eram as intenções de Norma com tantas cobras assim? Quantas pessoas mais ela esperava matar antes de ser pega? O que havia na mente dessa mulher doentia? Mandei um policial lacrar e trancar o lugar. Em seguida, deixei a casa da Garota de Estimação. Corri em direção à ambulância e entrei assim que os paramédicos carregaram o meu parceiro para dentro. Sentei-me a seu lado, peguei a mão boa e a apertei. – Só vou deixar você quando estiver fazendo exões. Jogando basquete – aviseio, a voz falhando. – Você vai ficar bem, Richie. Vai ficar perfeito. – Ok – respondeu ele, baixinho, quase em um sussurro. – Mas me faça um favor, Linds. Em todo caso, reze por mim.
capítulo 100
QUANDO O MOTORISTA da ambulância virou à esquerda, soube que estávamos indo para um lugar que não queria ver de novo. A mãe de Yuki morrera no Hospital Municipal de São Francisco. Eu espreitara aqueles corredores por dias inteiros, esperando capturar um “anjo da morte” perturbado, aprendendo no processo que o hospital só estava interessado em altos lucros, não no atendimento. – O Hospital Geral é mais perto do que o Municipal – avisei ao motorista. – Estamos transportando uma vítima de picada de cobra, não é, sargento? O soro antiofídico foi para o Hospital Municipal. Calei a boca e z o que Conklin pedira. Enquanto segurava-lhe uma das mãos, rezei a Deus e pensei sobre a ótima pessoa que ele era, quantas coisas havíamos passado juntos, como era sortuda por tê-lo como amigo e parceiro. O trânsito se dividia à nossa frente à medida que a ambulância subia a Pine com a sirene estridente. Ela entrou aos solavancos no estacionamento e parou em frente à entrada da sala de emergência. Portas se abriram e médicos se misturaram. Enquanto Conklin era conduzido por entre as portas automáticas, eu corria ao lado da maca. Aquele cheiro horrível de desinfetante hospitalar me atingiu, e senti uma onda de pânico. Por que precisávamos levar Richie logo para ali? Então, vi Doc vindo em nossa direção. – O helicóptero de evacuação médica está a caminho – informou-nos. – Rich? Como se sente? – Apavorado – respondeu ele com uma voz meio engrolada. Coloquei uma das mãos na boca. Sentia tanto medo de perder o controle. De perdê-lo. – Alguma dormência? – perguntou Doc. – Sim. Na minha mão. – Tente relaxar – aconselhou-o. – O veneno demora a fazer efeito. Se você estivesse na selva, seria diferente. Mas estamos com você, Rich. Você vai ficar bem. Queria acreditar nele, porém só me sentiria confortada depois que Rich melhorasse. Enquanto meu parceiro era levado embora de cadeira de rodas, aviseio que estaria na sala de espera e agarrei uma das mangas de Doc. – John, tem certeza de que o soro antiofídico que você conseguiu vai resolver o
problema? – Deixei o Aquário do Pacíco em alerta desde que Claire me contou sobre as pessoas que morreram por causa das picadas de krait. Imaginei que havia uma chance de que pudéssemos precisar do soro. – Obrigada, Doc – disse, um sentimento de gratidão me inundando. – Obrigada por ser tão esperto. – Não há de quê. Vou dar uma olhada em Rich. Fui para um canto escuro da sala de espera e liguei para Cindy. Repeti para ela o que Doc me dissera. Depois, dei um telefonema para um hotel em Amã. Era uma hora da manhã lá, entretanto, após uma discussão com a telefonista, ela me transferiu. Joe parecia grogue de sono, mas se animou ao ouvir a minha voz. Era um tipo de milagre que pudesse encontrá-lo quando mais precisava. – Estava justamente sonhando com você – disse ele. – Sonho bom? – Acho que era um sonho de circo. – Como assim? – Corda bamba. Eu estava usando uma roupa colante. Com brilhos. – Você? – Os cabelos do peito pulando para for da roupa. – Joe! Eu ri. – Estava lá em cima, em uma plataforma do tamanho de um dinar. – E isso é…? – Uma moeda da Jordânia. E você está na corda bamba vindo em minha direção. – O que eu estava usando? – Você estava nua. – Não! – Sim! Carregando um monte de coisas nos braços, equilibrando-se sobre essa corda. E tenho que pegá-la quando você chegar ao meu dinar. – O que acontece? – O telefone toca. – Joe, estou com saudade, querido. Quando você volta para casa?
capítulo 101
O OMBRO DE NORMA Johnson havia sido recolocado no lugar e ela estava sob o efeito de um anestésico. A Garota sentou-se em frente a mim na sala de interrogatório, mexendo com um cartão comercial, a expressão de desprezo de volta ao rosto. Se Conklin estivesse ali, teria conversado de forma tranquila com ela. Eu queria retirar aquele sorrisinho malicioso do seu rosto. Norma atirou o cartão em cima da mesa e o empurrou na minha direção para que eu pudesse ler: FENN & TARBOX, ADVOGADOS. George Fenn e Bill Tarbox eram dois advogados de defesa criminal de alta qualidade que atendiam a uma parcela ínma da elite. Fenn era rme e criterioso. Tarbox era inconstante e encantador. Juntos, ambos tinham convertido mais sentenças condenatórias inevitáveis em absolvições do que eu gostaria de me lembrar. – A Sra. Friedman está pagando – avisou. Ela estava brincando comigo ou, o que era mais provável, pensava que era mais esperta do que eu. – Chame seus advogados – retruquei, tirando o rádio do cinto, jogando-o sobre a mesa. – Pode usá-lo. Mas, já que tudo isso é novo para você, deixe-me explicar como o sistema funciona. – Ahã. E vou acreditar em tudo o que você disser. – Cale a boca, idiota. Apenas escute. Como você pediu um advogado, não posso fazer um acordo. Esta é a forma como vemos: você agrediu um policial com uma arma letal. Se Conklin morrer, você está morta. Deixando isso de lado, nós temos cinco acusações de assassinato. Você tinha acesso a cada uma das vítimas. Todas foram mortas pela mesma cobra rara, importada de forma ilegal, que você mantinha no seu apartamento. Um estagiário de direito poderia condená-la. Mas não vamos usar um. Você vai enfrentar Leonard Parisi, o melhor de todos, porque você matou pessoas inuentes e porque se trata de um caso midiático. Não podemos perder e não vamos perder. – Você deve ter alguma bola de cristal, sargento. – É melhor acreditar nisso. Porque, enquanto seus advogados estiverem atraindo a imprensa às custas da Sra. Friedman, suas antigas colegas de escola vão testemunhar a favor da acusação. Elas vão acabar com você no tribunal, Norma. Em seguida, vão contar aos jornalistas tudo a seu respeito, como você as aborrece,
como você é patética… E depois que você tiver sido exposta como a psicopata cruel que é, o júri vai condená-la nas cinco acusações. Está entendendo? Você vai cair em desgraça e, então, vai morrer. Vi um lampejo de pânico nos olhos da mulher. Será que eu a afetara? Será que Norma Johnson estava com medo? – Se é uma coisa absolutamente certa, por que você está falando comigo? – Porque a Promotoria Pública está disposta a fazer um acordo. – Ah, isso deve ser bom. Como se eu não tivesse visto esse estratagema uma centena de vezes em Lei e ordem. – Há uma brecha, Norma. Um pouquinho de exibilidade na pena de morte. Por isso, me escute. A médica-legista chefe reviu o relatório da autópsia do seu antigo namorado. – McKenzie Oliver? Ele morreu de overdose. – O resultado do exame de sangue não chegou a ser indicativo de overdose. Entretanto, ele estava na casa dos 30 e saudável. Logo, o médico-legista que fez a autópsia não investigou mais. Mas este é um novo dia, Norma. Achamos que você o matou porque ele a deixou. O corpo está sendo exumado neste minuto. E, desta vez, o médico-legista vai procurar por marcas de presas de cobra. Norma olhou para o cartão comercial que Ginny Friedman lhe dera, depois para o meu telefone, e então me encarou. – Qual é o acordo? – Conte-me sobre os assassinatos, todos eles, incluindo o de McKenzie Oliver. Nós a pouparemos da humilhação de um julgamento e descartaremos a pena de morte. A oferta expira quando eu levantar desta cadeira. Houve uma longa pausa, por dois minutos. – Isso não é bom o suficiente – comentou ela. – É tudo o que vamos oferecer. Juntei os papéis, abotoei a jaqueta e me afastei da mesa. A Garota de Estimação elevou a voz: – O que você irá retirar da minha sentença se eu disser quem matou aqueles ricaços em 1982? Sufoquei minha surpresa e excitação. Virei-me para o espelho falso, que permitia à pessoa do outro lado enxergar através dele. Em um instante, Jacobi abriu a porta e enou a cabeça na sala de interrogatório. – Espere um pouco – disse-me. – Estou entrando em contato com Parisi.
capítulo 102
A SALA DE INTERROGATÓRIO cou menor quando os 205 quilos de Red Dog e de Jacobi a ocuparam. Parisi tem quase 1,90 metro, cabelo ruivo crespo e pele marcada por cicatrizes de varíola e uma voz de barítono típica de um fumante. Ele até podia ser engraçado, mas, se quisesse, poderia assustar a própria mãe, levando-a a um ataque cardíaco. Jacobi também é aterrorizante quando a pessoa não o conhece e adora como eu. Os olhos cinzentos indecifráveis são como brocas. E as mãos grandes, inquietas. Como se estivesse procurando um motivo para cerrar os punhos e acabar com alguém. Os dois arrastaram cadeiras e vi a arrogância da Garota vacilar. – Agora acho que eu deveria ter um advogado – comentou ela. – É seu direito – resmungou Parisi e virou-se para mim: – Boxer, leve-a de volta para a cela. Assim que me levantei, Norma gritou: – Espere! – Não estou aqui para me divertir – avisou-a Parisi. – Então, não me faça perder tempo. – Abriu uma pasta de arquivo, espalhou as fotos do necrotério sobre a mesa e lhe perguntou: – Você matou estas pessoas? Enquanto seus olhos examinavam as fotos, percebi que ela nunca vira as próprias vítimas mortas. Será que se sentia arrependida? Ou estava impressionada consigo mesma? Ainda tando as fotos, Norma pediu a Parisi que prometesse livrá-la da pena capital se lhe contasse sobre a participação na morte de McKenzie Oliver. Quando ele concordou, ela suspirou alto. – Eu matei todos – confessou e sua voz falhou, demonstrando autopiedade. Algumas lágrimas escorreram. – Mas lhes causei menos dor em suas mortes do que eles me causaram em apenas um dia da minha vida. Será que a Garota de Estimação não sabia que as lágrimas eram desnecessárias? Que tudo o que nos importava era a conssão? Que tudo o que queríamos eram as palavras? Enxugou as lágrimas com as costas das mãos e perguntou se estava sendo gravada. Respondi que sim, e ela revelou seu contentamento.
– Quero que haja um registro da minha declaração – falou. – Quero que as pessoas entendam as minhas razões. Norma levou mais de uma hora para explicar seus motivos, detalhando a vida das vítimas como apenas um voyeur obsessivo poderia fazer e contando como a tratavam de uma maneira “inacreditavelmente ofensiva” , sem que merecesse, e como as matara de forma indolor. Por último, falou como levara McKenzie Oliver para a cama, com o pretexto de uma despedida, e zera com que uma krait o picasse. Parisi já tinha o que queria. Não precisava de firulas. Ele interrompeu o discurso oco e narcisista da Garota: – Tenho que ir para o tribunal, Srta. Johnson. Conte-me sobre os assassinatos de 1982 se quiser que consideremos uma redução em sua sentença. – O que vai me oferecer? – Neste exato momento, você está olhando para seis sentenças consecutivas de prisão perpétua, sem liberdade condicional – avisou-a. – Diga para nós o nome do assassino de 1982 e permitiremos que diga a uma comissão quanto lamenta após cumprir algum tempo. – Isso é tudo? – Isso é esperança. É uma chance de que talvez você fique livre antes de morrer. Norma colocou a mão sobre a boca. Pensou bastante e por tanto tempo que eu não conseguia imaginar o que ela responderia. Parisi consultou o relógio e se afastou da mesa, as pernas da cadeira chiando como os freios de um caminhão de dezoito rodas. – Já é o suficiente, tenente – informou Parisi a Jacobi. – Acabe com isso. – Meu pai – disse ela baixinho. – Christopher Ross foi uma das vítimas – lembrei. – Ele conhecia o assassino? – Ele era o assassino – revelou a Garota. – Papai me contou. Ele fez tudo aquilo.
capítulo 103
A GAROTA DE ESTIMAÇÃO acabara de denunciar o pai morto como o assassino de 1982. Se a história fosse verdadeira, o pai havia sido um serial killer. Ela seguira seu exemplo, tornando-se uma também. Seria verdade? Ou era tudo uma invenção desesperada para ajudar a si mesma? Pedi que Norma prosseguisse. – Papai me contou quem matou e por quê. Odiava aqueles vigaristas que o sugavam por ser rico. Amava a minha mãe porque ela era verdadeira. Enou a mão dentro da própria blusa e tirou de lá um medalhão. Abriu-o com as mãos trêmulas e o estendeu para mostrar a Parisi a foto de Christopher Ross. Parisi nem fez menção de olhar. Continuou fuzilando-a, como se dissesse “Red Dog vai cortar seu pescoço”, e afirmou: – Uma alegação não vale nada. Quer negociar? Preciso de provas. Pela primeira vez desde que Jacobi e Parisi entraram na sala, a Garota se voltou para mim. – As chaves estão na minha bolsa – contou-me. – É uma vermelha, de couro de avestruz. Acho que a deixei sobre o console no vestíbulo. Assenti. – Bolsa vermelha. Irei encontrá-la. – Procure uma chave de latão com a parte de cima redonda; ela abre o cadeado da minha unidade de depósito – explicou. – Bay Storage, unidade número 22. Tenho toda a papelada do meu pai guardada lá. Dentro de uma das caixas há um arquivo em que está escrito “Nataraja”. – A caixa tem número? Etiqueta? – Deve estar bem na frente. Acho que na segunda ou na terceira leira do lado direito… Eu já estava pensando no mandado de busca que precisaria pegar no outro andar, quando meu celular tocou: era Brenda, minha assistente. – Lindsay, dois senhores… – gritou ela. A porta da sala de interrogatório se abriu, e dois senhores de aparência distinta irromperam. Bill Tarbox usava um terno com listras nas azuis e brancas e uma gravataborboleta de bolinhas vermelhas e brancas. Ele devia ter esquecido o chapéupanamá lá fora, dentro do Rolls-Royce. Já o corte de cabelo de Fenn era tão
eriçado que alguém poderia se cortar se roçasse nas costeletas. Fenn passou os olhos com raiva pela sala, identificou a cliente e mandou: – Norma, pare de falar. Somos os seus advogados e esse interrogatório acabou.
capítulo 104
EU ESTAVA COM Conklin no seu quarto particular no hospital com vista para o estacionamento. Ele estava pálido, o cabelo úmido caído na testa, mas o sorriso era franco e ele contava piadas, o que era um bom sinal. Posicionei a cadeira reclinada para que ficasse apontada para a cama. – Você não está irritado, certo, Rich? – Por quê? Porque você fez a Garota de Estimação confessar enquanto eu quei aqui deitado como um saco de areia? Por que isso me deixaria irritado? Deixe disso, Lindsay. – Ele me encarou. – Pegar aquela psicopata, mesmo que eu não estivesse lá no momento triunfal… isso é que é importante. Enfermeira, preciso de cianureto, urgente! Dei uma risada. Rich sobrevivera ao ataque da cobra da Garota e, só por isso, já era um herói. Ele estava vivo, e nós dois e McCorkle havíamos ganhado pontos por prepararmos Norma para a promotoria. Isso era o que gostávamos de chamar de “um grande dia para ser um policial”. Uma auxiliar de enfermagem trouxe a refeição para Conklin. Enquanto ele remexia o mingau, contei-lhe sobre meu retorno ao apartamento da Garota de Estimação. – O Centro de Resgate de Animais informou que o local estava fora de perigo. Mas, sinceramente, como eles podem saber que capturaram todas as cobras? Andei na ponta dos pés, Rich, e nem tenho certeza se cheguei a tocar no chão. Ele abriu um sorriso. – Você tem uma baita coragem, Lindsay. – Peguei aquela bolsa, bati a porta atrás de mim, encontrei as chaves. Das 62 chaves, 50 eram de latão com a parte de cima arredondada. – Uma delas encaixou no cadeado? – Está com pressa? – Não, não. Pode falar como quiser. Voltei a rir, contente por saber que Conklin estaria fora daquela casa dos horrores assim que Doc lhe desse alta. – Encontrei McCorkle na unidade de depósito da Garota – continuei. – Levou junto com ele aquele garotão do laboratório. Abrimos a porta e demos de cara com quase 10 metros de caixas de papelão. O garotão começou a colocar as caixas no chão, e McCorkle e eu folheamos os arquivos por cinco horas à procura de “Nataraja” . Acontece que Nataraja é o nome de um deus indiano, que carrega uma
cobra ao redor dos ombros. A Nataraja Exports vende répteis venenosos. – Lindsay, você arrasou. – Sim, arrasei. Encontrei a correspondência entre um tal Sr. Radhakrishnan da Nataraja Exports e Christopher Ross, CEO da Pacific Cargo Lines, e a fatura de um caixote de kraits. Datada de janeiro de 1982. – O imbecil mantinha um registro da compra das cobras? Mas como você confirmou que ele foi o assassino e também uma vítima? – McCorkle acha que a morte dele foi um acidente, talvez um suicídio. Nunca saberemos, mas uma coisa é certa: Norma Johnson será condenada a seis prisões perpétuas. E McCorkle deu o caso por encerrado. Eu e Conklin batemos as palmas das mãos, comemorando, quando um tornado louro de cabelo encaracolado irrompeu no quarto com uma caixa embrulhada e um monte de balões de hélio. – Ei, você – chamou Conklin, claramente encantado. – Ei, você, também. Sorrindo, Cindy me cumprimentou e beijou e abraçou Conklin. Colocou a caixa em cima da barriga dele e exigiu que ele a abrisse. – É um roupão de banho – falou ela. – Não quero ninguém vendo o seu traseiro além de mim. Conklin riu, o rosto corando. Enquanto ele tirava o laço, eu disse: – Essa é a minha deixa para ir embora. Espero vê-lo na Central amanhã, camarada. Dei-lhe um beijo no rosto e abracei minha amiga. Ao sair do quarto, pensei: Cindy e Rich ficam bem juntos. Realmente ficam.
capítulo 105
NAQUELA NOITE, ASSIM que Claire, Yuki e eu entramos no Susie’s, ocorreu um apagão, mergulhando tudo no breu. Estranhos se esbarravam, pedindo cerveja enquanto ela ainda estava fria, e o músico continuou a cantar sem microfone, elevando a voz melodiosa: – Sal, chá, arroz, peixe defumado são bons, e o rum é de qualidade em qualquer época do ano… Nós três nos apressamos rumo ao salão dos fundos, ocupamos a mesa de sempre, guardando o lugar de Cindy para depois que ela levasse Conklin para casa com o novo roupão de banho. – Ela vem, mesmo assim? – perguntou Yuki. Claire e eu demos de ombros de forma exagerada. Yuki riu e Lorraine colocou velas na mesa, trazendo uma jarra de cerveja, uma cesta grande de batatas chips e uma tigela de molho. – Este é o jantar até que a luz volte – informou. Aproveitei para relatar a Claire e Yuki a conssão da Garota e o encerramento do velho caso de McCorkle. Claire se juntou a mim para contar sobre a autópsia do corpo de McKenzie Oliver: – A marca da picada foi pouco acima da escápula. Ninguém as teria encontrado a menos que, de fato, estivesse procurando por elas. Só então é que Cindy entrou às pressas no bar e encontrou a nossa mesa. Estava sem fôlego mas radiante quando se sentou ao lado de Yuki. Lorraine trouxe outra jarra de cerveja e avisou: – Estamos fechando, senhoras. Esta é a última e é por conta da casa. Enchi o copo de Cindy e ela o ergueu, fazendo um brinde. – A vocês, garotas, por salvarem a vida de Richie. – O quê? – exclamou Claire. – A você, Claire, por contar a Doc sobre as kraits. Se não fosse por isso, ele não teria deixado o aquário de prontidão. E a você, Linds, por ter colocado aquele torniquete, dizendo-lhe o que fazer. – Está planejando agradecer à Academia agora? O que z por Conklin ele faria por mim. Isso é o que significa sermos parceiros. – É verdade, mas, de qualquer forma, você fez isso. – Não dê bola para ela. Isso é A-M-O-R – falou Claire. – E a você – disse Cindy a Yuki.
– Sou inocente. Não tive nada a ver com Conklin. – Você encontrou Doc. – Bem, acho que todas nós deveríamos lhe agradecer também, Cindy – continuou Claire. – Sem essa. – Conklin desejava Lindsay há muito tempo e, como ela não cedeu, é mérito seu ter dado àquele garoto algo pelo que viver. Cindy baixou os olhos e, de modo hilário, respondeu: – O prazer é todo meu. Todas nós rimos, até eu, até Cindy. E quando enxugamos as lágrimas, Yuki avisou que tinha algo para nos contar. – Vou car fora por algumas semanas. Meu tio Jack me fez um convite e tirarei férias. – Está indo para Kyoto? – perguntei. – Essa viagem irá me fazer bem. – Você vai ver Doc de novo? – Vamos deixar as coisas acontecerem. No entanto, meu coração diz que não, Lindsay. Ou, para ser mais precisa, minha cabeça diz que não. – Não finja, querida – ralhou Claire. – Não vai dar em nada – insistiu Yuki.
capítulo 106
A MANHÃ VEIO E Conklin se encontrava a postos quando cheguei. Estava barbeado e parecia que ganhara 1 milhão de dólares. A equipe diurna se aglomerou ao redor das nossas mesas querendo apertar-lhe a mão e dizer como era ótimo tê-lo de volta. Brenda havia feito um bolo e comentou: – Não há quem não goste de um bolo de chocolate com manteiga de amendoim. Ela estava certa, mas não tínhamos conseguido dar mais do que duas mordidas quando Conklin recebeu um telefonema de Skip Wilkinson, um dos seus colegas da Divisão de Narcóticos e Costumes. Após anunciar seu nome, tudo o que Conklin disse foi “Ahã. Ahã. Não brinca. É. É. Estaremos lá”. Desligou o telefone e me avisou: – Na noite passada, agentes da Narcóticos prenderam uma mulher que se prostituía para comprar crack. Ela carregava uma 22 registrada em nome de Neil Pincus. Eles a detiveram para nós. Dirigimos até a delegacia, cujo prédio em nada lembrava uma. Antigamente, era uma fábrica de desentupidores que ocupava a quarta parte de um bloco em Potrero, na Rua 18. Subimos correndo a escada até o terceiro andar. Skip Wilkinson nos encontrou no portão. Conduziu-nos até uma sala, onde podíamos ver a suspeita através de um vidro de visão unilateral. Era uma mulher jovem, negra, ossuda, vestida com jeans surrado e uma blusa baby-doll rosa imunda. A trança loura estava se soltando e, a julgar pelo olhar inquieto e as tremedeiras, percebi que ela tivera uma noite ruim na cela e precisava se drogar. Wilkinson informou: – Ela se chama Lawanda Lewis e tem 17 anos. Aqui está a ficha. – Duas prisões por prostituição – li. –Esta é a primeira por droga. Acreditam que ela é suspeita de homicídio? Qualquer coisa era possível, mas eu não achava provável. – Viu o endereço dela? – perguntou-me Wilkinson, apontando a cha de antecedentes criminais. – Cole Street. É a casa de Bagman. Ela morava lá. Talvez ainda more. De qualquer forma, era uma das garotas. Poderia ser a assassina. Tente a sorte. Era um daqueles momentos inacreditáveis. Neil Pincus, o advogado bom samaritano, mentira sobre a arma de fogo.
Depois, contou que ela foi roubada. Pensei que era uma mentira também e não esperava que seu revólver aparecesse. Eu estava errada.
capítulo 107
EU E CONKLIN entramos na sala de interrogatório. Ele puxou uma cadeira para mim, mostrando ser um cavalheiro. Sentei-me e ele fez o mesmo. A garota se encolheu quando meu parceiro lhe falou nossos nomes. – Lawanda… – começou ele, de forma gentil – Esse é seu nome, certo? Você costumava vender drogas para Bagman? Ela encarou a mesa e tirou esmalte das unhas, sem erguer o olhar. – Olhe, não nos importamos com as drogas. Sabemos que tipo de vida você estava tendo com ele. Sabemos como a usava. – Bagman me tratava bem. – É mesmo? Então, você não tinha motivos para matá-lo? – Matá-lo? Eu? Não o matei. Não, não, não. Não eu. Não tínhamos prova alguma de que Lawanda Lewis usara o revólver ou mesmo que os tiros que mataram Rodney Booker haviam partido da arma de Neil Pincus. As balas alojadas na cabeça de Bagman eram tão fragmentadas que nunca poderiam ser comparadas a algo. Mas eu estava certa de que Lawanda não tinha como saber isso. – Preciso lhe dizer, Lawanda, que você está com sérios problemas – informei. – Seu revólver foi usado para matar Bagman. A menos que nos dê um motivo, você será presa pelo assassinato dele. Lawanda deu um pulo da cadeira, agachou-se encostada à parede, no canto da sala, e cobriu a cabeça com as mãos. Encontrava-se no auge da crise de abstinência. Em questão de minutos, estava gritando, enraivecida: – Eu não fiz isso! Não matei ninguém! – Aquele revólver prova o contrário – afirmou Conklin. – Preciso de alguma coisa. Estou morrendo. – Fale primeiro, depois vamos lhe arrumar o que precisa. Enquanto ela permanecia agachada no canto, balançando-se e choramingando, eu repassava o crime na minha cabeça, tentando juntar as peças. Digamos que a garota precisara de uma dose. Booker a mandara sair e trabalhar. Ela tinha o revólver. Então, seguiu-o e o deteve na rua. Como ele não lhe deu as drogas, atirou e o roubou. Mas como poderia ter batido nele também? Ela era pequena. Certamente não era páreo para Booker. – Vai conseguir uma dose para mim? – indagou ela a Conklin. – Conseguiremos ajuda para você – respondeu ele.
Ela arranhava a própria pele, arrancava os cabelos. Eu tinha certeza de que não extrairíamos mais nada da garota, que ela caíra em um buraco negro de aição e não sabia que ainda estávamos lá. Porém, ela se controlou. Balançando-se, ainda tando o chão, gritou como se estivesse possuída: – Sammy Pincus me deu o revólver para eu me proteger na rua! Levantei-me da cadeira, caminhei até Lawanda e me abaixei para poder encarála. – Como Sammy Pincus conseguiu aquela arma? – indaguei. A garota me olhou como se eu fosse uma estúpida. – Ela a pegou do pai. O Sr. Neil matou Bagman Jesus.
capítulo 108
MEU CORAÇÃO MARTELAVA no peito. Conklin me seguia enquanto eu avançava pela escada estreita que conduzia aos escritórios de advocacia acima do refeitório popular. Um bando de garotas do salão de beleza tentou passar por nós, viu a determinação nos nossos rostos e recuou na hora, grudando-se na parede do patamar. Uma delas disse alto para as outras: – São policiais! Bati na porta do Pincus & Pincus. – Quem é? – perguntou alguém. – Sr. Pincus, é a polícia – respondi. Alan, o irmão maior e mais novo, abriu a porta. – Como posso ajudá-los? – indagou, barrando a nossa entrada com o corpo. – Para começar, o senhor pode nos deixar entrar – falei. Ele suspirou, saiu da frente e, por cima de um dos ombros, chamou: “Neil, a polícia.” Neil saiu do escritório. Estava vestido como da última vez que o vimos: calça cinza, camisa branca, mangas arregaçadas, sem gravata. Tirei o mandado do bolso interno da jaqueta e o mostrei ao “Sr. Neil”. – O senhor está preso. Arrancando o mandado da minha mão, desdobrou-o e examinou-o rápido. – Está maluca? Não assassinei ninguém. – Temos o seu revólver, Sr. Pincus. Apareceu nas mãos de uma testemunha que irá depor que o senhor atirou e matou Rodney Booker. – Isso é loucura – armou, indo em direção ao próprio escritório. – Vou telefonar para o meu advogado. – Pare exatamente onde está! – gritou Conklin. – Mãos para o alto, onde possamos vê-las. Faça isso agora. Não esperara resistência, mas estava preparada para isso. Enquanto meu parceiro mantinha a Glock apontada para Neil, empurrei-o para a parede e o algemei com as mãos às costas. – O senhor tem o direito de permanecer em silêncio – salientei, ao mesmo tempo que o revistava. – Ei! – berrou Al. – Deixem o meu irmão ir. Vocês entenderam tudo errado. Fui eu quem matou Rodney Booker.
– Al, não! Escute – disse-me Neil –, Al não tem nada a ver com isso. Eu que sou responsável. Matei o desgraçado pelo que fez à minha filha. – Fui eu e não me arrependo – insistiu Al. – Booker era um maldito canalha. O que fez a Sammy… aquela menina tinha todo o potencial do mundo. Neil queria capturá-lo de forma legal, porém Booker sempre conseguia escapar. Assim, peguei a arma do meu irmão. Encontrei aquele merda na esquina e atirei na cabeça dele várias vezes. – Obrigada – agradeci. – Havia balas sucientes em Booker e ele levou uma tremenda surra, logo ambos poderiam tê-lo matado. Na verdade, esta é a minha teoria. Os dois juntos o abateram. Li os direitos de Al, e Conklin o algemou. No entanto, senti uma pontada de preocupação. Neil Pincus confessou ter cometido o crime. Al Pincus também. Como montar um processo com base no testemunho de Lawanda Lewis, uma prostituta viciada em crack, que talvez até morresse antes do julgamento? Eu respondi à minha própria pergunta. Se cada um dos irmãos Pincus assumia o crédito do assassinato, se cada um dizia que o cometera sozinho, isso poderia fazer com que o júri tivesse dúvida razoável. Bastava um jurado para que ocorresse a anulação – e eu não acreditava que a cidade fosse aguentar mais de um julgamento por causa de um marginal como Rodney Booker. Então, entendi. Os Pincus tinham planejado tudo isso. Conklin e eu conduzimos os dois homens escada abaixo, minha mente já adiantando os fatos, separando-os, interrogando-os, tentando fazer um se virar contra o outro. Mas quando chegamos ao pé da escada, perdi o fio da meada. Um aglomerado de pessoas esperava no vão da porta aberta – e foi aí que as coisas ficaram loucas.
capítulo 109
UMA TURBA SAÍRA do refeitório popular para a rua. Havia desabrigados e voluntários e, naquele grupo que não parava de aumentar, vi pessoas que não pareciam ser do centro de assitência – empresários dos arredores. – Para trás! Deixem-nos passar! – gritei. No entanto, as pessoas se comprimiam ao redor, empurrando-nos, mostrandose uma ameaça. Atrapalhada, procurei meu telefone, pressionei as teclas sem olhar e, de algum modo, consegui entrar em contato com o sargento de plantão. Dei-lhe o número do meu distintivo e a localização e avisei que precisávamos controlar o povo. Imediatamente. Um homem com um bom terno abria caminho na nossa direção, chamando-me: – Sargento, sargento, sou Franklin Morris, membro da Associação da Rua 5. Não posso deixar que prendam esses homens porque eu atirei em Rodney Booker, e posso provar. Neil tentou me impedir, mas eu precisava fazer o que era certo. Diga a ela, Neil. Era o início de uma reação em cadeia, de um tipo que nunca vira antes – e nem poderia ter imaginado. – Sou Luvie Jump – disse uma mulher negra usando óculos roxos, uma dashiki e uma calça de malha justa. Ela vinha andando de lado, aproximando-se de mim enquanto falava. – Não escute o Sr. Morris, sargento. É o melhor amigo de Neil Pincus. Ouça-me. Fez uma pausa antes de contar a sua versão: – Chamamos a polícia diversas vezes e nada foi feito. Rodney Booker era uma praga. Vendia drogas. Transformava garotas boas em drogadas e prostitutas. Atirei nele porque era o demônio. Pergunte a qualquer um. Fiz isso com o revólver pequeno e sórdido de Neil Pincus, e estou pronta para assumir a culpa. Sentia-me tonta e um pouco enjoada. O carro se encontrava a apenas 20 metros, mas era tanta gente que eu não conseguia vê-lo. Apurei os ouvidos em busca do som de sirenes, entretanto não escutei nada exceto o alvoroço ao meu redor. Outro homem confessou, agarrando uma das minhas mangas, dizendo que seu nome era Harry Bainbridge. Era negro, com cabelo rastafári e dentes de ouro; parecia um sem-teto. Armou que batera em Booker com um pedaço de pau de 5 x 10 centímetros depois de lhe estourar os miolos com a arma barata de Pincus. – Aquelas reportagens dizendo que Bagman Jesus era um homem bom? Ele era
um merda. Onde vocês estavam quando os chamamos? Por que precisei sujar as minhas mãos? Eu z isso, senhora policial. Roubei o revólver do Sr. Pincus e atirei naquele lho da mãe. Ele estava implorando por sua vida, e não me importei por causa do que fez à minha garota, Flora. Uma mulher deu um passo à frente, ou talvez fosse um homem vestido de mulher, não dava para ter certeza. Disse que seu nome era Mercy. – Aquele canalha transformou a minha irmãzinha em uma prostituta. Encheu-a de meth e ela morreu na rua. Bem ali. Eu tinha que matar aquele babaca, entende? Já me consideraram maluca, então não me preocupei com o júri. – Mercy! Cale a boca. Não admita nada. Eu que z isso – bradou um homem que parecia um jovem pugilista profissional. O nariz era torto, e o homem dava a impressão de ser perturbado. – Atirei em Bagman seis vezes com a arma do advogado. Bam-bam, bam-bam, bam-bam e, quando ele caiu, eu o chutei. Bati nele com isto – explicou, sacudindo os pulsos. – Acabei com aquele merda pelo que fez à nossa vizinhança. Uma garota loura familiar, de rosto magro e abatido, bonita como uma líder de torcida viciada em meth, veio à frente. – Meu pai e meu tio Al não são culpados de nada. Estão tentando me salvar – revelou Sammy. – Armei que amava Bagman, porém era mentira. Após matá-lo, todos mentimos para que a polícia não suspeitasse de nenhum de nós. Ele era um tirano. Ele me escravizou. Foi por isso que peguei o revólver do meu pai… Agora tudo fazia sentido: aquele caos havia sido organizado. Será que os irmãos Pincus tinham planejado isso desde o dia da morte de Bagman? Viaturas e furgões da polícia, com as sirenes a toda, lançaram-se pela Rua 5 e frearam sobre a calçada, dispersando a multidão. Guardas saltaram, balançando os cassetetes, afastando todos. – Levem estes dois – ordenei aos guardas que se encontravam mais próximos de mim. Entreguei os irmãos Pincus e, enquanto ambos eram escoltados, as pessoas se agitaram e voltaram a avançar. No momento em que era colocado na parte de trás do furgão, Neil virou a cabeça e gritou: – Um segundo, ocial. Sargento Boxer? Não percebe? Ou todos nós o matamos ou nenhum de nós o matou. E mesmo que consiga levar alguém a julgamento, nunca conseguirá uma condenação. O assassino de Rodney Booker é um herói.
capítulo 110
COM A AJUDA dos reforços, Conklin e eu encostamos seis indivíduos na parede e os revistamos. Pegamos seus nomes e os despachamos nos carros e furgões para serem interrogados. Queria que os oito nos contassem a história da morte de Bagman, como zeram isso e por quê. Eu estava ao volante, ainda suando, enquanto retornava com meu parceiro para a Central. Aquela aglomeração acelerara tanto meu coração que ele ainda não voltara ao normal. Mas eu estava feliz. Olhei de relance para o espelho retrovisor interno e vi Franklin Morris e “Mercy” atrás da grade às minhas costas, conversando como se os estivéssemos levando para almoçar. Por que eles deveriam se preocupar? Era possível que os irmãos Pincus fossem expulsos da Ordem dos Advogados por confessarem o homicídio, porém alguém mais interviria para defender esse grupo de conspiradores. Pensei que o prognóstico de Neil estava certo. Se essas pessoas persistissem com suas histórias, nenhum júri condenaria. Oito conssões era algo oito vezes pior do que apenas uma, cada uma contradizendo a outra, logo haveria dúvida razoável. Eu me perguntava se haveria mesmo um julgamento. Falei a Conklin: – Cindy vai conseguir um contrato de cinema com isto aqui: “De herói do povo a assassino em massa, um tracante de drogas é derrubado por uma conspiração de membros do comitê de vigilância de rua.” Você deveria ligar para ela. – Não, você faz isso. Não quero confusão com a cadeia de comando. Eu sorri. – Ok. Após realizarmos o nosso trabalho, darei a exclusiva para ela. Fiquei quieta depois disso. Ao dobrar na Bryant Street, pensei em Bagman Jesus, um crápula charmoso e bonito que vendia crack para jovens, transformara garotas em viciadas em meth, um homem que investira em um laboratório móvel desta droga que explodira, matando dez pessoas, a maioria de cidadãos comuns no trajeto para o trabalho. Não tolero a justiça da rua. Se pudéssemos pegar o assassino de Booker, faríamos isso. Mas, talvez, no momento, a polícia se curvasse a um tipo diferente de lei. Bagman Jesus, que não
era um santo, havia sido eliminado de modo mais rápido e inteligente do que poderíamos ter feito – sem a brecha da liberdade condicional. Era incontestável que a nossa cidade estava melhor agora. – Em que está pensando, Lindsay? – perguntou Conklin. Virei-me para olhá-lo e vi que ele também se sentia bem. – Estava pensando que, de uma maneira estranha, este é um bom dia para ser um policial.
EPÍLOGO
FELIZES FINALMENTE
capítulo 111
ENQUANTO JOE DIRIGIA seu belo Mercedes Classe S preto, eu relaxava no banco ao lado. Era ótimo olhar à minha esquerda e ver seu rosto lindo, as mãos fortes ao volante. Toda vez que ele me flagrava contemplando-o, virava-se para me encarar. Sorrimos um para o outro, como estudantes que estivessem apaixonados pela primeira vez. – Mantenha os olhos na estrada, cara – repreendi-o. – Quero tirar o seu vestido. – Acabei de colocá-lo! – Eu me lembro – armou, olhando de soslaio. – O que você estava falando mesmo? – Yuki. – Certo. Ela vai ficar fora por algumas semanas. – Ela ia car fora por algumas semanas. Só que Parisi a chamou em seu escritório e disse: “Tenho um caso para você, Srta. Castellano. Acho que pode levar a uma promoção. E a um aumento de salário.” Joe girou o volante e deslizamos rápido pela estrada que conduzia ao estonteante Convento do Sagrado Coração, em Pacic Heights, um tipo de mansão antiga que lhe dava arrepios, onde o prefeito, seu amigo, estava promovendo uma grande arrecadação de fundos para crianças do centro da cidade. Tratava-se de um evento do alto escalão. Joe constava daquela lista porque havia sido diretor adjunto do Departamento de Segurança Interna, prestava serviços para o governo e era especialista em assuntos relativos ao Oriente Médio. Manobristas saíram das sombras e reetores do lado de fora transformaram o prédio em uma elegante casa noturna. Convidados vestindo Prada emergiam dos carros luxuosos. Joe saiu do automóvel, entregou as chaves a um manobrista e deu a volta para abrir a porta para mim. Segurei no seu braço. – Quero ouvir o resto da história – falou ele. Nós nos dirigimos para o pórtico de pedra em arco. Eu estava bem diferente do normal: com o cabelo preso, usava sapatos de salto alto e um vestido vermelho, longo e justo. Era bom saber que, se alguma vez houve um vestido feito para uma loura de quase 1,80 metro, eu o estava usando. E de braço dado com um homem bonito de smoking.
– Ah. Então Parisi disse a Yuki: “Estou lhe dando o caso de Rodney Booker. Parabéns.” Entregou-lhe uma bomba. Oito acusados, nenhuma testemunha, e uma vítima que não desperta simpatia alguma. Ela vai trabalhar nisso por um ano e, então, vai ser trucidada no tribunal. – Pobre Yuki. – Um dia ela vai ter folga. Talvez. Espero. Ao passarmos pela soleira, nos vimos em meio a um coquetel. Pessoas bonitas conversavam animadamente, rindo, as vozes ecoando na magníca Sala de Recepção com teto alto e caixotões projetados para lembrarem edifícios do Vaticano – Alto Renascimento Italiano, século XVI. Um garçom se aproximou com uma bandeja de taças de champanhe e eu e Joe pegamos. Após um gole, Joe colocou sua taça em uma mesa próxima, levou uma das mãos ao bolso e tirou uma caixa de veludo preto que eu vira muitas vezes antes. Ele já a oferecera a mim duas vezes e, embora nunca a tivesse aceitado por completo, eu a protegera do fogo e durante a mudança para o apartamento dele. De vez em quando, eu abria a caixa, apenas para ver como me sentia em relação a ela. Agora, Joe a abria de novo e a segurava de modo que os cinco diamantes no aro de platina cintilavam como um lustre de cristal. Olhei para ele, pensando que amaria aquele homem mesmo que ele estivesse em uma roupa colante com lantejoulas. Sorri. – Estou tendo uma sensação de déjà vu – comentou. O nervosismo me consumia, mas permaneci rme, sustentando o olhar do meu gostosão de olhos azuis. – Terei que voltar para o Queens e morar com a minha mãe? Ou você irá se casar comigo, Lindsay? As pessoas rodopiavam ao nosso redor ao som de uma banda que tocava uma música brega, mas muito sensível, dos anos 1940. Foi perfeito. Pousei a minha taça e lhe estendi uma das mãos. – Isto é um sim? – indagou Joe. – Ou está me convidando para dançar? – Ambos. É um sim duplo. O rosto dele se contraiu de emoção. Ele se declarou: “Amo você, loura.” Colocou o anel no meu dedo e me beijou. Senti o poder do nosso beijo, o modo como selava este momento perfeito e abençoava o nosso futuro juntos. Enlacei seu pescoço e ele me segurou rme. Enquanto dançávamos “Moonlight Serenade”, de Glenn Miller, Joe falava suavemente no meu ouvido: – Você não vai mudar de ideia. Vamos nos casar.
– Sim, Joe, vamos. Eu o amo muito. De verdade.
capítulo 112
NORMA JOHNSON DESCANSAVA na cela de segurança máxima no presídio feminino da Califórnia. O local tinha 2,5 x 2,5 metros, era de metal pintado de bege e continha um beliche com dois estrados estreitos, uma pia, um vaso sanitário de aço inoxidável e outra criminosa roncando em cima. A companheira de cela era Bernadette Radke, com idade para ser mãe deNorma, uma assassina como ela, mas longe de ser tão inteligente ou tão fria. Bernie matara o marido atropelando-o com uma picape e, então, enquanto estava “caindo fora de lá” , avançou um sinal vermelho e matou mais três pessoas. Uma delas era uma criança de 8 anos. Apesar do número de vítimas, ela não era um peso pesado. Não planejara, não tinha astúcia. Era apenas uma aberração furiosa beirando o retardo mental, mas a Garota gostava disso, porque Bernie era praticamente sua escrava. Todo mundo era. Norma Johnson não era mais a Garota de Estimação. Não tinha obrigações nem responsabilidades. Cada guarda no local, cada administrador tinha que tomar conta dela. Sua comida era preparada. O uniforme azul, lavado. Os lençóis, dobrados. A correspondência, entregue. E adivinhe? Havia muitas cartas. De fãs. De revistas. De Hollywood. Ela era uma celebridade agora. Todos queriam conhecê-la, conversar com ela. Tinham medo e, ao mesmo tempo, respeito. Ali, sentia-se como uma rainha chegando à terra natal. Pela primeira vez na vida, algum lugar lhe dava a sensação de pertencimento. Deitada em seu estrado, olhava para cima, rememorando toda a sua vida. Revolveu os muitos momentos que a zeram ser quem era, examinou os melhores e contou a própria história para si mesma. Lembrou-se, de modo especial, da única história que nunca revelara a ninguém: a vez em que seu pai a levou para a casa dele em Nob Hill, quando não havia ninguém lá. Ele lhe mostrou as cobras que mantinha em quarto privativo, explicou como as manipulava e lhe contou como poderiam ser usadas para matar. A Garota recordou como o amava naquele tempo. Quanto o venerava. No entanto, havia algo mais também. A pergunta. Por que não podia reconhecê-la como sua filha?
A mãe costumava car no andar térreo, passando o aspirador de pó na sala. Por que o pai não podia chutar a esposa? Por que não podia fazer com que Norma e a mãe fossem a sua verdadeira família, já que as amava tanto? E então algo aconteceu. A esposa dele chegou, viu Norma e ficou furiosa. – Não, Chris. Não aqui. Eu o avisei. Nunca traga essa menina para dentro da minha casa. – Sim, querida. Desculpe. Norma estava segurando a cobra em uma das mãos, mantendo aberta a boca do animal com o polegar e o indicador, assim como o pai lhe ensinara. Mas, naquele momento, havia pânico no rosto dele. – Tenho que tirar você daqui – comentou. Como se ela fosse lixo. Não carne e sangue. Não a sua lha. Não a descendente de uma filha de senador e do primeiro cidadão da Califórnia. Esquivou-se dele e passou correndo pela “bruxa” e pelo corredor, até a suíte. Lá, onde o casal dormia junto, largou a krait sob as cobertas da cama, onde era escuro e aconchegante, exatamente o que a cobra adoraria. E pensou que estava deixando o réptil para que a esposa dele morresse – porém, sabia que seu pai dormia naquela cama também. Ele a encontrou no banheiro grande. Bateu à porta. – Apresse-se – gritou. Foi a última coisa que lhe disse. Norma saiu, correu para fora da casa e cou sentada no meio-fio por horas. Chorou quando ele morreu. E tudo mudou depois disso. Entretanto, não se arrependia. Defendera a si mesma e agora a vida voltava a ser boa. Todas as suas necessidades estavam sendo atendidas. E ela era a pior, a mais importante naquele lugar. Era respeitada ali. Era respeitada. – Você está bem aí, Norma? – perguntou a guarda, chegando para deixar que ela e Bernie saíssem para a hora no pátio, chaves retinindo, produzindo um som reconfortante. – Estou bem – respondeu, dando-lhe um sorriso fora do comum. – Nunca estive melhor.

 

 

                                                                                                    James Patterson

 

 

 

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