SARAH WELLS ESTAVA NO TELHADO da garagem e enfiou uma das mãos enluvadas pelo buraco que tinha aberto no vidro. Conseguia ouvir as batidas do seu próprio coração enquanto destrancava a janela, a abria e deslizava em silêncio para o quarto escuro. Uma vez lá dentro, encostou-se à parede e esperou. Vozes ecoavam do andar de baixo. Ela ouviu o tilintar de talheres na louça de porcelana. Boa hora. Perfeita, aliás, pensou. No entanto, isso não queria dizer necessariamente que o plano seria bem-sucedido. Ela acendeu a lanterna que estava presa ao boné e deu um giro de 180 graus para iluminar o quarto. Notou o aparador atulhado. Precisava tomar cuidado com ele e os pequenos tapetes no assoalho escorregadio de madeira de lei. Jovem e ágil, logo cruzou o ambiente. Encostou a porta entre o quarto e o corredor, deixando uma fresta, e dirigiu-se para o closet aberto, que cheirava levemente a perfume. Jogou a luz da lanterna sobre as prateleiras de roupas. Afastou uma série de longos vestidos bordados com pedrarias, e lá estava: um cofre. Se Casey Dowling fosse como a maioria das socialites, certamente usava joias durante os jantares festivos. E havia uma boa chance de ela deixar o cofre destrancado para que pudesse recolocar tudo lá mais tarde, sem precisar digitar a combinação de novo. Sarah puxou de leve a maçaneta... e a pesada porta se abriu.
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Deu certo. Mas precisava trabalhar rápido. Tinha só três minutos. A lanterna iluminava o conteúdo do cofre, deixando-a com as mãos livres para revirar o amontoado de envelopes de papel acetinado e caixas cobertas por seda. No fundo, havia uma pequena caixa forrada com tecido brocado. Ela abriu o trinco e levantou a tampa. Sarah se surpreendeu. Durante dois meses, tinha lido matérias sobre Casey Dowling e vira dezenas de fotos suas em eventos sociais, carregada de joias cintilantes. Mas não esperava aquela quantidade de diamantes e pedras preciosas ou os montes reluzentes de pérolas barrocas. Era loucura Casey Dowling possuir tudo aquilo. Bem, logo ela não possuiria mais. Sarah pegou as pulseiras, os brincos e os anéis de dentro da caixa, guardando tudo em uma das duas pequenas bolsas cujas alças cruzavam-se no seu peito. Parou para observar um anel em particular e, de repente, as luzes do quarto se acenderam. Ela apagou a luz do closet e se abaixou. Seu coração disparou quando ouviu a voz de Marcus Dowling, astro do teatro e do cinema, discutindo com a mulher. Sarah curvou o corpo de 1,72 metro e cou encolhida por entre vestidos longos e sacolas de roupas.
Meu Deus, eu sou uma imbecil. Enquanto devorava as joias com os olhos, o jantar festivo dos Dowlings terminara e agora ela, uma professora de inglês do ensino médio, estava prestes a ser agrada e presa por roubo. Seria um escândalo. Sentiu o suor sob o gorro de tricô. Gotas escorriam das axilas pelas laterais da blusa preta de gola rulê enquanto ela esperava o casal acender a luz do closet e encontrá-la agachada ali.
2
CASEY DOWLING TENTAVA ARRANCAR uma confissão do marido, mas Marcus desconversava. – De que merda você está falando? – perguntou ele, ríspido. – Eu não estava olhando os peitos da Sheila, pelo amor de Deus. Toda vez que marcamos essas reuniões, você reclama que estou olhando para alguém com malícia. Sinceramente, querida, não acho a sua paranoia nem um pouco atraente. – Ahhhh, nããão. Estou tãããão envergonhada por ter pensado que você estava ertando com outra mulher! Casey gargalhou; seu riso era adorável, mesmo quando vinha acompanhado com um toque de sarcasmo. – Vaca idiota – resmungou Marcus. Sarah visualizou o belo rosto daquele homem, o cabelo grisalho espesso caindo pela testa enquanto ele franzia as sobrancelhas. Também imaginou Casey: esbelta, o cabelo louro claro pendendo como uma cascata de prata, na altura dos ombros. – Pronto, pronto. Feri os seus sentimentos – falou Casey com ternura. – Vamos esquecer isso, amor. Não estou no clima agora. – Ah, desculpe. O erro foi meu. Sarah sentiu a melancolia naquela voz como se a rejeitada tivesse sido ela. – Ai, meu Deus. Não chore. Venha aqui – disse Marcus. O quarto cou em silêncio por alguns minutos, até que ela ouviu o som de corpos caindo na cama de forma abrupta, murmurando palavras que não conseguia compreender. Quando a cabeceira da cama começou a bater de leve contra a parede, Sarah compreendeu: Eles estão transando! Imagens de Marcus Dowling em Susan e James, com Jennifer Lowe, e em Garoto ruivo, com Kimberley Kerry, vieram à sua mente. Imaginou Casey nos braços de Marcus, as pernas longas enroscadas nele. As batidas ganharam ritmo e os gemidos caram mais altos. Minutos depois, Marcus deu um longo suspiro. E então, por misericórdia, tudo acabou. Alguém usou o banheiro e o quarto escureceu. Por vinte minutos, no mínimo, Sarah permaneceu agachada em silêncio entre os vestidos. E quando a respiração do lado de fora do closet se regularizou, passando a sibilos e roncos, ela abriu a porta e engatinhou até a janela. Estava quase livre. Quase. Foi rápida e silenciosa ao pular até o parapeito. Porém uma de suas pernas acabou batendo na lateral do aparador... e tudo deu errado. Ouviu-se o barulho dos objetos deslizando pelo móvel e, logo depois, o som dos porta-retratos e frascos de perfume quebrando no chão. Que merda. Sarah congelou quando Casey Dowling sentou na cama de repente e gritou: – Quem está aí?
O pavor a levou a se mover. Pendurou-se no telhado da garagem com toda a força que tinha nas pontas dos dedos. Então, soltou-se e despencou de uma altura de 3 metros. Ela caiu na grama com os joelhos dobrados, sem sentir dor. Assim que a luz do quarto dos Dowlings se acendeu, Sarah correu. Retirou a lanterna do boné e a guardou em uma das bolsas enquanto corria a toda velocidade por Nob Hill, um bairro elegante da alta sociedade de São Francisco. Alguns minutos mais tarde, ela encontrou o seu velho carro Saturn onde o deixara: na frente de uma farmácia. Entrou nele e trancou a porta, como se isso pudesse livrá-la do pavor. Ainda ofegante, deu partida no motor e soltou o freio de mão. Tentava não vomitar enquanto dirigia para casa. Ao alcançar o trecho livre da Pine Street, Sarah retirou o boné e as luvas, enxugou a testa com as costas da mão e refletiu bastante a respeito da sua fuga. Não deixara nada: nenhuma ferramenta, nenhuma impressão digital, nenhum DNA. Nada. Por ora, pelo menos, estava em segurança. Não sabia se ria ou chorava.
3
CASEY ABRIU OS OLHOS no escuro. Algo havia quebrado. O barulho tinha vindo do aparador. Ela sentiu a brisa no rosto. A janela estava aberta. O casal nunca a abria. Tinha alguém dentro da casa. Sentou-se e perguntou: – Quem está aí? Agarrou as cobertas, levando-as ao queixo, e deu um berro: – Marc, tem alguém no quarto! – Você está sonhando – reclamou o marido. – Volte a dormir. – Acorde! Tem alguém aqui – sibilou ela. Casey se atrapalhou com o abajur, derrubou os óculos no chão, encontrou o interruptor e acendeu a luz. Lá. O aparador estava virado, tudo quebrado, as cortinas balançando ao vento. – Faça alguma coisa, Marc. Faça alguma coisa. Marcus Dowling se exercitava todos os dias. Ainda podia levantar 100 quilos e sabia como usar uma arma de fogo. Ele pediu à mulher para car quieta e abriu a gaveta da mesinha de cabeceira, tirando de lá a .44, sempre carregada dentro de um estojo de couro macio. Abriu o estojo e agarrou a arma. Casey pegou o telefone do criado-mudo e, com as mãos trêmulas, tentou discar 911, mas errou as teclas. Fez uma segunda tentativa enquanto ele, ainda meio bêbado, gritava: – Quem está aí? – Mesmo em um momento sério daqueles, ele parecia estar atuando. – Apareça. Marcus olhou no banheiro e no corredor. – Não disse, Casey? Não há ninguém aqui. Ela colocou o telefone de volta no gancho, livrou-se das cobertas e entrou no closet para buscar o roupão. De repente, gritou. – O que é agora? – indagou ele. Pálida, nua, virou-se para o marido e disse: – Meu Deus, minhas joias sumiram. O cofre está quase vazio. Era difícil para Casey ler a expressão que surgiu no rosto de Marc. Era como se tivesse acabado de ter uma ideia que consumia seus pensamentos. Será que ele sabia quem os roubara? – O que é? O que está pensando? – Que não é uma boa ideia reagir a um assalto. – Que besteira é essa? O que você quer dizer com isso? Marcus estendeu o braço direito e apontou a arma para um sinal de nascença entre os seios da mulher. Em seguida, puxou o gatilho. – É isso o que quero dizer. Casey abriu a boca, inspirou e expirou o ar e olhou para o peito, o sangue transbordando. Ela
apertou as mãos contra o ferimento. Olhou para o marido e suplicou, ofegante: – Por favor, me ajude. Ele atirou mais uma vez. Os joelhos se dobraram e ela caiu.
PARTE 1 PETE, O DISSIMULADO
capítulo 1
PETER GORDON SEGUIU A JOVEM mãe que saiu da Macy’s, na Stonestown Galleria, e foi para a rua. Ela tinha cerca de 30 anos, o cabelo castanho em um rabo de cavalo desarrumado, com short, tênis e bolsa vermelhos. Sacolas de compras pendiam do carrinho de bebê. Ele estava atrás da mulher quando ela atravessou a Winston Drive. Ainda a seguia de perto, quase nos seus calcanhares, enquanto ela entrava no edifício-garagem, conversando com o bebê como se ele pudesse compreendê-la: perguntou se ele lembrava-se do local onde a mamãe estacionara o carro e o que o papai estaria preparando para o jantar. Para Pete, toda aquela lenga-lenga parecia alimentar a carga explosiva dentro de seu cérebro. Ele permanecia focado no alvo. Escutava e observava, mantinha a cabeça baixa, as mãos nos bolsos. Viu a mulher destrancar o porta-malas do Toyota RAV4 e amontoar as sacolas lá dentro. Estava a poucos metros de distância quando ela pegou o bebê e dobrou o carrinho, guardando-o também na parte traseira do carro. A mulher estava colocando o menino na cadeirinha, prendendo-o com o cinto de segurança, quando Pete se aproximou. – Senhora, pode me ajudar, por favor? Ela arqueou as sobrancelhas. Dava para ler no seu rosto uma indagação: O que você quer? Entrou e sentou-se no banco do motorista, com as chaves em uma das mãos. – Sim? – perguntou. Pete sabia que aparentava ser saudável e limpo, além de ingênuo e digno de conança. Sua boa aparência era um trunfo. No entanto, ele era tão inofensivo quanto uma planta carnívora. – O pneu do meu carro furou – explicou, erguendo as mãos. – Detesto ter que pedir isto, mas poderia usar o seu celular para contatar a seguradora? Ele abriu um sorriso e as covinhas apareceram. – Eu também costumo esquecer de colocar o maldito celular para carregar – comentou a mulher, retribuindo o sorriso. Ela revirou a bolsa. Quando ergueu os olhos com o celular na mão, o sorriso vacilou ao ver a nova expressão de Pete, não mais ansioso para agradar, mas rude e determinado. Foi então que reparou, confusa, na arma em suas mãos. Voltou a tá-lo e viu a frieza nos seus olhos escuros. Afastou-se dele de forma brusca, deixando cair as chaves e o celular, e se jogou sobre o banco de trás. – Meu Deus! – exclamou ela. – Não faça nada. Tenho dinheiro... Pete disparou, a bala zunindo pelo silenciador, atingindo-a no pescoço. A mulher levou as mãos à ferida, o sangue jorrando por entre os dedos. – Meu bebê – suplicou, com a voz entrecortada. – Não se preocupe. Ele não sentirá nada. Prometo – garantiu Pete.
Voltou a atirar na mulher. Dessa vez, no peito. Em seguida, abriu a porta de trás e olhou para a criança que cochilava, a boca pegajosa por causa do algodão-doce, as veias azuis traçando um roteiro sobre a têmpora.
capítulo 2
UM CARRO DESCEU A RAMPA guinchando e cantou pneu na curva, acelerando ao passar por Pete enquanto ele virava o rosto em direção ao canteiro central de concreto. Tinha certeza de que não fora visto e, de qualquer maneira, fizera tudo certo. Exatamente de acordo com as regras. A bolsa estava aberta dentro do carro. Usando o bolso da jaqueta como luva, ele procurou um batom entre os pertences da mulher. Ao encontrá-lo, girou o tubo em tom vermelho-vivo. Ele esperou duas mulheres tagarelas em um Cadillac Escalade subirem a rampa à procura de uma vaga, segurou o batom entre o polegar e o dedo indicador e pensou no que escreveria no para-brisa. Considerou PARA KENNY. No entanto, mudou de ideia. Riu para si mesmo ao rejeitar PETEY ESTEVE AQUI. Então, se decidiu. Escreveu MCP em vermelho com letras de fôrma de 10 centímetros de altura e fez um sublinhado meio borrado. A seguir, fechou o batom e o jogou dentro do bolso, onde bateu de leve na arma. Satisfeito, saiu do carro, fechou as portas, limpou as alavancas das maçanetas com o forro macio de anela da jaqueta e caminhou até os elevadores. Parecia tranquilo quando a porta se abriu e um senhor idoso conduziu a mulher, em uma cadeira de rodas, para o andar principal do estacionamento. Mantendo a cabeça baixa, evitou o contato visual com os dois, que o ignoraram. Isso foi bom, embora desejasse dizer: Foi por Kenny. E foi tudo de acordo com as regras. Pete entrou no elevador e subiu até o terceiro andar. Pensava que, de fato, estava tendo um bom dia, o primeiro em cerca de um ano. Havia se passado bastante tempo até aquele momento. Mas, por fim, ele dera início ao grande plano. Estava animado por ter certeza absoluta de que isso funcionaria. MCP, pessoal. MCP.
capítulo 3
PETER GORDON DESCEU EM SEU carro pela rampa em espiral do estacionamento. Passou pelo veículo da mulher morta no andar térreo, mas nem mesmo freou para olhar. Estava conante de que não havia sangue do lado de fora do automóvel, nada que indicasse sua presença. Com o estacionamento cheio, levaria horas até que a mamãe e o bebê fossem encontrados naquela vaga, limpa e em ordem, próxima ao fim da fileira. Ele foi devagar com o carro, tendo todo o cuidado, reduzindo na hora da saída e acelerando na Winston, dirigindo-se para a Avenida 19. Reviu os disparos na sua mente enquanto esperava no sinal, reetindo sobre como tinha sido fácil. Sem balas desperdiçadas, nada esquecido... Os policiais iriam ficar malucos. Nada pior do que um crime sem motivo, hein, Kenny? Os policiais iam trabalhar de forma incansável. E, no momento em que percebessem, ele já estaria morando em outro país. Esse crime seria um dos arquivos mortos que algum detetive velho da Homicídios nunca iria resolver. Pete tomou o longo caminho de volta para casa. Subiu a Sloat Boulevard e seguiu pela Portola Drive, onde esperou o trem municipal passar. Por m, subiu a Clipper Street em direção à sua casa de merda em Mission. Era quase hora do jantar e os pequenos chorões já deviam estar se preparando para abrir o berreiro. Tirou as chaves do bolso assim que chegou em casa. Destrancou a porta e chutou-a. Dava para sentir o cheiro da fralda suja já no vão da porta. O pequeno fedorento no cercadinho infantil no meio do chão, apoiando-se na grade, gritou logo que viu o pai. – Papai! – chamou Sherry. – Ele precisa ser trocado. – Eu sei! – exclamou Pete. – Cale a boca, seu merdinha – ordenou ao garotinho. – Estarei com você em um minuto. Pegou o controle remoto de sua lha, trocando o canal dos desenhos animados para o do noticiário. A bolsa de valores estava em baixa. Os preços da gasolina, altos. Ele assistiu à mais recente novidade de Hollywood. Nada foi dito a respeito de dois corpos encontrados no estacionamento da Stonestown Galleria. – Estou com fome – comentou Sherry. – Bem, o que quer primeiro? Jantar ou trocar a fralda? – Trocar a fralda – respondeu ela. – Tudo bem, então. Pete pegou o bebê, tão querido para ele quanto um saco de cimento. Nem mesmo tinha a certeza de que o bostinha era seu. Se bem que, mesmo que fosse, ainda assim não se importava. Deitou-o na mesa e prosseguiu com o ritual: segurou-o pelos tornozelos, limpou-o, passou talco no bumbum e colocou a fralda. A seguir, levou-o de volta ao cercadinho.
– Feijão com salsicha? – perguntou à filha. – Meu prato favorito – respondeu Sherry, levando uma trança à boca. – Coloque uma camisa naquele merdinha – mandou o pai. – Assim a sua mãe não terá um ataque ao chegar em casa. Pete esquentou um pouco de leite em pó no micro-ondas para a criança. Depois, abriu as latas de feijão e de salsicha. Também ligou a TV sob o armário da cozinha, acendeu o fogão e jogou a comida em uma panela. Era a mulher, aquela cachorra, que deveria fazer isso, não ele. O feijão estava queimando quando veio a notícia de última hora. Hum. Vamos ver..., pensou. Algum repórter imbecil da televisão estava em pé, segurando um microfone, em frente à livraria Borders. Atrás dele, universitários faziam caretas. – Acabamos de saber que houve tiros no estacionamento da Stonestown. Fontes relatam um duplo homicídio pavoroso. Voltaremos depois com mais detalhes. É com você, Yolanda.
capítulo 4
YUKI CASTELLANO SAIU DO SEU escritório procurando Nicky Gaine. Chamava-o enquanto caminhava por entre a série de cubículos: – Você está pronto, Menino Prodígio? Ou quer me encontrar lá embaixo? – Estou indo – respondeu Gaines. – Como estou? – perguntou a ele, já se encaminhando para o elevador que iria levá-los do escritório da Promotoria Pública até o tribunal. – Você parece feroz, Batwoman. Miss Indignação dos Estados Unidos. – Cale-se. – Ela riu para o seu protegido. – Apenas esteja pronto para me ajudar a lembrar de algo se me der branco. – Isso não vai acontecer. E você vai mandar Jo-Jo para a prisão. – Acha mesmo? – Tenho certeza. Você não? – Sim. Só tenho que me certificar de que o júri concorde. Nicky apertou o botão do elevador e Yuki cou imersa em pensamentos. Dentro de cerca de vinte minutos, ela ia apresentar a argumentação final no caso do Estado contra Adam “Jo-Jo” Johnson. Desde que entrara para o escritório, ela tinha assumido alguns dos casos mais sórdidos que a Promotoria Pública estava determinada a julgar: trabalhava dezoito horas por dia, ganhava elogios do chefe, Leonard “Red Dog” Parisi, por um trabalho bem-feito e marcava pontos com os jurados. Mas quando nutria grandes expectativas, ela perdia. Yuki estava se tornando famosa por perder. Isso não era bom, já que ela era uma batalhadora e uma vencedora. E, merda, realmente detestava perder. Nunca imaginava que perderia... e, dessa vez, não foi diferente. O caso era sólido. O trabalho do júri era fácil. O réu era claramente culpado. Nicky segurou a porta forrada de couro tacheado, mantendo-a aberta para o tribunal. Yuki caminhou com elegância e rapidez pelo corredor central da sala de audiência com painéis de carvalho. Ela notou que a galeria estava repleta de espectadores, a maioria jornalistas e alunos do curso de direito. Ao se aproximar da mesa de acusação, viu que Jo-Jo e o seu advogado, Jeff Asher, estavam nos seus respectivos lugares. O palco estava montado. Yuki acenou com a cabeça para o adversário e observou o réu. Jo-Jo estava penteado e usava um terno distinto, mas parecia atordoado. Apenas um aparvalhado que fritara o cérebro em drogas poderia ter aquela aparência. Ela esperava que, muito em breve, ele casse ainda pior, assim que o prendessem por homicídio culposo em primeiro grau. – Parece que Jo-Jo fumou maconha – murmurou Nicky para Yuki ao puxar a sua cadeira. – Ou, então, ele caiu na conversa mole do advogado – comentou Yuki, alto o suciente para que Asher escutasse. – Jo-Jo pode achar que vai passear, mas estará no ônibus para Pelican Bay.
Asher a encarou e deu um sorriso falso, mostrando com a sua linguagem corporal que ele pensava que ia derrotá-la. Era uma encenação. Yuki ainda não o enfrentara. No entanto, depois de menos de um ano na Promotoria Pública, Asher já adquirira a reputação de ser como uma “bomba”: um advogado que destruía o caso da acusação e livrava o cliente. Ele era formidável porque tinha carisma, aparência de bom menino e um diploma de Direito em Harvard. Além disso, ainda tinha o pai, um litigante de alto nível que, por fora, orientava o filho. Mas nada disso importava hoje. As provas, as testemunhas e a conssão estavam todas ao seu lado. Jo-Jo era dela.
capítulo 5
O JUIZ STEVEN RABINOWITZ DEU UMA última olhada nas fotos do seu novo apartamento em Aspen. Em seguida, desligou o iPhone, estalou os dedos e perguntou: – A acusação está pronta, Srta. Castellano? – Sim, meritíssimo. Ela se levantou, a mecha grisalha caindo em meio ao cabelo preto brilhante enquanto endireitava o terninho. Caminhou até o púlpito, no centro da tribuna. Yuki voltou os olhos para a bancada dos jurados e sorriu. Alguns retribuíram o cumprimento. No entanto, a maioria se mostrou impassível. Ela não era capaz de decifrá-los. Mas tudo bem. Precisava apenas apresentar a melhor argumentação nal da sua vida, como se a vítima, desprezível ao extremo, fosse o melhor e mais perspicaz dos homens. Como se aquele fosse o seu último caso. – Senhoras e senhores – começou ela –, o Dr. Lincoln Harris está morto porque esse homem, Adam J. Johnson, sabia que ele corria perigo de vida e o deixou morrer por indiferença deliberada. Na Califórnia, isso é homicídio culposo em primeiro grau. Sabemos o que aconteceu na noite de 14 de março. Após renunciar ao direito de permanecer em silêncio e ao direito a um advogado, o Sr. Johnson contou à polícia como e por que permitiu que o Dr. Harris falecesse quando poderia facilmente ter salvado a sua vida. Ela deixou as palavras ressoarem na sala de audiência, reorganizando as chas no púlpito antes de continuar com a argumentação final. – Na noite em questão, o réu, que havia sido contratado pelo Dr. Harris como um faz-tudo, saiu para conseguir cocaína para o médico e para ele mesmo, retornando dentro de uma hora. O réu e o reclamante usaram essa droga. Pouco tempo depois, o Dr. Harris teve uma overdose. Como sabemos desse fato? O réu confessou à polícia e os médicos peritos conrmaram que a vítima estava nos seus últimos momentos de vida. A boca espumava e, por m, ele perdeu a consciência. No entanto, em vez de chamar uma ambulância, o réu se aproveitou dessa oportunidade para retirar mil dólares e um cartão de crédito da carteira do Dr. Harris. O Sr. Johnson usou esse cartão, retirou mais mil dólares e comprou uma nova jaqueta de couro e um par de botas na loja Rochester Big & Tall. Outra pausa antes de Yuki prosseguir: – Depois, o réu comprou mais cocaína e contratou uma prostituta, Elizabeth Wu, a quem levou para a casa do Dr. Harris. Ao longo das horas seguintes, a Srta. Elizabeth e o Sr. Johnson cheiraram cocaína, zeram sexo algumas vezes e, de acordo com a declaração dele, ambos discutiram sobre como dariam m ao corpo do Dr. Harris. Isso, senhoras e senhores, mostra “consciência de culpa” . Adam Johnson sabia, sem sombra de dúvida, que o médico estava morrendo. No entanto, não pediu ajuda por quinze horas. Quinze horas – enfatizou Yuki, batendo no púlpito. – Por m, a
pedido da Srta. Wu, o Sr. Johnson acabou ligando para o 911, mas era tarde demais. O Dr. Harris morreu na ambulância a caminho do hospital. Agora, todos sabemos que a defesa não tem defesa. Quando os fatos estão contra, os advogados de defesa recorrem à teatralidade e culpam a vítima. O Sr. Asher armou que o Dr. Harris traía a mulher e perdera a licença para exercer medicina porque usava drogas. É verdade. E daí? A vítima não era um santo, mas até mesmo as pessoas imperfeitas têm o direito a um tratamento humano e à justiça. Yuki fez nova pausa e finalizou: – A defesa retratou Adam Johnson como um faz-tudo desafortunado que não sabia o que era uma overdose. Isso é mentira. Adam Johnson sabia o que estava fazendo. Ele admitiu tudo: a indiferença deliberada, assim como a diversão que teve naquela noite, furtando, fazendo compras, cheirando cocaína e tendo relações sexuais enquanto o Dr. Harris agonizava. É por isso que só pode haver um veredicto. A promotoria pede aos senhores que considerem Adam Johnson culpado por três acusações: a de roubo qualicado, a de tentativa de tráco de entorpecentes e a de indiferença deliberada com a vida de um ser humano, isto é, homicídio culposo em primeiro grau.
capítulo 6
YUKI SE REUNIU COM GAINES no corredor, do lado de fora do tribunal, durante o recesso de dez minutos. – Você os impressionou – assegurou ele. Ela assentiu. Vasculhou a mente à procura de erros e não encontrou nenhum. Não cara pálida, não gaguejara ou esquecera as falas, não dera a impressão de ter ensaiado. Sem arrependimentos. Apenas desejava que a mãe pudesse estar ali para vê-la. – Jo-Jo fez isso – disse Yuki ao seu braço direito. – Confessou que fez e nós provamos. O coração dela continuava bombeando adrenalina, que a inebriava como champanhe. Nicky a cutucou e Yuki ergueu o olhar. Ela viu que o ocial de justiça abrira a porta almofadada com painéis de couro. A dupla voltou ao tribunal e tomou os seus lugares. Yuki sentiu a boca secar quando a sessão foi reiniciada. O medo mordiscava a sua conança. Asher teria a última palavra. Será que conseguiria convencer o júri a libertar Johnson? Ela imaginou o pior resultado possível: um veredicto a favor do réu. Depois, o pai de Asher daria uma festa para o lho em uma das melhores casas noturnas da cidade. E ela iria se retirar em silêncio para casa. Sozinha. Totalmente humilhada. Ao lado, Nicky rabiscava uma caricatura dela com uma estrela no peito e uma auréola acima da cabeça. Yuki conseguiu dar um sorriso e, então, toda a sala ficou em silêncio. O juiz Rabinowitz perguntou a Asher se a defesa estava pronta para concluir. – Sim, meritíssimo – respondeu. Como um puro-sangue no portão de largada, Asher quase se empinou na direção da bancada do júri. Apresentava-se em pé a não mais do que um metro dos jurados da primeira leira, perto o bastante para que notassem as marcas do pente no cabelo e o brilho nas próteses dentárias. Ele colocou uma das mãos no gradil e começou a argumentação final. – Pessoal, não tenho apontamentos porque a defesa de Adam Johnson é tão simples e clara quanto o dia. Ele não é médico. Não sabe nada a respeito de pessoas doentes ou de medicina. Não sabia que o Dr. Harris estava em sério perigo. Adam Johnson é um faz-tudo. Lincoln Harris era médico. E, como o legista muito bem relatou, não morreu de overdose de cocaína. Morreu por causa de cocaína e de uma dose de heroína injetada por ele mesmo. Fez uma pausa e continuou: – O que aconteceu foi que aquelas drogas interagiram e isso se mostrou fatal. O Dr. Harris sabia o que as drogas faziam ao corpo e, mesmo assim, ele as usava. Ele tinha a intenção de morrer. Penso que o Sr. Johnson concordaria que, se tivesse de fazer isso de novo, ao ver que o Dr. Harris estava doente, ele teria ligado logo para o 911. Provavelmente, teria feito tudo diferente naquela noite. No entanto, cometeu alguns erros. Sim, ele é culpado por roubar 2 mil dólares de um chefe rico que lhe dera, por vontade própria, a senha do cartão bancário. Sim, é culpado por dar aquelas drogas à
Srta. Elizabeth, uma prostituta viciada. Apesar de isso ser verdade, é um detalhe técnico. De fato, não estava traficando. Ele comprava drogas para consumo próprio, para se divertir. Nova pausa antes de finalizar: – Quanto à consciência de culpa, armo que o meu cliente estava apenas jogando conversa fora com a Srta. Elizabeth quando ambos abordaram a questão de “se livrarem do corpo” . Não zeram isso, zeram? – perguntou Asher, de forma retórica. – O Sr. Johnson chamou uma ambulância. Os fatos são claros. Meu cliente não sabia se o Dr. Harris estava morrendo ou se ia acordar com uma forte dor de cabeça. Ele não é um gênio, mas não é um sujeito mau. E, assim, pedimos aos senhores que não o considerem “culpado” por homicídio culposo porque ele não fez isso.
capítulo 7
NAQUELA NOITE, DEIXEI A SALA da Central com pressa, determinada a sair da linha de visão de Jacobi antes que fosse convocada para um caso. Acabara de entrar no elevador quando o celular tocou. Era Yuki. Engraçada, apaixonada, passando por uma fase turbulenta. Atendi e ela me crivou com o papo furado habitual. – Lindsay, a minha cabeça está girando como se fosse cair do pescoço. Você pode me encontrar no MacBain? Agora? – O que aconteceu? – Está ocupada? – Tenho planos, mas posso tomar uma cerveja se for rápido... – Encontrarei você em cinco minutos. O MacBain é um ponto de encontro de policiais e advogados a duas quadras do Tribunal de Justiça. Tirei o carro da vaga do estacionamento 24 horas e rumei para o leste pela Byrant, dizendo a mim mesma que ainda teria tempo de comprar o camarão no caminho de casa. Entrei no bar e encontrei uma mesinha perto da janela. Acabara de pedir duas cervejas à garçonete quando vi Yuki abrindo caminho em meio à multidão e vindo na minha direção. Já falava antes de se sentar: – Você pediu? Bom. Como está? Tudo bem? A garçonete trouxe a cerveja. Yuki pediu um hambúrguer bem-passado com fritas cobertas de queijo. – Não vai comer? – perguntou. – Vou preparar o jantar para Joe. – Ah. Ela levou uma das mãos à testa como se protegesse os olhos da luz que se reetia no meu anel de noivado. – Deve ser bom. – Sim – concordei, sorrindo. Estar noiva ainda era algo novo para mim após meses e meses de um romance à distância, repleto de altos e baixos. Joe e eu morávamos juntos, mas havia duas semanas que não jantávamos no mesmo horário. Prometera preparar camarão ao molho pomodoro para ele naquela noite e estava ansiosa com relação a todo o processo: o preparo, o jantar, a autossatisfação. – Então, o que está acontecendo? Ela bebeu meio copo antes de responder: – Meu cliente está morto, mas é o pior tipo de escória e Jo-Jo é atraente e tolo. As mulheres do júri olhavam para ele como se quisessem amamentá-lo. Eu passara pelo tribunal para assistir à argumentação nal de Yuki e tinha que concordar. O Dr. Lincoln Harris era um homem nojento e, embora Jo-Jo não fosse melhor, ele estava vivo. E parecia
um homem sem noção. – Asher pode ganhar – lamentou. – Devo abandonar a minha carreira por isso? Ajude-me, Linds. Devo encontrar um emprego bem-remunerado em um escritório de advocacia empresarial? Naquele instante, o meu celular vibrou. Fitei o identicador de chamadas: Jacobi. Meu exparceiro e atual chefe, cuja reação instintiva a tudo é me chamar. Velhos hábitos custam a morrer. Atendi: – Sargento Boxer. – Houve um duplo homicídio, Lindsay. Parece que temos um novo psicopata. – Telefonou para Paul Chi? Ele voltou das férias. Aposto que está em casa agora. – Quero você nisso – resmungou Jacobi. Depois de mais de dez anos trabalhando juntos, éramos quase capazes de ler a mente um do outro. Ele parecia assustado, como se alguém tivesse passado por cima do seu cadáver. – Que história é essa, Warren? – perguntei, já sabendo que os meus melhores planos para a noite tinham sido liquidados. – Uma das vítimas é um bebê. Ele me deu o endereço do edifício-garagem perto da galeria e comunicou: – Conklin acabou de sair. Estará lá em alguns minutos. – Estou a caminho – avisei.
capítulo 8
DESLIGUEI O TELEFONE E PROMETI a Yuki uma conversa melhor e mais longa sobre a carreira dela depois que o júri se decidisse. – Sua argumentação final foi notável, amiga. Não desista. Beijei-a no rosto e saí às pressas do bar. Dirigi o meu Explorer na direção da Market e quei presa em um engarrafamento. Coloquei a sirene no teto do carro e a acionei. Os veículos se afastaram com relutância. Por m, alcancei o estacionamento próximo à Stonestown Galleria. A entrada estava bloqueada por uma multidão de proprietários de carros, que reclamavam. Ergui o distintivo, abaixei-me sob o cordão de isolamento e assinei o boletim de ocorrência. O ocial Joe Sorbero estava pálido, como se nunca tivesse visto a morte antes. – É o primeiro policial na cena? – Sim, senhora. – Você está bem, Joe? – Já estive melhor, sargento – respondeu, sorrindo de leve. – Tenho lhos, a senhora sabe. – Ele apontou para um RAV4 azul estacionado na outra extremidade da leira. – Seu próximo pesadelo está bem ali. Segui o dedo de Sorbero e vi o inspetor Rich Conklin em pé, entre dois veículos, espreitando pela janela do motorista do RAV4. Ele se tornou o meu parceiro quando Jacobi foi promovido a tenente. É esperto, de uma beleza pertubadora, e tem as qualidades essenciais para ser um detetive de primeira classe. Ninguém caria chocado se Conklin se tornasse capitão um dia. No entanto, no momento, reportava-se a mim. Ele veio na minha direção antes que eu conseguisse chegar à cena. – Prepare-se, Linds. – Qual é o caso? – Mulher branca, cerca de 30 anos, Barbara Ann Benton. A outra vítima é um bebê. Talvez de um ano de idade. Ambos foram baleados à queima-roupa. O legista e a perícia estão a caminho. – Quem chamou? – Uma senhora que estava estacionada na vaga próxima à do RAV4. Eu a interroguei e a mandei para casa. Ela não viu nada. Até agora, ninguém viu. Policiais estão revirando as latas de lixo. Também já apreendemos a fita de vigilância. – Acha que a morte do bebê foi proposital? – Sim – respondeu Conklin. – Foi eliminado de propósito. Eu me aproximei do utilitário e prendi a respiração ao olhar para dentro. Barbara Ann Benton estava caída no banco da frente, de modo desajeitado, com metade do corpo virado para trás como se tivesse tentado passar para a parte de trás.
Vi duas feridas de entrada: uma no pescoço e outra no peito. Em seguida, forcei-me a desviar o olhar, indo da mãe para o bebê. O menino tinha açúcar rosa nos lábios e nos dedos da mão direita. O vidro traseiro do carro estava respingado de sangue. O tiro fora dado em uma das têmporas. Conklin estava certo. Sua morte não era nenhum acidente. Na verdade, o disparo havia sido tão preciso que ele poderia ser o alvo principal. Eu só esperava que o garotinho não tivesse compreendido o que estava acontecendo. Esperava que ele não tivesse tido tempo para se apavorar.
capítulo 9
– O QUE VOCÊ ACHA DISSO tudo, Linds? Conklin atraiu a minha atenção para as letras maiúsculas em vermelho-vivo, escritas no para-brisa. Fixei o olhar, hipnotizada por aquela imagem. Jacobi devia estar se referindo a isso quando mencionou que tínhamos um psicopata. As letras “MCP” não signicavam nada para mim, com exceção do fato de que apenas assassinos excêntricos assinam seus crimes. Isso me lembrou de casos semelhantes que eu assumira. E trouxe de volta péssimas memórias de quando o Assassino Clandestino aterrorizara São Francisco nos anos 1990, um homicida que tirou a vida de oito inocentes, deixou assinaturas e avisos para a polícia, e nunca foi capturado. Senti os pelos da nuca se arrepiarem. – Aquelas sacolas de compras no porta-malas foram saqueadas? – perguntei a Conklin, esperando um “sim”. Meu parceiro balançou a cabeça de forma negativa e explicou: – Parece que há cem dólares na carteira da vítima. Não foi um assalto. Foi uma execução. Duas, aliás. Perguntas inundavam a minha mente. Por que os tiros não foram relatados? Por que o assassino escolhera essas pessoas como alvo? Será que foi aleatório ou pessoal? Por que matara uma criança? Ouvi um ronco de motor e me virei. Vi o furgão da legista vindo na nossa direção, estacionando a uns 5 metros de distância, os pneus cantando com a freada. A Dra. Claire Washburn saiu do furgão branco usando um uniforme cirúrgico azul e um jaleco preto com letras brancas que diziam “Médico-legista” na frente e atrás. Na minha opinião, Claire é a melhor patologista forense à oeste das montanhas Rochosas. É também uma grande amiga e, embora trabalhasse a três lances de escada e a uns 10 metros de distância, em prédios adjacentes, fazia mais de uma semana que eu não a via. – Meu Deus, o que é isso? – perguntou ao me abraçar, analisando a cena sobre um dos meus ombros. Conduzi Claire até o RAV4 e permaneci por perto enquanto ela examinava o interior do carro e a mulher morta. Claire recuou ao perceber a criança, seu rosto reetindo o mesmo horror que sentíamos, talvez mais. – Aquele bebê é da mesma idade que a minha Ruby – armou. – Quem mata um bebê? Ele é pequeno demais para contar o que aconteceu. – Talvez seja um serviço em troca de alguma coisa. Drogas, dívida de jogo ou algo parecido. Ou talvez o marido tenha feito isso. Por favor, que seja algo assim, pensei. Claire tirou a câmera digital de dentro do kit de perícia e disparou duas fotos de Barbara de onde estávamos. Depois, deu a volta, indo até o outro lado do veículo, e tirou mais duas.
Quando começou a fotografar o bebê, vi as lágrimas nos olhos dela. Enxugou-as com as costas da mão. Não conseguia me lembrar da última vez em que a vira chorar, se é que já vira. – A mãe deixou o assassino chegar muito perto – assegurou Claire. – Há sinais de pólvora no rosto e no pescoço. Ela tentou proteger o bebê com o próprio corpo e, ainda assim, o canalha atirou na cabeça da criança. E aqui está uma coisa nova: não reconheço essas marcas pontilhadas de pólvora. – O que significa? – Significa que MCP tem algum tipo raro de arma.
capítulo 10
A RESIDÊNCIA DOS BENTONS ERA uma casa modesta de dois quartos, azul com acabamento branco, na Avenida 14. Enfeites de 4 de julho ainda podiam ser vistos na janela panorâmica. Havia também um brinquedo na escada. Conklin tocou a campainha e, no momento em que Richard Benton abriu a porta da frente, eu soube que estávamos vendo o último momento feliz da vida daquele homem. Quando uma mulher casada é morta, o marido está envolvido em mais da metade dos casos. No entanto, Richard Benton cou mesmo devastado quando contamos a notícia chocante. Além disso, ele tinha um álibi: estivera em casa com o lho de 5 anos, assara um frango para o jantar e enviara e-mails constantes para o escritório. Primeiro, Benton não acreditou. Depois, cou desolado. Mas, de qualquer forma, Conklin e eu conversamos com ele a respeito do casamento, dos amigos e colegas de trabalho de Barbara. Perguntamos se a mulher tinha sido ameaçada alguma vez. – Barbara era só amor. Não sei o que vamos fazer... – respondeu e voltou a se descontrolar, tendo um ataque de nervos. Fiz contato com Jacobi às nove. Avisei-o de que, até que eu pesquisasse o nome de Richard Benton no banco de dados da polícia, ele era inocente. Além disso, o homem não conhecia as iniciais “MCP”. – Barbara era auxiliar de enfermagem em uma clínica de repouso. Vamos entrevistar os outros funcionários do turno dela amanhã cedo. – Vou transferir essa tarefa para Samuels e Lemke – anunciou Jacobi. Pela segunda vez, o som da sua voz era abafado. – Transferir? Como assim? Por quê? – Algo novo acabou de entrar, Lindsay. Juro por Deus, eu estava cando sem fôlego, chegando a treze horas de trabalho direto. Atrás de mim, em uma sala de luz fraca, irradiando angústia, Conklin dizia a Richard Benton para ir ao escritório do médico-legista identificar as vítimas. – Algo novo no caso Benton? – perguntei. Talvez o marido tivesse uma cha por violência doméstica. Talvez uma testemunha houvesse se apresentado. Ou talvez a equipe da perícia tivesse encontrado algo dentro do RAV4. – Não, aconteceu há pouco – respondeu Jacobi. – Se quiser que eu dê o caso para Chi e McNeil, farei isso. Mas você e Conklin vão querer trabalhar nesse. – Não tenha tanta certeza. – Já ouviu falar de Marcus Dowling? – O ator? – A mulher acabou de levar um tiro, dado por um invasor – revelou Jacobi. – Estou a caminho da residência dos Dowlings agora.
capítulo 11
A RESIDÊNCIA DOS DOWLINGS se localiza em Nob Hill, uma mansão enorme, ocupando boa parte do quarteirão, com muros cobertos de hera e vasos com plantas ornamentais de cada lado da grande porta de carvalho. Não poderia ser mais diferente da humilde casa dos Bentons. Antes que Conklin pudesse alcançar a campainha, Jacobi abriu a porta. Seu rosto estava marcado pelo estresse. As pálpebras pendiam. Ele quase parecia mais velho hoje à noite do que quando havíamos sido baleados na Larkin Street. – Aconteceu no quarto. Segundo andar. Depois que derem uma olhada na cena, venham conosco até o térreo. Estarei na biblioteca com Dowling. O cômodo compartilhado por Marcus e Casey Dowling parecia ter sido arrancado das páginas de um catálogo de uma loja de departamentos de luxo. A cama, centralizada na parede e virada para o oeste, era enorme, com uma cabeceira capitonê em bronze e seda, almofadas também de seda e roupa de cama em cetim plissado em tons de bronze e ouro. Havia mais borlas nesse quarto do que nos bastidores de um espetáculo da Broadway. Um delicado aparador estava no chão, rodeado por bugigangas quebradas. Cortinas de tafetá ondulavam diante da janela aberta, mas eu ainda podia sentir um leve cheiro de pólvora no ar. Charlie Clapper, diretor da perícia, fotografava o corpo de Casey Dowling. Acenou para mim e Conklin e comentou ao nos cumprimentar: – Que pena, uma mulher bonita como essa. Ele deu um passo para trás para que pudéssemos olhar. Casey Dowling estava nua, deitada no chão, virada para cima, o cabelo platinado espalhado ao redor. Havia sangue nas palmas das mãos, provavelmente porque ela apertara o ferimento no peito antes de cair. – O marido arma que estava no andar térreo, lavando a louça do jantar, quando ouviu dois disparos – contou Clapper. – Ao entrar no quarto, a mulher estava morta. Aquele aparador estava caído, os bibelôs quebrados no chão e a janela aberta. – Alguma coisa foi levada? – perguntou Conklin. – Algumas joias desapareceram do cofre no closet. Dowling informou que o conteúdo estava segurado em alguns milhões. Clapper foi até a janela e afastou a cortina, revelando um buraco no vidro. – O invasor usou um cortador... As gavetas parecem não terem sido mexidas. O cofre não foi arrombado. Sendo assim, ou ele sabia a combinação, o que é mais provável, ou o cofre já estava aberto. Nenhuma cápsula de bala foi encontrada. Foi um serviço limpo até ele derrubar o aparador na hora de ir embora. Talvez tenhamos sorte e encontremos impressões digitais ou pegadas. Clapper é um prossional com cerca de 25 anos na polícia, boa parte deles na Divisão de Homicídios, antes de passar para a perícia. Ele é brilhante e ajuda sem querer aparecer demais. – Foi um roubo que deu errado? – perguntei.
Clapper deu de ombros. – Como todos os ladrões prossionais, esse aqui era organizado, até meticuloso. Talvez carregue uma arma para emergências, mas não é comum que andem armados. – Então, o que aconteceu? – perguntei a mim mesma em voz alta. – O marido não se encontrava no quarto. A vítima não estava armada nem vestida. O que fez o ladrão atirar em uma mulher nua?
capítulo 12
CONKLIN E EU DESCEMOS pela escada em espiral até o andar principal. Encontrei a biblioteca seguindo a voz ressonante de Marcus Dowling, com aquele sotaque inglês familiar. Eu assisti a todos os seus lmes mais antigos, em que atuara como um espião ou era um protagonista romântico. Vi até um dos mais recentes, em que interpretou o vilão. Gostava do trabalho dele. A porta da biblioteca estava aberta. Quando entrei, Dowling estava em pé, descalço, vestindo calça azul e uma camisa branca desabotoada. Admito ter me sentido um pouco fascinada por ele. Marcus Dowling, a melhor coisa depois de Sean Connery. Ele contava a Jacobi sobre o assassinato sem sentido da mulher quando Conklin e eu entramos. Jacobi nos apresentou, informando-lhe que nós três iríamos trabalhar juntos no caso. Cumprimentei o grande astro do cinema com um aperto de mão e sentei na beira de um sofá de couro. Era nítida a sua perturbação. Notei que seu cabelo estava molhado. Dowling não se sentou. Repetiu a sua história enquanto andava, de modo compassado, pela sala repleta de livros. – Casey e eu recebemos os Devereaus para jantar. François e a mulher, Sheila. Ele está dirigindo o meu novo filme. – Precisaremos dos números de contato deles – alertei. – Darei todos os números que quiser, mas já tinham ido embora quando tudo aconteceu. Casey estava se preparando para dormir, enquanto eu arrumava as coisas aqui embaixo. Ouvi um barulho lá em cima. – Ele franziu a testa. – Nem me ocorreu que fosse um tiro. Chamei por ela. Não respondeu. – O que aconteceu em seguida, Sr. Dowling? – Voltei a chamá-la e, quando estava subindo as escadas, escutei outro barulho. Dessa vez, achei que fosse um tiro. Poucos segundos depois, ouvi vidro se quebrando. A essa altura, quei perturbado, inspetores. Não sei o que aconteceu depois que vi a minha mulher deitada no chão... Só me preocupei em agarrá-la nos meus braços – confessou com a voz embargada. – Sua cabeça pendeu para trás e ela não estava respirando. Devo ter chamado a polícia. Vi a marca de sangue de uma das minhas mãos no telefone. Mais tarde, percebi que o cofre estava quase vazio. Quem fez isso devia conhecer Casey – continuou, agora chorando. – Devia saber que ela nem sempre trancava o cofre porque digitar a combinação era apenas... chato demais. Matá-la foi algo tão insano... Dowling esfregava o peito quando indagou a Jacobi: – Como posso ajudá-los a capturarem o animal que fez isso? Eu estava prestes a perguntar a Marcus Dowling por que ele tinha tomado banho enquanto esperava a polícia chegar, mas Conklin passou à minha frente: – Por acaso o senhor tem uma arma?
Ele lançou um olhar arregalado para o meu parceiro. Seu rosto cou rígido de dor. Agarrou o braço esquerdo e alertou: – Não estou me sentindo bem... E desmaiou.
capítulo 13
MEU DEUS, MARCUS DOWLING estava morrendo! Conklin encontrou a aspirina, Jacobi amparou a cabeça do ator com uma almofada e eu liguei para a Central. Repeti o endereço da residência e gritei: – Homem de 51 anos! Ataque cardíaco! Dowling ainda se contorcia quando a ambulância chegou. O homem grandalhão foi colocado em uma maca e carregado porta afora. Jacobi o acompanhou até o hospital, deixando que Conklin e eu investigássemos os arredores. Luzes das fantásticas casas vizinhas pontuavam a escuridão ao longo da rua arborizada. Eu estava preocupava com o novo caso. Casey Dowling era rica e famosa. O clamor público para encontrar o seu assassino iria deixar os políticos em apuros e nós seríamos bastante pressionados. O Departamento de Polícia de São Francisco já sofria com os décits orçamentários e o efetivo bem reduzido. Acrescente-se a isso a expectativa do povo de que os homicídios fossem solucionados em uma hora entre os intervalos comerciais. Eu sabia que estávamos no meio de um pesadelo. Esperava que Clapper chegasse a uma boa pista no laboratório. Sem nada para continuar, eu tinha um mau pressentimento: tudo o que Marcus havia nos dito estava errado. – Por que um ladrão iria atirar em Casey Dowling? – perguntei a Conklin enquanto caminhávamos rua acima. – Clapper falou disso: o ladrão portava uma arma em caso de deparar com uma emergência. – Como um proprietário assustado? – Exatamente. – Casey Dowling não estava armada. – Verdade. Talvez tenha reconhecido o invasor – salientou. – Sabe aquelas histórias que Cindy vem escrevendo sobre Hello Kitty? Cindy omas é uma repórter policial do jornal San Francisco Chronicle e uma das minhas melhores amigas, com uma mente ótima para solucionar histórias de detetive. Há pouco tempo, escrevera sobre um gatuno que vinha realizando roubos no segundo andar das residências, sempre invadindo quando os proprietários jantavam no térreo e o sistema de alarme estava desligado. O ladrão só fugia com joias. Ela o apelidara de “Hello Kitty” e o apelido pegou. Pelo que se sabia, Hello Kitty apresentava boa condição física, era hábil e rápido. Além disso, tinha uma quantidade enorme de pedras preciosas. – Pense um pouco... – falou Conklin. – Hello Kitty parece saber quando essas pessoas ricas vão oferecer jantares. E se ele zer parte do mesmo círculo social? Se Casey Dowling o reconheceu, matá-la talvez tenha sido a única saída. – Não é uma teoria ruim – concordei, enquanto nos dirigíamos às escadas da frente da mansão vizinha. – Mas espere um pouco. O que achou do cabelo molhado de Dowling? – Acha que foi para tirar o sangue da mulher?
– Ele estava no chuveiro depois que Casey foi assassinada? Isso me parece estranho. – Hum... Qual é a sua teoria? Homicídio básico? – Por que não? Não podemos descartá-lo só porque é um astro de cinema. Algo não está cheirando bem nessa história. Ele contou para Clapper que ouviu dois tiros. Já para nós, falou que ouviu um barulho e, algum tempo mais tarde, um segundo som e, só dessa vez, teve a certeza de que era um tiro. – Pode ser que ele estivesse apenas resumindo, narrando a história de forma abreviada. – Pode ser – concordei. – Ou talvez esteja inventando a história à medida que a relata e não consiga mantê-la igual.
capítulo 14
A RESIDÊNCIA VIZINHA À DOS Dowlings era recuada em relação à rua e, no jardim lateral, havia a casa do zelador, além de dois carros de luxo na entrada da garagem. Apertei a campainha e a porta da frente se abriu, revelando um garoto de cabelos castanhos, com cerca de 10 anos, usando uma camisa de rúgbi por cima da calça de pijama. Ele xou o olhar em nós e perguntou quem éramos. – Sou a sargento Boxer. Este é o inspetor Conklin. Seus pais estão em casa? – Kellyyyy! O garoto era Evan Richards e Kelly era a babá, uma mulher de 20 e poucos anos que estava assistindo a um programa de TV quando ouviu as sirenes berrando rua acima. – Casey Dowling foi assassinada? – perguntou. – Isso é loucura. Aquele ladrão poderia ter vindo aqui! Evan, pode pegar o telefone? Tenho que ligar para os seus pais. – Acho que vi alguma coisa – disse o garoto. – Eu estava olhando pela janela do meu quarto e alguém passou correndo pela casa, nas sombras sob as árvores. – Poderia descrevê-lo? – solicitou Conklin. Evan balançou a cabeça. – Apenas alguém correndo. Usando preto. Ouvi-o bufar de raiva enquanto corria. Perguntei se essa pessoa era grande ou pequena, se havia algo especial no modo como corria. – Achei que fosse apenas alguém fazendo cooper, sabe? Usava um boné, acho. Eu estava vendo a parte de cima da cabeça dele. Conklin deixou o seu cartão com a babá e pediu a Evan para fazer o favor de telefonar caso se lembrasse de qualquer outra coisa. Depois, seguimos quarteirão abaixo rumo à casa seguinte. Comentei com o meu parceiro: – Pelo visto, talvez tenhamos uma testemunha viva de Kitty. Nesse momento, o celular vibrou. Era uma mensagem de texto de Yuki: Ligue para mim. Acionei a tecla de discagem automática e ela atendeu. – Deus! Eu a conheço! – exclamou. – Conhece quem? – Casey Dowling. Malditos boatos. Como já poderia ter ouvido? – Estudamos juntas na Faculdade de Direito, Lindsay. Merda. Casey era uma pessoa doce. Uma boneca. Quando você pegar o assassino, vou lutar pelo caso e, em seguida, mandá-lo direto para o inferno.
capítulo 15
SARAH WELLS FECHOU A PORTA do quarto e a trancou. Ainda estava ofegante por causa da fuga e suas mãos tremiam. Colocou-se à frente do espelho, balançou os cabelos e se olhou detalhadamente. Será que era evidente? A pele era tão branca, quase transparente, e os olhos castanhos, enormes. Pensou no marido dizendo que ela poderia ser mais bonita se ao menos tentasse. No entanto, esse aviso a deixou ainda mais determinada a manter exatamente a aparência de uma professora de escola de 28 anos com uma vida dupla. E não estava nem falando dos roubos. Colocou as duas pequenas bolsas no chão. Em seguida, abriu a última gaveta da grande e velha cômoda americana, estilo art-déco. Como ela, o móvel guardava segredos. Sarah retirou pilhas de camisetas e calças de moletom e arrancou o fundo falso. Conteve a respiração, esperando, como sempre, que as joias ainda estivessem ali. Todas estavam. Cada um dos saques tinha a própria bolsa em tecido macio. Eram cinco coleções surpreendentes. E, agora, com a chegada do tesouro dos Dowlings, passavam a ser meia dúzia. Ela abriu o zíper da bolsa com o último roubo e olhou para o glorioso emaranhado de joias que, até pouco tempo, tinham pertencido à mulher de um astro de cinema. Era a coisa mais inacreditável: saras e diamantes. Anéis, colares e pulseiras, preciosidades que poderiam valer centenas de milhares de dólares. Obtivera sucesso, mas escapara por pouco. Embora estivesse em segurança agora, ainda tinha um grande problema: como se livrar das mercadorias. Maury Green, seu mentor e receptador, estava morto. Fora assassinado no aeroporto por um policial que pretendia atingir o seu cliente, um ladrão de joias que fugia da polícia. Maury havia sido um bom professor e amigo. De fato, era deprimente que não tivesse vivido o suciente para comemorar o sucesso da aluna e recolher a sua parte. Como todos os bons receptadores, Maury pagava cerca de dez por cento do valor das mercadorias na venda a varejo. Não parecia muito, considerando o inferno que ela viveria se fosse apanhada. Mesmo assim, era muito dinheiro se comparado ao que ganhava como professora. E agora ele se fora. Quanto mais tempo permanecesse com as joias, maiores as chances de ser pega. Encheu as duas mãos com o tesouro de Casey Dowling e balançou-as sob o abajur para que cintilassem. Sarah estava hipnotizada pela magnífica luz refratada.
capítulo 16
SARAH WELLS NÃO ERA A primeira ladra a realizar arrombamentos enquanto o jantar estava à mesa. Ela estudara os grandes: o Ladrão da Hora do Jantar e a Gangue do Serviço de Jantar. Eles tinham conseguido dezenas de milhões em joias usando ferramentas simples, sem tecnologia, enquanto as vítimas se demoravam no café e na sobremesa no andar de baixo. Do mesmo modo que os seus modelos exemplares, ela pesquisava a fundo os alvos pretendidos e estudava os seus movimentos. Com todas as notícias sobre Hello Kitty, admirava-se de como as vítimas ainda se sentiam tão seguras com as luzes acesas que nem acionavam os alarmes de segurança. A confiança desse pessoal era surpreendente. Ainda bem. Enquanto regozijava-se com as riquezas que tinham pertencido aos Dowlings, um item especial a atraiu. Era um anel com uma pedra bem grande, em tom amarelo-claro, talvez de 20 quilates, com lapidação antiga, fixada a uma armação berrante. Ela fez uma contagem aproximada das joias incrustadas ao redor da pedra central e registrou 120 diamantes pequenos. Que anel! Era de tirar o fôlego. O objeto mais romântico que já tinha visto. Sem dúvida, Marcus Dowling o dera à mulher em alguma ocasião especial. Sarah se perguntava quanto deveria valer. Aprendera muito sobre pedras preciosas desde que começara a trabalhar como ladra. No entanto, não chegava a ser uma gemologista e estava bastante curiosa para saber o que tinha. Ela escondeu o resto do saque dos Dowlings e a bolsa de ferramentas na última gaveta da cômoda, recolocou o fundo falso e as pilhas de roupas por cima. Depois, fechou a gaveta e tirou um guia ilustrado de pedras preciosas, que estava embaixo do armário, levando-o para a cama de casal. Folheando o livro, encontrou algumas pedras equivalentes àquela. Era possível que o anel fosse de topázio ou de turmalina amarela. Não... havia um toque de verde na grande pedra amarela de Casey Dowling. O que provavelmente a tornava um citrino, uma pedra vistosa, embora não fosse supervaliosa. Mais uma razão para querer ficar com o anel. Sabia o problema que poderia ter ao car com uma mercadoria roubada, mas ela precisava fazer isso. Era mais do que uma lembrança. Era um troféu, uma recompensa. E agora imaginava que o melhor seria tirar a pedra amarela do anel e usá-la como pingente. Lembrou-se de algo que sua mãe lhe dissera, depois de ter ouvido da avó de Sarah: “Em algumas pessoas, pedras de strass parecem diamantes. Em outras, diamantes parecem strass.” Achou que, nela, com roupas comuns e visual simples, o citrino pareceria vidro. Ficou na frente do espelho e segurou a pedra amarela junto à gola rulê preta, pouco abaixo do ombro. Parecia bem menor quando não estava em um anel. Tinha certeza de que, em outra armação, essa gema guardaria o segredo dela. Enquanto tava o próprio reflexo, alguém bateu com força à porta. Era o marido, Trevor. – Por que a porta está trancada, senhorita? O que está fazendo? Divertindo-se sozinha?
– Típico da sua parte dizer isso – disse ela. – Posso entrar? – Não. – Eu quero conversar com você! Sarah colocou o anel sob a base côncava do abajur na mesinha de cabeceira. – Vá para o inferno! – gritou. Trevor sacudia a porta, chutando-a. Ela se aproximou e a abriu. Ao deixá-lo entrar no quarto, pensou: Só mais um dia. Só mais um dia nessa vida secreta.
capítulo 17
SARAH BATEU A PORTA DA frente do apartamento e foi para o carro pensando no maldito Trevor. – Só mais um minuto... – implorara. Só que foram vinte minutos insuportáveis debaixo do seu corpo gordo, asqueroso, e agora ela estava mais do que atrasada para o trabalho. Conduziu o carro até a Dolores Street e chegou à via expressa, recuperando o tempo perdido. Ligou o rádio e encontrou o programa Bom dia com Lisa Kerz e Rosemary Van Buren: o lugar certo para saber do trânsito, tempo e noticiário local. – Rosemary, esta é a última notícia sobre Casey Dowling – anunciou Lisa. – Pelo que acabamos de saber, ela foi baleada ontem à noite. Baleada?! Sarah agarrou o volante. – A polícia tem alguma pista sobre quem a matou? – perguntou Rosemary. Matou? O coração de Sarah batia forte dentro do peito. Que brincadeira era aquela? Casey estava viva e gritando quando ela escapara da casa dos Dowlings. Estava viva. – Não, trata-se de Marcus Dowling – explicou Lisa. – Notícia de última hora. O advogado do Sr. Dowling, Tony Peyser, fez uma declaração dez minutos atrás... Sarah encarou o rádio como se o aparelho fosse uma pessoa, escutando Lisa Kerz dizer que o advogado do Sr. Dowling se apresentara na emissora KQED, ao vivo, para pedir a ajuda do povo de São Francisco. Ela desviou o olhar de volta à pista apenas em tempo de evitar bater na mureta de proteção. – Tudo bem, eis a declaração de última hora – acrescentou Rosemary. – Disse o Sr. Peyser: “O Sr. Dowling está oferecendo uma recompensa de 50 mil dólares por informações que levem à prisão do assassino de Casey Dowling.” Sarah avistou a rampa de saída e deu uma guinada no volante sem sinalizar, deixando marcas de derrapagem na pista ao fazer a conversão. Uma vez fora da via expressa, dirigiu sem prestar atenção ao trânsito. Por fim, chegou ao estacionamento da escola Booker T. Washington High. Ela pegou a mochila, trancou o carro e atravessou os portões vermelhos de ferro. Dirigiu-se ao prédio principal, entrando na sala dos professores para tomar o seu estimulante habitual antes de encarar o dia. O sinal tocara. A sala dos professores estava quase vazia, exceto pela presença de uma pessoa: Heidi Meyer, em pé ao lado da máquina de café, mexendo a colherzinha dentro da xícara. – Ei, Heidi. – Ei... Nossa, você está bem? – Ah, Trevor é um imbecil. Ouviu o bastante? Heidi pousou a xícara e abriu os braços para Sarah, que se aconchegou nela, sentindo-se envolvida
pela fragrância do perfume de lilás. Enterrou o rosto naquele cabelo ruivo, uma nuvem macia, e apenas se deixou ficar. Será que Heidi era capaz de ouvir o sangue dela rugindo? Meu Deus. As implicações do que acabara de ouvir eram claras. A polícia estaria focada em encontrá-la. Iriam acusá-la de matar Casey Dowling. Isso era loucura. – Estamos atrasadas para a aula – lembrou Heidi, acariciando as costas dela. – E os monstros estarão rebeldes. – Como sempre. – Sarah riu. Heidi deu um selinho em Sarah, que retribuiu o beijo. No entanto, com mais vigor e sentimento. A boca doce de Heidi se abriu para ela enquanto Sarah derramava todo o seu amor. Se ao menos eu pudesse contar tudo para ela...
capítulo 18
NA MANHÃ SEGUINTE AOS HOMICÍDIOS, Barbara Ann e Darren Benton, junto com Casey Dowling, esfriavam no necrotério enquanto Conklin e eu nos encarávamos por cima das nossas mesas lotadas, sem saber se havia uma saída para aquela situação. Estávamos trabalhando no caso Dowling porque Jacobi tinha sido bastante claro: – Dowling prevalece sobre Benton, sobre tudo. – Isso porque Casey era uma vítima de status, ao contrário dos Bentons. Comentei que o assassino lunático, que deixara uma mensagem no RAV4 dos Bentons, me dava calafrios. Que eu tinha certeza de que ele estava sinalizando um padrão na execução. Que Conklin e eu deveríamos estar no caso Benton agora, em tempo integral. Jacobi me olhou com pena. O que quer de mim? Sem efetivo. Sem orçamento. Quero manter o meu emprego. Faça o que eu disser. Conklin parecia revigorado. Os olhos castanhos cintilavam na penumbra da baia, o cabelo castanho brilhante caindo na testa enquanto estudávamos as anotações do caso referente aos bens roubados por Hello Kitty e esquadrinhávamos as fotos da cena do crime no quarto principal dos Dowlings. Eu fazia o upload da lmagem realizada por Clapper quando Cindy omas irrompeu pelos portões, encaminhando-se para nós dois. – Vocês precisam ver isto! – gritou ela. Seus cachos louros pareciam molas saltando, um raio azul brilhando nos olhos. Acenava com o Oakland Tribune, o menor e mais malicioso dos tabloides que competem com o Chronicle. A manchete era: “Hello Kitty mata” . Como Cindy nomeara esse gatuno e relatara os seus roubos, considerava-o dela. – Todo mundo está na minha história agora – reclamou, olhando-nos ferozmente. – Por favor, preciso de alguma coisa que o Trib não tenha. – Não temos nada – avisei. – Gostaria que tivéssemos. – Rich? – perguntou ao meu parceiro. Cindy é quatro anos mais nova. Considero-a uma irmãzinha caçula, mais do que a minha irmã verdadeira. Eu a amo e, embora brigue comigo, sua intuição aguçada e tenacidade já me ajudaram a solucionar alguns homicídios. Isso é algo a seu favor. Ela puxou uma cadeira, formando um triângulo entre mim e Conklin. Era uma metáfora visual da qual não gostei. – Por que Hello Kitty mataria Casey Dowling? Kitty nunca foi violento. Por que carregaria uma arma quando um assalto à mão armada poderia tirar a sua vida? – Estamos trabalhando, Cindy – garanti. – Tenha paciência. Quebrei a cabeça estudando o caso por duas horas na noite passada... – Rich? – Ela se empertigou toda.
– Foi o que Lindsay falou. Sem pegadas. Sem arma. Sem testemunhas. – O de sempre – comentou ela. Piscou para Conklin e deu o seu melhor olhar sedutor. – Mas e extraoficialmente? Ele hesitou. A seguir, perguntou: – E se Casey conhecesse o intruso? Ela se levantou em um pulo, enlaçou o pescoço de Conklin e o beijou na boca. Depois, saiu em disparada da sala da Central. – Tchau, Cindy! – gritei para ela. Conklin riu.
capítulo 19
– VOU VISITAR CLAIRE – INFORMEI ao meu parceiro. – Estou aqui se precisar – falou ele. Desci correndo três lances de escada. Consegui passar pelo saguão lotado do Tribunal de Justiça e chegar à porta dos fundos. Então, percorri a passarela coberta que ligava o edifício ao prédio do escritório da médica-legista. Encontrei Claire na sala de autópsia. Usava uma touca de banho orida e um avental por cima do uniforme médico GGG. Ainda tinha os quilos extras da gravidez no manequim tamanho 50. Chamei-a e ela ergueu o olhar, afastando-se do corpo de Barbara Ann Benton, aberto em cima da mesa. – Você acabou de perder a chance de encontrar Cindy – avisou, colocando o fígado de Barbara em uma balança. – Não, não perdi. Ela invadiu e tumultuou a sala da Central. Deu um beijo cinematográco em Conklin. Prometeu favores em troca de uma manchete e ele acreditou. O que ela conseguiu de você? – Notícia de última hora. Casey Dowling foi morta a tiros. Cindy tem o melhor trabalho, não é? Ela pode focar na sua única história e ainda ter tempo de transar com o inspetor bonitão. – Encontrou algo interessante durante a autópsia? – perguntei, tando a cavidade abdominal da mulher, na esperança de evitar uma questão delicada. Para ser honesta, era difícil manter Cindy fora dos assuntos condenciais da polícia. E eu não estava dormindo com ela. – Sem surpresas pós-assassinato – revelou Claire. – A Sra. Barbara levou duas balas. Qualquer uma poderia tê-la matado, mas o tiro no peito é a causa da morte. – E o bebê? – Uma 9 milímetros pelo lóbulo temporal. Foi um homicídio. Tudo assinado, carimbado e ocial. As balas estão no laboratório. Claire pediu para a assistente terminar o trabalho com Barbara. Em seguida, retirou as luvas e a máscara. Saímos da sala de autópsia e ela me conduziu ao seu escritório. Enquanto ela pegava a cadeira giratória, eu desabei em uma comum em frente à mesa. Ela tirou duas garrafas de água da geladeira e me entregou uma. Em cima da mesa, havia um porta-retratos. Virei-o para poder examinar em detalhes nós quatro na escadaria da frente do Tribunal de Justiça. Yuki, vestida a rigor, o cabelo preto repartido ao meio, caindo até a altura do queixo em duas alas brilhantes. Cindy dava um largo sorriso, os dentes da frente sobrepostos de leve chamando a atenção para o quanto ela era atraente. E Claire, rechonchuda e bonita com os seus 40 e poucos anos. Por fim, lá estava eu, destacando-me entre elas com quase 1,80 metro de altura, o cabelo louro em um rabo de cavalo e ostentando um olhar bem sério. Sempre me vi como uma pessoa alegre e
despreocupada; pergunto a mim mesma de onde tirei essa ideia. – O que há de errado, Lindsay? – Nem sempre se consegue o que se quer – respondi, esboçando um sorriso. – O caso dos Bentons? Ou o outro? – Ambos. Estou supervisionando Chi no caso Benton, mas ele é o principal. – Eu sei. E você sabe que Paul Chi se matará para solucionar o caso. Assenti. – O que tem sobre Casey Dowling até agora? – O agressor usou uma .44. – Sério? – Pois é, também não entendo. O que um ladrão está fazendo com um canhão quando uma bonitinha de 9 milímetros resolveria? O laboratório não conseguiu nenhum resultado no banco de dados. – Foi tão rápido assim? – Conei em Clapper e pedi urgência. Agora, tenho que colocar o nome dele no meu próximo filho. – Clapper Washburn. Que maldade com a criança. Claire riu, mas logo voltou a ficar séria. – Talvez eu tenha alguma coisa. – Desembucha. – Quando z a coleta do kit de estupro em Casey Dowling, encontrei evidências de relação sexual. Os peixinhos ainda nadavam.
capítulo 20
QUANDO VOLTEI À MINHA MESA, Conklin comentou: – Enquanto esteve fora, 72 pessoas telefonaram com pistas sobre o assassinato de Casey Dowling. – Brenda se aproximou e colocou diversos post-its rosas com mensagens sobre a mesa dele. – Mais dez. – O que perdi? – O advogado de Dowling foi ao ar e disse que ele está propondo 50 mil dólares por informações que levem à prisão do assassino da mulher. – Então, aqui vai uma pergunta, Rich: ele está certo em oferecer uma recompensa ou está nos obstruindo com palpiteiros doidos para que não possamos trabalhar no caso? Eu estava telefonando para Yuki para discutir a possibilidade de conseguir um mandado para os registros de telefone e de computador dos Dowlings quando Jacobi puxou uma cadeira para o centro da baia. Sentou-se com as pernas abertas e pediu a atenção de todos. Fiquei impressionada com o estado péssimo dele. Jacobi é um veterano da polícia: serviu cerca de vinte anos na Homicídios, um sobrevivente tanto de ataques físicos quanto das tribulações da vida. Portanto, o que podia incomodá-lo tanto? Jacobi acenou com a cabeça para mim e virou-se para os inspetores do turno da manhã: Chi, McNeil, Lemke, Samuels e Conklin, além de alguns caras do turno da noite que tinham sido designados para nos ajudar. Achei que ele estivesse reetindo sobre o quanto éramos poucos, em quantos casos trabalhávamos e se realmente conseguiríamos solucioná-los. Começou pedindo a Chi para fazer o relatório a respeito dos Bentons. Chi se levantou, 1,80 metro de brilhantismo e sagacidade. Contou que o parceiro e ele seguiram Richard Benton de perto. O álibi conferia. Além disso, o seguro de vida de Barbara Ann não pagaria o suficiente nem para enterrá-la. – Não conseguimos identicar o atirador pela ta de vigilância do estacionamento – armou Chi. – Ele usava um boné e manteve a cabeça baixa. Mas, pelo que é possível ver do pescoço, achamos que é branco. Parece que disse alguma coisa à mulher antes de atirar nela e no bebê. Não levou nada, mas talvez tenha se apavorado. Ainda dá a impressão de ser um assalto que deu errado. Jacobi fez as perguntas que gostaríamos de formular: – Por que o atirador matou a criança? E, por Deus, Paul, o que é MCP? – Não há nenhum MCP no banco de dados, tenente. Não é uma gangue ou uma organização terrorista conhecida. Há cerca de trinta pessoas na lista telefônica cujas iniciais são “MCP” . Estamos examinando uma por uma. A próxima a caminhar para a forca era eu. Informei, de forma resumida, tudo o que tínhamos a respeito da morte de Casey Dowling, ou seja, nada. Expliquei que estávamos analisando cinco roubos recentes com o mesmo modus operandi.
– Em todos os seis incidentes, os proprietários estavam em casa e ninguém viu o ladrão. Desta vez, há uma fatalidade e talvez uma testemunha. Um vizinho de 10 anos viu alguém de preto correndo da cena do crime. Até o momento, parece que a vítima surpreendeu o ladrão e ele atirou. Jacobi assentiu. Em seguida, soltou a bomba: – O chefe me telefonou nesta manhã e comunicou que seria mais eciente juntar a nossa unidade com a Seção de Homicídios da Divisão Norte. – O que signica “juntar”? – perguntei, atônita diante da ideia de dobrar o contingente policial no espaço de trabalho de cerca de 6 por 9 metros. – O pensamento lá em cima é que seria melhor ter mais gente trabalhando nos casos, mais colaboração para resolver problemas e, bem, provavelmente uma nova cadeia de comando. Então era por isso que Jacobi parecia ter sido arrastado por um caminhão. Seu emprego estava em perigo e isso afetaria todos nós. – Nada foi decidido ainda – ressaltou. – Vamos encerrar esses casos. Não posso lutar se perdermos. A reunião terminou com um suspiro coletivo de cansaço. Jacobi convidou a mim e a Conklin para nos juntarmos a ele no escritório do canto: uma pequena estação de trabalho envidraçada, com uma janela que dava para a via expressa. Conklin pegou uma cadeira e eu me encostei ao batente da porta. Avaliava as rugas de preocupação que tinham aparecido na testa de Jacobi durante a noite. – Dowling não teve um ataque cardíaco. Dores no peito e respiração acelerada... Pode ter sido um ataque de estresse. Pode ter sido. Talvez estivesse atuando. Quem sabe, desta vez, ele consiga um Oscar. Por enquanto, o que sabemos é que ele acabou de ser liberado do hospital. Revelei que o relatório da médica-legista afirmava que Casey Dowling fizera sexo antes de morrer. – Vamos agora ver Dowling. – Aguardarei mais informações pelo telefone.
capítulo 21
MARCUS DOWLING ABRIU A PORTA e nos conduziu a uma sala de estar decorada com sofás com descansos de braço arredondados, em estilo vitoriano. Pratos azuis de porcelana inglesa enfeitavam as paredes. No console da lareira, estátuas como as dos leões guardiães dos templos chineses. O elegante bairro londrino de Mayfair tinha ido parar em São Francisco. Uma mulher de vestido preto, que não foi apresentada, nos ofereceu bebidas. Em silêncio, ela deixou a sala e retornou com garrafas de água para Conklin e para mim, e uma de uísque para o nosso anfitrião. Iniciei a conversa: – Sr. Dowling, poderia nos contar de novo o que aconteceu na noite passada? – Pelo amor de Deus, falei tudo para vocês, não? Achei que estivessem vindo aqui para me dizer alguma coisa. Conklin, que é mestre em contornar o meu gênio forte, amenizou a situação: – Pedimos desculpas, senhor. A questão é: relatar de novo o que aconteceu talvez possa ativar a sua memória sobre quem fez isso. Dowling assentiu, recostou-se na cadeira de couro e tomou um bom gole de uísque. – Os Devereaus tinham ido embora. Como informei ao outro policial, eu estava colocando a louça dentro da pia... – A senhora que trouxe as bebidas... – interrompi. – Não estava aqui para ajudar? – Vangy só trabalha de dia. Ela tem um filho. Dowling repetiu tudo: a mulher tinha subido antes, ele ouvira os tiros, a encontrara no chão, sem respirar, e chamara a polícia. – Sr. Dowling, notei na noite passada que o seu cabelo estava molhado. Tomou banho antes de a polícia chegar? Ele resmungou e agarrou o copo. Eu estava à procura de algo que o denunciasse, um olhar de culpa, e acreditei ter visto um. – Eu estava devastado. Fiquei chorando no chuveiro porque não sabia mais o que fazer. – E as suas roupas? – perguntou Conklin. – Minhas roupas? – Sr. Dowling, serei honesto com você – avisou o meu parceiro. – Sabemos que é uma vítima, mas há certos protocolos. Levaremos as suas roupas para o laboratório e isso acabará com qualquer pergunta que possa surgir mais tarde. Ele lançou um olhar furioso para Conklin. – Van-gy! Leve o inspetor lá em cima e dê o que ele quiser. Quando os dois deixaram a sala, perguntei: – Quando foi a última vez que teve relações sexuais com a sua mulher? – Meu Deus. Aonde quer chegar?
– Alguém fez sexo com a sua mulher – assegurei, continuando a pressioná-lo. – Se foi o assassino, deixou provas que poderiam nos ajudar... – Casey fez sexo comigo! – gritou ele. – Fizemos amor antes do jantar. Agora, no que isso pode ser útil para você? Quinze minutos mais tarde, meu parceiro e eu deixamos a residência de Dowling com uma lista de contatos telefônicos, um cotonete bucal, além de todas as roupas para lavar e passar de Marcus Dowling. Provavelmente, isso incluía o que ele usava quando a mulher levou um tiro. – Recolhi tudo o que havia no cesto de roupa ou estava pendurado atrás da porta do banheiro – assegurou Conklin enquanto voltávamos para o carro. – Se ele atirou na mulher, teremos a pólvora, respingos de sangue... Nós o pegaremos.
capítulo 22
UM LONGO DIA CHEGAVA AO FIM quando Claire e eu saímos da escuridão da rua e entramos no restaurante Susie’s: paredes pintadas com esponja, aromas picantes, além do delicioso som do grupo de percussão. Cindy e Yuki ocupavam a nossa mesa favorita no salão dos fundos. Yuki no seu melhor terninho para ir ao tribunal, enquanto Cindy trocara a calça de brim por algo glamoroso em tecido chiffon, na cor azul-bebê, sob uma jaqueta curta creme. Ambas comiam chips de banana e bebiam cerveja, conversando sobre o caso Dowling. Claire e eu nos sentávamos à mesa quando Cindy revelou: – Casey Dowling possuía um anel de diamante amarelo-canário de 20 quilates, no valor de um milhão de dólares. Conhecido como o Sol de Ceilão. Talvez tenha lutado para mantê-lo. O que acha, Linds? Seria motivo para fazer Hello Kitty perder o controle? – O corpo de Casey não tinha indícios de luta – ressaltou Claire. – E não gritou pelo marido – acrescentei. Peguei uma garrafa do balde com gelo e servi um pouco de cerveja a Claire e a mim. – Onde conseguiu essa informação sobre o diamante? – perguntei a Cindy. – Tenho as minhas fontes. No entanto, não que animada demais, Linds: aquela pedra já deve ter sido cortada e agora se resume a pequenos cristais. – Talvez. Escute, tenho uma ideia. Já que você conhece muita gente, talvez possa dar uma olhada no registro da alta sociedade, sinalizar alguém jovem e atlético o suciente para realizar roubos no segundo andar das residências. – Está achando que Hello Kitty é alguém da elite? – perguntou Yuki. – Rich acha que sim – Cindy e eu respondemos juntas. Yuki colocou o cabelo atrás da orelha. – Se Kitty transita por esse grupo, saberia que Casey tinha esse enorme diamante amarelo. Se ela o reconheceu... – Sim, admito, faz sentido – concordei. – A entrada no quarto dos Dowlings se deu pela janela, de forma idêntica aos outros cinco arrombamentos. Há uma testemunha que viu alguém fugindo a pé. Clapper arma que não há pólvora ou mancha de sangue na roupa de Dowling. Sendo assim, se Casey conhecia Kitty... Claire deu um soco na mesa. Chips de banana pularam. A cerveja espirrou. Ela conseguiu atenção de todas. – Lamento, mas os assassinatos dos Bentons me dão calafrios. MCP . O que é isso? É loucura. E muito sinistro. Mistério com relação às marcas de pólvora. Mistério com relação ao motivo. Bebê morto, baleado como em execuções. Fez uma pausa antes de continuar: – Sendo bem clara, não me importa de quem seja esse caso e sei que não é correto dar mais
importância a uma vítima de assassinato do que a outra. Lamento, mas esse bebê morto me faz mal. Profundamente. E agora estou indo para casa ficar com o meu homem e a minha garotinha.
capítulo 23
YUKI PAGOU A CONTA E DISSE a Lorraine, nossa garçonete, para car com o troco. De repente, ela percebeu que não havia contado a novidade às outras. Em geral, a noite das garotas no restaurante Susie’s era de risada, desabafo e jantar. No entanto, naquele dia, estavam tão sérias que preferiram ir embora. Ela se levantou, abotoou o terninho, passou pela cozinha e chegou ao salão principal. Uma das mãos estava na maçaneta da porta da frente quando, por impulso, ela se virou e voltou ao bar. O barman tinha cabelo preto cacheado, um sorriso fácil, além de um crachá preso ao tecido da camisa de estampa extravagante. – Miles? – É o meu nome – respondeu ele. – Espere. Já vi você por aqui antes. Você e as amigas: cervejas e margaritas, certo? – Sou Yuki Castellano – apresentou-se, cumprimentando-o. – O que se bebe para comemorar um bom dia no tribunal? – Conseguiu invalidar uma multa de trânsito? Ela riu. – Gostei do sorriso – disse o barman. – Acho que o sol acabou de sair. – Sou promotora – revelou. – As coisas acabaram bem para os mocinhos hoje. O que acha que devo beber? – Algo clássico. Tradicional. Sempre na moda. – Perfeito! – exclamou enquanto Miles lhe servia champanhe. – Sabe, hoje foi um dia maravilhoso, com exceção de uma pedra no sapato. – O que aconteceu? Yuki pediu uma salada de caranguejo com molho picante. A seguir, narrou o caso contra Jo-Jo e como a vítima, o nado Dr. Harris, era um sujeito muito ruim, mas que o réu era pior e deixara o homem morrer no próprio vômito no decorrer de quinze horas. – O júri deveria ter levado cerca de cinco minutos para considerar Jo-Jo culpado – enfatizou Miles. – Deveria, mas levou um dia e meio. Seu advogado é muito educado. Além disso, Jo-Jo é irresistivelmente simples. Por exemplo, você poderia acreditar que ele não sabia que Harris estava morrendo se olhasse de soslaio e abandonasse o bom senso. – Logo, o fato de você ganhar é extraordinário. – Sim. Estou nisso há alguns anos. Já perdi muitas vezes. – Você ainda não mencionou a pedra no sapato. – O nome é Jeff Asher. Advogado da oposição. Ele veio até mim depois que o seu cliente foi retirado algemado e comentou: “Parabéns pela vitória. Será a primeira de muitas.” – Ele é um mau perdedor – disse o barman. – Você o prejudicou. Sem dúvida. Sabe o que mais? O
champanhe é por conta da casa. – Obrigada. E você está certo: ele é mesmo um mau perdedor. – Os barmen nunca mentem – afirmou Miles. Yuki riu. – Lá vem o sol – falou ele.
capítulo 24
A BLUSA DE CINDY ERA UMA NUVEM de chiffon de seda no chão do carro de Rich Conklin. A saia estava enrolada até a cintura e a meia-calça pendia de um dos pés. Apesar de desconfortável, ela não mudaria nada. Pousou uma das mãos no peito de Rich, suado depois da travessura, e sentiu o seu coração bater forte. Ele a puxou para perto com força, beijando-a. – Que concerto! – Tremenda seção rítmica – completou ela e ambos caíram na gargalhada. Estavam estacionados em um beco próximo ao bairro de Embarcadero. Rich encostara o carro em uma área escura porque a mão de Cindy alisando a sua perna tornara a espera impossível. – Quase consigo ouvir o policial batendo na janela com a lanterna e berrando “Ei, o que está acontecendo aí dentro?”. – E você mostrando o distintivo e explicando “Policial em serviço”. Conklin riu. – Não tenho ideia de onde esteja o distintivo. Você me enfeitiça, Cin, e digo isso da melhor forma possível. Ela deu um sorriso malicioso e passou uma das mãos sobre o seu peito másculo, deslizando-a para baixo. A seguir, beijou-o, ofegante. Lá estava Rich, excitado de novo, retribuindo os seus beijos e puxando-a para cima dele. – Mantenha a cabeça baixa – pediu, ofegante. – Faróis. Cindy se inclinou, beijou-o com vontade e montou nele. Começou a masturbá-lo, encarando-o observando sua expressão de prazer. Conklin colocou as mãos ao redor da cintura dela, puxando-a para baixo, sobre ele, com vontade. – Você me deixa louco, Cin. Ela colocou o rosto em um dos ombros de Rich, deixando-o dar curso à ação, sentindo-se segura e em risco o tempo todo, uma poderosa combinação explosiva. Chamava-o pelo nome enquanto ele se lançava dentro do seu corpo. – Oh, meu Deus – exclamou Cindy, arfando, em seguida, desfalecendo, querendo adormecer nos braços dele. Mas algo a incomodava, algo que nunca considerara questionar até agora. – Rich? – Quer ir para a terceira rodada? – Eu o desafio – disse ela, e ambos riram. Então, deixou escapar: – Você já...? – Talvez, uma ou duas vezes antes. – Não, escute. Já fez isso alguma vez com Lindsay? – Não. Não. Sem essa. Ela é a minha parceira. – E isso é o quê? Ilegal?
– Acho que um dos meus braços está dormente. Cindy saiu de cima dele. Os dois procuraram suas peças de roupas. Também decidiram onde passar a noite. Estraguei o clima, pensou Cindy enquanto abotoava a blusa. Além disso, não tinha certeza se ele falara a verdade.
capítulo 25
PETER GORDON PREPARAVA PURÊ de batatas instantâneo no fogão enquanto assistia ao jogo de beisebol na TV, quando a mulher chegou. – O que está queimando? – perguntou Heidi. – Escute, princesa, não preciso das suas malditas dicas culinárias agora e você me fez perder o último arremesso. – Não tem como voltar o lance? – Você está vendo algum gravador de vídeo por aqui? Hein? – Desculpe, Sr. Mal-Humorado. Só estou dizendo que poderia economizar se colocasse um pouco de leite e reduzisse o fogo. – Pelo amor de Deus! – exclamou Pete, apagando o fogo e juntando o purê em uma tigela. – Não pode me deixar ter um simples prazer? – Bem, tenho uma surpresa. – Vamos ouvi-la. Ele aumentou o volume e comeu o purê em frente ao aparelho de TV . Cuspiu na pia quando a comida queimou a sua boca, mas levantou o rosto a tempo de ver o time rival cruzar a base do rebatedor. – NÃO! – vociferou. – Malditos Giants! Como puderam perder o jogo? – Minha tia comentou que gostaria de nos levar para jantar amanhã. O que acha? Por conta dela. – Oba! Parece divertido. Sua tia da bunda grande e todos nós ao redor de uma mesa no Olive Garden. – Petey... Nenhuma resposta. – Petey – repetiu ela, aproximando-se e desligando a televisão. Ele virou a cabeça e a encarou. – Não se trata de você, bonitão, mas de crianças jantarem com a família. – Vocês podem se dar bem sem mim. Apenas improvise, princesa – sugeriu. De repente, ela pegou o controle remoto da bancada, jogou-o no triturador de resíduos e apertou o botão de ligar. – Vá para o inferno – xingou ela enquanto a máquina moía o plástico. – Estou falando sério. Pete desligou o triturador e viu a mulher deixar a cozinha de forma intempestiva. Reproduziu a última cena na sua mente, só que desta vez, com uma das mãos de Heidi enada no aparelho. Os dentes de metal mastigando músculo e osso enquanto ela gritava por bastante tempo. Ele ia pegá-la muito em breve. Assim como pegou Sherry e aquele merdinha. MCP, pessoal. Esperem por isso.
capítulo 26
MINHAS PÁLPEBRAS SE ABRIRAM às 5h52. Sei disso porque Joe tem um relógio-projetor, um dispositivo high-tech que mostra a hora e a temperatura em dígitos vermelhos no teto. Gosto de ter essa informação logo ao abrir os olhos. No entanto, nesta manhã, vi os numerais vermelhos e imaginei as letras MCP. Aquele maldito psicopata assassino de bebê se infiltrara em minha mente. Não culpava Claire nem um pouco pelo fato de ela estar tão irritada, emotiva, quase cruel. As pérdas letras em batom, a pista que não levava a nada, era como um trem de carga vindo na nossa direção sem termos para onde correr. Eu imaginava como Chi e McNeil estavam se saindo com a lista telefônica que batia com aquelas iniciais. Seria maravilhoso se isso levasse ao atirador. Mas um assassino assinando o próprio trabalho com as suas verdadeiras iniciais? Difícil. Fechei os olhos, mas Martha já estava em cima de mim. Encostou o focinho no colchão, me encarando com os seus lindos olhos castanhos e abanando o rabo. Segundos depois, Joe se virou e me envolveu em um abraço de urso. – Linds, tente dormir. Eram 6h14. – Tudo bem – concordei, virando-me para que dormíssemos de conchinha. Joe respirava suavemente por cima de um dos meus ombros e a minha mente voltou aos dias em que eu morava em um apartamento em Potrero Hill. A vida era bem diferente. Quase todas as manhãs, eu corria com Martha. Dirigia o departamento. À noite, voltava para casa e para a minha cadela. Eu me lembrei dos pratos em porção individual, preparados no micro-ondas, e do pouco de vinho. Queria sempre saber quando teria notícias de Joe, quando o veria. E, então, meu apartamento se incendiara. Agora, Joe morava comigo e eu estava usando uma aliança. Naquele momento, ele pareceu ler os meus pensamentos. Segurou-me, puxando-me para mais perto e colocou as suas mãos nos meus seios. Teve uma ereção ao se encostar em mim e deslizou uma das mãos até a minha barriga, pressionando-me contra ele. Nossas respirações se aceleraram. Ele me virou como se eu fosse a pessoa mais leve do mundo, uma sensação que adoro. Contorci-me ao seu toque, me aquecendo nesse novo tipo de amor que era tão diferente da loucura do passado, antes de Joe e eu nos comprometermos a uma vida juntos. Encarei-o e coloquei os braços ao redor do seu pescoço. Ele puxou as minhas pernas em direção à sua cintura. E esse momento incrível, de tirar o fôlego, oresceu. Esperei ao longo da tensão daqueles longos segundos, até que ele me penetrou. Olhei nos seus olhos de um azul profundo e me entreguei. – Amo você, loura – confessou ele. Assenti com a cabeça porque não conseguia falar. Eu chorava e a garganta doía à medida que os
nossos corpos se fundiam. Ele me segurava e me balançava e eu me sentia feliz. Amava esse homem. Por fim, as nossas vidas se misturavam de uma forma deliciosa e equilibrada. Então, o que me perturbava no fundo da minha mente? Por que sentia que estava desapontando a mim mesma?
PARTE 2 HORA DO SHOW
capítulo 27
SARAH WELLS VIROU O FILÉ de frango na frigideira e retirou o pão de alho do forno, imaginando que toda aquela comida poderia causar um ataque cardíaco. Mas será que ela não desejava exatamente isso? A TV estava ligada na sala ao lado. Sarah podia vê-la pela abertura na parede e ouvir Helen Ross, a bela loura apresentadora de talk show, sobre o crepitar da gordura na frigideira. Ela apresentava condolências a Marcus Dowling, compadecendo-se da sua dor por perder a mulher. – Vamos lá, Helen – murmurou Sarah. – Interrogue-o. Não seja imbecil. – Ela estava tão feliz... – disse Dowling. – Tivemos um jantar adorável com amigos. Íamos sair de férias e, então... isso. O inimaginável. – Era mesmo inimaginável – concordou Helen, aproximando-se para tocar uma das mãos de Dowling. – Casey tinha determinação, entusiasmo, carisma. Organizamos juntas uma arrecadação de fundos para a Cruz Vermelha no ano passado. – Não há como descrever a agonia – comentou Dowling. – Não paro de pensar: Se ao menos eu não estivesse lavando a louça... Trevor entrou na cozinha, abriu a geladeira e se abaixou para pegar uma cerveja, suas banhas caindo sobre o cós da cueca. Abriu a lata e tomou um gole. Depois, foi até a mulher e agarrou a sua bunda. – Ei! – exclamou ela, se esquivando. – O que há com você? – Aqui – disse ela, entregando o pegador de cozinha. – Tome conta para mim. – Para onde você vai? – Tive um dia difícil, Trev. – Deveria procurar um médico, sabe disso. – Cale a boca. – Porque você está mal-humorada o tempo todo. Sarah se deixou cair no sofá e aumentou o volume. Desde que roubara as joias, só pensava em Marcus Dowling, tentando entender que merda havia acontecido depois que ela pulara pela janela. – Você não tinha como prever isso – salientava Helen. Tentando chamar a atenção de Sarah, Trevor batia com a frigideira no fogão. Na TV , Dowling falava: – A polícia não chegou a nenhum resultado e, enquanto isso, o assassino dela está livre. Por m, compreendeu. Não sabia o motivo, mas tinha sido ele. Dowling matara a mulher! Não havia mais ninguém que pudesse ter feito isso. Como fora conveniente que Sarah tivesse arrombado a sua casa, transformando-se no bode expiatório! – A comida está pronta, querida – avisou Trevor. – O cereal está do jeito que você gosta. Ela desligou a TV e foi para a saleta de jantar.
– Lamento ter sido grossa – falou, achando ser melhor pedir desculpas do que deixá-lo mais irritado. Às vezes, ele podia se tornar violento. Quando conversava com Heidi sobre Trevor, ambas o chamavam de “Terror”. Era um apelido adequado. O marido resmungou e cortou o filé. – Não se preocupe. Só me pergunto, às vezes, o que aconteceu com a doce garotinha com quem me casei. – Um dos mistérios da vida – retrucou ela. – O que você quis dizer foi “Vou compensá-lo hoje à noite, querido”. Não é isso? Sarah desviou o rosto do olhar penetrante de Trevor e mergulhou a colher na tigela de cereais. Ia ter que intensicar a programação. Talvez não fosse o recomendável, mas ou caria rica ou iria para a prisão. Na verdade, não havia outra escolha.
capítulo 28
SARAH ATRAVESSOU O QUINTAL. Tudo estava escuro, com exceção da pequena luz na varanda dos fundos, de onde o luar se inltrava por entre os ramos das árvores. Era um sinal de que a porta estava destrancada por trás da tela. Sarah entrou e caminhou em silêncio até a mulher que lavava louça na pia. Colocou os braços ao redor da cintura dela e pediu: – Não grite. – Uau. Chegou rápido – comentou Heidi, animada. – Terror desmaiou, como sempre – explicou Sarah, beijando-a, balançando-se com ela na penumbra da cozinha. – Onde está a Fera? – indagou, referindo-se ao marido de Heidi. Ela ergueu uma das mãos em direção ao armário e pegou dois copos. – Sabe o que ele sempre diz: “Em qualquer lugar, menos aqui.” Quer pegar a garrafa na geladeira? A escada e o assoalho do segundo andar rangeram sob os pés das duas. Elas passaram pelo quarto das crianças em direção ao quarto no fim do corredor. – Quanto tempo pode car? – perguntou Heidi, ligando o monitor de bebê. A seguir, desabotoou o suéter amarelo-claro e despiu as calças jeans. Sarah deu de ombros. – Se ele acordar e não me encontrar, o que vai fazer? Chamar a polícia? Heidi a despiu. Com cuidado, abriu botão por botão da camisa extragrande e o zíper da calça jeans de cintura baixa, maravilhada à medida que as suas mãos percorriam o corpo magro e atlético de Sarah. – Seu corpo é maravilhoso. Gostaria de ser assim – confessou Heidi. – Você é perfeita. Amo tudo em você. – Essa era a minha fala. Vá para a cama agora. Ande. Heidi entregou um copo a Sarah e relaxou perto do seu verdadeiro amor. As duas mulheres se acomodaram na cama de ferro. Heidi colocou uma das mãos em uma das coxas de Sarah, que a puxou para perto sob um dos seus braços protetores. – Então, o que consta do nosso diário de viagem esta noite? Sarah tinha uma lista de três lugares, mas apresentava uma simpatia especial por Palau e revelou isso a Heidi. – Fica longe de qualquer lugar. Pode-se nadar nua nessas grutas surpreendentes. Ninguém se importa com quem você é. – Não há problemas com um quarteto de duas mulheres e duas crianças? – Diremos que somos irmãs. Você é viúva. – Ah, sim. Mas e a semelhança familiar? – Cunhadas, então. – Ok. E com relação ao idioma? Qual é?
– Palauense, claro. Mas também falam inglês. – Sendo assim, tudo bem. À vida em Palau – disse Heidi, tocando o copo de Sarah com o dela em um brinde. Ambas bebericaram e se beijaram com os olhos abertos. Em seguida, os copos foram colocados de lado. Buscaram uma à outra, Heidi escutando o monitor de bebê, Sarah com um dos olhos na janela, o medo dirigindo a paixão das duas em marcha acelerada. Podemos fugir logo depois dos últimos serviços. Assim que as joias forem vendidas, reetia Sarah enquanto Heidi tirava a sua calcinha. – Sarah? – Estou aqui, Heidi. Imaginando o futuro. – Venha para mim agora. De repente, Sarah lembrou-se de contar à Heidi sobre a mulher e a criança que tinham sido mortas no edifício-garagem. Queria aconselhá-la a tomar cuidado. Mas, um segundo depois, o pensamento desapareceu e outro entrou em foco. Venderia tudo com exceção da pedra amarela. Em breve, iria dá-la a Heidi.
capítulo 29
ERAM OITO HORAS DA MANHÃ quando Jacobi arrastou a cadeira para o centro da sala e nos chamou. Yuki se sentou ao meu lado. Claire permaneceu atrás dele, com os braços cruzados. Estava tão envolvida emocionalmente com o pequeno e falecido Darren Benton quanto Yuki com Casey Dowling. Notei o estranho sentado em uma cadeira de metal no canto: homem branco bronzeado, 30 e poucos anos, olhos azuis estreitos, cabelos louros descoloridos pelo sol, puxados para trás e amarrados com elástico. Tinha cerca de 1,80 metro, 80 quilos e dava a impressão de ser sarado, pois o blazer estava esticado sobre os bíceps. Eu não conheço esse policial. Jacobi recomeçou a partir de onde havíamos parado no dia anterior. Chi fez um relatório do caso Benton, revelando que não existiam balas correspondentes àquelas encontradas nos corpos da mãe e do bebê. Mencionou que as marcas de pólvora ainda não podiam ser identicadas, mas que a Dra. Claire enviara fotos para o FBI. Chi sacudiu as moedas no bolso e parecia desconfortável ao dizer que o batom usado para escrever as letras “MCP” era de uma marca comum, barata, comprada em uma farmácia. Moral da história: não tinham nada. Eu me levantei e z um resumo: estávamos analisando os registros telefônicos dos Dowlings e havia muitos números que se repetiam em ambas as listas. Armei que não tínhamos encontrado nada fora do comum nas transações bancárias do casal. – Casey Dowling possuía uma joia muito particular – continuei. – Estamos investigando isso, mas ainda não descobrimos nada sobre Hello Kitty. Todas as ideias brilhantes são bem-vindas. Qualquer um que queira ajudar com os telefonemas de denúncias anônimas, levante uma das mãos. Obviamente ninguém fez isso. A reunião estava prestes a terminar quando Jacobi solicitou: – Todos cumprimentem o sargento Jackson Brady. O policial sentado ao fundo ergueu uma das mãos em um aceno e olhou ao redor enquanto era apresentado. – Jack Brady acabou de ser transferido – explicou Jacobi. – Trabalhou doze anos no Departamento de Polícia de Miami, a maior parte do tempo na Divisão de Homicídios. Tracchio o incorporou à nossa unidade como um reserva, por um curto prazo de tempo, enquanto se aguarda a designação denitiva. Deus sabe que precisamos de ajuda. Por favor, façam com que ele se sinta bem-vindo. Jacobi nos dispensou. Jackson Brady se aproximou da minha mesa e estendeu uma das mãos. Cumprimentei-o, disse o meu nome e o apresentei ao meu parceiro. Brady assentiu e comentou que ouvira falar dos incendiários, um caso envolvendo dois garotos
que colocaram fogo em casas, matando os moradores. Um caso que Conklin e eu havíamos encerrado. Vi os olhos azuis atentos de Brady sondando a pequena sala da Central enquanto eu falava. Eu me virei e vi Claire conversando com Jacobi, Cindy se juntando a Yuki, a TV no canto da sala mostrando Marcus Dowling ainda batendo papo com a imprensa. – Quanto mais fala, menos acredito nele – assegurou Brady, projetando o queixo em direção às imagens de Dowling. – Estamos trabalhando no caso há alguns dias – frisei. – Começamos a ficar bastante envolvidos. – Ouvi o relatório, sargento – lembrou Brady. – Vocês não têm nenhuma pista.
capítulo 30
A CASA DE PENHORES DE ERNIE COOPER encontrava-se entre um restaurante de comida chinesa, do tipo fast-food, e uma tabacaria em Valencia, no coração de Mission. A joia de Casey Dowling, uma peça de alto valor, não estava ao seu alcance. No entanto, como ele se aposentara do Departamento de Polícia de São Francisco, oferecera-se para ajudar toda vez que precisássemos. Naquele dia, o ex-policial brutamontes ocupava uma desbotada cadeira reclinável, estilo art déco, na calçada do lado de fora da loja. O cabelo grisalho estava amarrado em uma trança e os fones do iPod, enados nas orelhas. No colo, um bilhete de aposta de corrida de cavalos. E lá estava a protuberância de uma arma sob a camisa com estampa havaiana. Cooper abriu um largo sorriso ao nos ver, levantando-se para cumprimentar a mim e a Conklin com um aperto de mãos. – Estamos trabalhando em um roubo que se transformou em assassinato. – A mulher do astro de cinema? Li a respeito. Sentem-se. Puxei um baú para sentar. Já Conklin equilibrou o traseiro em um banco de bar em bambu. Cooper solicitou: – Coloquem-me a par da situação. Entreguei a pasta com as fotos do seguro a ele, que as folheou, parando com frequência para analisar as saras em molduras de platina, as correntes de diamantes e a verdadeira sensação: o anel de diamante amarelo, parecendo uma almofada de um paxá em um trono cravejado de diamantes. – Cacete! – exclamou ele. Virou a foto do avesso e leu as especicações da peça. – Avaliado em um milhão. E aposto que vale cada centavo. – É uma peça única, certo? – perguntou Conklin. – Ah, com certeza – conrmou Cooper. – Um diamante de 20 quilates de qualquer tipo é uma raridade. Quanto mais um diamante amarelo-canário. Só a moldura já indica que é uma peça legítima. Gostaria de saber por que não está assinada. – Então, o que faria se roubasse isso? – Bem, por certo não venderia aqui. Eu o entregaria a um receptador voador, pegaria os meus dez por cento e estaria satisfeito. “Receptador voador” era um termo novo para mim. Pedi uma explicação. – É como o receptador comum, exceto que ele se apodera logo da mercadoria e, dentro de uma hora mais ou menos após o roubo, pega um voo para Los Angeles, Nova York ou outro centro de lavagem de joias. – E depois? – A rota se espalha por qualquer lugar. No caso desse anel, talvez tenha sido vendido como é, mas não neste país. É provável que, enquanto conversamos, já esteja no dedo de uma jovem em Dubai. Cooper tamborilava na pasta. De repente, pareceu ter uma ideia.
– Sabem, havia um receptador voador que levou um tiro em Nova York há alguns meses. Maury Green. Era especialista em gemas de alto valor. Em geral, seria o sujeito a quem você iria com uma pedra roubada como essa. – Foi morto? – Sim, na hora. Ele estava tomando posse de um saque e os policiais seguiram de perto o cara que fazia a entrega. Não consigo me lembrar do nome. No entanto, era procurado por assalto à mão armada. Seja como for, o imbecil puxou uma arma. Green foi pego no fogo cruzado. Isso colocou um freio na cadeia de fornecimento. Cooper fez uma pausa antes de finalizar a explicação: – Sabem como é, se Hello Kitty o usava para contrabandear as mercadorias, ele pode estar empacado por um tempo com esse pedaço de diamante amarelo no valor de um milhão de dólares. É possível que o gato esteja em cima de uma árvore e não saiba como descer.
capítulo 31
YUKI ABRAÇOU A MULHER BRONZEADA e elegante que abriu a porta. – Deus, já faz o quê, seis anos? Você parece a mesma! – exclamou Sue Emdin, sua expressão lhe dizendo: Puxa, não tenho notícias suas desde a graduação, então, do que se trata? Enquanto caminhavam pela casa, ambas conversavam sobre os tempos de faculdade em Boalt Law. E, quando estavam confortáveis, sentadas do lado de fora, na varanda colonial, com chá gelado e biscoitos, Yuki trouxe à tona o assunto Casey Dowling. – Quer falar sobre Casey oficialmente? – perguntou Sue. – Sim. Mas qual é a diferença? Ela está morta e lhe devemos isso para ajudar a pegar o seu assassino. – Entendo, Marcus e Casey são meus amigos – salientou Sue. – Não quero dizer nada pelas costas dele. – Compreendo e, no momento, isso ca entre nós – ressaltou Yuki. – Se souber de alguma coisa, precisa me contar e deixar que eu julgue. Você esperaria o mesmo de mim. – Tudo bem, mas tente me manter fora disso, ok? Quando foi a última vez que pedi um favor para você? Yuki riu, sendo acompanhada por Sue, que indagou: – Nunca, certo? – Esta é a primeira vez. – Que fique entre nós, mas Casey achava que Marcus estava tendo um caso. Pronto. Já revelei. – Ela tinha alguma prova? Suspeitava de alguém em particular? Confrontou Marcus? – Devagar... Uma pergunta de cada vez. – Desculpe. Primeira pergunta: Casey tinha alguma prova de que Marcus pulava a cerca? – Não, mas desconava. Ele sempre foi promíscuo. Já passou a mão na minha bunda uma ou duas vezes. Que merda, ele é um astro de cinema, não é? Mas Casey falou: “Marc deixou de gostar de mim.” Signicando que não tinha mais tesão pela mulher. Ela não tinha nenhuma prova, mas estava alarmada. – Ela o confrontou? – Você acha que Marc atirou em Casey? – Não, ele está limpo. Mas ajuda saber se eles tinham problemas no casamento. – Como advogada, digo que Marcus não fez isso. Ele a amava. Achava-a divertida. Garantiu que nunca passara por um momento chato nos quatro anos em que estiveram casados. Ben e eu fomos à sua casa ontem à noite. Ele estava arrasado. Confessou o quanto estava mal pela morte da mulher. E, mesmo que estivesse tendo aventuras sexuais, ele não a deixaria. Com certeza, não teria... nem consigo falar isso em voz alta. – Será que Casey queria o divórcio? Sue suspirou.
– Não sei. Talvez. Ela me contou que, se descobrisse a traição, iria deixá-lo. – Quando disse isso? – Na terça-feira à noite. – Sue, ela foi morta na quarta-feira. – Procure em outro lugar, Yuki. Acredite em mim. Foi aquele ladrão, Hello Kitty. Marcus não fez isso.
capítulo 32
PETER GORDON ESTAVA NO BAIRRO de Embarcadero. Corria pela pista do leste que ca de frente para a baía, estendendo-se desde a Rua 2 e a King Street, passando pelo Ferry Building, e ao norte sob a ponte da baía de São Francisco-Oakland, uma artéria percorrida por moradores e turistas. As pessoas circulavam ao seu redor a pé, de bicicleta, de skate, enquanto o sol se punha no céu cor de anil. Ele escolhera o alvo do lado de fora do Ferry Building, uma loura magrela usando uma jaqueta preta com capuz, por cima da saia longa da mesma cor. Aquelas roupas esvoaçando na brisa o fizeram imaginar uma mulher de burca. Ela empurrava um carrinho de bebê, com uma menina calma, vestindo uma roupinha toda rosa, que parecia observar os transeuntes saírem das barcas. Pete seguiu a mulher pelo mercado, observando-a pegar pão, alface e lé de peixe. Saiu junto com ela, que segurava as sacolas plásticas com as alças enroladas nos pulsos, sem conversar com a lha que, de alguma forma, parecia estar no comando. Quando o alvo chegou ao cruzamento da Market com a Spear, dirigiu-se para a entrada do metrô de São Francisco. Inclinou o carrinho para trás e pisou na escada rolante que descia. Pete soube que aquela era a hora. Agarrou a arma que estava no bolso com a mão direita e a seguiu fora da escada rolante. – Senhorita? Senhora? – gritou. Na terceira vez que a chamou, ela se virou e lhe lançou um olhar aborrecido. Ele abaixou a cabeça e deu um sorriso tímido. – Preciso encontrar um amigo na esquina da Califórnia Street. Eu, ahn, me perdi. – Não posso ajudá-lo. Ela empurrou o carrinho para fora do arco em direção à entrada do metrô. – Ei, obrigado, senhora! – berrou Pete. – Espero que tenha um dia de merda. Com as mãos enadas nos bolsos, ele continuou na direção norte. Ainda não tinha acabado. Gostaria de saber se a sua expressão o denunciara. Será que parecera muito ansioso? Grosseiro demais? Não havia sido assim no Iraque. E não iria falhar aqui. Ele estava firme. Focado. Tinha uma missão. E iria cumpri-la.
capítulo 33
À MEDIDA QUE ANDAVA CONTRA o vento, lembrava-se do último dia do soldado de primeira classe Kenneth Marshall. Pete estivera no veículo da frente na estrada poeirenta de Haditha, seus homens em um comboio atrás. Encontravam-se em um espaço de 40 metros de um conjunto de casas quando o carro-bomba explodiu, lançando o cabo Lennar para fora do último veículo da la, separando Kenny das suas pernas. Amava-o como a um irmão. Era um garoto esperto com covinhas e um retrato de Jesus dentro do capacete. Brincava com as crianças do grupo inimigo, dava comida a elas, realmente acreditava na missão: levar a liberdade ao Iraque. Gostava de dizer que, quando chegasse a sua hora, Deus o encontraria onde quer que estivesse. Só depois de Deus chamar Kenny, quando o dispositivo explosivo improvisado matou o seu bom lho e soldado americano, é que as tropas sob o comando do capitão Peter Gordon saíram de suas tocaias e o procuraram para ordens. Foi fácil. Ele seguiu as regras. As próprias regras. Tinha certeza de que sabia quem disparara remotamente o dispositivo. Estavam no carro atrás do jipe que Kenny dirigira. Os minutos seguintes estavam tão claros em sua lembrança que podia sentir o cheiro da pólvora, da poeira e do medo. Ainda era capaz de ouvir os gritos dos inimigos ao atirar neles. Agora, naquela noite fria em São Francisco, Pete agarrava a arma dentro do bolso da jaqueta enquanto andava com altivez pelo Embarcadero. Chegou a um beco entre Sansome e Battery, arrumado com mesas e cadeiras de plástico. Uma jovem mãe se aprontava após uma refeição com o seu bebê chorão. Seguiu os dois até o interior do shopping no One Embarcadero Center. Passou pela pastelaria e pelo restaurante italiano, subiu pela escada rolante até o cinema, o único estabelecimento do beco sem saída na parte oeste do segundo andar. Sentada em um banco, a mãe olhava com atenção para os cartazes dos lmes, penteando o cabelo do bebê com os dedos. Era o intervalo entre as sessões e tinham o local só para eles. Virou-se quando Pete a chamou: – Senhora, sinto muito, poderia me ajudar, por favor? Estou perdido.
capítulo 34
NO MOMENTO EM QUE FUI chamada à cena, as viaturas e as ambulâncias estavam todas estacionadas ao longo da Battery e da Clay. Corri com o Explorer até a calçada e freei perto do Hyundai de Jacobi. Saí do carro e agarrei um dos policiais que controlavam a multidão na entrada oeste do shopping. – Segundo andar, sargento – informou o homem. – Do lado de fora do cinema. Passei um rádio para Jacobi e ele ordenou: – Suba, Lindsay. E tente não vomitar o seu jantar. O público do cinema, liberado por uma saída dos fundos, retornara à entrada da frente, juntandose aos transeuntes, funcionários dos escritórios e turistas. Ergui o distintivo e avancei por entre a multidão, defendendo-me de perguntas que não responderia. Um policial abriu as portas de vidro para mim. Entrei no shopping. Lojas de marcas famosas se encontravam vazias. Passei por baixo da ta de isolamento da cena do crime estendida por toda a ala oeste e subi a passos largos por uma das escadas rolantes desligada. Jacobi me esperava no topo. Pelo rosto dele, dava para ver o quanto ia ser ruim antes mesmo que eu chegasse perto dos corpos no tapete vermelho. Vi a mãe primeiro, que caíra de costas. O cardigã azul-claro estava preto na região do coração por causa de dois tiros. Também fora baleada na cabeça. Estendi uma das mãos e fechei os seus olhos, que nada mais viam. Somente depois é que pude suportar olhar para a pequena gura imóvel deitada ao lado, de menos de 1 ano. Merda, ele matou a criança. A cena era um horror e, mesmo recuando daquela brutalidade, fui atingida pela forma metódica como os disparos ocorreram. Tinham sido feitos à queima-roupa com o objetivo de matar. Após Jacobi se afastar, dei uma volta no carrinho de bebê virado de cabeça para baixo. Estava claro que aquelas mortes e as do estacionamento de Stonestown eram trabalho do mesmo assassino. Mas onde estava a assinatura, as letras “MCP”? Jacobi colocou a carteira da jovem mulher dentro de um saco de provas. – Essa é Judy Kinski. Ela tinha 40 dólares em notas pequenas. Dois cartões de crédito. Um cartão de biblioteca. Faria 26 anos na próxima semana. McNeil está entrando em contato com os familiares. – Testemunhas? – perguntei. – Alguém deve ter visto isso acontecer. – Chi está conversando com a funcionária da bilheteria. Venha comigo.
capítulo 35
A GAROTA NO ESCRITÓRIO DO GERENTE do cinema chorava, cobrindo o rosto com as mãos. Ergueu o olhar quando entrei no espaço minúsculo. Paul Chi me apresentou à jovem pálida: – Essa é Robin Rose. Ela pode ter visto o atirador. – Minha mãe está aqui? Jacobi respondeu: – Está a caminho. Assim que chegar, nós a escoltaremos até lá embaixo. – Não ouvi os disparos – revelou a garota entre soluços. – Eu estava abrindo a bilheteria para a sessão das sete horas. Chi entregou lenços de papel para a jovem, garantindo que estava tudo bem, que ela não tivesse pressa. – Não ouvi nada – explicou, assoando o nariz. – Mas quando abri o guichê... Dava para ver pelos olhos dela. Os últimos momentos de inocência, ligando a caixa registradora, checando a máquina de ingressos, abrindo o guichê, esperando... o quê? Algumas pessoas querendo comprar os ingressos mais cedo? – Primeiro, não acreditei. Pensei que fosse algum tipo de anúncio alternativo para uma próxima estreia, mas acabei me dando conta de que aquelas pessoas eram reais. Que estavam mortas. – Viu alguém perto dos corpos? – perguntei. Robin assentiu. – Ele deve ter ouvido o guichê abrir. Nossos olhos se encontraram por uma fração de segundo. Vi a arma e me abaixei. O homem que Robin Rose vira era branco, usava uma jaqueta de beisebol azul e branca, além de um boné que ocultava os olhos. Não achava que poderia descrevê-lo, mas tentaria. O mesmo com relação à arma. E não vira por qual saída do shopping ele fugira. Talvez tenha tomado a passarela para outro shopping no Embarcadero Center. Ou poderia ter descido a escada rolante e ido para a rua. Perguntei a ela se iria à delegacia para olhar a ta de vigilância. Em seguida, deixei a sala do gerente com Jacobi. Ele estava enviando um alerta geral sobre um homem branco com jaqueta de beisebol azul e branca quando Claire, pisando duro, subiu a escada rolante. Atrás, Bunny Ellis, sua assistente-chefe. O olhar de Claire era de fúria à medida que se aproximava dos corpos com a câmera digital. – Já viu isso? As mesmas marcas de pólvora. O mesmo disparo à queima-roupa. O mesmo canalha assassino de crianças. Ele roubou alguma coisa? – A carteira da mãe estava intacta. Foi Claire que viu a inscrição na parte de baixo do carrinho de bebê. Fixei o olhar nas letras enquanto os ashes das câmeras disparavam em um frenesi de luzes estroboscópicas. A mensagem estava escrita em batom. A assinatura era a mesma, mas diferente.
“PMC”. – Espere um pouco... Não é MCP? Agora é PMC? – E eu que vou saber, Lindsay? Esse cara não deixa pistas. Ele apenas se diverte às nossas custas.
capítulo 36
NOSSO RESERVA, JACKSON BRADY, mencionou que participara de workshops no quartel-general do FBI em Quantico, no estado da Virgínia. – Passei dois verões inteiros aprendendo a traçar o perl de serial killers. Isso não me torna um profissional no assunto, mas tenho opiniões fundamentadas. Jacobi requisitou uma sala de reuniões na Divisão de Crimes Contra Pessoas. Nós nos sentamos ao redor da mesa lascada que imitava madeira, olhando para Brady. Paul Chi relatou o que havíamos coletado na primeira cena e na última. Brady fez anotações. Todos os olhos estavam sobre ele quando nos informou: – Matar crianças é uma ação reativa, talvez a uma infância ruim. Ou é possível que esse assassino sinta-se tão morto por dentro que apenas elimina as crianças por serem testemunhas. – Eram bebês – ressaltou Jacobi. Brady deu de ombros. – É provável que o assassino não esteja usando esse tipo de lógica. Quanto às mortes das mães, vocês estão vendo um ódio real por mulheres. – A primeira infância não é relevante, é? O fato de como se sente não vai nos levar até ele. – Tem razão, tenente. Esse sujeito consegue se esconder com facilidade. Olhem para o que sabem a respeito do modo como cometeu os crimes, como fugiu sem ser visto. É muito inteligente, focado, organizado e age sozinho. O mais importante: passa por uma pessoa comum. Assim é que ele chega tão perto das vítimas, que nem gritam. – E ele tem uma arma que nunca foi usada em um assassinato – salientei. – É um detalhe interessante – concordou Brady. – Esse cara entende de armamento. Isso me faz pensar que ele tem treinamento militar. – Conseguimos uma identificação da testemunha e um vídeo de vigilância. Saberemos como ele é. – Nenhuma característica marcante até agora, certo? – Certo – respondeu Chi. – Homem branco, na faixa dos 30 anos, usa um boné. Teremos mais detalhes quando examinarmos as fitas de vídeo da segurança do nível 1 EC. – Se esse sujeito for militar, se for bastante competente e treinado, o que vai derrubá-lo? – perguntou Conklin. – Excesso de conança – assegurou Brady. – Ele pode car muito seguro de si e deixar uma pista. Mas, vocês sabem, talvez demore muito até que cometa esse tipo de erro. Recostei-me na cadeira. Era uma outra forma de dizer o que eu estivera pensando desde que os Bentons foram mortos no estacionamento de Stonestown. Mais pessoas iam morrer.
capítulo 37
DEZ DIAS ATRÁS: “DOWLING prevalece sobre tudo.” Agora, a equipe inteira da Homicídios, todos desgastados, mais dezenas de policiais recrutados de outros departamentos investigavam o Embarcadero Center, acompanhando cada pista louca dada via telefone, trabalhando em turnos de doze horas sob o comando de Jacobi. A determinação era uma só: prender o Assassino do Batom. Eu estava no necrotério com Claire quando o relatório de balística dos federais foi deixado na caixa de correspondência. Tentei não demonstrar minha impaciência enquanto ela falava ao telefone e, com cuidado, puxava a aba do envelope. Por m, ela encerrou a ligação e tirou a única folha de papel lá de dentro. Passou os olhos pela página e revelou: – Ei, ei... Nosso caso foi revisto pelo Dr. Mike em pessoa. – Desculpe a ignorância mas, por favor, será que pode me dar o maldito relatório? – Calma, amiga. O Dr. Michael Sciarra é o “Doutor das Armas do FBI” – explicou. – Ok. Deixeme chegar ao cerne da questão. Ele arma que as marcas de pólvora naqueles bebês mortos foram atípicas porque os tiros foram disparados por um silenciador. Mas não um silenciador caseiro, do tipo que só quebra um galho. – O quê, então? – Foi montado prossionalmente, com ferro ou titânio. Existem poucos desses. O Dr. Mike ressalta aqui: “Não há registro de nenhum homicídio nos Estados Unidos realizado com um silenciador como o que causou o padrão pontilhado atípico nas crianças dos Bentons e dos Kinskis.” – Que merda isso significa? – Para começar, explica por que ninguém ouviu os disparos. – E por que não conseguimos nenhum resultado no banco de dados? – Porque é provável que tenha vindo de fora do país. Claire estava falando quando o meu celular tocou. Senti um nó no estômago ao ver o identificador de chamadas. Mostrei o telefone para Claire e o atendi: – Sargento Boxer. O que será agora?, pensei. – Lindsay, aquele lunático com cérebro de mer..., o Assassino do Batom, continuou com o seu maldito show de horrores! – gritava Jacobi no meu ouvido. – Não, não é possível! – Uma mulher e uma criança foram mortas no edifício-garagem da Union Square. Parece igual aos dois últimos homicídios. Estou na cena com Chi e Cappy. Tracchio está a caminho e agora vai se intrometer em tudo. Desliguei o telefone, z um resumo para Claire e coloquei o meu parceiro na linha. Depois, voei para o estacionamento atrás do Tribunal de Justiça. Conklin já estava à espera no banco do motorista da nossa viatura. Assim que fechei a porta, ele pisou fundo no acelerador e cantamos
pneu com as luzes ligadas, a sirene estridente, deixando rastros no asfalto. – Ele faz isso bem no meio da cidade! – berrou Conklin em meio ao barulho. – Que cara de pau. – Bem no meio da cidade, é disso que ele gosta. É um terrorista... e dos bons. Não tinha ideia de como estaria certa.
capítulo 38
CONKLIN PARECIA QUERER BATER a velocidade do som. Eu me agarrei ao painel enquanto o Crown Vic zunia pela Leavenworth. Rich nos levava por subidas de montanha-russa de revirar o estômago, descidas alucinadas, além de curvas fechadas de arrepiar. Quando deixei de prestar atenção no trajeto, reeti sobre o Assassino do Batom. Não era apenas insano. Era psicótico. Matara quatro pessoas, talvez mais agora. A assinatura era tão enigmática, tão sem sentido. Como poderíamos prever o seu comportamento se não sabíamos qual era o propósito? Conklin virou o volante de forma brusca bem na base de uma ladeira, levando-nos a um cruzamento engarrafado. Eu queria sair e pedir a cada motorista para liberar a pista. No entanto, preferi gritar pelo megafone: – Andem. Encostem agora! Nós andávamos e parávamos enquanto os carros empacavam tentando subir, um ultrapassando o outro, os segundos se arrastando até acabar o congestionamento. Minutos mais tarde, Conklin avançava devagar com a viatura por entre automóveis pretos e brancos estacionados do lado de fora do edifício-garagem na Union Square. Saí antes mesmo de o meu parceiro acionar o freio. Juntos, avançamos com diculdade por entre a aglomeração de clientes em pânico que tinham deixado os carros ali. Vi o medo em seus rostos e quase poderia ouvir os pensamentos coletivos: O assassino estava aqui. Ele poderia ter atirado em mim. Abri caminho pela multidão com o meu distintivo, assinei o boletim de ocorrência e pedi ao ocial Sorbero para me colocar a par dos fatos. – Mais um déjà vu – afirmou Joe. – A cena do crime é no quarto andar. Paramos os elevadores. Conklin levantou a ta de isolamento e passamos por debaixo dela, entrando naquele ambiente nada amistoso do estacionamento. Havia pontos de acesso, túneis escuros no térreo, corredores vindo de todos os lados. Da Macy’s, da Saks, do Sir Francis Drake Hotel... Oportunidades perfeitas para um predador se aproximar em silêncio das vítimas sem ser visto. Enquanto andávamos a passos largos pelos corredores amplos e sinuosos do centro, entre leiras de carros estacionados, preparei-me para o que Jacobi descrevera como um “show de horrores” . Nós o encontramos no terceiro andar conversando com o nosso chefe, Anthony Tracchio, cujo rosto estava pálido. Os olhos de Jacobi pareciam pesados. A impressão era que ambos tinham espiado o covil do diabo. – Chi e McNeil estão no quarto andar – comunicou Tracchio, a boca mal se mexendo. – O turno de plantão está investigando o perímetro. Aumentei a equipe, incluindo qualquer policial que se ofereça como voluntário ou que cruze o meu caminho. – Houve testemunhas? – perguntei. Era mais um pequeno e amaldiçoado desejo do que uma pergunta.
– Não – respondeu Jacobi. – Ninguém viu ou ouviu absolutamente nada.
capítulo 39
CONKLIN E EU PASSAMOS PELAS leiras de carros estacionados, a apreensão crescendo a cada instante. Quando cumprimentamos McNeil e Chi no quarto andar, sentia um formigamento dos meus antebraços até a nuca. Não queria ver as vítimas, mas me forcei a baixar os olhos. E lá estavam os corpos, deitados no chão em uma vaga vazia entre dois carros. A mulher era atraente e ainda mantinha o encanto na morte. O suéter branco e os longos cabelos louros estavam encharcados de sangue, que formara uma poça em torno dela e corria em longos letes pelo piso inclinado de concreto. Havia pegadas ensanguentadas ao redor e sangue nas solas dos sapatos. A criança estava aconchegada no colo da mãe. Parecia que tinham sido colocadas naquela posição. Minha visão começou a falhar. Senti o chão oscilar sob os pés e ouvi a voz de Conklin: – Linds? Lindsay? Colocando um dos seus braços ao redor da minha cintura, ele me impediu de cair. – O que há de errado? Você está bem? Assenti com a cabeça e murmurei: – Estou bem. Não comi hoje. Fiquei aborrecida comigo mesma por parecer frágil. Meus superiores e meus amigos na Central estariam me observando em busca de liderança. Precisava me controlar. As vítimas foram agrupadas entre um Dodge Caravan vermelho e um Highlander prata. A bolsa da mulher estava aberta no chão, o conteúdo todo espalhado. As portas do Caravan estavam abertas. Ergui os olhos até o para-brisa e vi as letras “CMP” escritas em vermelho. Aquela estranha assinatura de novo. Que merda isso significava? Paul Chi me chamou por detrás de um dos meus ombros. Virei-me e vi o seu rosto pálido. Sabia que, assim como eu, ele estava bastante chocado com aquele crime terrível. – O nome da vítima é Elaine Marone – informou. – Ela tinha 34 anos. Estava com 56 dólares, cartões de crédito, a carteira de motorista, etc. Não sabemos o nome da garotinha. – Encontrou o batom? – perguntei, esperando que tivesse rolado para baixo de algum veículo e que o assassino tivesse deixado uma impressão digital na embalagem brilhante. – Não encontramos nenhuma maquiagem – informou. – Mas há algo novo: dê uma olhada na contusão em um dos pulsos da Sra. Elaine. Talvez tenha tentado desarmar o atirador. Eu me agachei ao lado do corpo. Como Chi relatara, havia marcas azuladas de dedos no pulso direito da mulher e contei cinco buracos diferentes de balas no suéter. Elaine Marone não apenas reagira: ela lutara para valer. E, então, a gritaria começou. Um gemido de partir o coração dando voltas pela caverna de concreto.
– Laineeee. Lily. Oh, Deus, não. Passos percorriam o piso de concreto. Jacobi deu um berro: – Pare! Fique onde está! Era um aviso claro, mas os passos continuaram se aproximando.
capítulo 40
DESCI CORRENDO A RAMPA EM direção ao terceiro andar. Em seguida, z a curva e vi Tracchio e Jacobi enfrentando um homem grande, que usava calça jeans e uma camisa de anela. Era um brutamontes, um touro atacando em plena adrenalina. Desvencilhou-se dos dois como se fossem cachorros e continuou correndo rampa acima rumo à cena do crime. Parecia que ia me dar um encontrão. Jacobi gritou: – PARADO! – Depois, tirou a arma de choque do cinto. – Jacobi, NÃO! Não faça isso, não... – berrei, mas sabia que não havia escolha. Ouvi a vibração elétrica. O homem grandalhão perdeu o equilíbrio como se sua coluna tivesse se partido. Ele caiu e escorregou pela rampa por uns cinco segundos, paralisado e incapaz de vociferar. Jacobi o alcançou, bradando: – Olhe o que você me fez fazer! Acabou agora? Acabou? O homem começou a soluçar, horrorizado. Não conseguia parar. Eu me abaixei ao seu lado enquanto Jacobi puxava os seus braços para trás e o algemava. – Sou a sargento Boxer – disse, enquanto revistava o homem. Retirei a carteira do bolso de trás e comparei o seu rosto com a foto da carteira de motorista. Ele era Francis Marone. – Preciso me levantar. Tenho que ir até elas! – Lamento, Sr. Marone, agora não. – O que aconteceu? Elas estão bem? – Engasgou-se. – Acabei de falar com Elaine. – Ele soluçou. – Tive que parar para comprar cigarros, mas avisei que a encontraria no carro. – O senhor estava conversando com ela pelo telefone neste instante? – Ouvi quando ela perguntou a alguém “O que você quer?” . A seguir, ouvi... Ah, meu Deus, Elaine está bem? Voltei a afirmar que lamentava enquanto ele clamava: – NÃO, não as minhas garotas. Por favor, por favor, tenho que vê-las. Francis Marone partia o meu coração... e esta era a parte cruel: se pretendíamos capturar o assassino, e ainda por cima indiciá-lo, tínhamos que proteger a cena do crime desse homem. Diversas pernas surgiram ao meu redor: Tracchio, Conklin, Chi, McNeil. Perguntei ao Sr. Marone se havia um amigo ou parente para quem eu pudesse telefonar. No entanto, ele não escutava. Ainda assim, eu precisava saber: – Alguém poderia ter a intensão de machucar a sua mulher? Com os olhos injetados de sangue, ele procurou o meu rosto antes de esbravejar: – Opero uma betoneira! E Elaine é do setor de relações públicas de uma loja de brinquedos! Não somos ninguém. Ninguém. Marone sangrava por causa dos sérios arranhões nos antebraços. Coloquei a mão em um dos
ombros do pobre sujeito, permanecendo ao seu lado enquanto Jacobi e Tracchio o levantavam. – Não queria machucá-lo – assegurou Jacobi. Fiz sinal para os ociais Noonan e Mackey, pedindo que o levassem ao hospital. Prometi que o encontraria lá assim que pudesse. Depois, saí do caminho quando o furgão de Claire subiu a rampa em disparada.
capítulo 41
CLAIRE GUARDAVA A CÂMERA NO momento em que voltei ao quarto andar. Ela me encarou e vi o meu próprio horror reetido nos seus olhos. Abraçamos uma à outra e, dessa vez, não me importava que pensassem que eu era fraca. – Não consigo aceitar a morte desses bebês – confessei. – Não vai car tudo bem – garantiu Claire, com a cabeça em um dos meus ombros. – Mesmo quando vocês pegarem o canalha, não vai ficar tudo bem. Nunca mais. Sabe disso, certo? Nós nos separamos quando um dos seus assistentes perguntou se podia começar a ensacar as mãos das vítimas. O trabalho macabro de desconstruir o crime começara. – Viu as letras no para-brisa? – perguntei. – Sim. CMP . É outra esquisitice no padrão. O “C” e o “M” ainda estão próximos um do outro, mas o “P” está se movimentando. E isso é tudo o que consegui, com exceção de mais dois bancos de dados para analisar quem não deveria estar morto. Claire puxou-me por um dos braços. Saí do caminho para que a unidade móvel da perícia pudesse subir a rampa o mais rápido possível, parando ao lado do furgão da médica-legista. Os peritos desceram da parte traseira do veículo. Clapper se posicionou no meio daquele quadro repugnante e desabafou, sem se dirigir a ninguém em particular: – Isso faz você pensar se o bom Deus desistiu da humanidade. As câmeras entraram em ação, lmando os corpos e as marcas de bala no carro. Cápsulas foram recolhidas como provas. Marcadores da cena do crime, arrumados. Esboços, desenhados. Anotações, feitas. Permaneci à distância e observei o trabalho dos peritos, pensando que, uma hora antes, Elaine Marone estava fazendo compras com o marido e a bebê. A equipe de Claire embrulhava os corpos em lençóis brancos limpos, fechando os zíperes dos sacos. Felizmente, Francis Marone nunca ouviria aquele ruído macabro. Na esperança de que as balas usadas fossem computadas, voltava a desejar que houvesse algum tipo de prova física útil naquele banho de sangue. Conklin gritou por mim: – Linds, venha aqui! Fui até o minifurgão dos Marones e vi que o meu parceiro apontava para a assinatura de três letras no para-brisa. Ele virou os olhos castanhos para mim e afirmou: – Não é batom. Iluminei as letras com a lanterna e senti um aperto no estômago. – É sangue – esclareceu Conklin. – Ele escreveu as letras com o sangue das vítimas usando o próprio dedo. Um dos técnicos da equipe de Clapper tirou fotos bem de perto. Outro coletou amostra das letras no para-brisa com um cotonete. Minha centelha de esperança brilhou forte. Seria possível?
Será que o Assassino do Batom se perdera tanto na sua loucura que deixara uma impressão digital manchada de sangue para trás?
capítulo 42
ÀS OITO E MEIA DAQUELA NOITE, o sargento Jackson Brady enfrentou a turma de inspetores da Homicídios e de policiais da patrulha, todos agrupados ao seu redor na sala da Central. Colocou uma fita de vídeo no velho aparelho e solicitou: – Se alguém vir alguma coisa que perdi, mostre. Surgiu uma imagem granulada em preto e branco de um homem no canto inferior direito. Caminhava até o corredor central do estacionamento, indo em direção ao Dodge Caravan perto da extremidade da fileira. As imagens travavam. Eram ora escuras, ora esbranquiçadas, resultado de uma iluminação ruim e de uma ta barata, reutilizada centenas de vezes. Ainda assim, podíamos ver o assassino. Como antes, usava um boné e a jaqueta de beisebol. Mantinha a cabeça baixa e desviava o rosto da câmera de segurança. Brady narrava enquanto as imagens rolavam. – Aqui, ele tem as mãos nos bolsos. Ao se aproximar do furgão da vítima, chama a Sra. Elaine. O que está dizendo? Perguntando as horas, talvez? Ou se ela troca uma nota de 20 dólares? Fez uma pausa e prosseguiu: – Agora ela coloca os pacotes no banco de trás do furgão e fecha a porta. Em seguida, vai para o lado do motorista, conversando ao celular com o marido. Eu assistia às cenas enquanto o assassino se aproximava de Elaine Marone. Estudei o modo como ele caminhava, examinando a linguagem corporal de ambos. Parecia arrependido à medida que se aproximava da mulher, que não demonstrava estar alarmada. Eu me lembrei de Brady armando que esse sujeito “passa por uma pessoa comum” . E pensei sobre os mais cruéis serial killers, cujas histórias originaram lmes, e cada um daqueles psicopatas que pareciam pessoas normais. – Vejam, agora, a arma está fora – ressaltou. – Uma 9 milímetros, Beretta. Silenciador ecaz. Ela dá uma olhada rápida no banco de trás. Depois, estica um dos braços com a bolsa e pergunta: “O que você quer?” Tenta dissuadir o assassino, em vão. Ele bloqueia a visão da câmera dos corpos abaixados. No entanto, pela forma como se curvou de repente, acho que foi chutado. Nova pausa antes de Brady continuar: – Agora, o assassino tira a bolsa da mulher e ocorre o primeiro disparo. Ela leva uma das mãos à parte superior do peito. Apesar de Brady descrever as cenas, vi por mim mesma que Elaine Marone buscou a mão do assassino com a arma. Com a mão que estava livre, ele agarrou o seu pulso, apertando-o bastante, e se livrou à força. Foi quando deixou os hematomas. Um segundo mais tarde, o corpo da mulher foi sacudido quatro vezes e caiu de repente, ficando fora de vista. A porta de trás do furgão foi aberta. O assassino atirou em direção ao banco traseiro. A seguir, desapareceu.
– Olhem – solicitou Brady. – Aqui está o nosso atirador de novo. Com o braço esquerdo, segura o corpo de Elaine Marone pela cintura e usa o dedo indicador da mão direita da mulher para escrever a assinatura dele no vidro. Não havia batom, logo ele improvisou. Pedi que a ta fosse rebobinada. Assisti de novo enquanto o assassino usava uma das mãos da mulher morta para escrever “CMP” no sangue. Usou um dedo dela, não o dele. Além disso, o canalha estava de luvas. A esperança de uma impressão digital tinha acabado de morrer. Brady seguiu em frente: – Ele deixou as portas do furgão abertas e arrumou os corpos. Agora, aqui está, indo ao quinto andar, onde a próxima câmera o agra entrando no elevador. Também temos a ta. São dez segundos de um close da parte de cima do boné, sem marca alguma. Agora, ele sai no nível da rua. Nova pausa para concluir: – Três minutos e quarenta segundos – informou Brady, apontando o controle remoto na direção do monitor, desligando-o. – É o tempo transcorrido entre ele sacar a arma e desaparecer.
capítulo 43
ESTÁVAMOS NO ESPAÇOSO SOFÁ DE couro na sala de estar, esperando pelo noticiário das onze horas, meus pés no colo de Joe e Martha roncando no tapete ao lado. Eu me sentia frustrada e exausta. Queria dormir, mas a minha mente não parava. – Uma mulher foi à Central hoje – comentei com Joe. – Contou a Jacobi que um homem se aproximou dela do lado de fora do Ferry Building na noite em que os Kinskis foram mortos. Disse estar perdido. Usava um boné e uma jaqueta de beisebol azul e branca. – Era confiável? – Jacobi mencionou que ela tremia e mordia os lábios. Assegurou que o sujeito era de dar arrepios. Ela respondeu que não podia ajudá-lo e se afastou com o bebê. A seguir, ele esbravejou: “Espero que tenha um dia de merda.” A mulher assistiu ao vídeo e acha que é a mesma pessoa. – Boa notícia, Linds. Uma espécie de testemunha. – É alguma coisa. Mas você sabe, podia ser qualquer um usando uma jaqueta de beisebol. Joe, MCP, PMC. E agora CMP. Você é um viciado em charadas. O que pode tirar disso? – Pode ser tanta coisa e, ao mesmo tempo, nada. – Tem razão – concordei. – Bobagem. O atirador está brincando conosco. – Escute, antes que eu me esqueça... – Ali! – exclamei, agarrando o controle remoto que se encontrava em cima da mesinha de centro. Aumentei o volume enquanto a apresentadora do noticiário falava acima do banner “Notícia de última hora”. – Temos novidades hoje à noite sobre o Assassino do Batom, que foi lmado no estacionamento da Union Square quando deixava a cena de outro duplo homicídio horrível – anunciou ela. O vídeo apareceu na tela. Cerca de dez segundos do atirador entrando no elevador, apertando um dos botões com uma mão enluvada e permanecendo no mesmo lugar, olhos baixos, até as portas se abrirem e ele sair sem deixar rastro. – Uma testemunha anônima descreveu o atirador para a polícia, que disponibilizou um retrado falado para esta emissora – revelou Andrea. Um desenho substituiu a gravação. – Está vendo? – indaguei a Joe. – Sr. Comum. Nenhuma cor especial para os olhos nem para o cabelo. Feições normais. Balas corriqueiras, daquelas de 9 milímetros. Só não mencionaram o uso de um silenciador, categoria profissional. – Parece que ele é militar. Operações Especiais. Ou é um fornecedor. Conseguiu o silenciador no mercado negro ou no estrangeiro. – Sim. O aspecto militar faz sentido. Mas há, o quê, milhares e milhares de ex-militares na cidade? E metade se encaixa na descrição desse sujeito. Ei, o que é isso? – perguntei quando outro vídeo apareceu na tela. Observei boquiaberta enquanto uma câmera portátil se movia atrás de Claire. Filmava-a deixando
o necrotério, dirigindo-se ao estacionamento do lado de fora do escritório. Repórteres dispararam perguntas sobre as vítimas e indagaram se havia algo que ela pudesse dizer ao povo de São Francisco. Claire deu as costas para os jornalistas e entrou no seu novo Prius. No entanto, em vez de ir embora, ela baixou o vidro, apoiou um dos cotovelos na janela e olhou direto para as câmeras. – Sim, tenho algo a dizer ao povo de São Francisco e não estou falando como a legista-chefe. Estou falando como mulher e mãe. Está claro? Houve um coro de sim. – Mães, mantenham os olhos abertos – alertou Claire. – Não conem em ninguém. Não estacionem em locais desertos e não se aproximem de carros, a menos que haja outras pessoas ao redor. E, sem brincadeira, consigam uma licença para porte de arma. Se conseguirem, comprem uma.
capítulo 44
PETER GORDON SENTOU-SE NA COZINHA com o notebook à frente, em cima da mesa de fórmica vermelha. Estava de costas para a varanda onde Sherry divertia o irmão, fazendo brincadeiras bobas com fantoches. Peter não sabia se as risadas do merdinha eram de alegria ou pavor, porque tudo remetia à sensação de ter uma chave de fenda espetada em um dos tímpanos. Ele deu um berro por cima do ombro: – Não façam barulho, Sherry! Senão tiro o cinto em um minuto! – Vamos ficar quietos, papai. Pete retornou à carta que redigia, uma espécie de bilhete de resgate. Sim, gostava de pensar dessa forma. Escrevia muito bem, mas aquilo tinha que car claro como água e sem nenhuma pista que o identificasse. “Uma carta aberta aos cidadãos de São Francisco”, escreveu. “Tenho algo importante para contar.” Pensou a respeito da palavra “cidadãos” , decidiu que era formal demais e a substituiu por “moradores”. Muito melhor. “Uma carta aberta aos moradores de São Francisco.” Depois, mudou a segunda linha: “Tenho uma proposta a fazer.” De repente, um grito estridente veio da varanda. Sherry silenciou a criança e chamou o pai pela janela: – Desculpe. Por favor, não fique zangado. Steve não teve intenção. O maldito bebê chorava sem cessar. Pete fechou as mãos, pensando no quanto odiava os lhos e a vida que levava agora. Olhem para mim, senhoras e senhores, capitão Peter Gordon, atualmente um dono de casa de primeira classe. Que tragédia. A única coisa que dava alegria a ele era trabalhar no seu plano. Pensando como, após livrar-se de Sherry e do merdinha, seria um grande prazer mostrar à princesa quem ele era de verdade. Mal podia esperar para silenciar as suas chatices. Pete, querido, não se esqueça de comprar leite e tomar os remédios, ok? Ei, bonitão, preparou o almoço para as crianças? Arrumou a cama? Chamou o técnico da TV a cabo? Imaginava o rosto de Heidi, pálido no meio de todo aquele cabelo ruivo, olhos arregalados, quando percebesse o que ele fizera. E o que ia fazer com ela. Oi, Heidi. E adeus.
PARTE 3 A ARMADILHA
capítulo 45
SARAH WELLS SE AGACHOU NA moita entre a casa no estilo Tudor e a rua, as roupas se misturando às sombras. Estava tendo um ashback do serviço na residência dos Dowlings, de como se escondera no closet enquanto o casal fazia amor. Mais tarde, o esbarrão naquele aparador repleto de coisas durante a maldita fuga, escapando por pouco. E, depois, a pior parte: a acusação de assassinato pairando sobre ela. Considerou abandonar tudo enquanto estivesse em posição vantajosa. Por outro lado, a residência dos Morleys era uma recompensa. A casa branca de três andares com vigas pretas e janelas de sacada pertencia a Jim e a Dorian, donos de uma cadeia de lojas esportivas ao longo da costa do Pacíco: a Sports Gear Morleys. Ela lera tudo a respeito do casal na internet e vira dezenas de fotos. Dorian se vestia para impressionar e possuía uma maravilhosa coleção de joias, que usava com frequência. Sarah zera uma anotação especial: Dorian revelara a um repórter do jornal Chronicle que adorava usar diamantes todos os dias, “até mesmo pela casa”. Imagine. Diamantes todos os dias. Foi por esse motivo que Sarah colocara os Morleys na sua lista de tarefas. Passara diversas vezes por lá para vericar os padrões de trânsito às nove da noite no bairro. Além disso, vira exatamente onde guardar o carro e se esconder. Em uma das voltas no início da semana, até avistara Jim Morley deixando a casa no seu Mercedes. Ele era atarracado e musculoso, o corpo todo malhado e bem definido, cheio de anabolizantes. Denitivamente, não queria esbarrar com ele naquela noite. E não iria. Os Morleys estavam promovendo um festival de música alternativa no jardim dos fundos. Receberiam amigos para uma apresentação ao vivo de uma versão recauchutada de uma banda de rock dos anos 1960. Dava para ouvir o primeiro set agora, guitarras elétricas vibrando sobre microfones estridentes. Que som fantástico. Quinze minutos antes, um dos manobristas estacionara o carro do último convidado ladeira abaixo e agora passava um tempo na rua com um amigo. Era possível ouvir a risada baixa dos dois e sentir o cheiro da fumaça do cigarro. Ela ia fazer aquilo. Decidira. E não havia hora melhor do que aquela. Sarah deu uma olhada na janela do quarto dos Morleys. Após tomar fôlego, lançou-se para fora da moita de arbustos, onde se abrigara, e correu cerca de 5 metros até a base da casa. Uma vez lá, executou uma manobra como a que praticara muitas vezes na parede de escalada na ginástica. Primeiro, prendeu a biqueira esquerda do calçado na fachada com ripas de madeira. A seguir, agarrou o cano da calha com a mão direita e se esticou até o peitoril da janela. Na metade da subida de 3 metros, o pé esquerdo escorregou. Ficou suspensa. O coração batia forte. O corpo esticado, grudado à parede. A mão direita agarrava o cano. Ela estava desesperada para não derrubar a calha e gerar um alarido que terminaria com um grito. Ou, então, com uma
mão bruta nas suas costas. Desista agora. Vá para casa. Ficou pendurada na parede por segundos intermináveis. Os antebraços eram resistentes em consequência das horas que passava pendurada na barra do vão da porta do closet. Não apenas até não ser capaz de se segurar por mais um instante, mas até os músculos falharem e ela largar a barra. Fortalecera os dedos apertando uma bola de borracha quando dirigia e assistia à TV , em qualquer momento livre. No entanto, apesar da força e da determinação, Sarah Wells não era invisível. Enquanto se mantinha agarrada à parede, ouviu um carro parar perto da esquina e vozes de novos convidados vindo pela calçada. Esperou que entrassem e, quando imaginou ser seguro, tirou a mão do cano e alcançou a moldura embaixo da janela. Ao segurar rme, lançou o próprio corpo para cima até ser capaz de prender uma perna no peitoril, no extremo oeste do quarto dos Morleys. Por fim, entrou.
capítulo 46
SARAH SE CONTORCEU SOBRE o parapeito, deixando-se cair no carpete. A cabeça girava por causa da mistura de euforia, urgência e medo. Ela deu uma olhada no relógio digital na mesinha de cabeceira ao lado da enorme cama de quatro colunas com dossel e registrou a hora. Eram 21h14. Jurou que, assim que os dígitos azuis marcassem 21h17, já teria ido embora. O cômodo espaçoso estava um pouco claro por causa da luz no corredor. Ela observou a pesada mobília de bordo, do período da rainha Anne, evidência de uma herança, assim como dos zilhões que os Morleys conquistaram no ramo de artigos esportivos. Havia nas paredes, que vibravam com a batida pulsante do rock, pequenas pinturas a óleo perto da cama, uma enorme TV de plasma no armário e fotos da família em um veleiro. Estava pronta para seguir em frente. Atravessou o extenso quarto acarpetado. Depois, fechou a porta que dava para o corredor e a trancou. Agora, com exceção da luz azul piscante do relógio digital, estava no escuro. Eram 21h15. Tateou ao longo da parede, encontrou a porta do closet, abriu-a e acendeu a lanterna presa ao seu gorro. O cômodo era do tamanho de um quarto. Era fantástico. Não teria esperado menos dos Morleys. Havia inúmeras prateleiras de roupas, as da mulher de um lado, as do marido do outro. Na parede dos fundos, um espelho com três painéis, do chão até o teto. Enm, tudo o que se poderia exigir de um closet... com exceção de um cofre. Onde estava? Sarah trabalhou rápido, olhando atrás de cada vestido longo, os dedos percorrendo molduras de rodapé e prateleiras. Sentia o tempo passar zunindo enquanto fazia um inventário daquele maldito local. Teria que ir embora. De mãos vazias. Acabara de apagar a lanterna e sair do closet quando ouviu passos no corredor de madeira de lei. Pararam do lado de fora do quarto. A maçaneta girou. Em seguida, uma voz masculina esbravejou: – Ei! Quem trancou a porta? Sarah congelou. Deveria se esconder? Escapar pela janela no escuro? O homem voltou a falar em voz alta: – Sou eu, Jim. Preciso usar o banheiro. – A risada relaxada era por causa da bebida. Ele impostou uma voz aguda, melodiosa. – Hello Kitty? É vocêêêê? O coração dela quase parou. Era Jim Morley. – Ei, abra!
capítulo 47
SARAH CORREU ATÉ A JANELA, não se importando com o que pudesse estar no caminho. Tinha uma das mãos no parapeito quando a porta se abriu e a luz invadiu o ambiente. Morley entrara no banheiro pela porta do quarto ao lado e dava para ver sua grande silhueta. Ele bradava enquanto tateava sem jeito, à procura do interruptor na parede do quarto. – Tem alguém aqui? A mente de Sarah deu um salto para trás. Sem luz, podia vê-lo melhor do que ele a ela. Logo, tinha que ser insolente, tirando vantagem. – Jim, poderia nos dar um pouco de privacidade, por favor? – Laura? É você? Desculpe. Você e Jesse, não tenham pressa. Levem o tempo que precisarem. A porta do banheiro se fechou. A escuridão voltou. Levem o tempo que precisarem, Morley garantira. Mas, ao voltar para a festa, ele iria ver Laura e Jesse e soar o alarme. Eram 21h20. Já tinha um pé no parapeito quando se lembrou de um detalhe. Apressara-se para chegar ao closet, mas notara parte de uma pintura em particular: um campo de trigo bem ao lado da cama. Será que o cofre era fixo na parede? Trinta segundos, não mais. No entanto, precisava conferir. Encontrou a cama com a ajuda da luz azul do relógio, que usou para guiá-la. Os dedos percorreram as bordas da pequena moldura, puxando-a em sua direção. Sarah relaxou quando a pintura se abriu. Por trás, havia uma caixa metálica com o cadeado aberto. Ela logo entrou em ação. Tirou o objeto da parede, colocou-o em cima da cama e virou a tampa para trás. Abriu a bolsa de viagem vazia, que trouxera para o saque, e começou a transferir para lá os pequenos envelopes volumosos e as caixas que se encontravam dentro do cofre. Quando a bolsa cou cheia, fechou-a com o zíper e devolveu a caixa vazia para o esconderijo na parede. Hora de ir! Espiou pela janela e viu um homem passeando com um rottweiler. Ele parou para conversar com o manobrista e depois continuou subindo a rua. Sarah saltou para o parapeito e se virou de modo a car de frente para o quarto. Colocou as mãos na borda e tombou para o lado. Então, prendeu os calçados de escalada na parede da casa. Por fim, deixou-se cair. Um dos pés bateu em um buraco no gramado, virando o seu tornozelo. Ela abafou um uivo de dor, fazendo caretas ao cerrar os dentes. Escondida pelas nuvens que passavam em frente à lua, caminhou mancando no escuro em direção ao carro.
capítulo 48
SARAH QUASE DEU UM BERRO quando viu o seu carro vermelho estacionado na rua, não muito longe da residência dos Morleys. Estava aliviada. Ao entrar no veículo, com um único movimento retirou a lanterna e o gorro de tricô. Logo em seguida, arrancou as luvas. Guardou tudo na pequena bolsa, junto com as caixas de joias, colocando-a embaixo de um dos bancos da frente. Sentou-se na confortante escuridão da noite, agarrando o volante. Um dos tornozelos latejava enquanto ela se maravilhava com a emocionante fuga, que durara longos minutos. Era inacreditável. Jim Morley a chamara de “Hello Kitty”. Abrira a porta do banheiro e a fitara. E, mesmo assim, ela não fora pega. Não ainda, Sarah lembrava a si mesma. Carregava provas sucientes sob um dos bancos do carro para ser trancafiada por vinte anos. Isso se não fosse acusada de assassinato. Ela ajeitou o cabelo, vestiu uma grossa camisa azul, que estava no banco de trás, e ligou o motor. Rodou rumo a Columbus, tendo o cuidado de manter a velocidade-limite enquanto se dirigia à Bay Street, passando por Chestnut e Francisco. Sua mente divagava, inebriada com o sucesso, e cogitava visitar Heidi. Queria contar toda a verdade sobre si mesma, sobre como o produto dos saques nanciaria a liberdade das duas. Talvez pelo resto das suas vidas. Como a fantasia de uma vida conjunta, em família, se tornaria verdade. Enquanto imaginava Heidi aplaudindo e lançando os braços ao seu redor, um som distante a incomodava. O gemido agudo e repetitivo vinha de trás, aumentando à medida que se aproximava. Dava para ver as luzes vermelhas no retrovisor. Policiais. Não poderiam estar vindo atrás dela, poderiam? Anal de contas, será que Jim Morley chamara a polícia? Talvez o manobrista a tivesse visto mancando rua abaixo quando Morley deu o alarme. Ainda assim, tinha certeza de que ninguém a seguira até o carro. Como estragara tudo? Sua mente se agitava e seu coração quase saltou do peito enquanto ela encostava o carro no meioo. Empurrou a bolsa de viagem ainda mais para baixo do banco. Então, mantendo os olhos no retrovisor, observou a viatura policial parar atrás dela.
capítulo 49
NOS SEGUNDOS EM QUE SARAH precisou arranjar um álibi, sua mente foi a mil. Estava longe do seu bairro e tinha certeza de que parecia culpada de alguma coisa. Todo o corpo se cobriu de suor quando a porta da viatura se abriu e o homem de quepe saiu e foi até ela. Os olhos estavam encobertos pelo chapéu, mas Sarah notou o maxilar quadrado, o nariz reto, a boca em uma expressão séria. De fato, parecia um policial do tipo que não dá moleza. – Carteira de habilitação e documento do veículo, por favor. – Sim, senhor – respondeu. Ao remexer no porta-luvas, encontrou a carteira em cima de mapas. Por causa do nervosismo, as mãos estavam escorregadias. Cartões de crédito caíam dos seus dedos. Ela pegou a habilitação, voltou ao porta-luvas para buscar o registro do veículo e entregou os documentos ao oficial. – Senhor, fiz alguma coisa errada? Estava acima da velocidade? Ele iluminou os documentos com a lanterna e, avisando que voltaria em um momento, retornou à viatura para verificar o nome dela no sistema. Luzes cor de cereja brilhavam no retrovisor. O único pensamento de Sarah era que o roubo à residência dos Morleys fora a coisa mais estúpida que zera. Imaginou o policial ordenando que saísse do carro e colocasse as mãos no capô. Seria muito fácil encontrar as joias de Dorian Morley. Quanto mais tempo passava, mais fantasiava. Imaginou outras viaturas chegando, policiais rodeando-a, rindo de como ela fora apanhada em agrante. Idealizou também o interrogatório que iria durar até que confessasse, o que não demoraria muito porque não haveria explicação para as provas. A dor no tornozelo estava insuportável e ela começou a sentir uma vertigem violenta que se transformou em náusea. O que aconteceria com ela? E com Heidi? Um feixe de luz atingiu os seus olhos. O ocial retornara; uma mão segurava a lanterna, a outra devolvia os seus documentos. – A lanterna traseira esquerda está quebrada – avisou. – Precisa consertar isso logo. Sarah se desculpou, parecendo convincente. Armou que não percebera que a lanterna estava quebrada e prometeu que iria a uma loja de peças de automóveis. Então, tudo acabou. Assim que a viatura foi embora, ela abriu a porta do carro e vomitou na rua. Depois, apoiou a testa no volante. – Obrigada, Deus – agradeceu em voz alta. As mãos ainda tremiam quando ligou o carro e seguiu para o Marina Boulevard. Passando pela rua, voltou os olhos para a ponte Golden Gate, as correntes de luzes resplandecendo. Era um sinal. O otimismo de Sarah renasceu, dessa vez como euforia. Não cometera erros dispendiosos. Fez muito bem o que tinha que fazer na residência dos Morleys e executara um roubo de primeira classe que a aproximara bastante do seu objetivo. Então, teve uma ideia brilhante. Junto com o conserto da lanterna traseira, a ser providenciado o mais rápido possível, ela ia
telefonar para a viúva de Maury Green. Faria uma oferta, uma comissão de agenciamento, caso a colocasse em contato com outro receptador. E mais ideias uíam, pensando naqueles envelopes cheios dos diamantes que Dorian Morley usava todos os dias. Mal podia esperar para ver o que mais havia tirado do cofre.
capítulo 50
SARAH ABRIU A PORTA DO apartamento de um quarto que dividia com o marido nojento e explosivo. Permaneceu à escuta por um momento no pequeno hall e, quando o ouviu roncando, entrou na sala. “Terror” estava caído na cadeira reclinável de couro marrom, adormecido. Vestia camiseta, e o short, desabotoado e aberto, deixava à mostra a cueca xadrez. Ela torceu o nariz para o casal transando em silêncio no lme pornô da TV . Passou pelo marido e entrou rapidamente no quarto. Fechou a porta e, com calma, trancou-a. Só depois sentiu-se a salvo para respirar de verdade. Fechou as cortinas e acendeu a luz do teto. A seguir, abriu a bolsa de viagem, repleta de produtos do saque, e espalhou os envelopes volumosos sobre a colcha da cama. A respiração era supercial e os olhos brilhavam enquanto ela abria cada pacotinho e liberava o respectivo conteúdo. Colares de diamantes transbordaram. Com a ponta dos dedos, tocou cada uma das pulseiras com joias incrustadas e broches, brincos e anéis, impressionada com a própria audácia e, ao mesmo tempo, fascinada por cada esplêndida obra de arte. O gosto de Dorian Morley era maravilhoso. Os colares de diamantes eram novos, mas os pacotes de antiguidades, trabalhadas com primor, pareciam ser parte de uma coleção pessoal. Sarah se perguntava se esse tesouro fora herdado ou colecionado, peça por peça, pela própria socialite. E, pela primeira vez desde que começara a roubar dos ricos, ela soube que a dona daquelas joias ia ficar agoniada quando descobrisse a perda. Não era um bom pensamento para uma ladra. Assim, afastou-o da mente, lembrando a si mesma que os Morleys tinham seguro e recursos, enquanto Heidi e ela não contavam com nenhum apoio. E cada dia que passavam com os respectivos maridos eram 24 horas de repugnância e de terrível risco. Sarah recolocou as peças nos pacotes e abriu a última gaveta da cômoda. Empurrou as camisetas e as calças de moletom para o lado, levantou a tábua na do fundo falso e depositou a bolsa de ferramentas. Antes de guardar as joias dos Morleys, ela tinha que vê-la mais uma vez. Estendeu uma das mãos até o canto direito da parte de trás do esconderijo secreto e sentiu a pequena caixa de couro no formato de um baú com tampa arredondada. A caixa cabia direitinho em sua mão fechada. Ela abriu a tampa e tou o maravilhoso anel de Casey Dowling, que brilhava sob a luz como se estivesse vivo. Aquela pedra amarela. Uau. Era magnífica.
capítulo 51
ENQUANTO ESTACIONAVA A VIATURA em frente à mansão em estilo Tudor, em Russian Hill, Conklin murmurou: – Que coincidência, hein? Hello Kitty faz um serviço na mesma noite em que o Assassino do Batom ataca Elaine Marone e a filhinha. – Rich, sabe o que sinto às vezes quando abro os olhos, após três horas de sono? Acho que estou sobrecarregada, que o trabalho me aborrece, que deveria largá-lo antes que me mate. E, então, eu me pergunto o que faria depois. – Quando tenho esses pensamentos, cogito abrir uma loja de equipamento de mergulho na Martinica. – Bem, seja gentil com os Morleys e talvez eles possam ajudá-lo com isso. Conklin conteve a risada quando a imponente porta da frente se abriu. Dorian Morley era alta, com cerca de 40 anos, uma mulher atraente em uma túnica orida e calça preta, o cabelo castanho torcido em um coque e preso com um grampo. Seus olhos estavam vermelhos e ela parecia abalada. Convidou-nos para a cozinha, um espaço enorme e bem-iluminado, com bancadas de vidro verdeágua e todo o restante em aço inoxidável. O marido estava sentado à mesa com uma caneca de café em uma das enormes mãos. Levantou-se quando ela nos apresentou. – Eu me sinto um idiota – confessou Jim Morley quando nos sentamos à mesa. – Achei estranho que a porta do quarto estivesse trancada e perguntei: “Hello Kitty? É vocêêêê?” – Ele fez um som engasgado e balançou a cabeça. – Nunca achamos que poderia acontecer conosco, não é? Morley prosseguiu narrando que passara pelo quarto de hóspedes e chegara ao banheiro. – O senhor viu o ladrão? – perguntei, esperando uma resposta positiva, apesar da descrença. – Não, o quarto estava às escuras – respondeu. – Ela pediu um pouco de privacidade e, por isso, achei que fosse uma amiga nossa, Laura Chenoweth. Ela e o marido, Jesse, estão atravessando uma fase difícil. Pensei que estivessem se reconciliando, você sabe, em particular. Seja como for, os jornais continuam se referindo a Hello Kitty como um homem, certo? Sentia-me atordoada com a nova informação. Se Hello Kitty era uma mulher, essa era a nossa primeira pista real. Não era nada de mais, porém não deixava de ser alguma coisa! – Apenas larguei as joias da festa sobre a cômoda – explicou Dorian. – Nem sabia que havíamos sido roubados até colocá-las no cofre. Ela baixou a cabeça e começou a chorar baixinho. O marido nos revelou: – Muitas das joias pertenciam à mãe de Dorian. Algumas eram da avó. Quais as chances de reavêlas? Ainda estava aturdida com a ideia de que o nosso gatuno era uma mulher. Ouvi Conklin dizer que até aquele momento nenhum dos bens roubados por Hello Kitty havia aparecido. – Não se trata apenas das joias, Jim – armou Dorian, erguendo a cabeça –, mas do fato de que
uma assassina estava dentro da nossa casa. No nosso quarto. O que teria acontecido se a tivesse desafiado em vez de ir embora? Meu Deus, Jim, ela poderia ter atirado em você!
capítulo 52
SER CONVOCADO AO ESCRITÓRIO de Tracchio é sempre uma aventura. Você nunca sabe se vai receber um gesto de aprovação ou ser alvo de um ataque de fúria. O chefe desligou o telefone assim que Jacobi, Chi e eu nos sentamos ao redor da mesa de mogno e o observamos pentear o cabelo para o lado de modo a esconder a calvície. Não desgosto dele, mas nunca me esqueço de que é um burocrata fazendo um trabalho que somente um policial de verdade deveria fazer. – O prefeito tem o meu número na discagem rápida – armava, enquanto a assistente lhe trazia outra xícara de chá. – Estou na sua lista de “favoritos” , vocês sabem, um dos cinco primeiros. Esta manhã, consegui ser o primeiro quando ele viu isto. Tracchio exibiu o jornal Chronicle da manhã com a foto de Claire se inclinando para fora da janela do carro sob a manchete: “Comprem uma arma”. Eu corei, envergonhada da minha melhor amiga, espantada pelo que ela fizera. – Um dos nossos declarou isso – comunicou, levantando a voz. – Disse aos nossos cidadãos para portarem armas. E o prefeito assegura que todos nós, isso inclui você, você e, principalmente, você – cutucou Jacobi com um dedo rechonchudo – somos incompetentes. Jacobi tentou se levantar para nos defender. No entanto, Tracchio estendeu uma das mãos para silenciá-lo e o obrigou a se sentar. – Não diga nada. Não estou de bom humor. E tenho outra coisa para mostrar. Abriu uma pasta que estava em cima da mesa, tirou de lá uma folha de jornal, virou-a e a empurrou na nossa direção. – Isto vai sair publicado amanhã de manhã no Chronicle. O editor enviou uma cópia antecipada ao prefeito, que a passou adiante. Li a manchete: – “Uma carta aberta aos moradores de São Francisco”. Tracchio se recostou. – Continue, sargento Boxer. Leia em voz alta. – “Uma carta aberta aos moradores de São Francisco” – prossegui, obediente. – “Tenho uma proposta a fazer. É bem simples. Quero 2 milhões de dólares em dinheiro e um contato em quem possa conar. Assim que eu tiver o pagamento, deixarei São Francisco para sempre e os assassinatos de mulheres e crianças irão parar. Espero uma resposta publicada e, então, acertaremos os detalhes. Tenham um bom dia.” – Não está assinada, mas acho que sabemos quem a escreveu. Minha cabeça latejava diante dessa ideia. – Senhor, não está pensando em pagar para se livrar do Assassino do Batom, está? – perguntei a Tracchio. – Não com a verba do nosso orçamento, claro. Mas um cidadão particular já se ofereceu para doar
o dinheiro. – Chefe, não podemos deixar ninguém pagar um assassino. Isso abre caminho para cada maluco com uma arma e uma ideia doentia... – Ela está certa – interveio Jacobi. – Sabe disso, Tony. Ceder é a pior coisa que podemos fazer. Tracchio inclinou-se para a frente, deu um tapa na folha de jornal e anunciou: – Todos vocês, escutem. Diversas pessoas inocentes foram mortas a tiros nas últimas semanas. Quarenta pessoas estão trabalhando nesse caso o dia inteiro e não temos nada. Nada. Exceto a legista-chefe dizendo que o povo deveria começar a se armar. Fez uma pausa e continuou: – Que escolha tenho? Nenhuma! Essa carta vai circular – armou, olhando para cada um de nós – e não posso detê-la. Logo, imaginem como capturar esse psicopata. Criem uma armadilha. Como vão fazer é com vocês. Sei que é difícil, mas é por isso que se chama “trabalho” . Agora, preciso do meu escritório livre. Tenho que telefonar para o prefeito.
capítulo 53
DESCI AS ESCADAS COM CHI e Jacobi num silêncio sepulcral. Sim, a bordoada de Tracchio fora humilhante. Mas muito pior era o fato de que a cidade se encontrava refém de um psicopata. E o chefe se mostrava tão comprometido que cedia a um terrorista. Aparentemente, a concessão estava em andamento. Alguém do círculo íntimo do prefeito se adiantara com 2 milhões de dólares para pagar ao Assassino do Batom antes que a carta fosse publicada. Era insanidade acreditar que o assassino deixaria a cidade se entregássemos o dinheiro. E, mesmo que zesse isso, para onde iria? O que faria quando chegasse lá? E quantos loucos seriam inspirados a cometer assassinatos por dinheiro? Quando Jacobi, Chi e eu entramos na sala da Central, todos os olhos se voltaram para nós, a pergunta silenciosa pairando no ar como uma nuvem negra. O que o chefe disse? Jacobi se postou na frente da sala. Estava pálido e grunhiu para os seis homens que o escutavam: – O Assassino do Batom quer 2 milhões de dólares para parar com os assassinatos. O chefe exige que preparemos uma armadilha. Os arquejos e comentários foram tão altos quanto uma nuvem negra se transformando em uma tempestade. – Basta! – ordenou Jacobi. – A sargento Boxer está no comando. Lindsay, mantenha-me informado. A toda hora. Em ponto. Eu me sentei à mesa em frente à de Conklin e Chi puxou uma cadeira. Relatei ao meu parceiro a descompostura que leváramos de Tracchio ao mesmo tempo que discava para Henry Tyler. Fui transferida para a sua assistente pessoal. Depois, uma música ambiente começou a tocar enquanto eu aguardava. Henry Tyler é um homem poderoso, o editor adjunto do San Francisco Chronicle. Sua lha, Madison, tinha sido raptada um tempo atrás. Uma garotinha doce, precoce, um prodígio musical. Por causa do trabalho de Conklin, e do meu também, Madison Tyler não foi encontrada morta em uma vala. Em vez disso, ela estava tocando piano, indo à escola e brincando com o seu cachorrinho. Como salvamos a vida de Madison, Tyler e a mulher caram muito gratos a nós dois. Ele dissera que nos devia um grande favor. Eu esperava que se lembrasse dessa promessa. Pouco tempo depois, ele estava na linha.
capítulo 54
– SR. TYLER – FALEI AO TELEFONE, evocando uma imagem mental de um homem alto e grisalho. Da última vez que o vira, ele estava no parque com a sua garotinha, rindo. – Lindsay, já pedi para me chamar de Henry – reclamou Tyler. – Estava à espera do seu telefonema. É uma pena que seja sobre esse sujeito. – Estamos contentes que ele tenha estabelecido contato – informei. – É uma oportunidade, mas apenas se tivermos tempo de arquitetar um plano. Pode retardá-lo, Henry? E se não publicar a carta amanhã? Poderia talvez nos dar mais um dia? – Como assim? E se eu não publicar a carta e ele matar mais pessoas? A culpa será minha e não poderei viver com isso. No entanto, tenho como conseguir o dinheiro. Esperava que você pudesse ser a mediadora. – Vai pagar os 2 milhões? – É um preço baixo, qualquer que seja a forma de encarar a situação – assegurou Tyler. – Poderia ter pedido cinco vezes mais e, ainda assim, pagar seria a coisa certa a fazer. Ele vai continuar matando crianças e suas mães a menos que deem o que ele quer. Você sabe disso. Estou certo de que já tinha essa indenização em mente desde o começo. Fiquei assustada ao ouvir que Henry Tyler ia pagar ao assassino e ainda mais atordoada com a sua conclusão: o Assassino do Batom desejava o dinheiro o tempo todo. – Henry, o que me preocupa é que subornar o assassino não irá impedi-lo de matar. Vai apenas incentivar outros para que façam ameaças semelhantes. – Compreendo, Lindsay. Temos que preparar uma armadilha para ele de alguma forma. É por isso que estarei trabalhando com você. Minha dor de cabeça se intensicou. Era uma policial, nada mais. Não podia ver através de paredes ou dentro da mente de um psicopata. Ficava lisonjeada por Henry Tyler pensar que eu poderia deter o Assassino do Batom, mas era óbvio que esse homem era esperto demais para ser enganado por um furgão cheio de policiais esperando que ele pegasse uma pasta de dinheiro. O pior cenário era aquele que parecia o mais provável: o assassino pega a grana, vai embora e continua a matar. Além de inspirar o terrorismo por todo o país. Não havia policiais sucientes nos Estados Unidos para cobrir uma epidemia de doentes mentais assassinando por dinheiro. – Deixe-me ver se entendi – falei a Tyler. – Você não teve contato com o Assassino do Batom. Ele sabe que vai receber o dinheiro? – Por enquanto, não sabe nada. Ele nos pagou para publicar a carta e está esperando um retorno por meio de uma resposta no jornal. Posso protelar, pegar o dinheiro e redigir uma réplica para ser publicada depois de amanhã. – Sendo assim, temos dois dias. – Sim. Acho que é isso. – Você tem uma nova secretária a partir de amanhã de manhã. Ficarei com você dia e noite.
capítulo 55
HAVIA UMA PILHA DE DONUTS na sala de café e fui até lá buscar alguns. Não fazia uma refeição digna havia quase duas semanas e não tivera mais do que cinco horas consecutivas de sono nesse tempo também. E nada de exercício. A não ser que contasse minha mente em disparada por 24 horas, em sete dias na semana, numa roda de hamster. Adocei o café, voltei para a sala da Central e vi Cindy sentada em minha cadeira. Sorria para Conklin e balançava os cachos louros saltitantes. – Linds – disse ela, levantando-se para me abraçar. – Ei, Cindy – cumprimentei-a, dando um abraço um pouco apertado demais. – Rich e eu temos algo para contar... extraoficialmente. – Que Hello Kitty é uma mulher? Encarei o meu parceiro, que deu de ombros. – Isso não é para ser publicado – ressaltei, sentando-me no meu lugar e observando Cindy puxar uma cadeira. Coloquei a pilha de donuts em um guardanapo e a xícara de café, sobre uma pasta de arquivos. – Reuni esta lista de integrantes da alta sociedade que poderiam escalar a parede lateral de uma casa – explicou, tirando uma folha de papel de dentro da maleta para notebook. – Duke Edgerton, William Burke Ruffalo e Peter Carothers são alpinistas. Estavam no topo da lista de estrelas, mas agora pertencem ao gênero errado, certo? Já que Kitty é uma garota. – Não temos a menor ideia se a mulher na residência dos Morleys era Hello Kitty ou uma convidada desconhecida da festa. Então, não vamos enlouquecer e publicar isso, ok? – Hummmm. – Não seremos capazes de examinar uma única pista que surja se você publicar que Hello Kitty é uma mulher. – Os Morleys tinham cinquenta convidados ontem à noite – lembrou Cindy. – Acha que isso não vai vazar? – Há uma diferença entre rumor e confirmação da polícia – salientei. – Mas você já sabe disso. Ela torceu o nariz. – E se eu mencionar: “Fontes próximas ao departamento de polícia conrmaram ao Chronicle que possuem nova informação que poderia levar à identidade do gatuno conhecido como Hello Kitty”? – Ok – concordei. – Escreva isso. Agora, no caso do seu chefe ainda não ter contado... – Henry? Oh, contou. O dia vai pegar fogo, hein? Uma carta do Assassino do Batom saindo na primeira página. – Bem, você está atualizada. Há mais alguma coisa, querida? – Vou embora para entrevistar Dorian e Jim Morley. É um aviso. – Obrigado – agradeceu Conklin. – Pode ir – liberei-a. – Divirta-se.
– Não está brava com nada, está? – Não. Obrigada pela lista. – Balancei os dedos num gesto de despedida. – Vejo você mais tarde – combinou com Conklin. Virei o rosto quando ela acariciou a sua bochecha com ternura e o beijou. Quando a Cacheadinha foi embora, ergui o café, abri a pasta de arquivos e espalhei as fotos da autópsia de Elaine e Lily Marone sobre a mesa. – Vamos voltar ao trabalho – sugeri ao meu parceiro. – O que me diz? Em cada palavra minha havia pingentes de gelo.
capítulo 56
– EU NÃO CONTEI NADA – retrucou Conklin. – Tanto faz – falei. Minha mente se dividia: de um lado, Hello Kitty; do outro, o Assassino do Batom. O segundo falava mais alto que tudo. – Nem mencionei os Morleys para Cindy. – Eu acredito. Acabou. Ela vai publicar a história sobre Kitty ser uma mulher e as linhas telefônicas vão pegar fogo de novo. – Ela conseguiu uma dica de um dos amigos dos Morleys. Fez isso sozinha. – Podemos continuar, por favor? Não queria acreditar que Conklin não vazara a nova informação para Cindy, mas acreditava. De verdade. Ele era honesto. Éramos parceiros havia mais de um ano e, nesse tempo, coloquei a minha vida nas suas mãos mais de uma vez... e vice-versa. Merda. Minha mente foi invadida por imagens de nós dois superando atentados a bomba e explosões, dando cobertura um ao outro, mesmo debaixo de trocas de tiros com criminosos homicidas. Nossa parceria era profunda e, então, lá estava o que Claire chamava de “outra coisa”. Havia ainda muitas coisas no nosso relacionamento que nunca tinham sido resolvidas por completo. Lembro de nós dois nos agarrando seminus em uma cama de hotel, uma ação que eu parara antes que fosse tarde demais. Conssões de sentimentos, promessas de nunca mais discutilos... Tínhamos que manter o relacionamento profissional: era o único caminho. E agora ele se mostrava bastante envolvido com Cindy. Devia ser por isso que eu estava sendo geniosa. Tinha que ser isso, porque amo Joe. Amo-o muito. Além disso, Cindy e Conklin são um casal perfeito. Peguei um donut de chocolate da pilha e o dei para ele. – Uau. O de chocolate? Para mim? – Desculpe. Estou com os hormônios à flor da pele. O tempo todo. – Pegue leve com você mesma, ok, Linds? – Estou tentando. Conklin se levantou e veio para o meu lado da mesa, sentando-se na cadeira que Cindy acabara de desocupar. – Você tem certeza sobre Joe? – perguntou. Fiquei hipnotizada por meio segundo. Sua beleza tinha um grande efeito sobre mim. Há também alguma coisa com relação ao seu cheiro. Não importa qual seja o maldito sabonete que ele use. – Tenho certeza – respondi, desviando o olhar. – Ele é “o cara”? Assenti com a cabeça. – Ele é “o cara”.
Senti os seus lábios no meu rosto, em plena sala da Central. Sem dúvida, um gesto nada comum a um parceiro de trabalho, mas não me importei se alguém vira. – Ok – disse ele. Voltou para a sua cadeira e colocou os pés na mesa. – Se Hello Kitty é uma mulher, o que muda? Por que ela iria atirar em Casey Dowling?
capítulo 57
ERA O INTERVALO DE ALMOÇO. Sarah havia deixado o edifício primeiro. Agora Heidi entrava no restaurante, na mesa privativa próxima à janela. Heidi abriu um sorriso, acenou e sentou-se na banqueta de couro vermelho de modo que pudesse car perto de Sarah e lhe segurar uma das mãos. Deu um beijo rápido nela e olhou por cima de um dos ombros, certificando-se de que não havia outros professores por perto. – Feliz aniversário, querida – parabenizou Sarah. – Você é uma trintona namoradeira. Heidi riu. – Não me sinto nem um pouco diferente de quando tinha 29. Pensei que sentiria. Trouxeram os cardápios à mesa. Sanduíches de forno de peru foram saboreados rapidamente. O intervalo de almoço era curto e havia muita coisa para conversar. Heidi deixou escapar: – Se pudéssemos car juntas de verdade, sem medo de sermos demitidas, ou de o Terror ou a Fera explodirem de raiva, acha que o que sentimos uma pela outra seria diferente? – Você quer dizer: será que iríamos gostar menos uma com a outra se nos sentíssemos seguras? – Sim. – Não. Acho que seria melhor. Será melhor. É uma promessa. Olhe, Heidi... Três garçonetes vieram da cozinha. A que estava à frente carregava um bolo, colocando uma das mãos para proteger as trinta velas rosas pequenas. Agruparam-se à cabeceira da mesa e cantaram: – Parabéns, querida Heidi. Parabéns para você. Aplausos soaram pelo corredor do estreito restaurante. Heidi olhou para Sarah, apertou a sua mão e, em seguida, apagou as velas na primeira tentativa. – Não me diga qual foi o desejo – alertou Sarah. – Não preciso. Você sabe qual é. As duas se abraçaram, os batimentos cardíacos de Sarah acelerando ao pensar no presente em um dos bolsos da calça jeans. – Tenho algo para a minha aniversariante – revelou. Levou uma das mãos a um dos bolsos e fez aparecer um pacote bem pequeno. Heidi trocou um olhar malicioso com Sarah, retirou o papel de embrulho prata e segurou uma caixinha de couro no formato de um baú. – Não consigo adivinhar o que é – confessou. – Não adivinhe. Segurando a caixa com as duas mãos, Heidi levantou a tampa para espiar. Depois, tirou a correntinha e o pingente: uma pedra amarela brilhante, bem-lapidada. Ofegante, lançou os braços ao redor do pescoço de Sarah, pedindo ajuda para colocá-la. Sarah sorriu radiante, afastou o suave cabelo ruivo de Heidi da nuca e prendeu o fecho. O sujeito em Fisherman’s Wharf zera um trabalho maravilhoso ao colocar a pedra em outra armação, sem fazer perguntas ou mesmo olhá-la ao pegar os 20 dólares pelo serviço.
– Adorei. É o presente mais bonito. Que tipo de pedra é esta? – É um citrino, mas penso nela como uma pedra de compromisso. Heidi fitou Sarah e aquiesceu. Sarah tocou a pedra e prometeu a si mesma que faria o último serviço da lista. Iria se unir a um receptador. Levaria Heidi, Sherry e Steven para fora de São Francisco. E, de alguma forma, as duas e as crianças iriam parar de sentir medo todos os dias das suas vidas.
capítulo 58
A RÉPLICA À CARTA DO ASSASSINO do Batom foi publicada no Chronicle. Em poucas horas, o planeta pisou nos freios e todos os olhos se xaram em São Francisco. Meios de comunicação, de diversos tipos e classes, se materializaram em furgões equipados para transmissão via satélite, rodeando o Tribunal de Justiça e o edifício do Chronicle. Também congestionaram as linhas telefônicas de Tyler com pedidos para entrevistas e perseguiram policiais e funcionários do jornal nas ruas. Cada homem, mulher e criança, enm, todos com uma opinião e um computador dispararam cartas para o editor. Entrevistas foram negadas. Além disso, o prefeito apelou à imprensa: “Deixem que façamos o que precisa ser feito. Daremos a divulgação completa após o fato.” Rich Conklin, Cappy McNeil e eu estávamos incorporados ao Chronicle, encarregados de resolver o problema: uma resposta do assassino com as instruções sobre como fazer a entrega de 2 milhões em dinheiro em troca de deixar São Francisco em paz. Era uma situação de perda que revoltava e só poderia virar a nosso favor se capturássemos o assassino em uma armadilha. Tínhamos um plano simples: seguir o dinheiro. Às 14h15, o carrinho da correspondência chegou ao andar da direção carregando um envelope marrom espesso endereçado a H. Tyler. Coloquei luvas de látex e perguntei ao rapaz da sala de expedição: – Quem entregou isto? – Hal, da Speedy Transit. Eu o conheço. – Assinou o recebimento? – Há oito ou dez minutos. Despachei logo aqui para cima. – Qual é o seu nome? – Dave. Hopkins. Instruí-o a seguir corredor abaixo e pedir ao inspetor McNeil, o homem grande de jaqueta marrom, para interrogar Hal imediatamente. Depois, chamei Conklin, que saiu do cubículo do outro lado do corredor e me acompanhou até a entrada do escritório de Tyler. – Henry, pode ser a resposta. Ou uma carta-bomba – alertei. – Quer jogá-la no vaso sanitário ou abri-la? – perguntou Tyler. Olhei para Conklin. – Acho que estou com sorte hoje – disse ele. Coloquei o pacote no centro da mesa com tampo de couro. Todos nós encarávamos o envelope com o nome de Tyler e a palavra “URGENTE” em letras pretas grandes. Onde deveria estar o endereço para a devolução havia três letras escritas em vermelho: “MCP”. Havíamos ocultado da imprensa a assinatura especíca do assassino. Portanto, quase não havia dúvidas de que aquele pacote fosse dele. Tyler pegou um abridor de cartas, cortou o envelope e o inclinou com cuidado até que os objetos que estavam lá dentro deslizassem para cima da mesa.
O primeiro item era um telefone celular. Tratava-se de um modelo pré-pago, do tamanho de um sabonete em barra, com alça para pescoço, um headset, um microfone para ser usado na altura do queixo, além de uma câmera embutida. O segundo item era um envelope-padrão, branco, endereçado a “H. Tyler” . Abri-o e sacudi a folha de papel branco dobrada que estava lá dentro. A mensagem fora digitada e impressa em jato de tinta. Lia-se no bilhete: “Tyler, use este telefone para me ligar.” Havia um número e a assinatura: “MCP”.
capítulo 59
– É POSSÍVEL RASTREAR UMA LIGAÇÃO de um telefone pré-pago? – perguntou Tyler. Balancei a cabeça. – Não de forma ecaz. Não há nenhum dispositivo de GPS. Desse modo, também não há como rastrear a localização do telefone. Ele pegou o celular e discou o número. Eu me abaixei ao seu lado e coloquei um dos ouvidos perto do dele. Houve um toque e, em seguida, uma voz masculina perguntou: – Tyler? – Sim, Henry Tyler. Com quem estou falando? – Você tem o que pedi? – Tenho. – Ligue a câmera do celular. Eu quero ver o dinheiro. Tyler ergueu uma pasta até a mesa, abriu os fechos, apontou o celular para os 2 milhões de dólares em maços organizados e tirou uma foto. – Recebeu a imagem? – perguntou. – Sim. Pedi que escolhesse um mediador. – Serei o contato – afirmou Tyler. – É muito fácil reconhecê-lo – garantiu o assassino. – Tenho um homem bom na venda de anúncios – revelou, olhando para Conklin. – E, contra a minha vontade, minha secretária se ofereceu. – Qual é o nome dela? – Judy Price. – Coloque Judy ao telefone. Tyler me entregou o celular. – Sou Judy Price. – Judy, esse aparelho pode transmitir vídeo em tempo real para o meu computador por três horas. Espero que possamos concluir a negociação em menos tempo. Prenda a alça para pescoço no celular e deixe a lente da câmera sempre apontada para a frente. Fique com isso até eu ter o dinheiro. Darei as instruções à medida que avançamos. Está me ouvindo e entendendo? – Quer que eu continue com o fone ligado e o use virado para a frente? Assim, transmitiremos uma gravação ao vivo. – Boa garota. Hesite em seguir minhas instruções, estrague tudo de alguma forma tentando me prejudicar e a negociação termina. Depois, matarei mais algumas pessoas e essas mortes serão sua responsabilidade. – Ei, e se a ligação cair? – Ligarei de volta. Certique-se de manter a linha disponível. Não tente nenhum truque telefônico.
– Como devo chamá-lo? – Pode me chamar de “senhor”. Estamos acertados? – Sim, senhor. – Bom, agora pendure o telefone ao redor do pescoço e dê uma voltinha para que eu possa ver quem está com você. Girei nos calcanhares, dando uma panorâmica do escritório. – Reconheço Tyler. Quem é o outro cara? – É o Rich, do setor de vendas de anúncios. – Ligue o viva-voz – ordenou o assassino. Localizei o botão do alto-falante e o liguei. – Rich, não siga Judy. Isso vale para você também, Tyler. E nem preciso dizer, mas se eu notar policiais ou qualquer coisa que me faça pensar que ela está sendo seguida, a negociação acaba. Fim de jogo. Entenderam? – Sim. – Aponte a câmera para você mesma, Judy. Houve uma pausa. Mais longa do que eu esperava. Então, a voz do assassino voltou. – Belos peitos. E vamos esperar que você seja uma loura esperta. Agora, conecte o headset ao telefone e coloque os fones. Pode me ouvir? – Sim. – Ok, coisinha doce, tome o elevador e vá para a rua. Quando chegar na esquina da Mission com a Rua 5, eu darei mais instruções. – Mal posso esperar – murmurei. – Estou ouvindo, alto e claro – garantiu o assassino com certo nervosismo na voz. – Volto a avisar, Judy. Trata-se de um favor que estou fazendo à cidade. Não estrague tudo.
capítulo 60
O TELEFONE PENDURADO AO PESCOÇO me fazia sentir com uma carga explosiva. O Assassino do Batom poderia ver tudo o que eu via, ouvir tudo o que eu estava ouvindo e falando e, se aquele psicopata desprezível e grosseiro ficasse aborrecido, eliminaria mais vidas inocentes. Tínhamos sido alertados. Saí do edifício do Chronicle em uma tarde nublada. Passei por pessoas indo às compras e por motoristas que avançavam o sinal amarelo. Gostaria de saber se o Assassino do Batom reconhecia os carros sem identificação na Rua 5 com a Mission. Vi Jacobi e Brady, Lemke, Samuels e Chi. Até aquele momento, Conklin divulgara que eu era a mediadora e trabalhava disfarçada. Ainda assim, para evitar suspeitas, atraí o olhar de Jacobi e, tendo o cuidado de manter as mãos longe da lente, apontei dois dedos para os meus olhos e depois para o telefone, sinalizando que estava sendo observada. Foi quando vi Cindy de relance. De olhos arregalados, retraía-se encostada à parede do edifício do Chronicle, olhando para mim como se eu estivesse indo rumo à guilhotina. Senti-me tomada de amor e quis abraçá-la. No entanto, apenas, pisquei, erguendo dedos cruzados. E ela forçou um sorriso. Eu carregava a pasta de Tyler na mão direita, sentindo medo, claro. Uma vez que eu entregasse a maleta ao “senhor” , ele não ia querer uma testemunha. As chances de que atirasse em mim eram grandes. Se eu não atirasse nele primeiro. – Estou na esquina da Rua 5 com a Mission. E agora? – comuniquei pelo microfone. – Largue a bolsa na lata de lixo. E me mostre. – Minha bolsa? – Faça isso, princesa. Como estava no papel de secretária de Tyler, havia escondido a arma e o celular dentro da bolsa. Larguei-a na lata de lixo. A seguir, inclinei a câmera para que o assassino pudesse ver. Aquele lho da puta. – Boa garota – ironizou o Assassino do Batom. – Agora, vamos seguir para a estação na Powell. O local cava a um quarteirão e meio de distância. Ao atravessar a Market, vi Conklin vindo atrás de mim, fora do alcance da câmera, e senti uma onda de alívio. Eu não tinha nenhuma arma, mas o meu parceiro estava comigo. Desci as escadas e cheguei à plataforma no sentido do aeroporto. Os trens eram como gigantescos e elegantes projéteis que soavam um apito de aviso ao chegarem à estação, o que acontecia naquele momento. Freios chiaram. Portas se abriram. Entrei no trem marcado e vi Conklin fazer o mesmo, na extremidade do mesmo vagão. Quando o trem partiu, a voz do assassino foi canalizada para os meus ouvidos, fragmentando-se de leve.
– Faça uma panorâmica do vagão – determinou. Dei uma volta devagar, dando a Conklin tempo suciente para virar-se de costas. O trem reduzia a velocidade por causa da parada seguinte quando uma voz metálica veio ao sistema de altofalantes. Anunciou a estação: Civic Center. – Judy, saia agora – ordenou o assassino. – Você disse no aeroporto. – Saia agora. Conklin estava preso em um canto, dezenas de pessoas entre nós dois. Sabia que ele não me veria sair até eu estar fora do trem, com as portas se fechando. Vi o olhar de preocupação no rosto do meu parceiro enquanto o trem se afastava. – Tire a jaqueta e coloque-a na lata de lixo – determinou o assassino. – Minhas chaves de casa estão em um dos bolsos. – Jogue a jaqueta no lixo. Não me questione, docinho. Apenas faça o que digo. Agora, vá para a escada. No primeiro patamar, faça uma panorâmica para que eu possa ver se alguém a está seguindo. Obedeci e ele ficou satisfeito. – Vamos, princesa. Temos um encontro no Hotel Whitcomb.
capítulo 61
SAÍ DO METRÔ NA ESTAÇÃO Civic Center Plaza. Tratava-se de um parque arborizado e muito bemcuidado. Era ladeado por edifícios governamentais, bancos e instituições culturais. Um lugar público refinado invadido por drogados. Procurei por carros estacionados, esperando ver algum reforço enquanto caminhava rumo ao Hotel Whitcomb. Ouvi um automóvel virar rápido à esquerda na Market e avistei um Ford cinza comum freando. Não podia virar sem mostrar à câmera quem dirigia. Assim, tudo o que eu podia fazer era ter esperança de que Jacobi ou alguém estivesse na minha cola. Atravessei a Market até o Whitcomb, um elegante hotel vitoriano quatrocentista. Entrei no opulento hall de entrada, brilhando com lustres de cristal, piso de mármore, painéis de madeira em todos os lugares, além dos imensos buquês de flores perfumando o ar fresco. Meu “guia de turismo pessoal” me enviou para o Market Street Grill, um belo restaurante que estava quase vazio. Uma jovem mulher bem-arrumada estava atrás da bancada da recepção. Usava o cabelo preto puxado para trás e um crachá no terninho azul, onde se lia SHARRON. Perguntou-me se eu jantaria sozinha. – Na verdade, vim pegar uma carta para o meu chefe, Sr. Tyler – respondi. – Ele acha que a deixou aqui no café da manhã. – Ah, sim – concordou Sharron. – Guardei o envelope. Aguarde um minuto. A recepcionista procurou na bancada e, com um gritinho de “Achei!” , entregou-me um envelope branco com “H. Tyler” escrito à caneta. Queria perguntar se ela tinha visto o homem que deixara o objeto, mas o aviso do assassino permanecia em minha mente: “Hesite em seguir minhas instruções, estrague tudo de alguma forma tentando me prejudicar e a negociação termina. Depois, matarei mais algumas pessoas e essas mortes serão sua responsabilidade.” Agradeci à recepcionista e segui pelo corredor do restaurante rumo ao hall de entrada. – Abra o envelope, querida – orientou o assassino e, rangendo os dentes, fiz isso. Encontrei um canhoto de estacionamento e 25 dólares em notas novinhas em folha. O canhoto marcava TRINITY PLAZA. Eu conhecia o lugar. Ficava ali perto e funcionava o dia inteiro. – Está se divertindo? – perguntei ao Assassino do Batom. – Bastante – respondeu. – Se estiver entediada, conte-me sobre a sua vida. Sou todo ouvidos. – Prefiro conversar sobre você. Por que matou aquelas pessoas? – Eu poderia contar para você, mas depois eu teria que matá-la, Lindsay. – Quem é Lindsay? – perguntei, mas estava abalada. Vacilei e quase tropecei nas escadas do hotel. Como ele sabia o meu nome? – Acha que não a reconheci? Princesa, você é quase uma celebridade nesta cidade. Sabia, claro, que colocariam um policial neste show. No entanto, para o meu deleite, é você. Sargento Lindsay Boxer, minha garota em uma coleira.
– Bem, enquanto você estiver feliz. – Feliz? Estou em êxtase. Escute, Lindsay: estou a apenas um clique no Google de saber onde você mora, quem são os seus amigos, quem você ama. Logo, acho que você tem um bom motivo para fazer com que hoje seja o meu dia de pagamento, não tem, docinho? Imaginei Cindy no visor da câmera, Conklin, Joe trabalhando no seu home office, Martha aos seus pés. Vi-me com a Glock em uma das mãos, mira alinhada entre os olhos sem cor de um sujeito em uma jaqueta de beisebol. Apertei o gatilho. O problema é que eu não tinha a Glock.
capítulo 62
– VOCÊ ESTÁ QUIETA, PRINCESA – comentou o assassino em um dos meus ouvidos. – O que quer que eu diga? – Não, você está certa. Não pense demais. Apenas execute a missão. No entanto, eu estava pensando. Se eu o encontrasse e não o matasse, deixaria a polícia para olhar as milhares de fotograas de cada ex-soldado, marujo, guarda-costeiro e fuzileiro naval em São Francisco. E se ele não morasse em São Francisco, eu continuaria examinando as fotos até achá-lo, mesmo que fosse a última coisa que fizesse. Mas, claro, ele não me deixaria ver o seu rosto e ir embora. Não esse cara. Caminhei pela Market, virei e, por m, vi o estacionamento. O sujeito na cabine estava encostado na parede de trás com os olhos fechados, concentrado no seu iPod. Bati no vidro e entreguei-lhe o canhoto, mas ele mal me olhou. – São 25 dólares – informou. Empurrei as notas e ele me entregou as chaves. – Qual é o carro? – perguntei, usando o telefone pendurado ao pescoço. – Chevy Impala verde, quatro carros abaixo à direita. É roubado, Lindsay. Nem pense em rastreálo para chegar até mim. O carro parecia muito velho, dos anos 1980, mas não o tipo de carcaça cujo roubo alguém teria pressa em denunciar. Abri a porta. No banco de trás, vi um estojo para arma, da marca Pelican, novinho em folha. Comprido o suficiente para conter um fuzil de assalto. – Para que serve aquilo? – Abra-o – ordenou o Assassino do Batom. A marca Pelican é conhecida pelos seus estojos de proteção. São forrados com espuma, têm fechaduras inquebráveis e podem resistir a qualquer coisa: fogo, água ou mesmo uma rajada explosiva que possa ser lançada sobre eles. O estojo estava vazio. – Coloque o dinheiro aí dentro. Mais uma vez, segui as instruções. Transferi o dinheiro da pasta especial de Tyler, empilhei as notas, fechei as trancas, praguejando o tempo todo. Estava ajudando um psicopata a fugir com uma fortuna. A situação me fez lembrar os nazistas intimidando Paris na Segunda Guerra Mundial. – Coloque a pasta do Sr. Tyler embaixo do Lexus à esquerda. Apenas outra precaução, princesa. Em caso de haver um dispositivo de rastreamento lá dentro. – Não há nenhum dispositivo de rastreamento – assegurei, mas havia um GPS embutido na alça. – E tire os sapatos – determinou. – Coloque-os embaixo do carro com a pasta. Fiz o que ele pediu, pensando em Jacobi. Ele seguiria o sinal do GPS até aquele estacionamento e encontraria a pasta, mas seria um beco sem saída.
– Gostaria de dar um passeio? – perguntou minha companhia constante. – Adoraria – respondi, figindo animação. – Adoraria, o quê? – perguntou MCP. – Adoraria, senhor. Sentei-me no banco do motorista e liguei o carro. – Para onde? – questionei, soando para mim mesma como se eu já estivesse morta.
capítulo 63
– BEM-VINDA AO TOUR MISTERIOSO – anunciou o assassino. – Qual caminho quer que eu siga? – Vire à esquerda, princesa. Olhei para o relógio. Estava com o diabo ao redor do pescoço pelo que parecia uma eternidade, mas ainda não sabia nada a seu respeito, nada sobre o que pretendia fazer. Desde que o genial plano “siga o dinheiro” fracassara, meu cérebro estava em intensa atividade, tentando encontrar uma saída. Mas como isso seria possível? Não sabia onde ia ser a entrega. Deixei o estacionamento e passei pelo Museu de Arte Asiática. Fui orientada a seguir pela Larkin. Dei uma olhadela no retrovisor, não vendo nada que parecesse um carro policial sem identificação. Ninguém me seguia. Peguei a Larkin para entrar no bairro de Tenderloin, atravessando com diculdade a região mais acidentada de São Francisco, as ruas escuras abarrotadas de bares minúsculos, shows de strippers e motéis. Jacobi e eu havíamos sido baleados em um beco escuro não muito longe dali e quase tínhamos morrido. Passei por ruas onde trabalhara como policial, uma pizzaria de primeira classe que apresentara a Joe pouco tempo atrás e um bar onde Conklin e eu íamos às vezes para relaxar após um turno duplo. Virei na Geary e passei pelo Mel’s Drive-in, onde costumava car um tempo com Claire quando éramos novatas, ambas rindo da nossa frustração por sermos mulheres em um mundo masculino. Senti lágrimas nos olhos, não por causa dos obstáculos que o assassino me fazia ultrapassar, mas por causa da nostalgia, das saudosas lembranças dos momentos com meus bons e queridos amigos. Além da sensação de estar visitando cenas doces do passado pela última vez. A voz impessoal de um homem que eliminara três mães jovens e os seus lhos pequenos voltou a falar: – Pendure o telefone no retrovisor, a lente apontando para você. Eu estava parada em um sinal vermelho no cruzamento da Van Ness com a Geary. Assim que obedeci e olhei para o pequeníssimo olho da câmera, o Assassino do Batom ordenou: – Tire a blusa, docinho. – O quê? – Sem perguntas. Compreendi. Ele estava checando se eu estava grampeada. Primeiro a bolsa, depois a jaqueta, os sapatos e a pasta. Agora isso. Despi a blusa. – Jogue-a pela janela. Obedeci. Felizmente, ninguém notou. – Faça o mesmo com a saia.
– O sinal está verde. – Vá para o acostamento e pare. Garota esperta – elogiou. – Tire a saia. Jogue-a fora. Agora, o sutiã. Não estava me sentindo bem com aquilo, mas não tinha opção. Desabotoei o sutiã e o joguei pela janela como ele havia instruído. Ele assobiou, um uivo de lobo como se apreciasse o que via. Meu psicológico estava abalado por causa da humilhação. E o pior de tudo era que esse maníaco, que odiava mulheres e matava crianças, tinha me envergonhado e enganado todo o Departamento de Polícia de São Francisco. Ninguém sabia onde eu estava. – Boa garota. Muito boa. Agora, pendure o telefone no pescoço e vamos embora. O melhor ainda está por vir.
capítulo 64
FORCEI O VELHO IMPALA AO subir e descer estradas sinuosas em direção à Lombard Street, a rua mais curvilínea de todas, um ímã que atraía turistas para o topo em Hyde. De lá era possível apreciar uma paisagem de um bilhão de dólares, motivo pelo qual São Francisco deveria ser uma das sete maravilhas do mundo. Com frequência, eu subia para contemplar a vista. Agora era a primeira vez que não me deslumbrara com a vista da baía de São Francisco, Alcatraz e Angel Island. Eu descia em alta velocidade a ladeira íngreme e em zigue-zague da Lombard. Ouvi mais instruções, comentários sobre o quanto era legal me deixar dirigir enquanto ele só precisava pensar sobre o dinheiro. Nesse meio-tempo, eu parava a cada transversal, arqueando os ombros, rezando para que ninguém notasse uma mulher de topless descendo uma das ruas mais pitorescas do país. Vericava os espelhos e olhava para todos os lados nos cruzamentos, procurando por Jacobi, Conklin, Chi, qualquer um. Tenho que admitir: por um momento de irracionalidade, enlouqueci. Uma coisa é colocar a própria vida em risco por uma causa na qual se acredita. Outra é ser usada como um robô por um assassino, ser um sacrifício solitário em uma ação na qual não se acredita. O psicopata falou de novo. Mandou que eu voltasse e seguisse para Presidio. Obedeci, continuando pela Richardson, tomando a rampa que dá acesso à ponte Golden Gate. Será que íamos deixar a cidade? Minha raiva se dissipava à medida que eu voltava a mim, percebendo que a equipe da Central estaria desesperada para saber onde eu me encontrava. Como poderiam me achar quando eu dirigia um velho Impala verde? O Assassino do Batom parou de brincar quando me juntei ao uxo de tráfego em alta velocidade que seguia para atravessar a ponte. O ponteiro do marcador de gasolina pairava sobre a letra que indica tanque vazio. – Precisamos encher o tanque – alertei. – Não precisamos, não – garantiu. – Estaremos na metade da ponte em um minuto. Direi quando encostar. – Encostar? Não há nenhum lugar para parar na ponte. – Haverá quando eu mandar.
capítulo 65
O SUOR ESCORRIA PARA OS MEUS olhos enquanto o assassino fazia uma contagem regressiva de dez a um. – Encoste agora – ordenou. A seta estava ligada desde que eu entrara na Golden Gate. No entanto, qualquer um que a visse teria pensado que eu a deixara ligada por acaso. – Encoste! – repetiu. Na verdade, não havia lugar para parar. Então, reduzi a velocidade. Depois, freei na pista o mais perto possível do corrimão que atuava como uma linha de segurança entre a pista e a estreita passarela de pedestres. Liguei o pisca-alerta, escutando o tique-taque monótono e imaginando uma batida horrível que poderia matar os ocupantes do carro que se aproximava, além de me prensar contra o volante. As chances de que isso acontecesse se reduziram de cinquenta para dez por cento. Seria hoje o meu dia de morrer? – Pegue o estojo do banco de trás – instruiu-me o assassino. Soltei o cinto de segurança, estiquei-me para pegar o estojo comprido e estranho, arrastando-o para o banco da frente. – Bom. Agora saia do carro. Era puro suicídio sair pelo meu lado. Carros zuniam em alta velocidade, alguns buzinando, outros com motoristas vociferando pelas janelas enquanto passavam. Agarrei o estojo, alcancei a maçaneta do lado do carona, aproximei-me e chutei a porta para que se abrisse. Estava quase pelada, sim, mas não podia hesitar. Bati com o estojo nas canelas e transpus o corrimão. A seguir, meus pés tocaram a passarela de pedestres. O tráfego ainda se desviava e buzinava. Alguém gritou “Pula! Pula”. E houve mais buzinadas. – A segurança da ponte é rigorosa. Haverá policiais aqui a qualquer minuto. – Cale a boca – ordenou. – Vá para o parapeito. A cabeça rodava enquanto eu olhava a água brilhando lá embaixo. Ele ia me fazer pular. Cerca de trezentas pessoas tinham saltado dessa ponte para a morte. Eu ia morrer e nunca saberia se salvara alguém ou se o assassino pegaria o dinheiro e continuaria matando. E, afinal de contas, como ele ia pegar o dinheiro? Fitei Fort Point, logo abaixo da extremidade sul da ponte, e o meu olhar se deslocou pela costa de Crissy Field. Onde estava o assassino? Então, vi um pequeno barco a motor saindo de Fort Baker, ao pé da torre norte, do outro lado da baía. – Hora de dizer adeus, Lindsay – disse a voz ao meu ouvido. – Deixe o telefone de lado e mande o estojo. Continue a fazer o trabalho direito, princesa. Tudo cará bem se não estragar as coisas agora. O vento soprou o meu cabelo sobre o rosto assim que deixei cair o telefone. Em seguida, lancei o
estojo sobre o parapeito. Observei-o cair direto na baía, de uma altura de 80 metros.
capítulo 66
O ESTOJO BATEU NA ÁGUA, LANÇANDO uma nuvem de espuma, afundou um pouco, mas voltou a car visível logo em seguida. O máximo que eu podia dizer é que havia um homem pilotando o barco a motor por entre as ondas rumo ao estojo. Saí do transe. Estava livre. Fui para trás do Impala e ergui uma das mãos. O motorista de um sedã Honda azul-petróleo buzinou ao passar por mim, seguido de um Corvette. O sujeito atrás do volante olhou de soslaio, mas não encostou. O que pensou? Que eu era uma prostituta? Permaneci de calcinha naquela rodovia com uma das mãos em posição de “pare” . Todo o corpo formigava de medo de ser achatada por um motorista imbecil. Até que um BMW azul-bebê reduziu a velocidade e encostou à frente do Impala. Debrucei-me sobre o lado do carona. – Sou policial. Preciso do seu telefone agora. Ao volante, um garoto embasbacado de 18 anos me entregou o celular. Apontei para um jornal no banco ao lado. Ele o passou para mim e usei a primeira página para cobrir os seios enquanto falava com a Central, dando o nome e o número do distintivo. – Lindsay! Meu Deus... Você está bem? Do que precisa? Onde está? Conhecia a atendente, May Hess, que se autodescrevia como a Rainha dos Contatos. – Estou na ponte... – Com a suicida nua? Dei uma risada alta, mas me contive antes de car histérica. Pedi a May para conseguir um helicóptero que sobrevoasse a baía o mais rápido possível e expliquei o motivo. Também precisava que a guarda costeira pegasse um barqueiro. – Captei, sargento. A patrulha da ponte estará aí em trinta segundos no máximo. Ouvi as sirenes. Com o jornal esvoaçando contra os meus seios, debrucei-me sobre o parapeito e vi quando o pequeno barco aproximou-se do estojo que utuava. Um helicóptero pairava acima e o piloto avançou sobre o barco a motor, conduzindo-o em direção à costa sul. O pequeno barco ziguezagueava como louco tentando se esconder sob a ponte. O helicóptero o seguiu, encurralando-o em Crissy Field. O Assassino do Batom caiu fora do barco e correu em câmera lenta com a água na altura dos quadris. Foi quando uma embarcação da guarda costeira se aproximou, dando-lhe uma fechada. Um megafone bradava, ordenando ao assassino que se jogasse no chão e mantivesse as mãos à vista. Viaturas irromperam na praia e o rodearam. Fim da linha, seu lunático.
capítulo 67
ASSISTI À PATRULHA PORTUÁRIA RETIRAR o estojo Pelican da água e, então, lá estava o som ensurdecedor das sirenes ao meu redor. Eu me virei e vi uma frota de carros, chiando até pararem atrás do Impala. Os motoristas eram todos os policiais que eu conhecia e agora eles se amontoavam ao meu redor. Minha atenção foi atraída para um Land Rover parando na pista contrária que, de alguma forma, conseguira passar pelo perímetro antes de a ponte ser fechada. Um homem barbudo saltou segurando uma câmera com uma lente SLR com zoom de longo alcance. Começou a tirar fotos, uma expressão de horror no meu rosto, o jornal Chronicle colado ao peito, calcinha rosa e tudo o mais. À minha esquerda, um grito: – EI! Um homem irrompeu da traseira de uma viatura, um sujeito grande e atraente, de porte semelhante ao de um jogador de futebol americano. Ele atravessou a pista rumo ao fotógrafo e esbravejou: – Ei, me dê isso! Era Joe. O cara se recusou a parar com as fotos. Portanto, Joe o agarrou pelo pescoço, arrancou a câmera das suas mãos e a jogou por cima do parapeito. Empurrou o cara no capô do Land Rover e bradou por cima de um dos ombros: – Pode me processar! A seguir, o homem que eu amava correu em direção a mim com uma expressão de angústia no rosto. Estendeu os braços e eu caí sobre ele, começando a chorar. – Nós o pegamos – anunciei. – Aquele canalha machucou você? – Não. Nós o pegamos. – Com certeza, querida. Acabou tudo agora. Joe me cobriu com a sua enorme jaqueta e voltou a me abraçar. Conklin e Jacobi saíram de um carro cinza sem identificação e vieram até onde eu estava, perguntando juntos: – Você está bem, Lindsay? – Nunca estive melhor – respondi com alegria, o rosto molhado de lágrimas. – Vá para casa – aconselhou Jacobi. – Tome um banho. Coma alguma coisa. Depois, volte para a Central. Vamos dedicar o nosso tempo a char aquele maluco. Devemos levar cerca de três horas com as fotos, as impressões digitais e a papelada. É todo seu, sargento Boxer. Ninguém falará com ele antes de você. Jacobi fez uma pausa e me deu os parabéns: – Bom trabalho.
capítulo 68
MEU CABELO AINDA ESTAVA MOLHADO do banho quando voltei à Central, pronta para confrontar o sujeito que me humilhara, aterrorizara e matara seis pessoas inocentes. Fui até o escritório de Jacobi. – O que temos? – A carteira de identidade diz que ele é Roger Bosco, ex-funcionário do Serviço de Parques Nacionais. Hoje em dia, zelador do Iate Clube de São Francisco. Sem passado militar, sem cha de qualquer tipo. Não pediu advogado. – Vamos fazer com que peça um. A sala de observação atrás do espelho estava repleta de policiais e militares, além do pessoal da promotoria. As câmeras filmavam. Estávamos prontos. Sentado à mesa, o suspeito ergueu o olhar quando Jacobi e eu entramos na sala de interrogatório. Surpreendi-me com a sua aparência e o seu porte. Roger Bosco parecia ser mais velho e menor do que o homem que tínhamos visto nas tas dos edifícios-garagem, além de dar a impressão de estar confuso. Com os olhos azuis cheios de lágrimas, olhou para mim e confessou: – Tive medo do helicóptero. Foi por isso que tentei fugir. – Vamos começar do início, Roger. Tudo bem se eu o chamar de Roger? – Claro. – Por que fez isso? – Pelo dinheiro. – Desde o começo, seu plano era exigir o resgate? – O que quer dizer com “resgate”? Puxei uma cadeira e me sentei perto dele, tentando enxergar por trás da atuação do “sujeitinho” à procura de um psicopata arrogante e assassino. Jacobi andava de um lado para o outro, devagar. – Entendo que 2 milhões seja muito dinheiro – assegurei. Mantive a calma, mostrando que eu poderia ser conável, que o tour misterioso ao inferno, que durara longas horas, estava perdoado. – Dois milhões? Eles me ofereceram 500. Só consegui pegar os primeiros 250. Encarei Jacobi, mas não consegui ler nada nos seus olhos cinzentos. Eu ignorava a sensação de apreensão. Roger Bosco estivera em um barco indo rumo ao dinheiro. Isso era indiscutível. – Você tem que me ajudar. Explique como planejou os assassinatos. Tenho que dizer, você foi brilhante. Foi preciso uma força policial inteira para trazê-lo até aqui e respeito isso. Se puder me colocar a par de cada passo, nos mostrar que está cooperando de verdade, posso trabalhar com a promotoria a seu favor. Ele cou boquiaberto, me tando com uma incredulidade genuína. Em seguida, virou-se para Jacobi. Depois, voltou-se para mim.
– Não sei do que vocês estão falando. Por Deus, não matei ninguém, nunca, em minha vida inteira. Pegaram o cara errado.
capítulo 69
FORAM HORAS DE INTERROGATÓRIO. Jacobi, Conklin e eu telefonamos para várias pessoas, examinamos papéis em escritórios escuros, checamos as credenciais e os álibis de Roger Bosco. Sim, era funcionário do Iate Clube. Seu tempo foi todo contabilizado: ele marcara o cartão de ponto e tinha sido visto no trabalho quando os Bentons, Kinskis e Marones foram mortos. Tirei-o de uma cela de espera e o coloquei de volta na pequena sala. Dessa vez, com café, um sanduíche de presunto, além de um pacote de biscoitos de chocolate com recheio de baunilha. Bosco contou a sua história desde o início: como um homem se aproximara dele no cais, apresentara-se como um produtor de cinema que estava rodando um lme de ação e precisava de um dublê real, ao vivo, para retirar um pacote da baía. Ele confessou que ficou animado. Também falou que contou ao sujeito que poderia tirar um dia de folga e usar o seu pequeno barco. Adoraria participar de um lme. Então, o “produtor” o instruiu a car à toa na embarcação ao redor de Fort Baker e observar um estojo que seria jogado da ponte em algum momento da tarde. O produtor adiantou 250 dólares com a promessa de pagar a outra metade após a entrega do estojo. Além disso, avisou que iria esperá-lo do lado de fora do Greens Restaurant, em Fort Mason. Será que Bosco levara mesmo esse arranjo a sério? Ele era sórdido ou estava confuso? – Qual é o nome do tal produtor? – Tony alguma coisa, começa com “T” . Era um cara de aparência comum. Tinha cerca de 1,85 metro e estava em boa forma. Nem notei o que vestia. Ei, esperem um minuto. Tenho o cartão dele. A carteira ensopada de Bosco foi recuperada da seção de registro e o cartão, retirado da parte de notas e mostrado a mim. Era um daqueles cartões instantâneos do tipo “faça você mesmo” , pré-cortado e impresso em uma jato de tinta. Não passaria no teste de credibilidade da maioria das pessoas na cidade, mas Roger Bosco estava muito satisfeito porque poderia respaldar a sua história. Sorria como se tivesse encontrado petróleo no quintal. – Olhem – pediu, batendo no logotipo vermelho manchado com um dedo indicador calejado. – Anthony Tracchio. MCP Produções. Jacobi e eu o levamos para fora da sala. – O chefe irá adorar isso – assegurou Jacobi, abatido, guardando o cartão em um saco. – Vou telefonar para ele e contar que o Assassino do Batom ainda está lá fora. E ainda temos o dinheiro.
capítulo 70
OS DOIS ESTAVAM NO QUARTO de Cindy, a luz da rua entrando por entre as persianas, pintando listras escuras sobre o cobertor. Ela se aconchegou em Rich, jogando um dos braços sobre a cintura do namorado. – Ah, merda – praguejou ele. – Nunca pensei que diria isso, mas nunca me aconteceu antes. Desculpe, Cin. – Ei, não é nada. Não se preocupe, por favor – explicou ela, beijando-o no rosto. – Você está bem? – Não creio. Mal passei dos 30. – Sabe o que acho? Está preocupado. Em que está pensando, Richie? Rápido. A primeira coisa que vier à sua mente. – Lindsay. – Darei um milhão de dólares se retirar o que falou – comentou, afastando-se e fitando o teto. Será que ele estava apaixonado por Lindsay? Ou será que ser o parceiro dela era o mesmo que estar apaixonado, mas de uma forma diferente? Uma coisa ela sabia: Rich e Lindsay eram unidos. E voltava a se questionar se o relacionamento dos dois era um aviso de que os trilhos estavam fora do lugar e ela deveria deixar o trem. – Desculpe, não me expressei bem – explicou, puxando-a de volta. – Não estava pensando em Lindsay dessa forma. Mas no Assassino do Batom fazendo-a se despir. E em como poderia tê-la matado a qualquer hora. Sou o parceiro dela e fracassei por completo. Cindy suspirou e se deixou relaxar nos braços de Rich, acariciando a sua barriga lisa com as pontas dos dedos. – Fez tudo o que podia. No entanto, sei o que quer dizer. Ela piscou para mim do lado de fora do edifício do Chronicle quando estava a caminho do encontro com aquele maluco. Garanti a mim mesma que ela ficaria bem, mas não havia jeito de saber isso. A sensação foi de total impotência. – Isso mesmo. – Eu queria fazer alguma coisa, mas não era possível. Rich beijou a palma da sua mão. – Sou sempre surpreendido pela bravura das mulheres – revelou. – Como você, Cin. Trabalhando na seção policial. Morando aqui. Ela reetiu sobre a parte “morando aqui” . Mudara-se para aquele apartamento ensolarado no condomínio Blakely Arms, um ótimo edifício em um bairro da periferia, e só soube que alguém estava matando os moradores após a chegada da mobília. – Estou assustada o tempo todo – confessou. – O que você considera bravura sou eu resistindo ao meu próprio medo de tudo. É assim que cuido de mim. – É o que quer? Cuidar de si mesma? – Claro. Entretanto, não significa que quero ficar sozinha. – Sério?
Puxou-a para perto e ela inclinou a cabeça para trás de modo a olhar o seu rosto deslumbrante. Ela gostava tanto dele que chegava quase a doer. – Devemos dormir juntos, sabe? – sugeriu Rich. – Eu me sentiria melhor se você não casse sozinha aqui à noite. – Quer se mudar para cá e me proteger? – Espere, espere. O que quero dizer é: estou louco por você. Namorar, e assim por diante: tudo é maravilhoso. Quero estar com você. Quero mais. – Você quer? Ele abriu um largo sorriso. – Palavra de escoteiro. Quero, com certeza.
capítulo 71
OS BRAÇOS DE SARAH ARDIAM como se estivessem pegando fogo, só que pior. Ela precisava se manter pendurada, estática, na barra de flexão, até os músculos se recusarem a obedecer por mais tempo. Caiu em pé e sacudiu as mãos por cinco minutos. Depois, dirigiu-se à sala. Acomodou-se na cadeira reclinável de Trevor, horrorosa, mas bastante confortável. Abriu o notebook e corrigia provas, escutando em parte a televisão, quando ouviu Kathryn Winstead, a repórter policial mais atraente da TV, travar conversa com Marcus Dowling em uma entrevista emotiva. Ao olhar para aquele homem, Sarah sentiu puro ódio. Ainda assim, aumentou o som e analisou o quanto o monstro mudara. Deixara a barba crescer e perdera peso. Embora parecesse abatido, ainda apresentava a formidável presença de um astro de cinema enquanto desempenhava ao máximo o papel de marido de luto. A voz de Dowling falhou e ele até gaguejou enquanto contava a Kathryn que se sentia “vazio por dentro”. – Acordo ensopado de suor – revelou à repórter. – Por um mo-mo-momento, acho que tive um pesadelo e viro para onde Casey deveria estar deitada ao meu lado. Então, tudo volta e lembro dela me cha-chamando: “Marc, tem alguém no quarto!” Em seguida, o barulho dos tiros. Sarah pegou o controle e retrocedeu o programa pelo aparelho de DVR. O que ele falou? Voltou a escutar quando Dowling citou Casey chamando por ele. Pelo que sabia, ele nunca dissera publicamente as últimas palavras da mulher. O engraçado era que ela havia chamado o marido. Isso era verdade. Mas nada de tiros. Sarah colocou o notebook de lado e foi à cozinha. Lavou o rosto sob a torneira, pegou uma garrafa de chá na geladeira e tomou um gole. Aquele astro de cinema tinha uma baita coragem. Estava certo de que ela não se apresentaria porque ninguém acreditaria se zesse isso. Seria a palavra de Marcus Dowling contra a sua... uma ladra. Retrocedeu a entrevista e viu a simpática Kathryn Winstead perguntar a Dowling: – E a polícia ainda não tem nenhum suspeito? – Não tenho notícias há diversos dias e, enquanto isso, o assassino de Casey continua aí fora com uma fortuna em joias. Ela desligou a TV. Sarah seria uma espécie de Sansão e Dalila. “Terror” não estaria em casa por duas horas e, se usasse esse tempo de forma eciente, seria capaz de cortar os cabelos de Marcus Dowling e tirar o seu poder. Não podia permitir que ele escapasse sem ser punido por aquele assassinato.
capítulo 72
SARAH SE DIRIGIU À CABINE telefônica em Fisherman’s Wharf, uma das maiores atrações turísticas no estado da Califórnia. Famílias e bandos de alunos se dirigiam às lojas e aos restaurantes no Cannery Shopping. Ninguém reparou na jovem mulher, de bermuda larga e um moletom rosa com os dizeres “A vida é boa”, colocando moedas de 25 centavos no telefone público. Discou um número. O operador atendeu e transferiu a chamada para a delegacia de polícia do distrito sul. Sarah pediu para entrar em contato com um inspetor da Homicídios. – O que devo dizer com relação ao assunto? – Casey Dowling – respondeu. – Sei quem atirou nela. – Um momento, por favor. A sargento Boxer está terminando outra ligação. Sarah pensou que a chamada do telefone público poderia ser rastreada. No entanto, seria breve e ela poderia se misturar à multidão antes que algum policial se aproximasse. – Sargento Boxer! – atendeu uma voz. – Sou a pessoa que roubou a residência dos Dowlings. Não atirei em Casey, mas sei quem fez isso. – Qual é o seu nome? – Não posso dizer. – Agora temos um impasse. – Alô? Está me ouvindo? – Ela colocou outra moeda de 25 centavos. – Conte alguma coisa em que eu possa acreditar ou vou desligar. – Escute – pediu Sarah –, estou dizendo a verdade. Sou a ladra. Saqueava o cofre no closet quando o casal entrou no quarto. Os dois brigaram, mas zeram as pazes logo em seguida e transaram. Esperei cerca de vinte minutos até Marcus Dowling roncar. Eu estava caindo fora pela janela quando derrubei um aparador. Ninguém sabe sobre o aparador, certo? Essa prova é suficiente? Porque ele continua afirmando que Hello Kitty matou Casey e eu não fiz isso. – Ok. Estou ouvindo você, mas preciso mais do que a palavra de um anônimo. Venha e faça uma declaração. Depois, terei como ajudá-la a sair dessa enrascada para que possamos pegar seja quem for que matou a Sra. Casey. Sarah quase podia ver aquela policial sinalizando para alguém rastrear o telefonema. Já estivera muito tempo na linha. – Está brincando? Ir aí para ser presa? – Não tem que vir. Irei até você. Diga o lugar e podemos conversar. – Marcus Dowling matou a mulher. Já conversamos. Ligação encerrada.
capítulo 73
CONKLIN E EU DESLIGAMOS OS telefones ao mesmo tempo, olhando um para o outro por cima do muro de flores em minha mesa. – Era a Hello Kitty – assegurou o meu parceiro. – Isso foi real. – Por que não zemos um exame de resíduos de disparo de arma de fogo em Dowling? – perguntei. – Porque, merda, não pedi – confessou. – Eu também estava lá – lembrei-o, jogando na lata de lixo o sanduíche velho de pão de centeio com atum. – Assim como Jacobi. Todos nós desperdiçamos a chance. – Recebemos ordens – ressaltou. – Lidar com o astro de cinema com luvas de pelica. Além do mais, Dowling estava tendo um ataque cardíaco, lembra? – Um suposto ataque cardíaco – murmurei. – E, a propósito, ele tomou uma chuveirada. Agora sabemos por quê. Para lavar o resíduo do disparo. Prendi o cabelo em um rabo de cavalo. Na última vez que me senti incompetente assim, eu era uma novata. Na noite anterior, Tracchio divulgara um comunicado relatando que o Assassino do Batom não aparecera no local para pegar o dinheiro e que a carta publicada no Chronicle tinha sido uma farsa. Cindy escrevera um editorial que saíra no jornal daquela manhã. Em um estilo livre, ela chamara o assassino de covarde e armara que eu era uma heroína. Desde então, um carregamento de ores enchera a sala da Central. Não me sentia uma heroína. Sentia como se tivesse feito o meu melhor e, mesmo assim, não fora suficiente. Tendo terminado o trabalho na Golden Gate Avenue, o FBI atuava agora no caso do Assassino do Batom junto com um contato da Central, nosso conciliador e reserva, Jackson Brady. Ele era perfeito para o trabalho, recém-chegado de férias, entusiasmado para provar a Tracchio o seu valor. Não poderia ter idealizado uma demostração melhor dos seus anos de experiência no Departamento de Polícia de Miami. E, sem brincadeira, esperava que o FBI e ele tivessem novas ideias para capturar aquele psicopata porque eu tinha certeza de que, se não fosse detido, voltaria a matar. Nesse meio-tempo, Jacobi me pressionava para encerrar o caso Dowling. Por nossa sanidade e autoestima, Conklin e eu tínhamos que fazer isso. O telefonema de Kitty era a primeira e única oportunidade desde que Casey Dowling fora baleada duas semanas antes. Enm tínhamos algo com que trabalhar. – Dowling nos contou que teve relações sexuais com a mulher antes do jantar, certo? – comentei com o meu parceiro. – Agora, Kitty menciona que o casal fez isso enquanto ela saqueava o cofre, o que seria depois do jantar. Logo, se a mulher ao telefone estava falando a verdade, sabemos o
motivo das roupas dele terem dado negativo para a pólvora e não sinalizarem que ele fez o disparo. Estava nu quando atirou na mulher. – Desde o início você achou que Dowling tinha feito isso – lembrou Conklin, descontente. – Não importa. Pisei na bola.
capítulo 74
ATRAVESSEI O ANDAR ATÉ O escritório de Jacobi e permaneci à soleira da porta. Ele ergueu o olhar, o rosto sombrio, terno cinza, humor negro. Contei sobre o telefonema de Hello Kitty. – Achamos a história plausível – observei. – Rastrearam a chamada? – Warren, isso não vai nos levar a nada. Ouvi uma moeda caindo. Ela estava em um telefone público. – Apenas faça isso, ok? – resmungou. – O que há de errado com você? – Não sei – respondi, erguendo as mãos. – Estupidez, acho. Voltei para a minha mesa. Conklin me olhava, balançando-se na cadeira. Quando estalei os dedos e chamei o seu nome, ele comentou: – Ok, sabemos o que fazer: pressionar Marcus Dowling. Ele não estará esperando por isso. O telefone tocou. – Linha um, sargento – comunicou Brenda. – Aquela mulher de novo. Afirma que a ligação caiu. Fixei o olhar no botão vermelho piscando. Em seguida, apertei-o e me identifiquei: – Sargento Boxer. – Sargento, não me descarte por me considerar uma excêntrica. Estou sendo acusada de assassinato e isso é mentira. Sabe o que foi roubado dos Dowlings? – Tenho uma lista. – Bom. Então, conra. Peguei dois colares longos de diamantes, três pulseiras de saras e diamantes, um broche de diamante grande no formato de um crisântemo, além de outras coisas, incluindo um anel pomposo com uma pedra amarela grande. – O diamante amarelo. Houve um silêncio. – É um diamante? – O que vou fazer com essa informação, Kitty? Preciso da sua declaração ou não tenho nada. – A senhora é uma inspetora da Homicídios. Faça o seu trabalho e me deixe fora disso – replicou, voltando a desligar.
capítulo 75
YUKI ESTAVA ENTRANDO NA garagem subterrânea do seu edifício quando o celular tocou. No identicador de chamadas lia-se “Sue Emdin” , a mulher que Casey Dowling e ela tinham conhecido na faculdade, em Boalt Law. Sue era do tipo durona, no entanto sua voz estava tensa a ponto de falhar quando Yuki atendeu. – Sue, o que há de errado? – Muita coisa. Vi Marcus jantando com uma garota no Rigoletto’s. É um pequeno restaurante italiano em Chestnut: pouca luz, comida caseira e não consta no guia Zagat. Os dois estavam no canto de trás, rindo e se acariciando. Não era um jantar de consolo. Não a meu ver, de jeito nenhum. Devagar, Yuki entrou com o carro na vaga. Desligou o motor, saiu e foi direto para o elevador. Sue dava o relatório completo, incluindo comentários. – Gostaria que você tivesse visto essa garota. Saia curta justa, decote em V até o umbigo, mostrando os maravilhosos peitos, grandes e saltitantes. – Dowling teve um encontro, é isso que está dizendo? – Com direito a sobremesa com creme chantilly por cima. Meu marido me mataria por fazer isso. Diria que não é da minha conta, mas depois do funeral? Depois de tudo que Marcus chorou publicamente? Começo a achar que foi tudo uma representação e, como jurei que ele não fez isso, tenho me preocupado. E se ele matou Casey e eu o defendi? Deus... Fico mal só de pensar nisso. – Tudo bem, eu entendo. Apesar de o encontro ser inadequado, isso não o torna um criminoso. – Não tenho tanta certeza. – Como assim, Sue? – perguntou Yuki, a voz subindo uma oitava. – O que quer dizer? – Tenho seguido Marcus desde o funeral, o tempo todo. Precisava fazer isso. Esperava que fosse o homem que eu achava que ele era. Entretanto, outra parte de mim armava que ele podia ser o culpado pela morte de Casey e que eu estava tão enfeitiçada que não percebera. Ela me contara que acreditava que o marido andava se encontrando com alguém, lembra? Ah, meu Deus, não posso aceitar. Fale que estou maluca e me tire desse tormento. Ou, então, faça alguma coisa pela nossa amiga. Yuki fazia malabarismos com a bolsa e a pasta. O que arranjara ao conversar com Sue Emdin? As mãos tremiam ao tirar as chaves de dentro da bolsa e abrir a porta da frente. – Onde você está agora? – Diante da casa de Marcus. Estou aqui há mais de uma hora. Os dois ainda estão juntos e, pelo visto, a gostosona não vai para casa. Não esta noite, de jeito nenhum. – E o que isso prova? – Prova que toda a conversa de Marcus sobre como está deprimido por causa da perda de Casey é besteira. Se ele está mentindo com relação a isso, signica que poderia estar mentindo a respeito de tudo.
– Qual o modelo do carro que você está dirigindo? – Um Lexus dourado. Estacionei do outro lado da rua, em frente à casa dele. – Ninguém notaria um carro como esse. – O bairro aqui é cheio deles. Yuki colocou a pasta no chão, livrou-se dos sapatos de salto e procurou uns rasteiros. Estava tão maluca quanto Sue. – Chegarei em vinte minutos – assegurou.
capítulo 76
MINHA TERCEIRA XÍCARA DE café ainda estava quente quando Yuki passou pelo portão na sala da Central às nove e meia da manhã e seguiu em linha reta ao local onde eu estava sentada, atrás da barricada de flores. – É possível que eu tenha alguma coisa sobre Marcus Dowling. Conklin se levantou e cedeu a cadeira. – Você tem a nossa total atenção – disse ele. Ela nos contou atabalhoadamente que a amiga de faculdade de Casey, Sue Emdin, andara espionando Dowling por mais de uma semana. E, na noite anterior, vira-o em um restaurante bem reservado, jantando com uma mulher que era mais do que uma amiga. – Sue os seguiu após o jantar e me ligou para contar tudo. Eu fui ao seu encontro. – Meu Deus, Yuki... – Apenas escutem, ok? Nenhuma lei foi violada. Por volta das onze da noite passada, Dowling e essa mulher saíram da casa, agarrados. Ela tem 20 e muitos ou 30 e poucos anos, corpo esculpido com pilates, cabelo comprido, uma modelo de capa de revista. Totalmente deslumbrante. – Como se fosse uma namorada – resumiu Conklin. – Era o que parecia. Dowling ajudou a loura a entrar no carro dele e, em seguida, os dois foram embora. – E vocês os seguiram? – perguntei. – Bem, sim. – Sério – comentei, atirando a esferográca para o ar –, isso foi loucura, além de perigoso, e você tem consciência. Todo mundo quer ser policial e isso me deixa pasma. – É um trabalho glamoroso, certo? – ironizou Yuki, acenando com a mão para indicar o esplendor da nossa baia cinzenta e encardida. – Então, vocês estavam em frente à casa dele. O que aconteceu depois? – Seguimos o carro de Dowling até Cow Hollow – respondeu Yuki. – O carro parou e precisamos passar por ele, claro. Demos uma volta pelo quarteirão e, ao retornarmos, vi a nossa deslumbrante modelo caminhando sozinha até uma casa maravilhosa. Ele permaneceu no carro. Não foi embora até a namorada entrar. A questão é: não a levou até a porta. Era óbvio que não queria ser visto. Yuki fez uma pausa para recuperar o fôlego e tirou um cartão de visita do bolso, virando-o para que eu visse o endereço anotado no verso. – Temos os registros telefônicos dele – avisou Conklin. Digitei no computador o endereço dado por Yuki. Logo apareceu um nome e um número de telefone. – Graeme Henley – informei a Conklin e li o número para ele. Meu parceiro rolava a tela do seu computador. – Está aqui. Dowling ligou para esse número três ou quatro vezes por dia durante todo o último
mês. – É provável que Graeme Henley não seja uma mulher – salientei. – Então, a namorada é casada – concluiu Yuki. – Foi por isso que Marcus cou no carro. Lindsay, Casey achava que o marido estava saindo com alguém. Se ele estava, se era sério, se não pudesse se livrar da mulher... a namorada poderia ser um motivo. – Há mais uma coisa – revelei. – Tenho uma testemunha que garante que Casey estava viva quando Hello Kitty deixou a residência dos Dowlings. – Você tem uma declaração assinada? – É uma fonte anônima, mas verossímil. – Hummm! – exclamou Yuki. – Você tem uma fonte anônima, mas verossímil, que garante que Casey estava viva quando Kitty deixou a residência dos Dowlings. Quem poderia ser? Oh, meu Deus! Kitty ligou? – Sim. E me falou coisas que apenas ela poderia saber. Temos causa provável para uma autorização de escuta telefônica? – É um desao. Tentarei convencer Parisi. Não estou prometendo nada. No entanto, darei tudo de mim.
capítulo 77
YUKI CONSEGUIU. Uma autorização assinada para uma escuta telefônica estava em minhas mãos por volta da hora do almoço no dia seguinte. E, em pouco tempo, havia um grampo telefônico em um circuito a alguns quarteirões da residência de Marcus Dowling. A partir das três da tarde, os telefonemas dele passaram a ser encaminhados para uma pequena sala sem janelas no quarto andar da Central. O recinto estava vazio, exceto por duas mesas e cadeiras velhas, armários de arquivos e uma lista telefônica desatualizada. Conklin e eu levamos café e nos instalamos atrás da porta trancada. Estava animada, beirando o otimismo. As chances de que ele dissesse algo que o incriminasse eram poucas, mas existiam. Pelas cinco horas seguintes, meu parceiro e eu monitoramos as ligações recebidas e feitas por Dowling. Ele era um sujeito ocupado, recebendo scripts de Hollywood todos os dias, tagarelando com o seu pessoal: agente, advogado, consultor de investimentos, gerente, relações-públicas, corretor e, por fim, sua namorada. A conversa com Caroline Henley era entrelaçada de “queridos” e “docinhos” .Planejavam jantar juntos na semana seguinte, quando Graeme estivesse em Nova York, numa viagem de negócios. Quando eu estava certa de que iria terminar, a conversa ficou interessante. – Você não tem ideia de como isso é, Marc. Graeme sabe que algo está errado e agora ele quer que a gente faça terapia de casal. – Entendo muito bem, Caroline. Você precisa se esquivar dele. Esperamos por dois longos anos, querida. Mais alguns meses não terão importância na situação. – Você sempre diz isso. – Três ou quatro meses mais, é tudo – insistiu Dowling. – Seja paciente. Eu prometi que tudo dará certo. Precisamos que o público se canse da história. Depois, ficaremos bem. Conklin abriu um sorriso. – Dois anos. Ele está saindo com ela há dois anos. Não se trata de uma prova inquestionável, mas é alguma coisa.
capítulo 78
DO ESCRITÓRIO DE YUKI, telefonei para Jacobi e contei que Marcus Dowling tinha um relacionamento há dois anos com uma mulher. Mas não a sua mulher. – Vá pegá-los – ordenou. Conklin e eu dirigimos até a residência de Caroline Henley, uma moderna casa de dois andares a poucos quarteirões do bairro Presidio. Caroline veio à porta usando o cabelo louro em uma trança comprida, uma malha de ginástica preta sob uma camisa masculina de listras azuis, um anel com um diamante grande perto da aliança. Atrás dela, dois garotos brincavam com caminhõezinhos na sala de estar. Apresentei a mim e ao meu parceiro e perguntei a Caroline se podíamos entrar para conversar. Ela nos deixou passar. Conklin já provou, de forma consistente, que é capaz de fazer qualquer mulher confessar tudo. Assim, uma vez instalados com certa comodidade, passei a palavra a ele. – Marcus Dowling afirma que vocês dois são grandes amigos. – Duvido. Só o encontrei em alguns coquetéis. – Sra. Henley, sabemos sobre o relacionamento de vocês – revelou o meu parceiro. – Só precisamos que a senhora verique o paradeiro dele em certas ocasiões. Não temos nenhum interesse em causar problemas. Ou – acrescentou, argutamente – podemos voltar quando o seu marido estiver em casa. – Não, por favor, não façam isso – suplicou ela. Caroline nos pediu para esperar. Abaixou-se para falar com os lhos. A seguir, pegou-os pelas mãozinhas, conduziu-os a um quarto e fechou a porta. Ela voltou para onde estava sentada e cruzou as mãos no colo. – Casey o sufocava – confessou. – Ela o esgotava com o seu ciúme e as constantes reclamações. Marc estava esperando pela hora certa. Ele ia se divorciar da mulher e eu ia deixar Graeme. Nós íamos nos casar. Essa é a verdade. Enquanto Caroline Henley contava “a verdade” a Conklin, eu andava pela sala. Havia fotos por todos os lugares: emolduradas nas paredes e em porta-retratos sobre as mesas. Ou Caroline estava no centro de cada foto ou sozinha, usando algo pequeno que exibia a sua silhueta e o seu rosto bonito. Gostaria de saber por que ela estava atraída por um astro de cinema vinte anos mais velho. Talvez a sua vaidade demandasse mais um bom partido do que um “simples” corretor da bolsa de valores. – Se entendi direito, a senhora e Marcus Dowling são amantes há dois anos – concluiu Conklin. Caroline deu a impressão de ficar atordoada quando se deu conta do motivo de estarmos ali. – Esperem um minuto. Acham que ele teve alguma coisa a ver com a morte de Casey? Isso é loucura. Eu teria sabido. Marc não é capaz disso... É?
Ela cruzou as mãos sobre a boca e, em seguida, as abaixou. Quase parecia lisonjeada ao perguntar: – Acha que ele matou Casey por mim? De volta ao carro, comentei com o meu parceiro: – Então, talvez ele quisesse sair do casamento, mas não tivesse coragem de contar a Casey. Aí, Kitty aparece no seu quarto... Dowling não poderia ter planejado melhor. – Ainda há outra forma de olhar isso – salientou ele. – O divórcio é caro. Mas se você se dá bem e escapa impune, o assassinato é muito barato.
capítulo 79
SARAH WELLS ESTAVA PRONTA PARA o seu trabalho noturno: roupas e sapatos pretos, carro apontado na direção de Pacic Heights. Ela ligou a seta e tomou a Divisadero quando o sinal cou vermelho. Houve uma cacofonia de buzinas e freios chiando. Foi por pouco que não colidiu com uma caminhonete cheia de crianças. Oh, meu Deus. Foco, Sarah! Ela devia estar pensando sobre o serviço que teria pela frente. No entanto, sua mente continuava retrocedendo a horas antes. Via as manchas roxas na pele suave dos braços de Heidi, a marca da mordida ainda nítida no pescoço. Heidi tentara remover a evidência do ataque da “Besta”. – Ele está fora de controle – explicou. – Mas não tem culpa. – De quem é a culpa? Sua? – É por causa do que ele passou no Iraque. – O motivo não faz diferença nenhuma – repreendera Sarah. – Você não tem que aceitar isso. Não quisera gritar com Heidi, mas estava zangada e assustada com o que Peter Gordon poderia fazer. Heidi precisava fugir da Besta para o próprio bem e o das crianças. – Eu sei, eu sei – bradara Heidi, colocando a cabeça em um dos ombros de Sarah. – Isso não pode continuar. Não, isso não pode continuar e não continuará, jurou Sarah a si mesma enquanto rodava pela Bush Street. Ela iria se encontrar com Lynnette Green, a viúva de Maury, na semana seguinte. Lynnette garantira que compraria as joias e as venderia. Não podia mais esperar: precisava do dinheiro. Ela virou na Steiner e, de novo, na Califórnia. Em seguida, parou o carro no estacionamento de um supermercado. Levou alguns minutos para se certicar de que tinha todo o equipamento. Guardou a carteira no porta-luvas, saiu do carro e o trancou. Agora, concentrava-se em Diana King, o alvo daquela noite. Ela era uma lantropa viúva, uma gura de grande importância no circuito da caridade, fotografada com frequência. Além disso, escreviam sempre a seu respeito nas revistas de moda e no Chronicle. De acordo com um site, a Sra. Diana estava oferecendo uma pequena festa de noivado para o lho e a futura nora naquela noite em sua casa creme de estilo vitoriano, restaurada de maneira esplêndida, assim como as suas joias clássicas: Tiffany, Van Cleef, Harry Winston. Se Sarah conseguisse roubá-las, Lynnette Green as compraria e as faria desaparecer. E, então, tudo estaria acabado. Aquele serviço seria o grand finale, o último saque. Meia dúzia de carros estavam estacionados em frente à residência dos Kings quando Sarah se aproximou, nos seus calçados de escalada com sola de borracha. Ela rastejou para adentrar o jardim lateral, que se encontrava fora do alcance da visão dos vizinhos por causa de uma alta sebe de
alfena. Depois, espreitou por uma das janelas térreas e viu os convidados à mesa de jantar, bastante envolvidos em suas conversas. A pulsação acelerou enquanto ela se preparava para a escalada. Para sua sorte, havia um aparelho de ar-condicionado no primeiro andar colocado de forma diagonal embaixo do quarto principal. Prometeu a si mesma que levaria apenas quatro minutos dentro da casa. Tudo o que agarrasse seria suficiente. Usando o ar-condicionado como ponto de apoio, ela passou pela janela aberta do quarto e entrou na casa. Tinha sido muito fácil.
capítulo 80
NO QUARTO DE DIANA KING, que cheirava a rosas, Sarah procurou qualquer coisa que pudesse impedir a sua saída rápida. Ela atravessou o cômodo e fechou a porta almofadada que levava ao corredor. A seguir, acendeu a lanterna presa ao gorro. O aposento tinha teto inclinado e uma janela de frente para a rua. Ela usou a lanterna para fazer uma panorâmica sobre a mobília de estilo antigo e o papel de parede de rosas. Depois, atingiu a cômoda com o feixe de luz. Estava pronta para vasculhar as gavetas quando viu uma sombra vindo na sua direção com uma lanterna. “Ai, meu Deus!” , exclamou. Então, percebeu que era o próprio reflexo no espelho. Calma, Sarah. Ela voltou a perscrutar o quarto e detectou um brilho dourado fosco em cima da penteadeira de cerejeira. Aproximou-se e viu um aglomerado de joias. Sarah já estava inundada pela adrenalina. Ela abriu a pequena bolsa e, com uma das mãos trêmulas, arrastou as joias lá para dentro. Algumas peças, um anel e um brinco, escaparam, caindo no chão. Agarrou-as antes que parassem de rolar. Em seguida, deu uma olhadela no relógio. Terminara o serviço em apenas três minutos. Um recorde. Agora era hora de ir. Foi até a janela e saiu, mais uma vez usando o ar-condicionado como ponto de apoio. Sentindo certa tonteira, andou com dificuldade até a rua pouco iluminada. Êxito. Estava fora. Arrancou o gorro com a lanterna e o colocou na bolsa assim que virou à direita na calçada, encaminhando-se para a próxima rua. De repente, parou. Parabenizara a si mesma depressa demais. Sirenes gritavam estridentes. Ela viu uma viatura policial dobrar a esquina, vindo na sua direção. Como havia sido descoberta, ou mesmo se a polícia estava vindo por causa dela, era algo irrelevante. Sarah tinha em mãos centenas de milhares de dólares em joias, além de uma bolsa repleta de ferramentas usadas por especialistas em arrombamentos. Não podia ser capturada. Desatando a correr, mudou o seu caminho e pegou um atalho pelo quintal dos fundos de uma casa a oeste da residência da Sra. Diana. Jogou a bolsa das joias em um vão de janela de porão, memorizando o local, e seguiu em frente. Contornou o que parecia ser o equipamento de um barracão e atirou as ferramentas em um saco de entulho. Ainda correndo, livrou-se do gorro e das luvas, jogando-os embaixo de uma sebe. Ouviu a sirene cessar a apenas alguns metros e alguém bradou: – Pare! É a polícia. Sarah não conseguia enxergar nada, logo agachou-se e cou encostada à parede áspera de uma casa. Luzes de lanternas varreram o quintal, mas não chegaram perto de onde ela estava. Rádios
emitiam sons agudos e os policiais chamavam uns aos outros, tentando adivinhar por onde ela tinha ido. Durante esses minutos intermináveis, grudou-se à parede, lutando contra o desejo de correr. Quando as vozes desapareceram, Sarah saiu de forma brusca pela diagonal, cruzando um quintal cheio de brinquedos, até um portão de metal, que ela abriu, fazendo tilintar o trinco. Um cachorro grande latiu atrás de uma porta. Luzes de segurança se acenderam. Ela contornou a área de alcance das luzes, correndo pelas sombras até o outro quintal, onde tropeçou em um carrinho de jardim, caindo com força suciente para que o sapato direito voasse do pé. No escuro, tateou em busca do sapato, mas não conseguiu encontrá-lo. Uma voz feminina estridente deu um berro: – Artie, acho que tem alguém lá fora! Sarah saltou uma cerca e disparou, despindo o suéter preto enquanto corria. Ao sair das sombras para uma rua desconhecida, puxou a bainha da camiseta verde-neon para fora da calça. Sentindo náuseas e desesperada, tirou o outro sapato e as meias, deixando-os em uma lata de lixo à beira de uma entrada de garagem. Depois, rumou para o norte, em um passo constante, na direção do seu carro. Foi quando se deu conta, tarde demais, de que as chaves estavam na bolsa de ferramentas. Além disso, trancara a carteira no porta-luvas. Estava descalça e a quilômetros de casa sem um centavo. E agora?
capítulo 81
QUANDO AVISTOU AS VIDRAÇAS iluminadas do supermercado, Sarah ouviu um carro se aproximar por trás na rua escura. O veículo avançava devagar, mantendo o ritmo igual ao dela, os faróis alongando a sua silhueta na calçada. Seriam os policiais? Com metade da mente dominada pelo medo, ela lutou contra a compulsão de se virar em direção ao carro. Seu rosto mostraria pânico. E se fossem os policiais e a parassem para interrogá-la? Ela estava em apuros. Quem seria? Uma buzina soou e as rodas guincharam quando o veículo atrás dela cantou pneu e passou voando, um utilitário prata velho com um imbecil gritando para fora da janela: – Que bundinha linda! Sarah baixou a cabeça enquanto a algazarra das risadas se afastava. Seu automómel continuava onde ela o deixara. E dava para ver, espiando pelas vidraças da frente do supermercado, que ele estava quase vazio. Um garoto ruivo fechava a última caixa registradora aberta. Ele ergueu o olhar quando Sarah se aproximou. – Tranquei o carro com a chave dentro. Poderia me emprestar o seu telefone? – explicou ela. – Há um telefone público lá fora – indicou, levantando um polegar por cima de um dos ombros. Em seguida, sua expressão mudou. – Srta. Sarah, sou Mark Ogrodnick. Fui seu aluno cinco anos atrás. O coração de Sarah voltou a bater forte. De todos os estabelecimentos no mundo, como ela fora parar logo no único lugar em Pacific Heights onde alguém a conhecia? – Mark, que bom ver você. Posso pegar o seu telefone emprestado? Preciso ligar para o meu marido. O garoto xou o olhar nos pés descalços dela, no corte sangrando em uma das canelas. Ele abriu e fechou a boca. Depois, tirou o celular do bolso de trás e o entregou a Sarah. Ela agradeceu e caminhou pelo corredor da seção de hortifruti enquanto discava. Escutou o telefone tocar diversas vezes. Por fim, Heidi atendeu. – Sou eu. Estou no Whole Foods. Tranquei o carro com a chave dentro. – Meu, Deus, Sarah! – exclamou Heidi. – Não posso ir. As crianças estão dormindo. – Onde está a Besta? – Ele saiu, mas pode chegar a qualquer minuto. Desculpe. – Tudo bem. Amo você. Irei vê-la em breve. – Também amo você. Mark olhou para cima e apagou a luz neon na vitrine da frente. Sarah não tinha escolha. Discou o número de casa e, pela primeira vez, rezou para que Trevor atendesse.
– Que merda, onde você está? – indagou o marido rispidamente. Com certa docilidade e obediência, ela contou.
capítulo 82
APÓS TREVOR AMEAÇÁ-LA, EMPURRÁ-LA e exigir os seus direitos de marido, ele acabou com seis cervejas e foi para a cama. Com os olhos vermelhos, dolorida e assustada, Sarah sentou-se na cadeira reclinável, apertando a bolinha de ginástica. Ela exercitava os dedos até carem quase dormentes. Depois, sacudiu as mãos e ligou o notebook. Buscou por “Hello Kitty” nas notícias na internet. Para o seu alívio, não havia nenhuma menção ao roubo à residência de Diana King. Não ainda. Mas Sarah estava preocupada com as ferramentas largadas na fuga, que mais parecera uma corrida de obstáculos por Pacic Height. Será que usara luvas ao trocar a bateria da lâmpada do capacete? Não conseguia se lembrar. Sarah vasculhou a mente à procura de erros. Livrara-se das ferramentas em um saco de lixo perto daquele pequeno local de construção. Talvez, se alguém o encontrasse, pensaria: Legal. Material grátis. Ou talvez o saco de lixo fosse amarrado e apenas levado para o meio-fio. Também refletiu sobre o resto que deixara para trás como uma trilha de migalhas de pão: o suéter, as meias e os sapatos. Pelos objetos em si, não eram nada. Mas se as impressões digitais estivessem na bateria, tudo poderia ser usado para respaldar as acusações contra ela. Senhoras e senhores do júri, se o sapato couber, os senhores devem prendê-la por vinte anos sem possibilidade de liberdade condicional. Sarah gemeu e desceu a barra de rolagem na página de buscas sobre Hello Kitty. Ela leu alguns artigos sobre os roubos, sem um mínimo de prazer. Começou a sentir uma dor de cabeça por trás do olho direito ao explorar o desle de matérias sobre os Dowlings. Os destaques mais recentes eram todos relativos às declarações e entrevistas de Marcus. No entanto, ao visitar sites mais antigos, encontrou reportagens sobre o dia seguinte ao seu serviço naquela residência. Uma manchete chamou a sua atenção: “O Sol do Ceilão é roubado em assalto fatal à mão armada.” Lembrou que a sargento Boxer armara que a pedra amarela era um diamante. Agora parecia que ele tinha um nome. Após clicar no link para o artigo, ela começou a ler.
O Sol do Ceilão, um diamante amarelo de 20 quilates, foi roubado do ator Marcus Dowling e da mulher, Casey Dowling, morta em um assalto à mão armada. Quando vista pela última vez, essa pedra esplendorosa se encontrava em um anel de ouro, trabalhado à mão, com 120 diamantes brancos menores. O Sol tem uma longa história marcada por mortes súbitas. Antiga propriedade de um jovem fazendeiro que a encontrou em uma rua suja no Ceilão, atual Sri Lanka, a pedra passou de indigentes a reis, deixando um rastro de tragédia. Sarah sentiu como se um punho se fechasse ao redor do seu coração. Acessou o link com a história do Sol do Ceilão e tudo o que acontecera às pessoas que o possuíram. Uma longa lista de ruínas financeiras e desgraças, loucuras repentinas, suicídios, homicídios e acidentes mortais. Em sua pesquisa sobre gemas, ela lera a respeito de outras pedras como o Sol. O diamante Koh-iNoor, conhecido como a Montanha de Luz, trouxe grande infortúnio ou um m aos reinados de todos os homens que o possuíram. Maria Antonieta usava o diamante Hope e foi decapitada. Dizia
se que a pedra era acompanhada por uma série de mortes e desventuras. Havia outras gemas que carregavam maldições: o diamante negro Black Orlov, a sara Delhi Roxa, o rubi do Príncipe Negro. E o Sol do Ceilão. Esse último pertencera a Casey Dowling. E agora ela estava morta. Sarah dera aquela pedra a Heidi como um presente romântico, mas e se trouxesse desgraça para a vida dela? Será que realmente sou assim tão supersticiosa? Cruzar os dedos e jogar sal por cima de um dos ombros eram conversa ada. Podia ser fruto do estresse, podia ser algo irracional... não importava. Sarah sentia isso vividamente. E estava bemdocumentado. Pessoas que tinham pedras preciosas amaldiçoadas morreram. Ela precisava pegar de volta aquele diamante de Heidi antes que Pete a machucasse de verdade.
capítulo 83
O CARRO DA POLÍCIA CIRCUNDAVA o estacionamento em Crissy Field como um urubu. O corpo de Sarah se retesou quando ela observou a viatura pelo espelho retrovisor, dando voltas bem devagar pelo local. Perguntava a si mesma se o seu ex-aluno contaria à polícia que ela estivera no supermercado, descalça, esfolada e parecendo assustada. Ela conteve a respiração e mexeu apenas os olhos. Uma viatura passou por ela e continuou pela avenida larga e arborizada. Relaxe, Sarah. Aqueles policiais não poderiam estar procurando você aqui de jeito nenhum. Sem chance! Colocando os óculos de sol, Sarah saiu do carro. Cruzou a trilha até o calçadão da praia e sentouse em um banco vazio de frente para o mar. O tempo estava fechando: as nuvens obscureciam o sol da tarde, mas não evitavam a presença dos windsurfistas, que gritavam um para o outro enquanto trocavam de roupa lá no asfalto. Mesmo fechando o zíper da jaqueta, Sarah sentia frio. Como contar a alguém que se ama que você tem levado uma vida dupla? Pior, uma vida dupla criminosa? Precisava fazer com que Heidi entendesse que ela sabia que roubar era errado e perigoso. No entanto, se com isso conseguisse providenciar os meios para todos escaparem do Terror e da Besta, então poderia lidar bem com o que fizera. Imaginou Heidi olhando-a como se ela fosse uma alienígena, pegando as crianças, voltando para o carro e indo embora. Cruzou os braços sobre o peito e se curvou. A ideia de perdê-la a matava. Se isso acontecesse, tudo o que fizera teria sido em vão. O celular tocou. – Onde você está, Sarah? Estamos no estacionamento. Ela se levantou e acenou. – Sarah! – gritou Sherry. E correu para a amiga da mãe, que a pegou no colo. Heidi abriu um largo sorriso. Ela segurava um chapéu de abas molengas e equilibrava Stevie em um dos quadris, o vento soprando a saia de um jeito que valorizava o seu corpo. Ela era tão bonita... E esse era o menor dos motivos por que Sarah a amava. Aproximando-se, Heidi a abraçou com as crianças no meio. Sherry analisava o rosto de Sarah. – Alguém machucou você? – perguntou a menina. Após colocar a garotinha no chão, ela começou a chorar.
capítulo 84
HEIDI E SARAH ATRAVESSARAM a ponte pitoresca, sobre uma enseada que se estendia da baía até o pequeno e belo parque natural. Sherry pegou Stevie e os dois seguiram em direção ao cais de madeira. Esquecendo-se dos adultos, as crianças catavam pedrinhas para jogar na água. As duas mulheres se sentaram em um banco. – O que está acontecendo, querida? – perguntou Heidi. Sarah olhou para o rosto de Heidi e respondeu: – Não há uma boa maneira de contar... Queria mantê-la fora disso. Não queria envolvê-la de jeito nenhum. – Uau! – exclamou Heidi. – Você está me assustando de verdade. Sarah assentiu e, olhando para os próprios pés, indagou: – Sabe aquele ladrão que chamam de Hello Kitty? – Aquele que matou a mulher de Marcus Dowling, certo? – Sim, bem, não fiz isso. Heidi riu. – Dãããã. Claro que não. Do que está falando? – Heidi, eu sou a Hello Kitty. – Cale a boca! Não é possível! – Por que eu inventaria isso? Acredite em mim, sou a ladra. Deixe que eu coloque tudo para fora e, então, contarei o que quiser saber. – Ok. Mas... tudo bem. – Já contei que o meu avô era um joalheiro – começou Sarah. – No entanto, não contei que ele tinha um amigo que era um receptador. Ouvi muitas histórias quando tinha a idade da Sherry, apenas brincando na loja do meu avô. Ela fez uma pausa antes de continuar: – Assim, quando pensava em como nos tirar daqui, percebi que, de fato, poderia enriquecer rápido. Comecei a me exercitar na parede de escalada na academia, a me fortalecer e a procurar alvos em potencial, escolhendo apenas pessoas que poderiam se recuperar da perda dos bens. A princípio, não tinha certeza de que conseguiria fazer isso. Então, Trevor me violentou. Ela engoliu em seco, forçando a mente a ignorar a lembrança. – Meus primeiros roubos foram... fáceis – confessou. – Levava jeito. Além disso, podia contar com o Terror desmaiado em frente à TV por tempo suficiente para eu fazer o serviço, chegar em casa e ir para a cama antes de ele acordar. Até que houve o assalto na residência dos Dowlings. Heidi parecia chocada, como se tentasse dizer alguma coisa, mas sem conseguir encontrar as palavras certas. Sarah relatou as mentiras ultrajantes de Marcus Dowling e narrou o serviço seguinte, no qual Jim Morley entrara no quarto quando ela colocava as mãos nas joias da sua mulher. E, depois, foi para o roubo de Diana King, o último realizado.
– Eu precisava fazer isso – garantiu Sarah. – Pensei que estava livre. E, aí, um carro de polícia surgiu da escuridão, jogando as luzes em cima de mim e me seguindo. Assim, livrei-me de tudo: das joias, da maior parte da roupa e, em uma jogada brilhante, da bolsa de ferramentas com as chaves do carro dentro. Como você não pôde ir me buscar, tive que telefonar para o Terror. – Desculpe. Ela balançou a cabeça. – Não é culpa sua. Seja como for, ele não gostou da minha explicação ao fato de o carro estar trancado e eu me encontrar do lado de fora, sem as chaves e descalça, em Pacic Heights. Não consegui pensar em uma maldita mentira que não fosse bem ridícula e, óbvio, não podia contar a verdade. Que eu tinha o direito a ter uma vida. – Oh, não, oh, não – murmurava Heidi. – Ele me acusou de sair às escondidas para encontrar um cara. E, em seguida, “ensinou-me uma lição”. Sarah puxou a gola da camisa e virou a cabeça para que Heidi pudesse ver as marcas dos dedos ao redor do próprio pescoço. Heidi levou uma das mãos à boca. – Ai, meu Deus, Sarah! – exclamou. Colocando um dos braços ao redor da mulher que amava, puxou-a para perto. – Às vezes, pergunto a mim mesma se a conheço mesmo.
capítulo 85
O WARMING HUT É UM LOCAL onde é possível comprar lanches leves e lembrancinhas. Localiza-se no cruzamento de Crissy Field e Presidio, onde o braço estendido da ponte Golden Gate atravessa a baía. Sarah e Heidi almoçaram sopa e sanduíches e as crianças se sentaram perto da janela, beliscando a comida e soprando bolhas em suas bebidas. – Há mais uma coisa – alertou Sarah. – A pedra que dei para você. – Deixa eu adivinhar... É roubada. – Sim, e perigosa. É um diamante. Com um nome e uma história esquisita. Heidi puxou a correntinha para poder olhá-la. – Você falou que era outra coisa. Um citrino. – O nome é Sol do Ceilão e vem com uma maldição. – Uma maldição? Isso é loucura, Sarah. – Eu sei, mas as histórias remontam a três séculos. Ei, isso pertencia a Casey Dowling e o lho da mãe do marido a matou. O que mais preciso dizer? Sherry se aproximou, encostando-se em Heidi. – O que é uma maldição, mamãe? – É um desejo de alguma coisa... ruim. – Como se eu desejasse que algo ruim acontecesse ao papai? – Sherry, Stevie está prestes a chorar. Seja uma boa menina e dê um abraço nele. – Não quero que você o use mais – suplicou Sarah depois que a menina foi embora. – Não é seguro, sabe? – Sério? – Heidi riu. – Meu Deus, isso é divertido. – Ela abriu o fecho da correntinha, entregandoa a Sarah. – O Sol do Ceilão, hein? Bem, de qualquer forma, é um pouco vistoso para mim. – Obrigada – agradeceu Sarah. Ela pegou o pingente, guardou-o no bolso da calça e avançou logo para o nal da história: o plano de se encontrar com Lynette Green e transformar as joias em dinheiro vivo para o passo decisivo rumo a uma nova vida com uma nova família. – Tenho algo a dizer, Sarah. – Ok, mas vá com calma. Estou um caco. – Mal consigo acreditar que fez isso. – Você está chocada. Vá em frente e fale. – Estou bastante surpresa, mas muito grata pelo que fez por nós. Você arriscou a própria vida. Se as crianças não estivessem aqui, eu a beijaria. Nunca amei ninguém tanto assim. – Também amo você. – E agora? Acha que a polícia está a sua procura? – É possível – respondeu Sarah, esfregando as têmporas. – Aquele garoto no supermercado... Ele
poderia contar aos policiais. Uma impressão digital poderia aparecer em alguma coisa que abandonei. O tempo está se esgotando. Se vamos pular fora daqui, temos que fazer isso logo. – Eu sei. Somos uma equipe. Tudo o que você fizer tem a ver com todos nós agora. Sarah assentiu e cou quieta por um tempinho enquanto pensava em uma série de opções, cada uma mais assustadora do que a outra... mas todas imprescindíveis. – Sarah? – Sei o que fazer.
capítulo 86
PETER GORDON ESTACIONARA DO lado de fora do shopping, no canto mais afastado, longe das luzes e das câmeras de segurança. Esperava que Heidi e as crianças fossem ao seu encontro. Tenso, mas no controle, ele estava ciente de tudo ao redor: o cheiro das faixas recém-pintadas no estacionamento, os clientes indo em direção aos seus carros, as luzes das lojas, além da noite caindo. A adrenalina correndo nas veias aguçava a sua mente enquanto esperava, sem nada fazer, pelos últimos minutos antes de executar a fase mais crítica do plano. Depois de eliminar os “Três Patetas” , ele iria a pé até a sua casa e se esticaria em frente à TV . Estaria em casa antes mesmo que os policiais fossem chamados. Repassou em sua mente as três pequenas frases da carta para o Chronicle: “Acreditam em mim agora? O preço aumentou para 5 milhões. Não estraguem tudo de novo.” Não poderia ser mais claro do que isso. A carta seria publicada ao mesmo tempo que os policiais e a mídia o consolariam pela terrível perda, culpando o Assassino do Batom por mais três “assassinatos sem sentido”. Era um plano brilhante e ele tinha que dar crédito a si mesmo. Afinal, o plano era dele. Pete ouviu Heidi tagarelando ao longe e a viu no espelho retrovisor, segurando aquele merdinha junto ao corpo e empurrando o carrinho de supermercado. Também escutou outra voz... Merda. Era aquela Angie Weider com cara de cachorro, uma das vizinhas. Ela empurrava o seu pirralho em um carrinho de criança. Heidi despediu-se de Angie e parou o carrinho de compras atrás do carro. – Petey? Ela abriu as portas traseiras e prendeu as crianças com os cintos de segurança. – Petey, poderia pegar as compras para mim? – Sem problemas, princesa. Tudo o que quiser. Ele colocou as luvas, saltou do carro e abriu a tranca do porta-malas, esperando que um veículo se apressasse e saísse do estacionamento. Quando o local cou vazio, ele guardou as compras, organizando-as ao lado do kit de emergência rodoviária e da caixa de sapatos que continha a arma carregada. – Ei, Pete! – gritou Angie Weider. – Vocês deveriam vir jantar conosco. Vamos ao BlueJay Café. – Outra hora, ok? – respondeu, colocando a arma de volta à caixa. Sentiu-se tomado pela fúria, uma onda gigantesca de ódio direcionada àquela cadela que destruíra tanto a oportunidade quanto o álibi de uma só vez. Por um momento, pensou em matá-la. Mas Heidi berraria e Sherry fugiria. Nunca mais seria capaz de assassiná-las sem ser visto. Heidi o ignorou. – Crianças, querem sair para jantar?
Sherry cantou e o merdinha balbuciou, ambos aprovando a ideia. Pete fechou o porta-malas e, mal controlando o mau humor, sugeriu: – Vão sem mim. O jogo vai começar em dez minutos. – Apenas lembre-se de guardar o sorvete. Eu cuidarei do resto quando chegar em casa – falou Heidi. Ela pegou o bebê da cadeirinha e Sherry saltou para o furgão dos Weiders. Uma buzinada e todos se foram. Pete engrenou a marcha a ré e recuou. Mudança de planos. Ele não ia para casa depois de tudo isso.
capítulo 87
JÁ SE PASSARA UMA SEMANA desde que eu parara o trânsito na ponte Golden Gate com a primeira página do Chronicle agarrada ao peito, dez dias desde que aquele psicopata assassinara Elaine Marone e seu bebê. Eu ainda era capaz de sentir o peso do celular pendurado ao pescoço, podia ouvir as suas zombarias e os seus insultos enquanto dava ordens para que eu me desarmasse e me despisse no caminho para a entrega do dinheiro, que acabou não acontecendo. Eu me sentia aliviada pelo fato de o Assassino do Batom não estar mais nas nossas mãos. O caso Dowling esquentava. Tínhamos uma transcrição de escuta telefônica que poderia levar à causa provável. E, como provas, um calçado de escalada, um suéter da Banana Republic, além de uma bolsa de ferramentas que, possivelmente, pertenciam a Hello Kitty. Apreciava a sensação de, por m, estar progredindo. Assim, não quei nem um pouco feliz quando Jackson Brady me telefonou às seis daquela noite, informando que o FBI requisitara a minha colaboração em um triplo homicídio. Vinte minutos depois do telefonema de Brady, Conklin e eu subíamos a rampa de um edifíciogaragem. Eram diversos andares de concreto em uma subida em espiral, que se conectavam por passarelas ao Píer 39, um shopping gigante repleto de restaurantes e lojas, o lugar perfeito para desaparecer após assassinatos sangrentos. Brady nos apresentou ao agente especial Dic Benbow, um homem de cerca de 40 anos, ombros largos e corte de cabelo curtinho, além de sapatos brilhando de tão bem-engraxados. Benbow nos cumprimentou com um aperto de mãos. Em seguida, conduziu-nos à cena, que agora estava sendo analisada por uma dúzia de agentes federais. – Sargento Boxer, ninguém conhece esse maníaco como você – assegurou Benbow. – Quero saber o que vê. O que é igual? O que é diferente? Qual é a sua teoria sobre o caso? Senti um arrepio e todos os pelos do meu corpo caram eriçados à medida que nos aproximávamos de uma jovem negra deitada sob as luzes uorescentes ofuscantes, seus olhos bem abertos e um buraco de bala no centro da testa. Ela vestia roupas caras: uma saia longa e estampada de grife; uma jaqueta azul-marinho; uma blusa branca com pregas e botões elegantes. Parecia que estava visitando o local, não apenas indo ao shopping. A 2 metros adiante, um carrinho de bebê duplo, virado para baixo. Os gêmeos estavam ocultos, mas dava para avistar duas poças de sangue, um pezinho com um sapatinho branco à esquerda, uma mão de outra criancinha estendida à direita, uma chupeta a apenas alguns centímetros de distância. Deve ter se esticado para pegá-la antes de morrer. – Veronica Williams e os lhos, Tally e Van. Eles são de Los Angeles e visitavam a cidade. Já comunicamos à família – relatou Benbow. Contive um grito de indignação ao observar de perto os cadáveres das vítimas números sete, oito e
nove. Não se tratava apenas de assassinato. Era um massacre. Sentindo-me impotente, tei Benbow. A seguir, fui até o Blazer alugado. A porta do lado do motorista estava aberta e, no chão, uma bolsa preta de couro bem cara. Do lado de fora, uma carteira, uma bolsinha de maquiagem aberta, uma chupeta, uma pasta com passagens aéreas, aspirina, um celular, além de pacotes de toalhinhas umedecidas. Eu me inclinei para dentro do veículo. A luz que atravessava o vidro delineava a inscrição em batom. Em vez de três letras misteriosas, havia cinco palavras surpreendentes. MULHERES E CRIANÇAS PRIMEIRO. ENTENDERAM? Não, não entendi. Não entendi nada. Ele era inteligente e esperto e odiava mulheres e crianças, isso eu compreendia. No entanto, o que o impulsionava? Como cometera nove homicídios sem ser notado? Como o pegaríamos? Ou será que o caso do Assassino do Batom se tornaria um daqueles sem solução que assombravam os policiais até os seus túmulos? – Sem dúvida é o mesmo atirador. Ele está explicando em detalhes a sigla. É a sua assinatura. Não tenho nenhuma teoria sobre o caso. Bem que desejaria ter uma maldita pista – informei a Benbow. Eu me encostei a um pilar de concreto e telefonei para Claire, deixando um recado no correio de voz: – Estou no edifício-garagem do Píer 39. Mais três vítimas; duas são crianças pequenas. Claire atendeu. Ela não costuma xingar, mas soltou diversos palavrões antes de dizer que estava a caminho. Assim que desliguei, ouvi passos no concreto. Eu me virei e vi Jackson Brady subindo a rampa com outros dois homens: um policial uniformizado e um homem branco magro com cabelo grisalho. Os olhos de Brady brilhavam e havia uma nova expressão no seu rosto que me dava esperança. Ele sorriu. Senti como se nuvens de tempestade se dissipassem e uma mão divina abrisse caminho pelo teto de concreto quando Brady me apresentou: – Este é o Sr. Kennedy. Diz ser uma testemunha.
capítulo 88
SEIS POLICIAIS RODEAVAM Daniel Kennedy. Estávamos tão perto que quase roubávamos o seu ar. No entanto, ele parecia contente pela atenção. Armou ser um acionado por crimes que havia lido tudo sobre o Assassino do Batom. Contou-nos que era o proprietário da U-Tel, uma loja telefônica no Píer 39, e então entrou na história. – Um sujeito branco, de 30 e poucos anos, veio à loja – contou Kennedy – e logo achei que havia algo de errado com ele. – Por quê? – perguntou Benbow. – Ele foi até a estante de telefones pré-pagos, pegou um com câmera e chip de dois gigas. Telefones pré-pagos baratos desaparecem das prateleiras, mas telefones caros? Quem joga fora um telefone caro? Seja como for, esse sujeito sabia o que queria. E manteve a cabeça baixa, nem erguendo os olhos ao pagar. – Ele usava um boné? – Sim, um boné de beisebol, sem marca, mas uma jaqueta diferente da descrição que deram na TV, de couro marrom, meio danificada, com bandeira americana na manga direita. – Jaqueta de voo – percebeu Conklin. – De que cor era o cabelo? – Castanho, pelo que deu para ver. Então, após comprar o celular, ele saiu e eu disse ao meu gerente para tomar conta por alguns minutos. – O senhor seguiu o sujeito? – perguntou Brady. – Sim. Permaneci a alguns metros para que ele não me notasse e logo o vi conversando com essa bela mulher afro-americana com duas crianças, em um carrinho de bebê duplo. Ele gesticulava como se perguntasse se poderia ajudá-la com os pacotes. Fez uma pausa e, em seguida, continuou: – Aí, caramba, meu gerente me ligou pedindo para aprovar um cheque pessoal para uma venda grande. Eu me distraí por um minuto e, quando me virei de volta, eu o havia perdido... O local estava cheio, sabe? Retornei para a loja e, pouco depois, ouvi sirenes subindo a pista. Sintonizei o rádio na frequência da polícia e soube dos tiros. – Poderia identificar esse sujeito a partir de fotos? – indaguei. – Posso fazer melhor. Tudo o que aquele sujeito fez dentro e em frente à minha loja foi gravado em mídia digital de alta qualidade. Vou copiar o HD agora mesmo. – Ele estava de luvas? – Não – respondeu Kennedy. – Não, ele não estava. – Como ele pagou pelo telefone? – questionou Conklin. – Em dinheiro – respondeu Kennedy. – Vamos abrir a caixa registradora.
capítulo 89
MEU CELULAR TOCOU DE MADRUGADA. Atrapalhada, procurei-o no escuro e o levei para a sala para que Joe pudesse dormir. Quem me ligava era Jackson Brady. Apesar do cansaço em sua voz, percebi o entusiasmo ao me contar que estivera no laboratório criminal a noite toda, observando a equipe de perícia aplicar pó em cada nota da caixa registradora da loja U-Tel à procura de digitais. – Conseguiu alguma coisa? – perguntei, esperançosa. – Apenas algumas impressões parciais que correspondem a um ex-fuzileiro naval. – Sério? Era o seu palpite. – Capitão Peter Gordon. Serviu no Iraque, duas convocações seguidas. Permaneci em pé, no meu pijama de anela, olhando a beleza tranquila de Lake Street enquanto Brady me contava a respeito do homem que, depois de ser dispensado, sumiu de vista. Não havia nada de estranho no seu registro nem internações após o serviço militar. Também nenhuma participação em desfiles de boas-vindas aos soldados que voltam da guerra. – Ele retornou a Wallkill, no estado de Nova York, depois da dispensa, onde morou com a mulher e a filhinha por alguns meses. Mais tarde, a família se mudou para São Francisco. – Então, o que acha? Pode ser o nosso assassino? – De fato, parece ser o Assassino do Batom. Claro, os vídeos dos estacionamentos são uma porcaria. Além disso, o que conseguimos da loja U-Tel não é conclusivo. Gordon comprou um telefone pré-pago no período de vinte minutos a uma hora antes de Veronica Williams e os lhos serem mortos. É tudo. Não dá para fazer muito com isso. – Espere um minuto. Gordon estava conversando com Verônica Williams – salientei. – Ela tinha duas crianças em um carrinho de bebê. – Não sabemos se a mulher que Kennedy viu era Veronica Williams. Temos seis pessoas vericando todos os vídeos de vigilância do Píer 39 – comunicou. – Lindsay, adoraria pegá-lo. No entanto, queremos encurralá-lo direito. Brady estava certo. Eu teria dito o mesmo se estivéssemos em posições inversas. – Alguma coisa desde que ele se mudou para São Francisco? – Uma vizinha ligou duas vezes dando queixa de perturbação doméstica, mas nenhuma acusação foi feita. – Tem uma foto do sujeito? – É antiga, mas está indo para você agora. A foto no meu celular era a de um homem com boa aparência, na faixa dos 30 anos, de cabelo e olhos castanhos, feições simétricas, nada de extraordinário. Fora ele que usara uma jaqueta de beisebol bicolor e escondera o rosto das câmeras de segurança em Stonestown Galleria? Gostaria que não fosse, mas a minha intuição era contrária. Peter Gordon era o Assassino do Batom. Tinha certeza disso.
capítulo 90
SARAH WELLS E HEIDI MEYER, junto com meia dúzia de colegas, reuniram-se ao redor da TV na sala dos professores durante o intervalo para o almoço. Na tela, um vídeo tremido da legista-chefe, Dra. Claire Washburn, tentando se afastar da cena do terrível crime no estacionamento do Píer 39 na noite anterior. A saída do estacionamento fora bloqueada por uma multidão de espectadores curiosos, repórteres e policiais. Uma câmera focava Kathryn Winstead enquanto ela gritava para a médica: – Quantas pessoas foram baleadas? Foi outro caso de mãe e lho? Os tiros foram dados pelo mesmo assassino? – Afaste-se. Não estou brincando. Saia da frente do veículo! – bradou Claire. – Há pouco tempo, a senhora disse às mulheres para carregarem armas. O público precisa saber. – Eu não retiro o que disse. Claire abriu espaço por entre a multidão com a buzina e arrancou em direção à rua. De volta ao estúdio, Kathryn Winstead narrava: – Para aqueles que acabaram de ligar a TV , obtivemos um vídeo de segurança do Sr. Daniel Kennedy, proprietário da U-Tel, uma loja no Píer 39. O homem que vocês veem parece ser o mesmo que vimos na ta de vigilância do estacionamento da Stonestown Galleria. Fontes próximas ao Departamento de Polícia de São Francisco conrmam que ele pode muito bem ser o Assassino do Batom. Heidi ficou boquiaberta ao ver o marido comprando um celular. No entanto, havia um erro. Pete não era o Assassino do Batom. Como poderia ser? Sarah pegou Heidi por um dos braços e a levou para longe da TV . Tirou-a da sala, indo rumo ao corredor. – Onde Pete estava ontem à noite? – perguntou Sarah. – Petey? Fomos às compras. Depois, fui ao BlueJay Café com minha vizinha... – respondeu Heidi, o rosto pálido, os olhos arregalados de horror. – Ele comentou que ia para casa assistir ao jogo. Estava no sofá quando cheguei. Não poderia ter feito isso. – O Píer 39 não fica longe da sua casa. – Estivemos fora jantando por pouco tempo... Oh, meu Deus. Mas não poderia ser ele. Eu saberia, não? – Ele é mau e agressivo. Trata você e as crianças... Olhe, para onde Pete vai quando diz que quer estar “em qualquer lugar menos aqui” e desaparece por horas? Você sabe? – Nossa, você está séria. Heidi olhou para o rosto decidido de Sarah. A seguir, seus joelhos dobraram. Sarah ajudou-a a se equilibrar. – Você está bem?
– E se for verdade? O que vou fazer? – Onde estão as crianças? – Sherry está na escola. Stevie, na creche... a menos que... ah, não. Que horas são? Pete pegou Stevie. Tenho que ligar para a polícia. Onde está minha bolsa? Preciso do celular. Tenho que ligar para a polícia agora.
capítulo 91
PETER GORDON LIMPAVA A ARMA em frente à TV , assistindo ao vídeo dele comprando um telefone no shopping. Essas imagens estiveram em todos os noticiários nos últimos trinta minutos. – Fontes próximas ao FBI conrmaram que esse homem é suspeito dos recentes assassinatos em edifícios-garagem ao redor da cidade – informava o apresentador da CNN. – Se você o conhece ou o vir, não o confronte. Ele costuma andar armado e é considerado muito perigoso... – Muito obrigado – agradeceu Pete, enroscando o silenciador no cano da Beretta. Ele colocou a arma na cintura e foi para a garagem. Sua bolsa já estava no porta-malas, junto com os kits de emergência e uma caixa de garrafas de água. Entrou no carro, abriu a porta automática da garagem e logo ouviu o som de hélices acima dele. Não dava para ver se o helicóptero pertencia aos federais ou se era de uma emissora de TV . De qualquer forma, a tripulação sabia quem ele era e estava vindo atrás. Precisava de um plano B muito bom. Pete voltou a fechar o portão. Saiu do carro, tirou uma caixa de isopor de uma prateleira alta e a levou para dentro de casa. Desmontou a campainha e, com jeito, reajustou a ação. Os detonadores estavam na parte de trás da gaveta de sucata, em uma pequena caixa fechada com ta isolante, onde se lia CLIPES PARA PAPEL. Ele colocou o dispositivo da campainha e um dos detonadores dentro do isopor, carregou-o para o lado de fora da casa até o meio-o, deixando-o perto da caixa do correio. De volta ao interior da casa, Pete arrumou o outro detonador dentro de uma caixa de papelão, cobrindo-o com um maço de jornais velhos. Transportou a caixa para a varanda de trás, largando-a do lado de fora da porta dos fundos. Ao retornar à sala, espiou pelas cortinas. Um utilitário preto se aproximou e estacionou em frente à entrada da garagem. Cinco ou seis veículos idênticos chegavam à rua agora, vindo de todas as direções. Não havia mais dúvida: eram os federais. Pete afastou as cortinas, deixando que soubessem que ele os observava. Depois, arrancou o garotinho do berço. – Vamos embora, seu merdinha. Steve gritava, retorcendo-se nos braços do pai, que o sacudia, mandando-o parar. Em seguida, Pete pegou uma caixa de suco e um pacote de cereal da bancada da cozinha. Encaminhou-se para a garagem e entrou no carro com o bebê no colo. Ele imaginou a conversa entre as equipes do utilitário e um posto de comando que já deveria ter se estabelecido a um quarteirão de distância. Enquanto esperava na escuridão da garagem, tropas inimigas se reuniam ao redor da casa e a mente do capitão Peter Gordon retrocedia diversos anos até um dia em que ele e o seu comando estavam viajando perto de Haditha. Fora o dia quando a única pessoa no mundo de quem ele gostou tinha sido assassinada.
capítulo 92
PETER GORDON ESTAVA NO CARRO principal, à frente da caravana de seis veículos, transportando equipamentos e provisões para dentro da Zona Verde. Sentado no banco do carona ao lado do cabo Andy Douglas, ele estivera ocupado falando pelo walkie-talkie com a base de comando, quando o mundo ruiu. A explosão abalara todos os seus sentidos, deixando-o surdo e cego com a fumaça, e estremecera o veículo. Pete fora lançado para longe e cambaleara para a beira da estrada caótica, sua audição voltando apenas para revelar os gritos agudos, de partir o coração, dos moribundos e dos feridos. Abrindo caminho sobre a confusão de aço fumegante e pedra, Pete encontrara o último veículo da caravana. Havia capotado com a rajada e pegava fogo. Ele vira três dos seus homens: o cabo Ike Lennar deitado no chão, contorcendo-se. O soldado raso Oren Hancock segurava as entranhas que saíam do corpo em meio à poeira. O outro fuzileiro naval, Kenny Marshall, seu conterrâneo, tivera as pernas arrancadas acima dos joelhos. Os olhos de Pete se encheram de água ao se lembrar daquele dia. Caíra ao lado de Kenny, tirara o seu capacete e embalara a cabeça descoberta. Enquanto o capacete rolava, a imagem de Jesus dentro parecia se mexer. Ele murmurara palavras vazias de consolo para o garoto que dissera que estaria pronto para quando o Senhor o chamasse. Kenny olhara surpreso para Pete e, então, sua vida terminara. Parecia que a vida de Pete tinha sido retirada de seu corpo. Uma torrente de raiva uíra para esse vazio. Ele rasgara a camisa e cobrira o rosto de Kenny. Em seguida, alertara às tropas que o dispositivo explosivo improvisado tinha sido acionado remotamente pelo carro atrás da caravana. O que sobrara do grupo, dez homens, se juntara ao redor do carro cinza de aparência comum e abrira as portas. Havia dois covardes no banco da frente e uma mulher e uma criança berravam atrás. Pete arrastara a mulher, com o bebê nos braços, para fora do carro. Não entendia o que ela falava e não se importara. Com os rebeldes de bruços no chão, Pete esbravejara enquanto mirava a arma para a roupa preta da mulher com o bebê aos pés dele. – Vocês amam essas pessoas? – perguntara aos homens, vociferando. – Amam? Apontara a arma para a vadia e ela virara-se para olhá-lo, suas mãos saindo do manto das suas vestes, as palmas para cima como se para deter as balas. Pete disparara a sua automática, observando-a dar um solavanco e estremecer. E, enquanto a mulher morria, ele atirara na criancinha que berrava. Depois, voltara a arma para os rebeldes inimigos. No entanto, a tropa o agarrara e o desarmara, pondo-o no chão, contendo-o até que parasse de soluçar. Nada nunca fora dito a respeito do incidente. Mas, em sua mente, o capitão Peter Gordon ainda vivia na estrada empoeirada perto de Haditha. Fora a última vez que sentira ternura. O ruído ensurdecedor do helicóptero descendo trouxe Pete de volta à realidade. Estava dentro do carro na garagem, o inimigo o rodeava, mas ele estava ansioso para que a ação começasse. Deu um
tapinha na barriga do merdinha e esperou para fazer a sua jogada.
capítulo 93
A LIGAÇÃO DE BRADY CHEGOU À minha mesa à uma e meia da tarde. Ele berrava ao telefone, relatando que a testemunha estragara tudo e que Peter Gordon estava armado, em um impasse com o FBI. – O canalha está mantendo o lho como refém. O agente Benbow precisa que vá para a cena, Lindsay. Gordon alega que falará somente com você. Jacobi estava atrás de mim. Coloquei-o a par da situação e vi a indecisão no seu rosto. – Vão e me mantenham informado. E tomem cuidado – gritou enquanto Conklin e eu saíamos da sala da Central. Levamos um bom tempo, agoniados, para atravessar o trânsito no entorno do Centro Cívico e, por m, chegar ao local onde Gordon morava. Passamos pelo cordão de isolamento no m da rua e vimos um bando de utilitários pretos em um trecho de gramado seco em frente à casa cor de terracota, com dois andares e garagem anexa nos fundos. O agente Benbow fez sinal para que parássemos e aproximou-se da janela do carona. – Você tem experiência em negociação de reféns? – Não o suficiente – respondi. – Dê o seu melhor, sargento – aconselhou. – Seja amigo dele. Não o contrarie. Tente fazer com que ele saia com o menino. – O que tenho a oferecer? – O que ele quiser. Uma vez que tenhamos a criança, ele é nosso. Benbow me entregou um colete à prova de balas. Vesti-o e peguei o megafone. – Peter, é Lindsay Boxer quem está falando. Estou aqui porque você pediu para que eu viesse. Quero que isso acabe bem para todo mundo. Abra a porta da frente devagar, coloque as mãos na cabeça e saia, ok? Ninguém vai atirar. Não houve réplica. Tentei de novo, variando a solicitação. Depois, pegando um número de telefone com Benbow, liguei para a casa de Peter. Cinco toques. Nenhuma resposta. A secretária eletrônica atendeu e a voz de uma garotinha falou: – Esta é a residência dos Gordons. Por favor, deixe uma mensagem. Eu estava sem ação, sem entender por que ele havia me chamado, até que o meu celular tocou. Tirei-o do cinto e olhei o visor. O número estava protegido, mas eu sabia quem era. – Sargento Boxer. – Olá, docinho – cumprimentou o Assassino do Batom.
capítulo 94
O SOM DA VOZ DE PETER GORDON em um dos meus ouvidos ativou minhas glândulas suprarrenais, tentando se sobrepor à razão. Comecei a transpirar, sentindo o suor escorrer pelo corpo, entre os seios, pela testa. Estava tendo um déjà vu de algumas das horas mais aterrorizantes da minha vida. No entanto, de alguma forma, forcei-me a manter a voz firme. – Peter, ninguém quer machucá-lo. Sabemos que está com o seu lho e ele é muito importante para todos nós. – Ele é importante para vocês. Não dou a mínima. Pergunte à minha mulher. É provável que nem seja meu. – Como todos nós podemos conseguir o que queremos? – Só há uma maneira: o meu jeito. Largue a arma – ordenou. – Suspenda os helicópteros. Se eu ouvir um pio, esta conversa está acabada. Minha casa está preparada para explodir. Tenho cabos de detonação dentro e fora. Há um caminho seguro e é o trecho que dá acesso à porta da frente. Venha, Lindsay, venhaaaa. Pedi alguns minutos e informei rapidamente a situação a Benbow, que balançou a cabeça e falou: – Nem pensar. – Não vou entrar – avisei ao Assassino do Batom pelo celular. – Só preciso que saia com Steven. Garanto a segurança. Dou a minha palavra de honra: ninguém irá atirar. – Lindsay, se quer a criança, você tem que vir até mim. Usarei vocês dois como escudo. Entramos no carro e ninguém nos seguirá. Se vir uma arma, atiro na criança e em mim. Se ouvir um helicóptero, atiro também. Se alguém quebrar uma janela ou pisar na grama, a casa explode. Está ouvindo e entendendo? Benbow tirou o telefone da minha mão e se apresentou: – Gordon, sou o agente especial Richard Benbow, FBI. Não posso deixar a sargento Boxer entrar, mas irei desarmado à sua porta e o escoltarei até estar seguro. Por favor, deixe a criança sair e eu mesmo levarei você de carro ao México. O que acha do acordo? Benbow escutou a resposta. A seguir, desligou o telefone. – Ele exigiu a sargento Boxer. Caso contrário, estará tudo acabado e vou me foder. Então, desligou. Só havia uma opção, o assassino nos garantira. Do seu jeito ou explodiria tudo, incluindo o próprio filho. Tirei a Glock do coldre e a coloquei na grama. Pedi proteção a Deus. Depois, dirigi-me para a porta da frente da residência de Peter Gordon.
capítulo 95
MANTIVE OS OLHOS NA FACHADA daquela casa sombria, em um bairro decadente, que talvez fosse a última coisa que eu veria. Bati à porta. Nenhuma resposta. Bati com mais força. De novo, nenhuma resposta. Que merda está acontecendo agora? Eu me virei para Conklin e dei de ombros. Em seguida, toquei a campainha. Ouvi o meu parceiro dar um berro: – Não, Lindsay, NÃO! Naquele momento, ocorreram duas explosões bem barulhentas com um bilionésimo de segundo de diferença. Houve estrondos e o chão balançou. Fiquei bastante surpresa, sem saber o que fazer. Foi como se eu tivesse sido atingida por um caminhão. Caí com força e me perdi na densa nuvem de fumaça preta. Inalei pólvora, sentindo o seu gosto amargo, tossindo até as minhas entranhas se contraírem. Homens bradavam da rua e havia a estática dos rádios dos carros. Ouvi Conklin chamar por mim. Espiei pela fumaça e o vi deitado a uns 5 metros de distância. – Richie! – gritei. Levantei-me rápido, mas com diculdade, e corri na sua direção. Ele sangrava por causa de um corte na testa. – Você foi atingido! Ele levou uma das mãos à testa e assegurou: – Estou bem. E você? – Em perfeita ordem. Ajudei-o a se erguer. Ele colocou uma das mãos no meu ombro. – Meu Deus, Linds. Pensei que Gordon havia nos matado. O fogo consumia um utilitário no meio-o. Homens machucados, sangrando em consequência dos ferimentos causados por estilhaços, encostavam-se nos veículos ou tombavam pela rua. A intensidade das marcas das explosões, próximas à via, indicava que Peter Gordon plantara uma bomba na calçada. Outra explodira nos fundos da residência... e a casa começava a se incendiar. Esses explosivos eram mesmo para matar? Ou para criar o caos? Onde ele estava agora? Ouvi o rangido inconfundível de uma porta de garagem sendo aberta atrás de mim. Eu me virei e o vi ao volante de uma caminhonete Honda azul, descendo pelo acesso de veículos e indo rumo à rua. Conklin sacou a pistola 9 milímetros. Todas as armas estavam apontadas para o carro e eu me encontrava bem na linha de fogo. – Não atirem – supliquei, em voz alta, em direção à rua. Ergui as mãos e fui até o carro de Gordon. Enquanto tava a janela do lado do motorista, descobri
que olhava para o rosto de uma criança aterrorizada. Ele exibia o lho diante do vidro, a arma apontada para a cabeça, usando-o como um escudo. A janela baixou um centímetro e ouvi aquela voz tão familiar: – Merdinha... diga olá para a sargento Boxer.
capítulo 96
DESVIEI O MEU OLHAR DAQUELA criança apavorada. Eu me virei rápido para a rua e voltei a suplicar em voz alta: – Não atirem. Pelo amor de Deus, ele está com o filho. Não atirem. Uma forma turva carregando uma arma saiu por trás de um veículo e continuou em paralelo à rua e na direção da entrada da garagem. Era Brady. Horrorizada, observei-o jogar tachinhas no chão, em frente ao carro de Gordon, para furar pneus. Depois, posicionou-se diante da caminhonete e, segurando a arma com ambas as mãos, ergueu-a até o para-brisa. – Saia do carro. Saia do carro agora – esbravejou. Gordon buzinou e me intimou: – Diga àquele palhaço que eu tenho uma arma apontada para a cabeça do garotinho fedorento. Vou contar até três e atirar. Um. Fiquei rouca ao berrar: – Brady, abaixe a arma! Ele vai atirar na criança! Ele vai atirar! Tratava-se de um serial killer com um refém. De acordo com o procedimento, Brady estava certo e, provavelmente, seria considerado um herói por abater Gordon, mesmo se Steven morresse. Então, Benbow me apoiou: – Brady, abaixe a arma. Ele hesitou. Em seguida, fez o que pedimos. Fiquei comovida com a humanidade de Benbow, rezando para que fosse a coisa certa. Gordon voltou a falar comigo: – Lindsay? Sem armas. Sem helicópteros. Ninguém atrás de mim. Está entendendo? Dois. Aos berros, enumerei as exigências. Logo o helicóptero voou para longe do nosso raio de ação. Ouvi um pneu cantar no asfalto e, ao virar-me, vi o carro sair da garagem em disparada. Gordon se desviou das tachinhas e bateu em um utilitário, retirando-o do caminho. Depois, saltou o meio-o e acelerou rua abaixo rumo à via expressa. Em segundos, esse quarteirão do subúrbio havia se transformado em algo que parecia uma zona de combate. Os gritos das sirenes vinham de todos os lados: o esquadrão antibomba, ambulâncias e caminhões de bombeiros correndo para a cena. Abri caminho até a rua, onde Benbow ordenava cobertura aérea sobre a caminhonete Honda. Conklin me colocou em contato com Jacobi e lhe informei que estava bem. Mas a verdade era que me sentia atordoada e sem ar por causa das explosões. Além disso, a visão permanecia inconstante, indo e vindo. Enquanto Conklin e eu ajudávamos um ao outro a chegar até o carro, continuei visualizando o rosto vermelho e aterrorizado daquele garotinho, clamando sem palavras pela janela do carro. Uma vertigem me assolou. Eu me curvei e vomitei na grama.
capítulo 97
ACORDEI NA SALA DE EMERGÊNCIA, deitada em uma cama gradeada numa ala separada por cortinas. Joe se levantou da cadeira ao meu lado e colocou as mãos nos meus ombros. – Olá, doçura. Você está bem? Tudo ok? – Nunca estive melhor. Joe riu e me beijou. Apertei a sua mão. – Por quanto tempo apaguei? – Duas horas. Você precisava dormir. Joe voltou a se sentar, recostando-se, mantendo a minha mão junto à sua. – Como está Conklin? E Brady? – Conklin ganhou pontos na testa, mas a cicatriz dará um charme especial a ele. Brady está cem por cento, mas revoltado. Jura que poderia ter neutralizado Gordon. – Ou poderia ter feito com que eu, ele mesmo, Conklin e aquele bebê fôssemos mortos. – Você agiu bem, Linds. Ninguém morreu. Jacobi está na sala de espera. Ele me abraçou. – Sério? – Abraço de urso. Joe abriu um largo sorriso e eu ri. Não tenho certeza se Jacobi já me abraçou alguma vez. – Alguma notícia de Gordon? – No momento em que o pessoal da cobertura aérea levantou voo, sua Honda já era uma em um milhão de caminhonetes azuis iguais. Eles o perderam de vista. – E o menino? Joe deu de ombros. Voltei a me sentir mal. Todo aquele efetivo policial altamente treinado e, mais uma vez, Gordon nos fizera de idiotas. – Ele vai usar Steven como refém até não precisar mais. Acho que já se livrou da criança. Um bebê aos berros só iria atrapalhá-lo. – Ele o matou, é isso o que quer dizer? Joe voltou a dar de ombros. – Vamos pensar que ele apenas o largou em algum lugar – respondeu, e baixou os olhos. Uma enfermeira entrou e avisou que o médico estaria de volta em um minuto. – Posso pegar alguma coisa para você, querida? Um suco? – Não, obrigada. Estou bem. Quando ela foi embora, Joe declarou: – A negociação toda foi uma armação. O sujeito só queria que a bomba fosse detonada. Ele é muito bom, devo confessar. – Eu detonei a carga? – A campainha. Quando você apertou o botão, os sinais foram para os dois detonadores. Um
deles estava dentro de uma caixa de isopor no meio-o. O outro explodiu a parte de trás da casa... o que costumava ser uma casa. – Ele pediu para que fosse eu, Joe. Exigiu que eu fosse até a porta. Armou para que eu detonasse aquela bomba. Por que eu? Quis dar o troco porque não conseguiu o dinheiro? – Acho que sim. O sujeito está usando você na luta dele pelo poder com a cidade... O médico entrou e Joe saiu. O Dr. Dweck solicitou que eu seguisse um dos seus dedos com os meus olhos. Ele bateu com um martelinho nos meus joelhos e fez com que eu exionasse os braços. Revelou que eu tinha uma magníca contusão, do tamanho da palma de uma mão, em um dos ombros e que os cortes nas mãos iriam cicatrizar bem. Também auscultou minha respiração e o meu coração. Ambos aceleraram quando pensei que Peter Gordon poderia estar em qualquer lugar agora... com ou sem o garotinho.
capítulo 98
RECOSTEI-ME NO BANCO DO CARONA enquanto Joe dirigia, levando-nos para casa. Jacobi me instruíra a tirar alguns dias de folga e telefonar na segunda-feira para ver se ele ia me deixar trabalhar na semana seguinte. Joe determinou: – Você vai dormir bastante para se recuperar, está me ouvindo, loura? Quando chegar em casa, estará sob prisão domiciliar. – Combinado. – Pare de discutir comigo. Ri e virei a cabeça para olhar a sua silhueta ao anoitecer, em tom azul-cobalto. Na curva para entrar na Arguello, deixei o corpo tombar na direção da porta do carro e vi passar os campanários da Igreja St. John. Acabei adormecendo e acordei ouvindo Joe falar que estávamos em casa. Ele me ajudou a car em pé na calçada, em frente ao nosso prédio, e me deu apoio enquanto eu recuperava o equilíbrio. – Do que gostaria para o jantar? – perguntava Joe quando vi o que tinha que ser uma ilusão: do outro lado da rua, uma caminhonete Honda azul com o para-lama direito amassado. – O que é aquilo? – indaguei, apontando para o veículo. Não esperei a resposta. Conhecia aquele carro. Mesmo a uns 5 metros de distância, era capaz de ver a inscrição no para-brisa. Uma sensação de medo percorreu o meu corpo. Como ele sabia onde eu morava? Por que dirigira até a minha porta? Corri em meio ao trânsito da Lake Street, esquivando-me dos automóveis que passavam. Alcancei a caminhonete, coloquei as mãos no vidro e espiei lá dentro. Vi o garotinho deitado de lado no banco de trás. Mesmo com pouca luz, a marca escura redonda em uma das têmporas de Steven Gordon era de um vermelho vivo. O psicopata havia atirado no próprio filho. Gordon atirara nele, embora tivéssemos feito tudo o que nos pedira para fazer! “Não!” , gritei e arrombei a porta. A luz do carro se acendeu e agarrei a criança por um dos ombros. Seus olhos se abriram e ele se afastou, berrando. O garotinho estava vivo. – Stevie, você está bem? Tudo vai ficar bem – falei rápido, não articulando direito as palavras. – Quero a minha ma-mãe. Usei um dos polegares para limpar a marca de batom da lateral da cabeça de Steven. Não podia suportar olhar aquilo. Tirei a criança do carro e a segurei com força junto ao meu corpo, na altura dos quadris. – Ok. A mamãe estará aqui em breve. Joe se apoiava no banco da frente. Fixou o olhar nas letras escritas no para-brisa.
– O que é isso? O que diz aí? – perguntei. – Ah, droga, Linds. Esse sujeito é louco. – Conte logo. – Diz aqui: “Agora, quero 5 milhões. Não estraguem tudo de novo.” Ele ia matar mais pessoas se não conseguíssemos o dinheiro. Já zera isso antes. Desequilibrei-me um pouco. Joe me amparou e pegou o menino no colo. – Ele está desesperado – explicou. – É um terrorista. Não deixe que ele afete você, Linds. É tudo bobagem. Queria que Joe estivesse certo. No entanto, da última vez que a cidade não cumprira com o pagamento do dinheiro do resgate, Gordon matara mais três pessoas. “Não estraguem tudo de novo” não era um insulto. Era uma ameaça, uma arma carregada apontada para o povo de São Francisco. E, como parecia que eu me tornara a conexão de Gordon com o resto do mundo, aquela ameaça também estava voltada para mim. Joe me abraçou e me conduziu de volta ao seu carro, colocando-me no banco de trás com Stevie. Sentou-se ao volante, trancou as portas e entrou em contato com Dick Benbow. Enquanto isso, eu acariciava as costas do garoto, pensando em seu pai, um maníaco homicida que não tinha nada a perder. Onde estava aquele homem? Eu só conseguiria dormir quando ele estivesse morto.
PARTE 4 MONSTRO
capítulo 99
JACOBI COLOCOU SUAS GRANDES mãos em cada um dos meus ombros e me encarou. – Peter Gordon é problema do FBI, Lindsay. Você fez tudo o que podia. O garotinho está a salvo. Agora, tire alguns dias de folga. Leve o tempo que precisar. Sabia que Jacobi estava certo. Eu precisava de um descanso, em termos físicos e emocionais. Ficara tão mal que pulava de susto com o som do apito da cafeteira elétrica. No domingo, Joe e eu chegamos ao estádio Monster Park na metade do primeiro quarto de tempo. O San Francisco 49ers estava perdendo para o St. Louis Rams, mas eu não me importava. Eu estava com Joe. Era um ótimo dia para sentar ao longo da linha de 50 jardas. E, sim, carregávamos armas e usávamos coletes à prova de balas sob as jaquetas. Um guarda teve que retirar dois intrusos dos nossos lugares, assentos privilegiados e caros, cortesia do FBI. No entanto, esqueci desse pequeno conito à medida que uma jogada de passe curto se desenrolava no campo abaixo. Arnaz Battle interceptou o passe de longa distância, segurou a bola contra o corpo e seguiu os seus bloqueadores em direção ao campo adversário. Passou pelo camisa 40 do Rams, cortou para a linha lateral direita e correu, sem ser tocado, para marcar o touchdown. Eu pulava. Joe me agarrou e me deu um beijo maravilhoso, cinematográco. Ouvi alguém da fileira acima bradar, um tagarela berrando acima do barulho da multidão: – Arranjem um quarto! Ao me virar, vi que era um dos intrusos que havíamos expulsado. Ele estava bêbado e era um imbecil. – Tome conta da sua vida! – gritei e, para minha surpresa, o grosseirão saiu do seu lugar e se dirigiu até onde Joe e eu estávamos sentados. E permaneceu ali, em pé, observando-nos do alto. – Como é? – esbravejou o sujeito, cuspindo saliva. – Acham que só porque podem pagar por esses lugares vocês podem fazer o que quiserem? Não sabia do que ele estava falando, mas não gostei do que vi. Quando um cara ca doidão em um evento esportivo, muitos outros querem se juntar e participar da ação. – Por que não volta para o lugar pelo qual pagou? – perguntou Joe, levantando-se. Meu noivo tem mais de 1,80 metro e é forte. Entretanto, não era tão grande quanto o tagarela frouxo de cerca de 150 quilos. – Estamos perdendo o jogo e você está deixando a dama desconfortável. – Que dama? – questionou o imbecil. – Vejo é uma grande vadia, isso, sim. Joe agarrou a jaqueta do sujeito e o manteve bem debaixo do seu queixo. Coloquei o distintivo na cara dele e retruquei: – Uma grande policial, você quis dizer. Fiz sinal para os policiais do estádio, que desciam as escadas correndo. Assim que o tagarela foi levado escada acima, encorajando gritos dos torcedores ao nosso redor, percebi que eu estava
ofegante, a adrenalina correndo nas veias de novo. Estivera a um milionésimo de segundo de sacar a arma. – E aí, Linds? – indagou Joe, me abraçando. – Como o homem sugeriu, que tal arranjarmos um quarto? – Ótima ideia – concordei. – Tenho um em mente.
capítulo 100
AS CORTINAS NO QUARTO SE mexiam com a brisa leve que entrava pela janela entreaberta. Joe cozinhava depois de um banho a dois. Admirara o meu “bumbum perfeito” e me envolvera em uma toalha felpuda. Não me deixaria fazer nada. Deitada no centro da cama, olhava para ele, enorme e magníco à luz suave, que vinha da luminária da mesa e da rua lá fora. – Não se mexa, loura – pediu. Jogou a toalha sobre a porta sem tirar os olhos de mim. A minha respiração havia acelerado. Além disso, acabei me atrapalhando com a faixa que apertava o roupão na cintura. – O que eu disse, Linds? Ordens médicas. Não se mexa. Ri enquanto ele se estendia ao meu lado, naquela enorme cama. – O meu nariz está coçando. – Também sinto coceira. Quer saber onde? – Bobão. – Bobão, hein? Virou-se de lado e beijou o meu pescoço. Como sempre, ele conseguia me excitar em segundos. Estiquei-me para colocar os braços ao redor do seu pescoço e ele os baixou de novo. – Fique parada. Ele abriu o meu roupão e me virou. Nós dois estávamos nus sob as cobertas. Permanecemos entrelaçados, olhando um para o outro, uma das minhas pernas enganchada nele, seus braços me envolvendo, parte do meu rosto no vão do seu pescoço. Sentia-me segura e muito amada. Além disso, havia uma sensação de deslumbramento: após todos os altos e baixos que havíamos enfrentado, tínhamos chegado a esse estado maravilhoso. Joe pegou o meu cabelo, enrolando-o em uma das mãos. A seguir, beijou o meu pescoço. Aproximou-se e me puxou para mais perto. Ajustei um pouco os quadris para que os nossos corpos pudessem se unir. Por um momento, esqueci de respirar. Estava à beira de um precipício e não queria parar. – Espere um segundo – pediu ele, esticando-se por cima de mim para abrir a gaveta da mesinha de cabeceira. Ouvi o ruído do pacote sendo rasgado e coloquei uma das mãos no seu braços, suplicando: – Não. – Só estou me precavendo aqui. – Não. Sério. Ordens médicas. Não faça isso. – Querida, tem certeza? – Certeza absoluta. Joe me beijou com vontade e, enquanto me segurava bem apertado, rolamos e acabei cando por cima dele. Ergui-me e dobrei os joelhos, coloquei as mãos no seu peito e olhei-o no rosto. Vi a luz
nos seus olhos... o seu amor por mim. Ele colocou as mãos nos meus quadris e, de olhos bem abertos, começamos a nos mover devagar, com calma, sem pressa, sem preocupação. Não havia nenhum outro lugar onde eu gostaria de estar. Ninguém com quem eu gostaria de estar a não ser Joe.
capítulo 101
EU ESTAVA À MESA QUANDO Brenda me chamou pelo interfone. – Lindsay, há um pacote lá embaixo no seu nome. Kevin não quer mandá-lo aqui para cima sem você checá-lo antes. Desci as escadas até o saguão e encontrei o segurança esperando perto do detector de metais. Ele segurava uma bolsa para notebook comum, daquelas pretas de nylon. Havia uma etiqueta com o meu nome e muitos centímetros de fita adesiva transparente enrolada ao redor. Não estava à espera de nenhuma entrega. E, claro, não gostei da aparência daquela em especial. – Passei a bolsa pelo detector de metais – informou o guarda. – Há metal aqui dentro, mas não consigo adivinhar o que seja. – De onde veio essa bolsa? – Eu estava revistando o pessoal, um grupo inteiro de garotos da faculdade de direito, olhando as bolsas de câmeras e assim por diante. Aí, quando me virei, essa bolsa estava em cima da mesa. Não era de ninguém. – Sem querer ofender, mas vou telefonar para o esquadrão antibomba – avisei. – Tudo bem – concordou Kevin. – Vou chamar o chefe da segurança. Voltei a tremer, as roupas grudavam no corpo, o ombro machucado latejava. O som forte das bombas explodindo disparava em minha mente. Pensei em Joe explicando que era muito fácil fabricar uma bomba e isso me assustou ainda mais. Liguei para Jacobi de trás de uma coluna de mármore, do canto mais afastado do saguão, e informei-o sobre a bolsa misteriosa. Ressaltei que, provavelmente, Peter Gordon tinha o conhecimento necessário para explodir o Tribunal de Justiça se quisesse. – Saia daí, Lindsay – determinou Jacobi. – Você também – concordei. – Estamos evacuando o edifício. Enquanto eu falava, o alarme disparou e a voz do chefe da segurança surgiu no sistema de som, ordenando que todos os brigadistas assumissem os seus postos. O edifício foi esvaziado. Juízes, jurados, advogados, policiais e um andar repleto de detentos encarcerados, todos lotavam a escadaria dos fundos em direção à rua. Saí pela porta principal e senti o meu coração acelerar. Pouco depois, o edifício estava vazio e o caminhão do esquadrão antibomba se encontrava estacionado em frente ao Tribunal de Justiça. Observei de trás de um cordão de policiais quando um robô com placas de raios X nos “braços” subiu a rampa para cadeirantes e atravessou a porta principal. Conklin e Chi desceram para esperar comigo lá fora. Assistimos juntos ao técnico do esquadrão, mascarado e envolto em um traje antifragmentos e à prova de fogo, andar atrás do robô com o controle remoto. Esperava uma explosão a qualquer momento. Aguardamos um pouco mais. Quando eu estava a ponto de gritar, Conklin observou: – Podemos ficar aqui a noite toda.
Assim, acabamos indo para o bar MacBain. Parecia que havia uma festa de escritório lá. Policiais de todas as áreas se divertiam enquanto não recebiam algum chamado. Eu estava comendo amendoim quando o telefone tocou. Era o tenente Bill Berry, do esquadrão. – Sua suposta bomba foi considerada segura. Fui com Conklin e Chi até o caminhão antibomba, que agora estava parado no estacionamento atrás do Tribunal de Justiça. Bati à porta e, quando ela se abriu, peguei a bolsa das mãos do tenente Berry. – O que há aqui dentro? – perguntei. – Natal em setembro – respondeu. – Acho que você vai gostar.
capítulo 102
– ALGO QUE VOCÊ VAI GOSTAR? – repetiu Chi. – O que seria? – Espero que sejam cachorrinhos – respondi. Conklin segurou a porta e nós três nos juntamos à multidão de trabalhadores retornando aos respectivos escritórios. Subimos até o terceiro andar, viramos à direita na Homicídios e lotamos o escritório de Jacobi enquanto ele se deixava cair sentado na cadeira giratória. Como sempre, o espaço onde Jacobi cava parecia um chiqueiro, sem ofensa aos porcos. Tirei algumas pastas de uma cadeira e me acomodei. Conklin pegou a cadeira ao meu lado, cando com os joelhos batendo na mesa. Já Chi encostou-se ao batente da porta no seu elegante terno cinza e gravata de laço. – Aparentemente, essa coisa não explodirá – falei, colocando a bolsa em cima da mesa de Jacobi. – Vai abri-la, Lindsay? Ou está esperando por um convite? – Tudo bem, então. Tirei luvas de látex de dentro do bolso e as coloquei. Depois, cortei a ta com uma tesoura. Por fim, puxei o zíper da bolsa. A princípio, não entendi o que vi: bolsinhas de camurça, caixinhas e envelopes de cetim. Num dos bolsos, preso com um clipe, havia um envelope branco endereçado a mim. Mostrei o envelope aos meus colegas. A seguir, rasguei a borda e tirei de lá uma folha de papel branco, que havia sido dobrada em três. – É interessante? – perguntou Jacobi. Pigarreei e li a carta em voz alta: – “Oi, sargento Boxer. Não MATEI Casey Dowling. Todas as coisas dela estão aqui dentro, assim como as das outras pessoas também. Por favor, diga a cada uma que lamento. Cometi erros graves porque pensei não ter nenhuma chance, mas nunca roubarei de novo. Marcus Dowling matou a mulher. Sempre foi ele.” Está assinada: “Hello Kitty”. Virei a bolsa para que Jacobi pudesse me ver abrindo os pacotinhos. Joias inacreditáveis caíram em minhas mãos enluvadas. Diamantes e saras que reconheci como de propriedade de Casey Dowling, broches vitorianos e pérolas de Dorian Morley, além de outras peças das demais vítimas de Kitty. Examinei cada uma, lembrando-me das fotos que eu vira nos arquivos de propriedade roubada. Então, notei uma caixa de couro, de uns 5 centímetros de comprimento, no formato de um baú de pirata. Abri-a e avistei algo volumoso em um pedaço quadrado de papel de seda. Desdobrei-o. Uma pedra amarela solta, do tamanho de um bago de uva, cintilava na palma da minha mão. Estava diante do Sol do Ceilão. – É esse? – perguntou Conklin. – O maldito diamante de Casey Dowling? Jacobi mal o olhou. Estendeu um dos braços para pegar o telefone e teclou o número um na discagem rápida: o número do chefe.
– Tony está? É Jacobi. Diga que tenho novidades. Boas novidades. De soslaio, observei Brady vindo apressado na nossa direção. Ele bufava de raiva enquanto gritava por mim. – Sargento Boxer, não ouve as suas mensagens? Escute, hoje cedo a mulher de Peter Gordon foi ao FBI.
capítulo 103
HEIDI MEYER SENTOU-SE NA SALA de interrogatório. Estava sozinha e exausta pelos efeitos físicos e emocionais de traumas inimagináveis. Seu mundo mudara. Ela estava mudada. Como pudera viver com Peter Gordon e nunca saber quem ele realmente era? Imagens continuavam vindo à mente, cenas dela cozinhando para Petey, discutindo com ele, tentando mantê-lo controlado. Dera à luz os lhos daquele homem, o que compensava as deciências e os machucados. Dormira ao seu lado quase toda noite nos últimos dez anos. E, agora, o marido destruíra a sua vida. Depois do interrogatório de três horas, o agente Benbow deixara-a sozinha com uma xícara de chá. Heidi reetia sobre como esvaziara cada compartimento da memória para contar qualquer coisa que soubesse de modo a ajudá-lo a encontrar o marido, antes que ele voltasse a matar. Ela contou o quanto o marido cara estranho desde que voltara do Iraque. Relatou que ele estava sempre irritado, que amedrontava as crianças e que, sim, mantinha armas na casa e sabia como usar explosivos. Heidi mostrou a Benbow os hematomas nos braços e deixara que uma agente feminina tirasse fotos das manchas pretas e azuis na parte interna das coxas. Por m, enquanto permanecia sentada na sala sem janela, cou claro o quanto, na verdade, Pete odiava a mulher e os lhos. E se, de fato, matara todas aquelas mães e crianças, era porque todas aquelas pessoas o remetiam a ela, Steven e Sherry. Gostaria de saber onde Pete estava naquele momento e se a seguia, se estivera observando-a entrar no edifício do FBI, se estava esperando ela sair. E agora que contara tudo, o que devia fazer? Por que ninguém dizia o que ela deveria fazer? Heidi ergueu o olhar assim que a porta se abriu e Benbow voltou com uma mulher loura alta. Apresentou-a como a sargento Lindsay Boxer, do Departamento de Polícia de São Francisco. Os olhos de Heidi se encheram de água. Ela se levantou e a cumprimentou com as duas mãos. – Foi a senhora que encontrou Stevie. Oh, meu Deus. Nunca poderei agradecê-la o suficiente. – Obrigada, Heidi. Posso chamá-la assim? – Claro. Benbow deixou a sala e Lindsay puxou uma cadeira. Em seguida, solicitou: – Coloque-me a par de tudo, ok? Fui informada rapidamente. Onde estão Steven e Sherry agora? – Os dois estão com Sarah Wells, minha amiga. Trabalhamos juntas na escola Booker T . Washington High. – E onde está Sarah? – Ela está dirigindo por aí, esperando para me pegar. Não pode ir para casa. Deixou o marido... Não temos para onde ir. Minha casa foi incendiada e, mesmo que não tivesse sido, tenho que car longe de Pete. – Vamos apenas conversar um pouquinho.
– Claro. Direi tudo que quiser para esclarecer a situação. – Tem falado com o seu marido desde os acontecimentos na sua casa? – perguntou a sargento. – Ele deixou uma mensagem pelo correio de voz. Revelou que, quando estava dirigindo, planejava matar Stevie. Mas, então, viu algo no rosto do menino. Petey armou: “Ele se parece comigo. Mas você, Heidi, não se parece em nada.” – Isso não foi muito legal. O que mais ele mencionou? – Disse para contar às autoridades que, se não conseguisse os 5 milhões de dólares, mataria a mim e as crianças. Foi quando entrei em contato com o agente Benbow. Dei o meu celular com a mensagem de Pete ainda lá. – Excelente – elogiou Lindsay, assentindo com a cabeça. Em seguida, perguntou: – Onde os seus pais moram? – Minha mãe me criou sozinha. Faleceu cinco anos atrás. Sargento, o que devo fazer? A porta da sala de interrogatório se abriu e Benbow retornou. Apresentava um corte de cabelo preciso e a postura típica de um militar. No entanto, a expressão era simpática, quase cordial. Sentou-se à cabeceira da mesa. – Heidi, já ouviu falar dos programas de proteção à testemunha? – perguntou ele. – Queremos colocar você e os seus lhos em um deles. Receberão documentos com novos nomes, novas identidades, além de um outro lugar para morar. – Mas não sou boa como testemunha. Não sei nada. – Colocamos pessoas no programa por muito menos do que estar na mira de Peter Gordon. Precisa nos deixar protegê-la. Se conseguirmos encontrá-lo, você se sairá muito bem como testemunha. Ele se mostrou violento com a própria mulher. E você pode dar um relato disso em primeira mão. A mente de Heidi fervilhava. Benbow explicou que, para a própria proteção, sua vida como Heidi Meyer estava acabada. Que, para a segurança dos seus lhos, ela precisava desaparecer, apagar a vida real e recomeçar como uma nova pessoa. Essa situação era quase inconcebível. Apenas Sarah podia tornar isso suportável. Heidi contou à sargento Boxer e ao agente Benbow sobre Sarah Wells, a amiga mais próxima e condente, a madrinha de Stevie. E se mostrava inexível, não abria mão: ela tinha que entrar no programa também. Benbow parecia preocupado, talvez irritado. – É um risco, Heidi. Se Sarah entrar em contato com o marido ou se aproximar de alguém conhecido, colocará você e as crianças em perigo mortal. – Confio em Sarah. Eu a amo. É minha única e verdadeira família. Benbow tamborilou na mesa. – Tudo bem. Vamos levá-la para um esconderijo enquanto organizamos as coisas. Todos precisam ir agora. Nada de telefonemas. Sem despedidas. Não podem levar nada, a não ser o que estão usando. Heidi estava estupefata com a grandeza dessa iminente e completa ruptura com o passado e com a ideia de um futuro sem Pete. Qual seria a sensação de viver sem medo, de estar com Sarah toda
noite e à luz do dia? Elas e as crianças poderiam ter uma vida plena. As lágrimas voltaram a encher os olhos de Heidi, rolando pelo rosto. Ela o cobriu com as mãos e deixou que o choro viesse. Quando conseguiu falar de novo, agradeceu a Lindsay e a Benbow: – Obrigada. Que Deus abençoe os dois. Obrigada.
capítulo 104
FUI COM HEIDI ATÉ A RUA. Ela se virou para mim, os olhos inchados e atordoados, e desabafou: – Não sei o que contar às crianças. – Sei que encontrará as palavras. Entendeu o que vai acontecer em seguida? – Passamos a noite em um esconderijo do FBI em Los Angeles enquanto tudo é providenciado. Depois, viajamos para... – Não me conte para onde está indo. Não conte a ninguém. – Estamos indo para os confins da Terra. – Isso mesmo. Aquela é a Sarah, sua amiga? – perguntei no momento em que um carro vermelho encostava no meio-fio. – Sim. Lá está ela. Heidi se afastou, inclinando-se para dentro do carro pela janela do carona. Ela falou com a motorista. A seguir, pediu: – Sargento Boxer, venha conhecer minha amiga Sarah Wells. Era uma morena bonita, mesmo sem maquiagem, de quase 30, usando roupas grandes para o seu tamanho. Após colocar uma bola de borracha rosa no banco, esticou-se para me cumprimentar. Seu aperto de mão era impressionante. – É bom conhecê-la finalmente. Obrigada por tudo. Havia uma expressão estranha no rosto de Sarah, como se estivesse com medo de mim. Será que tivera desentendimentos com a polícia? – “Finalmente”? – Quis dizer, desde que encontrou Stevie. – Claro. Stevie estava na cadeirinha no banco de trás, sentado ao lado de uma garotinha. O menino colocou a palma de uma das mãos na janela e também me cumprimentou: – Olá. – Ei, Stevie – falei, colocando uma das mãos do outro lado do vidro, sobrepondo-a a sua pequenina palma. – Stevie está apaixonado pela senhora – confessou a irmã. Abri um largo sorriso para as duas crianças. Heidi me deu um abraço efusivo e choroso. Por m, já acomodada dentro do carro, despediu-se com um aperto de mãos. – Sejam felizes – desejei. – A senhora também. Um sedã preto parou ao lado do carro das duas e Benbow se inclinou para fora da janela. Ele informou a Sarah que estaria no comando. Um segundo automóvel se posicionou atrás delas. Então, o comboio foi embora, escoltando Heidi, Sarah e as crianças para o próximo capítulo das suas novas vidas.
E eu esperava que fossem bons. Observei até os veículos saírem do meu campo de visão. Pensei em Heidi, desejando saber como Peter Gordon reagiria ao desaparecimento dela com os lhos. E me perguntava como, em nome de Deus, nós o encontraríamos antes que ele voltasse a matar.
capítulo 105
LEONARD PARISI PARECIA BEM IRRITADO na manhã seguinte quando Yuki e eu entramos no seu escritório solicitando um mandado de busca. Conhecido como “Red Dog” , por causa do cabelo ruivo-escuro e da sua tenacidade, ele manuseava sem jeito as fotograas de quase 4 milhões de dólares em joias roubadas e uma cópia da carta de Hello Kitty. – Vocês têm alguma pista sobre essa Kitty? – Ela se escondeu em uma multidão saindo pela porta da frente. A câmera de segurança registrou a cena da turba, mas não pudemos ver quem deixou a bolsa – confessou Yuki. – Sargento? – Não temos nada sobre a sua identidade. As joias estão no laboratório. Até o momento, não encontramos impressões em nada. Tudo o que temos é que Kitty devolveu cada peça. Acho que isso dá alguma credibilidade quando alega que não matou Casey Dowling. – Merda, para que temos câmeras de segurança, então? – resmungou Parisi. Assim como o restante de nós, Parisi fora bastante recriminado pelo fato de o seu departamento apresentar um baixo registro de condenações em face do aumento da taxa de criminalidade em São Francisco. Isso era culpa nossa. A polícia não levava ao escritório da Promotoria Pública provas suficientes para a elaboração de casos incontestáveis. – Então isso nos deixa com o quê, sargento? A armação infundada de uma pessoa anônima que confessou ser uma ladra de joias, mas não uma assassina? Acha mesmo que Dowling fez isso? – Kitty foi firme nas duas vezes em que falei com ela. Também a achei convincente. – Não se importe com ela. Não é ninguém. É um fantasma. E com relação a Dowling? Relatei a Parisi o que tínhamos sobre Caroline Henley, a namorada de Dowling há dois anos. Expliquei que o lucro líquido dele estava na casa das dezenas de milhões e, uma vez que um divórcio custaria caro, havia um bom motivo para matar a mulher. Além disso, frisei que a sua história era inconsistente. Que a explicação sobre os sons, os tiros, o chamado da mulher mudara ao longo do tempo. – O que mais? – O cabelo estava molhado quando o entrevistamos logo após o tiroteio. – Ele tomou uma chuveirada para se livrar das provas. – É isso que achamos. Red Dog empurrou a pasta com as fotos sobre a mesa na minha direção. – Uma chuveirada não é um indício. Antes de revistar a casa da lenda do cinema americano e a mídia ter acesso a essa informação, podendo nos acarretar um processo por difamação, é melhor ter algo mais forte do que a garantia de uma ladra e o banho de Dowling. Parisi fez uma pausa e concluiu: – Não há motivos para um mandado de busca, Yuki. Não vai ser possível.
capítulo 106
PUXEI UMA CADEIRA E A BATI com força na lata de lixo. Repeti o ato apenas para extravasar a raiva. – Red Dog só pedirá um mandado se houver uma maldita arma fumegando. – Engraçado você dizer isso – comentou Conklin, olhando para mim. – Eu estava assistindo a alguns filmes antigos de Dowling ontem à noite. Dê uma olhada nisto. Ele girou a tela do seu computador para que eu pudesse ver. Sentei-me, levei a cadeira de rodinhas até a mesa e olhei para o seu monitor. Vi o que parecia ser o trecho de um filme de espionagem antigo. – Noite de vigília – informou Conklin. – Ele atuou nele décadas atrás com Jeremy Cushing. Filme horrível, mas acabou se tornando um cult. Olhe. Lá estava Dowling: terno preto, costeletas e olhos estreitados contra a luz do sol. Segurando uma arma. – Está brincando comigo. É uma calibre .44? – Uma Ruger Blackhawk. É um revólver de ação simples, de seis tiros – explicou o meu parceiro ao clicar em outra imagem. O famoso e já falecido Jeremy Cushing dava a arma a Dowling como uma lembrança, em uma memorável foto de aperto de mãos. Quase dava para ouvir os flashes disparando. Conklin apertou uma tecla e a impressora entrou em funcionamento, emitindo um ruído alto ao liberar cópias das fotos. Peguei o telefone e liguei para Yuki. – Agarre Red Dog antes que ele vá a algum lugar. Estou voltando. Chegamos à magníca mansão de Dowling em Nob Hill antes do almoço; eram três carros repletos de policiais da Homicídios morrendo de vontade de pegar alguém pelo colarinho. Toquei a campainha e Dowling veio à porta vestindo calças jeans e uma camisa social branca desabotoada. – Sargento Boxer – cumprimentou ele. – Olá mais uma vez. Deve se lembrar do inspetor Conklin. E gostaria de apresentá-lo à promotora assistente Yuki Castellano. Ela entregou o mandado de busca para ele. – Estudei com Casey na faculdade, sabia disso? – perguntou, passando por ele em direção ao enorme hall dourado. – Não me lembro de ela ter mencionado o seu nome. Ei, não pode... Chi, McNeil, Samuels e Lemke correram para dentro da casa logo atrás de nós com a determinação de policiais invadindo um bar clandestino durante a Lei Seca. Senti pânico. Apesar do que garanti a Parisi, que Dowling nunca se livraria de uma recordação do último lme feito por Jeremy Cushing, eu não tinha tanta certeza. – Esperem! – bradou Dowling. – O que estão procurando? – Saberá quando encontrarmos. Subi pela escada em espiral até o quarto principal enquanto o restante da equipe se espalhava pela
residência. Ouvi o telefone tocar. Em seguida, Dowling esbravejou, a voz pulsando de indignação: – Bem, Peyser, é para isso que servem os advogados! Volte de Napa agora mesmo! Entrei no quarto do astro de cinema. Quinze minutos depois, não havia uma gaveta ou prateleira por onde minhas mãos não tivessem passado. Eu estava removendo o colchão da cama quando percebi que havia outra pessoa no quarto. Ergui o olhar e deparei com uma mulher latina em um uniforme preto de empregada. Sabia quem era. No dia seguinte ao assassinato de Casey Dowling, quando Conklin e eu tínhamos interrogado Marcus, essa mulher nos servira uma garrafa de água. – Você é Vangy, certo? – Sou uma estrangeira ilegal. – Compreendo. Eu... Não é o meu departamento. O que quer me contar? Vangy me pediu para segui-la até a lavanderia no porão. Ao chegarmos lá, ela acendeu a luz acima da máquina de lavar e da secadora. Em seguida, colocou uma mão de cada lado da secadora e a puxou, afastando-a da parede. Por m, apontou para a mangueira de escape, um tubo exível de uns 10 centímetros de largura, que ventilava ar quente do secador para o lado de fora. – Foi onde ele o escondeu – revelou-me. – Ouvi o barulho de algo chacoalhando. Acho que o que procura está aí dentro.
capítulo 107
ESTÁVAMOS NA SALA DE INTERROGATÓRIO número dois, a maior de todas, com equipamento eletrônico de melhor qualidade. Veriquei a câmera e me certiquei de que a ta estava rodando antes de levar Dowling lá para dentro e oferecer uma cadeira de frente para o vidro. Eu queria uma confissão completa. Para mim, para Conklin, para Yuki e para Parisi. Queria justiça rápida e certa para Casey Dowling. E queria encerrar o caso para Jacobi. Dowling abotoara a camisa e colocara uma jaqueta. Parecia sob controle. Eu tinha que admirar a sua frieza, pois a arma estava em um saco de provas sobre a mesa. Conklin também parecia bem à vontade. Imaginei que ele estivesse dando o melhor de si para não sorrir. Ele tinha todo o direito de car contente pelo que conseguíramos, mas ainda não tínhamos terminado. Dowling amava tanto a si mesmo que era provável que houvesse se convencido de que ninguém poderia tocá-lo. – Meu advogado está a caminho – informou. Uma batida à porta. Abri-a para Carl Loomis, um técnico em balística do laboratório criminal. Apontei para a arma ensacada e ele a pegou. – Aprecio muito o seu trabalho, Sr. Dowling – disse antes de sair. – Loomis, o teste de balística é prioridade máxima – ressaltei. – Terá os resultados em uma hora, sargento – assegurou, enquanto retirava o saco de provas da sala. Olhei para Dowling, que parecia indiferente àquilo tudo, recostado e balançando-se nas pernas de trás da cadeira. – Sr. Dowling, quero ter certeza de que entende a situação. Quando o laboratório disparar a sua arma, a bala-teste vai coincidir com aquelas retiradas do corpo da sua mulher. – É o que você diz. Conklin interveio: – Dá para acreditar nisso? Vamos autuá-lo como suspeito de assassinato. Nós o pegamos. Ele está arruinado. – Conte o que aconteceu – sugeri a Dowling. – Se nos poupar tempo e gastos com um julgamento, a promotoria levará em conta a sua cooperação... – É mesmo? – Só para saber, o expediente da promotoria termina às cinco. Daqui a quinze minutos. O tempo para fazer um acordo está se esgotando. Dowling bufou com desdém e Conklin riu. Ele saiu da sala e voltou com três recipientes de café, dando um show ao acrescentar leite e açúcar à sua xícara. Durante todo o tempo, cantarolava a canção-tema do lme Noite de vigília. Era uma cantiga curta, fácil de lembrar. Estivera na parada de sucessos na época em que o filme estourara. Vi algo surgindo no rosto de Dowling enquanto Richie cantarolava. A indiferença evaporou. As
pernas da cadeira voltaram ao chão. Tive a impressão de que Dowling, ao ouvir aquela melodia, acabara caindo na real.
capítulo 108
O CELULAR DE MARCUS DOWLING TOCOU. Ele olhou o identificador de chamadas e atendeu. – Peyser? Onde você está? O que está fazendo? Vindo a pé? Dowling parou de falar para que o advogado respondesse. – Você é um inútil. Imprestável – retrucou, desligando o telefone antes de encerrar a conversa e olhar para o relógio. Eram cinco horas em ponto. – Ligue para a promotoria. Vou falar de livre e espontânea vontade. Não tenho nada a esconder. Preciso de algo por escrito de vocês ou da promotoria? – Não – respondi. Apontei para a câmera no canto acima da minha cabeça. – O senhor está sendo filmado. Dowling assentiu com a cabeça. Encontrava-se diante da câmera. Um lugar onde gostava de estar. – Menti para proteger a reputação de Casey – revelou. – Ela descobriu que eu tinha uma namorada e puxou a arma para mim. Lutei para tirá-la das suas mãos e a arma disparou. – Antes ou depois que a ladra saiu pela janela? – Após a ladra sair. Foi isso que lhe deu a ideia. Casey viu uma oportunidade para atirar em mim. Ela pegou a arma, que estava na mesinha de cabeceira, e começou a gritar comigo. Tentei tirá-la dela e acabou disparando. Eis a verdade. – Sr. Dowling, tem certeza de que quer contar a história dessa forma? Sua mulher levou dois tiros, lembra-se? Um no peito e outro no pescoço. Ela estava nua e desarmada. Não havia indícios de pólvora na sua pele. Isso signica que o senhor estava a, pelo menos, 1,5 metro de distância. O ângulo daqueles disparos vai comprovar isso. – Não foi assim que aconteceu... – Foi exatamente assim que aconteceu – reiterei. – Seu Ruger é um revólver de ação simples. O senhor teve que puxar o percussor para trás a cada disparo. Simulei um revólver com uma das mãos. Puxei para trás o polegar, meu “percussor”. – Bang! – exclamei. – Quer tentar convencer um júri de que foi em legítima defesa? – Foi. Aconteceu como contei! – esbravejou Dowling. – Ela tentou me matar. Tirei a arma, mas ela disparou. Talvez eu tenha entrado em pânico e, por isso, disparou duas vezes. Não me lembro. Eu estava assustado – relatou, as lágrimas surgindo. – Sinto muito. Eu a amava. Pergunte a qualquer um. Nunca deveria tê-la traído. É difícil, não vê? As mulheres dão em cima de mim o tempo todo. Casey não entendia isso. A porta se abriu de novo, dessa vez sem nenhuma batida. Tony Persey, condente de Dowling e seu advogado de mil dólares a hora, entrou. – Não diga nada, Marc. Qual é a acusação? – perguntou o advogado. Sentia uma mistura inebriante de fúria e euforia. A declaração de Marcus Dowling estava na ta e a acusação a usaria para destruí-lo. Nem olhei para o advogado. Apenas comuniquei:
– Levante-se. O senhor está preso sob a acusação de assassinato de Casey Dowling. Tem o direito de permanecer em silêncio... Conklin o algemou enquanto eu terminava de ler os seus direitos. Ele ainda protestou: – Foi em legítima defesa! – Quem sabe? Talvez o júri acredite – falei, olhando para um rosto que havia despertado o amor nos corações de milhares de mulheres. – Mas sabe o que acho? Você não é um ator tão bom assim...
capítulo 109
SENTI QUE PRECISAVA DE UM drinque e marquei de encontrar Cindy no térreo às seis e meia. Fomos no meu Explorer até o restaurante Susie’s. Eu estava contente por ter um tempo a sós com minha amiga e tinha uma notícia exclusiva bem interessante para ela. Começava a chover mais forte, o temporal noturno de sempre. Acionei os limpadores do parabrisa e contei como a “bomba” deixada no Tribunal de Justiça acabou se transformando em 4 milhões em joias. – Acho que Kitty devolveu tudo porque não queria que a acusação de latrocínio pairasse sobre a sua cabeça. – O que dizia a carta? – perguntou Cindy. – Você pode publicar a parte sobre Kitty, mas a acusação de homicídio a Marcus Dowling é extraoficial, ok? – Tudo bem – concordou ela. – Conseguirei outra fonte sobre Dowling de manhã. De qualquer forma, isto é incrível: Hello Kitty devolveu a mercadoria roubada. Sorri para Cindy enquanto citava trechos da carta da ladra. Depois, estacionei o mais perto possível do Susie’s. Saímos do carro e, gritando como garotinhas, corremos um quarteirão debaixo de chuva forte. Entrar no Susie’s é quase sempre uma superexperiência. Frequentamos o local há anos. Temos várias lembranças de lá. No ar, o aroma do ensopadinho de peixe picante, um prato especial. A banda afinava os instrumentos e havia um montão de solteiros no bar. Vi Yuki sentada em um banco. Cindy e eu avançamos devagar por entre a multidão até que consegui tocar em um dos seus ombros. Ela se virou e nos abraçou. A seguir, apresentou-nos ao barman, gritando acima do barulho. – Lindsay, Cindy, conheçam Miles La Liberte. Miles, essas são minhas amigas Lindsay Boxer e Cindy Thomas. Cumprimentei Miles com um aperto de mãos e, ao nos despedirmos, Yuki se inclinou sobre o bar e lhe deu um beijo. – Estava totalmente desatualizada – comentei com Yuki enquanto passávamos pela cozinha em direção ao salão dos fundos. – O que foi aquilo que acabei de ver? – Ele é uma graça, não é? Yuki riu e pegou os cardápios com Lorraine. Em seguida, nós três nos sentamos à mesa privativa. Deixei vago o assento ao meu lado para Claire. – Lindo – concordei. – E quanto tempo tem isso? – Algumas semanas. – Então é sério? – Sim – respondeu ela, ficando corada e abrindo um largo sorriso ao mesmo tempo. – Uau! – exclamou Cindy. – Você manteve em segredo?
– Que bom, Yuki. Um novo caso e um novo namorado. Um balde de cervejas, por favor – pedi a Lorraine. – Quatro copos. – Também tenho um comunicado a fazer – revelou Cindy, juntando as mãos, inclinando-se sobre a mesa, quase caindo no meu colo. – Rich e eu estamos morando juntos. – Oh. Isso é fantástico! – exaltei. De fato, sentia cem por cento o que estava dizendo. – Ele não me falou nada. – Pedi para ser a primeira a contar – explicou ela. A cerveja veio junto com uma tigela de chips de banana. Cindy falava sobre ter que reservar um espaço no armário e como a cama era frágil demais para Rich. Pensei que havia muito tempo – se é que acontecera alguma vez – que todas nós não cávamos felizes assim. Desejei que Claire estivesse ali para aproveitar a ocasião. Olhei por cima de um dos ombros e a vi. Vinha em disparada pelo corredor estreito, rumo à nossa mesa. Sua expressão podia ser descrita como um eclipse do sol. Uma tempestade estava a caminho.
capítulo 110
CLAIRE NEM SEQUER NOS cumprimentou. Sentou-se à mesa e serviu-se de um copo de cerveja. – Desculpem o atraso. Estava consultando o banco de dados dos médicos-legistas, ainda tentando resolver o impasse no desastre desse Assassino do Batom. Edmund disse que eu deveria tirar as fotos daqueles bebês mortos do quadro de avisos do meu escritório, mas quero mantê-las lá até que esse demônio esteja sob custódia. – Descobriu alguma coisa? – perguntei. – Não consigo encontrar um padrão que combine com qualquer coisa em outro banco de dados além do nosso. Nenhum outro tiroteio envolvendo mãe e lho. Nenhuma mensagem de batom. As marcas de pólvora são únicas. Qual é a motivação, o que o incentiva, qual o problema? Não tenho a menor ideia. Cin, poderia me passar os chips? – Ele afirma estar fazendo isso por dinheiro – salientou Cindy. Claire assentiu, mas ergueu uma das mãos, sinalizando que ainda tinha a palavra. Comeu e bebeu. Então, retomou o pensamento: – Tudo bem. É incomum, não é, Linds, um psicopata motivado por dinheiro? Mas, seja como for, vamos considerar aquela mensagem que Gordon escreveu no para-brisa do carro: “Agora, quero 5 milhões. Não estraguem tudo de novo.” O que ele quer dizer com isso? – perguntou Claire. – O caso agora é do FBI. Estou trabalhando nele, mas Benbow é quem comanda. – O que aconteceria se apresentássemos alguma coisa? – indagou Cindy. – Que tal se o Chronicle respondesse à mensagem do para-brisa com uma carta aberta ao assassino, como fizemos antes? – Vá direto ao ponto. O que está pensando? – Digamos que Henry Tyler escreva a carta. Ele menciona: “Temos os 5 milhões e queremos combinar uma entrega.” E desaa o assassino, uma espécie de “volte para nós” , reforçando: “Não estrague tudo de novo.” – E depois, o que acontece? Outra armadilha? Por que terminaria de forma diferente? Eu esperava por uma armadilha que não me envolvesse. Não sabia se seria capaz de repetir a performance daquele dia horrível com o celular pendurado ao pescoço, sem saber se ou quando Peter Gordon pegaria o dinheiro e atiraria em mim. No entanto, precisava admitir a verdade. – Você está alegando que, se o FBI não zer algo em breve, o Assassino do Batom vai matar mais gente para atingir o seu objetivo. – Mais mães e filhos – complementou Cindy. – Sim, é isso que estou achando – concordou Claire. – Tenho uma ideia interessante, diferente daquela da última vez. Acho que poderia funcionar.
capítulo 111
ERA MINHA TERCEIRA NOITE CONSECUTIVA em um furgão de vigilância com Conklin e Jacobi. O veículo era abafado e à prova de som, conectado via wi- a duas agentes disfarçadas próximas a uma loja de departamentos no shopping San Francisco Centre. Elas empurravam carrinhos com bonecos, do tamanho de bebês. Eu escutava a agente Heather omson, designada para ser minha isca, cantarolar “Can’t Touch Me” . Já Conklin rastreava Connie Cacase, uma novata de 20 anos da Narcóticos com aparência inocente, mas que conhecia a malandragem das ruas. Havia outros sete furgões repletos de policiais de três divisões e com agentes do FBI, cada um seguindo e rastreando as iscas com carrinhos de bebê em shoppings pela cidade. Enquanto a mídia soava sem parar o alarme com relação ao Assassino do Batom, o prefeito, o Departamento de Polícia de São Francisco e o FBI se recusaram a publicar uma mensagem para Peter Gordon. E ele também não fizera nenhum contato. Será que estava irritado? Estressado? Esperando o momento propício? Onde estava? De acordo com o seu padrão, já estava atrasado para o próximo assassinato. Nosso furgão estava estacionado na Sutter, muito perto da Sutter-Stockton Garage, a um quarteirão da Nordstom e a dois da Macy’s, na Union Square. O fone de ouvido de Jacobi sintonizava a Central e ele tinha um microfone aberto para o agente especial Benbow, que se encontrava estacionado a dois quarteirões, em um centro de comando móvel. O plano de Claire fazia sentido, mas estava longe de ser infalível. Estávamos todos a postos para atacar, entretanto não havia ninguém para ser atacado. Jacobi vericava a ação com Benbow quando ouvi tiros pelo meu fone. Heather parou de cantarolar. – Heather! – chamei-a pelo microfone. – Fale comigo! – Foram tiros? – perguntou ela. – Consegue ver alguma coisa? – Estou na Stockton. Acho que os disparos vieram do edifício-garagem. – Tiros! A agente omson está bem. Richie, está com a Connie aí? Tudo certo com ela? – gritei para Jacobi e Conklin. – Connie está bem. – Não sei que merda aconteceu, mas foi algo ruim. Permaneça sintonizado – solicitei a Jacobi. Vesti o colete com certa diculdade, dirigi-me para a parte de trás do furgão, abri as portas e saí. Conklin estava ao meu lado. Será que Peter Gordon aparecera? Se sim, o que fizera?
capítulo 112
PETER GORDON SEGUIRA A MULHER pela loja, observando-a cobrir o lho até o queixo com um cobertor antes de sair para o frio da noite. O alvo não era uma miss, mas tinha um jeito de requebrar que hipnotizava, um bom balanço e gingado. Pete apelidou-a de Wilma Flintstone: um vestido branco, o cabelo preso em um coque e a Pedrita. Wilma colocou a bolsa no carrinho de bebê e saiu da calçada, dirigindo-se ao edifíciogaragem na Sutter com a Stockton. Pete conhecia aquele estacionamento. Era enorme, com uma grande quantidade de vagas e diversos andares, sendo que o último era aberto, visível aos arranha-céus ao redor. Ele mantinha uma distância constante de 3 metros de Wilma, vigiando um grupo de guardas na esquina, quando uma família de quatro imbecis ficou entre os dois, acabando com a zona de segurança. Ele cou para trás. Abaixou a aba do boné e, seguindo o alvo até o interior do estacionamento, manteve-se no estreito caminho de pedestres que margeava a rampa. A família bloqueava sua linha de visão e ele se afastou. Retomou o passo, procurando Wilma nas fileiras de carros estacionados. Havia pedestres por todo o lado, motores engasgando ao serem ligados, o guincho dos pneus quando os veículos desciam a ladeira. Pete começava a se preocupar, achando que a perdera, quando o vestido branco ressurgiu. Ela empurrava o carrinho para dentro do elevador. As portas se fecharam atrás dela e as luzes acima piscaram, indicando que o elevador subia até o terceiro andar. Pete logo se dirigiu às escadas, subindo de dois em dois degraus. Nem mesmo se mostrava ofegante ao chegar lá em cima. Motoristas passeavam pelos corredores à procura de vagas, mas não havia tráfego de pedestres ao redor. Pete passou uma das mãos pela arma presa à cintura, contornou uma pilastra e conseguiu olhar Wilma bem de frente. E ela o viu. O rosto de Wilma irradiava preocupação. Ela o encarou, de olhos bem abertos, por um longo momento. Depois, girou o carrinho e correu em direção ao carro, as rodas rangendo freneticamente. – Senhorita – chamou Pete. – Poderia esperar um minuto? Ela bradou por cima de um dos ombros: – Fique longe de mim. Fique longe. Wilma sabia quem ele era, mas não havia nenhum lugar para onde ela pudesse ir. Estava em desvantagem por causa da criança. – Senhora, entendeu errado. Meu celular descarregou. Olhe. Boquiaberta, de costas para o seu Volkswagen Passat, com uma mão no guidão do carrinho de bebê, ela olhava para todos os lados à procura de ajuda. A criança soltou um grito e Wilma se esticou em direção ao carrinho. Quando ela se endireitou, Pete viu uma calibre 22 apontada na sua direção.
Ele sacou a própria arma, que prendeu na camisa. Ouviu um tiro e sentiu a perfuração no ombro direito. Sua pistola caiu no chão de concreto, fazendo barulho. – Vadia estúpida! – esbravejou Pete, logo se abaixando para pegar a arma. Uma bala zuniu, atingindo o chão, passando a 2,5 centímetros do seu nariz. Ele rolou de costas com a pistola na mão esquerda. – Não se mexa, Wilma – ordenou, preparando a pontaria. Mas a visão estava embaçada e as luzes rodopiavam. Ele fez alguns disparos, mas nenhum a acertou. Wilma voltou a atirar. E continuou.
capítulo 113
EU ESTAVA CORRENDO PELA SUTTER, Jacobi berrando no celular ao meu ouvido: – Não é nenhuma das nossas! – Repita. – Ninguém do nosso pessoal está envolvido. Recebemos uma chamada do 911. Tiros disparados na Sutter-Stockton Garage. Terceiro andar. Gritei por Conklin em meio aos gemidos estridentes das sirenes. Percorremos os poucos metros que nos separavam do edifício-garagem. Nossos pés batiam nos degraus metálicos enquanto subíamos as escadas com armas em punho. Abrimos a porta que dava acesso ao terceiro andar e ouvi um bebê gritando. Corri na direção do som. Uma mulher com 20 e poucos anos estava parada, perto de um homem no chão, deitado com os braços abertos e as pernas afastadas, o rosto virado para cima. Ela segurava uma pistola. Aproximei-me da mulher bem devagar, mostrando o distintivo. – Sou a sargento Boxer. Está tudo bem agora. Por favor, entregue a arma. – É ele, não é? – perguntou, ainda atônita, o bebê berrando atrás. – A médica-legista falou para carregar uma arma e eu fiz isso. É o assassino, não é? Precisei colocar minha arma no coldre, balançar o pulso da atiradora e soltar os seus dedos até conseguir pegar a sua pistola calibre 22. A alguns metros, meu parceiro chutou a arma da mão frouxa do homem no chão. Juntei-me a Conklin e coloquei os dedos na artéria carótida do sujeito que havia sido derrubado. – Tem pulsação. Conklin chamou uma ambulância e viaturas policiais subiram a rampa, fazendo barulho. Não consegui desviar o olhar do rosto de Peter Gordon. Era o monstro que executara nove pessoas, cinco delas crianças, um assassino que atormentara a própria família e mantivera refém uma cidade inteira. Seu sangue jorrava no chão de concreto. Não queria perdê-lo. Queria vê-lo em um macacão laranja, algemado no banco dos réus. Queria ouvir a sua opinião confusa sobre o mundo. Queria vê-lo pagar com nove sentenças consecutivas de prisão perpétua, uma para cada pessoa que matara. Queria que ele pagasse. Pressionei uma das minhas mãos para conter a poça de sangue que jorrava da sua artéria femoral. Quase pulei quando Gordon abriu os olhos entorpecidos e os virou para mim, falando: – Docinho... Acho... que levei um tiro. Inclinei-me para perto do seu rosto. – Por que os matou, seu filho da puta? Ele sorriu e respondeu: – Por que não? Depois, exalou um suspiro trêmulo e morreu.
EPÍLOGO 911
capítulo 114
VINTE E CINCO DE SETEMBRO. Joe e eu íamos receber os amigos para um brinde aos bons dias pela frente. Havia um presunto no forno, assando sob um glacê de manga apimentada. Martha implorava para provar e, em vez disso, conseguiu um biscoito para cachorro. Eu usava um quimono e uma máscara de abacate enquanto descascava as batatas. Joe fatiava as maçãs para a torta. Os 49ers estavam jogando com os Cowboys, os aplausos da multidão soando na TV, quando o celular de Joe tocou. – Não atenda, querido – pedi. Não falei de brincadeira, mas ele sorriu e atendeu. Pelas últimas semanas, não havia um telefonema que não me enviasse por um túnel de horror. Estava tão viciada em trabalho, com os nervos tão à or da pele, que não podia sequer suportar uma lâmpada queimada. Ou uma unha quebrada. Ou até mesmo uma queda de temperatura. Não era mais capaz de aguentar nada. Joe levou o telefone até a sala. Lavei as batatas e as coloquei para ferver. Estava no banheiro, enxaguando o rosto para retirar a máscara de abacate, quando ele me chamou. Fechei a torneira e enxuguei os olhos com uma toalha felpuda. Ao me virar, vi Joe me observando, sombrio e sério. – Há um avião cheio de gente na pista de decolagem do Dulles International – explicou. – Há um sujeito a bordo que era meu informante anos atrás. Ele contrabandeou explosivo C-4, levando-o na bagagem de mão. E agora está ameaçando explodir o avião. – Oh, meu Deus. E os federais querem que você os assessore? – Não exatamente. O sujeito com o C-4, Waleed Mohammad, quer falar comigo. Joe era diretor adjunto do Departamento de Segurança Interna quando nos conhecemos e se tornara consultor de segurança, de alto nível, ao se mudar de Washington para cá. Um consultor que trabalhava de casa. – Então você precisa ligar para o sujeito. Convencê-lo a desistir. – Preciso voar para Washington – disse e me abraçou. – Um carro está vindo me buscar. Tenho que ir agora. Meu coração parecia ter parado por um segundo. Era absurdo, mas só queria gritar nos braços de Joe, dizer que ele não poderia ir e, se fosse, eu ficaria chorando até que ele voltasse. – Faça o que tiver de fazer.
capítulo 115
JÁ ESTAVA VESTIDA QUANDO YUKI e Miles chegaram. O barman atraente, presenteou-me com uma garrafa de vinho, enumerando as suas qualidades especiais. Mal o ouvia, mas tenho certeza de que agradeci. Yuki perguntou onde Joe estava e, com a voz embargada e os olhos lacrimejando, contei que ele havia partido às pressas para Washington. Virei-me para que ela não notasse as lágrimas causadas pelo pânico. Ela me seguiu até a cozinha, ajudando a colocar as azeitonas e o queijo no prato. – O que está acontecendo, Lindsay? – perguntou. – Não olhe para mim. É só que tudo me atingiu do nada. Você sabe. Tudo. – Quando Joe volta? Dei de ombros e a campainha tocou. Martha latia feliz quando abri a porta para Edmund e Claire, que me envolveu em um grande abraço e me sufocou com flores. – Lindsay, você está deslumbrante de vermelho. Deslumbrante de qualquer maneira, mas, sem dúvida, o vermelho é a sua cor – elogiou Edmund. Ele se juntou a Miles na frente da TV , assistindo ao jogo de futebol americano. Já Claire foi à cozinha, à procura de um vaso. Quando Cindy e Rich apareceram, percebi que era a primeira vez que via os dois juntos em um encontro. E talvez fosse a primeira vez que aparecessem em público. Era bem legal que a estreia de ambos estivesse acontecendo em minha casa. Expliquei que Joe estava em missão. – Quer que eu coloque um pouco de música, Linds? – sugeriu Rich. – Obrigada. Seria ótimo. Rich revirava os CDs e eu retirava o presunto do forno no momento em que os telefones nos quatro cômodos tocaram ao mesmo tempo. – Vai atender o telefone? – perguntou Claire. – Não deve ser ninguém importante. – Pode ser Jacobi. – Ele ligaria para o celular. Meu celular tocou dentro da bolsa. Peguei-o e olhei para o identicador de chamadas. Não reconheci o número. Talvez, pensei, fosse o telefone da namorada secreta de Jacobi. – Warren, está perdido? – Sargento Boxer? – Sim. Quem é? – É o comandante John Jordan. Receio que tenha havido um incidente. Queria entrar em contato com você antes que ouvisse a respeito no noticiário. Minha mente cou desnorteada. Não podia ser sobre aquela crise de reféns em Washington. Não era possível que Joe tivesse chegado lá... Não ainda. O avião dele acabara de decolar. Olhei para o aparelho de TV pela abertura na parede para a sala de estar.
O jogo de futebol havia sido substituído por comentaristas e li o banner da notícia de última hora: DESASTRE AÉREO NA CALIFÓRNIA. Vieram as cenas de helicóptero mostrando um vale verde danicado pelos destroços do avião e uma enorme coluna de fumaça negra. O comandante falava comigo, mas não ouvi as suas palavras. Eu já tinha entendido. O avião de Joe caíra. Não sabiam o que acontecera, por que explodira ou batera. As luzes desapareceram, tudo ficou preto e desmaiei.
capítulo 116
EMERGI DA ESCURIDÃO OUVINDO CLAIRE conversar com Cindy, sentindo algo frio na testa, as patas de Martha no peito. Meus olhos se abriram. Fitava o teto do quarto. Onde estava Joe? – Estou aqui, querida. Estamos todos aqui – assegurou Claire. – Joe? Joe está...? – choraminguei. – Oh, não. Oh, Deus, não. Claire me encarou impotente, as lágrimas rolando pelo rosto. Cindy agarrou uma das minhas mãos. Yuki chorava, vindo na minha direção. Eu me sentia devastada por um vazio horrível, uma dor tão profunda, impactante. Queria morrer. Virei-me de lado para que não pudesse ver ninguém e cobri a cabeça com um travesseiro, soluçando. – Estou aqui, docinho – disse Claire. – Diga a todos para irem para casa. Por favor. Ela não falou nada. A porta se fechou. Tomei o travesseiro de Joe nos braços e mergulhei num sono que parecia mais a queda em um buraco sem m. Acordei sem saber por que me afogava em temor. – Que horas são? – perguntei na direção do travesseiro. – Quase cinco – respondeu Claire. – Da tarde? – Sim. – Só cochilei por uma hora? – Vou pegar alguma coisa para ajudar a dormir – avisou ela. – Prescrevi uma receita. Puxei a coberta sobre a cabeça. Surgi das profundezas de novo, dessa vez em meio a um rugido de vozes, saudações. Que merda? Será que eu ainda estava sonhando? A porta do quarto se abriu. As luzes brilhavam. Joe estava diante de mim. – Joe! Era ele mesmo? Ou eu enlouquecera? Joe abrira os braços e me joguei nele, sentindo a lã do seu blusão arranhar o meu rosto, ouvindo a sua voz dizer o meu nome. Afastei-me e voltei a olhar para ter certeza. Agora, o quarto estava cheio, todos os amigos observando. – Estou bem, estou bem, querida. Estou aqui. Eu chorava de novo e pedia a Joe para me contar o que tinha acontecido. – Eu estava no Aeroporto Internacional de São Francisco quando recebi uma ligação dos meus contatos em Washington avisando que os passageiros naquele avião tinham dominado Waleed. Tudo estava acabado. Eu podia voltar para casa. Fez uma pausa e continuou:
– Depois, fui providenciar um carro. Não sabia sobre a queda daquele jato, Lindsay, até o motorista ligar o rádio e me dar a notícia. Ajudaram-me a sair do quarto e me levaram para a mesa. Joe se sentou ao meu lado. A comida tinha gosto de borracha e estava fria. Mas era a melhor refeição que eu já tivera em toda a minha vida. Serviu-se vinho. Brindes foram feitos. Olhei ao redor da mesa e, por fim, percebi. Jacobi não estava ali. – Rich, tem notícias de Jacobi? – Ele não telefonou – respondeu o meu parceiro. Brindamos à nova namorada de Jacobi. Comemos com gosto a torta de maçã feita por Joe e, a propósito, os 49ers venceram. Sentia-me fraca por causa da emoção e nem tentei impedir que o pessoal limpasse a mesa. Por volta das oito horas, eu estava na cama para passar a noite abraçada a Joe.
capítulo 117
O TELEFONE TOCOU DIVERSAS VEZES naquela noite e na manhã seguinte também. Eu disse a Joe que, se atendesse, ele era um homem morto. Arranquei o o do telefone, coloquei ambos os celulares no cofre da parede e mudei a combinação. Levamos Martha para uma corrida e, quando voltamos, ele preparou omeletes de presunto e queijo com as sobras do jantar. Como já passava do meio-dia, abrimos o vinho que Miles trouxera. Joe bebia aos golinhos, olhando para a garrafa e exclamando “Uau”. Havíamos comprado a primeira temporada completa de Lost. No entanto, nunca tivéramos tido tempo para assistir. Puxamos as poltronas para perto da TV e passamos por seis episódios. Depois, zemos uma pausa para pizza e cerveja e assistimos ao noticiário. Soubemos que o avião que caíra não tinha sido sabotado. A causa fora falha do piloto e quatro pessoas haviam morrido. Ficamos de molho e assistimos a mais cinco horas de Lost. Suponho que algumas pessoas diriam que isso era um dia desperdiçado. No entanto, eu precisava de Joe, de cerveja e de fantasia na TV , nessa ordem. Adormeci nos seus braços assistindo à apresentação de um comediante de um talk show. Desliguei a televisão e sacudi Joe para acordá-lo. – Hein? – Amo você – declarei. – Claro que sim. Também amo você. Gostaria que houvesse uma forma melhor e mais expressiva de dizer isso. Pena que você não pode deslizar por minha pele, entrar sorrateiramente e sentir o quanto a amo. Dei uma risada. Nossa, era bom poder rir. – Acredito em você, querido – afirmei. Quando acordei de novo, era de manhã. Levei Martha para um passeio e, ao retornarmos, observei Joe dormindo enquanto eu me vestia. Voltei a ligar os telefones nas tomadas e bebi um copo inteiro de suco de laranja. Coloquei o coldre com a arma, abri o cofre no closet e tirei de lá os celulares. Deixei o de Joe na mesinha de cabeceira e o beijei. Ele abriu os olhos. – Como está se sentindo, loura? – Nunca estive melhor – respondi. – Ligue para mim mais tarde. Martha subiu na cama para car com ele e saí em direção ao carro, lembrando de checar as mensagens enquanto me sentava ao volante. Perdera quatro chamadas, todas de Jacobi. Fiquei alarmada e me senti bastante culpada. Adoro Jacobi. Amo-o como a um pai que gostaria de ter tido. O que acontecera? O quanto será que o desapontara? Apertei as teclas e escutei a primeira mensagem: “Lindsay, lamento não ter participado do jantar, mas estive em connamento na Central com Tracchio e o prefeito. Esta é a conclusão: Tracchio deu um basta. Ele está se demitindo e eu agora sou capitão.” Fiquei boquiaberta e irritada quando o bipe o cortou. Assim, apertei a tecla para passar à próxima mensagem: “Como eu dizia, Lindsay, você pode ter o seu velho cargo de volta. Você será tenente de novo, com todos os privilégios.” Ele riu. “Mas, com certeza, pode chamar os atiradores da Homicídios. Conseguirei mais efetivo policial, prometo. Se não quiser, darei o cargo para Jackson Brady. Você tem preferência, mas precisa me informar agora. O chefe vai fazer o pronunciamento na terça-feira, no início da manhã.” Os dois telefonemas seguintes de Jacobi foram breves: “Lindsay, ligue de volta.” O último fora na noite anterior. Eu perdera um prazo final que nem sabia que tinha. O que Jacobi decidira fazer? Ser substituído por mim? Ou por Jackson Brady? Era claro que eu perdera a chance de escolher. Tentei telefonar duas vezes para Jacobi. No entanto, dava sinal de ocupado. Liguei o carro e tomei o rumo do Tribunal de Justiça, mas para onde eu estava me dirigindo mesmo? Não tinha ideia.
James Patterson
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